"Você é tudo para mim", confessa o Conde de Peyrac, apaixonado. "Minha guerreira, minha alma, minha mulher!"
Incapaz de dormir, Angélica saiu para ver o dia que despontava. Através dos inúmeros arco-íris produzidos pelo sol nascente na bruma espessa, chegavam cantos e chamados da terra, ecos de um mundo desconhecido onde Joffrey de Peyrac, o amado marido enfim reencontrado, escolhera viver. Ele estava lá! A silhueta transida, envolta na capa negra recortada contra a miríade de cores cintilantes, perscrutava ' o horizonte.
O que a vida lhes roubara antigamente era-lhes devolvido centuplicado. Fortuna, castelos, títulos? O que era isso diante a riqueza de serem um homem e uma mulher em seu apogeu, em um mundo novo, com um grande amor no coração?
Ao lado dele, Angélica não temia uma vida rude e de perigos. Adornos, jóias, a glória? Tivera-os à saciedade, Provara-lhes tanto a delícia quanto o amargor.
Agora, depois de tantos tropeços, alcançara enfim seu Objetivo: acompanhá-lo, estar nos braços dele, possuir-lhe a alma inquieta...
Em meados do século XVII, a América do Norte é a terra prometida de aventureiros, nobres decadentes e huguenotes marginalizados na França absolutista de Luís XTV.
A Nova França, descoberta por João Caboto em 1497, explorada a partir de Jacques Cartier em 1534 e em vias de colonização desde 1608 com a chegada de Samuel Camplain a Quebec, torna-se Província Real em 1663, compreendendo todo o Canadá e a Acádia (atual Estado americano do Maine e a Nova Escócia).
Habitada originalmente por tribos nómades de índios algonquinos e iroqueses, a região começa a ser povoada de europeus com a cessão de terras em usufruto a colonos (censitaires), que prestam obediência aos seigneurs, proprietários em nome do rei.
De início, a colonização encontra resistência de grandes armadores, interessados no monopólio da pesca e do comércio de peles. Depois, os franceses têm de enfrentar a pretensão inglesa ao território, em conflitos que resultarão na futura configuração política local.
Angélica e seus amigos huguenotes, embarcados às pressas em La Rochelle no navio do Conde de Peyrac, ignoram essa realidade. Mas anseiam pelo tesouro do fim do arco-iris...
A bordo do navio pirata Gouldsboro, a caminho da América, Angélica reencontrara finalmente o amado marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que se fazia passar por Monseigneur Rescator, o temível Mago do Mediterrâneo. Reconciliados, depois de-quinze anos de angústias e desencontros, haviam desfrutado de uma maravilhosa noite de amor quando foram surpreendidos ainda na cama por disparos de armas de fogo no convés. Era o motim? A animosidade entre os feugúenotes embarcados com Angélica e sua filha Honorina em La Rochelle e a tripulação encabeçada pelo capitão Jason agravara-se desde o trágico episódio envolvendo a jovem Bertille e o mouro Abdullah, que resultara no enforcamento exemplar deste. A hostilidade dos huguenotes - arrogantes como os Manigault, desconfiados como os Carrère e moralistas como os Marcelot, pais de Bertille - era ainda alimentada pelo siúme de Mestre Gabriel Berne, um dos líderes protestantes. Berne indignava-se com o "escandaloso" envolvimento de "Dame" Angélica - até então sua criada e pretensa noiva - com o diabólico e abominável comandante pirata.
O MOTIM
CAPITULO I
O Rescator nas mãos dos protestantes - Incêndio a bordo
Ao perceber os tiros, Angélica teve a. impressão de reviver cenas passadas: a polícia do rei surgindo, os dragões. Tudo se misturou.
De olhos arregalados, olhava Joffrey de Peyrac, que dera urri pulo e se vestia prontamente, afivelando o casaco de couro negro e as botas altas.
— Levante-se! - ordenou. - Depressa!...
— O que é?
De imediato ela pensou que um navio pirata estivesse atacando o Gouldsboro.
Recobrando o sangue-frio, lançou-se para a roupa que o marido havia atirado ao pé da cama. Nunca uma mulher se vestiu com menos preocupação pela própria aparência. Terminava de fechar os colchetes da blusa, quando uma pancada surda sacudiu a porta envidraçada do apartamento.
- Abram - resmungou uma voz do lado de fora.
Joffrey de Peyrac puxou os ferrolhos e um corpo pesado abateu-se sobre ele, para logo rolar pelo tapete. Entre os ombros do homem que acabava de cair, crescia uma enorme mancha vermelho-escura. A mão do Rescator revirou-o.
- Jason!
O capitão abriu os olhos.
- Os passageiros - murmurou - me atacaram... de surpresa... no nevoeiro... Dominaram a coberta.
Pela porta escancarada a bruma espessa entrava em volutas pesadas e esbranquiçadas. Angélica viu desenhar-se ali uma silhueta conhecida. Gabriel Berne apareceu à soleira, empunhando uma pistola fumegante.
Simultaneamente sua mão armada e a do Rescator ergueram-se.
"Não", quis gritar Angélica.
O grito não lhe saiu dos lábios, mas ela atirou-se para a frente e reteve o braço do marido. O cano da arma que visava o mercador protestante foi desviado e a bala foi perder-se no madeirame acima da porta.
- Tola! - disse o Rescator entre dentes.
Mas não tentou afastá-la. Sabia que sua pistola continha apenas um tiro e que não podia recarregá-la. Angélica colocou-se como escudo à frente dele.
Menos rápido que o adversário, Mestre Berne não tivera tempo de atirar. Hesitava, os traços convulsionados. Agora não poderia abater aquele a quem odiava sem ferir e talvez matar a mulher que amava.
Manigault entrou, depois Carrère, Mercelot e alguns marujos espanhóis, seus cúmplices.
- Pois bem, Monseigneur - disse o armador com ironia -, chegou a nossa hora de jogar! Confesse que não esperava isto destes miseráveis emigrantes, bons apenas para serem vendidos por um aventureiro ganancioso. Vigie e ore, pois não se sabe nem o dia nem a hora, dizem as Escrituras. Deixou Dalila adormecer sua vigilância e aproveitando essa falha que espreitávamos há muito tempo. Monseigneur, entregue-me suas armas.
Angélica permanecia imobilizada entre eles, como uma estátua de pedra.
Joffrey de Peyrac afastou-a e estendeu a pistola a Manigault, que a enfiou no cinto. O rochelês estava armado até os dentes, assim como os companheiros. Contavam com vantagem, e o capitão do Gouldsboro entendera que não ganharia nada manifestando uma resistência em que em breve perderia a vida. Muito calmo acabou de laçar o peitilho e os punhos de renda da camisa.
Os protestantes olhavam à volta com desprezo: o salão luxuoso, aquele homem depravado e a desordem eloquente do divã oriental. Angélica não se importava em absoluto com o julgamento que faziam sobre sua moral. O que acabava de ocorrer ultrapassava suas piores apreensões. Por pouco não vira o Conde de Peyrac e Mestre Berne se matarem sob seus olhos. E a ação desleal de seus companheiros para com seu marido a deixava aterrada.
- O que fizeram - murmurou ---, oh, meus amigos!
Os protestantes esperavam sua cólera e se haviam preparado contra o obstáculo, que não era dos menos temíveis, das censuras veementes de Dame Angélica. Sustentados pela própria consciência, tinham decidido enfrentá-las, mas sob o olhar dela duvidaram por uni instante de si mesmos naquela aventura. Havia algo que realmente lhes escapava.
No casal que tinham à frente - o homem de rosto desconhecido e estranho, pois era a primeira vez que o viam sem máscara, e a mulher, também desconhecida no vestido novo -, pressentiam um vínculo indefectível, além do da carne, pelo qual os acusavam.
Angélica, com os ombros expostos por uma gola de renda de Veneza, sobre os quais recaíam seus cabelos platinados, não era mais a amiga que eles conheciam, mas a grande dama que Gabriel Berne, em sua intuição, adivinhara sob o disfarce de criada. Mantinha-se junto do Rescator, como junto de seu senhor. Orgulhosos, desdenhosos, eram de outra essência, de outra raça, e os protestantes tiveram a breve sensação de estar prestes a cometer um erro de julgamento que pagariam cruelmente. As palavras lapidares que Manigault gostaria de pronunciar escapavam-lhe. Regozijara-se por antecipação de ver o enigmático e desdenhoso Rescator a sua mercê.-Mas diante deles, seu júbilo sumia.
Ainda assim, foi o primeiro a se recompor.
- Estamos nos defendendo - disse, com energia. - Era nosso dever, senhor, fazer tudo para escapar ao destino nefasto ao qual nos destinava. E, ao adormecer-lhe a vigilância, Dame Angélica ajudou-nos.
- Não ironize, Sr. Manigault - disse ela, grave. - Lamentará por haver julgado pelas aparências, no dia em que conhecer a verdade. Mas hoje não está em condição de ouvi-la. Espero, porém, que em breve recupere a razão, para compreender a loucura de seus atos.
Apenas a calma e a dignidade podiam conter aqueles homens exasperados. Ela sentia-lhes a necessidade de matar e de confirmar seu domínio ainda precário. Um gesto, uma palavra, e o irreparável poderia consumar-se.
Continuava diante de Joffrey de Peyrac. Não ousariam atirar nela. Nela, que os guiara pelo caminho da falésia...
E de fato hesitavam.
— Afaste-se, Dame Angélica - disse afinal o armador -, toda resistência é inútil, poderá constatá-lo. Doravante sou eu o senhor a bordo, e não esse homem que inexplicavelmente quer defender contra nós, a quem tanto chama de amigos.
— O que vão fazer dele?
— Prendê-lo.
— Não têm o direito de matá-lo, sem julgamento, sem haverem provado seus erros contra vocês. Seria a última das infâmias. Deus os puniria.
— Não temos a intenção de matá-lo - disse Manigault, após um instante de hesitação.
Mas ela sabia que todos tinham vindo precisamente com esse desejo de eliminá-lo, e que sem ela ele estaria estendido ali, junto de Jason. Sentia-se banhada de um suor gelado.
Os minutos escoavam-se lentamente.
Ela não podia tremer. Voltou-se para o marido, para observar-lhe a reação diante daqueles acontecimentos humilhantes e perigosos, e estremeceu. A boca do nobre aventureiro estirava-se naquele sorriso enigmático que ele sempre opusera aos cães ladrando, às matilhas reunidas para destruí-lo.
O que havia naquele homem surpreendente que sempre ergueria contra si outros homens decididos a matá-lo? Em vão ela se esforçava por defendê-lo, por segui-lo. Ele não precisava de ninguém, e talvez lhe fosse até indiferente morrer, deixá-la, a ela, a quem mal reencontrara.
— Não vê ò que eles fizeram? - disse, quase encolerizada. - Tomaram seu navio!
— Não há nada de menos provado do que isso até agora - disse ele, com ar divertido.
— Saiba, senhor - informou Manigault -, que a maior parte de sua tripulação está encerrada nos porões e impossibilitada de sair para defendê-lo. Meus homens armados vigiam cada saída, cada escotilha... e todos os que tentarem colocar o nariz do lado de fora serão abatidos sem piedade.-Quanto aos outros que vigiavam a coberta, a maioria desejava escapar a um senhor tirânico e ganancioso, e já nos havia prometido sua cumplicidade há muito tempo.
— Estou, encantado de sabê-lo - disse o Rescator.
Seu olhar procurou osmarujos espanhóis, que se tinham posto a andar como lobos pelo salão, cujas riquezas descobriam pela primeira vez, e começavam a se apoderar de bibelôs de ouro que lhes excitavam a cobiça.
- Jason me tinha avisado - disse. - Cometemos o erro de um engajamento precipitado. E, vejam, sempre se paga mais caro por um erro do que por um crime...
Olhou o corpo enrijecido do Capitão Jason, sujo sangue se espalhava pela lã e as flores do tapete. Seus traços endureceram-se e suas pálpebras velaram-lhe o brilho dos olhos negros.
— Mataram meu imediato... meu amigo de dez anos...
— Matamos aqueles que nos opunham resistência. Mas, já lhe disse, eram poucos, e os demais se puseram ao nosso lado.
— Espero que não tenham dificuldades demais com esses brilhantes recrutas, reunidos dentre a pior escória de Cádiz e Lisboa - troçou Joffrey de Peyrac. - Manuel! - gritou, com voz dura.
Um dos marujos teve um sobressalto, e o Rescator lhe lançou uma ordem em espanhol. O outro apressou-se, aterrorizado, a trazer-lhe a capa.
O conde atirou-a sobre os ombros e encaminhou-se para a porta, a passos resolutos.
Os protestantes logo o rodearam, impressionados pela ascendência que ele conservava, apesar de tudo, sobre os membros de sua tripulação.
Manigault encostou-lhe a pistola entre as omoplatas.
— Não tente intimidar-nos, senhor. Embora ainda não tenhamos decidido acerca do destino que lhe reservamos, está em nossas mãos e não nos escapará.
— Não sou tolo o bastante para ignorar isso no momento. Quero apenas julgar a situação com meus próprios olhos.
Avançou para o balcão, espreitando de perto pelo cano de mosquetes e pistolas, e apoiou-se à amurada de madeira esculpida. Uma parte da amurada fora arrancada durante a noite pela tempestade.
Embaixo, Joffrey de Peyrac pôde constatar a devastação de seu navio. Velas rasgadas pendiam. Na extremidade de certas vergas, as cordas emaranhadas formavam pelotas inextricáveis e monstruosas, que balançavam, ameaçando atingir qualquer um que passasse sob sua trajetória. No castelo de proa, o toco do mastro de mezena, abatido com velas, vergas e ovéns, dava ao bravo Gouldsboro o aspecto de um destroço ao sabor das ondas.
A todas as depredações causadas pela tempestade, vieram somar-se as da batalha, que fora breve mas violenta. Cadáveres juncavam a coberta, e os marujos amotinados começavam a atirá-los ao mar, sem maiores cerimonias.
- Estou vendo - disse o Rescator.
Alçou os olhos. Por entre as vergas dos dois mastros restantes, a nova tripulação, muito reduzida, mas muito ativa, esforçava-se por manter e consertar o velame, desembaraçar as cordas e substituí-las por novas. Alguns adolescentes protestantes faziam suas primeiras experiências como gajeiros. O trabalho não ia rápido, mas o mar, clemente e meigo como uma gata, parecia disposto a dar tempo para que os noviços aprendessem o ofício.
No tombadilho, Le Gall, que, insinuando-se protegido pelo nevoeiro da aurora, atingira Jason, tomara o porta-voz do imediato. Fora ao navegador-piloto que Manigault confiara o comando da manobra, já que o bretão era o mais qualificado no ofício do mar.
Bréage segurava o timão. No conjunto, os rocheleses, que já tinham todos mais ou menos navegado na vida, não estavam deslocados em suas novas tarefas, e apesar do tamanho de um navio como o Gouldsboro, com o auxílio dos vinte marujos que se uniram a eles, conseguiriam dominá-la e conduzi-lo, contanto que não descansassem... e contanto que...
O Rescator voltou-se e encarou os protestantes. Continuava sorrindo.
- Belo trabalho, serihores. Reconheço que a operação foi muito bem conduzida. Souberam aproveitar o fato de que meus homens, fatigados depois de. uma noite de luta para salvar o barco, a própria vida e a sua,-repousavam, deixando apenas alguns vigias, para concretizar seus.-planos de pirataria...
O sanguíneo Manigault corou ao insulto.
— Pirataria! Está invertendo os papéis, parece-me.
— Ora, como chamar então o ato que consiste em tomar posse à força da propriedade de outrem, no caso, meu navio?
— Um navio que roubou de outros. Você vive de rapinas...
— São bem categóricos em seus julgamentos, senhores da religião. Vão a Boston. Ficarão sabendo que o Gouldsboro foi construído segundo projeto meu e que foi pago em moeda sonante.
— Então é a moeda que é de fonte suspeita, aposto.
— Quem pode gabar-se da origem íntegra do ouro que leva na bolsa? Você mesmo, Sr. Manigault, a fortuna que lhe legaram seus piedosos ancestrais, corsários ou comerciantes de La Rochelle, não foi regada pelas lágrimas e pelo suor de milhares de escravos negros, que comprou na costa da Guiné para vender na América?
Apoiado à amurada e sempre sorrindo, ele conversava como se estivesse num salão e não sob a ameaça de armas prestes a abatê-lo.
- E daí? - disse Manigault, estupefato. - Não fui eu quem inventou a escravidão. De resto, a América precisa de escravos.
Eu os forneço.
O Rescator deu uma gargalhada tão brusca e insultante que Angélica tapou as orelhas. Quis acorrer convencida de que o estampido da pistola de Manigault responderia a tal provocação. Mas nada aconteceu. Os protestantes estavam como que fascinados pela personagem. Angélica sentiu, fisicamente, a eletricidade que emanava dele. Retinha-os por meio de um poder invisível, conseguia eliminar à volta deles a sensação do local e do momento em que viviam.
— O consciência inalterável dos justos! - exclamou ele, retomando fôlego. - Que dúvida acerca do direito de seus atos incomodará algum dia aquele que está certo de haver recebido a verdade? Mas deixemos isso - fez ele, com um gesto de grão-senhor desenvolto e desdenhoso. - É a boa consciência que faz a pureza de uma ação. No entanto, se a pirataria não lhe guiou o gesto, que motivo invoca para justificar seu desejo de me despojar de todos os bens, inclusive da vida?
— Pretendia não nos levar ao destino de nossa viagem, São Domingos.
O Rescator ficou em silêncio. Seu olhar negro, extremamente brilhante, não se desviava do rosto do armador. Enfrentavam-se. A vitória seria de quem forçasse o outro a baixar os olhos. -
— Então não nega - continuou Manigault, triunfante. - Felizmente percebemos suas intenções. Queria vender-nos.
— Bah! O comércio de escravos não é um bom e honesto meio de ganhar dinheiro? Mas estão enganados. Jamais tive a intenção de vendê-los. Isso não me interessa. Ignoro o que possuem em São Domingos, mas o que eu possuo ultrapassa toda a riqueza dessa ilhota, e não é o que eu poderia obter por suas carcaças descoradas que a aumentaria muito ou que me faria me estorvar com a sua presença e suas famílias. Eu antes pagaria para me ver livre de vocês - acrescentou, com um leve sorriso. - Exagera o seu valor comercial, Sr. Manigault, apesar de sua experiência no tráfico de carne humana.
— Ah, já basta! - exclamou Manigault, furioso. - Somos generosos demais de ouvi-lo. Suas insolências não o salvarão. Estamos defendendo nossa existência, de que estava dispondo. O mal que nos fez...
— Que mal?
Ereto e duro, o Conde de Peyrac, de braços cruzados sobre o peito, encarou-os um a um, e sob o olhar fulgurante eles ficaram mudos.
- O mal que lhes fiz é maior do que o que lhe teriam feito os dragões do rei, galopando de sabre desembainhado atrás de vocês? Têm a memória muito curta, senhores, a menos que seja uma memória ingrata...
Depois, rindo de novo:
— Oh, não me olhem com esses olhos arregalados, como se eu não entendesse o que sentem. Eu entendo, oh, como entendo! Sei qual foi o mal real que lhes fiz. Coloquei-os diante de seres que não se parecem com vocês, que representam o Mal para vocês e que lhes fizeram bem. O homem sempre tem medo daquilo que ião compreende. Esses mouros infiéis, inimigos de Cristo, que tenho a -bordo, esses mediterrâneos lascivos, esses homens do mar, rudes e ímpios, dividiram com vocês de bom grado as rações de biscoito que lhes eram-reservadas, cederam a seus filhos as provisões frescas que os protegem dp escorbuto. Ainda tenho em meus porões dois homems que foram feridos em La Rochelle. Más não poderiam conceder-lhes sua amizade porque, para vocês, eles são "maus". No máximo fariam deles cúmplices, como quando tratam com árabes traficantes de escravos, que vêm até a costa revender-lhes os negros capturados por eles nas terras altas da África que eu conheço muito bem, mas não vocês.
— Já terminou de me atirar os escravos na cara? - estourou o armador. - Dir-se-ia que me acusa de cometer crimes. Não é melhor arrancar os selvagens pagãos a seus ídolos e vícios para fazê-los conhecer o verdadeiro Deus e a honra do trabalho?
Joffrey de Peyrac surpreendeu-se. Segurou o queixo e pareceu refletir, meneando a cabeça.
- Reconheço que seu ponto de vista é defensável, ainda que seja preciso um cérebro profundamente... religioso para concebê-lo. Mas repugna-me. Talvez porque um dia eu também tenha usado correntes.
Ergueu os punhos de renda e estendeu os pulsos morenos, nos quais sobreviviam os vestígios esbranquiçados de profundas cicatrizes.
Seria um erro de sua parte? Os protestantes, que o ouviam desconcertados, tiveram um sobressalto e seus traços reassumiram uma dura expressão de desdém.
— Sim - insistiu o Rescator, como se se regozijasse com a horrorizada descoberta deles -, eu e meus tripulantes, quase todos usamos correntes. É por isso que não gostamos de mercadores de escravos, como vocês.
— Forçado! - lançou Manigault. - E ainda queria que confiássemos em você e em seus companheiros de galés.
— Remar nos bancos do rei é sinal de infâmia em nosso século, senhor? Tive a meu lado, na prisão de Marselha, homens cujo único crime era o de pertencerem à religião calvinista, à Religião Protestante Reformada, como se diz no reino da França, de onde fugiram.
— Era diferente. Eles sofriam pela fé.
— E será que cabe a você julgar, sem o saber, por que outra paixão sofri eu sentenças injustas?
Mercelot deu uma gargalhada, sarcástico.
— Logo nos fará crer, Monseigneur, que a prisão de Marselha e os bancos do rei estão povoados de inocentes, e não de assassinos, bandidos e salteadores, como é de direito.
— Quem sabe? Estaria bem de acordo com as normas do velho mundo decadente. Infelizmente, "há um mal que vi sob o sol como um erro proveniente daquele que governa: a loucura ocupa cargos muito elevados e os ricos estão sentados no aviltamento. Vi escravos a cavalo, e príncipes caminhando como escravos". Cito as Escrituras, senhores.
Erguia o dedo numa atitude peremptória e quase profética, e nesse momento Angélica entendeu.
Ele estava representando. Em nenhum momento daquele diálogo atordoante ele tentara entender-se com os adversários, "convertê-los" a seu ponto de vista, na enganosa esperança de levá-los a reconhecer os próprios erros. A própria Angélica sabia que isso seria inútil, e por isso acompanhava com tanta ansiedade as palavras trocadas pelos homens, que lhe pareciam quase absurdas em tal momento. Bruscamente descobria-lhe o jogo. Sabendo que os protestantes eram muito dados a discussões escolásticas, lançara-os num dabate de consciência, utilizando argumentos especiosos e fazendo perguntas estranhas, a fim de captar-lhes a atenção.
"Tenta ganhar tempo", pensou ela. "Mas o que pode esperar? Aguardar? Os tripulantes fiéis estão trancafiados e todos os que tentarem sair serão abatidos sem piedade."
Um tiro de mosquete proveniente dô fundo da grande rua veio confirmar-lhe o pensamento e provocou-lhe um doloroso sobressalto.
Berne, a quem o vivo sentimento que o torturava em relação a Angélica tornava mais intuitivo, talvez ao olhá-la pressentisse o que ela pensava.
- Amigos - exclamou -, desconfiem! Esse-homem demoníaco procura-atenuar nossa desconfiança. Espera que seus companheiros venham'soCorrê-lo etenta, com suas palavras, retardar nosso veredicto.
Aproximaram-se dó Rescatof e cercaram-no de perto. Mas nenhum ousou levantar a mão sobre ele para prendê-lo e atar-lhe os pulsos.
— Não tente enganar-nos novamente - ameaçou Manigault. - Não tem nada a_esperar. Aqueles de nós que engajou em sua tripulação deram-nos um plano detalhado do navio, e Mestre Berne em pessoa, lembre-se, que colocou a ferros, pôde notar que sua cela recebia ar pelo poço por onde passa a corrente da âncora. Por esse poço, cuja abertura ocupamos, temos acesso ao paiol de pólvora e munição. Caso necessário, haveremos de combater nos porões, mas já estamos de posse da reserva de munição.
— Felicitações!
Continuava a portar-se como grão-senhor, e sua ironia, mal dissimulada, os exasperava e inquietava.
- Reconheço que no momento são os mais fortes. Friso "no momento", pois continuo tendo cinquenta homens meus sob meus pés.
Bateu com a bota no assoalho.
- Acreditam que, passado o primeiro momento de surpresa, eles vão esperar, comportadamente, durante dias e dias, que lhes abram a gaiola?
- Se sabem que já não têm um capitão a servir ou a temer- disse Gabriel Berne, em tom pesado -, pode ser que a maioria se una a nós. Os outros, os que permanecerem eternamente fiéis... azar deles!
Angélica odiou-os apenas por essa frase. Gabriel Berne desejava a morte de Joffrey de Peyrac. Este não parecia impressionado.
— Pois, senhores, não se esqueçam de que, para irem daqui até as ilhas da América, precisarão de não menos do que duas semanas de difícil navegação.
— Não somos imprudentes o bastante para tentarmos chegar lá sem escalas - disse Manigault, a quem o tom doutoral do adversário exasperava e que não podia impedir-se de dar-lhe explicações. - Dirigimo-nos para a costa e dentro de dois dias estaremos em Saco ou em Boston.
— Se a corrente da Flórida lhes permitir.
— A corrente da Flórida?
Nesse instante os olhos de Angélica voltaram-se para o castelo de proa, e ela parou de acompanhar a conversa, atraída por um fenómeno inquietante. O nevoeiro parecia-lhe adensar-se naquele lado do navio, e agora já não havia dúvida. Não era nevoeiro, era fumaça. Não se podia ver de onde saíam as espessas volutas que, espalhando-se, velavam a desordem da coberta desmantelada. De repente ela soltou um grito. Estendendo o braço, apontou a porta da entrecoberta atrás da qual se abrigavam as mulheres e crianças e cujos interstícios filtravam lentamente a fumaça branca. Das ripas do soalho que fechavam a coberta, erguiam-se, contorcendo-se, as mesmas espirais ameaçadoras. Lá embaixo, lá dentro é que devia ter começado o incêndio.
- Fogo! Fogo!
Acabaram por ouvi-la e olharam na direção indicada.
— Fogo na entrecoberta... Evacuaram as mulheres?
— Não - disse Manigault -, recomendamo-lhes que ficassem calmas durante nossa ação. Mas... se há um incêndio... por que elas não saem?
E gritou com todas as forças:
-. Saiam! Saiam!... Está pegando fogo!
- Talvez já estejam sufocadas - disse Berne.
E saiu correndo, seguido de Mercelot.
A atenção desviara-se do prisioneiro. Este, então, deu um salto com a agilidade silenciosa.de um tigre. Ouviu-se um ronco surdo. O marujo espanhol, postado como sentinela diante dos apartamentos do Rescator, caiu" degolado pela ponta do punhal que este acabava de sacar da aba da bota.-
Ao se voltarem, os homens viram apenas o corpo estendido. O Rescator enfiara-se na cabina, longe de seu alcance. Já devia ter pegado suas armas, e não seria fácil desalojá-lo.
Manigault cerrou os punhos, compreendendo que fora logrado.
- Maldito! Mas não perde por esperar. Dois de vocês fiquem aqui - reconãendouos marujos armados que tinham acorrido.
- Temos de acudir-o incêndio, e depois nos ocuparemos dele. Não poderá escapar. Vigiem a porta e não deixem ninguém sair.
Angélica não ouviu estas últimas palavras. A ideia de Honori-na no centro do braseiro já a fizera correr para o lado do navio ameaçado.
Já não se enxergava à distância de dois passos. Diante da porta, Berne e Mercelot, tossindo e sufocando, tentavam arrombá-la.
- Passaram á' barra.por dentro.
Agarraram um machado e conseguiram arrebentar o batente de madeira.
Apareceram silhuetas titubeantes, com os braços sobre os olhos. Acessos de tosse, espirros, gritos e choros erguiam-se da nuvem opaca. Angélica mergulhou às cegas, chocando-se com seres invisíveis que se debatiam naquele pesadelo. Mãos agarravam-se a ela, que levantou algumas crianças caídas e as puxou para fora. Maquinalmente registrava que não sentia nenhum cheiro de fumaça. Os olhos ardiam, mas, à parte essa sensação e uma irritação na garganta, o mal-estar não era grande. Então, sem medo de desmaiar, retornou ao porão enevoado, à procura de Honori-na. Vozes abafadas começavam a interpelar-se ao redor dela.
— Sara! Jenny! Onde estão?
— E você?
— Estão doentes?
— Não, mas não conseguíamos abrir a porta nem as portinholas.
— Estou com dor de garganta.
— Berne, Carrère, Parry, venham comigo. Temos de achar o foco do incêndio.
— Mas... não há incêndiol
De súbito Angélica se reviu diante de Cândia em chamas. O xaveco do Rescator ia à deriva, envolto num casulo de fumaça amarelada, e Savary exclamava:
- Essa nuvem, à flor da água, o que é?... O que é?
Arrastando-se pelo chão, Angélica apalpava, procurando Honorina. Sua apreensão diminuía. Não havia fogo, chamas. Era mais uma das peças do Rescator, ela devia ter imaginado: seu marido, aquele conde sábio cujas experiências científicas haviam provocado em todo lugar a sua volta desconfianças e medo.
- Abram as portinholas - gritou uma voz.
Punhos vigorosos obedeceram. Mas, apesar da entrada de ar fresco, a bruma insólita era lenta de dissipar: colava aos objetos e às paredes.
Finalmente Angélica distinguiu o canhão perto do qual instalara sua cama e a rede de Honorina. Estava vazia. Procurou ao redor, chocou-se com uma mulher que, com as mãos sobre o rosto, tentava dirigir-se a uma das aberturas para respirar.
- Abigail! Sabe onde está minha filha?
Abigail teve um acesso de tosse. Angélica amparou-a até uma janela.
-Não é nada. Não é perigoso, acho. Apenas desagradável.
Retomando fôlego, a jovem lhe disse que também estava procurando Honorina.
- Creio que o marujo siciliano que cuidava dela levou-a um pouco antes de. esta fumaça invadir nosso porão. Vi-o de longe erguer-se e seguir para o fundo, levando alguma coisa, talvez a criança. Não prestei atenção... Falávamos entre nós sobre o que acontecia a bordo... Estávamos tão preocupadas... Perdoe-me, Angélica, por tê-la vigiado tão mal. Espero que nada lhe tenha acontecido. O siciliano parecia muito dedicado a ela.
Tossiu, outra vez, enxugou os olhos avermelhados e lacrimejantes. Assim como a bruma de uma manhã de verão se dissolve aos raios do sol nascente, pouco a pouco a densa fumaça se rarefazia. Percebiam-se os arredores. Nenhum vestígio de fogo, de madeira enegrecida.
— Imaginava-a afogada, Angélica, levada pela tempestade medonha. Que coragem você tem de ir buscar socorro esta noite! Quando os carpinteiros chegaram, Mestre Mercelot acabava de desmaiar. Nós todas nos reunimos para sustentar aquela coberta que desabava sobre nós. As ondas nõs inundavam. Não teríamos aguentado mais tempo. Os carpinteiros que vieram foram admiráveis.
— E esta manhã vocês os assassinaram - disse Angélica, amarga.
— O que foi que aconteceu exataménte? - cochichou Abigail, assustada. - Estávamos dormindo, esgotadas, quando acordamos e vimos todos os nossos homens armados. Meu pai discutiu violentamente com o Srí,Manigault. Achava que este ia cometer um ato insensato.
— Tomaram conta do navio, matando os tripulantes que vigiavam a coberta è trancando nos porões os que ali descansavam. Um verdadeiro pândemônio.
— E Monseignéur Rescator?
Angélica deixou cair os braços, num gesto de desesperança. Não tinha sequer a força de pensar no destino de Joffrey, de Honori-na, e de se perguntar sobre o resultado daquela situação desastrosa.
Os acontecimentos se precipitavam e a abalavam como a tempestade.
— O que fazer contra a loucura dos seres humanos... - disse, olhando Abigail, desnorteada. - Não sei mais... o que fazer.
— Não creio que haja motivo para se preocupar com sua filha - tentou reconfortá-la a amiga. - O Rescator deu ordens ao siciliano, quando esteve aqui esta noite. Dir-se-ia que lhe recomendava sua filha como se fosse filha dele mesmo. Talvez se sinta ligado a ela por sua causa. O Rescator a ama, não é?
— Ah, este é bem o momento de falar de amor! - exclamou Angélica, afundando o rosto entre as mãos.
Mas o abatimento foi de curta duração.
- Você disse que ele esteve aqui esta noite?
- Sim... Agarramo-nos a ele, gritando: "Salve-nos!", e, Angélica, como explicar? Acho que ele riu e de repente paramos de sentir medo e entendemos que escaparíamos outra vez à morte. Ele dizia: "A tempestade não as engolirá, senhoras. E uma tempestadezinha, sem apetite". Sentimo-nos tolas por termos tido tanto medo. Ele supervisionou e dirigiu o trabalho dos carpinteiros, e depois...
"E depois foi ao meu encontro", pensou Angélica, "e me tomou nos braços. Não, não me deixarei desencorajar", continuou consigo mesma. "Não se dirá que o destino me conduziu até aqui... aos abraços dele, para que eu o abandone... por cansaço da luta!"
"É a última provação!", gritava-lhe uma voz interior.
- Os fados não querem o nosso amor - disse em voz alta -, talvez porque seja belo demais, grande demais, forte demais.
Mas podem-se vencer os fados. Osman Ferradji o dizia.
Seus traços endureceram e ela se ergueu, resoluta.
- Venha, rápido - disse a Abigail.
Passaram por sobre os leitos de palha e os objetos em desordem. A fumaça havia desaparecido quase completamente. Restava apenas um leve véu, um odor picante.
— De onde veio esse vapor, diabos? - perguntou Angélica.
— Dir-se-ia que de toda parte. No princípio pensei que fosse eu que estivesse adormecendo ou desmaiando... Oh!... também me lembro. Pareceu-me ver o médico árabe entre nós. Segurava uma enorme garrafa de vidro preto, tão pesada que ele se dobrava ao carregá-la. Achei que fosse um sonho, mas talvez fosse real...
— Eu também o vi - afirmaram vozes.
Na coberta, as mulheres e as crianças se reanimavam. Estavam aturdidos, mas não pareciam doentes. Muitos tinham visto o médico árabe Abd-al-Mechrat surgir como que por milagre através do nevoeiro que começava a envolvê-los.
- Como foi que ele conseguiu entrar e, principalmente, sair de novo? E magia!
Lançada a palavra, entreolharam-se com terror. O medo que sentiam desde que se encontravam no Gouldsboro ganhava forma.
Manigault estendeu o punho para as vidraças cintilantes sob o tombadilho.
- Mago! Ousou atacar nossos filhos para desviar nossa atenção e escapar-nos.
Angélica não conseguiu suportar mais e atirou-se para o meio deles.
- Imbecis! Sempre as mesmas palavras, que faz quinze anos lhe atiram ao rosto: mago! bruxo!- Sempre as mesmas tolices! Homens estúpidos! De que lhes servem então sua fé e os ensinamentos de seus pastores, se continuam tão'limitados quanto os grosseiros camponeses papistas a quem desprezam? "Até quando o homem odiará a ciência..." Leitores de Bíblia que são, alguma vez meditaram nessas palavras de seus livros santos? Até quando o homem odiará-aquilo que o ultrapassa, o ser superior que vê mais
longe que os outros, aquele que não é detido por medo algum em sua busca-do universo? De que lhes serve partir para uma nova terra se: levam na sola dos sapatos toda a lama das tolices, toda a poeira-estéril do velha mundo?...
Ela não se importaya com a -hostilidade deles. Havia ultrapassado o medo. Sentia que apenas ela podia assumir o papel de mediadora entre aqueles dois grupos humanos que se enfrentavam, separados por-maKentendidos seculares.
— Acredita-seriamente, Sr. Manigault, que está diante de um fenómeno de feitiçaria?.,. Não! Então por que tenta sublevar os espíritos simples ou receosos com pretextos mentirosos? Vê, pastor - gritou ela, voltando-se para o velho, que permanecia silencioso -, o que resta em suas ovelhas do espírito de justiça e de verdade de que se prevaleciam em La Rochelle, quando estavam de posse de todos os seus bens e de seu conforto? Hoje são a rapacidade, a inveja, o rancor mais baixo que lhes ditam os atos. Pois não foi apenas por medo de perder seu dinheiro que decidiu dar este golpe, Sr. Manigault, mas porque tinha medo de já não ter bastante, mesmo nas ilhas. O magnífico navio o tentava. E como desculpa lhes disse que capturar foras-da-lei era uma obra pia.
— Minha opinião continua sendo essa. Além disso, de foras-da-lei pode-se temer tudo, e suas intenções em relação a nós me pareciam muito pouco seguras. Sei que nos desaprova, pastor. Aconselhava que aguardássemos. Mas aguardar o quê? Quando
fôssemos desembarcados numa praia deserta, sem pertences, sem armas, como nos defender? Ouvi faiar com muita frequência desses infelizes, embarcados para o Novo Mundo e vendidos pelos capitães dos navios que os conduziam às sociedades proprietárias de regiões a colonizar. Nós lutamos para escapar a esse destino. Além disso, lutamos contra um renegado, um ímpio, um homem sem moral e sem fé. Disseram-me que foi conselheiro secreto do sultão de Constantinopla. A imagem desses infiéis, ele é cruel, dissimulado. E ainda há pouco não tentou matar de maneira atroz nossas mulheres e filhos inocentes?...
— Ele tentou principalmente desviar-lhes a atenção, quando ameaçavam a vida dele. A astúcia faz parte da guerra...
— Infeliz! Matar nossas famílias com fumaça como a ratos, aí está, não é mesmo, um processo que caracteriza o homem e sua crueldade, que não recua diante de nada.
— O processo foi inofensivo, a julgar pela cara que têm agora as suas vítimas.
— Mas como foi que ele conseguiu mandar o fogo com um único... olhar? - perguntou, com voz hesitante, um dos camponeses do povoado de Saint-Maurice. - Estava falando conosco lá na popa e depois, de repente, a fumaça apareceu. Isso é mágico, não é?...
Manigault deu de ombros.
— Imbecil - resmungou. - Não é difícil de entender... Ele tinha cúmplices de quem não desconfiamos. O velho médico árabe, que parecia prostrado pela doença em seu leito... e depois o siciliano também, provavelmente. Suponho que o Rescator o postou ali de propósito, porque suspeitava de algo. Ele tentou prevenir o amo. Felizmente nos antecipamos. Mas ele deve ter feito um plano com o médico árabe, para o caso de as coisas saírem mal... Diziam que esse filho de Maomé, três vezes maldito, carregava uma garrafa de vidro preto?
— Sim! Sim!... Nós o vimos! Mas pensamos que fosse um sonho.
— Que veneno podia conter esse frasco?
— Eu sei - interveio Tia Ana. - Era álcool de amoníaco, um sal inofensivo, na verdade, mas irritante, e cuja evanescência, ao escapar do recipiente, semeia o pânico pela estranha semelhança que apresenta com a fumaça espessa de um incêndio.
Tossiu discretamente e enxugou os olhos, ainda inflamados pelo "sal inofensivo".
- Estão ouvindo? Estão- ouvindo? - exclamou Angélica, veemente.
Mas os amotinados não queriam ouvir a voz frágil e douta da velha senhorita. Longe de acalmá.-los, a explicação aumentava-lhes o furor. Enquanto se consideravam os senhores da situação, o Rescator os manobrava outra vez com uma habilidade que só podia ser qualificada jde diabólica. Retivera-os com discursos e discussões nas"quais eles tiveram a imprudência de se deixar arrastar. Enquanto isso o tempo agia. E ele deixava a seus cúmplices a possibilidade de preparar o simulacro de incêndio. Aproveitando-se dalinevitável comoção, criada pela aparição de um sinistro a bordb, o Rescator lhes escapara.
— Devíamos tê-lo matado imediatamente! - exalou Berne, louco de raiva.
— Se tocarem um único fio de cabelo dele... - fez Angélica, de dentes cerrados - se ousarem tocá-lo...
— E o que fará? - interveio Manigault, enfrentando-a. - Somos majoritários, Darne Angélica, e, se toma partido demais pelos nossos inimigos, também a colocaremos fora de ação.
— Tentem erguer a mão contra mim - lançou-lhe ela, feroz. - Tentem apenas e verão!
Eles não ousariam. Tentariam intimidá-la com ameaças. Desejariam ardentemente vê-la abatida, muda se possível, pois cada uma das palavras que ela proferia era uma nova flecha, mas não ousariam molestá-la. Seria como que um sacrilégio. E nenhum deles saberia explicar por quê.
Angélica agarrava-se à frágil vantagem da ascendência que apesar de tudo conservava sobre eles. Encarou-os com um olhar duro e decidiu:
- Voltemos para cima. E preciso parlamentar com ele a qual
quer preço.
Seguiram-na quase docilmente. Ladeando a coxia, deram uma olhada no mar. O nevoeiro se afastara, formava um círculo fechado, cor de enxofre a alguma distância do navio solitário. Mas o mar continuava calmo, e o avanço do Gouldsboro ferido prosseguia sem dificuldade. Dir-se-ia que os elementos haviam resolvido dar aos homens tempo para solucionar suas querelas.
"Mas se houver uma reviravolta", pensou Manigault de súbito, "o que farei daqueles homens trancados nos porões? E preciso que se unam a nós sem demora... E para isso, prender o Rescator... Fazê-los crer que ele morreu. E a única coisa que poderá desarmá-los. Enquanto o supuserem vivo, esperarão um milagre dele... Enquanto ele estiver vivo!..."
CAPÍTULO II
Assassinato do velho médico árabe
O espetáculo" que-se lhes ofereceu à vista, quando atingiram o balcão de amurada dourada, deteve-òs, e por pouco Angélica não desmaiou de angústia. Desobedecendo às ordens de Mani-gault, os espanhóis que foram colocados de sentinela diante do apartamento do Rescator haviam arrombado portas e vidraças. Dominar um amõ a quem temiam e contra o qual tinham tido a audácia de rebelar-se era seu primeiro objetivo. Depois, pilhar.
Um deles, Juan Fernández, que ujn dia o Rescator mandara atar ao mastro de gurupés por desobediência, era o que se mostrava mais enraivecido. Também ele sentia obscuramente que enquanto o amo estivesse vivo a vitória ainda poderia mudar de lado. Então, azar dos amotinados! As vergas se dobrariam sob o peso dos enforcados...
Arrombada a porta, haviam aguardado a reação daquele que estava entrincheirado lá. Depois entraram, mosquetes e cutelos em riste. Nada.
E estavam parados no meio do grande salão. Vazio!
Ficaram tão espantados que nem pensavam mais em se apropriar das riquezas expostas a sua cobiça. Haviam virado e revirado os móveis. Em vão. Onde se escondia" o homem inquietante? Teria entrado, como um filete de sua fumaça, naquele vaso de cobre inca? Manigault explodiu em imprecações e começou a distribuir pontapés.
Por meio de exclamações guturais, conseguiram explicar-se. Tinham entrado, diziam. Não havia ninguém. Talvez ele se tivesse transformado em rato. De um homem como aquele podia-se esperar de tudo...
As buscas recomeçaram. Mercelot foi abrir as grandes janelas de trás, aquelas por onde Angélica vira escurecer o sol poente naquele entardecer maravilhoso da partida de La Rochelle. Debruçados, perscrutaram as ondas borbulhantes sob o castelo de popa. Ele não podia ter fugido por ali, e depois, conforme observou judiciosamente alguém, não poderia ter fechado as janelas.
Acharam a chave do enigma no pequeno aposento contíguo. Ali, o tapate puxado para um lado revelava o painel de um alçapão. Entreolharam-se em silêncio. Manigault continha-se para não praguejar.
- Ainda não conhecemos todas as armadilhas deste navio - disse Le Gall, que lhes fora ao encontro. - Foi feito à imagem de quem o mandou construir.
Havia amargor e preocupação em sua voz. Angélica interveio:
- Estão vendo muito bem! Mentem a si próprios quando acusam o Rescator de ser um pirata. No fundo estão convencidos de que este navio lhe pertence e que na verdade poderiam muito bem ter-se entendido com ele. Garanto que ele não lhes quer mal. Rendam-se, antes que a situação se torne irreparável!
Angélica devia ter-se lembrado. A última recomendação foi infeliz. Os rocheleses eram suscetíveis na questão da honra.
- Render-nos?... - gritaram em coro, subitamente unidos.
E voltaram-lhe as costas, ostensivamente.
- São mais estúpidos do que ostras agarradas a um rochedo!
- exclamou ela, exasperada.
Por enquanto Joffrey estava fora de alcance. Era um ponto ganho... para ela. Mas para eles?... Com pensamentos diversos, olhavam o recorte do alçapão no assoalho de madeira preciosa. Mercelot teve a ideia de puxar a argola que o levantava e, para seu espanto, o painel saiu sem esforço. Uma escada de corda pelo poço em trevas.
- Ele esqueceu de aferrolhar o orifício depois de fechá-lo - constatou Manigault, satisfeito. - Aí está uma passagem que também poderá ser útil a nós! Temos de fechar todas as saídas.
- Vou ver aonde leva esta - disse um deles.
Bateram o isqueiro, e depois de acender uma lanterna que lhe pendia do cinto, o que havia falado agarrou a escada de corda e começou a descer. Era o jovem padeiro, Mestre Romain, que na manhã de La Rochelle partirá tão corajosamente com seu cesto de bolos e pães quentes como única bagagem.
Estava a meio caminho da descida quando uma detonação estourou nas profundezas. Ouviram Romain soltar um grito de animal ferido e depois o ruído horrível de seu corpo esmagando-se lá embaixo, junto corri a lanterna, cuja luz se extinguiu.
- Romain! - gritaram eles.
Não houve"respost-a. Sequer o eco de um gemido. Berne quis descer. Manigault o-reteve.
- Feche ò" alçapão - ordenou.
E, como todos permanecessem imóveis, ele próprio o fechou com um pontapé e recolocou o fecho exterior.
Agora começavam a entender. Estava declarada a guerra entre a coberta e os porões do navio.
"Eu devia ter retido Romain", pensou Angélica. "Eu devia ter lembrado que Joffrey nunca esquece nada, que seus gestos e ações nunca são fruto do acaso ou de negligência, mas ditados por um cálculo muito preciso. Deixou o alçapão aberto exatamente para que acontecesse esta coisa medonha. Estão todos loucos por quererem medir-se com ele. E recusam-se a ouvir-me." ' Lançou-se para fora, deu uma olhada desorientada sobre a desordem do Gouldsboro, que jogava, como que inconsciente, no mar tranquilo.
Alguém corria, perseguido por gritos, ameaçado pelas lâminas cintilantes de punhais que haviam surgido do cinto dos amotinados espanhóis. Uma frágil silhueta, embaraçada na djellaba branca, agarrando-se às escadas, tentava eseapar à matilha.
- E ele! É ele! - gritavam. - O cúmplice! O turco! O sarraceno! Quis sufocar nossos filhos!
O velho médico árabe voltou-se. Encarou os infiéis. Entre eles, aqueles cristãos vestidos de preto da seita a que chamavam reformada, e espanhóis, inimigos de sempre do Islã. Uma bela morte para um filho de Maomé. Ele caiu sob os golpes.
Os protestantes haviam parado. Mas os espanhóis se encarniçavam, arrebatados pelo gosto do sangue e pelo ódio secular ao mouro.
Angélica atirou-se no meio da confusão.
- Parem! Parem! Covardes!... É um ancião.
Um dos espanhóis deu-lhe uma facada que, felizmente, apenas lhe rasgou a manga do vestido e arranhou o braço. Gabriel Berne, ao ver isso, deu um pulo. Deu uma coronhada no espanhol e teve de ameaçar os outros com sua arma para forçá-los a se afastar.
Ajoelhada perto do velho sábio, Angélica ergueu-lhe a cabeça inchada e ensanguentada. Falou-lhe baixinho, em árabe:
- Efêndi! Oh, efêndi! Não morra. Está longe demais de seu país. Reverá Miquenez e suas rosas... E Fez, a cidade de ouro, lembre-se!
O ancião teve a força de abrir um olho, brilhante de ironia.
- O que importam as rosas, minha criança - murmurou em francês -, estou ligado a outras praias, menos terrestres! Aqui
ou ali, o que importa! Maomé não disse "Leve a ciência a toda parte"?...
Ela queria erguê-lo para tentar abrigá-lo nos apartamentos de Joffrey de Peyrac, mas notou que ele acabava de expirar.
Sem forças, pôs-se a soluçar.
"Era amigo dele, tenho certeza, assim como Osman Ferradji foi meu amigo... Ele o salvou, curou-o. Sem ele Joffrey estaria morto. E eles o mataram."
Já não sabia a quem odiar, a quem amar. Os homens, todos os homens, eram imperdoáveis. Ela compreendia Deus, que subitamente exasperado lançava fogo sobre as cidades e dilúvios sobre a terra para destruir a espécie ingrata.
Encontrou Honorina sentada comportadamente ao lado do siciliano, que, deitado, parecia dormir. Também a ele haviam matado. Em sua cabeleira hirsuta, escancarava-se uma chaga vermelha.
- Machucaram muito Casca-de-Castanha - disse Honorina.
Não dizia "mataram", mas sabia o que significava aquele sono frio do amigo a garotinha cuja primeira palavra fora: sangue. Angélica não conseguiria arrancá-la nunca à violência.
- Oh, que belo vestido! - disse Honorina. - O que está escrito nele? São flores?
Angélica a segurava nos braços. Queria partir para longe com a filha. Feliz o tempo em que podiam embrenhar-se na floresta, passar de uma estrada para outra.
Aqui não podiam fugir para parte alguma. Só se podia andar em círculos naquele navio miserável, em breve carregado de cadáveres, se aquilo continuasse... impregnado de sangue.
— Mamãe, sao flores?
— Sim, são flores
— Seu vestido é azul e escuro como o mar. Então são flores do mar. A gente veria essas flores se fosse até o fundo da água, não veria?
— Sim, veria! - disse Angélica, com uma convicção maquinal.
O resto do dia foi mais calmo. O navio seguia docilmente. Os tripulantes, enterrados no fundo do porão com seu chefe, o Res-cator, não se haviam manifestado. Apenas essa falta de reação já deveria despertar preocupação, mas os revoltados, fatigados pela batalha travada em seguida a uma noite de tempestade, deixavam-se contagiar por uma espécie de euforia. Queriam crer que a calma aparente do mar e da situação duraria sempre; no mínimo até que se pudesse desembarcar nas ilhas da América. O que ajudava os protestantes em sua loucura, pensava Angélica, era seu hábito quase secular, porque tipicamente rochelês, de viver em comunidade sempre ameaçada e muito fechada. Já na França, desde a mais tenra idade, viviam em pé de guerra clandestina. Todos se conheciam, conheciam as fraquezas e defeitos uns dos outros, mas também suas qualidades, e tudo se empregava com eficácia. Fora isso que lhes permitira tomar posse, apesar de seu pequeno número, de um navio de quatrocentas toneladas e doze canhões. Restava o problema de disciplina, representado pelos mais ou menos trinta homens que se haviam unido a eles, traindo o Rescator. Era quase tão perigoso tê-los como cúmplices quanto tê-los como inimigos. Diziam sem rebuços que tinham sido eles os condutores do motim, ou seja, que esperavam ser os primeiros na distribuição do butim. O gesto de Berne, abatendo um deles com uma coronhada, desapontara-os muito. Depois de constatarem que o companheiro morrera, tinham começado a compreender que os novos amos não se deixariam dominar e, amansados no momento, executavam bastante bem as ordens recebidas. No entanto, era preciso ficar de olho neles e desconfiar.
Estabelecia-se algo parecido com paz.
As mulheres recomeçavam a dedicar-se a suas ocupações e, acompanhadas das crianças, ajudavam os homens a desobstruir a coberta e a consertar as velas rasgadas.
Só que ao anoitecer tiros de mosquete abafados atraíram os homens da coberta até o depósito onde estavam guardadas as reservas de água doce. Encontraram os tonéis perfurados e a sentinela, que os guardava havia desaparecido.
Restava água potável para mais dois dias.
Ao amanhecer, o Gouldshoro atingia a corrente da Flórida.
CAPÍTULO III
O Gouldsboro arrastado pela corrente da Flórida
Só tomaram consciência disso'várias horas mais tarde. Angélica ouviu o alarido do grupo de homens do .comando, que se aproximava.
— Um excelente ponto para você, Le Gall - dizia Manigault -, saber aproveitar essa clareada do tempo brumoso. Mas tem certeza do que está dizendo?
— Certeza absoluta; senhor. Aliás, até um grumete, usando uma balestra em lugar de sextante, não se deixaria enganar. Há quase um dia, avançando com bom vento e em direçào oeste, subimos mais de cinquenta mil milhas para o norte! Acho que é por causa de uma bendita corrente que nos arrasta para onde quer, sem que possamos dominá-la...
Manigault esfregou o nariz, refletindo. Ninguém se encarava, mas todos pensavam na insinuação atirada pelo Rescator: "Contanto que não encontrem a corrente da Flórida..."
— Verificou se nos postos da noite o seu timoneiro, por ignorância ou traição, não mudou a direção para norte?
— O timoneiro era eu mesmo - tornou Le Gall, irritado -, e desde o amanhecer é Bréage. Já lhe disse isso, assim como a Mestre Berne.
Manigault limpou a garganta.
- Sim, Le Gall, falamos com Mestre Berne, nossos dois pastores e outros membros do nosso estado-maior sobre o que convém fazer, pois logo estaremos sem água potável. E, como a situação é grave, viemos expô-la às mulheres a fim de que também elas nos dêem sua opinião sobre as soluções a adotar.
A essas palavras, Angélica, que se mantinha um pouco a distância, estremeceu e precisou morder os lábios para ficar em silêncio. Sentiu-se aliviada ao ouvir a Sra. Manigault dizer em voz alta o que ela pensava baixinho.
— Nossa opinião? Não se preocuparam com ela para pegar em armas e se apoderar do navio. Tudo o que nos pediram foi que ficássemos tranquilas, acontecesse o que acontecesse, e agora que as coisas já não correm conforme suas conveniências, vêm procurar um conselho junto a nossos cérebros fracos. Eu os conheço, os homens, sempre agiram da mesma maneira em seus negócios. Só fazem o que pensam. Felizmente que inúmeras vezes estive perto para reparar suas tolices.
— Como, Sara! - protestou Manigault, fingindo espanto. - Não foi você que em diversas ocasiões me advertiu de que o Res-cator não estava nos levando a nosso destino? Uma intuição, dizia. E agora declara que não aprova o fato de nos termos tornado senhores do Gouldsboro.
— Não - disse com firmeza Sara Manigault, sem se importar de parecer inconsequente.
— Então sem dúvida teria preferido ser vendida em Quebec como rapariga de colonos? - berrou o marido, encarando, furioso, a gorda senhora.
— Afinal, por que não? Esse destino não é pior do que o que nos aguarda, graças às suas brilhantes inspirações habituais.
O advogado Carrère interveio, ácido:
— Não é hora de brincadeiras de mau gosto nem de cenas domésticas. Viemos a vocês, mulheres, para tomar nossas decisões com o acordo da comunidade, como é de tradição entre nós, desde os primeiros tempos da Reforma. O que devemos fazer?
— Primeiro consertar essa porta arrombada - disse a Sra. Carrère. - Vivemos em plena correnteza de ar e nossos filhos estão se resfriando.
— Isso é bem coisa de mulher, com seus detalhes inúteis. Essa porta não será consertada - gritou Manigault, novamente fora de si. - Quantas vezes ela foi arrombada desde o início da viagem, duas, três vezes... É um verdadeiro destino. E inútil tentar pregar novas pranchas, quando o tempo urge. Temos de abordar uma costa dentro de dois dias, senão..
— Que costa?
— Eis a questão! Não conhecemos as terras mais próximas. Não sabemos para onde nos arrasta a corrente, se nos afasta ou nos aproxima de regiões habitadas, onde poderíamos desembarcar e encontrar água e víveres... Enfim, não sabemos onde estamos - concluiu.
Fez-se um pesado silêncio.
— Além disso - retomou ele -, vivemos sob a ameaça do Res-cator e sua tripulação...Para apressar as coisas, pensei em fumigá-los atirando bastões'de pez-aces,os lá dentro, como se controlam as revoltas de escravos a bordo dos navios negreiros. Mas o processo, para com homens da minha raça, embora ele tenha tentado utilizá-lo contra nós, parece indigno de nós.
— Diga, antes,, que eles dispõem de portinholas suficientes, abertas para o màr, para não correrem o risco de serem incomodados pela sua fumigação - observou Angélica, não conseguindo reter o humor..
— Também há isso - condescendeu Manigault.
Deu-lhe uma olhada de soslaio e ela teve a impressão de que ele estava bem satisfeito de que ela tivesse ficado com eles, e lúcida ainda por cima.
— Há também - continuou o armador - o fato de que essa gente no porão descobriu algumas armas e munição. Não o suficiente, claro, para nos atacar em combate descoberto, mas o bastante para nos manter em xeque se tentássemos dominá-los descendo até eles. De resto, a manobra seria difícil. Pelo poço da corrente da âncora, fizemos tentativas com a verruma para perfurar o madeirame e infelizmente topamos com uma blindagem de bronze.
— Sem dúvida colocada lá para a eventualidade de uma revolta - soltou Angélica.
— Naturalmente poderíamos tentar perfurar essa armadura com uma colubrina ou com uma carga de metralha, mas o navio já sofreu demais com a última tempestade para corrermos o risco de agr.ivar-lhe o estado e ir ao fundo com ele. Nâo esqueçamos também que este navio é nosso, e não esqueçamos que Monseigneur Rescator,.. Fulminou Angélica com o olhar.
- ...não está em melhor situação, e é porque também não tem água, víveres nem munição, que fica como um urso enterrado em seu covil. Ele e seus homens morrerão de sede antes de nós.
Isso está claro.
A sua volta as mulheres menearam a cabeça, em dúvida. Ainda não conseguiam entender. O mar estava calmo e o navio seguia sem empecilhos através do leve nevoeiro que velava apenas o horizonte. Que se dirigissem para sul ou para norte, era coisa que praticamente não notavam. Não eram testemunhas dos esforços do timoneiro para escapar à força da corrente e recolocar o navio no rumo.
E as crianças ainda não pediam de beber.
— Que eles morram antes de nós talvez seja um consolo - disse afinal Tia Ana -, mas eu preferiria que nos salvássemos todos. Pareceu-me que Monseigneur Rescator está familiarizado com esta região, desconhecida para nós, e deve ter em sua tripulação pilotos para nos guiar e nos permitir desembarcar. Proponho que parlamentem com ele para obter o auxílio necessário.
— Falou bem, tia - exclamou Mestre Berne, cujo rosto se iluminou -, e não esperávamos menos de sua sabedoria! Pois é a solução que queremos adotar. Que nos entendam bem! Não se trata de capitular. Queremos propor um acordo a nosso adversário. Que nos conduza a uma terra hospitaleira e em troca lhe devolveremos a liberdade, a ele e aos homens que quiserem permanecer-lhe fiéis.
— Devolverão o navio? - perguntou Angélica.
— Certamente que não. Ganhamos o navio pelas armas e precisamos dele para chegar a São Domingos. Mas já é muito, pois ele está em nosso poder, que lhe deixemos a vida e a liberdade.
— E pensam que ele aceitara?
— Aceitará! Porque seu destino está ligado ao nosso. Faço justiça ao Rescator: é um navegador notável. Não pode ignorar, por
tanto, que neste momento o navio se encaminha para a ruína. Por mais que o apontemos para o oeste, ele volta sempre para o norte. E se continuarmos assim, para o norte, havemos de atingir as terras frias e os gelos. O que nos ameaça: encalhamento ou naufrágio numa costa perigosa, cujas armadilhas nao conhecemos, falta de víveres e meios de socorro,- frio... O Rescator sabe disso tudo, e compreenderá qual é ô seu interesse e o de seus homens.
A discussão passou em seguida para aquele ou aqueles que se encarregariam da negociação e ousariam enfrentar a cólera do pirata. A execução sumária do pobre padeiro era uma advertência. Não conseguindo pôr-se de acordo, os protestantes resolveram discutir o "meio de entrar em contato com os homens do porão.
Propôs-se qúé descessem peio poço da corrente, pelo qual os protestantes tinham tido acesso ao paiol de pólvora e à munição, e onde tinham postado sentinelas. Bateriam na parede uma mensagem no código dos marinheiros para propor uma delegação. Le Gall, que conhecia esse código, desceu em companhia de marujos armados. Quando retornou, quase uma hora depois, vinha sombrio/ -
— Ele pede mulheres - disse.
— Hein? - fez Manigault.
Le Gall enxugou o suor que lhe escorria pelo rosto. Faltava ar lá embaixo.
— Oh, não entendam mal. Não se trata do que estão pensando. Tive dificuldade em estabelecer contato e não se pode conversar com nuanças por meio de um pedaço de madeira contra uma parede. O que entendi é que o Rescator aceita receber uma delegação, contanto que seja composta de mulheres.
— Por quê?
— Diz que, se um de nós ou dos espanhóis aparecer, ele não poderá impedir que seus homens o façam-em pedaços. Exige também que entre as parlamentares vá Dame Angélica.
CAPÍTULO III
Meditação de Angélica
A Sra. Manigault teria gostado de integrar o grupo, mas sua corpulência a impediu.
As indicações dadas em código pelo Rescator recomendavam às senhoras que utilizassem o alçapão e a escada de corda de seus apartamentos particulares.
- Mais uma das pilhérias indecorosas desse indivíduo - resmungaram os protestantes.
Duvidavam do bom resultado da negociação, pois era pequena a confiança que atribuíam aos talentos diplomáticos de suas mulheres.
A Sra. Carrère, a quem as inúmeras maternidades haviam conservado a agilidade necessária, aceitou o papel ingrato de porta-voz da comunidade. A mulherzinha, cheia de vida, habituada a administrar a toque de caixa sua casa e suas criadas, não se deixaria intimidar e iria até o fim da missão.
- Seja intransigente acerca das condições - recomendou-lhe Manigault. - A vida e a liberdade. Não concederemos mais nada.
Angélica, a distância, dava de ombros. Joffrey não aceitaria nunca essas condições. Então, quem cederia? Estava deflagrada a luta entre dois blocos de granito. No plano da astúcia, Joffrey de Peyrac certamente estava mais armado que seus adversários improvisados, mas no da obstinação ele e seus homens não levariam a melhor sobre aquele punhado de rocheleses.
Abigail apresentou-se. Manigault recusou-a. A atitude reprovadora do pastor com relação ao motim dos passageiros tornava suspeita a filha. Depois mudou de ideia. O Rescator tratara a jovem com consideração. Talvez a ouvisse com simpatia. Quanto ao papel de Angélica, não queriam aprof»ndar-se. Ninguém conseguia entender por que ela era a única em quem tinham esperanças. Ninguém ousava coflfessá-lo, mas muitas mulheres gostariam de tomar-lhe a mão às escondidas e rogar-lhe "Salve-nos!", pois começavam a compreender o impasse em que se encontrava o Gouldsboro nas mãos de navegadores inexperientes.
Chegando embaixo," as três mulheres tiveram de esperar que o alçapão acima delas se fechasse. Estavam em escuridão total. Enfim apareceu uma vela no fim de um corredor diante delas, e foram ao encontro do quartel-mestre Erikson, que as guiou até uma "coberta" bastante ampla onde pareciam reunidos quase todos os homens da tripulação. As portinholas estavam abertas, deixando entrar a claridade cinzenta. Os marujos jogavam cartas ou dados ou balançavam-se nas redes. Pareciam calmos e lançaram às recém-chegadas olhares impenetráveis e quase indiferentes. Havia muito poucas armas, o que Angélica notou com uma contração np coração, não sabendo se gostaria de ver os homens de Manigault e os de seu marido enfrentarem-se em condições de igualdade. Numa batalha corpo a corpo, as tropas de Joffrey, apesar do número, sucumbiriam.
De uma porta aberta sobre uma despensa, chegou-lhe a voz do Conde de Peyrac. Seu coração pulou. Fazia séculos que ela não a ouvia. O que havia naquela voz que a atormentava assim?
Como seduzia aquela voz que não podia mais cantar! Era a de um amor novo. O timbre abafado e rude fazia-a esquecer o outro, o do passado, de ressonâncias magníficas, mas cujo eco ia esfumando-se na distância, como a imagem de seu primeiro amor.
A personalidade do outro, aventureiro de rosto tisnado, de coração endurecido e têmporas grisalhas,-invadia toda a cena. A voz quebrada era a que a sustentara durante aqueles instantes inimagináveis de doçura e temor de uma breve noite de amor, a bordo da tempestade, e que hoje ela acreditava haver sonhado.
Aquelas mãos secas e patrícias, mas que manejavam tão vivamente o punhal, eram as que a tinham acariciado.
O homem, ainda estranho, era ele, seu amante, seu amor, seu esposo.
Por trás da máscara, o Rescator pareceu-lhe implacável. Saudou cortesmente as três senhoras, sem mandá-las sentar. Ele próprio ficou em pé, perto da portinhola, de braços cruzados, pouco tranquilizador. Nicolau Perrot, também de pé, fumava seu cachimbo num canto do pequeno aposento.
— Pois bem, senhoras, seus maridos brincam de guerreiros de modo bastante brilhante, mas começam a duvidar de suas capacidades de navegadores, não é isso?
— Por Deus, Monseigneur - respondeu a brava Sra. Carrère -, meu marido advogado não se sai melhor numa coisa do que na outra. É a minha opinião, se não for a dele. Nem por isso deixam de estar bem armados e decididos a conservar suas vantagens para irem às ilhas da América e não a outra parte. Então talvez fosse razoável que houvesse um entendimento para que cada um tivesse a sua parte.
E, bem corajosamente, transmitiu as propostas de Manigault. O silêncio do Rescator deu-lhes a esperança de que ele refletia e estudava com interesse os termos do acordo.
— Um piloto que lhes permitisse acostar, em troca da vida para mim e minha tripulação? - repetiu ele, com ar pensativo. - Não é mal pensado. Uma única coisa não permite realizar esse plano admirável. A costa que seguimos é inabordável. A notável corrente da Flórida a protege, arrastando sempre para longe os audaciosos que sonham aproximar-se... Rochedos submersos, à flor da água, uma barreira contínua e mortal... Duas mil e oitocentas milhas de meandros rochosos em linha reta, por duzentas e oitenta milhas de largura,
— Mas toda costa, por má que seja, deve possuir alguma enseada onde seja possível atracar - disse Abigail, tentando dar firmeza à voz trémula.
— De fato. Mas é preciso conhecê-las.
— E o senhor as ignora, o senhor, que parecia tão seguro de sua rota? O senhor, que falava em tocar terra em alguns dias, segundo as informações de sua tripulação?
As faces de Abigail tinham duas placas vermelhas, devidas à emoção, mas ela insistia com uma ousadia que Angélica nunca lhe vira.
- Não as conhece absolutamente, Monseigneur? Não as conhece em absoluto?
Um sorriso, que tinha certa sjiavidade, roçou os lábios do Rescator.
- E difícil mentir-lhe, senhorita. Pois bem, admitamos que eu conheça suficientemente a costa para tentar, digo tentar, atracar sem danos, acredita que eu seja estúpido o bastante...
O tom m,udou etornou-se duro.
— ...para"salvá-hi, a você e aos seus, depois do que me fizeram? Rendam-se». entreguem as armas, devolvam-me meu navio. Depois, se nfo for tarde demais, tentarei salvá-lo.
— Nossa comunidade não pensou em rendição - disse a Sra. Carrère -, mas. somente em escaparmos ao"destino comum que nos espreita.a tqdos: morrer de sede em breve e nos arrebentarmos contra;uma terra desconhecida, ou morrer nos gelos para onde essa correHte louca nos arrasta. Furando os tonéis de água doce, também se condenou... Não há saída senão atracar em qualquer lugar para nos reabastecermos... ou morrer.
O Rescator fez uma saudação.
- Admiro sua lógica, Sra. Carrère.
Sorriu de novo, e seus olhos foram de um a um daqueles três rostos de mulheres, diferentes, estendidos para ele com a mesma expressão ansiosa.
- Pois morreremos juntos - concluiu
Voltou-se para a janela por onde lhes chegava, mais perceptível do que sobre a coberta, o ruído das ondas, quebrando loucamente contra o casco do navio, arrastado pela correnteza.
Angélica viu tremer as mãozinhas de dona de casa da Sra. Carrère.
— Monseigneur, não pode aceitar a sangue-frio...
— Meus homens estão de acordo.
Falou sem olhá-las, talvez porque não tivesse coragem.
- Têm medo da morte, vocês cristãos e cristãs, que contam com um Deus a quem pretendem amar. Para mim e para os que frequentaram o Islã, é fonte de espanto esse terror que os habita. Minha visão é outra. Claro, se se tratasse apenas de viver esta vida, às vezes poderíamos nos sentir cansados dos dias que passam e dos seres que encontramos. Felizmente existe a morte e o além nos espera, prolongamento exaltante de todas as verdades que percebemos no decorrer de nossa existência terrestre.
Elas o ouviram, o coração na boca, como teriam ouvido as palavras de um louco. A mulher do advogado estendeu-lhe as mãos postas.
- Piedade! Piedade por meus onze filhos!
Ele voltou-se, tomado de um súbito furor.
- Era preciso pensar neles antes. Não hesitaram em arrastá-los aos riscos de sua ação. Aceitaram, portanto, antecipadamente, que eles pagassem por sua derrota. É tarde demais. A cada um suas preferências. Querem viver. Quanto a mim, prefiro mor
rer cem vezes a ceder a suas ameaças. E minha última palavra.
Levem-na a seus maridos, pastores, pais e filhos.
Transidas pela explosão, a Sr a. Carrère e Abigail saíram de cabeça baixa, guiadas por Nicolau Perrot, pois não seriam capazes de ver onde punham os pés. Já não conseguiam enxergar. As lágrimas as cegavam.
Angélica não as seguiu.
- Há apenas duas soluções. Que eu me renda ou que eles se rendam. Com a primeira, não conte. Você pode ver-me sentado,
trémulo ao timão, sob ameaça dos mosquetes de seus amigos, para em seguida me encontrar numa praia deserta com meus poucos fiéis? Você faz pouco de minha honra, minha cara, e conhece-me bem mal.
Ela o examinava com ardor. Suas pupilas tinham a profundeza e o movimento do mar, única luz na semi-obscuridade da cabina.
-Oh, sim, eu o conheço! - disse a meia voz.
Estendera as mãos e o segurava pelos ombros, sem ter cons ciência do gesto.
— Começo a conhecê-lo, e é por isso que me assusta. Às vezes parece um pouco louco, mas é mais lúcido do que todos os outros. Apenas você sabe sempre o que faz... Sabe o que faz quando cita as Escrituras... Aguarda o momento em que seus cúmplices vão agir, segundo suas senha,s. Previu tudo antecipadamente, até que o traíssem. E quando fala do além a essas mulheres, que momento escolheu? Você joga uma partida o tempo todo, visa a um objetivo. Quando é sincero, afinal?
— Quando a tenho nos braços", minha bela. É só então que não sei mais o que faço. E foi um erro pelo qual paguei bem caro. Foi porque tive a fraqueza de querer permanecer perto de você, minha esposinha sedutora demais, que há quinze anos não fugi a tempo dos beleguins do rei encarregados de me prender e que na oujra noite minha vigilância diminuiu, deixando a seus huguenotes'o tempe de„preparar a armadilha e fazer-me cair nela...
Ao falar",'tirava'a máscara. Surpresa, ela viu que a expressão dele se descontraíra. Até sorria, fitando-a com um olhar cheio de calor.
- Se penso na extensão em que você me traz má sorte, eu devia querer-lhe mal. Mas não posso.
Inclinou-se para ela. Angélica foi tomada de vertigem.
— Joffrey, rogo-lhe,não subestime a gravidade do que está acontecendo. Não vá aceitar que morramos todos!
— Quantas preocupações mesquinhas a perturbam, minha bela! De minha parte, ao vê-la, esqueço-as.
— Você aceitou parlamentar.
- Um pretexto para fazê-la vir até mim e retomar sua posse.
Com uma perturbadora suavidade, envolveu-a nos braços, pousou os lábios sobre as faces dela.
— Joffrey, Joffrey, por favor... você continua jogando não sei que jogo temível.
— E realmente uma comédia? - perguntou ele, estreitando-a mais contra si. - Me faria crer, querida, que tem bem pouca ex-v periência da perturbação em que sua-beleza pode lançar um homem que a deseja.
Sua paixão não era fingida. Ela perdia a cabeça, arrastada pelo fremente ardor dos lábios dele, o perfume de seu hálito próximo que se tornava familiar outra vez mas que a surpreendia, como essas descobertas que se fazem uma a uma, junto a um amante desconhecido.
A dúvida que a torturara desaparecia: "Ele me ama, então. É verdade... Ele ainda me ama, a mim? A mim?..."
- Eu te amo, você sabe... - murmurou ele baixinho. - Sonho com você desde a outra noite... Foi tão rápido e você está inquieta... Não via a hora de revê-la... para me tranquilizar... que não foi um sonho... que você me pertencia inteira novamente...
que não tinha mais medo de mim.
Sua boca pontuava as palavras de beijos, perto dos cabelos de Angélica, em suas têmporas.
— Por que ainda se defende? Beije-me... Beije-me de verdade...
— Não posso, com esta angústia no coração... Oh! Joffrey, que homem é você, afinal? Não é hora de falar de amor.
— Se eu tivesse de esperar que a hora fosse isenta de perigos para falar de amor, praticamente não lhe teria conhecido o gozo nestes últimos anos. Amar entre duas tempestades, duas batalhas, duas traições, é minha sina, e aprendi a me adaptar a essa pimenta suplementar do prazer.
A lembrança das aventuras que o marido pudesse ter tido longe dela, no Mediterrâneo ou outro lugar, irritou Angélica. De súbito foi presa de um ciúme feroz, que varreu toda impressão de doçura.
- Você é um patife, Sr. de Peyrac, e está errado em me confundir com as odaliscas estúpidas que o repousavam de seus combates. Largue-me.
Ele ria. Tentara encolerizá-la mais uma vez e conseguira. O furor de Angélica aumentava, estimulado pela ideia de que ele se divertia com o terror de todos eles.
- Largue-me! Não quero mais vê-lo. Acho que você é um monstro.
Ela o empurrava com tanta energia que ele a soltou.
— Decididamente você é tão limitada e intransigente quanto seus huguenotes.
— Os "meus" huguenotes não são meninos de coro, e, se você tivesse tomado o cuidado de não provocá-los, não estaríamos nisto. É verdade que você jamais teve a intenção de levá-los às ilhas na América?
- É verdade.
Angélica empalideceu. Sua cólera cedeu e ele viu-lhe os lábios tremerem como os de uma criança desapontada.
— Eu garantia suas intenções e você me enganou. Isso é mau.
— Tínhamos firmado um contrato'preciso acerca do local aonde eu deveria levá-los? Quando, em La Rochelle, você veio suplicar-me que lhes salvasse a vida, acreditou que ia aceitar a bordo esses calvinistas, despojados de tudo e que jamais me devolveriam um sou pelo meu trabalho, apenas pelo prazer de ouvi-los cantar salmos?... ou pelos seus Belos olhos? Não sou o Sr. de Paulo, apóstolo da caridade. .
Como ela o olhasse sempre em silêncio, ele acrescentou, em tom mais suave.
- Se acreditou nisso, é porque idealizava a generosidade masculina, senhora. Não sou, não sou mais um herói de cavalaria, tive de batalhar duramente demais para sobreviver. Mas não me atribua desígnios negros. Jamais tive a intenção de "vender" esses infelizes, como imaginam eles, mas simplesmente levá-los como colonos paraõninhas terras americanas, onde enriqueceriam muito mais depressa do que nas ilhas.
Ela deu-lhe as costas e se dirigiu para a porta. Ele se interpôs.
— Aonde vai?
— Ao encontro deles.
— Para quê?
— Para tentar defendê-los.
— Contra quem?
— Contra você.
— Não são eles os mais fortes? Não têm a situação nas mãos? Ela meneou a cabeça.
— Não. Sinto, sei que você tem o destino deles nas mãos. Sempre será o mais forte.
— Esqueceu-se de que quiseram atentar contra minha vida? Parece-me que isso a emociona menos do que saber que a deles está ameaçada.
— Ele queria enlouquecê-la, fazendo-lhe perguntas assim que a dilaceravam? De repente tomou-a nos braços outra vez.
- Angélica, meu amor, por que estamos tão longe um do outro? Por que não conseguimos nos aproximar? Será que é por que você não me ama? Beije-me... Beije-me... Fique comigo.
Ela se defendia com mais ardor por se sentir fraca, tentada a se encolher contra ele, esquecer, confiar nele, abandonar-se a sua força sem desejar mais nada.
- Deixe-me, eu não posso.
Ele a soltou, de traços duros.
— É exatamente o que eu queria saber... você já não me ama. Minha voz a desagrada, minhas homenagens a assustam... Seus lábios não responderam aos meus na outra noite... Você estava fria e contraída... Quem sabe se não aceitou esse papel a meu lado para permitir que seus amigos executassem seu plano!
— Sua suspeita é insultante e ridícula - disse ela., com voz trémula. - Lembre-se de que foi você quem me reteve. Como pode duvidar ainda de meu amor?
— Fique comigo. Julgarei por isso.
— Não, não, não posso. Quero voltar lá para cima. Quero ficar junto das crianças.
Escapou loucamente, sem saber a que móvel obedecia.
Apesar do fascínio que ele exercia sobre ela, da tentação de se derreter em seus braços, da dor que lhe causavam suas censuras, ela teria sido incapaz de ficar com ele quando, lá em cima, Honorina e as crianças estavam em risco de morte.
Era o que ele não podia entender. As crianças habitavam-lhe o coração e faziam parte dela mesma. E eram fracas e sem defesa. A sede as espreitava, o naufrágio. Apenas elas mereciam que se lhes sacrificasse tudo.
Sentada entre elas, na coberta do Gouldsboro, ela repensava nas frases que ele lhe dissera. Nunca lhe falara com tanta ternura. Segurava Honorina sobre os joelhos. Laurier e Severina estavam a seus pés, assim como o louro Jeremias. Algumas crianças brincavam e riam discretamente, mas a maioria permanecia calada. Tinham vindo reunir-se junto dela, levados pelo instinto dos filhotes que, na hora da tempestade, os faz procurar uma asa protetora. Em cada um deles ela imaginava rever Cantor, Florimond: "Mãe, é preciso partir! Mãe, salve-me, defenda-me!..." Imaginava rever o rosto exangue, sem as cores da vida, do pequeno Carlos Henrique."
Dos adultos já nào tinha piedade.
Eram-lhe todos indiferentes, até Àbigail, a justa, até Joffrey de Peyrac, o marido a quem tanío procurara.
"Começo a compreender que não podemos mais nos aproximar. Ele mudou demais. A menos que sempre tenha sido assim, sem que eu soubesse. Assim, ele prefere morrer a ceder. Viveu o bastante e pouco lhe importa arrastar crianças consigo. Os homens podem permitir"-se isso, mas não nós, as mulheres, que somos responsáveis por essas pequenas vidas. Não se tem o direito de conscientementetirar a vida a uma criança. É o seu tesouro mais precioso."A criança já ama tanto a vida! Conhece-lhe o preço."
- Sra. Manigault - disse em voz alta -, é preciso que vá à procura dé seu marido e o convença a mostrar-se menos avaro em suas condições. Não me faça crer que ele a assusta com seus gritos. Já viu outras, e ele deve entender que o Rescator jamais cederá se o:tiavip não lhe for devolvido.
A Sra. Manigault não respondeu,_e Angélica viu duas lágrimas sofridas surgirem-lhe no canto dos olhos.
- Não posso pedir a meu marido que se renda, Dame Angélica. É condená-lo. Se o Rescator retoma o poder, há de poupá-lo?
Ficaram em silêncio. Angélica insistiu:
- Tente, Sra. Manigault... Depois tentarei eu. Descerei novamente aos porões para convencer o Rescator a fazer concessões.
A mulher do armador levantou-se, suspirando ruidosamente. Depois do regresso de Abigail e da Sra. Çarrère, o estado-maior dos protestantes se reunira na sala dos mapas para estudar a possibilidade de atracarem apesar de tudo e para ouvir a opinião dos marinheiros competentes.
Os amotinados espanhóis agitavam-se. Começavam a ficar com medo. Angélica entendia trechos de palavras que eles trocavam em sua língua gutural. Falavam de tomar a chalupa e de fugir do navio condenado.
Os insensatos! A corrente os levaria na mesma rota mortal, e suas débeis forças não bastariam para arrancá-los ao poder da corrente, quando um navio lutava em vão.
Deserto de brumas, silêncio, limbos gelados onde seres vivos corriam para a perdição.
Depois houve um chamado, um movimento entre as sombras fantasmagóricas que se agitavam sobre a coberta. Alguma coisa se modificava. Uma esperança. As mulheres levantaram-se, esperando.
Marcial, sem fôlego, surgiu diante delas.
- Ele aceita! Ele aceita!... O Rescator! Mandou dizer que vai enviar um piloto e três homens que conhecem a costa, para guiar o navio para fora da corrente e fazê-lo atracar.
CAPÍTULO V
O Rescator concorda em enviar um piloto
Erikson aparecera Huma escotilha. Seu rosto de gnomo rechonchudo continuava impenetrável. Gingando -sobre as pernas curtas, ganhou as escadas e subiu até o tombadilho.
Rodeadade algumas mulheres, Angélica esperava ver surgir em seguida a longa silhueta do marido. Mas ele não apareceu. Foram Nicolau Perrot e seu índio, depois uma dezena de tripulantes fiéis, ingleses-e três malteses. Um dos marujos foi ao encontro de Erikson na popa, os outros, com o canadense barbudo, foram sentar-se perto da grande chalupa. Agiam com calma e não pareciam preocupar-se com os mosquetes assestados sobre eles. Nicolau Perrot até puxou o cachimbo e o encheu com displicência. Olhou à volta.
— Se necessitam de mais homens para a manobra das velas - disse, carregando no sotaque -, há outros a sua disposição lá embaixo.
— Não - respondeu abruptamente Manigault, que vigiava particularmente a ele -, "minha" tripulação está se saindo muito bem.
— E como traduzirão aos gajeiros as.indicações de Erikson ao leme?
E diante do silêncio deles:
- Vamos! Vamos! - Suspirou, sacudindo o cachimbo, como se renunciasse a um feliz momento de ócio. - Eu me ocuparei disso então. Não conheço absolutamente nada sobre o mar, mas falo todos os dialetos do Poente. "Disseram"-me que colocasse meus talentos a seu serviço. Não são muitos. E tudo.
Ergueu o gorro de pele e se dirigiu para a popa. Depois de deixar sentinelas perto dos homens sentados, Manigault o seguiu. No fundo estavam todos ao mesmo tempo desapontados e aliviados por não verem surgir o Rescator em pessoa. Desapontados, pois seu conhecimento náutico e domínio de comando de que dera prova em várias ocasiões eram para os passageiros angustiados a garantia de que ele os tiraria novamente daquele mau passo. Aliviados, porque sua simples presença já inspirava receio. Diante dele Manigault acabava duvidando de seu êxito. Vigiá-lo, com seis mosquetes assestados sobre ele, não seria suficiente. Os subalternos que enviara dariam menos trabalho. De resto, pareciam cansados e indiferentes. Sem dúvida preferiam ser desembarcados numa praia e perder a parte no butim a perderem a vida. Deviam ter convencido o irredutível Rescator a tentar um último esforço para salvá-los todos e levá-lo àquela semi-rendição, que apesar de tudo surpreendia os amotinados.
— É preciso saber ser firme - perorava o advogado Carrère, agitado -, esse mata-mouros, diante da nossa atitude, baixou pavilhão. Ganhamos a partida.
— Nada de tantos volteios com a pistola, por favor, meu homem - acalmou-o sua mulher.
Friorenta, apertou as mãos sob o xale.
— Se tivesse falado com ele face a face, como eu, compreenderia que não foi o medo da morte, nem para si nem para os outros, que convenceu esse homem a nos enviar um piloto.
— Então o que foi?
As mulheres deram de ombros, com um gesto de ignorância. Suas coifas palpitavam no nevoeiro cinzento, atravessado por vezes por uma claridade amarela, insólita, como uma porcelana translúcida.
Os cabelos de Angélica estavam pesados de umidade, mas, assim como as companheiras, não se decidia a se pôr ao abrigo. Esperavam que Erikson se sentasse ao timão. No Gouldsboro, o timão se comunicava diretamente com o leme, ficando situado no tombadilho, na popa, e não embaixo. A rigor, o timoneiro podia então manobrar sozinho. Sob a ponta das armas que o vigiavam, o homenzinho com pupilas de pedra não se abalava. Limitava-se a segurar o timão.- Estava sonhando ou então dormindo de olhos abertos. A alguns passos, achava-se o canadense, a barba ao vento, mascando o cachipíbò, o antigo porta-voz do Capitão Jason ao alcance da mão.
Ao cabo de várias horas, os passageiros e os tripulantes noviços foram novamente dominados pelo nervosismo. Os vigias nas gáveas confirmavam que continuavam seguindo a corrente, na direção norte, atnda mais rápido, pois ao tomar lugar Erikson mandara dispor as velas de modo a receber todo o vento naquela direção.
Todos desconfiaram que o maquiavélico Rescator lhes tivesse enviado um piloto apenas para arrastá-los mais rapidamente para a morte.
- Acredita que.seja possível? - murmurou-Abigail a Angélica. - Acredita que ele seria capaz de agir assim?
Angélica balançou negativamente a cabeça, com energia, mas na realidade duvidava, também ela. Pediam-lhe mais uma vez que servisse de garantia pelos pensamentos do homem a quem amava. Tinha de confessar que os ignorava. Queria acreditar, com todas as forças, no homem do passado a quem adorara. Mas, desse homem do passado, o que foi que ela conhecera de fato? A vida não lhe dera tempo de atingir o espírito rico, fervilhante e variado do marido, ou, bem ao contrário, tempo de perder as ilusões e aprender, no curso dos anos de vida em comum que deveriam ter tido, que um homem e uma mulher se procuram em vão, por mais próximos que estejam, como no nevoeiro opaco dos mares, e que sua união não passa de miragem, só pode pertencer ao mundo terrestre... "Quem é você, em cujos olhos procuro minha felicidade? E eu, também sou para você um mistério insondável?..."
Se fosse verdade que Joffrey também se interrogava sobre ela, que ele a chamava em si, por trás da carapaça dura e fechada, então nada estava perdido.
Eles chamavam um ao outro, estendiam-se os braços através daquelas brumas pesadas que os separavam, tão difíceis de dissipar.
A menos que se afastassem um do outro, a uma velocidade vertiginosa, como a da corrente, que não se sentia mas que arrastava o navio para longe, não se sabia para onde.
"Não, ele não me ama. Não tenho raízes em seu coração. Não vai nada além de um desejo superficial que acabei por lhe inspirar... Pouco demais para que ele se sacrifique a minhas súplicas, para que me ouça... É terrível não ter poder, estar de mãos vazias... Ele está sozinho... No entanto, fui sua mulher."
As outras a viam mover os lábios, sussurrar e agitar, sem se dar conta, a cabeleira clara, irisada de pérolas de água. Ela viu-lhes a expressão de súplica.
- Ah! Rezem - disse com impaciência -, é a hora de fazê-lo, e não de esperar de uma infeliz como eu não sei que milagre!...
A noite caía, trazendo apenas os ruídos abafados do mar e do vento, pontuados, a cada minuto, pela voz do sino de nevoeiro que um grumete, Marcial ou Tomás, devia sacudir arrepiando-se de cansaço. No final, esses tilintares acabavam tornando-se ob-cecantes.
"São tão ingénuos todos esses homens, apesar dos ares belicosos! Tocar o sino de nevoeiro ao largo de La Rochelle ou da Bretanha ou da Holanda significa alguma coisa para eles. Previnem-se outros navios, chama-se a terra, onde há fogueiras de indicação. Mas aqui, nesta solidão, esse sino soa apenas para nos enganar, para tentar fazer-nos crer que não estamos sós no mundo..."
Fazia pensar no dobre de finados. Mas os braços de Honorina apertavam Angélica com todas as suas débeis forças, e seus olhos negros arregalados lembravam-lhe a noite em que a carregara, bebezinho, pela floresta gelada onde rondavam lobos e soldados.
Levantou-se.
"Vou descer... sim, vou descer. Vou falar com ele. Temos de saber!"
Nesse momento ressoou a voz de Nicolau Perrot, sonora, como de uma concha atrás da penumbra, e alçando os olhos ela adivinhou as velas que pendiam molemente dos mastros e vergas. O navio estalava, jogando com solavancos, obedecendo com resmungos à manobra imposta. As ordens se sucediam, imperiosas. Os marujos corriam. Os próprios espanhóis se azafamavam, dando prova de um espírito de disciplina que não lhes era habitual. Os homens do Rescator, sentados até emão perto da chalupa, haviam-se levantado de súbito. Seguiam com os olhos os diversos movimentos do velame. Deyiam ter sido enviados para ajudar em caso de manobra delicada, irias, vendo que era executada sem empecilhos, não intervieram. Um pouco mais tarde, voltaram a sentar-se, balançando a cabeça com, ar entendido. Um deles bateu o isqueiro, acendeu uma lanterna e se pôs a cantarolar. Outro pegou um naco tie fumo do cinto e começou a mascá-lo.
- Acho que nossos homens não são marinheiros muito ruins - disse a SrarManigault, que lhes acompanhava a mímica. - Aqueles ali tem ar^de-conçeder-lhes sua aprovação. Ainda assim, lamento que" seus prisioneiros não tenham tido a boa ideia de galgar os ovêns, Mestre Carrère, pois eu teria muita curiosidade de vê-los tentando apanhá-los, você que sabe falar tão bem sobre uma manobra sem jamais haver usado das mãos.
O advogado?, que começava a cochilar entre seu bacamarte e sua pistola, levou um susto e houve risos. Voltava-se a ter esperança e a troçar uns dos. outros. Alguma coisa acontecera. Novamente, nos ares, òuvia-se o estalejar das velas estendidas.
Mas a aurora trouxe apenas a decepção às mulheres fatigadas. Fazia ainda mais frio que na véspera, e a mesma sensação de serem arrastadas irresistivelmente pela corrente as penetrava até a medula. A água que lhes fora distribuída tinha gosto de madeira podre. Era o fundo das barricas. Ninguém ousava dizer palavra, e, quando Le Gall penetrou na entrecoberta com uma expressão alegre, olharam-no como se ele tivesse enlouquecido de repente.
— Boas novas - disse Le Gall -, e venho tranquilizá-las, senhoras. Fiz algumas medições, não sem dificuldade, pois mal se vê o contorno do sol, mas posso garantir-lhes que mudamos de direção e que agora seguimos para o sul.
— Para o sul? Mas faz mais frio do que ontem!
— É que fazia dois dias que éramos levados por uma corrente morna, a corrente da Flórida, que nos aquecia. Enquanto agora seguimos na corrente fria da baía do Hudson, aposto.
— País maldito! - resmungou o velho pastor, saindo de repente de sua reserva. - Vá alguém orientar-se com esses calores e esses frios. Começo a me perguntar se as prisões do rei não nos teriam sido mais benéficas do que estas regiões malsàs onde homens e elementos comportam-se ao contrário.
— Pai! - fez Abigail, em tom de censura.
O Pastor Beaucaire sacudiu os cabelos brancos. Não se havia resolvido tudo, longe disso. O mais importante não era passar de uma corrente quente para uma corrente fria, pensava ele, mas evitar novas mortes.
Suas ovelhas lhe escapavam completamente, e ele mesmo não sabia o que dizer-lhes. Quanto aos outros, os ímpios, que efeito teriam sobre eles as exortações de sua velha voz pastoral, seus apelos à justiça, à caridade?
- Nunca estive de acordo com o Pastor Rochefort, esse aventureiro incorrigível, que queria nos atirar todos aos oceanos. Que lhe faça bom proveito! Está-se vendo no que dá...
Sua voz perdeu-se no alarido de perguntas e respostas dadas por Le Gall.
— Vamos atracar, agora?
— Onde?
— O que dizem Erikson e o canadense?
— Nada! Tente fazer falar esse urso ríspido e esse maldito corcunda, mais fechado e áspero do que uma ostra. Mas, para um excelente timoneiro, ele é um excelente timoneiro! Deve ter-se aproveitado, ontem, de uma confluência entre as duas correntes para nos fazer passar de uma à outra. Uma façanha, principalmente com esse nevoeiro.
— Desta vez minha opinião está formada - disse Mercelot, com ar douto -, ele é holandês. Imaginava-o escocês por causa da espada, a claymore, mas não há como os holandeses para ter assim esse sentido de correntezas. Eles lêem no mar, adivinham-nas pelo nariz...
Enquanto ele falava, Angélica imaginou revê-lo, em seu escritório em La Rochelle, caligrafando, com sua pena de ganso em pergaminho de qualidade, seus caros Anais dos reformados. Hoje seu peitilho branco não passava de um trapo, sua casaca preta rasgara nas costuras dos ombros e, apesar do frio, estava descalço. No calor da ação, talvez tivesse precisado subir até os ovéns ou, quem sabe, até as gáveas... ...::
— Estou com sede - disse ele -, não há nada para beber?
— Um copinho de aguardente dcCharentes, meu amigo? - propôs-lhe a mulher, com um riso tíbio e triste.
A evocação do conforto passado e da terra natal os pôs sonhadores. Lembravam-se do âmbar dourado da aguardente de Cha-rentes, as uvas amadurecidas sob os muros de Cognac. O sal do mar queimava-lhes a garganta. Tinham" a pele viscosa como a dos arenques defumados. -
- Em breve atracaremos - disse Le Gall. - Em terra encontraremos fontes.
E a palavra os fez'suspirar.
Angélica mantinha-se a distância. Faziam de conta que já não a viam. Quando as coisas iam bem, paravam de dirigir-lhe a palavra. Quando iam mal, rogavam-lhe que interviesse. Ela começava a se habituar com isso. Deu de ombros.
CAPÍTULO VI
A atracação - O Rescator triunfa
O dia ia a meio, pelo que deixava adivinhar a vaga claridade, quando ela foi atraída à coberta por uma discussão próxima.
Diante da grande chalupa, Manigault e Nicolau Perrot estavam em colóquio.
— Vamos descer a chalupa para reconhecer a costa - dizia o canadense.
— Onde estamos?
— Quase não sei mais do que vocês! O que posso garantir-lhes é que a costa está próxima. Seríamos loucos de prosseguir sem ir reconhecer uma passagem para o navio. Com certeza encontraremos uma baía, uma enseada para nos abrigarmos. O importante é não nos arrebentarmos na entrada. Escutem...
Afastou o gorro de pele, pôs a mão em concha contra a orelha e inclinou a cabeça, como para.surpreender um ruído longínquo, perceptível apenas para ele.
— Escutem...
— O quê?
— O ruído da barra. Esse ronco é o ruído de uma barra que temos de atravessar.
Tinham as orelhas cheias demais pelo barulho das ondas.
— Não ouvimos nada.
— Eu ouço - disse o canadense. - É o que basta!
Farejou o nevoeiro, tão denso que se tinha a impressão de engolir algo sólido quando se abria a boca.
- A terra não está longe. Eu a sinto.
Também eles a sentiam agora. Eflúvios indefiníveis traziam-lhes, naquele deserto branco; a certeza de uma presença formidável e familiar. Terra!
Uma praia, areia, cascalhos, talvez até erva e árvores...
— Não pensem demais - gracejou o canadense. - Porque por aqui, saibam, pode haver marés de cento e vinte pés de altura e que sobem em duas horas.
— Cento e vinte pés! Mas você está troçando! Isso não existe.
— São livres de duvidar. Mas, acfeditem-me, nada de perder a hora da passagem, E, aguardando, eu aconselharia que se lançassem à água -antes que seu casco raspe o fundo e se arrebente. A costa mais" rochoSa do mundo, pelo que se diz, não existe igual. Mas o que^podem compreender disso, vocês, com sua pequena Rochelle e sua miserável maré de doze pés?
De olhos semicerrados, parecia zombar deles. Ouviu-se na proa o desenrolar da torrente da âncora.
— Não dei a ordem! - gritou Manigault.
— Não há outra coisa a fazer, patrão - disse Le Gall. - E verdade que a terra está próxima... Mas saber a que distância é outra história... Com esse nevoeiro!
Um homem veio dizer que a âncora tocara o fundo a quarenta pés.
— Era tempo!
— Não há outra coisa a fazer - repetiu Le Gall -, senão o que eles estão dizendo.
Apontou com o queixo para Nicolau Perrot e os homens do Rescator, que tinham continuado a preparar a chalupa.
Aproveitaram-se de uma onda alta para baixar a embarcação ao mar, e desceram por sua vez. .
Manigault e Berne consultaram-se com o olhar, hesitantes, receando serem enganados novamente.
- Esperem - disse o armador protestante. - Tenho de parlamentar com o Rescator.
Os olhos do canadense endureceram como balas de fuzil. Sua mão tombou pesadamente sobre o ombro de Manigault.
- Está cometendo um erro, amigo. Esquece que lá embaixo, nos porões, o pouco de munição que nos resta está reservado para você, assim como nos reserva a sua. Quis guerra, tem guerra. Mas lembre-se... não há quartel conosco... por pouco perderá sua vantagem.
Passou a perna por sobre a amurada e deslizou por um cabo até a chalupa, que dançava sobre as ondas, de crista branca, de um mar que, através dos vapores da bruma, lhes aparecia com um magnífico azul-violeta. Com algumas ramadas a embarcação foi levada e sumiu de vista. Mas, qual fio de Ariadne que a retinha ao navio, o cabo cotinuava a desenrolar-se.
Erikson ficara a bordo. Ocupava-se da manobra prevista, sem se preocupar de executá-la entre os protestantes, aqueles passageiros desprezíveis, marinheiros de água doce, que se haviam aliado com a escória espanhola para desapropriá-lo de "seu" tombadilho. Com muitos pontapés e apitos, pôs dez homens ao cabrestante.
O cabo se desenrolava rapidamente, logo arrastando consigo a corda, grossa como um braço, enrolada ao cabrestante. Já quase não restava extensão alguma quando ela parou de correr e de mergulhar, como uma serpente, nas profundezas do nevoeiro. A chalupa devia ter encostado em algum lugar. O cabo estremecia violentamente.
— Estão prendendo-o a um rochedo para tomar apoio e depois nos guiar para a passagem - murmurou Le Gall.
— E impossível, estamos na maré baixa.
— Como saber?... Eu imaginaria tratar-se de uma entrada submersa que só se pode vadear com a maré alta. O que deve ser o caso. Mas quais são as horas de maré aqui?
Esperaram, emocionados, não conseguindo crer no fim de suas penas.
Um grito rouco de Erikson foi o sinal que fez os homens do cabrestante porem toda a força no enrolar de novo o cabo. Outro grito, anterior, dera a ordem de levantar âncora. O Gouldsboro se sacudia suavemente, como se puxado por uma mão invisível.
Os homens do cabrestante estafavam-se, cobertos de suor apesar do frio cortante. O cabo retesado estremecia como que prestes a romper-se.
Em silêncio Le Gall mostrou algo a Manigault por sobre a amurada. Próximos o suficiente para que pudessem distingui-los, apesar do nevoeiro, as cabeças negras e eriçadas de rochedos à flor da água surgiam por toda parte, coroadas de espuma.
Mas inalterável, miraculosamente levado através de um canal estreito e profundo, o grande navio prosseguia na rota. Aguardava-se para qualquer momento um choque, um estalo sinistro, o grito infeliz: "Encalhado", familiar aos homens das ilhas e canais. Mas nada aítíntecia.^exceto que o Gouldsboro continuava avançando e a neblina adensava-se cada vez mais. Logo, sobre a coberta, as pessoas mal se enxergavam. Naquela prisão opaca, tiveram a sensação de ser erguidos, erguidos indefinidamente. No instante em que se iniciou a queda, alguns perceberam um leve choque. Maso Gouldsboro já descia meio inclinado para bombordo, depois erguia-se e balançava:se em invisíveis turbilhões longos e embaladores.
- Acabamos de atravessar a barra - disse Le Gall.
E o mesmo suspiro de alívio escapou dos peitos oprimidos, amigos e inimigos.
O grito áspero de Erikson vibrou em algum lugar, seguido de um ruído de corrente desenrolada. O Gouldsboro, novamente ancorado, continuava a oscilar, bonachão. Durante um longo momento seus ocupantes esperaram, à espreita das remadas que os preveniriam do retorno da chalupa.
Como nada acontecia, Le Gall tomou do porta-voz e chamou, depois tocou o sino do nevoeiro.
Tomado de súbita inspiração, Manigault se dirigiu ao cabrestante. Puxou a corda, que lhe veio molemente entre as mãos.
— A corda rompeu-se!
— Ou foi cortada!...
Um dos homens que tinha puxado ao cabrestante, um huguenote de Saint-Maurice, aproximou-se.
- Ela arrebentou no mesmo momento em que atravessávamos a barra. Os sujeitos da chalupa é que devem ter feito isso. Era preciso, caso contrário teríamos sido lançados contra os rochedos. Bela manobra! E estamos em segurança.
Puxaram o que restava do cabo, que, de fato, fora cortado a machado.
- Já não havia muita corda. Bela manobra - repetiu o marinheiro, admirado.
Angélica ouviu murmurar:
- Sim, bela manobra para uma atracação ém região desconhecida.
Manigault teve um sobressalto.
- Mas quem, quem segurava o timão enquanto atravessávamos a barra? Erikson estava aqui, ao nosso lado!
Acorreram à popa. Angélica seguiu-os. Queria estar por toda parte ao mesmo tempo, a fim de prever e enfrentar todos os perigos que pressentia ao redor deles. Os elementos já não eram ameaçadores. Malgrado isso, seu coração não estava tranquilo. Subitamente a solidariedade dos homens contra o mar deixara de agir. Outra partida decisiva iniciava-se entre os protestantes e Joffrey de Peyrac.
Perto do timão, agora travado, tropeçaram num corpo estendido, um espanhol, o mais incapaz dentre os amotinados e cuja existência findara com uma punhalada bem dada nas costas.
— Foi a ele que Erikson designou para segurar o timão?
— Impossível. A menos que já previsse que outra pessoa viria substituí-lo...
Entreolharam-se longo tempo, sem palavras, renunciando a explicarem-se, e tranquilizaram-se.
— Dame Angélica - disse Manigault afinal, voltando-se para a silhueta feminina a seu lado -, foi ele, não foi, quem segurou o timão enquanto atravessávamos a barra?
— Como o saberia eu, senhores? Por acaso estou com ele, no porão? Não. Estou com vocês, e não porque aprove seus atos, acreditem, mas porque ainda.quero ter a esperança de que nos salvaremos todos.
Baixaram a cabeça, sem responder. Um resultado feliz assim agora lhes parecia improvável. Meditavam nas palavras do urso canadense: "Não há quartel entre nós!
— Pelo menos, os vigias que deixei de sentinela perto dos alçapões permanecem em seus postos?^ . .
— Esperemos que sim! Mas não conhecemos todas as armadilhas que podem nos preparar em meio a esta neblina.
Manigault soltou um profundo suspiro.
- Receio que aos olhos deles pareçamos lamentáveis homens de guerra e navegadores... Enfim, o vinho foi tirado, há que bebê-lo. Vigiemos, meus irmãos, e preparemo-nos para vender caroa pele, caso necessário. Quem sabe, talvez a sorte nos seja favorável. Temos armas. Quando a neblina se dissipar, veremos onde estamos. A terra não está longe. Fica deste lado: adivinha-se pelo eco. Devemos, portanto, estar atracados numa enseada tranquila. Mesmo qu« a chalupa não retorne, poderemos atingir a praia com o pequeno Caíque de bordo. E somos numerosos e estamos armados. Até os canhões de bordo são nossos. Faremos reconhecimento, traremos água potável, que não podemos deixar de encontrar, è depois, sob a ameaça das armas, desembarcaremos o Rescator e seus homens, e em seguida zarparemos para as ilhas.
Suas palavras não conseguiram reconfortá-los.
— Ouço como que um ruído de correntes - disse Mercelot.
— E o eco.
— Que eco?
— Um outro navio talvez? - sugeriu Le Gall.
— Isso lembra mais o ruído da corrente de La Rochelle, quando a estendiam entre a enseada e o porto, até a Torre de São Nicolau.
— Está sonhando.
- Também ouço - disse outro.
Espreitavam.
- Maldito nevoeiro! Se ainda fosse um bom nevoeiro lá da nossa terra, mas nunca, não, nunca topei com um como este.
— Deve ser provocado pelo encontro dessas correntes frias e quentes que nos arrastaram.
— O estranho é que tudo é sonoro em vez de abafado, como é de regra em tempo de nevoeiros densos.
- Onde está Erikson? - disse Manigault de repente. Não o encontraram mais.
Ao cair da noite, o jovem Marcial, acendendo a primeira lanterna, gritou emocionado:
- Venham ver!
Homens, mulheres e crianças acorreram para encontrá-lo diante da iluminação de mil fogos, criados através da neblina pela simples aparição da modesta claridade que ele acabava de acender. Cristais de gelo, subitamente fixados, dissolviam-se em múltiplas luzes verdes, verde-ouro, amarelas, vermelhas, rosa e azuis. Bateu-se o isqueiro para acender todas as lanternas. A aparição de cada chama dava origem a novas fantasmagorias multicoloridas, que eles contemplavam boquiabertos, tomados de angústia e fascínio, perguntando-se: "Onde estamos?"
Em diversas ocasiões, Angélica, incapaz de dormir, subiu à coberta. Depois de dias tão longos de navegação era desconcertante sentir o navio de repente ancorado, surpreender o ruído de uma ressaca sobre uma praia de cascalho não distante.
Tinha a sensação de espera que lhe lembrava as vigílias de armas no bocage, no tempo de sua revolta, e também a atmosfera a bordo da galera real ou da dos Cavaleiros de Malta, algumas horas antes do ataque inimigo - a sensação do combate que se aproxima.
"No fundo sou uma mulher de guerra... Joffrey não sabe disso. Também ele ignora tudo de mim, da mulher que me tornei."
Nos halos surpreendentes, cor de arco-íris, ela percebia silhuetas transidas, envoltas em capas negras, velando de olhos abertos a noite estranha. Por vezes uma repentina corrente de nevoeiro depositava-lhes sobre os ombros um orvalho cintilante.
"Por que estou aqui?", perguntou-se ela. "Não gosto deles. Já não gosto deles. Comecei a detestar Berne, que antigamente era meu melhor amigo. Poderia perdoar-lhe muitas coisas, mas ele quis matar Joffrey. E isso não perdoaria nunca. Mas estou aqui.
Sinto que estou certa por estar aqui... As crianças, sim... Honorina. Não podia abandoná-las. Joffrey é forte. Conheceu da vida tudo o que umliomem pode viver. .É duro. Não tem fraqueza alguma, nem a de me amar..."
Ela desejavã-lhe a presença e sentia-se exilada longe dele. Na outra noite ele estava tão próximo, tão terno! Miragem ou realidade? Ela já não sabia...
Voltara outra vez até a coberta, aos primeiros clarões do dia, quando uma mão a puxou para trás. Dois marujos se erguiam atrás dela e ela reconheceu os que a haviam acompanhado em La Rochelle, com Nicolau Perrot. Portanto, também eles se encontravam entre os amotinados. Mas logo esclareceram.
Um, o maltes, sem--dúvida, cochichou no sabir mediterrâneo, que ela entendia" o" suficiente,.
— O amo nos enviou para proteger a você e à criança.
— Por que me proteger?
— Não se mova!
E ao mesmotempo agarraram-lhe solidamente os punhos. Ela ouviu um ruído surdo. O protestante que vigiava a escotilha mais próxima acabava de ruir por terra. Então, acima dele, Angélica percebeu um ser extraordinário que. parecia homem, animal e pássaro. Parecia gigante. Na claridade fluida, deslocava-se com um grande frémito de penachos vermelhos, de caudas de gato espessas, dançando a sua volta. Seu braço levantado soltou um reflexo de cobre. Ele bateu uma segunda vez. Outra sentinela caiu. Ela não o ouvira chegar. O ser agia com uma prontidão de fantasma. De toda parte, escalando a amurada, outras aparições silenciosas pularam e deslizaram, e, como caminhando nas nuvens, invadiam a coberta.
Suas plumas ardentes e suas capas de peles azuis ou avermelhadas voando atrás deles, como asas penugentas, conferiam aos gestos de seus braços erguidos o ar de arcanjos vingadores.
Angélica quis gritar, imaginando-se presa de um sonho. Os dois homens do Rescator a preveniram:
- Não grite! São índios... nossos amigos!
Um saltou a sua frente como um dançarino acrobata. Numa mão brandia um sabre curto muito largo, ornado de plumas vermelhas, e na outra uma espécie de alavanca de madeira com uma bola de ferro, formando um cassetete rudimentar. Angélica viu de perto o rosto de argila vermelha, misterioso, estriado de linhas azuis.i
Os marujos levantaram a mão e saudaram vivamente o índio numa língua harmoniosa. Apontaram-lhe Angélica e a porta en-trecoberta, diante da qual estavam de vigia. O índio fez sinal de que tinha entendido e retornou ao combate.
Ainda houve alguns gritos isolados, tiros, depois um ulular prolongado, logo seguido de um estranho alarido que lembrava noitadas de pândega numa taverna de porto.
Ruidosos, rindo, interpelando-se, outros homens, barbudos e com gorro de pele como Nicolau Perrot, saltaram a amurada e tomaram pé sobre o Gouldsboro.
Angélica viu passar dois homens com ar de gentis-homens, com a espada ao lado, gibão à europeia e grande chapéu um pouco fora de moda, mas levado com orgulho. Dirigiam-se a passo seguro para a popa e desapareceram de sua vista. A coberta fervilhava com uma animação febril. Aquela gente parecia enxergar através da cortina do espesso nevoeiro a que estavam acostumados. Em alguns minutos Angélica soube que estava tudo resolvido. A vitória mudara de campo e a precária supremacia dos protestantes desaparecera.
Manigault, Berne e seus comparsas, com as mãos atadas às costas, foram conduzidos para a coberta principal. Estavam pálidos, o queixo escuro pela barba, as roupas rasgadas. Mas o ataque imprevisto dos índios não lhes dera tempo de combater.
Atingidos pela arma com bola de pedra, sem terem percebido a aproximação do inimigo, pouco a pouco recobravam a lucidez. Muitos sentiam dores. Tinham os traços dolorosamente crispados.
Angélica não sentiu piedade alguma por eles. Queria-lhes muito mal, embora desejasse que o fato de seu marido retomar o controle dos acontecimentos não desencadeasse um excessivo derramamento de sangue.
No fundo sempre sentira que ele acabaria dominando os adversários, resolutos e corajosos com certeza, astutos talvez, mas inexperientes.
Ele só aparentara aceitar a derrota para ganhar tempo. Com seu conhecimento do mar e da região para onde os levara, lograra-os sem dificuldades. Enterrado nas entranhas de seu navio, seguira a marchaiouca do Gouldsboro na corrente da Flórida, depois, chegando o momento, enviara Erikson e Nicolau Perrot. Estes, fingindo ignorar onde .se encontravam, fizeram o navio penetrar na armadilha aberta, o'refúgio do pirata. Em terra, os homens da chalupa encontraram e avisaram antigos companheiros e alertaram os índios de tribos "amigas.
Prisioneiros naquele deserto de brumas, desconhecido para eles, os protestantes estavam a sua mercê. As lanternas acesas a bordo tinham guiado até eles, ha baía,-as levescanoas de madeira, transportando armas é guerreiros peles-vermelhas, caçadores e marujos, gentis-honlens corsários, habitantes multicoloridos daquelas praias selvagens,- todes homens do Rescator.
E ei-lo que surgia, sombrio, emergindo por sua vez do nevoeiro. Parecia mais alto-do que os outros-, mesmo ao lado dos índios, de grande estatura, que o saudavam e se prosternavam com gestos flexíveis de felinos, acentuados pelas suntuosas capas de peles drapejadás às* costas, e as caudas de gato listrado que, partindo do topo- dos crânios raspados, balançavam-lhes sobre os ombros. O Rescator falou-lhes em sua língua. Também ali, naquele país no fim do mundo, ele estava em casa.
Não pareceu ver Angélica e parou apenas diante dos prisioneiros. Examinou-os demoradamente, depois soltou uma espécie de suspiro.
— A aventura terminou, senhores huguenotes - disse. - Lamento por vocês que seu valor não tenha podido manifestar-se em tarefas mais úteis para todos nós. Não sabem escolher bem seus inimigos e tampouco sabem reconhecer seus amigos. São erros habituais aos seus iguais e que se pagam muito caro.
— O que vai fazer de nós? - perguntou Manigault.
— O que teriam feito comigo, caso tivessem triunfado. Você me citou palavras da Escritura. E minha, vez de lhe dar para meditação uma das leis do Grande Livro: "Olho por olho, dente por dente!"
CAPÍTULO VII
Os protestantes são condenados - Angélica se atira aos joelhos do marido
-Dame Angélica, sabe o que ele vai fazer com eles?
Angélica estremeceu e alçou os olhos para Abigail. A jovem, na manhã alvacenta, tinha os traços devastados. Pela primeira vez se apresentava desarrumada. A inquietação não lhe deixava lugar para a vaidade. Não tirara o avental sujo pelas noites de' vigília passadas a carregar e limpar os mosquetes dos protestantes, nem pusera a touca branca, e seus longos cabelos de linho caíam-lhe sobre os ombros, dando-lhe um inusitado ar de juventude e desorientação. Angélica examinou-a sem reconhecê-la direito. Os olhos pisados de Abigail e sua expressão de angústia espantavam-na, tanto mais porque a filha do Pastor Beaucaire não tinha de temer represálias ao pai nem ao primo, cuja atitude durante a rebelião fora comedida. Ela não tinha nem marido entre aqueles cuja sorte ainda permanecia incerta.
"Eles" eram os chefes do motim: Manigault, Berne, Mercelot, Le Gall e os três homens que se haviam engajado na tripulação do Rescator para espioná-lo melhor. Desde a véspera ninguém mais os vira. Os outros tinham retornado para junto das mulheres e filhos. De cabeça baixa, fatigados e amargos, mal tocaram nos frutos e legumes estranhos, acompanhados de odres de água doce que lhes tinham distribuído fartamente.
- Começo a me perguntar se não agimos como imbecis - disse o médico Parry, deixando-se cair sobre um monte de palha. - Antes de dar ouvidos a Manigault e Berne, poderíamos pelo menos ter parlamentado com esse pirata; afinal de contas, havia aceitado receber-nos ã bordo quarido estávamos em má situação. O advogado Carrère também resmungava: sempre desajeitado, ferira-se com um mosquete, £ a mão dolorida acentuava-lhe o mau humor.
- No fundo, o que importava ir para aqui ou para ali, para as ilhas ou outro lugar... Mas Manigault tinha medo de perder seu dinheiro e Berne tinha medo de perder o amor de certa pessoa que lhe virara a cabeça e os sentidos...
Resmungando entre seus dentes de roedor, o advogado lançava uma olhada sombria na direção de Angélica.
- Deixamo-nes manobrar por aqueles dois loucos... Agora aqui estou eu, em maus lençóis,,, cqnronze filhos...
O acabrunhamento pesava- sobre os protestantes silenciosos, e mesmo as crianças, assustadas com os úhimos acontecimentos e com os peles-vermelhas, ainda não haviam reencontrado a despreocupação e se.mantinham quietas, interrogando com os olhos os rostos preocupados e tristes dos pais.
O suave balando do navio ancorado, o silêncio exterior, onde se sentia pesar o contínuo nevoeiro, denso e esbranquiçado, que aprisionava o Gouldsboro, contribuíam, depois daqueles dias de tempestade e combate, para aumentar a impressão de sonho desperto que todos sentiam. Abigail sentira a ameaça da manhã a ponto de haver despertado com o coração batendo loucamente. Ainda sob a horrível visão de um pesadelo que acabava de ter, levantara-se impulsivamente e se dirigira a Angélica.
Esta também não pregara o olho, tão atormentada que a hostilidade que sentia entre os antigos companheiros de La Rochelle não a atingia. Permanecia entre eles antes para defendê-los do que para refugiar-se. Seu pensamento ia de Joffrey de Peyrac àqueles por quem não podia impedir-se de se sentir responsável. Inclinada sobre o rosto empalidecido de Laufier, acercara-se dele com a intenção de tranqiiilizá-lo, mas os lábios cerrados da criança não deixavam passar pergunta alguma, assim como os de Severi-na e os de Marcial.
Novamente arrastados nos conflitos inextricáveis dos adultos, as crianças sofriam.
"Será que os arranquei às prisões do rei para que se tornem duplamente órfãos... no fim do mundo? Não, é impossível!..."
Surgindo a sua frente, Abigail cristalizava-lhe os receios. Angélica'ergueu-se e desamarrotou gravemente o vestido. A crise aproximava-se. Teria de enfrentá-la e reunir suas forças para dominar o desespero que ia desencadèar-se.
Atrás de Abigail, outras mulheres se tinham levantado. A de Bréage, de Le Gall, as dos marujos, tímidas e ainda que movidas pela ansiedade, não ousando misturar-se às outras, as grandes burguesas de La Rochelle. As Sras. Mercelot, Manigault e as filhas, que de repente pareciam decidir-se, rumaram para Angélica, o rosto duro.
Não falaram de imediato, mas os olhos fixos de todas repetiam a mesma pergunta formulada pelos lábios de Abigail.
— O que ele vai fazer com eles?
— Por que colocar-se nesse estado, Abigail? - murmurou Angélica, dirigindo-se somente à jovem, cuja atitude a intrigava. - Graças a Deus, seu pai e seu primo se mostraram prudentes, não se envolvendo numa ação que reprovavam. Nada de mal pode ocorrer-lhes.
— Mas Gabriel Berne! - exclamou a jovem, numa voz lancinante. - Dame Angélica, vai deixar que ele morra com indiferença? Esqueceu que ele a recolheu em sua casa e que foi por sua causa... por sua causa...
Havia quase ódio nos olhos enlouquecidos que cravava em Angélica. A máscara serena da suave Abigail também rachava. Angélica entendeu.
- Abigail, você o ama, então?...
A jovem afundou o rosto entre as mãos, com um grito abafado.
- Ah! Sim, eu o amo! Há tantos anos, tantos anos!... Não quero que ele morra, ainda que você deva tomá-lo de mim.
"Como sou tola", pensava Angélica. "Era minha amiga e eu ignorava tudo sobre seu coração. Mas Joffrey entendeu de imediato, assim que viu Abigail na primeira noite no Gouldsboro. Leu-lhe nos olhos que ela estava apaixonada por Mestre Berne."
Abigail ergueu o rosto, onde as lágrimas corriam.
- Dame Angélica, intervenha, por graça, para que o poupem... O que é que se ouve, lá em cima?
Acrescentou, não controlando mais a angústia que se desencadeava nela, varrendo-lhe o pudor:,;
- Escute, esses passos, essas-marretadas. Tenho certeza de que são os preparativos para o enforcamento dele. Ah, se ele morrer eu me matarei!
A mesma imagem saltou aos olhos de todas, que reviveram a surpresa medonha que experimentaram aò descobrir num amanhecer semelhante o corpo do mouro Abdullah balançando na ponta de uma verga do mastro da mezena. Tinham tido a prova de que a justiça do senhor de bordo podia ser rápida e sem apelação. De rostor erguido, os traços tensos, boca entreaberta sobre uma respiração ofegante, elas escutavam os passos apressados acima de suas cabeças.
— Sua imaginação a desorienta, Abigail - disse afinal Angélica, com toda a calma de que era capaz. - Não-podem estar preparando um enforcamento, porque o mastro da mezena foi abatido durante a tempestade.
— Ah, restam muitos mastros e vergas no Gouldsboro para enforcá-los! - exclamou a Sra. Manigault, enfurecida. - Miserável, foi você que nos arrastou, quem nos vendeu a seu amante, seu cúmplice em nossa perda... Aliás, sempre desconfiei de você.
De mão levantada, as faces inflamadas, marchou sobre Angélica. Um olhar imperioso desta deteve-lhe o gesto.
Desde que Angélica reaparecera num vestido novo e com os cabelos soltos sobre os ombros, havia certo respeito que se mesclava ao rancor das mulheres. Descobria-se melhor, sob aquele traje, a nobreza dos gestos e da linguagem de Angélica.
A orgulhosa burguesa inclinou-se de súbito, malgrado seu, diante da grande dama. Ficou com a mão no ar. A Sra. Mercelot segurou-a pelo punho.
- Acalme-se, comadre - disse, puxando-a para trás. - Esqueceu que é só ela que ainda pode alguma coisa para nos tirar disto? Já cometemos tolices suficientes, creia-me...
Os olhos de Angélica se haviam endurecido.
-É verdade - disse, a voz cortante. - Estão erradas de sempre querer atirar sobre os outros a responsabilidade pelos seus erros. Sra. Manigault, vocês mesmas sentiram que o Rescator merecia confiança, mas não souberam reter e convencer o espírito desorientado de seus maridos, cada um visando a objetivos e interesses que talvez não sejam muito menos inconfessáveis que os dos piratas a quem tanto desprezam. Sim, é verdade, eu estava junto do capitão, quando o capturaram. Ameaçaram-no de morte, assassinaram seus companheiros sob seus olhos... Que homem poderia esquecer tais insultos?... E ele menos que ninguém! E vocês o sabem. É por isso que todas vocês têm medo.
A indignação a fazia tremer.
Elas a olhavam e tomavam consciência do desastre. E foi a própria Sra. Manigault quem repetiu, com uma voz vencida, a pergunta atormentada:
- E o que ele vai fazer com eles?
Angélica baixou os olhos. Essa pergunta ela não parara de fazer a si mesma a noite inteira, na paz enganadora daquele fim de motim.
De repente a Sra. Manigault caiu pesadamente de joelhos diante de Angélica. As companheiras, movidas pelo mesmo sentimento, imitaram-na.
- Dame Angélica! Salve nossos homens!...
E estendiam-lhe as mãos postas.
- Apenas você pode fazê-lo - rogou ardentemente Abigail.
- Apenas você conhece os meandros do coração dele e encontrará as palavras que lhe permitirão esquecer a ofensa.
Diante daquela súplica, Angélica sentiu-se empalidecer.
- Estão enganadas, não tenho poder algum sobre ele. Seu coração é intratável.
Mas elas se penduravam a seu vestido.
— Apenas você pode fazê-lo.
— Pode tudo!
— Dame Angélica, piedade, por nossos filhos.
- Não nos abandone. Vá procurar o pirata.
Ela meneou a cabeça, veemente.
— Não compreendem. Não posso fazer nada. Ah, se soubessem! Nada penetra o metal de seu coração.
— Mas por vocêí A paixão que lhe inspira o fará ceder.
— Infelizmente não lhe inspiro paixão alguma.
— Como! - exclamaram em coro. --- Que está dizendo? Jamais houve homem mais fascinado por uma mulher. Quando a olhava, seus olhos brilhavam como fogo.
— Nós todas tínhamos ciúme e ficávamos irritadas - confessou a Sra. Carrère, que se aproximara.
Rodeavam-na e se apegavam a ela com uma fé cega.
— Salve meu pai - suplicou Jenny. - E o nosso chefe. Que será de nós sem ele, nestas terras desconhecidas?
— Estamos muito longe de La Rochelle...
— EstamoJ sozinhas.
— Dame Angélica! Dame Angélica!
Nesse concerto de vozes implprantes, parecia a Angélica ouvir apenas ás vozesfrágeis e tristes de Severina e Laurier, que no entanto não proferiram o menor grito,, o menor pedido. Haviam-se insinuado para junto dela e rodeavam-na com seus bracinho?. Elas oí estreitou contra o peito para não ver-lhes mais os olhinhos "ansiosos.
— Pobres crianças, abandonadas no fim do mundo!
— O que teme, Dame Angélica? A você ele não pode fazer mal - disse Laurier, numa vozinha hesitante.
Ela não podia contar-lhes quantos rancores injuriosos, ainda não formulados, os separavam. A prova era a violenta discussão que acontecera no outro dia, apesar da breve reconciliação.
Não podia contar com a atração física que inspirava ao marido. Pois isso era pouco. Não se acorrentava um Joffrey de Pey-rac pelo poder dos sentidos. Melhor do que qualquer outra ali, ela sabia disso. Havia poucos homens de sua têmpera, capazes ao mesmo tempo de saborear os sentidos do refinamento e desligar-se deles sem esforço. O vigor de seu espírito e o gosto que tinha por gozos mais altos permitiam-lhe dominar seus desejos e renunciar facilmente, caso necessário, aos fugazes prazeres da carne.
O que imaginavam aquelas mulheres virtuosas que, ajoelhadas a sua frente, contavam candidamente com sua sedução para conter a fúria de um chefe do mar cuja tripulação fora conduzida à revolta?
Joffrey de Peyrac não perdoaria!
Cavalheiresco ocasionalmente, segundo as tradições legadas por seus ancestrais, jamais hesitara em derramar sangue quando preciso e em matar quando julgava necessário.
E ela ousaria, ela, apresentar-se perante ele para defender culpados flagrantes, que lhe haviam dirigido uma ofensa mortal?...
A atitude aumentar-lhe-ia a irritação. Ele a expulsaria com palavras cortantes, censurando-a por aliar-se a seus inimigos.
As mulheres e as crianças seguiam ansiosamente sobre o rosto dela os sinais de seu debate íntimo.
- Dame Angélica! Apenas você pode fazê-lo ceder! Enquanto não for tarde demais!... Logo será tarde demais!...
A sensibilidade delas, exarcebada pelas provações sofridas, prevenia-as dos preparativos cujos ruídos não chegavam até ali. Cada minuto passado era um minuto perdido. Elas estremeciam, temendo ver a porta abrir-se. Então fariam que saíssem, que subissem à coberta e... veriam! Seria tarde demais para gritar, suplicar. Seria preciso aceitar o inelutável, tornarem-se mulheres melancólicas, de olhos vazios, como Elvira, a jovem viúva do padeiro, morto no decorrer do motim. Desde então ela permanecia sentada sem reação, os dois filhos agarrados a ela.
Angélica se agitou.
- Sim. Irei - disse a meia voz. - É preciso, mas... oh, meu Deus, como é difícil!
Sentia-se sem poder algum, de mãos vazias, tendo quebrado por si mesma o frágil elo reatado entre eles, quando se recusara a ficar junto dele. "Fica comigo", murmurara ele. Ela gritara "não" e fugira. Ele não era homem de perdoar. No entanto, ela repetiu:
- Irei! - e afastou-as. - Deixem-me passar. ,.
Erguendo-se rapidamente, as companheiras comprimiram-se ao redor dela, em silêncio. Abigail atirou-lhe a capa sobre,os ombros. A Sra. Manigault apertou-lhe as. mãos. Acompanharam-na até a porta.
Duas sentinelas, marujos do Gouldsboro, vigiavam a soleira. Hesitaram ao ver Angélica, mas, lembrando-se de que ela gozava dos favores do amo, deixarám-na afastar-se sem retê-la.
Ela subiu a passos lentos as escadas que levavam à popa. Aqueles degraus de madeira, viscosos, impregnados do sal das tempestades, do sangue dos combates, hayiam-síftornado tão familiares, para ela, que ela os vencia sem.sé dar conta. O mesmo nevoeiro continuava a envolver o navio, seippre ancorado na baía invisível. Naquele dia estava mais leve, mas de uma brancura de leite. Reflexos rosados e súbitas estrelas de ouro cintilavam na neblina, e Angélica os olhava sem ver.
Chocou-se contra um homem de grande estatura, vestido com um uniforme de passamanarias douradas e com um belo feltro emplumado-na cabeça. De início ela o confundiu com o marido e ficou paralisada.. Mas o homem a saudou, muito galantemente.
- Senhora, apresento-mí: Rolando d'Urville, filho mais no
vo da casa<le Valognes, gentil-homem normando.
A voz francesa, a civilidade das maneiras, apesar de um rosto bronzeado de pirata, tinham algo de tranquilizador. Perguntou-lhe se desejava ver o Conde de Peyrac e ofereceu-se para acompanhá-la até os apartamentos dele. Angélica aquiesceu. Tinha medo de topar cara a cara com um dos guerreiros índios.
- Não tem nada a temer - disse Rolando d'Urville. - Embora se trate de guerreiros terríveis no combate, uma vez que deponham as armas são gentis e cheios de dignidade. É para ir saudar o grande cacique Massaswa deles que o Sr. de Peyrac se prepara e vai à terra... Mas o que tem?
Chegando ao balcão do castelo de popa, Angélica levantara os olhos.
Vira balançar pés descalços, molemente, entre céu e terra, do lado do grande mastro.
- Ah, sim, enforcados - disse d'Urville, que lhe seguira o olhar. - Não é nada, alguns dos amotinados espanhóis que, parece, fizeram nosso chefe e seus homen? passar um mau bocado durante a viagem de regresso. Não se impressione, senhora. A justiça ao mar, ou em nossas regiões selvagens, deve ser rápida e sem apelação. Esses miseráveis não tinham importância alguma.
Angélica teve vontade de perguntar o que fora feito dos outros, os huguenotes, mas não pôde.
Ao penetrar no salão do tombadilho, estava descomposta. Teve de apoiar-se à porta, depois que esta foi fechada pelo gentil-homem normando que a introduzira, e permaneceu um momento para se orientar na penumbra. No entanto, aquele aposento, onde as fragrâncias do luxo oriental lutavam com o odor marinho invasor, era-lhe familiar.
Quantas cenas, quantos dramas se haviam desenrolado ali desde a primeira noite de La Rochelle, quando o Capitão Jason a conduzira ao Rescator!
Não viu logo o marido. Quando se recompôs, procurou-o com os olhos e viu-o em pé, no fundo do aposento, perto da grande janela onde o nevoeiro cambiante colava suas nuvens evanescen-tes. A claridade densa mas extremamente branca e luminosa que filtrava pelas vidraças iluminava sobre uma mesa um cofrinho de onde Joffrey de Peyrac havia retirado jóias diversas, pérolas e diamantes.
O Sr. d'Urville dissera que o chefe do Gouldsboro preparava-se para receber em terra um cacique de renome. Sem dúvida fora prevendo a cerimónia que naquele dia ele vestira um traje de um esplendor particular. Angélica imaginou-se transportada aos dias antigos de festas na corte, ao perceber a capa de chamalote vermelho bordada com grandes flores de diamantes, o gibão e os calções de veludo azul-escuro, sem adornos mas de um corte refinado e que dava à longa silhueta um ar cheio de sedução. Coxo outrora, não tivera ainda assim a reputação de ser um dos senhores mais elegantes de seu tempo? Suas botas espanholas, muito altas, eram de couro vermelho-escuro, assim como as luvas, pousadas sobre a mesa, e o cinturão que sustentava o estojo de sua pistola e de seu punhal.
O único detalhe que poderia diferenciá-lo de um grão-senhor da corte era que não portava espada. O que lhe brilhava no lado do corpo era a coronha de prata incrustada de nácar da pistola.
Ela o viu deslizar dois anéis pelos dedos e prender ao pescoço, sobre o gibão, um cordão com placas de ouro e diamantes, tal e qual usavam, ainda sob Luís XIII, os grão-senhores guerreiros que desdenhavam a couraça, tornada inútil, e a transformavam em jóia.
Estava meio de costas para ela. Ouvira-a entrar? Sabia que ela estava ali? Finalmente fechou o cofrinho e a encarou.
Nos momentos mais graves, há pensamentos impertinentes que vêm à mente. Ela disse a si mesma, por exemplo, que teria de acostumar-se àquele colar de barba, que ele deixara crescer e que lhe dava a aparência de um sarraceno. '.'
— Vim... - começou ela.
— Estou vendo.
Não a ajudava e fitava-a sem amenidade.
— Joffrey, o que vou fazer deles?-
— E isso o- que a preocupa?
Ela inclinou ,a cabeça em silêncio, a garganta estrangulada.
- Angélica, você vem de La Rochelle, navegou no Mediterrâneo e ouvi dizer que. teve interesse em. assuntos de comércio naval. Conhece, portanto, às leis do mar. Que destino se reserva àqueles que, durante a navegação, se opõem à disciplina do capitão e atentam-contra sua vida?... A forca... Sem julgamento. Assim, vou enforcá-los.
Disse isso com'calma. Mas a decisão era irrevogável.
Angélica sentiu-se invadir por um grande frio, uma vertigem. "E impossível que isso aconteça", pensou. "Farei qualquer coisa para evitá-lo, hei de me arrastar a seus pés..."
Atravessou o aposento e, antes que ele pudesse prever-lhe o gesto, estava de joelhos a sua frente, rodeando-o com os braços.
— Joffrey, poupe-os, rogo-lhe, meu bem-amado, rogo-lhe... Peço-o menos por mim do que por nós. Tenho medo, tremo ante a ideia de que tal ato altere o amor que sinto por você... que eu não possa jamais esquecer que mão os enviou à morte... Haveria entre nós o sangue de meus amigos.
— Já há o sangue dos meus: Jason, meu fiel companheiro de dez anos, o velho Abd-al-Mechrat, cruelmente assassinado por eles...
Sua voz contida vibrava de cólera e seus olhos faiscavam.
- Seu pedido me insulta, Angélica, e receio que seja levada a fazê-lo por um apego desprezível por um desses homens que me traíram, a mim, seu marido, a quem pretende amar.
- Não, não, e você bem o sabe. Amo apenas a você... sempre amei apenas a você... a ponto de morrer por isso... de perder minha vida por você... de perder meu coração longe de você...
Ele quis afastá-la, mas não podia mostrar-se brutal, pois ela se lhe agarrava com uma força decuplicada e ele lhe sentia o calor dos braços, da testa.
Imóvel, ele olhava para além dela, recusando-se a encontrar-lhe os olhos implorantes, mas não podendo resistir à inflexão de sua voz emocionante. De todas as palavras que ela pronunciara, uma o queimava: "Meu bem-amado". Ele, que se imaginava armado para não ceder, fora atingido por aquele apelo inesperado e pelo gesto daquela orgulhosa, ajoelhando-se diante dele.
— Eu sei - dizia ela com voz abafada -, a ação deles merece a morte.
— Então não entendo em absoluto, Angélica, por que você se obstina em interceder em favor deles, se é verdade que não lhes aprova a traição, nem por que se preocupa a esse ponto com o destino deles.
— E eu mesma o sei? Sinto-me ligada a eles apesar de seus erros e de sua traição. Talvez porque me tenham salvado outrora e porque também os salvei, ajudando-os a deixar La Rochelle, onde estavam condenados. Vivi entre eles e comi de seu pão. Eu estava tão miserável quando Mestre Berne me ofereceu asilo em sua casa! Se você soubesse... Não havia uma árvore, um arbusto na terra da minha infância que não escondesse um inimigo empenhado em destruir-me. Eu era um animal encurralado, sem mercê, vendido por todos...
Com uma pressão da mão, ele deteve a confidência que se esboçava.
- O que importa o que já não existe? - disse com dureza. - Os bons atos do passado não podem fazer esquecer a iniquidade do presente. Você é uma mulher. Não parece compreender que os homens pelos quais sou responsável a bordo de meu navio ou nas terras que abordamos não têm outra lei senão a que lhes imponho e que os faço respeitar. Disciplina e justiça devem
reinar, senão a anarquia se estabelecerá. Nada de grande, de durável, poderá ser construído, além do que eu perderia inutilmente a vida. Aqui rio lugar onde nos encontramos, a fraqueza é impossível.
— Não se trata de fraqueza,, mas de misericórdia.
— Perigosa nuança! Seu altruísmo' á desorienta e lhe convém mal.
— E como gostaria de haver-me encontrado?! - exclamou ela, com um sobressalto de revolta. - Dura? Má? Implacável? Sim, há alguns anos eu não era mais do que ódio. Mas agora não posso mais... Não "quero mais o mal, Joffrey. O mal é a morte. Eu amo a vida.
Ele desceu-sobre-èla seu olhar altivo.
O grito que "ela acabava.de emitir derrubara-lhe as últimas defesas.
Entre as peripécias dos-acontecimentos recentes, a lembrança de Angélica não o abandonara, representando o tempo todo a seu espírito o mistério daquela a quem amava. Assim, não havia nela nenvfingimento nem cálculo. Com a habitual lógica feminina, tão particular, mas tão justa, ela acabava de colocá-lo diante da realidade e pedia-lhe que se pronunciasse. De fato, tê-la-ia desejado ambiciosa, má, asperamente egoísta, como tantas mulheres cuja vida se consagra apenas a elas mesmas?... O que faria ele hoje de uma marquesa em trajes de cerimónia, caprichosa e frívola, ele, o aventureiro, que mais uma vez se preparava para atirar na balança os dados de sua fortuna, avançando por terras inexploradas?
Que lugar dar nessa vida nova à Angélica do passado, à encantadora adolescente que abria os olhos novos sobre um século cheio de sedução e ardia por experimentar suas armas de mulher, ou àquela que, reinando sobre o coração de um rei, fizera do mundo pervertido da corte seu campo de açâo, o teatro de suas façanhas?
A terra selvagem e rude para a qual a levava não necessitava de corações mesquinhos e vazios. Precisava de devotamento. Daquela qualidade de devotamento que lia nos olhos alçados para ele. Expressão surpreendente, havia que admitir, para um olhar que dominara tantos dos grandes deste mundo, a ponto de enfeitiçá-los. Mas Angélica, por caminhos misteriosos, deixando aos arbustos da estrada os sete véus que lhe envolviam a alma, chegara até ele.
Ela o fitava desvairadamente, esperando-lhe o veredicto, sem saber o que" ele pensava.
"Os mais belos olhos dó mundo!", pensava ele. "Por olhos assim... trinta e cinco mil piastras não foi caro. Um rei sucumbiu à luz deles... Um sultão sanguinário inclinou-se diante de seu poder."
Pousou-lhe a mão sobre a testa, como que para escapar ao apelo daqueles olhos, depois lhe acariciou lentamente os cabelos. Os estragos do tempo pareciam haver branqueado aquela cabeleira apenas para dar escrínio novo ao brilho daqueles olhos verdes. Fluido adorno de ouro claro e de nácar, que as deusas do Olimpo teriam invejado.
Secretamente ele se exaltou ao ver que ela continuava bela, mesmo na desordem da inquietação, assim como a achara bela na da tempestade ou na do amor. Pois sua beleza já não era daquelas que devem a perfeição aos artifícios da coqueteria. A simplicidade convinha a seu novo esplendor, feito ao mesmo tempo da serenidade e de uma surpreendente paixão pela vida.
Ele levara tanto tempo para descobri-la, aceitá-la! Sua experiência com mulheres não lhe servia de nada para entender a esta, pois nunca encontrara outra igual. Não era porque ela caíra baixo demais que ele não pudera reconhecê-la, mas sim porque subira muito. Tudo se esclarecia agora.
Ela podia apresentar-se vestida de fustão grosseiro, em andrajos, descabelada, flagelada pelo mar ou ansiosa e marcada pela fadiga como hoje, ou nua, fraca e entregue, como na outra noite quando ele a estreitara nos braços e ela chorava sem saber, continuava sempre bela, bela como a fonte sobre a qual se pode debruçar para estancar a sede.
E nunca mais ele poderia ser um homem só. Não, isso nunca!
Viver sem ela seria uma provação acima de suas forças. Senti-la separada dele, na outra extremidade do navio, já lhe era intolerável. Vê-la tremer a seus pés, hoje, o transtornava.
Deus sabia que não era por prazer que ele ia enforcar os protestantes "dela". Homens traiçoeiros, sim, mas corajosos, resistentes e, no final das contas, dignos de rrtelhor sorte. No entanto, a condenação se impunha. No decorrer de sua vida perigosa, fora pago para aprender que a fraqueza'é causa dos maiores fracassos, que acarreta mil desastres. Decepar a tempo um membro apodrecido salva vidas humanas...
Em meio ao silêncio, Angélica esperava.
A mão sobre seus cabelos devolvia-lhe a esperança, mas continuava ajoelhada, sabendo que não o convencera e que, na medida em que o_seduzisse, ele lhe resistiria, desconfiaria e, quem sabe, mostrar-se-ta mais inexorável.
Que outro árgurijento achar?... Seu espírito errava num deserto onde a visão dos rocheleses pendurados às vergas do grande mastro se confundia com a "da Pedra das Fadas, descoberta outrora na manhã gelada da floresta de Nieul. Todos aqueles corpos balançando, girando, sem vida, mudos, rodeavam-na numa dança vertiginosa e macabra. E entre eles via os rostos cavos de Laurier, de*Jeremias, e o de Severina, trágica e pálida sob a pequena coifa.
Quando falou, sua voz estava entrecortada pelas batidas transtornadas de seu coração.
- Não me prive, Joffrey, da única coisa que me resta... sentir-me necessária a crianças ameaçadas. É tudo minha culpa. Quis salvá-las de um destino pior do que a morte. Matavam as almas. Outrora, em La Rochelle, elas viram os pais humilhados, perseguidos, molestados por mil afrontas, atirados na prisão, acorrentados... Seria preciso que eu as arrastasse tão longe, até o fim do mundo, para que os vissem ignominiosamente enforcados?... Que derrocada para elas!... Não me prive, Joffrey!... Não poderia suportar-lhes a dor. Ajudar essas jovens existências a triunfar sobre o destino fatal foi uma razão de viver para mim... Você a arranca de mim?... Sou tão rica assim, então?... Além dessa esperança de salvá-los... de levá-los às verdes pastagens prometidas à sua crença ingénua, o que me resta?... Perdi tudo... minhas terras, minha fortuna... minha posição... meu nome, minha honra, meus filhos... você... seu amor... Já não me resta nada... exceto uma criança maldita.
Um soluço estrangulou-lhe a garganta. Ela mordeu os lábios.
Os dedos de Joffrey de Peyrac crispavam-se sobre sua nuca a ponto de machucá-la.
— Não pretenda enterneçer-me com lágrimas.
— Eu sei - murmurou ela -, sou inábil...
"Oh, não, hábil demais, ao contrário!", pensou ele. Não podia suportar vê-la chorar. Seu coração se dilacerava enquanto percebia o frémito convulsivo que lhe sacudia os ombros.
- Levante-se - disse afinal -, levante-se... não posso suportar vê-la assim diante de mim.
Ela obedeceu, estava cansada demais para resistir. Ele soltou as mãos que ela crispava à volta dele. Estavam geladas. Reteve-as um momento entre as suas. Depois, soltando-as, pôs-se a andar de um lado para outro. Angélica observava-o. Ele cruzou com a expressão torturada dos olhos dela, que lhe seguiam a marcha. Os cílios estavam úmidos, as pálpebras pisadas, as faces lavadas de lágrimas.
Naquele momento ele a amou com tal violência que imaginou não ser capaz de resistir ao impulso de estreitá-la nos braços, cobrindo-a de beijos e chamando-a baixinho, com paixão: Angélica! Angélica!, minha alma. Não queria mais que ela tremesse a sua frente, no entanto ela o desafiara outrora e fora com dificuldade que lhe perdoara.
Como podia ela ser ora tão forte, ora tão fraca, tão arrogante e tão humilde, tão dura e tão meiga?... Era o segredo de seu encanto. Havia que sucumbir-lhe ou aceitar viver numa solidão árida que nenhuma outra luz visitaria.
- Sente-se, senhora abadessa - disse bruscamente -, e diga-me então, já que mais uma vez tenta colocar-me numa situação impossível, que solução propõe. Deve-se esperar que meu navio, a praia e a base sejam em breve o teatro de novas altercações sangrentas entre seus amigos irascíveis, meus homens, os índios, os caçadores, os mercenários espanhóis e toda a fauna do Down East?
A leve ironia de suas palavras deu a Angélica um alívio inexprimível. Ela deixou-se cair numa cadeira, soltando um profundo suspiro.
- Não imagine que a partida está ganha - disse o conde. - Simplesmente lhe faço uma pergunta. O que fazer com eles? Se não servem pelo menos de exemplo a qXiem se sentir tentado a imitá-los! Libertados, aguardarão o momento de tomar vingança. Ora, não tenho o que fazer com'elementos hostis e perigosos entre nós, numa terra que já está cheia de emboscadas... Claro, poderia desembaraçar-me deles da maneira que previam para nós, abandonando-os com as famílias num ponto deserto da costa, na direção norte, por exemplo. Seria destiná-los a uma morte tão certa quanto na forca." Quanto a levá:los devotamente até as ilhas, agradecendo-lhes pela traição, está fora de cogitação, mesmo para agradá-laJEu arruinaria meu crédito, não apenas junto de meus homens, mas "aos olhos de, todo o novo continente. Aqui não se perdoa aos imbecis.
Angélica refletia; de cabeça baixa."
— Pretendia propor-lhes colonizar uma parte de seus territórios. Por que desistir disso?
— Por quê?... "Colocar armas nas mãos daqueles que se declararam meusinimigos? Que garantia teria eu da lealdade deles para comigo?.
— O interesse da tarefa que lhes oferece. Você me disse no outro dia que eles ganhariam mais dinheiro nisso do que em qualquer comércio das ilhas da América. É verdade?
— E verdade. Mas aqui ainda não há nada de estabelecido. Está tudo por criar. Um porto, uma cidade, um comércio.
— Não foi por isso que lhe ocorreu a ideia de escolher a eles? Sabia, sem dúvida alguma, que os huguenotes fazem maravilhas quando se trata de apegar-se a terras novas. Disseram-me que protestantes ingleses, que se faziam chamar peregrinos, fundaram recentemente belas cidades numa costa até então deserta e selvagem. Os rocheleses farão o mesmo.
— Não discordo. Mas a mentalidade deles, hostil e singular, não me dá bons augúrios para seu comportamento futuro.
— Essa mentalidade também pode representar um indício de êxito. Certamente não é fácil entender-se com eles, mas são bons
comerciantes e além disso corajosos, inteligentes. Apenas a maneira como conceberam seu plano para dominar um navio de trezentas toneladas, eles, que ao partirem não tinham nada, nem armas, nem ouro, e mal contavam com experiência marítima, já não é notável? Joffrey de Peyrac caiu na_ risada.
- É pedir-me muita grandeza de alma querer que eu o reconheça.
- Mas você é capaz de todas as grandezas - disse ela com ardor.
Ele estacou, para se deter diante dela e contemplá-la.
A admiração e o apego que lia nos olhos de Angélica não eram absolutamente fingidos. Era o olhar de sua juventude quando, sem reservas, ela fazia a confissão de um amor ardente.
Ficou sabendo que para ela não existia na Terra outro homem senão ele.
Como pudera duvidar? A alegria atingiu-o de súbito. Mal ouviu quando Angélica prosseguiu com sua defesa de causa:
— Dou a impressão de perdoar facilmente um ato que lhe toca o coração, Joffrey, e cujas consequências são irreparáveis, em vista da morte de seus amigos fiéis. A ingratidão de que se deu prova para com você me revolta. No entanto continuarei a lutar para que tudo isso não resulte em morte, mas em vida. Por vezes há animosidades irredutíveis. Este caso não é assim. Somos todos seres de boa vontade. Simplesmente fomos vítimas de um mal-entendido, e eu me sentiria duplamente culpada se não tentasse esclarecê-lo.
— O que está querendo dizer?
— Joffrey, quando fui procurá-lo em La Rochelle, ignorando sua identidade e suplicando-lhe que recebesse a bordo essas pessoas que seriam presas em algumas horas, você, em primeiro lugar, recusou, depois, após me haver interrogado acerca da profissão delas, aceitou. Você teve, então, a ideia de trazê-las como colonos. Estou convencida de que nessa decisão que tomou não havia desejo algum de causar-lhes mal, muito ao contrário: seu cálculo, ainda que servindo a seus interesses, era oferecer a esses exilados uma oportunidade inesperada.
— Sim, isso é verdade...
— Por que, então, não os pôs logo a par de suas intenções? Conversas amigáveis teriam dissipado a desconfiança espontânea que podia inspirar-lhes. Nicolau Perrot me dizia que não há seres no mundo cuja língua você não consiga, compreender e que soube fazer amigos seus tanto JOS índios qttanto os caçadores ou os peregrinos instalados na colinas da Nova Inglaterra...
— Sem dúvida esses rochelese's me inspiraram uma hostilidade imediata, inteira e recíproca.
— Por quê?
— Por você.
— Por mim?
— De fato. Seu raciocínio preciso me esclarece hoje acerca da antipatia que nos opôs de imediato. Imagina isso?! - exclamou ele, animande-se. -Eu a via entre eles, como que da família. Como não desconfia? de-um. amante entre eles e, pior ainda, de um marido? Além djsso, descobria que você tinha uma filha. O pai não estaria a bordo? Via-á" ternamente debruçada sobre um ferido cuja sorte a preocupava a ponto de fazê-la perder todo o pressentimento em relação a mim.
— Joffrèy, ele acabava de me salvar a vida!
— E ainda por„cima me anunciou seu casamento com ele!... Eu tentava trazê-la a mim, sem coragem de tirar a máscara enquanto lhe sentissse o espírito distante. Mas como não odiá-los, a esses puritanos rígidos e desconfiados que a enfeitiçaram? Quanto a eles, tudo em mim estava pronto para sentir ciúme deles, mas acrescentemos a isso a fúria enciumada de Berne, que você tornou louco de amor.
— Quem teria imaginado? - disse Angélica, estarrecida. - Um homem tão calmo, tão ponderado!... Que maldição existe em mim para dividir assim os homens?...
- A beleza de Helena provocou a guerra de Tróia.
— Joffrey, não me diga que sou a causa de tantos males terríveis.
— As mulheres são a causa dos maiores desastres, dos mais irreparáveis, dos mais inexplicáveis. Não"se diz "cherchez lafem-me", "procure a mulher"?
Ergueu-lhe o queixo e passou-lhe levemente a mão sobre o rosto, como que para apagar o pesar.
- Das maiores felicidades também, às vezes. No fundo compreendo Berne por haver querido matar-me. Só lhe perdoo porque o sinto vencido, não tanto pelos tomahawks dos meus moicanos quanto pela sua escolha... Enquanto eu duvidasse do resultado dessa escolha, seria vão dirigir-lhe a minha clemência. Eis o que valem os homens, minha cara. Não muito... Tratemos, então, de reparar os erros-em que, admito, cada um de nós tem sua parte. Amanhã todos os passageiros serão levados à terra de canoa. Manigault, Berne e outros nos acompanharão, acorrentados e sob vigilância. Expor-lhes-ei o que espero deles. Caso aceitem, farei com que jurem lealdade sobre a Bíblia... penso que não ousarão infringir tal juramento.
Pegou o chapéu de sobre a mesa.
- Está satisfeita?
Angélica não respondeu. Ainda não conseguia crer em sua vitória. A cabeça lhe girava.
Levantou-se e acompanhou-o até a porta. Ali, num gesto espontâneo, pousou a mão sobre o pulso dele.
- E se não aceitarem? Se você não conseguir convencê-los? Se a vingança deles for mais forte?
Ele desviou os olhos. Depois, dando de ombros:
- Emprestamo-lhes um guia índio, cavalos, carroças e armase eles que se enforquem em outro lugar... que vão para o diabo...
até Plymouth ou Boston, onde seus correligionários os receberão...
CAPÍTULO VIII
As ilhas mágicas
Sobre o tombadilho, gs ondas cristalinas, levadas através da bruma, traziam'a Angélica os gritos longínquos da terra. Cantos ou chamados?" O mundo desconhecido que se adivinhava a pouca distância era aquele onde Joffrey de Peyrac lançara âncora e escolhera viver. Pôr essa razão Angélica já se sentia apegada a ele.
Aguçava a'ouvido, enquanto a invadia uma exaltação que lhe sobrepujavam fadiga. Perdera o hábito da palavra "felicidade", senão teria reconhecido a natureza do que sentia. Era fugidio, frágil, mas parecia-lhe que sua alma repousava de seus combates num sentimento de indescritível plenitude. A hora era capital. Passaria, mas permaneceria em suas recordações, aparecendo com sua luz ao longo do caminho de seu destino.
Assim vivia Angélica à espera entre o nevoeiro. Estava sozinha com Honorina sobre a coberta, na popa para onde subira depois de mandar levar uma mensagem de consolo às mulheres ansiosas.
Precisava ficar sozinha. Havia coisas demais agitando-se dentro dela. Era a opressão da infelicidade que a abandonava.
Joffrey de Peyrac mal se afastara e ela já lhe espreitava o regresso. Espreitava-lhe a voz. Espreitava o murmúrio da água resvalando dos remos e que anunciaria a aproximação de uma canoa, talvez a dele; espreitava-lhe o andar. Tinha vontade de estar a seu lado, acompanhá-lo com os olhos, ouvi-lo. Compartilhar da intimidade de sua vida, de suas preocupações, seus sonhos, suas ambições. De estar à sombra dele, estar entre seus braços.
De súbito, se pôs a rir.
- Apaixonada! Apaixonada! Estou terrivelmente apaixonada.
A alegria de amar enchia-lhe o coração. Tinha vontade de correr cantando sobre colinas. Mas ainda precisava esperar no nevoeiro à soleira do Éden, prisioneira do navio que a fizera cruzar o mar das trevas. Então revivia cada um dos gestos que ele tivera para com ela, cada uma das palavras que dissera. Sua mão nervosa e elegante acariciando-lhe os cabelos, sua voz abafada e como que subitamente enternecida, "Sente-se, senhora abadessa..."
"Ele não teria cedido tão depressa à minha súplica, tão completamente se não me amasse.... Agraciou-os! Lançou isso à minha frente como um presente principesco e eu o deixei afastar-se... como outrora, quando ele me oferecia com desenvoltura trajes de rainha e eu não ousava agradecer-lhe. E estranho?... Ele sempre me inspirou certo receio. Talvez porque seja tão diferente dos outros homens... Talvez porque me sinta fraca diante dele... Tenho medo dè deixar-me dominar? Mas que importa que ele me domine? Sou mulher... sou sua mulher."
O vínculo do casamento, acorrentando-os, permitira-lhes que se reencontrassem. Apesar do que chamava de traições dela, o Conde de Peyrac não podia desinteressar-se inteiramente daquela que era sua esposa. Correra em seu socorro em Cândia, depois, quando Osman Ferradji o avisou, logo tomara a rota de Miquenez. Fora também para socorrê-la que seguira para La Rochelle...
Angélica teve um sobressalto. Agora estava certa de que não fora o acaso que conduzira o Conde de Peyrac até sob os muros de La Rochelle. Ele sabia que ela estava na cidade. Avisado por quem?... Ela considerou várias hipóteses e se deteve na que lhe pareceu mais plausível: as tagarelices do Sr. Rochat. Tudo se transmite nesses grandes portos abertos para o Oriente e para o Ocidente.
"Ele sempre procurou ajudar-me quando me sabia em dificuldade. Portanto, é porque gostava de mim, enquanto eu só lhe causei aborrecimentos..."
- Mamãe, você está tremendo como quando sonha - disse Honorina em tom de censura.
Não parecia absolutamente contente.
- Você não pode compreender - disse Angélica -, é tão maravilhoso!...
Honorina fez um muxoxo qúe provava que não era da mesma opinião. Angélica acariciou-lhe os longos cabelos ruivos com um remorso obscuro. Honorina sempre adivinhava que, quando as coisas se acomodavam entre o Homem Negro e sua mãe, sua segurança ficava ameaçada. A mãe a esquecia ou se aborrecia com sua presença... Por quê?
- Não tema nada -disse Angélica a meia voz -, não a abandonarei, minha criança, enquanto você precisar de mim, não lhe faltarei. Teu cpraçãozinho também conhece ó tormento. Mas estarei sempre perto de você.
E, acariciando-lhe a cabeça redonda, reacendia aquela amizade de ambas, mãe e filha, tão misteriosa que elas próprias não poderiam definir a natureza desse vínculo indestrutível.
- Vou _dizer-lhe uma coisa, Honorina, minha querida. Você foi minha-preferida. Inspirou-me um amor maior do que o que senti por meus outros filhos. Parece-me que foi você, infelizmente, quem me ensinou "a ser mãe. Eu não deveria confessá-lo, mas quero que saiba assim mesmo. Porque você" não recebeu nada ao nascer.
Falava baixinho. Honorina não lhe compreendia as palavras, mas adivinhava-as pelo som da voz.
Uma sombra caíra sobre a felicidade de Angélica. Havia outras que ainda não tinham sido afastadas: os filhos que ele lhe censurava por haver defendido mal, suas infidelidades, a mais grave das quais, porém, não lhe era imputável.
Seria preciso que um dia tivesse a coragem de dizer ao marido que nunca fora amante do rei.
Que jamais amara, e com razão, aquele que fora o pai de Honorina.
Seria preciso falar de Florimond também. Cabia a eles, os pais, tentar esconder o rapazinho que um dia fugira do Plessis em tempo, felizmente, de escapar à morte. Seria preciso ter a coragem de evocar horas terríveis. E se lhe falasse de Cantor? Isso causava dor! Por que ele, Joffrey, que sempre sabia o que fazia, não soubera, ao atacar a frota real, que seu filho estava a bordo de uma das galeras? Fora a única ação de guerra que ele jamais empreendera diretamente contra o rei da França... A má sorte o quisera... A má sorte? Ou que outro motivo?
Como há pouco, quando pensara em Rochat, Angélica teve a impressão de que ia descobrir algo de elementar, que deveria ser-lhe evidente há muito tempo.
Seu espírito vacilou. Ergueu os olhos para o céu e ao mesmo tempo sentiu um medo primitivo. A luminosidade, que não parara de aumentar, tornava-se violeta, depois vermelha, para se fixar num alaranjado insustentável. A luz parecia difusa, mas irradiava-se de toda a abóbada celeste simultaneamente.
Inconscientemente Angélica ergueu mais a cabeça. Uma enorme bola alaranjada abriu-se como um cogumelo acima dela. Sentiu um calor que lhe pareceu atroz e a fez baixar a nuca.
Honorina estendeu o dedo.
— Mamãe, o sol!... Angélica quase riu. .
— Era só o sol.
Mas seu pânico não era ridículo. Aquele sol era realmente estranho. Passava a vermelho e ficava enorme, se bem que alto no céu. Estava rodeado como que de uma série de cortinas de cores diferentes, como telas peroladas e translúcidas, ligeiramente curvas e dispostas verticalmente umas atrás das outras.
O calor do astro se fazia sentir em contraste com um frio súbito, trazido pelo vento. Depois de acreditar que recebia o fogo do céu na cabeça, Angélica sentiu-se transformada em estátua de gelo. Envolveu Honorina em-seu xale e disse:
- Entremos depressa. Mas não se moveu. A natureza do es-
pétaculo que tinha diante dos olhos a mantinha pregada ao chão.
As cortinas de brumas policrônicas fundiam-se e se dissolviam como caem ou se afastam véus de musselina.
Ela imaginou perceber um monstro de esmeralda que aparecia, alongava-se, tornava-se enorme, projetava por toda parte ten-táculos imensos e garras de um rosado ardente. E de repente deixou de haver nevoeiro. Varrido por um sopro gelado, o último véu caíra. O ar purificado vibrava como uma concha. O sol empalidecido conservava sua auréola matizada num céu de azuis diversos, mas, abaixo dele, o que Angélica tomara por um monstro de esmeralda revelava-se como uma paisagem de colinas cobertas de uma espessa floresta que se esíendia^até as extremidades dos cabos e dos promontórios múltiplos orlados de praia de areia vermelha e rosa.
A floresta estava envernizada e brilhava muito, mesmo de longe, cores vivas e extravagantes, pontilhadas do negro dos abetos, do azul-turquesa de pinheiros enormes que erguiam sua copa, do vermelho-ouro de certos arbustos anunciando o outono. Já! Quando nem se vira a.verão anunciar-se. Por toda a volta da baía, e mais além, no mar de uma intensa cor-tle lavanda, ilhas bordeadas de rosa alongavam seus domos folhudos. Davam a impressão de um povo-de esqualos, defendendo a costa admirável da cobiça dos homens corri os perigos de suas, pontas rochosas. Enfiar-se por entre elas para atingir o refúgio onde o navio oscilava parecia obra impossível.
Depois de.dias de neblina lívida que tinham vivido, a vivacidade de tanta;cor-cantava aos olhos, era uma aparição como só se imagina possível nos sonhos, e era tal o fascínio de Angélica ante a vista que não ouviu o retorno da chalupa.
Joffrey de Peyrac estava atrás dela. Observou-a e leu-lhe o encantamento no rosto. Era decididamente uma mulher de boa raça. O frio e a selvageria do lugar a emocionavam menos do que a beleza sobre-humana.
Quando ela voltou os olhos para ele, Joffrey fez um gesto largo.
— Queria ilhas, Angélica. Ei-las.
— Como se chama este país? - perguntou ela.
— Gouldsboro.
O PAÍS DO ARCO-IRIS
CAPÍTULO IX
O destino dos rocheleses
— Estamos nas Américas? - perguntou um dos jovens Carrère.
— Na verdade não tenho a menor ideia, mas acho que sim - disse Marcial.
— Não se parece com o que o Pastor Rochêfort escrevia.
— Mas é mais bonito.
As vozes das crianças eram as únicas a ouvir-se enquanto, num silêncio pesado,' os passageiros agrupavam-se na coberta.
— Vamos descer à terra?...
— Sim!
— Finalmente!
Olharam todos para a floresta. Devido ao nevoeiro intermitente e variando em intensidade, era difícil avaliar a distância. Angélica ficaria sabendo oportunamente que era raro o panorama desvendar-se inteiramente, como tivera o privilégio de ver, numa visão que não esqueceria nunca. O mais frequente era a neblina erguer-se em trechos, conservando sempre alguns pontos invisíveis e secretos para despertar a inquietação ou a curiosidade.
O tempo, porém, continuava claro o bastante para que se pudesse distinguir a costa e o enxame de canoas pintadas de vermelho, marrom e branco, que convergiam da praia para o navio.
Por outro lado, a existência do alto-mar materializava-se sobretudo pelo ruído furioso da ressaca, na barra e na passagem estreita e acorrentada que fechava a baía.
Foi nessa direção que os olhos de Manigault, Berne e dos companheiros se voltaram quando emergiram do porão. Do lado da barra jorrava um muro de água ribombante e ofegante, e esse monstro de -espuma apocalíptico simbolizava para os prisioneiros a impossibilidade de jamais se evadirem de um refúgio tão bem guardado.
No entanto, avançaram a passo firme. Angélica entendeu que eles ainda não sabiam por que lhes tinham retirado os ferros e levado para cima. O Rescator prolongava sua vingança mantendo-os na incerteza mortal para os nervos, e os prisioneiros deviam ter interpretado como preparativos fúnebres os cuidados com que dois marujos calados os cercaram. De fato, tinham-lhes levado os objetos necessários para que se barbeassem, levaram-lhes roupas de baixo e seus trajes habituais, bem gastos, mas limpos e passados.
Quando apareceram, tinham quase recuperado o aspecto de outrora. Angélica notou com emoção que não traziam correntes, conforme lhe anunciara o marido. Seu coração voltou-se irresistivelmente para ele, pois sabia por que ele lhes evitava essa humilhação diante dos filhos.
Era por ela, para completar-lhe a satisfação! Procurou-o com os olhos. Ele acabava de aparecer, conforme seu hábito, subitamente, usando ainda a grande capa vermelha que vestira na véspera. E as plumas vermelhas e pretas de seu chapéu ajuntavam-se àquele fremir de plumas que se agitavam por toda parte. Os índios subiam a bordo, em silêncio, com uma agilidade de macacos. Estavam em todo lado. Seu mutismo e o olhar enigmático de seus olhos oblíquos oprimiam.
"Um dia vi um homem vermelho no Pont Neuf, lembrou-se Angélica. "Um velho marujo exibia-o como uma curiosidade. Naquela altura não pensei que também eu atracaria no novo continente e me veria entre eles, talvez dependendo deles."
De repente os índios agarraram as crianças menores e desapareceram com elas. As mães, atónitas e enlouquecidas, puseram-se a gritar.
- Ei, calma, minhas comadres! - exclamou jovialmente o Sr. d'Urville, que acabava de abordar com a grande chalupa do Gouldsboro. - Vocês são numerosos demais para que os embarquemos a todos. Nossos amigos moicanos se ocupam das crianças em seus pequenos caíques de árvore. Não "há motivo para agitação. Eles não são selvagens!...
Seu bom humor e sua voz francesa tranqiíilizaram-nos. O corsário normando examinou com atenção os rostos femininos.
— Há rostinhos bem bonitos entre essas senhoras - observou.
— Ê a minha vez de dizer: calma, meu amigo - disse Joffrey de Peyrac. - Não se esqueça de que é casado com a filha do nosso grande cacique e quê lhe deve fideHdade, caso não queira acabar com uma flecha bem plantada em seu coração volúvel.
O Sr. d'Urville fez uma--careta, depois gritou que era tempo de começarem a descer nas^chalupas' e que estava pronto a receber nos braços a mais corajosa daquelas senhoras.
Com ele a atmosfera trágica pareceu "dissipar-se de repente. Compreendendo que a viagem terminara, cada um passou a mão em seus magros pertences, trazidos de La Rochelle.
Na chalupa grande, Angélica foi convidada a instalar-se. Os prisioneiros desceram igualmente, assim como o Pastor Beaucaire, Abigail, a Sra. Manigault e suas filhas, a Sra. Mercelot e Bertille, a Sra. Carrère e uma parte de sua ninhada.
Joffrey de Peyrac saltou para a chalupa por último, foi postar-se em pé na proa e convidou o pastor a pôr-se a seu lado.
Três embarcações, conduzidas pelos marujos, dividiram entre si o restante dos passageiros.
Ninguém teve ânimo para se voltar para o Gouldsboro ao deixá-lo, sem mastro e oscilando. Olhavam apenas para a costa.
Os barcos avançavam, seguidos pela flotilha de canoas indígenas, de onde se elevava um canto surdo e cadenciado ao ritmo das ondas. A melopeia dava ao instante que viviam uma solenidade sentida por todos. Depois daqueles longos" dias atormentados, passados entre o céu e a água, a terra original lhes aparecia.
Aproximando-se, viram um ajuntamento multicolorido numa prainha de areia e conchas rosadas. Rochas vermelhas e escurecendo até o roxo emergiam na direção da costa e subiam em cortejo contra uma rampa de granito, coberta de pinheiros imensos que se alternavam com a brancura óssea dos troncos das bétulas e as frondes agitadas de carvalhos enormes.
Ao pé desses gigantes, os homens pareciam agitar-se como formigas. Dir-se-ia que haviam surgido de entre as raízes. Mas olhando mais de perto percebia-se um atalho abrupto que levava a uma clareira aberta, a meio da rampa, inclinándo-se para o mar. Havia ali algumas cabanas de índios. Depois o atalho continuava a subir pela crista de granito e descobria-se uma espécie de forte, construído inteiramente de toras. Uma longa paliçada, com dez pés de altura, feita de troncos inteiros de abetos, cercava uma construção mais elevada, flanqueada de duas torres quadradas.
A paliçada era aberta por quatro corredores-túneis, na extremidade dos quais adivinhava-se o olho redondo de canhões à espreita.
Apesar desses sinais de vida, o local continuava sendo selvagem e inumano por sua beleza, sem comparação possível. Eram principalmente as cores, como que envernizadas, vivas, e ainda assim matizadas, enriquecidas pela passagem das brumas, que davam uma impressão de irrealidade. E depois, a escala das coisas. Tudo parecia enorme, grande demais, opressivo.
Eles olhavam, mudos. O país entrava-lhes pelos olhos.
A chalupa, levada por uma onda espumante, chocou-se contra o leito de cascalho, cor de sangue, sob a transparência da água, subitamente violeta. Marujos entraram até a metade do corpo no mar para puxar a embarcação para a praia.
Joffrey de Peyrac, sempre em pé na proa, voltou-se para o pastor.
- Senhor pastor, esta enseada perdida, escondida aos olhos de todos, foi, continua sendo, um refúgio de piratas... Desde que, na noite dos tempos, navegadores do norte, a quem chamavam de vikings e que adoravam deuses pagãos, aqui atracaram, aqueles dentre os que vieram da Europa e que buscaram refúgio nestas paragens foram sempre bandidos ou aventureiros, foras-da-lei, entre os quais me incluo, pois, embora eu não vise ao crime nem à guerra, a única lei a que obedeço é a minha. Quero dizer, pastor, que o senhor será o primeiro homem de Deus, do Deus de
Abraão, de Jacó e de Melquisedeque, como dizem os textos sagrados, a pisar neste lugar e a dele tomar posse. É por isso que lhe pediria, senhor pastor, que fosse o primeiro a desembarcar e guiar os seus sobre a terra nova.
O ancião, que não esperava de modo algum um pedido assim, ergueu-se de um salto. Apertava corri força sobre o peito sua grossa Bíblia, sua única riqueza. Sem aguardar auxílio, com uma vivacidade imprevista, pulou da chalupa e Venceu pela água a pequena distância que o separava da praia.
Seus cabelos flutuavam ao vento, pois perdera o chapéu durante a viagem. Avançou," magro,- de preto, e, depois de caminhar um trecho pela praia, deteve-se, ergueu o livro sagrado acima da cabeça e entoou um íântico. Os outros o acompanharam em coro.
Fazia dias e dias que não cantavam para louvar o Senhor. As gargantas queimadas pelo sal, os- corações partidos de tristeza recusavam-se à prece em comum. Reunidos à volta de seu pastor, cantararocom voz imprecisa, convalescente. Alguns, depois de dois ou três passos, ajoelharam-se, como se caíssem. Os índios das canoas traziam as crianças nos braços. Em contraste com as peles acobreadas, como.pareciam pálidos e miseráveis aqueles pequenos europeus em suas roupas gastas, grandes demais para os corpos emagrecidos!
A sua volta, fazendo círculo para contemplar os recém-chegados, apresentava-se a mais surpreendente mistura de homens, "a fauna do Down East", como diria Joffrey de Peyrac. índios e índias, aldeãos ou guerreiros, com suas plumas, suas peles, suas armas brilhantes, sarapintadas, as mulheres carregando às costas um pequeno casulo colorido, os bebes, depois o amontoado colorido dos tripulantes, desde o escuro mediterrâneo até o pálido ruivo nórdico, Erikson, rechonchudo, mascando seu tabaco perto de um napolitano de boina vermelha, enquanto as djeliabas dos dois árabes se inflavam ao vento, todos portando seus sabres de abordagem, seus cutelos, seus espadagões. Dois ou três homens, barbudos como Nicolau Perrot, vestidos de couro, gorro de pele, olhavam de longe, apoiados sobre seus mosquetes, enquanto uma pequena guarnição de soldados espanhóis, cujas couraças e capacetes de aço negro faiscavam, mantinha-se rígida, os longos chuços na mão, como que para um desfile militar.
Um magro hidalgo, com um extraordinário bigode preto, parecia comandá-los. Angélica já o vira no Gouldsboro, durante a abordagem que reduzira a nada as esperanças dos protestantes. Ele apertava os lábios e de vez em quando mostrava os dentes com ar feroz. Sem dúvida estava sofrendo todos os tormentos, ele, súdito de Sua Majestade Muito Católica, por ver hereges desembarcar naquelas praias. Dentre todos, foi ele o que pareceu mais excêntrico a Angélica. O que fazia ali, saído de um quadro de ouro de grão-senhor castelhano?
Olhava tanto para ele e seus soldados de madeira que tropeçou ao descer da chalupa. Quis segurar. O que estava acontecendo? Tudo girava. O chão se erguia e se esquivava a seus passos. Por pouco não caiu de joelhos também.
Um braço sólido a susteve e ela viu o marido, que ria..
- A terra firme a surpreende. Durante alguns dias ainda terá a impressão de estar sobre a coberta de um navio.
Foi assim que ela atingiu a praia, ao colo. Por fortuito que fosse o gesto, pareceu-lhe um presságio feliz.
Mas os mosquetes assestados pelos marinheiros do Gouldsboro sobre os protestantes não permitiam um otimismo desmesurado.
Passado o primeiro momento de emoção, esses homens e suas famílias esperavam, ansiosos, que seu destino fosse resolvido. Duros consigo mesmos assim como com os demais, não nutriam ilusões acerca do futuro que lhes estava reservado. Aqui a lei de Talião devia reinar ainda com mais certeza, e não esperavam clemência alguma do homem cuja rapidez de réplica tinham tido inúmeras ocasiões de avaliar. Quase se surpreendiam de ainda estarem vivos.
Alguns índios se aproximaram e depositaram, aos pés de Ma-nigault e dos seus, feixes de espigas de milho, cestos de legumes e bebidas diversas contidas em curiosos recipientes arredondados ou oblongos, que se diria moldados numa madeira muito leve, e pratos cozidos sobre cascas de bétula.
- As primícias da recepção prevista para o grande cacique - explicou o Conde de Peyrac. - Ele ainda não chegou, mas não vai demorar. Manigault continuava tenso.
— O que vai fazer de nós? - perguntou. - É tempo de se pronunciar, senhor! Se a morte nos espera, para que toda esta comédia de acolhida?
— Olhem à sua volta. Não é a morte, mas a vida... - disse o conde com um grande gesto em direção à paisagem opulenta.
— Devo compreender que está adiando nossa execução?
— Adio-a de fato.
Os rostos pálidos e cansados dos protestantes ganharam cor. Eles se haviam corajosamente preparado para morrer, e ainda duvidavam, lembrando-se do impiedoso "Olhopor olho, dente por dente" que ele lhes lançara.
— Eu estaria curioso por saber o que esconde sua clemência - resmungoju Mercelot.
— Eu lhes direi claramente e sua curiosidade será satisfeita. Pois, de qualquer maneira, devem-me o preço do sangue, senhores, pelos homens que mataram, dois dos quais eram meus mais caros amigos.
— Como devemos pagar-lhe?
O gentil-homem tocOu com a bota-vermelha a areia vermelha.
- Fiquem aqui e construam um porto que se torne mais rico, mais vasto e mais célebre do que La Rochelle.
-- E a condição para a nossa salvação?
— Sim... se a salvação dos homens estiver em realizar uma obra de vida.
— Faz de nós seus escravos?
— Faço-lhes presente de uma terra prodigiosa.
- Onde estamos, para começar? - perguntou Manigault.
Ele lhes respondeu que se encontravam num dos pontos da costa do Down East, país que se estendia de Boston até Port-Royal, na Nova Escócia, tocando ao sul o Estado de Nova York, ao norte o Canadá, e fazendo parte de uma das treze colónias inglesas.
O armador rochelês, Berne e Le Gall entreolharam-se, aterrados.
- O que nos pede é loucura. Esta costa rendilhada tem a reputação de ser inabordável - disse Le Gall. - E uma armadilha mortífera para todos os navios. Nenhum ser civilizado pode radicar-se aqui.
— Nada podia ser mais verdadeiro. Exceto neste local para onde os trouxe. O que pensam ser uma passagem muito difícil não passa de uma soleira rochosa, navegável na maré alta, e que confere um asilo inviolável nesta baía tranquila.
— Para um refúgio de'piratas, não discordo. Mas, para construir um porto, os relatos dos navegadores não deixam esperança alguma. O próprio Champlain fracassou, lembre-se. Relatos medonhos. Essas poucas tentativas de colonização dizimaram os infelizes enviados para cá. A fome, o frio, os vagalhões excepcionais no mundo, a neve que, no inverno, o vento sopra até o mar. Esse, então, é o destino que nos reservou.
Olhou as próprias mãos nuas.
- Não há nada aqui, e está nos condenando a morrer de fome com nossas mulheres e filhos!
Mal concluíra quando Joffrey de Peyrac fez um gesto brusco com as mãos, um sinal para os marujos que continuavam num dos botes. Depois seguiu para os rochedos vermelhos que avançavam para dentro do mar.
- Venham por aqui.
Seguiram-no mais lentamente. Depois de imaginar por um instante que iam passar-lhes a corda ao pescoço, viam aquele homem diabólico simplesmente convidá-los para um passeio pelo litoral. Alcaçaram-no na ponta extrema, onde o bote atracava. Os marujos desdobravam uma rede.
— Há pescadores profissionais entre vocês? Estes, suponho - disse, pegando pelo ombro os dois homens da aldeia de Saint-Maurice -, e principalmente você, Le Gall. Embarque nesse bote, vá ao largo e lance suas redes.
— ímpio! - resmungou Mercelot. - Como ousa parodiar as Escrituras!
— Imbecil! - retorquiu Peyrac, com bom humor. - Não há duas maneiras de aconselhar a mesma coisa para um mesmo resultado.
Quando os pescadores regressaram, tiveram todos de ajudar a puxar a pesada rede, onde se agitava uma colheita quase miraculosa.
A abundância de peixes, sua variedade, seu tamanho os deixavam pasmos. Ao lado de espécies comuns e parecidas com as encontradas nas costas de Charentes, havia outras que eles quase não conheciam - salmão, solha, esturjão. Mas conheciam-lhes o valor depois de defumados. Lagostas enormes, azul-aço, debatiam-se ferozmente entre os corpos cintilantes.
— Podem fazer pescas semelhantes todos os dias. Em certas épocas, cardumes inteiros de bacalhau buscam refúgio nos mil acidentes da costa. Os salmões sobem os rios para desovar.
— Salgando oú defumando esses peixes, podem-se abastecer os navios em escala - disse Berne, que até então não abrira a boca.
Tinha um ar sonhador. Começava a imaginar entrepostos penumbrosos, cheirando a-sal,-com barris bem alinhados na escuridão.
O Conde dê Peyfac deu-lhe uma olhada perspicaz, mas contentou-se em aprovar.
- Naturalmente... Em todo caso, já vêem que estão protegidos contra a fome. Sem falar da caça abundante, da coleta de bagas e do açúcar de-ácer, e da excelência das culturas indígenas, de que lhes falarei e que julgarão por si mesmos.
CAPÍTULO X
O Acampamento Champlain
A praia, para onde.retornaram, parecia transformar-se em mesa de banquete. Os indígenas não tinham parado de trazer novos pratos cozidos, cestos de frutos pequenos mas perfumados, legumes enormes, abóboras e tomates. Acendiam-se fogueiras, de onde se elevava o odor do peixe recém-pescado, que grelhavam. Alguns índios esboçavam passos de dança, brandindo os tomahawks emplumados, a arma com bola de pedra ou ferro de que se serviam para abater os inimigos.
— Onde estão nossos filhos?! - exclamaram mães de súbito assustadas com a cena selvagem.
— Mamãe - berrou Honorina, precipitando-se para a mãe -, venha ver os camarões que pesquei com o Sr. Crowley.
Estava com a cara toda lambuzada de azul.
- Parece que bebeu tinta!
Mas todas as crianças estavam com a mesma aparência.
- Comemos strawberries [morangos] e whortberries [uvas-do-monte]...
"Dentro de alguns dias estarão todos falando inglês", pensaram os pais.
— Quanto à fome, aí está - disse o conde, apontando a cena: - Para o frio, há peles, madeira de aquecimento em profusão.
— Mas Champlain fracassou - repetiu Manigault.
— E fato. Mas sabe por quê? Ele ignorava a barra na costa, ficou assustado com a altura das marés, cento e vinte pés, e com o invjerno terrível.
— O senhor eliminou essas dificuldades? - troçou Mercelot.
— Certamente que não. A maré.continua tendo cento e vinte pés de altura, mas do outro lado deste pfomontório de Goulds-boro, onde"Champlain ergueu seu acampamento. Agarrou-se a um lugar maldito, quando a meia hora de galope teria encontrado o local onde estamos e onde a maré tem apenas quarenta pés.
— Quarenta pés ainda é maré demais para um porto.
— Não é verdade. Quarenta pés é a altura da maré em Saint-Malo, porto bretão muito próspero.
— Onde não há canal de passagem - observou Berne.
— Sim, mas há o rio Rance, seus refluxos e seu lodo.
— Aqui não há lodo - disse Manigault, que foi molhara mão na água transparente.
— Suas chances, portanto, são ainda maiores do que as de seus ancestrais quando decidiram construir um porto inacessível sobre aquele rochedo que se tornou La Rochdle. Defendido por canais, co.mo.aqui, mas ameaçado pelo lodo, que um dia o fechará completamente. Se vocês, rocheleses, não puderem construir um porto neste lugar que apresente tanta semelhança com sua cidade de origem, quem o construirá então?
Angélica notava que os protestantes se haviam agrupado em torno daquele a quem continuavam chamando de Rescator. Mas, assim como todos os homens ao falarem com outro cuja competência reconhecem, haviam esquecido á própria situação precária em relação a ele e se fascinavam. A pergunta dele lembrou-lhes a realidade.
— É verdade que estamos em suas mãos - disse Manigault, com amargura. - Não temos escolha.
— Escolha para quê? - disse Joffrey de Peyrac, olhando-o nos olhos. - Para ir a São Domingos? O que conhece você dessa ilha que não se pode atingir sem pagar tributo aos piratas do Caribe e que periodicamente é atacada pelos flibusteiros e bucaneiros da ilha da Tortue? O que podem fazer lá homens de sua espécie, industriosos, ativos, homens do mar e do comércio? Pescar? Não há mais que alguns cadozes em alguns míseros riachos e, no litoral, tubarões ferozes.
— Ainda assim, tenho sucursais lá - disse Manigault -, e dinheiro.
— Não, não creio. Suas sucursais não precisam ser devastadas pelos piratas para já não lhe pertencer. Vae victis, Sr. Manigault. Se tivesse conservado uma matriz sólida em La Rochelle, ainda poderia esperar recuperar alguns bens âo chegar às ilhas da América. Mas não tenha certeza-de que aqueles que outrora, tanto em São Domingos quanto em La Rochelle, eram seus caros e devotados colaboradores, tão diligentes, já não dividiram entre si seus despojos.
Manigault perturbou-se. Seus receios materializavam-se nas palavras do Rescator. Este continuou:
- Tinha tanta certeza disso que um dos motivos que o levaram a apoderar-se do navio foi o medo de chegar às ilhas na miséria total e, ainda por cima, com obrigações em relação a mim por tê-los levado até lá. Seu projeto de corsário conferia-lhe duas vantagens. Eliminando-me, eliminava um credor e, proprietário de um belo navio, poderia enfrentar de cabeça erguida aqueles que, emigrantes miseráveis, o receberiam pior do que a um cão.
Manigault não negou. Apenas cruzou os braços sobre o peito, e ficou de cabeça baixa, numa atitude de meditação profunda.
— E está dizendo, senhor, que minhas apreensões em relação a meus antigos colaboradores nas ilhas e em La Rochelle eram justificadas. É uma posição ou uma certeza?
— Uma certeza.
— Como sabe tudo isso?
— O mundo não é tão grande quanto parece. Fazendo escala na costa da Espanha, encontrei um dos maiores tagarelas que existem, um Rochat, que conheci no Levante.
— Esse nome me diz alguma coisa.
— Ele foi ligado à Câmara de Comércio de La Rochelle. Falou-me dessa cidade, que acabava de deixar, falou-me de você para me demonstrar de que maneira, em La Rochelle, o poder e a fortuna deviam passar das mãos dos grandes burgueses reformados às dos católicos. Já naquela época você estava condenado, Sr. Manigault. Mas ao ouvi-lo eu não suspeitava que teria... a honra - e fez uma saudação irónica - de oferecer, a essas pessoas perseguidas de quem ele me falava, o refúgio do meu navio. Manigault não parecia ouvir. Depois deu um fundo suspiro.
— Por que não nos informou mais cedo do que sabia? Talvez não tivesse corrido sangue.
— Penso, ao contrário, que os teria encarniçado ainda mais em me despojar do que me pertencia, para ter certeza de vingá-los de seus inimigos.
— O fato de estarmos condenados por nossos antigos amigos e sem recursos não o autorizava a dispor de nossa vida.
— Vocês souberam dispor da nossa. Estamos quites! Agora, convençam-sejde uma coisa. A parte a cultura da cana-de-açúcar e do tabaco, para a qual não tinham experiência alguma, a única coisa que poderiam píatiear nas ilhas seria o comércio de negros. E de minha parte etí jamais ajudaria um mercador de escravos a estabelecer-se. Aqui não precisarão dessa indústria nociva, e poderão, então, lançar as bases de um mundo que não conterá em si, desde ó início, os germes da destruição.
— Mas em São Domingos pode-se cultivar a vinha, e era essa nossa intenção - disse um dos rocheleses, que fora toneleiro para as bebidas de Charentes.
— A vinha não cresce em São Domingos. Os espanhóis tentaram em vão. Para obter-se a uva, é preciso que a seiva se estanque, o que é provocado pelas estações. Nas ilhas, a seiva está sempre em movimento. As folhas não morrem. Não há estações, não há vinha...
- No entanto, o Pastor Rochefort escreveu em seu livro...
O Conde de Peyrac balançou a cabeça.
— O Pastor Rochefort, viajante estimável e corajoso com quem cruzei algumas vezes, comunicou a suas obras sua ótica particular da existência, a busca do paraíso terrestre e da terra de Ca-naã. Vale dizer que seus relatos contêm erros flagrantes.
— Ah!... - exclamou o Pastor Beaucãire, batendo com energia na grossa Bíblia. - É bem a minha opinião! Nunca estive de acordo com esse iluminado de Rochefort.
— Entendamo-nos. Os iluminados têm algo de bom: servem para fazer os homens progredir e para arrancá-los do ramerrào secular. Vêem símbolos. Cabe aos outros interpretá-los. Se o escritor Rochefort cometeu lamentáveis confusões geográficas e descreve, com uma admiração cândida demais, as riquezas do Novo Mundo, nem por isso os emigrantes que ele atraiu do outro lado do oceano foram enganados. Digamos que o caro pastor assimilou bem demais esse sentido simbólico que é a base da espiritualidade índia. Certamente não se encontram uvas suculentas no refugo das vinhas selvagens, não mais do que michas douradas nos galhos da árvore do pão, mas a fortuna, a felicidade, a paz de espírito e da alma podem desenvolver-se e desabrochar em toda parte. Para aqueles que souberem descobrir as verdadeiras riquezas oferecidas, dedicar-se à terra nova e não trazer para ela os rancores estéreis do Velho Mundo. Não foi isso o que todos vocês vieram procurar aqui?
A voz de Joffrey de Peyrac, durante esse longo discurso, às vezes se abafava, às vezes se inflamava, mas nada continha o ardor de suas palavras. Ignorava as dificuldades da garganta ferida, assim como, outrora, batendo-se em duelo, ignorava a perna doente. Seus olhos ardentes sob a espessa arcada superciliar atraíam os interlocutores e comunicavam-lhes sua convicção.
Um dos mouros, o que substituíra a seu lado o criado Abdul-lah, aproximou-se e estendeu-lhe um dos curiosos odres amarelo-ouro, contendo uma bebida misteriosa, trazida pelos índios. Ele bebeu à regalada, sem se preocupar com o conteúdo.
Ouviram-se cavalos relinchar a distância. Logo dois índios apareceram e desceram para a praia, num grande desabamento de seixos. Foi-se até eles, que transmitiram sua mensagem. O grande cacique Massaswa estava em marcha para saudar os novos brancos. Deram-se ordens em todas as línguas para apressar o desembarque dos presentes, que, do Gouldsboro, pouco a pouco se amontoavam na praia. Mosquetes cintilantes de novos, alguns ainda envoltos no estojo de tela encerada, armas brancas e ferramentas de aço.
Gabriel Berne não pôde impedir-se de espichar o pescoço para os cofres abertos.
O olho de Joffrey de Peyrac acompanhou-lhe a mímica.
- Cutilaria de Sheffield - observou -, a melhor.
— Eu conheço - aprovou Berne.
E, pela primeira vez em dias, seus traços se distenderam .e seu olhar animou-se. Esqueceu que falava com um rival maldito.
— Não é bonito demais para selvagens? -Eles se contentariam com menos. ..."
— Os índios são exigentes quanto à qualidade de suas armas e ferramentas. Enganá-los seria anular as vantagens do mercado. Esses presentes que vê aí devem coiríprar-nos a paz sobre a extensão de um território mais vasto dô.que o- reino de França! Mas também se pode trocá-los por peles ou vendê-los por ouro ou pedras preciosas, que os índios conservam desde os tempos antigos de suas cidades misteriosas. Gemas e metal nobre preservam seu valor nestas costas, mesmo que o ouro não seja cunhado em moedas da Europa,
Berne, sonhador, vóítou-se iía direção dos amigos. Estes continuavam agrupados ernsilencio. O território enorme que lhes caía às mãos, deles, tão desprovidos, esmagava-os. Não paravam de olhar o mar, seus rochedos, e seus olhos subiam para as colinas com árvores gigantes e a cada vez topavam com outra visão, deformada pelo nevoeiro errante que ora dava às coisas uma suavidade acolhedora, ora uma selvageria desumana.
O conde os observava de mãos na cintura. A zombaria semicerrava-lhe o olho estirado pelas cicatrizes da face. Tinha um ar sardónico, mas Angélica sabia agora o que aquela aparência endurecida ocultava, e seu coração ardia de uma admiração calorosa.
De repente, a meia voz e sem se voltar para ela, disse:
- Não me olhe assim, bela dama. Dá-me ideias de preguiça... e não é o momento.
Depois, dirigindo-se a Manigault:
- Sua resposta?
O armador passou a mão pela testa.
— E realmente possível viver aqui?... Tudo nos é tão estranho! Fomos feitos para este país?
— Por que não? O homem não foi criado para a Terra toda? JJe que lhe serviria pertencer à mais alta espécie animal, dotada dessa alma que anima o corpo mortal, dessa fé que, diz-se, ergue montanhas, se não pode empreender uma tarefa com tanta coragem e inteligência quanto as formigas ou as térmitas cegas? Quem disse que o homem só podia viver, respirar e pensar num único lugar, como um molusco agarrado ao rochedo? Se seu espírito o diminui em vez de elevá-lo, então que a humanidade desapareça da Terra e ceda lugar aos insetos pululantes, mil vezes mais numerosos e mais ativos do que a população humana do globo e que nos séculos futuros a povoarão com suas raças minúsculas, assim como nos primeiros tempos o mundo informe, onde nenhum homem havia aparecido ainda, pertencia apenas a raças gigantes de lagartos monstruosos...
Os protestantes, desacostumados de uma linguagem tão diferente e de tais voos de pensamento, olharam-no espantados, mas as crianças espicharam orelhas imensas. O Pastor Beaucaire apertava a Bíblia.
- Eu entendo - arquejou ele -, entendo o que quer dizer, senhor. Se o homem não é capaz de prosseguir em toda parte com o trabalho da criação, de que lhe serve ser um homem? E para que homens sobre a Terra?... Entendo o conselho de Deus, quando dizia a Abraão: "Levante-se, deixe sua casa e a família de seu pai e vá para o país que lhe mostrarei".
Manigault estendeu os braços vigorosos para reclamar a palavra:
— Não nos desviemos. Temos uma alma, está entendido, temos fé, mas somos apenas quinze homens diante de uma tarefa imensa.
— Contou mal, Sr. Manigault. E sua mulher e filhos? Sempre fala deles como se fossem um rebanho de carneiros irresponsáveis e balindo. Eles, porém, provaram todos o próprio valor, com bom senso, resistência e coragem. Até o nosso pequeno Rafael, que soube não morrer apesar das privações e das dores da viagem, a que raramente resistem os bebés dessa idade. Ele sequer ficou doente... Até a criança que uma de suas filhas carrega no ventre, Sr. Manigault, e que deve à resistência da mãe não haver perdido essa vida apenas esboçada. Nascerá aqui, portanto, em terra americana, e consagrará como seu este país, pois, como jamais conheceu outro, há de amá-lo como à sua terra natal. Tem uma brava prole, senhores de La Rochelle, bravas mulheres. Não são quinze homens sós. Já são todo um povo.
Os pratos que não se havia parado de cozer ou trazer espalhavam odores misturados, novos e apetitosos. De repente os protestantes foram cercados e convidados a comer. As índias, tão ousadas e risonhas quanto os maridos se mostravam distantes e impenetráveis, tocavam as roupas das mulheres, tagarelavam, soltavam exclamações. Em cada uma pousavam a mão sobre o ventre, depois, pondo-se de lado, erguiam a mão a intervalos, fazendo uma pausa com ar interrogativo.
- Estão perguntando quantos filhos têm e de que idade - explicou Nicolau Perrot.
As graduações sucessivas da família Cárrère, a partir da altura de Rafael, fizerajn um.sucesso inaudito. A Sra. Çarrère foi rodeada por uma verdadeira dança, com batidas de mãos e ululares entusiasmados.
Mas o assunto as levou de volta à preocupação habitual:
- Onde estão as crianças?
Desta vez tinham desaparecido completamente. Só se encontraram algumas.-'Nicolau Perrot foi informar-se.
— Foi Crowley que as levou ao Acampamento Chaniplain.
— Quem é Crpwley? Onde é esse Acampamento Chaniplain?...
Aconteceu tanta coisa naquele dia que devia tornar-se histórico nos Anais da história do Maine que não se tinha tempo de vê-las todas acontecer.
Angélica viu-se sobre um cavalo, galopando por um estreito sendeiro atapetado de musgo seco, sob sombras dignas de Versalhes, ao longo de uma costa eriçada de rochedos onde o mar se precipitava com furores de animal arquejante. O ruído do mar e do vento, a luz das folhagens, a impressão de região ora habitada, ora deserta faziam o encanto do lugar.
Os caçadores se haviam incumbido de escoltar as mães preocupadas. Para aquelas que não sabiam montar, encontraram carroças e liteiras. No último momento um gr-upo de homens uniu-se a elas.
- Acha que vou deixá-la partir com esses barbudos? - gritou o advogado Carrère à mulher. - Só porque a carregaram em triunfo por causa dos seus onze filhos, que também são um pouco meus, não vai perder a cabeça. Acompanho-a.
Embora retardada pela travessia de um rio e pela estreiteza do caminho, a viagem durou menos de uma hora. Não foi mais que um passeio, que as crianças haviam feito com entusiasmo para esticar as pernas. Apareceram cabanas em ruínas. Tinham sido construídas uns cinquenta anos antes pelos infelizes colonos de Champlain. Abandonadas, ainda subsistiam em parte, na orla da mata, ocupando uma vasta clareira que descia em rampa suave até a praia de um vermelho coral. Mas longe de oferecer um abrigo como a algumas milhas dali, aquela praia parecia cheia de rochedos amontoados, onde vagas furiosas não paravam de arrebentar.
As crianças apareceram correndo e se perseguindo por entre as cabanas.
— Mamãe - gritou Honorina, correndo como uma bola -, encontrei nossa casa. Venha ver, é a mais bonita. Há rosas em toda parte. E o Sr. Cro a dá para nós, para você e para mim, sozinhas.
— Para nós também - gritou Laurier, enraivecido.
— Calma, calma, coiotezinhos berradores - interveio uma curiosa personagem que se mantinha à entrada do caminho, como um anfitrião recebendo visitas de honra.
Segurando na mão um espesso gorro de pele, exibia uma cabeleira do mais belo ruivo. Mas estava barbeado, exceto pelas suíças que lhe guarneciam não as têmporas, mas as maçãs do rosto, formando uma espécie de máscara eriçada, cor de fogo, bastante impressionante para quem não estivesse prevenido sobre essa particularidade da raça escocesa.
Exprimia-se metade em francês, metade em inglês, com muita mímica à índia, e era difícil entendê-lo.
- A criança tem razão, milady. My inn is for you [Minha pousada é sua]. Meu nome é Crowley, Jorge Crowley, e na minha
store [loja] encontrará toda a mobília for housebold [para a casa]... Olhe minhas rosas selvagens.
Mas já não se via mais nada, pois um espesso nevoeiro acabava de erguer-se, escorrendo em gotinhas cintilantes à volta deles.
— Oh, essa neblina! - gemeu a Sra. Carrère. - Jamais me acostumarei com isso. Crianças, onde estão?
— Estamos aqui! - gritaram as crianças, invisíveis.
— Num lugarcomo este, hão de me pregar peças terríveis!
— Come in!... Entrem!... - repetia o escocês. - No nevoeiro - dizia ele com indulgência. -.Não nevoeiro today. Ele vai, ele some. No inverno, yes, é o mais forte nevoeiro do mundo.
Conforme anunciou, a neblina sumiu, leyada pelas asas do vento.
Angélica viu-se numa casa de madeira coberta de palha, enfeitada de rosas desabrochadas, com colorações de porcelana e perfume delicado.
- Esta é minha casa - anunciou Honorina. .
E deu duas voltas na.casa, correndo e gritando como uma andorinha.
Lá dentro ardia um bom fogo. Havia até dois aposentos providos de móveisíekos detoras.ou grosseiramente talhados em troncos de árvores, mas descobria-se, não sem surpresa, uma mesa de madeira negra e pés torneados, que não ficaria deslocada num salão.
- Presente do Sr. Conde de Peyrac - disse o escocês, com satisfação.
Mostrou também os vidros das janelas, luxo desconhecido das outras cabanas, que nunca tinham sido providas senão de peles de peixe, que filtravam uma débil claridade.
- Antigamente eu me contentava com isso.
Esse "antigamente" remontava a muito tempo. Crowley fora o imediato de um navio que naufragara há trinta anos contra os rochedos intransponíveis da costa do Maine. Único sobrevivente, o náufrago, coberto de ferimentos, dera em praias hostis. Gostara tanto que ficara.
Considerando-se o senhor da região, recebera a flechadas, habilmente atiradas do alto das árvores, todos os piratas que buscavam refúgio na baía de Gouldsboro. Os-índios não o ajudavam. Pacíficos, jamais teriam ousado iniciar hostilidades por conta própria, mas o escocês se encarregava de expulsar sozinho os intrusos.
Joffrey de Peyrac devera à amizade de um chefe moicano, encontrado durante um negócio em Boston, conhecer ao mesmo tempo o refúgio inviolável de Gouldsboro e as razões da maldição que ali reinava. Conseguira fazer uma aliança com Crowley, que dera boa acolhida a suas propostas, tanto mais porque começava a procurar clientes para suas peles. De fato, depois de instalar-se entre as cabanas abandonadas de Champlain, sentira-se inspirado por ideias de comércio. Génio curioso o de não possuir nada e chegar a fazer fortuna desse nada. Começara vendendo conselhos aos indígenas para curarem as doenças que os feiticeiros não resolviam. Depois, cornamusas que ele próprio fabricava, com caniços, bexigas ou estômagos de animais abatidos. Depois os concertos que dava com suas cornamusas. Caçadores vindos do Canadá adquiriram o hábito de parar em sua casa, para trocar algumas peles pela boa conversa e as noitadas de música.
Joffrey de Peyrac comprou-lhe as peles e pagou-lhe em quinquilharias, que fizeram dele o rei do comércio da região. Foi isso o que contou às senhoras à volta do fogo. Ele ainda não sabia o que pensar dos recém-chegados, mas, não sendo de caráter taciturno, dizia-se que, enquanto esperava, sempre era companhia. E que satisfação rever mulheres de pele branca e olhos claros! Ele tinha uma mulher índia e papooses, ou crianças, à vontade.
Estas apresentavam pequenos cestos cheios de groselhas, morangos e bagas às senhoras sentadas nos bancos, enquanto Crowley continuava com a crónica do local: o Sr. d'Urville, contava ele, era um cabeça-quente que partira para as Américas depois de uma sombria história de duelo. Belo rapaz, conquistara a filha do chefe dos abenakis-kaku. Era ele quem guardava o forte que defendia o acesso à baía de Gouldsboro, na ausência do Sr. Conde de Peyrac.
O espanhol? Dom Juan Fernández e seus soldados? Sobreviventes de uma expedição do México que desaparecera nas florestas invioláveis do Mississipi. Todos mortos, exceto eles, que chegaram ao Down East esqueléticos, semimortos, tendo perdido a memória do passado.
- Esse Dom Fernández tem ar feroz - observou Angélica. - Mostra os dentes o tempo todo.
Crowley meneou a cabeça com um sorriso. Explicou que o ricto do espanhol vinha-lhe de um tique resultante das torturas que sofrera por parte dos iroqueses, povo cruel, o povo das casas compridas, conforme os chamavam por ali, por causa de suas cabanas alongadas onde viviam várias famílias.
Numa viagem que fizera à Europa, o Sr. de Peyrac quisera repatriar os espanhóis, mas, coisa eáranha, estes recusaram. A maioria daqueles mercenários sempre vivera nas Américas e não conhecia outro ofício senão o de partir à procura de cidades fabulosas e trucidar índios. A parte isso, não eram maus.
Angélica apreciou, conforme se devia, o humor do narrador.
Crowley obser-vou qtfe o tempo limpara, e como todo mundo se havia aquecido, foi mostrar seus domínios. ,
- Há umas quatro ou cinco cabanas por aí que se podem tornar habitáveis. Come in! Come in!
Honorina "segurourAngélica pelo vestido.
— Eu gosto dele, do Sr. Cro. O cabelo dele é da mesma cor do meu, e-ele-'me'levou a passeio no cavalo dele.
— Sim, ele é' muito gentil. Que sorte a nossa de encontrar a bonita casa dele assim que chegamos!
Honorina hesitava em fazer uma pergunta. Hesitava porque temia a resposta.
— Ele é meu pai, talvez? - disse afinal, com um olhar cheio de esperança, erguendo o narizinho lambuzado de azul.
— Não, não é ele - disse Angélica, sofrendo com a decepção dela como com tudo o que atingia a filha.
- Ah, como você é malvada! - disse Honorina debilmente.
Saíram da casa e Angélica quis mostrar as rosas à criança. Mas esta não se deixava distrair.
— Nós não chegamos ao outro lado do ma'? - perguntou, ao cabo de um instante.
— Sim.
— Então, onde está meu pai? Você rne-disse que eu o encontraria do outro lado do mar, com meus irmãos.
Angélica não se lembrava de haver dito coisa parecida, mas discutir com a imaginação de Honorina não era fácil.
— Severina tem sorte - disse a criança, batendo o pé -, tem um pai e irmãos, eu não.
— Não seja invejosa. Isso não é bonito. Severina tem um pai e tem irmãos, mas não tem mãe. Você tem.
O argumento pareceu atingir a mulherzinha. Depois de um momento de meditação, sua mágoa dissipou-se e ela correu para brincar com os amigos.
-Esta é uma cabana que tem uma aparência sólida - dizia Crowley, dando grandes pontapés nas estacas de uma construção que se entreabria a todos os ventos. - Instalem-se!
Era impressionante que aquelas casas tivessem resistido às intempéries, prova de que tinham sido solidamente construídas.
No entanto, os burgueses rocheleses contemplaram desconcertados aquelas ruínas que evocavam a morte, a doença, o desespero de seres abandonados no fim do mundo e que haviam falecido ali, uns após os outros, esmagados pela natureza hostil. O que havia de surpreendente eram as rosas que subiam por toda parte e se entrelaçavam, e que faziam esquecer os roncos do oceano próximo, esquecer que haveria um inverno com seus vendavais, suas neves, seus gelos cobrindo os rochedos, esse inverno que matara os homens de Champlain.
O escocês olhava-os sem entender por que tinham uma cara tão desapontada.
— Se se instalarem aqui por enquanto, pelo menos terão quatro paredes prontas para a noite.
— É verdade. Onde vamos dormir? - perguntaram.
— Praticamente não há outro lugar além deste - explicou Nicolau Perrot -, pois o forte já está cheio como um ovo; caso contrário seria preciso retornar ao navio.
— Isso nunca! - exclamaram em coro.
Logo as pobres cabanas lhes pareceram palácios. Crowley disse que poderia fornecer pranchas, ferramentas, pregos. Tomou a direção das operações, mandou índios cortarem palha para os tetos. Puseram-se a trabalhar febrilmente.
A neblina irisada ora surgia, ora sumia, ora descobria o mar ao longe, ora rodeava a clareira onde eles se azafamavam, e viam-se tremer reflexos rosa e verdes, mas ninguém tinha tempo para admirá-los.
Cantarolando salmos, o Pastor Beaucaire manejava o martelo como se não'tivesse feito outra coisa na vida.
A cada instante outros índios desembocavam do atalho, continuando a trazer ovos, milho, peixe e crustáceos, e, pendurados em varas, uma ave selvagem, abetardas e perus. A casa de Crow-ley, com a "loja" contígua, servia de quartel-general.
Em breve uma, depois duas casas' foram terminadas. Pôde-se acender o fogo numa delas e a chaminé funcionou magnificamente. Angélica foi a primeira a ter a ideia de encher de água um caldeirão, pendurá-lo "ha lareira e jogar uma lagosta dentro. Depois colocou três garotas a depenar perus.
Subiam quadrados de madeira montados com fibras de casca de árvore, é isso" fazia camas, sobre as quais os barbudos jogavam pesadas peles.
- Dormirão bem estaxioitè, peixinhos pálidos saídos do mar, belas gaivotas brancas que cruzaram o oceano.
Vindos-do norte, das províncias canadenses, eles falavam um francês leíitof mas poético, onde se descobria o hábito adquirido nas conversas com os índios de procurar longas perífrases, imagens floridas...."
- Rocheleses! Rocheleses! Olhem! - exclamou Angélica.
Apontava a lareira. A lagosta enorme, que não queria morrer, levantava a tampa. Símbolo de abundância para aquela gente do mar e dos rios, ela ergueu as duas pinças por sobre a borda do caldeirão e cresceu, cresceu, como uma aparição tutelar, rodeada de vapor!...
Caíram na risada. As crianças soltavam gritos agudos. Saíram correndo para fora, acotovelando-se, rolando pelo chão, rindo até ficar sem fôlego.
- Estão bêbadas! - exclamou a Sra. Manigault, assustada. - O que foi que lhes deram de beber?
As mães foram examinar as taças de-que as crianças se haviam servido. Mas elas só estavam bêbadas de bagas maduras, água da fonte, fogo dançando na lareira...
- Estão bêbadas de terra - disse o pastor, com ternura. - A terra reencontrada. Seja qual for o seu aspecto no lugar do mundo onde surge, como a terra não encantaria, depois dos longos dias escuros do dilúvio?...
Mostrou as cores do prisma que tremeluziam através das folhagens e passavam por sobre os rochedos da praia para irem refletir-se nas ondas.
- Olhem, meus filhos, olhem; eis o sinal da Nova Aliança.
Estendeu os braços e lágrimas correram-lhe pelo rosto enrugado.
CAPÍTULO XI
O ataque dos índios cayugas
Ao cair dá noite, o Conde de Peyrac, escoltado pelos soldados espanhóis, ap'areceu=no Acampamento Champlain. Vinha a cavalo e trazia seis montarias pra colocar à disposição dos protestantes.
- Os cavalos são raros,aqui. Tomem muitp cuidado com eles.
Inspecionou sem desmontar as cabanas à volta e notou a animação ordeira que reinava no local outrora em ruína e sinistro. A fumaça er"guia-se acima dos tetos. Mandou que os índios que o seguiam pusessem no chão caixas_pesadas. Tiraram armas novas, cuidadosamente embrulhadas.
- Um mosquete para cada homem e cada mulher. Aqueles ou aquelas que não sabem atirar aprenderão. Que se organize amanhã cedo uma aula de tiro.
Manigault, que avançara a seu encontro, pegou uma das armas, desconfiado.
— É para nós?
— Eu já disse que sim. Dividirão entre vocês sabres e punhais, e para os melhores atiradores dentre vocês há seis pistolas. Hoje não posso fazer mais.
Manigault fez um muxoxo de desdém.
- O que devo compreender dissoP-Esta manhã estávamos cobertos de correntes e prestes a ser enforcados; esta noite nos arma até os dentes - disse, quase chocado com o que tomava por inconsequência de caráter. - Não nos insulte acreditando-nos tão prontamente seus aliados. Continuamos aqui contra a vontade e que eu saiba ainda não lhe demos nossa resposta às suas propostas forçadas.
— Não demorem demais a fazer sua escolha, pois infelizmente sou obrigado a armá-los. Trouxeram-me a mensagem de que um bando de cayugas, da raça iroquesa que nos é hostil, foi despachado contra nós para nos tirar o escalpo.
— O escalpo - repetiram os outros, levando as mãos à cabeça.
— São aborrecimentos que podem ocorrer de tempos em tempos por aqui. A Inglaterra e a França ainda não se entenderam acerca de a que coroa pertence a Down East. Isso permite aos nossos colonos trabalhar em paz, mas periodicamente os administradores de Quebec pagam uma expedição às tribos fronteiriças a fim de expulsar os brancos que poderiam instalar-se sem autorização do rei da França. A Inglaterra faz o mesmo, mas encontra mais dificuldade em recrutar seus cúmplices, pois obtive o apoio do grande chefe dos moicanos, Massaswa. No entanto, nenhum branco da grande floresta está completamente protegido contra um massacre realizado por uma ou outra das tribos dispersas.
— Encantador - disse Mercelot, sarcástico. - Gabava o encanto e a riqueza de "seu" domínio, que tão generosamente nos concedeu, mas omitiu os perigos e que corríamos o risco de ser dizimados por selvagens despidos.
— Quem lhes disse, senhores, que existe um lugar na Terra onde um homem não tem de lutar para salvaguardar a integridade da própria vida? O paraíso terrestre já não existe. A única liberdade do homem é a de poder escolher como e por que deseja viver, lutar e morrer. E os próprios hebreus combateram com Josué para conquistar a Terra Prometida.
Ele tomou das rédeas e se fundiu com a escuridão.
Ao pôr-do-sol, nuvens sopradas pelo vento vogavam como a fumaça de um incêndio imenso contra a tela de fundo de um céu branco-nacarado.
O mar era de ouro queimado e as ilhas negras pareciam multiplicar-se como um cardume de esqualos comprimindo-se ao longo das praias.
Crowley aproximou-se dizendo que podiam aproveitar as últimas horas de claridade para organizar os postos de defesa e colocar sentinelas.
— É séria, então, essa história de índios?
— Pode acontecer. Mais vale estar prevenido e de sobreaviso do que levar uma flechada entre os ombros.
— Achei que ele estivesse brincando -disse Manigault, pensativo, olhando as armas colocadas a. seus pés.
O Pastor Beaucaire permanecia de olhos fechados, como que atingido por um raio.
- Ele brinca, mas conhece as Escrituras - murmurou. - Suas brincadeiras abrem perspectivas para inúmeras meditações. Meus irmãos, será que pelo menos merecemos a Terra Prometida? Longe de maldizer o Senhor pelas provações que nos envia, saibamos recebê-la como o justo resgate de nossas faltas e o preço que ele nos faz-pagar peja liberdade.
Angélica ouvia diminuir o galope de um cavalo na noite. Sopro do vento e do mar. Mistério da noite numa terra desconhecida e seus perigos.
Os que-velaram aquela noite, atentos aos menores ruídos, espantaram-srcom a calma que sentiram. A angústia malsã e as dúvidas os tifiharri deixado. O fato de serem responsáveis por aqueles poucos ares de .chão onde acabavam de erguer seus abrigos precários os havia subitamente reconfortado. Com a mão sobre o cano das armas, os olhos abertos para as trevas, os protestantes se revezaram nos postos de vigia e suas silhuetas rígidas se desenhavam perto dos caçadores, eriçados de peles, diante das fogueiras. Os caçadores, em frases floridas e pitorescas, iniciavam-nos no mundo ainda incivilizado que os rodeava. Os rocheleses começavam a esquecer o passado.
Amanheceu sem que houvesse nenhum alerta e todos sentiram uma vaga decepção.
Angélica perguntou se podia usar um dos cavalos para ir a Gouldsboro.
Dentre todos, hoje, ela talvez fosse a. menos serena. O marido continuava a não lhe atribuir lugar a seu lado. Vindo na véspera, sequer tentara vê-la, nem se informara a seu respeito. Afetava ora tratá-la com familiaridade cúmplice, ora deixá-la a sua independência.
Na verdade era uma atitude necessária, enquanto aqueles que os cercavam ignorassem os laços que os uniam. Mas Angélica começava a perder a paciência. O afastamento de Joffrey de Pey-rac era-lhe intolerável. Tinha necessidade de vê-lo, de ouvi-lo.
Crowley lhe disse que tomasse cuidado com os índios cayugas. Ela deu de ombros. Os índios cayugasl No estado de ânimo em que se encontrava, não estava longe de acusar Joffrey de havê-los tomado como pretexto para abandoná-la.
Angélica ignorou-o, resoluta. Precisava ir a Goudlsboro, disse.
No momento em que montava, Honorina gritou tanto que teve de levá-la consigo.
- Oh, Honorina, Honorina, queridinha! Não poderia ficar quieta pelo menos um dia?
Não obstante, apoiou a criança firmemente contra si e distanciou-se. Isso lhe lembrava as cavalgadas de antigamente, com Honorina, na floresta de Nieul.
Seguiu o caminho aveludado de ervas secas que abafavam o ruído do galope. O verão terminava e pairava no ar um perfume de avelãs e pão quente. Aroma familiar e delicioso. Devia haver bagas sob as folhagens.
A beleza conhecida das florestas de carvalhos e castanheiras acrescentava-se o encanto exótico das bétulas claras, de seda rasgada, aceres sangrando sua seiva perfumada. Angélica reconhecia com volúpia seu clima preferido. Mas o mistério desta floresta era de qualidade diferente do da floresta de Nieul e difundia outro encantamento, proveniente de sua virgindade. Nieul tinha o peso de seu passado druídico. Aqui, a lembrança dos únicos homens brancos que haviam estado no passado, os vikings, terminava à beira das praias, com estranhas torres de pedras grandes, edificadas por eles.
A floresta sequer conhecera a marca de seus passos conquistadores. Conhecia apenas o rastro dos inúmeros animais e do pé deslizante do índio, raro e silencioso.
Angélica não percebeu que o cavalo tomava outro caminho, que levava ao cume de uma colina. Ficou surpresa com a súbita clareira. Um milharal estendia-se a sua vista. Entre as altas folhas rangentes, sobre uma plataforma de madeira protegida por um caramanchão, um índio de cócoras, como uma estátua imóvel, vigiava com uma vara comprida as aves ladras.
A direita via-se a paliçada da aldeia indígena, de onde subia a fumaça das cabanas..Mais longe alternavam-se um milharal, uma plantação de abóbora, outra de uma planta-desconhecida com grandes folhas envernizadas que Angélica imaginou tratar-se de tabaco. Um pouco por toda parte, desabrochavam girassóis resplandecentes. Mas bem depressa a floresta se fechou sobre esse quadro campestre.
Surpresa, a amazona não pensou em. perguntar o caminho. O cavalo continuava a subir, como que habituado ao passeio. Atingindo o topo, estacou por si mesmo. Angélica deu uma olhada assustada e ao mesmo, tempo-ávida sobre o panorama que se estendia a seus pés. Por toda parte, entre as rochas-e as árvores, adivinhava-se o reflexo de inúmeros lagos e represas, um mosaico branco e azul, engastado entre falésias de onde caíam brancas cascatas.
Ela não ousava respirar tomando posse da paisagem gigantesca e serena que precisava tornar sua.
Foi então.que Honoriná se mexeu contra ela e estendeu o bracinho.
- Lá - ...disse.
Aves alçavam vôo lá embaixo, passando perto delas com roucos grasnidos.
Mas Honoriná continuava de braço estendido. Era menos os pássaros que queria mostrar do que o que lhes provocara o vôo.
O olhar de Angélica, mergulhando do alto da falésia, descobriu uma longa fila de índios que avançavam um atrás do outro ao longo de um riacho. A distância e a copa das árvores não permitiam que os distinguisse nitidamente, mas podia perceber que eram muito numerosos e que não eram camponeses dirigindo-se aos campos. Não carregavam nenhum instrumento agrícola aos ombros, somente o arco e a aljava.
- Caçadores, talvez?
Tentava tranqúilizar-se, mas pensara imediatamente nos cayu-gas. Recuou um pouco sob as árvores, para não correr o risco de ser vista.
Os índios deslizavam pela margem do riacho com um agilidade prudente. As plumas vermelhas e azuis de seus cocares serpenteavam como uma longa cobra colorida entre as folhas. Eram realmente muitos... numerosos demais! A coluna seguia em linha reta para o mar. Angélica olhou além, e viu a distância, por entre a neblina, a silhueta do Forte Gouldsboro sobre a baía, cuja superfície coruscante se confundia com o céu esbranquiçado sob os raios do sol. A estrada que ia de Gouldsboro ao Acampamento Champlain estava visível.
"Se os índios chegarem lá, ficaremos isolados do forte e não poderemos nos auxiliar mutuamente. Ainda bem que Joffrey distribuiu armas..."
Foi então, ao pensar nele, que percebeu um cavaleiro europeu que vinha do forte e galopava pela estrada. Seu instinto a fez reconhecê-lo antes mesmo que ele se aproximasse. Aquela capa negra que flutuava, aquele penacho do amplo chapéu... Era o Conde de Peyrac. Sozinho!
Angélica sufocou um grito. De seu mirante, via os índios chegarem ao atalho da praia, reunir-se em grupos. Em poucos minutos o cavaleiro, que ia de rédeas soltas, desembocaria sobre eles. Nada podia preveni-lo do perigo.
Angélica gritou com toda a força. Contudo sua voz não podia alcançá-lo e perdeu-se no espaço ilimitado. Mas, de repente - seria o instinto daquele que tantas vezes encontrara a morte em seu caminho que o prevenia, ou seria um índio, que atirara cedo demais a primeira flecha, ou outro que dera seu grito de guerra? -, ela o viu reter a montaria com tal violência que o cavalo se arqueou; depois, fazendo meia-volta, sair do sendeiro para arremeter sobre um oiteiro rochoso que dominava as árvores. Dali abarcou com um breve olhar o horizonte, a fim de julgar a situação. Seu cavalo arqueou-se de novo, sem causa aparente, depois caiu por terra. Angélica entendeu que o animal acabava de ser atingido por uma flecha. Eram, então, os temidos cayugas. Felizmente Joffrey de Peyrac conseguira soltar-se a tempo dos estribos e dera um pulo para se refugiar atrás dos rochedos que coroavam a elevação. A jovem viu uma núvenzinha branca er-guer-se e depois ouviu o ruído de uma detonação. Ele atirava, e cada um de seus tiros certamente faria uma vítima. Mas não podia ter munição suficiente para enfrentar por muito tempo os inimigos, que começavam a encurralá-lo. Subiu um segundo floco de fumaça.
Honorirla estendeu de novo o bracinho. --- Lá.
- Sim, lá - repetiu Angélica, desesperada ante a própria impotência.
A detonação estalou-lhe os. ouvidos cem um ruído surdo de noz que se quebra.
- Ninguém poderá ouvi-lo'de Gouldsboro. E longe demais.
Ela quis avançar na direção do combate, mas os galhos a detiveram e, de resto, estava desarmada: Fez meia-volta e, retomando o caminho por onde viera, desceu a colina a galope. Seu cavalo voava. Ao atravessar as plantações indígenas, gritou ao vigia do milho, imóvehsob seu abrigo.
- Os cayugas! Os cayugas!
Irrompeu berrando a todo o fôlego no Acampamento Champlain:
— Os cayugas estão atacando meu marido na estrada de Gouldsboro! Entrincheiro"u-se atrás: de rochedos, mas logo estará sem munição. Venham depressa!
— Quem está sendo atacado? - perguntou Manigaut, que não tinha certeza do que ouvira.
— Meu... 'O Conde de Peyrac.
— Onde está ele? - perguntouCrowley, que acorrera.
— A quase uma milha aqui.
Estendeu maquinalmente Honorina aos primeiros braços que apareceram.
- Dêem-me uma pistola, depressa!
- Uma pistola a uma lady! - exclamou o escocês, atónito.
Ela arrancou-lhe a que ele tinha na mão, examinou-a, ajustou-a, carregou-a com uma rapidez que traía uma longa prática.
- Pólvora! Balas! Rápido!
O escocês, por sua vez, já sem discutir, agarrara um mosquete e saltava para a sela. Angélica lançou-se atrás dele, ao longo da praia.
Logo as detonações lhes chegaram aos ouvidos, bem como o grito de guerra dos iroqueses. O homenzinho se voltou para gritar-lhe com uma careta alegre:
- Ele ainda está atirando. Vamos chegar a tempo!
Num desvio, um grupo de índios barrou-lhes a estrada. Surpresos, eles próprios não tiveram tempo de armar os arcos. Crow-ley passou por entre eles, seguido de Angélica, distribuindo coronhadas a torto e a direito.
- Paremos - ordenou um pouco adiante. - Estou vendo outros que acorrem. Coloquemo-nos sob as árvores.
Mal tiveram tempo de se enfiar por trás das árvores. As flechas vibravam a sua volta, cravando-se na madeira dura. Angélica e Crowley atiravam alternadamente. Os índios acabaram subindo nas árvores a fim de controlar o caminho sem ali deixar a vida, o que parecia certo. Mas Crowley ainda os atingia entre os galhos, e corpos caíam pesadamente.
Angélica quis avançar, Crowley dissuadiu-a. Eles eram apenas dois.
De súbito, notaram a aproximação de um galope vindo do Acampamento Champlain. Surgiram seis cavaleiros armados: Ma-nigault, Berne, Le Bali, o Pastor Beaucaire e dois caçadores.
- Passem, senhores - gritou-lhe Crowley -, e corram para livrar o Sr. de Peyrac. Eu guardo a passagem e evitarei que sejam pegos pela retaguarda.
O grupo passou em disparada. Angélica montou e foi atrás deles. Um pouco adiante foram detidos de novo, mas os índios, sob o impulso furioso dos brancos, dispersaram-se. Os que avançaram, de tomahawk em riste, foram detidos, com um buraco na cara, pelos tiros de pistola à queima-roupa.
O grupo avançou mais. Com alívio Angélica viu que conseguiam chegar ao local onde seu marido continuava a defender-se. Por sua vez, tiveram de desmontar e proteger-se. Mas sua presença incomodava muito os atacantes. Pegos entre o fogo do Conde de Peyrac, o dos protestantes e caçadores, e o de Crowley, começaram a dar sinais de inquietação, apesar de seu número.
- Abro-lhe o caminho - disse Manigault a Le Gall - e você dispara para Gouldsboro, para dar o alarme e trazer reforços.
O marinheiro pulou sobre o cavalo e, aproveitando um momento em que o caminho foi desimpedido por um fogo cruzado, partiu a toda velocidade. Uma flecha assobiou-lhe aos ouvidos, arrancando-lhe a boina.
- Passou - disse Manigault. - Eles não podem persegui-lo. Agora basta ter paciência até que o Sr. d'Urville e seus homens cheguem. Os cagugas começavam a entender a que os ameaçava. Armados apenas de flechas e tomahawks, não podiam enfrentar as armas de fogo de todos os brancos reunidos. A emboscada não dera certo. Tinham de bater em retirada.
Começaram a retirar-se subindo.para a floresta, a fim de se reunirem perto do riacho. Dali atingiram o rio, onde os aguardavam as canoas. A aproximação dos reforços vindos de Gouldsboro transformou a retirada em debandada. Chocaram-se então com os índios da aldeia, que Angélica alertara e que os crivaram de flechas. Os sobreviventes tiveram de renunciar á chegar ao riacho e não tiveram escolha senão.arremeter em linha reta, por entre a floresta. Ninguém se preocupou em saber-o que aconteceria com eles.
Angélica cerreu para o oiteiro, sem se incomodar de saltar sobre os longos corpos acobreados, abatidos como grandes pássaros de plumagem -real. O-mafído -não aparecia. Encontrou-o inclinado sobre o cavalo ferido, a quem acabava de dar o tiro de misericórdia.
— Você está vivo! - disse. - Oh, como tive medo! Estava galopando ao encontro deles. De repente parou. Por quê?
— Reçonheci-ihes o cheiro. Eles passam uma gordura no corpo, e o vento trouxe-me o ranço. Subi a esta elevação para ver se minha retirada não estava cortada. Foi então que abateram meu cavalo. Pobre Sòlimã! Mas como você está aqui, imprudente, e como está a par desta escaramuça?
— Eu estava lá, sobre a colina. Vi-o em dificuldade e consegui correr até o Acampamento Champlain para buscar socorro. Eles vieram.
— O que fazia sobre a colina?
- Eu queria ir a Gouldsboro e me enganei de caminho.
Joffrey de Peyrac cruzou os braços sobre o peito.
— Quando é que aceitará respeitar minhas ordens e a disciplina que imponho? Eu havia proibido que se saísse dos acampamentos. Foi a última imprudência.
— Você não se expôs da mesma maneira?
— É fato, e quase paguei bem caro por isso. E perdi um cavalo. Por que razão você saiu do acampamento?
Ela confessou francamente:
- Não aguentava mais não vê-lo. Vinha ao seu encontro.
Jofrey de Peyrac se descontraiu. Deu um sorrisinho.
- Eu também - disse.
Segurou-Jhe o queixo e aproximou o rosto negro de póivora do rosto igualmente sujo de Angélica.
- Somos ambos um pouco loucos - murmurou suavemente.
- Não acha?
- Está ferido, Peyrac? - gritava a voz do Sr. d'UrviJle.
O conde escalou os rochedos e desceu até o grupo.
— Agradeço-lhes muito, senhores, pela sua intervenção - disse aos protestantes. - A incursão desses bandidos não teria passado de uma simples escaramuça, se eu não tivesse cometido a tolice de me aventurar sem escolta fora do acampamento. Que nos sirva de lição a todos. Essas incursões de tribos hostis não representam um perigo grave, desde que, prevenidos em tempo, saibamos permanecer agrupados e organizar nossas defesas. Espero que ninguém dê vocês esteja ferido.
— Não, mas por pouco - respondeu Le Gall, contemplando a boina que havia apanhado do chão.
Manigault não sabia que atitude tomar. Tudo acontecia rápido demais para ele.
— Não nos agradeça - disse, bem-humorado -, tudo o que fazemos é tão ilógico!
— Acredita? - respondeu Peyrac, fitando-o nos olhos. - Eu, ao contrário, acho que tudo o que acaba de ocorrer está na lógica do Down East. Anteontem queriam a minha morte. Ontem eu queria enforcá-los. Mas à noite dei-lhes armas para que pudessem defender-se e, nesta manhã, salvaram-me a vida. O que há de mais lógico?
Enfiou a mão na bolsa de couro e mostrou na palma aberta duas bolinhas brilhantes.
- Olhem - disse -, só me restavam duas balas.
A tarde, todo o Acampamento Champlain se apresentou a uma convocação para receber o grande cacique Massaswa em Goulds-boro. Os homens armados caminhavam aos lados da coluna, escoltando mulheres e crianças. Ao passarem pelo local onde, de manhã, ocorrera o breve combate com os cayugas, fizeram alto.
O sangue, seco, ficara preto. Aves giravam acima dos cadáveres abandonados.
Quadro de morte que a vida fremente das árvores agitadas por uma brisa suave e o canto do mar próximo desmentiam.
Ficaram um longo momento em silêfício.
- Tal será nossa vida - disseBerne afinal, respondendo aos pensamentos de todos.
Não estavam tristes, nem mesmo assustados. Tal seria a vida deles.
O Conde de Peyrac os aguardava diante do forte. Foi até eles e, como no dia do desembarque, fê-los agrupar-se na praia. Parecia preocupado: Depois de cumprimentar cortesmente as senhoras, pareceu refletir, de olhos voltados para a enseada.
- Senhores, o incidente desta manhã me fez pensar em seu destino. Os perigos que-os cercam pareceram-me grandes. Vou reembarcá-los e leva-los até as ilhas da América.
Manigault teve um" sobressalto, como" que picado por uma vespa.
— Nunca! - rugiu.
— Obrigado, senhor - disse o conde, fazendo uma reverência -, acabou de dar a resposta que eu esperava de vocês. E dedico um pensamento de reconhecimento aos bravos cayugas, cuja incursão em.suas terras os fez de súbito tomar consciência da importância" que já atribuem a elas. Vocês ficam.
Manigault entendeu que mais uma vez caíra na armadilha e hesitou em se irritar.
- Pois bem, sim, ficamos! - resmungou. - Acha que vamos nos dobrar a todos os seus caprichos? Ficamos, e trabalho é o que não falta.
A jovem esposa do padeiro interveio, timidamente:
— Pensei numa coisa, Monseigneur. Se me derem, uma bela farinha e me ajudarem a construir um forno na terra ou com pedras, poderei assar pão tanto quanto for preciso, pois eu ajudava meu homem no comércio dele. E meus filhos também sabem moldar pãezinhos e pães de leite.
— E eu - exclamou Bertille - poderia ajudar meu pai a fazer papel! Ele me ensinou os segredos de sua fabricação, pois sou sua única herdeira.
— Papel! Papel! - disse Mercelot, como se chorasse. - Está louca, minha pobre criança? Precisa-se de papel neste deserto?
— Está enganado - disse o conde. - Depois do cavalo, o papel é a mais bela conquista do homem, que não pode viver sem papel. Ele ignora a si mesmo se não pode exprimir seu pensamento dando-lhe uma forma menos perecível que a palavra. A folha de pergaminho é o reflexo onde ele gosta de se contemplar, como a mulher em seu espelho... A propósito, eu esquecia, senhoras, que lhes reservei acessórios indispensáveis, sem os quais não poderiam iniciar uma nova existência... Manuel, Giovanni!...
Os marujos chamados aproximaram-se trazendo um cofre que haviam desembarcado com cuidado da chalupa. Aberto, revelou, entre camadas de palha protetora, espelhos de todas as formas e tamanhos.
Joffrey de Peyrac pegou-os e ofereceu-os às senhoras e senhoritas, cumprimentando-as uma a uma, como na primeira noite a bordo do Gouldsboro.
— A viagem está terminada, senhoras. Se foi conturbada e por vezes penosa, eu gostaria, porém, de que conservassem como lembrança apenas esta bagatela, onde poderão contemplar seus traços. Esse espelhinho há de tornar-se para vocês um fiel companheiro, pois não lhes informei de uma característica deste país. Ele embeleza. Não sei se o fenómeno se deve ao frescor dos nevoeiros, aos eflúvios mágicos e mesclados do mar e da floresta, mas os seres que aqui habitam são famosos pela perfeição de seu corpo e rosto. Não farão o ditado mentir. Olhem-se! Contemplem-se!
— Não me atrevo - disse a Sra. Manigault, tateando a coifa e tentando ajeitar o cabelo -, parece-me que estou com uma cara de dar medo.
— Mas não, mãe. Você está muito bonita, é verdade! - exclamaram suas filhas, tocadas com o embaraço dela.
— Fiquemos - suplicou Bertille, girando o espelho com cabo de prata em que acabava de se olhar.
CAPÍTULO XII
O grande cacique Massaswa
O grande cacique Massaswá, que surgia em seu cavalo branco, tomou por uma manifestação especial de boas-vindas o reflexo dos espelhos que brandiam asmulheres de rosto pálido e roupas estranhas.
Ficou satisfeitíssimo. Desceu pelo caminho ao passo lento e grave da montaria, rodeado de sua guarda de guerreiros, e acorreram índios"de todo lado, de modo que ele parecia avançar em meio a um feixe de plumas. O som ritmado de um tambor acompanhava essa marcha e os saltos ágeis dos dançarinos que o precediam.
Chegando ao pé da rampa, desmontou e foi na direção do grupo com uma lentidão solene e calculada. Era um ancião de grande estatura, com o rosto de cobre vermelho vincado por mil rugas. O crânio raspado, pintado de azul, levava no centro um verdadeiro gêiser de plumas multicoloridas e duas longas caudas espessas, de uma pelagem listrada de cinza e preto, que devia pertencer a uma espécie local de gato selvagem.
O busto nu, os braços cobertos de braceletes e as pernas eram tao finamente trabalhados de tatuagens que se diria estar vestido de uma delgada rede azul. A tiracolo, do ombro até as ancas, levava várias voltas de pérolas brutas e cabochões de vidro de todas as cores. Tinha-as também nos braços e nos tornozelos, junto com plumas. Sua tanga sumária e a grande capa eram feitas de um tecido de fibras vegetais, lustroso e simples, mas soberbamente bordado de preto sobre um fundo branco. Nas orelhas levava estranhos brincos feitos de bolas de peles, cheias e pintadas de vermelho.
O Conde de Peyrac encaminhou-se até ele e os dois se cumprimentaram com gestos hieráticos de braço e mão. Depois de alguns minutos de colóquio, o chefe reiniciou a caminhada em direção aos protestantes, mas desta vez carregava cuidadosamente nas duas mãos um longo bastão ornado de duas asas brancas de gaivota e que terminava numa custódia de ouro de onde saía um leve fio de fumaça.
Parou diante do Pastor Beaucaire, que Peyrac lhe apontava.
— Senhor pastor - disse este último -, o grande cacique Mas-saswa lhe apresenta o que os índios chamam de cachimbo da paz. É apenas um longo cachimbo cheio de tabaco. O senhor deve tirar algumas baforadas na companhia dele, pois fumar do mesmo cachimbo é sinal de amizade.
— Mas eu nunca fumei - disse o velho, apreensivo.
— Tente! Recusar seria considerado uma declaração de hostilidade.
O pastor levou o cachimbo aos lábios e fez o melhor que pôde para dissimular a repugnância. O grande cacique, depois de haver soprado longas volutas, passou-o a um adolescente esguio, de grandes olhos negros, que o seguia por toda parte, e foi sentar-se perto do conde, sobre tapetes que tinham sido empilhados sob um carvalho secular cujas raízes enormes se alongavam como ten-táculos até quase o mar.
A uma indicação transmitida por Nicolau Perrot, o pastor e Manigault tomaram lugar à esquerda do cacique.
O chefe continuava a exibir completa impassibilidade. Parecia não prestar atenção a nada de especial. Mas sua pele imberbe e enrugada tremia imperceptivelmente.
A imagem que oferecia era um tanto petrificada, mas também a de alguém à espreita. Uma de suas mãos estava negligentemente enfiada num cofre, contendo pérolas e pedras brilhantes, que o Conde de Peyrac lhe oferecera, enquanto a outra acariciava o machadinho com cabo simples de cerejeira, mas cuja lâmina era feita de um esplêndido jaspe do México, enquanto uma grande esmeralda terminava o cabo. Era menos um objeto de guerra do que uma jóia simbólica.
Por vezes umà rápida contração fechava-lhe ainda mais os olhos oblíquos, ao pousarem de soslaio sobre seu corcel branco, enquanto em outros momentos o olhar, como uma navalhada, passava de um a um pelos assisterúes, fazendo estremecer tanto o pouco receptivo advogado Carrère quanto um homem aguerrido quanto Berne.
Angélica sentiu o mesmo choque indefinível e o constrangimento subsistiu, mesmo quando o chefe desviava o rosto, aparentemente desligado e camuflado por uma expressão de tédio condescendente.
Dois índios, cobe-rtos de adornos, mantinham-se em pé atrás dele.
Nicolau Perrot of apresentou quando avançou para traduzir as palavras do cacique. Dirigindo-se aos protestantes, acrescentou explicações:
- O grande chefe Massaswa veio por terra dos arredores de Nova Amsterdam, quer dizer, Nova York. Massaswa jamais quis colocar os pês num navio, embora viaje de bom grado durante meses em piroga. Aqui fica o limite extremo de sua jurisdição, e é raro que ele venha até este local, mas o encontro com o Sr. Conde de Peyrac, quando este retornasse da Europa, estava previsto há muito tempo... E bom que tomem parte, se vão permanecer aqui... Os dois outros que vêem ali são chefes locais, os chefes Kaku e Mulofwa, que comandam os abenakis, pescadores e caçadores do litoral, e os moicanos, agricultores e guerreiros do interior.
O grande cacique pôs-se a falar, depois de saudar o sol e o céu. Sua voz adotava o tom de uma litania monocordia que às vezes parecia exprimir uma surda ameaça.
- Não é de modo algum habitual que um chefe tão grande quanto eu, Massaswa, cujas terras se-estendem do longínquo sul, onde cresce o tabaco e onde combati contra a vontade o velhaco espanhol que nos prometia o apoio de seus colonos, mas que queria nos transformar em escravos ou em nómades... até os confins do grande norte, onde apenas o nevoeiro forma a móvel fronteira de meu reino, quero falar do país onde estamos, onde meu vassalo Abenaki-Kaku, grande pescador e caçador de focas, aqui presente, assim como meu outro vassalo não menos valente, o poderoso guerreiro e caçador de renas, alces e ursos, chefe dos moicanos... Não cabe, portanto, a mim, grande chefe de chefes poderosos e temíveis, vir diante de um cara-pálida, por mais re-nomado que seja ele, para deliberar sobre a paz ou a guerra entre nós...
O monólogo era entrecortado de pausas, durante as quais o cacique parecia adormecer, enquanto o canadense lhe traduzia as palavras.
- ... mas não esquecerei que compartilhei meu poder com este senhor vindo do outro lado do mar, pois ele nunca fez uso de suas armas contra meus irmãos vermelhos... Dei-lhe o poder de fazer prosperar minhas terras segundo a arte dos caras-pálidas, enquanto conservo o de governar meus irmãos segundo nossas tradições... Assim nasceu a esperança em meu coração fatigado de tantos combates e decepções... Receberei, então, os amigos dele em seu nome, porque ele ainda não me enganou.
A fala durou longo tempo. Angélica via que o marido prestava grande atenção, irnpedindo-se qualquer movimento de impaciência. Ela acreditou entender que o cacique se preocupava com o comportamento dos recém-chegados em relação aos indígenas da zona costeira quando ele ou seu aliado estivessem ausentes.
- Eles não vão esquecer as promessas que você me fez e se deixar arrastar pela fome de destruir e esmagar todos os outros humanos à volta deles, essa fome insaciável que habita o coração dos caras-pálidas?... Quando você estiver longe?,..
"De que ausência ele está falando?", perguntou-se Angélica.
O ardor do olhar do grande cacique a atingia às vezes, embora nenhum observador atento pudesse dizer que ele pousara os olhos sobre aquela mulher.
"É absolutamente necessário que eu o ache simpático, caso contrário estaremos todos perdidos", pensou ela; "se ele sentir meu medo ou minhas suspeitas, farei um inimigo."
Mas, quando Nicolau Perrot traduziu a frase em que ele falava da fome de esmagar os outros que habita o coração dos caras-pálidas, ela encontrou o caminho daquela raça desconhecida, assim como fizera, antes dela, seu marido.
"E ele que tem medo e se interroga. E ufh homem orgulhoso, que foi, com as mãos carregadas de presentes, ao encontro de homens cobertos de ferro e fogo que' desembarcavam em suas praias... E foi forçado a odiar e a lutar..."-
Aos pés de Massaswa, o adolescente de grandes olhos negros que ela notara à chegada levantou-se afinal e,'pegando omacha-dinho de jaspe que o cacique lhe estendia, cravou-o com um golpe seco na areia ..vermelha. .",
Foi o sinal para outra cerimónia. Todos se levantaram e seguiram até a beifa do mar. Massaswa derramou várias vezes a água gelada na caheça, depois, servindo-se de um feixe de palha de milho como de. um aspèrsório, mergulhou-o numa cabaça cheia de água do mar e aspergiu fartamente a sua volta, tanto seus súditos quanto os velhos, e novos amigos, repetindo, a saudação índia:
- Na pu tu daman asurtati...
Em seguida todos se sentaram na praia, para participar do festim.
CAPITULO XIII
Joffrey de Peyrac descobre-se loucamente apaixonado
Joffrey de Peyrac pensava no velho cacique Massaswa. O dia que terminava lhe trouxera, ao lado de grandes satisfações, preocupações sérias.
O elo que ainda freava Massaswa no caminho da revolta contra os europeus lhe parecera naquele dia particularmente frágil, e sentia-se ainda mais preocupado por entender as mil razões que tinha o grande chefe para se lançar numa guerra encarniçada que seria apenas uma solução do desespero. Massaswa jamais poderia compreender que os brancos com que se aliava não eram livres e que, contraditos por governos distantes, viam-se acuados a cometer atos de traição para com ele.
Aqui em Down East, felizmente, a distância, quase ignorado, o gentil-homem francês ainda podia agir de acordo com a própria vontade. Massaswa conhecia o valor de sua palavra. Não fora sem segunda intenção que entregara o machado de guerra a seu filho adotivo espanhol, uma criança cujos pais haviam sido mortos por uma de suas tribos e que ele recolhera e criara para ensinar-lhe "a vida feliz". Incumbindo-o de enterrar o machado simbólico na areia, reafirmava sua vontade de esperar.
Acabava de afastar-se, carregado de presentes. A algazarra do dia sucedia-se uma calma pesada. Desaparecidos os homens, o local recuperava o ar solene das paisagens virgens.
O Conde de Peyrac caminhava sozinho na praia. A passo firme, escalava os rochedos vermelhos que o anoitecer arroxeava e por vezes se detinha, deixando o olhar vagar pela baía e seus promontórios.
As ilhas adormeciam na bruma, que se assemelhava a inúmeras nuvens num firmamento de cor lilás.' No alto, o forte de toras se confundia com a floresta. Na enseada, o navio ancorado se apagava. O ruído da ressaca parecia amplificar-se em harmonias sonoras. O mar, senhor imperioso dê uma costa que a cada estação modelava à imagem de seus caprichos, reafirmava seus direitos. Em breve seria inverno, o espetáculo das tempestades líricas e enlouquecidas da terra americana: furacão, frio negro, matilhas de lobos esfomeados. Joffrey de Peyrac estaria longe, enfrentando o mesmo inverno entre as florestas e os lagos do interior.
O Gouldsboro estaria longe. Daria o comando do navio a Erik-son, e logo nos primeiros-dias de outono o-navio zarparia para a Europa levando peles, ainda a única mercadoria negociável a exportar da região inexplorada.
O conde fazia-se perguntas. E o tesouro dos incas, recuperado por seus mergulhadores em galeões espanhóis no mar das Caraíbas? Erikson seria capaz de negociá-lo? Ou seria preciso enterrá-lo nas areias, à beira da floresta, à espera de outra viagem? Ou então colocá-lo à disposição dos protestantes, que o utilizariam, peça por peça, em troca de mercadorias trazidas por eventuais navios que fizessem escala na baía? Mas com isso surgia o risco dos indesejáveis. Em vez de recebê-los com ouro, seria melhor recebê-los com chumbo? Praticamente só piratas errantes vinham lançar âncora naquelas paragens. Distribuir-se-iam mosquetes a todos os rocheleses, e D'Urville, no forte, entre dois goles de cerveja de ácer ou de milho, garantiria a defesa dos colonos com seus canhões. Alguns homens da tripulação ficariam sob as ordens do gentil-homem normando, enquanto o Gouldsboro levaria de volta ao Velho Mundo os mediterrâneos e os mouros e tentaria recrutar de preferência nórdicos e outros colonos. Aconselharia a Erikson que fosse a seu país de origem - nunca se soubera exatamente qual era, mas certamente era nórdico - e escolhesse de preferência protestantes, de modo que pudessem integrar-se com mais facilidade na nova comunidade.
E os espanhóis de Juan Fernández? Se insistiam em não querer retornar aos planaltos ardentes de Castela, só podendo viver à sombra cruel das florestas do Novo Mundo, o que fazer? Deixá-los com D'Urville? Nào seriam demais, quando se tratasse de levar a mecha ao canhão e, mais ainda, se o fermento das revoltas indígenas se propagasse entre abenakis e moicanos. Mas a co-habitação pacífica com Dom Juan Fernández, esse doente, e seus homens, suscetíveis como árabes, sombrios como juízes da Inquisição, revelava-se cheia de emboscadas. D'Urville e o chefe Kaku já lhe haviam apresentado queixas a esse respeito. O que aconteceria se Dom Juan resolvesse enfrentar o Pastor Beaucai-re, um herege?...
Decidiu levá-los consigo. Militares aguerridos, decididos perante os riscos das expedições, falando vários dialetos indígenas, eles pareciam perfeitos para assumir a proteção da caravana. Mas os espanhóis eram tão odiados que sua presença poderia inspirar desconfiança e prejudicar os projetos do conde. Em todo caso, no local para onde se dirigia já o conheciam e sabiam da proteção de que gozava junto ao grande Massaswa. Assim, aceitariam os espanhóis. Sem dúvida seriam os primeiros a morrer. Uma fle-chinha soprada de uma zarabatana, por entre as árvores...
Por que não queriam retornar à Europa? Naqueles sobreviventes que tinham vindo pôr-se sob sua proteção, Joffrey de Peyrac tinha a imagem de decadência que ia atingir a maior nação do mundo civilizado. A Espanha - da qual se sentia próximo por suas origens languedocianas e por gostos de mesma raça: a mina, os metais nobres, a aventura do mar, a conquista - deslizava para um abismo onde sua hegemonia seria destruída. Responsável pelo massacre de trinta milhões de índios e pelas duas Américas, como resistir ao desequilíbrio provocado pelo crime em massa? A Espanha ia desaparecer junto com as raças sacrificadas. O velho Massaswa seria bem vingado!
Quem a substituiria no Novo Mundo? Qual seria o povo designado para reunir as forças dispersas, recolocar ordem nas riquezas desperdiçadas por saqueadores ávidos e recolher a pesada sucessão dos massacres? O futuro já se delineava com precisão. A oportunidade parecia oferecer-se não aos filhos de uma única nação conquistadora, mas, ao contrário, aos representantes de diversos países, unidos pelo mesmo objetivo: fazer a nova terra prosperar e prosperar com ela. O Estado de Massaswa já era o mais povoado de brancos da América, .mas os espanhóis não estavam representados ali. Havia sobretudo ingleses e holandeses, que acabavam de perder Nova Amsterdarn, mas que se habituavam à nova denominação: Nova York. Havia também suecos, alemães, noruegueses e inúmeros diligentes finlandeses, partidos sem receio dos confins da Europa para um país que lhes apresentava condições climát-icas análogas às de seu país original. Peyrac era um dos raros franceses a sonhar em instalar-se naquela no man's land, uma tjérra de-ninguém, no norte do Estado. A influência inglesa, e" mes-mo- de_Boston, manifestava-se pouco ali.
Recebido de início com-suspeita,, adquirira a confiança das co-• lônias inglesas por sua perfeita honestidade-comercial, inesperada da parte de um homem cujo porte e espírito logo o faziam catalogar, por aqueles nórdicos adeptos da Reforma, como um perigoso aventureiro. "
No entanto, fizera amizades sólidas. E, durante os anos em que se ocupara de mergulhos no jmar das Caraíbas, viera com frequência a Boston, onde reinava um clima totalmente diferente, tanto física quanto moralmente. O contraste o atraía.
Em sua opinião, nenhuma obra durável se poderia edificar por muito tempo nas Caraíbas. As fortunas ali nasciam num lance de dados, de especulações, e todos os dias corriam o risco de ruir, minadas pelos ataques de flibusteiros ou piratas, que com frequência se confundiam. Pagar tributo a cada um custava caríssimo. A febre do ouro espanhol mantinha as guerras. Ao lado do encanto da aventura no maravilhoso cenário das ilhas, o jogo cansava depressa por sua esterilidade.
Um conflito com as autoridades espanholas o fizera renunciar ao projeto de confiar o filho aos jesuítas jde-Caracas.
Harvard, no norte, criada pelos puritanos uns trinta anos antes, tinha a reputação de possuir os professores mais qualificados. Para grande surpresa sua, Peyrac descobriu ali um profundo desejo de tolerância "sem distinção de raças nem de religiões", diziam os estatutos da constituição que as colónias da Inglaterra tentavam obter.
Foi um quaker de cabelos brancos, professor de aritmética na dita universidade, Edmundo Andros, o primeiro a aconselhá-lo a ir para o Maine.
- É um país que se parece com você. Invencível, excêntrico, dotado demais para não ser desconhecido. Estou certo de que fará dele sua região favorita. Suas riquezas são imensas, mas escondem-se sob uma aparência desconcertante. Na minha opinião é o único lugar onde as leis habituais do universo não parecem poder aplicar-se exatamente e onde não nos sentimos ligados por uma multidão de regrinhas mesquinhas e obrigatórias. No entanto, você logo perceberá que essa estranheza pertence a uma ordem superior das coisas e não a um desafio anárquico. Ali ficará regiamente só e livre por muito tempo. Pois poucos governos se sentem tentados a instalar-se Já. A região dá medo. Sua' reputação é desastrosa. As pessoas dóceis e fracas, os tímidos, os delicados, os seres artificiosos ou egoístas, os espíritos simples ou mtegros demais quebram-se irrecorrivelmente. A região exige homens autênticos, com uma ponta de originalidade. E obrigatório: a própria região é original, no mínimo pelos nevoeiros de mil cores.
Ele o apresentara ao velho Massaswa. Um dos filhos do chefe era aluno da universidade.
Dos projetos de colonização da costa, Joffrey de Peyrac passara aos de garantir para si o interior. Nenhum território pode prosperar se não se apropria de suas riquezas subterrâneas. A necessidade monetária deixava as colónias na dependência dos grandes povos distantes, a quatro mil léguas dali, os reinos da Inglaterra ou da França.
Nicolau Perrot lhe falara de jazidas de chumbo argentífero nas nascentes do Mississipi.
Chegando a este ponto de suas reflexões, Joffrey de Pevrac levantou a cabeça. Seu olhar, que há alguns minutos, pensativo, acompanhava sem ver o jogo atormentado das ondas de um azul de tinta a seus pés, retomou posse do mundo que o rodeava, e um nome lhe veio os lábios: Angélica.
De imediato seu coração se tornou mais leve, a preocupação dissipou-se como um nevoeiro caprichoso, e a confiança voltou-lhe.
Repetiu vár-ks vezes: Angélica!, Angélica, e absorveu-se no estudo desse curioso fenómeno. Cada vez- que pronunciava o nome, o horizonte lhe parecia clarear, a ingerência dos reis da França ou da Inglaterra tornava-se improvável, e os obstáculos mais inquietantes afastavam-se com um piparote.
Pôs-se a rir. Ela estava ali, e o mundo iluminava-se com isso. Ela estava ali, e tudo ficava melhor para ele. Ela o amava, e não havia mais nada a temer. Revia a terna claridade de seus olhos quando ela lhe disser-a de um átimo: "Você é capaz de todas as grandezas..." Com" esSà frase,^ficara feliz como um jovem cavaleiro a quem a dama; escolhida lança a luva num torneio.
Vaidade? Nãó. Mas'o renascimento de um sentimento que se extinguia nele por falta de alimento e de um ohjeto que lhe fosse digno: a alegria de ser amado por uma mulher e de amá-la.
Angélica lhe era devolvida na hora em que o espreitava o mal dos homens que têm muita experiência sem nem por isso perder
lucidez: a amargura. Vai-se pelo mundo, e por toda parte a cria-ão oferece suas maravilhas, mas em toda parte e todo tempo e encontram as mesmas ameaças de morte escondidas por trás Jas obras da vida, riquezas inexploradas, talentos desperdiçados, estinos injustos, a beleza da natureza desdenhada, a justiça escarnecida, a ciência temida, tolos, fracos, fracassados, mulheres áridas como o deserto.
Então, em certas horas, a amargura sobe ao coração. O cinismo se insinua nas palavras, veneno que as transforma em frutos mortíferos. E a morte, já, que lhe toca.
- Eu amo a vida! - dizia Angélica.
Ele revia-lhe o rosto pálido e ardente, os olhos admiráveis, e acreditava sentir sob os dedos a suavidade de sua cabeleira.
- Como você é bela!... Como é bela, minha amiga! Sua boca é uma fonte lacrada. Uma fonte de delícias.
Angélica encarnava todas as mulheres. Não pudera compará-la a outras nem cansar-se dela.
Sob todos os aspectos em que a conhecera, ela sempre encontrara o meio de espicaçar-lhe a curiosidade e exaltar-lhe os sentidos.
Quando, em Cândia, ele imaginou que não a amasse mais, devido às traições, bastou que a visse para imediatamente ficar transtornado de desejo e ternura. Imaginava haver-se desligado dela a ponto de abandoná-la a outros sem remorsos, mas a simples ideia de que um Berne tivesse tentado beijá-la lançava-o numa fúria ciumenta.
Queria desprezá-la e descobria de súbito que era a primeira mulher cujo caráter lhe inspirava uma admiração real. Imaginava não desejá-la mais e não parava de pensar em seu corpo, sua boca, seus olhos, sua voz, e de procurar o meio hábil pelo qual poderia reconduzir tanta beleza reticente à volúpia.
Por que o mau humor que lhe inspiravam as pesadas roupas de La Rochelle, senão porque dissimulavam bem demais as formas cuja suavidade, cujos segredos ele ardia por reencontrar?
Sua tentação de humilhá-la, de feri-la era febre de posse.
Ela o fizera perder o controle habitual. Seus cálculos de homem, sua experiência das astúcias femininas se quebraram como vidro e não lhe haviam servido de nada.
Ela o fizera perder a cabeça, eis tudo!
E por isso ele lhe tirava o chapéu e lhe fazia uma funda reverência, com mais consideração ainda pelo fato de ela não parecer notar a própria vitória.
Também por isso ela o prendia.
Sua reserva não era fácil de vencer.
Não era dessas mulheres tagarelas que espalham aos quatro ventos as confidências de suas emoções mais íntimas. Imaginavam-na espontânea, irrestrita, mas a adversidade desenvolvera-lhe o orgulho nativo. Menos por desdém do que por pudor, ela renunciava a entregar-se, sabendo como é inútil buscar refúgio no coração dos outros.
Ela baixava os longos cílios, não dizia nada. Fugia para dentro de si mesma. Para que jardim secreto? Para que recordações? Ou que dor?
Angélica colocara-lhe em xeque o dom de ler o pensamento, que inúmeros adivinhos haviam reconhecido nele e que ele mesmo desenvolvera e aperfeiçoara com os sábios do Oriente.
Seria porque a amava demais? Ou porque o pensamento dela, de uma força rara, embaralhava as.ondas divmatórias?
Era uma das razões pelas quais aguardara com impaciência o veridicto de Massaswa.
Massaswa, clarividente como os seres que vivem em contato com a natureza, rico de uma longa existência que lhe aguçara as antenas intuitivas, não se enganaria.
Peyrac providenciara para que Angélica ficasse na primeira fila entre os protestantes, na praia. Massaswa parecia não ver nada, mas o conde sabia por experiência que ele notava tudo. . Depois da cerimónia conversaram muito tempo, falando de uma coisa e outra: dos espanhóis do sul, dos quakers de Boston, do rei da Inglaterra, da grande quantidade de alces na região e das divindades do mar que não é fácil controlar.
- Saberá aliar-se com as divindades da terra como com as domar, meu amigo? Tem motivo para abandonar aqueles que aceitaram seu domínio ê encontrar outros espíritos, ciumentos e desconhecidos?
Estavam ambos sentados sobre o promontório diante do forte, de onde descortinavam o mar. O cacique viera de longe para conversar com aquele a quem chamavam de O-Homem-que-Escuta-o-Universo. Era preciso dar-lhe tempo. Joffrey de Peyrac respondia-lhe com calma e respeitava-lhe os longos silêncios.
Finalmente o cacique dissera:
- A mulher-com-cabelo-de-luz, por que fica entre os brancos-de-alma-fria?
E, após um momento de reflexão:
- Ela não lhes pertence. Por que está entre eles?
Peyrac manteve-se calado. Esperava, e notou que seu coração batia com uma ansiedade juvenil. O cacique puxou longas baforadas de seu cachimbo. Pareceu dormir um pouco, depois a faísca de seu olhar reacendeu-se.
- Essa mulher é sua. Por que a deixa no exílio entre eles? Por que renega o desejo que sente por ela?
Tinha um ar quase escandalizado, como toda vez que descobria o comportamento insensato dos brancos. Eram as únicas ocasiões em que seu rosto impassível exprimia seus sentimentos.
- O espírito dos brancos é opaco e rígido como uma pele mal curtida - respondeu Joffrey de Peyrac. - Não possuo sua visão penetrante, ó cacique, e me interrogo sobre essa mulher. Ignoro se ela é digna de penetrar sob meu teto e de compartilhar meu leito.
O velho índio balançou a cabeça.
— Sua prudência o honra, meu amigo. Ela tem tanto mais valor por ser rara. A mulher é a única caça que o caçador mais desconfiado considera inofensiva. E preciso ter recebido muitos ferimentos para retornar à sabedoria. Mas eu lhe direi as palavras que seu coração, já dominado pelo amor, espera ouvir. Essa mulher pode dormir a seu lado. Não lhe alienará a força, nem obscurecerá seu espírito, pois ela própria é força e luz. Seu coração é de ouro puro, uma chama suave arde ali como por trás da casca da choupana, a chama da lareira junto à qual o guerreiro cansado vem sentar-se.
— Grande chefe, não sei se essa luz também não o ofuscou - disse o Conde de Peyrac, rindo -, mas suas palavras ultrapassam minha expectativa, e a suavidade que lhe atribui não é uma astúcia de que ela se vale? Essa mulher, confesso-lhe, fez tremer príncipes.
— Disse eu que ela não tinha garras mais afiadas do que punhais para seus inimigos?... - disse o velho Massaswa, com ar aborrecido. - Mas você soube conquistá-la, e não tem nada a temer: é seu senhor para sempre.
O velho índio deu uma espécie de sorriso.
- Sua carne é de mel. Saboreie-a.
"Obrigado, velho Massaswa", pensava ele; "ainda que tivesse feito apenas isso, esclarecer meu espírito 'opaco e rijo' que se deixara envenenar pelas dúvidas, e já teria bem servido a seu povo. Pois, enquanto eu viver, agirei em sua defesa. E se ela estiver a meu lado, terei todas as forças para viver e para agir."
Porque outrora sofrera por havê-la perdido, forjara dela uma imagem frívola, dura e infiel. Cantor contara que a mãe nunca lhes falava dele. Ele começava a entrever que outras razões que não o esquecimento deviam ter-lhe ditado o comportamento.
A noite no Gouldsboro ensinara-lhe pelo menos uma verdade tranquilizadora: seus corpos eram feitos um para o outro.
A fome que ela sentia por ele,era mais forte do que todos os seus receios. Embora a bela boca patrícia tivesse permanecido fechada sob seus beijos, ele pudera'surpreender outras confissões. Ele continuava sendo o único homem capaz .de emocioná-la, de forçar-lhe a defesa. E para ele ela continuaria sendo a única mulher que - mesmo gelada, tremula, como estava na outra noite - podia proporcionar-lhe gozos amorosos próximos ao êxtase.
Ele conhecera amantes hábeis. Mas, com elas, tudo não passara de um jogo_encantador.
Com Angélica, quando a tomava nos braços, parecia-lhe que embarcava para a ilhaiíos deuses, a zona do fogo, o abismo escuro onde se sai de si mesmo, o breve paraíso. : .
O poder que sua carne, suave e dourada, exercia sobre a dele tinha algo de magia.
Esse poder, ele o provara violentamente, outrora, ao se espantar com o fascínio que lhe inspirava aquela bela criatura sem experiência.
Ele reencontrara esse fascínio, com a mesma surpresa e o mesmo encanto, quinze anos mais tarde, durante uma noite tão diferente, quando já não passavam, ele e ela, de exilados, quase estranhos um ao outro no mar enfurecido.
Levado pelo encantamento, ele podia murmurar:
- Só você!...
A vida apresentava-se fascinante. O Maine era uma região esplêndida e cheia de promessas. Angélica, a mais apaixonante das mulheres. Ele não teria dias e noites suficientes para amá-la, aprisioná-la, trazê-la de volta a si e reformar com ela a trilogia eterna: um homem, uma mulher, o amor.
Cheio de entusiasmo, ele caminhava^ .grandes passadas, a capa inflada pelo vento, olhando à volta com admiração.
Aquela costa com praias cor da aurora parecia-lhe de uma beleza delirante. Contemplá-la combinava-se nele com a descoberta de uma paixão como jamais conhecera. A chama crepitante do amor consumia-lhe o coração.
O que a vida lhe roubara antigamente era-lhe devolvido centuplicado. Fortuna, castelos, títulos? O que era isso diante da riqueza de ser um homem em seu apogeu, sobre uma praia nova, com um grande amor no coração?...
De volta ao forte, mandou selar um cavalo.
Angélica, naturalmente, devia estar no Acampamento Cham-plain. Só fazia o que lhe dava na cabeça. Os anos de independência a habituaram a resolver ela própria seu destino. Não seria fácil trazê-la de volta à férula conjugal. O velho Massaswa podia afirmar "Você é seu senhor", com uma confiança peremptória, mas, quando .se tratava de Angélica, convinha usar de uma infinita prudência.
Ele sorria ao seguir pelo caminho batido onde as árvores imensas e o cair da noite espalhavam uma sombra grandiosa.
"Uma conquista difícil torna o amor precioso...", ensinava Le Chapelain, o velho mestre da arte de amar. Distante estava a corte feliz onde ele se comprouve em ressuscitar as tradicionais justas amorosas de seu país. Não chegava a sentir saudade. Sempre soubera esquecer rapidamente os prazeres saboreados e gastos, para prestar atenção em outros. "Amor antigo expulsa o outro."
Apenas Angélica fizera mentir a filosofia do provérbio.
Nos arredores do Acampamento Champlain, encontrou um cortejo iluminado por tochas.
Era Crowley, que se mudava com a mulher, filhos e criados para ir dormir na aldeia indígena.
— Deixei minha cabana àquela lady admirável que maneja tão bem a pistola e que os índios apelidaram de Luz de Verão. Sr. de Peyrac, perdão. Felicito-o. Dizem que é sua amante.
— Não, ela não é minha amante, é minha mulher.
— Você, casado?! - exclamou o outro. - Impossível! Ela! Sua mulher? Desde quando?
— Há quinze anos - respondeu o conde, retomando o galope.
CAPÍTULO XIV
A noite das confidências
Chegando ao Acampamento Champlain, desceu do cavalo, deixou-o com o homem que o havia escoltado e insinuou-se, invisível, até a casa de Crowley. Luzes dançantes iluminavam as janelinhas de vidros preciosos. Ele inclinou-se para olhar o interior. Sensível à beleza e à feminilidade, ficou tocado pelo espetá-culo que descobria. Era muito simples, mas muito harmonioso.
Ajoelhada diante da lareira, Angélica lavava Honorina em pé dentro de urh balde. A criança, nua-, rosada pela luz das chamas, movendo sobre os ombros a longa cabeleira cintilante, tinha a graça inquietante e cândida dessas criaturinhas matreiras que as lendas gostam de evocar. Espíritos das praias ou dos bosques, enfeitados de conchas ou folhas, acompanham, diz-se, os homens perdidos, pregam-lhes mil peças, depois desaparecem, e fica-se triste como se se tivesse perdido a própria infância.
Perto dela, Angélica parecia desarmada. Sua beleza deixava de ser perigosa para ser apenas encantadora, e ele entendeu que fora Honorina que fizera dela essa outra mulher cue ele tivera tanta dificuldade em reconhecer.
Mulher adorável, na verdade. Pela primeira vez ele via nos gestos simples que ela fazia uma espécie de vocação natural. Lembrava-se de que ela fora educada numa pobreza quase camponesa de nobres da província. "Uma selvagem", murmurava-se em Toulouse na época em que ela acabava de lhe ser trazida e que ele a apresentava como sua mulher. Ela conservara esse dom de estar perto das coisas e de se bastar com pouco.
Fazer escorrer água da fonte sobre o corpinho da filha a deixava feliz.
Ele a teria preferido malvada, azedada pelo fiasco de uma existência que, depois de ter feito dela a rainha de Versalhes, levava-a desprovida de tudo para a costa de um país ainda meio selvagem? Sua beleza se teria dado bem com as marcas do rancor, da desilusão? O ódio cai bem apenas à adolescência. Ela poderia queixar-se. Mas a vida conservara para ela seu sabor. O elo que unia mãe e filha era admirável. Nem ele nem ninguém poderia rompê-lo. Há povos orientais que acreditam na reencarnação dos seres. Senhorita Honorina, quem é? De onde vem? Para onde vai?
A criança voltou o rosto para a janela e ele teve a impressão de que ela sorria.
Joffrey de Peyrac rodeou a casa de madeira e foi bater na porta.
Angélica havia lavado o cabelo. Lavara o de Honorina e o de todas as crianças que lhe caíram sob as mãos. Teria feito vinte vezes o trajeto entre a fonte e a cabana sem queixar-se do cansaço, tão inesgotável era a alegria que lhe davam o sabor e a abundância daquela água doce.
O corpo de Honorina estava marcado pelo sal do mar. Tinha a pele de uma palidez anormal; ela, tão rechonchuda, mostrava os ossos.
- Senhor - dizia a Sra. Carrère. - Mais um pouco e eles todos nos morreriam nos braços.
Mas todos haviam chegado sãos e salvos à Terra Prometida.
Na casa de Crowley, mais confortável, haviam-se instalado também a mulher do advogado e seus filhos mais novos, a mulher do padeiro e seis dois meninos, e as três crianças Berne.
— Aí está o Homem Negro - disse Honorina. Acrescentou com um grande sorriso:
— Eu gosto bastante do Homem Negro.
Essa declaração fez com que Angélica levasse algum tempo a identificar o homem negro em questão. Ao ver o marido, ficou toda confusa, sobretudo quando ele, depois de cumprimentar a todos, aproximou-se dela para dizer-lhe entre alto e baixo:
— Eu a procurava, Angélica...
— A mim?"
— Sim, a você, por estranho que lhé"pareça. Quando estava a bordo de meu navio, eu pejo-menos sabia onde encontrá-la, mas, agora que tem um continente'à sua disposição, a tarefa se tornará menos fácil.
Ela riu, mas seu olhar era melancólico.
- Devo entender que me desejaria a seu lado?
- Tem alguma dúvida? Já não lhe afirmei isso?
Angélica desviou a cabeça. Tirou Hpnorina do balde e envolveu-a numa coberta.
— Ocupo tão pouco espaço em sua vida! - disse ela a meia voz. - Conto tão pouco, sempre contei tão pouco! Não sei nada a seu respeito, de sua vida passada, de sua vida atual. Escondeu-me tantas coisas! Negaria isso?
— Não. Sempre fui um pouco mistificador. Mas você não é diferente: Felizmente o grande cacique me afirmou que você é a mais límpfda das criaturas. Eu me pergunto se a clarividência dele não se deixou surpreender por esse poder a que tantos outros sucumbiram... O que pensa dele?
Angéiica levou Honorina até a cama que ela dividia com Lau-rier. Cobriu-a e deu-lhe a caixa de brinquedos. Há gestos que são eternos.
— O grande cacique?... Pareceu-me impressionante, inquietante. Mas ele me dá pena, não sei por quê.
— Você é clarividente.
— Monseigneur - perguntou Marcial -, estas florestas que nos cercam lhe pertencem?
— Por aliança com Massaswa, tenho o direito de dispor do que não pertence aos índios aqui radicados. Ora, com exceção da restrita localização de suas aldeias e culturas que as rodeiam, o resto da região é completamente virgem. Õ subsolo nunca foi sondado. Talvez contenha ouro, prata, cobre.
— Então, o senhor é mais rico que um rei?
— O que é a riqueza, crianças? Se consiste na posse de um território mais vasto do que um reino, então sim, sou rico. Mas já não tenho castelos de mármore nem baixelas de ouro. Possuo apenas alguns cavalos. E, quando partir para o interior, só terei como habitação o céu estrelado e as ramagens das grandes florestas.
— Pois vai partir - interrompeu-o Angélica. - Para onde? Por quê? Isso sem dúvida não me diz respeito?... Não tenho o direito de saber, nem mesmo de ser informada, se pretende ievar-me com você?
— Cale-se - disse Joffrey de Peyrac, encantado com a violência dela -, vai escandalizar estas senhoras.
— Tanto se me dá. Não há nada de escandaloso em uma mulher querer seguir o marido. Pois sou sua mulher, e doravante vou gritar isso por toda parte. Estou farta desta comédia. E, se me deixar para trás, reunirei minhas próprias tropas. E o seguirei. Estou acostumada a viver na floresta, sob as estrelas. Olhe minhas mãos. Faz muito tempo que não carregam jóias. Em compensação, sabem fazer pão sob as cinzas e manejar o mosquete.
— Foi o que me disseram. Parece que você fez uma magnífica excursão de caça contra os cayugas esta manhã. Mostre-me seus talentos - disse ele, tirando do estojo uma das pesadas pistolas com coronha de prata, com uma expressão de ceticismo que imediatamente encolerizou Angélica.
Tomou-lhe a arma das mãos e, lançando-lhe um olhar de desafio, examinou-a. Não estava carregada. Ela retirou a vareta que servia de socador.
— Onde está o escovilhão?
— O que pretende fazer com ele?
— Pode haver poeira, e isso faria a arma explodir.
— Minhas pistolas são sempre muito bem conservadas, mas sua preocupação é a de um bom atirador.
Ele desafivelou o cinto e atirou-o sobre a mesa com os vários acessórios: pistolas, punhais, bolsas de couro contendo pólvora ou balas.
Angélica encontrou o escovilhão numa dobra, Atarraxou-o com um gesto preciso e enfiou várias vezes a vareta no cano. Depois experimentou o gatilho, verificando a presença da faísca, apontando a arma para o lado da escuridão.
Depois de carregar o cano, escolheu uma bala, que girou entre dois dedos para examinar-lhe a redondez perfeita.
— Falta pólvora fina para acender.
— Use estas espoletas turcas. -Angélica obedeceu.
— Abra-me a janela, Marcial.
A noite tinha a claridade msólifaque lhe dava a luz filtrada pelo nevoeiro.
- Ali naquela árvore há um pássaro qiie não pára de soltar um grito desagradável.
Joffrey de Peyrac a examinava com curiosidade. "Então é bem verdade que "ela guerreou", pensava. "Contra .quem?... Contra o rei?..."
A mão fina que. apertava a coronha de prata estava firme, o braço que erguia a pesada, pistola fazia-o com desenvoltura.
O tiro partiu, (p grito estridente do pássaro calou-se.
- Que golpe-dé vista! - exclamou o conde. - E que vigor!
- continuou, apertando-lhe o braço. - Você tem músculos de aço! Decididamente o nosso grande cacique se enganou em sua avaliação.
Mas ele ria. Angélica tinha a impressão de que ele estava bem orgulhoso dela. As crianças, que haviam tapado as orelhas, gritaram bravo e queriam ir buscar a ave noturna sacrificada.
A vizinhança acorreu para impedi-las.
- O que está acontecendo? O que está acontecendo? Os índios? Os piratas?
A vista de Angélica, de pistola na mão numa nuvem de fumaça, provocou surpresa.
— Foi apenas uma brincadeira - tranqúilizou-os ela.
— Dessas brincadeiras já tivemos que bastasse - resmungaram vozes.
— Senhoras, estão satisfeitas com suas instalações? - perguntou o conde, com tanta urbanidade.quanto a de um anfitrião entre seus convidados.
As pobres mulheres responderam-lhe que ia tudo bem. Observavam-no com um misto de admiração e temor. O que ele dissera, ao lembrar aos orgulhosos burgueses de La Rochelle que suas mulheres estavam à altura deles, definitivamente as conquistara.
Foi Abigail, outra vez, quem teve a coragem de pronunciar as palavras que todas pensavam.
- Ficamo-lhe agradecidas, Monseigneur, pela graça insigne que nos concedeu hoje, apesar de nossos desregramentos. As perse
guições de que fomos alvo, a dor de havermos deixado nossos lares, o medo de não encontrar uma mão fraterna que nos socorresse nos haviam lançado na incerteza e na perturbação. Mas o senhor soube entender isso e poupar-nos.
Ele sorriu-lhe com uma inacreditável gentileza. Para Abigail, sempre se desarmava. Observando-o, Angélica quase sentiu ciúme. Ele curvou-se diante da jovem.
- Você é caridosa, senhorita, por assumir a responsabilidade de erros que não aprovou. Eu sei, senhoras, que tentaram demover seus esposos de um projeto criminoso e que adivinhavam destinado ao fracasso. Diga-se o que se disser, são vocês que têm o apanágio da lucidez. Sabem usá-lo conscientemente e mostram-se enérgicas, pois aqui estão numa terra na qual não se pode mentir.
O conselho foi apreciado em seu valor. O conde desejou-lhes bom repouso e elas se retiraram. A Sra. Carrère correu atrás delas para cochichar-lhes na escuridão uma notícia que ela não tinha muita certeza de haver compreendido direito: Monseigneur Rescator e Dame Angélica eram casados ou então iam se casar ou acabavam de se casar... Em suma, havia casamento no ar.
— Não sei se seus conselhos preparam amanhãs felizes aos maridos - disse Angélica com ar pensativo.
— Certamente que não. E estou muito satisfeito com isso. É minha vingança excepcional. Entregá-los aos pulsos enérgicos das esposas não é mais terrível, no final das contas, do que entregá-los ao carrasco?
— Você é incorrigível - disse ela, rindo.
Ele a segurou pela cintura com as duas mãos, ergueu-a no ar e fê-la rodopiar.
- Ria... ria... minha abadessinha... Tem um riso tão bonito!
Angélica soltou um grito. Entre as mãos dele, não tinha mais peso do que um maço de palha.
- Ficou louco!...
De volta ao chão, a cabeça lhe girava e ela não conseguia fazer outra coisa senão rir.
As crianças estavam encantadas: Nunca tinham tido direito a tantos espetaculos, principalmente na hora de dormir. Gostavam cada vez mais daquele país. Não iriam embora nunca.
— Mamãe - gritou Honorina -, é a guerra de novo?
— Guerra! Não! Deus nos livre. Por que pergunta isso?
— Você atirou com a grande pistola.
— Foi para rrie divertir.
— Mas a guerra é divertida - disse Honorina, desapontada.
— Como! - exclamou a mãe. - Você fica contente quando ouve todo aquele "barulhe, quando vê os feridos, os mortos?
— Sim, fico contepte - afirmou Honorina, .
Angélica olhòu-acôm o-espanto de todas as mães que descobrem o universo secreto de um filho.
- Mas...Achei que ficou triste quando viu Casca-de-Castanha...
A criança pareceu lembrar-se de algo. Seu rosto anuviou-se. Ela suspirou.
- Oh, sim,é um pouco chato para-Casca-de-Castanha que ele esteja morto...
O sorriso voltou-lhe logo.
- Mas é divertido quando todo mundo grita e corre e cai. Todo mundo parece irritado... A fumaça cheira bem. O fuzil faz clique! claque! clique! claque! Você briga com o Sr. Manigault e ele fica todo vermelho... e me procura por toda parte e me aperta nos braços... Você me ama muito quando há guerra... Fica na minha frente para que os soldados não me atinjam. É porque não quer que me tomem a vida. Ela ainda é pequena demais, enquanto sua vida já é longa...
Angélica estava dividida entre a preocupação e o orgulho.
— Não sei se é vaidade materna de minha parte, mas parece-me que ela tem raciocínios extraordinários para a sua ida de.
— Quando eu for grande - continuou Honorina, aproveitando-se do fato de que finalmente a ouviam com atenção -, sempre farei guerra. Terei um cavalo e um sabre e terei duas pistolas... Como você - disse, dirigindo-se a Joffrey de Peyrac -, mas as minhas terão coronhas de ouro e atirarei melhor que... melhor do que você - concluiu, com um olhar de desafio para a mãe. Ela refletiu.
— O sangue é vermelho. É uma cor bonita.
— Mas é horrível o que ela diz! - murmurou Angélica.
O conde sorria, olhando-as com o prazer sempre novo de descobri-las diferentes. A ternura e o sentimento materno que a desarmavam diante da filha a iluminavam de uma ingenuidade jovem. Ela nunca fora, nunca pudera ser a imperiosa rival da Mon-tespan, a revoltada correndo baixios à testa de suas tropas e que erguia com fria segurança o braço armado com a pesada pistola.
Alçou os olhos para -ele, como que para pedir-lhe a opinião numa situação que a ultrapassava, depois tentou tranqiiilizar-se.
- Ela gosta de guerra... Afinal, é um sentimento nobre. Meus ancestrais não a censurariam.
Esquecera de tal modo os maus dias que era como se apenas sua própria hereditariedade tivesse dado à filha aqueles gostos exaltantes e inquietantes. O Rescator reparou nisso, mas não disse palavra.
Tirou do dedo um anel de ouro lavrado, encimado por um grande diamante, e estendeu-o a Honorina. A criança apoderou-se da jóia com avidez.
- É para mim?
- Sim, senhorita.
Angélica interpôs-se.
— E uma jóia de grande valor. Ela não pode transformá-la em brinquedo.
— A selvageria da natureza que nos cerca pode fazer-nos reconsiderar o valor das coisas. Um pão de milho, um bom fogo valem mais do que um anel pelo qual se perderia a alma em Versalhes.
Honorina virava e revirava o anel. Encostou-o à testa, depois enfiou-o no polegar, finalmente o fechou entre as duas mãos.
— Por que faz isso por mim? - indagou de súbito, com intensidade. - É porque gosta de mim?
— Sim, senhorita.
— Por que gosta de mim? Por quê?.
— Porque sou seu pai.
A essa revelação, o rosto de Honorina transfigurou-se. Ficou muda. O rostinho redondo refletiu todos ós matizes da surpresa mais deliciada, da alegria mais intensa, de um-alívio inexprimível, de uma afeição sem limites.
De cabeça erguida, examinava com admiração a silhueta negra de bandoleiro em pé a sua cabeceira, e o rosto moreno, marcado de cicatrizes, lhe pareceu o mais sedutor que já contemplara.
Virou-se de repente para Angélica.
— Está vendo eu bem que lhe disse que o encontraria do outro lado do mar!...
— Não acha que agora deve dormir? - perguntou-lhe ele, sem se esquivar ao exame-qúe ela lhe"fazia.
- Sim, meu pai!
Com uma surpreendente docilidade, deslizou para debaixo da coberta, a mão apertada sobre o anel, e adormeceu quase ime-iatamente, com'uma expressão de beatitude.
— Senhor! - disse Angélica, maravilhada -, como adivinhou que a criança procurava um pai?
— Os sonhos dos coraçõezinhos femininos sempre me interessaram e, na medida de meus poderes, gosto de satisfazê-los.
Angélica pegou a lâmpada a óleo num crisol de madeira e afastou-a, para que a escuridão envolvesse o sono de Laurier e de Honorina.
No aposento vizinho, as duas mulheres punham as outras crianças na cama. Joffrey de Peyrac aproximou-se da lareira.
— Como você é bom! - disse ela.
— Como você é bela!
Ela dirigiu-lhe um sorriso de reconhecimento, mas desviou-se com um suspiro.
- Gostaria que às vezes você me olhasse como olha Abigail. Com amizade, confiança, simpatia. Dir-se-ia que teme de mim não sei que traição.
- Você me fez sofrer, Angélica.
Ela esboçou um gesto de protesto.
- Você é capaz de sofrer por uma mulher? - disse, cética.
Sentou-se junto à lareira. Ele puxou um escabelo e sentou também, perto dela, olhando as chamas. Angélica tinha vontade de tirar-lhe as botas, perguntar-lhe se estava com fome ou sede, de servi-lo. Não ousava. Já não sabia o que podia agradar àquele marido estranho que por vezes sentia próximo, por vezes distante, contra ela.
— Você foi feito para viver só e livre - disse ela, magoada. - Agora sei que um dia me teria deixado, teria deixado Toulouse para sair atrás de outra aventura. Sua curiosidade pelo mundo era infatigável.
— Você me teria abandonado primeiro, minha querida. O mundo perverso que nos cercava não teria admitido sua fidelidade, a você, uma das mais belas mulheres do reino. Tê-la-iam encorajado de mil maneiras a exercer sobre outros o seu poder, sua sedução.
— Nosso amor não era forte o suficiente para triunfar?
— Não lhe teriam dado tempo para edificar-se.
- É verdade - murmurou ela. - Ser casado é uma tarefa longa.
De mãos postas sobre os joelhos, perdia o olhar no jogo das
chamas, mas estava consciente até a ponta das unhas da presença dele, do milagre daquela presença que a fazia reviver os longínquos serões do Languedoc, em que conversavam próximos um do outro. Colocava a testa sobre os joelhos dele, encantada por suas palavras, que sempre lhe abriam horizontes desconhecidos, erguendo para ele olhos atentos e apaixonados, até a hora em que ele imperceptivelmente deslizava das palavras sérias para o gracejo e do gracejo para o amor. Como eram raras aquelas horas deliciosas!...
Sonhara tantas vezes com o impossível retorno dele!... Mesmo no tempo em que o acreditava morto, quando se sentia triste demais, imaginava um reencontro maravilhoso. O rei perdoando, Joffrey de Peyrac recuperando sua posição, suas terras, sua riqueza, ela vivendo a seu lado, feliz, apaixonada. Bem depressa a realidade dissipava as fantasmagorias. Podia-se imaginar o independente Conde de Peyrac pedindo perdão pelo único erro de haver atraído o ciúme de seu soberano? Joffrey de Peyrac subjugado, cortesão em Versalhes? Não, impensável, jamais o rei permitiria que ele recuperasse seu poder, jamais Joffrey de Peyrac se inclinaria. Seu gosto de criar, de agir, era intenso demais. Não pararia de atrair outras animosidades e outras suspeitas. Ela deu um sorrisinho cansado.
- Devemos, então, alegrar-nos com uma separação cruel que pelo menos evitou que transformássemos nosso amor em ódio, como tantos outros?
Ele avançou a mão e gassou-a suavemente pela nuca de Angélica.
- Você está triste esta noite. Já não aguenta de cansaço, indomável!
A carícia e a voz a ressuscitaram.
— Não, ainda me-sinto disposta a construir algumas cabanas, montar a cayalo outra vez, se for preciso, para segui-lo. Mas um receio me atormenta. Você quer partir e não me levar.
— Entendamo-nos bem, minha querida. Receio que tenha ilusões. Sou ricOj mas meu reino é virgem. Meus palácios não passam de fortes de toras. Não posso oferecer-lhe vestidos suntuosos, jóias. Como seriam inúteis neste deserto! Nem segurança, conforto, glória, nada do que agrada às mulheres.
— Apenas o amor lhes agrada.
— E o que dizem.
— Não lhe provei que não tenho medo da vida rude e dos perigos?... Adornos, jóias, a glória... Tive tudo isso à saciedade. Provei-lhe tanto a delícia quanto o amargor. Na solidão do coração, tudo tem gosto de cinza. Só me importa que me ame, que não me rechace mais.
- Começo a acreditar-lhe.
Tomou-lhe a mão, examinou-a.
Na sua, longa e dura, aquela mão frágil tremia, prisioneira. Ele lembrou que ela fora adornada de jóias, beijada por um rei, que empunhara armas com uma fria resolução, que batera, matara. Repousava como um pássaro cansado na palma de sua mão. Em seu dedo, outrora, ele introduzira um anel de ouro. A lembrança o fez estremecer, mas Angélica não podia acompanhar-lhe o pensamento. Ela levou um susto quando o ouviu perguntar à queima-roupa:
- Por que se rebelou contra o rei da França?
Imediatamente ele sentiu a mão da mulher afastar-se.
Falar do passado, de sua vida pessoal, era, para ele, doloroso como roçar um ferimento. Mas queria saber.
Ele a torturaria, mas forçá-la-ia a responder. Havia pontos obscuros que precisava esclarecer a qualquer preço, ainda que tivesse de sofrer de novo.
Viu dançar nos olhos de Angélica uma luzinha de medo. Sua determinação de exigir toda a verdade devia estar escrita em seu rosto.
— Por quê? - repetiu, mais duramente.
— Como sabe disso?
Ele fez um gesto que varria explicações ociosas.
- Eu sei. Fale!
Ela precisou fazer um grande esforço.
— O rei queria que eu me tornasse sua amante. Não aceitou minha recusa. Para alcançar seus fins, não recuou diante de nada, enviando soldados para guardar-me em meu próprio castelo, ameaçando prender-me e encerrar-me num convento, caso, depois de certo tempo de reflexão, eu não cedesse à sua paixão...
— E você nunca consentiu?
— Nunca.
— Por quê?
Os olhos de Angélica escureceram-se e tomaram a cor do oceano.
- Você pergunta? Quando admitirá, afinal, que eu o amava e que sua perda me reduziu ao desespero? Entregar-me ao rei!
Eu podia traí-lo, a você, que ele condenara injustamente? Ao tirá-lo de mim, ele me tirara tudo. Todos os prazeres, todas as honras da corte não podiam substituir sua ausência. Ah, como o chamei, meu amor!
Ela revivia aquele vazio cruel, aquele sofrimento por um amor perdido que por vezes dormia no fundo de seu coração, mas que um nada despertava até a dor. Então, atirou os braços com paixão à volta dele, apoiou a testa contra os joelhos dele. As dúvidas e as perguntas do marido faziam-lhe mal, mas ele estava ali. Só isso contava. Ao cabo de um instante, ele a forçou a levantar a cabeça.
— No entanto, você esteve bem perto de consentir?
— Sim - disse ela -, eu -era mulher, fraca diante de um rei todo-poderoso... Não tinha defesas.'Ele podia arruinar-me a vida uma segunda vez. Ele fez isso... Foi inútil que me aliasse a grandes senhores do Poitou que, por outras razões, se erguiam contra ele. Passou o tempo da força das' províncias. Ele nos dominou, venceu... Os soldados devastaram minhas terras, queimaram meu castelo... Uma noite degolaram meus criados, meu filho mais novo... Eles me...
Calou-se. Hesitava. Preferia calar-se, omitir-sua vergonha. Mas por causa de Holiqrinaj a criança bastarda cuja presença só podia despertar o amargor de um marido traído, era preciso falar.
- Honorina nasceu dessa noite. Quero que o saiba devido ao gesto que teve há pouco para com ela. Compreende, Joffrey?... Quando a olho, não há para mim, conforme o imagina, a recordação deomvhomem a quem eu teria amado, mas apenas o horror de uma noite ,de crimes e violências que me perseguiu durante anos e que eu gostaria de esquecer para sempre. Não estou tentando provocar-lhe a piedade. Seria um sentimento de sua parte
que me feriria. Mas quero afastar as sombras que pairam sobre nosso amor, justificar-me por essa pobre criaturinha que se ergueu entre nós e tranquilizá-lo acerca da ternura que sinto por ela. Como poderia não amá-la? - Ela respirou fundo antes de continuar: - Meus maiores crimes, cometi-os contra essa criança. Quis matá-la em meu seio. Assim que nasceu, abandpnei-a, sem um olhar... O destino a devolveu a mim. Levei anos para amá-la, para sorrir-lhe. O ódio da mãe presidiu-lhe a vinda ao mundo. Esse é meu remorso. Não se deve odiar a inocência. Você entendeu isso, pois a "acolheu, a criança sem pai. Entendeu que ela não maculava o valor do sentimento que me liga a você e que nada, sim, nada, juro, jamais pôde substituir, igualar a paixão, o fervor amoroso que me inspirou.
Joffrey de Peyrac levantou-se bruscamente. Ela o sentiu afastar-se, desligar-se dela. Falara com ardor, sem procurar as palavras, sem refletir no que dizia, tão sincera era a explicação, o grito de seu coração. E eis que ele a olhava, frio, em pé a sua frente, ele que há pouco murmurava "querida". Ela teve medo. Ele a teria levado a pronunciar palavras perigosas que não lhe perdoaria? Perto dele, perdia o sangue-frio, a prudência! Aquele homem sempre lhe seria misterioso.'Tão mais forte do que ela!... Com ele, era impossível usar de astúcia, mentir.' Espadachim inatacável na vida, não se deixava atingir no domínio do coração, sua parada era muito imediata.
- E seu casamento com o Marquês du Plessis-Bellière?
Angélica levantou-se. No estado emocional em que ele a lançara, sentia todos os choques com acuidade. Era ela mesma, em estado puro, e talvez ele notasse isso. Era a hora da verdade. Ela odiou-o por havê-la encurralado.
"Não", pensou Angélica, "não o renegarei, nem a ele nem ao filho que me deu." Olhou o marido com desafio.
- Eu o amava.
E depois, imediatamente, percebendo como essa palavra aplicada ao sentimento que Filipe lhe inspirara tinha pouco em comum com o amor que dedicava ao primeiro marido, explicou, febril:
- Ele era belo, eu sonhara com ele na adolescência, e ele me apareceu naquele oceano de tristeza, de abandono. Mas não foi por isso que casei com ele. Casei à força, obriguei-o a casar-se por meio de uma chantagem odiosa, mas eu era capaz de tudo para devolver a meus filhos a posição que lhes era devida. Só ele, o Marquês du Plessis, grande marechal e amigo do rei, podia introduzir-me em Versalhes e me fazer obter para eles cargos e títulos... Agora, eu sei, percebo que tudo o que fiz foi ditado pela febre de salvá-los, de arrancá-los ao destino funesto que pesava injustamente sobre eles. Vi-os na corte, como pajens, recebidos pelo rei. Então, que me importava atrair os golpes e o ódio de Filipe...
Uma espécie de ironia surpresa iluminou-se nos olhos negros que a observavam.
- O Marechal du Plessis teria podido odiá-la?
Ela o olhou como se não o visse. Naquela cabana perdida no fundo das florestas americanas, ela evocava intensamente as personagens de sua vida passada e, entre elas, a mais espantosa, a mais secreta, a mais bela, a mais malvada, o incomparável Marechal du Plessis, caminhando sobre seus saltos vermelhos por entre senhores e senhoras, ocultando sobxétins seu coração brutal e triste.
- Ele me odiou até o amor... Pobre Filipe!
Não podia esquecer que ele correra em direção à morte, sem uma queixa, dividido entre seu amor pelo rei e por ela, e não podendo escolher... e "uma bala lhe estourara a cabeça".
Não, não o renegaria. Tanto pior se Joffrey não pudesse entender.
Baixou as pálpebras sobre suas recordações, com aquela máscara meio dor, jneio tristeza, qué ele aprendera a conhecer-lhe. No momento em que ela aguardava um novo e sarcástico interrogatório, surpreendeu-se de sentir-lhe o braço em volta dos ombros. Ela o desafiara^e era então que ele a tomava nos braços, que ele lhe levantava o rosto para contemplá-la e que seus olhos se humanizavam.
— Que mulher é você,"afinal? Ambiciosa, guerreira, intratável, no entanto, tão meiga, tão fraca...
— Você, que adivinha os pensamentos alheios, por que duvida?
— Seu coração me é obscuro... Talvez porque tenha poder demais sobre o meu. Angélica, minha alma, o que é que ainda nos separa: orgulho, ciúme, ou um excesso de amor, uma exigência grande demais?
Balançou a cabeça, como que para responder a si mesmo.
— Mas não renunciarei. Por você, tenho todas as exigências.
— Sabe tudo de mim.
— Ainda não.
— Conhece minhas fraquezas, minhas mágoas. Privada de sua chama, tentei reaquecer-me com um pouco de ternura, de amizade. Entre homem e mulher, isso foi batizado com o nome de amor. O mais frequente foi eu pagar com uma entrega o direito de viver. É isso o que quer saber?
- Não, é outra coisa. Em breve saberei... Quando chegar a caravana de Boston.
Estreitou-a com mais força contra si.
- É tão surpreendente descobri-la diferente do que a havia imaginado!... O minha estranha mulher, a mais bela, a inesquecível, foi a mim de fato que você foi entregue, confiada, naquele dia florido, na-catedral de Toulouse...
Ela viu-lhe o rosto inclinado transformàr-se e seus traços burilados, sua boca sensual e dura emocionarem-se num sorriso de uma tristeza infinita.
— Fui um péssimo guardião, meu pobre tesouro... meu tesouro precioso, tantas vezes perdido...
— Joffrey... - murmurou ela.
Ela queria dizer-lhe algo, gritar-lhe que estava tudo apagado, pois eles se haviam reencontrado, mas tomou consciência das batidas na porta e dos chamados de uma criança despertada.
Joffrey de Peyrac praguejou entre dentes.
- Com a breca!, o mundo ainda não é suficientemente deserto para que possamos conversar em paz...
Mas resolveu rir e foi abrir a porta.
A jovem Rebeca Manigault ofegava à soleira, com ar assustado, como se tivesse percorrido léguas para chegar até ali.
- Dame Angélica - suplicou, numa voz entrecortada pela emoção -, venha... venha depressa... Jenny...vai ter seu filho...
CAPÍTULO XV
"Apresento-lhes minha mulher"
O bebé de Jenny nasceu ao alvorecer. Foi um menino.
A todos os que se encontravam em torno da cabana onde a jovem mãe o deu à luz parecia que nenhum bebé da Terra podia ser tão extraordinário, e o fato de ser um menino constituía uma espécie de milagre para eles.
De noite Angélica levara Jenny para a casa de Crowley e as crianças adormecidas foram transportadas para outro lugar. A Sra. Manigault, senhora em seus salões de La Rochelle, perdia todo o sangue-frio diante de um evento que só podia imaginar rodeado do decoro de hábito.
— Por que estamos aqui? - gemia ela.- Não há bacia para aquecer-lhe o leito, nem parteira para socorrer minha filha. Quando penso nos belos lençóis de renda do meu grande leito! Oh, Senhor!
— Os dragões do rei dormem de botas em seus lençóis de renda - lembrou-lhe rudemente Angélica. - Sabe disso tão bem quanto eu. Alegre-se de que esta criança não vá nascer no fundo de uma prisão, em miséria mais completa ainda, mas sim em liberdade, rodeada pelos seus.
Trémula, Jenny agarrou-se a Angélica, que teve de ficar pacientemente a sua cabeceira e conseguiu acalmá-la. Pelo meio da noite, surgiu uma figura estranha: uma índia velha, que trazia sua experiência de parteira e, em saquinhos, plantas medicinais. O Sr. de Peyrac mandara buscá-la na aldeia indígena.
A criança nasceu sem dificuldade com os primeiros raios de sol levante. Seu grito enérgico pareceu saudar aquela aurora cintilante de mil fogos, que tecia à volta das casas em ruínas suntuo-sos véusde brumas douradas.
Depois das horas de angústia, todos, homens e mulheres, que se aglomeravam do lado de fora na expectativa do drama, explodiram de alegria, e muitos choraram. Então, viver era simples assim. O recém-nascido, que, indiferente às contingências terrestres, dava seu primeiro grito com vigor, ensinava-lhes a lição.
Angélica ainda o segurava nos braços, envolto em tiras à moda índia pela impassível matrona de tez acobreada, quando o Conde de Peyrac se fez anunciar para apresentar seus cumprimentos à jovem mãe.
Entrou, precedido de dois criados, que pousaram caixinhas sobre a cama, uma contendo pérolas, a outra dois pequenos lençóis de tela de ouro. Ele próprio estendeu um estojo, onde cintilava um anel guarnecido de uma safira.
— Você deu a esta terra nova o mais belo presente que ela poderia esperar, minha jovem. Aqui onde estamos, os obje-tos que lhe trago têm valor sobretudo como símbolos. Nascido na pobreza, mas, porém, seu filho também terá nascido sob o signo da maior riqueza. Aceito o augúrio para ele e para seus pais.
— Senhor, como acreditar?... - balbuciou o jovem pai, dominado pela emoção. - Esta pedra é esplêndida...
— Guarde-a como recordação de um dia solene. Estou certo de que sua mulher a usará com prazer. E, se sua satisfação ainda não pode ser acompanhada do prazer de ofuscar toda uma cidade, isso virá... Como se chama essa bela criança?
Pais e avós entreolharam-se.
Em La Rochelle, a questão teria sido debatida há muito tempo, os nomes examinados com discussões ardorosas. Volta-ram-se para Manigault, mas este não soube o que dizer. Evocou os ancestrais, cujos retratos guarneciam outrora as pare
des de sua residência, e não pôde lembrar o nome de um sequer. Sua memória obscurecia-se sob o mais incomensurável desejo de dormir que pode sentir um pai que passou a noite aguardando a morte da filha. Confessou sua impotência, rendeu as armas.
- Escolham vocês mesmos, meus filhos. Que importam aqui os usos a que dávamos tanta Importância? É sua vez agora...
Jenny e o marido protestaram. Também não tinham pensado no assunto, repousando na autoridade paterna. A responsabilidade esmagava-os. Não se podia escolher ao acaso o nome de uma criança tão maravilhosa.
- Dame Angélica,, inspire-nos - decidiu Jenny de súbito. - Sim... Quercque vçlcê lhe dê o nome. Isso há de trazer-lhe felicidade. Foi^você quem nos trouxe até aqui; foi você que nos guiou... Esta noite quando a mandei chamar, eu sentia que nada de mal me.podia acontecer se você estivesse a meu lado. Dê-lhe o nome, Dame Angélica... Dê-lhe um nome que lhe seja caro... e que ficaria feliz de ver um garotinho usando... um garotinho cheio de vida...
Calou-se, e Angélica perguntou a si mesma o que saberia Jenny, para olhá-la assim, com os olhos cheios de lágrimas e ternura. Era uma jovem de coração delicado. O casamento e as provações haviam-lhe transformado a adolescência írrefletida. Dedicava a Angélica um afeto sem limite e uma grande admiração.
— Você me embaraça, Jenny.
— Eu !he peço.
Angélica pousou o olhar sobre o bebé que segurava nos braços. Era louro e roliço. Talvez tivesse olhos azuis. Seria parecido com Jeremias... e com outra criança tão loura, tão rosada, que ela também segurara contra o coração".
Acariciou carinhosamente e com suavidade o pequeno crânio aveludado.
- Chame-o Carlos Henrique - disse -, você tem razão, Jenny ficarei feliz se ele tiver esse nome. - Inclinou-se para colocar a criança entre os braços da jovem e conseguiu sorrir. - Se se parecer com ele, você será uma mãe feliz, Jenny - disse baixinho -, porque de fato era o mais belo dos garotinhos.
Beijou-a e saiu à soleira da cabana.
O sol atingiu-a em pleno rosto e ela teve a impressão de que havia uma multidão imensa a sua frente, da qual se elevava um grande rumor. Angélica vacilou e levou a mão aos olhos. Notou que estava esgotada.
Um pulso sólido a susteve.
- Venha - disse a voz imperiosa de seu marido.
Deu alguns passos. O atordoamento dissipava-se. Não havia multidão, apenas o grupo compacto dos protestantes, aos quais se misturavam os tripulantes do Gouldsboro, os caçadores, Crowley, o Sr. d'Urville, alguns índios e até os soldados espanhóis, em suas armaduras negras.
A notícia prodigiosa do nascimento de uma criança branca fizera acorrer toda a região.
- Ouçam-me...
O Conde de Peyrac dirigia-se a eles.
- Todos vocês, homens de raça branca, vieram para contemplar esta maravilha que se renova cada vez: o nascimento de uma
criança entre nós. Promessa de vida que a cada vez agasta as recordações da morte. Por causa dessa frágil criança, sentem-se uni
dos e esquecem-se de se odiar. É por isso que a hora me parece propícia para me dirigir a vocês todos, que carregam sobre os
ombros o destino do povo entre o qual esta criança recém-nascída deve crescer... A vocês, que vêm de La Rochelle, a vocês, que
vêm da Escócia ou da Alemanha ou da Inglaterra ou da Espanha, a vocês, comerciantes ou nobres, caçadores ou soldados...
O tempo das disputas deve encerrar-se. Jamais devemos esquecer que temos um vínculo em comum. Somos todos banidos...
Todos nós fomos rejeitados por nossos irmãos. Uns por causa de sua fé, outros por sua impiedade, uns por sua riqueza, outros por sua pobreza. Regozijemo-nos, pois não é a todos que se dá a honra de edificar um novo mundo... Outrora fui senhor de Toulouse e Aquitânia. Meus domínios eram inúmeros, minha fortuna imensa. A inveja do rei da França, que temia o poder feudal das províncias, fez de mim um nómade, um homem sem nome, sem país, sem direitos. Acusado sob mil pretextos, condenado à morte, tive de fugir. Havia perdido tudo, domínios, castelos, poder, e fui separado dos "meus para sempre. Da mulher que eu amava e com quem' eu >casara e que me dera filhos...
Parou, correu o olhar atento sobre as criaturas esfarrapadas e disparatadas que o ouviam retendo o fôlego, e seus olhos se alegraram.
- Hoje regozijo^me com essas provarções. Resta-me a vida e o sentimento inestimável de ser útil neste mundo. Além disso, um destino feliz' a.que chamarão providência, senhores - acrescentou, com um grandre cumprímento nadireção dos protestantes -, devolveu-me a mulher que eu amava.
Ergueu a mão que segurava a de Angélica.
- Ei-la... A mulher com quem me casei, há quinze anos, na catedral de Toulouse, entre faustos e honras... Eis a Condessa de Peyrac de Morens dlsritru, minha mulher.
Angélica estava quase tão estupefata quanto os assistentes com o anúncio inesperado. Lançou uma olhada desorientada ao marido, à qual ele respondeu com um sorriso cúmplice. E foi como se ela o revisse na catedral de Toulouse, tentando em vão tranquilizar a esposinha aterrorizada.
Ele conservava aquele senso teatral das cálidas civilizações meridionais. Muito à vontade, encantado com o efeito que causara, fê-la avançar entre a pobre multidão, apresentando-a como o teria feito às maiores personalidades de uma cidade.
- Esta é minha mulher... A Condessa de Peyrac.
O alegre gentil-homem normando foi o primeiro a se recompor: atirou o chapéu para o alto.
- Viva a Condessa de Peyrac!
Foi o sinal para uma ovação que pouco a pouco se tornou delirante. O casal passou por entre aplausos e sorrisos amigáveis. A mão de Angélica tremia na do Conde de Peyrac, como outrora, mas ela sorria. E se sentia mil vezes mais feliz do que se ele a tivesse conduzido por entre a glória, sobre um caminho de rosas.
CAPÍTULO XVI
Os remorsos de Berne
Durante o dia inteiro,"Mestre-Gabriel Berne tentou aproximar-se de Angélica para Jalar coín ela. Angélica notou e deu um jeito de evitá-lo. Mas à noite, sozinha perto da fonte, voltou-se e viu-o avançar. Ficou contrariada. Ele se comportara dé tal maneira durante aquela viagem que ela acabara duvidando de sua razão e ele inspirava-lhe um pouco de medo. Não se sabia a que extremos podia levá-lo seu despeito.
Mas ele exprimiu-se com calma e suas primeiras palavras dissiparam as prevenções de Angélica.
- Eu a procurava, senhora, para externar-lhe meu pesar. A ignorância em que me mantive acerca dos laços que a unem ao Sr. de Peyrac foi a causa de meus erros. Pois apesar...
Hesitou e continuou, com esforço:
- ...de meu amor por você, eu não teria tentado romper um laço sagrado. Ora, a minha dor por vê-la atraída por outro duplicava-se com a dor de acreditá-la desprezível... Sei agora que não é esse o caso. Fico feliz com isso.
Pronunciou estas palavras com um novo suspiro e baixou a cabeça.
O rancor de Angélica desapareceu. Não esquecia que ele por pouco não lhe matara o marido e lhe causara um grave dano, mas ele tinha suas desculpas. E hoje ela era feliz, enquanto ele sofria.
- Obrigada, Mestre Berne, eu também cometi meus erros. Faltei com franqueza para com o senhor, vendo-me na impossibilidade de explicar-lhe o drama no qual me debatia. Após uma separação de quinze anos, durante ã qual me considerei viúva, o acaso me colocou diante daquele que fora meu marido e... não nos reconhecemos. O grão-senhor de quem eu guardava a recordação tornara-se um aventureiro dos mares, e eu... era sua criada, Mestre Berne, e o senhor sabe em que tristes condições me recolheu. Foi o senhor quem foi procurar minha filha na floresta e quem me arrancou à prisão. Isso não pode apagar-se. Meu marido enciumou-se com a afeição que eu tinha pelo senhor e sua família. As discussões nos opuseram. Hoje estão esquecidas e podemos confessar nosso amor.
O rosto de Berne crispou-se. Não estava curado de sua paixão. Deu-lhe um olhar de sofrimento, e ela o sentiu emocionado. Mudara muito desde La Rochelle. Sua gordura de mercador sedentário cedera lugar a uma estrutura vigorosa onde se reconheciam ascendências camponesas. Ela pensou que ombros assim não eram feitos para se curvar sobre contas na penumbra de uma loja, mas para suportar o peso de um novo mundo. Gabi iel Berne encontrara o próprio destino. Ainda não sabia disso. Sofria.
- Meu coração sangra - disse ele com voz abafada. - Eu não imaginava que se pudesse perder assim o sangue do coração sem morrer. Não sabia que se pudesse sofrer tanto por amor. Parece-me que hoje entendo as loucuras e os crimes que os homens cometem por uma paixão carnal... Não me reconheço mais, tenho medo de mim mesmo... Sim, é duro dobrar-se, ver-se face a face. Perdi tudo. Já não me resta nada.
Antigamente ela lhe teria dito, com sinceridade e certeza de reconfortá-lo: "Resta-lhe sua fé", mas sentia que Gabriel Berne atravessava aquele deserto negro e sem esperanças que ela própria percorrera. Disse apenas:
- Resta-lhe Abigail.
O rochelês olhou-a com o maior espanto.
— Abigail?
— Sim, Abigail, sua amiga de La Rochelle, sua amiga de sempre. Ela o ama em segredo e há muito tempo. Talvez já o amasse quando era casado. Faz anos que ela vive à sua sombra e que também sofre por amor. Berne estava transtornado.
— E impossível. Fomos amigos de infância. Acostumei-me a vê-la como vizinha. Cuidou de minha mulher côm dedicação durante sua última doença, chorou-a comigo... E nunca desconfiei...
— Não percebeu sua afeição. Ela 'é pudica demais e discreta para lhe confessar. Case com ela, Mestre Berne, É a esposa de que precisa, boa, piedosa, bela. Notou alguma vez que ela tem os mais belos cabelos do mundo? Quando ela os s'olta, caem-lhe até os rins.
Bruscamente o mercador lrritou-se.
- Por quem me toma? Por uma criança que perdeu o brinquedo e a quem se-distrai-de sua dor dando-lhe outro? Seja! Abigail me ama. Quer dizer" que meus sentimentos são variáveis como a chuva e o bom tempo. Não sou uma ventoinha! Você tem uma tendência deplorável para tratar a vida com desenvoltura. É tempo que se esqueça de uma independência que, embora não desejada, nem por isso lhe custou menos caro, e que se empenhe por dobrar sua pessoa que não é muito brilhante nem ligeira, a seus deveres de esposa."'
- Sim, Mestre Berne - respondeu ela, no tom que adotava em La Rochelle, quando ele lhe dava uma ordem.
Ele teve um sobressalto, pareceu lembrar-se da nova condição dela e balbuciou uma desculpa. Depois olhou-a intensamente. Fixava para sempre a imagem daquela que lhe atravessara a vida como uma estrela fulgurante, a mulher do destino entrevista numa noite de juventude no submundo de Paris, aquela que, reencontrada mais tarde, na dobrada de um caminho onde bandidos o espreitavam, transtornara-lhe a existência, para finalmente salvá-lo, a ele e aos filhos, de uma sina miserável. Ele compreendia que ela cumprira sua tarefa junto deles, que seus caminhos se bifurcavam. Os traços de Mestre Berne recuperaram s firmeza, seu rosto reencontrou a expressão serena, um pouco distante.
- Adeus, senhora - disse -, e obrigado.
Foi-se a passos largos, e Angélica ouviu-o perguntar por Abigail à entrada do acampamento. Ficou pensativa. Abigail seria feliz. A partir do dia em que fosse seu marido, Berne se proibiria de pensar em Angélica, e de resto a suave amiga era aquela de quem ele precisava para saciar seus desejos de homem atormentado por uma consciência escrupulosa.
— Você conversava com seu amigo Berne - disse a voz de Joffrey de Peyrac, atrás dela. Frisou a palavra "amigo". Angélica não ignorou a alusão.
— Desde que o ameaçou ele já não é amigo meu de modo algum.
— Mas toda mulher sente alguma melancolia ao afastar de si um apaixonado.
— Oh, como você é tolo! - exclamou Angélica, rindo. - Nunca sei se devo crer em seu ciúme, tão sem sentido me parece ele. Eu tentava convencer Mestre Berne de que há uma mulher digna dele, que o ama e espera há anos. Infelizmente ele é desses homens que passaram ao largo da felicidade porque não podem impedir-se de considerar a mulher uma armadilha perigosa e traiçoeira.
— Seu encontro contribuiu muito para fazê-lo mudar de ideia? - disse Joffrey de Peyrac com ironia. - Não creio, quando lembro o estado de fúria demente a que o reduziu.
— Você sempre exagera - disse Angélica, fingindo humor.
— Uma pistola assestada contra mim basta para me convencer dos extremos a que leva aqueles que tiveram a infelicidade de apaixonar-se por você.
Tomou-a nos braços.
— Amante fugidia! Agradeço ao céu por você* ser minha mulher. Pelo menos posso acorrentá-la, com o direito a meu lado. Então, entregou-lhe Abigail?
— Sim. Ela saberá despertar-lhe a afeição. E muito bonita.
— Notei.
Angélica sentiu uma beliscada no coração.
— Sei, de fato, que notou... desde a primeira noite no Gouldshoro.
— Com ciúme, afinal?... - disse o conde, satisfeito.
- Você tem atenções para com ela que não tem para comigo. Confia nela em tudo, enquanto desconfia de mim, não sei por quê.
- Eu sei muitíssimo bem, infelizmente! Você me torna fraco e não estou seguro a seu respeito.
-E quando o estará, afinal? - disse ela, entristecida.
— Ainda resta uma dúvida a eliminar.
— Qual?
- Eu explicarei no devido tempo. Nãò fique com esse ar abatido, minha triunfante. Não é porque um homem a quem torturou muito aproxima-se de você com prudência que deve pensar em tragédias. De minha parte, adapto-me muito bem às tempestades e às sereias perigosamente sedutoras. Mas compreendo que uma Abigail possa ser um delicioso refúgio. Percebi desde aquela primeira noite que ela. estava apaixonada por Berne. Era ela quem necessitava de conforto,,. Ela o imaginava a ponto de morrer e sofria muitíssimo. Mas ele via apenas a'você, a sua cabeceira. Espetáculo que, também para mim, não apresentava atrativo algum. Digamos que o que nos aproximou, a ela e a mim, foi uma infelicidade comum. Ela possuía o ar de uma virgem mártir, de uma chama pura*que se consumia, e apesar de sua dor foi a única dentre todos aqueles justos execráveis a me olhar com reconhecimento.
— Gosto muito de Abigail - disse Angélica em tom cortante -, mas não posso suportar que fale dela com essa ternura.
— Você tem sua grandeza de alma?
- Certamente que não, quando se trata de você.
Andavam pela orla da floresta e se aproximavam do caminho
que seguia a costa. Cavalos relincharam atrás de um bosquezinho de bétulas.
— Quando partiremos para a expedição que você projeta ao interior? - perguntou Angélica.
— Devo compreender que tem pressa de deixar seus amigos?
- Tenho pressa de estar a sós com você - disse ela, dirigindo-lhe aquele olhar de apaixonada que o perturbava.
Ele beijou-lhe as pálpebras suavemente.
- Eu quase me odiaria por inquietá-la, se você não merecesse alguma punição pelos tormentos que me causou. Partiremos dentro de duas semanas. Preciso tomar providências para que os novos colonos possam enfrentar o inverno. O inverno é terrível. Nossos rocheleses terão de haver-se com a natureza e com as criaturas. Os índios não são escravos amedrontados como nas ilhas do Caribe, e aqui, quando o mar se revolta, não é para brincadeira. Terão dificuldades, vão sofrer.
— Dir-se-ia que os felicita com os problemas deles.
— Um pouco. Não sou um santo, minha querida, de alma terna e indulgente, e ainda não esqueci completamente a peça de mau gosto que me pregaram. Mas na verdade a única coisa que me importa é que tenham êxito na obra que lhes confiei, e terão êxito, confio neles. Seu espírito de iniciativa não poderá renunciar às perspectivas que entreviram.
— Você impôs condições muito duras?
— Bastante. Eles concordaram. No final das contas, são pessoas de bom senso. Sabem que terão uma bela participação, enquanto poderiam estar pendurados a uma corda.
— Por quê? - perguntou Angélica de repente. - Por que não os enforcou imediatamente, assim que foram derrotados, como fez com os amotinados espanhóis?
Joffrey de Peyrac meneou a cabeça antes de responder. Angélica achava impressionante a maneira como, sempre refletindo e conversando, ele não parava de espreitar à volta, com um olho penetrante, aguçado, enxergando longe, aparentemente através das árvores. Era assim que vigiava o mar, do tombadilho do Gouldsboro, o Homem-que-Escuta-o-Universo...
Ao cabo de um longo momento, respondeu:
- Por que não os enforquei imediatamente? E de crer-se que não sou um impulsivo, minha amiga. Todo ato grave, e é bem grave tirar a vida a um ser humano a sangue-frio, requer que se reflita em suas consequências. Livrar o mundo da minha ralé espanhola, atendendo ao código de justiça dos marinheiros, não constituía problema. Não havia necessidade de retardar a execução. Para os seus rocheleses, a coisa era outra. Todos os meus projetos condenados. Na verdade, era impossível dirigir-me para o interior sem deixar no litoral uma comunidade de colonos, conforme eu previra. Eu precisava dessa saída, desse porto, ainda que embrionário. Além disso, achei tolice ter trazido esses emigrantes até aqui, para renunciar à partida para as nascentes do Mississipi. Enforcando-lhes os chefes, eu me veria sobrecarregado de mulheres e crianças desvairadas," obrigado a fazer outra viagem à Europa para encontrar outros colonos que sem dúvida não estariam à altura deles. Pois eu fazia justiça, conforme você me pediu, às suas qualidades dè coragem e engenhosida-de. Numa palavra, havia muitas objeções pesando na balança, que a necessidade de dar exemplo e um rancor muito legítimo não compensavam. Angélica ouvia-se, mordendo o lábio inferior.
- E eu que acreditava que você ospoupou porque eu havia pedido!
Ele caiu na risada."
- Espere que eu chegue ao fim de meu discurso, antes de tomar esse ar desapontado e mortificado. Ah, como você continua sendo mulher, apesar de sua novíssima sabedoria!
Pôs-se a beijá-la na boca.e só a soltou quando ela pardu de opor-lhe resistência e respondeji-lhe ao beijo.
— Deixe-me acrescentar que uma ideiazinha me fazia temer as reações de Dame Angélica diante de um ato de justiça normal, mas irreparável: Então, hesitei... esperei.
— O quê?
— Que a sorte se decidisse... que os pratos da balança se inclinassem por si mesmos para um lado ou para o outro. Que você viesse, talvez?
Angélica quis escapar-lhe aos braços novamente.
- Quando penso - exclamou, indignada - que eu tremia, que desfalecia diante de sua porta! Achava que ia matar-me pela minha atitude. E você a esperava!
Os olhos do conde estavam cheios de faíscas risonhas. Ele gostava de vê-la fora de si e um pouco infantil em sua cólera.
— Eu hesitava, é verdade. Tinha a convicção de que era você quem lhes decidiria o destino. Por que essa indignação?
— Não sei... tenho a impressão de que você me enganou de novo.
— De minha parte não houve comédia alguma, meu anjo. Apenas dei tempo para que o destino se pronunciasse... você poderia não vir pedir clemência para eles.
— E os teria enforcado?
— Creio que sim. Eu tinha adiado a decisão até o alvorecer. O rosto do conde tornara-se grave.
Atraiu-a mais para perto, forçando-a a pousar a face contra a sua, e ela sentiu, com um estremecimento, os sulcos endurecidos de suas cicatrizes, o calor de sua pele bronzeada.
- Mas você veio... E agora está tudo bem.
A noite erguia-se do mar e atingia as sombras que pairavam sob as árvores.
Um índio apareceu no caminho, segurando duas montarias pelas rédeas.
Joffrey de Peyrac montou.
— Você me acompanha?
— Aonde vamos?
- Até meu feudo. Não tem encantos, é apenas um torreão de madeira acima da baía. Mas ali se pode amar tranquilamente. Esta noite minha mulher me pertence.
CAPÍTULO XVII
A felicidade
- Aonde está me levando?"- perguntara Angélica enquanto os cavalos os conduziamr ao longo da praia.
E ela respondera:
- Possuo um pequeno castelo para amar com tranquilidade... à margem do Garona.
Então ele se lembrara da noite suave na longínqua Aquitânià, em que ele a levara pafa longe de Toulouse, para fazê-la conhecer o amor. Aqui o vento selvagem da noite os açoitava, e quando chegaram às proximidades de uma construção rústica, o tumulto do mar era tamanho que não podiam trocar três palavras.
No entanto, no interior daquele forte de madeira, que erguera nas praias do novo continente, o gentil-homem francês ajeitara um abrigo luxuoso. Esquecia-se ali a precariedade de uma existência ainda mal ancorada entre uma natureza indomada. Ele reunira tesouros, objetos de arte, instrumentos preciosos, que índios escolhidos por ele guardavam durante suas ausências com o respeito supersticioso dos primitivos por aquilo que não se explica. As paredes do aposento principal, no alto-da torre, eram guarnecidas de armas - sabres, mosquetes e pistolas prontas para usar - que representavam espécimes magníficos da armaria espanhola, francesa ou turca. O conjunto cintilante teria algo de inquietante sem a claridade colorida e como que mágica de dois lustres de vidro de Veneza, nos quais ardiam mechas. O óleo crepitante difundia um odor tépido que se mesclava ao dos pratos sobre a mesa, onde abundavam, à volta de uma peça de caça assada, os frutos e os legumes da região. Nas duas extremidades, espigas de milho grelhadas sobressaíam como nódoas de ouro. Jof-frey de Peyrac mandou servir um vinho púrpura e outro transparente como opala, e quando os criados se retiraram deu uma olhada atenta ao arranjo da mesa preparada para aquela ceia simples.
Em pé junto da janela, Angélica não desviava os olhos dele.
"Será sempre um grão-senhor", pensou. E reconheceu nele aquela qualidade nobre que amara em Filipe, a de resistir à coerção da natureza que tenta irresistivelmente reconduzir o homem a uma condição servil, fazê-lo esquecer suas conquistas: refinamento, cortesia, fausto. Assim como Filipe sabia opor às fadigas da guerra sua armadura lavrada e seus punhos de renda, Joffrey de Peyrac enfrentara destinos adversos com uma constante elegância.
Fora necessária a coalizão mais baixa dos homens e sua própria vontade de escapar a eles para fazê-lo aceitar durante algum tempo ser um destroço humano coberto de andrajos, arrastando seus ferimentos. Angélica não sabia tudo acerca de seu combate, mas adivinhava, vendo-o ereto, rijo, à claridade estranha das lâmpadas que lhe acusava as cicatrizes do rosto. O caminhar desenvolto, devia-o a sofrimentos inacreditáveis, de que era testemunha sua voz deformada para sempre. No entanto, ele parecia de aço, pronto a carregar sobre os ombros uma nova existência de lutas, esperanças, triunfo, decepção, quem sabe?...
O coração de Angélica derreteu-se de ternura. Ele deixava de lhe causar medo quando ela pensava no que ele suportara, e, como todas as mulheres, teria vontade de tomá-lo contra o seio, cuidar dele, pensar-lhe os ferimentos. Não era mulher dele? Mas o destino os separara.
Agora ele quase não precisava dela. Atravessara uma parte de sua vida sem precisar dela, e parecia sair-se muito bem.
- Meu domínio lhe agrada?
Angélica voltou-se para a estreita seteira de onde subia o ronco das ondas. Não era para a baía, mas para o mar encapelado que dava o forte construído especialmente por Joffrey de Pey-rac, que ali residia quando vinha a Gouldsboro. A escolha daquela posiçãa-confessava um.tormento secreto, talvez uma amargura..O homem que escolhe'a natureza mais selvagem para ali sonhar com frequência o faz para'contemplar a imagem do próprio coração.
Com que mulher sonhava Joffrey de Peyrac quando se refugiava naquele fortim, ninho de águia batido pelas ondas? Com ela, Angélica?...
Não, não sonhava com ela. Fazia planos para ir procurar ouro nas nascentes do Mississipi, ou para saber que espécie de colonos poderia instalar em suas terras para construírem um porto.
Ela respondeu: .
— O pequeno Garona era mais suave que este oceano encolerizado. Não era mais que um delgado filete de prata sob a lua... Havia uma brisi perfumada e não este vento terrível que tenta insinuar-se para- apagar as lâmpadas.
— A noivinha das margens do Garona também era mais anó-dina do que a que trago esta noite a meu refúgio no fim do mundo.
— E o marido dela, menos temível do que este que ela encontra hoje.
Riram, encarando-se.
Angélica fechou a janela de madeira e o ruído dos elementos diminuiu. Reinou, então, no aposento uma misteriosa intimidade.
- E estranho - murmurou Angélica -, parece-me que tudo me é devolvido centuplicado. Imaginei que deixava para sempre o país de minha infância, a terra de meus ancestrais. Posso dizer que as árvores que nos cercam me lembram a floresta de Nieul? Sim, mas maior, muito mais bela, profunda, opulenta. Tenho a impressão de que é assim com tudo. Tudo e desmedido, ampliado, exaltado: a vida, o futuro... nosso amor.
Pronunciou a última palavra ainda mais baixo, quase timidamente, e ele nao pareceu ouvi-la.
Mas, depois de algum tempo, ele deu continuidade ao pensamento dela:
- Também me lembro de que minha pequena residência no Garona era enfeitada com belos bibelôs, mas suponho que hoje esta decoração convém melhor a seu humor belicoso.
Ele lhe surpreendera o olhar de admiração às armas. Ela esteve a ponto de responder de imediato que havia outras coisas mais femininas que a interessavam, mas notou, em tempo, um brilho zombeteiro nos olhos dele. Ele perguntou:
- Devo acreditar que, como suas semelhantes, você é apesar de tudo atraída pelas gulodices preparadas em sua intenção, embora estas não valham as da corte?
Angélica balançou a cabeça.
— Tenho fome de outra coisa.
— De quê?
Feliz, ela sentiu o braço dele rodear-lhe os ombros.
— Não ouso esperar - sussurrou ele - que esteja interessada nas peles deste grande leito. No entanto, são muito preciosas, e escolhi-as pensando em como você ficaria bela entre elas.
— Você pensava em mim?
— Infelizmente!
— Por que esse infelizmente? Decepcionei-o tanto?
Apertou entre os dedos os ombros rijos sob o gibão. Bruscamente começara a tremer. Aqueles braços a sua volta e o calor daquele peito haviam como que desencadeado uma fulgurante perturbação.
Com a febre deliciosa do desejo, despertava toda a sua ciência amorosa. Ah, se fosse possível que nos braços dele ela ressuscitasse, saberia provar-lhe seu reconhecimento! Não há reconhecimento mais ferrenho e infinito do que o que a mulher dedica ao homem que sabe torná-la feliz em todas as fibras de seu ser.
Maravilhado, ele viu o olhar de Angélica crescer, verde e luminoso como um lago ao sol, e, enquanto ele se inclinava, ela, com ardor, atava os braços à volta de sua nuca, e foi ela quem lhe tomou os lábios.
Noite sem fim. Uma noite de carícias, de beijos, abraços, confissões murmuradas e repetidas, de sono sem sonhos, entrecortado de despertares apaixonados.
Nos braços-daquele a quem tanto amara e por quem tanto esperara, Angélica, enlevada, transformava-se outra vez na Vénus secreta das noites de amor, que fazia desfalecer de êxtase seus amantes saciados, deixando-os marcados com uma mágoa e uma dor incuráveis. O vento da tempestade levava as recordações, apagava os fantasmas...
- Se você tivesse ficado perto de mim... - suspirava ela.
E ele sabia que,era verdade-, quese tivesse ficado perto dela nunca teria existido outro erftsua vida. E que ele próprio-jamais a teria traído. Pois nenhuma outra mulher, nenhum outro homem podiam dar lhes a felicidade que davam um ao oinro.
Angélica emergiu exausta, ecantada e dominada pela mais serena visão do mundo que se possa ter ao amanhecer da vida.
A existência tomara outro curso. As noites já não trariam a fria solidão, mas a promessa do prazer resplandecente, de horas plenas, crepitantes, depois ternas e plácidas. O que importavam o leito, pobre ou rico, o inverno, a selvageria dos bosques ou a embriaguez do verão? Ela dormiria contra ele, noite após noite, no perigo e na paz, no êxito ou no fracasso. Eles teriam suas noites, refúgios de amor, enseadas de ternura. E teriam os dias, cheios de descobertas e conquistas, que viveriam lado a lado.
Ela espreguiçou-se entre as peles brancas e cinza que a cobriam parcialmente. Os lustres estavam apagados. A claridade filtrava-se pela janela de madeira. Angélica notou"que Joffrey de Peyrac estava em pé, vestido e calçado. Fitava-a com um olhar enigmático. Mas ela já não temia a suspeita daquele olhar. Sorriu-lhe, entregue a sua vitória.
— Já em pé?
— É mais do que hora. Um início acabou de anunciar a aproximação da caravana de Boston. Se consegui arrancar-me às delícias desse leito, com certeza não foi porque você me encorajou a isso, eu iria mesmo que até no sono você parecia fazer de tudo para me desviar das tarefas que me esperam desde o alvorecer. Seus talentos são hábeis demais.
— Na primeira vez não se queixou justamente de uma falta... de competência, que lhe pareceu injuriosa?
— Hum! Hum! - fez ele. - Estou perplexo. Não tenho muita certeza se seu ardor da noite passada não me espicaçou o ciúme retrospectivo. Não me recordava de tê-la conduzido eu próprio a tal perfeição. Enfim, admitamos que você deve tudo a seu primeiro iniciador; ele seria deselegante se não se sentisse satisfeito...
Ele colocou um joelho na beirada da cama para inclinar-se e contemplá-la na desordem de sua luminosa cabeleira.
— E ela se disfarça de pobre e piedosa criada! Finge-se de hu-guenote orgulhosa, pudica e fria!... E a gente se deixa enganar! Quando, afinal, você zomba do mundo, deusa?
— Com menos frequência do que você. Eu nunca soube usar bem da astúcia, exceto em risco de morte. Joffrey, nunca representei com você, nem antes nem agora, sempre me bati às claras com você.
— Então você é a mais surpreendente das criaturas, a mais imprevisível, a mais mutável, de mil facetas... Mas acabou de pronunciar uma palavra inquietante. Você se bateu contra mim... Considerava então como um inimigo este marido resurgido?...
— Você duvidava de meu amor.
— Você era irreprochável?
— Sempre o amei mais do que a tudo.
— Você começa a me convencer disso. Mas o nosso combate, já que adquiriu um ar mais suave, terminou?
- Espera que sim - disse ela, preocupada.
Ele balançou a cabeça, pensativo.
- Ainda há muitos aspectos de seu comportamento passado que continuam misteriosos para mim.
— Quais? Explico-lhe tudo.
— Não. Desconfio das explicações. Quero vê-lo sem fingimento.
E, respondendo com um sorriscao olhar dela, ansioso:
- Levante-se, querida. Temos de ir ao encontro da caravana.
CAPITULO XVIII
A última surpresa
Tinham chegado perto de um local deserto, envolto em brumas, onde se ouvia como que o eco de milhares de vozes. Angélica virava a cabeça da direita para a esquerda.
- Não estou vendo ninguém. Que fenómeno é esse?
Sem responder, Joffrey de Peyrac desmontou. Fazia alguns instantes que parecia distraído. Depois de imaginá-lo preocupado, ela se surpreendia de que ele não lhe comunicasse o que se passava. Foi até ela e estendeu-lhe o braço para ajudá-la a descer do cavalo. Sorriu-lhe, com uma ternura infinita, mas seus traços permaneciam tensos.
— O que tem você? - perguntou-lhe ela várias vezes.
— Nada, meu coração - respondeu ele, estreitando-a contra si enquanto a conduzia por entre as árvores -, não lhe disse que este dia é o mais belo de nossa vida?
Ela viu que ele não estava preocupado, mas emocionado. Ficou mais inquieta ainda. Sua felicidade ainda era tão frágil que tremia ante a possibilidade de um acontecimento fortuito roubá-la outra vez. Seria a atmosfera enevoada que lhe punha no coração não uma angústia, mas uma impressão de espera?
- Quando o tempo está claro aqui - disse ela, alto, como se quisesse quebrar um encanto que se impunha -, a vida parece muito simples, mas quando o nevoeiro nos envolve, volta-se a questionar tudo. Deve ser por isso que se desenvolve afeição a este país. Espera-se o tempo todo por um acontecimento, uma surpresa, sente-se que algo vai acontecer, algo feliz.
- Foi de fato para reservar-lhe uma surpresa feliz que a trouxe aqui.
- Mas o que ainda me pode acontecer de feliz, se o encontrei?
Fitou-a com uma atenção desconfiada, com aquele olhar que com tanta frequência ela sentira pesar sobre si, a bordo do Gouldsboro. Quando ele a examinava assim, ela sabia que ele duvidava dela, que lhe reclamava contas, e que a amargura que lhe infligira com seu passado não se- apagara.
Mas ele não respondeu à interrogação que lhe lia nos olhos.
A medida que avançavam, chegava-lhes um ruído surdo, misturado ao som de Vozes humanas. Chegaram diante de um amontoado de rochedos-vermelhos onde o mar quebrava com estrondo. As vozes multiplicavam-se, levadas por um eco que as amplificava. Não se percebia nenhuma silhueta humana, o fenómeno tinha algo de inquietante.
Angélica acabou distinguindo sobre o mar, do outro lado dos rochedos, pequenos pontos negros que flutuavam, as cabeças de audaciosos nadadores.'
- São crianças indígenas, praticando seu jogo favorito - disse Joffrey de Peyrac.
O jogo consistia em colocar-se no trajeto de uma onda particularmente alta e, levado pela crista espumante, lançar-se com ela no antro negro de uma caverna onde ela quebrava. A arte do nadador estava em agarrar-se à parede rochosa antes de ser moído contra ela pela violência do choque. Ele aparecia então no topo dos rochedos e corria a mergulhar, para recomeçar tudo.
Angélica os olhava sem fazer um movimento. O que a paralisava era menos a façanha perigosa do que a certeza de reconhecer o ambiente. Tentava lembrar-se de onde pudera ter sob os olhos um espetáculo assim. Voltou-se para o marido, para participar-lhe suas reflexões. Uma voz jovem, gritando um chamado através da caverna, foi o choque que lhe dissipou a obscuridade da memória. Não fora ela quem vira aquilo em sonho, fora Florimond. Ela imaginou ouvir as palavras que ele lhe dizia uma noite, no castelo do Plessis, quando pairavam sobre eles ameaças de morte: "Vi meu pai e meu irmão em sonho... Cantor estava no topo de uma grande onda branca e me gritava: "Venha, Florimond!... Venha fazer isto comigo, é tão divertido!..." Eles estão num país cheio de arco-íris".
Os olhos de Angélica arregalaram-se.
A visão de Florimond recbmpunha-se diante dela. Os arco-íris tremeluziam através da folhagem, a onda branca estava ali...
— O que foi? - perguntou Joffrey de Peyrac, preocupado.
— Não sei o que está acontecendo comigo - disse ela, que estava muito pálida. - Já vi esta paisagem... em sonho. Ou melhor, não fui eu... Mas como foi que ele conseguiu ver isto? - murmurou, falando consigo. - As crianças têm dessas pres-ciências...
Não ousava pronunciar o nome de Florimond. Os filhos desaparecidos permaneciam entre eles. Fora por causa das crianças que ele lhe fizera as censuras mais duras, e ela não queria, hoje, depois das horas maravilhosas que tinham passado nos braços um do outro, evocar um motivo de mágoa e desentendimento.
Mas era como se ela o visse ali, a sua frente, com uma nitidez surpreendente, o pequeno Florimond.
Fazia anos que não o evocava com tamanha precisão. Estava ali, com seu sorriso cintilante, seus olhos sedutores: "Mãe, é preciso partir..." Dissera-lhe isso, sentindo que a morte rondava, mas ela não lhe dera ouvidos, e ele fugira, levado pelo instinto de viver que, graças a Deus, guia os atos impulsivos da juventude. Se não podia salvar à força a mãe nem o irmão, o coitadinho pelo menos salvara a própria vida. Teria encontrado o país cheio de arco-íris onde imaginava que o pai e Cantor o esperavam? Cantor, que morrera há sete anos no Mediterrâneo?
- Mas o que tem você? - repetiu o conde, franzindo o cenho.
Ela se esforçou por sorrir.
— Não é nada. Tive como que uma visão, já disse. Mais tarde explicarei por quê. A caravana anuncia-se?
— Subamos neste oiteiro, nós a veremos. Ouço o ruído dos cavalos, mas avançam devagar, pois o caminho é estreito.
Da suave elevação onde se encontravam, o olhar, mergulhando através das árvores, começava a distinguir o movimento causado pela chegada de uma numerosa tropa. As rodas das carroças rangiam sobre os seixos do caminho. Por entre os ramos percebiam-se plumas furta-cor. Cocares-de índios carregadores? Não, as plumas guarneciam o chapéu dos dois~cavaleiros na vanguarda. Ao mesmo tempo que eles surgiram à vista, no limiar do bosque, ouviu-se um eco de música% O braço de Joffrey de Peyrac retesou-se subitamente.
— Você os vê? - perguntou.
— Sim.
Ela pôs a mão acima dos olhos, a fim de distinguir melhor os recém-chegados.
- São pessoas muito jovens, parece-me. Um deles segura uma guitarra.
A palavra morreu-lhe nos lábios. O braço caiu-lhe. Por um instante ela viveu como que .um fenómeno de desencarnação. O corpo estava ali, mas vazio de toda substância; ela se tornara uma estátua em que só continuava vivo o poder da visão. Ela já não existia, estava 'morta, mas via.
Ela os via... àqueles dois cavaleiros que avançavam. Principalmente um, o primeiro... e depois o outro. Mas o primeiro era bem real, enquanto o outro, o pajem com a guitarra, era uma sombra, ou então ela também estava morta.
Eles se aproximavam. A miragem ia sumir. Mas, quanto mais se aproximavam, mais nítidos se tornavam seus traços. Era Flo-rimond, seu sorriso brilhante, os olhos risonhos e vivos.
- Florimond.
Ele pulou do cavalo e soltou um grito:
- Mãe!
E disparou na corrida, de braços estendidos em direção do oiteiro.
Angélica também quis correr, mas as pernas lhe falharam e ela caiu de joelhos.
Foi assim que o recebeu contra o coração", também ele ajoelhado, enlaçando-lhe o pescoço, a cabeleira castanha contra o ombro.
- Ó mãe - dizia ele -, você, afinal. Desobedeci-a, parti à procura de meu pai, para levá-lo em seu socorro. Ele chegou a tempo, pois você está aqui. Os soldados não lhe fizeram mal? O rei não a pôs na prisão, estou feliz, tão feliz, mãe!...
Angélica apertava com toda a força o torso delgado, Florimond, seu companheirinho, seu pequeno cavaleiro!
— Eu sabiá, meu filho - murmurou com voz entrecortada -, eu sabia que o reencontraria. Você veio para este país cheio de arco-íris com que sonhou.
— Sim... e encontrei a ambos, meu pai e meu irmão. Mamãe, olhe... é Cantor.
O outro adolescente se mantinha a alguns passos do grupo. Florimond tinha sorte de não se sentir intimidado, pensava ele. Fazia tanto tempo que ele, Cantor, não a via, sua mãe, a fada, a rainha, o amor resplandecente de sua infância! Não tinha muita certeza de reconhecê-la naquela mulher caída ao chão que apertava loucamente Florimond contra si, balbuciando palavras desconexas. Mas ela estendeu-lhe a mão com um chamado e ele se atirou, e por sua vez buscou refúgio naqueles braços que outrora o haviam embalado. Reconhecia-lhe o perfume, o colo tão macio, a voz, principalmente, que despertava tantas recordações, noites diante da lareira a fazer panquecas, ou quando ela vinha beijá-lo mais tarde, maravilhosa em seus trajes suntuosos.
— O mãe querida!
— O meus filhos, meus filhos!... Mas é impossível, Florimond, Cantor não pode estar aqui! Ele morreu no Mediterrâneo.
Florimond soltou uma risada clara, um pouco trocista.
— Então você não sabe, mãe, que foi meu pai que atacou a frota do Duque de Vivonne porque Cantor estava a bordo? Ele sabia disso e queria retomá-lo.
— Ele sabia.
Foram as primeiras palavras que atingiram a consciência dé Angélica desde o momento perturbador em que distinguira, nos traços dos dois cavaleiros que Joffrey de Peyrac lhe apontara, as feições queridas de seus filhos tão chorados.
- Ele sabia - repetiu.
Assim, aquilo tudo não era um sonho. Fazia anos que seus filhos estavam vivos. Joffrey de Peyrac "retomara" Cantor, acolhera e guardara Florimond, e, enquanto isso, ela, Angélica, quase enlouquecia de pesar. Seu primeiro reflexo, ao retomar pé na realidade, foi o de uma cólera cega..Antes que~*Joffrey de Peyrac pudesse prever-lhe o gesto, ela levantou-se e, marchando sobre ele, esbofeteou-o.
- Você o sabia - gritou como louca, de raiva e dor -, você o sabia e não me disse nada. Deixou-me chorar de desespero. Você se alegrava com meus sofrimentos. Você é um monstro. Odeia-me. Não me disse nada, nem em La Rochelle, nem durante a viagem... nem esta noite, sequer nesta noite... Ah, que fiz eu ao me unir a um homem tão cruel, não quero mais vê-lo...
Ameaçou correr. Ele a segurou e teve de usar de toda a força para retê-la.
— Solte-me - berrava; Angélica, debatendo-se -, jamais o perdoarei, jamais... Agora sei, você não me ama. Nunca me amou... Solte-me.
— Para onde quer correr, louca?
— Para longe de você... para sempre.
Contra a força dele, ela perdia as suas. Com medo de que ela lhe escapasse e cometesse algum gesto irjeparável, o conde a esmagava entre os braços. Angélica, sufocada tanto pelo abraço de ferro quanto pela revolta e pela alegria demente, sentiu faltar-lhe o ar, a cabeleira pesava-lhe como chumbo, puxando-lhe a cabeça para trás.
- O meus filhos, meus filhos - gemeu ainda.
Joffrey de Peyrac agora segurava apenas um corpo abandonado, de rosto transtornado, olhos fechados, mortalmente pálido.
-Ufa, minha terrível!... Você me deu um bom susto!
Angélica recobrava os sentidos. Estava deitada sobre um leito de folhas, nurfia choça indígena, para onde o marido a levara, desfalecida. Seu primeiro movimento foi afastar o homem que se debruçava sobre ela.
- Não, desta vez acabou, já não o amo, Sr. de Peyrac, fez-me muito mal.
Ele conteve um sorriso e, tomando à força a mão que se esquivava, pronunciou uma palavra que ela jamais esperaria dele:
- Perdoe-me.
Ela deu uma olhada rápida àquele rosto nobre, marcado pela rudeza de uma vida de perigos e que jamais se inclinara. Sentiu-se à beira das lágrimas, mas sacudiu a cabeça outra vez, ferozmente. Não, não perdoaria,"ele brincara com seu coração de mãe. Levara a insensibilidade a ponto de torturá-la, censurando-a por havê-los perdido, enquanto sabia que estavam ambos vivos, aguardando-o na América, em Harvard, e que fora ele quem provocara a "morte" de Cantor, sem pensar nas lágrimas que ela verteria, ela, a mãe, ao ser informada do desaparecimento da criança. Que indiferença pelos sentimentos daquela que um dia fora sua mulher! Era verdade, então, a desconfiança que lhe roçara a mente: ele nunca a amara muito.
Quis levantar-se para afastar-se dele, mas estava tão fraca que não pôde escapar aos braços que a retinham suavemente contra ele.
- Perdoe-me - repetiu ele, baixinho.
Ela precisou de força para fugir à interrogação ardente do olhar do marido e esconder o rosto em seu ombro rijo.
— Você sabia e não me disse nada. Deixou que se prolongasse o sofrimento que me corroía o coração, enquanto com uma única palavra poderia fazer-me explodir de alegria. Não me disse nada quando me encontrou, nem no navio... Nem nesta noite - soluçou ela de repente -, nem nesta noite.
— Esta noite?... Oh, meu coração! Você requeria meu ser inteiro. Esta noite finalmente me pertencia, e ciumentamente, egoisticamente, eu não quis ninguém entre nós. Já tinha compartilhado você o suficiente com o universo inteiro. Querida, fui duro e por vezes injusto, mas não a haveria tratado com tanto rigor se não a amasse tanto. Você é a única mulher que teve o poder de me fazer sofrer. A ideia de suas traições foi durante muito tempo um ferro em brasa sobre meu coração que se acreditava invulnerável. A dúvida envenenava-me as recordações, eu a via frívola, de coração seco, indiferente aos filhos que eu lhe havia dado. E ao reencontrá-la, dividido entre minhas dúvidas e a atra-ção invencível que sentia por você, quis pô-la à prova, queria saber quem você era, vê-la em plena luz, eu desconfiava desse dom para a comédia de que toda mulher é dotada, ainda que pouco. Eu havia reencontrado minha mulher, mas não a mãe de meus filhos. Eu queria saber... o que soube há pouco, quando, sem você estar preparada, você os reconheceu.
— Imaginei que morria - gemeu ela. - Ah, por pouco você não me fez morrer com sua maldade.
— O medo que senti ao vê-la tão transtornada puniu-me, de fato, por ter sido tão brutal. Você os' amava tanto, então?
— Você não tinha o direito de duvidar disso. Fui eu quem os criou, quem se privou de pão por eles, quem se...
Ela susteve a frase que lhe vinha aos lábios: "Quem se vendeu por eles". Mas, como não a pronunciou, sua amargura foi ainda maior.
— Só lhes faltei no dia em que repeli os avanços do rei para não trair você é lamento muito isso. Lancei-me em infelicidades sem nome por um homem que nem sequer me estimava, um homem que me desprezava e renegava, um homem que não merece que uma mulher o ame a ponto de morrer por amor. Você! As mulheres-o adulafam tanto que imagina que se pode brincar impunemente còrn o coração delas, sem que isso lhe custe o menor dissabor.
— O que não a impediu - disse Joffrey de Peyrac, levando um dedo à face - de esbofetear-me, senhora.
Angélica lembrou-se do gesto de delírio que tivera e ficou secretamente aterrada. Mas não quis dar mostra de nenhuma contrição.
- Não lamento nada. Por uma vez, Sr. de Peyrac, pagou como se deve pelas suas encenações de mau gosto e... - olhou-o bem no rosto - e pelas suas infidelidades também.
Ele recebeu o golpe com muito sangue-frio e uma centelhazinha no fundo dos olhos. "'- 'Timão, estamos quites?...
- Não tão facilmente, senhor - disse-Angélica, cujas forças, voltando-lhe, alimentavam-lhe a combatividade.
Sim, as infidelidades dele! Todas aquelas mulheres do Mediterrâneo que ele cobrira de presentes enquanto ela própria se arrastava na miséria, e aquela indiferença pelo destino da que era a mãe de seus filhos!...
Se ao menos ele não a estivesse abraçando com tanta força, ela lhe diria tudo o que pensava. Mas ele inclinou o rosto de Angélica para trás e muito suavemente enxugou-lhe as faces úmidas de lágrimas.
- Perdoe-mê - repetiu ele" pela terceira vez.
Angélica precisou de toda a sua força de vontade para esquivar-se aos lábios que se inclinavam sobre os seus e virar o rosto.
- Não - disse, amuada.
Mas, enquanto a segurasse nos braços, ele sabia que contava com um meio irresistível de reconquistá-la. Aquele braço a sua volta, barrando o caminho da solidão, protegendo-a, embalando-a, acariciando-a, fora o sonho de toda a sua vida. O sonho de todas as mulheres do mundo, modesto e imenso: o amor.
A noite viria e selaria sua reconciliação. De noite ela estaria outra vez nos braços dele, todas as noites de sua vida...
A noite, com um único movimento, poderia reencontrar-lhe o calor. De dia viveria a seu lado, na irradiação de sua presença invencível. Não há furor, por justificado que seja, que possa contrabalançar tais delícias.
— Ah, sou covarde - suspirou ela.
— Bravo! Uma onça de covardia convém à maravilha à sua imperiosa beleza. Seja covarde, seja fraca, minha querida, isso lhe cai tão bem!
— Eu deveria odiá-lo.
— Não se prive disso, meu amor, contanto que continue a me amar. Diga, minha amiga, não crê que seria tempo de irmos ao encontro de nossos jovenzinhos e tranquilizá-los acerca do bom entendimento de seu pai e sua mãe, finalmente reencontrados e unidos?... Eles têm inúmeros relatos a fazer-lhe.
Angélica andou como uma convalescente. A visão inacreditável não desaparecera. Florimond e Cantor, apoiados um no outro, no gesto encantador de sua infância, olhavam-nos aproximar-se.
Ela fechou os olhos e louvou a Deus.
Era o mais belo dia de sua vida.
Para Florimond, suas aventuras eram muito simples. Partira com Natanael, o jovem e vizinho amigo, escapando sem saber ao massacre que algumas horas mais tarde aniquilaria as famílias de ambos. Depois de andarem a esmo por algum tempo, embarcaram como grumetes num porto bretão. A"idéia fixa de Florimond de ir para a América para ali -encontrar o pai encontrara sua justificação quando, depois de desembarcar em Charlestown e não parar de perguntar, durante diversas peregrinações, se alguém conhecia um cavalheiro francês "chamado Peyrac, acabara topando com comerciantes que tinham relações com o conde, que acabava de mandar construir um navio em Boston, segundo planos seus, para os marés nórdicos.
Ele começava a explorar o Maine. Um amigo levara-lhe Florimond.
Cantor tambémachava suas aventuras muito simples. Partira à procura do paf, ao mar, e lago nos primeiros dias de navegação o pai aparecera num xaveco magnífico, para estender o braço ao filho.
Como tinham suplicado ao pai que fosse buscar Angélica, Florimond e Cantor não se surpreendiam em absoluto de vê-lo voltar com ela. Parà"eles a vida era uma sucessão de eventos benéficos e que naturalmente deviam avançar em proveito deles. Teriam ficado muito espantados se lhes explicassem que havia gente no mundo que tinha má sorte e cujos sonhos mais extravagantes não se realizavam assim que se dessem um pouco de trabalho para alcançá-los. Aparentemente, sua confiança na vida em si mesmos não se deixaria abalar por nada, e encaravam a partida para uma expedição ao interior como férias maravilhosas.
CAPITULO XIX
"Você nos pertence"
— Onde está o abade? - perguntou Florimond.
— Que abade?
— O Abade de Lesdiguire.
Angélica perturbou-se. Como explicar àquela criança entusiasta que o preceptor que ele não esquecera estava morto, enforcado? Hesitou. Mas Florimond pareceu compreender. A animação de seu rosto extinguiu-se e ele olhou a distância.
- É pena. Gostaria de revê-lo.
Sentou-se sobre a rocha, perto de Cantor, que, silencioso, de vez em quando beliscava a guitarra. Angélica foi sentar-se junto deles. A tarde terminava. Florimond e Cantor, familiarizados com o lugar, haviam-na levado a descobrir as enseadas, as angras encantadas daquela região estranha e a eterna complicação do litoral, contornando o mar azul com circunvoluções de polvo, meandros coruscantes aprisionando rosadas parcelas de rochas, verdes penínsulas desbastadas, reduzidas ao estado de répteis, de enguias flutuantes. Tantos refúgios, baías secretas, onde cada habitante, cada família nova poderia encontrar seu feudo, seu silêncio, sua cota de peixes ou de caça.
Entre as ilhas de crista pontuda, eriçadas de árvores, a sombra dos baixios desenhava ondulçaões móveis sob a transparência do mar: as praias eram diferentes. Vermelhas e rosadas, mas às vezes brancas, como a que se situava um pouco abaixo do fortim particular do Conde de Peyrac. Praia de neve acariciada pela água que, tocando a areia, adquiria a cor do mel, estendendo-se subitamente lânguida, com uma insólita suavidade, surpreendente naquelas rudes paragens.
Honorina corria em torno deles, recolhendo conchas que vinha depositar sobre os joelhos de Angélica.
- Meu pai me disse que Carlos Henrique morreu - continuou Florimond. -- Foram os dragões do rei que o mataram, não foram?
Angélica anuiu com a cabeça, em silêncio.
- O abade também?
Como ela não respondesse, o jovem levantou-se e sacou da espada.
— Mãe - disse, com ardor -, quer que eu faça o juramento de vingá-los.a amboi, qne eu lhe jure não descansar até rachar ao meio todos os soldados do rei da França que me caírem nas mãos? Ah, gostaria tanto de servir ao rei, mas desta vez é demais! Não perdoarei o assassinato do pequena Carlos Henrique! Matarei a todos! .
— Não, Florimond - disse ela -, não. Jamais pronuncie tal juramento nem tais palavras. Responder à injustiça com o ódio? Ao crime com a vingança? Aonde o'levaria isso? A injustiça, ao crime também, e tudo recomeçaria.
— São palavras de mulher - lançou Florimond, vibrando com uma dor e uma revolta contidas.
Ele sempre acreditara que na vida tudo se ajeita: se se é pobre, basta tramar para enriquecer, e se se é invejado demais a ponto de correr o risco de envenenamento, basta conservar um pouco de sangue-frio e ficar à espreita de uma pequena ocasião para escapar à morte. Bastava ter a coragem de sacrificar tudo e partir à procura de um irmão ou pai desaparecidos, para logo ver produzir-se o pequeno milagre de encontrá-los vivos. Eis que, pela primeira vez na vida, topava com um acontecimento irremediável, irreparável: a morte de Carlos Henrique.
- Ele morreu mesmo? - perguntou com intensidade, agarrando-se ao milagre.
— Coloquei-o com minhas próprias mãos no túmulo - disse Angélica, em tom abafado.
— Então, esse irmão, nunca o reencontrarei? - Sua voz estrangulou-se. - Gostaria tanto... Eu o esperava... Estava certo de que ele viria... Eu lhe teria mostrado nosso granito vermelho de Keewatin, e depois a malaquita do lago dos Ursos. E depois todos esses bejos minerais que se encontram sob a terra, basta procurar. Mas não, para quê? Mas eu já lhe havia ensinado muitas coisas...
Seu pescoço delgado estremecia sob os soluços que ele tentava reter.
- Ah! - exclamou, exaltado. - Por que você me impediu de levá-lo enquanto ainda havia tempo? Por que não posso voltar atrás para massacrar aqueles malditos?
Gesticulava com a espada.
— Deus não deveria permitir essas coisas. Não rezarei mais.
— Não blasfeme, Florimond - disse ela, severa. - Sua revolta é estéril. Siga a sabedoria de seu pai, que nos pede que não transplantemos para esta terra os velhos ódios. Maldizer a quem quer que seja, deter-se nos erros do passado nos faz mais mal do que bem. E para a frente que se deve olhar. "Deixe os mortos enterrar os mortos", dizem as Escrituras. Já pensou, Florimond, que é um milagre nos reencontrarmos hoje? Eu mesma também não deveria estar aqui, já devia ter morrido cem vezes...
Ele estremeceu, fitando-a com seus magníficos olhos negros, onde faiscava todo o ardor da juventude.
- Ora, isso é impossível, você não pode morrer.
Caiu de joelhos junto dela, passou-lhe os braços pela cintura e apoiou a testa contra seu ombro.
- Mãe querida, você é eterna, isso é óhvio.
Ela sorriu com indulgência para o jovem gigante várias polegadas mais alto do que a mãe, mas que continuava tão criança, precisando estar com ela, ser censurado, guiado, consolado.
Acariciou-lhe a testa lisa, a opulenta cabeleira de ébano.
- Sabia que o garotinho que nasceu na outra noite se chama Carlos Henrique? Quem sabe se, com ele, a pequena alma de teu irmão não retornou para junto de nós? Você poderá ensinar-lhe tudo o que sabe...
- Sim.
Florimond sonhava, o cenho franzido.
- Mas já sei tantas coisas! - suspirou, como se não pudesse resolver por qual extremidade começaria o ensinamento. - E verdade que toda essa criançada que yócê trouxe para cá só serve para recitar a Bíblia e precisa muito ser treinada. Aposto como não sabem distinguir quartzo de feldspato, nem sabem distinguir caça. Não é, Cantor?
Sem esperar pelos comentários do irmão, que sonhava sobre a guitarra, falou de sua existência de jovens europeus iniciando-se nas astúcias necessárias à vida selvagem. Como as crianças índias, os papooses, Cantor e ele sabiam caminhar "sem espantar um bisonte", tão" arisco, sobre um tapete de folhas crepitantes, colar-se como uma sombra de árvore em árvore, camuflar-se com despojos de animais píãra enganar a caça'viva, atraí-la, chamá-la, às vezes, para pegá-la. Era uma vida engrandecedora, e a habilidade de cada um era recompensada, mas mesmo os índios dividiam com todo o clã e eram generosos de nascença. Cantor e ele sabiam deter com uma flecha em pleno vôo outra flecha atirada por um companheiro. Mas a caça mais apaixonante ainda era em pleno inverno, quando os grandes animais, amortecidos pelo frio, afundam penosamente a cada passo na neve, enquanto seus perseguidores, leves e silenciosos em raquetes indígenas, aproximam-se sem muita dificuldade e cravaram-lhes as flechas sem possibilidade de erro.
Eram tão hábeis na pesca com arpão quanto no manejo do arco. Isso o próprio pai reconhecera. Transpassado o peixe, o pescador atira-se na água gelada, para apanhar a presa. Sentia-se viver! Bons nadadores, não tinham medo de deixar as leves canoas de madeira ir à deriva nas torrentes mais furiosas. Era preciso estar à altura dos salmões, que sobem uma queda-d'água.
- E eu que imaginava que, cobertos 3e tinta, vocês estudavam de língua de fora na Universidade de Harvard - disse Angélica, um pouco zombeteira.
Florimond suspirou.
- Isso também.
Pois uma parte do ano passavam nos bancos do célebre colégio. Há mais professores por aluno americano do que em Paris mesmo. A instrução era a grande chance da América, e o Maine estava à testa do novo continente. Então ele, Florimond, só podia ser o primeiro em matemática e ciências físicas. Mas sua vida continuava sendo ali, na floresta, e desta vez, finalmente, o pai consentia em levá-los numa expedição. Não se ia até os verdes montes Apalaches, onde se caça o urso-negro, e talvez mais longe ainda, à região dos grandes lagos, onde o Pai dos Rios tinha sua nascente?
— Mas aqui, No Maine, ao que se diz, há muitos lagos.
— Bah, lagoas! É preciso ser da mirrada Europa para dizer que há cinco mil lagos no Maine, além de Ontário. Há cinquenta mil, e só o Hudson é maior do que o seu famoso Mediterrâneo.
— Parece-me que você está prestes a tornar-se como Crowley ou Perrot: um caçador dos bosques...
— Gostaria de contar com isso, mas, como caçadores, estão muito à minha frente, e meu pai nos repete que nossa época exige mais estudos ainda do que antigamente, para melhor se desvendarem os segredos da natureza.
— E Cantor compartilha de seus gostos? - perguntou Angélica.
— Claro - fez Florimond, peremptório, sem dar a palavra ao mais novo, que erguia os ombros. - Claro - repetiu, num tom agudo, retornando à tonalidade da infância. - Pois ele é muito mais forte do que eu no "jogo das ondas"; é verdade que começou antes de mim. E depois é melhor marinheiro, pois navegou antes de mim. Eu, durante a viagem, tudo o que aprendi foi a esfolar os dedos nos nós e também, é verdade, a medir a distância percorrida com o sextante, a polar e o sol... - Ele sufocava, de tal modo os pensamentos se sucediam em sua cabeça.
Cantor esboçou um sorriso, mas não disse nada.
A espontaneidade de Florimond abolira sem dificuldade os anos de separação. Não hesitava em instigar a mãe desde quando era criança. Desde o primeiro instante ela reencontrara, vivaz e terna, a amizade de seu companheirinho dos dias sombrios.
Reatar com Cantor já era mais delicado. Ela deixara uma criança muito nova, já discreta, e encontrava um adolescente robusto, muito fechado, que há anos não sofria influência feminina.
- E você, Contor, se lembra um pouco de sua infância?
Ele baixou as pálpebras pudicamente e sua mão graciosa feriu um arpejo na guitarra.
- Lembro-me de Bárbara -disSrè. - Por que não veio com você?
Angélica pôs todo o empenho em não se trair. Desta vez não teria coragem de dizer-lhe a verdade.
— Bárbara me deixou. Já não havia garotinhos para cuidar em minha casa. Voltou para. sua aldeia... Ela... casou.
— Tanto melhor - disse Florimond.- - Depois ela nos trataria como bebêv e já faz muito tempo que não somos bebés. E não podemos nos estorvar com mulheres numa expedição como a nossa.
Cantor arregalou os-olhos verdes. Pareceu reunir sua coragem com as duas mãos.
- Mãe - perguntou -, você está decidida a "obedecer a meu pai em tudo e por tudo?
Ela não demonstrou surpresa ante a pergunta, feita em tom categórico.
— Certamente - disse -, seu pai é meu marido e eu lhe devo submissão em todas as suas vontades.
— É que - disse Cantor- esta manhã você não parecia tão submissa a ele. Meu pai é um homem cuja vontade é forte e que não gosta de rebelião. Então Florimond e eu receamos que isso acabe mal e que você nos abandone novamente.
Ante a censura, Angélica quase corou. Mas, a desculpar-se perante os filhos, preferiu compartilhar suas razões.
- Mas seu pai imaginava que eu não os amava, que nunca os tinha amado! Como não ficaria eu fora de mim? Longe de tranquilizar meu coração materno, ele me ocultou que vocês estavam vivos. A alegria e a surpresa me deixaram um pouco louca, reconheço. Odiei-o por me haver feito sofrer, quando com uma palavra ele poderia ter-me tranquilizado há muito tempo. Mas não tema nada. Seu pai e eu agora sabemos o que nos aproxima para sempre, e não é dessas coisas que uma discussão passageira possa destruir. Nada nos separará outra vez.
— Você o ama, então?
— Se o amo! O meus filhos, ele é o único homem que já teve importância na minha vida e me cativou o coração. Durante anos imaginei-o morto. Tive de lurar sozinha para viver e fazê-los viver, meus filhos. Mas nunca deixei de lamentá-lo e efe chorá-lo. Vocês acreditam em mim?
Assentiam gravemente com a cabeça. Perdoavam com mais facilidade, por terem sido a causa da violência da manhã. Os pais não são sempre razoáveis. Mas o principal é que se amem e não estejam separados.
- Então - insistiu Cantor -, desta vez não nos deixará novamente?
Angélica fingiu indignação.
- Mas parece-me que estão invertendo os papéis, meus caros meninos. Não foram vocês que me abandonaram por iniciativa própria, sem voltar a cabeça e sem se preocupar com as lágrimas que eu poderia derramar por havê-los perdido?
Eles a olhavam com um cândido espanto.
— Sim, minhas lágrimas - insistiu ela. - Qual não foi minha dor, Cantor, quando vieram comunicar-me que você havia se afogado no Mediterrâneo com toda a "casa" do Sr. de Vivonne!
— Você chorou? - indagou ele, encantado. - Muito?
— A ponto de adoecer... Procurei-o muito tempo, meu querubim. Parecia-me ouvir por toda parte o eco de sua guitarra.
Cantor descongelou. A emoção rejuvenesceu-o e de repente ele se assemelhou ao garotinho da Mansão do Beautreillis.
— Se eu tivesse sabido - disse, com remorso -, teria escrito uma carta para dizer-lhe que estava com níeu pai. Mas não pensei nisso. É verdade que naquela época eu não sabia escrever.
— Já passou, Cantor, meu querido. Agora estamos todos reunidos. Está tudo bem. Tudo é belo.
— E você ficará conosco? Você se ocupará de nós? Não se ocupará dos outros, como antes?
— O que quer dizer?
— Nós brigamos com aquele menino... Como se chama, Florimond?... Ah, sim, Marcial Berne. Ele pretendia que a conhecia melhor do que nós, que fazia muito tempo que você vivia com eles, como se fosse sua mãe... Mas não é yerdade. Ele não passa de um estranho. Você não tem o direito de amá-lo tanto quanto a nós. Nós somos seus filhos. .--- Angélica divertiu-se com a expressão reivindicativa de ambos.
- Decididamente, será que é meu destino viver cercada de homens ciumentos, que não podem suportar nenhuma ausência minha? - perguntou, beliscando o queixo de Cantor. - O que será de mim, tão ferozmente guardada? Isso não deixa de me preocupar. Mas, paciência, devo aceitar minha sina.
Os dois meninos_caíram na risada.
A adolescência deles, que o mistério do amor começava a perturbar, ela parecia a mais bela das mulheres, a mais sedutora, a mais fascinante. Ex> coração enchia-se-lhes de um orgulho sublime, quando pensavam que aquela mulher era mãe deles. Só deles.
— Você nos pertence - disse Florimond, abraçândo-a. Ela os envolveu nuirumesmo olhar de ternura.
— Sim, eu lhes pertenço, meus bem-amados - murmurou.
— E eu, então? - perguntou Honorina, plantada diante deles e encarando-os.
— Você? Faz muito tempo que lhe pertenço, marota. Você me reduziu à escravidão!
A palavra e a ideia divertiam a garotinha. Pôs-se a rir e a dar piruetas. Sua exuberância natural vinha à tona desde que se libertara de sua inquietação.
De repente deitou-se de bruços no chão, o queixo entre as mãos.
— O que haverá como surpresa amanhã? - indagou.
— Uma surpresa? Mas você acha que teremos surpresas todos os dias? Agora você tem um pai, irmãos... O que lhe falta ainda?
— Não sei...
Como que dominada por uma inspiração tão súbita quanto feliz, propôs:
- Não poderíamos ter um pouco de guerra?
O modo como pediu, como se fosse um pedaço de bolo, os fez rir.
- Ela é engraçada, essa menina! - exclamou Florimond. - Estou contente de tê-la como irmã.
- Mãe, quer que lhe cante alguma coisa? - disse Cantor.
Angélica olhou um a um os rostos dos filhos erguidos para ela.
Eram belos e saudáveis. Amavam a vida que ela lhes dera e não a temiam em absoluto. A alegria subiu de seu coração como uma ação de graças.
- Sim, cante, cante, meu filho. É o momento. Acho que não há outra coisa a fazer senão cantar.
CAPÍTULO XX
Epílogo
A expedição partiu na última -semana de outubro. Aos criados índios, aos soldados espanhóis encarregados de defender a coluna, juntaram-se alguns homens da tripulação e caçadores. Três carroças seguiam com víveres, instrumentos, peles -e armas.
Joffrey de Peyrac e Nicolau Perrot tomaram a dianteira e o comboio se pôs em marcha, deixando os arredores do forte de Gouldsboro. Houve uma parada no Acampamento Champlain. Depois os cavalos prosseguiram em direçã(c) à floresta. Em uma noite o outono chegou. Contra um fundo de ouro ondulado, as faias e os bordos inclinavam suas folhagens rutilantes.
Os cavalos brancos ou baios, montados por guerreiros em couraças negras, índios emplumados, homens barbudos armados de mosquete, e guiados por um gentil-homem com ares de conquistador, desenrolavam contra aquele cenário ardente o tema de uma tapeçaria régia.
Um pajem arranhando a guitarra e lançando a todos os ecos um refrão alegre ritmava a cadência da marcha, meio abafada pelo musgo verde do caminho.
Honorina dividia a montaria com seu favorito, Florimond.
Depois de vadearem o primeiro rio, Angélica, a uma mensagem que lhe levaram, ganhou a testa do comboio e alcançou o marido.
- Quero que você fique a meu lado - disse ele.
Emoldurado pelo capucho preto, o rosto de Angélica, seus olhos verdes, seus cabelos de ouro claro iluminados pela luz irreal que caía das folhagens, parecia de uma misteriosa beleza. Ela sempre pertencera à floresta. A floresta a retomava.
- Eu diria que Nieul me é devolvida. Tudo aqui é mais gigantesco, mais resplandecente...
Ela o seguiu até uma colina, para onde ele se lançou a galope.
- Desta altura, é a última vez em que veremos o mar. Depois não o veremos mais.
Na escala da imensa extensão dourada, limitada apenas por um leve nevoeiro, a praia parecia um delgado crescente de lua, uma lua rosada no azul noturno do mar.
Um pouco adiante, o Acampamento Champlain abria uma clareira na sequência ininterrupta de árvores. Era uma mancha ínfima na textura cerrada da paisagem, um mero sinal cuja fragilidade fazia contrair-se o coração. As silhuetas humanas que ainda se podiam distinguir pareciam perdidas entre dois desertos ilimitados: o mar e a floresta.
Mas era a vida, o único vínculo com o resto do mundo.
Depois de contemplarem um instante, eles dobraram à esquerda. A cortina de árvores fechou-se atrás deles, o mar desapareceu. Agora só estavam cercados pela opulenta escolta de árvores seculares onde predominavam o vermelho, o laranja e o ouro-velho. A mancha azul-esverdeada de um lago espalhava-se entre os galhos. Um alce bebia no lago. Quando lançava a cabeça para trás, sua galhada se assemelhava a asas escuras.
Atrás dos troncos frágeis das bétulas, atrás das colunas de carvalhos, não se podia esquecer que vivia um mundo animal de intensa vitalidade: alces, ursos, cervos, renas, lobos e coiotes, e milhares de animaizinhos peludos - castores, visons, raposas prateadas, arminhos. Os pássaros povoavam os galhos.
Joffrey de Pey.rac olhou novamente Angélica com uma pbnta de dúvida.
— Não tem nenhum medo? Nenhuma mágoa?
— Medo? Tenho apenas um: o de desagradá-lo. Mágoa? Sim, a de ter vivido tantos anos longe de você.
Ele estendeu o braço e pousou-lhe a mão na nuca, num gesto possessivo e acariciante.
- Tentaremos ser duplamente felizes. O continente inviolado que nos espera talvez nos seja menos cruel do que o Velho Mundo entediado. A natureza é propícia aos amantes. A solidão e os perigos os aproximam, enquanto o ciúme dos homens visa apenas a separá-los. Avançaremos, teremos de enfrentar muitas provações, mas nos amaremos sempre, jião é, senhora? E talvez cheguemos a Novumbega, a grande cidade indígena com torrinhas de cristal, paredes revestidas de folhas de ouro e incrustadas de gemas. Ei-la que já;vem ao nosso encontro. Aqui estão a folha de ouro puro e as surpresas irisadas-de brumas. Viver neste país é viver no coração" de um diamante cujas faces todas reluzem à menor claridade. Eis nossos domínios, minha rainha, nossos palácios...
Ele a puxou para mais; perto, encostou a face-à dela. Beijou-a perto dos lábios, murmurando-lhe palavras desatinadas:
- Minha heroína, minha amazona, minha guerreira... Meu coração... Minha alma... Minha mulher.
Esta última palavra, nos lábios dele, adquiria todo o sentido. Como se ele a pronunciasse com o fervor de um amor novo e também a serenidade de uma longa vida em comum, de cuidados e ternura. Ele encontrara aquela de quem precisava para viver, tão necessária quanto seu próprio coração. A mulher já não estava fora dele, estranha e por vezes inimiga, mas nele, amiga soberana, ligada a sua vida, a seus pensamentos de homem.
Encontrara o segredo do amor. Um perto do outro, sobre as montarias imóveis, saboreavam o instante de felicidade sem sombras, concedido aos viajantes que eles eram, peregrinos do amor.
Porque tinham recusado os compromissos, tinham recusado alinhar-se entre os medíocres e, como seus ancestrais, nobres cavaleiros, não tinham hesitado em lutar, em guerrear, em partir para longe, em perder tudo, riquezas e honrarias, haviam conquistado o Santo Graal, o tesouro da vida, misterioso e inestimável, prometido apenas aos paladinos.
- Você é tudo para mim - disse ele.
O fervor de sua voz extasiou Angélica. Ela sabia, hoje, que, depois de tantos tropeços, alcançara seu objetivo: reencontrá-lo, estar nos braços dele, possuir-lhe o coração.
A vida abria-se ao amor deles.
Angélica parecia ter atingido a felicidade plena. O único homem a quem verdadeiramente amava caminhava outra vez ao lado dela, pronto afazê-la senhora de seus domínios. Os filhos, que julgava perdidos para sempre, haviam ressurgido, mais formosos. EHo-norina encontrara um pai.
Ao sol do Novo Mundo as fantasmagorias do passado dissipavam-se entre os arco-íris da esperança nessa terra luminosa e carregada de promessas. O quê mais poderia interpor-se no caminho de uma mulher que conhecera os extremos da alma humana?
Vista agora dessa perspectiva sua vida parecia rápida demais, violenta demais, fulgurante demais. A alegria misturava-se com uma espécie de medo. Não era dessas pessoas destinadas a se acomodar.
Anne e Serge Golon
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