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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NOITE ESQUECIDA / Alves Redol
NOITE ESQUECIDA / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

iniciador do surto neo-realista na nossa literatura de ficção, Alves Redol, por exclusivo mérito próprio e fidelidade a si mesmo, é hoje, entre os escritores que alinham nesse movimento estético, o de maior audiência pública e o de mais efectiva e continuada acção. Gaibéus é um primeiro passo, mas é também um programa para uma vida inteira, que Alves Redol iria cumprir com uma constância exemplar. Não no propósito então afirmado de colocar o "documento bumano" acima da "obra de arte", mas na permanência da sua resposta ao apelo a que, como homem e como escritor, logo se mostrou sensível. A Gaibéus três romances se seguiram que são três novos "documentos" Marés, Avieiros e Fanga -, mas este último é já muito mais do que isso: é arte literária feita carne e vida, como se a criação estivesse apontando novos caminhos ao criador. É um novo Alves Redol que vai escrever o Ciclo Port-Wine, trilogia em que o Autor troca a sua personagem habitual, o homem da planície ribeirinha, os abertos espaços da campina, pelas encostas do Douro horizontes cerrados e vindimas de sangue.
A partir daqui, o "documento" cede o passo, melhor diríamos, deixa de ser preocupação dominante. com Olhos de Água, Alves Redol regressa ao Ribatejo das suas primeiras obras - e é também neste livro que, francamente, sem reservas, irrompe o lirismo, ao mesmo tempo viril e delicado, que se anunciara já como uma das suas mais válidas feições de escritor. Nos romances anteriores, sempre essa veta lírica parecia deliberadamente comprimida entre os limites do "documento", mas não era difícil adivinhar que, cedo ou tarde, ela acabaria por desabrochar em beleza e sensibilidade. A Barca dos Sete Lemes, livro de maturidade, é o **10 "!ugur literário onde convergem, de modo superior, estas duas tendências.
Em Noite Esquecida, novela que a Editorial Estúdios Cor oferece aos seus leitores neste Natal de 1959, estão patentes as qualidades que fizeram de Alves Redol um dos mais notáveis escritores portugueses dos nossos dias.

 


 


NOITE ESQUECIDA

O barco vai a subir o rio e a água do rio é barrenta
Quem a teria sujado?
Sujam tudo !... Esta gente suja tudo em
que mexe...
Que tenho com isso?!... É boa! Quando eu era pequeno a minha mãe disse que me dava o rio, se eu comesse a sopa toda e não pusesse os bocados de cenoura na borda
do prato, e o rio é meu, portanto, nunca mais deixei de comer cenoura. Mas era azul quando o deixei, e lá porque saí da minha terra
durante este tempo vocês acharam que o deviam sujar, vocês sujam tudo, e agora talvez o barco não possa romper com o rio assim.
Eh arrais! Dê um bordo junto a terra. Dê, homem! Eu preciso de embarcar...
O barco chega-se, vem com a proa direita a mim e eu não posso fugir, estou agora preso à terra, e as árvores fogem, as ervas riem e fogem, as flores assustam-se
e voam, tudo abala, tudo foge e só eu aqui fico agarrado à margem, não sei que raízes me nasceram nos olhos, raízes tão fundas que não há força que as arranque da
terra, que afinal é lodo, terra e lodo;
vem um pássaro, pousa-me na cabeça e começa a cantar, é um pássaro vermelho, tão vermelho que se põe a arder, parece uma faúlha da forja do meu avô, o meu avô fazia
pássaros e estrelas quando punha o ferro na bigorna, e se calhar eu vou arder; talvez os homens do barco me acudam, talvez eles percebam que sou outro homem e só
não consigo fugir, exactamente porque sou homem, vim aqui ganhar a vida e a vida já não se ganha, perde-se todos os dias, todos os dias a vida se esvai e se cansa,
e eu agora quero embarcar, gostava de voltar para a minha terra, tenham paciência, deixem-me voltar...
Mas que barco é este!
O barco está pintado de preto e o arrais não é o Canito, não, não é o Canito, que foi meu companheiro na escola, é o preto da repartição que está agora ao leme,
e o barco vem cheio de secretárias, pois é, lá está a minha vazia, estão todos à minha espera; o chefe, o Horácio, tem a cabeça encostada à mão, se calhar a mão
é de pau, e é capaz de escrever um relatório para o Director a dizer que eu deixei o serviço atrasado e que sem mim a colónia toda é capaz de parar; ah, sim, é muito
importante, o meu trabalho! faço as contagens do tempo de serviço dos funcionários, é uma grande alhada! há os que contam a cinquenta por cento, e até a cem por
cento, cada dia vale dois, em certos sítios lá para o interior, um homem envelhece mais depressa, fica com o dobro da idade, mas só a mim ninguém conta o tempo que
aqui fico preso à lama, danado por ficar, agora que tudo fugiu da margem e estou só, é triste ficar só e ainda por cima ver as flores a voar, lá vão elas num grande
bando, se calhar abalam para a minha terra onde a Primavera já chegou.
O rio é meu? O rio azul é meu.
Eles riem-se, é uma paródia!, e a proa está agora mais perto de mim, toda a proa é uma espada de alto a baixo, estiveram a passá-la com lixa fina, vem toda a brilhar,
parece de prata, e dentro do barco começam agora todos a gritar por mim, querem todos que eu me afaste,
Eh arrais. Manobre lá o leme!
também eles não se podem afastar, estão cegos, ficam todos cegos quando cumprem ordens, se calhar o Horácio mandou-os cortarem-me ao meio e eles não se podem negar,
são funcionários, um processo disciplinar não é brincadeira; o rio está barrento e faz ondas,
Ih que grandes ondas!
e uma delas passa-me por cima da cabeça e leva o pássaro que estava a arder, já veio tarde, tenho a cabeça toda queimada, agora fico com a cabeça preta como o arrais
que vai ao leme e não é capaz de fazer a manobra; vou ficar partido em dois, quis ser sempre só um e nunca pude, e agora até essa vontade se acaba, fico aberto ao
meio, esgalhado como uma árvore fendida por um raio.
Ainda se viesse o vento, mas o que é o vento? O vento pode ser o Horácio, os que mandam no Horácio e em mim, na gente todos, essa é gente danada que tem poder para
tudo ...
Que veia é essa, arrais?
Uma vela de papel selado? Ora bolas!
Uma vela de trinta e cinco linhas, se calhar é algum requerimento que veio de Dalatando, algum desgraçado que está a morrer de biliosa e quer pedir uma licença,
graciosa, claro, quando aqui nada é gracioso, e eu com as raízes todas metidas pelo lodo dentro sem o poder ajudar, sem ir ao boletim oficial ver bem se o não poderei
mandar para a terra.
E a mim, quem me ajuda?
Pare lá com isso, arrais!
Pronto, acabou-se! Acabou-se ou agora é que vai começar?!...
Estou partido ao meio, isto é que é uma gaita!
e o coração cheio de medo saltou para cima da proa em gume de espada, as espadas, afinal, só servem para isto, para fazerem mal a um homem como eu que vim da minha
terra e tinha um rio azul, mais azul do que o céu, e até o rio me sujaram, um rio tão bonito que a minha mãe me deu, era ainda menino, a primeira vez que o vi ia
com o meu avô, ele saía da oficina e levava-me todas as tardes pela mão; quando vi o rio pela primeira vez, nunca vira uma coisa tão bonita, e pus-me a gritar, a
bater palmas, foi quando apareceu uma vela cor de laranja, quase vermelha, se calhar o pássaro era a vela dos barcos do meu rio que me queria levar; e eu não percebi.
Faça a manobra à ré, homem! Faça a manobra à ré!
vou ficar partido ao meio até o resto da vida e sei lá, quando sair daqui, se a parte que pode andar é a metade que morreu...
Não, não me levem ainda l
O Jerónimo põe-lhe a mão na testa que escalda e o doente abre os olhos, assusta-se e tapa a cabeça.
Ainda ontem lhe mandaram oferecer um emprego para o mato, e preciso, caramba, se preciso de um emprego, metade caixeiro,
metade enfermeiro, e respondera que não lhe interessava por agora. Sim, farto da vida do mato, vida estúpida entre o jogo de esfolar, qualquer coisa servia, o sete-e-meio
ou a pedida eram bons, ganhava-se e perdia-se depressa, vida de matumbo entre a batota é o vinho quinado ou sem ser quinado. Andavam todos ali para quinar na primeira
altura. Uma biliosa nunca mandava cartão; havia de ter graça uma biliosa ser mais educada do que aqueles quitandeiros que andara a gramar pelo interior, ele que
fora empregado de fazendas em Évora, na melhor loja de panos de toda a cidade.
Saudades da Évora-cidade, claro que as tinha, e mais ainda dele próprio que sabia receber uma senhora. Mulheres de lavradores com searas de pão e montados, e fidalgas,
e meninas de governadores civis e de tropas, todo mesuras e vossas excelências, que manda hoje, Vossa Excelência Senhora Dona Matilde? e algumas delas tinham-lhe
perguntado porque não ia empregar-se em Lisboa. Ah não! Nesse tempo pedia meças aos caixeiros de Lisboa, e já não falava dos da Rua da Betesga ou da Rua dos Fanqueiros,
caixeirada de província que vem à porta, na fossanga, mal um passante lhes pára perto da vista e deita a ponta dos dedos a um estambre ou a um cotim. Ele só saía
fora do balcão, nesse tempo,
claro, é bom não esquecer, quando a Dona Mariquinhas Barahona lhe parava à porta no breque e lhe acenava com a mão. Sou ainda capaz de me lembrar... Deixa ver...
Sim, as duas éguas eram pigarças, bem tratadas e lustrosas ; uma delas tinha uma malha branca na testa, uma grande malha que parecia pintada, e chamavam-lhe a Estrela,
era arisca... Não, mais arisca ainda era a outra, a Malvadínha, como lhe chamava o cocheiro.
Dá ao ombro e sorri, puxa uma fumaça do cigarro e vai até à janela. O quinino ainda não lhe tirara a memória. Está sozinho em casa. Sozinho é como quem diz. O outro
continua lá dentro a arder em febre, aquilo ainda vai dar biliosa ou coisa pior, e o criado, o Capacho, deve malandrar no quintal com o outro calcinhas que é cozinheiro
do Barnabé da "Política e Civil". Não, não grama os calcinhas, não gosta de pretos que armam em brancos.
À noite está quente, é um forno.
Salta para o peitoril da janela, encosta a cabeça e continua a pensar em Évora-cidade. De olhos fechados vê melhor as coisas do passado; e daí por instantes estará
a falar sozinho, a imaginação já não lhe basta. Parece que tem ali com ele um companheiro da "república", a quem conta certas passagens da vida. Da vida autêntica.
Aquilo de fazendas não é mercearias; engana-se quem pensar que tudo são caixeiros da mesma fornada. Vender um mono, pondo-o na mão para lhe dar realce ao desenho
e à cor, baixar levemente a cabeça, saber compor um sorriso onde se insinue um cumprimento à senhora que se tem à frente, assim como quem diz, "se és boa, com isto
ainda ficas melhor" não é coisa para todos. Na loja onde ele estava os monos acabavam na sua mão. Sabia escolher quem o devia levar. E não eram uma nem duas, bem
longe disso, as senhoras que se vestiam ao seu gosto. Os maridos e os pais pagavam as contas, mas era ele quem dizia o que deviam comprar. Era um regalo vê-las passar
depois, a pisar bem, de sombrinhas abertas, a deixarem-se apreciar pelos moinantes das arcadas da praça. Ah! sim, algumas vezes julguei que eram minhas. E muitas
dormiam comigo à noite, salvo seja! Levava-as nos olhos. Inteirinhas. A dona Crisálida tinha um sinalzinho na orelha esquerda e nunca me esqueci disso quando lhe
punha a cabeleira negra e grande em cima da travesseira da pensão. com essa dormi mais de um ano. E fui-lhe sempre fiel. Tinha uma boca bonita e quando ia à rua
das raparigas afeiçoei-me à Beiroa, à Georgina, só por causa da boca que era a mais parecida com a da dona Crisálida. Era uma boca que
se abria para beijar, e era assim uma laranja, gostosa e sumarenta como uma laranja, e ao mesmo tempo uma flor, daquelas que se abrem com o sol e se fecham à tardinha.
Não, uma laranja tem sumo a mais; talvez uma pêra marquesinha. Doce. Aqui, nesta terra maldita, nem uma pêra, nem uma mulher que se veja! Nada!
Talvez por dormir com tanta senhora é que acabara solteiro. Agora ia a caminho dos cinquenta, estava sozinho, e não era bonito dizer que ainda não se arrependera.
Talvez não parecesse, um homem quando perde o cabelo, e os dentes se vão e se desfeiam, amarelos do tabaco e tortos com a falta dos outros, já não é uma sombra do
que foi; talvez não parecesse, mas tivera muita rapariga bonita a querê-lo para marido. Fizera-se fino, pusera-as de parte; uma porque era de gente muito pobre,
outra porque era magra e alta, chamava-lhes canelos, e agora lixo-me por aqui, em Luanda nem a uma preta já posso fazer namoro, se não tiver dinheiro bem morro estúpido.
Não era bazófia. Tinha lá dentro, na mala grande de porão, dois retratos seus a lembrarem o que já fora. Um nadinha mais magro, ainda sem óculos; cabelo bem apartado,
todo passadinho a brilhantina, os punhos três dedos fora do casaco, luvas na mão, sapato de polimento, calça de fantasia
e laço com pintas. Era um laço azul com pintas brancas. As cores não estavam no retrato, mas nunca podia esquecê-las. Por causa daquele laço é que saíra de Evora-cidade.
Parece impossível; por causa de um laço.
Não, arrependido não estou, se fosse hoje fazia o mesmo. Como foi? bom. A gente nunca sabe bem como as coisas se passam.
A Emília, a dona Emilia, a Locas, como ele lhe chamava, entrara na loja em certa manhã de Inverno, devia ser mais ou menos por este tempo. Sim, era em Dezembro,
devíamos estar a poucos dias do Natal.
Hoje é noite de Natal e nem parece. Está um calor que atabafa. Os outros quatro não vieram jantar por causa do Ribeiro que está doente. Devem voltar bêbedos, aí
pelas tantas. bom, mas já agora é melhor dizer o resto do que se passou com a Locas. Ela entrou com o casaco verde-garrafa e de gola preta, apertou-me a mão, e eu
fiquei com a dela entre as minhas, a aquecê-la; estava fria, muito fria, e eu esfreguei-lha, ela fingiu-se zangada e disse-me que era comprometida. Ah! esquecia-me
de contar que o marido era sargento, segundo-sargento, e um batoteiro, que outro não havia por aí!. Chegava tarde, não aquecia a cama lá em casa, e batia-lhe; ela
é que me disse, porque nunca deram escândalo. Ele batia-lhe sem gritar e ela aguentava sem gritar.
A malta da " república " brincava com a história do laço e o Jerónimo não gostava. A brincadeira, às vezes, ia a mais. A verdade é que a Emilinha lhe falara do laço,
se tinha mais laços daqueles, perguntara, e ele respondera-lhe que talvez houvesse no armazém. O patrão não chegara ainda, o marçano saíra com umas amostras e os
dois estavam sós. "- Quer vir?
- Não pode trazer aqui ao balcão?
- Posso. Lá isso posso. Mas escusava de me dar tanto trabalho.
- Faz-lhe bem. Está frio... Você precisa é de se mexer...
- Nisso tem razão, respondera amalandrado.
- Tem frio?
- E a dona Emília não tem?
- Tenho.
- E é casada... Que hei-de dizer eu que durmo sozinho?
- E eu?!... Julga que durmo muitas vezes acompanhada?
-- Desculpe o que lhe vou dizer. Posso dizer?
- Não sei o que está a pensar. Mas diga... Depois logo se vê se fico zangada consigo ou se acho bem. Já sabe que não gosto de atrevimentos !
Estendera-se um pouco sobre o balcão.
a dar intimidade às palavras, enquanto ela voltara a cara, pondo o ouvido mais a jeito. - Se tivesse a sorte de ser seu marido, palavra de honra!, só saía de casa
para darmos uma voltinha e depois ninguém me tirava do quentinho ...
- Dizem todos o mesmo. Todas as mulheres são bonitas quando não as têm.
- Dou-lhe a minha palavra de honra,
dona Emília !
Espalmara a mão no peito em sinal de jura, o que lhe servia também para afiançar que certa seda era mesmo italiana, que um corte de fato se fabricara em Coimbra,
não se fazia melhor em Inglaterra, e que o patrão vendia tudo pelo preço de Lisboa. Mão espalmada no peito do Jerónimo era coisa mais sólida do que a Sé de Évora.
" - Então traga o laço... Se for igual!
- Venha ajudar-me. É um instante. Um
instantinho.
- E o patrão?
- com este frio o patrão só aparece lá
pelas dez.
- bom, dissera ela, olhando bem a rua pelos vidros da montra. Mas tem de me fazer um bom desconto."
Dera-lhe o laço.
Dera-lhe o laço, é uma maneira de dizer. Ele sabia que não havia outro igual àquele na
caixa dos laços, a qual, por sua vez, também nunca estava no armazém. O armazém só servia para as peças de riscado, de cotim e de pano-cru.
Atirara-lhe o laço e ela caíra-lhe nos braços, muito gulosona por beijos, toda tremeliques e suspiros. Uma mulher danada, que fazia arraial de sete quando lhe boliam!
E o Jerónimo fez o que pôde para não deixar mal o sargento. Mas tantas vezes a bilha vai à fonte que um dia se parte. Partiu-se numa noite, toda em cacos, e tantos,
que o patrão lhe disse: "- Tenha paciência, Jerónimo, mas a minha casa é uma casa de respeito, e a minha freguesia, como sabe, a melhor de todo o Alentejo. Tome
lá dois meses de ordenado, leia essa carta em que dou todas as referências que lhe podem interessar para a vida, mas safe-se daqui para fora. Não me desgrace."
E agora estou aqui, em África, raios partam os sargentos e as mulheres, que tenho sido caixeiro de permuta com pretos, enfermeiro quando calha, desempregado quando
o café baixa de cotação e bebedor de espumoso quando o café do Brasil tem bicho. Ando ao gosto do café. Sou lá um homem!
Ainda há dois dias dissera que não ao lugar que lhe ofereciam para o mato. Seria também pela solidão, por aquela vida parada, estúpida, só jogo e vinho, mas negara
por
causa do Ribeiro. bom, e também pelo futebol ; gostava de ver um rijo desafio do Sporting com o Atlético.
E se houvesse pancada, ainda melhor. Futebol, sem lenha, é jogo de senhoras. Na bola um homem grita, provoca os outros, diz coisas fundas que tem dentro de si, e
ninguém o chama à ordem, ninguém lhe diz: tenha cuidado com a língua, senão lixa-se.
O Jerónimo era um homem de impulsos. De impulsos violentos. Já não parecia o mesmo que as senhoras conheceram em Êvora-cidade. Caiu-lhe o cabelo, ficou gordo e foi-se-lhe
a delicadeza. É um genioso.
E um homem de gratidão. Ainda e sempre um homem de gratidão.
Estou aqui sozinho por causa daquele gajo. Ele não sabia o que me arranjava, quando me disse para o não deixarmos ir para o hospital. Uma febre daquelas pedia hospital.
Esta tarde nunca baixou dos quarenta. Mas ha uma coisa que eu nunca lhe disse e ele talvez não saiba : devo-lhe o maior favor da vida. Da minha vida em África. Sou
um homem com quase cinquenta anos, conheci mulheres, muitas, deitei na minha cama não sei quantos dobros dessas. Só fui fiel à dona Crisálida e a essa nem a mão
apertei. Os miúdos têm raivas de dentes. Eu sinto as minhas raivas quando me falta mulher. Aqui, na "república", todos são meus amigos. Como
com eles, dão-me cama, oferecem-me tabaco. O resto do dinheiro que trouxera do mato desaparecera com umas idas aos Coqueiros e comecei a sentir-me triste. Fiz umas
cenas por coisas de nada. Até me zanguei com o Ribeiro. Era a solidão. Um homem depois dos quarenta, aqui em África, e sem futuro, quer dizer sem cheta, não pode
pensar em ter mulher por amor. O amor morre cedo por estas bandas. Meto-me todo o dia na cama quando a solidão entra dentro de mim, e fico quieto, muito quieto.
Só os olhos choram. Sim, choro sempre, sem soluços. Fecho os olhos e as lágrimas correm-me; é assim uma carícia que alguém me faz, uma carícia sem pagamento. E as
amarguras desfazem-se, a calma, talvez a resignação, sim, é mais a resignação que chega. Eu andava assim há oito dias. Era a meio da tarde. Ouvi abrir a porta, o
preto não estava em casa, perguntei se era ele, e o Ribeiro falou-me lá do fundo. Percebi que vinha acompanhado. Meti-me no quarto, fechei a porta e tapei a cabeça
com a roupa para os não ouvir. Depois, de vez em quando, apetecia-me perceber o que se passava no quarto dele e ia até ao corredor. E logo voltava para a cama, mal
percebia ruídos; aquilo era um inferno. Deus Santíssimo.
Daí a um quarto de hora a porta bateu. Senti-me aliviado.
Sentia-me aliviado, mas ouvi passos no corredor.
Pés descalços. O Capacho, afinal, já estava em casa. Se calhar fora ele quem trouxera a rapariga para o Ribeiro. Depois mexeram na porta do meu quarto, eu estava
sem óculos e não via bem. Não podia ver bem aquilo que me parecia estar ali. Pus os óculos precipitadamente e vi uma rapariga dentro do meu quarto. - O que foi?
"- O branco mandou-me
aqui...
Nessa noite quando o Ribeiro voltou, olhei-o com um sorriso. ele fingiu que não entendera o que eu lhe queria dizer. E nunca falámos nisso. Ele não me perguntou:
então? E eu nunca lhe disse: obrigado, meu rapaz. Nunca lhe disse por palavras, porque não há palavras capazes de agradecer a um homem, que não vexa outro quando
lhe manda uma mulher ao quarto. Homens destes não podem ir para o hospital... Ficarei aqui com ele até isto acabar. Se ainda soubesse rezar, pedia a Deus que o não
matasse ainda. Ele é novo. Não vai ficar por aqui muito tempo. Já mo disse. E nisso não estamos de acordo. Acha que a gente explora os pretos e não quer participar
dessa espoliação. com outro qualquer, sim, com outro, nem que fosse meu irmão, eu teria respondido como ele merece. Mas assim ...
- Patrão!... O branco doente está a chamar... Abriu os olhos...
Saltou da janela e foi até junto da cama
onde o amigo definhava com as sezões. O Ribeiro, mal o viu, franziu os lábios para sorrir e ergueu-lhe a mão de dentro do lençol. Uma mão branca, de dedos compridos
e finos. E trémula.
- Estás melhor?
- Dói-me a cabeça ...
- Estiveste variado. Toda a tarde... Falavas de um rio; devias julgar que andavas de
barco.
- Deve ser o rio da minha terra... Temos
lá um grande rio.
- Já sei. Na minha não há.
- Eu gosto de ver um rio. Passei há tempos ao Cuanza; não me importava de lá
ficar.
- Conforme o sítio.
- Tendo um rio ...
O Jerónimo mete-lhe o termómetro debaixo da axila e senta-se na cama. O cheiro da febre embaça, chega-lhe às pernas o suor dos lençóis. O amigo não parece o mesmo.
Em menos de um mês a malária derreteu-o. Só lhe ficaram uns olhos grandes e esverdeados, uns olhos que eram castanhos antes de ter o primeiro ataque.
- Chegou algum barco com correio?
- Não.
- Que dia é hoje?
- Nem sei bem, pá. Os dias são todos
iguais. (Para que hei-de dizer-lhe que estamos em noite de Natal?)
- Mas é ainda Dezembro.
- Ah! isso é! Sim, Dezembro.
- No PUTO é agora tempo frio. Há frio na tua terra?
- De estalar as pedras. Na minha terra é tudo a mais: o calor, o frio, a fome...
- Já viste neve?
- Só em retratos ...
- Eu vi uma vez. É bonito.
- Mas é frio... Não fales que te cansas.
- Não, agora estou melhor. Pode ser que me apague, mas agora estou melhor.
- Mas cansas-te ... Queres um caldo de galinha?
- Roubaste mais alguma?
- Dia sim, dia não.
- E a velha não desconfia? - Não.
Deve estar em boa altura de ver a febre. Pede o termómetro ao outro, que o tira e tenta adivinhar quanto subiu. "Não preciso, pensa depois. Eu bem a sinto. "
- Então?!...
- Baixou. Estás melhor.
- Sim, estou mais fresco. O que tenho é sede.
- Aguenta um pouco. vou fechar a luz para dormires...
- Não, estou farto de dormir. Tenho muito tempo para dormir...
O tom de voz é significativo. O Ribeiro tem pena de morrer. Também eu tenho pena que ele morra; seria desgraçado se morresse. É uma criança, capaz de ser meu filho.
- Os outros?
- Não vieram jantar.
O doente fica calado e pensativo durante uns instantes. Cerra os olhos, puxa depois o lençol para o peito e faz sinal para lhe porem o cobertor. O criado chega à
porta do quarto.
- Eu já dizer que Capacho trazer malga de caldo... Capacho ser preto matumbo...
- Eu, patrão?
- Sim, você mesmo. Vai depressa! O Ribeiro sorri e suspira depois.
- Gostava de falar com a malta ...
- Falas amanhã. Eles devem vir tarde.
- Tu podias dizer ...
- Se tu queres.
- Põe-me um bocadinho mais direito. Agarrando no amigo em peso, depois de
levantar as almofadas e encostá-las às grades da cama, o Jerónimo aconchega-o na roupa. O outro agarra-lhe na mão e fica com ela segura. O Jerónimo percebe que ele
não a quer largar.
- Eu queria que vocês todos soubessem...
- O quê?
- Que não vim para aqui por aquilo que disse.
- Não sei...
- Disse que vim por causa de desgostos de família. Não é verdade. Vim para ganhar a vida. As coisas corriam-me mal por lá.
- E então?
- Fui falso para vocês.
- Todos dizem que vêm para África por causa de uma mulher ou por vida de borga. Dizem sempre que vêm para se esquecer ou regenerar. Achas que alguém é capaz de se
regenerar aqui?
- Talvez tu ... Nunca mais posso esquecer o que tens feito.
- Cala-te lá com isso, anda.
- Mas ...
- Queres que me vá embora? Ou que te lembre também ...
- Não. Não é por isso.
Calam-se por instantes. Uma algazarra de negros chega da rua e ambos ficam a ouvi-la. O doente molha os lábios crestados, pensa na febre que o destruiu e sente receio
de voltar a dormir.
- Está a doer-me a cabeça. Apetece-me fechar os olhos...
- É da luz do petróleo.
- Quando eles voltarem ...
- Já sei. Quando eles voltarem vais dizer-lhes que mentiste. E depois?!... Todos mentem. Todos aqui têm a mania das grandezas.
- Eu disse que o meu pai era rico, quando afinal, vim para cá por causa duma casa que temos e que lhe querem tirar. Gostava que a minha mãe não sentisse esse desgosto.
Ela gosta muito da casa... A minha irmã nasceu lá.
- Não tens nada que falar nessas coisas.
- Eles andam sempre a dizer que eu sou um unhas-de-fome, que não gasto dinheiro.
- E depois?!... É uma maneira de passarem o tempo. Eles são teus amigos; são todos teus amigos.
O doente está a pensar que irá pagar-lhes uma ceia no Canelas, lá em cima no Alto das Cruzes, uma ceia de churrasco, se conseguir arribar. Mandará menos dinheiro
para casa, paciência! Mas há-de oferecer-lhes uma ceia.
- Se conseguisse estar melhor na noite de Natal, íamos fazer uma farra.
- Ainda faltam uns dias... Não, não lhe digo que esta é a noite de Natal.
- Quantos?
- Nem sei. Talvez dez...
- Achas que em dez dias consigo pôr-me de pé?
- Se comeres com apetite, talvez.
- Estou um bocado fraco. O que sinto mais é as pernas.
O criado entra com a malga de canja e o doente sorri-lhe. O Jerónimo ampara-o.
- Tens de comer tudo,
- vou oferecer uma ceia a vocês todos. Gostas de filhós?
- Gosto.
- A minha avó fazia muito bem. com abóbora e ovos... Mas cá nunca vi.
- Pede-se à velha das galinhas. Ela deve saber.
- És capaz?
- A gente dá-se bem. Ainda ontem esteve a fazer-me queixa que lhe roubaram a galinha pedrês. Era uma bela galinha. Deu esse caldo...
- O preto não desconfia?
- Não. Eu enterro as penas no quintal.
- O que achas que devo dar à velha no dia do Natal?
- Sei lá. Quanto queres gastar?
- Diz lá tu...
- Oferece-lhe uma moldura bonita. Ela tem um retrato do filho em cima da mesa e está sempre a olhar para ele. Na Salvador Correia vi ontem molduras ...
- Compra-lhe a melhor de todas. Grande... Uma grande. Ela deve gostar de molduras douradas.

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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