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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NO LIMITE DO AMANHECER / Lara Adrian
NO LIMITE DO AMANHECER / Lara Adrian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Vinte anos após o terror do Primeiro Amanhecer — quando a humanidade descobriu que os vampiros viviam secretamente entre eles, a ameaça de violência reina, assim como as dificuldades das duas espécies em coexistirem. O único grupo a preservar o frágil equilíbrio é a Ordem, uma elite de guerreiros da Raça dedicados a proteger os humanos e vampiros igualmente. E neste mundo precário cheio de traições e falta de confiança, Mira, uma capitã impetuosa deste esquadrão, acha que toda luta tem um preço muito alto a ser pago.

Criada entre os membros da Ordem, Mira sempre acreditou no código dos guerreiros, da rápida — e até mesmo letal — justiça. Mas a única coisa que deseja mais do que a aceitação duramente conquistada da Ordem é Kellan Archer, um guerreiro da Raça sexy e problemático. Apaixonada por ele desde a infância, Mira rompeu sua resistência durante uma noite inesperada de êxtase, mas no dia seguinte ele desapareceu misteriosamente, para nunca mais voltar.

Kellan não acreditava que veria Mira novamente — ou que teria que enfrentar a verdade de por que a deixou. Depois de abandonar a Ordem anos atrás, ele agora lidera um grupo de humanos rebeldes na intenção de executar suas próprias regras de justiça. No entanto, uma missão de sequestro de alto nível o deixa cara a cara com o passado que tentou evitar, e a mulher notável que tentou desesperadamente esquecer. Com o aumento da tensão e o risco de derramamento de sangue crescendo, Kellan e Mira devem escolher seu lado — entre as missões concorrentes que dominam suas vidas, e a paixão eletrizante que reivindica seus corações.

 

 

 

 

REGISTROS DIÁRIOS

A PARTIR DOS ARQUIVOS PRIVADOS

DA HISTÓRIA DA SEDE DA ORDEM, WASHINGTON, DC.

 

26 de dezembro

O ano já não importa. Tampouco a data. Depois de tudo o que está acontecendo em todo o mundo neste momento, meu palpite é que a história em breve será explicada simplesmente em termos de Antes e Depois. Antes da humanidade descobrir que os vampiros são reais, e depois. Depois de um vampiro obcecado pelo poder chamado Dragos libertar dezenas dos mais mortíferos membros da Raça — Renegados selvagens viciados em sangue — monstros que estavam encarcerados, soltando-os sobre um inocente e, obviamente despreparado, público humano. Mesmo enquanto escrevo isto, mal posso acreditar no que estou vendo.

A carnificina é indescritível. O terror sem precedentes. É difícil desviar os olhos das terríveis notícias e dos vídeos vazando na Internet dentro do complexo temporário da Ordem no Maine.

Cada relatório traz imagens dos gritos de homens, mulheres e crianças, multidões histéricas debandando em ruas escuras, nenhum deles rápido o suficiente para iludir os predadores em perseguição. Cidades brilhando incandescentes com as chamas, veículos abandonados e soltando fumaça em ruínas, tiros e miséria enchendo o ar. Em toda parte há derramamento de sangue e morte.

Lucan e o resto dos guerreiros da Ordem se mobilizaram para Boston para combater a violência, mas eles eram apenas uma dúzia de soldados da Raça contra centenas de Renegados inundando as grandes cidades de todo o mundo. Durante o tempo que falta até o amanhecer para enviar esses Renegados de volta às sombras, o custo de vidas inocentes poderia facilmente chegar à casa dos milhares. E os danos deixados no rastro de todo este caos banhado em sangue — e desconfiança entre os seres humanos e a Raça — talvez nunca possa ser reparado.

Séculos de sigilo e cuidadosa paz, desfeita em uma única noite...

 

Dia 345, A.P.A.

Faz quase um ano desde o Primeiro Amanhecer. Isso é como todos chamam agora — a alvorada após os ataques dos Renegados que mudou o mundo para sempre. Primeiro Amanhecer. O que é um termo esperançoso, inócuo para tal horrível momento no tempo. Mas a necessidade de esperança é compreensível. É fundamental, especialmente quando as feridas daquela terrível noite e do incerto dia que se seguiu ainda estão tão frescas.

Ninguém conhece a necessidade de esperança melhor do que a Ordem. Os guerreiros lutaram por doze difíceis meses para ganhar de volta alguma sensação de calma, alguma aparência de paz. Dragos não existia mais. Os Renegados que usou como suas armas pessoais de destruição em massa foram todos destruídos. Os meses de matança e terror terminaram. Mas o imenso ódio e a suspeita ainda supuravam em ambos os lados. Era um momento volátil, e até mesmo a menor centelha de violência poderia explodir em uma catástrofe.

Em duas semanas, Lucan está escalado para falar em nome da Raça diante de todas as nações do mundo. Publicamente, vai clamar por paz. Reservadamente, alertou a todos nós da Ordem que receava que o homem e a Raça pudessem, ao invés disto, verem-se arrastados para uma guerra...

 

04 de agosto, 10 anos A.P.A.

Às vezes parece que foram cem anos de derramamento de sangue e vidas ao longo da década que passou desde o Primeiro Amanhecer. As guerras continuavam. A violência aumentou em todo o mundo. A anarquia reina em muitas grandes cidades, gerando atividades criminosas de bandos de rebeldes e outros militantes, além da matança implacável sobre ambos os lados dos conflitos.

Todos os dias, a sede da Ordem em D.C. recebe relatórios preocupantes dos líderes de seus centros de comando distritais, agora situados em todo o mundo. A guerra se tornou pior. A culpa pelo derramamento de sangue está pendurada em ambos os lados, aprofundando a instabilidade e adicionando combustível a um já feroz incêndio. Nossa esperança de paz entre o homem e a Raça nunca pareceu mais fora de alcance.

E se este é o estado das coisas dentro destes dez anos de conflito, tenho medo de imaginar o que isso poderá significar para o futuro...

 

HUMANOS.

A noite estava cheia deles.

Eles entupiam as calçadas escuras das interseções da antiga North End em Boston, transbordando pelas portas abertas de clubes de dança, lounges e bares. Passeando, vadiando, conversando, enchiam as ruas por volta da meia-noite com muitas vozes, corpos muito barulhentos e suando no calor fora de época da noite de início de Junho.

Era um maldito espaço pequeno para evitar os ansiosos olhares de soslaio — e os incontáveis olhares rápidos lançados de pessoas que fingiam não notarem, e não estarem nem um pouco apavoradas com os quatro membros da Ordem que agora caminhavam em meio ao restrito setor da antiga cidade.

Mira, a única fêmea da equipe de guerreiros que estavam de folga, examinou a multidão de civis Homo sapiens com um olhar duro. Pena que ela e seus companheiros estavam usando roupas comuns e armas escondidas discretamente. Teria preferido equipamentos de combate e um arsenal pesado de armas de fogo. Dando aos bons cidadãos de Boston um verdadeiro motivo para olharem com terror mortal.

— Vinte anos desde que fomos expostos para a humanidade e a maioria deles ainda fica embasbacado conosco, como se tivéssemos vindo para pegar suas carótidas. — disse um dos três machos da Raça de pé ao lado dela.

Mira lançou-lhe um olhar irônico.

— O toque de recolher de alimentação entra em vigor à meia-noite, então não espere para ver o vagão de boas-vindas aqui. Além disso, o medo é uma coisa boa, Bal. Especialmente quando se trata de lidar com a sua espécie.

Balthazar, uma parede gigante de pele morena, músculos ressaltados e força implacável encontrou seu olhar com um entendimento sombrio em seus beligerantes olhos dourados. O vampiro de cabelo escuro estava com a Ordem há um longo tempo, vindo a bordo há quase duas décadas durante os sombrios primeiros anos após o Primeiro Amanhecer, o dia em que os humanos descobriram que não eram, de fato, os maiores predadores do planeta.

Eles não aceitaram esta verdade facilmente. Nem pacificamente.

Muitas vidas foram perdidas em ambos os lados pelo tempo que se seguiu. Longos anos de morte e sofrimento, derramamento de sangue e desconfiança. Mesmo agora, a trégua entre os humanos e a Raça era hesitante. Enquanto os chefes de governo das nações mundiais de ambos — homem e vampiro — tentavam intermediar a paz duradoura para o bem de todos, ódios particulares e suspeitas ainda inflamavam em cada campo. A guerra entre a humanidade e a Raça ainda era travada, mas isto se passava na clandestinidade, não declarada e não autorizada, mas ainda assim letal.

Uma dor fria enchia o peito de Mira com o pensamento de toda a dor e sofrimento que ela testemunhou durante os anos de sua infância, sob a proteção da Ordem, através do rigoroso treinamento e experiência de combate que a moldou para a guerreira que era agora. Ela tentou varrer a dor de lado, deixar isto para trás, mas era difícil de fazer. Esta noite, de todas as noites, era quase impossível abafar a dor.

E a parte da guerra que era pessoal, tão íntima quanto qualquer coisa na sua vida poderia ser, agora deu a sua voz um tom cru e mordaz.

— Deixe os seres humanos terem medo. Talvez se eles se preocupassem mais com a perda de suas gargantas, estariam menos inclinados a tolerar os radicais entre eles, que gostariam de ver toda a Raça reduzida a cinzas.

Por trás dela, outro de seus companheiros de equipe deu um riso ronronando baixo.

— Você já considerou uma carreira em relações públicas, capitã? — Ela deu uma saudação de um dedo pra cima sobre o ombro e continuou andando, batendo sua longa trança loira como uma cauda contra seu traseiro revestido de couro. A risada de Webb se aprofundou.

— Certo. Eu acho que não.

Se alguém era adequado para a atribuição diplomática, este era Julian Webb. Um bonito Adônis, afável, polido, e absolutamente devastador quando usava seu charme. Que Webb era fruto de uma educação culta entre a elite privilegiada da Raça não era preciso dizer. Não que alguém tenha dito. Sua experiência, juntamente com as razões para se juntar a Ordem era um segredo que compartilhou somente com Lucan Thorne, e o mais velho fundador da Ordem não contaria nada.

Era nesses momentos que Mira se perguntava se seria por isso que Lucan tinha pessoalmente atribuído Webb para sua equipe no ano passado, para manter um olho nela por ele e pelo Conselho, e para assegurar os objetivos da Ordem, que a missão fosse atendida sem qualquer... problema. Desde sua censura humilhante por insubordinação pelo Conselho dezoito meses atrás, não seria surpresa para Mira saber que Lucan confiara em Webb para suavizar quaisquer potenciais momentos difíceis em sua liderança na unidade. Mas ela não trabalhou pra caralho, treinando até quase se matar para ganhar seu lugar com a Ordem, apenas para jogá-lo fora.

Era bastante incomum — praticamente inédito, de fato, uma mulher estar através das fileiras com a Ordem e ser premiada com um lugar como capitã de uma equipe de guerreiros. Seu peito inchava de orgulho ao pensar nisso, inclusive agora. Ela vivia para provar que era digna e capaz. Forçava-se impiedosamente para ganhar o respeito dos mais velhos da Ordem e dos outros guerreiros que treinaram com ela — respeito que ganhou eventualmente através de sangue, suor e obstinada determinação.

Mira não era Raça. Ela não tinha a velocidade sobrenatural ou a força deles. Não tinha sua imortalidade ou, algo que ela como uma Companheira da Raça — uma fêmea descendente de uma mãe Homo sapiens e um pai ainda de origem genética indeterminada — poderia obter apenas através do acasalamento, de uma troca de vínculo de sangue com um da Raça. Sem esse vínculo sendo ativado, Mira e essas outras raras fêmeas nascidas Companheira da Raça envelheceriam, e finalmente, morreriam, assim como os mortais.

Aos vinte e nove anos e não acasalada, ela já estava começando a sentir as consequências físicas e mentais da sobrecarga da escolha de sua carreira. A ferida que estava carregando em seu coração pelos últimos oito anos provavelmente não ajudava também. E sua ”conduta imprópria” repreendida um ano e meio atrás, foi provavelmente mais do que desculpa suficiente para Lucan querer transferi-la para o trabalho no escritório. Mas ele ainda não tinha, e ela que se danasse se lhe daria ainda mais motivos para considerar isto.

— Uma tempestade está vindo. — murmurou o terceiro membro de sua equipe ao lado dela. Torin não estava falando sobre o tempo, Mira sabia. Como um leão checando um novo ambiente, o grande vampiro inclinou a cabeça loira reluzente para o céu da noite sem nuvens, e respirou fundo. Um par de tranças tecidas com minúsculas miçangas de vidro emolduravam suas nítidas e finas características cinzeladas, um olhar exótico não convencional para alguém tão habilmente letal quanto Torin, um que sugeria seu passado estrangeiro. As tranças brilhantes balançavam contra o resto de sua espessa juba na altura do ombro. Enquanto exalava e virava seu olhar intenso em direção a Mira. — Noite ruim para estar aqui. Algo escuro no ar.

Ela sentia isso também, mesmo sem a capacidade única de Torin para detectar e interpretar as mudanças nas forças de energia ao seu redor.

A tempestade que sentia estava vivendo dentro dela.

Ela tinha um nome: Kellan.

As sílabas do seu nome rolavam por sua mente como um trovão. Ainda em carne viva, mesmo depois de todo esse tempo. Desde a morte dele, a tempestade de emoções deixada em seu rastro tornou-se mais turbulenta dentro de Mira, especialmente nesta época do ano. Seja pela tristeza ou por negação, ela se agarrava a memória de Kellan com uma furiosa posse. Doentia com certeza, mas a esperança pode ser uma coisa cruel, tenaz.

Ainda havia uma parte dela que rezava para que tudo tivesse sido um pesadelo. Eventualmente, ela acordaria dele. Um dia, olharia para cima e veria o jovem macho arrogante da Raça vindo de uma missão inteiro e saudável. Um dia ouviria sua voz profunda em seu ouvido, um perverso desafio, enquanto brigavam na sala de treinamento, um grunhido áspero de necessidade mal refreada em suas crises de combate simulado, enviava-os juntos em um emaranhado de membros nos tatames.

Ela sentiria a força formidável do corpo de seu guerreiro novamente, grande, sólido e inquebrável. Olharia em seus olhos pensativos cor de avelã, tocaria os cabelos de ondas desgrenhadas que brilhavam como o castanho acobreado, como uma moeda de um centavo, e sentiria essa suavidade como seda em seus dedos. Ela sentiria o cheiro de couro e especiarias dele, sentiria o estímulo de seu pulso, veria as faíscas de calor âmbar preenchendo suas íris e o brilho branco acentuado de suas presas emergindo, quando o desejo que ele mantinha rigidamente sob controle o traía com relação a ela, apesar de seus melhores esforços para contê-lo.

Um dia, ela abriria os olhos e encontraria Kellan Archer dormindo nu ao seu lado, novamente em sua cama, como fora na noite em que foi morto em combate por rebeldes humanos.

Esperança, ela pensou sarcasticamente. Uma vadia sem coração.

Com raiva de si mesma pela fraqueza de seus pensamentos, pegou o ritmo e olhou para o cruzamento à frente, onde meia dúzia de casais humanos tropeçara para fora de um elegante bar de hotel e agora estavam à espera em um sinal de trânsito. Em frente a eles, uma destas onipresentes placas sinalizadoras da cidade tomava a liberdade de escanear as retinas do grupo, antes de lançar um anúncio ofensivo, feito sob medida para os interesses de seu público cativo, presos na faixa de pedestres, à espera da luz mudar.

Mira gemeu quando uma 3D digital proferiu a imagem do magnata Reginald Crowe, um dos homens mais ricos do planeta, dirigindo-se aos casais pelo nome e começando a vender com descontos estadias em sua coleção de resorts de luxo. O rosto de Crowe estava em toda parte este ano. Em comunicados de imprensa e programas de entrevistas, em blogs e sites de notícias de entretenimento... Em qualquer lugar, que houvesse uma webcam ou uma equipe de transmissão, dispostos a ouvi-lo falar sobre a sua recém-revelada tecnologia de concessão — do maior prêmio da ciência de sua espécie. E provavelmente irritou-se infinitamente mais com o fato de que nenhuma daquelas histórias, nem o anúncio de que Crowe estava ajudando a patrocinar o próximo Conselho Mundial das Nações, culminasse no interesse da maioria com a mesma profundidade, do que a cobertura do recente divórcio do bilionário com a sexta Sra. Crowe.

— Vamos lá. — ela disse, saindo da calçada para evitar a espera na claridade.

Ela levou sua equipe pela rua, dirigindo-se pelo quarteirão até o Asylum, um boteco local que nos últimos anos se tornou um terreno neutro não oficial por sua mistura de vampiros e clientela humana. Outro esquadrão da Ordem iria encontrá-los esta noite. Mira não estava com muita vontade de socializar — muito menos nesta cidade, nesta noite — mas as equipes mereciam comemorar. Eles trabalharam duro nos últimos cinco meses em uma missão conjunta — em operações secretas, com atribuições sigilosas, que se tornou a especialidade da Ordem em aparelhagem ao longo das últimas duas décadas.

Graças ao esforço combinado do esquadrão de Mira e daquele que viu em volta de uma mesa quando entrou no Asylum, o CMN tinha um grupo menor de militantes internacionais para enfrentar. Era uma vitória que não poderia ter vindo em melhor hora: daqui a uma semana, os líderes do governo, dignitários e Vips de todo o mundo, representando a Raça e a humanidade igualmente, estavam programados para se reunir em Washington D.C., em um show muito divulgado de paz e de solidariedade. Todos os anciões da Ordem estariam presentes, incluindo os pais adotivos de Mira, Nikolai e Renata.

De volta para casa em Montreal, o casal acasalado ainda estava esperando que confirmasse se iria com eles também. Embora nenhum dos dois tivesse dito nada, ela sabia que o convite deles foi dado na esperança de que pudesse expandir seu círculo social, talvez encontrar alguém que considerasse se vincular algum dia. Era também a bem-intencionada tentativa deles de tirá-la do campo de batalha, mesmo que por pouco tempo.

Ela deveria ter feito uma cara feia quando chegou na mesa com sua equipe, porque quando se sentou, o capitão do outro esquadrão estreitou um olhar preocupado sobre ela.

— Você está bem? — A voz de Nathan estava nivelada e ilegível sob o baque da música e do estrondo ruidoso subindo do bar do Asylum e da pista de dança. Seus olhos azuis esverdeados estavam firmes e sem piscar, sob o corte militar curto de seu cabelo negro. — Eu não tinha certeza de que você estaria de acordo com isso.

Não tinha certeza se ela seria capaz de lidar com o fato de estar de volta em Boston. Especialmente no aniversário da morte de Kellan.

Ela pegou o significado daquilo, mesmo que não dissesse especificamente as palavras. Ele a conhecia muito bem, foi um dos seus mais queridos amigos por quase tanto tempo quanto Kellan foi. Ainda mais agora, que Kellan havia partido há oito anos. Nathan estava lá naquela noite também. Estava bem ao lado de Mira, segurando-a para trás das chamas e destroços caindo, quando o armazém ribeirinho explodiu no céu escuro. E estava parado na cabeceira dela na enfermaria dias mais tarde, quando acordou e descobriu que não havia qualquer vestígio de Kellan ou a escória rebelde humana que ele perseguiu para dentro da armadilha no edifício.

Mira pigarreou, ainda sentia o gosto de cinzas e fumaça depois de todos esses anos.

— Não, tudo bem. Estou bem. — Ele não acreditava nela, absolutamente. Ela fugiu da sondagem do seu olhar e levou o resto de seus guerreiros para se reunirem em torno da mesa. — No caso de eu não ter dito isto ainda, bom trabalho, todos vocês. Juntos nós chutamos alguns traseiros importantes lá fora.

Torin e Webb concordaram com a cabeça, enquanto Bal lançou um sorriso torto para os três membros da equipe de Nathan.

— Certo capitã. Foi muito trabalhar com as senhoras. Afinal, todo cirurgião experiente precisa de alguém para limpar o sangue derramado, e coragem ou uma mão para entregar o instrumento certo, quando ele pedir.

— Eu tenho um instrumento para você bem aqui. — brincou Elias, segundo em comando de Nathan, um guerreiro da Raça de cabelos castanhos, parecendo um cowboy robusto, com um sorriso vivaz e um sotaque calmo do Texas. — E se você quiser falar de precisão cirúrgica, temos de lutar com espadas. Jax, meu amigo aqui? Poesia em movimento. Dois desses bastardos rebeldes tiveram a péssima ideia de abrir fogo em cima da gente, mas Jax pegou os dois com um único lançamento de suas hira-shuriken. — Eli fez um som de um assobio baixo, quando passou o dedo atravessando seu pescoço e de Rafe, seu companheiro de equipe sentado ao lado dele. — Um negócio bonito da porra, Jax.

Jax deu uma inclinada suave com a cabeça escura com louvor. Metade asiático e cem por cento letal, o grande vampiro de cabelos de ébano era famoso por sua graça mortal, e por sua habilidade com o arremesso das estrelas artesanais afiadas que levava com ele onde quer que fosse. Mira sabia sem verificar que Jax provavelmente tinha uma meia dúzia de suas hira-shuriken com ele agora.

Ela levava seu próprio par de lâminas de costume também. Punhais que tinha desde que aprendeu a usá-los corretamente. Eles estavam sempre ao seu alcance, apesar de que fosse ilegal carregar armas de qualquer tipo em setores civis da cidade. Somente os funcionários uniformizados da Junta de Segurança Urbana e o Esquadrão de Força Tarefa, uma polícia do governo direcionada e composta de mão de obra escolhida a dedo pela Raça e funcionários humanos, eram autorizados a transportar armas indisfarçáveis ou usar força letal em uma situação não militar.

Refletindo de volta no sucesso de sua missão concluída, Mira acenou para outro membro da equipe de Nathan, outro loiro de olhos azuis, Xander Rafael.

— Bom trabalho que nos prestou na cobertura que precisávamos para destruir o complexo rebelde. — ela disse a ele. — Você tem sérias habilidades, garoto.

— Obrigado. — Apesar de não ser uma criança, Mira conhecia Rafe desde que era um bebê. Do grupo sentado em torno da mesa agora, ele era o mais novo recruta, recém-saído do treinamento há dez meses. Mira era quase uma década mais velha do que ele, mas o jovem guerreiro da Raça era muito capaz e sábio, mesmo com sua pouca idade. Ele também era filho de um ancião da Ordem, Dante, e sua companheira, Tess. Como todos os descendentes da Raça, Rafe foi dotado com o talento único de sua mãe extrassensorial. A capacidade de Tess para curar com seu toque era um conflito para seu filho, que também havia nascido com a coragem inata de seu pai e inigualáveis ​​habilidades de luta.

Outro presente de sua mãe para Rafe era o cabelo louro e a cor dos olhos. Em Tess, as ondas cor de mel e o olhar verde-azulado eram impressionantes, infinitamente femininos. Em Rafe, com dois metros e envolto em músculos magros e duros, a combinação mexia com a cabeça de cada fêmea em sua proximidade.

Certa fêmea, uma morena de vinte e poucos anos que estava observando da mesa do bar com um bando de amigas, estava fazendo tudo que podia para chamar a atenção de Rafe. Ele tinha notado. E não havia dúvidas de que sabia o que a garota bonita estava lhe oferecendo também; Mira viu aquela centelha de arrogância masculina levantar o canto da boca do guerreiro, um momento antes dele e alguns outros machos na mesa virarem a cabeça para cumprimentá-la.

— Oi. — a jovem disse, os olhos compridos sobre Rafe. Ela fez sua escolha, sem dúvida.

— Oi pra você. — Eli respondeu para o resto da mesa. — Qual é o seu nome, linda?

— Sou Britney. — Um olhar sorridente para ele e os outros machos, em seguida, de volta para fitar Rafe. — Minhas amigas estavam me desafiando a vir aqui e falar com você.

Rafe sorriu.

— É isso mesmo? — Sua voz era suave e sem pressa, a de um macho totalmente à vontade com seu efeito sobre o sexo oposto. Ou outra espécie, neste caso.

— Eu disse a elas que não estava com medo. — A admiradora de Rafe continuou. — Disse-lhes que estava curiosa de como eram... — Ela deu um rápido lance de cabeça, perturbado, mas gracioso. — Quer dizer, estava curiosa como eram suas...

Presas garota, Mira pensou com um revirar divertido de seus olhos. Apesar da agitação civil em curso entre os humanos e a Raça, nunca houve uma escassez de mulheres — e um grande número de homens — buscando doar seus frescos glóbulos vermelhos em troca da alta sensual mordida de um vampiro.

Balthazar riu.

— Muito corajoso de sua parte vir sozinha, Whitney.

— É Britney. — Ela riu nervosa, mas determinada. — De qualquer forma, elas disseram que eu deveria fazer isso, então... aqui estou. — Lambendo os lábios enquanto avançava mais perto de Rafe, ela empurrou seu longo cabelo castanho por cima do ombro. O ajuste mostrou a coluna branca delicada de seu pescoço, e Mira sentiu o ar ficar tenso, com as reações instintivas de mais de um macho da Raça na mesa.

— Não há razão para suas amigas serem tímidas. — A voz de Torin era um convite, esfumaçada, que fez até mesmo os sentidos adormecidos de Mira formigar com a percepção. Ele respirou com os lábios entreabertos, o que não chegou a esconder os pontos de pérolas brancas de suas presas. — Chame-as e vamos ver se são tão ousadas quanto você, Britney.

Quando a menina animadamente fez sinal para as outras se juntarem a ela, Mira teve que sair da mesa. Recém-saídos de uma missão e merecendo algum tipo de recompensa, os guerreiros tinham o direito de aceitar a proposta indecente que estava sendo oferecida a eles aqui. Mas isso não queria dizer que queria assistir.

— O tempo de alimentação termina à meia-noite, meninos. Isso será daqui a dez minutos, caso algum de vocês esteja preocupado sobre quebrar as leis do toque de recolher.

Nathan se levantou também, o único dos vampiros aparentemente sem se abalar com a abordagem de várias fêmeas gostosas e bonitas, dispostas a brincar de hospedeiros de sangue para eles esta noite.

— O que você está fazendo?

— Saindo do caminho. Estarei de volta daqui a pouco.

Ele franziu a testa.

— Eu deveria ir com você.

— Não, fique. — Ela levantou a mão, fez um gesto com um aceno de cabeça em direção às mulheres que chegavam. — Deus sabe que não se pode confiar nesses idiotas sem a supervisão de um adulto.

O insulto teve a reação prevista de Eli, Bal, e os outros, mas o olhar de Nathan era solene. Quando sua boca larga se torceu em desaprovação, ela estendeu a mão e segurou seu queixo na palma da mão. Sentiu-o ficar tenso com o contato e de repente desejou que pudesse retirar o gesto terno. Nathan poderia ter passado mais da metade de seus 33 anos de vida com a Ordem, mas as cicatrizes de sua infância sombria nunca puderam ser enterradas. Toque e ternura sempre colocavam o ex-assassino no limite, fazendo-o se contorcer como nenhuma quantidade de derramamento de sangue e batalha conseguia.

— Divirta-se, Nathan. Você mereceu também, você sabe. — Mira começou a caminhar para longe da mesa. — Dez minutos. — ela gritou por cima do ombro. —Alguém seja agradável e tenha uma bebida esperando por mim quando eu voltar.

Ela estava bem até chegar à saída. Então o peso do que estava adiando a noite toda se estabeleceu em seu peito, e trouxe lágrimas quentes como agulhas atrás de seus olhos.

— Merda. Kellan... — Ela deixou o nome escapar de seus lábios em uma respiração áspera quando se apoiou contra a parede de tijolos do exterior, a vários metros de distância da entrada lotada do Asylum. Deus, odiava o quanto ainda doía pensar nele. Odiava que não tivesse conseguido encontrar uma maneira de se livrar do porão e de suas memórias que ainda estavam nela. Não, sua morte matou algo dentro dela também. Havia se quebrado em algum lugar profundo, em um lugar que somente ele alcançara, antes ou depois.

Mira abaixou a cabeça sem se preocupar em varrer a mecha loira solta que escapou de sua trança, e agora oscilava em seu rosto como um véu. Amaldiçoou baixinho, lutando para se recompor. Seus dedos tremiam enquanto limpava a umidade do rosto. Ela soltou um suspiro de frustração.

— Droga. Controle-se, guerreiro.

A raiva de autocensura funcionou bem o suficiente para que levantasse a cabeça e endireitasse os ombros. Mas foi a estridente gargalhada humana de dentro da multidão próxima, que realmente a tiro do seu mau humor. Mira reconheceria aquela gargalhada cacarejante em qualquer lugar. Exatamente o som que fazia suas veias esquentarem com desprezo.

Ela avistou o jovem com a cabeça vermelha — seu ridículo moicano balançando — junto com um grupo de pequenos ladrões e arruaceiros que passavam agora pela multidão, que esperava para entrar no Asylum. Esse penteado de cabelo em pé escarlate brilhante, juntamente com seu riso característico, tinha ajudado o delinquente a ganhar seu apelido de rua, Galo.

Filho da puta.

Ela não vira o desgraçado por anos. Seu sangue ferveu ao avistá-lo agora. Um conhecido simpatizante rebelde se exibindo por aí com seus amigos criminosos recorrentes, quando deveria estar apodrecendo em uma prisão em algum lugar. Melhor ainda, morto engasgado sobre o objetivo da extremidade de suas lâminas.

Quando a parte superior de seu moicano vermelho virou a esquina da quadra com seus quatro amigos, Mira sibilou uma maldição. Não lhe interessava o que Galo estava fazendo. Não era sua maldita jurisdição, mesmo se acontecesse dele estar fazendo o de sempre, nada de bom.

Ainda...

O impulso a colocou em movimento, mesmo contra seu melhor julgamento. Galo era um fornecedor ocasional de humanos para grupos militantes e facções rebeldes. E essa aliança ocasional o fazia inimigo permanente de Mira. Ela caiu atrás dele e seus amigos a uma distância discreta, arrastando suas botas de solado silencioso, enquanto devorava a calçada na perseguição furtiva.

Os homens se arrastaram pela quadra, e entraram por uma porta de um outro lugar em um beco, que há muito tempo fora um clube de dança popular no extremo norte. A antiga igreja neogótica estava longe de ser santa agora, e muito menos respeitável do que foi uma década atrás. Grafites e velhas cicatrizes de bombardeios das guerras obscurecia todo o desbotado “La Notte”, o sinal pintado na lateral do edifício antigo de tijolos vermelhos. Não mais pulsando com transe sedoso e música de sintetizador, o atual proprietário favorecia bandas de hardcore industriais, com vocais gritados dentro do clube no mesmo nível da rua.

O que era melhor para abafar os gritos estridentes e sanguinários aplausos dos clientes participando na arena subterrânea do estabelecimento.

Foi nesta parte do clube que Galo e seus amigos agora desciam. Mira o seguiu. O fedor de fumaça e bebida derramada pairava como névoa no ar. A torcida era grande na parte inferior da escada íngreme, ainda maior no espaço entre a entrada e a grande jaula de aço reforçado, na arena de luta no centro da sala.

Dentro da jaula, dois machos enormes da Raça circulavam um ao outro no combate sangrento. Do lado de fora, reunidos em torno do perímetro e longas filas na multidão de espectadores humanos, aplaudindo e gritando, as apostas eram feitas em seu favorito. Este jogo vinha acontecendo há algum tempo, com base na quantidade de sangue no ringue e a febre da multidão fora dele. Mira tinha visto os jogos fora da lei antes, e dificilmente se encolheria ao ver os dois vampiros poderosos vestindo apenas calções de estilo gladiador de couro, e um binário[1] de aço em forma de U ao redor de seus pescoços. Pregos de titânio rodeavam os dedos de suas luvas de couro sem dedos, fazendo com que cada golpe selvagem triturasse carne e músculos.

Galo e seus amigos pararam para assistir a um dos lutadores tomar um golpe duro no esterno. Sua risada vaiada disparou no meio da multidão quando o combatente caiu para trás contra as barras. O vampiro caído já estava em más condições, lançado contra um lutador invicto, que nunca deixava de trazer as grandes multidões e carteiras cheias. Agora, cuspindo sangue e arfando sob a força deste último golpe, o macho perdedor se arrastou para alcançar o botão de misericórdia dentro da gaiola. Galo e o resto dos espectadores assoviaram e vaiaram quando a chamada por misericórdia suspendeu temporariamente a partida, e expediu um solavanco para punir com eletricidade o adversário ferido do combatente de cabelos escuros. Imperturbável, o imenso lutador da Raça levou o golpe como se não fosse mais do que uma picada de abelha, presas arreganhadas em um sorriso frio que prometia mais uma vitória para seu registro.

A gaiola trovejou com a violência quando a luta recomeçou, mas Mira ignorava o espetáculo da arena. Seus olhos estavam presos em seu alvo. Sua própria necessidade de punir fervia como ácido em suas veias quando andou até Galo por entre a multidão.

Ela pensou nos momentos finais de Kellan enquanto observava o rebelde simpatizante gargalhar e assobiar, ele e os outros humanos aplaudiam cada golpe terrível, espumando por mais derramamento de sangue da Raça.

Ela não sabia em que momento puxou suas lâminas da bainha em suas costas. Sentiu o frio de costume do metal trabalhando em suas mãos, as pontas de seus dedos alcançou o punho de arabescos dos punhais. Sentiu instintivamente um comichão para deixar as lâminas voarem quando Galo lançou um súbito olhar em sua direção.

Ele a viu, percebeu que ela estava indo em direção a ele. Algo brilhou em seus olhos quando encontrou os dela. Pânico, certamente. Mas Mira também viu culpa naquele olhar preocupado. Na verdade, seu olhar de, oh-merda parecia dizer que ela era a última pessoa que esperava ou queria ver. Ele se encolheu atrás de um dos seus amigos arruaceiros, como se esse chocante cabelo de fogo espetado não fosse denunciá-lo.

Mira sentiu um grunhido enrolar na parte de trás de sua garganta. O filho da puta ia dar no pé. E com certeza, ele o fez.

— Droga! — Ela abriu caminho empurrando através da multidão espessa tentando não perder de vista sua presa, enquanto manobrava para ter uma chance clara sobre ele com suas lâminas.

Alguém viu suas armas em punho e um grito de alerta subiu. Pessoas se moveram pra fora do seu caminho — precisamente tempo suficiente para que visse sua chance de pregar Galo. Ela a aproveitou sem um pingo de hesitação. Suas lâminas gêmeas voaram. Elas flecharam em um caminho infalível que atingiu seu alvo em movimento, e o espetou contra a parede oposta, um punhal enterrado até o cabo em cada um dos bíceps finos do humano.

Ele uivou não mais divertido, agora que estava no fim de receber um pouco de dor. Mira empurrou alguns retardatários embasbacados de lado quando fechou sobre ele, veneno fervia em suas veias. Já quebrara uma lei aqui esta noite, olhando o simpatizante rebelde um pouco além do alcance do braço dela, estava tentada a acrescentar homicídio qualificado à lista.

Uma mão forte caiu em cima do seu ombro.

— Não faça isso, Mira. — Nathan. Ele e o resto dos guerreiros estavam atrás dela. Desaprovação em cada rosto duro.

Ela percebeu de repente o quanto o clube tinha ficado silencioso. A competição ilegal na jaula terminou, os espectadores agora observavam o novo espetáculo que Mira começara. O proprietário humano do local e alguns de seus combatentes da Raça se moveram para dentro de outras áreas do clube, sua mera presença ameaçava adicionar problemas se as coisas ficassem ainda mais fora de controle.

Merda. Mira sabia que meteu os pés pelas mãos desta vez, mas seu sangue ainda estava fervendo, e tudo o que podia pensar era em acabar com aquilo por Kellan. Um desgraçado rebelde a menos na noite seria um bom lugar para começar.

— Deixa para lá. — disse Nathan, sua voz de soldado frio e sem emoção, do jeito como o ouviu falar mil vezes antes, mesmo sob fogo pesado de combate. — Esta não é a maneira que foi treinada. Você sabe disso.

Ela sabia. Sabia, e ainda assim saiu do aperto de Nathan e deu uma estocada com força no Galo, que uivou como um demônio, contorcendo-se onde estava preso à parede. Nathan a bloqueou. Ele se moveu rapidamente antes que pudesse rastreá-lo, colocando-se entre ela e o humano.

— Saia do meu caminho, Nathan. Você sabe que esta escória fode com os porcos rebeldes. A meu modo de ver, isto o faz um deles.

— Alguém me ajude! — Galo uivou. — Chamem a polícia! Sou inocente!

Mira balançou a cabeça, encontrando o olhar de desaprovação de seu companheiro de equipe.

— Ele está mentindo. Ele sabe de algo, Nathan. Posso ver isso nele. Posso sentir isso. Ele sabe quem é o responsável pela morte de Kellan. Droga, quero alguém para pagar pelo que aconteceu com ele!

A maldição de Nathan foi um grunhido abafado.

— Pelo amor de Deus, Mira. — Seus olhos eram intensos, mas ternos. Segurando-a com uma pena que ela nunca viu antes, e odiava reconhecer agora. — A única que está fazendo pagar pelo que aconteceu com Kellan é você mesma.

A verdade em suas palavras a atingiu como uma bofetada. Ela absorveu o golpe em uma espécie de silêncio atordoado, vendo quando o resto de sua equipe e a de Nathan se moveu em torno deles.

— Provavelmente não é uma boa ideia permanecer aqui. — Webb comentou para Mira e Nathan, que ainda não relaxaram de seu impasse tácito. — Se não limpar isso rápido as coisas podem ficar feias.

Bal praguejou baixinho.

— É tarde demais para isso.

Vertendo da rua do lado de fora para o clube subterrâneo, chegavam vinte oficiais vestidos de preto da Junta de Segurança Urbana. O pessoal do JUSTIS invadiu detalhadamente fortemente armados, revestidos com equipamento completo antichoque. Mira só podia assistir — e culpar a ninguém além de si mesma — quando os aplicadores da lei a rodearam, suas armas automáticas treinadas sobre ela e seus companheiros de equipe.

 

Lucan Thorne poderia pensar em uma centena de outras coisas que preferia estar fazendo um pouco depois de 1 hora da manhã, do que estar ocioso em sua mesa na sede mundial da Ordem, em Washington D.C., empurrando e peneirando papeis através do correio de vídeo. Uma dessas outras coisas que preferia era o desejo de buscar sua companheira da Raça, Gabrielle, e sentir suas quentes e suaves curvas debaixo dele na cama.

Não, esse era um desejo que não foi abalado por todo este tempo em que ela era sua. Um curto período de mais de vinte anos com sua mulher, e ela o possuía como nada mais tinha, em mais de nove séculos de vida.

Seu corpo ansioso concordava, respondendo apenas ao pensamento de sua bela companheira. Lucan gemeu baixinho e se mexeu para ajustar a tensão repentina em sua virilha. Sua caneta raspou todo o papel que assinava no que parecia uma pilha interminável de documentos classificados e acordos do Conselho Mundial das Nações, a maioria pertencente à cúpula de paz mundial que tinha lugar na cidade a menos de uma semana.

As reuniões de pré-cúpula com outros lideres do CMN — que misturava igualmente os líderes mundiais da Raça e humanos — eram qualquer coisa, menos pacíficas. Mas pelo menos os golpes de sabre e o combate a incêndios foram mantidos a portas fechadas. Para seu crédito, os membros do Conselho pareciam entender que deixar suas agendas pessoais, egos políticos e desconfiança particular uns dos outros, vazar para o público desconfiado, não serviria a ninguém afinal. A cúpula se tornou a maneira de colocar um brilhante rosto amigável sobre as relações da Raça e humanos, de como seria sobre a negociação de acordos de verdade entre os chefes de Estado que, em última instância, seriam responsáveis pela aplicação da futura paz para as gerações vindouras.

Lucan só esperava que tudo não desmoronasse ao seu redor antes mesmo de começar.

Ele rabiscou sua assinatura em um resumo de segurança da CMN e acrescentou isto a pilha de diversas outras aprovações que já tinha revisado e liberado para implementação. Quando chegou para o maço restante de relatórios, seu tablet soou com uma entrada, uma mensagem de permissão de entrada. Ele bateu o botão de receber na tela e fez uma pausa para digitar a senha necessária para reproduzir o correio de vídeo. Era de um dos altos funcionários do CMN, um estadista idoso humano chamado Charles Benson. O homem também estava entre os de mente mais moderada do Conselho. Um aliado que Lucan achava que poderia ser extremamente necessário quando as negociações para estabelecer relações mais fortes entre o homem e a Raça continuassem por muito mais tempo, depois que a pompa e o flash exagerado da cúpula de paz desaparecesse dentro da areia e nas coisas mundanas da realidade diária.

Lucan largou sua caneta e observou, supondo que a mensagem deveria ser importante para Benson tê-lo contatado em particular e sob alta segurança de permissão, além de tudo.

— Minhas desculpas por incomodá-lo com esta solicitação em casa, Presidente Thorne. — O rosto enrugado parecia ansioso na gravação da mensagem de vídeo, os lábios finos pressionados em uma linha mais plana enquanto o idoso pigarreava. — Eu tenho um favor a lhe pedir, se me permite. Isto é, para a Ordem. Isto é de natureza pessoal, entende?

Lucan franziu a testa para o monitor quando o excitante discurso continuou.

— É a respeito do meu sobrinho. Talvez esteja ciente de que Jeremy está para receber um prêmio muito importante da Fundação Reginald Crowe na véspera da reunião da cúpula.

A carranca de Lucan aprofundou com a suspeita surgindo. Ele sabia que o sobrinho de Benson era um gênio. Sabia que o trabalho de Jeremy Ackmeyer era respeitado em todo o mundo, e que o humano era considerado como uma das mentes mais brilhantes de todos os tempos — um reconhecimento que recentemente o jovem cientista ganhou. Um prêmio em dinheiro considerável sendo oferecido pessoalmente por um dos homens mais ricos do mundo.

— Temo que Jeremy fique um pouco... excêntrico. — A mensagem de Benson continuou. — Ele é filho da minha irmã. Desde o dia em que a criança nasceu eu a avisei para não mimá-lo. — Um aceno desdenhoso de uma fina mão ossuda, antes que o vereador finalmente continuasse seu argumento. — Estou envergonhado de dizer que Jeremy se recusou a aparecer no baile da cúpula. Ele é um garoto medroso, um recluso irracional, se posso ser sincero com você. Ele se recusa a viajar por medo de morrer de uma causa ou de outra. Acho que eu estava esperando convencê-lo a fornecer-lhe algum tipo de escolta até Washington...

— Você só pode estar brincando comigo. — Lucan cortou a mensagem com um golpe de seu dedo no botão da extremidade, e baixinho murmurou uma maldição.

Desde quando a Ordem se tornou motorista pessoal e segurança particular para um eremita intelectual?

Politicamente imprudente ou não, ele olhou para o tablet, pronto para dizer ao

Conselheiro Benson que seu sobrinho paranoico teria que tomar outras providências. Mas, quando seu dedo pairou sobre o botão de gravação na tela, o som de vozes crescendo do lado de fora chamou sua atenção em direção ao alto, para as janelas com cortinas de seu escritório privado.

Manifestantes.

Lucan caminhou até a janela e abriu as longas cortinas. Aparentemente o horário da noite deveria ser respeitado. Ele contou 15 homens e mulheres humanos — Cristo, até mesmo uma garotinha carregando uma placa, gritando do outro lado dos portões enormes de ferro na rua. As placas tinham o mesmo estafante sarcasmo que lançaram contra a raça há duas décadas: Voltem pra onde vocês vieram! A Terra é para o homem, não para Monstros! Não se pode estabelecer a paz com Predadores!

Desde o anúncio da cúpula, manifestantes e gritos de protestos representados tanto por humanos como por dissidentes da Raça, eram muito comuns no exterior do edifício do CMN perto do Capitólio ou na sede da Ordem fortemente protegida em D.C. Está noite, com uma dor de cabeça pelas horas gastas debruçado sobre as decisões do Conselho, e agora a dor latejante de seus molares quando rangeu os dentes de indignação com o pedido ridículo de alguém que ele estava contando com o apoio político para estabelecer contato, o pensamento de uma multidão de agitadores vomitando ódio irritou Lucan mais do que o habitual

Pelo menos era apenas placas de manifestos e gritos, não a rua em total combate e atos de terror, que ocorreram em ambos os lados nos meses e anos seguintes a descoberta da Raça pela humanidade. A guerra foi inevitável, mesmo que Lucan tivesse tido a esperança de evitá-la. Houve muito sangue derramado, medo e desconfiança. Enquanto a Raça viveu ao lado do homem em segredo durante milhares de anos, tudo o que levou para desfazer séculos de cuidado e discrição foi o ato indescritível de um macho da Raça há duas décadas, que na sua luxúria infame de poder, libertou dezenas de presos, vampiros viciados em sangue, soltando-os em uma população humana inocente.

Tinha sobrado para a Ordem ajudar a limpar a carnificina, e deter os Renegados que estavam avançando em uma terrível fileira sanguinária no mundo inteiro. Mas Lucan e seus guerreiros não conseguiram agir rápido o suficiente para conter a violência que eclodiu na sequência dos ataques. Cidades inteiras foram destruídas, prédios caíram, governos dissolvidos por levantes de anarquia e rebelião. Comunidades civis das Raças sofreram ataques diurnos, que deixaram os Darkhaven em ruínas, famílias abatidas ou expostas aos mortais raios do sol.

Então, quando parecia que a luta entre o homem e a Raça não poderia ficar pior, uma pesada arma química foi implantada no interior da Rússia, transformando centenas de milhares de hectares em um selvagem deserto inabitável. Foi um movimento catastrófico, que nem os humanos nem a Raça assumiram a responsabilidade por este dia.

Poderia ter sido pior se pensar no que poderia ter acontecido, se uma arma de tal tamanho e poder tivesse sido desencadeada em uma grande cidade em vez disso.

Ainda assim, o impacto do dano foi sentido no mundo inteiro. E foi solicitado a Lucan enviar a Ordem rapidamente e com força total para destruir todos os silos e instalações nucleares de armas químicas em todos os cantos do mundo.

Embora tenha sido a coisa certa a fazer — a única coisa sensata a fazer — havia indivíduos de ambas as raças que desprezavam Lucan pela tática pesada. Alguns temiam que ele não hesitasse em se nomear o único juiz e júri do mundo mais uma vez, se o conflito entre o homem e a Raça se intensificasse.

O caralho que ele faria.

Lucan só esperava que fosse uma decisão que nunca tivesse que tomar.

Bateram na porta do seu escritório, uma intrusão de boas-vindas no caminho sombrio dos seus pensamentos.

— Entre. — ele disse, rosnando este convite. Deixando cair a cortina no lugar, afastou-se da janela.

Estava esperando Gideon, o guerreiro da Raça que era o gênio técnico do centro de operações complicadas e complexas da Ordem. Gideon estava atualmente com a tarefa de fornecer a Lucan atualizações de segurança na instalação de reunião da cúpula, de modo que os recursos da Ordem poderiam ser atribuídos para cobrir o evento de vários dias.

Mas não era Gideon na porta.

— Darion.

— Estou interrompendo seu trabalho, pai?

— Nem um pouco. — Ele fez um gesto para Darion entrar e se juntar a ele.

Apenas a visão de seu menino — o homem alto e musculoso de 19 anos de idade, que tinha o tom castanho escuro dos cabelos ruivos de sua mãe, e os mesmos emotivos olhos castanhos — fez o peso dos encargos atuais de Lucan irem embora. Eram os outros traços que Darion trazia — a estrutura facial angular e a mandíbula forte de Lucan, juntamente com uma determinação ferrenha inflexível, herdada de ambos os pais — que costumava colocar pai e filho em desacordo. Além da cor e da capacidade extrassensorial de Gabrielle, ambos transmitidos a seu filho para Lucan, estar perto de Darion era como se olhar em um espelho.

Darion era muito parecido com seu pai em muitos aspectos. Um reconhecimento que inquietava Lucan mais do que queria admitir. Mas onde Lucan tinha lutado com sua tendência natural para liderar os outros, Dare não tinha tais escrúpulos. Muito ousado, mais frequentemente do que deveria. Destemido com qualquer coisa que tentasse.

Estas eram qualidades que faziam o sangue de Lucan gelar com medo paternal, quando imaginava seu filho eventualmente vestido para combate como um guerreiro da Ordem e encarregado de uma batalha.

Se Lucan tivesse escolha, aquele momento que temia tanto nunca chegaria.

Darion entrou no escritório, casualmente em jeans escuro e uma camisa preta com mangas enroladas, desabotoada no colarinho.

— Mais manifestantes esta noite. — Ele observou, levantando o queixo quadrado em direção às janelas, onde o barulho das vozes do lado de fora estava aumentando. — Parece que os números estão crescendo à medida que nos aproximamos da data da cúpula.

Lucan grunhiu, dando um breve aceno de cabeça.

— Apesar de todos os seus balidos, infelizmente isto é apenas ruído de fundo para problemas maiores.

— Acha que as reuniões de hoje não correram bem?

— Nada melhor ou pior do que qualquer outra nas últimas semanas. — Lucan lhe indicou uma cadeira do outro lado da mesa, em seguida deu a volta para tomar o seu próprio lugar quando Darion se sentou. — Cada vez mais esta cúpula está se tornando um escárnio. Como podemos esperar fazer uma ponte através da desconfiança entre as raças quando os membros do próprio Conselho do CMN não concordam com os princípios mais básicos?

— Está tão ruim? — Darion perguntou com sua voz profunda tão ameaçadora quanto os pensamentos de Lucan.

— Sim. — disse Lucan. — Neste momento, alguns políticos estão usando a cúpula para seus comícios de campanha pessoais. Corporações estão vendo ouro, transformando todo o evento em um circo de mídia e patrocínio publicitário. E não vamos esquecer os palhaços endinheirados, como Reginald Crowe que está enfeitando todos os palcos e pavilhões com doações enormes, em troca de ver seu nome brilhando ao redor do mundo. — Lucan murmurou uma consumada maldição. — Esta cúpula deveria ter um lugar sagrado acima de qualquer exploração. Em vez disso, tornou-se uma maldita piada. Corrupção demais, suborno e favorecimento escorrendo de ambos os lados. Muitas pessoas — humanos e da Raça igualmente — à procura de dinheiro ou usar a cúpula como uma plataforma sobre a qual construir seus impérios pessoais.

— Então acabe com isto. — Dare respondeu, as sobrancelhas escuras levantadas sobre seu olhar sério. Ele se inclinou para frente, descansando seus antebraços fortes em suas coxas espalhadas. — Arranque a rolha de todo este negócio horroroso. Em seguida defina um novo rumo, um melhor, que você controle. Que os outros membros do CMN entrem na fila atrás de você ou saiam do caminho.

Lucan sorriu com divertimento irônico, ouvindo uma versão mais jovem de si mesmo no decidido Dare, a abordagem em preto ou branco.

— Tentador, Dare. Vou ser honesto com você sobre isso. Já são quase vinte anos desde a última vez que tive meu pulso firme sobre os humanos — em relação à Raça. Fazer isso de novo agora, no meio de uma celebração de alta visibilidade de nossa assim chamada paz, e planos otimistas para o futuro? — Ele balançou a cabeça, considerando a ideia de que não seria a primeira vez. Ele era um guerreiro, e o fora pela maior parte de sua longa vida. Estava acostumado com a sensação de uma arma em sua mão, o sangue de seus inimigos caídos acumulando a seus pés. Ele era um homem duro que não se adequava à diplomacia que seu novo papel exigia dele, muito menos dotado de um pingo de tolerância para os tolos irresponsáveis ou oportunistas escorregadios. — Perturbar a cúpula desfazendo todos os bons avanços que fizemos até agora — poucos que sejam. Pior, há aqueles em ambos os lados que estariam muito ansiosos para chamar isto de um ato de traição pelo líder da Ordem. Até mesmo guerra.

Lucan se sentia muito confinado de repente, e se levantou para andar pra trás de sua mesa.

— Digo a você, Darion. Cada vez mais temo que a verdadeira paz entre a humanidade e a Raça está sentada sobre um barril de pólvora. Tudo o que precisa é de uma faísca para explodir toda a esperança de futuro que nós compartilhamos ir pelos ares.

Darion ouviu, parado e contemplativo, enquanto Lucan fazia uma faixa no chão em frente a ele. Quando falou, sua voz profunda estava grave.

— Se alguém acender a centelha, sejam os rebeldes ou outros descontentes, que melhor lugar para incitar uma guerra do que em uma cúpula de paz? Nós precisamos estar preparados para isso, estar prontos para agir até mesmo sobre a menor ameaça.

— Porra. — respondeu Lucan silvando entredentes e as presas emergentes. Ele pensou a mesma coisa, é claro. Gideon e ele estavam tomando todas as precauções para garantir que a cúpula fosse esquadrinhada e varrida em todos os níveis possíveis. Se ele tivesse que revistar pessoalmente cada dignitário que entrasse no evento, por Deus, ele o faria.

Ele olhou para Darion, refletindo quão facilmente entrou em confidências com seu único filho como seu igual. Ele respeitava Dare como homem. Maravilhou-se com seu intelecto afiado e a força de suas convicções. Darion, a criança chorona e indefesa que de alguma forma se tornou um homem, aparentemente durante a noite para alguém como Lucan, cuja vida durava quase mil anos.

Lucan tinha esperança de que um dia Dare pudesse ter um assento ao lado dele no CMN, apesar da habilidade exemplar que o jovem vinha demonstrando durante a sua formação em armas e combate. Esta esperança morreu um pouco quando encontrou o olhar intenso de seu filho. O olhar de um guerreiro, que seu pai estava relutante em admitir. Como pai, queria manter seu filho por perto. Mantê-lo seguro.

— Eu posso ajudar. — disse Darion. — Você sabe que quero ajudar. Sabe que estou pronto.

Lucan caiu para trás em sua cadeira e pegou a pilha de documentos ainda aguardando sua aprovação.

— Não desejo a guerra, garoto. Você é muito jovem para se lembrar do inferno desta palavra.

— Eu tinha seis anos quando as guerras estavam em sua pior fase. Ouvi o suficiente. Aprendi bastante em meus estudos no complexo da Ordem e na universidade. Escutei você falar de batalhas e lutas pela maior parte da minha vida. Entendo o que significa guerra e entendo o que é preciso para ser um guerreiro.

O pulso de Lucan disparou, mais de preocupação do que de raiva. Ele agressivamente rabiscou seu nome em um dos acordos do CMN, em seguida pegou outro conjunto de documentos.

— Ler e conversar sobre a guerra não faz de você um guerreiro. Isto não o prepara para testemunhar ou fazer parte das coisas que as pessoas fazem uns aos outros sob a bandeira da guerra. Como seu pai, espero que nunca saiba destas coisas.

O temperamento de Darion era uma coisa palpável, uma força de poder rolando do outro lado da mesa.

— Você ainda me vê como uma criança que necessita de sua proteção.

Lucan colocou sua caneta para baixo.

— Isso não é verdade. — ele respondeu, firme agora. Lamentável que suas conversas com Darion sempre pareciam acabar neste mesmo lugar. Neste mesmo impasse frio.

A mandíbula de seu filho cerrou apertada, um tendão pulsou em sua face. Ele zombou, segurando o olhar de Lucan sem piscar.

— Treinei com Tegan desde o momento em que fiz doze anos, porque ele é — em suas próprias palavras — um dos melhores guerreiros que já conheci. Por que me enviar para aprender com o melhor, se nunca pretendeu me dar um lugar dentro da Ordem?

Lucan não podia lhe dizer que o enviou para Tegan porque todos os guerreiros que sempre serviram a Ordem estiveram sob o treinamento duro e impiedoso de Tegan, e que assim Dare teria a maior chance de quebrar. Mas Darion não tinha quebrado. Não, longe disso. Ele se destacou. Esmagou todas as expectativas.

— Você tem o seu lugar aqui.

Dare resmungou.

— Assessorando sobre estratagemas táticos e mapeando operações que nunca vou fazer parte no campo. — Ele se inclinou para trás agora, uma expansão negligente com suas longas pernas estendidas e um musculoso braço coberto de dermaglifos estendido nas costas da cadeira. Sua frustração estava em evidência na cor pulsante que começou a penetrar nos floreios e arcos de sua pele marcada da Raça. — Apenas uma vez, gostaria de colocar minha formação em um verdadeiro teste, em uma missão verdadeira, e não ignorado em um programa de computador ou rabiscos nas paredes da sala de guerra. Eu poderia fazer mais, se você apenas me desse uma oportunidade.

— O seu papel na Ordem não é menos importante do que qualquer outro. — Lucan pegou a caneta novamente e calmamente começou a assinar seu nome no resto dos documentos espalhados em sua mesa. — Imagino que você não veio aqui a esta hora para reabrir a nossa mesma e velha discussão. Se veio pra isso, vai ter que esperar.

— Não. Não é por isto que estou aqui. — Darion pegou sua unidade de comunicação e tocou na tela do leve dispositivo. — Eu queria te perguntar sobre algo com que me deparei nos arquivos particulares da sede hoje.

Lucan ergueu os olhos para a menção da câmara do complexo em D.C., que abrigava uma grande e eterna história de crescimento da Raça e suas origens sobrenaturais. Uma história que a Ordem vinha coletando nas últimas duas décadas, graças aos esforços exclusivos de uma mulher extraordinária.

— Você tem lido os diários de Jenna?

O sorriso de Dare era seco.

— Tenho um monte de tempo livre. Não é como se fosse passar todo ele no Facebook.

Lucan riu. Contente que a conversa deles não fosse acabar em um inflamado impasse, afinal.

— Diga-me o que você encontrou.

Mal disse isso, Gideon apareceu na porta aberta do escritório de Lucan. O cabelo loiro espetado do macho da Raça estava mais descabelado do que o habitual, remexido em todas as direções, como se Gideon tivesse acabado de passar repetidamente as mãos por eles, como sempre fazia quando confrontado com um problema que não conseguia resolver em três segundos. Ou quando se via nomeado o portador de notícias perturbadoras.

O olhar nos olhos azuis de Gideon enquanto espiava por cima dos fios de tons prateados disse a Lucan que nada de bom estava por vir neste momento.

— Problemas com os esquemas de segurança? — Ele adivinhou, erguendo-se para enfrentar o outro guerreiro quando Gideon entrou na sala.

— Problemas em Boston há pouco tempo. — Gideon deu um leve aceno para Darion em reconhecimento, então olhou para Lucan pedindo permissão para falar de negócios da Ordem na frente do macho mais jovem.

Lucan inclinou o queixo, uma expressão carrancuda sulcando profundamente sua testa.

— Diga-me o que aconteceu.

Lucan ouviu enquanto Gideon dava um resumo do incidente no clube, que havia colocado duas das equipes mais condecoradas da Ordem sob custódia da JUSTIS.

— Ela descarregou armas mortais atacando um civil desarmado. Não foi provocada. Em um estabelecimento público.

— Não que Mira precise de mim para dar desculpas por ela. — Gideon interveio. — Mas aparentemente, o humano que ela perseguiu até o lugar tem laços com os grupos rebeldes na área.

— Não, ela não precisa de desculpas de ninguém. — respondeu Lucan, seu sangue quase fervendo. — E você sabe tão bem quanto eu que ela tem tesão em qualquer coisa com cheiro de envolvimento rebelde. Isso não lhe dá licença para quebrar meia dúzia de leis e desafiar meu comando.

Nem Gideon nem Dare disseram nada no silêncio que caiu sobre a sala, enquanto Lucan considerava o destino da capitã.

— Onde ela está agora?

— Não houve nenhum tipo de acusação, então as duas equipes foram liberadas logo após os oficiais da JUSTIS esvaziar o La Notte. Estão todos esfriando seus ânimos com Chase no Centro de Operações de Boston.

Lucan grunhiu.

— Ela tem sorte desta merda acontecer onde aconteceu. O proprietário do La Notte provavelmente deslocou uma boa grana para a JUSTIS para que eles esquecessem a coisa toda. Quanto ao humano que Mira tentou shish-kabob[2], quem sabe por que ele a deixou furá-lo? Não importa.

Gideon assentiu.

— O que você quer que eu faça?

— Diga a Chase que quero a equipe de Mira enviada de volta para Montreal imediatamente. Ela fica para trás. Eu a quero em uma chamada de vídeo. Na. Porra. Deste momento.

 

Mira deixou uma maldição voar junto com sua lâmina enquanto continuava uma sessão vigorosa sozinha na sala de treinamento do Centro de Operações de Boston. Já era tarde — ou melhor, cedo. Quase três da manhã, e provavelmente deveria estar na cama dormindo depois de uma noite ruim, que só tinha piorado com uma repreensão merecida entregue pessoalmente por Lucan Thorne.

Em vez disso, diante de seu aviso de reprimenda através de videoconferência e da notícia de que estava sendo retirada do serviço ativo com efeito imediato, Mira foi direto para a sala de treino coberta. Pela última hora se forçou duramente, levando seu corpo até a exaustão, em um esforço para limpar a raiva e frustração que ainda estava atada dentro dela.

Seu treinamento ensinou uma melhor disciplina do que tinha demonstrado há algumas horas na cidade, e além da desaprovação do fundador da Ordem e comandante, odiava que tivesse deixado a emoção dominá-la. Ainda mais quando suas ações colocaram uma mancha bastante pública em ambas as equipes, na dela e na de Nathan, bem como a Ordem em geral — ao mesmo tempo, Lucan a lembrou do quanto a raça e a humanidade não precisavam de mais nada para atrapalhar seu duro progresso em direção à paz que ganharam.

Ele estava certo, é claro. Não importa o quão profunda fosse sua dor pela perda de Kellan, nem seu desprezo por aqueles a qual responsabilizava. Seu dever para com a Ordem tinha que vir em primeiro lugar. Como guerreiro ela deveria estar acima de tal fraqueza. Ela tinha que ser mais forte do que isso, porra. Mas falhou.

E agora teria que pagar o preço.

Remorso e autodirigida raiva colocavam uma vantagem difícil em suas passadas, enquanto caminhava de volta para a posição de prontidão na faixa. Colocando os fios soltos de seus cabelos loiros de volta em sua longa trança e limpando a umidade que frisava sua testa, e acrescentando à picada de lágrimas não derramadas em seus olhos, Mira se preparou para mais uma rodada de punição de treinamento. Com foco implacável, tirou um punhal restante do par preso à bainha nas coxas de seu uniforme negro, em seguida completou uma série rápida de movimentos de ataques e contra-ataques contra um adversário imaginário. Estava respirando com dificuldade, o suor escorrendo de suas têmporas e entre seus seios enquanto se dirigia através de outra rodada de combate simulado, em seguida outro.

Ela continuou, até que estava ofegante pelo esforço, os músculos gritando, sua camiseta branca úmida e agarrado a sua pele. Então com um impulso final de energia, girou em um agachamento de batalha e soltou a arma de seus dedos ágeis. A lâmina disparou para frente em um caminho diretamente para a seta, nada além de um flash de metal reluzente um instante antes de atingir a casa no alvo na extremidade da faixa.

— Uma execução impecável. — Atrás dela a voz de Nathan a pegou de surpresa. — Seu trabalho com a lâmina é impressionante, como sempre.

Mira não tinha sequer o escutado entrar na sala. Um fato que atribuía tanto a sua concentração profunda quanto ao que estava fazendo, a enervante capacidade furtiva de seu amigo. Não que o silêncio letal de Nathan chegasse como um choque. Sendo da Raça, ele podia se mover mais rápido do que qualquer outro fora de sua espécie pudesse ver, muito menos se igualar. Mas a cautela de Nathan era mais profunda do que isso.

Ele nasceu e foi criado no laboratório de um louco, criado com o único propósito de matar, até que foi recuperado por sua mãe biológica e levado pela Ordem quando era apenas um adolescente. Mira conhecia Nathan desde que era criança, há muito tempo o considerava um amigo querido e confiável, como sua própria família. Ainda assim, ela escondeu o rosto dele agora, afastando o suor e as lágrimas quentes de suas bochechas, mantendo-se de costas para ele.

— Não olhe para mim, Nathan. — Não por causa de suas lágrimas, mas por outra razão maior. Ela apontou para o estojo que continha suas lentes de contato sob medida. — Meus olhos. Estão desprotegidos. Achei que podia ficar sozinha aqui, então deixei minha visão sem proteção enquanto treinava.

Como todas as Companheiras da Raça e os descendentes da Raça traziam, Mira tinha um dom extrassensorial único nela. Mais poderoso do que o de muitas, o dela era a capacidade de mostrar a alguém um vislumbre de seu destino no reflexo de suas claras íris espelhadas. Muitas vezes esses lampejos eram indesejados, até mesmo horríveis. Ela não podia controlar o que as pessoas veriam, nem estava a par dos detalhes da visão delas. E o custo para usar seu dom era uma degeneração progressiva de sua visão.

Quando menina ela usava um véu curto sobre o rosto para proteger sua visão e silenciar sua vista. Depois que seus pais, Nikolai e Renata a trouxeram com eles para viver sob a proteção da Ordem, foi dado a Mira lentes de contato especiais, como as que usava neste dia.

O ar atrás dela se agitou sutilmente com o movimento de Nathan, então o estojo com a lente lisa de plástico foi pressionado em sua palma.

— Por que não me deixou ficar com você quando Lucan a chamou hoje à noite? Não tinha que enfrentá-lo sozinha. Teria respondido por você, assumido parte da culpa pelo que aconteceu.

— Eu nunca te pediria para fazer isso, nem permitiria que o fizesse. — ela disse, descartando a ideia de imediato enquanto colocava as lentes de cor violeta nos olhos. A última coisa que queria era que Nathan ou qualquer membro do esquadrão de ambos, fosse injustamente penalizado por suas ações. Quem gostaria de ver ferido era o simpatizante rebelde, que deixou escapar por entre seus dedos mais cedo esta noite. — Houve alguma palavra sobre Galo? Acredito que o detalhe com a JUSTIS o lançou de volta à vida selvagem novamente.

Quando ela deu meia volta para olhar para Nathan, ele deu uma leve sacudida de cabeça.

— Ele não cometeu nenhum crime, não tem mandados pendentes. Não havia nenhum motivo para segurá-lo, então estava livre para ir.

— Porra. — ela murmurou, ignorando o olhar avaliador do guerreiro da Raça. — Quem sabe quanto tempo vai demorar antes que o bastardo ressurja novamente?

Sem esperar a resposta dele ela se afastou de Nathan, abaixou-se em toda a extensão dos limites do alvo para recuperar suas lâminas. Quando se voltou, ele estava olhando para ela com seu frio jeito imparcial, estudando-a como faria em um plano tático ou diante de um quebra-cabeça com a necessidade de resolver.

— Ouvi dizer que as coisas não vão bem entre você e Lucan.

Ela ergueu o ombro em reconhecimento.

— Ele tem o direito de estar chateado comigo. Passei da conta e isso é inaceitável. Deveria ter sido mais cuidadosa. Se quisesse cuidar daquele lixo humano, deveria ter feito isso fora da vista do público. Da próxima vez, vou cuidar para ser mais discreta.

— Da próxima vez. — Nathan xingou baixinho. — Você foi dispensada do serviço até segunda ordem, Mira. Não pode haver próxima vez ou pode esperar ser retirada das fileiras de forma permanente. Não é isso o que nenhum de nós quer. Sei que não é o que você quer.

— Não. — ela disse. — O que quero é vingança.

— Daí você entra em cada batalha com a cabeça cheia de fúria, armas em punho, facas voando, e foda-se as consequências. — Em outro momento ela poderia ter tomado como um elogio à sua coragem, mas a acusação na expressão de seu amigo era impossível de negar. Ele ficou em silêncio por um longo momento, estudando-a. — Um guerreiro conduzido por tal meio egoísta não é um guerreiro apto para liderar outros em batalha. Inclusive, talvez até impróprio para servir.

Lucan dissera a mesma coisa mais cedo esta noite. Que ganhasse a desaprovação do fundador e comandante da Ordem já era ruim o suficiente. Decepcionar Nathan e os outros guerreiros que serviam ao lado dela era muito mais difícil de suportar.

— Sinto muito. — disse, sentindo isto do fundo do coração. — Eu desejava poder esquecê-lo, Nathan, mas não posso.

— Você ainda o ama.

Não era uma pergunta, e ela não podia negar. Nathan, junto com a maioria da Ordem e suas companheiras, há muito tempo reconheceu o vínculo que se formou entre Kellan e ela ao longo dos anos. O que começou para ela como uma paixão de infância por com um taciturno e magoado garoto, floresceu em algo muito mais profundo quando amadureceu, tornou-se uma jovem mulher e viu Kellan se tornar um soldado corajoso, um bom homem de honra inabalável.

Mira amou Kellan desde que tinha oito anos de idade. Crescendo, ele se tornou seu melhor amigo e seu parceiro de treino favorito quando ela entrou em treinamento para se tornar um guerreiro. Ele lhe deu o seu primeiro beijo aos quinze anos. Seu primeiro gosto do desejo quando treinavam boxe e os risos se transformaram em olhares e carícias acaloradas que deixavam seu corpo virgem trêmulo e com fome por mais.

Kellan foi o único para ela. Quantas vezes imaginou suas vidas juntos? Com que frequência sonhou com o futuro deles, de compartilharem uma eternidade como sua companheira vinculada?

Mas ele sempre manteve algo de si mesmo escondido dela. Nunca entendeu o porquê. E então compartilharam uma incrível noite juntos — uma noite, quando enfim teve tudo dele — apenas para perdê-lo para sempre poucas horas depois, na explosão que tirou sua vida.

— Não posso esquecê-lo, Nathan. E não posso perdoar aqueles que o arrancaram de nossas vidas. Como você pôde fazer isto? Afinal, Kellan era seu amigo também.

— O melhor que jamais terei. — Nathan e Kellan foram tão próximos como irmãos. Talvez mais próximos, por terem combatido juntos inúmeras vezes como membros do mesmo esquadrão da Ordem. Eles enfrentaram a morte juntos, inabaláveis, trataram disto sem misericórdia quando o dever os chamava. E fizeram isso como amigos, família, irmãos de armas. Mira podia ver a dor dessa perda no azul-esverdeado dos olhos de Nathan, embora seu rosto bonito continuasse com sua estoica expressão de soldado. — Sinto falta dele também, Mira. Odeio como o inferno que ele tenha partido. Mas ele se foi. Está morto. Jogar fora seu futuro não vai trazê-lo de volta.

Deus, como se eu pudesse? Por um breve e vívido momento desesperado, ela se perguntou o que estaria disposta a sacrificar para ter Kellan vivo novamente. Quase uma década sem ele e ainda se afligia para vê-lo, para tocá-lo. Patético, o quão profundamente ansiava por isso. Alguma parte obstinada dela ainda se agarrava à esperança de que foi apenas um terrível engano cósmico que seria corrigido em breve, e então tudo voltaria a ser como deveria, mais uma vez.

Exatamente. Patético.

— Quando você volta para Montreal? — Nathan perguntou. Uma pausa bem-vinda aos seus pensamentos escuros, puxando-a de volta à realidade. Que não estavam muito claros no momento.

— Não vou voltar. Não por enquanto. — Ela lhe enviou um olhar triste. — Fui convocada para ir pessoalmente a D.C. para uma análise do conselho com Lucan e os comandantes das outras Ordens. Onde, com toda certeza, vou ser convidada a me exonerar do posto de capitã. Webb permanecerá como meu substituto. Uma decisão de Lucan. Ele já mandou a equipe de volta para a base sem mim.

             Tolamente traçou o polegar sobre os arabescos de uma de suas adagas trabalhadas a mão — um presente de Nikolai e Renata, que eram a coisa mais próxima a pais que tinha conhecido. As lâminas foram confeccionadas iguais as que Renata empunhava tão lindamente, mas este par foi projetado especialmente para Mira, que lhe foi presenteado no dia em que foi promovida a capitã.

Os punhos de suas duas adagas eram esculpidos em cada lado, gravado pelo mesmo artesão, tendo as mesmas palavras que enfeitavam as quatro de Renata: Coragem. Sacrifício. Honra. Fé.

Ela nunca se sentiu mais indigna de mantê-las.

Nathan a olhou em um grave silêncio, e mesmo que a poupasse de sua opinião sobre o assunto, ela podia dizer que ele entendia, assim como entendia que sua posição com a Ordem era tênue. Fora exilada em uma espécie de terra de ninguém, não totalmente arrancada de sua posição, mas igualmente à deriva.

— Tem uma data definida para sua análise do conselho?

Ela balançou a cabeça.

— Quatro dias a partir de agora, um pouco antes da cúpula de paz do CMN começar. Mas meu rebaixamento começa imediatamente. — Adicionando à aguilhoada de sua censura, ela também foi relegada a uma missão especial, que não era nada especial. — Fui convocada pra ser uma reles babá para um dos premiados da cúpula. Algum recluso intelectual chamado Ackroyd ou Ackerman.

— Ackmeyer. — Nathan corrigiu. — Jeremy Ackmeyer. O humano é um prodígio da ciência, Mira. Excêntrico, mas brilhante. Ackmeyer detém patentes sobre tudo, desde têxteis e genomas de plantas, a energia solar.

Ela confirmou, com um leve encolher de ombros.

— É esse cara. Gênio ou não, aparentemente ele se assusta com tudo, incluindo sua própria sombra. E também está relacionado com um dos diretores do CMN. Lucan disse que a Ordem foi solicitada a fornecer escolta pessoal para Ackmeyer, de sua casa em Berkshire até a cúpula, e certificar que chegue a tempo para aceitar seu prêmio tão apregoado pelas Empresas Crowe.

Ela mal conseguia evitar revirar os olhos com o pensamento de fazer parte do espetáculo do circo de Reginald Crowe, mesmo que esta função estivesse sendo forçada pra cima dela. Embora Lucan não tivesse enquadrado esta atribuição como punição, Mira sabia que era sua maneira de garantir que ficasse com as mãos ocupadas — de tarefas com algo servil que a mantivesse longe de problemas e fora das ruas — até o momento em que fosse capaz de lidar com ela pessoalmente e decidir seu destino dentro da Ordem.

Nathan ponderou por um longo momento.

— Poderia ser pior. Você não deve ter caído muito na consideração de Lucan, se ele ainda está disposto a mantê-la no jogo com uma missão solo.

Ela soltou uma risada sem humor.

— Esta não é uma missão, ambos sabemos disso. E a única razão de eu estar sozinha nisto é porque Ackmeyer insiste em viajar apenas durante o dia. O que automaticamente exclui noventa e nove por cento dos membros da Ordem, a menos que queiram se arriscar a incinerarem pelo caminho.

Ackmeyer tinha outros requisitos para sua escolta até a cúpula, assim como as fobias de transporte de massa e doenças transmitidas pelo ar, que o restringiam a viajar de carro — novíssimo, é claro, o interior aspirado extensivamente e limpo de cima abaixo com desinfetante. Ele exigiu no máximo quatro horas de carro por dia, mas se recusou a ficar em um alojamento público. O que significava que no momento em que chegasse a Washington, um décimo de hora de carro levaria mais de sessenta. Tudo isso passado juntos no confinamento estreito de um carro.

Não era de admirar que Lucan tivesse atribuído a segurança de Ackmeyer a ela. Qualquer um dos guerreiros que conhecia provavelmente estrangularia o excêntrico humano antes de chegarem à fronteira sul do estado de Massachusetts. Esperava como o inferno que ela mesma não ficasse tentada. Se ainda tivesse uma pequena chance de salvar sua posição dentro da Ordem, entregar um convidado de honra estrangulado não seria a melhor abordagem.

Em algum canto privado e perigoso de seu coração, ela sabia que se Lucan a devolvesse a Ordem, continuaria a lutar. Ela ainda queria justiça, vingança contra os rebeldes que abalaram seu mundo quando tomaram Kellan dela. Não sabia o quão longe iria para corrigir o erro, mas a aterrorizava um pouco pensar nisso. Seu ódio corria muito quente e a marcou profundamente.

Sentiu suas lâminas frias, os punhos trabalhados machucarem suas mãos. Inverteu os punhais em torno de seus dedos e os deslizou para casa dentro das bainhas em suas coxas.

— De qualquer forma, saio em algumas horas para cumprir meu destino em D.C. — ela disse a Nathan. — Eu deveria ir pra cama, tentar dormir um pouco antes de ir.

— Mira. — ele disse quando começou a se afastar dele. Ela não queria conversar mais nada. Não queria pensar sobre o que a esperava no final de sua jornada em apenas quatro dias, nem para onde iria de lá. — Mira pare.

Ela fez uma pausa, girou para encontrar o olhar sóbrio de seu querido amigo.

— Tome cuidado. — ele disse, prendendo seus olhos com um olhar fixo que parecia penetrar diretamente em seu ser. — A linha em que está andando é fina o suficiente. Faça isto certo. Você é boa demais para desistir agora. Não dê a Lucan qualquer motivo a mais para expulsá-la.

 

Naquela mesma manhã, aderindo às instruções meticulosas que recebeu do próprio Jeremy Ackmeyer, Mira chegou em sua casa na zona rural a oeste de Massachusetts precisamente às 09:00. A casa era grande, mas minimalista ao extremo. Nenhuma cerca no perímetro, sem portão elaborado ou camadas de guardas para proteger o gênio recluso. Apenas um bloco inexpressivo de concreto branco de um único andar, telhado inclinado com painéis solares e claraboia de aço e janelas sombreadas, sentada em uma ampla colina no meio de um pedaço de dois hectares de gramado impiedosamente aparado.

Mesmo sem um portão ou guardas, para Mira a casa parecia mais uma prisão do que um lugar que alguém chamaria de casa — até mesmo um idiota estranho como Ackmeyer.

O cientista germofóbico não queria que ela entrasse na casa e potencialmente contaminasse tudo, mas estipulou que o encontrasse na garagem na parte de baixo e fosse diretamente até o carro para partirem. Obediente, ela deslizou ao longo do caminho de entrada para o estacionamento subterrâneo como foi instruída, e parou junto ao painel eletrônico de acesso, diante da porta fechada do compartimento à direita.

Mira deslizou a janela do lado do motorista para baixo, grata pela rajada de ar fresco da manhã que entrava. O interior do sedã ainda tinha um cheiro forte de desinfetante, remanescente da esterilização de cima abaixo que Ackmeyer insistira, antes de concordar em colocar o pé no veículo. Fômites, ele explicou, como se a palavra o asfixiasse de terror frio. O que faria se decidisse lamber o lado de seu rosto assim que chegasse perto dele? Provavelmente desmoronaria em um ataque de choque apoplético. Isto certamente faria o caminho transpor um pouco mais rápido, se sua carga passasse a viagem desmaiada.

Sorrindo com a ideia, Mira aspirou longos sopros do puro ar do campo e o saboreou. Essa pequena amostra de liberdade teria que durar seus próximos cinco dias de tormento. Pressionando o botão de entrada no painel de acesso à garagem, inclinou-se para frente e recitou a senha de entrada temporária que Ackmeyer lhe dera, quando falou com ele naquela manhã para combinar de apanhá-lo.

— Annus Mirabilis.

Ackmeyer escolheu a senha latina pela óbvia brincadeira com seu nome ou por algum outro motivo? Ela quase perguntou quando deu a ela, mas decidiu esperar, imaginando que teria muito tempo para perguntar durante a viagem. Deus sabia que precisaria de algumas conversas decentes pelas muitas horas que estavam prestes a passar juntos no caminho até D.C.

A porta da garagem não estava se movendo.

Mira colocou a cabeça para fora da janela e tentou novamente a senha.

Nada.

— Oh, qual é! — ela murmurou, franzindo a testa para a porta do compartimento que não reagia. Com todas as suas tendências de TOC, ele não percebeu que o sistema de segurança de sua casa não funcionava?

Deu outra chance e quando a porta da garagem ainda assim não se moveu, ela olhou para fora através do para-brisa para a casa acima. Ackmeyer a instruiu especificamente a esperar por ele na garagem, proibindo-a ou a qualquer outra pessoa de entrar em sua casa, em qualquer circunstância. Ele não disse que não podia andar pelo quintal para dizer a ele que tinha chegado.

Mira saiu do carro e andou colina acima e voltou pra frente da casa.

— Sr. Ackmeyer? — ela chamou, andando até uma das janelas sombreadas para tentar olhar para dentro através das ripas de aço. — Jeremy, você está aí?

Sua nuca formigou com o instinto de guerreiro de que algo não estava bem aqui. Da outra vez, quando falou com Ackmeyer há algumas horas para organizar a viagem, ele não tinha parecido exatamente ansioso para fazer a viagem em primeiro lugar. Não realizou seu trabalho por prêmios ou elogios, ele insistiu, algo que Mira respeitava, apesar de suas peculiaridades pessoais. Ele estava sendo forçado a assistir à festa de gala em Washington D.C. por compromisso social e político com sua insistente família, e pela pressão do próprio Reginald Crowe.

Porém, não era função dela se preocupar com nada disso. Ela tinha um dever a cumprir aqui, e isso significava entregar Jeremy Ackmeyer para a celebração da cúpula são e salvo, como esperado.

Mas algo não estava certo.

Não está bem mesmo.

O que a surpreendia mais era a calma do lugar. Totalmente calmo e antinatural.

E então, um barulho.

Soando de algum lugar dentro da casa.

O lugar estava sendo roubado em plena luz do dia?

Mira sentiu a lâmina em sua mão, antes mesmo que sequer percebesse que a tinha tirado de sua bainha escondida em suas costas. Seus sentidos de combate entraram em colisão com a necessidade de saber se estava tudo bem lá dentro com Ackmeyer.

— Jeremy? Se você estiver aí, precisa me deixar vê-lo.

Um baque alto, pesado, respondeu. Em seguida uma trovejante corrida de botas sobre uma escadaria. Quantas, ela não tinha certeza. Havia vozes abafadas, seguidas por um grito de dor abafado, cortando abruptamente a paz de espírito de Mira.

Puta merda.

Ela flexionou os dedos ao redor do punho de sua adaga enquanto rastejava ao longo do perímetro da casa, avaliando a situação para determinar a melhor forma de uma pessoa agir, contra o número desconhecido do lado de dentro.

Mira era boa com suas facas e no combate mano a mano, mas agora desejava como o inferno que tivesse ignorado a aversão que Ackmeyer afirmou ter de armas e qualquer tipo de violência. Manteve seus punhais escondidos com ela, mas para evitar os transtornos dele, escondeu a arma no porta-luvas do carro. Porra. Ela correu de volta colina abaixo e abriu a porta do lado do passageiro do veículo estacionado.

Mal arrancou a grande 9 mm do coldre e tirou a trava, o compartimento esquerdo da garagem levantou e uma van preta de entrega sem placa, derrapou para fora e passou como uma bala.

Ela escapou por pouco, os pneus gritando na calçada, a fumaça espiralando em seu rastro quando a van rugiu pelo caminho. Mira rolou em um agachamento e abriu fogo contra o veículo em retirada.

Ela disparou em um dos pneus traseiros, continuando a explodir as rodas da van que desviava loucamente, desacelerando pelo dano. Disparou até que tivesse esgotado o pente, em seguida mergulhou na porta do passageiro aberta de seu carro e saltou através dos assentos para o lado do motorista. Movendo-se rapidamente em marcha ré, pisou no acelerador e virou em uma rotação para frente.

Com os olhos na van derrapando à sua frente, ela lançou o carro na estrada e afundou o pedal até o chão. Em vez de bater em sua traseira e arriscar incapacitar seu próprio veículo, Mira rugiu ao lado da van e usou seu carro para encurralar sua presa, conduzindo-o para longe do caminho pavimentado para o pátio acidentado, onde seria mais difícil para o pneu estourado rolar. Dando-lhe pouca escolha a van começou a desacelerar. Debatendo-se no terreno irregular, dobrando para a direita com Mira montada ao lado deles perpendicularmente, retendo seu rumo.

Ela esperou ser recebida com uma saraivada de tiros dos operadores da van, mas a motorista, uma jovem de longos cabelos negros e o homem loiro de olhar duro armado com uma escopeta, pareciam mais interessados ​​em fugir de Mira do que disparar nela. Mas o homem estava agitado, batendo as mãos no assento e gritando ordens para a motorista. Ela manteve a calma, manobrando como se estivesse pensando que poderia finalmente dirigir para fora da armadilha de Mira, mas seu companheiro não tinha tanta paciência. Lançou-se para a direção, rastejando sobre a motorista e a empurrando para o lado para tomar seu lugar ele mesmo.

Ele desviou loucamente, então empurrou rapidamente para a esquerda, para raspar a lateral da van no sedan de Mira. Ela cavou o pé no acelerador mais fundo, os braços tremendo com o esforço de manter o volante firme contra a força de oposição da van. Quando o motorista de repente pisou nos freios, Mira percebeu seu erro. Tarde demais para parar o frontal ímpeto, acabou jogada para frente da van.

Nem mesmo um segundo depois, ele bateu por trás.

A batida foi descentralizada, esmagando o lado direito traseiro de seu carro. Seu corpo voou de lado com o impacto, batendo seu ombro e a cabeça na porta do lado do motorista e na janela. Uma luz explodiu dentro de seu crânio. Ela sentiu o cheiro de sangue quente e úmido se espalhando sobre seu couro cabeludo e no lado esquerdo de seu rosto.

Sua visão foi desaparecendo, enchendo-a rapidamente com uma névoa espessa e negra quando o sedan balançou em um giro cruel. Tudo diminuiu... e parou.

Vozes começaram a chegar mais perto agora.

Ela não sabia quantas. Não foi possível conciliar de onde vinham, até que levantou a cabeça e viu a van preta estacionada perto de seu veículo parado. Todos os seus sentidos estavam cobertos de uma pesada névoa, a visão e o som uma confusão de entrada que seu cérebro se esforçava para processar. Ela tentou se mover, mas seus membros recusaram o débil comando.

— Vamos, Brady. Nós não temos tempo para isso. — A voz de um homem, presa e ansiosa em sua abordagem. — Temos que dar o fora agora!

— Você ouviu as ordens do Arqueiro sobre este trabalho. — A resposta era da mulher. — Sem vítimas, Vince. Obter o alvo e sair. Esse era o plano.

— E nós temos Ackmeyer, então missão cumprida. Agora, vamos dar o fora daqui.

— Não vou a lugar algum até ter certeza de que ela está bem. — As longas pernas marcharam apressadamente em direção ao carro caído de Mira. A porta do lado do motorista gemeu, abrindo. — Jesus. Oh, merda... vá buscar o Doc. Preciso dele aqui depressa.

— Ela está morrendo?

— É melhor você rezar pra caralho para não estar. — Uma resposta concisa. — Vá buscar Doc, agora.

Através da névoa espessa inundando os sentidos de Mira, sentiu o ar agitar quando o homem penetrou mais perto. Ouviu sua súbita respiração profunda quando ele se inclinou sobre sua companheira para dar uma olhada melhor.

— Puta merda. Essa cadela é uma da Ord...

— Eu sei quem ela é. — retrucou a mulher. — Volte para a van e traga o Doc. E mantenha Chaz ocupado trocando aquele pneu furado. Estou ligando pra base. Alguém tem que dizer ao chefe que nós fodemos essa coisa importante.

Ela não pareceu notar a minúscula flexão dos dedos de Mira. Não perceberam aquela contração de resposta muscular cruzando a mão de Mira, contra o cabo da adaga no chão do banco da frente onde estava esparramada.

Mira focou no punho do metal frio de sua lâmina enquanto o homem corria para executar suas instruções e a mulher se virava para se pôr em contato com a pessoa que os levou.

 

— Eles já deveriam estar aqui agora. — A voz do Arqueiro[3] era mais um esgar do que palavras quando espreitou através de seu reduto quase três horas após a chamada vinda do remendado campo de operações.

A pequena jovem responsável pelas comunicações para a base do acampamento rebelde, localizado ao sul de Boston, correu para manter o ritmo com o dele nos corredores sombrios do bunker. Ela enganchou uma mecha de seu cabelo curto tingido de azul escuro atrás de uma orelha repleta de uma dúzia de anéis de metais minúsculos.

— Tentei chegar até eles para uma atualização da situação, mas até agora nenhuma resposta.

— Quando foi a última vez que tentou, Nina?

— Cinco minutos.

A resposta praguejada do Arqueiro ecoou pelas úmidas paredes de blocos de granito. Ele passou a mão sobre sua mandíbula e pelo aparado cavanhaque que escurecia seu queixo.

— Tente novamente. Faça isso agora.

— Sim, senhor. — Ela já tinha seu dispositivo de comunicação ativado, falando o comando que ligaria para a equipe de rota. Levou apenas alguns segundos antes que lhe desse uma sacudida sombria com a cabeça, seus grandes olhos castanhos sérios com a preocupação.

— Nada ainda.

— Filho da puta. — Algo estava errado. Algo pior do que a complicação óbvia que ocorreu na casa de Ackmeyer algumas horas atrás.

Arqueiro não estava disposto a sentar com o pau na mão, imaginando e esperando. Ele detestava o gosto desta inatividade desde o momento em que deu o ok sobre este trabalho. Agora isto queimava como ácido na parte de trás de sua garganta.

Botas de combate atingiam surdamente no chão de concreto do abandonado forte militar quando dobrou a esquina para ir mais fundo no bunker, em direção a um túnel talhado a mão que conduzia ao subterrâneo para a bateria de armas, que servia como garagem para a pequena frota da base rebelde.

— Tenho certeza que eles vão estar aqui a qualquer minuto. — disse Nina, correndo para ficar ao lado dele. — Tenho certeza de que temos tudo sob controle agora.

O Arqueiro grunhiu, continuando a andar. Como se fosse simples assim, sentar e aguentar firme, sabendo o quanto as coisas saíram errado dos trilhos lá fora.

— O que vai fazer? Você não pretende ir atrás deles...

Ele não respondeu, nem abrandou.

Porra, nunca deveria ter colocado este trabalho em jogo. Ele teve um mau pressentimento sobre isso desde o começo, mas depois de esperar meses pela oportunidade de fazer seu lance com Ackmeyer, não estava disposto a arriscar perder essa chance, simplesmente porque era uma captura durante o dia para ser realizada sob menos que em perfeitas condições.

Menos do que perfeito parecia o eufemismo do século quando invadiu o longo corredor com Nina correndo atrás dele, fazendo outra tentativa frenética para alcançar Brady, Doc e os outros.

Quanto tempo eles vinham desenvolvendo seu plano para se aproximar de Ackmeyer? Quase três meses de espionagem meticulosa, colocando os batedores certos nas pessoas certas, esperando o momento perfeito para atacar. Poderia ter levado mais meses para obter as peças necessárias no local. Muito tempo e hesitação poderia se mostrar catastrófico se Ackmeyer fosse autorizado a continuar seu trabalho. Tanto pior, se decidisse lucrar com os formidáveis frutos ​​de seu trabalho.

Foi esse argumento que convenceu o Arqueiro a dar luz verde a missão desta manhã, apesar de seus inúmeros riscos. De última hora a informação tinha chegado de um dos contatos dos rebeldes de Boston. Ackmeyer faria uma rara aparição pública em alguns dias, como parte da elite da cúpula de paz. E como convidado célebre de ninguém menos que Reginald Crowe.

Não poderia haver mais espera. Nada mais de suposições. Ackmeyer não poderia ser autorizado a chegar a esse estágio.

O consenso entre o Arqueiro e sua equipe rebelde foi imediato, e o enredo para pegar o cientista recluso foi colocado em movimento. Ele confiava na equipe enviada para realizá-lo. Eles eram capazes e qualificados, comprovados em tempo de campo e com frequência. Estava contando com eles e nunca duvidou que conseguissem, com ou sem ele na liderança.

Eles teriam conseguido, estava certo, se não fosse um obstáculo inesperado.

Depois de tomar muito cuidado para evitar tal problema, ele agora entrava em conflito direto com a Ordem. Esperava apenas que sua equipe — diabos, o resto do mundo em geral — não acabasse pagando pelo seu erro.

O Arqueiro pegou seu ritmo enquanto se aproximava da boca do túnel que conduzia à garagem nas proximidades. Mal chegou a entrada escancarada, ouviu um barulho distante de vozes que se derramavam em direção a ele através da escuridão.

— São eles? — Nina perguntou, a preocupação vincando sua testa.

Um grito de mulher irrompeu no segundo seguinte. Em seguida, um grito afiado de raiva de um homem.

Arqueiro verteu a Nina apenas um olhar fugaz antes de decolar como uma bala pelo caminho sem luz à frente. O caos irrompia rapidamente — mais gritos e confusão. Um ruído metálico, pontuado pelo soco repentino e cheiro de sangue derramado.

Ele saiu do túnel a tempo de ver Doc no chão perto da van com uma ferida de uma facada recente do punhal alojado em seu abdômen. Vince caído próximo ao limite e o inconsciente Jeremy Ackmeyer na porta do painel lateral aberto do veículo. O braço esquerdo do rebelde estava envolto em um torniquete improvisado, do que parecia ser uma lesão que foi tratada no caminho. Ele tinha hematomas no rosto, a roupa rasgada em vários lugares. Enquanto isso, Brady e Chaz tentavam sem sucesso dominar a encapuzada fêmea parcialmente contida que lutava como um demônio.

Não, o Arqueiro se corrigiu mentalmente no segundo que a observou, ela lutava como um guerreiro.

O guerreiro que sabia que ela era.

Naquela fração de tempo, entre o momento em que era simplesmente o líder destes soldados renegados e aquele que mantinha imóvel no temor e respeito por uma mulher que havia traído há muito tempo, o Arqueiro não pensou em olhar na direção de Vince.

Não até que fosse tarde demais.

Com o rosto contorcido de raiva, Vince se lançou para a briga. Ele tinha algo em sua mão — um dos injetores de pressão de Doc. Ele a acertou com isto, arrancando o capuz preto e empurrando a arma de dosagem no seu pescoço. Ele puxou o gatilho e ela caiu como uma pedra, os membros desmoronando inutilmente debaixo dela.

O rugido do Arqueiro balançou a fortaleza inteira.

Em um minuto ele estava de pé na boca aberta do túnel, no próximo estava segurando Vince suspenso pelo pescoço, todos seus dedos esmagando a laringe do homem, enquanto se abatia sobre ele em total fúria assassina.

— O que você fez? — ele rosnou.

Com os olhos arregalados, quase pulando para fora do crânio, Vince cuspiu e guinchou, tentando formar palavras.

— A-algo tinha... tinha que ser feito... alguma coisa. Ela nos atacou na van... poderia ter matado Doc nesse instante.

O Arqueiro pressionou com mais força, o calor de sua ira banhando o rosto de Vince em um crescente brilho âmbar. O sangue derramado na garagem seria suficiente para descontrolá-lo, mas era pura raiva que colocava a dor aguda em suas gengivas. Ele puxou seus lábios para trás de seus dentes, com as presas explodindo em pontos mortais.

Os olhos de Vince arregalaram com o medo enchendo sua expressão inteira. Arqueiro podia sentir o cheiro acentuado do medo esmurrando os batimentos cardíacos do humano contra seus dedos. Ele podia ouvir isto nos pensamentos de Vince, prová-lo através do toque, o que permitiu ao Arqueiro penetrar na mente do humano e na verdade divina de suas intenções.

O puro pânico que provocou Vince a atacar a mulher, aprofundou pra caralho o medo fulminante quando olhou para o Arqueiro e se esforçou para levar o ar aos seus pulmões.

— P-por favor... — Vince engasgou. — Não... não me mate.

— Ela está bem. — A voz de Brady transportada pela sala agora era baixa e cautelosa. — Era uma arma tranquilizante, apenas isso. Assim que acordar vai ficar bem.

Arqueiro manteve os olhos treinados em Vince.

— Não a toque. Nunca mais. Se você fizer isso, morre. Estamos entendidos?

O soldado rebelde deu um aceno fraco.

— Por favor... deixe-me ir...

O Arqueiro o soltou e o deixou onde caiu. Virou-se e se abaixou ao lado da mulher guerreira que estava deitada no chão nas proximidades. Ela não estava completamente apagada ainda. Seus olhos rolaram por trás de suas pálpebras, abrindo em intervalos sonolentos enquanto lutava contra o sedativo que Vince bombeou em suas veias. Ela murmurava incoerentemente, sua voz tão tranquila estava mais fraca a cada segundo.

Ele notou sangue seco em seu cabelo loiro incrustado em sua têmpora esquerda, onde uma pequena marca de nascença vermelha montava ao longo de seu couro cabeludo. A visão daquela pequena lágrima e a lua crescente, juntamente com o cheiro de lírio suave de seu sangue derramado, apertou o nó de pesar que se estabeleceu como uma pedra em seu estômago desde o momento da chamada de sua equipe de campo.

Que ela tivesse se machucado durante esta operação — ferida antes mesmo da arma tranquilizante, que estava saindo de uma contusão escura na pele delicada de seu pescoço — fez suas veias ficarem frias com fúria autodirigida.

A vontade de tocá-la era quase irresistível.

Ele queria lhe oferecer conforto, abraçá-la, garantir que estava segura.

Mas não podia fazer essas coisas.

Ele não tinha esse direito.

Não mais.

Ele não era mais aquele homem. Para este grupo de rebeldes humanos ele era e foi durante os últimos oito anos, simplesmente o Arqueiro. Era o líder deles, que por acaso nasceu Raça, não Homo sapiens como o resto deles.

Mas a jovem mulher ferida e sangrando deitada diante dele agora o conheceu desde um tempo muito diferente, em um lugar diferente. Quando ele foi uma pessoa diferente, que nasceu com um nome que nenhum de seus seguidores rebeldes reconheceria.

— Kellan...?

Sua voz era quase um sussurro, quase inaudível, mesmo para ele. Ele sentiu a mão dela roçar a sua, leve como uma pluma, questionando. Contra sua própria vontade, olhou para baixo para seu rosto. Seus olhos ainda estavam semiabertos, as pálpebras pesadas e sem foco. Ela adormeceu no momento seguinte, seus dedos caindo molemente, a cabeça pendendo para o lado em um pesado sono induzido pelas drogas.

Ele fechou os olhos brevemente, expulsando o passado e alcançando a única coisa que lhe restava.

— O show acabou, pessoal. Agora, olho vivo. Nós ainda temos trabalho a fazer.

 

Ela não esperava acordar.

Inferno, realmente não esperava estar viva. Não depois de brigar com seus captores em trânsito, furando o tal de Vince com sua adaga logo depois que a empurraram para van na casa de Jeremy Ackmeyer. Eles poderiam tê-la matado em seguida. E não poderia culpá-los se acabassem com ela durante a luta que arquitetou, assim que chegaram neste lugar também.

Este... onde quer que estivesse.

Ela tentou abrir os olhos onde estava deitada agora, mas só viu escuridão. A pressão sobre seu rosto dizia que estava com os olhos vendados. Algemas beliscavam seus pulsos que estavam presos em algum lugar acima de sua cabeça. Deu um puxão nelas e ouviu os grilhões rangerem sobre o que achou ser uma cabeceira de metal. Os tornozelos estavam contidos também, fixos nos pés da cama.

Sua boca parecia seca como se estivesse embalada com algodão, mas pelo menos não a amordaçaram. Então, que bem faria se começasse a gritar? Ela não tinha que ver as paredes de sua prisão para saber que eram feitas de espesso material impenetrável. Pedra. Adivinhou pelo cheiro úmido e rançoso do lugar, mais do que provável sem uma única janela no quarto.

Sentia o cheiro fraco de maresia do oceano no ar úmido. Ouvia o rugido baixo das ondas rolando pela encosta não muito longe na distância. Além disso, apenas o silêncio.

Não, erguer sua voz neste lugar apenas alertaria seus captores.

Mira se moveu no colchão fino e estremeceu com a dor incômoda que deflagrou na lateral de seu pescoço. Lembrou-se de ser perfurada ali com algo afiado. Algo que amoleceu suas pernas e fez sua mente cambalear. Tranquilizantes. Era óbvio para ela agora.

Mas não demorou muito para se recuperar da esmagadora sensação de flutuar, caindo...

Morrendo, ela pensou.

Viu o rosto de um anjo nos momentos finais da consciência desvanecendo. O rosto de Kellan, bonito e assombrado, seus expressivos olhos castanhos a prendendo com um olhar que parecia pesaroso, de alguma forma com o coração partido.

  Deus, eles deveriam ter dado a ela alguma merda poderosa.

  Não demorou mais do que um pequeno esforço para se livrar da angústia suave da saudade no peito que sempre seguia o rastro da memória de Kellan. Em vez disso, Mira se mobilizou em torno de sua realidade atual — que no momento, não estava parecendo muito promissora. 

Testou suas algemas de novo sem sucesso. Em seguida moveu a cabeça em torno do travesseiro, tentando usar a fricção para deslizar a venda para longe dos olhos. Esta se moveu apenas um pouco do lado direito, não o suficiente para que visse alguma coisa.

E aparentemente fez barulho suficiente, porque agora ouviu o tilintar pesado de uma chave girando em uma fechadura. De algum lugar além do pé da cama, um pesado painel da porta se abriu.

  — Você está acordada. — Era a mulher com o longo cabelo preto. Brady, era como eles a chamaram. Mira reconheceu sua voz e os passos largos quando caminhou se aproximando da cama. — Como se sente?

  — Como se fosse vomitar. — Mira respondeu. Sua própria voz rouca por falta de uso. — Mas então, estar perto da escória rebelde tende a ter esse efeito em mim. — Ela pigarreou, sua garganta seca. — É isso o que você é, certo? Rebelde. Escória covarde que conspira e se esconde nas sombras como um antro de ratos, fazendo sujeira para outras pessoas limparem. Tirando a vida de pessoas que valem mais que uma centena de sua espécie.

  A mulher não disse nada em resposta a todo este veneno. Houve um farfalhar suave de movimento ao lado da cama perto da cabeça de Mira, em seguida o som líquido de algo que sendo derramado em um copo.

— Beba isso. — ela disse a Mira. — É água. O sedativo que lhe foi dado deve ter te desidratado.

  Mira virou a cabeça quando o vidro frio chegou perto de seus lábios.

— Não quero nada que você me der. Diga-me o que fizeram com Jeremy Ackmeyer.

  Um suspiro suave.

— Você não precisa se ​​preocupar com ele. Ele não é da sua conta.

— Eu decido o que é da minha conta ou não. — Mira tentou se levantar, mas não havia para onde ir com as restrições escavando em seus pulsos. Ela caiu de volta com um palavrão sibilado. — Onde ele está? O que querem dele?

O copo de água chegou até a boca de Mira novamente.

— Nós vamos libertá-la esta noite, ilesa. — A fêmea rebelde disse, ignorando suas perguntas.

  — Me libertar? — Mira zombou, recusando-se a beber pela segunda vez. — E acha que acredito nisso? Eu vi o rosto de todos vocês. Posso não saber exatamente onde me trouxeram, mas sei que não estamos longe de Boston. Em algum lugar muito próximo da baía — tão perto, que posso ouvir a água. Posso sentir isso no ar. Algum tipo de bunker seria meu palpite. Algo muito antigo. Não vai demorar muito tempo para que eu descubra onde fica este esconderijo, e então vou voltar com tudo para vocês.

— Nós consideramos isso. — Nenhuma preocupação naquela resposta calma. — Precauções serão tomadas, é claro.

  Precauções. Mira ponderou em silêncio. Eles estavam levando Ackmeyer para outro local? Ou será que isso implicava que os rebeldes estariam movendo sua base de operações esta noite, espalhando-se para algum lugar como os vermes que eram?

  De jeito nenhum eles fugiriam dela, muito menos da Ordem, não importa para o quão longe ou distante fugissem. E se achavam que a dissimulação da viagem de volta a esta base mais cedo, e mantê-la com os olhos vendados agora, iria proteger suas identidades ou a localização de seu covil, estavam muito enganados. Somente se a lobotomizassem, o que definitivamente anularia a parte “ilesa” da promessa deles, Mira não via como esses humanos achavam que poderiam soltá-la e esperar que fugissem com ele.

— Você sabe quem eu sou. — disse Mira, não era uma pergunta.

— Sim. — respondeu a mulher calmamente. — Sei quem você é.

— Então sabe que vou encontrá-la e o resto de seus amigos criminosos, e não vou estar sozinha quando fizer isto. — Mira desejou que pudesse ver o rosto da rebelde e avaliar o medo que certamente deveria estar lá. Ninguém se envolvia com a Ordem sem uma boa dose de receio ou estupidez, e esta mulher não parecia para Mira nem perto de idiota. — Precisa dizer a seus companheiros que se algum de vocês pensa que vou deixar este lugar sem Ackmeyer, podem ficar esperando.

— Não me cabe decidir. — ela disse. — Agora, por favor, tome um pouco de água.

O copo voltou para a boca de Mira. Desta vez, em vez de beber ou se afastar, ela avançou e mordeu a base carnuda do polegar da rebelde.

A mulher gritou e saltou para trás, deixando o copo cair no chão. Ele quebrou ao lado da cama, tão alto quanto um címbalo[4] retinindo no silêncio da cela de paredes grossas.

Mira aproveitou a oportunidade para lutar contra suas restrições novamente. Ela empinou e se debateu em cima da cama, manejando apenas para mover a venda para baixo de um dos olhos, quando a porta aberta foi preenchida com a forma imensa de outro macho rebelde respondendo à confusão.

Esse cara era grande e ameaçador, irradiando um calor perigoso que fez até mesmo a respiração de Mira pegar em sua garganta. Ela podia ver apenas uma pequena parte dele, por cima da borda superior de sua venda distorcida. Ombros largos. Sombrio. Cabelos curtos castanhos acobreados.

Tão alto, musculoso e poderoso como qualquer um dos guerreiros da Ordem.

Uma sensação de desconforto — um alarme se aprofundou — flechando através dela com este pensamento.

Ela se alavancou para cima da cama para ver melhor, observando quando ele foi para o lado da rebelde feminina e envolveu um braço protetor ao redor dela.

— Candice, você está bem? — Não disse Brady como os outros homens a chamaram, mas um nome feminino, falado com preocupação genuína, verdadeira afeição no profundo e baixo tom de voz. Sua cabeça estava abaixada, a maior parte de seu rosto obscurecido pela queda selvagem de seus cabelos na altura dos ombros. — O que diabos aconteceu?

— Nada, estou bem. Sinto muito, Arqueiro. Deveria ter tido um melhor controle da situação.

As palavras calmas, um afagar de absolvição da grande mão do homem sobre o cabelo de ébano de sua companheira. A respiração de Mira estava se arrastando para fora de seus pulmões enquanto observava a troca particular, todos os seus sentidos focados no murmúrio profundo da voz do líder rebelde.

Alguma coisa nele — não, na verdade, tudo nele — começou a agitar algo frio e enferrujado em seu interior.

Os tendões de seu pescoço se esticavam, enquanto se esforçava para ver o rosto. Dobrando a cabeça para ouvir mais do que a macia voz sombria. A presença dele chamou tudo dentro dela em total atenção. Sua pele apertou, esquentou e restringiu. Seu pulso batia como as asas de um pássaro engaiolado, preso dentro de seu peito.

Seus instintos conheciam este homem. Seu coração conhecia, mesmo que a falta de lógica disso deixasse sua mente lutando para acompanhar com o resto dela.

A curiosidade retorceu em desespero quando o homem começou a se mover. Deixando seu braço cair longe da outra mulher, girou em direção à cama, movendo-se suavemente, emanando muito poder primitivo para um humano.

 Porque ele não era humano.

Todo o ar deixou os pulmões de Mira quando ele se aproximou da cama onde ela estava.

— Impossível. — ela sussurrou. — Não... isto não pode ser real.

Mas era real — ele era real.

Não era um anjo. Nem um fantasma tampouco, mas de carne e sangue. Vivo.

A resposta impossível para muitas de suas esperanças e orações.

— Kellan. — ela sussurrou.

Seu choque foi tão profundo naquele momento que eles poderiam não tê-la acorrentado, ela não teria forças para levantar a cabeça e muito menos mostrar qualquer tipo de ameaça. E mesmo quando se esforçou para entender o que estava vendo, uma parte de seu coração gelou com a terrível compreensão.

Se este era ele, o que Kellan estava fazendo aqui depois de todo o tempo que tinha desaparecido? Como poderia conhecer estas pessoas? O que qualquer um deles significava para ele?

— É você? — Ela perguntou com necessidade de ouvi-lo confirmar o que sua mente ainda se recusava a acreditar inteiramente.

Sem responder, sem encontrar seus olhos à procura, ele baixou os olhos para ela. Afastou a venda de seu rosto e delicadamente a retirou de sua cabeça. Todo o tempo, deliberadamente evitando seu olhar.

— Candice. — ele murmurou. — Traga-me as lentes de contato.

É claro. Mira pensou. Kellan conhecia seu dom. Kellan sabia tudo sobre ela. Ele foi seu melhor amigo na maior parte de sua vida. A única pessoa que realmente a tinha conhecido e entendido.

A mulher de cabelos escuros entregou a ele um pequeno estojo cheio com um líquido claro, então calmamente saiu do quarto. Ele pescou um dos pares de lentes violetas e suspendeu-as. Mira mal conseguia respirar quando ele pegou o rosto dela entre as mãos e cuidadosamente colocou as lentes em seus olhos.

Uma vez que estavam no local, sua poderosa habilidade silenciada, ele finalmente ergueu os olhos cor de avelã. Oh Deus... não havia como negar que era ele. Sob a juba espessa de efusivos cabelos acobreados, seus olhos castanhos esverdeados estavam profundamente escuros e intensos. Seu rosto parecia mais magro agora, barbeado e forte, seu queixo quadrado emoldurado pelas linhas aparadas de um cavanhaque que dava ao seu belo rosto uma borda escura, misteriosa. Mas dentro dessa libertina barba, sua boca estava sombria, ilegível.

Ele não lhe deu nenhuma palavra de conforto. Nenhuma explicação de como veio a encontrá-lo aqui, vivendo entre assassinos, ladrões e traidores. Os próprios inimigos que lutou contra, quando pertenceu a Ordem.

 Mira olhou fixamente em seus olhos, em uma confusão agonizante. Uma parte dela estava contente e aliviada até o âmago por encontrar Kellan vivo e respirando, tão inegavelmente real e vivo. Outra parte dela estava em miséria absoluta, percebendo que sua morte foi um erro — ou pior — uma mentira. E agora, uma grande traição ao vê-lo parado entre essas pessoas, tratando-as como amigos — como família — enquanto ela foi deixada para pranteá-lo sozinha.

— Você morreu. — ela finalmente conseguiu gemer. — Eu estava lá. Naquele dia, oito anos atrás. Kellan. Assisti você correr para aquele armazém. Eu o vi explodir. Ainda tenho as cicatrizes dos estilhaços dos destroços que caíram do céu naquela noite. Ainda posso sentir a fumaça e as cinzas do fogo.

Ele olhou para ela em um silêncio terrível.

— Não sobrou nada do edifício. — ela continuou. — Nada mais de você, Kellan. Ou foi isso que me deixou acreditar todo esse tempo. Chorei por você. Continuo a fazer isso.

Seus olhos permaneciam em Mira, mas não disse nenhuma palavra. Nenhum pedido de perdão a ela. Nenhuma insistência de que tudo foi um engano inevitável.

Ela poderia ter sido induzida a acreditar nele. A forma como o coração dela estava rachando em seu peito, poderia estar disposta a aceitar qualquer migalha de explicação que lhe desse. Mas ele não lhe ofereceu nada.

Seu silêncio a estava matando.

— Você não tem nada para me dizer?

Ele engoliu em seco. Olhou para baixo.

— Sinto muito, Mira.

Quando seus olhos se voltaram para os dela estavam sombrios. Sinceros, por tudo que ela conhecia dele agora. Mas estavam inflexivelmente distantes.

— Você sente muito. — Seu coração despedaçado virou cinzas sob a gélida simplicidade de sua resposta. — Sente muito pelo quê?

— Tudo isso. — ele respondeu. — E pelo que ainda preciso fazer.

Com isso, ele se levantou. Afastou-se da cama. Longe dela.

— Candice. — ele chamou pela porta aberta. Ela apareceu em um instante, esperando por seu comando. — Certifique-se de que Vince abasteça a fera, como te pedi. — Kellan fez uma pausa, articulando um breve olhar de soslaio na direção de Mira. — Vou sair ao anoitecer para cuidar das complicações que vocês foderam hoje.

Então, isso é o que ela era para ele agora. Nada.

Uma complicação.

Uma ruga desagradável em seus planos.

E agora ela voltou a pensar em algo que Candice disse anteriormente, após Mira lhe dizer que seria tão bom quanto uma loucura libertá-la hoje à noite e assumir que não os encontraria mais tarde.

Precauções seriam tomadas.

Mira não imaginava então que os rebeldes tinham um da Raça do seu lado. Agora entendia. E embora não achasse que Kellan se rebaixaria a matá-la, ele tinha outras maneiras de garantir que nunca o encontrasse novamente.

A verdade de sua traição afundou com uma dor que mal podia suportar. E algo endureceu dentro dela, devorando o amor que manteve por ele todo este tempo, cuspindo o sofrimento.

Quando olhou para Kellan agora, o homem que havia se tornado, um homem que acabou de se declarar seu inimigo — a raiva e a dor de Mira transformaram as cinzas em seu coração em pequenos diamantes de desprezo.

Porque ela queria muito rejeitar a ideia de que Kellan Archer já não existia.

E o homem que estava em seu lugar não estava apenas aliado com estes bastardos rebeldes, ele os estava liderando.

 

Com Lucan e Gideon confinados em reuniões a portas fechadas pela maior parte do dia, Darion Thorne passou as últimas horas como sparring no centro de treinamento da sede da Ordem em D.C. O exercício rigoroso o fez se sentir bem, mas era uma distração temporária. Não havia reprimido a energia inquieta que vivia dentro dele. Isto nunca acontecia.

Ele era um guerreiro — tinha esta certeza dentro de sua alma. Como seu pai não via que estava desperdiçando um recurso valioso mantendo Dare amarrado ao centro de comando quando pertencia ao campo? Quanto tempo poderia Dare permanecer com as mãos amarradas antes de arrancar as correntes e liderar um ataque, com ou sem a aprovação de seu pai?

Era essa pergunta que o perseguia, sentado debruçado sobre um grosso volume na biblioteca de arquivos da Ordem. Seu cabelo ainda estava úmido do banho. Trocou o traje de treinamento por uma camiseta e jeans. Suas lâminas e shurikens agora substituídas por uma caneta que batia em um ritmo ocioso na longa mesa de madeira que se estendia pelo centro da grande câmara forrada de livros.

Mesmo que seu corpo ansiasse por ação, sua mente tinha sede de conhecimento. E a história contida nesta sala era suficiente para mantê-lo ocupado por décadas.

Não era de se estranhar, uma vez que levou um total de vinte anos para coletar tudo isto. A biblioteca representava milênios de valiosas informações, desde as origens sobrenaturais da Raça e seus antepassados ​​alienígenas, sua língua e costumes, sua linhagem aqui na Terra, até seu passado, muitas vezes violento como seres poderosos e ferozes empoleirados no topo da cadeia alimentar. A riqueza de conhecimento era nada menos que impressionante.

E Jenna Tucker-Darrow, a mulher responsável por estes arquivos, estava acrescentando mais volumes o tempo todo.

— Se você passar mais algumas horas aqui, posso começar a me preocupar com a segurança do meu trabalho.

Dare balançou a cabeça ao som da voz de Jenna. Ela estava sorrindo quando entrou na sala usando um vestidinho preto de alça e salto alto. Seu cabelo castanho estava cortado rente ao couro cabeludo, mostrando o rosto magro e os grandes olhos castanhos. Estava vestida para um encontro, sem dúvida com seu companheiro guerreiro Brock, mas ela carregava o que parecia ser um diário recém-concluído na mão.

— Não acho que você tenha que se preocupar com a segurança de seu trabalho. — Dare disse a ela. — Ninguém pode fazer o que você faz.

Ela piscou para ele.

— Eu sou um ciborg, ouça-me rugir.

Passeando ao longo de uma estante de livros do outro lado da sala, ela colocou o diário em uma das prateleiras, selecionando cuidadosamente sua colocação. Era difícil não olhar para a mulher, e não apenas porque era bonita e Dare era um homem com dois olhos em sua cabeça. Jenna também era impressionante por um motivo completamente original.

Seu vestido preto simples tinha um decote fundo na parte de trás, expondo seu pescoço e a magra coluna, sendo que ambos estavam cobertos com um emaranhado gracioso de dermaglifos. Incomum. Sobretudo levando em consideração que Jenna não era nem Raça, nem companheira da Raça.

Ela foi completamente humana uma vez, mas tudo isso mudou há vinte anos, quando o último dos pais alienígenas da Raça transplantou um chip de biotecnologia a partir de seu próprio corpo em Jenna. O Antigo provavelmente teve suas razões para deixar para trás um pedaço de si mesmo antes de ser morto pela Ordem. Para Jenna, aquele pequenino DNA alienígena e a tecnologia significavam inúmeras e surpreendentes mudanças físicas e psíquicas, juntamente com as memórias de um passado longo e muitas vezes perturbador que não lhe pertencia.

Eram aquelas memórias que agora enchiam os incontáveis ​​volumes de diários manuscritos que revestiam as embutidas estantes da câmara de arquivo.

— Não sabia que você e Brock tinham chegado de Atlanta. — Dare disse.

Jenna correu os dedos pelas lombadas de vários diários na prateleira, fazendo uma pausa para reorganizar um que, aparentemente, estava mal arquivado.

— Chegamos hoje antes do amanhecer. Eu queria ter vindo mais cedo, fazer algum trabalho aqui antes da cúpula nesta semana. Dante e Tess estão chegando hoje à noite. Tegan e Elise também. Todo o resto deve estar chegando nas próximas duas noites, pelo que entendi.

Dare assentiu. Lucan tinha informado da reunião com todos os anciãos da Ordem e suas companheiras, de vários distritos de comando em todo o mundo. Seria bom ver a todos eles novamente. Os guerreiros e suas companheiras eram tão próximos como familiares para ele, mas Dare não poderia deixar de se ressentir do fato de que a convocação para se reunirem publicamente, nada mais era do que uma atuação de comando, instigado pelos membros do CMN. Um meio de mostrar ao mundo que a Ordem aprovava a cúpula de paz com todo o coração e respeitaria os termos do CMN, sem dúvida. Toda esta política o enojava.

Jenna olhou para ele por cima do ombro.

— Você vai estar na recepção de gala também, Darion?

Ele resmungou.

— Eu? Parecendo um pinguim? Provavelmente não. Posso pensar em uma centena de coisas que prefiro fazer a ficar beijando os anéis daqueles posudos prepotentes do CMN. Isso vale em dobro para beijar seus traseiros inúteis.

As sobrancelhas de Jenna se arquearam.

— Você é muito parecido com seu pai, sabia?

— Não sou nada parecido como ele. — Dare insistiu. — Ele está muito disposto a deixar os humanos ficarem com as rédeas. É muito cuidadoso com seus egos frágeis, quando o mundo seria um lugar melhor — um lugar mais seguro para a humanidade e para nós mesmos — com a Ordem firmemente no comando.

— E se você perguntar aos humanos, eles argumentarão o oposto. Mais cedo ou mais tarde seria a guerra. — Jenna caminhou até ele e se sentou na beirada da mesa. — As coisas eram diferentes antes do Primeiro Amanhecer. Mais simples. A Raça mantinha seu próprio conselho e vivia nas sombras. Agora que aparecemos para os humanos, temos mais liberdade. Temos mais poder. Agora não temos que esconder nossa existência, mas existem compromissos. E a linha que devemos caminhar para manter a paz é ainda mais fina. As ações de Lucan impactaram a nação inteira da Raça. Ele não assumiu esta responsabilidade facilmente.

— Ele tampouco confiou em ninguém para ajudá-lo a assumir este fardo. — Dare desviou da expressão sábia de Jenna e deu uma sacudida brusca de sua cabeça. — Ele não dá a ninguém o crédito de que poderiam ser úteis. Talvez até mesmo tão capazes quanto ele, se lhes desse a metade de uma chance para provar isso.

Quando olhou de volta para ela, Jenna mantinha um sorriso sábio.

— Ainda lutando a mesma batalha com ele não é? Ele mudará um dia, Darion.

Ele zombou.

— Você conhece meu pai? Ele não se dobra.

— Nem seu filho, pelo que percebo. — Ainda sorrindo, ela se inclinou para ver o que ele estava lendo no diário aberto. — Ah, isso é um dos mais antigos volumes. Eu estava trabalhando em um deste antes do Primeiro Amanhecer.

As frustrações da política e desconfianças de seu pai foram afastadas, quando Dare voltou sua atenção para o diário que estava estudando pelas últimas duas semanas.

— Você sabe o que essa sequência numérica significa?

Jenna olhou para a página manuscrita e deu de ombros levemente.

— As coisas que registrei nem sempre fazem sentido. Às vezes, há símbolos ou números — como estes — que não significam nada para mim. Apenas porque os vejo ou os ouço através das memórias do Antigo, certifico-me apenas de anotá-las.

Dare assentiu, mas esta não era a resposta que estava esperando.

— Esta não é a única ocorrência desta mesma sequência nos diários.

— Sério? — Os olhos de Jenna brilharam com interesse.

— O mesmo se dá em dois outros volumes que encontrei até agora. — Dare disse a ela. — Estou apostando que vou eventualmente encontrar isto em mais deles também.

— Bem, o que estamos esperando? Vamos ver se você está certo. — Jenna deslizou para fora da mesa e começou a ir até uma das estantes próximas. Ela chutou suas sandálias delicadas e levantou-se na ponta dos pés para alcançar uma prateleira alta. — Devemos começar nos volumes mais antigos primeiro, e depois trabalhar o nosso caminho para frente no tempo.

Dare sentiu o deslocamento de ar um segundo antes da voz profunda de Brock rolar pela sala.

— Eu poderia ter adivinhado que iria encontrá-la aqui. — O guerreiro imenso deu um aceno de saudação a Darion, mas seus olhos castanhos escuros estavam apenas em sua companheira. — É quase impossível arrastar esta mulher para longe de seu trabalho. Você sabe, um homem mais fraco poderia ficar complexado.

Brock estava vestido em um terno cinza-escuro e camisa cor de vinho profundo, deixada desabotoada no pescoço, onde as extremidades arqueadas de seus dermaglifos percorria a pele escura. Dare muito poucas vezes viu o guerreiro da Raça durão fora de seu equipamento de combate, e por mais que quisesse rir ao vê-lo todo engomado e civilizado, era óbvio pelo olhar amoroso de Brock sobre Jenna que o traje GQ era todo por causa dela.

Seu sorriso de resposta quando virou para encará-lo disse que ela também sabia disso.

— Trabalho? Quem precisa de trabalho? — Ela pegou as sandálias e foi para seus braços pacientes. — De repente tenho uma vontade irresistível de cabular aula.

Brock sorriu, atirando a Darion um breve olhar astuto.

— Gosto de como isso soa. Talvez devêssemos pular a rotina do jantar de encontro e ir direto para a parte de cabular aula.

Jenna riu.

— O quê? E desperdiçar este vestido de matar?

— Acredite-me. — Brock rosnou baixinho sob seu fôlego. — Está longe de ser desperdiçado.

Dare riu enquanto Brock varria Jenna com um beijo faminto e desinibido. Ele se perguntou se conheceria este tipo de paixão. O tipo forte o suficiente para fazê-lo querer ter sua própria companheira. Um tipo de coisa para sempre, e não os encontros casuais, suados que usava para queimar a energia inquieta e saciar sua necessidade de sangue.

— Vamos sair daqui. — Brock murmurou, acariciando o pescoço de sua companheira. — O jantar é opcional.

— Espere um segundo. — Ela se abaixou para fora do abraço e correu até uma das estantes para puxar um diário fino no canto da prateleira. Voltou segurando o antigo volume encadernado em couro para Dare.

— O que é isso? — Ele perguntou, pegando-o dela.

— Meu primeiro diário. Eu o escrevi nas últimas semanas depois que cheguei ao antigo complexo da Ordem em Boston.

Darion passou a mão sobre a capa marrom desbotada, então cuidadosamente abriu o livro. A lombada rachada suave, as páginas frágeis enquanto as virava, olhando o manuscrito arrojado de Jenna que enchia o diário.

— Se realmente quer estudar e aprender sobre a Raça e sua própria história, você precisa começar do início. — Ela sorriu para ele, seus olhos uma vez humanos o prendendo em um olhar que era tão sábio quanto o mais sábio ancião de sua raça. — Você também pode compreender melhor seu pai a partir deste livro.

Darion manteve seu olhar, em seguida olhou para o diário que segurava tão cuidadosamente em suas mãos de guerreiro.

Quando olhou para cima novamente, Jenna e Brock tinham ido embora.

Darion abriu a primeira página e começou a ler.

 

Kellan dirigiu para a parte traseira de um parque comunitário fechado em Brookline e apagou os faróis do antigo Wrangler. Mira não disse coisa alguma a viagem toda diretamente da base rebelde em New Bedford, além das palavras bem escolhidas que disse para ele quando a colocou no veículo usando uma venda nos olhos e algemada. Verdade que depois que terminasse com ela esta noite, não se lembraria de nada sobre onde estava ou onde ele e sua equipe operavam, mas Kellan não arriscaria nada.

— Sinto muito, mas isto era necessário. — ele disse, estendendo a mão para remover as restrições de suas mãos. — Nós não podemos arriscar mais problemas do que já temos.

Assim que ele a soltou, Mira puxou a venda para baixo e deu a ele um olhar avaliador.

— Você vai matar Jeremy Ackmeyer?

— Se eu o quisesse morto, não acha que ele já estaria?

— Talvez já esteja. — Seus olhos se estreitaram para ele antes que virasse a cabeça para olhar para os parques vazios. — Como posso saber que qualquer coisa que diga é verdade?

Kellan xingou baixinho.

— Ele está vivo, Mira. Vai viver, desde que concorde com meus termos.

— Quais termos?

Sentiu os olhos dela sobre ele novamente, mas desta vez foi o único que desviou para o mar da infinita escuridão à sua frente através do vidro.

— Ackmeyer tem algo que eu quero. Algo de extremo valor que não posso permitir que chegue às mãos de alguém.

— Então, isso é por causa de dinheiro? — Ela praticamente cuspiu as palavras. — É isso que se tornou? Um ladrão comum, igual aos seus amigos lá atrás em seu bunker?

— Não sou um ladrão, Mira. Comum ou de qualquer outra forma.

— Não. — ela respondeu. — Do jeito que o bajulam e lambem suas botas, eu diria que você é praticamente seu rei. Parabéns, a propósito. Você deve estar muito orgulhoso de si mesmo, vendo o quão longe chegou nestes últimos oito anos.

Isto ardeu como ácido pelo seu tom. Ele lançou um olhar inexpressivo para ela, não lhe permitindo saber como isto o feria profundamente, caso realmente o odiasse. Qual seria o motivo de deixá-la saber disso agora?

— Você não deve fazer suposições sobre coisas que não entende.

— Então me esclareça... Arqueiro, não é? — Ela balançou a cabeça e sua linda boca torceu em um sorriso sem graça. — Kellan Archer morreu. Um herói muito lamentado, e em seu lugar surge o Arqueiro, líder da resistência rebelde. Traindo tudo o que ele mais acreditava.

— Não estou orgulhoso da maneira como lidei com as coisas. — E ele odiava como o inferno pensar o quão perto ela estava chegando ao cerne das razões para querer que todos se importassem em acreditar que estava morto e enterrado. — Eu nunca planejei estar neste lugar, Mira. Você só tem que confiar que tive meus motivos. Fiz o que tinha que fazer.

— Confiar? — Ela deu uma risada aguda. — Ah! Isso é valido vindo de você. Especialmente agora quando está sentado aqui, a ponto de me dar uma boa e à moda antiga, esfoliação mental. É por isso que me trouxe aqui esta noite não é?

Ele desligou o motor do jipe antigo ressoando até parar.

— Vamos lá. — ele disse. — Vamos tomar um pouco de ar fresco.

Ela não se moveu.

— Você não está preocupado que eu fuja daqui?

Sorrindo apesar da gravidade do momento.

— Você nunca facilita, não é?

— Nunca.

— Você pode ser durona, Mira. Mas não é Raça. — lembrou. — Você não pode fugir de mim.

— E você fez com que não pudesse lutar contigo também. Não pense que não notei que seus companheiros ladrões ficaram com meus punhais.

— Você terá suas lâminas de volta depois que isso acabar. Vou providenciar.

— Mesmo a que deixei cair durante a emboscada de seus subordinados rebeldes?

Kellan fez uma careta, pego de surpresa.

— Ah! Você não sabia? — Ela perguntou visivelmente satisfeita com sua surpresa. — Eles não devem ter notado e a deixaram para trás. Minha unidade de comunicação também. Está no porta-luvas do carro que estava dirigindo.

— Caralho. — Kellan resmungou entre os dentes.

— Homo sapiens. — Mira suspirou com um dramazinho. — Muito descuidados às vezes. Tenho certeza de que Lucan vai ficar curioso por meu sinal de comunicação não se mover no decorrer, do quê... doze horas? — Ela deu a ele um sorriso frio e satisfeito. — Isso o faz pensar, não é? O que mais pode ter sido negligenciado por sua equipe que voltará para morder seu rabo mais tarde?

Kellan considerou a possibilidade, relutante em admitir que ela tinha razão. Mas ela subestimou Candice, Doc e Chaz. Mesmo Vince tinha muitos prós para compensar os contras frequentes de seu temperamento por um fio, e a tendência de excesso de força. A equipe telefonara sobre o problema do veículo avariado de Mira, e assim, Nina aproveitou um contato nessa área para sumir com as placas e invadir o Número de Identificação de Veículos antes de rebocar o amontoado para um depósito de sucata. A unidade de comunicação de Mira provavelmente nada mais era do que circuito esmagado e poeira agora.

— Vamos dar um passeio Mira. — Antes que pudesse argumentar ou jogar outra rajada verbal para ele, Kellan saiu do carro e rodeou o capô até sua porta em menos de um segundo. A velocidade foi deliberada. Ele pensou que não faria mal lembrar a ela com o que estaria lutando se achasse que estava brincando. Abriu a porta e a instruiu a sair.

Ela obedeceu para sua surpresa, e ele a levou para a escuridão tranquila do parque vazio.

— Esperava que você me apagasse e me despejasse na cidade, não aqui.

— Eu queria ficar sozinho com você. — disse enquanto caminhavam lado a lado pelo gramado iluminado pelo luar. — Não quero fazer isso em um estacionamento ou em algum lugar sendo apressado por multidões ao nosso redor.

— Romântico. — ela zombou. — Espero que não haja estupradores ou rebeldes se escondendo entre aqui e Boston quando eu fizer a caminhada de volta para a cidade.

Kellan ignorou a espetada.

— Vou cuidar de você uma vez que isto seja feito. Vou me certificar que volte para a sede da Ordem em segurança.

Ela soltou uma exalação afiada.

— Não me faça nenhum favor. Sou crescidinha. Tudo cresceu, no caso de você não ter notado.

Ah, ele tinha notado. A primeira vez foi quando Mira estava com cerca de quinze anos. Argumentativa e teimosa como sempre, mas naquele ano a moleca magrela com seu tufo de cabelo loiro pálido aparentemente emergiu durante a noite como uma jovem mulher poderosa com curvas em todos os lugares, e pernas que não acabavam nunca. Ele não era o único macho no programa de treinamento da Ordem naquele verão que se alinhou para treinar com a deslumbrante Mira.

Mas por alguma razão que ainda escapava à sua compreensão, neste dia ela só tinha olhos para ele. Sua melhor amiga, que o apelidava desde o momento que era uma chata de oito anos de idade, recusando-se a desistir do adolescente mal-humorado que vivia sob a proteção da Ordem após o assassinato de toda sua família, salvando-se apenas seu avô Lazaro Archer.

Mira ainda era impressionante. Mesmo com o passar de oito anos, desde que esteve perto dela. Ele podia ver os traços daquele tempo sob os olhos e ao redor da curva cheia de sua boca. Ela não tinha tomado outro macho da Raça como seu companheiro. Se tivesse, seu vínculo de sangue teria reforçado sua beleza. Isto teria suspendido seu envelhecimento e mantido sua juventude intacta.

Houve um tempo em que Kellan imaginou que poderia ser o macho que ficaria ao lado de Mira. Ele queria isto, até mesmo na manhã do último dia em que passou com ela. Então, tudo mudou. O que queria se tornou impossível, e mais tarde naquela noite, ele simplesmente deixou de existir.

E agora aqui estava ela, caminhando ao lado dele no escuro.

Odiando-o. E tinha todo o direito.

Ainda assim, a vontade de tocá-la era grande demais para que resistisse. Mas Kellan sabia que se a tocasse agora, só iria querer mais. Coisas que não tinha nenhum direito. Coisas que estavam agora e para sempre fora de seu alcance.

Como conseguiu se manter distante todos esses anos? Não muito bem, lembrou-se. Ele realmente não esteve sempre tão longe dela. Perdeu a conta de quantas vezes a observara em segredo, tanto em Boston quanto em Montreal, curioso para saber como estava se saindo. Orgulhoso de ver suas realizações. Consternado quando sua feroz independência — aquela inflexível teimosia — colocava-a em apuros.

Seu plano ao acordar e perceber que não foi feito em pedaços junto com o armazém, foi ficar o mais longe de Mira e da Ordem possível. Seria melhor para todos se o fizesse. Tanto melhor, dado onde estava agora. Mas o simples fato era que não foi capaz de partir. Ela tinha um poder sobre ele que não foi capaz de romper.

Disse a si mesmo que seria cuidadoso, que não haveria mal nenhum em ficar perto de onde ela estava, desde que garantisse que seus caminhos nunca se cruzassem. Mas se tivesse alguma honra nele teria fugido, tanto quanto possível, tão logo tivesse uma oportunidade.

O ritmo de Mira desacelerou ao lado dele, e então parou quando virou para enfrentá-lo.

— O que aconteceu com você dentro daquele armazém, Kellan?

Ele resmungou, dando uma sacudida vaga da cabeça.

— Isso importa agora?

— É importante para mim. Eu quero saber. — Ela apertou os lábios e deu-lhe um olhar arqueado. — Vamos lá. Você irá apagar minha memória mesmo, então não é como se fosse me lembrar de alguma coisa que diga ou faça aqui esta noite. Se você ainda tem uma consciência, esta é sua perfeita chance de limpá-la... quando sabe que poderei odiá-lo por mais alguns minutos, antes de tirar esta verdade de mim.

Foi uma acusação que o fulminou mais do que queria admitir.

— Tenho que fazer isso, Mira. Vai ser melhor para todos desta forma.

— Definitivamente, melhor para você de qualquer forma. — Palavras amargas. Raivosas. Ela estava sofrendo profundamente, de forma compreensível. Mas foi a súbita inclinação de sua cabeça, o movimento que não foi rápido o bastante para esconder o brilho de seus olhos úmidos que acabou com ele.

— Você está certa. — Murmurou. — Devo isso a você.

— Você me deve a verdade. — Ela insistiu firmemente. Seus olhos pálidos e brilhantes quase secos quando olhou para ele de novo.

Ela não se permitiria quebrar na frente dele. Ele podia ver isso em seu olhar de diamante afiado. Não daria a ele essa parte suave dela. Depois desta noite, nunca mais.

Quando falou sua voz era educada e inexpressiva. Um soldado relatando fatos após a batalha.

— Eu vi a sua morte milhares de vezes em minha mente desde aquela noite. Você estava à frente de Nathan, e eu e o resto de nossa equipe, todos dando suporte. Então se espalharam e patrulharam a zona ribeirinha depois de relatos de movimento rebelde abaixo no parque industrial. Você passou um rádio que estava em busca de vários suspeitos, deu-nos sua localização e onde se dirigia. Nathan e eu estávamos mais perto da área, por isso nos juntamos e prosseguimos em sua direção para fornecer apoio. Chegamos a tempo de vê-lo desaparecer no armazém. Não se passou nem dois segundos, a explosão disparou.

Kellan assentiu, recordando a noite tão claramente quanto ela. Mas este era o ponto onde seus dois relatos diferiam.

— Um rebelde me levou a este edifício. Eu não sabia por que, até estar dentro e sentir o cheiro marcante carregado de explosivos em algum lugar próximo. Era uma armadilha, Mira. Eu sabia que você e Nathan estavam atrás de mim. Não podia arriscar que chegassem perto daquele lugar quando aquilo explodisse.

— Mas você estava. — ela disse. Suas sobrancelhas loiras se unindo quando tentou juntar as peças em sua mente. — Você estava dentro do armazém quando explodiu.

— Estava. — ele disse. — Mas apenas tempo suficiente para estragar a armadilha. Atirei onde o C-4 e o detonador foram plantados. Ele estava conectado nas paredes, sem chance de arrancá-lo e descartá-lo. Certamente não sem explodir a coisa toda. Então eu o matei, atirando em tudo.

Mira o encarou boquiaberta.

— Você detonou enquanto ainda estava dentro? Você teria menos de segundos para escapar da explosão, assim que as cargas explodissem.

Ele acenou com a cabeça novamente.

— Eu não sabia se aquilo me faria em pedaços. Mas se isso significava impedir que você ou qualquer outra pessoa da minha equipe se machucasse na explosão, valeria a pena o risco. Quando isso aconteceu e a bomba explodiu, eu estava desobstruindo a porta de trás do lugar. Lembro-me de sentir o choque me jogar no ar. Pude sentir o cheiro da fumaça e minha própria carne queimada. Senti meus ossos quebrados despedaçarem ainda mais quando bati na superfície fria do Mystic e afundar na água escura. Depois disso, acho que perdi a consciência. A próxima coisa que me lembro é que alguém estava puxando meu corpo quebrado, ensanguentado para terra firme.

Mira engoliu totalmente silenciosa através de sua explicação.

— Alguém o salvou?

— Candice me salvou. — Ele viu seu recuo quase imperceptível à menção do nome da mulher humana. — Candice me salvou de certamente me afogar e me levou para seu amigo, Javier, um ex-sargento do Exército que ajudou a me costurar e curar as feridas. Ele é um dos melhores médicos de campo que já conheci.

— Doc. — ela disse. Sua mente afiada facilmente fazendo a conexão. — Eles tinham de saber quem — e o que — você era. Por que os rebeldes pouparam sua vida?

— Até então, eles não eram rebeldes. Exceto por Vince, ninguém da minha equipe estava envolvido em qualquer atividade fora da lei na época. Isso veio depois. — Ele pigarreou e forçou o resto do que tinha a dizer. — De qualquer forma, levou dois meses antes que ficasse inteiro de novo. Nessa altura, você e todos os outros que tinha conhecido antes achavam que estava morto.

— Então, você apenas nos deixou continuar a acreditar nisso? — Sua expressão era de incredulidade com a voz entrecortada e subindo em direção a indignação. — Por que faria isso? Como pôde deixar todo mundo passar por essa dor quando sabia que era mentira?

Kellan balançou a cabeça, sabendo que se sentiria da mesma forma em seu lugar. Odiando ver a angústia em seu rosto, quando foi ele quem a colocou lá.

— Minha razão naquela época era mais importante do que minha própria vida. — Ele olhou ao redor de onde estava, quem havia se tornado a partir deste momento, e soltou um palavrão grosseiro. — Tudo está diferente. Não importa mais.

— Está dizendo que fez isso — permitiu que eu e todos os outros que se preocupavam com você sofrêssemos — tudo por nada?

— Não espero que você entenda. — disse a ela, o mais suave que pôde. — Não vou fazer você tentar entender. Certamente não agora, quando é tarde demais para isso, de qualquer maneira.

Os olhos dela tinham um olhar que o rasgou. Tão cheio de confusão, raiva e dor.

— Você tem todo o direito de me odiar agora, Mira. Mas isso nunca foi o que eu quis.

— E quanto ao amor? — Ela devolveu para ele. — Você nunca quis isso de mim também, não é?

Ele praguejou baixinho. Deus, ele ficou honrado e humilhado pela forma aberta como Mira sempre se entregou a ele. Ela o amava quando ele estava enfraquecido, com raiva e arredio, um idiota com pena de si mesmo que ficaria feliz em chafurdar na sua miséria para sempre. Mas ela viu algo nele que valia a pena salvar. Puxou-o para sua luz e o forçou até que fosse capaz de andar por conta própria, desafiando-o a ser mais. A ser um homem melhor do que jamais teria sido sem Mira como parte da sua vida.

O amor dela foi um presente precioso. Um que ele não merecia antes e não poderia aceitar agora.

Quando ela começou a se afastar dele, fez o que tinha prometido a si mesmo que não faria. Estendeu a mão para ela, e gentilmente pegou o furioso e ferido rosto bonito em suas mãos.

— Isso não é o que eu queria, Ratinha.

— Não! Porra. Não! — Afastou-se dele, chateada e fervendo. O dedo surgiu em seu rosto. — Não me chame assim. Minha família me chama assim há muito tempo. Você não é da família.

— Não. — Admitiu calmamente. Não mais, nem mesmo próximo.

— Você também não é um amigo. Não depois do que fez. — Ela cobrou, respirando pesadamente com cada palavra cortante. — Depois do que está fazendo comigo agora. Não posso acreditar que foi meu amigo de verdade. Foi tudo uma porra de uma piada para você, Kellan? Eu era apenas uma piada em sua mente?

— Você nunca foi uma piada, Mira. — Ele cerrou as mãos ao seu lado para não trazê-la para perto mais uma vez. — Acho que você me conhece melhor do que isso.

— Eu? Quantas vezes você tentou me empurrar para longe quando estava crescendo? — Ela deu uma risada frágil. — Deveria ter deixado você me afastar. Deveria ter me afastado de você e nunca olhado para trás, qualquer uma das vezes que me deu uma chance. Deus, queria nunca ter te conhecido!

— Eu sei. — Ele não podia culpá-la, afinal. — Se pudesse tirar tudo de você agora, eu o faria.

Infelizmente para ambos, uma lavagem mental da Raça não seria eficaz na memória a longo prazo. Ele poderia apagar o hoje, mas qualquer coisa mais antiga estava além dos limites de seus poderes.

— Você sabe que isso não será o fim de tudo. — Mira salientou. — Apague minha memória se isto o faz se sentir melhor, mas sabe tão bem quanto eu que está do lado errado da guerra.

— Estou tentando evitar uma guerra, Mira.

— Conversa mole! — Ela deu um forte empurrão nele. As mãos espalmadas contra seu peito. — O que você fez pode desencadear uma guerra.

 Kellan a agarrou pelos pulsos tentando não notar o calor da pele, o ritmo frenético do seu pulso correndo nas pontas dos seus dedos. Ele deveria ter soltado seu aperto dela, sabia disso. Mas agora que a tinha, agora que o ritmo ininterrupto de seu batimento cardíaco estava ecoando através dele — um ritmo que agitou seu próprio sangue e o fez correr através dele em um ritmo mais rápido — não havia como deixar Mira ir.

Ela olhou para ele, seus olhos, de cor violeta intensos.

— O que acha que vai acontecer se escapar alguma palavra de que um importante cientista humano foi sequestrado enquanto estava sob a proteção da Ordem? Por um ex-membro de nossas próprias fileiras.

— Ninguém vai saber que já fui um guerreiro. — Ele insistiu. — Ninguém senão minha equipe de campo está ciente de que eu — que o homem que conhecem como Arqueiro — sou um da Raça. Eles mantiveram meu segredo todo esse tempo. Não vão trair minha confiança.

Ela zombou.

— Que bom para você ter esse tipo de confiança das pessoas que gosta.

Kellan proferiu um palavrão baixo, grosseiro e furioso. Antes que pudesse se deter, puxou Mira contra ele e colou sua boca na dela em um beijo implacável.

No início ela resistiu. Seus lábios estavam tensos embaixo dos lábios dele. Selados, apertados contra o ataque. Os músculos finos em seus pulsos estavam tensos como cabos delicados. As mãos hábeis cerradas onde as mantinha pressionadas entre seus corpos. Ela ainda estava com raiva dele, ainda rígida com repugnância por tudo que fez com ela. Tudo o que admitiu depois de tantos anos de decepção.

 Mas Kellan não poderia soltá-la. E quando aprofundou o beijo provocando sua língua ao longo da obstinada junção de sua boca suculenta, um pouco da luta finalmente filtrou fora dela. Abriu os lábios em um gemido estrangulado, e ele empurrou para dentro, puxando-a mais perto de seu corpo, afogando-se no gosto dela depois de tanto tempo sem.

O sangue estava em chamas, queimando suas veias. As presas irromperam de suas gengivas enchendo sua boca quando o desejo por esta fêmea enviou calor e fome às partes mais baixas de sua anatomia.

Disse a si mesmo que o beijo não significava nada. Que em poucos minutos ela não se lembraria de nada disso de qualquer maneira. Quanto a ele, estava condenado. Porque, Santo Cristo, este momento ficaria com ele pelo resto de seus dias.

Condenado, com certeza.

Porque naquele momento, Kellan entendeu que apagar Mira apenas adiaria problemas maiores agora que Ackmeyer estava sob sua custódia. O que ela disse mais cedo esta noite era verdade: se a aplicação da lei humana não o alcançasse em breve, a Ordem certamente o faria.

Ele deveria saber.

Não era como se não soubesse disto há muito tempo.

Kellan interrompeu o beijo dela com um grunhido selvagem e desumano. Quando falou a voz estava áspera em sua garganta. Agitado pelo desejo e com a realidade afiada de como ferrou a vida de ambos.

— Vem comigo.

Mira esfregou os úmidos lábios avermelhados. Seus olhos pareciam igualmente feridos, incrivelmente grandes, olhando-o com uma mistura de saudade e tristeza.

— Hora de se livrar de mim novamente, não é?

— Mudança de planos. — Rosnou. Com um firme controle sobre a mão dela, levou-a de volta para o jipe. — Afinal, você não vai a lugar nenhum.

 

Uma hora mais tarde, os lábios de Mira ainda estavam formigando e vivos pelo beijo inesperado de Kellan. O sangue ainda vibrava nas veias, quente de raiva e algo igualmente aquecido que se recusou a reconhecer. Tentou tirar a lembrança persistente da boca dele na sua enquanto Kellan a levava para o sul de Boston, através da cidade de New Bedford, continuando em direção a um promontório plano sem luz, que se projetava para o Atlântico em três lados.

— Conheço este lugar. — ela murmurou quando o Jipe rolou pelo asfalto rachado abandonado.

A estrada levava a uma entrada do que uma vez foi um parque, nos dias antes do Primeiro Amanhecer e as guerras que se seguiram. Muito antes disso, durante outra guerra, a vasta extensão coberta de terra, a estrutura em forma de D alongada na extremidade, serviu como instalação militar humana. Mira olhou para o surrado sinal crivado de balas, que outrora acolheu os visitantes do histórico Fort Taber.

Agora, o local estava entupido de erva daninha e cheio de mato e espinheiros. Mais à frente, o edifício de blocos de concreto era uma fortaleza proibida, quase todo obscurecido pela folhagem escura e as videiras emaranhadas. Kellan dirigiu sobre isto e circulou por todo o lado, desligando os faróis quando se aproximaram da escancarada bocarra escura da entrada da fortaleza. Ele foi em direção a escuridão. Pequenas luzes vinham do interior profundo, iluminando o que parecia ser o interior de um antigo abrigo militar sem uso. Mais à frente estava a van preta que foi usada para raptar Jeremy Ackmeyer e ela.

— Não muito para uma garagem de frota. — comentou Mira voltando um olhar irônico para Kellan.

— Nós não temos os bolsos fundos da Ordem. — Ele parou perto da van e puxou o freio do jipe. — Nós temos que ralar e trabalhar com o que temos — escasso como está.

Ele disse isso, não como uma acusação ou queixa, apenas um fato. Mas havia uma simples nota de humildade em sua voz, e ele a deixou saber que estava envergonhado de alguma forma, como se sentisse compelido a pedir desculpas pela maneira como ele e seus seguidores viviam.

Kellan saiu do veículo e deu a volta para instruí-la a fazer o mesmo. Dando-lhe pouca escolha, Mira seguiu para escuridão do lugar.

— Talvez fosse mais fácil para você encontrar clientes se fizesse um trabalho mais nobre.

Ele zombou, girando em torno dela.

— Você acha que não podemos encontrar pessoas dispostas a financiar nossas missões se quiséssemos? Nós não respondemos a ninguém. Vemos as coisas que não deveriam estar acontecendo e as impedimos. Não dançamos no comando ou nos preocupamos em pisar nos delicados dedos dos políticos. Nem mesmo a Ordem pode dizer mais isso.

— Missões? — Mira jogou de volta para ele. — A Ordem não sai por aí sequestrando civis ou perturbando assembleias diplomáticas. A Ordem não sabota as negociações de paz ou nomeia-se juiz e júri do mundo sempre que lhes convém.

— Talvez devessem. — Os olhos de Kellan brilhavam com brasas de indignação na penumbra do bunker. — Fazemos o que precisa ser feito, porque isto deve ser feito.

Ele começou a seguir em frente, longe dos veículos estacionados e em um largo túnel.

— Tão hipócrita. — ela o chamou atrás dele. — Espero que esteja disposto a morrer por suas convicções.

Ele virou e foi de encontro a ela com a expressão sombria, pensativa, até mesmo quando suas íris irradiavam um fogo âmbar.

— Sim. Acho que estou disposto a morrer por aquilo que acredito e não me diga que não faria isso também.

Ela ficou ali, incapaz de discutir. Ele a conhecia muito bem para acreditar em qualquer negativa que tentasse jogar pra cima dele. Também não lhe daria chance. Os dedos dele apertaram o cerco em torno de seu pulso e ele a arrastou atrás dele pelo túnel escuro, até uma inclinação gradual para outro bunker. Ela reconheceu este como os alojamentos da base rebelde.

 A equipe de Kellan estava na sala cavernosa principal escassamente mobiliada do lugar. Candice estava limpando as armas com o homem chamado Vince e outro que eles chamavam de Chaz. Doc estava sentado em uma mesa de metal resistente, comendo de uma lata que parecia ser velhas RPC[5] de rações militares. Ocupando uma cadeira virada para trás ao lado dele, estava uma menina de rua com cabelos cor de mirtilo com vários piercings no rosto e na orelha. Seus dedos voavam sobre o teclado de um tablet, não ignorando nem mesmo o menor ritmo quando ela e o resto dos rebeldes viraram a cabeça, embasbacados com Kellan e sua companhia obviamente inesperada.

Candice foi a primeira a encontrar a voz.

— Hum... Tudo bem, chefe?

Ele deu um breve aceno de cabeça, sua mão ainda bem apertada em torno do pulso de Mira.

— Estou alterando o rumo um pouco. Não há nada a ganhar soltando um de nossos cativos agora. Então, decidi que ela fica.

Vince fez uma careta.

— Você acha que é sensato, considerando quem ela é e tudo mais? Manter um deles pode nos tornar um alvo da Ordem.

A resposta de Kellan foi rápida e sem inflexão.

— Nós já somos um alvo da Ordem. Assim que a informação alcançá-los — o que é apenas uma questão de tempo. Horas no mínimo — nos tornaremos inimigos de Lucan Thorne e seus guerreiros.

 Vince refletiu, passando os dedos grossos pelos cabelos loiros desgrenhados e sujos. Então, acenou com a cabeça como se de repente compreendesse, um sorriso hostil puxou o canto de sua boca.

— Em outras palavras, você acha que pode ter alguma influência com a Ordem. Algum tipo de barganha se as coisas correrem mal com Ackmeyer?

Kellan resmungou, prendendo o olhar no homem com um letal brilho âmbar.

— Esta fêmea... este guerreiro — ele disse, dirigindo-se a Vince e aos outros juntamente — é apenas meu para lidar com isto. Ela fica sob minha vigilância e sob meu controle apenas. Entendido?

Um coro imediato e unânime de acordo murmurado respondeu, mas Kellan já estava se movendo com Mira a reboque. Ele a levou para longe de sua equipe rebelde, para seus aposentos particulares. Mira não teve que perguntar se o quarto modesto pertencia a Kellan, ela podia sentir seu perfume a cercando, o calor obscuro picante que há muito tempo estava marcado em todos os seus sentidos.

Ele fechou a porta atrás deles e finalmente lançou seu domínio sobre ela.

— Se você cooperar comigo Mira, não sinto que seja necessário contê-la.

— Estou comovida. — ela disse encarando enquanto o assistia puxar um cobertor da cama de solteiro e atirá-lo ao chão.

— Mas, se você fizer um movimento para escapar — ele continuou, sem perder o ritmo —, ou tentar interferir com os objetivos de minha missão de qualquer forma, vou colocá-la em uma cela até que isto acabe.

Ela o estudou enquanto ele falava tão rigidamente, observando os movimentos robóticos e a forma como seus olhos nunca se fixavam nela, por mais do que um instante fugaz. Ele odiava fazer parte disso, talvez tanto quanto ela. Mas apenas ele tinha o poder de acabar com isto.

— Não é tarde demais para parar com isso agora Kellan. Obviamente seus amigos estão no limite sobre o crime que cometeu, com medo do que a Ordem vai fazer. Eles devem estar com medo. Acusação de traição tem uma pena gravíssima, passível de pena de morte. Você sabe disso.

Kellan não respondeu. Mas ela observou um tendão assinalar furiosamente em sua mandíbula rígida.

— Você pode liberar Ackmeyer sob minha custódia, antes que isto vá mais longe. — Ela respirou fundo, ainda tentando processar como era possível que pudesse estar na frente de Kellan Archer, suplicando para se entregar como um mandante rebelde, antes de morrer pela segunda vez. — Solte Jeremy Ackmeyer e a mim esta noite Kellan, e direi a Lucan e ao CMN que está arrependido. Que você e seus seguidores nos trataram bem.

Ele oscilou um olhar arqueado para ela, uma sobrancelha escura arqueada em humor sombrio.

— Não há muito a barganhar de onde estou.

Mira deu uma sacudida lenta de sua cabeça. A dor em seu peito ficou forte com o pensamento das acusações que Kellan enfrentaria, mas o que ele tinha feito —mesmo tão longe — não poderia ser desculpado sem algum tipo de recompensa.

— Lucan seria justo, você sabe disso. Tão justo quanto possa ser.

Kellan resmungou.

— E se Ackmeyer devesse morrer?

O pânico a percorreu.

— Você disse que não o mataria. Que você não faria.

— Se ele concordar com meus termos. — Kellan lembrou. — Mas se não fizer...

A garganta de Mira apertou com o tom mercenário de sua voz.

— Se você não tiver o que quer dele, não terá nenhum escrúpulo em matá-lo a sangue frio.

— Para salvar milhares, talvez milhões de outras vidas? — Kellan assentiu. — Matei por menos do que isto sob a bandeira da guerra. E você também.

— Mas isso não é uma guerra. Ainda não. — Mira avançou em sua direção, achando impossível de resistir bater com os punhos contra seu peito largo. Ela se fortaleceu contra a vontade de atacá-lo, mesmo porque sabia que se o tocasse —mesmo com raiva — apenas iria tentá-la em direção a algo mais. Algo que não podia se dar ao luxo de sentir por ele. Não agora. Nunca mais. — Isto não tem que ser uma guerra, Kellan. Não, se você parar com isso, aqui e agora. Não é tarde demais...

Sua maldição rosnada abruptamente a cortou.

— É tarde demais. Era muito tarde também há meses atrás, quando tudo isso começou.

Ele xingou de novo, mais selvagem desta vez e foi até um baú ao pé da cama. Abaixou-se de cócoras, puxou a fechadura na mão e abriu a tampa.

— Você vai precisar de uma muda de roupa em algum momento. — Jogou uma camiseta dobrada para ela, seguida por um par de seus gastos moletons. — Se você precisar de qualquer outra coisa que não tenho, Candice irá buscar para você.

— Quando o que começou? — Mira perguntou, avançando em direção a ele. —Você disse que tudo isso começou meses atrás. O que aconteceu?

Ele se levantou, de pé cara a cara com ela agora.

— Quanto você sabe sobre Jeremy Ackmeyer?

Mira balançou a cabeça.

— Além de seu currículo básico? Não muito. — Ela deu uma lista abreviada de suas realizações científicas e elogios, o melhor que conseguia se lembrar. Kellan não vacilou ou reagiu, aparentemente não ouvindo nada que o surpreendesse. — E obviamente, você está bem consciente de que ele foi escolhido para receber um prêmio em dinheiro de Reginald Crowe na gala da cúpula em poucos dias.

Ela viu sua falta de reação e percebeu uma coisa agora.

— Isto não é sobre a dissidência política ou perturbar a cúpula de paz, não é? Você disse que Ackmeyer tem algo que você quer...

Kellan sustentou seu olhar especulador. Os olhos dele já não brilhavam com fúria âmbar, estavam inclinados e gélidos, o castanho inexpressivo que sempre pareceu aborrecido diretamente para o centro de seu ser.

— Há três meses em Nova York um macho de um Darkhaven foi morto a tiros na rua por bandidos humanos. Um Raça civil inocente, morto sem aviso ou causa, por homens que fugiram em um veículo do governo.

Mira rememorou, franzindo a testa, cética.

— Não houve tal morte, certamente não recentemente. Teria aparecido nas manchetes. Inferno, isto ainda estaria no noticiário.

— Sem corpo. Sem testemunhas. — Kellan respondeu. — Ou assim eles pensaram.

— O que você quer dizer?

— Uma mulher viu a coisa toda. Ela assistiu da janela de seu apartamento em cima do beco onde o assassinato ocorreu. — A expressão de Kellan era sombria. — Não havia nenhum corpo porque foi incinerado no local, Mira. As balas que estes bastardos humanos atiraram nele eram feitas de luz UV super concentradas, convertidas em forma líquida. Eram balas feitas com o propósito expresso de matar vampiros.

Mira considerou por um momento, então deu uma risada incrédula.

— Vamos, Kellan. Você pode fazer melhor do que isso. Assassinos do governo usando balas de UV líquidos? Esse tipo de tecnologia é pura ficção científica. Isso não existe.

— Não mesmo?

— Não. — ela insistiu. — Por um lado, rompe a proibição de armas potencialmente catastróficas. Isto nunca passaria pela aprovação do CMN. Por outro lado, a Ordem pessoalmente nunca permitiria que esse tipo de armamento fosse desenvolvido. Eles o destruiriam antes que deixasse algo com potencial devastador, como balas de UV viessem a existir.

Ele deu de ombros, não convencido.

— E, no entanto, obviamente existe...

— Então prove.

 Ele não disse nada, apenas cavou no bolso de sua calça jeans escura e retirou um invólucro de bala gasto.

— A mulher recuperou esta das cinzas do vampiro morto. Ele era seu amante. Ela disse que ele não tinha inimigos, apenas estava caminhando para casa antes do amanhecer quando os humanos se aproximaram dele, começaram a provocá-lo com insultos anti-raça, em seguida o mataram como um animal. Pior do que isso.

 Mira engoliu em seco passando a raiva por sua garganta, quando olhou para o círculo sem identificação gasto, e imaginou o horror que a mulher que amava aquele homem Darkhaven deve ter sentido, vendo-o morrer diante de seus olhos.

— Ela não sabia em quem confiar ou para onde ir. — Kellan disse. — Então ela veio até nós.

— Quem é ela?

— Você a viu no outro aposento alguns minutos atrás, Nina. Ela é uma amiga de Candice, agora da minha equipe.

Mira balançou a cabeça, tentando absorver tudo que estava ouvindo.

— Você está tentando me dizer que Jeremy Ackmeyer é responsável por isso de alguma forma?

Kellan tirou a bala de seu invólucro e a colocou de volta no bolso.

— É a tecnologia dele. Levou todo esse tempo, mas finalmente rastreei a tecnologia de volta a Ackmeyer. Estávamos planejando invadir seu laboratório, mas o lugar é uma fortaleza, até mesmo mais do que sua casa. Mas depois chegou a notícia de que Ackmeyer viajaria. Estava esperando uma escolta de segurança em sua casa.

— Eu. — Mira disse, sentindo-se como um peão.

— Tivemos que agir rapidamente. — Kellan explicou. — Eu não sabia que Ackmeyer estava esperando uma escolta particular da Ordem. Foi uma operação diurna, e com cerca de noventa e nove por cento dos guerreiros da Ordem estar estritamente em patrulha noturna...

— Quem te deu essa informação?

Kellan olhou para ela.

— Nós temos nossas fontes pela cidade.

— Galo. — Ela adivinhou. Em seguida, soltou uma risada sem graça quando ele não negou.

— O cara é um lixo. — Kellan admitiu. — Mas serve ao meu propósito.

— Você sabia que ele foi a razão de estar designada para a função de escoltar Ackmeyer? — Ela apertou os lábios, deu uma sacudida vaga de sua cabeça. — Foi uma punição de Lucan, por espetar o pequeno bastardo ruivo na gaiola da arena em La Notte. Eu deveria ter visado seu coração.

Kellan arqueou uma sobrancelha.

— Você realmente o odeia.

— Odeio todos os rebeldes. — Disse bruscamente. — Eu os odeio por que tiraram você de mim.

Kellan encontrou e manteve seu olhar em fogo brando. Quando finalmente falou sua voz estava sóbria, com profundo pesar, mas não desculpas.

— E agora pode contar comigo neste número também.

— Eu nunca quis que fôssemos inimigos, Kellan. Você fez isso, não eu. É você quem certamente está fazendo isto agora, e só você pode mudar esse fato.

Ela o observou, esperando que dissesse que era tudo um erro terrível, e que corrigiria isso. Que ainda a amava e de alguma forma, juntos, encontrariam um caminho através desta armadilha tenebrosa que estava se fechando sobre eles com dentes afiados e letais.

Mas ele não disse nenhuma dessas coisas.

— Quero que se lembre do que eu disse sobre a tentativa de fugir ou tentar interferir com a operação. Não quero que isso fique mais difícil para você do que já está, Mira.

Ela se preparou para o remorso em sua voz, concentrando-se no fato de que nada do que havia dito o havia convencido a mudar de ideia. Ele estava perdido para ela, tanto agora como esteve há oito anos.

— Poupe-me de sua piedade, Arqueiro. Não preciso disso. E não preciso de nada que venha de você.

Ele olhou para ela por um longo momento, então admitiu com um aceno vago, e a deixou sozinha em seu quarto enquanto saía e convocava as tropas rebeldes para uma reunião de estratégia.

 

Já era mais de meia-noite e ninguém escutou falar de Mira. O discurso em D.C. era que Lucan estava chateado sobre a negligência dela para se apresentar em sua atribuição, mas quando Nathan soube que ela estava fora de contato durante o dia todo, ele teve uma suspeita fria de que algo estava terrivelmente errado. E era por isso que tinha montado sua equipe na mesma noite e se dirigido para a área rural oeste de Massachusetts, onde Jeremy Ackmeyer vivia.

O que encontrou na casa do cientista recluso foi um monte de notícias ruins e problemas.

O gramado enluarado estava marcado com sulcos profundos de pneus e vidros de faróis quebrados. Borracha queimada havia deixado o caminho pavimentado com listras pretas. Meia dúzia de invólucros gastos espalhava-se pelo chão do que Nathan só podia imaginar que era uma das 9 mm de Mira emitida pela Ordem.

Nenhum sinal dela ou seu veículo.

Nenhum sinal de Jeremy Ackmeyer.

— Nada está jogado lá dentro, mas temos sinais de luta. — Elias falou. Seu rosto estava grave na escuridão, enquanto ele e Jax viravam para frente da casa e se aproximaram de Nathan perto do compartimento da garagem aberta. — Quem quer que fossem estes caras, sabiam exatamente à que vieram e não perderam tempo dando o fora, uma vez que conseguiram.

— E agora eles têm Mira. — A voz de Nathan não traía a fúria que fervia dentro dele, com o pensamento de que um da própria Ordem teria caído em mãos inimigas aparentemente. E que fosse Mira, uma fêmea tão próxima dele como qualquer familiar poderia ser, fez seu sangue gelar nas veias e rápido.

— Ei, capitão. — Rafe chamou sombrio do gramado lateral, onde o pior da batalha parecia ter ocorrido. — É melhor dar uma olhada nisso.

Nathan se aproximou, enchendo suas narinas com o cheiro químico de combustível e fluídos que vazaram de veículos. Outro perfume pairava no ar quente da noite, o demasiado fraco e o desbotado perfume de lírio-doce do sangue de Mira.

As pequenas gotas manchavam a grama e laceravam o chão. Nathan se agachou no gramado sujo, passou os dedos sobre os respingos secos de sangue da companheira da Raça guerreira a seus pés. Mira foi ferida, mas ele apostava tudo o que era que ela não tinha caído sem lutar.

— Ela deve ter deixado cair isto na briga. — disse Rafe, segurando um delgado objeto de metal martelado para Nathan.

Ele não teve que olhar para saber o que era.

Uma das lâminas estimadas de Mira.

Nathan tomou o punhal feito à mão de Rafe. O punho esculpido estava áspero contra seus dedos. Ele o virou na palma da mão, lendo as palavras que enfeitavam cada lado da arma primorosamente trabalhada: Fé. Coragem.

  Ele sabia que não faltava nada deste último a Mira. Quanto ao outro, ele certamente não era nenhum bom conhecedor disso. Nathan operava baseado na lógica e força, habilidades que dominava como uma criança que foi criada nas fileiras de um louco assassino. A fé era tão evasiva para ele como mágica. Em sua visão do mundo, isto simplesmente não existia.

Mas ele conhecia a esperança. E através de sua lógica fria, conheceu a mais fria fúria. Sentiu crescer dentro dele, enquanto deslizava o amado punhal de Mira em seu cinto de armas.

Ela sobreviveria, sabia disso. Ela lutaria contra os sacanas que a levaram hoje. — quem quer que fossem independentemente dos seus motivos — Sua coragem iria mantê-la viva tempo suficiente para a Ordem chegar até ela.

E quando o fizessem, Nathan asseguraria para que quem a levou sofresse.

Antes ele os faria pagar por este dia com suas vidas miseráveis.

 

Kellan marchou para a câmara principal do Bunker rebelde, sentindo uma contração em seus ossos que dizia que a madrugada estava chegando fora das espessas paredes de concreto. Sua equipe dispersou horas atrás, indo para as tarefas diárias de reabastecer o armazenamento de alimentos do campo, o abastecimento de veículos, cuidando do armamento e manutenção geral dos painéis a base de energia solar e sedimentos.

A manhã dos comandantes da Raça normalmente significava um par de horas de imperturbável fechar de olhos, mas Kellan ficaria sem dormir hoje. Não com Mira acomodada em seus aposentos.

Seu sangue ainda estava correndo quente pelo confronto com ela... para não falar do beijo que não foi planejado, mas sem impedimento. Um beijo que sua libido estava muito ansiosa para repetir. Kellan sabia que se deixasse chegar tão perto dela novamente, se ele se permitisse tocá-la, mesmo de alguma pequena maneira, seria apenas uma questão de tempo antes que encontrasse um jeito de tê-la nua sob ele.

Ideia muito, muito ruim.

Mas, droga, o pensamento fazia todo o macho dentro dele ficar em alerta.

Não retornou para o quarto durante toda a noite. Não. Convenientemente apelou para sua patente e enviou Candice em seu lugar. Ela olhou Mira algumas vezes durante a noite, tentou se certificar que ela tinha água e algo para comer. Levou-a para a área do bunker que os humanos compartilhavam para que pudesse usar o banheiro e chuveiro. Candice havia reportado que Mira parecia cooperativa o suficiente, mas seus olhos nunca paravam de fazer um balanço de seu entorno, estudando cada canto do lugar enquanto Candice a levava pela fortaleza com uma arma.

Deus, matava-o ter que tratar Mira assim. Arrastá-la para o fogo cruzado de uma batalha que ele nunca quis lutar. Temia que não pudesse sobreviver no final, muito menos ganhar. E agora a mulher que uma vez importou mais do que qualquer coisa estava sentada atrás da porta trancada de seu quarto, odiando-o. Desejando que estivesse realmente morto durante todo esse tempo.

Do jeito que o cenário estava fodido, não podia imaginar como as coisas poderiam ficar piores.

Havia uma parte fraca dele que queria nada mais do que ir até ela agora e pedir perdão. Tentar fazê-la entender que isso não era o que queria. Isto era, de fato, tudo que queria evitar. Todos esses anos, todo esse tempo de distanciamento de todos os que já tinham se preocupado com ele, de todo mundo que já amou.

Mas não foi longe o suficiente.

Não podia correr mais que o destino que agora estava aqui, golpeando-o com força no rosto.

Kellan praguejou violentamente baixinho e saiu da sala principal do bunker rebelde. Resistiu à tentação de procurar Mira, em vez de virar suas botas em direção a cela nas entranhas da velha fortaleza.

Uma vez que estava excitado e até agressivo, ele não conseguia pensar em um melhor momento para fazer uma visita ao indivíduo que realmente merecia um pouco de sua ameaça. Jeremy Ackmeyer se sentava na escuridão úmida de um quadrado de um por um, de bloco de concreto sem janelas. A corrente de ferro pesado estava presa por um cadeado com chave às barras da cela enferrujada pelo tempo, mas impenetrável. Não que Ackmeyer parecesse ter intenção de tentar isto.

Magro e rijo, um desajeitado jovem vestido com jeans folgado e uma antiquada camisa xadrez de botões, Jeremy Ackmeyer estava imóvel no centro de sua prisão. Longos cabelos castanhos desbotados caídos sobre a testa, e sobre os óculos de lentes grossas. A cabeça de Ackmeyer estava caída, os braços finos ao redor de si mesmo, com as mãos apertadas próximas. Olhou desconfiado, mas não disse nada quando Kellan se aproximou das grades.

A bandeja de comida que Candice tinha levado horas atrás estava intacta no banco de concreto da cela. Claro, chamar os alimentos enlatados do RPC de lavagem era provavelmente um exagero. Não que Kellan ou sua espécie tivesse alguma experiência com as referências alimentares dos humanos.

— Qual é o problema, Ackmeyer? As opções do menu rebelde não são de seu gosto? — A voz baixa de Kellan ecoou pelas paredes do local escuro com animosidade. — Talvez seus gostos sejam demasiados ricos para comida tão comum.

Os olhos do humano piscaram uma vez por trás das lentes distorcidas dos óculos. Ele engoliu em seco, balançando a laringe.

— Não estou com fome. Gostaria de sair desta cela. Isto cheira a mofo e há bolor negro crescendo no canto.

Kellan sorriu.

— Vou despedir a empregada imediatamente.

— É terrivelmente insalubre. Tóxico, de fato. — Ackmeyer continuou, parecendo mais assustado do que arrogante. Mexeu-se sob seus pés. Os movimentos desajeitados, ansiosos. Menos o cientista diabólico e mais uma nervosa criança confusa. — Existe veneno no ar. Sabia que os esporos se reproduzem exponencialmente aos milhões? Esporos mortais perigosos que você e eu estamos respirando diretamente em nossos pulmões, neste exato segundo. Então, por favor... poderia destrancar esta cela e me deixar sair?

Kellan olhou incrédulo que este homem parecesse ter mais medo de bactérias microscópicas do que outras coisas mais óbvias, que o enfrentavam agora. Se fosse uma representação, o cara era um jogador de primeira.

— Você não vai a lugar algum até que eu diga. O que significa que vai ter que, ou prender a respiração ou aprender a fazer as pazes rapidamente com suas neuroses.

Ackmeyer se encolheu com o tom cortante de Kellan. Mexeu com a bainha da camisa fora de sua calça, as sobrancelhas finas puxadas em um franzir de cenho.

— E a mulher?

— O que tem ela? — Kellan rosnou.

— Ela estava na minha casa quando tudo aconteceu. Eu a ouvi me chamado antes que eu ficasse inconsciente. — Ele olhou para cima, os olhos castanhos suaves com relativa preocupação. — Ela está... bem?

— Ela não é da sua conta. — Kellan se aproximou mais perto da grade de ferro, olhando Ackmeyer através das barras. Soltou uma risada cáustica e áspera no silêncio do bunker. — Você gostaria que eu pensasse que se preocupa com outra pessoa, não é? Se está procurando por misericórdia, não vai obter nenhuma de mim.

Ackmeyer piscou rapidamente, deu uma sacudida vaga de sua cabeça.

— Você é livre para se sentir como quiser. Já que o ataque ocorreu em minha casa, assumo que isto tem a ver comigo e não com a mulher.

— Uma observação brilhante. — Kellan rosnou. — Cuidando para arriscar um palpite a respeito de por que você se encontra sentado à minha frente, trancado em uma cela crivada de mofo dentro deste bunker rebelde?

Ackmeyer lentamente encontrou seu olhar, mas um tremor sacudiu o corpo magro.

— Suspeito que você pretenda pedir um resgate ou me matar.

— Não estou procurando enriquecer a custa do sangue de outro homem. — Kellan respondeu friamente. — E você?

— Não. — A resposta de Ackmeyer foi instantânea, cheia de convicção. — Não, nunca faria isso. A vida é preciosa...

O grosseiro zombar de Kellan cortou suas palavras curtas.

— Contanto que esta vida não pertença a um da Raça, certo?

Ele sabia que seus olhos estavam em chamas. O calor âmbar de seu desprezo por esse gênio humano destrutivo estava sangrando em sua visão, tornando seu mundo vermelho quando olhou através do espesso metal da jaula — uma barreira escassa que separava Kellan de atacar este cientista com os punhos e as presas.

Ackmeyer via esta ameaça plena e real agora. Ele se apoiou mais para dentro da cela, percebendo apenas naquele exato momento com o que estava lidando.

— Não sei do que está falando, juro!

— Não? — A voz de Kellan era um grunhido áspero cheio de irritação. — Tenho provas do contrário.

O homem sacudiu a cabeça freneticamente.

— Você está enganado! Sou um homem da ciência. Respeito toda a vida como o milagre natural que é.

Kellan deu uma risada sombria.

— Mesmo uma abominação como eu, como minha espécie?

— S-sim. — Ackmeyer gaguejou e de repente percebeu o que tinha dito. — Eu quero dizer, não! Não foi isso o que eu estava tentando dizer, eu... eu apenas quero dizer que há algo muito errado aqui. Qualquer que seja o crime que acha que cometi contra você, juro que sou inocente. Houve algum tipo de engano. Um erro terrível...

Por mais que quisesse repudiar os protestos do humano, como as negações desesperadas de um assassino frio e explorador, algo inquietante começou a se desenrolar dentro do âmago de Kellan. Algo que o colocou à beira de uma constatação profundamente perturbadora.

Esse algo era uma sinceridade que o fez espreitar Jeremy Ackmeyer um pouco mais, em busca de algum traço da mentira que estava certo de que tinha que estar lá.

Com um movimento do poder de sua mente, Kellan destrancou a fechadura da porta trancada da cela, e mentalmente empurrou a grade de metal aberta. Ackmeyer se encolheu, rastejando de volta para a parede oposta, até sua espinha magérrima estar moldada contra as camadas de blocos de concreto. Kellan caminhou para dentro da cela úmida, aglomerando-se junto ao humano rastejante. Seguindo em frente até que pairasse sobre ele.

— Quer saber por que está aqui? — Olhou para Ackmeyer, vendo o rosto do jovem assumir um quente brilho âmbar nas chamas das íris de Kellan. — É por causa da tecnologia ultravioleta para matar a Raça que você criou.

Ackmeyer balançou a cabeça, sua voz estava evidentemente muda com medo agora.

— Você está aqui porque essa tecnologia UV foi usada para incinerar um civil Darkhaven na rua há alguns meses. A luz solar líquida, apenas o tipo de equalizador que sua espécie mataria para ter. — Kellan continuou falando, ignorando as lágrimas que brotavam dos olhos arregalados do humano. — Você vai ficar aí e negar que tem qualquer parte nisso?

— Não sei do que está falando. Descobri um meio de aproveitar a luz UV, convertendo-a em líquido? Sim. É um dos vários protótipos que estou trabalhando em meu projeto Estrela da Manhã. Mas nenhum dos meus dados ou modelos foi lançado para o público. E é tudo sobre luz, reproduzir tecnologia, não armas. O principal objetivo do projeto é beneficiar o planeta, revolucionar o consumo de energia.

— Eles costumavam dizer a mesma coisa sobre a energia nuclear. — Kellan rosnou. — Não tenho tempo para bobagens. Para quem vendeu a tecnologia?

— Ninguém! — Ackmeyer se dissolveu em uma agitação de protuberantes soluços no chão da cela. — Nem mesmo foi testada ainda. E, além disso, eu nunca venderia nenhum de meus trabalhos por lucro. Certamente nunca criei nada com o objetivo de infligir dano a alguém. Se alguém afirma que os têm, se alguém usou meu trabalho como você diz, eles devem tê-lo roubado. Você tem que acreditar em mim! Tem que confiar em mim quando digo que não fiz nada de errado.

Não, ele não tinha que acreditar nele. Nem tinha que confiar.

Kellan tinha uma ferramenta muito mais confiável à sua disposição do que a intuição comum.

Ele estendeu a mão e espalmou o crânio trêmulo de Ackmeyer.

O choque de entendimento veio rapidamente, irrefutavelmente.

O talento Raça de Kellan despojado através das intenções do humano, perfurando diretamente para o núcleo da verdade escondida dentro da alma de Jeremy Ackmeyer. Tudo que Kellan encontrou foi honestidade, a mais pura das motivações. A ausência de qualquer culpa.

Puta merda.

Kellan retirou a mão como se a tivesse queimado. A constatação afundou como ácido amargo, corrosivo e impossível de raspar agora que o havia tocado.

Jeremy Ackmeyer estava lhe dizendo a verdade. Ele não tinha ideia de que seu trabalho foi usado como uma arma assassina contra a Raça.

Kellan tinha ordenado o sequestro de um homem honesto, inocente.

 

— Há qualquer outra coisa que eu deveria saber sobre a situação? — O rosto sombrio de Lucan Thorne encheu o monitor da tela plana na parede do Centro de Comando de Boston.

Ele não teve prazer em ouvir o relatório de campo de Nathan, entretanto o Gen Um líder da Ordem tinha todo o direito de xingar e berrar, por que uma simples missão de escolta desse tão terrivelmente errado. Ele claramente se esforçava para aceitar o fato de que um dos da própria Ordem tinha desaparecido em uma missão. Que fosse Mira, uma fêmea criada pela Ordem desde o momento em que era uma criança, fez a gravidade da perda ainda mais difícil de lidar com objetividade, não apenas por Lucan, mas por Nathan e outro casal de membros da Ordem que se reuniam com ele na sala de conferências particular naquela manhã.

Sterling Chase, o guerreiro da Raça que dirigia as operações de Boston pelas últimas duas décadas, sentava-se com sobriedade na sala ao lado de sua companheira Tavia, com a grande mão descansando sobre os dedos finos dela sobre a mesa. Tavia aceitou o gesto de carinho, apesar de não ser uma dama Darkhaven delicada, protegida das realidades do mundo.

Nascida no mesmo laboratório, do mesmo DNA alienígena que tinha gerado Nathan e um pequeno exército de assassinos nascidos e criados como ele, Tavia era uma raridade inspiradora entre a raça: uma fêmea Gen Um geneticamente criada, e uma Daywalker[6] além disso. Onde Nathan pereceria depois de minutos de exposição à luz UV, sua meia-irmã Tavia e sua prole, um par de gêmeos fraternos chamados Aric e Carys, podiam tomar sol durante todo o dia nos trópicos sem suar a camisa.

—Se alguma coisa aconteceu com Mira — Tavia murmurou com os olhos verde-folha faiscando com manchas de cor âmbar —, se ela foi machucada de alguma maneira...

— Nós vamos encontrá-la. — assegurou Nathan para todos eles. — Não vou descansar até que ela e o cientista humano sejam localizados.

No monitor, Lucan assentiu com a cabeça escura.

— Sei que posso contar com você. É por isso que estou te dando essa coisa toda como uma atribuição solo. É crucial que mantenhamos este problema fora do olhar público. Quero uma cobertura fechando o cerco sobre isso, e quero estes bastardos tratados de forma limpa e permanente. Seu treinamento faz com que você seja ideal para este tipo de trabalho de precisão cirúrgica, Nathan.

Ele inclinou a cabeça em reconhecimento.

— Vou fazer o que for preciso.

— Eu sei. — O olhar cinza de Lucan aguentou o dele através da tela de vídeo. —Você tem a minha permissão para remover todos e quaisquer obstáculos a fim de cumprir seus objetivos. Se houver consequências mais tarde, vou assumir exclusivamente a responsabilidade pela operação.

Nathan segurou o olhar solene do Gen Um.

— Não vai ser necessário.

— Nikolai e Renata deverão ser informados sobre isso. — disse Chase, seu polegar acariciando ociosamente sobre o dorso da mão de Tavia. — Não haverá nada que os impeça de se juntar à busca.

— Nada, exceto o fato de que Renata está grávida e deve ser para muito em breve. — Tavia apontou. — Mas Chase está certo. Eles precisam saber Lucan. Mira é filha deles.

O fundador da Ordem apertou os lábios em uma linha plana, mas concordou com um aceno de cabeça sóbrio.

— Não é o tipo de notícia que qualquer pai queira ouvir. — Comentou rigidamente com as linhas de seu rosto parecendo mais pronunciadas, enquanto considerava o conselho. — Gabrielle e eu vamos fazer a chamada para eles juntos, assim que terminar aqui. — Para Nathan, disse. — Esta é uma operação de extermínio. Não quero qualquer um destes bastardos rebeldes deixados de pé, para se erguer novamente depois que a poeira assentar. De acordo?

Nathan reconheceu com um apontar de seu queixo para baixo.

— Sim, senhor.

Alguns minutos mais tarde a chamada foi encerrada e Nathan deixou a sala de conferências para encontrar sua equipe esperando do lado de fora. Rafe, Eli e Jax se juntaram a Aric Chase, que se levantou assim que Nathan saiu.

— O que aconteceu lá? Lucan designou uma equipe para ir atrás desses fodidos doentes e trazer Mira de volta?

O filho de vinte anos de idade de Sterling e Tavia, Aric, foi treinado sob a direção do pai, ao lado de seu melhor amigo Rafe. Mas Rafe tinha terminado o treinamento meses antes e Aric ainda não havia sido empossado como membro com pleno direito da Ordem. Em poucas semanas teria sua oportunidade, deixando a costa leste indo para Seattle, e ser atribuído como um recém-criado guerreiro em uma das equipes de Dante naquele distrito.

Nathan não respondeu à pergunta do recruta novato, e o resto de sua equipe sabia que era melhor não incitar por respostas sobre uma conferência privada com Lucan Thorne. Os outros machos da raça seguiram Nathan, quando partiu em direção ao corredor que os levaria para a instalação do centro de comando de treinamento.

— Droga, eu queria que Lucan tivesse me encarregado de escoltar Ackmeyer para aquela reunião da cúpula. — disse Aric, seguindo o resto deles. — Tenho certeza que estes filhos da puta Homo sapiens teriam uma overdose de chumbo e aço. Deixe-os trombar com uma Raça durante o dia e assistir os covardes rebeldes mijarem um rio de, por favor, Deus nos salve.

Mesmo Nathan teve que admitir que esta ideia traria alguma diversão. Ele sentiu o puxão do humor sombrio em sua boca enquanto as brincadeiras entre seus companheiros guerreiros continuavam, cada um deles aumentando o fator de medo sobre a dor e o terror que gostariam de aplicar nos bastardos que levaram Mira.

Enquanto eles socavam uns aos outros e atiravam insultos bem humorados, Nathan se manteve além do bando com um afastamento, que veio como respirar naturalmente. Ele perdera um amigo, um irmão-em-armas uma vez em sua vida, e perder Kellan foi tão visceral como ter um membro arrancado de seu corpo. Estes guerreiros eram sua equipe, seus companheiros, mas ele aprendeu a cuidar melhor deles além de seu papel como soldados sob seu comando.

E agora Mira foi embora também.

Se ela não voltasse para casa inteira e sem ferimentos, ele não tinha certeza de como lidaria com isso.

Não, ele mentalmente corrigiu.

Ele foi treinado nos primeiros treze anos de sua vida para impedir a entrada de toda a emoção, ao se proteger para cuidar de qualquer coisa, exceto os comandos de seu mestre. Se as coisas corressem mal para Mira, ele aproveitaria as lições duras da sua educação para ir até o fim.

Mas primeiro mataria os sequestradores dela. Cada um deles.

 Sua mente já estava se preparando para a missão secreta que começaria assim que o sol se pusesse. De tal modo que levou um momento para perceber que houve uma mudança na temperatura do ar no corredor adiante. A fonte dessa mudança apareceu um momento depois na forma de Carys Chase, esquivando-se de uma sala ao lado do longo corredor. O cheiro fresco da manhã percorrendo atrás dela, agarrado aos cabelos marrom caramelo e a blusa preta justa, suas pernas abraçando um jeans justo que desaparecia no topo das botas de bico fino.

— Carys? — Aric parou no caminho do corredor, boquiaberto com sua irmã gêmea. — Que diabos você está fazendo?

Nathan e sua equipe fizeram uma pausa agora também. Todos olhando para a bonita fêmea da Raça quando ela andou em direção a eles, tentando parecer indiferente. As sobrancelhas finas arquearam maliciosamente sobre os esfumaçados olhos azuis, encobertos por longos cílios negros.

— O que parece que estou fazendo, irmãozão?

A carranca de Aric se aprofundou.

— Parece que você acabou de se arrastar pela janela de trás da propriedade, depois de ficar fora a noite toda fazendo sabe Deus o quê.

Ela riu.

— Meu Deus Aric, você parece o Papai. Além disso, desde quando me divertir com meus amigos se tornou um crime?

— Não é seguro lá fora, Car. Não para uma fêmea sozinha, sem alguém para protegê-la.

Nathan lançou um olhar sufocado a Aric Chase, um aviso sutil para não divulgar os detalhes do que tinha acontecido com Mira e o cientista humano, nem a suspeita da Ordem de que os rebeldes eram responsáveis ​​por seu desaparecimento. Aric pegou o olhar para se calar e teve o bom senso de refrescar sua reação.

— Eu te disse. Não estava sozinha. — Carys insistiu. — Jordana Gates e eu encontramos alguns outros amigos em North End. Era perfeitamente seguro.

A mandíbula de Aric apertou em resposta, mas ele manteve o seu argumento para si mesmo.

— Apenas me preocupo com você, isso é tudo. Não quero te ver machucada.

Ela lhe deu um sorriso caloroso.

— Sei disso. E embora seja uma fêmea, irmãozão, também sou Raça. Tão forte quanto qualquer um de vocês machos. Só porque não sou treinada em combate como você, não acho que seja incapaz de cuidar de mim mesma. — Estudando a expressão de desaprovação do irmão, Carys pegou o lábio inferior entre os dentes e olhou para ele por baixo de seus longos cílios negros. — Você não vai contar a Mamãe e Papai sobre isso, não é?

  — Eu deveria. — disse Aric. — Tenho certeza de que Papai estaria muito interessado em falar com os pais de Jordana também. Duvido que o venerável Gates do clã de Beacon Hill ficaria feliz em ouvir que sua filha foi acompanhada de uma Raça, passear por toda a cidade, ficando fora até o amanhecer.

— Mas você não vai contar. — ela disse suave e persuasiva. Mas Nathan estava certo de que tinha detectado uma nota de preocupação rastejando nos brilhantes olhos azuis de Carys com a menção de sua amiga Darkhaven. Carys se aproximou de seu irmão e descansou as mãos sobre seu peito. — Você não vai contar sobre mim, Aric. E, em contrapartida, não vou dizer a Mamãe e Papai sobre o trio de dançarinas que você e Rafe compartilharam em um simulador de Chinatown no último fim de semana.

— Como ficou sabendo disso? — Aric praticamente sufocou as palavras, mas Raphael apenas sorriu com uma curva lenta de sua boca que não mostrou nenhum arrependimento. — Com quem diabos você saiu para ouvir falar de algo assim?

— Você tem seus segredinhos — Carys repreendeu com um sorriso e um olhar arqueado. —, e eu tenho os meus. Vamos concordar em mantê-los assim, não é?

Ela se ergueu e deu em seu irmão um beijinho na bochecha, e então já estava a caminho, acenando para Nathan e os outros quando rodopiou sobre o salto alto e caminhou pelo corredor.

Enquanto seus irmãos guerreiros retomavam a caminhada para o centro de treinamento, Nathan sentiu os instintos formigarem com uma vaga suspeita, mas inegável. Virou um olhar curioso para trás dele em Carys. A fêmea se retirando olhou para trás, um rápido e cauteloso olhar por cima do ombro, antes que pegasse o ritmo e desaparecesse em uma curva no longo corredor.

 

Mira acordou de um sono esgotado com o aconchegante aroma picante de Kellan em tudo ao seu redor. No início pensou que pertencia a seus sonhos — sonhos sedutores, sombrios, onde ele não era seu inimigo, mas o amante que ansiava por tocar de novo, o único homem que sempre quis.

 Mas não era um sonho que enchia seus sentidos agora. Era a realidade. A cama fria e vazia de Kellan e ela sozinha em seu quarto trancado na base de comando rebelde.

 Mira sentou, afastou os cabelos embaraçados dos seus olhos. O quarto estava tranquilo. Ele não retornou desde que a deixou lá na noite anterior. O cobertor que colocou para si mesmo no chão estava onde o tinha deixado cair na improvisada área de dormir imperturbável.

Onde ele estava? Já que não voltou para seu quarto, onde escolheu passar a noite?

Talvez com uma das mulheres humanas bonitas sob seu comando. Candice, com seu sorriso fácil e carinhoso, as mãos competentes. Ou o duende de cabelo azul marinho ou Nina com seus olhos tristes e o bonito rosto de fada. Uma pontada de ciúmes atravessou Mira, sem ser convidado e amargo com uma mordida ácida.

Ela não precisava saber com quem Kellan queria passar suas noites. Ele não era dela para se preocupar. Não seria nunca mais.

E talvez nunca tivesse sido realmente, se deixá-la para trás foi tão fácil para ele.

Seu coração queria negar, mas sua cabeça ainda estava lutando para dar sentido ao fato de que Kellan estava vivo todo esse tempo — vivendo nos arredores de Boston, nesta nova vida sem lei que criou para si mesmo, como alguém completamente diferente. Ele nunca tentou chegar até ela. Nunca se importou o suficiente para acabar com sua dor e dizer que estava a salvo — mesmo que esse gesto viesse com a mágoa de perceber o que se tornou. Ele simplesmente foi embora e nunca mais olhou para trás.

A dor em seu peito aumentou, mas se recusou a deixá-lo quebrar.

E não daria a mínima para com quem Kellan — ou melhor, o Arqueiro — decidisse dividir a cama, contanto que não fosse ela.

Mira balançou as pernas nuas na beirada do colchão e se serviu de um copo de água que Candice tinha deixado sobre a mesinha de cabeceira. Suas lentes de contato estavam em um pequeno estojo com solução salina, também cortesia da bela mulher de cabelos negros. Mira as colocou e em seguida bebeu o copo de água, grata por ambas as gentilezas que a companheira rebelde de Kellan fornecera.

Mira esfregou os braços por causa do calafrio que sentiu quando colocou os pés no chão frio. Estava vestindo apenas calcinha e a camisa extra grande que Kellan lhe deu, a qual tirou do baú aos pés da cama. O sutiã e o moleton emprestados estavam dobrados sobre uma cadeira de madeira resistente. Ela estava prestes a levantar e pegá-los quando a tranca da porta se abriu.

Kellan entrou, sem aviso ou desculpa.

Seu olhar foi direto para ela em sua cama. Por um momento, não poderia dizer se era surpresa ou tristeza o que havia em seus olhos cor de avelã. Mas havia algo obscuro neles também, algo conturbado e sombrio. Ele entrou no quarto e fechou a porta atrás dele.

Quando falou, sua voz estava áspera como cascalho.

— Você está bem descansada.

Mira moveu-se para fora da cama, muito consciente de seu estado de nudez e muito consciente do fato de que Kellan estava notando isso também.

— Você parece um inferno. — disse pra ele, mantendo o sarcasmo oportuno em seu tom, quando se afastou do colchão amassado. — Odeio pensar que você tenha que procurar outra cama para dormir, por que seu quarto foi transformado em minha cela de prisão.

Ele grunhiu enquanto caminhava mais para dentro do quarto.

— Quem disse que eu dormi?

Mira o observou, desejando que não fosse tão fácil imaginá-lo aquecendo a cama de outra mulher. Para todas as suas garantias mentais, não devia se preocupar com o que ele fez — ou com quem — vendo-o cansado e tenso com a energia ameaçadora fazendo a raiva aumentar em suas veias.

— Onde você esteve Kellan?

Ele soltou uma risada cáustica.

— Arquitetando os negócios rebeldes. — Ele prendeu-a com um olhar sombrio, mostrando as pontas brilhantes de suas presas. — Isso é o que faço, lembra?

Mira olhou para ele, surpresa pela raiva mal contida em sua voz. Seu rosto estava tenso com agressividade, os ângulos de inclinação de suas bochechas, e seu queixo com cavanhaque mais acentuado agora. Kellan estava furioso. Furiosamente enlouquecido.

Ela o observou caminhar até o baú de roupas no chão, como se estivesse marchando para a guerra. Ele tirou sua amarrotada camiseta preta com uma força selvagem e abriu a tampa do baú. Seus dermaglifos estavam lívidos com rubor. As espirais arqueadas e floreios que marcavam a pele da Raça e que cobriam seu peito e bíceps se agitavam e pulsavam com tons tempestuosos de vermelho, preto e azul meia-noite. Mira engoliu.

— Alguma coisa aconteceu não foi? Algo ruim.

Ele exalou bruscamente.

— Você poderia dizer isso.

Seu olhar encontrou o dela, e agora suas íris estavam brilhando com faíscas de âmbar, espetando-a onde estava. Mira podia sentir sua fúria rolando fora dele. Podia ver em seu olhar quente, como se não pudesse suportar olhar pra ela hoje.

— Não vai me dizer o que está errado? — ela perguntou, recusando-se a ser intimidada. — Você pode conversar comigo Kellan...

— Falar com você? — Rosnou. — Não quero falar. Eu preciso pensar. Este problema é meu. Você não é parte disso.

— Eu sou parte disto, quer você goste ou não. — lembrou a ele. — Você me tornou uma parte disso.

Ele bateu a tampa do baú para baixo com tanta força que ecoou como um tiro de canhão. Saiu de seu agachamento em um instante — menos do que isso — e estava bem na frente dela, antes que pudesse puxar o fôlego seguinte. Menos do que a largura de uma mão os separava. Ela estava perto o suficiente para sentir o calor irradiando de cada poro dele.

Os glifos de Kellan que estavam pulsando com tons furiosos de raiva e frustração alguns momentos atrás, agora se aprofundavam. Havia ainda raiva neles, mas Mira assistiu as cores se transformarem em necessidade e algo mais sombrio, quando Kellan sobrecarregou-a com sua enorme massa corporal. Suas presas pareciam enormes, afiadas como punhais por trás da onda ameaçadora de seu lábio.

— Você quer que te diga o quanto me fodi indo atrás de Jeremy Ackmeyer? — Os olhos de Kellan brilhavam tão quentes quanto brasas enquanto falava. Suas pupilas reduzidas a lascas finas de preto, no meio de tanto fogo âmbar. Ele continuou, as palavras cruéis com fúria autodirigida. — Você quer saber como eu peguei um inocente? Um homem decente que não faria mal a uma mosca, muito menos a outra pessoa?

Mira tentou processar o que ele estava dizendo, mas ouvindo seu tormento, ela mal podia respirar. A emoção escura jogada em seu rosto, transformando sua bela feição em dura e feroz.

Um rosnado baixo rolou da parte de trás de sua garganta.

— Você quer que explique como minhas ordens significaram a sentença de morte certa de Candice e Doc, e do resto da minha equipe, se não descobrir uma maneira de consertar isto com você?

O coração de Mira martelava em seus ouvidos. Ela queria tocá-lo, confortá-lo de alguma forma, mas manteve-se sob controle, concentrando-se sobre a verdade do que ele disse.

— Jeremy Ackmeyer é inocente? — Ela procurou o rosto Kellan, enfrentando o calor de seu olhar enfurecido. — Pensei que tinha rastreado a tecnologia UV em seu laboratório.

Kellan respondeu com um grunhido.

— A tecnologia é dele. Ackmeyer não a liberou para ninguém, nem por dinheiro ou de outra forma. Alguém roubou a tecnologia dele.

— Ele te disse isso?

Kellan assentiu.

— E li a verdade disso quando o toquei. Ele é inocente, Mira.

— Você tem que deixá-lo ir. — Mira murmurou. Agora ela chegou até Kellan, virando o rosto dele em sua direção quando tentou desviar o olhar dela. Sua mandíbula estava rígida em sua palma, um tendão marcando duro contra seus dedos. — Você tem que soltá-lo. Levá-lo direto para a Ordem e dizer a Lucan o que descobriu sobre a tecnologia UV e o assassinato do amante de Nina.

  Ele olhou para ela por um longo momento, depois soltou um palavrão balançando a cabeça.

  — Nós podemos fazer isto juntos, Kellan. — Mira procurou seus olhos ardentes, determinada a convencê-lo. — Iremos hoje à noite assim que o sol se pôr. Nós vamos corrigir isto Kellan.

A resposta de escárnio foi fraca quando se encolheu longe de seu toque.

— Não posso fazer isso agora mais do que podia, antes de ter percebido que Ackmeyer era inocente.

— Sim, você pode. Isso muda tudo.

Os olhos de Kellan ardiam ainda mais brilhantes.

— Não muda nada. Ainda sou culpado de sequestro e conspiração. O CMN não vai se importar com quais eram os meus motivos para fazer um humano civil de refém. Você realmente acha que a ordem irá? Especialmente quando descobrirem onde estive todos esses anos e o que tenho feito?

— Então nós vamos fazê-los entender. — Mira disse, não tendo certeza de como poderiam conseguir isso, mas porra, ela estava determinada a tentar. Tudo que precisava era que Kellan concordasse. — Nós vamos até Lucan juntos e explicaremos tudo. Tem que haver um jeito. Uma vez que virem que Jeremy Ackmeyer está livre e ileso, estarão dispostos a ouvir Kellan.

Ele olhou para ela por um longo momento considerando, ela esperava. Mas o olhar em seu rosto era duro, sem ceder.

— Você está certa em uma coisa, Mira. Tenho que libertá-lo. Vou libertar os dois. Mas não até que minha equipe tenha a chance de desmontar nossa base e encontrar abrigo em outro lugar. Preciso saber que estarão seguros também, depois que tudo isso acabar.

Ele se afastou dela, prestes a virar e sair. Mira segurou em seu braço.

— E você? Onde é que tudo isso te deixa?

Ela não gostou do olhar impiedoso de seus olhos incandescentes.

— Não se preocupe comigo. Desta vez vou fazer o que não podia antes.

— O que quer dizer?

Ele tocou seu rosto, tão suavemente que ameaçou quebrar seu coração mais uma vez.

— Vou colocar a maior distância possível entre nós. Desta vez prometo, vou ter certeza que nossos caminhos nunca possam se cruzar de novo.

A promessa a atingiu como um golpe físico. Agora, ela estava fervendo de raiva — instantânea, a fúria fez seu sangue ferver.

— Seu filho da puta egoísta! Não se atreva a fingir que está fazendo isso por mim.

— É verdade. — ele afirmou categoricamente. — Não quero magoá-la, Ratinha. Eu nunca quis isso.

Incapaz de conter a dor e raiva que fervia dentro dela, Mira deu um tapa forte em seu rosto.

— Não quero nada mais do que machucar você agora. — ela fervia. Ela bateu os punhos contra seu peito forte, nu, desejando que tivesse uma lâmina a seu alcance. — Eu quero que você sofra assim também, maldito. Gostaria de fazê-lo sangrar se pudesse!

Kellan calmamente pegou suas punidoras mãos, colocando-as em uma terna posse entre seus corpos. Se a agarrasse com força, teria protestado contra ele com tudo o que era válido. Ela queria essa desculpa. Queria xingar, bater e odiá-lo neste momento e por todos os outros que trouxeram tanta dor por causa dele.

Mas o toque de Kellan foi gentil. Seu rosto estava sóbrio, os olhos cheios de calor e de arrependimento quando abaixou a cabeça e beijou os nós dos dedos brancos em ambos os punhos cerrados.

O corpo de Mira soltou com fúria impotente. Queria gritar com ele, mas tudo que deslizou de seus lábios foi um pequeno e sufocado gemido. Ela não podia se mover, não podia puxar o ar em seus pulmões enquanto Kellan olhava cansado para dentro dela. Afrouxando o aperto, ele estendeu a mão para passar os dedos ao longo do lado de seu rosto, traçando a pequena marca de nascença da lágrima-e-lua crescente que percorria sua têmpora esquerda.

Sua respiração o deixou em uma maldição sussurrada quando ele colocou a boca na testa dela e deu um beijo ali. A barba aparada, raspou suavemente sua testa. Outro beijo na marca de companheira de Raça... depois mais um que pousou suave e doce em seus lábios entreabertos.

Ela queria dizer não, mas toda a fêmea dentro dela respondeu ao beijo com um acolhedor derretimento inegável. Seus lábios roçaram os dela, quentes e úmidos, tornando-a sedenta de algo mais. Ela arremessou a língua para fora para encontrar a dele, e sentiu seu corpo forte ficar tenso contra ela. Ele rompeu o contato apenas por um momento, apenas para olhar para ela. A respiração quente contra o rosto dela com uma maldição rosnada.

As grandes mãos tremiam quando embalou seu rosto nas palmas. Tão gentil. E tão dolorosamente reverente. O polegar acariciou a linha de sua mandíbula, então caíram na lateral do pescoço, parando sobre o ponto pulsando de seu batimento como um tambor, com cada afago cuidadoso de seu toque. Sem dizer nada, ele se inclinou para frente e beijou-a novamente.

Ela não podia impedi-lo de reivindicar sua boca, mais do que podia parar a sacudida selvagem de prazer que a percorreu como fogo líquido. Kellan parecia igualmente comovido, igualmente incapaz de se impedir de tocá-la, beijá-la, desejá-la tanto quanto ela ansiava por ele. Sua pele estava quente pelo toque dele. Seus dermaglifos pulsando em reação às necessidades do corpo. Sua excitação era rápida e óbvia, um cume como granito inflexível, pressionando contra seu abdômen. Ela se deliciava com a sensação dele, duro e desejando, tão poderosamente vivo.

Não importava o que disse, ele a queria. Não havia dúvida disso agora. Nem mesmo as circunstâncias que os prendiam a parte — a situação insustentável que os colocava em lados opostos da lei. — poderia apagar o desejo que uma vez conheceram. O desejo que haviam acumulado em todos esses anos que Kellan esteve fora, não importando o quanto eles poderiam querer que tivessem esquecido.

E ele estava faminto de outra forma também.

Ela sentiu aquela fome aumentando quando sua boca deixou a dela com um grunhido, e deslizou ao longo de seu queixo, em seguida para a coluna sensível de seu pescoço. Suas presas roçaram a pele, afiadas e mortais, uma mordida que ela desejava mais do que sua próxima respiração. A veia debaixo de sua orelha estava elétrica, com cada abrasão provocada pelas presas contra a garganta.

O desejo a inundou e puxou a cabeça para o lado, enquanto o beijo afiado dele percorria o comprimento de seu pescoço. Mesmo sendo temerário desejar isto, ela queria sentir aquele raspar delicioso permanecendo em sua carótida. Queria sentir sua tenra carne render-se a ele, somente a ele. Algo que desejava dele pelo tempo que conseguia se lembrar.

Algo que ele resistia com uma vontade de ferro que parecia indestrutível, mesmo agora.

— Não. — ele rosnou. Um som selvagem e cru. Seus olhos estavam abrasivos com o calor, as pupilas afiadas e finas, sobrenaturais. Estava tremendo. Seu lindo peito e os braços lívidos com as cores de sede e desejo se entrelaçando. E suas mãos ainda permaneciam sobre ela com os dedos fortes tremendo, enquanto continuavam a acariciá-la. — Jesus Cristo, Mira...

Sabia que ele sentia a mesma atração poderosa que ela. Sabia que a desejava, ansiava por seu corpo e seu sangue. Sabia que ele queria afundar as presas nela com a mesma necessidade febril que sentia de ser a companheira da Raça sob sua mordida vinculadora.

Deus a ajudasse. Poderia se entregar a ele agora mesmo, aqui, e para o inferno com todo o resto. Kellan seria dela, mais uma vez e para sempre. Resolveriam o resto de alguma forma, juntos, ligados pelo sangue.

— Por favor. — Sussurrou, não importando a mínima o quão fraca e vulnerável ela soava. Tudo que importava eram as mãos de Kellan sobre ela. Sua respiração presa quente e úmida em seu pescoço, apertando deliciosamente contra sua carne disposta.

— Não. — ele rosnou com mais força desta vez. Os dedos cavaram em seus braços, enquanto a empurrava para longe dele com um movimento brusco de sua cabeça. — Não vou, Mira. Não posso. Não me deixe transformar uma situação ruim em uma ainda pior.

Ele não esperou que ela respondesse. Não, nem sequer lhe deu essa chance. Retirou as mãos dela e recuou. Então, com uma maldição ainda mais cruel, virou-se e saiu da sala.

Que diabos ele estava pensando?

Kellan saiu de seus aposentos com cada nervo em chamas e explodindo um bocado pelo gosto de Mira. Seu pulso martelava forte, ecoando em seus ouvidos e têmporas, pulsando em seu peito e virilha. Todo o macho nele estava aceso com a necessidade. Tudo transcendental, sobrenatural e selvagem. Estava morrendo de vontade de tomar o que tanto queria.

Mira.

Em sua cama, nua e quente debaixo dele. Queria sentir o seu calor úmido engolindo-o todo. Queria dar prazer até que ela gritasse seu nome, não com raiva ou angústia, mas com a liberação urgente e desesperada.

E sim, queria furar sua veia e sugar o lírio-doce do sangue de seu corpo, até que nada mais importasse.

Até que ela ficasse ligada a ele como sua companheira eterna, onde não houvesse leis, nem mentiras, nem destino condenável que pudesse separá-los novamente.

Puta merda.

O desejo de fazer disso uma realidade, aqui e agora, quase colocou suas botas em uma direção inversa, de volta ao seu quarto. Levou todo o autocontrole que tinha para se manter em movimento, em seu caminho para frente. Seus passos ecoaram fortemente no chão de terra do corredor do bunker. Os olhos transformados jogavam um brilho âmbar incandescentes contra as paredes sujas de concreto. Na cabeça soava o som de seu pulso como um soco febril, cada batida uma lembrança da sede que o remexia.

Uma sede que sabia que apenas uma verdadeiramente fêmea poderia saciar.

Infelizmente, ele era da Raça, e independentemente do que — ou quem — seu coração ansiava — seu corpo tinha necessidades que não podiam ser ignoradas. Não conseguia se lembrar com precisão a última vez que se alimentou. Um tempo demasiado longo, com base no estado selvagem que estava agora.

Kellan seguiu pelo corredor escuro do velho forte, rosnando e pronto para a luta. Se fosse noite do lado de fora, ele se deslocaria para a cidade e correria até a exaustão, purgando o pior de sua dupla febre. Caçar uma anfitriã de sangue seria fácil nos bairros densamente povoados de Boston, e seus bairros vizinhos. Nenhum truque encontrar uma veia humana disposta e capaz, mesmo sob as leis alimentares rigorosas e toques de recolher impostos desde o Primeiro Amanhecer.

Mas era de manhã além dos espessos muros de cimento do seu covil rebelde.

E ele sabia muito bem que o tempo de espera até o entardecer seria um tormento que não podia suportar. Não enquanto Mira estivesse embaixo do mesmo teto.

Muito tempo com tudo selvagem e desumano dentro dele golpeando com a exigência de procurá-la novamente. Para tomá-la. Para mantê-la como dele, independente do inferno que ambos seriam obrigados a pagar no final.

Deixou um rosnar rolar através de seus dentes e presas, enquanto dirigiu-se para a área principal do bunker. Mais à frente, ouviu o gotejar suave da água no chuveiro, o arrastar de pés descalços sobre um chão de concreto molhado.

Kellan olhou para dentro quando alcançou a porta de entrada aberta. Candice estava sentada em um banco de pedra no vestiário, penteando o cabelo preto molhado. Sua pele estava úmida sob o branco decote em V de sua camiseta, a tinta de suas muitas tatuagens sangrando através do tecido fino. Ela olhou por cima do ombro quando ele parou na porta.

Os olhos castanhos esverdeados encontraram o seu olhar âmbar e se arregalaram por um segundo. Ela viu sua fome. Entendeu. Ela sempre entendia. Com um aceno de cabeça leve, pousou o pente e abriu espaço para ele ao seu lado no banco.

Kellan hesitou, sabendo que isso não era o que ele queria, não de verdade.

Candice também sabia disso. Ele viu a compreensão em seus olhos suaves, enquanto o observava hesitar no limiar da sala. Sabia o que ele queria e de quem, e ainda assim lhe deu um sorriso compreensivo.

Estendeu a mão para ele, como fez tantas vezes antes.

Kellan exalou uma respiração irregular.

Então ele entrou.

 

Por um longo tempo depois que Kellan a deixou, Mira não tentou se mexer.

A confusão enraizava os pés descalços no chão. O sofrimento tornou difícil que respirasse com a dor no peito. E todo o tempo seu pulso ainda estava martelabdo, o corpo ainda quente e vibrando com o fútil e tolo desejo.

Não deixá-lo transformar uma situação ruim em uma ainda pior.

A rejeição de Kellan queimava mais do que queria admitir.

Então, isso é tudo o que era para ele agora, uma situação ruim que provavelmente ficaria pior?

Ela não queria acreditar nisso. Seus olhos tinham contado uma história diferente, cheios de calor âmbar e necessidade furiosa. Então, o corpo enrijeceu com desejo, os dermaglifos iluminaram como fogos de artifício, as mãos poderosas tremendo quando a empurrou para longe dele e disse que não podia acontecer.

Foram suas palavras que não deixaram margem para erro.

Ele não a queria.

Isso deveria ter sido suficiente. Disse que não poderia tê-la. Não podia permitir-se sentir alguma coisa por ela, apesar do fato de que seu beijo não perdeu o fogo no momento em que se separaram. Ou que ainda ficou em chamas por outro mais leve toque. Ainda assim desejavam um ao outro, com uma paixão que desafiava até mesmo a vontade de ferro de Kellan.

Isso deveria ter sido suficiente. Deveria tê-la aliviado, dando a chance de colocá-lo no compartimento emocional aonde ele pertencia: como seu inimigo. Isto deveria ter fornecido alguma clareza necessária sobre seu dever como um guerreiro e sua missão de garantir a segurança de Jeremy Ackmeyer, versus o desejo impossível de ver Kellan, que de alguma forma trouxe-o de volta entrelaçado com a Ordem.

Fantasia total.

E ainda havia uma parte dela que se recusava a deixá-lo ir, mesmo agora.

Especialmente agora.

Era ultrajante que pudesse se afastar dela e assumir que aceitaria. Ainda afastando-a, da mesma forma que fizera como o taciturno, desestruturado menino de treze anos, que chegou ao complexo da Ordem tão cheio de dor e luto pela perda de seus pais e parentes. Ela não ficou lá parada há oito anos, e com certeza não estava prestes a ficar parada agora.

Mira olhou para a porta fechada pela qual ele saiu alguns momentos atrás.

Ela pensou em como ele tinha saído às pressas. Com tanta pressa, que não ouviu a queda da tranca no lugar atrás dele. Atravessou o chão e tentou a trava. Estava aberta.

Puta merda.

Uma série de opções se apresentou em rápida sucessão. Um, ela poderia simplesmente ficar parada como ele esperava que fizesse ou ressentida até que decidisse o que fazer com ela em seguida. O que exatamente não estava acontecendo.

Dois, ela poderia considerar a sua rejeição como um presente para seus objetivos de missão, e tentar uma fuga imediata com Jeremy Ackmeyer. Um risco, considerando que ela e seu pacote humano teriam que começar passando por Kellan e toda sua equipe rebelde bem armada.

Ou três, ela poderia ir atrás de Kellan agora e fazê-lo encará-la. Forçá-lo a dizer que não se importava mais com ela, ou se ele se importasse, fazer com que explicasse o motivo de não querer tentar consertar as coisas para que pudessem tentar renovar o que uma vez tiveram juntos.

Sem disputa. Ela estava pegando a Porta Número Três.

Mira teve anos de prática arrancando Kellan de trás das paredes que construiu em torno de si. Ela não estava a ponto de desistir agora.

Rapidamente jogou seu moletom sob a enorme camisa com que dormia, em seguida saiu pela porta e para o corredor do lado de fora.

O bunker estava muito quieto, nenhum sinal de atividade de manhã cedo no final da fortaleza. Mira tomou a direção que lembrou que a levaria para a sala principal da base, onde assumiu que poderia encontrar Kellan. Na pior das hipóteses, se deparasse com alguém de sua equipe em vez disso, eles sem dúvida imediatamente chamariam seu líder para ela.

Mas o lugar estava tão quieto. Mira não tinha certeza de quem estava por perto.

Até que ouviu... um som suave, vindo de mais adiante, de uma das câmaras de fora do corredor. Os chuveiros, onde Candice a levou para se lavar na noite passada.

O som que vinha do interior do aposento era abafado, úmido.

Íntimo.

Alguma coisa correu apertada pelo estômago de Mira enquanto seus pés continuaram uma caminhada silenciosa pelo corredor.

Havia um murmúrio de vozes — uma feminina, outra masculina. O coração de Mira deu um baque pesado, como se um amontoado de chumbo se alojasse em sua caixa torácica. Ela conhecia aquele ruído baixo e intenso. Conhecia aquela cadência de palavras faladas em voz baixa. Palavras particulares. Palavras de cuidado.

Ah, Deus.

Um pavor diferente de qualquer um que tinha conhecido — não desde a noite em que assistiu o armazém pegar fogo com Kellan dentro dele — agarrou-a conforme rastejava para frente em agonizantes passos lentos que eventualmente a levariam para a porta aberta.

Candice estava lá dentro, sentada em um banco plano fora dos chuveiros. Seu longo cabelo preto estava úmido e brilhante contra sua fina camiseta branca, com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados em uma espécie de êxtase reverente.

E sugando-lhe o pulso estava Kellan. Ele estava agachado ao lado dela, sua cabeça escura abaixada sobre o braço da fêmea humana, suas afiadas presas brancas afundadas nas chamas tatuadas que corriam do pulso de Candice para seu antebraço. Com a mão livre Candice gentilmente acariciava as costas nuas dele, com uma familiaridade agradável, que cortou Mira diretamente em seus ossos.

Não, ela corrigiu, descobrindo que era impossível recuperar o fôlego.

Isto cortou direto em seu coração partido.

Horrorizada, toda a luta drenou para fora dela em um instante. Mira recuou silenciosamente, grata que não tivesse sido percebida.

Talvez por isso Kellan não quisesse que o ajudasse a trazê-lo de volta para a Ordem. Talvez fosse esta a razão pela qual parecia determinado a ficar com os rebeldes humanos que salvaram sua vida há oito anos.

Talvez por isso ele aparentemente achasse tão fácil virar as costas para Mira e para o que tiveram uma vez. Porque tinha encontrado alguém. A bonita e bondosa Candice.

Agora a ideia de Mira de escapar e levar Jeremy Ackmeyer com ela soava de longe como o melhor. A forma como seu peito doía, como se pudesse se abrir a qualquer momento, não podendo esperar para sair deste lugar. Ela tinha que ficar o mais longe possível antes que a dor tivesse a chance de dissolvê-la onde estava.

Ela deu meia volta e ficou cara a cara com Vince.

— Bem, bem. O que temos aqui? — Sua boca estava plana junto com seu olhar. — O chefe sabe que uma das suas galinhas voou do galinheiro?

Mira estremeceu com o aviso deliberadamente alto na voz do rebelde. Movimentos soaram no chuveiro. Urgentemente desordenados. Uma combinação de botas de combate e pés descalços no chão de concreto.

— Saia do meu caminho. — Mira empurrou Vince com tudo o que tinha. O homem cambaleou para trás, obviamente pego de surpresa pela sua força.

Ela correu por ele, dirigindo-se pelo corredor.

Kellan estava atrás dela agora. Mira podia sentir sua presença no corredor, mas contra sua própria vontade virou um olhar de volta para ele. Estava limpando o sangue de Candice dos lábios. Seus olhos estavam de cor âmbar brilhante, as órbitas ardentes devorando as pupilas, reduzindo-as a fendas mais finas no centro. Suas presas estavam enormes, e seus dermaglifos pulsando, ainda saturado com cores vivas, mesmo depois de sua alimentação.

A visão dele assim — estimulado por beber de outra fêmea — esmagou-a.

Mira girou de volta e fugiu, para onde especificamente ela não tinha ideia. Apenas para longe de Kellan e tudo o que tinha acabado de presenciar.

— Todo mundo fica parado. — Ele gritou com a voz áspera e sobrenatural. — Mira!

Ela o ignorou rasgando pelo corredor, desesperada para fugir dele.

Do nada, sentiu uma onda de ar frio roçá-la. Então Kellan ficou na frente dela, bloqueando seu caminho.

— Mira, pare.

Ela balançou a cabeça. Sua voz tinha secado, deixando apenas um soluço ferido em sua garganta. Ela engasgou, tentou desviar passando por Kellan. Ele agarrou seus ombros.

— Solte-me!— Ela gritou com a voz rouca. — Eu quero sair. Tenho que sair daqui agora!

— Não posso deixá-la fazer isso. — Palavras calmas, não permitindo qualquer argumento.

Ela não se importava.

— Tente me deter. — ela sussurrou, e conseguiu se soltar num arranco.

Ela virou a cabeça no sentido oposto agora. Vince e Candice esperavam no final do corredor, ambos pasmos, observando toda a cena desastrosa em julgamento tranquilo. Mira nunca se sentiu mais tola.

Kellan ordenou a eles para ir.

— Este é um negócio particular. Não preciso de plateia.

Eles saíram rapidamente, mas Mira não se sentiu melhor quando ficou sozinha com Kellan. Ela deu alguns passos apressados, ​​e lá estava ele na frente dela novamente, forçando-a a encará-lo.

— Nós podemos fazer isso o dia todo, Ratinha. Acalme-se. Seja razoável por um minuto.

Ela engasgou com uma risada dura.

— Seja razoável? Foda-se. Como é que posso ficar calma e razoável?

Mais uma vez ela virou para se afastar dele, e se lançou como um raio com tudo o que tinha. Ele se moveu tão rápido desta vez, que ela não o viu ou sentiu... não até que fosse varrida fora de seus pés e pega nos braços poderosos de Kellan.

— Deixe-me ir!— Lutou contra seu agarre, mas ele era forte, quente, sólido e inflexível. Um lembrete tangível do fato de que era algo mais do que um homem. Algo mortal, sombrio e formidável.

 Ignorando sua luta, levou-a de volta para seus aposentos. Chutou a porta e fechou-a atrás dele com um estrondo pesado. Ele a colocou no chão, mas não lhe deu chance de ficar longe dele. Antes que ela pudesse puxar o fôlego seguinte, Kellan teve sua espinha pressionada contra a porta fechada, margeando-a com a maior parte de seu corpo, os braços musculosos prendendo-a em ambos os lados.

Ela olhou para ele, tentando ignorar a pontada quente de consciência, que flechou através dela com a proximidade pressionada de seus corpos. Seus seios doíam por senti-lo contra ela. Os mamilos endurecendo apesar da efervescência de sua fúria.

Kellan exalou bruscamente, o olhar âmbar abrasador nela.

— Droga, Mira. Eu te disse para não sair deste quarto.

— Com medo do que eu poderia ver? — Ergueu o queixo com o ciúme ainda queimando como ácido na parte de trás de sua garganta. — Acho que deveria ter sido mais cuidadoso, Arqueiro. Foi você quem deixou a porta aberta.

Seu olhar não a deixou, nem mesmo por um instante. Mas, por trás dela, ouviu o click metálico da tranca deslizando no lugar, girando pela força da sua mente apenas.

— Está fechada agora.

Ele mostrou os dentes e as presas enquanto dizia isto. A voz era um grunhido sombrio, que não deveria ter feito seu coração disparar como fez. Suas veias não deveriam estar zumbido, o pulso enlouquecido e elétrico enquanto a segurava lá, presa em um lugar insuportável entre a raiva e a mágoa, a consciência e a necessidade.

Ela não queria que ele a desejasse — não agora. Não quando estava fumegando, ainda lutando contra as lágrimas amargas que ameaçavam derramar por ter visto sua boca em outra mulher. Uma mulher humana que podia alimentá-lo, nutri-lo e dar algo que Kellan nunca tinha tomado dela.

— Por que não me contou? — As palavras um sussurro entrecortado, escorregando de sua língua antes que pudesse chamá-las de volta. — Por que não apenas não me disse que havia outra pessoa?

Os olhos ardentes deflagraram mais brilhantes.

— Porque não seria verdade.

— Eu vi você, Kellan... ainda agora com Candice. Vi suas presas no pulso dela. O sangue dela estava em seus lábios.

— Sim. — Admitiu sem pestanejar. Inabalável. — Eu me alimentei de Candice por necessidade. Alimentei-me dela muitas vezes porque sou da Raça e não posso viver sem sangue. Eu me alimento dela porque posso confiar nela, e porque não exige nada de mim.

Mira bufou uma respiração dura.

— Muito conveniente para você.

Ela quis que isso soasse agudo e indiferente, mas não havia como esconder o fato de que estava ferida. Odiava a crueza dentro dela, odiava que ele pudesse ouvir isto agora, certamente via em seus olhos úmidos. Fechou-se olhando para baixo, mas Kellan não permitiu.

Impiedoso, levantou seu rosto, em seguida tornou a dor ainda pior, enxugando o rastro de uma grossa lágrima com um roçar de seu polegar em sua bochecha.

— Olhe para mim, Mira. Diga-me se acha que há algo mais no que você viu lá atrás do que estou te dizendo que foi. — Sua voz estava em um nível ainda intenso. — Olhe nos meus olhos. Eles ainda estão brilhando. Ainda estão inflamados com fome, mesmo quando bebi minha cota de sangue de Candice. Olhe para meus glifos, Mira. Você vê saciedade neles ou ainda estão lívidos e agitados, com fome e com as cores escuras de uma forma diferente, a mais profunda necessidade, enquanto estou de pé aqui na sua frente?

Mira não queria olhá-lo, mas ele não dava escolha. E quando atendeu sua exigência para olhar para ele — realmente vê-lo, como ambos, um homem formidável e uma criatura perigosa tão sobrenatural — percebeu que tudo o que estava dizendo agora era verdade. Embora o limite de sua sede de sangue tivesse sido controlado, ele estava longe de estar satisfeito.

Kellan pressionou-se nela, deixando-a sentir o amplo comprimento duro de seu corpo. Ele abaixou a cabeça ao lado dela, com a voz como um rosnado baixo contra sua sensível orelha.

— Eu me sinto como um homem que tomou o que queria de alguém, que não era a única mulher que ansiava acima de todas as outras?

A respiração de Mira ficou presa em sua garganta, vazando para fora dela em um pequeno gemido. Ela sentiu a ereção rígida, sentiu o desejo por ela irradiando dele em um calor palpável.

Kellan murmurou uma maldição sombria.

— Durante oito anos desejei que pudesse encontrar alguém para me fazer esquecê-la. Mas não houve ninguém Mira. — Seus lábios se fecharam em torno de sua orelha, sugando-a suavemente entre seus dentes e presas. O hálito quente raspou contra sua orelha, descendo para dentro dela, fazendo seu pulso disparar e suas coxas tremerem. — Não houve ninguém além de você, Mira.

Ele pegou o rosto dela entre as mãos e beijou-a. Não o beliscar suave e o roçar de sua boca de apenas um momento atrás, mas uma reivindicação feroz. Possessivo e quente, seu beijo a invadiu sem paciência ou misericórdia. Era uma exigência crua e desenfreada.

E Mira entregou-se a ele com abandono.

Ela não podia se negar a ele, nem a paixão que atravessou seu corpo fundindo-se em ondas quando a arrastou mais profundamente em seu beijo, puxando seu corpo contra o peito rígido.

Como uma represa quebrando, a resistência escassa de Mira inundou para fora dela junto com o último pedacinho de luta. Ela colocou os braços em volta dele e abriu-se ao seu saqueado beijo. Por dentro, estava derretendo. O sangue corria quente, reunindo-se em seu âmago. Seus membros estavam fracos e instáveis, deixando-a amolecida mais abaixo.

Ela o queria. Deus, como queria.

Queria que esse momento durasse para sempre.

— Kellan. — Murmurou, arqueando-se para o calor dele.

Ela engasgou um segundo mais tarde quando suas mãos fortes deslizaram para a frente dela, e passaram embaixo do algodão solto de sua camiseta. Seus dedos eram ásperos contra sua pele nua, mais calejados e endurecidos, gastos das batalhas. Mas o seu toque era suave, levantando um arrepio nela quando as palmas das mãos patinaram até suas costelas, para as elevações de seus seios nus. Ele colocou-os em suas mãos, apertou-os, esfregou os polegares sobre os mamilos que estavam duros como seixos sob sua carícia.

Mira enterrou o rosto na curva de seu ombro forte, saboreando a sensação das mãos sobre sua pele nua. Ela o tocou também, correndo os dedos ao longo dos músculos que ladeavam cada lado de sua coluna, percorrendo cada centímetro dele, lembrando-se de seu corpo, como se nunca tivessem se separado.

— Oh, Deus... Kellan. Senti tanta falta disso. Senti sua falta... de nós.

Sua resposta foi um grunhido que vibrou por todo o caminho até sua medula. Sem palavras, sem pedir permissão, ele virou-a na frente dele e guiou-a para a cama, beijando-a a cada passo do caminho.

Ela não poderia ter resistido se tentasse. Toda a fêmea nela estava disposta, devassa e molhada, tão pronta para recebê-lo de volta para ela.

Ele a empurrou para baixo no colchão e a seguiu, cobrindo-a com seu corpo. A língua mergulhou fundo em sua boca, empurrando e retirando, dizendo exatamente onde eles estavam indo. Mira abriu-se para ele, encontrando sua língua com a dela, tomando quando ele recuou, submetendo-se quando voltou por mais.

Ela se agarrou a ele, arqueou para ele, desejava tê-lo enterrado profundamente dentro dela.

Sabia o que ela precisava dele, mesmo agora. Ele sabia exatamente como tocá-la, exatamente como beijá-la. Ainda sabia tudo depois de todo esse tempo.

Mira transpassou os dedos em seu cabelo castanho espesso quando ele tomou sua boca em um beijo mais quente, mais exigente, que a deixou ofegante e drogada debaixo dele. Ela não sabia como ele conseguiu retirar seu moletom e calcinha. Isso não importava. Porque de repente Kellan estava se movendo para baixo do comprimento de seu corpo, empurrando para cima a barra de sua camisa e beijando um rastro quente e úmido ao longo da superfície plana de sua barriga. Ela gemeu, inclinando-se para fora da cama, quando ele amassou seus seios, em seguida, tomou um mamilo aveludado na boca. Ele beijou o outro também, dando uma arranhada provocante com os dentes.

— Você tem o mesmo gosto. — ele murmurou contra sua pele. — Ainda doce e terno.

Ela não podia responder, só podia torcer os dedos nos lençóis e prender a respiração quando a boca começou a caminhar para baixo, deixando um rastro de fogo por toda parte em que os lábios tocavam sua pele. Ele fez uma pausa em seu osso do quadril, lambeu seu cume delicado.

— Mais doce aqui.

Oh, Deus.

Ela levantou a cabeça e viu quando ele desceu ainda mais. Ele olhou para ela quando se moveu para o ápice de suas coxas, as íris inundadas com âmbar, engolindo as linhas finas verticais de suas pupilas. Sobrenatural, o olhar predador ficou bloqueado no dela, as pontas de suas presas se alongando mais. Mais nítidas, enquanto sua boca alargou espalhada em um sorriso carnal. Então abriu suas pernas e afundou entre elas.

Ele beijou o triângulo de cachos claros até o montículo de seu sexo. Mira prendeu a respiração, pulsou acelerada, enchendo suas veias de fogo líquido. Outro beijo, este demorando muito mais tempo, a ponta da língua separando as dobras sensíveis. Ele lambeu lentamente, sugando-a, atraindo o broto tenro para o calor úmido de sua língua. O rugido de aceitação vibrou contra seu sexo trêmulo quando ele foi mais fundo.

— Tão doce e suculenta. É disso que tenho sede. De você Mira.

Ele caiu sobre ela novamente. O ar estremeceu fora de seus pulmões em um suspiro irregular, uma sensação disparando através dela como minúsculos raios de uma bem vinda tempestade. Brincou com ela, provocando seu clitóris, lambendo-o, fazendo as pétalas de seu corpo chorar por ele.

— Eu preciso de você. — ela suspirou, levantando-se para alcançá-lo, os dedos cavando seus rígidos ombros volumosos. — Por favor, Kellan. Não quero esperar. Tenho medo de esperar mais um segundo...

Com medo de que este momento de alguma forma se interrompesse, e a realidade os atirasse a ambos de volta onde estavam apenas alguns minutos atrás: inimigos, não amantes. Estranhos, não amigos.

Voltando para o homem e para a mulher com um longínquo passado compartilhado, um presente inquieto e um futuro duvidoso, incerto.

Mira não poderia deixá-lo ir, não agora.

— Venha até aqui. Preciso sentir você contra mim novamente. Eu te quero dentro de mim.

Seja o que for que disse, foi perdido em um rugido profundo e estrondoso. Ele voltou pra cama arrancando as calças pelo caminho. Mira bebeu na visão dele nu, magro e bonito. Tão forte e poderoso.

Tão vivo.

Quanto tempo sonhara com este momento. — estar com Kellan novamente, tê-lo de volta dos mortos?

Isso a deixou ávida por ele agora. Desesperada para segurá-lo perto, tão perto quanto seus corpos, possivelmente poderiam estar.

Kellan a cobriu. Cada centímetro dele pulsando com calor e masculinidade. Ele a beijou novamente, profundo, longo e possessivo. Suas coxas foram encravando entre as dela, sua excitação pesada e dura, o grosso eixo vertical situado na fenda úmida de seu sexo.

Não perto o suficiente.

Mira moveu seus quadris, assentando-os para seu primeiro impulso. Ela chupou sua língua, e seu pau deu um pequeno pontapé em resposta. Kellan gemeu em sua boca, um som cru de necessidade. Ele interrompeu o beijo com uma maldição e olhou para ela, apoiado em seus punhos.

— Quero ir devagar com você, mas... — Sua voz sumiu, e ele balançou a cabeça, dando uma ligeira pressão de sua pélvis. A cabeça do pênis cutucou dentro dela, testando. — Ah, Cristo... Você é tão gostosa.

O coração de Mira batia em seu peito como um pássaro enjaulado. Cada terminação nervosa tremendo com uma necessidade urgente.

— Não quero ir devagar. Já houve muito tempo entre nós. Não mais, Kellan. Não agora.

Ele acenou com a cabeça, os olhos enraizados nos dela, quando deu outro impulso experimental.

— Você está tão apertada. Exatamente como a primeira vez em que estivemos juntos.

Era uma virgem naquela primeira vez — naquela única vez — que ela e Kellan fizeram amor. Ele também era. Apesar do desejo deles ser mútuo e inegável por anos, antes daquela noite, nunca fizeram até aquele momento. Ela era muito jovem no início, então, mais tarde, quando era uma mulher, Kellan tinha se jogado em seus deveres com a Ordem, tendo missões que o enviavam por semanas, às vezes meses consecutivos. Mas ele sempre voltava para ela, e quando fazia, nunca levava muito tempo para que acabassem em um emaranhado de braços, pernas e bocas questionadoras.

Eles aprenderam a dar prazer um ao outro de outras maneiras antes daquele momento, há oito anos, até que finalmente, tinham provado uma necessidade maior do que qualquer quantidade de negação ou restrição. Mira se entregou a Kellan e ele a ela.

Foi mágico. Milagroso. Até algumas horas mais tarde, quando uma bomba rebelde levou tudo isso embora.

Olhou para Kellan, equilibrado sobre ela no silêncio de sua cama macia. Seu coração ainda estava partido por tudo o que aconteceu naquela noite, e no tempo desde então. Mas esse momento era real. Isto era o agora. Isto era deles.

Sorriu ao sentir sua nudez toda sobre ela, gemeu de dor prazerosa quando a cabeça do seu pau a esticou incrivelmente apertado em torno dele. Ele era tão cuidadoso com ela. Muito cuidadoso. Ela estendeu a mão, acariciou seu rosto bonito.

— Não houve nenhum outro para mim também, Kellan. Não em todo esse tempo.

Um flash de perplexidade percorreu suas feições.

— Ninguém?

Ela balançou a cabeça.

— Só você.

— Ah meu Deus. — Ele fechou os olhos por um momento, e quando os abriu novamente eles estavam em chamas com uma nova luz, mais feroz. Ele não estava feliz. Nem um pouco. — Ah, Cristo, Ratinha. Que merda por isso. Que merda por nós dois não termos o bom senso de nos libertar.

Com um rosnado entre dentes e presas, empurrou dentro dela em um golpe rápido e profundo. Mira gritou quando a encheu, mordendo o lábio conforme a picada afiada inicial de sua invasão deu lugar a uma conclusão gloriosa.

Ah, porra!

Ele se sentia tão bem.

Ela se sentia tão bem, segurando-o enterrado dentro dela.

Conhecia esta dança com ele, cada instinto dentro dela respondia como se tivesse sido ontem, que ela passou beijando-o assim — nu e sem fôlego, pele sobre pele, derretendo com prazer e fome por mais. Sua primeira vez juntos ficou marcada em seus sentidos, uma memória que carregou todo esse tempo. Isto foi tudo que restou dele, e agarrou-se a isto como faria com sua própria alma.

E agora tinha Kellan para si novamente. Dentro dela.

Seu nome foi um sussurro áspero em seus lábios quando ele aumentou o ritmo, cada impulso indo muito mais fundo, atiçando o fogo que já estava rugindo dentro dela. Sua boca cobriu a dela, conforme o primeiro grito irrompeu dela com seu clímax, enrolado o fundo da sua garganta.

Ele não lhe deu nenhuma trégua, mas não queria nenhuma. Não assim. Não quando sua necessidade por ele ainda era tão primitiva e inquieta.

Mas seu orgasmo estava aumentando rapidamente. Corria acima dela com cada estocada e retirada, cada beijo e carícia levando-a cada vez mais perto do limite. Kellan conduziu para dentro dela com um propósito implacável, empurrando-a impiedosamente em direção ao penhasco.

— Oh, Deus! — ela suspirou quando as primeiras ondas de calor caíram dentro dela. — Kellan.

Mira entregou-se a ele e caiu de cabeça no prazer do momento.

O prazer desta união, não importando quão fugaz seu coração temia que pudesse ser.

 

Apenas uma vez na vida Kellan sentiu o êxtase apertado e molhado do corpo de Mira o revestindo. Só uma vez conheceu o doce aperto de seu ventre em torno do pênis, as ondulações minúsculas de seu clímax o ordenhando e retorcendo. Lembrava-se dessa vez com clareza nítida — ou assim pensava, até que a visão de Mira gozando para ele agora, se agarrando nele e ofegando seu nome num frenesi quente, fez tudo que achava saber, parecer pálido e seco como poeira.

Cristo, ela era linda.

O cabelo loiro era um emaranhado selvagem em seu travesseiro. A pele de porcelana perfeita estava rosa pelo fluxo de sangue nas bochechas e pelos montes encantadores de seus seios atrevidos. As pálpebras estavam pesadas, os cílios escuros abaixados. Ela soltou um suspiro através dos lábios entreabertos que estavam magoados e avermelhados pelo seu beijo. A boca rosada tremendo a cada subida de sua respiração. Ela se agarrava a ele quando outro profundo arrepio a percorreu.

Paralisado, triunfante, Kellan viu o orgasmo varrê-la. Agarrou-o em seu punho quente quando tremeu pela força de sua liberação. Seu pênis se contraiu, pulou pronto para explodir, seu próprio clímax crescendo a ponto da tortura.

Mas era uma agonia deliciosa. Uma dor tão boa que queria mantê-la para sempre. Mira começou a explodir. Seu pequeno corpo tenso gozando debaixo dele com sua respiração acelerando e o pulso batendo com força contra ele em todos os lugares que se tocavam. Ele a levou mais alto, rolando dentro dela com golpes profundos, penetrantes, atiçando o fogo do seu prazer.

— Não pare. — ela sussurrou entrecortada. — Oh, Deus, Kellan... por favor... Não pare nunca.

Ele rosnou de acordo, o orgulho masculino inchando dentro dele como uma onda.

Ela era sua.

Novamente.

Ainda.

Sempre...

Foi este último pensamento, a mentira disso, que ficou presa a ele como uma farpa. Sempre não era mais deles. Não importava o quanto quisesse que fosse verdade.

E era injusto tirar isso de Mira — seu prazer, sua entrega, sua fidelidade não merecida e afeto — sabendo que não ia durar. Não podia durar. Não com o futuro sombrio que o aguardava.

Mas era difícil sentir o pavor desse fato agora. Difícil sentir qualquer coisa, exceto a pura satisfação masculina enquanto abraçava sua beleza nua, o suor brilhando contra ele e se deleitava com o prazer que ela tinha com ele.

Beijou-a quando seu orgasmo diminuiu, acariciando o rosto bonito enquanto o olhar drogado de felicidade se levantava para encontrar seus olhos cor de âmbar. Quando falou, foi com uma profundidade rude que soou mais animal que humana, até mesmo para seus próprios ouvidos.

— Sabia que acabaria assim. Os dois nus na minha cama.

Não estava orgulhoso de si mesmo. Mas com certeza não podia sentir muito pesar.

Parte da razão por que resistiu tanto tempo a ela primeiro, antes de sua vida tomar o desvio do momento, era que sabia que ceder ao seu desejo por Mira o consumiria até que a desejasse muito mais. Amá-la assim só fazia com que quisesse prová-la. Uni-la a ele. Coisas que não tinha mais o direito de querer.

Anos atrás, resistiu a tentação com uma rígida moral que mal podia imaginar agora. Que idiota foi por mantê-la à distância e afastá-la. Agora, tudo que queria era mantê-la perto. Não podia estar perto o suficiente.

Deu um impulso lento com os quadris, gemendo pelo atrito delicioso e molhado de seus corpos. Ele acariciou seu rosto, tirou uma mecha de cabelo úmido de sua testa.

— Sabia quando recebi a chamada de minha equipe na casa de Ackmeyer, e tomei a decisão de trazê-la aqui... Sabia que se a visse novamente, não seria capaz de resistir a tocá-la. Beijá-la. — Ele apertou seus lábios em sua testa, traçando o polegar sobre o contorno da marca de Companheira de Raça na linha fina de sua têmpora esquerda.

— E sabia que se deixasse isso acontecer, se te tocasse, beijasse, não haveria como me impedir de eventualmente, estar dentro de você de novo também.

Os dedos de Mira entrelaçaram em seu cabelo, segurando sua nuca.

— Não quero que pare. — Ela o puxou para um beijo febril que fez seu corpo inteiro ficar tenso e elétrico. Ela se moveu sob ele, balançando numa demanda sem delicadeza. Seu beijo terminou com uma mordida no lábio inferior dele. Sua respiração estava quente contra sua boca, faminta.

— Não pare Kellan.

Ah, Cristo.

Não poderia parar agora nem que sua vida dependesse disso.

Ele tomou sua boca numa reivindicação dura, ao mesmo tempo dirigindo seu pênis profundo e lento, enchendo-a com tudo dele, seu eixo grosso até o fim. O suspiro dela o estimulou. Seus gemidos suaves fazendo o nó da excitação cada vez mais apertado, cada estocada uma coisa possessiva, faminta.

Ele passou a mão por toda a extensão de uma coxa lisa, dobrando-a no joelho e trazendo a perna acima de seu ombro. Ele rolou sua pélvis contra ela em outro impulso profundo, seu ritmo crescente, correndo para combinar com a batida forte de seu pulso.

— Não posso chegar fundo o suficiente dentro de você. — ele rosnou na sua boca. — Quero tudo de você.

— Sim. — ela sussurrou, segurando-se nele enquanto entrava mais duro, perdida para tudo, exceto a sensação de sua vagina em volta dele como uma luva, seus músculos delicados o apertando com ondulações doces.

Ele tocou seu rosto, querendo vê-la no momento que explodisse dentro dela. Estava rugindo sobre ele rapidamente, um espiral de calor na base da sua espinha.

Mira virou a cabeça dentro da palma de sua mão e deu um beijo lá. A ponta de sua língua rosa disparou para fora, úmida e quente contra sua pele. Ele bombeou mais forte, a ponto de perder todo o controle. E então ela virou a cabeça e tomou seu polegar na boca. Chupou-o profundamente, sua língua o amortecendo, aderindo a ele, assim como seu canal apertado agarrava e chupava o comprimento rígido de seu pênis.

Kellan empurrou com abandono frenético, o nó de dor e prazer crescendo se elevando a cada batida pesada de seu pulso. Mira não soltou seu polegar. Ela rodou sua língua ao redor dele, com os olhos fixos nele enquanto deslizava dentro e fora de sua boca, estremecendo profundamente em seus ossos pela sensação do roçar de seus incisivos contra sua pele. Então ela fechou os dentes, apertou numa mordida que disparou todos os interruptores sensoriais em seu corpo.

Kellan rugiu quando seu orgasmo explodiu.

Não conseguia se segurar, sentindo a adrenalina selvagem de suas sementes jorrando dele, enchendo-a. Gozou forte, rápido e frenético. A força de sua liberação o deixou cambaleando, tremendo enquanto se derramava profundamente dentro da vagina de Mira, quente e úmida.

Quando gozou, sentiu uma súbita sensação de alívio que, independentemente de quão errado era estar tomando seu prazer com ela, pelo menos, não estaria plantando uma criança em Mira. Não, isso dependeria de mais que o impulso puro e irresponsável que o colocou entre suas coxas hoje. Dependeria do período fértil de uma fase de lua crescente e a troca simultânea de sangue entre um macho de sua espécie e uma mulher que ostentasse a marca de nascença de Companheira da Raça.

Pensamentos de sangue e ligação eram coisas perigosas. Especialmente agora, quando o olhar febril de Kellan já estava atraído pela artéria assinalando como uma borboleta enjaulada do lado da garganta delicada de Mira. Sob o perfume inebriante da pele dela orvalhada de suor limpo e o perfume almiscarado de sexo, os sentidos Raça de Kellan chamavam a doçura fresca do seu sangue.

Sua fome de beber dela — perfurar suas presas na coluna branca e macia de seu pescoço e uni-la a ele como seu companheiro de vida — voltou com a força de uma tempestade, quase demais para suportar.

— Merda. — Murmurou fechando os olhos e virando a cabeça longe da tentação.

As mãos suaves de Mira o trouxeram de volta emoldurando o rosto. Mas seus olhos tinham uma nota de tristeza. Confusão nas suaves palavras murmuradas.

— Nunca quis dar o último passo comigo. Nunca quis um vínculo comigo.

— Realmente acredita nisso? — Ele procurou seu olhar, na esperança que por trás das lentes roxas protegendo os olhos da verdadeira cor — lentes que emudeciam o dom da vidência — Mira soubesse que era a única que alguma vez imaginou ao seu lado como companheira vinculada pelo sangue.

Mas mesmo essa esperança era uma crueldade por parte dele, porque mesmo se a quisesse para si ou não, o destino, aparentemente, tinha outras ideias.

Kellan viu isso por si mesmo, em outro dia como este, quando segurava Mira nua em seus braços, os corpos intimamente unidos pelo prazer e esgotados, assim como estavam agora.

Ele se inclinou e deu um beijo suave em cada uma das suas pálpebras pedindo desculpa — ou absolvição — não tinha certeza.

— Seria você, Mira. Se pudesse acreditar que teríamos algum tipo de futuro juntos, qualquer tipo de futuro em que não acabasse ferindo-a profundamente, então seria você. Mas não posso te dar algo irrevogável, algo que seria eterno e obrigatório, quando sei que não será bom o que virá com isso.

A tristeza e confusão em seu olhar um momento atrás se tornou dureza agora. Explodiu em zombaria, sua boca se torcendo para algo que viu muitas vezes enquanto cresciam juntos.

— Parte de mim quer te chamar de idiota de primeira classe por dizer isso enquanto ainda está dentro de mim. Mas isso não seria justo, não é? Porque eu queria foder tanto quanto você, evidentemente, queria. Não que qualquer coisa boa venha disso também.

Kellan estremeceu.

— Isso não foi apenas uma foda, pelo amor de Deus.

— O que foi então?

Ele deu um aceno de cabeça, sua mente cheia de mil adjetivos que nem sequer chegavam perto de descrever o que estava sentindo, deitado ali com Mira, endurecendo dentro dela mais uma vez.

Ele deu um impulso lento dos quadris, gemeu quando ela o encontrou com um arco de sua coluna que o levou ainda mais profundo.

— Deus, queria que você não fosse tão gostosa. Queria que não parecesse tão certo. Não estou pronto para deixá-la ainda. — Ele abaixou a cabeça e a beijou, uma longa e apaixonada união de suas bocas. Quando finalmente separou os lábios, a respiração arquejava, passando através de seus dentes alongados. — Ah, porra... isso foi um erro. Agora que a tenho embaixo de mim, não sei como vou te deixar sair da minha cama.

Mira apoiou as mãos em seu peito nu e o empurrou de costas. Foi com ele, mantendo-o aninhado dentro dela enquanto o montava.

— Agora está embaixo de mim, e talvez eu tenha algo a dizer sobre se devemos ou não sair da cama.

Ela revirou sua pélvis, assentando-o tão profundamente quanto ele podia ir. Então começou a montá-lo lentamente, extraindo de cada longo golpe sussurros agonizantes. Ela fechou os olhos enquanto se movia em cima dele. O ágil corpo de guerreira se arqueando e flexionando com a graça de uma bailarina enquanto o segurava dentro dela, embalava para um clímax que rapidamente crescia. Seus pequenos seios balançavam enquanto encontrava o ritmo, e foi difícil Kellan se conter para não gozar enquanto via seu pau grosso desaparecer em sua fenda a cada passo saltitante.

Deus, ela era sexy. A coisa mais quente que já viu. Dura, teimosa e corajosa, tenaz em tudo que decidia na vida, inclusive ele.

Nenhum macho — Raça ou humano — podia esperar mulher melhor para chamar de sua companheira. E por um momento louco, Kellan se deixou imaginar que ela era, de fato, sua. Que tudo era diferente, e não tinha que deixá-la partir.

Que não olhou em seus olhos nus há oito anos e vislumbrou um futuro que os separou. Um que o marcava como traidor para todos que já amou.

A visão voltou em detalhes implacáveis.

Kellan preso por Lucan e a Ordem, acusado de conspiração e assassinato. Alta traição. Todas as acusações indefensáveis. Todos os seus crimes castigados com pena de morte.

E Mira, em pé diante de Lucan e do Conselho Mundial das Nações numa sala de reunião cavernosa, implorando por misericórdia. Se desfazendo em tristeza um momento mais tarde, quando a sentença foi proferida.

Morte.

Kellan não sabia que estava debaixo dela ainda, até que as mãos de Mira acariciaram seu rosto.

— Está bem? Onde foi agora?

Ele balançou a cabeça, tentou limpar a visão e o pesar que se alojou na boca do estômago.

— Estou aqui. — Disse levantando a mão para acariciar a preocupada torção de sua boca. — Estou bem. Agora, tudo está bem.

Ela sorriu, dando um beijo na palma da sua mão. Começou a se mover em cima dele de novo, suspirando quando encontrou seu ritmo mais uma vez e o montou com abandono.

Quando estava gemendo e arqueando de excitação em cima dele no meio de outro orgasmo, Kellan os virou e tornou seu prazer maior. Queria lhe dar nada mais que alegria nesse momento, o suficiente para durar.

O suficiente para durar para os dois.

 

Mira acordou um pouco mais tarde naquela manhã, aninhada na curva do braço forte de Kellan. Seu calor a rodeava, um casulo de paz e contentamento que não sentia há muito tempo.

Desde a manhã de oito anos atrás, quando despertou numa pose semelhante, num estado semelhante de feliz exaustão.

Aquele dia havia terminado num pesadelo de fogo, cinzas e lágrimas. Hoje se sentia renovada. Esperançosa. Sentia-se feliz, e isso a assustava mais que qualquer coisa. Especialmente quando sua felicidade chegava nos braços de Kellan Archer. Não era o adolescente que ela adorava quando criança. Nem mesmo o jovem guerreiro Raça que treinou ao lado dela com a Ordem e se tornou seu mais querido amigo e o mais confiável confidente.

Não. Sua felicidade vinha do líder de um bando de rebeldes fora da lei, que não só sequestraram um inocente civil, mas desafiaram Lucan Thorne e toda a Ordem, interrompendo uma operação e levando um de seus membros como refém.

A refém, que de muito bom grado caiu na cama para dormir com o inimigo.

Entre outras coisas.

Perversas coisas maravilhosas.

Mira não pôde resistir a beijar os bíceps volumosos que a enjaulavam contra o grande corpo de Kellan. Lambeu as linhas arqueadas dos glifos em seu braço, deliciando-se com a inundação de cor escura que seu beijo provocava.

Ele se mexeu. Com um gemido baixo flexionou o braço e isso a colocou mais perto de seu abraço. O peito era uma parede de calor sólido contra seus mamilos e o abdomen rígido como granito aquecido contra sua barriga. E ainda mais abaixo, a excitação obviamente aparente, cutucando seu quadril, duro e quente. Muito tentador para as mãos que vagueavam.

Mira cuidadosamente traçou os dedos pela suavidade de peito e abdomen, além do umbigo até o chumaço de cabelo eriçado se projetando do perímetro de seu sexo. Ela o acariciou uma vez, maravilhada pela maciez que envolvia tanto aço rígido. E a ameixa avultada que coroava seu eixo já chorava com uma gota de umidade quando correu os dedos sobre a cabeça do seu pênis.

Ela olhou pra cima para ver se o tinha acordado.

Brilhantes olhos âmbar olhavam para ela, ardendo de desejo desperto.

— Bons sonhos? — ela perguntou a ele, aparentando inocência.

Ele não mordeu a isca. O cavanhaque escuro se esticou perversamente ao redor da boca, os lábios se afastando num sorriso puramente carnal.

— Quem precisa de sonhos, quando a realidade me acaricia tão docemente?

Ele a rolou debaixo dele, movendo-se com uma velocidade que a assustou, mesmo estando bem ciente do poder e agilidade que sempre esteve ao seu comando. Mira abriu as coxas para acomodá-lo, pronta para ele novamente. Seu coração batia como um martelo no peito.

Kellan se inclinou para tomar o lóbulo da orelha entre os lábios e os dentes, murmurando planos indecentes de todas as maneiras que pretendia desfrutar dela nesses próximos minutos.

O pulso de Mira clamava tão urgentemente, seu corpo tão pronto para ser tomado, que levou um segundo para perceber que ele, de repente, ficou imóvel e tenso acima dela. Ele levantou a cabeça, completamente parado agora.

— Que merda...

Alguém estava no corredor do lado de fora, batendo na porta. A batida veio de novo, rápida e dura. Em pânico.

— Arqueiro! Está aí? — Uma voz feminina, muito preocupada. Não Candice, mas a outra mulher da base rebelde. — Arqueiro, venha rápido!

— É Nina. — Kellan murmurou já se afastando de Mira e pegando suas calças. Ele enviou-lhe um olhar sóbrio. Mira saiu da cama e correu para sua camiseta e calças de moleton. Ele olhou para garantir que estava vestida, em seguida, destrancou com sua mente e abriu a porta para o rosto pálido de Nina.

— Oh, meu Deus. — a mulher humana engasgou. — É Vince. Ele... Oh, meu Deus!

— O que está acontecendo? — Kellan exigiu. — Onde ele está?

— Eu não sei! — Nina balançou a cabeça, o cabelo índigo balançando, enviando dezenas de laços de metal minúsculos balançando em suas orelhas furadas. Estava chorando agora. — Vince está desaparecido. Pegou a van. Levou Ackmeyer com ele.

Apesar de Mira tentar ficar no fundo, não pode conter seu suspiro de alarme. Mesmo Kellan pareceu receber a notícia com um pouco de choque. Ficou parado por um instante, em silêncio. Então, pareceu se sacudir como o líder que era agora.

— Onde? — Sua voz era um trovão sombrio e letal, plenamente Raça. Saiu para o corredor. — Onde o levou?

— Não sei. — Nina chorou. — Mas Chaz e Candice tentaram detê-lo. Oh, Deus... Ele matou Chaz. Ele está morto, Arqueiro. Vince cortou sua garganta...

— Jesus Cristo. — Kellan murmurou. Seus ombros caíram um pouco, mas quando falou, a voz estava nivelada com comando frio. — Quando isso aconteceu? Há quanto tempo o desgraçado foi embora?

Nina balançou a cabeça.

— Não sei. Há pouco tempo atrás, não muito. Matou Chaz, em seguida roubou a van e foi embora.

Mira fechou os olhos, absorvendo o peso de tudo que estava ouvindo. Jeremy Ackmeyer nas mãos de um assassino de sangue frio. Kellan traído por um dos seus. A morte entre as fileiras de seus companheiros.

— E Candice. — Nina continuou. Ela puxou arquejou, então se dissolveu em mais lágrimas. — Vince a esfaqueou também. Doc está tentando cuidar dela, mas está sangrando muito. Ele diz que a lâmina cortou uma artéria na coxa. Não pode fazê-la parar.

A resposta de Kellan foi um palavrão tranquilo, mas selvagem. Deu um olhar por cima do ombro para Mira, em algum lugar entre a miséria e um pedido de desculpas. A própria culpa de Mira a roeu com dentes afiados. Toda essa violência e traição aconteceram enquanto ela e Kellan faziam amor.

Seu corpo ainda estava cantarolando pelo prazer do toque de Kellan, mas seu peito estava pesado por saber que uma vida foi encurtada hoje, outra roubada com a fuga de Vince. Se alguma coisa acontecesse com Candice agora, Mira podia ver nos olhos atormentados de Kellan que nunca iria se perdoar.

Ela deu um aceno de cabeça fraco, entendendo que o que compartilharam na privacidade de sua cama durante as últimas horas acabava agora. Não era dela neste momento, pertencia a eles. Aos seus companheiros. Seus amigos.

— Eles precisam de você. — Mira disse baixinho, apenas para os ouvidos dele. — Vá com eles.

Kellan decolou como um tiro, arrastando Nina atrás dele, correndo.

Kellan não teve que adivinhar onde Doc estava tratando Candice. A explosão olfativa de novas células vermelhas derramadas o levou como um farol para a cela onde Ackmeyer estava preso.

Jesus Cristo.

O sangue estava por toda parte. Poças quase pretas sob o corpo caído e imóvel de Chaz dentro da cela aberta. Salpicado pelas paredes de blocos de cimento. Manchando um caminho caótico pelas botas de Vince e os pés cambaleantes de Jeremy Ackmeyer quando obviamente foi arrastado. E depois estava Candice.

Deitada de costas dentro da cela com os braços abertos, estava coberta de sangue por toda a frente da sua camiseta até embaixo, com mais quantidade ainda escoando debaixo dela. Suas pernas estavam nuas; Doc aparentemente removeu seu jeans para que pudesse trabalhar na punção desagradável em sua coxa direita. Com os olhos castanhos sérios, olhou para Kellan só um instante antes de voltar toda a sua atenção para o tratamento das feridas de Candice.

A pele de Kellan estava apertada, as presas enchendo sua boca. Sua visão ficou imediatamente vermelha — não só pela reação física à presença de muito sangue fresco fluindo, mas em fúria mortal pela traição de um dos seus. Uma traição que resultou na morte de um amigo e na lesão grave de outro.

Todo esse estrago e perdas enquanto Kellan estava distraído pelo prazer de ter Mira em sua cama.

Ele falhou com sua equipe da pior forma possível. Falhou com Jeremy Ackmeyer também, a quem Kellan deveria ter libertado imediatamente ao tomar conhecimento de sua inocência, algumas horas atrás. Nada disso aconteceria se mantivesse sua cabeça no lugar como o líder que essas pessoas esperavam que fosse. Confiaram suas vidas a ele e confiaram nele para protegê-los.

Em vez disso, permitiu-se ficar preso num emaranhado romântico com Mira que só podia acabar em desastre. Então, sim, também falhou com ela hoje, e era tarde demais para corrigir qualquer um de seus erros.

— Porra! — Rosnou, autodirigindo sua raiva e tornando o som de sua voz cru e violento, até mesmo para seus próprios ouvidos.

Mais que tudo, queria sair do bunker e caçar Vince à luz do dia ou não. Queria que o filho da puta sofresse por isso, queria fazê-lo sangrar. Mas era a equipe de Kellan quem estava sangrando e sofrendo agora — um deles no chão na frente dele, outro possivelmente se esvaindo também.

A visão de Candice ferida tão gravemente, subitamente trouxe Kellan de volta ao seu dever como comandante desta base e de seu povo. Ignorou o acobreado sangue que o espicaçava pela ferida de Candice enquanto caminhava e se ajoelhava ao lado dela.

Sua respiração passava entre os lânguidos lábios pálidos. Os olhos estavam arregalados e sem piscar, fixos no teto enquanto Doc inclinava a perna na altura do joelho, elevando a ferida, antes de firmar o cinto em torno de sua coxa como um torniquete.

Kellan pegou o jeans descartado e o enrolou num travesseiro improvisado. Quando levantou sua cabeça do chão e a descansou de volta no tecido mais macio, seu olhar vítreo deslizou para ele.

— Vince... Tentei impedi-lo, mas ele...

— Eu sei. Não se preocupe com ele. Apenas aguente, entendeu? — Suas pálpebras caíram com um aceno fraco. Kellan apertou os dentes e presas juntos enquanto passava os dedos sobre a testa úmida. — Como estamos indo, Doc?

— Será muito melhor quando eu conseguir estancar o fluxo de sangue. — Doc respondeu com as mãos vermelhas e o rosto sombrio enquanto apertava o cinto na coxa de Candice.

Kellan lançou um olhar por cima do ombro para Nina, que pairava nervosamente na porta.

— Toalhas limpas, muitas. Panos também. Traga o que puder encontrar.

— É para já. — Ela saiu rápido.

Os dentes de Candice começaram a bater. Seus olhos vidraram, alternando entre rolar para trás e deslizar em concentração sobre ele.

— Estou a-assustada, Arqueiro. Não quero morrer.

— Vai ficar bem. — assegurou. — Doc já tratou de coisas piores. Lembra-se da condição de merda em que eu estava quando me arrastou para encontrá-la da primeira vez?

— Sim. — Sua voz era fraca, baixa. — Lembro.

Kellan assentiu, tirou uma mecha de cabelo preto úmido de onde estava colado no rosto. Sua pele estava fria, de forma realmente alarmante.

— Doc não me deixou morrer naquela noite, nem você. Eu e ele também não vamos deixar você morrer agora. Então, aguente Brady, e isso é a merda de uma ordem.

— Tudo bem. — Ela disse dando um leve sorriso enquanto seus olhos se fechavam. Um tremor passou por todo seu corpo, prolongado, até os ossos. Ela tremia, os lábios azuis trêmulos, apesar da umidade de verão no bunker.

— Está congelando aqui. — ela murmurou. — Tenho tanto frio.

Antes que Kellan pudesse responder ou virar para encontrar algo para lhe proporcionar um pouco de calor, um cobertor apareceu de algum lugar atrás dele.

Mira.

Ele olhou acima para encontrá-la de pé em suas costas, segurando um cobertor que trouxe de sua cama. Ela se moveu em torno dele para cobrir o tronco de Candice, delicadamente o colocando embaixo do queixo e ombros para manter o calor o máximo possível.

Quando ficou em pé, recuou com a mão descansando carinhosamente no ombro de Kellan. Ele estendeu a mão para encontrar o toque dela, apertando os dedos num aperto de agradecimento. Sua culpa e autorrecriminação ainda eram como ácido dentro dele, mas a visão de Mira de pé perto dele, a sensação de seu toque sobre ele em apoio silencioso e compreensão era um bálsamo que não podia negar. Viu o olhar de Doc para a troca não dita, viu a pergunta nos olhos do rebelde quando a mão de Kellan permaneceu em Mira, possessiva e íntima.

— Diga-nos o que precisa que façamos doutor.

— Mantenha-a acordada. — Disse o médico, voltando a trabalhar na ferida. — O choque vai fazê-la dormir, mas não podemos deixar. Ela precisa ficar consciente agora.

Kellan assentiu.

— Abra os olhos, Candice. Preciso que me olhe. Mantenha o foco. — Solicitou, soltando a mão de Mira para dar uma sacudida no ombro de Candice. — Preciso que me diga o que aconteceu aqui com Vince. Pode fazer isso?

— Sim. — ela murmurou. Suas pálpebras levantaram, embora parecesse lutar com esforço. — Vim aqui para pegar a bandeja de Ackmeyer. Chaz veio comigo... Para levar Ackmeyer ao banheiro.

Kellan resmungou em reconhecimento, o olho deslizando até a bandeja caída e os alimentos espalhados pelo chão, nas proximidades. Quando Candice estremeceu novamente, lutando para puxar ar para os pulmões, Kellan estendeu a mão e passou a palma sobre o topo de sua cabeça.

— Está indo muito bem. Leve seu tempo, mas fique comigo. Fique acordada Brady.

— B-bem. Estou bem. — Ela olhou para ele e puxou algumas respirações profundas. — Ackmeyer perguntou se íamos deixá-lo ir... começou falando sobre como era inocente... nunca quis magoar ninguém com suas invenções.

Tudo que Kellan ouviu do próprio cientista. Coisas que o toque de Kellan atestou como verdade.

— Ele disse que alguém devia ter roubado seu trabalho. — Candice continuou. —Disse que queria nos ajudar a descobrir quem era e vê-los punidos... disse que se o que aconteceu foi verdade e seu trabalho estava sendo usado para o mal, para assassinato, ia pessoalmente se certificar que a tecnologia fosse destruída, não importa quanto valesse.

A mandíbula de Kellan se apertou pelo pensamento do quão errado estava ao ir atrás de Jeremy Ackmeyer. Ele assumiu o pior, e temia que as consequências desse mau passo estivessem longe de terminar.

Candice resistiu a outro tremor pelo corpo inteiro quando Nina entrou com um braço cheio de toalhas e as entregou para Doc. Mira abaixou sem ser perguntada, ela e Nina ajudando Doc a envolver a ferida de Candice, enquanto continuava sua história.

— Nós não percebemos que Vince estava na sala... não até que perguntou quanto Ackmeyer pensava que alguém podia pagar por sua tecnologia.

— Filho da puta. — Kellan murmurou, não necessitando de maiores explicações para entender o que Vince pretendia. — O que Ackmeyer disse a ele? Quanto disse que a tecnologia UV valia?

— Ele não o fez. — Candice respondeu. — Disse a Vince que não importava... disse que não estava à venda, e não permitiria que alguém lucrasse com isso agora.

— O que obviamente não conformou Vince. — Kellan rosnou. Cada fibra sua ainda fervendo de raiva e necessidade predatória de fazer seu camarada traidor pagar.

Mira encontrou seu olhar de onde estava agachada perto de Doc e Nina, trabalhando como um membro da equipe e não a cativa que foi na noite anterior. Ele não queria pensar nela como um de sua equipe. Não queria pensar nela de qualquer maneira agora. Desviou o olhar para longe e se voltou para sua colega ferida.

— Mantenha os olhos abertos, Candice. Diga-me o resto agora.

— Tudo aconteceu muito rápido. — Ela disse. A voz um sussurro fraco. — Vince tinha um olhar sombrio no rosto... A próxima coisa que soube foi que havia uma faca na sua mão. Lançou-se para Chaz... esfaqueou-o com força no peito. Então pegou Ackmeyer... colocou a faca embaixo do seu queixo... disse que ia começar a fazer as coisas à sua maneira.

O rosnado de Kellan ressou pela cela tranquila. Sua visão queimou numa sombra mais profunda de âmbar, a fúria se agitando através dele a cada palavra que ouvia.

— Tentei impedi-lo, Arqueiro. — Os olhos de Candice se ergueram para ele agora e ficou lá, vítreo e letárgico, mas fixos nele como se procurasse perdão. Kellan xingou baixo e grosseiro. — Mesmo depois que me esfaqueou, tentei impedi-lo de levar Ackmeyer, de partir. — Ela disse com voz fraca. — Eu tentei...

— Está tudo bem. — Kellan segurou o lado de seu crânio na palma da mão. — Fez tudo que podia, sei disso. Sou eu quem que deveria estar lá para lidar com Vince. — Seu olhar se desviou para o corpo de Chaz e os três rostos graves que olhavam para ele na cela encharcada de sangue do bunker rebelde. — O bastardo é um homem morto. Vai saber disso agora.

Kellan se levantou e saiu da sala, sem mais explicações.

Não ficou surpreso ao ouvir Mira bem atrás dele assim que deu o primeiro passo no corredor do lado de fora, mas estava longe de estar satisfeito.

— O que vai fazer? — Ela exigiu em suas costas, correndo para acompanhar seu andar furioso. — Kellan, onde está indo?

O som de seu nome em seus lábios — seu verdadeiro nome colocou um limite perigoso no grunhido de resposta quando se virou para encará-la. Agarrou seus braços e a empurrou de costas contra a parede mais próxima.

— Um dos meus homens está morto lá atrás. Outro da minha equipe pode sangrar até a morte em poucos minutos, se a magia de Doc não funcionar em sua perna. E um cativo sob minha responsabilidade foi levado por um dos meus, bem embaixo da porra do meu nariz. Provavelmente será vendido pelo maior lance ou morto antes de hoje à noite ao pôr do sol. Acha que vou sentar e deixar isso pra lá?

— É meio do dia. Não pode ir a lugar nenhum.

— Deixe-me lidar com isso. — Retrucou duramente consciente quando a soltou e girou para deixá-la atrás dele no corredor.

Mas Mira nunca foi de ceder tão facilmente. Não, não ela. Marchou logo atrás dele com os pés descalços em passos determinados às suas costas. Levou apenas um instante antes que estivesse na frente dele, bloqueando o caminho com seu corpo. Um corpo que parecia bom demais na sua camiseta e moletom longo demais, enrolado em seus tornozelos.

— Não seja idiota. — disse ela, os olhos faiscando por trás da tonalidade roxa de suas lentes de contato. — Vai morrer lá fora agora.

— Tenho uma boa meia hora antes de precisar me preocupar com a exposição. — ressaltou. — Posso estar na cidade em menos de dez minutos a pé.

— E depois? — Ela rebateu com veemência. — Vinte minutos para virar Boston de cabeça para baixo procurando Vince e Ackmeyer antes que esteja torrado? É suicídio e sabe disso.

Ele zombou, mesmo ela estando certa.

— Tem uma ideia melhor?

— Tenho. Vou atrás deles. Se não encontrar Vince sozinha, vou abrir caminho através de cada pedaço de merda rebelde na cidade até alguém falar.

Kellan soltou uma risada cáustica.

— Esqueça isso. Esta é minha bagunça para limpar, não sua. Não é parte dela, Mira. E vou a pé para o próprio sol antes de colocá-la no meio dessa merda.

Se tivesse qualquer tipo de honra faria isso há oito anos, assegurando que nunca teria a chance de machucá-la do modo que sua visão mostrou que faria. Mas não foi capaz de se afastar de Mira, não totalmente. Ficou perto, mais perto do que era sábio. Deveria ter colocado continentes entre eles, qualquer coisa para se assegurar que seus caminhos nunca se cruzassem novamente.

Mas não fez nenhuma dessas coisas.

Mesmo agora, era quase impossível se impedir de estender a mão para tocá-la. Cruzou os braços sobre o peito, quando a tentação de suavizar sua ultrajada carranca provou ser quase demais para resistir.

— Seu filho da puta. — Mira respirou, em seguida o empurrou numa exalação afiada. — Deus, ainda é o homem mais irritantemente teimoso que já conheci. Vai ficar aí e me dizer que não sou parte disto — que prefere se matar a me deixar entrar em seu mundo — quando seu pau estava dentro de mim? Você me disse um monte de coisas doces. Coisas que quase fui tola o bastante para acreditar.

Kellan amaldiçoou.

— Quis dizer tudo que disse. Cada palavra Mira. Mas isso foi antes.

Ela ficou boquiaberta, ferida e respirando com dificuldade.

— Antes do que?

— Antes de tudo que aconteceu na cela lá atrás. — Kellan respondeu. — Antes do que aconteceu com Vince, e só agora me lembrei de que isso nunca vai funcionar. Não pode funcionar.

Ele descruzou os braços e passou a mão sobre o couro cabeludo, tentando descobrir uma maneira de sair do caminho que o destino parecia determinado a colocá-lo. Mas não havia um. Vince desertando com Jeremy Ackmeyer a reboque era a certeza desse fato.

— Aconteça o que acontecer agora, o que Vince acaba de fazer com Ackmeyer, quero você fora. Para qualquer um fora deste bunker você ainda é minha cativa, uma participante relutante em qualquer coisa que fiz. Tenho a intenção de manter isso assim. Não vou comprometer seu futuro pensando que pode me ajudar. Você não pode, porque não vou permitir.

As finas sobrancelhas loiras baixaram ainda mais sobre os olhos piscando.

— Esta decisão não é sua. Não preciso de sua permissão para me preocupar com você Kellan. Não pode decidir o que é importante para mim.

Deus o ajudasse, mas não demorou muito para se lembrar da garota teimosa que disse praticamente a mesma coisa em palavras e ações em outro tempo, e novamente quando era um adolescente reticente e estúpido que não sabia como aceitar sua amizade, muito menos seu amor. Por pura força de vontade, ela participou de sua dor e raiva pela aniquilação de sua família, que o aleijou por dentro. Como menina, Mira segurou sua mão e o levou para fora de um lugar escuro. Como mulher, segurou seu coração, apesar de seus esforços para se proteger de amar alguém que nunca poderia suportar perder.

Agora, só esperava encontrar forças para empurrar Mira longe, quando tudo que queria era puxá-la para perto e nunca deixá-la ir.

Manteve a voz calma, as palavras tão gentis quanto podia.

— Desta vez eu decido. Já foi ruim o suficiente que não pudesse ficar longe de você, mesmo sabendo muito bem onde isso nos levaria no final. — Ele baixou a cabeça e sustentou seu olhar indagador, precisando que ela o ouvisse agora. Ela precisava entender. — Quando eu cair estarei condenado se a levar comigo.

Mira ficou absolutamente imóvel na frente dele. Não piscou, mal respirava.

— O que quer dizer com sabia onde isso nos levaria no final?

Kellan olhou em seus olhos, aqueles espelhos suaves que os amaldiçoaram no que foi tão brevemente uma manhã perfeita há oito anos. Agora olhavam para ele, implorando, em busca de uma verdade que esperava que ela nunca precisasse ouvir.

— Diga-me. — ela disse com leve tremor em sua voz suave. Sua raiva se foi, agora substituída por um temor que a gravidade — tangível — apertava seu coração. — O que quer dizer com isso Kellan? — Mal falou acima de um sussurro, quase sem respirar, por tudo que ele podia discernir. — Diga-me o que sabe, caramba.

Ele estendeu a mão, mas ela se encolheu para longe. Deu uma sacudida lenta de sua cabeça, os olhos nunca deixando os dele.

— Diga-me.

— Naquela manhã. — Ele disse e as palavras saíram secas e enferrujadas. — Na manhã antes da explosão do armazém...

— Nós fizemos amor. — ela murmurou.

— Sim.

— Fizemos amor durante horas naquela noite também. — Ela disse, preenchendo os espaços em branco, quando sua voz pareceu abandoná-lo. — Pela primeira vez.

Ele acenou com a cabeça.

— A primeira vez para nós dois. Foi a melhor noite da minha vida, Mira. Poucas horas atrás quando estava com você, novamente como há oito anos naquela noite e na manhã que acordei ao seu lado foram os melhores momentos que já conheci. Nunca tive a chance de dizer isso. Deveria ter dito as palavras então, mas não sabia.

Ela engoliu em seco, a garganta delicada visivelmente apertada.

— Não sabia o que?

— Que tudo ia acabar naquela noite. Não sabia que a deixaria tão cedo. Pensei que teria tempo para explicar. — Ele deu de ombros desajeitadamente, balançando a cabeça. — Pensei... rezei para ser capaz de resolver tudo, encontrar alguma forma de fazer isso direito.

— Não sei o que está dizendo, Kellan. — Ela fez outra careta agora, e apesar de sua negação, podia ver em seus olhos o duro entendimento quanto mais tempo olhava para ele. — O que aconteceu naquela manhã? Fiz algo errado? Disse alguma coisa, ou...

— Não. Deus, não. Não fez nada errado. — Ele segurou seu queixo na mão e passou a ponta do dedo sobre a boca trêmula. — Foi perfeita. Tudo que eu poderia querer. Mais do que eu merecia.

— Mas você me deixou. — Ela disse calmamente. — Por que, Kellan? A verdade desta vez. Algo aconteceu na manhã que ficamos juntos. Algo ruim o suficiente para fazer você pensar que eu seria mais feliz acreditando que estava morto naquela explosão.

— Ah, Ratinha. — ele murmurou, deixando a mão viajar acariciando de seus lábios até a marca de companheira Raça em sua têmpora. Ele acariciou a pequena marca de nascença de lágrima-e-meia-lua, então se inclinou para frente e pressionou um beijo em cada um de seus olhos. Quando se afastou dela, havia lágrimas em seus olhos. — Viu? Seria mais feliz se eu morresse naquela noite. E preferi te deixar de luto por alguém que amava do que um dia implorar por minha vida como o traidor que estava destinado a me tornar.

Suas mãos se aproximaram de seu peito, o empurrando.

— O que está dizendo?

— Eu vi, Mira. Em seus olhos, na manhã que acordamos juntos, nus em sua cama. Seus olhos estavam nus também. As lentes que silenciam suas visões...

Ela prendeu a respiração.

— Não.

— Olhei em seus olhos só por um segundo...

— Não. — A negação foi curta e afiada. Ela deu um aceno de cabeça, depois outro, mais veemente agora. — Não, não acredito nisso. Eu saberia. Sentiria minha vista enfraquecida depois. Usar minha capacidade sempre leva um pouco da minha visão junto com ela.

— Sei disso. — ele disse suavemente. — E essa foi a única razão por que fui tão rápido. Não queria que pagasse por minha falta de cuidado involuntária. Mas havia uma parte de mim que poderia se perder no seu olhar nu para sempre.

— Não! — Ela olhou boquiaberta para ele, incrédula, horrorizada. — Não faria isso. Não olharia meus olhos quando estão desprotegidos. Todo mundo sabe disso!

— Não estava pensando em suas visões ou no que poderia ver em seus olhos, Ratinha. Rolei de manhã para beijar a bela mulher que me convidou para sua cama e me deu mais prazer que eu sabia ser possível. Você me deu o beijo mais doce que já provei, então sorriu para mim e abriu os olhos.

— Oh, Deus! Não, Kellan. Por que olhou? — Ela gemeu um som miserável que o cortou até a medula. Quando ela virou a cabeça, Kellan a trouxe de volta para ele.

— Seus olhos são extraordinários, Mira. São brilhantes como diamantes. Claros e impecáveis, como piscinas de cristal. Nesse momento ligeiro que olhei em seus olhos, senti como se estivesse vendo você, você inteira, pela primeira vez. E nunca presenciei nada tão bonito. — Ele acariciou seu rosto, limpou a lágrima que rolava por ele. — Esse foi o preço. Vale qualquer preço que o destino possa me fazer pagar no futuro.

— O que viu Kellan?

Ele tinha pouca escolha a não ser contar.

— Vi a mim mesmo antes de ser levado para Lucan e o CMN. Havia acusações capitais contra mim. Conspiração, assassinato, traição. Julgaram-me culpado de todas as acusações. E assim me condenaram. — Ele queria dizer as palavras com cuidado, mas não havia nenhuma maneira fácil de dizer a ela o que precisava ser dito. — A sentença foi a morte, Mira. E vi você lá comigo, pedindo que me poupassem. Não quero pensar na dor que vi em você, a dor que tudo isso te causará quando for condenado à morte pelos meus crimes.

Ela não falou. Apenas olhou para ele em tormento silencioso, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Kellan tentou atenuar, mas não podia continuar. Xingou baixinho, odiando lhe causar essa dor agora e esperando que não trouxesse ainda mais.

— Disse a você que achava que seria mais feliz acreditando que eu estava morto há oito anos. — disse ele. — Mas tive um motivo egoísta também. Prefiro manter a memória do seu doce sorriso daquela manhã na cama depois que fizemos amor pela primeira vez, do que ver a maneira como está olhando para mim agora.

Atrás deles no corredor, um movimento sutil soou. Nina desajeitadamente limpou a garganta.

— Arqueiro? Doc precisa mover Candice para que possa cauterizar a ferida e costurá-la. Pediu-me para encontrá-lo.

— Vamos lá. — Kellan respondeu com os olhos fixos em Mira, mesmo enquanto se afastava dela.

Quando finalmente girou para voltar para seus companheiros rebeldes, esperava que Mira aproveitasse esta oportunidade para partir e nunca olhar para trás.

Não a culparia se o fizesse.

 

Reclinado sobre os cotovelos em cima das grandes pranchas de uma mesa de piquenique em um dos parques na área de conservação do subúrbio de Boston, Vince inclinou a cabeça para trás sobre os ombros, e deixou o sol de verão do meio dia, banhar seu rosto com calor. Lá em cima, um corvo navegou contra o azul ofuscante do céu.

Aquele sou eu, Vince pensou, sorrindo presunçosamente para as nuvens. Um pássaro livre.

Logo seria um pássaro livre podre de rico.

Não sabia exatamente com quem estava se reunindo neste encontro que Galo tinha arranjado para ele. E não se importava muito, também. Tudo o que sabia era que fez uma chamada para o informante ruivo depois que fugiu da base com Ackmeyer e que estava a ponto de render um sério pagamento sujo.

Galo estendeu imediatamente seus tentáculos para algumas pessoas que conhecia, e que por sua vez colocaram os tentáculos nas pessoas que conheciam, e então bam! Menos de uma hora depois, eles tinham uma briga ao vivo enganchada, pronta para encher seu bolso de só Deus sabia quanto, em troca do cientista e de acesso a sua incineração da Raça de tecnologia UV.

Se o Arqueiro fosse esperto — assim como Vince era — teria pensado em lucrar com Ackmeyer ele mesmo. Mas não. Esteve muito preocupado em farejar a vagabunda da Ordem, para reconhecer a verdadeira oportunidade que tinha com Ackmeyer. Mas, Arqueiro e Vince nunca tiveram o mesmo ponto de vista sobre como as coisas deveriam ser feitas.

As missões do Arqueiro sempre foram baseadas em altos princípios de besteiras, com noites iguais de acertos e erros. Não havia um monte de dinheiro para fazer vazar informações sobre os políticos sujos ou expor corporações imorais, mas isso nunca pareceu parar o Arqueiro. E ele não teve escrúpulos de inviabilizar as operações de outros grupos rebeldes, se considerasse seus objetivos ou métodos muito extremos.

No que interessava a Vince, Arqueiro e sua moral elevada, ambos podiam se foder. Ele preferia a operação com base no lucro e na tomada de negócio.

Especialmente quando estes dois objetivos traziam todos os benefícios diretamente em suas mãos, como estava prestes a acontecer a qualquer momento.

Era difícil não fantasiar sobre o que iria fazer e comprar com a grana que estava preste a recolher. Um par de milhões, fácil. Inferno, talvez ele devesse definir o seu preço a partir da casa dos cinco e ver onde isso levava.

Iria se meter em uma doce viagem, afinal. Um lugar elegante somente dele também. Talvez montasse sua própria base de operações, recrutasse uma nova equipe para ele, e realmente agitasse a merda. Infelizmente, teria que abrir um negócio em algum lugar longe de Boston, porque sem dúvida alguma, depois do movimento que Vince fez hoje, o Arqueiro viria atrás dele com tudo.

Vince não podia mentir pra si mesmo, o pensamento de estar no fim da recepção da fúria de um vampiro emputecido era mais do que perturbador. Não ajudava que tivesse visto o Arqueiro em ação o suficiente para entender que haveria um grande inferno em retribuição. O macho da Raça tinha habilidades que iam além da genética sobrenatural. Ele era letal, mesmo sem a vantagem de seu DNA de outro mundo, facilmente um fodão mortal como qualquer guerreiro da Ordem. E pela primeira vez desde que conheceu o comandante vampiro na base rebelde em New Bedford, essa percepção deu a Vince uma pausa grave.

Vince sempre assumiu que a identidade do Arqueiro como um membro da Raça fosse seu maior segredo, mas agora se perguntou se não havia algo mais que o vampiro tinha escondido...

Não que isso importasse.

Se Vince ficasse em seu caminho, seria importante o suficiente para que ele e sua equipe pudessem ir atrás do Arqueiro. Inferno, talvez usasse a sorte inesperada de hoje para acertar as contas com a Raça filho da puta. Quão poético seria ver o Arqueiro incinerado com algumas rajadas da UV de Ackmeyer?

 Sim, isso estaria definitivamente na agenda do dia. Primeiro ato de Vince, e uma maneira excelente para anunciar que era o novo homem no comando.

Quando fechou os olhos e ruminou sobre o nascimento de seu pendente império rebelde, o ronco baixo da aproximação de um veículo, inequivocamente caro, fez seu queixo cair no peito. Vince levantou o braço como uma viseira sobre seus olhos, apertando-os enquanto um sedan preto lustroso diminuía, parando, e um homem de terno e óculos escuros saiu da porta do lado do passageiro. Com uma minúscula unidade de comunicação agarrada ao seu ouvido e um corte de cabelo a maquina zero, o cara tinha uma vibração distinta do governo sobre ele, mas as rodas caras gritavam iniciativa privada. A extremamente lucrativa iniciativa privada.

Imaginando o que ele poderia parecer rondando em torno da cidade em um carro como esse, Vince mentalmente elevou seu preço por Ackmeyer.

O cara de terno impecável saiu do estacionamento vazio através da grama em direção à mesa de piquenique.

— Sr. Sunshine?

Vince sorriu, divertindo-se com o apelido apropriado que escolheu para esta transação.

— Sim, sou eu. E você é?

— Por que não vem e senta no carro? Podemos falar mais confortavelmente lá dentro.

Não era uma pergunta. Inferno, não era nem mesmo amigável. Soou mais como um comando, do tipo de respeito que Vince sentiu que era devido. Ele não gostou da atitude de superioridade, e não era nem um pouco estúpido para entrar em um veículo com alguém que não conhecia. Não importando quanto dinheiro estivesse em jogo.

— Estou aproveitando o clima agradável. — Disse, puxando o braço para o lado e desejando que tivesse pensado em trazer óculos de sol com ele para esta reunião também. Em vez disso, foi forçado a olhar de soslaio através da rigorosa luz do dia. Ele tentou trabalhar a seu favor, zombando na esperança de parecer mais fodão.

— Olha, sou um homem muito ocupado. Tenho várias partes interessadas no que estou oferecendo aqui hoje, então vamos começar a trabalhar.

— É claro. — respondeu o cara de terno. — Onde está a mercadoria?

Vince riu.

— Em algum lugar seguro.

Ele também não era estúpido o suficiente para trazer Ackmeyer ao local até que um acordo firmado estivesse em suas mãos. Vince tinha seu refém guardado e amarrado na van, que estava estacionada a cerca de um quilômetro e meio abaixo na estrada, em outra parte da área de conservação. Uma vez que tivesse o dinheiro na mão, Vince traria sua mercadoria, mas nenhum segundo antes.

O cara de terno parecia não entender o conceito.

— Até que possa garantir ao meu chefe que vai entregar o que prometeu, não temos nada a negociar.

— O seu chefe? — Vince ecoou, nem um pouco disposto a ouvir isto. — Pensei que estaria falando com o homem responsável, não um lacaio.

— Você pretende apresentar a mercadoria ou não? — O engomadinho perguntou imperturbável, mas inflexível.

— O diabo que não. Não! — Vince saltou para fora da mesa de piquenique, a agitação vibrando através dele. — Você está desperdiçando meu tempo, cara. Tenho quatro... não. Cinco outras possibilidades com quem eu poderia estar falando agora, cada um deles prontos, dispostos e capazes de desembolsar dinheiro sério. — Um blefe, mas a raiva o estava deixando arrogante. Começou uma tensa retirada na frente do esperto lacaio engomadinho. — Estou em uma situação onde quero isto resolvido de imediato, por assim dizer. Estou disposto a fazer um acordo rápido com você — ou melhor, com seu chefe. Dez milhões em dinheiro. Aqui e agora, sem jogos, ou vou sair cagando daqui.

O cara não disse uma palavra. Vince não tinha certeza de que ele estava ouvindo. Viu quando o cara levantou a mão para o dispositivo de comunicação em seu ouvido.

— Posição. — ele murmurou, mais uma ordem do que uma averiguação. Um segundo depois, ele grunhiu, dizendo. — Excelente. — Então abaixou a mão e continuou a olhar através de Vince, como se ele fosse invisível.

— Bem? — Vince perguntou impaciente pra caramba, e rapidamente ficando muito além de chateado com a falta de respeito. — Como é que vai ser? Faça-me esperar mais um segundo pela sua resposta, e dobro meu preço...

O rugido de um súbito motor e o guinchar de pneus no estacionamento cortou as ameaças de Vince. Não o ronronar gutural de outro sedan, mas o ronco enferrujado e a batida de um veículo que ele conhecia bem. O mesmo veículo que escondera no que assumiu ser um lugar seguro, em outra parte do parque.

A van que continha Jeremy Ackmeyer, a futura fortuna de Vince.

Outro capanga de terno escuro estava sentado atrás do volante. O cara em pé na grama em frente a Vince deu ao motorista um breve aceno.

— Que porra! — Vince gritou. — Mas que porra é essa?

Como diabos isso tinha dado tão errado, tão rápido?

Ele não teve tempo para adivinhar. Quando virou a cabeça para trás, para olhar o engomadinho ao lado dele, o canhão de uma pistola negra 9 mm estava nivelado mortalmente no meio do seu rosto.

Agora o engomadinho finalmente conseguiu mostrar algum interesse. Ele esboçou um sorriso.

— Entre no carro, cuzão.

Vince foi empurrado em movimento, a arma assegurando que ele continuasse se movendo.

Enquanto cambaleava para o sedan à espera, teve uma sensação de naufrágio, isso foi o mais perto que chegou de sentir algumas centenas do grandioso valor do metal e couro e o desempenho da máquina envolto diretamente em seu estúpido rabo.

 

Mira despejou uma braçada de toalhas encharcadas de sangue em uma pia com água fria e sabão no banheiro do bunker e viu quando a espuma ficou escarlate.

Ela deveria ter saído quando teve chance.

Deveria ter apenas fugido depois de ouvir o que Kellan disse a ela. De volta para a Ordem. Voltar para seus companheiros de equipe em Montreal. De volta para casa, para Niko e Renata.

Para qualquer lugar, menos aqui.

Se o que Kellan disse era verdade, que o destino o tomaria dela novamente, para sempre desta vez, então faria bem em tomar medidas que pudessem poupar a si mesma deste tipo de dor. Quase não sobreviveu ao perdê-lo na primeira vez. Como seria capaz de suportar esse tipo de dor de novo?

Mas ela não foi capaz de fazer seus pés tomarem o caminho que a teria levado para fora da porta da base rebelde de Kellan.

Ela não poderia se afastar dele, não quando podia ver que ainda significava algo para ele. Ele ainda se importava. Alguma parte esperançosa dela queria acreditar que ainda a amava, mesmo que se recusasse a admitir aquilo para si mesmo ou para ela.

Então Mira não fugiu.

Ela ficou, tomando para si enxugar o sangue do ataque de Vince, enquanto Kellan, Doc e Nina estavam em outro lugar no bunker, aparentemente vendo os negócios rebeldes e cuidando do corpo de Chaz, já que Candice estava estabilizada.

Mira mergulhou as mãos na água cheia de sangue e começou a lavar as toalhas e enxaguá-las. Ela tentou se separar da realidade que a tarefa — que o conhecimento do sangue manchando suas mãos e roupas, correndo em um rio escarlate pelo ralo aberto da pia, representava uma vida tomada hoje, e outra por pouco poupada. Tentou dizer a si mesma que este lugar, essas pessoas que viviam e tinham morrido aqui, não eram da conta dela.

Mas estava preocupada.

Preocupada com Candice, preocupada com Doc e Nina, todos que perderam um velho amigo e fizeram um novo inimigo hoje. Estava preocupada com Jeremy Ackmeyer também, porque tão assustada quanto ficou com ele, por Kellan tê-lo mantido, não era nada comparado com o pavor que sentia sabendo que Vince estava com ele agora e estava, obviamente, disposto a matar todos que estivessem em seu caminho.

E ela estava preocupada com Kellan, é claro.

Atingida na medula com o medo sobre a visão que ele viu em seus olhos, na manhã terrível que acreditou equivocadamente que fora tão perfeita.

Mira abaixou a cabeça, correndo outra bacia de água fria para a próxima rodada de lavar.

Não era a primeira vez que desejou ter nascido sem o seu dom. Sua capacidade amaldiçoada, que trouxe angústia para quase todo mundo que teve a infelicidade de vislumbrar seu olhar desprotegido. Ela nunca soube o que seus olhos lhe diriam de seu próprio futuro também. Nunca teve a coragem de testar isto.

Agora ela se perguntava se deveria tentar.

Será que veria a mesma coisa que Kellan viu?

Mira submergiu mais um par de toalhas ensanguentadas na água, e viu quando o líquido cristalino ficou vermelho profundo, escuro.

Se olhasse tempo suficiente para seu próprio reflexo a olho nu poderia esgotar seu dom para sempre? Ficou tentada a descobrir, sem importar que sua visão morresse um pouco cada vez que exercesse sua vidência. Ela não se importava com isso. Melhor que ficasse cega do que o risco de entregar mais dor para alguém com sua habilidade terrível.

Encontrou seu rosto na água escura que enchia a pia. Pálida. Os olhos ​​de lavanda cansados, olhando de volta para ela. A dor que sentiu estava carimbada nela toda, a preocupação se agrupando em sua boca e olheiras escuras na pele delicada embaixo dos seus olhos.

Ouviu um estrangulado gemido e não percebeu que vinha de sua própria garganta, até que a jovem abatida no reflexo vermelho sangue abriu a boca em um soluço.

A água manchada ondulou com sua exalação irregular, quebrando a imagem dela em uma centena de pedaços vacilantes.

Levou alguns minutos para se recompor, tempo que Mira usou para terminar a lavagem. Pendurou as toalhas molhadas em prateleiras que continham outros artigos de vestuário lavado. Outra esfoliação em suas mãos ainda não removeu as manchas, que percorriam sob as unhas e se aprofundavam em suas cutículas. Para isso ela precisava de um bom banho e sabão em abundância.

Mais tarde, prometeu a si mesma, secando as mãos e depois pisando no corredor principal do bunker. Uma vez estando lá, percebeu que realmente não sabia para onde ir.

Não tinha coragem de ir aos aposentos de Kellan para sentar e esperar por ele. E sabia que não era sua função se intrometer em discussões ou atividades que aconteciam entre ele e sua reduzida equipe. Mira começou a andar e logo se viu passando pelo quarto de Candice.

Olhou apenas brevemente, mas foi o suficiente para perceber que a jovem estava acordada, deitada de costas em sua cama. Sua perna ferida estava flexionada no joelho e elevada com um monte de travesseiros e cobertores dobrados, a maioria dos quais tinham em algum momento caído para o lado. Ela estava tentando alcançá-los, lutando impotente.

Mira soltou um suspiro e deu um passo relutante para dentro.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com isso.

— Obrigada. — Candice se acomodou afundando, observando enquanto Mira ajeitava a bagunça, e cuidadosamente colocava o monte recuperado sob a perna de Candice.

Mira olhou para cima.

— Assim está bom?

— Melhor. — Ela ainda estava pálida como os lençóis que a cobriam, um pouco de cor nos lábios, que se curvavam em um pequeno sorriso. — Você pode me trazer um pouco de água, por favor?

— Claro. — Mira pegou o copo e o canudo da mesa de cabeceira ao lado da cama frágil e segurou a bebida enquanto Candice sugava fracamente.

— Como está se sentindo?

— Bem. — Ela acenou com a cabeça para Mira abaixar o copo. — Doc disse que vou conseguir. Sem andar por uma semana ou mais, e vou ter que pegar leve por um tempo.

— Mas você está viva. — Mira apontou, e se sentia realmente feliz sobre isso.

— É. Doc é o melhor. Ele é um bom homem. — Candice estava olhando através de Mira agora, sua sobrancelha do mais profundo negro, unindo-se em um pequeno franzir. — Onde está todo mundo?

— Eles estão por aí. — disse Mira. — Havia coisas que precisavam ser feitas. Coisas para Chaz...

Ela disse suavemente, não querendo perturbar Candice. Mas os olhos castanhos da mulher ficaram um tom mais escuro de verde, com as lágrimas brotando dos mesmos.

— Será que já o enterraram?

— Ainda não. Eu os ouvi falando de cuidar disto mais tarde esta noite... Querem fazer o certo por ele. Ouvi dizer que sua vida merece um reconhecimento digno.

— Arqueiro. — Candice disse, sorrindo de novo, um sorriso maior do que o de antes. — Isso soa como algo que ele diria.

Mira olhou, nem reconhecendo nem negando. Mas foi ele quem disse as palavras. Foi ele quem levou o corpo sem vida de Chaz para fora da cela, para um aposento particular em algum lugar no fundo do bunker. Foi ele quem informou os outros que queria realizar um enterro digno de um guerreiro que serviu com honra e tinha caído muito cedo.

Os olhos de Candice estavam focados em Mira, em uma suave compreensão.

— O Arqueiro é um homem muito bom. Tenho a sensação de que você sabe disso melhor do que qualquer um de nós.

Mira começou a sacudir a cabeça, mas a negação não veio. Em vez disso, ela murmurou.

— Foi há muito tempo atrás.

A expressão de Candice suavizou-se ainda mais.

— Não preciso saber como era chamado antes, mas sei que não era Arqueiro. Sei disso desde o momento em que mentiu, quando finalmente acordou depois de dois meses de observação sobre ele, sem saber se já tinha aberto os olhos, muito menos falado. Não preciso saber o seu verdadeiro nome também, ou o que fez que o colocou no meio de uma zona de guerra.

Mira não conseguiu falar. Só podia olhar e ouvir Candice, revivendo o inferno particular da noite em que perdeu Kellan e sua nova vida começou.

— Achei que ele me diria seu nome um dia, mas nunca o fez. Por fim, parei de procurar por respostas. — Candice tirou a mão de baixo do cobertor e colocou-a sobre a de Mira. — Não demorou muito para que entendesse tudo o que precisava saber sobre o macho da Raça chamado Arqueiro, que escolheu viver entre os humanos, em vez de sua própria espécie. Eu vi por mim mesma que ele era honrado. Não muito tempo depois de ter sido recuperado, ele soube que havia uma facção rebelde, procurando vender um grupo de jovens mulheres para a prostituição. O acordo já estava combinado com alguns sujeitos ruins do exterior, mas na noite em que os rebeldes estavam para fazer a troca, Arqueiro entrou em cena atrapalhando e libertando aquelas meninas sozinho.

Mira não ficou muito surpresa ao ouvir isso, tendo visto Kellan em ação quando faziam parte de uma mesma unidade da Ordem. Ele era um guerreiro feroz, sem medo de nada quando se tratava de combater e proteger aqueles que não podiam fazer isto por si mesmo. Aparentemente essas qualidades o seguiram até esta outra parte de sua vida também, apesar do fato de que ele agora estava sob uma linha moral tênue.

Candice continuou.

— Vi desde o início que ele era corajoso e justo. Mas também estava marcado em algum lugar profundo. Estava sozinho e se manteve isolado por opção. Sabia que pertencia a outra pessoa. Apenas não sabia a quem, até que vi o jeito que olhou para você quando a trouxe de volta com a gente para a base naquele dia.

— Você salvou sua vida. — Mira finalmente conseguiu resmungar de sua garganta seca, inundada com gratidão por esta mulher que mal conhecia. — Pensei que ele estivesse morto, mas você o encontrou. Cuidou dele. Você e Doc não o conheciam, mas não o deixaram morrer...

Candice franziu ligeiramente a testa, deu de ombros levemente.

— Ele precisava de ajuda. Nós lhe demos. Isso é tudo.

— Você fez tudo isso, mesmo ele sendo da Raça.

— Se você visse alguém sangrando e machucado na rua, pararia para ver se ele era diferente de você antes que o levantasse?

Mira ficou em silêncio enquanto as palavras de Candice afundavam. E então conheceu uma vergonha profunda, porque percebeu que não muito tempo atrás, ela poderia ter sido aquela a virar as costas. Seu ódio e desconfiança pelos humanos, os rebeldes em particular era tão cego e profundo, que provavelmente não teria ainda interrompido seu caminho se um deles estivesse precisando de sua ajuda.

Era feio o que ela se permitiu se tornar.

Por muito tempo manteve as pessoas como Candice, Doc e Nina com desprezo, agrupando-os com os delinquentes como Vince e Galo — todos eles como vilões, para serem esmagados sob sua bota ou espetados por suas lâminas.

E agora?

Ela retirou a mão debaixo do alcance de Candice, sentindo-se indigna da bondade que estava sendo demonstrada por ela. Sentiu pesar pela perda que essas pessoas sofreram hoje. E sentia medo do que o futuro deles poderia trazer, se o que Kellan viu em seus olhos, eventualmente viesse a acontecer.

A frieza que esse pensamento trouxe com ele, se estabeleceu no peito de Mira como gelo. Ela precisava encontrar alguma distância do pavor que estava pressionando para baixo, quando considerou o preço que todos eles poderiam pagar se sua visão se provasse verdadeira.

Mira convocou o que esperava ser um sorriso tranquilizador.

— Você deve descansar agora. Vou dizer a Doc como está indo.

Ao aceno de Candice, Mira se afastou de seu lado e girou para a porta. Ela ficou parada lá, a gratidão crescendo dentro dela, inundando-a até a maré mais escura da emoção, que estava fazendo seu melhor para puxá-la para baixo.

Olhou para a fêmea humana que fizera o impossível há oito anos, trazendo de volta Kellan dos mortos e entregando o milagre que Mira esperou desesperadamente.

— Obrigado por salvá-lo.

Candice sorriu.

— Minha parte foi fácil. Agora é a sua vez.

 

As roupas estavam aderindo nele com a umidade do bunker. As mãos e os antebraços salpicados de sangue endurecido seco. Até mesmo enfraquecido, o cheiro penetrante de cobre rançoso de células vermelhas mortas, fez a cabeça de Kellan martelar e seus músculos se contraírem com a agressão, enquanto andava pelo corredor principal da fortaleza.

Ele queria matar, não só porque o predador nele foi provocado pelo cheiro de todo o sangue derramado hoje, mas porque as pessoas com que se preocupava — pessoas boas — haviam se encontrado com um dano imerecido.

Por causa dele.

Porque confiaram nele como seu líder, e ele os decepcionou.

Não foi atrás de Vince esta manhã como pretendia. Ainda fervilhava com a vontade de derrubar toda Boston para encontrar o filho da puta, mas sua equipe precisava mais dele aqui. E a parte racional de seu cérebro lembrou-lhe que Mira estava certa: uma perseguição em larga escala em plena luz do dia seria suicídio. Estaria morto rapidamente, de acordo com a visão dela. E não podia deixar de pensar que o fato de não correr para o sol hoje, apenas fortificava que ainda estava em rota de colisão direta com o destino que tinha vislumbrado nos olhos de Mira.

As botas de Kellan batiam surdamente no corredor, enquanto caminhava em direção a seus aposentos para mudar de roupa e se limpar. O silêncio marcado do bunker em torno dele era impressionante. Não gostava disso. Não gostava de saber que trouxera este problema para a base.

Apesar de viver à margem da lei, Kellan e seu pequeno grupo de rebeldes nunca atravessaram o limiar da violência para atacar de dentro. Eles nunca perderam um dos seus antes, nem mesmo no campo. Tiveram sorte, mantiveram um perfil baixo executando operações apertadas e viviam fora da rede. Evitando o tipo de atenção e notoriedade indesejada em que outras facções rebeldes pareciam prosperar. Agora que sofreram este golpe, o choque e a tristeza estavam correndo profundamente.

Este sentimento não era estranho para Kellan.

Todo este derramamento de sangue trouxe de volta seu passado, quando era um jovem protegido de um Darkhaven e o mal tomou sua família. Em apenas uma noite, a violência de um louco destruíra a propriedade primária dos Archers em Boston, tirando de Kellan todos que amava, menos seu avô Lazaro. Felizmente para os dois, a Ordem entrou em cena para oferecer seu abrigo e proteção. Eles trouxeram Kellan e Lazaro para seu abraço, como era próprio da Ordem, uma bondade que Kellan nunca poderia esperar pagar.

Especialmente agora.

E Mira...

Ela esteve lá para ele desde o momento em que chegou na porta da Ordem. Uma dorzinha em sua bunda que não deixou qualquer uma de suas besteiras escorregarem, nenhuma sequer. Ele esteve tão aterrorizado para se importar com alguém, depois de perder tantas pessoas que amava, que havia se recusado a deixar qualquer um entrar.

E, embora tivesse sido um menino idiota mal capaz de reconhecer o medo profundamente enraizado em seu mau humor e dor, Mira foi muito mais sensata, até mesmo para uma criança. Ela viu através dele. Obstinadamente o levou sob sua pequena asa como amiga e se recusou a deixá-lo ir, nem mesmo quando ele a empurrava.

Não. Sempre que a empurrava ela se fincava em seus saltos e se mantinha firme por ele — assim como fez hoje, tomando sobre si mesma e arremessando-se como uma de sua equipe, mostrando-lhes verdadeira preocupação e apoio, apesar de como deixou as coisas com ela.

Queria estar furioso com ela por isso, da forma como o cáustico, indiferente adolescente que a conhecera tão bem responderia a tal ato de desafiador espírito generoso. Mas o homem que era desde então não conseguiu reunir toda a raiva. O que sentiu uma vez estava apertando seu peito, uma sensação extremamente agradável, de gratidão e orgulho por ela ser sua.

Teria sido dele, se corrigiu severamente.

E, como sua maldita visão assegurou, ela não poderia ser dele por muito tempo.

Sua resposta praguejada foi áspera e autodirigida, quando virou no corredor e passou pela porta fechada do banheiro do bunker.

A água estava correndo do outro lado.

Não era Doc ou Nina, vendo como apenas alguns minutos atrás, Kellan deixou os dois com o corpo de Chaz na extremidade oposta da fortaleza. E Candice não iria a lugar nenhum por dias. Ela estava descansando tranquilamente na cama quando a verificou em seu caminho para cá.

Continue caminhando.

Isso era o que devia fazer. E, no entanto, parou na porta e virou o trinco.

Mira estava nua sob o jato do chuveiro com a cabeça inclinada para trás, a água escorrendo sobre seus cabelos loiro-claros e para baixo em sua pele cremosa.

A respiração de Kellan o deixou em uma corrida. Em vez de fechar a porta silenciosamente e seguir em frente, abriu-a mais ainda e entrou no banheiro cheio de vapor. Fechando a porta atrás de si.

No suave resultante clic, Mira se cobriu com as mãos e os braços e olhou para ele. Havia incerteza em seus olhos lavanda. Lábios entreabertos, mas sem falar.

Kellan ficou lá, apreciando a visão dela.

— Você ficou. — ele murmurou.

Ela engoliu em seco, a água pingando de seu queixo, cravando em seus longos cílios.

— Fiquei.

Ele acenou com a cabeça, mas podia sentir um franzir de cenho profundo em sua testa.

— Fui dar uma olhada em Candice. Ela me disse que foi vê-la. Disse que as duas conversaram... sobre mim?

— Sim. — Mira disse suavemente, ainda se escondendo dele. Não estava pronta para baixar a guarda. Não que pudesse culpá-la.

— Você não lhe disse meu nome. — comentou. — Não contou sobre meu passado com a Ordem. — De cabeça baixa, olhos enraizados nela, ele deu um passo a frente. Em seguida, outro.

— Você manteve os meus segredos. Todos eles.

— É claro. — ela respondeu.

— Você me protegeu. — reconheceu. Agora estava parado bem em frente a ela, no limite do chuveiro aberto. — Você fez isso por mim, mesmo que não tenha te dado nenhuma razão para isso.

Ela deu um aceno de cabeça fraco, com os braços ainda cruzados sobre si mesma, como um escudo.

— Sim.

Sua respiração inalada se transformou em um pequeno guincho quando ele entrou na água com ela, de roupas, botas e tudo. Parou diante dela, ficando encharcado da cabeça aos pés e não dando a mínima para isso.

— Você poderia ter feito uma ruptura hoje. Porra, gostaria que tivesse.

— Eu... — ela começou, mas ele a cortou com uma maldição chiada.

— Você poderia ter fugido disto tudo. Em vez disso você ajudou a consertar a bagunça que era minha e teve a grandeza de olhar por um ferido da minha equipe. — Ele balançou a cabeça e delicadamente pegou suas mãos nas dele, puxou-as para longe de seu corpo nu. Ele deixou cair um beijo em cada um de seus punhos cerrados. — Depois de tudo o que te disse lá fora hoje, você ficou.

Ela olhou para ele, os lábios entreabertos ligeiramente, os seios subindo e descendo a cada respiração rápida que puxava em seus pulmões. Kellan ainda estava segurando suas mãos. Lentamente, ele as abaixou para os lados, longe da beleza de seu corpo nu.

— Depois de tudo que fiz — ele sussurrou asperamente —, não apenas hoje ou oito anos atrás quando fui embora, deixando você acreditar que estava morto, mas desde o primeiro dia que nos conhecemos, Ratinha. Desde então, desde o início, você ficou comigo. Você sempre esteve a minha volta.

— Sempre estarei. — ela respondeu. Sua voz era calma, mas seus olhos estavam resolutos. — Quando você ama alguém, é o que faz.

Kellan ficou imóvel. Ele mal podia se mover, não podia ordenar a seus pulmões para puxar o fôlego.

— Não diga isso, Mira. Essa é a pior coisa que pode dizer para mim agora.

— Por quê? — Ela olhou para ele sob o jato do chuveiro, sua pele banhada com a morna luz do calor de seus olhos, como sua cor de avelã brilhando com faíscas de âmbar. — Por que eu não deveria dizer como me sinto sobre você?

Ele procurou por sua voz, mas encontrou apenas um rosnado do outro mundo.

— Porque quando diz isso, você me faz querer segurá-la mais apertado, quando eu deveria estar te deixando ir. E preciso deixá-la ir... antes que as coisas piorem.

— Então me deixe ir Kellan.

Suas palavras o pegaram de surpresa. Era um comando, falado sem limites, sem o menor vacilo. Ele olhou para seu rosto bonito, nos corajosos olhos inabaláveis, o nariz travesso, com seu punhado de luminosas sardas. Na boca teimosa que nunca deu a ele um pingo de piedade, nem mesmo quando se tratava de prazer. Uma boca que estava pressionada em uma linha reta agora, à espera de sua resposta.

— Se você não me ama — ela disse —, se realmente quer que eu vá embora... então deixe-me ir.

Ele não o fez. Seus dedos ficaram presos em torno de suas mãos, ficando mais apertados, apesar de todas as sãs e lógicas células em seu corpo dizerem — Não. Exigirem. — Para libertá-la agora e ir embora.

— Inferno do caralho Ratinha. — Ele sussurrou baixo e letal. Então, sem um segundo aviso, trouxe a cabeça para baixo em direção a ela e tomou sua boca.

O beijo foi duro, profundo e possessivo. Ele não podia dar isto para ela de outra forma, não naquele momento.

E ela o pegou por tudo o que era válido. Ele enfiou a língua pelos seus lábios, gemendo com necessidade animal quando ela chupou sua boca abrindo em um suspiro entrecortado.

Suas veias estavam em chamas, atirando lava pelos seus membros, em sua cabeça e coração, e em sua virilha. Entrelaçou os dedos com os dela e a guiou ao redor com seu corpo, até que estava imprensando-a na parede molhada do chuveiro. Seus mamilos eram pérolas que podia sentir através do tecido encharcado de sua camisa. Suas curvas suaves e exuberantes se derretendo perfeitamente contra seus planos rígidos e cume.

Kellan ergueu os braços, levando os dela com ele em um deslocamento suave para cima ao longo da parede, até que levantou as mãos acima da cabeça dela. Ele a prendeu lá, capturando-a em seu aperto e vinculando-a ao peso de seu corpo, inclinando-se para ela. Ainda beijando, devorando sua boca, enterrou a ereção rígida em seu abdômen. Ela era tão gostosa. A pélvis empurrou por conta própria, seu pau dando um salto duro atrás do confinamento apertado de sua calça jeans.

Ele abaixou a cabeça para seu pescoço e a beijou lá, fazendo-a gemer e tremer sob seus lábios.

— Porra, Mira. — ele rosnou contra sua delicada garganta jorrando água. —Porra.

Balançou para dentro dela, a roupa encharcada, a cabeça delirando com o aroma quente e úmido de sua pele nua, e a suave fragrância adocicada de sua excitação. Suas presas latejavam, enchendo a boca.

Um gosto de sua doçura.

Ele precisava dela agora.

O sangue dela chamado por ele. Mas foi outro néctar que o desviou de seu pescoço com um rosnado irregular. Só então ele soltou suas mãos, afundando na frente dela, beijando o caminho passando pelos seios e costelas, então mais abaixo, junto à suavidade de sua barriga bem definida.

Ela fez um barulho impaciente no fundo da garganta quando tomou seu tempo para chegar até onde estava indo. A boca, a língua e os lábios experimentando cada centímetro de pele macia que percorria. Com uma das mãos em seu seio, alisou a outra ao longo do lado dela, levantando arrepios em seu rastro e fazendo-a tremer com minúsculos suspiros e espasmos entrelaçados.

Enquanto beijava seu corpo, a mão escorregou percorrendo o comprimento de sua coxa, em seguida chegou ao interior e começou um caminho preguiçoso para cima ao longo da carne tenra. Um empurrão de seus dedos e abriu as coxas para ele. Sorriu contra o estômago à sua resposta ansiosa, então mergulhou a ponta da língua no umbigo, enquanto arrastava os dedos sobre as pétalas sedosas em seu núcleo.

Ele a abriu com a ponta dos dedos e os deslizou em sua fenda quente. Ela tremeu em sua mão, a respiração presa e instável enquanto ele acariciava com o polegar a pequena pérola inchada situada na parte superior da fenda. As presas de Kellan surgiram ainda mais em sua boca e o desejo esfaqueando através dele.

Caiu de joelhos diante dela agora, abaixando a cabeça entre suas pernas, enquanto o jato quente do chuveiro bombardeava-o de cima. Com um rugido profundo virou o rosto para o interior de sua coxa e sugou a pele macia lá. Ela gemeu e ofegou, seu clímax já se elevando e ele ainda nem tinha colocado a boca onde queria estar.

Kellan ergueu a perna dela por cima do seu ombro, beijando um pouco mais. Tendo um perverso prazer no fato de que ela estava tão pronta para ele, tão ansiosa e receptiva. Por ele, pensou avidamente. Ela disse isto esta manhã em sua cama. Não houve ninguém além dele. Ninguém em todo esse tempo. Nem nunca.

Uma maré de possessividade o inundou. Espontaneamente. Imerecido.

No entanto inegável, especialmente quando Mira estava derretendo por ele tão docemente.

Virou a cabeça para trás para admirar a corada tentação rosada de seu sexo. Um beijo breve a fez tremer. Seus lábios e dentes provocando as pétalas suculentas, a fez sugar uma respiração afiada, enviando suas mãos para os cabelos dele, segurando-o firme enquanto ele chupava sua carne com a língua e trazia o gosto inebriante dela na boca.

— Oh, meu Deus. — Falou com voz entrecortada. — Estou começando a gozar.

— Ainda não. — Ele murmurou. Em seguida, agarrou sua bunda dura com as duas mãos e puxou-a para sua boca faminta.

Ele enterrou seu rosto nela, bebendo-a, afogando-se nela. No instante seguinte, ela gozou contra sua boca. Os quadris bombando, os espasmos ondulando por ela em grandes ondas. Ele a rodou, sedento por mais.

Quando seu clímax começou a diminuir, ela abaixou a perna do ombro dele e agarrou-se a ele. Seus dedos estavam exigentes, torcendo em sua encharcada camiseta, tentando arrancá-la dele.

— Dentro de mim. — ela ofegou. — Agora Kellan.

Ele se levantou sem argumentar. Tirou a camisa e a jogou no chão do chuveiro em uma pilha molhada, em seguida tirou as botas enquanto Mira trabalhava nos botões da calça jeans encharcada. Ela se atrapalhou mais de uma vez e ele assumiu. Assim que abriu o último botão, Mira empurrou suas calças pra baixo pelos seus quadris, liberando o pênis inchado em suas ansiosas mãos molhadas.

Ela o acariciou algumas vezes, e que Deus o ajudasse, isto era tudo o que podia suportar.

Reunindo-a em seus braços, levantou as coxas ao redor de sua cintura e foi para casa em um impulso profundo. Ambos resmungaram com a força de sua união, ambos estremecendo quando ele se instalou até a raiz, enchendo-a, estirando-a como uma luva de seda em torno de sua circunferência. Ele bombeou sua pélvis algumas vezes, mas estava muito longe para ter calma.

Ele caiu em um ritmo urgente, enterrando-se rápido em Mira, olhando seu rosto quando a crista de outro clímax subiu nela. Ela se agarrou a ele, os calcanhares cavando sua bunda, as unhas marcando seus ombros. Seu próprio orgasmo foi se enrolando na base de sua espinha, disparando calor através de suas veias.

Mira agarrou-se mais ferozmente, seus suspiros de prazer transformando-se em arquejos rápidos, quando os primeiros tremores de sua liberação correram ao longo do comprimento do eixo de Kellan. Ele mergulhou mais fundo, mais forte, empurrando-se em direção a ela. Segurando sua própria necessidade, até que a sentiu começar a se dividir em torno dele. Ela soltou um grito gutural quando gozou, sua respiração soprando como um forno contra seu ouvido.

Kellan manteve os olhos febris sobre ela, bebendo-a em todas as nuances de sua liberação. Ela era tão linda. Tão sexy. Tão quente, úmida e ávida. Seus minúsculos músculos ordenhando-o, quando empurrou em um ritmo frenético com seu pau empurrando para dentro e para fora de sua fenda escorregadia.

Seu orgasmo rolou em cima dele como um trem de carga, feroz e incontrolável.

Gozou com um rugido. Os quadris bombando descontroladamente, sem conseguir parar, mesmo depois que sua última semente tinha se derramado dele. Exausto, mas longe de estar saciado, abaixou a cabeça para a curva de seu ombro e simplesmente balançou-se dentro dela, saboreando a sensação do corpo dela pressionado ao seu. O refúgio quente e úmido de seu sexo segurando-o por dentro.

— Você ficou. — Murmurou. A boca se movendo na lateral de seu pescoço, onde o pulso pulsava no tempo com o dele.

Suavemente ela sussurrou uma resposta por entre cabelos, onde os lábios descansavam contra o topo de sua cabeça.

— Você não me deixou ir.

 

Eles fizeram amor de novo lentamente, então se revezaram lavando um ao outro sob o jato quente do chuveiro.

Poucos minutos depois, Mira foi para os aposentos de Kellan se vestir com ele em um silêncio confortável. Ela quase podia imaginar que eram um casal de verdade, compartilhando este espaço como companheiros vinculados. Partilhando a cama como amantes. Isso não deveria ser tão tentador para ela, considerando o número de vezes que ele tinha acabado de fazê-la gozar.

Mira observou Kellan se mover para colocar roupas limpas. Uma camisa preta que se agarrava ao peito musculoso e os ombros com mangas curtas apertadas em torno de seus bíceps revestidos com glifos. As longas coxas firmes, desaparecendo em um jeans escuro que abraçava sua bela bunda e rodeando da maneira certa seus acentuados quadris talhados.

Ele era lindo, e alguns minutos atrás provou cada divino centímetro dele. Ela se permitiu saborear essa memória por um momento, parada perto do pé da cama apenas de sutiã e calcinha.

Era tão fácil se sentir normal perto dele. Sentir-se inteira. Ela não estava pronta para desistir disso. Nunca estaria pronta, não importa o que sua maldita visão houvesse mostrado a ele.

Kellan deu a ela um olhar de apreciação por cima do ombro enquanto fechava o zíper da calça jeans.

— Gostosa como está parecendo assim, é melhor colocar algo antes que eu salte sobre você de novo. — Ele ergueu o queixo, indicando o baú de roupas aos seus pés. — Você vai encontrar mais camisas lá. Escolha uma.

O jeans preto que usava no dia em que ela e Jeremy Ackmeyer foram levados para a base rebelde, ainda estava em boa estado. Um pouco pior pelo desgaste, mas viável. Sua camisa foi detonada. Rasgou-se na briga e ficou arruinada com sangue e sujeira. Mira agachou sobre as pernas dobradas em frente ao baú de roupas de Kellan, e vasculhou as dúzias de camisetas e malhas empilhadas ordenadamente dentro.

Sua mão bateu contra algo frio e metálico, situado entre alguns dos artigos. Ela puxou para fora para ver o que era. Um espelho de mão, elegante e feminino, a parte de trás dele moldado de prata polida, incrustado com delicados ônix preto, cortados em forma de um arqueado gracioso, com um arco tendo uma seta atravessada — o emblema da família Archer.

— Ele pertencia a minha avó. — Kellan disse quando Mira o olhou questionando.

— É impressionante. — Ela passou a ponta do dedo sobre o cuidadoso artesanato feito à mão, admirando cada linha impecável. — Como é que conseguiu isso?

Quando ele desapareceu anos antes não tinha levado nada, apenas as roupas do corpo na noite da patrulha que acabou tão mal.

Kellan caminhou e tomou delicadamente o espelho de sua mão. Virou-o em suas mãos com a boca curvando em um sorriso distante.

— Alguns anos atrás, eu fugi do reconhecimento de um grupo de milícia que planejei apagar. Eles estavam traficando drogas e pequenas armas no Maine, ao norte de Augusta. Percebi quando o encontro com meu informante acabou, que estava apenas a poucos quilômetros de meu avô, o antigo lugar de Lazaro lá em cima.

— O complexo temporário para onde a Ordem se mudou depois que nossa sede em Boston foi comprometida. — Mira lembrava-se bem disso. Mesmo que fosse apenas uma menina no momento em que ela e Kellan, e o resto dos guerreiros e suas companheiras viveram lá.

Após o Primeiro Amanhecer, foi decidido por Lucan e os outros anciões que a Ordem necessitava espalhar seus recursos em torno dos Estados Unidos e da Europa, para melhor combater as rebeliões e a violência que ocorreram com o despertar da Raça para a humanidade. Lazaro Archer, avô de Kellan, era agora o líder do centro de comando da Ordem na Itália.

Mira pensou sobre os bons — e um punhado de tempos ruins — que ocorreram naquele complexo Darkhaven, escondido em meio aos profundos bosques no norte do Maine. Sua primeira luta de bolas de neve confrontada contra Kellan e Nathan. Sua primeira árvore de Natal compartilhada com Renata, Nikolai e o resto de sua nova família, todos os guerreiros e suas companheiras. A cerimônia de apresentação de Xander Rafael, filho de Dante e Tess, que nasceu poucos dias antes da relocação emergencial da Ordem de Boston.

Tantas lembranças que podia ver que Kellan as estava revivendo também.

— O lugar estava vago ou eu nunca teria arriscado chegar perto. — ele disse. — Mas havia algumas coisas deixadas para trás. Móveis, algumas roupas... e isso. — Ele tocou o emblema do arco e flecha com dedos reverentes. — Estava nos aposentos de meu avô, em cima de uma penteadeira que ele fez para minha avó com os pinheiros que circundavam o lado de fora. O espelho estava carbonizado e enegrecido com fuligem e cinzas. Percebi então que ele deve ter voltado ao nosso Darkhaven de Boston, depois de ter sido destruído. Deve ter se arrastado pelos escombros para recuperar isso, mesmo que tenha jurado nunca voltar para a cena da morte dela. Voltar para a casa que levou ela e meus pais — e toda minha família. Sua família — pelas chamas.

— Kellan. — Mira sussurrou. Seu coração apertando no peito.

— Eu não tinha o direito de pegar isto, mas quando estava em minha mão, não pude deixá-lo para trás. — Ele cuidadosamente devolveu o espelho para o baú, colocando-o cuidadosamente em cima do macio conteúdo. — Tenho outra coisa que não tenho direito de manter também.

Caminhou até sua cômoda e abriu a gaveta de cima. Tirou sua estimada adaga e caminhou de volta para ela. Ela a pegou da mão estendida dele com um pequeno sorriso agradecido.

Ela leu a palavra que estava esculpida em cada lado da lâmina preciosa. —Honra. Sacrifício — A outra, a outra metade do par, a que ela perdeu no dia em que foi trazida de volta à vida de Kellan, trazia outra série de princípios que se esforçava para viver: Fé. Coragem.

— É uma sensação estranha ter apenas uma. — Ela murmurou. —Desequilibrada. Não é tão forte sem sua companheira. Nunca pensei que seriam separadas.

Os olhos de Kellan estavam ternos sobre ela, sua expressão séria, arrependida. Ele entendia claramente que ela podia estar facilmente falando sobre os dois.

— Nunca quis tirar nada de você, Ratinha. Muito menos sua felicidade. Não queria que isto te custasse qualquer coisa, inclusive a lâmina que prometi que teria novamente, antes de tudo dar tão errado. Apenas outra maneira de deixá-la pra baixo.

Ele estendeu a mão e gentilmente a levantou. Acariciou seu rosto. O toque tão cuidadoso e gentil que ela quase engasgou com o soluço subindo pra sua garganta.

— Se pudesse voltar no tempo mudaria tanta coisa. — ele disse. — Eu faria o que fosse preciso para ter certeza de que nunca fosse apanhada nisto comigo em primeiro lugar.

— Não. — ela respondeu, aconchegando-se e dando uma sacudida firme de sua cabeça. — Não. Eu não trocaria um minuto do que acabamos de compartilhar. Você faria?

Ele não falou por um longo momento, apenas acariciou seu rosto e roçou o polegar sobre seus lábios, antes de colocar a mão quente ao longo da nuca dela.

— Será que você realmente quer tudo isto de volta? — Perguntou a ela, com medo de sua resposta.

O sorriso foi lento quando seus olhos explodiram com ainda mais calor ardentes acumulado.

— Eu ainda estou segurando em você, não é?

Ele a beijou, e Mira não pode conter o temor que subiu, quando pensou em perdê-lo novamente. Não queria deixar o horror de sua visão estragar esse momento, mas estava lá da mesma forma, recusando-se a dar alguma paz. Ela recuou do doce beijo de Kellan e inclinou a cabeça para baixo, fechando os olhos, enquanto ele descansava sua testa contra a dela, ainda segurando-a perto.

— Kellan. — ela disse. Em seguida, afastou-se olhando em seus olhos castanhos salpicados de âmbar. — Conte-me novamente sobre a visão que teve. Sobre as acusações feitas contra você.

Seu belo rosto ficou sério. A mandíbula ficando um pouco mais apertada quando apertou os molares.

— Eles fizeram uma acusação formal, Ratinha. Exatamente como te contei.

— Sim, mas quais eram elas, especificamente?

— Conspiração. — ele disse calmamente. — Traição. Sequestro e assassinato.

Seu pulso derrapou sobre este último.

— Assassinato. Quantas pessoas você matou Kellan?

— Muitos para recordar. — ele respondeu sem desculpas em sua voz. —Você sabe sobre todas elas. Você estava lá comigo até demais, quando as ruas ficaram vermelhas de vidas derramadas.

— Não. — ela disse. — Isto foi em tempos de guerras, e não assassinato. Quantas mortes não sancionadas Kellan? Quantas vezes desde que se tornou Arqueiro, você tirou a vida de alguém?

Ele a encarou, considerando. Olhou por um tempo muito longo, então deu uma sacudida firme de sua cabeça.

— Não há nenhuma maneira de dizer o quão longe no futuro à visão está destinada a acontecer. Sabemos apenas que isto irá ocorrer porque suas visões nunca falharam, Mira. Não aconteceu, em todo esse tempo. — Ele andou para longe dela, passando a mão pelos cabelos cor de cobre escuro. — Além disso, isso não nega nenhuma das outras acusações do qual sou culpado: o sequestro de Ackmeyer, parente de um diplomata governamental do alto escalão do CMN, e ao fazê-lo, conspirando para atrapalhar a cúpula de paz. Ao fazer as duas coisas, conscientemente eu trouxe minha equipe para um ato de traição.

— Mas não de assassinato. — Mira sublinhou. Agora que tinha um pingo de esperança em sua mão, ela não estava a ponto de deixar isto escapar por entre os dedos. — Você não é culpado da última acusação. Isso é algo que está em seu controle agora, a partir deste momento. E, se a visão está errada sobre uma das acusações, pode estar errada sobre qualquer uma delas. Talvez possamos mudar o curso disto, Kellan. Juntos.

Ele se voltou para ela bem na sua frente, mas sem dizer nada. Seus olhos prenderam os dela, seu rosto estava completamente imóvel, exceto o súbito pulsar de um tendão em sua mandíbula. Ela podia sentir as rodas girando em sua mente. Podia sentir seu pulso pulsando quente, vibrando o ar nos escassos centímetros que separava seus corpos.

Ele praguejou cruel e primitivo, sob sua respiração. Não um som de raiva, mas de alívio.

De esperança.

Suas mãos dispararam e ele puxou-a para si beijando com força na boca. Em seguida, soltou-a e afastou-se para pegar sua unidade de comunicação sobre a mesa, ao lado da cama. Verificou o tempo, virou um olhar feroz sobre ela.

— Vai estar sem sol em trinta minutos. — Ele pegou um par de botas de perto e calçou-as. — Estou indo para Boston. Preciso encontrar Vince e trazer Ackmeyer pra fora disso vivo.

— Vou com você. — Mira anunciou, já vestindo uma de suas camisetas e entrando em seu jeans preto. Pegou suas botas de combate, mas Kellan a deteve com a mão descendo firmemente em seu pulso.

— Você fica aqui. — ele disse. — Não vou te colocar em perigo. Além disso, posso cobrir mais terreno mais rápido a pé.

Ela encarou seu rosto, exatamente como quando eram crianças.

— Ou vou com você ou irei sozinha, Archer.

Esse tendão que assinalava em sua mandíbula antes, agora começou a bater. Seus olhos estavam em chamas, queimando-a com flashes afiados de âmbar. Ela não se acovardou. Olhou dentro daqueles olhos perigosos e os segurou firme. Era um olhar que ele reconheceu, tinha que entender, significava que ela não estava prestes a desistir.

— Foda-se. — ele rosnou. — Saímos em cinco.

Ele saiu do quarto à sua frente. Mira colocou o punhal na bainha em seu cinto e foi atrás dele.

 

A batida na porta do apartamento ao nível do solo, de três andares no bairro de Boston, Charlestown, infestado de ratos, chegou cerca de sete minutos após o pôr do sol. Sem demora, considerando que Galo foi convocado há apenas cinco minutos atrás, pelo inexplicável telefonema urgente de seu amigo.

  Nathan olhou casualmente para o cafetão morto de overdose de heroína que jazia estatelado onde tinha caído com a traqueia esmagada cinco minutos e meio atrás, depois que o humano teve a péssima ideia de achar que poderia se livrar do vampiro em sua sala com a ajuda do revólver guardado sob uma almofada do sofá. A coronha da não utilizada Smith & Wesson ainda estava presa entre o esfarrapado revestimento de espuma xadrez e uma manta de lã, que não chegava a mascarar as manchas e queimaduras de cigarro crivando os estofados imundos.

Nathan presumiu que a arma estava carregada. Não que se importasse com isto. Ele foi treinado quando menino, para matar de cem maneiras diferentes com as próprias mãos. E nunca tinha levado um golpe em todo esse tempo. Seu recorde era perfeito. Sua misericórdia inexistente.

O praguejar de Galo na porta veio novamente após duas batidas interruptas.

— Ei, Billy! Você vai abrir a porra dessa porta ou...

Suas palavras secaram na garganta no instante seguinte. Quando Nathan abriu a porta Galo voou para dentro, e os ferrolhos foram arrancados do lugar no tempo que o humano levou para proferir outra sílaba.

— Que merda! — Gritou, caindo de volta no sofá onde Nathan o largou. Seus olhos estavam arregalados, injetados sob a plumagem ridícula de seu moicano escarlate quando ele se endireitou, tentando se orientar dentro do apartamento escuro. Seu olhar confuso e indagador finalmente brilharam sobre Nathan, de pé nas sombras em frente a ele. — Oh, merda... De jeito nenhum! Billy, que diabos está fazendo com a Ordem, cara?

Nathan olhou para ele.

— Preciso falar com você, Galo. Tentei sua área primeiro, mas você não estava em casa.

— Falar comigo? Não tenho negócios com você, cara. Não tenho nada com a porra da Ordem! — Os olhos de Galo ficaram um pouco maiores. Os brancos rolando em seu crânio quando olhou ao redor, sem dúvida procurando algum apoio de seu amigo. Apoio que não conseguiria. Ele percebeu isso um momento depois, quando seu olhar pousou em pânico nos membros imóveis e o olhar cego do cadáver a poucos metros de distância. — Puta merda! Aquele ali é o Billy? Não. Caralho, não acredito nesta merda! Acabei de falar com ele há apenas cinco minutos.

Nathan deu de ombros.

— Billy fez a chamada para você porque eu pedi. Então Billy bancou o estúpido e agora está morto.

— Oh, Deus!— Galo uivou, enterrando a cabeça em suas mãos. — Porra, cara... isto é uma confusão! O que diabos quer de mim?

— Informações, para começar. — disse Nathan.

Ele fizera algumas investigações discretas durante a luz do dia, no intervalo em que Lucan lhe entregou esta tarefa individual e a espera até anoitecer, quando pode finalmente chegar às ruas e começar a cuidar dos negócios. A palavra que chegou foi que a maioria dos delinquentes locais não sabia nada sobre o rapto de uma civil, portanto, quem quer que fosse o responsável, estava mantendo a informação trancada a sete chaves. Mas o denominador comum quando se tratava das facções rebeldes e das atividades relacionadas por Boston, era o perdedor de crista vermelha balbuciando e se contorcendo no sofá na frente de Nathan.

— Não tenho nenhuma informação. — lamentou-se Galo. — Você pegou o sujeito errado, cara.

Nathan estreitou seu olhar sobre o informante humano.

— Sei que você não vai sentar aí e negar que tem relações de negócios, de potencial interesse para mim. Não estou falando de traficantes de drogas, assim como o idiota do Billy aqui, mas outros associados seus. Os que poderiam saber algo sobre uma situação que aconteceu há alguns dias atrás em Berkshires.

O lábio superior de Galo se contraiu.

— Que tipo de situação?

— Sequestro. — respondeu Nathan. — Alguém muito importante. De perfil potencialmente muito alto.

Sua inalação acentuou quando o informante se mexeu, cruzando e descruzando os braços. Ele estava dando dicas agora. Ele tinha informações. Ele falaria. Era só questão de tempo, mas infelizmente para Galo a missão de Nathan significava que estava limitado nessa conveniência.

— Este sequestro também rendeu outro refém. — disse ao homem. — Um de especial interesse para a Ordem e para mim pessoalmente, também.

Galo soltou a respiração em uma rajada de ar azedo.

— Não sei nada sobre ela, eu juro.

— Você acabou de me dizer. — Os instintos letais de Nathan arrepiaram com total atenção, mas ele manteve-se com seu exterior calmo, como seus anos de treinamento, como um nascido e criado assassino implacável o tinha feito.

Pegou os bíceps de Galo, certo de que as lesões que Mira infligiu com suas lâminas no La Notte algumas noites atrás ainda doíam no humano. Ele apertou, ignorando o grito agudo de angústia de Galo.

— Dê uma olhada em seu amigo. Você lembra como disse que Billy foi estúpido antes que acabasse morto? — Aquele moicano vermelho vacilou com um aceno espasmódico de seu dono. — Não seja estúpido, Galo. Diga-me para onde levaram Mira e Jeremy Ackmeyer.

Quando ele não ouviu uma resposta através do gemido de agonia que saiu da boca de Galo, Nathan aumentou a pressão.

— Eu não sei. — o humano uivou. — Não sei, porra! A última coisa que soube era que Ackmeyer estava com Vince, cara. Você deve procurar por ele, não por mim!

— Que Vince? — Nathan exigiu.

— Eu não sei o sobrenome do cara, apenas sei que ele trabalha com o Arqueiro e sua equipe. Ou trabalhava, até hoje.

— Arqueiro. — Nathan repetiu, era a primeira vez que tinha ouvido falar desse nome entre os círculos rebeldes. — Onde posso encontrar o Arqueiro?

 — Não sei. Nunca o conheci. — O rosto de Galo estava esticado em uma careta quando Nathan não aliviou nem um instante sobre seus braços feridos. — Tudo o que sei é que é ele quem lidera uma pequena operação em algum lugar fora de Boston.

Nathan observou a nova informação, mas voltou seu foco para o resto da declaração de Galo.

— E este outro indivíduo... Vince. Ele tem Ackmeyer agora? Vince decidiu seguir sozinho ou algo assim?

Galo assentiu.

— Ele estava esperando pedir um resgate quando me contatou esta manhã. Nunca ouvi falar de um cara tão empolgado e arrogante. Disse que Ackmeyer era uma espécie de gênio. Disse que ele inventou uma espécie de merda tecnológica UV que valia uma fortuna para o comprador certo.

Embora Nathan tivesse um conhecimento superficial do currículo público de Jeremy Ackmeyer e suas contribuições nas áreas de ciência e tecnologia, a palavra de uma invenção do tipo que Galo mencionou, veio como uma surpresa. Uma muito perturbadora.

Ele não disse nada em reação a esta notícia, sua mente jogando fora uma série de possibilidades que poderiam vir de um grande avanço científico envolvendo a luz ultravioleta. Nenhuma delas boa, no que se referisse a Raça. E podia apenas imaginar o tipo de interesse e disponibilidade que tal tecnologia poderia atrair.

— O que mais você sabe sobre os planos de Vince para o resgate de Ackmeyer? Ele mencionou quem estava procurando como potenciais compradores? — Nathan examinou o informante inquieto com um olhar avaliador. — Deixe-me adivinhar. É por isso que Vince entrou em contato com você, para colocá-lo diante de alguém que deseja esse tipo de acordo que ele tem para oferecer.

Galo engoliu em seco, ainda estremecendo com a dor que Nathan estava infligindo.

— Ele me prometeu uma parte do que conseguir, por isso fiz algumas chamadas. Não sei quem mordeu a isca. Tudo que fiz foi dar umas palavrinhas.

Nathan achou justo matar Galo apenas por este crime, mas ainda tinha que pensar em Mira.

— E a mulher? Vince estava procurando ter algum tipo de lucro com sua cabeça também?

— Como eu disse, cara, não sei nada sobre ela. Só o que Vince disse quando o vi hoje.

— E o que foi isso? — Nathan praticamente rosnou.

— Ele disse que o Arqueiro parecia estar se divertindo com ela. — Galo anunciou isto com uma diversão notavelmente imprudente. Ele riu, mesmo através da dor que estava suportando. — Não me peça para sentir pena da vadia. Depois do que ela fez para mim na outra noite, nem de longe estou preocupado. Ela pode chupar meu pau também.

A fúria de Nathan o atordoou e rugiu violentamente dentro dele. Fervia em suas veias, embora estivesse claro pelo contínuo tagarelar de Galo que o humano não sentiu a mudança repentina no ar, de perigosamente tenso para silenciosamente letal.

Ele continuou com sua estupidez muito maior do que o movimento mal intencionado de Billy para se defender contra a morte certa.

— Espero que ela esteja recebendo uma realmente boa. Espero que tenha levado de Vince e todo o resto da equipe do Arqueiro também. Ensinando àquela puta arrogante uma lição para colocá-la em seu fodido lugar.

O controle de Nathan explodiu, exatamente assim, mas por fora não fez nada além de piscar.

Ele largou os braços Galo e agarrou sua cabeça entre as palmas das mãos. Em seguida deu um toque, cortando a coluna vertebral do humano em uma contração rápida de suas mãos.

Deixou cair o corpo, e a cabeça de Galo com sua brilhante crista de cabelos vermelhos, caiu em um ângulo grotesco no colo do homem morto.

Então Nathan virou-se e saiu calmamente desta lixeira para dentro da noite, para continuar sua missão.

 

Eles estiveram na cidade por mais de uma hora, mas até agora Galo parecia mais um fantasma. Não estava em seu apartamento. Não foi visto o dia todo, de acordo com os delinquentes com quem ele costumava ficar, vendendo drogas ou negociando eletrônicos no oeste de Roxbury. Ninguém tinha visto ou ouvido falar sobre ele desde que esteve com eles na noite anterior.

Quanto a Kellan, embora soubesse que o penteado de Galo era sua assinatura pessoal naquele lugar, nunca teve contato direto com ele, sempre filtrando mensagens e informações por meio de Vince. Agora se arrependia daquela falta de conexão. Encontrar o bastardo teria sido muito mais fácil se pudesse chamar Galo, e pessoalmente ameaçar sua vida lamentável se ele não cooperasse em localizar Vince. Não era um bom modo de evitar a acusação de assassinato que não tinha nenhuma intenção de acolher.

Mas enquanto o nível de frustração de Kellan estava progressivamente se elevando em direção à fúria letal, Mira não se intimidou com a falta de sucesso até agora. Ela se encarregou de seguir adiante com sua obstinada determinação, como de costume, arrastando-o pelo North End da velha Boston até o clube de luta onde avistou Galo pela última vez algumas noites atrás.

— Já estamos aqui de qualquer maneira — ela disse enquanto a silhueta da antiga igreja em estilo gótico se levantava no céu da noite diante deles —, e está cedo, então se ele não estiver em algum lugar dentro do clube, nossa próxima melhor aposta é um viciado de crack que se chama Billy the Kid. Ele e Galo ficaram juntos em Bridgewater por posse um tempo atrás. Pelo que ouvi, eles ainda estão firmes.

Kellan grunhiu, impressionado com ela como sempre, e achando extremamente fácil voltarem ao ritmo de experientes parceiros de patrulha. Ele tinha que lembrar a si mesmo que esta não era uma operação compartilhada por companheiros guerreiros. Ele não era um membro da Ordem, e Mira estava arriscando sua vida só para estar com ele — não por causa do perigo que eles estavam passando aqui, mas por causa de quem ele era e de quem se tornou nestes últimos oito anos.

Felizmente ele teve o cuidado de manter um perfil muito baixo. Seu nome, Arqueiro, podia ser pronunciado em quartos e becos escuros de vez em quando, mas podia contar nos dedos da mão quantas pessoas já viram seu rosto. A maior parte dessas pessoas estava de volta à base em New Bedford. E agora um deles estava morto.

Um baixo pesado martelava repetidamente e desafinados acordes de guitarra gritavam, enquanto Mira andava a passos largos para a porta do vestíbulo da entrada principal do La Notte e a abria. Kellan entrou ao lado dela, inspecionando o lugar com um olhar criterioso. Embora o clube estivesse lotado àquela hora no início da noite, a maior parte da clientela se reunia na frente daqueles que estavam dançando sacudindo violentamente a cabeça, um grupo de cinco homens que pareciam garotos de subúrbios e alguns turistas variados. Principalmente humanos, embora Kellan notasse um trio de jovens Darkhaven rondando no canto mais distante, os olhos treinados em um punhado de cabeludos, jovens mulheres seminuas que tinham a mesa cheia de copos vazios e pareciam mais do que dispostas a fazer com que a festa continuasse.

— Os jogos na gaiola não começam até perto da meia-noite. — Mira disse a ele, inclinando-se bem perto para evitar ter que gritar acima do barulho da música e o falatório no local. — Isto é apenas o aquecimento.

A respiração dela ao lado da sua orelha o atravessou como uma labareda, sem ser solicitada, mas difícil pra caramba de ignorar. Ele quase não resistiu colocando suas mãos nela, sua cabeça de repente cheia de imagens dela nua na sua cama e no chuveiro. Mas então Mira pôs a mão em seu antebraço, e seus dedos o beliscaram enquanto ela o arrastava pela multidão.

— Vamos. Galo não está aqui. Vamos nos mover.

— O que está errado? — Ele perguntou, girando sua cabeça com um cenho franzido para esquadrinhar a área atrás do bar, onde ela esteve olhando logo antes de agarrá-lo para tirá-lo dali. Seu olhar reluziu em dois machos — um deles inequivocamente Raça, com longos cabelos loiros puxados para trás por uma tira de couro amarrada, acentuando as maçãs do rosto que o teriam feito se parecer mais com uma fêmea, se não fosse pela frieza assassina de seus pálidos olhos azuis. Ele estava de pé com seus volumosos braços cruzado no peito, escutando o que outro macho de frente para ele de costas para Mira e Kellan.

— Aquele é Syn. — ela disse apontando com a cabeça em direção ao gigante da Raça. — Ele é um dos lutadores mais novos. Aquele humano com quem ele está falando? — Seu queixo ergueu, acenando para o homem igualmente alto, mas menos corpulento que o homem que estava vestido da cabeça aos pés de couro preto que ostentava fivelas reluzentes e pontas espigadas. Seu cabelo branco prateado era raspado em uma cunha lisa que rodeava seu crânio como um halo. Não que houvesse qualquer coisa remotamente angelical nele. — Aquele é Cassian, o dono deste lugar. Não devemos deixar nenhum deles nos ver aqui.

Nenhum dos homens parecia feliz. Também não interromperam o foco de sua intensa conversa enquanto Mira liderava Kellan para uma escadaria nos fundos coberta pelas sombras. Desceram voando as escadas no que parecia ser o interior da antiga igreja. No fundo, eles emergiram em um corredor parecido com um porão, iluminado com lâmpadas fracas espaçadas, velhas paredes de tijolos formando túneis diante deles e pedras desgastadas em seus pés.

— Isto uma vez foi usado como cripta. — Mira o informou. — Agora os vestiários privados dos lutadores são aqui embaixo, junto da arena.

Kellan nunca esteve perto das gaiolas ilegais dos clubes de luta, e não estava entusiasmado ao perceber o quanto Mira se familiarizou com eles. Uma onda de protecionismo cresceu dentro dele enquanto observava seus quadris balançando a cada passo tranquilo de suas botas de combate no chão de pedra. Ele não a queria perto de machos perigosos, deixada sozinha com machos da Raça perigosos que fizeram seus nomes e fortunas rasgando em pedaços um ao outro para divertimento de humanos sedentos de violência dispostos a pagar para assistir o espetáculo.

— Ei. — Ele agarrou a mão de Mira e a fez parar. Puxou-a mais perto dele do que era necessário, apenas para sentir seu calor irradiando em direção a ele no frescor úmido do corredor. — Onde diabos estamos indo?

— Ver Rune.

Agora Kellan se eriçou. Ele conhecia aquele nome, sabia que pertencia a um morador do subterrâneo de Boston. Alguém temido, inclusive, pelos criminosos mais temidos da cidade. Mais especificamente, Rune era um brutal lutador da Raça com a reputação de nunca ter perdido uma luta. Era um fato bem conhecido que alguns dos seus oponentes perderam suas vidas para ele na gaiola.

— Porra, não. Você não vai chegar perto desse cara. — Era uma ordem, estimulada por pura possessividade masculina, e Kellan não podia engolir de volta. Não mais do que podia impedir suas mãos de apertar mais onde agora segurava Mira.

Os lábios dela se curvando como resposta pareciam tanto satisfeitos quanto aborrecidos, em partes iguais.

— Já sou grandinha Kellan. Posso cuidar de mim mesma. Precisamos de informação, e Rune pode ter alguma. — Ela ficou na ponta dos pés e plantou um beijo rápido em seus lábios. — Mas meio que gosto de ver você todo resmungão e protetor.

Ela não deu a ele chance de discutir. O que ele poderia muito bem ter feito. Girando para longe, ela retomou sua caminhada corredor abaixo e parou na frente de uma porta sem marca e bateu. Deixou seu punho cair nela algumas vezes, as batidas duras ecoando como tiro no corredor estreito.

— Foda-se. — Uma resposta concisa e rosnada.

Mira bateu novamente, olhando de relance para Kellan enquanto ele se posicionava ao lado dela, os instintos de batalha de prontidão.

— Puta que o pariu! — A voz era profunda como cascalho. Um rosnado mais ameaçador do outro lado da porta, antes de passos pesados se aproximarem com um andar impaciente. A velha porta rangeu nas suas dobradiças quando foi vigorosamente aberta num puxão. Então um vampiro nu muito puto de aproximadamente 1,85m e 130 quilos ficou de pé diante deles.

— Que parte do “foda-se” você não compreendeu, porra?

— Preciso de informações, Rune. É importante. — Mira respondeu, falando acima do grunhido baixo que surgiu da garganta do Kellan. Sua resposta foi automática, uma reação de alfa para a ameaça em potencial que este outro macho mortal apresentava para a companheira de Raça estando de pé na frente deles.

Minha companheira de Raça, cada instinto de Kellan declarava.

Ele enfrentou o lutador de cabelos escuros com o queixo abaixado, os olhos fixos nele em silenciosa advertência.

Mas Rune não parecia estar pensando em testá-lo. Seus olhos azuis da cor da meia-noite deslizaram brevemente de Mira até Kellan, e quando falou seu tom foi brusco, desinteressado.

— Não estou no negócio de fornecer informações ou qualquer outra coisa para ninguém. Muito menos para a Ordem. — Ele abrandou, começando a fechar a porta.

A palma da mão de Mira se encostou ao painel de madeira coberta de marcas antes que Kellan pudesse puxá-la para trás.

— Se você puder me ajudar — ela se aventurou, sem se abalar pela despedida curta do lutador —, prometo que verei para que você seja compensado.

Faíscas saltaram dentro da escuridão de olhar estreitado, e a rouquidão na voz do lutador tomou bordas afiadas. O emaranhado de dermaglifos em seu tórax, que antes estava infundido com cor escura quando apareceu na porta, agora agitava com ameaça.

— Pareço o tipo de homem que pode ser comprado... por qualquer preço?

— A senhora está pedindo sua ajuda. — Kellan interveio, entrando sutilmente e se colocando entre a porta parcialmente aberta e Mira, agora de pé atrás de seu ombro. — Você vai ajudá-la ou não?

— Senhora. — Rune meditou, proferindo a palavra como se quisesse rir. — Eu vi o modo que ela esgrime aqueles seus punhais. Ela pode ser mulher, mas não é nenhuma senhora. Quem é você, porra?

Kellan sentiu seus próprios olhos acenderem com manchas crescentes de âmbar, suas pupilas afinando para fendas como de um gato enquanto seu temperamento subia vertiginosamente.

— Alguém preparado para esculpir sua laringe fora da sua garganta se erguer um dedo contra ela.

Rune o olhou fixamente.

— Creio que sim. Ou tentar, pelo menos. — As palavras eram um desafio lançado, entretanto a expressão feroz do enorme vampiro relaxou um pouco. — Não machuco fêmeas. Nem mesmo aquelas armadas com lâminas e atitude demais para seu próprio bem. Nem mesmo pessoas que vem até a minha toca, interrompem meu tempo livre antes de ter que socar algum idiota até ficar uma polpa ensanguentada no ringue, então ficar na minha cara e insultar minha integridade, querendo dizer que minha ajuda pode vir com uma etiqueta de preço.

— Peço desculpas por isto, Rune. — disse Mira disse atrás da proteção do corpo do Kellan. — Por favor, deixe-nos entrar para não termos que conversar através da sua porta.

Rune não se mexeu, mas atrás dele em seus aposentos, Kellan captou o movimento súbito e rápido de outra pessoa no quarto. Coberta por nada além de um lençol de cetim preto e um véu de cabelos castanhos da cor do mel que obscureceram seu rosto enquanto ela saía pra fora de sua vista.

Agora Kellan entendia a irritação do outro macho por ser perturbado. Os olhos faiscantes de Rune nivelaram com os dele, como se o desafiasse a mencionar a presença da mulher nua que desapareceu no quarto dos fundos da câmara privada do lutador.

— Não estou interessado em conversar, então cuspa o que você tem a dizer, e então saia. Tenho coisas pra fazer, e não gosto de perder tempo.

Mira exalou um pequeno palavrão.

— Estamos procurando por Galo. É importante para nós o encontrarmos, e é pra ontem.

A boca de Rune se tornou uma linha fina.

— Ainda tem tesão por aquele pedaço de merda heim?

— Você o viu? — Ela apertou.

Rune sacudiu levemente sua cabeça

— Não desde algumas noites atrás, quando você quase arrancou os braços do bastardo com aquelas suas lâminas perversas diante de uma casa cheia na arena, eu poderia acrescentar.

Kellan não disse nada após ouvir aquelas notícias perturbadoras, mas lançou um olhar interrogativo para Mira. Sem dúvida captou o descontentamento dele diante de seu movimento tão despreocupado, mas ela apenas deu uma olhada para seu olhar duro, destituída de desculpas ou remorsos.

Rune deu de ombros.

— De qualquer forma, não o vi desde então. Ouvi falar que JUSTIS o soltou naquela mesma noite e a devolveu ao seu chefe com seu rabo entre as pernas. Ouvi dizer que você talvez tivesse sido chutada dos seus deveres com a Ordem por causa disso. Verdade. Percebi que você estava de volta a Montreal só agora, lambendo suas feridas.

Kellan percebeu então que o sequestro de Jeremy Ackmeyer e Mira sendo arrastada involuntariamente na batalha ainda não era do conhecimento de todos na cidade. Nem mesmo um indivíduo sombrio como Rune estava a par da informação que os rebeldes agarraram um cientista notável que estava sob a proteção da Ordem.

O que o fez supor que Lucan provavelmente abafou a situação, e deu instruções aos seus guerreiros para manter as informações longe dos olhos do público.

E essa não era uma boa notícia para Kellan ou sua equipe.

Porque se Lucan e a Ordem estavam mantendo o rapto de Ackmeyer e Mira em silêncio, provavelmente isso significava que havia uma operação secreta em andamento neste exato momento. Quase certamente um esquadrão da morte com licença para matar qualquer um que estiver em seu caminho.

Kellan foi parte da Ordem tempo suficiente para saber que Lucan Thorne não admitia confusão por aí, especialmente quando um ataque acontecia perto de casa. Tomando Ackmeyer como refém e talvez vindo a prejudicar a tentativa de paz no ápice do CMN já seria ruim o suficiente. Envolver Mira era uma ofensa que Lucan não perdoaria.

Nem Nikolai e Renata, pais adotivos de Mira.

Ou Nathan, que foi melhor amigo e irmão para ambos, Kellan e Mira, desde que os três eram crianças.

Sem falar do resto dos guerreiros e suas companheiras, inclusive Lazaro Archer, que ficaria envergonhado por seu neto ter desaparecido como um covarde, só para aparecer novamente quase uma década mais tarde como um vilão, que todos eles estariam dentro do seu direito de desprezar.

Porra. Até o mais positivo fim de jogo de todo este cenário não prometia um grande resultado, independentemente se ele e Mira fossem bem sucedidos hoje à noite em rastrear Vince e conseguir que Ackmeyer ficasse em segurança.

Mira aparentemente não absorveu a revelação que Rune acabou de fazer. Ela perscrutou ao redor de Kellan, franzindo o cenho para o outro macho da Raça.

— Quem disse a você que fui repreendida por Lucan? Onde ouviu que eu poderia ter sido afastada das patrulhas?

— Faz diferença onde? — Rune deu de ombros. — A maior parte das pessoas que vejo por aqui não tem nenhum amor pela Ordem. As pessoas falam. Posso ter ouvido em qualquer lugar.

— Bem, o que quer que tenha ouvido — ela disse —, aqui estou eu agora. E estou à procura de sua ajuda para localizar o Galo. Não estou de brincadeira, Rune. Preciso falar com ele. Então, se você o vir aqui hoje à noite, preciso que encontre um modo de segurá-lo para mim até que eu volte. Eu não pediria a você se conhecesse alguém que pudesse ser capaz de me ajudar.

Ele considerou por um longo momento.

— Não faço favores pra ninguém. E com toda a certeza não vou fazer porque quero receber pagamento.

— Então faça porque é importante. — Mira pressionou. — E é importante, Rune. Não mentirei pra você, é uma questão de vida ou morte.

— Sobre a vida de quem estamos falando?

Embora ela sequer desse um olhar para Kellan, ele sentiu o corpo dela ficar tenso ao lado dele.

— Faz diferença quem? — Ela respondeu, devolvendo as palavras do lutador para ele.

— Poderia. — ele disse. — Talvez não.

— Preciso falar com Galo, quanto mais cedo melhor. — Mira disse a ele. — E ninguém pode saber que estou procurando por ele. Ninguém.

Rune deu um olhar duro para ela, então deslizou para Kellan no que pareceu muito como suspeita.

— E a Ordem?

— Ninguém. — Mira declarou.

O ameaçador lutador da Raça levou um longo momento para responder. Quando o fez, foi com uma inclinação curta de sua cabeça. O acordo, mesmo ele começando a fechar a porta para eles novamente, era sério desta vez.

— Se isto é tudo, tenho negócios mais importantes para atender.

A virada brusca da fechadura sendo trancada pontuou sua saída. Então Kellan e Mira estavam sozinhos no corredor mais uma vez.

— Vamos sair daqui. — disse Kellan tomando sua mão para fazer o caminho de volta até o topo da escadaria, para o clube no nível da rua.

Não tiveram nenhum impedimento nas escadas, e estavam atravessando a multidão barulhenta rumo à porta quando uma voz baixa soou por trás deles.

— Pensei que você recebeu o recado algumas noites atrás quando estava aqui causando problemas, guerreiro.

Kellan e Mira foram desacelerando até parar, então viraram juntos para enfrentar Cassian, o proprietário do La Notte. Seus olhos eram da cor do peridoto[7], astutos como os de um falcão debaixo de suas sobrancelhas escuras, e coroadas por um cabelo curto e branco como a neve. Não era um homem de pequena estatura ou constituição, ele estava de braços cruzados acima do peito vestido de couro e fivela, suas longas pernas posicionadas em posição de comando.

— No caso de haver qualquer dúvida, você não é bem-vinda no meu clube. — Sua boca se curvou em um sorriso que era quase obsceno. — Ou você está aqui se rebaixando com seu amigo?

Ele não estava olhando para Kellan quando disse isto, mas este se arrepiou todo diante do olhar do cara. Tensão se infiltrou em seus membros e aumentou o aperto na mão de Mira.

— Nós estávamos saindo. — ela respondeu.

— Quem é esse com você? — Cassian perguntou agora. — Novo recruta?

Kellan baixou sua cabeça quando o homem caminhou em direção a eles, movendo-se com a suavidade de uma pantera, o que desmentia aquelas bordas rudes do restante de seu comportamento. Os olhos verdes claros de Cassian alfinetaram Kellan em um duro olhar fixo.

— Eu conheço você.

— Acho que não. — Kellan rosnou certo que nunca conheceu o humano. Ele teria recordado a arrogância e a corrente não muito sutil de ameaça que vibrava ao redor dele.

Aquele chocante cabelo branco prateado parecia glacial debaixo das turbulentas luzes coloridas no palco detrás deles. Um enorme telão na parede oposta lançava flashes ao vivo da cobertura de uma luta de boxe humana sanguinária, sem dúvida, destinado a ser um aperitivo para as verdadeiras lutas que aconteceriam mais tarde naquela noite no porão do clube. As imagens do monitor iluminavam o rosto anguloso de Cassian em um relevo rude e sombras.

— Sim. — ele disse, deixando a palavra sair lentamente, quase um assobio. — Já se passaram alguns anos, mas já vi você em algum lugar antes.

Kellan soltou a mão de Mira porque ele subitamente estava apertando suas mãos em punhos ao lado do seu corpo por vontade própria.

— E eu disse que você está enganado.

— Vamos. — Mira tomou seu braço em ambas as mãos enquanto se preparava para arrastá-lo pra longe do confronto com o proprietário do La Notte.

Cassian riu.

— Ela gosta de você. Quer protegê-lo. Isto é intrigante. Imaginei que ela poderia ter ido para o outro lado... não que eu não achasse este pensamento intrigante também.

O homem teve o pouco discernimento de dar um passo em direção a Mira, e a mão de Kellan disparou como uma víbora, bloqueando-o. O tórax que aplainou contra sua palma era rocha sólida, inflexível. E onde o olhar de Cassian era puro gelo, seu corpo era quente como brasa embaixo de couro, irradiando um poder que Kellan mal podia conciliar.

Enquanto ele segurava o homem no lugar, impedindo-o fisicamente de se aproximar de Mira, o dom psíquico do Kellan despertou, acordando dentro dele. Estendeu-se através do seu toque em Cassian, buscando a verdade das intenções do humano.

E veio em branco.

Totalmente ilegível.

Que porra poderia ser isso?

Cassian segurou seu olhar por um segundo a mais do que Kellan gostaria, então o homem simplesmente deu um passo para o lado e foi a passos largos em direção ao bar, onde um grupo de mulheres bonitas e embriagadas estava tendo dificuldade em se manter de pé com seus saltos altos estilo agulha.

Kellan ainda estava tentando processar o que tinha acabado de experimentar, e ficou surpreso por Mira não ter nada a dizer sobre a súbita falta de interesse do Cassian por eles e seus negócios em seu estabelecimento.

Mas Mira não estava olhando mais para o homem.

Ela estava paralisada olhando fixamente no telão do outro lado do lugar. Kellan seguiu seu olhar. Todo o sangue pareceu drenar de sua cabeça.

O telão não estava mais exibindo a luta de boxe. Na tela agora estava o Departamento JUSTIS dando notícias de alerta, quase inaudível acima do barulho da multidão e a banda ainda tocando no palco. Mas a legenda rolando pelo enorme monitor dizia a Kellan tudo que precisava saber.

Explosão de laboratório hoje no oeste de Massachusetts causou a morte do renomado cientista Jeremy Ackmeyer...

 

Segundo corpo recuperado no local, identificado como Vincent DeSalvo, ex-presidiário com laços estabelecidos com organizações militantes e rebeldes da área de Boston...

 

        Conselho Mundial das Nações pedindo investigação completa sobre o que está chamando um ato de conspiração e assassinato premeditado...

 

 — Kellan. — Mira murmurou, seu corpo imóvel parecendo congelada no lugar, mesmo depois que ele tomou a mão dela na sua. — Oh, meu Deus, Kellan... Jeremy Ackmeyer está morto.

 

O humor desagradável na sede da ordem em D.C. não melhorou nas horas desde que a notícia da morte de Jeremy Ackmeyer pelas mãos dos rebeldes se tornou manchete no mundo todo. Como líder da Ordem e de fato o chefe público da nação da Raça como um todo, o humor de Lucan Thorne era o mais sombrio de todos.

Agora, uns minutos depois da meia-noite, a maior parte dos membros mais antigos da Ordem sediados nos Estados Unidos estavam presentes junto com suas companheiras. O grupo reunido na sala da mansão, situada há apenas alguns quilômetros da sede do CMN no National Mall[8]. Era uma justaposição estranha: meia dúzia de letais guerreiros da Raça que viviam a muitos anos, mais acostumados a combater com armas e equipamentos de alta potência, agora acomodados em sofisticados sofás de veludo estampado e delicadas poltronas neoclássicas.

Lucan não era fã em particular de móveis espalhafatosos, mas isso fazia sua companheira feliz, então era obrigado a suportar. Gabrielle insistira que eles preservassem a autenticidade arquitetônica do lugar, o que incluía uma pequena fortuna em obras de arte do século XVIII e talentosas porcelanas asiáticas para o dono original da mansão, que serviu como embaixador dos Estados Unidos no início de 1900.

No entanto, ela substituiu uma grande tapeçaria inglesa de Alexandre o Grande, do século XVII por outra, muito mais antiga, que ela disse que representava um herói que preferia olhar ao invés daquele.

Lucan andou de um lado para o outro diante daquele artefato do período medieval, agora se sentindo rendido, semelhante ao seu próprio rosto o julgando de dentro dos fios tecidos da tapeçaria, que uma vez esteve pendurado em seus aposentos no Complexo da Ordem em Boston. Gabrielle, Gideon e sua companheira, Savannah, Brock, Jenna, e vários outros reunidos na sala, em um silêncio prolongado enquanto Lucan praticamente riscava uma trilha no tapete oriental debaixo de suas botas.

Rio e sua companheira da Raça, Dylan, chegaram a menos de uma hora vindos da base da Ordem em Chicago. O guerreiro espanhol com o rosto coberto de cicatrizes e de comportamento normalmente descontraído estava curvado adiante de onde se sentou, com os cotovelos descansando nos joelhos, os olhos de topázio intensos.

As outras chegadas recentes, Tegan e Elise, vieram da base que ele comandava em Nova Iorque. O Gen Um de cabelos castanhos dourados era um dos membros originais da Ordem desde o momento de sua fundação — e durante os últimos vinte anos se tornou um dos melhores amigos de Lucan. Tegan e Elise tinham seus próprios problemas para resolver, isto é, seu filho de vinte anos, Micah, que tinha acabado de sair do treinamento de guerreiro e já embarcava com sua equipe em uma operação secreta em missão rumo a Budapeste.

Elise estava abertamente preocupada em deixar seu único filho sobrevivente fora de sua vista, mas Micah era filho de seu pai, e Lucan sabia melhor do que ninguém, que segurar muito apertado só fazia com que o risco de quebrar fosse muito pior quando este viesse. Ele via isso acontecer com seu próprio filho a cada dia, um peso que caía sobre ele até mesmo no meio dos problemas mais imediatos que enfrentava esta noite.

Os demais membros ainda chegariam da sede de D.C., incluindo Hunter e Corinne, vindo de Nova Orleans dentro de algumas horas. Quem estava programado para chegar amanhã à noite era Dante e Tess, agora no comando da base da Ordem em Seattle, e Kade e Alex, supervisionando o centro de comando no Lago Tahoe. Levando em conta os eventos da noite em Boston, Chase e Tavia ficariam lá até a noite da festa de gala, quando participariam.

Do outro lado do espaço elegante, Nikolai murmurava um palavrão com um sibilo cheio de malícia enquanto sua cabeça loira balançava se afastando de sua companheira de Raça grávida e seus olhos azuis glaciais bateram em Lucan.

— Temos mais alguma informação sobre quem são estes rebeldes desgraçados e onde estão?

— Só o que você já sabe do telefonema de Nathan hoje à noite. — Lucan respondeu gravemente. — Infelizmente, sua melhor pista até agora foi a informação que um dos rebeldes deserdou do bando, levando Ackmeyer com ele para pedir resgate. Nós todos sabemos como isso acabou.

Niko grunhiu.

— E não temos nada de Mira. Nem onde está ou o que querem com ela. Ou se já foi...

Que o guerreiro endurecido pelas batalhas nascido na Sibéria fosse incapaz de terminar o pensamento, apenas disse a Lucan como Niko estava profundamente preocupado. Renata também. A fêmea dura como um prego, que se tornou um membro valioso e altamente efetivo das missões de combate da Ordem nessas últimas duas décadas estivesse afundada perto de seu companheiro, seu cabelo profundamente negro caído no rosto, mas não mascarando muito as linhas de preocupação ali. As mãos impiedosamente letais de Renata tremiam um pouco onde descansavam no vulto pronunciado de sua gravidez quase no final.

— Não temos mais nada ainda, mas teremos. — Lucan disse a eles. — Nós a traremos sã e salva, eu prometo.

Ele considerou a operação homicida na qual enviou Nathan. Seu intuito era recuperar Mira e o humano, e apagar seus sequestradores com um mínimo de barulho ou atenção. A habilidade e aptidão de Nathan para o trabalho eram inquestionáveis, mas a explosão do laboratório e o assassinato de Jeremy Ackmeyer reduziu a cacos o propósito da missão.

E as consequências daquele evento desastroso estavam criando novos e maiores problemas.

Em apenas algumas horas desde que a notícia da morte do proeminente cientista humano veio à tona, houve um rápido e extremamente ruidoso clamor público pedindo justiça. Um protesto que se fez ainda mais preocupante quando os noticiários não só sugeriram que os rebeldes estavam envolvidos, mas que a Ordem foi parcialmente culpada pelo seu rapto e o assassinato resultante.

Lucan estava ainda mais puto do que o tio de Ackmeyer, o diretor do CMN Charles Benson, que foi imediatamente para os investigadores e a imprensa com o fato de que a Ordem foi recrutada — e acabou falhando — em manter a segurança do civil no que deveria ter sido uma simples escolta de segurança até D.C para a próxima cúpula de gala.

A população humana já inquieta reagiu com paranoia e suspeita. Alguns profetas de desgraça virulentos advertindo que este fracasso só confirmava o que já temiam: que a Raça, e a Ordem em particular, não eram confiáveis para valorizar a vida humana.

Paz, o pior deles estava gritando para quem quisesse ouvir, nunca poderia ser vivida ao lado de monstros desumanos.

A resposta de pânico foi generalizada e rapidamente ganhou terreno. As revoltas em Boston começaram a se espalhar para outras cidades. O pequeno número de manifestantes que era comum na frente da sede da Ordem de D.C. aumentou para dezenas em questão de horas. E como se não bastasse a contrariedade dos civis ser problema suficiente, grupos de militantes ao redor do mundo estavam usando o ataque ao laboratório do Ackmeyer por rebeldes suspeitos como justificativa para vandalizar e saquear, atacar os governos que eles consideravam muito dispostos a capitular diante do poder e vontade da Ordem e do resto da Raça.

A situação atual era, em uma palavra, o caos.

Com Lucan e a Ordem agora bem no meio disso.

— Precisamos acabar com essa merda. — Lucan rosnou com a raiva culminando enquanto o estrondo dos manifestantes do lado de fora do portão da propriedade continuava zumbindo. — Devíamos voltar para a vigilância em nossos centros de comando distritais, no caso das respostas às notícias de hoje à noite se intensificarem pelo agravamento da provocação para a anarquia total.

— Por outro lado — Gideon interrompeu — pode ser mais importante do que nunca para nós permanecer com o CMN, mostrar ao público humano que seu pânico não tem razão de ser, e a Ordem está do seu lado. Mostrar ao mundo que podemos ser confiáveis como parceiros, em um esforço em direção à paz entre nossas raças.

Lucan viu Gabrielle e alguns outros concordando com a cabeça. Ele sabia que eles provavelmente estavam certos, mas no momento era difícil frear a parte dele que era antiga e não respondia a ninguém. O líder, que por séculos estava acostumado a fazer as regras, e quando fosse chamado, aplicando-as com força que não podia ser interrompida.

E agora, a última coisa com que estava se importando era fazer uma apresentação pública do grupo na cúpula, apenas para demonstrar solidariedade ao CMN, cujos membros aparentemente estavam todos muito dispostos a lançar a Ordem debaixo de um ônibus. Ou com os humanos, que talvez nunca vissem a Raça como nada mais do que bichos papões só esperando pela oportunidade de rasgar suas gargantas.

Diplomacia nunca foi seu ponto forte, e hoje à noite estava mais irritado que nunca.

Lucan reprimiu sua agressão interna e parou para atender Gideon.

— Alguma pista sobre o nome que Nathan nos forneceu — este bastardo rebelde Arqueiro?

— Estou correndo com isso até agora. — Gideon respondeu. — Arqueiro manteve seu nariz limpo, isto é certo. Cavei em todos os lugares que pude pelo cara. Atividades criminosas, registros de prisão... não há dados concretos dele em nenhum lugar. Ele é como um fantasma.

Renata ergueu sua cabeça, os olhos verdes jade estalando com fúria.

— Enquanto isso, ele está com a minha filha. Se Mira for prejudicada de qualquer forma — se ele... a tocar, eu pessoalmente quero estripá-lo.

— Não se eu chegar ao filho da puta primeiro, bebê. — disse Niko, seu tom gentil, mas seu olhar aceso com ira âmbar.

Rio foi o próximo a falar.

— Eu digo para acelerarmos as coisas e nós dois irmos para Boston, meu amigo. Vamos caçar este Arqueiro e os vermes com quem ele anda, e quando o encontrarmos, vamos fazê-los jantarem balas e aço.

Lucan sentiu a mesma necessidade fria de ser quem pessoalmente cortaria a cabeça do inimigo que levou um dos seus, da família da própria Ordem. Que o Arqueiro também tivesse orquestrado o rapto e morte de Ackmeyer, incitando revoltas e comprometendo a cúpula ao mesmo tempo, só esfriou o sangue de Lucan ainda mais.

Enquanto considerava a justiça que gostaria de aplicar ao esquivo líder rebelde, o comunicador de Lucan zumbiu no bolso de sua calça. Quem era agora? Ele se perguntou com irritação, então cuspiu um palavrão quando viu quem estava chamando.

— Porra, Jesus. — ele rosnou. — Já foi ruim o suficiente ficar atendendo ligações a noite toda de membros do Conselho, oficiais do JUSTIS e da imprensa. Agora tenho aquele fanfarrão do Reginald Crowe à procura de um pedaço meu?

Como um cão demarcando território, o magnata arrogante esteve ocupado certificando-se de que aproveitou cada oportunidade de fazer valer suas pretensões na cúpula. Hospedar a suntuosa festa de gala aparentemente não era o suficiente para Crowe. Ele também anunciou recentemente a inauguração de uma escultura comemorando o Primeiro Amanhecer e a cúpula da paz, apresentando-a como um presente para ser instalado na sede do CMN durante o encontro. Pelo ego inflado de Crowe, Lucan não ficaria nem um pouco surpreso se a estátua de tamanho natural fosse dele mesmo.

Lucan ignorou o telefonema de Crowe, colocando o dispositivo em modo silencioso e o empurrando de volta no bolso com outro palavrão.

Mal isso aconteceu, Darion apareceu pela porta aberta da sala de visitas. Lucan podia dizer só pelo vislumbre na expressão séria do jovem guerreiro que mais merda estava prestes a cair sobre eles.

— O que foi filho?

— O diretor Benson. — Dare respondeu com sua voz profunda estrangulada com indignação mal contida. — Ele acabou de fazer uma declaração pública. Está em todos os canais de notícias neste exato momento. Ao CMN foi oferecido — e aceito — um destacamento de segurança privada das Empresas Crowe para a reunião da cúpula. De acordo com Benson, a equipe da Crowe ampliará e supervisionará o envolvimento da Ordem a partir de agora.

Algumas das companheiras de Raça ofegaram, pontuando as outras respostas mais vívidas do restante dos guerreiros reunidos na sala.

Lucan grunhiu.

— Cuidaremos disso. — Enquanto ele absorvia a merda em desenvolvimento com um ar de coragem fria como pedra, por dentro estava fervendo. E o impacto do desprezo estabelecido na desconhecida face do líder rebelde que incitou todo este fiasco.

Lucan agarrou sua unidade de comunicação e teclou com força o número do Nathan.

— Dirija-se à base agora e aguarde comando adicional. Esta operação de assassinato está se encaminhando para uma missão em larga escala, com tantas equipes no chão enquanto precisamos achar o Arqueiro e trazer Mira para casa. Ele e seus rebeldes precisam ser apagados mesmo, de preferência à vista do público. Isso significa que eles precisam ser apagados permanentemente.

       

Kellan se sentou sozinho na fria grama alta sob o luar que cobria o montículo de pedra do depósito à beira mar. Ele e Mira voltaram para a base rebelde várias horas depois que as notícias da morte de Jeremy Ackmeyer irromperam e a reação na cidade começou a ficar feia rapidamente. Ele não queria Mira em nenhum lugar próximo a um público volátil e irritado, mas Kellan também estava mais do que um pouco preocupado com a perspectiva de um esquadrão da morte da Ordem abrindo caminho cada vez mais perto dele a cada segundo.

Mais cedo ou mais tarde, independentemente do quando foi cauteloso todos estes anos, alguém mencionaria o nome Arqueiro e apontaria um dedo na direção do acampamento da base de New Bedford. E quando este momento chegasse, Kellan pretendia ir ao seu encontro sozinho, poupando Mira e sua equipe remanescente — seus amigos — de se tornarem um dano colateral.

O fato de que Cassian do La Notte insistiu que o reconhecia de algum lugar só aumentou o mal estar de Kellan. Ignorando o fato que o dono do clube não traiu nada de si mesmo para o seu dom da Raça, Kellan teve a clara noção que o homem era perigoso. Talvez ainda mais porque provou ser ilegível.

Kellan não teve muito tempo para se preocupar sobre o que seu encontro com Cassian poderia significar mais pra frente. Suas preocupações mais urgentes eram Mira e o punhado de pessoas que estavam contando com ele para protegê-los. Para guiá-los, embora nunca se sentisse menos equipado para navegar em um curso seguro através do que estava se tornando uma crescente maré rápida de destroços.

Contou a eles da explosão no laboratório que matou tanto Vince quanto Ackmeyer, junto com as notícias do tumulto público resultante para sua equipe quando ele e Mira chegaram. Então Doc e Nina ajudaram Kellan a enterrar seu morto, enquanto Mira ajudava Candice na cerimônia. A sepultura do Chaz na base do antigo paiol carregava o aroma da terra recém-revirada, misturando-se com a pungente água salgada da brisa do mar úmida que chegava da enseada onde Kellan se sentou, vigiando a noite.

De seu posto no ponto largo onde o forte desativado e as armas de batalha permaneciam de pé, Kellan desviou a vista para as luzes distantes da cidade de Boston. O forte que foi construído como fortaleza militar durante a Guerra Civil dos humanos, e sobreviveu quase duzentos anos depois, agora parecia vulnerável e exposto. A Ordem podia atacar a qualquer momento na escuridão. Nas horas do dia, a base era um alvo fácil por parte de oficiais de dedo leve no gatilho do JUSTIS.

Kellan não sabia que horas da madrugada eram — bem cedo, certamente. Mas ainda estava escuro. E então ele esperou. Observou. Preparou-se para o que tinha que fazer para manter Mira e sua equipe segura.

— Ei. — Sua voz suave e seu movimento silencioso o pegaram desprevenido enquanto ela subiu pelo lado do monte para se juntar a ele. — Todo mundo está dormindo. Você já estava voltando para dentro?

— Daqui a um instante. — Ele estendeu o braço e ela se arrastou para colar ao lado dele. Seus corpos se encaixavam tão confortavelmente. Sua cabeça loira era um peso agradável contra seu tórax e seus cabelos estavam doces e sedosos de um banho recente. Abraçou-a pelos ombros, fechando os olhos para saborear o quanto era bom simplesmente segurá-la sob as estrelas. Ele depositou um beijo no topo de sua cabeça. — Você foi ótima hoje, ajudando no ferimento de Candice e na cerimônia fúnebre de Chaz... do jeito que foi.        

— Eu só fiz o que precisava ser feito. E quanto ao funeral do seu amigo, foi um bonito adeus que todos vocês deram a ele. — ela murmurou. — Simples, mas puro. Você o honrou muito bem, Kellan.

A frase que ela usou — aquela reservada para as ocasiões mais solenes nas tradições da Raça — tocaram-no de um modo que ele não podia expressar. Ao invés disso, inclinou o queixo dela pra cima com a ponta dos dedos e a beijou. Não o tipo de beijo faminto que estiveram compartilhando todas as vezes que se conectaram desde sua chegada de volta à sua vida alguns dias atrás, mas um beijo moldado por ternura e gratidão, por respeito profundo... e, sim, amor.

Ele amava esta mulher.

Sua mulher.

Ele a amou quase toda sua vida. Esse sentimento nunca desapareceu, nem em todo o tempo que esteve longe dela. E agora que estava sentindo o poder de ter Mira próxima novamente, tendo-a como parte de seu mundo — seu coração — ele não estava certo como encontraria força para se afastar dela.

Mas teria que fazer.

Mais cedo do que gostaria de admitir.

Ele também não queria interromper o beijo deles agora, mas Mira recuou suavemente. Seus olhos de cor lavanda eram gentis, mas cheios de uma tranquila determinação enquanto eles se ergueram para encontrar seu olhar sóbrio.

— Acharemos um caminho através disso. — ela declarou com voz firme, como se estivesse indo para a batalha. — O que aconteceu hoje à noite com Jeremy Ackmeyer...

— Muda tudo, Ratinha. — Ele acariciou seu queixo teimoso, então soltou um suspiro profundo, sacudindo lentamente a cabeça. — Não, isso não está certo. Isso não muda nada. Um homem inocente morreu hoje à noite. Assassinado, assim como sua visão predisse.

— Sim, mas não por você, Kellan. Você não o matou.

Ele ridicularizou baixinho.

— Não? Ele estaria morto se eu não o sequestrasse? Minha ordem para levá-lo colocou esta coisa toda em movimento. Minhas mãos estão tão manchadas com a sua morte quanto aquelas que explodiram aquele laboratório com ele e Vince dentro.

— Mas não foi você quem fez isto. — Ele podia ouvi-la deslizando em direção ao desespero. — Você não é culpado de assassinato Kellan, e precisa deixar a Ordem saber disso. Eles precisam saber tudo. E precisam saber de tudo agora, antes das coisas ficarem mais perigosas.

Ele alisou um cacho de cabelo loiríssimo que se agitava com o vento da manhã.

— Você está certa.

— Estou? — Ela engoliu em seco, ficando subitamente quieta em seu abraço.

— Quer dizer que... você concorda? Vai comigo explicar tudo isso para Lucan?

— Eu irei até ele, Mira.

Com um gritinho ela se lançou nele, seus braços o segurando bem apertado, o rosto enterrado no centro do seu peito, onde seu coração agora trabalhava em ritmo de lamento.

— Eu sei que tudo vai dar certo para nós, Kellan. Esta é a única maneira...

— Ratinha. — ele disse suavemente, puxando-a pra cima para que ela pudesse ver o seu rosto. Ela precisava entender qual a decisão que ele tomou.

— Eu irei até Lucan e o resto da Ordem. Vou dizer a eles o que fiz e por que parti sem explicação oito anos atrás. Vou contar tudo. Mas o farei em meus próprios termos. E vou fazê-lo sozinho.

A expressão dela desabou, então endureceu com confusão e não pouca raiva.

— Preciso estar com você quando encontrá-los. Eles precisam ouvir meu lado da história.

— Quando eu me encontrar com a Ordem, não será com nenhuma expectativa que serei perdoado por isso, Mira. Se eu fosse Lucan, não veria como a clemência poderia ser concedida. Sou o líder de um grupo rebelde. Infringi a lei muitas vezes para contar. Conspirei. E a partir de agora, sou culpado do assassinato de um civil. Um civil humano, Mira. — Ele soltou um palavrão baixinho. — O que você acha que vai acontecer quando JUSTIS e o CMN ouvirem isso? Quando vazar que eu — o líder rebelde conhecido como Arqueiro — sou realmente Raça, as revoltas que vimos hoje à noite vão parecer com uma piada, como brincadeira de criança. Não há como a Ordem me desculpar sem anular todos os progressos que a Raça fez em direção a paz com a humanidade.

— Não. — Sua cabeça sacudiu de um lado para o outro, então mais resolutamente. — Não, preciso ser capaz de atestar o que você disser a eles. Se nada mais funcionar, então preciso me lançar por sua misericórdia, implorar que compreendam e pleitear para que façam uma exceção com você. Por mim. Por nós. Kellan, você tem que me prometer que vai me dar essa chance...

— Não posso te prometer isto, Mira. Não posso prometer colocá-la em mais dor ou angústia do que já fiz. — Ele tomou seu rosto entre as palmas, carinhosamente alisando com os polegares suas bochechas e sua boca trêmula. — Mas te prometerei isso: Eu te amo. Deus, sempre amei. Você nem sequer percebeu? Todos aqueles meses e anos tentando te afastar quando éramos jovens. Eu estava apavorado do quanto gostava de você. Perdi tantas pessoas que amava, não podia suportar a ideia que se eu me permitisse te amar, poderia perdê-la um dia também.

— Você nunca vai me perder, Kellan. — Um soluço suave preso na sua garganta enquanto ela estendia suas mãos para colocá-las ao redor do seu pescoço. Os pálidos olhos de cor púrpura reluziam no luar, cheios de lágrimas. — Não me importo com o que a visão mostrou a você. Não deixarei você ir. Eu sou sua. Sempre serei.

— Ah, Ratinha. — Ele alisou sua testa contra a dela, desejando que tivesse sua intrépida coragem. — Você também me honra. Muito.

— Eu amo você. — ela sussurrou. — Nunca deixarei de amar você.

Ela se agarrou nele agora, e ele a segurou bem perto. O mais perto que poderia conseguir. E ainda assim, não era perto o bastante. Nunca seria, quando se tratava desta mulher extraordinária.

Ele não queria morrer. E a última coisa que queria era deixar Mira novamente — e ainda pior, deixá-la mais uma vez de luto e dor verdadeira. Ele faria tudo em seu poder para impedir a visão de se tornar realidade, mas sabia muito bem o poder que o dom da Visão de Mira possuía. Ele o viu predizer o destino com precisão infalível. Era um conhecimento que não podia negar agora, não importa o quanto quisesse acreditar em que eles achariam um modo através da sentença de morte que Lucan estava destinado a proferir a ele.

Mas ainda tinham o aqui e agora.

Tinham este momento.

Ele se levantou com ela, levando-a com ele no monte coberto pela grama no forte. No leste do horizonte, um brilho tênue estava se formando, apenas a borda nua do amanhecer. A noite passou e eles ainda estavam a salvo. Ainda juntos, por enquanto.

E tinham as horas do dia para lidar com as decisões que nenhum dos dois queria tomar.

Até lá, Kellan queria apenas Mira.

— Venha comigo. — ele murmurou em seu cabelo sedoso. — Deixe-me te amar durante um tempo.

Ela deslizou sua mão na dele e caminharam juntos, de volta para a fortaleza adormecida.

De volta ao refúgio de sua cama.

 

Os sonhos de Mira eram vívidos, dolorosos. Pesadelos cheios de lágrimas, angústia e perda.

Uma perda tão insuportável.

Kellan...

Acordou repentinamente com as pálpebras se levantando na escuridão silenciosa de um quarto que cheirava a pedra úmida, sal marinho à distância... e ele.

Graças a Deus, foram apenas pesadelos.

Kellan estava ali mesmo com ela, os dois nus na cama. Seu coração batendo morosamente debaixo de sua bochecha, o tórax nu morno sob sua palma. Ele estava lá. Estava seguro.

Ele mexeu debaixo dela e Mira se manteve muito quieta, não querendo perturbar seu sono depois da longa vigília que manteve em cima do forte.

Sem falar das horas fazendo amor sem pressa, o que deve tê-lo deixado acabado também. Embora ela não tivesse imaginado isto depois, quando a levou ao orgasmo três vezes, seu próprio clímax não muito atrás.

O pensamento de sua paixão, o prazer que deram um ao outro apenas pouco tempo atrás, ajudou a acalmar os batimentos apavorados de seu coração. Aquilo a acalmou de modo a recordar suas palavras — sua promessa terna de amor — enquanto se abraçavam sob a luz das estrelas que se desvaneciam nos momentos antes dele trazê-la para sua cama.

Kellan a amava. Não quis deixá-la; ela sabia disso. Mas ele iria. Como contou a ela tão gentilmente esta noite, quando ele estivesse pronto para se entregar à Ordem, faria isto sozinho. Ele não a queria lá.

E pensar nele enfrentando julgamento — e no resultado profetizado da sua visão — por si só colocava um nó gelado no fundo do seu estômago.

Ela teve que trabalhar para conter seu medo, disposta a não se voltar para seus pesadelos de alguns momentos atrás ou aos pensamentos insuportáveis que Kellan descreveu ter visto em seus olhos. A urgência de se agarrar a ele agora enquanto dormia beirava o desespero, Mira estava muito ligada para ficar quieta. Sua cabeça estava muito agitada, seus membros inquietos, a preocupação persistente nela como um peixe minúsculo mordiscando sua sanidade.

Cuidadosamente ela se desembaraçou do lado do Kellan e deslizou para a beirada da cama. Ele suspirou e rolou virando pra cima com a respiração se ajustando no sono profundo. Mira se levantou, sem saber o que fazer ou aonde podia ir para se livrar do peso de sua ansiedade. O que precisava mais do que sono ou distração eram respostas.

Ela precisava saber o que o futuro guardava para Kellan. Mais do que qualquer coisa, precisava de um pequeno vislumbre de esperança de que eles pudessem de alguma forma, superar os problemas em que estavam e achar um modo de estarem juntos.

Ela olhou para ele por cima do ombro, em direção aos pés da cama. Seus olhos se acenderam ao ver a arca repousando ali no chão. A arca que mantinha o espelho da avó de Kellan.

Não. Era perigoso até mesmo considerar isto.

Ela nem sabia se funcionaria.

E mesmo assim, pegou o estojo vazio das lentes de contato na mesa de cabeceira ao lado da cama, e em seguida seus pés estavam se movendo sem fazer barulho pelo chão, levando-a para a arca de madeira. Ela se abaixou diante dele. Silenciosamente ergueu a tampa.

O espelho de mão de prata estava virado pra baixo sobre uma pilha de camisas do Kellan. Mira o levantou, as pontas dos seus dedos roçando por cima do desenho esculpido do emblema da família Archer.

Ela tinha que tentar.

Ela tinha que saber, mesmo que a apavorasse fazer isto, algo que nunca tinha tentado antes. O pior terror era não saber, temendo que o que Kellan viu realmente pudesse ser o seu destino.

Se houvesse alguma chance que olhando para dentro do seu próprio olhar desprotegido pudesse dar até mesmo uma tênue esperança de um futuro junto a Kellan, ela arriscaria tudo. Ela pagaria qualquer preço para saber com certeza se ele estava destinado a viver... ou condenado a morrer.

Mira girou, colocando-o de volta no baú enquanto se ajoelhava no chão e removia suas lentes de contato. Com o espelho na mão, ela fechou os olhos e tomou um fôlego bem forte dentro de seus pulmões.

Ela podia fazer isto.

Ela tinha que fazer isto.

Ela trouxe o espelho diante de seu rosto, suas pálpebras ainda cobrindo seu talento. Seu coração batendo violentamente no peito, tão errático e nervoso, tão alto em seus ouvidos que ela meio que esperava que Kellan acordasse com este som. Suas palmas estavam úmidas, a boca seca como cinza.

Ela tinha que tentar.

Tinha que saber.

Ergueu suas pálpebras e congelou ao ver seu rosto olhando fixamente de volta pra ela no espelho oval. Ela parecia tão diferente sem as lentes púrpuras silenciando a intensidade cristalina do seu olhar. Mal se reconheceu assim — suas feições são claras, mas iluminadas com um fogo gelado que parecia atemporal, não totalmente deste mundo.

Extraordinário, dissera Kellan.

Surpreendente, ela pensou. Inquietante. Tão pouco familiar, ela não podia...

O pensamento foi embora quando as piscinas claras de suas íris começaram a ondular enquanto olhava para elas no espelho, sua superfície oscilando como se uma pedrinha tivesse caído em um lago sereno.

Paralisada, surpresa, ela não conseguia desviar o olhar.

E então, dentro das insondáveis profundezas incolores, uma imagem começou a se formar. Várias imagens, figuras sombrias, um grupo sentado na frente de uma grande sala de teto alto, um banco alto erguido na frente deles, separando o grupo da pequena figura que estava de pé diante deles, aguardando sua resposta.

Inclusive antes das imagens começarem a ficar mais claras, Mira reconheceu a silhueta da pessoa diante do tribunal. Ela sentiu o receio da pessoa, o profundo medo e incerteza.

Sabia, porque aquela pessoa era ela.

Na visão, ela tentou não tremer enquanto enfrentava Lucan e os outros membros do Conselho Mundial das Nações sentados para o julgamento no banco, sabendo que eles detinham o poder de salvá-la ou destruí-la com sua decisão. Seus rostos estavam impassíveis, sem misericórdia.

Ela observava com angustiada expectativa enquanto sua visão de si mesma pressionava por indulgência e conseguia apenas rostos estoicos como resposta. Na visão, ela começou a chorar, seu rosto caindo em suas palmas, os ombros sacudindo pela força dos seus soluços.

A dor daquela imagem espetava o coração de Mira em tempo real, faziam seus lábios tremerem em reação ao que estava se passando ali. Ela queria desviar o olhar agora, antes de ver mais alguma coisa. Porém, todas as cabeças na galeria viraram para olhar atrás deles, enquanto o acusado entrava na câmara para ouvir a sentença.

Kellan.

Oh, Deus. Era exatamente como ele disse.

Ele avançava com seus ombros largos endireitados e cabeça erguida, mas podia ver resignação em seu rosto bonito quando olhou para ela. Mira quase podia sentir sua aceitação estoica enquanto ela assistia a cena se desdobrar no reflexo do seu olhar.

Sua visão de si mesma deu meia volta para enfrentar aqueles que detinham o destino de Kellan em suas mãos. Ela pleiteou com eles. Tentou atrair uma parte da culpa para si, em vez disso. Sem sucesso. Eles anunciaram o decreto, assim como Kellan disse que fariam. Pelos crimes capitais Kellan foi acusado de... morte.

Enquanto a visão continuava, Mira sabia que sua angústia não poderia ser pior.

Mas estava errada.

Porque então a terrível visão que Kellan a preparou começou a desvanecer em uma escuridão enevoada. Outra imagem começou a se formar no seu olhar refletido. Algo terrível. Algo muito, muito pior que a perspectiva da execução de Kellan.

Seu corpo sem vida, pálido e imóvel, disposto diante dela.

Não...

Não! Sua mente gritou em angústia. Ou talvez ela realmente tivesse gritado de horror em voz alta. Tudo que sabia era a incredulidade, o profundo pesar, isso a sobrepujou enquanto sua visão de si mesma desmoronava sobre seu corpo morto e começava a chorar.

Isso não podia ser verdade.

Isso não podia acabar assim para eles.

Ela nunca poderia suportar aquele nível de dor.

Ela preferia morrer junto com...

O espelho voou pra fora de suas mãos e se espatifou na parede próxima, chovendo cacos de vidro quebrados.

Ela deu um salto de choque pelo que acabou de acontecer, o sobressalto abrupto a arrancando pra fora da visão inquebrável em que estava contida.

Kellan assomou em cima dela, fervendo tão ferozmente que ele se sacudia com a profundidade de seus sentimentos. Calor rolava de seu corpo em ondas palpáveis. Seus olhos estavam lançando faíscas, seus lábios abertos mostravam suas presas.

— Que merda você estava fazendo? — Sua voz era puro trovão, mais furioso do que jamais o ouviu. — Mira, porra. Diga-me que você não tentou... Ah, Jesus.

Ele afastou o olhar dela agora, virando sua cabeça para longe de seus olhos nus. Ainda abalada, ainda se sentindo exposta com o pesar das coisas horríveis que ela acabou de presenciar, Mira se apressou a pôr suas lentes. Quando ela fez, Kellan se ajoelhou no chão na frente dela.

— Ratinha, pelo amor de Deus! Por que você... no que em nome de Deus estava pensando? — Ele a tomou pela parte superior dos seus braços apertando, tremendo. — Olhe pra mim, bebê. Eu preciso ver você. Preciso saber que está bem.

Ela ergueu o rosto para encontrar seu ardente olhar fixo. Seu rosto borrado pelas lágrimas que estavam enchendo seus olhos.

— Estou... Oh, Deus, Kellan! Você estava certo. A visão. O julgamento. Tudo.

— Você viu. — ele murmurou e seu aperto relaxou um pouco então. — Você usou sua visão em si mesma. Mira... por quê?

— Eu tinha que saber. Eu não queria acreditar nisso. Não podia me fazer acreditar nisso... até agora. — Sua voz presa, raspando em sua garganta. — Vi tudo, exatamente como você descreveu. E havia algo mais. Oh, Deus. Kellan, eles te condenaram a morte e então eu vi você. Você estava... — Não podia falar a palavra. Com um soluço, ela caiu contra ele, exausta e magoada. — Não posso suportar te perder. Não outra vez. Não assim.

Ele a trouxe para bem perto, embrulhando os braços musculosos ao redor dela.

— Também não quero enfrentar essa realidade. Se pudesse mantê-la comigo, segurá-la para sempre, eu faria.

Ela acenou com a cabeça contra seu tórax quente, desejando desesperadamente a mesma coisa. Precisava sentir os braços dele ao seu redor. Precisava sentir os batimentos do seu coração, sua respiração, a força e o calor do seu corpo. Ela precisava sentir por si mesma que ele estava com ela, inteiro e saudável. Ele estava vivo.

Enquanto se agarrava a ele, seu olhar vagou para o espelho quebrado e espalhado, estilhando brilhando no chão próximo. Um novo pesar a rasgou.

— O espelho da sua avó... Kellan sinto muito. Está arruinado por minha causa.

— Não dou a mínima para isto. — ele sussurrou no topo de sua cabeça. — Tudo que me importa é você. Você nem sequer tem certeza do dano que fez a si mesma hoje à noite, Ratinha. Percebe isso?

— Eu tinha que saber. — ela disse com a mão estendida vagando sobre um dos brilhantes pedaços de vidro. Ela o arrancou do chão e o segurou entre os dedos, lamentando que esta recordação sobrevivente do passado de Kellan tivesse sido destruída por seu desejo de protegê-la. — Eu queria tanto provar que estava errado sobre o que você viu. Só queria alguma esperança — mesmo pouca — que ficaríamos juntos. Mas foi pior do que eu imaginava. Muito pior que qualquer coisa que eu queira acreditar.

Ela não percebeu que estava enrolando o caco afiado como uma navalha em seu punho, até que sentiu suas bordas irregulares mordendo sua palma.

Mas Kellan soube.

Ele ficou quieto, seus músculos imediatamente tensos, seu corpo esticado como um cabo. Ele se afastou dela apenas ligeiramente, o suficiente para que ela pudesse ver suas narinas abrindo e fechando com sua inalação. As brasas que faiscaram em seus olhos um momento atrás agora se transformaram em carvões incandescentes bifurcadas com as fendas estreitas verticais de suas pupilas. Ele rosnou com um estrondo que surgiu de seu tórax, vibrando em seus ossos.

— Mira...

Ele tomou seu punho na mão dele e a forçou a abrir, deixando o caco de vidro cair no chão. Sangue cobria a palma da sua mão, minúsculos riachos escorrendo por seu pulso pálido. Ele olhou fixamente para aquelas trilhas vermelho escuro, e o palavrão que silvou por entre suas presas era ostensivo, porém não com raiva.

Ele se transformou ainda mais, sua face se tornando mais contundente e mais selvagem. De outro mundo. Ela o viu em sua forma natural verdadeira antes, mas nunca desse jeito. Este era Kellan Archer completamente Raça, primitivo e sedento, um macho predador formidável com os olhos postos justamente nela.

Ele queria o que ela lhe ofereceria agora.

O que foi seu para reivindicar desde o princípio.

— Eu pertenço a você, Kellan. Nunca haverá outro para mim. Nem mesmo se eu não puder estar com você. Nem mesmo se você se for. — Ela baixou o olhar para sua mão sangrando ainda presa em seu aperto. O ferimento em sua palma não era ruim, mas não precisava muito para um vínculo ser ativado. Um gosto. Isto é tudo que ele precisava tomar, e estaria ligado a ela para sempre. — Preciso estar conectada a você. De todas as maneiras. Não importa o que diz minha visão. Não pode nos deter esta noite. Não pode deter isso.

Ele fez um som estrangulado no fundo de sua garganta enquanto seu olhar febril se erguia para encontrar os olhos dela. Seus dedos não a soltaram, permanecendo presos ao redor do seu pulso como um torno. Suas presas se alongaram mais, as pontas afiadas enchendo sua boca quando ele separou os lábios com um gemido. Seus glifos pulsavam, matizes escuros de sede e desejo agitando por toda sua bonita pele de Raça.

Mira estendeu a mão livre para acariciar seu rosto.

— Ofereço meu sangue livremente a você, Kellan. Se quiser o terá agora.

Os ardentes olhos âmbar deslizaram de volta para a palma de sua mão manchada de vermelho, sua respiração raspando por entre os dentes e presas. Ele disse o nome dela, e soou como uma mistura atormentada de profanação e prece enquanto levava sua mão à boca e lambia o fio de sangue que corria em direção ao seu cotovelo.

Mira suspirou quando a língua viajou de volta até seu pulso, suave como veludo contra sua pele. Ele demorou, lambendo cada pedacinho derramado. Então pôs seu rosto no centro da sua palma. O cavanhaque elegante suavemente fazia cócegas, seus lábios quentes e úmidos, sua respiração como vapor contra sua carne sensível. Ele instalou a boca sobre o ferimento e puxou o primeiro gole de verdade.

Ela sentiu seu corpo tenso, até que uma sacudida o atravessou quando seu vínculo com ela germinou. Ele gemeu em sua mão quando puxou outro gosto dela. A vibração de sua boca, o calor molhado de sua língua, o raspar de suas presas na palma — isto combinado foi uma das sensações mais eróticas que ela jamais conheceu. Seu corpo respondeu com uma onda de prazer e fogo líquido.

O desejo se enrolou dentro dela, fluindo para cada terminação nervosa enquanto Kellan sugava de sua palma. Seu sangue agitou para uma nova vida a cada segundo que passava, despertando para seu beijo. Ela podia sentir isto correndo por suas veias, ansiosa para alimentá-lo. A excitação queimou quente e rápida dentro dela, necessidade molhada se agrupando entre suas coxas. Pontos gêmeos de luz elétrica radiante floresceram dentro dela, um em seu âmago, outro no lugar onde a boca de Kellan estava fixada nela.

— Deus, Mira... você tem um gosto bom pra caralho. — ele murmurou. — Seu sangue é tão doce, tão poderoso. Puta merda. Posso te sentir em meus músculos e ossos, em meus sentidos... tão bom.

Ela o acariciava enquanto ele a louvava, e entre seus corpos nus, seu pau ficou ereto, duro e quente, enquanto ela estava derretendo. Desejando ser preenchida por ele.

— Sim. — ele disse com a voz grossa e faminta. — Posso sentir sua necessidade através do vínculo. Posso sentir sua pulsação, como se fosse a minha. — Sua língua rodou uma última vez em sua palma, suavemente, lacrando seu ferimento. — Nunca percebi como isso seria forte... como seria completo. Mas preciso estar dentro de você agora.

Sem outra palavra, ele juntou Mira em seus braços e a colocou de volta na cama. Vagou sobre ela, braços fortes apoiados em cada lado, seu grande corpo equilibrado em cima dela na escuridão. E seus olhos — ela estava banhada em seu brilho, hipnotizada pelo desejo que viu queimar nos olhos sobrenaturais de Kellan.

Ela nunca o viu parecer tão formidável, tão inacreditavelmente poderoso. Ele era magnífico neste estado completamente transformado, alimentado pelo novo vínculo que o ligava a ela enquanto ambos respirassem. Ele estava sombrio, febril e gloriosamente excitado, e ela estremeceu ao sentir todo o seu treinado foco aquecido nela.

Ela estava pronta quando entrou nela, tão pronta. Ele se dirigiu até o fundo. Ela o sentia enorme, mais duro e mais quente que nunca enquanto se movia dentro de seu corpo. Sua boca encontrou a dela e cobriu seus lábios em um beijo que era exigente, febril... sedento.

Mira o agarrou, envolvendo suas pernas ao redor dele para trazê-lo mais perto. Queria estar fundida junto com ele. Não podia chegar perto o bastante.

Ela gritou quando a boca do Kellan deixou a sua, então ofegou enquanto vagava para baixo, fixando-se logo abaixo de sua orelha.

— Me tome. — ela sussurrou quando os lábios encontraram uma posição em seu pescoço. — Tudo de mim, Kellan. Tome.

Seu grunhido de resposta soou feroz e cru quando sua boca se apertou mais seriamente contra sua garganta. Desejo disparou para seu âmago quando as pontas de suas presas acharam lugar em sua carótida. Mira pôs a mão em seu cabelo, os dedos escavando nas ondas espessas. Ela apertou seu punho exigindo, segurando-o no lugar.

— Tome. — ela disse rouca. — Eu já sou sua.

— Sim. — ele respondeu rude, selvagem e carnal. Ele fez um som de fome sombria no fundo de sua garganta. — Minha. — ele disse.

Então a perfurou.

       

O arquejo de Mira foi de puro júbilo quando suas presas afundaram, e seus quadris deram punhaladas duras e longas entre suas coxas abertas.

Ele morreria logo — em algumas horas ou dias ou semanas, não podia ter certeza — mas Kellan nunca se sentiu mais vivo.

Orgulho o encheu ao ouvir o som do grito de prazer de Mira quando suas presas penetraram em sua carne delicada e perfuraram a artéria que pulsava tão forte e adorável contra sua língua. A posse balançou dentro dele como uma onda volumosa quando seu corpo se agarrou a ele, o canal escorregadio e molhado o envolvendo, ordenhando seu pau quando os primeiros tremores do orgasmo começaram a ondular por ela.

Seu clímax em construção ecoou em sua própria consciência, em todos os seus sentidos. Tal era o poder do vínculo de sangue que agora os uniu. Ele deveria se odiar por ter dado este passo com ela, sabendo que isso não teria futuro. Mas ela era tão gostosa, tinha um gosto celestial. E ele queria esta intimidade, esta conexão inquebrável com ela por muito tempo.

Estava ávido por tudo que ela podia lhe dar agora. Primitivo na reivindicação de seu corpo e seu sangue. Ela pertencia a ele. Sussurrava promessas o estimulando agora, fazia suas punhaladas urgentes, sua mordida travada nela com fervor animalesco, bebendo dela.

Ela era sua.

Neste momento, ela era sua para sempre.

Tão fácil achar isto. Tão tentador acreditar que ele podia prolongar este momento em uma eternidade com ela. Manter Mira ao seu lado como companheira enquanto ambos respirassem.

E era quase impossível resistir à necessidade que surgia nele agora, uma necessidade que o persuadia a completar o vínculo de sangue, selar sua conexão abrindo sua própria veia e alimentar Mira com um gosto dele em troca.

Ele queria isto com uma ferocidade que o chocou.

Ela queria também. Ele sentiu sua ânsia por ele, crua e sedenta. Ele ouviu em seu gemido ofegante, enquanto ela tentava agarrá-lo e se arqueava debaixo dele, esticava sua cabeça para o lado no travesseiro, concedendo-lhe acesso total à sua carótida.

Ela queria mais dele. Mais do que ele estava disposto a dar. Ele não podia deixá-la beber dele agora, não quando seu vínculo por ele só aumentaria sua dor dez vezes mais quando eles fossem separados pela morte.

— Por favor. — ela ofegou. — Oh, Deus... Kellan...

Deus o ajudasse, ele quase cedeu ao seu apelo quando ela gozou no instante seguinte, as unhas marcando seus ombros, seu nome um rugido gutural quando o clímax subiu em uma crista e quebrou. Ele queria sangrar para ela.

Mais do que qualquer coisa naquele momento, queria uni-la a ele e dar a mesma profundidade de prazer que ela estava lhe dando agora. Mas freou o impulso com controle estreito e honra duvidosa. Pressionando a boca em sua veia aberta, lacrou as perfurações com a língua e se preparou para a maré rodante de seu clímax. Cada nuance de suas emoções marcaram como ferro quente em seus sentidos. Ela gozou com a mesma intensidade desenfreada que fazia tudo o mais em sua vida. Seu clímax o surpreendeu com sua força quando as ondas da liberação do corpo dela fluíram em suas veias, como se fossem as dele.

Ele não pode retardar a tempestade crescendo dentro dele agora também. Com o orgasmo de Mira ainda o golpeando, Kellan gozou também, gritando com a ferocidade disso conforme sua semente era arrancada dele, escaldante e feroz.

E o corpo de Mira, doce e acolhedor, aceitou tudo que ele tinha para dar.

Ele não sabia quanto tempo levou antes dos tremores secundários finalmente começarem a retroceder. Podem ter sido minutos. Podem ter sido horas.

Tudo que sentia era a almofada quente de seu corpo embaixo dele na cama. Os membros ainda entrelaçados ao redor dele, os dedos tocando no cabelo em sua nuca enquanto ele descansava a cabeça do lado do seu ombro.

Foi sua voz calma que o devolveu ao aqui e agora.

De volta à realidade que eles ainda enfrentavam.

— Não quero que você vá para a Ordem. — Ele sentiu a preocupação no pulsar entorpecido de seu pulso e no sabor de medo que filtrava por seu novo vínculo com ele. — Eu mudei de ideia, Kellan. Sobre querer que você pleiteasse seu caso, tentando convencer a Ordem e o Conselho a te perdoar. Não quero que você vá a nenhum lugar próximo a D.C. Nenhum de nós jamais pode voltar ali.

— Ah, Ratinha. — Ele beijou a curva nua de seu ombro, em seguida se levantou em um cotovelo para que pudesse encontrar seu olhar preocupado. — Você não quer dizer isto. Você nunca foi de correr e se esconder. Isso sempre foi mais meu território, lembra? E olha onde isto nos trouxe.

— Não me importo. — ela murmurou com uma aresta teimosa em seu tom. — Vamos só ficar aqui assim. Por quanto tempo pudermos, vamos apenas ficar juntos e fazer isto durar. Custe o que custar.

Ele a beijou novamente, na boca desta vez, sem pressa e terno.

— Eu também não quero que isto acabe. Nem agora, nem nunca. Mas não quero que isto signifique forçá-la a uma vida se escondendo nas sombras e temendo o que vai encontrar em cada esquina. Não posso fazer isso Mira. E não podemos ficar aqui. Não é seguro para qualquer um de nós agora. Nós todos temos que sair daqui logo, ir para outro local. Em algum lugar fora da linha de fogo.

— Onde?

— Em algum lugar seguro.

Seu medo sobre a Ordem se fechando sobre ele ainda era muito real e perturbador. E a perspectiva de um furtivo esquadrão da morte depois dos acontecimentos da noite passada, ou uma invasão de larga escala era mais do que ele estava disposto a arriscar. Uma culpa doentia pesava sobre ele enquanto pensava em Candice, Doc e Nina caindo sob o fogo de armas pesadas no meio do caos de uma correria. Quanto a Mira, ele conhecia sua companheira de Raça bem o suficiente para perceber que ela lutaria até sua própria morte se pensasse que poderia salvá-lo.

Como ele faria por ela.

E iria, em pouco tempo a partir de agora.

Ele não foi um bom líder para a equipe de rebeldes. Não que esta foi sua intenção ao liderá-los. Também não chegou nem perto de ser um companheiro digno para Mira, o que ele queria mais do que qualquer coisa.

Mas ele ainda tinha tempo de fazer o que era certo por todos eles. Podia colocar em vigor medidas que assegurassem um risco mínimo de ferimentos ou sangue derramado de sua companheira e seus amigos. Só então estaria pronto para fazer o que precisava fazer — confrontar o destino que esperava por ele na outra extremidade deste caminho cada vez mais inevitável.

Seu plano ganhava forma com resoluta clareza enquanto ele tomava a mão de Mira na sua, acariciando os dedos por cima de sua palma perfeitamente curada.

— Vamos partir o mais breve possível esta manhã.

Ela franziu o cenho para ele.

— Na luz do dia?

— Assim que pudermos. — reiterou. Agora que sabia o que precisava ser feito, ele queria o plano em movimento. — Nina tem amigos que podem nos arrumar um veículo, sem fazer perguntas. Eu vou atrás, fora do alcance do sol. Alguém da minha equipe pode dirigir. Podemos estar lá em algumas horas.

Mira estava olhando fixamente para ele, uma pergunta muda em seu olhar.

— Está me levando com você?

— Eu quero você a salvo. — ele disse, erguendo o queixo dela para encontrar seu beijo. — Você é minha agora, lembra?

— Eu sou sua. — O sorriso dela quase partiu seu coração. Era tão puro e confiante. Ela se enfiou fundo na curva de seu corpo, moldando se a ele. — Não me deixe Kellan. Prometa-me que você não me deixará.

— Eu não a deixarei ir, Ratinha. — Ele a abraçou, dando um beijo em sua testa quando ela se aconchegou ainda mais e sua respiração desacelerou para um ritmo contente.

E neste momento, ele estava contente pela ausência do vínculo dela para suas emoções.

Porque se fosse vinculada a ele por sangue, teria entendido que não importava o quanto ele desejasse poder manter aquela promessa para ela, antes do amanhecer seguinte ela saberia que foi apenas uma bela mentira.

 

Ao anoitecer, nada menos do que doze membros da Ordem desceram em Boston.

Nathan liderava uma unidade composta pelos membros de sua equipe, incluindo três da equipe de Mira. Bal, Torin e Webb, que vieram de Montreal para ajudar a resgatá-la. Enquanto Nathan e sua equipe vasculhavam o velho North End procurando pistas dos rebeldes, do outro lado da cidade estava acontecendo uma varredura por Nikolai, junto com Tegan, Hunter e Rio, desviados da sede de D.C. e se juntando a Sterling Chase, diretor do Centro de Comando de Boston.

Para o amigo, todos eles juraram que o amanhecer não viria sem Mira ser trazida de volta a salvo para o seio de sua família da Ordem.

Aquela promessa foi como água gelada nas veias de Nathan enquanto ele e Rafe Malebranche dividiam os companheiros da equipe de Mira, Eli e Jax, procurando-a em estabelecimentos conhecidos por serem amigáveis com os rebeldes e sua laia. O clube La Notte era sua primeira parada, já que Galo era um frequentador regular na arena ilegal ali.

Nathan e Rafe entraram juntos, ambos os guerreiros esquadrinhando a multidão. Tinha pra mais de cem pessoas ali dentro, vestidas principalmente de couro preto e delineador pesado, contorcendo-se com a música selvagem de uma banda de rock industrial gritando sobre dor e traição no palco. Garotas góticas e punks, a maior parte delas humanas. Todos inocentes frequentadores do clube. Nenhum sinal do elemento criminoso que atualmente Nathan estava procurando.

Conforme ele e Rafe atravessaram a multidão agitada, Nathan notou que o proprietário do La Notte olhava para eles com uma consideração não muito entusiasmada. Cassian escapou de duas mulheres atraentes facilmente uma década mais jovens que ele, e andou a passos largos em direção a Nathan. Estava vestido como muitos de seus clientes, da cabeça aos pés de couro preto e botas de solado pesado. Hoje à noite seu cabelo estava penteado numa coroa espetada, os brilhantes olhos verdes acentuados por sobrancelhas escuras, cada uma perfurada por um par de anéis de prata minúsculos. Um piercing preto estava preso na ponta de sua língua.

— Não sabia que meu clube era tão popular entre a Ordem. — ele disse com voz arrastada. — Não sei se devo ficar lisonjeado ou ofendido.

Nathan mal deu a Cassian alguma atenção.

— Verifique a arena. — disse a Rafe.

Enquanto o guerreiro virava para executar a ordem, Nathan continuou a examinar o clube do mesmo nível da rua. Cassian estava bem em seus calcanhares.

— As lutas só começam daqui a algumas horas, guerreiro.

— Não viemos assistir seu esporte de sangue.

— Não. — Cassian respondeu — Só de olhar pra você, eu acharia que estava aqui pra começar um. Será que não teria nada a ver com a fêmea cabeça quente de sua operação, heim?

Nathan tinha sua mão apertada em torno da garganta do outro homem antes de Cassian poder tomar seu próximo fôlego.

— O que você sabe sobre ela?

Alguns dos subordinados do proprietário, inclusive o lutador da gaiola chamado Syn e dois outros, surgiram do nada e começaram a se aproximar. Ainda preso no firme aperto do Nathan, Cassian despediu seus capangas com um olhar e um sutil gesto de sua cabeça.

— Ele não vai me matar. — disse Cassian. — Teria acabado com isso agora se essa fosse sua intenção.

Nathan ficou tentado, mas a informação era mais crucial.

— O que sabe sobre Mira?

A essa altura, Rafe estava de volta do andar inferior. Nathan notou seu companheiro com o canto do olho. Hábil e mortal, Rafe tinha uma lâmina em uma das mãos, a outra pronta para sacar a 9 mm semiautomática do seu coldre.

Nathan não aliviou a pressão na garganta do humano.

— Eu te fiz uma pergunta. Se souber onde Mira está, seria inteligente de sua parte me dizer agora.

Cassian sorriu sem medo. Até mesmo divertido.

— Tantas surpresas ultimamente no que diz respeito a ela.

— Você sabe alguma coisa. — Nathan pressionou certo que achou o que precisava. — Você sabe onde o Arqueiro a está mantendo?

— Mantendo-a? — O sorriso do Cassian ficou ainda mais largo. — Meu palpite seria que ele a está mantendo bem perto.

Nathan apertou, tendo uma satisfação estranhamente sádica na resposta balbuciante do homem. Quando Cassian tossiu e ofegou, seus capangas e lutadores avançaram mais alguns passos. Rafe se moveu com velocidade sem esforço, colocando-se entre Nathan e Cassian e os guardas que se aproximavam.

— Diga-me onde encontrar o Arqueiro — Nathan exigiu friamente — ou matarei você. Não cometa nenhum erro. Sua vida só tem valor pelas informações que me der agora. Onde Arqueiro a está mantendo?

O dono do clube respirou com dificuldade.

— Não posso dizer a você nada sobre o líder rebelde ou o companheiro misterioso dela. Pena que você não estava aqui ontem à noite. Você mesmo poderia ter perguntado a eles.

O sangue de Nathan parou em suas veias.

— Sobre o que está falando?

— Eles estavam aqui. — disse Cassian. — Os dois. Falando com Rune em seu camarim no andar de baixo.

Filho da puta. 

Nathan inclinou um atordoado olhar para Rafe, que decolou imediatamente para os degraus dos fundos. Nathan olhou novamente de relance para o homem preso firmemente em seu aperto. Ele aliviou apenas o suficiente para permitir que Cassian falasse.

— Ela estava bem? Parecia que ele a machucou de alguma maneira?

— Ela ainda tinha sua língua afiada e atitude intacta, se é isso que você quer dizer.

— Você falou com ela? — Ele não gostou da sensação de confusão que rolava por ele agora. Estava acostumado a lógica fria e cálculos exatos. Esta revelação era a última coisa que esperava, e apesar de sua mente afiada, esforçou-se para dar sentido a tudo que estava ouvindo. — O que ela disse a você? Você falou com o Arqueiro também?

Rafe veio do andar de baixo sacudindo sua cabeça.

— Nenhum sinal de Rune lá embaixo.

— Nenhum. — disse Cassian, seu tom de conversa imperturbável. — Rune tirou a noite de folga.

— Onde? — Nathan exigiu.

Cassian gargalhou, o piercing preto na ponta da sua língua cintilando enquanto falava.

— Encontre a Ruiva sem sardas e acho que você encontrará Rune.

Embora Nathan ficasse surpreso, foi Rafe quem falou primeiro.

— Que porra é essa? Você quer dizer Aric Chase?

— Não. — Cassian respondeu. — Outro. Uma mulher. Uma coisinha jovem e sexy que esteve se rebaixando pelo meu clube nas últimas semanas. Encontre-a, e garanto a você que Rune não estará longe.

       

Eles fizeram a longa viagem para o antigo Darkhaven de seu avô para o norte do Maine mais cedo aquela tarde.

No meio do caminho, Mira veio abaixo com uma enxaqueca cruel. Ela assegurou a Kellan que estava bem, mas ele sentiu a explosão de dor em seu crânio através do vínculo. Ainda podia sentir enquanto ela dormia na grande suíte principal do Darkhaven. Seu desconforto era menor agora que ela estava dormindo, mas o fato de que estava sentindo dor — especialmente depois de estabelecer ligações com sua Visão por tanto tempo, ele supôs. — transtornou-o mais do que queria admitir.

Pelo menos ela achou um pouco de paz assim que chegaram no Maine. Seu esgotamento a fez vir abaixo mais de duas horas atrás, e quando Kellan entrou para verificá-la há alguns minutos, ela nem sequer se mexeu quando se sentou ao lado dela na cama.

Quanto à sua equipe, eles se adaptaram rapidamente à nova localização. Depois de acomodar Candice e cuidar do seu ferimento, Doc e Nina foram trabalhar varrendo o lugar inteiro, tirando o pó dos móveis e dos velhos eletrodomésticos que não eram usados há anos, e reabasteceram a despensa e o esconderijo de armas com suprimentos que trouxeram do forte de New Bedford.

O Darkhaven era um passo enorme a frente das comodidades primitivas de sua base anterior, com uma cozinha completa com eletrodomésticos top de linha, uma geladeira totalmente funcional e ampla, repleta de quartos com móveis confortáveis, e quase 900m² de área construída. Mas sua permanência podia ser apenas temporária. Era apenas um porto seguro para mantê-los por um curto período, até Kellan ter a oportunidade de enfrentar a tempestade que se aproximava dele de todos os lados.

Quanto a isto, só esperava que seu instinto fosse bom.

Rezava que fosse, ou provavelmente tinha arriscado a vida de todos eles fazendo o que fez hoje.

De pé nas portas francesas que davam para o bosque fechado do lado de fora da grande casa, Kellan nem ouviu Nina se aproximando dele por trás até que ela pigarreou baixinho. Girou, franzindo a testa para o frasquinho branco que ela lhe estendia.

— Remédio para enxaqueca. — ela disse, dando ao recipiente uma pequena sacudida. — Tenho somente alguns, mas pode ficar com eles se achar que podem ajudar... sua amiga.

Ele assentiu. Pegou-os da mão estendida, e deslizou o frasco no bolso.

— Obrigado.

Eles três — Nina, Candice e Doc — estavam todos reunidos no salão com ele. Estiveram observando-o andar de um lado para o outro durante algum tempo, e agora percebeu o quanto a mortalha de silêncio que caiu sobre o grupo era desconfortável. Parte daquele silêncio tinha a ver com os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas — a explosão do laboratório que se tornou manchete mundial e os distúrbios públicos resultantes que se seguiram; o sombrio adeus que deram a Chaz; agora isso, a fuga repentina para um lugar que eles nem sequer sabiam que existia.

E parte da inquietude de sua equipe tinha a ver com a guerreira da Ordem, quem obviamente era algo mais para ele do que apenas uma prisioneira sendo mantida contra vontade.

Ele levantou o olhar para seus rostos agora e viu sua confusão, sua cautelosa incerteza sobre quem ele realmente era e o que Mira significava para ele.

Isso o incomodou, aqueles olhares inquietos.

Eles não o conheciam, nem mesmo depois de oito anos vivendo lado a lado. Eles protegeram o segredo de sua origem da Raça, mas não lhes deu nada em troca. Eles ofereceram sua confiança e amizade, mas ele os manteve afastados.

Não mais, decidiu.

Estas três pessoas — estes humanos, pelo amor de Deus! — tornaram-se seus amigos. Tornaram-se sua família, e o matava que só estivesse vendo isto nesse instante. Agora, quando em breve seria forçado a deixá-los para trás.

— Não fui justo com vocês. — disse, dando uma sacudida pesarosa de sua cabeça. — Estive mentindo para vocês todo este tempo. Vocês nem sabem meu nome. Não é Arqueiro. É Kellan. Meu nome é Kellan Archer.

Doc fez uma careta, suas sobrancelhas pretas franzindo, estreitando os olhos castanhos com suspeita. Nina inclinou a cabeça de cabelos negros questionando, seu olhar de inquietação aprofundando. Somente Candice encontrou seu olhar sem perplexidade ou surpresa. A jovem compreensiva e perspicaz provavelmente descobriu a maior parte sozinha no outro dia, quando ela e Mira conversaram. As duas formaram algum tipo de afinidade — o que poderia se tornar uma amizade, se as circunstâncias fossem diferentes.

Ela lhe deu um leve aceno de cabeça, e ele pigarreou para continuar.

— Vocês souberam desde o início que eu sou Raça. Isto é algo que não esperava esconder de vocês. Candice e Doc, vocês souberam na noite que me tiraram da névoa e salvaram a minha vida. Nina você já sabia disso há meses. Todos conheciam meu segredo e o guardaram.

— Nós somos seus amigos. É isso que amigos fazem um para o outro, Ar... — a voz do Doc se interrompeu abruptamente, e ele sacudiu a cabeça pra frente e pra trás, soltando um longo suspiro. — Amigos vigiam suas costas. Você foi nosso também... Kellan?

Ele acenou com a cabeça ante a pronúncia como um teste de seu nome.

— Eu ainda guardo suas costas, Javier. Enquanto eu respirar, saibam que vigiarei as costas de todos vocês. E quero colocar tudo pra fora esta noite, sem mais segredos. Sem mais mentiras. Quero que saibam a verdade — toda. E parte da minha verdade está dormindo naquele quarto no fundo do corredor.

— Você a ama. — A expressão de Nina abrandou para uma de compreensão. Saudosa e quieta, sem dúvida por causa do amor que ela conheceu, não muito tempo atrás. Conheceu e perdeu, tirado dela por quem quer que fosse que fugiu com a tecnologia UV de Jeremy Ackmeyer. — Você amou esta mulher por muito tempo, não é?

Kellan assentiu.

— Toda minha vida. É o que parece. Eu a amei desde que éramos crianças... Quando Mira e eu fomos criados pela Ordem.

Ninguém disse uma palavra. Até Candice agora olhava para ele com expectativa.

— Você é da Ordem?

— Era. — ele corrigiu. — Muito tempo atrás.

Contou a eles sobre a destruição do Darkhaven de sua família quando tinha treze anos. Como ele e seu avô Lazaro Archer, o dono do lugar que eles agora ocupavam, foram aceitos sob a proteção da Ordem. Contou como conheceu uma diabinha teimosa de oito anos com cabelos claros que se recusou deixá-lo desistir, forçando-o a aceitá-la como sua amiga. Contou como aquela mesma diabinha floresceu em uma mulher incrível e um guerreiro impressionante, como ele e Mira treinaram juntos com a Ordem, tornando-se eventualmente membros da mesma equipe de patrulha.

E então contou como, depois de finalmente admitir para si mesmo que se apaixonou por ela, depois de finalmente ceder ao desejo que compartilhavam, seu mundo desabou em um instante, quando ele vislumbrou seu futuro nos extraordinários olhos dela.

Contou a eles sobre a explosão do armazém que deveria tê-lo matado, mas não matou. E como foi um covarde, tomando o que pensou ser a saída mais fácil — fugir o mais longe e o mais rápido que pôde da visão que temia — e deixando Mira e todo mundo com quem ele se importava na época, acreditando que realmente estava morto.

— Pensei que estivesse sendo bem cuidadoso, certificando-me que nossos caminhos nunca se cruzassem. — Ele proferiu um palavrão baixo. — E então veio o telefonema de campo, depois que a captura de Ackmeyer não saiu do modo que planejamos. Quando ouvi que pegamos um membro da Ordem... Uma guerreira... Eu devia ter contado tudo a vocês. Acho que ainda estava enganando a mim mesmo que poderia escapar disso. Que podia fugir do inevitável.

— Parece como se você estivesse desistindo, chefe. — Doc olhava para ele como o cirurgião de campo que era examinando um ferimento mortal. — Está me dando a impressão como se tivesse nos trazido aqui para dizer adeus.

— Eu precisava fazer o que podia para ver que os três tivessem a chance de sair disso incólumes. — disse Kellan. Ainda não estava pronto para falar sobre despedidas. — Quero que pensem sobre o vão fazer com suas vidas depois que tudo isto tiver terminado.

— E você e Mira? — Candice perguntou suavemente.

Ele sacudiu sua cabeça lentamente, considerando.

— Preciso saber que ela ficará segura também. Ela pertence à Ordem; aquela é a sua família. Eles cuidarão dela. Eles a ajudarão a passar por isso.

Candice o observava, seus olhos castanhos esverdeados extremamente sábios.

— E você, Kellan? Onde tudo isso te deixa?

Ele deu um grunhido sarcástico com resignação.

— De volta ao começo.

Pelo menos teve este momento de honestidade com estas pessoas. Pelo menos teve alguns dias e noites preciosas com Mira. Um presente que fazia qualquer preço que pagasse mais valoroso que o custo.

Ele tinha o amor dela.

Ela sempre teria seu coração.

— Acho que ela finalmente está acordada. — Nina disse e um momento depois Kellan ouviu um barulho de movimento vindo do corredor que dava para o quarto.

Ele já estava se dirigindo para lá, pulando pra ação pela súbita explosão de dor que o atravessou pelo vínculo de sangue. Seus passos largos devoraram a distância. Abriu a porta e encontrou a cama vazia, as cobertas afastadas para o lado.

— Mira?

Ele a viu um segundo mais tarde no chão, junto ao pé da cama. Suas mãos estavam embrulhadas ao redor de sua canela. Assim que Kellan abriu a porta, suas narinas tremularam com o soco que parecia ter levado ao inalar o aroma de lírio de seu sangue.

— Jesus Cristo. O que aconteceu?

— N-nada. — ela gaguejou. Ele via agora que ela teve uma hemorragia no corte em sua perna. — Eu devia estar meio adormecida quando saí da cama. Bati minha canela na armação da cama.

— Vou arrumar alguma coisa pra isso. — Ele entrou no banheiro atrás de uma toalha molhada, então voltou com a compressa fria para ela. — Aqui. Use isto.

Seus dedos trêmulos se sacudiam quando ela tomou o pano dele e o pôs no ferimento. Não era nada sério, mas o fato dela ter tropeçado — Mira, uma mulher que sabia onde pisava como nenhum que ele jamais viu e, além disso, um guerreiro de combate provado. — fez um nó frio se formar em seu interior.

— Como está se sentindo?

— Bem. — ela respondeu depressa. Muito depressa. E o vínculo de sangue lhe disse outra história. Ele registrou medo e confusão correndo debaixo da ferroada do ferimento e o pulsar surdo da enxaqueca ainda presente. — Não se preocupe comigo, Kellan. É apenas um arranhão.

Ele relanceou o olhar para seu rosto, para seus olhos, os quais pareciam estar procurando por ele, apesar de seu esforço de travar o olhar no dela. Oh, Cristo! Não queria reconhecer o pensamento que rastejou para dentro de sua cabeça. Não queria considerar a terrível possibilidade.

— Mira... — Ele estendeu a mão diante do seu rosto, bem próximo aos seus olhos.

O olhar dela se sacudiu uma fração, mas ainda não veio descansar nele como rezava para fazer. Sua voz soou tão baixinha. Tão assustada que era de partir o coração.

— O que... o que você está fazendo, Kellan?

Ela não tinha a menor ideia. Ele entendeu isso sem nenhuma dúvida agora.

Mas ele tinha que saber, tinha que ver a verdade por si mesmo.

— Fique quieta. — ele disse a ela suavemente. — Eu não vou te machucar.

Cuidadosamente ele removeu uma de suas lentes de contato.

— Kellan, não... — Ela sugou uma respiração afiada e tentou evitar o rosto dele, mas ele a trouxe de volta e cuidadosamente removeu a segunda lente. — Kellan... eu não queria que você soubesse. Pensei que talvez se descansasse um pouco, eu melhoraria.

— Oh, Ratinha. — Ele mal podia falar. As palavras tinham gosto de cinza em sua língua. — Oh, Jesus, bebê... não.

Por trás das lentes, suas íris já não eram mais claras como um espelho.

Eram de um branco leitoso. Opacas.

Suas pupilas olhavam fixamente para frente, pontinhos minúsculos no centro dos olhos cegos.

 

Nathan já tinha Aric Chase na linha quando Rafe e ele deixaram o La Notte.

— Você tem alguma ideia de onde sua irmã está hoje à noite?

— Carys? Sim, ela está com Jordana Gates em seu apartamento em Back Bay.

Nathan olhou de relance para Rafe, que acenou com a cabeça em reconhecimento.

— Eu conheço o lugar. Comunidade, a uma quadra do Jardim Público.

— O que ela fez agora? — Aric perguntou mais sobriamente: — Ela não está metida em algum tipo de problema, não é?

— Isso é o que vamos ver. — Nathan respondeu, sabendo que isto não era a coisa mais reconfortante a dizer ao irmão gêmeo da garota, mas ele não tinha muita prática quando se tratava de diplomacia. — Eu te informarei assim que falar com ela.

Cortou a ligação sem falar mais e deslizou a unidade de comunicação de volta no bolso do seu uniforme preto de serviço. Então ele e Rafe viraram a esquina e aumentaram o ritmo enquanto se apressavam para Back Bay. Não fazia sentido pegar o veículo quando sua genética de Raça os levaria pela cidade num instante a pé. E se Rune realmente estava fazendo companhia ilícita a Carys Chase, Nathan queria estar bastante certo sobre isto, antes de rasgar o sacana lutador de gaiola em pedaços com suas próprias mãos.

Em poucos minutos, ele e Rafe se aproximaram da mansão vitoriana de pedras calcárias brancas no endereço que Aric indicou. Eles subiram os degraus de mármore até as duplas portas pretas polidas e invadiram o foyer com suas botas de combate fazendo um ruído surdo como a marcha do exército invadindo o silêncio sofisticado do lugar.

Um humano grisalho de meia idade em uniforme alugado de policial se levantou detrás de uma longa escrivaninha de mogno da recepção, quando o par de guerreiros da Raça atravessou o salão de entrada. Quando o guarda imponente começou a deixar escapar um protesto para eles, Nathan o silenciou com um olhar sombrio que cortou seu caminho com um flash das presas. Sabiamente, o humano imediatamente colocou sua bunda de volta na cadeira e ficou ocupado estudando as unhas.

Nathan enviou um comando mental ao elevador do salão de entrada e o tal ausente começou a descer até ele.

— Fique aqui embaixo. — disse a Rafe quando as portas deslizaram se abrindo. — Se você vir Carys ou Rune tentar escapar enquanto estou lá em cima, mantenha-os aqui. Ligue pra mim.

Rafe deu um aceno com sua cabeça loira. Os tristes olhos do jovem guerreiro brilharam com propósito enquanto Nathan entrava no elevador e psiquicamente o trancou depois que passou e apertou o botão para a cobertura.

Alguns segundos mais tarde, as portas do elevador se abriram e se encontrou olhando fixamente para um bloqueio de grade de ferro preta. Do outro lado daquele bloqueio estava o interior elegante do luxuoso apartamento de Jordana Gates. Com três metros e meio de altura, pisos de mármore branco cintilante, iluminação suave e dourada em todo lugar que ele olhava, banhando com um brilho quente e convidativo as paredes pintadas em tranquilos tons de creme, branco e azul claro.

Enquanto esteve ali de pé atrás da parede preta de ferro fundido, uma leve voz feminina, que adivinhou que devia pertencer à amiga de Carys, chegou aos seus ouvidos antes que tivesse a chance de vê-la.

— Seamus, não me diga que deixei meu guarda-chuva no salão de entrada de novo.

Uma loira etérea alta e esguia deslizou ao redor de um volumoso pilar de mármore no vestíbulo. Vestida com uma saia marfim sob medida na altura do joelho e uma blusa de seda da cor de estanho polido, a qual, ele notou com mais interesse do que gostaria, estava desabotoada até um lugar atraente entre seus seios, ela fez uma parada abrupta em suas delicadas sandálias de salto alto. As ondas platinadas numa queda espessa cascateando suas costas abaixo até a parte de trás de suas coxas reviraram em torno dela quando congelou em seu lugar e olhou fixamente para ele. Ela era... deslumbrante.

— Oh. — ela disse, só agora percebendo que não estava falando com o guarda do andar de baixo. Olhos grandes e expressivos em um tom elétrico de azul que pareciam quase irreais de tão intensos, encontraram seu olhar sisudo por trás do arabesco preto da grade.

— Carys Chase. — Nathan anunciou com firmeza.

— Pois não? — Ela franziu o cenho, engolindo em seco visivelmente. — Não. Sou Jor...

— Sei quem você é. Estou aqui procurando Carys Chase. Gostaria de falar com a mulher. Agora.

Alarme estampou nas feições marcantes de Jordana Gates.

— É... alguma coisa errada? Por que você pensa que ela está...

Usando o poder de sua mente, Nathan abriu a barreira de ferro que estava trancada.

— Eu sei que ela está aqui.

Jordana deu um passo atrás quando ele entrou sem ser convidado. Ela jogou um olhar ansioso por cima do ombro, levantando sua voz num nível que, sem nenhuma dúvida, seria ouvido até a parte de trás da enorme residência.

— Ela não está aqui, e não aprecio a Ordem se intrometendo na minha casa sem ser anunciada.

Nathan sentiu o canto de sua boca se curvar, não tanto com humor, mas pelo leve incômodo de que esta socialite Darkhaven emergente pudesse imaginar que podia interferir em seu propósito. Avançou outro passo, mas desta vez, em vez de retroceder, a companheira de Raça bloqueou seu caminho.

— Não. — ela disse, plantando seu salto alto firmemente diante dele. — Não. Você não pode simplesmente pisar na minha residência particular como se fosse o dono do lugar.

Ele inclinou sua cabeça, perplexo e um pouco irritado pela sua falta de medo e contínua resistência.

— Carys Chase! — Ele rugiu, sua voz retumbou alta no teto abobadado do vestíbulo.

Jordana deu um passo mais perto.

— Eu disse que você não é bem-vindo aqui. Quero que saia de uma vez. Estou falando sério.

Seu aborrecimento se transformou em descrença quando ela chegou bem diante da sua cara, totalmente sem se intimidar por ele.

— Não vou deixar você dar mais um passo na minha casa, guerreiro.

Nathan não podia engolir sua risada de volta.

— Mulher, a menos que você tenha um exército de guarda-costas acampados em seu salão, como pretende fazer pra me impedir?

Ele começou a dar um passo firme adiante, e ela também. Mas em vez de empurrá-lo ou gritar pedindo ajuda, Jordana Gates fez algo ainda mais surpreendente.

Ela o beijou.

Sem nenhum aviso, os lábios estavam sobre os dele, os dedos dela agarrando seus ombros, os seios esmagados no peito dele.

Por um longo momento Nathan ficou ali de pé congelado, totalmente estupefato. O calor de sua boca, a suavidade de seu corpo, o modo como os lábios estavam derretendo contra os seus... tudo isso combinado em uma tempestade de sensações que ele estava mal preparado para lidar, inclusive sob as melhores circunstâncias. Combate mão-a-mão e execuções discretas, sem problema. Mas esta era uma situação muito além de suas habilidades e treinamento.

Ele não era virgem — nem sequer perto disso. Mas os encontros impessoais que preferia buscar fora nunca envolviam toques, abraços ou beijos.

Naquele momento, Jordana Gates não poderia tê-lo chocado mais se ela puxasse sua 9 mm do seu coldre no quadril e atirasse à queima-roupa no seu peito.

Tanto assim, que nem estava ciente de que eles já não estavam mais sozinhos na sala, até que ouviu o som baixo de algum macho pigarreando em algum lugar perto.

Abruptamente, Nathan se desembaraçou dos braços de Jordana e pôs uma distância saudável entre eles. Seus olhos azuis da cor do mar estavam arregalados, as pupilas dilatadas, aprofundando o azul Caribe do seu olhar antes do beijo para um tempestuoso turquesa agora. Ela levantou a mão até a boca e recuou depressa, movendo-se para a segurança ao lado do amigo na sala de estar adjacente ao vestíbulo.

A bela e culta Carys Chase estava lá ao lado do moreno e perigoso Rune, seus dedos entrelaçados aos dele.

— Está tudo bem, Jordana? — Ela sussurrou. Então, para Nathan, sem gentileza em seu tom de voz: — Por que veio aqui? Por que diabos acabou de atacar Jordana? Diga-me o que está acontecendo!

A outra companheira de raça sacudiu sua cabeça loira platinada, muda. Até Nathan teve dificuldade em convocar sua voz por uma segunda. Ele nivelou um olhar frio em Rune.

— É isso o que eu vim aqui descobrir: que merda está acontecendo?

Rune manteve o olhar fixo, seus olhos escuros inabaláveis.

— Somente visitando amigos em uma rara noite de folga do trabalho. Suponho que não existe nenhuma lei contra isto.

— Não se engane, você e eu conversaremos mais tarde sobre o que pensa que está fazendo com esta mulher. — Nathan respondeu. Ele inclinou um duro olhar para Carys, adicionando. — Nós conversaremos também. — Nisso o queixo dela subiu mais um nível, impertinente, impenitente. — Agora estou aqui pra falar sobre o amigo que você encontrou ontem à noite no clube. — ele disse para Rune.

O lutador da Raça tinha uma expressão estranha em seu rosto, mas só durou uma fração de segundo antes dele fechá-la com uma máscara de indiferença.

— Não tenho a menor ideia do que você quer dizer.

— Não é isso que Cassian acabou de me dizer alguns minutos atrás quando estive lá. — rebateu Nathan. — Ele disse que você teve a visita de um pedaço de merda rebelde chamado Arqueiro.

Agora Rune riu, e pelo que Nathan podia dizer, sua negação era genuína.

— Você foi mal informado, homem. Não vou tentar adivinhar o jogo que Cass está jogando com você, mas não ando com rebeldes. E não conheço ninguém com este nome.

Sério? Cassian me disse que o Arqueiro esteve no La Notte ontem à noite com Mira.

— A expressão de Rune pareceu ficar um pouco mais fechada agora. — Cassian disse que você falou com eles durante algum tempo em seu camarim.

— Isto é mentira. — Carys interrompeu com seu cabelo castanho caramelo balançando quando deu uma sacudida veemente de sua cabeça. — Rune não esteve com ninguém em seu camarim ontem à noite... exceto eu.

Nathan deixou um palavrão escapar por entre seus lábios firmemente apertados. Sua consternação perante aquela notícia repentina era só ligeiramente menos do que seria para os pais da Carys ou seu irmão gêmeo.

— Obviamente, alguém está mentindo para mim agora. — disse Nathan. — E vou avisar a todos vocês uma vez que não tenho tempo para palhaçada.

Rune olhou fixamente para ele, avaliando. Quase suspeito.

— Soa como se a Ordem tivesse algum problema em suas mãos.

— Você viu ou não o Arqueiro com Mira ontem à noite? — Perguntou ao lutador. — Se sabe qualquer coisa sobre o que ele está fazendo com ela, preciso saber. A vida dela pode depender disto.

Carys apertou a mão de Rune um pouco mais forte e Nathan notou. Mas Rune não deixou nada transparecer em seu rosto.

— Lamento, não posso ajudar.

— Lamento. — Nathan rosnou a palavra. — Eu posso fazer você se lamentar.

Talvez fosse isso que o desgraçado precisava. Nathan deu um passo à frente, e não pode deixar de notar que Rune ficou de pé ali. Não importou, porque no instante seguinte, ambas as mulheres deram um passo à frente para se colocarem entre os dois machos da Raça.

— Pare com isso agora. — Carys gritou. Ela deu meia volta em direção a Rune. — Você dois, parem com isso!

Nathan não podia tirar os olhos de Jordana, mas viu com sua visão periférica quando Rune acariciou suavemente a face de Carys.

Nathan odiava que provavelmente acabaria magoando seu terno coração nos próximos minutos, quando ele e seu suposto e mais do que pouco provável namorado levassem sua discussão não muito amigável para o embate físico.

Quando pensou em fazer exatamente isto, sua unidade de comunicação zumbiu no bolso da sua calça. Ele o tirou, viu que quem estava ligando era Eli, um de seus companheiros de equipe em Boston. Antes de Nathan pudesse até mesmo pedir uma atualização, Eli soltou as notícias pelas quais Nathan esteve disposto a matar hoje à noite para ter.

— Temos a localização do Arqueiro.

— Onde? — Nathan exigiu. Seu impasse com Rune de repente menos importante levando em consideração esta informação crucial.

— Ouvimos rumores de uma base rebelde em New Bedford pra quem o desprezível Vince vendeu uma dúzia de armas semiautomáticas no inverno passado. Disse que ele lidava apenas com Vince, nunca chegou a ver o Arqueiro ou qualquer outra pessoa, mas a ligação à possível base parece sólida. Não muito, mas é alguma coisa, certo?

— Concordo. — disse Nathan. — Onde você está?— Eli desfiou a localização da equipe na cidade. — Okay. Rafe e eu estaremos lá em menos de cinco minutos. Entre em contato com todo mundo na patrulha esta noite, avise-os que estamos nessa. Estamos indo para New Bedford sem demora.

— Entendi capitão.

Eles cortaram a chamada e Nathan nivelou um último olhar para o lutador assassino conforme empurrava a unidade de comunicação de volta ao seu bolso.

— Se alguma coisa acontecer com Mira porque se recusou a falar, farei você se arrepender. E em dobro, se alguma coisa acontecer com ela.

Os olhos escuros de Rune se estreitaram ante a ameaça.

— Eu dou a minha vida pela de Carys.

Nathan ridicularizou bem ciente da natureza duvidosa do macho da Raça e seu modo infame de viver.

— Ela vale dez de você, e você sabe disso.

— Aye. — Rune concordou com o primeiro indicador do sotaque que normalmente mantinha silenciado. Ele devolveu um olhar solene, mas sem desculpas. — Eu sei disso, guerreiro.

Com Jordana Gates olhando fixamente para ele como se fosse o próprio diabo de pé no meio do seu apartamento, e Carys segurando firme a enorme mão coberta de cicatrizes de batalha de Rune, Nathan deu meia volta e saiu da cobertura.

Voltando para o salão de entrada indo ao encontro de Rafe, Nathan teve que se concentrar em seu treinamento, a fim de trazer seus sentidos de volta ao seu estado de propósito frio.

Saiu a passos largos do elevador no andar térreo, e fez um sinal ao seu companheiro de equipe com um movimento brusco da mão. Colocou Rafe a par do novo desenrolar, então os dois guerreiros saíram, prontos para negociar com muita dor e morte para o Arqueiro e seus seguidores rebeldes.

E enquanto isso, a boca do Nathan ainda ardia do inesperado e perturbador e inesquecível beijo de Jordana Gates.

       

A escuridão era de uma negritude completa.

O vazio ao redor dela era frio e silencioso quando Kellan se afastou de ambos. Dela e da cegueira que a envolvia. Não sabia o que ele via em seus olhos agora, só sabia que o horror de seu olhar cego o afastou com um violento palavrão.

— Kellan, eu não queria que você soubesse. — Murmurou angustiada por sua retirada. — Eu não queria que você me visse assim...

— Você não pode ver nada? — Sua voz era dura, afiada com uma fúria que sabia que estaria escrita em seu rosto bonito, seus olhos podiam achá-lo na escuridão. Quando ela balançou lentamente a cabeça, sua respiração o deixou com um gemido.

Atrás dela, embora Kellan não tenha se movido, ouviu a porta da casa bater como um tiro. Ela deu um pulo, seus outros sentidos hiperalertas na ausência de sua visão.

Quando Kellan falou novamente sua voz era abafada, um sussurro firmemente controlado.

— Porra, Mira. Estamos fodidos, pelo modo como você fodeu com tudo.

— Kellan, me desculpe...

— Não faça isso. — Ele a cortou brevemente, mas em seguida suas mãos estavam na parte de cima dos braços dela. Seu aperto tremia e os dedos a seguravam com ternura. Tão dolorosamente. — Jesus, não se desculpe por nada agora. Não pra mim. Não mereço isso. Olha o que fiz para você.

Ela queria tanto ver seu rosto. Precisava saber se a emoção que ouvia em sua voz agora era tristeza por ela ou a piedade que soava. Engoliu em seco, com tanto medo que o estivesse perdendo — não por causa do destino que ameaçava roubá-lo dela, mas porque não era mais inteira aos seus olhos. Estava quebrada e não tinha ninguém além de si mesma para culpar.

— Não posso deixar você viver assim. — ele murmurou, partindo seu coração ainda mais. — Preciso consertar isto, se eu puder. Você precisa de sangue, Mira. O vínculo pode ser capaz de reparar isto.

Quanto tempo ela esperou para ouvi-lo dizer que seu sangue era dela para tomar? Quantos anos ela os imaginou juntos como um par acasalado pelo vínculo de sangue? Agora ela sentiu sua oferta como um tapa na cara. Aquilo doeu. Ele a magoou tão profundamente que ela balançou para trás, ferida e anestesiada pelo golpe.

— Não quero que você sinta pena de mim. — Conseguiu dizer numa voz baixa e rouca. — Não se atreva a me dar sua caridade, Kellan.

— Caridade? — Ele murmurou com voz rouca. Uma de suas mãos levantou para acariciar sua bochecha. — Deus, não. O que estou sentindo não é piedade. É remorso. E medo. E amor, Mira. Tanto amor por você. — Ele exalou asperamente. — Nunca imaginei que as coisas pudessem dar tão errado para nós. Houve tantas vezes que quis pedir a você para me aceitar como seu companheiro. Eu deveria ter pedido, mas estava apavorado com a dor que sentiria se te perdesse.

— Foi você quem partiu. — ela o lembrou. — Eu fiquei. Teria ficado com você, mesmo sabendo como tudo poderia terminar.

— Eu sei. — Ele respondeu com o remorso engrossando sua voz profunda. — E eu deveria dar a você essa escolha. Agora vejo isso. — Ele ironizou baixinho. — Vejo um monte de coisas com mais clareza agora, quando é tarde demais para voltar atrás. Mas talvez não isto. — ele disse com seu polegar roçando suavemente por sua pálpebra enquanto continuava a acariciar seu rosto. — Eu poderia ser capaz de consertar isso pra você. E estou te pedindo para me dar essa chance, Mira.

Ternas e belas palavras. Ela podia sentir seu carinho pelo tom calmo de sua voz e no modo cuidadoso como acariciava sua pele. Ele se importava. Ele a amava, ela não tinha dúvidas agora.

Mas não estava se dando como seu companheiro. Estava dando a ela uma chance de se curar através de seu vínculo de sangue. Ele a queria inteira novamente, mas estaria oferecendo este presente se ela estivesse olhando dentro de seus olhos neste momento, enxergando-o como o homem que ela amava. O macho que seu coração estava vinculado, com ou sem seu sangue para selá-lo?

Seu próprio sangue deve tê-la traído para ele, porque mal pensou isto, o toque de Kellan deslizou debaixo do seu queixo, erguendo seu olhar cego até encontrar os olhos dele.

— Quando eu me imaginava compartilhando esta parte de mim com você, Mira, era uma coisa sagrada. Uma coisa feita com paixão, com prazer, com uma promessa de eternidade diante de nós. Nunca foi assim. — ele disse com sua voz rouca, tão gentil. — Isto nunca deveria ser feito com você sofrendo e com medo, e eu impotente, desesperado, em última instância, condenado a te perder. E nunca menos apropriado para ser aquele a quem você se vinculou, do que sou neste momento.

— Não há nenhum outro que eu queira Kellan. Nunca houve. — Ela estendeu a mão para ele, esforçando-se para encontrá-lo, tocando somente ar e escuridão. Frustração fervia no fundo de sua garganta, estourando em um pequeno grito quebrado.

Então a mão de Kellan encontrou a sua, tomando-a em seu aperto forte.

— Aqui. — Disse, dando um beijo no meio da sua palma. — Estou com você, Ratinha.

— Sim, você está. — Ela respondeu. Seu amor por ele inchando dentro dela até que sentiu que seu coração podia explodir. — Você não vai me abandonar, não é Kellan? Foi isso que você me prometeu. Não me abandonar.

Sua maldição foi um juramento sussurrado. Então sua boca estava sobre a dela, reivindicando-a em um beijo possessivo, ainda que dolorosamente doce. Quando ele rompeu o contato um longo momento mais tarde, ela o sentiu mover o braço. Ouviu um som suave e molhado, sentiu o aroma picante e obscuro de seu sangue.

— Abra sua boca para mim, bebê. — ele sussurrou, colocando o pulso contra seus lábios entreabertos.

Mira o tomou dentro dela. O primeiro gole de seu sangue como uma lambida de fogo em sua língua. Ela engoliu, então puxou outro gole em sua boca. E outro.

Ela não estava preparada.

Como alguma vez poderia estar preparada para conhecer o rugido de calor e energia que era o vínculo de Kellan?

Mira o bebeu em goles fervorosos e ávidos. Enquanto o vínculo de sangue deles era completado, ela podia apenas segurá-lo e se entregar ao fluxo de luz e força, e algo ainda mais intenso — algo que desafiava qualquer descrição — derramando-se em cada músculo, osso e célula.

Ele era dela.

Kellan pertencia a ela em todos os sentidos agora, e se o destino quisesse tomá-lo dela, Mira pretendia dar a essa cadela cruel uma boa briga.

 

Vazio.

Nenhum sinal de Mira, do Arqueiro ou qualquer um no antigo forte militar nos limites de New Bedford. O Bunker e a coleção de baterias subterrâneas se arrastavam ao longo de um matagal abandonado e rodeado em três lados pelo Oceano Atlântico, parecia ter sido desocupado muito recentemente. Eles perderam os rebeldes bastardos.

Não era esse o tipo de informe que Nathan gostaria de dar para Lucan. Droga, já foi ruim o suficiente ter de reportar isso para Nikolai há alguns minutos. Ele não aceitou muito bem, explodindo em uma negra fúria assassina. O pai de Mira determinou em Boston, com um pequeno esquadrão de irmãos da Ordem, que ela iria em segurança para casa sem eles antes do amanhecer. Agora essa perspectiva estava se tornando cada vez menos viável.

O time de Nathan, junto com os três parceiros de Mira, fizeram uma varredura completa na suposta base rebelde e não deu em nada. Apenas móveis abandonados, mesas e cadeiras, berços e camas, tudo ainda funcional, da mesma forma que foi usado pelos rebeldes da última vez. Porém Mira esteve lá; Nathan quase podia sentir em seus ossos a presença dela.

— Porra! — o xingamento explodiu dele. Uma reação muito forte para conter. Não deixou de notar todas as cabeças viradas em sua direção. Sombrio, olhou para seu time e o encontrou através da escuridão enquanto os guerreiros se reagrupavam na grama rala de fora do abrigo. Niko e seu esquadrão agora estavam chegando lá também, para avaliar o lugar por si mesmos e traçar estratégias para a patrulha do resto da noite, com Nathan e os outros homens.

— Evidentemente fugiram correndo. — Balthazar reforçou sem seu costumeiro humor de um vampiro grande. — Como ratos em um navio afundando.

Rafe concordou

— Talvez alguém os tenha avisado que estávamos chegando.

— Se eles foram avisados de nossa chegada — Eli acrescentou —, isso significa que moveram suas bundas daqui menos de cinco minutos antes da nossa chegada.

— Não saíram em pânico. — Torin disse. Inclinou a cabeça para trás, as longas tranças em suas têmporas balançando contra as maçãs do rosto afiadas enquanto lia a energia no ar. — Eles tiveram tempo de pegar tudo o que necessitavam. Quando se foram, e pelo que parece, meu palpite seria em algum momento no final da manhã, foram em seus próprios termos.

Jax balançou um de seus hira-shuriken entre os dedos, o metal brilhando com precisão letal sob a luz do luar.

— Não importa por que ou quando eles se foram. Só importa para onde foram.

— E isso nos remete de volta a cena inicial. — disse Webb, o guerreiro que Lucan designou para o comando do esquadrão de Mira após o incidente com Galo nem uma semana atrás. Pelo olhar de soberania na face do macho da Raça, foi um posto que ele aceitou apenas por obrigação, não por ambição pessoal. — Não posso acreditar que ela não estava chutando a bunda desses rebeldes sozinha e vinha caminhando para nós como se não fosse grande coisa. Merda. É dessa maneira que Mira entra em combate? — Webb balançou a cabeça contemplando — Porra de Valquíria, cara. Não importa se ela não é da Raça; seria necessário um exército de humanos para derrubá-la e mantê-la no lugar. E eu, por exemplo, me recuso a acreditar que ela não está respirando lá fora em algum lugar.

Não pela primeira vez, os pensamentos de Nathan eram parecidos. O que foi feito à Mira para mantê-la presa por tantos dias? Teria tentado revidar? E o Arqueiro? Como foi capaz de trazê-la ontem à noite no La Notte, um local público, e ela não achou uma maneira de escapar dele?

Um cenário preocupante começou a se formar na mente de Nathan.

Ele não gostou de como isso soava. Não queria pensar que Mira pudesse de alguma forma, estar relacionada com os rebeldes e seus atos criminosos. Ou pior… ela poderia ter se permitido se encantar pelo Arqueiro?

O último era o mais cômico, e tão incompreensível. Sempre houve apenas um único homem para Mira, e ele morreu há oito anos. Alguns dias na companhia de rebeldes humanos, uma classe de indivíduos que ela desprezava abertamente, não iria voltá-la contra a Ordem ou sua família.

Mas ainda assim…

Era essa última possibilidade perturbadora, a menos lógica dentre todas, que se mostrava mais difícil para Nathan ignorar.

Tinha algo que ele não estava vendo. Algo com o qual ainda não estava conectado. Algo encoberto que ele considerou como sem importância em meio à urgência da busca pelo abrigo.

— Problemas, Capitão?

Ele acenou para a questão sem o conhecimento de quem a fizera. Suas botas já estavam esmagando a terra abaixo dele, seus passos propositalmente largos enquanto andava para trás na escuridão úmida do esconderijo rebelde.

Ele verificou cada sala e corredor novamente, com menos urgência desta vez, observando cada mesa rústica, cadeira, berço, em cada esquina e canto do lugar. E não encontrou nada.

Nada, até que chegou à última sala, aquela situada no fim do corredor.

Algo quebrou embaixo das botas dele. Um pequeno pedaço de vidro quebrado.

Ele parou, levantou o pé para pegar o caco elegantemente prateado. Segurando o pequeno caquinho entre os dedos, Nathan levantou seu olhar e examinou cada centímetro da sala escura, seus olhos da Raça interessados no escuro.

Ele deteve sua cabeça, encarando um objeto depositado no centro dos lençóis emaranhados. Inclusive agora estava tentado a ignorá-lo. Apenas um espelho quebrado jogado com pressa na cama desfeita quando os rebeldes correram para desocupar o local.

Exceto que eles não saíram com pressa.

Nathan suspeitou antes, quando era óbvio que tiveram tempo de pegar armas e roupas, equipamentos e alimentos. Então Torin confirmou lendo a energia do lugar deixada no decorrer da evacuação.

O Arqueiro e seus rebeldes fugiram com Mira em seus próprios termos, e não em pânico. Eles tiveram tempo para uma varredura completa, exceto por uma minúscula lasca de vidro no chão, ainda que não se preocupassem em retirar o espelho quebrado junto com ele.

E agora os instintos caçadores de Nathan se arrepiaram com o frio da percepção.

O espelho foi deixado para trás, não jogado esquecido sobre a cama.

Colocado lá de propósito.

Ele se aproximou e o pegou. Olhou para o intricado desenho no trabalho embutido na parte polida e prateada de trás da peça. A insígnia foi familiar uma vez, mesmo que não a tivesse visto em muito tempo, não desde a quase aniquilação da família a quem o emblema de arco-e-flecha pertencia.

— Archer. — Nathan murmurou baixinho. Em seguida, uma maldição que tinha partes iguais de incredulidade e indignação. — Arqueiro.

Como poderia ser possível?

Só havia uma pessoa que ele sabia que poderia ter essa lembrança. Apenas uma pessoa poderia possuir a capacidade de correr sob o radar da Ordem, bem debaixo da porra dos seus narizes.

Mas essa pessoa estava morta.

Nathan testemunhou pessoalmente a explosão que matou o guerreiro que fora como um irmão para ele. Ele viu as chamas atiradas no céu da noite momentos após Kellan Archer entrar, apenas meros segundos antes que Nathan e Mira o seguissem até o armazém para morrer junto com ele.

Mas o que Nathan não tinha visto, ele percebeu agora, o que nunca ninguém quis procurar e encontrar foram as cinzas e escombros deixados para trás, os supostos restos de Kellan.

Filho da puta.

Nathan aumentou o aperto em torno do espelho delicado com o emblema da família Archer. Ele não gostava do sentimento de confusão que o abalava agora, enquanto tentava encaixar logicamente as peças desse quebra-cabeça perturbador que estava vendo pela primeira vez. Kellan Archer poderia estar vivo? Todo esse tempo enganando todos que conhecia, vivendo em Boston como uma espécie de fantasma? Se sim, como tinha acabado neste lugar com um novo nome e um grupo de rebeldes humanos sob o seu comando?

Traição não era algo que a lógica letal de Nathan o treinara para combater. Ele nunca se importou o suficiente sobre algo para experimentar qualquer sentimento de injustiça quando se foi, mas agora a estranha emoção agitava seu ser, amarga como ácido.

E o que dizer de Mira?

Tanto quanto ele quisesse negar a decepção por Kellan, a perspectiva de Mira sendo puxada na equação fez a agitação ácida dentro dele esfriar. Isso fez o assassino dentro dele se acalmar calculando, se preparando para cortar todos os laços emocionais na execução de sua missão.

Nathan considerou o espelho estilhaçado o agarrando apertado em seu punho. Ou Kellan ou Mira o deixara, sabendo — talvez esperando — que seria descoberto por alguém que o reconheceria. Alguém da Ordem. Talvez até mesmo Nathan.

Se foi Mira, talvez tenha sido um grito de socorro, algum tipo de pista para ajudar em seu resgate. Exceto que Nathan conhecia a guerreira companheira de Raça bem demais para acreditar nisso. O amor dela por Kellan Archer sofrera oito anos de ausência. Se ela se reuniu com ele agora depois de todo esse tempo de luto, não haveria maneira de afastá-la do lado dele.

Quanto a Kellan, Nathan o conhecia muito bem, ou pelo menos pensou que conhecesse. Ainda assim, Nathan estava certo de que o aviso estava destinado a ser encontrado, não como uma provocação imprudente com a intenção de incitar a ira completa da Ordem.

Não, Nathan entendeu agora, foi deixado para trás como um convite.

Uma pista destinada a levar a pessoa certa diretamente para onde Kellan seria encontrado.

Foi um sinal de rendição.

 

Não foi um som que acordou Kellan, mas o repentino sentimento silencioso de expectativa. Ele sentiu no ar ao seu redor, na escuridão enluarada da densa floresta fora das portas francesas do quarto do Darkhaven. Silencioso, discreto, letal.

Eles foram encontrados muito cedo.

Não que ele se surpreendeu.

Não, ele se preparou para este momento desde quando deixou a base em New Bedford. Mais ainda, desde o momento em que encontrou Mira olhando para seu próprio reflexo e compreendeu, em termos terríveis, quanto sua demora inevitável estava custando a ela.

Quanto isso já tinha tirado dela.

Ele queria que tudo parasse agora. Por ela.

Se ele já não estivesse muito atrasado.

Cuidadosamente se desembaraçando dos braços de Mira enquanto ela dormia nua ao lado dele, Kellan escorregou para fora da cama. Vestiu a larga calça jeans e caminhou descalço para as portas francesas. Abriu-as silenciosamente e saiu para a noite fresca de verão, sentindo o cheiro do vento do norte e dos densos pinheiros.

Uma sombra apareceu na escuridão do bosque.

Nathan.

Vestido com uniforme de combate preto e com um cinto com lâminas e armas de fogo circulando seu quadril, o antigo assassino da Raça poderia ter matado Kellan uma dúzia de diferentes maneiras agora. Mas não fez nenhum movimento para atacar enquanto se aproximava por fora da cobertura da floresta. Não disse nada quando olhou para o rosto de Kellan pela primeira vez em oito anos.

Kellan enviou um rápido olhar na direção da floresta circundante.

— Vim sozinho. — a voz profunda de Nathan estava baixa, apenas um sussurro no silêncio ao redor e sem qualquer traço de expressão. Plana, calma e ilegível. Assim como o olhar fixo em seus olhos. — Ninguém sabe onde estou. Suponho que é o que você esperava.

Kellan deu um aceno vago.

— Esperava, sim.

— Ela está aqui com você?

— Sim.

— Ela esteve segura o tempo todo?

Kellan não poderia confirmar isso, especialmente agora quando não tinha certeza se ela estaria completa novamente. Ele a alimentou com seu sangue mais de uma hora atrás, na esperança de que seu vínculo terminado restaurasse a visão dela. Ela adormeceu em seus braços, confiando que ele a faria se sentir melhor, mas ele sentiu como outra promessa que poderia deixar de dar a ela.

— Mira está lá dentro. — ele disse a Nathan, disposto a mentir para seu velho amigo, mas ainda não tão disposto a aceitar que Mira não pudesse ser curada. — Ela está dormindo, junto com os três membros restantes da minha equipe que me ajudaram a trazê-la aqui.

Nathan resmungou.

— E você. Não está morto, afinal.

— Eu deveria estar. — Kellan respondeu. — Alguém me ajudou depois da explosão naquela noite, cuidou de mim até que estivesse curado. Nunca tive a intenção de desaparecer da maneira que fiz.

Nathan o cortou, sua voz fria, as palavras curtas e eficientes.

— Explicações são desnecessárias. Pelo menos no que me diz respeito. Eu não sou o seu juiz e júri, apenas o caçador que veio recuperar um traidor.

Kellan ergueu o queixo, sentindo a resposta como uma pancada.

— Acho que mereço isso, considerando que somos amigos.

— Meu amigo morreu há oito anos. Eu não o conheço o Arqueiro.

— Mas você veio após encontrar a pista que levaria à minha prisão.

Nathan deu um sutil passo a frente com o rosto sombrio.

— Chame isso de uma gentileza pela memória do meu amigo morto. E para a mulher que nunca deixou de amá-lo. Uma mulher que merece mais do que isso, cujo coração estará se partindo de novo muito em breve, sem dúvida.

— Mira é a razão pela qual o conduzi até aqui. Ela e meus amigos estão dentro deste Darkhaven. Eu precisava saber que todos estariam seguros quando este momento chegasse. Certificar-me de que isso acontecesse aqui, desta forma, foi a única maneira que encontrei.

Os olhos de Nathan se estreitaram ligeiramente sob as barras de ébano de suas sobrancelhas.

— Como você pode estar certo disso?

— Porque você veio sozinho. — ele respondeu. — E porque, apesar de sua formação, sei que não é nenhum assassino de inocentes. Sou eu quem você e a Ordem quer. Quero ir contigo em paz. Tudo que peço é que minha equipe saia livre e Mira vá para casa em segurança, não tendo nenhuma culpa por qualquer coisa que aconteceu com Jeremy Ackmeyer ou pelo tempo que passou comigo.

O olhar frio de Nathan transpassou ainda mais agora.

— Ela não sabe que você está se rendendo. — Não foi uma pergunta; foi uma declaração fria e precisa do fato. — Por que você faria isso com ela?

— Eu a machuquei o suficiente. Quero que tudo isso termine.

As sobrancelhas de Nathan baixaram em uma carranca.

— Você se importa com ela, o que é bastante óbvio, até mesmo para mim. Eu sei que ela cuida de você. Por que não fugir juntos? Afinal, você viveu uma mentira por tanto tempo. Por que se jogar sobre a espada agora?

A ironia disso fez Kellan exalar uma respiração afiada por suas narinas.

— Porque não tenho escolha, porra!

Nathan inclinou a cabeça, estudando-o.

— O que é isso, algum ataque de consciência da décima primeira hora? Tarde demais para isso. Se for uma súbita ressurreição de sua honra depois de uma ausência tão longa, juro que é desperdiçada. Essa coisa já foi longe demais. Já se tornou muito pública agora. Não haverá qualquer clemência para você. Para o Arqueiro. Não pode haver.

Kellan assentiu.

— Eu sei disso. Isso só vai acabar de um modo para mim. Eu mesmo vi isso.

— Você já viu isso. — algo frio e desconfiado cintilou no olhar firme de Nathan. Sua voz, que fora cuidadosamente educada e tranquila, agora era um pouco mais alta. — Você quer dizer que Mira mostrou algo para você. Uma visão? — um pleno palavrão violenta irrompeu entre os lábios de seu velho amigo. — Você usou a habilidade dela, sabendo o quanto custaria?

— Jesus, não. Eu nunca faria isso. — Kellan disse. — Não intencionalmente.

— Foda-se você e suas intenções. — rosnou Nathan agora. Ele andou para frente, perigoso em sua indignação. — Você a usou? Usou o dom dela para seu próprio ganho egoísta?

— Kellan... ?

Ah, Cristo.

A voz preocupada de Mira soou atrás dele no escuro do quarto. Ele ainda não estava pronto para que ela entrasse em sua conversa com Nathan. Ele não estava pronto para que ela entendesse que ele trouxe Nathan até eles como um meio de se entregar sem derramamento de sangue ou vítimas. Tudo estava acontecendo muito rápido, uma bola de neve pegando velocidade conforme se inclinava para o lado de uma montanha.

— Está tudo bem. — ele disse a ela, enviando a garantia sobre o seu ombro, conforme a ouviu começar a levantar-se. — Mira, fique. Estarei aí e poderemos conversar.

Ela continuou se movendo, o tecido farfalhava conforme ela puxava um lençol da cama e se envolvia dentro dele. Seus pés descalços pisavam suavemente, com cuidado, no amplo piso de pinho enquanto ela fazia seu caminho em direção às portas francesas abertas.

— Com quem você está falando? Kellan, o que está acontecendo?

E então, um passo em falso. Uma suspensão, um movimento puxado que fez o coração de Kellan afundar como uma pedra.

Ele girou e correu para o lado dela, pegando-a antes que pudesse cair. Seu pequeno grito de angústia passou por ele, tão afiado e implacável como uma flecha.

— Shh... — ele a acalmou. — Shh... eu tenho você, Mira. Está tudo bem agora.

Um rosnado baixo nas costas de Kellan fez seu pescoço formigar em alerta.

— Inferno. É ainda pior do que eu imaginava.

— Nathan? — Mira perguntou com seus pálidos olhos enevoados buscando na escuridão. — Kellan... O que Nathan está fazendo aqui? Diga-me o que está acontecendo. Kellan... ?

— Seu desgraçado. — a voz do caçador era pura ameaça toda direcionada para Kellan. — Você a cegou, porra.

 

— Nathan, não! — Embora Mira não pudesse ver o movimento do guerreiro da Raça, sentiu o impacto do esmagamento de seu corpo quando Nathan se lançou para Kellan. Em suas veias ela sentiu o eco de cada golpe dado pelos punhos que desciam na cabeça e tronco de Kellan.

Mas a dor física que ela experimentou através de seu vínculo de sangue não era nada comparada com a agonia de saber que os dois homens com os quais se importava tão profundamente, seus dois melhores amigos, que foram como irmãos um para o outro em outra época, agora estavam engajados em uma luta brutal por causa dela.

E luta não era o melhor termo para o que estava acontecendo na frente dela. Mesmo que sua visão não fosse nada exceto escuridão e sombras, podia dizer que Kellan não estava nem mesmo tentando revidar. Ele rechaçou os punhos, esquivou quando podia, mas não deu socos. Ele não lutaria com seu amigo. Kellan tinha honra demais para isso, apesar do que Nathan pensasse dele agora.

— Nathan, pare! — perturbada pela cegueira e pelo lençol enrolado em sua nudez, Mira arranhou em frustração, finalmente colocando a mão na forma maciça debruçada sobre Kellan no chão de tábuas de pinho do quarto. Ela pegou um punhado da camisa de combate bem ajustada à forma dele e puxou, tentando levantá-lo. — Nathan, não foi Kellan quem me cegou. Fui eu mesma. Droga, escute-me. Você tem de parar com isso agora!

A surra desacelerou e depois parou conforme Nathan aliviava seu domínio. Ela sentiu o calor do olhar dele em seu rosto e soube que os olhos dele estavam totalmente transformados, brilhando com chamas quentes e com luzes âmbar de raiva. A respiração dele era forçada, áspera e pesada. Perceber o quão furioso ele estava e violentamente mortal, Mira entendeu que Nathan poderia ter matado Kellan se realmente tivesse essa intenção. Ele poderia tê-lo matado do lado de fora há poucos minutos, antes mesmo que ela soubesse que ele estava lá.

— Deixe-o, Nathan. Kellan não vai pedir sua misericórdia, mas eu vou. — ela procurou o rosto de Nathan com a mão livre. Um movimento deselegante que o fez assobiar um palavrão de baixo calão.

— Ah, porra, Mira! Olha o que ele fez com você.

— Não! — disse ela, balançando a cabeça. — Não. Kellan não fez nada. Ele tentou me ajudar. Ele me deu seu sangue...

— Jesus Cristo! — Nathan zombou. A voz dele se afastou e ela soube que ele estava olhando para Kellan. — Você espera todo esse tempo para voltar à vida dela, apenas para arruiná-la vinculando-a a você pelo laço de sangue?

— Eu a amo! — Kellan disse. Mira o ouviu vindo do chão, sentiu seu calor conforme se aproximava dela. As mãos desceram suaves em cima dos seus ombros. Confortáveis e fortes. — Sempre vou amá-la, não importa o que o destino tenha a dizer sobre isso. — Sua boca pressionou a têmpora dela, carinhoso e doce. — Eu te amo, Mira. Mais do que qualquer outra coisa neste mundo ou no outro.

Ela sabia disso. No fundo, sabia que ele quis dizer cada palavra. Mas ali estava ele, partindo seu coração.

Ele a estava deixando ir.

— Você me prometeu! — ela murmurou, fechando os olhos para deter a dor. — Você disse que não me deixaria ir.

— Ah, Ratinha. — outro beijo, desta vez suavemente sobre a pálpebra dela. Sua voz era um sussurro áspero, baixo e íntimo, espessa pela emoção. — Deixar você ir é a última coisa que quero fazer. Se houvesse uma maneira de mudar isso, acredite em mim, eu mudaria.

Enquanto Kellan a acalmava com palavras carinhosas de adeus, em outras partes de Darkhaven soaram sons abafados de infiltração e luta. Profundas vozes familiares ordenando à equipe de Kellan para cooperar com a detenção e ninguém se machucaria.

Botas trovejaram alto pelo corredor em direção ao quarto.

— Você mentiu para mim! — Kellan disse à Nathan. — Você disse que veio sozinho.

Nathan resmungou.

— Eu não estava disposto a deixar nada ao acaso. Como me disse do lado de fora, esta reunião que você instigou para esta noite foi para garantir o bem-estar de Mira. Nós também tínhamos de nos certificar que ela sairia com segurança.

— Mira! — o rosnado baixo de Nikolai veio em sua direção da porta do quarto, agora aberta.

— Papai?

Ela não pôde evitar cair em seus braços enquanto ele caminhava para dentro e a puxava para ele em um abraço apertado. Ela soube o instante em que olhou para o rosto dela. O instante em que viu seus olhos esbranquiçados. O grunhido dele era feroz e animalesco, um predador letal a ponto de saltar sobre o intruso que feriu um de seus filhos.

— Filho da puta. Foda-se a prisão. Vou matar o desgraçado.

Antes que Mira pudesse dizer qualquer coisa, Nathan deteve Nikolai apenas com palavras.

— Ela está vinculada a ele. Machuque Kellan e você irá machucá-la também.

— É verdade? — Niko perguntou severamente. — Você bebeu dele?

— Estamos vinculados. — ela respondeu, apertando o lençol firmemente ao seu redor, sob a explosão fria de fúria de Niko. — Nossa união está completa.

A resposta amaldiçoada do guerreiro foi imoral enquanto saía do quarto.

— Tire-o da minha vista antes que eu corte sua cabeça onde ele está.

Kellan não resistiu aos movimentos que indicavam que estava sendo levado em custódia pela Ordem. Mira desejou que pudesse ver o rosto dele. Ela precisava vê-lo. Não suportava a ideia de que poderia nunca mais vê-lo novamente.

— Vamos querida! — Disse Nikolai, envolvendo-a sob a proteção do abrigo de seu braço. — Vamos encontrar algumas roupas para você e te tirar daqui. Está tudo acabado agora. Vamos levá-la para casa.

Mas não tinha acabado.

Mira caminhou com ele entorpecida, segurando-se para não tropeçar enquanto ele lentamente a guiava para fora do quarto.

Para ela nada tinha acabado ainda. Caminhou em silêncio, não tendo voz para contar a seu pai que uma vez que chegasse em D.C., o pior de sua provação estaria apenas começando.

  

As equipes de patrulhamento da Ordem chegaram do antigo Darkhaven no Maine pouco antes do amanhecer, trazendo com eles Mira, Kellan Archer, e os três rebeldes humanos que estiveram, incrivelmente, servindo sob seu comando nos últimos anos.

Lucan tinha se atualizado rapidamente sobre a maior parte da situação cerca de dez horas antes, quando Nathan alterou, do campo, o status da missão para completa. Exceto o fato de que os rebeldes estavam agora sob a custódia da Ordem e de que Mira foi recuperada e estava a caminho de casa, não havia notícias muito boas para relatar. A mente de Lucan ainda estava se recuperando de tudo o que tinha ouvido, e após mais de 900 anos de vida, precisava de algo realmente bom para surpreendê-lo.

Ainda assim, a ficha ainda não tinha caído até que parou no hall de entrada da mansão e observou enquanto Niko conduzia Mira para dentro. Ele estava nada menos do que carregando a companheira de Raça, cujos olhos inúteis estavam abertos, mas fixos em nada, enquanto ela se embrulhava lentamente ao lado do pai, agarrando-se ao braço dele para apoio e orientação no branco chão de mármore liso.

As companheiras dos guerreiros, todas as mulheres da Ordem, convergiram em massa até Mira assim que ela entrou na casa. Lucan observou a onda de preocupação e carinho feminino derramado sobre a mais nova companheira de Raça enquanto as mulheres rapidamente a escoltaram para longe, todo o foco centrado no bem-estar de Mira. Lucan as assistiu sair, sabendo que teria sua hora para visitar Mira mais tarde. Quando sua cabeça estivesse mais fria, e seu sangue não estivesse mais efervescente com a necessidade de causar danos corporais graves no bastardo responsável por seu sequestro há alguns dias e seu estado físico atual.

O objeto de sua fúria entrou na sala, brutalmente empurrado por Tegan e Rio. Nathan e Rafe, junto com os outros dois membros de sua equipe e dos três do esquadrão de Mira, seguindo-os.

— Chase e Hunter têm os rebeldes lá fora. — relatou Nathan. — Um deles tem uma lesão na perna. Recebeu atendimento médico, mas a ferida é profunda. Ela não pode andar com esse membro.

Lucan grunhiu.

— Rafe! — ele disse olhando para o filho de Dante e Tess. — Ajude as mulheres lá dentro. Verifique-as e veja o que pode ser feito.

O guerreiro loiro dotado com o extraordinário toque de cura de sua mãe deu um aceno de cabeça, em seguida correu para cumprir a ordem.

Quanto a Kellan Archer, os olhos de uma dúzia dos mais letalmente qualificados e irritados guerreiros da Raça estavam fixos nele em animosidade mal contida enquanto era trazido para o centro da sala. Porra. Foi um choque vê-lo novamente depois de acreditar que estava morto há uma década. Lucan sempre gostou do garoto, mas o bandido em pé diante dele agora estava tornando difícil para Lucan resistir à adição de algumas contusões de sua autoria para a coleção que Kellan já ostentava.

E ele não estava sozinho em sua indignação por aquilo que Kellan estava sendo acusado. A raiva dos irmãos de Lucan era uma coisa palpável, materializada fora do grupo de vampiros como um vento negro.

— Por aqui. — disse Lucan, antes que alguém estivesse tentado a agir por impulso. Seu olhar severo enviou Kellan em movimento e ordenou que o resto da Ordem se mantivesse afastado, deixando os dois avançarem para o escritório de Lucan sozinhos.

Kellan caminhou até o centro da sala e permaneceu em um impasse enquanto Lucan fechava a porta atrás deles e caminhava de volta para enfrentar o guerreiro errante cara a cara. Lucan ainda podia ver o corajoso e decidido soldado no firme olhar avelã de Kellan e na linha reta de sua coluna e ombros, conforme ele ficava sombriamente atento perante Lucan, pronto para aceitar sua ira.

Preparado para enfrentar a verdade de que o caminho que escolheu para si seria provavelmente aquele que o levaria à sepultura.

— Sobre a porra dos problemas que você trouxe para esta casa — comentou Lucan, ignorando sutilezas desnecessárias e indo direto ao ponto desta reunião inesperada —, Nathan me informou tudo que se passou nesses últimos dias. O Arqueiro é um filho da puta bem ocupado. Sequestro, obstrução, conspiração, ajudar uma rebelião e descumprimento em geral da lei. Não vamos esquecer traição e usura. Aparentemente, sua infração mais grave, a julgar pelo estado em que deixou Mira lá fora. Se você merece sofrer por algo que fez, ferir a garota está realmente no topo, pelo que posso julgar. Jesus Cristo! E então, para fechar com chave de ouro, você se une a ela.

A expressão estoica de Kellan não rachou até a menção do nome de Mira. Sua voz profunda era crua com uma dor que Lucan não podia negar.

— Eu não teria dado a ela o meu sangue se não pensasse que o vínculo pudesse ajudar a reparar os danos à sua visão. — Carrancudo, ele deu uma sacudida de cabeça em arrependimento.

— Não funcionou. Preciso tentar de novo, Lucan. Preciso dar a ela um pouco mais. Ver se melhora.

Lucan zombou.

— Você já fez o suficiente, não acha?

— Então, talvez Rafe ou Tess.

— Mira está onde pertence agora. — disse Lucan, intencionalmente brusco. Ele não estava nem perto de simpatizar com a preocupação óbvia que Kellan sentia pela Companheira que reivindicou bem além de seus direitos. — A Ordem vai se certificar de que Mira receba toda a ajuda que possa oferecer. Ela está com a família agora. Você tem seus próprios problemas para se preocupar.

Kellan sustentou o olhar.

— Contanto que Mira esteja segura, meus problemas não significam nada.

— Você quer morrer, filho?

A resposta de Kellan foi imediata.

— Não! — então, novamente, com mais veemência. — Claro que não. Eu quero viver, com Mira ao meu lado. Não percebi o quanto queria isso até que a tive em meus braços novamente.

Ele soltou um palavrão afiado.

— Mas não importa o que eu quero.

— Por causa da visão. — disse Lucan — Nathan me informou sobre isso mais cedo também. Você e eu sabemos que o dom de Mira é uma coisa poderosa. Infalível. Mas, com ou sem o fim profetizado que paira sobre sua cabeça, seu envolvimento com os rebeldes, porra, você esteve comandando-os em tudo. Estou com as mãos atadas nesta situação. A morte de Ackmeyer foi atribuída aos rebeldes. Rebeldes sob o comando de um bandido chamado Arqueiro. Isso deu ao público uma causa contra a qual protestar, e estão fazendo isso em voz alta. Estão clamando por sangue. Seu sangue. E quando vazar que você não só é da Raça, mas também um antigo guerreiro da Ordem? Os humanos não ficarão satisfeitos até que tenham sua cabeça, filho. Eu não vou ter muita escolha senão entregá-la a eles ou minar todos os avanços que fizemos em relação a qualquer tipo de paz com a humanidade.

O olhar firme de Kellan disse que entendia a posição impossível.

— Se tudo se resume a isso, estou pronto para enfrentar qualquer penalidade necessária.

Lucan passou a mão pelo seu cabelo escuro.

— Merda, Kellan. Porra! Com certeza não foi assim que imaginei como as coisas aconteceriam com você quando apareceu pela primeira vez no complexo em Boston há vinte anos. Não é como eu imaginava a sua vida quando passou pelo treinamento com louvor. Fazer a chamada para o JUSTIS vir buscá-lo hoje à noite não vai ser fácil.

— Agradeço isso. — Kellan respondeu sério. — Antes de fazer essa chamada, Lucan, posso pedir uma coisa para minha equipe? A liberdade deles, se você achar que pode concedê-la. Não os entregue ao JUSTIS comigo. Aceito a total responsabilidade pelas minhas ações e das pessoas sob o meu comando.

Lucan inclinou a cabeça com o pedido, sentindo mais do que um pouco de respeito pelo líder disposto a suportar todo o peso por aqueles que o seguiram para a batalha.

— Quero que você saiba — Kellan disse — que fiz um monte de coisas das quais não me orgulho nestes últimos oito anos. O pior de tudo foi prejudicar Mira e enganar você e a Ordem, minha família, sobre minha morte. Sou culpado de muitas coisas, Lucan, mas assassinato não é uma delas. A noite em que o laboratório foi destruído, Mira e eu estávamos na cidade à procura de pistas sobre Ackmeyer. Esperávamos encontrar algo que nos levasse até ele ou até o membro da minha equipe que desertou aquela manhã, e levou Ackmeyer por um resgate.

Lucan fez uma careta.

— Nada disso desculpa o fato de que você sequestrou um civil de alto perfil. Ackmeyer era praticamente um tesouro nacional, pelo amor de Deus! E, além disso, você pega um membro da Ordem? Que diabos estava pensando?

— Levar Mira nunca foi parte do plano. Eu não sabia que ela estaria lá. Nós recebemos informações confidenciais de última hora de que Ackmeyer estaria em movimento naquele dia. Imediatamente nos mobilizamos e fechamos o cerco nele. Mira foi pega na rede sem intenção. Ela nunca foi parte disso, e meu erro no que se refere a ela, foi não enviá-la de volta para a Ordem imediatamente. Mas se me perguntar se lamento o tempo que tive com ela nos últimos dias, não posso fazer isso.

Lucan expirou, estudando o jovem macho. Que ele amava Mira era óbvio. E Lucan não podia deixar de pensar em seus próprios erros e desentendimentos não muito tempo atrás, qualquer um dos quais poderia ter lhe custado a mulher que amava com todo o coração, sua companheira de Raça, Gabrielle. Eles tiveram sorte. Tinham a bênção de uma vida compartilhada e um filho que adoravam, que deixava os dois orgulhosos. Coisas que Kellan e Mira provavelmente nunca conheceriam.

Com seu coração mais pesado do que queria admitir, Lucan pigarreou e focou nas coisas que ainda precisavam de respostas.

— Por que Ackmeyer era um alvo? Como ele conseguiu fazer inimigos como você ou seus rebeldes?

— Há três meses, um civil da Raça foi morto a tiros em Boston. Uma das mulheres da minha equipe, Nina, testemunhou o assassinato. O macho da Raça era seu amante. Ele deixou o apartamento dela naquela noite e estava subindo a rua quando um veículo do governo se aproximou. Dois homens humanos saíram e o mataram, sem razão. — Kellan olhou para Lucan, seu olhar intenso, vívido com uma raiva que fervia logo abaixo da superfície da sua calma. — Suas armas disparavam UV. Luz solar líquida, cuidadosamente embalada em balas para matar a Raça. O vampiro não tinha a menor chance. Ele foi incinerado no local.

— Puta merda! — Lucan balançou para trás em seus calcanhares, mais sombrio do que atônito. A humanidade sempre foi engenhosa, às vezes diabólica, mas as ramificações da tecnologia ultravioleta sendo desenvolvida para armamentos poderiam ser surpreendentes. Com tempo e imaginação eles poderiam, por fim, acabar com a Raça inteira. — E você rastreou de volta a tecnologia até Ackmeyer?

— Levou algum tempo e um monte de escavação, mas conseguimos juntar tudo. Ackmeyer mencionou em uma entrevista para uma revista científica no ano passado, que estava trabalhando em um projeto para animais de estimação que envolvia luz ultravioleta. Na época, ele disse que achava ser o ideal para fins agrícolas.

— Até que alguém sacudiu um grande salário na frente dele, sem dúvida. — Lucan passou a mão sobre o seu couro cabeludo, assobiou outro palavrão. — Foi isso que aconteceu? Ackmeyer vendeu sua tecnologia para alguém que pensava que poderia ser mais bem utilizada como arma contra a Raça?

— Isso é o que eu queria saber. — Kellan respondeu. — Queria obter respostas, e se Ackmeyer não se mostrasse cooperativo estava preparado para convencê-lo a destruir a tecnologia por qualquer meio necessário. O problema é que Ackmeyer não sabia nada sobre o seu trabalho ter vazado do seu laboratório privado. Quando o questionei enquanto estava sob minha custódia, ele disse que seu projeto, algo que estava chamando Morningstar, ainda estava em fase de testes, fechado a sete chaves. Ele jurou que nunca permitiria que seu trabalho fosse usado para prejudicar alguém. Eu li a verdade nele, Lucan. Ele era inocente. No momento em que percebi isso, as engrenagens já estavam em movimento.

Lucan grunhiu.

— Você não deveria ter agido sozinho. Deveria ter voltado para a Ordem com isso.

— Vir a você como Arqueiro? — Kellan perguntou com expressão tristemente irônica. — Ou como o covarde que virou as costas a seus irmãos e sua família?

Lucan sabia que ele estava certo. Sua situação era insustentável de qualquer maneira. E ainda era.

— Infelizmente, pode ser tarde demais para voltar atrás agora.

Kellan assentiu.

— Há um monte de coisas que eu gostaria de ter feito de forma diferente, começando com a forma como fugi há oito anos. — Ele olhou para baixo, exalou uma respiração curta enquanto balançava a cabeça. — Jeremy Ackmeyer está morto por minha causa, Lucan. Porque finalmente dei a ordem para sequestrá-lo. Aceito a culpa. Mas estou dizendo a você aqui e agora, não dei a ordem para queimar o laboratório dele ou prejudicá-lo de alguma forma.

— Você vai dificuldade em convencer o público disso.

— Não dou a mínima para o público e para o que acreditam. — Kellan disse com um lampejo de iluminação âmbar em seus olhos. — Preciso saber que você acredita em mim. Que não perdi sua confiança.

Lucan ouviu o jovem vampiro, uma vez abrigado em Darkhaven na juventude, e que se tornara um guerreiro formidável, valente sob sua tutela, apenas para desaparecer sem deixar vestígios antes que chegasse ao seu auge.

Esse guerreiro ainda estava vivo dentro de Kellan Archer. Ainda estava preparado para o bom combate. Ainda mantinha sua honra intacta, apesar de ter perdido o seu caminho por um tempo. Que desperdício seria vê-lo escapar mais uma vez.

Lucan jurou baixinho.

— De tudo o que está errado aqui ultimamente, e Jesus Cristo, há o suficiente para escolher, não estou certo sobre o que mais me incomoda. O fato de você e Mira estarem vinculados pelo sangue sob as piores circunstâncias, ou o fato de ter de ser eu quem os separará.

 

Mira sentou na beirada de uma cama macia em uma sala que cheirava a rosas e cera de limão, cercada pelo amor e apoio das mulheres da Ordem.

Ela estava em casa. Reunida com seus pais, familiares, colegas, e amigos. Todas as pessoas que importavam em sua vida. E, no entanto, ela nunca se sentiu tão à deriva. Tão só.

Porque o que ela mais precisava era o que estava mais distante de seu alcance agora.

Não por sua própria escolha.

Kellan prometeu que não a abandonaria nunca mais, mas abandonou. Poderiam ter ficado no antigo Darkhaven na floresta do Maine mais algumas semanas, talvez alguns preciosos meses se tivessem sorte. Em vez disso, voluntariamente colocou fim em seu tempo juntos.

Ela teria ficado com ele o maior tempo possível.

Em vez disso, ele a deixou ir.

O guerreiro nela se recusava a aceitar essa derrota. Cega ou não, queria saltar e lutar pelo caminho onde Kellan estava sendo mantido. Queria exigir que ficasse com ela e assumisse seus problemas juntos. Carregar toda porra do mundo juntos, se tivesse que fazer.

Mas não foi nem a Ordem, nem a humanidade e nem o mundo que ficou entre eles.

Foi o destino.

O destino fez uma reclamação sobre a vida de Kellan há oito anos. Agora estava voltando para recolher. E no seu coração, sabia que nenhuma quantidade de combate, nenhuma quantidade de execução, poderia ser suficiente para vencer um inimigo tão poderoso assim.

Mas isso não fez a perspectiva do que viria pela frente mais fácil de aceitar.

Embora não pudesse ver nenhuma das companheiras de Raça reunidas na sala com ela agora, apenas sombras sobrepostas a sombras contra um campo de escuridão, Mira ouviu as vozes perto dela. Ouviu mais de uma das mulheres calmamente fungando as lágrimas depois que ela explicou tudo o que aconteceu durante seu breve encontro com Kellan.

— Fico feliz que se foi. — murmurou ela para a sala silenciosa. — Minha visão. Se perdê-la é a única maneira de silenciar minhas visões, então terá valido a pena.

— Não diga isso, Ratinha. Você não quer dizer isso. — Renata se sentou ao lado dela na cama, segurando a mão de Mira em um aperto reconfortante de proteção. A companheira de Raça que resgatara Mira órfã quando ela era uma menina, colocando-a embaixo das suas asas como sua própria filha, era tão habilidosa quanto qualquer guerreiro, a primeira mulher a lutar ao lado da Ordem como um dos seus. Resistente e mortal, impossível de quebrar, Renata mal disse uma palavra desde a chegada de Mira e Kellan com os outros.

Ela estava com medo. Mira sentiu em silêncio a companheira de Raça grávida e o suave tremor de seus dedos enquanto segurava sua mão.

Onde Nikolai ficava furioso e feroz em sua preocupação com Mira e seu desprezo por Kellan sobre tudo o que havia acontecido, o medo silencioso de Renata era ainda mais difícil de aceitar.

— Olhe toda a dor que causei! — Mira disse. — A minha visão é a culpada de tudo, Rennie. Foi uma maldição que nunca trouxe nada de bom.

— Não. — Respondeu Renata. — Isso não é verdade. — Com os dedos suaves no queixo de Mira virou o rosto para o som da voz de sua mãe. — Você mostrou a Niko que ele e eu estávamos destinados a ficar juntos, lembra? E antes disso, seu dom deu a Hunter um vislumbre de esperança que não só salvou sua vida como resultado, mas a dele também. Tem sido bom, não mau. Não deseje que se vá.

Mira não resistiu à proposta, amando os braços que a atraíram. Ela descansou a mão levemente na barriga inchada de Renata, relutante em sorrir de alegria quando sentiu o forte chute de um pé minúsculo contra sua palma. Seu irmãozinho a caminho, já com ciúmes da atenção que poderia ser forçado a compartilhar com ela.

Ela queria ver essa criança um dia. Queria ver Rennie e Niko segurando seu filho recém-nascido, que, sem dúvida, seria tão aventureiro e corajoso quanto seus pais.

E ela queria ver Kellan novamente.

Ele não estava mais na mansão, Renata informou que o JUSTIS levou Kellan sob custódia há pouco tempo, mas o laço de sangue de Mira disse de uma forma mais visceral que ele não estava mais embaixo do mesmo teto com ela. Estar separada dele agora era tormento suficiente, mas se sua visão nunca voltasse e se não conseguisse pelo menos uma última chance de estar com ele para ver seu rosto bonito...

Não percebeu que estava chorando até um soluço, uma pequena dentada que arrancou de sua garganta.

— Mira. — Disse uma voz suave e com carinho de algum lugar acima dela. Não era Renata, mas uma das outras mulheres da Ordem. A companheira de Raça de Dante, Tess. — Eu gostaria de ajudá-la, você me deixaria?

Mira conhecia Tess quase toda sua vida. Viu seu talento para a cura em primeira mão em mais de uma ocasião, quando a Ordem ainda estava sediada em Boston. Trabalhava como veterinária antes de conhecer Dante e deu à luz seu filho, Rafe. Tess ainda era praticante da medicina tradicional e seus procedimentos. Mas era a outra habilidade de Tess, a cura, que ela utilizaria agora: seu dom extrassensorial para curar com o poder de seu toque até mesmo os ferimentos mais graves e doenças.

— Feche os olhos para mim. — Tess instruiu conforme Mira se sentou e a deixou avaliar os danos.

Ela fez o que lhe foi dito, sentindo os polegares da outra mulher descansarem levemente sobre suas pálpebras fechadas. As palmas das mãos de Tess seguraram seu rosto, os dedos espalhados por sua têmpora, a criação de faixas finas de calor. O calor do toque dela se espalhou e saiu energia palpável executada em correntes minúsculas na parte superior do couro cabeludo de Mira.

E onde os polegares de Tess pairaram sobre seus olhos fechados, um forte calor floresceu. Um núcleo de luz suave começou a piscar lá, pontos individuais de iluminação minúscula que lentamente se inflamaram em um brilho vermelho-sangue. Mira se encolheu conforme o brilho florescia por trás de suas pálpebras, brilhando tão intensamente que ela pensou que as córneas fossem arder.

— Estou machucando você? — Tess perguntou calmamente. Ela tirou as mãos dela, levando seu poder com elas. — Se está desconfortável, posso parar se desejar. Podemos tentar isso outra hora

— Não. — disse Mira. Ela balançou a cabeça com veemência. — Não, por favor, continue. Alguma coisa estava acontecendo.

Tess retomou seu trabalho, e Mira resistiu ao calor enervante e à luz que inundou seu campo inteiro de visão, enchendo todo o crânio. Ela segurou a mão de Renata como uma tábua de salvação, a outra mão agarrou na colcha de seda na cama.

O poder do toque de Tess foi um relâmpago em suas veias, em seus ossos e células. Explodindo por trás de seus olhos. Quando pensou que não poderia ter outro em mais um segundo, a intensidade foi dobrada. Então dobrada novamente.

E então simplesmente... se foi.

Calma branca e fria caiu sobre ela, como uma tempestade turbulenta da noite dando lugar ao plácido amanhecer.

Mira caiu para frente, ofegante, contorcendo-se. Ela sentiu o peso do olhar de cada companheira de Raça enquanto lutava para recuperar o fôlego, retardar os batimentos acelerados do coração.

Tess levantou o queixo na borda de sua mão.

— Abra os olhos.

Suas pálpebras pareciam como se tivessem sido coladas, mas conforme as abria cuidadosamente, o brilho amarelo de um abajur na mesa de cabeceira infiltrou em sua visão. Sombras tomaram uma forma mais nítida, em seguida limparam completamente. Ela piscou para Tess, espantada. Podia ver de novo!

Olhou com total admiração e gratidão, bebendo a visão dos adoráveis olhos água-marinha da companheira de Raça e dos compridos cachos loiros da cor do mel. Tess assentiu, segurando seu olhar conforme Mira se esforçava para absorver o fato de que não estava mais cega.

— Oh, meu Deus. — A voz de Mira era pouco mais que um sussurro, sem palavras. Ela pulou e puxou a curadora em um abraço apertado. — Tess, obrigada!

A companheira de Dante assentiu com algo melancólico sobre seu sorriso enquanto se afastava para dar espaço para Mira respirar.

E ela precisava. Porque ao mesmo tempo se viu presa em uma rodada de alegres abraços aliviados das outras companheiras e Raça na sala. Renata foi a primeira. Seus olhos verde jade se encheram de lágrimas enquanto abraçava Mira ferozmente. Uma por uma, o resto das mulheres seguiu banhando Mira com tanto amor que seu coração parecia pronto para estourar.

Ela estava tão abalada que levou um momento para perceber que seus olhos estavam nus. Ela não só arriscou arruinar o trabalho de Tess, mas seu talento terrível estava aberto a todas na sala com ela.

— Minhas lentes! — Deixou escapar com pânico crescente. Ela imediatamente baixou o olhar para evitar fazer contato visual não intencional. — Alguém está com minhas lentes?

— Aqui estão elas. — Respondeu Tess. Ela colocou a caixa na mão de Mira, sua voz calma. — Mas acho que não vai precisar mais delas. Pelo menos, não para proteger sua visão.

— O que quer dizer? — Independentemente da garantia, Mira colocou as lentes antes de olhar para cima para encontrar o olhar plácido de Tess. — Está dizendo que me curou definitivamente?

— Restaurei a visão que você perdeu, mas é o vínculo de sangue que vai fazer seu dom prosperar. Aconteceu a mesma coisa com todas nós. — Tess explicou. — O sangue de Kellan não poderia reverter o dano, mas o vínculo é forte dentro de você, aumentando seu poder. — Tess sorriu calorosamente. — Eu sei que você sente.

Ela sentia.

Dificilmente fez qualquer esforço para reconhecer o zumbido constante de consciência que dizia que Kellan estava vivo, alimentando seus sentidos, ligado a ela através da forte ligação que partilhavam agora. Ela sentia a vida dele forçando dentro dela, e esperava que ele pudesse sentir o mesmo com relação a ela.

Tess deu um pequeno aperto na mão de Mira e começou a se virar.

— Como você sabe? — Mira murmurou, só agora percebendo o impacto do que a companheira de Raça dissera. — Tess, como pode ter certeza de que não vou perder minha visão se usar minha habilidade agora?

E então ela soube.

Toda a euforia que Mira sentiu um momento atrás vazou de volta a ela. Seu coração se afundou com pesar imediato.

— Oh, Deus. Tess... apenas alguns minutos atrás. Você estava olhando nos meus olhos.

Ela mostrou preocupação e as outras mulheres já mudaram seu foco para a curadora. Tess parecia estranhamente silenciosa, reflexiva nos momentos desde que a visão de Mira foi restaurada. Agora Mira entendia o porquê.

— Tess, sinto muito. — Ela ficaria arrasada se sua visão tivesse sido despertada apenas para ferir a mulher que a ajudou. — O que você viu? Diga-me que não foi uma coisa horrível.

— Não. — respondeu Tess, calma e amável. — Nem um pouco terrível.

— Você pode me dizer? — Mira não pôde reprimir a preocupação que ainda vibrava em seu peito. — Porque, se eu te magoar...

Tess balançou a cabeça lentamente. Sua boca se curvou suavemente atrás dos dedos que ela trouxe aos lábios. Seus olhos acenderam com um sorriso secreto. Ela estendeu a mão e pegou as mãos de Mira nas dela.

— Seu dom é extraordinário, Mira. Não uma maldição. Pode nem sempre ser gentil, mas às vezes... às vezes é bonito. — Tess a abraçou em seguida, calorosa e sem pressa. Com a boca perto do ouvido de Mira, sussurrou: — Obrigada por me mostrar a família incrível que meu filho terá um dia. Eu só queria que o meu dom pudesse te trazer o mesmo tipo de milagre que você me deu.

— Eu também. — disse Mira, devolvendo o abraço de Tess.

Sua visão impecável começou a se confundir novamente... não com cegueira, mas com lágrimas.

 

O diretor do CMN, Charles Benson, teve de lutar para abrir caminho através de uma multidão de manifestantes gritando acampados no lado de fora do portão de sua casa quando voltou da conferência de imprensa anunciando a apreensão do líder rebelde responsável pelo sequestro de Jeremy Ackmeyer mais cedo essa semana. A captura do Arqueiro, rápida e encoberta pela Ordem, foi uma notícia oportunamente bem vinda, especialmente no dia da cúpula de paz.

Mas foi a outra revelação sobre a detenção do rebelde, de que não era apenas desta Raça, não humana, mas que ele era um ex-membro da Ordem, que surpreendera a todos, inclusive Benson.

A indignação do público só tinha dobrado por conta dessa notícia. Do lado de fora da casa de Benson, sinais dos manifestantes convocaram a multidão em um escárnio, alguns proclamando um acordo firmado com o próprio diabo. Outros, com cartazes mais preocupantes destinados diretamente a Benson, descrevendo-o como um fantoche sob o comando de uma caricatura de Lucan Thorne, longas presas descobertas e babando, os olhos felinos selvagens da Raça com alegria louca.

Assim que a multidão suspeitou que Benson chegou em casa, o volume e a animosidade das provocações passaram de um rumor saudável a um barulho de rachar a cabeça. Será que não percebiam que ele estava do lado deles? Será que essas pessoas não entendiam que ele estava disposto a sacrificar qualquer coisa, como se viu, a fim de garantir a verdadeira paz para todos que compartilham este planeta com ele?

Benson saiu correndo de seu carro, abaixando a cabeça para evitar as vaias enquanto andava rapidamente pela calçada de paralelepípedos até sua casa. Uma vez lá dentro, soltou um longo suspiro. Deixou a coluna ceder contra a pesada porta de carvalho da frente.

O piquete era um problema novo. Oh, ele estava ciente da constante multidão na porta da Ordem que cantava descontente em sua sede no distrito, mas ter a agitação e o vitríolo atingindo outros membros do CMN não era um problema que gostaria de enfrentar agora. Ele também não queria esse tipo de propaganda negativa apontada para ele.

Não agora. Não quando sentia pequenos pedaços de seu, uma vez simples, mundo desmoronando ao seu redor.

Quando se recompôs, ouviu sua esposa chamá-lo da cozinha, perguntando se poderia lhe fazer um café da manhã tardio.

— Eu não posso agora querida. — Disse a ela, tentando adotar um tom casual e ainda ser ouvido acima do tumulto do lado de fora. — Tenho uma videoconferência para participar em alguns minutos. Estarei em meu escritório por um tempo. E não quero ser incomodado.

Sua obediente esposa dos últimos quarenta e seis anos não sonharia em interromper seu trabalho. Ele adorava isso em Marta. Adorava que ela confiasse nele cegamente para gerenciar todas as coisas importantes em seu casamento e família, da mesma forma que confiava nele para ser firmemente moral nos negócios de seu escritório político, dedicando sua vida para garantir a estabilidade do mundo livre.

Para Martha, mesmo careca, grisalho e enrugado, ele era um Deus. Não o boneco pendurado no final da corda de outra pessoa.

Não o homem cuja consciência recentemente tinha o peso de chumbo cada vez mais difícil de suportar.

Benson cruzou o saguão reluzente de sua casa e se dirigiu para o escritório no corredor. Ao invés de entrar, fechou as portas altas duplas para fazer parecer que foi sequestrado ali dentro, então desceu a escada para o segundo escritório secreto escondido atrás de uma parede falsa na adega da casa grande e antiga.

Dentro, esta sala era uma estação de trabalho privada, voltada para um único objetivo. Ele abriu o computador e digitou o código de acesso, esperou com os olhos arregalados enquanto o programa de segurança digitalizava suas retinas para confirmar a identificação. Assim que terminou, ele estava conectado a um encontro previamente combinado com seus colegas. Não do CMN, mas outro mais recente, um grupo de colegas a quem Benson se reportava.

Este grupo, totalizando treze homens poderosos, chefes de Estado, tanto humanos quanto da Raça, magnatas de negócios, líderes religiosos, estavam espalhados por todos os cantos do globo. Juntos, formavam um canal secreto e se chamavam Opus Nostrum.

Embora ele tenha sido abertamente conhecido por eles, Benson não estava a par de seus nomes, nunca viu seus rostos. O anonimato era fundamental, uma negação plausível na obrigação. Seus objetivos eram muito importantes ao risco. Seus métodos muitas vezes graves demais para conciliar.

Como foi a decisão mais recente, o que levou à sua chamada de emergência para a irmandade.

Benson sentou-se ansiosamente na cadeira quando um mapa do mundo encheu seu monitor, então, um por um, apareceram os membros do Opus Nostrum ligados em vários locais. Vários estavam nas Américas do Norte e do Sul. Outros na Europa e na Ásia, um inclusive na África. Na tela, cada membro era representado por um ponto no mapa, suas vozes digitalmente disfarçadas.

Benson, no entanto, era exibido para os homens em treze câmeras de vídeo e sua identidade totalmente exposta. Ele sabia que isso tinha a intenção de lembrá-lo de sua vulnerabilidade para a cabala, e funcionou. Possuíam-no agora. Depois do que fez por eles nos últimos meses, a Opus Nostrum possuía um pedaço de sua alma.

Um dos membros da América do Norte foi o primeiro a falar quando todas as treze posições ficaram ativas na tela. Sua voz alterada por computador foi lançado anormalmente baixa.

— Uma agradável conferência de imprensa esta manhã, Diretor Benson. Temos o prazer de saber que o CMN tem seu vilão em custódia e o público em breve terá a justiça que anseia. Tanto melhor que a Ordem encontrou e prendeu um dos seus. — uma risada retumbou fora do sistema de som do computador. — Nós não poderíamos ter estabelecido uma melhor armadilha para Lucan e seus guerreiros se tivéssemos planejado o sequestro e assassinato de Ackmeyer nós mesmos.

Benson esperava que seu sorriso trêmulo não traísse sua inquietação. Outra parte de conhecimento público foi o fato de que Benson solicitara a proteção da Ordem para seu sobrinho nos dias que antecederam o sequestro. Benson estava preocupado com a segurança de Jeremy, com medo de que algo desagradável pudesse acontecer com o cientista, através dos agentes de poder sem rosto, agora à espera de sua resposta.

Benson pigarreou.

— Estou... aliviado que a irmandade esteja satisfeita com a forma como as coisas evoluíram. E compartilho a visão da Opus Nostrum de um futuro de paz mundial. É por isso que forneci a vocês a tecnologia ultravioleta do meu sobrinho.

— E você foi muito bem recompensado por isso. — respondeu aquele que sempre parecia liderar os outros nessas assembleias. — Acredito que você e a patroa estão desfrutando de seu novo endereço de prestígio estes últimos meses.

Benson não respondeu. Fato foi que ele foi recompensado com a imponente residência no bairro mais exclusivo do distrito. As chaves para a mansão e a escritura, descontando o dinheiro, foram entregues no seu escritório por carta anônima na manhã depois que forneceu os protótipos de Jeremy e os dados sobre o projeto inédito da Morningstar. Aceitar a casa em recompensa por informações roubadas era uma coisa; viver debaixo de um teto comprado com o sangue de inocentes era outra.

— Você fez a coisa certa nos fornecendo a tecnologia. — Disse a voz individual sem emoção, através do computador. — O evento de gala de hoje à noite na cúpula não seria possível sem ele.

— Sim, mas... — A voz de Benson foi enferrujando, ameaçando deixá-lo completamente. No silêncio, quase podia sentir o peso dos treze pares de olhos treinados sobre ele, impiedosamente avaliando-o, em segredo, pelos esconderijos espalhados dos membros da organização em longo alcance. — É que eu pensei... Nunca tive a intenção de que Jeremy fosse prejudicado, isso é tudo.

— É por isso que você entrou em contato com a Ordem para organizar sua escolta privada para a festividade?

Benson sabia que empalideceu com a pergunta, inevitável ou não.

— Ele era inocente! Inocente como uma criança sobre a maioria das coisas. Eu não queria que meu envolvimento com a Opus Nostrum pudesse impactá-lo de alguma maneira. Estava com medo de que a fraternidade pudesse considerá-lo algum tipo de responsabilidade. Eu estava com medo de que algo acontecesse com ele.

— Então pensou que seria prudente trair a nossa confiança em seu lugar.

— Não. — respondeu Benson, balançando a cabeça vigorosamente. — Não, eu não te traí. Eu não faria isso. Pedi a fim de trazer Jeremy em segurança para o encontro de paz, isso é tudo.

E uma vez que tivesse chegado, uma vez que a missão da Opus Nostrum para a Cúpula fosse desencadeada e o mundo tentasse se definir sob um novo paradigma de regra, Benson planejava enviar seu sobrinho profundamente na clandestinidade, junto com Marta e com o resto de sua família.

Houve um longo silêncio antes do responsável responder.

— Você procurou manter seu sobrinho seguro, mas foram suas próprias ações que ditaram sua morte. O seu rapto só o fez uma maior responsabilidade para com a causa do que já era. Compondo esse risco o fato de que foi um ex-membro da Ordem que o prendeu. Por que esses rebeldes liderados por um membro da Raça o queriam? O que ele poderia ter dito a eles? — a voz distorcida era fina e baixa com ameaça. — Estas são questões preocupantes, Diretor Benson. Seja grato que nos foi dada a chance de corrigir parte do seu erro. A morte de seu sobrinho é a única razão pela qual você e o resto da sua família tenham permissão de respirar agora. E as tecnologias adicionais que se reuniram do laboratório dele antes do ataque vão promover os objetivos da Opus Nostrum para os próximos anos.

Benson engoliu o medo que estava como uma pedra fria no fundo de sua garganta. Estes homens não seriam detidos. Nem era qualquer vida que valia mais do que o aviso de um instante, se estivesse no caminho de seus planos. Ele deveria saber desde o início, quando pela primeira vez se aproximou dele o convite anônimo para ser parte de uma visão nova e poderosa para o futuro.

Ele deveria ter sabido que há três meses, quando homens leais a Opus Nostrum mataram um da Raça, um desarmado civil inocente em Boston, matando-o na rua como um teste de campo da tecnologia ultravioleta de Jeremy, adaptada para uso em armas.

— Estamos unidos em nosso propósito de introduzir paz verdadeira e duradoura. — disse a voz da Opus Nostrum. — Nosso objetivo é trazer um novo amanhecer, algo que não pode ser possível, desde que a Ordem esteja na ativa. Com eles, corremos o risco de que Lucan Thorne e seu exército cada vez maior de guerreiros possa trazer abaixo o punho da Opus Nostrum colocado em jogo. Tenho certeza de que nenhum de nós precisa de um lembrete de como, apenas uma década após o acidente na Rússia, Lucan tomou para si a tarefa de erradicar toda a química e instalações de armas nucleares em todo o mundo.

— Acidente. — um da irmandade zombou. — Eu me pergunto se alguma vez vamos saber quem foi o responsável por transformar essa grande faixa de terra em terra dos mortos.

— Humano ou Raça, não importa. — disse o encarregado. — A lição para nós é de que Lucan Thorne nunca possa ser autorizado a exercer esse tipo de poder novamente. Quanto tempo você imagina que ele vai ficar contente com o trabalho sob o jugo político do CMN? Quanto tempo antes que ele e seus guerreiros decidam que a diplomacia e as negociações têm o seu curso? É um risco que qualquer um de vocês aqui está disposto a assumir com o futuro de nosso mundo compartilhado?

Uma rodada de respostas de apoio de todos os treze membros soou, e Benson corajosamente se juntou, sabendo que discordar agora seria só colocar Marta e o resto de seus entes queridos em perigo. Os tentáculos de suas ações passadas o mantinham preso nesta aliança agora, e não tinha muita escolha, a não ser jogar junto.

Depois que o grupo se aquietou mais uma vez, o primeiro membro falou de novo.

— A Ordem deve ser eliminada. E que melhor maneira de demonstrar o poder da Opus Nostrum que derrubá-los de uma só vez na noite de gala, aos olhos do grande público ao redor do mundo?

Benson não se preocupou em salientar que o plano para matar Lucan e o resto da Ordem significaria também a morte de todos os diplomatas da Raça e civis presentes. Os membros da Opus Nostrum certamente compreendiam esse fato, tanto os seres humanos entre os treze e os demais, que eram da Raça.

Sem dúvida, eles também perceberam que uma aniquilação como a que tinham planejado para o encontro da cúpula poderia muito bem incitar guerra em grande escala entre a nação dos vampiros e a humanidade.

Guerra que podia durar décadas. Ou mais.

— Nenhum sacrifício é demasiado grande para a causa final de uma paz duradoura. — o líder dos conspiradores lembrou. — A verdadeira paz que só pode ser obtida com a Ordem fora do nosso caminho.

O grupo concordou com unanimidade. Então alguém começou a cantar o lema do Cabal: — Pax nostrum opus.

Um por um, cada membro se juntou até que a frase ressoou tão alto que Benson se preocupou que Martha pudesse ouvir através das paredes de seu esconderijo secreto em sua morada ilícita. Mas ele sabia que todos os olhos estavam em cima dele, então começou a cantar também, murmurando a frase em latim que dizia — A paz é nosso trabalho.

— Até esta noite, meus irmãos. — disse a sintetizada e desumana voz que Benson ouviria em seus pesadelos por, provavelmente, o resto dos seus dias. — E uma palavra do conselho, diretor. Os olhos da Opus Nostrum estão em toda parte. Nem pensar em trair a nossa confiança novamente.

Benson concordou. Esperou até que o grupo assinalasse, em seguida fechou seu computador e expirou, caiu em colapso como uma pilha de ossos sobre o topo da sua mesa.

— O que eu fiz? — gemeu na dobra do cotovelo. — Deus, me perdoe. O que eu fiz?

 

Mira acabou de ligar o chuveiro quando bateram na porta do quarto da mansão da Ordem. Ainda vestida com as roupas com que chegou há algumas horas, ela fechou a torneira no banheiro e saiu para ver quem estava lá.

— Nathan.

Deu uma boa olhada nos seus curtos cabelos de ébano, sua camisa militar justa e botas de combate. Ele estava no corredor, triste e sisudo.

— Ouvi que Tess curou sua visão. Estou feliz que esteja bem. Como você está?

Ela ergueu os ombros com um débil dar de ombros.

— Vou ficar bem, assim que veja Kellan novamente.

Nathan não respondeu, em vez disso, olhou para o objeto que tinha na mão.

— Queria devolver isto a você mais cedo, mas com tudo que estava acontecendo...

Ele entregou-lhe a lâmina que perdeu no dia em que toda sua vida mudou de direção para fora dos trilhos.

— Você achou meu punhal.

Ele acenou com a cabeça.

— Na primeira noite que você desapareceu, Rafe, Eli, Jax e eu fomos procurá-la. Encontramos a lâmina no gramado de Ackmeyer. Guardei-a para você.

— Obrigado. — Mira virou a arma nas mãos, grata por finalmente tê-la de novo. Embora seus olhos estivessem no desenho intrincado do punho delicado e nas letras, sua mente correu de volta para tudo que ocorreu até o momento desde que perdeu sua preciosa lâmina. Deus, tudo parecia ter acontecido cem anos atrás.

— Obrigado por ser um amigo para mim, Nathan... e para Kellan. Sei que as coisas poderiam ter sido muito pior para ele na noite passada.

Ele resmungou.

— Eu queria matá-lo por tudo o que fez. Para você, para a Ordem, para todos que magoou com sua farsa.

Mira olhou para o amigo, o assassino da Raça nascido em um laboratório que sempre foi assim, ilegível e remoto, sempre o guerreiro mais estoico. Ela via mágoa verdadeira nele agora. E estava com raiva também. Seu rosto bonito estava treinado com inflexível neutralidade, mas Mira não perdeu o brilho âmbar crepitando em suas íris azuis esverdeadas.

— Você está com raiva, mas não o odeia, não é Nathan?

Ele franziu o cenho, parecendo considerar a questão.

— Ontem à noite, quando encontrei o emblema dos Archer no bunker rebelde, e de repente percebi a verdade, sim, eu o odiei. Nunca me senti tão vivo ou tão certo sobre qualquer coisa na minha vida. Estava preparado para matá-lo, Mira. Até que entendi e percebi que não poderia odiar meu amigo. Nem mesmo depois de descobrir que ele era meu inimigo. — Exalou uma respiração pesada. — Não posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ele certamente a magoou mais profundamente que a todos.

— Sim, magoou. — admitiu em voz baixa. — Mas longe de ser tão ruim quanto será se perdê-lo mais uma vez. Não vou deixar que isso aconteça, Nathan. Se o CMN quiser levar Kellan para longe de mim e colocá-lo em julgamento para fazer algum tipo de declaração política que o enviará em uma maldita luta sangrenta.

A boca de Nathan apertou e as sobrancelhas escuras franziram. Ele começou a sacudir a cabeça.

— Mira, você não pode esperar que...

— Tenho que tentar. — ela insistiu. — Não vou desistir dele. Foda-se o CMN, e foda-se o destino também. Não vou deixá-lo ir, mesmo se for isso o que ele quer. E pretendo dizer a Kellan a mesma coisa quando for vê-lo hoje, onde quer que a JUSTIS o esteja mantendo.

— Mira. — disse Nathan, e algo em seu tom — tão cheio de preocupação, tão gentil, fez o sangue começar a congelar em suas veias. — Mira, não haverá tempo para nada disso. Não mais.

Seu coração despencou pesado como uma pedra.

— O que quer dizer?

Ela olhou para ele, só agora percebendo que o retorno de sua adaga era apenas parte da razão pela qual ele tinha vindo vê-la.

— Diga-me o que está acontecendo, Nathan.

Ele baixou os olhos, praguejando em voz baixa.

— No momento em que Kellan for desligado da Ordem, Lucan tem que concordar com que o CMN ouça as acusações e lide com a situação em particular, em vez de levar Kellan aos tribunais criminais para um julgamento completo.

— Ok. — Mira disse cautelosamente. — Isso é bom, certo?

 Nathan simplesmente olhou para ela.

— Por causa dos tumultos e do clamor público por justiça, e porque a cúpula de paz abre hoje à noite, o CMN sente que precisa demonstrar uma ação decisiva para evitar perturbações em potencial durante as festividades. Ele concordou com uma audiência privada, mas o CMN irá conduzir isto — e determinar a sentença de Kellan — em uma reunião especial. Isto irá ocorrer na sede do CMN hoje.

 Todos os seus medos a percorreram, esbofeteando-a em ondas. Ela cambaleou para trás, sentindo como se o ar tivesse sido sugado para fora dos pulmões.

— Eles vão decidir a sentença de Kellan... hoje? Lucan não pode atrasá-la? Deve haver algo mais que ele possa fazer.

 — Ele está reclamando cada favor político que tem, Mira. Esteve em contato com cada um dos membros do Conselho, tentando negociar com eles por uma promessa de clemência.

— Quantos? — Ela perguntou, ficando dormente com um medo que fez seu estômago torcer. — Quantos concordaram até agora?

Nathan não falou por um longo momento.

— Há dezesseis membros do Conselho representando oito países-chave, com um humano e um membro da Raça cada um. — Nathan pigarreou. — Ele tem votos confirmados de alguns, mas ainda há vários membros do Conselho para serem convencidos para que tenha a maioria. Lucan está fazendo um monte de promessas, Mira. Ele está jogando todas as suas fichas por Kellan. Está fazendo tudo o que pode.

Ela queria sentir esperança. Queria acreditar que tudo, de alguma forma, daria certo, e que, por algum milagre, ela e Kellan sairiam desta situação terrível juntos. Mas o medo era um peso frio no meio do seu peito.

— Não posso mais conversar. — Ela murmurou já se afastando da porta aberta e da expressão de preocupação de Nathan. — Tenho que ir. Pensei que haveria mais tempo. Tenho que ver Kellan antes que vá diante do Conselho.

Nathan deu uma sacudida lenta de sua cabeça.

— Não haverá tempo para você vê-lo antes que seja levado para a audiência. O Conselho estará se reunido para encontrá-lo dentro de uma hora.

— Não. — Ela engoliu em seco e sua garganta ficou seca. — Não, isso não pode estar acontecendo. Precisamos de mais tempo...

Suas palavras começaram a falhar, o medo a inundando. Ela recuou mais para dentro do quarto, segurando o olhar arrependido e pesaroso de Nathan. Ela fechou a porta na cara dele e caiu contra ela, a testa pressionada contra o frio painel de madeira.

Ela tinha que ver Kellan. E não havia nenhuma maneira no inferno, que o deixasse diante da assembleia do Conselho sem ela lá para ajudar a defendê-lo. Para lutar por sua liberdade com sangue e lâminas, se fosse necessário.

Jogando sua adaga em cima da cama, Mira se dirigiu ao banheiro e ligou o chuveiro. Despiu-se e ficou diante do espelho, olhando para o rosto da mulher que se tornou.

Vínculo de sangue, no amor.

Nunca esteve tão aterrorizada em toda sua vida.

Ela sabia que o reflexo seria cruel, mesmo antes que tirasse as lentes roxas e levantasse seu olhar para enfrentar o dom de sua visão.

A visão apareceu rapidamente. O mesmo resultado terrível, jogado diante de seus olhos.

Kellan, morto no chão na frente dela.

Ela chorando agoniada, angustiada sobre seu corpo sem vida.

Mira olhou horrorizada e deprimida, até que o vapor do chuveiro encheu o banheiro, respirando um espesso nevoeiro através de toda essa visão terrível da qual não conseguia parecer escapar.

 

Kellan sabia, quando oficiais membros da JUSTIS fortemente armados — quatro Raças e dois humanos — vieram levá-lo de sua cela, pouco antes do meio dia daquele dia, que não poderia estar caminhando para nada de bom.

Mas o impacto total daquela suspeita não o acertou até que o levaram para uma tenebrosa câmara de audiência privada, no edifício da sede do CMN. Lá se encontrou olhando para um júri com todos os dezesseis membros do Conselho, sentados sobre um estrado atrás de uma bancada judiciária ampla em forma de U. No centro da assembleia estava Lucan Thorne, parecendo sério em seu papel como presidente.

A maior parte dos anciões membros da Ordem estavam presentes, bem como os guerreiros e suas companheiras, sentados em fileiras de bancos abaixo do estrado.

Mas a coisa que realmente colocou um alarme chacoalhando nas veias de Kellan foi a visão de Mira de pé em frente ao Conselho. Equipada com sua farda preta e botas de combate, seu longo cabelo loiro preso em uma trança apertada que serpenteava por suas costas, ela estava vestida para a audiência, como se tivesse vindo preparada para a guerra.

Que diabos ela estava fazendo?

Kellan quase gritou isso para ela, mas esta virou para encará-lo quando os guardas o empurraram dentro da sala. Seu rosto estava vermelho, os olhos contornados de vermelho quando olhou para ele.

Seus olhos... Ah, Cristo! Seus olhos virados diretamente para ele, não mais leitosos e sem foco, mas brilhantes por trás das lentes de contato violeta e fixos diretamente sobre ele.

Ela foi curada.

Ela podia ver.

Ele teve medo de confiar no vínculo que lhe disse naquele dia mais cedo que ela estava inteira de novo, mas agora sentiu uma onda de euforia — de alivio, no fundo de seus ossos — por ele mesmo ver que Tess ou Rafe foram capazes de fazer por Mira o que ele foi incapaz com seu sangue.

Agora queria correr para ela e varrê-la em seus braços. Ele teria. Se não suspeitasse que sua ruptura súbita convidaria os oficiais da JUSTIS a caminhar pela sala de audiência para abrir fogo sobre ele e, possivelmente sobre Mira no processo.

Os guardas o guiaram para frente. Um par de machos da Raça em cada lado dele e os dois humanos em suas costas. Kellan não perdeu os rostos sombrios da Ordem e suas companheiras, nem os cenhos franzidos em desaprovação da maioria dos homens e mulheres sentados no estrado. Ele estava lá para ser julgado, aqui e agora. Sua culpa, talvez já determinada, se o manto do silêncio pesado na sala fosse qualquer indicação disso.

E havia Mira, em frente ao Conselho por conta própria.

Mesmo sem a premonição que sua visão tinha lhe dado, Kellan entendeu a presença de Mira na sala de audição. Ela veio para defender seu caso diante dos juízes. Por ele.

Sua bela e teimosa Mira.

Sua companheira firme, de pé com ele, mesmo que soubesse que tinha quebrado seu coração, revirando-o por dentro.

Orgulho e humildade emaranharam-se dentro dele. Não queria que ela fosse parte disso. E ainda assim sabia que não conseguiria mantê-la afastada.

Quando ela olhou para ele agora, seu rosto desabou em aflição. Ela virou de volta para Lucan e os membros do Conselho.

— Não, espere! Por favor, me escutem. Kellan não é assassino. Ele estava tentando salvar vidas — para evitar que uma tecnologia perigosa fosse liberada. Foi por isso que levou Jeremy Ackmeyer. Não estou tentando desculpar o que ele fez, só peço que vocês considerem o porquê dele fazer isso.

Na extremidade do estrado, um humano idoso com olhos fundos e uma palidez doentia pigarreou.

— O Conselho ouviu seu argumento. Todos os fatores serão igualmente pesados quando o Conselho fizer sua determinação neste assunto.

— Diretor Benson. — Mira implorou, virando-se diretamente para o velho. —Sei que esta audiência é pessoal para você também. Jeremy era seu sobrinho. Ele era um bom homem, um homem inocente. Realmente sinto muito pela perda de sua família. Quero que saiba que Kellan tentou salvá-lo. Depois que percebeu a verdade, Kellan fez tudo que podia para encontrar Jeremy. Ele tentou corrigir seus erros, mas já era tarde demais...

— Basta!— A explosão do velho atravessou a assembleia como um tiro. Suas pesadas pálpebras estavam lentas quando olhou ao redor da câmara com a cabeça cinza afundada entre os ombros caídos. — Eu ouvi... o bastante. Por favor, vamos acabar com isso.

Um olhar de Lucan tirou Nikolai da audiência para retirar Mira. Ela lutou no início, jogando um olhar preocupado em direção a Kellan enquanto Niko a levava de volta para seu lugar.

Kellan sentiu o eco da angústia dela em suas veias quando os guardas armados dirigiram seu enfoque para o estrado. Eles o levaram diante do Conselho, e os olhos sóbrios de Lucan enraizados sobre ele.

— Kellan Archer. — anunciou a todos os participantes do evento. — Devido às circunstâncias específicas do seu caso como um ex-membro da Ordem, o Conselho concordou com uma audiência privada das acusações contra você, e uma determinação de sua sentença por maioria de votos hoje. Revimos os crimes dos quais é acusado e as declarações entregues em seu nome. Estes são crimes graves, pedindo por punição séria. A culpa em qualquer uma das acusações acarreta uma pena de morte.

— Eu entendo. — Kellan respondeu, apreciando os rostos solenes dos homens e mulheres que decidiriam seu destino. Ele não viu nenhuma misericórdia em nenhum deles.

Novamente, ele não esperava nenhuma.

Ouviu enquanto uma a uma das acusações contra ele eram lidas, então deu a sua resposta a cada uma delas. Ele quase não registrou as palavras. Todos os seus pensamentos — todos os seus sentidos — estavam treinados sobre a única pessoa na sala que importava para ele.

Mira olhava de seu assento ao lado de Niko e Renata, com os olhos cheios de lágrimas, os dedos prensados ​​nos lábios. Isto o estava matando, que ela tivesse que conhecer esse medo, esse pavor. Este maldito sentimento de impotência, enquanto esperava que o Conselho começasse a entregar seu veredito.

E então esse momento chegou, e Kellan preparou-se para enfrentar o fim de um caminho que tentou evitar durante os últimos oito anos de sua vida.

Lucan sobriamente dirigiu-se ao Conselho, instruindo-os a declarar seus votos individuais, um de cada vez, pedindo ou o encarceramento para a vida toda ou uma sentença de morte.

— Como presidente, meu voto seria ouvido habitualmente depois. — ele disse. — No entanto, como condição para esta audiência privada — porque se trata de um ex-guerreiro sob meu comando como líder da Ordem — o Conselho exigiu que me abstivesse do processo de hoje. Não vou votar sobre a sentença e a decisão do Conselho será a final.

Kellan acenou confirmando, em seguida ficou atento quando a votação começou. Houve uma pequena deliberação. Cada membro do Conselho anunciou seu voto, chegando a um registro surpreendentemente dividido, entre os humanos do CMN e os membros da Raça.

Sete votos, representando ambas as raças, pedindo por seu encarceramento.

Outros oito clamando por sua morte.

Restando um voto.

A audiência terminaria em um empate ou uma decisão firme para a eventual execução de Kellan.

Tudo estava com o vereador atolado no final do estrado, o tio de Jeremy Ackmeyer. Kellan olhou para Benson, sentindo algo mais do que uma simples dor ou vingança no olhar conturbado do velho. Ele tinha bebido, Kellan suspeitava, observando o afundamento de seus ombros caídos, a vermelhidão dos olhos vidrados.

— Diretor Benson. — Lucan solicitou, enviando um olhar para ele. — Você está preparado para declarar sua decisão?

O velho resmungou, levantou a cabeça para olhar na direção de Kellan. Quando falou, sua palavra foi contundente, definitiva.

— Morte.

Kellan ouviu a acentuada respiração inalada de Mira. Ele sentiu claramente a reação aflita dela o percorrer, sacudindo seu pulso como um choque elétrico, enquanto a preocupação dela disparava nele através de seu vínculo de sangue.

— Não. — Sua voz vinda da assembleia atrás dele soou interrompida, sufocada com lágrimas. — Não! Ele não matou seu sobrinho, Diretor Benson. Ele não teve nada a ver com o incêndio no laboratório de Jeremy ou sua morte. Você tem que acreditar nisso! Faça a coisa certa aqui. Você tem que mostrar misericórdia...

— Mira, não. — Kellan virou-se para olhá-la quando ela voou pra fora do seu assento e começou a correr adiante em sua defesa. Ao lado dele, os quatro guardas da Raça ficaram tensos. Ele sentiu um alarme rolar sobre eles, notou que estavam todos se preparando para tirar suas armas.

— Não! — Mira chorou. — Lucan, não deixe que isso aconteça, por favor!

Kellan viu o olhar sombrio de Lucan. Entendendo que o líder da Ordem já tinha feito tudo o que podia. Não havia mais nada que pudesse ser dito ou feito para poupar Kellan.

— Não. — Mira soluçou, deixando cair o rosto nas palmas das mãos.

Sua angústia torceu seu coração oprimido. Ele odiava que a tivesse colocado nisso, assim como temeu por todos esses anos que permaneceu longe, na esperança de evitar este momento.

Na extremidade da câmara, Benson estava balançando a cabeça, murmurando em voz baixa.

— Tudo isso foi longe demais. — Ele gaguejou com a cabeça baixa, o rosto caído enquanto falava. — Muito longe agora. Eu finalmente vejo isso quando é tarde demais para endireitar as coisas.

Kellan ouviu e sua curiosidade picando em atenção, enquanto Benson divagava taciturno e enigmático. Não havia remorso na voz do velho, isso era inconfundível. Mas havia algo mais, algo que fez o sangue de Kellan esmurrar suas têmporas.

— Tarde demais para Jeremy. — Benson murmurou completamente varrido em sua própria miséria particular. — Uma vida tão brilhante, interrompida. Ele era uma alma pura, aquele garoto incorruptível. Um verdadeiro portador da luz que poderia ter mudado o mundo.

Portador da luz.

Uma frase incomum. Uma que Ackmeyer usou muito para descrever seu projeto inédito de tecnologia UV.

Puta merda.

Foi Benson quem roubou o protótipo. A percepção afundou como garras no âmago de Kellan. Seu sangue gelou, então imediatamente perfurou com vulcânica raiva.

— Morningstar. — Rosnou com toda a sua fúria bloqueada no velho no final da assembleia do Conselho. Os olhos de Benson vidrados pela bebida se arregalaram com culpa e terror. — Seu filho da puta. Foi você.

Em um rugido furioso, Kellan avançou.

Ele sentiu a súbita onda de corpos em movimento atrás dele enquanto saltava pelo ar até o final do estrado. Ouviu o grito de Mira. Ouviu as explosões rápidas de tiros em seu rastro.

Ele sentiu a saraivada súbita de dor, uma rajada interminável de rodadas rasgando seu tronco e membros, enquanto avançava para cima de Benson e levava o vereador corrupto ao chão.

A voz de Mira era um grito lancinante de angústia.

— Kellan!

Ele sabia que ela sentia o eco dos ferimentos em seu corpo e da raiva. O terror dela se fundiu com suas próprias emoções, mas ele estava muito longe de se conter. Agarrando Benson em torno de sua garganta.

— Diga-me para quem você deu a tecnologia, seu desgraçado. Diga!

O humano não falaria. Ele fechou seus molares juntos, os olhos embriagados com medo, porém mais por conta de uma ameaça invisível do que do vampiro o sufocando naquele momento. O coração de Kellan trovejava em seus ouvidos, tão alto e anormal, era tudo o que podia ouvir enquanto seu sangue bombeava para fora dele, derramado dos inúmeros buracos perfurantes em seu corpo e membros. O dano era total, o sangue não parava.

Ele estava morrendo.

O pensamento caiu nele rápido e determinado, cortando o caos em erupção de todos ao seu redor, quando o tempo correu numa velocidade excessiva em instantes.

Ele não deveria ter ficado surpreso, dado tudo o que a visão de Mira previu. Mas dane-se, o choque do que estava sentindo passou por ele como um veneno.

— Quem o matou? Você vendeu a sua própria carne e sangue — diga-me para quem você fez isso, Benson. — Com um grunhido, ele lutou para manter suas mãos em volta do pescoço do humano, quando sua força começou a escapar dele. Tinha que saber, não podia morrer assim, sem dar à Ordem algo para continuar depois que se fosse. Se o humano se recusasse a botar pra fora as respostas exigidas por Kellan, então arrastaria a verdade de sua mente.

Kellan leu o pesar no velho homem. Remorso pelo que fizera, provocando o assassinato de seu sobrinho e logo as mortes de inúmeros outros. Tantas mortes por vir, tudo sob o pretexto de paz.

A aderência de Kellan começou a afrouxar. Ele não conseguia segurar. Nem mesmo quando Benson escapou de seu alcance e foi se arrastando para os guardas do CMN e do JUSTIS. Ele rolou de costas e se encontrou olhando para as sombras nebulosas de Lucan e o resto da Ordem. Tentou falar, mas apenas tossiu, cuspindo sangue quando a dor correu por cada centímetro de seu corpo.

Mais de um guerreiro soltou um palavrão baixo quando olhou para ele.

— Alguém vá atrás de Benson. — Lucan grunhiu. — Porra. Traga esse filho da puta para interrogatório. Agora.

— Kellan. — A voz de Mira estava destruída com lágrimas e angústia. Ela empurrou os guerreiros e caiu de joelhos ao lado dele. Agarrando sua mão, apertou-a contra o peito com um soluço torturado. — Oh, Kellan. Não!

Mira dobrou-se sobre ele, chorando com uma dor primitiva que o destruía, até mais do que as balas ou seus muitos fracassos do passado. Ele queria dizer que estava arrependido. Queria dizer que a amava. Que sempre a amou e sempre amaria, não importando o que esperava por ele do outro lado agora.

Mas ela sabia disso.

Olhou para o rosto dele e assentiu através das lágrimas, passando os dedos levemente sobre sua testa, trêmula quando limpou o sangue de sua boca e se inclinou para beijá-lo.

Kellan queria dizer a ela as palavras de qualquer jeito, mas havia outra coisa que ela precisava ouvir. Algo que toda Ordem precisava ouvir.

— Nostrum Opus. — o murmúrio de Kellan era apenas um sussurro, lutando com tudo o que tinha para ter fôlego para falar, quando o espaço entre um batimento cardíaco e o próximo esticava mais a cada segundo. — Detenha a Nostrum Opus.

 

Não.

Oh, Deus... não, isso não podia estar acontecendo.

— Kellan. — Mira apertou sua mão, sentiu a força dele escapar do seu alcance quando seus olhos se fecharam. — Kellan? Oh, não... Não, Kellan, por favor, fique comigo. Não me deixe.

Mas ele já estava se afastando dela, sendo puxado por mãos invisíveis que não iriam libertá-lo. Ela sentiu o vínculo de sangue deles se esticar, cada vez mais fino, um fio tênue que não podia ser rebobinado para trás, não importa o quanto ela quisesse.

E então rompeu.

Ela sentiu a fissura do choque quando o vínculo foi rompido. Sentiu seu coração ficar dormente e vazio, à deriva no peito.

Oh, Deus! Ela o perdeu.

Eu o perdi outra vez.

— Kellan não! — Ela gritou, sufocando em lágrimas quentes e picantes. — Não!

Ela não pôde conter os soluços. Sua dor a rasgou, recortada e crua quando caiu em cima do corpo sem vida e chorou.

Kellan se foi.

Morto.

Assim como sua visão tinha lhe mostrado.

Ela gemia seu nome uma vez após a outra, fora de si com a tristeza e a alma rasgando com a angústia. Ela não queria acreditar que ele se foi, mas sua mão estava mole na dela, seu corpo forte imóvel, banhado em seu sangue derramado. Tão cheio de graves e terríveis feridas.

Eles o mataram.

Seu amor.

Seu companheiro.

Seu melhor amigo, seu parceiro... tudo para ela.

Se foi.

Mira mal registrou as mãos que vieram descansar levemente em seus ombros, enquanto se agarrava ao corpo sem vida de Kellan, desolada e soluçando. Ela mal ouviu a voz baixa de Nikolai, seu carinhoso tom calmo, fazendo o horror de tudo parecer ainda mais real.

— Mira. — ele disse suavemente.

 Renata estava com ele também, ambos tentando lhe dar conforto. Os dedos dela acariciavam a parte de trás de sua cabeça.

— Vamos, Ratinha. Deixe-o ir querida.

— Não. — ela resmungou, afastando as mãos que sempre lhe deram tanto conforto quando criança. Niko e Renata sempre foram capazes de fazer as coisas melhorar para ela quando era uma garotinha. Eles eram pais de todas as maneiras que importavam. Os ombros fortes e os braços amorosos que podia contar sempre que precisava deles. Mas não hoje. Não agora. Eles não podiam corrigir isso. Não podiam fazer isto ir embora.

— Eles o mataram. — Murmurou infeliz com desespero. — Oh, Deus... Eles o mataram.

Ela balançou a cabeça para olhar para Nikolai e Renata. Lucan e a Ordem estavam lá também com os guerreiros e suas companheiras se aglomerando solenemente ao redor do corpo de Kellan. Silenciosos, chocados, todos sem dizer uma palavra.

E por trás de todos eles, boquiabertos com curiosidade mórbida, os membros do CMN — a maioria dos quais não precisou ser convencida a pedir a morte de Kellan. Eles encaravam agora, a Raça e os humanos, balançando as cabeças disputando para obter um vislumbre do corpo de seu insultado vilão. Mira sentiu o veneno ferver em suas veias com a visão dos membros do Conselho. Eles eram tão responsáveis ​​pela morte de Kellan quanto os guardas da JUSTIS que abriram fogo contra ele.

O desprezo ferveu dentro dela, explodindo em um rugido angustiado.

— Saiam daqui. — ela rosnou para o Conselho. — Saiam de perto dele, todos vocês!

Ela se lançou sobre eles, mas Niko a pegou em uma confiante compreensão, segurando-a enquanto cada célula de seu corpo estava gritando por vingança. Seu lamento desesperado soou animalesco, até mesmo para seus próprios ouvidos. Ela caiu nos braços de Nikolai, as lágrimas inundando sua visão.

— Leve-a de volta para a sede. — disse Lucan para Niko e Renata, sua voz profundamente solene, mas com simpatia por baixo. — Veja para que fique confortável. Qualquer coisa que precise.

Mira não podia lutar contra os braços que a arrancavam de lá agora. Ela não tinha forças, nem vontade. Nenhum sentimento.

Seu peito parecia como se estivesse aberto ao meio e cheio de um vento frio e entorpecido.

Kellan estava morto.

Mira caminhava rigidamente, nem mesmo certa de que estivesse respirando mais, enquanto Nikolai e Renata a levavam para fora da câmara em silêncio.

 Lucan lançou um olhar furioso para os membros embasbacados do CMN quando Mira foi retirada de cena. Sua visão estava ardente, faiscando em âmbar. Sentindo suas presas afiadas contra sua língua quando falou, sua voz vibrando com raiva letal.

— O show acabou. Vocês tiveram seu pedaço de carne. Agora deem o fora daqui.

O grupo dispersou, em silêncio e com medo. Quando fugiram da câmara, Dante veio dos fundos, por onde Benson tinha escapado.

— O diretor está morto, Lucan. Encontrei-o agora no corredor dos fundos. Baleado três vezes, um ponto em branco na cabeça. Nenhum sinal dos oficiais da JUSTIS que o seguiram.

— Filho da puta. — Lucan passou a mão sobre seu couro cabeludo. Benson sabia algo sobre a tecnologia UV de Ackmeyer. Ele praticamente confessou tudo nos segundos antes de Kellan saltar sobre ele. Benson aparentemente sabia o suficiente sobre Morningstar e quem tinha nas mãos a tecnologia, para que alguém se certificasse de que ele não tivesse oportunidade de dizer mais nada. Mas quem, e por quê?

E o quão longe essa conspiração chegaria?

Agora havia outra questão que precisava de respostas rápidas, bem como: Quem ou o que era Nostrum Opus?

Lucan olhou para Kellan. Para as dezenas de ferimentos de bala que levou o jovem para baixo.

— Não tinha que ter ido assim, porra. Ele merecia mais. Merecia uma chance de algo mais — ele e Mira.

Dante assentiu sombriamente.

— Talvez haja uma maneira de consertar isso.

O guerreiro lançou um olhar significativo para sua companheira de Raça, Tess, que estava com o resto da Ordem e suas companheiras. Antes que Lucan ou Dante pudesse dizer outra palavra, Tess estava em ação, pegando o pensamento e caindo ao lado de Kellan para colocar suas mãos curativas sobre ele.

— Seu sangue ainda está quente, mas seu coração está parado.

— Você pode transpor isso? — Lucan se lembrou de um evento que Dante descrevera para ele, da vida de Tess antes que ela conhecesse seu companheiro guerreiro. Como uma jovem mulher, ela reviveu uma vez alguém que tinha morrido de repente de insuficiência cardíaca. Mais tarde em seu trabalho como veterinária, curou até um pequeno vira-lata doente de câncer e outras doenças usando seu extraordinário talento de companheira da Raça.

Deus sabia que a fêmea reparou mais do que sua parcela de ferimentos de combate para a Ordem, durante as últimas duas décadas.

Mas agora Tess parecia menos do que segura.

— Posso reiniciar seu coração — ela disse —, mas não serei capaz de deter o sangramento e reparar todos os ferimentos de bala ao mesmo tempo. Posso reanimá-lo, mas ele poderia sangrar mais rápido do que posso curá-lo.

— Deixe-me ajudá-la. — Rafe, o filho de Tess e Dante, agachou-se ao lado dela. O rosto do jovem guerreiro estava solene, seu olhar decidido. Tinha o mesmo tom verde azulado de sua mãe. Intensos com uma determinação que Lucan tinha visto exibido em igual medida no campo de combate. Rafe colocou suas mãos em dois dos ferimentos a bala, em seguida deu à sua mãe um aceno de cabeça. — Você o estimula reiniciando seu batimento. Deixe o resto comigo.

Tess sorriu com o rosto cheio de orgulho maternal quando o par de curadores foi trabalhar em Kellan.

Lucan queria saber tanto quanto qualquer outra pessoa reunida ao redor da cena, se a Ordem teria um milagre aqui hoje ou uma perda que enviaria o corpo de um deles — um de seus parentes — para encontrar o sol amanhã de manhã em um ritual funerário.

Mas, independentemente da condição em que Kellan Archer voltasse para a sede da Ordem, Lucan e os outros guerreiros teriam sérios problemas para enfrentar agora.

Problemas que só se tornaram mais urgentes com o assassinato, em estilo de execução, do diretor Benson do CMN, alguns minutos atrás.

Lucan enviou um olhar para Gideon, Tegan, Dante e o resto dos anciãos da Ordem.

— Nostrum Opus? — Disse severamente. Uma pergunta em tom sombrio.

Gideon balançou a cabeça, assim como fizeram os outros guerreiros.

— É Latim. Significa “nosso trabalho”.

— Qualquer ideia ao que ela se refere ou mais importante, como isto pode se relacionar com o projeto de Ackmeyer do Morningstar?

— É a primeira vez que estou ouvindo isso. — respondeu Gideon.

Tegan inclinou a cabeça, o olhar plano e frio.

— Vou pegar uma equipe e conduzir alguns reconhecimentos. Podemos ter as botas no chão ao cair do sol.

 Lucan assentiu.

— Vamos precisar de tudo o que você possa reunir. Não deixe pedra sobre pedra. Relate para mim tudo que encontrar.

Tegan articulou, sinalizando para vários outros guerreiros para se juntar a ele.

— E a recepção da cúpula? — Dante perguntou. — Quer intensificar a segurança, colocar mais aquecimento em exposição, no caso de alguém ter ideias de fazer algo estúpido esta noite?

Lucan pensou por um momento. Por mais tentador que fosse, a última coisa que precisava era uma tempestade na cúpula de paz, com um exército de guerreiros da Raça vestidos em larga escala com equipamentos de combate e armas pesadas. Na verdade, isso poderia ser jogado diretamente nas mãos de alguém que possa abrigar um desejo particular de ver a trégua entre humanidade e Raça se desintegrar.

Qual o melhor lugar para incitar uma guerra do que em uma cúpula de paz?

Com as lembranças das palavras de Darion, Lucan olhou para seu filho. A observação de Dare alguns dias atrás, antes de todo este caos começar, trouxe preocupação suficiente para se considerar então. Agora parecia bem provável que a cabeça afiada de seu filho para táticas e estratégias houvesse previsto exatamente isto.

E se alguém quisesse perturbar a festividade da cúpula esta noite?

E se alguém quisesse desfazer todos os avanços que foram feitos, desde o Primeiro Amanhecer vinte anos atrás e atrasasse o relógio para um tempo em que não houvesse paz? Ou se certificar de que nunca pudesse existir qualquer avanço?

Para isso, eles teriam que passar primeiro pela Ordem.

Lucan olhou para Dante, deu uma sacudida brusca de sua cabeça, na questão de exibir publicamente o poder da Ordem.

— Não vamos virar nossa mão esta noite. Se alguma coisa está em jogo, deixe os bastardos ficarem confiantes. Deixe que se mostrem em primeiro lugar. Estaremos prontos para eles. Enquanto isso, ninguém está acima de qualquer suspeita.

 

Mira despertou com um suspiro, como um peixe jogado para fora do oceano em terra seca.

Chocada.

Confusa.

Golpeada de repente por uma dura nova realidade.

Ela sentou rapidamente na cama com a respiração ofegante. Seu coração estava batendo rápido e forte como se quisesse explodir em seu peito.

Ela estava de volta na sede da Ordem, sozinha em um quarto escuro. Nada além do silêncio ao redor dela. Mal percebendo o que a rodeava, mal sabendo como tinha chegado até ali ou desde quando estava inconsciente.

Ela se lembrava vagamente de Nikolai transportando-a depois que deixaram o prédio do CMN. Não podia culpá-lo por colocá-la sob sedação hipnótica. Ela estava inconsolável e histérica com a tristeza.

Tudo parecia um pesadelo horrível e doloroso. Mas não, foi real. Ela ainda tinha o sangue de Kellan em suas roupas.

Ele foi baleado.

Kellan estava morto.

E ainda...

Ela esfregou o peito, sentiu a batida do seu coração pesado e forte sob sua palma. Seu sangue estava vibrando em suas veias. Todos os seus sentidos afinados em um ponto de consciência pura.

Kellan.

Ela o sentia com cada partícula de seu ser.

Ela sentia a dor, sua luta para se agarrar a algo que até agora esteve escapando de suas mãos.

Vida.

Ela o sentiu penetrando nisso. Ela o sentiu lutando por cada respiração. Forçando cada batida pesada de seu coração para empurrar mais sangue em suas veias. Sentiu sua mente procurando por ela. Sentiu seu vínculo se reconectar, dando-lhe a força necessária.

Oh, Deus...

Kellan estava vivo.

Mira balançou os pés para o chão e levantou-se no momento em que Renata entrou no quarto.

— Kellan? — Mira deixou escapar, tanto uma pergunta quanto uma oração.

Renata sorriu, alívio escrito em seu rosto.

— Sim, Ratinha. Ele não está fora de perigo ainda, mas Tess e Rafe...

Mira estava muito exultante para deixá-la terminar. Ela soltou um grito de descrença e se jogou em Renata, em um abraço feroz e cheio de alegria.

— Tenho que vê-lo.

Ela correu pela mansão, seguindo a linha fina do vínculo de sangue que compartilhava com ele. Isto a levou para baixo das escadas para o andar principal, e de novo para a ala subterrânea do centro de tecnologia da sede, e para as portas duplas da enfermaria no final do corredor.

Kellan estava deitado em uma cama de hospital, dentro de um dos seis quartos clínicos. Tess e Rafe estavam com ele. Nikolai, Dante e Lucan estavam em um dos lados da cama. E Nathan estava lá, de pé tão rígido como uma sentinela sob vigilância, acompanhado de sua equipe de guerreiros e a de Mira também.

As equipes que treinaram, riram e entraram em batalhas com ela, todos deram seus acenos de saudação e apoio quando entrou no quarto. Quanto a Nathan, apesar de sua postura cuidadosamente educada, não havia dúvida na preocupação em seus olhos escuros afiados quando girou a cabeça e encontrou o olhar de Mira. Ele estava preocupado com Kellan também.

Mira foi para o lado da cama, não percebendo que estava prendendo a respiração até que viu a subida e descida do peito de Kellan, e seus próprios pulmões expulsaram um suspiro irregular.

Ela sussurrou seu nome, estendendo a mão para alisar os cabelos castanho-acobreados da testa pálida.

— Ele está fraco neste momento. — Tess disse gentilmente. — Perdeu muito sangue.

— Ele está vivo. — disse Mira. Era toda a esperança de que precisava. Ela beijou sua boca, provando suas próprias lágrimas quando colocou os braços ao redor de seus ombros volumosos, e deixou seu alívio esvair dela.

Levou um longo tempo antes que pudesse soltá-lo. Ela se virou, caminhando para Tess e Rafe, seus próprios fazedores de milagres. Ela abraçou os dois, mas segurou Tess com uma gratidão que desafiava as palavras.

Exatamente nesta manhã Tess disse a Mira que sua visão tinha lhe dado um presente que não sabia como pagar. Mira nunca imaginou o quanto precisaria deste extraordinário poder de Tess. Como poderia expressar a profundidade de sua gratidão?

—Tess, eu...

A outra companheira da Raça apenas sorriu e apertou a mão de Mira.

— Eu sei. Agora, vá para ele. Kellan precisa de você mais do que qualquer outra coisa que podemos fazer por ele.

Mira voltou para o lado dele e tomou sua mão. Sua pele estava quente. Seus dedos se contraíram em sua mão, em seguida, apertaram. Ele podia senti-la. Sabia que ela estava lá com ele.

— Seu coração é muito forte. — disse Tess. — Está lutando muito para voltar. Ele não queria ir.

Mira não conseguiu segurar um pequeno soluço.

— Você voltou para mim. — ela murmurou, inclinando-se para perto dele enquanto acariciava seu rosto bonito. — Agora está preso para sempre, Kellan Archer. Você pode me ouvir? Nunca mais me deixará de novo.

As mãos de Tess pousaram levemente em volta de Mira.

— Gostaria de ver como ele está um pouco mais tarde, verificar se está bem. Mas agora sua cura depende de você. Seu sangue vai fazer o resto por ele, Mira.

Ela assentiu com a cabeça, observando enquanto Tess se afastava. Ela havia colocado um bisturi fino em cima de algumas roupas dobradas sobre a mesa de cabeceira.

O alívio de Mira de que Kellan estivesse vivo não poderia ter sido mais completo, mas não podia deixar de sentir a gravidade sombria da presença de Lucan no quarto. Foi dada a Kellan a oportunidade de desafiar os ferimentos à bala que o matou em frente ao CMN, mas onde isso o deixaria com Lucan e o resto da Ordem?

— O que acontece agora, Lucan? Se Kellan acordar — quando ele acordar —, onde estará ao sair daqui?

A expressão sombria de Lucan não deixou transparecer nada. Ele olhou para Kellan, em seguida trouxe seu olhar cinza severo de volta para Mira.

— Nada disso muda o que já está acontecendo. Morto ou vivo, ele ainda está condenado pelo Conselho. Não poderá voltar para a vida que levava antes. Nenhuma das vidas que já teve.

Mira sabia que sua decepção deveria estar estampada em seu rosto. Ela estava esperando por algum tipo de absolvição de Lucan. Alguma garantia de que Kellan seria bem-vindo de volta ao reduto e que a vida ficaria como era antes. Melhor do que já esteve.

Estava esperando por um milagre. E ela teve, não foi? Kellan estava vivo. O resto eles simplesmente teriam que descobrir mais tarde. Descobririam tudo juntos.

E se isso significasse que teria que deixar a Ordem para ficar com Kellan?

Ela tentou ignorar a pontada de dor que esta noção trouxe. A Ordem era sua família. Seu propósito de vida. Sua casa.

Ela desviou o olhar de Lucan para Renata, bonita e pesada com o bebê, situada sob a asa protetora do braço forte de Nikolai. Ela olhou ao lado para Nathan, seu amigo querido. Amigo de Kellan. E para o trio de guerreiros da Raça que há muito tempo se tornaram mais do que simples companheiros. Todos reunidos neste quarto e sob este teto eram parte da vida de Mira.

Apesar de todas as suas tentativas nos últimos dias para convencer Kellan de que deveriam fugir juntos, abandonarem tudo e tentar fugir do destino que ele tinha visto em seus olhos, só agora percebeu quão alto seria o preço.

Mas Kellan sabia.

Mesmo com a perspectiva de sua própria morte pairando sobre sua cabeça, ele não permitiu que Mira virasse as costas para tudo o que amava por uma vida de exílio e clandestinidade com ele. Escolheu enfrentar um destino fatal, a fim de ter certeza de que ela encontrasse o caminho de volta ao qual pertencia.

Ela o amava mais agora por este sacrifício do que o amou em qualquer outro momento.

Mira pegou o bisturi da mesa ao lado da cama. Fez uma pequena incisão em seu pulso, depois segurou a ferida aberta contra a boca flácida dele. Acariciando seu cabelo e seu rosto suavemente, encorajando-o a beber. O sangue jorrou em sua língua, vermelho escuro, o cheiro acobreado disso atado a fragrância do rastro de lírio, o cheiro único de seu sangue. Kellan respondeu após um longo momento, sua garganta trabalhando lentamente, quando o sangue escorregou para o fundo de sua boca.

— Isso mesmo. — Mira sussurrou. — Tome um pouco mais de mim, Kellan. Pegue tudo o que precisa.

Seus lábios se moviam para obter uma melhor aquisição de sua veia. Em seguida a língua pressionou contra sua pele, quente e rigorosa. Ele tomou outro gole. Em seguida, outro.

Mira o acariciava enquanto bebia dela, sentindo a força dele começar a se renovar através de seu vínculo.

— Continue bebendo. — ela disse suavemente. — Volte para mim.

Ela mal notava os outros no quarto agora, todo seu foco preso em Kellan. Em fazê-lo melhorar. Fazê-lo ficar inteiro.

— Vamos dar a vocês algum tempo sozinhos. — disse Renata. Ela liderou o grupo de guerreiros e suas companheiras para fora da sala, parando para enviar um carinhoso sorriso em direção a Mira.

— Eu te amo, Ratinha.

Mira balançou a cabeça e deu um sorriso vacilante.

— Eu também amo você, Rennie.

Ela amava todos eles, a única família que tinha conhecido. E amava Kellan, o homem que era dono do seu coração desde o primeiro momento em que pôs os olhos nele.

Ela não queria escolher. Queria ambos.

Com egoísmo, desesperadamente, queria ambos.

 

Quatro horas mais tarde, Lucan Thorne estava ao lado de sua companheira da Raça, Gabrielle, no meio da festividade da cúpula de paz em pânico, vestido como um empresário em seu terno preto, camisa preta de botões e polidos sapatos pretos.

O resto da Ordem de serviço na recepção estava igualmente equipado, um detalhe de segurança com quase vinte homens usando ternos refinados sob medida e armas estrategicamente escondidas. Não que eles se misturassem exatamente. Dificilmente se perderia a presença de dois metros de musculosos da Raça, e a ameaça sombria estacionada em todos os cantos do reluzente salão de recepção.

Precisamente o ponto que Lucan procurava estabelecer diante de milhares de humanos, dignitários da Raça e chefes de Estado em serviço em diversas partes do mundo.

A Ordem estava no local e vigilante.

Eles não precisavam de um arsenal de armas para provar sua função. Era evidente nas passadas de cada guerreiro. Em seus olhares constantes e na mandíbula rígida. E no poder sobrenatural que irradiava de cada um dos irmãos guerreiros de Lucan, mesmo parados. Eles estavam friamente mortais e à espreita.

Mas estavam lá para manter a paz, não para atiçar as chamas de inquietação ou desconfiança.

Mais do que ele poderia dizer dos mais de trinta cowboys arrogantes em uniformes das Indústrias Crowe ao redor, cada um com um par de pistolas balançando em seus quadris. Lucan olhou furioso quando o pavão envaidecido no comando destes brutamontes sem noção começou a pavonear em direção a ele por todo o amplo piso da recepção lotada.

Ao lado dele Gabrielle colocou a mão em seu braço, e casualmente se inclinou em sua direção, falando com seu sorriso muito diplomático.

— Tente ser agradável. Isto é uma festa, lembra?

Com os olhos sobre Reginald Crowe, Lucan baixou a cabeça e resmungou.

Podre de rico e escorregadio com um sorriso pronto de vendedor nato, Crowe aproximou-se em seu smoking preto e camisa branca e uma delicada taça de champanhe borbulhante presa entre os dedos de sua mão esquerda. Ele era alto e em forma, portava-se com um ar intitulado — de proprietário de tudo em que colocava os olhos — o que fez Lucan querer socar a arrogância dele à primeira vista. A cabeleira amarela espessa de Crowe mantinha o brilho dourado de um Krugerrand, [9] penteada para trás esta noite, fazendo seu amplo sorriso parecer segurar ainda mais seu rosto bronzeado mediterrâneo.

— Presidente Thorne. — ele disse com aquele sorriso parecendo ainda mais forçado, muito menos amigável, de perto. — Boa noite para você.

Lucan tinha pouca escolha senão a de tomar a mão oferecida e dar um aperto firme de saudação. Mas não tinha que conter seu olhar, quando o olhar de Crowe deslocou-se para Gabrielle. Ele a olhou da cabeça aos pés, deslumbrante em seu tubinho básico cinza e delicados saltos altos.

— Não creio que tive o prazer.

— Minha companheira. — Lucan rosnou. — Gabrielle.

Ela deu um aceno cortês com a cabeça e o rosto de Crowe se iluminou com apreciação.

— Encantado, com certeza. — Inclinou-se ligeiramente, em seguida fez um gesto com o copo de champanhe. — Posso trazer-lhe um drink ou uns canapés? Seria um prazer servi-la, Senhora Thorne.

O sorriso de Gabrielle estava um pouco tenso com a atenção indesejada.

— Não, obrigado.

— O que você quer, Crowe?

Crowe virou a cabeça para trás em direção a Lucan.

— Na verdade gostaria de felicitá-lo a respeito da decisão de avançar com a festividade desta noite. Acredito que o Diretor Benson iria querer isto. Ele e o resto do CMN — incluído eu mesmo, é claro — temos feito muito para fazer esta cúpula acontecer. Seria uma vergonha vê-la desmoronar no último minuto.

Lucan grunhiu em reconhecimento.

— Especialmente depois que você obviamente investiu tanto neste evento pessoalmente.

Onde quer que se olhasse, via-se o selo das Indústrias Crowe na festa: desde a equipe de segurança até o serviço de Buffet e a equipe de vídeo transmitindo a recepção para o resto do mundo. Pelo amor de Deus, até mesmo a orquestra de dez homens no fundo do salão luxuoso tocava sob um banner digital, tendo a imagem sorridente de Reginald Crowe.

E depois havia a peça central do ególatra — uma escultura de cristal que ele tinha dedicado ao CMN esta noite em comemoração ao Primeiro Amanhecer e a missão da cúpula de assegurar a verdadeira paz — situada no centro do grande salão. Pelo menos isto não era um flagrante hino à arrogância de Crowe. Não era uma imagem que Lucan já meio que esperava, em tamanho real do homem, mas um grande obelisco esculpido em cristal brilhante, multifacetado. A escultura de três metros afunilada em seu pico, em cima da qual estava um globo que brilhava tão impecável e frio como um diamante, mas brilhava levemente no centro em pálidos tons de pêssego e ouro.

Era, Lucan tinha que admitir mesmo que apenas para si mesmo, um trabalho de arte impressionante. A maioria dos associados dignitários concordava. Multidões atraídas para o obelisco como um farol no meio do mar de participantes formalmente vestidos.

Crowe tomou um gole de seu champanhe, examinando a recepção que tinha comprado com o que poderia ter sido facilmente milhões. Ele exalou um suspiro retido e lentamente balançou a cabeça.

— Uma pena realmente. Esta noite era para ter sido uma celebração de todas as coisas boas que ainda estão por vir. Um reconhecimento de todas as promessas que o futuro nos reservava. Ter perdido uma das mais brilhantes mentes científicas do mundo e um estadista respeitado, tanta violência na mesma semana... — Crowe estalou a língua. — Bem, é impensável. Uma tragédia.

— De fato. — respondeu Lucan.

O olhar de Crowe parou sobre ele, tão astuto e afiado quanto uma ave de rapina.

— E a Ordem deve estar em choque também, não sem suas próprias perdas esta semana. Péssimo negócio perceber que um dos seus efetivos se tornou um traidor. Um ex-guerreiro passando para o lado negro para colaborar com os rebeldes... Terrível. — Crowe entreabriu os lábios em um sorriso frio. — Espero que me perdoe por dizer que esta é uma morte que encontrei hoje motivos para comemorar.

Lucan deu de ombros descuidado, recusando-se a deixar o humano incitá-lo.

— Aparentemente ele não era o único envolvido na conspiração. O assassinato de Benson por policiais da JUSTIS hoje significa, obviamente, que o diretor tinha seus próprios inimigos secretos.

Crowe franziu a testa como se expressando pesar, mas a emoção não chegou aos seus olhos.

— Vivemos em tempos perigosos, tenho certeza que você concorda. E tenho que dizer, estou surpreso com a falta de resposta da segurança após a violência na audiência de hoje. Imaginei que a Ordem chegaria esta noite como um batalhão marchando.

Lucan grunhiu, frio e imperturbável.

— Este é um evento da cúpula de paz, não uma zona de combate. Seus homens devem ter perdido o memorando.

Crowe riu, olhando em volta para seus guardas uniformizados que patrulhavam a festa como uma equipe da SWAT.

— Eu me pergunto quais interesses você está protegendo mais. — Lucan acrescentou. — A cúpula, os participantes... ou a si mesmo.

Agora o humor do magnata desapareceu e seu sorriso não era nada agradável.

— Acontece que vejo essas coisas com igual importância. Especialmente depois que a Ordem permitiu que alguém como Jeremy Ackmeyer fosse sequestrado sob sua vigilância... por um de seus próprios ex-membros, nada menos. Sou da opinião de que não se pode ser descuidado quando se trata de proteger os interesses do nosso futuro, Presidente Thorne.

— Nisto estamos de acordo. — Lucan respondeu secamente.

Crowe levantou o copo e o esvaziou em um longo gole. Ele olhou para Gabrielle, deu-lhe um aceno galante.

— Se me derem licença, tenho convidados para cumprimentar.

Ele não esperou por uma resposta. Marchando até um embaixador da Raça da América do Sul chegando com sua atraente companheira loira, Crowe deslizou suavemente para longe, desaparecendo na multidão de smokings e vestidos de noite.

Gabrielle ficou olhando para ele, em seguida zombou baixinho.

— Aquele é um cuzão.

Lucan grunhiu e a puxou ao seu lado.

— Ele com certeza é. E está tramando algo. Posso sentir o cheiro disso no filho da puta.

Ele enviou um olhar para Tegan e Dante do outro lado da sala, em seguida um aceno significativo na direção de Crowe. Eles estariam observando o humano de perto esta noite.

E se alguém da Ordem tivesse um sopro de motivos para se preocupar, o bastardo seria derrubado — quer o mundo inteiro estivesse assistindo ou não.

 

Kellan estava sonhando com lírios.

A fragrância doce envolvendo seus sentidos como uma fita de seda. Puxando-o suavemente para a superfície de um sono escuro e pesado.

Ele estava vivo.

Abriu os olhos. Piscou lentamente enquanto se concentrava em seu redor. Ele estava em uma cama. Um hospital — Não. Na enfermaria na sede da Ordem em D.C. Ele conhecia este lugar, desembarcara lá depois do combate mais de uma vez em seu passado distante. Mas nunca assim.

E nunca com Mira aninhada contra ele.

Uma onda de emoção o inundou.

Estava vivo.

E ainda assim sabia que tinha morrido. Lembrou-se do momento em que a escuridão fechou e perdeu o controle sobre o mundo corporal. Tentou tão duramente se segurar. Ele não queria ir. Não queria deixá-la. Ainda podia sentir a sensação de pânico profundamente em seu âmago enquanto perdia sua conexão com Mira mais fina e esticada... então explodiu, mandando-o à deriva longe dela, desamarrado, perdido em um mar de escuridão.

Havia morrido.

Entendeu isso.

No entanto ali estava ele, recebendo outra chance de viver. Tess e Rafe, ele percebeu agora. Foram as mãos deles que o curaram. Suas vozes que diziam para aguentar, para alcançar a linha que estavam jogando para ele.

E depois houve Mira.

Ela o salvou também. Ainda podia saborear seu sangue de lírio-doce na língua. Ela o encontrou e o curou, justamente quando mais precisava. Sua força, seu poder, seu amor.

O vínculo deles desafiou a morte, e ele nunca se sentiu tão humilhado por nada antes em toda a sua vida. Ele amava essa mulher — sua mulher, sua companheira eterna. Ele precisava dela mais do que o ar, mais do que qualquer outra coisa que esta vida poderia lhe dar. Seu coração encheu de amor por ela, renascido e renovado, batendo tão duro e forte como um tambor.

Mira agitou-se ao lado dele, acordando com um suspiro suave. Ela ainda estava com o mesmo uniforme preto que usava quando a viu pela última vez, mas estava amarrotado de ter ficado deitada, com seu sangue em alguns locais. A trança loira estava um desastre, mais solta do que presa, o cabelo claro emoldurando seu rosto com cachos finos. Ele nunca tinha visto uma visão tão bem-vinda.

Ela levantou a cabeça, sugando um suspiro raso quando olhou para ele e viu seus olhos abertos, observando-a.

— Kellan... Oh, Deus. Você está acordado. Você voltou para mim. — Ele sorriu, mas não teve chance de falar, antes de Mira esmagar sua boca em um beijo feroz. Ela recuou e olhou para ele, seus olhos dançando atrás do véu roxo de suas lentes. — Você está realmente aqui comigo.

Ele conseguiu dar um aceno de cabeça antes que ela o beijasse de novo, desta vez mais ternamente com as mãos colocadas em seu rosto. Ela ficou olhando para ele, examinando seus olhos, bebendo-o com uma alegria aberta e afeição. Em seguida fez uma careta, sibilando uma maldição sombria.

— Nunca me deixe novamente, Kellan Archer.

— Nunca. — ele prometeu, com a voz grossa e áspera.

Sua carranca se aprofundou.

— Se você fizer isso, eu te prometo, aqui e agora, que vou caçá-lo e matá-lo. Você entendeu?

Ele sorriu e puxou-a para mais perto.

— Sim, senhora.

Seu corpo já estava ligado de volta, bombeando sangue de forma robusta em suas veias. Sob o lençol que cobria seu corpo nu, os músculos flexionados, rejuvenescidos e prontos para serem colocados em uso. Outra coisa estava pronta também e Mira levou apenas um segundo para perceber que cada pedacinho dele estava acordado e vivo.

— Você é inacreditável. — ela murmurou, mas não havia humor — e nenhum interesse — em seus olhos. — Você tem pelo menos duas dúzias de balas em você, no caso de não ter percebido isso.

Ele não fez, e de fato, quase não sentia os ferimentos enfaixados agora. Tudo o que sentia era sua companheira da Raça, sua preciosa Mira, quente e doce em seus braços. Ele passou a mão pelas costas dela e a curvou firmemente para trás. Gemeu, regozijando-se com a sensação dela sob suas mãos e pressionada contra todo seu comprimento.

— Um de nós também está com muitas roupas.

Ele queria aliviar o momento, e sim, estava feliz pra caramba por estar vivo e respirando novamente. Melhor de tudo, estar fazendo isso deitado ao lado da mulher com quem esperava passar uma longa eternidade. Tão feliz que não conseguia pensar em melhor maneira de comemorar a ocasião do que se enterrando profundamente dentro do refúgio do delicioso corpo de Mira.

Mas ela não estava querendo nada disso agora. Alavancou-se sobre um cotovelo ao lado dele, toda séria. O olhar estava sóbrio, a respiração instável quando soltou uma maldição silenciosa.

— Pensei que o tivesse perdido hoje, Kellan. Vi você morrer. Senti isso. — Um vinco se formou entre as sobrancelhas leves, baixando os olhos quando ela balançou a cabeça lentamente. — Senti ódio por se render lá trás no Darkhaven no Maine. Acho que realmente o odiei por isso, só um pouquinho. Queria passar nosso tempo juntos, e você tirou isso de mim. De nós dois.

Ele acariciou seu rosto e o cabelo sedoso engolindo com a garganta seca.

— Não tive a intenção de machucá-la novamente. Não queria ver você jogar fora seu passado, jogar fora sua família, do mesmo modo que eu fiz. Não queria que enfrentasse o mesmo tipo de decisão impossível que fiz. Não queria que cometesse o mesmo erro que eu.

— Sei disso agora. — ela disse acariciando levemente os dedos sobre o peito ferido. — Precisei quase perdê-lo para sempre para entender o que fez por mim naquela noite. — Ela olhou para ele, a boca torcida ironicamente. — A propósito, isso não significa que não estou chateada ainda.

Ele arqueou uma sobrancelha, deixou a mão derivar para baixo em seu braço, em seguida ao longo da concha de seu seio.

— Estou ansioso para fazer as pazes com você. — Então carinhosamente, ele ergueu seu queixo e a beijou, sem pressa e reverente. — Você é minha, Mira. Eu te amo. Deveria ter dito isso uma centena de vezes antes. Não vou perder essa chance novamente. Tenho uma segunda chance e vou fazer isso direito.

— Nós temos uma segunda chance. — ela murmurou baixinho. — Mas onde é que vamos começar? Você está morto, Kellan. Ambos, você e o Arqueiro. Foi relatado em todo o país, provavelmente em todo o mundo. O público queria vingança e o CMN estava muito ansioso para contar a eles que houve justiça.

Ele considerou isto por um longo momento.

— Candice, Doc e Nina... ?

— Lucan os libertou esta manhã antes que você fosse trazido à frente do Conselho. Eles já devem ter ouvido que você foi baleado e morto. — Ela olhou para ele, uma intensidade feroz em seus olhos. — Ninguém fora da Ordem pode saber de nada diferente ou sua vida estará em perigo mais uma vez. Não posso suportar esse tipo de preocupação. Nunca mais.

— Não vou pedir isso a você. — Disse, jogando fora a tensão em torno de sua boca bonita. Ele exalou bruscamente, sarcástico.

— Você acha que pode amar um fantasma?

— Eu amei um por oito anos.

— Sim, você amou. Graças a Deus que amou. — Ele acariciou sua bochecha, o desejo que sentia por ela queimava ainda mais brilhante quando pensou em como ela foi fiel a ele. Firme e forte. Ela sempre foi sua parceira, em todos os sentidos. Depois de tudo que passou, não deixaria que uma coisa pequena como a morte estivesse entre eles e seu futuro juntos.

E ele não estava disposto a deixar ninguém machucar Mira ou os outros de quem gostava. O que significava que sua nova missão tornou-se fazer tudo o que podia, a fim de derrubar Benson e descobrir a verdade por trás do nome que o vereador corrupto tinha dado a Kellan em seus momentos finais consciente, durante a audiência.

Nostrum Opus.

Kellan sentou-se, seu sangue martelando na lembrança súbita da culpa de Benson.

— O que há de errado? — Mira perguntou, levantando-se com ele. Ele balançou as pernas para o lado da cama e ela se arrastou atrás dele.

— O que está fazendo?

— Preciso falar com Lucan.

— Sobre o quê?

— Benson. — Ele se levantou esperando se sentir fraco ou vacilante, mas suas pernas se mantiveram fortes, reforçadas pelo sangue de sua companheira da Raça. Mesmo suas feridas pareciam insignificantes. Ele tirou uma das ataduras e encontrou o buraco de bala cicatrizado, enrugado e rosa, mas já estava crescendo uma nova pele. Kellan desembrulhou o resto e jogou os curativos em uma lixeira próxima. Alguém deixara um par de moletons e uma camiseta na mesa ao lado da cama. Kellan apressadamente as vestiu.

— Lucan precisa ouvir o que descobri sobre Benson hoje.

— Você lhe disse. — Mira disse. Ela deu a volta na frente dele e cuidadosamente alisou os dedos em suas feridas sarando. — Se está falando sobre o Opus Nostrum, seja lá o que isso for, Lucan já está procurando por isto. Você lhe deu essa informação pouco antes...

— Há mais Mira. Precisamos trazer Benson para dentro. Ele tem informações sobre algum tipo de ataque que está sendo planejado, um que envolve a tecnologia de Ackmeyer da Morningstar. Nós precisamos interrogar o bastardo o mais rápido possível.

Ela lhe deu um olhar engraçado, então balançou a cabeça.

— Benson morreu. Ele foi morto pelos policiais da JUSTIS, os mesmos que atiraram em você. Foi assassinado em estilo de execução em um corredor nos fundos do edifício da CMN quando estava tentando fugir.

Ah, caralho.

Kellan pegou a camiseta e a vestiu.

— Lucan precisa saber o que está acontecendo. Tenho que vê-lo agora.

— Você não pode. — Mira balançou a cabeça. — Ele saiu. Saiu com Gabrielle e o resto da Ordem e suas companheiras há algum tempo. Todo mundo está na festividade da cúpula de paz esta noite.

A cúpula de paz.

A percepção afundou com garras afiadas, geladas.

— Está acontecendo na festividade. — Kellan murmurou. — Quando li Benson, sua culpa era sobre o fato de que Nostrum Opus havia matado Ackmeyer por causa de sua tecnologia UV, e que muitas outras pessoas morreriam por causa disso também, tudo sob o pretexto de paz. Eles vão usar o Morningstar como uma arma na festividade desta noite.

 

O punho de Lucan estava apertando sua unidade de comunicação quando terminou a chamada de Mira. Seu praguejar foi cruel e desagradável. Isto atraiu uma inalação horrorizada da companheira da Raça de um embaixador visitante que estava tagarelando interminavelmente com Gabrielle e a companheira de Gideon, Savannah, nos últimos vinte minutos sobre suas aquisições mais recentes de arte. A fêmea ficou boquiaberta com Lucan, que voltou o olhar com uma sombria carranca, muito distraído por notícias preocupantes para se incomodar em agradar os convidados da festa.

Quando a mulher pediu desculpas e correu para longe, Gabrielle virou um olhar irônico sobre ele.

— Obrigado pelo resgate. O que Mira quer? Não há nada de errado com Kellan, não é?

— Ele está bem. Já de pé, na verdade. Mas lembrou-se de algo mais de sua leitura sobre Benson. — O sangue de Lucan corria um pouco mais frio quando investigou no mar de pessoas presentes na festividade. Ele olhou para Gideon, que estava conversando com Darion do outro lado com duas companheiras da Raça. —Kellan disse que Benson estava ciente de um ataque que estava sendo planejado pelo Nostrum Opus. Algo grande, envolvendo a tecnologia UV de Ackmeyer como uma arma. Ele acredita que pode estar programado para acontecer hoje à noite.

— Aqui, na festa? — Gabrielle sussurrou. — Você não acha que isso é possível, não é?

Gideon grunhiu, seus olhos azuis duvidosos sobre as bordas do elegante prateado das lentes de seus óculos.

— Entre a Ordem e a equipe de segurança de Crowe, este lugar está bloqueado. Alguém teria que estar louco para pensar que poderia entrar aqui e travar algum tipo de agressão.

— A menos que já estejam dentro. — Dare sugeriu.

Lucan sentiu uma carranca apertar seu rosto, enquanto considerava o cenário de seu filho por demais provável. Com uma inclinação de seu queixo, fez sinal para Tegan, Nikolai e Hunter do outro lado da sala.

— Todo mundo aqui passou por detectores de metal e digitalizações de armas, não é?

Tegan deu um aceno grave.

— Não é possível entrar em qualquer edifício do governo nos dias de hoje sem um raio X de corpo inteiro. Todo mundo foi escaneado na entrada.

Niko sorriu.

— Acho que é tarde demais para recomendar à Crowe para procurar um buraco? Não, pensando bem, ele pode gostar disso.

Crowe estava caminhando em direção ao palco luxuoso à frente do amplo salão de recepção. Ele apertou dezenas de mãos em sua abordagem, rindo e dando tapinhas nas costas dos dignitários enquanto olhava de soslaio para suas esposas e, basicamente, agindo como se fosse dono do maldito lugar e tudo nele.

Lucan baixou a cabeça e olhou na direção de Crowe. Sua voz era um rugido profundo e estrondoso.

— Ele fede a algo mais do que apenas esta arrogante noite. E se Crowe pôs as mãos na tecnologia de Morningstar? Todo mundo passou por exames de metal na entrada do prédio, mas alguém checou ao redor do que a equipe de segurança de Crowe está portando?

— Você acha que eles poderiam estar com o UV? — Niko, o especialista da Ordem em armas e redutor, soltou um assobio. — Só há uma maneira de descobrir. Quem está afim de uma rodada de exibição pública?

Tegan encontrou seu olhar.

— Nós temos que manter isto calmo. Leve a equipe dele para fora. Leve-os para algum lugar fora de vista, onde possam revistá-los um por um. Entre os vinte de nós, podemos conseguir que isso seja feito em poucos minutos.

Hunter assentiu.

— Há salas de conferência vazias no corredor oeste, fora da sala de recepção.

Niko sorriu.

— O que estamos esperando?

— Façam isso rápido. — Lucan disse. — Mas mantenham essa merda secreta. Atinja-os com um transe na entrada, não importando esfolá-los na saída. E se encontrarem qualquer coisa que levantem suspeitas, esta festa toda vai estar bloqueada imediatamente.

Os três guerreiros reconheceram o comando, em seguida decolaram para alertar os outros para cuidar do plano. Darion começou a ir com eles, mas Lucan o deteve, uma mão segurando firme no musculoso ombro de seu filho.

— Fique perto. Quero você por perto para cuidar de sua mãe, se a situação necessitar disso.

As sobrancelhas de Dare se curvaram, sua boca achatando numa linha dura. Mas ele concordou com um aceno de cabeça e ficou para trás, observando enquanto o resto da Ordem começava discretamente a realização da pesquisa sobre a equipe de segurança de Crowe.

Quanto a Lucan, seus olhos estavam fixos em Reginald Crowe, atualmente no palco e desfrutando dos aplausos da multidão espalhada abaixo dele. Crowe degustou isto com um prazer descarado, inflado e pomposo como um rei de ouro lidando com seus súditos camponeses humildes. Quando a adoração finalmente diminuiu, Crowe pegou o microfone para abrir oficialmente a festividade da cúpula e para receber os dignitários como seus convidados pessoais.

Lucan desviou-se do autoenvaidecido para examinar o progresso dos guerreiros com a operação de captura e libertação em curso sobre o chão da sala de recepção. Nikolai estava casualmente guiando um dos homens da segurança de Crowe para fora da sala, enquanto Tegan tinha acabado de voltar deixando outro dos guardas uniformizados solto de seu transe. Ele encontrou o olhar de Lucan e deu uma sacudida sombria de sua cabeça. Nada.

Um a um, a Ordem levou os homens de Crowe para fora da sala. E um por um todos foram retornando sem nada a assinalar.

Talvez Kellan estivesse errado.

Talvez o ataque que Benson estava a par, estava previsto para ocorrer em outro lugar, em outro momento.

Ainda assim, cada um dos instintos de batalha de Lucan se arrepiava com a certeza de que algo estava fora do lugar esta noite. Algo não estava bem, e estava disposto a apostar que alguma coisa tinha tudo a ver com Reginald Crowe.

No palco, o comportamento de Crowe ficou sóbrio quando fez uma pausa para expressar seu choque e tristeza com a perda trágica de Jeremy Ackmeyer e do diretor do CMN, Benson.

— Dois grandes homens, ambos visionários. — ele disse com a voz carregada sobre a multidão silenciosa. — Um, comprometido com o avanço do nosso mundo através da ciência e da inovação. O outro, dedicando sua vida para garantir um futuro mais seguro para todos nós...

Lucan distanciou-se do elogio breve, em vez disso observava enquanto mais guardas das Indústrias Crowe foram revistados e liberados por Tegan e os outros guerreiros.

Crowe, entretanto, estava ganhando força novamente.

— Ter perdido dois campeões brilhantes do nosso futuro num momento em que estávamos reunidos aqui para celebrar a paz entre a humanidade e a Raça só demonstra o trabalho ainda a ser feito. A paz é o nosso sonho. A paz é nosso objetivo.

Enquanto a multidão aplaudia e murmurava sua concordância, Crowe dirigiu sua atenção para o centro da recepção, onde seu obelisco de cristal cintilante brilhava, como um farol sob as luzes suaves do salão.

— Hoje eu lhes darei um símbolo da minha visão para o futuro do nosso mundo. Hoje à noite proponho um futuro de verdadeira paz. Não o Primeiro Amanhecer, mas um Novo Amanhecer.

As palavras de Crowe colocaram um súbito arrepio nas veias de Lucan. Ele olhou para o obelisco novamente e percebeu que a esfera de cristal coroando a escultura tinha começado a brilhar com mais intensidade do que antes. Agora, a luz no interior da esfera pulsava com energia.

Puta merda.

Não eram com balas UV que eles precisavam se preocupar, afinal.

— A paz é a nossa visão. — Crowe estava dizendo agora, seu olhar enquadrando a multidão enquanto falava. Seus olhos encontraram os de Lucan e pararam. — A paz é o nosso trabalho. Pax Nostrum Opus.

Morningstar.

Crowe tinha contrabandeado isto bem debaixo de seus narizes.

— Abaixem-se! — Lucan berrou. Ele empurrou Gabrielle nos braços de Dare e acenou para que se movesse como o diabo para fora da sala. Quando todos os olhos se voltaram para ele, Lucan tirou sua 9 mm semiautomática debaixo de seu casaco e apontou-a para o obelisco. — Todo mundo, agora!

A luz dentro da esfera estava ficando mais forte a cada segundo, ameaçando explodir.

— A bomba UV está dentro da esfera. — ele gritou para os outros membros da Ordem. — Tirem os civis da Raça para fora da porra desta sala agora!

A multidão começou a gritar antes mesmo que Lucan disparasse o primeiro tiro.

O caos entrou em erupção, humanos e Raça se dispersaram em um tumulto de confusão e terror.

A esfera de cristal rachou com seu impacto da bala, mas a luz não ofuscou.

Os outros guerreiros rodearam os dignitários da melhor forma possível, o emaranhado de corpos em pânico tornando quase impossível ver nada mais que a corrida de homens e mulheres se esquivando em todas as direções, enquanto a festividade dissolvia-se em histeria em massa.

Através da multidão em fuga, Lucan localizou Crowe quando ele pulou para fora do palco e foi para as sombras do fundo da sala de recepção. Ele queria seguir o canalha, mas todo o seu foco — todo seu selvagem propósito — estava fixo em destruir a torre de arte mortal, agora brilhando com maior força no centro da aglomeração.

 

Embora soubesse que era o último lugar em que deveria estar e o último lugar que queria estar com Mira ao lado dele, nada poderia ter impedido Kellan de ir para a festividade da cúpula de paz, assim que percebeu que havia uma chance da tecnologia UV de Ackmeyer estar sendo desencadeada sobre a Ordem.

Quando ele e Mira pararam no meio-fio em um dos veículos da Ordem, Kellan percebeu que a situação era ainda pior do que esperava.

Muito pior.

Centenas de pessoas — humanos e da Raça igualmente — saiam do prédio do CMN para a noite, fugindo a pé, gritando de terror absoluto. Homens em trajes formais e mulheres em vestidos de noite cintilantes e saltos altos, espalhando-se em todas as direções.

Caos absoluto.

— Oh, meu Deus! — Mira suspirou, passando em torno do sedan para encontrar Kellan do outro lado. Ela estava vestida da mesma maneira. De preto da cabeça aos pés, com equipamentos de combate, pistolas carregadas e prontas para a ação. Os punhos das adagas gêmeas de Mira montadas em seus quadris, brilhando sob o pálido luar acima. Ela olhou para a cena da confusão com uma expressão indolente de alarme.

— Já está acontecendo. E se chegamos tarde demais Kellan?

Ele vislumbrou vários dos guerreiros conduzindo dignitários da Raça para terreno seguro, longe do edifício.

— Ainda temos tempo. Vamos.

Mira correu atrás dele até um amplo lance de escadas. Eles tiveram que desviar do fluxo de convidados escapando da festa que caíam em direção a eles como gado, arrastados em um tumulto cego. Kellan viu uma porta lateral aberta longe do empurra-empurra da multidão enlouquecida para fora da entrada principal. Ele pegou a mão de Mira e correu, esquivando-se no interior do edifício com ela.

 A cena no vestíbulo não era mais razoável. Lotado com dezenas de pessoas em fuga, era quase impossível se empurrar contra a corrente. Kellan viu Rafe à frente, com a cabeça loira e os ombros largos elevando-se sobre a maioria dos humanos correndo por ele. O guerreiro olhou e seus olhos verdes azulados brilhavam com intensidade.

— O que aconteceu? — Kellan perguntou.

— Crowe. — Rafe rosnou por sobre a multidão em fuga. — O filho da puta plantou uma bomba UV no meio da maldita recepção. Lucan está tentando desligá-la. Ele quer uma evacuação total.

Ah, Cristo.

Ainda pior do que as balas ultravioletas, uma bomba utilizando esse tipo de tecnologia poderia destruir não só a Ordem, mas cada dignitário da Raça no local.

O que ele percebeu agora ser exatamente o plano do Opus Nostrum.

— Kellan, olhe. — Mira cabeceou para o fundo do vestíbulo. — Nos elevadores.

Reginald Crowe, ladeado por um par de agentes de segurança uniformizados, estava correndo para o elevador de serviço, enquanto o resto do vestíbulo fervilhava em caos total. Antes que Kellan tivesse a chance de riscar aquela distância e deter o desgraçado, as portas se fecharam. Crowe se foi.

— Caralho. — Kellan rosnou quando ele e Mira correram para as portas fechadas. — Ele está indo para o telhado. Fique aqui. Fique perto de Rafe e os outros guerreiros.

— Deixá-lo ir atrás dele sozinho? — ela disse, nem mesmo perto de uma pergunta. — O diabo que vou.

Ele não gostou, mas não tinha tempo de discutir com ela, especialmente pela forma como seu queixo subiu enquanto falava. E, além disso, Crowe era apenas humano. Os dois guardas com ele não eram Raça também, o que significava que os três juntos apresentavam um problema mínimo para Kellan. Adicionando a habilidade letal de Mira com suas lâminas, a tentativa de fuga de Crowe seria inútil mesmo antes de começar.

Kellan atirou um olhar para a escada de serviço. Usando a velocidade que sua genética da Raça lhe dava, ele poderia ir até o telhado em meros segundos.

— Vou subir a pé. Você toma o segundo elevador.

Ela assentiu com a cabeça e ele partiu, correndo pelas várias passagens para o acesso a porta de serviço no telhado no momento em que Crowe e seus seguranças deram seus primeiros passos no asfalto. Um helicóptero esperava a dezenas de metros de distância com um piloto humano sentado atrás dos controles. O motor gemeu dando partida enquanto Crowe caminhava rapidamente em direção à aeronave.

Kellan não perdeu tempo. Colocou uma bala na parte de trás da cabeça de cada guarda, derrubando o par como pinos de boliche. Crowe estancou bruscamente quando seus homens bateram no chão.

— Não se mova. — Kellan rosnou. — Não se mexa ou será o próximo a morrer.

Crowe colocou as mãos no ar e virou-se lentamente. Suas sobrancelhas douradas elevaram-se com surpresa.

— Bem, esta é uma revelação divertida. O líder rebelde conhecido anteriormente como Arqueiro. Eu não esperava ver um homem morto olhando para mim acima do cano de uma pistola esta noite.

Kellan resmungou.

— Engraçado. Estou olhando para um homem morto também.

Crowe sorriu.

— Você não pode me matar. Nós dois sabemos disso. Você precisa de mim. Você precisa das informações que posso dar. Você quer saber sobre o Nostrum Opus não é?

Kellan manteve seu alvo constante no centro da cabeça de Crowe.

— Sei tudo o que preciso saber.

— Você sabe?

Kellan segurou o homem em uma carranca sombria.

— Deixe-me resumir. Você e Benson tinham planos de matar hoje à noite, a fim de limpar o caminho para você e sua necessidade distorcida pelo poder. Mas você não foi capaz de produzir algo assim por conta própria. Precisava da tecnologia de Jeremy Ackmeyer para realizar isto. Precisava de uma arma capaz de um assassinato em massa instantaneamente. Morningstar foi a sua resposta.

Crowe sorriu, parecendo divertido.

— Benson roubou o protótipo do sobrinho, mas você decidiu que Ackmeyer precisava morrer. Não deixar pontas soltas seria meu palpite. Sorte sua, o sequestro dele foi a oportunidade perfeita para atacar. Você foi capaz de matá-lo e culpar os rebeldes, acabando com a vida de um peão que sempre teve a intenção de varrer de seu conselho.

Kellan ouviu a porta de acesso ao terraço abrir atrás dele e Mira calmamente se anunciar. Ela foi para perto dele, as lâminas em suas mãos, o olhar feroz e formidável. Mais sexy do que ele queria perceber naquele momento.

Centrou-se novamente em Crowe e no desprezo que tinha pelo homem.

— Benson não estava a par da morte de seu sobrinho, estava? Foi por isso que apareceu bêbado na audiência de hoje. Ele falou demais, por isso seus espiões o executaram no local.

Crowe riu.

— Você acha que tem tudo planejado. Você não está nem perto.

— Acho que estou. Quando toquei Benson sua mente me contou o que o Nostrum Opus tinha planejado aqui esta noite.

— Nostrum Opus não é o pior de seus problemas. — Crowe respondeu. Ele abaixou as mãos, deixando-as cair lentamente para os lados. Começou a caminhar em direção a Kellan e Mira.

Kellan levantou a arma, pronto para disparar um tiro certeiro entre os olhos divertidos de Crowe.

— Pare aí, seu cuzão. Ou seu próximo passo será o último.

Mas Crowe não parou. Ele avançou outro passo.

Kellan puxou o gatilho uma vez, duas vezes. Dois ataques diretos, bem entre os olhos, um tiro mortal no crânio do bastardo.

As balas nem ao menos o fizeram recuar. O sangue parecia evaporar do local. A pele cicatrizando mais rápido do que a espécie de Kellan.

Mira sugou uma respiração afiada.

— Oh, meu Deus...

— Que porra é essa? — Kellan murmurou, chocado e confuso. — Você não é humano. Nem Raça também.

Crowe sorriu.

— Agora você está percebendo o quadro.

Kellan descarregou sua arma nele, mas Crowe esquivou-se da maior parte dos tiros com uma agilidade sobre-humana. Kellan pegou sua segunda arma, mas Mira já estava em movimento. Ela deixou os punhais voarem em um rugido de batalha, plantando uma lâmina no centro do peito de Crowe, a outra cravada em sua garganta.

Crowe inclinou a cabeça para ela com um brilho cruel e animalesco nos olhos.

Como se os ferimentos graves não tivessem nenhuma consequência afinal, ele arrancou os punhais e deixou as armas ensanguentadas caírem no chão.

 

Um brilho crescente chamou Nathan de volta para o salão de recepção, enquanto aos gritos, a multidão de participantes da festividade continuava a se derramar para o vestíbulo em ondas após ondas de histeria coletiva.

Lucan ficou para trás na tentativa de desativar o obelisco de cristal e sua esfera iluminada. Quando Nathan voltou para o salão, Lucan estava descartando o cartucho vazio de sua 9 mm e engatando outro na arma. A esfera rachou e danificou, mas não quebrou.

— Está ficando mais brilhante. — Darion Thorne veio para o lado de Nathan. — Os tiros não são suficientes para destruí-la. De que diabos esta coisa é feita?

Nathan balançou a cabeça. Ele não sabia, mas tinha outra arma em seu arsenal — uma herdada de sua mãe companheira de Raça. Ele jogou suas duas armas para Darion.

— Acenda aquela filha da puta. Estarei bem atrás de você.

Dare acenou e caminhou pelo piso vazio ao encontro de seu pai, em frente ao obelisco. Ele abriu fogo em acordo com Lucan, uma 9 mm em cada mão, apertando rodadas a cada passo longo.

Nathan focou nos estrondos dos tiros ensurdecedores e nos gritos que ecoavam da multidão. Ele reuniu o barulho, convocou sua habilidade da Raça de flexionar as ondas sonoras, amplificando-as ou silenciando-as. Construiu uma cacofonia, revolvendo-as em uma bola de som e energia.

Lucan olhou para seu filho e então para Nathan, dando a ambos os guerreiros um aceno de aprovação. De solene respeito e gratidão.

Juntos Lucan e Darion explodiram o globo, criando fissuras profundas na esfera brilhante de luz. Nathan reuniu mais som até que a coletânea vibrante de energia fosse quase demais para ele conter.

Com um rugido, ele a soltou.

O ar ondulou quando a explosão sono cinética se curvou em direção ao obelisco rachado.

Lucan e Dare saltaram para fora do caminho. Os dois guerreiros ainda atirando na escultura enquanto caíam fora, antes que se quebrasse.

A luz irrompeu do globo, mas durou apenas um instante. O cristal de seixos do obelisco e sua culminante esfera explodiram em todas as direções, chovendo no chão do salão de festa como milhares de pequenos diamantes.

A Morningstar foi neutralizada.

Lucan olhou para Nathan, em seguida para seu filho.

— Bom trabalho, de ambos. — Os olhos cinzentos brilhavam com ardentes faíscas âmbar. — Agora, vamos encontrar Crowe e acabar com aquele bastardo.

 

Mira exclamou com surpresa quando a garganta e o peito esburacado de Crowe se repararam em questão de instantes.

Quem — ou o que — ele era?

Seja qual for a resposta, não parecia haver nada que o parasse.

Mas isso não impediu Kellan de tentar.

Ele se lançou para Crowe em um ataque de corpo inteiro que enviou os dois machos batendo do lado da porta de serviço do edifício, sobre o telhado. O painel de aço pesado esmagou para dentro com o impacto, gemendo em suas dobradiças de nível industrial.

Crowe riu.

— Não está acostumado a ser derrotado por alguém menor do que um de sua própria Raça, não é guerreiro? Este foi seu erro, supondo que eu seja nada menos do que seu igual.

Kellan foi para ele de novo, jogando Crowe para o lado da cobertura do edifício com toda força que podia. Crowe virou no ar, levando Kellan com ele. Ele empurrou-se para frente, impulsionando os dois em uma queda assustadora na planície ampla do terraço, quase até a borda.

— Seu tipo é uma abominação. Bastardos, nascidos de sangue misturado entre os que vocês chamam de Antigos e as fêmeas humanoides geradas por humanos, e os desertores profanos de minha própria raça. A Raça não merece habitar este planeta, não mais do que os humanos merecem. Seus antigos antepassados pensaram que nos derrotaram quando nos expulsaram do nosso próprio mundo até esta pedra bruta. Eles pensaram que ganharam de novo quando nos caçaram aqui e destruíram nossa Atlântida perfeita, forçando nossa rainha ao exílio. Mas estávamos apenas esperando nossa chance de ascender novamente. Vamos alcançar isto, e logo. As rodas já estão em movimento.

Mira ouvia enquanto lutava para encontrar uma maneira de ajudar Kellan a derrotar Crowe. Ela ouviu as teorias pelas últimas décadas de que as companheiras da Raça como ela, eram descendentes de uma raça imortal que construiu as lendas que a civilização humana acabaria chamando de Atlântida. Os antigos diários de Jenna nos arquivos da sede da Ordem estavam preenchidos com citações sobre essa probabilidade impressionante. Mas ninguém nunca esteve conscientemente cara-a-cara com um Atlante até agora.

As coisas que Crowe estava dizendo, a revelação de que sua espécie não só sobreviveu à destruição de Atlântida, mas foram florescendo em segredo, traçando sua própria guerra, era surpreendente. Era aterrorizante. A perspectiva de guerra com outra raça imortal colocava um arrepio profundo dentro de Mira.

Mas sua preocupação mais imediata era manter Kellan vivo.

Suas lâminas não eram de nenhuma ajuda em retardar Crowe, assim Mira agarrou sua pistola. Ela sabia que balas dificilmente eram algo garantido nesta luta também, mas era tudo o que tinha.

Se ela pudesse encontrar uma chance segura.

Kellan e Crowe lutavam mano a mano, alternando entre punhos esmagadores e lançamentos violentos de corpos. Eles se moviam tão rápido, cada um dotado de uma velocidade que não era nada humana. Mira não podia acompanhá-los, muito menos ter uma oportunidade decente para disparar em Crowe. Ela não podia correr o risco de acertar Kellan. Já o viu ser baleado hoje. Não teve coragem de puxar o gatilho com ele em sua linha de fogo.

Depois de vários objetivos abortados, percebeu que não havia nada que pudesse fazer, apenas juntar-se à briga.

Ela saltou sobre Crowe. Tentou fazer com que sua arma descarregasse e a firmou contra sua cabeça. Uma bala na cabeça não o abrandaria, mas estava preparada para pressionar seu cartucho inteiro, se ele ficasse parado tempo suficiente para que tentasse.

Ela não teve chance de puxar o gatilho.

Crowe recuou e a jogou longe. Ele largou seu domínio sobre Kellan, deslocando-se para encará-la quando ela caiu no chão áspero do telhado e sua arma bateu fora de seu alcance. Crowe estava irritado agora com seus traços parecendo esticar os ossos de seu rosto.

Ele parecia totalmente desumano. Sobrenatural. Ela percebeu somente agora o quanto essa observação era verdadeira.

Com um grunhido Crowe a agarrou, arrancando-a do chão e a trazendo de volta para a frente dele como um escudo. Kellan levantou sua arma para Crowe, mas de alguma forma Crowe agiu igualmente rápido depois de ter recuperado uma arma de um de seus seguranças caído, antes que Mira tivesse sequer registrado seus movimentos.

Ele colocou o cano frio da pistola contra a têmpora de Mira quando começou a recuar para seu helicóptero à espera.

— Coloque-a no chão. — Kellan ordenou.

— Oh, acho que não. — Crowe se manteve recuando, chegando perto da aeronave. A brisa das lâminas rodando lentamente agitava os cabelos de Mira, enviando mechas soltas de sua trança soprando em seu rosto.

Ela olhou para Kellan implorando com os olhos, esperando que entendesse que ela queria que ele atirasse. Esperando que sentisse pelo vínculo de sangue deles que não estava com medo. Ela confiava que ele poderia abater Crowe.

Faça. Atire neste bastardo antes que ele atinja a aeronave.

Ela viu o dedo de Kellan apertar o gatilho. Sentiu seu pulso chutar com medo de machucá-la, e a necessidade gelada de matar aquele que a segurava. Mas, no último momento Kellan mudou seu objetivo, atirando atrás de Crowe e acertando seu piloto.

O humano chacoalhou para trás em sua cadeira com o impacto antes de cair sobre os controles. O motor estrangulou, e as lâminas foram perdendo a velocidade aos poucos.

Crowe riu com um grunhido imperturbável.

— Você acha que depois de alguns milhares de anos neste pedaço de pedra, não aprendi a voar sem seu maquinário bruto? Ora vamos. — Ele ainda estava recuando, preparando-se para fazer sua fuga e mantendo uma aderência em Mira por todo o caminho.

Ela não conseguia se soltar. Seu aperto era de ferro em torno de sua cintura. O nariz do metal da arma furando sua têmpora direita como gelo. Ela engoliu o pânico instalando em seus ouvidos com o constante vruum vruum vruum do rotor se aproximando.

— Uma pena que eu vá matar apenas um de vocês antes de ir. — Crowe provocou Kellan. — Acho que vai ter que ser você.

Mira sentiu a contração dos músculos de Crowe quase imperceptivelmente quando se preparou para mirar em Kellan. No instante em que a pressão aliviou de sua têmpora, Mira se soltou do agarre de Crowe e bateu o braço para cima, torcendo-se ao mesmo tempo fora de seu alcance. Ela sentiu a força súbita de algo pesado batendo nele. Ouviu a fraca trituração quando as pás da hélice arrancaram a mão dele do pulso.

Crowe cambaleou, a boca afrouxando quando ficou boquiaberta pelo membro amputado.

Então ele olhou de volta para Mira.

Algo estranho cruzou suas feições enquanto olhava nos olhos dela. Ele não pareceu notar a terrível ferida que não curava sozinha. Sua mão estava caída no chão ao lado de sua arma. Sangue bombeando abaixo do antebraço e pelo telhado. E Crowe ainda olhava em seus olhos, completamente paralisado.

Seus olhos...

Ela sentiu um comichão em uma de suas lentes, que se agarrava a sua face. Devia ter caído durante a luta, revelando o espelho hipnótico de sua íris. Crowe não parecia capaz de se afastar do seu olhar.

Mas ele ainda estava à deriva para trás com passos lentos, agora que estava preso no poder de suas visões.

Ela não sabia o que ele via.

E não achava que quisesse saber.

E no instante seguinte, já não importava.

Crowe — ou como fosse seu verdadeiro nome Atlante — tropeçou cambaleando. Ele estava muito perto das lâminas. Muito alto, quando os rotores desaceleraram e começaram a inclinar com a perda de seu dinamismo.

Crowe virou a cabeça, em seguida, quase como se alguma uma parte mais forte de seu subconsciente reconhecesse a ameaça, sua mente desperta não podia ver sob o feitiço do olhar de Mira. Olhou para trás... no momento em que as lâminas do helicóptero giraram em sua direção, cortando sua cabeça fora do pescoço.

Mira desviou os olhos, mas era impossível afastar o horror do que aconteceu.

Então, quando o corpo de Crowe caiu no chão, uma luz brilhante começou a inchar dentro dele. Isto atravessou seus membros e derramou de seu pescoço, intenso e puro, e transcendental. E no centro da palma da mão intacta, um símbolo começou a tomar forma, iluminado por dentro.

Tinha a forma de uma lágrima caindo no berço de uma lua crescente.

O mesmo símbolo que Mira e todas as outras companheiras da Raça mantinham como uma marca de nascença em algum lugar em seus corpos.

Não podia haver dúvida agora.

Os atlantes eram reais. Os pais de outro mundo das companheiras da Raça.

Os atlantes estavam vivos. Um número desconhecido deles, escondendo-se em segredo com sua rainha banida. À espreita por sua chance de se levantar contra a Raça e a humanidade.

Eles eram imortais e mortais.

Eles eram o inimigo.

Lucan atravessou a golpeada porta do telhado da escada de serviço, Darion e Nathan logo atrás dele. Parecia o único lugar possível para Crowe ter fugido, mas a situação que saudou Lucan no topo do edifício do CMN não tinha nada do que esperava.

Mira e Kellan estavam juntos na escuridão. Ela enrolada em torno do macho da Raça, sua cabeça loira aninhada em seu peito com os braços musculosos abraçando-a.

Dois dos homens uniformizados da segurança de Crowe jaziam mortos no chão em frente a ele. Do outro lado, um helicóptero ocioso com o piloto caído para frente em seu assento e o motor desacelerando em uma parada não tripulada.

E deitado sob as lâminas desacelerando do rotor, o corpo decapitado de Reginald Crowe.

Lucan olhava, sem saber se estava vendo direito, enquanto um brilho que parecia acender dos membros de Crowe e de dentro do torso desaparecia diante de seus olhos.

Atrás de Lucan, tanto Dare quanto Nathan murmuraram sua descrença.

Lucan olhou para trás para Mira e Kellan.

— O que diabos aconteceu?

Quando o par começou a explicar, mais da Ordem começou a chegar por trás de Nathan e Dare. As equipes mais jovens e os guerreiros que estiveram com Lucan quase desde o início da fundação da Ordem. Gabrielle e as outras companheiras da Raça logo chegaram também, até que Lucan viu-se cercado pelos parentes e amigos que significavam muito para ele.

Todos escutaram com espanto silencioso enquanto Mira e Kellan descreviam o que Crowe fez, quem ele era... e as coisas que o imortal revelou em seu último suspiro.

Que Mira e Kellan derrotaram Crowe por si só era louvável, mesmo se o líder em Lucan quisesse responsabilizar a dupla por cometer um movimento rebelde, realizado sem o seu conhecimento ou permissão. Talvez este tenha sido o rebelde em Kellan, o líder sem medo de entrar de cabeça em qualquer batalha. Deus sabia que Mira nunca foi conhecida por sua disposição em se posicionar dentro das linhas.

Esta noite eles formaram uma frente unida. Uma equipe de dois, mais fortes juntos. Parecia certo vê-los unidos como um casal acasalado. Uma parceria que foi testada mais do que a maioria, e duramente conquistada.

Lucan se aproximou e estendeu a mão para eles. Primeiro para Mira, que não pôde resistir a arrastar em um breve abraço, sentindo orgulho paterno pela menina que se tornara um membro valioso da equipe da Ordem. Quando eles se afastaram, Lucan apertou-lhe a mão firmemente.

— Você nos honra muito, guerreiro.

Para Kellan ele deu um aceno de gratidão quando apertou forte a mão do macho da Raça.

— Você também. — ele disse. — Talvez haja um lugar para um fantasma rebelde dentro das fileiras da Ordem, afinal.

Kellan sorriu, trazendo Mira um pouco mais para o seu lado quando balançou a cabeça em aceitação à oferta de Lucan.

Lucan olhou para eles, em seguida para o seu filho e os guerreiros mais jovens que o rodeavam. Ele estava olhando para a formação do futuro da Ordem. Uma nova geração já intensificada em formação.

E que seriam necessários. Todos eles.

Lucan olhou para Reginald Crowe, percebendo que estava olhando para algo novo também: um inimigo que a Ordem nunca enfrentou antes, que estaria claramente jogando pelo seu próprio conjunto de regras agora.

— O que aconteceu aqui esta noite marca um novo começo. — ele disse aos homens e mulheres da Ordem de pé com ele sob o céu escuro da noite. — Isso marca uma nova guerra... Uma que temos de ganhar.

Uma rodada de vozes concordando respondeu a ele. Rostos sombrios, cheios de determinação e ardor.

Lucan encontrou cada olhar feroz de homem e mulher igualmente.

— A partir deste momento, nós jogamos por nossas próprias regras. O que for preciso, qualquer que seja o custo. Nossa nova missão começa agora.

 

A cúpula do CMN saiu conforme o planejado no dia seguinte. Lucan anunciou ao mundo que não havia melhor momento para se reunirem para conversas sérias sobre o futuro, do que no rastro de um ataque que pode ter determinado os esforços de paz da humanidade e da Raça séculos atrás.

A morte de Reginald Crowe o expôs como o cérebro por trás do atentado a bomba na festividade. Que ele era algo mais que humano era um fato que Lucan e o resto da Ordem concordavam que só faria uma população já arisca ainda mais desconfortável. Para as nações humanas e vampiros em todo o mundo, Crowe era apenas um aspirante a terrorista, e um membro de uma quadrilha clandestina que a Ordem já fizera sua missão pública para extirpar e erradicar.

Em particular, a missão da Ordem era algo muito mais urgente.

Uma missão que envolveria todos os Centros de Comando Distrital e a equipe de guerreiros postados em todos os cantos do globo.

Os atlantes e sua rainha tinham que ser encontrados. Eles teriam que ser detidos.

Mira nunca viu Lucan Thorne tão sério sobre um objetivo de missão antes, e tendo em vista as muitas guerras e batalhas em que lutou em seus mais de 900 anos de vida, isto significava um inferno de muitos problemas.

Ela quase se sentiu culpada pela trégua que Lucan concedeu a Kellan e a ela depois que derrotaram Reginald Crowe. Então, novamente, era difícil não se sentir nada mais do que grata — sem mencionar, felizmente esgotada, enquanto estava deitada em cima de corpo nu de Kellan. Os dois fizeram amor diante de um fogo crepitante em um Darkhaven remoto, situado no fundo da floresta ao norte do Maine.

Tinham três noites em uma semana para ficarem sozinhos. Uma pausa onde estavam fazendo o melhor que podiam para tirarem o máximo de proveito, dentro e fora do quarto. Esta noite, depois de uma longa caminhada na floresta onde costumavam brincar de jogos de guerra e promover lutas de bolas de neve quando eram crianças, renunciaram a cama em favor do tapete de pele de carneiro macio, em frente à lareira no salão do Darkhaven.

Os dedos de Kellan faziam pequenos círculos na parte inferior de suas costas onde a segurava. Seu corpo estava quente e forte debaixo dela. O coração batendo contra sua orelha. Ela pensou que ele estava dormindo — assumiu que teria que estar, depois de seu treino pela última hora. Mas estava acordado. Desperto em todos os sentidos. Dentro dela, sentiu-o ficar mais grosso, já pulsando contra as paredes suaves de seu corpo.

Mira levantou a cabeça para olhar para ele, incredulidade puxando sua boca.

— Você não pode estar falando sério.

Seu sorriso era lento e perverso.

— Pareço estar falando sério?

Ela riu quando ele caiu em cima dela na macia pele animal com os quadris deliciosamente presos entre as coxas separadas dela e seus punhos plantados em cada lado, apoiando seu peso sobre ela.

— Estou tão feliz, Kellan. Meu coração nunca se sentiu tão pleno.

Ele sorriu e a beijou, movendo-se contra ela em um impulso profundo, lento, que fez suas veias brilharem com eletricidade e calor.

— Você sabe o quanto te amo? — Ele perguntou, mesmo que tivesse lhe mostrado isto uma centena de vezes nos últimos dias, dizendo com cada olhar terno, cada toque quente e beijo possessivo reivindicado. — Eu amo você, Mira... Minha companheira. Minha vida. Você é meu tudo.

Ela estendeu a mão para ele, acariciando seu rosto, enquanto ele olhava nos olhos dela. Instintivamente isto a fez puxar seu olhar de soslaio. Kellan baixou a cabeça e beijou-a.

— Deixe-me ver isso. — Disse trazendo-a de volta para enfrentá-lo mais uma vez. — Tão bonito. Você nunca terá que esconder seus olhos de mim novamente. Não tenho medo do que vou ver. Não mais. Nós já atravessamos o fogo.

— E saímos juntos. — Ela disse. Seu amor por ele uma doce dor no peito. — Nós faremos isso através de qualquer coisa agora.

Ele acenou com a cabeça, seu ritmo mais forte, mais intenso.

— Você é minha, Mira. Minha para sempre.

— Eu sempre fui. — Sorriu, sabendo que ele podia sentir a profundidade de sua promessa no vínculo de sangue que os tecia juntos. Coração, mente, corpo e alma.

Ele a cobriu com seu corpo, com sua força e calor, na paixão que ela sabia que teria sempre fôlego.

Ele a amava. Mesmo a parte dela que quase o destruiu.

Kellan a beijou novamente, profundo, lento e minuciosamente. Como se para deixá-la saber que o amor deles tinha todo o tempo do mundo.

— Você é minha, Mira. — ronronou sombriamente. — E não a deixarei ir nunca.

 

 

 

[1] Binário- Um colar ou pulseira feita de uma tira de metal retorcido, usado pelos antigos gauleses, alemães e britânicos.

[2] Shish Kabob- espetinhos de frango, carne, bacon e legumes.

[3] Kellan usa o trocadilho do seu nome Archer, que é arqueiro, para ser seu codinome no grupo rebelde.

[4] - Címbalo -Instrumento musical de percussão, formado por dois pratos de bronze (com alça de couro para a mão), que se faz bater um contra o outro.

[5] - RPC- Refeições Prontas para Comer, rações do exercito para uso em missões.

[6] Daywalker- uma raça de vampiros que pode sair durante o dia.

[7] Peridoto é uma pedra de cor verde esmeralda, de tamanho relativamente pequeno e transparente, reconhecido pelo poder de cura e proteção. O nome vem da palavra grega peridona, que significa energia uniforme.

[8] National Mall ou Passeio nacional é o amplo espaço a céu aberto compreendido entre o Capitólio e o Monumento de Washington.

[9]Krugerrand é uma moeda de ouro emitida pela República da África do Sul, que tipicamente é vendida por preços pouco mais elevados que o valor de mercado do ouro que a moeda contém.

 

 

                                                                                                    Lara Adrian

 

 

 

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