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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NOITE SOBRE AS AGUAS / Ken Follett
NOITE SOBRE AS AGUAS / Ken Follett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NOITE SOBRE AS AGUAS

 

O dinheiro, a guerra e o desespero reuniram-nos: o traidor, o aristocrata, o assassino, o cientista, o ladrão. Todos eles fogem para salvar a vida —  ou para deixá-la para trás. Todos esperam que esta viagem, uma fuga transatlântica no luxuoso Clippei, os mantenha a salvo das perturbações que ameaçam a Europa. Mas nesta nave de loucos não pode haver fugas a um mundo em guerra. Nem fugas das suas vidas passadas.

 

ERA O AVIÃO mais romântico jamais construído.

Na doca de Southampton, ao meio-dia e meia do dia em que foi declarada a guerra, Tom Luther perscrutava o horizonte à espera do avião, com a alma cheia de ansiedade e apreensão. Trauteava repetidamente para consigo umas notas: o primeiro movimento do concerto Imperado,; de Beethoven, uma melodia empolgante e apropriadamente guerreira.

Estava rodeado por uma multidão de mirones: entusiastas da aviação com os seus binóculos, rapazinhos e curiosos. Luther calculava que devia ser a nona vez que o Clipper da Pan American amarava na baía de Southampton, mas a força da novidade ainda se mantinha. O avião era tão fascinante, tão encantador, que as pessoas acorriam a mirá-lo mesmo no dia em que o seu país entrava em guerra.

Luther era americano e esperava que o seu país se mantivesse afastado do conflito: não tinham nada a ver com aquilo. Além do mais, um ponto a favor dos nazis era o facto de serem duros com os comunistas.

Luther era um homem de negócios, no ramo da manufactura de lanifícios, e em tempos tivera bastantes problemas com os comunistas nas suas fábricas: quase ficara arruinado. Mas depois conhecera Ray Patriarca, e a sua vida mudara. O pessoal de Patriarca sabia como tratar os comunistas. Houve uns acidentes: um agitador perdeu a mão num tear; um sindicalista morreu atropelado. Bastaram poucas semanas e, a partir de então, deixara de haver problemas. Patriarca sabia aquilo que Hitler também sabia: a maneira de lidar com os comunistas era esmagá-los como baratas.

Do outro lado do estuário, em Hythe, uma lancha largou do cais para hidroaviões da Imperial Airways e vagueou pela zona de amaragem para retirar eventuais detritos flutuantes, provocando um murmurio de expectativa na multidão: o Clipper devia estar a chegar.

A princípio, Luther apenas viu uma forma vaga que podia ser de uma ave, mas depois a silhueta tornou-se mais nítida, e um rumor de excitação percorreu os espectadores.

Toda a gente lhe chamava o Clippe,; mas tecnicamente tratava-se de um Boeing B-314. A Pan American tinha encomendado à Boeing um avião para transporte de passageiros sobre o Atlântico num ambiente luxuoso, e era este o resultado: enorme, majestoso, incrivelmente potente, um palácio voador. A companhia aérea já recebera seis e encomendara outros seis. Em termos de conforto e elegância, rivalizavam com os fabulosos paquetes que atracavam em Southampton, mas estes demoravam quatro ou cinco dias na travessia, enquanto o Clipper fazia a viagem em vinte e cinco a trinta horas.

"Parece uma baleia voadora", pensou Luther enquanto o avião se aproximava. Tinha um grande focinho redondo de baleia, um corpo maciço e uma traseira afilada que culminava em duas barbatanas altas. Os quatro grandes motores eram encastrados nas asas e, por baixo destas, dois flutuadores atarracados ajudavam a estabilizar o aparelho quando estava pousado. O fundo do avião tinha uma aresta afilada, como o casco de um navio rápido.

Pouco depois, Luther começou a distinguir as duas filas irregulares de vigias quadradas, marcando as cabinas superior e inferior. Ele chegara a Inglaterra no Clipper havia exactamente uma semana e portanto conhecia os planos do avião: a coberta superior era composta pelo cockpit e o porão das bagagens, e a inferior destinava-se aos passageiros.

Voar no Clipper não era barato. A viagem de ida e volta custava seiscentos e setenta e cinco dólares, metade do preço de uma pequena casa, e em circunstâncias normais Tom Luther não teria gasto essa soma em luxos. Mas precisara de se familiarizar com o avião, porque fora encarregado de fazer um trabalho perigoso para um homem poderoso —  mesmo muito poderoso. Naquele momento, estava à espera que lhe dessem o OK final.

O avião aproximou-se, inclinado, com a cauda mais baixa que o nariz, e mais uma vez Luther ficou impressionado com o seu tremendo volume. Por instantes, pareceu que não estava a voar, mas sim a cair, e que se despenharia no mar como uma pedra e se afundaria. Depois, pareceu pairar mesmo acima das ondas e por fim tocou na água, saltitando na ondulação como uma pedra atirada de raspão, levantando pequenas explosões de espuma. Logo a seguir, o casco assentou na água.

O avião nivelou-se e finalmente o nariz baixou. A velocidade diminuiu e o aparelho começou a navegar como um navio que era, tão calmamente como se nunca se tivesse atrevido a levantar voo.

Luther virou-lhe as costas e imobilizou-se logo. Junto de si estava um homem mais ou menos da sua altura, de fato cinzento-escuro e chapéu de coco, com olhos azul-brilhantes e uma boca fina e cruel. Tinha um ar atraente e perigoso e disse-lhe:

— Tenho um recado para si.

Luther teve um sobressalto.

—  Óptimo. Diga lá.

— O homem que lhe interessa estará a bordo deste avião à partida para Nova Iorque, na quarta-feira.

Luther assentiu gravemente. Então, o trabalho sempre ia por diante.

—  Muito obrigado —  respondeu.

—  Não nos deixe ficar mal.

—  Diga-lhes que não se apoquentem —  afirmou Luther, respirando fundo. —  Ele pode sair de Southampton, mas nunca chegará a Nova Iorque.

 

NAS INSTALAÇÕES da Imperial Airways, em Hythe, os mecânicos iriam fazer a revisão ao Clipper sob a supervisão do maquinista de bordo da Pan American. Naquela viagem, o maquinista era Eddie Deakin.

A revisão era um trabalho exaustivo, mas eles tinham três dias. Depois de deixar os seus passageiros no cais 108, o Clipper atravessou para Hythe, onde, ainda dentro de água, foi manobrado para se colocar sobre um berço, que depois foi puxado por uma rampa para seco para dentro de um enorme hangar.

O voo transatlântico era um esforço duríssimo para os motores: hora após hora, o combustível corria, as velas produziam a sua faísca, os catorze pistões de cada motor bombeavam incessantemente. Mas para Eddie era isso que constituía o romance da engenharia de máquinas: era extraordinário que houvesse homens que conseguiam construir motores capazes de funcionar perfeitamente e com precisão enquanto transportavam um avião de quarenta e uma toneladas ao longo de milhares de quilómetros.

Na quarta‑feira, o Clipper estaria pronto para nova viagem.

 

 

A GUERRA foi declarada num agradável don}ingo no fim do Verão.

Poucos minutos antes de a notícia ser transmitida na rádio, Margaret Oxenford estava no jardim da enorme mansão de tijolo que era a sua casa, furiosa por ser obrigada a ir à missa. Ela detestava missas, mas o pai não a deixava faltar, embora ela já tivesse dezanove anos, idade mais que suficiente para tomar as suas próprias decisões a respeito de religião.

Margaret não concordava com os rígidos princípios tradicionais dos seus progenitores. Não acreditava em Deus; era feminista e socialista, interessava‑se por jazz, pintura cubista e pelo verso livre.

O seu irmão, Percy, de catorze anos, saiu da casa. Ele não era a favor nem contra ideias radicais, mas era traquinas e solidarizava‑se com a rebeldia de Margaret. Sofrendo ambos sob a tirania do pai, consolavam‑se e apoiavam‑se mutuamente, e Margaret adorava‑o.

A mãe e o pai saíram logo a seguir, e o pai trazia uma horrenda gravata cor de laranja e verde. Ele era praticamente daltónico, e provavelmente fora a mãe quem lha comprara. Ela era ruiva, com olhos verde‑mar e pele pálida e cremosa, e ficava lindamente de cor de laranja e verde, mas o pai tinha cabelo preto, a ficar grisalho, e uma compleição corada, portanto, nele, a gravata mais parecia um aviso contra qualquer coisa de perigoso.

Margaret tinha o colorido da mãe. Percy estava a mudar tão rapidamente que ninguém podia dizer a quem ele finalmente saíria.

Percorreram o longo caminho até aos portões, depois a rua da aldeia e atravessaram o relvado até à igreja de pedra cinzenta.

Quando iam a entrar no banco, Percy sussurrou alto ao pai:

—  Que bela gravata, pai.

Margaret foi tomada por um ataque de riso. Ela e Percy sentaram‑se rapidamente, escondendo as caras nas mãos, fingindo que rezavam, até lhes passar o ataque. Depois disso, Margaret sentiu‑se melhor.

O vigário fez uma homilia acerca do filho pródigo, e Margaret pensou que o velho tonto bem podia ter escolhido um tópico mais relevante para os tempos que corriam: a probabilidade de uma guerra.

Margaret detestava guerras. Um apaixonado seu morrera na Guerra Civil Espanhola. Já passara mais de um ano, mas por vezes ela ainda chorava à noite. Para ela, a guerra significava que muitos milhares de raparigas passariam pelo desgosto que ela tivera, e esse pensamento era‑lhe insuportável.

No entanto, outra parte dela desejava a guerra. Sentia uma grande frustração relativamente à cobardia da Grã‑Bretanha ao ter‑se mantido neutra na Guerra de Espanha, e se o seu país decidisse agora enfrentar os fascistas, ela poderia voltar a ter orgulho nele.

E havia outra razão para o seu coração bater com mais força perante a possibilidade da guerra: isso significaria certamente o fim do tipo de vida limitado e sufocante que ela vivia com os pais. Sentia‑se aborrecida e frustrada com os rituais invariáveis e a vida social sem sentido. Ansiava por escapar e ter uma vida própria, mas isso afigurava‑se‑lhe impossível: era menor e não tinha dinheiro. Nunca frequentara a escola; recebera instrução em casa, de preceptoras e preceptores, e não havia nenhum tipo específico de trabalho para que estivesse habilitada. Certamente que tudo seria diferente em tempo de guerra.

Margaret sonhava em alistar‑se como voluntária no Serviço Auxiliar do Território, o exército das mulheres. Uma das poucas habilitações práticas que possuía era a de saber guiar: o motorista do pai ensinara‑lhe no Rolis Royce; e Ian, o seu apaixonado que morrera, tinha‑lhe também ensinado a andar de mota. Ela até sabia manobrar barcos a motor, porque o pai tinha um iate em Nice. O SAT precisava de condutores de ambulância e de mensageiros motorizados, e ela já se imaginava, de uniforme e capacete, montada numa mota e transportando mensagens urgentes a grande velocidade através dos campos de batalha. Tinha a certeza de que seria corajosa se lhe dessem oportunidade para isso.

Na verdade, a guerra foi declarada à hora da missa, como vieram a descobrir posteriormente, mas quando a família Oxenford se dirigiu a casa depois do serviço religioso, ainda não sabia que estava em guerra com a Alemanha.

Percy queria pegar na espingarda e ir aos coelhos. Todos eles sabiam atirar; era um passatempo familiar, quase uma obsessão. Mas claro que o pai recusou o pedido de Percy: não se podia caçar ao domingo.

Quando chegaram a casa, depararam, atónitos, com uma empregada descalça a regar as flores da entrada. O pai não a reconheceu.

—  Quem és tu? —  perguntou abruptamente.

—  Chama‑se Jenkins, entrou esta semana —  informou a mãe com o seu suave sotaque americano.

—  E onde estão os sapatos dela? —  perguntou o pai.

A rapariga fez uma vénia e olhou acusadoramente para Percy.

—  Por favor, milorde, foi Lord Isley o título de Percy era conde de Isley —  que me disse que, por respeito, as empregadas deviam andar descalças ao domingo.

A mãe suspirou, e o pai fez um grunhido de desespero. Margaret não conseguiu evitar o riso. Era a brincadeira preferida de Percy: informar empregadas novas de regras imaginárias. Conseguia dizer as coisas mais ridículas com um semblante sério, e a família tinha uma tal reputação de excentricidade que as pessoas acreditariam fosse no que fosse.

Frequentemente, Margaret achava graça a Percy, mas desta vez ficou com pena da rapariga, ali descalça como uma tonta.

—  Vai calçar‑te —  disse a mãe.

—  E nunca acredites em Lord Isley —  acrescentou Margaret.

Tiraram os chapéus e foram para a salinha. Margaret puxou o cabelo a Percy e sibilou:

—  Aquilo foi uma maldade!

Percy sorriu. Era incorrigível: uma vez dissera ao pároco da aldeia que o pai morrera com um ataque de coração, e toda a aldeia se vestira de luto antes de o logro ser descoberto.

O pai ligou a telefonia e foi então que ouviram as notícias: a Grã‑Bretanha declarara guerra à Alemanha. Margaret sentiu uma espécie de alegria selvagem crescer‑lhe no peito. Já sentia o sabor da liberdade. E a guerra seria contra os fascistas, que tinham morto o pobre Ian.

O pai ficou furioso. Era um dos membros fundadores do Partido Fascista Britânico. Na altura da fundação, ele era uma pessoa diferente: mais magro, mais atraente. Tinha encantado as pessoas e granjeado o seu apoio. Escrevera um livro polémico, chamado Homens Inferiores: a Ameaça da Poluição Racial, sobre a forma como a civilização começara a desagregar‑se quando os brancos tinham começado a casar‑se com judeus, asiáticos e negros. Correspondera‑se com Adolf Hitler, que considerava o maior estadista depois de Napoleão. Tinha havido grandes festas em casa deles todos os fins‑de‑semana com políticos, por vezes governantes estrangeiros e —  numa ocasião memorável —  com o próprio rei. Durante a Depressão, o pai esperara que o país o chamasse para o resgatar naquela hora de desespero, pedindo‑lhe para ser primeiro‑ministro. Mas o apelo nunca chegou, as festas tornaram‑se mais raras e menos concorridas, os convidados mais ilustres arranjaram maneira de se dissociarem publicamente do Partido Fascista e o pai tornou‑se um homem amargo e desiludido. O seu encanto desapareceu ao mesmo tempo que a sua confiança, e o seu bom aspecto foi arruinado por ressentimentos, tédio e bebida.

Nos últimos anos, o seu programa resumia‑se a uma única ideia obsessiva: que a Grã‑Bretanha e a Alemanha se unissem contra a União Soviética. Ele agarrara‑se desesperadamente a essa ideia, mesmo quando os acontecimentos na Europa a iam tornando cada vez mais irrealista. Naquele momento, com a declaração de guerra entre a Grã‑Bretanha e a Alemanha, as suas esperanças desfaziam‑se completamente.

—  A Grã‑Bretanha e a Alemanha vão dar cabo uma da outra, e o Mundo será dividido entre os cães e os Judeus! —  comentou ele.

Margaret não tinha paciência para aquele tipo de disparates.

—  Não há problema nenhum com os Judeus! —  exclamou ela fervorosamente.

—  Não há problema com os Judeus desde que estejam no seu lugar —  continuou o pai, de dedo no ar.

—  Que é debaixo dos calcanhares do seu partido... Partido Fascista!

—  Margaret quase dissera "partido nojento", mas contivera‑se: era perigoso arreliar demasiado o pai.

Houve um momento de silêncio embaraçoso e depois o pai disse:

—  Bah. —  Talvez pretendesse continuar, mas nesse momento entrou Bates, o mordomo.

—  O almoço está servido, milady.

Atravessaram o átrio para a casa de jantar. Devia haver rosbife passado demais, como sempre ao domingo, e a mãe comeria uma salada: ela nunca comia alimentos cozinhados, considerando que o calor lhes destruia as propriedades.

O pai disse a oração e sentaram‑se. Bates serviu o salmão fumado à mãe. Alimentos fumados, em pickles ou em qualquer outro tipo de conserva, não faziam mal, de acordo com a sua teoria.

—  Claro que só há uma coisa a fazer —  disse a mãe, servindo‑se. - Temos de ir viver para a América enquanto durar esta patetice desta guerra.

—  Não! —  exclamou Margaret, horrorizada.

—  Acho que já tivemos desavenças suficientes para um dia —  interrompeu a mãe. —  Vamos almoçar em paz e sossego, por favor.

Margaret ficou muda de raiva. Queria descompô‑los, acusá‑los de traição e cobardia, mas não conseguia articular as palavras, e a única coisa que lhe saiu foi:

—  Não é justo!

Mas mesmo isso foi demais, e o pai disse:

—  Se não consegue estar calada, o melhor é retirar‑se.

Margaret levou o guardanapo à boca para sufocar um soluço, empurrou a cadeira para trás, levantou‑se e saiu a correr da sala.

 

ANDAVAM a planear aquilo há meses, claro.

Percy veio ao quarto de Margaret depois do almoço e contou‑lhe os pormenores. A casa ficaria fechada. Margaret e Percy fariam uma mala cada um; o resto das bagagens seria enviado mais tarde. O pai tinha reservado bilhetes no Clipper da Pan American e partiriam na quarta‑feira.

Percy estava louco de excitação. O Clipper era enorme e luxuosíssimo e aparecera em todos os jornais havia algumas semanas, quando fora inaugurado o voo. A viagem para Nova Iorque durava vinte e nove horas e, à noite, havia camas para se dormir, sobrevoando o oceano Atlântico.

Era terrivelmente irónico, pensou Margaret, eles fugirem numa atmosfera luxuosa, deixando os seus conterrâneos à mercê de privações, insegurança e guerra.

Percy saiu para fazer a mala, e Margaret ficou deitada, olhando para o tecto, chorando de raiva e frustração, impotente para alterar o seu destino. Ficou no quarto até à noite.

Na segunda‑feira de manhã, quando ela ainda estava deitada, a mãe entrou no quarto e sentou‑se.

—  Por favor, não arranje problemas com o pai por causa disto - pediu. —  Não temos alternativa, temos mesmo de ir.

—  Porquê? —  Margaret estava admirada.

— Porque, de contrário, eles prendem o pai. Um amigo nosso do Ministério dos Negócios Estrangeiros avisou‑nos. Se o pai não sair de Inglaterra até ao fim da semana, será preso.

Margaret foi apanhada completamente de surpresa. Não podia acreditar que quisessem prender o pai como se fosse um ladrão.

— E não nos deixam sequer levar dinheiro connosco —  continuou a mãe amargamente. —  Ainda há quem fale no sentido de justiça britânico!

Dinheiro era a última coisa que preocupava Margaret naquele momento. Toda a sua vida estava em jogo. Respirando fundo, disse:

—  Eu não quero ir, mãe.

A mãe não manifestou surpresa. Talvez até já esperasse aquilo, e, no tom moderado e vago que usava quando tentava evitar discussões, afirmou:

—  Mas tem de ir, querida.

—  Não é a mim que eles querem prender e eu posso ir viver com a tia Martha ou com a prima Catherine. Porque é que a mãe não fala nisso ao pai?

—  O que a menina e eu pensamos é indiferente —  suspirou a mãe. —  O pai nunca a deixará ficar cá, independentemente do que nós dissermos.

— Então, peço-lhe eu directamente.

—  Eu preferia que não o fizesse. —  Havia agora uma nota de súplica na voz da mãe. —  Isto já é suficientemente duro para ele. Ele adora a Inglaterra, sabe, e isto está a partir-lhe o coração.

—  Eu não tenho culpa de que ele seja fascista —  comentou Margaret duramente.

—  Tinha esperanças de que fosse mais caridosa —  disse a mãe baixinho. E, levantando-se, saiu do quarto.

Margaret sentia remorsos e indignação ao mesmo tempo. Era tão injusto! Desde que ela tinha idade para ter opiniões que o pai sempre troçara delas, e agora que os acontecimentos provavam que ele é que estava errado pediam-lhe que fosse caridosa.

Na terça-feira, quando a mãe percebeu que Margaret não ia fazer a mala, disse à nova empregada para lha fazer. Claro que Jenkins não sabia o que embalar, e Margaret teve de ajudá-la; portanto, no final de contas, a mãe conseguiu o que queria, como de costume.

—  Agora que ficas desempregada, o que é que vais fazer? —  perguntou Margaret à rapariga.

—  Vou alistar-me no SAT.

—  Que sorte! —  comentou Margaret tristemente. —  O que é que o teu pai pensa disso?

—  Eu não vou dizer-lhe, vou simplesmente alistar-me, já tenho dezoito anos. Depois de alistada, desde que se tenha idade suficiente, não há nada que os pais possam fazer.

—  Tens a certeza? —  Margaret estava espantada.

—  Claro. Toda a gente sabe.

Jenkins levou a mala de Margaret para a entrada. Iam sair muito cedo no dia seguinte. Vendo as malas todas alinhadas, Margaret compreendeu que, se se limitasse a amuar, de certeza que passaria a guerra no Connecticut. Apesar do pedido da mãe para não arranjar sarilhos, ela tinha de enfrentar o pai.

Só de pensar nisso, tremia como varas verdes. O pai enfurecia-se tanto quando lhe faziam frente! E as suas fúrias eram temíveis. O que faria ele quando ela dissesse que queria ficar em Inglaterra e lutar contra os nazis?

Quando estava, trémula, à porta do escritório do pai, apareceu a governanta, no seu vestido de seda preta, e, ao vê-la, Margaret teve uma ideia luminosa: pediria dinheiro emprestado a Mrs. Allen, fugia de casa já, apanhava o comboio das 4 e 55 para Londres, dormia em casa da sua prima Catherine e alistava-se no SAT logo pela manhã. Quando o pai a apanhasse, já seria tarde demais.

O plano era tão simples e audacioso que ela nem queria acreditar que fosse possível. Mas antes que pudesse pensar duas vezes no assunto, ouviu a sua própria voz dizer:

—  Ah, Mrs. Allen, é capaz de me arranjar algum dinheiro? Tenho de fazer umas compras de última hora e não queria incomodar o meu pai; ele anda tão ocupado.

—  Claro, milady. De quanto precisa?

Margaret não sabia quanto era o bilhete para Londres. Nunca fora ela a comprar os bilhetes. Deitando-se a adivinhar, respondeu:

—  Ah, talvez uma libra. — "Estarei mesmo a fazer isto?", pensou para consigo.

Mrs. Allen tirou duas notas de dez xelins do porta-moedas. Se lhe pedissem, provavelmente ela daria todas as suas economias. Margaret pegou no dinheiro com uma mão trémula, pensando: "Isto pode ser o meu bilhete para a liberdade." Mrs. Allen, imaginando que ela estava perturbada com a ideia da viagem, pegou-lhe na mão e apertou-lha, dizendo:

—  Isto é um dia muito triste, Lady Margaret. —  E, abanando a cabeça desconsoladamente, desapareceu para as traseiras.

Margaret olhou em volta num frenesi. Não se via ninguém e ela nem se atreveu a demorar o tempo de vestir um casaco. Apertando o dinheiro na mão, saiu porta fora.

 

A EUFORIA de Margaret manteve-se, embora a viagem fosse uma espécie de pesadelo. O comboio ia cheio: nem na carruagem da primeira classe havia lugar, e iam soldados sentados no chão. Ela ficou de pé. Depois, o comboio ficou parado três horas em Reading. Tinham sido removidas todas as lâmpadas eléctricas devido ao blackout e depois do anoitecer, o comboio ficou às escuras, restando apenas o brilho ocasional da lanterna do revisor nas suas rondas. A certa altura, Margaret não conseguiu aguentar mais de pé e também se sentou no chão.

Interrogava-se se o pai teria descoberto que ela desaparecera e apanhara o comboio e se iria meter-se no carro e dirigir-se a toda a velocidade para Londres para a apanhar na Estação de Paddington. Era pouco provável, mas possível, e o seu coração encheu-se de ansiedade quando o comboio entrou na estação.

Porém, quando ela finalmente saiu, o pai não se avistava, e Margaret teve uma nova sensação de triunfo: afinal, ele não era omnipotente! Conseguiu apanhar um táxi que a levou ao apartamento de Catherine, em Bayswater, usando só as luzes de presença.

As janelas do edifício estavam todas tapadas, mas a entrada era um oásis de luz. Embora o porteiro já não estivesse de serviço —  era quase meia-noite — , Margaret sabia qual era o andar da prima. Subiu as escadas e tocou à porta, mas ninguém abriu. Ficou descoroçoada: Catherine não estava.

Não era para admirar, lembrou-se ela. Catherine vivia no Kent e usava o apartamento como um poiso na cidade. A vida social de Londres fora interrompida, claro, e não havia razão para Catherine ter ali ficado.

Margaret ficou desapontada, mas não desencorajada. Pensou nas alternativas que lhe restavam. Tinha vários parentes em Londres, mas se fosse para as suas casas, eles avisariam o pai. Catherine teria alegremente entrado na conspiração, mas Margaret não podia confiar em nenhum dos seus outros parentes. Tinha de arranjar quarto num hotel e dizer para mandarem a conta ao gestor de negócios do pai.

Suspirando, desceu as escadas e saiu para a rua, para a escuridão total. O blackout era bastante assustador. Ela ficou à porta e olhou em redor, de olhos bem abertos, sem ver nada.

Era enervante, e ela ansiava por um táxi com luzes, pela lua cheia ou por um polícia atencioso. Passados instantes, o seu desejo realizou-se: passou um carro iluminado e, de repente, ela conseguiu ver até à esquina. Começou a andar.

O carro continuou, com as suas luzes vermelhas desaparecendo à distância. Margaret pensava que ainda estava a dois ou três passos da esquina quando caiu do passeio. Atravessou a rua e deu com o passeio oposto sem tropeçar, o que lhe deu alento, por isso prosseguiu mais confiante.

Subitamente, alguma coisa lhe bateu na cara com violência e ela soltou um grito de dor. Por instantes, entrou em pânico, sentindo vontade de dar meia volta e fugir. Fazendo um esforço, acalmou-se. Que diabo teria acontecido? Estendeu as mãos e sentiu logo qualquer coisa, e quando compreendeu o que era, riu-se, apesar da cara dorida. Fora atacada por um marco de correio.

Contornou-o às apalpadelas e continuou, com os braços estendidos à sua frente. Passado um bocado, tropeçou de outro passeio abaixo e, recuperando o equilíbrio, foi andando devagar. Tentou recordar a alegre sensação de triunfo da estação, mas sentia-se só e amedrontada. Em breve, a suspeita de que estava perdida avolumou-se inexoravelmente.

Então, apareceu um carro, e embora as suas luzes de presença soltassem um brilho fraco, parecia dia em comparação com a escuridão anterior. Margaret percebeu que estava numa praça que lhe parecia vagamente familiar. Viu uma loja onde a mãe costumava fazer compras: estava a pouca distância de Marble Arch. Quase chorou de alívio. Na esquina seguinte, esperou que outro carro voltasse a dar-lhe iluminação e avançou para o bairro de Mayfair.

Passado pouco tempo, estava à porta do Claridge's Hotel. Tal como a maior parte dos edifícios públicos que estavam abertos à noite, tinha sido erguida no hotel uma porta dupla, de modo que se pudesse entrar e sair sem se verem do exterior as luzes do átrio. Margaret deixou a porta de fora fechar-se atrás de si e depois transpôs a segunda porta, que dava acesso ao átrio. Foi invadida por uma tremenda sensação de alívio. Voltara à normalidade, o pesadelo acabara.

Estava um recepcionista jovem a dormir ao balcão, e Margaret tossiu para acordá-lo.

—  Preciso de um quarto.

—  A estas horas da noite? —  balbuciou o homem.

—  Fui apanhada pelo blackout —  explicou Margaret.

O homem começou a recuperar a compostura.

—  Sem bagagem?

—  Sim —  replicou Margaret, embaraçada. Depois, acrescentou: - Claro! Eu não estava a planear perder-me!

—  Estamos cheios —  disse o homem com um olhar estranho.

—  Ora, tem de haver alguma coisa. —  Margaret nem queria acreditar no que estava a acontecer. —  Onde é que está o seu chefe?

—  Sou eu o encarregado até às seis da manhã —  replicou ele com um ar ofendido.

—  Então, tenho de esperar na sala até ser dia —  disse Margaret, cansada, olhando em redor.

— Não pode! —  exclamou o homem. — Uma jovem sem bagagem a dormir na sala! Despediam-me logo.

—  Eu não sou uma jovem qualquer —  disse ela, zangada. —  Sou Lady Margaret Oxenford. —  Detestava usar o título, mas estava desesperada.

—  Ai sim? —  observou ele com um olhar duro e insolente.

Margaret ia gritar com ele quando deparou com o seu reflexo no espelho da porta e percebeu que estava com um olho negro. Além disso, tinha as mãos nojentas e o vestido rasgado. Não admirava que o recepcionista não lhe arranjasse quarto. Ela não se sentia com energias para uma discussão. Virando as costas, saiu para a noite, amargamente desapontada.

Seria incapaz de voltar a encontrar o edifício de Catherine, não podia confiar nos seus outros parentes e estava suja demais para conseguir alojamento num hotel. Tinha de andar a passear até nascer o dia. Pelo menos ali, no West End, havia imensos semáforos e passavam carros com frequência. Curiosamente, numa rua viu três outras mulheres solitárias: uma num vão de escada, outra encostada a um candeeiro e a terceira sentada num carro. Todas a fumar. Ela pensou se seriam o que a mãe chamava de mulheres da vida.

Começou a sentir-se cansada e, impulsivamente, sentou-se na soleira de uma porta, tirou os sapatos e começou a massajar os pés doridos.

Subitamente, apareceu uma cara à sua frente e ela deu um grito de susto. A cara aproximou-se e ela reparou que se tratava de um homem novo, bem-vestido, que lhe disse:

—  Olá, beleza.

Ela levantou-se de um pulo. Detestava bêbados —  tinham tanta falta de dignidade! Ele aproximou-se, bamboleante.

—  Dá-me um beijinho...

—  Nem pensar! —  replicou ela, horrorizada. Deu um passo atrás e tropeçou, deixando cair os sapatos.

Por qualquer razão, a perda dos sapatos fê-la sentir-se desesperadamente vulnerável. Inclinou-se para apanhá-los. O bêbado riu-se, entaramelado, e depois, para seu horror, agarrou-a pelos ombros e levantou-a. O seu bafo alcoólico soprou pela cara dela num nevoeiro nauseabundo e, de repente, ele beijou-a na boca.

Era indescritivelmente nojento, mas felizmente ela conseguiu soltar-se e afastar-se dele, começando a gritar. Gritou a plenos pulmões e não se calou. Ouviu-o vagamente a dizer:

—  Pronto, pronto, não é preciso tanta fita. Eu não queria fazer-te mal.

Mas ela continuou a gritar. Finalmente, o bêbado desapareceu na noite e Margaret calou-se e começou a chorar. Depois, ouviu o som de passos a correr, viu um feixe de luz e um capacete de polícia. O agente apontou-lhe a lanterna e perguntou:

—  Como é que te chamas, rapariga?

—  Margaret Oxenford.

—  Não será Lady Margaret Oxenford? —  Margaret fungou e assentiu com a cabeça. —  Venha comigo, milady, já não há problema.

Margaret limpou os olhos à manga. O polícia ofereceu-lhe o braço e ela enfiou o seu no dele. Ele apontou a lanterna para o chão à sua frente e começaram a andar. Passado algum tempo, apareceu a familiar luz azul de uma esquadra no crepúsculo da manhã, e o policia disse:

—  Com uma xícara de chá, fica já fina.

Entraram. Havia uma espécie de balcão com dois agentes atrás, um de meia-idade e atarracado e o outro jovem e magro. Encostados à parede, de cada lado da sala, havia dois bancos corridos de madeira. O salvador de Margaret fez-lhe sinal para que se sentasse e foi ao balcão falar com o homem mais velho.

—  Meu sargento, está aqui Lady Margaret Oxenford, que teve um problema com um bêbado na Bolting Lane.

O sargento olhou para Margaret com um ar interessado e disse qualquer coisa em voz baixa que ela não ouviu. O agente que a tinha ajudado assentiu e saiu pelas traseiras da sala.

Margaret lembrou-se de que deixara os sapatos na soleira da porta onde se sentara e sentia necessidade de um banho e de roupa lavada. Não podia ir alistar-se naquela figura, pois seria terrível ser recusada pelo SAT depois de todas aquelas peripécias.

O agente regressou com uma xícara grossa de chá, que estava demasiado fraco, mas reavivou o espírito de decisão de Margaret. Ainda lhe restavam uns xelins, que lhe dariam para comprar um vestidinho simples e umas sandálias; e podia ir aos banhos públicos lavar-se e arranjar-se. Depois, estaria pronta para a tropa.

Enquanto ela elaborava este plano, entrou um grupo de jovens bem-vestidos arrastando um companheiro contrariado. Um deles começou a gritar para o sargento atrás do balcão.

—  Todos calados! —  interrompeu o sargento.

Eles acalmaram-se e soltaram o prisioneiro, que ficou ali de ar contrafeito. O sargento apontou para um dos jovens, de cabelo escuro:

—  O senhor. O que vem a ser este banzé?

Ojovem apontou para o prisioneiro.

—  Este crápula convidou a minha irmã para jantar e depois escapuliu‑se sem pagar a conta! —  exclamou ele, indignado. Tinha um sotaque aristocrático, e Margaret achou que a cara lhe era vagamente conhecida.

—  Ele chama‑se Harry Marks e devia ser preso —  acrescentou um jovem mais novo, de fato às riscas.

Margaret olhou, interessada, para Harry Marks. Era extraordinariamente atraente, com feições perfeitas e cabelo louro, e devia ter vinte e dois ou vinte e três anos. Embora o seu fato estivesse bastante amarrotado, envergava‑o com uma elegância descontraída. Olhou desdenhosamente em redor e disse:

—  Estão todos bêbados.

—  Nós podemos estar bêbados, mas ele é um escroque e um ladrão —  interrompeu o do fato às riscas. —  Olhe o que nós encontrámos no bolso dele. —  Atirou qualquer coisa para cima do balcão. —  Estes botões de punho foram roubados ao princípio da noite de casa de Sir Simon Monkford.

O sargento virou-se para o seu primeiro interlocutor.

—  O senhor sabe todos os pormenores relativos a ambas as acusações?

—  Claro, posso contar-lhe tudo. O restaurante...

—  Óptimo. O senhor fica cá. —  Apontou para o acusado. —  O senhor sente-se. —  Depois, virou-se para os restantes jovens do grupo. Os outros podem ir para casa. Girem todos daqui para fora!

Os rapazes foram-se embora, murmurando. Aquela grande aventura acabara em águas de bacalhau.

O sargento começou a interrogar o jovem de cabelo escuro, tomando notas. Harry Marks ficou junto deles por momentos, depois virou-se, impaciente, e, vendo Margaret, fez-lhe um sorriso luminoso e sentou-se junto dela.

—  Estás bem, miúda? Foi o teu velho que te pôs o olho negro?

Margaret ficou atarantada. O sotaque refinado dele desaparecera e agora falava como o sargento. Ela recompôs‑se e respondeu:

—  Perdi-me no blackout e fui contra um marco do correio.

Foi a vez de Harry ficar surpreendido. Tomara-a por uma rapariga da classe operária, mas agora, ouvindo o seu sotaque, recuperou a sua personalidade anterior sem pestanejar.

—  Meu Deus, que azar!

Margaret estava fascinada. Qual seria o verdadeiro Harry Marks? Ele tinha o cabelo bem cortado, embora um pouco comprido, usava um fato azul-escuro, meias de seda e sapatos de couro genuíno. Os botões de punho de diamantes eram de bom gosto, bem como o relógio de pulso de ouro, com correia de pele de crocodilo. E usava um anel de brasão no dedo mindinho da mão esquerda. Ela perguntou em voz baixa:

—  Fugiu mesmo do restaurante sem pagar?

—  Bem..., fugi —  admitiu ele em tom de conspiração.

—  Mas porquê?

—  Porque se tivesse lá ficado mais um minuto que fosse a ouvir Rebecca Maugham-Flint a falar dos seus malditos cavalos, teria sido incapaz de resistir ao impulso de estrangulá-la.

Margaret riu-se. Conhecia Rebecca Maugham-Flint, uma rapariga grande e desengraçada, muito entusiástica e com voz estentórea. Seria difícil imaginar uma companheira de jantar menos apropriada para o atraente Mr. Marks.

O agente reapareceu e pegou na sua xícara de chá vazia.

—  Sente‑se melhor, Lady Margaret?

Pelo canto do olho, ela viu Harry Marks reagir ao seu título.

—  Muito melhor, obrigada —  respondeu. Por momentos, conversando com Harry, esquecera‑se dos seus próprios problemas, mas naquele momento lembrou‑se de tudo o que tinha que fazer. —  Os senhores foram muito simpáticos —  continuou — , mas agora tenho de ir andando.

—  Não é preciso apressar‑se —  disse o agente. —  O pai da menina, o Sr. Marquês, já vem a caminho.

O coração de Margaret parou.

—  Como é que ele sabe onde estou?

—  Ontem, ao fim da tarde, foi distribuído um aviso com a sua descrição e eu li‑o quando entrei ao serviço —  explicou o jovem polícia, orgulhoso. —  As instruções eram para se avisar o Sr. Marquês imediatamente. Assim que aqui chegámos, eu telefonei‑lhe.

—  Eu não vou esperar por ele —  disse Margaret, levantando‑se com o coração a bater descompassadamente. —  Já é dia.

O agente ficou aflito e virou‑se para o balcão.

—  Meu sargento, a menina não quer esperar pelo pai.

—  Fugir de casa com a sua idade não é crime —  disse Harry Marks.

—  Se quiser, basta ir‑se embora.

O sargento levantou‑se e deu a volta ao balcão.

—  Ele tem razão. Pode ir‑se embora quando quiser. —  Sorriu. - Mas está descalça. Se quer mesmo ir‑se embora, ao menos deixe‑nos chamar‑lhe um táxi.

—  Está bem —  respondeu ela ao simpático sargento. —  Obrigada.

Ele abriu uma porta.

—  Ficará mais confortável nesta sala enquanto espera pelo táxi. - Acendeu a luz.

Margaret entrou na pequena divisão, que tinha umas cadeiras vulgares, uma lâmpada nua pendendo do tecto e uma janela com grades. Não percebia como é que o sargento considerava aquilo mais confortável do que a sala exterior e voltou‑se para lhe dizer isso mesmo.

A porta fechou‑se na sua cara e ela ouviu uma chave rodar na fechadura.

Encostou‑se à porta, cabisbaixa e frustrada. Tinha perdido: a sua fuga redundara em desastre, não se alistaria no SAT nesse dia, iria embarcar no Clipper da Pan American e voar para Nova iorque, fugindo à guerra. Depois de tudo por que passara, parecia‑lhe desesperadamente injusto.

 

EDDIE DEAKIN fez uma última vistoria ao Clipper. Os quatro motores Wright Cyclone, de mil e quinhentos cavalos, brilhavam de óleo. Todas as cinquenta e seis velas haviam sido substituidas. Eddie fechou a escotilha e desceu a escada. Enquanto o avião era colocado novamente na água, ele iria tirar o fato‑macaco, tomar um banho e vestir o uniforme de voo, preto, da Pan American.

O sol brilhava quando ele saiu da doca e subiu para o hotel onde a tripulação se alojava durante a escala em Inglaterra. As tripulações do Clipper eram uma elite, o pessoal mais competente da companhia aérea, e ele poderia orgulhar‑se disso para o resto da vida.

No entanto, planeava despedir‑se em breve. Tinha trinta anos e casara no ano anterior com Carol‑Ann, que estava grávida. Voar era bom para um homem solteiro, mas ele não tencionava passar a vida longe da mulher e dos filhos. Andava a poupar e já possuía quase o suficiente para começar um negócio por conta própria. Tinha um contrato‑promessa para comprar um terreno perto de Bangor, no Maine, que daria um aeródromo perfeito. Ele faria a manutenção de aviões e venderia combustível e, eventualmente, poderia comprar uma avioneta para alugar. Em segredo, sonhava fundar uma companhia aérea, como o pioneiro Juan Trippe, fundador da Pan American.

Entrou no Langdown Lawn Hotel. Era uma sorte para o pessoal da Pan American ter um hotel tão simpático a pouco mais de um quilómetro das instalações da Imperial Airways.

No átrio, encontrou o segundo‑maquinista, Desmond Finn, conhecido por Mickey, que falava ao telefone e, quando viu Eddie, lhe entregou o auscultador, dizendo:

—     Uma chamada para ti.

—     Estou —  disse Eddie.

—     Fala Edward Deakin?

Eddie franziu a testa. Não conhecia a voz, e ninguém o tratava por Edward.

—     Sim, aqui Eddie Deakin. Quem fala?

—     O meu nome é Vincini e tenho aqui a sua mulher para falar consigo. Espere.

O coração de Eddie falhou uma batida: havia algum problema. Logo a seguir, ouviu a voz dela.

—     Eddie?

—     Olá, querida, o que é que se passa? —  Ouviu‑a desfazer‑se em lágrimas. —  Carol‑Ann, acalma‑te. Diz‑me o que é que se passa, amor.

—     Uns homens... Foram lá a casa.

Eddie ficou gelado de pavor.

—     Que homens? O que é que fizeram?

—     Obrigaram‑me a entrar num carro.

—     Meu Deus, quem são eles? Fizeram‑te mal?

—     Eu estou bem... Mas, Eddie, estou tão assustada! Eddie, tens de fazer o que eles querem.

Eddie nem hesitou.

—     Eu faço, mas...

—     Prometes?

—     Prometo!

—     Graças a Deus. —  Depois, ela deu um grito sobressaltado.

—     Carol‑Ann! O que é? Estás bem?

Não obteve resposta, e depois Vincini voltou ao telefone.

—     Preste atenção, Edward...

—     Não, preste você atenção, seu bandalho —  gritou Eddie, enraivecido. —  Se lhe fizer mal, eu mato‑o, juro. Vou atrás de si e torço‑lhe o pescoço. Entendido?

Houve uns segundos de hesitação, como se o homem do outro lado da linha não esperasse tal tirada, mas depois este disse:

—     Não se arme em duro, está longe demais. Tome atenção: vai receber instruções de um passageiro a bordo do avião chamado Tom Luther. E é melhor seguir as instruções dele à risca se quer voltar a ver a sua mulher.

—  Como é que eu...

—  E outra coisa: não avise a Polícia. Não lhe serve de nada, mas se os chamar, eu violo a sua mulher só por maldade. —  A chamada desligou‑se.

 

 

HARRY MARKS era o homem com mais sorte do Mundo.

A sua mãe sempre lho dissera. Embora o pai tivesse morrido na Grande Guerra, ele tivera a sorte de ter uma mãe forte e decidida para o educar. Era mulher‑a‑dias, e durante toda a Depressão nunca lhe faltara trabalho. Viviam num prédio em Battersea, com uma torneira de água fria em cada patamar da escada e retretes lá fora, mas tinham bons vizinhos, pessoas que se entreajudavam em tempos difíceis. Harry tinha jeito para escapar às dificuldades. Na escola, quando os miúdos eram castigados, a régua do professor partia‑se quando estava mesmo a chegar a vez de Harry. Se Harry caísse em frente de uma carruagem de cavalos, eles passariam sobre ele sem lhe tocar.

Fora o seu amor às jóias que fizera dele um ladrão.

Durante a adolescência, adorava passear nas ruas opulentas do West End londrino mirando as montras dos joalheiros. Ficava encantado com os diamantes e as pedras preciosas a brilharem nos seus estojos de veludo escuro sob as luzes. Apreciava as jóias pela sua beleza, mas também por simbolizarem um tipo de vida que ele só conhecia dos livros uma vida de grandes casas de campo com enormes relvados e campos de ténis.

Trabalhara como aprendiz num joalheiro, mas aborrecera‑se e despedira‑se passados seis meses. Alargar alianças de donas de casa obesas não o atraía. Mas aprendera a distinguir os rubis das granadas, as pérolas naturais das de cultura. Também descobrira a diferença entre um desenho gracioso e uma peça de ostentação e mau gosto, e essa capacidade de reconhecimento ateara ainda mais o seu desejo de belas jóias e do estilo de vida que elas simbolizavam.

Acabara por descobrir uma maneira de satisfazer ambos os seus desejos servindo‑se de raparigas como Rebecca Maugham‑Flint.

Conhecera‑a em Ascot. Muitas vezes, aproveitava as corridas de cavalos para se insinuar junto de herdeiras ricas. O ar livre e as multidões tornavam‑lhe possível pairar entre dois grupos de jovens espectadores, de modo que cada um deles pensasse que ele fazia parte do outro grupo. Rebecca era uma rapariga alta, com um grande nariz e horrorosamente vestida. Nenhum dos jovens em seu redor lhe ligava importância, e ela ficara pateticamente grata a Harry por conversar com ela.

Andava a sair com ela havia três semanas e, dado que ele não a cortejava oficialmente, os pais dela não haviam sentido necessidade de investigar o seu passado nem haviam questionado as vagas mentiras que ele contava acerca de uma casa de campo no Yorkshire, um pequeno colégio particular na Escócia e uma mãe inválida que vivia no Sul de França. Harry descobrira que mentiras vagas eram comuns na alta sociedade.

Por causa de Rebecca, ele fora convidado para uma festa de fim‑de‑semana numa casa no Kent, onde jogara crieket e roubara dinheiro e alguns talheres de prata aos anfitriões. Ela também o levara a vários bailes, onde ele dera largas aos seus talentos de carteirista e esvaziador de bolsos. Na sua opinião, não havia nada de imoral naquilo que fazia. As pessoas a quem roubava não mereciam a sua riqueza, muitas delas nunca tinham trabalhado na vida. Roubá‑las era como matar nazis: um serviço público, e não um crime.

Andava naquela vida havia dois anos e sabia que não podia durar sempre. O mundo da alta sociedade britânica era vasto, mas limitado, e ele acabaria por ser desmascarado. A guerra fora declarada numa altura em que estava a pensar mudar de vida.

Mas não fazia tenções de ingressar na tropa como soldado raso: comida intragável, roupas ordinárias e disciplina rígida não eram para ele. Decidira alistar‑se na RAF como oficial; ainda não sabia bem como, mas havia de arranjar maneira —  ele tinha sorte nessas coisas.

Entretanto, decidira aproveitar‑se de Rebecca para ganhar acesso a mais uma casa rica antes de a deixar. Tinham começado a noite numa recepção em casa de Sir Simon Monlford, um editor rico, no bairro elegante de Belgravia.

Harry passou algum tempo a conversar com Lydia Moss, a filha gorducha de um fidalgo escocês. Desajeitada e solitária, ela era precisamente o tipo de rapariga mais vulnerável aos encantos de Harry, e ele passou vinte minutos a cortejá‑la, mais ou menos por hábito. Depois, foi ter com Rebecca para a manter dócil e finalmente decidiu que chegara a altura de dar o golpe.

Pediu desculpas e saiu da sala. Ao subir as escadas, sentiu a descarga emocionante de adrenalina que sempre o invadia quando estava prestes a executar um trabalho. Saber que ia roubar os seus anfitriões, correndo o risco de ser apanhado com a boca na botija e desmascarado, enchia‑o de medo e excitação.

Chegou ao andar superior e seguiu pelo corredor até à parte da frente da casa. A porta mais afastada dava provavelmente para os aposentos principais. Harry abriu‑a e deparou com um quarto grande com cortinas floridas e uma colcha cor‑de‑rosa na cama. Como de costume, era um conjunto de divisões, e as cores indicavam que se tratava dos aposentos de Lady Monkford. Uma vista de olhos rápida revelou um quarto de vestir de um dos lados, também decorado a cor‑de‑rosa, outro quarto de cama, mais pequeno, com cadeiras verdes de cabedal e um quarto de vestir de homem. Harry descobrira que os casais da alta sociedade muitas vezes dormiam separados; ainda não concluíra se seria por serem menos lascivos que as classes operárias ou por se sentirem obrigados a dar uso às muitas divisões das suas grandes casas.

O quarto de vestir de Sir Simon estava mobilado com um pesado armário de mogno e uma cómoda a condizer. Harry abriu a gaveta de cima da cómoda, onde, dentro de um guarda‑jóias de cabedal, havia um sortido de alfinetes de gravata, barbas de colarinho e botões de punho. A maioria era bastante vulgar, mas o olho experiente de Harry deu com um belo par de botões de punho de ouro com pequenos rubis encastrados. Pô‑los no bolso. Junto do guarda‑jóias, estava uma carteira a abarrotar de notas de cinco libras. Harry ficou satisfeito com cinquenta libras. "Fácil", pensou.

Fechou a gaveta e passou ao quarto de Lady Monkford. Talvez ela tivesse safiras; Harry adorava safiras.

Estava uma bela noite e havia uma janela aberta. Olhando através dela, Harry viu que dava para uma varandinha com grades de ferro forjado. Passou rapidamente ao quarto de vestir e sentou‑se ao toucador, abrindo todas as gavetas e encontrando vários estojos e tabuleiros de jóias. Começou a investigá‑los à pressa. Estava a hesitar tirar um belo pendente quando ouviu a porta do quarto de cama a abrir‑se.

Ficou gelado, com um nó no estômago, os pensamentos num turbilhão.

A única porta do quarto de vestir dava para o quarto de cama, e de onde ele estava não via a porta deste. Ouviu‑a fechar‑se de novo e depois uma tosse feminina e passos leves no tapete. Inclinou‑se para o espelho e percebeu que conseguia ver para dentro do quarto de cama. Lady Monkford tinha entrado e dirigia‑se para o quarto de vestir; nem havia tempo para fechar as gavetas.

Harry estava rígido de pavor, mas já enfrentara situações semelhantes. Forçou‑se a respirar fundo, acalmando‑se, e depois levantou‑se, saiu pela porta e disse:

—  Ora esta!

Lady Monkford estacou a meio do quarto, levou a mão à boca e deu um gritinho. Uma cortina florida drapejou com a corrente de ar da janela aberta e Harry teve uma inspiração.

—  Ora esta! —  repetiu num tom deliberadamente estupefacto. Houve alguém que acabou de fugir pela sua janela.

Ela recuperou a voz.

—  O que é que quer dizer com isso? —  perguntou. —  E o que é que o senhor está a fazer no meu quarto?

Continuando a sua actuação, Harry dirigiu‑se àjanela e espreitou lá para fora.

—  Já se foi! —  exclamou.

—  Por favor, explique‑se!

Harry fez um sorriso radioso, assumindo uma personalidade juvenil e entusiasta de universitário jogador de râguebi —  um tipo com que ela devia estar familiarizada — , e começou a enfiar‑lhe o barrete.

—  Foi a coisa mais estranha que já vi —  disse ele. —  Eu estava no corredor quando reparei num tipo estranho a espreitar deste quarto. Ele viu‑me e voltou para dentro. Eu sabia que era o seu quarto porque tinha espreitado para cá quando andava à procura da casa de banho, e fiquei a pensar no que ele estaria aqui a fazer; não parecia nenhum dos seus criados e não era certamente um dos convidados. Por isso, vim perguntar‑lhe. Quando abri a porta, ele saltou pela janela. —  Depois, parajustificar as gavetas do toucador abertas, acrescentou: —  Acabo de ver no seu quarto de vestir e penso que não há dúvida de que ele estava à procura de jóias.

"Fui brilhante", pensou ele, admirado. "Devia ser actor!" Lady Monkford levou a mão à testa.

—  Ai que horror!

—  É melhor sentar-se —  disse Harry, solícito, levando-a até uma cadeira cor-de-rosa.

—  E pensar que, se você não o tivesse assustado, ele estaria aqui quando eu entrasse! —  Ela agarrou na mão de Harry, apertando‑a. - Estou‑lhe tão grata!

Harry abafou um sorriso: escapara mais uma vez. O ideal agora era ela manter tudo em segredo.

—  Ouça, peço‑lhe que não conte nada a Rebecca —  começou ele. —  Ela é muito nervosa e uma coisa destas pode afectá‑la durante semanas.

—  Semanas! —  Lady Monkford estava demasiado perturbada para se lembrar que a forte e grande Rebecca não era propriamente do tipo nervoso.

—     Vai ter de chamar a Polícia e isso tudo. O pior é que estraga a festa... —  continuou Harry.

—  Isso seria uma pena. Será mesmo preciso chamá‑los?

—     Bem... —  Harry escondeu a sua satisfação. —  Acho que depende do que o bandido roubou. Porque não damos uma vista de olhos?

—     Oh, meu Deus, claro, é melhor.

Entraram no quarto de vestir e ela teve uma expressão de desalento quando viu todas as gavetas abertas. Harry puxou‑lhe uma cadeira e ela sentou‑se e começou a verificar as jóias. Passados momentos, disse:

—  Parece‑me que não levou grande coisa.

—     Talvez eu o tenha surpreendido antes de ele começar —  comentou Harry.

—     Deve ter sido isso. Você é uma maravilha!

—     Se nada foi roubado, não é preciso dizer a ninguém.

—     Excepto a Sir Simon, claro —  disse ela.

—  Claro —  anuiu Harry, embora tivesse alimentado esperanças em contrário. —  Depois da festa, para não lhe estragar a noite.

—     Que boa ideia! —  exclamou ela, agradecida.

Era uma solução muito satisfatória, e Harry ficou imensamente aliviado, decidindo ir‑se embora enquanto estava a ganhar.

—  É melhor eu ir andando. Vou deixá‑la para recuperar o fôlego. - Baixou‑se rapidamente e deu‑lhe um beijo na cara. Ela foi tomada de surpresa e corou. Ele murmurou‑lhe ao ouvido: —  Acho que foi muito corajosa.

As mulheres de meia‑idade ainda eram mais fáceis do que as filhas, pensou ele, saindo do quarto. No corredor vazio, viu o seu reflexo num espelho e parou para ajustar o laço e sorrir, triunfante, para si próprio.

—  És um diabo, Harold —  murmurou.

A festa estava a chegar ao fim, e quando Harry voltou à sala, Rebecca perguntou‑lhe, irritada:

—     Onde é que esteve?

—     A conversar com a dona da casa —  replicou ele. —  Vamos andando?

Harry saiu da casa, levando no bolso os botões de punho do seu anfitrião e cinquenta libras em dinheiro.

Apanharam um táxi em Belgrave Square e foram até um restaurante em Piccadilly. Harry adorava bons restaurantes: geralmente, davam‑lhe uma sensação profunda de bem‑estar. Mas naquela noite, não. Havia qualquer coisa de errado com a sua disposição e ele em breve decidiu que o problema era Rebecca, que estava amuada. Talvez depois de andar com Harry há três semanas ela estivesse a interrogar‑se porque é que ele ainda não tinha tentado "ir longe demais". A verdade era que Harry não conseguia fingir sentir‑se atraído por ela. Conseguia encantá‑la, flirtar, fazê‑la rir, fazê‑la gostar dele, mas não conseguia desejá‑la.

Ele começou a sentir‑se agitado. Planeara acabar tudo com Rebecca naquela noite com cuidado, mas de repente não conseguia aguentar a ideia de passar sequer o resto da noite com ela. Olhou para a sua cara zangada e começou a detestá‑la.

Depois da sobremesa, Harry pediu o café e foi à casa de banho. O bengaleiro era mesmo junto da casa de banho dos homens, perto da saída, e não se via da mesa deles. Harry sentiu‑se invadido por um impulso irresistível: pedindo o chapéu, deu uma gorjeta à menina do bengaleiro e saiu porta fora.

Pouco tempo depois, estava confortavelmente sentado a uma mesa de uma cave no Soho, a beber um whisky e a ouvir uma banda de jazz americana, reflectindo se havia de fazer um passe à vendedora de cigarros. Ainda não tinha decidido quando o irmão de Rebecca entrou no clube.

 

NA MANHÃ seguinte, Harry estava sentado numa cela na cave do edifício do tribunal, deprimido e com remorsos, à espera de ser levado à presença do juiz. Estava bem arranjado!

Fugir do restaurante daquela maneira fora de uma parvoíce incrível. Rebecca tinha feito uma cena, o gerente chamara a Polícia, a família... Era exactamente o tipo de sururu que Harry normalmente tinha um extremo cuidado em evitar. Em todo o caso, ter‑se‑ia safado se não fosse o azar inacreditável de dar de caras com o irmão de Rebecca umas horas mais tarde no clube.

Harry seria presente ao juiz de instrução criminal nesse dia, mas não seria ainda julgado; tratava‑se só de uma audiência preliminar.

Acabaria por ser condenado, claro. As provas contra ele eram irrefutáveis: o chefe‑de‑mesa confirmaria a história de Rebecca, e Sir Simon Monkford identificaria os botões de punho.

Mas ainda havia pior: Harry fora interrogado por um inspector vivaço do departamento criminal, que lhe dissera:

—  Nos últimos dois anos, temos recebido queixas estranhas de famílias abastadas sobre jóias perdidas. Roubadas, não, claro, apenas desaparecidas. Os queixosos têm a certeza absoluta de que não podem ter sido roubadas, porque as únicas pessoas que poderiam tê‑lo feito eram os seus convidados.

Harry ficara calado durante todo o interrogatório, mas interiormente sentia‑se enjoado. Tinha a certeza de que a sua carreira havia passado despercebida até então, e ficara chocadíssimo ao descobrir o contrário: havia um espesso dossier acerca dele.

Compreendeu que o esperava uma longa estada na prisão, a que se seguiria o recrutamento forçado na tropa, o que era mais ou menos o mesmo. Só de pensar nisso gelava‑se‑lhe o sangue nas veias. Só tinha uma hipótese: precisava de persuadir o magistrado a conceder‑lhe liberdade sob caução e depois desaparecer. Desaparecer não seria fácil, mas a alternativa causava‑lhe arrepios. "Hão‑de dar‑me caução", pensou para se alegrar. "Já estive em outros apertos e sempre tive sorte."

Concederam‑lhe uma caução de cinquenta libras.

Uma onda de alívio invadiu‑o, enfraquecendo‑lhe as pernas. Estava livre!

Harry decidiu não ir a sua casa e apanhou o autocarro para casa da mãe, em Battersea. Enquanto ela punha a chaleira ao lume, Harry foi até ao seu quarto, puxou a mala de debaixo da cama e contou as suas poupanças. Dois anos de larápio haviam‑lhe rendido duzentas e quarenta e sete libras. Além disso, tinha um passaporte diplomático americano.

Folheou‑o pensativamente. Lembrou‑se de que o roubara de uma secretária em casa de um diplomata em Kensington. Reparara que o nome dele era Harold e que a fotografia se parecia vagamente consigo próprio, por isso enfiara‑o no bolso.

"A América", pensou. Ele sabia imitar o sotaque americano, e havia milhares de raparigas americanas mesmo à espera de romance. No seu país, já só havia a prisão e a tropa.

Tinha passaporte e dinheiro, um fato novo no armário da mãe e podia comprar umas camisas. Estava a cento e vinte quilómetros de Southampton. Podia desaparecer ainda nesse dia, como num sonho.

A mãe chamou da cozinha:

—  Harry, queres uma sanduíche de presunto?

—  Sim, se faz favor. —  Foi até à cozinha e sentou‑se à mesa, onde ela lhe colocou uma sanduíche em frente. Mas ele não lhe pegou. - Vamos para a América, mãe.

Ela soltou uma gargalhada.

—  Para a América, eu? Só me faltava essa!

—  Estou a falar a sério. Eu vou.

Ela ficou séria.

—  Isso já não é para mim, filho, estou demasiado velha. —  Olhou em redor pela cozinha. —  Isto não é grande coisa, mas é onde me sinto bem.

Harry não esperara, na verdade, que ela concordasse, mas sentiu‑se acabrunhado. A mãe era a única coisa que ele tinha.

—  E que é que vais fazer para lá? —  perguntou ela.

—  Gostava de me alistar na Força Aérea e aprender a pilotar aviões.

—  E deixam‑te?

—  Lá não se preocupam com as classes sociais, desde que se tenha miolos.

Então, ela ficou mais alegre e sentou‑se, enquanto Harry comia a sanduíche. Quando ele acabou, sacou o dinheiro e contou cinquenta libras.

—  Para que é isso? —  perguntou ela. Era o que ela ganhava em dois anos a limpar escritórios.

—  Pode dar‑lhe jeito —  explicou ele. —  Aceite, mãe. Eu quero que aceite.

—  Então, vais mesmo? —  perguntou ela, guardando o dinheiro.

—  Vou hoje para Southampton e apanho o barco.

Ela estendeu a mão sobre a mesa e pegou na dele.

—  Boa sorte, filho.

— Eu mando‑lhe mais dinheiro de lá —  disse ele, apertando‑lhe a mão carinhosamente.

—  Voltas para ver a tua velhota um dia destes, não voltas? —  Ela tinha os olhos marejados de lágrimas.

—  Claro que volto, mãe, claro.

 

HARRY olhou para o seu reflexo no espelho do barbeiro. O fato azul, que lhe custara treze libras em Saville Row, a rua dos alfaiates chiques de Londres, assentava‑lhe lindamente e ia bem com os seus olhos azuis. O colarinho mole da sua camisa parecia americano. O barbeiro escovou‑lhe os ombros do casaco, Harry pagou e saiu.

Subiu as escadas de mármore da cave e emergiu no átrio ornamentado do South‑Western Hotel, de Southampton, que estava a abarrotar de gente. Era ali o ponto de partida para a maioria das travessias transatlânticas de navio, e havia milhares de pessoas a tentarem fugir de Inglaterra.

Harry tentara arranjar lugar num paquete, mas estavam todos reservados com semanas de antecedência. Estava quase a desistir quando um agente de viagens mencionara o Clipper.

Um bilhete de ida custava noventa libras. Noventa libras! Era uma loucura, mas Harry comprara o bilhete; estava disposto a pagar qualquer preço para sair do país. E o avião era sedutoramente luxuoso: era champanhe todo o tempo até Nova iorque! Exactamente o tipo de extravagância louca que Harry adorava. Olhou para o seu relógio, um Patek Philippe roubado a um membro da casa real. Ainda tinha tempo para um café rápido.

Dirigiu‑se para a sala e, enquanto bebia o seu café, entrou uma mulher extraordinariamente bonita. Era uma loura perfeita, com um vestido de cinturinha de vespa de seda creme com bolas vermelho‑alaranjadas. Teria pouco mais de trinta anos, cerca de dez anos mais velha do que Harry, o que não o impediu de lhe sorrir quando ela olhou para ele. Ela sentou‑se na mesa ao lado da sua.

Logo a seguir, juntou‑se‑lhe um homem de bíazer. Ouvindo a conversa deles, Harry percebeu que ela era inglesa, mas ele, americano. Harry escutou atentamente, recordando o sotaque. Ela chamava‑se Diana, e ele, Mark. Viu o homem tocar no braço dela e ela inclinar‑se. Estavam apaixonados e só tinham olhos um para o outro. Harry sentiu uma pontinha de inveja e olhou para o outro lado.

Nunca tinha andado de avião e estava apreensivo. Voar sobre o Atlântico parecia‑lhe muito tempo sem terra por baixo!

Enquanto ouvia Mark e Diana, treinou‑se a aparentar descontracção: não queria que os outros passageiros do Clipper percebessem que ele estava nervoso. "Chamo‑me Harry Vandenpost", pensou. "Um jovem americano rico, regressando a casa devido à guerra na Europa. Neste momento, não trabalho, mas suponho que terei de arranjar qualquer coisa em breve. O meu pai faz investimentos, e a minha mãe, Deus a tenha em descanso, era inglesa, e eu estudei cá. Já andei umas vezes de avião, claro, mas este é o meu primeiro voo transatlântico, podem crer. Está mesmo a apetecer‑me isto."

Quando acabou o café, já praticamente perdera o medo.

 

EDDIE DEAKIN desligou o telefone e olhou em redor; o átrio estava vazio e ninguém ouvira nada. Olhou para o telefone que o mergulhara naquele horror e detestou‑o. Depois, virou‑se lentamente.

Quem seria aquele Vincini? E os seus cúmplices? Para onde teriam levado Carol‑Ann? Porque a teriam raptado? O que é que poderiam querer dele? As perguntas zuniam‑lhe na cabeça como moscas.

Seriam simples lunáticos? Não; fora necessário um planeamento cuidadoso para descobrirem onde Eddie estaria e como contactá‑lo. O mais provável era serem gangsters que queriam qualquer coisa dele. Qualquer coisa, calculou, que ele não quereria fazer. Mas o quê? Tinha de ser relacionado com o Clipper.

Eddie queria do fundo do seu ser falar à Polícia, mas estava aterrado. Vincini dissera: "Não avise a Polícia. Não lhe serve de nada, mas se os chamar, eu violo a sua mulher só por maldade."

Ele cerrou os punhos, mas a única coisa que podia esmurrar era a parede. Com um gemido de desespero, saiu lá para fora aos tropeções. Eddie era um homem simples que nascera numa quinta perto de Bangor. O pai era um pobre agricultor com uns hectares de batatas. A Nova Inglaterra não era um bom sítio para se ser pobre: os invernos eram longos e terrivelmente frios. Eddie sonhara em encontrar tesouros enterrados nos bosques: uma arca de pirata cheia de ouro. Nos seus sonhos, a delapidada casa da quinta transformava‑se num lugar de calor, conforto e felicidade.

Nunca encontrara tesouros enterrados, mas fizera os seus estudos, caminhando todos os dias os oito quilómetros até à escola. Ele gostava da escola, e a professora, Mrs. Maple, gostava dele, porque ele queria sempre saber como as coisas funcionavam. Anos depois, fora a própria Mrs. Maple quem escrevera ao congressista que arranjara a Eddie a possibilidade de fazer o exame de admissão à Academia Naval de Anápolis.

Fora ali que Eddie tivera pela primeira vez consciência de como os outros o julgavam: percebera que era empenhado, determinado, inflexível e trabalhador. As pessoas gostavam dele porque podiam contar com ele para fazer aquilo que prometia fazer.

Eddie fizera o curso de guarda‑marinha e fora destacado para o treino de pilotagem de hidroaviões. Considerava a Marinha dos EUA um paraíso. Conseguira mandar dinheiro para os seus pais consertarem o telhado da casa e comprarem um fogão novo.

Estava há quatro anos na Marinha quando a mãe morrera, seguindo‑se‑lhe o pai logo cinco meses depois. Eddie saira da Marinha e arranjara um emprego bem pago na Pan American Airways System.

Entre voos, trabalhava na velha casa, instalando canalizações, electricidade e uma caldeira. Então, conhecera Carol‑Ann e pensara que em breve a casa reverberaria com o riso de crianças e que finalmente o seu sonho se tornaria realidade.

Em vez disso, tornara‑se num pesadelo.

 

 

As PRIMEIRAS palavras que Mark Alder dirigiu a Diana Lovesey foram:

—  Meu Deus, você é a coisa mais agradável que eu vi hoje.

As pessoas estavam sempre a fazer‑lhe aquele tipo de elogio. Ela era bonita e alegre e gostava de vestir‑se bem. Naquela noite, envergava um vestido comprido azul‑turquesa e estava deslumbrante.

Encontraram-se no Midland Hotel, em Manchester, num jantar dançante. Não se lembrava se era da Câmara de Comércio, da noite das mulheres dos mações ou de recolha de fundos para a Cruz Vermelha; as pessoas eram sempre as mesmas em todos esses bailes. Dançara com a maior parte dos Sócios do seu marido, Mervyn, que a tinham apertado e pisado os pés Escandalizara-os a todos e envergonhara o marido ao ensinar ojitterbug ao vice‑presidente da câmara. Depois, sentindo necessidade de um intervalo, escapara‑se até ao bar do hotel para comprar cigarros.

Mark estava lá sozinho, tomando um conhaque, e olhara para Diana como se ela trouxesse o Sol consigo. Era um homem pequeno e elegante com um sorriso juvenil e sotaque americano. A sua observação pareceu espontânea a Diana, e ele era encantador, por isso ela sorriu‑lhe, mas achou melhor não responder. Comprou cigarros e voltou para o baile.

Ele devia ter perguntado ao barman quem ela era e descoberto a sua morada, porque no dia seguinte Diana recebera um bilhete seu em papel de carta do Midland Hotel. Na realidade, era um poema, que começava assim:

 

Gravado no meu coração, tenho o retrato do teu sorrir

Encastrado sempre no meu pensamento

Não há dó,; nem tempo, nem mágoa que o possam demolir.

 

Fizera‑a chorar. Ela chorara por tudo aquilo por que ansiara e nunca tivera. Chorara porque vivia numa suja cidade industrial, com um marido que detestava férias. Chorara porque o poema fora a única coisa terna e romântica que lhe acontecera nos últimos cinco anos. E chorara porque já não estava apaixonada por Mervyn.

Depois, tudo acontecera muito rapidamente.

No dia seguinte, Diana ia a pé pela rua onde vivia, no belo subúrbio de Altrincham, e, ao chegar perto da sua casa, ficara espantada e perturbada ao ver o encantador americano caminhar na sua direcção, fingindo estar a ver a paisagem.

Ela corara desesperadamente e a sua pulsação acelerara‑se. Ele também ficara surpreendido e parara, mas Diana continuara a andar e, ao passar por ele, dissera: "Amanhã de manhã, na biblioteca", e não esperara resposta, mas —  como viria a descobrir —  ele era sagaz e tinha sentido de humor, e perguntara: "Em que secção?" E Diana respondera a primeira coisa que lhe viera à cabeça: "Biologia."

Na manhã seguinte, ele estava sentado a uma secretária, na biblioteca, debaixo de um letreiro que dizia SILêNCIO. Quando ela disse "Olá", ele pôs um dedo nos lábios, apontou para uma cadeira e escreveu‑lhe num bilhete: "Adoro o seu chapéu."

Ela tirou uma caneta da carteira e escreveu: "Adoro o seu poema."

E ele replicou: "Adoro‑a a si."

"Que loucura!", pensou ela, mas escreveu: "Eu nem sequer sei o seu nome!"

Ele deu‑lhe um cartão‑de‑visita: chamava‑se Mark Alder e vivia em Los Angeles. Na Califórnia!

Nesse dia, ela ficara a saber que Mark escrevia guiões para comédias radiofónicas, embora Diana nunca tivesse ouvido falar dos artistas para quem ele escrevia: Jack Benny, Fred Allen, Amos 'n' Andy. Mark tirara umas férias prolongadas e andava à procura das suas origens: a sua família era oriunda do porto de Liverpool, a poucos quilómetros a oeste de Manchester. Era pouco mais alto que Diana, mais ou menos da mesma idade e tinha olhos cor de avelã e sardas. E era um gosto estar com ele. Era inteligente, divertido e encantador. Gostava de Mozart, mas conhecia Louis Armstrong. Acima de tudo, gostava de Diana.

Ela achava estranho que tão poucos homens apreciassem realmente as mulheres. A maior parte dos que ela conhecia bajulavam‑na, tentavam tocar‑lhe, mas não a apreciavam na verdade. Nunca ouviam o que ela dizia e não a conheciam minimamente. Mark era muito diferente.

No dia a seguir a terem‑se encontrado na biblioteca, ele alugou um carro e foram até à vila costeira de Lytham St. Anne's munidos de uma mala. Depois de um piquenique na praia, alojaram‑se num hotel.

Passaram a tarde na cama e depois foram‑se embora, dizendo na recepção que tinham mudado de ideias ejá não passavam a noite. Mark pagou pensão completa para evitar atritos. Deixou‑a numa estação de comboios antes de Altrincham para ela chegar a casa de comboio, como se tivesse passado o dia em Manchester. Fizeram aquilo todo o abençoado Verão.

No dia em que foi declarada a guerra, ele disse‑lhe que ia voltar para a América.

—  E eu? —  chorou ela. Era como se fosse o fim do Mundo.

Foi então que ele puxou de um envelope e lho entregou.

—  Estão aqui dois bilhetes —  disse solenemente.

—  Dois bilhetes... —  repetiu ela, sentindo o coração apertado.

—  Vem comigo, Diana —  disse ele, pegando‑lhe na mão. —  Voamos até Nova iorque, depois vamos a Reno para te divorciares e em seguida casamos na Califórnia. Amo‑te.

Ela ficou estranhamente assustada e não conseguia articular palavra.

—  Podíamos ter filhos —  acrescentou Mark.

Ela estava quase a chorar.

—  Pergunta‑me outra vez —  sussurrou.

—  Amo‑te. Queres casar comigo?

—  Quero, quero... —  respondeu ela, sentindo‑se já a voar.

 

ELA TINHA de dizer a Mervyn nessa noite.

Era segunda‑feira, e na terça ela tinha de ir para Southampton com Mark, pois o Clipper largava na quarta.

Quando chegou a casa na segunda‑feira à tarde, sentia‑se como se estivesse no ar, mas quando entrou, a sua euforia evaporou‑se. Como havia de dizer‑lhe? O que é que ele diria?

Era ela que preparava as refeições de Mervyn; ele gostava que fosse a mulher a servi‑lo. Naquele dia, era rosbife frio que sobrara do assado de domingo. Diana pôs um avental e começou a descascar batatas para fritar. Quando pensou na fúria que ele iria sentir, teve um arrepio e cortou um dedo.

"De que é que eu tenho medo?", interrogou‑se, enrolando o dedo numa compressa. "Ele não me mata, nem pode impedir‑me."

Mas isso não lhe dava consolação.

Foi pôr a mesa. Diana era a segunda mulher de Mervyn. A primeira fugira havia sete anos com outro homem, levando os dois filhos do casal. Mervyn divorciara‑se tão depressa quanto possível e pedira Diana em casamento assim que o divórcio se tornara definitivo. Na altura, Diana tinha vinte e oito anos, e ele, trinta e oito. Ele era atraente, másculo e próspero e adorava‑a. O presente de casamento que lhe dera fora um colar de diamantes.

Havia poucas semanas, no quinto aniversário de casamento, dera‑lhe uma máquina de costura. Quando Diana viu a máquina de costura, achou que atingira o limite da sua paciência: estavam juntos havia cinco anos e ele não reparara que ela nunca costurava.

E, no entanto, Mervyn era muito inteligente. Era engenheiro e tinha uma fábrica que produzia todo o tipo de rotores —  desde ventoinhas para sistemas de arrefecimento até enormes hélices para navios. Sempre tivera sucesso, mas saíra‑lhe a sorte grande quando começara a produzir hélices de avião. Voar era a sua paixão e tinha um avião próprio, um Tiger Moth, num aeródromo perto da vila. Quando o Governo começara a expandir a Força Aérea, há dois ou três anos, havia poucas empresas capazes de produzir hélices curvas de aço, e a de Mervyn era uma delas. Desde então, o negócio prosperara.

Ela sabia que Mervyn gostava dela, mas não reparava nela. Para ele, Diana não passava de uma pessoa rotulada de "mulher". Nunca a consultava para nada: dado que ela não era nem mulher de negócios nem engenheira, nunca lhe ocorrera que tivesse cérebro.

Infelizmente, Diana não percebia nada de física. Sabia muito de música, literatura e história, mas Mervyn não se interessava muito por cultura, embora apreciasse cinema e música de dança. Portanto, não tinham nada sobre que conversar.

Poderia ter sido diferente se tivessem filhos, mas Mervyn já tinha dois da primeira mulher e não queria mais. A irmã de Diana, que vivia em Liverpool, tinha duas gémeas amorosas, e Diana dava largas ao seu instinto maternal com elas.

Ouviu o carro de Mervyn a parar lá fora. Era um ruído familiar, mas naquela noite parecia‑lhe agoirento, como o rugido de um animal selvagem. Com mãos trémulas, Diana pôs a frigideira ao lume. Mervyn entrou na cozinha. Era extraordinariamente atraente: tinha laivos de cinzento no cabelo que ainda o tornavam mais distinto; era alto e não engordara, como a maior parte dos seus amigos.

Diana estava aterrorizada só de pensar que ele visse a sua expressão de comprometida e perguntasse o que se passava. Ele deu‑lhe um beijo na boca e, envergonhada, ela retribuiu.

"Não vou dizer‑lhe já", decidiu.

As batatas estavam a fritar, e entretanto ela pôs manteiga no pão e fez um bule de chá. Continuava trémula, mas escondeu‑o. Mervyn lia o jornal e nem lhe prestava atenção. Enquanto punha os pratos na mesa, Diana encheu‑se de coragem e balbuciou:

—  Tenho uma coisa para te dizer.

— O que é que fizeste ao dedo? —  perguntou ele, reparando na compressa.

Aquela pergunta prosaica desarmou‑a.

—  Nada de especial —  replicou. —  Cortei‑me a descascar as batatas.

Mervyn comeu avidamente, sem notar que algo se passava. Era impossível, claro, ele nem reparava nela. Ela estava simplesmente ali, tal como a mesa da cozinha. Não precisava de se preocupar; Mervyn não perceberia nada, a não ser que lhe dissesse.

Afinal, Diana não chegou a dizer a Mervyn que ia deixá‑lo.

Engoliu em seco, tomou fôlego e disse:

—  Vou‑me embora amanhã.

—  Para onde? —  perguntou ele, ligeiramente surpreendido.

—  Gostava de visitar Thea e as gémeas. Não sei quando terei outra oportunidade. Os comboios já não andam pontuais e o racionamento de gasolina começa na semana que vem.

—  Tens razão —  assentiu ele. —  É melhor ires enquanto podes. Ela ficou aliviada por ele aceitar a sua história.

 

NA QUARTA‑FEIRA de manhã, sentada na elegante sala do South‑Western Hotel, à espera do táxi que a levaria com Mark para o cais 108 das docas de Southampton, Diana sentia‑se livre e triunfante.

Estava apaixonada, ia casar‑se com Mark e teriam filhos. Mark regressava a casa e ela acompanhava‑o.

Escrevera um bilhete a Mervyn sem dizer nada do que queria dizer, não explicando como ele alienara gradualmente o seu amor por descuido e indiferença. "Querido Mervyn", escrevera ela. "Vou deixar‑te. Sinto que te tornaste frio em relação a mim e apaixonei‑me por outro homem. Quando leres isto, já estaremos na América. Lamento magoar‑te, mas em parte a culpa é tua." Não sabia como havia de despedir‑se, por isso assinou apenas Diana.

A princípio, pensara deixar o bilhete em casa, na mesa da cozinha, mas depois ficara obcecada com a ideia de ele vir a criar‑lhes problemas antes de eles saírem do país. Portanto, acabara por enviá‑lo pelo correio para a fábrica, aonde chegaria naquele dia.

Diana consultou o relógio de pulso —  um presente de Mervyn, que apreciava a pontualidade. Ela conhecia a rotina dele: perto do meio‑dia, dava uma vista de olhos pela correspondência antes de sair para o almoço. Devia estar agora a ler o bilhete, e pensar nisso fê‑la sentir‑se culpada e triste, mas também aliviada por estar a trezentos quilómetros de distância.

—  Chegou o táxi —  disse Mark. —  São horas.

Ela estava nervosa. Atravessar o Atlântico de avião! Pousou a xícara de café, levantou‑se e presenteou‑o com o seu melhor SorriSo.

—  Pois é —  disse alegremente. —  São horas de voar.

 

EDDIE estava no jardim do Langdown Lawn Hotel, interrogando-se se voltaria a ver a sua Carol‑Ann.

Ele estava a viver um pesadelo e sabia que tinha de desabafar com alguém, alguém que fosse de inteira confiança, alguém que guardasse segredo.

Pensou no comandante Baker, mas o primeiro dever de Baker era para com o avião e a segurança dos passageiros, e cumpria tudo à risca, por isso quereria logo entregar o caso à Polícia. Esse não servia.

Mais alguém? Claro, havia Steve Appleby.

Eddie e Steve tinham‑se conhecido em Anápolis; mais tarde, haviam estado ambos em Pearl Harbor. Eddie fora padrinho de casamento de Steve com Nella, e no ano anterior Steve retribuíra a honra no casamento de Eddie. Steve continuava na Marinha, prestando serviço nos estaleiros navais de Portsmouth, New Hampshire.

Além do mais, Steve era um jeitoso. Uma licença de fim‑de‑semana, um par de bilhetes para o grande jogo —  ele arranjava‑os quando mais ninguém o conseguia. Eddie decidiu contactá‑lo.

Correu de volta ao hotel e deu o número da base naval à proprietária, que iria avisá‑lo ao quarto quando a chamada chegasse.

Eddie despiu o fato‑macaco, lavou as mãos e a cara e vestiu uma camisa lavada e as calças do uniforme. As actividades rotineiras geralmente acalmavam‑no, mas ele sentia‑se fervilhante de impaciência.

Estava a fazer a mala quando a proprietária bateu à porta. Eddie precipitou‑se escada abaixo e pegou no telefone. Falou com a telefonista da base, a quem pediu:

—  Queria falar com o tenente Appleby, por favor.

—  Importa‑se de me dizer quem fala?

—  Eddie Deakin.

A telefonista deixou o seu tom formal.

—  Ah, olá, Eddie. Você foi o padrinho de Steve, não foi? Daqui fala Laura Gross, conhecemo‑nos no casamento. Steve não está cá, mas posso ligar a NelIa, que está no secretariado.

—  Óptimo, obrigado. —  Eddie não podia contar a NelIa, claro, mas podia descobrir onde estava Steve.

Finalmente, ouviu a voz dela.

—  Estou?

—  Nelia, fala Eddie Deakin. Estou a telefonar de Inglaterra. Quando é que achas que o Steve volta?

—  A falar de Inglaterra? Meu Deus! Steve volta hoje, não sei bem a que horas. Pareces muito abalado, Eddie. Passa‑se alguma coisa?

—  Eu... Talvez ele possa falar‑me para aqui se chegar a tempo. - Deu a Nella o número do Langdown Lawn. —  Pede‑lhe para me falar, é importante. Eu vou estar aqui mais uma hora, depois tenho de ir para o avião; voltamos hoje para Nova iorque. Até logo. —  Desligou sem esperar resposta. Sabia que fora desagradável, mas estava demasiado perturbado para se importar com isso.

Eddie não sabia o que fazer, por isso subiu para o seu quarto, deixando a porta aberta para poder ouvir o telefone, e sentou‑se na cama. Estava quase a chorar.

Os tipos que tinham raptado Carol‑Ann queriam Eddie no avião —  isso era óbvio — , o que talvez fosse uma boa razão para ele não embarcar. Mas se ele ficasse, nunca se encontraria com Tom Luther nem descobriria o que eles queriam. Poderia frustrar os planos dos bandidos, mas perderia qualquer leve esperança de tomar o controle da situação.

O telefone tocou.

Quando corria para as escadas, Eddie ouviu a proprietária a dizer:

—  Quatro de Outubro? Deixe‑me ver se temos vagas.

Desanimado, voltou para trás, mas disse para consigo que, de qualquer maneira, Steve não poderia ajudá‑lo. Ninguém podia ajudá‑lo. Eddie teria de fazer fosse o que fosse que os raptores queriam; então, reaveria Carol‑Ann. Ninguém podia resolver o seu problema.

Com um peso no peito, pegou na mala e desceu vagarosamente a escada, parando no átrio à espera que o telefone tocasse. O comandante Baker desceu nessa altura e olhou, surpreendido, para Eddie.

—  Estás atrasado. É melhor vires de táxi comigo. —  O comandante gozava do privilégio de ter um táxi para ir até ao hangar.

—  Estou à espera de um telefonema —  explicou Eddie.

Uma sombra de aborrecimento toldou as feições do comandante.

—  Bem, já não podes esperar mais. Vamos embora.

Eddie forçou‑se a pegar na mala e a sair porta fora para o táxi.

 

 

PELA PRIMEIRA vez na sua vida, Nancy Lenehan estava a engordar. Na suite do Adelphi Hotel, em Liverpool, junto de um monte de bagagem, à espera de embarcar no paquete Orania, ela olhava, horrorizada, para o espelho.

Não era bonita nem feia, mas tinha feições perfeitas —  um nariz direito, cabelo escuro liso e um queixo bonito —  e estava atraente, com um tailleur cor de cereja de um grande costureiro e uma blusa de seda cinzenta. Porém, os botões do casaco, muito cintado como era moda, arrepanhavam as casas.

Aquilo era provavelmente o resultado de ter frequentado todos os melhores restaurantes parisienses durante o mês de Agosto. Suspirou: nunca fora obrigada a fazer dieta. Não que isso a preocupasse, porque, embora gostasse de comer bem, não era gulosa. O que a preocupava era que suspeitava de que se tratava de um sinal de envelhecimento: fazia naquele dia quarenta anos.

O pai de Nancy Lenehan fundara uma fábrica de sapatos em Brockton, no Massachusetts, no ano em que ela nascera, 1899. Encomendara sapatos caros de Londres e fizera cópias baratas. Trabalhando arduamente, tivera grande sucesso e, durante a Grande Guerra, conseguira o primeiro dos contratos militares, que ainda constituíam o seu principal mercado.

Nos anos 20, fundara uma cadeia de lojas, a Black's Boots, na Nova Inglaterra, que só vendia sapatos de fabrico próprio. Na altura da Depressão, introduzira um preço único de seis dólares e sessenta por cada par de sapatos, independentemente do modelo. A sua audácia deu dividendos e, enquanto muitos outros faliam, ele prosperou.

Os sapatos Black's eram baratos, mas resistentes, e o pai de Nancy, tal como ela própria, orgulhava‑se disso. Para ela, a qualidade dos sapatos que fabricavam justificava a grande casa de família em Back Bay, o grande Packard com motorista e as belas roupas. Ela não era como alguns dos meninos ricos que tomavam a riqueza herdada como um dado adquirido, e quem lhe dera poder dizer o mesmo do irmão.

Peter tinha trinta e oito anos, e quando o pai morrera, havia cinco anos, deixara‑lhes, a ele e a Nancy, partes iguais da companhia, quarenta por cento para cada um. A tia Tilly, irmã do pai, herdara dez por cento, e os restantes dez eram de Danny Riley, o velho e matreiro advogado do pai.

Nancy sempre partira do principio de que substituiria o pai quando ele morresse, porque sempre fora a sua preferida. Nat Ridgeway, o braço direito do pai e um homem muito capaz, considerava‑se o melhor candidato ao lugar de presidente da Black's Boots. Mas Peter também queria o lugar e era o filho varão, portanto ficaria amargamente humilhado e desapontado se não fosse ele a herdar o lugar do pai. Nancy não tivera coragem de lhe dar tão rude golpe, e por isso concordara que Peter devia assumir o comando. Entre os dois detinham oitenta por cento do capital, logo, se estivessem de acordo, faziam o que queriam.

Nat Ridgeway saíra e fora trabalhar para a General Textiles, de Nova iorque. Fora uma perda para a companhia, mas também para Nancy: mesmo antes da morte do pai, ele e Nancy tinham começado a sair juntos.

Nancy não saíra com ninguém desde que o seu marido, Sean, morrera. Não lhe apetecia. Mas Nat escolhera o momento na perfeição, porque, passados cinco anos, ela estava aberta a um pouco de romance. Nat e ela tinham jantado calmamente algumas vezes, mas ainda não passara disso quando a crise estalou. Quando Nat deixou a Black's, o romance também findou.

Desde essa altura, Nat tivera um enorme sucesso na General Textiles ejá era presidente da companhia. Além disso, casara com uma loura bonita, dez anos mais nova que Nancy.

Peter, pelo contrário, saira‑se muito mal, e durante os cinco anos da sua presidência, a Black's decaíra substancialmente. As lojas já não davam lucro, só cobriam os gastos, e Peter abrira uma sapataria elegante na Quinta Avenida, em Nova iorque, que lhe tomava todo o tempo e atenção —  mas fazia‑o perder dinheiro.

Só a fábrica, de que Nancy era directora, ainda era lucrativa. Se tivesse maior capacidade fabril, poderia vender o dobro dos sapatos, mas todos os seus lucros eram engolidos pelas perdas de Peter e não sobrava nada para investir na expansão.

Nancy sabia o que era preciso fazer para salvar o negócio. A cadeia de lojas teria de ser vendida para realizar capital, que seria utilizado na modernização da fábrica. Peter teria de lhe passar as rédeas do comando, restringindo‑se à sua loja de Nova iorque, que teria de gerir sob rígido controle de custos. Ela não se importava de que ele mantivesse o título de presidente, mas teria de abdicar de todo o poder efectivo.

Fizera um relatório escrito com esta proposta, e Peter prometera pensar no assunto. Nancy dissera‑lhe, tão cuidadosamente quanto possível, que o declínio da companhia não podia continuar e que, se ele não aceitasse o seu plano, ela ver‑se‑ia obrigada a passar por cima dele e a levar a proposta ao conselho de administração. Tinha esperanças de que ele fosse sensato.

Até aí, ele não se ofendera; parecia calmo e simpático. Haviam decidido irjuntos a Paris, onde Peter comprara sapatos para a sua loja, e Nancy, roupa para si nos grandes costureiros. Então, fora declarada a guerra e haviam decidido voltar imediatamente aos Estados Unidos, mas o mesmo tinham pensado todas as pessoas, e tiveram dificuldade em arranjar passagens. Finalmente, Nancy conseguira arranjar bilhetes para um navio que saía de Liverpool, e tinham ali chegado no dia anterior.

Nancy estava enervada pelos preparativos da Inglaterra para o conflito, e o seu maior medo era de que o seu país também entrasse na guerra e os seus filhos, Liam e Hugh, fossem recrutados. Nancy casara cedo e tivera logo filhos, por isso os rapazes já eram adultos. Liam era casado e vivia em Houston, e Hugh era finalista em Yale.

Um carregador que veio buscar a bagagem interrompeu‑lhe a meditação preocupada. Ela perguntou ao empregado se Peterjá tinha enviado a bagagem, e ele respondeu‑lhe que Peter saíra na noite anterior, tarde.

Nancy ficou espantada. Onde é que ele teria ido? Desceu ao átrio para telefonar, mas não sabia a quem. Nem ela nem Peter conheciam ninguém em Inglaterra.

Impulsivamente, pediu à telefonista que lhe ligasse para a tia Tilly. Telefonar para a América não era fácil. Não havia linhas suficientes e por vezes era necessário esperar muito tempo. Ouvia‑se geralmente muito mal e era preciso gritar.

Em Boston, ainda não eram 7 da manhã, mas a tia Tíllyjá devia estar acordada, pois, como muitas pessoas da sua idade, acordava cedo. Nancy teve sorte, pois passados apenas cinco minutos o telefone na cabina tocou.

—  Estou?

—  Tia Tilly, fala a Nancy.

—  Meu Deus, querida, estás boa?

—  Estou óptima, estou em Liverpool e vou apanhar um barco para Nova iorque, mas perdi o Peter. Por acaso, ele não lhe falou?

—  Ora, claro que falou, querida. Convocou uma reunião da administração para depois de amanhã logo de manhã.

Nancy ficou confusa. Para quê convocar uma reunião para sexta‑feira se nem ela nem Peter estariam presentes? Algo lhe cheirava a esturro. Estaria Peter a tramar alguma?

—  Qual é a agenda da reunião, tia?

—  Estava agora mesmo a lê‑la. —  A tia leu alto: — "Aprovar a venda da Black's Boots, Inc., à General Textiles, mc., nas condições negociadas pelo presidente."

—  Meu Deus! - Nancy ficou tão chocada que se sentiu desfalecer. Peter estava a vender a companhia à sua revelia.

Como conseguira ele aquilo? Quando teria combinado o negócio? Devia andar a engendrar aquela tramóia desde que ela escrevera a sua proposta. Nancy nunca teria suspeitado de que ele fosse capaz de tal traição.

—  Ainda estás aí, Nancy? —  perguntou a tia Tilly.

—  Estou, estou. Mas muda de espanto. Peter não me disse nada.

—  A sério? Não é bonito, pois não?

—  Ele quer isso aprovado na minha ausência, mas ele também não vai estar na reunião... O nosso barco sai hoje. Só chegamos daqui a cinco dias.

—  Danny Riley disse que o Peter vem no Clipper e que chega a tempo da reunião.

Nancy estava com dificuldades em aceitar a maneira vergonhosa como o irmão lhe mentira. Fora até Liverpool com ela para fazê‑la acreditar que ia apanhar o barco. Devia ter saído assim que se tinham despedido no corredor do hotel e viajado toda a noite para estar em Southampton à hora do avião.

—  Porque é que não vens também no avião? —  perguntou a tia.

—  Vou tentar —  replicou Nancy com súbita determinação. - Adeus. —  E desligou.

Ansiosa, foi à recepção e perguntou ao empregado a hora de largada do Clipper da Pan American. O homem puxou de um horário e informou:

—  Hoje, às duas horas.

Ela consultou o relógio: meio‑dia. O recepcionista acrescentou:

—  A senhora não chegava a tempo a Southampton nem num avião particular.

—  Há aqui aviões?

Ele assumiu uma expressão de complacência.

—  Há um aeródromo a dez minutos daqui. Em geral, há por lá pilotos, mas acredite que duas horas não chegam.

Frustrada, mas não derrotada, Nancy voltou ao telefone e pediu à telefonista o número particular do seu advogado em Boston, Patrick "Mac" MacBride.

O telefone da cabina tocou e ela pegou no auscultador: estava com sorte nas ligações.

—  Mac, fala Nancy.

—  Ainda bem que falaste. Peter está a tentar...

— Já sei de tudo —  interrompeu ela. —  Quais são os termos do contrato?

— Uma acção da General Textiles mais vinte e sete cêntimos em dinheiro por cada vinte acções da Black's.

— Mas isso é dado.

—  Na vossa situação, não é assim tão mau

—  Mas o nosso activo é muito mais elevado!

—  Eh, não é contra mim que tens de lutar —  recordou‑lhe ele gentilmente.

— Desculpa, Mac. É que estou tão furiosa!

— Eu sei. E ainda há mais: Peter fica à frente da Black's por mais cinco anos a seguir à compra, mas para ti não há lugar.

Nancy fechou os olhos. Sentia‑se enjoada. O pateta preguiçoso do Peter, que ela protegera e ajudara, ficava, e ela, que salvara a companhia, era despedida.

— Como é que ele é capaz de me fazer isto? —  perguntou. —  Ele é meu irmão!

— Lamento muito, Nan, eu nunca confiei nele.

— Podemos evitá‑lo?

— Se tu conseguisses cá estar para a reunião, penso que conseguirias persuadir a tua tia e Danny Riley a recusarem o negócio.

—  Eu não consigo aí chegar. Não podias votar por mim?

— Seria preciso uma procuração tua.

— Não posso votar pelo telefone?

— Só o conselho de administração poderia aceitar ou não essa hipótese, e Peter usaria a sua maioria para votar contra. Tens a certeza de que não consegues apanhar o tal avião?

— Eu estou em Liverpool e Southampton fica a trezentos e tal quilómetros —  suspirou Nancy. —  O avião descola daqui a menos de duas horas.

— Liverpool? Isso não é longe da Irlanda e o Clipper faz escala lá.

O coração de Nancy deu um salto.

— Tens a certeza?

— Li no jornal. Há uma paragem algures na costa oeste, não me lembro do nome do sítio, mas talvez consigas lá chegar.

Com uma onda de esperança, ela compreendeu que aquilo mudava tudo.

— Vou informar‑me e depois falo‑te. Adeus.

— Nancy!

— Sim?

—  Boa sorte e parabéns.

— Mac, tu és o máximo.

Desligou e dirigiu‑se ao balcão. O recepcionista fez‑lhe um sorriso condescendente.

— Parece que o Clipper faz escala na Irlanda —  disse ela.

— Correcto, minha senhora. Em Foynes, no estuário do Shannon.

Nancy sentiu vontade de perguntar‑lhe: "Então, porque é que não me disse isso antes, seu vermezinho pomposo?" Mas sorriu e perguntou:

— A que horas?

Ele puxou do horário.

— Deve amarrar às três e meia e descolar novamente às quatro e meia.

— Tenho tempo de lá chegar entretanto?

O sorriso tolerante do homem desvaneceu‑se e ele olhou‑a com mais respeito.

— Não me lembrei disso. Demora duas horas num avião pequeno. Se conseguir piloto, consegue chegar a horas.

A tensão dela subiu um pouco.

— Tire a minha conta e chame um táxi para me levar ao aeródromo imediatamente, por favor.

— É para já. —  Estalou os dedos para chamar um porteiro: —  Um táxi para esta senhora. —  Voltando‑se para ela, continuou: —  E a bagagem?

— Embarque‑a no paquete, por favor.

Nancy foi buscar uma mala pequena ao monte de bagagem que estava no átrio e de outra mala tirou uma blusa lavada para o dia seguinte, uma camisa de noite e um roupão de banho. No braço, levava um casaco leve de caxemira cinzenta. Fechou as malas.

— A sua conta, Mrs. Lenehan.

Ela passou um cheque e entregou‑lho com uma gorjeta.

— É muito amável, Mrs. Lenehan. O táxi está à sua espera.

O carro seguiu exasperantemente devagar pelo centro da cidade, mas depois acelerou nos subúrbios a caminho do aeródromo. Por fim, para alívio de Nancy, o condutor saiu da estrada, passou por uma cancela aberta e atravessou aos solavancos um prado até a um pequeno hangar. Em redor, havia pequenos aviões coloridos. O motorista levou‑a até à porta grande do hangar.

— Aguarde aqui, por favor —  pediu ela, e saiu disparada.

Lá dentro, estavam três aviões, mas não havia ninguém. Saiu de novo para o sol e deu a volta até às traseiras do hangar. Ali, finalmente, viu dois homens junto de um avião.

O avião em si era uma beleza. Era um biplano pintado de amarelo‑canário, com rodinhas amarelas, que lembravam a Nancy carros de brincar. Estavam a abastecê‑lo. Um homem de fato‑macaco sujo, empoleirado num escadote, deitava gasolina para uma saliência na asa sobre o lugar dianteiro. No chão, um homem alto e bem‑parecido, mais ou menos da idade de Nancy, com um capacete de voo e um blusão de cabedal, estava embrenhado em conversa com o mecânico.

Nancy pigarreou e disse:

—  Desculpem. Lamento incomodá‑los, mas queria alugar um avião.

O homem alto interrompeu a conversa e replicou:

—  Não posso ajudá‑la.

—  É uma emergência —  insistiu Nancy.

—  Eu não sou motorista de táxi —  disse o homem, virando‑lhe as costas.

—  Não precisa de ser tão malcriado! —  comentou Nancy, furiosa.

Então, o homem prestou‑lhe mais atenção.

—  Não era minha intenção ser malcriado —  explicou ele delicadamente. —  Mas o meu avião não é para alugar e eu também não.

—  Por favor, não se ofenda, mas se é uma questão de dinheiro, eu pago bem... —  insistiu ela, desesperada.

Ele ofendeu‑se; ficou com uma expressão gelada e tornou a virar‑lhe as costas. Nancy reparou que o homem tinha um fato cinzento às riscas por baixo do blusão. Tratava‑se, obviamente, de um homem de negócios rico que tinha um avião particular por divertimento.

—  E não há mais ninguém? —  perguntou ela.

O mecânico ergueu os olhos e comentou:

—  Não anda por ai ninguém hoje.

Nancy ficou com vontade de gritar de frustração. Quase em lágrimas, explicou:

—  Eu tenho de ir para Foynes!

—  A senhora disse Foynes? —  perguntou o homem alto.

—  Disse. Vou tentar apanhar o Clipper da Pan American.

—  Tem piada. Também eu.

—  O senhor vai para Foynes? —  As esperanças de Nancy reavivaram‑se.

—  Vou. Vou atrás da minha mulher —  disse ele amargamente.

Embora estivesse muito ansiosa, Nancy reparou que aquilo era uma coisa estranha de se dizer. Um homem capaz de confessar aquilo ou era muito fraco ou tinha uma autoconfiança absoluta. Ela olhou para o avião: parecia haver dois lugares, um atrás do outro.

—  Por favor, leve‑me —  pediu ela.

—  Porque não? —  replicou ele, encolhendo os ombros, depois de hesitar um segundo.

— Ah, graças a Deus. —  Ela quase que desmaiou de alívio. —  Fico‑lhe tão agradecida!

Ele estendeu‑lhe a mão.

—  Mervyn Lovesey. Como está?

—  Nancy Lenehan. Tenho o maior prazer em conhecê‑lo.

 

 

À MEDIDA que o comboio atravessava os pinhais do Surrey a caminho de Southampton, a disposição de Margaret Oxenford variava como um pêndulo entre o mais negro desespero e uma excitação incontrolável.

Os Oxenfords viajavam numa carruagem especial reservada aos passageiros do Clipper. Margaret estava furiosa e triste por abandonar o seu país numa hora difícil, mas não conseguia evitar uma certa emoção por ir sobrevoar o Atlântico de avião.

O pai arvorava uma expressão de incrível auto‑satisfação. Margaret sabia que ele estava satisfeito consigo próprio por ter esmagado a rebelião dela, mas não podia continuar a dominá‑la e a contrariá‑la eternamente, pois não?

Sentindo‑se agitada, levantou‑se e passeou pela carruagem só para não estar quieta. Entre os passageiros, viajava uma famosa actriz de cinema americana chamada Lulu Bell. Percy estava a conversar com ela como se se conhecessem de toda a vida.

Ao vivo, Lulu Bell parecia mais velha do que na tela. Margaret calculou que devia rondar quase os quarenta anos, embora ainda fizesse papéis de debutante e jovem noiva. No entanto, não deixava de ser bonita.

No fim da carruagem, estava uma personagem misteriosa, que Margaret achou que lhe era vagamente familiar. Um homem alto de aspecto enérgico e olhos ardentes, de magreza cadavérica, envergando um fato surrado. Tinha o cabelo quase rapado, como um prisioneiro, e parecia preocupado e tenso.

Quando o fitava, ele olhou‑a também e, de repente, Margaret lembrou‑se de ter visto a sua fotografia nos jornais. Era Cari Hartmann, o cientista e socialista alemão. Decidindo ser ousada como o irmão, Margaret sentou‑se em frente dele e apresentou‑se. Hartmann, um antigo opositor de Hitler, desaparecera havia um ano, e todos haviam receado o pior. Margaret calculou que ele tivesse fugido da Alemanha. O seu aspecto era o de quem tinha atravessado o inferno.

— O Mundo inteiro tem‑se interrogado sobre o que lhe teria acontecido —  disse‑lhe Margaret.

— Fiquei em prisão domiciliária, mas fui obrigado a continuar o meu trabalho científico —  explicou ele com um pronunciado sotaque alemão.

— E depois?

— Fugi —  disse ele simplesmente, e apresentou o homem a seu lado. —  Conhece o meu amigo, o barão Gabon?

Margaret ouvira falar dele. Philippe Gabon era um banqueiro francês que passava muito do seu tempo a viajar pelo Mundo, tentando persuadir os governos a receberem refugiados judeus. Era um homem baixo, rechonchudo, com um elegante fato preto, colete cinzento e gravata prateada. Margaret apertou‑lhe a mão e virou‑se de novo para Hartmann.

— A sua fuga não veio nos jornais.

— Temos tentado manter a discrição enquanto CarI está na Europa —  esclareceu o barão Gabon.

Aquilo era sinistro; parecia que os nazis ainda andariam atrás dele.

—  O que é que vai fazer na América? —  perguntou ela.

— Vou trabalhar no departamento de física da Universidade de Princeton —  respondeu Hartmann; depois, ficou com uma expressão amarga e prosseguiu: —  Eu não queria deixar o meu país, mas se tivesse lá ficado, o meu trabalho poderia contribuir para a vitória dos nazis.

Margaret queria dizer‑lhe algo de reconfortante, mas não sabia o quê, e o seu dilema foi resolvido pela hospedeira da Pan American, que passou dizendo:

— Estamos a chegar à doca de Southampton. Por favor, queiram preparar‑se para desembarcar.

Margaret voltou para o seu lugar, junto da família. Já cheirava a maresia e, apesar do seu desespero, ela não podia evitar uma certa emoção.

O comboio entrou na doca, seguindo paralelo à água, passando vagarosamente por barracões, gruas e paquetes acabando por se imobilizar por detrás de um edifício chamado IMPERIAL HOUSE.

Os Oxenfords, juntamente com os outros passageiros, pegaram na bagagem de mão e apearam‑se. Enquanto as restantes bagagens eram transferidas para o avião, eles entraram na Imperial House para completarem as formalidades de embarque. Minutos depois, o avião estava pronto a ser ocupado, e saíram todos para o cais.

O Clipper estava atracado, balouçando suavemente na ondulação, com o sol reflectindo‑se na fuselagem prateada. Era monstruoso: tão alto como uma casa e do comprimento de dois campos de ténis. Como é que uma coisa daquelas podia voar?

Aproximaram‑se da borda do cais, onde uma prancha de embarque descia para um pontão flutuante. A mãe começou a descer cuidadosamente, agarrada ao corrimão. O pai levava a bagagem de ambos. A mãe nunca carregava nada —  era um dos seus caprichos.

Do pontão flutuante, uma prancha mais pequena dava acesso ao que parecia uma asa secundária atarracada, meio submersa na água.

— Chama‑se um hidroestabilizador —  informou Percy. —  Também conhecido por asa marítima, evita que o avião se vire de lado dentro de água.

A superfície do estabilizador era curva, e Margaret achou que talvez escorregasse, mas isso não aconteceu.

Havia uma porta na fuselagem, mesmo por baixo da palavra "American" de PAN AMERICAN AIRWAYS SYSTEM. Margaret baixou a cabeça e transpôs a porta, entrando no avião.

Deparou com uma divisão de cerca de três metros e meio de lado com uma luxuosa alcatifa cor de tijolo, paredes beges e cadeiras azuis com um motivo estrelado nos estofos. Havia luzes no tecto e janelas grandes com venezianas; o tecto e as paredes eram direitos. Parecia mais uma casa do que um avião.

A divisão tinha duas portas. Uns passageiros eram mandados para a cauda do avião, e, olhando nessa direcção, Margaret viu uma série de salas, todas alcatifadas e decoradas em tons pastel. Mas os Oxenfords iam na parte dianteira. Um assistente de bordo gorducho e baixo apresentou‑se, dizendo‑lhes que se chamava Nicky, e acompanhou‑os ao compartimento ao lado.

Era um pouco mais pequeno que o anterior e estava decorado com cores diferentes: alcatifa turquesa, paredes verde‑claras e estofos beges. à direita de Margaret, havia dois grandes sofás de três lugares frente a frente, com uma mesinha debaixo da janela entre eles. à esquerda, do outro lado da coxia, outros dois sofás, mas só de dois lugares.

Nicky indicou‑lhes os dois sofás maiores. O pai e a mãe sentaram‑se nos lugares da janela, e Percy e Margaret nos da coxia, deixando um lugar vago em cada sofá e quatro lugares vagos nos outros.

Margaret ouviu uma voz com sotaque americano a dizer:

—  Na verdade, eu preferia ir virado para a frente.

Levantando o olhar, ela viu Nicky a apontar um lugar do outro lado do compartimento a um homem louro, de fato azul, que estava de costas para ela.

—  Não há problema, Mr. Vandenpost, pode ficar com esse lugar aí em frente.

O homem virou‑se e deu de caras-com Margaret, que ficou surpreendida ao reconhecê‑lo. Ele não era americano nem se chamava Vandenpost. Os seus olhos azuis lançaram‑lhe um aviso, mas tarde demais.

—  Meu Deus! —  balbuciou ela. —  Harry Marks.

 

MOMENTOS de aperto como aquele faziam irromper as melhores capacidades de Harry.

Foragido da justiça, com um passaporte roubado, um nome falso e fazendo‑se passar por americano, tinha o azar incrível de deparar com uma jovem que sabia que ele era um ladrão, que o ouvira falar com sotaques diferentes e o chamara pelo seu verdadeiro nome.

Por instantes, foi invadido pelo pânico, mas depois lembrou‑se de que era o homem com mais sorte do Mundo. Sorriu, esperando por uma inspiração.

— Harry Vandenpost —  disse. —  Mas aposto que a minha memória é melhor que a sua. Você é Margaret Oxenford, não é? Como está?

Ela pareceu confusa.

— Estou óptima —  respondeu, atarantada.

Ele estendeu‑lhe a mão, como que para apertar a dela, e ela retribuiu, e foi nesse momento que ele teve uma ideia luminosa. Fez‑lhe uma vénia antiquada e, quando as suas cabeças ficaram próximas uma da outra, ele murmurou:

— Faça de conta que nunca me viu numa esquadra e eu faço o mesmo por si.

Endireitando‑se, Harry olhou‑a nos olhos, que por sinal eram de um invulgar tom de verde — muito bonitos. A expressão dela desanuviou‑se e abriu‑se num sorriso.Ela percebera.

— Claro, Harry Vandenpost, que patetice a minha. A propósito, onde foi que nos conhecemos exactamente?

Harry resolveu aquela facilmente.

— Tenho a certeza de que foi em Ascot.

— Pois claro, é verdade.

Ele permitiu‑se um sorriso de satisfação: já arranjara uma cúmplice.

— Mas acho que não conhece a minha família —  continuou ela. - Mãe, apresento‑lhe Mr. Vandenpost, de

— Da Pensilvânia —  ajudou Harry impulsivamente. Arrependeu‑se logo. Onde raio ficava a Pensilvânia? Nem fazia ideia.

— A minha mãe, Lady Oxenford; o meu pai, o marquês, e o meu irmão, Lord Isley.

Harry já ouvira falar deles, claro; eram famosos. Deu apertos de mão em redor entusiasticamente, com uns modos que os Oxenfords considerariam tipicamente americanos.

Lord Oxenford parecia aquilo que era: um irritável, pomposo, velho fascista. Usava um fato de tweed castanho com um colete cujos botões pareciam prestes a saltar.

Harry dirigiu‑se a Lady Oxenford.

— Encantado em conhecê‑la, minha senhora. Eu interesso‑me por jóias antigas e ouvi dizer que tem uma das melhores colecções do Mundo.

— Ora, muito obrigada —  respondeu ela. —  São um dos meus hobbies.

Ele ficou chocado quando ouviu o seu sotaque americano. Ia ter de enganar uma "conterrânea" durante as próximas trinta horas. Achou‑a muito bonita, com o seu fato de viagem amarelo‑torrado.

— Acho que conheço os Vandenposts de Filadélfia —  comentou ela. "Bolas, espero que não", pensou Harty, e ela continuou: —  Eu sou dos Glencarrys, de Stamford.

—  Que interessante —  disse Harry, fingindo‑se impressionado.

—  Eu chamo‑me Percy —  interrompeu o miúdo.

— Harry —  disse Harry. Percy parecia simpático; estava a dar a entender que não queria ser tratado pelo título.

Harry sentou‑se. Estava virado para a frente, de modo que Margaret encontrava‑se junto dele, do outro lado da estreita coxia, e podiam conversar sem serem ouvidos.

Levaram outro passageiro para o lugar em frente de Harry. Era muito alto, tinha um chapéu de coco e um fato cinzento‑escuro que já vira melhores dias. Harry observou‑o a tirar o sobretudo e a sentar‑se.

Usava sapatos resistentes e bastante gastos, meias grossas de lá e um colete cor de vinho debaixo do casaco. O nó da gravata, azul‑escura, parecia ter sido dado no mesmo sítio nos últimos dez anos.

"Se eu não soubesse o preço dos bilhetes deste palácio flutuante", pensou Harry, "juraria a pés juntos que este tipo era polícia."

Ainda não era tarde demais para se levantar e fugir do avião, mas pagara noventa libras! Além disso, podiam passar‑se semanas até ele conseguir nova passagem transatlântica, e enquanto esperava podia tornar a ser preso.

Harry acalmou‑se. Se o homem à sua frente fosse polícia, de certeza que não vinha prendê‑lo; senão, não estaria a sentar‑se e a acomodar‑se para o voo. Harry não conseguia imaginar quais seriam, de facto, os seus propósitos, mas para já decidiu esquecê‑lo e concentrar‑se nos seus próprios problemas.

Margaret Oxenford era o factor de perigo.

Entrara na sua tramóia por divertimento, mas ele não podia contar que ela assim se mantivesse. Se conseguisse conquistar o seu afecto, porém, talvez ela começasse a sentir uma certa lealdade em relação a ele e não o traisse.

Insinuar‑se junto dela não seria desagradável. Estudando‑a pelo canto do olho, reparou que ela tinha a mesma compleição clara e outonal da mãe: cabelo ruivo, pele cremosa com sardas e aqueles fascinantes olhos verde‑escuros. Trazia um vestido castanho‑encarniçado bastante vulgar. Embora a sua roupa tivesse um ar dispendioso, ela não tinha o sentido estético da mãe; talvez viesse a adquiri‑lo com a idade e a autoconfiança. Ela não era do tipo que Harry costumava cortejar: escolhia sempre raparigas com algum ponto fraco, porque eram muito mais fáceis de levar. Margaret era demasiado atraente para ser fácil. No entanto, parecia achá‑lo simpático, e isso era um começo. Harry decidiu conquistá‑la.

Percy, que ia virado para trás e via para o compartimento contíguo, disse:

—  Fecharam a porta.

Harry ficou nervoso. Ouviu‑se um ronco e ele olhou ansiosamente pela janela. Entretanto, o barulho aumentou e uma hélice começou a girar: estavam a ligar os motores e, embora o ruído fosse abafado pelo isolamento acústico, sentia‑se a vibração das potentes máquinas; a apreensão de Harry crescia.

Margaret tinha as mãos juntas apertadas no colo. Parecia nervosa e encantada ao mesmo tempo, como se estivesse prestes a andar na montanha‑russa. Corada, de boca entreaberta e com os seus grandes olhos, tinha um ar sério.

O Clipper deslocou‑se para o meio do estuário, desacelerou e começou a virar, balouçando, e Harry percebeu que estava a aproar ao vento para a descolagem.

Subitamente, ouviu‑se um rugido tremendo, como o desencadear de uma tempestade, quando os quatro motores foram acelerados ao máximo. Harry soltou um grito, abafado pelo ruído, e o avião saltou em frente. Acelerou muito depressa, como uma lancha rápida, só que nenhum barco daquele tamanho conseguiria acelerar daquela maneira. Harry ficou em pânico. "Vou morrer", pensou, histérico.

O Clipper ia cada vez mais depressa. Harry nunca andara com tamanha velocidade sobre a água —  iam a 80, 100, 120 knch. "Vamos explodir", pensou.

Depois, subitamente, sentiu que o avião se libertara: houve um solavanco para cima e para a frente, e ele viu a água a afastar‑se por baixo deles enquanto o avião subia. "Caramba, estamos a voar!", pensou. "A voar!"

Agora que estava no ar, o seu pavor evaporou‑se e foi substituído por uma sensação hilariante. Apetecia‑lhe gritar vivas e, olhando em redor, viu que todos os outros sorriam de alívio.

Pouco depois, o avião estabilizou‑se e o rugido dos motores reduziu‑se a um murmúrio baixo. O assistente de bordo, Nicky, reapareceu.

— Deseja uma bebida, Mr. Vandenpost?

"É exactamente isso que desejo", pensou Harry.

—  Um whisky duplo —  respondeu imediatamente. Depois, lembrando‑se de que devia passar por americano, acrescentou: —  Com muito gelo.

Nicky anotou os pedidos dos Oxenfords e desapareceu pela porta da frente.

Desapertando o cinto de segurança, Harry levantou‑se e dirigiu‑se para a frente pelo mesmo caminho por onde Nicky saíra. à sua esquerda, era a cozinha, brilhante de aço, onde o assistente estava a preparar as bebidas. à direita, uma porta com uma placa: SALA DE REPOUSO. HOMENS. Harry calculou que fosse a casa de banho. A seguir a essa porta, uma escada de caracol, que presumivelmente dava acesso ao cockpit. E para lá da escada, havia outro compartimento onde estavam tripulantes em uniforme. Harry interrogou‑se sobre o que estariam ali a fazer, mas depois compreendeu que num voo de quase trinta horas tinha de haver vários turnos de tripulação.

Voltou para trás, passando pela cozinha e atravessando o seu compartimento e a sala por onde tinham embarcado. Para ré dessa sala, havia mais quatro compartimentos de passageiros.

O último tinha dois pequenos sofás de um lado e, do outro, a toilette das senhoras. Junto da porta desta, havia uma escada na parede que levava a um alçapão no tecto. A coxia a todo o comprimento do avião acabava numa porta, que devia ser a da suite nupcial, que causara tantos comentários na imprensa. Harry tentou abrir a porta, mas estava fechada.

Caminhando de volta ao seu lugar, deu uma vista de olhos pelos seus companheiros de viagem. Lá estava a bela loura quevira no South ‑Western Hotel: ria‑se de qualquer coisa que oseuacompanhante dissera. Via‑se que estava apaixonada por ele, embora ele não fosse lá grande coisa.

A divisão maior pela qual tinham entrado no avião fora transformada em sala e estavam lá quatro ou cinco pessoas, incluindo o homem alto que ocupara o lugar em frente de Harry. Alguns dos homens jogavam às cartas.

Harry sentou‑se no seu lugar e o assistente trouxe‑lhe o whisque.

— O avião parece meio vazio - comentou Harry.

— Estamos com a lotação completa —  replicou Nicky, abanando a cabeça —  Cada compartimento tem dez lugares sentados, mas só seis camas. Já vai perceber quando montarmos os beliches.

Harry saboreou a sua bebida. Era altura de aprofundar a sua amizade com Margaret Oxenford, que estava a beber champanhe e a folhear uma revista. Ele já cortejara dezenas de raparigas da idade e posição social dela e entrou automaticamente na sua rotina.

— Vive em Londres?

— Temos uma casa em Eaton Square, mas passamos a maior parte do tempo no campo —  explicou ela.

— E caçam à raposa a cavalo? —  continuou Harry. A maior parte dos ricos faziam‑no e adoravam falar sobre isso.

— Nem por isso —  disse ela. - Caçamos mais faisões.

— E você atira? —  perguntou ele, surpreendido. Não era uma actividade muito feminina.

— Quando me deixam. —  Ela virou‑se para ele e baixou a voz. - Porque é que está a fazer‑me essas perguntas idiotas?

Harry ficou aparvalhado, sem saber o que dizer.

— Porque é disso que as pessoas falam na alta sociedade.

— Mas você não é da alta sociedade —  objectou ela sem rodeios.

— Bolas! - exclamou ele no seu sotaque normal. - Você não é de meias‑palavras, pois não?

— Assim é melhor - riu‑se ela.

— Mas eu não posso andar sempre a mudar de sotaque.

— Está bem, eu aturo o seu sotaque americano se prometer não fazer conversas parvas.

— Obrigado, querida - agradeceu ele, voltando ao papel de Harry Vandenpost.

Ela era uma rapariga com ideias próprias, sem dúvida, o que a tornava muito mais interessante.

— Você tem muito jeito para isso - dizia ela. - Calculo que faça parte do seu modus operandi.

Ele ficava sempre confuso quando lhe falavam em latim. Com qualquer outra rapariga, teria disfarçado com uma graçola, mas por qualquer razão Margaret era diferente.

— Eu não sei latim - disse bruscamente. - Não percebo expressões como modus andy.

Aquela confissão teve um efeito surpreendente nela: corou de vergonha.

— Lamento imenso. Foi muito indelicado da minha parte.

Harry ficou surpreendido com a reviravolta. Muitas raparigas pareciam considerar seu dever impingir-lhe a sua educação. Sorrindo‑lhe, disse:

— Está perdoada.

E ela voltou a surpreendê-lo com a tirada seguinte.

— Eu sei como se sente, porque também não tive uma educação conveniente.

— Com o seu dinheiro todo? - perguntou ele, incrédulo.

— É que nunca andei na escola, percebe?

Harry estava boquiaberto. Qualquer operário londrino que se prezasse mandava os filhos à escola.

— Tive uma série de preceptoras maçadoras. É por isso que não POSSO entrar na universidade: não tenho habilitações. - A expressão dela era triste. - Acho que teria gostado da universidade.

— Eu pensei que os ricos podiam fazer o que quisessem.

— Como meu pai, não.

— E o miúdo? - perguntou Hariy, acenando a cabeça na direcção de Percy.

— Ah, ele está em Eton —  disse ela amargamente. —  Os rapazes são diferentes.

Harry reflectiu um pouco.

— E isso significa que discorda do seu pai noutras coisas? Na política, por exemplo?

— Certamente que sim! - exclamou ela. —  Eu sou socialista.

Harry considerou que talvez aquilo fosse a chave para a conquistar.

— Eu dantes era do Partido Comunista. —  Era verdade. Filiara‑se aos dezasseis anos e saíra passadas três semanas. —  De qualquer maneira, acho que tenho feito mais do que os comunistas em termos de devolver a riqueza àqueles que a produzem.

— Como?

— Ora, eu tiro dinheiro de Mayfair e levo‑o para Battersea.

— Quer dizer que só rouba aos ricos?

— Não vale a pena roubar aos pobres: não têm nada!

Ela riu‑se.

— Isto é fantástico. —  Os olhos dela brilhavam de interesse, animados, e ela estava encantadora. —  Creio que sabia da existência de pessoas como você, mas é extraordinário conhecer uma pessoalmente. Porque é que vai para a América?

— Para não ser preso.

— E o que é que vai fazer quando lá chegar?

— Pensei em alistar‑me na Força Aérea Canadiana. Gostava de aprender a pilotar. E você, porque é que vai para a América?

— Vamos fugir —  disse ela, enojada. —  O meu pai é fascista, como sabe.

— Li coisas sobre ele nos jornais —  assentiu Harry.

— Pois bem, ele considera os nazis maravilhosos e não quer lutar contra eles. Além disso, seria preso se ficasse.

— Mas você não quer ir?

— De maneira nenhuma —  replicou ela convictamente. —  Queria ficar e lutar. O fascismo é uma coisa horrível e eu quero contribuir como puder.

Harry já quase não a ouvia, pois fora iluminado por uma ideia que lhe cortava a respiração: quando as pessoas fogem de um país e de uma guerra, não deixam os seus bens para trás. Era muito simples: os Oxenfords deviam ter trazido as jóias, especialmente o famoso conjunto Deli. Só de pensar naquilo, ficava sem fôlego.

O conjunto Deli era a peça principal da célebre colecção de jóias antigas de Lady Oxenford. Era composto por colar, brincos e pulseira de diamantes e rubis encastoados em ouro. Os rubis eram da Birmânia, os mais preciosos de todos, e enormes; haviam sido levados para Inglaterra no século XVII pelo general Robert Clive, conhecido como Clive da Índia, e tinham sido trabalhados pelos joalheiros da Coroa. Dizia‑se que o conjunto Deli valia duzentas e cinquenta mil libras, mais do que era possível gastar numa vida inteira.

E quase de certeza que ia naquele avião!

Nenhum ladrão profissional roubava em barcos ou aviões —  a lista de prováveis suspeitos era demasiado reduzida. Seria uma loucura tentar apoderar‑se das jóias, e Harry sentia‑se tonto só de pensar nos riscos que isso implicava.

Por outro lado, nunca voltaria a ter uma hipótese como aquela. Subitamente, sentiu que precisava daquelas jóias como um afogado precisa de ar. Nunca conseguiria vendê‑las pelo seu valor real, mas obteria talvez vinte e cinco mil libras, o que dava mais de cem mil dólares. Tinha de roubar as jóias. Os riscos eram terríveis, mas ele sempre fora um homem de sorte.

— Acho que você não está a ouvir‑me —  disse Margaret.

— Desculpe —  replicou Harry, sorrindo. —  Você disse qualquer coisa que me pôs a sonhar.

— Eu percebi, e pela sua expressão, você estava a sonhar com o amor da sua vida.

 

 

NANCY LENEHAN esperou impacientemente que o avião amarelo de Mervyn Lovesey fosse aprontado para a descolagem. Enquanto o mecânico fazia as últimas verificações, Lovesey ia conversando com Nancy.,

— É uma péssima altura para deixar a minha fábrica. Tenho dezassete operários, todos eles muito individualistas, e estão a ameaçar entrar em greve.

— O que é que você fabrica?

— Ventoinhas —  replicou ele. —  Hélices para aviões e navios. A concepção é a parte mais fácil, o que me dá dores de cabeça é o factor humano. —  Sorriu, condescendente, e acrescentou: —  Mas você não está interessada nos problemas da indústria.

— Antes pelo contrário —  disse ela. —  Eu também dirijo uma fábrica.

— Que tipo de fábrica? —  indagou ele, apanhado de surpresa.

— Produzo quase seis mil pares de sapatos por dia.

Ele ficou impressionado, mas pareceu também considerar que estava a ser gozado, porque comentou num tom de voz que aliava a troça à admiração:

— Que bom!

— Talvez devesse dizer que produzia sapatos —  continuou Nancy num tom amargo. —  O meu irmão anda a tentar vender a companhia contra minha vontade. É por isso que tenho de apanhar o Clipper.

— E vai apanhá‑lo —  afirmou ele, confiante. —  O meu Tiger Moth põe‑nos lá com tempo de sobra.

Ela desejou de todo o coração que fosse verdade.

 

A MULHER de Mervyn Lovesey estava muito feliz.

Para Diana, voar no Clipper era como se estivesse num filme. O ambiente era opulento, as pessoas, elegantes, os dois assistentes de bordo, discretamente eficientes, e havia rostos famosos por toda a parte.

A princesa Lavinia Bazarov, que fugira aos comunistas e se tornara num dos pilares da sociedade parisiense, viajava no compartimento de Diana, no lugar da janela do mesmo banco. Em frente da princesa, no outro lugar à janela, ia a estrela de cinema Lulu Bell. Diana já vira muitos filmes com ela no cinema da Oxford Street, mas a grande surpresa era que Mark a conhecia. Quando estavam a sentar‑se nos seus lugares uma estridente voz americana chamara:

— Mark, Mark Alder. És mesmo tu?

Virando‑se, Diana dera de caras com uma mulher baixa, loura como um canário, aproximando‑se dele.

Ficou a saber que eles haviam trabalhado juntos num programa de rádio em Chicago antes de Lulu se tornar uma estrela. Mark apresentou Diana, e Lulu foi muito simpática, dizendo‑lhe que ela era muito bonita e que Mark tinha muita sorte em a ter conhecido. Mas, naturalmente, a actriz estava mais interessada em Mark, e iam os dois a conversar desde a descolagem, recordando os velhos tempos, quando eram jovens e sem cheta e faziam directas a beber whisky de contrabando.

Diana começava a sentir‑se preterida. Lulu BelI chegara como uma nuvem que esconde o Sol e desviara a atenção de Mark. Claro que o problema principal era que ela e Mark tinham muita coisa em comum: ambos trabalhavam no mundo do espectáculo, ambos eram americanos, ambos veteranos dos tempos pioneiros da rádio. Diana não fizera nada desse tipo de coisas; e para falar verdade, devia dizer‑se que ela nunca passara de uma mulher de sociedade de uma cidade de província. Começou a interrogar‑se sobre o que Mervyn estaria a fazer naquele momento. Já tinha de certeza lido o bilhete dela; pensou que talvez estivesse a chorar com uma sensação de culpa. Não, ele não era desse tipo; o mais provável era estar com uma fúria. Diana lamentou não ter escrito um bilhete mais simpático ou, pelo menos, mais esclarecedor, mas na altura estava demasiado perturbada para isso.

Estudou os dois homens sentados do outro lado do compartimento a olharem pela janela. O que estava mais perto de si era jovem e atraente e envergava um fato bastante vistoso. Tinha ombros largos, como um atleta, e usava vários anéis. Em frente dele, o outro homem parecia um pouco deslocado: vestia um fato grande demais, e o colarinho da camisa estava puído; além disso, era calvo como um melão. Os dois homens não conversavam um com o outro nem se entreolhavam, mas Diana tinha a certeza de que viajavam juntos.

Diana interrogava‑se sobre o quanto lhe faria falta o mundo confortável e previsível que deixara para trás, o mundo dos bailes de caridade e dos jantares das mulheres dos mações nos hotéis de Manchester. Abanou a cabeça. "Eu aborrecia‑me de morte nesse mundo", pensou. "Ansiava por excitação e aventuras e agora que as tenho vou gozá‑las em pleno."

Decidiu fazer um esforço ousado para recuperar a atenção de Mark. O que poderia fazer? Talvez um comportamento igual ao dele fosse a solução: podia conversar com alguém da mesma maneira que ele conversava com Lulu. O jovem atraente do outro lado da coxia servia perfeitamente.

Diana levantou‑se e passou para o lado esquerdo, espreitando por cima do ombro do homem do fato vistoso. Ele fez‑lhe um sorriso de boas‑vindas, que ela retribuiu, dizendo:

— Não é maravilhoso?

— Completamente —  replicou ele, ao mesmo tempo que deitava um olhar ansioso ao homem sentado à sua frente, como se esperasse uma reprimenda.

Era quase como se o outro homem fosse o seu guardião, e Diana perguntou:

— Viajam juntos?

— Pode dizer‑se que somos associados —  explicou o homem careca, estendendo a mão: —  Ollis Field.

— Diana Lovesey. —  Ela apertou‑lhe a mão.

— Frank Gordon —  disse o homem mais novo.

Eram ambos americanos, mas as semelhanças ficavam por aí. Frank Gordon estava bem‑vestido, com um lenço de seda no bolso do casaco. Cheirava a água‑de‑colónia e usava brilhantina no cabelo.

— O que é que estamos a sobrevoar? Ainda é a Inglaterra? —  perguntou ele.

Diana inclinou‑se sobre ele para espreitar, deixando‑o aspirar o seu perfume.

— Acho que deve ser o Devon.

— De onde é você?

— De Manchester —  respondeu ela, sentando‑se ao lado dele. Olhou para Mark, notando a sua expressão admirada, e virou‑se de novo para Frank. —  No Noroeste.

— A minha família é originária de Itália —  disse Frank.

Diana tornou a olhar para Mark, ficando desapontada ao ver que ele e Lulu partilhavam risinhos como dois adolescentes. Mervyn já estaria prestes a esmurrar Frank.

Olhando de novo para este, tentou perceber que tipo de pessoa era. Via‑se que tinha dinheiro, mas parecia iletrado. Diana pensou pedir‑lhe para lhe falar sobre si, mas de repente ficou sem paciência para enfrentar a maçada de ouvi‑lo e ficou calada. Nessa altura, apareceu Davy, o assistente deles, com champanhe e caviar, e ela aproveitou a oportunidade para regressar ao seu lugar, abatida.

Ficou a ouvir a conversa de Mark e Lulu durante algum tempo e depois deixou os seus pensamentos vaguearem. Era patetice preocupar‑se com Lulu; Mark estava comprometido com ela, Diana. Estava só a divertir‑se a recordar velhos tempos, e era uma estupidez ela começar a ter dúvidas por causa de uma loura oxigenada de quarenta e cinco anos.

Espreitando pela janela, viu que estavam a sobrevoar o oceano: devia ser o mar da Irlanda. Passado algum tempo, o avião começou a ser sacudido. Os passageiros entreolharam‑se nervosamente, e o assistente foi pedir que todos apertassem os cintos. Diana ficou apreensiva, mas Mark e Lulu continuaram como se nada tivesse acontecido.

De repente, ouviu‑se um baque e pareceu que o avião ia a cair. Diana deu um grito.

—  Mark, estou com medo!

—  É só turbulência, querida.

—  Mas parecia que íamos a cair!

—  Mas não vamos. Acontece muitas vezes. —  Voltou‑se para Lulu.

Diana virou‑lhe as costas, furiosa com ele. Assim que o apanhasse sozinho, havia de dizer‑lhe das boas.

A falta de atenção dele fê‑la sentir‑se ainda mais assustada. Esvaziou o copo de champanhe e pediu mais, no entanto a bebida não ajudou. Mas em breve aterrariam em Foynes, e ela poderia sair e andar em terra firme.

Porém, teria de voltar a embarcar para o longo voo transatlântico. Imaginava o oceano como uma vasta planície vazia, gelada e mortífera, de milhares de quilómetros e essa ideia era‑lhe insuportável.

"Mal aguento uma hora disto", pensou ela, "como é que hei‑de aguentar toda a noite? Mas que posso fazer? Podia telefonar a Mervyn!"

Ela nem queria acreditar que o seu belo sonho acabasse assim, mas sabia que isso ia acontecer.

Mark estava a ser devorado vivo por uma mulher mais velha, com o cabelo pintado e demasiada maquilhagem; e Diana ia telefonar a Mervyn, pedindo‑lhe perdão e dizendo que se enganara e que queria voltar para casa.

"Mas não é isso que eu quero", pensou tristemente. "Quero ir para a América e casar com Mark e viver na Califórnia. Eu amo‑o."

Não. Aquilo era um sonho louco. Ela era a mulher de Mr. Mervyn Lovesey, de Manchester, um homem leal e resmungão, que se interessava mais pela sua fábrica do que por ela; mas a maioria das mulheres que ela conhecia estava na mesma situação, por isso devia ser normal.

O avião voltou a cair no vazio e depois estabilizou de novo, mas Diana já não estava assustada. Sabia qual era o seu futuro e sentia‑se segura. Só lhe apetecia chorar.

 

EDDIE DEAKIN, o engenheiro de voo, considerava o Clipper como uma bola gigante de sabão, bela e frágil, que ele tinha de transportar sobre o mar enquanto as pessoas lá dentro se divertiam, sem terem consciência de como era fina a película entre elas e a noite nivante.

A viagem era mais arriscada do que pensavam, pois a tecnologia da aeronave era muito recente e o céu nocturno sobre o Atlântico era território desconhecido, cheio de perigos inesperados. Porém, Eddie achava sempre que a competência da tripulação e a sofisticação da engenharia americana os levariam a porto seguro. Naquela viagem, todavia, estava doente de pavor: havia um Tom Luther na lista de passageiros.

Eddie tinha esperanças de que o resto da tripulação não reparasse no estado em que ele se encontrava. Felizmente, iam todos concentrados nas suas tarefas e não trabalhavam num espaço tão reduzido como acontecia noutros aparelhos. A cabina de comando do Boeing 314 era bastante grande. O espaçoso cockpit era apenas parte dela. O comandante Baker e o co‑piloto Johnny Dott sentavam‑se lado a lado em bancos elevados, aos comandos, com um espaço entre eles onde havia um alçapão que dava acesso ao compartimento de proa, no nariz do avião. Havia pesadas cortinas atrás dos pilotos, que eram corridas à noite para que as luzes do resto da cabina não perturbassem a sua visão nocturna.

Essa secção, por si só, já era mais espaçosa que a maioria das outras cabinas de comando, mas o resto da cabina do Clipper era ainda mais amplo. A maior parte do lado esquerdo, bombordo, era ocupada pela mesa das cartas, de mais de dois metros de largura, onde Jack Ashford, o navegador, se debruçava sobre os seus mapas. Atrás da mesa das cartas, havia uma mesa de reuniões, à qual o comandante podia sentar‑se quando não estava aos comandos.

Do lado direito, estibordo, imediatamente atrás da cadeira do co‑piloto, estava a escada que levava ao piso dos passageiros, lá em baixo. Depois, vinha o lugar do operador de rádio, ocupado por Ben Thompson, virado para a frente e atrás dele, Eddie. O lugar de Eddie estava na transversal, virado para uma parede de mostradores e uma fila de manípulos. Nas traseiras da cabina de comando, uma porta dava para o porão de carga.

Todo o compartimento tinha seis metros e meio de comprimento por dois e setenta de largura e o pé‑direito igual em toda a sua extensão. Alcatifada, insonorizada, forrada com um macio tecido verde e com cadeiras de cabedal castanho, era a cabina de voo mais incrivelmente luxuosa jamais vista.

Querendo desesperadamente entender por que razão aquele pesadelo estava a acontecer‑lhe, Eddie pretendia dar rapidamente ao desconhecido Mr. Luther a oportunidade de se revelar. Assim, a meio caminho de Foynes, atravessara vagarosamente as cabinas de passageiros, enquanto Nicky e Davy serviam bebidas e aperitivos. Já se jogava às cartas na sala principal. Eddie fitou directamente vários passageiros, esperando que um deles se apresentasse como Tom Luther, mas nenhum lhe dirigiu palavra.

Naquela altura, Eddie estava de volta ao seu posto, na cabina de comando, e o avião preparava‑se para amarar. Ben Thompson, o operador de rádio, descrevia as condições em Foynes.

— Vento oeste, vinte e dois nós, mar picado.

Momentos depois, a luz em frente de Eddie que dizia CRUZEIRO apagou‑se, acendendo‑se a de AMARAGEM. Ele deu uma vista de olhos aos mostradores e entoou:

— Motores okay para a amaragem.

O ruido dos motores alterou‑se e o avião começou a perder altura. A tripulação entrou na sua rotina de amaragem. Eddie desejava poder dizer aos outros o que estava a acontecer‑lhe. Sentia‑se desesperadamente só. Estava entre colegas e amigos e queria explicar‑lhes o seu problema e pedir‑lhes ajuda, mas era demasiado arriscado.

Levantou‑se momentaneamente para espreitar pela janela. Via‑se uma pequena cidade que ele calculou ser Limerick. Perto da cidade, na margem norte do estuário do Shannon, estava a ser construído um grande aeroporto para aviões e hidroaviões, mas enquanto este não estivesse pronto, os hidroaviões pousavam no lado sul do estuário, em frente de uma aldeia chamada Foynes.

Perdiam altura gradualmente, e Eddie vigiava os seus manómetros, fazendo ajustes ocasionais. Uma das suas tarefas principais era sincronizar a velocidade dos motores, um trabalho que se tornava mais árduo quando o piloto fazia constantes mudanças de aceleração.

Ouviu‑se um leve "toc‑toc‑toc" cavo quando o fundo da fuselagem começou a bater nos topos das vagas, mas durou apenas uns segundos. Depois, a enorme aeronave baixou mais uns centímetros e começou a cortar a superfície. O piloto desacelerou e o avião abrandou imediatamente, tornando‑se de novo um barco.

Ao contrário de Southampton, Foynes não tinha um cais de embarque para hidroaviões, portanto o Clipper fundearia ao largo e os passageiros desembarcariam de lancha.

Fundear era da responsabilidade de Eddie e ele dirigiu‑se à frente, ajoelhando‑se entre os dois pilotos e abrindo o alçapão para o compartimento da proa. Desceu a escada para o espaço vazio e foi até ao nariz do avião, abrindo uma escotilha e espreitando lá para fora. O ar era fresco e salgado e ele respirou fundo.

Aproximou‑se uma lancha e um homem atirou um cabo à água. A ponta do cabo estava presa a uma bóia fundeada no estuário. Na proa do avião, havia um cunho de amarração desmontável, que Eddie levantou e apertou em posição; depois, usando um croque, apanhou a ponta flutuante do cabo e prendeu‑a ao cunho. O Clipper estava fundeado.

Entretanto, já se aproximara outra lancha para levar os passageiros e a tripulação.

Eddie fechou a escotilha e regressou à cabina. Sentou‑se no seu posto e desligou os motores. Quando ficou tudo pronto, vestiu o casaco preto do uniforme e colocou o boné branco. Descendo a escada, atravessou o compartimento número 2, entrou na sala e saiu para o estabilizador, subindo depois para a lancha. O assistente de Eddie, Mickey Finn, ficou para trás para supervisionar o reabastecimento.

A lancha chegou a terra e atracou a um pontão flutuante ligado à doca por uma prancha de embarque. Os tripulantes ajudaram os passageiros a desembarcar e seguiram‑nos pela prancha. Foram encaminhados para o barracão da alfândega.

As formalidades foram breves e os passageiros espalharam‑se pela aldeia. Na rua em frente do porto havia uma antiga estalagem que fora quase totalmente ocupada por pessoal ligado à aviação. Os tripulantes do Clipper seguiram para lá.

Quando Eddie saiu do barracão da alfândega, aproximou‑se dele um passageiro, que lhe perguntou:

—  Você é que é o maquinista?

Eddie ficou tenso. O passageiro tinha à volta de trinta e cinco anos e era atarracado e musculoso. Envergava um fato cinzento‑claro, uma gravata com alfinete e um chapéu de feltro cinzento.

—  Sou, sou Eddie Deakin.

—  Eu chamo‑me Tom Luther.

A raiva de Eddie transbordou e ele agarrou Luther pelas lapelas, atirando‑o contra a parede do barracão.

—  O que é que fizeram a Carol‑Ann? —  explodiu.

Luther foi completamente apanhado de surpresa; esperara encontrar uma vítima assustada e fácil de dominar, mas Eddie sacudiu‑o brutalmente, continuando:

—  Seu pulha. Onde está a minha mulher?

Luther recuperou rapidamente do choque e libertou‑se com um movimento ágil e forte, desferindo um murro. Eddie esquivou‑se e atingiu‑o duas vezes no estômago. Luther expeliu ar como um balão e dobrou‑se. Eddie segurou‑o pelo pescoço e começou a apertá‑lo.

Luther olhava para ele, aterrorizado, e Eddie percebeu que estava a matar o homem. Abrandou o apertão e depois soltou‑o. Luther ficou encostado à parede, inspirando avidamente e massajando o pescoço magoado.

Eddie olhou em redor. Ninguém vira nada. Luther levantou‑se com dificuldade e disse:

—  Seu imbecil. Se você estragar o programa, somos os dois mortos, além da sua mulher. Não percebe que precisa de mim?

Eddie percebia perfeitamente, apenas perdera a cabeça por instantes.

—  O que é que quer de mim?

Luther tirou um postal do bolso interior do casaco e entregou‑o a Eddie. Era uma fotografia de Bangor, no Maine.

—  Veja no verso —  instruiu Luther.

Do outro lado, tinha escrito: 440701 N, 670001 w.

— O que é que são estes números? Coordenadas? —  perguntou Eddie.

— Sim. É aí que tem de fazer pousar o avião.

Eddie olhou para ele sem compreender.

— Fazer pousar o avião? - repetiu, estupidificado. - É isso que querem de mim? É disso que se trata?

— É. Faça o avião pousar aí.

— Mas porquê?

— Porque você quer voltar a ver a sua linda mulherzinha.

— Que sítio é este?

—  Ao largo da costa.

As pessoas muitas vezes pensavam que um hidroavião conseguia pousar em qualquer sítio, mas na realidade era necessário um mar muito calmo. Se o avião pousasse em mar demasiado agitado, desintegrava‑se.

— Não podemos pousar em mar aberto —  explicou Eddie.

— Nós sabemos, mas isso é um local abrigado. É possível amarar, eu certifiquei‑me disso.

Soava tão confiante que Eddie sentiu que ele se tinha mesmo informado. Mas havia outros problemas.

—  E como é que eu hei‑de fazer que o avião pouse? Não sou o comandante.

— Você é que é o maquinista. Pode provocar uma avaria.

— Quer que eu faça o avião despenhar‑se?

— Basta provocar um problema, de modo que o comandante tenha de fazer uma amaragem não programada. —  Tocou no postal com uma unha tratada. —  Exactamente aqui.

Era verdade que o maquinista podia efectivamente criar um problema que forçasse o avião a descer, mas as emergências não eram fáceis de controlar.

—  Não é assim tão fácil.

—  Eu sei que não é fácil, Eddie, mas é possível. Eu investiguei isso.

Com quem teria ele investigado? Quem era ele?

— E quem é você, com mil raios?

— É melhor não perguntar.

Eddie começara por ameaçar aquele homem, mas tinha‑se dado uma reviravolta e agora era ele que se sentia intimidado. Tom Luther fazia parte de uma quadrilha de gangsters impiedosos que haviam planeado tudo cuidadosamente e que o tinham à sua mercê. Eddie enfiou o postal na algibeira.

— Então, faz o serviço? —  perguntou Luther, ansioso.

Eddie olhou‑o friamente por instantes e depois afastou‑se sem dizer palavra.

Armara‑se em duro, mas na verdade estava desfeito. O que é que eles queriam? O facto de serem tão precisos em relação às coordenadas onde queriam que o Clipper descesse constituía uma pista: sugeria que haveria lá um barco à espera. Mas para quê?

Pelo menos, já percebia porque fora ele o escolhido. O maquinista era o homem indicado para quem quisesse fazer pousar o Clipper, pois sozinho até podia fazer parar os motores.

Eddie detestava a ideia de ajudar aqueles gangsters, mas eles tinham Carol‑Ann, e tudo o que ele fizesse para estragar os planos de Luther podia levar a que lhe fizessem mal a ela. Não podia opor‑se‑lhes nem tentar enganá‑los: não tinha outra hipótese senão tentar fazer o que eles queriam. Fervilhante de frustração, passou para o outro lado da única rua que atravessava a aldeia de Foynes.

O terminal aéreo era uma antiga estalagem, e desde que a localidade se transformara numa importante escala para os hidroaviões, tinha sido quase inteiramente ocupado por pessoal da Pan American, embora ainda existisse um bar, com uma porta própria para a rua, chamado Mrs. Walsh's Pub. Eddie subiu até à sala de operações, onde o comandante Marvin Baker e o primeiro‑oficial Johnny Dott estavam em conversa com o chefe de estação da Pan American. Ali, entre xícaras de café, cinzeiros e montes de mensagens de rádio, tomariam a decisão final de empreender ou não o longo voo sobre o Atlântico.

O factor crucial era a força do vento, dado que o voo para oeste era uma luta constante contra os ventos predominantes. Os pilotos mudavam frequentemente de altitude em busca de condições mais favoráveis, procedimento a que chamavam "caçar o vento". Os ventos mais fracos encontravam‑se geralmente a baixa altitude, mas abaixo de um certo ponto havia o perigo de colisão com navios ou, mais provavelmente, com icebergues. Os ventos fortes requeriam mais combustível, e por vezes os ventos previstos eram tão fortes que o Clipper simplesmente não podia comportar combustível suficiente para aguentar os últimos três mil quilómetros até à Terra Nova. Nessas condições, o voo era adiado até melhoria das condições atmosféricas.

Se isso acontecesse naquele dia, o que sucederia a Carol‑Ann?

Eddie deu uma vista de olhos pelos boletins meteorológicos: ventos fortes e um temporal a meio do Atlântico. Ele sabia que o avião ia cheio e por isso teriam de fazer cálculos precisos antes de tomarem a decisão de ir por diante com o voo. Pensar naquilo aumentou a sua ansiedade: não aguentava ficar retido na Irlanda enquanto Carol‑Ann estava nas mãos daqueles gangsters.

Dirigiu‑se à carta do Atlântico pendurada na parede e verificou as coordenadas que Luther lhe dera. O local fora bastante bem escolhido. Era perto da fronteira canadiana, na baía de Fundy, dois ou três quilómetros ao largo, num canal entre a costa e uma grande ilha. Não era o ideal —  os portos usados pelo Clipper eram ainda mais abrigados, mas o avião conseguiria provavelmente pousar ali sem grande risco.

Jack Ashford, o navegador, um homem de feições regulares, cabelo escuro e barba cerrada, entrou com mais uns boletins, e o comandante Baker, depois de os estudar, comentou:

— A depressão está a aumentar. Vou ter de a contornar.

Em conjunto, Baker e Johnny Dott elaboraram um plano de voo até Botwood, na Terra Nova, circundando o temporal e evitando o pior dos ventos contrários.

Quando eles acabaram, Eddie sentou‑se com os boletins meteorológicos e começou os seus cálculos. Assentava num gráfico as necessidades de combustível para cada sector da viagem, calculava o total e acrescentava uma margem de segurança. Depois de acabar as contas, verificou, consternado, que o combustível necessário para os levar à Terra Nova era mais do que aquele que o Clipper podia carregar.

Por momentos, não fez nada. Poderia mentir? O défice era mínimo, apenas umas dezenas de litros, e Carol‑Ann estava algures, aterrorizada, à espera.

E de qualquer maneira, ele contara com uma margem de segurança. Se as coisas corressem mal, podiam atravessar o temporal em vez de circundá‑lo.

Detestava enganar o comandante Baker, mas a sua decisão não era irrevogável. A cada hora de viagem, Eddie tinha de comparar o consumo real com as suas previsões no gráfico. Se estivessem a gastar acima do previsto, teriam simplesmente de voltar para trás.

Talvez aquilo significasse o fim da carreira de Eddie, mas o que era isso comparado com as vidas da sua mulher e do filho que estava para nascer?

Voltou a fazer as contas, mas desta vez com dois erros deliberados. Assim, o resultado ficava dentro da margem de segurança. Aclarando nervosamente a voz, Eddie disse:

— É à justa, comandante, mas podemos ir.

 

 

DIANA LOVESEY subiu para a doca em Foynes, pateticamente grata por sentir terra firme sob os pés.

Enfiou o braço no de Mark. Estava triste, mas calma. Já tomara a sua decisão: não voltaria a embarcar no Clipper, não iria para a América, não casaria com Mark Alder.

Passaram pela alfândega e saíram das docas. Vários passageiros entraram no Mrs.Walsh' 5 Pub, mas Diana queria estar sozinha com Mark o mais depressa possível, e por isso pediu‑lhe:

— Vamos dar um passeio pela aldeia.

Ele assentiu, sorrindo, mas outros passageiros, entre os quais Lulu, tiveram a mesma ideia, e um grupo grande espalhou‑se pela rua principal de Foynes. Havia uma estação de comboios e outra de Correios, uma igreja e duas filas de casas cinzentas de pedra com telhados de ardósia escuros. Passaram por outro bar, e Diana segredou a Mark:

— Vamos entrar aqui.

Precipitou‑se lá para dentro, deixando que ele a seguisse. Era um local escuro e fresco, com um balcão alto e garrafas empilhadas atrás dele. Estavam dois velhotes sentados a um canto, que olharam quando Diana entrou. Ela tinha um casaco de seda vermelho‑alaranjada por cima do seu vestido das bolinhas e sentiu‑se como uma princesa numa loja de penhores.

Atrás do balcão apareceu uma mulher de avental, a quem Diana pediu um brandy. Depois, entrou Mark, após ter apresentado desculpas a Lulu, segundo pensou Diana amargamente. Ele sentou‑se e perguntou:

—  O que é que se passa?

—  Já me chega de Lulu —  disse Diana.

A empregada trouxe a bebida de Diana e ela deu um gole rápido para ganhar coragem. Mark pediu uma cerveja.

—  Eu não vou contigo para a América —  informou Diana.

—  Deves estar a brincar! —  Mark ficou muito pálido.

—  Tenho estado a pensar e não quero ir para a América. Vou voltar para Mervyn... Se ele me aceitar. —  Mas tinha a certeza de que aceitaria.

— Mas tu não estás apaixonada por ele. Tu própria o disseste, e eu sei que é verdade.

— O que é que tu sabes? Nunca foste casado, sequer. —  Ele ficou com um ar ofendido e ela tornou‑se mais simpática. Pôs‑lhe uma mão no joelho e continuou: —  Tens razão: não estou apaixonada por Mervyn da mesma maneira que estou por ti.

— Passei tempo demais com Lulu —  disse Mark, penitente. - Lamento, querida. Esta aventura é só nossa e eu esqueci‑me disso durante uma hora. Desculpa‑me.

— Não é só a Lulu‑insistiu Diana. —  Eu fui muito ingrata.

A empregada trouxe a cerveja de Mark, mas ele não lhe tocou. Diana continuou:

— Apanhei um avião para sobrevoar o Atlântico, Ú que já de si é perigoso. Depois, vou para um país estranho onde não tenho amigos, nem meios de subsistência, nem nada.

Mark estava com um ar perturbado.

—  Oh, querida, estou agora a perceber o que te fiz. Deixei‑te sozinha precisamente quando estavas a sentir‑te mais vulnerável. Prometo que não volto a fazê‑lo. —  Pegou‑lhe nas mãos, e ela sentia‑se demasiado triste para as retirar. —  Vem comigo, casa comigo e teremos filhos nossos —  continuou ele persuasivamente.

Ele acertara em cheio: Diana desejava imenso ter filhos, e Mervyn estava decidido a não os ter. Mark seria um pai maravilhoso, amoroso, alegre e terno. De repente, ela ficou hesitante, mas o seu momento de fraqueza passou.

—  Não vale a pena, Mark —  disse ela tristemente. —  Vou regressar.

Diana percebeu pela expressão dele que Mark agora acreditava. Entreolharam‑se tristemente e durante algum tempo nenhum deles falou.

Foi então que Mervyn entrou no bar.

Diana não acreditava no que estava a ver. Fitou‑o como se se tratasse de um fantasma. Ele não podia estar ali, era impossível!

—  Então, estás aqui —  entoou ele na sua voz de barítono.

Diana foi invadida por emoções contraditórias. Estava desgostosa, emocionada, assustada, aliviada, embaraçada e envergonhada. Libertou as mãos das de Mark. Mervyn aproximou‑se da mesa e ficou a olhar para eles.

— Quem é este pateta? —  perguntou Mark.

— É Mervyn - explicou Diana em voz sumida.

— Ah...

—  Mervyn, como é que vieste? —  inquiriu Diana.

— De avião - respondeu ele, lacónico como de costume. Depois, sentou‑se em frente deles.

Diana sentia‑se atrapalhada, nunca estivera numa situação semelhante.

— Eu não queria magoar‑te, Mervyn.

Ele olhou‑a intensamente.

— Acredito que não —  disse, com calma.

— Acreditas? Consegues compreender o que se passou?

— Em traços gerais, consigo entender, apesar de não passar de um simplório —  replicou ele sarcasticamente. —  Fugiste com o teu namorado. —  Olhou para Mark e inclinou‑se agressivamente para ele. —  Um americano, segundo vejo, do tipo fracote que te deixa fazer o que queres.

Mark não disse nada, limitando‑se a fitar atentamente Mervyn, pois não era conflituoso. Não parecia ter ficado ofendido, mas apenas intrigado.

Os olhos de Diana estavam marejados de lágrimas e ela puxou de um lenço e assoou‑se.

— Eu sei que fui imprudente.

— Imprudente?! —  exclamou Mervyn, troçando da falta de adequação da palavra. —  Foste completamente tonta.

Diana encolheu‑se. O desprezo dele feria‑a sempre, mas desta vez ela merecia‑o. Mervyn acenou à empregada e pediu:

— Arranja‑me umas sanduíches de presunto, querida?

— Com muito gosto —  respondeu ela. Mervyn tinha jeito para empregadas de bar.

— E só que... Eu tenho andado tão infeliz ultimamente. Só ia à procura de um pouco de felicidade.

— À procura de felicidade na América? Onde não tens amigos, nem família, nem casa... Onde é que está o teu bom‑senso?

Ela estava‑lhe grata, mas preferia que ele não fosse tão antipático. Sentiu a mão de Mark no ombro.

—  Não lhe dês ouvidos —  disse ele baixinho. —  Porque é que não hás‑de ser feliz? Não há mal nenhum nisso.

Ela olhou assustada para Mervyn, não querendo ofendê‑lo mais. Ele ainda podia rejeitá‑la: que humilhação se ele a rejeitasse em frente de Mark! Mas depois começou a sentir‑se zangada com ele.

— Eu posso ser tonta, Mervyn, mas tenho o direito de ser feliz.

Ele apontou‑lhe um dedo acusador.

— Tu assumiste um compromisso quando casámos e não tens o direito de me deixares.

Ela ficou furiosa e ao mesmo tempo frustrada: ele era tão completamente inflexível que era o mesmo que falar com uma porta. Porque é que ele não havia de ser mais razoável? Porque haveria de estar sempre tão seguro de ter razão e de os outros estarem errados?

Repentinamente, Diana percebeu que aquela sensação lhe era familiar: tivera‑a pelo menos uma vez por semana nos últimos cinco anos. O pânico no avião fizera‑a esquecer de quão infeliz ele a fazia, mas agora tudo regressava, como o horror de um pesadelo.

— Ela é adulta e pode fazer o que quiser, Mervyn —  interveio Mark. —  Se quiser voltar consigo, volta, e se quiser divorciar‑se e casar comigo, é isso que fará.

Mervyn bateu com o punho na mesa.

— Não vais para a América. Voltas comigo para Manchester.

Ela olhou para Mark, que lhe sorriu ternamente.

— Não tens de obedecer a ninguém —  disse ele. —  Faz o que tu quiseres.

Com os seus modos descuidados, Mervyn devolvera a Diana o seu sentido das proporções. A ansiedade relativamente à sua vida na América parecia‑lhe agora um problema menor comparada com a questão realmente importante: com quem queria ela viver? Estava apaixonada por Mark e ele por ela, e tudo o resto eram pormenores. Foi invadida por uma enorme sensação de alívio ao tomar a sua decisão e ao anunciá‑la aos dois homens que a amavam. Respirou fundo.

— Lamento, Mervyn, mas eu vou com Mark.

 

NANCY LENEHAN saboreou um momento de júbilo ao entrar no terminal da Pan American em Foynes.

Contra todas as probabilidades, apanhara o irmão e ia estragar‑lhe pelo menos parte dos seus planos. Peter ia ter o maior choque da sua vida quando a visse.

O terminal era num edifício grande coberto de hera, na rua em frente ao porto. Nancy deparou com um escritório provisório e um jovem bem‑parecido com o uniforme da Pan Am.

—  Quero um bilhete para Nova iorque —  disse ela.

Ele ficou surpreso e intrigado.

— Ah sim? Mas nós geralmente não vendemos aqui bilhetes: não os temos. Mas mesmo que vendêssemos, o avião está cheio. Só a suite nupcial é que está vaga.

— Não posso ir aí? —  perguntou ela, esperançada.

— Bem, eu nem sequer sei quanto cobrar

— Mas pode informar‑se, não pode?

— Acho que custa o mesmo que dois bilhetes normais, o que daria setecentos e cinquenta dólares só para a ida; mas talvez seja mais.

Nancy não se importava, mesmo que custasse sete mil dólares.

— Eu passo‑lhe um cheque em branco.

— Foge! A senhora quer mesmo apanhar o avião

— Tenho de estar em Nova Iorque amanhã —  explicou ela. —  É muito importante.

— E nós teremos muito gosto em levá‑la.

— Graças a Deus —  disse Nancy, aliviada. Procurou na carteira e tirou o livro de cheques, passando um cheque em branco com mãos trémulas e entregando-o ao Jovem.

Chegara a altura de enfrentar Peter.

— Eu vi alguns dos passageiros na aldeia —  disse ela. —  Onde poderão estar os outros?

— A maioria deve estar no Mrs. Walsh's Pub —  replicou ojovem.

— É um bar aqui ao virar da esquina.

— Agradeço‑lhe muito a sua ajuda —  despediu‑se ela.

— Foi um prazer.

Nancy saiu para o sol fraco da tarde, dobrou a esquina do edifício e entrou no bar.

Era o tipo de estabelecimento onde ela nunca entrava: pequeno, escuro, com parca mobília, muito masculino. Olhou em redor e avistou o irmão. Ele não a viu.

Nancy ficou a observá‑lo por momentos: estava sentado num canto com Nat Ridgeway, o que constituiu mais um choque para Nancy. Ela sabia que Nat fora a Paris ver as colecções, mas não lhe ocorrera que viajasse com Peter.

Abrindo caminho por entre as pessoas, dirigiu‑se à mesa deles. Ao vê‑la, Peter empalideceu e começou a levantar‑se.

— Meu Deus! —  exclamou com um ar terrivelmente assustado.

— Como é que foste capaz, Peter? —  perguntou Nancy com desprezo. —  Depois de tudo o que fiz por ti! Todos estes anos em que te protegi e te deixei continuares como presidente, embora nem sequer tivesses competência para organizar uma quermesse de feira. Depois disso tudo, tu tentas roubar‑me o negócio. Como é que foste capaz?

Peter corou intensamente.

— Tu nunca me protegeste... Sempre trataste dos teus interesses - protestou ele. —  Sempre quiseste ser presidente, mas não conseguiste. Consegui eu, e desde então tens andado a conspirar para me roubares o lugar. Foi por isso que eu elaborei um plano próprio.

— Que te saiu pela culatra —  disse Nancy, triunfante. —  Arranjei lugar no avião e vou estar presente na reunião da administração. —  Pela primeira vez, voltou‑se para Nat Ridgeway. —  Parece‑me que ainda não é desta que ficas a controlar a Black's Boots, Nat.

—  Não tenhas tanta certeza —  interrompeu Peter.

Ela virou‑se para ele, que parecia petulantemente agressivo. Era pouco provável Peter ter mais qualquer coisa na manga, ele não era assim tão esperto.

— Nós temos quarenta por cento cada um, Peter. A tia e Danny Riley têm o resto. Eles sempre votaram comigo e farão o mesmo desta vez.

— Riley vota comigo —  afirmou Peter, obstinado. —  Nat vai dar‑lhe     uma grande percentagem do trabalho jurídico da General Textiles.

Aquilo era um golpe. Não havia nada que Riley mais desejasse do que trabalhar para uma grande companhia como a General Textiles. Para uma pequena firma de advogados nova‑iorquina, era uma oportunidade única. Com um suborno daqueles, Riley seria capaz de vender a própria mãe.

As acções de Peter, juntamente com as de Riley, perfaziam cinquenta por cento, tal como as de Nancy somadas com as da tia Tilly. Em caso de empate na votação, as questões eram decididas pelo presidente: Peter. Nancy sentou‑se.

— Ouve, Peter —  disse. —  Não compreendes que, se me deixares implementar o meu plano durante um par de anos, consegues o dobro do preço pelas tuas acções?

— Tu não queres perceber, pois não? —  disse Peter. —  Não percebes porque é que eu quero vender a companhia?

— Está bem, então diz‑me lá porquê.

Ele fitou‑a em silêncio, e Nancy leu a resposta no seu olhar: Peter detestava‑a. Ela não queria acreditar, mas a expressão grotesca de maldade do seu irmão era inconfundível. Sempre houvera uma certa tensão entre eles, uma natural rivalidade fraternal, mas aquilo era horrível, anormal, patológico.

Nancy precisava de sossego para pensar. Levantou‑se e saiu sem uma palavra.

Assim que se viu lá fora, a brisa refrescante que soprava do estuário fê‑la sentir‑se melhor. Atravessou a rua e passeou ao longo do cais, ouvindo as gaivotas.

Que fazer quando chegasse a casa? Nunca conseguiria dissuadir Peter dos seus planos; havia demasiados anos de fúria reprimida por detrás do seu comportamento.

Enquanto caminhava embrenhada nos seus pensamentos, ouviu alguém chamá‑la. Virando‑se, viu um empregado da Pan American a acenar‑lhe.

— Tem um telefonema —  gritou ele. - Um senhor MacBride, de Boston.

Nancy teve um ressurgimento de esperança. Talvez Mac sugerisse uma saída. Ele conhecia Danny Riley —  o escorregadio, inseguro, tonto e instável Danny Riley.

Enquanto se apressava ao longo do cais, Nancy lembrou‑se de que o seu pai uma vez salvara Danny da ruína. Fora pouco antes de o pai morrer, não há muitos anos. Danny estava a perder um caso importante e, em desespero, tentara subornar o juiz. Mas o juiz não era corrupto e intimara Danny: ou se reformava voluntariamente ou era impedido de exercer advocacia. O pai interviera e persuadira o juiz de que se tratara de um lapso momentâneo. Nancy sabia a história toda porque o pai lha contara.

Entrou no edifício e o jovem apontou para o telefone. Era bom ouvir a voz familiar de Mac.

— Então, apanhaste o Clipper —  disse ele, rejubilante. —  É assim mesmo!

— Vou estar presente na reunião, mas o pior é que Peter me disse que assegurou o apoio de Danny. A General Textiles vai dar‑lhe uma parte do seu trabalho jurídico.

— Tens a certeza de que isso é verdade? —  perguntou Mac já num tom desanimado.

— Tenho. Nat Ridgeway está cá com ele. É legal eles oferecerem este tipo de incentivo, Mac?

— Provavelmente, não, mas é uma coisa difícil de provar.

— Então, estou em maus lençóis. A não ser... Lembras‑te daquela vez que o pai livrou Danny de apuros? Quando ele tentou subornar um juiz no caso da Jersey Rubber?

— Claro que me lembro.

— Não podemos usar isso para o ameaçar de qualquer modo?

— Temos provas?

— Só se houver qualquer coisa nos papéis do meu pai. —  Nancy tinha vários caixotes de documentos do pai na cave da sua casa. - Nunca os li, mas podíamos fingir... - continuou ela pensativamente.

— Não estou a perceber.

— Estou só a pensar alto. Supõe que a Ordem dos Advogados decidia abrir um inquérito ao caso da Jersey Rubber e que tinham ouvido dizer que havia dados importantes nos papéis do meu pai.

— Nesse caso, pediam‑te para examiná‑los.

— E a decisão de o permitir seria minha?

— Num caso de simples inquérito, sim.

Começava a formar‑se um esquema no espírito de Nancy.

— Ouve, quero que fales a Danny —  disse ela num tom de urgência.

— Pergunta‑lhe se ele gostaria que eu entregasse os papéis do meu pai no caso de um inquérito da Ordem.

— Achas que ele dirá que não?

— Acho que vai entrar em pânico, Mac. Ele não sabe o que lá está; podem ser anotações, um diário,....... Pedirá a minha protecção e eu dou‑lha, com uma condição: que ele vote do meu lado contra a compra pela General Textiles.

— Espera aí! Não abras já o champanhe. Ele não suspeitará de que nós engendrámos isso para o pressionar?

— Claro que sim —  replicou Nancy. —  Mas não pode ter a certeza, e neste momento é esta a nossa única hipótese. Queres tentar?

— Está bem.

Nancy sentia‑se muito melhor: cheia de esperança e de vontade de vencer.

— Fala‑me para a nossa próxima escala —  pediu ela. —  É em Botwood, na Terra Nova, e devemos lá chegar daqui a dezassete horas. Pede a ligação com antecedência.

— Está bem. Diverte‑te.

— Adeus, Mac.

Nancy pousou o auscultador bem‑humorada. Era impossível adivinhar se Danny cairia na esparrela, mas só pelo facto de ter um plano ela já se sentia melhor.

Eram 4 e 20: horas de embarcar. Saiu da sala e passou por um gabinete onde estava Mervyn Lovesey ao telefone. Ele ergueu a mão para detê‑la. Pela janela, Nancy via os passageiros no cais a embarcarem na lancha, mas fez uma pausa. Ele disse ao telefone:

— Estou demasiado ocupado para discutir com operários. Dê‑lhes o que eles pedem e andem para a frente com o trabalho.

Ela ficou surpreendida, pois aquilo indicava que ele estava a ceder, o que não parecia ser uma característica sua. Logo a seguir, Mervyn continuou:

— Sim, estou a falar a sério. Adeus. - Desligou o telefone e virou‑se para Nancy. —  Andava à sua procura.

— Conseguiu o que queria? - perguntou ela. —  Convenceu a sua mulher a voltar consigo?

— Não, mas não fui lá muito persuasivo.

— Lamento. Ela está a embarcar?

Ele olhou pela janela.

— É aquela do casaco encarnado.

Nancy viu uma loura de trinta e poucos anos e ficou espantada.

— Mas ela é linda, Mervyn. - Por qualquer razão, imaginara a mulher de Mervyn como uma mulher mais dura; mais Bette Davis do que Lana Turner. —  Compreendo por que razão não quer perdê‑la.

— Ainda não desisti —  replicou Mervyn. —  Vou até Nova iorque, mas a decisão cabe‑lhe a si. O avião está cheio.

— Pois está. Então, como é que você vai? Porque é que a decisão é minha?

— Porque o único lugar livre é seu. A suite nupcial tem dois lugares e eu estou a pedir‑lhe para me vender um deles.

— Mervyn, eu não posso partilhar a suite com um homem. Eu sou uma mulher respeitável, não sou uma corista.

— Você deve‑me um favor —  insistiu ele.

— Devo‑lhe um favor, mas não a minha reputação!

O rosto atraente de Mervyn assumiu uma expressão obstinada.

— Ouça, eu informei-me acerca da suite nupcial: há dois beliches separados, e se deixarmos a porta aberta à noite, seremos exactamente como dois desconhecidos que por acaso ficaram em beliches contíguos.

— Mas pense no que as pessoas diriam!

— Ouça. Você estava desesperada quando foi ter comigo ao aeródromo. Agora sou eu que estou em apuros e que apelo à sua compreensão. É a minha última hipótese de salvar o meu casamento. Um cheirinho a escândalo nunca matou ninguém. Ajuda‑me, Nancy? Por favor — implorou ele.

Nancy pensou no tal "cheirinho" a escândalo. Teria realmente importância que uma viúva fosse vagamente indiscreta no dia dos seus quarenta anos? Olhou para o rosto magoado e teimoso dele e o seu coração encheu‑se de simpatia. Suspirando, disse:

— Está bem.

 

 

A ÚLTIMA coisa que Harry Marks viu da Europa foi um farol branco erguendo‑se na margem norte do estuário do Shannon. Passado pouco tempo, deixou de avistar terra: qualquer que fosse o lado para onde olhava, só via o mar infinito.

"Quando chegar à América, vou ser rico", pensou ele. Estar tão perto do famoso conjunto Deli era tão excitante que era quase sexy. Algures naquele avião encontrava‑se uma fortuna em jóias e as suas mãos ansiavam por tocá‑la.

Um milhão de dólares de jóias renderia cem mil num passador. "Podia comprar uma casa no campo", pensou ele. "Ou talvez devesse investir e viver dos rendimentos." Mas primeiro tinha de se apoderar da mercadoria.

Lady Oxenford não levava as jóias postas, portanto elas tinham de estar num de dois sítios: na bagagem de mão —  ali mesmo no compartimento —  ou na bagagem que ia no porão. Harry começaria por verificar a bagagem de mão, que estava por baixo da cadeira de Lady Oxenford —  uma luxuosa maleta de cabedal cor de vinho com cantos de latão. Pôs‑se a magicar como iria abri‑la.

Havia de arranjar maneira, embora fosse arriscado; roubar era arriscado, mas de uma forma ou de outra ele acabava sempre por conseguir —  mesmo quando as coisas corriam mal. "Basta olhar para mim", pensou ele. "Ontem fui apanhado em flagrante, com botões de punho roubados no bolso, passei uma noite na cadeia, e hoje aqui vou eu para Nova iorque no Clipper da Pan American. Sorte? Só isso não chega."

O assistente, Nicky, trouxe o menu e explicou que, dado que a sala de refeições só dava para doze pessoas, o jantar seria servido em três turnos: às 6, 7 e 30 e 9 horas.

Harry percebeu que podia estar ali a sua oportunidade. Se os Oxenfords jantassem a uma hora diferente da dele, talvez conseguisse ficar sozinho no compartimento. Os ricos jantavam tarde, segundo Harry já percebera, portanto ele escolheu o primeiro turno.

O assistente voltou‑se para os Oxenfords, e Harry susteve a respiração.

—  Sete e meia, talvez —  disse Lady Oxenford.

Harry reprimiu um sorriso de satisfação, e o assistente virou‑se para o passageiro em frente de Harry, o homem do colete cor de vinho que parecia um policia. Ele dissera chamar‑se Clive Membury. "Diz sete e meia", pensou Harry, suplicante, "e deixa‑me sozinho no compartimento." Mas, para sua decepção, Membury escolheu as 9 horas.

Harry pediu uma taça de champanhe, e Lord Oxenford, um wisque com gelo.

O jovem Percy foi lá à frente conversar com os tripulantes fora de serviço, e Margaret veio sentar‑se junto de Harry. Ele reparou que ela era bastante alta, tinha ombros direitos, busto generoso e longas pernas. A sua indumentária não a favorecia, e Harry imaginou‑a de vestido comprido com um decote profundo, cabelo ruivo apanhado e brincos de esmeraldas do período indiano de Louis Cartier. Devia ficar um espanto.

Harry perguntou‑lhe se já tinha andado de avião.

—  Só até Paris, com a minha mãe —  respondeu ela.

"Só até Paris com a minha mãe", pensou Harry, maravilhado. A mãe dele nunca veria Paris nem andaria de avião.

—  A minha mãe costumava levar‑me à beira‑mar, a Margate - disse ele. —  E eu tomava banho e depois comprávamos gelados e peixe frito com batatas.

À medida que falava, ele lembrou‑se de que devia mentir sobre a sua infância e ficou um pouco assustado. Mas Margaret sabia o seu segredo e mais ninguém conseguia ouvir o que ele dizia devido ao ruído de fundo dos motores.

— Nós não íamos à beira‑mar —  disse Margaret tristemente. —  Só as pessoas ordinárias é que iam à praia. Eu tinha inveja das crianças pobres, que podiam fazer o que queriam. Eu nunca sequer entrei num bar. Nunca.

— Não perdeu grande coisa —  comentou Harry, que não gostava de bares. —  Come‑se melhor no Ritz.

— Cada um de nós prefere o estilo de vida do outro.

— Mas eu já experimentei ambos —  disse Harry —  e sei qual é o melhor.

Ela ficou pensativa por momentos e depois perguntou:

— O que é que vai fazer à vida?

Era uma pergunta estranha.

— Divertir‑me —  replicou Harry.

— Toda a gente quer divertir‑se. Mas o que é que vaifazer?

— O que faço agora. —  Impulsivamente, Harry decidiu dizer‑lhe algo que nunca dissera a ninguém. — Já leu um livro chamado OArrombador Amador, de Hornung? —  Ela abanou a cabeça. — É acerca de um cavalheiro‑ladrão chamado Rafíles, que fuma cigarros turcos, veste‑se maravilhosamente e é convidado para festas, onde rouba as jóias. Eu quero ser como ele.

— Ora, deixe‑se de patetices —  disse ela com brusquidão.

Ele ficou um pouco ofendido. Era o seu sonho, e agora que lhe abrira o coração sentia necessidade de a convencer de que estava a falar verdade.

— Não é patetice nenhuma —  declarou ele.

— Mas você não pode ser ladrão toda a vida —  insistiu Margaret. - Vai acabar por envelhecer na cadeia. Até o Robin dos Bosques, no fim, casou e assentou. O que é que você quer mesmo?

Normalmente, Harry respondia àquilo com uma lista de compras: um apartamento, um carro, fatos caros, jóias. Mas ele sabia que ela desprezaria isso. Embora Harry se ressentisse com a atitude dela, era verdade que as suas ambições não eram de facto tão materialistas. Ele queria muito que Margaret acreditasse nos seus sonhos, e, para sua surpresa, ouviu‑se a contar‑lhe coisas que nunca admitira a ninguém.

— Gostava de viver numa grande casa de campo, com hera a trepar pelas paredes. —  Fez uma pausa. De repente, sentiu‑se comovido e ficou envergonhado, mas queria muito contar‑lhe aquilo. —  Uma casa no campo, com um court de ténis e cavalariças e rododendros a ladear a entrada. —  Estava a imaginá‑la, e parecia‑lhe o sítio mais seguro e mais confortável do Mundo. —  Investia solidamente todo o meu dinheiro e dava festas no Verão, com morangos e natas. E gostava de ter cinco filhas, todas tão bonitas como a mãe.

— Cinco! —  riu‑se ela. —  É melhor casar com uma mulher forte. Mas tornou‑se logo séria. —  É um sonho muito bonito. Espero que se realize.

Ele sentiu‑se muito próximo dela, como se pudesse pedir‑lhe fosse o que fosse.

— E você? —  perguntou. —  Tem algum sonho?

— Quero contribuir no esforço de guerra —  explicou ela. —  Vou alistar‑me no SAT. Tinha um... amigo que foi morto pelos fascistas em Espanha e quero acabar o trabalho que ele começou. —  Depois ficou com um ar triste.

— Estava apaixonada por ele? —  perguntou Harry impulsivamente.

— Chamava‑se Ian —  respondeu Margaret, assentindo com a cabeça.

Ele percebeu que ela estava quase a chorar e tocou‑lhe no braço com simpatia.

— Ainda está apaixonada por ele?

— Hei‑de estar sempre um pouco. —  A voz dela não passava de um sussurro.

Harry queria tomá‑la nos braços e consolá‑la, e era o que teria feito se não fosse o pai dela, do outro lado do compartimento, a tomar um whisky e a ler o Times. Teve de se contentar em apertar‑lhe rápida e discretamente a mão. Ela sorriu, agradecida, parecendo compreender.

— O jantar está servido, Mr. Vandenpost —  anunciou o assistente de bordo.

Harry ficou espantado por já serem 6horas. Lamentava ter de interromper a conversa com Margaret. Tocou‑lhe de novo na mão e murmurou:

— Até já.

Passou para o compartimento seguinte e ficou um pouco surpreendido com a transformação de sala em casa de jantar. Havia três mesas de quatro lugares cada uma e duas mesinhas de apoio. Estavam postas como nos bons restaurantes, com toalhas e guardanapos de linho e louça branca com o símbolo azul da Pan American.

O serviço era rápido e a comida boa. Começaram com cocktail de camarão, seguido de bife de lombo com espargos à holandesa e puré de batata. Depois do bife, serviram uma salada e a sobremesa era pêssego Melba e doces.

Quando Harry voltou ao seu compartimento, Lord Oxenford perguntou abruptamente:

— Ojantar é bom?

Harry adorara, mas sabia que as pessoas da alta sociedade nunca eram muito entusiásticas em relação à comida.

— Não é mau —  respondeu em tom neutro.

Oxenford, fez um ruído de assentimento e voltou ao seu jornal. "Não há ninguém tão malcriado como um lorde malcriado", pensou Harry.

Margaret sorriu e pareceu contente por tornar a vê‑lo.

— Que tal é que era, a sério? —  perguntou ela num murmúrio cúmplice.

— Delicioso —  respondeu ele, e ambos se riram.

Harry pegou num exemplar da revista Life e começou a folheá‑la distraidamente enquanto esperava, impaciente, que ôs Oxenfords fossem jantar.

Finalmente, vieram chamá‑los, e Harry ficou sozinho com Clive Memburv. Na primeira parte da viagem, ele estivera na sala a jogar às cartas, mas agora que aquele compartimento fora transformado em casa de jantar, regressara ao seu lugar. Depois de passada meia hora e de ele ainda não se ter mexido, Harry decidiu tomar a iniciativa.

— Já viu a cabina de pilotagem, Mr. Membury? —  perguntou.

— Não.

— Parece que é fantástica. Dizem que é tão grande como o interior de um Douglas DC Três. —  Harry levantou‑se e olhou, expectante, para Membury. —  Vamos ver?

Membury hesitou por momentos, e parecia que ia recusar, mas depois levantou‑se, dizendo:

— Vamos a isso.

Harry foi à frente, passando pela cozinha e a casa de banho dos homens, subindo a escada de caracol. No topo, emergiu na cabina de comando, com Membury mesmo atrás de si. O comandante ergueu os olhos, sorriu prazenteiramente e cumprimentou‑os.

— Boa noite, meus senhores. Querem dar uma vista de olhos?

— Gostávamos muito —  replicou Harry. —  Podemos tirar fotografias?

— Sem dúvida.

— Então, vou buscar a máquina. Já volto.

Desceu a escada apressadamente, tenso mas satisfeito consigo mesmo. A busca teria de ser muito rápida.

Regressou ao compartimento. Estava um assistente na cozinha e outro na casa de jantar. Preferia ter esperado que estivessem os dois ocupados a servir à mesa, mas não havia tempo.

Puxou a maleta de Lady Oxenford de debaixo do banco e abriu‑a. Não estava fechada à chave, o que era mau sinal —  ela não ia deixar jóias valiosas numa mala aberta. Em todo o caso, ele vasculhou‑a apressadamente, olhando pelo canto do olho para o caso de aparecer alguém. Havia perfume e produtos de maquilhagem, um roupão, uma camisa de noite, chinelos —  mas jóias, não.

Harry praguejou silenciosamente, fechou a maleta e colocou‑a no mesmo sítio. Interrogou‑se se Lady Oxenford teria pedido ao marido para levar as jóias. Como os assistentes ainda estavam ocupados, decidiu aproveitar a oportunidade.

Puxou o saco de Lord Oxenford. Era um saco de fim‑de‑semana, de cabedal, com um fecho de correr em cima. Quando estava a analisar o conteúdo, apareceu o assistente baixote, Davy, com um tabuleiro de bebidas. Harry ergueu os olhos e sorriu. Davy olhou para o saco e seguiu para a casa de jantar. Assumira naturalmente que a bagagem pertencia ao próprio Harry.

Harry suspirou de alívio: tornara‑se um mestre a desarmar as suspeitas.

O saco de Oxenford continha o equivalente masculino do da sua mulher, e Harry fechou‑o e voltou a pô‑lo no sítio.

Por enquanto, nada de conjunto Deli.

Ele não acreditava que Lady Oxenford o tivesse deixado para trás, e dado que não o trazia na bagagem de mão nem o tinha posto, havia de estar na bagagem de porão. E essa era difícil de investigar.

Harry deixou o compartimento, passou pela cozinha e subiu a escada de caracol. Como é que conseguiria introduzir‑se no porão das bagagens? Nem sequer sabia onde ficava. Quando chegou lá acima, o comandante Baker explicava a Clive Memburv como navegavam sobre o mar sem pontos de referência.

— A maior parte do tempo estamos fora do alcance dos sinais de rádio e portanto as estrelas, quando as vemos, são o nosso melhor guia.

Memburv ergueu os olhos para Harry.

— Não trouxe a máquina? —  interrogou ele de imediato.

"Não há dúvida de que é polícia", pensou Harry.

— Esqueci‑me de comprar o rolo —  respondeu. —  Que parvoice, não é? —  Olhou em redor. —  Como é que vêem as estrelas daqui?

— Ah, o navegador vai até lá fora —  replicou o comandante, de cara séria. Depois, sorriu. —  Estava a brincar. Há um observatório; vou mostrar‑lhes. —  Abriu uma porta na traseira da cabina e passou, seguido por Harry, para um corredor estreito. O comandante apontou para cima. —  É aqui a cúpula de observação. —  Havia uma cúpula de vidro no tecto e um escadote pendurado num gancho na parede. —  O navegador sobe para ali de cada vez que há uma aberta nas nuvens. Tambem e por aqui que se carregam as bagagens.

— A, bagagem entra pelo tecto? —  perguntou Harry, interessado.

— É. Por aqui mesmo.

—  E vai para onde?

— Para os porões —  respondeu o comandante, apontando para duas portas, uma de cada lado do corredor.

Harry mal podia acreditar na sua sorte. Experimentou abrir uma das portas, que não estava trancada, e espreitou. Ali estavam as malas e as arcas dos passageiros, cuidadosamente atadas a postes metálicos para não se deslocarem durante o voo. Algures por ali estava o conjunto Deli.

Clive Memburv espreitou sobre o ombro de Harry e murmurou:

— Fascinante!

— Sem dúvida —  comentou Harry — , sem dúvida.

 

MARGARET estava muito bem‑disposta, até se esquecia de que não queria ir para a América e mal podia acreditar que se tornara amiga de um ladrão de verdade.

Conhecer Harry era a coisa mais interessante que lhe acontecera nos últimos tempos. Ele representava aquilo que ela sempre desejara: podia fazer tudo o que lhe apetecesse! Se quisesse dançar toda a noite e dormir todo o dia, podia fazê‑lo. Naquela manhã, decidira ir para a América, e à tarde estava a caminho. Era totalmente livre! Ela queria conhecê‑lo melhor e tinha pena de não jantar com ele.

O abastado sionista barão Gabon e Carl Hartmann estavam na mesa mais próxima da dos Oxenfords —  o pai deitara‑lhes um olhar venenoso quando eles entraram, presumivelmente por serem judeus — , que partilhavam com os americanos Ollis Field e Frank Gordon. Na terceira mesa, sentaram‑se Lulu Beli e a princesa Lavinia com os dois passageiros que tinham embarcado em Foynes, Mr. Lovesey e Mrs. Lenehan. Percy comentara que eles partilhavam a suite nupcial.

— A que horas é que chegamos à próxima paragem, Percy? —  perguntou a mãe ao sentarem‑se. Ele sabia sempre aquele tipo de coisas técnicas.

— O tempo de viagem até Botwood é de dezasseis horas e meia - informou Percy. —  Devemos chegar às nove da manhã, hora de Inglaterra, cinco da manhã, hora local.

— Os rapazes são tão bons nestes pormenores técnicos! —  murmurou a mãe.

Margaret ficava irritada quando a mãe se fazia de burra. Quando dizia que não era feminino entender coisas técnicas. Dissera‑lhe mais de uma vez que os homens não gostavam de raparigas demasiado espertas. Margaret já não discutia com ela, mas não acreditava naquilo. Na sua opinião, só os homens burros é que pensavam assim; os homens inteligentes gostavam de raparigas inteligentes.

De repente, tomou consciência de vozes ligeiramente alteradas na mesa próxima. O barão e Carl Hartmann discutiam e ela ouviu a palavra "Palestina". Deviam estar a falar do sionismo. Margaret deu uma olhadela nervosa ao pai, que também estava a ouvir e parecia mal‑humorado. Os assistentes de bordo trouxeram o prato principal, que a mãe recusou.

— Eu nunca como comida cozinhada —  explicou ela a Nicky. - Traga‑me uns legumes crus e caviar.

Da mesa próxima, Margaret ouviu o barão Gabon a dizer:

—  Temos de ter um Estado próprio... não há outra solução.

— Mas você admitiu que terá de ser um Estado militarizado —  replicou Hartmann.

— Para nos defendermos de vizinhos hostis —  argumentou Gabon.

— E admite que esse Estado terá de discriminar os Arabes em favor dos Judeus. Ora, o militarismo e o racismo em conjunto produzem o fascismo, que é exactamente aquilo contra o que nos batemos.

Margaret desejava que Gabon e Hartmann se acalmassem para que o pai não ouvisse, mas infelizmente não foi isso que aconteceu. Eles falavam de coisas que lhes eram caras, e Hartmann voltou a erguer a voz.

— Eu não quero viver num Estado racista!

Antes que alguém pudesse interrompê‑lo, o pai virou‑se e gritou:

— Vocês aí, seus judeuzecos, falem mais baixo!

Hartmann e Gabon ficaram a olhar para ele, atónitos.

Margaret sentiu‑se corar até à raiz dos cabelos. O pai falara muito alto e toda a sala ficou em silêncio. Ela virou‑se para o pai, furiosa.

— O pai acabou de insultar dois dos homens mais importantes da Europa!

— Dois dos judeus mais importantes da Europa —  corrigiu ele.

— Tenho de ir à casa de banho —  disse Percy, levantando‑se. - Estou enjoado.

— Foi esta gente que nos obrigou a fugir de casa! - sibilou o pai, mas depois ergueu de novo a voz: —  Se querem viajar connosco, é melhor aprenderem boas maneiras.

— Basta! —  disse uma nova voz.

Margaret olhou para o outro lado da sala. Era Mervyn Lovesey, que se levantara. Entretanto, Nicky saiu apressadamente e ela calculou que ele fosse pedir ajuda à cabina de comando. Lovesey atravessou a casa de jantar e encostou‑se à mesa dos Oxenfords com um ar perigoso.

— Agradeço‑lhe que guarde as suas opiniões para si próprio - disse ele num tom baixo e ameaçador.

— Não é nada da sua conta... —  começou o pai.

— Ai isso é que é —  interrompeu Lovesey. —  Hartmann é o físico mais célebre do Mundo. Trabalha na fissão nuclear e

— Estou‑me nas tintas para o que ele faz

— Isso, vindo de si, não me espanta. Mas eu não me estou nas tintas e considero as suas opiniões ofensivas. Estamos em guerra com pessoas como você.

— Deixe‑me em paz, está bem? - disse o pai em voz fraca.

— Eu deixo‑o em paz se o senhor se mantiver calado.

— Vou chamar o comandante...

— Não é preciso —  disse outra nova voz, e apareceu o comandante Baker. —  Eu estou aqui. Mr. Lovesey, importa‑se de se sentar?

— Eu sento‑me —  assentiu Lovesey. —  Mas não vou ficar a ouvir em silêncio enquanto o maior cientista da Europa é tratado por judeuzeco e mandado calar por este mentecapto.

Lovesey voltou para o seu lugar, e o comandante virou‑se para o pai.

— Talvez o senhor não se tenha exprimido bem, Lord Oxenford.

Margaret rezou para que o pai aceitasse aquela saída, mas para seu horror, ele tornou‑se mais agressivo.

— Eu chamei‑lhe judeuzeco, porque éo que ele é.

— Chega, pai! —  gritou ela.

Margaret percebeu que o comandante Baker estava a ficar furioso.

— Isto é um avião americano, Lord Oxenford, e regemo‑nos por regras de conduta americanas. Exijo que o senhor pare de insultar outros passageiros e aviso‑o de que tenho poderes para o mandar prender na nossa próxima escala.

Por momentos, o pai ficou silencioso. Margaret sentia‑se profundamente humilhada, considerando que o comportamento do pai se reflectia nela própria, e enterrou a cara nas mãos. Depois, ouviu o pai dizer:

— Eu volto para o meu compartimento. —  Margaret olhou e viu‑o levantar‑se e virar‑se para a mãe. —  Vamos?

O pai puxou‑lhe a cadeira e a mãe levantou‑se. Margaret sentiu todos os olhares pregados em si.

De repente, apareceu Harry, caído do céu, que pousou as mãos levemente nas costas da cadeira dela.

— Lady Margaret —  disse ele com uma pequena vénia.

Ela levantou‑se e ele puxou‑lhe a cadeira. Margaret sentiu‑se profundamente agradecida por aquele gesto de apoio.

A mãe afastou‑se da mesa com uma expressão imperscrutável e de cabeça erguida. O pai seguiu‑a.

Harry ofereceu o braço a Margaret. Era apenas um pequeno gesto, mas significou muito para ela. Embora estivesse terrivelmente corada, conseguiu sair da sala com dignidade. O compartimento irrompeu num zunzum excitado quando eles saíram.

— Foi muito simpático da sua parte —  disse ela a Harry. —  Nunca me senti tão humilhada na vida.

— Eu ouvi a discussão daqui —  disse ele baixinho. —  Sabia que estava a sentir‑se mal.

Quando Harry estava a ajudar Margaret a sentar‑se, apareceu Percy, vindo da casa de banho, não tendo presenciado a altercação. No entanto, parecia ter vivido uma aventura própria.

— Ouçam só! —  disse ele para o compartimento em geral. - Acabo de ver Mr. Membury na casa de banho, e ele tem um coldre debaixo do casaco com uma pistola!

 

 

O CLiPPER aproximava‑se do ponto crítico a partir do qual deixaria de ser possível voltar atrás.

Eram 10 da noite, hora inglesa, e Eddie Deakin estava preocupado, porque sabia que o nível de combustível estava baixo. Sentado no seu posto, verificava ansiosamente o consumo no gráfico e via que o traço vermelho —  que indicava o consumo real —  estava consideravelmente acima do traço a lápis da estimativa. Aquilo era quase inevitável, porque ele falsificara a estimativa, mas a diferença era maior do que previra devido ao agravamento das condições meteorológicas.

Começou a ficar mais preocupado à medida que calculava a distância que o avião podia percorrer com o que restava nos depósitos. Quando fez os cálculos baseado só em três motores —  o que era obrigado a fazer pelas regras de segurança-, descobriu que não tinham combustível suficiente para chegar à Terra Nova.

Era por muito pouco; com quatro motores, o combustível seria suficiente. Além disso, na pior das hipóteses, podiam decidir atravessar o centro da depressão, encurtando a distância. Os passageiros que aguentassem o desconforto.

À esquerda de Eddie, o operador de rádio, Ben Thompson, de cabeça inclinada sobre a consola, transcrevia uma mensagem em código Morse. Na esperança de que se tratasse de um boletim anunciando uma melhoria do tempo, Eddie debruçou-se sobre ele e leu.             A mensagem deixou‑o atónito e confuso: era do FBI, dirigida ao passageiro Ollis Field, e dizia:

 

RECEBEMOS INFORMAÇÕES DE QUE TALVEZ SE ENCONTREM A

BORDO COLABORADORES DE CRIMINOSOS CONHECIDOS. TOME

PRECAUÇÕES EXTRAS COM O PRISIONEIRO.

 

O que significava aquilo? Teria algo a ver com o rapto de Carol‑Ann? As possibilidades entrechocavam‑se na mente de Eddie. Ben arrancou a folha do bloco e passou‑a ao comandante Baker.

— É melhor dar uma olhadela a isto, comandante.

O comandante leu a mensagem alto e comentou:

— Isto cheira‑me a esturro. Ollis Field deve ser agente do FBI.

— É um dos passageiros? —  inquiriu Eddie.

— E —  respondeu Jack Ashford, o navegador. —  Viaja com um tipo mais novo com um fato espampanante. Formam um par estranho.

— O miúdo deve ser o prisioneiro —  disse Baker. Chama‑se Frank Gordon. Estão no compartimento quatro.

— Frank Gordon —  matutou Jack. —  Já ouvi esse nome. Esperem lá... Aposto que é Frankie Gordino!

Eddie conhecia Gordino dos jornais. Era um homem de mão de uma quadrilha da Nova Inglaterra, procurado por um crime relacionado com o dono de um clube de Boston que se recusara a pagar "dinheiro de protecção". Gordino entrara no clube, disparara contra o dono, violara a namorada dele e deitara fogo às instalações. Embora o homem tivesse morrido, a rapariga conseguira escapar ao fogo e identificara Gordino através de fotografias.

— Já vamos descobrir se é ele —  disse Baker. —  Eddie, faz‑me um favor: vai pedir ao tal Ollis Field que chegue cá acima.

— Certo. —  Eddie pôs o boné e desceu a escada.

No lugar virado para trás do lado de bombordo do compartimento 4 ia um homem careca dos seus quarenta anos. à sua frente, estava um homem mais novo, muito mais bem‑vestido, de cara balofa com uma expressão de criança mimada: Gordino.

Eddie dirigiu‑se ao homem mais velho.

— Mr. Field? O comandante gostava de lhe dar uma palavrinha, se não se importa.

A expressão de Field alterou‑se com um ligeiro franzir de sobrolho.

— Com certeza —  respondeu ele, desapertando o cinto e levantando‑se.

A caminho da cabina superior, Eddie avistou Tom Luther, e os olhares de ambos cruzaram‑se. Nesse preciso instante, ele teve uma súbita inspiração: a missão de Tom Luther era resgatar Frankie Gordino!

Tudo se tornava claro. Frankie Gordino fora forçado a fugir dos Estados Unidos, mas o FBI descobrira‑o em Inglaterra e conseguira a sua extradição. Fora decidido que viajaria de avião, mas os seus comparsas haviam descoberto isso e iam tentar retirá‑lo do avião antes da chegada à América.

Eddie sentia‑se horrorizado porque, para salvar Carol‑Ann, tinha de ajudar um assassino a escapar.

— Aqui está Mr. Field, comandante —  apresentou ele.

O comandante Baker estava sentado à mesa de reuniões com a mensagem na mão. Olhou para Field, mas não o convidou a sentar‑se.

— O senhor é agente do FBI? —  perguntou.

— Sou, e estou a escoltar um prisioneiro extraditado para ser julgado nos Estados Unidos. Chama‑se Frank Gordon.

— Também conhecido por Frankie Gordino?

— Exactamente.

— Quero que saiba que tenho fortes objecções a que tenha introduzido um perigoso assassino a bordo do meu avião sem me dizer nada.

— Se sabe o nome real do criminoso, sabe provavelmente também que ele é um homem de mão de Raymond Patriarca. Aterroriza, tortura e mata pessoas por ordem de Patriarca. Por razões de segurança, não podíamos avisá‑lo da presença dele a bordo.

— Ouça, Field, a sua segurança mete nojo —  disse Baker. —  A quadrilha Patriarca sabe de tudo. —  Estendeu‑lhe a mensagem.

Field leu‑a e empalideceu.

— Tenho de saber quem são os passageiros "colaboradores de criminosos conhecidos" — continuou o comandante. —  Se o senhor conseguir identificá‑los, expulso‑os do avião na próxima escala.

"Eu sei quem eles são", pensou Eddie. "Tom Luther e eu."

— Transmita a lista completa dos passageiros e da tripulação ao FBI —  instruiu Field. —  Eles fazem uma investigação de todos os nomes.

Eddie foi percorrido por um arrepio. Se Tom Luther fosse denunciado por aquela investigação, era o fim de tudo. O comandante pegou na lista dos passageiros e tripulação e deu‑a ao operador de rádio.

— Manda já isto, Ben —  disse ele. Ben Thompson começou a enviar a mensagem em Morse, e o comandante virou‑se para Field. - Mais uma coisa: tenho de pedir‑lhe que me entregue a sua arma.

— Eu estou a escoltar um homem perigoso —  objectou Field. - Preciso dela.

Pelo canto do olho, Eddie viu qualquer coisa a mexer‑se atrás da porta aberta que dava para a cúpula de observação e para os porões da bagagem. Entretanto, o comandante Baker disse:

— Tira‑lhe a arma, Eddie.

Eddie apalpou por debaixo do casaco de Field e tirou‑lhe a arma; depois, deu dois passos rápidos e empurrou a porta para trás.

Era o jovem Percy Oxenford.

— De onde é que apareceste? —  O comandante Baker olhava‑o severamente.

— Há uma escada junto da casa de banho das senhoras —  explicou Percy. —  E consegue‑se vir de gatas até aqui.

Eddie ainda tinha a arma de Ollis Field e colocou‑a na gaveta da mesa de cartas.

— Volta para o teu lugar, meu jovem —  ordenou o comandante.

Um pouco assustado, Percy escapuliu‑se escada abaixo.

— Há quanto tempo estava ele ali, Eddie?

— Não sei, comandante. Provavelmente, ouviu a conversa toda.

— Lá se vai a nossa esperança de esconder isto dos passageiros. Por momentos, Baker aparentou cansaço. —  Pode voltar para o seu lugar, Mr. Field. —  Ollis Field virou costas e saiu sem uma palavra. - Mãos à obra, rapazes —  concluiu o comandante.

A tripulação voltou aos seus postos. Eddie verificava os seus manómetros automaticamente, embora o seu espírito estivesse em ebulição. Olhando para o relógio, viu que era meia‑noite.

Jack Ashford deu‑lhe a posição estimada do avião; era o melhor que podia fazer, pois não conseguira tirar um ponto a uma estrela. Ben Thompson leu as mais recentes previsões meteorológicas —  era uma tempestade violenta. Eddie assentou um novo conjunto de números dos manómetros e começou a actualizar os seus cálculos.

— Como é que estamos, Eddie? —  interrogou o comandante.

— Ainda não acabei.

— Despacha‑te. Devemos estar próximo do ponto de não‑retorno.

Eddie sentiu uma gota de suor escorrer‑lhe pela face. A situação estava pior do que às 10 horas. Nem sequer com os quatro motores havia combustível suficiente para chegarem ao seu destino seguindo a rota definida pelo comandante —  a margem de segurança esvaíra‑se. A única solução era encurtar a viagem atravessando a tempestade, e mesmo assim, se se avariasse um dos motores, estavam perdidos.

— Então, Eddie —  insistiu o comandante. —  Qual é a sentença? Seguimos ou voltamos para Foynes?

Eddie rangeu os dentes.

— Está preparado para alterar o rumo e atravessar a tempestade? - perguntou. —  Ou isso ou voltamos para trás.

Todos detestavam ter de voltar para trás no meio do Atlântico.

— Que se dane! —  exclamou Baker. —  Atravessamos a tempestade.

 

 

DIANA LOVESEY estava furiosa com o marido, Mervyn, por ter apanhado o Clipper em Foynes. Em primeiro lugar, sentia‑se profundamente embaraçada com a sua perseguição e tinha medo que as pessoas considerassem a situação uma comédia. Mas, mais importante ainda, ela não queria a nova oportunidade que ele lhe dava de mudar de opinião. Ela tomara a sua decisão, mas Mervyn recusara‑se a aceitá‑la como final, e de certa maneira isso minava a sua determinação. Por último, ele estragara completamente o seu prazer na viagem. Devia ser a viagem da sua vida, um passeio romântico com o seu apaixonado, mas ela receava tocar em Mark, dar‑lhe um beijo ou pegar‑lhe na mão, não fosse Mervyn aparecer no compartimento.

Diana não tinha a certeza de qual era o lugar de Mervyn. Talvez, se soubesse onde ele viajava, conseguisse deixar de pensar que ele ia aparecer a qualquer momento. Decidiu ir à casa de banho das senhoras e procurá‑lo no caminho.

Ela ia no compartimento 4. Espreitou para o da frente, o número 3, mas Mervyn não se encontrava lá. Também não estava na sala nem nos compartimentos 2 e 1. Voltando atrás, dirigiu‑se à traseira do avião, agarrando-se a todas as pegas possíveis enquanto o aparelho tremia e saltava. Passou pelo compartimento 5 e viu que ele também ali não estava, e a maior parte do 6 era ocupado pela casa de banho das senhoras, a estibordo, deixando apenas lugar para duas pessoas a bombordo. Esses lugares estavam ocupados. Subitamente, Diana compreendeu que ele devia estar na suite nupcial e logo a seguir lembrou‑se de que não vira Mrs. Lenehan em nenhum lugar. Era uma vergonha! Deviam viajar os dois na suite nupcial!

 

MARGARET OXENFORO estava furiosa e envergonhada. Tinha a certeza de que os outros passageiros estavam a pensar na cena horrível da casa de jantar, presumindo que ela partilhava as vergonhosas opiniões do pai. Ela sentia‑se extremamente indignada com ele por colocá‑la em tal posição.

Nas duas horas a seguir ao jantar, instalara‑se um silêncio gelado no compartimento deles. Quando o tempo começara a piorar, a mãe e o pai tinham‑se retirado para mudar de roupa. Harry desaparecera, presumivelmente para ir à casa de banho dos homens, e depois aparecera Nicky, o assistente, para converter um dos bancos em dois beliches. Margaret estava curiosa por ver como aquilo se fazia.

Primeiro, Nicky tirou todas as almofadas e desencaixou os apoios dos braços. Esticando‑se sobre o assento, abriu dois painéis na parede à altura do peito, revelando dois ganchos. Inclinando‑se sobre o assento, desapertou uma correia e puxou uma armação chata que pendurou nos ganchos, formando a base do beliche de cima. O lado de fora encaixava‑se numa frincha na parede lateral. Margaret estava a pensar que aquilo não tinha um ar nada firme quando Nicky pegou em dois postes sólidos e os prendeu à armação superior e à inferior, formando os pés do beliche. Assim já parecia mais resistente.

Voltou a colocar as almofadas no assento para a cama inferior e usou as almofadas das costas como colchão da cama superior. Tirando lençóis azul‑claros de debaixo do assento, fez as camas em movimentos destros e eficientes.

O beliche tinha um ar confortável, mas terrivelmente devassado. No entanto, Nicky foi buscar uma cortina azul‑escura com ganchos e pendurou‑a numa cornija no tecto. Prendeu a cortina com molas à armação do beliche e deixou uma entrada triangular, como a de uma tenda. Por fim, abriu um pequeno escadote e colocou‑o em posição para a pessoa subir para o beliche de cima.

Virando‑se para Margaret e Percy com um ar satisfeito, como se tivesse feito um truque de magia, disse:

— Quando quiserem as camas feitas, digam‑me, que é um instante.

Margaret decidiu preparar‑se para se deitar e, pegando na sua maleta, dirigiu‑se para a casa de banho para se mudar. A mãe vinha mesmo a sair, lindissima no seu roupão encarnado‑escuro.

— Até amanhã, querida —  disse ela.

Na casa de banho cheia, Margaret vestiu a camisa de noite de algodão e o roupão de turco. Em comparação com as sedas e caxemiras coloridas das outras mulheres, a sua indumentária parecia muito sem graça, mas ela não se importava. Quando voltou para o compartimento, o pai e a mãe já estavam na cama atrás da cortina corrida. Como a cama dela não estava feita, Margaret teve de esperar na sala.

Mrs. Lenehan, a mulher atraente que entrara em Foynes, veio sentar‑se junto dela, de roupão azul‑claro e camisa de noite preta, e fez um movimento com a mão abrangendo os passageiros.

— Isto parece uma festa de pijamas, não parece?

Margaret nunca ouvira falar de tal coisa, por isso limitou‑se a comentar:

— É muito estranho, parece que somos todos uma família.

— Acho que é impossível ser‑se formal em camisa de noite —  disse Mrs. Lenehan, apertando o cinto. —  Até Frankie Gordino estava bonitinho de pijama encarnado, não estava?

Primeiro, Margaret não percebeu a quem ela se referia, mas depois lembrou‑se de que Percy ouvira uma discussão entre o comandante e um agente do FBI.

— Quer dizer, o prisioneiro?

— Sim. Toda a gente estava a falar dele e a dizer que Olus Field o algemara ao beliche.

— Não tem medo dele?

— Acho que não. Ele não me faz mal.

— Mas dizem que ele é um assassino. E ainda pior

— Há‑de sempre haver delinquência nos bairros de lata. Se tiram Gordino de lá, outro se encarrega dos assassínios. Eu deixava‑o lá ficar. O jogo e a prostituição existem há muito tempo e, se tiver de existir crime, prefiro que seja organizado.

Era uma ideia bastante chocante.

— Não seria melhor o crime ser desorganizado? —  perguntou Margaret.

— Evidentemente que não. Se for organizado, está delimitado: cada quadrilha tem o seu território e não sai de lá. Não matam pessoas na Quinta Avenida nem exigem dinheiro para protecção nos clubes da Baixa; portanto, porque não deixá‑los em paz?

— E os pobres desgraçados que esbanjam o dinheiro no jogo?

— Eu não tenho pena deles —  explicou Mrs. Lenehan. —  Ouça - continuou‑, eu tenho uma fábrica de sapatos. Os meus sapatos de homem são baratos e duram cinco ou dez anos. Se quiser, pode comprar sapatos ainda mais baratos, mas que não prestam, têm solas de cartão e duram dez dias. Pois bem, eu considero que faço a minha obrigação ao fabricar bons sapatos. Se as pessoas são burras ao ponto de comprarem sapatos maus, eu não posso fazer nada. E se são burras ao ponto de gastarem o dinheiro no jogo quando nem sequer têm que chegue para jantar, também não é problema meu.

Margaret não podia aceitar aquilo.

— Mas há razões para as pessoas jogarem e roubarem e venderem os seus corpos. Não são só burras: são vítimas de um sistema cruel.

— Parece‑me que você é uma espécie de comunista —  comentou Mrs. Lenehan, mas sem hostilidade.

—  Socialista —  corrigiu Margaret.

— Pelo menos, adoptou os ideais do seu pai —  disse Mrs.

Lenehan com um sorriso.

— Contaram‑lhe a cena do jantar. —  Margaret corou.

— Eu estava lá.

— Eu tenho de me afastar dos meus pais.

— O que é que a retém?

— Eu tentei fugir —  disse Margaret. —  Mas não tenho dinheiro nem habilitações. Nunca tive instrução capaz.

— Querida, você vai a caminho da América. A maioria das pessoas chegou lá com menos do que você, e muitas delas tornaram‑se milionárias. Você sabe ler e escrever, tem personalidade, é inteligente e bonita. Arranja facilmente um emprego. Eu própria era capaz de empregá‑la.

O coração de Margaret parou‑lhe no peito.

— A sério?

— Claro. Colocava‑a no escritório de vendas: a colar selos, a atender o telefone, a ser simpática com os clientes.

Margaret pensou que era um sonho impossível.

— Oh, meu Deus, um verdadeiro emprego num verdadeiro escritório. Está mesmo a falar a sério? Se eu aparecer no seu escritório na semana que vem, dá‑me trabalho?

Mrs. Lenehan ficou surpreendida.

— Você está mesmo interessada, não está?

Margaret sentiu o coração cair‑lhe aos pés.

— Então, estava a falar só por falar?

— Eu gostava de empregá‑la, mas há um problema: daqui a uma semana, talvez nem eu tenha trabalho.

— O que é que quer dizer com isso? —  Margaret estava quase a chorar.

— O meu irmão está a tentar roubar‑me a companhia. Eu vou resistir, mas não sei como tudo vai acabar.

— Tem de ganhar —  disse Margaret ferozmente.

Antes de Mrs. Lenehan ter tempo de responder, apareceu Harry, resplandecente num pijama encarnado e roupão azul. Margaret acalmou‑se ao vê‑lo e apresentou‑o a Mrs. Lenehan. Ele sentou‑se e comentou:

— Não pude deixar de reparar nos seus brincos, Mrs. Lenehan. São uma beleza.

— Obrigada —  agradeceu ela com um sorriso.

— São da Colecção Fulco di Verdura? —  perguntou Harry.

— Não faço ideia —  replicou Mrs. Lenehan, acrescentando com perspicácia: —  É raro os jovens interessarem‑se por jóias.

Margaret sentiu vontade de avisá‑la: "Ele está principalmente interessado em roubá‑las, por isso cuidado." Mas na realidade ficara impressionada com os conhecimentos de Harry.

— Vou andando para a cama —  disse Mrs. Lenehan, levantando‑se.

— Boa sorte —  desejou‑lhe Margaret, pensando na guerra dela com o irmão.

— Obrigada. Até amanhã.

O avião estava a atravessar muita turbulência, e enquanto Mrs. Lenehan se afastava, Harry perguntou, um pouco ciumento:

— De que é que estavam a falar?

— Nancy Lenehan ofereceu‑me emprego —  informou Margaret — , mas não sabe se pode cumprir a promessa porque o irmão está a tentar roubar‑lhe a companhia. Espero que ela ganhe. Não quero ir para Stamford com os meus pais, mas não faço a menor ideia de como arranjar trabalho nem casa.

Harry fitou‑a e depois desviou o olhar, como se, por uma vez, não soubesse bem o que fazer.

— Sabe, se quiser, eu não me importo de lhe dar uma ajuda.

— A sério?

— Eu acho que vou arranjar alojamento em Nova iorque —  continuou ele. —  Tenho algum dinheiro e em breve arranjo mais. Posso ajudá‑la a encontrar um quarto.

— Isso seria maravilhoso replicou ela, tremendamente aliviada.

— Eu nunca procurei alojamento e não faço ideia de como seja.

— Procura‑se nos jornais —  informou ele. —  Têm anúncios. Os da tarde são os melhores.

Margaret sentia‑se uma tonta por não saber uma coisa tão simples.

— Estou‑lhe tão agradecida! Nem sei o que dizer.

Davy entrou na sala e Margaret percebeu que, nos últimos cinco minutos, o avião voava muito mais suavemente.

— Por favor, espreitem pelas janelas de bombordo —  anunciou Davy. —  Vão ver uma coisa daqui a nada.

Margaret olhou, e Harry desapertou o cinto e aproximou‑se dela para espreitar sobre o seu ombro. O avião inclinou‑se para bombordo e logo a seguir Margaret viu que sobrevoavam a pouca altitude um grande paquete, iluminado como uma árvore de Natal. Margaret estava muito consciente da proximidade de Harry e não se importava nada. A tripulação do Clipper devia ter comunicado pelo rádio com o navio, porque os passageiros do barco estavam todos nas cobertas olhando para o avião e acenando. Estavam tão perto que Margaret via as suas roupas: os homens envergavam smoking branco, e as mulheres, vestido comprido. Foi um momento especial —  Margaret sentia‑se encantada. Olhou para Harry e sorriram um ao outro, partilhando a magia. Ele pôs a sua mão direita na cintura dela, do lado escondido pelo seu próprio corpo, onde ninguém podia ver. Foi um toque leve como uma pena, mas ela sentiu‑o como se fosse uma queimadura. Ficou corada e perturbada, mas não queria que ele tirasse a mão. Passado pouco tempo, o barco afastou‑se e as luzes desapareceram. Os passageiros do Clipper voltaram aos seus lugares, e Harry sentou‑se.

Foram saindo mais pessoas para se deitarem, ficando na sala só os jogadores de cartas com Margaret e Harry. Margaret sentia‑se embaraçada, sem saber o que fazer, e ouviu a sua própria voz dizer:

— É tarde. É melhor irmo‑nos deitar. — "Porque é que eu disse isto? Eu não quero ir deitar‑me! "

Harry ficou desapontado.

— Eu vou mais daqui a bocado.

— Muito obrigada pela sua oferta de ajuda —  disse Margaret, levantando‑se.

— De nada —  respondeu ele.

"Porque é que estamos a ser tão formais?", interrogou‑se Margaret. "Eu não quero despedir‑me assim."

— Durma bem —  disse.

— Igualmente.

Ela virou costas e depois voltou‑se novamente para ele.

— Estava a falar a sério acerca da ajuda, não estava? Não vai desapontar‑me?

A expressão de Harry suavizou‑se e ele deitou‑lhe um olhar quase ternurento.

— Eu não a desaponto, Margaret. Prometo.

Ela sentiu‑se terrivelmente atraida por ele. Subitamente, sem pensar, debruçou‑se e beijou‑o. Foi apenas um leve roçar da sua boca na dele, mas ela sentiu o desejo invadi‑la como um choque eléctrico. Endireitou‑se imediatamente, surpreendida com o que fizera e com o que sentia. Entreolharam‑se por momentos e depois ela saiu da sala.

Sentia as pernas fracas. Olhando em redor, viu que Mr. Membury ocupara o beliche de cima de bombordo, deixando o de baixo livre para Harry. Percy também se deitara num beliche superior. Margaret entrou no de baixo e correu a cortina.

"Dei‑lhe um beijo", pensou, "e gostei."

Enfiou‑se debaixo dos lençóis e apagou a luzinha de cabeceira. Era como estar numa tenda. Sentia‑se muito aconchegada.

No momento em que estava a pensar aquilo, ouviu um leve toque na cortina. Abrindo‑a ligeiramente, deparou com Harry.

— Quero outro beijo —  sussurrou ele.

Margaret ficou tão contente como horrorizada.

— Não seja tonto!

— Por favor. Ninguém vê.

Era um pedido indecente, mas ela sentia‑se bastante tentada. Quase involuntariamente, abriu um pouco mais a cortina. Ele enfiou a cabeça pela abertura e fez‑lhe um olhar suplicante. Era irresistível. Ela beijou‑lhe a boca e foi uma sensação inebriante, mas de súbito Percy mexeu‑se no beliche de cima, fazendo‑a lembrar‑se de onde estava, e Margaret entrou em pânico. Como é que podia fazer uma coisa daquelas: beijar em público um homem que mal conhecia. Se o pai descobrisse, era o fim do Mundo! Recuou, ofegante.

— Deixe‑me entrar —  pediu Harry, inclinando‑se mais para dentro.

— Não seja doido! —  ciciou ela.

— Por favor.

Ele fez um ar desiludidíssimo e ela ficou com pena.

— Você é o homem mais simpático que eu conheci nos últimos tempos. Talvez até seja o homem mais simpático que jamais conheci. Mas não a esse ponto. Vá deitar‑se.

Ele percebeu que ela estava a falar a sério e fez‑lhe um Sorriso encantador, preparando‑se para falar, mas Margaret fechou‑lhe a cortina na cara.

Ela deitou‑se para trás, sorrindo no escuro, revivendo o beijo. "Foi de sonho", pensou.

De repente, ocorreu‑lhe que talvez estivesse a cometer um erro terrível. Ela queria Harry, desejava‑o, mas tinha‑o recusado. Porquê? Porque tinha medo.

"E se o avião cair?", pensou. Aqueles voos ainda eram recentes. Naquele momento, encontravam-se a meio caminho entre a Europa e a América, a centenas de quilómetros de terra. Se algo corresse mal, morreriam todos num instante, e o seu último pensamento seria de arrependimento de não ter dormido com Harry Marks.

Enfiou as mangas do roupão, abriu a cortina e sentou‑se. O beliche de Harry estava escondido pela cortina dele. Margaret enfiou os pés nos chinelos e levantou‑se. Quase todos os passageiros já estavam deitados, e ela ficou ali desejando que Harry abrisse a cortina, mas ele não abriu.

Margaret sempre fora temerosa.

Mas também nunca desejara tanto o que quer que fosse.

Agitou a cortina de Harry.

Não aconteceu nada, e ela sacudiu de novo a cortina.

Logo a seguir, Harry espreitou.

Entreolharam‑se em silêncio —  ele atónito, ela muda. Depois, cedendo a um impulso irresistível, Margaret empurrou Harry para trás, subiu para o beliche e fechou a cortina.

Ela não tinha uma ideia muito clara do que queria que acontecesse; só sabia que queria estar com Harry. Harry, pelo contrário, sabia exactamente o que queria. Inclinou‑se para a frente, pôs a mão por detrás da cabeça dela, puxou‑a para si e beijou‑a na boca.

Após um momento de hesitação, ela abandonou quaisquer pensamentos de resistência e entregou‑se às sensações.

 

 

EDDIE DEAKIN mantinha um autodomínio rígido, mas sentia‑se como uma panela de pressão tapada, um vulcão prestes a entrar em erupção. Estava a conseguir fazer as suas tarefas, mas à justa.

Devia sair de quarto às duas da manhã, e à medida que se aproximava o fim do seu turno, falsificou mais um conjunto de leituras de combustível. Anteriormente, calculara o consumo por baixo para dar a impressão de que havia apenas combustível suficiente para completar a viagem, de modo que o comandante não voltasse para trás. Naquela altura, calculou os números por cima, para compensar, de modo que quando o seu substituto, Mickey Finn, entrasse de serviço e lesse os manómetros não houvesse discrepâncias. O gráfico mostraria o consumo a variar loucamente, mas Eddie justificaria isso com as más condições atmosféricas. De qualquer modo, Mickey era o menor dos seus problemas. A ansiedade mais profunda, aquela que lhe apertava o coração como uma mão gelada, era a de que o avião ficasse sem combustível antes de chegarem à Terra Nova.

Já não tinham reserva de segurança para emergências, tais como a falha de um motor. Se algo corresse mal, o Clipper mergulharia no tempestuoso Atlântico, afundando‑se em pouco tempo. Não haveria sobreviventes.

Mickey apresentou‑se um pouco antes das duas horas, e Eddie disse:

— Estamos à pele. Já informei o comandante.

Mickey assentiu com a cabeça e pegou na lanterna eléctrica. A sua primeira tarefa ao entrar de quarto era fazer uma verificação visual dos quatro motores.

Eddie deixou‑o e desceu para a cozinha. Serviu uma caneca de café e foi sentar‑se no compartimento 1. Antes de o café ter tempo de arrefecer, foram apanhados em cheio pela tempestade. Enquanto o avião prosseguia no seu caminho atribulado, Eddie tentava reprimir a sua raiva surda e rever as suas hipóteses.

Tinha de obrigar o Clipper a pousar no mar ao largo da costa do Maine. Estaria lá uma lancha rápida à espera, que se aproximaria deles. O comandante pensaria que eles vinham oferecer ajuda e talvez os convidasse a entrar a bordo. Se não convidasse, Eddie abria‑lhes a porta, os gangsters dominavam Ollis Field e resgatavam Frankie Gordino.

Eddie tentava desesperadamente congeminar uma maneira de estragar os planos de Luther, mas deparava sempre com o mesmo senão: Carol‑Ann. Se Eddie não lhes entregasse Gordino, eles não lhe entregavam Carol‑Ann.

"Espera lá", lembrou‑se ele. Porque é que Gordino havia de ser libertado primeiro? Uma troca de reféns devia ser simultânea.

Como é que se efectuaria a troca? Eles tinham de trazer Carol‑Ann na lancha que ia levar Gordino. "Porque não? Porque não?"

Eddie interrogou‑se freneticamente sobre se haveria tempo para combinar as coisas. Se Tom Luther concordasse, a primeira hipótese que ele teria de contactar os seus cúmplices seria na próxima paragem, em Botwood, Terra Nova, onde o Clipper devia chegar às 9 da manhã, hora inglesa.

Eddie levantou‑se e, agarrando‑se a tudo o que podia, foi caminhando com dificuldade pelo avião oscilante até à sala.

Luther era um dos que ainda não se tinham ido deitar. Estava a um canto da sala, com um whisky, mas não estava ajogar às cartas. Eddie tocou‑lhe no ombro e disse:

— O comandante gostaria de falar consigo, Mr. Luther.

Ansioso, Luther pousou a revista, desapertou o cinto e levantou‑se.

Eddie levou‑o para fora da sala, passando pelo compartimento 2, mas em vez de subir a escada para o cockpit, abriu a porta da casa de banho dos homens, segurando‑a para Luther entrar.

Felizmente, não estava lá ninguém.

— Que raio se passa? - inquiriu Luther.

— Cale‑se e ouça —  disse Eddie. Não planeara ser agressivo, mas Luther punha‑o doido. —  Eu sei o que é que você quer. Já deslindei o plano e quero fazer uma alteração. Quando eu obrigar o avião a pousar, quero Carol‑Ann no barco, à espera.

— Você não pode fazer exigências, amigo - replicou Luther, desdenhoso.

Eddie não contara que ele cedesse imediatamente, portanto tinha de fazer bluff

— Muito bem - disse com quanta convicção conseguiu arranjar —  então a combinação fica sem efeito.

Luther pareceu ficar um pouco preocupado, mas insistiu:

— Você quer a sua mulherzinha, por isso vai fazer o que nós queremos.

Era verdade, mas Eddie abanou a cabeça.

— Não confio em si. Mesmo que eu faça tudo o que você quer, você pode trair‑me e eu não vou correr esse risco. Quero um acordo diferente.

— Nem pensar. - A confiança de Luther mantinha‑se.

Era altura de Eddie jogar O seu trunfo.

— Eu conto tudo ao comandante. Você é expulso do avião e a Polícia está à sua espera na próxima escala. Você vai dentro... No Canadá, onde os seus comparsas não conseguem soltá‑lo, é acusado de rapto, pirataria... Ora, Luther, é capaz de nunca mais ser libertado.

Luther ficou finalmente abalado.

— Já está tudo preparado —  protestou. —  É tarde demais para alterar os planos.

— Não é nada —  objectou Eddie. —  Você pode contactar o seu pessoal na próxima escala e diz‑lhes o que fazer. Têm sete horas para embarcar Carol‑Ann na lancha. Há muito tempo.

— Está bem. Eu falo‑lhes.

Luther cedeu subitamente, e Eddie não acreditou nele —  a mudança fora demasiado rápida.

— E quando a lancha vier ao encontro do Clipper —  continuou Eddie — , só abro as portas quando vir Carol‑Ann no convés. Entendido? Se não a vir, dou o alarme e você é dominado antes de conseguir franquear‑lhes a entrada, e a Guarda Costeira chega junto de nós antes de os seus cúmplices nos assaltarem. Portanto, assegure‑se de que tudo corre bem, senão estão todos mortos.

— Está bem, está bem —  assentiu Luther. —  Eujá disse que sim.

Eddie saiu. Pelo menos, agora tinha razões para ter esperança.

 

NANCY LENEHAN achava perturbante estar deitada no mesmo quarto que um desconhecido.

Como Mervyn Lovesey lhe assegurara, a suite nupcial, apesar do nome, tinha beliches separados. No entanto, devido ao temporal, ele fora incapaz de prender a porta de modo a ficar aberta. Independentemente do que ele tentava, a porta fechava‑se sempre, até que decidiram que era menos embaraçoso deixá‑la fechada do que insistir naquela comédia.

Tinham‑se deitado e apagado a luz, mas Nancy não tinha o mínimo dos sonos, e percebia que Mervyn também estava acordado. Ouvia cada movimento que ele fazia no beliche por cima do seu. Ao contrário dos dos outros compartimentos, os beliches da suite nupcial não eram fechados com cortinas, e só a escuridão proporcionava alguma privacidade.

Há algum tempo que o avião saltava e balançava, o que tornava Nancy ainda mais agitada e nervosa, e passada uma hora os movimentos tornaram‑se muito piores. De repente, pareceu‑lhe que o avião ia em queda livre e ela ficou aterrada. Enquanto a queda continuava, ela não conseguiu evitar um gemido de pavor. Depois, finalmente, sentiu‑se uma pancada e o avião pareceu endireitar‑se. Logo a seguir, Nancy sentiu a mão de Mervyn no ombro.

— É só um temporal —  assegurou ele. —  Já passei por pior. Não há perigo.

Nancy procurou a mão dele e apertou‑a com força. Mervyn sentou‑se na beira do beliche dela e fez‑lhe uma festa no cabelo, enquanto o avião se mantinha estável. Nancy ainda estava assustada, mas já se sentia melhor; estar de mão dada nos momentos piores era uma ajuda.

Por fim, a tempestade amainou e ela largou a mão de Mervyn. Não sabia o que dizer, mas misericordiosamente ele saiu do compartimento.

Nancy acendeu a luz e levantou‑se, vestindo o roupão azul‑eléctrico de seda. Depois, sentou‑se ao toucador. Estava envergonhada por lhe ter agarrado na mão; na altura, ficara agradecida por ter alguém para reconfortá‑la, mas agora sentia‑se embaraçada. Então, lembrou‑se de que Mervyn ia no encalço da sua adorada mulher e que não tinha olhos para mais ninguém Dar‑lhe a mão fora um simples gesto amigável de solidariedade humana.

Mervyn regressou com uma garrafa de brandy e dois copos e serviu duas bebidas, dando uma a Nancy. Ela agarrou no copo com uma das mãos, apoiando‑se com a outra no toucador; o avião ainda saltava um pouco. Sem saber do que havia de falar, ela começou:

— A sua mulher vai voltar consigo?

— Não sei dizeer —  replicou Mervyn. —  O tipo com quem ela está... Eu acho que ele não passa de um franganote, mas talvez seja isso que ela quer.

Nancy assentiu, pensando que, se fosse Diana, não trocaria Mervyn por Mark, mas que os gostos não se discutem.

— Eu não gosto muito do género gaiato, mas... - ele

Não chegou a acabar a frase, pois o avião entrou na pior das turbulências até ali, saltando como um cavalo selvagem. Nancy agarrou‑se ao toucador com ambas as mãos, e Mervyn tentou equilibrar‑se, mas quando o avião se inclinou de lado, ele rolou para o chão, derrubando a mesa de café. Quando o avião se endireitou, Nancy estendeu‑lhe uma mão para o ajudar a levantar‑se, perguntando:

— Está bem?

Então, o avião saltou de novo e ela caiu no chão em cima dele.

Logo a seguir, ele desatou às gargalhadas. Ela estava sobre ele, ao atravessado, e os dois formavam um X sobre a alcatifa bege. O movimento abrandou e ela sentou‑se, de olhos fixos nele. Estaria histérico ou só divertido?

— Devemos estar lindos! —  comentou ele, e recomeçou a rir.

O seu riso era contagiante, e havia algo de cómico em estar sentada no chão, de camisa de noite, com um desconhecido num avião aos solavancos. Nancy começou também a rir‑se.

O solavanco seguinte atirou‑os um contra o outro, e ela deu por si nos braços de Mervyn, ainda a rir. Entreolharam‑se e, de repente, ela beijou‑o.

Ela surpreendeu‑se completamente a si própria; nunca lhe passara pela cabeça beijá‑lo. Parecia um impulso vindo de lado nenhum.

Ele ficou claramente chocado, mas depressa recuperou e retribuiu entusiasticamente o beijo.

Passado um minuto, ela afastou‑o para recuperar o fôlego.

— O que é que aconteceu? —  perguntou.

— Você deu‑me um beijo —  respondeu ele com um ar satisfeito.

— Não era minha intenção.

— Mas ainda bem que deu —  comentou ele, e beijou‑a de novo.

"Mas o que é que me passou pela cabeça?", pensou ela de repente. "Sou uma viúva respeitável, e aqui estou eu a rebolar no chão de um avião com um homem que mal conheço! "

— Chega! —  exclamou, decidida.

— Como queira —  assentiu ele, com relutância evidente.

— Foi culpa minha —  continuou ela. —  Portei‑me pessimamente. Desculpe.

— Não peça desculpa —  disse Mervyn. —  Foi a coisa melhor que me aconteceu nos últimos anos.

— Mas você gosta da sua mulher, não gosta? —  perguntou ela bruscamente.

Ele fez uma careta e respondeu:

— Eu achava que sim, mas agora estou um pouco confuso.

Era exactamente assim que Nancy se sentia —  confusa. Depois de dez anos sozinha, ansiava por abraçar um homem quase desconhecido.

"E, no entanto, eu conheço‑o", pensou ela. "Conheço‑o bastante bem. Fiz uma longa viagem com ele e partilhámos os nossos problemas. Sei que ele é abrasivo, arrogante e orgulhoso, mas é também apaixonado, leal e forte. Gosto dele apesar dos seus defeitos. Respeito‑o. E ele deu‑me a mão quando eu estava aflita. Que bom que era ter alguém para me dar a mão sempre que eu estivesse aflita."

Como se lhe tivesse lido os pensamentos, ele pegou‑lhe de novo na mão e, virando‑a, beijou‑lhe a palma. Ela ficou com pele‑de‑galinha, e logo a seguir Mervyn puxou‑a para si e beijou‑a de novo na boca.

— Não faça isso —  murmurou ela. —  Se recomeçamos, nunca mais conseguimos parar.

— Se pararmos agora, tenho medo de nunca mais voltarmos a começar —  murmurou ele com voz rouca.

O avião deu um solavanco, como se tivesse batido em alguma coisa, e, esquecendo-se dos beijos, Nancy agarrou‑se a Mervyn para se equilibrar. Mantiveram‑se deitados no chão enquanto o temporal se abatia sobre eles. Quando a turbulência acalmou, ele disse:

— Vamos tentar chegar ao beliche. Pelo menos ficamos mais confortáveis.

Nancy assentiu e, arrastando‑se pela alcatifa, subiu para o beliche. Mervyn seguiu‑a e deitou‑se a seu lado. Ele abraçou‑a e ela aconchegou‑se ao seu pijama.

A certa altura, ela adormeceu.

 

NANCY foi acordada por alguém que batia à porta.

— Assistente de bordo!

Abrindo os olhos, ela viu que estava nos braços de Mervyn e entrou em pânico.

— Oh, não!

Mervyn pôs‑lhe uma mão no ombro e disse em voz autoritária:

— Espere um momento, por favor.

— Com certeza, esteja à vontade - replicou a voz.

Mervyn levantou‑se e aconchegou a roupa da cama em redor de Nancy. Ela sorriu‑lhe, agradecida, e virou‑se para a parede. Ouviu Mervyn a abrir a porta e o assistente a entrar.

— Bom dia —  cumprimentou Mervyn. O cheiro de café acabado de fazer invadiu as narinas de Nancy. —  Quanto falta para amararmos?

— Chegamos a Botwood dentro de meia hora, uma hora mais tarde do que o previsto. —  O assistente saiu e fechou a porta.

Nancy virou‑se de novo e Mervyn subiu as persianas. Era dia. Ela olhou‑o enquanto ele servia o café e recordou imagens da noite anterior: os dois a caírem no chão, ela agarrada a ele, o avião aos solavancos. "Meu Deus!", pensou. "Eu gosto muito deste homem."

— Como é que quer o café? —  perguntou ele.

— Sem leite nem açúcar.

— É como eu.

Ele estendeu‑lhe a xícara e fitou‑a, e Nancy sentiu‑se embaraçada de novo.

Virou‑se para a janela e viu terra, o que a fez recordar que, quando chegassem a Botwood, ela estava à espera de um telefonema que mudaria a sua vida. De uma forma ou de outra.

— Estamos quase a chegar! —  exclamou, levantando‑se. —  Tenho de me vestir.

— Deixe‑me sair primeiro —  disse ele. —  É melhor para si.

— Está bem.

Nancy viu‑o pegar no cabide com o fato e no saco de roupa que comprara em Foynes juntamente com o pijama. Ele hesitou à porta e Nancy sabia que ele estava a pensar se voltaria alguma vez a beijá‑la. Chegando junto de Mervyn, ela ergueu o rosto.

Obrigada por me ter abraçado toda a noite.

Ele inclinou‑se e beijou‑a, um beijo doce, de boca fechada. Mantiveram‑se assim algum tempo e depois afastaram‑se um do outro.

Nancy abriu‑lhe a porta e ele saiu. Ela Suspirou ao fechar a porta e pensou: "Acho que podia apaixonar‑me por este homem."

O avião perdia altura gradualmente. Ela tinha de se despachar. Penteou‑se rapidamente em frente do toucador e depois levou a mala e foi para a casa de banho das senhoras.

Enquanto se vestia, pensava, feliz, em Mervyn, mas por baixo da felicidade havia um laivo de inquietação. Será que ele queria Diana de volta? Ainda estaria apaixonado por ela? Ele abraçara Nancy toda a noite, mas isso não fazia necessariamente desaparecer um casamento. "E eu, o que quero?", pensou. "Quero que Mervyn deixe o seu casamento por minha causa? Como é que eu posso saber depois de uma noite de paixão não consumada?" Parou enquanto punha bâton e olhou‑se no espelho. "Deixa‑te de coisas, Nancy", pensou. "Tu queres o tipo. Começa a lançar a tua rede."

Pôs perfume e saiu do compartimento, deparando com Nat Ridgeway e com o seu irmão, Peter, que tinham os lugares junto da casa de banho.

— Bom dia, Nancy —  disse Nat.

Ela lembrou‑se imediatamente do que sentira em relação àquele homem havia cinco anos. "Pois é", pensou, "eu podia ter‑me apaixonado por ele com o tempo; mas não houve tempo. E talvez tivesse sido a minha sorte: talvez ele quisesse mais a Black' 5 Boots do que me queria a mim. Afinal, ainda anda a tentar apanhar a firma, mas de certeza que não anda a tentar apanhar‑me." Fez‑lhe um aceno breve e entrou na suite.

Os beliches já tinham sido transformados novamente em sofá, e Mervyn estava lá sentado.

— Estamos quase a amarar —  informou ele.

Nancy olhou pelajanela e viu que sobrevoavam um porto, um grupo de edifícios de madeira coroados por uma igreja. Mervyn e ela sentaram‑se no sofá, de mãos dadas, e Nancy quase não sentiu o impacte quando pousaram.

Quando o avião parou, aproximou‑se uma lancha. Cerca de metade dos passageiros tinham decidido sair para esticar as pernas; os outros ainda estavam nos seus beliches, por detrás de cortinas azuis cuidadosamente corridas.

Nancy e Mervyn passaram pelo compartimento principal, saíram para o estabilizador e embarcaram na lancha. Desembarcaram num cais flutuante com uma prancha que ia dar a um pontão. Na ponta interior do pontão, estavam os edifícios da Pan American, um grande e dois pequenos, todos pintados de verde debruado a vermelho‑acastanhado.

Os passageiros entraram no edifício maior e mostraram os passaportes a um funcionário ensonado. Nancy estava impaciente por falar com Patrick MacBride, em Boston, e no momento em que ia perguntar por um telefone, ouviu o sistema de altifalantes a chamar o seu nome. Ela identificou‑se a um homem com uniforme da Pan American.

— Há uma chamada para si, minha senhora —  disse ele, levando‑a até a uma cadeira em frente a um telefone.

— Fala Nancy Lenehan - disse ela, pegando no auscultador.

— É uma chamada de Boston - explicou a telefonista.

Nancy olhou para Mervyn, que estava junto dela. Depois de uma longa pausa, ouviu:

— Está lá? Nancy?

Ao contrário do que ela esperava, não era Mac, e ela demorou algum tempo a reconhecer a voz.

— Danny Riley! - exclamou.

— Nancy, estou em apuros e tu tens de ajudar‑me!

— Que tipo de apuros? - Ela apertou o telefone com força.

— Andam a querer falar comigo por causa daquele caso antigo!

Aquilo eram boas notícias, era o que ela queria ouvir, mas Nancy fingiu que não percebia.

— Qual caso?

— Sabes muito bem. Não posso falar disso ao telefone.

— Está bem, acalma‑te. Acho que sei qual é o caso.

— Talvez queiram verificar os papéis do teu pai.

Até agora, o estratagema resultara na perfeição. Nancy disse despreocupadamente:

— Não me parece que haja motivo para te ralares. Como é que sabes? Leste‑os todos?

— Não. São muitos, mas... quem é que quer ver aquilo? É um inquérito da Ordem, e parece mal eu recusar.

— E se for eu a recusar, já não parece mal?

— Tu não és advogada e eles não podem pressionar‑te.

Nancy fingiu hesitar, mantendo‑o em expectativa, mas por fim disse:

— Então, não há problema, eu queimo tudo amanhã.

— És uma verdadeira amiga, Nancy, não sei como agradecer-te

— Bem, já que falas nisso, há uma coisa que podias fazer por mim.

Agora é que era.

— Peter está a tentar vender a firma contra minha vontade.

Depois de uma longa pausa, Danny perguntou:

— Tu não queres vender a companhia?

— Não. O preço é demasiado baixo, e Peter sabe que é um péssimo negócio, mas não se rala desde que me prejudique.

— Péssimo negócio? A firma não tem andado grande coisa ultimamente. Não sei se estás a defender os teus interesses.

Nancy sentiu vontade de lhe dizer: "Seu miserável, são os teus interesses que tens em mente", mas mordeu a língua e comentou:

—  Acaba de começar uma guerra na Europa, Danny, e o negócio vai prosperar. Se esperarmos dois ou três anos, podemos depois vender a firma pelo dobro ou pelo triplo. Eu tenho a certeza de que é melhor esperar.

— Está bem, vou pensar nisso.

Aquilo não bastava, e ela tinha de abrir o jogo.

— Não te esqueças dos papéis do meu pai.

A voz dele baixou de tom.

— O que é que queres dizer?

— Estou a pedir‑te que me ajudes, porque eu vou ajudar‑te. Eu sei que entendes esse tipo de coisa.

— Acho que entendo perfeitamente! Chama‑se chantagem.

Ela encolheu‑se, mas depois lembrou‑se com quem estava a falar.

— Seu hipócrita, foi o que tu andaste a fazer a vida toda!

— Apanhaste‑me, miúda —  riu‑se ele. —  Parece que não tenho alternativa, não é?

— Exactamente.

— Está bem —  concordou ele, relutante. —  Eu apoio‑te amanhã se tratares do outro problema.

Nancy quase chorou de alívio: conseguira! A Black's Boots continuaria na sua posse.

— Ainda bem, Danny —  disse em voz fraca.

— O teu pai previu que ia ser assim. Ele queria que tu e Peter lutassem.

Nancy não entendeu aquele comentário, como que caído do céu.

— Que raio estás tu a dizer?

Ele educou‑te para assumires o comando depois da sua morte, mas não te deu o lugar, e disse a Peter que tinha de ser ele a gerir a firma. Assim, vocês teriam de lutar e o mais forte venceria.

— Não acredito nisso —  disse Nancy, mas não tinha tanta certeza como parecia. Sentia‑se gelada.

— Acredita no que quiseres —  respondeu Danny. —  Vemo‑nos na reunião.

— Certo. Adeus, Danny. —  Ela desligou.

— Meu Deus, você foi brilhante! —  exclamou Mervyn.

— Obrigada —  disse ela com um pequeno sorriso, tocando‑lhe no braço. —  Mas no fim Danny disse uma coisa que me chocou. Disse que o meu pai engendrou esta luta entre mim e Peter para que o mais forte ficasse com o controle da firma.

— Você acredita nele?

— Acredito... Isso é que é horrível. Nunca tinha pensado nisso, mas explica muitas coisas entre mim e o meu irmão.

— Você ficou perturbada —  comentou ele, pegando‑lhe na mão.

— Pois é. Sinto‑me como um boneco animado cumprindo um guião escrito por outra pessoa, e não me agrada.

— O que é que quer fazer? —  perguntou Mervyn, compreensivo.

— Gostava de ser eu a escrever o meu próprio guião, era disso que eu gostava.

 

HARRY MARKS estava tão feliz que mal conseguia mexer‑se.

Deitado no seu beliche, recordava a excitação súbita que sentira quando Margaret lhe dera um beijo; mal podia acreditar na sua sorte. Não era instruído, não tinha dinheiro e não fazia parte da classe social adequada: o que é que ela veria nele? Sobre o que o atraía nela, não tinha dúvidas: era bonita, encantadora, terna e vulnerável e tinha o corpo de uma deusa. Qualquer um se apaixonaria por ela. Mas ele? Não era feio, claro, e não se vestia mal, mas tinha a sensação de que esse tipo de coisa não era o mais importante para Margaret. No entanto, ele intrigava‑a. Ela considerava o seu tipo de vida fascinante, e Mark pensava que ela o via como uma figura romântica, tipo Pimpinela Escarlate. Ela ficara‑lhe extremamente grata por lhe puxar a cadeira na casa de jantar —  algo de trivial que ele fizera sem sequer pensar, mas que tivera um grande significado para Margaret. Na verdade, Harry estava certo de que fora naquele momento que ela se apaixonara. "As raparigas são muito peculiares", pensou ele com um encolher de ombros.

E agora ele ia arriscar‑se a deitar tudo a perder.

Ia roubar as jóias da mãe dela.

Não era o tipo de coisa a que uma rapariga pudesse achar graça. Embora os pais fossem péssimos para ela, Margaret ficaria chocada.

Mas o conjunto Deli ia ali, naquele avião, no porão das bagagens, o mais belo conjunto de jóias do Mundo, que valia uma fortuna, o suficiente para ele viver dos rendimentos o resto da vida.

Havia de comprar uma casa de campo algures na América. Quase que a via: com os seus relvados e árvores, e a sua mulher a descer as escadas de carvalho, com calças e botas de montar

Mas a sua mulher tinha o rosto de Margaret.

Ela deixara‑o de madrugada, escapulindo‑se por entre as cortinas, enquanto não havia ninguém que a pudesse ver. Harry olhara pela janela, pensando em Margaret, quando o avião sobrevoara as florestas de espruces da Terra Nova e amarara em Botwood.

Naquela altura, ainda à janela, ele via um grupo de pessoas de sobretudo a embarcar na lancha —  cerca de metade dos passageiros e toda a tripulação. Agora, enquanto a maioria das pessoas que ficara no avião ainda estava a dormir, era a sua oportunidade de entrar no porão. Dali a nada, teria o conjunto Deli nas mãos. Mas ele interrogava‑se se Margaret não seria a jóia mais preciosa que ele jamais tocaria.

Seria mais simples se tivesse que fazer uma escolha inequívoca; se oDiabo viesse ter com ele e lhe dissesse: "Tens de escolher entre Margaret e as jóias; não podes ficar com ambas", ele escolheria Margaret. Mas a realidade era mais complicada: ele podia deixar as jóias e mesmo assim perder Margaret; ou podia ficar com ambas.

Ele fora toda a vida um jogador: decidiu tentar ficar com ambas.

Calçou os chinelos e vestiu o roupão, depois foi para a proa e subiu as escadas. Como de costume, não fazia a mais pequena ideia de como actuaria se fosse apanhado. Mas estava com sorte: a cabina de voo estava vazia.

Atravessou‑a rapidamente e saiu pela porta ao fundo, entrando no corredor entre os dois porões. Escolheu o da esquerda e entrou, fechando a porta atrás de si. Tinha de encontrar a bagagem dos Oxenfords rapidamente.

Não era fácil, pois algumas malas estavam com as etiquetas do nome para baixo, outras encontravam‑se amontoadas, difíceis de mover. No porão não havia aquecimento, e ele começou a ficar com frio. Desatou com mãos trémulas as cordas que seguravam as malas durante o voo. Passados vinte minutos, percebeu que as malas que procurava deviam estar no outro porão. Voltou a atar as cordas e praguejou em surdina. Abrindo a porta para sair, ouviu uma voz admirada:

— Ei! Quem é você?

Harry ficou igualmente chocado, mas disfarçou logo. Sorrindo calmamente, informou:

— Harry Vandenpost. E você?

— Mickey Finn, maquinista assistente. Lamento, mas o senhor não pode estar aqui. O que é que deseja?

— Estava à procura da minha mala. Esqueci‑me da navalha da barba.

— Lamento, mas não é permitido entrar nos porões durante a viagem, seja em que circunstâncias for. Mas eu posso emprestar‑lhe a minha navalha.

Harry compreendeu que ia ter de aceitar a derrota, pelo menos por agora, e sorriu, dizendo:

— Nesse caso, acho que aceito a sua oferta, muito obrigado.

Mickey Finn abriu‑lhe a porta e ele passou à cabina de voo e desceu as escadas. "Sorte malvada!", pensou, zangado. "Mais uns segundos e eu conseguia. Agora, quem sabe quando terei outra oportunidade."

Mickey foi até ao compartimento 1 e voltou com uma navalha e sabão.

Harry barbeou‑se, vestiu‑se e voltou a subir as escadas para tentar de novo. Mickey não estava lá em cima, mas, para desânimo de Harry, encontrava‑se outro membro da tripulação sentado à mesa de cartas a fazer cálculos. O homem olhou para Harry e Sorriu.

— Bom dia. Posso ajudá‑lo?

— Estou à procura de Mickey para lhe devolver a navalha de barba.

— Ele está no compartimento um.

— Obrigado. —  O coração de Harry caiu‑lhe aos pés. Não conseguiu arranjar uma desculpa para entrar no porão e, virando‑se, voltou a descer as escadas.

"Estou a perder uma oportunidade única", pensou, furioso. Sentia um formigueiro nas palmas das mãos quando pensava nas jóias fabulosas uns metros acima da sua cabeça. Mas ainda não desistira —  havia mais uma escala, em Shediac. Seria lá a sua última oportunidade de roubar uma fortuna.

 

 

EDDIE DEAKIN sentia a hostilidade dos seus colegas quando se dirigiam para terra na lancha. Todos sabiam como haviam estado próximo de esgotar o combustível e despenhar‑se no mar. Ainda ninguém percebera bem como aquilo podia ter acontecido, mas o combustível era da responsabilidade do maquinista, portanto a culpa era de Eddie.

Saber que os seus companheiros já não confiavam nele era uma verdade dura de roer, e Eddie dizia a si próprio que tinha de salvar a sua mulher e não podia preocupar‑se com o que os outros pensavam. Mas isso não fazia diferença: ele desprezava‑se a si mesmo.

 

Tom Luther ia na lancha, de sobretudo com gola de pele e chapéu cinzento. Ao aproximarem‑se do cais, Eddie foi até junto dele e murmurou:

— Vá direito ao edifício da Pan Am. Há lá um telefone.

Eddie estava confiante em que Luther diria aos seus cúmplices para levarem Carol‑Ann ao ponto de encontro, e isso era um grande passo em frente.

Botwood era um conjunto de casas de madeira agrupadas em redor de um porto de águas profundas, no estuário resguardado do rio Exploit. Ao desembarcar, Eddie olhou em redor, para onde o Clipper flutuava majestosamente na superfície calma. Também lá estavam dois cargueiros fundeados e uns quantos barcos de pesca. Surpreendentemente, viu também uma vedeta da Marinha dos EUA atracada ao cais. O que é que estaria ali a fazer? Seria por causa da guerra?

Eddie entrou no edifício da Pan American com os outros, e, no átrio, estava um homem com uniforme de tenente, presumivelmente da tripulação da vedeta de guerra. Quando Eddie entrou, o tenente virou‑se, um homem grande e feio, com um sinal no nariz, e Eddie olhou para ele, atónito e contente.

— Steve? —  tartamudeou. —  És mesmo tu?

— Olá, Eddie.

— Que raio

Era Steve Appleby, a quem Eddie tentara falar de Inglaterra, o seu mais antigo e melhor amigo, o homem que, entre todos, ele gostaria de ter a seu lado numa situação difícil. Abraçaram‑se, dando grandes palmadas nas costas um do outro.

— Nelia disse que tu parecias aflito quando falaste —  contou Steve. —  Ora, Eddie, eu nunca te vi nem um bocadinho abalado, és sempre tão calmo. Calculei que devias estar mesmo em apuros.

— E estou. Estou... —  Subitamente, Eddie foi invadido pela comoção. —  Estou mesmo em maus lençóis —  confessou; vieram‑lhe as lágrimas aos olhos e ele não conseguiu falar.

Virou costas e saiu lá para fora, com Steve no seu encalço. Eddie dirigiu‑se ao armazém onde a lancha era normalmente guardada. Ali não seriam vistos.

— Nem sei quantos favores tive de pedir para conseguir vir até cá - continuou Steve. —  Vou demorar anos a pagá‑los todos.

Eddie assentiu com a cabeça; Steve era um dos grandes "desenrascados" da Marinha, e Eddie queria agradecer‑lhe, mas não conseguia conter as lágrimas. O tom de Steve alterou‑se e ele perguntou:

— O que é que se passa, Eddie?

— Eles têm a Carol‑Ann —  conseguiu Eddie articular. —  A quadrilha do Patriarca. Raptaram‑na.

— Ray Patriarca? O do jogo ilegal? Porquê?

— Querem que eu faça pousar o Clipper.

— Para quê?

Eddie limpou as lágrimas à manga e tentou controlar‑se.

— Vai um agente do FBI a bordo com um prisioneiro, um tipo chamado Frankie Gordino. Eu acho que o Patriarca quer resgatá‑lo. Seja como for, um passageiro, Tom Luther, instruiu‑me para fazer o avião pousar ao largo do Maine, num canal junto da ilha Grand Manan. Há‑de lá estar uma lancha rápida à espera, com Carol‑Ann a bordo. Trocamos Carol‑Ann por Gordino e ele desaparece.

— E Luther foi suficientemente esperto para perceber que a única maneira de fazer com que Eddie Deakin cooperasse era raptar‑lhe a mulher —  assentiu Steve. —  Miseráveis!

— Eu quero apanhá‑los, Steve. Quero que vão parar à cadeia, quero crucificá‑los. Mas o que é que posso fazer?

— O período mais difícil para eles é entre virem a bordo do avião e voltarem para o carro que há‑de estar à espera deles —  comentou Steve de cenho carregado. —  Talvez a Polícia possa descobrir o carro e fazer‑lhes uma emboscada.

Eddie ficou com dúvidas.

— É pouco seguro, Steve. Há tanta coisa que pode correr mal. E eu não quero envolver a Polícia... São capazes de fazer qualquer coisa que ponha Carol‑Ann em perigo.

— O que nos deixa a Marinha ou a Guarda Costeira —  assentiu Steve.

— Vejamos a hipótese da Marinha. —  Eddie já se sentia melhor só de poder discutir o dilema com alguém.

— Muito bem. Suponhamos que eu conseguia que uma vedeta destas interceptasse a lancha depois do resgate?

— Talvez isso funcionasse —  disse Eddie, esperançado. —  Mas consegues? —  Era quase impossível fazer vasos da Marinha deslocarem‑se à margem das cadeias de comando normais.

         —  Acho que sim. Elas já andam por aí em exercícios, era só uma questão de conseguir desviar uma. E o tipo que pode fazer isso é o pai do Simon Greenbourne. Lembras‑te do Simon?

         —  Claro. —  Eddie recordava um miúdo louco, com um sentido de humor desvairado e uma enorme sede de cerveja. Estava sempre em apuros, mas conseguia safar‑se porque o pai era almirante.

         —  Um dia, Simon foi longe demais e pegou fogo a um bar em PearI City —  prosseguiu Steve. —  É uma história muito longa, mas eu consegui que ele não fosse preso e o pai dele ficou‑me eternamente grato. Acho que ele faria isto por mim.

Eddie olhou para o barco em que Steve viera: era uma lancha torpedeira, com uma metralhadora de calibre.23 e cargas de profundidade. O suficiente para apavorar um grupo de gangsters citadinos a bordo de um barco a motor. Mas dava muito nas vistas.

         —  Eles eram capazes de ver a vedeta a tempo de fugirem —  comentou ele, ansioso.

         —  Estas coisas podem esconder‑se em qualquer riacho —  replicou Steve, abanando a cabeça. —  O calado é de menos de dois metros com plena carga.

         —  É arriscado, Steve. Eles podem fazer mal a Carol‑Ann.

         —  Isso é verdade —  concordou Steve. —  Tudo pode acontecer. Tu és o único que pode decidir que riscos devemos correr.

         Eddie consultou o relógio; tinha de decidir‑se. Steve arquitectara o melhor plano possível, e Eddie tinha de aceitá‑lo ou recusá‑lo.

         "Deus me perdoe se estiver a fazer mal", pensou.

         —  Está bem. Vamos a isso.

 

         MARGARET acordou a pensar em Harry. Do lado de fora da sua cortina vinham ruídos fracos e ela espreitou. Nicky desmontara o beliche oposto —  onde haviam dormido os seus pais —  e estava a refazer o sofá. O de Harry e de Mr. Membury já fora feito, e Harry estava sentado, vestido, olhando meditativamente pela janela. Ela interrogou‑se sobre onde estariam os outros. Percy devia ter ido a terra, tal como os pais. Mr. Membury não se avistava.

         Ela deitou‑se para trás, gozando a privacidade, imaginando Harry tal como acabara de vê‑lo, à janela, de camisa azul‑clara, atraente com aquela sua expressão tão pensativa; e, de súbito, sentiu vontade de o beijar. Sentou‑se, vestiu o roupão, abriu a cortina e disse:

         —  Bom dia, Harry.

         Sorriram estupidamente um ao outro por um longo minuto. Finalmente, Margaret baixou os olhos e levantou‑se. O assistente virou‑se, acabando de montar o sofá e disse:

         —  Bom dia, Lady Margaret. Deseja café?

         —  Não, obrigada, Nicky. —  Ela passou os dedos pelo cabelo.

         Queria que Nicky saísse para ela poder beijar Harry, mas ele perguntou:

         —  Posso fazer o seu beliche agora?

         —  Com certeza —  respondeu ela, desapontada. Pegou no seu saco, lançou um olhar desiludido a Harry e saiu.

         Davy, o outro assistente, estava a preparar uma mesa de bufete na casa de jantar, e ela roubou um morango, sentindo‑se pecadora. A maioria dos beliches já estava transformada em sofás, e havia algumas pessoas sentadas a beberem café, sonolentas. Margaret viu Mr. Membury à conversa com o barão Gabon e tentou imaginar o que duas pessoas tão diferentes poderiam estar a dizer uma à outra com tanto interesse.

         Entrando na casa de banho das senhoras, lavou vigorosamente a cara. Lamentava não ter outro vestido para pôr, senão o da véspera. Apetecia‑lhe qualquer coisa mais fresca. O vestido não estava mal: era uma espécie de cor de tijolo, mas era largo e sem feitio, e, olhando‑se no espelho, ela desejou que o vestido tivesse ombros mais largos e um cinto. Depois saiu.

         Harry levantou‑se quando Margaret entrou no compartimento, e impulsivamente, perdendo qualquer sentido de decoro, ela lançou‑lhe os braços ao pescoço. Após um momento de hesitação surpreendida, ele abraçou‑a e deu‑lhe um beijo no cabelo.

         Ela reparou no olhar atónito de Mr. Membury, que estava de novo no seu lugar, mas não se importou e, afastando‑se de Harry, sentou‑se no outro lado do compartimento. Harry sentou‑se ao seu lado.

         —  Temos de fazer planos —  disse ele. —  Não sei se teremos mais oportunidades de conversar a sós.

         Margaret percebeu que Percy e os pais deviam estar a voltar com os outros passageiros e que, depois disso, ela e Harry talvez não voltassem a estar sozinhos. Quase em pânico, teve uma visão dos dois a despedirem‑se em Port Washington para nunca mais se reencontrarem.

         —  Diz‑me depressa como posso encontrar‑te!

         —  Não sei..., ainda não tratei de nada. Mas não te preocupes, eu entro em contacto contigo. Em que hotel é que vais ficar?

         —  No Waldorf. Falas‑me hoje à noite? Tens de falar.

         —  Calma. Claro que falo, e digo que me chamo Mr. Marks.

         —  Eu tenho de arranjar um sítio para viver —  disse ela.

         —  Procuramos juntos. Talvez consigamos quartos no mesmo edifício.

         —  A sério? —  Ela estava emocionada, mas havia um senão. —  Se eu for trabalhar com Nancy Lenehan, vou viver para Boston.

         —  Talvez eu também vá para Boston.

         —  Vais? —  Ela nem queria acreditar no que estava a ouvir. Mas antes que pudesse fazer mais perguntas, Os outros passageiros e a tripulação regressaram.

         O avião levantou dali a pouco, e Margaret deu consigo a meditar na conversa com Harry. Ele queria ir para Boston com ela. Ela ia ter tudo o que desejava: liberdade, independência e amor.

         Quando o avião atingiu a altitude de cruzeiro, os passageiros foram convidados a servirem‑se do bufete do pequeno‑almoço, e quando Margaret lá chegou, viu Nancy Lenehan junto dos cereais. Nancy fez‑lhe sinal e confidenciou‑lhe em voz baixa:

         —  Recebi uma chamada muito importante em Botwood; hoje, vou vencer. Pode estar certa de que tem emprego.

         —  Ah, muito obrigada! —  Margaret ficou radiante.

         Nancy pôs um cartão‑de‑visita branco no prato de Margaret e piscou‑lhe o olho.

         —  Telefone‑me.

         Margaret voltou, rejubilante, para o seu compartimento. Quando é que havia de dizer ao pai? Quanto mais cedo, melhor. Ele estaria mais bem disposto a seguir àquele pequeno‑almoço, cheio de champanhe e comida.

         Ela acabou a sua refeição e esperou que os outros também acabassem. Depois, esperou que o assistente levasse os pratos e, finalmente, não havia mais nada por que esperar. Mudando‑se para o lugar do meio do sofá,junto à mãe e defronte do pai, Margaret respirou fundo e começou:

         —  Tenho uma coisa para lhe dizer, pai, e espero que não se zangue.

         —  O que é agora? —  perguntou ele.

         —  Tenho dezanove anos e nunca trabalhei na vida. Já é altura de começar.

         —  A que propósito? —  perguntou a mãe.

         —        Gostava de me tornar independente.

         A mãe surpreendeu‑a, capitulando quase imediatamente.

         —        Bem, acho que, se a menina está tão certa do que quer, o avô pode arranjar‑lhe um emprego através de alguém conhecido.

         —        Eu já tenho emprego.

         —        Na América? Como é que é possível?

         Margaret decidiu não lhes falar de Nancy Lenehan. Os pais podiam falar com ela e tentar estragar tudo.

         —        Está tudo tratado —  respondeu calmamente.

         —        Que tipo de emprego? —  perguntou a mãe.

         —        Assistente no departamento de vendas de uma fábrica de sapatos.

         —        Ora, por amor de Deus, não seja ridícula.

         Margaret mordeu o lábio. Porque é que a mãe havia de falar com tanto desprezo?

—  Não é ridículo. Até estou bastante orgulhosa.

         —  Onde é a tal fábrica? —  continuou a mãe.

         O pai manifestou‑se pela primeira vez:

         —  Ela não pode trabalhar numa fábrica, e ponto final.

         —  Eu vou trabalhar no departamento de vendas, e não na fábrica. E é em Boston.

         —  Então, isso resolve tudo —  disse a mãe. —  Nós vamos viver para Stamford, e não Boston.

         —  Não, mãe, eu vou viver para Boston.

         —        O que é que quer dizer com isso? —  perguntou a mãe depois de um silêncio.

         —  Apenas que vou para Boston, arranjo alojamento e vou trabalhar. Vou poupar dinheiro até ter o suficiente para voltar para Inglaterra e alistar‑me no SAT.

         O pai voltou a falar.

         —  A menina nem sabe o que é que está para aí a dizer —  comentou com desprezo. —  Não sabe fazer nada de nada, nem sequer andou na escola. - Aquela injustiça levou Margaret às lágrimas.

         —  Eu queria ir para a escola —  protestou. —  Mas o pai não me deixou.

         ‑O que é que vai fazer num escritório? - continuou ele, ignorando a interrupção. —  Não fica lá nem uma semana.

         Margaret começou a chorar, com as lágrimas a correrem‑lhe livremente pelas faces. Corado de fúria, o pai agitou o dedo no ar e continuou:

         —  Boston não é a aldeia de Oxenford, sabe? Vai ser explorada por senhorios judeus. E quanto ao SAT, a menina não durava um dia na tropa. É frágil demais.

         Harry veio sentar‑se ao lado de Margaret, e com um lenço de linho claro limpou‑lhe ternamente a cara.

         —        E quanto a si, meu rapaz... —  começou o pai.

         Harry levantou‑se de um pulo e virou‑se para ele. Margaret Susteve a respiração, pensando que ia haver uma luta.

         —        Não se atreva a falar‑me com esses modos. Eu não sou uma menina, sou um homem adulto, e se me insultar, eu dou‑lhe um par de murros.

         O pai reduziu‑se ao silêncio, e Harry voltou a sentar‑se junto de Margaret, que, embora perturbada, no fundo do coração experimentava uma sensação de vitória. Tinha dito ao pai que se ia embora, e ele ficara furioso, troçara dela e reduzira‑a às lágrimas, mas não a fizera mudar de ideias: ela ia deixá‑los na mesma.

 

         QUANDO o Clipper iniciou a sua descida para a baía de Shediac, no golfo de S. Lourenço, Harry começou a hesitar relativamente à sua decisão de roubar as jóias de Lady Oxenford.

         A sua determinação fora abalada por Margaret. Apetecia‑lhe ir para Boston com ela, ajudá‑la a tornar‑se independente e passar a conhecê‑la verdadeiramente bem.

         Mas tudo isso mudaria se ele roubasse a mãe dela.

         Shediac era a última escala antes de Nova iorque, e ele tinha de se decidir rapidamente. Seria a sua derradeira oportunidade de entrar no porão.

         O avião amarou suavemente, e Margaret, olhando para Harry sorriu‑lhe.

         Ele retribuiu com um sorriso comprometido. Não seria loucura, pensou, arriscar‑se a perdê‑la por um punhado de rubis? Mas não era um punhado de rubis, era o conjunto Deli, que valia cem mil notas —  o suficiente para transformar Harry naquilo que ele sempre desejara, um senhor a viver dos rendimentos.

         Em Shediac, o processo de desembarque foi diferente. Os passageiros não desembarcavam numa lancha; veio uma espécie de arrastão rebocar o avião para junto de terra. Depois, foram presos cabos à proa e à popa do Clipper, que foi puxado para junto de um pontão flutuante ligado ao cais por uma prancha.

         Um dos assistentes abriu a porta, e os passageiros começaram a vestir os casacos. Os Oxenfords levantaram‑se todos, tal como Clive Membury. Este quase não dissera uma palavra durante todo o voo, excepto, recordou‑se Harry, uma intensa conversa que tivera com o barão Gabon. Quando os Oxenfords iam a sair, Harry murmurou a Margaret:

         —  Eu já vou. —  Depois, dirigiu‑se à casa de banho.

         Penteou‑se e lavou as mãos só para ter qualquer coisa com que se entreter. Ouviu a tripulação descer lá de cima e sair pela porta, e, consultando o relógio, decidiu esperar mais dois minutos.

         O pessoal da limpeza devia vir a bordo quase logo a seguir, e Harry ficou de ouvido à escuta. Como não ouviu nada, abriu uma nesga da porta e espreitou. Ninguém à vista. Harry saiu e, sem mais hesitações, subiu a escada de caracol.

         Da outra vez, procurara no porão de estibordo; desta, ia ver no de bombordo.

Percebeu imediatamente que estava com sorte. No meio do porão, estava uma enorme mala de bordo de cabedal verde e dourado, e ele teve a certeza de que pertencia a Lady Oxenford. Verificou a etiqueta: não tinha nome, mas a morada era O Solar, Oxenford, Berkshire. A fechadura era das simples, e ele abriu‑a com o canivete.

         —  Bingo —  disse baixinho.

         A mala fora concebida para ser utilizada como guarda‑vestidos num camarote de navio. Harry colocou‑a na vertical e abriu‑a. De um lado, tinha um varão com vestidos e casacos pendurados em cabides e, no fundo, um pequeno compartimento para sapatos. Do outro lado, havia seis gavetas.

         Harry vasculhou primeiro as gavetas. Lady Oxenford tinha blusas de seda, camisolas de caxemira e cintos de crocodilo. Do outro lado, Harry apalpou toda a roupa pendurada e procurou nos lados da mala. Por fim, abriu o compartimento dos sapatos. Só tinha sapatos.

         Ficou desanimado. Tivera tanta certeza de que ela traria as jóias consigo! Decidiu procurar de novo.

         Começou pelo lado da roupa pendurada. Enfiou um braço dentro da mala e abraçou‑a por fora com o outro, tentando determinar a espessura das paredes; se parecesse demasiada, poderia haver um compartimento secreto. No entanto, não descobriu nada de estranho e, virando‑se para o outro lado, retirou completamente as gavetas.

         E encontrou o esconderijo! Presa com fita adesiva à parede traseira, estava uma carteira de couro, como uma espécie de agenda de bolso de homem, mas maior. Harry soltou‑a.

         Parecia um estojo de jóias.

         —  Amadores —  comentou, abanando a cabeça.

         O couro macio era fechado com um fecho de correr, que Harry abriu, impaciente.

         E ali, no forro de veludo preto, estava o conjunto Deli.

         Parecia brilhar na escuridão do porão da bagagem, como os vitrais numa catedral. O vermelho profundo dos rubis alternava com o brilho iridescente dos diamantes. As pedras eram enormes, emparelhadas na perfeição e magnificamente cortadas. Harry ficou maravilhado.

         Pegou no colar: era a jóia mais bela que jamais vira, talvez até a mais bela jamais feita. E ia transformar a sua vida.

         Passados minutos, Pousou o colar e examinou a pulseira e os brincos, deixando os diamantes e rubis escorrerem‑lhe pelos dedos como água colorida.

         Não sabia há quanto tempo ali estava, vidrado nas jóias, quando ouviu passos do lado de fora do porão. Os passos aproximavam‑se rapidamente. Harry ficou transido de medo.

         Num frenesi, voltou a colocar as gavetas e fechou a mala. Estava a enfiar as jóias no bolso quando a porta se abriu, e ele baixou‑se atrás da mala.

         Seguiu‑se um longo momento de silêncio, e depois Harry ouviu duas vozes de homem.

         —  O tipo não está no avião.

         —  Tem de estar. Não desembarcou.

         O sotaque era uma espécie de americano abafado que Harry reconheceu como sendo canadiano. Mas a quem estariam a referir‑se?

         —  Talvez ele se tenha escapulido depois das outras pessoas.

         —  Mas, afinal, quem é ele?

         —  Dizem que é "sócio" daquele bandido que vem no avião. Tem um passaporte falso.

         Harry teve um arrepio: ele tinha um passaporte falso. Uma terceira voz juntou‑se à conversa.

         —  Quem procuram? —  Era Mickey Finn, o maquinista assistente.

         —  Um tipo que usa o nome de Harry Vandenpost, mas que não é ele.

         Já não havia dúvidas, e Harry teve o maior choque da sua vida. Fora descoberto, e a visão da casa de campo com o campo de ténis esbateu‑se como uma fotografia antiga.

         —  Sabem —  continuou o maquinista — , em Botwood encontrei‑o aqui em cima a bisbilhotar.

         —  Bem, mas agora não está cá.

         De repente, soou uma voz mesmo juntinho a Harry:

         —  Não percebo como é que ele nos escapou, mas não há dúvida de que não está no avião. Procurámos por todo o lado.

         "Por amor de Deus", pensou Harry, "vão conversar para outro sítio." Um dos outros falou de novo.

         —  Ora, havemos de apanhá‑lo. Ele não vai conseguir percorrer a pé os duzentos e cinquenta quilómetros até à fronteira sem ser visto.

         Por instantes, ninguém voltou a falar, e por fim Harry ouviu o som de passos a afastarem‑se. Esperou mais algum tempo sem ouvir nada.

         O que é que havia de fazer? Não podia sair do avião ali; provavelmente, estava em segurança até Nova iorque, mas... e depois?

         Tinha de ficar escondido no avião e depois escapulir‑se à noite. Talvez conseguisse safar‑se. De qualquer modo, não tinha alternativas. Todos ficariam a saber que ele roubara as jóias de Lady Oxenford; mas, pior ainda, Margaret também saberia. E havia de pensar que, desde o princípio, ele só estivera interessado nas jóias e ficaria destroçada. Depois, passaria a detestá‑lo e a desprezá‑lo.

         Esta ideia deprimiu‑o profundamente.

         Até àquele momento, não percebera completamente o que Margaret significava para ele. O amor dela era genuíno e tudo o resto na sua vida era falso: o sotaque, os modos, as roupas, todo o seu tipo de vida era uma encenação. Mas Margaret apaixonara‑se pelo ladrão, o rapazinho pobre e sem pai, o verdadeiro Harry. Era a coisa melhor que já lhe acontecera, e se Harry a rejeitasse, a sua vida manter‑se‑ia sempre como até ali, constituída por fingimento e desonestidade. Mas ela fizera‑o querer algo mais; ainda esperava ter a casa de campo e o court de ténis, mas isso só lhe daria prazer se ela lá estivesse.

         Harry suspirou. O miúdo Harry já não era um miúdo. Talvez estivesse a crescer.

         Voltou a abrir a mala de Lady Oxenford e tirou do bolso o estojo das jóias. Abrindo‑o, voltou a admirá‑las. Os rubis brilhavam como fogos‑fátuos. "Talvez eu nunca mais volte a ver algo de semelhante."

         Colocou as jóias de novo no estojo e, de coração pesado, voltou a pô‑lo na mala de Lady Oxenford.

 

 

NANCY LBNEHAN estava recostada numa cadeira de lona às riscas no lado de dentro do longo pontão de madeira de Shediac, junto do terminal aéreo, com Mervyn Lovesey a seu lado. A água chapinhava preguiçosamente contra o pontão e Nancy fechou os olhos. Tinha dormido pouco, e um somso retorceu‑lhe os cantos da boca ao lembrar‑se de como ela e Mervyn se tinham portado mal durante a noite.

         Shediac era uma vila piscatória e balneária. A oeste do pontão, estendia‑se uma baía soalheira onde se viam vários arrastões de pesca à lagosta, alguns iates a motor e dois aviões: o Clipper e um pequeno hidroavião. Para leste, havia uma praia larga, e a maior parte dos passageiros do Clipper passeava à beira de água ou descansava nas dunas.

         Mervyn inclinou‑se para diante na sua cadeira e disse:

         —  Normalmente, eu não sou muito impulsivo, Nancy. —  Ela ficou logo alerta, e ele continuou: —  Só a conheci há umas horas, mas tenho a certeza absoluta de que quero conhecê‑la para o resto da vida. Tenho estado a pensar que vou deixá‑la em Nova Iorque e voltar para Manchester e não me apetece nada.

Nancy sorriu; era mesmo aquilo que ela queria ouvir. Estendeu a mão e tocou na dele.

—  Fico muito contente.

                     —  Fica? O problema é que dentro em pouco só os militares é que vão poder sobrevoar o Atlântico. —  Ela assentiu; o problema também já lhe ocorrera. Mervyn continuou: —  Se nos separarmos agora, podem passar‑se anos até nos voltarmos a ver. E eu não posso aceitar isso.

                     —        Eu também não.

                     —        Então, volta para Inglaterra comigo? —  perguntou ele.

                     —  O quê? —  Ela deixou de sorrir.

                     —  Volte comigo. Fica num hotel, se quiser, ou compra uma casa, um apartamento... o que quiser.

                     Nancy sentiu uma grande indignação a crescer dentro de si.

                     —        Você enlouqueceu! —  exclamou. Sentia‑se amargamente desiludida. —  Eu tenho uma casa, dois filhos e um negócio de milhões, e você está a pedir‑me para me mudar para um hotel em Manchester?

                     —        Ouça, eu acho que vamos casar‑nos, aliás tenho a certeza, mas imagino que não está preparada para isso já, pois não?

                     —        A questão não é essa, Mervyn —  disse ela, embora até certo ponto fosse. —  É só que não me agrada a sua presunção imediata de que vou abandonar tudo e segui‑lo para Inglaterra.

                     —  Mas, de outro modo, como é que podemos estar juntos?

                     —  Eu posso mudar‑me para Inglaterra, você pode mudar‑se para a América ou nós dois podemos mudar‑nos para algures... talvez para as Bermudas.

                     Ele não ficou convencido.

                     —  Mas o meu país está em guerra. A Força Aérea vai precisar de hélices aos milhares. Eles precisam de mim.

                     —  Porque é que você parte do princípio de que o meu país não precisa de mim? —  perguntou ela. —  Eu fabrico botas para o Exército, e quando os EUA entrarem nesta guerra, vai haver muito mais soldados a precisarem das minhas botas.

                     —  Mas eu tenho uma fábrica em Manchester.

                     —  E eu tenho uma em Boston... Uma maior, aliás.

                     —  Para uma mulher, não é a mesma coisa.

                     —  Claro que é, seu imbecil!

                     Ela arrependeu‑se imediatamente da palavra "imbecil". Uma expressão de fúria empedernida envolveu as feições de Mervyn; ela ofendera‑o mortalmente, e ele levantou‑se da cadeira e afastou‑se.

                     —  Bolas! —  exclamou ela amargamente. Estava zangada com ele e furiosa consigo própria por tê‑lo afugentado. Mas a ironia maior era que ela se sentia pronta para uma mudança na sua vida.

         O que Danny Riley lhe contara acerca do pai esclarecera muitas coisas sobre a sua vida.

         O pai dissera a Nancy que ela era a sua sucessora e que Peter trabalharia às suas ordens, mas dissera a Peter o contrário. Consequentemente, ambos haviam pensado que estavam destinados a gerir a firma. A estratégia do pai funcionara no caso de Nancy, pois ela era inteligente e tinha força de carácter. Mas Peter era fraco, manhoso e vingativo. E agora o mais forte conseguiria o controle da firma, de acordo com os planos do pai.

         E era isso que perturbava Nancy: com quarenta anos, sentia‑se preparada para estabelecer os seus próprios objectivos e viver a sua própria vida.

         Suspirou. Talvez a quebra com Mervyn não fosse permanente, pelo menos era isso que ela esperava de todo o coração. Agora que estava em riscos de perdê‑lo, tomou consciência de quanto o queria.

         A sua meditação foi interrompida pela chegada de outro homem que ela em tempos afastara, Nat Ridgeway. Ele parou à sua frente e tirou educadamente o chapéu.

         —  Parece que me derrotaste, mas estou um pouco surpreendido que para isso tenhas recorrido à chantagem.

         —  Isto é uma guerra, não é um lanche.

         —  Tens razão. —  Ele hesitou. —  Posso sentar‑me?

         —  Não precisas de pedir autorização, Nat.

         —  Obrigado. —  Ele sorriu, sentou‑se na cadeira de Mervyn e puxou‑a de modo a ficar de frente para Nancy. —  Tentei adquirir o controle da Black's Boots sem a tua ajuda. Devia ter percebido que não era possível.

         —  Sem dúvida. —  Ela percebeu que aquilo era um pouco desagradável e emendou: —  Mas eu não guardo ressentimentos.

         —  Ainda bem que disseste isso... porque eu ainda quero comprar a tua companhia!

         Nancy foi apanhada de surpresa.

         —  Qual é a tua ideia?

         —  Quero chegar a um acordo contigo e depois quero que te tornes directora da General Textiles com um contrato por cinco anos.

         —  Para fazer o quê? —  Ela não esperara aquilo.

         —  Para gerir a Black's Boots como uma divisão da General Textiles.

—  Mas assim perco a independência, passo a ser uma empregada.

         —  Dependendo de como estruturarmos o acordo, podes ser accionista. E terás toda a independência que desejares; eu não interfiro nos departamentos rentáveis.

         A reacção instintiva de Nancy era recusar. Independentemente de como ele adoçava a pílula, Nat continuava a querer tirar‑lhe a firma. Mas Nancy resolvera deixar de viver a vida segundo os planos do pai.

         —  Talvez eu esteja interessada —  disse.

         —  Só precisava de saber isso —  respondeu ele, levantando‑se. - Pensa no assunto. Estou disposto a fazer‑te muitas concessões. —  Ele olhou por cima do ombro dela. —  Parece‑me que o teu irmão quer falar contigo.

         Ela olhou para trás e viu Peter a aproximar‑se. Nat pôs o chapéu e afastou‑se. Aquilo começava a parecer um cerco, e Nancy olhou para Peter, zangada. Ao chegar junto dela ele inclinou a cabeça num gesto que fez Nancy lembrar‑se do garoto que ele fora.

         —  Podemos conversar? Quero pedir‑te desculpa.

         —  Lamentas a tua traição, agora que perdeste?

         —  Quero fazer as pazes.

         "Hoje, toda a gente quer fazer acordos comigo", pensou ela ironicamente.

         —  Como é que podes redimir‑te do que me fizeste?

         —  Não posso —  concordou ele imediatamente. —  Nunca, Nan, essa é que é essa. —  Fez‑lhe um sorriso radioso. —  Queres dar um passeio?

         Ela suspirou. Afinal de contas, Peter era o seu irmãozinho. Levantou‑se, e caminharam até ao fim do pontão e desceram para a praia. Nancy tirou os sapatos de salto alto e caminhou de meias pela areia. Peter permaneceu calado, e passado algum tempo ela falou.

         —  Eu ainda não decidi, mas talvez aceite a oferta de integrar a nossa firma na de Nat.

         —  Já não é a "nossa" firma, Nan. É só tua. Cheguei à conclusão de que não tenho dedo para os negócios e vou deixá‑los nas mãos de pessoas como tu, que têm jeito.

         —  E o que vais fazer?

         —  Estou a pensar em comprar aquela casa. —  Estavam a passar por uma atraente casa branca com persianas verdes. —  Vou ter imenso tempo para férias.

         Ela sentiu uma certa pena dele.

         —  É bonita. Está à venda?

—  Tem uma tabuleta do outro lado. Andei a explorar há bocado. Anda ver.

         Deram a volta à casa, que estava fechada, mas que parecia muito agradável vista de fora. Tinha uma varanda larga com uma rede. Lá ao fundo, havia uma pequena construção sem janelas que Nancy calculou fosse um armazém para guardar barcos.

         —  Podias ter um barco —  disse ela. Peter sempre gostara de vela.

         A porta estava aberta e Peter entrou.

         —  Meu Deus! —  ouviu ela.

         Entrando por sua vez, Nancy espreitou para a escuridão.

         —  O que foi? —  perguntou, ansiosa. —  Peter, estás bem?

         Peter apareceu a seu lado e pegou‑lhe no braço. Numa fracção de segundo, ela viu um sorriso triunfante de maldade no seu rosto e percebeu que cometera um erro crasso. Depois, ele deu‑lhe um puxão no braço, forçando‑a a entrar mais para o interior e fazendo‑a tropeçar e cair no chão poeirento.

         —  Peter! —  gritou, furiosa. Ouviu‑o dar três passos rápidos; depois, a porta fechou‑se com estrondo e ela ficou no escuro. Percebeu que algo estava a ser arrastado, como que para ser encostado à porta para a trancar. —  Peter? —  gritou, já assustada. —  Peter, fala comigo!

         Não obteve resposta.

         Com uma sensação de medo crescente, apeteceu‑lhe gritar. Só havia uma porta e ela encostou‑lhe o ombro e empurrou com toda a força. Nem mexeu. Doíam‑lhe os cotovelos e os joelhos da queda, e tinha as meias rotas.

         —  Seu porco! —  disse ela ao ausente Peter.

         A casa era um pouco afastada da praia, mas havia uma hipótese de passarem por ali passageiros do Clipper ou qualquer outra pessoa. Nancy tomou fôlego e berrou o mais alto que conseguiu:

         —  Socorro! Socorro! Socorro!

         Continuou a gritar, mas à medida que o tempo passava, ela ia perdendo a esperança.

         Ouviu o rugido dos potentes motores do Clipper através da baía, e a sua disposição passou do pânico ao desespero. Fora traída e derrotada e até perdera Mervyn, que àquelas horas devia ir no avião. E, provavelmente, pensava que ela já não queria nada com ele. O rugido dos motores distantes aumentou num crescendo e de repente ela compreendeu que perder Mervyn e a sua firma podiam ser o menor dos seus problemas. E se ninguém passasse por aquele armazém durante uma semana? Ela morria. Em pânico, começou a gritar ininterruptamente.

Sentiu lágrimas no rosto e limpou‑as com a manga do casaco. Tinha de se acalmar; devia haver uma saída dali. Voltou a gritar e martelou em vão com as mãos fechadas na porta.

         —  Quem está aí? —  perguntou uma voz. Ela parou de gritar e de martelar. Ouvira mesmo uma voz? —  Nancy, é você?

         —  Mervyn! —  O seu coração deu um pulo. —  Graças a Deus!

         —  Tenho andado à sua procura. O que é que lhe aconteceu?

         —  Tire‑me daqui para fora, por favor.

         A porta abanou, e ela ouviu‑o dizer:

         —  Está encravada. Espere um minuto.

         Logo a seguir, a porta escancarou‑se, Nancy atirou‑se para os braços de Mervyn e, para seu embaraço, começou a chorar. Ele abraçou‑a e afagou‑lhe o cabelo.

         —  Pronto, pronto

         —  Peter fechou‑me aqui dentro —  explicou ela.

         —  Eu calculei que ele tivesse feito qualquer coisa manhosa. Se quer a minha opinião, aquele seu irmão é um pulha desgraçado.

         Nancy não estava interessada em Peter, estava demasiado contente por ver Mervyn. Olhou para ele através de um véu de lágrimas e depois beijou‑o nos olhos, na cara, no nariz e por fim na boca. Ficaram agarrados um ao outrô por algum tempo e depois, sorrindo, saíram lá para fora e caminharam lentamente pela praia para o pontão.

         Nancy interrogava‑se se o seu destino não seria talvez casar‑se com Mervyn e viver em Inglaterra. Perdera a sua batalha pela firma: não tinha hipóteses de chegar a Boston a tempo da reunião da administração. Os seus filhos já eram independentes. "Mas o que é que eu faço em Inglaterra?", pensou. "Não posso limitar‑me a ser dona de casa."

         Chegaram ao pontão e ficaram a olhar para a baía. Nancy pensou qual seria a frequência dos comboios, e estava para propor irem perguntar quando reparou que Mervyn olhava fixamente para alguma coisa na água.

         —  Para onde está a olhar? —  perguntou ela.

—  Para um Ganso Grumman.

         —  Não vejo nenhum ganso.

         —  Aquele hidroavião pequeno —  disse ele, apontando —  chama‑se Ganso Grumman. É novo e muito rápido... mais rápido do que o Clipper.

         Ela olhou para ohidroavião. Era um moderno bimotor de asa única, com cockpit fechado, e ela compreendeu o que ele estava a pensar. No hidroavião, ela conseguia chegar a Boston a tempo da reunião.

—     Podemos alugá‑lo? —  perguntou, hesitante, não ousando alimentar esperanças.

         —  Era nisso que eu estava a pensar.

         —  Vamos perguntar.

         Correram desalmadamente ao longo do pontão até ao terminal. Ela tinha o coração aos pulos; talvez ainda conseguisse salvar a firma. Ao entrarem no terminal, um jovem com a farda da Pan American disse‑lhes:

         —  Ah! Os senhores perderam o avião!

         Sem mais preâmbulos, Nancy perguntou:

         —  Sabe de quem é o hidroavião pequeno?

         —  O Ganso? Claro, é de um homem chamado Alfred Southborne. Querem alugá‑lo?

         O coração de Nancy deu um pulo.

         —  Queremos.

         —  Um dos pilotos está cá; veio ver o Clipper. —  Virou‑se e chamou para o compartimento ao lado: —  Ned, há aqui umas pessoas que querem alugar o teu avião.

         Ned apareceu, um homem alegre de cerca de trinta anos, envergando uma camisa com galões.

         —  Gostava muito de ajudá‑los, mas o meu co‑piloto não está cá e o Ganso precisa de dois tripulantes.

         O coração de Nancy voltou a cair‑lhe aos pés.

         —        Mas eu sou piloto —  disse Mervyn. —  Já pilotei um Supermarine.

         —  Se já pilotou um Supermarine, não terá problemas com o Ganso. Para onde querem ir?

         —        Para Boston.

         —        São mil dólares.

         —        Não há problema! —  declarou Nancy, entusiasmada. —  Posso passar‑lhe um cheque ou o senhor pode mandar a conta à minha firma em Boston. É a Black's Boots.

         —        Eh, eu uso sapatos dos seus!

         Ela olhou para os pés do piloto, que calçava o Oxford preto, de seis dólares e noventa e cinco, número quarenta e dois.

         —        Que tal se sente? —  perguntou automaticamente.

         —  Muito bem —  respondeu ele, sorrindo. —  São uns bons sapatos. Mas é claro que a senhora já deve saber isso!

         Ela sorriu.

         —  Pois é —  respondeu. —  São uns bons sapatos.

 

 

MARGARET estava desorientada de preocupação quando o Clipper se ergueu sobre Nova Brunswick e apontou a Nova iorque. Onde estaria Harry?

                     A Polícia descobrira que ele viajava com um passaporte falso e vasculhara o avião sem o encontrar; aquilo todos os passageiros sabiam. Mas onde desaparecera ele? E ela voltaria a vê‑lo?

                     Margaret disse e voltou a dizer a si mesma que não devia perder a coragem. Era duro perder Harry, mas ainda tinha uma amiga para ajudá‑la. Logo que o avião atingiu a altitude de cruzeiro, ela desapertou o cinto e foi à procura de Mrs. Lenehan.

                     Bateu à porta da suite nupcial, mas não obteve resposta. Bateu de novo e depois abriu a porta. A suite estava vazia.

                     Foi invadida por um pavor gelado.

                     Talvez Nancy estivesse na casa de banho. Mas então, onde estaria Mr. Lovesey? Se ele tivesse ido à cabina de voo ou à casa de banho dos homens, ela tê‑lo‑ia visto passar. Peter, o irmão de Nancy, e o seu amigo tinham os lugares mesmo junto da suite e em frente da casa de banho das senhoras.

                     —        Onde está Mrs. Lenehan? —  perguntou‑lhes Margaret.

                     —        Decidiu ficar em Shediac —  replicou Peter.

                     —        Mas porquê? —  perguntou Margaret, incrédula. —  O que é que a fez ficar lá?

                     —  Não sei —  respondeu Peter friamente. —  Ela não me explicou. Pediu‑me simplesmente para avisar o comandante de que não faria a última etapa da viagem.

                     Margaret ficou desolada. Nancy sabia o quanto Margaret contava com ela para lhe dar ajuda, e era difícil de acreditar que tivesse ficado em terra sem lhe dizer nada nem deixar algum recado. Quase a chorar, Margaret olhou fixamente para Peter e depois virou‑lhe as costas sem mais. Quando ia a passar pelo compartimento número 4, Davy tocou‑lhe no braço.

                     —        O almoço está servido, Lady Margaret, e a sua família está à mesa.

                     —        Muito obrigada. —  Mas ela não estava interessada em comida.

                     Percy e os pais já se encontravam sentados e estavam a servir‑lhes a entrada —  cocktail de lagosta.

- Peço desculpa pelo atraso —  disse Margaret automaticamente, sentando‑se. Tinha vontade de deitar a cabeça na mesa e irromper em lágrimas. Tanto Harry como Nancy a haviam abandonado sem aviso. Estava de volta à casa zero, sem meios de subsistência nem amigos que a ajudassem.

         O prato principal era linguado frito ou bife do lombo. Embora não lhe apetecesse nenhum, ela escolheu o peixe.

         Para sobremesa, havia tarte de maçã com natas ou gelado com chocolate quente, e Margaret pediu o gelado e comeu‑o todo.

         O pai pediu um brandy' com o café e pigarreou.

         —  A sua mãe e eu estivemos a conversar sobre o que fazer consigo —  começou. —  É óbvio que não podemos confiar que tenha uma vida social normal com gente da sua classe.

         —  Graças a Deus!

         Percy desatou a rir, e o pai deitou‑lhe um olhar gelado, mas falou para Margaret:

         —  Estivemos a tentar pensar num sítio para onde a enviar em que tivesse o mínimo de oportunidades de se meter em sarilhos.

         —  Lembraram‑se de um convento?

         Ele não estava habituado a provocações da parte dela, mas controlou‑se com um esforço.

         —  Vai viver com a sua tia Clare, que tem uma casa em Vermont. É um sítio na montanha, bastante isolado, onde a menina não pode causar embaraços a ninguém.

         —  A minha irmã Clare é uma mulher extraordinária —  acrescentou.

Margaret foi invadida por uma raiva fria.

         —  Então, este é o meu castigo por tentar viver a minha própria vida

—  disse em voz trémula. —  Quanto tempo esperam que eu lá fique?

         —  Até se acalmar —  respondeu o pai. —  Talvez um ano.

         —  Um ano... —  Parecia‑lhe uma vida. —  Eu fujo.

         —  Se fugir... —  O pai hesitou e depois disse: —  Se fugir, nós pedimos a sua interdição e internamo‑la num asilo.

         —  Condenam‑me à morte! —  disse Margaret, incrédula.

         Percy levantou‑se e atirou o guardanapo ao chão.

         —  Seu velho tonto, perdeu a cabeça! —  E saiu.

         A mãe começou a chorar baixinho.

         Subitamente, o tom dos motores alterou‑se e todas as conversas cessaram. Sentiu‑se um solavanco e o avião começou a descer.

QUANDO ambos os motores de bombordo falharam, o destino de Eddie ficou selado.

                     Até àquele momento, podia ter mudado de ideias, e o avião teria seguido viagem sem ninguém saber o que ele planeara. Mas naquele instante, independentemente do que acontecesse, o avião teria de fazer uma amaragem de emergência e ficaria a saber‑se tudo.

                     No momento seguinte ao da falha dos motores, Eddie ouviu a voz do comandante Baker nos auscultadores.

                     —  Que raio se passa?

                     A boca de Eddie estava seca de tensão.

                     —  Ainda não sei —  respondeu. Mas sabia: os motores haviam parado porque não recebiam combustível, dado que ele o tinha cortado.

                     O Clipper tinha seis depósitos de combustível: dois mais pequenos nas asas, que alimentavam os motores, e quatro maiores, de reserva, nos hidroestabilizadores.

                     Os depósitos de reserva podiam ser vazados, mas não por Eddie; o manípulo estava no lugar do co‑piloto. Mas Eddie podia bombear combustível dos depósitos de reserva para as asas, e vice‑versa. Essas transferências eram controladas por duas manivelas à direita do painel de instrumentos do maquinista. Naquele momento, o avião sobrevoava a baía de Fundy, a cerca de cinco milhas do ponto de encontro, e nos últimos minutos Eddie começara a vazar ambos os tanques das asas. O de estibordo tinha combustível para mais umas poucas de milhas, e o de bombordo esgotara‑se, fazendo parar os motores desse lado.

                     Seria muito simples voltar a bombear combustível dos depósitos de reserva para as asas, claro. Mas enquanto o avião estava em Shediac, Eddie viera a bordo sozinho e alterara os comandos, mexendo nos mostradores, de modo que na posição BOMBEAR da manivela ela estava, na realidade, desligada, e na posição DESLIGADA estava a bombear. Naquele momento, os mostradores diziam que Eddie estava a tentar encher os depósitos das asas, quando na realidade não se passava nada disso.

                     O avião estava perto do ponto de encontro, só com dois motores em funcionamento. O comandante Baker apareceu imediatamente ao lado de Eddie.

                     —  O depósito de bombordo esgotou‑se completamente e não consigo enchê‑lo.

                     —  Porquê? —  gritou o comandante.

                     Sentindo‑se um traidor, Eddie apontou para as manivelas, explicando:

—  Liguei as bombas, mas não acontece nada.

         —  Quanto resta no depósito de estibordo?

         —  Está quase seco. Se não pousarmos rapidamente, despenhamo‑nos.

         —  Como é que só agora é que deste por isso?

         —  Pensei que estávamos a bombear —  respondeu Eddie num sussurro.

         Era uma resposta inadequada, e o comandante Baker estava furibundo.

         —  Preparar para amaragem de emergência —  gritou. Depois, apontou um dedo a Eddie. —  Não gosto do teu papel nesta embrulhada, Deakin. Não confio em ti.

         Eddie sentia‑se terrivelmente mal. "Acabará por compreender, comandante", pensou ele; mas gostava de poder dizer isso alto. Em Shediac, recebera um recado crítico de Steve Appleby confirmando que uma vedeta da Marinha navegaria na área onde o Clipper devia pousar.

         O comandante debruçou‑se sobre a carta na mesa de navegação.

         —  Estamos aqui —  informou o navegador, apontando um ponto na carta.

         Todo o plano dependia de o Clipper amarar no canal entre a costa do Maine e a ilha de Grand Manan. Os meliantes, tal como Eddie, contavam com isso, e se Baker escolhesse irracionalmente outro local, Eddie salientaria as vantagens do canal. No entanto, não foi necessário intervir, porque, passados momentos, Baker disse:

         —  Vamos pousar aqui, neste canal.

         Eddie estava um passo mais perto de Carol‑Ann.

         Enquanto todos aprontavam os procedimentos para uma amaragem de emergência, Eddie tentava ver como estava o mar. Havia um certo cachão, de mais de um metro, o que já se tornava perigoso para o Clipper. Eddie rangeu os dentes; Baker era um bom piloto, mas não ia ser fácil.

         O avião desceu rapidamente, e Eddie sentiu o casco tocar na crista de uma onda alta. Voaram mais uns momentos e depois tocaram de novo. à segunda, o impacte foi maior, e o estômago de Eddie revolveu‑se quando o enorme aeroplano ricocheteou para o ar.

         Eddie estava assustado. Era assim que os hidroaviões se despenhavam: em vez de deslizarem para a água num ângulo muito deitado, caíam mais a pique. E como o fundo do casco era de alumínio fino, podia rebentar como um saco de papel.

Ele ficou imóvel, esperando o impacte, que chegou com um estrondo aterrador que o abalou até à medula. As janelas ficaram cobertas de água, e Eddie pensou que o avião estava a desintegrar‑se; se mergulhassem uma asa, era o fim.

         Passou um segundo, depois outro. De lá de baixo, ouviam‑se gritos aterrados dos passageiros, mas o avião manteve‑se equilibrado e Eddie começou a ter esperanças de que iriam safar‑se. Os motores ainda rugiam; não haviam submergido.

         Por fim, o avião parou, baloiçando nas ondas, e Eddie levantou‑se e foi espreitar pelas janelas à procura de um barco. A visibilidade estava boa, mas não se viam embarcações; talvez a lancha estivesse atrás do Clipper e ele não a visse.

         Voltou a sentar‑se e desligou os motores. O operador de rádio enviou um mayday.

         —  É melhor eu ir sossegar os passageiros —  disse o comandante. E desceu as escadas.

         O operador de rádio obteve uma resposta, e Eddie teve esperança de que fosse dos tipos que vinham resgatar Gordino.

         Não conseguiu esperar pela confirmação. Dirigindo‑se à frente da cabina de comando, abriu o alçapão no cockpit e desceu para o compartimento da proa. A escotilha da proa abria‑se para baixo, formando uma plataforma, e Eddie ficou ali, agarrado à ombreira da escotilha para se equilibrar na ondulação. Olhou cuidadosamente para a fuselagem e para as asas, mas não viu estragos. O grande avião parecia ter sobrevivido intacto.

         Eddie soltou a âncora e vasculhou o mar em redor à procura de um barco. Onde estariam os cúmplices de Luther? Finalmente, avistou uma lancha à distância e o seu coração teve um sobressalto. Seriam eles? E estaria Carol‑Ann a bordo?

         A lancha vinha rápida, e Eddie olhava, hipnotizado, enquanto ela se aproximava. Em breve, conseguiu distinguir um grupo no convés: três homens de fato escuro e uma mulher com um casaco encarnado. Carol‑Ann tinha um casaco daquela cor. Nessa altura, a mulher ergueu a mão para tapar o sol e houve algo naquele gesto que mexeu com o coração de Eddie e o fez perceber que era a sua mulher.

         Foi invadido pela excitação, esquecendo‑se por momentos dos perigos que ambos ainda enfrentavam. Ergueu os braços e acenou alegremente.

         —  Carol‑Ann! —  gritou. Carol‑Ann!

         Ela não o ouvia, claro, mas via‑o, e acenou também, a princípio com timidez, mas depois mais vigorosamente. Ele deu‑se conta de que, se ela conseguia acenar assim, era porque estava bem e sentiu‑se desfalecer de gratidão. Acenou mais uma vez e, relutantemente, voltou para o interior do avião, aparecendo na cabina de voo exactamente quando o comandante voltava lá de baixo.

         —        Estragos? —  perguntou Baker.

         —        Que eu visse, não.

         O comandante voltou‑se para o operador de rádio, que informou:

         —        O nosso pedido de socorro foi respondido por vários navios, mas a embarcação mais próxima é um iate que está a aproximar‑se por bombordo.

         O comandante espreitou pela janela e viu a lancha, mas abanou a cabeça.

         —        Não nos serve. Temos de ser rebocados. Tenta a Guarda Costeira.

         —        Os tipos da lancha querem subir a bordo —  disse o operador de rádio.

         —        Negativo. É muito perigoso. Com estas ondas, de certeza que ia alguém parar ao charco. Diz‑lhes que agradecemos, mas eles não podem ajudar‑nos.

         Eddie ficou desmoralizado. Eles tinham de vir a bordo, mas naquelas condições, mesmo com ajuda, seria um pesadelo tentar entrar pelas portas de acesso normais. Tinham de entrar pela escotilha da proa.

         —        Eu disse‑lhes que não podiam vir a bordo, comandante —  informou o operador de rádio — , mas eles não ligaram nenhuma.

         —        Ignora‑os —  disse o comandante.

         Eddie levantou‑se e dirigiu‑se para a frente. Quando começou a descer a escada para o compartimento de vante, o comandante Baker interpelou‑o.

         —        Onde é que vais?

         —        Tenho de ir verificar o ferro —  respondeu Eddie vagamente, desaparecendo sem esperar resposta.

         Ainda ouviu Baker dizer:

         —  Aquele tipo está acabado!

         "Isso já eu sabia", pensou, cabisbaixo.

         Saiu para a plataforma. A lancha estava a nove ou dez metros da proa do Clipper, e ele avistou Carol‑Ann encostada à borda. Parecia pálida e cansada

         Eddie ergueu o cunho desmontável e, apontando para ele, acenou para a lancha como se estivesse a atirar um cabo. Teve de o fazer várias vezes até que os homens a bordo entendessem, por isso ele calculou que não fossem marinheiros experimentados. Sem dúvida que pareciam deslocados num barco, com os seus fatos assertoados e segurando os chapéus para não voarem. Finalmente, um dos homens atirou‑lhe um cabo.

         Eddie apanhou‑o e prendeu‑o ao cunho, e os três homens da lancha puxaram para se aproximarem do avião. Um deles era muito jovem, com dezoito anos no máximo, outro era mais velho, mas baixo e magro, e o terceiro, com um fato preto com riscas brancas finas, parecia ser o chefe.

         Eddie decidiu que seriam necessários dois cabos para segurarem a lancha nas ondas, e pondo as mãos em concha à volta da boca, gritou:

         —  Atirem‑me outro cabo. Da popa.

         Eles entenderam e atiraram outro cabo, que Eddie levou para dentro do avião, atando‑o a um varão.

         Com um homem a puxar em cada cabo, a lancha aproximou‑se rapidamente e, de súbito, o motor foi desligado e apareceu um homem de fato‑macaco, começando ele a puxar um dos cabos. Era certamente o mestre da lancha.

         Eddie ouviu a voz do comandante Baker atrás de si.

         —  Deakin, estás a desobedecer a uma ordem explícita!

         Eddie não lhe ligou e rezou para que ele se mantivesse afastado só mais uns segundos. A lancha já não podia chegar‑se mais, e o mestre atou os cabos, deixando solto o suficiente para o subir e descer das ondas. Para entrarem no Clipper, os bandidos teriam de esperar que uma onda trouxesse o convés da lancha à altura da plataforma do avião e saltar. Para se equilibrarem, podiam agarrar‑se ao cabo que ia da popa da lancha para o interior do compartimento do Clipper.

         —  Deakin, volta para dentro —  rugiu Baker.

         O mestre abriu uma portinhola na borda falsa da lancha e o meliante do fato riscado preparou‑se para saltar. Eddie sentiu a mão do comandante Baker agarrar o seu casaco por trás, e o bandido, vendo o que estava a acontecer, enfiou a mão dentro do casaco. O pior pesadelo de Eddie era que algum dos seus camaradas fosse morto. Voltando‑se para Baker, gritou:

         —  Comandante, saia da frente, estes tipos estão armados!

         Baker pareceu chocado, olhou para o gangster e escondeu‑se lá dentro. Eddie viu o homem do fato riscado enfiar a pistola de volta no bolso. "Meu Deus", pensou, atemorizado, "espero conseguir evitar que estes tipos matem alguém. Se alguém morrer, a culpa é minha."

O barco estava na crista de uma onda, com o convés acima do nível da plataforma, e o bandido agarrou no cabo, hesitou e depois saltou. Eddie agarrou‑o, equilibrando-o.

         —  Você é o Eddie?

         Eddie reconheceu-lhe a voz: ouvira‑a ao telefone no hotel em Inglaterra e recordava‑se do nome dele —  Vincini. Eddie insultara‑o, mas agora estava arrependido de o ter feito, porque precisava da sua cooperação.

         —        Eu quero colaborar consigo, Vincini. Se quer que tudo corra bem, sem hesitações, deixe‑me ajudá‑lo.

         —  OK —  respondeu Vincini com um olhar duro. —  Mas um passo em falso e você é um homem morto.

         —  Entre e espere aí enquanto eu ajudo os outros.

         —        OK. —  Vincini virou‑se para a lancha. —  Joe, tu és o próximo. Depois, o Miúdo. A rapariga em último. —  Entrou para o compartimento da proa.

         Lá dentro, Eddie viu o comandante Baker a subir a escada de acesso ao cockpit. Vincini sacou a arma e disse:

         —  Fique onde está.

         —  Por amor de Deus, faça o que ele diz, comandante —  pediu Eddie.

         Baker desceu a escada e ergueu os braços. Eddie voltou para fora. O magricela chamado Joe estava na borda da lancha com um ar apavorado.

         —  Eu não sei nadar —  disse com uma voz rouca.

         —        Nem vai precisar —  assegurou-lhe Eddie, estendendo-lhe uma mão.

         Joe saltou, agarrou a mão de Eddie e meio entrou, meio caiu para o compartimento da proa. O próximo era o Miúdo, que, tendo visto os outros saltarem sem problemas, estava demasiado confiante.

         —  Eu também não sei nadar —  disse com um Sorriso. Saltou cedo demais, aterrou mesmo na borda da plataforma e desequilibrou‑se para trás. Eddie inclinou‑se, agarrou com uma das mãos o cabo e com a outra o cós das calças do rapaz, puxando‑o para dentro.

         Agora, faltava Carol‑Ann, que estava na borda da lancha com o pavor estampado na cara. Eddie percebeu que a escapadela por um triz do Miúdo a enervara.

         —  Basta fazeres o que eles fizeram, querida —  encorajou com um SOrriSo. —  Tu és capaz.

         Ela assentiu com a cabeça e segurou no cabo.

A ondulação ergueu subitamente a lancha ao nível da plataforma e Carol‑Ann hesitou, perdendo a oportunidade e ficando ainda mais assustada.

         —        Não te apresses —  gritou Eddie para a acalmar. —  Salta quando quiseres.

         A lancha baixou e ergueu‑se de novo, mas afastou‑se um bocado da plataforma, deixando um espaço muito largo.

         —  Agora não... —  disse Eddie, mas demasiado tarde.

         Determinada a ser corajosa, ela já saltara, falhando a plataforma por completo. Deu um grito de terror, ficando pendurada no cabo com os pés a abanarem no ar.

         —        Agarra‑te bem —  gritou Eddie, frenético. —  Balança no cabo quando o avião subir na onda.

         Ela ouviu‑o e agarrou‑se ferozmente ao cabo quando a ondulação a fez descer. Eddie via‑a a ranger os dentes com a dor nos braços, mas ela conseguiu baloiçar‑se quando a onda a ergueu de novo. Eddie ajoelhou‑se, estendendo os braços. Ela subiu e baloiçou-se com toda a força, e Eddie conseguiu agarrar‑lhe um tornozelo. Puxou‑a e agarrou‑lhe no outro tornozelo, mas os pés dela ainda não estavam ao nível da plataforma. A lancha começou a baixar e Carol‑Ann gritou quando se sentiu a descer e largou o cabo.

         Eddie agarrou‑se desesperadamente aos tornozelos dela e quase foi arrastado pelo seu peso para dentro de água, mas conseguiu deitar‑se de barriga para baixo e escorar‑se. Carol‑Ann baloiçava de cabeça para baixo, suspensa das mãos dele, e a onda seguinte submergiu-lhe a cabeça, erguendo‑a no entanto um pouco. Ele largou a mão direita do tornozelo dela e conseguiu abraçá‑la pela cintura.

         —  Já está, querida, estás a salvo. —  Puxou‑a para a plataforma e ajudou‑a a entrar no avião.

         Carol‑Ann caiu nos braços dele, soluçando, e ele apertou‑lhe a cabeça encharcada contra o peito.

         Os três bandidos e o comandante Baker olhavam‑nos, expectantes, mas ele ignorou‑os mais algum tempo. Abraçou fortemente Carol‑Ann, que tremia, descontrolada.

         —  Estás bem, querida? —  perguntou por fim. —  Eles fizeram‑te mal?

         —  Acho que estou bem —  respondeu ela, abanando a cabeça.

         O comandante Baker olhou para um e para o outro e acabou por dizer:

         —  Ah, parece‑me que já começo a compreender tudo.

—  Bem, já basta de conversa, temos muito que fazer —  interrompeu Vincini.

         Eddie largou Carol‑Ann e olhou para ele.

         —  Muito bem, vamos tratar primeiro da tripulação; acalmá‑la e tirá‑la do caminho. Por favor, venha connosco, comandante, para acalmar os passageiros. Joe e o Miúdo devem levar Carol‑Ann e a tripulação para o compartimento número um e depois eu levo‑o ao homem que você quer. Certo?

         Vincini assentiu com a cabeça e Eddie foi à frente, passando pela cabina de voo e descendo para os compartimentos dos passageiros. Havia um sururu de conversas, alguns risos histéricos e ouvia‑se o soluçar de uma mulher. Mas as pessoas calaram‑se quando viram a arma de Vincini. Atrás deste, o comandante ia dizendo:

         —  Peço desculpa, minhas senhoras e meus senhores, mas, por favor, fiquem sentados e tentem manter a calma.

         Eddie atravessou o compartimento número 3 e passou ao 4, onde Ollis Field e Frankie Gordino estavam sentados lado a lado. "É agora", pensou Eddie. "É agora que eu liberto um assassino."

         —  Aqui está o seu homem —  disse, apontando.

         Mas Ollis Field levantou‑se.

         —  Este é o agente Tommy McArdle, do FBI —  disse. —  Tivemos informações de que a quadrilha ia matar Gordino para o impedir de depor. Iam matá‑lo assim que chegasse à América, por isso espalhámos a informação de que ele ia viajar no Clipper, mas mandámo‑lo à frente de navio. Por esta altura, já ele está na prisão de Providence.

         —  Não! —  explodiu Eddie. Estava abalado. —  Uma armadilha! Passei por isto tudo para cair numa armadilha! —  Olhou, atemorizado, para Vincini.

         —  Ora, nós não queremos o Frankie —  disse Vincini. —  Onde é que está o kraut?

         Eddie olhou para ele, incrédulo. Quem era o kraut? Então, ouviu‑se a voz de Tom Luther do compartimento número 3.

         —  Está aqui, Vincini —  disse ele. —  Eu apanhei‑o. —  Luther estava à porta do compartimento, apontando uma pistola à cabeça de Carl Hartmann.

         Eddie estava completamente confundido. Porque carga de água quereria o gang Patriarca raptar Carl Hartmann?

         —  Vocês são nazis?

         —  Não, não —  replicou Vincini. —  Estamos só a fazer um trabalho encomendado pelos nazis.

—  Eu tenho orgulho de pertencer à Liga Germano-Americana - disse Luther friamente. Eddie já ouvira falar da Liga, que era financiada pelos nazis. Luther continuou: —  Estes homens são apenas contratados. Foi o próprio Fuhrer quem solicitou a minha ajuda na repatriação de um cientista fugitivo, cuja presença é requisitada pelo Terceiro Reich.

         Eddie viu o olhar de Hartmann, que estava transido de pavor. O gangster baixinho chamado Joe apareceu no compartimento com uma arma na mão direita e uma garrafa de champanhe aberta na esquerda.

         —  Eles estão quietos como cordeirinhos, Vinnie —  disse ele a Vicenti. —  O Miúdo está ali na casa de jantar e controla toda a parte da frente do avião.

         —  E onde está o submarino? —  perguntou Vicenti a Luther.

         —  Deve estar a chegar a qualquer momento.

         Um submarino! Luther combinara encontrar-se com um submarino mesmo ali, ao largo do Maine! Eddie espreitou pela janela, mas Só viu ondas.

         —  Bem, nós cumprimos a nossa parte —  disse Vicenti. —  Dê‑me o dinheiro.

         Mantendo Hartmann sob a sua mira, Luther recuou até ao seu lugar, pegou numa pasta e entregou-a a Vicenti. Este abriu‑a; estava atulhada de maços de notas.

         —  Cem mil dólares, tudo em notas de vinte —  entoou Luther.

         Todos os passageiros que estavam no compartimento —  a princesa Lavinia, Lulu BelI, Mark Alder, Diana Lovesey, Ollis Field e o Sósia de Frankie Gordino —  olharam enquanto Vicenti contava o dinheiro. Joe deu um gole da garrafa de champanhe e depois ofereceu‑a a Diana Lovesey, que empalideceu e recuou.

         —  Belas pernas —  comentou ele com um sorriso lascivo. Largando a garrafa, acariciou-lhe o seio.

         Ela gritou, e Mark desapertou o cinto de segurança.

         —  Não lhe toque, seu miserável.

         Com um movimento surpreendentemente rápido, o meliante golpeou Mark na boca com a arma, fazendo espirrar sangue.

         —  Deixa‑te disso, Joe —  gritou Vicenti. —  Podemos ir‑nos embora, o dinheiro está aqui todo. Se quiseres, traz a miúda.

         —  Não! Não! —  gritou Diana.

         Joe abriu o cinto de segurança dela e puxou‑a pelo cabelo. Ela resistiu‑lhe e Mark levantou‑se, tentando limpar o sangue da cara. Eddie agarrou‑o.

—  Não se mate. —  Depois, baixando a voz, murmurou: —  Prometo que vai correr tudo bem.

                     Eddie queria desesperadamente dizer a Mark que a lancha dos bandidos ia ser interceptada por uma vedeta da Marinha antes de eles terem tempo de fazer fosse o que fosse a Diana, mas receava que Vicenti ouvisse.

                     Joe apontou a pistola a Mark e disse a Diana:

                     —  Tu vens connosco ou o teu namorado leva um balázio entre os olhos.

                     Diana deixou de resistir e começou a soluçar.

                     —  Eu vou consigo, Vicenti —  informou Luther. —  O meu submarino não veio.

                     —  Eu sabia que eles não vinham —  comentou Vicenti. —  Não conseguem chegar tão perto dos EUA.

                     Vicenti não percebia nada de submarinos. Eddie adivinhava a verdadeira razão por que ele não aparecera. A vedeta de Steve Appleby devia andar a patrulhar o canal.

                     —  Vamos embora —  continuou Vicenti. —  Luther primeiro, depois o kraut, o Miúdo, eu, o maquinista, quero‑o perto de mim até nós sairmos, depois Joe com a loura. Vamos.

                     Mark Alder começou a debater‑se nos braços de Eddie, e Vicenti virou‑se para Olus Field e para o outro agente e disse:

                     —  Querem segurar este tipo ou preferem que Joe o mate?

                     Eles agarraram Mark e Eddie saiu atrás de Vicenti, passando pelos passageiros de olhos esbugalhados no compartimento número 3. Quando Vicenti entrou no compartimento número 4, Mr. Membury sacou de uma pistola e apontou‑lha directamente.

                     —  Alto! Todos quietos ou eu mato o vosso patrão!

                     Eddie deu um passo atrás para sair do caminho, e aquele a quem chamavam o Miúdo rodou e disparou duas vezes. Membury caiu.

                     —  Idiota! —  gritou Vicenti. —  Ele podia ter‑me matado!

                     —  Não ouviu a voz dele? —  perguntou o Miúdo. —  Eu vejo todos os filmes e nunca ninguém é morto por um inglês!

                     Eddie ajoelhou‑se junto de Membury, que fora atingido no peito.

                     —  Quem é você?

                     —  Brigada Especial, Scotland Yard —  suspirou Memburv. —  Destacado para proteger Hartmann. —  Então, o cientista não viajava completamente desprotegido. Um falhanço dos diabos —  continuou Membury roucamente. Depois, fechou os olhos e expirou.

                     Eddie praguejou. Prometera, a si próprio levar os gangsters para fora do avião sem mortes, e agora este homem corajoso fora assassinado.

         Naquele momento, apareceu o mestre da lancha a correr.

         —  Ei, Vicentie, acabei de ouvir no rádio que anda um barco da Marinha a patrulhar a costa... Como se estivessem à procura de alguma coisa.

         O coração de Eddie parou de bater. Agora, Vicentijá sabia da armadilha. Acabara‑se tudo. Estava perdido.

         —  Você traiu‑me —  disse Vicenti, apontando a arma a Eddie. - Miserável, hei‑de matá‑lo por isto!

         Nessa altura, Luther gritou:

         —  Ouça, Vicenti. Não ouve nada?

         Ficaram todos em silêncio e Eddie ouviu o barulho de outro avião. Luther espreitou pela janela.

         —  E um hidroavião e está a pousar mesmo aqui.

         Vicenti baixou a arma, e Eddie sentiu‑se desfalecer. Quando Vicenti espreitou lá para fora, Eddie seguiu‑lhe o exemplo e viu o Ganso Grumman, que estivera fundeado em Shediac, a amarar.

         —  Vamos fugir naquilo —  declarou Luther, excitado. —  Passamos por cima da Marinha e piramo‑nos.

         —  Bem pensado —  assentiu Vicenti vagarosamente. —  É isso mesmo.

         Eddie deu‑se conta de que eles iam escapar. Ele não morreria, mas acabara por falhar na sua missão.

 

 

NANCY LENEHAN descobrira a solução para o seu dilema quando sobrevoavam o litoral canadiano no hidroavião alugado.

         Nat Ridgeway dissera‑lhe que estava disposto a fazer uma oferta mais generosa pela firma e a dar‑lhe um lugar na General Textiles. Pensando naquilo, ela lembrara‑se de que a General Textiles tinha várias fábricas na Europa, a maioria das quais em Inglaterra, e que Ridgeway se veria impossibilitado de visitá‑las até ao fim da guerra. Portanto, ela ia oferecer‑se para o lugar de director da General Textiles na Europa. Assim, podia estar com Mervyn e trabalhar ao mesmo tempo.

         A solução era extraordinariamente simples; o único problema era que ela podia morrer na guerra.

         Nancy meditava sobre essa remota, mas arrepiante, possibilidade quando Mervyn se virou para trás no seu assento de co‑piloto e apontou pela janela. Ela avistou o Clipper pousado no mar.

         Temos de descer e ver se eles precisam de ajuda —  gritou ele por sobre o rugido dos motores. —  Aperta o cinto e segura‑te bem. A amaragem pode ser um pouco dura.

         Nancy apertou o cinto de segurança e olhou pela janela, enquanto Ned, o piloto, fazia a amaragem. O mar estava picado e havia ondas largas, mas a amaragem não foi tão má como ela temera.

         Estava uma lancha atracada ao nariz do Clipper, e apareceu um homem no convés que lhes fez sinal para se aproximarem. Nancy percebeu que ele queria que prendessem o Ganso à lancha. A escotilha da proa do Clipper estava aberta e, presumivelmente, embarcariam por ali.

         Ned manobrou destramente o hidroavião para junto da lancha, e o homem que estava a bordo amarrou o avião ao barco. Enquanto Ned desligava os motores, Mervyn abriu a porta e preparou a prancha de desembarque.

         —  é preferível eu ficar a bordo —  disse Ned a Mervyn. —  Veja lá o que é que se passa.

         —  Eu também vou —  disse Nancy.

         Mervyn desembarcou à frente e estendeu a mão a Nancy. Quando estavam ambos a bordo da lancha, Mervyn perguntou ao homem de fato‑macaco o que é que se passava.

         —  Houve problemas de combustível e tiveram que pousar —  explicou ele. —  É melhor entrarem.

         Passar da lancha para o Clipper implicava um saltinho do convés da lancha para a plataforma da escotilha, e, uma vez mais, Mervyn saltou primeiro e depois ajudou Nancy.

         No compartimento da proa estava um jovem que eles não conheciam e a quem Mervyn se dirigiu.

         —  O que é que aconteceu aqui?

         —  Amaragem de emergência. Nós estávamos à pesca e vimos tudo.

         Nancy reparou, divertida, que ele não estava vestido de modo lá muito apropriado para pescar: sapatos em dois tons e gravata amarela. Ela seguiu Mervyn escada acima para o cockpit, que estava deserto. Era estranho que toda a tripulação tivesse abandonado a cabina de voo.

         Nancy começou a sentir‑se desconfiada ao descer as escadas de caracol. Mervyn foi à frente para o compartimento número 2 e parou subitamente. Olhando sobre o ombro dele, Nancy viu Mr. Memburv caído num charco de sangue e levou a mão à boca para abafar um grito.

—  Meu Deus! O que se passou aqui? - perguntou Mervyn.

         Atrás deles, o jovem da gravata ordenou:

         —  Avancem. —  A sua voz tornara‑se áspera.

         Nancy virou‑se para ele e viu que tinha uma pistola na mão.

         —  Foi você que fez isto? —  perguntou, zangada.

         —        Cale a boca e ande para a frente.

         Passaram à casa de jantar, onde estavam mais três homens armados. Havia um alto com um fato às riscas; um baixote com cara de mau que estava atrás da mulher de Mervyn, acariciando‑lhe distraidamente os seios, e, ao vê‑lo, Mervyn soltou uma imprecação; o terceiro pistoleiro era um dos passageiros, Mr. Luther, que mantinha o Prof. Hartmann debaixo de mira. Também lá estavam o comandante e o maquinista, com um ar impotente, e vários passageiros sentados às mesas. Nancy vislumbrou Margaret Oxenford, pálida e assustada.

         —        Os deuses estão comigo, Lovesey —  comentou Mr. Luther. - Você chega com um hidroavião exactamente quando é preciso. Pode levar‑me a mim, a Mr. Vicenti e aos nossos sócios daqui para fora, fugindo à vedeta da Marinha que o traidor Eddie Deakin chamou para nos encurralar.

         Mervyn limitou‑se a olhar para ele sem comentários.

         —        Vamos andando antes que a Marinha venha investigar —  disse o homem do fato às riscas. —  Miúdo, tu levas o Lovesey.

         —  OK, Vinnie.

         O homem chamado Vicenti continuou a dar instruções:

         —  Luther, você leva o kraut e tu, Joe, levas a loura.

         O homenzinho chamado Joe espetou o cano da pistola no peito de Diana, fazendo‑a gemer de dor.

         —  Vamos embora —  disse ele.

         —  Só um momento —  interrompeu Mervyn. —  Eu levo‑os daqui para fora, mas há uma condição.

         —        Cale‑se e ande —  replicou Vicenti. —  Não há condições.

         Mervyn abriu os braços.

         —  Está bem, então mate‑me.

         Fez‑se silêncio, até que Luther perguntou:

         —        Qual é a condição?

         —  Ela fica —  respondeu Mervyn, apontando para Diana.

         —  Joe, larga a mulher —  instruiu Luther.

         —        Que raio...! —  O homenzinho ficou rubro de raiva.

         —  Larga‑a! —  gritou Luther. —  Eu paguei‑lhes para me ajudarem a raptar Hartmann, e não para violarem mulheres.

Diana começou a chorar de alívio.

         —  Estamos a perder tempo. Vamos —  disse Vicenti.

         De lá de fora veio o uivo da sirene da lancha. O mestre estava a tentar chamar‑lhes a atenção.

         —        Caramba, patrão! —  disse aquele a quem chamavam Miúdo. - Olhe pela janela!

 

         HARRY MARKS desmaiou quando o Clipper amarou. No primeiro salto, foi atirado contra a antepara dianteira do porão das bagagens e apagou‑se como uma lanterna.

         Quando voltou a si, interrogou‑se sobre o que estaria a acontecer. Sabia que não haviam chegado a Port Washington, porque só haviam passado duas horas das cinco que o voo demorava.

         Sentou‑se direito, analisando os ferimentos; tinha nódoas negras por todo o lado, mas não havia fracturas. Depois, ouviu um tiro. Tinha de dar uma olhadela lá fora.

         Abriu uma nesga da porta. Não viu ninguém.

         Saiu para o corredor e dirigiu‑se para a porta que dava para a cabina de voo, encostando‑se a ela à escuta. Não ouviu nada e abriu cuidadosamente a porta, espreitando.

         A cabina de voo estava deserta.

         Em bicos dos pés, dirigiu‑se ao topo das escadas. Ouviu vozes alteradas a discutirem, mas não conseguiu decifrar as palavras. Espreitando pela janela, viu uma lancha amarrada ao nariz do Clipper com um homem no convés. Harry compreendeu que a sua liberdade podia estar muito próxima.

         Ouviu o barulho de passos atrás de si e deu uma reviravolta com o coração aos pulos. Era Percy Oxenford.

         O miúdo estava à porta, parecendo tão abalado como Harry se sentia.

         —  Onde é que você estava escondido? —  perguntou Percy passados momentos.

         —  Isso agora não interessa —  replicou Harry. —  O que é que se passa?

         —  Mr. Luther é nazi e quer mandar o Prof. Hartmann de volta para a Alemanha. Contratou uns gangsters para o ajudarem e pagou-lhes uma pasta com cem mil dólares dentro!

         —        Co's diabos! —  exclamou Harry, esquecendo-se do sotaque americano.

         —        E mataram Mr. Membury. Ele era da Scotland Yard.

Então era isso.

         —  E a tua irmã?

         —  Por enquanto, está bem, mas eles querem levar Mrs. Lovesey por ser tão bonita. Espero que não reparem em Margaret.

—  Que confusão! —  comentou Harry.

—     Eu consegui escapulir-me pelo alçapão que há junto da casa de banho das senhoras. Venho buscar a arma do agente Field. Eu vi o comandante a confiscar‑lha.

Percy atravessou o compartimento até à mesa das cartas e abriu uma gaveta. Lá dentro estava um revólver compacto com um cano curto. Percy pegou-lhe, abriu o cilindro e fê‑lo rodar.

—  Acho que isso não é grande ideia —  comentou Harry, abanando a cabeça. —  Ainda te matam.

Agarrou no pulso do rapaz, tirou-lhe a arma e voltou a pô-la na gaveta, que fechou.

Ouviu-se um grande barulho lá fora, e Harry e Percy espreitaram pelas janelas e viram um hidroavião a começar a sua descida. Depois de amarar, dirigiu-se ao Clipper.

—  O que é que será isto agora?! —  exclamou Harry, virando-se para Percy. Mas este desaparecera, deixando a gaveta aberta, onde já não estava o revólver. —  Oh, não! —  disse Harry.

Ele lembrava‑se de Margaret lhe contar que toda a família sabia atirar, mas o rapaz não fazia ideia do que eram gangsters. Se ele se lhes atravessasse no caminho, eles abatiam‑no como a um cão.

Harry espreitou lá para fora e viu que o hidroavião estava a atracar à lancha. Ou os passageiros do hidroavião entrariam a bordo do Clipper ou vice‑versa; fosse como fosse, em breve alguém passaria pela cabina de voo, e ele tinha de se esconder. Saiu para a zona das bagagens, deixando uma nesga da porta aberta para ouvir o que se passava.

         Em breve, subiu alguém do nível dos passageiros, descendo depois para o compartimento da proa. Minutos depois, algumas pessoas - duas ou três —  voltaram para trás. Harry ouviu os passos delas a descerem as escadas para os compartimentos dos passageiros e saiu.

         Foi até ao topo da escada, hesitou e depois desceu, pé ante pé, parando e escutando a cada momento. Quando chegou ao fundo da escada, ouviu a voz de Tom Luther a dizer:

         —  Os deuses estão comigo, Lovesey. Você chega com um hidroavião exactamente quando é preciso. Pode levar‑me a mim, a Mr. Vincmi e aos nossos sócios daqui para fora, fugindo à vedeta da Marinha que o traidor Eddie Deakin chamou para nos encurralar.

O hidroavião ia permitir a Luther raptar Hartmann.

         Harry voltou a subir a escada. Pensar no pobre Hartmann a ser levado de volta aos nazis era terrível, mas Harry talvez deixasse isso acontecer —  ele não era nenhum herói. No entanto, o jovem Percy Oxenford estava prestes a fazer uma estupidez qualquer, e Harry não podia alhear‑se e permitir que o irmão de Margaret fosse morto. Por causa dela, tinha de actuar primeiro, criar uma diversão.

         Espreitando para dentro do compartimento da proa, viu um cabo atado a um varão e teve uma inspiração. De súbito, viu uma maneira de criar uma diversão e talvez também de se livrar de um dos bandidos.

         Primeiro tinha de soltar as amarrações e deixar a lancha à deriva. Descendo as escadas, atravessou o alçapão e o compartimento da proa. Desfez o nó do varão e largou o cabo no chão. Espreitando lá para fora, viu que havia outro cabo desde a proa da lancha até ao nariz do Clipper. Raios! Para lhe chegar, tinha de sair para a plataforma, arriscando‑se a ser visto, mas não podia desistir naquela altura. Percy estava lá dentro, na boca do lobo.

         Harry saiu para a plataforma, soltou o cabo rapidamente do cunho e atirou a ponta para a água.

         —  Ei, o que é que você está a fazer?

         Harry virou‑se. Era o mestre da lancha aos gritos no convés. Felizmente, estava desarmado. O passo seguinte era mais perigoso.

         Harry correu escada acima, atravessou a cabina de comando e escondeu‑se e de novo na área da bagagem. Durante um longo minuto, não aconteceu nada. "Vá lá", pensou ele, "olhem lá pela janela. A vossa lancha está à deriva."

         Finalmente, ouviu passos pesados de corrida a atravessarem a cabina de comando. Desanimado, percebeu que eram dois homens; não tinha previsto aquela hipótese.

         Quando ele calculou que já deviam ter descido para o compartimento da proa, espreitou lá para fora. Caminho livre. Atravessou a cabina e espreitou pelo alçapão, vendo dois homens armados a olharem pela escotilha da proa. Mesmo que não estivessem armados, Harry teria adivinhado que eram malfeitores: um era um homenzinho feioso com uma expressão de velhaco, o outro era muito jovem, à volta dos dezoito anos.

         Naquele momento, o mestre já estava a manobrar a lancha, ainda com o hidroavião atracado. Os dois bandidos teriam de atar novamente a lancha ao Clipper e não podiam fazê‑lo de armas na mão. Harry esperou que eles as guardassem.

O mestre gritou qualquer coisa e os homens enfiaram as pistolas nos bolsos e saíram para a plataforma. De coração na boca, Harry desceu a escada para o compartimento da proa.

         Os homens estavam a tentar apanhar os cabos que o mestre lhes atirava, por isso a princípio não o viram.

         Ele esgueirou-se rente à parede do compartimento e, quando estava a meio caminho, o homenzinho virou‑se e viu Harry. Conseguiu sacar a arma exactamente no momento em que Harry chegou junto dele.

         Harry teve a certeza de que ia morrer. Desesperadamente, sem pensar, agachou‑se, agarrou no tornozelo do homenzinho e puxou.

         Ouviu‑se um tiro, mas Harry não sentiu nada.

         O homem desequilibrou-se, quase caiu, largou a arma e agarrou‑se ao companheiro para se salvar. Por instantes, balançaram os dois, agarrados um ao outro. Harry ainda tinha o tornozelo do homenzinho na mão e deu‑lhe um novo puxão.

         Os dois homens caíram da plataforma para a água, e Harry soltou um grito de triunfo.

         —  Esta foi por Clive Membury, malditos!

         Não ficou à espera de ver o que lhes acontecia. Tinha de descobrir o que se passava com os outros passageiros. Atravessou a correr o compartimento, subiu a escada e desceu em bicos de pés a outra escada, de acesso ao nível inferior.

         No último degrau, parou à escuta.

 

         MARGARET ouvia o seu próprio coração.

         Sentia‑se assustada como nunca estivera na vida. Estava sentada, imóvel, paralisada de pavor, mas quando viu Joe e o Miúdo a afogarem-se deu um grito.

         Ela estava a olhar pela janela quando eles apareceram no seu campo de visão. Percebia‑se que nenhum deles sabia nadar, e Joe estava às cavalitas do Miúdo, empurrando-o para baixo, a tentar salvar‑se. Era um espectáculo terrível.

         Quando ela gritou, Luther acorreu àjanela.

         —  Joe e o Miúdo estão na água! —  gritou ele, histérico.

         O mestre da lancha atirou‑lhes um cabo, mas eles não o viram, estavam a debater‑se atabalhoadamente, cegos de pânico.

         —  Faça qualquer coisa! —  exclamou Luther, também ele à beira do pânico.

         —  Faço o quê? —  replicou Vicenti, indiferente. —  Não podemos fazer nada. Os mentecaptos não têm cabeça para se salvarem a eles próprios.

         A cabeça do Miúdo submergiu e não voltou a aparecer. Joe engoliu uma lufada de água, a sua cabeça submergiu, reapareceu e submergiu pela última vez.

         Margaret sentiu um arrepio. Estavam os dois mortos.

         —  Como é que isto aconteceu? —  perguntou Luther. - Como é que caíram?

         —  Talvez fossem empurrados —  sugeriu Vicenti. —  Tem de haver mais alguém a bordo deste avião.

         "Harry!", pensou Margaret. Seria possível? Estaria Harry a bordo do avião?

         —        Isto está tudo a descambar —  lamentou‑se Luther. —  O que é que vamos fazer?

         —        Vamos fugir no barco, tal como tínhamos planeado, você, eu o kraut e o dinheiro —  disse Vicenti. —  Se alguém se atravessar no caminho, abata‑o. Acalme‑se e vamos embora.

         No momento em que os três homens saíam da casa de jantar Margaret ouviu a voz de Percy, vinda da parte de trás do avião.

         —        Alto aí! —  gritou ele a plenos pulmões.

         Para espanto de Margaret, ele tinha uma arma e apontava‑a directamente a Vicenti. Vicenti virou‑se devagar e olhou demoradamente para Percy.

         —        Desaparece, miúdo —  disse por fim.

         —        Largue a arma —  ordenou Percy na sua voz hesitante de adolescente.

         Vicenti moveu‑se com uma rapidez surpreendente. Inclinou‑se para um lado e ergueu a arma. Ouviu‑se um tiro, que ensurdeceu Margaret. Ela não percebeu quem tinha disparado. Percy parecia estar bem, e nessa altura Vicenti tropeçou e caiu, com o sangue a escorrer‑lhe do peito. Largou a pasta, que se abriu. Os maços de notas ficaram salpicados de sangue.

         Percy largou o revólver e olhou, horrorizado, para o homem que acabara de matar. Parecia prestes a chorar.

         Olharam todos para Luther, o último da quadrilha e a única pessoa que ainda estava armada.

         Carl Hartmann fez um movimento súbito, libertando‑se de Luther enquanto ele estava distraído, e atirou‑se ao chão. Margaret ficou aterrada, pensando que Hartmann ia ser morto, mas o que aconteceu na realidade apanhou‑a completamente de surpresa.

Luther agarrou‑a a ela. Arrancou‑a do seu lugar, segurando‑a com a arma apontada à sua cabeça, tal como fizera antes com Hartmann

         Todos se imobilizaram.

         Margaret estava demasiado aterrada para se mexer, falar ou mesmo gritar. No silêncio, Luther ordenou:

         —  Hartmann, vá para a escotilha da proa e passe para bordo da lancha. Faça o que lhe digo, senão a rapariga morre.

         Hartmann levantou‑se lentamente.

         Agora, dependia tudo dela, compreendeu Margaret com um raciocínio gelado e aterrador. Sacrificando‑se, ela podia salvar Hartmann.

         O seu olhar cruzou‑se com o do pai, que parecia horrorizado. Ela lembrou‑se de como ele a provocara, dizendo que ela era demasiado mole e que não duraria um dia no SAT. Teria razão?

         Bastava‑lhe mexer‑se. Luther talvez a matasse, mas os outros homens atacá‑lo‑iam e Hartmann seria salvo.

         O tempo passava tão devagar como num pesadelo, e ela sentiu‑se invadida por uma calma terrível. "Eu consigo", pensou ela. De súbito, ouviu a voz de Harry atrás de si.

—  Acho que o seu submarino chegou, Mr. Luther. Toda a gente espreitou pelas janelas.

         Margaret sentiu a pressão do cano na sua têmpora aliviar‑se um milésimo e percebeu que Luther se distraira momentaneamente.

         Baixou a cabeça e escapou‑se do seu abraço.

         Houve um tiro, mas ela não sentiu nada.

         Todos se viraram ao mesmo tempo.

         Eddie, o maquinista, passou por ela e atirou‑se a Luther.

         Harry agarrou na mão direita do bandido e arrancou‑lhe a pistola.

         Luther tombou no chão, com Eddie e Harry em cima dele.

         Margaret percebeu que ainda estava viva e sentiu‑se desfalecer. Sentou‑se numa cadeira. Percy correu para ela e abraçaram‑se.

         —  Foste tão corajoso! —  disse ela.

         —  E tu também.

         "É verdade", pensou ela. "Fui corajosa."

         Todos os passageiros começaram a falar ao mesmo tempo, até que o comandante Baker gritou:

         —  Todos calados, por favor!

         Margaret olhou em redor. Luther ainda estava no chão, inofensivo, manietado por Eddie e Harry. Ela espreitou lá para fora e viu o submarino à tona, como um grande tubarão cinzento.

         —  Anda uma vedeta da Marinha nas redondezas —  informou o comandante —  e nós vamos contactá‑la e informá‑la do submarino.

A tripulação aparecera, vinda do compartimento número 1, e o comandante dirigiu‑se ao operador de rádio:

—  Mãos à obra, Ben.

                     - Certo, meu comandante. No entanto, o submarino pode ouvir a transmissão e fugir

                     —  Deixá‑lo —  retorquiu o comandante. —  Os nossos passageiros já correram demasiados riscos. —  O operador de rádio correu escada acima e o comandante Baker continuou: —  Há um bandido que ainda não apanhámos e eu gostava de fazê‑lo: é o mestre da lancha. Eddie, vai à proa e diz‑lhe que Mr. Vicenti precisa dele.

                     Eddie largou Luther e saiu.

                     —  Jack, recolhe todas as armas e descarrega‑as —  disse o comandante ao navegador. Depois, tocou em Luther com a biqueira do sapato e ordenou a outro tripulante: —  Johnny, leva este tipo para o compartimento número um e fica de olho nele.

                     Harry largou Luther e um dos tripulantes levou‑o.

                     Harry e Margaret entreolharam‑se.

                     Ela pensara que ele a tinha abandonado; pensara que não voltaria a vê‑lo; tivera a certeza de que ia morrer. De repente, parecia‑lhe insuportavelmente maravilhoso que estivessem ambos vivos e juntos. Ele sentou‑se a seu lado, e ela aconchegou‑se nos seus braços. Abraçaram‑se com força e, passado um bocado, ele murmurou‑lhe ao ouvido:

                     —  Olha lá para fora.

                     O submarino estava a submergir lentamente.

                     Margaret sorriu a Harry e beijou‑o.

 

                     QUANDO tudo acabou, Carol‑Ann não queria tocar em Eddie.

                     Estava sentada na casa de jantar a beber um café com leite quente que Davy lhe preparara. Estava pálida e trémula, mas dizia que estava bem. Porém, de cada vez que Eddie lhe tocava ela encolhia‑se e não o olhava nos olhos.

                     —        Já passou —  dizia Eddie de cada vez, e ela assentia vigorosamente com a cabeça, mas ele percebia que ela não acreditava.

                     —  Quando é que vais voar outra vez? —  perguntou ela finalmente.

                     Foi então que ele percebeu. Ela estava com medo do que sentiria quando ele a deixasse sozinha de novo.

                     —        Eu vou deixar de voar —  assegurou‑lhe ele. —  De outro modo, a companhia tinha de me despedir; eles não podem dar emprego a um maquinista que deliberadamente obrigou um avião a pousar, como eu fiz.

O comandante Baker ouviu parte da conversa e interrompeu Eddie:

         —        Eddie, eu compreendo o que tu fizeste. Colocaram‑te numa situação impossível e tu lidaste com ela o melhor que pudeste. Mais do que isso, foste corajoso e inteligente, e eu tenho orgulho de voar contigo.

         —        Muito obrigado, comandante. Nem sabe como lhe fico agradecido por isso. —  Pelo canto do olho, Eddie viu Percy Oxenford, sentado sozinho, com uma expressão um pouco abalada. —  Meu comandante, acho que todos nós devíamos agradecer ao jovem Percy: ele salvou a situação.

         —        É verdade —  concordou o comandante, dirigindo‑se a Percy e apertando‑lhe a mão. —  És um tipo corajoso, Percy.

         Percy animou‑se instantaneamente.

         —        Muito obrigado.

         O comandante sentou‑se à conversa com ele, e Carol‑Ann voltou‑se para Eddie.

         —        Se não vais voar, como é que sobreviveremos?

         —        Vou começar com aquele negócio de que temos falado. Já poupei dinheiro suficiente para comprar o aeródromo.

         —        Podemos geri‑lo em conjunto? —  perguntou ela. —  Eu fazia a contabilidade e atendia o telefone e tu tratavas das reparações e reabastecimentos.

         —        Claro. —  Ele sorriu. —  Pelo menos, até nascer o bebé.

         —        Tal qual uma lojeca de família.

         Ele pegou‑lhe na mão e desta vez ela não se encolheu, pelo contrário, apertou a mão dele.

         —        Uma família —  disse ele, e finalmente ela sorriu.

 

         NANCY estava abraçada a Mervyn quando Diana deu uma pancadinha no ombro dele.

         Nancy estava louca de alegria e de alívio, inundada do prazer de estar viva e com o homem que amava. Naquele momento, interrogou‑se se Diana iria obscurecer o sol da sua felicidade. Mervyn acabara de provar que ainda gostava dela ao negociar com os bandidos para salvá‑la. Estaria ela prestes a pedir‑lhe que a aceitasse de volta?

         —        Então, Diana? —  perguntou Mervyn com um olhar reservado.

         —        Continuamos amigos? —  Ela tinha a face molhada das lágrimas, mas arvorava uma expressão determinada.

         —        Claro que sim.

         Mervyn estendeu‑lhe a mão, que ela agarrou com as suas, começando de novo a chorar, até que Nancy teve a certeza de que ela ia implorar "Vamos tentar de novo". No entanto, ela disse:

         —  Boa sorte, Mervyn. Desejo‑te as maiores felicidades.

         —  Obrigado —  agradeceu Mervyn solenemente. —  Igualmente parati.

         Então, Nancy compreendeu: estavam a perdoar‑se mutuamente as mágoas que se haviam infligido. Separar‑se‑iam como amigos. Nancy e Diana apertaram as mãos e desejaram felicidades uma à outra, e Diana voltou para o seu compartimento.

         —  E nós? —  perguntou Mervyn. —  O que vamos fazer?

         Nancy lembrou‑se de que não tivera tempo de lhe contar o seu plano.

         —  Eu vou ser a directora de Nat Ridgeway para a Europa.

         Mervyn ficou surpreendido.

         —  Quando é que ele te ofereceu o lugar?

         —  Ainda não ofereceu... Mas vai oferecer —  replicou ela com uma gargalhada.

         Ouvindo o barulho de um motor, ela olhou pela janela e, para sua surpresa, viu que a lancha dos bandidos fora desamarrada do Clipper e do pequeno hidroavião e se afastava a toda a velocidade. Mas quem iria aos comandos?

 

         MARGARET empurrou o acelerador a fundo e afastou‑se do Clipper. O vento afastou‑lhe o cabelo da cara, e ela soltou um grito exultante.

         —  Livre! —  gritou. —  Sou livre!

         Harry e ela haviam tido a ideia ao mesmo tempo. Estavam na coxia do Clipper a pensar no que haviam de fazer quando Eddie trouxe o mestre da lancha escada abaixo e o fechou no compartimento número 1 com Luther.

         Os passageiros e tripulantes haviam estado demasiado ocupados a congratularem‑se mutuamente para repararem em Margaret e Harry a saltarem para a lancha. O motor estava a trabalhar. Harry soltara os cabos enquanto Margaret verificava os comandos, que eram iguaizinhos aos do barco do pai, que estava em Nice.

         Margaret achava que ninguém os perseguiria. A vedeta da Marinha encontrava‑se à caça do submarino alemão, e não era de esperar que se interessasse por um homem que roubara um par de botões de punho em Londres. Quando a Polícia chegasse, haveria assassínios, raptos e pirataria para investigar; passaria muito tempo até se preocuparem com Harry.

Harry procurou num armário e encontrou umas cartas. Depois de as estudar por momentos, anunciou:

         —        Há uma cidade grande a uns cem quilómetros para norte daqui chamada Saint John que tem uma estação de comboios. Vamos em direcção a norte?

         —  Mais ou menos —  confirmou ela com uma olhadela à bússola.

         —        Se nos mantivermos à vista de terra, não podemos enganar‑nos. Devemos lá chegar ao anoitecer.

Ela sorriu‑lhe. Ele pousou as cartas e foi colocar‑se junto dela.

         —  És tão bonita! —  disse ele. —  E gostas de mim!

         —        Qualquer pessoa que te conheça gosta de ti —  comentou ela.

         Ele abraçou‑a pela cintura.

         —        Isto é uma coisa das Arábias, andar de barco ao sol com uma rapariga como tu. A minha mãe sempre disse que eu nasci com sorte, e tinha razão, não tinha?

         —        O que vamos fazer quando chegarmos a Saint John?

         —        Encalhamos a lancha na praia, vamos a pé até à cidade, reservamos um quarto para a noite e apanhamos o primeiro comboio de lá para fora no dia seguinte.

         —        E dinheiro? —  perguntou ela, franzindo o sobrolho, preocupada.

         —        Isso é um problema, eu só tenho umas poucas libras e vamos ter de pagar o hotel, bilhetes de comboio, roupa nova.

         —        Eu devia ter trazido a minha bagagem de mão, como tu.

         —        Isto não é a minha mala —  disse ele com um sorriso malicioso. —  É a pasta de Mr. Luther.

         —        Para que é que trouxeste a pasta de Mr. Luther? —  perguntou ela, confusa.

         —        Porque tem cem mil dólares lá dentro —  replicou ele, e desatou a rir às gargalhadas.

 

                                                                                            Ken Follett

 

 

                      

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