Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NO LIMIAR DA LOUCURA - P.2 / Laura R. King
NO LIMIAR DA LOUCURA - P.2 / Laura R. King

                                                                                                                                                 

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NO LIMIAR DA LOUCURA

Segunda Parte

 

A gruta principal era do feitio dum ovo talvez com quatro metros e meio de comprimento e três de largura, com água a pingar pela parede do fundo duma ponta calcificada para uma poça pouco maior do que um prato de sopa. Essa parede estragara-se com o decorrer dos anos e Rae não percebeu se o que ruíra escondia outra passagem baixa para as profundezas da colina. Pelo aspecto da rocha, duvidava que existisse outra gruta, e certamente não nos últimos cem anos.

 

Aquela divisão fora utilizada por Desmond para guardar coisas, possivelmente enquanto construía a casa, mas pouco ficara. Até as prateleiras feitas por ele estavam tão Podres que teve medo de lhes tocar. No chão, viu uma grade de garrafas de vinho, deitada de lado, com os gargalos demasiado sujos de poeira para perceber o que continham. Viu também meia dúzia de recipientes para conservas numa das prateleiras, igualmente cobertas de pó e da ferrugem das tampas, e com eles, diversos objectos - uma colher-de-pedreiro sem cabo, uns pacotes de sementes, uma corrente enferrujada. E um objecto rectangular um pouco maior do que uma caixa de charutos.

 

Estendeu a mão para a caixa. Embora de metal, era tão leve que devia estar vazia, mas sentiu qualquer coisa lá dentro. No sítio onde estivera, via-se agora um rectângulo perfeitamente definido de madeira limpa, e esteve tentada a arrumá-la de novo, pensando nas perguntas acusadoras das autoridades que haviam de vir buscar os ossos de Desmond. Mas a propriedade era dela, ou não era? Porque não havia de levar a caixa-forte do seu parente consigo? Numa atitude de desafio, pegou também numa das garrafas, tocando na prateleira inferior sem querer, quase fazendo cair as duas. Isso resolvia o problema das marcas na poeira, pensou, mas em vez de lhes pregar um valente encontrão, contentou-se em remexer nos pacotes de sementes e ferramentas partidas, para aumentar a confusão, soprando depois o pó do cofre para cima delas. Não estava mal. Meteu a caixa debaixo do braço, pegou na garrafa e no candeeiro e voltou-se para sair da gruta. Nesse momento, ficou petrificada.

 

Afastou-se da parede, levantando o candeeiro para a luz incidir mais oblíqua. Não, não era engano. Havia qualquer coisa gravada na parede, uma forma arqueada com ondulações a atravessar-lhe o corpo e uma alta barbatana dorsal. Seguiu os contornos da orca com um dedo reverente, virando de novo o candeeiro para as paredes enquanto recuava para a passagem baixa, mas ela não tinha companheiras.

 

Parou na abertura para a gruta lateral que continha os tristes restos de Desmond, tentando pensar em alguma coisa para dizer que não fosse inapropriada ou embaraçosa, mas não conseguiu, de maneira que rastejou em direcção ao círculo de luz.

 

A estreita abertura era difícil de atravessar. Deixou a garrafa e a caixa escorregar suavemente para o entulho lá fora, abandonando a lanterna e o candeeiro, ambos apagados, na gruta atrás dos seus pés. Esgueirou-se para fora da abertura, caindo mais ou menos na terra mole, uma terra mole que escondia alguma coisa dura e muito aguçada.

 

Merda! gritou, continuando a cair, até que parou de costas contra as pedras negras da lareira, agarrando a mão direita e vendo a linha vermelha aparecer na crosta castanha da lama: Bolas! Pôs-se de pé com dificuldade, estendeu a mão esquerda para o gargalo da garrafa, e ficou rígida com o som duma voz familiar vinda do lado das rochas: Nikki Walls. Bolas! exclamou outra vez, e agarrou na caixa de metal, que atirou de novo para dentro da gruta, atravessando a lama e o emaranhado de vegetação antes que a simpática e metediça guarda-florestal a encontrasse. Nem pensou porque não queria que ela visse ainda a gruta. Só sabia que não estava pronta para a tornar propriedade pública. Por isso, libertou-se freneticamente do entulho e meteu-se entre os barrotes, deixando depois rastos de lama nas tábuas do soalho.

 

Nikki ia a meio caminho da encosta quando foi recebida por o que lhe pareceu um cadáver recém-desenterrado, coberto de terra da cabeça aos pés, a descer rapidamente os degraus de pedra. Um cadáver recém-desenterrado com uma garrafa igualmente nojenta na mão esquerda e uma data de dentes brancos à mostra num enorme sorriso.

 

Nikki exclamou o cadáver. Mesmo a pessoa que eu precisava de ver! Espero que o seu treino incluísse primeiros socorros. Porque, caso contrário, vai ter de ficar aí sentada a ver-me tentar pôr um penso com a mão esquerda. Estendeu a mão a sangrar, coberta de lama, e Nikki deu um passo atrás, mas depois foi com ela pela colina abaixo, observando-a atentamente.

 

Você esteve a beber, Rae?

 

A beber? Não, meu Deus! Porquê? Ah!... exclamou Rae, olhando para a garrafa que levava na mão. Não, nem sequer está aberta. O que não respondia exactamente à pergunta de Nikki, embora esta ficasse mais descansada com a direcção normal de Rae e com a maneira como caminhava.

 

Chegaram à tenda, e a garrafa foi poisada ao lado da bancada de metal da cozinha, meio escondida pelas pernas. Rae voltou-se para a tenda, mas parou, examinando-se.

 

Meu Deus! Pareço um monstro.

 

Nikki limitou-se a segurar na pala da entrada, para ela poder passar sem esfregar o corpo sujo ou a mão a sangrar na lona. Rae reapareceu um minuto depois com um grande estojo de primeiros socorros.

 

Acho que o melhor é limpar isto um bocado antes de tratar do golpe disse Rae. Para não o molhar depois.

 

Boa ideia concordou a rapariga, pensando que ela iria para o duche que tinha construído com um chuveiro ligado a um balde, mas a dona da ilha agarrou numa toalha com dois dedos e dirigiu-se à enseada. Nikki ergueu as sobrancelhas ao vê-la baixar-se para tirar as botas cobertas de lama. De vez em quando, ainda dava um mergulho rápido na água gelada, mas fazia-o desde miúda e tinha metade da idade daquela mulher. É uma velhota valente, pensou.

 

Não tão velha, como isso, emendou, ao ver as firmes costas de Rae emergirem da camisa e das calças. Roupa interior, sem sutiã, reparou; depois, voltou-se para pôr uma chaleira de água ao lume. Não conseguiu evitar olhar para a enseada nos minutos seguintes. Olhou duas vezes: da primeira, viu Rae a flutuar calmamente na água gelada como se estivesse deitada numa banheira de água quente; da segunda, para ver se o chapinhar significava que era o momento de deitar a água no café moído, semicerrou os olhos perante as cicatrizes vermelhas no braço esquerdo e no peito de Rae. Tinha visto a perfeita cicatriz no antebraço, onde ela fora operada e com uma placa, mas não fazia ideia de que tivesse sofrido tais ferimentos. Parecia ter caído dentro duma máquina agrícola.

 

Rae voltou para o acampamento, envolta na toalha demasiado pequena, a bater os dentes e com a mão ferida estendida.

 

Obrigada pelo café agradeceu, entrando na tenda. Quando saiu, estava de calças de ganga e camisola de mangas compridas, a mão envolta num pano limpo. Começou a mexer na caixa de primeiros socorros, sem reparar no olhar fixo de Nikki, até que a rapariga se aproximou e lhe tirou o estojo da mão.

 

Eu ajudo.

 

O golpe não era fundo, apenas um corte na parte carnuda da palma. Se estivessem mais perto da cidade, Nikki teria insistido em que fosse cosido, mas o golpe não justificava uma ida de barco a Friday Harbor, e nenhuma delas a sugeriu. Nikki desinfectou-lhe a mão, secou-a, aplicou-lhe três pensos uns a seguir aos outros e cobriu tudo com uma ligadura de gaze. Já tinha praticamente deixado de sangrar.

 

Como é que fez isso? perguntou, arrumando o estojo.

 

Caí respondeu Rae. Na terra, onde devia haver um vidro. Não tem importância, e fui vacinada contra o tétano antes de vir para cá.

 

Não vai poder pegar num martelo durante um dia ou dois observou Nikki.

 

Rae soltou uma gargalhada e estendeu a mão esquerda para ela. Os dedos eram uma rede de cicatrizes, pequenas linhas brilhantes de muitos golpes rapidamente cicatrizados.

 

Cinzéis explicou sucintamente.

 

Os olhos de Nikki deslocaram-se para as três longas cicatrizes no interior do pulso de Rae, mas não fez qualquer pergunta, limitando-se a levantar-se para servir o café.

 

Foi onde encontrou a garrafa? perguntou a rapariga.

 

Garrafa? repetiu Rae, em tom hesitante.

 

De vinho. Trazia-a consigo quando desceu a encosta e parecia o meu irmão miúdo quando quis escavar até à China.

 

Ah, o vinho! Sim, foi lá em cima junto à casa. Deve ter sido do Desmond e com certeza que já não está bom.

 

Estava deitada? Se a rolha está molhada, o vinho fica bom.

 

Estava sim.

 

É tinto ou branco? O tinto dura mais. Um dos meus cunhados percebe de vinhos explicou Nikki. Está sempre a usar termos técnicos e põe-nos doidos quando há uma festa.

 

Não sei... de que cor é, quero dizer. Vou ver. Mas Nikki já levantava a poeirenta garrafa para a luz.

 

É tinto disse ela. E a rolha parece estar boa. Há mais? Podem valer dinheiro.

 

Não sei repetiu Rae, e depois ficou danada consigo mesma por não ter dito logo que não, que era só aquela.

 

A rapariga pegou logo na deixa:

 

Vamos ver! sugeriu, praticamente a dar ao rabo de entusiasmo. Era porreiro encontrarmos um esconderijo dos anos vinte. A Sociedade de História adorava. Você podia...

 

Eu digo-lhe se encontrar mais alguma.

 

Mas eu...

 

Nikki!

 

A rapariga calou-se, apercebendo-se de que a simpática dona da ilha se lhe dirigia num tom semelhante ao da sua avó, feroz e geralmente desaprovadora, a matriarca irlandesa que dirigia os jantares familiares com uma língua de ferro.

 

Eu digo-lhe continuou Rae, depois de obter a atenção de Nikki. Isto é a minha caça ao tesouro, e não um projecto comunitário.

 

Controlada e um tanto magoada, Nikki poisou a garrafa e sentou-se, dizendo num tom muito semelhante ao do seu filho pequeno:

 

Está bem. Desculpe.

 

Pronto, você estava a tentar ajudar e eu agradeço-lhe. Mas por agora prefiro fazer as coisas sozinha. Não quero que os seus patrões tenham o mais pequeno motivo para vir aqui meter o nariz. Era uma desculpa sem pés nem cabeça, visto que tinha confiança na advogada para manter o governo longe da ilha, mas a rapariga acenou tristemente com a cabeça. De qualquer maneira, obrigada pela oferta de ajuda. E pelo tratamento acrescentou, levantando a mão ligada. Via-se uma mancha de sangue, mas não estava a alastrar. A propósito, veio cá por algum motivo? Esqueci-me de perguntar.

 

Não. Andava por perto, e quis ver se tinha adiantado muito as paredes.

 

Um dos inconvenientes de se pertencer a uma comunidade, reflectiu Rae, era ter-se a responsabilidade de reagir aos vizinhos. Tinha de se lhes permitir intrusões, mesmo quando a vontade era de os expulsar da ilha. Por isso, quando se levantou, para indicar que a visita terminara, acompanhou o gesto com um sorriso, embora forçado.

 

Tudo bem. Não pense que precisa de me trazer comida para ter desculpa.

 

Nikki retribuiu o sorriso e deixou Rae acompanhá-la até ao barco, mas, já dentro dele, desferiu um golpe final:

 

Espero que pense pelo menos na Sociedade de História. A propósito do vinho, quero dizer. Eles iam adorar ter uma garrafa de vinho daqui em exposição.

 

Diário de Desmond Newborn

 

22 de Agosto de 1921

 

Durante dois anos e quatro meses, vagueei pela superfície da terra, desde a noite em que me esgueirei de casa da minha família até à gloriosa manhã em que pisei pela primeira vez esta ilha, há oito semanas. Durante oitocentos e cinquenta e dois dias, fui um homem sem lar, um vagabundo cujos bens neste mundo eram o que tinha vestido e transportava nos bolsos, uma figura malcheirosa e pouco digna de confiança entre as muitas que vagueiam à margem da sociedade.

 

Pertencia a esse meio de proscritos e sentia-me bem sem raízes, aliviado por não erigirem de mim mais do que um par de olhos atentos ao pessoal ferroviário, em troca duma mão-cheia de vegetais semipodres da panela comum.

Não que me sentisse sempre bem com o grau de embriaguez, a ordinarice e o perigo constante dos verdadeiramente loucos, mas a simplicidade das exigências feitas pela irmandade dos desabrigados é calmante para uma alma perturbada. Se eu gritava a dormir, o meu vizinho limitava-se a amaldiçoar-me e a dar-me um pontapé na perna para me calar; não queria saber o que me perturbava, pois era certamente um problema semelhante ao dele.

No entanto, mesmo antes do episódio em Yakyma, já estava a ficar cansado daquela vida, inquieto duma maneira que o vaguear não conseguia acalmar. Voltar para Boston talvez fosse impossível, mas a ideia de regressar à prisão de qualquer cidade dificultava-me a respiração. "E, contudo, comecei a parar para admirar as casas, a solidez das suas pedras, a promessa de abrigo que delas se desprendia, um palco onde a vida podia ser vivida. Tugúrio ou solar, todas diziam qualquer coisa ao meu crescente desejo de paredes e de um tecto entre os elementos e eu.

Recordações de Verões da infância à beira-mar, de longas horas de liberdade e companheirísmo ao sol levaram-me mais para oeste, até a terra se me acabar - e mesmo assim continuei, atravessando o mar calmo para estas belas ílhas azuis.

 

Este parece-me um empreendimento irónico, se pensar que o Willíam decidiu aumentar a fortuna da família construindo casas e fábrÍcas estações de caminho-de-ferro e enormes edÍfícios de escritórios para os outros. Havia de se rir da ideia de "construção" do irmão mais novo.

 

É loucura, talvez, mas a minha outra única escolha é continuar a deslocar-me para oeste, sobre o mar ou para dentro dele. Vou parar aqui, vou construir e viver aqui. E, se Deus quiser, depois de encontrar a paz, aqui morrerei.

 

Passaram quarenta e oito horas, o resto do sábado e todo o domingo, enquanto Rae se habituava à ideia dos ossos e da reconstrução do passado que eles acarretavam.

 

Não que passasse o tempo a olhar para o vazio, longe disso. No sábado, trabalhou na doca, mantendo-se ocupada longe da casa e da gruta, pensando em nada de particular a não ser na tarefa entre mãos. No sábado à noite, construiu um cofre para a comida, à prova de esquilos e guaxinins, com ramos deliberadamente toscos mas suficientemente apertados para contrariar as patitas cada vez mais habilidosas dos seus pequenos vizinhos peludos. E no domingo, embora voltasse as atenções de novo para a casa, o que fez sobretudo foi acarretar tábuas e construir a estrutura do primeiro andar, uma tarefa mecânica dificultada pela ligadura na mão direita.

 

Em todo esse tempo, contudo, continuou a pensar nas opções a respeito dos restos de Desmond. Gradualmente, chegou a uma decisão.

 

Na segunda-feira de manhã, de café na mão, sentou-se e escreveu uma carta:

 

Xerife Carmichael,

 

Pedi ao Ed De la torre que lhe entregasse esta carta quando voltasse para Friday Harbor. Se isso acontecer já tarde, por favor não imagine que o assunto é urgente. É preferível esperar um dia (ou dois ou seis, ao fim e ao cabo) é preferível isso do que vir para cá a correr às escuras. Encontrei um esqueleto antigo numa gruta atrás da casa e penso que sejam os restos do meu tio-avô Desmond Newborn, que desapareceu no fim dos anos vinte. Não sei o que é costume fazer com uma ossada tão antiga, mas imagino que seja preciso algum exame oficial antes de poder enterrá-la ou cremá-la.

 

Vou esperar até ter notícias suas para fazer alguma coisa, mas honestamente não há necessidade de vir para cá a correr segurar-me na mão. Estou muito para além da fase em que uns poucos de ossos me tiram o sono.

 

Rae Newborn.

 

Era, decidiu ela, examinando a quinta e derradeira tentativa de carta, nada mais do que a verdade. Quando muito, nos três dias vividos com o conhecimento da existência da gruta e do seu conteúdo, acabara por pensar nele como uma versão maior da tosca figurinha de madeira de Desmond encontrada nos alicerces. Se fosse um pouco menos cumpridora da lei, se não tivesse a certeza de que mais tarde ou mais cedo acabava por admitir a Nikki ou Petra ou outra pessoa qualquer que estava a esconder restos humanos, ter-se-ia sentido tentada a tapá-los e a deixá-los onde estavam.

 

No entanto, os segredos têm a peculiaridade de vir à tona no momento menos próprio e, além disso, não via que mal podia advir de meter o xerife no assunto, para além de certa alteração à sua rotina.

 

Depois de escrever a carta, contudo, ainda precisava de fazer uma coisa antes de a entregar nas mãos de Ed no dia seguinte. Na noite de segunda-feira, com a estrutura do rés-do-chão erguida e a mão quase sarada, jantou cedo e depois, certa de que ninguém ia aparecer sem se anunciar, foi até à casa e entrou pela terceira vez no local do descanso final de Desmond Newborn.

 

Não voltara à gruta desde a chegada precipitada de Nikki na manhã de sexta-feira, embora a sua mente não se tivesse dedicado a outra coisa. Imagens, perguntas e decisões tinham revoluteado sem parar, e uma das decisões a que chegara era a de que, das milhentas perguntas sobre a presença de Desmond, poucas estava disposta a abordar com pessoas de fora.

 

A questão resumia-se no seguinte: Porque estava ele ali? Como teria morrido, quando e por que motivo a família julgava que ele estivesse no Arizona tudo quebra-cabeças alinhados atrás duma grande pergunta: como teria Desmond Newborn gatinhado para dentro da terra para morrer?

 

Rae não duvidava de que o médico legista ia ter uma ideia do que o matara, nem que tivesse sido apenas a idade. Mas essa noite era a última em que podia tê-lo só para si e permitir aos seus restos dizerem-lhe o que pudessem. Sentia, por motivos que nem conseguia explicar, que lhe devia essa oportunidade. Devia ao construtor da Loucura a oportunidade de falar confidencialmente com a única pessoa que seria capaz de o escutar. Não chegara a ter um último momento a sós com Alan ou Bella. Ambos tinham sido levados do hospital para a morgue e daí para o crematório antes de ela saber o que queria. Com Desmond, ia ter tempo para se despedir.

 

Além disso, tinha de saber o que estava na caixa de metal que atirara lá para dentro na escuridão.

 

O candeeiro de reserva e a lanterna estavam onde os deixara, logo à entrada da gruta. Acendeu um fósforo e depois o candeeiro, que encheu imediatamente o pequeno corredor de luz. Avançou de joelhos pelo chão de pedra.

 

Oh, Desmond. Já falta pouco, disse ela silenciosamente.

 

Daí em diante, tudo o que fizesse seria óbvio para a Polícia. Não havia maneira de esconder a entrada no cubículo de Desmond, nem de repor a poeira na sua roupa. Bom, enfrentaria esse problema quando ele surgisse. Não era propriamente a cena dum crime, afinal.

 

A não ser que...

 

Só tinha uma maneira de o descobrir. Não sabia se devia sossegar o espírito dizendo a si própria que ia dar ao corpo o seu muito adiado descanso ou pedir-lhe desculpa por perturbar a sua paz, mas avançou até os joelhos das calças de ganga tocarem nos delicados ossos dos pés, espalhados no solo como uma antiga consulta rúnica dos oráculos. Então, sentou-se nos calcanhares e levantou o candeeiro, provocando estranhas sombras na rocha.

 

Depois do incêndio, a abertura da gruta ficara tapada de modo a permitir apenas o acesso de pequeníssimos animais. Nada maior do que uma ratazana podia ter chegado ao corpo, o que significava que Desmond estava mais ou menos intacto, embora um tanto... relaxado. No entanto, duvidava muito que mesmo uma grande ratazana pudesse ter tirado dali artigos de vestir... e Desmond nada tinha nos pés, nem mesmo meias. Os ossos das pernas desapareciam dentro dum par de calças poeirentas dum tecido grosso e escuro. Bom tecido de fazenda, pensou ela, em vez de calças de trabalhador. Não tinha casaco nem colete, apenas uma camisa de mangas compridas, branca debaixo das nódoas, com o género de decote destinado a prender um colarinho engomado. Este não estava ali, como também não estava a gravata, mas Rae viu a tira do decote e uns centímetros de camisola interior. A parte inferior da camisola estava rota, por ter apodrecido ou sido roída. Tinha ainda suspensórios, mas eles não estavam por cima dos ombros. Tinha as duas alças à volta da cintura, uma até por baixo das coxas.

 

O mais estranho era o facto de os botões da camisa estarem todos desabotoados, o que se via perfeitamente, apesar de a peça de vestuário se encontrar bastante roída.

 

Sem qualquer experiência de corpos a desfazerem-se, Rae não podia ter a certeza do significado da posição relativa dos membros, mas, imaginando a figura como uma escultura de gelo derretido, parecia-lhe que Desmond teria expirado numa posição um tanto curvada, com a cabeça encostada à parede à direita, a perna direita ligeiramente encolhida e a esquerda esticada. Os ossos do braço esquerdo tinham escorregado para fora das mangas, mas o direito continuava dobrado de encontro ao corpo, com o punho metido dentro dos restos do peitilho da camisa.

 

Junto com os ossos da mão direita, viu Rae quando apontou a lanterna para a confusão de costelas e vértebras.

 

Os ossos dentro da camisa (e Rae não conseguiu deixar de pensar se aquela pequena exploração iria provocar-lhe pesadelos) estavam mais limpos, mais protegidos da poeira. Pegou na ponta da camisa com as unhas e afastou o tecido, apontando o poderoso feixe luminoso para os ossos: costelas, a coluna vertebral, os achatados ossos pélvicos, uma quantidade de pedaços de cabedal com que não quis preocupar-se, e os minúsculos ossinhos da mão direita desintegrada. Entre estes, viu um pequeno objecto liso pouco maior do que uma borracha dum lápis. Não o teria visto se não estivesse à procura dele. Franziu a testa, a centímetros da caveira de Desmond (tinha tido dentes bons, reparou), e meteu dois dedos por detrás do cós das calças dele para recuperar o objecto.

 

Uma bala. E não esmagada como as outras, mas uma bala praticamente intacta. Meteu-a no bolso da camisa e abotoou a pala. Ia retirar-se, mas a luz da lanterna iluminou inesperadamente um alto atrás da omoplata esquerda. Uma segunda bala, mas essa do tamanho do seu dedo mindinho, embora agora achatada e semienterrada no osso. A ideia de a arrancar fê-la finalmente perder a coragem, e teve de recuar para recuperar o fôlego. Daí a uns cinco segundos, tornou a inclinar-se para a frente, para ver de mais perto a informe massa metálica. O osso em volta da bala mostrava claras linhas de fractura, mas nenhum movimento. A omoplata tinha rachado, mas não se desfizera.

 

Não, corrigiu-se Rae. O osso tinha-se desfeito, mas voltara a crescer, prendendo ali a bala.

 

Estava a observar o trabalho dum atirador furtivo alemão, cujo tiro atravessara o ombro de Desmond e esmagara o osso uma década antes da bala mais pequena que o matara.

 

Bastava não conseguia enfrentar mais qualquer coisa. Conseguira o que procurara, a bala e a caixa metálica, de maneira que avançou para recuperar o candeeiro e sair dali. À entrada da gruta, no entanto, uma última coisa estranha fê-la deter-se: o peso do poeirento peitilho da camisa quando o afastara. Pegou de novo na lanterna, endireitou o peitilho e viu no bolso da camisa a ponta dum pequeno livro encadernado a cabedal do tamanho do Novo Testamento da avó, pouco maior do que a palma da sua mão. Tirou-o, deixando cair a camisa, e deu uma vista de olhos pelas páginas. Bastou-lhe uma fracção de segundo para ver que não era uma Bíblia, visto as páginas estarem cobertas de palavras manuscritas.

 

Um diário.

 

Sem hesitação, Rae procurou a entrada final, cerca de vinte páginas antes do fim. Ali, no dia doze de Setembro de 1927, Desmond escrevera duas frases:

 

O meu irmão vem cá amanhã, para tentar dissuadir-me da minha loucura. Ele que tente. "Embora eu admita, se a mais ninguém pelo menos a mim mesmo, que a ideia de o ver me enche de pavor.

 

Carta de Rae para a advogada

 

25 de Maio

 

Querida Pam,

 

Vai pensar que desta vez é que perdi definitivamente a cabeça. Tudo o que posso dizer é que gostava que fosse tão simples como isso.

 

Preciso que me arranje um detective particular que tenha acesso a um laboratório forense e que lhe entregue a encomenda que incluo. Não a abra, não comunique isto à Polícia, não permita que o laboratório o faça. Garanto-lhe que isso só ia excitá-los sem necessidade. Eu explico-lhe tudo, assim que souber o que significa. Por favor, confie em mim.

 

Preciso que o laboratório me dê a análise completa dos cinco objectos que envio, comparando-os à procura de semelhanças e diferenças. Quero saber absolutamente tudo sobre cada um deles, e não me importo com o preço.

 

Talvez volte à civilização por alguns dias. Se assim for, telefono e digo-lhe onde estou.

 

Desculpe o mistério. Explico-lho quando nos encontrarmos. Prometo.

 

Rae.

 

Rae ficou a pé nessa noite até bastante depois das três, esforçando a vista para acabar de ler o diário de Desmond Newborn, e a buzina de Ed De la torre antes das oito da manhã seguinte apanhou-a ainda dentro do saco de dormir. Vestiu uma roupa à pressa, molhou a cara com água fria e fez café, tomando-o muito longe do monólogo filosófico informativo dele. Por fim, cansado da sua falta de reacção, ele ergueu-se, pronto para se ir embora. Rae levantou-se apressadamente.

 

Importa-se de esperar um minuto, Ed? Preciso que ponha uma carta no correio com urgência. Sem esperar uma resposta, entrou na tenda, pegou no que tinha escrito para Pamela Church e meteu-o numa caixa com os cinco pedaços de chumbo amolgado, embrulhados individualmente e numerados. Escreveu o endereço, colou o selo, e depois pegou naquilo e na carta para o xerife Carmichael e entregou tudo a Ed. O homem pareceu pouco divertido com a ideia de ter algum contacto com o gabinete do xerife, mas garantiu que a embalagem para a advogada estaria no correio para a tiragem da tarde.

 

Quando ele se foi embora, Rae sentiu-se tentada a enfiar-se na cama, mas tinha coisas a fazer antes que a máquina da lei começasse a funcionar e despejasse Jerry Carmichael à sua porta. Aqueceu água e tomou duche, arrumou a tenda e o espaço à volta (que cada vez mais parecia um acampamento de ciganos, com barrotes a levantar o oleado castanho e vários ramos do cedro caído transformados em cabos de tachos e estendais para a roupa), depois enfiou coisas que não queria que alguém visse na mochila e empilhou roupa, sapatos e um estojo de banho em cima. O baú fechado à chave estava perfeito, mas algumas coisas tinham de estar com ela.

 

Quando o xerife chegou, estava pronta. Mais do que pronta: pela primeira vez na sua vida, sentia-se impaciente, ansiosa por agir.

 

O acampamento estava impecável, com todos os tachos a brilhar, a tenda e o oleado bem esticados, e a terra parecia ter sido varrida. Ouviu o barco antes de o ver, e esperou-o na doca com a mochila aos pés. Quase ao meio-dia, a maré começava a subir e a embarcação aproximou-se sem novidade.

 

Carmichael vinha sozinho.

 

A Nikki traz os outros foram as suas primeiras palavras. Vem uma professora da universidade de avião mais tarde, para ver os ossos in situ, como ela disse. Isto vai ser um grande incómodo para si. Observava-a com uma expressão mista de desculpa e interrogação.

 

Na verdade, estava a pensar que talvez pudesse fazer disto uma desculpa para ir passar um dia ou dois a Friday Harbor, se puder confiar em vocês dois para tomar conta da ilha e não deixar os turistas roubarem-me tudo disse Rae.

 

Ele pareceu surpreendido, o que a fez pensar que vinha preparado para tentar convencê-la a deixar a ilha, pelo menos durante umas horas. Mas ela sabia perfeitamente o incómodo que ia ser, e não lhe apetecia passar por ele além do que, na verdade, tinha mesmo que fazer em San Juan. Quanto mais não fosse, entre o seu trabalho pesado e a lavandaria comercial de Ed (nos dois casos, dando ideia de que a roupa era batida nas rochas), estava a ficar sem roupa para vestir.

 

Conduziu-o até à casa, onde deixara a lanterna e o candeeiro de petróleo, e depois até às traseiras.

 

Está ali indicou Rae, apontando para o buraco. Quer que lhe mostre?

 

É complicado encontrá-lo?

 

Não, ele está lá parado.

 

Então, se pudesse esperar um minuto, eu vou ver e volto já.

 

Jerry Carmichael parecia demasiado grande para passar pela entrada, mas não ficou preso, limitando-se a agitar os ombros umas quantas vezes e, por fim, os seus pés desapareceram. Rae seguiu o som da passagem dele, ouviu-o parar ao encontrar os ossos, depois voltar e sair.

 

Bom, tenho visto muitas coisas no meu trabalho, mas nunca um espectáculo destes disse ele. Parece um cenário de cinema. Uma assombração!

 

Rae pensou que era uma reacção interessante. Não via os ossos como uma assombração, achava-os apenas tristes.

 

Tenho um gerador e holofotes disse ele, e Rae fez uma careta à perspectiva da confusão. Sim, era muito melhor retirar-se e não assistir à invasão.

 

Há alguém que possa levar-me até Friday Harbor? perguntou. Ou pode pedir ao Ed pelo rádio que venha buscar-me?

 

Importa-se de esperar pela Nikki?

 

Importava-se, mas não lho disse. Contudo, também não o ajudou a descarregar o equipamento que ia utilizar para iluminar e filmar os ossos antes de serem retirados. Entrou na tenda e pegou num livro, voltando as costas à operação. Quando o outro barco chegou, apresentou-se imediatamente à guarda-florestal.

 

Posso ir ver a gruta? pediu Nikki. Rae preferiu não abrir a boca, limitando-se a acenar com a cabeça e a voltar para dentro da tenda.

 

A rapariga estava de volta em menos de dez minutos. Rae vestira as calças de caqui boas que tinha poupado, uma camisola de mangas curtas mais ou menos limpa e sapatos de cidade. Pegou na mochila verde e perguntou:

 

Podemos ir?

 

O Jerry diz que vai ser preciso prestar declarações, quando as coisas acalmarem um bocado. Vi onde encontrou o vinho, a propósito disse ela, levantando as sobrancelhas para mostrar que se lembrava da mentira de Rae, mas não conseguiu fazê-la mostrar-se penitente.

 

E se faltar alguma garrafa, ou mexerem no que está dentro da tenda sem mandado, a minha advogada arma um chinfrim respondeu Rae, aguentando o olhar da rapariga e ignorando a sua expressão magoada, para tornar bem claro que meia dúzia de visitas amigáveis não significava uma amizade sem limites. Depois, voltou-lhe as costas para fechar a tenda. De cabeça baixa e ouvidos encerrados à cacofonia do gerador, seguiu Nikki até ao barco e instalou-se, deixando à guarda-florestal a tarefa de desamarrar a embarcação. Ouviu-a falar pelo rádio, certamente a comunicar a sua ameaça de fúria legal a cair sobre o condado, e depois entraram pelo mar adentro.

 

Rae estava suficientemente afastada de Nikki para tornar a conversa difícil, e nenhuma delas abriu a boca. Daí a um bocado, Nikki apontou para uma agitação na água a cerca de dois quilómetros de distância e disse que era uma baleia. Rae acenou com a cabeça, e foi tudo.

 

Não podes esconder-te, não podes ignorar.

 

Talvez não. Mas no caso de Rae, para além de certo ponto, a contínua abertura de feridas era uma tortura sem sentido e até prejudicial à cicatrização. Havia ocasiões em que a pessoa tinha de se esconder; havia coisas que era preferível ignorar. Deixara de discutir com os profissionais acerca daquilo, porque só os preocupava e, numa situação hospitalar, um psiquiatra preocupado transformava-se numa espessa barreira entre o doente e o mundo exterior. No entanto, havia muito tempo que chegara à conclusão de que por vezes as coisas acabavam realmente por desaparecer ou seja, que a pessoa podia fazer progressos suficientes para deixar o problema para trás e, quando ele reaparecia, vinha enfraquecido pela viagem. Às vezes, fingir coisas bravura, controlo, humor tornava-as realidade.

 

Naquele momento, bastava-lhe deixar de fora a imagem do que estava a acontecer na ilha. Não ia pensar na violação da sua privacidade, nem imaginar o que iam fazer com Desmond Newborn, nem sequer recordar o velho diário de capa de cabedal manchada com as páginas frágeis que trazia na mochila. Em vez disso, reduzir-se-ia a um pequeno e intenso ponto de concentração, fingindo que saía porque queria. Trataria das tarefas que impusera a si própria e depois voltaria para a ilha na serenidade da sua ignorância voluntária, para voltar a pegar no martelo.

 

A sua decisão viu-se abalada quando Friday Harbor apareceu através do pára-brisa da lancha. Uma floresta de mastros nascia da água e, atrás dela, viu uma cidade com muito mais movimento do que recordava. Um ferry apitou, e Rae estremeceu. Nikki olhou para ela, mas voltou a ocupar-se da manobra para atracar.

 

É uma cidadezinha bonita e sossegada comentou ela, em tom tranquilizante. E eu telefonei à minha tia, que tem uma pequena estalagem a uns três quilómetros da cidade, e ela disse que tinha um quarto para esta noite. Se você quiser, claro.

 

Nenhuma cidade era sossegada, comparada com a ilha dela, pensou Rae, mas disse a Nikki que achava bem.

 

Eu atraco aqui e levo-a...

 

Não há necessidade interrompeu Rae. Você tem o seu trabalho e eu tenho que fazer na cidade. Olhou para Nikki calmamente. Vendo os olhos verdes da rapariga, pensou que era o mesmo que fazer mal a um gatinho. Mas, ao mesmo tempo, sabia que se não cortasse aquele laço de responsabilidade de imediato, corria o risco de se tornar propriedade de Nikki Walls para o resto da vida. Daí a um minuto, a rapariga encolheu os estreitos ombros e tirou um lápis do bolso.

 

Rae aceitou a morada, agradeceu e saiu do barco antes de ele estar bem amarrado. Nikki gritou que não tinha que agradecer, e Rae afastou-se antes que ela se oferecesse para a ir buscar no dia seguinte.

 

Rae caminhou decidida pela rua, dolorosamente consciente do número de homens desconhecidos atrás de si. Percorreu dois quarteirões e enfiou-se no primeiro sítio onde poderia comprar um mapa, levando tempo a decidir-se a sair. Andou um pouco mais, e meteu-se num café, onde mandou vir uma sanduíche que não queria pelo privilégio de se sentar a uma mesa de costas para a parede, com o mapa e uma lista telefónica que pediu emprestada. Localizou o banco, o jornal, a Sociedade de História de Friday Harbor, e depois perguntou à empregada onde podia comprar calças de ganga. Primeiro, no entanto, o banco.

 

Comeu metade da sanduíche, deixou uma boa gorjeta como que a pedir desculpa, e chegou ao banco à primeira tentativa. Apresentou-se ao gerente como titular da conta aberta em Fevereiro pela advogada na Califórnia, recebeu o cartão e levantou algum dinheiro. Depois, alugou uma caixa-forte suficientemente grande para lá caber o cofre de Desmond e o seu diário. Antes de guardar a velha caixa de lata, levantou-lhe a tampa para espreitar de novo o seu enigmático conteúdo. Tinha precisado de arrombar a fechadura para a abrir da primeira vez, mas o tesouro que encerrava não era do género de precisar de ser guardado. Uma lisa pedrinha cinzenta, uma pequena concha e dois pedaços de galho de árvore, junto de um botão de madrepérola, um pedaço de fita verde, uma borla castanha e o programa dum concerto sem data nem local. A única coisa compreensível de todas aquelas recordações se eram recordações era um belo medalhão de ouro num pesado cordão, com uma madeixa de cabelo castanho dum lado e um caracol de cerca duma dúzia de cabelos loiros do outro. O loiro e o castanho tocavam-se quando o medalhão estava fechado. Rae guardou-o de novo na caixa de lata, fechou o cofre do banco e agradeceu ao gerente.

 

De volta à rua, encostou os ombros à parede do prédio enquanto procurava localizar no mapa os correios, e dirigiu-se para lá para se identificar. Estava a ficar mais fácil, descobriu com alívio. Ninguém a incomodava, não ouvia passos apressados junto de si, e havia imensas portas à espera para a socorrer, muitos cidadãos honestos prontos a ajudá-la.

 

Os correios tinham três cartas para ela, uma da advogada com uma conta, uma de Gloriana, a dona da galeria que vendia as suas peças mais pequenas, dizendo: "Por favor, por favor, entra em contacto." A terceira era da neta. Parou fora do edifício, abriu-a e apanhou um bilhete que caiu de dentro das páginas dobradas de Petra. Era da filha e, com espanto crescente, Rae leu:

 

Querida mãe,

 

Dei autorização à Petra, se se portar bem entretanto, para passar uma semana consigo na ilha. Devido à complicação da viagem, o Don e eu resolvemos ir levá-la. Ficamos só uns dias e, se ela quiser, pode ficar consigo depois. Podemos tratar dos pormenores do regresso mais tarde. Proponho passarmos o fim-de-semana do quatro de Julho consigo, chegando aí no dia um.

 

Beijinhos da Tâmara.

 

Rae releu o bilhete, avaliando o que estava nas entrelinhas. "O Don e eu resolvemos ir levá-la" queria dizer que não confiavam nela para ir esperar o avião da garota ao aeroporto e que Tâmara não queria arriscar-se a ter a filha de treze anos encalhada. "Se ela quiser" significava se Tâmara e Don aprovassem o estado de espírito de Rae e as condições em que vivia.

 

Tinha de dar crédito à neta por ter conseguido mesmo aquela aprovação condicionada, mas, quanto mais considerava o bilhete de Tâmara, mais espantada ficava... não com a habilidade manipuladora da neta, mas com a lata do pai. Abanou a cabeça: Primeiro, instiga um caso de incapacidade contra mim, e depois tem o descaramento de esperar que eu o receba como visita. Tal como acontecera tantas vezes nos seus contactos com ele, sentia um misto de nojo e admiração. A sua indignação era enorme, mas ficava sempre admirada com o egoísmo daquele homem, com a maneira como ele presumia que as coisas lhe correriam de feição simplesmente por o desejar.

 

Espantoso, pensou Rae, ficando mais uma vez sem perceber bem o que se passava. Seria aquilo também uma forma de desafio: Don a dizer: Sou suficientemente adulto para compartimentar a minha vida; e a senhora? Muito bem como desafio, como maneira de lhe mostrar o que sentia sem o dizer directamente, ia permitir-lhe pisar a sua ilha com os sapatos Gucci. Como prova da sua fortaleza mental para si mesma, se não para os outros não havia melhor.

 

A carta da neta foi um alívio, eloquente e sinuosa, dando meros vislumbres da luta necessária para que a mãe escrevesse o bilhete, incluindo a curta mas agoirenta admissão de "nunca ter visto o paizinho tão furioso" quando se recusara a aceitar o "não". Tâmara tivera de intervir para acalmar as coisas, continuava Petra, dizendo que depois ficara tudo bem. Rae não tinha tanto a certeza disso, mas, apesar da sua preocupação, a alegria infantil era tão contagiosa que teve de reler algumas linhas para tornar a visita mais real no seu espírito. Uns minutos depois, com um sorriso no rosto, sem reparar sequer na ameaçadora presença das pessoas à sua volta, Rae levantou os olhos e viu um carro do xerife parado junto de si. Um jovem de aspecto simpático, com uma farda nova, olhava para ela por cima do tejadilho.

 

Mistress Newborn?

 

Mais ou menos.

 

Hum? Perdão?

 

Sou, sim.

 

O rapaz corou, com duas manchas nas bochechas como um palhaço.

 

É a senhora?

 

Sou.

Ah, bom. O xerife quer falar consigo.

 

Por um instante, Rae pensou que ia ser levada para a ilha para responder a perguntas; viu o rapaz entrar no carro, mas depois reparou que ele mexia no telefone da viatura e lhe abria a porta do lado oposto do condutor. Tirou a mochila do ombro, sentou-se à beira do assento e aceitou o telefone que ele lhe estendia, deixando a porta aberta e um pé no alcatrão.

 

Estou!

 

Mistress Newborn?

 

Sou.

 

Jerry Carmichael. É a respeito da terra atrás da sua casa.

 

Sim? disse Rae, intrigada.

 

Bom, é que nós devíamos realmente peneirá-la, para fazer um trabalho como deve ser, e ocorreu-me que talvez quisesse levá-la para outro lado. Então, os rapazes podiam fazer o serviço aí, em vez de a deixar

onde está. A senhora é que sabe.

 

É muito simpático da sua parte, xerife. Não, claro que não a quero onde está. Estava a pensar levá-la para junto da outra terra que tirei dos alicerces e que se encontra do outro lado da colina.

 

Eu vi, e reparei que juntou o que encontrou na terra numa pilha. Quer que a gente faça a mesma coisa?

 

Isso é incómodo de mais.

 

Nem pense nisso. Olhe, importa-se que usemos o seu carrinho de mão?

 

E todas as ferramentas de ar livre! À vontade respondeu Rae, acentuando ar livre. Apesar de talvez ser melhor emprestar-lhe também algum dos cinzéis mais velhos.

 

Obrigado, assim o trabalho vai mais depressa. Desligou e entregou o telefone ao rapaz, perguntando-lhe:

 

Como é que me encontrou?

 

O xerife disse-me que procurasse uma senhora com cerca de um metro e oitenta, cabelo grisalho curto e uma mochila verde. Foi rápido explicou o agente, de novo corado.

 

Rae agradeceu-lhe e ficou a ver o carro afastar-se.

 

Descobriu que o museu histórico só abria na tarde seguinte, de maneira que se dirigiu ao jornal. Ficava num edifício com uma falsa fachada cinzenta, como um cenário de filme do Oeste, mas os vaqueiros no seu interior eram cibernéticos, e havia números antigos para consulta. Meados dos anos vinte?, perguntou Rae. Claro que sim: o jornal era editado desde 1906.

 

Rae encontrou um artigo sobre a destruição pelo fogo da casa na ilha do Santuário, também conhecida por Loucura de Newborn, em Setembro de 1927. Vinha na primeira página, lado a lado com um escândalo político em Olympia e uma vaga de assaltos no condado, em que os artigos roubados incluíam meia dúzia de galinhas poedeiras, um barco a remos, um pote enterrado cheio de moedas e o motor dum carro. As chamas tinham sido avistadas de Roche Harbor, na ponta norte de San Juan, por um pescador madrugador, no dia catorze de Setembro. A data provocou um sobressalto em Rae, mas continuou a ler o artigo. Quando os bombeiros conseguiram chegar de barco à ilha do Santuário, encontraram a casa completamente destruída pelo fogo e, embora tivessem procurado até o dia clarear, não haviam encontrado vestígios do seu excêntrico construtor. Como o seu barco a remos também desaparecera, calcularam que podia ter abandonado a ilha devido ao incêndio.

 

O jornal seguinte trazia um artigo sobre Desmond Newborn, que se presumia estar morto, visto não ter aparecido em Roche Harbor ou em qualquer outra terra das ilhas. "Consumido pelas ferozes chamas", eram os termos utilizados. Pertencera, segundo o editorial, a uma proeminente família do Leste, mas pouco se sabia do seu passado. Os residentes e os visitantes das ilhas conheciam-no pela sua obra, a estrutura com as torres gémeas a que os locais chamavam "A Loucura". O editor prosseguia, dizendo que Desmond Newborn era considerado um homem delicado e calado, com um sentido de humor "irónico", pelos residentes e comerciantes de Roche Harbor até onde costumava remar todas as semanas, a não ser que houvesse uma tempestade, para comprar géneros, jornais, material de construção e ir buscar alguma rara carta aos correios.

 

Aquela coisa do humor irónico interessou-lhe. Nunca pensara em Desmond como tendo um lado humorístico, irónico ou não. O seu diário não o mostrava, embora pudesse admitir que só a casa já era um bom indício.

 

Os artigos não eram ilustrados, e não havia mais nos dias seguintes, mas, um mês depois do incêndio, o nome de Desmond aparecia outra vez, ao lado do do irmão.

 

           A LOUCURA REVERTE PARA O ESTADO

 

Mister William Newborn, de Boston, Massachusetts, ofereceu ao estado de Washington a ilha em que o seu irmão Desmond Newborn construiu a casa conhecida no arquipélago de San Juan por "Loucura", alcunha proveniente das suas coloridas torres gémeas. Mister William Newborn, considerando o afecto que o seu irmão (que se supõe ter morrido no incêndio que consumiu a Loucura no mês passado) sentia pelas ilhas e sua vida selvagem, concedeu ao estado a utilização de toda a ilha como reserva para as aves locais e migratórias. A concessão cobre um período de cinquenta anos e aplica-se até à data em que qualquer parente directo de Mister Desmond Newborn (que não deixa descendentes) desejar residir na ilha.

 

A Loucura é actualmente habitada por dois pares de águias-carecas a fazer criação, bem como duas ou três aves jovens, uma colónia de álcidas e outra de garças, esta considerável.

 

O condado de San Juan recebe com prazer a notícia de que tal jóia fica a salvo como herança para os seus filhos.

 

Nikki tivera razão, reflectiu Rae: a ilha tinha sido propriedade dos parques nacionais no princípio de 1928, um bom ano e meio antes da última carta de Desmond.

 

O que se julgava ter sido a última carta de Desmond, corrigiu ela, pegando no número seguinte do jornal.

 

Durante a Primavera, algumas coisas lhe prenderam a atenção. O condado queria lembrar às pessoas com barcos que a Loucura estava interdita para a apanha de lenha ou marisco. Dois rapazes tinham sido presos por apanhar ovos durante a criação. E em Março o xerife anunciou que as cinzas da residência de Desmond Newborn tinham sido revistadas, chegando-se à conclusão de que, a não ser que ele tivesse estado na parte mais quente e portanto sido totalmente consumido, não estava em casa na altura do incêndio. Portanto, o xerife pedia a qualquer pessoa com informações sobre o paradeiro de Mr. Newborn, particularmente em meados de Setembro ou no ano anterior, que as comunicasse.

 

Depois daquilo, nada. No aniversário do incêndio, apareceu um curto artigo, bem como nos aniversários seguintes provavelmente, calculou Rae, devido à imagem romântica das duas torres em ruínas. Às cinco horas, foi corrida do jornal. Com os olhos vermelhos das duas sessões de leitura difícil em vinte e quatro horas, com as mãos sujas e as costas doridas, chegou à rua e tentou orientar-se no mundo moderno. Tirou o mapa e procurou a estalagem da tia de Nikki, pelo que não reparou na súbita pausa e subsequente aceleração dum carro do xerife que passou por ela. Começou a andar na direcção certa, quando outra viatura do Departamento do Xerife do Condado de San Juan parou junto ao passeio. Dessa vez, apeou-se o próprio xerife, com calças de ganga e uma camisa azul-clara engomada de fresco, apesar de vir no carro oficial. Fechou a porta e aproximou-se dela.

 

Posso convidá-la para jantar, Mistress Newborn? perguntou ele.

 

Jerry Carmichael movia-se com calma, reparou ela, como fazem alguns homens corpulentos, para não assustar pessoas mais franzinas. Alan também fora assim. Vivera assim. E porque estaria ela a pensar em Alan?

 

Estou muito cansada respondeu. Ia agora para a estalagem que a Nikki me indicou. Ela disse que era sossegada.

 

A da tia dela? Fica a mais de três quilómetros, e não serve jantares. Podíamos comer e eu depois levava-a lá, tudo isso no tempo que precisa para lá chegar directamente.

 

Se a atitude dele fosse insistente, agradecia-lhe delicadamente e continuava a andar, mas o xerife parecia disposto a aceitar a decisão dela, oferecendo-lhe apenas uma alternativa. Dobrou o mapa.

 

Aceito o jantar, obrigada.

 

Não lhe ocorreu que o jantar fosse outra coisa que não um rápido hambúrguer, de maneira que só dentro do restaurante é que estacou, protestando:

 

Eu não estou vestida...

 

Porém, foi interrompida pela aproximação duma rapariga loira com um brinco de ouro no nariz, um grande sorriso e um par de ementas na mão.

 

Boa noite, xerife. Dois esta noite?

 

Obrigado, Sara. Aquela mesa do canto é boa.

 

Era cedo, e só três ou quatro das cerca de vinte mesas estavam ocupadas. Rae hesitou, prestes a exigir que a levasse a outro lado, mas depois decidiu que àquela hora provavelmente ninguém olharia de revés para uma mulher vestida para caminhar na floresta sentada diante duma toalha branca e copos brilhantes. Mas pediu licença e foi tentar irritadamente livrar-se da acumulação de pó, sal e tinta de jornal. Quando voltou para a mesa, o xerife levantou-se, uma cortesia que também lhe recordou o marido. Sentou-se, desdobrou o guardanapo e colocou-o no colo, pedindo à atenta Sara: Vinho Tinto.

 

A empregada era suficientemente nova para piscar os olhos com a brusquidão de Rae, mas Carmichael sugeriu uma marca e a rapariga afastou-se para o ir buscar.

Rae concentrou-se na ementa, consciente dum par de olhos perspicazes sobre si, mas teimando em manter-se amuada. Quando o vinho chegou, bebeu dois grandes goles sem o saborear. Tinha sido um longo dia cheio de exigências e revelações pouco habituais, a seguir a uma noite de insónia, e começava a sentir os efeitos de tudo aquilo. Precisava de sossego e solidão, conforme dissera ao xerife, mas ele levara-a para ali sem fazer caso; portanto, iria aguentar-se com uma companheira de refeição incómoda.

 

Todavia, não tinha contado com a longa experiência do xerife com testemunhas hostis. Daí a um momento, reparou numa grande mão calejada com as unhas bem arranjadas a estender-se para ela por cima da mesa. Levantou os olhos.

 

A minha avó dava-me umas boas palmadas se visse a minha indelicadeza. Julgo que já conhece o meu alter ego, o xerife Carmichael. Deixe-me apresentar-me: chamo-me Jerry, Jerry Carmichael.

 

Rae olhou para a mão estendida, e os lábios tremeram-lhe, não tanto pelo humor da apresentação como pela ideia duma mulher a dar umas palmadas àquele homem. Pegou na mão dele e sentiu a sua, também endurecida pelo trabalho, completamente envolta num aperto seguro e forte.

 

Rae Newborn disse ela, e ele largou-a.

 

A Nikki disse-me que é marceneira disse ele, pegando na ementa. Que faz móveis e coisas desse género. Pareciam estar a começar do princípio, não só com a nova apresentação mas também falando na profissão dela, assunto já focado pelo menos uma vez. Rae bebeu outro gole de vinho, pensou: Que se lixe, e disse o que tinha dito duas semanas antes:

 

Costumava ser. No entanto, Carmichael parecia mais interessado nas escolhas que tinha diante de si do que nas suas deficiências. Rae baixou de novo os olhos para a ementa, sentindo-se de repente esfomeada. Ele fez comentários sobre um ou dois pratos, sugeriu uma entrada com um nome pouco convidativo, mas que era, segundo ele, muito bom.

 

Rae escolheu, a empregada materializou-se junto da mesa e apontou as encomendas. Rae voltou a pegar no copo, enchido enquanto ela lia a ementa. O xerife levantou o dele numa saúde e bebeu um golinho.

 

Vem aqui muito, não vem? perguntou Rae.

 

Venho. Sou dono de duas mesas.

 

É dono...? Seria aquilo alguma tradição do arquipélago?, pensou Rae, mas a expressão séria e vigilante de Carmichael foi substituída por um sorriso aberto.

 

Quando o Rafe e a Sally abriram o restaurante, eu entrei com dez por cento e disse-lhes que aceitava o pagamento em refeições. Acho que já devo ir a uma mesa e meia. O Rafe é meu primo.

 

Nestas ilhas, parece que toda a gente é parente comentou Rae. Quando falo com a Nikki, está sempre a aparecer um irmão, uma tia ou uma pessoa que andou com ela na escola.

 

Bom, no caso dela, é verdade. Tem oito irmãos, e os pais têm... deixe ver, doze, não, treze filhos, entre os dois.

 

Devem precisar de sair das ilhas para arranjar alguém com quem casar que não seja da família!

 

É, a maior parte encontrou alguém na faculdade. O truque é trazer as pessoas para cá durante as férias de Verão, percebe, quando o tempo está bom. Assim, quando chega o Inverno, já estão fisgados.

 

E você, foi fisgado ou nasceu cá?

 

Nascido e criado em Lopez. Já lá esteve?

 

Quando vim cá há uns anos. Dizem adeus... lembrou-se de repente. Todas as pessoas que passam por nós de carro dizem adeus. Como fenómeno antropológico, tinha-os divertido, a ela e ao marido, e Bella adoptara o costume, acenando a intrigados transeuntes durante semanas.

 

A gente de Lopez diz adeus. Isso provavelmente desaparece daqui a uns anos, mas por enquanto é uma comunidade rural e as pessoas presumem que quem passa é seu vizinho.

 

Mesmo que o carro tenha matrícula da Califórnia.

 

Bom, sabe, estamos sempre dispostos a alargar as fronteiras do condado.

 

Rae espantou-se por desatar a rir em coro com ele. A rir com um copo de bom vinho na mão, com um... bem, um homem belo e inteligente. Era provavelmente a última coisa que esperava que lhe acontecesse naqueles dias tumultuosos.

 

É casado? perguntou, só depois percebendo a brusquidão da pergunta e que estava a beber de mais. Modificou a pergunta para: Quero dizer, foi para a faculdade e fisgou lá alguém para trazer para as ilhas?

 

Encontrei uma nativa disse ele. Mas saímos das ilhas e vivemos no continente durante quase dez anos, até ela morrer e eu voltar para cá.

 

Lamento.

 

Foi há muito tempo.

 

Ainda sente muito?

 

Às vezes respondeu ele, olhando fixamente para dentro do copo de vinho. Às vezes sinto. Sobretudo quando tento lembrar-me de como ela era.

 

Há ocasiões em que não consigo lembrar-me da cara da minha filha observou Rae, sentindo as lágrimas a fazerem-lhe arder os olhos, e ficando espantada com o que acabava de dizer. Afastou o copo e procurou um assunto menos pesado. Para além desses dez anos, sempre viveu aqui?

 

A faculdade, a tropa e uns anos longe da água chegaram-me. Tenho o mar no sangue. Passei a infância num barco, por assim dizer. Na realidade, grande parte na sua ilha.

 

Palavra? Viveu lá?

 

Não, mas fazia piqueniques e acampava. Explorava a floresta, apanhava amêijoas e fruta. Coisas de homem das montanhas, fantásticas para um garoto... Mas hoje em dia é impossível deixar os garotos terem essa liberdade.

 

Fazia a fogueira no mesmo sítio que eu?

 

Exactamente no mesmo sítio.

 

A minha neta limpou um pouco o sítio, mas parecia que ninguém a utilizava havia muitos anos.

 

Há bastantes, sim. Para dizer a verdade, a ilha pertenceu à minha família há muito tempo. Nessa altura, chamava-se Minke.

 

Palavra? Quando foi isso?

 

Jerry pareceu pouco à vontade, como se lamentasse ter falado naquilo, e pegou na garrafa para encher de novo os copos.

 

O meu avô vendeu-a nos anos vinte. Deve ter sido ao seu tio-avô.

 

Meu Deus, não fazia a menor ideia!

 

Pois foi. Sempre tive a fantasia de reconstruir eu próprio a casa, enquanto era novo. O meu pai tentou recuperá-la, mas nessa altura era uma reserva e ninguém sabia a quem pertencia realmente. Não que ele tivesse dinheiro suficiente, claro.

 

Durante todo o tempo em que falou no assunto, não levantou os olhos do prato e do copo. Estaria envergonhado por ter pena, ou ressentido, como parecia perceber-se-lhe na voz? Ou teria medo de que ela ficasse embaraçada com tal revelação? Rae não conseguia decidir.

 

Era do meu avô explicou. Do fim da década de mil novecentos e vinte até morrer.

 

Pois, já sei. O meu pai tentou levar o caso a tribunal, mas não tinha dinheiro que chegasse. Por fim, levantou a cabeça e disse, com um sorriso: Por isso, como vê, tenho um interesse de proprietário no seu sítio.

 

Sempre que lhe apetecer acampar na clareira e apanhar amêijoas na praia, faça favor!

 

Olhe, fale-me lá do seu trabalho com a madeira pediu ele.

 

Costumava ser boa admitiu Rae, como se estivesse a falar doutra pessoa. Agora, sou mais do género carpinteiro.

 

Aquela bancada que fez diz-me que é muito mais do que isso.

 

Ficou gira, não ficou?

 

O embutido de cedro que pôs numa das pernas: foi por ser da cor da árvore que fica por cima?

 

Tem bom olho, xerife! Era um pormenor bastante subtil, e a maior parte das pessoas que reparassem nele ia julgar que fora para condizer com o tampo da bancada.

 

Vai fazer coisas daquele género no interior da casa?

 

Então, Rae começou a descrever-lhe os planos para o interior da Loucura de Newborn, a parede de prateleiras japonesas (ou talvez shaker) junto à lareira preta, os degraus soltos pelas duas torres acima, o quarto e a zona de trabalho no primeiro andar com a vista incomparável, o equilíbrio entre drama e conforto e a dificuldade da simplicidade. A certa altura, reparou que tinha diante de si uma magnífica entrada e que estava a falar sinceramente sobre os conflitos de personalidade entre a teca e outras madeiras exóticas para um homem cuja ideia de madeira se limitava provavelmente a toros para a lareira ou tábuas de cinco por vinte para uma parede.

 

Desculpe ter-me entusiasmado.

 

Parece-me... não tenho a certeza, percebe?... mas parece-me que ainda é marceneira.

 

Olhe, parece-me que talvez tenha razão! concedeu ela, quase retribuindo o sorriso dele.

 

Carta de Rae para a neta

 

23 de Maio

 

Querida Petra,

 

Já fizeste alguma investigação sobre a parte mais afastada da nossa ilha? Antes de ser habitada, antes de as tribos nómadas atravessarem o estreito de Bering gelado ou de lutarem contra as correntes do Pacífico, quando a terra estava ainda a formar-se?

 

Por todos os lados se vê as imensas pressões e incompreensíveis tensões que aqui se acumularam, empurrando as massas de terra como se fosse uma piza. Há uma camada de arenito claro que atravessa toda a ilha, em alguns sítios dobrada sobre si própria, enrolada no leito rochoso mais escuro. Que pressão será necessária para dobrar rochas? Consegues imaginar uma coisa assim? Eu não consigo.

 

A outra enorme força que agiu sobre este grupo de ilhas de aspecto pacífico foi o gelo. Os últimos glaciares começaram a recuar para o estreito de Georgia, no Norte, há cerca de treze mil anos, corroendo e polindo as rochas, mas, ao passar, as camadas de arenito e o leito rochoso ergueram-se e chegaram a ficar perpendiculares ao mar. Quando o peso de novecentos metros de gelo novecentos se ergueu, a pressão libertada fez com que parte da terra debaixo dele fizesse ricochete. É incrível pensarmos na terra a fazer ricochete, não é? Mas foi isso que separou a Loucura e as vizinhas das massas de terra maiores, amarrotando-as enquanto se erguiam e dando-lhes a forma de ilhas.

 

Enormes tensões, incompreensíveis pressões, a rasgar e a levantar a terra... e uma beleza tão grande no fim.

 

Beijinhos da vovó.

 

Sentada no carro oficial de Jerry Carmichael defronte da simpática estalagem de Elaine Walls, Rae lembrou-se de que ele não chegara a dizer-lhe por que motivo a mandara procurar.

 

Agradeço muito o jantar e tê-lo ajudado a recuperar mais um bocadinho das suas duas mesas de investimento, mas você não queria falar-me de qualquer coisa?

 

Queria, sim, mas vi como estava cansada e com fome, por isso achei que era melhor tratá-la bem e voltar amanhã de manhã. Preciso duma declaração escrita sobre a descoberta dos ossos.

 

Mas isso não é complicado. Pode ser agora.

 

De manhã chega. Olhe, por acaso a Elaine faz um dos melhores pequenos-almoços das ilhas. Você aqui dá-me uma boa desculpa para me sentar à mesa dela.

 

Meu Deus, depois daquele jantar, como é que consegue pensar sequer em comida?

 

De manhãzinha, vai ver como as panquecas dela lhe fazem crescer água na boca!

 

Tirou a mochila do porta-bagagens, entregou-lha nos degraus para o caminho ladeado de roseiras e acompanhou-a até à porta da estalagem, onde brincou familiarmente com Elaine Walls e a avisou de que estaria lá no dia seguinte para o pequeno-almoço. Depois, agarrou a mão de Rae no seu aperto gigantesco, desejou boas-noites às duas mulheres e foi-se embora. O pequeno vestíbulo da estalagem pareceu maior assim que ele desapareceu.

 

Elaine Walls era obviamente parente da sua sobrinha, desde o cabelo encarnado frisado (no seu caso a começar a ficar cinzento) até à vivacidade da fala. Foi desfiando comentários triviais enquanto subiam a escada, entremeados de instruções quanto à utilização da chave de que Rae ia precisar para sair à noite e ao funcionamento da velha televisão no rés-do-chão.

 

Começo a servir o pequeno-almoço às oito disse ela à porta do quarto de Rae, mas, se quiser café mais cedo ou uma chávena de chá durante a noite, pode utilizar a sala de convívio que fica mesmo por baixo do seu quarto. Não precisa de se preocupar com o barulho, portanto. Boa noite, e se precisar de alguma coisa, atravesse a cozinha e bata à minha porta.

 

Rae fechou a porta sobre os passos dela no corredor e ficou parada um bocado com a mão no puxador e a testa encostada à porta. Sozinha, por fim. Meu Deus, que dia!

 

Sentindo a fresca madeira pintada na cara quente, a vibração dos passos da dona da casa nas tábuas do chão e o peso do longo dia sobre os ombros, Rae só se moveu quando lhe caiu um pingo nas costas da mão. Endireitou-se com impaciência, esfregou as lágrimas dos olhos e atirou a enxovalhada mochila para cima da cama.

 

Cansada como estava, sabia que não ia ser capaz de adormecer. Demasiadas coisas reprimidas, demasiados copos de vinho, pouco exercício para um corpo habituado a trabalho vigoroso. Tirou a lanterna e a camisola felpuda da mochila e saiu da estalagem.

 

Elaine dissera-lhe que a praia ao fundo da rua da estalagem era pública, de maneira que resolveu ir até lá. Desceu a rua alcatroada até mal se ver a luz por cima da porta da estalagem e parou no escuro, esperando que os olhos se habituassem à noite.

 

Estava a pagar o preço de ignorar os acontecimentos na Loucura. Impossível esconder-se, impossível ignorar. Se fosse apenas uma coisa, talvez pudesse reprimi-la satisfatoriamente até ela diminuir para um tamanho aceitável. Mas tudo junto encontrar o esqueleto, ler o diário, a certeza crescente do que fora o fim de Desmond rematado por toda a espécie de sentimentos contraditórios despertados pelo jantar com o xerife Jerry Carmichael, era de mais. Rae sentia-se invadida pela fadiga e por uma grande aflição.

 

Desde criança que o tio-avô Desmond habitava os recônditos da sua consciência. Que o avô desaprovava o seu inútil irmão fora sempre tão evidente como a sua desaprovação da neta, o que teria bastado para fazer de Desmond um companheiro secreto, mesmo sem o seu patético fim solitário no deserto. Chegando ali como uma mulher de cinquenta e dois anos fugida de horrores pessoais, começara a sentir que seguia as pisadas dele. Afinal, ele devia ter tido algum motivo para se retirar tão enfaticamente do mundo. A simpatia e admiração de Rae pelo trabalho dele, a sua curiosidade pela vida que levara e agora pela sua morte tinham-na feito sentir que Desmond Newborn podia ser o modelo da sua própria vida. O gémeo mais velho, por assim dizer. A vida dele renascia através das mãos dela. Agora, depois de ler o diário dele com uma compreensão e uma pena cada vez maiores, começava a pensar que também a loucura dentro dela tinha origem nele.

 

Porque ele tinha sido louco, umas vezes mais e outras menos, durante os anos do seu diário, uma loucura que lhe era terrivelmente familiar.

 

Quando Desmond Newborn estava mais perturbado, fazia listas. Rae imaginava como teria sido o seu diário de guerra, já que o livro que encontrara começava durante a sua convalescença nos primeiros meses de 1918, mas a guerra surgia constantemente na consciência dele, como uma ferida que continuasse a supurar. De cada vez que a infecção começava a desaparecer, ele jurava que nunca mais escrevia sobre esses terríveis meses, e de cada vez, daí a dias ou semanas, a ferida desatava de novo a supurar e mergulhava-o nas trincheiras. Uma e outra vez na primeira secção do diário, a progressão cronológica, breves menções de mudanças de estações e de actividade da família, era interrompida bruscamente, por vezes a meio duma frase, e lá aparecia outra lista. Páginas e páginas duma letra miudinha, começando com um catálogo de cidades e distritos franceses ricos em horrores da guerra. Até Rae, que não era historiadora, reconhecia que Thiepval significava um rio de sangue, que Ypres Passchendaele se traduzia por uma paisagem desolada de lama de apodrecer os pés, odores de revoltar o estômago e um terror de contrair as entranhas. E depois os nomes, Deus do Céu, os nomes de pessoas, que cobriam três folhas do diário, com os vários tons de tinta e tamanhos de aparo a testemunhar o seu constante regresso às páginas nomes de homens, todos marcados como mortos ou feridos, com a respectiva explicação:

 

Tommy Smithers. Perdeu ambas as pernas. Morto.

 

yethro Hammerly. Estilhaços na barriga. Morto.

 

Willy McMasters. Braço acima do cotovelo. Evacuado.

 

Orville Tellerston. Sem rosto. Deve estar morto. "Espero que sim.

 

Matthew Qrinwood. Caseado. Evacuado.

 

James Kinkaid. bala na cabeça. Morto.

 

ttarry Butters. Estilhaço. Morto.

 

Listas de mortos, listas de cartas e encomendas do país (como um embrulho continha meias e tinha chegado quando já não tinha mais o prazer dum bolo de fruta, a estranha e emocionante brancura dum maço de papel), listas de aves avistadas em raros dias por detrás das linhas, listas de livros emprestados e lidos, páginas e páginas, alguns dos registos com páginas próprias e outros amontoados. Uma litania da loucura do mundo, sob a anotação ordenada do desespero. A letra de Desmond nas listas era dolorosamente precisa, com as margens certas. Numa página, Rae encontrara uma breve série de datas e ferimentos, sem nomes. Daí a um momento, percebera que se tratava dos ferimentos do próprio Desmond: Gás. Estilhaços. Febre das trincheiras. E, por fim, numa letra tão perfeita que podia ser a dum caderno de caligrafia: Bala perdida, ombro esquerdo.

 

A lista de ferimentos vinha a mais ou menos meia dúzia de páginas do princípio. Dava ideia que tinha começado o diário no Inverno, embora as primeiras páginas não estivessem datadas e, à medida que o tempo passava, quase se podia vê-lo a caminhar para a cura. A mão e o espírito começavam a descontrair-se, a escrita a ficar menos rígida e as coisas que escrevia transformavam-se de listas em reflexões. Os sinais da cura começavam, como muitas vezes acontece com as recordações, com um cheiro.

 

flores de cornizo. Têm o aroma dum corpo de mulher. Lembro-me de estar deitado no hospital de campanha, com a enfermeira inglesa debruçada sobre mim, e de sentir apenas o cheiro de flores de cornizo.

 

Toucinho entremeado a fritar lá em baixo. É o único tipo de carne que não me põe o estômago às voltas. E frango, desde que não seja acabado de matar.

 

feno a ser cortado. No Thiepval, no meio dum ataque, chegou-nos no vento o doce odor do feno cortado, mais forte do que o sangue e os intestinos desarranjados, mais poderoso ainda do que a carne putrefacta. Metade da minha companhia parou o que estava a fazer, baixou as armas e ergueu o rosto para o ar. Os furtos também -pararam, para respirar o trabalho do agricultor, até que os oficiais deram pela interrupção.

 

E reflectia:

 

Que significa perder a cabeça? Para onde vai? Se um homem está fora de si, onde é que está?

 

As descrições de perfumes evocativos entremeadas de especulações filosóficas continuavam durante muitas páginas, seguidas de imagens que significavam alguma coisa para ele a biblioteca do pai, uma enorme árvore velha no terreno da casa de Boston que Rae reconheceu, admirada, da sua própria infância, um trio de jovens vestidas com roupa colorida a passear no parque. O Verão continuou, terminando com uma referência a folhas caídas, e depois o amargo armistício de Novembro de 1918. O fim da guerra abalou-o, e o Natal foi uma época difícil. Após o primeiro dia do ano seguinte, havia outra lista, uma página apenas com oito datas, cada uma separada da outra por uma ou duas semanas durante Janeiro e Fevereiro, sem explicação para o que significavam. Depois, a escuridão parecia engolfar de novo Desmond Newborn. As palavras seguintes só surgiram no dia 24 de Outubro de 1919, e diziam apenas:

 

Cheguei a Omaha. Porque estou aqui?

 

Anotações esporádicas nas páginas seguintes datas, lugares e curtas frases patéticas relatavam o triste ciclo de doença alternada com viagens sem destino.

 

Até ao princípio do Verão de 1921, em que escreveu o seguinte:

 

Um velho italiano numa estação de caminho-de-ferro perto de Tacoma disse-me que o arquipélago de San Juan era muito belo. Disse que, quando lia sobre Deus a -passear no jardim ao fresco da noite, era nessas ilhas que pensava. Calculei que a substância que bebia lhe tinha transformado o cérebro em papa, mas vim cá ver. E ele tinha razão. Deus passeia realmente aqui.

 

Passou a descrever as ilhas, o calmante odor da maresia, a qualidade da luz e especialmente a sensação de sossego sobre a terra rodeada de água. Era o apontamento mais longo que escrevia desde que saíra de Boston, e continuou a escrever durante as semanas seguintes, até que encontrou a ilha do Santuário em Junho.

 

7 de julho de 1921

 

O paraíso em seis hectares de rocha. O silencio é profundo, pela primeira vez, encontro um sítio sem barulho de artilharia por detrás de tudo o que oiço. A ilha tem apenas o mar, árvores e a lenta fala das árvores. Mandei um telegrama ao W. a pedir-lhe o dinheiro, e ele respondeu que precisava de ver o lugar com os seus próprios olhos antes de aprovar. A lata de imaginar que sou uma criança que precisa da assinatura dele num papel do banco. Não, não quero aquelas botas engraxadas no meu paraíso.

Vou chamar à minha ilha Santuário.

 

O dinheiro foi enviado. Seguiram-se meses e anos felizes de apontamentos, pormenores da canalização que fizeram Rae sorrir, valiosas descrições do processo de construção, as origens das pedras de várias cores, a sua felicidade com a qualidade do cimento comprado em Roche Harbor. Havia mesmo uma menção ao alpendre que tencionava acrescentar na Primavera seguinte.

 

Durante seis anos, depois de dois e meio de luta nas trincheiras e mais quatro de lutas mentais, Desmond Newborn teve paz. De Junho de 1921 até ao Verão de 1927, construiu a sua casa, moldou o seu mundo e conviveu com os vizinhos a uma distância amigável. Durante seis anos, aquele homem solitário viveu a sua vida, conversou com os seus fantasmas e só ocasionalmente mergulhou nas margens da melancolia.

 

Depois, subitamente, sem nada o fazer prever, recebeu uma carta do irmão. No meio de Agosto de 1927, Desmond escreveu no seu diário:

 

  1. escreve para me estender a mão da amizade. Depois de anos de silencio, o meu irmão quer reconciliar-se, e a toda a pressa, porque tem de se ausentar em negócios. Tenho de lhe responder para o hotel em Chicago a dizer se concordo ou não e de lhe comunicar como há-de entrar em contacto comigo.

A tentação de fingir que a carta nunca me chegou às mãos é grande mas, para dizer a verdade, tenho muita vontade de dizer à família que fiz qualquer coisa e tenho qualquer coisa para deixar, embora não passe duma pobre casa de pedra e madeira. Não, vou fugir à tentação e escrever-lhe a dizer que será bem-vindo. Depois tenho de interromper o trabalho das janelas das torres para fazer outra cadeira onde o meu convidado possa descansar o seu fato citadino.

 

A calma aceitação de Desmond da visita depressa se ensombrou com irritação e comentários amargos sobre o irmão, que mal escondiam o aumento da tensão que sentia. Para o fim do diário, a três páginas da última coisa que escreveu, uma lista de coisas que precisava de comprar em Roche Harbor intrigava Rae. Porque teria ele incluído uma lista de compras num diário de capa de cabedal?

 

A meio de Setembro, Desmond Newborn escrevia o que seriam as suas últimas palavras registadas:

 

O meu irmão vem cá amanhã, para tentar dissuadir-me da minha loucura. Ele que tente. Embora eu admita, se a mais ninguém pelo menos a mim mesmo, que a ideia de o ver me enche de pavor.

 

Nada mais, a não ser um rabisco indecifrável que parecia provocado por um borrão. O máximo que Rae conseguiu decifrar foi:

 

Tenho um...

 

Pavor... Sim, "pavor" era a palavra. William inspirava pavor ao irmão aos quê? quarenta e cinco anos, tal como inspirara à neta até ao dia da sua morte aos noventa e quatro, logo a seguir à segunda depressão de Rae. Tinha dominado o filho, esmagando-o até à insignificância com a sua indiferença, fizera da mulher a pálida sombra que Rae conhecera em criança, dera à mãe de Rae uma vida de críticas impiedosas até que ela morrera nova para lhe fugir, intimidara Rae, menosprezando-a por ser rapariga e invectivando-a pela sua instabilidade. A única maneira de lhe escapar fora casando com o primeiro homem que lhe aparecera e saindo da casa de Boston para um apartamento de estudantes na Califórnia.

 

Todos os outros tinham tido de morrer para fugir à desaprovação de William e aos seus impossíveis padrões a mãe de Rae quando ela tinha seis anos, Lacy no ano a seguir, as duas irmãs dele (uma solteira e a outra com um filho que fugira para Inglaterra, onde morrera durante os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial).

 

Todos mortos. O pai de Rae, filho único de William, sobrevivera dezassete anos ao pai, mas sempre a olhar por cima do ombro, como quem se prepara para se encolher a todo o momento. Mesmo depois do desaparecimento do velho, o pai de Rae nunca baixara a guarda, nunca permitira que alguém soubesse o que sentia realmente. Durante toda a sua vida, o único momento de ternura que Rae lhe conhecera ocorreu apenas semanas antes da sua morte, quando Bella, com quatro anos, o convencera a ler-lhe uma história e acabara por lhe adormecer ao colo. Rae tinha passado no corredor por acaso, olhara para dentro da sala e vira o pai sentado no sofá com os braços em volta da neta e os lábios encostados aos caracóis da garota, a chorar. Devia ter sido um homem muito solitário.

 

Quando Rae tinha pesadelos, a sensação era a de estar na presença do avô.

 

Naquele momento, sentia-se como que a entrar num desses pesadelos, como se o avô estivesse sentado na sua cadeira de costas direitas atrás da sua enorme secretária de mogno, com o olhar gelado fixo nela enquanto caminhava pela estrada escura na ilha de San Juan, e a boca retorcida na sua habitual expressão de crónico desapontamento. Pavor.

 

Fora um velho odioso, e no entanto Rae nunca conseguira odiá-lo. Envenenara tudo aquilo em que tocara para além do dinheiro, mas trouxera consigo a tragédia de Midas, que só amara uma coisa sem ser o ouro e acabara por a matar. Rae detestava a ideia de ter o sangue do avô a correr-lhe nas veias, via cada lampejo de egoísmo ou impaciência como um sinal de perigo, pensava muitas vezes se o avô também teria sido louco e conseguira controlar a loucura pela força de vontade, mas não conseguia odiá-lo.

 

Todos os psiquiatras que Rae consultara chegavam mais tarde ou mais cedo ao "conflito por resolver" com William, mas ela nunca fora capaz de lhes dizer, por mais que gostasse deles: "Sim, odeio o meu avô."

 

Mas pavor? Ah, sim. E terror e culpa e vergonha de falhar e...

 

Rae tropeçou quando deixou o alcatrão e pisou areia, continuando a caminhar pela praia, com as últimas palavras de Desmond no ouvido e os últimos dias como um enxame de insectos sob a pele. Ao andar, o barulho da areia debaixo da sola dos sapatos irritava-lhe os nervos e ameaçava provocar-lhe um ataque de pânico. Quando, finalmente, se empoleirou num tronco trazido pelo mar, puxou pelos lábios e pelos botões e enterrou as unhas na madeira esponjosa e nas palmas das mãos.

 

Pavor, segredavam-lhe as ondas. Pavor. Pavor. Terrível pavor.

 

O meu irmão vem (pavor) admito o meu irmão a minha loucura dissuadir-me do meu terrível pavor.

 

As palavras de Desmond e os ossos de Desmond e a bala de Desmond, o braço esquerdo de Desmond e a cara de William (pavor, ai, terrível pavor) com os dois irmãos a remar sobre as águas calmas até à Loucura, depois o fogo a sair das torres de pedra e os choques ardentes da terapia electroconvulsiva e a profunda ânsia nas mãos de fazer listas de acontecimentos para racionalizar esses terríveis e pavorosos acontecimentos, e a incapacidade de manter os dedos suficientemente quietos para agarrarem uma caneta, tudo aquilo crescendo dentro de Rae, enchendo-a, até que os pensamentos lhe rodopiavam dentro do crânio, tentando escapar, dentro do crânio que ria, e os dedos a tentarem rasgar a pele, como se os dedos pudessem de alguma maneira lutar contra a infecção do pavor, a terrível infecção do terror, a...

 

Um pé pesado calcou as pedrinhas da praia atrás dela, e a mente de Rae explodiu.

 

Correu para a água às cegas, consciente apenas de qualquer coisa grande, pesada, rápida e masculina a aproximar-se rapidamente, de chapinhar e de a agarrar por um braço, fazendo-a lutar e bater numa coisa que parecia um tronco de árvore. Conseguiu atirar-se de novo para a água, mas as mãos agarraram-na e o atacante evitou-lhe os dentes e, com menos êxito, os pontapés, até que daí a imenso tempo ela ouviu finalmente o que os ouvidos lhe diziam, que o assaltante repetia o seu nome num tom alto e calmo.

 

Mistress Newborn, Rae, é o xerife Carmichael. Rae, é o Jerry, acalme-se, sou eu.

 

Rae parou de repente de se debater e teria caído à água se as mãos dele não a segurassem.

 

Jerry?

 

Sou eu, sim. Assustei-a. Desculpe!

 

Jerry? Ai, meu Deus, Jerry! exclamou ela de novo, deixando-se cair de encontro ao peito dele, a única coisa estável no universo, e sentindo-se envolta na segurança de músculos e ossos, no aroma da sua masculinidade, nas sólidas batidas do seu coração. Encharcou-lhe a camisa limpa com lágrimas que não conseguia dominar e deixou-se conduzir para a praia de areia grossa como uma boneca de trapo ou uma criança. Ele despiu-lhe o casaco e substituiu-o por um cobertor que tirou da mala do carro, fazendo-a sentar-se no banco da frente, com o motor a trabalhar e o aquecimento no máximo. Depois, sentou-se ao lado dela, e Rae percebeu o olhar preocupado dele.

 

Peço imensa desculpa disse ela. Sentia a garganta arranhada. Teria gritado? Parece que não consigo controlar-me. As outras pessoas ficam ligeiramente nervosas... Eu entro em pânico. Tenho uma falha no sistema, um curto-circuito, seja o que for. Ouvi-o a andar na areia e pronto. Espero não o ter magoado.

 

Tem uma direita poderosa, mas fiquei com os dentes todos. Você não teve culpa. Eu é que fui estúpido. Qualquer pessoa que já foi atacada fica sensível, mas eu pensei que me tivesse ouvido chegar.

 

Também o Ed, até que quase o matei com o martelo. Talvez seja melhor pedir à Petra que me arranje uma camisola com um aviso: CUIDADO, MULHER NERVOSA, pensou Rae. O aquecimento do carro era muito eficiente e começava a sentir-lhe os efeitos.

 

É o que encontrou na gruta que a incomoda? perguntou Jerry.

 

Ah, não, isso não tem importância. Quer dizer, tem, mas... Olhe, podemos falar disto amanhã?

 

Ela própria ouviu o extremo cansaço da sua voz. A reacção de Jerry foi deitar a mão ao cinto de segurança. Levou-a para a estalagem, com o ruído do aquecimento a sobrepor-se às palavras, embora não aos pensamentos, acompanhou-a à porta e esperou que ela tirasse a chave do bolso e a metesse na fechadura. Já dentro de casa, Rae perguntou-lhe:

 

Porque é que voltou?

 

Isso também pode esperar por amanhã. Queria dar-lhe um recado, e a Elaine disse-me que fora passear. Calculei que estivesse na praia, e assim foi. Durma bem.

 

Seria verdade? Ou teria Elaine ido relatar a sua excursão nocturna? Seria ela como uma irritação vinda do exterior para infectar um organismo, com os passos facilmente seguidos pelos nativos unidos? Ou andaria o xerife a vigiá-la por motivos seus?

 

Ou seria ela demasiado paranóica para andar à solta em sociedade? Abanou a cabeça, confusa, e respondeu ao seu acompanhante:

 

Boa noite, Jerry.

 

Deixou a roupa ensopada no chão e meteu-se entre os lençóis frescos, nua e suja de areia.

 

Carta de Rae para a Dra. Roberta Hunt

 

25 de Maio

 

Querida Roberta,

 

Um dos desgraçados efeitos secundários duma estada no que você não me deixa chamar casa de doidos é que, cada vez que acontece uma coisa estranha, o ex-doente a vê como portento. Acontecem com certeza coisas estranhas às pessoas "normais", tal como me aconteciam antes de eu ficar com a minha pele psíquica tão sensível às feridas e à estranheza da vida.

 

Tendo estado mentalmente doente e sabendo que sou mentalmente susceptível, digamos, nada passa por mim actualmente sem ser carregado de significado. Os ossos do meu tio-avò Desmond apareceram aqui na ilha, também ele ferido pela vida. O seu destino tem de ressoar tão profundamente em mim? Duas irmãs adolescentes desaparecem na outra ponta do estado e a minha neta Petra quer vir para cá. Se eu consinto, também ela desaparece? Não consigo tomar uma decisão sem revolver a questão mil vezes, duvidando da minha capacidade de ver significados escondidos.

 

É realmente uma canseira.

 

Rae.

 

Na manhã seguinte, ao acordar pela quarta ou quinta vez, Rae sentiu o cheiro de toucinho fumado, e pensou por um instante se teria começado a sofrer das alucinações de Desmond. Mas depois percebeu que estava deitada entre lençóis cheirosos sobre um colchão macio, e decidiu que aquilo não era uma fantasia.

 

Vozes e movimento sugeriam que decorria o pequeno-almoço na estalagem. Primeiro, contudo, ia ter o prazer de tomar um verdadeiro e civilizado duche.

 

Foi realmente um belo, longo e fragrante duche, que lhe tirou a areia e o sol do corpo bem como algumas teias de aranha do cérebro. Sentia-se limpa, como sempre após um episódio como o da noite anterior e, quando olhou para o espelho, viu poucos sinais do pai a devolver-lhe o olhar. Ele só se mostrava no espelho quando ela estava cansada, quando a sua pálpebra esquerda ligeiramente descaída aparecia no olho dela e a cor da sua íris se aproximava do castanho dela. Mas naquele dia, Rae avistou-se apenas a si própria no espelho.

 

Enfiou umas calças de ganga e uma camisola de algodão de mangas compridas, e desceu a escada em meias, com os pobres sapatos, em tempos bons, todos manchados de água. Foi pô-los lá fora ao sol e voltou para os aromas de toucinho entremeado e café.

 

E para Jerry Carmichael, de farda limpa, sapatos engraxados e barba feita, a olhar para ela por cima dum prato de comida em meio e todo sorridente.

 

Eu disse à Elaine que, se você não aparecesse antes de eu acabar, comia o seu pequeno-almoço também!

 

E era o terceiro! exclamou uma voz vinda da cozinha. Os outros comensais, jovens recém-casados, levantaram os olhos da sua absorção mútua e sorriram a Rae. Ela serviu-se de café e sentou-se diante de Jerry, não com tanta fome como pensara estar.

 

Bom dia, xerife saudou. Ele ergueu uma sobrancelha perante o título, e ela corou, emendando: Jerry

 

E bom dia para si, Mistress Newborn, Rae. Espero que tenha dormido bem.

 

Eu... dormi. Obrigada. Estaria a agradecer-lhe por perguntar ou pelo que ele tinha feito na véspera? E que fizera ele, afinal, para além de lhe dar boleia da praia depois de lhe pregar um susto de morte? Dois meses de solidão tê-la-iam tornado incapaz de manter uma conversa normal e delicada? Recomeçou: Dormi bem, obrigada, embora o colchão seja demasiado confortável, depois da minha cama de campanha e do saco de dormir. E por que diabo se sentia como quem estava a fazer sugestões indecorosas? Vê se cresces, Rae! E você?

 

Eu durmo sempre bem. Não tenho imaginação suficiente para insónias, costumava dizer a minha mãe.

 

Óptimo. Quero dizer, ainda bem que descansou. Antes de poder reconsiderar as possíveis implicações de mais essa afirmação, puseram-lhe o prato na mesa, quase tão cheio como estivera o do xerife. Agradeceu a diversão e pegou no garfo.

 

A conversa manteve-se simples, e o jovem casal de Los Angeles em lua-de-mel atacou as panquecas. Assim que ultrapassaram a presença da farda sentada à sua mesa, começaram a pedir sugestões de coisas para ver, e saíram vinte minutos mais tarde armados dum itinerário que os ia manter ocupados durante uma semana. Depois, enquanto Rae acabava de comer, Jerry Carmichael tirou a caneta e escreveu o essencial das suas declarações. Ela assinou, e ele sugeriu que se fossem sentar lá fora no relvado numas cadeiras de madeira. Longe de ouvidos curiosos.

 

A propósito de ontem à noite... começou ela, sentando-se e examinando um buraco numa das meias.

 

Já pedimos ambos desculpa. Talvez possamos ficar por aí.

 

Aquilo não teve importância, a minha... nem sei como hei-de chamar-lhe. Birra? Ataque?

 

Pois sim. Mas foi qualquer coisa. Encontrar os ossos era o suficiente para perturbar qualquer pessoa.

 

Perturbar repetiu Rae em tom seco. Pois. Já sabe como foi que ele morreu?

 

A bala na omoplata não o matou.

 

Foi o que eu pensei disse Rae.

 

Mas você mexeu no corpo. O que é que tirou? perguntou o xerife, aproveitando a admissão dela.

 

Se estava à espera de que Rae se sobressaltasse e ficasse corada, sentiu-se desapontado. Ela já mentira a investigadores da verdade muito mais subtis do que um xerife de condado, e estava à espera da pergunta.

 

Nada. E encarou o seu olhar inquiridor com uma expressão calma.

 

Mas não nega que mexeu no corpo.

 

Levantei a camisa para olhar para os ossos.

 

Porquê?

 

Não sei bem. Alterou a expressão para uma de perplexidade. Pareceu-me necessário. Ver os restos dele, sabe?

 

E afirma que não tirou fosse o que fosse?

 

O que é que havia para tirar? Ossos e roupa velha? Daí a um minuto, ele desistiu, aparentemente satisfeito.

 

Parece que acha que a morte dele é suspeita comentou Rae.

 

Não tenho outro remédio.

 

Não está a pensar que ele foi... assassinado? Rae sentiu-se bastante orgulhosa do tom em que pronunciou a palavra.

 

Todas as mortes são consideradas suspeitas ao princípio. Mas se você encontrou uma faca metida entre as costelas dele, eu gostava de saber.

 

Nada de facas, lamento. Olhe, se está a tratar aquilo como a cena dum crime... Meu Deus, parece mesmo uma coisa da televisão... isso quer dizer que está tudo cercado com fita amarela e eu não posso continuar a trabalhar?

 

Ah, não. Não valia a pena.

 

Ainda bem. Vem aí gente da minha família e tenho imenso que fazer. Mas olhe, Jerry, se é o Desmond e se alguém o matou realmente, que diabo pode você fazer a esse respeito? Sei que um crime de morte não prescreve, mas toda a gente da época já deve estar morta também. Para além da satisfação de resolver um quebra-cabeças, pode fazer alguma coisa concreta?

 

Jerry recostou-se na cadeira para pensar no assunto.

 

A única coisa que me vem à ideia, assim de repente, é se houver uma herança envolvida acabou ele por dizer. Não sei como seria a lei naquele tempo, mas hoje em dia uma pessoa não pode beneficiar dum crime. O que significa, por exemplo, que, se um rapaz mata o pai, tudo o que o pai possui passa para os irmãos do assassino.

 

O Desmond não tinha filhos.

 

Então não existem sobreviventes para lhe contestar a posse da ilha.

 

Acho que não.

 

Quer dizer-me o que é que está a esconder?

 

Rae franziu a testa. Não havia motivo aparente para não lhe contar das balas, mas...

 

Nada de importante. Só umas ideias que eu tive, mas preciso de falar com a minha advogada primeiro. Acho que tenho de saber bem como são as coisas, antes de descarregar em cima de si.

 

Descarregar... O xerife pareceu indeciso entre mostrar-se divertido ou oficialmente contrariado, mas acabou por se decidir pelo humor, e Rae dirigiu-lhe um sorriso.

 

Pois é. Mas talvez você queira tomar uma atitude com respeito ao Desmond, mesmo sem querer.

 

Matou ou não o Desmond Newborn? perguntou ele de repente.

 

Eu? Claro que não! Você viu... começou Rae a protestar, falando tão atabalhoadamente que mordeu a língua.

 

Então, não tem motivo para se preocupar, pois não? Em "descarregar" em cima de mim.

 

Ela começou de novo a protestar, mas depois percebeu que ele estava a dizer uma piada. Soltou a gargalhada esperada e, ainda a sorrir, ele acrescentou:

 

Só quero é que não se meta na minha investigação.

 

Ah, então é uma investigação!

 

Eu seja cão se sei... Depende do que a especialista da universidade disser, de ela ser capaz de dizer o que o matou.

 

Óptimo. Depois conte-me. Olhe uma coisa, Jerry, você ia dizer-me qualquer coisa ontem à noite...? O xerife inclinou-se para a frente, fazendo ranger a cadeira, e por momentos Rae teve medo que lhe agarrasse a mão. Isso não aconteceu mas, perante a sua expressão séria, sentiu o pequeno-almoço a congelar-se no estômago.

 

O Sam Escobar telefonou-me. Lamento, mas assaltaram-lhe a casa. No sábado ou no domingo, ele não tem a certeza.

 

Ai, meu Deus! E... Interrompeu-se, sem saber como continuar. Que havia de perguntar? Estragaram alguma coisa? E o que é que levaram? Importar-se-ia? Essa devia ser a questão. Mas era outro mundo, outra vida.

 

Não parece haver muitos estragos. Arrombaram a porta das traseiras e partiram uma colecção de coisas de vidro numa prateleira. Rae encolheu-se. Afinal, importava-se. O perito dos seguros vai lá ver o que falta. Você tinha coisas muito valiosas?

 

Arte, sobretudo. Se foram os objectos de vidro que eu julgo, o meu marido tinha-os no seguro por qualquer coisa como um quarto de milhão. Deitou-lhe um olhar quando ele reprimiu uma praga, e explicou: A maior parte não foi comprada por nós, só três ou quatro peças, mas fazíamos trocas, os artistas e eu, ou davam-mas antes de se tornarem famosos. E acontecia o mesmo com os quadros, ou com a maioria, pelo menos. Esses escaparam?

 

O Escobar não mencionou quadros. Se ligar para a sua casa por volta das dez e meia, esta manhã, ele deve estar lá. Vai ele mesmo, não manda os delegados. Quer ver os estragos.

 

Rae não o ouvia. Uma das esculturas de vidro fora um presente do marido, comprado durante uma viagem ao Sul para visitar o filho dele e, embora sabendo que ela não tinha ficado tão imediatamente encantada com a medusa de vidro como ele, continuara a coleccionar peças de arte em vidro para si próprio, e depois ela para ele. Tinha diante de si a visão de todas aquelas luminosas e efémeras formas de vidro reduzidas a pedaços e, sim, isso doía-lhe.

 

Tenho muita pena disse Jerry Carmichael, vendo a expressão dela.

 

Todos os xerifes dizem isso às pessoas com tanta frequência como você? perguntou ela, com esforço.

 

Só quando... Calou-se, e foi a sua vez de se mostrar atrapalhado. Faz parte do serviço, minha senhora. Bom, tenho de voltar ao trabalho acrescentou, pondo-se de pé.

 

Proteger e servir comentou ela, olhando para cima. O que me faz lembrar: Espero que a sua gente esteja a vigiar as minhas coisas. Uma casa invadida numa semana é suficiente, mesmo sendo a outra uma tenda.

 

Fui lá ontem à noite, e vou para lá outra vez agora. Estava tudo como você deixou.

 

Quando é que pensa que acabam de examinar o local?

 

Os tipos do laboratório devem acabar esta tarde. E os meus homens não saem de lá antes deles.

 

Muito bem. Eu ligo para o Ed e pergunto-lhe se pode levar-me.

 

Que tal se a levar eu? Preciso de ter a certeza de que não se esquecem de alguma coisa. Assim, poupa-se uma viagem ao Ed.

 

Tem a certeza? Obrigada. E quê... Quatro horas? Cinco?

 

É melhor ser às cinco.

 

Então, vou comprar umas coisas no mercado, e fazemos um piquenique manhoso, para lhe pagar o jantar de primeira que me ofereceu ontem. A não ser que tenha outros planos...

 

O piquenique é uma óptima ideia. Às cinco no cais.

 

Até logo, então.

 

Ele saiu e Rae foi fazer os seus telefonemas.

 

A advogada não estava, ia a caminho da casa de Rae para se encontrar com o perito dos seguros. A secretária disse a Rae que a doutora tinha recebido o pacote misterioso e o enviara em mão ao laboratório particular que lhe fora recomendado, com um pedido da máxima urgência.

 

Rae ligou em seguida para Tâmara, deixando recado no atendedor de chamadas de que estava em Friday Harbor a passar o dia e voltaria a ligar antes de voltar à ilha nessa tarde.

 

Marcou o número do seu próprio telefone, que tocou duas vezes passando para o atendedor, de maneira que desligou. Tentava daí a uma hora.

 

Depois, respirou fundo, a olhar para o telefone. A carta que recebera na véspera da dona da galeria de Nova Iorque era a terceira no espaço de dois meses. Devia uma resposta à mulher. Pegou no auscultador e, antes de pensar mais no assunto, marcou o número. Respondeu a própria Gloriana, toda efusiva, absolutamente encantada por ter notícias dela, o que fez Rae pensar seriamente em desligar.

 

G., disse ela num pequeno intervalo. Pare com isso, ainda fico com complexos!

 

Nunca, querida. A sério, Rae querida, fico contentíssima por ouvir a sua voz.

 

Mas não vai ficar tão contente quando souber o que tenho para lhe dizer.

 

Ai, não! Não me diga que não está a trabalhar!

 

Estou a trabalhar, estou, mas não em coisas que possam interessar-lhe.

 

Conte lá, mesmo assim.

 

E Rae contou-lhe da ilha e da reconstrução da casa e, apesar da reacção de Gloriana ser previsível profundo desapontamento por Rae não ter qualquer coisa para a galeria senão daí a muitos meses, a sua disposição mudou para um certo optimismo quando conseguiu que Rae admitisse que talvez no próximo ano, quando a casa fosse menos urgente...

 

Rae gostava de Gloriana, respeitava-a, e sabia que as manifestações de regozijo eram em parte representação, mas também a sua maneira de mostrar que se preocupava com o seu bem-estar. E, por gostar dela e ela a ter encorajado e ficado a seu lado durante muitos anos, contou-lhe da bancada feita com madeira trazida pelo mar. Após uma duvidosa hesitação ("olhe, querida, o kitsch já esteve e deixou de estar na moda tantas vezes que estou farta"), Gloriana começou a perceber o verdadeiro interesse de Rae pela peça.

 

Quando acabou de lhe contar, Gloriana ficou calada, mas percebia-se que não tinha desligado, porque se ouvia a música de fundo da galeria e a respiração dela.

 

Que foi, G.? Entrou alguém para a assaltar?

 

Ficava bem numa fotografia?

 

O que é que ficava bem numa fotografia?

 

A bancada. Ficava bem numa fotografia?

 

Suponho que sim, se eu lhe tirasse as coisas de cima.

 

Ai, meu Deus, mas está mesmo a usar a coisa?

 

É uma bancada de trabalho, G., de trabalho!

 

Você é impossível, Rae, é mesmo impossível. É capaz de se sentar numa cadeira do Wright.

 

Claro, quando todas as cadeiras confortáveis estão ocupadas.

 

Pare, por favor! E pare de utilizar a sua bancada até podermos tirar-lhe uma fotografia.

 

Já tenho uma. Porque é que a quer? Não vou tirar de lá a bancada e mandar-lha... Desfazia-se, sem a árvore.

 

Palavra? Que maravilha! E simbólico, também.

 

Olhe, eu desligo, se não me diz o que está a tramar.

 

Um livro.

 

Um livro. Sobre a minha bancada?

 

Sobre toda a ideia da sua ilha, da concepção à conclusão. Um grande e lindo livro de edição limitada com uma capa espantosa, possivelmente de madeira, e com aquele papel grosso, o género de livro que só os coleccionadores e os departamentos de arte das universidades podem comprar. Mais fotografias duma edição limitada na galeria para vender, claro, e uma ou outra peça pequena, se você estiver disposta. Com uma versão mais barata do livro para a ralé acrescentou, com uma gargalhadinha.

 

Vou desligar, G., avisou Rae.

 

Mas tenho de ir aí ver a sua fabulosa ilha, enquanto está imaculada. Levo um fotógrafo e estamos aí num ápice. Como é que entro em contacto consigo?

 

A ilha é tudo menos imaculada. Há uma data de terreno descampado e um enorme oleado azul numa clareira. Para lá chegar, tinha de utilizar o barco malcheiroso dum homem tatuado, e na ilha há um chuveiro feito com um balde pendurado numa árvore e a retrete é um buraco cavado por mim.

 

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Rae desejou poder ver a cara da outra, e a resposta chegou, delicadamente fria:

 

Bom, então está bem, querida. Avise-me quando instalar a banheira e a água quente.

 

Rae livrou-se por fim da conversa, desligou e ficou sentada a olhar para a colecção de cães de loiça de Elaine, pensando em como se sentia. Não muito mal, decidiu. A comunicação acabara por não ser tão difícil como pensara, visto ser a sua primeira diligência no mundo da profissão que escolhera, desde o acidente. Quanto mais longa era a espera, maior o passo. E o seu primeiro passo estava dado, sem derramamento de sangue de qualquer dos lados. Sem se permitir pensar na proposta do livro de momento, mas sorrindo para consigo com a ideia de Gloriana de sandálias italianas a dirigir-se à latrina da Loucura, Rae subiu a escada para lavar os dentes e enfiar no saco a roupa suja de areia. Pagou a Elaine com notas novas do multibanco e dirigiu-se de novo ao telefone, para marcar de novo o seu próprio telefone.

 

Dessa vez, foi atendido. O xerife Escobar perguntou-lhe delicadamente como estava e depois passou o telefone ao agente de seguros, que parecia estupefacto mas, percebeu Rae, pela quantia que a sua companhia ia ter de entregar por uma pilha de vidro inútil estilhaçado do que por os estragos serem tão grandes. Rae suspirou de alívio ao saber que os quadros estavam intactos, e de pena pelos estragos na sua oficina, e sentiu-se impaciente perante a ideia de encontrar uma enorme confusão no escritório, onde, segundo o agente, tudo correspondência, críticas, contas, catálogos, absolutamente tudo tinha sido revolvido, à procura de alguma coisa ou só por maldade.

 

Bom interrompeu-o ela finalmente, daqui, pouco posso fazer. A minha advogada já está aí?

 

Já chegou, já.

 

Ouviu-se uma conversa abafada e o telefone a passar de mão, e depois uma voz familiar perguntou:

 

Rae?

 

Olá, Pam! Lamento imenso metê-la nisso. É tão mau como diz o tipo dos seguros?

 

É uma confusão, mas para além dos vidros não há grandes estragos. De qualquer maneira, vou cancelar todos os seus cartões de crédito. Deve receber os novos mais ou menos numa semana. E como o computador parece que estava ligado quando o escavacaram, deve partir do princípio de que deixou de ter segredos.

 

Rae não imaginava ter segredos, mas prometeu pensar se teria algum outro problema por lhe terem vasculhado o computador. A secretária da advogada ia contactar toda a gente na sua lista de endereços de correio electrónico, para ver se algum ladrão electrónico andava a trabalhar. Pam acabou por lhe dizer francamente que tinha tido uma sorte dos diabos e que ia mandar substituir a fechadura e fazer consultas para ver se existiria um sistema de segurança melhor.

 

Rae agradeceu-lhe humildemente, e depois fez a pergunta que se encontrava em primeiro lugar no seu espírito:

 

Ouviu alguma coisa dos advogados do Don?

 

É estranho, mas não. Respondi ao documento deles, claro, e agora vamos ter de esperar para ver se o tribunal vai com a coisa para a frente. Se for, talvez tenha de vir até cá.

 

Para verem se não estou a delirar e coberta de chagas?

 

Rae! ralhou a advogada.

 

Bom, é o que eles querem saber, não é?

 

Sim, mas não precisa de ser tão realista.

 

Rae soltou uma gargalhadinha. Depois, pediu-lhe que desse uma morada ao agente de seguros para ele enviar as fotografias e os impressos, disse com uma pena falsa que lamentava não estar livre de momento, e desligou com a sensação de se ter safado facilmente.

 

Dirigiu-se então ao centro de Friday Harbor, para comprar umas calças de ganga.

 

Encontrou-as, e meias e um par de botas de trabalho cujas partes de cima de cabedal não ameaçavam separar-se das solas, e um colete de malha encarnado, quente e sem os pingos de cola e buracos de queimaduras que decoravam o seu velho colete. Cortou de novo o cabelo, bem curto, e à uma da tarde comeu uma sanduíche perto do porto e pediu ao dono do café que lhe guardasse os sacos das compras até às cinco.

 

O museu histórico devia estar aberto, mas ao dirigir-se para lá descobriu uma galeria que exibia algumas peças de madeira, taças e uma mesa. Parou para admirar a utilização profissional dos veios da madeira e o equilíbrio das texturas, gostando menos da qualidade dos embutidos na mesa (três madeiras toscamente utilizadas), e continuou a andar. Abrandou o passo e voltou para trás. O homem sentado na galeria, naquela tarde sem movimento, levantou os olhos quando ela entrou e pôs-se de pé dum salto, com uma expressão completamente atónita na cara bem barbeada.

 

Não é...? Ai, meu Deus, é a Rae Newborn! declarou ele, erguendo a voz de espanto e incredulidade. Quando ela lhe acenou com a cabeça, o homem deu uns passos em direcção a um cortinado que separava uma outra sala, entrou com relutância como se receasse afastar os olhos dela, remexeu por lá, fechou uma gaveta com estrondo e voltou para a galeria com uma revista na mão. Estendeu-a a Rae.

 

Acabei de ler isto disse ele. Ouvi uma pessoa falar de si outro dia, de maneira que procurei isto para lhe mostrar e para reler o artigo. É espantoso!

 

Nikki Walls, apostava Rae. O homem era provavelmente um das dúzias de primos da infernal rapariga. Pegou delicadamente na revista, deitando uma olhadela aos anúncios de ferramentas e planos de armários de estilo shaker, até que encontrou uma fotografia sua, com menos quatro anos e muito menos desgaste, ao lado duma peça com que ganhara um prémio em Nova Iorque. Francamente, não percebia como o homem podia tê-la reconhecido. Devolveu-lhe a revista, e ele abriu o desdobrável com a fotografia da oficina dela, com todos os cinzéis em ordem, as peças em que trabalhava dispostas artisticamente, embora dum modo pouco prático, dirigindo-lhe um enorme sorriso. Rae sorriu também, sentindo a impressão quase esquecida de ser um "Nome". O lago era pequeno, mas em tempos gostara de ser um dos seus peixes maiores.

 

Deixou o homem falar do seu trabalho, respondeu-lhe a algumas perguntas técnicas, e depois voltou a conversa para o trabalho dele. As peças na montra eram dele, admitiu, e Rae dirigiu-se a elas para as apreciar com os dedos. O trabalho evidenciava uma rara sensibilidade e respeito pela madeira, e o que o autor não aprendera quanto ao desenho das peças tinha remédio. O resto era um dom. O homem quase sufocou quando Rae lhe disse que queria comprar a taça de macieira.

 

Ah, não, por favor! Adorava oferecer-lha.

 

Nem pensar. É uma peça linda e você podia receber três vezes mais em São Francisco. Só lhe peço que a guarde, até eu ter um telhado por cima de mim. Estou a viver numa tenda, e não fazia bem à taça apanhar chuva.

 

Pela reacção do homem, Rae percebeu que metade das pessoas que entrassem na galeria iam ouvir a história por detrás da etiqueta com "Vendida", mas descobriu que não se importava muito.

 

Enquanto fazia a factura (relutantemente), ele perguntou-lhe se tinha planos para dar aulas, uma vez que ia estar ali algum tempo.

 

Não pensei nisso disse Rae, e era a pura verdade. Ensinar a trabalhar com madeira estava bem no fim da sua lista de prioridades, de momento.

 

Bom, se pensar, tenho muito gosto em que utilize a galeria. Até podia fazer outra coisa: Os meus vizinhos têm umas poucas de cabanas de férias mesmo à beira da água para alugar, e há por aí gente que matava por uma oportunidade dessas em... em Anacortes, e até em Seattle.

 

Rae disse-lhe o mesmo que dissera a Gloriana em Nova Iorque:

 

Vou pensar nisso. Palavra que penso. Eu costumava gostar de ensinar.

 

Ena, pá! Isso era o máximo. Conheci uma pessoa que teve aulas consigo há três ou quatro anos. Não tem ensinado ultimamente, pois não?

 

Não, estou mais ou menos afastada há uns tempos respondeu ela.

 

Às vezes, é preciso. Para recuperar comentou ele.

 

Pois é. Olhe, eu depois digo-lhe alguma coisa sobre a eventualidade dum curso, mas não pode ser este ano. Estou muito ocupada. Assim que tiver a casa pronta, quem sabe?

 

Depois de sair da galeria, Rae precisou de se sentar para pensar na conversa que, juntamente com a que mantivera anteriormente com Gloriana, uma proprietária de galeria de arte totalmente diferente, parecia indicar que estava disposta a pegar de novo nos cinzéis e não apenas para construir móveis para guardar livros e pratos. O reanimado interesse pela profissão apanhara-a de surpresa, pois nem sequer suspeitava dele. Até ao momento, limitara-se a fazer gestos; naquele dia, pela primeira vez, sentia qualquer coisa despertar novamente dentro de si.

 

A vida tinha a habilidade de apanhar uma pessoa de surpresa, pensou Rae.

 

Mesmo quando a pessoa não estava interessada.

 

Daí a algum tempo, lá se recompôs e continuou a andar em direcção ao museu, onde uma funcionária se mostrou simpática e prestável até ouvir Rae dizer que estava interessada em tudo o que existisse sobre a ilha, altura em que juntou dois e dois e se tornou absolutamente efusiva e enciclopédica.

 

Por sorte, Rae tinha uma desculpa plausível, ou o museu teria sido exibido diante de si até à meia-noite, juntamente com todo o pessoal de voluntários, respectivos cônjuges e filhos. Às vinte para as cinco, mais de duas horas depois de ter entrado, levantou-se, desesperada, agradeceu aos quatro entusiásticos amadores que entretanto tinham saído das paredes e safou-se para a rua.

 

Encaminhou-se para o porto, tendo diante de si a imagem duma solitária tenda de lona numa clareira silenciosa. Nos ouvidos, retinia-lhe a fala humana, nos nervos vibrava-lhe a repetida boa vontade do contacto humano, na nuca sentia a contínua presença de estranhos, e estava capaz de chorar de exaustão. Perto da entrada do porto, passou por uma cabina telefónica e deu mais uns doze passos até que o seu sentido de responsabilidade começou a protestar o suficiente para a fazer parar. Com relutância, voltou para trás para fazer o telefonema prometido a Tâmara. Com alguma sorte, apanharia de novo o atendedor de chamadas.

 

Mas não. Em vez disso, Rae ouviu uma voz adorada, uma dádiva dos deuses que quase apagou os efeitos daquele dia.

 

Petra! exclamou. Olá, meu amor. Pensei que estivesses a andar a cavalo.

 

Avó! Onde é que está? Já tem telefone?

 

Não. Estou em Friday Harbor. Tinha umas coisas que fazer aqui, por isso pensei em telefonar a dizer olá. Como é que estás?

 

Estamos todos óptimos. Bom, eu nem por isso. Magoei-me numa perna e tenho testes amanhã e segunda-feira, de maneira que estou em casa a estudar.

 

Estou mesmo a ver...

 

Petra riu, divertida com o cepticismo da avó.

 

Recebeu a minha carta?

 

Recebi, ontem. São excelentes notícias... poderes vir passar algum tempo comigo.

 

O pai diz que depende das minhas notas... por isso é que estou a estudar. Estou mesmo, avó. Mas se forem boas, posso ir, talvez mesmo por duas semanas inteiras!

 

E isso depende de mais quê? Discutiste com o teu pai por causa disso?

 

Ele anda tão esquisito, avó! exclamou a garota num tom rabugento. Eu só disse que tinha muitas saudades suas e que a avó devia sentir-se sozinha e ele desatou a ralhar comigo por ser irresponsável, como se eu fosse má aluna ou coisa parecida. Tenho notas muito boas, avó, que mais é que ele quer?

 

Tem calma, querida. Está tudo bem. Mas ela não se acalmava e era difícil confortar uma adolescente pelo telefone duma cabina de esquina, sem fazer ideia das proporções da sua inquietação. Rae fez o que podia, ouvindo-a desbobinar ressentimentos e indignação e emitindo um ocasional "ã-ã" e abanando a cabeça a pedir desculpa a um casal que queria utilizar o telefone.

 

Por fim, Petra calou-se e Rae disse-lhe a única coisa que achou poder ajudar.

 

Sabes, Petra, parece-me que o verdadeiro problema não és tu, mas sim qualquer coisa com o teu pai. Talvez ele tenha preocupações no trabalho e, em vez de as admitir e falar sobre elas, esteja a descarregar em ti.

 

E, talvez disse a vozita do outro lado.

 

Querida, sabes que o teu pai e eu nem sempre estamos de acordo (maneira delicada de pôr a questão, pensou Rae}, mas ele adora-te e farta-se de trabalhar e com certeza que não quer que tu e a tua mãe se preocupem, pois não? Mas, se tem problemas no trabalho, isso explica com certeza que esteja sem paciência. Não achas?

 

Pois é, talvez. E a garota, embora não parecesse convencida, dava mostras de estar disposta a considerar a hipótese.

 

A vontade de Rae era dizer à neta que não discutisse com o pai, que não o provocasse até ele reagir. Mas ficou calada. Isso só ia piorar as coisas. Portanto, perguntou-lhe pelo pónei e pelo cão, ouviu as notícias dum novo gatinho e, em troca, deu-lhe algumas novidades inócuas sobre a casa. Mas não tocou no assunto dos ossos e muito menos das balas. Falaram durante mais uns minutos, sobretudo do trabalho da garota sobre a Loucura para o colégio, até que Rae disse relutantemente que tinha de se ir embora e prometeu escrever. Petra prometeu a mesma coisa e acrescentou que ia tentar ser paciente com o pai.

 

Rae desligou, sorridente, embora não tranquila. Durante vinte minutos, estivera felizmente longe do que a rodeava, a salvo de arrepios na espinha. Assim que recomeçou a encaminhar-se para o porto, uma buzina soou-lhe praticamente debaixo dos pés. Deu um salto para o passeio e foi com toda a força de encontro a um homem, atirando com o saco de compras que ele transportava para a valeta. Ele praguejou baixinho e recusou irritadamente a ajuda que ela lhe ofereceu, de maneira que Rae fugiu dali... olhando dessa vez para ver se vinha algum carro.

 

Sentiu-se aliviada ao avistar Jerry Carmichael a meio da doca.

 

Parece aflita comentou ele, quando Rae parou.

 

Sinto-me aflita. A minha neta está a tornar-se adolescente e muitas criaturas infinitamente amistosas e prestáveis têm-me acossado desde que saí da estalagem e estou com imensa vontade de dar um pontapé em alguém. Podemos ir?

 

Pensei que ia fazer compras.

 

E fiz... Ai, meu Deus, deixei tudo no... ora, o Ed leva-me os sacos quando... Ora bolas! Eu tinha dito que comprava coisas para fazermos um piquenique... Desculpe, Jerry, também me esqueci disso. Tenho de voltar.

 

Ao contrário do que lhe aconteceu, eu tive um dia tranquilo, a ver os outros trabalharem. Que tal ir eu buscar as suas coisas e comprar o material para o piquenique, enquanto você se senta no barco e fica a ouvir o silêncio?

 

Se aquilo fosse mais uma ordem do que uma sugestão, Rae provavelmente faria finca-pé e voltaria para a cidade. Mas ele parecia mais amigável do que mandão, o que a fez concordar e deixá-lo conduzi-la até ao barco, donde o viu afastar-se.

 

Proteger e servir murmurou Rae, sentando-se para escutar o silêncio. Que, para falar verdade, era praticamente inexistente no porto fervilhante de actividade.

 

Jerry Carmichael voltou num espaço de tempo incrivelmente curto... a não ser que Rae, na sequência das últimas duas noites, tivesse adormecido. Ele trepou para o barco, carregado que nem um burro, tirou uma garrafa de cerveja mexicana dum dos sacos e poisou-a junto de Rae sem comentários, antes de se inclinar para soltar as amarras. Depois, afastou o barco da doca com um pé e dirigiu-se para o leme. O motor pegou e Friday Harbor ficou para trás.

 

Dez minutos mais tarde, Carmichael deitou uma olhadela para a figura estendida de Rae, que só se mexera para abrir e beber a cerveja desde que ele se afastara para lhe ir buscar as compras.

 

Quer outra? perguntou ele. Rae abanou a cabeça em silêncio. Jerry ia a dizer qualquer coisa mais quando o rádio grasnou uma mensagem ininteligível para ouvidos civis. O xerife identificou-se e escutou um momento, mudando de expressão até ficar com ar de quem estava capaz de bater em alguém, diminuindo a velocidade para ouvir melhor. Rae ergueu-se, a olhar para ele. Jerry estava voltado para ela, mas os seus olhos não a viam. Por fim, falou, em duas curtas frases:

 

Detém-nos todos ordenou ele, e depois continuou: Estou aí em vinte minutos. Desligou e encarou-a. Precisam de mim em Lopez. Desapareceu uma rapariga.

 

Vá! incitou ela.

 

Posso arranjar-lhe boleia começou ele, mas Rae abanou a cabeça.

 

Não se preocupe comigo. Vá.

 

E ele foi. O barco voou sobre a superfície da água como se fosse a jacto e não a hélice. Rae enfiou a garrafa vazia entre duas almofadas para ela não rolar dum lado para outro, e aproximou-se dele.

 

Quer alguma coisa para comer?

 

Era capaz de ser boa ideia. Deus sabe quando é que vou arranjar tempo.

 

Procurando manter o equilíbrio, Rae procurou nos sacos, fez uma grossa sanduíche e levou-lha, juntamente com uma salada, dois ovos cozidos e duas garrafas de limonada. Jerry começou a comer a sanduíche com uma mão, e depois os ovos, enquanto Rae atacava a salada com um garfo de plástico. Quando ele acabou, ela pegou noutro garfo e viu, divertida, como o xerife abria a boca como um enorme passaroco. Deu-lhe a salada, operação que pareceu diverti-lo igualmente a ele, e voltou aos sacos à procura da sobremesa escolhida por ele, uns biscoitos peganhentos e grossos. Levou-lhe a caixa e ele comeu três antes de chegarem a Lopez.

 

O Sol estava baixo, atrás deles, quando se aproximaram do cais do ferry. Um barco encontrava-se ancorado na doca e outro ao largo, com os motores a roncarem suavemente. Algumas centenas de pessoas enchiam o cais e os dois barcos, e o xerife parou junto ao que estava atracado. Com um pé já fora da embarcação, voltou-se para ela e começou:

 

Não sei se...

 

Vá! Faça o seu trabalho.

 

Ele acenou com a cabeça e afastou-se.

 

Rae foi atrás dele, juntando-se à multidão no cais. Precisou de algum tempo para distinguir os factos dos rumores, mas uma coisa era certa: uma garota de catorze anos, chamada Caitlin Andrews, desaparecera do ferry. A pequena e os pais tinham embarcado em Anacortes, para passar o fim-de-semana com uns sócios do pai, e ela afastara-se enquanto o pai e a mãe tomavam café. Quando o barco se aproximou de Lopez, os pais procuraram-na por todo o lado, com a mãe preocupada e o pai cada vez mais enfurecido. Todos os outros carros com destino a Lopez desembarcaram, e Caitlin continuava sem aparecer. Caitlin tinha desaparecido.

 

Já havia barcos à procura, mas, com a noite a chegar, não tinham muito tempo. Jerry Carmichael falava com a tripulação e parecia instigar uma busca minuciosa. Daí a pouco, ouviu-se a voz dele pelos altifalantes, pedindo ao motorista de cada carro ainda a bordo "apenas o motorista, por favor" que se colocasse junto ao seu veículo com as chaves na mão.

 

O tempo ia passando. O outro ferry desistiu e afastou-se em direcção a Shaw, Orcas e San Juan. Os seguintes passaram sem abrandar. O pequeno café junto ao cais encheu-se de clientes à procura de café e alguma coisa para comer, e Rae acabou por rebuscar nos sacos e fazer mais sanduíches para os agentes de Jerry. Às nove da noite, o Sol desaparecia no horizonte e a fila de carros à espera de entrar para o ferry estendia-se pela estrada até às árvores. Rae comprou um café e passou lentamente pelos carros e seus passageiros irados ou sonolentos. Continuava estafada, mas o nervosismo provocado pela presença de tanta gente desaparecera. Por que motivo não sabia bem, uma vez que parecia haver ali quase tantas pessoas como as que vira em todo o Friday Harbor. Talvez porque todas se interessavam numa coisa que não tinha a ver com ela, Rae Newborn, artista, marceneira e residente na Loucura. O anonimato era um pobre substituto para a solidão, mas parecia acalmar-lhe os nervos.

 

Podia ser anónima em Lopez, mas não invisível. As pessoas que tinham aguentado a espera, determinadas a embarcar no ferry e sair da ilha, entravam e saíam dos carros, conversando sobre tudo desde a carreira de ferry até ao pessoal docente da escola local, empoleirados nos carros umas das outras e dizendo "Olá" quando ela passava, ou "Como está?", ou "Alguma novidade?" Rae acenava com a cabeça, sorria, ou fazia sinal que não, e continuava a andar, ignorando a sensação de ser observada. Claro que estava a ser observada, mas só como uma distracção para indivíduos aborrecidos. Era uma coisa que aguentava. Uma mulher que gritava furiosamente para o telemóvel, ao volante do seu BMW, deitou-lhe um olhar furioso, mas olhava da mesma maneira para todos os lados. Um rapaz e os seus amigos atacavam uma embalagem de doze garrafas de cerveja, transformando a paragem forçada numa festa improvisada, e Rae decidiu não passar junto à carrinha deles. Não pareceram reparar nela. Nos carros a seguir, as pessoas pareciam dormir.

 

O condutor dum dos veículos, uma carrinha de modelo recente com uma dúzia de rolos de isolante de fibra de vidro nas traseiras, olhava fixamente na sua direcção e Rae pensou que ia falar com ela, mas o homem limitou-se a olhar para o carro da frente, como se tivesse ficado envergonhado por olhar para ela tão intensamente. Ou teria percebido que ela não era a pessoa que julgava? Uma olhadela rápida ao passar revelou-lhe apenas uma cara com barba e muitas rugas junto dos olhos, com uma cabeleira ondulada e comprida a sair dum boné de basebol. Desviou o olhar antes que fosse a vez dele a apanhar em flagrante e continuou a subir a colina e a beberricar o café morno. O homem lembrara-lhe um dos seus vizinhos, um fulano chamado Mac qualquer coisa, McArthur talvez, que morava umas casas mais acima. Um verdadeiro homem da montanha, que fazia uns biscates para ganhar algum dinheiro, mas pouco tinha a ver com o mundo. Pelos autocolantes na sua antiga carrinha Ford e por comentários ouvidos nas lojas, Rae pensava tratar-se dum combatente que nunca voltara realmente das florestas do Vietname. Não duvidava de que existissem também alguns ali naquelas ilhas. No entanto, a carrinha daquele homem denunciava muito mais posses do que o velho veículo de McArthur.

 

Fantasias, aquilo tudo, como também devia ser a sensação de que ele a observava pelo espelho retrovisor e a procurava quando reapareceu no cimo da colina, de regresso à costa. Talvez ela preenchesse alguma fantasia do homem, uma fantasia sobre uma mulher da montanha, alta e grisalha. Sorriu para si própria, dirigindo depois a atenção para os bebedores de cerveja. Durante a sua ausência, tinham atraído as atenções dum dos muitos agentes da autoridade a bordo, e mantinham um silêncio cabisbaixo, enquanto lhes examinavam os documentos. Rae colocou-se na fila para utilizar um dos lavabos, voltando em seguida para o barco do xerife.

 

Uma hora depois, a dormitar nas almofadas, acordou sobressaltada com o ruído de motores, um a seguir ao outro, e um vozear aliviado perante a notícia de que o ferry podia finalmente continuar a viagem. Escutou o barulho dos carros na ponte metálica e foi ver o que se passava.

 

Olhem! Encontraram-na? perguntou a um grupo de pessoas que embarcava a pé.

 

Não está no barco respondeu um homem.

 

Vão procurar na ilha disse outro.

 

Rae embrulhou-se melhor no casaco e estremeceu.

 

Diário de Rae

 

26 de Maio

 

Uma casa nem sempre é um lar, apesar do que dizem os anúncios das imobiliárias.

aquela história de dizerem que lar é um sítio onde "quando temos de ir para lá têm de nos levar" não se aplica a toda agente. Talvez nem se aplique à maioria das pessoas hoje em dia. Eu tenho duas casas, três, se contar com a mansão de Boston, aquelas vastas e frias salas da minha infância transformadas em casa de transição para um grupo sempre novo de pessoas que passam de celas trancadas para a liberdade das suas próprias portas fechadas à chave.

Nenhuma das três encerra alguém que me deixe entrar e em nenhuma delas posso encontrar a sensação de lealdade (por mais forçada) e permanência dum lar.

 

Uma casa é apenas um edifício até se tornar um lar.

Mas será realmente assim? Uma casa é uma realidade prática, mas é também uma metáfora de nós próprios. A casa ergue-se, observa a vista, funciona perfeitamente, é forte (ou fraca), honesta e bela. Nós somos a nossa casa.

 

Uma casa é uma afirmação de fé no futuro. A "casa de" alguém é mais do que tijolos e cimento; é o legado, a herança, o impacte que a família tem neste mundo. Construímos uma casa porque somos uma família, e não o contrário.

E,, tal como o corpo humano, uma casa trancada pode parecer segura, mas as suas paredes não são mais impermeáveis do que a pele humana. Uma casa não pode, finalmente, proteger os seus seres humanos dum mal maior do que a chuva. A terrível verdade é que, como nos dizem os relatos dos tribunais e os abrigos para mulheres maltratadas, para uma mulher, a maior ameaça é atrás duma porta fechada que pode esconder-se.

 

Pergunto a mim própria se Caitlin Andrews, a garota de catorze anos, terá ouvido vigilantes no patamar junto á porta do seu quarto.

 

Os últimos carros entraram no ferry, e Rae ficou a ver os faróis a baixar e a subir, ao passar pela ponte, a baixar e a subir, até que se decidiu. Não havia motivo para ficar ali. Pegou nos sacos e saiu do barco, avistando nesse momento um vulto alto que se aproximava em grandes passadas e só podia ser Jerry Carmichael. Mais uns passos e ele viu-a também.

 

Vou no ferry até Friday Harbor informou ela. O Ed ou i outra pessoa qualquer leva-me para a Loucura depois. O mais provável era passar lá a noite e só ir de manhã, visto ser já quase meia-noite. Mas não fazia mal.

 

Vinha dizer-lhe que por hoje estou despachado respondeu ele, parando diante dela. Decidiram entregar a investigação aos chefões, para o caso de um mísero xerife da província não dar conta do recado, e estou a pôr o oficial que dirige as operações nervoso. Por isso,

 

dei as minhas instruções aos meus homens e disse-lhes que voltava de manhã.

 

Também já só faltam umas seis horas. Devia dormir um bocado.

 

Francamente, preferia levá-la a casa.

 

Rae estudou-lhe a expressão à luz incerta, mas viu apenas certa rigidez sob a calma habitual, o que a fez pensar que talvez estivesse zangado com qualquer coisa.

 

Está bem concordou. Se não está a dizer isso só para ser delicado.

 

Deus me livre! Os xerifes não podem ser delicados. É uma coisa especialmente proibida no nosso juramento declarou ele, esforçando-se por falar num tom alegre. Tirou-lhe os sacos das mãos e afastou-se para a deixar passar à frente. Dessa vez, Rae fê-lo sem hesitar.

 

Assim que ela soltou as amarras, Carmichael afastou-se da doca, onde o ferry, depois da grande demora, fazia o mesmo, e descreveu um grande círculo com a lancha em volta da água agitada pela enorme embarcação.

 

Na escuridão, e dessa vez sem grande pressa, a lancha não seguia muito mais rápida do que o ferry. A noite estava limpa e o ar, mesmo em movimento, não parecia frio. Rae ia sentada perto dele, que se mantinha de pé, a olhar para as águas calmas.

 

Pode dizer-me o que aconteceu?

 

Uma garota chamada Caitlin Andrews desapareceu do barco. Quando a família deu por isso, todos os passageiros para Lopez já tinham desembarcado, de maneira que vão ser precisos uns dois dias para os apanhar todos e ver se algum reparou nalguma coisa. Mas ela não está no barco neste momento.

 

Eu vi a família dela comentou Rae. Jerry fez um som com a boca fechada, mas não falou, e ela inclinou-se para a frente, num esforço para lhe ver a expressão. Estava demasiado escuro. O que é que esse "ha" quer dizer? Acha que a família a atirou à água? Que a tinham na mala do carro? Que é?

 

Não acho nem deixo de achar. Os estaduais ainda não fizeram um interrogatório, para além das declarações iniciais. Mas não gostei da atitude do pai.

 

Pareceu-lhe que estava a esconder alguma coisa?

 

Parecia não ter nada a esconder, muito honesto e aberto quanto à criança difícil que a filha era, como estavam ansiosos por passar um fim-de-semana "em união familiar". Mas, a mim, pareceu-me um homem muito preocupado. Como um vendedor que tenta convencer o mundo de que a sua companhia não está prestes a falir. E disse pelo menos três vezes que a filha era uma mentirosa e uma leviana.

 

Uma leviana?

 

Perdão, a palavra é minha. O que ele disse foi que a garota é "impossível" e que se pinta de mais e se tapa pouco.

 

Tirando o último pormenor, parece a minha neta. E a mãe... o que é que disse?

 

Nada. Deixou o pai dizer tudo. Mas não tirou os olhos dele e ficou sempre numa posição em que ele não a via.

 

E isso quer dizer que...?

 

Que tem medo dele declarou imediatamente Jerry. Tem mais medo do marido do que do que pode ter acontecido à filha. Acho que o mais provável é a garota ter fugido dum pai violento, que a mãe está cheia de medo que ele se vingue nela, e que o pai receia que a miúda fale antes de poder controlá-la de novo. Esta é a minha opinião, mas não sei o que os verdadeiros polícias vão decidir.

 

Mas por que razão ia ela fugir aqui? E Lopez é a primeira paragem... Como é que ela saiu do barco? Saltou para a água e foi a nado?

 

Ou apanhou boleia de alguém que desembarcou? Ou escondeu-se no porta-bagagens dum dos carros? Os garotos daquela idade não costumam fazer planos com grande antecedência. Talvez não conseguisse suportar a ideia da "união familiar" sob os olhares do patrão do pai e tivesse encontrado outros garotos que achassem divertido ela fugir com eles. Quem sabe? Se as minhas suspeitas se confirmarem, teria sido preferível procurar as autoridades em Seattle, onde vivem, mas qual é a criança de catorze anos que acredita que um adulto da sua escola ou dos serviços sociais vai pôr-se do seu lado e evitar que o pai a castigue por fazer queixa? Já vi isso antes, mesmo aqui nas ilhas.

 

Pela amargura na sua voz, a experiência devia ter sido mais pessoal do que profissional.

 

Ultrapassaram a passagem entre Lopez e Shaw em silêncio, ambos embrenhados nos seus pensamentos. Quando as luzes das costas começaram a ficar para trás, o xerife perguntou abruptamente:

 

Tem uma pressa especial de ir para casa? Quer dizer, eu levo-a já, se quiser, mas estava a pensar em passar a noite ao largo e ver o nascer do Sol, diante da ponta de San Juan. Tenho muito gosto em que fique comigo, se quiser.

 

Rae viu as últimas luzes afastarem-se e tentou entender a sua reacção. Primeiro, estava ansiosa por se ver só, como uma pessoa com insónia deseja o refúgio do sono, mas por qualquer razão a proposta dele não a sobressaltou. A presença de Jerry Carmichael, grande como era, não lhe exigia a mesma atenção que a de outras pessoas. Era confortável, sem ser aborrecido, atencioso sem exageros e, embora não se sentisse particularmente atraída por ele, a ideia de passar uma noite no seu barco não lhe parecia ameaçadora.

 

Está bem anuiu ela.

 

O nascer do Sol foi magnífico, e o café forte que o xerife fez ainda melhor, seguro com as duas mãos e com o vapor perfumado a encher-lhe as narinas. Não diria que tinha dormido, com as almofadas pouco confortáveis e o constante balanço e rangidos do barco, mas tinha sido uma espécie de vigília reconfortante, como se uns grandes braços fortes, embora bastante distraídos, a embalassem.

 

Beberam o café e depois Jerry levantou a âncora e dirigiu-se à Loucura.

 

Pelo menos, ele tinha dormido bem, como Rae podia garantir pelas horas que passara a ouvir-lhe a respiração profunda e lenta. Precisava de fazer a barba e tinha a farda amarrotada, mas parecia de novo calmo.

 

Quando ia a meio caminho, ao longo de San Juan, falou pelo rádio, mas parecia que nada acontecera durante a noite. Iam começar a procurar os passageiros de Lopez, e a presença dele não era necessária de momento. Disse onde ia e desligou.

 

Admito que estou admirada. Pensava que quisesse estar no meio da busca disse Rae.

 

E quero. Estou pior que estragado, por ficar de fora, mas há ocasiões em que as velhas rivalidades e os ressentimentos atrapalham, e esta é uma delas. É preferível deixar... certo polícia pôr as coisas em andamento à maneira dele, antes de me meter. Ele é bom. Não vai prejudicar a miúda.

 

Jerry Carmichael era, decidiu Rae, um grande homem em mais do que o sentido óbvio das palavras.

 

Seguiram pelas águas calmas com o sol nas costas e um chapinhar ritmado no casco da lancha. Rae estava a pensar que um barco era uma bela coisa e que não devia deixar que o seu medo de conduzir um carro se introduzisse em todos os prazeres mecânicos, quando o rugido do motor se interrompeu abruptamente. A proa foi atirada em direcção ao céu e caiu na água. Rae agarrou-se onde pôde para não cair borda fora e a lancha balançou vigorosamente.

 

Que...? começou ela a perguntar. O braço de Jerry ergueu-se, apontando na direcção para onde iam, agora num ângulo recto em relação ao barco. Com o motor desligado, o único som era o bater da água no casco. Rae olhou para o mar vazio, entontecida.

 

E então viu: uma linha escura à altura dum homem, a erguer-se da água, logo seguida duma forte exalação de ar, uma impressão geral duma enorme massa a romper rapidamente a superfície das águas e uma larga barbatana caudal a agitar-se no ar. Depois, tudo aquilo desapareceu no mar calmo, como se nunca ali tivesse estado.

 

Orcas murmurou ela. Jerry acenou com a cabeça, de olhos postos no mar. Trinta segundos depois, a baleia emergiu de novo, expeliu a sua grande lufada de ar e tornou a desaparecer. Três vezes, quatro, cada vez mais perto, e só quando emergiu e se afundou a uns meros quinze metros deles é que Rae se lembrou de que a frágil embarcação estava no caminho dum comboio de mercadorias com dentes.

 

Jerry não pensou assim. Em vez disso, pôs-lhe as mãos nos ombros e empurrou-a para a frente, até que ela ficou com os joelhos apoiados na parede lateral da lancha, a olhar para as águas cinzentas com tanta atenção como ele. Um momento depois, viram a rápida passagem duma enorme e misteriosa presença das profundezas, uma massa escura e clara que lhes deslizava debaixo dos pés. Os dois correram pelo tombadilho e Rae contou até cinco. Então, a orca subiu e soprou de novo, desaparecendo depois para o mar alto.

 

O esplendor da visita da criatura, a força e a magia da aparição deixaram Rae sem fala. Só conseguiu rir, encantada. Mas Jerry declarou:

 

Aí tem o mar grande e profundo. O Leviatão acordado. Sorriu-lhe, ligou o motor e dirigiu de novo a lancha para norte.

 

A enseada de Rae parecia um espelho quando chegaram, e a clareira tão calma e vazia como sempre, sem sinais dos invasores fardados. No entanto, parecia faltar alguma coisa. A sua ausência deixara um rectângulo de terra batida e uma falha na sua paisagem onde existira um monólito azul. Rae abriu a boca, mas Jerry falou primeiro.

 

Ai, que maçada, desculpe, Rae. Eu disse-lhes que deixassem tudo como estava, mas parece que se esqueceram. Mas não parecia aborrecido, concentrado em aproximar-se de terra, e ela chegou a pensar que falava a sério, até lhe ver o canto da boca a tremer.

 

Voltou-lhe as costas, cruzou os braços e perguntou em tom seco:

 

E pode dizer-me, xerife Carmichael, porque achou que era preciso mexer naquela pilha de madeira?

 

Ora, Mistress Newborn, a senhora podia ter escondido vários esqueletos debaixo de tanta madeira! Não tivemos outro remédio.

 

Jerry e os agentes deviam ter passado horas a tirar toda a madeira do sítio onde ela fora descarregada, logo a seguir ao promontório rochoso. E, por qualquer motivo, os homens do xerife acharam necessário não só mexer na horrível montanha mas também transportá-la através da clareira mesmo para junto dos alicerces de pedra. Era um presente, para poupar a um carpinteiro solitário dias e dias de trabalho árduo.

 

Quer que os mande levar a madeira para onde estava? perguntou ele, fingindo ansiedade. Eu chamo-os já, mando-os abandonar as buscas.

 

Seu tolo! Não era preciso. Mas muito obrigada! disse Rae, voltando-se para ele. Deu um passo e, com uma leve hesitação, pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo na cara por barbear. Depois, foi buscar as suas compras muito viajadas e desembarcou primeiro.

 

Pôs a chaleira ao lume, para ele tomar duche e fazer a barba, pegou em ovos e começou a fazer o pequeno-almoço. Com uns restos de queijo e presunto, transformou-os em omeleta, e depois mostrou-lhe como proceder com o reservatório para accionar o duche. Jerry tinha uma farda no barco e, quando acabou de se arranjar, com o cabelo penteado, a cara macia e a arma no coldre, ninguém diria como tinha passado a noite.

 

Rae acompanhou-o ao barco e agradeceu-lhe... bom, tudo. Ele subiu para o barco, ela ficou no cais, e olharam um para o outro. Daí a um minuto, Jerry sorriu e acenou com a cabeça, como se ela tivesse dito alguma coisa, e depois levantou a mão num breve adeus.

 

Trinta e Oito

 

Carta de Rae para Gloriana Boudreau

1 de Junho Querida G.,

 

A nossa conversa telefónica do outro dia foi um bocado inconclusiva, mas tenho estado a pensar no assunto e, como vê, decidi mandar-lhe umas fotografias, para você fazer uma ideia das coisas aqui. Uma ou duas talvez possam ser utilizadas.

 

Não quero que veja isto como um compromisso da minha parte. Não sei se sou capaz de me encarregar de alguma coisa neste momento, e não é fita dizer que muito possivelmente não conseguiria acabá-la.

 

Nada de contratos nem PUBLICIDADE. Se ouvir um boato de que a Rae Newborn está a construir uma escultura para viver numa ilha remota, sei imediatamente donde partiu.

 

Além de que, se fizermos isto, terá de ser um passo de cada vez, e com a certeza de que posso parar a qualquer momento. De acordo?

 

Se você decidir aceitar estas inaceitáveis exigências, e se eu me sentir suficientemente forte, precisamos de falar sobre o fotógrafo.

 

O Jaime Brittin fez um trabalho muito delicado com a Cassandra

 

há uns anos. Se estiver livre, era boa ideia, ou aquele fulano que fez as fotografias sobre Yosemite e cujo irmão você conhecia.

 

Pode escrever-me para esta morada... e não, não tenho telefone, nem fax nem e-mail.

 

Rae.

 

Rae estava de volta ao trabalho antes de Jerry Carmichael atracar em Lopez. Trabalhava rapidamente e com grande facilidade a pesada madeira a seus pés em vez de a quase trezentos metros de distância numa encosta. Quando Ed apareceu na semana seguinte, viu com espanto a silhueta duma casa unindo as duas torres pela primeira vez desde

  1. O seu grito de júbilo naquele primeiro dia de Junho, às dez da manhã, ecoou por entre as árvores, enfurecendo o esquilo e fazendo Rae aparecer nos degraus da entrada. Acenaram um para o outro, o braço bronzeado dela e o colorido dele, e Rae guardou o martelo no cinto antes de descer ao seu encontro. Estava de calções e camisola sem mangas, e Ed viu-a aproximar-se com prazer. Não é nada feia, não senhor, disse para si próprio, e aqui sozinha. Afastou os pensamentos e estendeu-lhe um saco com mantimentos.

 

Falaram da casa, enquanto ela guardava os congelados e o bloco de gelo. Rae perguntou-lhe como tinha sido o fim-de-semana, concordando com a afirmação de que havia mais barcos.

 

Pois é, por esta altura entregamos mais ou menos as ilhas aos do continente, ficamos-lhes com o dinheiro e passamos para segundo plano.

 

Dois barcos tentaram ancorar na enseada, apesar do aviso.

 

Instale uma máquina de fazer gelo e um duche de água quente e vai ver que ganha uma data de dinheiro! sugeriu Ed.

 

A minha vontade era outra respondeu Rae. O segundo tipo devia ser advogado! Só queria que o visse, à noite, no tombadilho do barco, com a namorada de biquini apesar do frio, a discutir comigo que vinha para cá há anos e tinha todo o direito de continuar, apesar do aviso.

 

E o que é que fez? perguntou Ed, olhando para ela pelo canto do olho, a puxar pelas pontas do bigode. Ameaçou-o com o martelo?

 

Rae soltou uma gargalhada.

 

Não. Tinha de lhe estragar o fim-de-semana pornográfico. Disse-lhe que, de futuro, devia levar consigo os preservativos e o papel higiénico usados. A rapariga pareceu ficar ofendida, porque os ouvi a discutir até às três da manhã, e foram-se embora assim que amanheceu.

 

Ed abriu a boca, mas calou-se, com um ar envergonhado, o que fez Rae suspeitar de que estivera prestes a dizer uma piada ordinária.

 

Noutra altura, talvez o obrigasse a contar a gracinha, nem que isso significasse deixá-la desprotegida do interesse que lhe adivinhava no olhar. Mas não lhe apetecia começar um ritual de encontros sexuais com Ed De la torre, certamente não naquela manhã, ainda tonta pela falta de sono devido à discussão nocturna. Felizmente que o pequeno fora-de-borda que passava por ali a toda a hora não aparecera.

 

Rae chegou ao fundo do último saco de compras, dobrou-os e depois pegou no jornal para ler os cabeçalhos.

 

Então, ainda não encontraram a tal garota? A Caitlin Andrews? perguntou.

 

Não. Vasculharam Lopez de ponta a ponta. Os mergulhadores procuraram na rota do ferry, e a única coisa que conseguiram foi uma pessoa que diz que viu uma rapariga com os sinais dela a falar com um tipo mais velho a bordo, mesmo antes de partirem de Anacortes. É claro que, com tanta gente, havia pelo menos uma dúzia de adolescentes loiras a bordo e metade dos tipos das ilhas podem ser classificados como "mais velhos", de maneira que o testemunho significa menos do que nada.

 

Perguntei, porque o xerife Carmichael ia dar-me boleia de Friday Harbor para cá quando o chamaram. Tive de esperar horas, até ele ficar livre para me trazer, de maneira que estava com curiosidade em saber se tinha feito progressos.

 

Bom, ele e o tipo a chefiar a investigação têm o que pode chamar-se... um passado, de modo que o Carmichael entregou-lhe os agentes e encarregou-se ele próprio das patrulhas deles.

 

No que foi provavelmente o fim-de-semana mais agitado do ano.

 

Sim, teve de trabalhar a sério concordou Ed, não parecendo lamentar o facto. Até tivemos algumas prisões feitas por civis... numa zaragata que se descontrolou num bar em Orcas, e não havia quem acudisse. Deve ter sido divertido. Como é isso de prisão por um civil, sabe?

 

Ed fora preso e condenado pelo menos uma vez, segundo Rae sabia, mas viu-lhe o brilho do detective amador nos olhos. Rae teve de admitir que nada sabia quanto ao processo de prisão por um civil, e Ed passou para a filosofia (Martin Buber, dessa vez), até ao momento de se despedir.

 

Aquilo explicava a ausência de Jerry Carmichael, disse Rae para consigo, de volta ao local da construção. Estivera sempre à espera de o ver chegar, nem que fosse de passagem.

 

Na quarta-feira, Nikki Walls ancorou na enseada por volta do meio-dia, com um saco de compras. Encontraram-se na cozinha de Rae, e ela começou a sentir água na boca à vista do que a rapariga trazia: tomates, um belo cesto de tomates maduros, firmes e lisos como seios cheios de leite e quase tão grandes. Rae pegou num com as duas mãos e aspirou-lhe o aroma.

 

Ahhh... suspirou. Caramba, isto não veio do supermercado.

 

São da minha cunhada. Tem uma estufa portátil, e abre-lhe o telhado assim que o Sol aquece o suficiente. Tem sempre os primeiros tomates da ilha. Cultiva umas dez espécies diferentes, e disse que, assim que você começar a horta, lhe aconselha as variedades que se dão bem aqui. E isto é queijo de cabra duma prima minha de Lopez, que achou que talvez gostasse. E, como faço tenções de ficar para almoçar, trouxe-lhe também um pão.

 

Comeram o pão compacto com especiarias acompanhado do gostoso queijo branco e dos tomates sumarentos. Rae foi obrigada a reconhecer que nunca uma refeição lhe soubera melhor.

 

E era verdade. Nas últimas semanas, o seu paladar começara a despertar. Anteriormente, a comida não passava dum hábito e duma necessidade, mas desde o jantar com Jerry Carmichael em Friday Harbor estava a redescobrir toda a espécie de coisas no mundo do gosto. O problema era que a comida que tinha na ilha lhe sabia toda aos recipientes em que a guardava, e o vinho que até aí bebia de bom grado era mais indicado para cozinhar.

 

Prometeu a si própria entregar a Ed De la torre uma lista de mantimentos bastante mais imaginativa da próxima vez.

 

O preço do almoço foi uma visita guiada à casa, mas era barato. Além disso, Nikki convencia-a a mostrar-lhe tudo, mesmo sem os presentes.

 

A pequena gruta lateral já estava vazia, limpa da presença da morte, e a principal continha apenas uma grade de garrafas e umas prateleiras frágeis, testemunho da anterior presença humana. Jerry não lhe falara no desenho da orca e Nikki não reparou, provavelmente por Rae parar diante dele, a segurar no candeeiro.

 

Chegou a abrir a garrafa de vinho? perguntou a rapariga.

 

Ainda não. Escrevi à minha advogada, para ela descobrir se tinham algum valor.

 

Boa ideia. Foi só isto que encontrou aqui? perguntou Nikki, vasculhando a gruta maior, como se esperasse descobrir outra entrada secreta.

 

Foi disse Rae. Era uma mentira descarada, mas não se sentia pronta a partilhar o conteúdo do diário ou do cofre com alguém, sobretudo com uma mulher faladora, aparentada com a maior parte dos habitantes locais. Acho que o Desmond tinha mudado tudo para dentro de casa por altura do incêndio. Aqui era só uma arrecadação durante a construção da casa.

 

Nikki acenou com a cabeça, com ar pensativo, deitou uma última olhadela para a grade de garrafas cobertas de pó e gatinhou para fora da gruta antes de Rae. A estreita passagem entre a gruta e a casa tinha sido varrida literalmente pela equipa do xerife, e a terra peneirada e deixada no local do futuro jardim.

 

Deram a volta à casa, apoiando-se à protecção provisória pregada por Rae ao longo da parede traseira. Passaram em redor da torre dianteira e subiram os degraus até à porta da frente. Uma vez lá dentro, Nikki girou lentamente, avaliando o espaço.

 

As paredes do fundo e da esquerda, desde a lareira até à porta e incluindo a torre dianteira, estavam agora solidamente revestidas do lado de fora com madeira de cedro. O resto da frente e a parede da direita continuavam ainda em esqueleto. Nikki debruçou-se da abertura da janela da parede da direita e olhou para o terreno, daquele lado a uns bons três metros abaixo do parapeito.

 

Como é que vai içar a madeira para aqui? perguntou.

 

Assim que tiver a estrutura do primeiro andar, monto uns andaines.

 

Estava já a imaginá-la pendurada numa geringonça qualquer. Não que você não fosse capaz disso...!

 

Rae soltou uma gargalhada.

 

Não, a geringonça pendurada é para o telhado! disse ela, vendo a rapariga a pensar se estaria a brincar com ela.

 

Mas Nikki decidiu mudar de assunto.

 

Que grande quantidade de madeira transportou cá para cima!

 

Na verdade, foi o Jarry Carmichael e os homens dele que a trouxeram. Ele diz que tinham de procurar na terra por debaixo dela, mas foi só para me ajudar. Incrível!

 

Nikki deitou-lhe uma olhadela e, quando poisou o olhar de novo na pilha de madeira, exibia um sorrisinho infeliz. No entanto, disse apenas:

 

Acho que estão todos interessados em ver a Loucura de pé outra vez.

 

Nesse caso, o melhor que tenho a fazer é continuar.

 

Com o esqueleto do rés-do-chão erguido e firme, Rae estava pronta a passar ao primeiro andar. Tinha decidido que, embora as paredes interiores fossem estucadas, os tectos seriam de madeira. Assim, havia encomendado troncos descascados de cedro com um lado plano, para vigas expostas que ajudariam também a suportar o andar de cima. Cada um pesava uma tonelada, ou pelo menos era o que lhe diziam os seus músculos de meia-idade. Conseguia levantar uma extremidade sem grandes problemas, mas pegar num tronco inteiro e levantá-lo acima da cabeça estava acima das suas forças.

 

Aí, entrava a tecnologia primitiva a preferida de Rae. Um guincho montado na grande janela da parede esquerda faria a maior parte do esforço por ela. Assim que a viga estivesse dentro da casa, podia utilizar o elevador manual, alugado ao fornecedor de materiais de construção e entregue por Ed na semana anterior, para a erguer até ao tecto. Ia ser um trabalho lento e a necessitar de muito cuidado, mas sem riscos para a cabeça ou os músculos, desde que procedesse com cautela.

 

O primeiro tronco era imenso, difícil de manusear e quase impossível de manobrar, o que envolveu levantá-lo, balançá-lo através da abertura da janela, fazê-lo rolar e lutar com ele até o colocar no elevador, puxando depois este até ao nível superior. O sol já se encontrava perto das copas das árvores e Rae tinha os músculos a tremer de tensão e sentia-se desidratada de tanto suar quando conseguiu colocá-lo no sítio. Encostou-se à ombreira da porta e ficou a olhar para cima, para as cordas, as escadas de mão, a estrutura de madeira e um belo tronco descascado de cedro, perfeito contra o céu azul-escuro.

 

Meu Deus, pensou ela, desesperada, aquilo ia levar toda a vida. E a Petra chegava daí a quatro semanas, com os pais a reboque.

 

Na quinta-feira, o Sol ergueu-se às cinco e um quarto, encontrando Rae já a trabalhar. A trave número dois levou menos tempo do que a primeira, e a terceira foi ainda mais rápida. O truque era ignorar os estrondos e arranhadelas da sua passagem e levantar o raio da coisa. Tratar madeira à bruta não era fácil para Rae Newborn, mas estava a aprender.

 

Fez um intervalo para tomar um pequeno-almoço tardio às oito e meia, e passou toda a refeição de olhos postos na obra, a fazer cálculos. Depois, esfregou as mãos uma na outra e voltou para o seu guincho. O quarto tronco foi canja uma canja difícil de engolir, mas aquilo foi por ali acima tão bem que já não percebia como podia ter tido problemas. O quinto apanhou-a tão convencida que se permitiu desviar o olhar por um segundo. A jovem árvore escorregou do seu poleiro e quase a matou.

 

O imenso estrondo da queda ecoou e desvaneceu-se, e Rae continuava miraculosamente incólume. Nem uma contusão, merecida pelo seu instante de distracção; apenas um ombro arranhado ao saltar para trás. A reacção não se fez esperar, e ela cambaleou até à abertura, onde se deixou cair, com a cabeça entre os joelhos, a respirar com dificuldade. Quando levantou de novo a cabeça, avistou uma autêntica armada de invasores.

 

Raiva, raiva pura, deu-lhe força para se pôr de pé e encher os pulmões para gritar:

 

Isto é uma propriedade particular, que diabo! Não viram o raio do aviso?

 

Ocupantes de dois barcos voltaram-se para olhar para a louca da Loucura, mas a terceira e última embarcação, que acabava de lançar a âncora, mexeu-se e mostrou-lhe um homem alto, bem barbeado, de calças de ganga e camisa aos quadrados que Rae reconheceu sem dificuldade.

 

Jerry Carmichael. Que quereria ele dessa vez? E junto a ele, viu a igualmente familiar cabeça ruiva de Nikki Walls, de calções, botas e uma camisola de mangas compridas.

 

Dos barcos, saíam homens e mulheres, que se metiam em botes de borracha e depois subiam para o cais. Parecia a hora da saída numa fábrica. Parecia a comunidade amish prestes a erguer um celeiro naquele filme do Harrison Ford. Parecia...

 

Parecia a sua salvação.

 

Rae olhou para eles de testa franzida, vendo-os atravessar a praia, equipados de cintos de ferramentas. Ficou onde estava, até ter diante de si sete pessoas sorridentes, três desconhecidas, dois agentes do xerife (Bobby Gustavsen e o rapaz que corava), Nikki Walls e Jerry Carmichael.

 

Que significa isto? perguntou num tom que a ela própria soou como uma velha professora primária.

 

Tínhamos um tempito livre e você tem uns trabalhos que precisam de ser feitos respondeu o xerife. Esta é a Kathryn, uma das minhas agentes; Bo, primo da Nikki; e Matty, uma velha amiga. Os outros já você conhece.

 

Rae olhou por cima das caras ansiosas dos seus novos vizinhos, amigos e comunidade, e não foi capaz de pronunciar as palavras: "Não, obrigada, tenho de fazer isto sozinha." Respirou fundo, deu um passo para trás e, pelo menos durante aquela tarde, a comunidade insular tomou conta da Loucura.

 

A velocidade com que uma equipa de oito pessoas trabalhava era impressionante, quase assustadora. Os troncos que faltavam foram içados num instante, sem necessidade do lento equipamento de Rae, substituído por homens fortes que os colocaram no seu lugar. As tábuas macho e fêmea para o tecto e soalho do primeiro andar secas ao forno e sem um arqueamento foram colocadas nas faces planas dos troncos e pregadas invisivelmente. Trabalhando ao lado deles, Rae não descobriu qualquer diferença entre o trabalho dos seus ajudantes e o dela, uma única racha ou espaço entre as tábuas.

 

Trouxeram duas escadas de mão da flotilha, e as paredes do rés-do-chão foram erguidas enquanto o primeiro andar tomava forma. Assim que terminaram a estrutura superior, também ela foi revestida com Rae a desviar o olhar quando os dois acrobatas da equipa chegaram ao precipício do canto sudeste. A equipa colocou as aberturas das janelas precisamente onde ela as queria, depois construiu os parapeitos e reforçou tudo cravando pregos com o mesmo cuidado que ela. Reparou que punham de lado qualquer peça com o mais pequeno defeito, por outras palavras, que sabiam o que estavam a fazer.

 

Ficaram ali durante sete horas e meia e, todo esse tempo, o trabalho de Rae foi mais de consultora e capataz do que de operária. Por diversas vezes, poisou o martelo para ir buscar bebidas frescas ao trio de geleiras que também tinham trazido. Observou-os como espectadora e participante, viu como os homens da equipa olhavam para Nikki, mesmo os primos, apercebeu-se da apreciação da rapariga até de Bobby Gustafsen, um homem casado, reparou como ela se divertia com a reacção dos homens e como a aceitava. E viu também o divertimento de Jerry, paternal e encorajador a um ponto que fez Rae desconfiar se não seria ligeiramente forçado.

 

Logo a seguir ao almoço, Rae viu Nikki despir a camisola de mangas compridas. Quando a cabeleira flamejante apareceu de novo, recordou o seu sonho de mulheres a dançar na ilha até se transformarem em chamas. Também os homens observavam a manobra da rapariga, à espera do caicai que ela trazia por baixo, e de repente Rae soube, com uma visão tão clara e precisa que podia ser uma fotografia dum catálogo, o que representaria a sua próxima escultura de madeira: Nikki como uma ninfa dos bosques, saindo do tronco duma árvore, um retorcido tronco de pesadas raízes, gasto pelo mar, donde partiria cedro vermelho nos braços erguidos da ninfa, como se ela mergulhasse no ar.

 

Rae piscou os olhos. Se alguma vez voltasse a fazer escultura. Pegou num sarrafo e o momento passou.

 

A tarde chegou ao fim e, um a um, os martelos ficaram silenciosos e a equipa reuniu-se no acampamento de Rae. Suados e cansados, de cerveja na mão, empoleiraram-se no tronco de cedro e nos cepos a fim de olhar para o que tinham feito com o calmo orgulho do artífice.

 

Entre as duas torres de pedra, erguia-se a casa, forte e completa mesmo sem o telhado. Podia ser uma loucura, mas a estrutura encaixava-se perfeitamente naquele sítio, voltada para a enseada e para o estreito, enraizada em pedra e desenvolvida em madeira, a visão dum homem, a determinação duma mulher e a perícia duma comunidade empenhada em reerguê-la.

 

Rae tinha lágrimas nos olhos ao agradecer a cada uma daquelas pessoas, lágrimas (pensaram elas) de alegria e prazer, mas não (como ela sabia) livres duma leve amargura de fracasso.

 

Pode ficar mais um minuto, Jerry? perguntou ela. Preciso de falar consigo.

 

Viu Bobby Gustafsen dar uma cotovelada no agente mais novo, que corou como sempre, mas decidiu ignorá-los. Como ignorou as olhadelas que deitavam a Nikki enquanto ela pegava nas suas ferramentas e numa das geleiras e entrava no barco do primo Bo, de costas resolutamente voltadas para terra. Quando os sons dos motores se desvaneceram, Rae tirou duas cervejas do gelo derretido na sua geleira e estendeu uma a Jerry Carmichael. Caminharam pelo promontório e acabaram por se instalar numa rocha aquecida pelo sol, com Jerry voltado para a casa e Rae a olhar para o mar.

 

Isto foi ideia sua ou da Nikki? perguntou ela, daí a um instante.

 

Ele não respondeu imediatamente, e Rae percebeu que não rebuscava a memória, mas sim que tentava perceber as implicações da pergunta.

 

Foi da Nikki acabou por dizer. Veio ter comigo com a sugestão e eu concordei. Depois, procurámos os outros. Você está zangada.

 

Não, não estou. Subjugada, sim. E confusa, acho eu, e ligeiramente ressentida. Só um bocadinho. E nada disso fica bem com a gratidão e a alegria que também sinto.

 

Ele ficou calado, à espera que continuasse. Acho que, ao fim e ao cabo, não estou apenas a construir aqui uma casa. Vim para a ilha como uma espécie de último recurso, e construir esta coisa pelas minhas próprias mãos é como construir-me a mim mesma. Se não o fizer sozinha, não é real. Não quero que pense que estou chateada com o que se passou hoje... bolas, vocês pouparam-me semanas de trabalho... mas sim com a maneira como aconteceu. A Nikki é ligeiramente... demasiado amiga de ajudar.

 

Jerry Carmichael escutou atentamente a explicação, de testa franzida e rolando a garrafa entre as palmas das suas grandes mãos, com as mangas da camisa arregaçadas. Quando teve a certeza de que ela tinha acabado, disse o que pensava.

 

Provavelmente sentia o mesmo, se estivesse no seu lugar. É um bocado como quando um pai ou uma mãe resolve acabar um trabalho do filho, tentando ajudar. Você sente isso porque foi a Nikki e porque ela me obrigou a participar também. Nunca sabe quando deve parar... Por vontade dela, você já tinha o telhado, as janelas e a porta na casa. "Pensei em desencorajá-la ou pelo menos em pedir-lhe licença, a si. Afinal, nem toda a gente gosta de surpresas. Mas no fim acabei por concordar, e vou dizer-lhe por que motivo.

 

"Sabe, aqui nas ilhas, temos tendência para dividir as pessoas em "nós" e "eles"... Ou se é residente permanente nascido aqui, ou se é recém-chegado. É óbvio que você é uma recém-chegada, mas, como se trata da Loucura, a situação é ligeiramente diferente. Consigo, tanto pode ser uma coisa como a outra, porque, apesar de ser uma desconhecida, também faz parte das ilhas como alguém que compra um terreno para construir uma casa de férias de dois milhões de dólares nunca poderá ser. E as pessoas que vivem cá não se importam que você viva como um eremita, que nunca saia da Loucura, desde que possam sentir que é uma delas. Uma de nós. Foi disso que se tratou aqui hoje: estavam a dizer-lhe: "Você é um de nós, de maneira que vamos dar-lhe uma mãozinha com a Loucura."

 

Ou: "Você é um de nós, porque lhe demos uma mãozinha com a Loucura" retorquiu Rae. Também às vezes, uma família tem de dar esse passo a mais, para lembrar a um dos seus membros que lhe pertence.

 

Rae inclinou a cabeça para trás, para ver o colorido pôr do Sol.

 

Está bem anuiu ela, por fim. Desde que tenha sido só esta vez.

 

- Só esta vez - prometeu Jerry. - Se quiser ajuda para colocar o telhado, tem de a pedir. E de dar de jantar a toda a gente Rae olhou de novo para o Sol que desaparecia e levantou-se

 

Jantar para um, arranjo, se não está com pressa de voltar para o mundo. Sabem onde me encontrar respondeu ele. Obrigado, aceito a oferta.

 

Diário de Rae

 

3 de Junho

 

O que é a fidelidade?

 

Nunca fui infiel ao Allan. Em nove anos de casamento, nunca me senti tentada para além do pensamento e, embora certo presidente admita ter cometido adultério em espírito, se pensarmos nisso, toda a nação acabava atrás das grades por imaginar crimes desde desfalque até assassínio em massa.

 

Foi um grande choque perceber um dia que já não existe qualquer barreira entre eu e outro homem. Já não sou uma mulher casada, apesar de ainda usar a aliança que o Alan me colocou no dedo há dez anos. Sou perfeitamente livre de olhar especulativamente para os largos ombros dum homem ou de lhe beijar a boca, se quiser, ou até de ir para a cama com ele, se me apetecer. Que diabo, já nem sequer preciso de me preocupar com uma gravidez.

 

Foi uma revelação, uma revelação perturbadora e mesmo assustadora.

 

Tenho a mesma sensação de traição adúltera para com a Loucura, de ter sido infiel à casa que o Desmond ergueu antes de mim, por ter deixado outros intrometerem-se na solidariedade da nossa relação, dele e minha. Fiz promessas a esta casa, de lhe ser fiel para sempre, até à morte. Em vez disso, permiti que estranhos lhe tocassem, (he dessem forma e de certo modo a tornassem sua.

 

Meu Deus, devo estar com os copos! Pelo menos, estou a delirar.)

 

Os meus vizinhos intrometeram-se, sim; por outro lado, a casa está casada com a sua comunidade, não apenas com a sua proprietária. E, se a proprietária e a sua casa, suponho que posso dizer que apenas consumei o meu relacionamento com os meus vizinhos.

Meu Deus, estou mesmo a delirar. Isto é tudo bastante maluco, e sinto-me mais do que ligeiramente bêbeda. Acho que devo sentir-me culpada por ter poupado tanto trabalho. Como hei-de punir-me?

 

Interessada ou não na comida, Rae nunca era grande cozinheira, e naquelas circunstâncias, com os alimentos a saírem de grades, as suas refeições resumiam-se a enlatados e pouco mais. Mas havia bastante, e Jerry Carmichael era demasiado delicado (e esfomeado) para se queixar.

 

Depois de terem rapado os pratos e o tacho, Rae pediu-lhe que levasse as duas cadeiras até à praia, seguindo-o com a poeirenta garrafa de vinho que encontrara na gruta, um saca-rolhas e os seus dois copos elegantes.

 

A Lua enorme sobre as águas tranquilas da enseada estivera cheia quatro noites antes, mas ainda provocava nítidas sombras na areia. Rae sentou-se com a garrafa entre os pés e começou a utilizar cuidadosamente o saca-rolhas, mais por tacto do que pela vista. A rolha cedeu lentamente, esfarelando-se um bocadinho, mas saindo mais ou menos intacta. Rae soltou-a do saca-rolhas e levou-a ao nariz, metendo-a depois no bolso da camisa e pegando num copo. As boas maneiras exigiam que oferecesse o primeiro copo à visita, mas não queria ser responsabilizada pelo envenenamento do xerife de San Juan.

 

Aspirou os vapores, deu um cuidadoso golinho e fez o vinho rolar dentro da boca. Como não cuspiu nem se agoniou, Jerry perguntou:

 

Então, não é vinagre?

 

Não, mas dava uma boa marinada. Ou serve para tirar nódoas respondeu ela, depois de engolir.

 

Estendeu-lho para ele provar. Jerry deu um golinho também, engoliu e não lhe devolveu o copo, de maneira que ela deitou vinho no outro, poisou a garrafa na areia e recostou-se para provar melhor. Sim, o máximo que podia dizer-se do líquido daquela garrafa era que não se tratava de vinagre. Era pesado, sabia a sapatos velhos, mas não estava azedo.

 

Perversamente, esvaziaram ambos os copos, embora a Lua se tivesse deslocado vários graus no céu quando isso aconteceu.

 

Não é mau declarou Jerry em tom preguiçoso, se não pensarmos nele como vinho.

 

Se o der à Sociedade de História, como a Nikki me pediu, eles podiam vendê-lo como "decapante de Desmond".

 

Não é tão mau como isso.

 

É, pois. Quer um vinho bebível ou prefere uísque? perguntou Rae, levantando-se e reparando com alguma preocupação que tinha as pernas dormentes do joelho para baixo. Mas isso talvez fosse por causa das três cervejas que cada um tinha bebido antes do jantar.

 

O mesmo que você.

 

Portanto, foi uísque, um malte de vinte e cinco anos, e precisaram de vários goles para limpar a língua ofendida. A Lua dançou por cima da enseada, riscada por uma nuvem de pequenos morcegos castanhos.

 

Não foi um mau sítio para crescer, pois não, Jerry?

 

Foi um sítio excelente. E senti muito a falta dele enquanto estive fora. Costumava acordar na tenda a sentir o cheiro do mar.

 

Esteve no Vietname? Tinha idade suficiente para haver apanhado os últimos dias dessa guerra, calculou ela.

 

Na Alemanha.

 

Sorte.

 

Acho que sim. O meu irmão esteve no Vietname e, depois de ver o que isso lhe fez, sempre pensei que eu fizera batota e me tinha safado muito bem. E, no fim, ainda me pagaram a faculdade. Fiquei com um complexo de culpa de sobrevivente, sabe como é?

 

Rae Newborn sabia perfeitamente como era o complexo de sobrevivente.

 

Ele morreu?

 

Não, foi ferido uma vez, não com gravidade suficiente para ser evacuado, mas alguma coisa aconteceu lá que ele não conseguiu ultrapassar. Nunca soube os pormenores, porque não chegou a haver julgamento, mas foi uma espécie de My Lai, envolvendo civis. Morreram crianças. Como disse, ele nunca conseguiu ultrapassar a coisa e, quando voltou, começou a trabalhar com crianças maltratadas. Para se redimir, sempre pensei. Não sei o que faz agora.

 

Ele não vive para estes lados?

 

Ninguém sabe onde é que pára. De vez em quando, recebemos um telefonema, e parece estar bem, mas ele e o meu pai não vêem as coisas da mesma maneira, de forma que ele não vem muito a casa. Há cerca de dois anos que não o vejo.

 

Um peixe minúsculo saltou da água, rompendo o reflexo da Lua em mil partículas brilhantes. Rae pegou no copo e viu nele os mesmos reflexos. Talvez fosse dos seus olhos, pensou; tudo parecia dançar diante dela.

 

Sabe uma coisa? Desde que cheguei aqui, estou sempre a dar com guerra e histórias de guerra. Onde eu vivo, ou costumava viver, na Califórnia, há bases militares por todo o lado, companhias que desenvolvem armas, sei lá, para não falar em garotos de arma na mão. Mas, sem ser nos noticiários, nunca ouvia falar em guerra. Depois venho para aqui, para o canto mais maravilhoso desta terra de Deus, compro um guia turístico e leio sobre sítios chamados Massacre, ilha da Vítima e ponta do Crime. O Bobby Gustafsen vive na baía do Massacre. E depois há a "guerra dos porcos", e contrabandistas de tudo desde trabalhadores chineses a rum e cocaína, e senhores do crime do tipo Al Capone, e agora estamos aqui a falar do Vietname. O Bobby Gustafsen vive na baía do Massacre. E suponho que a seguir me vai dizer que a Nikki Walls esteve na "Tempestade do Deserto".

 

A Nikki não disse ele.

 

Rae levantou a mão, que parecia mover-se descontroladamente na extremidade do braço.

 

Não me diga quem é que esteve, que não quero saber! Já me custa a ideia do Desmond, que veio para cá para fugir do choque de combate. Meu Deus, outra guerra!

 

Uma fé... festa... Tinha dificuldade em pronunciar as palavras. E bastante brutal. Está a referir-se à Primeira Guerra Mundial?

 

A guerra do Desmond. Ferido, gaseado, doente e evacuado completamente destruído. Levou anos até conseguir pensar normalmente.

 

E então veio para cá e construiu isto.

 

Construiu-se a si próprio afirmou Rae, mas depois decidiu que a observação não era suficientemente profunda. Acho que bebi de mais.

 

Isso é de misturar uvas com cereais concordou ele, não parecendo muito sóbrio também.

 

É pena não ter vodca... Podíamos misturar umas batatas no tacho...

 

Jerry achou aquilo engraçadíssimo, mas, quando recuperou o fôlego, declarou em tom severo:

 

Tenho de tomar um café antes de me ir embora.

 

Não precisa de se ir embora respondeu Rae, sem pensar.

 

A noite parou subitamente durante duas batidas de coração, até que Jerry se levantou da cadeira.

 

Preciso, sim afirmou, afastando-se em direcção ao acampamento para pôr água ao lume.

 

A oferta dela fora apenas a de um sítio para ancorar o barco, um gesto entre amigos. Mas aquelas duas batidas de coração de plena consciência abriram subitamente uma porta que Rae nem sequer sabia que existia. E fecharam-lha com tanta facilidade que era tão desconcertante como vê-la aparecer.

 

Teria ela querido referir-se a mais do que um sítio para dormir?, pensou mais tarde, quando o café que bebeu não fez grande coisa para contrariar o efeito do álcool. Ele, por seu lado, voltou rapidamente a uma sobriedade eficiente, pegando na bagagem para se ir embora. Rae ouviu-o andar dum lado para o outro na clareira, o ranger do cinto das ferramentas, com o martelo a bater de encontro ao seu suporte metálico e as chaves de fendas umas nas outras, uma linguagem musical tão reconfortante como uma língua materna. Depois, sem avisar, ele estava atrás da cadeira dela, com a cara a tocar-lhe ao de leve no cabelo e a voz a murmurar-lhe palavras ao ouvido.

 

Vou-me embora, antes que um de nós faça alguma coisa de que ambos nos arrependamos amanhã. Boa noite, Rae. Obrigado pelo jantar.

 

Ela estendeu os braços, mas ele já se afastara. Viu o seu avanço fantasmagórico pela praia, ouvindo a música do cinto das ferramentas e o som das botas no cais, seguidos da tosse e roncos do motor do barco. Ergueu a cara para o céu e os ramos escuros que o emolduravam, e depois voltou-se para olhar por cima do ombro para a caixa clara da sua casa subitamente aumentada, caída tão precipitadamente dos céus.

 

Como teria sido fácil... Um virar da cara para ele, uma palavra sem ambiguidade, teria sido o suficiente para mudar... tudo. O mais chocante era perceber que não havia motivo para se conter. Nada a prendia à fidelidade. Agora, já não. Até a suspeita de que achava Jerry mais atraente como amigo do que como amante não se teria entreposto, se ele se tivesse afastado dela com menos rapidez.

 

Não ia arrepender-me disse ela à casa em tom de desafio, e não completamente certa. Depois, dirigiu-se com uma dignidade insegura para a sua estreita cama.

 

O arrependimento era bastante na manhã seguinte, afinal, um arrependimento acompanhado de boca seca, estômago às voltas e cabeça a latejar. Rae gemeu, olhou para o ângulo invulgar do sol na lona com os olhos semicerrados e tornou a gemer. A ideia de pegar num martelo fazia-lhe doer os dentes.

 

Copo após copo de água fresca, umas quantas aspirinas, uma cafeteira de café e pão torrado no fogão de gás trouxeram-na de volta ao limiar da humanidade, mas a única coisa que a deixava satisfeita de verdade era o facto de não ter acordado sob o olhar divertido de Jerry Carmichael perante o seu estado. Meu Deus, nunca mais, pensou com fervor.

 

Encontrou uns óculos de sol, o que ajudou, e na casa descobriu um boné de pala deixado por um dos agentes, e enfiou-o na cabeça, com a pala encostada aos óculos, o que ajudou um bocadinho mais.

 

Não ia pegar num martelo até muito mais tarde, se é que o faria, mas havia bastante trabalho que não incluía pancadas e estrondos em geral. Infelizmente, era trabalho que precisava dum cérebro a funcionar. A cama atraía-a, com um pano molhado na testa, mas arrastou o cinto e endireitou os ombros. Tinha de deixar as mãos fazerem o que pudessem.

 

O enorme avanço da véspera na construção da casa criava um novo problema ter agora um primeiro andar sem maneira de lá chegar.

 

As torres de Desmond eram de pedra, mas as escadas tinham sido de madeira. As janelas superiores por acabar, segundo o seu diário, sempre abertas, portanto havia chupado o fogo pelas torres acima como se fossem chaminés. Lá dentro tinham ficado apenas os buracos nas paredes de pedra agora ligados por uma escada extensível de alumínio e o liso tronco que seria o poste central da escada, tudo colocado pelos musculosos acrobatas de Jerry Carmichael antes de taparem temporariamente a torre sem cerimónia com uma placa de contraplacado.

 

Rae nunca construíra uma escada de caracol, mas começara a ler a respeito delas assim que pusera os olhos nas torres quando as vira com o marido e a filha, de maneira que sabia o que queria fazer. Um saca-rolhas de madeira, com os degraus a partir do poste, e um corrimão encostado à pedra. Talvez fizesse uma coisa mais experimental com a outra torre, mas naquela o processo de construção estava claro no seu espírito. Só precisava de medidas e cálculos meticulosos.

 

Em pouco tempo, pensava se não seria preferível martelar.

 

Ia ser como construir um navio dentro duma garrafa medir três vezes a cortar uma mas, no caso, como ia precisar de tantas peças idênticas, a serração de Friday Harbor realizaria a maior parte do trabalho.

 

Mas fazia tenções de encomendar a madeira em triângulos, para depois lhes dar a forma necessária para encaixar perfeitamente entre o tronco irregular e as paredes ainda mais irregulares.

 

O diâmetro da torre, a altura da escada, a profundidade e a distância de cada degrau, bem como a espessura, tudo tinha de ser considerado. Rae suou com os seus desenhos toda a tarde, até ter finalmente um que servia, mas depois viu que, embora fosse terrivelmente elegante, conduziria directamente à parede traseira da torre. Voltou ao bloco de desenho.

 

Da segunda vez que terminou, ficou a olhar duvidosamente para o resultado, acabando por atirar com o bloco, aborrecida. Estava era a precisar dum mergulho na enseada gelada, de comer o que conseguisse e de se deitar cedo. No dia seguinte, podia rever os cálculos com a cabeça desanuviada e tornar a pegar no martelo.

 

No entanto, o deitar cedo não resultou. Fosse pelos restos do álcool ou pela agitação acumulada dos músculos depois de cinco dias sem trabalho árduo, ou ainda pela intromissão inocente dos olhos divertidos de Jerry Carmichael ou pelo luar nas paredes da tenda, ficou deitada sem pregar olho, vendo os desenhos formados pelos ramos na lona a agitarem-se suavemente na brisa.

 

Por volta da uma da manhã, desistiu, enfiou as sandálias e foi sentar-se no promontório. Havia dois barcos ao largo, possivelmente veraneantes mantidos à distância pelo aviso. Algures para a direita, do lado das falésias rochosas e do traiçoeiro banco de areia, ouviu o familiar motor do seu vizinho nocturno. Daí a pouco calou-se, deixando-a sozinha com a noite.

 

Um ronco ali perto sobressaltou-a, mas depois ouviu-o de novo e descontraiu-se. Estava sozinha com a noite e as focas.

 

Doze semanas, tinha ela passado ali. Ao princípio, estava a maior parte do tempo rígida de terror ou tensão, mas gradualmente, com o trabalho, o hábito e uns laivos de interesse, a vida da ilha tínha-a adoptado, até que começou a ver por que motivo Desmond lhe chamara Santuário. Depois de passar três dias fora da ilha, percebia melhor do que nunca como ela se lhe tornara essencial. O silêncio, que tanto a oprimira nos primeiros tempos, entrava agora nela com a facilidade da respiração nos pulmões. O silêncio, que primeiro a embrulhara como uma mortalha, parecia-lhe agora um confortável cobertor.

 

Sozinha. Finalmente.

 

Estava mesmo a habituar-se à sua vida solitária, uma minúscula centelha num palco escuro. A consciência de estar só ainda a sobressaltava, mas o saber que alguém podia estar a vigiá-la já não era tão intensamente ameaçador como antes. Quando teria sido a última vez que imaginara vigilantes entre as árvores? E, tirando a noite passada em Friday Harbor - que não contava, decidiu, porque aquilo fora provocado pelos passos do xerife - há quanto tempo teria sido o seu último ataque de pânico? Dias. Ou mesmo semanas. Dormia mal, era verdade, irritava-se, tinha saudades do marido e da filha e sentia-lhes a falta de hora a hora, mas a dor da perda já não estava no limite do insuportável, pelo menos naquela noite, e não sentia vontade de pegar no revólver e apontá-lo ao peito ou à cabeça.

 

Era o processo de cura, diziam eles.

 

Daí a pouco, levantou-se com dificuldade e voltou para a tenda, mas só para pegar no saco de dormir e fechar a cama de campismo. Deslocando-se à luz da Lua, levou tudo para a casa, abrindo a cama diante da lareira de pedra escura, puxando o fecho do saco até ao queixo, e ali ficou no seu casulo quente, a ouvir a casa falar sozinha, os rangidos e estalos da madeira a ajustar-se à sua carga, o raspar dum ramo numa parede. Aquilo já era uma casa, uma concha oca de paredes interrompidas aqui e ali por buracos de janelas, e no rés-do-chão podia mesmo fingir que já tinha um telhado por cima dela. o luar irrompia pelo rectângulo escuro da abertura da porta, permitindo-lhe distinguir o rendado prateado da enorme árvore e o brilho da água do mar. Era como um cenário, a precisar apenas da súbita e dramática aparição dum vulto humano na porta para a peça começar. Rae sorriu com a ideia, mais fantasia do que ameaça, e acabou por adormecer.

 

No dia seguinte, a meio da sólida manhã de trabalho que muito contribuíra para lhe devolver o sentimento de estar a construir a casa sozinha, sobressaltou-se ao ouvir a aproximação dum motor conhecido. Por um momento, chegou a pensar se teria perdido dois dias algures, mas decidiu que não, não era terça-feira, apesar de o Rainha das Orcas estar a atracar na sua doca. Poisou as ferramentas, para ver o que quereria Ed.

 

Ele saiu do barco, de mangas compridas e com o aspecto de qualquer outro marinheiro curtido pelos elementos, um homem de meia-idade, com a glória vistosa da sua pele escondida sob o vestuário. Acamisa era a coisa mais viva à vista, porque ele parecia cabisbaixo, e não trazia a habitual carga de sacos de compras sob um rasgado sorriso, mas sim um telemóvel e uma expressão preocupada. Estendeu-lhe o objecto como se tivesse medo de o esmagar ou se tratasse duma bomba-relógio ou uma criança recém-nascida, visivelmente aliviado por se ver livre dele enquanto era tempo. Rae pegou-lhe e levou-o automaticamente ao ouvido, mas estava desligado. Quando descobriu como se ligava, verificou que não tinha sinal. Levantou uma sobrancelha interrogativamente.

 

- Tem de ligar para a sua advogada - disse Ed. "Credo", pensou Rae, com o coração apertado e a bater com força. Que seria agora?

- Isto não funciona - indicou ela.

 

- Disseram que, se eu o levasse um bocado para o largo no barco, já ficava com sinal. - Olhava para o instrumento com ar de dúvida, e ela também achou que uma coisita daquele tamanho talvez não fosse muito potente.

 

- Está com pressa, Ed? Porque, se não está, isto dava-me a oportunidade de ver se estas coisas funcionam aqui. Dê-me vinte minutos para ir até lá acima, na direcção de Roche Harbor. Se não tiver sorte, então você leva-me para o largo no barco. E entretanto podia pôr aí a água ao lume e tomávamos um café.

 

- Por mim, tudo bem, mas ela disse que era urgente. Eu tinha mesmo de encontrar alguém que me emprestasse um telemóvel e de vir imediatamente para aqui. Ela disse que me pagava o dobro.

 

Rae começou a afastar-se em direcção ao futuro jardim, olhando para o telefone a cada dois ou três passos, mas nada, até que começou a trepar o monte Desmond. Nessa altura, o minúsculo aparelho iluminou-se e deu indícios de querer funcionar. Quando ficou com três risquinhos, Rae sentou-se e marcou o número da advogada, ouvindo finalmente tocar algures num planeta distante. A secretária atendeu, Rae identificou-se e Pam apareceu na linha.

 

- Graças a Deus, Rae! Parece que estou a tentar contactar a Antárctida ou coisa assim. Porque é que não arranja um telemóvel? -Estou a falar de um, e você está a ouvir como funciona bem. O quê?

 

O que é que quer? - gritou Rae.

 

- Mandou-me cinco balas! - exclamou Pamela, por entre os estalidos, como quem diz "escorpiões vivos".

 

- E você mandou-as para o laboratório?

 

- Mas, Rae, balas? Sabe perfeitamente que, se tem provas dum crime, você e eu temos de...

 

Rae interrompeu-a, impaciente:

 

- Eu posso ser louca, Pam, mas não sou estúpida. As balas têm setenta anos... pelo menos, quatro delas. Que é que disseram do laboratório?

 

Tem a certeza absoluta de que não há problema?

 

Tenho respondeu Rae, sem qualquer certeza mas também sem vontade de aprofundar a questão.

 

Está bem. Bom, você mandou-me cinco balas. As números três, quatro e cinco parecem ser todas da mesma arma, que no laboratório acham que...

 

Todas três?

 

Três, quatro e cinco, duma arma que deixou de ser fabricada antes da Segunda Guerra Mundial. Está a ouvir? Parece mesmo que está na Antárctida.

 

Não, só pendurada num monte.

 

O que é que disse?

 

Nada. Que mais é que disseram?

 

Tenho aqui uma data de informação técnica. Quer que lha leia?

 

Poupe a garganta. Porque é que não me manda isso esta noite e o Ed traz-me quando voltar na terça-feira? E as outras duas balas?

 

As outras duas são duma arma diferente, mais velha ainda. Estavam demasiado danificadas para poderem encontrar marcas nítidas, mas conseguiram descobrir sessenta por cento de coincidência nas estrias... Estou a ler isto, sem perceber bem o que significa... nas estrias das balas números quatro e cinco. E a número três, mais danificada, pesa aproximadamente os mesmos gramas que a quatro e cinco. Percebeu tudo? Rae? Ainda aí está? Bolas para esta ligação!

 

Rae despertou com a voz no ouvido, disse à advogada que voltava a contactá-la e carregou no botãozinho para desligar o telemóvel ainda a grasnar.

 

Uma coisa era suspeitar, brincar com as possibilidades como se fosse Petra a construir uma das suas histórias para entreter Bella, mas à luz crua do dia...

 

Imersa nos seus pensamentos, Rae começou a descer distraidamente a encosta e, sem saber como, voltou para o acampamento sem acidentes. Encontrou Ed a tomar café, com uns óculos de meias lentes empoleirados na ponta do nariz e um livro dum homem chamado Spencer na mão. Levantou os olhos para ela e tirou os meios óculos.

 

Conseguiu? perguntou ele, aceitando o minúsculo aparelho de volta.

 

Claro. Só preciso de trepar até ao cimo do monte. Acho que vou esperar que a tecnologia melhore para comprar uma coisa dessas.

 

Boa ideia. Quer um cafezinho?

 

Rae pegou na chávena que ele lhe estendia e deixou que a conversa lhe batesse nos ouvidos, dando-lhe resposta mais ou menos nos momentos adequados. Até conseguiu entregar-lhe uma lista de compras e medidas para o material da escada de caracol, o que lhe permitiria começá-la uma semana mais cedo.

 

Porém, mal reparou na partida dele. Com relutância, dirigiu-se à casa, onde parou diante do sítio donde, vinte e dois dias antes, retirara a bala número três.

 

As balas que marcara um e dois eram as que tirara da madeira da porta da rua.

 

A número quatro, que o laboratório emparceirara com a número três, era o pedaço de chumbo deformado que tirara de entre os ossos na gruta, a bala solta deixada pelos pequenos animais que tinham acabado de limpar os restos de Desmond Newborn.

 

A número cinco havia sido disparada por ela num tronco na praia, uma bala do velho revólver herdado do pai, a arma de coronha de pau-rosa que trouxera para a ilha como sua última libertação.

 

Diário de Rae

 

5 de Junho

 

Sinto-me esquisita, como se estivesse a chocar uma gripe febril, inquieta, agoniada.

 

!Acho que é esse o efeito duma revelação.

 

Quando vim -para aqui, a minha única intenção era ocupar-me com a construção da casa. No fundo, tinha a vaga esperança de poder descobrir alguma coisa sobre o Desmond, a vida que o trouxe para cá e o que aconteceu depois que ele deixou a ilha.

 

Nunca imaginei que não tinha saído de cá.

 

Cinco Balas. Duas disparadas para a pesada porta da rua por alguém parado junto da lareira. Com a informe massa de metal enferrujado que setenta anos mais tarde me fez pensar num velho combatente, ainda potencialmente letal.

 

Portanto, duas da arma de Desmond.

 

Três outras balas. Todas doutro revólver. Uma cravada na lareira, a segunda no corpo do Desmond e a terceira disparada para um tronco por mim, como amostra.

 

Três da arma do William.

 

£ pensei eu que estava a ser melodramática, a fantasiar uma cena de tiros na cabana. Ainda me parece absurdo escrever isto. Que pode uma "cena de tiros" ter a ver com William e Desmond Newborn, um irmão magnata da construção e o outro detentor da Croix de guerre da primeira guerra Mundial?

 

No entanto, não existe a mais pequena dúvida no meu espírito de que o DesmondNewborn foi morto pela arma que descansa agora na minha mochila. O Desmond Newborn foi morto pelo irmão.

 

Calculo que tenha acontecido assim:

 

O Desmond recebe o irmão ou seja, submete-se contrariado à desaprovadora inspecção do irmão. Leva-o depois no barco de volta a Rochearbor, à tardinha, regressando à Loucura ao pôr do Sol ou mesmo depois. (Demasiado tarde para trabalhar, demasiado tarde para se preocupar em despir o fato que vestira para enfrentar o William. Limita-se a tirar o casaco e o colarinho engomado, reanima o fogo na fresca noite de Setembro e instala-se no seu cadeirão com um copo de uísque, à espera que a paz da ilha lhe acalme os nervos abalados.

 

Dormita na cadeira. Ou talvez se levante para cozinhar qualquer coisa ou até para dar uma volta. Seja como for, o tempo vai passando.

 

Quando o William volta para a ilha nessa noite, remando ele no barquito que desapareceu nessa mesma noite, desaparição atribuída a roubo no artigo de jornal encontrado por mim) ou trazido por alguém, o Desmond está a preparar-se para se deitar. Descalço, com os suspensórios pendurados e a camisa desabotoada, senta-se diante da lareira com o diário, destapa a caneta para escrever sobre os acontecimentos do dia, mas não vai alem de três curtas palavras antes de um barulho à porta o fazer levantar, numa reacção instantânea de combatente.

 

Que ouviu o "Desmond momentos antes de o William irromper por ali dentro? Talvez apenas o som do fecho que instalara nesse mesmo dia, o fecho que eu tirei da porta tantos anos mais tarde, que já tinha mecanismo de trancar; o William teria apenas puxado a pesada porta o suficiente para disparar lá para dentro. Apanhou o Desmond a deitar a mão à sua arma? Um dos disparos do William foi parar à lareira. Outros podem ter também errado o alvo, mas um não. Acertou em cheio em Desmond, passando por entre a camisa desabotoada e enterrando-se-lhe no abdómen. Não havia buracos na camisa.

 

Nessa altura, o Desmond já segurava o seu revólver e devolveu os tiros. Sabia quem era o seu atacante? Teria talvez olhado o William nos olhos nesse último momento, fosse como fosse, disparou em direcção ao escuro fora da porta. "Duas das suas balas acertaram na porta entrando em ângulos diferentes, talvez por ela ter sido empurrada pelo impacte do primeiro tiro. Suprema ironia: o atacante do "Desmondprotegido pela espessura defensiva da porta de casa do próprio construtor. Imagino o William a retirar-se rapidamente na calada da noite ileso, tanto quanto sei. Nenhum vizinho ouviu o barulho, visto que a mesma orientação que impede a recepção telefónica na ilha teria canalizado o eco dos disparos na direcção da distante ilha de Vancouver.

 

O Desmond largou a arma (vazia quando a encontrei) e a caneta destapada tinha caído com o seu primeiro mergulho, mas conseguiu recuperar ou segurar todo o tempo o diário e enfiá-lo no Bolso da camisa. Arrastou-se pela sua porta secreta, a sangrar copiosamente, sabendo perfeitamente o que significava um ferimento daqueles. Conseguiu atravessar a cabana até à gruta, onde julgo que o fim chegou Bastante depressa, visto que não havia sinais de tentativa de primeiros socorros, qualquer indicação de ele ter tentado sequer estancar o sangue. Pela posição do esqueleto, o Desmond limitou-se a meter a mão direita dentro da camisa, encostar a caBeça à parede e morrer.

 

"Entretanto, a casa ardia. Acidente; um candeeiro de petróleo atirado ao chão por uma Bala ou pelo mergulho do Desmondpela sala? Ou de propósito? Não consigo imaginar o Desmond mostrando ao William o seu caminho secreto, o que significa que o William (meu Deus, custa-me imaginar que estou a escrever uma coisa destas... O Williamo meu avô!) teria acreditado que incendiar a casa destruiria o seu ocupante ou o oBrigaria a sair, ficando Vulnerável. Em qualquer dos casos, a Loucura e o seu ocupante desapareceram. O William NewBorn abandonou a ilha, afundando ou levando consigo o bote a remos do irmão para dar origem à possiBilidade da fuga do Desmond, e foi para casa em "Boston, inventando uma carta dois anos mais tarde, mas nunca contando uma palavra da verdade.

 

fantasia? Sem dúvida, mas que outra explicação haveria para os factos? A arma do meu avô matou o "Desmond NewBorn.

 

Mas porquê? "É verdade que o avô, mesmo depois de velho, era um homem sempre irado, alimentado por ressentimentos e pela suprema alegria de se vingar dos seus inimigos. A única coisa que tinha importância para ele era a aquisição e a manutenção do poder, principalmente através da riqueza. Trabalho, amizade, mesmo a família, eram-lhe indiferentes. Autoridade suprema sobre tudo o que controlava era o que realmente lhe interessava. Teria vendido o próprio filho único, o meu pai, por uma oferta suficientemente alta.

 

Teria o tiroteio sido o resultado duma discussão sobre dinheiro que tivesse azedado? O "Desmond a exigir a sua parte da herança e o William a perder a calma?

Não sei. Só tenho a certeza de que o cenário no meu espirito é muito claro.

 

O meu avô matou o irmão, o irmão cuja oBra eu vim para aqui reerguer.

 

               COLOCAÇÃO DO TELHADO

 

Um plano simples, cuidadosamente delineado, e o mínimo de ajuda exterior. Elegante, é como lhe chamam. E quando o Ladrão desaparecer, ou aparecer afogado, ninguém ficará demasiado surpreendido.

 

Quarenta e Três

 

Em menos dum mês, Rae ia ter hóspedes quer tivesse ou não uma casa. Tinha água e um duche rudimentar mas eficaz, paredes toscas e por acabar, mas com solidez suficiente para tranquilizar habitantes duma cidade, e tinha um lavabo espaçoso, cuja utilização seria sem dúvida boa para o desenvolvimento espiritual dos seus convidados.

 

Mas precisava de três coisas mais, antes da chegada da filha e do genro para entregarem o único membro sobrevivente da geração seguinte da família à mercê da louca: um telhado, mais assentos, e uma maneira de esconder a gruta.

 

As cadeiras podia sempre comprar em Friday Harbor ou fazer com toros, mas o telhado era urgente para o conforto físico de todos, e esconder a gruta era igualmente importante para o conforto fisiológico dela própria. Por que motivo, não sabia exactamente, mas a ideia de Don Collins a bisbilhotar desdenhosamente a gruta onde Desmond tinha morrido revoltava-a.

 

Durante o dia, tratou do telhado. Como não possuía qualquer fotografia do interior da casa, não tinha maneira de saber como Desmond tinha suportado o seu telhado em triângulo, mas duvidava, devido ao costume da época, de que ele tivesse feito qualquer coisa excepto fechar o primeiro andar com um sótão triangular para a futura arrecadação.

 

Rae, no entanto, ansiava por altura e luz no andar superior. Manteria o tecto aberto para as vigas e colocaria uma janela, historicamente incorrecta, na empena sul. Portanto, a madeira era importante, tinha de ser bonita, além de forte: de novo cedro.

 

Era difícil levar toda a madeira lá para cima através da larga janela leste do primeiro andar, mas não tinha outra hipótese. De pé no exterior, puxava a corda da roldana, levantando duas ou três tábuas ao mesmo tempo, cada carga a bater na parede exterior da casa enquanto subia. Depois, já lá dentro, trepou a escada de mão da torre e puxou as tábuas para o chão.

 

Excepto a viga-mestra. Essa subiu sozinha, nove metros e meio de rica e fragrante madeira de cedro-vermelho do estado de Washington, com quinze centímetros de espessura e quarenta e cinco de largura, duzentos e setenta quilos de árvore. Os ramos de cedro descascados que já içara eram palitos, em comparação. Toda a casa gemeu quando a roldana começou a suportar-lhe o peso e a viga se arrastou pela parede acima, um medonho milímetro de cada vez.

 

Quando, por fim, com muitas pragas, incitamentos e suor, a viga-mestra do telhado descansou nos parapeitos das janelas do primeiro andar, Rae permitiu-se um grito de triunfo. Todas as listas, desenhos, infindáveis cálculos de peso, altura e ângulos, toda a papelada emocionalmente esgotante, toda a demorada luta pelo direito de fazer aquilo ficou justificada, vingada pela presença duma enorme peça de madeira apoiada a mais de cinco metros do solo.

 

Não que estivesse no seu lugar. O que faltava ia ser igualmente difícil, mas bastaria elevar primeiro uma extremidade e segurá-la, e depois a outra. Como construir as pirâmides. Não era difícil, se o fizesse devagar.

 

E Rae fê-lo devagar, e com segurança. Lá subiu a grande viga, com uma série de fortíssimos suportes temporários. Depois de a ter a flutuar no ar, podia começar a cortar e a colocar as traves.

 

Ed veio, viu-a pendurada entre as traves, e partiu sem o café e a conversa. Nikki apareceu, trazendo vegetais da horta dum parente. O Sol brilhou, o vento soprou, e Rae levantou o esqueleto do seu telhado.

 

Depois, no oitavo dia, a estrutura ficou terminada. Uma teia de cedro estava suspensa por cima de toda a casa: a pesada autoridade da viga-mestra; as traves que a seguravam, delicadas em comparação, transferindo o peso para as paredes e para os alicerces de pedra, ligadas duas a duas formando um A plano e começando a sua longa vida de tensão. Toda a estrutura aguardava o que constituía a finalidade do abrigo, um telhado. Compressão: tensão. Tudo o que Rae precisava de fazer era retirar os suportes temporários da grande viga, e a casa ficaria, se não coberta, pelo menos fechada.

 

Primeiro, contudo, tinha de apaziguar os espíritos. Desceu a escada de mão da torre e parou nos degraus da entrada, a ponderar as hipóteses.

 

Através dos tempos, sobretudo no Norte da Europa, era tradição içar um ramo quando se alcançava o ponto mais alto duma estrutura, um sacrifício aos espíritos das árvores que haviam dado a vida pelo abrigo dum ser humano. Para a coisa ser como devia, o ramo tinha de ser de cedro, que crescia à volta da tenda, ou de abeto, que se erguia perto dela. Eram, afinal, as madeiras que ela utilizara na casa. Mas Rae deu consigo a olhar para a enorme árvore que cobria a sua bancada, a árvore junto da qual descansavam as cinzas do marido e da filha, uma árvore que absorvera nas últimas dez semanas as suas moléculas. A casca começava a soltar-se, descobrindo a casca interior, macia e nova, dum verde-pálido. Cada vez mais, durante aquele tempo, Rae se sentira como aquela casca interior, perdendo a rude protecção exterior, até ficar lisa, nua e fresca, sã e serena.

 

Parvoíce, troçou de si própria. No entanto, foi para lá que se dirigiu e, com uma breve desculpa interior, foi dela que cortou um pequeno ramo. Levou-o até à casa, subiu as duas escadas de mão, até chegar ao telhado, com a cabeça à altura dos topos chamuscados das torres. Aí pregou o ramo coberto de folhas.

 

A vista era espantosa, numa tarde limpa como aquela. Pareceu-lhe que podia ver até meia distância do Japão, que São Francisco ficava ali mesmo no horizonte. Dum lado, a ilha de Vancouver, do outro Washington, e por baixo a montanhosa península Olímpica. A água azul estava salpicada de barcos à vela. O escuro vulto dum navio de carga dirigia-se ao Pacífico; mais perto, uma esteira agitada de espuma e pintas escuras marcava a passagem dum bando de toninhas seguidas dum barco a motor. Durante os últimos dois meses, Rae aprendera a reconhecer os moradores habituais, humanos e animais. O catunque dum dos seus vizinhos mecanicamente menos sofisticados na sua visita semanal ao mercado, o poderoso zumbido doutro vizinho que passava a uma velocidade de esqui aquático quer puxasse ou não alguma coisa, um veleiro de teca de veraneantes que andava por ali nos últimos dias e que mais uma vez a fizera pegar invejosamente nos binóculos. Havia dois barcos de borracha na vizinhança, um dos quais decidira que era o que perturbava a paz a meio da noite, ausente um tempo, mas novamente ruidoso na madrugada de sábado. Aves sazonais chegavam e partiam, e as orcas também pareciam obedecer a uma rotina que pretendia começar a anotar um dia. Ao contrário dos hidroaviões, que passavam a horas imprevisíveis, de dia e de noite, transportando os residentes demasiado impacientes ou importantes para viajar por mar. E então, quando Rae examinava os diversos elementos da sua comunidade aquática, com o braço direito à volta da viga-mestra do telhado e os pés equilibrados no parapeito duma janela a seis metros da rocha firme, outro barco deu a volta à ponta da ilha de San Juan, dirigindo-se rapidamente em linha recta para a sua enseada, espadanando espuma com a proa. Reconheceu a embarcação antes de distinguir o homem que ia ao leme.

 

Jerry Carmichael não voltara à ilha desde que o grupo de voluntários aparecera para lhe transformar a casa, oito dias antes. Rae depressa ouviu o motor que se sobrepunha ao som da brisa no arvoredo; do seu poleiro de deusa, invisível e insuspeita, viu-o amarrar a lancha e saltar para a doca. Trazia uma grossa garrafa escura numa mão e um saco de compras com flores a sair na outra. Sorridente, Rae desceu e pegou no martelo, começando a libertar a viga-mestra do seu suporte.

 

Em poucos minutos, atraído pelo som do martelo, Jerry apareceu no cimo da escada da torre, ainda com a garrafa na mão, mas com os dois elegantes copos de vinho dela em vez do saco das compras. Os copos pareciam pequenos na mão dele. Parou no canto onde as pedras negras da lareira tocavam nas pedras cor de laranja da torre, a vê-la trabalhar.

 

Pregos temporariamente enfiados nas tábuas do chão rangeram ao ser arrancados, cunhas e calços foram retirados à martelada, e finalmente o suporte anterior ficou solto. Rae segurou-o e recolheu as peças, atirando-as com todo o resto do lixo pela abertura da torre sul. Depois, apontou o martelo ao suporte posterior, que agora aguentava a maior parte do peso, bateu-lhe na base, uma e outra vez, sentindo as pancadas ao longo de todo o corpo, tal como a casa. Os ossos dos seus pés e as duas figurinhas enterradas nos alicerces estremeceram com as duras e vivas reverberações do aço contra a madeira. O suporte foi cedendo a pouco e pouco, depois deslocou-se visivelmente, até que com uma grande martelada ela apanhava por fim as tábuas para evitar que caíssem no chão. Ela e Jerry ficaram quietos, de cabeças inclinadas, à escuta.

 

Nem um som, nem um rangido ou gemido dos bem alinhados pares de traves que se estendiam da viga-mestra do telhado até às paredes, distribuindo o peso da jovem árvore sem um murmúrio, com a compressão e a tensão a funcionar em beleza.

 

A rolha saltou ruidosamente, e Jerry aparou a espuma com os dois copos. Rae arrastou a madeira retirada para cima da pilha junto à parede da torre, enfiou o martelo no suporte de encontro à coxa e aproximou-se para aceitar o champanhe da sua visita. Jerry ergueu o copo na sua direcção num brinde silencioso, olhando depois para a enorme viga por cima das suas cabeças.

 

Como é que conseguiu pôr aquilo lá em cima sozinha? perguntou ele.

 

Um bocadinho de cada vez, Jerry. A pouco e pouco.

 

Ele atravessou a divisão até à janela sul e parou, admirando a vista.

 

O Bobby disse-me que você devia estar quase a acabar de levantar a estrutura e eu pensei que isso merecia ser celebrado.

 

Com champanhe e flores.

 

E um jantar! Sei que gosta de carne.

 

Rae deu um golinho no copo e afastou o ressentimento por o delegado Gustafsen a vigiar, bem como aos progressos do seu trabalho, e ainda por Jerry Carmichael ter decidido que o simples facto de acabar de erguer a estrutura não era celebração suficiente. Bolas, és impossível de satisfazer, ralhou consigo própria, estendendo o corpo para ele voltar a enchê-lo.

 

Sentia-se mais à vontade na presença dele quando desceram para o acampamento.

 

Jerry tinha trazido bifes, grossos e apetitosos. Trouxera também a perícia para os cozinhar, de maneira que Rae foi à procura de qualquer coisa para meter as flores, enquanto ele preparava a fogueira e lhe contava como tinha passado a semana. Como velhos amigos, pensou, divertida, embora o conhecesse apenas havia dois meses.

 

Finalmente, descobrimos como é que a miúda Andrews saiu do barco dizia ele. Deve ter sido sozinha, de maneira que agora a consideramos fugitiva e não vítima de rapto, diga o pai o que disser. Saiu do ferry numa carrinha, agachada no chão ou no compartimento das ferramentas nas traseiras, enquanto os pais se impacientavam e esperavam por ela no carro. Era o quinto ou sexto veículo, e sabe o que fez o condutor? Deu a volta perto dali e voltou a colocar-se na fila para embarcar. No mesmo ferry, para o outro lado. Nunca pensámos em procurar na fila de carros à espera de embarcar, por amor de Deus!

 

Então quem era? Um namorado?

 

Um tipo mais velho, com ar desmazelado. Tanto quanto se sabe, a Caitlin não tinha amigos mais velhos, e muito menos namorados. Mas quer saber o melhor? A respeito da mãe?

 

O que é que lhe aconteceu?

 

Na semana passada, sexta-feira, desapareceu também. Parecia incrivelmente divertido, como se se tratasse duma grande habilidade.

 

Rae inclinou-se para a frente na cadeira de lona e olhou directamente para ele.

 

Não parece muito preocupado com o facto, Jerry.

 

Acho que só tenho motivo para me preocupar se elas voltarem para casa. Sabe, a mulher escreveu uma carta a dizer que ela e a filha tinham pegado nos passaportes e saído do país, para fugir do marido. Não podiam fazê-lo ao mesmo tempo porque ele estava sempre vigilante, de maneira que esperou até o ver ocupado com a polícia, à caça da garota. Então, teve quatro dias fora das suas vistas, enquanto ele pensou que ela andava à procura da filha, quatro dias para vender ou empenhar tudo a que conseguiu deitar a mão em casa e depois sacar o dinheiro do banco. E então foi-se embora. Só lhes desejo boa sorte, às duas!

 

Parece um bocadinho exagerado. Quer dizer, porque é que ela não pediu o divórcio?

 

Jerry fez uma careta.

 

Segundo me disseram, é um daqueles casos em que o tipo tem peso suficiente para conseguir que as queixas desapareçam sem deixar rasto. A mulher... Rebeca, chama-se ela... tinha um passado de problemas emocionais, de maneira que nunca conseguiria a custódia da filha e só com muita sorte ia ter direito a vê-la. Quanto a uma pensão, não me faça rir.

 

Então agora ela e a garota têm de desaparecer comentou Rae.

 

Até a miúda ter dezoito anos.

 

Isso não me parece justo.

 

Não foi o Shakespeare que disse que a lei é estúpida?

 

O Dickens, acho eu. Isso é uma coisa estranha para um agente da lei admitir, Jerry.

 

Eu vejo as coisas por dentro, Rae. Estão a melhorar... acredito-o honestamente... mas ainda existem imensos buracos injustos à espera de engolir os inocentes.

 

Como se eu não soubesse! Podia ter comprado uma casa com o dinheiro que paguei à minha advogada durante o ano passado.

 

Aquilo saiu-lhe espontaneamente, mas, assim que o disse, soube também que o fizera deliberadamente. Não tinha a certeza, do motivo que levava Jerry Carmichael a aparecer ali na ilha, mas, se era na realidade por algo mais do que boa vizinhança, preferia todas as cartas em cima da mesa desde o princípio. Ou a maior parte delas. Uma conversa, com efeito. A queixa sobre a advogada era um convite para ele dar uma espreitadela na sua vida; e ele não hesitou.

 

Está com problemas legais?

 

Rae respirou fundo e disse com todo o cuidado:

 

O meu genro, Don Collins, está a tentar declarar-me mentalmente incapaz.

 

O alto xerife ficou a olhar para ela de boca aberta, e depois deu uma gargalhada, como se ela acabasse de contar a piada mais engraçada deste mundo. Só quando percebeu que Rae não se ria é que ficou sério e perguntou:

 

Não está a falar a sério, pois não? Meu Deus! Desculpe ter rido. Quer dizer, eu...

 

Não peça desculpa, Jerry, por amor de Deus. É a coisa mais simpática que alguém me faz há muito tempo, sabe? Tratar a minha instabilidade como uma piada.

 

Mas está mesmo a falar sério repetiu ele, ainda duvidando.

 

Jerry, você sabe que eu estive num hospital psiquiátrico!

 

Pois, mas está curada, não está

 

O que é que significa "curada", Jerry? Olhe, há pessoas tão estáveis que se pode construir um edifício de escritórios em cima delas... sem dúvidas interiores, tendências neuróticas, nem sequer uma doença psicossomática em toda a sua vida. E no outro extremo da escala, estão os psicóticos totais... confusos, violentos, autodestrutivos, incontroláveis mesmo com uma forte medicação. A maior parte das pessoas passa a vida algures entre os dois extremos, funcionando bem a maior parte do tempo, mergulhando em comportamento neurótico ou mesmo psicótico sob tensão ou devido a problemas hormonais ou às fases da Lua... Ninguém sabe realmente, embora grande parte das doenças mentais pareça dever-se a uma parte química para quatro ou cinco circunstanciais. A esquizofrenia, que você diz que o seu primo tem, é ligeiramente diferente, mas se calhar já sabe isso.

 

É, eu lembro-me.

 

Em diversas alturas da minha vida, estive com uma grave depressão, com tendências suicidas e mesmo completamente transtornada. A depressão pós-parto provocada pelo nascimento da minha filha Tâmara quase me matou. Quando o meu marido e a minha outra filha morreram há dezoito meses, acabei numa enfermaria fechada à chave depois doutra tentativa de suicídio. No fundo, o Don tem alguma razão: os meus alicerces não são muito estáveis. Não construa uma casa sobre mim! Era uma pequena piada, mas também um aviso, e Jerry Carmichael ouviu-o claramente.

 

Mas também foi atacada comentou ele, como se ela pudesse ter-se esquecido.

 

Estava tão imersa na minha depressão e nas minhas alucinações que esqueci que o mundo era um sítio perigoso.

 

Está a dizer que foi atacada por culpa sua?

 

Por culpa minha, não, mas...

 

Mas acha que talvez sim.

 

Bom, talvez.

 

Por ter alucinações?

 

Por não me controlar.

 

Mas não estava violenta?

 

Não.

 

Mas ouvia vozes?

 

Ouvia. E movimentos, e passos...

 

Porque é que tem tanta certeza de que eram alucinações? perguntou Jerry calmamente, e Rae ficou a olhar para ele de boca aberta, tão atordoada e ofegante como se tivesse apanhado um murro no estômago.

 

Mas... eram disse ela estupidamente.

 

Eram diferentes em alguma coisa de barulhos reais, ou você é que se sentia diferente por causa do estado em que estava?

 

Eu... ai, meu Deus, Jerry, não sei. Mas olhe, o xerife e o agente apareceram várias vezes, e nunca encontraram fosse o que fosse. Eu estava a ouvir coisas. E porque é que está a fazer essas perguntas? inquiriu de repente. Se está a pensar convencer-se a si próprio e a mim que eu não estava completamente chalada, só porque no fim dois tipos me atacaram mesmo, desculpe, mas estava!

 

Ele pegou no instrumento de ferro da lareira e remexeu irritadamente a lenha a arder, antes de dizer dum fôlego:

 

Tem andado alguém a fazer perguntas a seu respeito. Onde é que está e quando é que se vai embora.

 

Bom, muita gente sabe que estou aqui, mas não exactamente onde. A dona da galeria através da qual vendo o meu trabalho em Nova Iorque, por exemplo. Uma ou duas pessoas amigas. O meu fornecedor de madeira da Califórnia.

 

Uma galeria? Ah, pois. Não sabia que vendiam móveis em galerias.

 

O meu género de móveis vendem esclareceu Rae, acrescentando em tom áspero: Eu faço móveis que ganham prémios e se vendem por uma data de dinheiro. Sou realmente muito conhecida.

 

Ambos distinguiram o protesto na sua voz, mas ela riu-se primeiro.

 

Ora aí tem disse. Olhe lá, está a pensar fazer esses bifes ou não? Porque daqui a um minuto, como-os crus!

 

Dedicaram-se à preparação e depois ao consumo da comida, mas sempre com o pensamento nas notícias dele. Assim que o calmo intervalo da refeição terminou, Rae voltou ao assunto.

 

Está a tentar assustar-me?

 

Sugerindo que andava alguém à sua procura? Alguém que pode ou não ser responsável pelo seu ataque na Califórnia o ano passado?

 

Sim.

 

Suponho que sim.

 

Merda, Jerry, obrigadinha. E Rae levantou-se e começou a atirar com os pratos para dentro do alguidar de plástico, um barulho pouco agradável.

 

Eu só estou a sugerir que...

 

Vá ficar consigo?

 

Não, na verdade ia sugerir a Nikki ou a tia dela. Rae limitou-se a resmungar.

 

Só de noite. Um de nós, ou o Ed, podia trazê-la e levá-la de dia.

 

Não.

 

Rae...

 

Não! Não. Ninguém anda atrás de mim, ninguém vem aqui à ilha para me atacar. Já lhe disse, Jerry, e é a minha última palavra. Se não for capaz de ficar aqui, eu... Mato-me com um tiro, não disse. Não sou capaz de viver noutro lado qualquer.

 

Eu percebo. Tenha sempre a arma consigo acabou ele por sugerir, depois de lhe observar as costas furiosas durante um minuto. Até podia ser verdade, pensou Rae.

 

Não me pergunta se tenho licença? disse ela, voltando-se para ele.

 

Prefiro saber se tem balas.

 

Tenho. Agora já só cinco, o que não deteria um urso-pardo, mas punha com certeza em fuga um atacante pago. Como o William, de noite, pensou a sua mente traiçoeira. E também tenho a pistola de foguetes que me mandou pela Nikki. E agora, quer café?

 

Está a mudar de assunto?

 

Estou, raios partam isto, estou a mudar de assunto!

 

Então, está bem, quero café, sim.

 

O ambiente tinha mudado, com as gavinhas despontadas cortadas rentes. Quando ele se foi embora, o motor da lancha pareceu falhar, como se também ele se sentisse frustrado. Rae tirou o revólver e a pistola de foguetes da caixa fechada à chave e prometeu a si própria mantê-los sempre ao alcance. Ia ser responsável pela sua protecção.

 

Diário de Desmond Newborn

 

30 de Setembro de 1921

 

Limpo o terreno de tronco nu todas as manhãs excepto as mais frias, e medito sobre a natureza do medo.

 

O elo entre as duas actividades pode parecer improvável para um civil, mas qualquer combatente de primeira linha reconhece perfeitamente a sua lógica. A. tropa maçarica só entra em pânico e foge se a deixam descansar enquanto avança, se lhe dão tempo para pensar nos sons da batalha que se aproxima. Qualquer sargento sabe que dar-lhes uma tarefa, por mais pequena que seja, distrai os homens do seu pavor e permite que o soldado inexperiente aprenda a controlar-se. E, se a tarefa for fisicamente exigente e ao mesmo tempo sem sentido, tanto melhor.

 

Porque o medo pode ser dominado; mais, pode ser utilizado. Com um pequeno passo, o terror transforma-se em raiva, e a raiva é uma arma poderosa como qualquer outra que as mãos dum homem possam agarrar.

 

No entanto, a raiva cobra o seu preço da vida dum homem. Quando voltei de frança, sentia-me como se tivesse sido esvaziado, como se fosse uma dessas árvores velhas, ocas, de enorme circunferência mas com vida apenas para manter uma mão-cheia de folhas nas extremidades dos seus ramos. Se me cortassem, encontravam um círculo de madeira a rodear um grande vazio.

 

Quando a vida começou a voltar, foi tão doloroso como o regresso do sangue a um membro dormente. Muitas vezes desejei ardentemente morrer. "Em vez disso, fui trazido de novo para esta vida penhascosa, e comecei imediatamente a desperdiçar as forças, foi o terror, e não a culpa, que me empurrou para a estrada, frio e suado medo que me pregaria ao chão como um coelho assustado se não tivesse continuado em movimento, medo que acolho e mantenho afastado aqui no Santuário.

 

Manter o terror afastado absorve toda a minha limitada energia. Se trabalhar até à exaustão, cavando e levantando pesos até que a dor no ombro esquerdo encha o meu universo, consigo dormir; mas se acabo o dia apenas agradavelmente cansado, tenho a certeza de acordar de noite com um grito entre os dentes apertados.

 

Esta preocupação com os meus demónios interiores parece ter afastado por completo a possibilidade de qualquer grau de relacionamento social. Assim que me mudei para a ilha, o meu espírito caiu num estado quase animal. Há semanas que tenho dificuldade em encontrar as palavras e em as utilizar com outras pessoas. Resmungo para o merceeiro, aponto e escrevinho o que quero, aceno com a cabeça e sorrio como um imbecil. Na realidade, não me admirava que os meus vizinhos pensassem que sou mentalmente deficiente.

 

"Digo a mim próprio que isto É uma longa acumulação de terror, que tal como um veneno leva tempo a ser expelido dum corpo. Há coisas que o olhar humano nunca devia ver, as vísceras espalhadas do espírito humano. Há coisas que o espírito e o corpo humanos nunca deviam fazer assassínio fácil, traição casual, o roubo do que é mais precioso.

 

Por isso resmungo, exibo umas quantas folhas definhadas nas extremidades dos meus ramos, e passo os dias a suar e a meditar sobre a natureza do medo.

 

Nos dias seguintes, Rae dedicou-se ao telhado, pregando tábuas por cima das traves, com um arreio de trepar bem preso em volta da cintura. Era um trabalho quente e aborrecido, e agradecia quando havia nevoeiro ou apareciam nuvens, agradecia mas ficava preocupada com a perspectiva de ser apanhada por uma chuvada de Verão.

 

Logo de manhã e ao fim da tarde, ia para as traseiras da casa, reconstruir a cobertura de madeira de Desmond, a estrutura que esconderia de novo a gruta.

 

A tarefa avançou rapidamente assim que transportou para lá a madeira cortada, e era tão fresca e leve comparada com o telhado que mais parecia uma distracção de férias. Juntas sofisticadas, decidiu, eram um luxo que não podia permitir-se numa cabana que ninguém ia ver. Os pontos que Desmond tinha escavado na rocha serviam perfeitamente para os suportes, e até utilizou contraplacado para o chão.

 

A única parte difícil era esconder a pequena porta da casa para a cabana. Conseguiu disfarçá-la e colocou um fecho que só se abria do lado da casa, o que não lhe comprometia a segurança. Depois pregou-lhe um prego e pendurou o cinto das ferramentas, para ver o efeito. Afastou-se uns sessenta centímetros e verificou que a porta era invisível.

 

Em seguida, repetiu o processo para disfarçar a porta da cabana para a gruta. Só quem soubesse da sua existência ia ver que a parede não era uniforme. Finalmente, para a grande abertura exterior que serviria para encher o espaço com lenha, Rae passou um serão a instalar um fecho de madeira que abria de ambos os lados, por divertimento mas também pela segurança de saber que a sua casa ia ficar com uma saída pelas traseiras.

 

Depois, voltou para o telhado.

 

Colocou o papel de cobertura no primeiro dia do Verão, uma fria e enevoada manhã que a manteve firmemente presa ao arreio para evitar escorregar na superfície húmida. Só respirou de alívio quando sentiu os pés de novo em terreno firme lá dentro, tirou o arreio (que a incomodava como qualquer coisa entre uma protecção de alpinista e um cinto de castidade) e o atirou para a pilha de lixo dentro da torre da frente. O papel manteria a chuva de fora durante algum tempo, e estava a pensar seriamente em contratar uma equipa de profissionais para colocar as telhas.

 

Dez dias até ao princípio de Julho, quando Tâmara, Don e Petra deviam chegar, e Rae não tinha vontade de construir bancos rústicos para o conforto deles. Em vez disso, foi buscar a longa lista que entregaria a Ed no dia seguinte e, após as habituais encomendas de candeeiro de campismo a pilhas e quatro embalagens de seis cervejas, escreveu "seis cadeiras dobráveis de madeira e lona tipo cadeira de realizador de cinema". Eram feias e fracas, mas serviam para manter os traseiros dos hóspedes fora do chão. Podia sempre utilizá-las para combustível na lareira quando eles se fossem embora.

 

Deu uma olhadela pela lista, pensando se estaria a esquecer alguma falta grave na despensa. Escrevera a Petra, dizendo-lhe que trouxesse quaisquer "artigos de uso pessoal" de que pudesse precisar, e esperava que a garota percebesse que tampões e pomada para as borbulhas não cresciam nas árvores. Papel higiénico, sim; mais uma lanterna eléctrica, sim; mais duas toalhas de praia, sim. Releu a lista e deparou com um artigo incluído a seguir a uma visita à privada numa tarde de calor, pegou na caneta e riscou-o. Uma lata de aerossol contra os cheiros no meio das árvores era demasiado absurdo.

 

Tornou a prender a lista com uma pedra, satisfeita. Os traseiros da família teriam o conforto da lona nova. Que diabo, com tantas cadeiras, podia dar uma festa! Portanto, em vez de fazer móveis rústicos de imitação, podia começar a escada.

 

Estava ansiosa por isso, desde que Ed lhe entregara uma pilha de grossos triângulos de cedro cortados em Friday Harbor. Rudes e toscamente serrados, eram puro potencial, à espera da sua mágica transformação. Quando os arrumara dentro de casa, não tinha resistido a lamber o polegar e a molhar a madeira para ver a cor: vermelha, como as paredes lavadas da torre, como a luz matinal que ia iluminar a escada das altas janelas.

 

Sentia calor só de pensar naquilo.

 

Jerry Carmichael tinha aparecido duas vezes desde a noite em que acabara a estrutura do telhado, a primeira visita para ter a certeza de que ela estava bem e não fora incomodada por visitas, e também para lhe garantir que os diversos agentes da lei haviam sido alertados para vigiar a ilha. Se o facto não encheu a residente da Loucura de alegria, ela não o mencionou. A segunda visita foi semelhante à primeira, com mais duas novidades: estavam a proceder ao exame dos ossos de Desmond, e quem andara a telefonar à procura dela tinha parado. Rae tomou isso como um bom sinal, ignorando teimosamente a incerteza de Jerry. A folga dele era na quinta-feira, três dias depois, e tinha dito que aparecia com bifes e ferramentas. Rae continuava a não saber bem o que significavam aquelas atenções, se estava a ser amigo ou a cumprir o seu dever com um escrúpulo fanático, ou se estava de facto romanticamente interessado nela. Pensava que a última hipótese era a menos provável. Afinal de contas, tinha pelo menos mais seis ou sete anos do que ele e estava longe de ser uma beleza, de corpo ou espírito. Além disso, não podia deixar de reparar na pouca vontade dele para aproveitar as várias ocasiões que se haviam apresentado. Aquela ambivalência não podia durar muito, disso tinha a certeza. Apesar de tudo, por mais intrigantes que fossem as visitas dele à ilha. Rae apreciava a sua presença. Tentou não pensar no facto de ele estar disposto a passar a folga com ela, com medo de estragar as coisas.

 

Fosse como fosse, primeiro a escada.

 

Como a madeira já estava mais ou menos do feitio necessário, a maior parte do trabalho ia ser delicada: aperfeiçoar os triângulos para os encaixar entre as pedras e o poste central, e desbastar as superfícies inferiores para ficarem à face dos suportes metálicos. Pela primeira vez em semanas, Rae foi buscar a caixa que construíra muitos anos antes para guardar as suas ferramentas mais delicadas, e levou-a para dentro da casa, a cantarolar baixinho.

 

Lutou com a escada de alumínio que ficara dentro da torre, praguejando contra a intratabilidade do material até conseguir tirá-la lá de dentro, e depois começou a colocar o poste central da escada de caracol até ele ficar direito e equidistante das paredes, praguejando em voz alta contra a dificuldade. Por fim, o poste ficou como ela queria. Sacudiu as mãos e dirigiu-se à sua adorada caixa de ferramentas, agachando-se para abrir a tampa de madeira exótica.

 

Franziu a testa, sentindo subir-lhe do estômago uma sensação de frio, à procura duma explicação para o que via.

 

Na sua profissão, Rae era a pessoa mais metódica possível. Uma pessoa de fora podia achar a sua oficina uma confusão de madeira serrada de qualquer maneira, ferramentas abandonadas e peças por acabar, mas ela sabia instantaneamente onde tudo estava e percebia num ápice quando alguma coisa tinha sido mexida.

 

Alguma coisa tinha sido mexida.

 

A caixa das ferramentas fora feita por ela e era uma peça de equipamento prática e decorativa ao mesmo tempo, tal como os seus móveis. Construíra-a a pensar em determinadas ferramentas: cinzéis japoneses feitos por famílias que haviam forjado espadas para guerreiros desde o século xv, um maço de madeira que gastava e era substituído periodicamente, uma antiga fita métrica de cobre e marfim que Alan lhe oferecera num Natal essas e outras ferramentas que os seus dedos conheciam e encontravam sem a ajuda dos olhos.

 

E o tabuleiro superior estava ao contrário. O canto esquerdo da frente era onde costumava estar a sua pedra de amolar, mas em vez desse quadrado preto, o canto esquerdo estava agora ocupado pela afiada lâmina do cinzel Takahashi de dois centímetros e meio, normalmente à direita e atrás. Se tivesse ido buscar a pedra sem olhar, como fazia tantas vezes, teria ficado sem a ponta do polegar.

 

Seria possível ter arrumado o tabuleiro superior ao contrário? Por estar cansada ou tão preocupada que as mãos se esquecessem dum movimento que faziam milhentas vezes? Quando é que abrira a caixa pela última vez, aliás? Para construir a bancada com a madeira flutuante, tirara um cinzel médio em V do compartimento inferior para colocar a tira embutida numa perna, e depois arrumara-o e lá estava ele, no seu nicho junto de todos os seus irmãos. Desde essa altura, não tivera motivo para utilizar aquele tipo de ferramentas, mas... espera. Oito ou nove dias antes umas duas noites depois do jantar com o xerife, tinha-as tirado todas para fora para limpar com um trapo ligeiramente molhado em óleo, a fim de as proteger do ar do mar. Lembrava-se de ter bebido antes e depois do jantar, e de estar a pensar em Jerry, sentada no chão da tenda, a tratar das ferramentas mas não, não lhe parecia que tivesse colocado o tabuleiro ao contrário. Perdida de bêbeda, inflamada pela paixão ou completamente alucinada, as suas mãos teriam guardado o tabuleiro com a pedra de amolar no canto inferior esquerdo. Não conseguia imaginar outra coisa.

 

O que significava que alguém andara a mexer no que lhe pertencia. O caso da pegada junto à nascente em Abril já fora suficientemente mau; mas daquela vez era como se o Robinson Crusoe tivesse encontrado o Sexta-Feira a dormir na sua cama.

 

Rae levantou o tabuleiro e colocou-o como devia ser, depois fechou a caixa e pôs-se de pé. Pegou no martelo e começou a andar dum lado para o outro, sem saber se devia sentir-se zangada, com medo ou as duas coisas. Andava, brandindo o martelo para trás e para a frente com tanta força que corria o risco de atingir a rótula, se o seu peso não fosse tão familiar.

 

Um estranho ou um conhecido bisbilhoteiro? Não conseguia decidir o que seria pior, nem como perguntar a Jerry se tinha sido ele... ou a Nikki! Ora aí estava uma coisa que conseguia imaginar: a curiosa Nikki, ligeiramente ciumenta de Jerry, arranjando uma desculpa para mexer nas coisas de Rae.

 

Calma, disse para consigo, parando diante da entrada da torre. Limpaste as ferramentas há mais de uma semana, e depois disso não saíste da ilha. Tens estado sempre aqui, a martelar que nem uma doida. Foi com certeza alguém que aproveitou estares ocupada com o telhado. Ou no telheiro atrás da casa.

 

O mais provável era ter sido enquanto estava no telheiro, porque no telhado teria visto movimento na clareira ou mesmo na enseada, e só tinha começado a trabalhar no interior da casa nessa manhã.

 

Jerry dissera-lhe que só conhecia dois idiotas rapazolas amigos de fazer asneiras capazes de tentar chegar à ilha sem ser pela enseada. Talvez tivesse exagerado, contudo, e alguém que se esgueirasse por entre as árvores até ao acampamento corria muito menos risco de ser visto do que avançando pelo promontório a descoberto.

 

Rae percebeu de repente que caminhava de novo a passos largos, brandindo furiosamente o pesado martelo, como se procurasse alguém a quem atingir. Levantou-o, mirando-lhe a cabeça de orelhas com curiosidade, e ocorreu-lhe como era estranho a raiva ser a antítese da insânia. Os psicóticos, no seu desequilíbrio, podia juntar as duas definições de "louco", mas na realidade a indignação, justificada ou não, era por vezes exactamente o que uma pessoa perturbada precisava para recuperar um forte sentimento de identidade e direitos.

 

Era preferível ficar louco de fúria do que ser louco furioso, por assim dizer.

 

E ela estava realmente furiosa.

 

O suficiente para descer a colina até meio antes de pensar que tinha ainda mais razão para sentir medo. A revolução surgiu-lhe na voz de Jerry Carmichael, numa pergunta que tentara afastar do espírito desde que ele a fizera.

 

"Porque é que tem tanto a certeza de serem alucinações?"

 

Rae tropeçou, e depois baixou a cabeça e voltou rapidamente para a tenda, dirigindo-se imediatamente não para os vários sítios provavelmente escolhidos por um intruso, mas para o revólver poisado em cima da mesa, a arma que prometera trazer sempre consigo e esquecera na sua ilusão de que a ilha era um lugar seguro. Com os dedos a tremer, verificou se as cinco balas continuavam no tambor e fechou-o de novo. O clique pareceu muito alto, e ela olhou rapidamente para a porta e para a janela, pronta para a luta.

 

A coisa mais ameaçadora que apareceu foi um pássaro e, embora ela estremecesse com o seu grito, já estava sentada na cama, com a arma apertada nas duas mãos.

 

Ainda tinha a pistola de foguetes de Nikki, disse para consigo. Vá lá: ninguém ia atacá-la em pleno dia de Verão num local cheio de veraneantes. Sabia sem se aproximar do promontório que estava lá meia dúzia de barcos à vela, a motor e a remos à distância dum grito. Várias vezes por dia, barcos ou botes aventuravam-se na entrada da enseada, na esperança de que o aviso de proibição nada significasse, e só se afastavam quando viam claros sinais de habitação. Talvez fosse irónico o facto de um eremita encontrar segurança na presença de outras pessoas, mas era verdade.

 

Contudo, de futuro, conservaria sempre a arma consigo, no cinto das ferramentas. Talvez não enfiada de forma visível no suporte do martelo, mas com a coronha embrulhada num pano, e metida numa das grandes bolsas para pregos, onde passaria por mais uma ferramenta. Experimentou, detestando a ideia, e pensou que não ia suportar aquilo muito tempo, mas teve de admitir que o peso do revólver era tranquilizador.

 

A seguir, vasculhou cuidadosamente a tenda, encontrando algumas irregularidades, possivelmente resultantes duma busca feita por um estranho, mas que também podiam dever-se a descuido seu. Não era tão arrumada com meias como com cinzéis, de maneira que o facto de encontrar roupa interior no meio das camisolas e a última carta da neta junto dos recibos da serração nada provava.

 

Já mais calma, voltou para a escada embora com uma mão poisada na bolsa dos pregos perto da coronha do revólver e os olhos postos nos arbustos. Cem vezes durante essa tarde parou para escutar, levantando-se metade dessas vezes para ir até às aberturas das janelas e da porta. Mas não viu qualquer coisa que não devesse lá estar, excepto uma vez uns rapazolas num bote de borracha com motor, que a avistaram na entrada da casa e saíram imediatamente da enseada.

 

Umas duas horas mais tarde, abandonou o trabalho, aborrecida. Estava tão nervosa que quase estragara um degrau, e cansada como não se sentia desde os dias da retirada do entulho. Quase desejou que o xerife aparecesse nessa noite, mas depois ficou igualmente contente por ele não vir. Tinha idade suficiente para saber que um Jerry Carmichael com a sua plumagem protectora eriçada era um problema que não lhe fazia falta. E, com aquela disposição, tinha praticamente a certeza de que acabava por ir para a cama com ele outra coisa que não tinha a certeza de querer.

 

Não. Não era dum macho protector que precisava, mas sim de restaurar o seu próprio sentimento de segurança.

 

Mesmo que nada mais tivesse aprendido nos dois últimos anos, absorvera uma dolorosa lição: a segurança é uma coisa que não existe; só existe a força.

 

Diário de Desmond Newborn

 

11 de Novembro de 1922

 

Dia do Armistício. Uma noite destas, desabou uma barulhenta tempestade sobre as ilhas e, pela primeira vez em sete anos, a trovoada não foi um bombardeamento, nem os relâmpagos no Horizonte uns desgraçados a levarem com ele. Obrigado, meu "Deus, por esse favor.

 

"Estou no Santuário há um ano e cinco meses, ainda a viver numa tosca cabana. Já comecei os alicerces, mas ainda vou precisar de longos meses para os acabar, passei a maior parte do tempo duma ilha para outra no botezito a remos, à procura das pedras adequadas para construir a casa. Os nativos acham-me divertido. "Dizem-me adeus quando passo e dão cotoveladas uns aos outros, bem-dispostos, quando entro nas lojas, mas não me importo e falo-lhes amigavelmente embora pouco, de maneira que me consideram inofensivo, apesar de excêntrico.

 

A praia que descobri na Lopez na Primavera passada tem sido um manancial de pedras perfeitas, apesar de ser necessário cavar bem fundo. Já revolvi a praia duma ponta à outra três vezes, e faço tenções de lá voltar na Primavera. felizmente, conheci um rapaz que vive para aqueles lados e tem um sólido barco a motor. Por uma pequena quantia, poupou-me muito trabalho. Remar um barquito muito carregado mesmo a favor da maré não é fácile depressa se pode transformar num belo sarilho.

 

Encontrei uma pequena gruta mesmo atrás do sítio onde estou a colocar os alicerces. Dá-me ideia de que foi utilizada pelos meus antecessores índios, mas não me parece que se importem se eu a usar agora. É seca e segura; nem um bombardeamento directo a destruía.

 

Às vezes, quando está muito mau tempo, abrigo-me lá, e julgo sentir à minha volta os homens que vieram antes de mim, companheiros com roupas estranhas e a falar línguas incompreensíveis.

 

Que pensariam eles, se me vissem sentado entre eles? Que histórias poderia eu contar-lhes, se fosse transportado para o passado para junto deles? Que o seu povo praticamente desapareceu? Que nada mais resta deles nestas ilhas alem das suas sombras?

se eu me visse confrontado por um homem ao futuro, a contar-me Histórias sobre como eu também morri esquecido de todos e sou lembrado apenas pelo monte de pedras que deixei? Sem herdeiro, sem amigos, sem qualquer grande fundação pública a marcar a minha passagem, nada mais do que os círculos duma pedra na água ou o contorno duma baleia gravado na parede.

 

£, no entanto, com certeza que a terra tem muitos homens que deixam marcas, que são capazes de mudar o mundo. "Estarei errado ao pensar que alguns de nós deviam passar pelo mundo mais discretamente?

 

Na terça-feira, a nove dias da "Chegada" e com a água ainda coberta de nevoeiro, um barco atracou na enseada. Não era o de Ed, e o homem que saltou para terra não trazia mantimentos. Nem começou a andar na direcção da clareira. Em vez disso, ficou à espera que ela descesse. A cara de Jerry parecia... oficial. Não severa, apenas vigilante e preocupada.

 

O que é que foi? perguntou Rae, quando parou diante dele.

 

Tenho uma chamada para si no rádio do barco. Vem atender? Que inferno! pensou imediatamente Rae. Preciso mesmo de arranjar um telefone, para as pessoas não terem de andar sempre a fazer de mensageiras.

 

Está? perguntou ela para o aparelho.

 

Bom dia, Mistress Newborn. É o xerife Escobar. Como está?

 

Estava bem. Porque será que me parece que isso vai mudar?

 

Tenho aqui dois homens que gostava que a senhora visse. Pode meter-se num avião e dar cá um salto?

 

O quê, hoje?

 

Não posso tê-los aqui para além de amanhã sem os acusar disse o xerife. Rae percebeu que ele esperava a sua resposta. Ali, de pé, no barco baloiçante de Jerry Carmichael, a olhar fixamente para os mostradores do aparelho de rádio, pensou que a última coisa que queria fazer, a nove dias da chegada da família à ilha, era sair dali para um apinhado aeroporto cheio de gente ansiosa, meter-se num avião, e tudo para olhar para dois homens que provavelmente seria incapaz de identificar (ainda por cima correndo o risco de despertar todo o género de recordações desagradáveis).

 

Contudo, estava em dívida para com Sam Escobar, em dívida pela sua persistência e pela sua honestidade, pela sua paciência para com uma mulher que ouvia ruídos na noite, em dívida pela bondade com que tentara tirar uma vítima aterrorizada e obviamente desequilibrada, de detrás dum sofá coberto de papéis.

 

Eu vou disse ela.

 

Obrigado.

 

Notou o alívio na voz dele talvez demasiado alívio.

 

Não pode acusá-los doutra coisa, sem ser com a minha identificação?

 

Posso, mas saem com fiança antes desta noite e desaparecem. Se puder identificar estes dois, temos uma hipótese de os agarrar.

 

Está bem. Mas aviso-o de que não me lembro da cara deles. Já lá vai um longo ano e meio.

 

A única coisa que podemos fazer é tentar retorquiu ele imediatamente. Avise-me da hora da chegada e eu mando alguém buscá-la ao aeroporto.

 

Jerry pareceu ficar contente com o facto de ela ir, o que Rae tomou como indicação do seu alívio por ela e os seus problemas saírem da sua jurisdição, ainda que temporariamente. Policiar um condado tão espalhado como aquele não devia ser tarefa fácil, reflectiu Rae. Pensou em contar-lhe como encontrara a caixa das ferramentas, apesar de isso confirmar a convicção de Jerry de que ela estava a correr alguma espécie de perigo, mas ele já estava em movimento, e ela aparentemente também.

 

Posso metê-la num voo de Seattle às duas e meia, se ficar pronta em vinte minutos. Eles aguentam o ferry de Anacortes e levam-na até San José antes das cinco e meia.

 

Rae não lhe perguntou como sabia todos os horários, limitando-se a acenar a sua concordância, e deu meia volta para ir enfiar umas roupas na mochila. A história da caixa das ferramentas podia esperar.

 

Quando desapertou o cinto, pensou no revólver. Era impossível levá-lo no avião. Por outro lado, não queria deixá-lo na tenda, nem mesmo dentro do baú fechado à chave. Pegou no objecto embrulhado no trapo e trepou a colina até à casa, parou para pegar também na caixa das ferramentas, a única coisa de valor na ilha desde que o diário de Desmond e cofre tinham ido para o banco em Friday Harbor. Depois, levou as duas coisas para a gruta, e deixou-as logo à entrada, fechando bem as duas portas invisíveis antes de se vir embora.

 

Jerry Carmichael encontrava-se na lancha, a falar no rádio, tratando de tudo para a viagem dela. Meteu-se na tenda, tirou a roupa suja do trabalho e as botas cheias de lama e enfiou umas calças e uma camisa lavadas, mas amarrotadas, sapatos citadinos e um blazer de linho. Se Rae ia passar algum tempo numa esquadra, iria com aspecto de advogada e não de suspeita. O casaco estava também muito amarrotado e mais apertado do que pensava, mas tinha de servir. Deitou uma última olhadela em volta, meteu o relógio da mesa-de-cabeceira e o diário na mochila, fechou os fechos das janelas e da porta e foi rapidamente ao encontro de Jerry.

A conversa era praticamente impossível com o ruído do motor. Em Friday Harbor, acostaram a uma doca perto do ferry, onde Bobby Gusé tafsen os esperava fardado. O agente pegou no cabo, fez um sorriso tímido a Rae, entregou um molho de chaves ao xerife e depois trocou de lugar com ele na lancha. Rae e Jerry dirigiram-se rapidamente para o ferry, que partiu logo para o canal entre San Juan e Shaw. Sempre na peugada do xerife, Rae subiu uma escada, passou por uma porta e deu consigo na cafetaria do barco, que cheirava a café e a compota. Deixou-se cair numa cadeira, com os ouvidos a tinir e os nervos em franja, grata por não ter de se apressar durante pelo menos uma hora. Jerry foi até à fila para a comida e voltou com um tabuleiro de coisas embrulhadas em celofane. Começou a comer, enquanto ela beberricava o café.

 

Pelos vistos, vai levar-me ao aeroporto? comentou ela.

 

Se não se importa respondeu ele, subitamente duvidoso, com uma sanduíche na mão.

 

Tudo bem, e agradeço-lhe. Só pensava que você tinha que fazer. Coisas de xerife.

 

O Bobby pode tomar conta de tudo. Ele adora. E de que serve ser xerife, se não posso puxar uns cordelinhos para passar umas horas com uma mulher que eu... ínterrompeu-se, e depois continuou:... com uma amiga?

 

Rae fez um sorriso amargo.

 

Então, não consegui afugentá-lo, com todas as verdades que lhe contei?

 

Era o que estava a tentar fazer?

 

Talvez fosse boa ideia, se conseguisse disse ela, reflectindo, que tudo seria muito mais simples se ela fosse capaz de decidir o que sentia quanto àquele relacionamento.

 

Lamento. Nada feito.

 

Mas fique com os olhos bem abertos, está bem? Comigo.

 

É o que faço sempre.

 

O que lembrou uma coisa a Rae.

 

Olhe, Jerry, preciso de lhe contar que é possível que alguém tenha andado a mexer nas minhas ferramentas, durante a semana passada.

 

O xerife franziu a testa e perguntou:

 

Falta alguma coisa?

 

Não, mas uma parte foi voltada ao contrário, e não sei quando. E até podia ter sido uma distracção minha.

 

Mas não acha que tenha sido comentou ele, e não era uma pergunta.

 

Honestamente? Com a minha caixa de ferramentas! Não. Ficaram a olhar um para o outro, por cima da mesa de plástico, sem reparar no magnífico cenário que passava pelas grandes janelas do ferry.

 

O que é que vamos fazer a esse respeito? perguntou ele por fim.

 

Bom, é possível que, se os tipos que eu vou ver forem os que me atacaram o ano passado, eles saibam o que está a acontecer agora.

 

E se não?

 

Se não, temos de pensar no assunto.

 

Ambos pensaram muito no assunto durante os três dias seguintes, a começar por Rae no avião para sul e Jerry no carro regressando para norte e depois para oeste. Rae recordou também Jerry sentado ao volante do carro oficial no aeroporto, a observar a multidão e depois, com um encolher de ombros do género "Que se lixe!", debruçando-se da janela e dando-lhe um beijo. Quando Rae olhou em volta, tão perturbada que não conseguia falar, quase esperava ter público, mas a única pessoa que os observava era uma bonita agente da polícia de serviço, que tocou no chapéu com um dedo, saudando-os, e depois se afastou.

 

Rae retirou a mochila do assento de trás do carro e olhou por cima do tejadilho para o homem alto fardado que, pelo menos, a tinha feito esquecer a apreensão de ficar fechada num avião com estranhos.

 

Está fantástica comentou ele. Rae olhou para si própria, admirada, e depois, hesitantemente, retribuiu-lhe o sorriso.

 

Você também admitiu ela, afastando-se para ir apanhar o avião.

 

A mulher no balcão deitou uma olhadela ao rosto contraído de Rae e disse que podia trocar o lugar na coxia à frente por um à janela na última fila do avião. Rae marchou até à porta, de cabeça baixa e dentes cerrados, e sentou-se a um canto com as costas de encontro à parede. Foi a última pessoa a embarcar, e instalou-se no seu lugar, aliviada. Tanta gente, e ninguém a tinha agarrado por detrás.

 

Durante duas horas, deixou de sentir arrepios na espinha. Embora sempre de olho em cada pessoa que ia ao lavabo, pelo menos não imaginou que uma mão podia sair da parede em direcção a ela. Em terra, já em San José, tornou a esperar que toda a gente excepto o pessoal de bordo desaparecesse, antes de pegar na mochila.

 

Para surpresa sua, a pessoa a olhar para a porta com a expressão de "Terá perdido o avião?" não trazia uma farda de agente de xerife, mas sim uma curta saia de cabedal encarnado e um casaco claro: Pam Church. A cara da advogada desanuviou-se quando viu Rae, e depois abraçou-a e deu-lhe um beijo.

 

As suas primeiras palavras foram quase iguais às últimas de Jerry:

 

Meu Deus, mulher, está com um aspecto soberbo!

 

Rae olhou de novo para as suas roupas normais e descuidadas, mas Pam abanou a cabeça.

 

Não, refiro-me a você. Parece uma pessoa que passou os últimos três meses numa estância de saúde e estética, a fazer pesos e a descansar na praia. Bronzeada e musculosa.

 

Quanto a pesos, nada, mas carreguei uma data de madeira e de pregos.

 

Seja o que for, fez-lhe bem. Precisa de arranjar as unhas, claro, mas as suas mãos sempre tiveram esse aspecto desde que a conheço. Só tem isso? perguntou, apontando para a velha mochila.

 

Só respondeu Rae.

 

Durante a viagem de carro até à prisão do condado, pela estrada de montanha, falaram duma porção de coisas profissionais e um bocadinho de assuntos pessoais, o que fora sempre a tónica do seu relacionamento. Havia muito trânsito, pois estavam mesmo na hora de ponta, mas Pamela não parecia preocupada com o atraso.

 

O xerife Escobar disse que esperava por si informou ela.

 

Você vai comigo?

 

Se quiser, vou. Se não, deixo-a lá e depois podemos encontrar-nos. Não volta para Seattle esta noite, pois não?

 

Não! Já que estou aqui, fico dois dias, para tratar dumas coisas, limpar o pó às plantas e regar as prateleiras...

 

Hum... Quer ficar lá em casa? Tenho um quarto a mais e dava-me muito prazer se aceitasse.

 

Obrigada, mas eu estou bem.

 

Detesto a ideia de você sozinha naquela casa enorme disse a advogada, em tom cauteloso.

 

Esta noite fico com um amigo, o meu fornecedor de madeira, o Vivian Masters. Ele leva-me amanhã a casa, e talvez então eu fique lá. Logo vejo como me sinto.

 

Bom, a oferta mantém-se.

 

Obrigada. Agradeço. E agradecia realmente.

 

Depois, chegaram à prisão, e Pam olhou para ela, duvidosa, dizendo que afinal talvez entrasse, e então apareceu uma farda diferente da de Jerry e muito mais pequena, e uma data de burocracias e demoras e portas a abrir e fechar, até que finalmente Rae se viu numa sala com o xerife Escobar e mais umas pessoas, a olhar através dum vidro para uma fila de desconhecidos. Meia dúzia de homens atarracados, de cabelo escuro, com absolutamente nada que os distinguisse uns dos outros. Tinham todos ar de malfeitores, embora soubesse vagamente que era costume misturar agentes da polícia no grupo.

 

Estão ali os dois homens? perguntou Rae ao xerife, tentando não parecer em pânico.

 

Só um. Depois mostramos-lhe outro grupo com o segundo.

 

Não sei.

 

Não tenha pressa. Ignore as roupas e pense apenas nas partes das caras que viu. Quer que os mande voltar para os lados?

 

Acho que sim.

 

A fila de homens virou-se para a direita e depois para a esquerda, e nessa altura Rae ficou hirta.

 

Alguma coisa? perguntou o xerife.

 

O quarto. Pode dizer-lhe que se aproxime e, bom, que faça uma espécie de careta?

 

Escobar deu a ordem, e um por um os homens aproximaram-se do espelho do seu lado e arreganharam os dentes, voltando para o seu lugar na fila. A quarta careta perturbou Rae ao ponto de lhe transformar os intestinos em água gelada.

 

É ele gaguejou. Olhe, posso ir ao lavabo?

 

Está a identificar um daqueles homens, Mistress Newborn? Para ficar registado.

 

o número quatro. É o que me atirou para fora da estrada. Na altura, tinha bigode. Olhe, eu preciso mesmo...

 

Foi levada a toda a pressa. Quando voltou, sentindo-se completamente vazia, um grupo diferente de homens ocupava a sala contígua, mexendo os pés por causa da demora. Eram todos mais altos do que os da primeira identificação, e tinham cabelo loiro. Rae esperou receosa por outro choque de reconhecimento, enquanto se voltavam dum lado para o outro. Nada.

 

Podia ser o número dois acabou por dizer. Mas também podia ser o irmão do número dois. Lamento, mas não consigo ter a mesma certeza com este.

 

O xerife não pareceu ficar muito preocupado e, quando acabaram de preencher a papelada, Rae olhou para ele.

 

Não indiquei dois polícias, pois não?

 

Oh, não, nada disso! E não se preocupe com o segundo... Já temos qualquer coisa para tratar dele agora.

 

Eles não disseram quem os contratou? Se é que existe alguém.

 

Ainda não. Mas se me telefonar amanhã, eu digo-lhe o que souber.

 

E quanto a terem entrado na minha casa? Foram eles?

 

Receio que não. Estavam ambos presos quando isso aconteceu... um álibi difícil de contornar. Vamos interrogá-los, claro, para ver se terão dito a alguém que a casa podia estar vazia, mas não me parece. Para além dos estragos deliberados, o assalto foi muito profissional. Bom, talvez esse não seja o termo, visto que não faltava grande coisa, mas foi feito por alguém com uma cabeça mais fria do que estes dois. Vai até lá, enquanto está por aqui?

 

Vou encontrar-me lá com a minha advogada amanhã, para ver se descubro alguma coisa que ela e o homem dos seguros não tenham visto.

 

Depois diga-me o que encontrou. E agora, quer que a mande levar a algum lado? Que lhe arranje jantar?

 

Tenho uma pessoa à minha espera, obrigada, mas, se alguém pudesse dar-me uma boleia para atravessar a cidade, ajudava.

 

A pessoa à espera dela era o seu fornecedor de madeira e importador de madeiras exóticas, Vivian Masters, um serrador com nome de aristocrata inglês, físico de levantador de pesos olímpico, voz de vaqueiro australiano e mãos de lapidador de diamantes holandês. Vivian fora seu sócio de profissão durante mais de uma dúzia de anos antes do acidente. Quando lhe telefonou do aeroporto de Seattle para dizer que ia a caminho e queria aparecer na oficina, ele soltou um grito de alegria e insistiu em que ela ficasse com ele e o namorado (que Rae sabia por experiência que seria alto, forte, provavelmente barbudo, possivelmente estrangeiro e lamentavelmente temporário).

 

Quando se apeou do carro oficial à porta de Vivian, ele irrompeu da oficina. Uns braços que pareciam de aço envolveram-lhe as costelas, num aperto que teria provocado o pânico e uma luta para se libertar se pertencessem a qualquer homem sem ser Vivian. A ele, Rae abraçou-o com igual fervor, deitando-lhe os braços ao pescoço e apoiando-lhe o queixo no cabelo, enquanto se balançavam com o prazer de voltarem a ver-se. Depois, o madeireiro afastou-a e declarou que ela estava uma beleza, mas... como diabo é que estava e, fosse como fosse, estava de se comer. Rae olhou por cima do ombro para o espantado motorista, acenou-lhe em despedida e depois entrou na serração com um braço por cima dos ombros de Vivian e o dele à volta da cintura dela.

 

Vivian vivia literalmente por cima da oficina, o que podia estar de certo modo relacionado com a relutância dos seus variados amantes em se tornarem permanentes; porém, quando Rae franqueou a porta, sentiu imediatamente os pulmões expandirem-se-lhe e logo a seguir a alma. O aroma duma centena de tipos de madeira enchia o ar, essências vindas de todos os cantos do mundo, desde Bornéu até à Nicarágua. Tinham passado dois anos desde a última vez que ali pusera os pés, e aquele ar maravilhoso imediatamente reconhecido apanhou-a desprevenida. Sentiu-se tonta, assustada e embriagada. Teve de se sentar e percebeu que as lágrimas lhe enchiam os olhos, enquanto Vivian se inclinava sobre ela, preocupado.

 

Estou bem conseguiu murmurar. Mas já não me lembrava.

 

Bem sei. Quando estou fora uns tempos e depois volto, a maldita casa faz-me a mesma coisa.

 

E... uma sensação primitiva.

 

Porra, miúda, é fantástico ver-te! exclamou ele, com uma expressão de pura felicidade. Anda lá beber qualquer coisa. Beber uma data de coisas. Vamos apanhar uma piela e falar de madeira e árvores e amaldiçoar os estupores dos donos das galerias. Mas primeiro quero que conheças o Jordan. Jor! berrou ele na escada que conduzia aos seus aposentos. Foram subindo, com ele sempre a falar: Não posso acreditar que vocês nunca se tenham visto; é como se a minha mão esquerda não conhecesse a direita, mas acho que foi naquele Natal... Ai, meu Deus, que tempos horríveis aqueles exclamou ele, virando-se na estreita escada para olhar Rae nos olhos e baixando o tom de voz. Quando falei contigo, dois dias depois do enterro, sabia perfeitamente que estavas a sofrer imenso naquela tua casa, mas tu disseste-me que querias ficar sozinha. Eu sabia que devia ir arrancar-te de lá e trazer-te para aqui, mas em vez disso deixei que me convencesses e resolvi embrulhar-me com o Jordan, como um adolescente com os coisos a arder. Fui um parvalhão de merda e...

 

Rae pegou-lhe impulsivamente na cara com as duas mãos e deu-lhe um rápido beijo nos lábios.

 

Tu não és parvalhão, e queres saber uma coisa? Nada do que pudesses ter feito ia adiantar. Mesmo que eu te tivesse deixado aproximar, aquela espécie de depressão é como uma perna partida ou um tremor de terra: os amigos não conseguem curá-la mais depressa nem fazê-lo parar mais cedo.

 

Sim, mas talvez eu não me tivesse sentido um estupor tão grande declarou Vivian com o seu sotaque australiano.

 

Já reparou que a preocupação principal dele é o sentimento de culpa que não o larga? perguntou uma voz lá de cima.

 

Claro! respondeu Vivian de imediato, de novo feliz. Não pensas com certeza que ia preocupar-me com uma maluca como a Rae, pois não? Rae, o Jordan Benedict. Jordan, meu amor, esta é a outra mulher da minha vida. Tens de a adorar, ordeno-te, porque é um génio.

 

Rae nunca ouvira Vivian tão maniacamente australiano, e pensou que, por mais improvável que parecesse, ele estava nervoso. A proximidade dos doentes mentais tinha esse efeito nas pessoas, mas pensou que naquele caso podia haver mais qualquer coisa. Como o homem no cimo da escada, um homem que sobrevivera a dezoito meses com Vivian Masters (cujas relações nunca ultrapassavam os quatro, pelo menos desde que ela o conhecia), um homem que tinha realmente barba, mas não era estrangeiro nem alto e parecia mais simpático do que forte.

 

O seu aperto de mão era vigoroso mas não afirmativo, e se se preocupava com ela como rival uma rival que ainda por cima se agarrara a Vivian aos beijos na escada não o mostrava.

 

Olá disse ele, com um livro na mão esquerda, a marcar com um dedo o sítio onde ia.

 

Prazer em conhecê-lo.

 

Vivian passara por eles e gritava de dentro do apartamento, por entre o barulho de garrafas de cerveja.

 

Queres uma cerveja, Rae? Larga a tralha... sabes onde é o teu quarto... e depois comemos. Olha, prova aqui esta cerveja de Marin. É um nome idiota, mas parece o paraíso dentro duma garrafa. Ouve lá, não te fizeste vegetariana ou uma merda do género?

 

Não, como tudo.

 

Que alívio! Parece que toda a gente que eu conheço deixou de comer carne ou de beber ou as duas coisas. Não percebo como é que esperam...

 

Vivian. Imobilizaram-se ambos, Rae e o madeireiro, para olhar na direcção daquela voz autoritária e calma. Quando teve toda a atenção dos dois, Jordan continuou: Eu adoro-a, Vivian. Reconheço-lhe o génio. E fico muito feliz por partilhar a tua vida com a "outra mulher". Por isso, podes parar de andar aos saltos como uma rã na frigideira. Acalma-te. Está tudo bem.

 

Vivian ficou de queixo caído, mas depois fechou a boca e fez um sorriso matreiro. Olhou para Rae, radiante, deu um beijo a Jordan, e voltou para a cozinha sem dizer palavra e parecendo mais calmo. Rae olhou para o homem nos olhos, viu a profundidade do afecto e do humor ali existente, e teve vontade de o beijar também.

 

Rae entrou na noite como um peixe na água. A refeição tinha sido cozinhada por Vivian, que raramente se dava ao trabalho mas era capaz de criar um eco culinário de si próprio: descarado, musculoso e cheio de inesperadas subtilezas. Não sabia seguir uma receita, nem para salvar a vida, mas revolvia tudo e misturava ingredientes pouco prováveis que acabavam por resultar. O jantar era vagamente de sabor oriental, com toques da Nova Inglaterra.

 

Quando acabaram de comer, Vivian enxotou Jordan da cozinha e entregou um pano a Rae.

 

Pontos para ver explicou Jordan, com um sorriso de desculpa, deixando que o expulsassem. Está quase na altura de saírem as notas.

 

Eu levo-te um café assim que acabarmos de lavar a loiça disse Vivian, arregaçando as mangas.

 

Ele dá aulas? perguntou Rae.

 

Na universidade. Por enquanto, em tempo parcial: literatura shakespeariana e escrita criativa. Não chegou a conhecer o Alan acrescentou, sabendo o que ela queria perguntar. É escritor. Vai publicar o primeiro romance no Outono. Todo intelectual, sabes? Um rapaz criado numa cidade pequena.

 

Rae emitiu os apropriados sons de interesse, mas o seu espírito não estava centrado no futuro literário de Jordan Benedict. Daí a um minuto, Vivian atirou com a esponja para dentro de água e voltou-se para ela, encostado ao lava-loiças.

 

O que é que se passa?

 

Desculpa, Viv, não estou a ser uma boa hóspede, pois não?

 

Que se lixe! O que é que se passa?

 

Vi hoje os homens que me atacaram. Fiquei do outro lado dum espelho unilateral e a menos de um metro deles e... ai, meu Deus, Viv, foi um autêntico pesadelo. Palavra que pensei que a mão dele ia atravessar o vidro para me agarrar. Está... quer dizer, está tudo bem, e estou contente por os terem apanhado, mas aquilo deixou-me...

 

Ele agarrou-a pelos ombros com as mãos molhadas, conduziu-a até uma cadeira, fê-la sentar-se e depois dirigiu-se ao aparador e serviu-lhe um conhaque do melhor.

 

Bebe isto! Ficou parado diante dela, até a ver engolir metade, e acenou com a cabeça. Nada como uma pinga para os tremeliques. E agora., conta-me tudo.

 

Rae contou-lhe, se não tudo, pelo menos um claro resumo dos últimos meses. Ele voltou para a loiça e, depois de arrumar o último tacho, fez café e preparou as chávenas e uma leiteira. Rae acabou de contar a história mais ou menos quando a máquina do café parou de fazer barulho. Vivian levou uma chávena a Jordan e, quando voltou, deitou conhaque suficiente na dele e na de Rae para as pôr à temperatura ambiente.

 

Estás a trabalhar? perguntou ele. Sem ser com o raio das fasquias e das tábuas?

 

A Gloriana tem uma ideia qualquer da casa como assunto dum livro de fotografias, e eu disse-lhe que ia pensar no caso.

 

Diz-lhe que sim. Faz qualquer coisa. Trabalho e amor... É o que evita que as pessoas saiam dos eixos!

 

Tu estás mais nos eixos do que eu alguma vez te vi, Vivian. O Jordan é um amor.

 

O Jor é mas é uma maravilha. A melhor coisa que já me aconteceu. E tu... vais encontrar alguém lá nas tuas ilhas?

 

Vivian disse aquilo por piada, mas Rae hesitou uma fracção de segundo a mais, recordando a boca de Jerry com toda a força na sua, antes de reagir com uma gargalhada. Vivian percebeu imediatamente.

 

Encontraste alguém! Ah, malandra, conta lá ao tio Viv!

 

Não, não encontrei. Como é que podia? Sou um eremita, e o único homem que costumo ver é o hippie velhote que me leva os mantimentos. Mas sempre te digo que vale um minuto de fantasia. Parece uma personagem duma canção, e tem umas tatuagens incríveis...

 

Ed e a sua pele distraíram Vivian, que voltou a encher as chávenas e lhe falou dum rapaz tatuado que conhecera em tempos. A conversa afastou-se rapidamente da vida amorosa de Rae.

 

O líquido na garrafa foi baixando, e os dois passaram para o conforto da sala, onde Vivian acendeu a lareira com madeira da oficina. Rae fez-lhe perguntas sobre as suas mais recentes aquisições, e ele contou-lhe algumas histórias sobre o negócio da madeira.

 

Escreveste-me a falar duma raiz de nogueira lembrou-se ela de repente. Parece-me que não cheguei a responder-te.

 

Pois não.

 

Ainda a tens? Mostra-me.

 

Esta noite, não. Mas vou contar-te como a arranjei. E lá estava ele outra vez, o único homem capaz de fazer com que comprar e vender árvores mortas parecesse pirataria no mar alto.

 

Era um autêntico prazer ouvi-lo e ver os seus olhos brilhar como diamantes negros. E também foi um prazer, embora semiamargo, quando Jordan se juntou a eles durante algum tempo, antes de ir para a cama. Rae ficou a olhar para ele, sem perceber que o fazia com uma expressão misto de curiosidade e inveja.

 

Então, que história é essa sobre tu e um tipo qualquer? perguntou Vivian em tom decidido, assim que ficaram de novo sós.

 

Nada. É só... o xerife lá do sítio que parece sentir qualquer coisa por mim.

 

E há algum problema com ele?

 

Absolutamente nenhum. É uns anitos mais novo, mas não muitos, e é muito boa pessoa.

 

Ai, ai...

 

Não sejas parvo! O Alan também era boa pessoa.

 

O Alan era uma data de coisas, mas não acho que "boa pessoa" fosse a primeira coisa que tu lhe chamaste. E o teu xerife, como é que se chama, a propósito?

 

Jerry Carmichael. Tem um metro e oitenta e cinco, bastantes músculos, e viveu sempre nas ilhas. Tem bom sentido de humor e é sensível, sem ser enjoativo. Até é bom ouvinte. Sabes quantos homens são bons ouvintes?

 

Então, que espécie de árvore seria ele?

 

Que espécie de... Ah, pois. Deixa lá ver. Rae já não se lembrava do joguinho de Vivian, de classificar as pessoas como árvores. Ele próprio era claramente um eucalipto, sedento nativo da Austrália, curvando-se até certo ponto e ficando muito frágil a partir daí; impossível de trabalhar quando seco; e ardendo em chamas à mínima faísca. Alan fora um bambu; de aspecto flexível, mas duro como aço por dentro; e ela, segundo Vivian deixara escapar um dia, era um daqueles pinheiros-de-monterey, pendurados num penhasco sobre o mar, lutando contra os elementos, mas rija e com as raízes bem metidas no terreno agreste. O Jerry é um cedro, acho eu. Direito, forte, sólido, simultaneamente meigo e imprevisível. E, além disso, cheira bem. Ao dizer aquilo, corou, e Vivian desatou às gargalhadas.

 

Apanhei-te! E que tal é ele na cama?

 

Vivian! O Alan morreu há menos de dois anos... Só conheço o Jerry há dois meses, e vi-o talvez uma meia dúzia de vezes. Mas admito que não é mau a beijar.

 

Não é mau? Ora, Rae!

 

Que foi? Bolas, o que é que ele tem de mal? Sem saber muito bem se queria Jerry, até àquele momento, percebeu de repente que estava totalmente disposta a defendê-lo da troça do velho amigo.

 

Desde quando é que um tipo certinho é suficientemente bom para ti? Depois do Alan, sempre pensei.

 

Não penses! exclamou Rae, de súbito furiosa. Não te metas nisso, Vivian. O Alan foi uma vez na vida.

 

E pensas que não sei isso? Eu já te conhecia antes e conheci-te durante e depois do Alan. Conheço-te o bastante para te dizer que, se não puderes ter isso, o melhor é ficares pelo teu trabalho.

 

Rae olhou para ele, de boca aberta, incrédula.

 

Logo tu, a dizeres-me uma coisa dessas!

 

Evidentemente "logo eu" retorquiu Vivian, também zangado, e não só pelo ataque dela. Tenho passado a vida sem saber, e agora sei. Já percebo por que motivo é que ficaste que nem o raio de um projector aceso quando conheceste o Alan Beauchamp. Química, electricidade... merda, não sei o que é. Mas sei que serias uma idiota chapada se metesses outro homem na cama sem sentir isso. Ias matá-lo, com o Alan sempre enfiado entre vocês.

 

Estás a dizer disparates, Vivian...

 

Ele poisou a chávena com tanta força que a partiu. O cheiro do conhaque encheu o ar, mas ele ignorou-o, como ignorou o sangue que lhe corria pelo dedo e os estragos na mesa. Pegou em Rae por um braço e obrigou-a a pôr-se de pé.

 

Anda cá!

 

Dirigiu-se à porta, e ela não teve outro remédio senão ir com ele, a pensar que diabo seria aquilo. Vivian parou no meio da serração, entre uma pilha de tábuas de carvalho e uma massa informe mais ou menos do tamanho dum carro pequeno, tapada com uma lona.

 

Olha para ali ordenou ele, apontando para as tábuas de carvalho.

 

Ela olhou.

 

Pronto, muito bonito. Nada de espectacular, mas o carvalho era sempre uma madeira atraente, mesmo sem qualquer característica especial.

 

Agora olha para isto, e diz-me que estou a dizer disparates. Puxou a lona de cima do volume, com ar de prestidigitador, e recuou.

 

A raiz de nogueira, à primeira vista, era apenas um grande e feio pedaço de matéria vegetal. Um olhar não treinado podia achá-la boa para a fogueira.

 

Mas Rae viu imediatamente que se tratava duma coisa especial. Que dissera Vivian na carta? Que era mesmo o género de coisa para ela: escura e torcida e completamente impossível. Sentiu os olhos de Vivian em cima de si, a observar-lhe a expressão enquanto ela se baixava para examinar os veios torcidos e passava as pontas dos dedos sonhadoramente pela superfície grotesca.

 

Estás a sentir! declarou ele triunfantemente.

 

És um génio, Vivian.

 

Química, porra! Aquilo ali é bonito disse ele, apontando depreciativamente para a madeira cortada. Mas isto... E deu uma palmada na raiz. Esta porra desta beleza é o motivo de trabalharmos com o diabo das árvores mortas! E tu estás a dizer-me que podes voltar para aquilo?

 

Rae seguiu o dedo dele a apontar para as tábuas, que eram, realmente... agradáveis.

 

Como é que sabes, Viv? Lá porque um fabuloso bocado de madeira como este é uma coisa de que tens uma certeza imediata, isso não quer dizer que não haja outros bocados em que não pensaste. Quantas vezes me trouxeste uma peça e me disseste: "Esta... não sei bem, Rae?" Imitou-lhe o sotaque australiano, o que o fez sorrir com relutância.

 

Porém, quando respondeu, mostrava-se completamente sério:

 

Então, como é que sabes, Rae? Quando eu te mostrei aquele bocado de bordo meio podre que tinha estado numa cave qualquer durante noventa anos e tu fizeste aquele móvel incrível todo torcido e com as gavetas de ébano, como é que soubeste que valia a pena dares-te ao trabalho? Eu digo-te. Sentiste-o nos ossos, não foi? Sentiste nos ossos que havia ali alguma coisa magnífica. Por isso, diz lá, Rae Newborn, que é que te dizem os ossos a respeito do teu simpático xerife?

 

Odeio-te, Vivian murmurou ela, acariciando a raiz de nogueira.

 

Ná! Tu adoras-me.

 

Também.

 

Confia nos teus ossos, Rae. Confia nos teus malditos ossos.

 

Nessa noite, porém, ela ficou deitada a olhar fixamente para o tecto, a pensar como havia de saber o que sentiam os seus ossos, quando o resto do seu corpo estava tão ocupado com a recordação dos braços e da boca de Jerry.

 

Diário de Desmond Newborn

 

1 de Outubro de 1926

 

O poeta declarou que nenhum homem é uma ilha.

Depois de viver numa ilha entre ilhas há cinco anos, tenho de dizer que essa afirmação é mais verdadeira aqui do que noutro lugar que eu conheça.

 

Há por aqui bastantes reclusos, misantropos ou homens a fugir de alguma coisa. Abundam os excêntricos - o escocês que se diz estar a construir um autêntico castelo escocês a norte daqui, o explorador e caçador de caça grossa licenciado em Oxford do século passado que raramente usava sapatos, e uma centena de outros.

 

Cada alma aqui ocupa a sua ilha, separado do calor da lareira dos seus vizinhos por um estreito de água fria e traiçoeira. Mesmo nas ilhas mais densamente povoadas, mesmo nas suficientemente grandes para terem um centro donde não se vê a água, o residente nunca pode ignorar a água do lado de fora da sua porta.

 

"Esta consciência de como estamos sós e em perigo é precisamente o que nos liga. Só durante a guerra é que encontrei amizades tão fáceis como estas, tão pronta vontade de ajudar ou amparar. No continente, passamos pela casa do nosso vizinho quase sem olhar; aqui, espreitamos para ter a certeza de que ele está bem. Em terra seca, os vizinhos discutem por separações de terras; aqui, o mar entre nós, embora não precisamente um inimigo, nunca é de fiar no que diz respeito à segurança duma criança ou dum vizinho. Conhecemos o perigo à nossa volta e sabemos em quem podemos confiar.

 

Aqui, todos os homens são ilhas, ligados pelo toque do mar. O que nos divide é o que nos une.

 

Vivian tinha razão, decidiu Rae: se não podia ter amor, então o melhor era o trabalho. Amigos e trabalho, a flexão dos músculos especializados, o vocabulário comum duma paixão, a redescoberta de quem ela fora e do que voltaria a ser. E, se tinha bebido de mais na véspera, pelo menos o conhaque caro era meigo com a sua cabeça e permitiu-lhe levantar-se nessa manhã sem grande sofrimento.

 

Quando os dois ajudantes de Vivian chegaram, arrastaram a raiz para a luz, e os quatro madeireiros passaram umas tensas duas horas a discutir que corte lhes daria os melhores veios. Fizeram e apagaram marcas com giz, meia tonelada de tronco de árvore, retorcido e pouco atraente, foi empurrada e tocada, e finalmente os restos duma coisa viva, uma jovem árvore quando Isabel i subiu ao trono de Inglaterra, foi entregue à enorme serra de Vivian. Ficaram todos tensos, ignorando o terrível barulho, até que o pedaço serrado ficou separado. Então, quatro rostos descontraídos espelharam o prazer que sentiam diante da textura e da forma.

 

Rae começou a andar à volta do pedaço de madeira, já a planear como ia trabalhar em redor do núcleo central, admirando a precisão do corte escolhido por Vivian.

 

Tinhas razão disse ela. É absolutamente maravilhosa.

 

Eu tenho sempre razão. E não estava a falar de madeira.

És o maior concordou Rae.

 

Tiraram a serradura do cabelo, e Rae e o madeireiro meteram-se no velho Audi de Vivian e subiram as colinas em direcção à casa dela. Pam Church ia lá ter com eles, e Rae tinha proposto ir com ela, mas Vivian vinha duma família de advogados e não acreditava que alguém pudesse ser amigo de um. Rae não insistiu, pensando que quantos mais corpos quentes tivesse consigo em casa melhor.

 

A coisa espantosa, pensou ela uma hora mais tarde, parada ao lado do carro no silêncio perfumado de sequoias-do-Canadá, era a casa ter mudado tão pouco. Para além do novo painel electrónico de segurança junto à porta da frente, podia ter saído dali na véspera. A filha podia estar a espreitar duma janela do primeiro andar, e o marido sentado à secretária a ver testes dos alunos.

 

Até a oficina era uma terra de fantasmas, com as enormes máquinas arrumadas sob as coberturas, a madeira empilhada a arejar nas pesadas prateleiras, e filas e filas de ferramentas manuais a encherem-se de pó. Já dissera ao amigo que não ia passar ali a noite, se ele não se importasse que ela utilizasse a sua casa como hotel. Ao caminhar pela casa com ele ao lado, ficou contente por o ter feito. Sentia os vagos contornos de vigilantes, à espera nos espaços escuros entre as árvores.

 

Enquanto Rae e Pam estavam ocupadas com impressos dos seguros e contas acumuladas, Vivian foi até à oficina de Rae, onde desatou a olear furiosamente tudo o que viu. Quando ela espreitou à porta, ouviu-o praguejar baixinho, voltando a madeira e arrumando-a melhor.

 

Rae deixou-o lá, e revistou o rés-do-chão com Pam, para ver se o homem dos seguros tinha deixado escapar algum estrago ou roubo. Os lençóis que protegiam os móveis haviam sido retirados, cuidadosamente dobrados e empilhados, mas mostravam sinais de uso. O de cima estava roto e enxovalhado. Fios eléctricos marcavam o sítio da aparelhagem estereofónica, a televisão e seus extras tinham desaparecido, e o armário das pratas estava vazio. Rae ficou aliviada por encontrar pouca destruição para além da colecção de vidros, cuidadosamente varrida para caixas de cartão, como se ela pudesse querer guardar os pedaços. Abriu uma das caixas e olhou para os fragmentos brilhantes, mas depois fechou-a de novo, com uma expressão triste. O marido teria chorado. Qualquer coisa na elegância do vidro sempre lhe calara mais fundo do que a Rae, e era por ele que ela lamentava toda aquela beleza agora reduzida a pó. Contudo, o intruso não tocara nos quadros nas paredes, por desconhecer o seu valor ou por saber da dificuldade em se desfazer de desenhos de Picasso ou de gravuras modernas. A sua adorada e cuidadosamente reunida colecção de móveis cadeiras de Maloof e Stickley, um sofá Morris, uma antiga arca japonesa também estava intacta, à excepção duma feia mossa numa mesa de cavaletes medieval inglesa, onde uma das peças mais pesadas batera a caminho da destruição.

 

O escritório de Alan, no entanto, era de cortar o coração. O intruso parecia ter virado metodicamente todos os arquivos, espalhando os apontamentos para artigos que o marido planeava escrever e atirando pelo ar críticas, fotografias (lá se vai a minha ideia de encontrar o negativo do Desmond que a Nikki queria, pensou ela irrelevantemente) e correspondência de vinte anos antes. Alan tinha prendido desenhos de Bella num quadro de cortiça ao lado da secretária; o quadro fora arrancado da parede e espezinhado por botas descuidadas ou raivosas, com os desenhos feitos em tiras. Quando Pam se afastou dos restos do computador, deparou com Rae de joelhos, com um desenho rasgado na mão e desfeita em lágrimas. Pam praguejou baixinho e aproximou-se.

 

Desculpe, Rae, eu devia ter apanhado isso. Foi uma estupidez deixá-la ver os desenhos.

 

Eu tenho os melhores disse Rae, deixando que a advogada a ajudasse a levantar. Entregou-lhe os restos do desenho do cavalo de Petra, viu Pam endireitá-los e enfiar os pedaços numa gaveta, e depois olhou para toda aquela destruição e perguntou, desesperada:

 

De que estava ele à procura?

 

Fosse do que fosse, ou não o encontrou, ou simplesmente quis esconder o facto. Vá, vamos embora daqui.

 

Rae foi atrás dela até à cozinha e começou a procurar o café.

 

Quanto ao Don começou a advogada.

 

Que se lixe o Don! retorquiu Rae.

 

Está bem.

 

Que foi que ele fez agora? perguntou Rae, atirando com a porta dum armário e abrindo bruscamente outra.

 

Nada, de facto. Há duas semanas que não tenho notícias dos advogados dele.

 

Esperava ter?

 

Claro. Mandei-lhes uma bela duma resposta, sem delicadezas, do género "não me lixem", e pensei que ia receber pelo menos uma carta.

 

Talvez lhes tenha pregado um valente cagaço e desistam. Pam limitou-se a fungar. Ou talvez o Don não conseguisse pagar a conta deles e o tenham despedido.

 

Os advogados não despedem clientes respondeu Pam automaticamente.

 

Foi uma tentativa de piada, Pam disse Rae, passando ao armário seguinte.

 

Temos de falar sobre ele.

 

Porquê? E não estou a ser frívola, mas vale a pena gastar mais energias a falar do Don Collins? Ou ele me leva a tribunal ou não, a bola está no campo dele. Ena, cá está o café! Acha que ainda presta?

 

Os armários eram uma estranha mistura de coisas completamente familiares e outras totalmente estranhas. Rae pegou numa embalagem de chá de plantas aromáticas, perguntando a si própria se teria sido trazida por Tâmara, ou se teria sido comprada por si própria durante a terrível época dos vigilantes...

 

Olhe, não me parece que ele tenha hipótese de ganhar uma acção destas, mas de facto conseguiu constituir um processo e tem uns advogados agressivos. Se a mulher testemunhar que o seu estado de espírito continua perturbado, ele é muito capaz de convencer um juiz a limitar o que você pode fazer com o seu dinheiro. Ele não ganha, mas você pode andar pelos tribunais durante anos.

 

Rae estava mais preocupada com o que pressentia por detrás da acção, e achava o silêncio dos advogados de Don um mau presságio. Mas, como não sabia o que podia ser feito para evitar o que ele tinha em mente, não ia analisar as possibilidades com a advogada. A bola estava realmente do lado dele, e ela tinha de fingir que o silêncio era encorajador em vez de semelhante ao dum filme passado na selva com os tambores a calarem-se.

 

Então, tenho de parecer aborrecida e racional. Chame-me Mistress Prozac. Já lhe contei que eles vão visitar-me, não contei?

 

Quem? perguntou Pam, alarmada. O Don e a Tâmara? Não, claro que não contou!

 

A Petra quer ir passar uma semana comigo, de maneira que vão lá levá-la.

 

E quando é que vai ser o confrontozinho?

 

Não vai haver qualquer confronto. Somos demasiado educados para isso, não sabia? De amanhã a uma semana. No dia um.

 

De Julho? Meu Deus, mulher, é doida?

 

Rae olhou para a indignada advogada, e desatou a rir, um bocadinho descontrolada.

 

Claro que sou doida, sua palerma! Afinal de que é que pensa que se trata?

 

Ora, esteja calada! explodiu Pam. Sabe perfeitamente o que quero dizer. Olhe, vai ter de cancelar. Seria procurar sarilhos, convidar o seu genro para o seu jardinzinho, quando esta acção está em curso.

 

Não tenho jardim.

 

Rae!

 

Desculpe, desculpe. Pronto, admito que uma visita com ele lá vai ser muitíssimo desconfortável, mas, se eu conseguir conter-me e não lhe dar com uma cinco por dez na cabeça, não vejo que o facto de ele estar lá ou não faça grande diferença. Eu vivo na Loucura, não vou negá-lo. Algumas pessoas podem achar que é um sítio maluco para viver, mas a minha casa está em andamento, e vai ser um edifício agradável e convencional... bom, mais ou menos. Seja como for, tem paredes direitas e sobrados nivelados e isolamento, e um telhado daqui a pouco. Até está bastante de acordo com os regulamentos do estado. Acha que uma louca se preocupava com os regulamentos de construção?

 

O que é uma cinco por dez?

 

Uma cinco por dez? Uma tábua, o que é que há-de ser? Bolas, é mesmo ignorante!

 

Sou advogada, não construtor civil. Portanto, o que é que eu sei de tábuas?

 

E eu de leis? Olhe, Pam, se está a dizer-me que não posso ter contactos com a minha neta ou com os pais dela, lamento, mas isso é impossível. O contacto com a minha neta é o que está na base disto tudo, lembra-se? Se há algumas coisas específicas que eu não deva fazer ou dizer, diga e eu tento seguir as suas instruções o melhor que puder. De contrário, vamos ter de deixar que os tribunais resolvam. E até talvez corra tudo bem. Quero dizer, o Don está provavelmente à espera de descobrir alguma coisa enquanto está lá ou que eu deixe escapar alguma coisa que ele possa utilizar como prova. E se isso não acontecer? E o facto de deixarem a Petra ficar comigo indica com certeza um elevado grau de confiança. Como é que podem afirmar que sou perigosa, se acham que ela está segura sozinha comigo? Até já fiz amigos por lá: isso também deve ter algum valor. A guarda-florestal e o xerife estão sempre a aparecer. Talvez fosse melhor não mencionar Ed como testemunha abonatória, pensou Rae.

 

O xerife?

 

Está sempre a aparecer. Leva-me flores. E bifes. Uma vez, até uma garrafa de champanhe.

 

Palavra?

 

Não acho delicado mostrar-se tão espantada, Pam.

 

Desculpe retorquiu a advogada, mais curiosa do que arrependida. É que não consigo imaginá-la com alguém sem ser o Alan.

 

E não estou. Não temos um caso, nem vamos ter um caso. Não há... química.

 

Então, para quê esse sorriso? perguntou a advogada, desconfiada.

 

É uma piada particular. Mas o Jerry é impecável, bem-parecido, tem sentido de humor e é estável como uma montanha, de maneira que deve ser a testemunha abonatória ideal. E a guarda-florestal é a mulher mais bonita que você já viu. Se houvesse julgamento com jurados, os dois iam pôr os doze a babarem-se.

 

Aquilo pareceu agradar muito mais a Pam do que as paredes direitas e a água canalizada de Rae. Ora ai estava um quadro interessante, pensou Rae: o seu xerife, um cedro, fardado, a testemunhar com calma e competente autoridade. E Nikky? Se fosse uma árvore... seria? Qualquer coisa rara e exótica, difícil de trabalhar, com uma porção de falhas para se meterem na pele mas absolutamente maravilhosa depois de acabada. E Ed? Hum... Ed era uma incógnita. Uma árvore cuja aparência nada dizia quanto à madeira interior. Tâmara era uma árvore frondosa, bela e trabalhadora, com as raízes podres, e Don era sem dúvida uma planta venenosa, insidiosa e infiltrando-se, que provocaria bolhas a quem se aproximasse.

 

Afastou aqueles pensamentos. Desistiu do café, que cheirava ainda pior do que a água suja oferecida pelo xerife Escobar, levantou-se e disse a Pam que ia dar uma olhadela no primeiro andar.

 

Eu vou consigo.

 

Não, prefiro estar sozinha. Para me despedir. Ou coisa parecida. Rae parou a meio da escada, recordando como tinha refeito cinco anos antes o acabamento da madeira que pisava, a madeira pisada também pelo marido e pela filha, ambos tantas vezes descalços, a subir para os quartos e para a salinha da televisão e a descer para a mesa do pequeno-almoço. O pat pat pat dos pezitos de Bella ressoou no corredor, levando-a para o quarto que Rae partilhara com Alan, com a sua grande cama que recebera a recém-nascida Bella, a grande cama onde tantas vezes a criança se aninhava de manhã, a cama onde Rae e Alan haviam dormido e conversado e amado. Rae atravessou o quarto, passou pelo colchão nu e abriu a porta da varanda. Aspirou o aroma das sequóias-do-canadá e sentou-se na suja cadeira de madeira onde se sentara tantas manhãs, a olhar por cima duma colina não tão familiar como costumava ser, procurando ouvir o ruído do riacho onde Bella pescara e brincara.

 

A sua casa.

 

E, no entanto, não era a sua casa. Enquanto ali estivesse, o marido e a filha deixavam de ser as imagens estáticas e hirtas que encerrara na sua memória. Moviam-se e respiravam, mas só como ecos (mãezinha!) da sua vida com eles. Com os seus odores ainda enterrados nos cobertores dobrados e as suas vozes no ar à sua volta, Rae viu-se confrontada com a certeza de que, apesar de tudo, tinha continuado em frente. Eles estavam mortos e ela não e, mais do que estar apenas viva, tinha crescido e tinha-se modificado, de maneira que já era a pessoa que florescera naquele sítio. Ainda os amava como nunca amaria outras pessoas; nunca deixaria de os chorar, mas tinha de admitir finalmente que perdê-los não tinha sido o fim do mundo. Ela voltar ou não a viver entre aquelas paredes era uma questão em aberto, mas, se voltasse, seria uma Rae Newborn diferente.

 

Uma outra coisa soube, ali na cadeira com o fantasma do marido a abrir a porta da varanda, a dar-lhe um beijo na nuca como saudação matinal, a poisar uma chávena de café fumegante no braço da cadeira, soube de repente e com a clareza duma voz a falar-lhe ao ouvido: o revólver que agarrara de encontro ao peito, a lisa coronha, o frio aço, as sedutoras balas, ficariam por usar; a arma que matara Desmond Newborn não se viraria também contra a sua sobrinha-neta.

 

Sinto a tua falta, Alan proferiu ela para o ar. Amo-te. Toma conta da Bella.

 

Depois, fechou a porta e desceu para dizer aos seus companheiros que estava pronta para se ir embora.

 

Ela e Vivian voltaram para casa dele, para os ricos aromas e provocadoras formas. Ele sugeriu convidar alguns amigos íntimos de Rae para uma refeição informal nessa noite, e ela concordou, mas a alegria inicial do seu regresso não foi bastante para enfrentar as tarefas da tarde e da manhã seguinte. Idas à esquadra e telefonemas, documentos legais e bons amigos com os olhos cheios de alegria e preocupação; muita gente, demasiada para uma mulher habituada à solidão. Guardou as horas passadas com a madeira de Vivian na memória, e despachou o resto. Ao terceiro dia, estava mais do que pronta para partir.

 

Arrastou-se até ao último banco do avião, demasiado cansada para se sentir nervosa, e conservou os olhos fechados durante toda a viagem. O pequeno avião saltou e rangeu até aterrar na ilha de San Juan quase no lusco-fusco. Ed foi buscá-la numa carrinha igualmente barulhenta, e levou-a até ao Rainha das Orcas e depois para a ilha. Falou tão pouco que Rae pensou se teria feito alguma coisa que o ofendesse ou talvez ele se sentisse intimidado pela sua transformação de construtora em imitação de advogada. Em qualquer dos casos, não lhe apetecia perguntar o que se passava e, embora lhe oferecesse café, não insistiu quando ele recusou.

 

Mas eu acompanho-a até à tenda disse ele.

 

Não, não é preciso.

 

Não tem lanterna.

 

Ainda há bastante claridade. A Lua já apareceu, e eu estou habituada a andar por aqui no escuro. Não se preocupe comigo.

 

Bom, se acha que é assim. Segurou o barco de encontro à doca enquanto ela desembarcava, e depois largou-o. É bom tê-la de volta, Mistress Newborn. Não "Rae", reparou ela.

 

Obrigada, Ed. Até terça-feira.

 

As luzes afastaram-se e o barulho do motor desvaneceu-se. Rae trepou para o promontório, deixou cair a mochila aos pés e levantou a cara para a noite. Não vira estrelas nas últimas quatro noites, não sabia se a Lua teria caído do céu, e cada célula do seu corpo lhe dizia que estava a respirar as exalações doutras pessoas havia demasiado tempo. Ali, até o silêncio era diferente, reconfortante como um amigo que não exigisse conversa. Ao contrário do silêncio em volta de Don Collins e da sua maldita acção em tribunal, um silêncio que lhe recordava a descrição de Desmond duma terra de ninguém, à procura de ouvir o som dum inimigo sorrateiro. Devia ter dado instruções a Pam para o enfrentar e descobrir o que tramava. Não era altura de se armar em descontraída, não com Don em pessoa prestes a chegar ali.

 

Ou talvez não. Talvez fosse preferível ignorar tudo aquilo. Sim, as coisas às vezes iam-se embora sozinhas.

 

Respirou fundo, passou os dedos pelo cabelo cortado, espreguiçou-se e depois olhou para o escuro barco à vela ancorado ao largo. Para o diabo com eles, decidiu, despindo-se para dar um mergulho nua na água gelada da enseada.

 

Vestiu-se e preparou a fogueira, mas, antes de o lume ter pegado, agarrou na lanterna e dirigiu-se à casa. Os seus passos ecoaram nas paredes nuas, e o aroma da madeira recebeu-a como um amigo. A construção parecia um organismo em êxtase, com a pilha de triângulos de cedro para a escada onde ela a deixara na terça-feira de manhã, e o cinto das ferramentas pendurado no seu prego por cima da porta secreta. O martelo tocou-lhe no braço quando foi tirar a arma do esconderijo. O ar da gruta pareceu-lhe bastante seco, pelo que resolveu deixar a caixa das ferramentas onde estava, e enfiou o revólver no bolso da camisola de capuz que trazia. Ficou pendurada como a bolsa dum marsupial com o seu bebé, mas fê-la sentir-se mais segura contra os ruídos da noite.

 

O lume ardia bem quando voltou para o acampamento, com as faíscas a subirem no escuro. Aqueceu e comeu uma lata de feijões e uns vegetais sem graça. Tirou a chaleira da parte mais quente da lareira e deitou a água por cima dum saquinho de chá na caneca, apagou o candeeiro para evitar que a nuvem de insectos se tornasse mais densa, e estava prestes a sentar-se de novo quando ouviu o inconfundível ranger ritmado de passos a aproximarem-se... e não vindos da praia, mas sim da encosta da colina atrás da tenda. A caneca de chá voou pelo ar quando Rae mergulhou em direcção ao cedro caído, lutando ao mesmo tempo desesperadamente para libertar a arma do bolso.

 

Os passos aproximaram-se mais, passos normais sem qualquer dissimulação, o que só por si era aterrador. Mais meia dúzia de passos, depois deram a volta à tenda e pararam. Rae apertou os olhos, esforçando-se por ver para o outro lado das faíscas que subiam, distinguindo um vulto. Estava realmente alguém ali, uma figura sólida, mais alta do que a parede lateral da tenda. A única parte do intruso que Rae conseguia ver claramente era um par de mãos masculinas, estendidas para a frente de maneira a ficarem na claridade, com longos dedos bem abertos e as palmas voltadas para fora, numa declaração de paz.

 

Estou armada disse ela a custo.

 

Eu sei proferiu uma voz, e qualquer coisa na entoação, juntamente com a forma das mãos, fê-la hesitar. Baixou ligeiramente o revólver e levantou a cabeça.

 

Jerry? perguntou, em dúvida.

 

Não respondeu o vulto. É o Alan.

 

Diário de Desmond Newborn

 

6 de Junho de 1925

 

Por fim, as paredes da minha casa começaram a erguer-se acima das pedras. "E, no entanto, lamento que sejam necessárias. Numa noite como a de hoje, gostava de deixar a minha casa aberta à brisa e às aves, de permitir que a maravilhosa luz da Lua brilhasse livremente sob a mais ténue sombra dum telhado.

Mas os corvos e os guacinis iam roubar-me tudo e, após quatro anos aqui, a constante e enervante sensação de vulnerabilidade proveniente da exposição, de estar sentado numa costa escura debaixo duma luz solitária, não se tornou menos monótona.

 

Mais tarde, Rae não conseguia acreditar que não lhe dera um tiro ali mesmo. Claro que o choque daquele nome entre todos os outros a percorrê-la devia ter-lhe agitado o dedo já a tremer de encontro ao gatilho. Não teria sido preciso fazer muita força. Em vez disso, ficou hirta, sem respirar ou pestanejar atrás do tronco caído, a olhar para as chamas e para as duas mãos estendidas do outro lado, até que sentiu o coração dar um salto e o tempo retomar a sua marcha.

 

Podia dar-lhe um tiro aqui mesmo disse ela, como se as palavras pudessem tomar o lugar da acção.

 

Os dedos do homem afastaram-se mais uns dos outros.

 

Não, por favor pediu ele.

 

Por um motivo qualquer, aquela reacção travou Rae. Daí a pouco, aclarou a garganta, inexplicavelmente dorida, e perguntou:

 

Porque não?

 

Porque vim cá para falar consigo, desarmado, abertamente. Até esperei que você tivesse a arma consigo. Não me parece justo que a use contra mim.

 

A voz dele era baixa e melodiosa, as palavras razoáveis e o tom incrivelmente divertido. Rae abriu a boca para lhe dizer que avançasse para a luz, quando lhe ocorreu um pensamento terrível. Se ele sabia da arma, podia ter-lhe deitado a mão. Tentando mantê-lo à vista, espreitou para o tambor do revólver, ficando momentaneamente vulnerável, mas ele permaneceu onde estava, e as cinco balas encontravam-se no seu lugar. Pareciam não ter sido mexidas. Sentiu-se tentada a disparar uma para o ar, só para ter a certeza, mas andavam inocentes ali à volta.

 

Avance, para eu poder vê-lo ordenou ela, com a voz não muito firme.

 

Ele deu uns passos, até que Rae conseguiu distinguir as feições dum homem alto e magro duns cinquenta anos, com a cara com o aspecto vulnerável de quem acaba de rapar a barba. Tinha o cabelo também com o ar de ter sido cortado recentemente, também, dando ideia de o usar normalmente comprido talvez porque as suas feições ascéticas pedissem uma moldura de cabelo a ondular abaixo das orelhas. Parecia uma imagem estranhamente romântica, porque o resto do intruso nada mais aparentava de santo. Trazia uma camisa de quadrados desbotada debaixo dum blusão de ganga, calças de ganga mais escura que precisavam de ser lavadas e botas sujas. Nenhuma jóia, nem sequer um relógio. Continuava com as mãos erguidas e os dedos abertos, tão imóveis como o resto dele sob o olhar de Rae.

 

A pele nua da cara era a única coisa remotamente vulnerável no homem. Os olhos castanhos eram impassíveis notavelmente calmos para alguém sob a mira duma arma. Quase como se fosse ele a pessoa armada. Se tivesse ido ali para a matar, fá-lo-ia de maneira eficiente; não seria espancada e violada.

 

Ideia animadora... Voltou a olhar para a cara dele. Lembrava-lhe vagamente alguém conhecido.

 

Quem é você?

 

Chamo-me Allen Carmichael.

 

Alan... é alguma coisa ao Jerry?

 

É meu irmão.

 

Algumas coisas muito poucas vieram-lhe à memória.

 

Você é o irmão que desapareceu. Ele falou-me de si.

 

Ai sim? E que foi que lhe contou?

 

O vago tom sardónico da pergunta espicaçou Rae, que decidiu ser directa:

 

Entre outras coisas, que nunca se recompôs do Vietname.

 

O Vietname foi uma daquelas coisas que se mostraram difíceis de ultrapassar, realmente. Alguns de nós tiveram de se contentar em andar à volta dela.

 

O seu nome é A-L-A-N? perguntou Rae de repente. Seria demasiada coincidência.

 

A-dois LL-E-N disse ele, para alívio de Rae. Depois, perguntou: Teve alguém íntimo com o mesmo nome, não teve?

 

Como é que sabe? Mexeu nas minhas coisas? perguntou ela, desconfiada, levantando de novo o revólver.

 

Para seu espanto, o homem deitou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, uma enorme e gostosa gargalhada. Era a coisa mais espantosa que fazia até ali e, para dizer a verdade, Rae teve pena que ele ficasse sério e tornasse a levantar as mãos.

 

Quando chegou à ilha, eu estava lá em cima a tentar perceber que raio vinha você fazer aqui, e encostei-me a um ramo seco. Deve ter ouvido, porque apanhou um bocado de lenha da fogueira e atirou-a na minha direcção. Depois, começou a gritar: "Allen, filho da mãe", sem parar. Estava furiosa, o que não consegui perceber, e sabia o meu nome... Isso é que me assustou de verdade. Mais tarde, decidi que não tinha ouvido bem, mas, na altura, sempre lhe digo que fiquei preocupado. E agora, quando lhe disse o meu nome, você reagiu duma maneira que acho que Allen deve ter um significado para si.

 

O meu marido chamava-se Alan. Morreu disse Rae depois dum curto silêncio.

 

Ah... retorquiu ele, continuando num tom de voz diferente: Então, quando eu lhe disse o meu nome, deve ter pensado... Credo, foi um milagre não me ter ferrado um tiro!

 

O que é que está a fazer aqui?

 

Era disso que queria falar consigo. Posso sentar-me? Já me doem os braços.

 

Rae pensou no assunto e acabou por dizer:

 

Sente-se naquela cadeira, à luz da fogueira, para eu poder vê-lo.

 

Preferia não ficar muito perto do lume, se não se importa. Se chega alguém à enseada e me vê, talvez tenha problemas em explicar a situação. Ia estragar os planos duma data de gente.

 

Rae devia ter insistido. Afinal, ela tinha a arma, e ele estava na sua propriedade, constituindo uma ameaça potencial. Mas o homem não lhe despertava vibrações negativas. Por um motivo que seria incapaz de explicar, pareceu-lhe natural acenar com a cabeça e dizer:

 

Está bem, mas não se sente no escuro, porque eu quero vê-lo. Avançando deliberadamente, o homem pegou na cadeira onde Rae estivera prestes a instalar-se uns minutos antes e afastou-a um pouco da claridade da fogueira. Depois, hesitou, baixou-se para apanhar a caneca do chão e colocou-a num tronco que servia de mesa. Só então se sentou. Quando o viu descansar as mãos nos braços da cadeira, bem à vista, Rae passou uma perna por cima do tronco caído e sentou-se na terra, encostada a ele. A luz da fogueira tocava-lhe no nariz e na boca, e ela percebeu de repente onde o vira anteriormente, e por que motivo achara que a cara dele parecia precisar de mais cabelo.

 

Você estava numa carrinha, à espera do ferry naquela noite... Na noite em que desapareceu a garota Andrews.

 

Bolas! exclamou ele, com as feições de monge relaxadas num sorriso. Eu sabia que você me tinha visto. Devia ter puxado o chapéu para baixo e fingido que estava a dormir, mas vi-a aproximar-se e não consegui evitar ver a minha senhoria mais de perto.

 

Importa-se de explicar o que acaba de dizer? perguntou Rae, apertando os olhos e segurando a arma com mais firmeza.

 

Eu vivo aqui. Na Loucura. Não o tempo todo, mas uns dias de cada vez, e admito que nunca pus a morada na carta de condução, mas, nos últimos oito anos, isto é o que eu considero a minha casa.

 

Mas... onde?

 

Numa gruta, do outro lado da ilha. Uma gruta pequena, logo acima do nível do mar, mas é seca e suficientemente quente, e não fica longe de água doce. É um abrigo bastante rudimentar, pouco mais do que um buraco na terra, mas acaba por ser confortável.

 

E onde é que vive quando não está na gruta? perguntou ela. Porque é que te interessas?, perguntou a si própria. Porque é um homem interessante, que diabo!

 

Onde o trabalho me chama. Los Angeles. Denver, Spokane. O mês passado, por mera coincidência, o trabalho trouxe-me aqui. Como já aconteceu umas quantas vezes. E por isso é que vim falar consigo, porque a sua presença na ilha muda as coisas. Seria difícil dizer que não sabia, se me apanham cá. Podiam considerá-la cúmplice. Se você decidir arriscar-se, isso é outra coisa, mas não posso deixar que se torne vulnerável por ignorância.

 

Está a fazer qualquer coisa ilegal na Loucura... adiantou Rae. Contrabando. De quê? Drogas? Armas? Fréon?

 

Fréon?

 

Ouvi dizer que se ganha muito dinheiro com isso.

 

Fréon... Estamos sempre a aprender. Não, eu faço contrabando duma coisa que pode ser tecnicamente contra a lei, mas não o faço por dinheiro e, na minha opinião, nunca é imoral. Faço contrabando de pessoas.

 

De criminosos ou de imigrantes ilegais?

 

Bom, parece-me encorajante você fazer distinção entre as duas coisas. Dessa vez, o seu sorriso era quase agarotado, o que a fez sobressaltar-se. Era o sorriso de Alan. Não. De crianças maltratadas e mulheres em perigo. Pessoas que precisam de se esconder.

 

A garota Andrews! Foi você que a tirou ao ferry...

 

E mantive-a aqui durante nove intermináveis dias, até a mãe poder vir ter connosco. Pobre miúda, estava tão farta da minha música! Seja como for, passaram uma noite juntas na gruta, e depois levei-as para norte.

 

O Jerry calculou que tivesse sido assim.

 

O meu irmão? perguntou ele, alarmado.

 

Sim, calculou pela reacção dos pais e depois por a mãe ter desaparecido também. Até se referiu a "contrabando de pessoas", acho eu. Mostrou-se compreensivo. Pelo menos, não achou que se devia procurar muito.

 

Interessante comentou ele. Mas o Jerry é chui, por dentro e por fora, e se me apanhasse podia fazer muito mal. É por isso que estou aqui a falar consigo. Se sente que deve contar-lhe, por favor, avise-me. Se não gosta do que eu faço, diga e saio imediatamente da ilha. Sei que se dá bem com o Jerry, e não é justo pedir-lhe que lhe esconda uma coisa destas. Se tem uma relação com ele, basta uma palavra sua e eu desapareço.

 

Não tenho.

 

Mas ele vem cá.

 

O Jerry é um amigo. E no capítulo de relações pessoais, é um bocado burro. Conhece a Nikki Walls? Claro que conhece, você foi casado com a irmã dela, não foi?

 

Ele não respondeu, limitando-se a perguntar:

 

O Jerry está interessado na Nikki?

 

Bom, não, mas... Rae interrompeu-se. Aquilo seria da conta dele? Ou estaria simplesmente a tentar que ela baixasse a guarda para... quê? Se quisesse atacá-la, porque esperara que ela tivesse uma arma na mão? Depois, outra coisa lhe veio à ideia.

 

Spokone! Desapareceram lá duas raparigas.

 

A Ellie e a Joanna Rugeley.

 

Foi você?

 

Eu e outros.

 

Porquê?

 

A mãe morreu, e o pai abusava delas. Tinham uma tia na Europa que queria ficar com elas. Ajudei-as a ir para lá.

 

Quatro simples declarações, e duas vidas tiradas dum inferno. Se pudesse acreditar nele.

 

Tem alguma prova?

 

De quê? De que o filho da mãe abusava delas ou de que as ajudei a fugir?

 

De que as raparigas foram mesmo para junto da tia.

 

Ah, exclamou ele, percebendo o que ela queria saber. E prova de que a Caitlin e a mãe estão juntas.

 

Sim.

 

Claro que tenho. Acredite em mim, tenho documentos de tudo, protejo-me sempre. Cartas assinadas de pessoas amigas, vizinhos e professores, declarações de médicos, gravações do que se passa nas casas com as portas fechadas, e até vídeos, às vezes. Depois, arranjo provas de que ainda estão vivas duas semanas depois. Não sei se a carta da Caitlin Andrews e da mãe já chegou, mas tenho uma da Ellie e da Joanna. Talvez tenha lido que a Joanna escreveu a uma amiga a contar que ela e a irmã haviam fugido. Isso faz parte do processo, afasta a Polícia. Escreveram-me ao mesmo tempo, para o meu arquivo. Podia mostrar-lhe a carta delas, mas guardo tudo em Seattle. Tínhamos de ir até lá.

 

Então, aqui, não tem qualquer coisa que me prove que não... matou essas raparigas. Ao dizer aquilo, Rae preparou-se para alguma reacção, desde indignação até violência, mas tal não aconteceu. Ele continuou como estava, sério e vigilante.

 

Não, aqui não. Nunca tenho qualquer prova aqui na ilha, nada que possa ser seguido. Nunca se sabe quando alguém dá com a gruta, e não vale a pena arriscar.

 

Aquelas palavras ficaram a pairar entre eles. Olharam um para o outro por cima da fogueira, enquanto Rae tentava decidir o que fazer. Allen Carmichael era um criminoso confesso, um intruso que saíra da noite para dentro da sua vida, e todo o bom senso lhe gritava que devia amarrá-lo a uma árvore e entregá-lo ao irmão.

 

No entanto, o bom senso nunca fora o forte de Rae. E parecia-lhe ouvir a voz de Vivian, muito sério debaixo do seu humor: Confia nos teus ossos, Rae.

 

Os ossos dela deviam estar a tremer. Uma mulher que não conseguia atravessar um aeroporto simpático e seguro, cheio de gente, sem ter a certeza de que alguém estava prestes a atacá-la, uma mulher com vívidas recordações do que sítios solitários podiam esconder, do que os estranhos podiam fazer... devia estar no limite do mais abjecto terror. Que se passaria com o seu mecanismo bem oleado? Devia levantar-se e desatar a correr para o promontório, aos gritos para alertar o veleiro e toda a gente a quilómetros dali; em vez disso, sentia a arma cada vez mais desnecessária e a sua posição agachada junto ao cedro caído cada vez mais ridícula. Os ossos diziam-lhe que Allen Carmichael era exactamente o que dizia ser. Os ossos diziam-lhe que devia oferecer-lhe um copo. Os ossos estavam cansados de se sentar na terra dura.

 

Que inferno! Todas as decisões importantes que tomara haviam sido completamente irracionais. Apaixonar-se por Alan, ter Bella, dedicar-se à madeira, vir para a Loucura... tudo irresponsável, tudo mudanças. Porque não mais uma, sabendo que podia perfeitamente ser a última? Confia nos teus ossos, Rae.

 

Tirou o dedo do gatilho do velho revólver e guardou-o no bolso do blusão. Com esse movimento, o seu... O seu quê? Inquilino? Hóspede! Assassino em série residente?... descontraiu-se mais na cadeira e sorriu abertamente quando a viu de pé.

 

Quer beber alguma coisa? perguntou ela.

 

Adorava.

 

Vinho, cerveja ou uísque? Está tudo quente, lamento.

 

Uma cerveja, obrigado... ou não! Tomo uma bebida a sério consigo. Um uísque pequeno.

 

Rae serviu dois, e instalou-se na cadeira defronte dele. Allen levantou o copo e disse:

 

Ao Santuário.

 

Ao Santuário repetiu ela. Beberam ambos um gole, como que a selar um pacto.

 

Estou curioso. Conte-me lá do meu irmão e da Nikki pediu ele, estendendo as pernas para o lume.

 

Pouco há para contar, na realidade. Segundo percebi, o Jerry é tão cavalheiro que acha que, pelo facto de conhecer a Nikki desde criança e de ela poder ter mais ou menos qualquer homem das ilhas, os quinze anos a mais o deixam fora da corrida.

 

É parvo concordou ele. Depois, bebeu um gole e saboreou o uísque.

 

A Nikki acaba por ficar com ele, acho eu. Ele precisa de alguém que sinta estar a proteger.

 

Mas eu vi-o trazer-lhe flores protestou o irmão do xerife, sem pensar.

 

Você costuma vigiar-me, não costuma? perguntou Rae, sentindo as suspeitas voltar.

 

Não, não a si. Mas verifico sempre a enseada antes de pôr o meu barco na água, e vi-o uma noite destas, sentado aqui com um ramo de flores em cima da mesa. Não a vigio desde os primeiros dias.

 

Rae não tinha a certeza de ele estar a ser completamente verdadeiro; no entanto, os seus nervos não reagiram à ideia daqueles olhos sobre ela lá de cima da colina. Não lia qualquer ameaça nos olhos de Allen Carmichael, nem sequer um julgamento, apenas uma imensa compreensão. De repente, pensou que ele devia ser muito bom com crianças assustadas... e com mulheres para quem os homens eram geralmente ameaçadores.

 

Conte-me o que faz exactamente.

 

O quê, para dar sumiço às pessoas?

 

Sim, da sua organização. Tem nome?

 

Nem nome nem é uma verdadeira organização, no sentido duma fachada pública. São sobretudo mulheres a ajudar outras mulheres a fugir de situações impossíveis e muitas vezes perigosas. Mas, de vez em quando, é preciso um homem, pela força ou para distrair as atenções ou simplesmente para fazer de marido quando a polícia não procura um casal. E outras vezes, temos de esconder os clientes durante uns dias, de os fazer desaparecer da face da terra. Aí, entro eu. Faço-os desaparecer, até as buscas abrandarem e podermos passar à fase seguinte.

 

Como é que se envolveu nisso?

 

Os olhos escuros baixaram para o copo que tinha na mão, e Rae lembrou-se de Jerry lhe falar num incidente passado no Vietname.

 

Deixe lá, não precisa de me contar.

 

As experiências transformam as pessoas começou Allen, como se ela não tivesse falado e ele estivesse apenas a pôr os pensamentos em ordem. Mudam literalmente a estrutura do cérebro. No meu caso, uma única experiência durante a guerra destruiu-mo e reconstruiu-mo completamente. Foi o que os jornais classificam de "atrocidade". Um grupo de rapazes amedrontados e zangados com metralhadoras nas mãos foi levado até ao ponto de rotura e atirado para o mais próximo alvo conveniente, que por acaso era uma aldeia de civis. Morreram oitenta e três pessoas inocentes, mulheres, crianças e velhos. Eu podia tê-lo evitado, se tivesse prestado atenção, mas não prestei. Não prestei. "Tenho pesadelos com aquilo continuou ele simplesmente. Sobretudo com as crianças. Oiço as vozes delas... algumas ainda estavam vivas quando entrei na aldeia. E, para encurtar uma história longa e complicada, quando voltei para casa, acabei por descobrir que a única maneira de conseguir dormir à noite era passar o dia ao serviço de crianças.

 

Rae não encontrou resposta àquilo. Ele levantou os olhos para ela, e sorriu diante do que viu.

 

Não fique assim, por amor de Deus. Tenho um objectivo na vida, um trabalho que é importante e que faço bem. Quantas pessoas conhece que possam dizer o mesmo?

 

É uma vocação. Uma missão murmurou ela, pensando por que razão veria aquele homem cansado e enxovalhado rodeado de imagens de disciplina monástica e de nobrezas de cavaleiro?

 

Não sei se vou tão longe respondeu ele. Para lhe dizer a verdade, às vezes penso que faço isto por gostar de sarilhos e de me safar onde os outros falham.

 

Tinha um riso maravilhoso, profundo e contagiante.

 

E eu a pensar que o irmão mais novo é que devia ser o rebelde contra o mais velho comentou Rae.

 

E, eu e o Jerry... Sabe, eu decidi ser franco consigo na terça-feira de manhã quando vi o meu irmãozinho vir cá buscá-la. Tive a certeza de que me tinham descoberto e ele estava a afastá-la antes de aparecer com a tropa e os cães, mas a tropa não chegou a desembarcar.

 

Não, tive de ir à Califórnia durante uns dias, para tratar dum assunto.

 

Calculei que não se demorava muito, quando vi como deixou as suas coisas.

 

Foi você que passou revista à tenda, não foi? Antes disso, há umas duas semanas.

 

A sua tenda foi revistada? Quando? perguntou ele, inclinado para a frente e olhando atentamente para ela.

 

Entre o dia em que acabei o telhado, a noite em que viu o Jerry aqui com as flores e a véspera da partida para a Califórnia.

 

Lamento, mas não fui eu. Dei uma espreitadela quando você chegou cá, pelo que peço desculpa, mas tenho tido muito que fazer desde essa altura. Devem ter sido fedelhos dos barcos. Nos últimos dias, afugentei dois grupos, com barulhos de fantasmas. O que me faz lembrar: não se admire se ouvir dizer que a Loucura está assombrada.

 

Rae cada vez confiava menos na sua memória. Tinha sido descuidada e deixara o tabuleiro da caixa das ferramentas ao contrário, fora o que fora. Estendeu a mão para a garrafa e deitou mais um pouco de uísque nos dois copos.

 

Como é que encontrou a gruta? perguntou ela. A sua gruta. Não a vi quando dei a volta à ilha.

 

Descobri a entrada quando era miúdo. Costumava andar à volta das ilhas de barco à vela, mas é óbvio que já foi usada por outras pessoas durante anos. Contrabandistas, sobretudo. Fica por trás duma pequena península rochosa, com árvores que chegam até ao chão, não muito longe da queda-dágua. Tenho ajudado os ramos das árvores a escondê-la, mas era difícil de ver mesmo sem isso, e quase impossível de penetrar excepto com a maré baixa.

 

Foi você o idiota que deu cabo do barco?

 

O quê?

 

Rae deu uma gargalhada, e depois outra quando escutou o som da primeira. Parecia-lhe ter asas, sentiu-se como uma árvore morta do Inverno a cobrir-se de novo com flores. Sentiu-se... sentiu-se à vontade. E não só por causa do álcool.

 

O Jerry contou-me que só conhecia dois idiotas capazes de tentar chegar à Loucura sem ser pela enseada, e que um deles tinha dado cabo do barco na tentativa.

 

Não, não fui eu! Eu fui o que conseguiu. De facto, foi nesse dia que encontrei a gruta, quando estava a acudir ao Jerry. Ele foi o idiota que deu cabo do barco nas rochas. O pai ficou danado.

 

Que pena eu não poder gozá-lo por causa disso!

 

Pode sempre dizer que outra pessoa qualquer lhe contou. Toda a gente soube, quando éramos rapazes. Não da gruta, claro.

 

Mete lá pessoas realmente? Desmond talvez achasse a pequena gruta atrás da casa confortável durante uma tempestade, mas ela não gostaria de ser obrigada a passar lá muito tempo.

 

Olhe que é bastante confortável. Alguns dos garotos mais velhos chamam-lhe a caverna do Ali-Babá... Quem tem mais dificuldade em adaptar-se são as adolescentes, porque não tenho secador de cabelo nem Internet. Mas possuo uma colecção de cartazes que podem pôr nas paredes... o que ajuda, e todos os CDs que possa imaginar, mais uma tonelada de pilhas.

 

A maré baixa! exclamou Rae de repente. Eu costumo ouvi-lo a entrar e a sair na maré baixa. Você tem um barco de borracha preto.

 

Eu sabia que me tinha visto. Mais tarde ou mais cedo ia encontrar-me disse ele, penalizado.

 

Sem barco, seria difícil. Quer mais um copo? Ambos estavam vazios.

 

É melhor não. Duas bebidas são mais do que costumo beber num dia inteiro.

 

E café? Sabe, não sei se consigo tratá-lo por... aquele nome. É demasiado estranho para mim.

 

Uma data de gente trata-me por Mike, por causa do meu apelido.

 

Mike. Pode ser Michael?

 

Claro. E estou capaz de matar por um café. É uma coisa que não posso arriscar, na gruta. Qualquer cheiro que abafe o das algas tem de ser evitado.

 

Enquanto enchia a chaleira, Rae soltou uma gargalhada de repente.

 

Conhece aquela anedota do Adão a dar nomes aos animais?

 

Allen Michael abanou a cabeça, e ela continuou: Bom, não tem muita graça. O Adão estava sentado no Paraíso, a dar nomes aos animais. Deus ia-lhos trazendo, um de cada vez, e ele olhava para eles e ia dizendo: a este, vou chamar papagaio, àquele tigre, e a este girafa. Deus está à espera que ele descubra a Eva, percebe, para escolher a criatura com quem queira passar a vida, mas o Adão continua a inventar aqueles nomes: porco-espinho, gato, rinoceronte. Assim, o dia já vai longo e Deus começa a ficar impaciente, enquanto os nomes de Adão ficam cada vez mais disparatados... ornitorrinco, hipopótamo... até que Deus se farta daquilo e, quando Ele traz um bicho muito esquisito e o Adão exclama oricterope, Deus explode: "Porque é que estás a dar esses nomes tão esquisitos às Minhas criaturas?", grita Ele. "Ninguém vai respeitar um animal com um nome como oricterope!" E o Adão, também muito chateado com aquela história, todo o dia à espera duma mulher e a apanhar com aqueles animais todos, pergunta: "E Tu, que nome é que lhe darias?" E Deus responde: "Que tal Mike?"

 

Rae ficou a olhar para ele e ele para ela, até que Allen falou primeiro, com uma expressão séria, mas os cantos da boca a tremer:

 

Tem toda a razão. Não tem muita graça.

 

Desataram os dois a rir ao mesmo tempo, desfazendo os últimos vestígios de tensão.

 

Não, mas vem a propósito acabou ela por admitir, deitando a água a ferver sobre o café.

 

Como é, quer tratar-me por oricterope?

 

Ora aí está uma ideia. Quer o café com...?

 

Mas não iam beber café nessa noite. Um poderoso motor que nenhum deles tinha ouvido aproximava-se da enseada, cortando a fácil camaradagem como um machado. Ouviu-se uma agitação do outro lado da lareira, e Rae descobriu que Allen Carmichael tinha desaparecido por completo e só o assento de lona ligeiramente levantado traía a sua existência. Pela primeira vez, Rae chamou-o pelo nome, e o som dos passos parou para lá da tenda.

 

Olhe, pode usar a caverna à vontade, e mais qualquer coisa de que precise na ilha. Eu não conto ao seu irmão. E diga-me se posso ajudar, se precisa de dinheiro ou de alguma outra coisa.

 

Obrigado respondeu ele em voz baixa. Vou estar fora duas semanas, e aviso-a quando voltar.

 

Boa sorte disse Rae na direcção da tenda.

 

Esconda o meu copo! recomendou ele. Depois, com uma restolhada de botas na colina, o fantasma da Loucura desapareceu.

 

Vibram soles, pensou ela. Já estava a sentir-lhe a falta.

 

Pegou no copo dele e pô-lo no chão atrás do canto da tenda, acendendo o candeeiro em seguida. Encaminhou-se para o cais com ele na mão para ver o que trazia Jerry Carmichael à sua ilha às onze e meia da noite, e deu consigo a cantarolar. Levou algum tempo para identificar a música e, quando o fez, abanou a cabeça. Era Alguém para Tomar Conta de Mim...

 

Pelo menos, Jerry não trazia flores. E vinha fardado, embora fosse evidente mesmo à luz dum candeeiro de petróleo que a roupa não estava imaculada como habitualmente.

 

Está com ar de quem teve um dia muito longo comentou Rae.

 

Muito longo mesmo. Desculpe ser tão tarde, mas pensei que talvez ainda estivesse a pé, e depois vi a fogueira e pensei que podia vir. O Bobby Gustafsen resolveu intervir numa luta ontem à noite e apanhou uma facada num braço. Vai ficar bom, mas ligaram para mim às duas da manhã, e o meu dia começou a essa hora. De maneira que foi realmente um longo dia. Deixou-se cair na cadeira tão rapidamente abandonada pelo irmão, fazendo-a ranger, e estendeu as longas pernas para o lume com um suspiro, perfeitamente à vontade. O cheiro que estou a sentir é de café?

 

Surpreendida, Rae olhou para a cafeteira com duas chávenas ao lado, mas como havia mais três alinhadas atrás, a situação não era tão flagrante como receara.

 

Apeteceu-me disse ela.

 

Parece que lhe apeteceu uma cafeteira dele!

 

Bom, sabe como é, tem-se o hábito de fazer certa quantidade duma coisa... A minha avó era incapaz de fazer menos do que três quilos de salada de batata, mesmo só para ela e para o meu avô. Estás a falar sem nexo, Rae, avisou-se a si própria. Desculpe, mas não tenho leite.

 

Quero açúcar, se tiver. Dá energia.

 

Entregou-lhe a lata bem fechada do açúcar e uma colher limpa.

 

Se teve um dia tão cansativo, o que é que não podia esperar por amanhã?

 

Recebi um telefonema esta noite. O Sam Escobar acusou formalmente os dois homens que você identificou, e eles confessaram.

 

Ai, meu Deus, Jerry! Que alívio! Obrigada por ter vindo cá dizer-me. Os dois?

 

Os dois. E... talvez seja melhor sentar-se um instante.

 

Porquê? Que foi?

 

Ele limitou-se a olhar para a cadeira até que ela se deixou cair nela, e só depois continuou:

 

Não foi só o ataque.

 

O que é que quer dizer? Que mais é que houve? Daí a um minuto, estrangulava-o, se ele não falasse.

 

Lembra-se de me ter contado dos barulhos que julgava ouvir à volta da sua casa?

 

E você perguntou-me como é que eu sabia que eram alucinações, e eu disse que sabia.

 

Bom, talvez alguns fossem, mas havia também aqueles dois. Andaram por lá durante duas semanas, antes de a atacarem.

 

Andaram por lá... quer dizer à volta da casa? Meu Deus, que horror! Mas porquê?

 

Foi para isso que lhes pagaram, não para a tentativa de ataque. Para a assustar de noite, todas as noites, até você ficar completamente chalada.

 

E olhe que deu resultado observou Rae, quase sem reparar no que dizia.

 

Infelizmente, não foram capazes de identificar o homem que os contratou. Telefonou-lhes para um bar e repetia o telefonema de dois em dois dias. Eles contavam-lhe o que tinham feito e o que você fazia, e ele dava-lhes as ordens seguintes. Pagou-lhes em dinheiro, com envelopes deixados e recolhidos, de maneira que nunca o viram. Ficaram num motel perto da auto-estrada, dormiam de dia, iam de carro e deixavam-no numa estrada secundária que ele lhes ensinou. Depois seguiam a pé até à sua casa. Tudo às escuras. Um deles estava farto daquilo e prestes a desistir quando a voz ao telefone lhes disse que podiam acabar o trabalho com uma viagem mais.

 

Jerry observava-a atentamente para ver a sua reacção, mas as possibilidades abertas por aquela revelação eram demasiado terríveis para ela as entender imediatamente. Começou a sentir formar-se um gemido na garganta, engoliu-o e fez uma pergunta mais ou menos ao acaso, como se falasse doutra pessoa qualquer:

 

O que... que foi que ele lhes disse exactamente que fizessem?

 

Que a magoassem, mas não gravemente, e devia parecer que você tinha caído e não sido espancada. O que ele queria principalmente era que a assustassem. A aterrorizassem. Era isso que ele queria.

 

Não que me violassem?, pensou. Então não havia vigilantes imaginários?, perguntou Rae a si própria, espantada. Nenhum? Os meus vigilantes e os dois homens na estrada, naquele dia eram os mesmos, igualmente reais e sólidos? Todos os olhos e os passos? Todo aquele tempo, em casa, na estrada, na noite...?Não, decidiu ela, relutante mas convicta. Impossível.

 

Pagou mil dólares a cada um continuou Jerry. Prometeu-lhes o dobro, mas não chegou a telefonar com as instruções para recolherem o último pagamento. O Escobar está a tentar descobrir como foi que o homem os encontrou, em primeiro lugar, e como é que sabia que estariam dispostos a fazer o trabalho. Vai demorar algum tempo.

 

E ela também ia levar algum tempo a perceber o significado daquilo. Duma coisa tinha a certeza: alguns dos vigilantes provinham realmente do seu cérebro. Mas a ideia de terem existido outros, corpos vivos a bater-lhe nas janelas e a andar pela sua varanda... Depois do choque inicial, começou a sentir-se tonta de alívio. Não estava louca ou estava, mas talvez não tão longe da realidade como toda a gente e ela própria pensavam.

 

O xerife olhava para ela com uma expressão preocupada, e Rae acordou.

 

Desculpe, que foi que disse, Jerry?

 

Que temos de enfrentar o facto de o homem por detrás disto tudo andar por aí. Acho que devia mudar-se para Roche Harbor durante algum tempo, pelo menos durante a noite.

 

Está a dizer isso como xerife ou como amigo? perguntou ela, esfregando a cara com as mãos e depois olhando para ele.

 

Jerry abriu a boca para responder, mas fez uma pausa. Quando se decidiu a falar, Rae calculou qual ia ser a resposta, pela expressão envergonhada dele.

 

Acho que não me agrada a ideia de você estar aqui sozinha.

 

Por outras palavras, não há motivo para pensar que esse tal... como é que você lhe chama? Intruso? Que ele não tenha voltado para o buraco donde saiu? As pessoas em San Juan continuam a receber chamadas a meu respeito?

 

Não nas últimas duas semanas.

 

E ninguém ouviu falar de alguém a procurar contratar brutamontes num bar de Orcas, ou da súbita aparição de desconhecidos com volumes suspeitos debaixo do braço esquerdo?

 

Não tem graça, Rae. Não brinque com isso.

 

De repente, sentiu-se incrivelmente cansada, como se os últimos três dias se tivessem transformado num rolo compressor a passar lentamente por cima dela. Aeroportos cheios de desconhecidos e um primeiro plano dum possível violador, uma casa destruída e um contrabandista de crianças maltratadas, ser louca e depois não ser louca uma coisa mais, e o seu cérebro explodia.

 

Que outra coisa posso fazer, Jerry? Que raio posso eu fazer? Já falámos disto tudo. Você não tem provas de que anda por aí alguém, pois não? Eu lido com estrondos na noite desde que você brincava com pistolas de fulminantes, Jerry. Não consigo lidar com a paranóia doutra pessoa e ao mesmo tempo com a minha. Vá-se embora, Jerry, pensou. Deixe-me em paz. Só queria dormir durante uma semana, mesmo que isso significasse um vigilante sem rosto aparecer pé ante pé e matá-la enquanto dormia. A não ser que esteja a esconder alguma coisa de mim, tudo isso é muito parecido com paranóia.

 

Não admitiu o xerife. Não tenho qualquer prova de que tem aqui um intruso.

 

A derrota na voz dele chamou-lhe a atenção.

 

Pode ser que tenha razão, Jerry. Pode andar alguém atrás de mim. Como diz o ditado, lá por se ser paranóico não quer dizer que o mundo não ande atrás de nós. Credo, Rae, só contas piadas parvas esta noite e... Se encontrar alguma coisa concreta, prometo ouvi-lo. Bolas, provavelmente vou passar uma semana em claro, de qualquer maneira, e tem muita sorte se eu não disparar foguetes de dez em dez minutos. Mas, quanto a segurança, estou melhor aqui do que em Roche Harbor. Você mesmo disse que é praticamente impossível chegar junto de mim sem eu dar por isso. E a segurança da Petra?, perguntou a sua mente traidora, mas recusou-se a pensar no assunto.

 

Está bem disse ele, erguendo as mãos ao céu. Mas vamos aumentar a vigilância, por isso não se admire se vir uma data de lanchas por aqui e se for sobrevoada por hidroaviões de vez em quando.

 

Óptimo. Como queira. E obrigada, Jerry. É um bom amigo.

 

A sua intenção fora agradecer-lhe sinceramente, e foi isso precisamente que Jerry ouviu. Levantou-se pesadamente e olhou para ela, parecendo mais velho do que o irmão.

 

Um dia antes, talvez Rae lhe tivesse estendido os braços, ou até o levasse para a cama, para o diabo o bom senso; mas naquela noite ele era um amigo, e nada mais.

 

Viu que estava magoado. A coroar o seu longo dia e a sua recusa em ser apaparicada, tinha de fazer qualquer coisa. Deixou escapar a primeira coisa de que se lembrou:

 

A Nikki gosta de si, Jerry.

 

Ele recuou, tão espantado como se ela se tivesse atirado a ele.

 

Rae continuou, decidida:

 

A idade não tem importância, Jerry, e as ligações familiares não precisam de atrapalhar. Ela precisa de si, e ama-o de verdade. Está a sofrer por você não perceber. E o Caleb adora-o. Dê-lhe uma oportunidade.

 

Ele abriu e fechou a boca umas quantas vezes, sem som. O pobre homem nem sabia o que lhe caira em cima, viu Rae. A sua única reacção foi voltar as costas e dirigir-se ao barco, deixando Rae com as suas revelações.

 

O que era pior? Vigilantes imaginários ou reais? O facto de saber que pelo menos alguns dos ruídos na noite tinham sido reais era ao mesmo tempo muito tranquilizador e francamente assustador. Deu consigo uma porção de vezes naquela noite a desejar que o xerife a tivesse algemado à lancha e arrastado para fora da ilha.

 

Por outro lado, o que sabia não alterava grande coisa. Percebera algum tempo antes que alguém tentava assustá-la, só não soubera qual a dimensão dessa perseguição. E continuava a não ter dúvida de que alguns dos seus demónios eram imaginários, mesmo que outros não fossem. Portanto, embora as coisas estivessem diferentes, continuavam também muito na mesma. E continuava também a ter pela frente exactamente o mesmo trabalho que antes da aparição de Rae com a sua novidade.

 

Faltavam sete dias para a chegada da família desconfiada e litigiosa da filha, e Rae atirou-se às suas tarefas. Manteve os olhos da nuca permanentemente abertos, dormiu aos poucos, atenta a todos os rangidos, e nunca deixou a arma mais longe do que a mesa-de-cabeceira junto à almofada. Aproximaram-se regularmente motores e avistou aviões a sobrevoarem-na a pouca altura. Não precisou de muito tempo para perceber que grande parte dos veículos não pertenciam ao condado, e a ideia de se ter transformado numa pupila de toda a população enfureceu-a, até que Jerry, numa das suas visitas quase diárias, lhe garantiu que só algumas pessoas discretas sabiam o que se passava. Depois disso, tentou o melhor possível ignorar as invasões mecânicas e cantou bem alto a canção de que se lembrava a seguir à visita de Allen. Mas, com os barcos e os aviões, "tomar conta de mim" tinha fortes laivos de ironia.

 

Jerry e Nikki foram vê-la na segunda-feira, com Caleb, que começara as férias de Verão. Rae não mencionou a coincidência de o xerife e a guarda-florestal passarem uma folga juntos, mas observou-os e apercebeu-se de subtis mudanças nos olhares que Jerry deitava a Nikki menos seguro de si, quase envergonhado. Deixou que as visitas a ajudassem a construir um cubículo para o duche com pedaços desirmanados de madeira e a ligar a caldeira a gás à canalização. Depois, mandou-os embora. Nessa noite, lavada e satisfeita, a seguir a um delicioso duche quente, sentou-se na sua praia e escutou os vizinhos do outro lado do estreito a tocar tambor à lua cheia. De quanto tempo precisaria Nikki para pôr Jerry a tocar tambor na praia com os outros?

 

Na terça-feira, amanheceu por fim o dia fatal. Umas inquietas horas depois, chegou Ed De la torre para a levar até Friday Harbor. Durante toda a viagem, um refrão não a deixou descansar: as frases do diário de Desmond O meu irmão chega amanhã... a ideia de olhar para a cara dele alternadas com as palavras de Pam Church Está doida? A pedir sarilhos. Uma e outra vez. Ed falou pouco, adivinhando a sua perturbação, embora sem compreender bem o motivo. Rae ostentava uma expressão inescrutável, e rezava para que assim se mantivesse quando Don desembarcasse do ferry (olhar para a cara dele... pavor terrível). Para bem de todos, tinha de se manter calma e descontraída quando apertasse a serpente ao metafórico peito.

 

Chegaram à cidade com meia hora de antecedência. Rae ficou pelo terminal e bebeu nervosamente café intragável até o ferry atracar. Então, avançou para receber a família Collins. Petra surgiu num estilo totalmente sinistro, do cabelo pintado de preto às unhas com verniz igualmente preto, mas deitou os braços ao pescoço de Rae como se fosse uma garotinha de seis anos com um vestido aos quadrados. Tâmara estendeu a face à mãe e passou a mala para a outra mão. Rae olhou para todos os lados.

 

O Don? perguntou, quando se tornou evidente que não estavam à espera dum terceiro passageiro.

 

É uma longa história disse Tâmara, com uma olhadela à filha.

 

Rae calou-se, mas conduziu a filha e a neta até ao barco de Ed com um leve raio de esperança.

 

Diário de Desmond Newborn

 

29 de Maio de 1927

 

Um telhado, um telhado! Ao fechar o telhado por cima da minha cabeça, fecho um círculo. Arranjei uma caverna, fiz um abrigo de pedra e madeira que me protege e me isola do firmamento. "Estou separado das outras criaturas de Deus; sou novamente um homem, um membro (embora solitário da comunidade de moradores em casas; deixei de ser uma criatura dos bosques e das colinas. Sento-me à lareira e aqueço os meus pés calçados de meias sem me preocupar com a chuva a escorrer-me pela nuca, e rio-me do desconforto das criaturas inferiores fora da minha porta.

 

"Esta felicidade inesperada atrapalha-me. O combatente que baixa a guarda é o combatente que apanha uma bala entre os olhos. Mesmo por detrás da frente, há granadas por explodir, edifícios prestes a ruir, salas armadilhadas.

 

Mas vou afastar de mim esta sensação, porque estou em segurança, envolto em pedra e madeira. Juntei-me de novo à raça humana, e olho em volta à procura de companhia e a pensar: preciso de dar uma festa.

 

Tâmara saiu do barco de Ed para as pranchas da doca e deitou o seu habitual olhar desaprovador à cansada e queimada tenda de lona, às seis novas cadeiras de lona e madeira dispostas em círculo à volta das gordurentas pedras da fogueira, e à tosca e idiossincrática casa em construção. Pela primeira vez na ocupada semana desde que descera do pequeno avião em San Juan, Rae sentiu-se grata por ter sido obrigada a passar aqueles três dias na Califórnia. As horas com Vivian no meio da madeira tinham sido mais valiosas do que seis meses de psicoterapia na devolução do seu sentido de valor pessoal e identidade. Não era a mãe desequilibrada daquela jovem mulher, não era uma doente mental, não era uma potencial suicida e a dupla vítima duma perda irreparável e dum ataque cruel; era Rae Newborn, uma mulher forte com épocas más e boas no seu passado, determinada a ter ainda momentos bons no futuro. Pegou na enorme mala da filha e levou-a facilmente ao longo do promontório até à tenda. Petra seguiu atrás delas, ainda macambúzia diante da mãe, enquanto Ed depositava na doca o saco de vegetais frescos e leite, bem como um bloco de gelo, e depois se afastava tão silenciosamente quanto os seus motores permitiam.

 

Petra dirigiu-se à casa. Rae largou a mala de Tâmara aos pés dum dos divãs que pedira emprestados e que, ao lado do seu (para Petra, já que ela planeava dormir na casa durante a invasão), ocupavam quase todo o espaço da tenda. O que seria para a neta tinha em cima um saco-cama; os outros dois, lençóis lavados.

 

Pedi-os emprestados para ti e para o Don disse ela à filha. Se ele não vem, posso dormir aqui ou tirar um, para tu e a Petra ficarem com mais espaço.

 

Vamo-nos divorciar declarou Tâmara, olhando para os lençóis lavados, para as caixas a um canto, para qualquer coisa excepto para a mãe. Ele saiu de casa há um mês. Mesmo antes do fim-de-semana do Dia dos Mortos da Guerra.

 

Há um mês? Mas...

 

Eu sei. Devia ter-lhe contado. Pu-lo fora de casa dois dias depois de lhe escrever a dizer que vínhamos cá. Tivemos uma discussão a esse respeito que parecia não acabar, e depois descobri que ele... Pedi à Petrra que não lhe contasse. Queria ser eu a dizer-lhe.

 

Um mês. Rae sentia vontade de desatar aos berros, de dar urros sem palavras, de frustração e alívio, sentia-os formar-se, e lutou para se controlar. Ela pôs o filho da mãe na rua há um mês todo esse tempo à escuta da aproximação do inimigo e sem saber quando era que ele e a maldita acção em tribunal iam aparecer de novo, um mês inteiro a preparar-me para olhar para a cara sorridente dele e conseguir devolver-lhe o sorriso, um mês inteiro completamente desnecessário, como se não tivesse problemas suficientes, como se... Rae recalcou as furiosas recriminações com um esforço que a fez estremecer. Mas conseguiu, e pôde finalmente olhar para a filha, distinguir o sofrimento na cara dela e ser de novo uma mãe. Avançou e envolveu-a com os braços endurecidos pelo trabalho, coisa que não conseguia fazer desde que a filha tinha a idade da neta. Tâmara contraiu-se por instantes, mas depois cedeu e começou a soluçar. Uns minutos mais tarde, Petra apareceu à entrada da tenda. Rae cruzou o olhar com o dela, e a garota vestida de preto, com o cabelo espetado e uns enormes sapatões nos pés, afastou o mosquiteiro e aproximou-se da mãe e da avó. Rae estendeu a mão e puxou-a para o abraço, ficando as três a soluçar agarradas umas às outras.

 

Tâmara foi a primeira a soltar-se, parecendo infelicíssima, com a cara inchada, mas aliviada por o pior já ter passado. Petra recuou também, com a pintura preta a escorrer-lhe pela cara, e foi à procura duma caixa de lenços de papel. Por seu lado, Rae lutava contra a vontade de desatar a cantar.

 

Havia uma data de perguntas sem resposta; no entanto, e durante um longo dia, quase irreal, Rae tentou obtê-las.

 

O caso do marido com a secretária fora o golpe final, confidenciou Tâmara, longe dos ouvidos da filha (de biquini preto na praia). Tinha aturado negócios que ameaçavam o futuro legal e financeiro da família, ignorado as tiradas contra o aspecto, amigas e hábitos de trabalho da filha, e até perdoara as duas vezes em que ele se descontrolara e lhe batera a ela, nunca à filha mas não podia perdoar-lhe ter dormido com a secretária.

 

É claro que havia muito mais e, depois da primeira explosão, foi fácil descobrir o resto. Como Tâmara toda a vida se recusara terminantemente a fazer psicanálise, saiu tudo duma vez. Deixou aparentes as suas muitas culpas: tomar o partido do marido contra a mãe, mesmo sabendo que ela é que tinha razão; privá-la da companhia da neta, sabendo perfeitamente que ela era tudo o que lhe restava, até mesmo a sua vergonha por não ter amado Alan como ele merecia. E, eventualmente, com uma espantada Rae a desempenhar o papel de conselheira, as mais feias e duras verdades vieram também à luz.

 

Como, embora amando a sua meia-irmã Bella, lhe tinha rancor, porque a mãe a amava com tanta facilidade e porque preferira Alan ao seu próprio pai. Como privara a mãe da companhia da neta por causa desse rancor. Como, quando Bella morrera, odiara secretamente a mãe por não se virar para ela, preferindo Petra.

 

E, enterrada ainda mais fundo, uma amarga confissão que precisou de álcool para sair: a sua culpa de toda a vida pelo próprio nascimento. Intelectualmente, sabia que não tinha provocado a loucura da mãe; lera o suficiente sobre o assunto para compreender a inevitabilidade bioquímica da depressão. Contudo, no seu coração, estava convencida de que a culpa era dela. Afinal de contas, o pai, a mãe do pai e o avô William todos lhe tinham dito várias vezes que a mãe estava perfeitamente bem até ela nascer. Como podia deixar de acreditar que Rae trocara a sua sanidade pela vida da filha?

 

Rae ficou sentada com Tâmara nos braços, embalou-a e chorou com ela, amaldiçoando amargamente todos aqueles membros da sua família, amaldiçoando-se a si própria por não ter visto, apesar dos cinquenta e dois anos de experiência íntima com a mecânica da culpa e com as falhas do amor, que Tâmara se culpava de tudo. Como podia ela ter sido tão cega, ao ponto de não compreender o que estava a acontecer à filha? Se ela própria alimentara vagos sentimentos de responsabilidade pela morte da sua mãe de cancro, quando Rae tinha cinco anos, como podia Tâmara deixar de se culpar pela desintegração de Rae, quando ela ocorrera simultaneamente com o seu nascimento?

 

Meu Deus, pensou Rae, o ciclo era interminável.

 

Não conseguiram chegar a uma conclusão numa única tarde de lágrimas. Nem numa semana. A única coisa que Rae pôde fazer foi abraçar a filha tanto quanto ela lho permitiu. A única coisa que pôde esperar foi que aquilo constituísse a primeira pedra duns alicerces sobre os quais pudessem construir o futuro. A única coisa que pôde fazer foi dizer à filha que a amava.

 

Foi portanto uma longa manhã e uma tarde mais longa ainda, com muitas repetições e hesitações e um rio de lágrimas, aparentemente infindável. Rae escutou e murmurou palavras tranquilizantes, deu palmadinhas nas costas da filha e obrigou-a a comer qualquer coisa, até que finalmente começou à procura de distracções. Não era a psicoterapeuta de Tâmara e, mesmo que fosse, o limite diário era habitualmente de cinquenta e cinco minutos; aquela sessão já ia em mais de quatro horas. Na pausa seguinte, Rae interpôs uma discreta interrogação sobre o dinheiro que mandara a advogada distribuir pelos três membros da família Collins, e viu a cara da filha adquirir uma expressão de amarga satisfação.

 

Recebemos a carta no dia a seguir a ter posto o Don fora de casa.

 

Tâmara falou com algum pormenor do seu prazer em dizer ao marido que não ia receber mais dinheiro da sogra, mas Rae ouviu menos de metade. Don sabia havia um mês que deixara de ter qualquer direito legal sobre o património Newborn, mas menos de três semanas antes alguém andava ainda a perguntar por ela nas ilhas, e só depois disso é que a tenda tinha sido invadida. Por fim, sacudiu a cabeça. Jerry estava enganado; falava pessoalmente, como homem, não como xerife. As coincidências aconteciam. Alguns fedelhos à procura de dinheiro, fora o que fora.

 

O Sol deslocou-se pelo céu, Petra voltou-se duas vezes e pôs protector do sol uma, Tâmara continuou a despejar anos de indignação reprimida, e Rae começou a ter saudades do serrote e do martelo; mesmo o trabalho brutal de escavar começou a parecer-lhe atraente.

 

Às três e meia, ficou farta. Levantou-se a custo (as cadeiras de lona não serviam para sessões longas) e perguntou a Tâmara se não gostava de ver a casa. A filha pareceu espantada, como se tivesse esquecido a preocupação da mãe durante os últimos meses, mas depois limpou os olhos. Estava com um aspecto péssimo, e Rae decidiu que era mais do que tempo de acabar com aquilo.

 

Esqueci-me de te dizer que convidei uns amigos para jantar connosco disse ela. O xerife cá do sítio e uma guarda-florestal. Pensei que gostasses de conhecer as pessoas com quem a tua mãe se tem dado. Convidara-os para a ajudarem a enfrentar o genro, mas agora os convidados iam servir para outra distracção, igualmente valiosa. Petra! Queres vir ver a casa?

 

A adolescente olhou para a avó com uma expressão de aborrecimento destinada a mascarar a sua preocupação, e encolheu os ombros para indicar o seu desinteresse; contudo, pôs-se de pé num segundo, com a toalha suja de areia enrolada à cintura. Tâmara ordenou-lhe automaticamente que calçasse os sapatos, e Petra também automaticamente começou a refilar, mas Rae concordou com a filha, explicando que uma casa em construção tinha sempre coisas pontiagudas, e a garota calou-se, tirando um par de chinelas da mochila. Não eram exactamente o que Rae tinha em mente, mas resolveu calar-se.

 

Começaram pela bancada, onde Rae lhes mostrou a velha fotografia a preto e branco da casa de Desmond presa ao tronco da árvore. Olhando da fotografia para a casa e novamente para a fotografia, tiveram de admitir que ainda faltava bastante. O que parecia mais triste eram as torres, cobertas como estavam por placas de contraplacado em vez dos impecáveis cones de telhas de Desmond.

 

Estou disposta a deixar algumas coisas a especialistas disse-lhes Rae.

 

Petra pareceu ligeiramente desapontada, Tâmara aprovadora, e assim se dirigiram finalmente para a casa.

 

Era muito agradável ter um público, mesmo ignorante e não demasiado entusiasmado. E, como até ali a maior parte do que fizera fora simplesmente reproduzir o génio de Desmond e ela acreditava em dar os créditos a quem os merecia, Rae pôde elogiar e gabar sem receio de parecer vaidosa. Já tinha decidido não lhes falar do esqueleto que encontrara. Havia tempo para saberem uma coisa tão perturbadora.

 

Guardou mais duas coisas para si: a porta de acesso ao lado da lareira, invisível excepto pelo fecho com o cinto das ferramentas pendurado, e a do espaço debaixo da casa, escondida debaixo dum pedaço de tapete antigo e imundo para impedir que adolescentes curiosos se aventurassem para ver o almofariz índio de Desmond... e as figurinhas dentro dele. Conduziu-as orgulhosamente pela nova escada acima, a fim de admirarem a vista. Depois, Tâmara retirou-se para a tenda com uma toalha molhada, enquanto Rae e Petra nadavam na enseada e, em seguida, preparavam a fogueira para os bifes que Jerry ia trazer.

 

Os dois agentes da lei e da ordem das ilhas chegaram na lancha de Jerry pouco depois das seis, com Caleb atrás deles. Rae desceu para os receber e para transmitir um rápido aviso aos adultos por cima da cabeça da criança.

 

Não lhes contei do e-s-q-u-e-l-e-t-o soletrou ela. E acabo de descobrir que a minha filha vai divorciar-se do marido, de maneira que tenham cuidado com esse assunto também.

 

Nesse momento, apareceu Petra, oferecendo-se para ajudar a levar alguma coisa, certamente por insistência da mãe. Jerry apertou-lhe a mão e entregou-lhe uma caixa de padaria, com instruções para a levar direita, e as apresentações foram feitas ali, junto da fogueira. Nikki, na sua melhor disposição, pegou na bola da conversa e correu com ela, enquanto Jerry se ocupava na fogueira, com um avental aos quadrados encarnados e brancos por cima da camisa azul. Rae ouviu a conversa com metade dum ouvido, e tinha o resto da mente ocupado com o problema de Don Collins. Devia estar preocupada com a segurança da filha e da neta? Havia alguma prova inequívoca de alguém estar a vigiar a ilha?

 

Absolutamente nenhuma. O nervosismo de mãe-galinha de Jerry Carmichael era contagioso. Goza a festa, Rae, exortou-se. Deixa de pensar nos vigilantes nas árvores e presta atenção ao raro prazer de amigos e família.

 

No conjunto, o serão não foi tão embaraçoso como podia ter sido. Tâmara até fez um esforço para namoriscar com Jerry, para bem disfarçado divertimento de Nikki, e todos comeram de mais. Rae e Nikki lavaram a loiça, enquanto as sombras aumentavam e Jerry conversava com Tâmara e Petra, com Caleb aninhado ao colo. Quando Rae olhou para eles por cima da fogueira, achou graça ao ver a neta com os seus grandes sapatos estendidos para o lume e apoiados numa pedra numa posição idêntica à de Jerry, embora sem uma criança a dormir encostada ao peito. Acabou de secar os pratos, pendurou o pano num ramo para secar e aproximou-se do lume. Antes que pudesse sentar-se, Jerry levantou-se e perguntou se podia dar-lhe uma palavrinha. Caleb agitou-se quando Jerry o passou para o colo da mãe, mas continuou a dormir com pequenos resmungos infantis.

 

Rae seguiu Jerry até à praia, que ainda brilhava sob os últimos raios de sol. Jerry apanhou uma mão-cheia de seixos e começou a atirá-los para a água da enseada.

 

O Escobar telefonou para dizer que um dos tipos se confessou culpado e que o outro vai a julgamento. Você vai ter de testemunhar daqui a uns meses.

 

Já calculava.

 

E surgiu outra coisa durante o interrogatório. Parece que um deles acha que o homem que os contratou talvez estivesse a tentar empurrá-la para o suicídio.

 

Aquilo sobressaltou-a. Jerry sentiu-a ficar imóvel, e estendeu a grande mão para o ombro dela, num gesto claramente visível para as três mulheres com vários graus de interesse junto à fogueira.

 

Acho que pensei que ele só queria que eu ficasse louca disse Rae em voz sumida.

 

Tem inimigos desse género?

 

Rae voltou ligeiramente as costas à fogueira, como se Tâmara fosse capaz de lhe ler no rosto o que ia dizer. Jerry afastou a mão, mas continuou perto dela, com o ombro a tocar no dela.

 

Tenho esse género de genro disse Rae. Ou pensava que tinha, até hoje.

 

Genro... Quer dizer o marido da Tâmara...?

 

O Don Collins. É ganancioso, vigarista, e está sempre em apertos financeiros. Mas acabo de descobrir que estão separados há um mês e que a Tâmara pediu o divórcio, portanto com certeza que ele não está à espera de herdar seja o que for agora. Se era dele, estou safa.

 

Contou isso ao Escobar? Ele já falou com o Collins?

 

Na altura, disse qualquer coisa. Embora isso tivesse sido pouco tempo depois do ataque, quando o seu testemunho deixava muito a desejar.

 

Acho que ele tem de encarar a possibilidade.

 

Talvez... oh, que inferno! Ele que entre em contacto com a minha advogada. Ela sabe toda a minha história com o Don.

 

E conta-a?

 

Eu escrevo-lhe, a pedir que lhe entregue o processo. Você pode servir de testemunha na minha carta, para ser legal.

 

Faça isso esta noite. Se o Collins teve alguma coisa a ver com aqueles dois, o mais certo é haver números de telefone registados, levantamentos de dinheiro e coisas do género.

 

O Sol escondeu-se atrás da ilha de Vancouver, e Rae esfregou o rosto cansado com as mãos.

 

Isto vai ser duro para a Petra.

 

Mais duro ainda se ele tivesse conseguido fazer-lhe mal. Embora eu não consiga imaginar como é que ele pensou que podia obrigá-la a suicidar-se. Parece um filme manhoso.

 

O que é que está a dizer? Quase conseguiu! exclamou Rae olhando para ele com uma expressão incrédula.

 

Ora, Rae. Você teve um esgotamento. Não admira, nessas circunstâncias...

 

Ela meteu-lhe o braço esquerdo debaixo do nariz, obrigando-o a olhar para as cicatrizes, e bateu com um dedo na mais saliente, mais rosada e mais recente das três.

 

Isto foi sério, Jerry. Mais cinco minutos sozinha e não estava aqui neste momento. Ficou a olhar para a cara dele, notando o sobressalto de compreensão e repulsa. Quando teve a certeza de que ele tinha compreendido, acrescentou: A depressão mata, Jerry. Não precisa de um empurrão muito grande.

 

Eu... hum... não pensei realmente...

 

Eu sei. Vou já escrever a carta.

 

Passou pelo acampamento em direcção à tenda e pegou no bloco e na caneta. Na parede de lona por cima da mesa, tinha prendido o desenho que Caleb fizera dela própria com vinte e três caranguejos em volta dos pés, do feitio de pauzinhos, e essa era a única decoração ali dentro. O artista acordara e falava com Petra, numa doce e amarga lembrança de conversas ouvidas entre a garota e Bella. Rae escutou durante um minuto o sério discurso do pequeno sobre a vida e os hábitos do caranguejo-eremita, e depois dedicou toda a sua atenção à carta. Assinou-a e chamou Jerry. Ele leu a meia dúzia de linhas, assinou-as também e enfiou o documento no bolso.

 

Depois, eram horas de os nativos voltarem para San Juan Jerry preocupado, Nikki curiosa, Caleb alegre. Rae e Petra disseram-lhes adeus do molhe e voltaram para junto de Tâmara e da fogueira.

 

Tâmara ficou lá só duas noites. Na sexta-feira, as três Newborn comeram panquecas com amoras e depois deram um passeio pelo monte Desmond, fazendo um desvio à volta pela pequena piscina da nascente (onde Petra descobriu salamandras e libélulas). Na descida, apanharam um grande ramo de plumas e as últimas rosas-bravas. Nadaram na enseada gelada até Tâmara, que estava realmente a esforçar-se e à noite foram jantar a Roche Harbor no barco de Ed De la Torre. Avistaram uma orca ao longe durante a viagem, comeram bem, observaram a cerimónia do pôr do Sol no cais (incluindo uma salva dum canhão em miniatura), no regresso jogaram umas partidas de póquer diante do lume (com Tâmara sempre a tentar), e foram deitar-se satisfeitas.

 

Depois, no sábado de manhã, Tâmara anunciou de repente que tinha decidido ir-se embora, segundo disse para evitar o trânsito de domingo. Rae suspeitou que havia outras razões mais importantes, desde o desconforto das instalações e a falta de distracções do seu estilo até à irritação de Petra junto da mãe, para não falar do embaraço desta por se ter ido abaixo diante de Rae. Mas sobretudo, calculava Rae, por sentir necessidade de ficar sozinha para recuperar. Era evidente que admitira tudo o que podia de momento. Rae estava satisfeita mais do que isso, chegava a sentir-se optimista como nunca a respeito da filha. O relacionamento não estava resolvido e era preciso esperar para ver até onde Tâmara estaria disposta a chegar ou seria capaz de avançar para que ele se modificasse. Mas abrira-se uma brecha na fachada, e no molhe ela recebeu o abraço da mãe com uma leve hesitação seguida dum longo e apertado amplexo e uma rápida reviravolta para o barco.

 

Fossem quais fossem os motivos da sua partida antecipada, tranquilizada quanto ao estado mental da mãe e à segurança da filha, estava pronta para fugir.

 

O problema era que fugir da Loucura não era tarefa fácil. Felizmente que trouxera um telemóvel para a filha ou teria sido preciso Rae fazer sinal a algum barco que passasse e pedir uma boleia. No fim, talvez tivesse sido mais fácil chamar um desses barcos, visto que para falar ao telefone foi preciso trepar ao monte Desmond, mais alto ainda do que da primeira vez que Rae tentara obter sinal. Conseguiram finalmente encontrar Ed, que chegou duas horas depois, não parecendo muito satisfeito com a perspectiva de ficar metido num barco com Tâmara Collins, mesmo numa curta viagem até Friday Harbor. Rae agradeceu-lhe efusivamente, até que ele cedeu com um sorriso contrafeito e se despediu até terça-feira.

 

Rae e Petra ficaram ao lado uma da outra no molhe a balouçar. Tâmara estava de novo hirta, sentada no barco, mas Rae pensou que não tanto como da última vez que Ed a levara da ilha, nem três meses antes da véspera do Dia das Mentiras. E daquela vez voltou-se e acenou-lhes antes de o barco chegar à ponta. As duas gerações na costa retribuíram-lhe a saudação.

 

Depois, o Rainha das Orcas desapareceu, e Rae achou a coisa mais natural deste mundo abraçar a neta. Ficaram agarradas uma à outra, como não haviam feito enquanto Tâmara estava ali, e o único movimento era o do cais debaixo dos seus pés. Rae deu por findo o delicioso intervalo, dizendo:

 

Já não vou conseguir apoiar o queixo na tua cabeça por muito tempo.

 

No colégio, sou a oitava pessoa mais alta, incluindo os professores;

 

Espero que não te importes de ser alta.

 

Não, até gosto. Quero ter um metro e oitenta. Separaram-se e seguiram ao longo do cais, subindo depois para as rochas do promontório. Petra olhou por cima do ombro na direcção de San Juan.

 

Espero que ela fique bem disse a garota.

 

Fica, pois. E tu estás em casa daqui a uma semana e meia.

 

Mas a mãe precisa de alguém de quem tomar conta...

 

Tem de se contentar com os cavalos e os cães.

 

E os gatos.

 

E os gatos, claro concordou Rae. Depois, reparou que ela olhava de novo para o mar e perguntou: Queres falar no assunto?

 

Talvez depois. É tudo uma espécie de alívio, sabe? Não que eu queira que eles... se divorciem ou coisa parecida, mas pelo menos está tudo às claras. Quer dizer... Bolas, há umas três semanas parecia assim... quando uma coisa nos vai cair em cima e a gente espera e espera com os dentes apertados, e quando acontece é um alívio, porque continuamos a andar e afinal não doeu tanto como pensávamos. Percebe?

 

Percebo.

 

Mas a avó está fantástica!

 

Sinto-me bem.

 

Não. Está... linda!

 

Ora, Petra, estás a precisar de óculos! exclamou Rae, com uma gargalhada.

 

Mas está! Não como uma actriz ou coisa assim, mas como... uma estátua, talvez. Do género: "Sou uma mulher e sou forte."

 

Conheces a canção? perguntou Rae, admirada.

 

__ Uma canção?

 

Antiga, de quando andávamos todas a queimar os sutiãs. Como a história antiga não pertencia aos interesses imediatos de

 

Petra, a garota não fez perguntas.

 

Seja como for, estou contente por vê-la com tão bom aspecto disse ela. Fiquei muito preocupada quando a deixámos aqui, porque a avó estava com ar de doente.

 

De várias maneiras, comentou Rae interiormente.

 

Tens razão, não estava em grande forma. É claro que a chuva nesse dia não ajudou. Mas este sítio tem-me feito bem. Mil vezes mais do que eu podia esperar. Quando cheguei, ainda íamos a meio do Inverno, de maneira que pude ver a ilha renascer diante dos meus olhos. Acho que a seiva também começou a subir em mim.

 

A analogia não fez grande sentido para Petra, e Rae distraiu-a com uma pergunta:

 

Então, o que é que te apetece fazer?

 

Não tem de trabalhar?

 

Acho que posso descansar mais meio dia.

 

Dessa vez, vestiram os fatos de banho por baixo dos calções. Rae vedou a piscina superior, e ela e Petra boiaram na água morna, tocando uma na outra e nas margens cobertas de musgo e admirando as copas das árvores, o céu e os visitantes voadores da ilha. Viram de novo as libélulas, para alegria de Petra, e descobriram umas tantas salamandras na água.

 

Rae preparou sanduíches de queijo para o almoço e, depois de comerem, voltou-se para a neta e perguntou:

 

Gostavas de ver a gruta secreta do Desmond?

 

As portas invisíveis foram muito apreciadas por Petra, que pronunciou o seu elogio máximo: "Porreiro!" Mas a gruta em si deixou-a sem fala, impressionada com o romantismo da descoberta. Rae não tocou no assunto do esqueleto de Desmond, nem mesmo quando a garota gatinhou por cima das manchas, a olhar para todos os lados. Prosseguiram para a gruta principal, com Petra a olhar apenas de relance para as prateleiras e preferindo parar silenciosamente junto à parede do fundo, à espera que se formasse uma gota que se alongou, tremeu e acabou por cair da ponta rochosa para a pequena poça no chão.

 

Podemos beber? perguntou.

 

Ainda não a mandei analisar, mas acho que sim.

 

Petra baixou-se e molhou os dedos, deixando cair umas gotas na língua.

 

Acha que pode haver outra gruta debaixo desta? perguntou, em tom sonhador. Quer dizer, a água deve ir para algum sítio, ou a gruta já estava inundada, mesmo com os pingos a caírem tão devagar. Não acha?

 

A água sai por algum lado, claro. Mas calculo que seja absorvida pelo arenito. Em todo caso, é possível que exista outra gruta aqui por baixo.

 

A garota parecia encantada com a ideia de grutas em cima de grutas, mundos dentro de mundos.

 

Quero ser escritora declarou abruptamente, de costas voltadas para a avó e a cara na sombra.

 

Queres? perguntou Rae. Acho que deves ter jeito. Ainda me lembro das histórias que contavas à Bella.

 

A mãe diz que vou morrer de fome.

 

Que género de escritora? perguntou Rae, ignorando firmemente a questão da opinião de Tâmara.

 

Fantasia, ficção científica, esse género de coisas. Gosto muito da ideia de grutas. Sabe, como se houvesse aqui por baixo uma enorme gruta cheia de diamantes e coisas assim, a brilhar à luz dum archote, e uma cidade inteira de pessoas... Têm uma rainha e... Calou-se abruptamente, lembrando-se de que tinha um público adulto, mas Rae reagiu como se não tivesse notado.

 

Nunca li muita ficção científica disse ela à neta. Nem sequer muita ficção. A minha imaginação parece estar firmemente ligada aos sentidos e talvez por isso é que sou artesã e não uma verdadeira artista. A tua maneira de imaginar coisas não está limitada, como a minha. É provável que sejas uma excelente escritora.

 

O embaraço passou da revelação espontânea para os elogios conhecedores, e fez Petra levantar-se rapidamente. Com uma última olhadela em volta como se quisesse mostrar que achava a gruta acanhada e bolorenta, voltou-se para a saída, com uma máscara desdenhosa afivelada no rosto. Ficava parecida com a mãe, embora fossem bastante diferentes fisicamente.

 

A máscara caiu de novo quando Rae parou para lhe mostrar o desenho da orca na parede. Tiveram de apagar uma das lanternas e de apontar a outra de certa maneira, para os contornos aparecerem com nitidez. Petra descontraiu-se e estendeu a mão, mas depois hesitou.

 

Posso tocar-lhe?

 

Está gravada na pedra. Precisavas dum martelo para a estragar. Os dedos da garota, fortes e bronzeados das longas horas a segurar rédeas, terminados por unhas roídas até ao sabugo e pintadas com um verniz tão escuro que parecia preto, tocaram delicadamente no desenho gravado na pedra. Não percebeu que continha a respiração enquanto traçava a imagem, mas Rae ouviu o leve suspiro de satisfação que soltou quando retirou a mão.

 

Não deve ter sido feito pelo Desmond, pois não? perguntou Petra, o que espantou Rae, por ouvir aquele nome pronunciado com tanta intimidade por outra boca. A neta já parecia considerá-lo um conhecimento pessoal.

 

Não, é um desenho dos nativos americanos... do povo que caçava e pescava nestas ilhas antes de os brancos cá chegarem. Os Salish ou Nanaimo ou até Lummi ficaram aqui provavelmente retidos num dia de tempestade, sem outra coisa que fazer.

 

Petra pensou um momento, e depois apontou a lanterna para cima. No texto baixo, viram uma mancha negra, sinal nítido do fumo dum archote.

 

Mas que esperta! exclamou Rae.

 

Petra baixou a lanterna e a cabeça, e saíram da gruta.

 

À luz do dia, com as portas bem fechadas e a luz do Sol a brilhar no acampamento por entre as folhas das árvores, Rae contou-lhe o resto, como encontrara o esqueleto que presumira ser de Desmond Newborn.

 

No entanto, não lhe contou a história toda, a bala, o incêndio e as suas conclusões sobre o que tinha acontecido. Isso, decidiu, era demasiado para uma garota de treze anos. E, como o fim de Desmond era inseparável do que se passara anteriormente, também manteve secreto o diário, o cofre com recordações e o medalhão. Talvez quando ela tivesse dezoito anos.

 

Depois, para afastar o fantasma do esqueleto da imaginação de Petra, entregou-lhe um par de luvas de cabedal e pô-la a trabalhar.

 

Diário de Desmond Newborn

 

13 de Setembro de 1927

 

Há uns meses, propus a mim próprio a ideia duma festa de inauguração da casa, para a qual pensei convidar todas as amáveis í diversas almas que me animaram e me ajudaram a recuperar uns laivos de dignidade Humana. Desde o gerente do Banco até ao dono da loja de ferragens, do poderoso magnata das pedreiras de Rocharbor à senhora que faz o meu pão, imaginei-os todos juntos sob o meu telhado, improváveis companheiros, com o desconforto inicial das suas diferentes posições sociais a desaparecer perante a novidade do acontecimento. Também o álcool poderia ajudar.

 

E depois o meu irmão escreveu a dizer que vinha cá, e comecei a sentir um peso, como quando o ar se transforma antes duma tempestade, como a frente de batalha ficava silenciosa antes dum ataque.

 

"Dou comigo à escuta, como se escutava na terra-de-ninguém, quando éramos colocados num posto distante, à espera do movimento duma incursão alemã. Cada sopro de ar no trigo parece destinado a esconder o inimigo, cada som distante dos seus canhões destinado a disfarçar o ruído dos homens a rastejar, cada nuvem a esconder a Lua obscurecendo o movimento por entre a erva. Tira-se o capacete para as raízes do cabelo ajudarem a ouvir na escuridão, e até a pele treme com a restolhada duma ratazana, e se o homem ao nosso lado tem de sufocar a tosse, Deus o ajude. Aqui, não sei o que me esforço por ouvir, só sei que o ar pesado me obriga a ficar imóvel a olhar para longe, suado e com dificuldade em respirar.

 

Obrigo-me a mover-me, porque é a única maneira de sufocar a ânsia de fugir. Portanto, faço a porta da frente, uma porta mais própria para um castelo cercado do que para uma cabana numa ilha, e monto-a com três dobradiças fortíssimas feitas pelo homem que me vendeu este pedaço da terra de Deus, o meu amigo e benfeitor Thomas Carmichael embora por enquanto não possa fechá-la, porque só vou buscar a fechadura amanhã quando for a Rocharbor no barco a remos.

 

Digo a mim próprio que é uma boa casa. "Está bem colocada na terra, embora seja estranha, como o seu construtor, ligeiramente mais enfeitada e consideravelmente mais robusta. Só de a ver, ali na encosta, cá de baixo do pequeno porto, um homem fica com força de espírito. Andar por dentro dela, parar sobre as tábuas do chão, dá firmeza a um homem e acalma a ânsia de escutar com todos os poros o avanço dissimulado do inimigo.

No entanto, ele não passa de meu irmão. Três anos mais velho e desaprovando tudo o que o rodeia, e depois? A ilha é minha, a casa também. Os olhos claros do William não podem fazer-lhes mal.

 

O meu irmão vem cá amanhã, para tentar dissuadir-me da minha loucura. Ele que tente. Embora eu admita, se a mais ninguém pelo menos a mim mesmo, que a ideia de o ver me enche de pavor.

 

Depois do trabalho árduo, do ar fresco, dum jantar substancial e da ausência da mãe, Petra foi para a cama cedo e adormeceu instantaneamente. Rae ficou sentada junto do fogo, a ouvir o ressonar infantil da neta misturado com os ruídos da noite. A Lua estivera cheia cinco dias antes, mas o céu límpido fazia-a aparecer incrivelmente brilhante, e as ondas altas batiam na praia.

 

Rae deitou uísque num copo e levou-o para o promontório. Sentia-se inquieta, embora não soubesse explicar por que motivo. Talvez a Lua, ou o som da maré alta a recuar das rochas, para não falar da tensão acumulada do último mês, tensão que ia do imprevisível reaparecimento simultâneo de muitas espécies de forças da vida até à pesada responsabilidade duma criança adormecida, passando por esqueletos assassinados, revelações familiares, as caras dos seus atacantes, três caixas de beleza em vidro destruída, interessantes fantasmas, a terrível culpa duma filha e o seu renascimento como artífice. Ficou arrepiada, como se a suave noite estivesse cravejada de olhos hostis, mesmo malévolos, a vigiarem todos os seus movimentos. De vez em quando, apoiava a mão no bolso da camisola, para se assegurar de que trazia a arma consigo.

 

Sentou-se o mais longe possível das árvores em volta do acampamento, no ponto mais exterior do promontório, sobre uma rocha plana, com os joelhos encostados ao peito. O uísque ajudou-a a acalmar a tremura nos braços e nos ombros, reduzindo a tensão que sentia no pescoço.

 

A bebida, no entanto, diminuíra-lhe a resistência à sensação de vozes, um leve tom murmurado que lhe parecia, como sempre, cheio de palavras que tinha de se esforçar por ouvir.

 

Mas não ia esforçar-se para dar sentido às vozes que nada mais eram do que a brisa nas árvores e o sangue a correr-lhe nas veias. Petra precisava da sua presença, competente e total. Se isso significasse mais um mergulho na loucura total e nas vozes no fim da visita da neta, bom, trataria disso na altura, mas não naquele momento. Bebeu o uísque e ficou a olhar para os barcos ao largo, a baloiçar suavemente com a maré. Era a população do fim-de-semana do feriado, disse para consigo; as conversas em voz baixa que imaginava poderem perfeitamente vir dali. Ouviu os mosquitos a assobiar e, daí a pouco, foi para a cama. Deitada no divã, dentro das suas paredes de lona, ficou ainda mais inquieta. Começou a sentir-se desconfortavelmente consciente da janela de rede por cima do vulto imóvel da neta, da aba solta da porta aos seus pés, da fraca lona a centímetros da sua mão e anca, necessitando apenas duma faca afiada para permitir a um braço meter-se ali e agarrar. Era irracionalidade, era ansiedade e não medo, mas começou a sentir o ar da noite como um cobertor em cima da cara, e a suar muito mais do que se justificava no ar fresco da noite. Manteve-se rígida, com o coração a bater e a respiração irregular, lutando contra um ataque de pânico por não poder sair dali, com medo de acordar Petra, um ataque de pânico que se recusava a desaparecer. Estava quase a começar a gemer quando Petra se voltou e perguntou:

 

Sente-se bem?

 

Rae não tinha percebido que a garota estava acordada. Há quanto tempo estaria ela ali deitada a ouvir a respiração acelerada da avó? Deitou as pernas para fora do divã e esfregou a cara.

 

Estou, sim, querida, mas não consigo dormir. Desculpa ter-te acordado.

 

Não acordou. Tive um sonho, sobre uma data de orcas, a brincar e a lutar umas com as outras, e uma nadou mesmo perto do sítio onde eu estava. Era linda, com uma mancha branca, mas também metia um bocado de medo. Foi isso que me acordou.

 

Sabes, eu vi uma orca fazer isso um dia destes disse Rae. Quando estava na lancha do Jerry Carmichael. Passou mesmo por baixo de nós. Foi autêntica magia!

 

Eu gostei do Jerry observou Petra, momentaneamente distraída do assunto do sonho.

 

É simpático.

 

Ele é seu namorado ou coisa assim?

 

É só um amigo. Acho que ele e a Nikki vão acabar por ficar juntos.

 

A Nikki é linda, não é?

 

É, pois concordou Rae.

 

Acho que deve ser difícil, depois de... quer dizer, a avó adorava o Alan.

 

Ah, coisas que podem ser discutidas a coberto da noite!, pensou Rae.

 

Adorava, sim. E é realmente difícil. Muito poucos homens saberiam onde se iam meter.

 

Petra pensou naquilo durante um momento, e depois voltou para o seu sonho.

 

O que é que acha que significa sonhar com orcas?

 

O que é que significa para ti?

 

Credo, avó, parece a minha psicanalista! exclamou Petra, aborrecida.

 

Rae soltou uma gargalhada.

 

Desculpa, mas é impossível dizermos a uma pessoa o que os seus sonhos significam, sem pelo menos lhes perguntar o que acham.

 

Pois é. A psicanalista dizia provavelmente que tem a ver com sexualidade de adolescente retorquiu a garota, em tom amargo. Passam a vida a falar em "sexualidade de adolescente" relacionada com os cavalos. Como se fosse essa a única razão de eu gostar de montar.

 

Como começaste a montar com cinco anos, concordo que não deve ser assim tão simples, mas toda a gente espera que os psicólogos saibam as respostas, e por vezes eles próprios caem nas armadilhas. A interpretação dos sonhos já se faz há milhares de anos, e até vem no Antigo Testamento. Se queres a minha opinião, diria que a pessoa que gravou a orca na gruta ia pensar que o teu sonho foi a visita dum espírito. E parece-me que foi um espírito amigável.

 

Era, acho que sim. Mas grande e forte.

 

Os espíritos são poderosos. É isso que os torna assustadores. Mesmo os benéficos.

 

O meu espírito, ha? disse Petra, parecendo impressionada, apesar da tentativa de troça.

 

O teu totem. Vai dormir outra vez, Petra.

 

Importa-se de... Às vezes, quando me custa a adormecer de novo em casa, saio um bocado. Para falar com os cavalos, sabe? Posso ir até lá fora um bocadinho? Prometo que não me afasto.

 

Rae sentiu um frio no coração perante aquele eco dela própria, a vaguear pela casa de Boston e pelo jardim enquanto o mundo dormia, e prometeu firmemente a si própria que falava com a Dra. Hunt sobre a neta. Entretanto, manteve a voz calma.

 

Claro. Eu até estava a pensar se não te sentirias mais... segura não. Não havia motivo para sugerir perigo se a garota não o sentia.)... mais confortável se levássemos as camas e nos instalássemos dentro da casa. Ainda está vazia, mas é agradável.

 

Claro! disse a garota. Gostava de dormir na sua casa. Cheira bem, lá dentro.

 

Cheira, não cheira? Bom, então calça uns sapatos sugeriu Rae, procurando os seus. Sabes como é que se fecha o divã? Precisas duma lanterna?

 

Está bastante claro lá fora.

 

Pois está. Mas traz uma, em todo o caso, porque podes precisar. De costas voltadas para a neta, Rae tirou o revólver que colocara debaixo da almofada e enfiou-o na mochila, juntamente com a pistola de foguetes, uma garrafa de água e umas bolachas, para o caso de Petra ter fome durante a noite. Reparou no telemóvel que Tâmara deixara de propósito e guardou-o também na mochila.

 

Enquanto subiam a encosta, carregadas com os divãs, as almofadas e os sacos-camas, tropeçando no solo irregular por falta de luz, Petra começou às gargalhadinhas, e a saída semiassustada da tenda transformou-se numa brincadeira de crianças, do género da que podiam fazer amigas a dormir em casa duma delas. Era uma sensação que Rae não tinha há muitos anos, e percebeu vagamente que uma avó de cinquenta e dois anos e uma neta de treze com risinhos incontroláveis não era muito normal, mas na realidade pouco se importava. Conseguiram transportar a sua carga pela escada de caracol, e Rae ajudou Petra a instalar o divã junto da lareira preta, escolhendo para si um lugar perto da janela.

 

Petra, apesar dos seus protestos de habitual insónia, adormeceu de novo em poucos minutos.

 

Rae acordou sobressaltada. Ainda faltava bastante para amanhecer, embora o luar que entrava pela abertura da janela parecesse trepar pela parede oposta. A noite estava absolutamente silenciosa, e só se ouvia a lenta respiração de Petra. Até as vozes dentro da sua cabeça se tinham calado.

 

Então, o que é que a tinha acordado?

 

Ficou no quente casulo do saco-cama meio fechado, à espera que o som se repetisse, que fosse o grito duma ave nocturna ou o ruído de patitas no telhado, ou mesmo a respiração duma orca de passagem.

 

Nada.

 

Houvera um barulho, disso tinha a certeza. Petra pusera a lanterna grande no chão ao lado do divã, mas Rae estendeu a mão e tirou uma pequena da mochila. Em vez dela, encontrou o revólver.

 

Assim que o sentiu, frio e pesado na palma da mão, reconheceu que estava assustada. Movendo-se com uma cautela infinita, por causa dos rangidos do divã, pôs os pés no chão e caminhou silenciosa pelas tábuas do soalho até à janela. Parou dum lado da abertura, aspirando o aroma do abeto recém-cortado, e olhou para o outro lado da clareira, para o promontório e para o mar diante dele.

 

O mundo estava imóvel. A maré quase a mudar, e até o balanço dos barcos ancorados ao largo tinha cessado. A paisagem parecia uma fotografia a preto e branco muito desvanecida. A falta de cinzentos intermédios transformava os objectos familiares em coisas que os olhos só conseguiam identificar por adivinhação: a tenda, porque estava no seu lugar e as arestas superiores a definiam, mas tinha dois terços na sombra e as paredes podiam não existir. Um reflexo vertical foi identificado como a máquina do café, com o luar a fazer-lhe brilhar o globo de vidro, mas se estivesse do outro lado da clareira, Rae não teria percebido de que se tratava. Uma mancha de forma estranha sulcada de linhas escuras acabou por lhe parecer ser uma das cadeiras de lona.

 

Outras coisas, no entanto, transformavam-se em objectos de outro mundo, estranhas oferendas num local familiar. Uma mancha escura redonda do tamanho dum grande prato, rodeada duma rocha onde Rae não recordava uma cova. Uma forma com os contornos dum duende agachado ocupava o canto da fogueira vagamente incandescente e, um pouco mais longe, onde os pálidos reflexos da ondulação tocavam na luminosa areia molhada, viu um grande círculo negro, como uma entrada para outro mundo. Durante um momento, sorriu, pensando em oferecer aquilo à escritora incipiente atrás de si como o portão para a sua mágica cidade de grutas, mas depois o sorriso desapareceu enquanto tentava lembrar-se de que objecto ali na costa podia preencher um espaço oval de cerca de dois metros por doze. Não havia rochedos naquela parte da praia, nem covas cheias na maré alta.

 

Então, um movimento despertou-lhe a atenção naquele silêncio, uma breve sombra contra a claridade. Esperou para ver se seria o guaxinim que costumava sacudir-lhe o cofre da comida ou um dos pequenos veados-de-cauda-preta que nadavam entre as ilhas. O movimento não se repetiu durante tanto tempo que Rae chegou a pensar que o visitante tinha dado a volta à tenda e desaparecido por entre as árvores, mas depois, do outro lado da tenda, surgiu uma sombra, que voltou a desaparecer.

 

Fosse o que fosse que andasse por ali, era quase tão alto como a tenda. Rae sentiu as tripas gelarem e os sovacos cobrirem-se-lhe de suor, mas a primeira coisa em que pensou, estranhamente, foi num urso. A ideia talvez fosse inspirada pela sua anterior suspeita de guaxinim e veados, mas mesmo imaginando o enorme animal, mesmo perguntando a si própria se havia ursos nas ilhas e à espera de ouvir garras a rasgar a lona, pensando no que poderia utilizar para bloquear a escada, outra parte do seu espírito desenhava um quadro muito mais assustador.

 

Anda ali um homem.

 

Tudo aquilo, desde o movimento entrevisto até à sua certeza, não durou mais de três segundos. Imediatamente alerta e antes que o medo florescesse, o seu desesperado espírito apresentou-lhe outra possibilidade.

 

Da última vez que um vulto estranho surgira à luz da sua fogueira, fora um homem dedicado a um empreendimento ilegal e nobre ao mesmo tempo. Allen estava a começar a reconciliar-se com o nome tinha dito que ia estar fora duas semanas, mas talvez tivesse voltado mais cedo, e viesse à procura dela.

 

O canto bem definido da tenda pareceu tremer ligeiramente, e Rae imaginou o homem a levantar a aba da entrada. Não estava preparada para a luz que apareceu subitamente, desaparecendo logo em seguida e deixando um quadrado iluminado na sua retina. Sufocou um grito e piscou os olhos.

 

Se era Allen Carmichael, ele conhecia-lhe os hábitos suficientemente bem para calcular que, a não ser que estivesse ausente da ilha, se encontrava dentro da casa. Para lá chegar, teria de atravessar a clareira iluminada pelo luar ou de percorrer um caminho muito mais longo a meio do monte, descendo depois por entre as árvores do outro lado da encosta rochosa.

 

Se era Allen Carmichael.

 

E ele, sabendo que Rae tinha uma arma, não a avisaria de longe?

 

E se não era ele?

 

Afastando-se da janela, Rae andou até sentir náilon de encontro à perna. Desviou os olhos da tenda por um instante, baixou-se e agarrou na mochila, levantando-se de novo rapidamente para procurar movimento na encosta, enquanto os dedos revistavam o interior da mochila. A primeira coisa que encontrou foi o telefone da filha. Tirou-o e ligou-o, encostado ao peito para abafar o barulho, olhando depois para o mostrador. Sem sinal. Enfiou-o no bolso dos calções, pelo sim pelo não, pensando que ela e a neta podiam subir a colina o suficiente para ele funcionar, e tornou a meter a mão na mochila para tirar a caixa de plástico com a pistola de foguetes. Remexeu na forma pouco familiar e, tentando não desviar a vista da clareira, carregou-a e voltou para a sua posição à janela. Estava demasiado excitada para se preocupar com as aparências, mas pensou por instantes que devia parecer doida: descalça, de calções e camisola, o cabelo em pé e uma arma em cada mão. Petra ressonava suavemente ao fundo da sala.

 

Ficou à espera, cada vez mais tensa. Teria ele atravessado a clareira enquanto ela desviara os olhos? Seria Allen? Ou Jerry, que voltara por alguma razão e se era, estaria ela prestes a rebentar a cabeça do xerife? Poderia ter visto Don Don a agir dessa vez não por ganância mas sim por vingança, ou Don com um plano inteligente, Don confiante em ser capaz de apanhar Rae e deixar Petra ilesa? Ai, meu Deus! Aquilo era um barulho lá em baixo? Passos? Devia vigiar a tenda ou a escada?

 

Então, viu de novo movimento junto da tenda, e um vulto avançar. Era impossível distinguir naquela luz ambígua, mas parecia mais da altura de Jerry do que do irmão. E se fosse apenas alguém dum barco, à procura de ajuda para uma emergência? Mas não, uma pessoa honesta teria chamado antes de pôr os pés em terra. Com esse pensamento, os olhos de Rae voltaram-se para a estranha forma oval na praia, e percebeu imediatamente de que se tratava: um barco de borracha, preto como a água, como o de Allen Carmichael, mas mais pequeno, remado em silêncio até à sua costa. Apertou mais as coronhas das armas, o velho revólver na mão direita e a pistola de foguetes na esquerda, incitando silenciosamente o intruso a avançar para a claridade. Ou a dirigir-se ao barco de borracha e ir-se embora dali... mas isso seria esperar de mais.

 

Oxalá seja o Allen implorou ela. Oxalá seja o Jerry. Oxalá seja o obnóxio advogado que expulsei da enseada, alguém excepto a voz sem rosto que enviou os invasores a minha casa, as minhas ilusões transformadas em substância, os meus invasores imaginários actualmente na cadeia. Oxalá seja um garoto ou um mergulhador perdido...

 

A cara do homem apareceu iluminada pela lua, voltada para cima, aparentemente olhando, directa, para Rae. Ela tentou fazer funcionar a garganta, chamar uma última vez: "Allen?" Mas depois todo o som, toda a respiração congelou dentro dela.

 

O homem que subia a colina era mais alto do que Rae. Tinha o cabelo encaracolado cortado curto, uma barba bem aparada e uns óculos metálicos. Era uma cara diante da qual ela se sentara durante nove anos, uma cara que desenhara muitas vezes e esculpira duas, uma cara (sem os óculos) junto da qual acordara em mais de três mil manhãs da sua vida, uma cara que beijara e acariciara e chorara com um sofrimento que quase a tinha morto, uma cara em cima dum corpo cujos movimentos não lhe despertavam igual sensação de familiaridade.

 

Alan? murmurou, avançando um passo directamente para o luar, para se debruçar da janela e dizer em voz alta: Alan?

 

O homem olhou para cima e viu-a claramente. Levantou o braço direito, e todo o reconhecimento, toda a maravilha, esperança e impossível alegria que começara a surgir desapareceu, absorvida para um qualquer buraco. O homem tinha uma arma na mão, e Alan com uma arma na mão era simplesmente impensável; portanto, o homem não era Alan.

 

O revólver que Rae tinha na mão disparou-se um segundo depois da arma dele e, enquanto o tiro dele atingiu a ombreira da janela (mais uma geração de balas na madeira, pensou Rae disparatadamente), o dela atingiu o chão não longe das pernas dele e fez um ruidoso ricochete na escuridão. Não fizera pontaria, não tivera tempo para isso, mas o tiro de sorte fê-lo dar um salto para junto da protecção da tenda.

 

Não é o Alan, não é um amigo, pensou Rae, apressando-se depois a atravessar a sala para sossegar a aterrorizada Petra. Enfiou o revólver no cós dos calções e tapou a boca da neta com a mão, falando-lhe severamente ao ouvido:

 

Cala-te, Petra! Tens de ficar calada, por favor!

 

A garota recuperou o controlo rapidamente e sentou-se, a tremer mas em silêncio. Rae inclinou-se para a frente e deslocou a mão para lhe acariciar a cabeça, num gesto de conforto.

 

Está lá fora um homem armado. Era uma afirmação que, infelizmente, qualquer liceal compreendia perfeitamente. Eu também tenho uma arma, mas temos de nos esconder na gruta do Desmond até ele se ir embora. Anda!

 

As ferramentas e o material de construção do telhado ainda estavam empilhados, tapando o acesso à entrada da torre dianteira vazia. Rae afastou a madeira e as ferramentas, até encontrar o arreio de trepar, atirado para ali depois de ter acabado o telhado. Atravessou de novo a divisão, pegou no braço da neta e conduziu-a para a torre traseira.

 

A parte de cima do telheiro fica a cerca de três metros das janelas da torre segredou ela ao ouvido da garota. É inclinado, de maneira que não comeces a andar antes de eu te mostrar para onde deves ir. Queres que te ponha o arreio ou consegues agarrar-te a ele enquanto te desço? Não podes fazer o mais pequeno barulho!

 

Consigo segurar-me segredou Petra. Rae deu-lhe um apertão encorajador, antes de lhe passar o laço para as mãos. Depois, ajudou-a a escalar as pedras da abertura da janela e, apoiando-se contra a parede para compensar o peso da garota, baixou-a lentamente. No instante em que a corda ficou frouxa, puxou-a para cima. Dessa vez, entrou no arreio e apertou-o à sua volta com dedos frenéticos (aquilo era um barulho na escada?), passou as pernas pelo parapeito da janela, enrolou a ponta da corda nos vinte centímetros de pedra que separavam aquela abertura da seguinte, e agarrou-se à corda.

 

E parou. Disparo um foguete agora, enquanto posso? Ou fico quieta até a Petra estar segura, e disparo depois?, pensou. Se o homem lá em baixo via o foguete no ar, para onde correria: para o barco para fugir ou para a casa para atacar?

 

Não podia arriscar. Tinha de esconder Petra primeiro, essa era a sua prioridade. Agarrou firmemente a corda e desceu para o poço escuro junto à parede da casa.

 

Não tinha bem a certeza se as pedras aguentavam, destinando-se a uma carga vertical de gravidade e não à tensão lateral duma corda com o peso duma mulher adulta, mas não cederam, e daí a uns segundos Petra tocava nas pernas da avó. Assim que chegou ao telhado do abrigo, Rae libertou a corda, puxou-a para baixo e enfiou-a na cintura do arreio. Depois, tacteou o telhado e avançou, com Petra atrás de si. Quando chegou à beira, deixou-se escorregar para o solo, ajudou a neta e abriu o fecho pelo tacto, antes de levantar a garota para o escuro vazio.

 

Fechou a porta atrás das duas, segredou a Petra que não se mexesse e foi buscar o candeeiro, procurando o caminho às cegas, amaldiçoando as falhas nos joelhos nus e a si própria por ter trazido duas armas e um telefone inútil mas nenhuma lanterna eléctrica. Quando encontrou o sítio onde sabia estar a porta secreta, murmurou umas palavras tranquilizadoras a Petra, a cerca de cinco metros de distância mas a dois quilómetros na escuridão absoluta. Então, confiando apenas na memória, curvou-se e tentou abrir o fecho escondido.

 

Enfiou a falha numa unha, mas depois foi fácil. Abriu a porta, sentindo o ar fresco da gruta na cara, e num instante tinha luz, a neta e a porta fechada atrás delas. Salvas.

 

Rae tirou o maldito arreio de trepar e encostou-se à parede até tomar consciência de que Petra gatinhara para dentro da gruta e se enrolara no chão numa imitação inconsciente da posição final de Desmond Newborn. Tinha a carita contraída de medo e tremia com frio. Rae gatinhou para junto dela e envolveu-a com os braços. A garota enterrou a cara no ombro da avó e ficou a tremer em silêncio, tão consciente como Rae de que aquilo estava longe de ter acabado. Rae acariciou-lhe o cabelo, murmurando uma enfiada de frases sem sentido.

 

Entretanto, pensava rapidamente. Medir duas vezes, cortar uma mas dessa vez não era um bocado de madeira que arriscava, e sim a vida da neta. E a sua, que durante as últimas semanas passara a valorizar novamente. Tinha cometido o erro de deixar para trás a lanterna eléctrica, e fizera uma escolha arriscada em optar por uma fuga silenciosa. Não podia permitir-se outros erros ou riscos. Tinha de manter a cabeça fria.

 

Os utensílios de que dispunha eram perigosos: um revólver, que agora só tinha cinco balas; uma pistola com três foguetes; um candeeiro de petróleo com cinco ou seis horas de combustível, um pouco mais se o mantivessem baixo; sete poeirentas garrafas de vinho, cheias de quase vinagre; uma estante solta de madeira esponjosa; um pingo de água mais ou menos por minuto; um arreio de trepar e uma corda; e o que Petra tivesse nos bolsos. Rae perguntou-lhe, e encontraram um lenço de papel amarrotado, uma concha partida e um batom quase preto.

 

Rae fez uma careta, mas depois os olhos iluminaram-se-lhe quando avistou a outra coisa de verdadeiro valor que trouxera consigo para a ilha e ali depositara para manter a salvo de intrusos: a caixa das ferramentas com os cinzéis japoneses.

 

E eles tinham vontade e músculos próprios. Não que fizesse tenções de atacar frontalmente um homem armado, mas talvez pudesse dar-lhe a volta. Allen Carmichael tinha dito qualquer coisa sobre combatentes que não tinham conseguido ultrapassar o Vietname e lhe davam a volta. Talvez ela e a neta pudessem também rodear o inimigo até a ajuda chegar. (Com certeza que alguém havia de investigar os dois tiros perdidos? Até era possível que naquele mesmo momento um turista indignado estivesse a fazer queixa à Polícia dos selvagens e irresponsáveis nativos...)

 

Rae concentrou-se novamente nos utensílios que tinham ali e nas habilidades que possuíam.

 

Ferramentas afiadas e madeira; malho e cinzéis. Era daquilo que percebia, o centro da sua identidade. A chave.

 

Acariciou o braço da neta e pensou de novo nas suas opções, medindo duas, três vezes, antes de se decidir a cortar. E depois de o fazer, endireitou-se e disse a Petra o que iam fazer. Bom, o que ela ia fazer, já que a garota ficaria na gruta. Mas com o revólver.

 

Preciso de sair para lançar um foguete acabou Rae por dizer, pela terceira vez. Tu e eu vamos ficar aqui até chegar ajuda. O homem não fica, assim que vir o foguete, mas preciso que não saias daqui para me abrires a porta quando eu bater. Carregou a pistola com um foguete, e a garota perguntou:

 

Mas quem é ele? O que é que quer?

 

A pergunta foi feita com a esperança de resposta de qualquer vítima, uma espécie de "porquê eu?". No entanto, Rae sabia que não se tratava dum sociopata ocasional a rondar no escuro, de facto sabia quem tinha de ser. E assim que soube a identidade do homem, tudo começou a encaixar-se.

 

Acho que é o filho do Alan. Chama-se Rory e tu nunca o viste. Ele e o pai não se davam muito. Eu vi-o lá fora e é demasiado parecido com o Alan para ser um desconhecido. Rae calou-se um momento, de novo dominada pelo choque de ver o marido morto a subir a colina ao luar. Deve ser alguma coisa relacionada com dinheiro.

 

Viu Petra lutar com a ideia, e depois o espanto e a expressão de alívio na carita da garota. Apagou-a brutalmente, explicando:

 

Ele está a tentar matar-me, Petra. E não tenho dúvida de que te mata também, se te encontra aqui. Se ele arrombar aquela porta, vais ter de lhe dar um tiro. Rae sentiu o coração apertado com o efeito que aquelas palavras iam ter no espírito da garota, mas não havia outra maneira. É horrível fazer uma coisa dessas e mais horrível ainda eu pedir-to. Se pudesse fingir que estava tudo bem, eu fingia, mas isso seria muito perigoso para ambas. O Rory veio cá para me matar. Se ele arrombar a porta, faz pontaria e dispara primeiro.

 

Petra já tinha disparado uma arma, porque Don acreditava na necessidade da autodefesa numa família e prevalecera sobre as dúvidas de Tâmara, de maneira que depressa viu como funcionava o velho revólver. Era capaz de utilizar a arma, mas Rae não tinha a certeza de que o fizesse, sobretudo num alvo humano. E não sabia como encorajá-la mais. Abraçou-a, tirou o cinzel direito de uma polegada e um outro em V, o mais pequeno de todos, assim como o malho de madeira, e fechou a caixa.

 

Depois, reviu tudo de novo com a neta. Não que houvesse grande coisa para dizer, excepto: "Quando eu sair, fecha a porta e fica aqui sentada com o revólver na mão e o candeeiro a iluminar a entrada. Eu vou lançar um foguete e volto, bato à porta três vezes e tu abres. E, por amor de Deus, tem cuidado para não entornares o candeeiro."

 

Deu-lhe mais um beijo e abraçou-a com toda a força.

 

Não te preocupes se eu me demorar. Primeiro, tenho de ter a certeza de que ele não está por perto. Tu és capaz de fazer isto, minha querida neta. Vais ver que nos safamos desta!

 

Medir duas vezes, cortar uma girava-lhe na cabeça enquanto rastejava para fora da gruta de Desmond até ao telheiro. O silvo protector do candeeiro desapareceu com o fechar da porta, e ficou à espera de ouvir Petra correr o fecho interior antes de percorrer cuidadosamente a madeira até à porta de saída.

 

Respirou fundo várias vezes. Ele devia tê-la ouvido. Estava ali fora mesmo junto da porta, de arma na mão, à espera que ela a abrisse. Colocou os dedos da mão esquerda no fecho e puxou-o.

 

Soltou um rangido traiçoeiro, e ela fez uma careta, mas abriu a porta.

 

O estreito espaço entre a casa e a rocha estava tão escuro como o interior da pequena cabana de madeira. Podia esconder dez homens armados de bazucas. Porém, depois da esquina da casa, havia claridade na colina, e a estreita tira de céu tão iluminada que as estrelas pareciam baças. Rae inclinou-se para fora, apontou para o céu e puxou o gatilho. Com um estalido, o foguete subiu, iluminando a casa e as árvores e caindo depois num ligeiro arco que o fez desaparecer por trás da casa. Mas Rae sabia que resultara, porque as estrelas de repente pareciam ainda mais baças. Desviou o olhar do céu, arrancou o cartucho quente da arma, carregou-a de novo e tornou a disparar.

 

Depois, fechou a porta da única maneira possível, pregando o seu precioso cinzel japonês na madeira e no chão, martelando com o malho de madeira, até a prender. Duas fortes pancadas, e a ferramenta afiada como uma navalha segurou a porta contra qualquer espécie de aríete. Procurou o outro cinzel, e aproximou-se da outra porta secreta. A ponta dupla do afiado cinzel em V entrou nas tábuas de cedro praticamente sem som. Se Rory estivesse encostado à porta, talvez ouvisse qualquer coisa; de contrário, não. Rae escavou com o cinzel, até que uma ligeira diferença de pressão lhe disse que tinha conseguido. Poisou a ferramenta e espreitou pelo buraco.

 

Ao princípio, só viu o rectângulo claro da abertura da porta da frente, ligeiramente interceptada por uma forma indistinta que acabou por identificar como o cinto de ferramentas, com as orelhas do martelo mesmo debaixo do nível dos olhos. Depois, sentiu um movimento, um estremecimento no esqueleto da casa, algures fora da vista. Espreitou para o lado e, de repente, uma luz entrou na sala vinda da direcção da torre, uma luz e duas pernas.

 

Ele avançou para a lareira, dirigindo o feixe de luz para todos os lados. Trazia a lanterna na mão esquerda e, por um instante, a luz apanhou o que tinha na mão direita: a arma, de aspecto muito mais perigoso do que a que Petra tinha consigo, lá dentro na gruta. Com certeza que aquela continha mais do que quatro balas. Ele deu a volta à divisão, à procura, calculou Rae, da origem dos dois estalidos e das marteladas, mas não conseguiu perceber donde tinham vindo. Voltou para a escada, parou, e então uma coisa escura atravessou a linha de visão de Rae, voando como um morcego e assustando-a, até cair com um som abafado: o quadrado de tapete desfiado que ela utilizara para disfarçar a porta do espaço debaixo da casa. Petra e ela tinham-no deixado enrolado, ao arrastar os divãs e os sacos-cama no escuro; talvez ele pensasse que estavam escondidas debaixo dele. Viu-o baixar-se para examinar a porta do alçapão.

 

A lanterna iluminava-lhe claramente as feições, e Rae pensou se ele teria deixado crescer a barba e escolhido aqueles óculos numa imitação deliberada ou inconsciente, mas sempre à procura da aprovação dum pai há muito afastado. Pouca importância tinha, pois apesar da incrível parecença física, com aquela expressão no rosto, parecia-se tanto com Alan como Petra.

 

Uma ligeira brisa soprava pelo buraco em direcção ao olho de Rae, enchendo-o de lágrimas. O feixe de luz da lanterna inclinou-se para cima, e ela recuou rapidamente, piscando e ouvindo as botas dele a aproximarem-se da entrada secreta. Pararam tão perto que, se não fosse a camada de cedro, podia estender a mão e tocar-lhe numa bota. Lutou freneticamente com a arma para lhe colocar o terceiro foguete antes que a pequena porta fosse arrombada. Ouviu uma pancada do outro lado da parede, um rangido e outra pancada, e finalmente conseguiu fechar a arma sobre o cartucho e agarrá-la com as duas mãos, pronta a disparar em cheio na cara dele. Mas a porta não se abriu de rompante. Ouviu mais um rangido, e depois passos meia dúzia de passos a afastarem-se, em silêncio.

 

Engoliu convulsivamente e baixou a arma. Daí a um minuto, limpou a boca com dedos inseguros e inclinou-se de novo para a frente, a fim de espreitar pelo buraco.

 

Ele estava outra vez junto da entrada para o subsolo, ajoelhado de costas para ela, com a arma poisada no chão ao lado dum joelho. Pensou que talvez estivesse prestes a arriscar uma olhadela para debaixo da casa, mesmo sabendo que a sua presa estava armada, mas depois viu-o contrair-se e erguer o braço direito, num movimento que reconheceu imediatamente, por o ter feito muitos milhares de vezes durante as recentes semanas. O braço caiu e o martelo o martelo dela, ai, o grande filho da mãe! acertou num prego uma dúzia de vezes. Ele atirou então a sua adorada ferramenta para o lado, com um gesto de desprezo casual, levantou-se e pegou na lanterna e na arma. Tinha pregado o alçapão, presumindo que ela estava ali escondida. Estivera no primeiro andar, sabia ela e outra pessoa, devido aos dois divãs estivera lá em cima, e concluíra que uma mulher de meia-idade não era capaz de saltar da janela da torre para o abrigo da lenha sem se denunciar. Onde mais poderiam estar sem ser debaixo do chão? (Rae lembrou-se de repente das duas figurinhas de madeira e da ponta de lança a guardar o espaço vazio.)

 

Então, ele saiu da casa, apagando a lanterna e parando à porta para os olhos se ajustarem à escuridão do exterior.

 

Rae sabia que ele ia ver os foguetes no instante em que saísse. Era espantoso que não tivesse reparado na claridade e no som da sua subida, mas devia estar a descer a escada da torre, pelo que só ouvira as suas pancadas finais.

 

Se fosse esperto, metia-se no batel de borracha e ia para o seu barco a toda a pressa, levantando a âncora e desaparecendo antes que alguém aparecesse para investigar as duas luzes por cima da ilha. Rae rezou para que ele tivesse algum sentido de autopreservação, incitou-o silenciosamente a fugir, a fugir e a viver. Passou uma eternidade, sem que alguma coisa escurecesse o rectângulo claro da abertura da porta mas, antes que ela pudesse começar a descontrair-se, ele voltou.

 

Subiu os degraus da entrada à pressa e parou, com qualquer coisa na mão que Rae não conseguiu ver, embora soubesse o que era desde que o ouvira pregar o alçapão. Suspeitara de que aquilo ia acontecer durante o que agora lhe pareciam horas. Era como se tivesse vivido com a inevitabilidade daquele momento desde o princípio, longas semanas antes, quando libertara os primeiros restos carbonizados da casa de Desmond da vegetação. Sabia que aquilo ia acontecer.

 

Um candeeiro de petróleo cheio atirado para uma estrutura de madeira.

 

Rory Beauchamp e William Newborn não tinham qualquer laço de parentesco, excepto sob a pele. Quando se enfrenta um inimigo fechado numa construção, não se vai atrás dele, deita-se fogo à construção. Rory preparava-se para fazer um trabalho perfeito, abrindo o candeeiro para espalhar o petróleo por onde fizesse mais estragos.

 

Rae sabia que tinha uma hipótese sensata: ir buscar a neta e fugir através do abrigo da lenha pela colina acima e para o meio das árvores. O fogo seria visto a quilómetros de distância, mesmo às quatro da madrugada; o telefone que tinha no bolso teria sinal e Rory não ficaria por ali.

 

Mas não era capaz. Numa agonia de lealdades, espreitou pelo buraco para o vulto que se aprontava para lhe destruir a casa, a casa de Desmond, cuidando de espalhar o petróleo e do modo como as chamas lamberiam as paredes, e ela não era capaz de ficar a vê-lo fazer aquilo. A neta ia assustar-se muito com o ruído das chamas, mas estaria a salvo. Tinha ar suficiente na gruta e a entrada era protegida pelas rochas em três lados. Quando o contraplacado do telheiro começasse a arder, já os bombeiros teriam chegado. Petra estava segura.

 

Sem pensar mais, pegou no fino cinzel, espetou-o com toda a força no estreito intervalo entre a porta e a moldura e empurrou o cabo. O belo aço curvou-se e o fecho invisível não cedeu. Rae empurrou com todo o seu peso, gemendo do esforço. O cinzel cedeu ligeiramente, resistiu mais um instante e, de repente, a madeira estalou e partiu-se. A porta abriu-se de encontro ao joelho dela, e os nós dos dedos de Rae esfolaram-se na moldura; sem esperar por novas instruções do cérebro, as suas pernas começaram a transportá-la através da abertura. O invasor, o destruidor estava parado na entrada da casa, como William antes dele. Voltava-se, com uma caixa de fósforos na mão quando Rae, semiagachada, chegou ao meio da sala.

 

Apanhou o martelo abandonado, a ferramenta que fora o princípio de tudo na sua vida, e nesse momento o filho do marido percebeu que ela estava ali. Os fósforos por acender espalharam-se nos degraus quando ele deitou a mão à arma metida no cinto, e a arma apareceu no exacto momento em que os seiscentos gramas de aço com um cabo de mogno-das-honduras deixavam a palma da mão de Rae.

 

O martelo apanhou-o na cara. A mão dele apertou-se convulsivamente na arma, e Rae sentiu chumbo passar-lhe rente à cabeça e ir embeber-se nas traves atrás de si, mas Rory cambaleou para trás e caiu, inconsciente, antes de dar com a cabeça no solo rochoso.

 

Recuperou o martelo e parou junto dele, ofegante, reprimindo a vontade de berrar que nem uma doida e de lhe bater outra vez ou de o correr até ao mar ao pontapé. Mas estava descalça, o martelo era demasiado precioso e a sua raiva de curta duração. Contentou-se em tirar a pistola carregada do cós dos calções e apontá-la à cara ensanguentada. O dedo tremeu-lhe mas depois levantou a pistola e disparou para o céu. O terceiro foguete explodiu para cima, indo juntar-se aos seus irmãos quase desvanecidos.

 

Não soube quanto tempo ficou sentada no primeiro degrau com o martelo ao lado, a olhar para o vulto inconsciente, até ouvir a voz da neta não mais do que um ou dois minutos mais tarde, concluiu, visto que o último foguete ainda crepitava no ar.

 

- Avó? - chegou o murmúrio, tão agudo que terminou num guincho.

 

Rae levantou-se imediatamente.

 

- Estou aqui, querida. Já acabou. Está tudo bem. Espera aí!

 

A casa tresandava a petróleo, horrivelmente perigoso no caso da menor faísca (se a bala tivesse atingido pedra... ), e ela atravessou a sala até à porta de acesso, meteu-se por ela e fechou-a atrás de si. Petra atirou-se de encontro a ela, soluçando o seu alívio. Rae apertou-a e embalou-a como um bebé, recebendo e dando conforto, até que o pavor da garota diminuiu ligeiramente. Encostou a cara ao cabelo despenteado dela e tentou fazer graça:

 

- Ficaste petri...ficada, minha querida?

 

Conforme esperava, Petra deu uma risada involuntária perante a piada de mau gosto e, embora continuasse a abraçá-la, pareceu-lhe que a reacção imediata começava a desaparecer.

 

- Pronto, já está quase tudo acabado. Temos de dar a volta à casa para chegar à tenda - disse Rae. - o candeeiro entornou-se ali dentro e ficou um cheiro pavoroso. De maneira que parece que vais andar mesmo descalça pela ilha, apesar das instruções da tua mãe.

 

O candeeiro?

 

- De petróleo, sim. - Com sorte, Petra ia pensar que tinha sido por acaso.

 

- Mas que foi que aconteceu? - gemeu a garota. - Eu fartei-me de esperar e depois pareceu-me ouvir tiros, e depois nada durante uma data de tempo e...

 

- Eu sei, querida, e vinha buscar-te. Foi ele que disparou, mas só acertou no tecto. Eu dei-lhe uma pancada na cabeça, ele ficou inconsciente e depois tirei-lhe a arma.

 

-Mas se ele acorda...

 

- Não, Petra, está tudo bem. já não tem a arma, está ferido, e a polícia vai aparecer a qualquer momento. Vá, vamos embora.

 

A garota agarrou-se a ela enquanto desciam o telhado inclinado e davam a volta à torre. Os primeiros sinais do amanhecer iluminavam o céu. Parecia um século desde o pôr do Sol.

 

Na tenda, pegaram na lanterna e nos sapatos. Rae cortou corda da roupa com uma faca e enrolou-a no bolso, e depois deitou a mão a dois tachos.

 

- Vou amarrá-lo para o caso de acordar - disse, entregando os tachos a Petra. - Preciso que vás até à ponta do promontório e faças uma data de barulho. Custa-me a crer que alguém conseguisse dormir com os tiros e os foguetes, mas precisamos de ter a certeza... de fazer uma barulheira suficiente para os obrigar a subir aos tombadilhos & perguntar-te que diabo estás a fazer.

 

Petra levou a lanterna que lhes restava.

 

Rae subiu cautelosamente a colina, de revólver na mão, nada certa de que Rory não ia saltar sobre ela quando a visse. Não saltou. Na realidade, não parecia capaz de saltar sobre quem quer que fosse durante bastante tempo. Apesar disso, Rae amarrou-lhe os pés, cortou a corda, e depois agarrou-lhe nas mãos para repetir a operação. Agitavam-se, e saía-lhe um leve gemido da garganta. Conseguia ver os contornos do corpo dele e, daí a pouco, também a cara. Trazia uma camisa de quadrados outra imitação de Alan e os óculos haviam-se partido nas rochas. Com um sobressalto, Rae percebeu que tinha os olhos abertos e, mais, que olhava directamente para ela. Recuou rapidamente, mas ele não se mexeu.

 

Rory? Consegues ouvir-me? Não houve reacção, mas pareceu-lhe que estava consciente. Sabes quem eu sou?

 

Dez minutos antes, não teria reparado no pequeno espasmo de asco que lhe passou pela cara ferida, mas já havia luz suficiente. Aceitou-o como resposta e acocorou-se ao lado dele. Os tachos de Petra bateram uma vez, hesitantes, e depois com mais convicção, até que a garota desatou a bater com eles e a gritar a plenos pulmões. Rae sorriu involuntariamente, e os olhos de Rory transformaram-se em fendas.

 

Se estava suficientemente consciente para reparar na expressão dela, também podia responder a umas quantas perguntas, decidiu.

 

Pagaste àqueles dois filhos da mãe para me atacarem, não pagaste? Sabias que estão na cadeia? Esperou em vão por uma reacção. Disseste-lhe que me violassem, ou isso foi ideia deles?

 

Quem é que quer saber dessa merda? resmungou ele.

 

Ah, Alan, gemeu o coração de Rae; graças a Deus que não estás aqui para ver isto.

 

Eras tu que telefonavas por aí? E que passaste revista à minha tenda?

 

Precisava de ter a certeza. As palavras saíam distorcidas pelo estrago feito pelo martelo, mas entendeu-as. Como também ouviu que não havia qualquer arrependimento na voz dele: se havia alguma coisa, era orgulho.

 

Isso significa que também arrombaste a minha casa? E deste cabo de tudo para descobrires onde eu estava?

 

Encontrei-a.

 

Ah, pois, és um rapaz muito esperto. Mas porque é que partiste os vidros do teu pai?

 

Obteve finalmente uma reacção. Rory estremeceu e Rae caiu para trás sentada, tentando afastar-se dele. Mas o rapaz continuou deitado, impotente.

 

Ele adorava aquela merda rosnou. Eu estava com ele quando comprou uma das peças, o estúpido filho da mãe... a babar-se com aquela coisa como se fosse um Rembrandt ou coisa parecida! Quinhentos dólares por uma porra dum pisa-papéis! Um presente para si. E quando se despediu de mim deu-me cem. Fiquei chateado. Por isso parti tudo.

 

Era uma afirmação muito mais reveladora do que ele podia pensar. Quando Rae percebera de quem se tratava, presumira que era apenas uma questão de dinheiro; com certeza que Rory assim pensava. Mas o que acabava de ouvir era muito mais visceral do que qualquer ganância de dinheiro: Alan amara o vidro, por isso Rory o partira. Alan amara Rae: por isso Rory a enlouqueceria, a mandaria espancar por terceiras pessoas, a empurraria para o suicídio.

 

Alan também tinha amado Bella. Se Bella tivesse sobrevivido ao acidente, que teria Rory feito? Rae via o quadro de cortiça e os desenhos infantis rasgados no escritório de Alan, e percebeu que aquele homem teria feito mais à filha deles do que roubar uma roca de prata antiga do seu berço.

 

Alan fizera tudo o que pudera pelo filho, mas o rapaz era um buraco negro que nem o amor dum pai podia encher. Pensou no estranho sonho com Rory e Don junto do berço dum bebé, a tirar uma máscara a seguir a outra, mas recusou-se a pensar nisso naquele momento. Era capaz de começar a ter pena dele, se pensasse, talvez até compreendesse o que o levara a tal ponto, mas não naquele momento. E nunca sentiria pena suficiente para sofrer por ele. Tinha tentado fazer mal à neta, e por isso havia de pagar.

 

O Sol despontou, doirando o cimo dos cedros. Rae e Rory viam-se perfeitamente. Para ter a certeza, Rae avançou até o ter ao alcance dos olhos. Tinha consciência da aproximação dum motor de barco familiar, notou a mudança no batuque frenético de Petra, mas queria dar um pontapé àquele homem antes de Jerry o apanhar. Um belo pontapé, onde lhe doesse mais: no orgulho.

 

O estúpido filho da mãe da tua família não era o teu pai. Sabes quanto terias arranjado se tivesses vendido aquelas peças de vidro, em vez de as partir? Pelo menos duzentos mil dólares. E os quadros e litografias que deixaste ficar nas paredes? Mesmo no mercado negro, rendiam-te aí mais meio ou três quartos de milhão. Viu-o estremecer a cada ataque. Observou a reacção com prazer, preparando-se para o pontapé final. E nem sequer pensaste em procurar um cofre. E ainda falas de estupidez!

 

Voltou-lhe as costas e afastou-se, deixando-o para Jerry Carmichael.

 

                 A INAUGURAÇÃO DA CASA

 

Rae Newborn estava de pé no promontório rochoso, segurando na caixa que Ed De la torre lhe trouxera dois dias antes. Tinha-a guardado para aquela noite, o equinócio do Outono, embora sem saber bem por que motivo. Porque lhe parecia certo, supunha, o que era motivo suficiente.

 

Setenta e dois anos e dez dias depois da sua morte, numa quente noite de Setembro, Desmond Newborn estava prestes a ir para casa de vez. Não que pudesse ter a certeza do dia da sua morte ou de quanto tempo teria esperado na gruta pelo fim, mas isso pouca importância tinha agora. Hoje era o equinócio, a meio do caminho entre os solstícios de Verão e de Inverno, e hoje ela ia espalhar as suas cinzas.

 

As suas torres têm finalmente janelas, Desmond disse ela ao seu espírito. O telhado tem telhas, e a minha porta da rua é igualzinha à sua. A Loucura é uma estrutura oca, mas é segura. Vou ficar aqui este Inverno, a trabalhar no interior. E depois... bom, quem podia saber? Vai haver um livro sobre si, Desmond. Talvez não conte tudo a seu respeito... Vou ter de pensar nisso. Tudo a respeito da Loucura, como a construiu e como eu a restaurei. O fotógrafo já me trouxe algumas das fotografias, e há uma magnífica da praia de Lopez, donde o tio trouxe muitas das suas pedras. Vai ser um livro espectacular. E a Petra vai ajudar-me com o texto. A minha neta quer ser escritora. Havia de se orgulhar dela.

 

Calou-se, ouvindo passos no promontório. Daí a um minuto, o homem a cujo nome começava a habituar-se estava a seu lado, a cheirar a café.

 

Tenho de parar com estas conversas com o Desmond disse ela, sem se voltar para ele. As pessoas vão pensar que sou ligeiramente desequilibrada.

 

Não se atreviam! respondeu Allen.

 

O barulho dum motor a toda a força, liberto das restrições de Roche Harbor, chegou-lhes aos ouvidos, e Rae soube que o seu companheiro devia estar a observar cuidadosamente a embarcação, pronto a desaparecer se ela se aproximasse demasiado. Era como viver com um fantasma, quando ele estava ali, já que a pouca vontade de ser visto o fazia sumir-se ao mais pequeno sinal dum intruso. Às vezes, Rae dava consigo a falar sozinha.

 

Era um fantasma também noutros aspectos. O nome dele tornara-se inevitável, como se classificassem um parentesco e não uma pessoa. Não que ele enchesse o vazio deixado pelo marido na sua vida, mas ocupava um espaço semelhante. Era diferente de Alan em tudo, excepto nos pontos fundamentais no centro de ambos, e essa semelhança permitia a um homem sobrepor-se e fundir-se no outro. Qual deles era o fantasma nem sempre era claro para Rae, e ela sabia perfeitamente que aquilo era bastante estranho e provavelmente doentio. Mas não estava disposta a preocupar-se.

 

O barco afastou-se, e ele instalou-se ao lado dela. Um carvalho, pensou Rae, no jogo das árvores de Vivian. Marcado e chamuscado, curvado por forças que arrancariam árvores menos fortes. O único carvalho que já encontrara.

 

Allen?

 

Hum?

 

Resolvi ir até à Califórnia para o mês que vem. Preciso de dar a roupa do Alan e os brinquedos da Bella, de resolver qualquer coisa quanto à minha oficina. Vou estar fora duas ou três semanas.

 

Sentes-te pronta para isso?

 

Estou pronta.

 

Ainda bem. Eu também tenho de ir à Europa uma semana ou duas, para organizar uma ligação com um grupo de lá. Por volta do dia dez.

 

Então, vou na mesma altura. Ele não queria ficar na casa enquanto ela estava fora. As pessoas podiam dizer que a Loucura estava assombrada, mas os fantasmas não acendiam lareiras nem cozinhavam.

 

Satisfeita, Rae abriu a caixa e avançou por cima das pedras até à água. A superfície brilhava devido a um plâncton qualquer. Quando espalhou as cinzas, também elas brilharam no sítio onde caíram.

 

Com a caixa meio vazia, fechou-a e trepou para junto do fantasma da ilha. Planeava dividir o resto das cinzas e colocar metade sob a enorme árvore da clareira e metade na poça inferior da nascente, entre os fetos e as salamandras.

 

Quando o brilho desapareceu e o Sol também, voltaram para a casa. Ainda cheirava a estuque, embora já tivesse secado. Esperou que Allen fechasse os cortinados para acender os candeeiros.

 

O fotógrafo mandado por Gloriana, Jaime Brittin, tinha passado o dia na ilha. Era a sua segunda viagem para registar os progressos da casa, depois duma sessão preliminar no fim de Julho, e deixara a mesa no meio da sala uma placa da raiz de nogueira de Vivian coberta por fotografias: antigas fotos a preto e branco e os instantâneos dela misturados com as suas provas profissionais de Julho, que pareciam prontas para aparecer emolduradas nas paredes da galeria de Gloriana. Em cima duma pilha, estava o amolgado cofre, que Rae fora buscar, depois de o fotógrafo se ter ido embora, para entregar o diário de Desmond a Allen.

 

Sentou-se numa das esfiampadas cadeiras de lona e começou a juntar as fotografias, enquanto Allen espevitava a lareira e depois se dirigia ao armário das bebidas (uma grade de leite) para deitar vinho em dois copos.

 

Acabaste de ler o diário? perguntou ela.

 

Acabei. Vais utilizá-lo no livro?

 

Ainda não decidi.

 

Devias. É muito comovedor. Espantoso como aquela guerra foi parecida com a do Vietname, excepto por a lama ser fria.

 

A casa aqueceu rapidamente, agora que as janelas estavam colocadas e a porta fechava. Rae tirou o casaco e pendurou-o nas costas da cadeira.

 

O que é que disseste ao fotógrafo quando ele te pôs nos degraus da entrada a segurar o fecho da porta? perguntou Allen.

 

Estavas a ver?

 

Claro que estava. Disseste-lhe qualquer coisa que quase o fez cair com a máquina.

 

Ah, pois respondeu Rae, sorrindo. Ele queria uma fotografia igual à do Desmond, como um dos ecos do livro, de maneira que eu disse: "Se aparece aqui alguém aos tiros esta noite, fico mesmo aborrecida." É claro que o pobre homem não fazia ideia do que eu estava a dizer.

 

Allen deu uma gargalhada, e Rae imitou-o, mas não conseguiu evitar uma olhadela contrafeita à porta. Ele, sensível aos medos dos outros, poisou o copo e foi trancá-la.

 

Depois, voltou para junto do lume e pegou no pequeno livro de capa de cabedal, passando as folhas da vida dum homem.

 

Gostava de saber o que iria ele escrever no fim disse ele, pensativo. Tenho um...

 

Ah! exclamou Rae, fazendo-o levantar a cabeça. Por isso é que estou a hesitar em utilizar o diário no livro. Olha, eu mostro-te.

 

Procurou entre as fotografias e escolheu algumas, que dispôs no chão diante da lareira como uma exótica paciência de cartas. Allen espreitava por cima do ombro dela, enquanto Rae as ia identificando.

 

A primeira era uma ampliação duma antiga fotografia de Desmond nos degraus da entrada. Quer como resultado do equipamento moderno, quer por algum retoque subtil, via-se claramente o ferrolho na mão dele. A cara estava meio na sombra: um olho escuro, o cabelo junto a uma face clara, o casaco escuro com uma mancha de pó claro numa manga.

 

Por baixo, colocou outras duas, William e Lacy, tiradas dos álbuns da família por Tâmara: William à esquerda aos setenta anos cara de falcão, boca fina, olhos como dois pedacinhos de gelo e Lacy como um balão prestes a rebentar sob um olhar do marido. A fotografia mostrava-a jovem, muito bela nos seus olhos eduardinos e cabelo ondulado. Tinha a pele clara, como uma pétala que se manchasse com um toque, e os olhos, embora com um feitio bonito, beneficiariam duma aplicação da pintura de Petra. Como no princípio daquele século nenhuma senhora decente teria pensado em tal coisa, na fotografia pareciam quase tão claros como a pele.

 

Depois debaixo daquelas duas fotografias, Rae colocou um instantâneo dos pais: o pai escuro e na sombra, como competia a um homem que passara a vida à sombra do pai; a mãe, antes de adoecer, uma clássica beleza loira da Califórnia dos anos quarenta.

 

Na fila do fundo, a quarta, colocou uma fotografia dela própria, em que Jaime tinha conseguido encontrar um vestígio de beleza e até mistério numa alta mulher grisalha com um martelo numa das mãos.

 

Por fim, tirou do cofre de metal o medalhão de ouro com as duas madeixas de cabelo. Abriu-o e colocou-o entre as fotografias de Desmond, de William e de Lacy. Os caracóis loiro e castanho estavam ligeiramente misturados, mas Rae não os separou. Depois, tirou da caixa outras coisas mais estranhas. Tudo o que calculou serem recordações raminhos, conchas, pedrinhas, programas de concertos, botões, fitas foi disposto à direita das fotografias. A seguir, retirou o diário das mãos de Allen, folheou-o até encontrar a cuidadosa anotação de oito datas sem explicação ao longo dos dois primeiros meses de 1919. Colocou o diário debaixo das recordações e encostou-se aos joelhos de Allen.

 

O que é que vês? perguntou.

 

Ele precisou apenas dum momento.

 

Bolas! exclamou, endireitando-se subitamente. Achas que isso explica a questão?

 

Acho, sim. Rae pegou nas fotografias de Desmond e do pai dela, deixando as outras onde estavam. Acho que, quando o meu pai tinha sete anos, o William deve ter pensado que os olhos do filho não iam ficar mais claros. Depois, pensou na data do nascimento, em nove meses antes, e resolveu fazer uma viagenzita até à ilha do irmão mais novo.

 

"Nessa visita, mostrou por acaso ao irmão uma fotografia da Lacy e do filho, e o Desmond percebeu logo o que aquilo significava. Mas como era um autêntico militar, verdadeiro e directo, não percebeu o que se escondia por detrás da fotografia. Ou seja, o que se escondia por trás da exibição da fotografia.

 

Oito datas, oito objectos insignificantes.

 

Nessa noite prosseguiu Rae, sentou-se para escrever sobre aquilo no diário... Encontrei uma caneta destapada nos escombros por baixo da casa, mesmo diante da lareira onde ele tinha a cadeira... Mas, antes de poder registar a descoberta, o irmão voltou e matou-o. Como vingança. O William foi sempre especialista em vinganças e na santidade do que lhe pertencia.

 

"O que o Desmond ia escrever era: "Tenho um filho." Rae olhou duma fotografia para a outra, depois pegou na sua, de olhos castanhos, e meteu-a entre elas. Até tinha a mesma boca generosa.

 

O Desmond Newborn não era tio do meu pai disse Rae ao fantasma da sua filha. O Desmond Rae era pai dele. E meu avô.

 

A tua ilha foi bem baptizada disse Allen daí a pouco.

 

A Loucura de Newborn disse Rae, triste, encostando a cabeça aos joelhos dele.

 

Não corrigiu meigamente Allen, poisando-lhe a mão na cabeça. O Santuário de Newborn.

 

                                                                                Laura R. King  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"