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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NO CALOR DE SEUS BRAÇOS / Josiane da Veiga
NO CALOR DE SEUS BRAÇOS / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

De Guerra, Antônio tinha apenas o sobrenome. Desde que nasceu, e isso já se ia quase sessenta anos, ele não se lembrava de lutar por qualquer coisa naquela vida miserável, carregada de desilusão.
Perdeu os pais na juventude, a vaga na faculdade para um colega oportunista que lhe roubou as anotações do curso e que lhe deixou sem estudar nos últimos dias de exame, e a carreira em uma firma renomada para uma mulher com menos talento que ele. A esposa fugiu com um bêbado boêmio que costumava cantarolar Roberto Carlos nos bares da cidade baixa, em Porto Alegre... E, naquele momento, estava prestes a perder a vida por conta de uma dívida com o comerciante de joias mais abastado da cidade.
Ainda assim, ele não sentia nenhuma inclinação de luta. Na verdade, tudo que imaginava, pensava e queria, era apenas gargalhar diante dos olhos repletos de ódio de Otiz, o fiador que lhe emprestara mais que dinheiro, que lhe dera um montante de pedras preciosas oriundas do Qatar, aos quais Antônio havia dito que venderia a uma comissão exemplar.
Sim, ele as vendeu. Mas, assim que esteve com o valor em mãos, não conseguiu controlar a vontade de beber e se divertir nos famosos puteiros da Farrapos.
A vida em Porto Alegre, capital dos gaúchos, podia ser bem divertida para quem têm dinheiro em mãos. Apesar de o Centro Histórico ter aquele cheiro velhaco, como um mofo não limpo, havia nele locais interessantes para se ver, viver e sentir. Havia magia. De tudo, o que restava era isso: a réstia de amor pela vida, e pelo viver sem rédeas.

 


 


Contudo, para viver sem limites era preciso dinheiro. E então, resolveu arriscar. Não pensou que Otiz fosse se irritar tanto, mas parece que o Árabe mestiço que tinha uma loja de ouro não parecia disposto a aceitar sua rebeldia.

— Últimas palavras? — Otiz murmurou, pronto para puxar o gatilho.

— Eu soube de boatos — Antônio gemeu. O nariz sangrava e os olhos tinham uma enorme aréola vermelha. — Seu patrão — apontou. — A família Hayek — se explicou. — Eu soube que o herdeiro precisa se casar com uma brasileira.

Otiz baixou a arma.

— O patriarca, Wafa, não quer qualquer mulher — perseverou .

— Eu sei, eu sei — Antônio murmurou, rapidamente. — A moça, em especial, precisa ser recatada, intocada, e ser entregue pelo próprio pai, na ocasião do seu casamento.

— E você sabe onde existe uma mulher assim?

Antônio apontou para si mesmo.

— Eu tenho uma filha.

— Deve ser uma vadia, para ter um pai lixo como você.

— Não a criei — explicou-se rapidamente. — Ela cresceu sozinha. Mas, sei como está, sempre procuro saber como vai sua vida...

— Para quê? Se não a criou, no que te interessa?

— Estou ficando velho — foi sincero. — Talvez eu ainda precise dela, para cuidar de mim.

Otiz pareceu meditar na frase.

— Eu a darei em casamento, para o herdeiro dos Hayek — apontou. — Em troca, tudo que peço, é o perdão de minhas dívidas e um saldo restante, para que eu tenha algum tempo sem me preocupar com dinheiro.

Otiz pareceu pensar.

— Sei que o prazo dado pelo sheik Wafa está chegando ao fim. Não quer, ao menos, tentar arriscar? Quem sabe conseguirá ficar em bons olhos com seu chefe.

Otiz pôs a arma na cintura. Era nítido em seu olhar que havia uma mistura tremenda de pensamentos desconexos.

O comerciante de joias sabia que Darius Hayek andava encrencado com a família. Único herdeiro do poderoso Wafa, sua vida desgarrada, cercada de beldades e de prazeres descomedidos e mundanos, havia trazido sobre ele má fama com o avô. Depois de muitas brigas, Wafa decidiu que mudaria o testamento caso, em um ano, o neto não se casasse com uma moça honrada, aprovada pela família, e de origem latina.

Parecia algo simples a se fazer, não fosse o fato de que Darius tinha uma amante que queria transformar em esposa e o completo descompromisso com o tempo. Só deu-se conta que o tempo estava se findando quando ele, definitivamente, estava se findando. Avisou aos empregados no Brasil que arrumassem uma garota. Qualquer uma. Porém, não era tarefa fácil achar virgens que os pais venderiam de bom grado a um sheik árabe. A fama de violência daqueles homens os precedia, e logo Darius viu-se sem saída.

Caso não arrumasse uma esposa – logo – ficaria sem a fortuna da família, repassada a um primo distante que estava ansioso para que isso acontecesse.

Como Antônio sabia daquilo não era surpresa para Otiz. Desde que começaram as buscas a tal mulher, os rumores se espalharam. Até na internet acabaram parando, mas foram tratados com tom de ironia. Afinal de contas, quem acreditaria que um lindíssimo sheik árabe poderoso REALMENTE estava desesperado atrás de uma mulher para se tornar sua esposa por cerca de um ano?

— É verdade, não é? — Antônio murmurou diante do silêncio de Otiz, que dizia mais que mil palavras. — Por que Wafa quer uma brasileira?

— Anos atrás, Wafa esteve no país e se perdeu. Era início dos anos setenta, e uma jovem em São Paulo lhe deu assistência. Ficou com a imagem de que as mulheres daqui são generosas e capazes de amansar o coração de um homem. Wafa encantou-se pela garota, mas ela estava noiva de outro, e o dispensou.

Vendo que o árabe se acalmava, Antônio se ergueu.

— Temos um acordo, então?

— Sua filha vai aceitar?

— Depois que ela estiver no Qatar, não tem querer aceitar.

— Vai enganá-la, então?

— Isso é importante? O que importa é que eu assine a certidão de casamento, e ela durma uma vez com o sheik. Depois disso, Darius Hayek terá a garantia de sua fortuna, e eu a quitação da minha dívida com essa família.

Otiz assentiu.

O negócio estava fechado.

 


Capítulo 01

Rosário Guerra

 

Rosário abriu os olhos. O quarto escuro contrastava com a claridade vinda do corredor daquele pequeno apartamento do centro de Porto Alegre.

Ao longe, ouviu o barulho noturno, o agito dos passos, pessoas que pareciam começar o seu dia cedo demais, como se dormir fosse privilégio de poucos.

Apesar de ter apenas oito anos e ser uma desses seres privilegiados que poderia ficar na cama por mais tempo, ela viu-se erguendo-se e caminhando em direção ao corredor.

O pai não havia aparecido na noite anterior. Não se preocupava, era costume dele. Antônio Guerra não tinha tempo para a família. Isso era o que ela havia ouvido da voz paterna.

“ Sou ocupado, Rosário! ” ele reclamou, quando ela pediu para que a levasse ao jogo de um dos times da cidade, ao qual torcia. “ Peça a sua mãe ”.

Carla Guerra era igualmente ocupada. Sempre às voltas com cartas chegadas à portaria do prédio, escrevendo, rindo como se estivesse encantada, e saindo mais vezes do que a menina soubesse contar.

Porém, naquela madrugada, aproximadamente cinco horas da manhã, Carla parecia ainda mais estafada. Com rapidez, ela arrancava as roupas do armário e atirava tudo dentro de uma mala. Estava tão obcecada no seu afazer que mal notou a filha, parada à porta, encarando-a como se esperasse uma explicação. Como não veio, por fim, a garotinha de cabelos negros e olhos castanhos, indagou:

— Vamos passear, mama?

Só então deu-se conta da figura pequena parada adiante. Ergueu-se, arqueando os ombros, parecendo num misto de nervos com decisão.

— Rosário, nós temos que conversar — ela se aproximou.

Pela primeira vez que se lembrava, Rosário foi alvo da atenção materna. Enquanto era puxada até a cama, e colocada sentada sobre um colchão velho, ela sorriu, extasiada.

— Filha, eu conheci um homem — a mãe contou.

Rosário não entendeu. Ela quase nunca conseguia entender as implicações das frases dos pais. Nenhum deles tinha paciência para explicar nada a ela.

— E eu irei morar com ele — completou.

Subitamente, a mente raciocinou rápido. As malas... A mãe estava indo embora?

— Eu também irei? — questionou a pequena, ansiosa, já traçando mil vidas em sua imaginação.

Quem sabe um novo pai era tudo de que precisava. Alguém que a levasse aos jogos nos finais de semana, alguém que fosse caminhar com ela na Praça da Redenção, ou que a levasse para comer sorvete na Usina do Gasômetro.

— Augusto não quer saber de crianças. — A mãe explicou. — Irei sozinha, Rosário.

— Mas, e eu?

— Você já é uma mocinha! — ralhou, como se aquela criança fosse a culpada de todas as mazelas do seu universo. — Não atrapalhe a minha vida! — gritou. — Eu quero ser feliz, e não vou deixar que nada nem ninguém se coloque no meu caminho.

Antes que a menina conseguisse esboçar alguma reação, pegou a mala e saiu rapidamente do apartamento.

Não viu as lágrimas de Rosário, nem a escutou implorar que não a deixasse.

Carla Guerra saiu da vida da menina para nunca mais voltar.

***


Nicodemos saltou em cima do corpo feminino, fazendo Rosário Guerra gemer.

O miado alto e ranzinza fê-la acordar, imediatamente.

— Já vou... — murmurou.

Mais um miado. A resposta do seu filho de quatro patas deixou claro que ele estava sem paciência para esperar.

Enquanto afastava as cobertas e sentia um frio intenso percorrer seu corpo, a mulher de vinte e nove anos calçou as pantufas de lã e se abrigou no roupão do mesmo tecido, enquanto parecia rastejar até a cozinha.

Encheu o pote do gato preto com ração e então rumou até o banheiro. Só quanto postou-se embaixo da água quente foi que a memória do sonho voltou.

Não sabia exatamente qual a intenção daquele devaneio. Evitava pensar na mãe, desde que fora abandonada por ela, há mais de vinte anos.

Depois de Carla sumir, levou ainda dois dias para o pai surgir no apartamento. Naquele meio tempo, uma das vizinhas cuidou dela, enquanto avisava as suas tias, de que alguém tinha que ir amparar aquela garota.

Ninguém da família apareceu, além do pai. Antônio a encarou com aquele olhar medíocre, como se pensasse “ O que diabos vou fazer com isso? ” e então a pegou pela mão e a levou até a casa de uma das suas irmãs.

Naquele ano, entre 1995 e 1996, ela visitou diversos lares. Não se adaptou a nenhum. Incomodava, mesmo que evitasse falar, mesmo que evitasse aparecer às vistas, mesmo que tentasse comer pouco porque segundo a tia Marta ela era “uma enorme boca a mais na mesa!”.

Foi, aliás, na casa da tia Marta (a última a aceitá-la) que ela descobriu o significado da palavra estorvo.

“ É por isso que eu sou a favor do aborto!” Marta gritava, sempre. Parecia adorar falar alto. “ Se Carla tivesse te tirado quando descobriu que estava grávida, não teríamos esse estorvo em nossas vidas ”.

Como Rosário nunca podia ver TV com os primos (não que fosse proibido, os primos simplesmente gostavam de humilhá-la, renegando-a a esse único divertimento), ela correu para o quarto e buscou um dicionário abandonado.

Estorvo


aquilo que impede, embaraça a realização ou o desenvolvimento de algo; dificuldade, embaraço, obstáculo, estorvamento.

p.ext. pessoa ou acontecimento que causa aborrecimento a outrem.


Naquela noite, enquanto a tia resmungava para que apagasse a luz, porque ela gastava demais, e não podia ler a noite, Rosário escreveu a palavra “estorvo” em seu caderno mais de cem vezes.

No dia seguinte, foi levada a um abrigo. Tia Marta a deixou lá, gritando, dizendo que não era sua filha, que o Conselho Tutelar que procurasse “aquela puta da Carla”, e que não tinha obrigação nenhuma.

Chegou ao Lar de Meninas poucas horas depois, e de lá saiu apenas quando completou dezoito anos, munida de apenas uma calça, uma blusa, um livro velho, e a completa desilusão de alguém que não sabia o que fazer da vida.

Uma das professoras do abrigo, porém, lhe estendeu a mão. Rosário ficou um mês em sua casa, enquanto arrumava emprego e conseguia se instalar em uma pensão na zona norte.

Aquele primeiro emprego seria o seu único. Era incrivelmente hábil com papeis, responsável com o trabalho, a primeira a chegar, a última a sair. Virou o xodó do patrão, que a efetivou ao cargo de secretária particular.

Com o salário melhor, saiu da pensão e alugou uma quitinete bonita, perto da Azenha. Era próximo do trabalho, e ela conseguiu, finalmente, ter alguma tranquilidade.

Encontrou Nicodemos numa das noites em que voltava para casa depois de uma semana difícil. Era véspera da sexta-feira santa. Ao longe um pastor de uma Igreja pentecostal gritava um sermão, como se necessitasse que mais pessoas, além daquelas sentadas na sua igreja, o ouvissem. O gato abandonado e faminto estava cheio de sarna. Rosário pensou em seguir adiante, fingir que não viu, mas sabia que não faria com nenhum ser vivo o que haviam feito para com ela. O recolheu no exato momento que ouviu um trecho sobre Nicodemos. Naquele instante, o batizou com tal nome.

Era até cômico que a maioria das pessoas encontravam seus melhores amigos na faculdade, nas festas, nas ruas. Rosário encontrou seu melhor amigo no lixo.

Nicodemos era sua alegria ao chegar em casa. Ela sentava-se na sacada do pequeno apartamento, e o gato repousava aos seus pés. Compartilhavam, em silêncio, os pensamentos sobre a vida.

Rosário nunca pensava no passado. Era sempre adiante. Imaginava que um dia se apaixonaria e teria sua própria família. Seria a mãe que não teve. Seria tão feliz. Ela se agarrava nessas esperanças, era o que tinha, era o que não a deixava desesperar-se.

Porém, havia uma incômoda verdade que ela esforçava-se para ignorar.

Rosário era invisível. Não literalmente, claro. Ela era invisível aos olhos gerais, das pessoas que não conseguiam ver nada além da casca fechada e reclusa de alguém que já havia sofrido demais na vida.

Seu exterior não ajudava. Usava roupas típicas das “velhas solteironas”, como uma colega de trabalho havia chamado. Enfim, ela sentia-se segura assim. Com calças folgadas ou saias abaixo do joelho, camisas bem passadas e com todos os botões meticulosamente fechados, cabelos atados num coque severo e o rosto escondido atrás de um aro negro e grosso que a amparava naquela maldita miopia que chegava aos sete graus.

Era assim que ela era. Por mais que sonhasse em viver um romance semelhante aos dos livros de banca que costumava ler, sabia que aquilo dificilmente lhe aconteceria.

Apesar de tudo, seguia seus dias sem nenhuma reclamação. A vida já havia sido muito dura para ela. Aquela fase tranquila era confortadora.

Não sabia que era questão de tempo para tudo acabar.

***

 

Rosário Guerra comia uma simples omelete quando o som da campainha tocou.

Nicodemos e ela encararam-se, espantados, pelo barulho que jamais havia soado antes. Nunca recebeu visitas, e não esperava ninguém. Mesmo assim, em passos um tanto temerosos ela aproximou-se da porta.

Do outro lado, seus olhos encararam um homem de cabelos grisalhos e sorriso gentil.

Reconheceu-o imediatamente. Seu pai, Antônio Guerra parecia extremamente feliz e emocionado por vê-la.

— Olha... — ele murmurou, tocando seus ombros. — Como você cresceu, Rosário! É uma mulher feita!

Quis fechar a porta na cara dele. Mas, não tinha personalidade para tanto. Então, simplesmente lhe deu passagem e lhe serviu uma xícara de café.

Sentou-se diante do genitor, sem saber direito como encará-lo. Sentia vergonha. Vergonha de ser um estorvo do qual ele teve que se livrar.

— Fui um péssimo pai, Rosário — Antônio murmurou, diante da mudez dela. — Eu sei que não tenho direito de vir aqui, te incomodar com a minha presença, mas... eu mudei, filha.

— Mudou?

— A vida me mudou. A vida mostrou-me meus erros. Eu sei que não posso voltar no tempo e refazer nosso passado, mas quero uma chance de ser uma família para você, a partir de agora.

Qual pessoa, com o histórico de rejeição de Rosário, não sorriria diante daquela frase? A necessidade de ter uma família, alguém para ela, sempre esteve ali, em seu íntimo, afogada em lágrimas que ela só derramava a noite, no travesseiro.

— Ganhei uma viagem com acompanhante do meu patrão — Antônio comentou. — Para o Qatar. Já ouviu falar?

— Pouca coisa.

— É uma das joias do Oriente. Rico em petróleo, lá as mulheres trabalham, sabe? Não é tão aterrorizador quando aqueles países que a gente assiste na TV. Eu gostaria muito que você me acompanhasse...

— Acompanhar?

— Sim, uma viagem de pai e filha! — Antônio exclamou. — Um recomeço para nós. Uma viagem de férias, uma pequena folga, não mais que sete dias, e poderemos conhecer lugares turísticos, tirar fotos... O que me diz?

Antes mesmo de ela responder, Antônio percebeu no brilho daquele olhar esperançoso uma resposta afirmativa.

 


Capítulo 02

Darius Hayek


— Ela é gorda! — Darius encarou a foto com nítido despeito. Depois, volveu o olhar para o avô, como se exigisse dele um pedido de desculpas por supor que alguém do seu nível desposaria uma mulher sem eira nem beira. — E nem é muçulmana! — reclamou, esquecendo-se de que ele mesmo não o era. — Ainda que fosse,não valeria mais que um camelo .

O sheik Wafa encarou o neto. Seu olhar trazia um nítido traço de desgosto diante de palavras tão duras.

— O valor de uma pessoa não se mede pela aparência dela, Darius. Ofélia, por exemplo — citou a atual amante do neto, uma modelo francesa de uma renomada agência. — Eu não daria uma ovelha por ela.

— Ofélia é belíssima! — defendeu a amante, mesmo sabendo que ele mesmo não daria muito pela mulher.

Darius Hayek tinha trinta e dois anos. Já devia ter casado, e constituído uma família. Contudo, fugia daquilo porque sabia, claramente, que não era homem para ter um lar.

Em primeiro lugar, a palavra fidelidade não existia no seu dicionário. Não conseguia se imaginar dormindo com a mesma mulher o resto da vida. Em segundo, gostava da diversidade. Ofélia era sua atual, e nitidamente estava bastante ansiosa para um casamento, porém, ele já estava de olho em outra topmodel russa, de longos cabelos ruivos, que havia lhe chamado à atenção em uma determinada festa.

De tudo, era isso: ele gostava de esbanjar dinheiro, expor-se com vagabundas variadas e envergonhar o avô, apesar de saber que Wafa era a única pessoa no mundo que lhe amava.

— Você sabe — o avô murmurou, chamando sua atenção. — Você é um bom rapaz, Darius. Precisa de uma mulher que o faça entender isso. Eu te dei um ano para encontrar uma. Minha única exigência é que fosse uma moça honrada e disposta a ser uma boa esposa. Você sequer procurou, enquanto passava os dias viajando em iates com um harém digno do sultão.

O rapaz suspirou, desgostoso.

— Não é mais um garoto, e não vou mais tolerar que se comporte como um. Vai se casar e irá assumir a administração das nossas empresas. Estou velho e quero, sinceramente, que seja meu herdeiro. Mas, se não quer isso, não irei obrigá-lo, apenas repassarei tudo a seu primo.

— Com certeza Said está ansioso por isso — resmungou.

— Said tem trinta anos e já tem duas esposas e três filhos. E você? Nenhuma! E nenhuma criança! É um absurdo!

Wafa então retirou a foto das suas mãos e observou a moça. A fotografia havia sido tirada escondida, e entregue a ele juntamente com um relatório que continua todos os dados de Rosário Guerra.

Abandonada pela mãe, desamparada pelo pai, esteve em abrigos e lares infantis, sendo sempre deixada de lado em cada momento daquelas quase três décadas de vida. Muito batalhadora, subiu de cargo na empresa sem nenhum favor em especial, e não se envolvia com homens. Passava os dias vendo TV e brincando com um gato gordo e preto.

Era o tipo de mulher que ninguém notaria...

Mas, Wafa tinha experiência de vida para saber que ali estava uma bela pérola escondida dentro de uma concha.

Não era gorda, como o neto supunha. Tinha formas generosas, camufladas por um péssimo gosto pessoal para vestimentas. Não era feia, apenas escondia seus traços, como se, no fundo, quisesse permanecer anônima. As ancas largas e as pernas grossas lhe diziam que a moça seria uma boa parideira, e seu olhar afetuoso lhe remetia a uma mãe preparada.

Acima de tudo isso, o relatório deixava claro que era uma boa pessoa. Era exatamente a pessoa que procurava para o neto. Uma mulher doce e com um passado semelhante ao do rapaz de olhos verdes. Alguém que poderia entender seus rompantes, e lhe ajudar a superar sua dor.

— Darius, você tem outra pessoa em mente? Alguém para eu analisar? Porque seu prazo está acabando, e se for rejeitar a moça, que o faça agora.

— Vai realmente insistir nessa ideia?

— Eu sei que tem ódio da palavra “família”, por tudo que já passou. Mas, nem sempre...

— Eu não quero falar sobre isso! — Darius resmungou, erguendo-se da poltrona e encarando a janela do 10º andar da empresa que o avô administrava.

— Nem todas as mulheres são como Nádia.

— Eu já disse que não quero falar sobre isso! — ralhou.

— Precisa falar! — o avô insistiu. — Nádia foi cruel e desumana com você, mas lembre-se de quem lhe acolheu depois de tudo? Sua avó Alzira. E sua avó lhe deu todo amor que podia, até o dia em que parou de respirar.

— Sou grato a minha avó por isso — ele murmurou, subitamente enlutado, novamente.

— Eu sei que espera que seu casamento possa ser como o de seus pais. Mas, também existe a probabilidade de que seu matrimônio seja como o meu. Alzira e eu fomos muito felizes. É verdade que tivemos nossos problemas, eu até pensei em ter mais uma esposa, para tentar acalmar um pouco sua avó, que adorava fofocar e me irritar, mas no fundo... No fundo eu sempre soube que Alzira era única. É apenas isso que quero que encontre. Que ache alguém que seja única para você. Como um espelho. Desejo que olhe para uma mulher e veja a si mesmo.

— E acha que eu vou encontrar meu reflexo em uma gorda brasileira? — Darius gargalhou.

— Em alguém que tem o mesmo olhar que o seu. Alguém que também sabe o que é rejeição.

— Duvido que essa tal Rosário tenha sido renegada como eu fui. Diga-me, avô, ela também foi deixada pela mãe no mesmo dia que o pai faleceu? Também viu a mãe fingindo não conhecê-la porque não quer que seus irmãos saibam que a mulher que lhes deu a vida teve um passado que incluía um filho e um marido morto?

— Eu não sei, filho — Wafa respondeu. — Mas, eu vejo dor naqueles olhos abatidos. E vejo em você. Por isso eu a aprovei. Porque eu te enxergo no olhar dessa brasileira.

Darius resmungou algo incompreensivo e preparou-se para sair.

— Os japoneses chamam de Akai Ito , a linha do destino. Os ocidentais falam sobre almas gêmeas, destinadas uma a outra. Eu apenas vejo que é Maktub .

Darius volveu para o olhar para o avô.

— Estava escrito — Wafa afirmou. — Eu sei e você sabe. É por isso que está tão desesperado para fugir, colocando defeitos onde não existem.

Darius negou com a face. Era incapaz de dizer qualquer coisa.

— Dê-me sua resposta — o avô exigiu. — A moça embarcará hoje para o Qatar, e não quero que perca seu tempo, caso você não a aceite.

Darius pareceu pensar por alguns segundos. Parecia a mais difícil das decisões.

— Maktub — disse por fim. — Se está escrito, quem sou eu para dizer o contrário?

E com aquela afirmativa, enfim saiu do escritório.

***

 

Os gritos de Ofélia podiam ser ouvidos ao longe, mesmo assim, Darius apenas arqueou as sobrancelhas, como se estivesse cansado demais para ficar discutindo.

— A decisão já foi tomada — comunicou. — E nenhum escândalo que fizer mudará isso.

— Todas as revistas já sabem do nosso envolvimento! — ela prevaleceu. — Como ficará a minha cara diante dos holofotes?

É claro que ela se preocupava unicamente com sua imagem pública. Não eram assim as mulheres?

— Minha família não te aprova e não perderei minha herança por sua causa. Além disso, o contrato estipula o prazo de um ano. Irei me divorciar da tal Rosário depois disso.

— E iremos nos casar? — ela indagou, ansiosa.

— Talvez.

Obviamente, não se casaria com ela. Mas, no momento, não queria perder o sexo que Ofélia oferecia.

Subitamente, sentiu os braços femininos a cercá-lo. Ela se aninhou nele, como uma gata manhosa querendo carinho.

— Prometa-me de que não irá gostar dessa esposa que Wafa te arrumou.

A gargalhada de Darius tranquilizou-a.

— Só se eu fosse cego. Talvez, nem assim. Você quer ver a foto dela?

Puxou a fotografia do bolso e estendeu a Ofélia.

Ao contrário do que imaginou, o semblante da amante ficou preocupado.

— É bonita — a outra murmurou.

— Está louca?

Ofélia lhe devolveu a fotografia.

— Farei da vida dela um inferno, assim ela mesmo irá desejar o divórcio no final dos doze meses — jurou.

Darius riu, baixinho, imaginando o quão intimidada alguém como Rosário Guerra ficaria diante de uma modelo famosa e desejável como Ofélia Marc.

— Faça o que quiser, eu não me importo — murmurou.

Depois disso, atraiu-a para seus braços e fizeram amor o restante da tarde.

 


Capítulo 03

O Contrato


Os olhos castanhos arregalaram-se diante da visão que se estendia no horizonte.

Rosário Guerra não fazia ideia do quão poderoso era aquele pequeno país árabe, com seus prédios altos, alcançando as nuvens, e repleto de gente circulando com o olhar circunspecto, como se estivessem ocupados demais para reparar naqueles dois estrangeiros.

Assim que pousaram, o pai olhava a cada segundo para o relógio de pulso. Parecia nervoso. Ela sequer imaginava o porquê. Estava feliz demais por sua primeira viagem internacional, a conhecer uma cultura totalmente oposta da dela para se ater no semblante apreensivo do outro.

Com o coração sangrando, deixou Nicodemos num hotel felino em Porto Alegre, e então embarcou naquela tentativa de reconciliação paterna.

Estava ali, não apenas com o corpo, mas também com a alma e o coração. Queria por demais que Antônio e ela se acertassem, se descobrissem como pai e filha.

Quantas coisas poderiam ter em comum? Quantos momentos haviam perdido naquele tempo afastados que poderiam ter sido aproveitados em curar as feridas de ambos?

— O Qatar vai sediar a Copa de 2022, não é? — ela encarou o pai, erguendo o celular, ansiosa para tirar uma foto.

Não recebeu resposta. Então voltou-se para o genitor, que olhava adiante, e sorria para alguém que se aproximava. Viu um homem de meia idade trocar um cumprimento formal com Antônio e então indicar um automóvel próximo.

Lá, uma jovem sorridente e usando véu a aguardava.

— Sou Zara, senhora — ela se apresentou, num português carregado de sotaque. — Deixe-me ajudá-la a ficar apresentável.

Antes mesmo de Rosário conseguir meditar, a moça cobriu seus cabelos com um lenço longo. Como imaginava ser costume local, não se incomodou e apenas sorriu, em agradecimento.

— Trabalhei em Portugal por muitos anos, para um turco — Zara explicou. — Sheik Darius mandou chamar-me a fim de servir a nova matriarca da casa, agora, já que domino o idioma.

As implicações daquelas palavras não passaram despercebidas. Rosário voltou-se para o pai, mas Antônio já havia desaparecido de suas vistas, assim como sua mala e seu passaporte.

— Eu não entendo — murmurou.

E não mentia.

Tudo em sua mente era um emaranhado de medo e desespero.

— Fique tranquila, senhora. Irá para a casa do Sheik Wafa. Será muito bem tratada. Lá lhe explicarão tudo.

Mesmo que todos os seus instintos lhe dissessem para sair correndo, Rosário viu-se a entrar no automóvel, em busca de respostas.

***


Aquilo não era uma casa.

Enquanto a boca abria, involuntariamente, diante do enorme castelo cercado por coqueiros e uma área extensa que mais assemelhava-se a um oásis no meio do deserto, Rosário percebeu um número amplo de criadas e curiosos a encará-la, ao longe.

Zara segurou sua mão, carinhosamente. Volveu o olhar para a criada, percebendo só então que a outra era uma bonita jovem de vinte e poucos anos. Bonita demais, aliás, para uma simples serviçal.

— Não deixem que a intimidem, senhora — Zara aconselhou. — Será a primeira esposa, a mais poderosa de todas aqui.

As palavras cravaram fundo, e por pouco Rosário não livrou-se das mãos e saiu correndo daquele ambiente.

O que a impediu foi a visão do pai, diante de um senhor bonito, alto e de cabelos e barbas grisalhas.

Tudo que queria, naquele momento, era respostas. Assim que entrou no salão, o homem, provavelmente o dono daquela casa, sorriu para ela, e afastou-se, deixando-a a sós com seu pai.

— A moça me disse — ela começou, mas foi interrompida.

— Você, Rosário, tem a chance de salvar seu pai e salvar a si mesma daquela vida miserável em Porto Alegre.

— O que está dizendo?

Subitamente, a falta de ar que sempre a comedia quando ficava nervosa, tomou-a de assalto. Precisou sentar-se.

— Eu te arrumei um bom marido. Um marido honrado, digno, alguém para trazer orgulho...

— Do que está falando? Você enganou-me?

Antônio a encarou de cima a baixo. Seu semblante denotava o quanto as palavras o haviam enfurecido.

— Você destruiu minha vida, tornou-se um fardo, foi a culpada por sua mãe ter saído de casa. E agora, quando tudo que te peço é ajuda para um grave problema do qual...

Os primeiros soluços da mulher tornaram-se audíveis. Era um misto de desespero com pânico. Ela queria sair de perto do pai, queria fugir para o mais longe que pudesse.

Por que abriu aquela porta?

Por que considerou as palavras falsas daquele homem?

O que ela havia feito consigo mesma?

Repentinamente, outro homem entrou na sala. O olhar de ambos se encontrou, e ela estremeceu.

Ele era simplesmente intimidante, como nenhum outro que havia conhecido até então. Alto, de olhos intensos e verdes, e corpo bem definido, andava como um guepardo diante da caça.

Sem nenhuma palavra, seu pai saiu do ambiente, deixando-a com o rapaz que usava clássicas roupas muçulmanas.

— Sou Darius Hayek. — ele apresentou-se, em português. — Você é Rosário, não é?

Ela assentiu.

— Sei que está apavorada, fui informado que não sabia os motivos dessa viagem, e que foi enganada para vir até aqui, mas acho que precisa me ouvir antes de tomar qualquer decisão.

Sentou-se diante dela. Rosário pareceu se encolher mais.

— Sou neto do Sheik Wafa e seu único herdeiro. Porém, meu avô insiste que eu me case. De início, ele não colocou condições, mas depois de, admito eu, ter abusado de sua paciência, ele impôs algumas regras e um prazo. O prazo está acabando e você se encaixa nas regras. Eu preciso de uma esposa, apenas por um ano, para poder herdar todos os bens de meu avô. Assim sendo, estou disposto a ser generoso com você, caso aceite minha proposta.

Rosária estava estafada. Em algum lugar na sua memória lembrou-se dos livros de Lynne Graham, onde sheiks bonitos como aquele surgiam do nada para desposas moças sem sal, exatamente como ela.

Porém, a vida não era um livro, e ela havia perdido a fé nos contos de fadas.

— Agradeço sua oferta, mas tenho uma vida em Porto Alegre.

— Uma vida? — o tom era zombeteiro. Claramente, ele estava se esforçando para não transparecer uma postura arrogante. — Sozinha, sem amigos, sequer um homem para lhe esquentar em dias frios? Você não vive, apenas resiste aos dias que se passam. Contudo, tudo isso pode mudar. Depois que passar um ano, lhe entregarei a carta de divórcio e uma soma substancial em dinheiro. Poderá voltar para seu país sem nenhuma preocupação financeira. Terá tudo que as mulheres sonham.

— Meu único sonho se resume em ter paz.

Darius molhou os lábios com a língua. Estava irritado.

— Tem consciência que estou tentando aliviar esse momento para você, não é? Estou apenas lhe dando uma pequena cortesia. Pelas leis locais, seu pai tem poder de decisão. Ele assinará o contrato de casamento, e você será minha esposa. Porém, estou tentando te dar uma perspectiva otimista. Não quero ter que passar esse ano que teremos que conviver apenas de brigas e disputas infantis.

Silêncio.

Darius a encarava com o aspecto tão frio que a arrepiava. Estava com medo de tudo, especialmente do que poderia acontecer a ela caso se recusasse.

Ouvira falar que mulheres eram mortas à pedradas por rebeldia. O alcorão também permitia castigos físicos, não era? Pelos céus, não conhecia nada daquela cultura! Não sabia se naquele país tão moderno em arquitetura, as leis severas também prevaleciam.

Por que não estudou melhor o Qatar antes de ir para lá? Tudo que pensou foi em tirar fotos, visitar estádios e conversar com o pai.

Agora estava ali, num castelo, sendo analisada friamente por um homem que a arrepiava.

O que ela faria, por Deus?

***

 

Darius Hayek não poderia dizer que não gostou do que viu. A mulher era bem mais bonita que na fotografia.

Não era gorda, como ele supunha, apenas mais encorpada do que as suas frequentes amantes do mundo da moda. Não era feia, tampouco. Se tirasse aqueles óculos horrendos, talvez até desse para não se envergonhar do rosto.

Mas, acima de tudo, como se vestia mal. Ele sentiu ímpetos de arrancar aquelas roupas e jogá-las no fogo.

O pensamento lhe remeteu a uma Rosário nua. Recostou-se na poltrona enquanto analisava o tamanho dos seios e do quadril.

É... Iria servir.

Claro, não para algo vitalício, mas serviria para passar o tempo.

— Eu poderia aceitar — ela comentou, por fim.

Ele sorriu. É claro que aceitaria. Ele estava lhe oferecendo dinheiro e status. Que mulher seria burra para se recusar aquilo?

— Mas eu teria uma condição.

Igualmente, era óbvio que teria. Não eram todas assim, movidas a interesse?

— O que você quer?

— Nicodemos.

Ela queria um homem? E que diabo de nome esquisito!

— Meu gatinho ficou em Porto Alegre, em um hotel de animais. Essa viagem seria curta, não posso ficar sem ele por um ano.

Pelos céus, que mulher asna! Todo aquele olhar lacrimejante era por causa da porcaria de um gato?

— Será trazido até você.

O suspiro de alívio era sincero e o surpreendeu.

— Quanto ao dinheiro... Bom, você será bem recompensada financeiramente.

Silêncio.

— E assinarei os papeis de divórcio ainda hoje. Tão logo o tempo se cumpra, serão entregues a você. Assim que se findar o prazo, poderá sair do país com eles. Alguma pergunta?

— Como sabe meu idioma?

Darius começou a irritar-se com aquela nítida demonstração de inocência. Sabia serem as mulheres bichos traiçoeiros e falsos, mas a que estava diante de si falava e olhava como sua falecida e amorosa avó.

— Eu sei muitos idiomas.

Ela assentiu.

— Eu aceitei sua proposta, você não vai bater em mim, não é?

Uma gargalhada histérica escapou dos lábios de Darius. Então, tudo aquilo era medo?

— A única coisa que terá de mim é prazer, querida. De todas as formas. Te darei um nome, dinheiro e privilégios. Depois, à noite, na cama, te satisfarei tanto que implorará para que eu não anule nosso casamento. — Arqueou-se para frente. Olhou-a diretamente nos olhos. — E então eu vou rir da sua tolice, por ter se apaixonado por alguém como eu.

Levantou-se, rumando em direção à porta.

— Aceite um bom conselho: não tema as dores físicas. Será bem tratada nessa casa. Mas, proteja sua alma e seu coração das dores da alma. Sou o tipo de homem que devasta uma mulher. Não quero transformá-la na próxima vítima.

E saiu, sem olhar para trás.

 


Capítulo 04

O Casamento


Quando tinha dez anos, uma das professoras do Lar em que ficava levou um VHS do filme Aladdin . Rosário recordava-se de ficar encantada com aquele deserto mágico, aquele gênio irreverente e com o amor de Jasmine e Aladdin. Imaginou, platonicamente, que um dia também se casaria no deserto, também teria seu próprio árabe que a trataria como uma princesa, e viveria as mil e uma noites de um universo encantado.

Agora, sentada em tapetes persas e cercadas por mulheres que não paravam de tagarelar, a noiva mal conseguia respirar.

Sufocada por palavras que não poderia expressar, a mente de Rosário focava-se na praticidade: ela precisava recuperar o passaporte e conseguir chegar até a embaixada brasileira nos Emirados Árabes.

Suspirou.

Céus, sinceramente ela sequer sabia se havia realmente uma embaixada brasileira ali.

De tudo, restava apenas a esperança de que o marido, Darius, cumprisse sua palavra. Sentiu vontade de gargalhar quando ele jogou sobre ela aquele discurso galanteador.

Se ele achava que ela iria se apaixonar, estava muito enganado. Se um dia acontecesse, Rosário tinha certeza que seria por alguém bondoso e gentil, não um homem com olhos sedentos de algo pecaminoso.

— Está muito quieta, minha senhora — Zara comentou, ao seu lado. — Não carece se importar com o que essas idiotas falam.

Então, as mulheres falavam dela? Rosário encarou a serva.

— O que elas dizem?

— Não sabe?

— Não sei o idioma de vocês...

Zara enrubesceu.

— Devia ter ficado quieta, senhora. É seu casamento, apenas aproveite.

— O que elas dizem, Zara?

A serva pareceu piedosa e incomodada ao falar:

— Que Sheik Darius poderia ter escolhido a mais bela das mulheres, mas escolheu uma gorda defeituosa que nem vê direito.

As palavras não a magoaram, nem a incomodaram. Não se importava com que aquelas pessoas pensavam. Não se importavam com os quilos a mais, ou de ter que usar óculos. Nada ali a atingia.

— Está tudo bem, Zara. — Bateu de leve no ombro da serva.

— Minha senhora não precisa se afligir por isso. É inveja. Todas as mulheres do Qatar gostariam de terem casado com Sheik Darius. Todas foram recusadas por ele. Mas, ele a viu, entre todas no mundo. Isso é tão romântico.

Rosário riria se não estivesse tão deprimida.

— Diga-me, que horas os homens chegam?

Queria falar com o pai, pela última vez. Dir-lhe-ia todas as verdades do mundo e lhe avisaria que nunca mais a procurasse.

— Como assim, minha senhora?

— É um casamento, mas só há mulheres aqui.

— Sim, os homens tem a festa deles, onde falam de futebol, religião e de outras mulheres. Não nos misturamos — ela alertou. — A senhora foi arrumada com seda apenas para que, mais tarde, seu marido tenha a honra de vê-la.

Mais uma vez, seus sonhos de contos de fadas foram apagados pela realidade. Tudo naquela cultura era diferente. Como mulher, sentia-se inferiorizada. Ela sequer tinha o direito de escolha, seria seu pai, o maldito, que assinaria a certidão de casamento.

Enquanto era alvo dos risos femininos daquela sala, os homens divertiam-se organizando seu destino;

Era um absurdo que, em plena era de desenvolvimento, Rosário fosse vítima de tamanho machismo.

Subitamente, mais burburinhos. Ergueu a face e deu de cara com uma linda mulher loira, que vestia um requintado vestido de cetim. Suas formas perfeitas e seu rosto sedutor intimidava, mas era o olhar de desprezo que fez com que Rosário sentisse-se completamente inferior.

— Então, essa é a noiva?

A mulher fez questão de indagar em português, para que Rosário entendesse.

Risos ao fundo. A cabeça de Rosário começou a latejar.

— Diga-me, como é ser usada como barganha? — A loira indagou, audaciosa. — Sabe que seu pai lhe trocou por dinheiro, não é? Aqui no Qatar é prática comum, mas para uma brasileira, você deve estar se sentindo um lixo.

Era verdade, mas um súbito orgulho preencheu o vazio de Rosário.

— Quem é você?

— A mulher que Darius quer casar. E ele irá, assim que cumprir esse acordo ridículo e se divorciar. Ele me pediu um ano de espera, e eu estarei aqui, no aguardo. Não serei uma segunda esposa, contudo. Ele vai te repudiar assim que o prazo acabar.

Por que ela falava como se aquilo pudesse incomodar Rosário?

— Se eu pudesse avançar no tempo, esse ano já teria se findado — devolveu, fazendo a outra arregalar os olhos.

A loira riu.

— Ora, ora... A gatinha tem unhas afiadas.

Rosário suspirou. Volveu o rosto para a serva, ignorando completamente a outra.

— Que horas isso termina?

Já não bastava ter que aguentar um casamento que não queria, pessoas rindo da sua aparência, descobrir que era moeda de troca para o pai, perder todos os seus sonhos românticos, ainda teria que aguentar uma despeitada que a considerava uma rival?

— Quer ir para o quarto? Aguardar o seu marido?

Duvidava muito que Darius fosse tentar uma aproximação sexual. Ele não falou nada sobre isso durante o acordo deles, e ela teve vergonha de perguntar. Para ele bastava às assinaturas, não é?

— Sim — respondeu, no entanto.

Zara ergueu-se e a ajudou a se levantar. Todas as mulheres começaram a cantar alto alguma musica típica enquanto tocavam seu ventre. Podiam considerá-la feia e sem graça, mas pelo jeito lhe desejavam fertilidade.

Cruzou pela loira, a outra segurou seu braço.

— Meu nome é Ofélia.

— Não perguntei — devolveu.

— Estou lhe dizendo mesmo assim. Ouvirá falar muito de mim — retrucou.

Puxando o braço, Rosário afastou-se.

***


Rosário foi levada até um bonito e requintado quarto, que ficava na área frontal daquele palacete.

Suspirou assim que se viu sozinha. Não se encantava pela beleza do lugar, nem pelos tapetes caros, a roupa de cama de linho finíssimo e o ouro que parecia ostentar ainda mais o lugar.

Tudo que ela queria era estar na sua casa, em Porto Alegre, na sua vida pacata, sem maiores preocupações.

Subitamente a porta abriu. Pensou que fosse Darius, e se assustou. Mas foi o rosto de um homem mais velho que surgiu diante dela.

— Não queria assustá-la — ele disse. Seu sorriso franco a acalmou. — Sou Wafa, seu avô, agora.

Rosário não estava disposta a entrar numa discussão com alguém que parecia estar ali para acalmá-la. Reconhecia o tom complacente e bondoso, e sorriu, em resposta.

Ao menos, alguém ali não a tratava mal.

— Minha querida, eu fico muito feliz que esteja entre nós. — Caminhou em sua direção, e depois segurou suas mãos. — Sou o sheik dessa cidade. Você sabe o que é um sheik?

— Alguém rico? — arriscou.

O sorriso dele era cômico. Definitivamente, percebeu, não fazia ideia dos simbolismos e significados que aquele status tinha. Tudo que ouvia sobre aqueles homens do deserto era baseado em romances escritos para afugentar a solidão, e filmes que serviam para fazê-la chorar.

— Sheik é alguém com muito estudo, que conduz a vida de um muçulmano. Alguém que se forma em teologia, que conhece as leis civis e morais, para conduzir o povo de nossa religião. Eu sou sheik desde a minha juventude, e insisti para que Darius também o fosse. Contudo, algum tempo atrás, já formado, ele renunciou o cargo. Um sheik jamais perde sua função, mas não é obrigado a exercê-la. Darius me confessou depois que não tinha mais fé em nada. Aquilo muito me angustiou, não porque sou um fanático religioso, mas porque sei que o grande motivo de Darius ter se afastado de Deus é porque ele se afastou das pessoas. Darius desaprendeu a amar. Ele vê o seu próximo como um caminho para alcançar um objetivo. Por isso, quis aprovar sua esposa. Nada contra Ofélia, – você já a deve ter conhecido. É uma mulher bonita, jovem e interessante – mas, ela não tem capacidade para ajudar Darius a voltar a ver as pessoas como os seres humanos que são.

Ele suspirou antes de prosseguir.

— Uma mulher pode salvar um homem da perdição, da mesma forma que pode destruí-lo. Darius foi destruído por uma mulher. Não uma amante, como você deve estar imaginando, mas por uma que o fez acreditar que sentimentos são folhas secas em dias de ventania.

Largou suas mãos, e voltou-se para a porta.

— Não quero meu neto como líder religioso. Quero apenas vê-lo como um homem melhor. Tudo que Darius faz, nos últimos anos, é envergonhar sua família, e afundar-se em vícios mundanos. Tem seus motivos, não vou negar, mas só alguém com a mesma dor é capaz de fazê-lo entender que esse não é o caminho que lhe trará paz.

Depois daquilo, o sheik saiu.

Rosário ficou abismada pelas palavras, mas era incapaz de sentir qualquer empatia.

Que sofrimento um homem rico e poderoso poderia ter? Darius não conhecia a dor. Ela conhecia. Enquanto ele se divertia com beldades, ela afogava-se na solidão e no desespero.

Não eram iguais. Nunca o seriam.

 


Capítulo 05

A primeira vez


Horas depois, já crente de que o marido não viria até ela naquela noite, Rosário retirou a longa bata de seda e vestiu uma camisola simples que encontrou no guarda-roupa.

Teve tempo de observar a tudo. Haviam preparado para ela roupas novas, muito bonitas e com tecido de excelente qualidade. Também havia uma penteadeira, com produtos de beleza, escova de cabelo, e uma caixa de joias com uma infinidade de colares, brincos e pulseiras.

Enfim, como esposa, ela devia estar feliz porque tudo ali exalava cuidado e carinho. Contudo, como mulher, ela sentia-se uma coitada, dada em casamento para alguém que não conhecia.

Darius Hayek era bonito. Muito. Isso ela sabia bem. Alto, corpo atlético, ombros largos, cabelos escuros e olhos verdes, claramente ele exalava uma masculinidade gritante. Porém, era o oposto de quem ela pensava para viver uma história de amor.

Primeiramente, jamais iria querer alguém tão bonito, onde a tornasse alvo de apontamentos que, aliás, já haviam começado.

“O que um homem como ele viu em uma mulher daquelas? ” ela quase conseguia ouvir as questões de terceiros em sua mente. Ninguém que os visse juntos poderia dizer que aquele casamento seria real.

Darius jamais a teria escolhido por esposa por vontade própria.

Depois disso, Rosário queria um homem calmo e pacífico. Na pouca conversa que teve com o sheik, soube que ele era o oposto disso. Seu tom era agressivo, quase animalesco.

Ela não tinha estrutura emocional para aguentar explosões masculinas.

Havia também o medo. Apesar de o homem ter dito que ela não devia temer castigos físicos, a verdade é que Rosário sabia, de antemão, que as pessoas mentiam e que depois que o pai dela assinasse a certidão de casamento, estaria nas mãos de Darius Hayek, para o bem ou para o mal.

Subitamente, a porta abriu, interrompendo seus pensamentos.

Em pleno ano de 2016, ela sentiu-se uma senhorita dos livros históricos ao esconder-se rapidamente embaixo do lençol. Por mais que a camisola fosse discreta e lhe cobrisse todas as formas, seu apavoramento perante aquela noite não deixava margens para nada além do pavor.

— Teve uma boa festa? — Darius indagou, retirando o paletó e o colocando sobre uma poltrona.

Rosário não respondeu.

— Achei que ficaria na festa — ela murmurou.

— Eles querem que eu consuma o casamento para comprovação de que é virgem.

— O quê?

Aquilo definitivamente era um pesadelo. Que hora Freddy Krueger entraria no quarto com um punhal?

— A ideia não me agrada, tampouco, mas eu sou homem e agora você é a minha mulher. Não se preocupe, sou um bom amante, e não sentirá nenhuma dor.

— Isso não fazia parte do nosso acordo — prevaleceu.

— Desculpe, mas um casamento precisa especificar a palavra “sexo”? Eu achei que casamento era exatamente para isso!

Rosário negou com a face.

— Eu não posso. Desculpe, realmente, não posso.

— Minha querida, você está tendo a chance de deixar de ser uma solteirona virgem, dona de um gato. O estereótipo do fracasso ocidental, que, aliás, é exatamente o que você é.

Ele sorriu, aproximando-se da cama.

— Ao menos voltará para o Brasil como algo além de um fracasso.

Subitamente, uma pancada no rosto.

Darius encarou Rosário com nítido assombro. Nunca, nenhuma mulher lhe agrediu. Até houve, certa vez, uma amante raivosa e ciumenta que tentou, mas ele lhe segurou os braços e lhe intimidou. Se tentasse levantar a mão para ele, Darius a mataria.

Depois daquilo, a antiga amante desistiu do combate e eles se separaram.

Agora, aquela coisinha sem sal do ocidente se achava no direito de lhe agredir?

Uma súbita necessidade de lhe devolver o tabefe lhe tomou. Porém, subitamente, deu-se conta do olhar acanhado, lacrimejante e desesperado por trás dos óculos de lentes grossas.

E então viu, naquela confusão de sentimentos, o medo, a rejeição e a desesperança.

Wafa lhe disse que enxergava Darius em Rosário. Estranhamente, ele também se viu.

— Eu não vou te machucar — ele murmurou, retirando os óculos dela. O olhar acastanhado era deslumbrante. — Não devia ter dito o que disse, não tenho nenhuma intenção de te magoar. Aliás, quero que passamos tranquilos esse ano que teremos que conviver. Porém, existem regras na minha cultura. Eu devo apresentar o lençol com sangue para os homens presentes na sala. É uma única noite, não mais lhe obrigarei a nada.

Rosário parecia pensar. Ela sabia que não haveria saída. Não era tola de pensar em enganar Wafa, com algum corte, como aconteciam nas telenovelas. Aquela afronta poderia lhe dar um castigo impensável.

— Por favor... — murmurou. — Apenas... Não me machuque — implorou.

Ele assentiu.

— Não tenho nenhuma intenção disso.


***


Darius encarou as formas femininas. À sua frente, Rosário tentava cobrir os seios de seu olhar febril, mas ele não permitiu.

Ora, se tinha que viver aquele momento, que fosse bem aproveitado.

Subitamente, recordou-se de uma explicação biológica que leu em livros na escola: os machos sempre preferiam as fêmeas de formas generosas porque lhes remetia a fertilidade.

Enquanto o sangue esquentava e ele sentia o corpo se aquecer, passeou com o olhar pelos peitos grandes, a barriga bonita, as coxas grossas. Pousou o olhar sobre o meio das suas pernas – que estavam bem fechadas – e sorriu diante do cuidado que ela tinha consigo, mesmo sabendo que não teria um homem.

Retirou a camisa, depois a calça. Ficou nu diante dela, mas Rosário não olhava para nada. Com os olhos fechados, ela estava completamente rígida em cima do leito. Suas mãos, em punhos cerrados, pareciam antever a dor.

Uma dor que ele não permitiria que ela sentisse.

Enquanto deitava-se em cima dela, segurou seu rosto.

— Abra os olhos. — Exigiu.

Rosário pareceu querer lhe desobedecer. Entretanto, em seguida, ela cumpriu sua vontade.

Encararam-se. Darius então sorriu.

— Fique com os olhos abertos, por favor — pediu.

Subitamente a beijou. Observou a reação da mulher. Era pura e delicada. Lambeu o lábio inferior, e depois lhe abriu o caminho com a língua.

Enquanto movia-se delicadamente sobre o corpo feminino, ele aprofundava-se no beijo, deixando-a sem ar.

Só então a soltou. Descendo vagarosamente para baixo, dando leves selinhos no seu pescoço, seus ombros, segurando firme seu seio, abocanhou-o.

Um leve gemido. Repentinamente, o movimento do corpo dela lhe fez olhar para cima. Viu-a com as duas mãos sobre os lábios, como se quisesse se impedir de sentir prazer.

Como se prazer fosse um erro, um pecado.

Sorriu. Rosário Guerra saberia naquela noite o que era o pecado mais doce e avassalador de todos.

Como um tigre, desceu para baixo. O olhar feminino cravou-se nos músculos das costas, que pareciam realmente felinos, enquanto ele esgueirava-se para seu centro de mulher.

Lera e ouvira falar sobre sexo oral durante toda a vida, mas nada a preparou para a sensação de uma língua quente dançando sobre seus grandes lábios.

Bastou dois beijos mais intensos sobre seu centro, para que ela perdesse a força nas pernas e as destravasse.

Alguns segundos de carinho ali, e ela sentiu uma onda forte de calor e prazer intensificando-se ao ponto de sufocá-la.

Foi naquele instante que Darius terminou de entreabrir suas pernas. Erguendo o corpo, ele colocou-se entre elas, e afundou-se na mulher, como se estivesse esperando por aquilo a vida toda.

Rosário sentiu o ímpeto de dor, aquela sensação de invasão, como se tudo significasse submissão e degradação. Mas, então, Darius voltou a beijá-la na boca, com carinho, e ela se acalmou.

— Está tudo bem — ele murmurou. — Estamos juntos nessa, sabia? — A indagação foi estranhamente confortadora. — Olhe — puxou sua mão e a levou até seu peito. — Veja como meu coração está batendo...

O primeiro movimento, de entrada e saída de seu corpo foi realizado com o olhar de ambos fixado um no outro.

Os demais, todavia, já foram sufocados pela dor mesclada a um prazer estranhamente torturante.

Era como um erro que os levasse a destruição. Quanto mais forte ficava o prazer, menos ele parecia significar. Nada bastava. Precisavam de mais, mais... mais...

E então, chegaram juntos ao topo daquela colina alta. Como se tudo que os houvesse levado até ali fosse apenas os traços bem escritos de alguém que controlava o destino.

 


Capítulo 06

Sentimentos


O som da porta abrindo-se fê-la afundar-se embaixo das cobertas. Ouviu o som de passos e sentiu, pelo arrepio no corpo, que Darius sentava-se do outro lado da cama.

— Comemoraram seu sangue como um gol numa partida de futebol.

O tom dele era cômico. Era como se não se importasse com a pureza da mulher.

Subitamente, lembrou-se das palavras de Sheik Wafa. Darius havia perdido a fé nos ritos de sua religião?

— Você não é muçulmano?

— Eu sou ateu há algum tempo — ele respondeu. — Obviamente, não tenho o costume de espalhar isso. Mas, acho que você não vai se incomodar com tal fato, não é?

Ela voltou-se para ele. Encararam-se pela primeira vez, depois do sexo.

— Eu sou cristã — ela murmurou.

— Por quê? — a pergunta dele quase a fez rir.

— Como assim, por quê?

— Por que acredita em algo?

Era algo que ela mesmo se indagava, em noites solitárias de Natal.

— Acho que alguém sempre cuidou de mim — murmurou. — Eu poderia estar pior do que estou. — Admitiu. — Na verdade, diante do meu histórico, é bem provável que eu poderia estar pior.

— Seu pai te vendeu para um desconhecido, e você acha que poderia estar pior?

Por que tudo que ele dizia parecia machucá-la tanto?

— Existem destinos piores — ela retrucou.

Ele sorriu, enquanto se deitava ao seu lado.

Depois do momento íntimo que tiveram, ela pareceu entender que não tinha que temê-lo. Darius Hayek poderia ter transformado sua primeira vez em um pesadelo, mas, mediante todo o ocorrido, ele esforçou-se para que ela não ficasse desconfortável.

— Você é um bom homem, Darius — ela disse, firme, corajosa, mesmo sabendo que seria rechaçada.

Não foi. O riso masculino inundou o ambiente.

— Você nem me conhece — ele suspirou, depois, fechando os olhos.

Rosário sorriu. Como uma zelosa professora, ela entendeu que o garotinho estava se auto protegendo. Era o que ela sempre fazia, quando queria afastar qualquer pessoa que tentasse sua amizade.

Repentinamente, entendeu que desejava que ambos fossem amigos.

E aquele pensamento foi bastante animador.


***

 

Não havia muito para uma mulher fazer no Qatar, além de cuidar de crianças ou tagarelar com as outras mulheres da casa. Como ela não conhecia o idioma - e Zara tinha dificuldades em lhe explicar -, e não tinha filhos, Rosário tentou se manter fora do caminho de Darius assistindo televisão ou lendo notícias pelo notebook dele, que sempre ficava no quarto.

O marido, aliás, desde o casamento, havia assumido a presidência da empresa da família. Ela não sabia exatamente o que os poderosos Hayek controlavam, mas ouvira que era algo referente a pedras preciosas e petróleo.

Sua vida passou a uma rotina tranquila. Darius cumpriu sua palavra. Depois da primeira noite, não a tocou mais. Conforme lhe havia dito, ele precisava provar aos homens sua honra e, depois de tal, não mais lhe procuraria. Mesmo assim, dormia no mesmo quarto que ela, e eles passaram a conversar sobre coisas do dia a dia, assuntos sempre neutros, onde cada um conseguia manter segura sua opinião mais polêmica do outro.

De certa forma, ansiava por vê-lo chegar em casa, ansiava pelas conversas e pelos risos que ele provocava nela com seu tom sarcástico, e ansiava por poder chamá-lo de amigo.

Cerca de duas semana depois do casamento, no horário que Darius chegava em casa, Rosário estava diante da televisão assistindo a um canal sobre celebridades de Hollywood.

Diziam que Benedith Brow, um dos atores mais famosos e bem pagos dos EUA, estava preparando um novo filme que prometia ser um sucesso.

Como ela gostava muito do ator, um senhor de cerca de sessenta anos, respeitável pela postura gentil e honrosa com a família, assistiu a notícia com nítido interesse e foco.

Não notou, portanto, a entrada de Darius. Só o viu, realmente, quando percebeu a televisão ser desligada.

Ao voltar-se para ele, percebeu seu estado nervoso, o rosto avermelhado e a respiração irregular.

— Nunca mais! — ele gritou, ordenando. — Nunca mais ouse assistir qualquer coisa sobre esse homem dentro da minha casa.

A postura de Darius a assustou. Até então, apesar de ela saber que ele parecia uma bomba prestes a explodir, nunca realmente havia feito qualquer coisa que remetesse a tal coisa.

— O que aconteceu?

— Nada que lhe interesse.

Jogou o controle remoto na cama com ódio e depois se afastou.

Naquela noite, Darius não dormiu em casa. Havia sido a primeira vez, desde o casamento.

***

 

Era um casamento de mentira. Rosário sabia disso, e esforçava-se para não se animar diante do fato de que todas as pessoas daquela pequena cidade ao Sul do Qatar tratá-la com respeito e reconhecimento que a matriarca que ela se tornou, merecia.

Contudo, por mais que se esforçasse, a forma como Wafa a tornou parte da família, fê-la perceber pela primeira vez, a sensação de pertencer a algo. Assim sendo, o afastamento de Darius a feriu ainda mais.

Ora, podiam ser amigos. Era o que estavam se tornando naquelas semanas pós-casamento. Porém, seu erro, do qual não fazia ideia do qual era, haviam-no afastado.

Rosário poderia ficar quieta em seu canto, aceitando o completo desinteresse do marido, mas o olhar angustiado e abatido de Wafa, fê-la decidir procurá-lo.

Darius não dormia em casa desde o episódio. Soube, por Zara, que ele estava no escritório da empresa, e que lá permanecia. Então, corajosamente, decidiu ir até ele.

Arrumou-se o melhor que pôde e, com a ajuda da serva, solicitou ao motorista que a levasse ao imponente prédio central.

Zara havia ido consigo apenas para intérprete. Na portaria, quase foi barrada, mas enfim, conseguiu chegar até o último andar, onde uma secretária bonita a mediu de cima a baixo, enquanto pensava se devia ou não ir avisar ao chefe que a esposa estava ali.

Rosário refletiu mais uma vez que estava sendo julgada pela aparência, quando notou Ofélia saindo de uma das portas.

O sorriso mortal da loira a atingiu.

E foi um custo Rosário fingir indiferença. Não devia sentir nada, muito menos a dor que inexplicavelmente parecia tomá-la, porém, seria mentir para si mesma dizer que a presença da outra não a havia tocado.

— A esposa veio visitar o Sheik? — Ofélia indagou, rindo. — Não está sendo fácil, não é? Mal se casaram, e ele já está fugindo de você.

O rosto de Rosário esquentou. Pensou em mil ideias para devolver as palavras grosseiras, mas, enfim, permaneceu calada, enquanto a outra se afastava.

O que poderia lhe dizer? Era tudo verdade.

— Senhora — Zara lhe fez sair do torpor. — A secretária disse que pode entrar.

— Obrigada — agradeceu. — Espere-me aqui, por favor.

A criada assentiu, voltando a se sentar no sofá. Rosário respirou fundo duas vezes antes de adentrar no luxuoso escritório e dar de cara com Darius.

Ele estava sério, aquele mesmo olhar raivoso que a fez estremecer na semana que a viu assistindo televisão.

— Algum problema? — ele questionou, como se tudo entre eles fosse mecânico.

Talvez, realmente o fosse.

— Não sabia que era uma ofensa assistir televisão — ela desculpou-se, as palavras atrapalhando-se, nervosas, em sua boca. — Não fazia ideia, não conheço direito a cultura de vocês...

— Se existe uma televisão no quarto, é óbvio que está lá para que você se distraia — devolveu.

— Então, por quê...?

— Rosário — interrompeu-a. — Existem coisas que não são fáceis de serem ditas. Eu fui duro com você, e você está certa em estar magoada comigo. Porém, é melhor assim. Você fica em casa, tranquila, sem preocupações, e eu me manterei afastado o máximo que puder até o prazo se findar.

Sentiu as lágrimas inconvenientes nos olhos.

“ Se Carla tivesse te tirado quando descobriu que estava grávida, não teríamos esse estorvo em nossas vidas ”.

Mais uma vez... Um estorvo. Um problema para ele resolver antes de passar o resto da vida ao lado de Ofélia.

Subitamente, Darius estava ao seu lado, ajudando a se sentar. Logo, ela foi servida por um copo d’agua.

— O que aconteceu?

Ela o encarou e ficou surpresa por ele parecer verdadeiramente preocupado.

— Não foi nada, desculpe-me — murmurou.

— Está pálida e quase desmaiou. — Repentinamente um pensamento pareceu ter cruzado sua mente. — Está grávida?

Ela quase riu do nítido pânico que pareceu tomar o homem. Grávida em tão pouco tempo? E numa única vez? Aquilo definitivamente arruinaria os planos dele, não é?

— Não, foi apenas uma lembrança ruim da minha infância.

Levantou-se, buscando sua réstia de dignidade.

— Agradeço sua sinceridade, e não mais o importunarei.

Então saiu do escritório.

Pela primeira vez na vida, Darius sentiu-se o pior dos homens.

 


Capítulo 07

Amigos


Não era sua intenção voltar para casa tão cedo. Contudo, depois da visita de Rosário ao escritório, percebeu que o afastamento não faria bem a nenhum deles.

Darius estava blindado ao amor, mas era tolice afirmar que não havia gostado da companhia da esposa, das suas conversas amistosas e da forma como ela aceitou a amizade dele, mesmo sem perceber.

Confiar em alguém, especialmente em uma mulher, era um dilema para ele. Contudo, era inevitável: havia um vínculo entre eles, algo que o próprio não havia descoberto as origens, mas que os aproximava de tal forma que, mesmo que o perfume dela houvesse se dissipado durante a manhã, a presença feminina permaneceu no seu escritório pelo restante do dia.

— Achei que não fosse voltar mais para casa — o som grave do avô lhe fez voltar-se para o homem mais velho que descia lentamente as escadas.

Darius o aguardou chegar à sala. Então, curvou-se perante o avô, beijando-lhe a mão em sinal de respeito.

— Por que não voltaria?

— Sua esposa disse que não pretendia viver ao seu lado.

— Ela deve ter me entendido mal — retorquiu.

Preparou-se para afastar-se, quando foi contido por Wafa.

— Diga-me, Darius: Você leu o relatório referente à vida de Rosário?

— Superficialmente.

Na verdade, não havia passado do primeiro parágrafo.

— Então deve ter visto que ela foi abandonada pela mãe — Wafa comentou. — Depois, pelo pai. Sem nenhum parente que a quisesse, foi deixada em um orfanato. Quando saiu de lá, não tinha sequer um teto para ir. — Seu olhar tornou-se duro. — Sei que acha que a sua vida é um terrível drama, mas ao menos teve avós que o ampararam, que cuidaram de você. Assim que cresceu, estudou, e hoje preside uma grande empresa. Diga-me, Darius, sua vida é pior que a dela?

Quando o avô saiu da sala, Darius Hayek permaneceu absorvido em seus próprios pensamentos.

***

 

Foi difícil achar algo em que se ocupar durante aquele tempo no Qatar, mas Rosário descobriu uma incrível habilidade para tecelã.

Na verdade, foi uma surpresa. Estava atrás de Zara, quando viu várias mulheres em volta de uma maquina enorme, estendendo e puxando fios que formavam bonitos tapetes. Aproximou-se. Mesmo sem saber o idioma, tentou se comunicar com gestos.

Logo, sentava-se diante da máquina e uma das mulheres mais velhas lhe mostrou como manejar.

Era tudo simples, artesanal e braçal. O equipamento apenas ajudava a manter os fios alinhados, mas o trabalho de quem o manejava era imprescindível para o acabamento.

Depois de algumas horas, com seu primeiro tapete pronto e as palmas diante de tal façanha, a moça correu para Wafa e lhe pediu uma máquina daquelas para passar o tempo.

Poucas horas depois, instalaram uma num confortável quarto, onde ela foi deixada com novelos de lã e fios de linho.

Apaixonada por algo além do trabalho comum que fazia como secretária, logo afundou-se naquele ofício, mal percebendo a entrada de Zara.

— Meu senhor quer que a senhora se arrume porque irão jantar fora — a serva avisou, sorridente.

— Wafa quer me levar a algum lugar?

A mulher negou.

— Não, não. Meu senhor Darius é quem exigiu sua presença.

Darius queria vê-la? Depois do que disse? Por quê?

Abandonou o equipamento e seguiu a serva. Banhou-se e arrumou-se de acordo com a orientação de Zara. Depois, como um novilho indo ao matadouro, silenciosamente entrou no veículo que a aguardava.

O lugar escolhido pelo marido era um bonito restaurante em um moderno edifício. Ele estava próximo da entrada, a conversar com outro homem, mas quando a viu, afastou-se e foi em sua direção.

Gentilmente, lhe ofereceu o braço. Depois, guiou-a até uma das mesas e solicitou a comida.

Era como se não quisesse falar. Porém, Rosário estava nervosa e, assim que o maitre afastou-se, ela começou a tagarelar sem controle.

— Não entendo porque quis jantar comigo. Achei que quisesse que eu me mantivesse afastada — engoliu em seco. — Eu sei que o ofendi de alguma forma, mas você não me explica. Eu sinceramente não sei...

— Rosário — interrompeu-a. — Me perdoe, está bem?

Aquilo a calou ao mesmo tempo em que a enrubesceu.

— Não me ofendeu — ele afirmou, sorrindo. — Na verdade, eu que a ofendi, e peço que desconsidere as minhas palavras. Apenas... Eu fiquei nervoso. Devia ter explicado a você.

— Explicado o quê?

— Benedith Brow e eu não temos o melhor dos relacionamentos.

— Conhece Benedith Brow? — ela estava pasma. — Benedith Brow? O ator famoso?

— Sim, conheço — concordou. — Ele roubou algo precioso de mim.

Uma mulher? Era tudo que Rosário conseguia pensar. Mas, pelo que sabia, Benedith Brow estava casado com a mesma mulher há quase trinta anos. Nunca manchara seu nome com algum escândalo ou algo do tipo. Como poderia o caminho daqueles dois homens terem se cruzado?

— Eu lamento — ela murmurou.

— Eu também — o sorriso dele foi extremamente doce. — Mas, eu percebi hoje que nós dois estamos enfiados até o pescoço em um acordo que ainda levará mais de onze meses para terminar. Então, por que não podemos aproveitar esse tempo para sermos amigos e nos divertimos?

Era uma oferta muito sedutora. Rosário concordou.

— E você tem algum tipo particular de diversão em mente?

Se qualquer outra mulher lhe indagasse aquilo, ele apostaria num jogo de sedução barato. Mas, não aquela. Não com aqueles olhos límpidos e francos, Rosário Guerra não fazia ideia de como suas palavras pareciam arriscadas e sensuais.

— Eu tenho, querida — assentiu. — Após o jantar, eu lhe mostrarei.

***

 

— Que lugar é esse?

O enorme prédio hoteleiro era extremamente convidativo. Bonito, luxuoso e caro, seria prenúncio de uma noite de amantes, não fosse a recente descoberta de uma amizade fraternal entre eles.

Rosário sorriu para Darius. Viu nele outro sorriso, como um moleque armando algo.

— Hospedamos seu pai aí — ele contou, quase aos risos.

Subitamente, ela sentiu-se nervosa, mas a mão firme dele agarrou-se a dela.

— Você merece isso, Rosário. Merece dizer algumas verdades a esse homem antes de ir embora.

— Eu não consigo — negou.

— Você consegue — afirmou,firme .— Pôs na cabeça que é fraca, que é indesejável. Mas, não é verdade. Antônio Guerra foi uma das pessoas que te fizeram crer nisso, precisa dizer a ele que mudou. Precisa se proteger, caso contrário, quando voltar ao Brasil, ele dará um jeito de avassalá-la novamente.

Aquilo não aconteceria. Nunca mais. Darius daria proteção a Rosário, mesmo quando ela não fosse mais sua esposa. Contudo, soube, assim que leu o relatório, que precisava expurgar os fantasmas que assombravam aquela mulher.

Mesmo descrente, Rosário o seguiu para dentro do hotel.

Estranhou não se apresentarem na portaria, mas não teceu nenhum comentário. Quando entraram no elevador, tremia tanto que pensou que fosse desmaiar.

Então, repentinamente, Darius segurou sua mão, de forma firme. Ela o encarou, percebendo no sorriso dele uma energia que a tomou.

— Estou aqui — ele disse. — Você é minha esposa e eu não vou permitir que nada lhe aconteça.

Mesmo que fosse um casamento de mentira, aquelas palavras cavaram fundo no peito feminino.

Ele era másculo e exalava proteção. Ela, todavia, parecia desprotegida diante de tudo que aquele homem parecia representar.

Fechou os olhos com força. Não podia se apaixonar por Darius Hayek quando o tempo deles era contado. Não podia amá-lo, enquanto ele aguardava que os meses se findassem para ficar com a linda Ofélia.

Darius lhe alertou para que não se apaixonasse. Ela precisava ter isso em mente.

A porta do elevador se abriu. Caminhou ao lado dele enquanto cruzavam uma fileira de portas maciças de madeira. Até que pararam diante de uma delas.

— Respire fundo, Rosário — ele aconselhou.

E então bateu.

Levou menos de um minuto, e a porta abriu. Antônio Guerra os encarou, surpreso.

— Minha esposa veio se despedir do pai, que está partindo para o Brasil — Darius comentou.

O homem a observou enquanto parecia meditar se devia ou não dar passagem. Por fim, deixou-os entrar.

O luxuoso quarto fez Rosário sentir-se pior. Ela quase permitiu que os ombros caíssem. Mas, novamente, Darius e sua presença não a deixaram desvanecer.

— Então, veio ver seu velho, hem? — Antônio questionou, tentando quebrar o clima pesado. — Vou sentir saudades, filha.

Só então, depois de todo aquele tempo que se findou da época que foi deixava sozinha com parentes que não a desejavam, que foi largada ao léu em orfanatos mal administrados, que foi maltratada pela vida, trazida a um país desconhecido e vendida a troco de uma dívida, foi que ela inflamou-se de ódio.

Largou a mão de Darius e caminhou rapidamente, cortando o espaço que a separava daquele homem. Atirou-se nele, enquanto o esbofeteava com as duas mãos, em socos que traziam mais que sua dor, suas lágrimas e sua revolta: eram sinais de sua volta por cima.

Só percebeu que Antônio iria retribuir-lhe a agressão quando Darius a puxou contra ele e postou-se entre ela e o pai.

— Se levantar a mão para minha esposa novamente, é um homem morto — o sheik avisou.

— Um muçulmano que permite que uma filha bata no pai... — Antônio reagiu. — Que tipo de sheik você é?

— Sou um homem que jamais permitiria que a própria filha fosse abandonada. Que não viveria sem sabê-la bem. Que não a enganaria, que não a venderia para conseguir algum dinheiro para ir a puteiros. Sou um homem carregado de defeitos, nunca neguei isso. Mas, ao menos uma coisa eu garanto que não sou: um lixo como você.

Depois disso, puxou Rosário pela mão. Ambos saíram do hotel levando a alma livre e o sabor da vingança.

 


Capítulo 08

Família


Darius Hayek observou a esposa dormindo. Eles dividiam a mesma cama, desde que ele voltara para casa, mas era como se estivesse deitado ao lado de uma simples companheira de quarto. Não havia nenhuma aproximação sensual. Na verdade, eles passavam boa parte do tempo livre conversando. Quando deitavam-se, continuavam a falar sobre suas vidas até os olhos pesarem e o sono os tomar.

Rosário dormia primeiro. Sempre. Darius permanecia a olhar para aquele rosto completamente simples. Era bonita, assim, sem os óculos. Como não tinha o costume de usar maquiagem, continuava igual ao dia a dia, mas havia nela uma áurea quase divina, com os cabelos longos e negros esparramados pelo travesseiro e a pele clara tocando os lençóis de linho.

Em tudo, era diferente das mulheres com quem já esteve. E, mesmo assim, sentia que ela era superior a todas as outras.

Era um pensamento estranho... mas, era confortador.

Suspirando, afastou o olhar dela e ficou a encarar o teto.

Não! Em nada era confortador tal coisa. O amor... O amor era algo destrutivo, que quase o devastou certa vez. Rosário parecia inocente, e realmente o era. Mas, era questão de tempo para ela ir embora. Elas sempre iam... as mulheres que ele amava.

Então, o melhor era permanecer a amizade. Afundar qualquer pensamento romântico e a necessidade de formar uma família. Aquilo não era para ele: esposa e filhos. Aquilo era para os outros. Para ele restava o sexo vazio e a vida sem atrativos. Restava as bebidas alcoólicas – tão condenadas por seus compatriotas – e as festas regadas a prostitutas. Porque ali... Ali naquele ambiente oco de emoções, havia segurança.

E era a segurança de não amar que o fazia permanecer racional e vivo.

***


Rosário encarou o homem à porta. Sorriu em direção ao marido, estendendo para ele sua última criação.

— Não está lindo? — ela indagou, o sorriso vitorioso no rosto. — Mal acredito que tenho habilidade para criar tapetes tão bons.

O orgulho vivo nos olhos escuros fizeram Darius sorrir.

— Aprendeu a misturar as cores — ele observou, aproximando-se. — Realmente, é uma ótima tecelã.

— Estou feliz por isso.

A forma como ela dobrou o tapete fê-lo, mais uma vez, observá-la enquanto ela era inconsciente daquele olhar.

Rosário havia emagrecido um pouco. O stress do primeiro dia, provavelmente a fizera perder o apetite. Porém, ele havia voltado e agora a esposa estava completamente confortável naquele ambiente.

— Você é feliz aqui? — ele indagou, arqueando as sobrancelhas.

— Eu sou.

A resposta sincera, rápida e sem medo quase o desmontou. Aguardava o olhar medroso, nervoso, e a negativa. Mas, aquele sorriso amável e doce era incrivelmente revelador.

A postura da mulher mudara uma semana antes, quando o gato preto chegara. Até então, ela havia permanecido como se estivesse num ambiente hostil. Mas, Nicodemos, agora deitado aos pés dela, havia lhe trazido à sensação de familiaridade.

— Está surpreso pela minha resposta? — ela sorriu, encarando-o. — Entendo que esteja. Mas, antes era apenas Nicodemos e eu. Agora, eu tenho vovô Wafa, Zara, e sua amizade. Eu sou feliz aqui, apesar das circunstâncias que me trouxeram. Tenho certeza que sentirei falta do Qatar quando for embora.

— E se quiser ficar?

Aquela pergunta era arriscada. Rosário arregalou os olhos.

— Você iria querer que eu ficasse? — a dúvida parecia ter criado um muro entre eles.

Darius a observou por alguns segundos. Era incapaz de responder aquela dúvida.

— Eu irei para os Estados Unidos — ele mudou completamente o assunto, fugindo da questão.

A esposa assentiu. Não pareceu incomodada com a troca de assunto. Era como se a esperasse.

— Gostaria de vir comigo?

— Eu?

— Você é minha esposa — ele argumentou.

— Ofélia não vai se ofender?

Darius quase riu.

— Não, não vai. Ofélia sabe que não teremos nenhuma relação até que nosso — apontou o dedo para ela — contrato se finda. Eu terei respeito por você, porque é o mínimo que se exige de um homem de caráter.

Aquele pensamento era muito estranho. Até então, não se via como um homem de honra. Aliás, ao aceitar o acordo do avô, meditou que não pararia suas diversões com beldades. Mas, simplesmente, não sentia mais necessidade para aquilo.

— Ficarei feliz em acompanhá-lo — ela sorriu.

Aquele sorriso permaneceu com ele o restante do dia.

***

 

— Isso não é nada do que combinamos, Darius! — Ofélia gritou e o sheik soube que, mesmo no primeiro andar daquele enorme prédio, daria para se ouvir a reclamação sem fim.

— Meus planos mudaram — ele disse, sem cerimônia.

— Você me enganou! — ela aproximou-se, como uma leoa acuada. — Disse-me que era um casamento de mentira.

— E o é.

— Mas agora irá levá-la para Los Angeles. Isso é um absurdo! Eu sou a sua namorada real!

Ele riu, desdenhosamente. Aquilo pareceu irritá-la ainda mais.

— Eu paguei muito bem pela sua companhia, Ofélia. E mesmo sem ter nenhum contato físico com você nesse ano que transcorrerá, ainda assim a mantenho num excelente apartamento, com todos os seus luxos – e não são poucos – muito bem pagos. Então, não se faça de puritana nem de ofendida. Você é livre para se separar de mim agora mesmo.

Obviamente, perder a fonte de seus luxos não era uma opção para a bela modelo.

— Ela vai me pagar... — murmurou, revoltada.

— Se tentar machucar ou humilhar Rosário, irá se ver comigo — ele ameaçou, erguendo-se da cadeira, e rumando até ela.

Ofélia ficou apavorada, e deu dois passos para trás.

— Por que está assim? O que aquela bruxa brasileira fez? Ela o enfeitiçou? Aquela gorda, quatro olhos! — ralhou. — Você nunca falou comigo nesse tom.

— Rosário é minha esposa, para o bem ou para o mal. Mais que isso, é minha amiga. Fique longe dela, Ofélia. Não me queira por inimigo. Eu faria da sua vida um inferno.

Depois, voltou para próximo da mesa, tentando manter o controle.

— Você a quer? — Ofélia indagou. — Apaixonou-se por ela?

Ele havia feito aquela pergunta a si mesmo nas últimas semanas.

— Não.

Contudo, sequer havia firmeza em seu tom. Dizer não a Ofélia fazia parte de sua luta pessoal para proteger a si mesmo.

— Ela fará com você o que Nádia fez — Ofélia afirmou, sem piedade. — Você vai ficar seguro do amor dela, e então ela vai abandoná-lo, vai virar as costas para você e, quando procurá-la, ela irá desprezá-lo.

Depois disso a modelo saiu do escritório batendo a porta e deixando-o em total desespero.

***

 

— Céus, que lindo! — Rosário exclamou, observando a beleza da arquitetura do Aeroporto Internacional de Los Angeles.

Haviam cruzado o Oceano através de um jato particular do marido. Zara viera com ela, sempre solícita a lhe ajudar a se comunicar.

— Fala inglês? — a serva indagou, sorridente.

— Céus, não sei nada além de português — admitiu. — Não pude estudar, porque assim que sai do orfanato, precisei trabalhar para pagar o aluguel... e enfim, você sabe como a vida é difícil.

No outro canto do avião, Darius ergueu os olhos dos papeis que segurava. Ouviu a conversa e sentiu o coração aos frangalhos. Rosário havia contado aquilo para ele, num tom conformado.

Definitivamente, a vida deles havia sido muito diferente. E, a cada relato narrado, ele percebera o quanto havia sido agraciado por Wafa tê-lo mantido consigo, porquanto a esposa era desamparada por todos.

Mas, não mais.

Nunca mais.

Subitamente, o olhar deles se encontrou, e Rosário sorriu.

Quase que inconsciente, Darius percebeu-se a sorrir, em retorno.

E aquele sorriso tinha muitos significados. Nem todos eles, o sheik estava disposto a aceitar.

 


Capítulo 09

A Viagem

Darius Hayek entrou no quarto do hotel no centro de Los Angeles com rapidez. Havia ficado ocupado durante toda à tarde no escritório da matriz da empresa na cidade, e havia tomado um rápido banho no seu banheiro privativo antes de ir de encontro à esposa.

Naquela noite, teriam uma reunião importante. Um novo acordo comercial. O avô havia insistido para ir, mas Darius estava resoluto em mudar seus atos. Poupar Wafa de uma viagem desgastante fazia parte disso.

Tão logo entrou no quarto, encarou Zara. A serva sorriu, como se tivesse acabado de fazer um ótimo trabalho. Ele pareceu curioso, mas suas respostas foram todas dadas tão logo viu Rosário no outro canto.

Abriu a boca, embasbacado.

Pelos céus... O que era aquilo?

A maquiagem, o cabelo ajeitado num penteado elegante, o vestido de cetim instigando as curvas generosas... ela estava linda. Mais que isso, ela era linda. Mais bela que todas as mulheres com quem já esteve. Porém, só então ele percebeu aquilo.

Mal conseguia respirar enquanto seus olhos, desavergonhados, mergulhavam no decote generoso e no brilho daquele olhar.

— Eu sei, estou ridícula.

Só então, deu-se conta do rosto amuado, como se Rosário se envergonhasse pela própria beleza.

Ele não respondeu, até porque não tinha palavras. Apenas sorriu e lhe ofereceu o braço.

— Aonde iremos? — ela indagou.

— Vamos jantar com um grupo de investidores — murmurou.

— Faz questão que eu vá? — indagou, mais uma vez. — Sequer sei o idioma, vou envergonhá-lo.

— Ninguém espera que a mulher de um muçulmano, ainda mais um sheik, abra a boca. Tudo que esperam de você é que esteja linda e amorosa ao meu lado.

A gargalhada dela invadiu o ambiente e o inflamou, de muitas formas.

— Pobrezinho de você — ela murmurou.

Ele ainda ria enquanto a acompanhava para fora do quarto.

***

 

O restaurante ficava em um ambiente luxuoso de Los Angeles. A limusine os levou até a entrada, onde um atendente abriu a porta para ela, estendendo-lhe a mão.

Viu, pelo olhar protetor de Darius, que ele não gostou da audácia. Subitamente, percebeu que o sheik não queria que outro homem a tocasse, mesmo que num gesto inocente de auxílio.

Quase riu, espantando os pensamentos. Era ridículo, afinal de contas. Darius logo estendeu o braço para ela e, pelo vidro espelhado ao fundo, ela encarou o reflexo deles.

Ah, se ninguém os conhecesse... com certeza diriam que estavam apaixonados.

Enquanto o marido conversava com o recepcionista, ela observou o lugar luxuoso. Os homens, todos, vestiam ternos de aparência cara, enquanto as mulheres usavam vestidos de grife. Era estranho, até então, que estivesse ali. Um lugar que jamais imaginou um dia conhecer.

Enquanto o recepcionista voltava-se para o livro, procurando a mesa reservada para a reunião, Darius voltou-se para ela. Então, retirou do bolso um cordão com uma joia negra. Girou-a, fazendo ficar de costas para ele, e colocou-a em seu pescoço. Tudo foi muito rápido, e Rosário mal teve tempo de recusar.

— Eu... nem sei o que dizer — ela sussurrou, por fim. — Isso é muito caro, não é? Não quero usar, por favor. E se eu perder?

— Se perder, lhe darei outra — o sorriso dele era cúmplice.

— Não sou acostumada a adornos. Mal uso brincos comuns.

— Todos esperam que a esposa do sheik esteja coberta de joias caras. Não tive tempo de preparar muita coisa, mas esse cordão era de minha avó, e ficou lindo em contraste com sua pele.

— Mas, Darius...

— Você é minha esposa, quero que se sinta confiante e feliz.

Naquele instante, ela lembrou as palavras trocadas entre eles quando se conheceram. Darius a alertou para que não se apaixonasse. Contudo, como impedir o coração de bater tão apressadamente quando a sensação que tinha era de que, pela primeira vez em sua vida, alguém a queria por perto, alguém gostava dela, alguém a desejava feliz.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo recepcionista que, chamando Darius, solicitou que os seguisse até a mesa escolhida próximo de uma enorme varanda a céu aberto.

O lugar era muito belo. Ao longe, era possível enxergar os numerosos edifícios que quase tocavam o céu.

Havia luzes de muitas cores, ar puro, e flores espalhadas por todos os lados.

Só quando se aproximou da mesa, foi que ela percebeu que a mesma estava cheia de homens de meia idade, que prontamente se levantaram para cumprimentá-los.

Rosário sentou-se ao lado do marido. Conforme se esperava dela, ficou em silêncio, enquanto bebericava água e sorria, fazendo a típica esposa silenciosa, submissa ao homem muçulmano.

Quase rindo, ela pensou que descobrira mais um dom. Era uma excelente atriz.

Repentinamente, Darius ficou rígido.

Os homens novamente se levantaram, e ela percebeu que mais alguém chegava à mesa. Ergueu os olhos e abriu a boca, pasma.

Benedith Brow estava ali, a dois passos dela. Sua masculinidade, sua beleza impressionante e seu olhar febril. Ela quase correu até ele para pedir um autógrafo, quando lhe notou a esposa.

Pelos céus, que mulher linda! Feliz seria ela se chegasse na casa dos cinquenta anos com a mesma aparência e elegância da senhora Brow.

Ela quase esqueceu-se de Darius, nervoso, ao seu lado, mas o suspiro inquieto dele fê-la voltar a atenção ao marido. Percebeu o olhar acanhado e sentiu compaixão.

Mais uma vez, lembrou-se de que aquele ator importante e seu esposo tinham um passado nebuloso. Por baixo da mesa, tocou os dedos de Darius, e sorriu para ele.

Era como se dissesse “ Fique firme! Estou aqui! ”, mas ele logo afastou as mãos e arqueou os ombros, como se estivesse preparando o corpo para uma guerra.

Brow e a esposa sentaram-se nos lugares vagos. Um diálogo começou a discorrer. Rosário, ignorante a tudo, imaginou que aqueles homens buscavam uma parceria com as empresas Hayek para uma nova superprodução.

Darius ouviu a tudo, o semblante impassível. Era simplesmente impossível para ela decifrar suas intenções.

Então, subitamente, ele se ergueu. Estendeu a mão para ela, e sem se despedir de ninguém, deu as costas a todos e saiu do ambiente, puxando-a pela mão.

— O que aconteceu? — Rosário indagou, baixo, nervosa.

— Vamos embora — decretou.

Respeitou a dor que viu nos olhos amargurados. Porém, tão logo eles chegaram ao hotel e entraram no quarto, ela o pressionou.

— Eu quero que me explique — insistiu. — Eu preciso disso. Não aguento ficar em total ignorância. O que aconteceu?

Ele não relutou.

— Um renomado estúdio queria que financiássemos um novo filme que irá rodar no Oriente. Aliás, é um remake de um filme que fez sucesso nos anos oitenta.

— É mesmo? — pareceu surpresa. O tom de Darius era baixo e normal. — Qual filme?

— “O Príncipe da Sedução”.

— Eu me lembro desse filme! — ela exclamou. – Foi rodado no Qatar, não é?

— Sim.

— Benedith Brow era o protagonista, não?

Outra confirmação.

— Isso não foi em oitenta e cinco?

— Oitenta e seis — ele corrigiu.

— Quantos anos você tinha?

— Cinco.

Pelo que ela entendera, até então, Benedith Brow havia roubado algo de Darius Hayek. Até então, Rosário pensava em uma amante. Mas, se eles se conheceram em tão pouca idade, qual devia ser a rixa entre eles?

— Darius?

Seu tom era inquisidor. Queria respostas. Precisava delas. Contudo, subitamente, o sheik cortou o espaço entre eles.

O corpo de Rosário aqueceu-se tão rápido que ela assustou-se.

Sentiu seu rosto sendo segurado com firmeza, como se Darius a medisse, a decifrasse. Segundos depois, avassalava-a com um beijo intenso.

Sem conseguir se proteger do poder másculo daquele homem, ela o aceitou sem restrição.

 


Capítulo 10

Um só

O quarto estava escuro. Mesmo assim, pela réstia de luz do luar que entrava pela janela, ela conseguia visualizá-lo a tirar a camisa, revelando o tórax musculoso e os ombros largos.

Depois que a calça também o abandonou, todos os seus pensamentos de mulher se perderam no quão perfeito era aquele homem.

Darius Hayek era como um felino, ágil, bonito e destruidor. Ela sabia que era questão de tempo para ele arrasar sua vida, e mesmo assim, tudo nela era fogo e paixão.

Então, um pensamento confortador a tocou. Ela sofreria de qualquer forma. Choraria por ele, não importando se estivesse se entregado ou não. Quando o tempo, que a cada dia se tornava menor, enfim se findasse e ela tivesse que partir, tudo em seu corpo seria dor e devastação.

Assim, por que não aproveitar aqueles curtos instantes? Por que não fingir que ele a amava e que eles teriam um futuro?

Pensar nas consequências depois. Agora, apenas aproveitar aquela atenção tão bem vinda que quase a fazia chorar.

Nu, ele aproximou-se dela. Puxou o vestido de cetim para cima, revelando suas roupas íntimas. Percebeu o olhar verde tornar-se febril diante dos seios volumosos, e não levou muito para Darius afundar o rosto entre suas aréolas escuras.

O latejar entre o vão das pernas tornou-se brasa viva quando ele abocanhou um dos seios. As mãos ásperas desceram, gentis, pelas laterais femininas e então Darius agarrou suas pernas, puxando sua calcinha, revelando sua essência de mulher.

Não houve muita preparação para aquela segunda vez. Não precisava. Rosário estava completamente molhada, quase gritando de ansiedade, querendo sentir a carne dura daquele homem grande dentro de si, erguendo o quadril, esfregando-se nele.

— Olhe para mim — ele exigiu.

Recordou-se de que era a segunda vez que ele pedia isso. Ele sempre a penetrava olhando-a nos olhos.

— Você me excita — o múrmuro masculino chegou até seus ouvidos e ela se arrepiou mais. — É diferente de todas as outras mulheres. Esse olhar abrasado, apaixonado... Esse olhar de tesão, você só dá para mim.

Era verdade. Ela não negou.

Subitamente, ele encostou a cabeça de seu mastro em sua entrada. Com o quadril, provocou movimentos circulares, fazendo-a ronronar de ansiedade.

— Me peça... — disse, sussurrando contra seus ouvidos.

— Darius — ela parecia chocada.

Com ele. Com ela. Com toda a situação.

— Peça-me para que eu a invada com meu pau, que eu a faça gozar com minhas investidas. Peça para mim que eu lhe dê prazer, que sem mim você não se sentirá mulher... Implore para mim. Implore!

Aquela ordem, de alguma forma, machucou-a. Não pelas palavras grosseiras, apesar de ela jamais tê-las recebido de qualquer outra pessoa. Mas, era o tom de completa indocilidade que a fez estremecer.

Repentinamente, de forma incontrolável, sentiu as lágrimas. Não queria chorar diante dele, um homem tão experiente, acostumado a tantas mulheres, devia considerá-la uma idiota por choramingar na cama, mas sentiu-se magoada por ter criado uma fantasia de amor e por vê-la desmoronar diante de si.

Rosário Guerra não representava nada para Darius Hayek. Apenas, era a mulher que estava ali, à sua disposição.

Então, tão rápido quanto chegou àqueles pensamentos, viu-os afastando-se quando sentiu a mão bonita dele tocando seu queixo.

Darius a encarava como se fosse a primeira vez que a visse.

Sorriu.

— Desculpe-me — ele murmurou, tão doce que ela perdeu-se em seu beijo. — Você não é qualquer uma — ele afirmou. — Nunca mais vou tratá-la como se fosse...

Então, a carne dura dele invadiu seu corpo. Numa entocada rápida ele estava dentro dela, movimentando o quadril lentamente, beijando suas lágrimas, esfregando-se contra seu corpo, acariciando-a de todas as formas que podia.

Era uma dança gentil, apesar de pecaminosa. O pecado sempre parecia andar de mãos dadas com o prazer.

Aquele casamento não era real. Mas, gozo que acompanhava a ondulação dos quadris era.

Rosário gemeu alto, enquanto ele avançava mais rápido.

E ali estava ela.

Nos braços daquele homem, ela parecia chegar a algum lugar tão alto e tão sublime quanto os céus. Subitamente, gritou, diante da onda de delícias que pareceu dominá-la.

O clímax a tomou no exato instante que Darius ejaculava. Depois, ele caiu sobre seu corpo, exausto.

Rosário o abraçou tão forte, como se não quisesse permitir a ele que se afastasse dela. Nunca mais.

Mas, assim como a mente costumava lembrá-la que o fim se aproximava, ele largou-a e caiu de lado. Ambos, a olhar o teto. Cada um absorvido em sua própria culpa.

***


Rosário foi acordada com o som dos passos de Darius.

Amanhecera.

Entreabriu os olhos e ficou a admirá-lo enquanto se vestia. Pelo espelho, podia vê-lo compenetrado, muitos pensamentos em sua mente. Sentiu os olhos úmidos e se arrependeu da noite passada.

Como ficaria a amizade deles, depois de tudo? Ele a desprezaria, agora?

Ela não tinha muito de Darius Hayek. Na verdade, não tinha muito de ninguém. Mas, tudo que conseguira daquele árabe deixara-lhe satisfeita. Para outras mulheres, poderia ser pouco. Para ela, havia sido a experiência mais intensa de toda uma existência.

Subitamente, ele voltou-se para ela. O rosto, como sempre, impassível.

— Quer tomar café da manhã? — indagou. — Posso aguardá-la se arrumar.

Negou. Não porque não quisesse ficar em sua presença. Mas, sim, porque não queria ser um estorvo na vida dele, como havia sido na da mãe.

Darius não insistiu. Depois de avisar que estaria ocupado fechando acordos durante o dia, deixou-a sem se despedir.

***

 

— Minha senhora parece tão triste — Zara comentou, enquanto caminhava ao seu lado.

Depois de se levantar, a serva chamou-a para um passeio. Havia um parque ao lado do hotel e, diante da pele pálida e do rosto amargurado de Rosário, Zara achou que andar entre as árvores e receber um pouco do calor do sol iria lhe fazer bem.

— Não estou triste — mentiu. — Apenas pensativa.

— Pensar demais não faz bem, senhora. Apenas, viva. Viva como se o amanhã não existisse — aconselhou.

Ela riu diante do descabido pensamento. O amanhã existiria. E seria em um apartamento pequeno, em Porto Alegre, onde ela relembraria daqueles momentos sendo devastada pela saudade.

— Você acha que uma mulher pode se apaixonar por um homem mesmo sem tê-lo escolhido por marido?

O rosto da serva iluminou-se.

— Apaixonou-se por Sheik Darius? Oh, ele ficará tão feliz em saber ser seu Habib [1] .

— Ele não pode saber! — ela disse, rápido. — Darius me avisou que não devia me apaixonar. Entendeu?

Só então deu-se conta de que não negou o que sentia. Assustou-se, mas a mão gentil de Zara contra ela a tocou e a tranquilizou.

— Sheik Darius ama sua esposa — afirmou, e parecia ter muita certeza disso. — Mas, ele tem dificuldades de expressar isso. É compreensível, diante do seu passado.

— Que passado?

— A senhora não sabe? O que aconteceu entre ele e a senhora Nádia?

Nádia?

— Não sei nem quem é Nádia.

Então, realmente, havia uma mulher. Uma mulher que destruíra o coração de Darius. Uma mulher que provavelmente ele ainda amava.

Quis inquirir mais explicações, quando Zara travou, nervosa. Olhando adiante, Rosário abriu os lábios, espantada.

Ofélia estava ali, diante dela, com um sorriso enigmático nos lábios.

— Ora, ora, que surpresa — a modelo riu, desdenhosa. — Bom, nem tanta surpresa assim, não é? Afinal de contas, eu sempre estou onde Darius está.

Rosário apertou a mão de Zara, como se pedisse socorro. Prontamente, a serva a puxou, desviando o caminho. Não adiantou, Ofélia a seguiu.

— Que deselegância. Não irá me convidar para um café?

— E por que eu faria isso? — questionou.

— Muito malcriada, sabia? Está com o meu namorado, e ainda por cima me trata tão mal. Devia me pedir perdão em cada encontro.

— Não me casei com Darius por escolha própria, e você sabe bem disso. Além disso, ele não me avisou que a traria para os EUA.

— Você achou mesmo que ele fosse viajar sem me trazer? O que se passa nessa cabecinha que não consegue raciocinar? Darius não fica um dia sem me ver, e hoje passaremos uma tarde romântica em um hotel bonito, próximo do Dolby Theatre , onde, aliás, depois iremos assistir a um espetáculo. Resta à esposa ficar quietinha em seu quarto, apenas para lhe servir de consolo quando ele estiver cansado.

Rosário não lhe deu mais ouvidos. Soltando-se de Zara, ela correu em direção ao hotel. Chorava antes mesmo de entrar no quarto. A serva surgiu atrás dela, e prontamente lhe arrumou um copo com água.

— Não escute essa rameira, minha senhora — advertiu. — Dona Ofélia gosta de mentir. Então, primeiro, questione o seu marido. O Sheik não é o tipo de homem que...

— Nosso casamento é uma farsa, ele já havia me dito isso — interrompeu-a. — Apenas... Eu me culpo, entende? Devia ter me protegido dele. Da amizade dele. Dos sentimentos dele.

— Como poderia? Ele é seu marido — insistiu. — O dever de uma mulher é entregar não só o corpo, como a alma para o homem que Alá a uniu.

Rosário recusou as palavras. Definitivamente, não queria ouvir mais nada. Pedindo licença, foi até o quarto e fechou a porta.

O mal já estava feito. Ela já havia se apaixonado. Necessitava, portando, solucionar aquele problema.

Precisava esquecer Darius. Lutar contra ele. Fugir dele.

Salvar sua sanidade, antes que dela nada mais restasse.

 

Capítulo 11

Conflito


Darius entrou no quarto e encarou Zara. A serva curvou-se diante dele, respeitosamente.

— Sheik, peço perdão por ter interrompido suas atividades profissionais, mas senhora Rosário não sai do quarto desde a manhã.

Ele arqueou as sobrancelhas.

— Está doente?

— Saímos para caminhar no parque e encontramos a senhora Ofélia.

A frase parecia explicar tudo.

Ele deixou a empregada e rumou até a suíte. Abriu a porta e entrou. Rosário estava dormindo, mas era possível perceber os traços molhados abaixo dos olhos. Ela havia chorado.

A dúvida era: por ele? Ou por orgulho?

Aproximou-se da cama e sentou-se ao lado dela, Imediatamente, a mulher acordou.

— Darius?

Parecia surpresa por vê-lo ali.

— Está doente? — a pergunta dele parecia desinteressada. No entanto, em seguida, ele a fez sentar-se e segurou seu rosto. — Não sei o que Ofélia te disse, mas sei que a encontrou nessa manhã. E, saiba que eu não fazia ideia de que ela estava aqui.

— Não a trouxe, então? — indagou, nervosa. — Ela me disse que passariam a tarde juntos.

— Eu te disse que estaria trabalhando.

— Mas, ela...

— Não admito que duvide de minha palavra, Rosário. Eu sou um homem, não um moleque. Se eu estou dizendo para você que passaria a tarde trabalhando, é porque passaria. Mas, agora, estou aqui, porque Zara me disse ao telefone que você não almoçou e enfurnou-se no quarto.

Soltou-a.

— Isso definitivamente me irrita — ele afirmou. — Me casei com uma mulher, não uma adolescente despreparada.

— Não se casou comigo — ela prevaleceu. — Casou-se com o que Wafa escolheu, e apenas pela herança. É Ofélia que você quer!

— Eu gostava muito da companhia de Ofélia, mas acabo de lhe mandar um aviso de que não irei mais precisar de seus préstimos.

Aquilo a surpreendeu.

— Achei que a amasse... — murmurou.

— Havia avisado Ofélia que, enquanto meu contrato com você estivesse de pé, que se mantivesse longe. Ela descumpriu o acordo e não tenho paciência para infantilidade feminina. — Aproximou o rosto do dela. — Fique de sobreaviso também.

Repentinamente, um tapa no rosto. Darius ficou, por alguns segundos, em choque pela atitude drástica da esposa. Nunca esperava aquilo dela. Não de Rosário, que parecia incapaz de se sobrepor a qualquer coisa.

Sabia que era a segunda vez que ela lhe levantava a mão. Tinha todos os direitos de puni-la por aquilo. Contudo, então, viu as lágrimas de revolta, e percebeu que havia ido longe demais.

— Não sou uma das suas amantes, não sou uma das mulheres que paga para ter. Estou aqui porque fui obrigada a um contrato que me tornava sua esposa por um ano. Não uma prostituta, mas uma esposa. Respeite-me, antes de me exigir qualquer coisa.

Ela não estava errada em lhe pedir isso.

Darius levantou-se e caminhou em direção à janela. Ao longe, o sol já começava a descer para o poente.

— Você sabia que levantar a mão para mim é uma ofensa tremenda? — ele questionou. — Que até mesmo Wafa me incentivaria a puni-la por isso?

— Você já me pune — ela retorquiu, sem medo.

— Conviver comigo é algo tão terrível? — sua questão parecia carregada de mágoa.

— Conviver com você, sabendo o que significo para ti, sim.

Ele volveu para Rosário. Viu-a erguendo-se da cama e se aproximando dele.

— O que acha que significa para mim, Rosário?

— Nada — sua sinceridade era dolorosa. — Achei que era sua amiga, mas não sei mais o que estamos vivendo.

Ele ficou magoado pelas palavras. Mesmo assim, tentou não transparecer isso.

— O que quer de mim, Rosário?

Queria um casamento real. Queria ser olhada nos olhos e ver sentimentos. Queria ser beijada com verdade, ter filhos com ele, saber que o tempo juntos seria definido pela vida e não por um papel com data para acabar. Queria o amor daquele homem como jamais quis algo no mundo.

Contudo, não era a primeira vez que desejava ser amada. Buscou muito isso, pela mãe, pelo pai, pelos tios... Em todas às vezes, a decepção quase a destruiu. Não podia e não queria expressar isso ao marido.

— O que você quer de mim? — repetiu, puxando-a de encontro aos braços. — Uma palavra, Rosário — murmurou, contra seus lábios. — Uma palavra. Apenas fale.

Batidas na porta. Darius quase ouviu o suspiro de alívio da esposa. Caminhou até a entrada e abriu-a.

— Sim, Zara?

— Um casal quer vê-lo — a empregada pareceu constrangida por interromper o momento entre os patrões.

Darius ainda se voltou para Rosário uma última vez, antes de rumar para a sala.

Sem saída, ela o seguiu. Deu de cara com o astro Benedith Brow e sua esposa. Sentiu que Darius estremeceu, a respiração entrecortar, e a raiva pareceu dominá-lo. Aproximou-se, cuidadosamente, e tocou-o levemente nas costas.

— Como se atrevem a aparecer na minha frente? — ouviu o murmuro masculino e pressionou mais os dedos nos músculos do marido.

Não sabia o que se passava entre eles. Mas, precisava impedi-lo de partir para uma luta corporal.

Subitamente, Darius voltou-se para ela. Segurou sua mão e beijou-lhe os dedos.

Era um afago que dizia mais que carinho. Era uma maneira de tranquilizá-la.

— Está tudo bem, Rosário — murmurou. — Apenas me espere no quarto.

Ela queria permanecer na sala, mas, ao mesmo tempo, sabia que não entenderia nada do diálogo que aquele casal trocaria com Darius. Então, simplesmente aquiesceu e voltou-se à suíte.

Porém, antes de entrar, ouviu Zara dizer algo que quase fez seu coração paralizar. Com o canto dos olhos, a serva aparentava oferecer chá.

Não seria nada demais não fosse o nome pelo qual chamou a esposa de Benedith Brow: Nádia.

Nádia...

Aquela mulher era Nádia? A Nádia que destruíra Darius?

Seus pensamentos foram cortados pelo fechamento da porta. Enquanto ela sentia os olhos umedecerem novamente, imaginou o que tudo aquilo significava.

Teria ela o direito de cobrar de Darius uma explicação?

 

 

Capítulo 12

Esperança

A conversa levou algum tempo, que pareceu uma eternidade.

No quarto, Rosário Guerra andava de um lado para o outro, abraçando a si mesma, sentindo os nervos aflorando enquanto a boca secava.

Nádia Brow era a Nádia de Darius. A mulher que um dia ele amou, a mesma que o destruiu.

A diferença de idade não significava nada, naquele momento. Nádia era uma beldade, linda demais. Mesmo tendo mais que o dobro da idade de Rosário, facilmente a rebaixava com sua aparência.

Mas, qual poderia ter sido o envolvimento deles? Darius havia sido seu amante? Como Benedith tolerara aquilo?

Por fim, a porta abriu. Rosário encarou o esposo. Por alguns segundos, ele manteve o olhar, mas então o desviou.

— Eu gostaria de não precisar falar sobre isso — ele adiantou-se, nervoso.

— O que você gostaria não me importa. Exijo saber a verdade, agora! Caso não fale, irei embora. Dane-se o acordo, dane-se tudo! — ralhou, as lágrimas invadindo os olhos. — Não aguento mais isso, Darius. Viver em completa ignorância, sem saber o que esperar de você. Fale-me: Aquela mulher na sala, com aquele ator famoso... Aquela mulher... É ela que você ama?

— Já amei — ele assentiu. — Não amo mais.

Não parecia. O olhar carregado de dor negava as palavras.

— Você ainda a quer? — refez a pergunta, não preparada para a resposta.

Subitamente, ele riu.

— O quê?

— Está apaixonado por ela?

Darius pôs as mãos nos bolsos da calça social enquanto parecia balançar.

— Como eu poderia responder a essa pergunta? — seu tom irônico trazia um sorriso cruel. — Eu não chamo Nádia de mãe há muitos anos. — contou. — Mas, a única forma de explicar a você que eu não quero a senhora Brow é usando essa palavra. Nádia é minha mãe.

Rosário ficou estarrecida.

— Como?

Darius sentou-se na cama. Repentinamente, Rosário o acompanhou. Ele parecia disposto, pela primeira vez desde que se casaram, a abrir-se para ela. Não queria perder aquela oportunidade.

— Meu pai Omar abriu as portas de nossa casa e de nossas terras para a gravação de “O Príncipe da Sedução”. — Ele respirou fundo, como se fosse difícil relembrar tudo. — Eu me lembro muito pouco de meu pai, mas recordo-me de vê-lo sempre rindo. Era carinhoso, sabe? Um homem bom. Casou-se com Nádia por amor, e sempre lhe deu tudo que ela quis. Nádia amava ouro, e ele a cobriu de joias. Quando eu nasci, ele me exibia no vilarejo como se eu fosse seu bem mais precioso, um troféu. Éramos felizes, eu tenho certeza disso. Até que Benedith Brow surgiu, em seu cavalo branco, e sua voz de locutor de rádio. Bonitão, rico, famoso... Adivinhe para quem ele olhou?

— Nádia — ela murmurou, seguindo os pensamentos.

— Dizem os servos que meu pai não via maldade em nada, e não percebeu as traições da esposa. Minha mãe sumia de casa, falavam que ia assistir as gravações, mas todos sabiam que ela ia para o hotel de Brow e passava as tardes lá. Então, um dia, as gravações chegaram ao fim.

— E ela decidiu seguir com o ator...? — Rosário completou, entendendo a situação.

— Não exatamente. Veja bem, uma mulher muçulmana, abandonar seu marido e filho... Estamos falando de anos oitenta. Isso pegaria muito mal. Mancharia a imagem dela. E se tem algo que Nádia não suporta é que pensem mal dela. Nádia quer que o mundo a veja como a mulher perfeita, a esposa dedicada e a mãe amorosa.

Darius respirou fundo.

— Quando Nádia conheceu Brow passou a ser uma mulher fria conosco, mas, subitamente, ela voltou a ser carinhosa. Eu me recordo até hoje de ela ter me chamado para tomar chá com um sorriso no rosto. Meu pai também ficou animado, e tudo parecia estar voltando ao eixo em nossas vidas. Mas, por um acaso do destino, eu derrubei a minha xícara e a quebrei. Minha mãe ficou nervosa e gritou comigo, enquanto meu pai tentava tranquilizá-la. Ela saiu para buscar outra xícara e, enquanto isso, meu pai bebeu tudo. Ele morreu na minha frente, segundos depois. O coração parou.

Darius engoliu em seco, os olhos afundados em dor.

— Na época, eu era uma criança, era difícil para mim entender o que tinha acontecido. Meu pai morreu, minha mãe desapareceu... Levou um tempo para que eu entendesse que ela queria se tornar viúva para poder se casar sem nenhum empecilho. Meu avô Wafa me buscou na casa de meu pai, e me criou... E somente após algum tempo foi que notei que Nádia havia assassinado meu pai, e só não me matou porque não teve tempo.

Rosário era incapaz de dizer qualquer coisa. Simplesmente segurou as mãos dele e as apertou, como se quisesse deixar claro que ela estava ali, ao lado do homem, sendo um apoio moral.

— Minha avó costumava dizer que o perdão limpa a alma. Antes de morrer, ela me pediu para que eu perdoasse Nádia. Havia ido à Inglaterra para estudar, e estava prestes a me tornar sheik. Então, disse a mim mesmo: “ Minha mãe errou, e eu devo dizer a ela que a perdoo. Devo dizer a ela que desejo que seja feliz ”. Soube então que ela estava em Londres com os dois filhos do novo casamento. Com alguma ajuda, descobri o restaurante onde iriam jantar e fui até eles. Nádia empalideceu quando me viu. Senti em seu semblante a revolta, o nojo, o desespero. Apresentou-me aos filhos como um conhecido da época que morava no Qatar, depois pediu licença e saiu comigo para a varanda. Antes mesmo de que eu pudesse abrir a boca, despejou sobre mim todo ódio que guardava no coração. Indagou-me de por que não morri, dos motivos de continuar importunando-a. Disse-me que não me considerava seu filho. Que tinha nojo de ter-me dado à vida. E falou que se eu dissesse aos seus filhos, aos quais amava, de que era minha mãe, ela me processaria e faria de minha vida um inferno.

— Processaria? Mas, você falava a verdade.

— Um processo do tipo levaria anos e só prejudicaria os negócios de meu avô. Além disso, eu não queria envergonhá-la, queria apenas seu amor. Fui um tolo.

Rosário o compreendia. Ela não havia feito à mesma coisa quando Antônio surgiu a sua porta com uma proposta de viagem ao Qatar?

— Benedith Brow e sua esposa mataram meu pai. Quase me mataram também. Deixaram-me viver apenas para que eu soubesse o quanto era indesejado. Transformaram-me no homem que sou hoje. Então, não quero contato com eles, não quero ficar pior do que sou.

— Não é um homem ruim, Darius — ela negou. — Você me deu sua amizade, sou tão grata por isso. É meu primeiro amigo — sorriu, sentindo um soluço escapar dos lábios.

Durante toda a sua vida, era tão difícil expressar seus sentimentos. Todavia, ao lado de Darius, tudo parecia tão natural.

Repentinamente, ele beijou seus lábios.

— E você é meu primeiro amor — ele murmurou.

Rosário não sabia se aquelas palavras vinham do coração do marido ou da ferida não cicatrizada. Não quis inquirir. Não importava.

— O que eles queriam? — questionou, mudando o assunto.

— Benedith Brow vem de uma onda de filmes fracassados. Nos últimos anos, ele tornou-se símbolo de fracas bilheterias. Fazer um novo remake de seu maior sucesso seria uma tentativa de recuperar sua carreira, porém, eles precisam de financiamento e da casa que meu pai morava, para conseguirem rodar o longa. Então, precisam de mim.

— Você aceitou?

— É claro que não. Os escorracei daqui tão logo você saiu da sala.

— Mas, isso já faz quase uma hora.

— Eu não queria que visse meu pior lado e, antes de retornar para cá, precisava me tranquilizar.

Rosário assentiu.

— Nós não precisamos deles, Darius — ela murmurou, puxando seu rosto, beijando seus lábios. — Esqueça sua mãe, assim como eu esqueci meu pai. Nós podemos ter um ao outro. Para sempre. Sempre seremos companheiros.

Ele sorriu. Era um sorriso tão bonito que a esposa viu-se a questioná-lo:

— O que foi?

— Você sabe que foi uma escolha de meu avô, não é?

— Sim.

— E sabe por que ele a escolheu?

— Não faço ideia — ela riu.

— Ele disse que me via em seu olhar. Agora eu entendo, também me enxergo em você.

Outro beijo. Nunca parecia o suficiente.

— Fique comigo — ele murmurou contra seus ouvidos. Aquele pedido era tão quente e delicioso que ela sentiu-se afoguear. — Nunca saia do meu lado.

A mulher assentiu.

— Eu ficarei — prometeu. — Me apaixonei por você — confessou, sentindo uma felicidade tão absurda no peito. Era a primeira vez que experimentava algo tão intenso e expressivo. — Quero ser sua para sempre, Darius — pediu.

— Então será.

O sexo, naquele dia, foi especial. O primeiro recheado de ternura, o primeiro sem impedimentos sentimentais. Era apenas um homem e uma mulher, confiantes num amor que nascia e que se fortalecia com a passagem dos dias.

Um amor que seria para sempre.

 


Capítulo 13

Felicidade

Nicodemos subiu no colo de sua tutora e esfregou-se em seu rosto. À frente de Rosário, Wafa observava o carinho do animal para com a jovem, e sorria, agraciado pela bela cena.

— Você gosta de animais, não é?

— Amo. — admitiu. — Nunca pude ter cães, mas, ao menos, pude ter a honra de conhecer Nicodemos — voltou-se ao gato. — Não é, meu amor? — brincou com sua bochecha peluda.

Wafa bebericou o chá que Zara havia servido, momentos antes.

— Darius parece muito feliz desde que voltou para o Qatar. Pelo jeito, você também.

A moça pareceu envergonhada.

— Acho que estamos nos acertando.

— Fico feliz em ouvir isso — o avô foi sincero.

— Não foi fácil, no início — ela contou. Queria desabafar, e via naquele sábio homem a pessoa perfeita para tal. — Até mesmo aqui, na casa. — Olhou para o lado. Mesmo sabendo que a maioria das pessoas ali não sabia falar português, quis proteger-se das fofocas. — Foi difícil para as mulheres me aceitarem.

— Como assim?

— Na festa do casamento... Bom, elas me acharam feia demais para o sheik.

Wafa estranhou aquela colocação.

— Como?

— Depois — Rosário deu os ombros, não se importava com aquela questão —, quando brigamos, Darius e eu, e eu fui procurá-lo no escritório, encontrei Ofélia lá. Ela também foi para Los Angeles. Disse que Darius a levou. Senti-me tão humilhada quando sai para passear e a encontrei.

— Meu neto é um homem digno, não faria isso à própria esposa — Wafa recusou as palavras. — Como Ofélia sabia da viagem?

Rosário balançou a cabeça.

— Isso não importa mais. Darius me disse que eles terminaram. Darius quer que nosso casamento seja real. — O sorriso feminino era tão expressivo que Wafa viu-se a sorrir também. — Eu acho que, enfim, nós conseguimos nos entender. Mesmo diante de tanta diferença cultural, econômica e social... creio que era como se... Como poderia dizer...?

— Como se estivesse escrito — Wafa completou, satisfeito. — Maktub .

— Exatamente — concordou. — Eu confio nele. Eu sei que ele não mente para mim. E todo resto, simplesmente, parou de importar.

— Não sabe o quão feliz me faz por essas palavras, minha querida — o avô curvou-se a frente e apertou suas mãos. — Eu esperei muito para ver meu neto feliz. Hoje de manhã, no café da manhã, vê-lo sorrir enquanto tomava o chá, fez-me perceber que meu papel foi cumprido. Você trouxe esperança aos olhos de Darius. Isso não tem preço.

— E ele me deu uma família — ela retribuiu o afago. — Isso também não tem preço.

***

 

Zara costurava uma saia enquanto era observada pelo espelho por Rosário. A senhora da casa sorriu para a serva, e voltou-se para ela, enquanto deslizava as mãos no vestido longo de seda.

— Como estou?

— Está muito bonita, senhora — Zara elogiou, devolvendo o sorriso. — E está feliz também, vejo em seus olhos.

Não havia como negar aquilo, e Rosário simplesmente deu os ombros.

— Zara, você me ensinaria árabe?

— Quer aprender o idioma?

Só naquele instante, Rosário percebeu a surpresa nos olhos amendoados da outra. Contudo, logo aquele curto instante foi interceptado pela completa satisfação em Zara.

— Planeja ficar em nosso país?

Por que aquele sorriso não parecia mais tão sincero?

Rosário não chegou a responder. O marido entrou no quarto, e encarou a serva. Era quase como um pedido mudo para que Zara saísse, mas a mulher pareceu não entender.

Feliz demais, como nunca havia sido até então, Darius aproximou-se da esposa e a girou, em direção ao espelho. Subitamente, um cordão dourado e largo surgiu diante dos olhos femininos.

Logo, Darius o colocava na esposa.

— Eu... — a voz de Rosário, no entanto, era constrangida. — Não sei se quero aceitar, Darius.

— É minha mulher — ele beijou-lhe o pescoço. — A quero bonita para mim.

Ela girou em direção a ele. Sorriu.

— Eu prefiro ser bonita para você sem esses adornos caros, você compreende?

Volvendo a mão para trás, retirou o cordão.

— Ainda não confia em mim? — ele murmurou. — Ainda se sente comprada?

— Não se trata disso... — ela sussurrou, largando o cordão no criado mudo.

Então, girou para Zara e pediu para que ela lhes desse licença. Só quando a mulher desapareceu, foi que ela o encarou.

— Eu o amo, Darius. E de você, tudo que quero é sentir seu cheiro, beijar sua boca e abraçá-lo. Esses presentes não têm significado algum para mim.

Considerou que ele pudesse se magoar pelas suas palavras, mas viu-o sorrir.

— Sempre sincera, Rosário — ele balbuciou, buscando sua boca. — Imagino o quanto sofrerei para conter essa personalidade geniosa.

Geniosa? Jamais se viu assim. Sempre era completamente complacente e passível. Aceitava todas as humilhações e maldades de boca fechada. Mas, Darius a mudou. Ele a fez mulher. De todas as formas. Ele a amadureceu, deu-lhe confiança. Ela sorriu.

Não resistindo mais, segurou seus dedos e o guiou até o leito.

***

 

Certa vez ouvira em um filme de que o tempo passava depressa quando se estava feliz.

Aquela frase tornou-se uma verdade para Rosário Guerra.

As semanas tornaram-se meses, e os meses, quase um ano. O tempo que ela tinha para viver o casamento estava prestes a se findar, quando Darius surgiu, num final de tarde, com o contrato do matrimônio e o acordo de divórcio em mãos.

Por alguns segundos, ela sentiu o coração parar de bater e lágrimas surgirem nos olhos. Contudo, ele logo a confortou.

— É seu para fazer o que quiser. Para saber que é livre. Que ficará aqui - se quiser - pelo tempo que quiser, porque é o que quer, e não porque foi te imposto.

Sem pretensão nenhuma de abandonar aquele homem, ela simplesmente guardou os papeis em uma gaveta no fundo do armário, imaginando que um dia os mostraria aos seus filhos ou netos.

“ Olhem só como vovô e vovó se apaixonaram ”, podia ouvir-se a dizer. Duas pessoas tão diferentes, amarradas pelo destino.

Wafa dizia que tudo na vida estava escrito. E que ninguém quebrava o que Alá havia predestinado. Ela passou a crer nas palavras porque, toda a noite, quando deitava-se ao lado do marido e o observava dormir depois de fazerem amor, ela sabia que estava exatamente no lugar certo, dentro daquele abraço gentil e protetor.

Usar os véus não lhe causava mais estranheza. Nem portar-se submissa diante dos outros. Nada, aliás, lhe incomodava. Tudo era apenas alegria.

E tornou-se ainda mais intensa quando descobriu na enorme propriedade uma baia com muitos cavalos árabes belíssimos.

Cavalos! Para uma gaúcha que ainda honrava o vinte de setembro, e que ainda adorava as tradições, aquilo era mais que perfeito.

— Você não vai montar! — Darius ralhou, certa vez, quando ela pediu para ele uma das éguas. — E se cair? E se machucar-se?

— Eu sei montar — recusou as palavras, mentindo.

Considerou, é claro, que não fosse tarefa difícil.

— Além disso, não tem nenhuma égua mansa para que eu pratique?

Ela insistiu por dias, e então, não aguentando mais aquela reclamação sem fim, Darius arrumou a égua mais velha e mais mansa que conseguiu.

Rosário não se importou. Tão logo foi apresentada a companheira, abraçou-a pelo dorso e beijou-lhe o focinho.

— Recusa ouro e diamantes, mas beija um animal fedorento — ele gargalhou, recebendo dela um safanão.

Todo e qualquer toque sempre os atraia. Era tão magnético que logo viram-se a beijar-se em plena área aberta, as vistas de qualquer um que lá passasse.

— Está me deixando maluco, bruxa — ele brincou.

Outro beijo e ela voltou-se para o animal.

— Você faz todas as minhas vontades — murmurou. — Está me mimando demais.

— Viu só? — ele assentiu. — Nunca encontrará marido melhor no seu país.

— Pode até existir, mas não será um que eu queira tanto quanto você.

Quando ele se afastou, ela viu Zara sorrindo para ela ao longe. Por algum motivo, aquilo a arrepiou.

 


Capítulo 14

O Deserto

— Tem certeza, minha senhora? – a serva a encarava com o olhar claramente preocupado. Era um misto de sensações que Rosário era incapaz de decifrar.

— Só quero cavalgar um pouco. Não irei longe,

— Mas, sheik Darius não foi informado. Ele não gosta que façam as coisas sem que saiba.

— Ele é meu marido, não meu proprietário — ela resmungou, já subindo no animal.

Bateu com os pés levemente na barriga da égua e a viu caminhando um pouco. Sentiu-se a própria Anita Garibaldi, e riu do pensamento. A Guerra Farroupilha a encantava desde criança. Sempre se imaginou cavalgando, livremente, como num filme.

A vida, no entanto, se mostrou dura demais, e absorveu seus sonhos. Agora, podia voltar a sonhar.

Uma vez havia conhecido, com as outras crianças do orfanato, uma fazenda na Serra. Lá ela montou pela primeira vez. Havia dado poucos galopes, mas lembrava-se de que sentia-se capaz. Logo, resolveu bater com mais força os pés na égua, e mexeu as cordas.

Não levou um segundo, e o bonito animal começou a cavalgar rapidamente.

Ela gargalhou enquanto sentia o vento batendo contra o rosto e o calor do sol a tocar a sua pele.

Os passos rápidos do equino a levaram sem rumo por algum tempo, como se fosse simplesmente uma parte daquele sistema, como uma parte da criação divina.

Porém, a atitude impensada logo lhe trouxe consequências. Quando a égua parou, ela girou para trás, na intenção de sorrir para a serva, quando percebeu que o castelo de Wafa não estava em nenhum lugar à vista.

Tentou não entrar em pânico, apesar de saber que estava completamente perdida.

Bastava seguir o rastro das pegadas que a égua deixara na areia, não é? Voltou à direção em que viera, desceu do animal, e começou a ir mais por aqueles rastros. Contudo, o vento logo os destruiu, o sol pareceu mais intenso e não levou nem uma hora para ela perceber que sua inconsequência fê-la perder-se em um deserto que parecia sem fim.

Subitamente, a égua empinou. Rosário olhou para os lados, procurando o motivo. Havia visto alguma cobra? Escorpião? Nervosa, acabou por soltar as rédeas do animal, que girou a esquerda e voltou a galope para a direção oposta que ela ia.

Sabia que os animais eram treinados para sempre voltarem para o lugar de origem, então tentou correr atrás da égua.

Porém, logo ela desapareceu de suas vistas, e o sol a afogueou mais.

Cerca de três horas depois, sentiu-se tonta. Sentou-se sobre a areia, e tentou recuperar o fôlego.

O que faria?

***

 

Darius largou a maleta sobre o sofá. Cumprimentou o avô, que lia um livro sentado entre almofadas, e depois perguntou da esposa.

— Não a vi, hoje. Acho que saiu com Zara.

A esposa não era dada a passeios, mas ele havia deixado um motorista particular à disposição dela para que se distraísse na cidade.

Contudo, tão logo pensou nisso, Zara surgiu diante dele com uma bandeja de chá.

— E minha esposa? — repetiu a pergunta, dessa vez à serva.

 

— Não a vi, meu senhor.

Subitamente, apavorou-se. Não fazia muito tempo que dera a ela os documentos do divórcio. E se Rosário simplesmente decidira ir embora sem avisar a ninguém. Ela podia fazer aquilo. O passaporte dela estava no quarto. Correu naquela direção, e logo estava no aposento. Abriu o closet. Todas as roupas estavam ali, mas aquilo não o aliviou. Se ela fugisse, não levaria nada, não é? Então, correu até a caixa de joias.

Sentiu a boca secar ao perceber sumido o cordão de ouro que ele havia lhe dado.

Sim, ela o pegara para empenhorá-lo. Em poucas horas, provavelmente, já estaria a caminho do Brasil.

Havia perdido a mulher...

Provavelmente, nunca a tivera...

Rosário o havia enganado com abraços doces e palavras amigáveis, assim como um dia Nádia fizera.

Então, todos os pensamentos se perderam diante da visão à janela. Ao longe, uma égua árabe cavalgava em direção ao castelo. Estava equipada, mas não havia ninguém em sua sela, a comandá-la.

***

 

— Rosário não seria tão idiota de ir cavalgar no deserto sem avisar a ninguém — Wafa negou e, em seguida, voltou-se para Zara. — o que sua patroa disse?

— Nada, meu senhor.

Darius sequer os dava ouvidos, enquanto conversava com um dos empregados.

— Coloque pelo menos dez homens em procura — avisou. — Rosário não conhece o deserto, não sabe guiar-se pelo sol. No país dela, ainda mais na região em que vivia, não existem desertos. Ela não faz ideia do quão perigosa é sua aventura.

— Darius — o avô insistiu.

— Eu vou ir agora em direção donde a égua veio. Vou encontrar a maluca da minha mulher e juro por Alá que vou encher aquela bunda branca de tapas, para ela aprender a não ser tão irresponsável.

O avô riu.

— Que Alá o proteja — o avô deu sua benção.

***


O sol que queimava logo tornou-se breu. Então, veio um frio de cortar os ossos. Aquele tipo de frio que ela sentia nas noites geladas do inverno gaúcho, um vento chamado no Rio Grande do Sul de “Minuano”, porque além de enregelar o corpo, ele parecia machucar a pele.

Sentiu medo e perdeu as forças. Caiu sobre a areia, encolhendo-se, buscando o calor dela, enquanto batia o queixo e tremia.

Jurava que durante a tarde havia visto copas de árvores e água fresca à direita. Rumou naquela direção por horas, sentindo a sede cortá-la. Só mais tarde percebera que perdera o caminho seguindo uma ilusão.

As miragens do deserto levavam os homens a loucura ou a morte. Rosário achou que, no caso dela, a ambos.

Subitamente, o som de cascos. Encolheu-se mais. Não tinha forças nem disposição de lutar por si.

Tomada pela febre, ela deixou-se a ficar, a dormir daquela vida que, agora percebia, fora pesada demais, apesar da sua tão pouca idade.

Então, o som cessou. Em seguida, viu-se sendo puxada e abriu os olhos.

A luz do luar, percebeu Darius. Ele a encarava com atenção, preocupação, e ela imaginou se ele era outra miragem.

— Por que diabos saiu sem avisar ninguém? — o tom buscava ser raivoso, mas tornou-se amoroso. — Está com febre. Pegou uma insolação.

Era riu baixinho.

— Nem sei o que é isso.

— O sol queimou demais seu corpo. Precisa de água... — buscou uma garrafa que trazia consigo e despejou nos lábios rachados. — Achei que havia me abandonado... — ele murmurou.

Ela deslizou as mãos pelo rosto dele.

Subitamente, foi erguida. Imaginou que ele a levaria para casa, mas Darius, após acomodá-la sobre o alazão, levou-a para uma espécie de oásis.

O lugar tinha uma fonte de água e os protegeria do vento gelado da noite. A vegetação tornava a areia fofa, e ela quase sentiu vontade de dormir ali.

— Esse é um dos muitos abrigos que existem no deserto — ele explicou, diante do olhar surpreso. — Precisa descansar — estendeu uma manta no chão e a ajudou a deitar-se.

— Por que não vamos para casa?

Estava exausta, queria tomar banho, e deitar-se sobre colchões.

— Estamos cerca de três horas de cavalgada longe de casa. Como você conseguiu distanciar-se tanto?

Percebeu o tom zangado e deslizou o braço sobre os ombros masculinos, atraindo-o para um abraço.

— Me perdoe por preocupá-lo.

— Mais que preocupou — admitiu. — Achei que havia ido embora.

Ela estranhou.

— Mas Zara sabia que eu havia ido cavalgar.

Darius arqueou as sobrancelhas.

— Ela não me disse nada.

Rosário suspirou.

— Provavelmente temeu ser punida por isso. Você é muito assustador, às vezes.

Ele riu. Contudo, o sorriso não parecia animado.

— Eu não vou embora, Darius — ela afirmou, encarando-o. — Por que eu iria?

— Eu não sei. Diga-me você.

Rosário pareceu pensar um pouco.

— Eu iria se tentasse me bater — apontou.

Ele fingiu surpresa, e nem pensou em falar que estava louco para enchê-la de tapas por causa do susto que lhe dera.

— Ou se me traísse...

Aquilo era impossível de acontecer.

— Não suporto adultério então, quanto a isso, fique tranquila.

— E quanto a agressões?

— Vá cavalgar novamente sem me avisar para você ver o que vai te acontecer.

A gargalhada dela preencheu o ambiente. Ele molhou um lenço e levou até seu rosto, para aliviar a febre.

— Assim que o sol nascer, a levarei para casa — prometeu. — Por hora, durma e tente recuperar as forças.

Ela assentiu.

Era a primeira vez em sua vida que alguém cuidava dela enquanto doente.

 


Capítulo 15

A joia

Rosário gemeu ao ser deitada sobre uma banheira cheia de leite frio. Os dentes bateram, involuntariamente, e ela sentiu a pele se arrepiar.

— Não existe nada melhor para insolação que leite de cabra — o marido explicou, ao lado da banheira, enquanto uma serva mergulhava um pano de algodão no líquido e o pousava sobre a face avermelhada.

Rosário sorriu para ele, achando hilária aquela face revoltada. Ele estava magoado por sua pequena aventura, e quase morte, mas ela não conseguia sequer se culpar.

Pela primeira vez na vida, arriscou-se em algo. Fora divertido, apesar de tudo. Porém, seu sorriso só tornava a face de Darius mais carrancuda.

— Nunca mais na sua vida subirá em um cavalo.

Ela gargalhou, enquanto a serva arregalava os olhos. Por fim, Darius disse algo em árabe à mulher e ela os deixou sozinhos.

— O que é tão engraçado? — seu tom era revoltado. — Tive paciência com você porque estava com febre e no meio do nada. Mas, agora, tenho que puni-la por essa afronta.

— Que afronta?

— Eu achei...

Subitamente, emudeceu. Percebeu que estava falando demais.

— Achou o quê?

A insistência feminina era deveras incômoda.

— Não ouse me abandonar, Rosário — ele rugiu, ameaçador. — Eu não vou tolerar isso.

Mais risos. Provavelmente, era a febre baixando. Tudo que ele dizia provocava gargalhadas na mulher.

— Você me deu o contrato de divórcio, esqueceu?

— Uma amenidade. Uma gentileza. Se usá-lo, eu a matarei.

— Muito assustador para alguém que ontem só queria salvar a minha vida.

Darius bufou, enquanto ela cobria a boca com as mãos.

— Disse que eu não devia me apaixonar por você, Darius — ela comentou, afável. — Mas, parece-me de que é você que se enamorou.

— Você já sabia disso — não negou. — Eu havia te avisado em Los Angeles.

— Eu achei que estivesse zoando com a minha cara — mais gargalhadas. Por fim, vendo o semblante irritado a sua frente, ela tentou se controlar. — Não fique tão nervoso — pediu. — Definitivamente, eu apenas errei o caminho.

— Você nem conhece o caminho! – ele gritou. — Não faz ideia do que é o deserto. Poderia ter ficado lá para sempre! Poderia ter sido picada por uma cobra ou escorpião, ou ter tido uma severa desidratação.

Então, baixou o tom, tentando se controlar.

— Está proibida de subir na sua égua e dar qualquer passeio nos arredores sem que eu esteja junto.

Aquilo fê-la abrir a boca, pasma. Pela primeira vez, sentiu-se uma prisioneira.

— Deixei um motorista particular para que possa ir à cidade, passear e se distrair. Aproveite isso, se quiser sair de casa. No mais, nada de deserto, nada de cavalos, nada de ficar fora do meu campo de visão.

— Não sou sua escrava.

— É minha esposa, e me deve obediência.

— Percebe o quão absurdo está sendo sua reação a um simples incidente?

Ele agachou-se diante dela. Ficaram cara-a-cara.

— Não sabe no que está se metendo, Rosário. O tempo de ter fugido já passou. Ficou ao meu lado, e ficará bem, se for uma boa esposa. Se tentar fugir de mim novamente, eu não terei piedade.

— Você acha que eu tentei fugir?

Ele voltou a ficar em pé. Sabia que o colar havia sumido, e imaginava que ela planejava vendê-lo. Ao mesmo tempo, sua mente racional lhe cutucava diante da estupidez de sua reação. Ora, ela sequer havia mexido nos documentos e passaporte.

Não... ela não havia tentado fugir, assim como sua mãe. Ela não era como Nádia. Nunca seria.

Todavia, não iria arriscar.

— Está de sobreaviso.

— Odeio quando tenta se impor, assim. Sabe que não é necessário — perseverou. — O que me prende a você não é nada além dos meus sentimentos.

— É mesmo? — ele riu, pela primeira vez. Porém, em nada aquele sorriso parecia feliz. — Nunca disse que me amava.

— Claro que disse! — retrucou.

— Não. Disse que havia se apaixonado, mas não que me amava. Estamos há quase um ano juntos, e então, pergunto-me: você me ama?

Aquele olhar que a media era extremamente frio. Rosário sentiu-se abatida.

— Acreditaria na minha resposta?

— Não.

— Então, de que me vale palavras?

— Tem razão — ele mexeu no braço e observou o relógio. — Vou tomar uma ducha e então irei trabalhar. Pelo menos hoje, tente não me tirar das minhas obrigações.

Saiu sem se despedir. Deixou-a arrasada para trás.

***

 

— Não fique abatida, minha senhora — Zara surgiu atrás dela, enquanto lhe apertava os ombros. Era um carinho confortador e muito bem vindo.

— De repente, dei-me conta de que meu esposo jamais confiará em mim, Zara — confessou.

— Sheik Darius é um homem difícil, mas é um bom homem, não é? Ele não a faz feliz?

Fazia?

Enquanto encarava o espelho, Rosário recordou-se dos inúmeros livros que leu, onde explicavam que sentimentos como os dela eram semelhantes a uma doença. Seria Rosário vítima de uma espécie de Síndrome de Estocolmo? Afinal de contas, ela não havia se casado por amor.

Mas, o amor poderia nascer em terreno infértil, não é? O amor não tinha um padrão. Não seguia um contexto exato. Ele poderia surgir do nada.

Estava repleta de dúvidas, mas havia uma certeza. Ela sentia-se extremamente próxima de Darius, ao ponto de entendê-lo, e a sua reação, diante do sumiço dela.

Caso fosse o contrário, não teria ela reagido da mesma forma?

— Senhora, vamos à cidade? — a serva questionou. — Existe um restaurante tão bonito no centro. Podemos ir almoçar lá e depois ir comprar tecidos para fazer novos vestidos.

Parecia que era tudo que se resumia a vida de uma mulher, ali. Então, deu-se conta de que queria mais.

Sim, iria pedir emprego a Darius. Ajudá-lo na administração das muitas empresas. Ela tinha experiência como secretária, e poderia, antes, aprender o idioma. Talvez cuidar das empresas que tinham sede no Brasil, intermediando contratos.

Aquele pensamento lhe deu um novo ânimo.

— Sim, querida — disse para a serva. — Vamos almoçar nesse restaurante que sugeriu.

O sorriso que recebeu em resposta foi compensador. De mãos dadas com a amiga, ela saiu do quarto.

***

 

— A senhora precisa conhecer “The Pearl” — Zara comentou. — É maravilhosa.

O garçom chegou com a comida. Um peixe apimentado e coberto de milho cozido pareceu mais apetitoso que o normal.

Rosário sentiu a barriga roncar e segurou um riso.

Estranhamente, estava tendo picos de humor. Numa hora, ficava arrasada, em outras, como aquela, diante do peixe, estava estranhamente feliz e alegre.

— A ilha artificial? — indagou, recordando-se dos livros que leu, antes da viagem.

— É tão linda, senhora — Zara murmurou, enquanto comia. — A senhora...

Então, calou-se. Rosário a encarou, aguardando o desfecho das palavras, quando a percebeu nervosa, a olhar para o lado. Volveu o olhar naquela direção, e viu Ofélia.

Fazia meses que não a via. Não sabia que a modelo ainda estava no país. Imaginou que nada mais a prendia ali, depois do final do relacionamento com Darius. Porém, claramente, estava enganada.

— Olá, Rosário — a mulher aproximou-se, como se aquele encontro fosse uma agradável surpresa. — Aproveitando os últimos dias no país?

Rosário simplesmente entrou em pânico.

— Eu... eu...

— Sugiro que conheça o museu de arte islâmica antes de voltar para o Brasil — ela comentou. — Os quadros e manuscritos valem uma visita. Ainda mais para alguém como você, que claramente gosta de velharias.

— Não voltarei ao Brasil — ela respondeu, assim que recuperou a voz.

Ofélia demonstrou surpresa, mas não revolta. Aquela situação era constrangedora demais.

— É mesmo? Gostou tanto do país que vai ficar?

— Darius, ele...

Então, percebeu. Ali, diante dela, visivelmente sobre o busto bonito, o colar que Darius havia lhe dado. Era uma peça maravilhosa, em ouro maciço, ornamentada por desenhos bem traçados, em árabe.

A boca secou, enquanto o coração disparou.

— Eu não entendo...

— O que não entende, querida? — a mulher sussurrou.

— Quem lhe deu isso? — apontou o cordão, sem medo de parecer inconveniente.

Simplesmente, naquele momento, precisava saber mais do que precisava do ar para respirar.

— Meu noivo, é claro.

Aquela peça era cara demais e seleta demais para ser dada por qualquer outra pessoa. A resposta estava ali, diante dela. Ninguém além do marido teria dinheiro o suficiente para comprar dois cordões iguais.

Sim, Darius havia dado o mesmo presente à esposa e a amante. Se ainda a queria, então estava a planejar trazer Ofélia para casa como uma segunda esposa.

Todo aquele semblante fechado e palavras grosseiras, subitamente, pareceram compreensíveis.

Darius havia se cansado dela. Ou, ao menos, não a considerava suficiente.

Ofélia então comentou que precisava ir. Tinha um compromisso. Desejou a ela um bom almoço, mas ela sequer conseguiu se atentar nas palavras.

— Minha senhora — Zara chamou sua atenção, assim que pôde. — Não fique assim. É tão normal um marido querer mais uma esposa. Poderá ser Ofélia uma boa amiga. Não seria uma façanha enorme do destino?

Mas aquilo não fazia parte dos princípios de Rosário. Ela não aceitava outra mulher. Mesmo que fosse comum naquele país.

— Eu perdi o apetite — avisou para a outra, levantando-se e saindo do restaurante como se estivesse sendo perseguida por todos os demônios do inferno.

 


Capítulo 16

O beijo

Sentada sobre um palanque diante do enorme shopping central, Rosário parecia perdida em seus pensamentos. A serva aproximou-se, cuidadosamente, tentando confortá-la.

— A senhora sabe? — murmurou, segurando suas mãos. — O ciúme e a dúvida são péssimos conselheiros. Eu penso que o melhor de tudo seria ir até seu marido, e conversar com ele.

Rosário temia as respostas. Manteve-se calada.

— Uma única palavra de sheik Darius pode livrá-la da aflição.

— Ou me enterrar nela, definitivamente.

— De qualquer forma, a senhora é livre, não? — indagou, sentando-se ao seu lado. — Se não aceita uma segunda esposa, pode simplesmente pegar seu passaporte e sua carta de divórcio e ir embora.

— Darius não me permitiria — negou. — Ele disse...

— Ele colocaria homens no Aeroporto, realmente — concordou. — Mas, eu tenho um primo que a levaria de táxi até Abu Dhabi. De lá, a senhora conseguiria um voo para o Brasil.

Era uma saída. Ela queria realmente seguir por ela?

— Ficar em completo desespero não vai ajudar. Sinceramente, eu penso que sheik Darius vai explicar tudo a senhora. Mas, caso não se explique, pegue o ultimo cordão que ele lhe deu e venda-o. Eu sei de alguém que o compraria. Com esse dinheiro, a senhora voltará para seu país tranquilamente.

Aquele plano parecia muito bem pensado, para ter saído do nada. Rosário surpreendeu-se com o audacioso pensamento e, finalmente, percebeu nele esperança.

Então, levantou-se. Seguiram até o motorista e ela ouviu Zara dizendo ao homem o nome da empresa Hayek.

Em menos de meia hora, paravam diante do enorme edifício. Era próximo do horário de almoço, e havia poucos funcionários ali. A segurança naquele país era grande, e a própria religião inibia atos ilícitos. Então, não se surpreendeu de ver a portaria completamente sozinha.

Subiu de elevador, seguida de Zara. Assim que pararam no andar da presidência, solicitou à serva que aguardasse no corredor.

A conversa com Darius precisava ser privada.

Em passos temerosos, aproximou-se da sala dele. A porta estava entreaberta, mas, mesmo assim, ela ergueu a mão para bater, anunciando sua presença.

Porém, estancou. Ali, há poucos metros, Ofélia beijava Darius com vontade e determinação.

Era verdade, então.

Subitamente, deu-se conta de que Darius havia mentido para ela sobre acabar o relacionamento com a modelo para conter qualquer ciúme ou traço de personalidade que pudesse incomodá-lo.

No fundo, sabia... Sempre soube. Rosário não era mulher para um homem daqueles.

Não era educada, nem bonita, nem magra, nem sequer sabia o idioma daquele homem. Não haveria possibilidade de ter uma vida ao seu lado.

Estava escancarado há muito tempo, mas só então ela aceitou o fato.

Dando às costas para os dois, ela seguiu pelo corredor.

As lágrimas desciam pela face, sem controle. Zara percebeu seu estado atônito e a respeitou. Ajudou-a a seguir para o carro, enquanto tentava ampará-la de algo que parecia ter mastigado sua alma.

Nunca, em todos aqueles anos, em todos os momentos que passou, sentiu-se tão destruída.

Então se lembrou das palavras de Darius.

Não protegeu-se dele. Era punida por aquilo de uma forma que jamais imaginou que o seria.

***

 

Tudo aconteceu rápido, depois daquilo. Zara a deixou em seu quarto, pareceu buscar seu cordão no criado mudo, e lhe avisou que não arrumasse nenhuma mala para não levantar suspeitas, apenas a aguardasse com os documentos do divórcio e o passaporte. Ela conseguiria o dinheiro, e a sua amada senhora poderia fugir naquele mesmo dia.

Enquanto aguardava a criada voltar, ela compreendeu que não teria como levar Nicodemos consigo. O transporte internacional de um animal era caríssimo, e não sabia o quanto Zara conseguiria com o cordão.

Assim, do nada, provavelmente, não seria muito. Chorou abraçada no gatinho, pedindo a Deus que Wafa, que se mostrava muito bondoso com animais, cuidasse dele.

Implorou seu perdão, mas não o tocou quando a serva surgiu, mais tarde.

Ouviu o miado as suas costas e quase desistiu. Porém, não podia. Que Nicodemos um dia a perdoasse.

Simplesmente a seguiu, como se estivesse sem conseguir raciocinar. Simularam um novo passeio, mas, daquela vez, o motorista a deixou em um bairro próximo da casa da serva. Lá, um rapaz de cabelos escuros e sobrancelhas grossas a aguardava.

Nada disseram, enquanto a esposa do sheik entrava no táxi. Zara lhe deu um breve abraço, e lhe desejou sorte.

E foi assim... O fim. O fim de tudo. O fim de seus sonhos idílicos de amor.

Como todos os finais, aquele também doeu profundamente. Mas, sabia, as forças voltariam e ela renasceria das cinzas. Só precisava ser forte.

E o seria.

***

 

Darius Hayek colocou a maleta de trabalho sobre o balcão. Estava exausto. Além dos problemas em controlar aquela tempestade que chamava de esposa, uma quebra de contrato com uma das empresas que compravam seus materiais, ainda tinha que aguentar Ofélia, que ressurgiu dos mortos para lhe atazanar a vida e querer de volta seu lugar.

Sabia que nenhum outro homem aceitaria bancar tantos luxos. Ofélia deve ter se sentido no bolso que o afastamento deles não lhe era nada benéfico.

Então, veio lhe torrar o resto de paciência usando de seus truques de sedução baratos.

Estava cansado daquilo. Aliás, só então dava-se conta do quanto a vida ao lado de mulheres que o usavam como fonte de renda o havia estafado de várias maneiras.

Suspirou.

Bom, pelo menos havia Rosário. Ela era um oásis no deserto de sua alma. Nela, ele podia esconder-se, esgueirar-se em seu corpo, afundar-se em sua pele...

Brigavam, é verdade. Mas, ele via sinceridade em seu olhar. Isso bastava. Teria que bastar.

Subitamente, um movimento na lateral e a visão do avô lhe despertou um sorriso.

— Teve um bom dia? — Wafa questionou, descendo as escadas.

Ele deu os ombros.

— Ofélia apareceu — contou, repentino. — Levei um certo tempo para conseguir me livrar dela.

— Ela quer ser uma segunda esposa? — o avô questionou, as sobrancelhas erguidas. — Achei que ela não aceitasse isso.

— Ela não seria nem a primeira, nem a segunda, nem a última — resmungou. — Tanto faz o que ela quer, não o terá. — Olhou para os lados. — Deus me livre mais uma mulher para me encher os ouvidos. Já basta Rosário, que me ocupa o suficiente. — Só então deu-se conta de que a esposa não estava ali, como era costume, a aguardá-lo chegar em casa. — E Rosário?

— Saiu à tarde com Zara. Deve estar voltando.

Darius assentiu.

— Vou tomar banho. Diga-lhe, quando chegar, que eu a aguardo no quarto.

Rumou ao aposento. Tão logo entrou, sentiu algo diferente. Não havia, realmente, nenhum traço físico que diferenciava aquele lugar. Era algo... Era espiritual.

Desde que perdera a fé, não acreditava mais em nada religioso. Porém, naquele instante, podia ouvir uma voz em sua mente lhe dizendo que alguma coisa estava errada no lugar.

Foi até o guarda-roupa. Abriu-o. Todas as coisas da esposa estavam ali. Suas roupas, suas malas...

Respirou fundo, tentando conter o tremor nas mãos.

Todos aqueles sentimentos eram derivados do estresse do dia anterior, quando ela sumira no deserto.

Sim, era isso!

Precisava parar de ser idiota. Parar de acreditar que seria abandonado em cada instante de sua vida.

Mesmo assim, viu as pernas guiando-o para a gaveta onde Rosário guardava os documentos.

Abriu-a.

Por alguns segundos que pareceram a eternidade, ele encarou o espaço vazio. Na mente, mil justificativas surgiram para tal. Porém, a verdade era mais dura do que seus devaneios.

De certa forma, não era surpresa. Ele a havia perdido, porque era o que todas faziam. A mãe o trocou pelo amante, a avó, pela morte... e Rosário simplesmente o enganou com aquele olhar franco.

Subitamente, puxou a gaveta e a jogou contra a penteadeira.

A quebra do espelho ecoou num som estridente que pareceu dominá-lo. Repentinamente, tudo voou naquele quarto.

Os livros na estante, a colcha da cama, as cadeiras quebradas contra a parede... Tudo parecia ter acabado, junto com ele.

O som chamou a atenção do restante da casa. Seus gritos agoniados, logo fizeram o avô entrar no aposento. Encarou o neto, e o viu gargalhando.

Era como se aquele homem sofrido, enfim, houvesse se entregado a demência.

— Ela me disse — Darius contou, diante do olhar assombrado do ancião —, que só me deixaria se eu a batesse ou se eu a traísse. Eu não fiz nenhum dos dois — deu os ombros. — Ela me enganou, vô — riu, segurando as lágrimas. — Enganar-se uma vez faz parte da vida, mas duas... Duas é questão de burrice. — Então, ficou sério. — Rosário Guerra acaba de mostrar que sou o mais tolo dos homens.

 


Capítulo 17

A verdade

Wafa sentiu as pernas fraquejarem diante da visão interna daquele iate bonito.

Havia um amontoado de corpos, todos esbeltos e bem afeiçoados, no chão.

Eram muitas mulheres, todas dormindo como se a noitada haviam-nas desgastado, como se a bebida não lhes prejudicasse os corpos, e como se a dignidade houvesse se perdido em algum labirinto de suas mentes.

Apiedou-se. Eram todas meninas, entre dezenove e vinte e cinco anos. Teriam tanto para viver na vida, mas estavam ali, perdidas num mundo onde eram apenas objetos sem valor.

Ou, ao menos, o eram para o dono daquela festa.

Ergueu o olhar. Observou Darius dormindo num sofá afastado. Nas mãos, uma garrafa de algum líquido de cor vermelha, e no semblante sério do sonho, a dor estampada, como se só assim, desacordado, ela se permitisse emergir.

Bateu palmas. Aos poucos, as meninas foram despertando. Wafa não queria ser duro com ninguém, mas sua paciência com o neto, que estava drasticamente menor desde que Rosário havia ido embora há três meses, o fez gritar:

— Fora, agora!

Não levou muito tempo para que todas saíssem.

Darius o encarou, a ressaca dominando seu rosto, e ele sentou-se, largando a garrafa que caiu no chão e o sujou.

— Estou profundamente envergonhado — Wafa admitiu, o tom estafado.

Estava cansado de brigar com o neto. Sentou-se numa poltrona diante dele e o encarou, profundamente.

— Por que está fazendo isso, Darius? — indagou.

— Fazendo o quê?

— Desonrando seu corpo com essa bebida destilada. Traindo a memória de sua esposa com essas mulheres que você sequer olha os rostos.

— Ah, perdoe-me por trair a memória da mulher que me abandonou — ele gargalhou, irônico.

Wafa respirou fundo.

— Faz três meses que sua esposa foi embora e você não se pergunta os motivos, Darius?

— Eu sei os motivos — retrucou. — Ela cumpriu sua parte no acordo e acabou. O tolo fui eu em achar que havia seriedade nos sentimentos que ela dizia sentir.

— Por apenas um minuto, meu neto, pare e pense: por que uma mulher claramente apaixonada deixaria o marido, sem levar nenhum dinheiro, sem levar as roupas, e deixando para trás a única coisa que ela tinha como família: o gato.

Darius suspirou, pensando no felino. Primeiramente, quis jogá-lo no meio do deserto, atirando sobre o animal sua agonia. Mas, a razão lhe fez ver que o coitado era tão vítima quanto ele.

Acabou por adotá-lo, cúmplice em seu abandono. Aliás, era isso que dizia para ele, sempre que chegava em casa. Nicodemos e ele foram deixados para trás, por alguém que fingia amá-los.

— Porque é uma cadela, como todas as outras?

Wafa ficou verdadeiramente zangado, diante de tais palavras. Se Darius ainda fosse um moleque, teria lhe dado uma surra. Contudo, a dor estampada naquele homem destruído fê-lo insistir na prosa.

— Desde que ela se foi — começou — andei conversando aqui e acolá... — suspirou. — Muitas coisas não se encaixam nessa história, você sabe. Zara, por exemplo, jamais voltou a nossa casa para buscar seu salário.

— Porque provavelmente foi ela que ajudou Rosário a fugir.

— Tentei achar o endereço que consta na ficha, mas não havia. No bairro que Zara alegava morar, ninguém sabe dela.

— O que isso importa?

— Importa quando coisas estranhas aconteceram, desde que Zara passou a trabalhar conosco.

Darius ficou ereto, o corpo rígido, nervoso.

— De que tipo?

O interesse no brilho do olhar esverdeado do neto animou Wafa.

— Bom, Rosário me comentou que na noite do casamento, as mulheres da casa haviam rido dela, e lhe disseram que era gorda, feia e desinteressante.

O sheik jovem abriu a boca, embasbacado.

— Chamei Azzah, a governanta, e lhe indaguei tal coisa. Sabe sua resposta?

— Imagino — Darius retrucou. — Uma mulher da casa de Hayek jamais desprezaria outra pela aparência, depois do que Nádia fez a meu pai, Omar.

— Azzah me contou que a conversa da noite girou em torno do quão fértil Rosário parecia. Elas ansiavam por vê-la grávida logo. Mas, isso, definitivamente, não importa. O que importa é: Se Rosário não conhece o idioma, por que ela pensou que as mulheres a estavam humilhando?

Silêncio.

— E então veio a sua viagem para Los Angeles — Wafa apontou. — Ofélia apareceu por lá. Ninguém sabia dessa viagem a não ser as pessoas da casa, afinal de contas, era para eu ter ido nela. Foi você que me pediu para trocar de lugar, porque queria assumir mais responsabilidades.

Era tudo verdade. Darius se lembrava disso.

— Mas, mais que isso, mais que a presença constrangedora de Ofélia nos Estados Unidos, a grande coincidência de tudo foi ela ter surgido no parque em que Rosário estava exatamente no momento em que Rosário lá se encontrava...

— Rosário lhe disse isso? — indagou. Não sabia que a mulher se abria com o avô.

— Ela desabafava comigo, às vezes. Mas, não parecia preocupada. Estava feliz demais para se incomodar com Ofélia.

Darius suspirou. Muitos pensamentos dominando sua mente.

— Aquele dia que Rosário sumiu no deserto, contou-me depois que havia avisado Zarade que iria cavalga r — falou ao avô.

— Zara nos negou tal informação.

— Então, no dia que Ofélia foi ver-me no escritório, o senhor me disse que Zara havia levado minha esposa para almoçar. Acredita que, por acaso, Rosário tenha aparecido lá, sem que eu soubesse?

— Por que indaga tal coisa? — o avô pareceu preocupado.

— Porque Ofélia me beijou. Eu não permiti que continuasse, mas tentei sem compassivo e dar um fim digno a nossa relação. Não sei, desde que me casei, durante aquele tempo que estive com Rosário, não queria... não sentia necessidade de humilhar uma mulher. Disse a Ofélia que a ajudaria a voltar para a França, e teria minha amizade. Mas, que eu estava apaixonado por minha esposa e ficaria com ela.

Levantou-se, andando pelo espaço vazio do iate. Claramente, nervoso.

— Acha que Rosário pode ter visto o beijo?

O avô ergueu-se também.

— A pergunta que você deve fazer a si mesmo é outra. De onde você tirou uma serva que fala português? Eu procurei por todo Qatar e não achei.

Darius cobriu o rosto com as duas mãos, dando um urro de ódio.

— Foi indicação — disse, por fim.

— Indicação? De quem?

— Adivinhe.

Chutou o sofá, com ódio.

— Vou matar aquela desgraçada! — gritou.

Wafa não sabia a quem se referia. Ofélia ou Zara?

— Mandem investigar Zara. Quero saber tudo sobre ela. O nome não deve ser mentira, pois mostrou-me os documentos e o passaporte. Contudo, de resto, só deve haver enganação.

***

 

Zara Yusra era seu nome. Nasceu na Turquia, vivia em Portugal. Não era empregada doméstica, como Ofélia havia lhe dito, e sim modelo de baixa fama.

Vinte e três anos, filha de imigrantes do Qatar, ela falava três idiomas além do árabe, português e francês, e havia dividido um pequeno apartamento em Paris com Ofélia, no início da carreira.

Agora, diante da casa de dois pisos num bairro de classe média baixa de Lisboa, Darius encarava a mulher, como se a visse pela primeira vez.

Sem o véu e a postura submissa, ela era muito diferente.

— Onde está minha esposa? — indagou, nervoso, contendo a gana de agarrar aquele pescoço branco e esmagá-lo com as próprias mãos.

Porém, Zara apenas sorriu.

— Ora, que eu saiba, voltou ao país dela.

— O que você fez para que isso acontecesse?

— O que eu fiz? Eu não fiz nada! — ela retrucou. — Ela te viu aos beijos com Ofélia. Eu não sou dona da sua boca, beijou-a ou se deixou ser beijado, porque quis.

— Ofélia me pegou de surpresa — ele negou. — Foi uma armação... Vocês duas estavam juntas nessa.

— Ah, você sabe... Eu preciso pagar o aluguel.

Nunca, até então, Darius agrediu uma mulher. Mesmo nas piores bebedeiras, mesmo quando era irritado por elas, mesmo quando ameaçava que o faria. Mas, ao ouvir tais palavras, os sentimentos de Rosário e os dele sendo comparados a um preço, ele não conseguiu mais se segurar.

Ergueu a mão e a esbofeteou. Zara parecia acostumada a tal coisa, porque simplesmente girou o rosto e cobriu a bochecha, contendo a dor. Depois, voltou a encará-lo.

— Eu podia tê-la colocado em um táxi e a mandado para o fim do mundo. Abandonado-a no deserto, sem água ou comida, para morrer. Foi isso que Ofélia me mandou fazer. Mas, fui piedosa. Restou um pouco de temência a Alá em mim — retorquiu. — Você já foi desamparado por Ele, então sabe que quando a desesperança chega, nossa dignidade vai embora. Mesmo assim, eu paguei um táxi para ela até Abu Dhabi. Ela chegou segura até o Brasil, eu sei disso, já que ela ficou de me ligar para me dar notícias, e o fez tão logo pousou em solo brasileiro.

— Então sabe onde está?

— O que importa? Sequer entendo porque está aqui. Achei que já estaria casado com Ofélia.

— Jamais me casaria com aquela rameira — negou. — Quero saber onde está minha mulher — retorquiu. — Quero saber agora!

— Para quê?

— Você sabe os motivos. Eu a amo.

— Nunca pareceu amá-la, na verdade. A julgava por sua mãe, o tempo todo. Talvez seja melhor assim. Rosário ficará bem, sem sua doentia pressão sobre ela.

Darius a estrangularia naquele momento, não fosse seu desespero.

— Pagarei o que pedir.

— Não sei se vale a pena — perseverou. — Cortou-me o coração enganar Rosário.

— Poupe-me — resmungou. — Até parece que você teria alguma pena de alguém.

— Não sou um monstro — Zara o enfrentou. — Só alguém sem dinheiro para pagar as contas. Não entende isso, riquinho demais para ver que existe dor além do seu mundinho fechado. Você sofre em iates cercado de modelos, e eu sofro passando fome, cretino!

Darius suspirou.

— Onde ela está — prevaleceu. — Diga-me, agora! — ordenou.

— Não.

Aquela recusa era grave demais. Se Zara tudo fizera por dinheiro, por que agora estava tão relutante?

— Ela está grávida — Zara contou, fazendo com que o coração de Darius quase parasse. — Lógico, ela não sabia, quando o deixou. Mas, eu percebia os hormônios mexendo com sua postura, com seus nervos. Então, veio às dores nos seios, ela não reclamava, mas eu a percebia apertando-os, às vezes. E o sangue também parou. Contudo, mais uma vez, Rosário, preocupada demais com o casamento, não se ateve a isso. Assim, sinceramente, não sei se deixar um homem como você avassalar a vida dela novamente, vale qualquer dinheiro que ofereça.

Ele engoliu em seco.

— Se não é um monstro, não quer que uma criança cresça sem pai.

— Um pai que passará todos os dias da vida dele duvidando da integridade da mãe? Ora, por favor! A mulher se casou com você com vinte e nove anos, e sequer havia beijado outro homem. Sim, eu sei disso, e você também sabe. Você provou sua inocência na cama, e mesmo assim, a tratava como se fosse uma puta rameira, escolhida em um bordel e que lhe apunhalaria na primeira oportunidade.

Zara preparou-se para deixá-lo com seus próprios demônios, quando o percebeu se curvando perante ela.

Arregalou os olhos.

— Eu imploro — disse, as lágrimas nos olhos. — Apenas me dê o endereço dela. Eu lhe dou minha palavra, se ela não quiser voltar para mim, eu respeitarei sua vontade. Mas, ao menos, permita-me pedir perdão pessoalmente, e lhe falar sobre meus sentimentos.

Zara suspirou.

Diabos! Aquele homem de olhar verde esmeralda era bonito demais para ser ignorado.

Então, riu.

— Não vou recusar o dinheiro — adiantou. — Está certo?

— O que quiser — ele concordou.

E ela quis muito.

 


Capítulo 18

O final feliz

A equipe administrativa de Darius Hayek havia facilitado muito sua vida quando, ao chegar em Porto Alegre, Rosário deu-se conta de que o quitinete que havia morado havia tido seus meses alugados pagos em dia, e que haviam-na despedido através de uma justificativa.

Ela não simplesmente sumiu, mesmo que aquilo não importasse a ninguém. Ela havia se ausentado, mas todos os seus compromissos foram honrados.

Ao comparecer ao antigo trabalho para se desculpar, o patrão lhe avisou que o ex-marido havia lhe providenciado uma secretária na urgência de substituí-la. Ouviu aquilo com lágrimas nos olhos, enquanto percebeu que, ao menos, Darius havia sido um bom amigo...

Mesmo com os defeitos... com todos os defeitos... A amizade dele havia sido verdadeira.

Porém, não tinha mais tempo de se preocupar com as emoções que um dia nutrira pelo Sheik.

Estava desempregada e grávida. Pior, sem família, não tinha nenhuma ajuda financeira que pudesse lhe amparar.

O dinheiro que Zara lhe dera cobrira as passagens do seu retorno, mas precisou entregar a quitinete, e instalar-se em uma pensão, enquanto imaginava o que faria com seus dias, dali em diante.

Conseguiu, depois de muito procurar, um serviço de diarista num bar próximo da rodoviária. Não gostava daquele lado da cidade, porque precisava cruzar uma rua repleta de viciados para chegar ao trabalho, mas que escolha tinha?

Depois do primeiro mês, deu-se conta de que as pessoas ali eram tão gente quanto ela. Apiedou-se. Havia sofrimento nos olhares desconfiados pelos quais cruzava, vividos de forma diferente, mas semelhantes na intensidade.

Diante do passado de abandono e humilhação, ela entregou-se à apatia, Darius, as festas, e aquela gente que vasculhava o lixo ao crack e a cocaína.

Suspirou, pousando a mão no ventre e se desculpando com o filho. Daria vida a uma criança onde tudo que existia naquele mundo era dor e tristeza.

— Mas eu juro que nunca vou te abandonar — prometeu. — Eu serei uma boa mãe.

Uma mãe bem diferente de Nádia ou Carla. Uma mãe presente. Uma mãe capaz de tudo pelo filho.

Sua nova patroa não sabia da gravidez e Rosário não pensava em lhe contar. Não enquanto não economizasse um bom dinheiro para conseguir passar os meses após o parto sem passar fome. Como não tinha vínculos empregatícios, imaginou que não fosse problema.

Contudo, diante de uma tontura que teve em uma manhã de céu nublado, ela ouviu a mulher indagar sobre a barriga.

Não pôde mentir.

E foi despedida no mesmo dia.

Naquele dia, em especial, ela vagou pela região central. A chuva caia com intensidade sobre seus ombros. A fé que um dia imaginou que sentiu foi esvaindo-se.

Rosário Guerra perdera tudo. O que ela faria?

***

 

Otiz, um dos seus empregados, não precisou abrir a boca para que Darius percebesse as más noticias.

— Ela saiu do apartamento que alugava. Também não está mais empregada no mesmo serviço. Fizemos uma busca, provavelmente saiu da cidade.

Darius estrangularia o homem, tamanho seu ódio. Como podia haver pessoa tão incompetente?

— Você vai achar a minha mulher, ou juro por...

O telefone tocou. Naquele quarto num dos mais abastados hotéis de Porto Alegre, ele simplesmente encarou o celular com nítido susto. Não era nenhum número conhecido, mas era um número local. Ninguém além da esposa, naquela cidade, teria conhecimento do seu telefone.

Com o coração aos saltos, ele atendeu.

Um chiado forte se fez ouvir. No fundo, era possível ouvir muitas vozes, como se ela estivesse numa rua movimentada.

— Darius?

Sentiu o coração apertar, enquanto as mãos tremiam.

Era ela! A voz dela! Aquele tom calmo que costumava fazer com que seu corpo se entorpecesse de tanta dor.

— Onde você está? — indagou, rápido.

Queria dizer mais coisas. Muitas mais coisas. Porém, a voz não saia.

Precisava explicar a Rosário que sentia muito. Que sabia que ela acreditava que ele a havia traído. Mas, era tudo mentira. Ele a amava, nunca a trairia, nunca a enganaria, nunca a deixaria.

Porém, a personalidade dura daquele homem amargurado impedia as palavras doces. Tudo nele, subitamente, tornou-se raiva.

— Onde você está? — repetiu, nervoso, diante do silêncio.

— Em Porto Alegre.

— Isso eu sei! — quase gritou. — Quero saber em que lugar de Porto Alegre!

Ela pareceu se assustar.

— Você está na cidade?

A pergunta feminina fê-lo repensar seu tom. Se ela desligasse o telefone naquele momento, até conseguir alguém que pudesse rastrear sua ligação, ele teria perdido horas importantes, quiçá dias.

— Onde você está, Rosário? — seu tom era gentil, agora. — Nós precisamos conversar.


***


Para um prédio que já foi uma usina movida a carvão, o tal Gasômetro era de uma beleza arquitetônica deslumbrante.

Darius abriu a boca, observando as paredes antigas, bem planejadas, e a tonalidade que parecia se mesclar com o rio que passava adiante, enorme, como uma paisagem idílica.

Então, viu-a.

Rosário estava sentada sobre uma banqueta de madeira, a encarar o sol que se punha, ao longe, refletindo suas cores alaranjadas no rio Guaíba, tornando a paisagem ainda mais bela.

Repentinamente, ela girou o rosto em sua direção. Darius sentiu-se inseguro perante aquele olhar abatido, e estancou.

— Sabia que pessoas do país todo vêm aqui, nesse lugar, quando estão na cidade, apenas para ver esse espetáculo da natureza? O pôr do sol no Guaíba é um dos mais belos do mundo...

Ele não conhecia muito sobre o Brasil. Menos ainda sobre o estado que ficava no Sul, cheio de gente cujos antepassados haviam imigrado da Europa durante a Guerra.

— Como você está? — questionou.

Tão logo viu-lhe, percebeu que aqueles meses separados haviam destruído não apenas sua sanidade, mas também a dela. Percebeu um sorriso irônico e chateado no canto dos lábios femininos, mas ela não pareceu querer responder.

— Você saiu do apartamento que morava — ele murmurou. — Não conseguia encontrá-la.

— Eu não podia mais pagar o aluguel.

A resposta sincera lhe fez tremer.

— Era só ter me avisado. Você têm direitos, pelo contrato que firmamos. Não precisava ter fugido, eu teria honrado nosso compromisso, mesmo que você não o desejasse mais.

Silêncio.

Inferno!

Ela não percebia o quão difícil era para ele chegar ao ponto principal daquela conversa?

— Estou grávida — a voz da mulher não transparecia nada. — E não tenho dinheiro nem para comprar uma fralda. Perdi meu emprego como faxineira... Não sei o que fazer.

Então, ela estava limpando chão, durante todo aquele tempo? A mulher dele, a mulher de um sheik, preferia esfregar a sujeira de estranhos a viver ao seu lado, ostentando riqueza?

— Por que me deixou?

Ele sabia a resposta, mas precisava de uma confirmação.

— Viver ao seu lado é algo muito difícil, Darius. — Percebeu então as lágrimas descendo pela face abatida. — Veja bem, eu nunca fui amada na minha vida. Por ninguém. Então, você apareceu. Mesmo com sua personalidade arredia, você me ofereceu conforto e amor. E, depois, me tomou isso, sem piedade.

Encarou-o.

— Eu entendo que na sua cultura, ter várias esposas é um direito. Não estou questionando isso. Apenas, não é algo que eu suportaria. Isso quebraria meus próprios princípios, e são eles tudo que me resta.

Ele assentiu.

— Não quero outra esposa, Rosário.

— Eu sei de toda a verdade — perseverou. — Sei sobre Ofélia.

— Aquela vagabunda pagou Zara para nos jogar um contra o outro. Não vou me casar com Ofélia, nem com mulher nenhuma. Já tenho uma esposa, diante dos homens e diante de Deus. Só quero a ela.

Ela engoliu em seco.

— Mas...

— O que você quer? Um contrato de garantia que não desposarei mais ninguém? Eu te dou isso! Eu te dou o que quiser! Qualquer coisa, para que volte comigo para o Qatar.

Ela se levantou. Ficaram um diante do outro. Subitamente, novamente, eram iguais. Como disse Wafa, um ano antes, espelho um do outro.

Era impressionante. Eles se refletiam tão nitidamente como o sol no Rio Guaíba.

— Não vou suportar viver meus dias sem você, Rosário —assumiu, sem temor. — Eu sei que não sou o melhor dos homens, mas a única vez na vida que tive paz foi quando a tive nos braços. Como você, também não entendo muito de sentimentos. Mas, eu acho que o que sinto é amor. — Depois, negou. — Não, não acho. — suspirou. — Eu tenho certeza — afirmou. — Essa felicidade extrema que sinto quando chego em casa e a vejo, e o contraste da angústia que me preenche em momentos que não está ao meu lado... Isso não pode ter outro nome. Não, não há outro nome.

— Eu o vi beijando Ofélia — ela persistiu. — Não carece falar palavras enganosas para mascarar a situação.

— Correção: você viu Ofélia me beijando. Depois daquilo, eu a pus para correr. Claro, isso você não presenciou porque não era a intenção de Ofélia e Zara.

— Zara? — ela parecia não acreditar.

— Ofélia sabia dos nossos passos, pela ex-companheira de apartamento. Zara nunca foi uma serva, era uma modelo, como Ofélia, que estava falida e aceitou o cargo para poder estragar nossa relação. Lembra-se de que quando sumiu no deserto, Zara não comentou que você havia ido cavalgar?

— Sim, recordo-me de que ficou possesso.

— Mais que isso, eu achei que você havia fugido, porque não encontrei aquele cordão de ouro que lhe dei no seu porta-joias. Comecei a pensar que o havia vendido para poder fugir.

— Vi o cordão no pescoço de Ofélia — ela contou, preenchendo as lacunas. — Achei que você havia dado outro igual a ela.

Darius gargalhou.

— Nenhum ourives que se preze faria duas joias iguais, meu amor.

Rosário sentiu as lágrimas voltando, quando deu-se conta de que havia sido completamente manipulada em todos aqueles dias.

— Eu te amo, Rosário — ele reafirmou. — Volte para mim.

Naquela tarde, ao ligar para o sheik, ela pensou apenas em lhe pedir dinheiro. Explicaria a situação. Era um empréstimo, ao qual pagaria com juros assim que pudesse. Sabia que no contrato deles não havia nenhuma cláusula envolvendo crianças, e ela assumiria toda a responsabilidade por aquela. Mas, nem mesmo nos seus mais profundos devaneios, esperava ouvir aquilo tudo de Darius.

Aproximou-se vagarosamente, deixando com que os corpos se acostumassem novamente a presença um do outro. Então, entregou-se em seus braços, espremendo-o num abraço forte, deixando com que os soluços cortassem o ar.

— Jamais poderei deixar de te amar — ela murmurou contra o ouvido masculino. — Mas, vou parar de fingir que posso.

Eles não viram, mas naquela tarde, houve o mais belo pôr do sol da história do Gasômetro.

 

 

 

Epílogo

Um novo amanhã


Darius Hayek observou as planilhas bem montadas, enquanto verificava os lucros obtidos no último mês. Ao seu lado, a mulher vestindo um terninho escuro ergueu a sobrancelha em escárnio, enquanto lhe ouvia resmungar em árabe.

— Admita.

— Não — ele recusou.

— Admita, Darius! Eu sou a melhor diretora que você já teve. Eu equiparei o lucro do Brasil ao lucro da filial Americana. Você nunca conseguiu isso de nenhum dos seus diretores.

— Isso não significa...

— Isso significa que você perdeu a aposta e eu estou assumindo, amanhã mesmo, a minha nova sala nesse andar do prédio.

Largou as planilhas em cima da mesa, enquanto a observava sorrir, satisfeita.

— Por que diabos uma mulher iria querer trabalhar? Omar já não dá trabalho que chega? — indagou. — Aquele menino quase me enlouquece quando chego em casa.

O primogênito deles era uma cópia fiel do pai.

— Pois é... — ela deu os ombros. — Ele nasceu com o seu temperamento. — concordou. — Mas, como está estudando em tempo integral, eu posso muito bem ser mais que uma esposa gentil.

— Você é mais que uma esposa gentil — retrucou. — Aliás, “esposa gentil” seria a última das descrições que eu te daria.

— Eu quero trabalhar, e você concordou que eu poderia assumir um cargo de chefia se conseguisse fazer as redes no Brasil dobrarem o lucro. Estão aí, as planilhas — apontou, irritada. — Vou trabalhar aqui ou espalharei por todo Qatar que o sheik Darius não tem palavra.

Onde estava a Rosário gentil e doce de sete anos atrás?

— Você mudou — ele murmurou.

— Mudei?

— Sim, está a cada dia mais parecida comigo — riu. — Vovô Wafa me perguntou ontem se você passaria a usar calças e eu, as saias.

Ela gargalhou.

O riso, por fim, fê-lo puxar a esposa para o seu colo. Gostava de vê-la assim, feliz e alegre. Desde o nascimento do filho, ela passara a se ocupar em cuidar da criança. Agora, voltando à rotina profissional, parecia mais satisfeita consigo mesma.

— Você sabe, não é? Posso ser uma boa mãe e uma boa profissional. Eu posso tudo, sou muito dedicada — ela gemeu contra seus lábios.

Era uma tática que costumava funcionar com ele.

— E uma boa esposa?

— E eu já fui uma má esposa? — indagou, brincando.

Ele suspirou.

— Juro que eu devo ter umas mil situações que poderiam te classificar como uma péssima esposa, mas eu nunca consigo raciocinar direito quando rebola em cima de mim, então, estou completamente perdido aqui.

Ela riu baixinho, cobrindo os lábios dele com as mãos.

— Não fale essas coisas, seu imoral.

Subitamente, ficou séria. Encararam-se, novamente, como se pudessem se decifrar.

— Amarrei o sheik sedutor que tinha várias amantes — ela brincou. — E depois as pessoas subestimam o poder de uma mulher de quadris largos e miopia grave.

Ele sorriu.

— As pessoas sempre subestimam o amor verdadeiro...

— Você, inclusive — ela cutucou, simplesmente porque adorava vê-lo nervoso.

— Concordo — aceitou. — Eu inclusive.

A secretária não entrou na sala durante aquela manhã. O aviso de que deixasse a esposa e o sheik a sós foi recebida por telefone. Com um sorriso nos lábios, ela observou a porta maciça e imaginou que aqueles dois gostavam muito de se esconderem do mundo, naquele lugar solitário.

Era um amor intenso, como todos os amores deveriam ser.

Que Sheik Darius e sua esposa fossem felizes para sempre, desejou.

E a resposta que veio de sua prece gentil foi positiva. No calor dos braços um do outro eles permaneceriam até o fim.

 

 

                                                                  Josiane Biancon da Veiga

 

 

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