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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NO DE VIBORAS / François Mauriac
NO DE VIBORAS / François Mauriac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Este inimigo dos seus, este coração devorado pelo ódio e pela avareza, queria eu que a despeito da sua baixeza tivésseis piedade dele; queria que ele interessasse o vosso coração. No decorrer da sua vida infeliz, tristes paixões lhe escondem a luz que brilhava perto, da qual um raio às vezes, o toca, e está prestes a queimá-lo; suas paixões... mas, em primeiro lugar, os cristãos medíocres que o espiam e ele mesmo atormenta... Quantos dentre nós assim desanimam o pecador, o desviam duma verdade que através de nós deixou de irradiar!
Não, não era o dinheiro o que este avarento amava, não era de vingança que este furioso estava faminto. O objecto verdadeiro do seu amor conhecê-lo-eis, se tiverdes a força e a coragem de ouvir este homem, até à última confissão que a morte interrompe...
Certamente ficarás admirada de encontrares esta carta no meu cofre, sobre um maço de acções. Teria talvez sido melhor confiá-la ao notário que ta entregaria depois da minha morte, ou então guardá-la na gaveta da minha secretária - a primeira que os filhos hão-de forçar, ainda antes de eu começar a arrefecer. Durante anos, fui redigindo em espírito esta carta, e, nas minhas longas insónias, via-a destacar-se na prateleira do cofre - dum cofre vazio e que nada mais continha a não ser esta vingança forjada durante quase meio século. Mas, podes estar descansada: "As acções estão lá". Parece-me ouvir esse grito, logo no vestíbulo, no regresso do banco. Por entre crepes, tu hás-de gritar aos filhos: - "As acções estão lá".
Pouco faltou para que o não estivessem, pois eu tomara bem as minhas providências. Se eu quisesse, vós hoje nada teríeis a não ser a casa e as terras. Tivestes a sorte de eu sobreviver ao meu ódio. Por muito tempo, julguei que ele era o que de mais vivo havia em mim. Hoje, com admiração minha, já o não sinto. A minha velhice tem dificuldade em imaginar o doente furioso que eu fui até há pouco, e que passava as noites, não já a maquinar a vingança (essa bomba de relógio estava montada com uma minúcia que me envaidecia), mas sim, a procurar o meio de poder gozar, ainda, essa mesma vingança. Desejaria viver o bastante para rondar o espírito de cada um de vós ao voltardes do banco. Tratava-se de não te dar a procuração para abrir o cofre cedo demais, e dar-ta justamente na altura em que eu pudesse ter a última alegria de ouvir as vossas perguntas desesperadas: "Onde estarão as acções?" Quero crer que esse prazer seria tão grande que a agonia mais atroz o não poderia frustrar. Sim, fui um homem capaz de todos estes cálculos. Como cheguei eu a este ponto, eu que não era nenhum monstro?


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São quatro horas, a bandeja do almoço, os pratos sujos estão ainda sobre a mesa atraindo as moscas. Já toquei, mas debalde; no campo, as campainhas nunca funcionam. vou esperando, sem impaciência, neste quarto, onde dormi criança e onde, sem dúvida, a morte me espera. Nesse dia em que eu morrer, o primeiro pensamento da minha filha Genoveva, será reclamar este quarto para os filhos. Eu ocupo sozinho o aposento mais vasto e mais bem exposto ao sol. Justiça, porém, me seja feita, pois eu ofereci-me a Genoveva para lhe ceder o lugar e tê-lo-ia feito se não fosse a oposição do Dr. Lacaze que receia para os meus brônquios a atmosfera húmida do rés-do-chão. Eu teria cedido, sem dúvida, mas com o coração tão carregado de rancor que foi uma verdadeira felicidade a oposição do Dr. Lacae. (Toda a minha vida se tem passado a realizar sacrifícios, cuja recordação me envenenava, alimentando e aumentando todos esses ressentimentos que o tempo fortifica).
O gosto da contenda é herança de família. Muitas vezes, ouvi contar a minha mãe que já meu pai se zangara com os pais, e que estes morreram sem tornarem a ver o filho, que tinham expulsado de casa, havia trinta anos (a desunião estendeu-se a uns primos, de Marselha, que nós nem sequer conhecemos). Nunca soubemos a razão dessas questões, mas a confiança era absoluta no ódio dos nossos ascendentes; e hoje, ainda eu voltaria as costas a qualquer desses primos de Marselha se por acaso os encontrasse. Os parentes afastados podem deixar de se ver e de se encontrar; o mesmo, porém, não acontece com a mulher e com os filhos. Certamente, existem famílias unidas; mas, quando pensamos na quantidade de casais, onde dois seres se exasperam, se aborrecem numa união aparente, comendo à mesma mesa, servindo-se do mesmo lavatório e partilhando o mesmo tálamo, é para admirar como são tão poucos os divórcios! Detestarem-se, e não poderem fugir para os cantos extremos da casa...
Que febre de escrever se apoderou de mim, hoje, dia dos meus anos? Faço sessenta e oito e ninguém o sabe senão eu. Genoveva, Humberto, seus filhos tiveram sempre no dia do aniversário, o bolo, as velas, as flores. Se há muito já que no dia do teu aniversário te não ofereço nada, não é por esquecimento, mas por vingança. Mas vamos adiante... As últimas flores que recebi naquele dia, foi minha mãe que as colheu com suas mãos já deformadas; apesar da sua doença de coração arrastara-se até à álea das roseiras.
Onde ia eu? Deves estar a perguntar-te a ti mesma donde veio esta fúria repentina de escrever, "fúria" é precisamente o termo. Bem o podes julgar pela minha letra, por todos estes caracteres curvados no mesmo sentido, como pinheiros, açoitados pelo vento de oeste. Escuta: eu falei-te, primeiro, duma vingança muito tempo premeditada, e à qual renuncio. Há, porém, alguma coisa, em ti, de que eu queria triunfar: é o teu silêncio. Ah! compreende-me: tu és faladora, e discutes, horas a fio, com o Manuel, a respeito da criação e da horta. com as crianças, mesmo com as mais pequenas, tu palras e tagarelas dias inteiros. Ai! essas refeições, donde eu saía completamente esgotado, preocupado pelos meus negócios, pelos meus cuidados, dos quais não falava a ninguém... Principalmente, desde o caso Villenave, quando me tornei, quase dum dia para o outro, advogado célebre nas causas de crime, como dizem os jornais. Quanto mais eu me queria convencer da minha importância, mais tu me tornavas vivo o sentimento da minha nulidade. Mas, não é disso que se trata, é doutra espécie de silêncio, que me quero vingar; o silêncio em que te obstinavas em tudo o que dizia respeito à nossa intimidade, à nossa desarmonia profunda. Quantas vezes, ao ler algum romance ou no teatro, eu me perguntava a mim mesmo, se existem, na vida, amantes ou esposas que fazem "cenas", que têm explicações francas, e encontram alívio em se explicar.
Durante estes quarenta anos em que sofremos lado a lado, tiveste sempre a força de evitar toda a palavra mais profunda, sempre encontraste escapatórias. Muito tempo, acreditei num sistema, ou caso pensado, que não conseguia compreender, até ao dia em que caí na conta que era só por não te interessar. Eu ficava de tal maneira à margem das tuas preocupações, que tu esquivavas-te, não por medo, mas por enfado. Sabias acautelar-te, vias-me vir ao longe; e se te apanhava de surpresa, achavas desculpas fáceis, ou então fazias-me uma festa, beijavas-me e ias-te embora.
Talvez eu devesse recear que tu rasgues esta carta depois de lidas as primeiras linhas. Não, não, porque há alguns meses que eu te causo admiração e te venho intrigando. Por muito pouca atenção que me prestes, como não terias tu notado alguma mudança no meu feitio? Sim, desta vez, espero que não te vás esquivar. Quero que saibas, quero que todos saibam, tu, teu filho, tua filha, teu genro, teus netos, quem era esse homem, que vivia só, em frente do vosso grupo unido, esse advogado sobrecarregado de trabalho, que era preciso poupar, pois que era ele o senhor da bolsa, mas que sofria num outro planeta. Que planeta? Nunca quiseste lá ir. Socega: não se trata aqui do meu elogio fúnebre, escrito antecipadamente por mim próprio, mas sim dum requisitório contra vós. O traço dominante da minha natureza e que teria impressionado qualquer outra mulher que não fosses tu, é o duma lucidez terrível... Essa habilidade para enganar-se a si mesmo, que ajuda a viver a maior parte dos homens, essa nunca a tive. Nunca pratiquei nada de vil que o não soubesse e sentisse.
Tive que me interromper... como não traziam o candeeiro nem vinham fechar as janelas... Estava a olhar para o telhado das adegas cujas telhas têm o tom berrante das flores, ou das penas do papo dos passaritos. Ouvia os tordos na hera do choupo, o barulho dum tonel a rebolar. É uma sorte esperar a morte no único lugar do mundo, onde as recordações não se alteram. Apenas, o ruído do motor substitui o ranger da nora que o burro fazia andar. (Ainda há, também, esse horrível avião da carreira que anuncia a hora da merenda e põe uma mancha no céu). Não acontece a muitos homens encontrarem à mão e ao alcance do olhar esse mundo que a maior parte não descobre senão em si mesmo, quando tem a coragem e a paciência de se recordar. Ponho a mão sobre o peito para tatear o coração. Vejo o armário de espelho onde se encontra a um canto a seringa Pravaz, uma ampola de nitrato de amilo, tudo ó que é preciso em caso de crise. Se eu chamasse, ouvir-me-ia alguém? Querem que eu tenha uma angina de peito, e têm mais empenho em me persuadirem a mim disso, de que eles próprios em o acreditar, para poderem dormir tranquilos. Agora respiro. Dirse-ia que a mão de alguém se coloca sobre o meu ombro esquerdo e o imobiliza em posição forçada, como faria uma pessoa que nos quisesse chamar a atenção. Pelo que me diz respeito, a morte não chegará até mim como ladrão. Há anos que ela vagueia à minha volta, oiço-a; sinto-lhe a respiração; é paciente comigo que não a afronto e me submeto à disciplina que a sua aproximação impõe. Acabo a vida, metido num roupão, no aparato dos doentes incuráveis, enterrado numa poltrona com almofadões, onde também minha mãe esperou a morte; sentado como ela, junto duma mesa coberta de remédios, mal barbeado, mal cheiroso, escravo de várias manias humilhantes. Mas isto não é muito para fiar: passadas as crises, torno a ser o que era. O procurador Bourru, que me julgava morto, vê-me novamente surgir; e durante horas, nos subterrâneos dos bancos, tenho forças para contar eu mesmo os cupões.
É preciso que eu viva ainda o tempo suficiente para acabar esta confissão e obrigar-te a ouvir-me, tu, que durante anos, à noite, nas horas de maior intimidade, me dizias quando eu chegava: "Estou mesmo a cair de sono; estou aqui estou a dormir..." Esquivavas-te mais às minhas palavras que às minhas carícias.
Verdade seja que a nossa infelicidade teve origem, nessas conversas intermináveis em que, recém-casados ainda, tanto nos comprazíamos. Duas crianças: eu vinte e três anos, tu dezoito, e talvez que o amor fosse, para nós, prazer menor que essas confidências tão cheias de abandono. Como nas amizades pueris, tínhamos feito o juramento de tudo dizer e de nada ocultar. Mas eu que tinha tão pouco a confiar-te que me via obrigado a embelezar miseráveis aventuras, mal pensava que fosses tão pobre como eu; e nem por um momento, me atravessou a imaginação, o pensamento que tu tivesses podido alguma vez, pronunciar um nome de rapaz que não fosse o meu; até àquela noite não o acreditava. ..
Foi neste quarto onde hoje escrevo. O papel das paredes foi substituído; mas os móveis de acaju ficaram no mesmo sítio; o copo de água esbranquiçado, estava sobre a mesa e aquele serviço de chá que nos calhou numa rifa. O luar iluminava a esteira. O vento do Sul que atravessa as Landes trazia até nós o cheiro dum incêndio. Esse rapaz, esse Rodolfo, de que tantas vezes me falaste, e sempre nas horas sombrias da noite, como se o seu fantasma se intrometesse, nas horas da nossa mais profunda união, naquela noite pronunciaste mais uma vez o seu nome, -lembras-te? Mas isso não te bastava:
"Há coisas que eu te deveria ter dito, antes do nosso casamento. Quase que tenho remorsos de to não ter confessado... Mas não é nada de grave, podes estar descansada..." Não me sentia inquieto, e nada fiz para provocar as tuas confissões. Tu, porém, prodigalizaste-mas com tanta complacência que eu comecei a doer-me. Não cedias a nenhum escrúpulo, não cedias a nenhum sentimento de delicadeza para comigo, como tu dizias e, aliás, acreditavas.
Não, tu revolvias-te apenas numa recordação deliciosa que não podias guardar para ti. Talvez pressentisses alguma ameaça para a nossa felicidade, mas o sentimento que experimentavas era mais forte do que tu. Não dependia da tua vontade que a sombra de Rodolfo flutuasse à volta de nós.
Não vás também pensar que a nossa desgraça foi causada pelo ciúme. Eu, que mais tarde me devia tornar ciumento furioso, nada senti que se parecesse com essa paixão, na noite de verão de que te falo, no ano 85, quando me confessaste que durante umas férias tinhas estado noiva desse rapaz desconhecido.
Quando penso, que só depois de quarenta e cinco anos me é dado explicar-me sobre este ponto! Mas lerás tu a minha carta? Tudo isto te interessa tão pouco! Tudo o que me diz respeito te aborrece. Os filhos eram obstáculo para que tu me visses e ouvisses; mas quando vieram os netos ainda foi pior! Estou a tentar a última probabilidade. Quem sabe se não terei mais poder sobre ti na morte que na vida. Pelo menos durante os primeiros dias. Por algumas semanas retomarei um lugar na tua vida. Ainda que não seja senão por dever, lerás estas páginas até ao fim. Tenho necessidade de o crer. E creio-o.
Não, durante a tua confissão, não senti o mais leve sentimento de ciúme. Mas como conseguir fazer-te compreender tudo o que essa confissão destruía em mim? Eu fora o filho único dessa viúva que tu conheceste, ou antes que tu não conheceste, apesar de teres vivido longos anos junto dela. Foi coisa que nunca te interessou, mas mesmo que te interessasse não poderias ter compreendido o que era a união desses dois seres, dessa mãe e desse filho, tu, célula duma poderosa e numerosa família burguesa, hierárquica, organizada. Não, tu nem de longe podes imaginar quantos cuidados e desvelos pode dar a um filho que é tudo o que lhe resta no mundo, a viúva dum modesto funcionário, chefe de serviços da Prefeitura. Os meus sucessos escolares enchiam-na de orgulho. Eu também não tinha outra alegria. Naquele tempo, julgava que éramos muito pobres. Bastara, para me convencer disso, a vida parca que nós levávamos, e a estrita economia da qual minha mãe fizera lei. Apesar de tudo, nada me faltava. Só agora compreendo até que ponto fui um rapaz amimado. As quintas de minha mãe forneciam-nos barato as iguarias para a nossa mesa e bem admirado ficaria eu, se me dissessem que ela era muito requintada. As frangas engordadas a milho, as lebres, os empadões de galinholas, não despertavam em mim a mais pequena ideia de luxo. Ouvira sempre dizer que essas terras eram de pouco valor. E assim era, pois quando minha mãe as herdou eram terrenos estéreis onde meu avô, quando pequeno, levou o gado a pastar. Mas eu ignorava que o primeiro cuidado dos meus pais fora mandar semear essas terras e que aos vinte e um anos, me encontrava possuidor de dois mil hectares de bosques em pleno crescimento e que já forneciam traves de minas. Minha mãe também economizava os seus modestos rendimentos. Ainda em vida de meu pai "fazendo força da fraqueza", tinham comprado Calèse (estes vinhedos que eu não daria agora por um milhão, e que custaram, apenas, quarenta mil francos!) Habitávamos na rua de Santa Catarina, o terceiro andar duma casa que nos pertencia. (Era o dote de meu pai, juntamente com outros terrenos para construções). Duas vezes por semana, vinha um cesto das nossas propriedades; raras vezes minha mãe "ia ao talho". Eu queria entrar na Escola Normal, com a teimosia duma ideia fixa. Era um grande trabalho, para que eu me resolvesse a tomar um "pouco de ar" ao domingo e à quinta-feira. Não me parecia em nada com esses rapazes que sem fazerem esforço nenhum são sempre os primeiros nas aulas. Era um "picão" e gloriava-me com isso: apenas um "picão" e nada mais. Não me recordo que no liceu encontrasse prazer em estudar Vergílio ou Racine. Só me interessavam como matéria de curso. As únicas obras que para mim tinham importância, eram as que estavam inscritas no programa; as outras, punha-as de lado e a respeito das que me interessavam, escrevia acerca delas o que era preciso escrever para agradar aos examinadores, quer dizer, o que já fora escrito e dito por todas as gerações de normalistas. Aí tens o idiota que eu era, e como teria cristalizado sem a hemoptise que aterrou minha mãe e que me obrigou a abandonar tudo dois meses antes do concurso da Escola Normal.
Era o triste penhor duma infância estudiosa em excesso, duma adolescência doentia; um rapaz, em pleno crescimento, não vive impunemente curvado sobre uma mesa, com os ombros encolhidos, até altas horas da noite, desprezando todos os exercícios desportivos.
Estou a aborrecer-te? Tenho receio disso. Não saltes nenhuma linha. Pica certa que escrevo apenas o estritamente necessário: o potencial do drama das nossas duas vidas, encontra-se nestes acontecimentos que tu desconheceste ou que esqueceste.
Não me quero poupar, o que aliás tu já compreendeste por estas primeiras páginas. Há nelas bastante para lisonjear o ódio que me tens... Não, não protestes; quando pensas em mim, é para alimentares a tua inimizade.
Receio contudo ser injusto para comigo, esse rapaz franzino que eu era e que passava a vida curvado sobre os dicionários.
Quando leio as memórias da infância dos outros, quando descortino esse paraíso para o qual todos se voltam, pergunto a mim mesmo com angústia: "E eu? porquê este isolamento desde o princípio da minha vida? Teria eu conhecido os mesmos encantos que os outros e tê-los-ia esquecido?..." Ah! de coisa alguma me recordo, a não ser desse furor encarniçado, dessa luta sem trégua pelo primeiro lugar, a minha odienta rivalidade com um rapaz chamado Henoch e outro chamado Rodrigo. O meu instinto era repelir toda e qualquer simpatia. Recordo-me bem que o prestígio dos meus sucessos e até mesmo aquela fúria que me atacava atraíam certas naturezas. Era um rapaz feroz para quem pretendia amar-me. Tinha o horror das "ternuras".
Se a minha profissão fosse escrever, não poderia tirar da minha vida de liceu a mais pequena página comovedora. Espera... uma única coisa, somente, quase nada; acontecia, às vezes, persuadir-me que meu pai, de quem mal me lembrava, não morrera e que fora um conjunto de circunstâncias estranhas que o fizera desaparecer. Quando voltava do liceu subia a calçada da rua de Santa Catarina, a correr, e por entre os carros, pois o movimento dos passeios teria retardado a minha corrida. Subia as escadas quatro a quatro. Minha mãe passajava roupa ao pé da janela. A fotografia de meu pai estava pendurada no mesmo lugar à direita da cama. Deixava que minha mãe me abraçasse e mal lhe respondia; e abria logo os meus livros.
A seguir a esta hemoptise que me transformou o destino, lúgubres meses decorreram nesta vivenda de Arcachon, onde a ruína da minha saúde realizava o naufrágio das minhas ambições universitárias. Minha pobre mãe irritava-me porque tudo isso não contava, para ela, parecendo-me que o meu futuro lhe não causava preocupações. Todos os dias, ela vivia na expectativa da "hora do termómetro". Do meu peso semanal dependia a sua tristeza ou a sua alegria. Eu, que tanto devia sofrer, mais tarde, por ser um doente cuja doença a ninguém interessava, reconheço que tenho sido justamente castigado pela minha dureza e o meu implacável carácter de menino querido e amimado.
Quando o tempo melhorou, "arribei" também, como dizia minha mãe. Na verdade, ressuscitei, engordei, fortaleci-me. Este corpo, que tanto sofrera pelo regime ao qual eu o sujeitara desabrochava em meio desta floresta seca, cheia de giestas e medronheiros, no tempo em que Arcachon era apenas uma aldeia.
Ao mesmo tempo, vinha a saber, por minha mãe, que o futuro me não devia preocupar, pois possuíamos sólida fortuna que aumentava de ano para ano. Não havia motivo para ralações; tanto mais que devia ficar livre do serviço militar. Tinha grande facilidade de palavra a ponto de deslumbrar os meus mestres. Minha mãe queria que eu estudasse direito, convencida como estava que, sem excesso de fadiga, me tornaria um advogado célebre, a não ser que a política me atraísse...
Falava, falava, descobria-me assim, de repente, os seus planos. Eu ouvia-a, amuado, hostil, com os olhos voltados para a janela. Comecei a "gozar da vida". Minha mãe observava-me com indulgência, tímida. Mais tarde, ao contacto com a tua gente, vi a importância que tomam estas desordens numa família religiosa. Minha mãe não via nelas outro inconveniente senão o mal que me podiam fazer à saúde. Quando se certificou que eu me não excedia, fechou os olhos sobre as minhas saídas nocturnas, contanto que eu não entrasse depois da meia noite. Não receies que te venha contar os meus amores daquele tempo. Sei que aborreces todas essas coisas, e depois, eram aventuras tão insignificantes!
Mesmo assim, custavam-me bastante caro. Sofria com isso. Sofria por ver que era tão pouco atraente, que a minha juventude de nada me servia. Não que eu fosse feio, quanto me parece. Minhas feições são "regulares", e Genoveva, que era o meu retrato vivo, foi uma linda rapariga. Eu pertencia, porém, a essa raça de seres dos quais se diz que não têm mocidade: um adolescente sombrio, sem frescura. O meu aspecto logo gelava os outros. E quanto mais tomava comsciência disso, mais me inteiriçava.
Nunca me soube vestir, escolher uma gravata ou dar-lhe o nó. Nunca soube dedicar-me, nem rir, nem dizer tolices. Era inconcebível que eu me pudesse associar a algum alegre bando; pertencia à raça dos desmamchaprazeres. Por outro lado, era susceptível, incapaz de suportar o mais leve gracejo. Em compensação, quando queria gracejar, assentava nos outros, mesmo sem querer, golpes tão certeiros que eles nunca me perdoavam. Ia direito ao ridículo, aos defeitos em que se não devia falar. com as mulheres, tomava, por timidez e orgulho, esse tom superior e doutoral que elas detestam. Não prestava atenção aos seus vestidos. Quanto mais sentia que lhes desagradava, mais em mim se acentuava tudo o que lhes causava horror. A minha juventude foi apenas um longo suicídio. Procurava desagradar, de propósito, com receio de desagradar sem querer.
Com razão ou sem ela, atribuía a minha Mãe tudo o que eu era. Tinha a impressão que expiava a desgraça de ter sido desde a infância exageradamente cuidado, vigiado e servido. Naquele tempo, fui para com ela, duma dureza atroz. Exprobrava-lhe o excesso do seu amor. Não lhe perdoava o sentir-me esmagado por aquela ternura que só ela viria a dar-me neste mundo, e que nunca mais conheceria senão por ela. Perdoa-me o repisar o mesmo assunto, mas é neste pensamento que encontro a força para suportar o abandono em que tu me deixas; é de justiça que eu pague. Pobre mulher, adormecida há tantos anos, cuja lembrança sobrevive, apenas, no coração extenuado do velho que eu sou - quanto não teria ela sofrido, se tivesse podido prever como seria vingada pelo destino!
Sim, fui atroz: na pequena casa de jantar da vivenda, sob o lustre que iluminava as nossas refeições, eu respondia apenas por monossílabos às suas tímidas perguntas, ou disparatava brutalmente ao menor pretexto, e mesmo sem razão.
Ela não procurava compreender-me; não entrava nas razões das minhas exaltações, suportava-as como a cóleras de um deus: "Era a doença, dizia ela. Que era preciso descarregar os nervos..." E ainda acrescentava que era demasiado ignorante para me compreender: "Bem reconheço que uma velha como eu, não é lá companhia muito agradável para um rapaz da tua idade..." Ela, que eu vira tão económica, para não dizer apertada, dava-me mais dinheiro que aquele que eu pedia, impelia-me para a prodigalidade, trazia-me de Bordéus gravatas ridículas que eu depois não queria usar.
Tínhamo-nos relacionado com uns vizinhos a cuja filha eu fazia a corte, não tanto por que ela me agradasse; mas como ela passava o inverno em Arcachon para se tratar, minha mãe afligia-se à ideia dum contágio possível ou receava que eu a comprometesse ou tomasse compromissos. Estou certo, hoje, que aquela conquista que eu tentei, aliás em vão, foi simplesmente para dar um desgosto a minha mãe.
Depois de um ano de ausência, voltámos a Bordéus. Minha mãe comprara um palacete nas avenidas, mas não me dissera nada, para me fazer uma surpresa. Fiquei estupefacto quando um criado de serviço nos abriu a porta. O primeiro andar era-me destinado a mim. Tudo parecia novo. Secretamente deslumbrado por um luxo, que, julgo hoje, devia ser medonho, tive a crueldade de não fazer senão críticas e mostrei-me preocupado com a despesa.
Foi então que minha mãe, triunfante, me prestou contas, o que aliás não era obrigada a fazer (pois que a maior parte da fortuna recebera-a da sua família). Cinquenta mil francos de renda, sem contar os cortes de madeira constituíam, nesta época, e sobretudo na província, uma "linda" fortuna, de que qualquer outro rapaz se teria servido para singrar e se "levar até à primeira sociedade da cidade. Não era ambição o que me faltava; mas ter-me-ia sido difícil esconder aos meus camaradas da Faculdade de Direito os meus sentimentos hostis.
. Eram quase todos rapazes educados nos jesuítas e a quem eu, estudante do liceu e neto dum pastor, não perdoava o terrível sentimento de inveja que suas maneiras me inspiravam, ainda que os olhava sempre como espíritos inferiores. Invejar seres que se desprezam, é paixão vergonhosa e nela se encontra veneno suficiente para estragar uma vida.
Invejava-os e desprezava-os; o seu desdém (talvez imaginário) excitava ainda mais o meu rancor.
Eu era de tal natureza, que nem pensava, um instante sequer, em. os conquistar, e mergulhava cada vez mais no partido dos seus adversários. O ódio à religião que foi, durante tanto tempo, a minha paixão dominante, de que tu tanto sofreste e que nos tornou para sempre inimigos, esse ódio nasceu na Faculdade de Direito, em 1879 e 1880 na altura da votação do artigo 7, no ano daqueles famosos decretos e da expulsão dos jesuítas.
Até então, vivera indiferente a essas questões. Minha mãe nunca me falara nelas, senão para dizer: "Estou inteiramente sossegada; que se nós não nos salvamos, ninguém mais se salvará". Tinha-me mandado baptizar. A primeira comunhão, no Liceu, pareceu-me formalidade aborrecida da qual conservo apenas uma lembrança confusa. Fiz aquela comunhão, e mais nenhuma. Nesta matéria, a minha ignorância era profunda. Quando era criança e via os padres nas ruas, davam-me a impressão de pessoas disfarçadas, uma espécie de máscaras. Nunca pensei em problemas destes, e quando os abordei, foi apenas sob o ponto de vista político.
Fundei um círculo de estudos que se reunia no Café Voltaire, e onde me exercitava na palavra. Na vida particular era tímido, mas, nos debates públicos, tornava-me outro homem. Tinha partidários, gozava em ser o chefe, mas, no fundo, desprezava-os tanto como aos burgueses. Levava-lhes a mal que manifestassem ingenuamente os miseráveis motivos que os faziam agir, que eram também os meus, e de que eles me obrigavam a tomar consciência. Filhos de modestos funcionários, antigos bolseiros, rapazes inteligentes e ambiciosos, mas cheios de fel, lisonjeavam-me, mas não me amavam. Oferecia-lhes alguns jantares que ficavam célebres, e dos quais se falava ainda passado muito tempo. Suas maneiras, porém, aborreciam-me. Acontecia-me não poder conter um gracejo que os feria mortalmente, e do qual me guardavam rancor.
Contudo, o meu ódio anti-religioso era sincero. Atormentava-me também certo desejo de justiça social. Obriguei minha mãe a deitar abaixo as casas de barro onde viviam os nossos caseiros, mal alimentados de água pé e pão negro. Pela primeira vez, tentou resistir-me. "Pelo muito que eles te hão-de agradecer..."
Mas nada mais fiz do que isto. Sofria ao reconhecer que os meus adversários tanto como eu tínhamos uma paixão comum: a terra e o dinheiro. Há classes que possuiem, e há as que não possuem. Compreendi que estaria sempre do lado dos que possuem. Tinha uma fortuna igual ou superior à de todos esses rapazes pretensiosos que, pensava eu, voltavam a cabeça quando me viam, mas que me teriam apertado a mão se eu lha estendesse. Também não faltavam pessoas, à direita e à esquerda, que me censurassem, nas reuniões públicas, os meus dois mil hectares de bosques e os meus extensos vinhedos.
Perdoa se me demoro tanto. Sem todas estas minudências talvez nunca chegasses a compreender o que foi o nosso encontro, para o rapaz ulcerado que eu era, o que foi o nosso amor. Eu, filho de camponeses, cuja mãe andara ainda de "lenço", casar com uma Fondaudège! Excedia tudo o que se pudesse imaginar, era impossível...
Deixei de escrever porque já começava a escurecer e estava a ouvir falar por baixo do quarto. Não faziam muito barulho. Pelo contrário, falavam todos em voz baixa, e era isso que me inquietava. Dantes, mesmo aqui do quarto, podia seguir as vossas conversas. Agora, todos desconfiam, e apenas oiço bichanar. Ainda não há muito que me disseste que eu começava a ouvir mal. Não é tanto assim; oiço perfeitamente o rolar do comboio no viaduto. Não, não estou surdo. Vós é que falais baixinho, e não quereis que eu oiça o que dizeis. Que é que vós não quereis que eu saiba? Que os negócios vão mal? Estão todos ansiosos à volta de ti: o genro que anda no negócio do álcool, o marido da neta que não faz nada, e o nosso filho Humberto, agente de câmbio... Este, contudo, tem o dinheiro de toda a gente à disposição, esse rapaz que chega a dar 20%!
Não contem comigo: não largo a presa: "Seria uma coisa tão simples um corte de pinheiros..." dir-me-ás tu, logo à noite. Também me hás-de lembrar que as duas filhas do Humberto vivem em casa dos sogros desde que casaram, porque não têm dinheiro para comprar a mobília. "E nós temos no sótão tantos móveis a estragar-se... não custaria nada emprestar-lhos..." É precisamente isso o que tu me vais dizer. "E tanto o levam a mal que nem querem pôr os pés cá em casa. E assim fico privada dos meus netos..." É este o assunto que vós discutíeis quando faláveis baixinho.
Estou a rever estas linhas escritas ontem à noite numa espécie de delírio. Porque me exaltei eu assim? Já não é uma carta, mas um diário interrompido e retomado... Apago tudo e começo de novo? Impossível: o tempo urge. O que escrevi escrito está. Aliás, que desejo eu senão abrir-me inteiramente contigo, obrigando-te a olhar até ao fumdo do meu ser? Há trinta anos, que não sou para ti senão um aparelho distribuidor de notas de mil francos, aparelho que funciona mal e que é preciso abanar constantemente, até que se possa abrir, desentranhar, tirar dele, às mãos cheias, o tesouro que ele contém. Novamente a raiva se apodera de mim. Ela me reconduz ao ponto em que me interrompi; tenho que remontar à origem dessa exaltação, recordar essa noite fatal... Mas, antes de mais, lembra-te do nosso primeiro encontro.
Estava eu em Luchon, com minha mãe, em Agosto de 83. O Hotel Sacarron, naquele tempo, abundava em móveis estofados, tamboretes, camurças dos Pirinéus. As tílias das alamedas de Étigny, é sempre, ainda agora, o seu perfume que eu aspiro, depois de tantos anos, quando as tílias florescem. O trote curto dos burros, as guisalhadas, os estalos dos chicotes acordavam-me todas as manhãs. A água das montanhas corria até as ruas. Pequenos vendedores apregoavam bolos e pão doce. Passavam soldadas a cavalo, e eu via abalar as cavalgadas.
Todo o primeiro andar era habitado pelos Fondaudège. Ocupavam o aposento do rei Leopoldo. "Muito gastadora deve ser aquela gente!", dizia minha mãe. Aquele luxo todo não impedia que andassem sempre atrasados em pagamentos (tinham arrendado vastos terrenos que nós possuíamos nas docas para depósito de mercadorias).
Nós jantávamos à mesa redonda; mas vós, os Fondaudège, éreis servidos à parte. Recordo-me dessa mesa perto das janelas; tua avó, obesa, escondia a falta de cabelo com rendas pretas onde brilhavam vidrilhos. Parecia que estava sempre a sorrir-se para mim; mas era a forma dos olhos minúsculos e a prega desmedida da boca que davam esta ilusão. Servia-a uma religiosa, de cara balofa, biliosa, envolvida em panos engomados. Tua mãe... como ela era linda! Vestia sempre de preto, por causa dos dois filhos que lhe tinham morrido. Foi ela, e não tu, que eu primeiro admirei disfarçadamente. A brancura do seu pescoço, dos braços e das mãos, impressionava-me. Não usava jóias. Eu imaginava provocações stendhalianas, e esperava até à noite para lhe dirigir a palavra, ou passar-lhe uma carta. A ti, quase que nem te notava. Parecia-me que as raparigas não me interessavam. Tu tinhas aliás a insolência de nunca olhar para os outros, o que era uma maneira de os suprimir.
Um dia, quando eu voltava do Casino surpreendi minha mãe a conversar com a Senhora Fondaudège, obsequiosa, amável em excesso, como quem receia descer ao nível do interlocutor. Ao contrário, minha mãe falava rijo e forte; tratava-se dum inquilino que ela tinha seguro, e os Fondaudêge não eram, a seus olhos, senão credores desleixados. Camponesa, agarrada à terra, desconfiava do negócio e dessas fortunas de base pouco segura. Interrompi-a quando ela dizia: "Pois é claro que tenho a maior confiança na assinatura do Senhor Fondaudège, mas..."
Pela primeira vez me intrometi numa conversa de negócios. A Senhora Fondaudège obteve o prazo que pedia. Já muitas vezes, depois disto, tenho pensado que o instinto camponês de minha mãe a não enganara: a tua família tem-me custado muito caro, e se eu me deixasse comer, teu filho, tua filha, o marido da tua neta teriam num instante dado cabo de toda a minha fortuna se a afundassem nos seus negócios. Os seus negócios! Um escritório no rés-do-chão, um telefone, uma dactilógrafa... Por detrás deste aparato some-se o dinheiro aos maços de cem mil francos. Lá me distraio... Estamos em 1883 em Bagnères-de-Luchon.
O que eu via agora é que essa família poderosa se dignava sorrir-me. Tua avó nunca parava de falar, porque era surda. Quando, a seguir às refeições me foi permitido trocar impressões com tua mãe, fiquei desiludido, e caíram por terra asideias romanescas que eu formara a seu respeito. Não levarás a mal o lembrar a vulgaridade da sua conversa; o universo que ela habitava era tão reduzido e empregava um vocabulário tão pobrezinho, que ao cabo de três minutos, já eu desesperava por completo de sustentar o diálogo.
A minha atenção, ao desviar-se da mãe, fixou-se, afinal, na filha. Ao princípio não percebi logo que se não punha o mais pequeno obstáculo às nossas conversas. Como teria eu podido pensar que os Fondaldège viam em mim um partido vantajoso? Lembro-me dum passeio ao vale do Lys, Tua avó, sentada com a religiosa no banco do fundo da vitória, e nós dois no banco da frente. Toda a gente sabia que não faltavam carruagens em Luchon! Era preciso ser-se Fondaudège para se dar ao luxo de ter trazido a equipagem.
Os cavalos iam a passo, numa nuvem de moscas. A Irmã, de face luzidia, levava os olhos meio-inchados. Tua avó abanava-se com um leque comprado nas alamedas de Étigny, e nele se via desenhado um toureiro a dar a estocada num touro preto. Tu, apesar do calor, calçavas luvas compridas. Tudo em ti, era branco, até as botinas de canos altos. "Votaras-te ao branco", dizias-me tu, desde a morte dos teus dois irmãos. Ignorava por completo o que era estar "votada ao branco". Só depois soube quanto na tua família havia o gosto destas devoções um tanto exquisitas. Naquela época era tal o meu estado de espírito que até nisso encontrava imensa poesia. Como fazer compreender-te os sentimentos que suscitaste em mim? Quase de improviso, tinha a sensação de já não desagradar, não desagradava mesmo, nem era antipático. Uma das datas importantes da minha vida foi aquela tarde em que tu me disseste: "É extraordinário que um rapaz tenha as pestanas tão compridas!"
Eu escondia, cuidadosamente, as minhas ideias avançadas. Recordo-me, que durante esse passeio, quando numa subida nós descemos para aliviar o carro, tua avó e a religiosa pegaram no terço, enquanto, do alto da boleia, o velho cocheiro, com aprumo antigo, ia respondendo às Ave Marias. Tu olhaste para mim e sorriste. Mas eu permaneci imperturbável. Nem me custava absolutamente nada acompanhar-vos ao domingo à Missa das onze. Não ligava a mais leve ideia metafísica a esta cerimónia. Era o culto duma classe à qual me orgulhava de me sentir agregado, uma espécie de religião dos antepassados para uso da burguesia, um conjunto de ritos desprovidos de qualquer outra significação que não fosse social. Como, às vezes, olhavas para mim disfarçadamente, a lembrança dessas Missas permanece ligada à maravilhosa descoberta que eu fazia: ser capaz de interessar, de agradar, de impressionar. O amor que eu sentia confundia-se com o que eu inspirava, ou julgava inspirar. Meus próprios sentimentos nada tinham de real. O que contava era a confiança que eu tinha no amor que tu sentias por mim. Reflectia-me num outro ser, e a minha imagem, assim reflectida, nada oferecia de repelente. Num alívio delicioso, eu desabrochava. Como me lembro bem desse degelo de todo o meu ser, ao contacto do teu olhar, dessas emoções a romper de fontes libertadas. As carícias mais triviais, um aperto de mão, uma flor guardada num livro, tudo para mim era novo, tudo me encantava.
Só minha mãe não tinha o benefício desta renovação. Em primeiro lugar, eu sentia a sua hostilidade contra o sonho (que parecia loucura) que lentamente se formava em mim. Queria-lhe mal, por ela também se não sentir deslumbrada. "Mas tu não vês que aquela gente só o que quer é atrair-te?" repetia ela sem se lembrar que se arriscava assim a destruir a minha imensa alegria de ter enfim agradado a uma rapariga. Existia uma rapariga no mundo a quem eu agradava e que talvez quisesse casar comigo; apesar das desconfianças de minha mãe, eu acreditava; os teus eram demasiado grandes, demasiado poderosos, para terem qualquer vantagem na nossa aliança. No íntimo, sentia quase ódio a minha mãe porque punha em dúvida a minha felicidade.
Nem por isso ela deixava de tomar informes, tendo agentes nos principais bancos. Triunfei no dia em que ela teve de reconhecer que a casa Fondaudège, apesar de alguns embaraços passageiros, gozava de grande crédito. "Ganham um dinheirão louco, mas levam um trem de vida muito luxuoso, dizia minha mãe. Vai-se tudo em cavalarias altas e em librés. Antes querem dar nas vistas do que amealhar..."
Os informes dos bancos, acabaram de me socegar a respeito da minha felicidade. Eram a prova do vosso desinteresse: os teus sorriam-me porque eu lhes agradava; de repente, parecia-me muito natural que toda a gente simpatizasse comigo. À noite, deixavam-me sozinho contigo, nas áleas do Casino. É estranho como, nestes princípios da vida, quando nos é concedido um pouco de felicidade, não há uma voz que nos advirta: "Por muitos anos que vivas, a alegria que terás no mundo serão apenas estas poucas horas. Saboreia até as fezes, porque depois nada mais te resta. A primeira fonte encontrada é também a última. Apaga a sede duma vez para sempre, que nunca mais tornarás a beber".
Mas, pelo contrário, persuadia-me que era o começo duma longa vida apaixonada, e não prestava atenção bastante a essas noites em que nos quedávamos imóveis sob a folhagem adormecida.
Alguns indícios houve, contudo, mas que eu interpretava mal. Lembras-te daquela noite, num banco, na álea que subia aos zigue-zagues por detrás das Termas? De repente, sem causa aparente, desataste a soluçar. E eu lembro-me do perfume das tuas faces molhadas, do perfume dessa tristeza desconhecida. Julguei que eram as lágrimas do amor feliz. A minha juventude não sabia interpretar esses soluços, essas opressões. É verdade que tu me dizias: "Não é nada, é por estar ao pé de ti..." E tu não mentias, mentirosa. Era precisamente porque estavas ao pé demim que tu choravas, - ao pé de mim e não do outro, daquele cujo nome me devias revelar, meses mais tarde, neste mesmo quarto onde estou a escrever, velho e prestes a morrer, no meio duma família de espiões, que espera o momento do saque.
E eu, sobre esse banco, nos zigue-zagues de Superbagnères, apoiando o rosto entre o teu ombro e o teu pescoço, respirava as lágrimas dessa rapariga chorosa. A húmida e tépida noite dos Pirinéus, rescendente de ervas molhadas e de mento, enchera-se também do teu perfume. Na praça das Termas que ficava por baixo, a folhagem das tílias que rodeavam o quiosque da música, estava iluminada de revérberos. Um velho inglês do Hotel apanhava, com uma rede comprida, as borboletas nocturnas que esses revérberos atraíam. Disseste-me: "Empresta-me o teu lenço...". Enxuguei-te os olhos, e escondi esse lenço entre a camisa e o peito.
Tudo isto mostra bem claramente que eu me tornara outro. O meu próprio rosto fora iluminado por outra luz. Compreendia-o pelos olhares das mulheres. Depois dessa noite de lágrimas nada desconfiei; aliás, por uma noite daquelas, quantas não houve em que só respiravas alegria, em que te encostavas a mim e me davas o braço! Eu caminhava depressa demais, e tu acompanhavas-me esbaforida. Era um noivo casto, porque tu interessavas uma parte intacta de mim mesmo. Nem sequer uma vez, tive a tentação de abusar da confiança dos teus, que eu estava muito longe de pensar que fosse calculada. Sim, eu era outro homem, a tal ponto que um dia - depois de quarenta anos, ouso, enfim, fazer-te esta confissão, da qual não terás o prazer de triunfar quando leres esta carta - um dia, na estrada do vale de Lys, tínhamos descido da vitória. As águas corriam abundantes; eu esmagava funcho entre os dedos; no sopé da montanha, a noite descia, mas nos cimos, persistiam campos de luz... Repentinamente, tive a sensação aguda, a certeza quase física que existia um outro mundo, uma realidade da qual nós só conhecíamos a sombra...
Foi apenas um instante - e que ao longo da minha triste vida se repetiu com raros intervalos. Mas esta mesma singularidade dá-lhe a meus olhos um valor maior. Foi por isso que mais tarde, durante o longo debate religioso que nos separou, tive de arredar semelhante recordação... devia-te este segredo. Ainda não é tempo, porém, de abordar o assunto.
Inútil falar do nosso casamento. Uma noite, tudo ficou combinado; tudo se passou quase sem eu querer. Julgo que interpretaste uma palavra que eu disse, num sentido diferente do que eu lhe dera; e encontrei-me preso a ti, sem poder voltar atrás. Escusado será lembrar tudo isso. Mas há uma coisa horrorosa sobre a qual me condeno a deter o pensamento.
Advertiste-me imediatamente de uma das tuas exigências. "No interesse da boa harmonia", recusavas-te a viver em comum com minha mãe, até mesmo a habitar na mesma -casa. Teus pais, e mesmo tu, estavam dispostos a não transigir neste ponto. Como ainda depois de tantos anos, me permanece presente à memória, esse quarto sufocante do hotel, essa janela aberta para as áleas de Êtigny! A poeira de ouro, os estalos dos chicotes, os guisos, uma ária tiroleza, subiam através das persianas fechadas. Minha mãe, que andava engripada, estava estendida num sofá, de saia e camisola (nunca soubera o que fosse um vestido de quarto). Dizia-me ela que nos deixaria as salas do rés-do-chão, e se contentaria com um quarto no terceiro andar. "Ouve, mamã, Isa pensa que valeria mais..." À medida que eu falava ia olhando, disfarçadamente, para aquele rosto envelhecido; depois desviava os olhos. com os seus dedos deformados, minha mãe esfregava o fecho da camisola. Se ela tivesse discutido, eu teria a que me agarrar, mas o seu silêncio fazia calar a minha cólera. Parecia não se ter melindrado nem surpreendido. Falou, enfim, procurando palavras que me pudessem fazer acreditar que sempre contara com a separação.
"Viverei quase todo o ano em Aurigne-dizia ela -? que é a mais habitável das nossas quintas e deixar-vos-ei Calèse. vou mandar construir um pavilhão em Aurigne: três divisões chegam. Ainda que não fique muito caro, sempre é aborrecido ter de fazer esta despesa pois pode muito bem ser que para o ano já eu não seja viva. Mais tarde,poderás servir-te dele para a caça às pombas. Calhava-te bem habitá-lo em Outubro. Tu não gostas de caça, mas pode ser que tenhas filhos com esse gosto". Por mais longe que fosse a minha ingratidão, era impossível atingir as raias deste amor. Desalojado das suas posições, reconstituía-se noutro lado, organizando-se e mantendo-se com o que eu lhe deixava. Mas nessa noite, tu perguntaste-me: "Que terá a tua mãe?"
No dia seguinte, retomou o aspecto habitual. Teu pai chegou de Bordéus com a filha mais velha e o genro. Deviam estar ao corrente de tudo. Mediam-me dos pés à cabeça. Julgava ouvi-los perguntarem-se uns aos outros: "Que tal o achas? apresentável!... Quanto à mãe, não há meio..." Nunca poderei esquecer a admiração que me causou tua irmã Maria Luísa, a quem vós chamáveis Marinette, mais velha que tu um ano, mas que tinha aparência de ser ainda a mais nova, frágil, com seu pescoço alto, tranças pesadas e olhar de criança.
O velho a quem teu pai a entregou, o barão Philipot causou-me horror. Mas depois que ele morreu, muitas vezes penso nesse sexagenário como um dos homens mais desgraçados que tenho conhecido. Que martírio não sofreu esse imbecil para que a mulher esquecesse que ele era um velho! Um espartilho apertava-o, até quase o sufocar. O colarinho engomado, alto e largo, escondia-lhe as bochechas e a papada. A tinta luzidia do bigode e das suíssas, fazia sobressair os estragos da carne violeta. Pouca atenção prestava ao que lhe diziam, sempre à procura dum espelho; e quando o encontrava, lembra-te do que nós nos ríamos, se surpreendíamos o olhar que o desgraçado lançava à própria imagem, esse perpétuo exame que ele se impunha. A dentadura não o deixava sorrir, e os lábios tinha-os selados por uma vontade decidida. Também lhe notáramos aquele modo de pôr o chapéu, sempre com medo de desarranjar a extraordinária madeixa que, partindo da nuca, se lhe espalhava pelo crâneo como delta de minúsculo rio. Teu pai, que era da mesma idade, apesar da barba branca, da calva, e do ventre, agradava ainda às mulheres, e até mesmo nos negócios era sumamente insinuante. Só minha mãe lhe resistiu. O desgosto que eu acabava de lhe dar endurecera-a talvez. Discutia cada artigo do contrato como o teria feito para uma venda ou um arrendamento. Eu fingia indignar-me com. as suas exigências, e desaprovava-as, mas secretamente feliz de saber os meus interesses em tão boas mãos. Se hoje a minha fortuna está nitidamente separada da tua, se vós todos tendes tão pouco por onde me pegar, devo-o a minha mãe que exigiu o regime dote mais rigoroso como se eu fosse uma menina, resolvida a casar com algum estróina. Desde que os Fondaudège não se insurgiam diante dessas exigências podia eu dormir tranquilo: eles queriam-me, pensava eu, porque tu me querias.
Minha mãe não queria ouvir falar em renda; queria que o teu dote fosse dado em dinheiro: "Dão-me para exemplo o barão Philipot, - dizia ela - que casou com a mais velha sem dote... Quero crer! Para darem a pobre menina a esse velho alguma vantagem hão-de ter tido! Mas connosco é outra coisa; julgavam talvez que eu ficava deslumbrada com este casamento: ainda me não conhecem..."
Nós fingíamos, nós os "pombinhos" que nos desinteressávamos da questão. Queria-me parecer que tu tinhas tanta confiança no talento de teu pai como eu no de minha mãe. No fim de contas, talvez nem nós soubéssemos, tanto eu como tu, até que ponto amávamos o dinheiro...
Não, estou a ser injusto. Tu nunca amaste o dinheiro senão por causa dos filhos. Eras talvez capaz de me matares a mim para os enriqueceres a eles, mas tirarias o pão da boca para lho dar.
Enquanto eu... gosto de dinheiro, confesso-o, porque me dá segurança. Enquanto for senhor da minha fortuna, vós nada podeis contra mim. "Para a nossa idade é-nos preciso tão pouco", repetes tu. Enganas-te! Um velho só existe por aquilo que possui. Quando não tem nada, põem-no à margem. Só podemos escolher entre o asilo e a fortuna. A história de camponeses que deixam morrer os velhos à fome depois de lhes terem tirado tudo, também as conheço em famílias burguesas, ainda que doutra forma, com mais elegância.
Sim, tenho medo de empobrecer. Parece-me que nunca terei dinheiro bastante. É uma atracção para vós e uma protecção para mim.
Já passou a hora do Angelus, mas não o ouvi... É que não tocou: é Sexta-feira Santa. Os homens da família chegam esta noite de automóvel: irei lá abaixo jantar. Quero vê-los todos juntos; sinto-me mais forte contra todos do que nas conversas em particular. E depois, tenho de comer a minha costeleta, neste dia de penitência, não por bravata, mas para mostrar que guardei a minha vontade intacta e que não cederei em nada.
Todas as posições que ocupo há quarenta anos, e donde tu me não pudeste desalojar, cairiam, uma a uma, se eu fizesse uma só concessão. Diante desta família que vai comer feijão e sardinhas de conserva, a minha costeleta de Sexta-feira Santa será o sinal de que não há a mais pequena esperança de me despojarem em vida.
Não me tinha enganado. A minha presença no meio de vós, ontem à noite, transtornou os vossos planos. A mesa dos miúdos era a única alegre, porque em noite de Sexta-feira Santa, comem chocolate e fatias com manteiga. Não os distingo uns dos outros: minha neta Janine já tem uma garota que anda... Dei a todos o espectáculo dum excelente apetite. Tu fizeste alusão à minha saúde e à minha idade avançada para desculpar a costeleta aos olhos dos pequenos. O que me pareceu terrível foi o optimismo de Humberto. Diz estar certo que a Bolsa subirá dentro em pouco, como homem para quem o caso é questão de vida ou de morte. Seja o que for, ele é meu filho. Sim! meu filho este homem de quarenta anos, sei-o bem, mas não o sinto. Impossível olhar de frente esta verdade. E se os seus negócios corressem mal! Um acoute de câmbio que dá tais dividendos joga e arrisca-se à grande... No dia em que a honra da família estiver em jogo... A honra da família. Aí está um ídulo ao qual não me sacrificarei. Que a minha decisão seja bem tomada, antecipadamente. Será preciso aparar o golpe, sem o comover. Depois, ainda têm o recurso do velho tio Fondaudège que faria alguma coisa, se eu não fizesse nada... mas estou a divagar, a pensar coisas sem nexo... ou antes, quero fugir à recordação dessa noite em que tu destruíste, irreflectidamente, a nossa felicidade.
É estranho pensar que não tenhas guardado de tudo isso a mais pequena recordação. Aquelas horas, neste quarto, nessas meias trevas, decidiram dos nossos destinos. Cada palavra que tu pronunciavas os separava cada vez mais, e tu sem nada perceberes. Tua memória, atafulhada de mil recordações frívolas, nada reteve desse desastre. Bem podes imaginar, tu, que fazias profissão de crer na vida eterna, que foi a minha própria eternidade que tu jogaste e comprometeste naquela noite. Porque o nosso primeiro amor tornara-me sensível à atmosfera de fé e adoração que banhava a tua vida. Eu amava-te, e amava os elementos espirituais do teu ser. Impressionava-me quando tu te ajoelhavas, aos pés da cama, envolvida na tua longa camisa de dormir.
Ocupávamos este quarto onde escrevo estas linhas. Ao regressarmos da nossa viagem de núpcias, porque tínhamos nós vindo para Calése para casa de minha mãe? (Eu não concordara em que ela nos desse Calése que era obra sua e que ela tanto amava). Lembrei-me depois, para assim alimentar o meu rancor, de circunstâncias que à primeira vista me tinham escapado, ou das quais tinha querido desviar os olhos. Primeiramente, a tua família tomara pretexto da morte dum tio, para suprimir as festas do casamento segundo o costume da Bretanha. Era evidente que se sentia envergonhada com aliança tão medíocre. O barão Philipot contava por toda a parte que em Bagnères-de-Luchon sua cunhada se "apaixonara" por um rapaz aliás encantador, com bom futuro e muito rico, mas de origem obscura. "Enfim, dizia ele, não é de boa família". Falava de mim como se eu fosse algum filho natural. Mas a terem de me aguentar, achava interessante que eu não tivesse família de que pudessem vir a envergonhar-se. Minha velha mãe era, no fim de contas, muito apresentável, e parecia querer conservar-se no seu lugar. Finalmente, no dizer dele, tu eras uma menina mimada, que fazia de seus pais tudo quanto queria; e a minha fortuna era bastante tentadora para que os Fondaudège consentissem neste casamento, sem olhar para mais nada. Quando estes boatos me chegaram aos ouvidos não me contaram nada que eu não soubesse já. A felicidade, porém, impedia-me de lhes ligar importância; também devo confessar que me fizeram jeito estas bodas quase clandestinas; onde iria eu descobrir rapazes que me acompanhassem, no pequeno grupo famélico de que eu era o chefe? O orgulho impedia-me de me aproximar dos meus inimigos de ontem. Este casamento brilhante tornaria fácil a aproximação; mas carrego as tintas o bastante para não dissimular esta feição do meu carácter: independência e inflexibilidade. Não me curvo diante de ninguém, sou fiel às minhas ideias. Mas sobre este ponto, o meu casamento despertara em mim alguns remorsos. Prometera a teus pais não empregar nenhum meio para te desviar das práticas religiosas, obrigando-me apenas a não me filiar na Maçonaria. Nem vós pensáveis noutras exigências. Naquele tempo, a religião só dizia respeito às mulheres. No meu mundo, o marido "acompanhava a mulher à missa"-era a fórmula recebida. Ora, em Luchon, já eu provara que não era coisa que me repugnasse.
Quando voltámos de Veneza, em Setembro de 85, teus pais encontraram pretextos para não nos receberem na sua vivenda de Cenon, onde seus amigos e os dos Philipot não deixavam nem um quarto vazio. Achámos, pois, de toda a vantagem instalar-nos, por algum tempo, em casa de minha mãe. A lembrança da dureza que usáramos para com ela não nos causava embaraços. Consentíamos em viver junto dela, na medida em que nos conviesse.
Não se mostrou triunfante. A casa era nossa, dizia. Podíamos receber quem nós quiséssemos, que ela apagar-se-ia e nem sequer a veriam.: "Sei muito bem desaparecer". E acrescentava ainda: "Estou todo o tempo fora". E na verdade, ocupava-se muito das vinhas, da adega, do galinheiro, da roupa. Depois das refeições, subia um instante ao quarto e desculpava-se quando nos encontrava no salão. Batia, antes de entrar, e tive de a advertir que não era coisa que se fizesse. Chegou até a oferecer-te o governo da casa; mas tu não lhe causaste o desgosto de aceitar. Também, não aspiravas muito a esse governo. Ah! a tua condescendência do trato com minha mãe! E a humilde gratidão que ela te mostrava!
Não me afastavas dela tanto quanto ela o receava. Eu mostrava-me mesmo mais atencioso que antes do casamento. As nossas gargalhadas deixavam-na pasmada: aquele jovem marido tão feliz, era, não há dúvida, seu filho, tanto tempo fechado e duro. Não me soubera compreender, pensava ela; eu era-lhe muito superior. E tu reparavas o mal que ela fizera.
Recordo ainda a sua admiração quando tu esborratavas de tinta biombos e tamboretes, quando cantavas ou tocavas piano, vindo a cair sempre nos mesmos compassos dum "romance sem palavras" de Mendelssohn. Raparigas, tuas amigas, vinham às vezes visitar-te. Tu observavas-lhes: "Vão ver a minha sogra, que é típica; um modelo de dama do campo de que já não restam exemplares". Achavas-lhe estilo. Usava com os criados, um dialecto provinciano que te parecia de bom tom. Chegavas até a mostrar o daguerreotipo onde minha mãe, com quinze anos, usava ainda o lenço regional. Sabias uma cantiga sobre as velhas famílias camponesas "mais nobres que muitos nobres..." Como tu eras afectada naquele tempo! Foi a maternidade que te restituiu à natureza.
Recuo sempre diante da narrativa daquela noite. O calor era tanto que as persianas ficaram abertas, apesar do teu horror pelos morcegos. Ainda que nós sabíamos perfeitamente que era o agitar da folhagem duma tília que estava encostada à casa, parecia-nos sempre que alguém respirava ao fundo do quarto. Às vezes, o vento imitava -na folhagem o ruído dum aguaceiro. A lua declinando no horizonte, iluminava o sobrado e os pálidos fantasmas da nossa roupa dispersa. Nem sequer se ouvia já o murmurar dos prados, pois o murmúrio se tornara silêncio. Tu dizias: "Vamos a dormir... É preciso dormir..." À volta, porém, do nosso torpor vagueava uma sombra. Do fundo do abismo, não sabíamos sozinhos. Surgia, também, esse Rodolfo desconhecido, que eu despertava no teu coração, quando os meus braços se fechavam sobre ti. Quando os reabria, adivinhávamos a sua presença. Eu não queria sofrer, tinha medo do sofrimento. O instinto de conservação trabalha também para a felicidade. Eu bem via que não era preciso interrogar-te e deixava que esse nome rebentasse como bolha de água à superfície da nossa vida. O que jazia sob as águas adormecidas, esse princípio de corrupção, esse segredo pútrido, nada fiz para o arrancar à vasa. Mas tu, infeliz, sentias a necessidade de desabafar, por palavras, essa paixão frustrada que ficara desempregada. Bastou só uma pergunta que me escapou:
- "Mas, afinal, quem era esse Rodolfo?
- "Talvez eu te devesse ter dito certas coisas... Socega, que não é nada de grave".
Falavas em voz baixa e precipitadamente. Já não descansavas a cabeça no meu ombro. Mas já o espaço ínfimo que nos separava se tornara intransponível.
Filho duma austríaca e dum grande industrial do Norte... Tinha-lo conhecido em Aix, onde acompanharas tua avó, no ano anterior ao nosso encontro em Luchon, quando ele chegava de Cambridge. Não me traçaste o seu retrato, mas eu atribuí-lhe logo todos os dotes que me faltavam a mim. O luar iluminava, sobre a coberta, a minha mão, grande e nodosa, mão de camponês, de unhas curtas. Não houve nada de mal, ainda que ele era, dizias tu, menos respeitoso do que eu. A minha memória não me guardou nada de preciso sobre as tuas confissões. Que me importavam elas? Não era disso que se tratava. Se tu não o tivesses amado, ter-me-ia conformado com algum desses deslises onde sossobra quase sem querer a pureza duma criança. Mas já me interrogava a mim mesmo: "Mas como me pôde ela amar, se nem sequer um ano passara depois desse grande amor?" O terror gelava-me: "Tudo era falso; dizia-me eu a mim mesmo, ela mentiu-me, e eu perdia a liberdade do amor. Como pudera eu acreditar que uma rapariga me amasse, se eu era aquele a quem se não pode amar!"
As estrelas de alva palpitavam ainda. Um melro acordou. A brisa que nós ouvíamos na folhagem, antes de a sentirmos, agitava as cortinas e refrescava-me os olhos como no tempo da minha felicidade. Havia dez minutos que ainda ela existia, - e agora já eu pensava: "O tempo da minha felicidade..." Fiz-te uma pergunta:
"Foi ele que te não quis?" Tu respingaste logo, recordo-me bem. Tenho ainda nos ouvidos esse tom especial que tomavas quando estava em jogo a tua vaidade. Muito pelo contrário, ele estava muito entusiasmado, e sentia-se orgulhoso em casar com uma Fondaudège. Mas os pais souberam que dois de teus irmãos tinham morrido tuberculosos na adolescência. Como também ele tinha fraca saúde a família foi inflexível.
Eu interrogava-te com calma. B nada te advertiu do que estavas em vias de destruir.
"Foi tudo providencial para nós dois, meu amor. Bem sabes como os meus pais são orgulhosos, e até mesmo um pouco ridículos. Posso afiançar-te que para a nossa felicidade ser possível foi preciso que aquele casamento falhado, lhes tivesse dado volta à cabeça. Não é mistério para ti a importância que se liga, no nosso mundo, a tudo o que diz respeito à saúde, quando se trata de casamento. A mamã já andava a pensar que toda a cidade conhecia a minha aventura e que ninguém queria casar comigo. Tinha a ideia fixa que eu ficava para tia. Que vida ela me fez levar durante alguns meses! Como se o meu desgosto me não chegasse... Acabou por nos convencer ao papá e a mim que eu já não era "casável!".
Eu retinha toda a palavra que pudesse levantar desconfiança. E tu ias repetindo que tudo tinha sido providencial para o nosso amor.
"Amei-te logo, assim que te vi. Tínhamos rezado muito em Lourdes antes de irmos para Luchon. E apenas te encontrei senti logo que as nossas orações tinham sido ouvidas".
Tu, nem ao de leve pressentias a irritação que tais palavras despertavam em mim. Os vossos adversários fazem secretamente da religião uma ideia muito mais elevada do que vós pensais, ideia de que nem eles mesmo se dão conta. Se não fosse assim, porque se incomodariam eles ao ver que vós a praticais tão indignamente? A não ser que vos pareça a vós muito simples pedir mesmo os bens da terra a esse Deus que vós chamais Pai?... Mas tudo isso que importa? De todas as tuas conversas se tirava a conclusão que tu e a tua família se tinham lançado avidamente sobre o primeiro- caracol que encontraram.
Até aquele momento não tivera consciência de quanto o nosso casamento fora desigual. Foi preciso que a tua mãe estivesse atacada de loucura e esse estado se comunicasse a teu pai e a ti. Disseste-me que os Philipot tinham chegado a ameaçar-te de cortar relações. Sim, ele achou, enquanto nós troçávamos desse imbecil fizera ele tudo para decidir os Fondaudège a uma ruptura.
"Mas eu amava-te, meu amor, e foi ele quem pagou as custas".
Várias vezes me repetiste que não tinhas pena nenhuma. E eu deixava-te falar, contendo a respiração. Afirmavas que nunca terias sido feliz com esse tal Rodolfo. Era bonito demais, não amava, deixava-se amar. Que nem te importava, mesmo, saber com quem ele tinha casado.
Mas não reparavas que a tua voz mudava de tom quando falavas nele, - menos aguda, com uma espécie de tremor de arrulho, como se antigos suspiros ficassem suspensos no teu peito e só o nome de Rodolfo os libertasse.
Não te faria feliz, porque era belo, encantador, amado. Isto queria dizer que eu seria a tua alegria, graças ao meu rosto desfavorecido a esse acolhimento azedo que afastava os corações. Tu dizias que ele era daquele género insuportável dos rapazes que estiveram em Cambridge, e imitam as maneiras inglesas... Preferirias, talvez, um marido incapaz de escolher a fazenda dum fato, de dar o nó na gravata, - que detestava os desportos, e que não praticava aquela frivolidade sábia que é a arte de afastar as conversações sérias, as confissões, as confidências, a ciência, enfim, de viver feliz e com graça? Não, tu caíste sobre este desgraçado porque ele se encontrava ali, naquele ano e tua mãe, no declinar da idade, se persuadia que tu não eras "casável", - foi porque tu não querias nem podias ficar solteira, nem mais seis meses, e porque ele tinha bastante dinheiro para desculpa suficiente aos olhos do mundo...
Eu retinha a respiração precipitada, apertava os punhos e mordia os beiços. Quando hoje, me acontece alguma vez, sentir-me oprimido a ponto de não poder já suportar o coração nem o corpo, o pensamento vai-me para esse rapaz de 1885, para esse esposo de vinte e três anos, com os braços cruzados sobre o peito, a sufocar, enraivecido, o seu amor juvenil.
Tremia. Tu reparaste e interrompeste:
"Tens frio, Luís?"
Respondi que não era nada. Um arrepio...
"Não vais a ter ciúmes, com certeza? Seria uma grande tolice..."
Não menti quando te jurei que, em mim, não havia o mais leve sentimento de ciúme. Como poderias tu ter compreendido que o drama se representava para além de todo o ciúme?
Bem longe de suspeitares a que profundidade eu fora atingido, o meu silêncio, contudo, inquietava-te. A tua mão tateou-me a fronte e acariciou-me o rosto. Ainda que ele não estava molhado de lágrimas, talvez essa mão não reconhecesse as feições familiares nessa face dura, de maxilas cerradas. Tiveste medo. Para acender a vela, inclinaste-te sobre mim, sem conseguires acender o fósforo. Eu sufocava sob o teu peso odioso. "Mas, que tens tu? Não estejas assim calado, que até me metes medo". Fingi admirar-me. afirmei-te que não havia nada que te pudesse inquietar. "Mas que tolice esta de me meter medo agora. Bem, então apago a luz, e toca a dormir".
Não tornaste a falar. E eu pus-me a ver nascer aquele novo dia da minha vida nova. Nos beirais, gorgeavam andorinhas. Um homem atravessava o pátio arrastando os tamancos. Tudo o que ouvi então, oiço-o ainda agora, passados quarenta e cinco anos: os galos, as campainhas, um comboio de mercadorias no viaduto; tudo o que respirava então, respiro-o ainda: esse perfume que eu amo, esse aroma de cinza no vento quando houve do lado do mar charnecas incendiadas. De repente, perguntei-te: "Isa! Naquela noite em que tu desataste a chorar quando estávamos sentados no banco dos passeios de Superbagnères, foi por causa dele?"
Como não respondeste, agarrei-te no braço, que tu desprendeste com um murmúrio quase animal. Voltaste-te de lado. Tinhas o cabelo solto Arrefecida pela frescura da manhã, puxaras a roupa, em desordem, sobre o corpo retraído, ennovelado como dormem os animais ainda pequenos. Para que iria eu acordar-te desse sono de criança? O que eu queria que tu me dissesses, não o sabia já?
Levantei-me sem barulho, fui descalço até ao espelho do armário e olhei-me como se fosse outro, ou antes como se tornasse a ser o que era antes: o homem que não tinha sido amado, aquele por quem no mundo ninguém sofrera. Tive pena da minha juventude; passei a minha grande mão de camponês, ao longo da face por barbear, e já sombreada por uma barba áspera de reflexos ruivos.
Vesti-me. Era silêncio, e desci ao jardim. Minha mãe já andava na álea das rosas, pois levantava-se antes dos criados para arejar a casa.
- "Vens aproveitar o fresco?" - disse ela.
E mostrando-me o nevoeiro que cobria a planície:
"Hoje há-de estar um calor sufocante. Às oito horas vou fechar tudo".
Beijei-a com mais ternura que de costume. Ela disse-me a meia voz: "Querido filho..." O meu coração (admiras-te que eu fale de coração?), o meu coração esteve quase a estalar. Só me vinham à boca palavras hesitantes... Por onde começar? Que teria ela compreendido? O silêncio é uma facilidade à qual sempre sucumbo.
Desci para o terraço. Árvores de fruto raquíticas, desenhavam-se vagamente por cima das vinhas. A espalda das colinas levantava a bruma, rasgando-a. Surgia do nevoeiro um campanário; e depois a igreja, por sua vez, saía dele como um corpo vivo. Tu pensas que eu não compreendo nada dessas coisas... Mas eu sentia, naquele momento, que uma criatura fracassada como eu era, pode procurar a razão e o sentido da sua derrota; que é possível que esta derrota contenha um significado, pois os acontecimentos, sobretudo na ordem do coração, são talvez mensageiros cujo segredo é preciso interpretar... Sim, fui capaz, em certas horas da minha vida, de entrever essas coisas que deveriam aproximar-me de ti.
Naquela manhã, a emoção foi apenas de alguns segundos. Vejo-me ainda subindo para casa. Ainda não eram oito horas, e já o sol abrasava. Tu estavas à janela, de cabeça inclinada, segurando o cabelo com uma das mãos, e penteando-o com a outra. Não me vias. Permaneci um instante com a cabeça levantada para ti, - possuído dum ódio de que, depois de tantos anos, sinto ainda na boca o gosto e o amargor. Corri até ao escritório, abri a gaveta fechada à chave; tirei de lá um lencinho amarrotado, o mesmo que servira para te limpar as lágrimas na noite de Superbagnères, e que, pobre idiota, eu tinha então apertado ao peito. Agarrei nele, atei-lhe uma pedra, como teria feito a um cão vivo que quisesse afogar, e atirei-o para esse lameiro que entre nós se chama "o charco".
Abriu-se então a era do grande silêncio que há quarenta anos não foi quebrado. Exteriormente, nada se percebia dessa derrocada. Tudo continuou como no tempo da minha felicidade. Picámos unidos, pela carne, mas o fantasma de Rodolfo já não surgia na nossa união, e tu nunca mais pronunciaste o nome fatídico. Ocorrera ao teu chamamento, flutuara em redor do nosso leito, realizara a sua obra de destruição. Agora, só restava o silêncio, e esperar, com o tempo, o seguimento dos efeitos- e o encadear das consequências.
Talvez tivesses pressentido o mal que fizeras em falar. Mas não pensaste que fosse muito grave; simplesmente, que o mais prudente seria afastar esse nome das nossas conversas. Não sei se notaste que, à noite, já não conversávamos como fazíamos ao princípio. Tinham acabado as nossas conversas intermináveis. Medíamos as palavras, e cada um de nós tomava as suas precauções. Quando acordava de noite, o sofrimento era o meu despertador. Sentia-me preso a ti, como raposa na armadilha. Punha-me a imaginar o que não teríamos dito se eu te tivesse sacudido brutalmente, lançando-te fora da cama. Talvez tivesses gritado:- "Não, não te menti, porque eu amava-te..."- "Sim, como mal menor; e é sempre fácil recorrer à perturbação sensível, que nada significa, para fazer acreditar a alguém que se lhe tem amor. Eu não era nenhum monstro - a primeira rapariga que aparecesse e me tivesse amado, teria feito de mim tudo quanto quisesse". Quantas vezes eu gemia nas trevas, sem tu acordares.
A tua primeira gravidez tornou, aliás, toda a explicação inútil, e mudou, pouco a pouco, as nossas relações. Declarara-se antes das vindimas. Voltámos para a cidade, mas tiveste mau sucesso, e foste obrigada a ficar de cama algumas semanas. Na primavera, ficaste novamente grávida, precisavas de muitos cuidados. Começaram, então, esses anos de gestações, de acidentes, de partos, que me forneceram mais pretextos do que eu precisava para me afastar de ti. Entrei numa vida de desordens secretas, - muito secretas, porque eu começava a advogar muito, "a coisa corria", como dizia minha mãe, e tratava-se, para mim, de salvar as aparências. Tinha as minhas horas e os meus hábitos. A vida, numa -cidade da província, desenvolve, no devasso, o instinto de manha da caça. Socega, Isa, que não irei falar-te do que te causa tanto horror. Não receies, nem de longe, a Tortura desse inferno onde eu descia, quase todos os dias.
Foste tu que nele me lançaste, tu, que dele me tinhas tirado.
Se eu fosse menos prudente, terias visto as suas labaredas. Quando do nascimento de Humberto, traiu-se a tua verdadeira natureza; eras mãe, nada mais do que mãe. Desviou-se de mim a tua atenção. Já nem me vias sequer; a expressão exacta da verdade é que não tinhas olhos senão para os filhos. Fecundando-te, tinha realizado tudo o que tu esperavas de mim. Enquanto as crianças foram pequenas larvas que mal me interessavam, não surgiu entre nós nenhum conflito. Encontrávamo-nos, apenas nesses gestos rituais onde os corpos agem por hábito - mas onde homem e mulher vivem, cada um, muito longe da sua própria carne.
Só começaste a notar a minha existência, quando, por uma vez, comecei a rondar em volta dos pequenos. Começaste a odiar-me, somente quando eu pretendi ter direitos sobre eles. Alegra-te com a confissão que me atrevo a fazer-te. Não era o instinto paternal que me impelia. Logo de princípio, tive ciúme dessa paixão que eles despertaram em ti. Sim, se os disputei, foi para te castigar. A mim próprio me dava altas razões, à frente das quais punha as exigências do dever. Não queria que nenhuma mulher fanática falseasse o espírito de meus filhos. Eram essas as razões que eu apresentava. Mas, no fundo, não era disso que se tratava.
Acabarei eu, alguma vez, esta história? Comecei-a para ti, e parece-me já inverosímil que tu possas seguir-me por mais tempo. Pensando bem., talvez seja para mim mesmo que eu a escrevo. Velho advogado, ponho em ordem os documentos, classifico as peças da minha vida, deste processo perdido. Estes sinos... Amanhã é a Páscoa. Irei lá abaixo, como te prometi, em honra deste santo dia. "Os filhos queixam-se de nunca te verem", dizias-me tu esta manhã. A nossa Genoveva estava contigo, de pé, junto à minha cama. Tu saíste, para que nós ficássemos sozinhos os dois; ela tinha qualquer coisa a pedir-me. Já vos tinha ouvido bichanar no corredor. Dizias tu a Genoveva: - "É melhor seres tu a primeira a falar..." com certeza que se trata do genro, de Phili, essa menina. Pui bastante forte para desviar a conversa, e impedir que se pusesse a questão! Genoveva saiu sem me ter podido dizer nada. Sei muito bem o que ela quer. Ouvi tudo, um destes dias: quando a janela do salão está aberta, por baixo da minha, basta apenas debruçar-me um pouco. Trata-se de adiantar os capitais de que Phili precisa para comprar uma cota de sócio de cambista. Uma colocação como outra qualquer, está visto... Como se eu não pressentisse o perigo, e como se não fosse preciso, agora mais do que nunca, aferrolhar o dinheiro a sete chaves... Se soubessem tudo quanto eu realizei o mês passado, quando pressenti a baixa...
Foram todos para as Vésperas. A Páscoa esvaziou a casa e os campos. Fiquei sozinho, velho Fausto, separado da alegria do mundo pela velhice atroz. Não sabem o que é a velhice. Durante o almoço, estavam todos atentos a recolher o que caía dos meus lábios no tocante à Bolsa e aos negócios. Eu falava sobretudo para Humberto, para que ele se detenha, se ainda for tempo. com que ar ansioso ele me ouvia... Ora aí está um que não esconde o jogo. Deixava vazio o prato que tu lhe enchias com essa obstinação das pobres mães, que vêem um filho devorado por alguma ralação, e o fazem comer à força, como se já isso resolvesse um pouco do problema, e fosse algum ganho. Ele aborrecia-se contigo, como antigamente eu me aborrecia com a minha mãe.
E então a solicitude do Phili em me encher o copo? e o falso interesse da mulher, a Janine: "Avô, faz muito mal em fumar. Mesmo um cigarro só já é demais. Tem a certeza que esse café é de cevada?" Pobre pequena, representa mal, com aquela voz de falsete. Só o tom de voz, já a denuncia completamente. Tu, quando eras nova, também eras afectada. Mas quando foste mãe pela primeira vez voltaste ao natural. Janine, essa será afectada até morrer, uma senhora que sabe tudo, repete tudo o que viu e lhe pareceu distinto, dá opiniões sobre tudo e não compreende nada. Como é que Phili, a naturalidade em pessoa, um verdadeiro descarado, suporta viver com aquela pequena idiota?
Mas não; tudo é falso nela, excepto a paixão. Não representa mal, porque para ela nada conta a não ser o seu grande amor.
Depois do almoço, estávamos todos sentados no patamar. Junine e Phili olhavam para Genoveva, sua mãe, com. ar suplicante; esta, por sua vez, voltou-se para ti. Fizeste um sinal negativo imperceptível. Então, Genoveva levantou-se e perguntou-me:
- Papá, quer dar uma volta comigo? Como vós todos tendes medo de mim! Tive
pena dela; ainda que a minha primeira resolução fosse de não me mexer, levantei-me e tomei-lhe o braço. Demos uma volta ao prado, enquanto a família nos ia observando do patamar. Genoveva entrou imediatamente na questão:
- Era de Phili que lhe queria falar.
Tremia toda. É terrível causar medo aos filhos. Mas pensais vós que se pode deixar de ter um ar implacável, aos sessenta e oito anos? Nesta idade, a expressão das feições já não muda. A alma desanima, quando não pode exprimir-se exteriormente... Genoveva despachava apressadamente o que tinha preparado. Tratava-se efectivamente da cota de cambista. Mas insistiu precisamente sobre o que mais me podia aborrecer: pelo que ela dizia, a ociosidade de Phili, comprometia o futuro do casal, que já não ia bem. Respondi-lhe que para um rapaz como era aquele seu genro, essa cota de cambista não serviria senão para arranjar pretextos. Defendeu-o
Que toda a gente gostava dele. "Se Janine não era severa para com ele, os outros também o não podiam ser..." Protestei, que não o estava a julgar, nem o condenava, e que a carreira amorosa desse senhor, não me interessava absolutamente para nada.
- Se ele não se interessa por mim porque me hei-de eu interessar por ele?
-Ele admira-o muito, pai... Esta imprudente mentira serviu para eu colocar um dardo que tinha reservado:
- O que não impede, minha filha, que o teu Phili me chame sempre o "velho crocodilo". Não protestes, pois muitas vezes o tenho ouvido, nas minhas costas... Já agora, não o quero desmentir: crocodilo sou, crocodilo ficarei. Dum velho crocodilo não há nada a esperar, nada - a não ser a morte. E mesmo morto - tive eu a imprudência de acrescentar - mesmo morto, ainda é capaz de fazer das suas. (Como eu estou arrependido do que disse, e de lhe ter metido a pedra no sapato).
Genoveva estava aterrada, e protestava, imaginando que eu ligava grande importância à injúria dessa alcunha. O que me é odioso é a juventude de Phili. Como poderia ela imaginar o que representa aos olhos dum velho, odiado e desesperado, esse rapaz triunfante, que se fartou, desde a adolescência, daquilo que eu não saboreei nem uma única vez no meio século de vida? Detesto e odeio a gente nova Este, ainda mais que os outros. Como um gato que entra silenciosamente pela janela, assim ele penetrou, com pés de lã, era minha "asa,, atraído pelo cheiro. A minha neta, não levava grande dote, mas em. compensação, tinha magníficas "esperanças". As esperanças dos nossos filhos! Para as realizarem têm de passar sobre os nossos corpos.
Quando vi Genoveva a soluçar e a enxugar os olhos, disse-lhe em tom insinuante:
- Mas tu tens marido, um marido que é negociante de licores. O Alfredo pode perfeitamente arranjar uma colocação para o genro. Porque razão havia eu de ser mais generoso do que vocês?
Ela mudou de tom para me falar do pobre Alfredo, mas com que desdém e aborrecimento! Pelo que ela dizia, era um acanhado, que dia a dia reduzia os negócios. A casa, ainda há pouco tão importante, hoje não chegava para dois.
Felicitei-a por ter um marido desse feitio: quando a tempestade se aproxima, é preciso amainar as velas. O futuro é daqueles que, como o Alfredo, se não arriscam. Hoje, a falta de envergadura é a primeira qualidade nos negócios. Julgou que eu estava a brincar, mas penso assim mesmo - eu que tenho o meu dinheiro aferrolhado, e que nem sequer corro o risco da Caixa Económica.
Ao voltarmos para casa, Genoveva não se atrevia a dizer palavra. Já me não dava o braço. A família, sentada em círculo, via-nos vir, e certamente interpretava sinais nefastos. A nossa chegada interrompia, evidentemente, uma discussão entre a família de Humberto e a de Genoveva. Oh! que renhida batalha à volta do meu tesouro, se eu consentisse em o largar! Só Phili estava de pé. O vento agitava-lhe os cabelos rebeldes. Trazia uma camisa aberta, de mangas curtas. Como eu aborreço os rapazes de hoje e as raparigas atletas! Suas faces de criança puseram-se vermelhas quando Janine perguntou tolamente:-Então! Falaram muito?; eu respondi suavemente: - Falámos dum velho crocodilo...
Ainda uma vez, não é por essa injúria que eu o odeio. Não sabem o que é a velhice. Não podeis imaginar este suplício: nada ter tido na vida, e nada esperar da morte. Que nada exista para além do mundo, que não haja nenhuma explicação, que a palavra do enigma nos não seja dada...
Tu, tu não sofreste o que eu sofri, nem sofrerás o que eu sofro. Os filhos não esperam a tua morte. Amam-te à sua maneira, estimam-te. Tomaram logo o teu partido. E eu amava-os. Genoveva, essa mulher pesada, de quarenta anos, que, há pouco ainda, me queria extorquir quatrocentas notas de mil francos para o patife do genro, estou a vê-la ainda criança, sobre os joelhos. Assim que tu ma vias nos braços chamava-la logo... Estou a ver que não chego ao fim desta confissão, se continuar a misturar assim o presente com o passado. Vamos a ver se consigo introduzir um pouco de ordem.
Não me parece que te tenha começado a odiar logo desde o primeiro ano que se seguiu à noite desastrosa. O meu ódio nasceu pouco a pouco, à medida que ia compreendendo melhor a tua indiferença a meu respeito, e como nada existia para ti, além desses pequenos seres absorventes que choravam e gritavam. Nem sequer notaste que, ainda antes dos trinta anos, eu me tornara um advogado do cível muito procurado, e saudado já como mestre neste tribunal, o mais ilustre da França depois do de Paris. A partir do caso Villenave (1893) revelei-me também como um grande advogado de causas de crime (é muito raro notabilizar-se nos dois géneros) e foste tu a única pessoa que não reparou na fama universal da minha advocacia. Foi, também, o ano em que a nossa desinteligência se transformou em guerra aberta.
Esse célebre processo Villenave, se consagrou o meu triunfo, apertou o nó que me asfixiava; talvez ainda me tivesse ficado alguma esperança; mas esse caso trouxe-me a prova de que eu não existia a teus olhos.
Estes Villenave - lembras-te tu ao menos da sua história? - depois de vinte anos de casados, amavam-se com um amor que se tornara proverbial. Dizia-se: "Unidos como os Villenave".. Viviam, com um filho único de quinze anos, no seu palacete de Oriioti; às portas da cidade, recebiam pouco, bastando-se um ao outro: "Um amor como só se vê nos livros", dizia tua mãe, numa das suas frases feitas, de que a neta Genoveva herdou o segredo. Ia jurar que já esqueceste todo esse drama. Se eu to for a contar, até vais troçar de mim, como quando eu, à mesa, recordava os meus exames e os meus concursos... Mas não faz mal! Uma manhã, o criado que tratava dos aposentos do rés-do-chão, ouve um tiro de revólver e um grito de aflição: acudiu; o quarto dos amos estava fechado. Ouviu falar em voz baixa, ruído de móveis que se mudam, passos precipitados no toucador. Passado um instante, como ele continuasse a dar ao fecho, a porta abriu-se. Villenave estava estendido na cama, em camisa, coberto de sangue. A senhora, de cabelos destrançados, e em roupão, conservava-se de pé, encostada à cama, com um revólver na mão. "Fui eu que feri o senhor Villenave, disse ela; vá chamar o médico, o cirurgião, e o comissário da polícia. Daqui não me mexo". Nada mais se pôde obter dela senão esta confissão: "Atirei sobre o meu marido", o que foi confirmado pelo senhor Villenave, quando pôde falar. Também ele se recusou a dar qualquer outra indicação. A acusada não quis escolher advogado.
Genro dum dos seus amigos, fui eu encarregado da sua defesa, mas, das minhas visitas diárias à prisão, nada consegui daquela obstinada. Corriam na cidade, a seu respeito, as histórias mais absurdas; quanto a mim, desde o primeiro dia, não duvidei da sua inocência: era ela que se inculpava a si própria; e o marido, que a amava, consentia que ela se acusasse. Oh! o faro dos homens que não são amados, para despistar a paixão nos outros! O amor conjugal dominava absolutamente esta mulher. Não fora ela que atirara sobre o marido. Teria feito baluarte do próprio corpo, para o defender contra qualquer apaixonado expulso? Mas desde a véspera, ninguém entrara em casa. Nem havia ninguém que habitualmente frequentasse aquela casa... Enfim, não te vou agora trazer para aqui toda aquela velha história.
Até à manhã do dia em que devia defendê-la, decidira conservar-me em atitude negativa, e mostrar somente que a senhora Villenave não cometera o crime de que era acusada. Foi, no último instante, o depoimento de Ivo, seu filho: ou antes (foi tão insignificante que não trouxe luz nenhuma), o olhar suplicante e imperioso que sua mãe lhe lançava, até que ele deixou o lugar das testemunhas, e aquela espécie de alívio que ela então manifestou, foi isso o que, de repente, me rasgou o véu.- denunciei o filho, esse adolescente doentio, ciumento de um pai demasiadamente amado. Lancei-me, com lógica apaixonada, nesse improviso, hoje, célebre, onde o professor F., segundo a sua própria confissão, encontrou, em germe, o essencial do seu sistema, e que renovou, ao mesmo tempo, a psicologia da adolescência e a terapêutica das suas nevroses.
Se lembro tudo isto, minha querida Isa, não é que ceda à esperança de suscitar, depois de quarenta anos, uma admiração que não sentiste no momento da minha vitória, quando os jornais dos dois mundos publicaram o meu retrato.
Mas, no mesmo tempo em que a tua indiferença, nesta hora solene da minha carreira, me dava a medida do meu abandono e da minha solidão, nesse tempo tivera eu, durante semanas, debaixo dos olhos, entre as quatro paredes duma prisão, essa mulher, que se sacrificava menos para salvar o próprio filho, que o filho do seu marido, o herdeiro do seu nome. Fora ele, a vítima, que suplicara: "Acusa-te tu..." E ela levara o amor até esse extremo de fazer acreditar ao mundo, que era criminosa, que assassinara o homem a quem unicamente amava. Fora o amor conjugal, e não o amor maternal, que a levara a tal excesso... (E o tempo bem o demonstrou: separou-se do filho, e sob diversos pretextos, viveu sempre afastada dele). Também eu teria podido ser um homem amado como o era Villenave. Vi-o e tratei bastante com ele, a quando do processo. Que tinha ele a mais do que eu? De porte distinto e elegante, sem dúvida, mas não devia ser muito inteligente. Sua atitude hostil a meu respeito, depois do processo, provou-o bem claramente. E eu, eu possuía uma espécie de génio. Se, naquele momento, tivesse tido uma mulher que me amasse, a que alturas não teria eu subido? Sozinho, não se pode ter fé em si mesmo. Precisamos de alguma testemunha da nossa força: alguém que marque as jogadas, que conte os pontos, que nos coroe no dia da recompensa -como outrora, na distribuição de prémios, carregado de livros, eu procurava, com os olhos, minha mãe, entre a multidão e, ao som duma música militar, ela me colocava os loiros doirados sobre os cabelos cortados de há pouco.
Na época do processo Villenave, minha mãe começou a decair. Foi pouco a pouco, que dei por isso; o interesse que lhe merecia um cãozito preto, que ladrava furiosamente à minha aproximação, foi o primeiro sinal da sua decadência. Nas minhas visitas, não se falava senão desse animal. Já se não importava com o que me dizia respeito.
Aliás, minha mãe não teria podido substituir o amor que me teria salvado, neste momento da minha existência. O seu vício que era o demasiado amor do dinheiro, roubara-o eu; tinha essa paixão no sangue. Ela teria feito todos os esforços para me conservar numa profissão, onde, como ela dizia, se "ganhava à grande". Quando as letras me atraíam, quando eu era solicitado pelos jornais e por todas as grandes revistas, quando, nas eleições, os partidos da esquerda me ofereciam a candidatura de La Bastide (aquele que aceitou em meu lugar, foi eleito sem dificuldade) resisti à minha ambição, porque eu não queria renunciar a "ganhar à grande".
Pira esse também o teu desejo, e deste-me a entender que nunca deixarias a província. Mulher que me tivesse amado teria amado também a minha glória. Ter-me-ia ensinado que a arte de viver consiste em. sacrificar uma paixão inferior a uma paixão superior. Os jornalistas imbecis que fazem menção de se indignar porque tal advogado aproveita o ser deputado ou ministro para respigar alguns insignificantes rendimentos, fariam melhor se admirassem o procedimento daqueles que souberam estabelecer entre as suas paixões uma hierarquia inteligente, e que preferiram a glória política, aos negócios mais rendosos. A tara de que tu me terias curado se me tivesses amado, era a de nada pôr acima do ganho imediato, a de ser incapaz de largar a pequena e medíocre presa dos honorários pela sombra do poder; porque não há sombra" sem realidade; a sombra é já uma realidade. Mas quê! A mim só me restava a consolação de "ganhar à grande" como o nrercieiro da esquina.
E is aí o que me resta: o que ganhei durante esses anos terríveis, esse dinheiro de que vós tendes a loucura de querer que eu me desaposse. Ah! Só a ideia que depois da minha morte vos apossareis dele já me é um pesadelo insuportável. Quando principiei a escrever, disse-te que as primeiras disposições que eu tomara tinham sido de não vos deixar nada. Deixei-te perceber que renunciara a esta vingança... Mas era desconhecer este movimento de maré que é o do ódio no meu coração. Ora se afasta e eu me comovo... ora torna a voltar, e essa onda lamacenta volta a cobrir-me por completo. Desde hoje, desde este dia de Páscoa, depois desta ofensiva para me desapossarem em proveito do vosso Phili, quando voltei a ver essa matilha Familiar onde ninguém faltava, sentada em círculo diante da porta, a espiar-me, fiquei obsidiado pela visão das partilhas - dessas partilhas que vos hão-de lançar uns contra os outros: porque vós brigareis, como cães, à volta das minhas terras, à volta dos meus títulos. As terras serão para vós, mas as acções já não existem. Aquelas de que te falava, na primeira página desta carta, vendi-as a semana passada, na alta da bolsa: desde então, baixam todos os dias. Todos os bancos soçobram quando eu os abandono; nunca me engano. Também tereis os milhões líquidos, se eu deixar. Há dias em que defendo que não ficareis nem com um cêntimo...
Estou a ouvir o vosso rebanho que sobe a escada bichanando. Parais; falais, sem receio que eu acorde (é coisa assente que estou surdo); vejo, por debaixo da porta, o clarão das vossas velas. Reconheço o falsete de Phili (dir-se-ia que ainda anda a mudar de voz) e de repente, risos abafados, cacarejar de mulheres novas. Tu ralhas, e vais dizer-lhes : "Ele ainda não está a dormir..." Aproximas-te da porta, escutas, espreitas pela fechadura: a luz denuncia-me. Voltas-te para a matilha; e com certeza que lhe dizes: "Ele ainda está acordado, está a ouvir..."
Afastam-se no bico dos pés, fazendo ranger os degraus da escada; uma a uma, fecham-se as portas. Em noite de Páscoa, a casa está cheia de casais. E eu, eu poderia ser o tronco vivo desses ramos novos. A maior parte dos pais são amados. Mas tu eras minha inimiga, e meus filhos passaram-se para o inimigo.
É desta guerra que vou agora tratar. Já não tenho força para escrever. E, contudo, detesto deitar-me, estenderme, mesmo quando o estado do meu coração mo permite. Na minha idade, o sono atrai a atenção da morte, e é preciso não fazer menção de estar morto. Enquanto eu estiver de pé, parece-me que a morte não virá. O que mais receio nela, será a angústia física e a aflição do último arranque? Não, mas é que ela é o que não existe, o que não se pode exprimir senão pelo sinal .
Enquanto os nossos três filhos permaneceram nos limbos da primeira infância, a nossa inimizade manteve-se velada; mas a atmosfera entre nós era pesada. A tua indiferença por mim, o teu desinteresse por tudo o que me dizia respeito, impediam-te de sofreres com isso, e mesmo de o sentires. Aliás, eu pouco tempo estava em casa. Almoçava sozinho às onze horas, para chegar ao tribunal antes do meio dia. Os negócios prendiam-me inteiramente, e o pouco tempo de que poderia dispor para a família, podes adivinhar aonde eu o gastava. Porquê esta devassidão, terrivelmente simples, despojada de tudo o que lhe serve habitualmente de desculpa, reduzida ao teu puro horror, sem sombra de sentimento, sem o menor disfarce de ternura? Teria podido, muito facilmente, ter dessas aventuras que o mundo admira. Um advogado da minha idade, como não teria ele conhecido certas solicitações? Muitas mulheres novas, além do homem de negócios, pretendiam impressionar o homem... Mas eu perdera a fé nas criaturas, ou antes, na possibilidade de poder agradar a alguma. A primeira vista, descobria logo o interesse que animava aquelas de quem sentia a cumplicidade, de quem percebia o chamamento. A ideia preconcebida de que elas procuram todas assegurar uma posição, causava-me arrepios. Porque não confessar que, à certeza trágica de ser alguém que não se ama, se juntava a desconfiança do rico que tem medo de ser enganado, que receia que o explorem? A ti dera-te uma "mensalidade": e tu conhecias-me muito bem, para esperares de mim um cêntimo além da soma fixada,. Mas a "mensalidade" era larga e tu nunca a excedias. Por esse lado não sentia ameaça nenhuma. Mas as outras mulheres! Eu era desses imbecis que se convencem que existem, dum lado, as amantes desinteressadas, e do outro, as sabidas que não procuram senão dinheiro. Como se, na maior parte das mulheres, a inclinação amorosa não andasse a par com a necessidade de serem sustentadas, protegidas, amimadas... Aos sessenta e oito anos, revejo com uma lucidez que, em certas horas, me faria vociferar, tudo o que repeli, não por virtude, mas por desconfiança e por avareza. Algumas ligações esboçadas, duraram pouco, quer o meu espírito desconfiado levasse a mal o mais inocente pedido, quer eu me tornasse odioso, com essas manias que tu conheces muito bem, como aquelas discussões nos restaurantes, ou com os cocheiros, por causa das gorgetas. Gosto de saber antecipadamente o que devo pagar. Gosto que tudo esteja tabelado: atrever-me-ei a confessar esta vergonha? O que me agradava na devassidão, era talvez o ser a preço fixo. com um homem assim, que laço poderia subsistir, entre o desejo do coração e o prazer? Os desejos do coração, pensava eu que nunca poderiam ser cumulados; sufocava-os apenas despontavam. Tornara-me mestre na arte de destruir todo o sentimento, no minuto preciso em que a vontade representa um papel decisivo no amor, onde à beira da paixão, permanecemos ainda livres de nos reaver. Eu ia ao mais simples, -ao que se obtém por um. preço combinado. Detesto que me enganem; mas o que devo, pago. Acusais-me de avarento; isso, porém, não impede que não possa suportar o ter dívidas: pago a pronto pagamento; os fornecedores sabem-no bem, e tecem-me elogios. A ideia de dever a mais pequena quantia torna-se-me insuportável. Foi assim que eu compreendi "o amor": pagando, pagando... Que tristeza!
Não, estou a carregar demasiado os traços, a macular-me de propósito: amei, e fui talvez amado... Em 1909, no declinar da minha juventude. Para quê guardar silêncio sobre esta aventura? Tu conheceste-la, e deves lembrar-te do dia em que puseste as cartas na mesa.
Eu tinha livrado aquela pequena professora de que lhe instaurassem um processo (era acusada de infanticídio). Primeiro, deu-se por gratidão; mas depois... Sim, conheci o amor naquele ano; mas foi a minha insaciabilidade que perdeu tudo.
Não era bastante mantê-la na pobreza, quase na miséria; era preciso que estivesse sempre à minha disposição, que não visse ninguém, que a pudesse tomar, deixar, encontrar, ao sabor dos meus caprichos e durante os meus curtos ócios. Era pertença minha. O meu gosto de possuir, de usar e de abusar, estende-se às criaturas. Sentia necessidade de escravos. Uma única vez julguei encontrar uma vítima à medida da minha exigência. Até os seus olhos eu vigiava... Mas estou a esquecer a minha promessa de não te falar dessas coisas. Ela partiu para Paris, sem poder aguentar mais.
Muitas vezes me repetiste: - "Não somos só nós com quem tu não te podes entender; tu bem vês, Luís, que toda a gente foge de ti e tem medo". Eu bem o sabia... No tribunal fui sempre um isolado. Foi o mais tarde possível, que me elegeram para o Conselho de Ordem. Depois de todos os patetas que eles me preferiram, eu já não queria saber daquilo para nada. Teria eu alguma vez sido ambicioso daquele cargo? Seria preciso receber muito, e fazer gastos de representação. Honras que custam caro; uma coisa não paga a outra. Tu desejava-lo por causa dos filhos. Mas para mim nunca desejaste nada. "Aceita, por causa dos filhos".
O ano que seguiu o nosso casamento, teu pai teve o primeiro ataque, e ficou-nos fechada a casa de Cenon. Depressa, adoptaste Calèse. De mim, o que aceitaste, verdadeiramente, foi a minha terra.
Tomaste raízes na minha região, sem que as nossas raízes se pudessem juntar. Teus filhos, passaram nesta casa, neste jardim, todas as férias. Aqui morreu a nossa filhinha Maria; e em vez de esta morte te dar horror a estes lugares, ligaste ao quarto, onde ela sofreu, um carácter sagrado. Foi aqui, que chocaste a tua ninhada, que lhe trataste as doenças, que velaste junto dos berços, que tiveste de resolver questões com as amas e com as mestras. Foi entre estas macieiras, que em cordas estendidas se enxugavam os vestidinhos da Maria, essas cândidas barrelas. Foi neste salão- que o padre Ardouin agrupava à volta do piano os pequenos, e os fazia cantar coros, que nem sempre eram cânticos, para evitar que eu me zangasse.
Fumando diante da casa, nas noites de verão, ouvia as suas vozes puras, aquela ária de Lulli: "Ai que cês bois, cês rochers, cês fontaines..." Suave felicidade de que eu me sabia excluído, zona de inocência e de sonho que me era interdita. Amor tranquilo, vaga adormecida que vinha morrer a alguns passos do meu rochedo.
Entrava eu no salão, e as vozes calavam-se. A minha aproximação, toda a conversa se interrompia. Genoveva afastava-se com um livro. Só a Maria não tinha medo de mim; chamava-a e ela vinha; tomava-a à força nos braços, mas ela aconchegava-se logo com gosto. Ouvia-lhe bater o coração de passarito. Quando a largava, corria para o jardim... Maria!
Cedo se inquietaram as crianças com a minha falta à Missa do Domingo, e a minha costeleta às sextas-feiras. Mas a luta entre nós dois não conheceu, sob os seus olhares, senão um pequeno número sãe escândalos terríveis, onde a maior parte das vezes fui derrotado. Depois de cada derrota, continuava a guerra subterrânea. Calèse foi dela o teatro, pois na cidade nunca estava convosco. Mas, coincidindo as férias do Poro com as do colégio, Agosto e Setembro aqui nos reuniam.
Lembro-me do dia em que nós nos atacámos de frente, a propósito dum gracejo que eu disse diante de Genoveva que estudava a História Sagrada. Reinvidiquei o meu direito de defender o espírito de meus filhos, e tu opuseste o dever de proteger-lhes a alma. Fui derrotado a primeira vez, consentindo que Humberto fosse confiado aos Jesuítas, e as pequenas às Irmãs do Sagrado Coração. Cedi ao prestígio que guardaram sempre aos meus olhos as tradições da família Fondaudège. Mas fiquei com sede de desforra; também,o que me importava naquele dia, era ter posto o dedo sobre o único assunto em que perdias a linha, que te obrigava a sair da indiferença, e que me valia a tua atenção, ainda que tal atenção fosse hostil. Encontrara um ponto de encontro. Consegui fazer-te vir à estacada. Ainda há pouco, a religião não era para mim senão uma Forma vazia, onde eu moldara as minhas humilhações de camponês enriquecido, desprezado pelos seus camaradas burgueses; enchia-a, agora, com a minha decepção amorosa e com um rancor quase infinito.
A disputa ateou-se durante o almoço (perguntei-te que prazer poderia ter o Ser Eterno em te ver comer trutas em vez de carne cozida). Levantaste-te da mesa. Ainda me lembro do olhar dos nossos filhos. Procurei-te no teu quarto. Tinhas os olhos enxutos, e falaste com a maior calma. Compreendi, naquele dia, que a tua atenção não se desviara da minha vida, tanto quanto eu pensara. Tinhas conhecimento de muitas coisas: o suficiente para conseguir uma separação. "Piquei contigo por causa dos filhos. Mas não hesitarei, se a tua presença for um perigo para a sua alma".
Não, tu não terias hesitado em me deixar, a mim, e ao meu dinheiro. Por mais interesseira que fosses, não havia sacrifício que não fizesses para que permanecesse intacto, nessas crianças, o depósito do Dogma, esse conjunto de hábitos e de fórmulas,- essa loucura.
Eu não possuía ainda aquela carta injuriosa que mais tarde me dirigiste depois da morte de Maria. Eras a mais forte. Aliás, a minha posição seria perigosamente abalada por um processo entre nós: nessa época, e na província, a sociedade não gracejava com esses assuntos. Já corria o rumor que eu era mação; as minhas ideias punham-me à margem da sociedade; e sem o prestígio da tua família o mal ainda seria maior. E principalmente... no caso de separação, teria de restituir os títulos de Suez do teu dote. Acostumara-me a considerar esses valores como meus. A ideia de ter de renunciar a eles era-me penosa (sem contar ainda a pensão que nos dava teu pai...).
Cedi por temor, e sujeitei-me a todas as tuas exigências, mas decidi consagrar o meu tempo livre à conquista dos filhos. Tomei essa resolução no princípio de Agosto de 1896: esses estios ardentes e tristes de outrora confundem-se no meu espírito e as recordações que aqui invoco devem abranger uns cinco anos (1895-1900).
Julgava eu que não seria difícil inspirar confiança às crianças. Contava com o prestígio de pai de família, e com a minha inteligência. Um garoto de dez anos e duas pequenitas, parecia-me que seria uma brincadeira atraí-las. Lembra-me da sua admiração e inquietação no dia em que eu lhes propus darem um passeio grande com o papá. Estavas sentada no pátio, debaixo da tília prateada: interrogaram-te com o olhar.
"Mas, filhos, vocês não têm nada que me pedir licença".
Partimos. Como se haverá de falar a crianças? Eu, que estou acostumado a resistir ao Ministério Público, ou ao defensor quando defendo a parte civil, ou a toda uma sala hostil, e a quem, no tribunal, o Juiz tem medo, as crianças intimidam-me, as crianças, e também a gente do povo, mesmo esses camponeses de quem eu descendo. Diante deles, perco o pé, e ponho-me a gaguejar.
Os pequenos eram delicados comigo, mas desconfiados. Tu ocuparas antecipadamente aqueles três corações, e dominava-los completamente. Sem licença tua, era impossível avançar. Demasiado escrupulosa para me diminuíres a seus olhos, não lhes ocultaras que era preciso rezar muito pelo "pobre papá". Fizesse eu o que fizesse, já tinha o meu lugar no seu sistema do mundo: era o pobre papá, por quem era preciso rezar muito, para obter a sua conversão. Tudo o que eu dissesse ou insinuasse, no que dizia respeito à religião, reforçava a opinião ingénua que eles formavam de mim.
Viviam num mundo maravilhoso, marcado por festas piedosamente célebres. Tu, conseguias tudo deles, falando-lhes da Primeira Comunhão que eles acabam de fazer, ou para a qual se preparavam. À noite, quando cantavam no patim de Calèse, nem sempre eram árias de Lulli o que eu tinha de ouvir, mas cânticos. Via, de longe, o vosso grupo confuso, e quando havia luar distinguia três figurinhas de pé. Os meus passos na areia interrompiam os cantos.
Todos os domingos, o barulho abafado da partida para a Missa me acordava. Receavas sempre não chegar a tempo. Os cavalos impacientavam-se. Chamava-se pela cozinheira, que estava a demorar-se. Um dos pequenos esquecera-se do Missal, e uma voz estridente gritava: "Que domingo é hoje, depois do Pentecostes?" À volta, quando me vinham cumprimentar, encontravam-me ainda na cama, Maria, que certamente rezara por minha intenção todas as orações que tinha aprendido, olhava-me atentamente, sem dúvida na esperança de verificar alguma ligeira melhora no meu estado espiritual. Era a única que me não irritava. Quando os dois mais velhos se instalavam já na crença que tu praticavas, com esse instinto burguês de conforto que lhes faria, mais tarde, desviar-se de todas as virtudes heróicas e de toda a sublime loucura cristã, em Maria, havia certo fervor comovente, certa ternura de coração para os criados, para os caseiros e para os pobres. Dizia-se dela: "Dá tudo quanto tem; o dinheiro não se lhe pega às mãos. É bonito, mas é preciso vigiá-la..." E acrescentava-se: "Ninguém lhe resiste, nem mesmo o pai". Por si mesma, à noite, vinha sentar-se nos meus joelhos. Uma vez, adormeceu encostada ao meu ombro. Os seus caracóis roçavam-me pela cara. A imobilidade fazia-me sofrer, e eu estava com vontade de fumar. Mas não me mexi. Quando, às nove horas, a criada a veio buscar levei-a até ao quarto, e todos vós me olháveis com tanta admiração como se eu fosse aquela fera que lambia os pés dos pequeninos mártires. Poucos dias depois, na manhã de 14 de Agosto, disse-me Maria (tu bem sabes como as crianças fazem):
"Prometes fazer o que eu te vou pedir?... promete primeiro, que eu depois digo..." Disse-me, então, que tu cantavas, no dia seguinte à Missa das onze, e que da minha parte seria bonito ir lá ouvir-te.
"Prometeu! prometeu! repetia "Ia abraçando-me. Jurou!"
Tomou o beijo que eu lhe dei por consentimento. Toda a casa ficou a saber, e eu sentia-me observado. O patrão iria à Missa no dia seguinte, ele que nunca punha os pés na igreja! Era um acontecimento! À noite, fui para a mesa num estado de irritação que não pude esconder por muito tempo. Humberto perguntou-te não sei que esclarecimento a respeito de Dreyfus 1). Lembro-me de ter protestado, enfurecido, contra o que tu lhe respondeste. Levantei-me da mesa, e não tornei a aparecer. Arranjei a mala, e na manhã de 15 de Agosto, tomei o comboio das seis e passei um dia terrível num dos Bordéus sufocante e deserto.
É exquisito que, depois de tudo isto eu voltasse a Calèse. Porque passei eu sempre as férias convosco, em vez de ir viajar? Poderia inventar esplêndidas razões. Mas, na verdade, para mim era só questão de não ter despesas em duplicado. Nunca pensei que fosse possível ir viajar, dispendendo
() Oficial francês de origem judaica, falsamente acusado de espionagem e traição à pátria. O processo arrastou-se durante vários anos, com enorme repercussão política. O romancista E. Zola, os liberais, e depois os socialistas fizeram sua a causa de Dreyfus, que acabou por ser reabilitado. - Nota da Trad.
tanto dinheiro, sem ter, antes, voltado a panela e fechado a casa. Não teria prazer nenhum em correr estradas, sabendo que deixava, atrás de mim, todo o movimento da casa. Por estas razões, acabava sempre por voltar à manjedoura comum. desde o momento em que a diária me era servida em Calèse para que havia eu de ir procurá-la a outra parte? Tal era o espírito de economia que minha mãe me legara, e do qual eu fazia virtude.
Entrei, pois, num estado de rancor contra o qual a própria Maria era impotente. Iniciei contra ti uma nova táctica. Deixei de atacar de frente as tuas crenças, e empenhava-me nas menores circunstâncias em pôr-te em contradição com a tua fé. Minha pobre Isa, por muito boa cristã que tu fosses, concorda que eu te dava que fazer. Que a caridade fosse sinónimo de amor, tinha-lo tu esquecido, se acaso alguma vez o sonhaste. Sob este nome, englobavas certo número de deveres para com os pobres, de que te desempenhavas com escrúpulo, com os olhos na tua eternidade. Sobre este capítulo, reconheço que mudaste muito: agora és tu mesma que tratas os cancerosos, é verdade! Mas, nessa época, uma vez socorridos os pobres - os teus pobres - julgavas-te no direito de exigir das criaturas, que viviam sob a tua dependência, tudo o que te era devido. Não transigias, no dever das donas de casa, que é obter o máximo de trabalho, pelo mínimo de dinheiro. Essa velha miserável que passava, de manhã, com o seu carrito de legumes, a quem terias socorrido largamente se ela te estendesse a mão, não te vendia uma alface sem que regateasses uns quantos centavos do seu triste ganho, pois ia nisso a tua honra.
As mais tímidas tentativas dos criados ou dos trabalhadores, para um aumento de salário, suscitavam em ti, primeiro uma admiração, depois uma indignação, cuja veemência fazia a tua força, e te assegurava sempre a última palavra. Tinhas uma espécie de génio para demonstrares a essa gente, que não tinha necessidade de coisa nenhuma. Na tua boca, uma enumeração indefinida, multiplicava as vantagens de que eles gozavam. "Vocês têm casa, uma pipa de vinho, metade dum porco que sustentaram com batatas minhas, uma horta para plantar legumes". Os pobres diabos nem voltavam a si ao verem-se tão meos. Afirmavas que a tua criada de quarto podia pôr integralmente na Caixa Económica os quarenta francos que ganhava por mês. "Dou-lhe todos os meus vestidos velhos, todas as minhas saias e os meus sapatos. Para que precisa ela do dinheiro? Só se é para dar presentes à família..."
Mas se eles caíam doentes tratava-los com toda a dedicação; não os abandonavas nunca; e reconheço que, geralmente, eras estimada, e muitas vezes mesmo amada, dessa gente que despreza os amos pouco enérgicos. Sobre todas estas questões, professavas as ideias do teu meio e da tua época. Mas nunca te confessaste a ti própria que o Evangelho as condena: "é curioso! Eu julgava que Cristo tinha dito..." Cortavas logo a conversa, desconcertada, furiosa, por causa das crianças. Acabavas sempre por cair na armadilha: "As coisas não se devem tomar tanto ao pé da letra..." balbuciavas tu. Eu triunfava facilmente, e esmagava-te com exemplos a provar-te que a santidade consiste, justamente, em seguir o Evangelho ao pé da letra. Se tinhas a desgraça de protestar que não eras santa, citava-te o preceito: "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito".
Confessa, minha pobre Isa, que te fiz muito bem, à minha maneira, e se hoje tratas os cancerosos é a mim que eles o devem, em grande parte!
Nessa época, o amor dos filhos açambarcava-te completamente. Eram eles que devoravam as tuas reservas de bondade e- de sacrifício, e te impediam de ver os outros homens. Não era somente de mim que eles te desviavam, mas de toda a gente. Até ao próprio Deus, tu não podias falar senão da sua saúde e do seu futuro. Era nisto que eu te atacava com mais força. Perguntava-te se, sob o ponto de vista cristão, não deverias desejar para eles todas as cruzes, a pobreza e a doença. Punhas logo termo ao assunto: "Falas do que não conheces, por isso não te respondo". Mas, para desgraça tua, havia ainda o perceptor dos pequenos: um seminarista de vinte e três anos, o padre Ardouin cujo testemunho eu invocava, sem dó nem piedade, e que ficava muito embaraçado, pois eu só o fazia intervir, quando estava certo de ter razão; e ele era incapaz, nesta espécie de discussões, de não dizer tudo o que pensava. À medida que o caso Dreyfus se ia desenrolando, encontrei mil ocasiões de levantar contra ti o pobre do padre: "Por um miserável judeu, desorganizar o exército..." dizias tu. Só esta palavra, desencadeava a minha fingida indignação, e eu não descansava enquanto não obrigava o padre Ardouin a confessar que um cristão não pode subscrever a condenação dum inocente ainda que fosse para a salvação da pátria.
Aliás, nem sequer tentava convencer-te a ti nem aos pequenos, que não conheciam o caso, a não ser pelas caricaturas dos bons jornais. Formáveis um bloco invulnerável, e ainda quando eu tinha razão, pensáveis logo que era algum sofisma. Começastes, depois, a guardar silêncio quando eu estava presente. Assim que eu chegava, como acontece ainda agora, terminavam as discussões; mas às vezes vós não sabíeis que eu me escondia por detrás dum macisso de arbustos, e de repente, intervinha, e antes que vós pudésseis bater em retirada, obrigava-vos a aceitar combate.
"É um esplêndido rapaz, dizias tu do padre Ardouin, mas uma verdadeira criança que não vê mal em coisa nenhuma. Meu marido brinca com ele como o gato com o rato; é por isso que ele o suporta, apesar de todo o horror que tem pelas sotainas".
Para dizer a verdade, eu consentira na presença dum perceptor eclesiástico, porque nenhum secular me teria aceitado cento e cinquenta francos por todas as férias. Nos primeiros dias, tomei esse rapaz alto, moreno e míope, que a timidez paralisava, por um ser insignificante, e prestava-lhe tanta atenção como a qualquer móvel. Entretinha os pequenos, levava-os a passeio, - comia pouco, e falava menos. Engulido o último bocado, subia logo para o quarto. ÀS vezes, quando não havia ninguém em casa, sentava-se ao piano. Eu não entendo nada de música, mas cono tu dizias: "Dava gosto ouvi-lo". Certamente não esqueceste um incidente que nunca imaginaste pudesse criar, entre mim e o padre Ardouin. alguma corrente de simpatia. Um dia, os pequenos anunciaram a chegada do pároco. Conforme o costume, desapareci imediatamente para o lado das vinhas. Mandado por ti. Humberto veio procurar-me: o pároco tinha uma comunicação urgente a fazer-me. Retomei, praguejando, o caminho de casa, porque sempre receei muito aquele velhote. Disse-me que vinha descarregar a consciência. Que nos tinha recomendado o padre Ardouin, como excelente seminarista, cujo sub-diaconato fora retardado por razões de saúde. Ora, no decurso dum retiro do clero, acabara de saber que essa demora devia ser atribuída a decisão disciplinar. O padre Ardouin, ainda que muito piedoso, era louco por música, e arrastado por um companheiro, passara a noite fora, para ouvir, no Teatro, um concerto de caridade.
Ainda que estivessem à secular, tinham-nos reconhecido é denunciado. O cúmulo do escândalo, foi que a intérprete de Thais, M.mo Georgette Lebrun, figurava no programa: ao verem-na de pés descalços, com a túnica grega, segura por debaixo dos braços com um cinto de prata (assim mesmo, e nem sequer a mais leve banda, sobre os ombros"), ouviu-se um "oh" de indignação. No camarote de lUnion um cavalheiro respeitável exclamou: "É um pouco forte... onde estamos nós?" Eis o que tinha visto o padre Ardouin e mais o companheiro! Um dos delinquentes fora expulso imediatamente. A este perdoaram-lhe porque era de porte irrepreensível; mas os superiores tinham-no feito esperar dois anos. Nós estivemos ambos de acordo para protestar que o padre merecia toda a nossa confiança. Mas o pároco não foi da mesma opinião, e daí em diante, mostrou grande frieza ao seminarista, que, dizia ele, o tinha enganado. Lembras-te, com certeza, deste incidente, mas o que tu nunca soubeste foi que, naquela noite, enquanto fumava no terraço, vi, ao luar, dirigir-se para mim a magra silhueta negra do culpado. Chegou até junto de mim, e, muito acanhadamente, pediu-me perdão de se ter introduzido em minha casa, sem me ter advertido da sua indignidade. Como eu lhe afirmasse que a sua fuga o tornava ainda mais simpático, protestou, com repentina firmeza, e inculpou-se a si mesmo. Que não podia, dizia ele, medir a extensão da culpa: pecara, ao mesmo tempo contra a obediência, contra a vocação, e contra os costumes. Cometera pecado de escândalo; e a vida toda ainda, não seria suficiente para reparar o mal feito... Parece que estou a ver, ainda aquela longa espinha curvada, e a sua sombra, ao luar, cortada em duas pelo parapeito do terraço.
Por mais preconceitos que eu tivesse contra todas as pessoas da sua classe não podia suspeitar, diante de tanta confusão e tanta pena, a menor hipocrisia. Desculpava-se do seu silêncio para connosco, com a necessidade em que se encontrava de permanecer, durante dois meses, a cargo da mãe, pobre viúva que trabalhava, aos dias, em Libourne. Como eu lhe respondesse que, segundo a minha opinião, ele não era obrigado a advertir-me dum incidente que dizia respeito à disciplina do Seminário, pegou-me na mão e disse-me estas palavras inauditas, que eu ouvia pela primeira vez na minha vida, e que me causaram uma espécie de assombro:
- "Que bom é o senhor..."
Tu conheces o meu riso, esse riso que, mesmo no princípio da nossa vida comum, te bulia com os nervos - tão pouco comunicativo que, na minha juventude, tinha o poder de estancar, à volta de mim. toda a alegria. Esse riso sacudia-me naquela noite, diante desse seminarista, interdito. Pude enfim, falar:
- "Nem você imagina como tudo isso é impagável.
Pergunte a todos os que me conhecem, se eu sou bom. Interrogue a minha família e os meus colegas: a maldade é a minha razão de ser".
Ele respondeu, embaraçado, que o que é verdadeiramente mau, não fala da sua malícia.
- "Desafio-o a encontrar na minha vida um acto bom".
Citou-me, então, fazendo alusão à minha vida de advogado, a palavra de Cristo: "Estava prisioneiro, e visitaste-me..."
-Vão nisso os meus interesses, meu caro senhor. Procedo assim por interesse profissional. Ainda não há muito que eu pagava aos carcereiros para que o meu nome fosse segredado, na devida altura, ao ouvido dos acusados... assim, já vê!"
Não me lembro já do que ele respondeu. Passeávamos ambos, debaixo das tílias, e ficarias bem admirada se eu te tivesse dito que encontrava uma certa doçura na presença daquele homem de sotaina! Mas era verdade.
Acontecia levantar-me, às vezes, com o sol e ir lá para baixo, para respirar o ar fresco da manhã. Via então o padre partir para a missa, a passo rápido, tão absorvido que, algumas vezes, passava a alguns metros de mim, sem me ver. Era na época em que eu te fazia sofrer com as minhas zombarias, e me encarniçava em te pôr em contradição com os teus princípios... Apesar de tudo, eu não estava de boa consciência; fingia acreditar, cada vez que te apanhava em flagrante delito de avareza ou de dureza, que, entre vós, não subsistia nem sequer o menor vestígio do espírito de Cristo; mas não ignorava que sob o meu teto, vivia um homem segundo esse espírito, sem que ninguém o soubesse.
Houve, contudo, uma circunstância em que não foi preciso esforçar-me para te encontrar em delito grave. Em 96 ou 97, deves lembrar-te da data precisa, morreu o nosso cunhado, barão Philipot. Tua irmã Marinette, ao acordar, de manhã, falou-me, mas ele não respondeu. Abriu as persianas, viu os olhos do velho revirados, a maxila inferior descaída, e não compreendeu logo, que dormira, durante algumas horas, ao lado dum cadáver.
Duvido muito que algum de nós sentisse horror pelo testamento desse miserável; deixava à mulher a sua enorme fortuna, mas com a condição de não tornar a casar. Caso contrário, a maior parte dos bens deveria reverter a favor de sobrinhos.
"Vai ser preciso ampará-la muito, repetia a tua mãe. Felizmente, somos uma família onde nos guardamos uns aos outros. Esta pequena, agora, não se pode deixar sozinha".
Nessa época, Marinette tinha trinta anos, mas lembro-me do seu aspecto de rapariga nova. Teimara-e casar docilmente com um velho, suportava-o sem revolta. E pensáveis vós que também facilmente se submeteria às obrigações da viuvez. Aos vossos olhos, não tinha importância o abalo daquela libertação, cassa brusca saída do túnel para a plenitude da luz.
Não, Isa, não receies que eu abuse da vantagem que aqui me é dada. Era natural desejar que esses milhões permanecessem na família, e que os nossos filhos aproveitassem deles.
Vós julgáveis que Marinette não devia perder o benefício desses dez anos de sujeição a um marido velho. Procedíeis como bons parentes. Nada vos parecia mais natural que o celibato. Lembravas-te tu, por ventura, que, ainda havia pouco, estavas por casar? Não, era assunto arrumado; agora eras mãe, o resto já não contava, nem para ti, nem para os outros. A vossa família nunca brilhou pela imaginação : sobre esse ponto, era o meio termo, nem muito tolos, nem muito finos.
Ficou combinado que Marinette passaria em Calèse, o primeiro verão a seguir à viuvez. Aceitou com alegria, não que houvesse entre vós muita intimidade, mas amava os nossos filhos, principalmente a Mariazita. Eu, que a conhecia relativamente havia pouco tempo, rendi-me ao encanto da sua graça; mais velha que tu um ano, parecia muito mais nova. A maternidade tinha-te tornado pesada; mas ela, na aparência, saíra intacta do convívio daquele velho. Tinha um rosto de criança. Toucava-se com um penteado alto, segundo o costume da época, e seus cabelos dum loiro escuro espumavam sobre a nuca. (Esta maravilha esquecida hoje: uma nuca espumosa). Seus olhos um tanto redondos, davam-lhe o ar de estar sempre admirada. De brincadeira, eu abrangia-lhe, com as mãos, a "cintura de vespa"; mas a saliência do busto e das ancas, teria hoje parecido quase monstruosa; as mulheres de então assemelhavam-se a flores abertas à força.
Admirava-me que Marinette fosse tão alegre. Divertia imenso os pequenos, organizava o jogo das escondidas no celeiro, e à noite, brincava aos quadros vivos. "Sempre é muito leviana, dizias tu, nem se dá conta da situação em que vive".
Era já grande concessão terem-lhe permitido que usasse vestidos claros durante a semana; mas tu julgavas inconveniente que ela assistisse à Missa sem véu, e que- a sua capa não fosse bordada de crepe. Nem mesmo o calor te parecia suficiente desculpa. O único divertimento que ela disfrutara com o marido fora a equitação. Até ao último dia o barão Philipot, sumidade dos concursos hípicos, não deixara de dar o seu passeio matinal a cavalo.
Marinette mandou vir a égua para Calèse, e como ninguém a podia acompanhar, montava sozinha, o que te parecia -duplamente escandaloso: uma viúva de três meses não deve dar-se a exercícios destes, mas passear a cavalo sem companhia, isso então passava dos limites.
"Hei-de dizer-lhe o que pensa toda a família", repetias tu. Disseste-lho mas ela só fazia o que lhe dava na cabeça. Já aborrecida, pediu-me que a acompanhasse. Encarregar-se-ia de me arranjar um cavalo muito manso. (Naturalmente todas as despesas seriam por conta dela).
Partíamos ao amanhecer, por causa das moscas, e também porque era preciso andar dois quilómetros a passo, antes de alcançar os primeiros pinhais. Os cavalos esperavam-nos diante do patamar. Marinette deitava a língua de fora para as persianas fechadas do teu quarto, enquanto pregava no vestido de amazona uma rosa orvalhada, "que não era lá muito própria duma viúva", dizia ela. Tocava para a primeira missa da manhã. O padre Árdouin cumprimentava-nos timidamente, e desaparecia na bruma que flutuava sobre as vinhas.
Até chegar aos pinhais conversávamos. Notei que tinha certo prestígio aos olhos da minha cunhada - menos por causa da minha situação no Tribunal, que pelas ideias subversivas de que me fazia campeão em família. Teus princípios pareciam-se demais com os do marido dela. Para uma mulher a religião, as ideias são sempre alguém: tudo toma figura a seus olhos, - figura adorável ou odiosa.
Se eu quisesse, teria levado longe a minha superioridade junto desta pequena revoltada. Mas quê! enquanto ela se irritava contra vós, não tinha dificuldade nenhuma em afinar pelo seu diapasão; mas tornava-se-me impossível segui-la no desdém que manifestava pelos milhões que perderia se tornasse a casar. Teria todo o interesse em falar como ela, e representar de nobre coração-; mas não me era possível fingir, nem sequer mesmo podia fazer menção de a aprovar quando ela se não importava para nada da perda dessa herança. Deverei dizer tudo? Não conseguia pôr de lado a hipótese da sua morte que faria de nós seus herdeiros. (Não pensava nos filhos, mas em mim).
Por mais que eu estivesse preparado antecipadamente e repetisse a lição, contudo, o sentimento era mais forte que eu: "Sete milhões! Marinette, em que está a pensar? não se renuncia assim a sete milhões. Não há homem no mundo que valha o sacrifício duma parcela dessa riqueza!" E como ela ainda pretendia pôr a felicidade acima de tudo, afirmei-lhe que, depois do sacrifício de tal fortuna, já ninguém poderia ser feliz.
"Ah! exclamava ela, você pode odiá-los a todos, mas é da mesma laia".
Partia a galope, e eu seguia-a de longe, julgado e perdido. Esta mania do dinheiro, quantas decepções me não terá ela acarretado! Poderia ter encontrado em Marinette uma boa irmã, uma confidente... E quereríeis vós que eu vos sacrificasse aquilo a que tenho sacrificado tudo? Não, não, o meu dinheiro tem-me custado muito caro, para que eu vos ceda um cêntimo antes do último suspiro.
E contudo, vós não desistis. Pergunto-me a mim mesmo se a mulher de Humberto, cuja visita suportei no domingo, era vossa delegada, ou se veio de motu próprio. Pobre Olímpia! (Porque é que Phili, lhe terá chamado Olímpia? Até já lhe esquecemos o verdadeiro nome...) Sou, antes, levado a crer que ela não vos informou do que tencionava fazer. Não pertence à família, nunca a adoptastes. Esta pessoa indiferente a tudo o que não constitui o seu limitado universo, a tudo o que não lhe diz directamente respeito, não conhece nenhuma das leis da "gens"; ignora mesmo que eu sou o inimigo. Da parte dela, não é benevolência ou simpatia natural, é que não pensa nunca nos outros nem mesmo para-os odiar. "É sempre muito delicado comigo", protesta Olímpia quando pronunciam o meu nome diante dela. Não sente a minha aspereza. E, como por espírito de contradição, me acontece defendê-la contra os outros, ela toma-o por simpatia.
Por entre o seu palavriado confuso, descobri que o Humberto tinha travado a tempo, mas que toda a sua fortuna pessoal e o dote da mulher, tudo esteve comprometido para salvar o emprego. Diz que o dinheiro o torna infalivelmente a reaver, mas que precisava dum adiantamento... Chama a isso adiantamento sobre a herança..."
Eu abanava a cabeça, aprovava, fingia estar muito longe de compreender o que ela queria. Como, nesses momentos, eu tenho um ar inocente!
Se a pobre Olímpia soubesse o que eu sacrifiquei ao dinheiro quando ainda tinha um resto de juventude! Nessas manhãs dos meus trinta e cinco anos, voltávamos nós, tua irmã e eu, ao passo dos cavalos pela estrada já quente, entre as vinhas sulfatadas. A essa mulher jovem e trocista, falava eu dos milhões que ela não devia perder. Quando eu esquecia a obsessão desses milhões ameaçados, ria-se de mim com uma delicadeza desdenhosa. E eu, querendo defender-me, enterrava-me ainda mais: "É para seu bem que insisto, Marinette. Acredita que eu seja homem para quem o futuro dos filhos seja uma obsessão? Isa não quer que a sua fortuna lhe fuja. Mas eu..."
Ela ria, e por entre dentes murmurava: "A verdade é que você deixa de ser mau para ser horrível".
Eu protestava que não pensava senão na felicidade dela. Mas ela abanava a cabeça, aborrecida; e no fundo, sem que o confessasse, era a maternidade mais que o casamento o que lhe causava inveja.
Ainda que ela me desprezasse, quando, depois do almoço, apesar do calor eu deixava a casa obscura e glacial, onde a família dormitava, espalhada pelos divãs de coiro e cadeiras de verga, quando eu entreabria as persianas da porta-janela e deslisava para o azul incandescente, não precisava de me voltar; sabia que ela vinha também, e sentia-lhe os passos na areia. Caminhava mal, torcendo os tacões altos sobre a terra endurecida. Encostávamo-nos ao parapeito do terraço, onde ela gostava de conservar, o mais tempo possível, o braço nu sobre a. pedra ardente.
A planície, a nossos pés, entregava-se ao sol, num silêncio tão profundo como quando adormece à luz do luar. As charnecas formavam no horizonte um imenso arco negro, onde o céu metálico pesava. Nenhum homem, nenhum animal se atreveriam a sair antes das quatro horas. As moscas zumbiam naquele sítio, não menos imóveis que aquela poalha da planície que nem a mais leve brisa agitava.
Eu sabia que aquela mulher que estava ali de pé, não podia amar-me, e que em mim nada havia que lhe não fosse odioso. Mas nós respirávamos sozinhos, nessa propriedade perdida, no meio dum torpor invencível. Aquela mulher, sofria, via-se apertadamente vigiada pela família, e procurava o meu olhar tão inconscientemente como um girasol se vira para a luz. Contudo, à menor palavra duvidosa, eu receberia por resposta, apenas um gracejo. Sentia claramente que ela afastaria, com desdém, o mais tímido gesto. Assim permanecíamos, um ao pé do outro, à borda dessa cuba imensa, onde a vindima futura fermentava no sono das folhas azuladas.
E tu, Isa, que pensavas tu dessas saídas de manhã, e desses colóquios, à hora em que toda a gente dormitava? Sei-o, porque o ouvi um dia. Sim, através das persianas fechadas do salão, ouvi-te dizer à tua mãe que estava então em Calèse (e viera certamente para reforçar a vigilância em redor de Marinette):
"A influência dele é má, no que diz respeito às"ideias... mas quanto ao mais entretém-na, e não há nisso grande inconveniente".
- Sim, entretém-na, e é o essencial", respondeu a tua mãe.
Ambas estáveis contentes de que eu entretivesse Marinette. "Mas passadas as férias, dizíeis, será preciso procurar outra coisa". Por mais desprezo que me tenhas tido, Isa, eu ainda te desprezei mais, por palavras como aquelas. Quero crer que tu acreditasses que não havia o menor perigo. As mulheres não se lembram do que não sentem.
Depois do almoço, na orla da planície, é verdade que nada podia acontecer; por mais vazio que estivesse o mundo, nós estávamos os dois como num proscénio. Ainda que não houvesse mais que um camponês que não dormisse a sesta, esse teria visto, imóveis como as tílias, esse homem e essa mulher, de pé, em frente da terra incandescente, não podendo fazer o mais pequeno gesto sem se tocarem.
Mas os nossos passeios nocturnos já não eram tão inocentes. Lembro-me duma noite de Agosto, em que, ao jantar, tinha havido tempestade por causa de Dreyfus. Marinette, que representava comigo o partido da revisão, excedia-me na arte de desalojar o padre Ardouin, e de o obrigar a tomar partido. Quando tu falavas com exaltação, dum artigo de Drumont, Marinette, com sua voz de menina do catecismo, perguntou:
- "Senhor padre Ardouin, será permitido odiar os judeus?" ?
Naquela noite, para nossa maior alegria, ele não esteve com mais contemplações. Falou da grandeza do povo eleito, da sua missão augusta de testemunha, da sua conversão profetizada, anunciadora do fim dos tempos. E, como Humberto protestasse que se deviam odiar os algozes de Nosso Senhor, o padre respondeu que cada um de nós tinha apenas o direito de odiar um algoz de Cristo: "Nós mesmos, e mais ninguém..."
Desconcertada, tu replicaste que com essas belas teorias, nada mais restava senão entregar a França ao estrangeiro. Felizmente para o padre Ardouin, vieste a cair em Joana d'Arc que vos reconciliou. No patamar, um dos pequenos exclamou: "Oh! que lindo luar!"
Dirigi-me para o terraço, sabendo que Marinette me seguiria. com efeito, ouvi-lhe a voz ofegante: "Espere por mim..." Pusera uma "boa" em volta do pescoço.
Do nascente, levantava-se a lua cheia. Marinette admirava as sombras esguias das árvores sobre a erva. As casas dos camponeses recebiam a claridade sobre as frontarias fechadas. Ouvia-se o ladrar dos cães. Perguntou-me se era a lua que tornava as árvores imóveis; e disse-me que tudo fora criado numa noite daquelas, para tormento dos isolados.
"Um cenário -sem sentido!" dizia ela. Quantas faces juntas, a esta hora, quantos ombros que se tocam! Que cumplicidade! Eu via claramente uma lágrima a cair-lhe dos cílios. Na imobilidade do mundo, só a sua respiração era viva. Continuava a senti-la um pouco ofegante... Que restará de ti, hoje, nesta noite, Marinette, que morreste em 1900? Que restará dum corpo, sepultado há trinta anos? Lembro-me ainda do teu perfume de então. Para acreditar na ressurreição da carne, é talvez preciso ter vencido a carne. O castigo daqueles que abusaram dela será de nem mesmo poderem imaginar que ela ressuscitará.
Tomei-lhe da mão, como teria feito a uma criança infeliz; e como criança encostou ela a cabeça ao meu ombro. Recebi-a, porque estava ali; a lama também recebe um pêssego que se desprende. A maior parte dos seres humanos não se escolhem mais que as árvores que desabrocharam lado a lado, com os ramos a confundir-se, apenas porque cresceram.
A minha infâmia, naquele momento, foi pensar em ti, Isa, e sonhar uma vingança possível: servir-me da Marinette para te fazer sofrer.
Por menos tempo que a ideia me ocupasse o espírito, concebi, contudo, esse crime. Demos alguns passos incertos fora da zona do luar, para o bosque das romãzeiras e das silindras. Quis o destino que eu ouvisse, então, ruído de passos na álea das vinhas - essa álea que o padre Ardouin tomava todos os dias, para ir à missa. Era ele sem dúvida... E eu pensei naquelas palavras que ele me dirigira certa noite: "Que bom é o senhor..." Se naquele momento ele pudesse ler no meu coração! Seria a vergonha que eu senti ao pensar nisso, o que me salvou então!
Reconduzi Marinette para a claridade, e fi-la sentar num banco. Limpei-lhe os olhos com o lenço, e disse-lhe o que teria dito à Maria, se ela tivesse caído e eu a tivesse levantado na álea das tílias. Fingi não ter notado o que poderia ter havido de perturbação, no seu abandono e-nas suas lágrimas.
No dia seguinte de manhã, Marinette não montou a cavalo. Eu fui para Bordéus (apesar das férias do Tribunal, ia ali, duas vezes por semana, para não interromper as consultas). Quando tomei o comboio para voltar a Calèse estava na estação o expresso do sul, e, qual não foi a minha admiração, ao descobrir, por detrás dos vidros da carruagem que tinha escrito Biarritz, a Marinette, sem véu, vestida com um casaco e saia cinzento. Lembro-me que uma das suas amigas há muito tempo lhe pedira que viesse ter com ela a Saint-Jean-de-Luz. Estava a ver um jornal ilustrado e não reparou nos sinais que eu lhe fazia, À noite, quando te relatei o que vi, prestaste pouca atenção ao que julgavas ser apenas um giro. Disseste-me que, depois da minha saída, Marinette recebera um telegrama da amiga, e parecias surpreendida que eu não estivesse ao corrente de tudo. Desconfiavas, talvez, de algum encontro clandestino em Bordéus! A Mariazita estava de cama com febre; havia alguns dias que andava com uma desirrteria que te inquietava bastante.
É de justiça confessar que, quando um dos teus filhos adoecia, nada mais contava para ti.
Dos acontecimentos que vieram depois nem lembrar-me queria. É só com repugnância que o faço, e mais, já lá vão trinta anos. Sei muito bem do que me acusaste. Ousaste dizer-me, em rosto, que eu tinha recusado a conferência médica. É fora de dúvida, que se tivéssemos chamado o Dr. Arnozan, ele teria reconhecido um tifo naquela pretendida gripe. Mas, puxa pelas tuas recordações. Foi só uma vez que tu me disseste: "E se nós mandássemos chamar o Dr. Arnozan?" E eu respondi-te: - "O Dr. Aubrou diz que anda a tratar mais de vinte casos parecidos cá na terra..." Não insististe. Pretendes ter-me pedido, na manhã seguinte, que telegrafasse ainda ao Arnozan. Mas se o tivesses feito, eu lembrava-me, com certeza. A verdade, porém, é que tenho de tal maneira ruminado estas recordações, durante dias e noites, que, neste assunto, já me não entendo. Admitamos que eu seja avarento... mas não a ponto de regatear, quando se tratava da saúde da Maria. Era tanto menos verosímil quanto o professor Arnozan trabalhava por amor de Deus e dos homens: se não o mandei chamar, foi porque estávamos ambos persuadidos de que se tratava duma simples gripe "que lhe atacara os intestinos". O Aubrou fazia comer a Maria para que ela não enfraquecesse. Foi ele que a matou, e não eu. Não, nós estávamos ambos de acordo, e tu não insististe para que viesse o Arnozan, mentirosa. Não sou responsável da morte da Maria. É horrível que me tivesses acusado a mim; e que o acredites! Sempre o acreditaste!
Que verão implacável aquele! as tonturas desse verão, a crueldade das cigarras... Não se conseguia gelo. Eu limpava, durante tardes sem fim, aquele resto do húmido que atraía as moscas. O Arnozan veio tarde demais. Só se mudou de regime quando ela estava mais que perdida. Talvez ela delirasse, quando repetia: "Pelo papá! pelo papá!" Lembras-te com que inflexão de voz ela gritava: "Meu Deus, não sou mais que uma criança..." continuava : "Mas posso ainda sofrer". O padre Ardouin, dava-lhe a beber água de Lourdes. As nossas cabeças aproximavam-se por cima daquele corpo extenuado, e as nossas mãos tocavam-se. Quando tudo acabou julgaste-me insensível. Mas querias tu saber o que se passava em mim? É uma coisa estranha que tu, a cristã, não tenhas podido desprender-te do cadáver. Pediam-te que comesses, repetiam-te que tinhas necessidade de todas as tuas forças. Mas para te levar para fora daquele quarto, seria precisa a violência. Ficavas-te sentada junto do leito, tocando-lhe a fronte e as faces frias, com um gesto indeciso. Colavas os lábios aos seus cabelos ainda vivos; e, às vezes, caías de joelhos não para rezar, mas para encostares a fronte às duras mãozinhas geladas. O padre Ardouin animava-te, falava-te dessas criancinhas a quem temos de nos assemelhar para entrarmos no reino do Pai: "Ela está viva e à sua espera". Abanavas a cabeça; aquelas palavras nem mesmo te atingiam o cérebro; a tua fé para nada te servia. Não pensavas senão nessa carne da tua carne, que ia ser sepultada e que ia começar a apodrecer; enquanto eu, o incrédulo, experimentava, diante do que restava de Maria, tudo aquilo que significa a palavra "despojo". Tinha o sentimento irresistível duma partida, duma ausência. Ela já ali não estava; não era ela. "É Maria que procurais? Não está aqui..."
Mais tarde, acusaste-me de ter esquecido depressa demais. Mas eu é que sei tudo o que se despedaçou em mim, quando a abracei no caixão, pela última vez. Mas já não era ela. Censuraste-me quase todos os dias por eu não te ter acompanhado ao cemitério. "Nunca ali pôs os pés, repetias tu. E isso que Maria era a única pessoa que ele parecia amar um pouco... Não tem coração nenhum".
Marinette veio para o enterro, mas retirou passados três dias. A dor cegava-te, e não vias a ameaça que se desenhava daquele lado. Chegaste a parecer aliviada com a partida da tua irmã. Dois meses mais tarde, soubemos do seu contrato de casamento com esse homem de letras, esse jornalista encontrado em Biarritz. Já nada se podia evitar. Foste implacável, como se um ódio recalcado rebentasse de repente contra Marinette; nunca quiseste conhecer esse "indivíduo", um homem ordinário, como os outros; o seu único crime era o de frustrar os nossos filhos duma fortuna, com que ele também não era beneficiado, pois que os sobrinhos de Phlipot é que receberiam a maior parte.
Mas tu nunca discorres; nunca sentiste a sombra dum escrúpulo; e não conheci nunca ninguém que fosse tão serenamente injusto como tu. Sabe Deus de que pecadilhos tu te confessavas e não há uma só das Bem-aventuranças de que não tenhas passado a vida a fazer a contra-versão.
Não te custa nada acumular falsas razões para rejeitar os objectos do teu ódio. A propósito do marido de tua irmã, que nunca tinhas visto e de quem não sabias nada dizias tu: "Foi vítima dum gatuno em Biarritz; uma espécie de rato de hotel..."
Quando a Marinette morreu de parto (ah! eu não te queria julgar tão duramente, como tu me julgaste a mim quando foi da morte da Maria) não exagero muito se disser que não tiveste pena nenhuma. Os acontecimentos tinham-te dado razão, aquilo não podia acabar doutra maneira; que a infeliz trabalhara para sua perda; e que tu nada tinhas a censurar-te; fizeras o teu dever; a desgraçada bem sabia que a família a acolheria sempre, que a esperavam, apenas ela mostrasse que queria voltar. Ao menos, podias fazer-te justiça: não tinhas sido cúmplice. Custara-te usar de firmeza: "mas ocasiões há em que é preciso passar por cima do coração".
Não, não te vou esmagar. Reconheço que foste boa para o filho da Marinette, para o pequeno Lucas, quando a tua mãe morreu, pois até à morte foi ela que sempre se ocupou dele. Tomava-lo a teu cargo durante as férias; todos os invernos o ias ver ao colégio, nos arredores de Baiona. "Fazias o teu dever, já que o pai não fazia o seu..."
Nunca te disse como conheci o pai dele, em Bordéus, em Setembro de 1914. Andava a ver se encontrava um cofre nalgum banco; os parisienses, em fuga, tinham-nos levado todos. Enfim o director do Crédit Lyonnais avisou-me que um dos seus clientes voltava a Paris, e talvez consentisse em me ceder o seu. Quando me declarou o nome dele, vi que se tratava do pai do Lucas. Ah! não, não era o monstro que tu imaginavas. Em vão procurei, nesse homem de trinta e oito anos, magro, de olhar duro, consumido pelo terror das novas inspecções, aquele que, catorze anos antes, eu vira no enterro da Marinette, e com quem tivera uma conversa de negócios. Desabafou comigo. Vivia maritalmente com uma mulher cujo convívio queria poupar a Lucas. Fora no interesse do pequeno, que ele o deixara com a avó Fondairdège... Minha pobre Isa, se tu e os teus filhos soubessem o que eu ofereci àquele homem, naquele dia! Agora, posso-to dizer. Ele teria ficado com o cofre em seu nome, passando-me uma procuração. Toda a minha fortuna de bens móveis ficaria ali, com um papel, atestando que pertencia ao Lucas. Enquanto eu vivesse, o pai não poderia tocar no cofre. Mas, depois da minha morte, tomaria posse de tudo, e vós não saberíeis nada... Evidentemente, eu entregava a este homem a minha fortuna e a minha pessoa. Odiei-vos até este ponto! Mas ele é que não quis ir para diante. Não se atreveu. Falou da honra...
Como fui eu capaz de tal loucura? Nessa época, os filhos estavam perto dos trinta, casados, definitivamente do teu partido, e voltados contra mim em todas as ocasiões. Agíeis em segredo; e eu era o inimigo. É verdade que nem sempre te entendias com eles, principalmente com a Genoveva. Censuravas-lhe o deixarem-te sempre sozinha, e não te pedirem conselho em coisa nenhuma; mas, contra mim, a frente restabelecia-se. Tudo, aliás, se passava em surdina, excepto nas ocasiões solenes: foi assim que houve lutas terríveis, na altura do casamento dos filhos. Eu não queria dar dote, mas sim fixar-lhes uma mesada. Recusava-me a dar a conhecer às famílias interessadas, o estado da minha fortuna. Consegui-o, fui o mais forte, porque o ódio me sustentava, - o ódio, mas também o amor, o amor que tinha ao pequeno Lucas. As famílias tiveram de conformar-se, porque pelo menos, não duvidavam que o mealheiro era de respeito... O meu silêncio, porém, inquietava-vos. Tentáveis saber... Genoveva queria, às vezes, levar-me pela ternura: pobre desajeitadona, que eu sentia vir de longe com os seus grossos tamancos! Muitas vezes, dizia-lhe: "Quando eu morrer, vocês hão-de abençoar-me". Dizia-lhe isto para lhe ver os olhos a brilhar de cobiça, Por sua vez, ela repetia-te estas palavras maravilhosas. Toda a família caía em êxtase. Durante esse tempo, procurava eu o meio de vos deixar apenas o que não podia esconder. Só pensava no Lucas. Tive mesmo a ideia, de hipotecar as terras...
Apesar de tudo, aconteceu-me, uma vez, deixar-me apanhar pelas vossas artimanhas: foi no ano seguinte à morte da Maria. Bu tinha caído doente, e certos sintomas lembravam os da doença que tinha arrebatado a nossa filhita. Detesto que me tratem, e tenho horror a médicos e a remédios. Mas tu não descansaste enquanto eu não fui para a cama, e não mandei chamar o Dr. Arnozan. Trataste-me com dedicação, escusado será dizê-lo, até mesmo com sobressalto, e às vezes, quando me interrogavas sobre o que eu sentia, parecia-me descobrir-te na voz certa angústia. Quando me afagavas a fronte tinhas o mesmo gesto que para os filhos. Quiseste dormir no meu quarto; e se eu de noite me agitava, levantavas-te e davas-me de beber. "Ela, afinal, ainda me estima, dizia eu; quem o diria!... Será talvez pelo que eu ganho?" Mas não, a ti não te interessa o dinheiro pelo dinheiro... A não ser porque a situação dos filhos ficava diminuída com a minha morte... Era o que me parecia mais certo. Mas ainda não era bem isto.
Depois de o Dr. Arnozan me auscultar falaste com ele, no patamar, com essa voz estridente que tantas vezes te tem traído: "Diga a toda a gente, Doutor, que a Maria morreu de febre tifóide. Por causa dos meus pobres dois irmãos, fizeram correr o boato que foi a tuberculose que a matou. Não há quem faça calar as más línguas. Tenho muito medo que tudo isto venha a prejudicar o Humberto e a Genoveva. E se o meu marido estivesse agora gravemente doente, ainda aumentavam mais todos estes boatos. Olhe que andei preocupada, durante alguns dias, a pensar nos meus pobres filhos. O Doutor sabe que ele antes do casamento também teve um pulmão atacado. Soube-se; tudo se sabe, que esta gente gosta de se entreter assim. Mesmo que ele tivesse morrido de doença infecciosa, ninguém acreditaria, como não acreditaram quando foi da morte da Maria, e os meus filhos é que vêm a pagar tudo. Eu toda me consumia quando o via tratar-se tão mal. Não queria ir para a cama! Como se fosse só dele que se tratasse! Mas nunca pensa nos outros, nem mesmo nos filhos... Não, não, doutor, um homem como o doutor não pode conceber que existam homens assim. O doutor é como o padre Ardouin, não acredita no mal".
Eu ria-me sozinho, na cama, e quando voltaste perguntaste-me porque era. Respondi-te por aquelas palavras de uso corrente entre nós": "Por nada.
- Porque te ris tu? - Por nada. - Em que estás a pensar? - Em nada".
Retomo este caderno depois duma crise que me reteve um mês sob o vosso domínio. Assim que a doença me desarma, o círculo da família aperta-se em volta do meu leito. Picais todos ali, em observação.
No outro domingo, Phili veio fazer-me companhia. Estava calor, e eu respondia por monossílabos; perdi o fio às ideias... Durante quanto tempo? Não o sei dizer. Despertou-me o ruído da sua voz, via-o na penumbra, de orelhas arrebitadas. Brilhavam-lhe os olhos de lobo. Trazia, no pulso, acima do relógio, uma pulseira de oiro. A camisa entreabria-se sobre um peito de criança. De novo desfaleci. O estalido dos sapatos despertou-me, mas eu observava-o através das pestanas. Ele apalpava com a mão o meu casaco, no lugar do bolso interior onde guardo carteira. Apesar das palpitações precipitadas do coração, obriguei-me a permanecer imóvel. Desconfiaria ele? Voltou para o lugar.
Fiz menção de acordar! pergunteilhe se tinha dormido muito tempo: "Alguns minutos apenas, avô". Eu estava a sentir aquele terror dos velhos isolados a quem algum rapaz espia. Estarei eu doido? Parece-me que ele seria capaz de me matar. Humberto reconheceu um dia que Phili era capaz de tudo.
Isa, olha como eu tenho sido desgraçado. Quando leres estas linhas, será demasiado tarde para teres pena de mim. Mas sinto uma certa doçura em esperar que ainda a sentirás. Não acredito no teu inferno eterno, mas sei o que é ser-se condenado na terra., o que é ser-se réprobo, o homem que, vá para onde vá, segue sempre caminho errado; o homem cujo caminhar foi sempre em falso; alguém que não sabe viver, não como a gente do mundo o entende, mas alguém a quem falta o saber viver, no sentido absoluto. Sofro muito, Isa. O vento suão queima a atmosfera. Estou com sede, mas não tenho senão a água tépida do toucador. Tenho milhões, mas que não chegam para um copo de água fresca.
Se eu suporto a presença terrificante de Phili, é talvez porque ele me lembra outro rapaz, aquele que teria hoje trinta anos, Lucas, o nosso sobrinho. Nunca neguei a tua virtude; esse pequeno deu-te ocasião de a exercitar. Não gostavas dele: não tinha nada (dos Fondaudège, esse filho de Marinette, esse rapaz de olhos de azeviche, e de cabelos em pé, a fazerem-lhe "redemoinhos" sobre a fronte, dizia Humberto.
Não era aplicado, no Colégio de Baiona, onde era pensionista. Mas isso não te dizia respeito, observavas tu. Já bastava encarregares-te dele durante as férias.
Não, não eram os livros que o interessavam. Nesta região sem caça, ele achava meio de abater cada dia alguma coisa. A lebre, a única lebre de cada ano que jazia na lura, acabava ele sempre por trazê-la: vejo ainda o seu gesto alegre, no passeio grande das vinhas, a segurar na mão fechada as orelhas do animal com o focinho a sangrar. De manhã, sentia-o partir. Abria a janela, e aquela voz fresca gritava no nevoeiro: "vou levantar as minhas linhas de pesca".
Olhava-me de frente, e sustentava-me o olhar, sem medo de mim; nunca tal ideia lhe teria vindo à cabeça.
Se, depois de alguns dias de ausência, eu chegava sem ter avisado, e sentia em casa, cheiro de charutos, se encontrava o salão sem tapete, e todos os sinais duma festa interrompida (assim que eu virava costas, Genoveva e Humberto convidavam amigos e organizavam "assaltos", apesar da minha proibição formal; tu eras cúmplice da sua desobediência" "porque, dizias tu, as delicadezas têm que se retribuir..."), nessas ocasiões, era sempre o Lucas que se mandava ao meu encontro, para me desarmar: "Entrei no salão quando eles iam começar a dansar, e gritei: lá vem o tio! vem pelo atalho... Se tu visses como eles se escapavam todos! A tia Isa e a Genoveva levavam as sanduíches para a copa. Que pândega!"
Este rapaz era o único ser, no mundo, para quem eu não era um espantalho. Algumas vezes, descia com ele até à ribeira, quando ele pescava à linha. Sempre vivo e alegre, sem nunca poder estar quieto, permanecia, contudo, horas inteiras, imóvel, atento, transformado num salgueiro, -e seu braço tinha movimentos tão lentos e silenciosos como os de um ramo. Genoveva tinha razão para dizer que ele nunca seria "literato". Nunca se dava ao incómodo de ir ver o luar no terraço. Não chegava a ter o sentimento da natureza porque era a própria natureza, confundido nela, uma das suas forças, uma nascente viva entre nascentes.
E eu punha-me a pensar em todos os elementos dramáticos daquela vida juvenil: a mãe, morta, o pai, de quem se não devia falar em nossa casa, o internato, o abandono. A mim, muito menos me teria sido preciso para transbordar de ódio e de amargor. Mas, nele, borbotava a alegria. Toda a gente o amava. Como isto me parecia estranho, a mim, a quem toda a gente odiava! Toda a gente o amava, até mesmo eu. E ele a toda a gente sorria, e também a mim; mas não mais do que aos outros.
Neste ser, todo instinto, o que me impressionou mais, à medida que ele ia crescendo, foi a pureza, aquela ignorância do mal, aquela indiferença. Nossos filhos eram bons, quero crer. Humberto teve uma juventude modelar, como tu dizes. Por esse lado, reconheço que a tua educação produziu os seus frutos. Se Lucas tivesse tido tempo de ser homem, teria ele também sido assim? A pureza, nele, não parecia adquirida, nem consciente: era a limpidez da água nos seixos. Brilhava nele, como o orvalho na erva. Se me detenho nestas coisas, é porque aquela pureza causou em mim profunda impressão. Os teus princípios tão proclamados sempre, as tuas alusões, os teus lábios franzidos, nunca me puderam dar a impressão do mal, que me foi infundida, nem eu sei como, por aquele rapaz; só muito tempo depois, tive consciência disso. Se a humanidade traz no seio, como tu crês, uma ferida original, parece-me que nenhum olhar humano a poderia encontrar em Lucas: ele saía das mãos do oleiro, intacto e com uma graça perfeita. Era junto dele que eu sentia a minha deformidade.
Poderei eu dizer que o amei como filho? Não, porque o que eu amava nele, era a falta de parecenças comigo. Sei muito bem o que Humberto e Genoveva receberam de mim: a aspereza, aquela primazia, que dão, na vida, aos bens temporais, aquele poder de apreço (Genoveva trata Alfredo, seu marido, de modo tão implacável, que se vê nela bem a minha marca). Em Lucas, estava eu certo de que não encontraria nada de meu.
Durante o ano, não pensava nele. O pai tomava conta do rapaz, nas festas do Ano bom e da Páscoa, e, nas férias grandes, recebíamo-lo nós em casa. Deixava a região em Outubro, com os outros passaritos.
Seria ele piedoso? Tu dizias dele: "Até num brutinho como Lucas, se encontra a influência dos Padres. Nunca falta à comunhão do domingo... se bem que a acção de graças, despacha-a num instante. Enfim, ninguém é obrigado a dar mais do que pode". A mim ninguém me falava dessas coisas; nem mesmo lhes fazia a mais pequena alusão. E as suas conversas referiam-se a tudo quanto havia de mais concreto. ÀS vezes, quando tirava do bolso o canivete, o flutuador da pesca, ou algum assobio para atrair as cotovias, caía-lhe ao chão o pequeno terço preto que logo apanhava rapidamente. Talvez, nos domingos de manhã, estivesse um pouco mais socegado que nos outros dias, menos estouvado, menos imponderável e como que carregado duma substância desconhecida.
Entre todos os laços que me prendiam ao Lucas, há um que talvez te admire: acomteceu-me, por mais duma vez, nesses domingos, reconhecer naquele cabritito que não pulava, o irmão da pequenina adormecida doze anos mais cedo, da nossa Maria, tão diferente dele, apesar de tudo, que não podia suportar que esmagassem um insecto, e que punha todos os encantos em atapetar de musgo a cavidade de alguma árvore para nela colocar uma estátua da Virgem, lembras-te? Pois, no filho da Marinette, naquele que tu chamavas o brutinho, era a nossa Maria que revivia para mim, ou antes, era a mesma nascente que brotara nela, e com ela se enterrara que, de novo, eu via surgir a meus pés.
Quando a guerra rebentou, o Lucas, andava nos quinze anos. Humberto fora mobilizado para os serviços auxiliares. As novas inspecções, que ele suportava com filosofia, a ti angustiavam-te. Sobre aquele peito apertado, que durante anos foi o teu pesadelo, repousava agora a tua esperança. Quando a monotonia dos escritórios, e alguns fumos de vaidade, lhe inspiraram o desejo de se alistar, e ele deu alguns passos nesse sentido, tu chegaste a falar abertamente do que tanto cuidado te dera a dissimular: "com aquele atavismo....", repetias tu.
Minha pobre Isa, não receies que te venha acusar. Nunca te interessei, nunca me observaste; mas durante aquele período, menos -que em qualquer outro. Não chegaste a pressentir a angústia que me subia na alma, à medida que as campanhas do Inverno se sucediam. O pai de-Lucas estava mobilizado num ministério, e nós tínhamos o pequeno connosco, não só durante as férias grandes, mas nas do Natal e da Páscoa. A guerra entusiasmava-o. Tinha medo de a ver acabada, ainda antes de chegar aos dezoito anos. Ele, que noutros tempos nunca abria um livro, devassava agora as obras de especialidade e estudava mapas. Como desenvolvia o corpo metodicamente, aos dezasseis anos era já um homem um homem duro. Não se comovia nem com feridos nem com mortos. Das narrativas mais negras e tétricas que eu lhe dava a ler, a respeito da vida de trincheiras, só tirava, a imagem dum desporto terrível e magnífico, que nem sempre se teria o direito de praticar. Era preciso andar depressa; daí, um medo horrível de chegar tarde! Até já trazia no bolso a autorização do imbecil do pai. Quanto a mim, à medida que se aproximava o 18 de Janeiro, aniversário fatal, ia seguindo, a tremer, a carreira do velho Clemenceau; vigiava-a, tal como os pais daqueles prisioneiros que espreitavam a queda de Robespierre, à espera que o tirano caísse antes que os filhos fossem julgados.
Quando o Lucas andou no acampamento de Songes, durante o período de instrução e treino, tu mandavas-lhe abafos e mimos; mas tinhas palavras que despertavam em mim o instinto do crime, minha pobre Isa, quando dizias: "Este pobre rapaz, seria muito triste, evidentemente... -mas, pelo menos, não faria falta a ninguém..." Como não hei-de eu reconhecer que não havia nada de escandaloso nestas palavras...
Um dia, vi bem que já não podia ter esperanças de que a guerra acabasse antes da partida do Lucas. Quando a frente se rompeu no Chemin-des-Damcs, veio despedir-se de nós, quinze dias mais cedo do que estava previsto. Ainda fez mais pena! Sempre terei coragem de lembrar aqui uma recordação horrível, que ainda me acorda de noite, e me faz gritar. Naquele dia, fui procurar, ao meu gabinete, um cinto de coiro encomendado ao correeiro, segundo um modelo que eu próprio lhe fornecera. Subi a um banco, e procurei puxar para mim a cabeça de gesso de Demóstenes, que encima a estante dos livros. Impossível movê-la. Estava cheia de luíses que eu ia ali escondendo a partir da mobilização. Mergulhei a mão nesse oiro, que era tudo o que eu mais amava no mundo, e atafulhei com ele o cinto de coiro. Quando desci do banco, aquela cobra entorpecida, enfartada de metal, enrolava-se-me ao pescoço, esmagando-me a nuca.
com gesto tímido, estendi-a ao Lucas. Ao princípio, não compreendeu logo o que eu lhe oferecia.
- Que vou eu fazer com tudo isso, tio?
- Pode-te servir nos acampamentos, se ficares prisioneiro... e em muitas outras ocasiões: com isto pode-se tudo.
- Ora! disse ele a rir, já tenho que chegue com o meu pré... Como é que se lhe meteu na cabeça que eu ia a carregar com tudo isso? A primeira entrada nas linhas de fogo, teria de atirar tudo às urtigas...
- Mas, ó rapaz, no princípio da guerra, todos aqueles que tinham dinheiro, levaram-no.
- Porque não sabiam o que os esperava, tio. O Lucas estava de pé, no meio da sala. Atirara
com o cinto de oiro para o divã. Aquele rapaz vigoroso, parecia agora franzino, no seu uniforme, grande demais para ele. Do colarinho aberto emergia-lhe o pescoço de soldadito. O cabelo à escovinha tirava-lhe do rosto todo o carácter individuante. Estava preparado para morrer, "paramentado", igual aos outros, indistinto, anónimo já e desaparecido. O seu olhar fixou-se, um instante, sobre o cinto, depois, ergueu-se para mim com uma expressão de brincadeira e desdém. Contudo, abraçou-me. Acompanhámo-lo até à porta. Voltou-se, ainda, para me dizer: "Mande tudo para o Banco de França". Eu já não via nada. Ouvi, apenas, que tu lhe dizias a rir: "Não contes com isso! É pedir demais!"
Fechada a porta, ainda eu permanecia imóvel no vestíbulo, quando tu me disseste. "Confessa que já sabias que ele não aceitava o teu dinheiro. Foi só para descarregares a consciência".
Lembrei-me, então, que o cinto ficara sobre o divã. Algum criado poderia dar com ele. Subi à pressa, carreguei-o de novo sobre os ombros para lhe esvaziar o conteúdo na cabeça de Demóstenes.
Mal dei conta da morte de minha mãe que sobreveio poucos dias depois: havia anos que ela estava inconsciente e já não vivia conosco. É agora que eu penso nela, todos os dias, na mãe da minha infância e da minha juventude: a imagem do que ela se tornara desvaneceu-se. Eu, que detesto os cemitérios, vou, algumas vezes, à sua sepultura. Mas nunca mais levei flores, desde que notei que as roubavam. Os pobres vêm surripiar as rosas dos ricos, por conta dos seus mortos. Seria preciso fazer a despesa duma grade; mas agora está tudo tão caro! Lucas, esse não teve sepultura. Desapareceu; é um desaparecido. Guardo na carteira o único postal que ele teve ocasião de me escrever: "Tudo às mil maravilhas, recebi a encomenda. Saudades". Está lá escrito: saudades. Apesar de tudo, consegui obter esta palavra do meu filho.
Esta noite, acordei, sufocado. Levantei-me, arrastei-me até à poltrona, e, no tumultuar de um vento furioso, reli estas últimas páginas - espantado com os subterrâneos que elas em mim iluminam. Antes de escrever, encostei-me à janela. O vento socegara. Calèse dormia sem arfar, sob todas as estrelas. De repente, pelas três horas da manhã, de novo voltou a borrasca, a rumorejar pelo céu, com grossas gotas geladas. Estalavam sobre as telhas de tal modo que tive medo do granizo; julguei que me parava o coração.
A flor da vinha já vingou; agora, a futura colheita cobre a colina, e parece que está ali como aqueles animaizitos novos que o caçador prende e abandona nas trevas, para atrair as feras; nuvens tempestuosas giram em redor das vinhas sem defesa.
Que me importam agora as colheitas? Já não posso recolher nada neste mundo. Só me posso conhecer melhor a mim mesmo. Escuta, Isa. Depois da minha morte, descobrirás entre os meus papéis, as minhas últimas vontades. Datam dos meses que seguiram a morte da Maria, quando eu estava doente o que tu te inquietavas por causa dos filhos. Lá encontrarás uma profissão de fé, concebida, pouco mais ou menos, nestes termos: "Se eu aceitar, no momento de morrer, o mínimo serviço de algum padre, protesto, antecipadamente, em plena lucidez, contra esse abuso feito ao meu enfraquecimento intelectual e físico, para se obter de mim o que a minha razão reprova". Pois bem. Devo-te confessar o contrário: é precisamente quando me olho, como o faço, de há dois meses a esta parte com uma atenção mais forte que a minha repulsa, é quando me sinto mais lúcido que a tentação cristã me atormenta. Não posso negar que existe em mim um caminho que me levaria ao teu Deus. Se eu conseguisse agradar-me a mim mesmo, combateria melhor esta exigência. Ou se pudesse desprezar-me, sem mais complicações, a causa também estaria arrumada. Mas a dureza do homem que eu sou, a nudez horrível do seu coração, este dom que ele tem, de inspirar o ódio e de criar à volta de si o deserto, tudo isto fica desarmado diante da esperança... Queres acreditar, Isa? Não foi talvez para vós, para os justos, que veio o teu Deus, se é que veio, mas para nós. Tu não me conhecias, nem sabias quem eu era. As páginas que acabaste de ler ter-me-ão tornado menos horrível aos teus olhos? Como estás a ver, existe em mim uma fibra secreta, aquela que Maria tocava só com aninhar-se nos meus braços; e também o Lucas, quando ao domingo, voltava da Missa e, sentado no banco, diante de casa, se punha a olhar a planície.
Não creias, porém, que eu faça, de mim mesmo, uma ideia muito levantada. Conheço bem o meu coração, este pobre coração, este nó de víboras; sufocado debaixo delas, saturado do seu veneno, continua a palpitar sob esse remexer sombrio. Nó de víboras que é impossível desatar, que seria preciso cortar com um cutelo ou com uma espada: Não vim trazer a paz mas a espada.
Bem pode ser que amanhã já eu renegue o que te confio agora, como reneguei, esta noite, as minhas últimas vontades de há trinta anos. Creio que odiei, com um ódio de expiação, tudo aquilo que tu professas, e, nem por isso, continuo a odiar menos aqueles que se arrogam o nome de cristãos; mas não será isso porque muitos amesquinham a esperança, desfiguram um rosto, aquele Rosto, aquela Face! Mas com que direito julgá-los, me dirás tu, eu que sou abominável? Isa, não haverá, na minha torpeza, um não sei quê, que se parece, mais que a virtude deles, ao Sinal que tu adoras? O que eu estou a escrever, deve aparecer aos teus olhos como alguma absurda blasfémia. Seria preciso provar-mo. Porque me não falas tu? Porque nunca me quiseste falar? Talvez uma palavra que partisse de ti, me tivesse feito uma aberta no coração... Esta noite, parece-me que ainda não seria demasiado tarde para recomeçarmos a nossa vida. E se eu não esperasse pela minha morte, para te entregar estas páginas? E se eu te suplicasse em nome do teu Deus que as lesses até ao fim? E se eu te espreitasse, no momento em que terminasses a leitura? se eu te visse entrar no meu quarto com o rosto banhado em lágrimas? E se tu me abrisses os braços? E se eu te pedisse perdão? E se nós caíssemos de joelhos, um diante do outro?
A tempestade parece amainada, e as estrelas brilham de novo. Julgava que estava outra vez a chover, mas são as folhas que gotejam. Se me estender sobre a cama, voltará a aflição? Mas também não posso escrever mais, e às vezes tenho de largar a pena e encostar a cabeça a este processo tão duro...
O sibilo dum animal, logo seguido dum estampido imenso e dum grande relâmpago, encheram o céu. No silêncio de pânico que se seguiu, rebentaram os morteiros que os vinhateiros atiram às nuvens de granizo para as afastar, ou fazer que se dissolvam em água. Brilharam foguetes daquele canto das trevas, onde Barsac e Sauternes tremem na espectativa do flagelo. O sino de S. Vicente, que afasta o granizo, toca com toda a força, como alguém que canta de noite, quando tem medo. De repente, parecia que tinham atirado sobre as telhas com um punhado de calhaus. Uma saraivada! Noutros tempos, teria saltado logo para a janela. Ouviam-se estalar as persianas dos quartos. Tu gritaste a um homem que atravessava o pátio a correr: "Haverá prejuízos?" Ele respondeu: "Felizmente que a pedra cai misturada com chuva, mas ainda assim, cai bastante". Uma criança assustada corria descalça pelo corredor. com o hábito, calculei logo: "Cem mil francos perdidos..." mas nem me mexi. Outrora, nada me teria contido - como quando me encontraram, uma noite, no meio das vinhas, de chinelos, com a vela apagada na mão, apanhando o granizo na cabeça. Era um profundo instinto camponês que me compelia, como se eu quisesse estender-me e recobrir com o meu próprio corpo a vinha lapidada.
Mas esta noite, fiquei estranho àquilo que era, em sentido profundo, o meu bem. Enfim, sinto-me desprendido. Não sei o quê, nem quem me desprendeu, Isa, mas as amarras estão quebradas; vou à deriva. Qual será a força que me arrasta? Alguma força cega? Algum amor oculto? Talvez um certo amor...
II PARTE
Paris, Rua Brea
Como me terá ocorrido meter este caderno entre a bagagem! E que vou eu fazer, agora, desta longa confissão? Entre mim e os meus, está tudo acabado. E aquela, a quem eu assim me revelava até ao fundo de mim mesmo, já não existe para mim. Para que retomar o trabalho? É que sem eu dar por isso, encontrava nele algum alívio e consolação. Que nova luz devassa o meu íntimo, naquelas últimas linhas, escritas na noite do granizo! Não estaria eu à beira da loucura? Não, não falemos aqui em loucura. Nem por sombras, se fale nessa palavra. Seriam capazes de se servirem dela contra mim se, por acaso, estas páginas lhes caíssem nas mãos. São páginas que já se não dirigem a ninguém. O que tenho é de inutilizá-las assim que me sentir pior... a não ser que as deixe a esse filho desconhecido que vim procurar a Paris. Tinha um desejo enorme de revelar a sua existência à Isa ,nas páginas em que fazia alusão aos meus amores de 1909, quando me encontrava a ponto de confessar que a minha amante estava grávida, quando partira, para se esconder em Paris...
Tinha-me eu por muito generoso porque enviava, à mãe e ao filho, seis mil francos por ano, antes da guerra. Nunca me veio a ideia de aumentar a pensão. Será por culpa minha, se vier encontrar aqui dois seres escravizados, diminuídos por trabalhos ordinários. com o pretexto de que eles habitam este bairro, hospedei-ane numa casa de família da rua Bréa. Entre a cama e o armário, mal tenho espaço para me sentar e escrever. E que barulheira! No meu tempo, Montparnasse era socegado. Agora, parece povoado de doidos que nunca dormem. A minha gente fazia bem menos ruído, diante do patamar de Calèse, naquela noite em que eu vi com os meus olhos, e ouvi com os meus ouvidos... Mas, para quê revolver o passado? Seria, no entanto, consolador fixar essa lembrança atroz, ainda que fosse por pouco tempo... E depois, para quê destruir estas páginas? O meu filho, o meu herdeiro, tem o direito de me conhecer. Por esta confissão, repararei, de algum modo, o afastamento em que o tive desde que nasceu.
Mas, ai! Bastaram-me duas entrevistas para o conhecer. Não é homem para encontrar neste caderno qualquer coisa que o interesse. Que pode ele compreender aqui, esse empregado subalterno, esse embrutecido, que joga nas corridas de cavalos?
Durante a viagem de Bordéus a Paris, durante a noite, vinha eu fantasiando as censuras que ele me dirigiria, e preparando a defesa. Como nós nos deixamos influenciar pelos lugares comuns dos romances e dos dramas! Pensava eu que teria de tratar com um filho natural, cheio de amargor e de grandeza de alma! E ora lhe emprestava a dura nobreza do Lucas, ora a beleza do Phili. Previra tudo, menos que ele se parecesse comigo. Poderá haver pais que se alegrem quando lhes dizem: "Olhe que o seu filho parece-se muito consigo?"
Só medi bem todo o ódio que me tenho, ao ver levantar-se esse espectro de mim mesmo. O que eu amei em Lucas foi um filho que não se parecia comigo. Há apenas um. ponto, em que Roberto se afasta de mim: mostrou-se sempre incapaz de fazer com êxito o mais simples exame. Teve de renunciar aos estudos, depois de desastres repetidos. A mãe, que se tinha matado por ele, até chega a desprezá-lo. Não se pode conter que não aluda ao caso continuamente; o rapaz baixa a cabeça, e o que mais lhe custa é ter-se gastado tanto dinheiro. Por aí, em compensação, é bem meu filho. Mas o que eu lhe dou de mão beijada, esta enorme fortuna, isso excede-lhe a imaginação miserável. Não lhe diz nada; nem mesmo acredita. No fim de contas, o que ele e a mãe têm, é medo. "É uma coisa ilegal... podemos ser presos..."
Esta mulher, pesada e pálida, de cabelos grisalhos, pobre caricatura do que eu amei, fixa sobre mim o olhar ainda belo, e diz-me: "Pois olhe, que se o tivesse encontrado na ma, não o teria reconhecido.
E eu? Tê-la-ia reconhecido a ela? Eu viera com receio do seu rancor, das suas represálias. Receava tudo, menos esta desbotada indiferença. Amargada, embrutecida por oito horas diárias de escrever à máquina, tem medo de complicações. Ficou com uma desconfiança doentia da justiça, com a qual teve outrora questões. Mas eu expliquei-lhe bem a manobra: Roberto arranjava um cofre, em seu nome, numa casa bancária; eu transportava para lá a minha fortuna. Ele passava-me procuração para eu o abrir, e obrigava-se a não lhe tocar senão depois da minha morte. Evidentemente, exijo-lhe que me assine uma declaração onde reconheça que tudo o que o cofre contém me pertence a mim. Porque, é claro, não me posso entregar a um desconhecido. Mãe e filho objectam-me que, depois da minha morte, se pode encontrar o papel. Estes idiotas não se resolvem a confiar em mim.
Tentei fazer-lhes compreender que a gente se pode fiar num procurador de província, como Bourru, que me deve tudo o que é, e com quem tenho negócios há quarenta anos. É ele o depositário dum sobrescrito onde eu escrevi: "para queimar no dia da minha morte", e que será queimado, estou certo disso, com tudo o que está dentro. É nesse sobrescrito que porei a declaração de Roberto. E estou tanto mais certo que Bourru o queimará, quanto lá se contêm documentos que ele tem todo o interesse em ver desaparecer.
Mas Roberto e a mãe ainda receiam que depois da minha morte Bourru não queime nada, e os ameace com revelações comprometedoras. Em tudo isso pensei: entregar-lhes-ei, de mão própria, as provas suficientes para mandar o sobredito Bourru para os trabalhos forçados se ele se atreve a bulir. O papel será queimado por Bourru diante deles, e é só nessa altura que eles lhe entregarão as armas fornecidas por mim. Que mais querem?
Mas não compreendem nada, ficam para ali, a teimar, uma idiota e um imbecil, a quem trago milhões, e que em vez de caírem de joelhos diante de mim, como eu contava, se põem a discutir e a contestar tolamente... E mesmo que corressem algum risco? Não valia bem a pena? Mas não, não querem assinar o papel: que seria já muito complicado com as declarações de capitais... que teriam muitas trapalhadas...
Ah! muito devo eu odiar os outros para não bater com a porta na cara a estes dois. Também é dos "outros" que eles têm medo. "Ainda vão a descobrir tudo... e depois, levantam-nos algum processo..." Roberto e a mãe até imaginam que a minha família avisou já a polícia e que eu ando a ser vigiado. Não querem encontrar-se comigo senão de noite, ou nos bairros afastados. Como se eu, com a minha saúde, pudesse passar as noites em claro, e fazer vida em táxis. Por mim, não creio que os outros desconfiem. Não é a primeira vez que viajo sozinho, e não têm a mais pequena razão para desconfiar que, na outra noite, em Calèse, eu assistia invisível ao seu conselho de guerra. Em todo o caso, ainda me não encontraram o rasto. Nada impedirá que eu atinja o meu fim. E no dia em que Roberto consinta em ir para diante, poderei dormir tranquilo. Esse pusilânime não cometerá imprudências.
Nesta noite, de 13 de Julho, está uma orquestra a tocar ao ar livre; lá ao fim da rua Bréa, os pares dansam. Ó tranquila Calèse! Lembro-me bem da última noite que lá passei; apesar da proibição do médico, tinha tomado um comprimido de Veronal, e adormecera profundamente. Despertei, sobressaltado, e olhei para o relógio; uma hora, depois da meia noite. Assustei-me ao ouvir vozes: a janela tinha ficado aberta; não estava ninguém no pátio, nem no salão. Passei para o toucador, que abre para o norte, do lado do patamar. Era ali que tinha ficado a família, contra o costume. Àquela hora avançada da noite, não desconfiavam de ninguém: só dão para aquele lado as janelas do toucador e do corredor.
A noite estava calma e quente. Nos intervalos de silêncio, ouvia-se de vez em quando, a respiração entrecortada de Isa, ou o riscar de algum fósforo. Nem um sopro movia os ulmeiros escuros. Não me atrevia a debruçar-me, mas reconhecia cada inimigo pela voz e pelo riso. Não discutiam. Apenas uma ou outra reflexão de Isa ou de Genoveva era seguida do longo silêncio. De repente, a uma palavra de Humberto, Phili exaltava-se, e falavam todos ao mesmo tempo.
"A mamã está certa que o cofre forte do gabinete contém apenas papéis sem valor? Os avarentos são imprudentes. Lembre-se do dinheiro que ele quis dar ao Lucas... Onde o tinha ele escondido?
- Ele sabe bem que eu conheço a palavra do segredo que é: Maria. Só o abre quando tem que consultar alguma apólice de seguros, ou os papéis das contribuições.
- Mas, minha mãe, tudo isso nos poderia já indicar as somas que ele nos esconde.
- esstou mais que certa que não há ali senão papéis que dizem respeito aos bens imóveis...
- O que é bem significativo, não é verdade? Vê-se que tomou todas as precauções".
Phili, num bocejo murmurou: - Mas que crocodilo! Que sorte a minha em ter vindo parar ao pé dum crocodilo destes.
- Se querem saber a minha opinião, declarou Genoveva, no cofre do Lyonnais também não encontramos nada... Que dizes tu, Janine?
- Mas, ó mamã, às vezes parece que o avô ainda a estima um bocadinho. Quando a mamã e o tio eram pequenos, o avô não seria, pelo menos algumas vezes, amável e bondoso?... Não era?! Então é que o não souberam levar. Foi falta de jeito. Deviam cercá-lo de carinho para o conquistar. Eu estou certa que o teria conseguido, se não fosse a antipatia que ele tem pelo Phili.
Humberto interrompeu a sobrinha, aborrecidamente :
- Sim. A impertinência do teu marido há-de sair-nos cara...
Ouviu-se o riso de Phili. Debrucei-me um pouco. A chama dum isqueiro iluminou-lhe por um instante as mãos juntas, o queixo flácido e os lábios grossos.
- Ora, ora, não precisaram de esperar por mim para ele os detestar...
- Não senhor, dantes não nos aborrecia desta maneira...
- Pois sim. Lembrem-se do que conta a avó, retorquiu Phili. De quando lhe morreu a filhita... Parece que tinha todo o ar de não se ralar muito... Nunca pôs os pés no cemitério...
-? Não, Phili, isso também já é demais. Se ele amou alguém neste mundo, foi a Maria.
Se não fora este protesto de Isa, feito com voz fraca e trémula, eu não teria conseguido conter-me. Sentei-me numa cadeira baixa, com o corpo debruçado para a frente, e a cabeça encostada ao parapeito da janela. Genoveva continuou:
- Se a Maria tivesse vivido, nada disto teria acontecido. O mais que podia fazer era favorecê-la a ela...
- Olha, olha! Teria antipatizado com ela como com os outros. É um monstro! Não tem sentimentos humanos...
Isa, mais uma vez, protestou:
- Peço-lhe, Phili, que não trate assim o meu marido, diante de mim e diante dos filhos dele. Guarde-lhe respeito.
- Respeito? Respeito?
Pareceu-me ouvi-lo murmurar entre dentes: "Se pensam que me é muito agradável ter entrado numa família destas..." A sogra respondeu-lhe secamente:
- Ninguém o obrigou.
- Mas acenaram-me com mundos e fundos... Olha, olha! está a Janine a choramingar. Mas porquê? Que terei eu dito de extraordinário? Ora esta! resmungava ele em tom desdenhoso.
Depois, não ouvi mais nada, senão Janine a assoar-se. Uma voz, que não pude identificar, murmurou :
- Quantas estrelas!
O relógio de S. Vicente deu as duas.
- São horas de ir para a cama, filhos. Humberto protestou que não se podiam separar, assim, sem ter decidido nada. Era tempo de agir. Phili aprovou. Pensava ele que eu não podia durar muito; e depois, nada feito. Deviam tomar-se, antes, todas as precauções...
- Mas, filhos, que é que esperam de mim? Já tentei tudo. Não posso fazer mais nada.
- Pode! disse Humberto. Pode, sim senhor... Que terá ele murmurado? O que eu tinha mais
interesse em -saber, escapou-me. Pelo acento de Isa, compreendi que ela se tinha surpreendido e escandalizado :
-Não, não me agrada lá muito tudo isso...
- Não se trata de saber se lhe agrada ou não, mamã, mas sim de salvar o nosso património.
Mais alguns murmúrios indistintos, cortados por Isa:
- É muito duro, meu filho.
- Mas a avó não pode ser assim cúmplice, por mais tempo. Só com o seu consentimento é que ele nos deserda. E o seu silêncio ajuda-o.
- Janine, filha, como te atreves tu... Pobre Isa, que tantas noites passou à cabeceira daquela pequena berrona; que a chegou a levar para o próprio quarto, porque os pais queriam dormir, e nenhuma ama a podia aturar... Janine falara secamente, com um tom que bastaria para me pôr fora de mim. E acrescentou:
- Custa-me muito dizer-lhe estas coisas, avó. Mas é o meu dever.
O seu dever! Dava esse nome à exigência da carne, ao terror de se ver abandonada por esse garoto cujo riso idiota eu ouvia...
Genoveva deu razão à filha: certamente que a fraqueza podia tornar-se cumplicidade. Isa suspirou :
- Olhai, filhos, talvez fosse mais simples escrever-lhe.
- Ah! isso é que não! Cartas nem por sombras!
- protestou Humberto. - São sempre as cartas o que nos perde. Suponho que a mamã nunca lhe terá scrito?...
Isa confessou que me escrevera, duas ou três vezes.
- Mas não foram cartas com ameaças, ou com Injúrias?
Isa hesitava em confessar que sim. E eu, eu ia-me rindo... Sim, ela escrevera-me cartas, que eu guardava preciosamente; duas continham injúrias graves, e uma terceira era quase terna, capaz de fazer-lhe perder todos os processos de separação, que os imbecis dos filhos a levassem a intentar contra mim. Foi então que todos se inquietaram, como quando um cão grunhiu, e o resto da matilha começa a rosnar.
--Mas que é que lhe escreveu, avó? Então ele conserva alguma carta perigosa para nós?
-Não, julgo que não... Quero dizer: uma vez, Bourru, o procurador de S. Vicente que meu marido tem nas mãos, não sei porque motivo, disse-me a lagrimejar (ele é um canalha, um grande grande maroto) disse-me ele:
- Oh! minha senhora, foi uma grande imprudência ter escrito...
- Mas que é que lhe escreveu? Naturalmente não terão sido insultos...
- Uma vez foram censuras um tanto violentas, depois da morte da Maria. E outra vez, em 1909: tratava-se duma ligação mais a sério que as outras.
Humberto resmungou:
- Pois isso é que não tem jeito nenhum, mesmo nenhum...
Isa, julgando que o socegava, afirmou-lhe que tinha arranjado muito bem as "coisas, pois tinha apresentado desculpas, e reconhecido as ofensas.
- Ainda por cima, isso é o cúmulo!...
- Então agora já ele não tem nada a temer dum processo de separação...
- Mas que provas há no fim de contas, de que as suas intenções sejam tão negras?
- Ora pois! É preciso ser cego para o não ver. Primeiro, o mistério e o segredo das suas operações financeiras; depois, várias alusões dele mesmo; e ainda aquela palavra que escapou a Bourru, diante de testemunhas: "Quando o velho morrer, eles hão-de deitar a língua de fora..."
Discutiam, agora, como se a mãe não estivesse presente. Isa levantou-se da poltrona, com um gemido. Fizera mal, dizia ela, em estar sentada, ao relento da noite, com aquele reumatismo. Mas os filhos nem sequer lhe responderam. Ouvi umas vagas "boas noites" que lhe dirigiram, sem se interromperem. Foi ela que teve de ir de roda a beijá-los, pois ninguém se quis incomodar. Por prudência, fui-me deitar. Ouvi-lhe o andar pesado pelas escadas. Veio até à minha porta, ofegante. Pôs a vela no chão, e abriu, conservando-se perto da minha cama. Debruçou-se sobre mim, certamente para se certificar que eu estava -a dormir. Demorou-se tanto tempo que eu receei trair-me. Sentia-lhe a respiração entrecortada. Enfim, saiu. Quando a senti fechar a porta do quarto, voltei ao toucador, num rasto de observação.
Ainda lá estavam os filhos. Falavam agora a meia voz, e muitas das suas palavras não as conseguia apanhar.
- Foi um casamento desigual, dizia Janine, é preciso não esquecer. Phili, meu amor, tu estás a tossir. Veste o sobretudo, anda.
- No fundo, não é à mulher que ele mais detesta, é a nós. É uma coisa inaudita! Disto, não se encontra, nem nos livros. É claro que não temos o direito de julgar a nossa mãe, concluiu Genoveva, mas acho que ela não lhe sabe pagar na mesma moeda...
- Ora bolas! (era a voz de Phili) mas o dote tem-no ela seguro. As acções de Suez do pai Fondaudège... acho que devem ter subido bem, desde 1884...
- De Suez? foram vendidas...
Era agora, o gaguejar hesitante do marido de Genoveva: aquele pobre Alfredo não dissera ainda uma palavra. Genoveva interrompeu-o, com aquele tom azedo e agudo que lhe reserva a ele:
- Estás doido? As acções vendidas? Alfredo contou, então que, no mês de Maio, entrara no quarto da sogra no momento em que ela assinava uns papéis e que ela lhe dissera: "Parece que é agora o momento favorável de as vender; subiram muito, mas vão baixar".
- E não nos avisaste de nada? - gritou Genoveva. - És tolo de todo. Então, ele levou-a a vender os Suez? E tu dizes isso como se fosse a coisa mais natural deste mundo...
- Supunha eu que tua mãe vos trazia ao corrente de tudo. Pois não casou ela em regime de separação de bens?...
- Sim, mas terá sido ele a embolsar os lucros. Que te parece, Humberto? Dizer que ele nos poderia ter avisado! E tenho eu vivido, toda a minha vida, com um hornem destes...
Janine interveio? pedindo que falassem mais baixo: ainda iam acordar-lhe a filhita. Durante alguns minutos, nada percebi. Depois, ouviu-se de novo a voz de Humberto:
- Estou a pensar naquilo de há bocado. Por esse lado, nada podemos tentar com a mãe. A não ser que a fôssemos preparando, pouco a pouco...
- Talvez ela o preferisse à separação. Desde que a separação leva necessariamente ao divórcio, a questão torna-se um caso de consciência... Evidentemente, a ideia de Phili, à primeira vista, causa impressão. Mas quê! Não seríamos nós os juizes. E em último caso, nunca somos nós que decidimos. O nosso papel consiste em provocar a coisa. Que só se levaria a efeito se fosse reconhecida como necessária pelas autoridades competentes.
- Pois eu, então, digo-vos que isso seria o mesmo que açoitar o mar - declarou Olímpia.
Era preciso que a mulher de Humberto estivesse exaltada para assim levantar a voz. Afirmou que eu era um homem ponderado e de são juízo "com o qual, acrescentou ela, devo dizer que estou muitas vezes de acordo; voltá-lo-ia do avesso, como uma luva, se me não estragassem o trabalho..."
Não ouvi a insolência que lhe deve ter respondido Phili; mas todos se riram, como fazem sempre que Olímpia abre a boca. Ainda apanhei alguns restos de frases:
- Há cinco anos que ele já não advoga, nem pode advogar.
- Será por causa do coração...
- Agora é. Mas quando deixou o Tribunal, ainda não estava muito doente. A verdade é que andava sempre em contendas com os colegas. Chegou a haver cenas nos Passos Perdidos, das quais já recolhi testemunhos.
Foi em vão que apurei o ouvido. Phili e Humberto tinham aproximado as cadeiras. Apenas ouvi um murmúrio indistinto, e depois, esta exclamação de Olímpia:
- Ora esta! o único homem com quem eu posso falar das minhas leituras e trocar ideias gerais, queriam vocês..."
Da resposta de Phili, apenas percebi a palavra "tola". Um genro de Humberto, aquele que quase nunca fala, disse com voz abafada:
- Se faz favor, seja delicado com a minha sogra.
Phili protestou que era a brincar. Não eram eles ambos vítimas, neste caso?
Quando o genro de Humberto afirmou, com voz trémula, que não se considerava como vítima, pois casara por amor, todos fizeram coro: "Também eu! Também eu! Também eu!" Genoveva repontou, com ar de troça, ao marido:
--Ah! também tu! És tu que te gabas de ter casado comigo, sem conheceres a fortuna de meu pai? Mas lembras-te que, na noite do casamento, me disseste: "não faz mal que o teu pai não queira dizer nada acerca da fortuna, se nós sabemos muito bem que ela é enorme!"
Houve gargalhada geral, e confusão de vozes. Humberto levantou de novo a voz, e falou alguns instantes. Apenas lhe ouvi a última frase:
- É uma questão de justiça, uma questão de moralidade o que está acima de tudo. O que nós defendemos é o património, os direitos sagrados da família.
No silêncio profundo que precede a aurora, as conversas chegavam-me agora mais distintas.
- Procurar segui-lo? Mas ele tem muitas relações com a polícia, tenho a prova disso; avisavam-no... (e alguns instantes depois) a sua dureza e rapacidade são bem conhecidas; também é preciso que se saiba que em dois ou três negócios se pôs em dúvida a sua honradez. Mas pelo que diz respeito a bom senso e a equilíbrio...
- Em todo o caso, não se lhe pode negar um carácter desumano, monstruoso, anti-natural, nos sentimentos a nosso respeito...
- E pensas tu, Janine, disse Alfredo à filha, que já bastaria isso para se estabelecer um diagnóstico?
Estava a compreender, tinha compreendido tudo. Uma grande calma se apoderou de mim, o socego nascido desta certeza: os monstros eram eles, e eu a vítima. A ausência de Isa causava-me alegria. Enquanto ela estivera presente, mais ou menos protestara sempre-; diante dela, não se atreveram a aludir a esses projectos que eu acabava de surpreender, e que aliás, me não assustavam. Pobres imbecis! Como se eu fosse homem a quem eles pudessem internar ou dar por interdito. Antes que mexessem um dedo, teria eu entalado Humberto, numa situação desesperada. Ele nem imagina que está nas minhas mãos. Quanto a Phili, tenho uma pasta com documentos... Nunca me passou pela cabeça que ainda me pudesse servir deles. Mas não, não me servirei de coisa nenhuma: bastará mostrar os dentes.
Pela primeira vez na vida, experimentava a alegria de não ser o pior. Nem sentia desejos de me vingar deles. Ou por outra, não queria outra vingança se não a de lhes arrancar essa herança, em redor da qual se mirravam de impaciência e suavam de angústia.
- Olha uma estrela cadente! - gritou Phili... Nem. tive tempo de exprimir nenhum desejo.
- Nunca se tem tempo! - disse Janine.
O marido replicou, com aquela alegria de criança que sempre conservara:
- Quando vires alguma, diz logo: "milionária!"
- Que cabecinha a tua, Phili! Levantaram-se todos. As poltronas do jardim rangiam na areia. Ouviu-se o ruído dos ferrolhos da entrada, e o riso abafado de Janine no corredor. As portas dos quartos foram-se fechando uma a uma. O meu partido estava tomado. Como havia dois meses que não tinha nenhuma crise, nada me impedia de ir a Paris. Geralmente, partia sem avisar. Mas não queria agora que esta partida se parecesse com uma fuga.
Até ao levantar, retomei, de novo, os meus antigos planos, e actualizei-os.
Quando, ao meio dia, me levantei, não sentia o mais leve cansaço. Bourru, chamado pelo telefone, veio depois do almoço. Passeámos, para cima e para baixo, durante três quartos de hora, debaixo das tílias. Isa, Genoveva e Janine observavam-nos de longe, enquanto eu ia gozando com aquela aflição. Que pena que os homens tivessem ido para Bordéus! Eles que dizem do velho procurador: "Bourru é que é a alma danada dele". Miserável Bourru, que eu tenho nas mãos,, mais seguro que um escravo! Era vê-lo esta manhã, o pobre diabo, a debater-se para que eu não entregue armas contra ele, ao meu herdeiro eventual... "Mas, disse-lhe eu, ele desfaz-se de tudo, assim que você queimar o reconhecimento assinado por ele..."
Quando se foi embora, cumprimentou respeitosamente as senhoras, que mal lhe responderam, e pedalou desajeitadamente na bicicleta. Juntei-me às três mulheres, e anunciei-lhes que partia para Paris, naquela mesma tarde. Como Isa protestasse que, no meu estado, era uma imprudência viajar sozinho, respondi:
- Tenho de tratar da colocação de dinheiros. Ainda que o não pareça, penso em vós.
Observaram-me com olhar ansioso. O acento irónico atraiçoava-me. Janine olhou para a mãe, e atreveu-se:
- A avó ou o tio Humberto, podiam substituí-lo, avô.
- Seria uma solução, minha filha... Era mesmo muito boa ideia! Mas olha: habituei-me sempre a fazer tudo por mim. E depois, bem sei que está mal, mas não tenho confiança em ninguém.
- Nem mesmo nos filhos? Oh! avô! Pronunciava aquele "avô", com um tom de voz
precioso. Tomava um ar mavioso irresistível, aquela voz exasperante que eu ouvira, de noite, misturada com as outras... Então, pus-me a rir, com aquele riso perigoso que me faz tossir, e que visivelmente as -alterava. Não esquecerei nunca aquela pobre figura de Isa, de ar extenuado. Deveria ter sofrido repetidos assaltos. Janine ia provavelmente voltar à carga, assim que eu virasse as costas: "Não o deixe partir, avó..."
Mas minha mulher já não era para ataques, não podia mais, sem forças, esgotada de fadiga. Um destes dias, ouvi-a dizer à Genoveva: "O que eu queria era deitar-me, adormecer e não acordar nunca..."
Tinha pena dela agora, como a tivera da minha pobre mãe. Os filhos impeliam contra mim aquela velha máquina já gasta, incapaz de servir.
Eles amavam-na, sem dúvida, mas à sua maneira; obrigavam-na a consultar o médico, a seguir tratamentos.
A filha e a neta afastaram-se, e Isa aproximou-se de mim:
- Ouve, disse ela muito depressa, preciso de dinheiro.
- Estamos ainda a 10. Dei-te a tua pensão no primeiro do mês.
- É verdade, mas tive de adiantar dinheiro a Janine: estão em situação crítica. Em Calèse, faço economias; descontas-mo na pensão de Agosto...
Respondi que tudo isso me não dizia respeito, que não tinha obrigação nenhuma de sustentar esse tal Phili,
- É que tenho contas em atraso no talho, na mercearia... Olha.
Tirou-as do saco. Causava-me pena. Ofereci-lhe antes assinar cheques, "assim, estou seguro que o dinheiro não foge para outro lado..." Concordou. Tomei o caderno de cheques, e notei que na álea das roseiras, Janine e a mãe nos observavam.
- Ainda ia jurar, disse eu, que elas estão a pensar que tu me falas noutro assunto...
Isa estremeceu, e perguntou em voz baixa:
- Mas que assunto?
Naquele momento, senti um aperto no peito. Cruzando as mãos, fiz o gesto que ela conhecia muito bem. Aproximou-se:
- Não estás bem?
Agarrei-me, um instante, ao braço dela. Dávamos a impressão, no meio da álea das tílias, de dois esposos que acabam de viver anos seguidos de profunda união. Murmurei em voz baixa:
- Já estou melhor.
Isa devia ter pensado que era aquele o momento de falar, a ocasião única. Mas já não tinha forças. Notei como ela também estava arquejante. Por muito doente que eu estivesse, tinha resistido. Mas ela entregara-se, dera-se, e já nada tinha de seu. Andava à procura da palavra própria, voltava os olhos às escondidas, para o lado da filha e da neta, como para se incutir coragem. Descobri-lhe no olhar levantado para mim, uma lassidão sem nome, talvez piedade, mas sobretudo, um pouco de confusão. Os filhos, naquela noite, deviam tê-la maguado.
- Fico em cuidado ao ver-te partir sozinho. Respondi-lhe que, se me acontecesse alguma
desgraça na viagem, não valia a pena trazerem-me para aqui.
E como ela me pedisse que não falasse nessas coisas, acrescentei:
- Seria uma despesa inútil, Isa. A terra dos cemitérios é a mesma em toda a parte.
-. Também assim penso, suspirou ela. Podem levar-me para onde quiserem. Noutros tempos, ainda queria descansar junto da Maria... mas hoje, que resta da Maria?
Ainda desta vez, via-se bem que, para ela, a sua Mariazinha, não passava de pó e ossadas. Não me atrevi a protestar que, por mim, já havia anos, sentia a minha filha viver, que a respirava e que, muitas vezes, ela atravessava a minha vida tenebrosa, como um sopro repentino.
Em vão Genoveva e Janine a espiavam; Isa parecia cansada. Teria ela medido o nada porque lutava havia tantos anos? Genoveva e Humberto empurrados, eles também, por seus próprios filhos, lançavam contra mim aquela mulher avelhentada, Isa Fondaudège, a rapariga perfumada das noites de Bagnères.
Tínhamos feito quase meio século de lutas. E eis que, nesta tarde quente, os dois adversários, apesar de tão longo combate, sentiam as cadeias que cria a cumplicidade da velhice. Parecendo odiarmo-nos, tínhamos chegado ao mesm:o ponto. Não havia nada, nada existia para além desse promontório, onde esperávamos a morte. Para mim, pelo menos. A ela restava-lhe o seu Deus; devia-lhe restar, pelo menos. Tudo aquilo a que ela se agarrara, tão desesperadamente, como eu. falhava-lhe, de repente : todas aquelas ambições que se interpunham entre ela e o Ser infinito. Via ela agora Aquele de que nada a separava já? Não creio, ficavam-lhe, as ambições e as exigências dos filhos. Estava carregada com os desejos deles. Tinha que recomeçar a ser dura, por procuração: cuidados de dinheiro, de saúde, cálculos ambiciosos e invejosos, tudo estava ali, diante dela, como aqueles temas de estudante, onde o professor escreve: refazer de novo.
Voltou, mais uma vez, os olhos para o passeio onde Genoveva e Janine, armadas de tesouras, fingiam limpar as roseiras. Do banco onde me sentara para respirar melhor, ia vendo minha mulher a afastar-se, de cabeça baixa, como criança a quem vão ralhar. O sol ardente anunciava trovoada. Isa caminhava com o passo daqueles para quem andar é sofrer. Parecia-me ouvi-la gemer: "Ai as minhas pobres pernas!" Dois velhos esposos nunca se detestam tanto como julgam.
Lá chegou junto da filha e da neta que, evidentemente, lhe dirigiram censuras. De repente, vi-a voltar para mim, afogueada, ofegante. Sentou-se a meu lado e queixou-se:
- Este tempo de trovoada cansa-me; nestes dias, sinto a tensão muito alta... Ouve, Luís, há uma coisa que me dá cuidado... As acções de Suez do meu dote, como é que tu as colocaste? Lembro-me ainda que me disseste que assinasse outros papéis...
Indiquei-lhe a soma de enormes lucros, que realizara para ela, na véspera da baixa, e expliquei-lhe a colocação, que tinha efectuado, em obrigações:
- O teu dote, teve filhos, Isa. Mesmo levando em conta a depreciação do franco, ficarás deslumbrada. Tudo está em teu nome,- no banco de Westminster: o teu dote inicial e os rendimentos... Os filhos não têm nada que ver... podes estar socegada. Sou senhor do meu dinheiro e do que o meu dinheiro render, mas o que é teu, é teu. Ora, vai lá socegar esses anjos do desinteresse que estão lá em baixo.
Agarrou-me no braço bruscamente:
- Mas porque os detestas tu, Luís? Porque aborreces assim a tua família?
- Vocês é que me aborrecem. Ou, antes, são os meus filhos que me aborrecem. Tu... tu ignoras-me, excepto quando te irrito, ou te assusto.
- Poderias também acrescentar: "ou te torturo..." Julgas que não sofri muito, noutros tempos?
- Ora, ora. Tu não tinhas olhos senão para os filhos...
- Porque tinha que me voltar para eles. Senão fossem eles, quem tinha eu? (E em voz baixa:) Tu abandonaste-me e enganaste-me, logo no primeiro ano, bem o sabes.
- Vamos lá, minha pobre Isa, não me irás fazer acreditar que as minhas loucuras te tenham magoado muito... No teu amor próprio de mulher, talvez...
Ela sorriu amargamente:
- O mais interessante é que pareces falar a sério! Quando penso que tu nem sequer reparaste...
Estremeci de esperança. O que é estranho, pois se tratava de sentimentos já vividos e mortos. A esperança de ter sido amado quarenta anos mais cedo, sem dar por isso... Mas não, não era possível...
- Tu nem tiveste uma palavra sequer, um grito... Os filhos chegavam-te.
Isa ocultou o rosto entre as mãos. Nunca eu reparara, como nesse dia, naquelas malhas e naquelas veias grossas.
- Sim, os meus filhos; quando penso que, a partir do momento em que nós fizemos quatro à parte, me privei, durante anos, de ter algum comigo, mesmo quando estavam doentes, sempre na esperança do teu regresso... Sempre esperei que voltasses.
Corriam-lhe as lágrimas sobre as mãos envelhecidas. Era Isa; só eu podia reconhecer ainda, nessa mulher pesada e quase doente, a rapariga votada ao branco, da estrada do vale do Lys.
- É uma vergonha, e é até ridículo, na minha idade, lembrar estas coisas... Sim, sobretudo, ridículo. Perdoa-me Luís.
Eu olhava para as vinhas, sem responder. Uma dúvida me sobreveio naquele momento. Será possível que, durante perto de meio século, se não observe senão um aspecto da criatura que partilha a nossa vida? Poderá ser que nós façamos, por hábito, a escolha das suas palavras e de seus gestos, retendo somente as que nos alimentam as queixas e sustentam os rancores? Tendência fatal para simplificar os outros-, eliminação de todos os traços que tornariam a carga mais suave, e mais humana a caricatura de que o nosso ódio precisa para sua justificação...
Terá Isa observado a minha perturbação? Procurou logo marcar um ponto:
- Não partes esta noite, pois não? Pareceu-me ainda ver-lhe nos olhos o mesmo clarão, como quando ela julgava "ter-me apanhado". Fingi admiração, e respondi que não tinha razão nenhuma para adiar a viagem. Voltámos juntos. Por causa do meu coração, não tomámos o declive dos canaviais e seguimos a avenida das tílias que contorna a casa. Apesar de tudo, ainda estava duvidoso e agitado. E se eu não partisse! Se desse este caderno a Isa? Se... Ela encostou-me a mão ao ombro. Há quantos anos não fizera semelhante gesto? A álea desemboca diante da casa, do lado do norte. Foi quando Isa disse:
- O Manuel nunca arruma as cadeiras do jardim...
Olhei distraidamente. As cadeiras vazias formavam ainda um círculo apertado. Os que as tinham ocupado sentiram a necessidade de se aproximar, para falar em voz baixa. A terra estava calcada pelos tacões. Por toda a parte, pontas dos cigarros que Phili fuma. O inimigo tinha acampado ali, naquela noite, reunindo conselho sob o céu estrelado. Tinham falado aqui, na minha casa, diante das árvores plantadas por meu pai, de me darem por interdito ou de me internarem. Numa noite de humildade, comparei o meu coração a um nó de víboras. Não, não; o nó de víboras não está em mim. Elas é que saíram de mim, e se enrolaram, esta noite; eram elas que formavam o círculo hediondo ao fundo do patamar, e a terra apresentava ainda o seu rasto.
O teu dinheiro, tu o encontrarás, Isa, ia eu pensando, o teu dinheiro que eu fiz render. Mas só isso, e nada mais. Estas mesmas propriedades eu arranjarei maneira que eles as não venham a ter. Venderei Calèse; venderei as charnecas. Tudo o que era da minha família, irá para esse filho desconhecido, para esse rapaz com quem amanhã terei uma entrevista. Seja ele o que for, não vos conhece; não tomou parte nas vossas conjuras, foi educado longe de mim e não pode odiar-me; ou, se me odeia, o objecto do seu ódio é um ser abstracto, sem relação comigo.
Encolerizado, libertei-me, e subi apressadamente os degraus da entrada, esquecendo o meu velho coração doente. Isa ainda gritou: "Luís!" Nem sequer me voltei.
Não conseguindo dormir, vesti-me e saí para a rua. Para chegar à Avenida Montparnasse, tinha de transpor um caminho, por entre os pares dançantes. Outrora, mesmo um republicano retinto, como eu, fugia das festas do 14 de Julho. A nenhum homem sério viria a ideia de tomar parte nos divertimentos da rua. Esta noite, na rua Bréa e diante da Rotonde, não são vadios os que dançam. Nada de grosseiro: rapazes vigorosos, de cabeça descoberta; alguns trazem camisas abertas de mangas curtas. Entre as dançarinas, muito poucas raparigas. Os rapazes agarram-se às rodas dos táxis que lhes interrompem o divertimento, mas com delicadeza e alegria. Um que me dera um empurrão sem reparar, gritou: "Passagem ao nobre velho". Passei por entre duas filas de rostos alegres. "Não tens sono, avô?" perguntou um rapaz moreno, de cabelo curto. Lucas teria aprendido a rir-se como eles e a dançar na rua; e eu que nunca soube o que era folgar e divertir-me, tê-lo-ia aprendido com o meu pobre filho. Teria sido de todos o mais beneficiado; dinheiro nunca lhe teria faltado... Mas agora o que lhe não falta é terra na boca... Assim vagueavam os meus pensamentos, enquanto o meu peito se sentia apertado pela opressão habitual, obrigando-me a sentar-me no terraço dum café, em plena balbúrdia.
De repente, por entre a multidão que desfilava pelos passeios divisei-me a mim mesmo: era Roberto, com um camarada de aspecto insignificante. Aquelas grandes pernas de Roberto, aquele busto curto como o meu, aquela cabeça metida entre os ombros, detesto-os. Nele, todos os meus defeitos se acentuaram. Eu tenho o rosto comprido, mas ele tem cara de cavalo - uma figura de corcunda. A voz também é de corcunda. Chamei-o. Deixou o camarada, e olhou em volta, com olhar ansioso.
- Aqui não, disse ele. Venha antes ter comigo ali ao passeio da direita, na rua Campagne-Première.
Observei-lhe que não podíamos estar mais bem escondidos que no meio daquela multidão. Couvenceu-se, despediu-se do camarada, e sentou-se à minha mesa.
Segurava na mão um jornal de desportos. Para quebrar o silêncio, tentei falar de cavalos. O velho Fondaudège, noutros tempos, acostumara-me a isso. Contei a Roberto que, quando o meu sogro jogava, fazia entrar na escolha, considerações de ordem diversa, não somente as origens longínquas do cavalo, mas a natureza do terreno que ele preferia... Interrompeu-me :
- Eu, tenho bons informadores na Casa Dermas (era a casa de tecidos, donde ele fora despedido, na rua de Petits-Champs).
Aliás o que lhe interessava era ganhar; os cavalos aborreciam-no.
- Para mim, acrescentou, não há nada como a bicicleta.
Brilhavam-lhe os olhos.
--Mas não tardará muito, que não seja o automóvel, disse-lhe eu.
- Poderá -ser!
Molhou o polegar com saliva, agarrou numa folha de papel de cigarro e enrolou o tabaco. Novo silêncio. Perguntei-lhe se a crise dos negócios se fazia sentir na casa onde ele trabalhava. Respondeu-me que tinham despedido uma parte do pessoal, mas que ele nada arriscava. Nunca as suas reflexões saíam fora do círculo estreito das conveniências particulares. Seria, assim, sobre este ser embrutecido que os milhões viriam cair. E se eu os desse a obras de caridade, pensei eu, se os distribuísse de mão para mão? Não podia ser, que eles davam-me logo por interdito... E por testamento? Impossível exceder a quota-parte disponível. Ah! Lucas, se tu fosses vivo... é verdade que ele não teria aceitado... mas eu teria meio de o enriquecer, sem que ele desconfiasse que era eu... Dotando a mulher que ele amasse, por exemplo...
- Ora diga-me...
Roberto acariciava a face com a mão avermelhada de dedos torcidos.
- Tenho pensado muito: e se o procurador Bourru morresse antes que nós tivéssemos queimado o papel?...
- Bem. Ficava o filho. A arma que eu vos deixo contra Bourru, também serviria contra o filho, caso viesse a ser precisa.
Roberto continuava a passar a mão pela face. Não procurei falar mais. A opressão do peito, esta contracção atroz era suficiente para me preocupar.
- Mas diga-me ainda... outra suposição... Bourru queima o papel; eu restituo-lhe aquele que o senhor me deu, para o obrigar a cumprir a promessa. Mas depois disto, quem o impede de ir procurar a família do senhor e de dizer aos seus filhos: "Sei onde está o mealheiro, e posso vender o segredo; quero tanto por ele, e ainda mais tanto, se tudo correr bem... Pode pedir que o nome dele não apareça... Nessa altura já não arriscava nada: fazia-se um inquérito; confirmar-se-ia que eu era filho do senhor, que minha mãe e eu tínhamos mudado o modo de vida depois da sua morte... E de duas uma: ou nós teríamos feito declarações exactas para o imposto sobre rendimentos, ou teríamos dissimulado..."
Falava com clareza. Desentorpecia-se-lhe o espírito. Lentamente, a máquina do raciocínio pusera-se em andamento, e nunca mais parava. O que permanecia neste fanqueiro era o instinto camponês de previdência, de desconfiança, o horror do perigo e o cuidado de nada deixar ao acaso. Tenho a certeza que ele preferia receber, à mão, cem mil francos, que ter de esconder esta enorme fortuna. esperei que o meu coração se sentisse mais livre e que o aperto se desafogasse:
Realmente, há certa verdade em. tudo isso. Pois, está bem; consinto em que não assineis nenhum papel. Confio em vocês. Em qualquer caso, ser-me-á sempre fácil provar que o dinheiro me pertence. O que também já pouca importância pode ter; daqui a seis meses, o máximo um ano, já não serei do número dos vivos...
Não fez o mais pequeno sinal de protesto; não encontrou a palavra banal, que outro diria logo. Não que ele fosse mais duro que qualquer outro rapaz da sua idade; era só mal educado.
-? Sendo assim, disse ele, já a coisa pode andar.
Ruminou a ideia durante alguns instantes, e acrescentou:
- Ainda mesmo durante a sua vida, seria bom que eu fosse ao cofre, uma vez por outra... para que me conheçam no Banco. Quando lhe fosse preciso dinheiro, podia ir eu levantá-lo...
- De facto, acrescentei eu, tenho vários cofres no estrangeiro. Se assim preferes, se te parece mais seguro...
- Deixar a capital? o quê!? Observei-lhe que poderia permanecer em Paris,
e deslocar-se quando fosse preciso. Perguntou-me se a fortuna era em acções, ou em dinheiro líquido, e acrescentou:
- Apesar de tudo, o melhor ainda era que me escrevesse uma carta em como, estando no uso de todas as suas faculdades mentais, me deixa livremente a fortuna... Para o caso em que o arranjinho fosse descoberto, e os outros me acusassem de roubo; a gente sabe lá o que está para acontecer... E depois, até para descanso de consciência.
Calou-se novamente, comprou amendoins e começou a comê-los vorazmente como se estivesse com fome; de repente:
- Mas, afinal, que lhe fizeram os outros?
- Aceita o que te dão, respondi secamente, e deixa-te de perguntas.
Subiu-lhe um pouco de sangue às faces sorvadas. Teve um sorriso contrafeito que era certamente o mesmo com que afrontava as reprimendas do patrão, e deixou ver os dentes sãos e finos, a graça única daquele rosto desfavorecido.
Ta descascando os amendoins sem dizer palavra, e ,sem dar impressão nenhuma de ter ficado deslumbrado. Evidentemente a imaginação trabalhava-lhe. Assim caíra eu sobre o único ser, capaz de ver apenas leves perigos naquela sorte grande prodigiosa. Pretendi a todo o custo deslumbrá-lo:
- Não tens nenhuma namorada? -perguntei-lhe à queima-roupa. Poderias casar com ela e viveríeis depois à grande.
Como ele fazia um gesto vago, abanando a cabeça, insisti:
-Podes então casar com quem quiseres. Se conheces alguma mulher que te pareça inacessível...
Apurou o ouvido, e pela primeira vez, vi brilhar-lhe nos olhos uma chama de mocidade.
- Podia casar com a menina Brugère!
- E quem é a menina Brugère?
- Estava a brincar; é a. gerente na casa Dermas, imagine! Uma mulher estupenda. Mas não olha para mim; nem sequer sabe que eu existo.. Calcule!
Assegurei-lhe que com a vigésima parte da sua fortuna poderia casar com qualquer gerente da casa mais importante de Paris. E ele:
-A menina Brugère! (Depois, encolhendo os ombros) Isso! Era bom!...
veio-me a dor do peito e fiz sinal ao empregado. Roberto teve então um gesto extraordinário:
- Ah! isso é que não. com licença: tenho imenso prazer em pagar!
Meti a moeda no bolso com satisfação, e levantámo-nos. Os músicos afinavam os instrumentos. Já se tinham apagado as grinaldas de lâmpadas eléctricas, de modo que Roberto já não tinha a recear que o vissem comigo.
- Eu acompanho-o, disse ele.
Pedi-lhe que fosse devagarinho por causa do meu coração, e mostrei-me admirado de ele não mostrar impaciência em apressar a execução dos meus projectos. Disse-lhe que se eu morresse naquela noite, perderia ele uma fortuna. Fez um gesto de indiferença. Afinal, eu não tinha feito mais que vir incomodar este rapaz. Era homem pouco mais ou menos da minha altura. Viria ele alguma vez, a ter um ar distinto? Parecia tão acanhado, o meu filho, o meu herdeiro! Procurei dar à nossa conversa um tom mais íntimo. Disse-lhe, que não era sem remorsos que pensava no abandono em que o deixara, a ele e à mãe. Pareceu surpreendido; achava que ter-lhes assegurado uma mesada regular, já tinha sido um "belo gesto". Poucos haveria que tivessem feito o mesmo.
E acrescentou uma palavra horrível:
- Para mais, não tendo sido o primeiro... Via-se bem que julgava a mãe sem indulgência.
Chegados -diante da minha porta, disse-me de repente :
-Uma ideia... E se eu arranjasse um emprego que me obrigasse a frequentar a Bolsa? Estava explicada depois a minha fortuna...
- Livra-te disso, disse eu. Acabarás por perder tudo.
Mas ele ia fixando o passeio, com ar preocupado :
- Era por causa do imposto sobre os rendimentos; se o inspector fizesse um inquérito...
- O homem! é dinheiro líquido, uma fortuna anónima; depositada em cofres que ninguém pode abrir, senão quem tem esse direito.
- É certo, mas mesmo assim...
com um gesto exaltado, fechei-lhe a porta na cara.
Cale-se
Através da vidraça, onde se debate uma mosca, estou a ver as colinas entorpecidas. O vento arrasta, gemendo, nuvens pesadas, cuja sombra deslisa sobre a planície. Este silêncio de morte significa a espectativa universal do primeiro trovão. "A vinha está com medo..." disse a Maria, há trinta anos, num triste dia de verão, igual a este. Reabri o caderno. É bem a minha letra. Cá estão todos os seus caracteres, o risco da unha do dedo mínimo, por baixo das linhas. Já agora, levarei esta narrativa até ao fim. Bem sei a quem a hei-de destinar, pois era forçoso que esta confissão se fizesse. Deveria talvez suprimir algumas páginas cuja leitura seria superior às suas forças, pois eu mesmo as não posso ler dum trago. A cada instante me interrompo escondendo a cara nas mãos. Eis o homem, eis um homem entre os homens, aqui estou eu. Poderei meter nojo, mas nem por isso deixo de existir.
Naquela noite, de 13 para 14 de Julho, depois de ter deixado Roberto, mal tive tempo de me despir e estender na cama. Um peso enorme me sufocava; e apesar dessa opressão a morte não vinha. A janela estava aberta; se eu estivesse num quinto andar... mas do primeiro decerto não morreria; só esta consideração me reteve. Mal podia estender o braço para tomar as pílulas, que habitualmente me aliviam. De manhã, ouviram, enfim, a campainha. Um médico do bairro deu-me uma injecção, e consegui respirar. Prescreveu-me imobilidade absoluta. O excesso da dor torna-nos mais submissos que uma criancita, e eu tinha todo o cuidado em me não mexer. A fealdade, o bafio daquele quarto, dos móveis, o barulho desse tempestuoso 14 de Julho, nada me incomodava, pois não tinha dores: nem eu pedia mais. Roberto veio, uma tarde, e nunca mais tornou a aparecer. Mas a mãe, quando saía do escritório, passava duas horas comigo, prestava-me alguns pequenos serviços, e trazia-me o correio da posta-restante (nenhuma carta da família) .
Por mim, não me queixava, estava muito sossegado, e tomava tudo o que me receitavam. Quando eu falava dos nossos projectos, ela desviava logo a conversa. "Não há pressa", repetia. Mas eu respirava fundo: "A prova de que há pressa..." e apontava para o peito.
- Minha mãe viveu até aos oitenta anos, com crises mais fortes do que essas.
Uma manhã, senti-me melhor, como há muito me não sentia. Tinha apetite, e o que me serviam naquela casa de família, era intragável. Veio-me o desejo de ir almoçar a um pequeno restaurante da avenida Saint-Germain, cuja cozinha eu muito apreciava. Servia barato, e a conta nunca me fazia zangar, o que me acontecia em outras tascas, que tinha o costume de frequentar, sempre com o terror de gastar muito.
O táxi parou à esquina da rua de Rennes. Dei alguns passos para experimentar as forças; tudo ia bem. Era meio dia resolvi beber um copo de água de Vichy no Deus Magots, Sentei-me lá dentro, num banco estofado, e pus-me a olhar distraidamente, para a avenida.
Senti uma pancada no coração. Na esplanada, separados de mim, pela espessura do vidro, aqueles ombros estreitos, aquele começo de calva, aquela nuca grisalha, aquelas orelhas chatas e descoladas... Era Humberto que estava ali, a ler com olhos míopes o jornal, que tocava com o nariz. Ia jurar que não me vira entrar. Acalmaram-se-me as palpitações do coração doente. Invadia-me uma horrorosa alegria: eu espiava-o, e ele não dava conta da minha presença ali.
Só poderia imaginar Humberto nalguma esplanada dos Boulevards. Que faria ele, agora, neste bairro? Certamente só um fim bem determinado o trouxera ali. Eu não tinha mais que esperar um pouco, depois de pagar o copo de água de Vichy, para estar livre e poder-me levantar assim que fosse preciso.
Era evidente que ele esperava alguém, pois, de vez em quando, olhava para o relógio. Já eu julgava ter adivinhado quem por entre as mesas se dirigiria a ele, quando sofri quase uma decepção, ao ver descer dum táxi o marido de Genoveva. Alfredo trazia o chapéu de palha à banda. Longe da mulher, aquele homem de quarenta anos, gordo e baixo, retomava ares de conquistador. Vestia um fato muito claro, e calçava sapatos amarelo vivo. Esta elegância provinciana contrastava com o porte sóbrio de Humberto que, segundo Isa, "veste como um Pondaudège".
Alfredo tirou o chapéu, limpou a fronte luzidia, e esvaziou dum trago o aperitivo que lhe serviram. O cunhado estava de pé e olhava para o relógio. Preparei-me para os seguir. com certeza que iam tomar algum táxi. Procuraria fazer o mesmo e segui-los: manobra difícil. Enfim, era já muito, ter dado pela presença deles. Esperei, para sair, que eles estivessem à beira do passeio. Não fizeram sinal a nenhum motorista e atravessavam a praça. Dirigiram-se, conversando, para Saint-Germain-desPrés. Que surpresa e que alegria! Entraram na igreja. O polícia que vê o ladrão cair na ratoeira, não sente emoção mais deliciosa que a que eu sentia naquele momento. Mas tinha que me acautelar, porque podiam voltar-se, e se meu filho era míope, o meu genro tinha boa vista. Apesar da impaciência, obriguei-me a permanecer ainda dois minutos no passeio, até que, por minha vez, transpus o pórtico. Passava um pouco do meio dia. Pui avançando com precaução na nave quase deserta. Cheguei mesmo a persuadir-me que aqueles que eu procurava se não encontravam lá. De repente, veio-me o pensamento de que talvez eles me tivessem visto, e que não tinham entrado ali senão para me despistar, saindo depois por alguma porta lateral. Voltei para trás, e meti pela nave da direita, ocultando-me por detrás das enormes colunas. Eis senão quando, avisto-os no lugar mais escuro da abside, numa penumbra do contra-luz. Sentados em cadeiras, enquadravam um terceiro personagem, de dorso humilde e abaulado, alguém cuja presença em nada me surpreendeu.
Era aquele mesmo que eu há pouco esperara ver deslizar até à mesa -do meu filho legítimo: era o outro, essa pobre larva do Roberto.
Eu já pressentira aquela traição, mas não pensara nela, por fadiga, e por preguiça. Logo na nossa primeira entrevista, me pareceu que aquela criatura mesquinha, aquele servo da gleba não teria coragem; e que a mãe obsediada por recordações da justiça, o aconselharia a alguma composição com a família e a vender o segredo o mais caro possível. Eu ia contemplando a nuca daquele imbecil: estava solidamente emoldurado por aqueles dois sólidos burgueses dos quais um, Alfredo, era o que se chama uma boa pasta (pouco inteligente, mas espertalhão nos seus interesses de vistas curtas, e era o que lhe valia) e o outro, o meu Humberto, tinha os dentes compridos, e nas maneiras, essa autoridade cortante que herdou de mim e contra a qual Roberto ficaria desarmado. Observava-os por detrás dum pilar, como se observa a aranha a lutar com a mosca, quando se está decidido, interiormente, a destruir tanto a mosca como a aranha. Roberto ia baixando a cabeça pouco a pouco. Deve ter começado por dizer: "A meias...", julgando-se o mais forte. Mas só pelo facto de se lhes dar a conhecer, já o imbecil se entregava não podendo impor condições. E eu, testemunha desta luta que era o único a saber inútil e vã, sentia-me como um deus, prestes a despedaçar aqueles míseros insectos na minha mão poderosa, e a esmagar, com o tacão, aquelas víboras enoveladas; e ria-me.
Passados dez minutos, já Roberto não dizia palavra. Ao contrário, Humberto não se calava, sem dúvida dando ordens; o outro aprovava com pequenas inclinações de cabeça, e eu via curvarem-se-lhe as espáduas submisssas. Alfredo, caído sobre a cadeira de palha como sobre uma poltrona, com o pé direito cruzado sobre o joelho esquerdo, baloiçava-se, com a cabeça deitada para trás; e eu via aquele rosto que era bilioso e sombreado de barba, agora radiante de gozo.
Levantaram-se por fim. Fui-os seguindo a ocultas. Caminhavam devagar, Roberto ao meio de cabeça baixa, como se o tivessem algemado. com as grossas mãos vermelhas atrás das costas, amachucava o chapéu mole, dum cinzento sujo e deslavado.
Julgava eu que já nada podia haver que me causasse admiração. Enganava-me: enquanto Alfredo e Roberto chegavam à porta, Humberto mergulhou a mão na pia de água benta, depois, voltando-se para o altar-mor, fez um grande sinal da cruz.
Agora já nada me apressava, podia estar tranquilo. Para quê segui-los? Sabia que mesmo naquela tarde, ou no dia seguinte, Roberto havia de instar comigo para a execução dos meus projectos. Como o iria eu receber? Tinha tempo de pensar, tanto mais que começava a sentir-me cansado. Sentei-me. O que, naquele momento, me dominava o espírito, fazendo desaparecer tudo o mais, era a irritação causada pelo gesto piedoso de Humberto. Uma rapariga de porte modesto, de figura simples colocou ao lado uma caixa de chapéus, e ajoelhou na fila de cadeiras que estava adiante da minha. Via-a de perfil, com o pescoço um pouco curvado, os olhos fixos sobre a mesma pequena porta longínqua que Humberto, cumpridos os deveres de família, tinha há pouco saudado tão gravemente. A rapariga sorria docemente e não se mexia. Dois seminaristas entraram, por sua vez: um, alto e magro, fazia-me lembrar o padre Ardouin; o outro, baixo, de cara fresca e rosada. Inclinaram-se ao lado um do outro, e por sua vez também eles pareceram feridos de imobilidade. Eu olhava o que eles olhavam; procurava ver o que eles viam. "Afinal, disse eu, aqui não há nada senão o silêncio, a frescura e o odor das velhas pedras na penumbra". Novamente o rosto da pequena modista me atraiu a atenção. Tinha os olhos fechados; as pálpebras, de longos cílios, lembravam-me as de Maria no seu leito de morte. Sentia, muito perto e ao alcance da mão, e ao mesmo tempo a uma distância infinita, um mundo desconhecido de bondade. Muitas vezes me dissera a Isa: "Tu que não vês senão o mal... tu que vês o mal em toda a parte..." Era verdade, e não era bem verdade.
Almocei, com o espírito despreocupado, num estado de bem estar como há muito tempo não sentia, e como se a traição de Roberto, longe de transtornar os meus planos, os tivesse servido. Um homem da minha idade, dizia eu de mim para mim, cuja vida anda há tantos anos ameaçada, não vai procurar, muito longe, as razões das mudanças de disposição: são orgânicas. O mito de Prometeu significa que toda a tristeza do mundo tem origem no fígado. Quem se atreveria, porém, a reconhecer uma verdade tão comesinha? Naquele momento, não tinha dores. Digeria muito bem aquele bife em sangue, e sentia-me contente que o bocado fosse tão avantajado, porque poupava a despesa doutro prato. À sobremesa, tomaria queijo, que alimenta mais, e é mais barato.
Qual seria a minha atitude para com Roberto? Tinha de mudar as baterias; mas não conseguia fixar o espírito sobre estes problemas. Além disso, de que me servia embaraçar-me com um plano? Mais valia confiar na inspiração. Nem me atrevia a confessar o prazer que a mim mesmo me prometia de brincar como um gato com aquele triste arganaz. Boberto estava bem longe de pensar que eu tinha descoberto o rastilho... Serei cruel? Sim, serei. Mas tanto como qualquer outro, como os outros, como as crianças, como as mulheres, como todos aqueles (estava a pensar na pequena modista que vira em Saint-Germain-des-Prés), como todos aqueles que não são do partido do Cordeiro.
Voltei, de táxi, à rua Bréa, e estendi-me na cama. Os estudantes, que frequentam esta casa de família, tinham partido para férias. Descansei em grande sossego. Contudo, a porta envidraçada velada com cortinas sujas, tirava a este quarto toda a intimidade. Algumas pequenas molduras de madeira da cama Henrique II estavam descoladas e reunidas com cuidado numa prateleira que ornava a chaminé. Ramalhetes de nódoas estendiam-se sobre o papel ondeado. Mesmo com a janela aberta, o cheiro da pomposa mesinha de cabeceira, de mármore vermelho, enchia o quarto. Um pano, com fundo cor de mostarda, cobria a mesa. Este conjunto agradava-me como apanhado perfeito da fealdade e pretensão humana.
Acordou-me o roçar duma saia. Estava ali a. mãe de Roberto, à minha cabeceira, e o que vi primeiro foi o seu sorriso. A atitude obsequiosa teria bastado para me fazer desconfiar, se eu não soubesse de nada, e para me avisar que fora traído. Há certa espécie de delicadeza que é sempre sinal de traição.
Sorri-lhe também, dizendo-lhe que me sentia melhor. Há vinte anos, não tinha ela o nariz tão grosso, e possuía ainda, para povoar a boca enorme, os belos dentes que Roberto herdou. Hoje, porém, o sorriso abria-se-lhe, sobre uma vasta dentadura postiça. Certamente caminhara depressa, e o seu cheiro ácido, lutava vitoriosamente contra o da mesa que tinha o tampo de mármore vermelho. Pedi-lhe que abrisse a janela de par em par. Assim o fez e sorriu-me ainda, ao voltar para junto de mim. Agora que eu ia melhor, advertiu-me que Roberto ficaria à minha disposição para "o negócio". Justamente, no dia seguinte, sábado, estaria ele livre, a partir do meio dia. Lembrei-lhe que os bancos estavam fechados, aos sábados de tarde. Decidiu então, que se poderia pedir dispensa para segunda-feira de manhã. Facilmente a obteria. Agora, também, já as atenções com os patrões lhe não eram tão precisas.
Pareceu admirada quando eu insisti para que Roberto conservasse ainda o emprego durante algumas semanas, e quando se despediu, disse-me que no dia seguinte viria ela com o filho. Disse-lhe que o deixasse vir sozinho: queria conversar à vontade com ele para o conhecer melhor... A pobre tola não escondia a inquietação, com medo que o filho se traísse. Mas quando eu falo de certa maneira, ninguém pensa em se opor às minhas decisões. Fora ela, sem dúvida, quem levara Roberto a entender-se com os meus filhos; demais conhecia eu aquele rapaz timorato e inquieto, para não ter a certeza da perturbação em que o deveria ter mergulhado o partido que tomara.
Quando o pobre infeliz entrou, no dia seguinte de manhã, vi logo num rápido olhar, que as minhas previsões tinham sido excedidas. As pálpebras eram de homem que não dormira... Evitava-me o olhar. Mandei-o sentar e mostrei-me preocupado com o seu aspecto; mostrei-me afectuoso, quase terno. Descrevi-lhe, com a eloquência dum grande advogado, a vida de felicidade que se abria diante dele. Descrevi a casa e o parque de dez hectares que ia comprar em nome dele em Saint-Germain. A casa, toda mobilada "à antiga", tinha um lago com peixes, garagem para quatro automóveis e muitas outras coisas que eu acrescentava à medida que me iam ocorrendo. Quando lhe falei no automóvel e propus uma das melhores marcas americanas, vi o homem na agonia. É que certamente ele tinha-se obrigado a não aceitar um cêntimo enquanto eu vivesse.
- É só assinares a escritura de compra, e não tens mais nada que te ralar. Já pus de lado para te entregar, na segunda-feira, certo número de obrigações que te vão render uns cem mil francos por mês. Já chega para vos livrar de apreensões. Mas o grosso da fortuna líquida fica em Amsterdão. Para a semana que vem, faremos a viagem, para se tomarem todas as disposições... Mas que tens tu Roberto?
O pobre balbuciou:
- Não, senhor... não quero nada, antes da sua morte... Não é isso o que me convém... Nem eu o quero despojar do que é seu. Não vale a pena teimar, que seria para mim um grande desgosto".
Encostara-se ao armário, com o cotovelo esquerdo na mão direita, a roer as unhas. Fixei sobre ele, o olhar, aquele olhar tão temido, no Tribunal, pelos meus adversários, e que, quando eu advogava pelo acusador, não largava a vítima, sem a abater no banco, entre os braços do polícia.
No meu íntimo, perdoava-lhe, enquanto ia experimentando certo sentimento de libertação: teria sido horrível acabar a minha vida com aquela larva. Não lhe queria mal; afastá-lo-ia, sem o esmagar. Mas não podia deixar de me divertir ainda um pouco.
"São bonitos sentimentos esses Roberto! Fica-te bem querer esperar pela minha morte. Mas não aceito o sacrifício. Desde segunda-feira, tudo será teu; para o fim da semana, grande parte da minha fortuna estará já em teu nome... (e como ele protestava). É pegar ou largar", acrescentei secamente. Evitando-me o olhar pediu ainda alguns dias para reflectir. Era o tempo de escrever para Bordéus a pedir instruções, pobre idiota.
-? Podes crer, Roberto, que me estás a admirar. A tua atitude é muito esquisita.
Julgava eu que tinha suavizado o olhar, mas o meu olhar é mais duro do que eu próprio.
Roberto balbuciou com voz fraca:
- Por que olha para mim, dessa maneira?
- Porque olho eu para ti, desta maneira? repliquei, imitando-o, mau grado meu. - B tu? porque não podes tu sustentar o meu olhar?
Aqueles que habitualmente se sentem amados, instintivamente, fazem gestos e dizem palavras que atraem os corações. Mas eu estou de tal maneira habituado a ser detestado e a causar medo, que as minhas pupilas, as minhas sobrancelhas, a minha voz, o meu riso se tornam docilmente cúmplices deste dom temível, e agem ainda antes da vontade. Assim se torcia aquele pobre rapaz sob o meu olhar, que desejava ser indulgente. Quanto mais eu me ria, mais a ressonância dessa alegria lhe parecia sinistra. Como quem acaba com um animal, perguntei-lhe à queima-roupa:
- Quanto é que te ofereceram os outros? Este tratamento de "tu" bem marcado quer eu quisesse, quer não, acentuava mais desprezo que amizade.
- Quais outros? - balbuciava ele, preso dum terror quase religioso.
- Os dois cavalheiros, disse eu, o gordo e o magro... sim, o magro e o gordo!
Já me tardava acabar com aquilo. Causava-me horror prolongar aquela cena (como quando não nos atrevemos a esmagar uma centopeia com o tacão).
- Sossega, disse-lhe eu por fim. Perdoo-te tudo.
- Não fui eu quem assim o quis... foi... Tapei-lhe a boca com a mão, porque me era insuportável ouvi-lo acusar a mãe.
- Pschiu! não nomeies ninguém... vamos lá a saber: Quanto te ofereceram? um milhão? quinhentos mil? menos? Não é possível! Trezentos? Duzentos?
Abanava a cabeça com ar digno de dó:
- Não, foi uma pensão, - disse ele em voz baixa. Foi o que nos tentou; era mais seguro: doze mil francos por ano.
- A partir de hoje!
- Não, somente quando recebessem a herança... Não previram que o seu desejo era pôr já tudo em meu nome... Mas agora, seria tarde demais?... Poderiam levar-nos para a justiça... a não ser que se lhes escondesse... Sempre fui muito parvo! E paguei-o bem caro...
Que triste figura ele fazia a chorar, sentado à beira da cama, com uma das mãos pendurada, enorme, entumecida de sangue.
- Lembre-se que sempre sou seu filho - gemia ele. Não me abandone.
Com um gesto desajeitado, tentou lançar o braço em redor do meu pescoço. Desprendi-me, mas suavemente. Fui para a janela e disse-lhe sem me voltar:
- Irás receber, a partir do primeiro de Agosto, mil e quinhentos francos por mês. vou tomar todas as providências para que esta mesada te seja entregue, durante toda a vida. Poderia reverter, em caso de morte, a favor da tua mãe. Agora, quanto à minha família, deve ela naturalmente ignorar que eu descobri a conspiração de Saint-Germain-des-Près (o nome da igreja causou-lhe certo sobressalto). Será inútil dizer-te que à menor indiscrição ficarás sem nada. Em troca, vais-me pôr ao corrente de tudo o que se tramar contra mim.
Sabia ele agora que nada me escapava e como lhe custaria caro trair-me de novo. Dei-lhe a entender que não o queria tornar a ver, nem a ele, nem à mãe. Deviam-me escrever para a posta restante habitual.
- Quando é que deixaram Paris os teus cúmplices de Saint-Germain-des-Près?
Disse-me que, na véspera, tinham tomado o comboio da noite. Cortei-lhe a expressão afectada de gratidão, e não quis ouvir promessas. Razão tinha ele para estar estupefacto: uma divindade fantástica, cujos desígnios se não podiam prever e a quem ele tinha traído, agarrava-o e largava-o, para o agarrar novamente... Ele fechava os olhos e deixava-se levar; com a espinha inclinada, de orelhas caídas, levava, rastejando, o osso que eu lhe lançava.
No momento de sair, caiu em si, e perguntou-me como é que receberia a mesada, e quem seria o intermediário.
- Recebê-la-ás, com certeza, disse eu secamente. Cumpro sempre as promessas, o resto não te diz respeito.
Com a mão no fecho hesitava ainda:
- Talvez fosse melhor um seguro de vida, uma renda vitalícia, ou alguma coisa assim, numa companhia séria... Ficaria mais socegado, nem teria amargos de boca...
Abri violentamente a porta que ele conservava entreaberta, e empurrei-o para o corredor.
Estava encostado à chaminé e com gesto maquinal ia contando os bocados de madeira envernizada amontoados na prateleira.
Durante anos, sonhara eu com aquele filho desconhecido. No decorrer desta pobre vida, nunca perdera o sentimento da sua existência. Havia algures, um filho meu, que eu poderia encontrar, e que talvez me viesse a consolar. A condição modesta, aproximava-o ainda mais de mim: era-me suave pensar que se não pareceria em coisa nenhuma com o meu filho legítimo; dera-lhe, ao mesmo tempo, a simplicidade e força de dedicação que tantas vezes se encontram no povo. Enfim, jogava a última cartada. Sabia que depois dele nada mais tinha a esperar de ninguém, e apenas me restava enroscar-me e virar-me para a parede. Durante quarenta anos, julguei ter vivido no ódio, no que inspirava, e no que sentia. Mas, tal como os outros, fui sempre alimentando uma esperança, enganando a fome, conforme podia, até me ver reduzido à última reserva. Agora, estava tudo acabado.
Nem sequer me restava o prazer atroz de combinar planos, para deserdar aqueles que me queriam mal. Roberto pusera-os na pista: acabariam por descobrir os cofres, mesmo aqueles que não estavam em meu nome. Inventar outra coisa? Ah! viver ainda, ter tempo de gastar tudo! Morrer... e que eles não encontrassem nem sequer com que pagar um enterro de pobre. Mas depois duma vida inteira de economia, quando cevê, durante anos, esta "paixão de poupar, como aprender, agora, nesta idade, os gestos dos pródigos? E depois, os filhos espreitam-me, pensava eu. Nesse sentido nada poderei fazer que não se torne em suas mãos uma arma temível... Seria preciso arruinar-me na sombra, pouco a pouco...
Nem eu não saberia arruinar-me! Nunca chegaria a perder o meu dinheiro! Se fosse possível enterrá-lo comigo na sepultura, e voltar à terra, apertando nos braços esse ouro, essas notas, essas acções? Se eu conseguisse que fossem mentirosas as palavras daqueles que pregam que os bens do mundo não nos seguem na morte!
Ainda havia as instituições de caridade, que são alçapões onde tudo se submerge. Dons anónimos que eu poderia mandar à repartição de beneficência para as irmãzinhas dos pobres. Não poderia eu, enfim, pensar nos outros, em outros que não fossem os meus inimigos? Mas o horror da velhice é ser a soma duma vida - uma soma onde não podemos mudar nenhum algarismo. Gastei sessenta anos a construir este velho que morre de ódio. Sou o que sou; seria preciso tornar-me outro. Ó Deus, Deus... se vós existísseis!
Ao fechar da noite entrou uma rapariga para me arranjar a cama; não fechou as persianas. O barulho da lua, a luz dos revérberos, não me impediam de dormitar. Ora tomava consciência, como em viagem, quando o comboio pára; ora caía em torpor novamente. Ainda que me não sentia mais doente, parecia-me que só me restava esperar assim pacientemente, que aquele sono se tornasse eterno.
Ainda tinha que tomar disposições para que fosse entregue a Roberto a mesada prometida, e devia passar pela posta restante, visto agora ninguém me prestar esse serviço. Havia três dias que não via o correio. Esta espectativa da carta desconhecida, que sobrevive a tudo, é bem o sinal de que a esperança nunca desarraiga, e que fica sempre em nós essa erva tenaz como a grama.
Foi este cuidado do correio que me deu forças para me levantar no dia seguinte, pelo meio dia, e de me dirigir à posta restante. Chovia, e como não tinha guarda-chuva, ia-me encostando às paredes. A minha maneira de andar despertava curiosidade, e todos olhavam para mim. Vinham-me ganas de gritar àquela gente: "Que terei eu de extraordinário? Julgam que estou doido? Não devo porém dizê-lo: era o que os filhos queriam. Não me olhem assim: sou como toda a gente - só que meus filhos me aborrecem, e tenho de me defender deles. Mas isso não é ser doido. Às vezes estou sob a influência de todas as drogas que a angina de peito me obriga a tomar. Falo sozinho, porque estou sempre só. O diálogo é necessário ao ser humano. Então que haverá de extraordinário nos gestos e nas palavras dum homem só?"
O maço que me entregaram continha impressos, algumas cartas dos bancos, e três telegramas. Tratava-se com certeza de alguma ordem da bolsa que não pudera ser executada. Esperei até me sentar numa taberna para os abrir. Em mesas compridas, pedreiros, caiados dos pés à cabeça, como "pierrots" de todas as épocas, comiam lentamente as suas magras rações, e iam decilitrando quase sem dar palavra. Tinham trabalhado desde manhã debaixo de chuva. Iam recomeçar a faina à uma e meia. Estava-se no fim de Julho. O povo enchia as estações... Teria toda essa gente compreendido alguma coisa do meu tormento? Certamente! Como o poderia ignorar um velho advogado? A primeira causa que defendi, foi duns filhos que levantavam questão sobre quem devia sustentar o pai. O desgraçado mudava de casa todos os três meses, amaldiçoado por toda a parte - e só estava de acordo com os filhos em chamar em altos gritos pela morte que os livraria dele. Em quantos casais não tinha eu assistido a esse drama do velho, que durante muito tempo recusa largar os bens, e por fim se deixa seduzir, até que os filhos o fazem morrer de trabalho e de fome. Sim, aquele pedreiro, magro e ossudo, que a dois passos de mim triturava demoradamente o pão entre as gengivas nuas, devia conhecê-lo bem.
Hoje, nas tabernas, um velho bem posto, não causa espanto a ninguém. Ia eu trinchando um bocado de coelho, entretendo-me com as gotas de saliva que se juntavam nos vidros, e decifrando, das avessas, o nome do proprietário. Quando ia a tirar o lenço apalpei com a mão o maço das cartas. Pus os óculos, e abri ao acaso um telegrama: "Exéquias da Mãe, amanhã, 23 de Julho, nove horas, igreja S. Luís". Era datado dessa mesma manhã. Os outros dois expedidos na ante-véspera, deviam ter-se seguido com algumas horas de intervalo. Um dizia: "Mãe muito mal, venha". O outro: "Mãe morreu..."
Os três eram assinados por Humberto.
Amachuquei os telegramas e continuei a comer, com o espírito preocupado pois tinha de encontrar forças para tomar o comboio da noite. Durante alguns minutos, só nisso pensei; depois, outro sentimento se aclarou em mim; a admiração de sobreviver a Isa. Era ponto assente que eu morreria em breve. Que tivesse de ser o primeiro a partir, não era questão nem para mim, nem para ninguém. Projectos, ardis, conjuras, não tinham outro objectivo senão os dias que se deviam seguir à minha morte próxima. Como a família, também eu não alimentava a esse respeito a menor dúvida. Havia um modo de encarar a minha mulher que eu nunca perdera de vista: ela era a minha viúva, aquela a quem os crepes incomodariam para abrir o cofre. Qualquer perturbação nos astros não me teria causado maior surpresa que aquela morte, nem tamanho mal estar. A despeito de mim mesmo, o homem de negócios começava a examinar a situação, e qual o partido que poderia tirar dela contra os inimigos. Tais eram os meus sentimentos até à hora em que o comboio partiu.
Então, entrou em jogo a minha imaginação. Pela primeira vez, contemplei a Isa, tal como ela devia estar sobre o leito, na véspera e na ante-véspera. Reconstituí os factos, o quarto de Calèse (ignorava que ela tinha morrido em Bordéus). E murmurei: "a deposição no caixão..." cedendo a um alívio cobarde. Que atitude teria sido a minha? Que teria eu manifestado, sob o olhar atento e hostil dos filhos? A questão estava resolvida por si. Quanto ao mais, a cama onde eu me veria obrigado a deitar-me logo que chegasse, suprimiria todas as dificuldades. Porque nem podia pensar que me fosse possível assistir às exéquias: pois se naquele mesmo instante, nem sequer conseguira chegar-me a um lavatório... Esta impotência não me assustava agora: como Isa morrera, já eu não contava morrer; passara a minha vez. Mas tinha medo duma crise, tanto mais que estava sozinho num compartimento. Alguém me esperaria na estação (eu tinha telegrafado), Humberto, com certeza...
Não, não era ele. Que alívio quando me apareceu a figura baixa e atarracada de Alfredo, com o rosto desfigurado pela noite em claro. Pareceu assustado quando me viu. Tive de me agarrar ao braço dele, pois não pude subir sozinho para o automóvel. O carro levava-nos naquele triste Bordéus, por uma manhã chuvosa, através dum bairro de escolas e talhos. Não sentia necessidade de falar: o Alfredo, entrava nas mais pequenas circunstâncias, descrevia o local preciso do jardim público onde a Isa tinha sucumbido, um poco antes de chegar às estufas, diante dum macisso de palmeiras; a farmácia onde a tinham levado; a dificuldade que houve em erguer aquele corpo pesado, até ao quarto, no primeiro andar; a sangria, a injecção... Apesar da hemorragia cerebral, conservara o conhecimento toda a noite. Tinha-me mandado chamar, com muita instância, por sinais, e depois adormecera no momento em que o padre lhe trazia os santos óleos. "Mas tinha comungado na véspera..."
Alfredo queria-me deixar diante de casa, que já tinha a tarja de luto, e continuar caminho, sob pretexto, que mal tinha tempo de se vestir para a cerimónia. Mas teve que se resignar a ajudar-me a descer do carro. Subi com ele os primeiros degraus. Nem reconheci o vestíbulo. Entre paredes de trevas, brasidos de velas ardiam em redor dum montão de flores. Cerrei os olhos. O alheamento que senti era parecido com certos sonhos. Duas religiosas imóveis deviam certamente ter sido encomendadas como tudo o mais. Daquele aglomerado de panos, de flores e de luzes, a escada habitual, de tapete gasto, subia para a vida de todos os dias. Humberto descia por ela. Vinha de casaca, muito correcto. Estendeu-me a mão e falou-me; mas como aquela voz parecia vir de longe! Ia a responder, mas nenhum som me chegava aos lábios. O rosto dele aproximou-se do meu, tornou-se enorme, depois caí. Soube, posteriormente, que este desmaio durara apenas três minutos. Voltei a mim num pequeno quarto, que fora sala de espera, antes de eu deixar o Poro. Sentia picaduras de sais nas mucosas. Reconheci a voz de Genoveva: "Está a voltar a si..." Abri os olhos.- estavam todos inclinados para mim. Os rostos pareciam-me diferentes, vermelhos, alterados, alguns esverdeados. Janine, mais forte que a mãe, parecia ter a mesma idade.- As lágrimas tinham sobretudo sulcado o rosto de Humberto. Tinha a mesma expressão choramingas de quando era criancita, na época em que a Isa, sentando-o nos joelhos, lhe dizia: "Coitadinho do meu menino, coitadinho..." Só Phili, com o fato que arrastara através de todos os bares de Paris e de Berlim, voltava para mim o belo rosto indiferente e aborrecido- tal qual devia estar quando partia para alguma festa, ou antes, quando voltava, desabotoado e embriagado, porque ainda nem sequer dera o nó na gravata. Por detrás dele, mal distinguia mulheres veladas que deviam ser Olímpia e as filhas. Plastrões brancos luziam na penumbra.
Genoveva aproximou-me dos lábios um copo do qual bebi alguns tragos. Disse-lhe que me sentia melhor. Perguntou-me com voz suave e terna se me queria já deitar. Pronunciei a primeira frase que me veio ao espírito:
- Queria acompanhá-la até ao fim, já que não pude dizer-lhe adeus.
E repeti, como o actor que procura melhor o tom: "Já que não pude dizer-lhe adeus..." mas estas palavras banais, que não tendiam senão a salvar as aparências, e que eu pronunciava, porque elas faziam parte do meu papel na cerimónia fúnebre, despertaram em mim, com um poder súbito, o sentimento de que elas eram a expressão; era como se me advertisse a mim mesmo daquilo em que ainda não tinha caído na conta: nunca mais tornaria a ver a minha mulher; entre nós já não haveria explicações; e ela já não leria estas páginas. As coisas ficariam eternamente no ponto em que eu as deixara quando partira de Calèse. Já não poderíamos recomeçar, nem partir de novo com melhor vento; ela morrera sem me conhecer, sem saber que eu não era somente aquele monstruoso algoz, e que em mim existia outro homem. Ainda que eu só tivesse chegado no último momento, ainda que não tivéssemos trocado nenhuma palavra, ela teria visto estas lágrimas que agora me sulcam as faces, e teria partido levando a visão do meu desespero. Só os meus filhos, mudos de espanto, contemplavam o espectáculo. Talvez nunca me tivessem visto chorar, em todda a minha vida. Este velho rosto, aborrecido e temível, esta cabeça de Medusa cujo olhar nenhum deles pudera sustentar, metamorfoseava-se, tornava-se simplesmente humana. Ouvi alguém dizer (creio que foi a Janine):
- Se não se tivesse ausentado... por que saiu de casa?
Sim, por que tinha eu saído? Mas não poderia eu ter chegado a tempo? Se os telegramas em vez de irem para a posta restante, os tivesse recebido na rua Bréa...
O Humberto cometeu a imprudência de acrescentar :
- E saiu sem deixar direcção... Nós não podíamos adivinhar...
Um pensamento, até ali confuso, se me aclarou de repente. com as duas mãos encostadas ao braço da poltrona, levantei-me fremente de cólera, e gritei-lhe em pleno rosto:
- Mentiroso!
E enquanto ele balbuciava: "Pai, mas enlouqueceu?" eu repetia:
- Sim, mentirosos: vós conhecíeis a minha direcção. Ora, atrevam-se a dizer-me, de frente, que a não conheciam.
E como Humberto protestasse dèbilmente: "Mas como é que nós a poderíamos saber?", contestei-lhe:
- Não tiveste informações com alguém que me tocava de perto? Atreve-te a negá-lo? Atreve-te, anda!
A família, petrificada, olhava-me em silêncio. O Humberto agitava a cabeça como criança apanhada em flagrante.
- Também não pagastes muito cara a traição. Não fostes muito longe, meus filhos. Doze mil francos de pensão, a um rapaz que vos restitui uma fortuna, não é nada.
Eu ria-me, com aquele riso que me faz tossir. E eles não encontravam palavras para me responder. Phili resmungou a meia voz: "Lindo serviço..."
Continuei, baixando a voz a um gesto suplicante do Humberto, que tentava falar:
- Fostes vós a causa de eu não a tornar a ver. Estáveis ao corrente das minhas acções mais insignificantes, mas era preciso que o não soubesse. Se me telegrafassem para a rua Bréa, teria eu logo compreendido que havia traição. Nenhuma coisa no mundo, vos teria podido decidir a esse gesto, nem mesmo as súplicas de vossa mãe moribunda. Tivestes pena, bem sei, mas não perdestes o norte...
Disse-lhes todas estas coisas e outras ainda piores. O Humberto pedia à irmã com voz entrecortada: "Vê se o fazes calar! Que se cale! Ainda se vai ouvir tudo!..." Genoveva passou-me os braços à volta dos ombros, e fez-me voltar a sentar:
- Agora não é ocasião para isso, pai. Depois, tornaremos a falar quando tudo estiver mais calmo. Mas peço-lhe, por amor daquela que ainda ali está..."
Humberto, lívido, pôs um dedo nos lábios; era o encarregado do protocolo que entrava, com a lista das pessoas que deviam pegar às borlas. Dei alguns passos, querendo caminhar sozinho; a família desviou-se diante do meu andar trémulo. Consegui transpor o limiar da câmara ardente, e deixei-me cair sobre um genuflexório.
Humberto e Genoveva vieram ali ter comigo. Cada um me segurou por um braço, e eu segui-os docilmente. A subida da escada foi difícil. Uma das religiosas consentira em ficar comigo durante a cerimónia fúnebre. Humberto, antes de sair, afectou ignorar o que se passara entre nós, e perguntou-me se fizera bem designando o Bastonário da Ordem dos Advogados para levar uma borla. Voltei a cabeça para o lado da janela, e não respondi.
Já se ouvia ruído de passos. Toda a cidade viria para o acompanhamento. Do lado Fondaudège, com quem não estávamos nós relacionados? Do meu lado, o Poro, os bancos, o mundo dos negócios...
Estava a sentir certo bem estar como homem que se justificou, ou a quem se reconheceu a inocência. Eu tinha convencido os filhos de mentira; e eles não tinham negado as responsabilidades. Enquanto ia pela casa aquele soturno tropel, como de algum baile sem música, obrigava-me eu a fixar a atenção sobre o crime: só eles me tinham impedido de receber o último adeus da Isa... Mas eu esporeava o meu velho ódio como a um cavalo rebentado; já não dava mais. Alívio físico, ou satisfação de ter tido a última palavra, não sei o que é que me dulcificava, mau grado meu.
Já se não ouviam as salmodias; o rumor fúnebre ia-se afastando, até que um silêncio, tão profundo como o de (alèse, reinou na vasta habitação. Isa esvaziara-a dos seus habitantes, arrastando atrás do caixão todo o ambiente doméstico. Não ficava ninguém senão eu e aquela religiosa que acabava, à minha cabeceira, o rosário começado junto do caixão.
Foi este silêncio que me fez, de novo, sensível a separação eterna e a partida sem regresso. De novo se me levantou uma onda no peito, porque agora, era demasiado tarde, e entre ela e mim tudo estava dito. Sentado na cama, reclinado em travesseiros, para poder respirar, ia olhando aqueles móveis Luís XIII cujo modelo nós ambos tínhamos escolhido na casa Bardié, durante o nosso noivado, e que tinham sido os dela até ao dia em que herdara os da mãe. Este leito, este triste leito dos nossos rancores e dos nossos silêncios...
Humberto e Genoveva, entraram sozinhos, e os outros ficaram no corredor. Não eram capazes de se habituar a ver-me chorar. Conservaram-se de pé, à minha cabeceira, o irmão um tanto raro no seu fato de noite em pleno meio dia; a irmã, parecia uma torre de pano preto onde contrastava um lenço branco, e onde o véu, deitado para trás, deixava a descoberto um rosto redondo e fraguado de lágrimas. A dor tinha-nos desmascarado a todos e nós não nos reconhecíamos agora.
Mostraram-se apreensivos com a minha saúde. E Genoveva acrescentou:
- Quase toda a gente a acompanhou ao cemitério : bem se vê que era muito estimada.
Interroguei-a, então, acerca dos dias que tinham precedido o ataque de paralisia.
- Já sentia certo mal estar... talvez mesmo tivesse algum pressentimento, porque na véspera do dia em que devia vir para Bordéus, passou todo o tempo, no quarto, a queimar rimas de cartas; chegámos até a pensar que havia fogo na chaminé...
Interrompi-a, com uma ideia que me sobreveio... Até parece impossível como me não ocorreu antes.
- Olha lá, Genoveva, parece-te que a minha partida terá tido alguma influência?...
Respondeu-me, com certo ar de contentamento, que "de facto, deve-a ter impressionado muito..."
- Mas vocês não lhe disseram nada... não a puseram ao corrente do que tinham descoberto...
Com o olhar, interrogou o irmão: deveria dar-se por entendida? A minha aparência devia ser estranha, naquele momento, porque me pareceu que eles ficaram assustados; e enquanto Genoveva me ajudava a levantar, Humberto respondeu, com precipitação, que a mãe caíra doente, uns dez dias depois da minha partida, e que durante esse tempo, tinham decidido conservá-la alheia a tão tristes questões. Diria a verdade? com voz trémula acrescentou :
- Se tivéssemos cedido à tentação de lhe falar no caso, seríamos os principais responsáveis...
Desviou-se um pouco, e eu notava-lhe o movimento convulso" dos ombros. Alguém entreabriu a porta, e perguntou se não iam para a mesa. Era a voz de Phili:
-? Que querem que eu faça? não é por minha culpa se tenho fome...
Por entre lágrimas, a Genoveva informou-se do que é que eu queria tomar. Humberto disse-me que voltaria depois de almoçar; explicar-nos-íamos duma vez para sempre, se eu me sentisse com forças para o ouvir. Fiz-lhe sinal que sim. Quando saíram a religiosa ajudou-me a levantar; pude tomar banho, vestir-me e beber uma chávena de caldo. Não queria travar batalha como doente que o adversário poupa e protege.
Quando voltaram, foi para encontrar outro homem, diferente daquele velho que tanto dó lhes causara. Tinha tomado as drogas necessárias; estava sentado, com o tronco direito, sentindo-me menos oprimido como todas as vezes que saio da cama.
Humberto deixara o traje de luto rigoroso; mas Genoveva embrulhara-se num velho roupão da mãe. "Não tinha nada preto para vestir..." Sentaram-se à minha frente; e depois das primeiras palavras convencionais: "Pensei muito..." começou Humberto. Preparara cuidadosamente o discurso. Dirigia-se a mim, como se eu fosse alguma assembleia de accionistas, pesando todas as palavras, com o cuidado de evitar toda a explosão.
- Poi à cabeceira da mãe que fiz o meu exame de consciência; esforcei-me por mudar o meu ponto de vista e pôr-me em lugar do pai. Um pai cuja ideia fixa é deserdar os filhos, era isso o que nós considerávamos no pai, e que a meus olhos legítima, ou pelo menos desculpa, o nosso procedimento. Mas nós demos margem às suas acusações, com esta luta sem mercê e com estas...
Como ele procurava o termo justo, soprei-lhe de mansinho:
. - com estas cobardes conspirações.
Cobriram-se-lhe de rubor as faces. Genoveva protestou:
- Cobardes porquê? Não era o pai muito mais forte do que nós?...
- Pois então não era um velho cheio de doenças, contra uma matilha de gente nova...
- Um velho cheio de doenças, replicou Humberto, goza numa casa como a nossa, de posição previlegiada: não sai do quarto, põe-se à escuta, sem ter mais nada a fazer do que observar os hábitos da família e tirar proveito do caso. Combina os golpes, sozinho, preparando-os com tempo. Sabe os postos de escuta... (como eu não pude deixar de sorrir, sorriram-se eles também). Sim, continuou Humberto, uma família é sempre imprudente. Disputamos, levantamos a voz; toda a gente acaba por gritar sem dar por isso. Fiamo-nos demais na grossura das paredes da velha casa, esquecendo que os soalhos são muito delgados. E há ainda as janelas abertas...
Estas alusões criaram entre nós uma espécie de alívio. Humberto foi o primeiro que voltou ao tom sério:
-Admitamos que as aparências nos condenam. Ainda uma vez, ser-me-ia fácil invocar o caso de legítima defesa; mas quero afastar tudo o que possa envenenar a discussão. Também não me empenho em estabelecer quem, nesta triste guerra, foi o agressor. Consinto mesmo em tomar a posição de culpado. Mas é preciso que o pai compreenda...
Levantara-se, e enquanto limpava os óculos, os olhos semicerravam-se-lhe no rosto demarcado e pungido.
- Há-de reconhecer que eu lutava pela honra e pela vida dos meus filhos. O pai não pode colocar-se na nossa situação, pois pertence a outro século; viveu nessa época fabulosa em que o homem prudente jogava sobre valores seguros. Vê-se muito bem que o pai esteve à altura das circunstâncias; que viu, antes dos outros, o perigo; capitalizou a tempo... mas foi porque estava fora dos negócios, fora da questão, é o caso! Podia avaliar friamente a situação, dominá-la, porque não estava como eu enterrado até às orelhas... O acordar foi brusco demais... Não se teve tempo de voltar atrás... É a primeira vez que todos os ramos estalam ao mesmo tempo. Não nos podemos segurar a nada, não nos podemos agarrar a nada...
com que angústia ele repetia: "a nada..." "a nada..." Até que ponto estaria ele comprometido? À beira de que desastre se debatia? Teve medo de ter dito demais... mudou de assunto, falando das vulgaridades habituais: reapetrechamento intensivo, depois da guerra, a sobre produção, a crise de consumo... O que ele dizia importava-me pouco. Era à sua angústia que eu permanecia atento. Notei, naquele momento, que o meu ódio tinha morrido, - morrendo também todo o desejo de represálias.
Talvez até estivesse morto há muito tempo. Eu bem tinha alimentado o meu furor, esporeando-me as ilhargas. Agora, porque não havia eu de me render à evidência dos factos? Senti, diante de meu filho, um sentimento confuso onde predominava a curiosidade: a agitação daquele desgraçado, aquele terror, aqueles sentimentos angustiados, que eu podia suspender com uma palavra... como tudo aquilo me parecia estranho! Eu via em espírito aquela fortuna, que fora, parecia-me a mim, o tudo da minha vida, que eu procurara dar, e perder, da qual nem sequer fora livre de dispor à minha vontade - essa coisa de que eu me sentia, repentinamente, mais que desprendido, que já não me interessava, e que parecia nem mesmo dizer-me respeito. Humberto, agora, silencioso, espiava-me por detrás dos óculos: Que estaria este a tramar? Que golpe lhe Iria assestar? Já se lhe contraía o rosto, e retirava o busto, levantando o braço a meias, como criança que se defende. Continuou com voz tímida:
- Nada mais peço ao pai, senão que me salve a posição. com o que vou herdar da Mãe, não precisarei mais (hesitou um instante antes de dizer a quantia) do que um milhão. Uma vez o terreno desenredado, eu me tirarei de apuros. Do resto, pode fazer o que quiser, que eu me obrigarei a respeitar-lhe a vontade...
Enguliu a saliva; olhava-me às furtadelas, mas eu conservava o rosto impenetrável.
- E tu, minha filha?, disse eu, voltando-me para a Genoveva, tu estás em boa situação? O teu marido é prudente...
O elogio do marido, irritava-a sempre. Protestou que a casa estava em decadência. O Alfredo havia dois anos que não comprava licor; assim, é claro que não havia perigo de nenhum passo em falso! Tinham com que viver, mas o Phili ameaçava abandonar a mulher, e só esperava ter a certeza de que a fortuna estava perdida. Como eu murmurei: "Olha a grande desgraça", ela replicou vivamente:
- Todos nós sabemos que ele é um canalha, a Janine também o sabe, mas se ele a deixa, morre de pena. Morre, com certeza, morre, por causa dele. O pai não pode compreender. Não está no seu registo. A Janine sabe, acerca do Phili, ainda mais de que nós sabemos. Ela já me tem dito, muitas vezes, que é pior de que tudo o que nós imaginamos. Mas isso não tira que ela morra se ele a deixar. Parece absurdo. Mas quê! São coisas que é como se não existissem para o pai. Só com a sua grande inteligência é que o pai poderá compreender o que não sente.
- Estás a cansar o papá, Genoveva!
O Humberto pensava que a irmã estava tolamente a meter os pés pelas mãos, e que me atingia no meu orgulho. Via no meu rosto, sinais de amargura; mas não podia saber qual era a causa. Mal sabia ele que Genoveva reabria uma chaga e punha nela o dedo.
-Afortunado Phili! - suspirei eu. . Os filhos trocaram um olhar de admiração. Na "tua boa fé, sempre me tinham tido por meio doido. Talvez mesmo me tivessem mandado internar com todo o sossego de consciência.
- É um devasso, regougou o Humberto, e que nos ameaça.
- O sogro dele é mais indulgente do que tu, disse-lhe eu. O Alfredo repete muitas vezes que o Phili não é mau rapaz.
Genoveva ganhou calor.
- É que ele também domina o Alfredo: o genro estragou o sogro, toda a gente o sabe na cidade: já os têm visto com raparigas de má nota... É uma vergonha; era um dos grandes desgostos que consumiam a mamã...
Genoveva limpava os olhos. Humberto julgou que eu queria desviar-lhes a atenção do essencial.
- Mas não é disso que se trata, Genoveva, disse num tom irritado. Parece que neste mundo só tu e os teus é que contam.
Mas ela protestou, furiosa, "que sempre estava para ver qual dos dois era o mais egoísta". E acrescentou :
- Nem é para admirar que cada um pense primeiro nos próprios filhos. Tenho feito por Janine, tudo o que tenho podido, posso gabar-me disso, assim como a mamã fez tudo por nós. Era capaz de me atirar ao fogo...
O irmão interrompeu-a com aquele tom áspero, em que eu me reconhecia, para lhe dizer:
- E atiravas para lá também com os outros.
Como esta disputa, ainda há pouco me teria divertido! Como eu teria saudado, com alegria, os sinais anunciadores da luta sem mercê, em redor duma quantos restos de herança que eu não conseguisse frustrar-lhes. Mas, neste momento, só sentia desgosto e tédio... Que esta questão terminasse de uma vez para sempre! Que me deixassem morrer em paz!
- É estranho, meus filhos, disse-lhes eu, que acabe por fazer o que me pareceu sempre a maior das loucuras...
Ah! Já não pensavam em se combater! Voltavam para mim os olhos duros e desconfiados. Ficavam à espera, pondo-se em guarda.
- Ora eu que sempre tinha tido diante dos olhos o exemplo dos velhos caseiros, despojados em vida, a quem os filhos deixam morrer à fome... e quando a agonia é longa, cobrem de cobertores até à boca...
- Pai, pelo amor de Deus... Protestavam, com uma expressão de horror que não era fingida.
Mudei bruscamente de tom:
- Vais ficar muito ocupado, Humberto; as partilhas hão-de ser difíceis. Tenho depósitos por toda a parte, aqui, em Paris, no estrangeiro. Depois, as propriedades, os imóveis...
A cada palavra minha, dilatavam-se-lhes os olhos; nem queriam acreditar. Vi as mãos finas de Humberto abrirem-se e crescerem, para se tornarem a fechar.
- É preciso que tudo esteja terminado, antes da minha morte; pode ser ao mesmo tempo que fizerdes as partilhas do que vos pertence por parte da vossa mãe. Para mim, reservo-me a posse de Calèse: a casa e o parque (sustento e reparações à vossa conta). Das vinhas, nem quero já ouvir falar. Depois, deverá ser-me entregue pelo notário uma quantia mensal que ainda havemos de fixar. Dá cá a minha carteira... sim... no bolso esquerdo do casaco.
Humberto entregou-me a carteira, com mão trémula. Tirei dela um sobrescrito:
- Encontrarás aqui algumas indicações sobre o total da minha fortuna. Podes levar ao Dr. Arcam... Ou antes, telefona-lhe a dizer que venha cá. Eu mesmo lho entregarei, confirmando, na tua presença, as minhas vontades.
Humberto agarrou no sobrescrito e perguntou-me com expressão ansiosa:
- Não é a brincar, pois não?
- Vai telefonar ao notário, anda; depois verás se é a sério ou não...
Precipitou-se para a porta, mas logo se voltou:
- Não, hoje parecia mal... deve-se esperar uma semana.
Passou a mão pelos olhos; naturalmente sentia vergonha, e esforçava-se por pensar na mãe, enquanto virava e revirava o envelope.
- Está bem, disse-lhe eu, então abre e lê: dou-te licença.
Aproximou-se vivamente da janela, e fez saltar o lacre. Leu como teria comido. Genoveva não se conteve, levantou-se e estendeu a cabeça ávida, por cima do ombro do irmão.
Fiquei-me a contemplar aquele par fraternal. Não tinha nada que me causasse horror. Era um homem de negócios ameaçado, um pai e uma mãe de família que encontravam, inesperadamente, os milhões que julgavam perdidos. Não, não me causavam horror. Mas, a minha própria indiferença era o que mais me admirava. Eu estava como o doente operado que desperta e diz que não sentiu nada. Tinha arrancado de mim mesmo alguma coisa a que estava preso por raízes muito profundas. E não sentia mais que uma impressão de alívio, estava fisicamente mais leve: respirava melhor. No fundo, que fazia eu, há muitos anos, senão tentar perder aquela fortuna e presentear com ela alguém que não fosse um dos meus? Enganei-me sempre acerca do objecto dos meus desejos. Verdadeiramente, nós não sabemos o que desejamos, nem amamos o que julgamos amar.
Humberto ia dizendo à irmã:
- É enorme... é enorme... é uma fortuna enorme.
Trocaram algumas palavras em voz baixa; e Genoveva declarou que não aceitariam o meu sacrifício, que não queriam que eu assim me privasse de tudo.
Estas palavras "sacrifício", "privação" soavam-me de maneira estranha aos ouvidos. Humberto insistia:
- O pai resolveu, ainda debaixo da emoção de hoje, e julga que está mais doente do que na realidade está. Ainda não tem setenta anos; com essa doença pode-se chegar a muito mais idade, e daqui a algum tempo, já se pode arrepender. Se quiser, posso aliviá-lo de todos os cuidados materiais. Mas o melhor é guardar em paz o que lhe pertence. Nós não desejamos senão o que é justo. O que procurámos sempre foi a justiça...
Sentia-me prostrado de cansaço, e eles viram-me os olhos a fechar-se. Disse-lhes que a minha decisão estava tomada, e que agora só falaria desse assunto diante do notário. Dirigiam-se para a porta; sem virar a cabeça, chamei-os:
- Esquecia-me dizer que deve ser entregue uma pensão mensal de mil e quinhentos francos ao meu filho Roberto; assim lho prometi. A ver se me lembras, quando se assinar a escritura.
Humberto corou; não esperava aquele dardo. Mas Genoveva não viu malícia nenhuma. Arregalando o olhar, fez um cálculo rápido:
- Dezoito mil francos por ano... Não achas que é muito?
Os prados estão mais claros que o céu. A terra fumega, repassada de água, e os sulcos cheios de chuva reflectem um azul agitado. Tudo me interessa, como no dia em que Calèse me pertencia. Nada disto me pertence já, e apesar de tudo, não sinto a pobreza.
O ruído da chuva, à noite, sobre a vindima a apodrecer, não me dá menos tristeza, do que quando eu era senhor desta colheita ameaçada. De modo que o que eu tomara por sinal de apego à propriedade, não era mais que o instinto carnal do camponês, filho de camponeses, nascido daqueles que desde séculos interrogam o horizonte com angústia. A pensão que vou receber todos os meses, ir-se-á acumulando no notário: não tenho precisão de coisa nenhuma. Fui prisioneiro, durante toda a vida, duma paixão que me não possuía. Como o cão que ladra à lua, fui fascinado por um reflexo.
Despertar aos sessenta e oito anos! Renascer na altura de morrer! Quem me dera ainda alguns anos, alguns meses, algumas semanas...
A enfermeira despediu-se, e eu sinto-me muito melhor. A Amélia e o Ernesto, que serviam a Isa, ficaram comigo- sabem dar injecções. Tenho aqui tudo ao alcance da mão: as ampolas de morfina e de nitrato. Os filhos, afadigados, nunca saem da cidade, e só aparecem quando precisam dalguma informação a respeito de avaliações... Tudo se passa sem questões: o medo de ficarem "desfavorecidos", faz-lhes tomar a resolução cómica de dividir os serviços completos de roupa adamascada e de cristais de mesa. Cortariam em duas partes uma alcatifa, antes que ficar um sozinho com ela. Preferem ter tudo desemparceirado, mas que nenhum quinhão seja melhor que o outro. É o que eles chamam: a paixão da justiça. Devem ter passado toda a vida a disfarçar com belos nomes, os sentimentos mais vis... Não, estou a ser injusto. Quem sabe se também eles não são escravos como eu fui, duma paixão, que não domina a parte mais profunda do seu ser?
Que pensarão eles de mim? Que fui derrotado, sem dúvida e que cedi. "Apanharam-me, afinal". Contudo, a cada visita, testemunham-me muito respeito e gratidão. Apesar de tudo, devo causar-lhes espanto. Humberto, sobretudo, observa-me: desconfia, e não tem a certeza que eu desarmasse por completo. Sossega, pobre rapaz. Se eu já não metia medo a ninguém no dia em que voltei convalescente a Calèse, quanto mais agora...
Os ulmeiros dos caminhos e os choupos das pradarias desenham largos planos sobrepostos, e entre as suas linhas sombrias acumula-se a bruma a bruma e a fumarada das ervas que ardem, e o hálito imenso da terra que bebeu. Porque nós despertamos em pleno Outono e os cachos, onde ainda permanecem, fixas e brilhantes, as gotas de chuva, não encontrarão já o que lhes tirou o Agosto chuvoso. Mas, para nós, talvez nunca seja demasiado tarde. Tenho necessidade de me repetir a mim mesmo que nunca é tarde demais.
Não foi por devoção que no dia seguinte ao da minha chegada aqui, entrei no quarto de Isa. A inactividade, esta disponibilidade total, que não sei se me faz gozar ou sofrer aqui no campo, só isso me incitou a empurrar a porta entreaberta, a primeira ao cimo da escada, à esquerda. Não só a janela estava aberta de par em par, mas também o o estavam o armário e a cómoda. Os criados tinham desmobilado, e o sol devorava, até aos mais pequenos recantos, os restos impalpáveis dum destino terminado. Naquela tarde de Setembro, zumbiam moscas despertas. As tílias espessas e redondas lembravam frutos tocados. O azul, carregado no zénite, empalidecia ao tocar nas colinas adormecidas. Uma rapariga que eu não via, soltou uma gargalhada; ao nível das vinhas agitavam-se chapéus de palha: tinham começado as vindimas.
Mas a vida maravilhosa retirara-se do quarto de Isa. Ao fundo dum armário, um par de luvas e uma sombrinha tinham o ar das coisas mortas. Olhei para a velha chaminé de pedra que tem esculpido sobre o tímpano, um ancinho, uma pá, uma foice e um feixe de trigo. Estas chaminés doutros tempos, onde podem arder troncos enormes, estão fechadas durante o verão por grandes-biombos de pano pintado. Este representava uma junta de bois no trabalho, que eu, num dia de cólera, quando era pequeno, crivei de navalhadas. Estava mal encostado à chaminé. Quando eu tentava pô-lo no lugar, tombou, e descobriu, cheio de cinza, o quadrado negro da lareira. Lembrei-me, então, do que me tinham dito os filhos acerca do último dia que a Isa passou em Calèse: "Queimara papéis, nós até pensávamos que haveria fogo..." Compreendi, naquele momento, que ela sentira a morte aproximar-se. Não se pode pensar, ao mesmo tempo, na própria morte e na dos outros: possuído pela ideia fixa do meu fim próximo, como me teria eu inquietado com a tensão da Isa? "Não é nada, é a idade", repetiam os patetas dos filhos. Mas ela, no dia em que acendeu aquela fogueira, sabia que a sua hora não estava longe. Quisera desaparecer inteiramente, apagando os mais pequenos vestígios. Ali estavam, na lareira, aqueles flocos cinzentos que o vento agitava. As tenazes que lhe tinham servido, estavam ainda ali, entre a chaminé e a parede. Agarrei nelas, e remexi um pouco, naquele montão de pó, naquele nada.
Remexi-o, como se ele escondesse o segredo da minha vida, das nossas duas vidas. À medida que as tenazes penetravam, a cinza tornava-se mais densa. Apanhei alguns fragmentos de papel que a grossura dos maços tinha protegido, mas não salvei senão palavras, frases truncadas, de sentido impenetrável. Era sempre a mesma letra que eu não conhecia. As mãos tremiam-me, ansiosas. Num pedacito minúsculo, sujo de fuligem, consegui ler esta palavra: PAX, por baixo duma pequena cruz, uma data: 23 de Fevereiro 1913, e: "minha Senhora..." Noutros fragmentos, apliquei-me a reconstituir os caracteres traçados à borda da carta queimada mas só consegui apurar isto: "Não é responsável pela aversão que lhe inspira essa criança, só seria culpada se cedesse a esse sentimento. Mas ao contrário, se se esforça por... Depois de muito trabalho, pude ainda ler: ...julgar temeràriamente os mortos... o afecto que ele tem a Lucas não prova... A fuligem recobria o resto, excepto esta frase: Perdoe sem saber o que tem a perdoar. Ofereça por ele o seu...
Mais tarde teria tempo de reflectir; deveriam ser conselhos espirituais de algum confessor; por agora, só pensava em encontrar melhor. Esquadrinhei, com o busto inclinado, numa posição incómoda que me impedia de respirar. Sobressaltei-me, por momentos com a descoberta dum livro de notas encadernado em veludo, e que parecia intacto; mas nenhuma das folhas fora poupada. No verso da capa, decifrei somente estas palavras escritas pela mão de Isa: Ramalhete Espiritual. E por baixo: Eu não me chamo aquele que condena, o meu nome é Jesus (Cristo. S. Francisco de Sales).
Outras citações se seguiam mas ilegíveis. Permaneci ainda, muito tempo, inclinado sobre estas cinzas, mas em vão, porque nada mais obtive... Levantei-me e olhei para as mãos mascarradas. Vi, no espelho, a minha fronte empoada de cinza. Senti-me possuído de certo desejo de andar, como quando era rapaz; desci a escada, quase a correr, esquecendo o coração.
Dirigi-me, péla primeira vez depois dalgumas semanas, para as vinhas despojadas em parte dos seus frutos, e que pareciam dormitar ao sol. A paisagem estava leve, límpida, entumecida como aquelas bolas de sabão, que a Maria outrora soprava na extremidade duma palha. O vento e o sol endureciam os sulcos e as pegadas profundas dos bois. Caminhava, levando em mim, a imagem daquela Isa desconhecida, presa de paixões tão fortes que só Deus tivera o poder de matar. Aquela dona de casa, fora uma irmã devorada pelo ciúme. O pequeno Lucas, fora-lhe odioso... uma mulher capaz de detestar uma criança... ciosa por causa dos próprios filhos? Porque eu lhes preferia o Lucas? Mas ela também detestava a Marinette... Sim, sim: ela sofrera por minha causa; e eu tivera o poder de a torturar. Que sonho este! Morta, a Marinette, morto, o Lucas, morta, a Isa, todos mortos! e eu, um velho, de pé, à beira da mesma cova onde eles tinham caído, gozava agora por não ter sido indiferente a uma mulher, por ter agitado nela aquelas ressacas.
Era ridículo, e na verdade, estava-me a rir sozinho, um pouco ofegante, encostado a uma estaca da vinha, em frente daquelas pálidas extensões de bruma, onde tinham soçobrado as aldeias com suas igrejas, suas estradas e todos os seus choupos. A luz do poente abria um caminho difícil, até esse mundo sepultado. Eu estava a sentir, a ver e a tocar o meu crime: que não residia somente naquele hediondo ninho de víboras -? ódio aos filhos, desejo de vingança, amor do dinheiro - mas também na minha recusa em procurar mais alguma coisa, para além dessas víboras emmaranhadas. Tinha-me atido a este nó repugnante, como se ele fosse o meu próprio coração - como se as palpitações desse coração se confundissem com aqueles répteis a fervilhar.
Não me bastara, ao longo de meio século, nada mais conhecer em mim, senão o que não era eu: e com os outros procedera da mesma maneira. Aquelas pobres cobiças que eu descobri na face de meus filhos, prendiam-me o olhar. Como também a estupidez de Roberto, era só o que dele me aparecia; e eu contentava-me com essa aparência. Nunca o aspecto dos outros, se me ofereceu como qualquer coisa que é preciso arrombar e transpor, para os compreendermos. Era há trinta ou quarenta anos que eu devia ter feito esta descoberta. Mas hoje, sou um velho, de coração muito lento; enquanto vou olhando para o último Outono da minha vida a adormecer a vinha, ou para o entorpecer de névoas e de clarões. Os que eu devia amar estão mortos; como mortos estão aqueles que teriam podido amar-me. E os sobreviventes, já não tenho tempo, nem força, de tentar para eles a viagem do descobrimento. Não há em mim coisa nenhuma, nem mesmo a voz, os gestos, e o riso, que não pertença ao monstro que eu ergui contra o mundo e ao qual dei o meu nome.
Seriam precisamente estes pensamentos os que eu ia ruminando, encostado àquele esteio das vinhas, na extremidade dum rego, em frente das pradarias luminosas de Yquem, onde o sol poente se escondera? Tornou-nos, sem dúvida, mais claros, um incidente que devo relatar aqui; mas já eram meus, naquela tarde, quando eu voltava para casa, penetrado até ao coração daquela paz que enchia a guerra; as sombras alongavam-se, e o mundo era . todo aceitação; ao longe, as colinas perdidas assemelhavam-se a espáduas curvadas; esperavam o nevoeiro e a noite para se alongarem, talvez para se estenderem, para adormecerem com sono humano.
Contava encontrar a Genoveva e o Humberto em casa, pois tinham-me prometido vir jantar comigo. Era a primeira vez na vida que desejava a sua vinda e que nisso tinha verdadeira alegria. Estava impaciente por lhes mostrar o meu novo coração, e não queria perder um minuto para os conhecer, e para me dar a conhecer. Teria eu tempo, antes de morrer, de pôr à prova a minha descoberta? Procuraria, a marchas forçadas, o coração dos meus filhos, passaria através de tudo o que nos separasse. O nó de víboras estava enfim cortado; avançaria, tão rapidamente, no seu amor, que eles chorariam ao fechar-me os olhos.
Ainda não tinham chegado. Sentei-me num banco, perto da estrada, atento ao ruído dos motores. Quanto mais eles tardavam, mais eu desejava a sua vinda. Mas já começavam a vir-me assomos da antiga cólera: importavam-se eles bem de me fazer esperar! que eu sofresse por causa deles, pouco se lhes dava; era de propósito... Pensei melhor: esta demora podia ter alguma causa que eu ignorasse, e não havia probabilidade nenhuma de ser precisamente aquela, com que eu habitualmente sustentava o meu rancor.
A campainha anunciava o jantar. Fui até à cozinha para advertir a Amélia que era preciso esperar um pouco. Era raríssimo, verem-me debaixo dessas traves enegrecidas, donde pendiam presuntos. Sentei-me perto do lume numa cadeira de palha. A Amélia e o marido, o Manuel e o feitor, cujas gargalhadas francas eu ouvira de longe, calaram-se quando eu entrei. Cercava-me uma atmosfera de respeito e de terror. Nunca falo a criados. Não que eu seja amo difícil ou exigente, simplesmente, não existem a meus olhos, nem sequer os vejo. Mas, naquela tarde, a presença deles sossegava-me. Como os filhos não vinham, o meu gosto teria sido de tomar a refeição, a um canto daquela mesa, onde a cozinheira cortava a Carne.
O Manuel escapara-se, e o Ernesto enfiava um casaco branco para me servir. Aquele silêncio oprimia-me, e em vão procurava uma palavra. Mas não conhecia nada daqueles dois seres que nos eram dedicados, havia mais de vinte anos. Enfim, lembrei-me que, outrora, a filha casada em Sauveterre de Guyenne vinha vê-los, e que a Isa não lhe pagava o coelho que ela trazia porque tomava muitas refeições em nossa casa. Murmurei, então, sem voltar a cabeça, e um pouco à pressa:
- Então, Amélia, como vai a sua filha? Continua em Sauveterre?
Ela baixou para mim a face curtida, e depois de me ter olhado fixamente:
- O patrão não sabe que ela morreu... haverá dez anos, no dia. de S. Miguel, a 29. O patrão deve estar lembrado...
O marido ficou calado e olhou-me com um olhar duro, julgando que eu me fizera esquecido.
- Desculpe, balbuciei eu, esta velha cabeça... Mas, como nas ocasiões em que me sentia contrafeito e intimidado, também agora, não consegui deixar de me rir, com um riso de mofa. O homem anunciou, no tom habitual:
- Está o jantar na mesa.
Levantei-me logo e fui-me sentar na casa de jantar mal iluminada, em frente da sombra de Isa. Aqui a Genoveva, depois o padre Ardouin, a seguir o Humberto... Procurei com os olhos, entre a janela e o aparador, a cadeira alta da Maria, que servira depois para a Janine, e para a filha da Janine. Fiz menção de engulir alguns bocados; o olhar do homem que me servia, era horrível.
Acendera no salão um braseiro de vides. Neste aposento, cada geração, ao retirar-se, como faz a maré com as conchas, deixara álbuns, cofres, dagTierreótipos, candeeiros Carcel. Bugigangas mortas cobriam as consoles. O passo pesado dum. cavalo no escuro, o barulho do lagar contíguo à casa, apertavam-me o coração. "Meus filhos, por que não viestes?" Foi a queixa que me subiu aos lábios. Se, através da porta, os criados a tivessem ouvido, teriam pensado que havia um estranho no salão; por que não podia ser nem a voz nem as palavras do velho miserável que, segundo eles imaginavam, propositadamente ignorara a morte da sua filha.
Todos, mulher e filhos, senhores e criados, se tinham coligado contra a minha alma, ditando-me este papel odioso. B eu gelara atrozmente na atitude que eles exigiam de mim. Conformara-me com o modelo que o seu ódio me propusera. Que loucura, aos sessenta e oito anos, querer remar contra a corrente, para lhes impor uma visão nova do homem que eu apesar de tudo sou, e que sempre fui! Nós não vemos senão o que estamos habituados a ver. E a vós, pobres filhos, também eu vos não vejo bem a vós.
Se eu fosse mais novo as rugas estariam menos vincadas, os hábitos menos enraizados; mas duvido que, mesmo na juventude, eu pudesse quebrar este encantamento. Ser-me-ia precisa uma força, dizia-me eu a mim mesmo. Mas que força!? Alguém. Sim, alguém em que nós todos nos juntássemos, e que seria a garantia da minha vitória aos olhos dos meus; alguém que desse testemunho por mim, que me tivesse aliviado do meu fardo imundo, que o tivesse tomado sobre si...
Mesmo os melhores não aprendem, sozinhos, a amar: para passar além dos ridículos, dos vícios e sobretudo da tolice dos seres, é preciso possuir um segredo de amor que o mundo não conhece. Enquanto esse segredo não for encontrado, é em vão que se mudam as condições humanas: pensava eu que era o egoísmo que me tornava estranho a tudo o que toca ao económico e ao social; é verdade que fui um monstro de solidão e de indiferença; mas havia, também, em mim, o sentimento, a obscura certeza de que para nada serve revolucionar a face do mundo; é preciso atingir o nrundo no coração. E pergunto-me a mim mesmo quem seria aquele único que realizaria essa vitória; seria preciso que ele fosse o Coração dos corações, o centro abrasado de todo o amor. E este desejo talvez fosse já uma oração. Pouco faltou naquela noite para que eu não me pusesse de joelhos, como outrora fazia a Isa, nas noites de verão, com os três filhos agarrados às saias. Eu voltava do terraço para aquela janela iluminada; abafava os passos e, invisível no negrume do jardim, olhava para aquele grupo suplicante: "Prostrada diante de Vós, ó meu Deus, recitava a Isa, eu vos dou graças porque me destes um coração capaz de Vos conhecer e de Vos amar...
Permaneci de pé no meio da sala, vacilante, impressionado. Pensava na minha vida, olhava para a minha vida. Não, não se vence assim uma tão grande corrente de lama. Eu fora um homem horrível, que nunca tivera nem um único amigo. Mas, dizia eu comigo mesmo, não seria porque fui sempre incapaz de me disfarçar? Se todos os homens caminhassem tão desmascarados como eu o fiz, durante meio século, talvez se admirassem que entre eles as diferenças de nível fossem tão pequenas. Para falar a verdade, ninguém avança de rosto descoberto, ninguém. A maior parte macaqueia a grandeza e a nobreza. Inconscientemente, adaptam-se a tipos literários ou quaisquer outros. Os santos sabem-no bem, e porque se conhecem, é que se odeiam e desprezam. Nunca eu teria sido tão desprezado, se me não tivesse entregado tanto, se não fosse tão aberto e tão nu.
Tais eram os pensamentos que me perseguiam naquela noite, enquanto errava através do aposento escurecido, tropeçando no acaju e no aracajá daquela pesada mobília, destroço coberto de areia no passado duma família, onde tantos corpos, hoje desfeitos, se tinham encostado e estendido. As botinas das crianças tinham manchado o divã, quando nele se enterravam para folhear Lê Monde Illustré de 1870. O estofo ainda estava negro nesse mesmo lugar. O vento soprava em volta da casa, e agitava as falhas secas das tílias. Tinham-se esquecido de fechar as persianas duma janela.
No dia seguinte, esperei com ansiedade a hora do correio. Andava a passear nas alamedas, à maneira da Isa, quando os pequenos chegavam atrasados, e ela se inquietava. Ter-se-iam eles zangado? Estaria algum doente? "Afligia-me", tornando-me tão hábil como a Isa, para entreter e sustentar ideias fixas. Ia caminhando por meio das vinhas, com o ar ausente e separado do mundo daqueles que removem alguma apoquentação. O nevoeiro era sonoro, ouvia-se a planície sem se ver. Alvéolas e tordos andavam numa festa pelos sulcos, onde a uva se demorava a apodrecer. O Lucas, quando pequeno, ao fim das férias gostava muito destas manhãs de transição...
Uma palavra de Humberto, datada de Paris, não me sossegou. Que fora obrigado, dizia ele, a partir à pressa: uma contrariedade bastante grande, que me contaria quando voltasse; o que seria no dia seguinte. Pensei logo em complicações de ordem fiscal: teria ele cometido alguma ilegalidade?
De tarde, não me contive, fiz-me conduzir à estação e tomei um bilhete para Bordéus, ainda que me tinha comprometido a nunca mais viajar sozinho. A Genoveva, habitava agora a nossa antiga casa. Encontrei-a no vestíbulo, no momento em que se despedia dum desconhecido, que devia ser o médico.
- O Humberto não o pôs ao corrente de tudo?
Arrastou-me para a sala de espera, onde eu desmaiara no dia do enterro. Respirei quando soube que se tratava duma fuga do Phili; receara pior: mas ele fugira com uma mulher "que o tinha bem seguro", depois duma cena atroz onde não deixara a Janine a mais leve esperança. Não podiam arrancar a pobre pequena a uma espécie de prostração, que dava cuidado ao médico. O Alfredo e o Humberto tinham encontrado o fugitivo em Paris. Segundo telegrama recebido naquele momento não tinham conseguido nada.
- Quando penso que nós lhe assegurámos uma pensão tão grande... É claro que tomámos precauções, pois não lhe demos capital nenhum. Mas a pensão era considerável. Só Deus sabe quanto a Janine era fraca com ele: conseguia dela tudo o que queria. E lembrar-se a gente que antes era ele que ameaçava deixá-la, persuadido que nós nada herdaríamos; e é precisamente quando o pai nos entrega a sua fortuna que ele se põe ao fresco. Como se poderá explicar uma coisa destas?
Parou, na minha frente, com as sobrancelhas e os olhos dilatados. Encostou-se ao radiador, e juntando os dedos, esfregava a palma das mãos.
- E naturalmente, disse eu, trata-se de alguma mulher muito rica...
- Pelo contrário! É uma professora de canto... o pai conhece-a muito bem, é a Sr.a Vélard. Não é muito nova, e já batida. Mal ganha para viver. Como se poderá explicar uma coisa destas - repetia ela.
Sem esperar pela minha resposta, continuava a falar. Nesse momento, entrou a Janine. Vinha de roupão, e estendeu-me o rosto. Não emagrecera; mas sobre aquela figura pesada e sem graça, a angústia destruíra tudo o que eu aborrecia; aquele pobre ser tão afectado, tão amaneirado, tornara-se terrivelmente despretensioso e simples. A luz crua dum lustre iluminava-a inteiramente sem a fazer pestanejar. Perguntou-me somente: "Já sabe?" e sentou-se numa cadeira de encosto.
Daria ela ouvidos aos discursos da mãe, àquele requisitório interminável que Genoveva devia ter repetido continuamente desde a partida do Phili?
- Quando penso...
Todos os períodos começavam por este: "quando penso" admirável, numa pessoa que pensava tão pouco. Tinham consentido, dizia ela, neste casamento, ainda que aos vinte e dois anos Phili tivesse já dissipado uma linda fortuna, de que tomara posse cedo demais (como era órfão os parentes emanciparam-no). A família fechara os olhos sobre a sua vida crapulosa... E aí estava a recompensa...
Começava a nascer em mim uma irritação que em vão procurava conter. A minha velha maldade despertava. Como se a própria Genoveva, o Alfredo, a Isa, e todos os seus amigos não tivessem provocado o Phili, e não o tivessem deslumbrado com promessas!
- O mais curioso, resmunguei eu, é que tu acreditas no que estás a dizer. Sabes muito bem, que vocês todos corriam atrás desse rapaz...
- Suponho que o pai não vai agora a defendê-lo. ..
Protestei que não se tratava de o defender. Mas todos nós fizemos mal em julgar o Phili mais vil do que ele era na realidade. O que se está a ver é que lhe tinham sublinhado, bem duramente, que uma vez a fortuna segura, aceitaria ele todas as afrontas, porque contavam que já então não arredasse pé. Mas os seres nunca descem tão baixo como nós imaginamos.
- Quando penso, que o pai está a defender um miserável que abandonou a mulher e a filhinha...
- Genoveva, gritei eu, já exasperado, se não me compreendes, faz um esforço para compreenderes: abandonar a mulher e a filha está visto que é mal; mas o culpado tanto pode ter cedido a motivos ignóbeis, como a razões mais altas...
- Então, repetia Genoveva obstinadamente, o pai acha que é digno, abandonar-se a mulher de vinte e dois anos com uma criancinha...
Não saía dali, não entendia nada, de nada...
- Não, tu és muito tola... a não ser que estejas de propósito a fazer que não compreendes... O que eu digo é que o Phili me aparece menos desprezível desde que...
Genoveva cortou-me a palavra, gritando, que esperasse ao menos que a Janine saísse da sala, para a insultar, defendendo-lhe o marido. Mas a pequena que até ali não abrira a boca, disse, com uma voz que tive dificuldade em reconhecer:
- Para que serve estar a negar, mamã? Nós pusemos o Phili mais raso que o chão. Lembre-se da pressão que nós exercíamos sobre ele depois que as partilhas se decidiram. Sim, era como um animal que eu levasse à trela. Cheguei a já nem sofrer tanto por não ser amada. Tinha-o seguro; era meu; pertencia-me: era eu a senhora do dinheiro, pendurava-lhe as amêndoas muito alto. Era como a mamã dizia, não se lembra? "Agora vais poder pendurar-lhe as amêndoas muito alto". Pensávamos que para ele nada havia acima do dinheiro. Talvez também ele o pensasse ,e contudo a cólera e a vergonha foram mais fortes. Ele não ama essa mulher com quem fugiu; confessou-mo antes de sair e lançou-me à cara, coisas horríveis para mim, e que eu tinha consciência de serem verdade. Mas ela não o desprezava, não o diminuía. Dera-se a ele, não o agarrara. Eu, oferecia-mo a mím mesma.
E repetia estas últimas palavras, como se estivesse a castigar-se. A mãe encolhia os ombros, mas estava contente de a ver chorar:
- Sempre alivia...
E acrescentava ainda:
- Não tenhas medo, filha, que ele há-de voltar, quando a fome o obrigar... Quando tiver comido do pão que o diabo amassou...
Eu tinha mais do que a certeza que estas palavras aumentavam o desgosto da Janine. Levantei -me e agarrei no chapéu, não conseguindo acabar o serão com a minha filha. Disse-lhe que tinha alugado um automóvel e que voltaria para Calèse. De repente, disse-me Janine:
- Leve-me consigo, avô.
A mãe perguntou-lhe, se estava doida; tinha de ficar ali, porque os advogados precisavam dela. Depois, em Calèse, "dava-lhe a tristeza". No patamar, onde me seguira, a Genoveva censurou-me por eu lisonjear a paixão de Janine:
- Se ela conseguisse defender-se desse indivíduo, teríamos tudo a ganhar. Arranja-se sempre um caso de anulação; e com a fortuna dela, faria um esplêndido casamento. Mas o que é preciso primeiro é que ela se desprenda. E o pai que detestava o Phili põe-se agora a fazer-lhe o elogio diante dela... Não, não! Ela não pode ir para Calèse! Havia de voltar de lá em bonito estado. Aqui, vamos a ver se a distraímos. Há-de acabar por esquecer...
A não ser que morra antes, pensava eu; ou então que continui a viver miseravelmente, sempre com a mesma dor que o tempo não consiga apagar.
Talvez a Janine pertença àquela raça que um velho advogado conhece muito bem: a dessas mulheres em que a esperança é uma doença de que não se curam nunca, e que, passados vinte anos, olham ainda para a porta com olhos de cão fiel.
Entrei no quarto onde a Janine permanecera sentada, e disse-lhe:
- Quando quiseres, minha filha, serás sempre bem recebida.
Não deu o menor sinal de me ter compreendido. A Genoveva entrou e perguntou-me com ar desconfiado :
- Que é que o pai lhe dizia?
Soube, depois, que ela me acusava de, durante esses poucos segundos, ter "voltado do avesso" a Janine, e de me ter entretido "a meter-lhe uma data de coisas na cabeça". Mas eu descia a escada lembrando-me somente que a Janine me dissera: "Leve-me consigo..." Pedira-me que a levasse.
Eu pronunciara, por instinto, acerca de Phili, as palavras que ela precisava de ouvir. Era talvez o primeiro que a não tinha ferido.
Ia caminhando naquele Bordéus iluminado num dia de abertura de aulas; os passeios do Cours de Untenance luziam húmidos de nevoeiro. As vozes da gente do sul cobriam o barulho dos eléctricos. O perfume da minha infância tinha-se perdido; tê-lo-ia encontrado nos bairros mais sombrios da rua Dufour-Dubergier e da Grasse Cloche. Ali, talvez, alguma velhota, à esquina duma rua escura, apertasse ainda ao peito, a panela fumegante de castanhas cozidas, perfumadas de erva doce.
Não, não me sentia triste. Alguém me tinha ouvido e compreendido. Tínhamo-nos encontrado: já era uma vitória. Tinha, porém, falhado diante de Genoveva: é que há certa espécie de estupidez contra a qual não consigo nada. Atinge-se facilmente, através dos crimes e dos vícios mais tristes, uma alma que vive; mas a vulgaridade é intransponível. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão doutra maneira; era impossível fender a pedra de todos aqueles túmulos. Muito feliz seria eu se conseguisse chegar até uma só alma, antes de morrer.
Pernoitei no hotel e só no dia seguinte regressei a Calèse. Poucos dias depois, o Alfredo veio visitar-me e soube por ele as consequências funestas que tivera a minha visita: a Janine escrevera ao Phili numa carta de quem está louca, onde se acusava de todas as culpas, e tomando a responsabilidade delas, pedia-lhe perdão: "As mulheres não fazem senão disto...". O bom do gordefas não se atrevia a dizer-mo, mas com certeza que pensava: "Continua com as tolices da avó".
Deu-me depois a entender que o processo estava perdido antecipadamente, e que a Genoveva me tornava responsável: fora de propósito que eu fizera andar à roda a cabeça da Janine. Perguntei, sorrindo, àquele meu genro, quais poderiam ter sido as minhas intenções, Respondeu-me, protestando que não partilhava de modo nenhum a opinião da mulher, que, no dizer dela, eu procedera por malícia, por vingança e, até talvez, por "pura maldade".
Os filhos, agora, já me não vinham ver. Uma carta da (Genoveva participou-me, duas semanas mais tarde, que tinham tido de internar a Janine numa casa de saúde. Não se tratava de loucura, é claro. Mas esperavam muito dessa cura de isolamento.
Eu, por minha parte, também vivia isolado, mas não sofria. Nunca o coração me deixara em tanto descanso.
Durante toda esta quinzena, e ainda muito depois, o outono demorou-se, radioso, sobre o mundo. Nenhuma folha se desprendia das árvores, e as rosas abriam de novo. Eu deveria sentir que meus filhos se afastassem novamente de mim. O Humberto só aparecia para falar de negócios. Era seco e afectado. As maneiras continuavam delicadas, mas mantinha-se na defesa. A influência que os filhos me acusavam de ter ganhado sobre a Janine, fizera-me perder todo o terreno. Voltava a ser a seus olhos, o adversário, o velho pérfido e capaz de tudo. Finalmente, a única que me poderia ter compreendido, estava internada, e separada dos vivos. Mas apesar de tudo, sentia uma paz profunda. Desprovido de tudo, isolado, na iminência duma morte dolorosa permanecia calmo, atento, com o espírito desperto. Não me abatia o pensamento da minha triste vida. Não sentia o peso daqueles anos desertos... como se não fosse um velho muito doente, como se tivesse ainda, diante de mim, uma existência inteira, como se esta paz que me possuía fosse alguém.
Há já um mês que ela fugiu da casa de saúde e que eu a recolhi. A Janine ainda não está curada. Julga que foi vítima duma conspiração; afirma que a internaram porque se recusava a atacar o Phili, a pedir o divórcio e a anulação. Os outros pensam que fui só eu que lhe meti estas coisas na cabeça, que a levanto contra eles, quando, afinal, no decorrer destes intermináveis dias de Calèse, ando a lutar, hora a hora, contra as suas ilusões e as suas quimeras.
Lá fora, a chuva mistura as folhas com a lama, apodrecendo-as. Pesados socos fazem estalar a areia do páteo; passos de homem com um saco pelas costas. O jardim está tão despido, que nada esconde já a insignificância do que aqui se concede ao prazer: as carcassas dos canaviais, os bosques esqueléticos tiritam sob a chuva eterna. A humidade penetrante dos quartos deixa-nos sem coragem, à noite, para deixar a braseira do salão. Dá meia noite, e não podemos resignar-nos a subir; e os tições pacientemente acumulados, caem na cinza; assim é preciso, também, recomeçar indefinidamente a persuadir a Janine, que os pais, o irmão e o tio, lhe não querem mal nenhum. Desvio-lhe o pensamento, tanto quanto posso, da casa de saúde. Voltamos sempre ao mesmo ponto, ao Phili:
- Não faz ideia do que ele era... Ninguém sabia a força dele...
Estas palavras anunciam, indiferentemente, um requisitório ou um ditirambo, e apenas o tom me deixa pressentir, se ela o vai exaltar ou cobrir de lama. Mas quer o glorifique quer o acuse, os factos que cita parecem-me insignificantes. O amor comunica a esta pobre mulher, tão desprovida de imaginação, o poder admirável de amplificar ou deformar. Sim, eu conheci esse teu Phili - uma dessas insignificâncias que a juventude passageira reveste de brilho por um instante. A esse rapaz amimado e acariciado, falho de tudo, emprestas tu intenções nobres ou celeradas, e até perfídias premeditadas; mas de tudo isso ele não tem mais que reflexos.
Vós não compreendíeis que ele, para respirar, tinha necessidade de se sentir mais forte. Era preciso não lhe pôr as amêndoas muito altas. As amêndoas altas não fazem saltar esta espécie de cães; desatrelam, em busca doutras rações que são servidas no chão.
Nem mesmo de muito longe, a pobrezinha conhece o seu Phili. Que representa ele a seus olhos, excepto a angústia da sua presença, as carícias diferidas, o ciúme, o horror de o ter perdido? Sem olhos, sem olfato, sem antenas, ela corre e enlouquece atrás deste ser, sem que haja nada que a informe sobre o que é realmente o objecto da sua demanda... Existirão pais cegos? Janine é minha neta; mas fosse ela minha filha, não deixaria de a ver tal qual ela é: uma criatura que nada pode receber de outro. Esta mulher de feições regulares, gorda, pesada, com voz tola, está marcada com o sinal daquelas que não demoram um olhar nem fixam um pensamento. Contudo, ao longo destas noites, parece-me bela, duma beleza estranha a ela própria, beleza tirada do seu desespero. Não existiria algum homem, que este incêndio atraísse? Mas a desgraçada consome-se no deserto e nas trevas, sem outra testemunha, além deste velho...
Ainda que ela me fizesse muita pena, durante aqueles compridos serões, eu não deixava de ir confrontando Phili, esse rapaz igual a milhões de outros, como a borboleta branca comum, se parece a todas as borboletas brancas - com este delírio que ele tivera o poder de excitar na mulher, e que para ela aniquilava o mundo visível e invisível; nada mais subsistia, aos olhos da Janine, senão um homem, já sem o frescor da idade, inclinado a preferir o álcool a tudo o mais, e a considerar o amor como trabalho, dever e maçada... Que miséria!
Quase nem reparou na filhita que entrava sorrateiramente na sala, ao escurecer. Poisava os lábios, ao acaso, por sobre os caracóis da pequenita. Não que a miudinha não exercesse poder sobre a mãe... era só por causa dela que a Janine não partia à procura do marido (porque era mulher para o perseguir, para o provocar e fazer cenas em público). Não era eu que teria bastado para a reter; ela ficava pela criança, mas não recebia dela a mais pequena consolação. Era nos meus braços e sobre os meus joelhos que a pequenita se refugiava à noite, enquanto se esperava que o jantar fosse servido. E eu reencontrava nos seus cabelos, o perfume de avezita e de ninho, que me lembrava a Maria. Fechava os olhos, com os lábios apoiados àquela cabecinha; e não querendo apertar demasiado aquele corpinho, chamava, em meu coração, pela minha filha perdida. E era, ao mesmo tempo, o Lucas, que eu julgava abraçar. Quando ela tinha brincado muito a sua carne tinha o gosto salgado das faces do Lucas, no tempo em que ele adormecia à mesa, de tanto ter corrido... Nem era capaz de esperar pela sobremesa, e ia de roda, estendendo-nos a cara extenuada pelo sono... Assim divagava eu, enquanto a Janine errava através da sala, passeando, passeando sempre, no círculo fechado do seu amor.
Lembro-me uma noite em que ela me perguntava: "Que seria preciso fazer, para fugir ao sofrimento? Parece-lhe, avô, que isto passa?" Era uma noite de geada: vi-a abrir a janela, empurrar as persianas, e mergulhar a fronte e o busto no luar gelado. Reconduzi-a para junto do lume; e eu, que ignoro todos os gestos de ternura, sentei-me desajeitado, junto dela, passando-lhe o braço pelos ombros. Perguntei-lhe se lhe não restava recurso nenhum. "Não tens fé?" Replicou distraidamente: "Fé?" como se não tivesse compreendido. "Sim, continuei eu, Deus..." Ergueu para mim a face afogueada, observando-me com ar desconfiado, e dizendo por fim "que não via relação..." E como eu insistisse:
- Pois é claro que sou religiosa, cumpro os meus deveres de religião. Porque mo pergunta? Ou está a brincar?
- Mas olha lá, continuei eu, julgas que o Phili está à altura do que tu lhe dás?
Olhou-me com a expressão aborrecida e irritada da Genoveva quando não compreende o que se lhe diz, quando não sabe o que há-de responder e tem medo de cair nalguma armadilha. Arriscou-se por fim: "Não tem nada que ver uma coisa com outra..." Que não gostava de misturar a religião com essas coisas. Que era praticante, sim, mas, por isso mesmo aborrecia essas aproximações doentias. "Cumpria todos os seus deveres". Ter-me-ia dito com o mesmo tom de voz, que pagava todas as contribuições. Era isto mesmo que eu tanto detestara em toda a minha vida: aquela caricatura grosseira, aquela formalidade medíocre da vida cristã, fingi sempre ver nela uma representação autêntica para ter o direito de a odiar. Devemos ter a coragem de olhar de frente, aquilo que odiamos. Mas eu, mas eu... Não sabia eu, que a mim próprio me enganava, naquela noite do fim do século, no terraço de Calèse, quando o padre Ardouin me dissera: "Que bom é o senhor..."? Mais tarde, tapei os ouvidos para não ouvir as palavras da Maria agonizante. À sua cabeceira, contudo, foi-me entregue o segredo da vida e da morte. Morria por mim... Uma criança... Quis esquecê-lo. Incansavelmente, procurei perder aquela chave que mão misteriosa me entregava sempre, a cada volta da minha vida (o olhar de Lucas depois da Missa, nas manhãs do domingo, à hora da primeira cigarra... ainda nesta primavera, a noite do granizo...)
Assim vagueavam os meus pensamentos, naquela noite. Lembro-me de me ter levantado, e de ter empurrado a poltrona com tanta força que a Janine estremeceu. O silêncio de Calèse, àquela hora avançada, aquele silêncio pesado, quase sólido, entorpecia, sufocava-lhe a dor. Deixava apagar o lume, e à medida que a sala se tornava mais fria, puxava a cadeira para a chaminé quase tocando na cinza com os pés. O lume agonizante, atraíalhe as mãos e a fronte. A lâmpada da chaminé iluminava aquela mulher pesada, dobrada sobre si, enquanto eu errava em redor na penumbra, povoada de acaju e de aracajá, girando, impotente, à volta daquele bloco humano, daquele corpo prostrado. "Minha filha..." Mas não encontrava a palavra que procurava. O que me sufoca, esta noite, ao escrever estas linhas, o que me faz doer o coração como se ele fosse a despedaçar-se, este amor de que eu conheço enfim o nome ador...
Calèse, 10 de Dezembro de 193...
Minha querida Genoveva, espero acabar esta semana de ordenar os papéis que transbordam por aqui, de todas as gavetas. Mas é meu dever comunicar-te, sem demora, este estranho documento. Sabes que nosso pai morreu sentado à mesa de trabalho, e que a Amélia o encontrou na manhã de 24 de Novembro, com o rosto caído sobre um caderno aberto: o mesmo que agora te mando registado. com certeza, vais ter a mesma dificuldade que eu tive para o decifrar... felizmente que a letra é ilegível para os criados. Movido por um sentimento de delicadeza, decidira primeiramente poupar-te a esta leitura: é que o nosso pai exprime-se, a teu respeito, em termos particularmente duros. Mas não te pertence ele a ti tanto como a mim? Conheces muito bem os meus escrúpulos em tudo o que, de perto ou de longe, diz respeito à herança de nossos pais. Mudei pois de opinião. Aliás, quem de nós não é maltratado nestas páginas cheias de fel? Infelizmente, nada nos revelam, que nós não soubéssemos, de há muito. O desprezo que meu pai sentia por mim, envenenou-me a adolescência. Muito tempo, duvidei de mim próprio, sentia-me dominado por aquele olhar implacável e foram precisos anos para tomar enfim consciência do meu valor.
Perdoei-lhe já, e acrescento mesmo que é o dever filial que me leva sobretudo a comunicar-te este documento. Porque, de qualquer maneira que tu o julgues, é inegável que a figura de nosso pai te aparecerá nele, apesar de todos os terríveis sentimentos que manifesta, não me atrevo a dizer mais nobre, mas enfim, mais humana (penso particularmente no seu amor à nossa irmã Maria, e ao Lucas, de que tu encontrarás aqui testemunhos comovedores). Hoje, compreendo melhor a dor que ele manifestou diante do caixão da mamã, e que nos deixou estupefactos. Tu pensavas que era representação. Estas páginas, ainda que não servissem senão para te revelar o que subsistia de coração neste homem implacável e loucamente orgulhoso, já valeria a pena que lhes suportasses a leitura, por outro lado muito penosa para ti, minha querida Genoveva.
Do que sou devedor a esta confissão e o benefício que tu também nela encontrarás, é a tranquilidade da nossa consciência. Sempre fui muito escrupuloso.
E ainda quando tenho mil razões para me julgar no meu direito, basta um nada para me perturbar. Sim, a delicadeza moral, no grau em que eu a desenvolvi, não torna a vida fácil! Perseguido por um ódio de pai, nunca tentei gesto algum de defesa, mesmo a mais legítima, sem sentir inquietação e até remorso. Se não fosse chefe de família, responsável pela honra do nome e pelo património de nossos filhos, teria preferido renunciar à luta antes que sofrer aquelas torturas e aqueles combates interiores, de que tu mais duma vez foste testemunha.
Graças a Deus que permitiu que estas linhas de nosso pai me justificassem. Em primeiro lugar, elas confirmam o que nós conhecíamos já das maquinações inventadas por ele para nos frustrar a herança. Não pude ler, sem me sentir envergonhado, as páginas em que ele descreve os processos que imaginou para dominar, ao mesmo tempo, o procurador Bourru e esse tal Roberto. Lancemos sobre estas cenas vergonhosas o manto de Noé. É claro que o meu dever era fazer abortar, custasse o que custasse, esses planos abomináveis. Consegui-o e com um resultado que não me faz corar. Podes ter a certeza, minha irmã, que é a mim que deves a tua fortuna. O infeliz, no decurso desta confissão, esforça-se por se persuadir a si próprio que o ódio que sentia a nosso respeito, morrera de repente; gloria-se dum brusco desprendimento dos bens deste mundo (confesso que neste passo não pude deixar de me rir). Mas repara bem na época dessa mudança inesperada; dá-se no momento em que seus ardis foram descobertos e quando o filho natural nos vendeu o rastilho. Não era fácil fazer desaparecer tão grande fortuna; um plano de mobilização que levou anos a realizar, não pode ser substituído em alguns dias. A verdade é que o pobre sentia o fim próximo e, já não tinha tempo nem meios de nos deserdar por outro método senão por aquele que planeara, e que a Providência nos fez descobrir.
O advogado não quis perder o processo, nem diante de si próprio, nem diante de nós; teve a habilidade - semi-consciente, quero crer - de transformar a derrota em vitória moral; afectando desinteresse e desprendimento... Pois, teria podido proceder doutro modo? Não, nessa não caio eu; e penso que, com o teu bom senso pensarás também que não somos obrigados a alimentar sentimentos de admiração e gratidão. Mas há outro ponto ainda, onde esta confissão traz à minha consciência a tranquilidade absoluta; um ponto sobre o qual me examinei com mais severidade sem ter conseguido, durante muito tempo, confesso-o hoje, sossegar esta consciência inquieta por tudo e por nada. Eefiro-me às tentativas, aliás inúteis, para submeter a um especialista o estado mental de nosso pai. Devo dizer que minha mulher muito contribuiu para me perturbar a esse respeito. Sabes que não costumo prestar grande atenção às suas opiniões: é a pessoa menos ponderada que eu conheço. Mas aqui, enchia-me os ouvidos, dia e noite, com argumentos que, confesso-o, não deixavam, pelo menos alguns, de ser perturbantes. Acabara ela por me convencer que aquele grande advogado, que aquele financeiro astucioso, que aquele profundo psicólogo era o equilíbrio em pessoa... É muito fácil tornar odiosos os filhos que se esforçam por internar os velhos pais afim de não perderem a herança... Bem vês que digo a verdade, tal e qual...
Passei muitas noites sem sono. Sabe-o Deus.
Pois, minha querida Genoveva, este caderno, principalmente nas últimas páginas, mostra, com evidência, a prova do delírio intermitente de que o pobre estava atacado. O caso parece-me mesmo bastante interessante, para que esta confissão fosse submetida a um psiquiatra; mas eu considero, como dever mais imediato, não divulgar a ninguém, páginas tão perigosas para os nossos filhos. Digo-te já que a minha opinião é que deverias queimar este caderno assim que o acabasses de ler. Temos de ter cautela para que não caia nunca nas mãos de estranhos.
Bem sabes, minha querida Genoveva, que se conservámos sempre secreto o que dizia respeito à nossa família, se eu tomei providências para que nada transpirasse das nossas inquietações pelo que dizia respeito ao estado mental daquele, que apesar de tudo era o chefe, certos elementos estranhos à família, não têm tido a mesma discrição nem a mesma prudência, e teu miserável genro, em particular, contou a este respeito as histórias mais perigosas. Estamos hoje a pagá-lo caro; não te digo nada de novo, se te disser que na cidade se aproxima a neurastenia da Janine com as excentricidades que o nosso pai tinha, segundo contava o Phili. Rasga, pois, este caderno, e não fales dele a ninguém; mesmo entre nós, nunca mais aludamos a ele. Em certo modo é pena. Encontram-se nele indicações psicológicas, e mesmo impressões da natureza, que denotam neste orador, um dom natural de escritor. Mais uma razão para o rasgar. Imagina tu que algum dos nossos filhos o publica mais tarde? Seria bonito!
Mas tu e eu podemos chamar as coisas pelo seu nome, e terminada a leitura deste caderno, a semi-demência do nosso pai não nos deixará dúvida nenhuma. Explico-me hoje uma palavra da tua filha que eu tomei por um capricho de doente: "O avô é o único homem religioso, que eu conheci". A pobre pequena deixara-se seduzir pelas vagas aspirações, e pelos devaneios daquela hipocondria. Inimigo dos seus, odiado de todos, sem amigos, infeliz no amor, como tu o verás (há lá circunstâncias cómicas), ciumento da mulher a ponto de nunca lhe ter perdoado um vago flirt de rapariga, terá ele desejado, para o fim. as consolações da oração? Não acredito: o que se nota nestas linhas é a mais caracterizada desordem mental, mania da perseguição, delírio religioso. Não havia, perguntar-me-ás tu, vestígios de verdadeiro cristianismo no seu caso? Não creio: um homem tão conhecedor destas questões, como eu sou, sabe bem avaliar o valor delas. Confesso-te que este falso misticismo me causa invencível repugnância.
Serão diferentes as reacções duma mulher? Se esta religiosidade te impressionar, lembra-tte que nosso pai, admiravelmente dotado para odiar, nunca amou senão contra alguém. O estendal das suas aspirações religiosas é uma crítica directa, ou desviada, dos princípios que nossa mãe nos inculcou desde a infância. Deu para um misticismo fuliginoso só para melhor atacar a religião razoável, moderada sempre em vigor na nossa família. A verdade consiste no equilíbrio... Fico-me par aqui, diante de considerações, onde tu dificilmente me seguirias. Já te disse o bastante: examina agora o próprio documento. Estou deserto por conhecer as tuas impressões.
Resta-me já pouco espaço para responder às perguntas importantes que me fazes. Minha querida Genoveva, na crise que atravessamos, o problema que temos para resolver é aflitivo: se guardamos num cofre aqueles maços de notas de banco, forçoso será viver do capital, o que é mau. Se, ao contrário, damos na bolsa ordem de compra, os cupões vencidos não nos consolarão da esterilização ininterrompida dos valores. Já que de toda a maneira, estamos condenados a perder, manda a prudência guardar as notas do Banco de França: o franco não vale senão quatro soldos, mas está garantido por uma imensa reserva de ouro. Sobre este ponto, nosso pai viu claro e devemos seguir-lhe o exemplo. Há uma tentação, minha querida Genoveva, contra a qual deves lutar com todas as tuas forças: é a tentação da colocação a todo o custo, tão enraizada no público francês. Evidentemente, será preciso viver na mais estrita economia. Quando precisares de conselho, estou sempre ao teu dispor. Apesar da maldade dos tempos, as ocasiões podem apresentar-se de um momento para o outro: ando a seguir, de perto, neste momento, um negócio de Kina, e de álcool anisado: aí está um género de negócios que a crise não atinge. Na minha opinião, é nesta direcção que devemos lançar um olhar ao mesmo tempo arrojado e prudente.
Alegrei-me com as boas notícias que. me dás da Janine. Por agora, não há que recear esse excesso de devoção que se nota nela, e que te assusta. O essencial é que o seu pensamento esqueça o Phili. Quanto ao mais, por si mesma encontrará a medida: pertence a uma raça que sempre soube não abusar das melhores coisas.
Até terça-feira, querida Genoveva
Teu irmão dedicado
Humberto
Janine a Humberto:
Meu querido tio, venho pedir-lhe que seja juiz entre mim e a mamã. Ela recusa confiar-me o "diário" do avô; a acreditá-la, o meu culto por ele não resistiria a tal leitura.
Já que a mamã, não quer atingir em mim, de modo nenhum, esta memória querida, porque me repete ela todos os dias: "Nem sequer podes imaginar, quanto mal diz de ti. Nem o teu físico é poupado..." Admira-me ainda mais a pressa em me deixar ler a carta dura em que o tio comenta esse "diário"...
A mamã, já se cansou de me contrariar, e disse-me que me entregaria esse documento se o tio não levasse a mal, e se não se opusesse a isso. Venho pois apelar para o seu espírito de justiça.
Em primeiro lugar, dê-me licença para desfazer a primeira objecção, que me diz respeito só a mim: por mais implacável que neste documento o avô se possa mostrar a meu respeito, estou certa que não me julga pior do que eu me julgo a mim própria. A sua severidade há-de poupar a desgraçada que viveu um outono inteiro junto dele, até à sua morte na casa de Calèse. O tio perdoe-me, se o contradigo num ponto essencial: eu sou a única testemunha da mudança de sentimentos do Avô nas últimas semanas de vida. O tio denuncia a sua vaga e doentia religiosidade; e eu posso afirmar-lhe que ele teve três entrevistas (uma no fim de Outubro e duas em Novembro) com o Pároco de Calèse cujo testemunho o tio, não sei porquê, se recusa a aceitar. Pelo que a mamã diz, o diário onde ele nota os mais pequenos incidentes da vida, não se refere a tais entrevistas, -- e ele não teria deixado de o fazer se elas tivessem sido ocasião de mudança no seu destino... Mas a mamã diz também que o diário ficou interrompido no meio duma palavra: não há dúvida que a morte surpreendeu o avô no momento em que ia falar da confissão. Em vão pretendem que se ele tivesse sido absolvido, teria comungado. Eu sei bem o que ele me repetiu na ante-véspera da morte: obsediado pela própria indignidade, o pobre resolvera esperar pelo Natal. Que razão têm para não me acreditar? Sim, estou ainda a ouvi-lo, na quarta-feira ante-véspera da morte, a falar desse Natal suspirado, com a voz cheia de angústia ou talvez já um pouco velada...
Sossegue tio: não pretendo fazer dele nenhum santo. Concordo que foi um homem terrível - e algumas vezes, mesmo medonho. Isso, porém, não impede que uma luz admirável o tocasse nos últimos dias, e que fosse ele, ele só, que naquele momento me tomou a cabeça nas duas mãos, ele que, à força-, me desviou o olhar... Não lhe parece que o avô teria sido outro, se nós também tivéssemos sido diferentes? Não diga que o estou a acusar a si: conheço as suas qualidades, sei que o avô se mostrou cruelmente injusto para consigo e para com a mamã. Mas -a desgraça de nós todos, foi ele ter-nos tomado por cristãos exemplares... Não proteste.- depois que ele morreu, tenho convivido com pessoas que podem ter os seus defeitos e as suas fraquezas, mas que agem segundo a sua fé, que se movem em plena graça. Se o avô tivesse vivido no meio destes, não teria descoberto, há muitos anos, aquele porto que só pôde atingir na véspera de morrer?
Ainda uma vez, não pretendo acusar a nossa família ,a favor do seu chefe implacável. Não esqueço, sobretudo, que o exemplo da avó teria podido bastar para lhe abrir os olhos, se durante muito tempo ele não preferisse antes saciar o próprio rancor. Mas deixe-me dizer-lhe porquê, finalmente, eu lhe dou razão contra nós: onde estava o nosso tesouro, estava também o nosso coração; nós não pensávamos senão nesta herança ameaçada; decerto, não nos faltavam desculpas; o tio era um homem de negócios, e eu uma pobre mulher... Isso, porém, não impede que em todos, excepto na avó, os nossos princípios andassem separados da nossa vida. Os nossos pensamentos, os nossos desejos e os nossos actos não mergulhavam nenhuma raiz nessa fé à qual só aderíamos com os lábios. Voltávamo-nos, com todas as nossas forças, para os bens materiais, enquanto o avô...
Compreender-me-á se eu lhe afirmar que onde estava o seu tesouro, não estava o seu coração? Ia jurar que sobre este ponto o documento cuja leitura me recusam, traz algum testemunho decisivo.
Conto que o tio me atenderá, e confiadamente espero a sua resposta...
Janine.

 

 

                                                                  François Mauriac

 

 

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