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NOITES DE AMOR NA TAIGA / Heinz G. Konsalik
NOITES DE AMOR NA TAIGA / Heinz G. Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NOITES DE AMOR NA TAIGA

 

Todas as manhãs, às nove horas em ponto, das mãos de um sargento-ajudante elevado pelas necessidades da causa ao posto de tenente, Matwei Karpuschin recebia a sua famosa lista; todas as manhãs levava um dossier de cabedal, e, depois de ter saudado o seu chefe com uma perfeição rígida, à maneira do exército soviético, dizia:

 

Bom dia, camarada coronel! E abria em seguida o dossier. Todas as manhãs se desenrolava o mesmo cerimonial: O coronel Karpuschin ajustava as suas lunetas antiquadas sobre um apêndice nasal um pouco violáceo e proeminente, e coçava a cabeça.

 

Karpuschin percorria a lista com um demorado olhar; sem dizer uma palavra, contava os nomes que um funcionário diligente havia levado. Depois, erguia a sua cabeça redonda.

 

O que é que há de especial, Kusma? interrogava Karpuschin. Setenta e nove! Voo quarenta e cinco, proveniente de Varsóvia.

 

A falar verdade, nada, camarada coronel respondeu o sargento-ajudante, após ter deitado novo olhar para a lista.

 

O tenente Kusma Fettisov esperava a continuação do cerimonial: o coronel devia pegar num lápis vermelho e traçar diante de certos nomes uma pequena cruz; mas as pessoas assim marcadas a vermelho não iam gozar de um só minuto de solidão, desde o instante preciso em que entrassem no território soviético.

 

Esta cena ritual passava-se num imóvel que fazia esquina entre a Avenida Luvian e a Kujbicheva e abrigava o Ministério da Segurança Nacional, do qual o coronel Karpuschin fazia parte como chefe da secção III da KGB. O mundo inteiro conhecia os serviços de segurança que outrora tiveram a designação de GPU ou NKVD e que continuavam a considerar com justificado terror. Os nomes de todos os estrangeiros que desembarcavam num dos três aeroportos de Moscovo tinham passado antes pelo gabinete de Karpurschin; era ele o grande director das decisões sem apelo.
Visto de longe, com o seu fato castanho e fora de moda, e as suas lunetas, Karpuschin teria passado por um manga-de-alpaca clássico. Mas isso era apenas uma máscara. De facto, esse Karpuschin era um tipo importante, apesar da sua aparência de funcionário benévolo. Aqueles que o conheciam sabiam o que podia significar o olhar amigável e paternal do coronel.

 

O tenente Fettisov tossicou. Estava surpreendido. Karpuschin parecia ter esquecido o seu lápis vermelho; o seu polegar e o seu olhar estavam fixos sobre um nome da lista.

 

Franz Heller leu Fettisov, representante comercial, Bona, Hallbergerstrasse, dezanove. Nascido a vinte e nove de Junho de mil novecentos e dezanove, em Gross Bliden, cantão de Riga.

 

Há um dossier sem qualquer importância na Embaixada, camarada coronel continuou o tenente. Heller representa os interesses de uma fábrica suíça, uma fiação de seda. Vem a Moscovo para tratar de um negócio relativo a sedas da Mongólia.

 

Nada disso quer dizer grande coisa suspirou Karpuschin.

 

Agarrou num lápis vermelho e traçou uma cruzinha diante do nome de Franz Heller. Novo suspiro, depois um risco enérgico a contornar o nome, como se quisesse guardá-lo à vista.

 

Chame Marfa Babkinskaia acrescentou, limpando a testa. Sinto uma antipatia instintiva pelas pessoas nascidas em Riga... Uma sombra pareceu de súbito envolver o seu rosto bonacheirão. Foi ali que eles abateram o meu filho Semion, o meu único filho, Kusma. Não esqueça... Vá e mande vir aqui Marfa.

 

Pensativo, Karpuschin ergueu-se e contemplou a rua. Atrás de si, a porta bateu: um perfume adocicado de pétalas de rosas encheu a sala. Era inútil voltar-se. Era Marfa. Ele bem tentara usar a sua autoridade para lhe fazer perder os seus hábitos burgueses, mas em vão.

 

Isto faz parte do meu trabalho replicava ela invariavelmente. De resto, os jovens, na Rússia, começavam a viver segundo as suas próprias leis; era como um vírus que o vento trazia do Ocidente.

 

Karpuschin deu meia volta. Diante da sua secretária encontrava-se uma rapariga de longos cabelos castanho-escuros. Estava cuidadosamente maquilhada, com baton nos lábios, rimel, verniz; vestia uma saia plissada e uma blusa de ramagens multicolores, cujo decote profundo fascinava o olhar. As suas pernas esguias estavam bronzeadas; e, para cúmulo, calçava sapatos brancos com saltos muito altos.

 

O coronel Karpuschin franziu as sobrancelhas, mas Marfa adiantou-se.

 

É o traje regulamentar, camarada coronel. Acabámos de receber os catálogos das modas dos países capitalistas e adoptámos por unanimidade este uniforme.

 

Karpuschin entrincheirou-se por detrás da sua secretária.

 

Amanhã começou a dizer voo quarenta e cinco, proveniente de Varsóvia, aterragem em Vnukovo, às catorze horas e vinte e sete minutos. Um homem importante, Franz Heller, de Bona.

 

Eu sei, camarada coronel. Marfa sorria como uma rapariguinha sensata. O capitão Bloktin pensou logo que ia assinalar esse nome. Está tudo pronto Depois, tirando uma pequena agenda da sua mala branca, continuou: Franz Heller fica alojado no Hotel Moskva, terceiro andar, apartamento trezentos e oitenta e nove. A camarada Stupetka já se encontra também ao corrente.

 

Quem é?

 

É a guarda do terceiro andar. O trezentos e oitenta e nove compõe-se de uma sala e de um quarto... Que devo fazer?

 

Porque é que faz sempre perguntas estúpidas, Marfa? retorquiu Karpuschin, colocando o dossier castanho sobre a secretária. Tem de se ocupar desse tipo, como já tem feito com tantos outros.

 

Ele pediu autorização para visitar a criação de bichos-da-seda no sovkoze Lenine

 

Você acompanha-o e dá-lhe todas as explicações!

 

Mas eu não percebo nada de bichos-da-seda!

 

Pois bem. Mostre-lhe as suas meias de seda! Nesse campo, não tem mais nada a aprender, pois não? gritou Karpuschin. Exijo que não perca esse Franz Heller de vista. E quero um relatório todas as noites.

 

Muito bem, camarada coronel.

 

Marfa Babkinskaia endireitou-se, e, após um cumprimento tão rígido como rápido, deixou a sala. Karpuschin sentou-se à sua mesa de trabalho, pegou no telefone e ligou para a secção oeste.

 

Camarada major começou ele, ajustando as suas lunetas, gostaria de receber umas informações. Têm alguma coisa em nome de Franz Heller, de nacionalidade alemã?... Sim, eu sei que vocês nunca têm a certeza do nome. Mas talvez... Esse Franz Heller chega amanhã, voo quarenta e cinco; a Embaixada deu-lhe um visto... Não, não, não sofro de alucinações. Apenas tenho um curioso pressentimento... Não é com pressentimentos que se faz política, eu sei, é inútil troçar de mim. Já por quatro vezes tive pressentimentos semelhantes, e, se bem que me tenham considerado como um tonto, esses pressentimentos foram sempre justificados. Dêem uma vista de olhos sobre os vossos arquivos, se fazem favor. Pode ser que descubram em qualquer sítio esse animal alemão...

 

”Um pressentimento”, pensou Karpuschin. ”Eu sou um verdadeiro sismógrafo; uma agulha regista em mim os primeiros abalos anunciadores de um perigo. Mesmo antes de os outros terem começado a pensar... A menos que fosse o nome dessa cidade que me tivesse impressionado? Riga, onde o meu filho...”

 

Inclinou-se sobre a lista e estudou-a de perto, de lápis na mão.

 

O pesado aparelho da companhia soviética AEROFLOT acabava de penetrar em zona russa. ”Nada a assinalar a bordo”, transmitia o rádio, mensagem que Karpuschin leu com um certo sorriso, dez minutos após a sua transmissão.

 

Enterrado no seu cadeirão, Franz Heller parecia dormir. Magro e bronzeado, nada o diferenciava dos seus semelhantes. Por detrás dos óculos, a fenda aguda dos seus olhos talvez suscitasse a curiosidade. Mas Franz Heller não dormia. Conhecia a região nos seus mínimos detalhes, se bem que tivessem decorrido dezanove anos desde que ele a atravessara com a sua companhia em 1942. Já dezanove anos... As recordações afluíam em massa. O ferimento e o regresso a Riga. Irene, a sua loura namorada. Depois, a grande vaga vermelha havia submergido e afastado toda a esperança de felicidade. Ele conseguira escapar por milagre, mas não conseguira salvar Irene. Contentara-se em cobrir o seu corpo ensanguentado com os longos cabelos louros, e fizera um juramento. Depois fugira, com o coração gelado. Dezanove anos. E hoje, pela primeira vez, retomava contacto com a Rússia...

 

Catorze horas e dezassete minutos. Com uma notável exactidão, o avião tocou na pista, e, após uma sábia viragem, imobilizou-se alguns minutos mais tarde junto da aerogare de Vnukovo. Diante dos escritórios alfandegários, Marfa Babkinskaia esperava, com o olhar atento. Não lhe foi preciso muito tempo para identificar o viajante discreto de aspecto tipicamente germânico.

 

Heller? perguntou quando Franz Heller passou na sua frente.

 

Heller estremeceu e voltou a cabeça.

 

Sim respondeu lentamente.

 

Estou encarregada de lhe servir de guia durante a sua estada entre nós.

 

Ela falava um alemão muito puro, quase desprovido desse sotaque duro habitual aos Russos.

 

Chamo-me Marfa Babkinskaia e sou hospedeira encarregada de acolher os visitantes, da Intourist.

 

Encantado por a conhecer...

 

Heller estendeu-lhe amavelmente a mão, e, quando a apertou, viu no olhar da sua guia um brilho breve, surpreso e desconfiado.

 

”Um verdadeiro aperto de mão de boxeur”, pensou ela.

 

Em Moscovo, um estrangeiro sente-se um pouco perdido, não é? perguntou ela, dispensando-lhe um sorriso luminoso. Vou ajudá-lo. Verá que não terá qualquer preocupação. Passaporte, controlo alfandegário, todas essas formalidades aborrecidas... quero que fique com a melhor recordação possível da sua estada em Moscovo. Quer dar-me o seu passaporte?

 

Estou alojado no Hotel Moskva declarou Heller, quando Marfa voltou do gabinete de controlo volvidos alguns instantes.

 

Vamos tomar um táxi.

 

”É um inimigo”, pensava ela, distraída. ”O representante desses países capitalistas de onde vem todo o sofrimento da nossa pobre Rússia. Um burguês.”

 

E, no entanto, uma onda de simpatia pelo alemão míope e bem-educado que a acompanhava vibrou nela. Se ao menos pudessem libertar-se da política...

 

Moscovo é a mais bela cidade do mundo disse ela já dentro do táxi. Nunca ninguém abandonou a nossa capital sem deixar aqui uma parcela do seu coração.

 

Tenho a certeza disso Franz Heller pousou ao de leve a mão sobre o joelho de Marfa e sorriu. Por detrás dos óculos, os seus olhos azuis penetrantes brilhavam de alegria. Quando penso que daqui a oito dias já terei de lhe dizer adeus...

 

Nada diferencia os hotéis de luxo de Moscovo dos de Berlim, de Paris, de Roma ou de Genebra. São verdadeiros palácios com imensas salas de jantar e lustres de cristal, bares e restaurantes, salas de leitura, salas de fumo e salões. E, no entanto, o visitante que conseguiu não se deixar impressionar demasiadamente pelo esplendor apercebe-se rapidamente que não são como os outros.

 

Cada um desses hotéis é uma verdadeira cidade em miniatura, que abriga umas sucursal da agência Intourist, uma casa de câmbio, correio, um salão de cabeleireiro, uma biblioteca, uma loja de souvenirs, uma loja de objectos de artesanato, um salão para cuidados de beleza. O Hotel Moskva possui mesmo um emissor telegráfico, uma lavandaria importante, uma alfaiataria e uma sapataria. Mas o que atraiu sobretudo Heller foram as criadas de quarto. Elas rodopiavam em redor dos clientes com os cabelos metidos numa elegante touca de renda branca engomada, e, como por encanto, espalhavam por todo o hotel um perfume romântico que fazia lembrar a ”Belle Époque”, mas que o tempo acabara por dissipar.

 

Marfa Babkinskaia entregou o passaporte de Heller ao chefe da recepção, que o guardou numa das numerosas prateleiras do balcão, sem sequer o olhar.

 

Então, o meu passaporte? perguntou Heller com ar surpreendido, sem contudo perder de vista os dois carregadores que, na outra extremidade do átrio da entrada, levavam as suas bagagens, como se tivessem recebido ordem para isso.

 

Esteja tranquilo, o seu passaporte está em boas mãos replicou Marfa.

 

Contudo, é na minha carteira que ele se encontra mais em segurança! Heller parou diante da porta do ascensor que Marfa tinha aberta na sua frente, sem no entanto deixar de sorrir. Faço questão em guardar eu próprio o meu passaporte.

 

Porque razão! Ninguém o irá roubar no cofre, e não se arrisca a perdê-lo.

 

Há dez anos que já o tenho e nunca o perdi.

 

Acredite, é melhor assim.

 

Sem passaporte não sou nada, sobretudo aqui...

 

E eu não conto? perguntou Marfa com um certo ar de garridice. Eu não o deixarei. Enquanto me ocupar consigo, será Franz Heller, natural de Bona. Ninguém lhe pedirá a sua identificação, porque sou eu o seu passaporte.

 

Mas não posso suportar a ideia de ser tratado como um rapazinho! gritou Heller. Sou um homem livre, mesmo em Moscovo, e já não tenho idade para ter uma preceptora!

 

Com certeza! Quem lhe diz o contrário? O seu rosto ensombrou-se. Se é assim, ser-lhe-á entregue amanhã de manhã, mas não antes. Ainda tem projectos para hoje, Heller? interrogou ela, recuperando, constrangida, o tom profissional.

 

Não! Furioso, lançou um olhar à sua volta. Uma multidão diversa rodeava-o. Indianos de fatos brancos, ingleses elegantes, escoceses de kilts, oficiais chineses com uniformes de caqui, negros, árabes, turcos, e mesmo um grupo de delegados coreanos que se tinham reunido à volta de uma mesa redonda que tinha as suas cores nacionais. Também ficaram com os passaportes dessas pessoas todas? prosseguiu Heller no mesmo tom furioso.

 

Ignoro-o. Virei buscá-lo às oito horas para jantar.

 

Obrigado!... Bruscamente, Heller dirigiu-se para o ascensor. Jantarei no quarto até que essa história do passaporte seja esclarecida.

 

Desapareceu sem sequer se despedir de Marfa, sem mesmo a olhar através do vidro. E logo que escapou aos olhares penetrantes da sua guia, recuperou o bom humor: um sorriso irónico aflorou no seu rosto.

 

No terceiro andar foi apanhado pela pequena Stupetka que lhe revelou os segredos dos múltiplos botões e campainhas do seu apartamento.

 

Ficar-lhe-ei grata se me entregar a sua chave quando sair, senhor.

 

O apartamento respirava limpeza. Um leve cheiro a cera perfumava-o.

 

Não sairei. Não quero ser incomodado. Estou cansado.

 

Muito bem.

 

Heller fechou-se à chave. Depois, estendeu-se numa cadeira macia, soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. ”Eis-me na Rússia! Em Moscovo! O primeiro passo para uma aventura sem fim, a aventura mais perigosa da minha existência, e a que desejei mais ardentemente. Desta vez era sem remissão. Impossível voltar atrás.”

 

No dia seguinte de manhã, às dez horas, o terceiro andar do Hotel Moskva estava fechado para toda a gente. No quarto da pequena Stupetka, todo o pessoal esperava, mergulhado num mutismo angustiado. Marfa encontrava-se lá também, sentada numa cadeira, rígida, com o olhar fixo no vácuo.

 

É uma vergonha, um escândalo, uma indecência! gritava o coronel Karpuschin, fora de si.

 

Assim, o seu faro não o enganara, apesar de toda a gente ter acolhido o seu pressentimento com um ar de troça. Dentro de duas horas ia ser preciso entregar o relatório ao Ministério... E os raios do Inferno cairiam sobre ele, Karpuschin, o vencido. Gozado por um alemão! Ridicularizado como um garoto...

 

Franz Heller, o alemão, desaparecera, abandonando atrás de si todos os seus haveres. Desaparecera sem deixar rasto.

 

Até o passaporte deixou acrescentou o director do hotel.

 

Karpuschin soltou uma praga grosseira.

 

Não se passou nada aqui, entendem?... É um assunto da KGB, um ponto e mais nada... Vamos imediatamente tirar daqui todas as suas coisas; limpem o quarto e metam aqui um novo cliente. Compreendido? O nome de Franz Heller será banido das listas, com a menção de mudado... Entendido?

 

Respondeu-lhe um coro de murmúrios.

 

E meteu mãos à obra. Começou o seu inquérito deprimente que ia levá-lo ao outro lado do mundo. Havia apenas uma evidência como ponto de partida: Heller tinha-se simplesmente volatilizado.

 

Vamos dar-lhe caça, meus filhos. Pensem bem. Aquele infeliz insecto na nossa imensa Rússia!

 

Não irá longe disse timidamente Marfa. Não sabe uma palavra de russo...

 

Pobre pateta! O coronel Karpuschin não pôde deixar de soltar uma gargalhada. Vai ver que ele fala russo como o próprio Popov. Previno-os de que é um lobo que teremos de caçar...

 

Perto da igreja de S. Nicolau de Vorobina, na Rua Voronzovo Polie, no número 17, viviam um negociante de móveis conhecido e estimado em todo o bairro, Stepan Alajev, e sua mulher Jekaterina.

 

Tinham conseguido sobreviver através das vicissitudes da guerra e do após-guerra e os seus negócios estavam florescentes. A sua bonomia era lendária e Alajev não tardara a ser nomeado chefe de quarteirão pelo Partido Comunista; era igualmente membro da Comissão de Reconstrução; fazia conferências sobre o problema habitacional, perante os trabalhadores, e tornou-se pouco depois presidente do Comité dos Comerciantes de Móveis de Moscovo, o que lhe valeu algumas encomendas interessantes do Estado, entre as quais a instalação do terceiro andar do Hotel Moskva. Mas isso fora quatro anos antes. Quem se lembraria disso agora?

 

Por volta das duas horas da manhã bateram à porta de Stepan Alajev, o que fez com que Jekaterina acordasse num sobressalto angustiado. Com uma cotovelada acordou o marido.

 

Santa Virgem Maria! implorou baixinho, como se receasse que a ouvissem. É ele!

 

Finalmente! Alajev enfiou as calças à pressa. Vá, Jekaterinachka, arranja-te... Vai depressa fazer chá, prepara presunto e toucinho, uns ovos, e deita-te outra vez.

 

Depois desapareceu.

 

Alguns instantes mais tarde, Jekaterina ouviu uma voz desconhecida que murmurava:

 

Tudo se passou maravilhosamente, com muito mais facilidade do que eu poderia pensar. Desde que isto continue...

 

Jekaterina suspirou. ”Que necessidade tem ele de todas estas manigâncias”, pensava ela enquanto preparava o fogão. ”Ganha bastante dinheiro, é considerado em Moscovo, é alguém. Que nos interessam esses americanos? como se não fosse mais importante ter o presunto na panela e um prato bem cheio? É quase certo que um dia acaba por ser preso e mandado lá para baixo. E eu com ele!”

 

Na sala de jantar encontrava-se um desconhecido em frente de Alajev. Heller desaparecera, e com ele os óculos com aros de ouro e os olhos franzidos por uma miopia forte; vestia a farda do Hotel Moskva; os seus cabelos castanho-escuros eram agora louros e curtos. Assemelhava-se e a um ouriço bronzeado. Alajev sorria.

 

No fundo com quem se parece realmente? perguntou.

 

Quase me esqueci respondeu Heller espreguiçando-se na cadeira como um gato.

 

Então passou-se tudo bem?

 

Sim. Na perfeição. Encontrei, como estava combinado, no meio das toalhas da casa de banho, a chave dos quartos reservados ao pessoal, debaixo do colchão o plano do hotel, e, num pequeno esconderijo debaixo da banheira, a farda de criado daquele andar. Houve apenas um alerta. Ao descer, encontrei um porteiro da noite. ”Que é que andas a fazer aqui” gritou-me ele. ”Tenho de ir buscar uma caixa de sapatos ao carro de um inglês” respondi, mostrando-lhe uma chave que parecia ser de um carro.

 

Além dele, mais ninguém o viu?

 

Oh, alguns transeuntes tardios, um casal de namorados. Mas quem presta atenção a um criado de hotel?

 

Alajev esfregou as mãos de satisfação. Da cozinha vinha um odor simpático.

 

Fiquei preocupado quando não o vi aparecer à uma

 

hora da manhã. Mas U-II tinha-me indicado apenas o dia, e não a hora.

 

Um véu de fadiga caiu bruscamente sobre Franz Heller. A descontracção nervosa depois de todas as emoções do dia.

 

”U-II, pensou. ”O major Bradcock, da CIA. Esse velho James.” Como uma aranha gigantesca, ele reinava na sua modesta quinta na fronteira checa, e daí tecia a sua teia sobre toda a Europa do Leste, o que não impedia que se assemelhasse a um agricultor do Texas, amante da pinga e das ruivas. Passava pelo nome de Wilhelm Reinfeld, e alugara a quinta que nada, desde então, distinguia das outras quintas: lavravam os campos, semeavam e colhiam, como em qualquer outro sítio. Mas à noite, deslocavam-se algumas telhas do telhado e surgia uma longa antena que se lançava ao assalto do céu estrelado...

 

Os ouvidos de Bradcock ouviam o Leste, Varsóvia, Leninegrado e Moscovo. A aranha tecia a sua teia...

 

Jekaterina trouxe uma bandeja fumegante, inclinou-se, e, em seguida, desapareceu sem pronunciar uma só palavra.

 

Ela tem medo explicou Alajev. Isso compreende-se, de resto. Nós não temos necessidade de nada e o dinheiro que recebo dos vossos chefes não me interessa. O que faço, faço-o por convicção. Sabe-o bem, não é verdade? Por ideal, pois odeio o bolchevismo. Os Vermelhos torturaram o meu pai, em mil novecentos e vinte, e depois estrangularam-no; o meu irmão foi fuzilado em mil novecentos e quarenta e três... O meu ódio assemelha-se a um fogo devorador, irmão, mas Jekaterina tem medo.

 

Franz Heller abanou a cabeça e continuou a comer. O chá escaldante fez-lhe bem; pouco a pouco, o esgotamento que sentira dissipou-se e sentiu o seu cérebro recuperar lentamente a vida.

 

Alajev levantou-se e foi buscar uns papéis escondidos num cofre forte cuidadosamente dissimulado na parede.

 

Está aqui tudo de que poderá precisar. O seu passaporte soviético. A partir deste momento chama-se Pavel Semionov. O seu diploma de engenheiro especializado no melhoramento das superfícies de contraplacado... Tem ao menos alguma noção do trabalho neste género de especialização?

 

Trabalhei durante dois anos numa fábrica de contraplacado na Floresta Negra. Como voluntário.

 

Bem. Estão aqui certificados de vacina, que são exigidos para a Sibéria. Aqui está o seu cartão do Partido, assim como o seu livrete, está legalmente inscrito como membro do Partido desde mil novecentos e cinquenta. Além disso, tem aqui seis atestados comprovando que tomou parte em sessões de estudo sobre a ideologia comunista Alajev riu ao entregar os documentos a Heller. Felicito-o, Semionov. É um russo exemplar.

 

Heller agarrou no passaporte e leu-o com atenção. Nascido em Barabanovka, no distrito de Tchalov, chamado Orenburg na época do czar. Celibatário.

 

Falta-lhe a fotografia.

 

Que arranjaremos amanhã. Depois, estará pronto. Que vai fazer em seguida?

 

Ter paciência. Temos tempo. É preciso primeiro esperar que passe a agitação causada pelo meu desaparecimento. Pouco importam os dias ou as semanas que passam. Põe-se apenas um problema: a minha presença prolongada em vossa casa não parecerá suspeita?

 

Contrato-o como transportador. Isso evitará todas as perguntas indiscretas. Mais uma chávena de chá?

 

O dia começava já a despontar. Jekaterina não conseguiu adormecer. Fez o juramento de se dirigir na manhã seguinte, às escondidas, a S. Nicolau de Vorobina para rezar e pedir a Deus que a libertasse do seu medo.

 

Na KGB, durante dois dias, houve grande agitação. Mas em parte nenhuma se encontraram rastos de Franz Heller, em nenhum dossier antigo ou actual; ninguém o conhecia, nenhum espião tinha ouvido falar dele. Nem sequer os espiões que se tinham infiltrado nos serviços americanos da CIA e do CIG, em Bona. Todos responderam negativamente.

 

O coronel Karpuschin e a sua equipa puxavam pelos cabelos.

 

Não nos resta senão uma solução afirmou um membro do Conselho de Ministros enviar um relatório à Embaixada da Alemanha Federal para lhes explicar que um dos seus compatriotas tinha pura e simplesmente desaparecido da circulação, vítima, sem dúvida, de um criminoso. Não será certamente uma boa nota para nós, mas, pelo menos, não poderão pensar num caso de espionagem, e isso deixar-nos-á as mãos livres para procurar oficiosamente Franz Heller... Que diz, camarada coronel?

 

Excelente ideia.

 

O ministro ergueu-se; o seu olhar passou pelo auditório e acrecentou severamente:

 

Não creio que um homem perdido na Rússia seja para negligenciar. Basta um miserável verme para destruir os alicerces mais bem concebidos. Precisa apenas de muito tempo... Depende de vós, camaradas, que um alemão não disponha de todo o tempo de que precisar para realizar a sua obra de destruição!

 

Sem perder um minuto, o coronel Karpuschin desencadeou a sua obra infernal: puseram de sobreaviso todas as oficinas e fábricas; a polícia estudou a fundo os dossiers de todos os contratados recentes; todos os rodízios foram minuciosamente estudados, em especial na indústria pesada, ma metalúrgica, nas fábricas de armamento e de engenhos blindados, nas fábricas de tractores, nas bases de foguetões e nas centrais nucleares.

 

Um torno de desconfiança mortal rodeou o país.

 

A partir desse instante, iniciou-se um combate impiedoso.

 

Na sua pequena quinta, perto da fronteira checa, o major Bradcock esfregou as mãos; acabavam de lhe contar a visita que Karpuschin fizera à Embaixada da Alemanha... Alajev não dera ainda sinal de vida, mas era normal; era preciso deixar Os espíritos acalmarem antes de se arriscarem a confiar Os segredos às ondas. Devia estar tudo sob urn controlo rigoroso. Que importava! Tinham tempo!

 

Em Moscovo, a ansiedade de Karpuschin aumentava constantemente. Não podia deixar de pensar nas bases secretas de lançamento de foguetões, instaladas na Sibéria e no Cazaquistão, nas bases de treino dos astronautas, nos laboratórios ultra-secretos de pesquisas sobre carburantes. E ainda desse vez o seu sexto sentido não o enganara. O objectivo de Pavel Semionov, anteriormente conhecido pelo nome de Franz Heller, encontrava-se de facto entre essas fábricas, bases e laboratórios secretos.

 

Um domingo, Alajev e Semionov, como bons russos que eram, seguiram a multidão dos transeuntes que passeavam pelo Jardim Botânico. Um sol de chumbo pesava sobre Moscovo.

 

Tinham já tudo preparado para a grande partida, microfilmes, planos, informações diversas, todo o clássico material de espionagem.

 

O meu primeiro objectivo explicara Semionov é a região de Kmossa, ao longo do Jenissei. Cidade principal, Krasnoiarsk...

 

Tem uma linha aérea Krasnoiarsk-Irkoutsk. Mas em seguida, Pavel, é a taiga.

 

Semionov aprovou com um pequeno aceno de cabeça. Aprendera a vaguear dias e dias, alimentando-se de musgo e de raízes, a dormir sobre as folhas ou sobre um leito de troncos; conhecia o Verão tórrido e o seu cortejo de moscas e de mosquitos; familiarizara-se com o vento cortante do Inverno, quando se tem a impressão de ficar com a medula dos ossos gelada. Vivera nos terrenos pantanosos da Florida e nas extensões geladas do Alasca.

 

A fabulosa taiga, de segredo e silêncio eternos, atraía-o sem o assustar.

 

Foi precisamente no momento em que entravam no Jardim Botânico o seu companheiro não parava de tagarelar que Semionov a viu.

 

Marfa Babkinskaia.

 

Inclinada sobre um pequeno lago onde havia uma fonte, ela dava de comer aos peixinhos vermelhos. Quando os seus olhos escuros e profundos se dirigiram a ele, julgou por instantes que o seu coração deixava de bater.

 

Semionov sentiu-se primeiro tentado a prosseguir o seu passeio. ”Ela não pode reconhecer-me”, pensou. ”Não tenho nada de comum com o homem que ela conheceu.”

 

Passou por ela, mas uma força invencível forçou-o a voltar-se. Marfa encarava-o, com os olhos muito abertos. E nesse olhar Semionov pôde ler a verdade.

 

Alajev caminhava alguns passos à sua frente; não se tinha apercebido de nada e falava sozinho.

 

Atrás dele a cena prosseguia. Marfa não deixara de fitar Semionov. ”É ele!” pensou. ”É ele! É procurado por toda a Rússia e passeia aqui tranquilamente, em pleno coração de Moscovo, como qualquer cidadão! Vamos, é o momento de dar o alarme...”

 

Mas continuava a calar-se. Quando Semionov lhe dirigiu a palavra, o seu coração pulsou dolorosamente. Ele falava um russo impecável, como antigamente falavam na escola dos czares.

 

Já nos encontrámos em qualquer parte, não é verdade? perguntava ele com um sorriso confiante.

 

Os seus olhos azuis brilhavam alegremente.

 

Gospodin Heller... murmurou Marfa Babkinskaia. É Gospodin Heller, não é verdade?

 

Oh, desculpe, tomei-a por outra pessoa... Que pena! De repente, Marfa sentiu-se indecisa. ”São certamente

 

os nervos”, pensou. ”Não é para admirar, a viver tão perto de Karpuschin. E, no entanto, pareceu-me...”

 

Semionov piscou-lhe o olho, como se lamentasse, e afastou-se, com o coração a bater, esperando o grito que ela ia soltar... Mais uns passos e ficou junto do seu companheiro. Alajev mostrou-lhe uma palmeira.

 

Esta palmeira é o nosso orgulho, meu velho. Calcula que até suporta o Inverno! Ninguém sabe porquê. Deve ser milagre!

 

Mais alguns passos; parecia-lhe que um íogo brilhava atras dele; e, contudo, precisava de esconder a sua perturbação e a sua angústia.

 

Não tive sorte, hoje disse Semionov a Alajev. Julgava conhecê-la e...

 

Lenta e prazenteiramente continuaram o seu passeio sem se voltarem, parando mesmo para admirarem os canteiros de flores sabiamente arranjados.

 

Onde está ela? perguntou volvidos alguns instantes, Semionov em voz baixa.

 

Não a vejo. Quem é?

 

Marfa Babkinskaia, a intérprete da Intourist encarregada de me servir de guia.

 

E reconheceu-o?

 

Ela achou que sim, mas eu consegui mantê-la na dúvida. E não deu o alarme...

 

Isso não quer dizer nada. Que pouca sorte! Ela sabe agora qual é o seu disfarce, sabe que está ainda em Moscovo e viu-me... Vamos, voltemos a casa. Deixou de me apetecer passear e sobretudo nem uma palavra disto a Jekaterina, senão morria de medo; seria o fim de tudo. Agora vai ser preciso esperar pelo menos quatro semanas antes de se empreender qualquer coisa.

 

Quatro semanas? repetiu Semionov. Dentro de quatro semanas já estarei em casa da tia Xenia...

 

Alajev encolheu os ombros sem nada dizer. ”Ele sabe o que tem a fazer”, pensou. ”Não serei eu que irei pagar as favas nas minas da Sibéria... Porque é que as pessoas do Ocidente andam sempre apressadas? A Rússia já tem mais de mil anos de existência e é ainda uma criança... Que são quatro semanas?”

 

Chegados a casa, sem ruído, instalaram-se no escritório. Tinham ido encontrar Jekaterina em adoração diante dos ícones e isso tinha-os oprimido ainda mais.

 

A insegurança acabava de surgir nas suas almas.

 

O código ainda está em vigor? perguntou Alajev para quebrar o silêncio.

 

Não. Trouxe um novo.

 

Ah!

 

Alajev aspirou o seu cachimbo.

 

Na segunda-feira de manhã, em uniforme militar, o coronel Karpuschin penetrou no gabinete do chefe da Informação no Quartel-General do exército soviético e viu Marfa sentada numa cadeira, toda encolhida, com os olhos vermelhos. De pé, diante dela, gritando de raiva, estava o general Chimkassy.

 

Dizer que ela o viu, camarada coronel! E que fez ela? Distribuiu migalhas de pão aos peixinhos vermelhos! E chama-se a isto uma boa comunista?

 

Não tinha certeza, camaradas implorou Marfa.

 

A sua voz, a maneira de falar, o aspecto exterior...

 

Pareceu-me apenas...

 

Mas tudo isto não chegou para convencer o general Chimkassy. Mesmo nessa manhã, ele tinha recebido uma nota do Ministério da Guerra: ”Espero o relatório sobre o caso de Heller até ao meio dia. Malinovski”. L quem conhecia o marechal Malinovski sabia bem que não esperaria cinco minutos.

 

Primeiramente, continuou Karpuschin sabemos que ele continua em Moscovo. Em segundo lugar, sabemos que se trata efectivamente de um espião. E em terceiro lugar, sabemos que não trabalha só...

 

Consolação evidente respondeu o general Chimkassy.

 

Mas ele não ficará em Moscovo; tem uma missão e não duvido do objectivo do seu trabalho. Se nos enviam para aqui um tipo do seu gabarito, não é para descobrir os segredos de uma fábrica de iogurtes...

 

As rampas de lançamento de foguetões...

 

Exactamente!

 

Mas podemos rodeá-las!

 

É isso mesmo! Karpuschin deu-se ao luxo de esboçar um meio sorriso. Preparemos-lhe uma bela armadilha e ele cairá... Ele virá certamente!

 

O general Chimkassy sabia que o grande patrão dos foguetões interplanetários soviéticos era amigo pessoal de Malinovski e um camarada de promoção de Karpuschin.

 

E eu? Que devo fazer? perguntou passados uns minutos.

 

Entrar em contacto com todos os serviços de espionagem do Ocidente. É preciso encontrar a todo o custo o rasto de Franz Heller.

 

Para começar, instalei vinte e três estações de rádio suplementares em redor de Moscovo. É impossível passar através dessa rede. E sabem bem que, sem trocas de informações não há espionagem, não é, camarada coronel?

 

Karpuschin fez uma careta cheia de cepticismo:

 

Enquanto não se falar senão do vosso lado, todo o seu sistema não serve para nada. E Heller seria o último dos imbecis se respondesse!

 

Uma semana mais tarde, uma voz desconhecida atravessava o céu de Moscovo:

 

Aqui Otto... Aqui Otto... Aqui Otto... Mas só o silêncio respondia a Otto.

 

Todo o sistema lançado por Chimkassy estava atento.

 

Nessa mesma noite, Alajev e Semionov tinham entreaberto uma das clarabóias do celeiro e lançado a sua delgada antena ao assalto da noite.

 

Durante essa semana de espera eles tinham vivido como bons militantes do Partido, trabalhando todo o dia e discutindo à noite com os seus colegas. Tinham até assistido, por duas vezes, a conferências sobre informação. E, à noite, já tarde, ao abrigo dos olhares indiscretos, debruçavam-se sobre os mapas, estudavam horários, discutiam acerca dos pontos de passagem. Semionov não tinha mudado de opinião. Começava a ferver de impaciência.

 

Dentro de três semanas estarei em Kusmovka, está decidido. Nos arredores há uma importante unidade industrial de madeiras, Kalinin II. É do que eu preciso.

 

Assim, a sorte estava lançada: Krasnoiarsk e a taiga.

 

Alajev olhava-o com admiração, à qual se misturava, no entanto, um certo cepticismo.

 

E, nessa noite, lá estavam eles à escuta, como todas as noites, à mesma hora.

 

Apanhei-o! exclamou Alajev estendendo o auscultador ao seu companheiro. Otto, não conheço este nome, mas é o comprimento de onda previsto.

 

Otto é o major Bradcock... Eu estava encarregado de o observar até agora, Alajev, e felicito-o. Você saiu-se com distinção da prova. Agora ouça-me bem. Vou dar-lhe o nome de código. Daqui em diante chamava-se Giegoi. Otto é o antigo U-fl, e eu sou Ivan. O texto do código encontra-se num romance de Heming cuja página muda todas as semanas. Assim é o texto da página duzentos e oitenta e sete. De cada três letras uma é numerada... Vá, podemos começar a jogar acrescentou alegremente Semionov, carregando na pequena alavanca.

 

Algures, em Moscovo, no seu posto, Chimkassy e Karà puschin sobressaltaram-se. A resposta tão esperada chegava. Um número. Oitocentos e vinte e sete. Olharam-se com um ar atordoado.

 

Perto da fronteira checa, na sua quinta, Bradcock sobressaltou-se também. Finalmente! Oitocentos e vinte e sete significava ”Sim”.

 

Uma sequência infinita de números encheu a atmosfera, e todos foram imediatamente registados pelos aparelhos captores. Karpuschin respirava.

 

Belo trabalho em perspectiva para os serviços de decifração... Ainda bem! O que me interessa sobretudo é descobrir o sítio onde se esconde o correspondente. Pensar que ele se encontra aqui, em Moscovo, debaixo dos nossos narizes e lambe os lábios à sua vontade!

 

Durante cinco minutos os algarismos seguiram-se aos algarismos e depois tudo se calou. A resposta... suspiraram Chimkassy e Karpuschin. E a resposta chegou, irónica, divertida, insolente, em linguagem clara:

 

Okay, boys!

 

Ele está a troçar de nós! gritou Karpuschin. Demasiado tarde para surpreender Heller. A resposta era breve de mais.

 

Conhece bem Malinovski, não é verdade, camarada coronel...

 

Não tardará a ter de provar que é meu fiel amigo... suspirou Chimkassy com ar cansado.

 

Na unidade de madeiras Kalinin II, instalada na pequena cidade de Kusmovka, a atmosfera tornava-se mais pesada de semana para semana. Nem tudo era simples nessa fábrica; os operários, apesar de serem bons comunistas, murmuravam porque as normas de trabalho aumentavam incessantemente, enquanto as rações alimentares diminuíam; houve motins e tiveram de demitir o comissário Dambrovski, reclamar um novo comissário, um verdadeiro comissário dessa vez, um comissário duro, evitando em todo o caso alertar Moscovo, o que provocaria uma série de reacções em cadeia muito desagradáveis.

 

Um dia de Setembro, com um tempo cinzento e húmido, mil quatrocentos e setenta homens e duzentas e quarenta e três mulheres, diante de barracões de madeira, olhavam um carro preto que percorria lentamente a entrada principal do campo para se dirigir para os edifícios administrativos. Os rostos dos homens distendiam-se pouco a pouco e os das mulheres franziam-se. No fundo do carro, vinha uma mulher com o uniforme verde da secção política, com galões de capitão nos ombros.

 

Cabelos negros e espessos, um rosto pequeno, olhos escuros e uma boca fina de lábios comprimidos...

 

Saúde, camarada!

 

Com um ar enérgico ela saudou, impassível, o director da fábrica, assombrado. Inferno e danação! Ele pedia um tipo com punho de ferro e enviavam-lhe um passarinho!

 

Chamo-me Ludmilla Barakova anunciou a jovem mulher desabotoando o casaco do seu uniforme.

 

O infeliz director começou a agitar-se. ”Como ela é bela!”

 

Ludmilla instalou-se no lugar ocupado pelo seu predecessor e fez uma careta ao descobrir uma camada de poeira sobre a secretária. O director corou.

 

Mande-me trazer alguma coisa para beber. Chá com doces... e em seguida quero visitar o campo e ser apresentada aos homens que pretendem que Kalinin II se assemelha a um chiqueiro de porcos.

 

O director aprovou com um aceno de cabeça. Tinha a garganta seca. ”Não é um pássaro”, pensou ele, ”é um demónio. Ainda passava ser mandado por um homem! Mas por uma mulher!...”

 

À tarde, Ludmilla Barakova deu a volta ao campo. Começou por vir ver os homens reunidos na Stolovaia, a grande sala onde se faziam as reuniões e as conferências. Quatrocentos homens de rosto duro e barba ameaçadora seguiram com o olhar a jovem mulher magra e de ar altivo que tinha a sorte deles entre as suas mãos frágeis e cujo passo tranquilo não denotava a mínima perturbação. Um silêncio pesado acompanhou-a até ao estrado. Depois, voltou-se para eles e olhou-os sem dizer uma palavra. Finalmente, o seu rosto distendeu-se e sorriu. Então, camaradas, que se passa? A sua voz bem timbrada enchia a sala sem a ajuda de altifalantes.

 

Acabam de comer uma tarte de açúcar e à noite terão ervilhas com peixe salgado... Uma merda, é o que é gritou um dos operários.

 

É uma questão de gosto...

 

Alguns não puderam deixar de sorrir. Acabava de se abrir uma brecha no muro de hostilidade.

 

Eu venho de um campo onde o pequeno-almoço era composto de uma fatia de pão, duro como pedra, que tinha de ser amolecido na neve para se poder trincar. Ao meio-dia havia uma sopa de couves, mas tão clara, camaradas, que se podiam contar as folhas; à noite, pelo contrário, eles sentiam-se felizes como garotos: comiam um bolo de farinha de soja e um dedo de compota. Entre as refeições trabalhavam nas estradas. Com quarenta graus abaixo de zero, transportam terra, amontoam pedras, tentando ganhar terreno para o Norte... Era em Vorkuka, camaradas... e não me pareceria impossível transportar também para lá uma unidade de madeiras, pois também têm bastante necessidade dela...

 

Não tinham nada que se enganar. Os quatrocentos rostos inclinaram-se, sem uma palavra. Parecia-lhes que os quarenta graus abaixo de zero lhes penetravam no coração. Apesar de Dambrovski não passar de um idiota que só sabia criar slogans, viviam em paz com ele, afinal de contas, enquanto que aquele demónio feito mulher...

 

Ludmilla falou durante meia hora, consciente da sua força, do seu poder e do ódio que suscitava nos corações.

 

À noite, disse que lhe levassem relatórios e ouviu atentamente o secretário. Soube assim que um novo engenheiro iria chegar brevemente a Kusmovka.

 

Um engenheiro? Para quê?

 

É enviado para vigiar a produção nas serrações.

 

De onde vem ele?

 

De Moscovo.

 

O nome dele?

 

Pavel Semionov, camarada. Excelentes referências sobre todos os pontos de vista.

 

Está bem. Deixe-me isso. Mais nada?

 

Sim. É tudo por hoje.

 

Então boa-noite, camarada. Fiz uma longa viagem... estou cansada.

 

O secretário respirou fundo. Era a sua primeira palavra de descontracção. Era pelo menos um ser humano, visto que podia estar fatigada como toda a gente... Saudou e desapareceu. Ludmilla Barakova encontrou-se só.

 

Estremeceu. Era verdadeiramente para um inferno que Maxim Jefimov a enviara. Explicando que era para ela uma grande honra e que se conseguisse manter a ordem teria direito a toda a consideração por parte de Moscovo... O bom Maxim. Ele amava-a desde há muito, mas em silêncio. Em todo o caso, tinha uma curiosa maneira de lhe mostrar esse amor.

 

Ludmilla debruçou-se sobre o dossier deixado pelo secretário. Abriu-o e descobriu a fotografia do seu futuro engenheiro e colaborador.

 

Tens de me ajudar, Pavel Semionov disse ela dirigindo-se à fotografia. Todos estes homens me metem medo. Um medo terrível. Mas ninguém se apercebe disso; ninguém dará, nem sequer tu. O que não impede que eu me sinta aliviada quando chegares...

 

Semionov não tivera dificuldade em arranjar maneira de ir para Kalinin II, pois os voluntários para a distante Sibéria tornavam-se cada vez mais raros. Calculara que Komssa ficasse apenas a duzentos quilómetros de distância do centro de pesquisas que lhe interessava. Ao fim de uma semana estava de posse do seu contrato de trabalho: o comissário do distrito de Krasnoiarsk farejara caça grossa e um bom negócio, e sem hesitar assinara um contrato por cinco anos com o novo engenheiro.

 

Parece-me que está tudo arranjado, Pavel suspirou Alajev.

 

Semionov sorriu:;

 

Sinto-me bem aqui, Stepan. Se nos abstrairmos da política e da ideologia... devo confessar que me agrada muito ser um russo entre os Russos.

 

Despediram-se com uma emoção não dissimulada, pois sabiam que era um adeus definitivo.

 

E o avião levou Semionov para os mistérios terrificantes da Sibéria. Depois, de Komssa a Kusmovka, foi-lhe necessário viajar num pequeno comboio rural, construído unicamente para facilitar o transporte da madeira. De Krasnoyarsk enviara um telegrama para Kusmavka a anunciar a sua chegada, prevista para a tarde. A notícia aliviara Ludmilla Barakova.

 

Irei eu própria buscá-lo à estação declarou ela ao director. Assim, terei tempo de o observar de perto durante o trajecto de regresso.

 

Ludmilla esperou uma hora na estação de Kusmovka. Em vão. O comboio não chegava.

 

Furiosa, e com o coração apertado por uma angústia inexplicável, Ludmilla soube que o comboio tinha descarrilado nas proximidades de Ajachtaska, e que o número de vítimas se elevava já a vinte e três.

 

Conhece-se o nome dos mortos? perguntou com voz dura.

 

Não, camarada. É ainda impossível. É uma confusão sanguinolenta, no meio da qual nada se pode distinguir.

 

Quanto tempo é preciso para chegar lá de jipe?

 

Até Ajachtaska? repetiu o empregado, espantado. São pelo menos três horas de carro por uma estrada impossível...

 

Ludmilla conduzia como uma louca. ”Ele morreu”, repetia incessantemente, com as mãos crispadas sobre o volante. ”Tenho a certeza disso. Porque havia eu de ter sorte desta vez? Até aqui nunca tive...”

 

Era a primeira vez que sucedia um acidente naquela linha.

 

Foram necessárias exactamente três horas para chegar a Ajachtaska. Nas vias, a agitação atingia o auge. Homens gritavam, a locomotiva continuava a lançar fumo para o ar, pessoas corriam e acotovelavam-se por todos os lados. Mas as informações que lhe tinham dado em Komssa eram felizmente falsas: tratava-se apenas de um descarrilamento clássico, alguns vagões pareciam ter saído dos carris e davam a impressão de dormir sobre o talude. Alguns arranhões, hematomas e nódoas negras não constituíam a confusão sanguinolenta de que lhe tinham falado umas verstas mais adiante.

 

Ludmilla correu ao longo do comboio para descobrir a carruagem reservada aos passageiros. Descobriu-a intacta, mas abandonada por todos os seus ocupantes. Apenas um homem fumava tranquilamente cachimbo, encostado a uma janela, aparentemente alheio a toda aquela agitação, ou pelo menos indiferente a ela.

 

”Ei-lo”, pensou Ludmilla Barakova, parando. De repente, sem razão, aquela serenidade insolente tornou-a furiosa. Como podia ele ficar ali, despreocupado, imóvel, indiferente a tudo, enquanto à sua volta reinava o caos e a confusão? Não só fumava como se entretinha a lançar para o ar glacial espirais de fumo. Era o cúmulo!

 

Ludmilla soltou uma exclamação de impaciência e pôs-se mesmo junto da janela, com as mãos nas ancas, franzindo os sobrolhos e interpelando furiosamente o viajante solitário.

 

Eh! Você aí! Não será por acaso Semionov?

 

Acertou, camarada, sou de facto Semionov respondeu ele alegremente, batendo com o cachimbo contra a janela. As cinzas ardentes roçaram pelo cabelo de jade de Ludmilla que, instintivamente, recuou um passo. Os seus olhos chamejavam.

 

Diga-me uma coisa: faz uma pequena ideia do que será a delicadeza? E o trabalho? Toda a gente atarefada em redor de um comboio acidentado e, entretanto, você fuma tranquilamente como se isso não lhe dissesse respeito de maneira nenhuma.

 

Justamente, camarada, isso não me diz respeito. Eu sou um viajante e não um trabalhador dos caminhos-de-ferro. Tomei este comboio para ir para Kusmovka onde me foi dado um lugar. De facto, aquilo que se passa durante o trajecto não me diz respeito; é assunto dos camaradas encarregados da manutenção da linha. Camarada, nós somos todos especialistas. Cada operário, na União Soviética, tem um trabalho específico e seria verdadeiramente uma leviandade inqualificável da parte de um engenheiro especializado em madeiras, ir imiscuir-se nos trabalhos dos técnicos de locomotivas ou de caminhos-de-ferro. Penso que será da minha opinião?

 

Parece-me que as suas ideias comunistas são fundamentalmente falsas! Nós somos todos elos de uma cadeia única. Nós formamos...

 

Um instante, camarada Semionov desapareceu da janela e saltou para junto de Ludmilla. É mais prático para falar de ideologia que do alto daquela janela. Eu chamo-me Pavel Semionov.

 

Ludmilla Barakova respondeu ela secamente. Queria ir esperá-lo à estação de Kusmovka quando soube do acidente; por isso é que aqui estou. Sou o comissário político da unidade de madeiras Kalinin II, onde você foi colocado. Devo dizer-lhe que terá de trabalhar em estreita ligação comigo.

 

Essa perspectiva não me é muito desagradável. ”Que insolência” pensou ela. ”Para ele uma mulher é apenas um objecto de prazer. Não me ajudará nada no campo. Pelo contrário, vai ser visivelmente uma carga e uma preocupação suplementar.”

 

Penso que será melhor partirmos sem esperarmos que o comboio fique em estado de poder continuar a viagem disse Ludmilla em tom definitivo.

 

Acho bem. Tudo isto pode ainda durar um certo tempo.

 

Ele foi buscar as suas malas à carruagem e instalaram-se lado a lado no jipe. Com um ar natural e desenvolto, segundo o seu costume, Semionov passou o braço por detrás das costas de Ludmilla e pousou ao de leve a mão sobre o ombro da sua companheira.

 

Mas o que é isso? perguntou ela, furiosa.

 

O que é, camarada?

 

Faça o favor de tirar o braço!

 

Oh, perdão! É um velho hábito que tenho quando me sento perto de uma mulher bonita, num carro.

 

Eu não sou uma mulher!

 

Muito bem. De futuro hei-de recordar-me disso, Ludmilla Barakova. E acendeu o cachimbo sem fazer mais perguntas.

 

Só uma palavra antes de começarmos o nosso trabalho de colaboração, camarada capitão disse ele inclinando-se ligeiramente para ela. O seu ardor de homem forte e seguro de si perturbava-a; teve de se agarrar com força ao volante para conservar uma serenidade aparente.

 

Longe de mim a ideia de me preocupar com a política. Sou russo, engenheiro, comunista. De acordo. Mas vim a Kusmovka para reorganizar os métodos de produção segundo novas experiências, e não para me bater em redor de lengalengas ideológicas. Não é com slogans que atingiremos os objectivos previstos... Espero ter-me feito entender claramente?

 

Oh, perfeitamente! disse ela voltando-se ligeiramente para ele. Mas diga-me, quem teve a ideia espantosa de o mandar para Kusmovka?

 

Fui eu próprio que me candidatei! A falar verdade, se soubesse o que aqui me esperava, camarada Barakova, ter-me-ia inscrito para o Grande Norte ou para a fronteira da Mongólia, mas nunca para Kusmovka.

 

Foi a última troca de delicadezas durante as três horas que durou o caminho através da estepe árida que, apesar da sua boa vontade, o Toungouska não conseguia fertilizar.

 

”Detesto-o”, pensava Ludmilla com o olhar perdido na distância. ”Contentar-me-ei em o ignorar.”

 

”Ela é esplêndida”, pensava Semionov. ”Um tigre magnífico. Mas é russa, e, outrora, em Riga, prometi odiar tudo quanto fosse russo.”

 

Nos degraus da entrada dos edifícios administrativos, em Kalinin II, o director da fábrica e o secretário viram aproximar-se o jipe e puseram-se imediatamente em guarda.

 

O rumor não tardou a espalhar-se de barraca em barraca: o novo engenheiro chegara; a Barakova trouxera-o de carro e não lhe dirigia a palavra. Aparentemente não se podiam ver.

 

Semionov conquistou rapidamente a simpatia da equipa dirigente do campo. Para celebrar a sua chegada levara consigo quatro garrafas de vodka e um bom bocado de presunto. Foi um verdadeiro banquete que durou toda a noite, mas no qual Ludmilla recusara tomar parte. Do seu quarto ouvia o barulho, as vozes avinhadas, as gargalhadas, as graças grosseiras; por duas vezes percebeu, através dos delgados tabiques de madeira, a voz clara de Semionov: fez um discurso e depois ergueu o seu copo à saúde dos senhores do Kremlin. Ludmilla continha-se para não gritar, de tal modo o furor a sufocava. ”Ganhou”, pensou ela. ”E eu sinto que perco terreno. Mas ele que tenha cuidado!”

 

Entretanto, Semionov distraía os seus convidados contando-lhes anedotas e mexericos da capital. Às quatro horas da manhã, choravam todos pensando na tristeza da sua existência, pois, relegados para aquele canto maldito da Sibéria, não tinham uma oportunidade em mil de contemplar um dia os esplendores de Moscovo, a Meca de todo o bom russo.

 

Antes de voltar para o seu quarto, Semionov passou junto da porta de Ludmilla; a luz filtrava-se ainda pelas fendas e traía a insónia da camarada; mas nem por isso ele abrandou o seu andamento...

 

No dia seguinte, acompanhado pelo director, Semionov visitou a fábrica em todos os seus recantos. Parou em todo o lado para falar com os operários, ouvir as suas sugestões, registar as suas reclamações, e, por toda a parte, terminava com estas palavras:

 

Tratarei disso, camaradas. Mas pensem que não trabalhamos apenas para nós, mas também para a construção do nosso país.

 

Um fraseador, como todos os outros disse alguém. Vão ver que não vai mudar nada. Chegam aqui, grunhem como porcos e nós não contamos para nada.

 

Nesse dia, o campo recebeu uma visita de importância. O comissário do distrito em pessoa, o perigoso Jefimov, vindo propositadamente de Krasnoiarsk para ver como Ludmilla Barakova se habituava ao seu novo papel e como se saía dele. Prometera também a si próprio fazer-lhe uma Promessa de casamento bem concreta. Que podia ela esperar de melhor? Jefimov sentia-se seguro de si, da sua atracção e do seu poder, não temia nenhuma concorrência. E nesse inferno perdido, Ludmilla sentir-se-ia feliz Por ter ocasião de quebrar de uma forma agradável a sua solidão...

 

O descarrilamento foi devido a um acto de sabotagem, Ludmilla disse-lhe ele quando ficaram a sós no gabinete do director. Está provado. Temos que enviar um relatório para Moscovo!... É verdade, como se porta esse Semionov?

 

É difícil de dizer, camarada Jefimov respondeu prudentemente Ludmilla. Ainda não desmanchou as malas, mas já deu volta à fábrica.

 

É curioso que este acidente se tenha precisamente dado no decorrer da sua viagem!

 

Não esqueças que ele estava dentro do comboio e não fora dele. É com certeza uma coincidência.

 

Temos de fazer um inquérito minucioso, Ludmilla. Enviam-nos uma ave rara e mal ela chega dá-se um acidente. Desde que não lhe suceda nada... Se bem que, a falar verdade, ele nada tenha de proletário...

 

Fez demorados estudos e frequentou a universidade. Jefimov franziu as sobrancelhas.

 

Parece-me que o defendes com ardor, Ludmilla. Impressionou-te a tal ponto?

 

Tu conhece-lo melhor do que eu replicou ela, refugiando-se junto da janela, para que o seu rosto não traísse a sua perturbação.

 

A coluna de carros regressava já da visita de inspecção; no carro da frente, via-se a cabeça dourada de Semionov. Ludmilla respirou profundamente e foi de novo para junto de Jefimov.

 

Ei-lo. Tu próprio vais poder interrogá-lo.

 

Nem pensar nisso. E tu também não, Ludmilla. Os sabotadores encontram-se entre os operários da fábrica. Tirámos os nomes dos quarenta e sete homens que trabalharam na via-férrea na véspera do acidente; faz alguém observá-los atentamente sem que eles desconfiem. E agora nem uma palavra sobre isso, peço-te.

 

Jefimov e Semionov saudaram-se com grandes demonstrações de amizade, à russa, como se não se vissem há anos. Era preciso mostrar a todos que o novo engenheiro gozava altamente de um regime privilegiado.

 

Alguns dias mais tarde, na noite que se seguiu à partida de Jefimov sem que a questão do casamento tenha sido abordada Semionov teve uma surpresa. O pequeno aparelho emissor-receptor de ondas curtas, do qual ele nunca se separava, ficava de dia cuidadosamente escondido num cubículo vazio e despertava todas as noites à hora fixada para ligar os diversos elementos da rede de espionagem tecida entre a fronteira checa e as margens do Toungouska pedregoso. Pela primeira vez nessa noite o aparelho reagiu; uma voz desconhecida atravessou a taiga infinita e fez sobressaltar Semionov.

 

Dimitri a Ivan... Dimitri a Ivan... Dimitri a Ivan... Semionov respondeu com brevidade:

 

Ivan à escuta. Tudo bem. Stop.

 

Todas as chamadas devem ser dirigidas a mim respondeu Dimitri em inglês, sem mesmo ter o cuidado de utilizar o código secreto. Eis a sua missão: todas as informações possíveis sobre as bases de lançamento instaladas em Komssa. Ligação rádio todos os dias ao meio-dia e todas as noites às duas horas. Entendido?

 

Semionov respondeu também em inglês:

 

Dimitri, está a fazer o quê? Então o código? Resposta:

 

Ninguém conhece uma palavra de inglês aqui; além disso, não há vigilância de rádio neste canto. Claro que transmito os seus relatórios para Moscovo em código. Nós somos os únicos a poder conversar como se estivéssemos em redor da lareira. Boa sorte, Dimitri. Terminado.

 

Semionov guardou os seus instrumentos. A excitação fazia-o transpirar. Quem era aquele Dimitri? Onde se encontrava ele? Que imprudência! Bastava uma coluna militar em deslocação ou um simples rádio que conhecesse um bocado de inglês para estragar tudo.

 

A solidão do seu quarto tornou-se-lhe daí a pouco insuportável. Saiu para o corredor gelado e parou junto de uma janela sem cortinas: diante dos seus olhos o campo inteiro repousava sob um torpor pesado e mudo.

 

- Será por acaso sonâmbulo, camarada? perguntou subitamente uma voz clara atrás de si.

 

Semionov não se voltou. Não ouvira chegar Ludmilla.

 

E você porque não dorme, Ludmilla Barakova? replicou tranquilamente.

 

Não consigo.

 

O casaco do uniforme cobria-lhe os ombros, mas ela tremia de frio.

 

Você tem frio...

 

Semionov abotoou o casaco, de tal modo que a jovem ficou por assim dizer presa num saco, com os braços pendentes ao longo do corpo, incapaz de fazer o menor movimento. O vento uivava, passando através das fendas mal calafetadas da janela.

 

Em breve irá nevar. O vento cheira a neve.

 

Sim Para se ocupar com alguma coisa, Semionov tirou o cachimbo do bolso. Porque não consegue dormir?

 

Estou preocupada, Semionov.

 

Sim? Passou os braços em redor dos ombros de Ludmilla e atraiu-a suavemente contra ele. Assim terá menos frio... Porque é que está preocupada? Segundo a minha opinião, o problema mais urgente é o das provisões. Temmos ainda alimentos para um mês, no máximo. O chefe cozinheiro começa a arrancar os cabelos.

 

Eu sei. Já enviei um relatório a Krasnoiarsk. Falou com Jefimov?

 

Muito pouco.

 

Está a mentir. Sei bem que ele quer casar comigo.

 

Porque não? Os meus votos de felicidades. Ludmilla ergueu a cabeça.

 

Afinal porque nos odiamos nós? disse em voz baixa, como se se interrogasse a si própria.

 

Tenho as minhas razões para isso.

 

Semionov voltou-se para ela. Sem acrescentar uma palavra, prendeu o pequeno rosto estendido para ele entre as suas grandes mãos e, com toda a ternura e intensidade de que era capaz, apoiou ligeiramente os seus lábios contra os lábios azulados pelo frio de Ludmilla. Com um gesto espontâneo, Ludmilla tentou rodear com os seus braços o pescoço do homem; mas estava prisioneira do casaco fechado por ele. Um furor inexplicável fê-la vacilar: decididamente ele tinha calculado tudo muito bem.

 

Patife! exclamou ela entre dentes. Está bem, vou casar com Jefimov o mais depressa possível!

 

Os meus votos de felicidades repetiu Semionov. E, com o cachimbo entre os dentes, voltou calmamente para o quarto. Tinha a impressão de que uma carga de chumbo acabava de lhe esmagar o coração.

 

Assim se passaram três semanas.

 

Não descobriram os sabotadores, se bem que Jefimov tivesse interrogado pessoalmente os quarenta e sete homens que tinham trabalhado na via-férrea no dia anterior ao da passagem do comboio, e interrogado de tal maneira que foram todos directamente enviados para o hospital de Krasnoiarsk.

 

Mas o problema do abastecimento tornava-se cada vez mais insolúvel. Deram-se curiosos incidentes durante essas três semanas. Três vagões de farinha de soja chegaram a Komssa húmidos e inutilizados, tanto tempo tinha levado no caminho. Às reclamações que os funcionários do Kalinin II, encarregados do abastecimento, fizeram aos de Krasnoiarsk, estes responderam serenamente: ”Acalmem-se, camaradas, está anunciado um comboio. Vai arranjar-se tudo.”

 

Mas o comboio não chegou nunca ao seu destino. Um comboio de camiões, também anunciado oficialmente, evaporou-se: também nunca chegou a Kalinin II.

 

Mas estejam tranquilos; daqui até ao Inverno as vossas reservas estarão a abarrotar, camaradas, pois quem trabalha tem de comer!

 

Numa noite, a catástrofe abateu-se sobre o pequeno povoado de Komssa.

 

Com três semanas de antecedência e uma rara vitalidade, o Inverno fez um aparecimento espectacular: numa noite, tudo ficou coberto, submerso, invadido, enterrado sob uma enorme massa de neve. O Toungouska recebeu a sua capa de gelo e encerrou-se no seu silêncio trágico; as estradas tornaram-se impraticáveis; só a via-férrea, regularmente liberta de neve, permaneceu o único agente de ligação entre o campo e o resto do mundo.

 

Durante oito dias, a neve caiu e tornou-se mais densa: as rações dos operários, pelo contrário, foram diminuindo Progressivamente.

 

Ludmilla Barakova sentia a atmosfera tornar-se pesada. Tentou acalmar os espíritos multiplicando as conferências, slogans e apelos à consciência comunista; mas em breve, percebeu que os estômagos vazios não aceitavam facilmente as máximas grandiloquentes de Leníne.

 

Devemos de resto confessar que a situação de Ludmilla não era nada invejável. Semionov não lhe dirigia a palavra. Ela correspondia-se com ele por meio de notas de serviço muito breves. A solidão rodeava-a como lodo.

 

Ao nono dia, a tempestade rebentou. Mais uma vez Ludmilla reunira o seu batalhão de esfomeados na Stolovaia e fizera-lhes um discurso sobre a grandeza e a força do ideal soviético. Como sempre nessas ocasiões, ela vestira o seu uniforme de capitão. Mal pronunciou a última palavra, quatro dos seus auditores correram para o estrado e rodearam-na.

 

Camarada gritou um deles, vai ficar entre nós até que nos dêem de comer! Se alguém quiser utilizar a força para vir libertar-nos, previno-a de que será enforcada nos balneários. Compreende?

 

Cena idêntica deu-se no mesmo momento no gabinete do director: intimaram-no a dar pelo telefone as últimas novidades a Jefimov.

 

Mate-os todos! respondeu friamente Jefimov.

 

Mas eles enforcarão Ludmilla Barakova! gritou o director, aterrorizado.

 

Libertem-na!

 

Dê-lhes de comer.

 

Não tenho nada!

 

Foi quando se encontrava fora do campo que Semionov soube do motim e de Ludmilla estar presa pelos operários. Sem esperar por detalhes, saltou para o jipe e voltou ao campo. Era inútil discutir com eles. Era necessário agir. Na Stolovaia viu ao longe Ludmilla sentada numa cadeira e mergulhada na leitura de um romance de Gorki; os seus guardas não a tinham abandonado.

 

É o único meio, camarada engenheiro. Sabe bem que não foi de coração alegre que chegámos a isto... mas ninguém pode trabalhar sem comer.

 

Semionov concordou e dirigiu-se para o seu quarto. Era meio-dia. Ligou o seu emissor-receptor e chamou Dimitri. Ao meio-dia em ponto, Dimitri respondeu. Em inglês.

 

Que se passa?

 

Em poucas palavras, Semionov descreveu a situação no acampamento. Depois, concluiu: preciso de três dias de abastecimento para mil e duzentas pessoas!

 

Perdeu a cabeça!

 

Ajude-me, Dimitri. Caso contrário está tudo perdido. Depois de meia hora de silêncio, Dimitri recomeçou a conversa.

 

Existe a dez quilómetros a sul de Komssa uma intendência militar que pertence à VI Brigada de Foguetões, guardada por um tenente e doze soldados do Exército Vermelho. O campo fica situado na estrada Komssa-Podkamennaia, na margem do Jenissei. Terminado.

 

Semionov foi a correr ter com o director; encontrou-o numa espécie de cubículo cheio de fumo e a cheirar a vodka; nem uma palavra quebrava o silêncio.

 

A via-férrea está livre?

 

Sim, mas...

 

Podem-se transportar dois camiões nos vagões-plataformas?

 

Com certeza.

 

Então vamos meter todos mãos à obra. Um comboio especial irá esta noite a Komssa. Despache-se! Vamos!

 

Efectivamente, na noite seguinte, um comboio de mercadorias percorria a via-férrea através da neve, do gelo, do vento e da escuridão.

 

O guarda da estação de Komssa abriu muito os olhos ao vê-lo: um comboio cuja chegada ninguém anunciara... O seu espanto durou apenas o tempo de um relâmpago, pois não tardou a ir juntar-se, com um bom directo no estômago, que o fez de resto adormecer completamente, aos ratos e às ratazanas que passeavam pelo barracão.

 

No dia seguinte, encontraram-se os doze soldados e o tenente a dormirem na neve; as provisões da Intendência da VI Brigada tinham desaparecido. O coronel Isvarin, chefe da brigada, fez uma visita a Kalinin II, mas descobriu apenas um campo de aspecto tão triste como os outros campos, camiões cobertos de neve que não tinham certamente servido há muito tempo e um comboio igualmente adormecido sob a sua cobertura de neve. Quanto às provisões, logo que chegaram foram enterradas. Em plena noite, os cozinheiros tinham-se atarefado em redor dos seus fogões. Também Ludmilla Barakova recuperara a sua liberdade de movimentos.

 

Jefimov acorreu imediatamente; mostrou-se grande senhor. Com uma palavra enviou o coronel Isvarin para a sua brigada.

 

Enviar um relatório a Moscovo? Por favor disse, sorrindo. Não creio que isso fizesse muito bom efeito lá. Um campo militar que se deixa assim invadir e pilhar sem resistência...

 

Nessa mesma noite, nem um uniforme perturbava a região de Kusmovka.

 

Semionov, você é o diabo em pessoa! disse Jefimov, despedindo-se de Pavel. Quanto tempo durarão as provisões?

 

Dez dias, camarada Jefimov.

 

Bem, até lá os comboios de provisões serão desbloqueados. Adeus. E transmita cumprimentos a Ludmilla Barakova. Está a dormir, coitada. Depois de todas estas emoções...

 

Mas Ludmilla não dormia. Semionov viu uma mancha escura nas cortinas brancas da janela do quarto dela...

 

A porta estava entreaberta; um leve raio de luz dava um pouco de vida ao aposento mergulhado num silêncio pesado. No quarto velava ainda uma luzinha. Semionov entrou sem ruído e esperou um instante. Nenhuma reacção. Guiado pela luz, avançou até junto da cama onde Ludmilla estava estendida, imóvel, deitada de costas; os seus cabelos negros cobriam o seu rosto pálido como um lençol mortuário. O seu rosto soerguia-se com a regularidade própria de um sono profundo.

 

Porque finges dormir, Ludmilla Barakova? perguntou ele, sentando-se na beira da cama.

 

Não me apetece discutir disse ela, voltando-se para a parede. Que faz aqui, de resto, a umas horas destas?

 

Fui encarregado de lhe transmitir os melhores cumprimentos de Jefimov. Ele acaba de partir.

 

Obrigada... isso poderia ter esperado até amanhã.

 

Além disso a porta estava entreaberta.

 

Nunca a fecho. Fica sempre assim. Isso não é nada prudente, Ludmilla.

 

Não sei porquê.

 

Pode receber visitas... como a minha, por exemplo.

 

Não receio ninguém.

 

Eu sei.

 

De si também não tenho medo, Pavel... De resto, nunca durmo sozinha acrescentou, tirando uma almofada debaixo da almofada. Os seus olhos negros cintilavam. Agora fale, peço-lhe.

 

Você é um demónio, Ludmilla disse Semionov em voz baixa.

 

Com uma calma meritória, ele afastou suavemente as cobertas e apoiou os lábios sobre o ombro nu de Ludmilla. Sentiu-a tornar-se rígida com o beijo e preparou-se para apanhar uma bofetada... mas nada se passou. Então, rodeou-a com os seus braços e o seu peso fê-la oscilar; com os dedos perdidos na confusão dos cabelos, sentira refluírem de repente todos os desejos e sonhos das últimas semanas.

 

Ludmilla... disse baixinho. Pequeno pássaro perdido. Tu tens frio, sozinha neste campo maldito.

 

Sim, faz frio aqui, Paulucha murmurou ela estendendo os braços, como se, nesse gesto, fizesse sem reticências doação de si mesma. Tu, tu és quente... És como o sol sobre um campo de rosas.

 

O vento batia nas persianas; uma tempestade de neve abatera-se sobre a região e não poupava nem os seres nem as coisas.

 

Amo-te Paulucha sussurrou Ludmilla, enterrando o rosto contra o ombro de Semionov. O meu amor é inexplicável; seria capaz de arrancar as estrelas ao céu e dar ordens às nuvens... Poderia...

 

Quem és tu? perguntou ele. Não te reconheço.

 

Sou Ludmilla...

 

De onde vens?

 

De muito longe... de um país onde as raparigas usam grinaldas nos cabelos e onde os rapazes aprendem Primeiro a montar a cavalo e depois a andar.

 

Do Cazaquistão?

 

Sim. De Tchimkent... Como tu és forte! Poderias estrangular um urso?... Ouves o vento que grita sobb a planície, Paulucha?... Aperta-me bem... É tão bom ser protegida...

 

A aurora dissipou as trevas da noite e, com ela, o encantamento.

 

A situação não tinha saída. O amor deles nascera da luta e das dificuldades; parecia contrariar a lógica do destino. Tudo os separava, e, no entanto, Semionov sabia já que lhe sacrificaria tudo, o seu passado e o seu futuro.

 

”É preciso tomar imediatamente uma decisão”, pensava ele trincando um cigarro. ”Só existe uma alternativa: ou permaneço Semionov, o russo... ou permaneço Franz Heller... Nesse caso, devo fugir imediatamente. A taiga é um túmulo de onde não se regressa. O mais seguro dos cemitérios...”

 

Atrás dele, Ludmilla espreguiçou-se como uma gata, voltou-se e adormeceu, murmurando palavras indistintas.

 

”Ficarei Semionov”, decidiu Heller nesse instante, e sabia que a sua decisão era irrevogável. ”Suceda o que suceder vou prevenir Dimitri e Bradcock de que os deixo e de que vou finalmente começar a viver. Como irão eles reagir?”

 

Nessa noite, Pavel Semionov conquistara o céu, mas abrira também as portas do inferno.

 

Mas ainda o ignorava...

 

As semanas que Matwei Karpuschin acabava de viver podiam verdadeiramente ser consideradas como o antegosto do inferno.

 

Ao recordar a entrevista com o marechal Malinovski, os seus cabelos eriçavam-se e um suor frio e pegajoso inundava-o.

 

A culpa é tanto da embaixada de Rolandseck como sua dissera o general num tom irónico, e para quem conhecia Malinovski a utilização do estilo irónico não fazia pressentir nada de bom. Mas se se provar que esse Franz Heller conseguiu descobrir segredos militares, presumo que alguns camaradas terão de sofrer as consequências disso... Penso que me compreende!

 

Karpuschin e Chimkassy tinham-se apressado a deixar o gabinete pouco hospitaleiro, evitando cuidadosamente trocar sequer um olhar.

 

Duas semanas mais tarde, Karpuschin encontrou uma breve nota sobre a sua secretária: ”Relatório fornecido por carro-rádio VI: aparelho emissor de ondas curtas envia mensagem cifrada a desconhecido entre as duas e as duas e trinta horas da manhã; estação de emissão: Vorozovo Polie dezassete pertencente a um certo negociante de móveis chamado Alajev.”

 

Passada meia hora, Alajev recebia a visita de quatro homens inquietantes: compreendeu ao primeiro olhar.

 

Onde está o emissor? perguntou Karpuschin sem preâmbulos.

 

No sótão replicou calmamente Alajev sem procurar negar, pois todo o bom russo sabe que é impossível esconder a verdade.

 

Com quem está relacionado?

 

Com um homem que se chama Otto.

 

Otto? Mas é um nome alemão.

 

Sim.

 

Onde está Franz Heller?

 

Alajev abriu os olhos de espanto, como se ouvisse aquele nome pela primeira vez na sua vida. Apanhou um par de bofetadas e levaram-no sem tardar, seguido da infeliz e chorosa Jekaterina. O silêncio instalou-se na casa. Para sempre.

 

Nessa noite, os postos de vigilância registaram os apelos desesperados de Otto. Na fronteira checa, o major Bradcock soltou um grande suspiro, depois de ter tentado em vão, durante várias horas, entrar em contacto com Alajev. Finalmente, pegou no telefone, chamou Bona, e, em poucas palavras, anunciou o silêncio de Otto e pediu um novo código.

 

Nessa noite, nas caves da prisão de Lubianska que ele ja conhecia, Alajev travou conhecimento com os métodos de interrogatório queridos dos senhores do Kremlin. Contou tudo o que sabia, até aos menores detalhes, sem se fazer rogar. Para quê, de resto? Aquilo durou nove dias, ou, mais exactamente, nove noites.

 

Ao décimo dia, cerca das dez horas, foram acordar Alajev com uma certa consideração. Levaram-no para uma sala de operações... Era o fim. Solidamente amarrado, com os olhos perdidos no vácuo, tentava não pensar em nada. O fiel Karpuschin não largava a sua cabeceira; na outra extremidade da mesa, um estenógrafo com nariz em forma de corno encontrava-se já a postos. Uma injecção e deu-se imediatamente o grande caos interior. Em breve, só restava de Alajev um corpo inerte e um espírito de robot que respondia fielmente às perguntas precisas do coronel Karpuschin.

 

A clássica lavagem ao cérebro e às suas defesas, a destruição do seu eu e o aniquilamento da alma.

 

À noite, despertou na sua cela com a sensação de se ter perdido no caminho, e sem saber porquê, como que impelido por uma força interior, pôs-se a uivar: o uivo de um cavalo em agonia. E, de repente, percebeu que não estava só: Karpuschin, o demónio insaciável, esperava.

 

O que é que querem ainda de mim? perguntou. Não souberam já tudo quanto queriam saber?

 

Não. Onde se encontra Heller?

 

Não posso dizê-lo, porque o ignoro.

 

Está bem. Foi justamente a resposta que me deu quando estava sob o domínio da droga. Sou forçado a acreditar em si. Mas sabemos que ele se chama agora Pavel Semionov.

 

Alajev fechou os olhos. Um cansaço infinito pesava sobre todo o seu ser. Mesmo a Sibéria não era suficientemente vasta para esconder um homem perseguido por uma matilha de cães esfomeados...

 

Em Krasnoiarsk, entretanto, a situação de Jefimov, funcionário superior do Estado, comissário-chefe, membro fanático do Partido, não era de invejar. A revolta de Kalinin II e sobretudo a razia efectuada à Intendência militar perto de Komssa foram o prelúdio muito minucioso e de um dossier inquietante. As dificuldades acumularam-se. Moscovo reclamava um relatório preciso e enviou várias comissões de controlo que Ludmilla Barakova conduzia através do campo. Jefimov mostrava toda a sua boa vontade para evitar preocupações suplementares à sua bem-amada. Tinha mesmo de intervir para apaziguar o ódio crescente que opunha Ludmilla a Semionov.

 

Ludmilla, meu anjo, faz um esforço para te mostrares amável para com ele. Ele cumpre apenas o seu dever. Desde a chegada dele que se vê que um verdadeiro técnico dirige finalmente a fábrica. Semionov pelo menos tem ideias! Moscovo insiste para que se crie em redor dele um clima de trabalho favorável...

 

Ludmilla encolheu os ombros:

 

Quando ele se ocupa da madeira tudo corre pelo melhor, camarada Jefimov! Mas quando, no meio de uma conferência, entra como um furacão na Stolovaia, me interrompe sem pedir desculpa, e reclama vinte voluntários para um descarregamento, prometendo uma ração dupla, semeia a desordem, corta-me a inspiração e fico furiosa!

 

Mas, à noite, o cenário mudava e as personagens eram substituídas. Quando tudo dormia, Ludmilla deslizava em pontas dos pés até ao quarto de Semionov e colava-se a ele roufenhando como uma gata medrosa:

 

Meu grande urso... Tenho frio. Aquece-me... Uma vez, em plena noite, Ludmilla fez a pergunta principal:

 

Que nos vai suceder, Paulucha? Por vezes, quando sou forçada a discutir contigo diante dos outros, parece-me que vou rebentar. Um dia, tenho a certeza de que me vou enganar no papel e salto-te ao pescoço!

 

Devias falar com Jefimov aconselhou Semionov.

 

Tenho medo...

 

Ele há-de acabar por saber.

 

É preciso reflectir, querido... murmurou ela como conclusão.

 

Depois, aconchegava-se no ninho macio onde os braços fortes de Semionov lhe serviam de amparo. ”Como ele é forte e calmo”, pensava ela.

 

Pouco tempo depois sucedeu que, por razões de serviço, Ludmilla e Semionov tiveram de ir juntos a Komssa; Ludmilla devia assistir a uma reunião extraordinária do Soviete, e Semionov queria negociar com o director de uma fábrica.

 

Por volta do meio-dia vagueavam agradavelmente ao acaso pelas ruas da cidade. Fazia muito frio; a neve tinha-se amontoado e formava uma camada gelada que cobria estradas e passeios. O Sol parecia ter desaparecido numa massa insondável de nuvens castanhas, anunciadoras de uma nova tempestade de neve. Komssa, para falar verdade, só com muita indulgência merecia a denominação de cidade. Algumas casas de madeira e alguns blocos de habitação, barracões e casas em construção rodeavam os edifícios oficiais, a sede do Partido com a sua fachada de colunas, o Palácio da Cultura cuja gigantesca estrela vermelha parecia lançar um desafio ao céu cinzento do Inverno siberiano, a sala de reuniões, a casa dos Komsomols, o pomposo Palácio dos Casamentos, no interior do qual alguns funcionários passavam a sua existência a unir, pelos laços sagrados do casamento, casais novos ou velhos que apresentassem os seus papéis em ordem e declarassem querer fabricar muitos pimpolhos para fazerem deles bons comunistas ao serviço da grande Rússia soviética. Então, inscreviam-nos numa lista, entregavam-lhes uma certidão e desejavam-lhes boa sorte. Serviam de enfeite para a cerimónia, apenas uma bandeira vermelha e um retrato de Lenine.

 

Ao passar pelo Palácio dos Casamentos, Ludmilla deu um salto para o lado. Semionov olhou-a com espanto e inquietação.

 

Cá está! Descobri! exclamou Ludmilla Barakova com voz oficial. Paulucha, tens os teus documentos contigo?

 

Com certeza. Porquê?

 

Vamos colocar Semionov perante um facto concreto... Eu também tenho os meus documentos. Volta-te e olha, Paulucha: o sinal do destino.

 

Semionov viu apenas um edifício de pedra, com uma porta de batente duplo e uma estrela vermelha.

 

Vamos casar-nos disse Ludmilla em voz baixa. Imediatamente. Depois não teremos mais razão para brincar ao gato e ao rato.

 

A decisão que Semionov tomara na noite de 17 de Outubro não se alterara: fora nessa noite que Franz Heller desaparecera para sempre, engolido pela imensidão da Sibéria e pela infinita doçura de dois braços brancos.

 

Vem disse ele dando a mão a Ludmilla. Amo-te. Iria contigo até ao fim do mundo, mesmo que para isso tivesse de perder a vida...

 

Meia hora mais tarde tinham-se tornado marido e mulher segundo a lei soviética. Recomeçaram o seu passeio, de mãos dadas, perdidos numa contemplação interior, até que, de repente, encontraram Jefimov.

 

Ah! meus filhos! exclamou o bravo comissário-chefe. Que sorte encontrá-los aqui! Quais são os vossos projectos? Preciso de ir fazer uma visita à base de lançamentos antes da reunião acrescentou com orgulho, pois procurava impor-se a Ludmilla.

 

O coração de Semionov deu um salto:

 

Refere-se à base de lançamento dos foguetões, camarada Jefimov? perguntou ele negligentemente.

 

Sim. O coração central da Rússia, o cume da potência soviética, meus amigos. Daqui, podemos atingir e destruir Londres e Paris. Digo-lhes que com um tal poderio nas mãos a Rússia é inexpugnável!

 

Semionov sabia o que pensavam disso nos meios americanos.

 

Vamos decidiu Jefimov, vou arranjar maneira de entrarmos todos juntos.

 

Para Semionov, aliás Franz Heller, era a viagem triunfal, ou melhor, devia ser a viagem triunfal. ”Eis-me no fim”, pensou, enquanto um suor frio se lhe colava ao corpo.

 

Alguns minutos mais tarde, sob os olhares divertidos e orgulhosos de Jefimov, o mais perigoso dos espiões americanos sondava o coração da Rússia soviética.

 

As duas horas passadas entre os segredos mais bem guardados da técnica soviética, entre os engenhos de morte e de destruição a longa distância, cuja existência as potências ocidentais ignoravam até, colocaram Semionov perante uma escolha irrevogável, a decisão final de que ele fugia inconscientemente desde que descobrira o seu amor Por Ludmilla. Teve a impressão de viver o resto desse dia memorável como um autómato, fazendo os gestos que esperavam dele, enquanto o seu coração rebentava. À noite, no último comboio que os levava, aos solavancos, para Kusmovka, através dos campos adormecidos sob o gelo, Ludmilla, ternamente apertada contra o espesso casaco de peles do marido, decidiu interromper a meditação solitária:

 

Fizeste todas as compras que tinhas pensado fazer, Paulucha?

 

Não. Na verdade, não comprei nada, querida. Mas para ti tenho um outro presente...

 

Ludmilla foi suficientemente sensata para não insistir. Adormeceu. E Semionov ficou só com o seu dilema. Nessa noite, deu o golpe de misericórdia em Franz Heller e apertou mais contra si Ludmilla adormecida.

 

Senta-te na cama, Ludmilluchka disse Semionov nessa mesma noite, quando entraram no campo. Prometi-te uma surpresa. Ei-la. É uma surpresa terrível, mas só o amor poderá ajudar-te a aceitar.

 

Ludmilla sentou-se à beira da cama com as mãos sobre os joelhos, observando o marido com ar atento e inquieto.

 

Semionov foi buscar o seu pequeno aparelho emissor, distendeu a antena e ligou-o.

 

Sabes o que isto é? perguntou calmamente.

 

Ela respondeu com um aceno de cabeça, com o olhar fixo e horrorizado, e começou a tremer.

 

Ivan a Dimitri... Ivan a Dimitri... Ivan a Dimitri... Ouvem-me?

 

Dimitri pareceu ter ouvido. A resposta rangeu nos auscultadores. Então Semionov prosseguiu:

 

Eu abandono, Dimitri. Ouves-me? Abandono, destruo tudo, os aparelhos, o código, os papéis, as informações. Transmitam as minhas melhores recordações a Otto. Abandono tudo. Não quero pensar em mais nada, nem na Alemanha, nem nos foguetões, nem na América. Que Deus esteja convosco. Terminado.

 

Não esperava resposta. Com as suas grossas botas reduziu o aparelho a pedacinhos, depois foi buscar os papéis, os mapas, os códigos, os microfilmes ao esconderijo e deitou tudo para o lume. Uma chama vitoriosa ergueu-se: Franz Heller acabava de se consumir para sempre.

 

Ludmilla não fez um movimento; continuava a olhar as chamas. Então, Semionov voltou-se para ela, e, sem perder a sua calma aparente, mostrou-lhe a porta.

 

A dez passos daqui dorme o director. Podes ir acordá-lo. Não oporei qualquer resistência.

 

Quem és tu? perguntou ela em voz baixa.

 

A partir de hoje sou Pavel Semionov.

 

E antes?

 

Franz Heller. Espião alemão a trabalhar para os Americanos.

 

O quarto estava mergulhado num silêncio denso. Só o vento gelado batia nas persianas e fazia gemer o campo.

 

Um alemão murmurou Ludmilla. Um alemão Ó Paulucha! Eu que detesto os Alemães!

 

Semionov deu alguns passos para a porta.

 

Faz o teu dever, querida. Chama a sentinela.

 

Um alemão! As lágrimas saltaram-lhe dos olhos, inundaram as suas faces gélidas e aliviaram o seu coração pesado. Os Alemães mataram o meu pai, fuzilaram o meu irmão, aniquilaram toda a minha família excepto a mim...

 

Semionov abanou a cabeça e aproximou-se dela.

 

Os Russos mataram Irene, a minha noiva. Estava estendida sobre as pedras da rua, nua e com o corpo todo esfaqueado. Os Russos violaram as minhas tias, espancaram o meu tio até ele morrer e mataram o meu irmão atirando-o contra uma parede!

 

Ludmilla ergueu-se sem dizer uma palavra e foi fechar a porta à chave; começou a despir-se lentamente, como se cada um dos seus gestos fosse um símbolo e depois meteu-se na cama.

 

Vem, Paulucha disse por fim muito baixo. Vem, tu és meu marido...

 

Eram 10 horas da manhã quando o general Chimkassy telefonou para o coronel Karpuschin. O general parecia de excelente humor; a sua voz tonitruante mostrava-o.

 

Camarada Karpuschin disse ele adivinhe o Que acabam de me trazer numa bandeja de prata? É de tal modo fantástico que aconselho-o a sentar-se! Nem o próprio diabo seria capaz de fazer uma coisa semelhante!

 

Que se passa, camarada general?

 

Acabo de receber uma informação vinda do estrangeiro e fornecida por um dos nossos homens. Uma informação dada directamente pelos americanos.

 

Karpuschin deu um salto:

 

Heller? berrou.

 

Ah! Perfeitamente, Heller respondeu Chimkassy depois de se ter dado ao luxo de fazer esperar alguns instantes o seu colega. O nosso caro Pavel Semionov.

 

Onde está ele?

 

Em Kusmovka. A dois passos da base de Komssa. Foi contratado como engenheiro especializado para a Kalinin II.

 

Logo vi! Agradeço-lhe, camarada general. Ocupar-me-ei do caso. Irei lá pessoalmente!

 

Depois de ter desligado, inclinou-se sobre um mapa da Sibéria, descobriu Krasnoiarsk e depois o pontinho que representava Kusmovka, no Toungouska pedregoso.

 

Parto hoje mesmo disse em voz alta. É agora chegada a ocasião de conquistar as minhas estrelas de general!

 

O assombro desse bom Jefimov no fundo, ele era bom homem, embora um pouco limitado, pois, como Karpuschin gostava de dizer, ”à força de contemplar a imundície acaba-se por ficar sujo” quando o puseram em comunicação telefónica com os serviços secretos de Moscovo.

 

Conhece um certo Pavel Semionov? ouviu perguntarem-lhe.

 

Certamente que sim respondeu a voz um tanto bajuladora de Jefimov. Um engenheiro notável, que...

 

Uma porcaria interrompeu Karpuschin do outro lado do fio, de tal modo que o comissário se encolheu instintivamente. É o mais perigoso dos espiões; temos informações em primeira mão, dos própros americanos acrescentou orgulhosamente.

 

Dos americanos?

 

Oh! Você não pode compreender! Guarde-o à vista sem que ele desconfie de nada. Chegarei aí esta noite.

 

Jefimov pousou o auscultador e limpou o suor que o inundava. Uma imagem impunha-se ao seu cérebro: a visita às bases de lançamento que ele próprio propusera a Semionov... Tivera o orgulho e a fraqueza de lhe dar ele próprio todas as explicações nos mínimos detalhes... Se alguém falava nisso ele era o candidato número um para ir parar às minas do deserto... Um arrepio percorreu-o.

 

Telefonou imediatamente a Ludmilla Barakova.

 

Ludmilla, onde está Semionov? Ludmilla franziu as sobrancelhas.

 

Creio que está na oficina de contraplacado. Porquê?

 

Quando volta ele?

 

Não sei. Quer telefonar-lhe directamente, camarada Jefimov? Posso dar-lhe o número.

 

Como tem ele estado? Notou alguma coisa de especial, Ludmilla?

 

Ludmilla Barakova agarrou com força o telefone: as articulações dos seus dedos ficaram brancas, o coração gelou-lhe. Que significavam as perguntas cheias de subentendidos de Jefimov? Nada de bom, certamente. Os seus olhos tornaram-se duros e esforçou-se, apesar da angústia que sentia, por se manter calma e segura de si.

 

Censuram-lhe alguma coisa, camarada Jefimov?

 

Esta noite irei aí de helicóptero para o visitar. Um certo coronel Karpuschin, de Moscovo, acompanharme-á. Da KGB. Não perca Semionov de vista... Parece que é um espião... Foram os próprios americanos que o denunciaram. Esta noite, sem dúvida, nos dirão a razão desse estranho comportamento... Em todo o caso, esse porco não perderá pela demora...

 

Ludmilla desligou.

 

Estava calma, muito calma, sem o mínimo sintoma de pânico. Sentia-se triste por a denúncia ter chegado tão depressa. Já a esperava, se bem que nunca o tivesse deixado entender a Semionov. Agora era necessário agir depressa.

 

Pôs-se imediatamente a trabalhar. Guardou os dossiers, assinou um relatório, depois foi para o seu quarto e encheu a sua mala; em seguida, foi ao quarto de Semionov e reuniu os poucos tesouros que ele levara para o exílio. Por fim, vestiu o uniforme e apertou o cinto. O pesado punhal, o revólver... Não lhe foi necessário muito tempo para terminar os preparativos. Trepou para o jipe, instalou-se ao volante, foi encher o depósito de combustível e desapareceu numa nuvem de neve, sem sequer olhar para trás.

 

O director observava-a por detrás dos vidros da janela. Espantado, voltou-se para o secretário.

 

De uniforme ou de vestido, ela é exactamente o tipo de mulher que uma pessoa gosta de ter ao pé de si! observou o secretário com um azedume não dissimulado.

 

Foi com uma mala e um saco murmurou o director. Que quererá isso dizer?

 

Ah! Veremos.

 

Quando o jipe parou de súbito, Semionov discutia com o chefe da oficina a respeito da secagem da madeira. O aparecimento de Ludmilla, em grande uniforme, com ar severo e olhar altivo, surpreendeu-o e inquietou-o, tanto mais que vira através da abertura do casaco a pistola e o punhal.

 

Bem-vinda, camarada comissária! disse alegremente, soerguendo até o boné. Está mal disposta? Terá tido aborrecimentos com os seus algarismos?

 

Venha, camarada Semionov respondeu Ludmilla num tom seco e oficial. Suba. Tenho de o conduzir imediatamente ao campo.

 

Dizendo isto, piscou o olho ao chefe da oficina. ”Será a minha melhor testemunha”, pensou com satisfação. ”Ele contará que eu própria prendi Semionov.”

 

Semionov não percebia nada daquele cerimonial. Voltou a colocar o boné na cabeça, coçou a ponta do nariz, que nele era um sinal de perplexidade e seguiu lentamente Ludmilla com as mãos nos bolsos.

 

Que se passa? tentou perguntar.

 

Não faça perguntas. Suba. Não tenho tempo a perder.

 

O chefe da oficina sentiu-se inquieto. Fez uma saudação a Ludmilla e entrou para o barracão.

 

Camaradas! gritou para quem ali estava vejam bem! A nossa bela feiticeira acaba de nos vir fazer uma visita. Vinha com um humor canino e levou-nos o nosso engenheiro, Pavel Semionov, o único em quem podemos confiar!

 

Que se passa? perguntou por sua vez Semionov, depois de ter feito com que Ludmilla parasse atrás de uns abarracamentos. Um olhar para o rosto pálido da mulher fizera-lhe compreender a gravidade da situação. Jefimov soube do nosso casamento? Está a levantar dificuldades?

 

Temos de fugir, Paulucha! respondeu ela com voz calma.

 

Fugir?

 

Já preparei todas as nossas coisas. Não é grande coisa, de resto. Compraremos em Kusmovka tudo o que nos falta. Quanto dinheiro tens, Paulucha?

 

Dois mil rubles.

 

E eu, mil. Somos mais ricos que a maior parte dos habitantes da Sibéria, e, além disso, temos o jipe que poderemos vender.

 

Apesar do vento cortante, Semionov começava a transpirar. Abraçou Ludmilla e apertou-a contra si.

 

Que há? Porque razão temos de partir? Fala, querida!

 

Eles traíram-te! respondeu Ludmilla, tendo na voz todo o ódio de que era capaz.

 

Traíram? Quem? Junto de quem?

 

Os teus americanos. Os teus bons amigos do Ocidente denunciaram-te a Moscovo. - Os olhos de Ludmilla lançavam chamas. Pagaram-te na mesma moeda, Paulucha. É o resgate do teu amor por mim. Karpuschin vem aí. Quer levar-te para Moscovo. Sabes o que isso significa? Sabes que daqui a umas horas estarias de maneira que nem um cão ousaria aproximar-se de ti?

 

Será possível? Será possível? repetia incansavelmente Semionov, aturdido, limpando a cara.

 

Vamos, Paulucha. Não temos muito tempo. Semionov arrancou o boné da cabeça. Sentia a cabeça escaldar. Quando uma pessoa se encontra perante o inconcebível, compreende então até que ponto é pequeno e miserável. ”Eles traíram-me” pensava Semionov. ”Não posso acreditar nisso. Não parece coisa deles, nem do major Bradcock, nem dos outros. Porquê quererem aniquilar-me dessa maneira terrível?”

 

Vem! insistiu Ludmilla. É preciso deixar Kusmovka antes da próxima queda de neve.

 

Pouco antes de Kusmovka, bruscamente, sem prevenir, Semionov desligou o motor do jipe. Ludmilla ia ao volante. Deu um salto e olhou para o marido com espanto.

 

Volta ao campo disse baixinho, como se o vento e a neve pudessem transmitir as suas palavras para os ouvidos inimigos. Volta a viver no teu universo. Esquece-me. Salva-te... Dispara para a neve para fingir que me quiseste atingir, e parte... Deixa-me só.

 

Ludmilla abanou a cabeça.

 

Em que é que estás a pensar? Sou tua mulher.

 

Nós vamos ser como lobos, Ludmilla. Eles vão perseguir-nos sem piedade. Em parte nenhuma, nem sequer na Sibéria, poderemos encontrar refúgio.

 

Pois bem, seremos como os lobos, Paulucha. Mas pelo menos estaremos juntos.

 

Ludmilla, peço-te. Volta ao campo.

 

Paulucha, pela última vez, cala-te. Fico contigo. Ela voltou a pôr o motor em marcha. Perto dela, Semionov baixou a cabeça e cruzou os braços.

 

Para quê lutar dizia tristemente.

 

Pensava que o vento da taiga bastaria para afastar o passado; pensavam construir uma nova raça debaixo do Sol, do vento e da neve, sobre as pedras, no infinito do vento, do espaço e do amor, uma raça dura, à prova, a raça dos Semionov, uma raça sem passado, sem falhas e sem fraquezas. E que restava do chefe dessa raça nada-morta? Um espião traído. Traído pelos seus próprios amigos.

 

Não sabes o que te espera, Ludmilla.

 

Sei-o perfeitamente, Paulucha.

 

E, aparentemente impassível, ela olhava para a berma da estrada coberta de neve. Ao longe, começavam a surgir as primeiras casas de Kusmovka.

 

Tu não aguentarás! gritou ele de repente. Uma espécie de loucura apoderou-se dele; agarrou Ludmilla pelos ombros e sacudiu-a: Compreende! Eu sou alemão!

 

Eu amo-te, Paulucha.

 

Sou um espião. Perdeste toda a tua família por nossa causa...

 

Amo-te...

 

Tu és russa, comunista, tu és a comissária Ludmilla Barakova...

 

Eu sou Ludmilla Semionov e amo-te...

 

Vencido, deixou cair a cabeça sobre o ombro da sua companheira. Após a tempestade, uma paz benfazeja os envolvia; apertados um contra o outro na velha carripana que seria daí em diante o seu único refúgio, perceberam que só a morte os poderia separar.

 

Mais tarde, passearam de mãos dadas nas ruas parcimoniosamente iluminadas de Kusmovka; os seus olhos brilhavam de felicidade e de paz; pararam nos armazéns Jassenski, e compraram tudo o que lhes fazia falta para partirem em busca de um mundo melhor e hospitaleiro.

 

A falar verdade, podia-se comprar naqueles armazéns tudo o que se desejasse, desde que houvesse dinheiro para isso. Dos suspensórios aos bigudis, das camisas de noite de seda vindas da China às espessas foffaikas, esses compridos casacos duplos, especialmente confeccionados para a estepe. Até perfume francês se podia encontrar ali.

 

Antes de se misturar com a multidão, Ludmilla tivera o cuidado de mudar de roupa: uma comissária do povo em grande uniforme despertaria imediatamente a curiosidade, enquanto uma jovem mulher de comprido cabelo negro, vestida com uma espessa foffaika passava despercebida no meio dos outros.

 

Procuraram mantas e sacos-camas, conservas de carne, presunto e arenques salgados, roupas interiores quentes e botas de feltro, bonés e luvas de pele; numa farmácia compraram uma caixa com medicamentos para primeiros socorros, acrescentando-lhe sólidas tesouras e ligaduras de gaze, pomadas, comprimidos contra as dores e alguns frascos de tintura de iodo. Em seguida, adquiriram cordas grossas, cintos de cabedal, quatro machados bem afiados e uma caixa cheia de ferramentas de todo o género. Gastaram ao todo mil e duzentos rublos, mas cada um deles gastou apenas metade, pois tiveram o cuidado de se separarem para fazerem as compras, como se nunca se tivessem visto.

 

Carregaram apressadamente o jipe, sob os olhares invejosos das pessoas que passavam, e deixaram Kusmovka em direcção ao Oriente. Depois de terem atravessado o Toungouska, silencioso e imóvel sobre uma pequena ponte de madeira que estalava, lançaram-se ao assalto das estradas siberianas.

 

Uma estrada siberiana não tem nada de comum com a estrada clássica de um país civilizado: não liga forçosamente duas povoações. Lança-se ao assalto da floresta virgem sem saber onde irá ter, e, muitas vezes, não vai ter a parte alguma; mas isso não se sabe antecipadamente.

 

Três horas de carro bastaram-lhes para atingirem os limites da região civilizada. Diante deles a floresta formava uma barragem intransponível para qualquer veículo. Começara a nevar; a natureza tornava-se cúmplice deles, apagando atrás de si todo o rasto da sua passagem. Ludmilla parou o jipe e com um rápido beijo no nariz do marido interrompeu as suas meditações.

 

Amo-te, querido disse mas isso não impede que seja impossível continuarmos o nosso caminho de carro.

 

Há muito que eu percebi isso.

 

Semionov examinou um mapa que ele próprio fizera durante as semanas passadas em Kusmovka, para o caso de ter de fugir sozinho para a taiga; reunira ali e anotara todas as informações úteis.

 

Estás a ver, é aqui que nos encontramos disse, apontando para um ponto no mapa. Esta estrada acaba no limite doze da Brigada Faller de Kusmovkaia. A duas verstas para norte encontra-se um kolkhoze, a três verstas para sul a quinta de um caçador de peles. Que direcção tomamos nós?

 

Vamos para sul. E que neve, que neve! exclamou ela como uma garota. Que a neve engula tudo, a terra e os homens, e o nosso rasto também.

 

Não precisaram de menos de três horas para percorrerem as três verstas que os separavam da quinta; o carro atolava-se, patinava no gelo escorregadio, e eles foram, muitas vezes, obrigados a empurrá-lo ou a puxar por ele para o libertar. Não era de resto senão um prelúdio daquilo que o futuro lhes reservava.

 

Ilia Lagutin, o proprietário da quinta, estava sentado diante de uma mesa confortavelmente bem provida, na qual o presunto frito, os ovos, as batatas e os crepes perfumavam a atmosfera da sala onde os viajantes penetraram, como fantasmas gelados. O sorriso do seu hospedeiro reconfortou-os imediatamente.

 

Chleb-Sol! exclamou amavelmente indicando com a ponta da faca o banco de madeira que se encontrava do outro lado da mesa. Para quem conhecia os costumes, aquele gesto representava um convite cordial para partilharem do festim.

 

Primeiro os negócios, camarada! replicou Semionov desabotoando o casaco.

 

Lagutin afastou o prato e depois de ter arrotado energicamente cruzou os braços sobre a mesa e examinou o seu interlocutor.

 

Querem comprar peles?

 

Não. Temos uma coisa para vender.

 

Ah! É pena, não preciso de nada! E com um gesto brusco puxou novamente o prato para si.

 

Mas nós temos necessidade de um trenó e de dois bons cavalos. Possui certamente tudo isso, não é verdade, camarada?

 

Quem não precisará?... Vamos, sentem-se e comam primeiro. Depois se verá.

 

É que... nós temos muito pouco tempo. Semionov inclinou-se sobre a mesa. Ajuda-nos, irmão. Se és cristão ajuda-nos! Sem trenó estamos perdidos.

 

Não foi preciso mais a Ilia Lagutin para perceber a situação. Aquele que vive nas florestas, caça animais selvagens, curte as suas peles, aquele que durante toda a sua existência não ouviu senão o murmúrio da taiga, o uivar dos lobos, o grunhir dos ursos e os latidos das renas, aquele que dorme durante todo o Inverno, enquanto que as árvores rebentam sob a pressão do gelo, aquele que sobrevive às tempestades da Primavera e do Outono, esse homem considera os outros homens unicamente como seres humanos. Que lhe importam as doutrinas do Partido? Que sabe ele do estalinismo? Conhece apenas a floresta e o seu pensamento assemelha-se a ela... infinito, imenso, fora do tempo e do espaço.

 

Tem razão. Podemos discutir isso. Tenho um trenó. Uma maravilha de trenó. E dois cavalos... rápidos como o vento sul quando se lança ao assalto das extensões geladas, resistentes como raposas, sóbrios como marmotas no Inverno, mas... tudo isso me pertence.

 

Tenho uma troca a propor-lhe disse Semionov. Temos lá fora um jipe. Conhece esses carros, camarada? As distâncias deixam de existir quando se possui um jipe.

 

No Verão, irmãozinho.

 

Justamente. Por isso é que agora precisamos de um trenó.

 

Compreendo. Vamos ver esse fenómeno.

 

Já era escuro quando Semionov e Ludmilla prosseguiram o caminho do seu exílio, dessa vez através da floresta, em direcção ao silêncio e à solidão. Dois cavalos robustos e um trenó carregado substituíam o jipe inutilizável.

 

Só aquele que teve ocasião de travar conhecimento com a Sredne-Sibirskoje, a imensa planície da Sibéria Central, pode compreender a loucura de tal empreendimento. Como não chamar idiota ou considerar desesperado o viajante solitário que ousa enfrentar no Inverno as florestas e os pântanos dessa região situada entre o Jenissei e o Lena, região desolada que Deus parecia ter esquecido quando, ao sétimo dia da Criação, repousou dos seus esforços, felicitando-se pela sua obra.

 

Para Ludmilla e Semionov era a única saída. O Sul estava-lhes interdito, pois o Partido erguera aí povoações, instalara fábricas e estabelecera redes de observação e de controlo. Era impossível a um estrangeiro escapar ali. Pelo contrário, para Norte, na taiga, ninguém lhes faria perguntas. Por vezes, alguns caçadores de peles assombravam as florestas e alojavam-se em cabanas de troncos que no Inverno se transformavam em igloos; encontravam-se, por vezes, criadores de renas ou caravanas de carvoeiros, mas apenas no Verão, quando o Sol ressuscitava a natureza. A não ser isto, o grande silêncio do Inverno sem fim envolvia a taiga. A tempestade rugia, o gelo estalava, os rios gelados lamentavam-se de dor, as árvores gemiam, os lobos vagueavam, enlouquecidos pela fome, com o pêlo ensanguentado, pois só se alimentavam da casca das árvores, e para a atingir eram obrigados a arranhar como podiam a espessa camada de neve de mil dentes acerados. De tempos a tempos, um deles, sem forças, deitava-se no solo para não mais se levantar. Havia então grande festa entre a alcateia: dilaceravam-no com os dentes, excitados até à demência à vista do sangue quente e espesso com o qual podiam saciar-se à vontade, após dias e dias de dieta.

 

Depois de se terem despedido de Lagutin, o caçador de peles solitário, Ludmilla e Semionov prosseguiram a sua fuga através da floresta. Durante três horas, na noite espessa, deslizaram ao trote cadenciado dos cavalos. Já não havia qualquer estrada, nem sequer uma pista; Semionov parecia jogar às escondidas com as árvores. Conduzia o trenó com mão segura, enquanto atrás dele, quente sob as mantas, tranquila e sorridente, Ludmilla adormecera, embalada pelo balouço regular do trenó, como um verdadeiro embrulho de peles, enterrada entre as caixas e os sacos com provisões e ferramentas. Em breve a sombra se tornou menos hostil; uma clareira pareceu desenhar-se ao longe e Semionov percebeu um sulco negro que fendia o solo como uma cicatriz profunda. Era um rio gelado junto do qual ele fez repousar os cavalos. Ludmilla despertou.

 

Porque é que me deixaste dormir? murmurou ela indo para junto do marido. Apesar das peles espessas e da foffaika, ela tremia de frio. Porque é que paraste?

 

Gostaria de esperar aqui, querida disse ele fazendo uns movimentos de ginástica para desentorpecer os membros anquilosados. É preferível ficar na floresta durante o dia; na nossa frente estende-se agora um deserto de pedras, nu e sem abrigo. Se eles nos procuram, reconhecer-nos-ão tão facilmente como é fácil descobrir o nariz no meio da cara.

 

Já estamos longe de Kusmovka, Paulucha?

 

Não, não muito longe.

 

Semionov estendeu o mapa sobre o trenó e Ludmilla conseguiu tirar de um caixote uma lamparina de álcool, uma caçarola e uma caixa de chá.

 

Se Jefimov soubesse onde estávamos, engolia-nos de uma só vez. Ao nascer do Sol vai enviar uma esquadra de helicópteros à nossa procura, verás. Ele bem sabe que não podemos estar longe. Mas na floresta somos invisíveis.

 

Ludmilla construíra um pequeno abrigo para a sua cozinha improvisada; a água já cantava na caçarola

 

Ludmilla disse Semionov com voz rouca. DaLjui a Kusmovka são apenas sessenta verstas. Podias muito bem, com este cavalo...

 

Cala-te interrompeu-o com dureza a jovem mulher.

 

Amanhã será tarde de mais, Ludmilla. Peço-te... Volta para lá! Dirigiu-se para ela e apertou-a com toda a força nos braços. Amo-te, meu amor. Nunca amei ninguém como tu, querida... Durante toda a minha vida conheci apenas o uniforme, as ordens, as contra-ordens, a guerra; fizeram de mim uma máquina dura, a toda a prova; ensinaram-me a odiar os sentimentos, a fugir das mulheres como de um perigo mortal... E agora sei que tudo isso era falso... Ludmilla, o que nos espera é o Inferno. Regressa...

 

A água ferve, querido. Ouves?

 

Ludmilla, vamos certamente perecer nesta taiga...

 

Eu sei. Terei eternamente remorsos por te ter arrastado para l esta miséria... Como tu és tolo! sorriu Ludmilla colando-se ao peito do marido. Nunca fui tão feliz como agora. O mundo inteiro pertence-nos, Paulucha. Devíamos agradecer a Deus.

 

Então os teus princípios comunistas, camarada Semionov?

 

Respondeu-lhe uma gargalhada fresca.

 

Passaram a noite no trenó, ocultos sob as mantas e as peles; o furor glacial da noite siberiana embateu em vão contra o calor dos seus corpos e dos corações enlaçados. Toda a angústia desapareceu diante da felicidade infinita de se sentirem tão intensamente ”um”, tão intensamente fundidos um no outro, entregues ao mesmo destino e conscientes de não sobreviverem senão por essa comunhão absoluta.

 

Um ruído surdo despertou-os: o dia espreitava já através das árvores. Por cima deles, um helicóptero com a estrela soviética volteava no céu aveludado.

 

Já andam à nossa procura murmurou Semionov.

 

Mas eles não nos vêem sussurrou Ludmilla puxando as mantas para o nariz. E nós também não os vemos, Paulucha. Como tu és quente... Enquanto estiveres para me aquecer, nunca terei frio...

 

Por volta do meio-dia recomeçou a nevar. Semionov partiu para a caça; havia descoberto a pista de uma raposa.

 

Não tinha sido preciso muito tempo a Jefimov para compreender que a comissária política Barakova não era talvez tão digna de confiança como ele pensara. Com o coração atingido por uma angústia mortal, tinha, acompanhado por um Karpuschin cada vez mais violento, dado a volta ao campo. Falaram com o chefe da oficina, testemunha da pretensa detenção de Semionov e verificaram o desaparecimento do jipe. Um e outro tinham sentido uma certa esperança ao pensarem que Ludmilla Barakova podia muito bem ter tomado a iniciativa de o prender e depois conduzi-lo a Kusmovka em segurança. Karpuschin, com efeito, tinha a mente obscurecida pela preocupação em conseguir as estrelas de general; quanto a Jefimov, cujo cérebro parecia cronicamente obscurecido, estava obcecado pela visão do seu predecessor, que descera de categoria por incapacidade e fora enviado para as minas subterrâneas de Touva, onde, dizia-se, enlouquecera e o tinham deixado apodrecer. E a recordação da sua visita às bases de Komssa paralisava-o de terror.

 

Era preciso render-se à evidência. Karpuschin praguejou como um carroceiro, a ponto de o próprio Jefimov se sentir embaraçado, mas só conseguiu foi ficar rouco. Depois disso, o coronel começou a recuperar a boa disposição e a estudar o caso com calma e lógica.

 

Uma coisa era certa: a camarada Barakova tinha prendido o espião e levara-o no jipe; havia uma imensidade de testemunhas. Não restavam quaisquer dúvidas a esse respeito e Jefimov alegrou-se interiormente por verificar a consciência e a dedicação do seu rebanho.

 

Suponhamos disse Karpuschin que a sua Barakova foi violada no caminho por Semionov...

 

Jefimov não pôde deixar de estremecer com esse pensamento insólito.

 

Portanto prosseguiu imperturbavelmente o coronel violou-a e depois, naturalmente, matou-a...

 

Não!

 

Mas com certeza, camarada Jefimov! Que fez ele ao cadáver? Que faria você do cadáver se estivesse no lugar dele?

 

Eu não sei murmurou o infeliz, estarrecido.

 

Enterrou-o debaixo da neve... Tão certo como dois e dois serem quatro. Em algum sítio, num canto, longe da estrada. Vai endurecer como um frango congelado: é inútil procurá-la agora; na Primavera, quando as neves derreterem, encontrá-la-emos. Bom. Semionov está agora sozinho. Possui um jipe, uma arma, alguma gasolina e pouco mais. Mais nada. Vai começar por fazer compras para uma longa viagem. E se for esperto não tomará a direcção oeste, mas o sul ou o leste. E como um jipe é fácil de detectar, vai tentar trocá-lo... Põem-se então duas questões: onde fez ele as compras? e onde está o jipe?

 

Karpuschin tinha mais uma vez razão.

 

O relatório de Jessenki revelou-se muito positivo.

 

Como é que hei-de adivinhar, camarada coronel? Estou encarregado de vender o mais possível, e não de saber quem compra! E de cada vez que ouço tilintar os rublos na caixa, alegro-me ao pensar que o nível de vida aumenta ao mesmo tempo que a produção. É claro que me pareceu muito estranho que duas pessoas pudessem gastar assim de uma vez mil e duzentos rublos; mas pensei que eles...

 

Um minuto! Um minuto! berrou o coronel. Porque fala de duas pessoas, camarada? Não era só um? Um tipo alto, de cabelo louro?

 

Sim, mas não estava só. Com ele vinha uma mulher. E que mulher! Vestia uma esplêndida foffaika. Os cabelos tão negros! E cheirava tão bem! Na caixa vi-a deitar um olhar alegre ao seu companheiro e depois ouvi-a dizer: ”Pronto, querido, temos tudo o que queremos...”

 

O que é que isto significa? perguntou Karpuschin com uma voz perigosamente suave, voltando-se para Jefimov.

 

Eu... não... sei...

 

Você é o maior cretino que existe à superfície da terra! Em vez de vigiar Semionov, a puta da comissária dormia com ele. Eu devia ter calculado!

 

À noite tudo fora esclarecido. Bastara folhear algumas páginas do livro dos registos dos casamentos para descobrir os dois nomes: Pavel Semionov e Ludmilla Barakova.

 

E agora? interrogou o coronel Karpuschin. Está a perceber? Tenho de enviar um relatório ao marechal Malinovski para lhe explicar que o mais perigoso dos espiões americanos fugiu com uma comissária soviética! Camarada Jefimov, pode imaginar as consequências disto?

 

Estou à vossa disposição declarou lamentavelmente Jefimov.

 

Ah! Isso está ao alcance de todos! declarou Karpuschin. É preciso encontrá-los, compreende, e você é que fica encarregado disso! Depois, inclinando-se sobre o mapa, rodeou a região de Krasnoiarsk de um espesso círculo vermelho de aproximadamente cem verstas de diâmetro. É aqui que eles se escondem! Numa noite não podem ter ido mais para diante. Um avanço ridículo. É a sua vez de jogar, Jefimov.

 

Ele pegou no telefone e começou a trabalhar.

 

Aviso a todos os postos militares. E antes do mais à aviação. Meu Deus, não conheço nem um caso em que os ratos tenham conseguido escapar à ratoeira. E ali, na taiga, estão bem metidos numa ratoeira.

 

A partir do dia seguinte, toda a região estava transformada numa ratoeira de onde era impossível escapar.

 

Perto da fronteira checa, o tranquilo lavrador fazia preparativos de viagem; ia visitar a sua velha tia de Francoforte. Com efeito, tencionava ir encontrar-se com esses senhores do quartel-general de Bad Godesberg, a fim de lhes lançar na cara o desprezo que sentia por eles: que Franz Heller fosse um traidor, que abandonasse tudo por uma estúpida história com uma rapariga, seja! Era ignóbil e o cúmulo do absurdo. Mas, para o major Bradcock, a vingança da CIA parecia ainda mais ignóbil e estúpida que a traição de Heller: não podia compreender que pessoas inteligentes e humanas pudessem assim entregar consciente e friamente um homem, mesmo um traidor, aos horrores da KGB.

 

O seu chefe, o tenente-coronel Mike Wilson, deixou-o tranquilamente esvaziar o saco, enquanto continuava a fumar o seu cachimbo.

 

É tudo, James? perguntou quando o outro se calou. Em primeiro lugar, a ordem emanou de Washington. Em segundo lugar, o caso Heller foi providencial para nós: os tipos da KGB lançaram-se no rasto dele como lobos esfaimados; todos os seus esforços se concentraram nessa perseguição impiedosa, de modo que nos foi possível lançar quatro pára-quedistas em território soviético, enquanto três agentes desembarcaram na Sibéria, sem dificuldade, provenientes do Japão.

 

Alajev também lá deixou a pele interrompeu Bradcock.

 

São os riscos da profissão... Não tem importância nenhuma. Quanto a ti, dentro de um mês partes para Moscovo, enviado pela Embaixada, e entrarás em contacto com Dimitri. A leste de Orenbourg constróem, ao que parece, uma nova base de lançamento: vamos estabelecer uma nova rede nesse recanto. Heller já nos não interessa.

 

Mas a mim interessa-me. Era meu amigo.

 

Vamos, James! Pega num cigarro, bebe um uísque; se quiseres podemos arranjar-te uma boneca sensacional...

 

Bradcock baixou a cabeça; era inútil insistir. Heller estava condenado à morte, abandonado por todos. Também por ele, Bradcock, pois sabia que qualquer resistência de nada serviria. Mike Wilson tinha uma pedra no sítio do coração e uma alma de aço.

 

Obrigado, volto para casa. Espero os novos códigos e os novos comprimentos de onda. Quero estar só.

 

Eles ainda não o apanharam, James. Segundo as últimas notícias, ele vagueia na região como um lobo. Desapareceu. A KGB está excitadíssima.

 

Que farás se ele escapar? perguntou ainda Bradcock antes de sair.

 

Como, se escapar?

 

Sim, se chega a deixar a Rússia?

 

Acreditas nisso?

 

Sim. Conheço Heller. Era o mais duro de todos nós; passou por todas as provas...

 

Veremos... Mas será necessário aconselhá-lo a ficar na sombra.

 

Obrigado, Mike! Pode ser que não o vejam mais!

 

Já quatro dias e quatro noites os separavam de Kusmovka. Tinham passado o deserto de pedras, e dirigiam-se para a imensa planície que se estendia até ao rio Taimoura. De dia dormiam, apertados um contra o outro, debaixo das peles e das mantas e o mundo parecia-lhes luminoso.

 

Os helicópteros tinham acabado por renunciar às suas pesquisas. A neve e o silêncio voltavam lentamente a tomar posse do seu domínio de eleição.

 

Durante esses quatro dias, Semionov tinha conseguido capturar quatro raposas. Não disparava. Contentava-se em colocar alguns pedaços de carne na pista do animal, e, quando este se aproximava da presa, precipitava-se sobre ele, e com um golpe seco e preciso enterrava-lhe o punhal na nuca. Era um método que lhe tinham ensinado no Alasca, pois tinha a vantagem de não fazer ruído e sobretudo de não produzir ecos.

 

Na quinta noite, ouviram tiros, não muito longe. Semionov deteve rapidamente a sua parelha, desatrelou os cavalos, e, ajudado por Ludmilla, instalou um acampamento sumário. Depois esperaram. No meio do mato, os ramos estalavam; a neve rangia suavemente, os cavalos começaram a relinchar; em breve se agitaram, atirando-se contra as árvores a que estavam amarrados; o medo enlouquecia-os.

 

Lobos murmurou Ludmilla com voz clara; levantou-se, agarrou na arma e destravou-a; Semionov deu um salto e apontou a arma para o solo.

 

Sobretudo não disparar murmurou ele. Se dispararmos temos toda a alcateia em cima de nós.

 

Mas Paulucha, são lobos!

 

De olhar atento e ouvido à escuta, continuaram à espera, imóveis. Aterrorizados, os cavalos recomeçaram a relinchar como que enraivecidos. Em redor deles, a floresta animava-se. Por fim, o uivo prolongado e lúgubre de um lobo trespassou a noite, sinistro, opressivo, como uma sirene, um uivo que rasgava o coração e semeava o terror.

 

Nada obterás com a tua espingarda murmurou Semionov. Vais talvez matar um ou dois... mas bem vês que há uma alcateia inteira à nossa volta. Eles rodeiam-nos e vão engolir-nos como uma vaga monstruosa.

 

Os olhos de Ludmilla gritavam um pavor mudo. Ele tomou-a nos seus braços e escondeu-a sob as peles do trenó. Depois, pegou em pedacinhos de lenha que dividiu em pequenos montes em redor do acampamento. Deitou algumas gotas de álcool e pegou-lhes fogo. Em poucos segundos, um círculo luminoso rodeou os fugitivos. As chamas subiram e iluminaram a floresta.

 

Uivos selvagens repercutiram-se infinitamente na noite e responderam a essa provocação. No matagal, entre os troncos das árvores, por toda a parte, os olhos frios cintilavam, olhos esfomeados e cruéis; lentamente, Semionov deu a volta ao trenó, pelo interior do círculo de fogo; contou as sombras cinzentas na neve; fazia as contas da morte.

 

São mais de trinta disse a Ludmilla, voltando para o abrigo do trenó. Enquanto a fogueira arder não nos atacarão.

 

E amanhã, Paulucha?

 

Atacarão.

 

E depois?

 

Dispararemos o máximo tempo que nos for possível. Mas eles começarão por atacar os cavalos.

 

Sem cavalos estamos perdidos...

 

Mas antes que ataquem os cavalos teremos morto dois ou três e os outros precipitar-se-ão sobre os cadáveres para os devorar. Só o chefe da alcateia continuará a ser perigoso, e é ele que devemos atingir em primeiro lugar.

 

De repente, os sitiantes agitaram-se. O chefe da tribo lançou um uivo selvagem e saltou. No mesmo instante, ouviram-se tiros; algumas balas sibilaram, três lobos foram atirados para o ar frio e depois caíram na neve, mortalmente atingidos.

 

Ao primeiro tiro, Semionov atirara Ludmilla para o chão, protegendo-a com o seu corpo; as balas faziam ricochete sobre o trenó. Se não tivessem tido o reflexo de se estenderem na neve, teriam certamente sido atingidos.

 

Subitamente, tudo voltou a estar calmo em redor deles. Mas quando tentaram prudentemente erguer-se para perceberem o mistério daquele silêncio, uma voz grave fê-los estremecer:

 

De pé, meu velho! As mãos para cima ordenou a voz saída da obscuridade. E vai pôr-te junto do fogo.

 

Semionov obedeceu; ergueu-se, mas não deixou o seu lugar. Atrás dele, sem ruído, Ludmilla preparava-se para o defender. Sabia bem o que ela estava a fazer: erguia ligeiramente a manta, poria a arma à cara e dispararia sobre o visitante desconhecido logo que ele aparecesse à claridade da fogueira.

 

Aproxima-te, camarada disse Semionov. Sou apenas um caçador e queria agradecer-te. Salvaste-me das garras dos lobos.

 

Para quê essa mentira, irmãozinho? interrogou a voz, tão sombria e inquietante como a noite que a protegia. Tu não és caçador. Nenhum caçador viria para a floresta com dois infelizes cavalos como esses. Só o último dos imbecis o faria, e não parece ser esse o teu caso. Vamos, aproxima-te do fogo e diz-me quem és.

 

Deus deu-te um sexto sentido retorquiu Semionov tentando perscrutar o mistério da obscuridade. Bem podia franzir os olhos, que só via as árvores com os troncos dilacerados pelos lobos, a neve pisada e os três cadáveres que faziam uma mancha sombria no solo. Sou geólogo, mas a minha bússola avariou-se e perdi-me.

 

Semionov esperava, o desconhecido parecia reflectir.

 

Sobretudo não dispares! murmurou Semionov para o monte de mantas que mal parecia mexer-se; sabia que Ludmilla estava à espreita, com o dedo no gatilho, pronta a disparar. Não são soldados. Deixa-o aproximar-se sem te mexeres.

 

A neve estalou entre as árvores e qualquer coisa voou no ar gelado para ir cair entre duas fogueiras. Um boné de peles.

 

Que fazes aí, irmãozinho? interrogou Semionov.

 

Está bem. Tu estás só. Se alguém te acompanhasse ter-se-ia certamente traído. Saúde, amigo!

 

Saúde! respondeu Semionov.

 

Uma sombra enorme destacou-se da obscuridade, apareceu um bloco de peles e no sítio onde se devia esperar ver uma cabeça via-se apenas uma cabeleira hirsuta de pêlos gelados.

 

Semionov deixou cair os braços dormentes e aproximou-se da lareira, ao encontro do desconhecido; mas, nesse instante, Ludmilla afastou as mantas e saltou para fora, de arma em riste.

 

Um grito surdo fez sobressaltar Semionov; depois, sentiu-se levantado no ar, tendo a impressão de que lhe estavam a partir os ossos.

 

Deixa-o! gritou Ludmilla. Deixa-o, monstro porco!

 

Semionov ficou novamente de pé, com a arma de Ludmilla quase encostada ao seu peito, como se ele fosse um escudo vivo.

 

Não é assim que apanham Youri numa armadilha! continuou a voz ameaçadora. Dispara, diabinho... Quando o tiveres trespassado, atiro-to acima!

 

Ludmilla baixou a arma.

 

Deixe o Paulucha pediu com uma vozinha suplicante. Salvou-nos a vida... É o meu marido... Nós somos gente pacífica... Queremos apenas encontrar uma nova pátria... Nada mais. Partimos à procura de um paraíso desconhecido...

 

O torninho alargou-se em redor do corpo de Semionov, mas o seu corpo foi cair sobre a neve, inerte, como um fantoche desarticulado.

 

O que é que tu lhe fizeste, monstro? Partiste-lhe os ossos! exclamou Ludmilla no cúmulo da ansiedade.

 

Mas apenas lhe respondeu uma grande gargalhada.

 

Que rabugenta que tu és! disse ele por fim alegremente, passados alguns segundos. O teu Paulucha está muito simplesmente um pouco atordoado. Tu vais ver, isso não durará muito tempo.

 

O gigante inclinou-se sobre a sua vítima; perto dele Ludmilla ajoelhou e segurou a cabeça do marido entre as mãos. Um leve estremecimento percorreu os seus membros flácidos, formou-se um ricto em redor dos seus lábios, as pálpebras bateram, mas o olhar de Semionov pareceu totalmente vazio.

 

Ele magoou-te, Paulucha? perguntou ternamente Ludmilla, acariciando-lhe os cabelos. Abraçou-o e depois, com prudência, fê-lo mexer todas as articulações. Como te sentes, meu amor?

 

Não compreendo! Semionov sentou-se na neve, depois apertou Ludmilla nos seus braços: Tranquiliza-te, querida. Foi apenas a surpresa. Nunca ninguém me conseguiu bater por K.O., nem mesmo os negros gigantes da Califórnia. Mas este...

 

Semionov ergueu-se, sacudiu a neve colada às suas roupas e estendeu a mão ao gigante.

 

Mais uma vez, velho Chleb-Sol! Que Deus esteja contigo!

 

O gigante inclinou-se, pegou na arma de Ludmilla e observou-a cuidadosamente.

 

Isto vem do exército disse com um ar de conhecedor, mantendo-a apertada entre os seus braços. Eu sou Youri Jessei e habito a floresta. Que querem daqui?

 

Esta é a minha mulher, Ludmilla Semionova. Nós não te mentimos, amigo. Procuramos de facto uma nova pátria.

 

Aqui? Na Sredne-Sibirskoje? Vocês estão doidos?

 

Temos de fugir dos homens e refugiarmo-nos junto dos lobos.

 

Semionov deu um passo para o trenó e Jessei seguiu-o; com um olhar curioso fez o inventário.

 

Temos com que viver durante seis meses...

 

E os cavalos? Daqui a três semanas estarão reduzidos a esqueletos e vocês serão obrigados a puxar o trenó... Vocês não conhecem a taiga. Precisam é de um trenó muito leve e de duas renas, duas renas fortes, rápidas e resistentes, como estas...

 

Jessei assobiou e apareceu um trenó ligeiro puxado por duas renas de grandes armações. Um jacto de vapor saía regularmente das suas narinas; as renas contemplaram com ar sério o seu dono, Jessei, esperando ordens.

 

Semionov aproximou-se das renas e pôs-lhes uma mão sobre as narinas fumegantes. Uma onda de segurança irradiava desses animais possantes, feitos à medida da taiga.

 

Para onde querem ir? interrogou Jessei.

 

Pouco importa. Talvez nos pudéssemos instalar no Norte, como caçadores.

 

Vocês são políticos?

 

Ludmilla hesitou, mas Semionov aquiesceu com um sinal de cabeça.

 

Sim, somos políticos.

 

Sabotadores?

 

Não.

 

Anticomunistas?

 

Não. Semionov respirou profundamente. Escuta, amigo, não sei se podes compreender isto. Que é que tu preferes, a paz ou a guerra?

 

A paz, claro.

 

Pois bem. Nós procuramos fugir de um país onde só se fala da paz e da vida, mas onde se faz tudo para reduzir as pessoas ao estado de animais incapazes de pensar, capazes somente de sofrer. A paz? Uma palavra vazia. Se tentares pensar, se tentares fazer uma pergunta, levam-te para uma cave, torturam-te, até que o teu cérebro insubmisso desapareça. Então, o medo instala-se nos outros; rói-lhes o coração, desperta-os de noite, suados e cheios de medo, envolve-lhes os corpos e eles deixam lentamente de viver como seres humanos... Sabes, nós dois, Ludmilla e eu, procuramos um mundo em que a vida seja de facto a vida, e a paz verdadeiramente a paz. Ludmilla e eu queremos apenas uma coisa: ser felizes.

 

Ao longe, o queixume lamentoso da alcateia dizimada despertava os ecos da floresta; sentiam-se perdidos sem o seu chefe e suplicavam ao céu que fosse em seu auxílio.

 

Venham comigo disse então Jessei. Nós construímos uma aldeia no coração da floresta. Catorze caçadores, com as mulheres. Se lhes forem simpáticos, poderão ficar connosco. Tu saberás construir uma barraca, não é verdade? perguntou ele olhando Semionov dos pés à cabeça.

 

Sim, eu sei fazer tudo, Youri. Há só uma coisa: é que não nos encontrem. Porque somos procurados.

 

Mataram alguém?

 

Não! exclamou Ludmilla. Juro-te, pelo Cristo!

 

Nós não admitimos assassinos.

 

Meia hora mais tarde puseram-se a caminho; à frente da caravana, Youri e as suas renas, atrás, Semionov com os cavalos fatigados e o trenó muito carregado, no qual Ludmilla adormecera, com um ar amuado.

 

A aldeia de que Jessei falara com tanto orgulho compunha-se de dez cabanas sólidas, de um parque onde guardavam as renas e de alguns estábulos comuns. Ao centro, encontrava-se uma fonte construída por eles e cuidadosamente coberta com ramos. As habitações não formavam uma povoação clássica; não se encontravam, como acontece em toda a parte, construídas em redor de uma praça central, numa clareira. Estavam, pelo contrário, disseminadas entre as árvores e se não fosse o fumo que subia para o ar das chaminés e o cheiro bom da sopa de couves que perfumava a vizinhança, o viajante inconsciente teria passado perto delas sem sequer suspeitar da sua existência, de tal modo faziam parte integrante da floresta.

 

Quando chegaram à primeira cabana viram uma espécie de mulherzinha de compridos cabelos brancos, pernas tortas e rosto incrivelmente bronzeado. Era impossível dizer que idade teria, mas Semionov não pôde deixar de pensar que era pelo menos tão velha como as árvores que lhe serviam de refúgio.

 

O que é que estás a fazer, Youri? berrou ela. A sua boca completamente desdentada era ainda mais horrível quando falava. Já só temos cascas de árvores para comer, e tu ainda nos trazes desconhecidos!

 

Ludmilla esboçou um sorriso cheio de sedução, mas a velha pareceu ainda mais renitente.

 

Youri saltou do trenó, piscou os olhos aos companheiros e aproximou-se da velha.

 

Eles vão ficar entre nós, Maroussia. Para sempre! disse simplesmente, pondo-lhe a mão no ombro.

 

Vai para o diabo!

 

Furiosa, a velha voltou a entrar na cabana. Youri ajudou Ludmilla a descer do trenó; um sorriso divertido brincava no rosto devorado pela barba.

 

É Maroussia Nasarova, minha bisavó disse ele. Está encantada por ter visitas.

 

Já reparei nisso disse Semionov. Não seria melhor prosseguirmos a nossa viagem?

 

Porquê? Por ela refilar? Não se preocupem com isso, amigos. É a sua maneira de se alegrar. Pergunto a mim próprio que idade poderá ela ter. Toda a gente a conheceu desde sempre; sobreviveu aos nossos pais e aos nossos avós; deve ter bem à volta de cento e doze anos... E toda a sua vida tem refilado... Vá, entrem, enquanto conduzo os cavalos e as renas para os estábulos. É preciso preveni-los também de outra coisa. Aqui, formamos uma grande família. Possuímos tudo em comum. Só não partilhamos as mulheres... Vá, entrem e não se preocupem com a avó Maroussia.

 

A velha Maroussia continuava a resmungar enquanto se atarefava em redor do lume, fingindo nada ver nemm ouvir, nem quando Youri voltou e deu um suspiro de satisfação pela cozinha quente e pelo cheiro apetitoso que vinha da marmita.

 

Semionov sentara-se sem fazer ruído. Quanto a Ludmilla, aproximou-se também do lume, na ponta dos pés.

 

Posso ajudar-te? perguntou ela.

 

Tu sabes cozinhar? Maroussia deitou um olhar venenoso à frágil silhueta que ousava dirigir-lhe a palavra.

 

Vai-te embora, vai sentar-te ao pé do teu homem, senão ainda te vais derreter aqui, junto do lume.

 

Ludmilla não disse nada, mas viu que a água estava a ferver e que as couves iam transbordar: era preciso tirá-las do lume. Empurrou Maroussia sem contemplações e apoderou-se da pesada marmita de ferro; depois, com os lábios apertados, foi colocá-la sobre uma pedra lisa; em seguida, tendo atirado para as costas os seus compridos cabelos negros, pegou numa concha e provou a sopa, como boa dona de casa.

 

Assombrada, a avó não tinha deixado o canto para onde Ludmilla a empurrara; com o rosto totalmente inexpressivo, seguira toda a cena. Youri mostrou a sua admiração e a sua alegria.

 

Então, minha pomba, refilaste com o velho dragão, hem? Felicito-te, Pavel, tens uma esposa corajosa, forte como uma matrona das montanhas!

 

Foi o prelúdio de uma grande amizade.

 

A noite passou-se na alegria da refeição tomada em comum, da vida simples e sem desvios, do calor que faz bem aos ossos, na segurança, na amizade, enquanto, lá fora, a tempestade rugia e os lobos uivavam à morte. Depois da refeição, Youri pegou na balalaica; tocou e cantou com uma voz grossa e trovejante os cantos tristes e nostálgicos do caçador e da Filha dos Espíritos. Até a velha Maroussia tinha acabado por ficar mais bem disposta; acompanhava Youri, mas não a ouviam; os lábios moviam-se e o olhar parecia perdido numa contemplação distante; dir-se-ia que cantava na sua alma, só para si.

 

Ludmilla e Semionov dormiram sobre um leito de fetos perfumados, enquanto Youri e Maroussia, segundo o seu costume, se deitaram sobre a pedra da lareira; logo que eles se estenderam começou um diálogo de roncos sonoros que encheu de alegria e de ternura o coração dos fugitivos.

 

Vamos viver aqui? murmurou Semionov dando um rápido beijo a Ludmilla. Queres ficar aqui?

 

Ficarei contigo; onde tu ficares, ficarei também, Paulucha. É o meu único desejo: estar junto de ti.

 

Vamos construir uma casa e irei caçar com eles; como eles venderei as peles e dividirei o dinheiro; e tornar-nos-emos como Youri, Maroussia e todos os outros: os primeiros homens da Terra... Nunca mais voltaremos a atravessar as ruas de uma cidade, Ludmilluchka; nunca mais voltaremos a ver casas de pedra; não iremos ao teatro nem ouviremos rádio... Não haverá mais nada, mais nada além da taiga e das ocupações dos homens da Pré-História...

 

Não é maravilhoso, querido? E os nossos filhos aprenderão a apanhar raposas com armadilhas, e hei-de ensinar-lhes a ler, a escrever, a contar, e a pensar, e hei-de repetir-lhes incansavelmente: o vosso pai é o melhor homem que Deus jamais criou...

 

Ludmilla murmurou Semionov fechando os olhos. Tens razão. Fiquemos aqui.

 

Sim. Encontrámos finalmente o nosso paraíso.

 

Mas basta um só verme para destruir todos os alicerces de madeira. Foi Maroussia que provocou a catástrofe.

 

Durante dois meses tudo correu bem. Ludmilla e Semionov foram adoptados por toda a tribo daqueles seres monstruosos, mas profundamente bons e humanos. Como entre eles tudo fazia parte da comunidade, acharam normal ajudar os recém-chegados a construírem a sua casa, pelo menos quando não iam para a caça. Até as mulheres ajudaram a serrar tábuas, a alisar o tecto, a bater o solo e a preparar armários para os alimentos. Para lhes mostrar aquilo de que era capaz, Semionov acompanhava Youri à caça de dois em dois dias e trazia sempre um saque de primeira ordem: uma raposa de pele deslumbrante, arminhos e tourões, e um dia, até três zibelinas reais.

 

Ao fim de dois meses, a casa ficou terminada. No dia em que suspenderam a cremalheira, Ludmilla e Semionov distribuíram o pão e o sal, símbolos da hospitalidade e da abundância, e beijaram cada um dos convidados nas duas faces. Youri pegou na balalaica, cantou canções populares e todos o acompanharam. À noite, quando todos partiram, Youri pousou lentamente o instrumento sobre a mesa e ficou muito direito em frente da lareira. Dirigiu-se a Semionov.

 

Pavel, o meu coração está pesado. Sei que sou um homem estranho, mas sou muito teu amigo. Sejamos irmãos!

 

Depois precipitou-se para Semionov, apertou-o nos seus braços, abraçou-o com ardor e começou a chorar.

 

O teu sofrimento é o meu murmurou ele. Não podes imaginar como me senti feliz hoje. Há doze anos que estou sozinho com Maroussia. Antes tinha Arina, o meu anjo bem-amado. Mas um dia... um dia ela foi à cidade; quis impedi-la, mas ela tinha força de vontade, a minha mulher! Nunca mais voltou... Contaram-me que discutiu com outra mulher, que se atirou a ela e lhe bateu... Então, prenderam-na e enviaram-na para o Katanga, onde os prisioneiros constróem estradas... A outra mulher era uma comissária do povo... Há doze anos que não vejo Arina, mas digo-lhes, meus amigos... e dizendo estas palavras assentou um terrível soco sobre a mesa se alguma vez na vida deito a mão a uma dessas mulheres, uma comissária do povo... digo-lhes que a faço em doze pedaços, um para cada ano!

 

O olhar que Ludmilla trocou com o marido estava impregnado de uma infinita tristeza. Vês, parecia dizer, o nosso paraíso é afinal um inferno oculto. Não se deve esquecer nunca que os homens são sempre homens e que não existe paraíso entre eles.

 

Nessa noite, a primeira que passavam na nova casa, Ludmilla não conseguiu dormir: tremia de medo.

 

Numa caixa, bem escondido no fundo de um armário, o uniforme cinzento-esverdeado da comissária Barakova continuava em repouso, como uma espada de Dâmocles suspensa sobre as suas cabeças.

 

Na Primavera queimá-lo-emos, meu amor disse Semionov para a tranquilizar. Daqui até lá não o encontrarão.

 

Mas Semionov esquecia Maroussia, a curiosa.

 

Num dia em que Ludmilla e Semionov tinham acompanhado Youri ao armazém, Maroussia apeteceu-lhe ir cozer um bolo. Todas as mulheres da aldeia que quisessem utilizavam o forno comum.

 

Saindo de sua casa, Maroussia passou em frente da casa dos recém-chegados e a porta encontrava-se aberta, como todas as portas das casas da aldeia. Sem escrúpulos, visto ser esse o costume, a velha decidiu fazer uma pequena incursão aos tesouros de Ludmilla, cuja auréola misteriosa a perturbava inconscientemente. Passou tudo em revista e viu igualmente a caixa maldita a um canto; intrigada ergueu a tampa e soltou um grande grito. Correu a dar o alarme tão depressa quanto as suas velhas pernas puderam transportá-la: um círculo de monstros femininos não tardou a formar-se em torno de Maroussia e da caixa.

 

É bem claro disse o velho patriarca. É o uniforme de um capitão do exército soviético, usado por Ludmilla Semionov. Demos asilo a dois espiões bolchevistas! Precisamos de nos desembaraçar deles o mais depressa possível!

 

Meu Deus! gemeu Maroussia. Pensar que foi o meu Youri que os trouxe para aqui. Mas ele não sabia nada, juro-lhes. Foi também enganado.

 

À tarde, Semionov e Ludmilla regressaram sozinhos do armazém, pois Youri ficara ainda à espera da chegada de umas ferramentas.

 

Quando chegaram à aldeia, o silêncio insólito surpreendeu-os. Habitualmente, rodeavam o trenó, faziam perguntas; toda a gente gritava, ria, cantava, quando voltava alguém do armazém com tesouros. Mas, nesse dia, só um silêncio hostil os acolheu. Ao aproximarem-se de casa, viram o velho Uman, rígido e solene, que os esperava de revólver em punho.

 

Irmãozinho! exclamou Ludmilla, assustada. Que significa isto?

 

Entrem! resmungou Uman. E sobretudo estejam tranquilos!

 

Toda a aldeia parecia estar ali, sobretudo as mulheres, cujos seios enormes mal conseguiam soerguer-se ao ritmo da respiração, tão acanhado era o espaço. Faziam círculo em redor de uma mesa sobre a qual se encontrava o uniforme, com todas as condecorações, como se se encontrasse na montra de um grande armazém.

 

Ludmilla compreendeu imediatamente e agarrou na mão do marido.

 

Acabou-se, querido. Beija-me uma última vez. Enfrentaram o grupo hostil, e perante os seus juizes,

 

que eles sabiam ser impiedosos, beijaram-se demoradamente. Um arrepio percorreu a assembleia; até Maroussia passou a língua pelos lábios.

 

Reconhecem isto? interrogou então Uman.

 

Sim respondeu firmemente Ludmilla. É o meu uniforme, avô.

 

És comissária?

 

Fui. Fugi com Pavel, justamente para deixar de ser comissária.

 

Quem poderá acreditar em ti, pequena? Capitão e ainda por cima com medalhas? Quem poderia abandonar tal coisa, Ludmilla Semionova? Vocês são bolchevistas e sempre o serão...

 

Não! gritou Ludmilla olhando para a assembleia. Eram já prisioneiros, pois o círculo fechara-se em redor deles. Abandonei tudo por Paulucha, juro-lhes! Amo Pavel... fora dele nada mais me interessa no mundo!

 

Ficarás com ele, não tenhas receio respondeu sombriamente Uman.

 

Que nos vão fazer?

 

De todos aqueles seres informes, mal feitos, nos quais mal se podia discernir a marca humana, emanava um forte cheiro a suor e a raiva, e eflúvios de couve rançosa. E uma hostilidade implacável. Semionov lançou-se ao ataque: tinha consciência de ir jogar a sua última cartada, o último sobressalto de agonia; era preciso tentar convencê-los com palavras.

 

Deixem-me explicar-lhes tudo, meus amigos! Nós viemos para a taiga para aqui encontrarmos a paz e a felicidade. Estamos fartos de viver no meio do medo, da insegurança e da solidão. Ludmilluchka e eu...

 

Tu falas de mais, pequeno interrompeu Uman. Sabes que odiamos o crime e o constrangimento, que veneramos o ser humano e a sua liberdade. Mas olha; vês aqui, diante dos teus olhos, este uniforme, o símbolo do constrangimento, da violência, da força e da morte. Conheces a história de Youri e de Arina, sua mulher? Sabes como vieram roubar-me o meu filho, Serjocha? O seu grito de terror ressoa ainda no meu coração. E foram pessoas envergando um uniforme como este que agiram assim... Que nos interessa a nós que procurem a paz?... Basta que tenhas usado uma vez este uniforme maldito... Vá, levem-nos para fora.

 

Toda a resistência era inútil. Na neve, duas sólidas renas esperavam, mantidas por quatro mulheres, duas renas fortes cujas narinas fumegavam. Estenderam Ludmilla e Semionov sobre os dorsos dos animais, amarraram-nos com força com correias de cabedal, com as pernas para a cauda, os braços em redor do pescoço das renas.

 

Ludmilla fixava o céu com os seus grandes olhos abertos de terror. ”Desde que a morte venha libertar-nos depressa, no primeiro tronco de árvore, ao primeiro choque...” Semionov tentou resistir até ao fim, mas em vão. As pernas e os braços amarrados aos lados seriam os primeiros a ser esfacelados contra as cascas das árvores geladas e pontiagudas, contra as quais as renas, assustadas com aquela carga insólita, iriam precipitar-se e esfregar-se para tentarem desembaraçar-se deles. Seriam esfacelados aos poucos... uma morte lenta, que penetraria ao vivo no corpo, centímetro a centímetro, até que, por fim, a rena enlouquecida se lançasse numa ravina com a sua carga sangrenta.

 

Detém-te, Uman gritou ainda Semionov. É um erro. Detém-te que é um crime que estás a cometer!

 

Cala-te... A faca ordenou Uman.

 

Alguém lhe estendeu um comprido punhal curvo. Quatro homens prenderam as renas pelas armações e baixaram-lhes a cabeça: também para elas qualquer resistência era vã. A assistência recuou horrorizada.

 

Uman aproximou-se dos animais e fez a cada um deles três cortes profundos nas pernas. As renas soltaram uivos de dor, tentaram erguer a cabeça, espezinharam a neve, já meio enlouquecidas.

 

Larguem tudo! ordenou ainda Uman.

 

Os homens recuaram apressadamente. Livres, as renas ergueram a cabeça soltando um longo grito; tentaram defender-se contra o ar gelado com a ajuda das armações e depois partiram a toda a velocidade, dando saltos para se libertarem das suas cargas; uma nuvem de neve envolvia-os e eles desapareceram no meio da floresta, cegos pelo sofrimento.

 

Que Deus tenha piedade deles murmurou lentamente Maroussia. Que morram depressa...

 

Em breve, o silêncio pairou de novo sobre a aldeia; mas o ar parecia pesado a esses seres primitivos que só conheciam a lei impiedosa da natureza.

O coronel Matwei Karpuschin acabara por regressar a Moscovo, com as mãos vazias, com a pasta cheia de relatórios infindáveis e o cérebro transbordando de longos discursos. Falou demoradamente com o general Chimkassy e pôde ler nos seus olhos um clarão de malícia, a alegria que o chefe sentia pela derrota de um seu subordinado. Karpuschin enviou-o interiormente ao diabo.

 

Depois, enfrentou o marechal Malinovski e descreveu-lhe minuciosamente os detalhes da estratégia utilizada por si em Kusmovka e em Komssa.

 

Numa palavra, camarada marechal, fomos ludibriados! Quem poderia pensar que uma comissária do povo e um alemão... É imperdoável!

 

Dessa vez, o marechal Malinovski não perdeu a calma. Quando sabia que era inútil gritar ou praguejar, permanecia frio e impassível como uma esfinge.

 

Está bem, camarada coronel disse com uma voz indiferente. A partir de agora devemos redobrar as precauções. Aposto que em breve nos enviarão mais caça grossa. É ter os olhos bem abertos...

 

Karpuschin deixou precipitadamente o Ministério da Guerra. A delicadeza e a indulgência do general não lhe agradavam nada; temia-as mais do que tudo, como a calma aparente do tigre que se lambe antes de se lançar sobre a sua vítima. Acompanhado por essa desagradável impressão que por vezes nos paralisa a nuca, voltou ao seu gabinete e recomeçou as suas ocupações habituais.

 

O caso Franz Heller não causara ecos; ninguém falava dele e pelo menos isso tranquilizava o coronel. O desaparecimento de Alajev e da mulher foi também esquecido. O Comité Popular do Móvel tinha-se encarregado imediatamente do armazém. A vida continuava.

 

Se Karpuschin conseguira reencontrar uma existência tranquila, durante as primeiras semanas que se seguiram ao desaparecimento de Semionov, não sucedeu o mesmo, em Komssa, com o infeliz Maxim Jefimov. Foi pessoalmente censurado pelo desaparecimento da comissária Barakova. Despojaram-no de todos os seus graus civis e militares e deram-lhe a entender claramente que beneficiava de uma indulgência excepcional, pois, com efeito, merecia ficar com a cabeça esmagada debaixo de uma mó por incompetência de serviço...

 

Depois, obrigaram-no a ocupar um posto de guarda-fronteira completamente perdido nos maciços montanhosos que, ao sul da Sibéria, separam o território soviético do Irão, Kisyl-Polwan, nas margens do Tedschen, perante os cumes impressionantes dos Kara, um buraco com cinco barracas num vale pedregoso, de tal modo isolado do mundo vivo que até mesmo os cães, dizia-se, morriam lá de nostalgia, sonhando com uma árvore.

 

Maxim Jefimov procurou no mapa o pontinho minúsculo que devia representar Kisyl-Polwan, descobriu-o, e chorou de piedade pelo seu destino trágico.

 

Uma outra vítima inocente de um destino implacável, Ilia Lagutin, teria também fortes razões para gemer, se ainda fosse capaz disso. Patrulhas de soldados não tardaram a descobrir o famoso jipe e transmitiram a Jefimov um relatório circunstanciado, o que provocou a prisão imediata de Lagutin. Levado para Komssa, bastaram a Jefimov algumas horas para transformar o infeliz caçador numa massa informe. Como ele conservava ainda, apesar de tudo, um sopro de vida, fizeram-lhe um processo monstro, acusaram-no de alta traição, de sabotagem, de espionagem, e condenaram-no a trabalhos forçados para toda a vida nas minas de carvão de Karaganda. De facto, só lá trabalhou um dia, pois, atingido por um bloco de carvão no crânio, foi nesse mesmo dia transportado para o hospital. O seu cérebro rebentado não resistiu mais e morreu no dia seguinte; enterraram-no na vala comum.

 

Foi, de resto, o último feito de Jefimov.

 

Entre os nomes dos passageiros das listas que o coronel examinava todas as manhãs, encontrava-se, sob a designação de ”Correio diplomático Embaixada da América”, o nome de James Bradcock, major. Como era proibido manter uma vigilância sobre os diplomatas tão apertada como sobre os viajantes vulgares, Karpuschin pegou num lápis verde e fez uma cruz diante do nome de Bradcock.

 

Assim, deviam vigiar o passageiro desde que descia do avião até à chegada à Embaixada da América e verificar, em seguida, se de facto ele deixava realmente o solo da Rússia três dias depois, como estava oficialmente anunciado. O que se passava entretanto escapava à KGB, e essa restrição ao seu poder todo-poderoso enfurecia Karpuschin.

 

James Bradcock chegou numa manhã de sol resplandecente ao aeroporto de Vnukovo; a neve era de tal maneira deslumbrante, sobretudo depois da obscuridade do avião, que Bradcock foi obrigado a usar os seus óculos de sol logo que pôs os pés nas escadas do avião. Do outro lado do balcão da alfândega esperava-o o adido militar da Embaixada. Recebeu-o com grandes demonstrações de amizade e alegria, como se se tratasse de um velho amigo.

 

Foi muito gentil da tua parte vires assim visitar-nos a esta boa e velha cidade! exclamou o adido pegando na mala de Bradcock. Espero que venhas bem-disposto! Temos na Embaixada umas secretariazinhas muito jeitosas. De resto, elas esperam-te com impaciência.

 

Bradcock foi obrigado a sorrir, e, em poucos minutos, atingiram os edifícios da Embaixada, onde foram recebidos pelo tenente-coronel Hadley, adido de Imprensa, um velho habitué de Moscovo. Não viu nem secretárias atraentes nem uísque.

 

Fizeste boa viagem, James? perguntou Hadley oferecendo um charuto ao seu visitante. Vamos mostrar-te imediatamente o teu quarto. Já lá mandei colocar uísque e gelo. Mas comecemos pelo nosso trabalho.

 

Hadley tocou uma campainha. A porta abriu-se e James Bradcock entrou.

 

Bradcock olhou para o homem com assombro, sacudiu a cabeça como se a tivesse tido debaixo de água, esfregou os olhos e considerou o seu sósia com espanto.

 

É de fazer perder o pio ao mais falador, hem? exclamou Hadley rindo... Apresento-te Mike Lohrfeld... Parece-se de tal modo contigo que nem mesmo uma mulher daria pela substituição!...

 

Bradcock esboçou um leve sorriso:

 

Olá, Mike disse, estendendo a mão. Que significa esta encenação?

 

Depois de amanhã, Mike Lohrfeld toma o avião para Roma, sob o nome e o aspecto de James Bradcock, a fim de tranquilizar o bom Karpuschin. E tu, James, ficas aqui. Temos todo o género de projectos para ti, meu velho.

 

Mike Lohrfeld saiu daí a pouco para ir ver o que havia na mala de Bradcock para ele vestir. Logo que saiu, Hadley fez com que Bradcock se sentasse num confortável cadeirão e tomou a palavra.

 

Tu falas muito bem o russo disse ele. Recebeste a mesma informação que Heller, vocês eram amigos. Antigamente, chamavam-lhes até os ”irmãos siameses”. Mas um dos siameses passou para o lado errado...

 

Eu sei, Bill. E vocês venderam-no.

 

Que havíamos de fazer, meu velho? Os espiões trabalham ou calam-se... para sempre. Heller escapou-nos por entre os dedos... compete-te a ti ires procurar o teu irmão gémeo. Hadley sentou-se à secretária e abriu um estreito dossier. Nós temos algumas ideias precisas sobre o que tu tens a fazer, James. No Norte estão a construir coisas estranhas. Disseram-nos que rampas de lançamento para foguetões interplanetários eram fabricadas em peças soltas, em locais diferentes e depois montadas por um processo ultra-rápido. Prefabricadas, em suma. Não sabemos ainda onde se encontra a fábrica de montagem, mas uma grande parte das fábricas de peças destacadas encontra-se na região de Yakoutsk. Queríamos que tu lá fosses dar uma espiadela.

 

Hadley calou-se. Examinou Bradcock durante um instante.

 

Não me pareces muito encantado com a perspectiva.

 

Devo cantar a Internacional desde as primeiras palavras? Bradcock ergueu-se e dirigiu-se para a janela. Lá fora, no passeio coberto de neve, brincavam crianças; tinham fabricado um boneco de neve e bombardeavam-no, rindo. Quem teve essa ideia de génio?

 

O patrão, em Washington, e o teu amigo Mike Wilson.

 

Não me falou disso em Bad-Godesberg, antes da minha partida.

 

Não, queriam fazer-te uma surpresa à tua chegada aqui; era o teu ramo de boas-vindas, meu velho. Hadley foi ter com Bradcock à janela e passou-lhe o braço pelos ombros. Compreendo que isso te seja penoso, James. Mas que queres? Não batas com a cabeça contra o muro: o muro não cairá. Esta noite vamos sair e amanhã poderás dormir à tua vontade. A tua missão só começará depois de amanhã, quando o nome de James Bradcock for riscado da lista da KGB.

 

E Heller? Ainda o procuram?

 

Com certeza.

 

E se eu o encontrar nalgum sítio?

 

Tu é que deves decidir, James, se és em primeiro lugar amigo de um traidor ou americano.

 

James Bradcock comprimiu os lábios. Compreendia o que exigiam dele.

 

Quando Youri Jessei voltou dos armazéns de Wiwi, ficou surpreendido por não ver luz na casa dos amigos; perplexo, entrou e percorreu as salas vazias. Depois, voltou a casa e foi recebido pelo aroma do pão saído do forno. Maroussia preparara cuidadosamente o jantar, pondo-o num canto oposto ao da porta de entrada, para que a primeira coisa que ele visse fosse a larga fatia de pão com a sua crosta dourada para lhe fazer crescer água na boca.

 

Onde estão Pavel e Ludmilla, avó? perguntou Youri depois de ter o cuidado de sacudir a neve que se lhe colava às botas. Está tudo escuro em casa deles...

 

Come, meu pequeno! respondeu ternamente Maroussia.

 

Levou-lhe ainda manteiga e queijo de cabra. Conta o que viste em Wiwi, o que fizeste e o que ouviste dizer.

 

Youri teve um vago pressentimento; pegou no pão e atirou-o contra a parede, depois espalhou a manteiga e o queijo pelo chão. Maroussia escondeu-se a um canto, muda e assustada.

 

Onde está o meu irmão Pavel? Porque é que a casa dele está vazia e escura?

 

Tens de interrogar o velho Uman, meu filho. Passaram-se más coisas aqui durante a tua ausência. Fazes-me pena, pobre pequeno...

 

Youri saiu para a neve e correu até a casa de Uman, onde se encontrava ainda reunida toda a assembleia de gigantes. Sobre a mesa, o uniforme de Ludmilla estava exposto aos olhares cheios de ódio dos presentes; um só olhar bastou a Youri para compreender o que se passara. Soltou um grito, estendeu o braço e agarrou o uniforme.

 

Onde estão eles, amigos? gritou. O que é que lhes fizeram? Idiotas! Cretinos! Lançaram-nos para a floresta, hem? À maneira dos Tártaros? Digam-me... Vejo-o bem nos vossos olhos. Filhos da puta! Porcos!

 

E com estas palavras atirou o uniforme à cabeça do velho Uman. Siderado, empurrou duas ou três mulheres e saiu a correr. Voltou a casa, despejou a marmita da sopa por cima da cabeça de Maroussia, demoliu a mesa e o banco a pontapés e depois, sob os olhares espantados de toda a aldeia, saltou para o trenó que ficara atrelado diante de casa e dirigiu-se para a floresta a uma velocidade louca. Ninguém reagiu. Algumas mulheres benzeram-se.

 

Youri não sentia nada. O frio glacial e o vento que lhe laceravam a cara deixavam-no insensível. Lançara as renas a toda a velocidade, e, como um fantasma barbudo, assombrou a floresta com os seus gritos intermináveis.

 

Paulucha! Ludmilla! Pavel! Pavel... Ohhhhh... Grandes lágrimas rolavam dos olhos e imobilizavam-se

 

imediatamente sobre as suas faces petrificadas: dir-se-iam pérolas maravilhosas nascidas da sua barba louca.

 

Cegas pela dor, enervadas até ao delírio pela carga desusada que as esmagava, as duas renas, vítimas da selvajaria dos habitantes da aldeia, corriam através da floresta sem um objectivo. O silêncio devolvia-lhes os seus uivos perdidos e o eco divertia-se a deformá-los. Escondidos na obscuridade do crepúsculo, os lobos estavam à espreita, com os flancos vibrando de avidez.

 

Contudo, apesar da velocidade louca, do sofrimento, as renas não se separaram. Lado a lado faziam voar a neve, transformando-a numa poeira irisada, deslizavam sobre
os riachos gelados, escalavam as colinas cobertas de florestas para se enterrarem em seguida nos vales estreitos e profundos. Por vezes, sem razão definida, de comum acordo, imobilizavam-se, com a cauda fremente; com as grandes armações arrancavam os ramos duros que lhes barravam o caminho e lançavam-se como loucas sobre os troncos das árvores cobertas de uma camada de gelo sólido e cortante como vidro, na esperança de se desembaraçarem assim das suas cargas.

 

Em breve, as botas de Ludmilla se rasgaram e a sua foffaika caiu em pedaços. Perdeu os sentidos; uma chuva de estrelas caiu sobre o seu corpo ensanguentado, parecendo descrever uma dança frenética, como na festa das colheitas.

 

Paulucha! gritou ela num último sobressalto. Depois o fogo-de-artifício desapareceu. A sua perna direita era uma chaga, desde o pé até à anca.

 

Em vão, Semionov tentava voltar a cabeça para a olhar. Por vezes, quando as renas se aproximavam uma da outra, na sua luta louca contra as árvores, ela entrava, no espaço de um relâmpago, no seu campo de visão: os cabelos caídos e presos na armação da rena, o casaco rasgado, o corpo martirizado e imóvel...

 

O seu coração dilacerava-se então de dor; queria gritar mas nenhum som lhe saía dos lábios: há sofrimentos cuja intensidade faz emudecer.

 

Sucedia-lhe também gemer quando, com toda a força das suas pernas, a rena se precipitava contra uma árvore, de cabeça baixa. Parecia-lhe então que todos os seus ossos se partiam e que o seu corpo se transformava numa massa informe. ”Porque não hei-de morrer já?”, gritava uma voz dentro dele. ”Para quê esta tortura infernal?”

 

Depois, mergulhou no delírio. Palavras indistintas, gritos de cavalo na agonia; assim gritava na floresta o urso atingido de morte... Assim gritava um ser humano que atravessava os infernos com os olhos abertos...

 

Mas, em breve, os gritos e os gemidos cessaram; sob as correias endurecidas pelo gelo, o corpo de Semionov distendeu-se. Um último grito quando a sua rena, com força redobrada, se precipitou contra uma árvore e toda uma perna do infeliz se transformou numa chaga aberta... Depois, o silêncio.

 

Ao fim de três horas dessa luta de morte, as renas começaram a recuperar a calma. As feridas das pernas estavam insensibilizadas; o frio tinha coagulado o sangue e tinham-se pouco a pouco habituado à sua carga. O pior passara e elas mantinham-se apertadas uma contra a outra, olhando a floresta. Por vezes, gemiam e tremiam de exaustão.

 

Vinda de muito longe, ouviram subitamente uma voz. Um homem. Um ruído familiar. E o chamamento de uma rena.

 

Responderam ao chamamento e lentamente embrenharam-se na floresta, ao encontro do recém-chegado, de ar majestoso e cheio de dignidade, apesar dos seus sofrimentos e do seu cansaço.

 

Assim, Youri descobriu-os daí a pouco, enquanto chorava e praguejava, tão depressa implorando a Deus como amaldiçoando-O. Logo que viu as duas renas, deu um salto e ajoelhou na neve, com os braços em cruz.

 

Calma! gritou ele. Calma! Pobrezinhos, fiquem aí! Não se mexam. Um pouco de paciência, por favor, eu vou libertá-los. Vá, meus pequenos, estejam tranquilos...

 

Como um ébrio, tropeçou na neve, ao encontro das renas, verdadeiramente louco de emoção e de felicidade. Começou por as acariciar; uma nuvem de vapor escapava-lhe das narinas geladas, e, ao ver isso, Youri não pôde deixar de pôr as mãos.

 

Obrigado, Senhor disse em voz alta. Vejo bem que tu és o verdadeiro Deus...

 

Libertou os corpos inertes de Ludmilla e de Semionov, levou-os para o seu trenó, cobriu-os cuidadosamente com peles e depois foi ter com os dois animais hesitantes.

 

Pobrezinhos disse suavemente enquanto o seu rosto se inundava de lágrimas. Seria uma pena deixar que sirvam de pasto aos lobos.

 

Tirou um revólver do bolso e, com um golpe seco na testa, pôs fim aos sofrimentos dos animais inocentes. Depois, puxou os cadáveres até ao trenó e colocou-os junto de Ludmilla e de Semionov. Por fim, sem fôlego, espreguiçou-se soltando um suspiro de satisfação.

 

Na taiga, todos os caçadores têm os seus depósitos e refúgios perdidos no mais profundo das florestas onde mais ninguém penetre senão eles. Espalham-nos judiciosamente sobre todo o território de caça, pois sucede-lhes terem de ficar muitas vezes durante várias semanas na floresta. São, em geral, cavernas naturais no interior das quais podem viver confortavelmente quentes, como ursos em hibernação, ao abrigo dos lobos e do gelo, dos ventos cortantes do norte e das intermináveis tempestades de neve. Por vezes, essas cavernas são cavadas nos flancos de uma colina, em forma de galeria.

 

Cada refúgio desse género possuía a sua reserva de produtos alimentares e de chá, de marmitas e de madeira seca, e, por vezes mesmo, um odre de vodka para reanimar os espíritos entorpecidos pelo frio.

 

Em meia hora, Jessei alcançou o seu refúgio. Transportou para lá os corpos ainda inanimados de Ludmilla e de Semionov; depois, acendeu o lume e despiu completamente os seus convidados; foi um trabalho duro, pois o tecido gelado não ajudava nada. Quando viu o corpo nu de Ludmilla, delgado e frágil, acariciou suavemente a sua pele branca e os cabelos cobertos de neve soltando um suspiro.

 

Pobre passarinho disse. Como é que um ser humano pode ter um corpo tão pequeno? Pensou nas mulheres monstruosas de Nova Svesda, nas suas coxas semelhantes a colunas, nos seus seios grandes como sacos de farinha, nas suas ancas e nádegas que podiam rivalizar com as das vacas e suspirou de novo; depois, foi procurar uma marmita cheia de neve e começou o seu trabalho de reanimação; esfregou os corpos petrificados com neve, massajou-os continuamente, com força, até se sentir esgotado.

 

Semionov foi o primeiro a abrir os olhos. O olhar fixo, gelado, ausente. Mas reconheceu Youri, recebeu uma bofetada, ergueu a cabeça e reuniu as suas fracas forças para dirigir a palavra ao seu salvador.

 

Youri, tu és um demónio! Deixa-nos morrer em paz!

 

Jessei não lhe prestou atenção. Depois de ter tapado Semionov com uma espessa pele, voltou-se para Ludmilla.

 

Fica tranquilo ordenou ele. Respira fundo. Tu estás salvo, irmãozinho...

 

Inclinou-se então para Ludmilla e viu que ela abrira também os olhos. Um olhar claro e lúcido. Youri abanou a cabeça com ar embaraçado, perguntando a si próprio se iria ousar tocar no corpo nu da jovem mulher, depois resolveu cobri-la com uma manta.

 

Amanhã de manhã o passarinho poderá recomeçar a cantar disse ternamente.

 

Porque fazes tu isto? perguntou ela. Voltou a cabeça para o monte de peles de rena sob o qual Semionov se encontrava metido e tentou levantar-se. Ele ainda vive?

 

Sim, filhinha, mas recusa-se obstinadamente a continuar a viver.

 

Ele tem razão. É inteligente.

 

Deixou-se cair novamente de costas. O sangue recomeçava a correr-lhe nas veias e ao mesmo tempo que a vida o sofrimento renascia nela; a ferida da perna causava-lhe dores terríveis.

 

Que vais fazer agora de nós? disse baixinho. Esta morte não te basta? Há ainda piores torturas?

 

Tu falas de mais, menina.

 

Youri rastejou até à outra extremidade da caverna e trouxe de lá chá, uma caçarola, um recipiente de alumínio e uma garrafa de vodka.

 

Depois de ele próprio ter provado a bebida, abundantemente regada de vodka, meteu algumas gotas pelos lábios de Ludmilla que engoliu primeiro dois goles e começou a tossir, e cuspiu o resto. Jessei riu e voltou-se para o seu segundo doente. Só mais tarde, quando o calor reanimou os seus corpos doridos, é que, apoiado contra a parede, iluminado unicamente pela chama da lareira, falou, com o olhar perdido na contemplação do fogo.

 

Eu vi também o uniforme disse com voz neutra. Quase matei Maroussia e depois saí como um louco à vossa procura e encontrei-os. E perguntam-me agora porque razão fiz isto? Não posso responder-lhes porque nem eu mesmo o sei. Olhou para Ludmilla e nos olhos dela viu uma mistura de bravura e de medo. Tu és comissária?

 

Fui comissária, Youri rectificou ela. Justamente porque não desejava mais sê-lo, porque amava Paulucha, é que procurámos refúgio na taiga.

 

E por pouco não os matavam aqui!

 

Eles tinham razão, Youri. Semionov contemplava a chávena de chá que segurava entre os seus dedos afastados. Uma onda de recordações vinha-lhe à memória... A marcha para o suplício, no Alasca, os sofrimentos e as torturas desumanas que tinha suportado como exercícios preliminares da sua missão... e eis que tudo recomeçava num universo pré-histórico, num país que ele fora exactamente encarregado de conquistar. Tu podes matar-nos disse ele pousando a chávena no chão. Mas se és um homem, Youri, se o teu coração bate, se a tua alma vibra, peço-te, deixa Ludmilla viva e mata-me apenas a mim...

 

Vocês estão os dois completam ente doidos! Jessei pôs lenha sobre as cinzas incandescentes; o seu rosto barbudo dançava à luz fantástica das chamas que renasciam.

 

Conduzi-los-ei a Wiwi quando estiverem bons. Para casa de um amigo no qual tenho toda a confiança. Ele não fala. Saberá tratá-los e curá-los.

 

Depois, engoliu uma nova golada de chá com vodka, ruidosamente, para demonstrar a sua satisfação.

 

Vais ter dificuldades em Nova Svesda, Youri insistiu Semionov.

 

Quem é que pode causar aborrecimentos a Youri, meu velho? Youri ria, mostrando todos os seus dentes.

 

Vou começar por instalar o velho Uman em cima do lume, com as nádegas nuas!

 

Eles vão renegar-te, repelir-te!

 

Eles vão ficar tão tranquilos como vacas depois da ordenha! exclamou Youri batendo violentamente com o punho fechado no chão. Senão, reduzo-lhes as cabeças a uma massa, como se fossem batatas podres!

 

No dia seguinte de manhã, Jessei voltou a Nova Svesda. Tivera antes disso o cuidado de tratar os ferimentos de Ludmilla e Semionov, de esquartejar os cadáveres das duas renas e de preparar chá; depois, esperara que os feridos tivessem adormecido, e, antes de partir, fechara completamente a entrada da gruta com pedras e neve, para ter a certeza de que nem sequer os lobos esfaimados, atraídos pelo cheiro a carne humana, seriam capazes de penetrar no seu interior.

 

Com o coração em paz voltou à sua aldeia; diante da cabana saltou do trenó, pegou nas peles das duas renas, chegou a casa do velho Uman, bateu à porta e atirou as duas peles à cara do velho, sem pronunciar a mínima palavra. Depois, entrou em sua casa e encontrou Maroussia sentada ao canto da lareira, ocupada em mastigar um pedaço de courato de toucinho.

 

Vem, meu pequeno, senta-te disse ela indicando um canto da mesa sobre o qual havia preparado um prato, um pedaço de pão fresco, sal, carne de rena seca e ralada; ao lume fritavam uns ovos misturados com toucinho. Está um vento muito frio, não está? murmurou ainda Fizeste uma boa presa, Yourichka?

 

Diabos te levem! gritou Youri Fiodorovitch. Atirou o prato contra a parede, esmagou o saleiro com a bota e transformou, com as mãos poderosas, o pedaço de pão dourado numa bola informe.

 

O diabo é que é o causador disto tudo disse a velha Maroussia sem se alterar; depois, movendo-se sobre as suas pernas tortas, foi buscar outro prato ao armário e colocou-o em frente de Youri. Em seguida, dirigiu-se novamente ao armário e com grandes suspiros e gemidos tirou de lá um saco de sal que colocou diante de Youri.

 

Ainda nos restam sete pratos disse suavemente. Quando tiverem desaparecido comeremos directamente da marmita, grande urso! Mas o sal preocupa-me... Em breve terás de o trazer de Wiwi.

 

Youri não respondeu. Deu um violento soco no saco do sal e depois olhou para o seu prato vazio, esforçando-se por ignorar o perfume voluptuoso do pão fresco.

 

Maroussia voltou com a frigideira na qual os ovos amarelos pareciam incitar à guloseima; em redor deles, a manteiga ainda fervia.

 

Encontraste-os? perguntou quando viu Youri lançar-se sobre a frigideira como um esfomeado. E como ele se obstinasse no seu silêncio, ela insistiu: Ainda estavam vivos?

 

E Uman, ainda está vivo? E tu, velha feiticeira, estás ainda viva? Se estás viva ainda é porque eles também estão.

 

Toda a gente se pode enganar, pequeno. Maroussia limpou as mãos ao avental. Confessa que eles não eram como nós! Mandaste-os para outro sítio?

 

Sim.

 

Está bem. Agora teremos de novo paz em Nova Svesda.

 

Ao fim de duas semanas, Ludmilla e Semionov estavam suficientemente restabelecidos para que Youri pudesse levá-los para Wiwi.

 

Não se pode imaginar Wiwi como uma bela cidade, uma espécie de capital de distrito, apesar de possuir um armazém. Não havia casas de pedra, nem ruas pavimentadas, nem autocarros, nem teatro, nem sequer um cinema. Mas Wiwi possuía, pelo contrário, a sua Casa do Povo, residência do Soviete principal, e um armazém, propriedade da Cooperativa. Havia exactamente nove automóveis que percorriam a cidade aos solavancos; três personalidades honravam Wiwi com a sua presença: O barqueiro que navegava no Toungouska desde que os gelos começavam a fundir-se, o pope Alexei, ao qual prediziam a eternidade na terra porque ninguém conhecia a sua idade, e Oleg Tchigirin, o sapateiro.

 

O sapateiro, a falar verdade, era o mais venerado de todos, pois para alguém se aventurar na taiga precisava de uma boa reserva de calçado sólido, e os que se vendiam na loja da Cooperativa não eram grande coisa, enquanto que o calçado confeccionado por Oleg Tchigirin, cortado, cosido, pregado e colado à mão, resistia a todas as intempéries.

 

Tchigirin era um amigo de Youri Jessei; viera também de Nova Svesda, pertencia à raça dos gigantes da taiga e conseguira sobreviver à mulher, Olga, o que representava, na verdade, um feito para quem conhecia as matronas de Nova Svesda.

 

O sapateiro trabalhava na sua oficina quando a porta se abriu brutalmente, dando passagem a Jessei que com uma voz tonitruante dizia:

 

Saúde, irmãozinho! Eis-me de novo em tua casa! Maroussia, a velha avó, encarregou-me de te cumprimentar.

 

Oleg contentou-se em baixar gravemente a cabeça, sem deixar de martelar, mas quando viu atrás do seu visitante duas silhuetas desconhecidas, ergueu as sobrancelhas e coçou a cabeça.

 

O que é? perguntou pousando os sapatos inacabados perto dele, no chão. Estou cheio de trabalho, meus amigos. Não posso fazer nada antes da Primavera.

 

Tens que os albergar em tua casa, Oleg.

 

Dizendo estas palavras, Youri passou os seus enormes braços sobre os ombros dos seus dois amigos. Oleg abriu muito os olhos, pois nunca vira em Youri aquele olhar amigável e alegre.

 

Eles pagar-te-ão dez rubles por mês por um quarto e trabalharão para ti para pagarem a sua alimentação. Pavel sabe curtir peles e Ludmilla encarregar-se-á do trabalho da casa; vais ver, ela vai fazer-te belos petiscos! A tua barriga não tardará a arredondar-se e a encher como um odre... Um verdadeiro paraíso...

 

E quanto tempo deve durar tudo isso? interrogou Tchigirin, para quem a tranquilidade parecia mais preciosa do que o paraíso.

 

Até à Primavera. Até que os gelos quebrem e as neves se fundam. Em seguida, terão de prosseguir o seu caminho... a menos que se te tenham tornado indispensáveis... De acordo, Oleg Petrovitch? Dez rubles pela cama e quanto ao resto trabalharão.

 

Tchigirin aprovou com um simples gesto de cabeça.

 

Podes conduzi-los para a mansarda, tu sabes o caminho declarou ele sobriamente, pegando novamente no sapato abandonado. A presença deles é oficial ou deve manter-se oculta?

 

Oculta, é evidente, meu velho. Se assim não fosse poderiam ir para a hospedaria.

 

Era já tarde, de noite, quando por fim Ludmilla e Semionov ficaram a sós. Youri partira para a aldeia e como presente de despedida beijara-os a ambos. Ludmilla preparara uma sopa de legumes com caldo de galinha, com a qual os homens pareceram regalar-se, pois arrotaram abundantemente, com os braços cruzados sobre a mesa, o olhar perdido sem dúvida na contemplação do paraíso.

 

Durante a noite, a neve começou a cair. Na cama enorme, Ludmilla fez-se pequena contra o marido.

 

Como estou feliz por voltar a viver disse ela em voz baixa. Não há paraíso comparável a uma hora passada contigo, querido...

 

Semionov estava calado. ”Até à Primavera”, pensara ele. ”Quando é que a neve se funde no Toungouska? Em Abril ou em Maio... mais cinco meses... E depois?”

 

Mas ninguém podia responder a essa questão. Não podia sequer estar certo do dia seguinte, pois cada dia comportava para eles uma soma infinita e imprevisível de perigos que poderiam atirá-los de novo para os monstros da taiga.

 

Querido... murmurou Ludmilla.

 

Sim, Ludmilluchka.

 

Achas que existem dois seres no mundo que se amem mais do que nós?

 

Não, não creio respondeu ele. E estava convencido disso.

 

O tempo passou lentamente; a festa do Natal trouxe, como todos os anos, a luta que se tornara tradicional entre o velho pope Alexei e o chefe do Soviete, o camarada Gapka, entre a Igreja e o comunismo, entre o passado e o progresso, e, como todos os anos, foi o passado que ganhou com uma superioridade numérica esmagadora: nove ovelhas a mais na igreja do que na Casa do Povo.

 

Há catorze anos que se passava o mesmo cerimonial e o camarada Gapka ia ficando cada vez mais furioso, mas a verdade é que, no meio da taiga, Revolução tem necessidade de tempo para se implantar.

 

De resto, a que corresponde na Rússia a noção do tempo? É até estranho que a língua russa possua uma palavra para designar o tempo que passa.

 

Mas a Primavera chegou, mais cedo do que se previa. Foi de resto uma época curiosa. As notícias provenientes de Moscovo davam que pensar. Dizia-se que Kruchtchev estava muito doente; depois, a sua fotografia reapareceu nos jornais. Viram-no abraçar e felicitar os cosmonautas, proclamando que a Rússia era o estado mais moderno do mundo. Mikoian foi visitar Krasnoiarsk: anunciara em tom profético que dez anos mais tarde a Sibéria seria o país mais industrializado da Terra.

 

No espaço de uma noite, o Toungouska retomou vida e movimento. Toneladas de gelos formavam pequenos rios e ribeiras, verdadeiros icebergues invadiram o rio e arrancaram os arbustos que cobriam as margens; chegaram mesmo ao ponto de ameaçar as reservas de madeira das cooperativas a ponto de equipas de pioneiros terem de ir em seu socorro, fazendo saltar com dinamite as massas de gelo invasoras e libertar assim Wiwi dos últimos sobressaltos do Toungouska no Inverno.

 

Era a primeira saudação da Primavera.

 

Em meados de Abril o barqueiro pegou na sua barca, fez sinal aos passageiros habituais e começou de novo a viajar sobre as águas do Toungouska de uma margem à outra. O sapateiro Tchigirin, e o seu ajudante Semionov, tomaram parte na primeira travessia; Ludmilla ficara em casa para preparar as refeições, enquanto os homens iam comprar cabedais para a nova estação, do outro lado do rio. Encontrava-se ali uma alegre companhia, nesse dia, para a primeira travessia do rio. Os motores começaram a gemer alegremente e o barco deixou com lentidão a margem de Wiwi. Houve risos, cantou-se, dançou-se. Pietr Nieveroff, o barqueiro, segurava o leme. Engoliu uma porção de vodka e gritou para os que o rodeavam:

 

Eis-nos a partir, amigos. Hurra! Hurra!

 

Não se deve pensar que os rios da taiga se assemelham aos rios das nossas planícies. Eles são a própria imagem da Sibéria, infinitos; assim, o Toungouska, por alturas de Wiwi, tem o triplo da largura do Reno, em Wesel. Nessa estação em que as águas rugem, aumentadas pela fundição das neves e dos gelos, o trabalho do barqueiro, obrigado a fazer, além do mais, malabarismos entre os icebergues, não é nenhuma sinecura.

 

E a catástrofe deu-se precisamente nesse dia, a cerca de cem metros da margem; o motor da esquerda começou a engasgar-se e a crepitar, e, em seguida, calou-se de vez; a barca oscilou, começou a girar sobre si mesma, e, finalmente, acabou por seguir à deriva, arrastada pela corrente. As mulheres soltaram gritos e os homens pediram ao pobre Nieveroff para fazer qualquer coisa. Mas o infeliz barqueiro bebera de tal modo a sua primeira travessia que não podia fazer mais do que continuar a segurar o leme, com uma mão crispada, fixando a água com um olhar ausente e cantarolando incansavelmente a primeira estrofe de Stenka Rasin. Deram-lhe alguns pontapés no traseiro e colocaram-no diante do motor avariado, mas ele só soube soltar gemidos e erguer os olhos ao céu num gesto de impotência.

 

Nós vamos todos passar pelo mesmo observou Tchigirin para Semionov.

 

A barca continuava à deriva; não era preciso muita imaginação para prever um choque inevitável contra um icebergue.

 

Não era precisamente uma morte deste género que eu desejava acrescentou calmamente o sapateiro.

 

As mulheres tinham começado a rezar; os homens continuavam a gritar e a tratar mal o pobre barqueiro; alguns, tentavam consertar o motor recalcitrante, mas em vão.

 

Vamos embater num icebergue! gritou alguém. É o fim.

 

Semionov passou pelo meio das pessoas, acotovelando-as, afastou Nieveroff e atacou o motor; limpou o carburador, desaparafusou as velas, limpando-as cuidadosamente, controlou o filtro e voltou a colocar tudo no mesmo sítio. Isso tinha-lhe levado cerca de dez minutos; entretanto, o icebergue aproximava-se a grande velocidade da barca; o choque parecia iminente.

 

”O último parafuso, a derradeira porca... Agora deve começar a trabalhar”, pensou o improvisado mecânico. ”Senão... que Deus nos proteja na sua santa eternidade...”

 

Com efeito, o motor rugiu, recuperou a vida e a barca pôs-se em andamento; retomou o seu equilíbrio e voltou a seguir a sua rota, perpendicular à corrente e aproximou-se da margem oposta.

 

Cá está! gritou Nieveroff. Ele conseguiu pôr o motor em marcha! É um génio! Hurra, meus amigos!

 

Voltou para o seu posto, cambaleando ligeiramente, agarrou no leme e conduziu habilmente a barca sobre as águas que tinham voltado a tornar-se familiares, doToungouska.

 

Chegados à margem oposta, o barqueiro abraçou Semionov, beijou-o e todos os passageiros o imitaram; assim, Semionov viu-se promovido à categoria de salvador da humanidade de Wiwi. As mulheres beijaram-lhe a mão como costumavam fazer aos senhores, no tempo dos czares; Tchigirin bateu-lhe amigavelmente no ombro.

 

Nunca mais esquecerei, Pavel disse ele. A partir de hoje recuso os dez rublos pelo quarto.

 

A fama de Semionov estendeu-se a toda a região. O chefe do Soviete esfregou as mãos, gritando bem alto, diante do pope Alexei, que não tinham sido as orações das mulheres que os tinham salvo, mas sim a coragem e a ciência de um valente operário que tinham conseguido um tal feito. Isso passou-se no decorrer da recepção local dada em honra do salvador.

 

Camaradas, enviei um relatório a Krasnoiarsk. Vão enviar-lhe uma medalha. Estamos todos muito orgulhosos de ti, camarada Semionov.

 

O coração de Semionov quase parou de bater. Sabia que em breve viria alguém de Krasnoiarsk, não para lhe dar uma medalha, mas sim para o prender.

 

Nessa noite, falou a Tchigirin; Ludmilla preparava já malas e bagagens; o exílio recomeçava. Compreendera-o desde as primeiras palavras.

 

Deviam ser enforcados, esses imbecis dos políticos disse o bom sapateiro. Tu salvaste-nos a vida e eles só pensam em abater-te. Meu Deus, porque é que os homens hão-de ser uns carneiros que se deixam levar para o matadouro e abater por algumas pessoas de falinhas mansas, sem protestarem nem resistirem?

 

Não servia de nada lamentarem-se. Ludmilla e Semionov reuniram os seus tesouros e meteram-se no comboio em Wiwi. Era uma pequena linha de via única, destinada ao transporte de material; ia para nordeste, até Toura.

 

Tchigirin previra um plano de batalha engenhoso. Mudando de comboio em Toura bastaria seguirem qualquer linha em direcção ao norte; ao fim de um mês, atingiriam a região do rio Olenek, na República Autónoma dos Yakoutes. Que saberiam em Yakoutsk, ou mesmo em Irkoutsk, sobre as dificuldades de Krasnoiarsk?

 

Dentro de um mês estarão livres de perigo afirmou Tchigirin traçando no mapa o itinerário. Vou passar-te um certificado de trabalho, afirmando que és curtidor e que procuras um lugar na região do Norte.

 

Os fugitivos não se demoraram; deixaram Wiwi no primeiro comboio e retomaram uma vez mais uma direcção desconhecida, a de um futuro semeado de emboscadas.

 

Voltaremos a ver-nos? perguntou Tchigirin após ter instalado viajantes e bagagens sobre a palha que cobria o soalho da carruagem destinada ao transporte de animais.

 

Não o creio respondeu tristemente Semionov. Apertaram pela última vez as mãos; Ludmilla inclinou-se e beijou afectuosamente o velho sapateiro.

 

Diz adeus a Youri por mim, Oleg disse ela. Nunca esquecerei a vossa bondade. Estávamos muito bem em tua casa...

 

Que Deus vos proteja! murmurou Tchigirin.

 

O major James Bradcock passou todo o Inverno na Embaixada dos Estados-Unidos, em Moscovo. Foram obrigados a mudar o programa, porque de todos os cantos da URSS os relatórios anunciavam uma actividade crescente da KGB e um redobrar das medidas de vigilância, o que tornava perigoso e prematuro o envio de um espião extraordinário para a Sibéria. No quartel-general da Segurança do Estado, iam ficando cada vez mais nervosos, após o coronel Matwei Karpuschin ter descido brutalmente de posto e ter desaparecido. Dizia-se em voz baixa que fora transferido para as prisões da Lubianka; mas, com efeito, Karpuschin continuava a gozar da sua bela saúde florescente; havia simplesmente deixado Moscovo. O marechal Malinovski obtivera para Karpuschin a nomeação de comandante da guarnição de Yakoutsk com o Posto de major-general, o que lhe conferia simultaneamente a vigilância sobre toda a República Autónoma dos Yakoutes, situada ao norte da Sibéria. Assim, segundo o plano engenhosamente concebido por Tchigirin, Ludmilla e Semionov dirigiam-se lentamente para as regiões virgens da taiga de Yakoutsk, do Lena, do Vilioui e do Olenek, os rios selvagens imobilizados pelo frio oito meses em cada doze; por outras palavras, iam meter-se directamente na boca do lobo, pois enquanto os comboios de via única rolavam interminavelmente para norte, em Yakoutsk, Karpuschin trabalhava já para tecer a sua teia mortífera; não havia um burgo, uma aldeia, por mais isolada e distante que se encontrasse, que escapasse ao seus agentes. A sua única razão de ser tornara-se a perseguição a Franz Heller, aliás Semionov.

 

Tudo isso fora decidido em Moscovo, no maior segredo. Ninguém sabia, nem na KGB, nem na GRU, para onde Karpuschin fora relegado, e mesmo Chimkassy, no fundo do coração, lamentava o seu amigo e adversário. Os serviços secretos de espionagem americanos também não sabiam mais; para eles Karpuschin fora igualmente riscado do mundo dos vivos.

 

Podemos passar um risco sobre Franz Heller disse uma manhã o major Hadley, chefe dos serviços de espionagem americanos em toda a Rússia, a James Bradcock. Quem sabe onde ele estará a apodrecer! Logo que as neves comecem a fundir-se, para a frente, meu velho! Está tudo pronto: um bilhete de avião para Krasnoiarsk e depois o ronceiro para Toura. Daí, pode seguir num dos comboios de mercadorias que vão para norte. Você há-de sair-se bem da missão, meu velho James!

 

Bradcock esperava que sim. Aproveitara as seis semanas que ali passara para estudar tudo o que devia conhecer um caçador de peles de Yakoutsk. Era capaz de calcular a qualidade de uma pele, podia fixar os preços; aprendera a falar russo com a pronúncia da região e exercitava-se várias horas por dia a atirar com rapidez, pois na taiga dos Yakoutes falhar um tiro significa assinar a sua sentença de morte, e, muitas vezes, não tinham sequer tempo para visar o adversário.

 

Quando as estradas de Moscovo começaram a transformar-se em rios de lama, o major Bradcock voou em direcção a Krasnoiarsk, um viajante perdido entre centenas de outros. Não possuía nem posto emissor nem mapas especiais. Mas apenas um bom revólver Smith & Wesson.

 

Chegou a Toura dois dias após Ludmilla e Semionov; e tomou o terceiro comboio depois do deles, em direcção ao norte, a fim de atingir, tal como eles, por etapas, as margens do Olenek.

 

Não havia, entre Bradcock e Semionov, senão um intervalo de quarenta e oito horas. E, em Yakoutsk, Karpuschin, à espreita no meio da sua teia mortífera, esperava as suas vítimas.

 

Assim, mesmo na Sibéria, o mundo é pequeno.

 

É preciso ter-se percorrido a imensidade siberiana num comboio de mercadorias russo para se saber o que é verdadeiramente a aventura.

 

Não que seja uma coisa perigosa; mas se o viajante exigente trepa para o vagão, de relógio em punho, calculando que três dias mais tarde atingirá, por exemplo, a povoação de Uvanovo, e se enerva quando ao fim de cinco horas vê que se encontra ainda longe, será melhor não se meter nesse meio de transporte. Quanto ao conforto dos comboios é preciso ter-se uma certa benevolência! Era quente, na verdade, porque todo o gado viajava no mesmo vagão, mas o cheiro não tardava a fazer compreender que nada pode resistir às exigências da natureza.

 

Ludmilla e Semionov misturaram-se com a vida comum do vagão, no meio dos frangos, dos porcos, dos coelhos e dos cães; sentaram-se na palha, como os outros, conversaram com toda a gente e partilharam as suas refeições, pois todos os viajantes da taiga formam uma só família.

 

Desde o primeiro dia, o comboio foi bloqueado três vezes pela neve amontoada; foi preciso que os homens libertassem a via com pás e picaretas. E aqueles que tinham calculado três dias de viagem disseram de si para si que esta talvez demorasse uns cinco dias.

 

Ao segundo dia, o comboio parou novamente, com tanta brutalidade que as caixas caíram umas sobre as outras e as avós instaladas sobre a palha perderam o equilíbrio e foram atiradas para trás, praguejando.

 

Ninguém conhecia a causa dessa paragem brutal; mas em breve se espalhou o rumor, de vagão em vagão: o mecaniço estava estendido perto do carvão, cheio de febre e a delirar. Era impossível prosseguir.

 

Semionov abriu como pôde passagem pela neve, até à locomotiva: descobriu um grupo de selvagens que gritavam e esbracejavam. No meio da turba, uma espécie de monstro negro fazia grandes gestos e discursava.

 

Mas sim, é como lhes digo. Bruscamente começou a dar voltas em torno de si mesmo; deitou-me um olhar estranho, que me meteu medo, e caiu ali, muito rígido. Então, parei a máquina, não? Lá de carvão percebo eu, mas de mecânica não percebo nada...

 

O patife! gritou um dos viajantes. Embriagou-se em Toura e eis o que nos está agora a suceder.

 

Semionov aproximou-se do doente, ajoelhou perto dele, abriu-lhe a foffaika, o pulôver e a camisa de lã e viu na pele amarelada uma erupção de borbulhas vermelhas em forma de pústulas que lhe cobriam todo o corpo, desde os ombros até ao ventre, os braços e até mesmo as palmas das mãos. Fechou a foffaika sobre o corpo do doente e olhou para os rostos hostis que contemplavam a cena.

 

Não, camaradas disse lentamente, para que todos compreendessem as suas palavras. Está doente, muito doente. Tem o tifo; é uma doença muito contagiosa, e arriscam-se todos a apanhá-la...

 

Durante um instante, os homens permaneceram no seu lugar, estupefactos, depois o agrupamento dispersou-se com rapidez; cada um voltou o mais depressa possível para o seu vagão e não saiu mais de lá.

 

O tifo. Eles sabiam o que aquilo significava: a quarentena, se a notícia chegasse aos ouvidos de um médico do Estado, a vida miserável nas barracas, as vacinas, os maus tratos, a má alimentação, e, como distracção, os cursos doutrinários do chefe do Soviete.

 

Semionov ergueu-se; um só homem ficou junto dele, um velho envolvido num espesso casacão de pele.

 

Que vamos fazer agora? perguntou ele com voz tranquila. Os imbecis foram-se embora. Como se fosse essa a solução. Daqui a Malutchka, há ainda dois dias de viajem; mas serão precisos ainda mais uns seis dias para alguém perceber que há algo de errado e para que eles nos descubram, esses bons funcionários do Estado! Daqui até lá ficaremos todos congelados. Mas ninguém pensa nisso...

 

Eu próprio vou conduzir o comboio disse simplesmente Semionov. Quem é você, camarada?

 

Sou controlador dos armazéns de madeira. Se lhe posso ser útil... O homem olhou Semionov com um ar interrogador. Percebe de locomotivas?

 

Sou engenheiro, camarada. Já me sucedeu fazer funcionar comboios deste género.

 

Semionov entrou na cabina e soltou os travões, depois deu vapor e apitou três vezes, carregou na alavanca e o comboio partiu lentamente.

 

De todos os vagões partiram hurras e gritos de alegria. Rodearam Ludmilla, abraçaram-na, esmagaram-na, encheram-na de presentes, pão, ovos, toucinho e mesmo dois frangos e um leitão. Todos gabavam os méritos de Pavel Semionov, afirmando que era o seu salvador.

 

Mais uma vez... Ludmilla calava-se, sentada a um canto, sobre a palha, olhava para o vácuo com um ar triste. ”Recomeça tudo”, pensava ela. ”Paulucha só pensa em ajudar e como recompensa é sempre a fome, a miséria, o frio e a fuga.”

 

Atingiram Malatchka dois dias mais tarde. Desembarcaram o doente e estenderam-no sobre um banco, na barraca que servia de estação. Numa outra via, outro comboio estava já prestes a partir; apitava impacientemente. De novo, as famílias se instalaram e amontoaram comodamente nas carruagens. O comboio iniciou o seu caminho para norte.

 

Ludmilla e Semionov instalaram-se à cabeceira do doente e deram-lhe a beber chá bem quente, o que lhes restava das suas provisões de viagem.

 

Há um médico aqui murmurou o mecânico com voz fraca. O seu corpo estava agora completamente coberto de placas vermelhas, mas tinha recuperado a consciência. Habita no número catorze... Boris Pluchin. Outrora, foi um condenado e ficou a viver entre os aldeões depois de ter sido libertado. Vão buscá-lo, peço-lhes...

 

Ludmilla ficou junto dele, enquanto Semionov partia à procura do médico. Encontrou o número catorze sem muita dificuldade e o médico estendido sobre a pedra da lareira. No momento em que abriu a porta uma voz cortante acolheu-o.

 

As consultas são das dez às doze! Fora, verme!

 

Desculpe, doutor disse delicadamente Semionov, tirando mesmo o seu boné de peles. Trata-se de um caso de tifo exantemático.

 

Imbecil! exclamou o Dr. Pluchin sem mudar de posição. Como é que um ignorante como tu pode saber isso?

 

A febre exantemática é nítida; o baço está sensível, muito inchado e duro...

 

Em nome de Deus...

 

À luz da lareira surgiu uma cabeça fina de velho, com compridos cabelos brancos. A cabeça de um sábio; o médico dirigiu-se para Semionov e olhou-o demoradamente.

 

Quem és tu?

 

Chamo-me Pavel Semionov, doutor, e acabo de fazer uma viagem de comboio. O mecânico adoeceu durante a viagem e fui eu que conduzi o comboio.

 

Onde está ele?

 

Na barraca que serve de estação. A minha mulher ficou junto dele.

 

Vamos lá.

 

O Dr. Pluchin enfiou a sua pelica e o seu boné também de pele e olhou mais uma vez Semionov com ar estranho.

 

O que é que vem fazer aqui? Isto é o fim do mundo...

 

É justamente o fim do mundo que nós procuramos, doutor.

 

O Dr. Pluchin não respondeu. Deu uma cotovelada a Semionov e ambos saíram para o frio glacial da noite.

 

Assim, travaram conhecimento; não fizeram perguntas. Falaram pouco, mas desde o primeiro contacto sentiram uma simpatia recíproca.

 

Se quiser ficar aqui, Semionov, ofereço-lhe a minha casa. Há muito espaço nela disse o médico.

 

Mas não nos conhece, doutor disse lentamente Semionov.

 

Não.

 

Não sabe nada de nós.

 

Vocês acabarão por me contar o que acharem necessário, Pavel. Desabituei-me de ser curioso. Muitas vezes, é preferível nada saber do que saber demasiado... Fiquem. A sua mulher precisa de repouso. Tem mau aspecto. Você devia tomar cuidado com...

 

Habitavam há seis dias em casa do médico quando a neve em Mulatchka começou a derreter; os caminhos transformaram-se em lamaçais.

 

Uma manhã, Ludmilla sentiu-se doente; não tinha forças nas pernas; teve de se levantar várias vezes para vomitar, e, por fim, com os olhos brilhantes de febre teve de se estender sobre a pedra da lareira, sem forças. Foi ali que o médico a foi encontrar, ao voltar das suas visitas.

 

Creio que apanhei o tifo murmurou ela.

 

O médico fez-lhe uma observação completa. Parecia ser doutra opinião.

 

Vamos, levante-se, Ludmilla Semionova disse ele ao terminar o exame. Vista-se. Não é grave. Pelo contrário. Esta noite vamos os três beber um bom copo...

 

Porque é que sorri, doutor? murmurou ela vestindo-se com dificuldade. Não é tifo?

 

Mas não, minha filha. Dentro de seis meses há-de embalar o seu tifo num lindo berço de vime. Vai ter um bebé, Ludmilla...

 

Ela sentiu o coração confranger-se dentro do peito, aspirou profundamente e fechou os olhos.

 

Um bebé murmurou ela. Ó meu pobre Pauluchka... O que vai ser de nós agora, com um bebé... Sentou-se na pedra, apertou as duas mãos contra o corpo e voltou a cabeça para a parede: Não pode saber, doutor, o que essa criança significa para nós...

 

Já há muito tempo que o Dr. Pluchin tinha perdido o hábito de fazer perguntas inúteis. Uma semana se passara já desde que Semionov e sua mulher tinham chegado a sua casa e a partir daí viviam juntos; o médico contentara-se durante esse tempo em observar sem nada dizer. Assim, notara que Semionov receava mostrar-se em público, que preferia rachar lenha, tratar das fogueiras ou manter os alpendres em ordem do que acompanhá-lo nas suas visitas aos doentes. Só saía ao anoitecer e mesmo assim, na maioria das vezes, apenas se sentava nas traseiras da casa para apanhar o ar fresco da noite.

 

”Procuram-no, não há dúvida”, pensou Pluchin. ”Mas não matou ninguém. Os seus olhos não são os de um assassino. Só pode, portanto, tratar-se de um caso político...” Certo da sua conclusão, o doutor Pluchin dedicou a Semionov e à encantadora Ludmilla o máximo da sua simpatia.

 

Também ele não era originário de Multchka: nascera em Sampetersburgo, sessenta e três anos antes; conhecera a época em que o czar residia ainda no Palácio de Inverno, e em que a população caía de joelhos na rua quando ele passava. Com dez anos de idade, tinha até travado conhecimento com Rasputine, o monje taumaturgo, por ocasião de uma angina infecciosa que seu pai, terceiro médico da corte, não conseguia tratar, mas de que ele o livrara em três dias. Em 1917, os acontecimentos dispersaram a família Pluchin. Seu pai fora pescado do Neva, abatido por um desconhecido; a mãe enlouqueceu e morreu pouco tempo depois com uma embolia; ficou apenas o jovem Boris.

 

Foi, por sua vez, estudar Medicina, na Universidade de Sampetersburgo, recusou-se a entrar para o Partido Comunista e cometera a imprudência de dizer em público que ”Estaline era uma catástrofe nacional”, e, depois disso, fora preso e condenado a trabalhos forçados. Foi amnistiado ao fim de dez anos, sendo, no entanto, solicitado para prestar os seus serviços como médico nos limites territoriais da Sibéria. O Estado instalou-o como clínico em Mulatchka e era ali que vivia há doze anos, no limiar da taiga, velho mal humorado e solitário, tendo como única esperança uma morte suave.

 

Após esta revelação, deixou Ludmilla chorar à vontade, sentada no seu banco de pedra: lavou as mãos, guardou os instrumentos, enrolou um cigarro e preparou o chá. Depois, aproximou-se da jovem mulher, segurou-lhe meigamente o rosto com as suas mãos rudes e olhou-a com ternura.

 

Eu é que vou dar a notícia ao teu Pavel resmungou ele limpando as lágrimas amargas de Ludmilla. Imagino facilmente que teriam passado bem sem essa criança...

 

É uma catástrofe, doutor Pluchin! Ludmilla deixou tombar novamente a cabeça sobre o peito. E, no entanto, se soubesse como ao mesmo tempo me sinto feliz acrescentou em voz baixa.

 

Uma hora mais tarde, Semionov voltou; trazia dois frangos e parecia fora de si. O Dr. Pluchin viu-o trocar umas palavras com Ludmilla e teve a impressão de que a jovem mulher começava a tremer.

 

Encontrei o controlador dos armazéns de madeira explicava Semionov nesse momento. Sabes, aquele velho que me ajudou a conduzir a locomotiva. Abraçou-me e queria a todo o custo conduzir-me ao seu director. ”Procurámo-lo por toda a parte, camarada”, disse-me ele, ”tem direito a uma recompensa pela sua coragem e sangue-frio”. Semionov limpou o suor que lhe inundava o rosto e acrescentou: Prometi ir fazer-lhe uma visita ao campo depois de amanhã.

 

E que direcção deste? perguntou Ludmilla.

 

Da casa dos empregados do caminho-de-ferro... Que havia de fazer? Com um ar desencorajado sentou-se também sobre a pedra da lareira; em torno das suas botas a lama dos caminhos formava como que um ilhéu nauseabundo sobre o chão da cozinha. Meu Deus, Ludmilluchka... Estaremos destinados a fugir perpetuamente?

 

Ludmilla ficou silenciosa. Pensava na criança. ”Não posso anunciar-lhe agora isto”, dizia para consigo. ”Ele precisa agora é de uma boa sopa...” Beijou-lhe carinhosamente os cabelos e acariciou-lhe as costas.

 

Vamos, Paulucha. A terra é grande; e agora é a Primavera. Vamos poder voltar à floresta.

 

Semionov soltou um gemido doloroso. Ainda a taiga. Sempre a taiga. E a existência dos lobos...

 

Trouxe-te infelicidade, Ludmilla disse tristemente.

 

Deves amaldiçoar-me...

 

És abençoado, pelo contrário disse ela com ternura. Antes de te conhecer vivia para nada.

 

À noite, Ludmilla foi sozinha para o seu quarto, despiu-se, meteu-se na cama e esperou que o marido fosse ter com ela; com um gesto distraído acariciava o ventre, sorrindo.

 

Precisas de ser tão forte e tão corajoso como o teu pai dizia ela ao bebé. Talvez vás ser criado como um animal selvagem, entre as renas e os cervos, as raposas e os lobos; mas fica tranquilo, eu saberei ensinar-te a amar a vida. O meu filho... O filho de Paulucha. Depois, começou a chorar, de felicidade e de receio pelo futuro.

 

Na cozinha, Semionov e o Dr. Pluchin tinham-se instalado confortavelmente diante de uma boa garrafa de vinho.

 

Então, meu velho, que dizes deste néctar? murmurou o doutor saboreando voluptuosamente um gole de vinho que mantinha na boca o mais tempo possível. Cheira a floresta e a sol. Bebe mais um pouco.

 

Semionov não falava. Bebia com pequenos goles. O vinho subia-lhe lentamente ao cérebro em ondas de calor. Os seus olhos brilhavam, as suas faces tomavam uma cor de chama e o seu coração batia apressadamente.

 

O Dr. Pluchin parecia já um pouco animado.

 

Brindemos! disse ele alegremente. À saúde de quem?... De quem gostas tu mais?

 

Da minha mulher respondeu Semionov, com tristeza.

 

Então bebamos à saúde de Ludmilla! E à saúde dos filhos que ela te dará! O médico ergueu o seu copo. Vamos, rapaz, bebe comigo.

 

Mas Semionov deixou cair o braço.

 

Não! disse em voz alta.

 

E porque não? exclamou ainda o Dr. Pluchin. Pusera-se de pé de um salto e dera um grande soco na mesa que fizera tremer os copos e a garrafa. Bebe à saúde dos teus filhos, cabeça de mula!

 

Brindaria de boa vontade à saúde de dez filhos, doutor, se isso tivesse um sentido. Semionov encostou-se à parede da cozinha. Quando me recebeu em sua casa, lembra-se de lhe ter dito que não sabia quem éramos? Repito-lhe agora.

 

Pois agora é que me vais dizer, filhinho.

 

O Dr. Pluchin encostou-se também à parede; partiu um pedaço de pão e meteu-o na boca. Vá, fala!

 

Vai ficar admirado, doutor, previno-o...

 

Ah! Porque não? Tu não és um urso, para seres uma rena falta-te a armação. Não conheço Satã, mas ouvi dizer que emanava dele um cheiro a enxofre. Tu cheiras a enxofre? Vá, fala!

 

A cabeça de sábio do doutor quase desapareceu na obscuridade da cozinha iluminada apenas por um candeeiro de petróleo. Deviam economizar electricidade, em Mulatchka; a partir das dez horas da noite cortavam a energia. Essas medidas parecia que eram provisórias, pois, no ano seguinte, com a entrada em acção da barragem, na altura em construção, Mulatchka gozaria de todas as vantagens do progresso.

 

Semionov passou a língua pelos lábios. Lembrou-se de Ludmilla adormecida na cama.

 

Tenho um revólver explicou para começar, dirigindo-se à silhueta indistinta do seu companheiro, perdido na obscuridade e aprendi a disparar sem avisar.

 

É certo que os homens nunca se curarão das suas fraquezas! Porquê falar sempre sem nada dizer? ripostou a voz do Dr. Pluchin, num tom perfeitamente calmo. Os cálculos provaram que um homem perde um quinto do seu tempo em palavras inúteis. Tenho a impressão de que tu fazes também parte dessa raça.

 

Semionov pousou as duas mãos sobre a mesa, dois punhos ameaçadores cuja pancada poderia ser mortal.

 

Outrora, a minha mulher chamava-se Ludmilla Barakova e era capitão do Exército Vermelho. Até ao mês de Outubro último, ocupava esse posto e as funções de comissário político no distrito de Krasnoiarsk, no campo Kalinin II, em Kusmovka. Foi ali que nos conhecemos.

 

Nenhuma reacção por parte do médico; Semionov esperava, mas só distinguiu na obscuridade um jacto de fumo esbranquiçado.

 

Eu era então engenheiro especializado em madeiras. Casámos e depois fugimos.

 

Dessa vez, o médico esperava a continuação. Mas Semionov calou-se.

 

E então? perguntou ele. Isso não é uma explicação.

 

Semionov meteu a mão no bolso e colocou um revólver sobre a mesa. Os seus olhos estavam rodeados de sombra.

 

Eu não me chamo Semionov prosseguiu lentamente. O meu nome... chamo-me, na realidade, Franz Heller, e era espião dos serviços secretos americanos.

 

Silêncio. Penumbra. O fumo de um cigarro. O aroma de um vinho selvagem. O candeeiro de petróleo crepitou e o médico inclinou-se para diminuir a mecha.

 

Ah! disse simplesmente. E depois?

 

E depois? Semionov pousou a mão sobre o revólver. Apaixonei-me por Ludmilla; aniquilei tudo o que constituía o meu passado e desde então têm-me perseguido como a um lobo perigoso. Eu... eu sou um alemão, doutor Pluchin.

 

Um alemão! A voz do médico era irreconhecível. É verdade. Nem queria acreditar. Quando era pequeno tive uma preceptora alemã, chamava-se Sophie Eiseman. Foi ela que me ensinou a andar, a brincar, a pescar; queria até ensinar-me alemão... aprendi poemas alemães... e depois, sabes...

 

O Dr. Pluchin saiu bruscamente do seu devaneio e fixou Semionov com um olhar duro; em seguida, deu novamente um soco violento na mesa; o candeeiro de petróleo quase perdeu o equilíbrio.

 

Espécie de imbecil! exclamou de súbito, inclinando-se para Semionov. Deixa-se ficar imóvel, a gemer, como uma grande larva, enquanto o mundo é vasto, imenso, infinito, e ele tem quarenta anos cheios de força e de vitalidade! E lá em cima, na cama, a mulher espera-o a chorar de felicidade, porque vai dar vida a um novo ser. Um filho teu, grande animal!

 

Semionov deu um salto e olhou o médico com uma expressão enlouquecida:

 

Ludmilla... murmurou lentamente.

 

Sim, Ludmilla. Já está no terceiro mês, e tem medo, em vez de se alegrar entre os teus braços! O doutor agarrou no seu copo. Vamos, meu velho, desta vez, que já falaste bastante, brindemos! À saúde do herdeiro!

 

Com uma mão trémula, Semionov ergueu também o copo.

 

Ao nosso primeiro filho disse baixinho. Depois, esvaziou o copo de um só trago e atirou com ele com toda a força contra a parede. Maldito seja o ódio entre os povos! gritou.

 

Anda, rapaz, bebe do meu copo; selemos uma amizade eterna, visto ser a última noite que passamos juntos. Amanhã devem recomeçar a vossa viagem. Em que direcção? Não me perguntes ainda... O velho Pluchin conhece um canto onde estarão em segurança. Bebe, bebe. Se não te embriagares quando estás feliz ou triste, é porque não és homem... Talvez as coisas sejam diferentes entre os Alemães... mas tu já não és alemão. Tu és Pavel Semionov, um caçador russo da taiga. Por isso é que deves beber até o teu coração ter o suficiente para nadar. Pluchin entregou-lhe outro copo. De facto, este copo custa dois rublos, em troca hás-de cortar-me ainda um carro de lenha.

 

Semionov bebeu.

 

Juntos, esvaziaram a garrafa até à última gota. Depois, o médico foi estender-se em cima da pedra da lareira e começou a ressonar imediatamente. Semionov dirigiu-se com dificuldade para o quarto, cambaleando. Da porta, no meio de um nevoeiro, distinguia a luz de uma vela, um ombro branco, uma cascata de cabelos negros.

 

Ludmilluchka murmurou caindo de joelhos junto da cama. Minha mulherzinha, meu anjo... Mãezinha...

 

Depois, começou a chorar, apertando contra si o corpo quente de Ludmilla.

 

Vem, meu amor disse baixinho Ludmilla. Vem... Sem ti a noite é tão vazia...

 

No dia seguinte, o Sol mostrava-se em todo o seu esplendor. O céu cintilava de um azul imaculado, as florestas rebentavam sob a pressão da seiva longamente contida, e até mesmo a lama que cobria as ruas de Mulatchka parecia ter tomado um ar lastimoso.

 

O Sol! Finalmente, surgia o sol da Primavera. Os primeiros rebentos não tardariam a despontar e umas pequenas flores brancas, que eram as primeiras a aparecer, pareciam já fazer-se adivinhar; os larícios iam cobrir-se com as suas agulhas e as nogueiras com os seus botões. A Natureza recomeçava a respirar. As marmotas, os castores e os ursos saíam dos seus abrigos de Inverno; espreguiçavam-se aos primeiros raios de sol primaveril. As raposas recomeçavam a caçar com entusiasmo, e em breve se veriam reaparecer na taiga os gansos e os cisnes selvagens, as abetardas gigantes, os martinhos-pescadores, os grous e as garças reais.

 

Assim, progressivamente, a Sibéria exibia os seus encantos como o pavão abre o seu leque. O ar puro transportava já o cheiro do pólen.

 

O Dr. Pluchin estava atarefado em volta da marmita da sopa quando, com um passo pesado e pouco seguro, Semionov desceu do primeiro andar, um Semionov de olhar vago e expressão sombria. Um leve cheiro a álcool que o rodeava atestava ainda as suas libações da véspera.

 

A bomba do pátio funciona, patife! gritou-lhe Pluchin. Nada melhor que um bom duche gelado para afastar os demónios. E, em seguida, uma boa sopa quente. Como está a nossa Ludmilla?

 

Dorme... Semionov encostou-se à porta. Que é essa mistura diabólica que me deu ontem, doutor? Tenho o cérebro como paralisado!

 

Mas não a língua!

 

Devo ter-lhe contado boas coisas, não?

 

Fizeste bem em contar tudo. Depois do almoço fazemos as bagagens e levo-os à feitoria de Turu; dali, poderão partir para norte num comboio de mercadorias. Vou também dar-lhes uma carta de recomendação para uma das minhas amigas. Chama-se Katarina Kirstarskaia e é médica, encarregada do distrito de Olenek. Podem ficar a viver lá e criar tranquilamente os vossos filhos.

 

Acredita verdadeiramente nisso, doutor Pluchin?

 

Olenekstaia é um desses sítios onde se espera a cada momento ver surgir um mamute de entre os arbustos. E agora vai depressa lavar-te. Não posso suportar o cheiro do álcool.

 

Por volta do meio-dia, estava tudo pronto. Ludmilla e Semionov tinham reunido aquilo que lhes fazia falta para a viagem em dois grandes sacos de cabedal. Antes de partirem, o médico fez sinal a Semionov para o acompanhar às águas-furtadas. Ali, debaixo de um monte de fardos de palha e de sacos, tirou duas espingardas em perfeito estado, cuidadosamente limpas e oleadas.

 

Duas jóias disse Pluchin acariciando as coronhas brilhantes. Duas Tokarev M 1940; disparam diabolicamente bem... É possível que venham a ter necessidade delas.

 

Semionov deitou um olhar rápido às espingardas e depois a Pluchin.

 

Onde foi descobrir estas armas, doutor?

 

Encontrei-as respondeu secamente o médico.

 

Claro que sim. Semionov olhou para os fardos de palha. E que tem mais na sua reserva de objectos perdidos, doutor?

 

Duas metralhadoras e quatro Tokarev como estas.

 

E porque é que as guarda, doutor? Quem o vir pensa tratar-se de um mensageiro da paz e não de um coleccionador de armas.

 

Achas que não tive razão para guardar essas armas? perguntou o médico num tom irritado. Nada é inútil na Terra. Tudo pode servir... Quer se trate de um alfinete ou de uma metralhadora, chega sempre a altura em que tudo é necessário.

 

Semionov pegou nas espingardas e pô-las ao ombro; as bandoleiras estavam também em perfeito estado.

 

Como agradecer-lhe, doutor Boris? disse tristemente Semionov. Para ser franco, confesso-lhe que tinha pensado seriamente em terminar aqui a minha viagem. Estava desesperado. Queria... queria confiar-lhe Ludmilla e entregar-me às autoridades.

 

Cretino! Mas que ideia genial! Pegar numa mulher, fazer-lhe um filho e atirar-me tudo para os braços! O médico saiu do sótão e fechou a porta com um pontapé brutal. Estamos na Primavera; dentro de duas semanas a tundra estará em flor; o mundo inteiro renasce e este imbecil imagina que está vencido! Vamos, Pavel Semionov, para a frente. Partimos dentro de uma hora.

 

Fizeram os vinte quilómetros que os separavam de Turu numa velha carripana conduzida pelo próprio doutor. Na feitoria, havia já grande agitação: negociavam, faziam trocas, bebiam, compravam, cantavam, celebravam a Primavera.

 

O Dr. Pluchin dirigia-se a Boria, o chefe da brigada de transporte. Semionov e Ludmilla não ouviram a conversa entre os dois, mas foi rápida.

 

Vais-me conduzir estes dois amigos a Olenekskaia Kulbasa, senão recusarei de futuro tratar a tua famosa sífilis e denunciar-te-ei ao comissário. Entendes?

 

Com estas palavras, o doutor levou Boria para detrás de um muro e dera-lhe um injecção.

 

Antes de se dirigir para o camião, conduzido pelo próprio Boria, Ludmilla atirou-se para os braços do doutor Pluchin.

 

Não acredita em Deus, doutor Boris? perguntou ela.

 

Não resmungou o médico.

 

Que graça lhe hei-de então solicitar para si?

 

Não quero graça nenhuma, pequena. Os olhos do Dr. Pluchin adoçaram-se. Continua, apesar de tudo, a ter confiança na humanidade, como eu. Sei que é uma fé absurda, mas que será de nós sem ela?

 

E Deus?

 

Deus? Deus falhou na sua tarefa quando criou o homem! Será necessário agradecer-lhe?

 

O médico voltou-se e afastou-se.

 

Doutor Boris! Semionov saltou mais uma vez do carro e correu atrás do médico. O senhor é como nós, não tem nada, vive como um eremita. Venha connosco...

 

Tu és louco, rapaz. Tenho os meus doentes, os meus selvagens do campo. De quinhentos há duzentos com sífilis; atiram-se como bodes sobre qualquer saia que vejam. E os acidentes? No ano passado, fiz dezanove operações à apendicite. Sabes onde opero? No sótão. Meto duas tábuas sobre os cavaletes de madeira, encho o corpo de fenol e extirpo-lhes as porcarias da barriga. Até aqui, nunca tive um único caso de infecção, nem um, percebes? É por isso que fico. Aqui sou útil. Posso ajudar os outros. É mais importante do que a nossa satisfação pessoal. Vai!

 

Boria tocou a buzina, o que fez sobressaltar Semionov. Era o último segundo de um adeus definitivo.

 

Doutor Boris disse com voz rouca. Se sinto novas forças e nova coragem é a si que as devo.

 

Então desaparece! Vai ter com a tua mulher. E não desperdices nem força, nem coragem, pois vais ter bem necessidade delas...

 

O Dr. Pluchin olhou a coluna de carros e viu-a afastar-se lentamente e depois desaparecer, engolida pela floresta. Em seguida, voltou à feitoria, encostou-se ao bar, chamou o seu velho amigo Ivan Lukanovitch e pediu um copo de vodka.

 

Nesse dia, o médico não voltou a Mulatchka; passou a noite num canto do bar, deitado sobre um monte de palha, curtindo o desgosto e o vodka até ao dia seguinte de manhã.

 

A doutora de que falara o doutor Pluchin, Katarina Kirstarskaia, era uma robusta mulher de vinte e sete anos, cabelos louros e longas pernas musculosas; os seus lábios vermelhos e carnudos obrigavam os conhecedores a dizer que ela era sensual. De facto, achavam-na geralmente bela.

 

Após ter feito brilhantemente a sua tese de doutoramento, exercera clínica durante três anos em Irkoutsk. Depois, alguém teve a estranha ideia de construir uma verdadeira cidade nas margens do Olenek. A cidade foi construída e dotaram-na até de um pequeno hospital, com instalações modernas, nomeadamente com uma sala de operações de paredes brancas e de soalho de mosaicos. O chefe do Soviete da cidade mostrava essa sala a todos os visitantes com um orgulho muito legítimo, se pensarmos que ele próprio vivia ainda numa barraca miserável. Foi para esse recanto perdido da Sibéria que Katarina Kirstarskaia foi enviada pelas autoridades oficiais, a fim de presidir aos destinos do pequeno hospital e do povo rude de Olenekskaia Kultbasa.

 

Para ela, aquele novo lugar representava apenas uma etapa da sua existência, um trampolim, por assim dizer, pois ela apresentara uma tese na Universidade de Irkoutsk sobre a epidemia de vírus que grassara entre as crianças das regiões nórdicas, na Primavera. E, desde então, tinham decorrido três anos, três anos durante os quais trabalhara, aguardando uma resposta.

 

Ao fim de duas semanas de viagem, o comboio de mercadorias de Boria atingiu finalmente a cidade. Preocupado antes do mais em cumprir as ordens do Dr. Pluchin, Boria passou primeiro pelo hospital para ir procurar Katarina Kirstarskaia.

 

O doutor Pluchin? exclamou a médica, surpreendida, segurando na carta que Boria lhe entregava. Há dois, anos que não ouvia falar nele. Como está ele, Boria?

 

É um verdadeiro tirano, camarada doutora. Um demónio!

 

A médica riu e percorreu com o olhar as poucas linhas que lhe endereçara Pluchin. Depois, deu rapidamente a volta ao camião e escondeu a carta do Dr. Pluchin no seu corpete vermelho que cintilava ao sol. Ludmilla e Semionov olhavam-na com inquietação. Mais uma vez, naquele minuto, se decidia o futuro deles.

 

Dou-lhes as boas-vindas a este buraco perdido disse estendendo a mão a Ludmilla para a ajudar a descer. Semionov saltou por sua vez atrás da mulher e pegou nos sacos e nos embrulhos com as duas espingardas. Mal tinha acabado de o fazer e já Boria, sem pronunciar uma palavra, seguia o seu caminho. Teve o cuidado de esquecer imediatamente a existência dos dois passageiros que contra sua vontade fora obrigado a transportar e a ter junto de si durante quinze dias; desse modo, a sua consciência reencontrou rapidamente a paz da inocência.

 

Boris Pluchin contou-me tudo disse Katarina Kirstarskaia numa voz melodiosa, de timbre vibrante, como o de um violoncelo. Os amigos dele são sempre meus amigos.

 

Precedeu-os no interior do hospital e conduziu-os a um quartinho sobriamente mobilado com uma cama e um canapé, um armário estreito, uma mesa e umas cadeiras, tudo de pinho. Mas, no parapeito da janela, uma flor fazia imediatamente esquecer a austeridade do compartimento, uma primavera vermelha com orlas brancas. Percebia-se que era um pouco débil, mas floria.

 

É tudo quanto tenho para lhes oferecer disse Katarina. O quarto é limpo. Não tem percevejos, nem piolhos; as janelas resistem corajosamente quando a tempestade sopra de norte.

 

Semionov pousou os sacos no chão e tirou o boné. Ludmilla sacudiu a cabeça.

 

Vamos sentir-nos muito bem aqui disse simplesmente.

 

Passaram o resto do dia a instalar-se, tomaram um banho, o que não lhes sucedia há muito. Semionov escondeu as armas debaixo do colchão; depois, fez a barba e cortou o cabelo. À noite, a sua anfitriã bateu à porta e entreabriu-a.

 

Querem vir jantar comigo? Mandei assar dois frangos.

 

Entrou no quarto e olhou para Ludmilla, espantada. Lembrava-se de ter visto uma mulher magra, esgotada, vestida com roupas inverosímeis e sujas, e descobria agora uma linda mulher elegante. Ludmilla vestira uma saia de fazenda cinzenta, uma blusa amarela, meias de seda e sapatos de desporto, últimas recordações do armazém de Wiwi.

 

É muito bela, camarada! disse Katarina. Depois voltou-se para Semionov: Olenek é uma cidade em desenvolvimento constante; todos os dias se acaba a construção de uma nova casa; mas a cidade é habitada quase unicamente por homens. E por homens muito primitivos.

 

Comeram no quarto de Katarina, um quarto grande bem aquecido e luxuosamente mobilado, pelo menos comparado com os quartos siberianos: um aparador, vários sofás e uma mesa redonda; havia mesmo um transistor colocado sobre um banquinho e um fonógrafo com três caixas cheias de discos. Semionov precipitou-se para os discos e leu as etiquetas: Beethoven... Brahms... Schubert... Wagner... Verdi.,. Glinka... Tchaikovsky... Borodine... Meyerbeer...

 

Gosta de música clássica, camarada Kirstarskaia?

 

Sim. É o meu melhor remédio contra a nostalgia. Quando me sinto presa da melancolia siberiana, ouço a Heróica. Tudo desaparece, a nostalgia, o desespero, os desejos insatisfeitos...

 

Ludmilla inclinou-se.

 

Creio que vamos dar-nos bem. Possa Olenekskaia Kultbasa ver o fim das nossas tribulações e dar-nos, finalmente, a paz que há tanto tempo procuramos!

 

Com certeza. Porque não?

 

A médica levantou-se, passou as mãos pelos cabelos e saiu. Semionov pôs um disco, o concerto número um para piano e orquestra de Chopin. Mergulhado na sua meditação, insensível ao mundo exterior, sentou-se junto do aparelho e não ouviu senão a música. Por momentos, Chopin deve provavelmente ter estremecido no seu túmulo, porque o fonógrafo era antigo, o som era ligeiramente agudo e por vezes a agulha saltava; entre os diversos andamentos era preciso levantar a agulha, mas Semionov nem sequer deu por esses pequenos inconvenientes. A música mergulhava-o num tal deslumbramento que sorria sem dar por isso e instintivamente passou um braço em torno dos ombros de Ludmilla, atraindo-a para si.

 

Teremos atingido finalmente o termo do nosso exílio?

 

Teremos chegado ao fim? Semionov fazia essas perguntas como uma prece a Deus, levado pela música para um mundo feérico onde só subsistiam o amor e a luz.

 

Ao lado, no seu escritório, separada dos fugitivos por uma ligeira divisória de madeira, Katarina Kirstarskaia relia um aviso telegráfico enviado várias semanas antes, que um oficial em serviço nos arredores lhe entregara. Era um aviso de procura. Um mandato de captura.

 

”Procura-se o espião alemão Franz Heller, que se faz passar por Pavel Semionov, assim como a ex-comissária do Povo Ludmilla Barakova, esposa de Semionov, pela acusação de crime de alta traição. Descrição de Ludmilla Barakova: estatura mediana, delgada, cabelos escuros e olhos pretos e amendoados. Assinado: General Karpuschin.”

 

Com um ar preocupado, Katarina Kirstarskaia rasgou o papel e atirou os pedacinhos para o cesto. ”Aqui é que eles devem viver em paz”, pensava. ”Pluchin enviou-os e ele sabe o que faz. Pouco importa o que lhes censuram... Aqui, à beira do Olenek, entre a taiga e a tundra, expia-se qualquer crime, pois foi aqui que Deus, na Criação, colocou o Purgatório...”

 

Sem ruído, na ponta dos pés, foi ter com Ludmilla e Semionov que continuavam enlaçados perto do fonógrafo. Sentou-se num sofá e soltou um suspiro. Uma ligeira inveja atravessou o seu cérebro melancólico. Era possível que o amor fosse esse mágico que liberta de todas as leis e constrangimentos?

 

Não podia compreender, pois nunca conhecera o amor. Durante quatro dias e quatro noites fora amante de um médico de Irkoutsk, depois ele expulsara-a do seu quarto como uma meia velha.

 

Sentira então desejo de o matar. Soubera depois que ele era casado e pai de três filhos. Uma noite, encontrou-o, por acaso, bêbado e cambaleando, sozinho à beira do lago Baical. Sem dizer uma palavra aproximara-se dele e atirara-lhe um pacote de pimenta para os olhos. Ele fugira a gritar como um cão ferido.

 

Nunca se descobriu o autor desse atentado. Os olhos do médico nunca mais viram a luz do dia: ficou cego. Pouco depois, Katarina fora enviada para Olenekskaia Kultbasa. Irkoutsk era longe!

 

O amor?...

 

Katarina baixou a cabeça.

 

Quando pensava no amor, apressava-se habitualmente a pôr um disco a tocar. Quem pode fazer ideia da solidão de um ser cujo coração não contém senão desejos e apelos sem resposta?

 

Julho. O Verão inflamava a taiga; vindos dos pântanos de Olenek, os mosquitos proliferavam; a nova cidade estendia-se cada vez mais; surgiam sem cessar novos edifícios, novas ruas.

 

Para quem construímos nós tudo isto, afinal? perguntou um dia Semionov a um dos seus companheiros de trabalho. Fora incorporado na terceira brigada de trabalhos públicos, oito dias após a sua chegada e declarara ser técnico em revestimentos do solo. Já estão prontas duzentas casas que ainda se encontram vazias, e continuamos a construir. É preciso meter gente nestas casas, camarada. Senão, é absurdo!

 

São ordens, camarada. Porque havemos de procurar as razões? Uns dizem que as casas se destinam a um destacamento militar, outros falam de sábios e de pesquisadores científicos. Diz-se também que dentro de um ano esta região será transformada num estaleiro. Que importa! Nós só temos de nos preocupar com uma coisa: a construção das casas!

 

Enquanto Semionov trabalhava na construção, Katarina Kirstarskaia fizera de Ludmilla, em poucas semanas, uma perfeita enfermeira-ajudante. Ludmilla propusera-se mesmo a ajudar a sua amiga nas operações cirúrgicas.

 

Em breve, Ludmilla se encarregava dos cuidados e tratamentos simples, enquanto Katarina se consagrava apenas aos graves problemas médicos. No dia chamado ”da cirurgia”, lá estava Ludmilla junto da médica, envergando uma bata larga e ajudando discretamente. Três tratamentos após-aborto, uma apendicite, um enorme antraz, a amputação de um polegar.

 

Era necessário extrair também dentes. Katarina não estava com meias medidas. Quando se tratava de um desses semi-selvagens de barba hirsuta, não dava injecção de anestesia. Quando os via chegar, com os olhos lacrimejantes e a face inchada, começava a rir.

 

Senta-te! ordenava.

 

E Ludmilla precisava de todas as suas forças para manter tranquilos aqueles gigantes habituados à vida rude; sucedera várias vezes que, apesar do sofrimento e da dor, um desses selvagens se agarrasse ao peito de Katarina ou ao da sua assistente, oferecendo duzentos rubles por uma ”valsinha”...

 

Abre a boca!

 

E puxavam, sopravam, resfolegavam, gritavam; havia alguns estalidos e Katarina mostrava orgulhosamente o dente ignóbil aos olhos perturbados do doente.

 

Espécie de molengão! dizia então a médica, rindo com desdém. Basta um dentinho para que faças chichi nas calças, e ainda queres armar em forte com as mulheres! Pfff!...

 

Num quente dia de Verão, Ludmilla fora à floresta com a carripana para fazer um penso a um carvoeiro da brigada Stachanow I. Uma árvore ao cair dilacerara-lhe a mão, porque ele não tivera o cuidado de se manter afastado.

 

Kolka Lidka queixava-se, sentado no tronco de uma árvore e esperava pela enfermeira.

 

As serras e os guindastes gemiam e os troncos majestosos inclinavam-se com estalidos e gritos de dor. Kolka viu chegar o carro e verificou com satisfação que o demónio da Kirstarskaia não se incomodara a ir ali em pessoa, mas que enviara a sua enfermeira.

 

Abençoado seja o dia que te trouxe junto de mim, minha pomba disse Kolka com voz um pouco pastosa.

 

A enfermeira fez o seu trabalho sem reagir, não poupando o álcool nem a tintura de iodo; mas Kolka apenas sentia o contacto da sua mão no joelho de Ludmilla.

 

Dói?

 

Não, filhinha, não resmungou o homem.

 

Bem disse finalmente Ludmilla arrumando as suas coisas, acabei. Vou dar-te um comprimido para o caso de teres muitas dores esta noite.

 

A ligadura está bem segura?

 

Com certeza!

 

Não se pode tirar?

 

Não. E de resto, para quê?

 

Kolka olhou à sua volta; estavam sós na clareira. Ouviam-se, ao longe, os gritos dos lenhadores e o barulho das serras, mas ali, na orla da floresta, escondidos do outro lado dos fetos com mais de um metro de altura, estavam longe dos olhares humanos.

 

Ó minha pombinha disse Kolka com uma estranha ternura na voz. Apetece-me devorar-te...

 

Inclinou-se, agarrou em Ludmilla e apertou-a contra si, depois quis abraçá-la. Um soco no nariz atordoou-o, o sangue começou a correr e Kolka perdeu o controlo sobre si.

 

Garça... murmurou.

 

Deixou cair sobre Ludmilla o seu punho de gigante e dominou a pequena figura que atirou para cima das ervas altas. Um novo soco seco e brutal entre os olhos, renovou as suas forças. Começou a rir com uma gargalhada triunfante.

 

És uma pequena garça disse ele com os olhos brilhantes de excitação. Pequena garça. E pensar que quase há um ano não toco numa mulher...

 

De repente, os seus olhos abriram-se muito; teve uma sensação de queimadura intensa no peito... parecia-lhe que milhares de estrelas transformavam a floresta num paraíso encantado. O rosto de Ludmilla, as árvores, o céu, tudo se misturou e confundiu; não conseguiu sequer soltar um grito.

 

Era o fim. Rebolou, soltou um suspiro e ficou estendido.

 

Petrificada, Ludmilla ficou estendida perto do morto; o seu olhar perdia-se no céu. ”Matei um homem com as minhas próprias mãos”, pensava ela. ”Com uma simples tesoura.”

 

Mas, em breve, recuperou a sua presença de espírito e pôs mãos à obra. Com um gesto seco retirou a tesoura do peito de Kolka, arrastou o corpo para a espessura dos arbustos e cobriu-o com um monte de folhas. Depois, apanhou os pedaços de gaze de que se servira para fazer o penso, apagou os traços deixados pelo carro e foi-se embora.

 

Perfeitamente calma e segura de si, guardou o material e foi ter com a médica que se encontrava na sala de jantar. Uma música suave enchia o aposento. O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky.

 

Katarina Kirstarskaia, acabei de matar um homem

 

disse com voz firme, como se fizesse um relatório. Kolka Lidka. Com a tesoura. Tinha-se atirado a mim como um louco e queria violar-me.

 

Ah! Katarina afastou o prato e apagou o rádio.

 

Onde está ele?

 

Na floresta. Escondi-o entre os fetos.

 

Alguém te viu?

 

Não, não o creio.

 

Está bem.

 

Katarina ofereceu um cigarro a Ludmilla, acendeu outro e não fez mais perguntas.

 

Vai deitar-te disse com uma voz imensamente meiga. Tenta dormir. Olha, vou dar-te um comprimido. É a única coisa razoável que podes fazer agora. Dormir e não pensar em nada.

 

Durante a noite, Katarina Kirstarskaia e Semionov voltaram à floresta, puseram o corpo de Kolka na carripana, e depois de o terem amarrado e prendido com grandes pedras, lançaram-no no rio tumultuoso.

 

Durante muito tempo, as pessoas em Olenekskaia Kultbasa perguntaram o que teria sucedido a Kolka. Ele desaparecera subitamente, como por magia. O chefe do Soviete falou com a Dr.a Kirstarskaia. A fim de evitar as dificuldades administrativas, decidiram que Kolka Lidka teria morrido com uma pneumonia; Katarina assinou a certidão de óbito e isso pôs ponto final na questão.

 

O major Bradcock, baptizado para as circunstâncias como Fiodor Awdei, chegara a Norilsk, junto do lago Piachina, a norte do Jenissei. Levava no bolso os documentos de um geólogo e viajava através da Sibéria por conta de uma sociedade soviética de geologia para descobrir a explicação de certos fenómenos que até então tinham permanecido enigmáticos. Falava muito e preocupava-se com o cascalho, do qual, dizia ele, se podia tirar energia eléctrica, por exemplo. Aqueles que ouviam Awdei abanavam a cabeça, fingiam perceber tudo e admiravam em segredo aquele homem que consagrava a sua existência a problemas tão fúteis.

 

Finalmente, em Norilsk, descobriu os primeiros rastos daquilo que procurava. No meio da floresta, guardada por vários cordões de soldados do Exército Vermelho e inteiramente rodeada de minas, havia uma fábrica de peças soltas, aquela mesma de que lhe falara o seu chefe, em Bad Godesberg. A actividade era intensa entre essa fábrica e o Jenissei; transportes de peças, substituição das guarnições, controlos permanentes. O major Bradcock percorreu a região, e, com o microscópio na mão, estudou as mais pequenas pedras. Com um martelinho de prata batia nas pedras para registar o seu som. Outras vezes, mandava cavar buracos na terra para depois se proceder ao exame dos solos em laboratório.

 

Na mesma época era em Maio o general Karpuschin teve uma demorada conversa com o comandante da guarnição estacionada na taiga. Aquelas poucas semanas tinham marcado Karpuschin; o seu rosto pálido, como o de um hepático, fazia-lhe parecer ter mais de dez anos do que em Moscovo; e quando segurava um lápis, ou mesmo um copo, a sua mão tremia como se estivesse perpetuamente com frio.

 

Moscovo acabava de o avisar que provavelmente o major Bradcock não deixara a União Soviética; Karpuschin lembrava-se perfeitamente do convidado indesejável da Embaixada Americana, em Moscovo; todavia, ele próprio se assegurara da sua partida, no dia previsto, isto é, três dias depois da chegada. No entanto, recebera aquelas informações dos serviços de espionagem de Bad Godesberg, e a fonte era digna de confiança. O major Bradcock, aquele que tomara o avião, não seria senão um sósia, e o outro, o verdadeiro, andava em liberdade algures pela Rússia soviética, tão bem guardada! Ao saber dessa notícia parece que o marechal Malinovski uivara de furor e chamara a Karpuschin ”cabeça sem miolos”, na presença de todos os seus oficiais.

 

Karpuschin estava magoado; contra essa injúria cruel procurou abrigo no vodka e esperou que se apresentassem os auxiliares clássicos da espionagem internacional: o acaso ou a traição!

 

Seria por causa do clima da Sibéria ou, na verdade, Karpuschin estaria a ficar senil? Na realidade, perdera aquele seu ”sexto sentido” profético, que os seus colegas tinham já tornado lendário. O comandante de Norilsk falou-lhe desse geólogo extraordinário perdido na natureza e aparentemente ocupado em dialogar com as pedras. Karpuschin limitou-se a rir, retorquindo que sem alguns idiotas dessa espécie o mundo seria muito monótono.

 

É o que permite aos outros, comandante, sentirem-se inteligentes!

 

Mas, em breve, deixou de rir.

 

Camaradas, fazemos o lançamento no dia um de Agosto próximo! Que tudo esteja preparado! O Plano VI Vostok A entra em acção. A partir de trinta e um de Julho, toda a região de Olenekskaia e Kultbasa fica rodeada pelas divisões norte-siberianas II e VI. Será impossível, mesmo a um rato, escapar das nossas redes. No dia um de Agosto todas as esquadrilhas aterram no novo aeroporto, na margem do Olenek. O comandante do Olenekskaia Kultbasa anuncia que estão prontas novecentas habitações para os técnicos, oficiais e especialistas do serviço de pesquisas. Camaradas, chegou a hora da glória da nação: construímos com as nossas próprias mãos, no deserto, uma nova base de partida para a conquista do espaço e um novo triunfo para a União Soviética. Viva a Grande Revolução e nosso pai Lenine!

 

A 31 de Julho, Karpuschin voou para Olenekskaia Kultbasa. Entre a multidão de curiosos que se aglomerava nas imediações do aeroporto, encontrava-se um especialista na colocação de soalhos: Semionov.

 

Semionov observou os oficiais com o uniforme de Verão que se encontravam na pista. O último a descer do avião, um homem baixo e corpulento, parecia atrair sobre ele os raios do sol: o seu uniforme estava constelado de medalhas multicolores, e as lunetas pendiam-lhe do pescoço, suspensas por um fio.

 

Aquele é um tipo perigoso comentou um dos operários ao ver aparecer Karpuschin. Conheci-o em Yakoutsk. Faz parte da KGB e vem directamente de Moscovo. Podem crer, camaradas, que onde ele passa semeia a inquietação. Acabou-se a doce vida nas florestas!

 

O olhar petrificado de Semionov não podia afastar-se da silhueta de Karpuschin; seguiu-o com o olhar até que o oficial desapareceu num grande carro preto.

 

Inútil lutar. A Rússia assemelha-se a uma esponja, pode, absorver milhões de gotas de água, mas ao mínimo choque devolve-as uma a uma.

 

Pouco tempo depois, após a partida de Karpuschin, Semionov fez-se transportar para o hospital como doente, num camião.

 

Meu Deus disse Ludmilla vendo-o chegar. Que é que te sucedeu, Paulucha?

 

Karpuschin está na cidade replicou sombriamente Semionov. Temos de fazer as malas e fugir. Para qualquer sítio, para a floresta...

 

Katarina Kirstarskaia fechou as portas da sala de enfermagem onde Ludmilla se encontrava a pincelar a garganta de uma pequenina quando o marido chegou.

 

Não! exclamou Ludmilla cujos olhos negros lançavam faíscas. Não, não e não! Pela primeira vez recuso. Ouves, Paulucha, recuso-me a fugir. Espero um bebé.

 

Devo ter o meu filho como uma loba e alimentá-lo de raízes e de líquenes? Sabes bem que te amo acima de tudo, Paulucha, mas desta vez recuso-me a seguir-te. Há a criança, é para ela que devemos viver agora e não para nós! Fico aqui, mesmo que tenha que me esconder nas caves e dormir em cima do carvão. Pelo menos estarei entre pessoas e poderei ter o meu filho como outra mulher qualquer...

 

Semionov aquiesceu. Não podiam fazer outra coisa.

 

Está bem. Ficaremos, Ludmilla. Sem dúvida, tens razão; é preciso saber esperar e não tentar reagir sempre por actos, ou tomando decisões impulsivas. Vocês, os Russos, são mestres nessa arte!

 

Tu também és russo, Pavel murmurou Ludmillla baixando as mãos com ar desencorajado. Ou, na verdade, estás com medo, querido?

 

Sim, tenho medo... por ti.

 

Beija-me então disse ela voltando a sorrir. Eu não tenho medo. Quem é Karpuschin? Apenas um oficial. Um soldado, nada mais. E eu trago em mim uma nova vida. Percebes, uma nova vida. É todo um mundo e um mundo novo.

 

Bravo! não pôde deixar de dizer Katarina. Os homens e o seu grande zelo! Como é que esse Karpuschin pode encontrá-los? Ele visitará o hospital, é certo. Mas durante esse tempo vocês ficarão na cave. Depois, vai-se embora e acabou-se.

 

Toda a cidade está cercada retorquiu Semionov. Sabe-se agora para quem foram construídas todas as habitações: Olenekskaia Kultbasa deve tornar-se num novo centro nuclear! Fora de si, pôs-se a gritar: Compreendem o que isso significa para mim? Recusei a missão que me confiaram e venho cair em cheio na rede! Eu próprio contribuo para a construção dos segredos mais vitais da Rússia; não só não consegui escapar ao meu destino, mas parece que lhe venho cair literalmente nos braços! Nós queríamos partir à procura do paraíso e da paz e viemos cair num inferno moderno!

 

Ludmilla e Katarina tiveram de se sentar; os três ficaram alterados por essa notícia fulminante, cujo segredo fora tão bem guardado.

 

Um centro nuclear, aqui! murmurou Ludmilla. É impossível!

 

Impossível! quem é que conhece esta palavra em Moscovo? Semionov aproximou-se da janela. Acabam de anunciar que a um de Agosto trezentos aviões da esquadrilha de transportes irão aterrar aqui. E, em seguida, cem aviões por dia para o transporte de material e homens. Nós passamos a ser a frente! A frente da paz!...

 

E começou a rir com um riso de tal modo alucinante que as duas mulheres taparam os ouvidos.

 

A 1 de Agosto, no avião 109, reservado aos especialistas, Fiodor Awdei, aliás major Bradcock, desembarcou em Olenekskaia Kultbasa; deram-lhe a casa número 19, da Rua Frunse, mas quando chegou com as suas malas para se instalar, descobriu que ela nem sequer tinha telhado e que havia operários a trabalhar lá.

 

Que significa isto? berrou. Não podiam apressar-se um pouco?

 

De que servia gritar. Não tinham pregos para acabar o telhado e só deviam chegar no próximo mês de Abril.

 

Isto vai indo, paizinho respondeu placidamente um dos carpinteiros. Nós fazemos o que podemos. E se não estiveres satisfeito vai queixar-te a Lenine! E desaparece daqui imediatamente. Cuidado, oh!

 

Era tarde de mais. Caíra uma viga em cheio sobre a mão esquerda do major Bradcock. Uma dor aguda percorreu-lhe todo o corpo.

 

Feriste-te? perguntou o carpinteiro com voz mais suave. Vá, levanta-te, para vermos se partiste alguma coisa.

 

Meia hora mais tarde, Ludmilla Semionova, a enfermeira, ia tratá-lo. Tinham-no transportado para a casa vizinha, que estava acabada, reconfortando-o com uma boa porção de vodka. E, ironia do destino, foi a própria Ludmilla quem tomou a decisão:

 

Tem de vir para o hospital, camarada Awdei; só a doutora pode fazer este penso. Se quiser levo-o já comigo.

 

Bradcock aceitou com um gesto de cabeça.

A chegada em massa de técnicos, operários, especialistas, comissários políticos e militares, provou a Katarina Kirstarskaia que o seu hospital não fora construído à medida de um centro nuclear.

 

Antes de mais, apresentaram-se ali seis novos médicos, um por hora, ou melhor, um por cada esquadrilha. Chegaram um de cada vez e saudaram a camarada médica, rindo.

 

Os camaradas colegas tencionam dormir nas caves? perguntou, furiosa.

 

Vamos! Há tantos quartos nesta barraca! respondeu um deles, natural de Tbilisse, de olhos brilhantes.

 

Para os doentes! Os quartos do pessoal são ocupados pelo médico, por uma assistente, pelas enfermeiras e por mim própria.

 

Pronto, não tem importância replicou, rindo, o médico do Cáucaso. É preciso sabermos adaptar-nos a tudo, não é verdade, camaradas? Dormiremos nos quartos das enfermeiras.

 

Estamos num hospital e não num bordel replicou Katarina.

 

E com estas palavras abandonou os médicos e dirigiu-se para a sala de operações onde a esperava um furúnculo grande como um limão.

 

Daí a pouco, apareceu Ludmilla Semionova com o seu ferido; bastava um olhar para se perceber que o infeliz major sofria horrivelmente.

 

Que é? perguntou Katarina.

 

Bradcock fez uma careta e ergueu a mão coberta com um penso provisório.

 

Foi um carpinteiro que teve a gentileza de me atirar uma viga para cima da mão. A gente daqui é de uma delicadeza. Nunca mais me esquecerei.

 

Katarina observou com atenção o recém-chegado. O seu instinto disse-lhe logo que aquele homem não era como os outros, nem sequer como os seis médicos que tinham chegado. Aquele saía do comum. Uma onda de simpatia recíproca reuniu-os.

 

Quem é, camarada? perguntou.

 

Fiodor Awdei, geólogo e natural de Moscovo. Colecciono pedrinhas.

 

A dor fê-lo cambalear; teve de se apoiar à parede; de repente, sentiu-se muito cansado, não só devido à dor, mas tamém por causa da tensão nervosa dos últimos dias! Finalmente, encontrava-se no coração da Rússia, no local onde edificavam a destruição da América! Mas, nesse instante preciso, teria vendido a sua alma por uma cama e doze horas de sono.

 

Mostre-me isso, Awdei.

 

Katarina observou o ferimento com uma atenção muito especial.

 

Não tem nada partido. Vou pôr-lhe uma ligadura elástica; depois, deixa estar a mão imóvel, sem a dobrar, e espera.

 

Terapia superior à da melhor essência científica! comentou Bradcock com uma delicadeza irónica.

 

Katarina franziu os olhos; o seu olhar tornou-se mais duro e a voz mais baixa do que de costume.

 

Se isto não lhe convém, camarada, nada o impede de voltar a Norilsk; aí encontrará, sem dúvida, médicos mais competentes.

 

Muito pelo contrário. Ludmilla untava-lhe a mão com uma pomada suave que imediatamente produziu efeito. Quando se trata do físico, não se deve nunca esquecer o psíquico. Quando o olhar se anima, quando o coração se enche de alegria, o sangue corre mais depressa nas veias, não é verdade, camarada? Não se deve esquecer que a alma tem também uma palavra a dizer...

 

Katarina Kirstarskaia franziu as sobrancelhas; o seu rosto tomou uma expressão quase hostil.

 

Todos os geólogos são parecidos consigo? perguntou ela. Suponho que durante os seus passeios solitários tenha adquirido o hábito de falar com as pedras. Mas eu não sou nenhuma pedra!

 

Espero bem que não, camarada! exclamou Bradcock com um largo sorriso.

 

Katarina voltou-se e foi terminar o tratamento do furúnculo sob o olhar espantado do ferido. O indivíduo do furúnculo, um homenzarrão de barba hirsuta, batia com os punhos na mesa de operações e gemia, mas Katarina procedia como se não desse por nada.

 

Aqui, ignoram as anestesias locais, não é, camarada? perguntou o falador incorrigível.

 

Não! A Sibéria exige homens duros e resistentes, camarada Awdei. Os franganotes que voltem para debaixo das saias das mães.

 

Muito bem aprovou o outro. Bem dito. Não esquecerei. Mas diga-me uma coisa, onde é a minha cama?

 

Qual cama?

 

Aquela onde poderei sonhar demoradamente...

 

Não sei onde fica o seu apartamento, camarada.

 

O meu apartamento tem quatro paredes e um telhado composto de algumas vigas. Uma delas, demasiado independente, sem dúvida, caiu-me em cima da mão esquerda, o que é pena, pois é ela que é mestra na arte das carícias. Discutir com os operários, nem pensar, isso não serve de nada. Acha que me serviria de alguma coisa discutir consigo, por exemplo?

 

Não.

 

Está a ver? Que pode fazer então um pobre tipo como eu, com a mão ferida pela viga de uma casa que não está sequer terminada e que...

 

Quarto nove! interrompeu brutalmente Katarina. Mas previno-o: já lá estão cinco doentes; será o sexto.

 

Não preciso senão de um cantinho com uma caminha, camarada.

 

Vá, venha disse Ludmilla não vai certamente querer o hospital todo em alvoroço por causa de uma mão ferida!

 

Não, não é de maneira nenhuma a minha intenção. Saíram da sala de operações seguidos pelo olhar perscrutador da doutora.

 

”Quem será ele?” pensava a médica reanimando o homem do furúnculo. ”Porque será diferente dos outros? É um russo, fala perfeitamente o dialecto de Moscovo. E, no entanto, nada é russo no seu comportamento. Talvez seja o facto de trabalhar com as pedras que o torna tão estranho!”

 

Nesse dia passaram-se muitos acontecimentos que perturbaram o dia-a-dia do hospital. Os seis novos médicos instalaram-se no salão destinado às festas; empurraram para um canto o bilhar, o fonógrafo, o aparelho de rádio, mesas e cadeiras, mandaram levar para ali camas e pregaram pregos na parede para pendurarem as roupas. Daí a uma hora, a ”Aula”, como Katarina a havia pomposamente baptizado, assemelhava-se a um acampamento militar; saía de lá uM cheiro horrível a suor, a cabedal e a roupas húmidas.

 

Não serve de nada queixar-me disse ela a Ludmilla. Onde os homens passam semeiam o caos.

 

Involuntariamente, o seu pensamento ia para o quarto nove.

 

Katarina Kirstarskaia teve de esperar três dias para voltar a ver Fiodor Awdei.

 

Até ali, fora Ludmilla que o tratara sempre, mas para ela era um doente como outro qualquer; nem sequer sentira necessidade de falar dele a seu marido. No entanto, viviam no mesmo patamar, afastados uns dos outros por três quartos! Quando Semionov saía do seu quarto à noite para ir à casa de banho, passava sempre diante de um quarto onde se ouviam roncos sonoros, sem desconfiar da personalidade do seu ocupante!

 

Desde que fora preso, isto é, desde a presença de Karpuschin na cidade, Semionov recebera de Katarina Kirstarskaia a incumbência de fazer um trabalho que nunca tivera tempo de fazer: a actualização das fichas dos doentes.

 

Assim, Semionov escreveu numa ficha o nome de Fiodor Awdei, mão esquerda ferida, contusões ósseas em tratamento quarto nove acidente.

 

Para Bradcock, esses dias passados no hospital representavam uma perda de tempo. Que fazer? Era preciso esperar que o ferimento ficasse curado, e, por outro lado, a casa que lhe tinham destinado não estava ainda habitável. Aborrecia-se. Mas, enquanto os comboios de mercadorias rolavam ainda para os depósitos, não se podia descobrir nada, sobretudo em caixas hermeticamente fechadas. Por outro lado, tornava-se cada vez mais difícil fazer falar as pessoas, mesmo oferecendo-lhes um cigarro. Mas tudo podia mudar de um dia para o outro. Sentia-se desanimar no quarto nove.

 

Assim, o seu coração deu um salto de alegria quando viu entrar Katarina Kirstarskaia, em vez da meiga e silenciosa Ludmilla; dessa vez, Katarina decidira ir ela própria fazer o penso.

 

Em poucos dias, o hospital organizara-se. Tinham criado novos serviços, enviado os convalescentes para casa e dividido os restantes doentes pelos diferentes serviços; assim, pouco a pouco, o quarto nove fora-se esvaziando dos seus ocupantes; restava apenas Bradcock, um Bradcock que se aborrecia, passando o tempo a ler e a reler velhos Pravda deixados ali pelo seus vizinhos de cama, e fumando cigarro atrás de cigarro.

 

O céu seja louvado! Até que enfim que apareces, mãezinha! exclamou ao ver aparecer Katarina à entrada da porta. Invadiu-o uma súbita alegria ao verificar que a jovem médica tivera um ligeiro estremecimento, que ele, é claro, levou a seu crédito.

 

Não podia dizer nada mais tolo? perguntou ela sentando-se na beira da cama e agarrando-lhe a mão. Tem-lhe doído?

 

Um pouco. Arde-me por dentro. Mas o meu coração arde ainda mais quando a vejo, Katarina!

 

Não tem tido febre. A médica examinava o boletim que se encontrava aos pés da cama do doente e que Ludmilla preenchia cuidadosamente todos os dias. Está tudo bem?

 

Sim, mãezinha, vai tudo bem.

 

Porque é que me chama sempre ”mãezinha”? A voz grave de Katarina perdia a segurança. Pareço assim tão velha?

 

Simplesmente, porque nunca ousaria chamar-lhe ”minha pomba”. Um passarinho que podemos prender nas nossas mãos, que se aquece quando tem frio e cuja plumagem se acaricia suavemente...

 

Não tem de vez em quando a impressão de se portar como o último dos cretinos, Fiodor Awdei?

 

Para ser franco, sim.

 

Bradcock voltou-se. Perto dele, o rosto de Katarina parecia tenso e ansioso. Um rosto severo de olhos brilhantes, emoldurado por caracóis louros; a boca entreaberta, o peito ofegante, tudo nela indicava um apelo.

 

Marteladas agitaram o peito do ferido; uma corrente eléctrica sacudiu-o agradavelmente da cabeça aos pés. Baixou os olhos, seguiu com o olhar a linha bem torneada das ancas e das coxas e viu os tornozelos nus de Katarina, cujos pés calçavam sapatos abertos.

 

Você é maravilhosa, Katarina disse Bradcock em voz baixa. Em si está toda a magia lendária da Sibéria.

 

Ela manteve-se silenciosa. Só os seus olhos se ensombraram. Nunca se devia pensar, reflectir, dizia de si para si. Na natureza nem tudo é lógico, especialmente os sentimentos de uma mulher. Um urso faz provisão de mel; a raposa caça galinhas, o lobo dizima o rebanho, a águia mergulha das alturas sobre a sua presa. Agem todos segundo a natureza. E o homem? Não é também um produto da natureza? Porquê defender-se contra os seus próprios instintos? Porquê pensar?

 

Inclinou-se, desabotoou a camisa de Bradcock e tirou-Lha. Os dedos de Katarina acariciaram a pele nua. Subitamente, correu para a porta e fechou-a à chave, guardando-a no bolso. Despiu-se rapidamente e sem a mínima perturbação espreguiçou voluptuosamente o seu corpo bronzeado e apetitoso como um pão dourado. Um sentimento de admiração encheu Bradcock perante aquela estátua perfeita da plenitude, símbolo da vida, da saúde, de fecundidade. Abriu os braços.

 

Ambos esqueceram completamente a mão ferida do doente, objecto de tantos cuidados e de tantas dificuldades.

 

Na noite seguinte, saciada e feliz, Katarina dormia voltada para a parede, na cama de Bradcock. Bradcock saíra do quarto para ir à casa de banho; quase no mesmo instante uma porta abriu-se e um homem vestindo apenas as calças, de torso nu e uma toalha aos ombros, entrou no mesmo corredor. Fazia muito escuro para que ele pudesse distinguir-lhe as feições. Só a luz do luar que penetrava ali permitia a Bradcock distinguir uma silhueta humana. Dois metros os separavam ainda quando o americano, no seu tom habitual de bom rapaz, meteu conversa:

 

Se tens pressa, camarada, vai tu primeiro. Eu tenho tempo...

 

Semionov imobilizou-se na obscuridade. A voz, a entoação, o vulto em contraluz produziram sobre ele o efeito de um duche gelado. Ficou sem poder falar durante uns segundos e depois murmurou:

 

James! Merda!

 

Tinha falado inglês. Foi a vez de Bradcock sentir um duche gelado nas costas; um medo súbito, insensato, incompreensível, se apoderou dele.

 

Franz... murmurou com voz rouca.

 

Enfrentaram-se a dois metros de distância. Dois amigos, dois mundos opostos. Cada um deles se apercebia que a Sibéria e precisamente a cidadezinha desconhecida da taiga, Olenekskaia Kultbasa, seria o terminal da sua existência.

 

Não posso levar-te para o meu quarto disse Semionov em voz baixa. Ludmilla tem o sono muito leve; é inútil que ela saiba deste encontro. Vamos para o teu quarto.

 

No meu quarto está a dormir Katarina.

 

Katarina Kirstarskaia?

 

Sim.

 

Ama-la?

 

É um fenómeno da natureza... Todas as mulheres russas se parecem com ela?

 

Para mim só existe Ludmilla.

 

Ludmilla é tua mulher?

 

Sim, esperamos um bebé para Novembro próximo. Bradcock examinou as imediações.

 

Vamos para a casa de banho, Franz disse ele.

 

Semionov aprovou. Fecharam a porta à chave e instalaram-se o mais comodamente possível para conversarem, Semionov sentado na beira da banheira e Bradcock na tampa da sanita.

 

Então? perguntou Semionov. E a tua missão?

 

Sabes bem.

 

E para o caso de me encontrares, quais são as ordens?

 

Isso também é claro, meu velho. Debati-me, podes crer. Nós fomos verdadeiros amigos; tudo o que vivemos e suportámos, Franz. Lembras-te?

 

Dizes se me lembro, James! Por vezes, eras tu que estavas a ponto de ceder, outras vezes era eu; e de todas as vezes acabávamos por conseguir sair ambos das dificuldades. Mas agora a situação é muito diferente. Neste momento somos inimigos.

 

Merda! repetiu Bradcock com tristeza.

 

Isso não impede que tivesses liberdade para não aceitar esta missão. Foste tu que me denunciaste à KGB, James?

 

Não. Foi Washington. Na altura, berrei como um diabo, mas eles acabaram por me convencer. Tu falas de um dilema; que papel escolher: ser amigo de um traidor, ou agir como um verdadeiro americano? Deram-me a ler relatórios que me deixaram atordoado: o fabrico de uma só destas bombas basta para aniquilar Boston ou Washington. Agimos em legítima defesa. Trata-se da vida de vários milhões de seres humanos, de mulheres e de crianças, de pais e de mães... Que essas armas estejam precisamente ao serviço de uma ideologia, é o que as torna mais ameaçadoras ainda!

 

Bradcock ergueu-se e encarou o amigo.

 

Um só homem, Franz continuou com voz dura pode tornar-se o assassino desses milhões de indivíduos pela sua traição e pelo seu egoísmo. Ludmilla é encantadora, estou de acordo contigo, e aquele que a ame deve sentir-se mais ou menos no sétimo céu, mas o céu não existe para nós, Franz. Rodeia-nos o inferno. Não devemos esquecê-lo nunca!

 

Não amas Katarina?

 

Fazer amor com ela é uma tarefa simultaneamente divertida e extenuante respondeu Bradcock com realismo. Talvez seja a especialidade dos caçadores da Sibéria habituados às tempestades demoníacas. Para mim, é novidade. Mas que há de comum entre isto e a missão que me confiaram? Quando penso que uma dessas bombas pode transformar, em menos tempo do que leva a dizê-lo, uma cidade como Miami em paisagem lunar.

 

Então ignoras o que seja o verdadeiro amor! exclamou Semionov com paixão, saltando do seu poleiro e sacudindo Bradcock pelos ombros. James, tu sabes que dantes falava de outra maneira: conheces-me há tantos anos! Fomos juntos muitas vezes colher o diabo aos infernos, não? Nada nos resistia; dir-se-ia que tínhamos fôlego de leão. E depois apareceu Ludmilla e o mundo transformou-se como por um toque de varinha mágica. Esqueci a terra. Via apenas um céu imenso. Compreendes isto?

 

Não! Bradcock encolheu os ombros. É um romantismo barato para novelas de quatro vinténs. Tu não és uma rapariguinha, Franz! És um homem e conseguiste realizar feitos sobre-humanos. Que fizeste à tua cabeça? O que dizes é absurdo! Ludmilla tem mais valor do que a tua própria pátria?

 

Sim respondeu Semionov sem hesitar. Chamo-me Pavel Semionov e nunca mudarei.

 

E a tua pátria?

 

É a taiga.

 

A tua razão de viver?

 

Ludmilla e a criança.

 

Imbecil! E nas bombas, não pensas? As bombas que se preparam para fabricar aqui mesmo?

 

Não me são destinadas!

 

Mas a mim são! E à minha mãe, ao meu pai e ao meu irmão! E ao meu avô, pobre velho! Bradcock deu com a sua mão apta um murro violento na parede. Por amor de Deus, Franz, é mais importante do que uma mulher. Não se trata de ti nem de mim, mas de uma civilização inteira!

 

Tudo isso são palavras! A civilização? Os russos não terão também uma civilização? Aqui, não há também pais e mães, homens e mulheres que só desejam uma coisa, a paz?

 

E os foguetões e as bombas da Sibéria? gritou Bradcock.

 

E os foguetões e as bombas do Ocidente? ripostou Semionov. Quem pode atirar a primeira pedra? Os dois lados perderam a cabeça. Faz alguma diferença viver em Miami ou em Olenekskaia Kultbasa? Entre nós, a frota aérea, carregada de bombas atómicas, gira em redor da Terra para a defesa da paz, claro. Aqui, a região está cheia de foguetões também para a defesa da paz. Em quem poderemos fiar-nos?

 

Merda! berrou pela terceira vez Bradcock, passando raivosamente a mão pelos cabelos. Basta a um tipo sensato deitar-se com uma russa para que o seu cérebro se transforme numa esponja soviética! Quis pôr a mão no ombro de Semionov mas este recuou e evitou-o. Franz, meu velho, recupera o bom senso!

 

Semionov abanou a cabeça. Foi à porta e abriu-a, fazendo sinal a Bradcock para sair.

 

Sai, James, preciso da casa de banho. Bradcock começou a rir:

 

Assim é melhor! Em seguida, podemos falar seriamente sobre o futuro.

 

Está tudo claro, James, perfeitamente claro.

 

Então regressas comigo?

 

Não. Fico aqui com Ludmilla e o meu filho.

 

Idiota! berrou Bradcock. Isso significa que sou forçado a matar-te!

 

Ou eu a matar-te a ti, James. Mas não por razões políticas. Há meses que me preocupo tanto com a política como com a minha primeira camisa. Mas por causa de Ludmilla e da paz, a verdadeira paz em que nós queremos viver.

 

Bradcock saiu da casa de banho e voltou lentamente para o seu quarto. Katarina estava estentida de costas; a dormir tinha-se destapado e via-se o seu peito arfar suavemente ao ritmo da respiração. Quando Bradcock se estendeu ao lado dela e pousou a cabeça pesada sobre o ombro, branco, a jovem mulher adormecida suspirou voluptuosamente.

 

Merda! Merda! E merda! repetiu Bradcock em voz baixa. Não sou capaz de o matar!

 

Demoraste-te tanto, querido! murmurou Ludmilla quando Semionov voltou na ponta dos pés. Estava sentada na cama a fumar.

 

Aproveitei para tomar um banho mentiu Semionov. Um bom banho frio, fez-me bem. O calor neste quarto era tanto que estava a transpirar.

 

Vem junto de mim, agora estás fresco, Paulucha murmurou ela, com um beijo. E eu que estou tão cansada.

 

Semionov esboçou um sorriso; estendeu-se junto da mulher, tomou-a nos braços e acariciou demoradamente os longos cabelos negros e soltos.

 

”É a nossa última noite juntos, Ludmilluchka?”, pensou ele. ”Meu Deus, que o dia nunca mais nasça...”

 

Mas Deus não ouviu o apelo secreto do fugitivo: o dia estava já a nascer na outra extremidade da taiga.

 

No dia seguinte, à tarde, bruscamente, o tempo mudou. Nuvens pesadas ocorreram do Sul; o céu azul começou a pôr-se cinzento e depois passou para o amarelo-alaranjado. Os indígenas, que conheciam bem os sinais precursores de uma tempestade, persignavam-se, abrigavam o gado nos estábulos, trancavam portas e janelas com vigas e rezavam mesmo assim para que os pregos do telhado não estivessem ainda enferrujados. Era raro que um furacão proveniente do Sul rondasse a taiga; mas quando ele se desencadeava, a floresta inteira torcia-se e soltava gemidos; árvores várias vezes centenárias dobravam-se e caíam como palhas; os fetos revolteavam no ar pesado.

 

Bradcock e Semionov tinham combinado encontrar-se num local isolado, fora da cidade, no sítio onde a estrada se perdia entre os arbustos. Bradcock não teve qualquer dificuldade em ausentar-se às escondidas, mas Semionov teve de esperar que Katarina retomasse o serviço, da parte da tarde, e que Ludmilla iniciasse a sua ronda, com o tabuleiro cheio de comprimidos, injecções e termómetros.

 

Semionov chegou um pouco atrasado, montando um cavalo de patas curtas, propriedade do hospital: era a nobre montada que Katarina atrelava ao seu trenó, no Inverno, para fazer visitas domiciliárias. Um embrulho comprido, cuidadosamente tapado, repousava sobre a sela. Bradcock estava já há algum tempo à espera.

 

O que é que trazes aí? disse como forma de saudação; mas o feitio do embrulho era-lhe familiar.

 

Duas espingardas. Duas Tokarev M 1940. Lembras-te dos nossos treinos? Quando nos arrastávamos pela lama elas tinham de ir parar também à lama. Mas as Tokarev continuavam a disparar como se tivessem saído do estojo!

 

Semionov desembrulhou as armas e disse:

 

Sempre fomos leais companheiros, James, não é verdade? Armas iguais e oportunidades iguais. De acordo?

 

De acordo, meu velho. Pegou uma das armas e apontou para o céu aveludado. Recordas-te de uma vez em que eu acertei no doze cinco vezes seguidas com uma arma destas?

 

E de que maneira! Depois, pagaste uma rodada e à noite todo o nosso grupo estava tocado. Resultado: três dias de exercícios disciplinares.

 

Que época maravilhosa murmurou Bradcock.

 

Sim, James, e sinto-me feliz por a termos vivido juntos.

 

Semionov pegou na outra espingarda e meteu o carregador na culatra; um ruído inquietante e metálico perturbou o silêncio.

 

”É o riso da morte”, pensou Bradcock.

 

Então, é com isso que nos vamos matar? perguntou em surdina.

 

Semionov meteu a outra arma debaixo do braço.

 

Como é que tinhas pensado apanhar-me?

 

Não sei. Bradcock encolheu os ombros; carregou a sua Tokarev e travou o dispositivo de segurança. Seria capaz de te liquidar à maneira dos gangsters de Chicago! Talvez tivesse arranjado uma discussão contigo e uma vez bem excitado pudesse disparar, com a excitação da cólera. A minha consciência aceitaria então dividir a responsabilidade da tua morte contigo, ou com a minha cólera. Sabes bem que em certas ocasiões sou capaz de me irritar, não sabes?

 

Sei sim, James. Lembro-me que uma vez partiste o nariz a um cabo, no Arizona, porque ele te fez limpar as casas de banho seis vezes seguidas!

 

Franz, meu velho tentou mais uma vez Bradcock, deixa tudo isto, volta comigo para a Alemanha, depois para a América, conta tudo o que viste e não se fala mais nisto. Façamos alguns metros de microfilmes e partamos. Na CIA perdoar-te-ão. Certamente, não deixarás de ter dissabores, mas deves pensar que fazias parte da nossa equipa. Franz, tu és dos nossos. Não és mais russo do que eu. Que estupidez afirmares uma coisa dessas! São coisas que não se podem mudar, bem sabes!

 

Semionov olhava o céu; as nuvens tornavam-se cada vez mais pesadas; mal se viam agora as copas das árvores; nuvens amarelas, saturadas de enxofre, de contornos esfarrapados. A taiga começava a murmurar. Dos horizontes distantes provinha um zumbido surdo, como o que se ouve quando se leva uma concha ao ouvido, o ruído distante do mar.

 

Fico perto de Ludmilla disse ele.

 

Então leva-a contigo, por amor de Deus!

 

O quê?

 

Ah! Já não sei. Em todo o caso é absurdo sermos obrigados a matar-nos estupidamente.

 

Semionov voltou-se e deu alguns passos em direcção à floresta. Bradcock seguiu-o, segurando a espingarda com as duas mãos.

 

Está bem gritou, furioso. fica na tua maldita Sibéria! Nós não nos conhecemos, nunca nos vimos, ouviste? Deixa-me cumprir a minha missão e desaparece daqui o mais depressa possível!

 

Também não pode ser assim replicou tristemente Semionov. Esperou que Bradcock se aproximasse dele para continuar:

 

Karpuschin está na cidade. Tu não o conheces?

 

Apenas de nome.

 

No decorrer do nosso treino, aprendemos a suportar estoicamente os interrogatórios de terceiro grau, não? Chicote, choques eléctricos, tortura, fome e sede; nada disso nos mete medo. Mas no Texas não havia Karpuschin! Apesar do seu aspecto de avô benévolo, é capaz de arrancar do crânio de uma pessoa tudo o que deseja, num tempo recorde. Prefiro não saber detalhes sobre o tratamento que ele infligiu a Alajev. E a ti não deixará de te apanhar um destes dias, podes crer!

 

Não te preocupes comigo!

 

E tu dir-lhe-ás tudo! Os Russos têm métodos contra os quais a vontade nada pode. E vais-nos trair, a mim, a Ludmilla e ao bebé, quer queiras quer não... Semionov abanou a cabeça. James, deixa a Rússia imediatamente. Vai-te embora.

 

Sem ter cumprido a minha missão? Agora que cheguei ao centro atómico? Tu estás louco? Qual é o agente que já teve semelhante oportunidade?

 

Sim, James, parte. Garanto-te que é a única solução.

 

Nunca! Tudo o que eu puder fazer aqui pela América...

 

Então acabemos isto rapidamente.

 

Que sucederá a Ludmilla se eu te acerto?

 

Não me acertarás. Semionov estava perfeitamente seguro de si. Aprendeste muito, mas não conheces a defesa do lobo na taiga.

 

Durante meia hora caminharam lado a lado pela floresta, até que chegaram a uma clareira oculta. O vento dobrava as copas das árvores, as nuvens entrechocavam-se num céu ameaçador; de tempos a tempos, claridades inquietantes apareciam e desapareciam, sem que a tempestade rebentasse.

 

Vai haver tempestade disse Bradcock com voz rouca.

 

Sim, um furacão. A partir desse momento, Semionov passou a falar apenas russo. De pé, no centro da clareira, forte e seguro de si, como um verdadeiro caçador da taiga. É inútil estarmos a censurar-nos mutuamente, James. Partimos para a caça e atiramos sobre ela quando acharmos apropriado. Apontou para a floresta. Tu dás quatrocentos passos para a direita e eu outros quatrocentos para a esquerda; depois, cada um de nós dispara para o ar, para indicar que está preparado. Em seguida, somos apenas dois caçadores à espreita. De acordo?

 

De acordo.

 

Semionov estendeu-lhe a mão:

 

Adeus, meu velho.

 

Adeus. Bradcock teve de se esforçar por não cair nos braços do amigo. Se me matares escreve à minha mãe. Diz-lhe que foi um acidente. Ela tem setenta e nove anos, Franz.

 

Semionov aquiesceu com um baixar de cabeça.

 

Voltaram as costas um ao outro e começaram a contar os passos. Os últimos foram os mais difíceis. Parecia-lhes que cada um desses passos arrastava chumbo.

 

Quatrocentos. Semionov foi o primeiro a disparar para o ar. Bradcock não tardou a responder.

 

Semionov esperou então alguns segundos e voltou para trás, a caminho da clareira; não tentava sequer esconder-se, contentando-se em contar de novo os passos, pensando em Ludmilla e na criança e na paz que desejava com todas as suas forças e que devia agora pagar com o sangue do seu amigo.

 

Mais cem passos. Baixou-se, com a espingarda na mão e rastejou em direcção à clareira.

 

A tempestade caía sobre eles; as árvores gemiam sob as chicotadas do vento; troncos da largura de braços rodopiavam no ar pesado como folhas mortas; o musgo também não resistia às bofetadas cortantes da tempestade, voava e deixava a nu, na terra, chagas abertas onde se viam raízes.

 

Semionov continuava a rastejar, reunindo todas as suas forças para resistir aos ataques da tempestade; por vezes, sentia-se atirado contra o chão, outras vezes, suspenso no ar. Agarrou-se a um tronco de árvore, contornou-o, sempre rastejando, puxou a espingarda para si e espiou a extremidade oposta da clareira de onde Bradcock não devia estar muito afastado.

 

Em breve, do outro lado da clareira, viu uma sombra que se movia, um relâmpago entre dois troncos de árvores. Semionov sorriu. Era a defesa dos índios. Saltar de árvore em árvore, sempre em ziguezague, sem nunca demonstrar seguir para um objectivo preciso. Depois, de novo no solo, rastejar como uma serpente, de lado, numa direcção imprevisível, a fim de nunca dar indicações ao adversário e recomeçar o jogo das escondidas de árvore em árvore.

 

Semionov esperava, com o dedo no gatilho; por mais três vezes viu a sombra entre as árvores; teria podido disparar, pois, em Nova Svesda, Youri Jessei tinha-lhe ensinado a atirar assim sobre o visão em pleno salto.

 

Mas não disparava. Estava à espera.

 

E de repente, viu Bradcock erguer-se na sua frente, com a espingarda apertada contra o peito e com o rosto cheio de sangue; sem dúvida, tinha sido atingido por algum ramo. O sangue partia de um ferimento no couro cabeludo.

 

Semionov pôs-se de pé de um salto; Bradcock sobressaltou-se e apontou; Semionov fez o mesmo. Estavam separados por apenas trinta metros.

 

Mas nenhum dos dois disparou. ”Não posso”, pensou Semionov. Fechou os olhos e largou a arma. ”Adeus Ludmilluchka...”

 

James Bradcock baixou a cabeça.

 

Não posso disse no mesmo instante, lançando a espingarda para os arbustos, num gesto enraivecido.

 

Depois, encararam-se.

 

James murmurou Semionov. As lágrimas começaram a inundar-lhe a cara. Meu velho James...

 

E soltou um grito de terror. Impotente para impedir a catástrofe, pôde apenas assistir ao seu desenrolar e ao desaparecimento provável do seu amigo.

 

A tempestade atingiu em cheio a árvore atrás da qual Bradcock se escondera momentos antes. Semionov viu o gigante balouçar perigosamente, oscilar e girar sobre si mesmo. Ouviu uns estalidos terríveis como se a própria terra estivesse a suportar um suplício; a orgulhosa árvore inclinou-se lentamente para a morte, arrancada pelas raízes, arrastando de passagem o infeliz Bradcock.

 

James! gritou Semionov. Cuidado!

 

James voltou a cabeça, viu o monstro e tentou correr para a clareira. Tarde de mais. A dois metros dele, a árvore esmagou-se sobre o solo, arrastando-o na sua queda.

 

Oh! exclamou Bradcock.

 

Uma pancada de uma violência tremenda atingiu-o nas costas. Um enorme ramo abatera-se sobre ele e no seu movimento de queda roçava-lhe pelas costas sem parar, como um tubarão esfomeado.

 

O ferimento era horroroso. O osso tinha sido todo esmagado; a coluna vertebral estava a nu e entre a carne dilacerada, uma massa vibrante, vermelha de sangue, parecia ter uma vida independente. Eram os pulmões.

 

Meia hora mais tarde estava estendido na mesa operatória entregue às mãos de três operadores, enquanto no seu quarto Katarina gritava, atacada por uma crise de desespero.

 

Bradcock morreu uma hora mais tarde. Katarina estava sentada junto dele, dando-lhe a mão; continuava a falar-lhe como se ele pudesse ouvi-la. Não o viu sequer morrer, demasiado abalada para se aperceber fosse do que fosse.

 

Quando Semionov se inclinou para fechar os olhos do morto, ela pareceu despertar do seu torpor. Beijou-o mais uma vez, apaixonadamente, pousou o rosto sobre as mãos dele e murmurou em surdina:

 

Agora vou matar-me. Sem ele não posso viver. Estavam apenas no quarto Semionov e Ludmilla, Katarina e Bradcock.

 

Amava-o, não é verdade? perguntou Semionov.

 

Sim. Ele era tudo para mim...

 

Era um americano disse Semionov com voz firme. Um espião americano.

 

Um longo arrepio percorreu o corpo da médica. Depois, endireitou-se, ameaçadora, e deitou a Semionov um olhar cheio de ódio.

 

Ele chamava-se Fiodor Awdei gritou ela. Mentes! Cobres um cadáver de lama! Porco! Vai-te embora com a tua galinha! Porcos!

 

Semionov permaneceu imóvel; Ludmilla recuara até à porta. Compreendera todo o drama.

 

Chamava-se Bradcock prosseguiu impiedosamente Semionov. O major James Bradcock. Chefe de secção da CIA. Ele... ele era meu amigo.

 

Teu amigo?Ela fechou os punhos.E tu, quem és?

 

Semionov. Não me conheces?

 

Mentiroso! Mentiroso! Atirou-se a ele e começou a dar-lhe socos, mas ele agarrou-lhe os pulsos. Foste tu que o mataste, monstro. Mas agora vais ser abatido, porco!

 

Ela conseguiu libertar-se, como uma verdadeira fúria. Depois, lançou-se sobre o morto, beijou-o freneticamente, virando-se de novo para Semionov.

 

Sim, vou mandar-te prender disse, rangendo os dentes. Imediatamente! Quem és tu, afinal? Quem te conhece? De onde vens? Pluchin enviou-te para aqui, mas depressa saberemos quem és. Vai-te!

 

Semionov suspirou e lançou um olhar triste para Ludmilla. ”Nós somos malditos”, parecia querer dizer esse olhar.

 

Seremos perseguidos enquanto vivermos porque nos amamos. Vamos, a Rússia é grande e a taiga infinita. Chega até às fronteiras do céu, dizem os Yakoutes.

 

Semionov agarrou Katarina, amarrou-a cuidadosamente, amordaçou-a e colocou-a perto da cama do morto. Era uma tarefa eminentemente desagradável, mas ele queria ter a certeza de poder contar pelo menos com umas horas de avanço. Depois, com um leve soco na testa, pô-la a dormir por algum tempo.

 

Vem disse a Ludmilla não temos um minuto a perder.

 

Uma hora mais tarde, começavam a percorrer a estrada que seguia para leste, montados em dois cavalos do hospital. A tempestade passara. Pouco a pouco, o céu purificava-se; algumas manchas azuis deixavam já adivinhar o sol. Os pobres animais suportavam com dificuldade a sua carga. No entanto, eles iam avançando, embora lentamente, com as Tokarev em punho, prestes a defenderem-se ao primeiro sinal de alarme.

 

É uma sorte para nós estarmos ainda no Verão disse corajosamente Ludmilla ao fim de um certo tempo. Semionov seguia calado, fixando atentamente o caminho. Poderíamos continuar a nossa viagem durante toda a noite acrescentou pegando-lhe na mão.

 

Não poderias suportar tal coisa, Ludmilluchka. pensa na criança.

 

Então, Pavel, para a frente continuou a impetuosa mulher, batendo com o calcanhar na sua montada e tomando a chefia da caravana, ao mesmo tempo que dizia alegremente:

 

Nunca me senti com tantas forças. Agora não há mais ninguém para te seguir o rasto, Paulucha querido...

 

Cavalgaram assim durante sete horas seguidas, até que, já sem forças, Ludmilla adormeceu sentada. Semionov levou-a então para debaixo de uma árvore e cobriu-a com uma manta.

 

Já quase de manhã ele adormeceu, por sua vez, sentado junto dela.

 

Dessa vez, eram na verdade como os lobos!

 

Nessa noite, por volta das dez horas, os médicos decidiram ir procurar Katarina Kirstarskaia. Bateram à porta do quarto onde se encontrava o cadáver de Fiodor Awdei, e, não obtendo resposta, tentaram abrir; trabalho perdido. A porta parecia fechada por dentro, pois não havia chave por fora. Chamaram, primeiro baixinho e depois com mais força. Finalmente, começaram a gritar em coro, mas só o silêncio lhes respondeu.

 

Então, de comum acordo, decidiram forçar a porta. Acolheu-os o olhar chamejante de Katarina Kirstarskaia. Tivera tempo de se recompor e de se acalmar!

 

Liguem imediatamente para o general Karpuschin disse ela depois de lhe terem tirado a mordaça. Que horas são?

 

Dez horas da noite, camarada doutora.

 

Ainda podem ser apanhados! disse ela depois de lançar um último olhar ao cadáver de Bradcock, deixando rapidamente o quarto. Digam ao camarada general que tenho um relatório a fazer-lhe e um depoimento de primeira importância a transmitir-lhe.

 

Enquanto um dos médicos tentava com grande dificuldade obter uma comunicação telefónica com Karpuschin, Katarina fechou-se no quarto. Lavou-se, penteou-se, maquilhou-se até, o que era raro nela e pôs o seu mais belo vestido. Observou-se ao espelho do seu armário, atentamente. Despedia-se de si própria. A pessoa viva reflectida no espelho ia morrer nessa mesma noite; restaria apenas uma sombra, uma sombra chamada Katarina Kirstarskaia, pois tudo deve ter um nome aqui em baixo.

 

Meia hora mais tarde, o general Karpuschin aparecia à entrada do quarto nove. Katarina estava na sua pose, sentada aos pés da cama, preparada como se fosse casar-se. A cama de Bradcock estava coberta de flores e o perfume das rosas acolheu aquele visitante tardio.

 

Boa noite, camarada general disse ela, sorrindo. Apresento-lhe o major James Bradcock, dos serviços secretos americanos da CIA. Acuso-me de o ter albergado aqui e também de o ter amado...

 

Atordoado, o general Karpuschin lançou um olhar assombrado ao morto; apoderou-se dele uma fraqueza súbita e foi obrigado a sentar-se.

 

Bradcock repetiu ele. Bradcock... Mas ele partiu para Bona, como estava previsto; mandei vigiar a sua partida! É certamente um erro, camarada! Em todo o caso, é preciso que seja um erro.

 

Há horas em que se sente quase fisicamente que tudo a vida, o meio, o passado e o futuro é vaidade, e não se sabe mesmo porque razão, na verdade, se continua a viver.

 

Esta sensação extrema viveu-a o general Karpuschin ao descobrir o cadáver de Awdei e a sua verdadeira identidade. Aquele morto parecia-lhe ainda mais perigoso do que o major Bradcock vivo; não para a segurança da União Soviética, é certo, pois a morte punha um ponto final a qualquer ameaça, mas para si próprio. Pois fora ele, o ex-coronel Karpuschin, que pusera a sua assinatura no relatório destinado a provar que o major Bradcock deixara o solo russo em direcção a Roma, no dia previsto.

 

E agora aquela louca da Kirstarskaia dizia conhecer aquele morto caído da Lua! Tinha mesmo redigido um depoimento. Se esse depoimento chegasse aos dossiers, era uma vez um general Karpuschin. ”Cabeça sem miolos”, dissera outrora o marechal Malinovski.

 

Doutora disse Karpuschin com a sua voz mais suave, precisamos na realidade de nos pôr de acordo para afirmar que este morto não é senão Awdei, compreende? Sei que é difícil para si, mas porque razão complicar inutilmente a existência?

 

Não quero continuar a viver, camarada general respondeu ela sombriamente.

 

Ah! disse Karpuschin endireitando-se. Isso, minha pequena, é um assunto pessoal! Suprima-se como entender, mas não venha inquietar as autoridades com confissões absurdas que não interessam a ninguém!

 

Eu pensava...

 

Minha cara, há momentos na vida em que é preferível não pensar. Aqui jaz o infeliz Fiodor Awdei, esmagado por uma árvore durante o furacão; dar-lhe-ão honras fúnebres, como a todo o bom comunista.

 

Mas é uma mentira!

 

Há casos de força maior, minha filha. Para quê fazer falar os mortos? Karpuschin limpou as lunetas à manga e olhou atentamente Katarina. Você não falou, não? Mais ninguém conhece a verdadeira identidade?

 

Sim, camarada general!

 

O quê? Quem?

 

Amigos dele que são ao mesmo tempo seus assassinos! Foi por isso que o mandei chamar. Pavel Semionov e a mulher, Ludmilla, sabiam-no também!

 

Oh! murmurou Karpuschin atordoado com o choque. Eles... eles estão aqui?

 

Estiveram aqui alojados, em minha casa. Ludmilla era minha enfermeira e Pavel dirigia o hospital. Agora fugiram com os nossos cavalos.

 

Em fuga! repetiu ele. E, de súbito, encolerizou-se: Sabe o que fez, Katarina Kirstarskaia? Deu asilo a um homem perigosíssimo e deixou-o fugir! Há mais de um ano que o persigo.

 

A Semionov?

 

Heller! Chama-se Franz Heller. É alemão. E a mulher dele é uma antiga comissária do povo e capitão do Exército Vermelho. Eu tê-los-ia abatido como cães!

 

Karpuschin transpirava abundantemente; o seu rosto escarlate e as lunetas davam-lhe o aspecto de um palhaço em plena actuação.

 

Eu não sabia murmurou Katarina.

 

De onde vinham eles? Que queriam daqui? É justamente...

 

Procuravam trabalho e dei-lhes trabalho.

 

Sem documentos?

 

Eles tinham documentos.

 

Falsos! berrou Karpuschin fora de si.

 

Quem presta atenção a esse detalhe? Quem quer trabalhar na taiga é porque é russo.

 

Não havia qualquer saída.

 

Karpuschin pediu que lhe levassem as bagagens de Awdei e mandou prevenir as autoridades de que a casa da Rua Frunse ficaria livre.

 

Karpuschin fechou-se com Katarina no quarto de Bradcock para fazer ele mesmo o inventário das bagagens do geólogo. Claro que descobriu todo o material clássico do perfeito espião, micromáquinas e microfilmes, mapas, canetas de tinta invisível, códigos, explosivos metidos em tubos.

 

Ah! exclamava Karpuschin a cada nova descoberta. Que pena não se poder tirar partido deste saque precioso! Sentou-se junto de Katarina e bateu-lhe suavemente num ombro. Onde se pode fazer desaparecer todo este material?

 

Pode queimar-se.

 

Katarina tinha agora modos fúnebres.

 

Faria um lindo fogo-de-artifício! Não, vou lançar tudo ao Olenek. Levantou-se, fechou o saco de viagem e a mala e prosseguiu com a sua voz oficial: Vou enviar-lhe um aviso de recepção dos objectos pessoais de Awdei e mandarei transportar imediatamente o corpo de Fiodor Awdei...

 

Não! Katarina saltou com fúria diante da cama. Confessei ter albergado um espião americano e que fui sua amante, e mesmo que tivesse sabido que ele era espião americano teria continuado a ser sua amante. Peço-lhe, dê-lhe uma sepultura cristã!

 

É louca, camarada doutora retorquiu a voz oficial. Bradcock encontra-se em Bad Godesberg e nós vamos prestar ao camarada Awdei as honras que ele merece, pois morreu ao serviço da União Soviética!

 

Com estas palavras, mandou levar Katarina para uma arrecadação e deixou-a lá ficar até à partida do corpo de Awdei. Durante o funeral, um dos médicos injectou à infeliz uma dose forte de soporífero. Desse modo, Karpuschin pôde dar largas à sua eloquência. Fez o discurso de agradecimento ao camarada Awdei pela sua actividade eficaz no seio do Partido e da nação.

 

Dois dias mais tarde, Katarina Kirstarskaia desaparecera.

 

O coveiro vira-a junto da sepultura de Awdei, descalça e muito mal vestida. Depois, como que desaparecera nos ares, levando consigo as suas roupas, os seus móveis, o fonógrafo e os discos.

 

Karpuschin sabia muito bem para onde fizera transferir a infeliz. Era impossível suportar a presença daquela ameaça perpétua, representada por aquela fúria absurda. Katarina continuava a querer confessar a verdade às altas instâncias.

 

Assim, o general Karpuschin esfregou as mãos, sem sentir o mínimo remorso na consciência, quando lhe anunciaram que Katarina Kirstarskaia fora conduzida para leste. Para Bulinski, nas margens do Lena, esse rio maravilhoso, com mais de um quilómetro de largura, do qual se dizia que era a jóia da Sibéria.

 

Exactamente durante vinte e nove dias, Ludmilla e Semionov vagabundearam através da floresta.

 

Felizmente, o Verão favorecia os fugitivos. Apesar da espessura das árvores, o sol conseguia visitá-las e elas enchiam-se de resina perfumada; nos charcos, à beira dos pequenos riachos da taiga, colónias de moscas e de mosquitos esvoaçavam; o urso espreitava as colmeias; as doninhas e os arminhos saltavam por cima dos musgos, e, à noite, ouviam-se por vezes uivar os lobos; uma vez mesmo chegou até eles o rugir sinistro de um tigre; então, Ludmilla apertava-se, tremendo, contra o marido; mantinham-se à espreita, prontos a disparar, sentados de costas voltadas um para o outro, à claridade da fogueira protectora; muitas vezes, a espera demorava várias horas.

 

Instalavam sempre o seu acampamento nas clareiras. Colocavam entre dois troncos de árvore as mantas, amarrando solidamente os cavalos, formando habilidosamente pequenas fortalezas em miniatura, das quais ninguém podia aproximar-se sem ser visto pelos seus ocupantes.

 

Durante os primeiros dias, o ruído constante dos helicópteros fez-lhes companhia, mas os fugitivos já nem sequer lhes prestavam atenção. De resto, os perseguidores compreenderam rapidamente como as suas pesquisas eram vãs: para que servia passarem o tempo a tentar encontrá-los, se a taiga só lhes oferecia o espectáculo monótono e opaco de copas de árvores. Em breve, todo o ruído cessou. A taiga engolira mais uma vez os traidores e Karpuschin não teve outro remédio senão procurar consolo no vodka, enquanto amaldiçoava os fugitivos.

 

Se não se tratasse de uma fuga, se eles não tivessem a preocupação de se afastarem o mais rapidamente possível dos seus perseguidores, poderiam considerar aquela cavalgada através da taiga como a mais fantástica aventura das suas existências. Teriam podido julgar-se no paraíso terrestre, de tal modo a harmonia parecia reinar na floresta. Os riachos cintilavam ao sol e onde a floresta se tornava mais clara, nas colinas e nas ravinas, as papoulas da Sibéria e as cerejas selvagens brilhavam com as suas cores vivas, e os arbustos balouçavam com ar desenvolto ao ritmo do vento.

 

Vês, Paulucha, chegámos ao paraíso murmurou Ludmilla ao vigésimo oitavo dia, depois de se ter refugiado contra o peito do marido, ao abrigo do fogo e sob a vigilância dos cavalos. Não era este o nosso objectivo. Porque não havemos de ficar aqui?

 

Semionov contemplava o céu crepuscular; há muito que perdera toda a noção do espaço; não fazia ideia nenhuma do local onde se encontravam, nem da distância que os separava tainda do Lena, sabia apenas que não tinham deixado a direcção inicial, o leste, e que a região inviolada que agora habitavam nunca tinha sido habitada por seres humanos; só devia ser conhecida pelas caravanas de caçadores nómadas. Se esquecessem que todos os Invernos a temperatura descia a menos de quarenta graus negativos, podiam na verdade julgar-se no paraíso.

 

Dentro de duas ou três semanas aparecerão as primeiras neves disse Semionov apertando o corpo redondo de Ludmilla contra si.

 

Sim, e precisamos de arranjar um tecto antes que chegue o Inverno disse ela.

 

O marido suspirou pousando suavemente a mão sobre o ventre inchado da mulher. ”A criança”, pensou com angústia. ”Ela vai dar à luz como uma loba, numa cabana ou numa caverna, sobre a palha, num sítio onde ninguém poderá ajudá-la, a não ser Deus...”

 

Já há muitos dias que a ideia desse nascimento iminente não o largava; esperara encontrar seres humanos, pescadores, caçadores ou barqueiros. Havia sempre mulheres que acompanhavam as caravanas e à falta de médico elas poderiam ajudar Ludmilla.

 

Essa noite foi-se tornando cada vez mais fresca; os gansos selvagens tinham-se já reunido para a grande migração a caminho do sul e Semionov perdia toda a esperança.

 

Ficamos aqui? perguntou uma vez mais Ludmilla. Sei que pensas no Inverno, Paulucha.

 

Sim. Voltou a cabeça e descobriu um sorriso feliz e confiante, uma expressão infantil e uns olhos cheios de amor. Mais um pouco de coragem, querida. Vamos continuar o nosso caminho mais um dia ainda, porque queria construir a nossa casa à beira de um rio; assim, no Inverno, poderia abrir buracos no gelo para apanhar peixe, e, no Verão, todos os animais são atraídos pela água; se, além disso, construir um barco, poderei talvez descobrir um acampamento habitado. As margens dos rios são sempre a melhor solução, Ludmilluchka.

 

Ela disse que sim com a cabeça, deitou-se debaixo das mantas e adormeceu imediatamente. Semionov não tinha sono. ”Mais um dia”, pensava ele, ”ou dois. Se mantivemos de facto a boa direcção, não devemos estar longe do Lena. Parece que o rio está rodeado de terras ricas e férteis, nas quais poderemos viver como príncipes!”

 

No dia seguinte, o vigésimo nono, por volta do meio-dia, descobriram de facto um rio. A floresta fora-se tornando progressivamente menos densa; pedras e cascalho rolavam debaixo dos pés; o solo inclinava-se em direcção ao rio. Um rio largo, de pelo menos quatrocentos metros de largura, ofereceu-se aos seus olhares maravilhados, um rio majestoso, atormentado, salpicado de ilhas de areia, de rochedos acinzentados gastos pela erosão no decorrer dos séculos. Um rio cujas margens tão depressa eram cheias de canaviais, como se inclinavam em praias de areia ou de pedras; um rio de diamantes cintilando ao sol.

 

A nossa nova pátria murmurou Ludmilla, emocionada.

 

Sim aprovou Semionov espreguiçando-se como um urso no limiar do Verão. Sim, ficamos aqui. Vamos procurar um canto do rio, onde haja canaviais e areia, para ficarmos protegidos de um lado pelo rio e do outro pela floresta.

 

Cavalgaram ainda uma hora contra a corrente; em breve surgiu uma faixa de terra, uma espécie de península, e entre os arbustos, os salgueiros e os larícios, viram o telhado de colmo de uma cabana, coberto de musgo.

 

Homens! gritou Semionov. Uma cabana... Seguiram devagar pelo que devia ter sido um caminho sobre aquela língua de terreno, mas aparentemente não ia ali ninguém há muitos anos.

 

Está alguém? perguntou Semionov, aproximando-se da cabana.

 

Tratava-se de uma cabana construída com troncos de larício, rodeada por uma paliçada feita com as pontas serradas em bico voltadas para cima, rodeada de arame farpado ferrugento e partido em muitos sítios.

 

Olá, amigos! gritou mais uma vez Semionov. Não se escondam.

 

Esperaram uma resposta, mas não ouviram nada.

 

É uma cabana abandonada concluiu Semionov, e, com um ar conquistador, desmontou.

 

A não ser que estejam à espera para te atingirem com toda a certeza...

 

Ludmilla agarrou-se ao casaco do marido:

 

Vamos mais para diante, Paulucha.

 

Se a cabana está vazia, temos aqui tudo o que procuramos, Ludmilla. Eu vou ver!

 

Ludmilla desmontou também; uma inquietação mortal apertava-lhe o coração ao ver Semionov avançar lentamente para a cabana. Ficou junto dos cavalos, de espingarda na mão, pronta a disparar ao primeiro alerta.

 

De repente, uma janela abriu-se brutalmente; ergueu a espingarda, mas foi a cabeça do marido que apareceu, um Semionov de largo sorriso nos lábios e braços abertos, que exclamou:

 

Vem, querida. Está vazia, completamente vazia! Há anos que ninguém aqui vem. O céu deu-nos de presente um ninho.

 

Radiante de felicidade, Ludmilla dirigiu-se para a cabana levando os dois cavalos pelas rédeas. À entrada, encontrou o marido. Semionov inclinou-se cerimoniosamente, fez um gesto que englobava tudo, a cabana, a floresta, a língua de terra, o rio e o céu, e disse com voz tonitruante:

 

Sede bem-vinda, princesa. Tomai posse do vosso castelo, do vosso domínio e das vossas terras...

 

Apertados um contra o outro como crianças, partiram à descoberta do seu novo lar.

 

A casa estava arranjada como todas as casas da Sibéria. Uma lareira imensa, rodeada de grossas pedras, uma enorme chaminé aberta, um banco, três tamboretes, uma grande mesa de pinho e do outro lado uma cama cheia de palha e de musgo onde os ratos e as salamandras se tinham instalado. Numa pequena arrecadação contígua, descobriram toda a espécie de ferramentas, martelos, pás, pregos ferrugentos, três cabos de redes para apanhar borboletas, quatro grandes selhas de madeira e peneiras redondas, de tamanhos variados.

 

Semionov examinou atentamente as peneiras. Durante esse tempo, Ludmilla abrira as outras janelas e não podia deixar de rir ao deparar com o focinho de um dos cavalos.

 

Não se sentem também bem aqui? perguntou ela. Podem ir passar revista à propriedade. Aqui, vão ficar instalados numa verdadeira cavalariça e terão direito de dormir sobre palha seca. Finalmente descobrimos o paraíso!

 

Depois, foi à procura de detalhes. Reexaminou cuidadosamente as paredes de madeira. Num canto, perto da lareira, ficou pensativa. Encontrava-se ali suspenso um ícone e viam-se ainda traços de vela sobre uma pequena prateleira que ficava por baixo. A imagem fora grosseiramente pintada em papel de embrulho, por um pintor pouco hábil. Representava uma madona, com a cabeça inclinada para o lado, com grandes olhos tristes; tinha as mãos juntas, de dedos esguios. Um capucho azul cobria-lhe os cabelos. Por detrás da cabeça, brilhava um sol amarelo que representava a auréola. Por baixo das mãos postas, num canto do papel que não fora pintado com lápis de cor, estavam escritas algumas palavras, que Ludmilla não conseguia ler. Era uma escrita estranha numa língua estrangeira.

 

Semionov voltou da arrecadação trazendo duas peneiras.

 

Tenho a impressão de que não estamos longe de uma colónia ou de uma cidade disse. Não sei se será a montante, se a jusante...

 

Olha, Paulucha, está aqui um ícone, mas não consigo ler o que lá está escrito. É na tua língua?

 

Semionov pousou as peneiras e olhou para Ludmilla. De repente, o coração apertou-se-lhe no peito e toda a sua alegria desapareceu. Os seus olhos abriram-se muito; um sofrimento infinito desenhou-se-lhe no rosto quando ele viu o desenho desajeitado e a inscrição:

 

         Que Deus seja louvado para sempre.

         Isto representa a madona da nossa pequena

       igreja, em Niederwald,

         1955, durante o Inverno.

           Agora, finalmente,

           voltámos a ser homens livres.

 

Consegues ler a inscrição, Paulucha? disse Ludmilla em voz baixa.

 

Ele afastou-se bruscamente do desenho.

 

Sim respondeu com voz insegura à pergunta inquieta da mulher. Foram alemães que viveram aqui. Prisioneiros de guerra. Construíram esta barraca com as suas próprias mãos, carpinteiraram esta mesa e estes bancos, fizeram a chaminé, desbravaram o terreno e um deles desenhou esta imagem para poder rezar e pensar na pátria. Agora somos nós que vamos viver nesta casa.

 

Ludmilla lançou novo olhar à madona. ”Vou rasgar-te em mil pedaços”, pensou. ”Sim, reduzo-te a migalhas para que nada reste de ti!” Mas não o fez. Contentou-se em franzir os olhos e fechar os punhos.

 

Mas eu sou mais forte do que tu disse em voz baixa. Nem tu serás capaz de me levar o meu Paulucha!

 

Aproximou-se da mesa onde Semionov se tinha sentado e cuja madeira acariciava sonhadoramente. Percebia bem quais eram naquela altura os pensamentos dele. O Reno, as florestas de faias da Alemanha, as vinhas no tempo das vindimas, os pomares e as casinhas com telhados de ardósia; pensava nos portos e nas aldeiazinhas dos Alpes; nas praias de areia fina do Báltico; ouvia os mochos piarem e os pardais chilrearem; através da imensidade do espaço chegava até ele o canto melodioso da cotovia no céu azul e ouro de uma manhã de Verão.

 

Paulucha murmurou timidamente Ludmilla. Com uma ternura hesitante, ela colocou-lhe uma mão num ombro e sentiu-o estremecer.

 

O que é?

 

Sei agora que tu não serás nunca um verdadeiro russo como nós.

 

Não. Ele deixou cair novamente a cabeça; o coração pesava-lhe como chumbo. Nunca teria podido acreditar.

 

Também eu nunca poderia tornar-me uma alemã de puro sangue, Paulucha. Compreendo-te.

 

Apertou-o com os seus braços meigos e beijou-o.

 

Também eu não poderia nunca esquecer o meu país. Mas agora vivemos juntos e vamos ter um filho. Nós... Ele apertou-a contra si e mergulhou o olhar nos olhos profundos e brilhantes da mulher.

 

Que importa quem éramos, Ludmilla. Amamo-nos. Somos apenas lobos no coração da taiga. Perdemos a pátria e o nome. Somos animais selvagens.

 

À noite, ao entrar na barraca, depois de ter dado de comer aos cavalos e instalando-os, conforme pôde, num dos barracões, Semionov teve uma boa surpresa: acolheu-o um simpático cheiro a chá e a carne assada; sobre a mesa, um candeeiro de petróleo transformava a miserável cabana num mundo mágico de luz e de sombras, e uma vela iluminava o rosto suave de madona. Sentiu-se reconfortado por aquela atmosfera de amor e de paz.

 

O sol brilha atrás da cabeça dela, não é? perguntou Ludmilla com um sorriso luminoso, colocando o bule sobre a mesa. Os seus olhos parecem falar. Aquele que a desenhou tinha a bondade no seu coração.

 

Semionov sorriu também.

 

Após oito dias de vãs pesquisas, oito dias de cóleras e de gritos, de pragas e insultos, Karpuschin teve de se resignar a enviar um relatório a Moscovo. Quando se põe um exército em pé de guerra para procurar um só homem, mesmo que esse homem seja Heller-Semionov, é necessário, finalmente, comunicar às autoridades os resultados da caçada. Karpuschin fez, portanto, o relatório, comunicando que o novo desaparecimento de Heller não era devido a qualquer falta de eficácia, negligência ou incapacidade das unidades envolvidas nas pesquisas, mas devido à natureza da taiga.

 

Matwei Karpuschin não seria digno da formação recebida na KGB se não tivesse aproveitado algo com a morte de Bradcock. Não oficialmente, claro, pois como tal não existia nenhum Bradcock, mas apenas Fiodor Awdei. Arranjou maneira de semear um pouco de inquietação, de pânico e de desconfiança em todos os meios, o que lhe pareceu o cúmulo da elegância diplomática.

 

Por um correio especial enviou, a um dos seus homens de confiança de Moscovo, a câmara e um filme virgem pertencente a Bradcock. Alguns dias mais tarde, no gabinete do coronel Hardley, alguns adidos, secretários e outros membros do pessoal da Embaixada coçavam o queixo com ar sombrio; esses objectos encontravam-se expostos em cima da mesa central.

 

Que havemos de pensar de tudo isto? perguntou Hardley esvaziando o seu quarto copo de uísque. É, sem dúvida, parte do material que eu próprio confiei a Bradcock. Deve-se concluir, portanto, que Bradcock morreu. Vou ler-lhes o bilhete que acabei de receber: ”James Bradcock foi morto a sul de Krasnoiarsk por Franz Heller. O assassino deixou um bilhete sobre o cadáver, prevenindo que mataria assim todos os homens da CIA que lhe caíssem nas mãos...” Que pensam disto?

 

Temos de pôr imediatamente de sobreaviso todos os agentes da CIA disse nervosamente o primeiro-secretário da Embaixada.

 

Com certeza. Mas não será exactamente esse o objectivo deste bilhete: semear o pânico entre os agentes americanos? Temos a certeza de que Bradcock está morto? Podem ter-lhe roubado estes objectos. Tenho outra ideia. Vamos dar a entender à KGB que não acreditamos na morte de Bradcock e que recebemos ultimamente notícias dele. Mostrem-me o seu cadáver e eu acreditarei na morte dele. Pelo menos oficialmente, claro, pois, de facto, não creio que ele esteja ainda vivo.

 

No Kremlin, o general Chimkassy despertou, alguns dias mais tarde, a curiosidade de todos. Fez-se anunciar ao marechal Malinovski, insistiu em ter uma entrevista imediata com ele e percorreu os corredores assobiando alegremente. Malinovski não suportava Chimkassy, e, no entanto, recebeu-o imediatamente. Devia tratar-se de um assunto importante.

 

Que significam estas histórias? Bradcock está vivo ou morto? Porque se encontra ele na Rússia interrogou Chimkassy, depois de ter tomado conhecimento da nota da CIA. Até então ele soubera que o major fizera uma visita de três dias a Moscovo e que voltara a partir. Tenho a impressão, camarada marechal, que Karpuschin nos ocultou qualquer coisa, e que essa qualquer coisa poderá pôr em perigo a paz internacional.

 

Era bastante elegante... Malinovski, homem de poucas palavras, pegou no telefone.

 

Comunicação com Yakousk. O general Karpuschin deve regressar imediatamente a Moscovo. Com toda a sua bagagem.

 

Chimkassy estremeceu e deixou apressadamente a sala. Com toda a sua bagagem. Depois disso restava apenas dizer ”ámen”.

 

Assim, a última intriga de Karpuschin revelou ser uma bomba que desgraçadamente lhe rebentara debaixo do nariz.

 

Durante três semanas, eles limparam a barraca; Semionov tapou as fendas do telhado com uma nova camada de caniços, consolidou as portas e as janelas, limpou a chaminé, o que foi perturbar um mocho que ali se havia instalado. Ludmilla pôs em ordem o interior da cabana e tentou conseguir dar-lhe um pouco de conforto. Depois, os dois juntos, arranjaram duas velhas redes para fazerem uma nova. Semionov matou alguns coelhos e renas selvagens e prepararam uma provisão de carne para o Inverno; partiram lenha, ceifaram erva, pois tinham de pensar igualmente nas provisões para os cavalos. No quarto dia, Semionov fez uma presa pouco vulgar. Um grande urso de pêlo preto cujas extremidades se tornavam brancas, passeava pesadamente, como um bom avô, pelas margens do rio. Depois, sentou-se na areia para pescar e Semionov aproveitou a ocasião para lhe acertar com uma bala em cheio no coração; o urso soltou um grande grito e caiu.

 

Eis uma boa manta para o Inverno disse Semionov regressando a custo com a sua vítima. É pena que nós não saibamos curti-la convenientemente.

 

Ludmilla passou três dias a raspar os restos de carne presos à pele; depois, expôs a pele ao sol, voltada para cima, e regou-a periodicamente com salmoura, que ficara a secar ao sol. Seguidamente, regou-a apenas com água e deixou ao sol o cuidado de terminar o seu trabalho. Durante uma semana um cheiro terrível a cadáver espalhou-se pelas imediações; era para a pobre Ludmilla um verdadeiro suplício ter de se aproximar da pele para a regar; mas o sol não tardou a absorver os últimos vestígios de vida ocultos nos poros.

 

Habitavam a cabana há três semanas. Uma manhã as primeiras neves do Outono tinham caído durante a noite, logo desaparecidas com a chuva Semionov viu um barco a descer o rio, manobrado por três homens com fatos de cabedal. Para se protegerem da chuva tinham estendido por cima deles uma manta presa em quatro paus. Sem dúvida, dirigiam-se para o pequeno cais privado; Semionov, oculto entre os caniços, apertou a espingarda nas mãos. Um dos homens apontou com um dedo para o fumo que saía da cabana.

 

Chovia torrencialmente. Os homens amarraram o barco e saíram.

 

Semionov, à espreita, esperava.

 

Está aí alguém? disse um dos homens, no entanto, Semionov não podia distinguir as suas feições.

 

Mas reconheceu o toldo do barco. Era um pedaço de lona igual ao que ele próprio arrastara através de toda a Rússia; nessas lonas, envolviam os camaradas mortos no campo de batalha. A sua servira-lhe de tecto, de morada, de protecção contra os homens e os elementos.

 

Está aí alguém? repetiu o homem.

 

Como não recebesse resposta, o homem avançou e foi seguido pelos outros. ”Eles conhecem isto”, pensou Semionov.

 

”Não é a primeira vez que aqui vêem. São certamente os proprietários da barraca.”

 

Saiu então do meio do canavial e apontou-lhes a espingarda.

 

Quem são vocês? perguntou com voz forte.

 

Os homens imobilizaram-se, como que fascinados pelo cano da Tokarev. Sem dúvida não eram daquela região. Eram russos de pele branca e rosto imberbe; poderiam ser tomados por verdadeiros europeus.

 

Afasta a tua espingarda, amigo. Nós já tínhamos reparado que alguém se apossara da nossa cabana.

 

A cabana pertence-lhes? interrogou Semionov. A quem é que querem fazer acreditar tal coisa? Há anos que ninguém aqui habitava.

 

Nós só vimos aqui de dois em dois anos. O homem olhou para o fumo. Quem está dentro da casa?

 

É Ludmilla, a minha mulher.

 

Oh! Oh! Uma mulher. De onde vieram?

 

Isso diz-lhes respeito? Semionov apontou-lhes de novo a arma. Voltem para o barco e desapareçam.

 

Depois, de repente, pensou que aqueles homens iam voltar para suas casas, que dariam o alarme e que viriam desalojá-los. Deu um passo atrás.

 

Estou horrorizado, camaradas, por ser obrigado a matá-los disse com voz clara. Mas a minha existência exige um segredo absoluto. É realmente pouca sorte para vocês...

 

Os três homens encostados uns aos outros, petrificados, imóveis, olhavam-no com ar estúpido.

 

Vamos, Egon, é preciso fazer qualquer coisa, distraí-lo. Não vais com certeza deixar que ele nos abata como cães!

 

Semionov sobressaltou-se: o homem tinha falado alemão. A espingarda caiu-lhe das mãos; afastou os braços, atirou a cabeça para trás e começou a gritar como se o seu grito devesse acordar Deus e o céu inteiro.

 

Alemães! Camaradas! Eh, rapazes! Agarrem-me bem antes que eu perca completam ente a razão.

 

Essa agora! exclamou o primeiro que tinha falado. Depois, sem perder um segundo, agarrou na espingarda, enquanto os companheiros se precipitavam sobre Semionov e lhe seguravam os braços atrás das costas. Encostaram então o prisioneiro à parede de um dos barracões.

 

Como é que falas alemão? perguntou um deles, dessa vez novamente em russo, mas Semionov reparou imediatamente que não era a sua língua materna. Já estiveste na Alemanha? Preso? Vamos, fala, Ivan.

 

Venham comigo para dentro respondeu Semionov em alemão. Ludmilla está a preparar o jantar. Aqueçam-se, tirem essa roupa molhada. A não ser que queiram apanhar uma pneumonia?

 

É de facto alemão! exclamou o porta-voz dos outros, atirando o boné ao ar, à maneira russa. Diz. De onde vens tu?

 

Dessa vez, rodearam amigavelmente o prisioneiro, abraçando-o e dando-lhe grandes palmadas nas costas. Finalmente, Semionov conseguiu levá-los para dentro de casa. Recebeu-os um cheiro apetitoso a carne salgada. Ludmilla estava sentada a um canto, com as mãos descansando sobre o ventre saliente; entre a suas pernas descansava a segunda Tokarev, com o cano ameaçadoramente apontado para os intrusos.

 

Parem! gritou ela. Mãos ao alto!

 

Oh! Oh! A boa mulher! Os homens não passaram o limiar da porta. Rindo, fizeram com que Semionov entrasse primeiro.

 

Paulucha, quem são estes homens? perguntou Ludmilla sem tirar o dedo do gatilho. Desarmaram-te? Recua e eu tiro-lhes qualquer desejo de entrarem.

 

Bravo, meu velho! Com uma mulher destas, estás seguro.

 

Ouvindo falar alemão, Ludmilla baixou os braços lentamente. Voltou-se e deitou um olhar suplicante à madona.

 

Foi Ludwig que a desenhou em mil novecentos e cinquenta e cinco, durante o Inverno explicou um dos alemães.

 

Depois, o grupo instalou-se em redor da mesa.

 

Morreu em mil novecentos e cinquenta e seis, com paludismo. Mesmo na altura em que terminava a construção da sua casa...

 

Quem são, Paulucha? interrogou Ludmilla em voz baixa. são de facto alemães?

 

Sim. Chegaram aqui, de barco, mas por enquanto ainda não sei mais nada.

 

E nós também não sabemos nada de vocês...

 

Quando, finalmente, se puseram à mesa, caía já a noite. Entretanto, os homens tinham partido lenha e tirado as suas marmitas dos esconderijos, além de caçarolas e tachos. Depois tinham ido buscar chucrute e dez garrafas de vodka; trouxeram também do barco mantas e duas caixas cheias de conservas, um saco de farinha e um de sêmola, uma lata de leite em pó e um recipiente cheio de açúcar.

 

Depois de terem comido, ficaram sentados com os cotovelos apoiados na mesa, com o cachimbo na boca. Cada um tinha ao alcance da mão um copo de chá regado com vodka. Semionov contara-lhes a sua história. Um longo silêncio pesado de sonhos e de desgostos envolveu-os.

 

E vocês, quem são? interrogou o fugitivo um pouco mais tarde.

 

Eu chamo-me Egon Schliemann respondeu o primeiro dos três. Habitava em Recklinghausen; era electricista nas Houillères. Tinha ainda a minha mãe. Não sei se ela vive ou não... O seu olhar velou-se e ele passou a mão pelos olhos. Sempre a mesma coisa, Franz, tu conheces isso... Apanharam-me no momento da queda do Oder. Era radiotelegrafista. Fui condenado à morte e depois agraciado e sentenciado a trabalhos perpétuos. Durante dez anos, não deixei de escrever à minha mãe, mas nunca obtive resposta. Ninguém foi capaz de me dizer se as cartas tinham chegado ao seu destino. Depois, bruscamente, a maior parte deles foi libertada e enviada para casa. Todos os dias chamavam nomes. O meu nunca. Depois, já era tarde de mais. Os camaradas voltaram realmente para casa, ao menos?

 

Sim replicou Semionov.

 

Passou-se mais um ano e apareceram comissários políticos para nos visitarem. ”São livres”, disseram eles. ”Podem deslocar-se e agir livremente, arranjarem uma situação ou fazerem o que quiserem. Ficam incorporados na nova organização de produtividade. Passam a ser cidadãos soviéticos com todos os direitos dos cidadãos soviéticos.” O campo foi desmantelado, transformaram as barracas e tiraram o arame farpado. Muitos dos nossos companheiros foram trabalhar para as fábricas da cidade; outros, montaram explorações agrícolas e lançaram-se na criação de galinhas. Somos livres, mas não temos o direito de voltar para nossas casas.

 

E tu? perguntou Semionov ao segundo, um homem de cabelos brancos que parecia já um tanto idoso.

 

Eu sou Willi Haffner de Monschau, em Eifel. Pedreiro.

 

Eu chamo-me Kurt Wancke disse o terceiro com um forte sotaque berlinense. É inútil perguntar de onde venho. Era contabilista da Siemens e agora sou contabilista na cooperativa de Munaska.

 

Então este rio é o Muna? perguntou Semionov. É um afluente do Lena, não é? E o Lena fica longe daqui?

 

A cerca de quarenta verstas. A nossa aldeia fica justamente na confluência.

 

Foi de lá que vieram?

 

Sim.

 

Calaram-se de novo, e beberam o chá com ar pensativo. Ludmilla ficara num canto, perto do lume. Não compreendia uma única palavra do que eles diziam, mas apercebeu-se de que pouco a pouco a distância que a separava daqueles homens diminuía, e que a Alemanha, esse país que a tinham ensinado a odiar desde a mais tenra idade, a Alemanha que diziam na escola ter o destino de destruir a Rússia, esse país detestado que ela compreendia e amava agora, graças a Paulucha, entrara na cabana e a enchia de uma vida profunda.

 

Os três alemães passaram uma semana em casa de Ludmilla e de Semionov; disseram que vinham de dois em dois anos à cabana para procurarem ouro no leito do Muna. Isso explicava a presença das várias peneiras que tinham intrigado Semionov. Dois anos bastavam para que o Muna acumulasse na laguna diante da cabana uma grande quantidade de rochas, pedras e areia vindas das distantes regiões montanhosas da taiga e das altas planícies da Sibéria, onde nascia.

 

Já tirámos daqui dois mil rublos de ouro explicou Willi Haffner. Mas este ano não vale a pena. Vi logo. Quando chove muito na taiga é que os rios se transformam em torrentes selvagens e arrastam tudo com eles, pedras, areia e pepitas de ouro.

 

Ao fim de uma semana, partiram para a aldeia. Semionov acompanhou-os até ao embarcadouro, enquanto Ludmilla ficava em casa. Uma camada de neve de cerca de dez centímetros cobria já o solo e as margens tornavam-se perigosamente escorregadias.

 

Nós vamos enviar-te um barco a motor, Pavel disse Egon Schliemann à despedida, em russo, pois voltavam à aldeia e voltavam a ser, como por magia, indígenas da taiga. Vamos levar Ludmilla a Bullinski, a aldeia do confluente. Há lá um hospital! Verás como está instalado! Incrível! Até há pouco tempo era um velhote que o dirigia, mas reformou-se, e parece que agora está lá novo médico. Uma mulher, de resto. Dizem que é o diabo em pessoa, mas que conhece a sua profissão. Para lá é que transportaremos a tua mulher.

 

Oh! Ainda temos tempo! disse Semionov. Depois beijou os três, à maneira russa, nas duas faces. Obrigado por tudo. Mas, atenção! Não esqueçam que eu e Ludmilla não devemos ser vistos!

 

A doutora não falará. Ela é também uma proscrita e gosta de nós.

 

Mesmo assim. E o bebé deve nascer dentro de um mês aproximadamente disse Semionov empurrando o barco com o pé.

 

Terás aqui o barco dentro de três semanas. E eu arranjar-me-ei com a doutora. Adeus! disse Schliemann.

 

Adeus!

 

Semionov ficou a seguir com o olhar a frágil embarcação e os seus três novos amigos, depois voltou para casa.

 

Duas semanas mais tarde, durante a noite, foi despertado por um grito. Foi encontrar Ludmilla sentada num banco, junto da mesa, com o rosto crispado pela dor.

 

Ludmilluchka! gritou saltando da cama. Que se passa?

 

Está a começar.

 

Ela fez uma careta de dor e conteve a respiração. Começou então uma correria louca. Semionov foi logo atiçar o lume e pôs sobre a pedra da lareira toda a roupa limpa que encontrou. Por cima deles, o vento uivava; a neve caía já em espessos flocos, cobrindo a floresta. Uma camada de gelo imobilizava o Muna.

 

Ainda é muito cedo disse Ludmilla. Vai deitar-te.

 

Ludmilla deitou-se também e ele cobriu-a cuidadosamente com todas as mantas de que dispunha e acariciou-lhe meigamente a cara.

 

Que importa que seja agora ou daqui a duas semanas. É o nosso bebé... Oh!

 

Agarrou-se às mãos do marido até à acalmia seguinte, respirou profundamente e esboçou até um sorriso.

 

Semionov correu por toda a parte, como um louco. Já há semanas que ele se preparava para aquela prova, repetindo incessantemente todas as precauções a tomar, como se estudasse uma lição.

 

E sobretudo nada de pânico.

 

Mas chegado o momento sentiu-se perdido. E não podia suportar assistir, impotente, ao sofrimento de Ludmilla. Ia então sentar-se junto dela e ela agarrava-se com força às mãos dele, quando a dor se tornava muito forte; depois, limpava o pobre rosto inundado de suor, cobria-a melhor e tudo recomeçava.

 

Paulucha! gritou ela uma vez. Eu morro. Oh, vou morrer! Não posso mais.

 

Chegou o dia. Semionov saiu para ir buscar um balde de neve e pô-la a derreter. Na margem, um jovem urso, sentado sobre o traseiro, comia tranquilamente um peixe.

 

Meio-dia. Ludmilla estava estendida, com os olhos semicerrados e os punhos fechados. As veias das suas têmporas formavam umas linhas azuladas e pulsavam num ritmo sacudido e irregular. A cada contracção ela abria a boca mas já não gritava. Não tinha voz.

 

Ao anoitecer murmurou:

 

Uma corda, dá-me uma corda e amarra-a aos pés da cama. Depressa. Depressa.

 

Ele foi buscar uma corda ao cais, no meio da neve e da tempestade.

 

Despe-te disse ela revirando os olhos. E carrega na minha barriga.

 

Meio enlouquecido, Semionov obedecia a tudo. De repente, Ludmilla soltou um grande grito; os seus olhos incharam, o corpo torceu-se como sob o efeito de um choque eléctrico; a cabeça da criança apareceu. No rosto de Semionov o suor formava sulcos. Continuou a carregar no ventre inchado. Ao ver a cabeça cabeluda do bebé, soltou uns gritinhos surdos e começou a tremer.

 

Ah! gritou mais uma vez Ludmilla.

 

Depois, largou a corda e enterrou os dedos nas costas do marido. Mas ele não sentia nada; tinha pousado as duas mãos na cabeça da criança e recebeu-a assim, como numa taça, num jorro de sangue. Pequeno ser minúsculo, de pálpebras franzidas e punhos fechados. Tinha uma cabeleira preta.

 

O bebé... murmurou. O nosso bebé é uma menina. Tem cabelos escuros.

 

Começou a chorar, a soluçar segurando o bebé nas palmas das mãos.

 

Finalmente, recompôs-se e fez os gestos que há tanto tempo estudara: cortou o cordão com uma tesoura esterilizada, cobriu o corpo de Ludmilla com roupas limpas e foi lavar o bebé numa bacia de água quente para lhe dar banho. Deu-se então o maior milagre do mundo: o pequeno peito distendeu-se, a boca abriu-se e um grito penetrante soou no quarto agora silencioso.

 

Ela vive gritou de novo o jovem pai. Respira! Chora! A minha filha vive!

 

Uma hora mais tarde estava novamente tudo limpo e em ordem. A mamã dormia, com o rosto repousado e calmo, os cabelos negros cuidadosamente penteados; embrulhado numa pele de urso o bebé dormia também. Esgotado pelo esforço, Semionov sentou-se na pedra, junto do lume; descansou a cabeça entre as mãos e adormeceu também, sem dar por isso.

Três dias mais tarde chegava o barco a motor, prometido pelos três companheiros. Seria mais justo falar de um trenó, a motor, pois um engenheiro alemão tinha conseguido transformar o barco, que no Verão assegurava a ligação entre os rios Lena e Muna, num trenó que permitia atravessar esses rios, mesmo no Inverno. Três comissões foram observar o fenómeno; propuseram alguns melhoramentos e tinham confessado que queriam assegurar daquela maneira todos os serviços fluviais de Inverno na Sibéria.

 

Foi Willi Haffner o primeiro a entrar na cabana. Viu Ludmilla, pálida como uma morta, estendida sobre a pele do urso; junto dela, Semionov segurava-lhe na mão. A espingarda repousava diante dele. Noutra cama, bem embrulhado, o bebé soltava uns leves gemidos.

 

Pavel! gritou Willi, assombrado perante aquele espectáculo desolador.

 

Afastou Semionov com um joelho; Ludmilla não ouvia nada; tinha desmaiado e estava exangue.

 

Ela está a morrer murmurava Semionov olhando para Willi com uma expressão vazia. Ela morre. Está a perder sangue. Está a morrer, a minha Ludmilluchka!

 

Merda! Willi correu ao cais, onde os seus companheiros desembarcaram as mercadorias. Parem com isso, rapazes. Depressa, uma maca! O bebé já nasceu. Meu Deus, oxalá não seja tarde de mais!

 

Dez minutos depois o trenó corria sobre o gelo.

 

A corrida contra a morte durou quatro horas. Durante quatro horas, Kurt Wancke velou sobre Ludmilla, tentando fazer estancar o sangue; durante quatro horas, Semionov, meio louco de inquietação e de desgosto, gritou e bateu no peito implorando o perdão da mulher, até que Willi, homem prático, lhe meteu na boca o gargalo de uma garrafa de vodka e o obrigou a beber; em breve, completamente embriagado e sem forças, Semionov estendia-se aos pés de Schliemann e fixava o céu com um olhar melancólico.

 

Nova Bulinski estava situada na confluência do Muna com o Lena, no sítio onde o rio, impressionante pela sua força, formava numerosos ilhéus onde a taiga virgem ia morrer mesmo sobre a margem. Era muito fácil passar em frente da aldeia sem a ver, sem sequer a adivinhar, sobretudo no Inverno, quando uma espessa camada de neve envolvia tudo: a floresta, as margens e o rio. A aldeia, com as suas casas, as suas três tulhas subterrâneas, o seu depósito de água, com a sua alta chaminé e uma cúpula em forma de globo, a igreja, fazia lembrar uns brinquedos gigantescos que tivessem ficado abandonados no deserto nevado.

 

Sucede, muitas vezes, nas cidadezinhas da Rússia, que o hospital se encontre nos arredores. Era o caso do de Nova Bulinski, construído na margem do Lena, não para se desfrutar dali uma bela vista, mas pela razão bem simples que, desde sempre, os Russos tiveram horror às doenças infecciosas.

 

O trenó abrandou progressivamente o seu andamento e aproximou-se da margem. Schliemann accionou a sereia de alarme. Três breves toques e o hospital preparava-se imediatamente para receber um caso urgente. Boria, o enfermeiro, lavou a cara e as mãos à pressa, engoliu um bom gole de vodka e dirigiu-se para a entrada empurrando a única maca rolante do hospital.

 

Semionov dormitava, afogado nas brumas do vodka. Alguém o agarrou e o sacudiu, depois atiraram-no para a neve, esfregaram-lhe a cara com ela e deram-lhe pontapés no traseiro. Este tratamento enérgico resultou. Lentamente, as brumas foram-se dissipando e Semionov recuperou a consciência. Viu Ludmilla estendida na maca, transportada por Schliemann Wancke. A porta do hospital estava aberta, e, na entrada, esperava Boria com a maca de rodas e o seu grande nariz.

 

Ludmilla parecia muito pequena, pálida, com as narinas afiladas, fazia lembrar um passarinho esfolado. Os seus compridos cabelos negros pendiam de um dos lados da maca. A lúgubre procissão partiu.

 

Está tudo pronto! gritou Boria da porta quando eles se aproximaram. A doutora espera-os, camaradas.

 

Deixa-nos em paz com os teus ”camaradas” gritou Schliemann.

 

Mas ela está morta! exclamou Boria instalando Ludmilla na maca. O que tem ela?

 

Vês bem que ela ainda respira, meu parvalhão respondeu Willi Haffner.

 

Mas vai morrer! Isso vê-se...

 

Cala-te, cretino! interrompeu Kurt Wancke em alemão. Não há um minuto a perder!

 

Boria não compreendeu o insulto, mas calou-se. ”Estes alemães que vão para o diabo”, pensou, levando Ludmilla para a sala de operações.

 

Katarina Kirstarskaia aproximou-se à pressa da cama; soergueu as pálpebras de Ludmilla, apalpou-lhe o pulso muito fraco e auscultou-a.

 

Vai-te embora disse então para Boria.

 

Boria contemplava com uma admiração mal dissimulada o corpo franzino e a pele branca da doente. Só conhecia as matronas possantes e adiposas, fêmeas perpetuamente acaloradas e que se torciam como lesmas mal lhes tocavam.

 

Está a mandar-me embora? E porquê?

 

Não preciso de ti. Fora! disse duramente a voz grave de Katarina Kirstarskaia; era o seu tom de comando, nada a fazer senão obedecer. Boria encolheu os ombros e saiu da sala de operações profundamente vexado. No corredor, encontrou os três alemães.

 

Lá para fora! ordenou ele por sua vez, indicando-lhes a saída.

 

Enquanto Boria continuava a discutir no corredor com os três ex-prisioneiros, Katarina começara a trabalhar. O seu instinto não a enganara. Uma parcela da placenta tinha ficado no útero e Ludmilla ia perdendo sangue lentamente.

 

Não havia um minuto a perder. Era necessário uma transfusão de sangue. Rapidamente, no seu laboratório, ela própria determinou o grupo sanguíneo da sua doente.

 

Quem é do grupo B? perguntou para os homens que se encontravam no corredor.

 

Eu respondeu Kurt Wancke. Se me tivesse deixado ficar com a minha caderneta militar podia prová-lo.

 

Estás de boa saúde?

 

Creio que sim.

 

Não tem doenças venéreas?

 

Oh! doutora! exclamou Wancke, escandalizado, passando a mão pelos cabelos.

 

Vá, então entra e prepara-te!

 

Wancke entrou no santuário de Katarina. O vulto de Ludmilla, sobre a marquesa, estava imóvel.

 

Está viva? perguntou Wancke em voz baixa.

 

Imbecil! Porque te mandaria eu vir aqui se ela estivesse morta?

 

Katarina colocou uma cadeira perto da mesa de operações e foi buscar um tubo de borracha munido de uma torneira e duas condutas, e um pequeno tubo de vidro. Era o aparelho de transfusões mais primitivo que podia haver.

 

Lava o braço e depois vem ajudar-me a estender Ludmilla sobre a mesa. És casado?

 

Sim, doutora. E tenho dois filhos.

 

Bom. Então és capaz de ver uma mulher nua sem ficares com os olhos queimados. Não és como esse pesadão do Boria.

 

Soergueram o corpo leve de Ludmilla e passaram-no para a mesa de operações. Imediatamente a doutora introduziu a agulha numa veia do braço.

 

Sentas-te ao pé dela e controlas a transfusão, sim? Ainda tenho de lhe fazer o penso.

 

Wancke aquiesceu. Com a garganta apertada, deixou-se picar por sua vez. Apoiou o braço sobre a mesa e ficou a ver o seu sangue passar pelo tubo de borracha para a veia de Ludmilla.

 

Katarina trabalhava depressa, com gestos precisos e controlados. Soltou um profundo suspiro, endireitou-se e cobriu o corpo nu de Ludmilla.

 

Já está disse, pegando no material. Como vai isso?

 

Parece que vai bem. Ela está a respirar melhor.

 

Wancke virou ligeiramente a pequena torneira e o sangue correu mais depressa. Sentia pouco a pouco a cabeça pesada; uma espécie de náusea apertava-lhe o estômago, as pernas começavam a tremer-lhe e tinha a garganta seca como se tivesse andado um dia inteiro a caçar na taiga, queimado pelo sol de Verão. ”Que quantidade de sangue já terei dado?”, pensou. ”Ninguém teve o cuidado de controlar isso! Mas segundo creio conhecer a Kirstarskaia, ela só fechará a torneira quando eu cair da cadeira”. Sentou-se mais comodamente, mas, apesar dos seus esforços, parecia ver através de um nevoeiro Katarina inclinar-se sobre a doente e auscultar-lhe o coração. Tudo se tornou pouco nítido à sua volta.

 

Basta! decidiu a médica fechando a pequena torneira e tratando do braço de Ludmilla. Em seguida, voltou-se para Wancke e disse com um sorriso: Tu és forte. E salvaste-lhe a vida.

 

Wancke agitou desajeitadamente a cabeça. Parecia-lhe ter a boca cheia de algodão em rama. A voz de Katarina chegava aos seus ouvidos abafada; quis agarrar-se à mesa de operações, mas também ela lhe parecia de algodão. Acabou por cair da cadeira e ficar estendido no chão, onde adormeceu imediatamente. Katarina sorriu, chamou Boria e os outros e mandou-os entrar.

 

Levem-no. Deixem-no dormir o tempo que ele quiser. Quando acordar dêem-lhe carne crua, fígado de rena cru, natas frescas com açúcar e peixe cozido. Mas, afinal, onde está o bebé?

 

Junto de Semionov, no quarto.

 

No quarto? Semionov também está doente? perguntou a médica fazendo uma careta.

 

Está completamente embriagado! Willi Haffner agarrou nas pernas de Wancke para o deitarem sobre a maca com rodas e o levarem dali. Nós instalámo-lo no quarto vinte com a criança. Geme e diz que se vai matar porque a sua Ludmilluchka está a morrer. Ela vai morrer de facto, doutora?

 

Katarina não respondeu. Com passos nervosos deixou a sala de operações.

 

Lá vai ela lançada! Sempre gostava de saber o que tem contra Semionov, se nem sequer o conhece.

 

No quarto vinte, Semionov estava sentado na cama; perto dele, a criança dormia. Quando a porta se abriu nem voltou a cabeça. Pelo contrário, enterrou-a mais nos ombros. Todo o quarto estava empestado com o cheiro do álcool.

 

Não me diga nada disse Semionov. Eu sei. Ela está morta. Eu vi-a.

 

Katarina só tinha olhos para a pequena bola de carne que se agitava suavemente, embrulhada em peles. Contemplou demoradamente o pequeno rosto redondo e depois é que se apercebeu de que as mãos de Semionov tremiam.

 

Eis o que resta do famoso Semionov, a fera negra de Moscovo! disse ela com a sua voz profunda, encostando-se à porta. Agora é que Karpuschin te devia ver. Não tens vergonha, Pavel Semionov?

 

De repente, ele ergueu a cabeça. As suas mãos voltaram a cair sobre a cama:

 

Você! exclamou surdamente. Você aqui? Desta vez abandono...

 

O que é que abandonas?

 

Tudo! Mesmo a Rússia não é suficientemente vasta para dois seres que só querem viver juntos, felizes e ignorados... Seja para que lado formos nunca encontraremos o paraíso, nem no inferno da taiga. Isto parece absurdo, não é verdade? No entanto, eu tinha dito: ”Aquilo que os outros tomam por inferno, talvez nós consigamos transformar em paraíso. Que engano, Katarina Kirstarskaia! E que loucura! Por toda a parte encontramos homens e onde há homens não há paraíso possível. E agora você aqui! estou farto, mais que farto!

 

Pavel Semionov, não passas de um cretino!

 

Bem sei, camarada Kirstarskaia. Já o era na altura em que pensava poder escapar a um Karpuschin; deixar-me-ei levar como um carneiro para o matadouro. Mas tenho uma última súplica a fazer: deixem Ludmilla e a criança em paz. Deixem-nas. Murmurava, limpando os olhos: Sim, quem vai criar a minha filhinha? Irá para um orfanato do Estado, não é verdade? Depois, para a escola do Komsomol? Farão dela uma boa comunista, certamente, visto que é esse o vosso dever. Não saberá nunca quem eram os seus pais. Para isso é que ela veio ao mundo.

 

O que é que estás para aí a resmungar? Katarina foi buscar um maço de cigarros e ofereceu-o a

 

Semionov. Só nesse momento é que ele reparou na bata manchada de sangue da médica. O sangue de Ludmilla. Largou o maço e suspirou:

 

Ela... ela sofreu muito?

 

Quem?

 

Ele encarou-a com os olhos muito abertos.

 

Posso ver Ludmilluchka?

 

Com certeza. Ela está ainda estendida sobre a mesa de operações e dorme. As suas faces estão a recuperar lentamente as cores.

 

Katarina Kirstarskaia! gritou o infeliz.

 

Digo-te que dorme. Vai ser imediatamente transportada para o quarto; dentro de duas semanas podem ir patinar juntos sobre o Lena. Apenas ficará fatigada durante uns tempos.

 

Está viva murmurou Semionov, começando a chorar.

 

Tens os nervos em franja disse a doutora. Aproximou-se da cama e acariciou meigamente o bebé. Há quanto tempo não comes?

 

Há três dias.

 

Então vem. Como ele não se mexia, ela bateu-lhe nas costas. Vá, levanta-te e deixa de gritar como uma doninha. Preparei salmão fresco, uma salada de pepinos e cogumelos marinados. Como sobremesa morangos cozidos em mel.

 

Sou incapaz de engolir seja o que for, Katarina Kirstarskaia. Limpou os olhos. Eu queria ver Ludmilla.

 

Hás-de vê-la durante todo o resto da tua vida. Por agora ela dorme. O que é que vai pensar de ti, a tua mulher, se ao acordar vir na sua frente apenas um molengão?

 

Durante uma semana mais, passaram por alternativas de esperança e de receios; ouviram-se muitos gemidos, lamentos, pragas e preces no hospital. Katarina passava todo o seu tempo livre à cabeceira da doente; muitas vezes, foi obrigada a dar-lhe uma injecção para aguentar o coração. Alimentava-a artificialmente e Semionov admirava-se de ver tantos medicamentos e produtos modernos naquele recanto abandonado da Sibéria. Não conseguia compreender por que milagre um pequeno hospital escondido nas margens do Lena possuía penicilina e reservas de soros, um aparelho de anestesia e mesmo instalações para electrocardiogramas; previa-se agora a instalação completa de radiografias e um aparelho de raios X e de lâmpadas de raios ultravioletas.

 

No Ocidente têm todos uma falsa ideia acerca da Sibéria disse-lhe um dia Katarina. Porque é que pensam sempre que os Urales são o limite extremo do mundo civilizado? Desdobrou o jornal O Pravda de Yakousk enviado todas as semanas pelo correio para Bulinski e passado em seguida de porta em porta. Dentro de quatro anos teremos aqui televisão, como nas grandes cidades. Quando todas as instalações eléctricas estiverem terminadas, a Sibéria ter-se-á tornado o mais belo país da terra.

 

Semionov aprovou; não tinha dificuldade em acreditar nisso desde que travara conhecimento com a taiga e aprendera a amá-la.

 

Boria havia começado a procurar uma ama para o bebé de Semionov; designara uma das suas três mulheres, aquela que acabara de dar à luz o terceiro filho e cujos seios pareciam rebentar com a pressão do leite. Sentia-se muito orgulhoso dessa mulher e não parava de lhe dar palmadas nas nádegas quando ela pegava na filha de Semionov.

 

É uma mulher fantástica! explicou orgulhosamente. E as outras também, de resto. Tenho nove filhos e não vou ficar por aqui, meu velho!

 

A Sibéria, a taiga... Um mundo pré-histórico no qual a civilização tentava introduzir-se como um furão numa capoeira. Semionov começou a rir. Pouco a pouco reencontrava a alegria, o entusiasmo e o dinamismo; reencontrava-se a si mesmo, com a sua antiga alegria de viver.

 

Ao fim de duas semanas, Ludmilla pôde levantar-se pela primeira vez. Apoiada ao braço do marido, deu, hesitante, os passos que a separavam da janela e contemplou em silêncio a superfície polida e gelada do Lena, e o céu azul, puro, virgem, onde o Sol estava suspenso, como um gigantesco disco de cobre.

 

Como a vida é bela disse por fim, baixinho, apoiando a cabeça cansada no ombro do seu companheiro. Diz lá, Paulucha, eu estava morta?

 

Quase, querida.

 

E tu, que fizeste?

 

Também não queria continuar a viver sem ti...

 

Amas-me então a esse ponto?

 

Não há palavras para descreverem o meu amor, querida Ludmilla.

 

O seu roupão de seda tártara, bordado com sóis e com estrelas, cintilava; era um presente de Katarina, o roupão que usara em Irkoutsk, na época do seu primeiro amor.

 

Que nome vamos dar à menina, Paulucha? perguntou Ludmilla.

 

Como? Porque não há-de ser Ludmilla? Não conheço nome mais bonito.

 

Eu queria chamar-lhe Nadia. disse ela.

 

Como queiras. Mas porquê Nadia?

 

Durante um instante Ludmilla ficou silenciosa; depois, ergueu o rosto pálido e emagrecido para o marido:

 

Era o nome da minha irmã. Os Alemães levaram-na um dia e ela nunca mais voltou. Compreendes, é um pouco como se no-la devolvessem.

 

Semionov não respondeu; pousou o queixo sobre os cabelos sedosos e olhou o Lena. Os pescadores lutavam contra os peixes curiosos ou desajeitados que se deixavam apanhar; da janela, podiam assistir à agonia dos grandes esturjões cuja cauda trémula varria a neve e parecia tomar como testemunha o frio sol dourado.

 

Vamos baptizá-la, não é verdade? Achas que aceitarão baptizar a nossa filha, apesar de eu ter renegado a fé ortodoxa?

 

Quem é que Deus podia preferir a nós? Respondeu Semionov. Se existe um pope em Bulinski, irei ter com ele para lhe explicar tudo e ele compreenderá que Deus nos proteje.

 

Matwei Karpuschin não tinha ilusões. Aquele que recebia ordem para se dirigir a Moscovo com armas e bagagens, podia imediatamente prevenir o cangalheiro e o mestre-de-cerimónias fúnebres, para organizar o seu próprio funeral.

 

Despediu-se da mulher, Olga Jelisaveta, beijou-a na boca, o que provava que não tinha qualquer esperança de regressar e partiu para Moscovo.

 

Para quê tergiversar? Dirigiu-se imediatamente para o Kremlin, fez-se anunciar e esperou que um jovem tenente se dignasse vir recebê-lo para o introduzir no santuário tão temido, de onde não esperava sair vivo.

 

O marechal Malinovski reservou-lhe uma recepção mais calorosa do que habitualmente; levou até a amabilidade ao ponto de ir ao encontro do seu visitante e apertar-lhe a mão como a um velho amigo. Essa atitude provocou, de resto, no infeliz Karpuschin, uma ansiedade mortal. Sabia que quanto mais o sol brilha, mais as nuvens são espessas.

 

Retomei o estudo deste caso desde o seu começo disse Malinovski enchendo dois copos de vinho da Georgia. O camarada ministro do Conselho está de acordo comigo. Devemos tratar do assunto de um modo inteiramente diferente. Vamos condená-lo à morte.

 

Agradeço-lhe, camarada marechal. Karpuschin pousou o cigarro e o copo de vinho.

 

Vai redigir uma confissão completa e reconhecer que se aliou aos Americanos.

 

Vai confessar tudo. Um largo sorriso distendeu o rosto sombrio de Malinovski. Dar-lhe-ão a lista de todos os seus crimes. Tem de a saber de cor para ser capaz de recitar a sua confissão sem um lapso.

 

Vou esforçar-me por isso replicou Karpuschin, ao mesmo tempo que sentia os olhos a arder e as comissuras dos lábios tremerem.

 

Em seguida, caro amigo disse gentilmente Malinovski, mandará pintar o cabelo de preto, deixará crescer a barba, tingindo-a também de preto, claro, e abandonará esse ridículo monóculo.

 

Sem ele não vejo nada protestou o condenado.

 

Então adapta-se a isso uma armação. Vai transformar-se radicalmente, pois todos os serviços secretos ocidentais conhecem o seu aspecto exterior, até mesmo esse Heller-Semionov. Quando tiver mudado a ponto de a sua mulher não o reconhecer, tomará o caminho de Olenekskaia Kultbasa e o rasto de Semionov. É a sua única missão a partir de hoje, Karpuschin! É preciso que encontre Semionov. Entende? É preciso!

 

E a minha execução, camarada marechal?

 

Karpuschin estendeu a mão trémula para o copo e esvaziou-o de um trago.

 

Faremos uma comunicação oficial depois da sua confissão. Isso acalmará todos os serviços secretos do mundo inteiro; e seja qual for o buraco onde se esconda esse Semionov, ele virá a sabê-lo também. Publicaremos a sua condenação em todos os postos militares e em todas as guarnições.

 

Por outras palavras, é uma verdadeira execução! O meu nome será coberto de vergonha e riscado das listas do Exército Vermelho?

 

Isso será feito para bem da nação, general Karpuschin!

 

E quando eu tiver encontrado Semionov como poderei voltar a ser Karpuschin, camarada marechal?

 

Karpuschin é executado respondeu alegremente Malinovski. Continuará a viver com o seu nome falso. Novo sorriso apareceu no rosto de Malinovski e Karpuschin teve a sensação de ser o rato com quem o gato se divertia antes de o trincar.

 

Não sabemos ainda como ressuscitar os mortos. Dentro de uma semana estará morto para o mundo inteiro, meu caro camarada!

 

E Olga Jelisaveta?

 

Nós dar-lhe-emos uma pensão confortável, o que lhe permitirá representar maravilhosamente o seu papel de viúva inconsolável. Tanto quanto sei ela é uma cristã convicta, não é? Ninguém se oporá a que ela vá fazer arder velas diante dos ícones pelo descanso da sua alma.

 

Isso tranquiliza-me perfeitamente. Karpuschin ergueu-se. Só de pensar que ia ser um morto-vivo sentia-se invadido por uma náusea inexplicável. Que vai passar-se agora?

 

Comecemos pela representação do primeiro acto da nossa pequena comédia, camarada. Eu prendo-o. De facto, mandei-lhe preparar um belo quarto no interior do Kremlin, com uma vista esplêndida para o grande sino Tsar Kolokol. Malinovski ergueu-se por sua vez. O Exército Vermelho confia inteiramente em si, camarada.

 

Karpuschin inclinou-se, mas a sua saudação nada teve de militar:

 

Esforçar-me-ei por ser digno dessa confiança, camarada marechal.

 

Por detrás das portas cuidadosamente guardadas do Kremlin, desenrolava-se o processo conduzido contra o general Karpuschin. Fez sensação. Os Ocidentais lançavam um olhar simultaneamente fascinado e assustado para o Leste; apenas alguns comunicados discretos atravessavam as muralhas do Kremlin. Sorriram ao saberem da confissão de Karpuschin; a sua execução foi considerada ”crime político”; depois, começaram a esquecer um pouco por toda a parte esse Intermezzo soviético, pois é verdade que a opinião pública se apaixona mais por uma corrida de automóveis ou por um desafio de boxe do que pela execução de um russo qualquer.

 

Contudo, o major Hadley estava surpreendido; não percebia os dados elementares da sua profissão. Aquele julgamento desafiava a lógica. Karpuschin não podia confessar uma coisa tão absurda sem se encontrar sob a acção de uma droga capaz de alterar toda uma personalidade e mesmo todo o pensamento íntimo. Mas porque teriam justamente escolhido Karpuschin, o melhor elemento da KGB? Havia uma única resposta: querelas intestinas agitavam o Kremlin e o objectivo era a cabeça de Karpuschin. No entanto, Hardley acreditava também na morte do general e soltava um suspiro de alívio, lendo o comunicado. Liquidado, adversário temido, o seu sucessor, o coronel Bendarin, era um georgiano já bem conhecido nos meios americanos; possuía sólidas faculdades de astúcia e de crueldade, podia em rigor tornar-se perigoso; mas faltava-lhe, no entanto, toda a vitalidade de pioneiro que fizera a reputação de Karpuschin.

 

Enquanto todos os serviços secretos do mundo riscavam das suas listas negras o nome de Karpuschin, no Kremlin, uma última conferência reunia os principais actores da comédia, um Karpuschin irreconhecível, o marechal Malinovski e dois outros generais iniciados nos segredos do Estado.

 

Contavam também uma boa história; nas ruas de Moscovo, Olga Jelisaveta a esposa fiel que percorrera toda a Sibéria para tentar obter o perdão para o condenado à morte fora perseguida por um indivíduo estranho e inquietante; havia-se zangado, dignamente, quando o homem quisera dirigir-lhe a palavra. Esse mesmo homem, sentado nos primeiros lugares do Kremlin, tinha uma espessa barba negra, cabelos pretos que lhe chegavam às orelhas, olhos azuis como as águas pálidas, sem óculos e rosto bronzeado, assemelhava-se, como dizia Malinovski, divertido, a Rasputine.

 

Tem sorte, meu velho, por o príncipe loussoupov viver em França, senão matava-o pela segunda vez, se o encontrasse!

 

Em seguida, Malinovski retomou o seu ar sério e fez um sinal. Entrou uma rapariga e com grande espanto Karpuschin reconheceu Marfa Babkinskaia. Elegante como sempre, a intérprete vestia um casaco de astracã com um chapéu igual e calçava botas brancas.

 

Você não conhece Semionov disse Malinovski ao fim de alguns minutos; conhece apenas Franz Keller, mas Marfa viu-o no Jardim Botânico no seu novo disfarce. Trabalharão, portanto, juntos.

 

Eu, com esta boneca de salão? gritou Karpuschin. Sabe bem que nunca autorizei a sua maneira de vestir.

 

Recebi consentimento dos serviços de inspecção respondeu Marfa com dignidade.

 

Eu sei, eu sei interrompeu bruscamente Karpuschin. Mas se ela se vai pavonear assim na Sibéria, não será Semionov que traremos, mas sim uma dúzia de garotos!

 

Profundamente vexada, Marfa afastou-se. Malinovski começou a rir pela segunda vez, o que provava decididamente o seu bom humor.

 

Marfa aprenderá a adaptar-se disse ele.

 

Depois de amanhã tomarão o avião directo para Olenekskaia Kultbasa. E, em seguida, caro amigo, não quero vê-lo até ao dia em que me trouxer a cabeça de Semionov numa bandeja de prata.

 

Que prazo me fixam? interrogou o general, com a garganta seca.

 

Que prazo? Pouco importa. Nós já não temos nada a perder, camarada. Já está morto!

 

No hospital de Olenekskaia Kultbasa, Karpuschin retomou as suas pesquisas. Usava agora o nome de Chelkovski, controlador das empresas nacionalizadas.

 

Passaram tudo ao crivo, as fichas dos doentes, as malas abandonadas por Katarina Kirstarskaia, a antiga directora do hospital; examinaram as suas roupas, o interior das bainhas e as dobras. Foi Marfa quem teve a honra de fazer a primeira descoberta: uma carta já de há alguns meses, fechada ainda, que chegara ao seu destino, provavelmente depois de Katarina já ter partido!

 

Vejamos! disse Karpuschin, abrindo-a. Vem de um certo doutor Pluchin, de Mulatchka. Pede notícias sobre os seus protegidos. Será o início de uma pista,. Marfa?

 

Tenho a impressão que sim, camarada Chelkovski. Karpuschin esboçou um sorriso amargo. Não conseguia habituar-se à sua mudança de identidade.

 

Mulatchka? Onde fica esse buraco?

 

A sul de Olenekskaia, aqui disse Marfa Babkinskaia indicando com a sua unha pintada um pontinho imperceptível no mapa pendurado na parede. Não há uma estrada capaz para lá chegar, mas como controlador que é, pode muito bem ir até lá de helicóptero. Existem lá dois armazéns de madeiras.

 

Assim se fez. Karpuschin desembarcou perto dos armazéns, berrou para o director que aquilo estava tudo numa porcaria e que voltaria dentro de uma hora e que queria que reinasse ali a ordem e o asseio mais absolutos. Depois, pediu a direcção do Dr. Pluchin e dirigiu-se para a aldeia, de trenó.

 

O Dr. Boris Pluchin encontrava-se em casa; estava estendido sobre um banco, perto do lume, com o rosto vermelho, os olhos fixos e brilhantes de febre, a respiração ofegante.

 

És o doutor Pluchin, camarada? perguntou Karpuschin.

 

O doente virou a cabeça com dificuldade:

 

Hoje não há consultas disse a custo. Bem vês que eu próprio estou a morrer.

 

Não te faças de idiota, Pluchin. Sei que albergaste Semionov, o espião, e a mulher. Onde estão eles agora?

 

Semionov? Pluchin franziu a cara. Nunca ouvi falar nesse nome.

 

Que sabes tu?

 

Quis dissecar um cadáver para saber como é que o tipo tinha morrido. Cancro dos pulmões, percebem? Aqui, em plena taiga! E infectei-me.

 

Que sabes de Semionov? interrompeu Karpuschin sacudindo o doente como se fosse uma árvore. Não quero saber do teu cancro no pulmão!

 

Mas quero eu, camarada. Porque estarei condenado a morrer tão estupidamente? Porquê? Porque me faltam medicamentos. Porque nos esqueceram no nosso cantinho. Porque vivemos para qui como porcos. Porque o regime é um crime contra a humanidade. Porque o czar está morto. Porque o ser humano deixou de contar. Porque perdemos a nossa honra. Por isso, camarada, é que eu estou hoje a morrer de septicemia. E agora deixa-me em paz. Deixa-me morrer tranquilo e trata-te sozinho.

 

O Dr. Pluchin fechou os olhos. Um tremor convulsivo agitou o seu corpo magro; batia os dentes. Karpuschin inclinou-se sobre o doente; só um olhar fixo e vazio cruzou com o seu. O Dr. Boris Pluchin tinha morrido; no seu rosto enrugado desenhava-se um sorriso, como se a morte representasse um último triunfo.

 

Na KGB, o sucessor de Karpuschin, o coronel Bendarian, trabalhava com a precisão de uma máquina.

 

Mandou fazer um retrato de Semionov segundo as indicações recebidas e mandou tirar milhares de exemplares; depois, enviou-o para todas as aldeias e cidades da União Soviética, para os mais pequenos burgos e até para as distantes feitorias do Norte. Cada Soviete recebeu uma cópia do retrato, assim como a promessa de um prémio de cinco mil rublos para quem encontrasse o homem.

 

Bulinski recebeu também um exemplar, como todas as aldeias soviéticas. Foi Egon Schielmann que o levou para o hospital. Egon lembrou então, muito a propósito, que o chefe do Soviete tinha, por duas vezes já, enviado falsas declarações sobre o rendimento das colheitas.

 

Cinco mil rublos disse com voz pensativa a Semionov. Para um siberiano é uma verdadeira fortuna. Toda uma vida de trabalho honesto não lhe chegaria para o poupar. Vai ser necessário redobrar de prudência. Há já demasiadas pessoas que estão ao corrente da tua presença na aldeia. Esse imbecil do Boris tem-se encarregado de fazer a publicidade. Diante de cinco mil rublos a amizade mais profunda pode ficar abalada.

 

E, no entanto, reinava a amizade em Bulinski. Durante a sua estada no hospital, Ludmilla e Semionov recebiam todos os dias a visita dos seus amigos alemães; não iam nunca de mãos vazias, levando quase todos os dias livros e guloseimas; contavam a sua existência na Sibéria e pensavam na sua pátria distante, sem desgosto nem desejo de para lá voltarem. Tinham-se casado, tinham filhos, possuíam a sua casa, a sua granja, os seus campos e as suas florestas. Levavam uma vida simples mas sã e não se ocupavam com os acontecimentos que agitavam o mundo.

 

Bulinski gabava-se ainda de se ter tornado um centro cultural. A chegada dos alemães transformara completamente a pequena povoação miserável; tinham levado consigo uma outra civilização e conseguido reanimar os espíritos adormecidos dos indígenas da taiga. Bulinski construíra um grande salão destinado às manifestações culturais. Era ali que se faziam os discursos de propaganda doutrinária, as reuniões organizadas no aniversário da Revolução de Outubro, do nascimento e a da morte de Lenine. Mas, em geral, servia de teatro onde se representavam comédias alemãs e russas; pois Bulinski tinha um grupo de teatro amador, fundado por um antigo actor alemão, Henk Wolter, prisioneiro e exilado, proprietário, além disso, de uma alfaiataria.

 

Semionov gostava de Bulinski. Ia-se adaptando pouco a pouco. Arranjara ali numerosos amigos, alemães ou siberianos, e todos beijavam com prazer a bela Ludmilla e seu esposo, três vezes seguidas, nas faces, à maneira russa, o beijo da paz que selava a amizade e fazia da aldeia uma grande família.

 

Vamos arranjar-te uma casa! disse um dia Egon Schliemann. Na orla da floresta existe uma casa velha. Vamos repará-la, acrescentar-lhe uma granja, um celeiro, um alpendre e rodearmos a casa de uma paliçada. Já tendes dois cavalos e nós damos-te porcos, cabras e galinhas. É caso arrumado. Vais ficar aqui connosco.

 

Não sei como agradecer-lhes, meus amigos retorquiu Semionov com voz vibrante de emoção. Acham que poderemos, finalmente, ter paz aqui?

 

Ninguém saberá que aqui estão. E dentro de dois ou três anos não se pensará mais nisso. Quem falará ainda de Semionov?

 

Mas Semionov calava-se. ”Não conhecem Karpuschin”, pensava. E Ludmilla olhava para as suas mãos; o seu pensamento era igual ao do marido. ”Na Rússia o tempo não existe... Que significam dois ou três anos para seres que não raciocinam senão em termos de geração?”

 

Na sexta-feira seguinte, Dchimski apareceu ao balcão do correio de Nova Bulinski. Era bem conhecido na aldeia porque vendia pérolas de vidro com que as raparigas se enfeitavam em dias de festa; todos os meses, regularmente, recebia de Yakoutsk uma volumosa encomenda cheia de vidros cintilantes, importados da Mongólia, fitas multicores e tecidos com fios de ouro.

 

Dchimski aproximou-se do balcão, inclinou-se para o empregado, e disse com voz pouco segura:

 

Camarada, queria enviar um telegrama. Será possível?

 

Com certeza respondeu o empregado. Ao teu serviço. Precisas de um novo sortido de quinquilharias?

 

Não. É muito mais importante. Trata-se de arranjar uma bela quantia, nieu velho. Dchimski ia pouco a pouco ficando mais confiante; a excitação agitava-lhe os dedos e não parava de bater com eles, como se tocasse piano, sobre o balcão. Tens a certeza de que o telegrama parte ainda hoje?

 

Dentro de uma hora estará em Irkoutsk. O empregado meteu um impresso nas mãos de Dchimski e emprestou-lhe um lápis. Não esqueças de pôr o endereço, o teu nome, e de escrever legivelmente o texto, para não haver reclamações.

 

Dchimski contemplou o papel e o lápis, empurrou-os brutalmente e inclinou-se de novo para o balcão.

 

Serei professor, eu? perguntou com voz dura. Cresci na floresta e ensinaram-me a não urinar contra o vento, mas escrever não era coisa muito útil! Sabes escrever, camarada?

 

Está bem. Já compreendi. Dita-me o texto. Que queres dizer?

 

Dchimski apoiou-se melhor e olhou para o tecto; reflectiu mais uns instantes e acabou por se decidir.

 

Escreve: ”Para o comissário da Polícia de Yakoutsk. Assinalo neste momento a presença, em Nova Bulinski, de um alemão chamado Semionov, procurado pela polícia. O meu nome é Miron Dchimski, morador em Nova Bulinski. Quando vierem buscar o alemão tragam os cinco mil rublos da recompensa. Viva a República Socialista Popular!”

 

Dchimski voltou-se para o empregado:

 

Isso segue assim?

 

Com certeza! O homem pousou o lápis. Diz-me uma coisa. Tu não és maluco?

 

Cinco mil rublos são cinco mil rublos, não achas?

 

Semionov não é um bom tipo?

 

Que sabes tu disso?

 

E que sabes tu do contrário?

 

Eu sei apenas uma coisa: que posso ganhar facilmente cinco mil rublos. Tenta perceber o que isso representa em colares e pulseiras? Não consegues. Depois disto irei estabelecer-me na cidade.

 

Mal Dchimski saiu, o empregado fechou a repartição, pôs um letreiro na porta que dizia: ”Volto imediatamente”, e correu primeiro a falar com o chefe do Soviete e depois com alguns bons amigos.

 

No dia seguinte de manhã, os pescadores fizeram uma curiosa descoberta no Lena. Um corpo congelado parecia enterrado como uma estaca, de pés para o ar, num buraco aberto no gelo; a cabeça não se via, metida na água gelada. Era Dchimski, morto há já várias horas. Os pescadores levaram o corpo para o salão.

 

O caso é claro declarou solenemente o chefe do Soviete. Entretanto, mandara chamar Katarina Kirstarskaia para se certificar de que o corpo não tinha qualquer sinal de contusão nem de ferimento. Dchimski, esse bêbado imundo, sentia a cabeça pesada e foi refrescar-se. Deve ter-se debruçado sobre o buraco e caiu. Foi um acidente trágico, camaradas.

 

E deu pura e simplesmente o caso por encerrado.

 

Nesse mesmo dia, enterraram Dchimski na orla da floresta. O telegrama de Dchimski não chegou nunca ao seu destino e mais ninguém tentou uma segunda experiência desse género.

 

Alguns dias antes do Natal, uma manhã, Semionov enfiou as suas raquetas nos pés, deitou por cima das suas roupas de pele de rena um espesso casaco de pele, pegou num machado e entrou na floresta para ir procurar um pinheiro.

 

Era raro encontrar-se na taiga um pinheiro pequeno, redondo e cheio, como os pinheiros de Natal na Alemanha. Ali, era tudo gigantesco. Tinha-se a impressão de que as árvores saíam da terra como gigantes com várias centenas de anos.

 

No dia de Natal, Nadia ia ser baptizada na pequena igreja de Nova Bulinski; nesse dia, toda a família Semionov devia inaugurar a nova casa: uma casa sólida construída com alegria e amizade por uma vintena de homens da aldeia. Devia ser uma festa sumptuosa, com leitão no espeto, hidromel, esturjão e torresmos de rena.

 

Durante três horas, Semionov vagueou através da taiga, por colinas e valados, com o olhar atento e crítico. Repousou por momentos, bebeu chá quente, comeu um bolo com geleia de amora e recomeçou as suas pesquisas.

 

Não podia dizer como aquilo sucedera. Bruscamente, a camada de neve cedeu debaixo dos seus pés. Estendeu os braços, tentou agarrar-se à terra firme, mas os seus dedos não encontraram onde se agarrar e caiu num buraco direito e cilíndrico. Não sabia qual seria a profundidade desse buraco, pois ao tentar apoiar os pés encontrou apenas neve mole que se afundava impiedosamente sob o seu peso.

 

Permaneceu então imóvel, direito, com os braços afastados e teve de reflectir rapidamente. Sabia bem que mais cedo ou mais tarde os braços deixariam de ter forças para o manter e cairia para as profundidades do buraco onde com certeza sufocaria. Gritou várias vezes por socorro, mas, em breve, compreendeu como os seus apelos eram vãos. Perdido nas profundezas da floresta virgem, ninguém poderia responder ao seu pedido de socorro.

 

Pouco depois, começou a nevar e o buraco encheu-se lentamente de neve pulverulenta. Semionov não se mexia, com a testa apoiada na beira do precipício; pensava em Ludmilla e em Nadia, e maldizia o destino que o fazia perecer assim, com uma morte tão estúpida. Apesar do seu espesso vestuário, o frio começou a penetrar nele, o corpo anquilosava-se pouco a pouco, os braços paralisavam e sentia-se escorregar inexoravelmente para o fundo do buraco.

 

A fadiga invadiu-o. Teve de travar um combate encarniçado contra esse torpor mortal. Latidos próximos fizeram-no sair de um estado de semi-inconsciência. Num último esforço, segurou-se mais solidamente à superfície gelada e começou a chamar por socorro. Mas ele próprio mal ouvia o som da sua voz e percebia que os cães não poderiam ouvi-lo. E, no entanto, das profundezas da floresta surgiram três cães corpulentos. Os animais começaram a ladrar em redor do buraco onde Semionov se encontrava, excitados e furiosos, mostrando os dentes e rosnando. Finalmente, acabaram por se deitar junto do buraco, de dentes ameaçadoramente à mostra, como se estivessem de guarda.

 

Apareceu um homem. Pareceu emergir da bruma das florestas, com uma lança na mão, vestido simplesmente com uma pele de lobo, com o rosto coberto por uma barba hirsuta e congelada. Nos pés trazia umas botas de pele de urso, cosidas à mão. Uma espingarda mantida por uma bandoleira de cabedal dançava-lhe sobre as costas; um largo cinto também de cabedal apertava-lhe o ventre. Desse cinto estavam suspensas duas facas de lâminas largas.

 

Eh! Que engraçado urso que nós apanhámos! disse o homem, vendo a cabeça de Semionov no buraco.

 

Assobiou para chamar os cães e sentou-se tranquilamente num tronco de árvore, não parecendo muito inclinado a fazer um esforço para tirar o infeliz Semionov da sua posição crítica.

 

Amigo! murmurou Semionov com os olhos muito abertos e já sem forças. Ajuda-me, por piedade. Porque te sentas?

 

O homem sacudiu a cabeça e acariciou um dos cães sentados a seus pés.

 

Queria apanhar um urso respondeu friamente e que encontro eu? Um ser humano, um louco. Estragaste-me o trabalho de uma semana inteira, pois nenhum urso porá os pés num buraco empestado pelo cheiro humano. Adeus.

 

Semionov agarrou-se com mais força. Gotas de suor, imediatamente transformadas em pérolas de gelo, inundavam-lhe o rosto.

 

Porque queres deixar-me morrer? Tenho mulher e filha. O que é que eu te fiz?

 

Viste-me. É o suficiente replicou o homem.

 

Não vi nada gritou Semionov, sentindo imediatamente que esse grito o fazia deslizar mais para o fundo. Se me tirares daqui juro-te que nada vi, estava sozinho na floresta e esquecerei de imediato a tua presença.

 

O homem começou a rir:

 

Podia fazer-se qualquer promessa com uma faca na garganta. O método mais seguro e mais radical é, no entanto, cortá-la, não?

 

Piedade, ajuda-me, não posso mais! gemeu Semionov.

 

De onde vens tu? interrogou o homem.

 

De Nova Bulinski.

 

Os seus dedos agarravam-se ao gelo, mas já não tinha forças para se segurar.

 

Ah! A aldeia alemã, como nós lhe chamamos, pois fala-se mais alemão do que russo. Tu és um desses exilados?

 

Não! gritou Semionov. Sou russo.

 

De Bulinski?

 

Não, de Moscovo.

 

Que é que fazes aqui?

 

Sou engenheiro, especialista de madeiras. Tenho mulher e uma filha. Salva-me, irmão.

 

O selvagem ergueu-se e estendeu a sua vara em direcção a Semionov. Agarra-te bem, com as duas mãos disse. Vou” puxar-te.

 

Com a energia do desespero, Semionov agarrou-se à vara miraculosa e conteve a respiração. Em breve, sentiu o corpo roçar pela beira do buraco; o seu tronco surgiu da massa mole e os seus joelhos tocaram finalmente terra firme. Atirou então os braços para a frente, largou a vara e meteu a cara na neve pulverulenta.

 

Reflecti ouviu dizer Semionov como se saísse de um sonho.

 

Estava agora deitado de costas. O gargalo de uma garrafa enchia-lhe a boca e ele bebeu uns goles de vodka. Foi como se uma nova vida entrasse nas suas veias petrificadas; o coração, o cérebro e os pulmões dilataram-se, como se tivessem sido cheios por uma bomba.

 

Em que é que reflectiste, amigo? perguntou com ar cansado. Agradeço-te. Vejo que és um homem com bondade no coração.

 

Há quanto tempo estás em Nova Bulinski?

 

Só há umas semanas.

 

Mas conheces bem a aldeia?

 

Sim.

 

Poderias desenhar um plano?

 

Com certeza. Mas para quê?

 

Quem faz perguntas a mais não chega a velho. Mete isso na cabeça antes de sairmos daqui.

 

O vodka começava a fazer efeito. Semionov ia recuperando as forças e o seu olhar tornou-se penetrante. Pôde sentar-se e contemplar o estranho. Dir-se-ia uma estátua de pedra gigantesca coberta por uma pele, colocada no meio da neve, cuja cabeça atingisse a abóbada celeste. Era pelo menos o que lhe parecia da posição em que se encontrava. Notou que os olhos tinham um recorte ocidental e que a tez não era escura como a dos indígenas da região, mas simplesmente bronzeada pela vida ao ar livre e as intempéries. Não era nem um Yakoute nem um Toungouse, e não vinha também das regiões do sul.

 

Chamo-me Illarion disse a estátua. Sou um Brodjaga.

 

Esperava uma reacção do seu prisioneiro, mas Semionov não se mexeu, não manifestando nem espanto, nem receio. Illarion abanou a cabeça. Nunca vira semelhante sangue-frio.

 

Então? Não respondes? O medo tornou-te mudo?

 

Medo? Não. Porquê?

 

Eu sou um Brodjaga repetiu o gigante, destacando bem cada sílaba.

 

Semionov sorriu:

 

Bravo, felicito-te. Lamento, mas não conheço essa tribo.

 

Essa tribo? Essa é boa! Diz-me uma coisa, meu velho, és um idiota ou estás a representar?

 

Illarion puxou a vara contra o seu corpo. Ameaçou o prisioneiro com a ponta e disse com voz sinistra:

 

Sou um condenado evadido, irmão. Chamam-nos assim, os Brodjaga. Experimenta dizer esse nome em Nova Bulinski e verás as mulheres mudas de pavor e os homens a tremerem com medo. Illarion começou a rir. Mas não terás possibilidade de pronunciar esse nome na aldeia porque eu vou levar-te para a floresta. Tive uma boa ideia.

 

E a minha mulher? E a minha filha? Salvaste-me a vida e agora não me deixas partir?

 

É inútil discutir! Vem! Illarion apontou a arma às costas de Semionov. Vamos! Avança! Os outros vão ficar admirados. Estão à espera de um urso e levo-lhes um homem. E será preciso tomar uma decisão quanto ao teu futuro. Bom, vamos. Illarion inclinou-se e apanhou o machado que Semionov largara ao cair.

 

O que é que querias fazer com este machado?

 

Arranjar uma árvore.

 

Em pleno Inverno! Com um machado? Tu és doido!

 

Era um pinheiro de Natal que eu procurava, irmão explicou Semionov em voz baixa.

 

Uma estranha expressão surgiu no rosto rude de Illarion. Tornou-se pensativo.

 

Um pinheiro de Natal repetiu ele. Em plena taiga. E querias enfeitá-lo, hem? Com bolas multicolores e cintilantes, e cabeças de anjo?

 

Sim.

 

Um pinheiro de Natal. Há quarenta anos que não vejo nenhum.

 

Quarenta anos? Há quarenta anos que foste condenado?

 

Sim, mais ou menos. Há dez anos, com outros vinte prisioneiros, evadi-me do campo de Semenka. Para isso, foi-nos necessário cortar as cabeças a nove jovens recrutas que nos guardavam; durante seis meses vagueámos através da taiga, até que, finalmente, encontrámos o lugar ideal para vivermos sem sermos vistos. Cada um de nós construiu uma cabana. Roubámos seis mulheres e vivemos. Oh, é uma vida muito simples, claro, mas pelo menos somos livres! Seis mulheres para vinte e um homens é pouco e isso cria constantemente dificuldades. Elas estão constantemente grávidas. Mas de quem? Illarion fez ouvir novamente o seu riso sinistro; ajudou Semionov a dar os primeiros passos e acrescentou: É nesse mundo que vais viver agora.

 

Eu?

 

É preciso que assim seja, meu rapaz. É impossível regressar a Nova Bulinski: aquele cujos olhos contemplaram um Brodjaga pertence-nos até à morte. É a nossa única lei, de facto, e nós cumprimo-la. Ah, não, há ainda outra, relativa ao roubo: aquele que rouba qualquer coisa a qualquer dos outros é condenado a ficar sem a mão direita. Ainda todos temos as nossas duas mãos na extremidade dos braços, como vês. Vamos, despachemo-nos, o caminho é demorado.

 

Rodeou Semionov com os braços, mas não se tratava de um gesto de amizade. Era o gesto de uma águia que agarrava a sua presa e contra a qual toda a resistência é inútil.

 

Ao fim de várias horas de marcha, viram, ao fundo de uma ravina, leves colunas de fumo branco que abriam caminho na espessura copada da floresta.

 

Vês, é o nosso campo disse Illarion orgulhoso da sua vida livre. Somos os primeiros homens e seremos também os últimos, pois quando os civilizados deixarem de se matar uns aos outros, nós continuaremos a viver.

 

O acampamento dos Brodjagas apresentava, com efeito, um aspecto curioso. Em redor de um grande edifício central prolongado por um telheiro, agrupavam-se vinte e uma cabanas feitas de grossos troncos de árvores. O conjunto era rodeado por uma muralha de três metros de altura e encimado por picos, uma verdadeira fortaleza no interior da qual os foras-da-lei tinham fundado um minúsculo estado autónomo. Esse estado possuía o seu presidente, o vice-presidente e um ministro da Justiça.

 

O grande edifício central é reservado às mulheres e às crianças explicou Illarion, depois de ter atravessado a porta de entrada, solidamente guardada por um monstro cabeludo semelhante a ele. Como é impossível saber qual o verdadeiro pai desses garotos, pusemos as mulheres e as crianças juntas e todos nós contribuímos para os alimentar. Não é um comunismo perfeito?

 

Sim confirmou laconicamente Semionov.

 

E pensar que fomos presos como inimigos do regime comunista!

 

Illarion soltou uma gargalhada amarga; conduzia o prisioneiro para a sua própria cabana; uma longa coluna de fumo erguia-se da chaminé e Illarion esfregou as mãos:

 

Há uma mulher em minha casa exclamou alegremente, passando a língua pelos lábios. Passaram-se quatro dias e é de novo a minha vez. É bom se for Annoutchka! É um verdadeiro demónio de mulher que chega a fazer-nos suar, acredita. Se não me engano já lhe fiz dois miúdos. Mas aqui nunca se pode saber com exactidão.

 

O seu olhar observou o campo. Os homens não tinham ainda regressado da floresta; do templo maternal partiam risos alegres e gritos agudos.

 

Eis a nossa formação: entre nós encontram-se sete criminosos; dois colocaram bombas, três trataram mal funcionários altamente colocados e nove são verdadeiros patifes. Somos vinte e um ao todo.

 

E tu?

 

Eu sou um criminoso explicou o outro orgulhosamente. Matei duas pessoas com uma faca.

 

Há quarenta anos?

 

Sim.

 

Mas nessa altura não passavas ainda de um garoto!

 

Tinha doze anos; já era alto e forte, mas mais magro que agora. Nós tínhamos uma quinta em Orcha, na estrada nacional de Moscovo. Oh, não era muito importante. Tínhamos apenas três vacas, dez porcos, algumas galinhas, mas vivíamos confortavelmente e estávamos satisfeitos e felizes. Um dia, chegaram lá dois homens de Smolensk; entraram na cozinha, chamaram ao meu pai ”filho da puta” e exigiram dele uma assinatura, para confirmar que a quinta pertencia ao Estado e que ia tornar-se parte integrante de um kolkhoze. ”Oh, não”, respondeu o meu pai, ”eu nasci aqui; o meu pai e o meu avô trabalharam nesta quinta; foi um presente dado pelo czar ao meu avô, que foi um dos primeiros servos libertos da escravidão. Nem pensar nisso!” E que fizeram os dois tipos de Smolensk? Agarraram o meu pai pelos cabelos e pela barba, arrancaram-no da cadeira, atiraram-no ao chão e começaram a pisá-lo com as suas grossas botas. O meu pai não soltou um grito, um gemido, mas quando aqueles monstros o largaram não tinha cara. Mamouchka, assustada, fugira para o estábulo e enforcara-se lá. Eu estava ali sozinho, vira tudo e de repente ouvi-os dizer: ”O que é que vamos fazer a este porco? O melhor seria afogá-lo como um gato.” Peguei então na minha faca e saltei sobre eles: era rápido como um gamo, nesse tempo, e atingi-os nas costelas. Os dois tipos abriram os olhos estúpidos e as bocas grandes como fornos e caíram ao lado de meu pai. Foi assim que eu me tornei um criminoso. Há quarenta anos. Vês bem que não podes voltar a Nova Bulinski.

 

Semionov aquiesceu com um sinal de cabeça. Seguiu IIlarion para a sua cabana.

 

Perto da lareira, uma mulher ainda jovem e bonita vigiava uma caçarola com água, onde se via um grande pedaço de peixe salgado. A mulher usava um vestido de linho azul e sapatos de pele. Tinha longos cabelos louros e olhos azuis. Ao ouvir a porta abrir-se, voltou-se ligeiramente e os seus olhos brilharam ao encontrarem os de Semionov.

 

É Marfa! exclamou Illarion passando de novo a língua pelos lábios. Uma rapariguinha muito gentil. Mas como vês disse apontando para o ventre arredondado de Marfa também está grávida! Isto começa a ser odioso! Tem que mudar!

 

Semionov calou-se. Sentou-se à mesa e pensou em Ludmilla; sabia que ela já devia estar inquieta, à sua espera. Estava quase a cair a noite e ela devia ir a correr a casa de Egon Schliemann para lhe pedir ajuda.

 

Illarion engoliu sozinho o peixe inteiro, ao mesmo tempo que acariciava as coxas de Marfa e lançava olhares gulosos para a abertura do vestido. Entretanto, ela ia observando Semionov pelo canto do olho e enviava-lhe sorrisos. Depois da refeição, Illarion levou o seu hóspede para um pequeno alpendre, foi buscar uma manta de cabedal e disse-lhe que se deitasse; depois, amarrou-o a uma viga.

 

É para maior segurança, sabes. É preciso dar tempo para uma pessoa se habituar. Dorme bem.

 

Saiu. Semionov ouviu ruídos, suspiros, gritinhos e rugidos do outro lado do tabique. Não tardou a adormecer, pensando em Ludmilla.

 

Semionov calculara bem: na altura em que a sombra do crepúsculo descia sobre Nova Bulinski, Ludmilla correu a casa de Katarina Kirstarskaia.

 

Paulucha ainda não voltou da floresta disse. Certamente que lhe sucedeu qualquer coisa. Disse-me apenas que ia trazer uma surpresa.

 

O que é que ele levou? perguntou a médica.

 

Um machado.

 

Mais nada?

 

Mais nada.

 

Desde quando é que Pavel é tão descuidado? Não se vai para a taiga desarmado!

 

É a prova de que ele não tencionava afastar-se. É quase noite. Tenho medo. Temos que ir procurá-lo, Katarina.

 

Uma hora mais tarde, metade da aldeia encontrava-se reunida diante da pequena igreja. Todos levavam uma arma consigo, uma espingarda ao ombro ou uma pistola, por vezes mesmo uma coisa e outra. Willi Haffner tinha até uma pistola-metralhadora e três carregadores cheios. À vista daquele grupo de gente armada, o chefe do Soviete afastou-se e decidiu que não tinha visto nada. ”Tinha que os denunciar”, pensou. ”E quem sabia o que poderiam ter mais oculto nas suas casas? Mas eu sou cego. E, além disso, gosto da vida.”

 

Ludmilla insistira em participar nas pesquisas; tinham-na sentado no trenó, embrulhada em peles.

 

Era já noite escura. Os mais optimistas estavam agora convencidos de que de facto alguma coisa sucedera a Semionov. Um silêncio pesado rodeava Ludmilla; ninguém lhe dirigia a palavra. Para quê mentir ou falar sem nada dizer? Era inútil também dizer à jovem mulher que sentiam uma angústia igual à que se lia nos seus olhos escuros.

 

Katarina Kirstarskaia enviara Boria com a incumbência de conduzir o trenó e de levar um estojo de primeiros socorros. Ela ficava retida no hospital devido a um caso grave que surgira à última hora.

 

Só há uma solução murmurou Egon Schliemann a Willi Hafner, seu vizinho. Deve ter sido atacado por um animal selvagem. Eh! rapazes! gritou. Nós sabemos para que direcção mais ou menos Pavel se dirigiu, mas já nevou depois disso. Por isso, devem estar mais atentos a qualquer pequeno sinal. E sobretudo chamem, gritem o mais alto possível. Talvez ele se tenha perdido e espere socorro em qualquer parte, debaixo de uma árvore.

 

Todos sabiam o que significavam as suposições absurdas de Schliemann: tentava simplesmente tranquilizar Ludmilla. Um caçador não espera socorro. Sabe caminhar na floresta. De dia, o Sol serve-lhe de ponto de referência. E, à noite, as estrelas.

 

Durante quatro horas, os gritos e os apelos ecoaram na floresta; durante quatro horas, a floresta foi percorrida em todos os sentidos; tinham dividido os homens em vários grupos e a floresta noutras tantas parcelas. Durante quatro horas, o trenó conduzido por Boria levou Ludmilla de árvore em árvore, de uma colina a uma ravina, daí à colina seguinte, insensível aos riachos gelados, às desigualdades do caminho.

 

Mas ela não se queixava, continha-se para não chorar e pensava em Nadia, a filha de Paulucha.

 

No fim das quatro horas de pesquisas, alguém descobriu o buraco meio cheio de neve que quase fora o túmulo de Semionov. Reconheceram que se tratava de uma armadilha para ursos, mas ninguém foi capaz de dar a mínima explicação.

 

Quem teria aberto este buraco? disse Wanche. Seriam por acaso os nómadas Yakoutes? Só podem ter sido nómadas estrangeiros. De resto, o buraco já parece antigo; data pelo menos do Inverno do ano passado.

 

Nisso, enganava-se ele.

 

Ao fim de cinco horas, Schliemann decidiu interromper as pesquisas. Sabiam agora que Semionov levara um machado para cortar um pinheiro de Natal; tinha encontrado Kurt no caminho, mas obrigara-o a guardar segredo. Apenas com um machado não se poderia ter afastado muito, na floresta.

 

Schliemann aproximou-se do trenó: com os seus olhos tristes contemplou Ludmilla, depois decidiu-se a falar:

 

É inútil continuar as pesquisas, Ludmilla. A floresta está vazia.

 

Está bem, regressemos à aldeia respondeu ela com voz firme. A floresta engoliu-o. É preciso continuar a viver.

 

A triste procissão tomou o caminho do regresso, com o coração dilacerado de dor e de desespero. No trenó que a conduzia, a grande velocidade, Ludmilla mantinha-se muito direita, com o olhar fixo, assombrada por uma visão insuportável.

 

Não podemos deixá-la só disse Schliemann ao pequeno grupo que o rodeava. Nunca se sabe qual será a reacção a um tão grande desgosto. Se ninguém vir inconveniente nisso, posso levá-las para minha casa às duas até que Ludmilla se recomponha. Depois, irá viver para casa dela, com a filha e nós todos ocupar-nos-emos delas, não é verdade?

 

Todos concordaram sem a mínima hesitação. Na Sibéria, são precisas poucas palavras para as pessoas se entenderem.

 

Semionov estava morto. Mas a sua morte permanecia um enigma. Os lobos deixavam atrás deles rastos sangrentos; os ursos não levam os homens para os seus covis; a rena selvagem mata a sua presa no local em que a apanha e vai-se embora. Só um ser humano é capaz de fazer desaparecer outro ser humano sem deixar rasto: é a vantagem de um cérebro pensante.

 

Semionov despertou. Alguém o sacudia e o libertava das cordas que o prendiam. Perto dele, Illarion pusera-se de joelhos; o seu hálito cheirava a alho, a cebola e a suor. Vestira uma comprida camisa branca de uma brancura espantosa.

 

Levanta-te, velho urso! exclamou ele alegremente. O sol já brilha sobre a taiga, podes vir para o outro lado. Marfa já se foi embora, para tratar das crianças. Ah! Que noite! A vida é bela quando se tem nos braços uma mulher como Marfa.

 

Ajudou Semionov a levantar-se e instalou-o amavelmente diante de uma malga de chá quente.

 

Dentro de uma hora será a grande reunião. Vão haver mudanças, vais ver! continuou Illarion com um ar misterioso.

 

Depois, foi fazer a sua toilette diante da lareira e voltou em seguida para junto do seu convidado. Tomaram o pequeno-almoço juntos, como dois velhos amigos, partilhando os ovos com toucinho e a malga de chá. A seguir, enrolaram um cigarro.

 

Illarion não cessava de gabar os méritos de Marfa e as alegrias da vida livre na taiga.

 

Evidentemente que não podemos deixar-nos prender, pois para nós é a condenação à morte. Tiveste azar em ir cair justamente na minha armadilha para ursos, pois não poderás voltar para casa.

 

Eu não falava de vocês a ninguém.

 

Dizes isso, mas sabe-se como são as promessas. Não falemos mais nesse assunto.

 

Em breve, a cozinha de Illarion começou a encher-se de homens hirsutos, de trajes e aspecto primitivo. Homens fortes, pequenos e magros; jovens e velhos. O mais novo devia ter cerca de trinta anos; o mais velho usava uma comprida barba branca, como um pope. O chefe era um homem baixo, de aspecto astuto, o único do bando com a cara rapada. O seu rosto estreito era animado por dois olhos cinzento-escuros, de expressão penetrante e profunda.

 

Chamavam-lhe ”Professor”, com grande espanto de Semionov.

 

O professor sentou-se em frente de Semionov, desenrolou uma grande folha de papel e colocou um lápis em cima dela.

 

Comecemos imediatamente disse sem mais preâmbulos depois de ter fitado Semionov com o seu olhar penetrante. Já sabes por Illarion onde estás, não é?

 

Sim respondeu simplesmente Semionov, na defensiva.

 

Nós somos criminosos, patifes, ladrões, revolucionários, tudo o que a terra pode ter de pior! Não temos nem consciência, nem escrúpulos, por isso não hesitaremos em cortar-te aos bocados, se mentires ou se recusares obedecer-nos.

 

Compreendo.

 

O professor estendeu-lhe o papel e o lápis.

 

Desenha o plano de Nova Bulinski. Indica a situação da igreja, do hospital, dos armazéns, da cooperativa, do depósito da água, das casas, do correio, do bazar, da casa do chefe do Soviete, do alfaiate, do sapateiro, do padeiro, tudo.

 

Para quê? perguntou Semionov.

 

Illarion pousou-lhe a mão sobre o ombro. Sentia-se pouco à vontade, porque afinal ele correra um grande risco em levar para ali Semionov.

 

Não se fazem perguntas ao Professor, pequeno! Obedece-se!

 

Tu, talvez disse Semionov largando o lápis. Mas eu sou um homem livre.

 

Que idiota! Os olhinhos do professor brilharam de maldade. Como o espírito de resistência dos homens lhes é prejudicial, vá, preparem-no para ele se convencer.

 

Dois homenzarrões agarraram Semionov, amarraram-lhe os braços atrás das costas, enquanto Illarion lhe prendia as pernas à cadeira com uma correia. Um outro homem atravessou o grupo. Semionov soube depois que era o sinistro ministro da Justiça, do qual Illarion falara na floresta. Ergueu a manga da camisa de Semionov e apoiou o cigarro aceso sobre o braço nu; houve um crepitar, um cheiro a carne queimada. Os quinze homens esperaram o grito de Semionov.

 

Mas Semionov estava calado; comprimiu os lábios e fixou um ponto na parede, por cima das cabeças dos seus carrascos. Pensou em Arcansas, na câmara de torturas da CIA. Mas, dessa vez, não se tratava de uma iniciação, de um endurecimento. Dessa vez, tratava-se de uma luta de morte. Com a queimadura a pele fez uma bolha e acabou por rebentar.

 

Obrigado disse delicadamente o professor após a terceira queimadura. Tu és resistente. Mas o espírito humano deu provas de génio no campo das torturas. Os Chineses, por exemplo, são especialistas em descascar a pele de uma pessoa. Arrancam toda a pele do corpo, lentamente, por pequenos pedaços, até a pessoa se assemelhar a uma estátua de mármore. Nesse momento, salpicam o corpo todo com pimenta moída. Parece que alguns sobreviveram a essa brincadeira, mas perderam a razão.

 

Que querem fazer com o plano de Nova Bulinski? Perguntou Semionov com voz rouca; os dentes batiam-lhe. Tinha a impressão de ter o braço todo queimado.

 

É uma questão de orientação. O professor meteu-lhe outra vez o lápis debaixo do nariz. É preferível fazeres um desenho do que ficares sem pele no corpo, acredita. Não é preciso ser muito inteligente para perceber isso, pois não? Se o teu plano for falso é porque tentaste trair-nos. Isso será castigado com a morte. Cada um aqui vive devido à lealdade dos outros; formamos uma única família. Entendido?

 

Sim.

 

Soltaram-no. Semionov olhou para a folha de papel branco.

 

Começa por traçar o Lena aconselhou amavelmente o professor. Daí podes desenhar a floresta, depois os arredores e, em seguida, os detalhes. Sei que és capaz de o fazer, pois Illarion disse-me que eras engenheiro. É inútil resistires, pequeno. É melhor viver entre nós que estar a fazer tijolo. Mesmo a vida mais miserável é bela, porque é vida. Nós estamos bem situados para perceber isso.

 

Semionov ficou silencioso. Depois, começou a desenhar. Não por cobardia, mas no seu espírito, pouco a pouco, nascia a esperança de voltar a ver Ludmilla e Nadia, a esperança de um milagre. Não sabia dizer como, mas a verdade é que a ideia de milagre se ia ancorando pouco a pouco no seu espírito; precisava apenas de ganhar tempo para deixar ao destino o tempo necessário para produzir um milagre.

 

Bem disse o professor quando Semionov pousou o lápis. O trabalho durara perto de uma hora. Isso parece de facto verosímil. Vamos verificar. Levantou-se, guardou o papel no bolso e disse para Illarion, antes de se ir embora: Amarra-o bem; não sei ainda o que vamos fazer dele.

 

Finalmente, à entrada da cabana, os olhos ameaçadores pousaram mais uma vez sobre o prisioneiro:

 

És inteligente de mais para o meu gosto, pequeno. Entre os rapazes do campo tu parecerias um génio. Basta haver um professor aqui.

 

Semionov passou o resto do dia entre os sacos de grão e de farinha, no barracão onde Illarion o fechara à chave. Inútil pensar em fugir: a barraca era construída de maneira a resistir a todas as intempéries, a todos os assaltos dos homens e da natureza.

 

À noite, Illarion foi de novo amarrar o prisioneiro.

 

Tenho de o fazer, pequeno disse com ar desolado. São ordens do professor; se ele vem passar revista e se te vê apenas fechado...

 

Têm um medo terrível dele, não é? perguntou Semionov.

 

É muito inteligente, sabes? Foi ele que pensou na evasão e que a organizou. E tudo se passou sem nenhuma dificuldade. Ele era de facto professor, em Cracóvia. É um génio! Nós nunca lamentámos ter-lhe obedecido. É preciso que alguém comande, não é?

 

Com certeza respondeu Semionov enquanto esperava, sentado nos sacos, que o outro o amarrasse.

 

”Um milagre”, pensou, na obscuridade. ”É tudo o que me resta...”

 

A morte do Dr. Pluchin pôs fim à caça ao homem. Furioso, Karpuschin deixou Mulatchka e regressou a Olenekskaia Kultbasa, onde pôde finalmente dar livre curso à sua cólera. Mas para que serviam os gritos e o barulho? Não alterava nada. Num lugar desconhecido da taiga, Pavel Semionov troçava dele. Ele, o ex-general Karpuschin, para quem a vida não retomaria o seu curso quando pudesse enviar um relatório definitivo a Moscovo: Franz Heller-Semionov está preso.

 

Esta ideia bastava para fascinar Karpuschin. Havia um meio: podiam apanhar um cidadão qualquer de Olenekskaia Kultbasa, louro, com a estatura de Semionov. Um tiro de revólver no coração, e, em seguida, fariam com que o seu rosto se tornasse irreconhecível; chamariam a polícia e o exército; fotografias e relatórios seriam enviados a Moscovo. No entanto, Karpuschin hesitava: que se passaria se alguma vez o verdadeiro Semionov aparecesse?

 

Finalmente, pôs de lado esse plano diabólico e tomou o avião para Moscovo.

 

O marechal Malinovski não era da opinião de Karpuschin e a entrevista no Kremlin não durou muito tempo. Karpuschin suplicou que lhe devolvessem o seu posto, a sua identidade e a sua mulher Olga, mas o marechal replicou secamente:

 

Habitue-se à ideia de que está morto, camarada. Foi fuzilado. Oficialmente. Quer que nos cubramos de ridículo? Se acha verdadeiramente que é impossível viver nessas condições, resta-nos apenas efectivar o julgamento.

 

Inútil insistir. Karpuschin apressou-se a sair do Kremlin pela porta lateral e a ir refugiar-se no seu quarto de hotel.

 

Durante três dias misturou-se três vezes com o povo de Moscovo. Da primeira vez, participou de uma visita comentada ao Kremlin; ignorado entre os turistas, escutou pacientemente as explicações dadas pelo guia, o que lhe deu ocasião de se cruzar com o general Chimkassy; levou mesmo a sua audácia ao ponto de acotovelar o general e como resposta recebeu uma invectiva pouco amável: ”Preste atenção, camarada! Quase me atirou ao chão! Se vê mal é melhor usar óculos.” Karpuschin afastou-se e seguiu com os olhos o seu camarada que nem sequer o havia reconhecido. A sua segunda visita assemelhou-se a uma peregrinação: rondou em redor da sua própria casa na esperança de ver a mulher; mas Olga não se encontrava em casa. As persianas descidas escondiam cuidadosamente o mistério do apartamento, a porta estava fechada à chave e ninguém atendia. Com uma pergunta feita à merceeira da esquina ficou a saber que Olga Jelisaveta se consolara depressa do seu desgosto em companhia de um engenheiro, membro da Academia Nacional de Ciências Físicas e que tinham partido em viagem de núpcias para os desportos de Inverno, como dois pombinhos. Na voz da mulher havia um certo desprezo. Karpuschin soltou um longo suspiro e afastou-se. O seu terceiro passeio foi a casa de uma dessas mulheres que lêem o futuro; ele já a conhecia por a ter prendido alguns anos antes devido a uma denúncia estúpida. Fora libertada pouco depois. Dessa vez, era ele que queria conhecer o seu destino. O destino de cada homem, dissera-lhe outrora essa mulher, estava escrito nas linhas da sua mão.

 

Dá-me primeiro cinco rublos disse ela. Os tempos estão difíceis.

 

Ele deu-lhe dez. Para maior segurança...

 

Tu és má pessoa disse a mulher ao fim de um certo tempo, depois de ter examinado as duas mãos estendidas. Um ser perigoso e nefasto! E ainda por cima um imbecil. O teu coração é uma podridão, a tua alma uma cloaca, o teu cérebro um amontoado de imundícies! Mas, no fundo, tudo isso serve a tua ambição, pois serás um grande homem e depois morrerás. Ergueu os olhos e fitou Karpuschin. Que idade tens?

 

Em breve farei os sessenta.

 

Já? A velha afastou com ar aborrecido as mãos do seu cliente. Despacha-te, pois já não te resta muito tempo para pores os teus negócios em ordem. Ergueu-se e meteu os dez rublos na mão de Karpuschin: Toma, fica com eles: compra umas velas e vai oferecê-las a São Dimitri. Vai-te embora agora. Estás mais perto do túmulo que eu, apesar dos meus oitenta e quatro anos.

 

Deprimido e infeliz, Karpuschin voltou ao hotel à pressa e fechou-se no quarto. ”Absurdo”, pensava ele. ”É uma bruxa estúpida. Foi pena não a ter liquidado outrora...”

 

No dia seguinte, metia-se no avião para Krasnoiarsk e daí para Olenekskaia Kultbasa. ”Façamos um balanço”, pensou com fatalismo. ”Oficialmente não existo. Olga já se consolou com um amante. E estou com os pés para a cova. Três boas razões para aproveitar o que me resta para viver, apesar de detestar o cheiro do perfume e da maquilhagem.”

 

Ao desembarcar no aeroporto, decidira fazer rapidamente de Marfa Babkinskaia sua amante, e procurar nos seus braços um pouco de calor para os seus últimos dias.

 

Durante a noite, Semionov acordou, alguém lhe tocava devagar num ombro. Ouviu do outro lado do tabique os roncos sonoros de Illarion.

 

Todos dormem murmurou uma voz feminina ao seu ouvido; Semionov reconheceu Marfa. Podes andar?

 

Posso.

 

As correias foram soltas; levantou-se, massajou as pernas e os pulsos e depois tacteou na escuridão total, os seus braços encontraram uns braços quentes e macios, um peito firme e um pescoço nu. Marfa agarrou-lhe nos braços e ajudou-o a levantar-se.

 

Eu vou conduzir-te. Illarion está a dormir, mas há os cães. Não podemos deixar que eles ladrem. Enfia as botas, o casaco, a pele e as luvas dele e os cães julgarão que é ele. Despacha-te.

 

À pressa, ele obedeceu à jovem mulher; depois, saíram ambos. O frio era intenso. O seu hálito transformava-se imediatamente em minúsculos cristais. A vaga claridade da Lua permitiu-lhe observar a sua companheira.

 

Vai disse ela duramente. Tens ainda um longo caminho a percorrer.

 

Não queres acompanhar-me? Illarion explicou-me...

 

Isso já foi há muito tempo. Nós esquecemos o mundo exterior; além disso, há as crianças explicou calmamente Marfa, abanando a cabeça.

 

Semionov compreendeu: enterrou mais o boné na cabeça e estendeu a mão a Marfa.

 

Se alguma vez fores a Nova Bulinski, pergunta por Semionov. Serás bem recebida em minha casa.

 

Semionov repetiu ela. Obrigada. Adeus.

 

Acompanhou-o até ao muro. Os cães continuavam a dormir tranquilamente.

 

Tu és um homem. Nós estamos reduzidos ao estado de animais. Mas há aqui trinta e sete crianças. Trinta e sete inocentes. Não o esqueças, Semionov, e não nos traias. E agora vai.

 

Semionov assim fez e partiu a toda a velocidade, parando apenas por uns minutos, para descansar, encostado a uma árvore. Sob o olhar velado da lua, passou colinas e escalou encostas; o coração pulsava-lhe violentamente no peito, o hálito gelado transformava-se em miríades de estrelas minúsculas e cortantes.

 

Corria há aproximadamente quatro horas quando, ao longe, ouviu o relinchar de cavalos e o tilintar de trenós sobre a neve gelada que o fizeram sobressaltar. Homens!

 

Aqui! gritou. Aqui! Socorro! Socorro! Continuava a avançar, mas uma espécie de cansaço paralisava-lhe os membros. Aqui! gritava sem parar. Socorro! Mas tinha a impressão de que ninguém o ouvia, que a sua voz soava apenas aos seus ouvidos.

 

Assim, aproximaram-se uns dos outros. Semionov, fantasma convulso, endurecido pelo frio, e Schliemann, num trenó ligeiro puxado por uma só rena. Caíram nos braços um do outro e Semionov começou a chorar, de alegria e de esgotamento. Deixou-se conduzir como uma criança: deitaram-no no trenó e cobriram-no de peles espessas, mas ele não deu por nada, pois mal se estendeu adormeceu.

 

Pouco a pouco toda a equipa de socorro se reuniu, uns cinquenta homens com os trenós puxados por renas ou por cavalos.

 

Vêem disse Schliemann eu bem lhes tinha dito. Vamos atrás deles. Basta seguir o rasto deixado por ele.

 

Foram precisas duas horas para atingirem o antro dos Brodjaga. Como caçadores selvagens, caíram sobre a entrada e lançaram-se sobre os Brodjaga mal despertos e assombrados por aquela incursão.

 

Foi um combate selvagem, mas sem efusão de sangue; os Brodjaga julgaram-se atacados por um exército inteiro e acabaram todos na neve, mesmo Illarion. Quanto ao frágil professor, ao quarto soco já estava estendido na neve.

 

Logo em seguida, os homens de Nova Bulinski apressaram-se a sair dali. Um verdadeiro caos reinava no campo e os homens encolhiam-se mudos de vergonha. Uma cólera inexplicável subia lentamente à cabeça do professor.

 

Nesse mesmo dia, por unanimidade, Illarion foi condenado à morte. Ele bem gritou e suplicou, chamando em seu auxílio os santos do paraíso e o diabo.

 

Foste tu que o trouxeste aqui! disse simplesmente o professor. Um Brodjaga ignora a piedade.

 

Penduraram o infeliz num grande cedro, de cabeça para baixo; durante três horas gritou como se estivessem a esfolá-lo; depois, o sangue saiu-lhe pelo nariz, pelas orelhas, pela boca e até pelos olhos. Mas o seu corpo estremeceu ainda durante uma hora. Só morreu por volta do meio-dia.

 

Durante três dias, Semionov deixou-se acarinhar por toda a aldeia; Ludmilla encheu-o de ternuras, Katarina Kirstarskaia e a mulher de Boria fartaram-no de guloseimas e todos imaginaram tudo para lhe fazer esquecer as horas de angústia que vivera entre os Brodjaga.

 

Ao fim desses três dias, Semionov sentiu-se suficientemente forte para saltar da cama e dirigir-se para a sua futura casa. Ninguém lhe falou da agressão nocturna feita contra os Brodjaga e ele não pensou sequer em fazer perguntas, pois estava firmemente convencido de que depois de o terem apanhado, meio morto, na floresta, o grupo dos seus salvadores se dirigira logo para Nova Bulinski. Ficara inconsciente durante todo o trajecto de regresso e só dera por si no dia seguinte, quando acordara na sua cama, no hospital, perto do corpo quente e macio de Ludmilla.

 

A sua casa estava quase terminada; Ludmilla limpava os últimos traços deixados pelos operários; ajudada por três mulheres da aldeia, esfregava energicamente o corredor com água quente, no qual Willi Haffner, o antigo pedreiro de Mondschau, dava os últimos retoques no fogão central.

 

Dentro de dois dias podes mudar-te! disse Willi, logo que o viu.

 

Que fazes tu aqui? perguntou por sua vez Ludmilla, deixando cair a escova. Afastou da testa os cabelos colados ali pela transpiração, passou um lenço pela cara e foi ao encontro do marido. Volta depressa para a cama, querido!

 

Os outros começaram a rir. Semionov apertou a mulher contra si e fê-la dar uma volta, beijando-lhe delicadamente a ponta do nariz.

 

Bem vês que recuperei as minhas forças disse orgulhosamente.

 

Unanimemente a equipa de trabalhadores aceitou a sua ajuda; foi terminar um banco na oficina contígua à casa de habitação, deu de comer aos dois cavalos de Olenekskaia e instalou os estábulos para os outros animais que a comunidade local lhe entregara: dois porcos, dez frangos, quatro carneiros, cinco gansos e um casal de renas. Na verdade, aquele casal de renas representava um presente principesco, era uma oferta pessoal do chefe do Soviete que, ao fazê-lo, tinha uma ideia em mente.

 

É preciso pensar sempre no futuro dissera ele como resposta aos protestos da mulher. Esse Semionov é um tipo excepcional. Pode suceder que o prendam... Deus queira que não! Mas se o prenderem levam-no para Yakoutsk para o interrogarem. É possível também que o façam falar sobre Nova Bulinski e os seus habitantes. Tu não achas que é preferível que ele me elogie e que se cale quanto aos ”erros” de números, de contas e de declarações? Tenho quatro armazéns transbordantes de mercadorias; dez barris com carne e toucinho, nove porcos que não foram declarados.

 

A mulher calou-se. Não há nada mais convincente do que os números.

 

Todos os anos uma comissão de inspecção económica dava uma volta por Nova Bulinski; encontrava sempre uma aldeia pobre mas asseada, uma população humilde mas alegre, porque um bom amigo de Chigansk os prevenia sempre a tempo.

 

Na realidade, era necessário ter tipos como Semionov no bolso e isso valia bem o sacrifício de duas renas.

 

Na antevéspera do Natal, a casa dos Semionov estava pronta. A entrada encontrava-se enfeitada com grinaldas, fitas multicolores e ramos de pinheiro. A mesa encontrava-se coberta de pão fresco, os primeiros pães que Ludmilla cozera no forno. Ao lado do pão, uma enorme quantidade de sal.

 

Fora organizada uma marcha triunfal, com música, entre o hospital e a nova casa; os trenós estavam também enfeitados com grinaldas, os sininhos das renas tilintavam alegremente, a neve voava numa fina poeira irisada, os chicotes estalavam no ar gelado e toda a gente cantava. Fazia um frio excepcional e todos os seres, homens ou animais, cobertos de enormes peles, pareciam planar sobre uma nuvenzinha pessoal e os pulmões enchiam-se e esvaziavam-se ao ritmo das canções. É verdade que no hospital tinham já bebido vodka. Era quase meio-dia. Através de uma camada de névoa acinzentada, o sol parecia não ousar participar naquele desfile; mostrava-se timidamente, sem se decidir a dar os primeiros passos. A floresta estava cheia de ruídos múltiplos, dos gemidos sinistros da árvores encerradas no seu invólucro mortífero de gelo, dos uivos distantes dos lobos, dos estalidos secos dos ramos mortalmente atingidos por um frio desumano.

 

No trenó puxado pelos dois fiéis cavalos e conduzido pelo próprio Semionov, Katarina Kirstarskaia rodeava com os seus sólidos braços os frágeis ombros de Ludmilla. Uma amizade profunda e silenciosa unia as duas mulheres, uma amizade feita de compreensão e de estima recíprocas.

 

A porta da casa estava escancarada; no limiar, o velho pope, revestido dos seus solenes ornamentos, esperava pacientemente. Uma grande cruz de ouro brilhava no seu peito e os seus compridos cabelos brancos estavam cobertos com o ritual solidéu. Tremia de frio, mas quando Semionov e Ludmilla se ajoelharam diante dele, levantou o braço num gesto cheio de dignidade.

 

Que Cristo esteja convosco disse com voz forte. Deu-vos uma nova pátria e dar-vos-á também a paz. Entrem em vossa casa e que a felicidade não os faça esquecer nunca Deus, cujo olhar pousa incessantemente sobre vós.

 

Ludmilla fechou os olhos. Parecia-lhe normal ajoelhar diante do pope; e, no entanto, nesse instante, recordações da infância vieram-lhe à memória; recordações de ódio contra a Igreja; cantos revolucionários e comunistas que abafavam as vozes frágeis das velhas ajoelhadas diante do altar. A alienação das igrejas, transformadas em celeiros, em arrecadações e até em depósitos de vodka.

 

E agora achava natural estar ajoelhada diante do pope Alexei, fechando os olhos para receber a sua bênção. ”O milagre do amor”, pensou ao ouvir a respiração um pouco ofegante do marido, a seu lado. ”Sobretudo, o mistério do amor...”

 

Finalmente, o pope recuou e entrou no calor benfazejo da casa. Semionov ergueu-se e sacudiu a neve colada às calças. Depois, pegou em Ludmilla e entrou com ela em casa no meio dos gritos de entusiasmo da multidão. Até as renas pareciam bater os pés ao ritmo dos aplausos. Uma alegria infinita unia aqueles seres primitivos para quem a amizade contava mais do que todos os bens da terra. Semionov apertou a mulher contra o coração, beijou-a, rindo, em frente de toda a gente, e entrou por sua vez no novo lar.

 

Eis-nos em nossa casa murmurou ele pondo Ludmilla de pé. Finalmente, em nossa casa, Ludmilluchka...

 

Para sempre, Paulucha...

 

Sim, para sempre repetiu ele beijando longamente a mulher. Nós somos mais fortes que a morte, mais fortes que a natureza, mais fortes que os poderosos de Moscovo, porque nós somos a vida.

 

A festa durou até tarde. Havia salmão e esturjão, frangos, um leitão inteiro e caviar. Quatro mulheres atarefavam-se em redor do lume. O chefe do Soviete apareceu arrastando atrás de si uma caixa misteriosa. Fez-se um silêncio de expectativa entre aquela multidão de faces coradas e olhos brilhantes.

 

Meus amigos! Vão todos provar um champanhe de fabrico caseiro. Anna, a minha mulher, é uma especialista. Provem, camaradas, e depois revelar-lhes-ei os segredos do fabrico! Digo-lhes que é um néctar! Lágrimas de alegria choradas pelos anjos.

 

Curioso discurso para o chefe de um Soviete. Semionov teve direito a beber o primeiro gole. Mostrou-se prudente, mas, na verdade, aquela bebida podia rivalizar com algumas do Reno.

 

Então? perguntou orgulhosamente o proprietário.

 

Sensacional respondeu Semionov.

 

Vá, vocês, os vossos copos! Vou revelar-lhes ainda outro segredo: tenho ainda quarenta garrafas na minha cave.

 

A madrugada começava já a clarear a floresta quando os últimos convidados saíram de casa dos Semionov.

 

Dirigiram-se, cambaleando, para os seus trenós, tentando entoar uma canção com voz insegura, enquanto os cavalos levavam, por sua própria iniciativa, os donos para casa; eram certamente eles os únicos a reconhecerem o caminho. O pope Alexei foi também um dos últimos a partirem; precisou de ser transportado até ao trenó, porque as pernas não lhe obedeciam. Semionov e Schliemann embrulharam-no cuidadosamente nas peles e protegeram-lhe a cara do vento cortante que iria apanhar no caminho.

 

Que Cristo esteja consigo, meu pai disse Semionov. Há alguém em sua casa para o ajudar?

 

Sim, sim, meu filho, tranquiliza-te. O sacristão espera-me. Que as bênçãos de Deus estejam contigo para sempre. Soltou um arroto forte e escondeu as mãos nas peles. Um pope não deixa de ser um humano comentou ele com sabedoria. Deus dá o seu amor aos fracos e aos pecadores, meus pequenos!

 

E desapareceu com o seu trenó no meio de uma tormenta de neve.

 

Que belo dia! disse Schliemann despedindo-se por sua vez. Boa sorte, Pavel!

 

Obrigado respondeu Semionov abraçando-o. Agradeço-te, Egon. Sinto-me feliz por estar aqui e fazer parte da vossa comunidade.

 

É normal. Que faríamos nós desta região sem a ajuda e a amizade dos outros? Aqui só se pode subsistir trabalhando e vivendo ”em conjunto”!

 

Semionov concordou:

 

No entanto murmurou, tu sabes quem eu era.

 

Sei apenas quem tu és. Quem pensa ainda no passado, Pavel? Boa noite, meu velho.

 

Boa noite, Egon.

 

Vais ajudar-nos a decorar a igreja, amanhã?

 

Com certeza.

 

Schliemann subiu para o trenó e Semionov ficou a dizer-lhe adeus, com os dois braços estendidos. Depois, entrou e, pela primeira vez, fechou as correntes de segurança da sua nova casa.

 

Ludmilla já dormia. Semionov entrou no quarto quente; sob uma porção de peles e de mantas, o rosto tranquilamente adormecido da mulher sorria-lhe. Ao seu lado, no berço, Nadia respirava com regularidade, descansada, toda ela redonda e rosada como uma porcelana ligeiramente nacarada.

 

Sem ruído, Semionov sentou-se à beira da cama e contemplou tudo o que fazia a sua felicidade. O seu coração cheio de uma alegria profunda quase lhe doía. ”Acabou-se”, pensou aliviado. ”Voltámos a ser seres humanos. Deixámos de ser lobos perdidos na taiga...”

 

Dois dias mais tarde era o Natal.

 

Um Natal, na Sibéria, com os pinheiros enfeitados, as estrelas luminosas, os doces, as velas cintilantes, a luz e a paz. Um Natal germânico, como todos os anos desde que os exilados alemães tinham desembarcado em Nova Bulinski, em 1947, nas margens do Lena.

 

Um pouco antes da meia-noite, as portas das casas abriram-se e os aldeões dirigiram-se lentamente para a igreja.

 

Essa igreja era a alegria e o orgulho do pope Alexei. Solidamente construída em pedra, no meio de um jardim rodeado por uma vedação pintada de branco, tinha sido decorada uns anos antes por um exilado alemão, cuja profissão era a de pintor. O interior, amarelo-pálido e rosado dava-lhe uma claridade irreal. Com os seus torreões em forma de bolbos, o seu portal de estilo bizantino, as suas colunas com torcidos e os seus ícones finamente trabalhados, assemelhava-se a uma obra-prima de pastelaria; símbolo da alegria de viver e da piedade comovente da gente simples, um sorriso dirigido a Deus pelos seus filhos reconhecidos e respeitadores. O pope Alexei amava a sua igreja colorida.

 

Durante a missa da meia-noite é que devia ter lugar o baptismo da pequena Nadia. Os padrinhos e a madrinha estavam escolhidos desde há muito: Schliemann, Katarina Kirstarskaia e Kurt Wancke. Este, sobretudo, gabava-se de fazer parte da família desde que o seu sangue corria nas veias de Ludmilla Semionova.

 

A cerimónia desenrolou-se com o luxo e a sumptuosidade habituais no rito ortodoxo. Um coro entoava os cantos admiráveis da velha Rússia; os grandes círios tremeluziam; o ouro dos ícones cintilava e os santos pareciam animar, com os seus olhos penetrantes, a multidão piedosamente ajoelhada. Quando o pope Alexei pôs a descoberto a cabeça escura de Nadia para fazer descer sobre ela as graças do baptismo, Katarina Kirstarskaia estremeceu, ao sentir vibrar entre as suas mãos o pequenino corpo da sua afilhada.

 

Nadia Ludmilla Irena Semionova, baptizo-te em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo pronunciou o pope com voz firme. Que Cristo esteja contigo até ao teu último dia.

 

Um silêncio comovido enchia a igreja; a pequena Nadia abria os seus grandes olhos espantados; contemplou um instante a comprida barba branca que se inclinava sobre ela, depois voltou a cabeça para Ludmilla, como se já compreendesse; mas a luz das velas, sem dúvida, deslumbrou-a, pois o seu narizito encolheu-se, ela comprimiu os lábios e fechou os olhos.

 

Uma emoção inexplicável invadiu Ludmilla. Agarrou a mão do marido e apertou-a com força. O pope Alexei entoou um canto com a sua voz de baixo; por detrás do altar, o sacristão cuspiu energicamente para as mãos e agarrou-se à corda do sino; este começou a tocar, anunciando a alegria do Natal em acordes sonoros e claros que se ouviam para além do Lena, sobre toda a extensão da taiga.

 

Cristo nasceu, um bebé acada de ser baptizado. Louvado seja o Senhor, criador do Céu e da Terra. Ámen anunciou o pope Alexei.

 

Semionov pegou na filha nos seus braços fortes. Os seus passos ecoavam no meio da multidão com firmeza, como convém a um caçador da Sibéria.

 

O sino não parava de anunciar a todos a boa nova: ”Cristo nasceu!”

 

O programa imaginado por Karpuschin apresentava muitas dificuldades; sobretudo duas opunham-se à realização desse programa. Primeiro, ele já não era novo, e, em segundo lugar, o destino não lhe concedera, nem de longe, as graças de um Apoio. Não é que ele fosse repugnantemente feio; o próprio Malinovski o achara parecido com Rasputine e é sabido que este teve um certo sucesso junto do sexo fraco.

 

Mas de qualquer modo, Karpuschin percebia que uma rapariga como Marfa Babkinskaia não se apanhava facilmente. Por certo, a sua virgindade fazia parte do domínio da lenda; mas ela não concedia os seus favores a um qualquer; e Karpuschin tinha medo, medo verdadeiro de apresentar as suas propostas a Marfa.

 

Bom dia, camarada Chelkovski exclamou alegremente Marfa, pois a primeira visita do general foi destinada àquela que queria que viesse a ser sua amante.

 

Ela disse-lhe para entrar e sentar-se no quarto que ocupava no hospital, com uma vivacidade meio sincera, meio irónica que fazia com que o visitante não se sentisse à vontade. Sentada à beira da cama, vestindo uma saia e uma blusa leve, parecia muito jovem, mesmo inocente. Karpuschin examinou-a atentamente e lembrou-se de que em Moscovo nunca a pudera suportar; os seus lábios vermelhos, as suas unhas envernizadas, as meias de nylon, a saia curta, o balouçar excessivo das ancas, o bater cadenciado dos saltos altos, tudo isso lhe causava náuseas.

 

Mas agora as circunstâncias eram diferentes. Oficialmente, ele estava morto. A mulher já o tinha substituído; perdera até o seu posto de general; desse modo, já nada o impedia de viver como qualquer cidadão, liberto do constrangimento do uniforme e da moralidade inerente às suas funções.

 

O que há de novo em Moscovo? interrogou Marfa.

 

Fascinado pelos contornos provocantes revelados pela blusa justa, Karpuschin nem sequer ouviu a pergunta.

 

Não usa nada por baixo? perguntou sem preâmbulos.

 

Por baixo de quê?

 

Por baixo da blusa. As mulheres costumam usar um soutien. E você?

 

Marfa deitou um olhar de espanto ao seu chefe e puxou para cima o decote indiscreto; depois, sorriu e sacudiu a sua cabeça de anjo de cabelos curtos e frisados.

 

Não, camarada controlador. Só de tempos a tempos. Incomoda-me. Por acaso isso desagrada-lhe? Seria o primeiro!

 

Karpuschin levantou-se. Dir-se-ia que se sacudia. ”Deve apanhar-se o adversário desprevenido”, pensou ele muito a propósito. ”É a boa estratégia. Apanhá-lo distraído.”

 

Moscovo não mudou respondeu ele bruscamente, esvaziando o conteúdo de um saco de viagem. Retirou de lá quatro garrafas de vodka, dois paios e um grande pedaço de presunto, além de um pão branco de crosta estaladiça, que comprara em Krasnoiarskaia, de passagem. As ruas são invadidas pelo degelo e pela porcaria e as pessoas não têm o mínimo de educação. Temos sorte em estar aqui, Marfa Babkinskaia. Pelo menos podemos viver relativamente em paz.

 

O que é que disse o marechal?

 

Que devemos prosseguir as nossas pesquisas sem pressas.

 

Mais nada?

 

Mais nada, minha pomba. Karpuschin desembrulhou uma garrafa de vodka e encheu dois copos. Bebamos à prosperidade da União Soviética, aos seus sucessos, aos feitos imortais que realizamos no espaço, à eternidade da nossa mãe-pátria, a Rússia!

 

Beberam. Karpuschin sentia em si um rejuvenescimento, e, levado por um impulso de locura juvenil, esvaziou o seu copo de um trago. Marfa não lhe quis ficar atrás e fez o mesmo.

 

Uma boa pinga, camarada general disse ela. Ardente como a pele de uma mulher, hem?

 

Ele deitou-lhe um olhar cheio de ameaças. ”Espera um pouco, diabinha! Tenho quase sessenta anos, mas que importa? Os camponeses não têm razão quando dizem que é na panela mais velha que se faz a melhor sopa? Minha bela, mais um pouco de vodka e as tuas faces arderão como o meu coração; em seguida, face contra face, nós consumir-nos-emos juntos nas chamas.”

 

Mais uma gota, minha linda pomba?

 

Porque não, avô? Raramente tenho bebido melhor!

 

Tão doce como a tua pele, bela criança! respondeu Karpuschin sem sequer ter estremecido ao ouvi-la chamar-lhe avô, o que para ele era pouco lisonjeiro, dadas as circunstâncias.

 

Aproximou-se de Marfa e acariciou-lhe corajosamente o braço. A rapariga estremeceu, soltou um gritinho e foi encostar-se à parede, com as pernas dobradas e a saia erguida até ao meio da coxa. Mas, enquanto Karpuschin enchia mais uma vez os copos, ela observava-o, com a cabeça ligeiramente inclinada e um sorriso mau nos lábios. Com efeito, o demónio sabia muito bem o que queria o general, e brincava com ele como o gato com o rato; deitava as garras de fora, fazia patinhas de veludo, roufenhava e miava de prazer.

 

Depois da segunda garrafa, Karpuschin lembrou-se que sabia dançar. Pôs um disco, ergueu a mão direita e pousou a esquerda na anca, como um toureiro. Depois, bateu com os calcanhares, girou sobre si mesmo, enquanto Marfa ria e batia o compasso com as mãos. O peito dela saltava ao ritmo da dança e Karpuschin começava a perder a cabeça.

 

Rum... bum... rum... bum! dizia ele.

 

Dançava como um grande urso domesticado e treinado para actuar na feira, fazendo rolar os seus olhos muito abertos. Um verdadeiro gorila. A sua barba tingida voava-lhe sobre o rosto; o nariz gordo e poroso como se estivesse besuntado com cera, e Marfa continuava a bater as palmas e a cantar.

 

E, de repente, à terceira garrafa, deu-se o desmoronamento. Karpuschin viu a cabeça de Marfa pender-lhe para o peito. Parecia nem ter forças para se manter sentada. Caiu para cima da cama e ficou estendida. Os seus olhos fixaram Karpuschin com um olhar vazio e adormeceu.

 

”Vitória!”, pensou Karpuschin. ”O inimigo capitula; a rapariga entrega-se inteiramente...”

 

Cambaleando, foi fechar a porta do quarto à chave, depois voltou para a cama e resolveu despir Marfa Babkinskaia. Não demorou muito, porque a jovem vestia apenas a saia, a blusa e umas calcinhas. Ofereceu aos olhares deslumbrados do velho a brancura do seu corpo jovem e elegante.

 

Ó admirável Sibéria! disse filosoficamente enquanto tirava as calças. Em Moscovo, nunca teria sido capaz de fazer tal coisa! A Sibéria está a devolver-me a juventude.

 

Aproximou-se do corpo adormecido de Marfa, admirado de o ver frio e inerte, quando devia estar a arder de desejos. Contentou-se em aspirar, deliciado, o perfume da pele fresca de Marfa.

 

A isso se limitaram, de resto, as suas proezas e os seus sucessos. Mal se estendeu, o álcool subiu-lhe à cabeça, afogando-lhe o cérebro. Conseguiu apenas emitir alguns sons deselegantes e caiu imediatamente na inconsciência beata da embriaguez.

 

Acordaram os dois ao meio-dia do dia seguinte, quase ao mesmo tempo.

 

Marfa Babkinskaia soltou um grito agudo ao reconhecer o seu vizinho; puxou as cobertas para si e refugiou-se na extremidade da cama, junto da parede. Karpuschin sentou-se, espreguiçou-se sem a menor perturbação, furioso das reticências visíveis da sua companheira.

 

Porque soltas esses gritinhos assustados, pombinha do meu coração? perguntou com voz pastosa.

 

Que... que se passou, camarada general?

 

Que queres que se tenha passado? Uma noite incomparável! Vê-se bem que no fundo o homem não envelhece, apenas amadurece. Karpuschin levantou-se, foi à casa de banho e viu-se ao espelho. ”Mentiroso!” disse para a sua imagem. ”Mas é preciso fazer o jogo, porque ela não sabe nada. Estava ainda mais embriagada do que eu.” Como te sentes, minha coelhinha?

 

Peço-lhe que me mande imediatamente para Moscovo disse Marfa com voz apagada. Tinha-se metido debaixo das cobertas e chorava. Eu não queria, perdoe-me, general. Partirei ainda hoje para Moscovo.

 

Nem pensar nisso! Tu ficas aqui! interrompeu duramente Karpuschin. Sinto-me feliz por as coisas se terem passado assim e por teres esquecido tudo, como dizes. Temos um dever a cumprir, e está longe de ser fácil; devemos descobrir Semionov, não o esqueças. Isso merece bem que nos sacrifiquemos, Marfa Babkinskaia. Que nos sacrifiquemos pela glória da nação.

 

Às suas ordens, camarada Chelkovski.

 

Destapou a cabeça e examinou o seu chefe. Karpuschin estava todo nu diante da janela. Era um homenzinho ridículo, de pernas curtas e rechonchudas, nádegas soberbas e barriga pendente; os pêlos grisalhos cobriam-lhe o esterno; a sua pele flácida inspirava repugnância.

 

«Meu Deus», pensou ela, «e dizer que foi com isto que...» Desviou o olhar e sentiu uma enorme vontade de vomitar.

 

E nós dois, que vamos fazer?

 

Continuar declarou orgulhosamente Karpuschin. Agora a nossa vida tem um sentido. Amamo-nos!

 

Marfa abanou a cabeça e acabou por vomitar para cima dos cobertores. Karpuschin apressou-se a limpar o vomitado.

 

Minha pobre pombinha disse, acariciando-lhe meigamente os cabelos. Vou buscar chá. Far-te-á bem ao estômago. E depois iremos dar uma volta para junto do Olenek; o ar fresco acabará por te curar. Ó Marfuchka, sinto-me tão jovem! Rejuvenesci vinte anos! Tu és uma feiticeira, uma mágica do amor!

 

No dia seguinte ao Natal, a catástrofe enlutou a tranquila cidade de Nova Bulinski.

 

O céu cinzento de chumbo, pesado de neve, parecia indicar desgraça; o chefe do sovkhoze mandou chamar os seus homens, se bem que fosse ainda dia feriado.

 

Camaradas disse-lhes, desculpem incomodá-los num dia de descanso; mas a tempestade de neve ameaça cair sobre nós e ficaremos isolados durante um tempo indeterminado. Ainda nos faltam salgar noventa barris com couves e moer duzentas toneladas de farinha. Se nos pusermos todos ao trabalho são dois dias. Vamos, camaradas, cuspam nas mãos.

 

Cinquenta homens deixaram imediatamente a aldeia para se dirigirem ao sovkhoze, nas margens do Lena. Quando regressaram, a aldeia chorava.

 

Por volta das dez da manhã, dois trenós ocupados por oito desconhecidos fizeram estremecer a rua principal e pararam diante do correio. Os oito homens, figuras inquietantes cobertas de peles de urso, com alças feitas de pele de raposa, saltaram dos trenós e atravessaram a praça da igreja deitando olhares ameaçadores para todos os lados. Depois, pararam em frente da loja de Oleg Schamov e espreitaram para dentro da sala de aulas, no momento em que Anna Petrovna, a professora, contava às crianças a história de Pedro e o Lobo, ao mesmo tempo que o disco tocava a música de Prokofiev; depois, continuaram a sua inspecção, contornaram o armazém do Estado reservado aos álcoois e percorreram toda a rua até à casa do chefe do Soviete; finalmente, voltaram atrás e reuniram-se na praça da igreja. Nesse momento, um dos homens, baixo e magro, tirou um papel do bolso e pareceu observar uma espécie de desenho.

 

Está tudo certo, rapazes. disse aos seus companheiros. Dentro de meia hora dou o sinal.

 

Trinta minutos mais tarde, três trenós desconhecidos, puxados por renas, atravessaram a toda a velocidade as ruas de Nova Bulinski. Quando os homens saltaram dos trenós, o empregado do correio, escondido atrás da janela, contou vinte monstros cobertos de peles de animais selvagens. Os monstros reuniram-se num pelotão compacto.

 

Cada um de vocês sabe o que tem a fazer! dizia nesse momento o professor aos Bredjaga. Precisamos de catorze mulheres. Nem mais uma. E nem pensar em perder tempo em empreendimentos particulares. Senão, podem ir fazer companhia a Illarion. Percebem?

 

Certamente os dezanove homens compreenderam. O professor olhou à sua volta. Viu o pope Alexei que se aproximava lentamente do grupo.

 

Partimos dentro de dez minutos acrescentou o professor. Depois, inclinou-se respeitosamente diante do pope. Vamos, cada um para o seu posto.

 

O grupo deslocou-se. Tudo se passou muito calmamente, sem emoção, sem um grito sequer.

 

Três homens entraram na loja de Schamov, dois no edifício do correio, outros dois foram visitar Landovski, o sapateiro, e um a professora. O chefe do Soviete teve direito a três homens só para si, sete solitários atacaram sete casas e dois dirigiram-se para a casa dos Semionov. Schamov atendia três mulheres.

 

Um instante, camaradas. Atendo-os já.

 

Mas não teve tempo; uma pancada com um pau no rosto fê-lo ficar estendido atrás do balcão. Cada um dos três monstros agarrou uma das mulheres, tapando-lhes a boca para não gritarem e levaram-nas meio sufocadas para os trenós. Num momento, as três mulheres desmaiadas foram metidas debaixo das peles dos trenós. Em seguida, os três homens esvaziaram a loja, deram nova pancada na cabeça de Schamov e saíram.

 

A mesma cena desenrolou-se com cada uma das vitimas escolhidas pelos Brodjaga; a professora e a esposa do chefe do Soviete, aquela que conhecia os segredos do champanhe, não puderam oferecer nenhuma resistência. No correio, não havia mulheres. Os bandidos contentaram-se em cortar as linhas e esvaziar o cofre. Magra colheita, pois continha apenas quarenta e dois rubles e alguns copeques.

 

Dez minutos depois do sinal dado pelo professor, catorze mulheres estavam estendidas debaixo das mantas e peles dos trenós. Mulheres jovens, em geral. A mais jovem de entre elas, Anna Petrovna, a professora, era uma bela rapariga loura de vinte anos apenas; ia certamente criar problemas no momento da distribuição.

 

Três tiros cortaram o silêncio. Os dois homens que tinham atribuído a si mesmos a missão de ir a casa de Semionov encontraram uma resistência inesperada. Tinham tocado à porta, como qualquer visitante honesto, mas a porta manteve-se fechada. Uma voz clara perguntou da janela, cujas persianas estavam corridas:

 

Quem são vocês? Não os conheço! Desapareçam!

 

O professor fez um sinal ao seu colega. Uma pancada forte na porta fê-la estremecer. Foi nessa altura que Ludmilla disparou o primeiro tiro. O ministro da Justiça soltou um grito e fugiu. O professor puxou do revólver e disparou duas vezes contra a janela. A madeira estilhaçou-se, um vidro partiu-se e uma bala foi alojar-se na parede. Ludmilla previra a resposta e afastara-se prontamente do campo de tiro.

 

Alguns minutos mais tarde, os cinco trenós carregados partiram de Nova Bulinski e dirigiram-se para a floresta...

 

Illia lakatovitch Frolovski deu o alarme. Louco de fúria correu para a igreja, empurrou o pope Alexei, estupefacto com tal comportamento, e foi pendurar-se na corda do sino.

 

Que estás a fazer, imbecil? gritou o pope.

 

Houve uma agressão gritou Frolovski. Atacaram-nos! Roubaram as nossas mulheres; o empregado do correio está meio morto e Schamov não está melhor. As mulheres, as nossas pobres mulheres...

 

O sino tocava ao ritmo da indignação, do furor e do desgosto de Frolovski; no ar frio e limpo, o som chegou aos ouvidos dos homens acupados a trabalhar na margem do Lena.

 

Ou há fogo ou o rio transbordou disse Schliemann. Vamos telefonar para o correio.

 

Mas do correio ninguém respondia. O sino continuava a tocar sem parar, como se um louco se divertisse a fazê-lo soar.

 

Trenós, cavalos, renas e homens seguiram apressadamente a caminho de Nova Bulinski; quanto mais se aproximavam, mais o som do sino se tornava inquietante. Tinham agora a certeza de que algo de grave se passara na aldeia.

 

Quando chegaram à praça da igreja, envoltos na poeira nevada, como fantasmas, foram recebidos por um concerto de choros e de gemidos. O pope Alexei, perdido no meio das suas ovelhas, erguia os olhos ao céu e implorava a Deus e aos santos, e até mesmo àqueles que só existiam na sua imaginação.

 

As nossas mulheres! gritou o chefe do Soviete ao ver aparecer os operários do sovkhoze. Roubaram catorze mulheres e saquearam a loja de Schamov. Levaram Anna, a minha querida esposa! São Brodjaga, eu reconheci-os. Tivemos sorte em não terem pegado fogo a toda a aldeia!

 

Semionov correu imediatamente para casa e encontrou Ludmilla, que o esperava, com a Tokarev apertada contra o peito.

 

Soltou um suspiro de alívio e abraçou-a como se não a visse há muito tempo.

 

Feri um disse ela orgulhosamente. Vi-os chegar e imediatamente fechei tudo. Esses monstros não ficaram incólumes.

 

Meia hora mais tarde, a casa de Semionov estava cheia de homens de rosto duro, prontos a tudo para recuperarem as mulheres e se vingarem. A mulher de Schliemann também fora raptada e este encontrava-se de pé no meio da sala, empunhando uma pistola-metralhadora e dizendo:

 

Já somos oitenta e nove. Vens connosco, Semionov?

 

Com certeza respondeu Semionov. Mas será difícil arrancar-lhes as presas. Haverá mortes...

 

Conheço a minha mulher respondeu Schliemann. Prefere morrer do que deixar-se ultrajar por um desses patifes. E todas vão reagir como ela. Os trenós estão prontos. Partamos.

 

Ludmilla esperou que o comboio de trenós se afastasse, vestiu as suas roupas mais quentes, embrulhou Nadia numa espessa pele e correu para o hospital. Katarina estava em pleno trabalho. Tratava o empregado do correio, limpava-lhe as feridas e tentava acalmá-lo. Boria ajudava-a. Nem pensar em incomodá-los. Ludmilla entregou a pequenita à mulher de Boria.

 

Cuida bem dela disse. Eu preciso de me ausentar.

 

Não esperou pela reacção da jovem mulher de olhar assustado e saiu a correr. Depois, selou um dos cavalos e seguiu a pista dos trenós.

 

O crepúsculo invadia a floresta. A coluna vingadora chegou finalmente em frente do portão cuidadosamente fechado dos Brodjaga. Sobre o tronco de uma árvore, sozinho e desarmado, o professor esperava-os. Os trenós colocaram-se em semicírculo em redor dele e os noventa homens saltaram para a neve. Schliemann, Semionov, Haffner e Wancke aproximaram-se dele. Atrás deles, ouviu-se um ruído metálico. Os homens soltavam o fecho de segurança das espingardas, preparando-se para disparar.

 

Durante o trajecto, fora aprontada uma caixa de granadas de mão para fazer saltar a porta, em caso de necessidade.

 

Antes de negociarmos começou o professor com voz calma, seria útil que deitassem um olhar para o interior do campo, camaradas. Depois podemos discutir.

 

Recuou ligeiramente e abriu a porta. Na praça central, diante do pavilhão das mulheres e das crianças, estava um enorme grupo: as seis mulheres dos Brodjaga e as catorze de Nova Bulinski. E diante das mulheres, o rebanho das crianças. Quatro recém-nascidos, cuidadosamente embrulhados em peles, encontravam-se estendidos na neve. Não se ouvia uma palavra. Nos olhos das crianças via-se o medo e o espanto, mas nenhuma chorava. Atrás das mulheres e das crianças estavam os Brodjaga, de armas aperradas, com os bonés de pele enterrados quase até aos olhos. Não havia necessidade de comentários para imaginar o desenrolar dos acontecimentos.

 

Entendem? perguntou o professor.

 

Sim respondeu Schliemann, com a garganta apertada. Quais são as vossas condições?

 

Liberdade de movimentos e nada de perseguições.

 

E as mulheres?

 

Ficam connosco.

 

Schliemann voltou-se e ergueu a sua pistola-metraIhadora. Semionov saltou sobre ele.

 

Os garotos! Olha para eles, bom Deus!

 

Trinta e sete crianças disse o professor. Atrás deles, está Kolka, o melhor atirador-que já existiu. Também ele tem uma pistola-metralhadora. Trinta e sete balas. Uma brincadeira para ele.

 

Schliemann afastou-se de Semionov e lançou um olhar desesperado para o grupo compacto das mulheres e das crianças. Viu Vera, a sua esposa; atrás dela, um Brodjaga corpulento apoiava o cano de uma arma ao seu pescoço coberto de cabelos louros. Foi como uma punhalada no coração de Schliemann. Empurrando o pequeno professor, deu uns passos cambaleantes para dentro do portal.

 

Vera! gritou. Vera? Vês-me? Ouves-me? Que devo fazer, meu amor?

 

Deixa-nos morrer, Egonia! gritou Vera, erguendo os dois braços para o marido. Os seus cabelos louros caíram-lhe para a cara como se quisessem esconder o medo que lhe apertava o coração. Mata-os a todos! A estes monstros! Não penses em nós! Ficaremos orgulhosas de vocês, se os aniquilarem.

 

Tens uma esposa corajosa interveio o professor aproximando-se de Schliemann. Mas... e as crianças?

 

Não somos nós que as matamos disse Schliemann rangendo os dentes. São vocês.

 

Quem fará essa pergunta diante de trinta e sete pequenos cadáveres? Suponham que nos matam a todos; no fundo, pouco nos importamos com isso, pois estamos habituados desde sempre a enfrentar a morte e ela é-nos familiar. Mas a vossa consciência? Vinte mulheres e trinta e sete crianças. Como poderão esquecer isso mais tarde?

 

Schliemann recuou e juntou-se aos homens de Nova Bulinski, que esperavam, de armas na mão, prestes a disparar ao menor sinal. Olhou para Semionov mas só encontrou um imenso desespero nos olhos do amigo.

 

Que devo fazer, Pavel? murmurou. Meu Deus, os garotos e as nossas mulheres.

 

Semionov estava calado. De cabeça baixa, pensava: «Fui eu que desenhei o plano.» Um vazio mortal paralizava-lhe o espírito. Frolovski contara que os homens liam um papel na praça da igreja. «Eu é que devo ser o primeiro a morrer. Traí os meus irmãos porque tinha medo, um medo abjecto, medo de ser queimado centímetro a centímetro, de ficar lentamente sem pele. Mas isso não é desculpa. Não se trai os irmãos por se ter medo de sofrer.»

 

Então que devo fazer? gritou aos seus ouvidos Schliemann. Que farias tu se Ludmilla estivesse ali, entre as prisioneiras? Viu atrás de si os homens de Nova Bulinski que se aproximavam lentamente, de armas na mão, como uma muralha de vingança e de frio furor. Indeciso e desesperado, ergueu os braços e deteve-os.

 

Parem! Por amor de Deus! Sabem o que está por detrás daquele muro?

 

Foi nesse momento que Ludmilla chegou à aldeia dos Brodjaga, na outra extremidade. Um muro de três metros de altura impedia-lhe a passagem. Desmontou, amarrou o cavalo a uma árvore, tirou a sua pele e depois de ter apalpado o revólver aproximou-se da paliçada.

 

Ninguém a via, nem ouvia. Caminhou ao longo da paliçada, enterrando-se até aos joelhos na neve mole e olhou para as pontas aceradas que protegiam o alto muro. Procurava qualquer coisa, observando com o olhar o muro feito de troncos de árvores varridas pelas tempestades, torturadas pelo sol e pela geada, e resistentes a todos os ataques.

 

Fala! exclamou uma voz a trezentos metros dali. Schliemann, exasperado, apertando nas mãos a pistola-metralhadora, repetia:

 

Se Ludmilla...

 

Não sei murmurou Semionov. Talvez fosse matar um Brodjaga...

 

Passagem livre a todas as mulheres exclamou nesse momento o professor. A vida pertence aos fortes!

 

Do outro lado, Ludmilla parou. Estava enterrada na neve até às coxas, a sua respiração era ofegante e transpirava, mas tinha encontrado finalmente aquilo que procurava.

 

Era uma bétula. Uma jovem bétula de tronco liso, coberto de gelo, que crescera mesmo junto dos troncos da paliçada. A copa da bétula ficava um pouco acima das pontas afiadas da paliçada. Ludmilla ergueu os braços e começou a sua escalada. As suas mãos tinham dificuldade em procurar um apoio. Muitas vezes, escorregou pelo tronco gelado e um pouco de sangue indicava a sua passagem. Uma vez mesmo, quase no cimo da árvore, escorregou por ali abaixo e ficou enterrada na neve. Comprimiu os lábios, tirou o boné e sacudiu os cabelos pretos; o seu rosto estava vermelho do esforço e os olhos brilhantes davam-lhe o aspecto de uma cigana selvagem. Depois de recuperar o fôlego, recomeçou a subida e dessa vez conseguiu chegar ao cimo. Agarrou-se a uma ponta e manteve o equilíbrio. Durante os breves minutos de descanso, aproveitou para observar o que a rodeava. A descrição que o marido lhe fizera do interior do acampamento Brodjaga, veio-lhe à memória. Aos seus ouvidos chegaram vozes, choros e gritos. De repente, deixou-se cair sobre a neve, rolou como uma bola, e, sem sequer se voltar, correu para a primeira cabana.

 

As suas suposições revelavam-se exactas. A cabana estava deserta e a porta aberta. Até os cães se tinham ido reunir ao grupo. Parecia tudo abandonado, morto.

 

Ludmilla agiu com precisão. Atirou o candeeiro de petróleo para o chão, regou igualmente a mesa, o banco e as paredes, foi à chaminé, tirou de lá, com a tenaz, um grande carvão ardente e atirou-o para o meio da casa. Um crepitar e logo a seguir uma chama azulada ergueu-se, tomando hesitantemente posse das paredes, da mesa e das cadeiras, e apropriando-se por fim de toda a casa.

 

Ludmilla saiu a correr e chegou à casa vizinha. Procedeu da mesma maneira e o fogo começou a sua obra destruidora. Foi assim de cabana em cabana até que, na sexta, encontrou uma criança que se encontrava estendida diante da lareira, com as faces vermelhas e os olhos brilhantes de febre. A criança olhou admirada para aquela aparição fantástica de cabelos desgrenhados, cheirando a petróleo e a fogo, e começou a chorar baixinho. Tinha medo e estava cheia de sede. A sua língua inchada doía-lhe. Teve dificuldade em murmurar algumas palavras.

 

Água gemeu a criança. Tens água? Água? E estendeu para ela os bracitos descarnados.

 

O que é que tens? perguntou Ludmilla em voz baixa. Podes andar? Vem, vou ajudar-te a sair daqui.

 

Não, não posso. Devia ter sete ou oito anos. Os seus compridos cabelos louros colavam-se-lhe ao rosto suado; era bonita, mas magra de mais, e o sofrimento e a febre alteravam-lhe as feições. Diadia Ivanovna disse que eu tinha qualquer coisa na barriga. Pôs-me um pano húmido, muito quente, com terra quente, na barriga, mas continua a doer. Quero água, por favor.

 

Ludmilla olhou à sua volta. Um gesto e a sexta cabana arderia como as outras.

 

Tenho sede gemeu a pequena. Porque é que a Mamouchka não está aqui?

 

Ludmilla decidiu-se finalmente a agir; correu para a doente e ergueu-a. A pequena pôs-lhe os braços em volta do pescoço e apertou-se contra ela.

 

Onde vamos? Didia Ivanovna disse que eu precisava de ir ao médico fazer uma operação. Tenho medo. Água.

 

Depressa, minha querida disse Ludmilla.

 

Deitando-a sobre um banco foi buscar neve num recipiente, derreteu-a e humedeceu os lábios da pequenita. Um sorriso de reconhecimento iluminou o rosto da criança.

 

É bom. Tu és gentil. De onde vens?

 

Ludmilla correu à janela. Ainda não se via o incêndio. Talvez saísse muito fumo da segunda casa que pudesse fazer despertar suspeitas.

 

Volto já disse ela à criança.

 

Mais uma colher de água implorou a pequenita.

 

Daqui a pouco. Não tenhas medo se ouvires gritos e barulho. Não te mexas. Eu já venho.

 

Voltas? gritou a pequenita vendo Ludmilla correr para a porta.

 

Sim. Fica deitada!

 

A felicidade de Nova Bulinski ficou a dever-se a esses poucos minutos de acalmia. Saindo da cabana, Ludmilla abarcou a cena de um só olhar. De um lado, as mulheres e as crianças e do outro, Nova Bulinski, de armas na mão. Sentiu-se tomada de uma cólera violenta e ao mesmo tempo estremeceu de horror prevendo uma carnificina inevitável.

 

Atrás de si, começou um concerto de estalidos sinistros. Os vidros das casas sobreaquecidas rebentavam com um ruído seco, no ar gelado, e as chamas saíam das janelas e das chaminés. Nenhuma intervenção humana poderia dominar agora aquele incêndio. O campo dos Brodjaga ficaria completamente destruído.

 

Bruscamente, saindo de uma casa condenada a vir a ser dentro em pouco um monte de cinzas, ela viu o professor. Como um louco, batia numa mulher, soltando gritos desumanos. Erguia os braços, girava sobre si mesmo e tentava excitar os seus homens. O fogo aumentava de intensidade; nuvens espessas e escuras perturbavam o ar puro e gelado. O professor estava de cabeça perdida porque a sua casa ardia como as outras. Ludmilla puxou do revólver e disparou. O chefe do bando foi atingido nas costas. Abandonando a sua vítima desmaiada na neve, o professor voltou-se lentamente. Os seus olhos encontraram os de Ludmilla; abriu a boca, mas a vida fugia-lhe; sem dizer uma palavra deixou-se cair na neve, teve ainda alguns sobressaltos, e, finalmente, deixou-se dormir para sempre, demónio impiedoso, reduzido ao silêncio.

 

Ludmilla não perdeu tempo em orações fúnebres; não reparou no pânico causado pelo incêndio, não viu Schliemann abrir passagem, com risco da própria vida, entre os monstros, e segurar nos seus braços Vera, gravemente ferida e desmaiada; não ouviu os gritos de animais feridos soltados pelas mulheres, os gemidos das crianças, os latidos aterrorizados dos cães; não viu os cadáveres adormecidos na neve, o sangue, os Brodjaga desarmados. Correu para a sexta cabana, aquela que o fogo tinha misteriosamente poupado, e foi ali encontrar Daria, a pequenita, calmamente adormecida, cheia de confiança naquela que lhe dera de beber; o rostinho parecia calmo, quase feliz. Lumilla sentou-se junto da sua protegida de revólver na mão e esperou pela primeira visita.

 

Foi Willi Haffner, mas não a reconheceu imediatamente. Acompanhado por três camaradas entrou na cozinha de arma em punho.

 

Rende-te, miserável! gritou.

 

Depois, vendo Ludmilla, baixou a arma e sentou-se num banco.

 

Estás aqui, tu? Pavel está a ajudar Schliemann a transportar Vera. Ela foi gravemente ferida. Os outros estão a por as coisas em ordem pronunciou a frase em tom amargo. Efectivamente, quando o incêndio se declarou eles dispararam sobre as mulheres, mas depois... De repente, Willi Haffner calou-se e olhou para Ludmilla com mais atenção: Mas o incêndio... as casas... foste tu!

 

Sim respondeu Ludmilla debruçando-se sobre Daria. Era necessário desviar as atenções.

 

Tu salvaste-nos, Ludmilla, porque não havia qualquer saída possível; eles teriam morto à nossa vista todas as mulheres e crianças.

 

Passou a mão sobre o rosto cansado.

 

A aldeia recuperava lentamente o silêncio; os tiros tinham cessado e os gritos atenuavam-se também. Só a luz dos braseiros iluminava ainda o céu e o campo de batalha.

 

Meu Deus, que seres monstruosos disse Willi, acabrunhado. Foi sobre as crianças que começaram a disparar. Olhou para a criança adormecida. Quem é?

 

É Daria disse Ludmilla, levantando-se. Temos de a levar imediatamente a Katarina Kirstarskaia. Creio que tem uma apendicite aguda.

 

Assim se desmoronou o império do professor, o novo estado da liberdade absoluta, e com ele a raça dos Brodjaga.

 

Mal se podia acreditar, e, no entanto, era verdade: Karpuschin tinha-se transformado. Depois de ter convencido Marfa Babkinskaia da sua virilidade, não teve dificuldade em entrar nessa via; a jovem habituou-se a considerar o general barbudo, corpulento e barrigudo como seu amante, o que obrigou Karpuschin a tomar certas decisões.

 

Era preciso render-se à evidência: não era em Olenekskaia Kultbasa que encontrariam Semionov. O general mudou, pois, de residência; tomou o primeiro avião com partida para Yakoutsk. Um novo plano germinara no seu cérebro activo, na própria manhã do dia em que Marfa, furiosa e desesperada, se resignara ao inevitável. «Quem sabe onde se encontrará Heller-Semionov», pensava ele examinando o mapa da Sibéria. «Como poderia ele descobrir um só ser humano perdido num quarto do globo terrestre? Do outro lado dos Urales não havia problemas. Ali estava tudo bem organizado, ninguém poderia passar despercebido e por toda a parte os comunistas tinham os olhos bem abertos. Mas aqui, na taiga? Não se pergunta a um Yakoute ou a um Toungouse se é comunista. Ele abanará a cabeça e irá acariciar a sua vaca, porque está grávida. Gosta mais de uma vaca grávida do que de um manifesto de Lenine...»

 

«Assim, o que conta, antes de tudo, é viver de uma maneira agradável», continuou a pensar Karpuschin. «Tanto mais quando se está já morto... Em Yakoutsk, as perspectivas abundam: é o ponto de encontro dos comerciantes mongóis; uma comissão económica chinesa estabeleceu também a sua sede em Yakoutsk e tem a intenção de pôr de pé o comércio da seda. Quando se tem a sorte de encontrar a Primavera na minha idade, é preciso saber mantê-la. A caminho, pois, para o sol e para o calor!»

 

Antes de deixar Olenekskaia Kultbasa, Karpuschin teve ainda direito ao grande acontecimento dos seus últimos quarenta anos: a sua juventude reencontrada cumulou Marfa Babkinskaia e ela, de olhos fechados, lábios entreabertos, rosto tenso, devolveu-lhe com juros altos as suas carícias escaldantes de amor e de expectativa. É verdade que tivera o cuidado de comer antes uma refeição substancial, sem álcool, mas, mesmo assim, para os seus sessenta anos, podia sentir-se orgulhoso de si, e o espanto de Marfa alegrou-lhe o coração.

 

Em Yakoutsk, Karpuschin apressou-se a alugar um apartamento, num bairro moderno; Marfa arranjou alguns móveis, enquanto o ex-general se ia pôr imediatamente em campo. Visitou as delegações comerciais chinesas, o mais importante negociante de prata da Mongólia e uma assembleia heterogénea de homens especializados no tráfico de cavalos e de burros, que, ao fim de um certo tempo, lhe pareceram familiares e que o tratavam por «meu tenente», «meu coronel», e mesmo «meu general». Eram chineses ilustres, distantes, de aspecto modesto, delicados e amáveis; os seus lábios delgados arvoravam o eterno sorriso da Ásia, mas os seus olhinhos brilhavam de inteligência e de desconfiança.

 

Antes de iniciar as conversações, Karpuschin enviara-lhes cartas credenciais. Depois, fora convocado para uma velha casa no centro de Yakoutsk.

 

Informámo-nos, Excelência começou amavelmente o comerciante de burros, e é exacto que se chamava Karpuschin e era general; é também exacto que Moscovo e toda a gente o considera como desaparecido do mundo dos vivos.

 

Não tenho o hábito de mentir! interrompeu Karpuschin com uma mistura de orgulho e de cólera. Declaro-me pronto a pôr a minha experiência de general do Exército Vermelho e de chefe da KGB ao serviço do exército chinês. Penso que poderei ser-lhe útil.

 

O nosso Governo está também intimamente persuadido disso, Excelência replicou o porta-voz dos chineses, folheando alguns papéis. Tenho na minha frente o seu currículo e creio que não falta aqui nada. Vamos mais uma vez controlar todos os vossos gestos, mas tenho de lhe observar acrescentou fechando o dossier e inclinando-se cerimoniosamente diante do seu interlocutor que a tarefa que irá realizar na República Popular da China não é nenhuma sinecura. Nós temos também as nossas leis.

 

Tanto quanto sei existem já vários oficiais soviéticos em Pequim?

 

Exacto. Mas eles tornaram-se chineses. E que tenciona fazer da sua amante, Excelência?

 

Ela acompanha-me declarou Karpuschin num tom categórico. Ela é o sol da minha velhice, se me é permitido utilizar a vossa linguagem cheia de imagens.

 

A China está cheia de sóis, Excelência. Terá de deixar essa jovem na Rússia. Em qualquer empreendimento masculino, uma mulher representa um elo prestes a saltar e a desprender toda a corrente. Não terá dificuldade em encontrar em Pequim jovens deliciosas e encantadoras, capazes de encher o vosso coração.

 

Karpuschin regressou a casa com essa má notícia; felizmente Marfa tinha saído. Inquieto e indeciso, começou a andar de um lado para o outro no quarto, sentou-se na beira da cama e suspirou. A China representava a porta para a liberdade. «Que fazer?» perguntou ao seu duplo que o olhava do espelho do armário. «Estou loucamente apaixonado por Marfa.» Mas o espelho permaneceu obstinadamente mudo e Karpuschin recomeçou as suas idas e vindas pelo apartamento.

 

Marfa voltou do mercado, com um cesto cheio de provisões: couves, carne e toucinho; anunciou orgulhosamente a sua intenção de preparar uma refeição deliciosa.

 

Vem, minha pomba respondeu tristemente Karpuschin, dá-me um beijo. Hoje foi um mau dia. Vamo-nos deitar cedo.

 

Que se passa?

 

Porca de vida! É uma sorte tu estares aqui, Marfaschka.

 

Marfa abanou a cabeça sem responder. Não chamava a isso «sorte», mas sim «destino».

 

Katarina Kirstarskaia operara imediatamente a pequena Daria; era, de resto, mais que tempo, pois, durante o trajecto, os solavancos do trenó tinham feito rebentar o intestino e declarara-se uma peritonite aguda. Ludmilla, Boria e até Semionov tinham assistido à operação.

 

Que será dela? disse Katarina em voz baixa, quando a criança, ainda adormecida, foi confortavelmente instalada na cama.

 

A mãe dela foi morta disse Semionov deitando um olhar a Ludmilla. Quanto ao pai, não ficou um só Brodjaga vivo. Só nos tem a nós.

 

Pois bem, nessas condições fico eu com ela. Educá-la-ei como se fosse minha própria filha. De acordo?

 

Obrigada, Katarina Kirstarskaia respondeu Semionov erguendo-se. Tencionava levá-la para nossa casa, mas quem sabe quanto tempo estarei em Nova Bulinski?

 

Penso que te enterrarão aqui, Pavel!

 

É o meu maior desejo, mas quem sabe o que nos reserva o futuro? Por vezes tenho medo!

 

Vamos disse Katarina sacudindo os cabelos curtos. Já ninguém se lembra de ti. Os avisos, com a tua fotografia? Já se serviram deles para acender a lareira. Já ninguém pensa em ti.

 

Não esqueças Karpuschin, Katarina!

 

Karpuschin deve estar novamente em Moscovo. Chamaram-no de Yakoutsk e depois nunca mais se ouviu falar dele.

 

Seria bom de mais replicou Semionov. Mas não ficarei descansado senão quando Karpuschin tiver desaparecido.

 

O rostinho pálido de Daria estremeceu; as suas pálpebras começaram a tremer e os seus lábios entreabriram-se.

 

Ela não vai tardar a acordar confirmou a médica. Desde que não vomite muito, pois não é bom para a costura. Se tivéssemos outra coisa que não fosse éter ou clorofórmio! Mas neste maldito buraco! Na Primavera, irei eu própria apresentar a minha encomenda ao chefe do distrito e mal dele se não me der tudo o que preciso! Eu bem sei que a farmácia dele está cheia de penicilina, de estreptomicina e de produtos anestésicos e analgésicos modernos; mas aquele porco troca tudo por sedas e jóias. A sua voz grave mostrava-se encolerizada. As maçãs do rosto estavam coradas. Era ainda bela, de reacções selvagens, indomável, porque ninguém podia transformar a sua violência em ternura.

 

Como está Vera Schliemann? perguntou Semionov para mudar o rumo dos seus pensamentos.

 

Muito bem. O seu ombro estava esfacelado, mas ficará boa. Com uma grande cicatriz, claro.

 

Nunca na sua vida poderia esquecer aquela noite de pesadelo. Boria estava ocupado com nove feridos de Nova Bulinski, enquanto Katarina extraia uma bala que entrara na coxa de outro. Doze mulheres e sete crianças encontravam-se estendidas num quarto do hospital enquanto outra mulher Marfa, a responsável pela morte violenta de IIlarion lutava desesperadamente contra a morte; recebera uma bala no pescoço e outra no pulmão.

 

Quanto aos cadáveres, ninguém gostava de falar disso, mas Katarina e Ludmilla sabiam: a fim de destruir todos os vestígios dos Brodjaga, tinham amontoado os corpos numa barraca, pegando-lhe fogo em seguida. Uma imensa fogueira destruíra todos os traços daqueles seres desenraizados, destruídos por um regime desumano e incapazes, finalmente, de reencontrarem o seu equilíbrio numa vida normal.

 

Nova Bulinski retomou pouco a pouco o seu aspecto habitual. Restabeleceu-se a calma; e todos esqueceram o terror dos últimos dias.

 

O aparecimento dos primeiros mongóis em Bulinski anunciava a Primavera. Instalaram o seu quartel-general perto da casa do chefe do Soviete, montando os seus escaparates a cantar. Depois, encheram-nos de mercadorias vistosas, pérolas multicolores, sedas coloridas, tecidos e vestidos bordados, contando que, para sul, a neve estava já a fundir-se. Mais uma semana de paciência e o Lena devia começar por sua vez a soltar gritos selvagens, como uma vaca prestes a dar à luz, e os icebergues iniciariam a sua dança diabólica.

 

Com efeito, numa noite de Abril, começou a soprar um vento quente. Quando abriram as janelas, no dia seguinte, os cidadãos de Nova Bulinski viram as suas ruas transformadas em lamaçais, formavam-se riachos, a água corria por toda a parte, alegre por se encontrar liberta. Três dias depois, o rio começou a rugir. A água subiu, inundou as margens, invadiu os terrenos vizinhos do hospital. A taiga renascia. De dia para dia a vegetação aparecia; um sangue novo corria nas suas veias; plantas e árvores reverdeciam e uma manhã Semionov levou à mulher um ramo de flores amarelas e azuis.

 

Pouco depois, o pope Alexei começava a tocar o sino. Há cinco dias que se iniciara o degelo e a inundação espreitava. Dessa vez, a água rodeava a igreja. As ondas salpicavam os ícones, e, na sacristia, molhavam mesmo S. Basílio.

 

Sacos de areia! gritava o pope completamente enlouquecido, pois há mais de vinte anos que não via uma inundação semelhante. Depressa, sacos de areia, meus filhos! E façam saltar o gelo do rio para libertar as águas. Vamos deixar destruir a nossa igreja? Não me digam que não têm dinamite. Sei que têm alguns quintais escondidos!

 

Os homens olharam-se, suspirando, e Schliemann disse:

 

O pope sabe sempre tudo. Vamos, rapazes, depressa às reservas!

 

Durante três dias, a região ouviu explosões, as casas de Nova Bulinski tremiam, os vidros abanavam e as crianças, encantadas, assistiam ao espectáculo grandioso da corrida dos icebergues sobre as águas tumultuosas do Lena. Pouco a pouco os gelos desapareceram para norte e as águas passaram a correr dentro dos limites habituais. Limparam a igreja e o pope Alexei celebrou um ofício de agradecimento à glória do Senhor e da Sua Santa Mãe.

 

Durante o período da inundação, o serviço postal tinha sido interrompido entre Chigansk e Nova Bulinski. Num dos jornais, Katarina Kirstarskaia descobriu um comunicado emanado de Moscovo: ”As forças do Ocidente atingiam mesmo os gabinetes da KGB, assim, havia pouco tempo, o general Karpuschin fora fuzilado por conspiração com o inimigo e alta traição...”

 

Semionov teve de ler três vezes a frase antes de acreditar no que via.

 

Karpuschin fuzilado? Como conspirador? É pura loucura!

 

Está aqui escrito, Pavel!

 

É verdade! disse alegremente Ludmilla. Chegámos finalmente à Terra Prometida! Abraçou o marido e começou a dançar desenfreadamente, agitando o miraculoso jornal acima das suas cabeças. Morreu o lobo mau! gritava ela como uma criança liberta de um grande peso. Somos livres! Os nossos filhos terão uma pátria como os outros, Paulucha, meu amor.

 

Katarina pegou no jornal e leu a notícia até à última linha. Não restavam dúvidas. Karpuschin havia de facto sido fuzilado. Também ela soltou um suspiro de alívio. Durante um instante, sentiu-se tentada a apresentar recurso em Irkoutsk. Depois, o espectáculo da felicidade dos seus amigos, os risos da loura Daria que lhe chamava agora Mamouchka, os serviços que ela podia prestar a esse pequeno povo de Nova Bulinski, afastaram tal ideia; sentia-se útil, encontrara uma família e devia confessar que o Lena e a taiga eram agora a sua pátria.

 

Na aldeia, iniciavam-se os preparativos para a festa da Páscoa; o pope Alexei estudou a decoração da igreja e foi fazer uma visita ao alfaiate para arranjar os seus ornamentos para a cerimónia; as crianças das escolas disputavam a honra de puxar a corda do sino que, durante três dias, devia anunciar a todos a grande notícia: Cristo ressuscitou! As donas de casa preparavam bolos, biscoitos, pãezinhos doces, carnes salgadas, cogumelos marinados. A mulher do chefe do Soviete não saía da sua destilaria.

 

Alguns dias antes da Páscoa, três barcos deslizaram sobre o Lena para a confluência com o Muna e foram parar junto da pequena cabana construída pelos alemães. Ludmilla acompanhava os homens, porque queria voltar a ver o local onde nascera a sua filha.

 

Este ano teremos sorte! dissera Schliemann. Com um princípio de Primavera de tal modo impetuoso, aposto que encontraremos ouro! Talvez mesmo em tão grande quantidade que possamos descansar durante todo o ano.

 

Semionov escolhera um canto afastado, muito arenoso, e peneirava sem descanso essas areias levadas para ali pelos gelos; de cada vez que descobria o mínimo filamento de ouro, dava um salto e soltava um grito de triunfo. No segundo dia, ocupara-se a lavar as peneiras, enquanto um pouco mais acima Schliemann e Wancke, metidos na água até às coxas, sondavam a areia, e, no barco, Willi Haffner pescava. De repente, Ludmilla apareceu molhada dos pés à cabeça; os seus compridos cabelos negros pendiam-lhe em redor da cara.

 

És a mais linda ninfa de que eu já ouvi falar! disse o marido. Vem aqui para te dar um beijo!

 

Vê primeiro o que te trago replicou Ludmilla, rindo. Estendeu-lhe a mão na cova da qual se encontrava uma pedra cintilante, com veios multicores. Há ali em baixo um rochedo inteiro que foi certamente partido pelo gelo e que parece ser feito só dessa pedra. Brilha e cintila ao sol em toda a superfície partida.

 

Semionov pegou na pedra e observou-a demoradamente.

 

É uma ágata! É realmente uma ágata. Há muitas?

 

Uma montanha delas, Paulucha.

 

Tu és um génio. Atraiu-a para si e beijou-a. Depois, ergueu-se para ir prevenir Schliemann e os outros. ”Ágata”, pensou. ”Se fosse pedra de valor, construiria uma oficina de corte e de polimento e talvez Nova Bulinski conhecesse a riqueza” Eh! gritou, elevando a sua voz acima do ruído das águas. Eh, venham cá! Ludmilla descobriu a fortuna!

 

No mesmo instante, o barco de Willi Haffner rompeu as amarras antes que ele pudesse fazer qualquer coisa. A frágil embarcação iniciou uma dança desenfreada no rio e deixou-se arrastar pela corrente para o lugar mortal onde o Muna caía de cinco metros de altura, com um ruído infernal, para ir esmagar-se lá em baixo, sobre um leito de rochas.

 

Salta! gritou Semionov correndo ao longo da margem. Schliemann, Wancke e os Yakoutes de Nova Bulinski tinham também compreendido o drama iminente. Correram para os seus barcos e tentaram remar até Willi Hafner, mas era uma loucura pois ele já chegara ao meio do rio; inclinado sobre o barco parecia hesitar em tomar uma resolução.

 

Salta! disse mais uma vez Semionov. Salta Willi. Tu sabes nadar, meu Deus! Atenção à cascata.

 

Haffner saltou. Via-se constantemente a sua cabeça emergir das ondas, com a boca muito aberta; mas o Muna era mais forte que ele; arrastava-o impiedosamente para a cascata, brincando com ele antes de o engolir.

 

Não consegue! gritou Schliemann. Willi, agarra-te a um rochedo! Tenta ficar numa ilha! Willi? Ouves-me?

 

Mas Willi já não o ouvia. Atordoado, sem forças, deixava-se ir à deriva, como uma palha. Perto da queda de água, ergueu ainda os dois braços como se quisesse dizer-lhes adeus; a sua morte parecia de tal modo estúpida, de tal modo banal que, na margem, impotente e desesperado, Schliemann apertava os punhos e injuriava o céu como um lobo ferido de morte. Então, o Muna ergueu o corpo de Willi Hafnner acima das pedras e lançou-o cinco metros mais abaixo, para cima de um rochedo saliente, até que uma nova vaga o pôs outra vez na água. O seu corpo foi levado pela corrente em direcção à margem, para uma baía menos profunda.

 

É preciso ir buscá-lo! disse Schliemann observando o corpo imóvel. Vou amarrar-me com uma corda. Quem me acompanha?

 

Eu disse Semionov sem ousar olhar para a mulher.

 

Mas Ludmilla não pronunciou uma palavra; ajudou mesmo a confeccionar a corda. Foi ela que amarrou Semionov, murmurando-lhe apenas ao ouvido:

 

Não pensas em Nadia, Paulucha?

 

Haffner tem três filhos respondeu ele em voz baixa.

 

Ela compreendeu e aprovou com um baixar de cabeça a decisão do marido. Depois, Semionov deixou-se descer, metro a metro, para o precipício.

 

Lá em baixo, à beira da cascata, era com efeito menos perigoso do que parecia de cima. Em poucos segundos, Semionov estava completamente encharcado; os rochedos eram escorregadios, mas ele ficou impressionado por aquele cenário grandioso da natureza em fúria, liberta de toda a opressão, lançada ao assalto de um inimigo invisível.

 

A dez metros dele, confortavelmente instalado num rochedo, um velho urso de pele preta observava os peixes e ia-os comendo com um prazer evidente.

 

Semionov escalou grandes rochas em direcção ao local onde jazia o corpo de Haffner. Perdera toda a esperança de encontrar o amigo vivo, mas, no fundo do seu coração, sentia que ele devia repousar em Nova Bulinski, entre os seus, e não ficar ali à mercê das aves de rapina.

 

Os poucos metros que restavam foram muito penosos; a corda impedia-o de se deixar levar pelas águas furiosas do Muna, mas ele bem sabia que poderia ser esmagado contra os rochedos antes de ser possível aos amigos salvá-lo, puxando a corda. Um olhar para cima mostrou-lhe Schliemann e Wancke agarrando aquele fio que lhe parecia ridiculamente frágil em comparação com a força dos elementos; ao lado deles, Ludmilla fez-lhe um sinal ao qual ele correspondeu. Mais cinco metros até ao corpo de Willi e depois o regresso com o cadáver do amigo às costas.

 

Passou por três pequenas cascatas e quando, por fim, chegou junto da pedra onde se encontrava o amigo, escorregou, caiu na água e agarrou-se a uma rocha proeminente. Estendeu-se ao comprido na água, como uma bandeira flutuando ao vento; o seu corpo agitava-se de um lado para o outro, segundo as fantasias do Muna; finalmente, conseguiu recuperar pé. Pousou a cabeça sobre a rocha, de olhos fechados, para descansar.

 

Lá em cima, na margem, os homens de Nova Bulinski observavam a luta do amigo contra o rio gigantesco; Ludmilla sentara-se na relva, com os punhos fechados, sem pronunciar uma única palavra. Assistira à luta do marido contra as forças diabólicas dos elementos, miserável insecto perdido no centro de uma tormenta desumana.

 

Já lá chegou, Ludmilla gritou de súbito Schliemann. Já não lhe pode suceder nada. Está junto de Willi. Bravo, Paulik! Bravo! És na verdade um bravo!

 

Ludmilla ergueu-se e foi olhar para o abismo. ”Agora tem de voltar”, pensou. ”Como poderá ele percorrer todo o caminho de regresso, com o corpo pesado de Willi às costas?”.

 

Sobre a pedra lisa, batida pela espuma, Semionov ajoelhou e encostou o ouvido ao coração de Willi; depois, ergueu cuidadosamente a cabeça do amigo e soergueu-lhe as pálpebras. Em seguida, voltou a auscultá-lo e, por fim, levantou-se.

 

Não é possível! gritou Schliemann, ao qual não escapara nenhum gesto. Está vivo? Olhem, Semionov massaja-lhe o peito. Está a fazer-lhe respiração boca a boca! Está vivo! Está vivo!

 

Era incrível, mas era verdade. Vendo o corpo do amigo estremecer, Semionov esquecera toda a prudência; lançara-se como um louco sobre Willi, escorregara várias vezes ainda e por fim reanimara-o.

 

Para Ludmilla e os seus companheiros, a hora seguinte foi provavelmente a mais longa das suas existências. Semionov não calculava o tempo; para ele já não havia horas, minutos, nem segundos; não via o Sol, nem o rio, não sabia se era dia ou se era noite. Para ele só havia aquele ponto do universo, uma muralha abrupta de rochas, de areia e de plantas; essa muralha simbolizava para ele a vida, a libertação, o repouso, o sono, Ludmilla, o calor e a paz.

 

Retrocedeu com o corpo do amigo sobre o ombro, de rocha em rocha, escorregando. Lá de cima, os outros tinham-no visto debruçar-se sobre Haffner e amarrar o corpo inerte às suas costas, de maneira que os dois corpos formavam apenas um e rezavam a Deus para que aquela miserável corda tivesse uma resistência excepcional.

 

Puxaram lentamente, ao ritmo a que Semionov subia. Ludmilla fixava o rio e seguia a luta desesperada do marido. Juntava as mãos e não dizia nada, porque nada havia a dizer. O que ali se passava, o combate do homem contra os elementos, da vida contra a morte, ultrapassava as palavras humanas. Semionov atravessou o primeiro abismo, rastejou como um insecto gigantesco arrastando a sua presa, ou uma formiga transportando um tronco, de rocha em rocha, sobre a areia, na água, por um segundo abismo, onde as águas do Muna, escuras e revoltosas, mantinham um monólogo eterno e inquietante.

 

Finalmente, atingiu a base da muralha. Cambaleando, ofegante, com os olhos saídos das órbitas, examinou o seu inimigo. Depois, tirou Haffner das suas costas, amarrou-o sozinho à corda e fez sinal para o puxarem.

 

Içado pelos outros, centímetro a centímetro, o corpo de Willi balouçava nos ares, insensível aos choques, às vertigens, ao ruído e ao medo. Em baixo, no fundo do abismo, Semionov deixou-se cair. Em redor dele, bruscamente, o mundo perdeu vida e cor, a cascata calou-se, esse espectáculo espantoso da enorme massa de água caindo de cinco metros de altura deixou de o impressionar.

 

A água era negra como tinta, as margens, os rochedos, tudo era negro; e no meio desse mundo fantástico, pontos vermelhos dançavam, como pequenos diabos ou gnomos. Fechou os olhos e só despertou quando Schliemann o sacudiu:

 

Estás a ouvir-me, Pavel? Reconheces-me?

 

Depois, tornou a mergulhar no universo de silêncio e só voltou a despertar estendido na relva, com a cabeça sobre os joelhos de Ludmilla; agarrou-se às mãos suaves que lhe acariciavam meigamente o rosto, com mais força, pareceu-lhe, do que se agarrara à corda.

 

Transportaram os feridos para a cabana e reanimaram-nos. Schliemann ajoelhou perto de Willi; como fizera Semionov, praticou a respiração artificial e massajou o peito do amigo; pouco a pouco, apesar de continuar inconsciente, o ferido começou a respirar melhor.

 

Em seguida, a caravana tomou o caminho de Nova Bulinski. De longe, Schliemann disparou um tiro para prevenir os habitantes; de facto, logo que eles chegaram, viram Katarina e Boria na margem, seguidos de alguns homens; em pouco tempo, toda a aldeia se encontrou reunida ali, homens, mulheres e crianças, e mesmo o pope Alexei, que acorrera tão depressa quanto lho permitiam as suas velhas pernas; todos pressentiam o drama.

 

O barco chegou à margem e imediatamente Willi e Semionov foram transportados para o hospital.

 

Willischka! gritou uma voz de mulher saída da multidão; era Anna Haffner; correu como uma louca, beijou os ferimentos do marido, soltou gritos e chorou com todo o ardor de uma verdadeira russa.

 

Prontamente estendido sobre a mesa de operações, Willi foi entregue às mãos peritas de Katarina, enquanto numa outra sala Boria dava uma injecção a Anna, para a acalmar.

 

No corredor, com o coração a bater de alvoroço, Schliemann esperava o veredicto. Daí a pouco surgiu Katarina.

 

É demasiado tarde, doutora?

 

Tem várias fracturas cranianas e uma fractura complicada da bacia. Além disso, tem três costelas partidas e tenho a impressão de que perfuraram o pulmão. Fizeram-lhe respiração artificial?

 

Sim, fiz respondeu Schliemann sem explicar que Semionov fizera o mesmo antes dele.

 

Massajaste-lhe a caixa torácica?

 

Sim...

 

Não passas de um cretino! gritou Katarina. Foi isso que provocou a perfuração dos pulmões.

 

Como é que eu havia de saber? Sou profeta? É preciso enviá-lo para Yakoutsk, mas receio que morra antes de lá chegar, Terá de ser trepanado e se sobreviver... uma fractura da bacia... Não poderá voltar a andar. Terá de ser empurrado numa cadeira de rodas.

 

Boris e Ludmilla saíam da sala de operações; nos seus olhos inquietos brilhava alguma esperança.

 

Como está ele?

 

Recuperou os sentidos, mas não reconhece ninguém; olha para o tecto e diz qualquer coisa em alemão.

 

Posso?

 

Schliemann deu um passo em frente.

 

Sim, vai lá e conta-nos o que ele diz. Sentaram-se todos em volta do ferido, que continuava

 

estendido sobre a mesa de operações, coberto de ligaduras da cabeça aos pés. Respirava com dificuldade e murmurava umas palavras em alemão.

 

Fala de uma casa murmurou Schliemann. De uma casa com um jardim. Fala em colher maçãs vermelhas que têm um gosto a vinho... Ele é., ele voltou ao seu país natal, à Alemanha.

 

Schliemann voltou-se e foi sonhar para junto da janela. A noite invadia lentamente Nova Bulinski; o Lena cintilava; o vento sul dialogava com as copas das árvores; sentia-se que a taiga despertava lentamente da sua hibernação.

 

Desculpe, Katarina Kirstarskaia disse Schliemann com a garganta apertada, Mas que quer? É impossível esquecermos o nosso país, apesar de nos termos tornado meio russos. Nós, alemães, somos uns sentimentais.

 

Tal como nós, russos retorquiu Katarina. Porque se envergonha disso, Schliemann? Eu, no vosso lugar, gritaria, apesar de todas as decepções e sofrimentos com que a Rússia me tem presenteado. E o contrário seria bem triste!

 

Pela primeira vez, os homens de Nova Bulinski percebiam que a médica, o diabo da médica, como eles diziam, possuía um coração e podia chorar e sofrer como qualquer ser humano. A partir desse momento concederam-lhe o seu amor.

 

Semionov recompôs-se rapidamente: declarou-se um princípio de pneumonia que Katarina debelou rapidamente com sessões de sauna.

 

Tinham conseguido transportar Haffner para Yakoutsk num barco a motor. Schliemann e Wancke acompanharam-no e, no regresso, contaram que ele tinha aguentado bem a viagem. Tinha-lhe sido dado um quarto particular e um médico amável tranquilizara-os, declarando que casos semelhantes não apresentavam qualquer dificuldade para a medicina soviética de vanguarda.

 

Ao fim de quatro dias, Katarina Kirstarskaia telefonou para o hospital de Yakoutsk. Disseram-lhe então que Haffner se encontrava ainda em estado de coma, mas que o seu pulso batia normalmente e que a respiração retomara o ritmo normal. Tinham-no engessado por causa da fractura da bacia, mas quanto às costelas nada tinham podido fazer ainda, visto o doente se encontrar demasiado fraco para suportar uma operação.

 

Toda a aldeia colaborou para que Anna Haffner pudesse ir para Yakoutsk para junto do marido, ajudando-o a reencontrar a saúde.

 

Nova Bulinski pôde celebrar solenemente a festa da Páscoa. As casas estavam cheias de todo o género de vitualhas, desde os leitões assados até aos mais variados doces. As donas de casa orgulhavam-se dos seus cozinhados e os homens lambiam antecipadamente os lábios, piscando os olhos uns aos outros.

 

Ao anoitecer de sábado de Aleluia todas as luzes se apagaram; era preciso esperar a Ressurreição do Senhor para reencontrarem a Luz; pouco depois, já de noite, a igreja começou a encher-se. Não faltava ninguém. Até os que não podiam andar assistiam à cerimónia, levados pelos outros ou de carro.

 

A multidão recolhida, comovida pela solenidade da hora, pela obscuridade e pelo silêncio, esperava o pope Alexei; lá fora, as florestas calaram-se e o Lena corria em surdina. As ruas vazias, as casas escuras, aumentavam ainda mais a opressão. No céu claro, as estrelas cintilavam como num céu de Inverno.

 

Segundo uma tradição bem radicada, o último a chegar à igreja foi o chefe do Soviete; não por ter mais trabalho do que os outros, mas por se envergonhar e ficar ao fundo, perto da entrada, pois um agente do Partido Comunista devia viver conforme os ensinamentos de Lenine: ”A religião é o ópio do povo.” E ele não faltava nunca a esses ensinamentos, a não ser na noite pascal; escondido atrás de um pilar, de mãos postas, esperava a hora solene.

 

O aparecimento do pope Alexei, vestindo os paramentos mais sumptuosos, com a sua comprida barba cortada em quadrado, cuidadosamente escovada e penteada, punha fim aos sussurros. O pope recitava as preces litúrgicas, os fiéis de Nova Bulinski respondiam, e, do fundo da igreja, partia o canto triunfal do coro dirigido por Frolovski. As costas curvavam-se ligeiramente, as respirações tornavam-se mais curtas; uma onda de emoção atravessava a pequena igreja.

 

Meia-noite. O grande dia começava. A luz inundava o mundo inteiro. A humanidade inteira ressuscitava.

 

O pope Alexei ergueu os braços bem ao alto; a sua voz vibrante lançava a todos os ecos da glória de Deus: Cristo ressuscitara!

 

E as vozes fracas das crianças juntaram-se às dos adultos para dizerem num só coro: ”Sim, Cristo ressuscitou.” Os sinos começaram então a anunciar a grande nova à aldeia adormecida, ao Lena tumultuoso, à taiga silenciosa, à humanidade inteira. Acendeu-se o grande círio central e todos, de vela na mão, foram buscar uma pequena parte de luz.

 

Terminada a cerimónia, as pessoas saíam para a praça da igreja, protegendo o melhor possível a chama hesitante da sua vela; todos se abraçavam e beijavam nas duas faces; a alegria da Ressurreição enchia todos os corações. Depois, voltavam a casa e acendiam todos os candeeiros e velas da casa, a começar pela do ícone. De imediato, toda a aldeia resplandecia com uma nova claridade, enquanto os sinos continuavam a tocar incansavelmente.

 

Demasiado fraco ainda para se levantar, Semionov seguiu Ludmilla com o olhar, quando, à meia-noite em ponto, no momento em que o sino da igreja tocava, ela iluminou todas as velas da casa. Uma felicidade indizível encheu-lhe o coração.

 

Cristo ressuscitou, querido!

 

Sim, querida Ludmilla! Amo-te; não consigo imaginar que houve uma época em que vivia sem ti e sem Nadia, longe da taiga, do Lena e de Nova Bulinski.

 

O degelo, o vento quente, a chegada da Primavera, significavam para os indígenas da taiga o regresso ao trabalho. Os dias iam-se tornando cada vez mais longos, mas nunca eram suficientes para permitir acabar as tarefas. Era preciso tratar os jardins, ir à caça, pois os animais que hibernavam começavam a sair das suas tocas, os texugos e as raposas em especial, cujas peles representavam uma fortuna. Não eram muito prudentes, porque a Primavera também lhes fazia ferver o sangue nas veias. Os tigres vagabundeavam através da floresta, cheios de fome após um Inverno rigoroso e longo. Os tigres da taiga tinham um apelagem clara, quase branca; eram animais relativamente pequenos, mais pequenos do que os tigres de Bengala, mas mais astutos e cruéis.

 

Semionov e Ludmilla meteram-se no barco em companhia de Schliemann e de Wancke; atravessaram o Muna, abriram as janelas da pequena cabana e lavaram as areias para ver se encontravam ouro. Ao fim de duas semanas, Semionov possuía já mais de mil rubles de ouro e Ludmilla tinha apanhado magníficos pedaços de ágata com veios que Wancke se entreteve a talhar e a polir.

 

Meus filhos exclamou Schliemann examinando uma das pedras polidas, eis uma descoberta que vale mais do que o nosso ouro!

 

Nessa mesma noite, reuniram-se todos em redor da mesa da cabana; Ludmilla preparava uma refeição substancial; havia também vodka; uma atmosfera de alegria e de esperança enchia a pequena sala. Sobre a mesa, as pedras polidas brilhavam à luz suave do candeeiro de petróleo.

 

Vamos fundar uma oficina de polimento e de talha de ágatas declarou solenemente Semionov. Permito-me fazer-lhes lembrar que foi Ludmilla que descobriu o filão e proponho-lhes que fundemos os quatro uma sociedade privada, com o nome de Schliemann, pois é ele que tem mais relações em Yakoutsk, e, além disso, o melhor faro. Estão de acordo?

 

Estavam de acordo e ergueram os copos de vodka para beberem à prosperidade da nova fábrica de Bulinski.

 

Chamemos-lhe Manufactura de Pedras Preciosas da Sibéria propôs por sua vez Schliemann, mas receio que daqui a pouco as autoridades não venham meter o nariz nos nossos assuntos e não ponham a fábrica a crédito da Nação. Nessa altura, passaremos a trabalhar sem descanso por trezentos rublos por mês! E presentear-nos-ão com um director que não deixará de se encher à nossa custa! Nós sabemos como isso é, não? Sabemos o valor de tudo o que usa o título de director!

 

E se mais tarde nos apercebermos disso e quisermos fazer as coisas a nosso modo não nos será possível disse Semionov. Basta-nos procurar em Yakoutsk os móveis necessários e tesouras de talhar. Depois, venderemos as pedras aos mongóis que nos vêm vender as suas sedas e bugigangas. Garanto-lhes o sucesso. E tudo isso feito nas barbas do Estado!

 

E se vierem a saber disso vamos parar de certeza à cadeia disse Wancke, o contabilista de Berlim. Fiquei farto de estar em campos. E agora sou casado e tenho filhos. Continuemos a pesquisar ouro, porque isso, pelo menos, passa despercebido. Mas essa história da manufactura não me parece muito boa!

 

Os futuros sócios não conseguiam pôr-se de acordo, mas, no entanto, levaram algumas amostras para a aldeia, para verem qual seria a reacção dos mongóis.

 

Frolovski, o organizador do coro da igreja, revelou dotes artísticos inegáveis. Sem dúvida, as pedras brutas inspiraram-no. Disse a Semionov que lhe emprestasse três das maiores e dois dias mais tarde voltou e colocou em cima da mesa um vaso de ágata., dois cinzeiros e a silhueta de um urso sentado.

 

Que trabalheira! esclamou. Sobretudo o urso. Consegui polir a pedra bruta com a pedra de amolar, mas o resto do trabalho teve de ser feito a esmeril. Está a ver, Pavel.

 

No dia seguinte, todos apareceram com uma pedra polida e talhada. Um deles, um simples caçador, trouxe uma cabeça de rena; os traços eram, sem dúvida, primitivos, mas a peça esculpida produzia um belo efeito graças à cor sombria e aos veios da pedra. Todos admiraram os objectos expostos sobre a mesa: dessa vez, estavam todos de acordo em como se poderia tirar uma fortuna do rochedo de ágata.

 

De acordo, rapazes disse Semionov. Depois de amanhã chegam os primeiros mongóis provenientes do Sul; parece que já desembarcaram em Chigansk. Veremos a reacção deles! De seguida, eu e Schliemann iremos a Yakoutsk comprar material. Se cada um der a sua parte conseguiremos. Creio que vale a pena.

 

Combinado, Pavel responderam em coro os futuros escultores.

 

No domingo seguinte, com efeito, apareceram os primeiros mongóis. A chegada deles dava sempre lugar a uma grande festa.

 

Os olhos das mulheres brilhavam à vista dos tecidos vistosos e das jóias cinzeladas, dos tapetes e das pantufas bordadas. Para os homens, havia tabaco do Oriente e conhaque, jornais e revistas. À noite, dançavam, cantavam e bebiam à volta da grande fogueira acesa no acampamento.

 

Os três chefes da tribo tinham-se instalado em casa de Semionov; as suas mãos finas voltavam e tornavam a voltar as figurinhas, apalpavam o grão da pedra, sondavam a sua transparência. Nem a mais leve expressão vinha perturbar os seus olhos e os seus rostos, mas se o negócio não apresentasse interesse, eles não perderiam tanto tempo a observar as figurinhas.

 

Então? perguntou Semionov. Os mongóis mantinham um silêncio obstinado, bebiam chá com vodka, aparentemente mergulhados em pensamentos profundos. Podemos entregar-lhes tantas figurinhas quantas quiserem; sei por experiência tudo o que se pode fabricar com ágata. É um bom negócio, camaradas, podem crer. Vão arrancar-lhes as figuras das mãos!

 

Os mongóis continuavam calados; beberam e comeram um guisado de urso com geleia e uma sopa de sêmola com cogumelos. Depois, saíram de casa, levando todas as figurinhas e deixando cem rublos em cima da mesa.

 

Schliemann e Semionov olharam-se.

 

Se eles deixaram cem rublos de sua livre vontade é porque acham que os objectos valem pelo menos trezentos! Tenho a impressão de que descobrimos uma mina de ouro. Vamos a Yakoutsk para a semana?

 

Sim, acho que sim respondeu Semionov sorrindo e presenteando Ludmilla com um beijo suplementar. Verás, a nossa existência vai mudar completamente. Karpuschin está morto e ninguém virá procurar-me aqui. Vou transformar Nova Bulinski numa cidade rica!

 

Uma semana mais tarde, os mongóis retomaram o seu caminho errante, em direcção a Yakoutsk. E todos ficaram impacientemente à espera de um sinal.

 

Uma manhã, uma flotilha de vinte barcos levou Semionov e os futuros escultores de ágata até junto do rochedo miraculoso; regressaram nessa mesma noite a Bulinski, carregados com o seu precioso material.

 

Em Yakoutsk, as figurinhas passaram algumas horas na montra de uma loja da Rua Frunse. Foi lá que Marfa Babkinskaia viu o pequeno urso sentado e o comprou por trinta rublos para o oferecer a Karpuschin.

 

Vê! disse ela ao voltar a casa.

 

Mas Karpuschin estava de mau humor; as negociações com os Chineses arrastavam-se; esperavam constantemente notícias de Pequim, notícias que não chegavam nunca. O general estava furioso por se ver tratado como um rapazinho e aborrecia-se.

 

O que é isso? perguntou olhando distraidamente para o ursinho. É nisso que gastas o dinheiro.

 

É para ti, Matwei. Olha como é engraçado...

 

Os Chineses são uns maçadores, sabes? E, no entanto, é preciso deixar a Rússia antes que o Kremlin comece a impacientar-se e a pedir notícias desse maldito Semionov. O que é que eu responderia: ”Nada de novo, camarada...” Imaginas a reacção deles?

 

Parece que fabricam estas figurinhas nas margens do Lena, segundo me disse o vendedor continuou Marfa, insensível às preocupações do general. Antigos prisioneiros alemães teriam fundado uma aldeia e viveriam como cidadãos soviéticos, Matwei disse ela de repente, beijando-o no pescoço. Não achas que seria uma boa distracção irmos até lá? Uma aldeia alemã em plena taiga...

 

Karpuschin aprovou:

 

Esperemos primeiro notícias de Pequim, minha pomba. Em seguida, iremos lá, prometo-te. Depois, lançou um olhar amigável ao pequeno urso. Tens razão, ele é engraçado. Talvez não muito fiel no aspecto anatómico, mas é justamente aquilo a que se chama a ”fantasia do artista”.

 

Assim, Semionov pôde viver ainda mais algum tempo na ilusão de um paraíso reencontrado.

 

O tão esperado telegrama chegou finalmente.

 

”Todas figuras vendidas continuar produção compramos todos objectos bom negócio muitas encomendas.”

 

Ganhámos! exclamou Schliemann.

 

Foi um delírio em toda a aldeia; todos se viam já cheios de ouro. O chefe do Soviete sacrificou uma das suas últimas garrafas de champanhe e ergueu o seu copo à saúde de Ludmilla e de Semionov.

 

Semionov e Schliemann partiram imediatamente para comprarem o material de que necessitavam.

 

Yakoutsk não é um buraco no mapa, de caminhos lamacentos e barracas indecorosas; é uma verdadeira cidade, com casas de pedra e estradas alcatroadas, com autocarros e eléctricos, uma piscina e uma escola superior.

 

Enquanto Schliemann continuava as negociações com uma loja de quinquilharias, Semionov foi encontrar-se com os comerciantes mongóis que tinham marcado encontro com ele num local um pouco retirado da cidade, o Parque da Cultura. Tinha já deixado passar quatro eléctricos cheios, mas ao quinto encheu-se de coragem e saltou para o degrau, agarrando-se, como pôde, ao varão da entrada, dizendo:

 

Um pequeno esforço, camaradas. Apertem-se!

 

O eléctrico levou-o, suspenso no vácuo, com o coração a bater a cada curva e os cabelos ao vento.

 

Foi assim que Marfa Babkinskaia o reconheceu pela segunda vez. Voltava do mercado. De pé, à beira do passeio, viu o eléctrico passar por ela a toda a velocidade. De boca aberta, olhos esgazeados, ficou petrificada. O saco das compras caiu-lhe da mão e o seu conteúdo espalhou-se pelo passeio.

 

Semionov também a reconheceu imediatamente. Viu cair o saco e o seu coração apertou-se. ”Não é possível”, pensou. ”Marfa Babkinskaia. Ela reconheceu-me. Meu Deus, por piedade...”

 

Para quê rezar? Viu Marfa lançar o alarme; viu as pessoas rodearem-na; viu um táxi parar; viu Marfa apontar para o eléctrico que se afastava e viu também aproximarem-se três soldados e começaram a falar; depois, finalmente, o eléctrico fez uma curva e Semionov aproveitou para saltar com o veículo em andamento. Correu encostado aos prédios e meteu por uma ruazinha estreita. Depois, entrou noutra, sempre a correr, e ainda noutra. Correu até perder o fôlego, atravessou uma praça e por fim parou na porta de uma casa, tentou orientar-se enquanto descansava. Onde se encontrava a camioneta do sovkhoze de Munaska na qual eles tinham feito a viagem? Como fora ele a conduzi-la durante o trajecto ainda tinha na algibeira a chave do veículo. Alguns minutos mais tarde, o camião corria a toda a velocidade pela estrada que ia dar a Bulinski.

 

Uma hora depois, Schliemann dirigiu-se por sua vez para o camião; mas não o encontrando não se preocupou muito. Pensou que algo de anormal se havia passado e que obrigara Semionov a mudar de programa. Não se mostrou curioso; enquanto procurava uma hospedaria para passar a noite, passeou tranquilamente pela cidade.

 

Pelo contrário, em casa de Karpuschin, estava longe de reinar uma calma olímpica.

 

Marfa arrancou mais do que abriu a porta do quarto e antes mesmo que ele tivesse tido tempo de abrir a boca para fazer a mais pequena pergunta ia justamente barbear-se e ficou espantado com a expressão desfigurada de Marfa ela gritou-lhe:

 

Semionov está na cidade! Eu vi-o. No degrau de um eléctrico!

 

Oh! contentou-se em dizer Karpuschin, o que podia passar simultaneamente por um gemido ou um grito. Atirou com a máquina de barbear e limpou a cara. Onde está ele? Onde?

 

No eléctrico. Passou mesmo na minha frente.

 

E tu? Que fizeste?

 

Gritei e segui o eléctrico num táxi, com dois soldados.

 

E então?

 

Desapareceu. Deve ter saltado com o carro em andamento; estão a passar revista a todas as casas dos arredores; deve ter-se escondido em qualquer parte.

 

Gritaste!... berrou Karpuschin dando violentos socos na parede. Gritaste como uma menina ao ver um rato. Porque é que não disparaste?

 

Com quê? berrou por sua vez Marfa.

 

Onde está a tua pistola?

 

Na gaveta.

 

Fazes-me endoidecer! Podias suprimir Semionov e deixaste a pistola na gaveta!...

 

Karpuschin saiu e atravessou toda a cidade a correr como um touro enfurecido até à sede do Partido, afastou com um gesto a sentinela que queria impedir-lhe a passagem, penetrou como um furacão no gabinete do comissário do distrito e ergueu dois punhos furiosos ao ver o cano de um revólver apontado para ele.

 

Eu sou Karpuschin berrou. O general Karpuschin. Eis a minha identificação. Atirou o documento identificativo ao comissário petrificado e precipitou-se para o telefone. Conhece-me sob outra máscara, camarada, eu sei. Tudo é falso. Tenho plenos poderes de Moscovo. Sem limites. E vai imediatamente aperceber-se disso.

 

Em frases curtas, ao telefone, pôs em estado de alarme toda a guarnição militar de Yakoutsk, a milícia e as brigadas da polícia. Lançou ordem de fecharem imediatamente todas as estradas de acesso à cidade; a polícia e a milícia passaram todas as casas a pente fino, segundo um plano lógico e bem feito. Desde a cave ao sótão nada ficava por ver; e nenhuma casa foi poupada, nem sequer as casas dos membros do Partido e o bordel.

 

Nas ruas, as patrulhas começaram a deter as pessoas. Interrogavam todos os transeuntes; Schliemann também não escapou ao interrogatório. Foi só no terceiro posto, para onde o conduziram, que ele soube a causa desses dispositivos de alerta. Compreendeu. Desde que ele tenha tido tempo de sair da cidade, rezou.

 

Karpuschin sorria maldosamente ao receber os relatórios que lhe enviavam.

 

As ruas estão bloqueadas; as casas a serem revistadas de alto a baixo. Há uma hora que o jornal oficial de Yakoutsk prepara uma edição especial com o retrato de Semionov e com o famoso mandato de captura que causara a morte prematura do infeliz vendedor de bugigangas de Bulinski, Dchimski.

 

Já estavam presos catorze suspeitos, mas todos eles negavam.

 

Tragam-nos ordenou Karpuschin. Se Semionov se encontra entre eles acabará por o confessar! Lançou um olhar fulminante ao comissário e aos oficiais estupefactos que, como lacaios, se colavam às paredes, esperando as ordens do amo. Ele está na cidade e não sairá daqui vivo!

 

Um ardente sentimento de triunfo apoderara-se dele. ”O acaso”, pensava ele, ”o acaso é o meu melhor triunfo. É uma nova reviravolta. Logo que Semionov não possa causar mais aborrecimentos, Karpuschin poderá ressuscitar.”

 

Pegou no telefone e ligou para a delegação económica chinesa.

 

Daqui Karpuschin! disse triunfalmente. As vossas propostas já não me interessam! Desisto de tudo, compreendem? Que a paz reine na União Soviética!

 

Depois pousou o auscultador, satisfeito por finalmente calar o bico aos diabos dos Chineses. Em Pequim”, pensou, ”nunca me sentiria à vontade. Porque teria eu tido uma ideia tão disparatada?”

 

Semionov estava na cidade.

 

Antes da noite, Karpuschin tê-lo-ia na sua frente, à sua mercê, e seria a hora mais gloriosa da sua existência.

 

Vinte e três infelizes tinham já sido detidos unicamente porque se assemelhavam, de perto ou de longe, com Semionov. Esperavam numa cela, enquanto Marfa se preparava para identificar Pavel Semionov.

 

Os pobres diabos faziam pena; uns sangravam do nariz, outros, com o rosto tumefacto, mostravam que já tinham tido a sua conta. Um medo terrífico enchia os olhos dos vinte e três homens alinhados ao longo da parede e mantidos em respeito por uma brigada de soldados.

 

É um erro, camaradas! gritou um deles ao ver Karpuschin, Marfa e o comissário do distrito. Juro-o. Chamo-me Eugen Korolenkov, sou um simples electricista e nada fiz, juro-o.

 

Karpuschin fez um gesto. Um par de bofetadas pôs fim às lamentações daquele maçador.

 

Qual de vocês é Semionov? perguntou de repente Karpuschin voltando-se para os vinte e três homens. Efectivamente, eles tinham todos uma certa semelhança com Semionov. Poderiam até ser todos irmãos. Se não és um cobarde, Heller, denuncia-te prosseguiu Karpuschin num tom que bem mostrava a estima que ele tinha pelo seu adversário.

 

Os vinte e três homens fixaram Karpuschin sem uma palavra. Não conseguiam compreender o que queriam deles.

 

Não? interrogou o general em voz baixa. Camaradas, é incrível encontrar assim tanta falsidade e cobardia juntas. Um de vocês é Semionov! Será preciso ensinar-vos as regras do jogo? Passarão a noite lado a lado e eu darei a cada um de vocês uma lição particular de canto. Aposto que rapidamente encontraremos o nosso homem.

 

Karpuschin esperava uma reacção mas só encontrou na sua frente vinte e três pares de olhos estupidificados pelo medo. Marfa esfregava nervosamente as mãos. Examinava pela décima vez cada rosto, mas não conseguia chegar a nenhuma conclusão. ”Qual deles é?”, dizia para consigo. ”Pode ser qualquer um e não ser nenhum. Teria eu tido uma alucinação e não teria visto Semionov. No entanto, reconheci os olhos dele. Desde o Jardim Botânico nunca mais os pude esquecer.”

 

Bem, nestas condições, vamos começar a trabalhar disse Karpuschin. Tirem os casacos e as camisas. E, sobretudo, quando ouvirem gritos, não sujem as calças! Há entre vocês um espião! Preciso de o encontrar!

 

O pobre electricista caiu de joelhos.

 

Camarada gemeu ele, eu sou na verdade Korolenkov, o electricista; porque seria esse Semionov cujo nome nunca ouvi? Pergunte à minha mulher, aos meus patrões...

 

O homem caiu e começou a chorar.

 

Karpuschin voltou-se para Marfa, coçando a barba:

 

Qual deles é? Tu conhece-lo...

 

Se os observo bem, camarada Karpuschin, não é nenhum deles. Mas não tenho a certeza. Porque lhe bateram? Estão já quase irreconhecíveis.

 

Como é que isso pode ser? É impossível! Tem de ser um deles! Ninguém saiu da cidade!

 

Não sei respondeu Marfa com um encolher de ombros Tu és o general... Deves saber.

 

Contai com o apoio das mulheres... Depois, voltou-se para os detidos, trémulos de medo e gritou-lhes:

 

Vistam-se! Cheiram mal como bodes. Interrogou-os a todos, um após outro, calmamente, sem os maltratar, e, por fim, só ficou com um junto de si. O imprudente confessara que não tinha ninguém; assemelhava-se a Semionov, embora parecesse um pouco mais novo. Karpuschin abanou a cabeça e disse-lhe amavelmente:

 

Por hoje vão instalar-te numa cela decente e dar-te uma boa refeição, camarada!

 

O comissário não compreendia nada.

 

É uma boa presa explicou-lhe Karpuschin após a partida do suspeito. Pode ser que o verdadeiro Semionov tenha efectivamente escapado. E então? O que é que nos espera, camarada? Para si, a transferência para algum buraco da Mongólia. Que confiança se poderá ter num comissário de distrito que deixa fugir um espião?

 

O pobre comissário estremeceu ao pensar na sua transferência para a Mongólia.

 

Mas não receie nada continuou Karpuschin. Temos à mão um Semionov sobressalente. Parece-se com ele como duas gotas de água e quando estiver a dormir no caixão ninguém quererá saber da diferença de idades. No entanto, num caso destes, é preciso estar seguro da lealdade dos colegas, senão...

 

Estou consigo, general afirmou o comissário. É também a minha cabeça que está em jogo.

 

Antes do mais, é a sua cabeça, camarada!

 

E que faremos do solitário?

 

Vamos tratá-lo e alimentá-lo bem e se verdadeiramente não conseguirmos descobrir esse demónio do Semionov... Que quer, há pessoas que não têm sorte: ou se afogam numa banheira ou morrem com uma espinha na garganta. É uma questão de destino. Este tem a pouca sorte de se parecer com Semionov. Contra isso nada feito.

 

Egon Schliemann compareceu perante o general ao anoitecer. As medidas de segurança ainda não tinham sido levantadas e tinham descoberto aquele antigo prisioneiro alemão, suspeito pelas suas origens e porque afirmara vir do Norte, das margens do Lena.

 

Apesar da sua derrota, cruel para o seu amor-próprio, Karpuschin, convidado do comissário do distrito, jantara confortavelmente e parecia de bom humor, se bem que, no fundo do seu coração, o furor e o ódio contra Semionov só tivessem aumentado. Mas não deixava transparecer nada disso. Depois da refeição, acompanhado por Marfa, a intérprete, dirigiu-se para o corredor onde se encontrava Schliemann guardado por dois soldados armados.

 

Medo? interrogou Karpuschin.

 

Porquê? perguntou Schliemann com ar espantado.

 

Estás preso, boche de merda!

 

Deve haver aí um engano, general! Examinou Marfa, e, segundo as descrições de Semionov, percebeu qual a identidade da jovem. Durante a guerra nós éramos inimigos; mas de há sete anos para cá que sou cidadão da União soviética, com os mesmos direitos que o senhor. Tenho a minha casa, a minha mulher e os meus filhos; possuo três porcos, duas renas, dois cavalos e uma vaca. Tenho uma profissão e trabalho no sovkhoze de Munaska; frequento regularmente as reuniões de informações da Stolovaia. Pode dizer-me se é por isso que mereço a designação de ”boche de merda”, general?

 

Karpuschin não respondeu. Reflectia.

 

Onde está Semionov? perguntou bruscamente.

 

Semionov? Quem é?

 

Que fazes tu em Yakoutsk?

 

Venho comprar máquinas destinadas ao polimento e ao corte de pedras de ágata. Temos a intenção de lançar este negócio em Bulinski.

 

Oh! interveio Marfa, rindo. Foi o camarada que esculpiu aquele ursinho engraçado? Comprei-o há alguns dias. É encantador.

 

Karpuschin resmungou e Schliemann sorriu. ”Como o mundo é pequeno”, pensou. ”Tinha de ser exactamente Karpuschin a ficar com a pedra encontrada por Ludmilla Semionova. Se ele soubesse.”

 

Que farias se Semionov se apresentasse a ti? prosseguiu o general.

 

Nada. Quem é esse Semionov?

 

Não leste o comunidade?

 

Que comunidade? Estou preso há mais de uma hora sem sequer saber porquê. Será crime comprar máquinas para ajudar o desenvolvimento do país?

 

Semionov é... mas é inútil dizer-te. Dêem-lhe uma fotografia! A sua cabeça vale cinco mil rublos. Sabes porque te digo isto, cão alemão?

 

Não, general.

 

Karpuschin suspirou; sentia-se aliviado por transmitir um pouco de ódio a um compatriota do seu inimigo.

 

É possível que um dia ou outro Semionov procure refúgio entre vocês. Os vossos corações de alemães começarão a bater e escondê-lo-ão, não? Nesse caso, mando-te contar em cinco mil pedaços, tantos como os rublos. A não ser que o denuncies se o encontrares.

 

Com certeza que o denunciarei, general! afirmou Schliemann.

 

Vai-te embora! Libertem-no! Um tipo que cheira tanto a mentira empestaria até as prisões!

 

Schliemann viu-se no passeio com uma fotografia e o pedido de captura de Semionov, uma fotografia que correspondia tão pouco à realidade que sorriu aliviado. ”Não é com isto que eles o apanharão”, pensou. ”O único perigo é Marfa. Não podem encontrar-se frente a frente.”

 

Foi necessária a Semionov uma boa dose de coragem e de sangue-frio para transpor a distância entre Yakoutsk e Bulinski. Depois dos gritos soltados por Marfa Babkinskaia, não se passaria muito tempo antes que o mais pequeno caminho fosse vigiado.

 

Deixou a cidade antes de serem feitas as barragens e dirigiu-se para uma granja; ali, encheu a camioneta de feno e sujou-se de terra e de palha, como se tivesse trabalhado todo o dia ao ar livre. Em seguida, pôs os óculos escuros e prosseguiu o seu caminho.

 

Pouco antes de Chigansk, teve lugar a primeira paragem. Três camiões do Exército Vermelho bloqueavam a estrada e controlavam os documentos. Nove carroças estavam ali detidas, à espera. Os camponeses gritavam, arrancavam os cabelos, injuriavam os soldados, mas eles não tinham documentos e seriam levados a Chigsank, pois eram essas as ordens. Semionov chegou com a sua camioneta.

 

Paz e liberdade, camaradas! exclamou muito alto.

 

O cabo respirou e dirigiu-lhe um sorriso amável. ”Finalmente, aparecia um tipo um pouco mais delicado”, pensou.

 

Que queres? perguntou. Este carro é teu?

 

Sim, ou melhor, não. É do sovkhoze de Munaska. Está cheio de feno. Eles estão à minha espera, camarada cabo, porque há urgência. Este Inverno tivemos azar, os ratos meteram-se nos sulcos e quando o Lena transbordou apodreceu tudo. Depressa, camaradas. Examinem o carregamento e deixem-me passar.

 

Sovkhoze Munaska? disse o cabo para dar a ilusão de estar a reflectir. Feno?

 

Sim. Veja!

 

Deixem-nos passar! ordenou o cabo. Boa viagem, camarada!

 

Semionov despediu-se e passou por entre os gritos e os apupos dos camponeses. Estes, pelo contrário, tiveram de se sujeitar a ir a Chigansk. Lá não os retinham. Contentavam-se em os fazer passar um a um diante do mandato de captura com a fotografia de Semionov. E libertavam-nos logo a seguir, quando não havia dúvida possível sobre a sua identidade.

 

Depois de Chigansk, houve calma. Karpuschin tinha limitado as medidas de vigilância a Chigansk, persuadido de que Semionov não tinha possibilidades materiais de ir mais além.

 

Já tarde, de noite, Semionov chegou a Nova Bulinski, o seu paraíso, que em poucas horas se tornara um paraíso perigoso. Tomara a decisão de esconder a verdade a Ludmilla para lhe deixar ao menos a ilusão de paz. Assim, em vez de se dirigir directamente para sua casa, encaminhou-se primeiro para o hospital.

 

O dia nascia; o Lena ainda não afastara a sua coberta de bruma; nuvens brancas escapavam-se da floresta. Dois raposinhos lutavam entre si, brincando à beira do rio, e ao longe urn rebanho de gamos fugia, perturbado, sem dúvida, pelo ruído de um motor, que cortava a paz da manhã.

 

”Um paraíso...”, pensou Semionov com tristeza. ”E Karpuschin que ainda está vivo!”

 

Bateu à porta do hospital. Katarina e Boria estavam já a trabalhar: um caçador fora atacado e cruelmente ferido por um urso, durante a noite, e a jovem médica precisara de muitas horas de trabalho para o operar.

 

Que se passa? perguntou ela depois de ter instalado Semionov no seu gabinete. Tiveste um acidente, Pavel?

 

Karpuschin ainda está vivo! esclamou tristemente Pavel.

 

De súbito, sentiu uma fadiga imensa paralisar-lhe os membros e o cérebro.

 

Não. Isso não é possível! Tens a certeza de não teres bebido de mais?

 

Infelizmente não bebi, Katarina Kirstarskaia. Desde o meio-dia de ontem sei que a perseguição continua. Regresso directamente de Yakoutsk.

 

Viste Karpuschin com os teus próprios olhos?

 

Eu não. Mas vi Marfa Babkinskaia. E ela reconheceu-me. Alguns minutos depois, começaram as perseguições em Yakoutsk. As ruas fechadas, as casas revistadas, três batalhões de soldados mobilizados. Só Karpuschin teria plenos poderes para isso. Não quero dizer a Ludmilla. Por isso é que vim aqui, Katarina. É preciso não a perturbar.

 

Não achas que é um erro, Pavel? É preferível conhecer a verdade e olhá-la de frente para agir correctamente. Para começar, bebamos uma boa chávena de chá. Nem posso acreditar! Karpuschin foi executado em Moscovo. Era o que vinha em todos os jornais.

 

Uma falsa informação destinada a enganar toda a gente! E conseguiram, os miseráveis!

 

Semionov deitou um olhar às suas mãos sujas.

 

Posso tomar um banho?

 

Certamente. Boria vai preparar-to. Dirigiu-se para a porta, abriu-a e deparou com o enfermeiro. Ah! O senhor escuta às portas e espreita pela fechadura. Água quente, cretino!

 

Mãezinha, eu não ouvi nada tartamudeou o enfermeiro.

 

Água quente para Pavel Semionov, entendes? disse ela com dureza. E esqueces a sua visita matinal, ouviste? Não o viste durante todo o dia.

 

Se tu assim o ordenas, mãezinha, serei cego e surdo. Afastou-se, contente por se ter escapado com tanta facilidade.

 

Por volta das sete horas da manhã, Semionov entrou em casa; os homens tinham partido para o sovkhoze e nas margens do Lena algumas mulheres lavavam roupa.

 

Foi encontrar Ludmilla e Nadia a tomarem o pequeno-almoço, felizes e alegres.

 

Que notícias trazes tu de Yakoutsk, Paulucha? Compraram as máquinas?

 

Sim. Está tudo bem, querida. Schliemann ficou para assinar um contrato e eu vim buscar algumas amostras suplementares. Os chineses e os mongóis propuseram-nos fabricar jóias de ágata, correntes, medalhões, pérolas e camafeus. São bons comerciantes e percebem do negócio!

 

Mentia bem, porque a mulher acreditou nele. Depois, foi deitar-se e todo o seu cansaço caiu sobre ele de repente. Nadia, na sala contígua, brincava pipilando como um pintainho. Ludmilla aproximou-se do marido e acariciou-lhe os cabelos.

 

Há mais qualquer coisa, não há, querido? disse ela baixinho. Os teus olhos estão tão tristes e tão fatigados!

 

Não, Ludmilluchka. Não há mais nada respondeu ele fechando os olhos. ”Como ela me conhece bem”, pensou, feliz de a sentir tão próximo dele. Schliemann vai regressar de comboio, mas é preciso ir buscá-lo a Chigansk. Dá este recado a Frolovski. Ele gosta de dar uma volta pela cidade.

 

Depois, adormeceu. Ludmilla cobriu-o com cuidado e acariciou mais uma vez os seus cabelos louros; o seu coração transbordava de amor e de inquietação, mas não sabia dizer porquê. ”Meu amor, se um dia tiver de te perder não sobreviverei...”

 

Incrível, mas verdadeiro: não se passou nada!

 

Ao fim de dois dias, Schliemann desembarcou na estação de Chigansk e voltou a Bulinski com o fiel Frolovski. Trazia duas pedras de amolar e dois tornos. O transporte dos cinco caixotes de Yakoutsk para Chigansk e a seguir a mudança para o camião deu-lhe suficientes assuntos de conversa para que pudesse, por sua vez, calar o episódio desagradável de Yakoutsk. As barreiras foram levantadas e as perseguições tinham acabado. A operação saldava-se por uma derrota para Karpuschin.

 

Há duas soluções afirmara o general ao comissário do distrito e ao comandante da guarnição. Ou renunciamos a enviar um relatório a Moscovo ou declaramos esta operação como uma manobra de treino. Pois é preciso estarmos sempre preparados, camaradas!

 

Assim foi feito. Em Moscovo, esse relatório foi junto ao dossier. Só o general Chimkassy fez uma careta de dúvida, mas ficou calado. Para que servia atear mais a fogueira?

 

E a vida calma retomou o seu rumo em Nova Bulinski. Ao fim de cinco semanas, Willi Haffner voltou à aldeia, mais ou menos restabelecido, mas paralisado da cintura para baixo, como previra Katarina Kirstarskaia, e obrigado a deslocar-se numa cadeira de rodas. Sabia também, por ter ouvido uma conversa entre dois medidos, que de um dia para o outro o seu cérebro deixaria de funcionar normalmente e voltaria à infância. De momento, vivia, era o essencial. Todos o foram abraçar, rindo de o terem de novo entre eles.

 

O Verão estava a chegar, anunciado por um furacão vindo do Sul. O Lena rugia e saiu do seu leito; uma parte do telhado do hospital voou e o presbitério foi também danificado. Mas o sol brilhava sobre a taiga, as semanas passavam e começava-se a esquecer as angústias da Primavera.

 

Nadia deu os seus primeiros passos amparada pelos pais, e os dois trocaram um olhar de orgulho, contemplando a filha da taiga.

 

Um dia, os tractores invadiram a floresta; uma estrada foi traçada desde o Lena até a uma clareira; uma tripla fila de fios de arame farpado electrificado isolou uma parte militar, e, em breve, barreiras e letreiros bloquearam a nova estrada: ”Passagem interdita! Terreno militar! Quem quer que desobedeça será imediatamente fuzilado!”

 

Depois, os camiões levaram sete barracas prefabricadas que foram montadas na clareira, barracas de tábuas, primitivas e sem conforto; os siberianos abanaram a cabeça.

 

Os locatários destas barracas vão morrer de frio quando vierem as tempestades de neve! Como se pode ser idiota a este ponto! De resto, quem poderá vir morar aqui?

 

Ninguém podia responder a essas questões, porque os operários encarregados da instalação também não estavam mais bem informados.

 

Três semanas mais tarde chegaram os móveis. Beliches de madeira, alguns armários, mesas e bancos. Depois, durante quatro dias, sem descanso, os camiões descarregaram sacos, caixotes e caixas.

 

O chefe do Soviete de Bulinski, forte pelo título e pelas prerrogativas, decidiu-se a partir para obter informações. Quando voltou foi transmitir as notícias espantosas ao hospital.

 

É um campo anunciou com voz rouca de emoção. Um campo de prisioneiros alemães.

 

Impossível! Semionov sentiu o coração apertar-se-lhe. A guerra acabou há vinte anos.

 

Tenho a certeza disso! afirmou o chefe do Soviete. Foi o próprio comandante que mo disse, o major Vassili Krasvenkov. É um herói da guerra, perdeu uma perna em combate. Conversámos demoradamente. Ele é muito amável, de resto. ”Os soldados chegam amanhã, e os prisioneiros no dia seguinte”, disse-me ele.

 

Katarina lançou um olhar a Semionov e aos seus compatriotas. Estavam pálidos, silenciosos. Tinham reencontrado o seu coração de alemães.

 

São condenados a trabalhos forçados por toda a vida prosseguiu o narrador. Não recebem cartas e não têm o direito de as escrever.

 

O campo do silêncio murmurou Schliemann.

 

Quando se soube da chegada iminente dos prisioneiros, todos os carros de Nova Bulinski uns vinte ao todo colocaram-se ao longo da estrada, como formando uma guarda de honra. Foram todos, o chefe do Soviete, Schamov, o negociante, Katarina, Semionov e Ludmilla, os três alemães. Todos fixavam com olhares ansiosos esperando a nuvem de poeira anunciadora do comboio de viaturas.

 

Ei-los gritou alguém no silêncio pesado.

 

De facto, o comboio aproximava-se; à frente, um jipe com o major Krasvenkov; alguns camiões transportavam mercadorias, e, finalmente, os prisioneiros. Schliemann apertou os lábios para não chorar. Quanto a Willi, sentado na sua cadeira, limpou furtivamente os olhos às costas da mão.

 

Os condenados lançaram um olhar esquivo para a população de Nova Bulinski guardados pelos soldados do Exército Vermelho, armados. Não se pareciam nem com escravos, nem com esfomeados, nem com doentes; um homem tocava numa gaita de beiços uma melodia russa; alguns fizeram sinais e sorriram para as mulheres.

 

Por último, vinha um camião militar seguido de uma viatura sanitária. Na cabina, junto do motorista, um prisioneiro lia tranquilamente o jornal.

 

Eles têm um médico murmurou Katarina, perturbada à vista do colega alemão; só lhe vira de relance o perfil e os cabelos loiros. As duas barreiras fecharam-se de novo após a passagem da viatura sanitária e o comboio desapareceu lentamente na floresta.

 

Os carros regressaram a Nova Bulinski.

 

Por cima da pequena aldeia, o céu estava sombriu; o passado, dolorosamente esquecido, surgia de novo, as cicatrizes recomeçavam a sangrar.

 

Cento e vinte homens murmurou Schliemann à noite, quando se reuniram na Stolovaia, em volta do chefe do Soviete. Cento e vinte homens chorados pelos pais, mães, esposas e filhos há vinte anos...

 

Katarina Kirstarskaia vai tentar entrar em contacto profissional com o médico deles anunciou um pouco mais tarde Semionov. Saberemos mais coisas a seu respeito e veremos como os poderemos ajudar.

 

A partir desse dia, observaram atentamente, do exterior, as idas e vindas do campo; os prisioneiros abatiam as árvores da floresta; souberam exactamente o local, os horários em que eles trabalhavam e o número de guardas. De resto, ao chegarem ao sítio onde trabalhavam, os guardas davam praticamente carta branca aos prisioneiros. Em seguida, estendiam-se confortavelmente no musgo e punham-se a ler. Quem pensaria em fugir, naquela extremidade perdida do universo?

 

Todos os dias os prisioneiros descobriam tesouros escondidos nos troncos das árvores e na relva. Pacotes de cigarros, toucinho, carne fumada, salsichas, compotas, manteiga, ovos cozidos, pudins e mesmo caviar.

 

Passam-se aqui coisas escandalosas, camarada major

 

declarou uma semana mais tarde um jovem tenente. Encontra-se carne de porco e presunto debaixo dos colchões, já sabia? Daqui até à noite, vou ficar a saber de onde vem tudo isso!

 

Para quê, tenente? respondeu calmamente o major.

 

E sabotagem!

 

Eles têm fome. Já alguma vez teve fome, tenente Maximovitch?

 

Não, camarada major.

 

Eu já tive. E acabei por comer ervas e beber água suja. Nem sequer pensei em conhecer a sua origem.

 

Não esqueçamos que são inimigos!

 

Oh, não, não esqueçamos... Ocupe-se disso, se quiser. São inimigos muito, muito perigosos...

 

O tenente saudou e saiu.

 

Não houve qualquer inquérito. À noite, todos partilhavam os seus tesouros, até com os guardas. Por todo o campo uma onda de beatitude aquecia os corações.

 

Está quase tão bom como o que fazia a minha mãe

 

disse alguém comentando com satisfação um guisado de carne de vaca, frio.

 

Bruscamente, tinham-se apagado vinte anos da sua vida. Estavam na Alemanha.

 

Uma manhã, Schamov foi fazer uma entrega ao campo dos prisioneiros alemães; contou a Katarina a notícia inesperada. Karpuschin encontrava-se ali.

 

Katarina não hesitou. Dirigiu-se apressadamente a casa dos Semionov, e, sem rodeios, repetiu as palavras fatais. Semionov ficou silencioso; quanto a Ludmilla sentou-se, paralisada pelo terror.

 

Não murmurou, não é possível. Ele morreu.

 

Não morreu, não disse com tristeza Semionov. Sei há semanas que ele vive em Yakoutsk com Marfa Babkinskaia.

 

Entretanto, no campo, Karpuschin pronunciava um discurso; logo que soubera da instalação ali do campo de prisioneiros alemães, lembrara-se da promessa feita a Marfa e decidira fazer uma excursão a Nova Bulinski e aproveitar para deitar uma vista de olhos aos alemães. Ao chegar, segundo o seu hábito, distribuíra os mandatos de captura com o retrato do seu inimigo.

 

Há muito a dizer disse Karpuschin com voz grossa porque esse Semionov vive escondido na floresta. Se o virem façam-no prisioneiro ou matem-no. A cabeça dele vale cinco mil rublos e eu, general Karpuschin, garanto a quem o encontrar o regresso imediato à Alemanha.

 

Um silêncio pesado acolheu esta declaração. Um regresso imediato à Alemanha... Em troca de uma traição... Ao fim de vinte anos...

 

Karpuschin percebeu bem o que se passavam naquelas cabeças rapadas. Nessa noite, a sopa dos prisioneiros sabia a cinza.

 

Que faremos se realmente o encontrarmos? perguntou Peter Kleefeld, um homem forte, vindo da Vestefália. Os cinco mil rublos não me interessam! Mas voltar ao país...

 

Seria uma bela coisa disse Josef Much, o veterano. Regressar ao país à custa de uma condição dessas. Esta noite há distribuição de tabaco. Dois cigarros por pessoa.

 

Nessa mesma noite, Karpuschin regressou a Yakoutsk. O major Krasvenkov acompanhou-o ao carro, coxeando.

 

Pensa poder manter a sua promessa, camarada general?

 

Como reagiria o mundo se soubesse da existência destes ”campos do silêncio”?

 

Pouco importa. O essencial é que eles acreditem na promessa. Uma coisa interessa acima de tudo: Semionov. Em seguida, arranjaremos maneira de calar o bico ao denunciador. Conheço esses alemães. Falando-lhes do regresso ao país, fazem mais depressa o que nós queremos. Boa noite, camarada!

 

Boa viagem!

 

O major seguiu com o olhar o carro de Karpuschin.

 

Que patife! disse em voz alta batendo com a perna de madeira no chão. Um patife nojento!

 

Três dias mais tarde, chegava um jipe ao hospital: o major Krasvenkov mandava buscar a camarada doutora, porque havia no campo um ferido grave que não poderia suportar a deslocação de carro. O motorista entregou um papel a Katarina. ”Coxa esquerda esmagada pela queda de uma árvore. Proponho amputação imediata. Artéria cortada, daí impossível transporte. Traga todo o material necessário, porque aqui não há nada. Obrigado. Dr. Langgasser.”

 

Katarina não hesitou um segundo. Reuniu o material, chamou Boria e Ludmilla e os três dirigiram-se imediatamente para o campo.

 

O tenente Maximovitch recebeu-os junto da barreira e conduziu-os directamente para o gabinete do major.

 

Entrem, entrem disse o major estendendo-lhes as duas mãos.

 

Parece que é preciso amputar um ferido disse Katarina. Trouxe tudo. De resto chega aqui um cheiro a éter...

 

É o doutor Langgasser. Éter e cal viva é tudo o que ele tem. O éter torna a morte menos dolorosa e a cal viva espalhada sobre os cadáveres afasta os perigos de epidemia. A enfermaria fica mesmo ao lado. Depois, vou mostrar-lhes o campo. É um campo modelo, sabem.

 

Para o Verão, sem dúvida, mas de Inverno, com cinquenta graus abaixo de zero, vão transformar-se em estalagmites!

 

Seguiram por um corredor, acompanhados do major. Abriu-se uma porta, acentuou-se o cheiro a éter e apareceu um homem; usava um velho uniforme de oficial, cinzento-claro, e tinha por cima uma comprida blusa de borracha cinzenta.

 

A doutora chegou? perguntou esse homem. Atrás dele, outro, bastante idoso, de cabelos brancos e com o rosto sulcado por rugas profundas, aproximou-se.

 

Bem! Eis reunidada toda a equipa directorial! disse o major fazendo as apresentações. O doutor Langgasser e o capitão Rhoderich, comandante do campo.

 

Katarina fitou o seu colega alemão. Pareceu-lhe que uma mão invisível lhe arrancava um véu da frente dos olhos; o sol brilhava com mais intensidade e a impressão foi tão forte que a jovem mulher recuou e foi à janela olhar a taiga familiar.

 

Onde está o ferido? perguntou passado um bocado, com voz rouca.

 

O médico acompanhou-a até à casa a que chamavam pomposamente sala de operações; sobre a mesa de madeira encontrava-se estendido um homem. Os braços e a perna direita estavam já amarrados por correias de cabedal. Era uma espécie de gnomo magro e enrugado, com a pele amarelada e flácida, e ventre proeminente. A perna esquerda estava completamente esmagada. Um penso improvisado impedia que o sangue corresse, mas a artéria não havia sido totalmente suturada.

 

Não tenho pinças explicou o Dr. Langgasser a Katarina, que estremeceu mas não disse nada. O médico falara num russo impecável. É verdade que em vinte anos tivera tempo de o aprender. Talvez numa clínica ele pudesse ficar com a perna. Mas aqui isso está fora de questão. Eu poderia ter feito a operação, como já me sucedeu muitas vezes, com o pouco material de que disponho, mas o major Krasvenkov insistiu em a chamar.

 

Katarina debruçou-se sobre o ferido:

 

É preferível amputar, para ele não ficar com um membro inútil.

 

Endireitou-se e os olhares de ambos encontraram-se. ”O seu olhar adoptou as dimensões da Sibéria”, pensou ela. ”Perdeu-se e não consegue voltar a encontrar repouso...”

 

Enquanto Katarina e Ludmilla enfiavam as batas e lavavam as mãos, Katarina observava-o pelo canto dos olhos. Viu-o apalpar demoradamente, quase com ternura, os instrumentos cintilantes, com os seus dedos esguios. ”Ei-lo no seu ambiente”, pensou. ”Está algures, numa clínica da Alemanha. Imagina-se de pé diante de uma mesa de operações, com a bata branca, pronto a intervir...”

 

Katarina demorou ao máximo os seus preparativos a fim de prolongar a meditação longínqua do medido. Entretanto, o major eclipsara-se discretamente.

 

O Dr. Langgasser anestesiara o ferido, controlando a respiração e o pulso. Katarina aproximou-se.

 

Podemos começar? começou com voz dura.

 

Sim.

 

Ele pegou no escalpelo e experimentou a lâmina.

 

Oh, não tenha receio. Corta bem. O material é bom! Mas em vez daquele instrumento, Katarina pegou no

 

bisturi; depois de ter prudentemente erguido a perna esquerda do ferido, apoiou a sola do pé na sua barriga. Langgasser voltou a pôr o escalpelo no seu lugar.

 

Deixe-me fazer esse trabalho, peço-lhe.

 

Tenho aspecto de quem não é capaz de o fazer? Katarina fez sinal a Ludmilla para se aproximar. Comece ordenou ela. Pensei que os médicos alemães falassem pouco e agissem mais. Faça uma incisão na pele e levante-a; eu continuarei a operar enquanto faz as suturas das artérias. Tenho de lhe dizer tudo?

 

Durante trinta minutos, não trocaram uma palavra; trabalhavam numa harmonia perfeita, numa sincronização absoluta dos gestos, como se tivessem sempre operado em conjunto. Foi Langgasser que terminou a operação, o difícil trabalho de serrar.

 

Um enfermeiro levou a perna para a deitar na fossa da cal. Mas Krasvenkov não o entendia assim; tinha sempre na memória a ideia da sua amputação e ordenou que enterrassem dignamente a perna do prisioneiro vítima do trabalho, da política, do ódio que reinava no mundo.

 

Era verdadeiramente um ser estranho, o major Krasvenkov. O último dos românticos, ou podia ser, muito simplesmente, um reaccionário disfarçado. No campo, toda a gente lhe chamava ”paizinho” e merecia bem o título, pois conseguia tornar a vida mais ou menos suportável aos seus prisioneiros.

 

Na sala, procedia-se aos arranjos finais. Dois reclusos transportavam o doente ainda adormecido para uma sala contígua. Katarina e o Dr. Langgasser, todos sujos de sangue, ficaram frente a frente.

 

Opera com brio, colega disse ele.

 

Obrigada. Tirou as luvas de borracha. Na clínica de Irkoutsk, depois de cada operação, tínhamos o hábito de declarar: ”E agora um cigarro!...”

 

Olhou para as suas próprias mãos, também ensanguentadas.

 

Isso seria bom!

 

Tire o maço do bolso da minha saia.

 

Katarina ergueu as mãos e ele procurou os cigarros no bolso; uma carícia, um arrepio, uma chama no olhar, mais nada.

 

Estão aqui disse o médico com uma voz estranha. Muito obrigado.

 

Quer acender-me um disse Katarina voltando-se bruscamente. Tenho de lavar as mãos.

 

Quando Langgasser lhe entregou o cigarro aceso, já ela tivera tido tempo de se recompor. Um prisioneiro limpava a sala e Ludmilla guardava os instrumentos.

 

Porque foi você condenado? perguntou Katarina em voz baixa.

 

Não sei respondeu ele no mesmo tom.

 

É estúpido. Certamente fez algum mal, um crime...

 

Foram quase textualmente as palavras dos acusadores. Quando fui feito prisioneiro tinha vinte e cinco anos; acabara de me formar e era a primeira vez que envergava o uniforme. Três anos mais tarde, um tribunal militar condenava-me. Era acusado de ter realizado experiências médicas sobre os prisioneiros soviéticos num campo situado na margem do Óder, injecções de bacilos de tifo e experiências de resistência às queimaduras. Pena capital, comutada em prisão perpétua. É tudo.

 

É verdade? o rosto de Katarina estava tenso.

 

Nunca! Isso não me teria ocorrido nunca! De resto nunca pus os pés num campo de prisioneiros. Fui, por assim dizer, dos bancos da faculdade para a frente. Tudo isso foi um erro. Mas havia testemunhas. Trezentos e quarenta testemunhos escritos, com o meu nome. Então! Porque continua a mentir? Apagou o cigarro no parapeito da janela. Também a meu ver você merecia a morte!

 

O médico suspirou; o seu olhar passou por cima da cabeça de Katarina e foi perder-se na taiga, sua última morada.

 

Há três anos prenderam um médico em Chemnitz; foi ele que procedeu a essas experiências. Condenaram-no a prisão perpétua. Chamava-se doutor Langesser. Com um só G e um E em vez de um A...

 

Quem lhe disse isso? perguntou Katarina. Foi o ”paizinho” Krasvenkov. Então, está inocente?

 

Sim dessa vez foi ele que cortou a palavra a Katarina. Mas sou um condenado e vou continuar a sê-lo! É impossível reconhecer um erro judicial ao fim de vinte anos! E quem se recorda ainda do doutor Rolf Langgasser! Nós estamos mortos. Mortos há vinte anos. Temos de nos habituar a essa ideia.

 

Deixou uma esposa na Alemanha? perguntou Katarina, metendo o maço de cigarros no bolso do médico.

 

Não. Na altura era muito novo, cheio de entusiasmo e de ardor e acreditava na vitória final. O único grande acontecimento da minha existência foi a Sibéria... e o dia de hoje. Agora sei o que esperei durante vinte anos.

 

Uma amputação? Katarina quis ser irónica mas não o conseguiu. Se houver outra urgência previna o major Krasvenkov. Adeus, doutor Langgasser. À porta, vendo o rosto de Ludmilla, Katarina percebeu como era má actriz e essa certeza tornou-a ainda mais agressiva. Sou russa disse e o senhor é alemão. Não esqueça que existe um abismo entre nós!

 

Voltarei a vê-la? perguntou ele, muito baixo.

 

Não.

 

Ao dar essa resposta, Katarina sentiu um verdadeiro sofrimento físico, mas era necessário dá-la. Sem se voltar, saiu de cabeça erguida.

 

”Pedimos que nos envie o relatório respeitante ao caso Semionov, assim como o depoimento do prisioneiro, pois pensamos que a operação agora lançada está a ser coroada de êxito. Prepare-se para enviar o mais depressa possível Semionov para Moscovo...”

 

Patifes! berrou Karpuschin puxando pela barba. Sabes o que isto quer dizer, Marfa? Por detrás de Malinovski espera já o pelotão. Vou responder: ele escapou-me mais uma vez? Tenho de me decidir a tomar uma decisão drástica.

 

Qual é? perguntou Marfa com ar cansado.

 

O falso Semionov.

 

O quê?

 

Quando da última perseguição guardei um prisioneiro. Tenho de enviar um Semionov para Moscovo, compreendes, cabeça de mula? Um Semionov morto. E tu vais dizer que é o verdadeiro.

 

Nunca! exclamou Marfa. Eu não minto.

 

Pois bem, minha linda. Lamento, mas terás de o fazer. Marfa ficou silenciosa. Era um silêncio pesado de

 

ameaças, apesar de Karpuschin não se aperceber disso. ”Eis-te à minha mercê, grande porco”, pensava ela penteando-se. ”A tua vida depende unicamente de mim. Se eu disser que não, o caso está terminado. É bom que tenhas cuidado, general Karpuschin...”

 

Meia hora mais tarde novo desastre o esperava no comissariado do povo: o falso Semionov continuava vivo na sua cela, mas três dias e três noites de encarceramento tinham bastado para o transformar num cão raivoso que andava de gatas no chão. Ladrava como um cão e mordia todos os que se aproximavam dele. Além disso, deixara de ter qualquer semelhança com Semionov. Os cabelos eram brancos como a neve.

 

Karpuschin ficou consternado. Quanto a Marfa, começava a ter medo. Voltaram para casa, serviram-se de vodka, acenderam cigarros e olharam-se demoradamente.

 

Pega numa folha de papel disse por fim Karpuschin após um longo silêncio. Não há outra solução. O caminho da China está-nos vedado. Fiz um disparate.

 

”... Segundo as últimas informações recebidas, devo dizer que é preciso renunciar a apanhar Semionov. Todos os meios de perseguição se esgotaram; agora só poderemos contar com o acaso... Peço-lhe que me comunique as decisões tomadas e mantenho-me à vossa disposição...”

 

Marfa teve um sobressalto. Sabia bem o que significava aquela frase.

 

Resta-nos muito pouco tempo, minha pomba, algumas horas ou alguns dias, conforme a vontade de Moscovo. Sei que nunca me amaste. Como poderias de resto amar um homem como eu? Mas foste mesmo assim o raio de sol da minha velhice e estou-te muito reconhecido por isso. Que queres fazer neste resto de tempo que nos resta? Uma viagem? Pescar? Nadar?

 

Vem, meu grande urso respondeu Marfa, estendendo-lhe os braços.

 

Um dia, por volta do meio-dia, sem prevenir, Katarina Kirstarskaia bateu à porta dos Semionov e entrou sem sequer esperar resposta. Uma Katarina mudada, cuidadosamente penteada, maquilhada, com as unhas envernizadas e os olhos brilhantes. A excitação realçava o seu encanto, feito mais de vitalidade e de força do que de feminilidade.

 

Preciso de lhes falar disse com a sua voz grave. São os meus únicos amigos e preciso de um conselho.

 

Estás apaixonada disse afectuosamente Ludmilla.

 

Quem te disse isso?

 

Tu mesma, ou, pelo menos, os teus olhos, os teus lábios, os teus cabelos, o teu corpo. Uma mulher que ama irradia amor, não é verdade, querido?

 

Uma mulher que ama é um milagre de Deus afirmou Semionov.

 

Katarina agarrou num copo de leite e bebeu-o de um trago.

 

Sim disse ela por fim. Só amei duas vezes na vida. O primeiro traiu-me, o segundo era teu conhecido, Pavel, um espião americano. Morreu nos meus braços.

 

Eis o que significa o meu amor: catástrofe, tragédia...

 

E o terceiro é um alemão...

 

Ajuda-me, peço-te.

 

Como poderei fazê-lo? Sabes bem que esse amor está antecipadamente condenado, como o de Bradcock. É preciso esquecê-lo, Katarina.

 

Tu esqueceste Ludmilla? protestou ela com ardor. Tudo vos separava. O vosso amor não fazia parte do programa, e, no entanto, renunciaste a tudo por ela. Não tenho o mesmo direito que vocês? Vai falar com ele, Pavel. És alemão como ele, será fácil para ti. Se for um aldrabão, desisto e nunca mais sairei de Nova Bulinski.

 

E se for um outro Paulucha?

 

Amá-lo-ei.

 

Apesar do arame farpado?

 

Porque não? Pensam que não serei suficientemente forte para fugir com ele, para a China ou para outro sítio qualquer?

 

Semionov estremeceu; receava dizer toda a verdade a Katarina, e, no entanto, sentia-se incapaz de a deixar iludida.

 

Ele não aceitará.

 

O quê?

 

Não deixará o campo.

 

Se me amar também...

 

Ele é médico, Katarina; não abandonará os cento e vinte homens que confiam nele. Sabes o que significa um ”Doutor, ajude-me...”, ”Socorro, doutor”? Ele é o pai e a mãe, o confessor e o consolador.

 

Ah! Vocês! Malditos heróis alemães! Sou uma mulher e tenho o direito de viver como uma mulher! Vamos todos ao campo para tu lhe falares! Ludmilla também.

 

Duas horas mais tarde, o carro atingia a primeira barreira, guardada por dois soldados do Exército Vermelho.

 

Digam ao major Krasvenkov que a camarada Kirstarskaia vem visitá-lo e saber notícias do ferido, em companhia de Ludmilla e Pavel, enfermeiros.

 

Alguns protestos tímidos foram rapidamente abafados pelas injúrias da fogosa médica e o carro chegou à segunda barreira, onde foram encontrar o tenente Maximovitch.

 

Alto! Controlo!

 

Não me reconheces, espécie de idiota! Deixa-me passar! Não trago nada.

 

Maximovitch suspirou. Era sempre a mesma coisa com os civis. Olhou para o enfermeiro e para a enfermeira e franziu as sobrancelhas. ”Onde é que já tinha visto aquelas caras? Sem dúvida, nas ruas de Nova Bulinski...”

 

Vá, deixem-me fazer o controlo. É o meu dever. Inspeccionou, mas evidentemente não encontrou nada e com um sorriso abriu a barreira.

 

A maior parte dos prisioneiros encontrava-se ainda na floresta; só estavam no campo as equipas de cozinha e de limpeza, e os doentes. Enquanto Ludmilla retirava os instrumentos médicos e caixas com pensos e Katarina ia falar ao major Krasvenkov, Semionov arranjou um local onde amarrar os cavalos; era-lhe necessário certamente um sítio especial, pois levou muito tempo antes de descobrir um ferro, perto do local onde os prisioneiros descascavam legumes.

 

Ivan! gritou-lhe um deles em alemão. Desaparece daqui!

 

Ele sorriu e aproximou-se do seu compatriota.

 

Não grites como um imbecil. Atrás, entre as rodas do carro, encontrarás tabaco. Vai lá buscá-lo e está calado.

 

Depois, sem esperar pela resposta, afastou-se e dirigiu-se para a barraca que servia de enfermaria. O outro seguiu-o com o olhar e, logo que ele desapareceu, precipitou-se para a carripana; dois minutos mais tarde desaparecia numa das barracas, com os dois braços carregados com embrulhos de vários géneros.

 

Outro homem vira também Semionov e seguia-o com o olhar perplexo. Era Peter Kleefeld. Terminara a sua tarefa de limpezas e descansava, sentado a apanhar sol. Já à chegada da carroça ele se tinha sobressaltado. Reconhecera a médica e a sua enfermeira. Mas o homem! ”É ele, é com certeza ele...” Tirou um papel do bolso, o impresso em que vinha o retrato de Semionov e que fora ele o único a guardar. ”Nunca se sabe”, pensava, ”os cinco mil rublos não me interessam, mas o regresso à Alemanha. A mamã ainda estará viva? Ao fim de vinte anos...”

 

Com os dedos trémulos abriu o papel e comparou-o com o original.

 

É ele disse muito baixinho. Vou poder regressar a casa.

 

Mas ao mesmo tempo tinha medo. Medo dos camaradas.

 

Dobrou lentamente o precioso papel, o seu bilhete de regresso à Alemanha.

 

O ferido ia melhor. Katarina fez-lhe o penso com a ajuda de Ludmilla. Semionov e o Dr. Langgasser conversavam a um canto.

 

Reconheci-o imediatamente. Você é Heller, ou melhor, Semionov, não é verdade? A sua cabeça vale cinco mil rublos.

 

Como o sabe? perguntou Semionov assustado.

 

Recebemos a visita de um certo general Karpuschin que trazia com ele um impresso com o seu mandato de captura e o seu retrato. Prometeu, além disso, a libertação imediata a quem o denunciasse.

 

Parabéns, doutor. Desejo-lhe boa viagem!

 

As suas palavras são injuriosas retorquiu tranquilamente o médico. Nenhum de nós o denunciará, mas, de qualquer modo, é loucura vir aqui.

 

Não sabia que Karpuschin aqui tinha estado.

 

É você que nos envia as guloseimas que se encontram na floresta?

 

Há numerosos alemães nos arredores, que vivem, de resto, como russos. Enquanto for possível continuaremos a fazê-lo. Semionov ofereceu um cigarro ao médico e prosseguiu: Doutor, nunca pensou em se evadir?

 

Para onde? A Sibéria é a prisão mais segura que pode existir!

 

Nós poderíamos ajudá-lo; tenho uma casinha à beira do Muna. Ninguém iria procurá-lo lá.

 

O médico seguia pensativamente com o olhar o fumo azulado do cigarro e depois respondeu com voz calma:

 

Há dezanove anos isso não seria problema para mim. Agora sou o médico do campo, um pouco como o pai desta numerosa família. Como poderia abandoná-la? Além disso, faz ideia do que sejam as represálias para um caso de evasão?

 

Sim, faço, doutor. Quis apenas fazer-lhe a pergunta e era essa a resposta que esperava.

 

Uma hora mais tarde partiram. Katarina e o Dr. Langgasser mal tinham conversado, mas os seus olhos diziam muito mais; apertaram demoradamente a mão no momento da despedida.

 

Até à vista disse o médico destacando bem as sílabas.

 

Até breve respondeu Katarina. E saiu sem se voltar.

 

Depressa, Pavel, vamo-nos embora!... disse ela quando já iam a caminho Então, que tens a dizer-me?

 

É um coração nobre, Katarina.

 

Tens a certeza? Está bem, tenho de o tirar dali.

 

Como?

 

Concebi um plano, Pavel. Não me falta imaginação, sabes.

 

Daí a pouco, os cavalos começaram a dar sinais de inquietude. Mexiam as orelhas, erguiam os focinhos, agitavam as cabeças. Semionov esticou as rédeas, o que teve por efeito fazer-lhes perder completamente a cabeça. Lançaram-se num galope desenfreado, sem que fosse possível fazê-los parar.

 

Estão loucos de medo disse Semionov para as duas mulheres que tinham de se agarrar bem para não serem atiradas para fora do veículo. Vêem lobos?

 

Mas não se tratava de lobos.

 

Por entre o matagal da taiga saiu o vulto de um grande tigre de pele clara, raiada de negro. Um animal magnífico e cruel.

 

Cuidado! gritou Semionov. Deitem-se no fundo! Tenho o meu arpão e se ele saltar esventro-o.

 

O tigre aproximou-se do carro com passos ágeis e elegantes; Ludmilla via-o de perto, com a sua grande goela aberta, olhos frios e impiedosos. Katarina seguira também o conselho de Semionov e estava estendida no fundo da carroça. Empunhava o seu revólver.

 

Não dispares! Não lhe acertavas e ele ficava furioso! Era tarde de mais! O tiro partira no meio da frase. À velocidade a que seguia a carroça era impossível fazer pontaria e a bala mal aflorara o dorso do animal. Este soltou um rugido, deu um salto majestoso e foi cair em cima de um dos cavalos. Enterrou os dentes afiados no flanco do pobre animal e mordeu. O cavalo relinchou horrivelmente e depois caiu de joelhos, arrastando o seu companheiro na queda; no mesmo instante, o carro com Ludmilla e Katarina voltou-se. Semionov conseguira saltar a tempo, indo cair um pouco mais adiante. Ergueu-se e aproximou-se do carro voltado.

 

Perdi o meu revólver gritou Ludmilla debaixo do carro. Cuidado, Paulucha! O tigre está mesmo atrás de ti.

 

Semionov voltou-se. A cinco passos dele, majestosamente sentado sobre as patas traseiras, o tigre olhava-o com um ar inquietante.

 

Não disparem! disse Semionov. Ludmilla, não saias daí.

 

Depois, ergueu o arpão e apontou-o à cabeça do tigre.

 

Vem disse com voz rouca. Vem, um de nós ficará estendido.

 

O tigre olhou para o homem e para o arpão com um olhar frio e inexpressivo. Só a sua cauda batia no chão e erguia nuvens de poeira. Abriu a goela e mostrou a Semionov o espectáculo dos seus dentes magníficos, acerados como punhais.

 

Vem repetiu Semionov. Não fugirei. Dir-se-ia que se compreendiam; o tigre baixou a cabeça;

 

mexeu os músculos das patas, depois soltou um grito ligeiro, quase suave. A cauda varreu o solo, ergueu lentamente a cabeça e estendeu-se para a frente: todo o seu corpo aguardava.

 

Semionov plantou solidamente os pés no solo e baixou a lança.

 

Capítulo décimo segundo

 

Como uma sombra negra o tigre saltou, com os olhos cruéis fixos na sua presa; Semionov apoiou-se na lança e deu um salto para o lado, precisamente no momento em que o tigre atingia o cume da sua trajectória; com um rugido de raiva, voltou a cair no solo poeirento, a alguns passos de Semionov, no local preciso onde este se encontrara uma fracção de segundo antes; a cauda varreu o solo, um novo rugido manifestou a raiva que ele sentia contra o seu adversário mais rápido que ele, o perfeito criminoso.

 

Semionov não perdeu um segundo; com toda a sua força atingiu o animal em pleno peito, no momento em que ele se preparava para saltar de novo. Foi um golpe inútil, pois a ponta da lança deslizou sobre o esterno; o tigre ergueu as duas patas para a arma, conseguiu agarrá-la e deitar Semionov ao chão.

 

Demónio! exclamou.

 

O suor encharcava-lhe o corpo; parecia-lhe que um arrepio interior atingia todos os seus nervos. Ludmilla via o seu revólver a uns metros, mas não conseguia alcançá-lo. O sangue jorrava da ferida do tigre.

 

Vem! repetiu Semionov retomando a sua posição. Vem, demónio.

 

E novamente o tigre saltou, sem impulso, sem um rugido, cego pelo ódio do homem e pelo seu próprio sangue. Semionov apertava a lança com as duas mãos; baixou ligeiramente a ponta da lança e atacou. Um estalido atroz. A arma atingiu o animal na parte debaixo do pulmão, deslizou sobre as costelas e espetou-se no coração.

 

Durante um instante ainda, o tigre permaneceu erguido sobre as patas traseiras, animal fabuloso que dominava o homem da sua altura. Os olhos maus pareciam implorar o sol, como se não compreendesse que a vida, a sua maravilhosa vida na taiga, estava a chegar ao fim.

 

Semionov deu um salto para trás; o animal rodopiou sobre si mesmo, com a lança enterrada no corpo. Os seus olhos claros começaram a empalidecer, o sangue jorrava-lhe pelas goelas, o corpo, esplêndido, deixou-se cair sobre a poeira, teve uns sobressaltos ainda durante algum tempo e depois ficou imóvel. Um grande suspiro sacudia a floresta; dir-se-ia que os espíritos da taiga choravam o seu chefe.

 

Em três saltos, Ludmilla agarrou no revólver e correu para o marido.

 

Paulucha! Mataste-o! Venceste-o!

 

Como verdadeira russa, descarregou a arma sobre o corpo inanimado: era a vingança da alma que o medo quase fizera rebentar.

 

Katarina aproximou-se de Semionov, cambaleando. Beijou-o nas duas faces e depois olhou o tigre.

 

Vamos embalsamá-lo disse ela.

 

Sim respondeu ele antes de se aproximar do carro. O cavalo ferido deitou ao dono um olhar de infinita tristeza; também para ele a vida estava a acabar.

 

Pouco depois, ergueram o carro, atrelaram o cavalo solitário e içaram o cadáver do tigre; quando finalmente prosseguiram o caminho já era escuro. Foi uma viagem triste. A sombra de Burjuschka, o cavalo morto, abandonado na floresta, não deixava o pequeno grupo. O outro, o fiel companheiro, não cessava de agitar a cabeça em todos os sentidos; relinchando amarguradamente, sem reagir aos gritos de Semionov.

 

Está a chamar por Burjuschka disse Ludmilla. Não tardará a morrer de desgosto.

 

Nessa mesma noite, voltaram à floresta para irem buscar o cadáver de Burjuschka e enterraram-no no jardim. Era a primeira vez em Nova Bulinski que davam a um cavalo as mesmas honras fúnebres que a um ser humano. Todos de resto aprovaram a obstinação de Ludmilla; não se dizia que, quando os príncipes tártaros morriam, os enterravam com o seu cavalo preferido? Na Sibéria, o cavalo é um amigo.

 

Ludmilla plantou uma bétula de casca branca sobre o túmulo de Burjuschka.

 

Peter Kleefeld não foi prudente: fazia muito calor, é certo, e ele trocou as suas inseparáveis botas por um par de sapatos leves. A equipa de limpeza viu um papel nas botas de Kleefeld e desdobrou-o. Viram a fotografia de Semionov. Todos o reconheceram. Tinham-no visto em companhia da médica loura, Katarina Kirstarskaia. De resto, desde há alguns dias que Peter não era o mesmo: sombrio, fechado em si mesmo, gemia e queixava-se. Os prisioneiros não pediram explicações. As desconfianças bastavam-lhes; não era preciso justificação. Por isso, na noite seguinte, às três horas da manhã, alguém bateu vigorosamente à porta do Dr. Langgasser.

 

Eh, depressa! Um sonâmbulo! Kleefeld! O cretino andou a passear à luz do luar e foi meter a cabeça na selha das couves! Cheira mal como um porco ucraniano! Vem depressa!

 

O médico não se deixou enganar; ouvira falar das desconfianças e sabia bem que tratamento fora infligido ao dito sonâmbulo. Dessa vez o ”tratamento” devia ter sido enérgico, pois nenhuma parte do corpo tinha sido poupada. O médico levou mais de uma hora a tratar do doente. Peter não pronunciava uma só palavra. Lágrimas enormes rolavam-lhe pelas faces tumefactas.

 

És um idiota, Peter disse gentilmente o Dr. Langgasser. Para que é que te serviria isso? Não vês que estamos todos metidos no mesmo? Nada custa a Karpuschin fazer promessas, mas ele não as cumprirá. Pensa um pouco. Há vinte anos...

 

No dia seguinte, de manhã, o médico viu-se forçado a dar parte do acidente ocorrido com o ”sonâmbulo” e a dizer-lhe que tinha de o levar para a enfermaria. O major tomava justamente o pequeno-almoço em companhia de Tchaikovsky, pois era um fanático da música clássica.

 

Um sonâmbulo! exclamou o major, incrédulo. Mas esta noite não havia luar. Estava escuro como breu!

 

Existem casos em que os sonâmbulos começam a dar os seus passeios quando sonham com a lua cheia. O médico lançou ao major um olhar suplicante e declarou: O homem é um mistério vivo, senhor major!

 

Vá, doutor, sente-se! Ainda lhe posso oferecer uma chávena de chá sem ser acusado de colaborar com o capitalismo!

 

E começou a rir.

 

O dossier de Peter Kleefeld estava encerrado. Não se falaria mais nisso. Não era sem razão que davam ao major o nome de ”avô”!

 

Karpuschin renascia. Ao pensar que não tinha mais nada a perder, que podia gozar à sua vontade os dias e as noites, sentia-se rejuvenescer vinte anos. A única hora má do dia era a passagem do carteiro. Em resposta ao seu relatório lacónico, o Kremlin enviara-lhe apenas uma palavra: ”Espere!” E ele esperava. De resto, na Sibéria, espera-se sempre.

 

Marfa gozava também dessa existência sem preocupações. Comprara uma nova figurinha, dessa vez um cinzeiro, e isso deu motivo para lembrar a Karpuschin a sua promessa.

 

Quero satisfazer todos os teus desejos, minha pomba disse ele, enquanto isso me for possível. Bem, partamos amanhã para Nova Bulinski. O chefe do Soviete empresta-me um carro; aproveito para ir fazer nova visita ao campo do silêncio.

 

No dia seguinte, à hora prevista, partiram. Era o dia 11 de Agosto.

 

A partir desse dia, a ”Terra Prometida” de Semionov e de Ludmilla recomeçou a fugir-lhes. Decididamente, a Sibéria nunca perdoa.

 

Um sol de chumbo abrasava a taiga; o ar tornava-se de dia para dia mais irrespirável; a abóbada celeste parecia apertar a terra como um torno. O nível do depósito da água descia a olhos vistos e o pope Alexei fez tocar o sino para chamar os fiéis à igreja. Era preciso rezar a Deus e aos santos. Se não chovesse nos dias seguintes seria uma catástrofe.

 

Os receios por Willi Haffner confirmaram-se; ele ia de dia para dia tendo cada vez mais o comportamento de uma criança. A mulher tratava dele com uma dedicação admirável, contente por o poder ajudar ainda; ele, pelo contrário, já não se apercebia de nada; vivia sem preocupações no seu mundo imaginário, feliz e descontraído, rindo a propósito de tudo e entretendo-se com qualquer coisa, como uma criança.

 

Nos primeiros dias do mês de Agosto, o chefe do Soviete anunciou uma reunião extraordinária, na Stolovaia. de todos os homens válidos de Nova Bulinski.

 

Camaradas começou ele com uma expressão preocupada. Camaradas, acabo de receber uma carta de Irkoutsk. Vamos ter aborrecimentos, porque nos enviam uma comissão política.

 

Afoga-se a comissão! disse uma das vozes.

 

Que nos deixem em paz! gritou outro.

 

A quem o dizem, camaradas! Sou da vossa opinião, mas é preciso tomar decisões em conjunto. Tenho de lhes dar umas aulas sobre o marxismo e sobre Lenine e vão ter que meter nas vossas cabeças duras tudo o que contém O Capital. Sereis interrogados pelos comissários, especialmente os nossos cidadãos alemães.

 

E abarcou-os a todos num olhar amigável, incluindo Semionov.

 

Dar-vos-ão nacionalidade russa e receberão um passaporte.

 

Pensava que tudo isso já tinha sido feito há anos disse Schliemann. Que querem mais?

 

Até agora têm tido apenas o direito de viver aqui replicou o orador. Subitamente, fez-se um silêncio pesado na sala. Eles sentiam que tudo iria ser mais uma vez posto em questão, a existência, a família, a nova pátria. Foi Schliemann que primeiro usou da palavra.

 

Quer-se dizer, até agora toleraram-nos pura e simplesmente!

 

Sim, mas isso vai mudar. A comissão vai visitá-los a todos e se forem julgados dignos disso serão para sempre cidadãos soviéticos!

 

Limpou a testa. O calor era insuportável.

 

Apesar desta carta ser rigorosamente confidencial, falei-lhes a todos para que possam tomar as vossas disposições antes da chegada da comissão.

 

Dizendo essas palavras, olhava para Semionov e este compreendeu o significado desse olhar.

 

Ludmilla manteve-se calma quando o marido lhe transmitiu a mensagem oculta do chefe do Soviete. Mas quando ele falou em fugirem para sul, ela abanou energicamente a cabeça.

 

Agora temos uma filha, uma casa, amigos e dinheiro, a terra e o rio. A paz reina à nossa volta. Para onde queres ir, Paulucha? A nossa existência de lobos acabou. Agora seremos tigres que procuram defender os seus bens.

 

Contra os comissários e o exército? Semionov colocou a pequena Nadia sobre os joelhos. Digo-te, Ludmilla, que temos de fugir novamente.

 

Não! Voltemos para a beira do Muna, para a cabana dos pesquisadores de ouro. Foi ali que Nadia veio ao mundo. Talvez seja a vontade de Deus transformar essa cabana em palácio. Deitou ao marido um olhar terno e suplicante, olhar esse a que o marido não sabia resistir.

 

Tens razão. Voltemos para lá. Não ficarão eternamente em Nova Bulinski os comissários de Irkoutsk. Talvez possamos voltar à aldeia antes do Inverno.

 

Katarina ajudou-os a fazer a mudança, e Schliemann teve de efectuar duas viagens com a sua camioneta para transportar tudo até ao Lena; quando o barco a motor partiu, toda a aldeia estava presente; as despedidas foram rápidas: a ausência não ia ser demorada.

 

Venham buscar-nos quando tiver passado o perigo disse Semionov com voz rouca.

 

Os comissários de Irkoutsk chegaram; de Chigansk, o amigo fiel telefonara para que Nova Bulinski se preparasse para essa visita.

 

No dia seguinte ao da chegada deles era um domingo a atmosfera da aldeia estava já mudada. O pope Alexei suspirou deitando um olhar para as poucas ovelhas que lhe enchiam a igreja! Só algumas velhas e velhos assistiam ao ofício divino. O pope suspirou e pediu a Deus que perdoasse aos seus filhos. Eles tinham medo. O medo afastava a bem-aventurada paz que reinava sobre a aldeia.

 

Os interrogatórios continuaram; a vida presente e passada dos alemães foi passada a pente fino. Nem um só detalhe escapava aos comissários. Todos eles, de resto, tiveram uma autorização benévola para regressarem ao seu país... Mas sós. Tinham de abandonar tudo, a família, a casa, os amigos, os bens. Preferiram ficar, tornarem-se verdadeiros russos e serem enterrados na taiga.

 

Willi Haffner foi também convocado. A mulher levou-o na cadeira de rodas e pediu para ele a naturalização.

 

Está a troçar de nós, camarada?

 

Porquê? É meu marido; teve um acidente e agora, como vêem, vai morrer. Não se comprometem em nada por lhe darem a nacionalidade russa; ele esperou-a tanto tempo. Pelo menos leva-a com ele para o túmulo.

 

Nem pensar. Será repatriado para a Alemanha; a Rússia não precisa de inúteis! Nós viremos buscá-lo. O seguinte!

 

Nessa noite, Anna Haffner matou o marido, os três filhos e enforcou-se a si própria numa viga do tecto. Foram os vizinhos que descobriram o triste espectáculo. O pope Alexei acorreu; rezou pelas infelizes vítimas do desespero e tocou os sinos. Durante horas puxou a corda para que chegasse a todos os ecos da grande dor do povo levado ao desespero pela crueldade de alguns.

 

A casa dos Semionov foi imediatamente requisitada e transformada em Casa do Povo; o chefe do Soviete declarara simplesmente que fora habitada durante dois anos por um tal Sebeljevski, um caçador desconhecido, avaro de palavras e que não se havia relacionado com ninguém. Um dia o caçador desconhecido desaparecera de Bulinski, sem dizer para onde ia.

 

Ludmilla e Semionov souberam rapidamente de todas estas tristes novidades. A morte trágica de Willi e da família consternaram-nos; olharam-se suspirando, aliviados por terem tido a coragem de fugir quando ainda era tempo.

 

Agora não tenho medo disse Ludmilla ao ouvido do marido. Sei que estamos nas mãos de Deus.

 

Semionov não respondeu. Acariciou os cabelos negros num gesto habitual. Ele ainda tinha medo, mas não falava nisso.

 

A 12 de Agosto, Marfa e Karpuschin honraram novamente Nova Bulinski com a sua presença. Foi Schamov, o comerciante, que primeiro os viu e apressou-se a enviar o filho à procura de Schliemann.

 

Meu Deus! murmurou Schliemann reconhecendo-os. Karpuschin e Marfa! É preciso ir prevenir Semionov. Se ele manifesta o desejo de visitar os rochedos de ágata, encontrá-lo-á.

 

Correu para a margem e enviou com urgência o barco para a outra margem, para o Muna.

 

No mesmo momento, Ludmilla tomava chá com Katarina no hospital. Ela viera no barco comprar provisões e tencionava regressar nesse mesmo dia.

 

A primeira visita de Karpuschin foi justamente ao hospital, onde sabia que iria encontrar a camarada Kirstarskaia.

 

Foi Boria que o recebeu e o deteve um instante à entrada.

 

Para onde vai, camarada? Está doente? Não o conheço. Faço-lhe notar que se trata de um hospital e não de um bordel!

 

Karpuschin olhou-o, assombrado; tentou forçar a passagem com a ajuda de umas blasfémias e dois ou três socos, mas Boria não se deixava intimidar por tão pouco.

 

Eu sou Karpuschin! gritou por fim o visitante. Sou o general Karpuschin!

 

Boria abriu muito os olhos estúpidos. A dez metros dali, Ludmilla bebia chá.

 

Oh! Karpuschin! gritou com todas as suas forças. Seja bem-vindo, camarada general.

 

Onde está Katarina Kirstarskaia?

 

Sexta porta à direita! gritou Boria em voz muito alta.

 

Karpuschin bateu à porta e abriu sem ouvir a resposta.

 

Que boa surpresa! disse a médica com um sorriso.

 

Katarina estava sozinha; de pé, diante da janela, fumava tranquilamente um cigarro. Correra as cortinas da cama e Ludmilla escondera-se atrás delas, de revólver em punho.

 

Uma chávena de chá, camarada general?

 

Agradeço. Os seus olhos percorreram a sala. Parece-me muito bem disposta, camarada.

 

Devo-lhe muito, camarada general.

 

A mim?

 

Sim. Sei que a minha transferência para Nova Bulinski se ficou a dever a si.

 

Com efeito.

 

E sinto-me feliz aqui como nunca me senti em parte alguma.

 

Um novo amor?

 

Oh, não! A vida é agradável aqui, à beira do Lena, e quero ser enterrada aqui.

 

Oferecia-lhe o espectáculo de uma mulher jovem e segura de si, calma, aparentemente sem preocupações e sem desejos.

 

Sabe uma coisa? Soube que Semionov está escondido para estes sítios. Estou no encalce dele...

 

Katarina não teve dificuldade em sorrir. Era realmente ridículo naquele homenzinho rechonchudo e seguro de si. Não sabia absolutamente nada, mas dizia aquilo para se dar ares, para ver se descobria alguma coisa. Era uma táctica verdadeiramente infantil, que se lhe lia no rosto.

 

Semionov? Mas ele morreu, camarada!

 

Tem a certeza disso?

 

Pelo menos politicamente!

 

Isso não basta! De resto, Semionov ainda está vivo, porque Marfa o viu.

 

Quem é Marfa?

 

A intérprete que estava encarregada dele, em Moscovo. Conhece-o bem!

 

E viu-o aqui?

 

Sim. Karpuschin mediu Katarina com os seus olhinhos cruéis. Ele está aqui, na região.

 

Parabéns!

 

Não o terá visto, por acaso?

 

Não! Se pensa que eu deixava escapar os cinco mil rublos de recompensa!

 

Ah! Está ao corrente.

 

Os comunicados com a oferta do prémio e a fotografia invadiram toda a Sibéria! Eu até recebi dois! A propósito, deixe-me dizer-lhe que a fotografia é muito má.

 

Sim. E como está ele agora?

 

Oh, camarada general, não devia perder tempo a fazer-me perguntas traiçoeiras tão ingénuas como essa. Como quer que o saiba?

 

Peço-lhe, Katarina Kirstarskaia! Karpuschin ergueu-se e olhou-a. Não nos conhecemos durante muito tempo, mas sabemos o suficiente um do outro para não estarmos com brincadeiras. Voltou a ver Semionov, sim ou não?

 

Não.

 

Semionov foi visto em Irkoutsk.

 

Nesse caso, vá fazer lá o seu inquérito.

 

Ele terá conseguido fugir para norte!

 

Porque não para sul?

 

Porque não para norte?

 

Para junto dos seus compatriotas, em Nova Bulinski.

 

Pois bem, interrogue-os!

 

É o mesmo que querer fazer falar mudos! Mas você é médica e sabe o que se passa na aldeia. Os segredos da taiga chegam até si e se alguém sabe com certeza onde se esconde Semionov é você, Katarina Kirstarskaia!

 

Está a sobrestimar-me, camarada Karpuschin!

 

Pode avisá-lo que não serve de nada. Podem passar quinze ou vinte anos que hei-de apanhá-lo. Pode crer, Katarina!

 

Adeus, camarada general.

 

À porta, voltou-se e sorriu maldosamente:

 

Eu disse adeus e voltarei.

 

Se me prevenir a tempo preparo-lhe uma chávena de chá à moda chinesa.

 

Partiu e Boria fechou a porta com força. Mas ele voltaria. Semionov tinha passado por ali, se não em Nova Bulinski, pelo menos nas imediações. E Katarina sabia-o. O seu sorriso irónico e os seus modos diziam tudo. Mas ele não desesperaria, era preciso esperar. Apenas esperar e preparar a armadilha.

 

Nessa mesma noite, Ludmilla voltou para junto do marido e da filha. Foi surpreendê-los muito ocupados: Semionov cortava bocadinhos de casca de árvore e Nadia punha-os a flutuar num pequeno charco.

 

Como me sinto feliz por estar novamente aqui! disse Ludmilla, beijando os dois.

 

Depois do jantar, na obscuridade do quarto, ela contou-lhe os detalhes dos últimos acontecimentos ocorridos em Nova Bulinski.

 

Então viste Karpuschin?

 

Sim. A dois metros de mim. Tinha o revólver apontado para a nuca dele.

 

Porque é que não disparaste?

 

Estive quase para o fazer, mas Katarina é que sofreria as consequências disso.

 

Ninguém o teria descoberto. Boria ia deitá-lo ao Lena com umas pedras ao pescoço.

 

E Marfa? Ela tinha-o acompanhado e estava a visitar os ateliers da fábrica. Teria dado imediatamente o alarme, e, dentro de poucas horas, Yakoutsk enviaria para aqui uma guarnição completa!

 

É certo. És de facto uma pessoa sensata e inteligente!

 

A lua reflectia-se sobre o Muna como um disco prateado. Na cavalariça, o cavalo solitário relinchava de tristeza. Algures, no meio do mato, deslizava um animal selvagem. O vento sul brincava com as copas das grandes árvores.

 

Nessa noite, Karpuschin e Marfa estiveram em casa do major Krasvenkov, no campo do silêncio. Na enfermaria, sentado na cama, Peter Kleefeld olhava para a Lua com olhares suplicantes; chorava de medo, de indecisão, de nostalgia, de infelicidade. Chamava insistentemente pelos seus três filhos que de resto não conhecia. A seis metros dele, as vozes de Karpuschin e do major faziam-se ouvir. Seis metros apenas o separavam da liberdade, seis pequenos metros ridículos e uma única frase: ”Semionov está em Nova Bulinski...” Seis metros. Trair. Mais nada.

 

Meu Deus murmurou ele no silêncio da noite. Se quiser posso voltar para casa. Posso voltar para casa...

 

Não posso dormir, Julius.

 

Deixa-te de estar para aí a resmungar disse o vizinho. Ou serás tu realmente sonâmbulo?

 

Peter calou-se; fechou os lábios e engoliu os soluços. Seis metros. Voltar ao seu país.

 

No dia seguinte de madrugada, Karpuschin e Marfa voltaram a Chigansk, sem sequer se despedirem do major Krasvenkov. A falar verdade, a simpatia entre os dois militares não era grande. Karpuschin sentia-se mal nessa atmosfera pouco rigorosa. De resto, o major tinha por princípio nunca se levantar cedo e punha-o em prática. Era preciso mais do que a visita de um simples general Karpuschin para ele mudar os seus hábitos.

 

Por volta do meio-dia, Katarina Kirstarskaia apareceu à entrada do campo; o pequeno carro puxado por um cavalo era conduzido por Boria; Schamov acompanhava-os porque levava provisões particulares para o major. Passaram sem dificuldade na primeira barreira, mas, na segunda, a sentinela mostrou-se intratável: Boria teve de permanecer no exterior do campo. O tenente Máximovitch, como sempre, conduziu Katarina para junto do major.

 

O ferido operado pela médica resistira à operação, mas a ferida supurava e precisava de ser tratada.

 

Vai ser preciso transportá-lo para o hospital de Nova Bulinski disse Katarina ao Dr. Langgasser. Vou falar nisso ao major Krasvenkov.

 

A central de Irkoutsk é que deverá tomar essa decisão. Langgasser lavava as mãos e Katarina estava atrás dele, tão perto que quase ouvia as pulsações do seu coração e sentia o calor vivificante que emanava do seu corpo. É necessária uma autorização de transferência.

 

Quanto tempo demorará?

 

Não sei. Até agora não pedimos nenhuma. Podemos até não obter resposta!

 

Nesse caso, passaremos sem autorização! Esses senhores vão aprender a contar comigo.

 

Com certeza. O médico voltou-se e eles ficaram frente a frente. Nos seus olhos lia-se a tortura das criaturas presas, encerradas em jaulas para além das quais se adivinhava a liberdade. Mas nem um nem outro ousou transpor esse limiar; olhavam-se como estátuas sem vida.

 

Quando vem buscar o ferido?

 

Amanhã?

 

E quem é que a vai ajudar? Ludmilla?

 

Não. Você!

 

Eu?

 

Sim. Você será transferido para o hospital com o ferido. Sairá sob palavra. Sei que nunca fará nada contra a sua palavra de honra.

 

Sabe isso?

 

Sim. Tenho a certeza. Voltou-se bruscamente. Posso deitar uma vista de olhos à sua farmácia? Tenho possibilidade de lhe arranjar tudo o que lhe falta. Dentro de uma semana envio a minha encomenda mensal para Yakoutsk.

 

Então encomende de tudo, pois não tenho absolutamente nada.

 

Uma vez chegados ao pequeno recanto que servia de farmácia, Katarina fechou a porta com um pontapé enérgico e estendeu as mãos para o prisioneiro.

 

Nós somos malditos disse ela com a voz grave. Porque não havemos de viver como malditos?

 

Beijaram-se demoradamente e depois prolongaram o abraço, de novo imóveis, de novo dois seres fundidos num só, dois seres que traziam em si um destino implacável e anos de felicidade perdida.

 

Nós somos loucos disse o Dr. Langgasser pousando a cara sobre os cabelos louros de Katarina. Destruímo-nos a nós próprios.

 

Ele quis afastar-se, mas ela apertou-o mais contra si.

 

Os teus olhos murmurou ela baixinho. Os teus olhos dourados. Não te deixarei mais. Levar-te-ei para o hospital de Nova Bulinski. Ninguém poderá separar-nos.

 

Dentro de dois anos sairemos daqui. Já nos avisaram.

 

Eu irei também. O mundo não pode ser maior que o meu amor. Agarrou-lhe a cabeça entre as mãos. Nós somos loucos, Liubimez. Eu sei. Mas que nos resta na vida senão esta loucura?

 

Nada. O Dr. Langgasser apoiou os seus lábios sobre os lábios quentes de Katarina. Porque vieste? Num minuto estou a trair vinte anos de esforços.

 

Amas-me e temos que recuperar o tempo perdido. É chegada a altura.

 

Um pouco mais tarde, com os olhos brilhantes, Katarina foi falar com o major Krasvenkov. Sem perder tempo a sentar-se, expôs-lhe o seu pedido.

 

É preciso mandar transportar o ferido para o hospital de Bulinski para uma segunda operação, pois as instalações aqui são demasiado precárias. Está de acordo, camarada major?

 

Que ar tão sério tem hoje, camarada! Claro que estou de acordo, se é necessário.

 

Pensava que era preciso autorização de Irkoutsk?

 

Sim.

 

Vai pedi-la?

 

Por quem me toma? Venha buscar o seu doente amanhã e trate-o. Antes de chegar a resposta de Irkoutsk já o homem hà-de estar bom e correr como um coelho.

 

Tenho de levar também o doutor Langgasser.

 

Isso, Katarina Kirstarskaia, já é mais difícil!

 

Tem de me servir de assistente. Ele dará a sua palavra de honra.

 

O doutor não fugirá, eu sei. Durante quanto tempo terá necessidade dele?

 

Durante três ou quatro dias. Talvez uma semana.

 

Isso bastar-lhe-á, filha? O major Krasvenkov envolveu-a num olhar quase terno; as comissuras dos lábios tremiam. As horas passam depressa...

 

É um tipo sensacional, Vassili Krasvenkov respondeu Katarina em voz baixa.

 

Infelizmente demasiado velho para ti.

 

E não tem pontinhos de ouro nos olhos.

 

É verdade.

 

No trajecto de regresso, Katarina aspirou a plenos pulmões o ar puro. O coração batia-lhe apressadamente e os seus olhos iam sem cessar para o Lena, para as suas águas cintilantes e agitadas. O vento tinha um cheiro a frescura, como a carícia de uma mão fria sobre uma testa escaldante.

 

No bolso levava, como um tesouro precioso, uma carta do Dr. Langgasser para a mãe. A primeira carta há vinte anos! Fá-la-ia passar pelos mongóis, no Outono.

 

No dia seguinte de manhã, anunciaram ao major Krasvenkov a visita de Peter Kleefeld.

 

Queria transmitir-lhe um relatório.

 

Krasvenkov respirou fundo. ”Tenho aborrecimentos em perspectiva”, pensou. Na história do sonâmbulo ninguém acreditava, mas era um assunto particular, enquanto o relatório tinha de ser enviado a quem de direito.

 

Sente-se melhor? perguntou suavemente.

 

É um relatório muito urgente, senhor major.

 

Durante três semanas ficará ainda na cozinha para se cansar menos.

 

Senhor major!

 

Kleefeld meteu a cabeça entre os ombros. ”Voltar ao seu país”, pensava ele. ”Ser finalmente livre!”.

 

O que é?

 

A promessa de uma libertação imediata ainda se mantém para quem... para quem...

 

Sentia uma bola apertar-lhe a garganta, como se alguém procurasse abafá-lo. O medo? Já o remorso?

 

A denúncia é sempre recompensada por certas autoridades! disse o major com voz dura. Pense bem no que vai dizer.

 

Um relatório. Protege-me contra os outros? Se eles sabem, matam-me.

 

Infelizmente, será esse o meu dever. Então deseja na verdade fazer esse relatório?

 

Quero voltar para casa. Tenho três filhos.

 

Fale.

 

Krasvenkov deu um soco violento na parede. Um segundo depois o tenente Maximovitch entrava no gabinete. Kleefeld empalideceu.

 

É absolutamente necessário que ele fique?

 

Com certeza. Como testemunha. Vá, Maximovitch, sente-se e escreva.

 

O alemão tremia; batia os dentes e não conseguia sequer falar.

 

Que escrevo?

 

Vá, decida-se a falar disse o major.

 

Declaro que vi Semionov, o homem do mandato de captura, o espião americano.

 

O tenente deu um salto.

 

Ele está doido, camarada major!

 

Deixe-o, Maximovitch. O major afastou-se e foi mergulhar na leitura do jornal. Escreva tudo o que ele lhe disser.

 

Vamos!

 

Vi-o aqui, no campo. Reconheci-o; vinha com a doutora...

 

Foi chegada a altura de Krasvenkov explodir. Tão depressa quanto lhe permitia a sua perna de pau, aproximou-se de Kleefeld e deu-lhe duas bofetadas.

 

Katarina Kirstarskaia não tem nada a ver com isso! gritou. Que patife tu és... Um patife nojento!

 

E cuspiu-lhe na cara.

 

Que escrevo, camarada major? perguntou Maximovitch.

 

Escreva simplesmente: Relatório ao General Karpuschin, sede do Partido, Yakoutsk. O prisioneiro Peter Kleefeld assinala que julga ter visto Semionov, o espião procurado, no campo, onde entrou numa carroça de camponês, o que lhe permite pensar que vive em Nova Bulinski ou nos arredores.

 

Agora só restava esperar pelo desencadeamento do furacão.

 

Acha que serei libertado? perguntou Kleefeld. Prometeram. Não quero saber dos cinco mil rublos, mas regressar...

 

É o general que decide! E agora, fora daqui, verme! Ninguém foi posto ao corrente desta diligência, mas as

 

paredes de um campo têm ouvidos muito finos.

 

No dia seguinte, foram encontrar o cadáver já frio de Peter Kleefeld; ele havia caído de cabeça para baixo numa dorna cheia de água salgada. E afogara-se... O major não abriu inquérito.

 

Talvez se pudessem esquecer certas declarações do morto disse timidamente o Dr. Langgasser quando ficou sozinho com o major.

 

Poder-se-ia, mas o tenente já enviou o relatório para Yakoutsk, ontem à noite. Espero Karpuschin de um momento para o outro.

 

Então, é tarde de mais?

 

Sim. A única coisa que posso fazer é tentar salvar Katarina.

 

O médico voltou-se. Pela primeira vez, teve a impressão de que as suas forças de resistência contra um destino implacável o abandonavam.

 

Um barco a motor apareceu junto à língua de terra. Katarina correu para a cabana e sem precisar de dizer uma só palavra foi compreendida.

 

Há vários dias que tinha as bagagens prontas para uma fuga eventual. Só tinha arranjado o que era estritamente necessário para eles e para Nadia.

 

Têm de partir murmurou Katarina. Karpuschin vem aí. Acabo de receber um telefonema do major Krasvenkov. Um dos prisioneiros alemães denunciou-os.

 

Semionov baixou a cabeça. Já o esperava. Desde que soubera da distribuição dos mandatos de captura, compreendera que a denúncia chegaria, mais cedo ou mais tarde.

 

Está tudo preparado disse Ludmilla. Katarina chorava com a cabeça apoiada no ombro dele e era um espectáculo desolador ver aquela mulher forte chorar como uma criança desesperada.

 

Se apanho esse porco disse Schliemann dou cabo dele. Não haverá mais guloseimas para vocês, senhores denunciantes, enquanto esse assassino for vivo.

 

Para que serve isso disse Semionov. Podemos partir imediatamente. Mas é preciso saber para onde...

 

Katarina abriu um mapa e explicou os seus projectos:

 

Vamos levá-los até Chingansk; daí, seguem de comboio para Yakoutsk, e depois, também de comboio, para Irkoutsk. Em seguida, um outro comboio levá-los-á a Novosibirsk; mudam por altura da auto-estrada do sul e vão assim, até Alma-Ata. Aí, arranjam comboios para Tachkent e Samarcanda, até à fronteira iraniana. Ergueu-se. Em poucas horas tinha envelhecido muitos anos. Vão ser obrigados a atravessar a fronteira a pé, pelas montanhas. Precisarão ao todo de três a quatro semanas.

 

Semionov contemplou sem uma palavra o mapa sobre o qual ela desenhara o caminho a seguirem. ”Nova viagem através de toda a Rússia asiática”, pensou, ”agora com a mulher e a filha. Nova fuga sem objectivo para fora da Rússia.” Olhou para Ludmilla. Os olhos dela reflectiam os mesmos pensamentos, mas ela sorriu-lhe corajosamente.

 

Vamos! disse bruscamente. Amontoaram-se no barco, com as bagagens. De mãos dadas, Semionov e Ludmilla contemplaram pela última vez aquele recanto de terra e de floresta que fora o seu paraíso.

 

O nosso pequeno mundo murmurou ele tristemente. É todo o nosso universo que desaparece agora.

 

Arranjaremos outro, Paulucha. Acabaremos por encontrar a Terra Prometida. O essencial é estarmos os três vivos.

 

Por volta do meio-dia, chegaram a alturas de Nova Bulinski.

 

A cúpula da igreja cintilava ao sol; o depósito de água, os celeiros, o telhado do hospital, toda a aldeia lhes dizia um último adeus. Uma multidão juntara-se na margem e no ar límpido os sinos uniam-se aos homens. O pope Alexei destacava-se por entre as suas ovelhas. Os seus trajes de cerimónia brilhavam à luz do Sol. Ergueu lentamente a mão e com um gesto digno lançou a benção de Deus sobre os fugitivos.

 

Que Cristo esteja convosco!

 

Ámen! respondeu a multidão.

 

O barco continuou o seu caminho. Semionov e Ludmilla voltaram-se uma última vez. Último olhar à pátria bem amada. O sino continuava a tocar.

 

Chegaram a Chigansk com a maré da tarde. Foi então o momento trágico das despedidas. Schliemann entregou a Semionov uma montanha de rubles, a sua parte de accionista na fábrica. Depois, abraçaram-se e beijaram-se à russa, três vezes em cada face. As lágrimas corriam, sem vergonha. Katarina Kirstarskaia foi a última a aproximar-se. Depois da partida ficou imóvel, com os cotovelos apoiados na amurada, com os olhos fixos no Lena. Um furor impotente contra o destino enchia-lhe a alma. Com o rosto pálido, os lábios apertados um contra o outro, ela era a própria imagem do desespero.

 

Não voltaremos a ver-nos disse baixinho a Semionov e a Ludmilla apertando-lhes as mãos.

 

Não, não voltaremos a ver-nos, Katarina.

 

Amei-os mais do que a mim mesma.

 

Eu sei.

 

Levam convosco os últimos restos da minha juventude. Sê feliz, Ludmilla. Tu possuis o maior dos tesouros. O teu Pavel.

 

Não te esquecerei nunca, irmãzinha. Adeus. Depois, bruscamente, Semionov deu a mão à mulher,

 

pegou na filha, enquanto Schliemann e os outros levavam as bagagens e correram todos para a estação onde o comboio começava a apitar impacientemente. Um último olhar, um último adeus, uma derradeira lágrima. Instalaram-se como puderam no meio das malas, dos sacos e das tábuas.

 

Já era escuro quando chegaram a Yakoutsk; mas o mapa dera-lhes indicações falsas. Não havia comunicação por via-férrea entre Yakoutsk e Irkoutsk.

 

Vão de avião aconselharam-nos. Com um pouco de sorte podem ainda apanhar lugar no próximo!

 

Tiveram sorte: no dia seguinte de manhã, muito cedo, o avião que os transportava descolou e mergulhou vitoriosamente na massa das nuvens algodoadas; do outro lado, os viajantes descobriram o céu nu e o sol próximo.

 

Quase no mesmo instante, o general Karpuschin desembarcava na praça de Nova Bulinski, atrás dele a inseparável Marfa, jovem e de uma elegância provocante para aquela povoaçãozinha de gente trabalhadora.

 

A primeira visita de Karpuschin foi de novo destinada a Katarina. Na entrada do hospital, Boria esperava o visitante, e, ao chegar ao corredor, um cheiro a chá chinês chegou-lhe às narinas. Entrou sem bater no quarto de Katarina.

 

Aqui estou outra vez, mais cedo do que previa, não é verdade? perguntou com voz ameaçadora.

 

Bem-vindo, camarada general. Como vê, esperava-o. O seu chá está pronto.

 

Onde está Semionov?

 

Não sei.

 

Karpuschin sorriu com ar perigoso. Sentou-se e ergueu a sua chávena.

 

Vamos ter muito tempo para falarmos a esse respeito, Katarina Kirstarskaia. Fico aqui até lhe deitar a mão e você, menina, é que vai indicar-me o caminho. Não sorria. Vai ter de compreender uma coisa: é que eu sou o mais forte.

 

Assim começou o último capítulo da vida de Katarina Kirstarskaia, enquanto a quatro mil metros de altitude os seus amigos se aproximavam lentamente do lago Baical e de Irkoutsk.

 

Lentamente, o Sol erguia-se; a taiga acolhia com uma alegria sempre fresca esse renovar da vida: as cores das árvores, os odores das plantas, o cintilar do Lena, toda a natureza cantava a glória do astro do dia.

 

Pouco a pouco, a aldeia de Nova Bilinski, fora invadida por helicópteros e soldados armados. Um comboio de camiões chegava de Chigansk, enquanto uma frota de barcos a motor cobria o Lena. Além disso, uma esquadra de helicópteros volteava sem parar em cima da aldeia e dos seus arredores, a fim de assegurar a vigilância.

 

Katarina Kirstarskaia afastou-se da janela. O samovar estremecia.

 

Está a preparar-se para declarar uma guerra, camarada Karpuschin? Que exibição sem forças!

 

Três companhias, camarada.

 

E tudo isto por causa de um só homem?

 

Não pode imaginar o que Semionov representa para mim. É uma luta de morte! A política, o prestígio soviético, a reputação da KGB. Sabe que oficialmente estou morto?

 

Sim, li no jornal.

 

E acreditou?

 

Com certeza! Quem pensaria que a Rússia enterraria os vivos?

 

Tudo é possível, tudo, minha filha!

 

Marfa estava furiosa: manifestamente Katarina ignorava-a, e a jovem era obrigada a servir-se ela própria de chá. Karpuschin não reparou em nada, perdido nos seus assuntos e no seu rancor.

 

Estou morto prosseguiu ele. A minha mulher voltou a casar, perdi o meu posto, a minha carreira foi interrompida e não voltarei a ser Karpuschin enquanto Semionov viver. A sua morte representa para mim a ressurreição! Mais uma vez, Katarina Ivanovna, onde está ele?

 

Ela encolheu os ombros:

 

Interrogue antes o Lena, ele deve saber melhor do que eu.

 

Karpuschin suspirou: «A infeliz não saberá o que é um interrogatório conduzido por Karpuschin?»

 

Não voltou a ver Semionov?

 

Sim, em Olemekskaia Kultbasa.

 

E em Bulinski?

 

Não.

 

Pobre pequena! Quem a acompanhou no carro quando foi ao campo?

 

Boria.

 

Ah, sim, da primeira vez. Mas na segunda? Não seja tão obstinada, Katarina. Basta que eu mande interrogar os prisioneiros alemães.

 

Katarina voltou à janela. A agitação no exterior atingia o seu auge. Soldados e civis não cessavam de discutir e de se insultar.

 

Sim disse ela finalmente. Conheci Semionov.

 

Ah! Está a ver! fez sinal a Marfa para pegar no seu bloco de estenografia e num lápis. depois?

 

Não há depois. Conheci-o. Se me quiser transferir para outro sítio, é consigo.

 

Você não parece tomar as coisas a sério, Katarina. Você e os cidadãos de Bulinski albergaram um inimigo da nação! Onde se encontrava Semionov alojado?

 

Aqui, no hospital.

 

Boria pode confirmá-lo?

 

Boria conhece-o, mas não sabe quem ele é. Porque continua a mentir? Tranquilize-se que depois disto vou interrogar Boria da mesma maneira, e pode crer que ele falará. Dirigiu-se por sua vez para a janela. O silêncio reinava sobre Nova Bulinski. As ruas estavam vazias, os pescadores tinham abandonado o Lena. Só o pope Alexei tinha liberdade de movimentos; tentava meter conversa com os soldados, deixava-os mesmo troçar dele, na esperança de obter uma informação; mas em vão. De resto, os soldados não sabiam nada também. No interior das casas as pessoas, confinadas e inactivas, olhavam-se com um ar aterrorizado. Schlimann Wancke, em particular, sentia um medo apertar-lhe o estômago. Não havia maneira de escaparem. A sombra assustadora das minas de chumbo, do Cazaquistão, passava sobre todas as cabeças, Karpuschin aproximou-se da mesa com passos nervosos; atrás do seu bloco e do seu lápis, Marfa lançava a Katarina olhares que ela previa que fossem mortíferos.

 

Então Semionov foi-se embora? interrogava o general brutalmente; mas era preciso mais do que isso, para fazer com que uma mulher como Katarina perdesse o controlo dos nervos; ela sorriu-lhe ironicamente:

 

Sim, camarada general!

 

O quê?

 

Não me disse que era inútil mentir? Sentou-se tranquilamente em frente da sua secretária. Vai interrogar Boria, as pessoas da aldeia, os prisioneiros alemães.

 

Não são todos heróis!

 

Então eu repito: Semionov esteve alojado em minha casa e escondi a sua identidade de todos. Ele, a sua mulher, Ludmilla Barakova, e a filha deles, Nadia. Eles viveram aqui abrigados como os castores no Inverno. Sou eu a única responsável.

 

Bem, voltemos à questão primordial: para que direcção fugiu ele?

 

Para sul, tinha intenção de chegar a Yakoutsk e à Mongólia e depois tentar atingir o Japão por Vladivostoque.

 

Bem, bem. Sei agora que ele se encontra ainda na região, pois seria pura loucura um fora-de-lei, carregado com a mulher e a filha, atingir uma cidade como Vladivostoque, centro industrial muito desenvolvido, portanto, cheio de polícias e de soldados.

 

Bateram à porta e um oficial entrou. Vinha anunciar ao general a chegada das tropas de Chigansk e a flotilha de barcos a motor. Toda a aldeia estava consignada, as pesquisas tinham já começado através da taiga e mesmo o sovkhoze Munaska fora barricado; no interior, começara o interrogatório dos exilados alemães.

 

Teremos ocasião de prosseguir esta conversa Katarina Kirstarskaia disse Karpuschin a modo de adeus, antes de deixar a sala. Estão todos proibidos de deixar o hospital.

 

O hospital foi igualmente consignado, pesquisado da cave ao sótão; todos os seus ocupantes foram considerados prisioneiros e para Boria houve um interrogatório especial.

 

Não permitirei isso gritou Katarina, tentando proteger Boria com o seu corpo.

 

Katarina Kirstarskaia berrou Karpuschin, na outra extremidade do corredor, estamos aqui em regime de lei marcial, não esqueça. Nada me pode impedir de a mandar fuzilar imediatamente!

 

Não admito que o torturem continuou ela corajosamente. O que é que Boria lhes fez?

 

Mas vai ter de admitir, camarada!

 

A uma ordem de Karpuschin, um soldado agarrou em Katarina e impediu-a de fazer o menor movimento, enquanto dois outros agarravam em Boria, louco de medo, que gritava como um cão espancado; já muito depois de o terem levado para a cave, os seus gritos horrorizados ouviam-se ainda nas paredes do hospital.

 

Demónio! disse Katarina quando finalmente o soldado a deixou. Porco demónio!

 

É uma injusta para comigo, camarada. Faço apenas o meu dever e acredite, nem sempre é fácil!

 

Onde está o seu coração, Matwei Karpuschin? Ainda tem alma?

 

Aonde? Que pergunta... Sabe bem que estou morto...

 

O major Krasvenkov esperava Karpuschin na primeira barragem. Estava impecavelmente fardado com todas as suas condecorações; atrás dele, o tenente Maximovitch mantinha-se de pé, muito direito, ele também em uniforme de cerimónia.

 

Porque havemos de nos contentar em usar toda esta quinquilharia unicamente para celebrar o aniversário de Lenine? observara o major. Abra bem os olhos, Steptan Maximovitch. Vai ouvir um curso de liberdade através da óptica soviética.

 

Os acordes do Crepúsculo dos Deuses enchiam o campo quando Karpuschin ali entrou, o que provocou um franzir de sobrolhos inquietante. O major sorriu, mas o tenente preparava-se já para pôr fim ao concerto.

 

Aqui ordenou o major, sou eu que comando o campo! Apenas eu tenho o direito de dar ordens. Compreendido? General Karpuschin, tenho a honra de o saudar como visitante e não como inspector.

 

Farei o meu relatório murmurou Karpuschin fora de si. Verá, logo que eu regresse a Moscovo.

 

Entraram no pátio interior do campo, sob os acordes dilacerantes do Adeus de Brunilde; um grupo de homens de crânio rapado, vestidos com asseio e correcção, formava diante deles uma muralha muda.

 

Cento e vinte prisioneiros esperavam debaixo de um sol ardente, cento e vinte pares de olhos onde se podia ler simultaneamente o ódio, o desespero e a indiferença. A cinco passos do grupo, três desses prisioneiros formavam um pequeno grupo mais impressionante que os outros cento e vinte.

 

Quem são aqueles? interrogou Karpuschin.

 

O capitão Rhoderich, chefe do campo, Josef Much, o veterano, e o doutor Langgasser, o nosso médico.

 

Ah! Karpuschin olhou de soslaio para os três homens cujos cabelos, cortados à escovinha, o hipnotizavam. Quem matou Peter Kleefeld? perguntou ele, sem mais preâmbulos. Sabem-no?

 

Não respondeu instantaneamente o major. O homem suicidou-se.

 

Num alguidar de cozinha?

 

Foi um acidente, camarada general. Quem poderia dizer o contrário?

 

Eu! Karpuschin tirou um papel do bolso. Tenho plenos poderes anunciou triunfalmente. Estão assinados pelo marechal Vassilevski e confirmados pelo marechal Malinovski.

 

Isso muda tudo respondeu Krasvenkov. Disponha de nós como entender!

 

Depois, voltou-se e entrou nos abarracamentos; de repente, sentiu dores na perna que não tinha e começou a coxear mais do que habitualmente. Karpuschin tomou o comando do campo.

 

Amigos disse, dirigindo-se aos prisioneiros, depois de ter exigido e obtido a interrupção do concerto, penso que sabem o que significa a palavra «sabotagem». Não se façam mais idiotas do que são na realidade.

 

O seu uniforme atraía os raios do Sol, e o gordo general começava a transpirar. Diante dele só via rostos indiferentes e olhares ausentes. Encolheu os ombros.

 

Têm tempo? Perfeito, eu também prosseguiu. Esperarei em casa do major que o responsável pela morte de Peter Kleefeld se denuncie. Mesmo que isso dure vários dias.

 

Deixou o pátio; os cento e vinte homens permaneceram imóveis, petrificados no mesmo lugar.

 

No quarto do major, Karpuschin dirigiu-se para o fonógrafo e voltou a colocar a agulha no seu lugar.

 

Quantos discos tem?

 

Setenta e sete.

 

Muito bem. Tenho a impressão que graças a si, major Krasvenkov, vou ser iniciado nos mistérios da música clássica!

 

O major estremeceu de horror perante o monstro. Foi espreitar pela janela: debaixo do sol, os seus cento e vinte e três homens esperavam corajosamente, sem fazerem um movimento; o suor inundava os crânios rapados e os rostos escarlates.

 

Não podem voltar para os seus abarracamentos?

 

Como? Vou oferecer-lhes um concerto de música clássica. Eles que fiquem onde se encontram!

 

Estão trinta e sete graus ao sol.

 

Mesmo que fossem cem. Espero que o culpado se denuncie.

 

Ah, é isso! Penso que vai ter que passar pelo menos três vezes toda a colecção, camarada general, e que não ache que o tempo custa a passar. Conheço os meus homens há dez anos. Foi o que sucedeu, com efeito.

 

Ao fim de três horas, os primeiros começaram a cair na poeira e ficaram estendidos como bonecos desarticulados. Ninguém se mexeu. Os olhos estavam fixos na infinidade da taiga; os crânios escaldavam, os lábios e as línguas começavam a inchar, o sangue batia nas têmporas, os corações confrangiam-se diante das árvores, das barracas, dos instrumentos; os soldados iniciavam uma dança cada vez mais louca, enquanto milhares de estrelas multicolores invadiam o céu. Quatro horas. Sobre o solo do pátio aumentava o número de homens caídos.

 

Restam ainda sessenta e nove anunciou Krasvenkov com voz trémula, enquanto Karpuschin terminava a sua refeição, começada, entretanto, com uma satisfação visível.

 

Foi a vez de Josef Much tombar. O médico sabia que ele sofria de uma doença cardíaca a admirara-se da sua resistência.

 

Água murmuraram atrás dele. Se tivesse água, rapazes, aguentaria uma semana!

 

Sete horas!

 

Sete horas de música insensata; sete horas de sol; as cabeças rebentavam, os nervos cediam, os corações explodiam nos peitos.

 

Ainda trinta e dois anunciou desta vez Karpuschin e entre eles o doutor. É um duro, não é? Eu não o teria acreditado.

 

O major calou-se; dir-se-ia que a sua alma chorava. «Os meus prisioneiros!», pensava. «Os meus homens! Durante dez anos vivi com eles como um pai com os seus filhos e basta que chegue um porco de Moscovo para varrer qualquer sombra de humanidade. E dizer que foi para isto que sacrifiquei a minha perna!»

 

Ao cair da noite, o doutor rendeu-se por sua vez; quase ao mesmo tempo que o capitão Rhoderich, tombaram abraçados, imagem siberiana da «Pietá».

 

Dezanove horas e quarenta e cinco verificou friamente Karpuschin e restam ainda doze. Major Krasvenkov, os meus cumprimentos, treinou bem os seus homens!

 

Às vinte horas e vinte minutos, a macabra apresentação acabava: todos os actores estavam caídos à mistura no chão.

 

Perfeito disse o monstro. Podem dar água a cada um deles e a seguir uma boa refeição. Depois, uma gota de vinho. Olhou para o relógio. Penso que às duas horas da manhã eles estarão todos de pé. O jogo recomeçará. Com música... Bem entendido.

 

Sem argumentos e sem paciência, Krasvenkov dirigiu-se para o fonógrafo; agarrou no aparelho e nos discos, atirou tudo ao chão e começou a descrever sobre eles uma dança endiabrada e em alguns instantes destruiu o material sádico do seu superior.

 

Pode continuar a brincar, camarada. Esta música foi composta para festejar a alegria e não para servir de acompanhamento à tortura. Estou à sua disposição. Às duas horas irei juntar-me aos meus homens.

 

Imbecil resmungou o outro. Nunca esquecerei isto. É russo ou não?

 

Amo tanto o meu país que estarei pronto a sacrificar a minha segunda perna se isso o puder livrar de alguns indivíduos da sua espécie!

 

Furioso, para além de toda a expressão, Karpuschin saiu da barraca correndo e pediu o seu carro.

 

Para Bulinski ordenou com dureza. Depois recostou-se nas almofadas: tinha consciência de ter sofrido uma derrota e Semionov continuava invisível.

 

Na multidão que invadia o aeroporto de Irkoustk, passaram totalmente despercebidos, o homem de cabelos loiros e a jovem mulher de longa cabeleira preta, que transportava um bebé. Mas era impossível entrarem no avião com tantas bagagens.

 

É absolutamente necessário que deixemos toda esta trapalhada, Ludmilla. Não nos aceitarão com todos estes sacos. E, além disso, é demasiado perigoso porque em breve seremos descobertos. Um saco por pessoa, mais nada.

 

Ludmilla sorriu tristemente:

 

Tens razão, livremo-nos disto tudo. Fizeram a escolha a um canto, e conservaram sobretudo aquilo que tinham de mais precioso, as suas armas e reservas de munições. Depois, Semionov deixou a estação com a sua carga, pois era igualmente impossível abandonar tudo aquilo num local tão frequentado, sob pena de serem logo descobertos. Era preciso abandonar tudo num canto, em qualquer sítio da cidade.

 

Um velhinho dormia sobre um banco. Quando acordou, algumas horas mais tarde, descobriu todas as riquezas acumuladas ali perto dele, pela mão de Deus. Foi falar com o pope, contou-lhe a sua descoberta e recebeu do santo homem uma benção tranquilizadora. Entretanto, Semionov tinha ido comprar os bilhetes de avião para Alma-Ata, etapa intermediária entre Irkoutsk e Tachkent.

 

O seu avanço sobre Karpuschin salvá-los-ia? Enquanto Ludmilla e Nadia dormiam no avião, inquieto, sempre à espreita, Semionov pesava as suas probabilidades. Desembarcaram já de noite em Alma-Ata («A cidade abençoada por Deus», como diziam os poetas) e dirigiram-se imediatamente para a estação, não obstante o comboio para Tachkent e Samarcanda só partir ao princípio da tarde. Acordaram em não procurar refúgio num hotel, ou numa estalagem, porque era demasiado perigoso, e iniciaram um passeio nocturno à procura de uma árvore ou de um pedaço de mata hospitaleiro que acabaram por descobrir ao fundo de um caminho sombrio.

 

Logo que o sol surgiu, levantaram-se e voltaram para a estação. Como em todas as estações e em todos os balcões da Rússia, foi-lhes preciso estar na bicha durante horas antes de conseguirem dois bilhetes para um autocarro que ia na direcção de Tachkent.

 

Tiveram também de se acotovelar para encontrarem um cantinho perto da porta, a fim de apanharem um pouco de ar puro. Organizaram-se o melhor que podiam no acampamento para uma duração indeterminada, pois a viagem prolongar-se-ia certamente durante vários dias.

 

O sol baixava já no horizonte quando finalmente o comboio se dignou pôr-se a caminho. Semionov ia sentado junto da porta semiaberta e mostrava a Nadia a Lua e as estrelas, a noite que caía, as árvores, os últimos raios de Sol. Atrás deles, Ludmilla preparava algo que se parecesse com uma refeição.

 

Quanto tempo vai demorar a viagem, Paulucha? perguntou ela, estendendo-lhe uma tijela.

 

Mais de uma semana, querida, estes comboios não têm horário fixo, são quase seiscentas verstás. Suponho que não avança durante a noite, ficamos numa via de estacionamento, para a passagem dos expressos.

 

E assim foi. Em Tachkent, foram atrelados a um outro comboio. Não puderam ver nada da cidade, que diziam ser esplêndida, o oásis do velho Turquestão.

 

Ao fim de uma hora, o comboio partiu. Fazia um calor insuportável dentro da carruagem, todos os viajantes se tinham posto à vontade, dir-se-ia um comboio de nudistas.

 

Ao deixarem Tachkent, penetraram na estepe, depois no deserto, viagem infinita através de uma paisagem morta, esquecida por Deus, cozida e recozida por um sol implacável; perderam a noção do tempo, do espaço, massa informe de seres humanos estupidificados por um calor infernal e sacudidos em todos os sentidos como objectos inconsistentes.

 

Acabaram por chegar a Samarcanda, a cidade do grande herói Timur, que foi ao mesmo tempo um tirano temido. Samarcanda, a porta da liberdade para a Terra Prometida.

 

Para sul, a uma distância ridícula, se a compararmos aos milhares de quilómetros que eles acabavam de percorrer, a fronteira do Irão corria ao longo das montanhas e dos vales e perfilava-se entre as florestas e as correntes de água.

 

Lá chegaremos, Ludmilluchka murmurou Semionov no cais da estação de Samarcanda.

 

Estamos quase no fim dos nossos trabalhos. Depois, Karpuschin não poderá nunca apanhar-nos.

 

Não sabia até que ponto se enganava.

 

Desde há uma semana que Karpuschin não deixara de se manter encolerizado; sentia que dessa vez era a ruína total das suas esperanças e o fim da sua vida.

 

Tinha procedido aos interrogatórios e aos contra-interrogatórios, toda a aldeia havia sido questionada, mesmo o pope que ele ameaçara de enforcar e de prender à corda do sino pela barba. Mas nada feito. Todos tinham visto Semionov, mas ninguém o reconhecera e agora ele desaparecera com a mulher e a filha.

 

Que situação trágica, camarada general gemeu o chefe do Soviete. Nós que tínhamos tanta necessidade desses cinco mil rublos...

 

Babando-se do furor, voltou ao hospital e foi falar de novo com a médica.

 

Já chega, Katarina Kirstarskaia gritou ele. Por quem me toma? Só você sabe onde se encontra Semionov. Só você, confesse!

 

Deve estar a aproximar-se de Vladivostoque nesta altura respondeu ela com calma.

 

É um suicídio, Katarina, sabe-o? Obriga-me a fazer o papel de um monstro contra minha vontade.

 

Fez um gesto e dois soldados rodearam a jovem mulher. No rosto orgulhoso, um véu de tristeza e de submissão passou, ela tinha preenchido bem a sua vida, agora era chegada a altura do adeus.

 

Quais são as suas intenções, Matwei Karpuschin? perguntou ela com voz calma.

 

Sou obrigado a ensinar-lhe a falar, Katarina Kirstarskaia. Nada mais. Foi à janela. Para a cave ordenou ele aos soldados.

 

Deixem-me disse ela aos soldados. Conheço o caminho. Não tenho necessidade de que me agarrem.

 

Meia hora mais tarde, vítima e carrascos encontravam-se face a face. Karpuschin tinha dessa vez renunciado aos seus métodos habituais, que consistiam em despir os seus prisioneiros antes de os interrogar. É difícil ser-se um herói quando se está exposto, todo nu, aos olhares do seu carrasco. Nessa atmosfera pesada, ele tinha dificuldade em respirar, não apenas por causa da personalidade da vítima; mas aprendera a reagir de outro modo, longe de Moscovo, e tomara o gosto pelo ar puro.

 

Katarina, suplico-lhe uma última vez. Porque é tão loucamente obstinada? Vou fazer-lhe uma confissão: tenho grande necessidade de repouso, prometo-lhe retirar-me para um lugar isolado logo que tenha recuperado a vida, a minha identidade e o meu posto. Isto é, logo que você me tenha entregue Semionov. Diga-me então onde está ele escondido? Para onde é que ele fugiu? Uma palavra e tudo está acabado.

 

Não sei respondeu ela, na sua voz grave.

 

Tenho necessidade de lhe lembrar o que aconteceu a Boria? murmurou o carrasco, soltando um profundo suspiro.

 

Katarina fechou os olhos num instante. «Boria! Também ele tinha passado por aquela cave maldita e os seus gritos ouviam-se agora entre as paredes do hospital, em cada quarto e em cada canto...» E, bruscamente, fizera-se silêncio. Katarina correra à pressa para o corredor.

 

Quatro soldados transportavam um monte de carne ensanguentada que fora Boria, e atiraram-no para um camião.

 

Isto tinha-se passado uma semana antes, e ninguém voltara a ver o enfermeiro.

 

Que lhe fizeram? perguntou Katarina.

 

Transportaram-no para Yakoutsk.

 

Mente, mataram-no.

 

Pela minha honra, juro-lhe que não, Katarina Kirstarskaia. De facto, confesso-lhe que foi preciso interná-lo: o seu espírito, fraco por natureza, não resistiu ao interrogatório.

 

Demónio, monstro! Fechava os punhos, impotente, prisioneira daquela cadeira, onde a tinham solidamente amarrado, daquela jaula e do seu carrasco. Faça comigo o que bem entender, não falarei. Nem uma palavra! Mesmo que soubesse que Semionov se escondia aqui, num canto do hospital.

 

Karpuschin levantou-se e afastou-se da jovem mulher; decididamente tinha perdido a mão!

 

Vi no seu quarto uma linda caixa trabalhada, Katarina Kirstarskaia disse ele por fim com voz neutra.

 

Sim, é uma caixa japonesa.

 

Nesse cofre, vi pequenos alfinetes com cabeças de muitas cores.

 

Sim. Na verdade... O que é que isso quer dizer? perguntou espantada.

 

Karpuschin fez sinal a um dos soldados.

 

Vai procurar a caixa! Encontra-se no parapeito da janela. A cave encheu-se de silêncio; o carrasco voltava as costas a Katarina e parecia mergulhado em pensamentos profundos. De facto, sentia-se apenas vazio e triste.

 

Aqui está a caixa, camarada general. Karpuschin abriu-a, e tirou de lá os pequenos alfinetes de que acabara de falar.

 

Nestes alfinetes esconde-se o segredo da verdade disse lentamente. Todos os serviços de espionagem conhecem o sistema inventado pelos Chineses. Sistema notável, pois provém do conhecimento perfeito do sofrimento humano, pouco material e nenhuns malefícios aparentes. O ideal!

 

Fez um sinal aos soldados, que a colaram literalmente ao encosto da cadeira, de tal forma que ela não podia fazer qualquer movimento. Outro pegou-lhe no braço esquerdo, ergueu-lhe a manga e segurou-lhe a mão. Ela compreendeu por fim os desígnios de Karpuschin. Sentiu-se cheia de horror. Um dos soldados pegou em cinco alfinetes e espetou-os na extremidade dos dedos de Katarina. Um alfinete em cada dedo entre a carne e a unha, onde se encontram os nervos mais sensíveis de todo o corpo humano. Cinco vezes Katarina estremeceu à picada, mas apertou os lábios e atirou a cabeça para trás. «É como se me fizessem uma punção», pensou. «Uma punção... Não se grita por tão pouco; é suportável e passa depressa.» Após a quinta picada, olhou para a sua mão, as agulhas estavam enterradas apenas o suficiente para se poderem aguentar, somente um milímetro.

 

Katarina, suplico-lhe, apenas uma palavra e ponho fim a esta brincadeira terrível. Sei que me humilho, peço-lhe, diga-me o que sabe de Semionov. Sei que é a única a conhecer o sítio para onde ele foi.

 

Katarina mantinha-se calada. Karpuschin fez um sinal ao soldado e afastou-se, não podia assistir ao espectáculo e contentava-se em ouvir os gritos. O soldado empurrou ligeiramente os alfinetes, um milímetro apenas, mas os nervos vibravam, a dor repercutia-se como uma onda através de todo o corpo, do cérebro e do coração. Katarina gemeu, não gritou, mas os seus dentes rangeram, o suor colava-lhe os cabelos louros, dir-se-ia que a dor os matava.

 

Katarina suplicou Karpuschin em voz baixa, peço-lhe.

 

Aquilo não durou senão um quarto de hora, os alfinetes estavam enterrados um centímetro quando Katarina desmaiou. Soltou um grito tão terrível e prolongado que Karpuschin sobressaltou-se e aproximou-se dela. Os dois soldados seguravam-na a custo, o seu rosto era um grito. O pior eram os olhos. Tinham perdido todo o brilho, toda a vida. «Meu Deus!», pensou Karpuschin. «O que é que eu fiz?»

 

Onde está Semionov, Katarina Kirstarskaia? perguntou ele com voz rouca. Está acabado, uma só palavra, onde está Semionov?

 

E ela gritou com a voz irreconhecível e os olhos mortos:

 

Em Samarcanda, querem atingir a fronteira iraniana. Deus queira que eles estejam já do outro lado.

 

Karpuschin respirou. Um sinal e com um golpe seco o soldado retirou-lhe os alfinetes. A cabeça de Katarina pendeu. Desmaiara.

 

Tratem dela como se fosse a vossa própria irmã! ordenou Karpuschin antes de deixar a cave. «Samarcanda!», pensou. «Não há um minuto a perder! Se ele consegue passar a fronteira, sou na verdade um homem morto.»

 

Durante dois dias, Katarina permaneceu estendida, imóvel, completamente apática, desvitalizada, desarticulada. Nada foi capaz de a aliviar, nem as exortações, nem as consoloções de Schilmann Wancke. Quem poderia compreendê-la? Karpuschin conseguira dominá-la, forçara-a a trair Semionov. Era para ela uma derrota, da qual jamais se recomporia. «Estou morta», pensou ela. «Tudo está morto em mim, mesmo o meu amor pelo doutor Langgasser. O demónio matou-me com cinco miseráveis alfinetes.» Ergueu-se, vestiu-se e escreveu duas cartas: uma ao major Krasvenkov, a outra ao doutor Langgasser. Duas cartas pungentes, duas cartas de despedida. Depois, preparou uma seringa e encheu-a com um líquido esbranquiçado. O seu último olhar devia ser dedicado à taiga, tão amada. E foi perto da janela, uma hora mais tarde, que uma enfermeira a descobriu, com a cabeça pousada sobre o parapeito e o vento a agitar os seus cabelos louros, fria e morta. E Deus tomou-a nos seus braços: foi pelo menos o que afirmou o pope Alexei, diante de toda a aldeia consternada.

 

Ao fundo de um vale, em plena natureza, isolado do mundo e dos homens, o pequeno posto fronteiriço de Kisyl-Polvan, composto de cinco barracas, guardava um caminho, que conduzia directamente ao território iraniano, através da montanha. Esse pequeno posto era comandado por Jefimov, o famoso comissário do distrito de Krasnõiarsk, apaixonado infeliz da comissária Ludmilla Barakova, transferido para a outra extremidade do mundo por inabilidade e negligência de serviço. Há dez anos que ele se encontrava ali sozinho. Jefimov tivera tempo de rever as suas posições a respeito do comunismo, de Marx e de Lenine. Vivia ali com cinco soldados, sempre bêbados, única e exclusivamente preocupados em encontrar alguma pastora nos arredores e em lançá-la sobre a relva.

 

O telégrafo de Jefimov pôs-se bruscamente em movimento: «Encerramento de todos os postos fronteiriços, deter à menor resistência, matar, Pavel Semionov e sua mulher, Ludmilla, e sua filha, Nadia...»

 

De repente, Jefimov, perdeu o uso da palavra. «Ela ainda vive», pensou. «Tem um bebé. A minha Ludmilla, de olhos de fogo...» Lançou um olhar distraído para a pequena estrada que serpenteava em direcção a Samarcanda. «O que é que faço se a vejo chegar por aqui», pensou. «Mais simples seria disparar dali, o céu permita que eles não venham para aqui...» Nessa noite, esforçou-se em vão por dormir; deitara-se todo vestido com o revólver ao alcance da mão, e, de hora a hora, sobressaltava-se e corria para a janela, julgando ter ouvido passos.

 

O campo dormia. E a sentinela também, pesadamente apoiada contra a barreira. O soldado despejara sozinho uma garrafa de vinho de Samarcanda e as suas horas de vigia passavam-se tranquilamente. De madrugada, Jefimov acabou por adormecer.

 

Perto da barreira, a sentinela despertou e estremeceu de frio. Estava-se já em meados de Setembro.

 

Vens disse Semionov, apertando a pequena mão gelada de Ludmilla.

 

Nadia dormia profundamente, embriagada com uma boa dose de vinho açucarado de Samarcanda.

 

De Samarcanda a Kisyl-Polvan, eles não encontraram qualquer dificuldade. Tinham seguido num comboio de mercadorias, depois um camião consentira em levá-los, agora faltava o mais difícil.

 

Há horas que, colados ao chão, observavam o posto fronteiriço. Tinham assistido à orgia solitária da sentinela, e esperado que a luz se apagasse na barraca principal.

 

O comandante adormeceu também murmurou Semionov. Vou abater o soldado. Será substituído dentro de hora e meia. Tomei nota das substituições e este avanço deve bastar-nos para atingir a fronteira através dos rochedos.

 

Através dos rochedos?

 

Sim, é impossível seguirmos pela estrada. Mas são apenas três verstás de distância. Vem repetiu ele com ar decidido. Não é certamente pior do que a taiga em Dezembro. E nós saímos vencedores. Segue por detrás das barracas, eu vou adormecer o soldado.

 

Mas, justamente nesse momento, o soldado espreguiçou-se, ergueu-se e, com passos cambaleantes, dirigiu-se lentamente para a barraca do comandante.

 

Vai ser preciso matá-lo murmurou Semionov, metendo no cano do revólver um pedaço de pão mastigado, com grande espanto de Ludmilla. Isto abafa o ruído explicou ele laconicamente. Antes que o homem os descobrisse, e com um pontapé seco, Semionov abriu a porta da barraca do comandante. Empurrou Ludmilla para o interior e entrou por sua vez. A obscuridade era total. A sensação de não estar sozinho acordou o homem que dormia.

 

Calma! sussurrou Semionov. Fica tranquilo, meu rapaz! Nada de luz, põe as mãos juntas sobre a nuca, e depressa.

 

Não há argumento mais persuasivo do que o cano de um revólver apontado ao coração.

 

«É ela», pensou Jefimov. «Ludmilla! Meu Deus, porque não evitaste isto? Como está ela? E o bebé, estará aqui também? E ela reconhecer-me-á? Não, está muito escuro. Mas a minha voz...»

 

Porque querem matar-me? perguntou ele. Acendamos a luz, Semionov, e examinemos a situação.

 

É Maxim Jefimov murmurou Ludmilla assustada.

 

Ah, não esqueceu o timbre da minha voz, Ludmilla. Agradeço-lhe. Ainda tem intenção de disparar sobre mim, Semionov?

 

Não. Se prometer não dar o alarme.

 

Semionov, é Ludmilla que lhe salva a vida, creia. Se estivesse só, acredite que há muito não existiria. Posso acender a luz?

 

Sim.

 

Jefimov acendeu a luz e sentou-se sobre a cama. Depois de ter examinado os seus visitantes nocturnos, afirmou:

 

Sabe que me estragou a vida, Semionov? Duplamente, de resto, porque me tirou Ludmilla e foi o causador da minha desgraça e da minha vinda para este buraco infecto de Kisyl-Polvan. Era necessário?

 

Também fizemos essa pergunta a nós próprios muita vez. Mas haverá resposta para issso, Jefimov?

 

Semionov aproximou-se da mesa e Ludmilla arriscou-se a apertar a mão ao seu antigo chefe; não foi um simples aperto de mão, mas sim uma súplica. Jefimov desviou o olhar.

 

O homem é um louco, Pavel Semionov... Ludmilla dobrou-se sobre a mesa.

 

Maxim, dentro de duas horas temos de estar do outro lado da fronteira.

 

Todos os postos aduaneiros foram alertados; recebemos aqui um telegrama ao fim da tarde. Karpuschin encontra-se já em Samarcanda. Porquê tão depressa? Isso é que eu não compreendo. Alguém vos terá traído?

 

Não sei. Semionov passou a mão pelos olhos. Há dois anos que fugimos e o que é que adiantámos? Algumas horas! Não é uma ironia do destino? Agora, Jefimov, é você que vai decidir se a falta de lógica que rege o nosso universo deve triunfar de novo.

 

Eu? Julgam que ainda sou o comissário do distrito de Krasnoiarsk? Tive tempo suficiente para reflectir! Encostamo-nos aos outros, dizendo que eles são mais inteligentes. Num sentido, sim, eles são mais inteligentes! Conseguem enganar o cidadão, depois uma aldeia inteira, uma cidade, uma província, e todo um povo! Com ideias, palavras tonitruantes, promessas e ameaças, máximas filosóficas e jogos de palavras. A verdade! O que é? Nunca pude encontrar essa palavra no dicionário. Mas poder-se-á viver sem a verdade?

 

Sim. Isso sucede todos os dias.

 

No seu pais também, Pavel Semionov.

 

Sim. No meu país também. Os políticos são todos irmãos; são filhos de mães diferentes, mas têm todos o mesmo pai: a mentira! Semionov sorriu tristemente. E a nossa mãe chama-se «democracia».

 

Ludmilla aproximou-se da janela; o céu aclarava. A sentinela fora substituída.

 

Já é madrugada disse em voz baixa. Temos de partir, Maxim.

 

Eu próprio os levarei de jipe até à fronteira. Assim não me apresentarei de mãos vazias perante Deus. Vestiu-se, sem esquecer o seu revólver. Deus poderá perdoar todos os horrores de que somos culpados, Ludmilla? Cem vezes pregámos Cristo na cruz!

 

Quer verdadeiramente ajudar-nos, Jefimov? interrompeu Semionov. Então não fale tanto. Quando Karpuschin chegar temos de estar no Irão. E ele aproxima-se a passos largos.

 

Venham meus amigos. Dentro de meia hora estarão em segurança.

 

O telefone tocou e o guarda precipitou-se para dentro.

 

General Karpuschin... murmurou ele. Ele pergunta se...

 

Responde que não! ordenou Jefimov apontando o revólver ao infeliz.

 

Não, camarada general, até agora não vimos nada. O jipe partiu num turbilhão de poeira. Logo que se afastou, o soldado voltou ao telefone.

 

Camarada general. Estão a enganá-lo e a enganar o povo russo. Jefimov acaba de partir no jipe com Semionov, com a mulher deste e o bebé, em direcção à fronteira. Peço-lhe, meu general, não esqueça o meu nome: Anathase Lucanovitch Gaiev. Prometeram-me...

 

Para ele a estada em Kisyl-Polvan estava terminada.

 

Um helicóptero quebrou o silêncio da manhã; no interior encontravam-se Karpuschin, Marfa e dois soldados com espingardas metralhadoras.

 

Há casos em que três verstás contam mais que a volta ao planeta.

 

O jipe saltava sobre um caminho desigual. Jefimov conhecia todas as suas particularidades, não se arriscava a perder-se.

 

Mais duas verstás disse passado algum tempo. Depois, deixo-os; o resto será uma brincadeira para vocês. Voltou-se ligeiramente para Ludmilla: Desejo-te todas as felicidades possíveis, querida Ludmilla.

 

Já as tenho, Maxim. Paulucha e Nadia. Não queres acompanhar-nos?

 

Que faria convosco?

 

Vamos abrir um negócio interveio Semionov. Haverá certamente um lugar para ti.

 

Sou russo afirmou Jefimov. Em mais parte alguma poderia respirar.

 

Karpuschin vai castigar-te exclamou Ludmilla.

 

Que importa...

 

Um ruído insólito fez-lhes erguer a cabeça. O helicóptero mortal aproximava-se.

 

Karpuschin! gritou Semionov!

 

Salvem-se! gritou Jefimov por sua vez. Ali, à esquerda, metam por um atalho. É tão estreito que terão de caminhar um atrás do outro. Sigam-no sempre. É um desvio de sete verstás, mas é impossível que os vejam lá de cima; há folhagem por toda a parte, rochedos e cavernas. Do outro lado da montanha fica o Irão. Vão depressa. Jefimov beijou Ludmilla nas faces, por três vezes, e depois o trio fugiu, correndo.

 

O antigo comissário entrou no jipe e retrocedeu.

 

Ele está só! gritou Karpuschin na cabina de vidro do helicóptero. Chegamos meia hora mais tarde!

 

Baixou a cabeça, resignado. Acabada a caçada não havia mais caça. E não havia Karpuschin.

 

Quando o jipe parou em Kisyl-Polvan, um pelotão justiceiro acolheu Jefimov. Passou-se tudo rapidamente, mas o último olhar que trocou com Marfa foi para ele um raio de Sol, a luz em vão desejada toda a vida. Nos olhos de Marfa leu o horror, a piedade, a compreensão e a admiração: isso ajudou-o a morrer dignamente.

 

Vem disse um pouco depois Karpuschin à jovem imóvel, mergulhada na contemplação e num diálogo mudo com a morte. Vem, nós regressamos a Samarcanda. Conseguirei que me enviem a Teerão com uma delegação económica.

 

Respondeu-lhe apenas um olhar de desprezo e ódio incomensurável, que o fez estremecer até à medula dos ossos.

 

Durante cinco horas escalaram rochedos e passaram por caminhos mal traçados. Não era sem razão que as pessoas da região tinham dado àquele local o nome de «Passo do Diabo». Em breve, o caminho descreveu uma grande curva para a esquerda e eles descobriram um abismo impressionante, atrás do qual devia encontrar-se território iraniano, última etapa da sua interminável viagem para a liberdade.

 

Fizeram uma pausa e Semionov envolveu Ludmilla com os seus braços.

 

Esta noite seremos livres disse.

 

Ludmilla não respondeu. Abandonava a sua pátria. Para ela a Rússia ia morrer nesse dia.

 

Ao descer para o desfiladeiro, deu um passo em falso e soltou um grito.

 

O meu pé, Paulucha! Fiz uma entorse! Não posso andar mais!

 

Descalçaram o sapato. O tornozelo tinha um ar azulado e inchava a olhos vistos.

 

Que vamos fazer?

 

Vamos meter o pé em água fria e esperar.

 

Impossível, Paulucha. Karpuschin virá procurar-nos.

 

Não. Ele julga que estamos já no Irão. Estes desfiladeiros são mais seguros que a nossa casinha à beira do Muna. Ninguém nos encontrará aqui. Temos tempo, Ludmilluchka, mesmo que isto vá durar vários dias. A vida de pioneiros não nos mete medo.

 

Instalaram-se para passar a noite, mas o frio trespassava-os; era impossível fecharem os olhos. Ao nascer do dia, apoiada no marido, Ludmilla deu alguns passos. Mal podia pousar o pé em terra. Por outro lado, não tinham nada para comer senão umas fatias de pão seco. Não havia o menor sinal de vida humana ou vegetal no «Passo do Diabo». A situação era crítica, e o pé ferido de Ludmilla ameaçava retê-los mais alguns dias ainda.

 

Vamos disse Semionov. Vou tentar transportar as duas.

 

Com toda a carga às costas, Nadia dentro da mochila, as mantas, os embrulhos, ele parecia um enorme urso. Pegou em Ludmilla como se ela fosse uma criança e apertou-a bem contra si.

 

És tão leve, Ludmilla! Aperta bem os braços à volta do meu pescoço e agarra-te com força. A caminho para a liberdade!

 

Mas cada passo representava um esforço sobre-humano. Aquilo durou algumas centenas de metros, e, finalmente, deixaram-se cair todos sobre a erva. Nadia começou a chorar; Ludmilla gemeu e Semionov deixou-se ficar estendido, sem reacção, como se estivesse esvaziado da sua própria substância.

 

Veio a noite e com ela o frio. O abismo mergulhava na obscuridade, como se estivessem metidos em tinta.

 

Quanto falta daqui até à fronteira? Quando muito uma verstá e meia... Tens medo, Ludmilla?

 

Eu? Nunca tive medo! protestou ela com veemência.

 

Semionov tinha uma ideia, mas não ousava exprimi-la.

 

Se ao menos eu soubesse onde encontrar seres humanos!

 

Do lado iraniano.

 

Fixou o outro lado do desfiladeiro.

 

O Irão é ali murmurou. Alguns metros apenas. Uma distância ridícula. Se eu te deixar o revólver... disse com voz rouca. Serão apenas umas horas. Trarei os primeiros homens que encontrar.

 

Está bem, de resto tenho também a minha faca.

 

E se demorar até de madrugada...

 

Vai, Paulucha. Achas que eu tenho medo?

 

Não. Mas eu tenho. Se os homens de Karpuschin entram no desfiladeiro...

 

Karpuschin pôs fim às suas pesquisas. Não se viu um só helicóptero em todo o dia.

 

Está bem. Eu vou. Logo que tiver passado a fronteira disparo para o ar até que me descubram.

 

E afastou-se. Ao princípio voltava-se constantemente para trás para olhar o vulto claro que o encorajava, mas à medida que se aproximava da saída do desfiladeiro o seu passo tornou-se mais rápido e ele começou a correr como um urso em fuga, com a respiração ofegante.

 

Finalmente, chegou junto de umas árvores. A Lua redonda, prateada, parecia fitá-lo com ironia.

 

A liberdade! Ajoelhou e brincou com as pedras como Nadia fazia. Mas dessa vez eram pedras livres, um solo livre, um país livre! Finalmente! Começou a chorar. Lágrimas de sofrimento destinadas a afogar tudo o que Pavel Semionov sofrera durante anos, de Moscovo a Nova Bulinski, de Kusmovka à cabana dos pesquisadores de ouro do Muna, do hospital de Olenekskaia Kultbasa até àquele desfiladeiro.

 

Depois, levantou-se, liberto, descansado, pronto a começar uma nova existência.

 

Pegou no revólver e disparou, com longos intervalos.

 

No fundo do desfiladeiro, encolhida com Nadia sobre duas finas mantas, Ludmilla ouviu os disparos tão desejados. «Ei-lo no Irão. Está livre e em breve nos virá buscar», pensava. Mas não conseguiu dormir. O seu coração pesaroso dizia adeus à Rússia.

 

Semionov continuava a disparar. Em breve, apareceram três soldados que o olharam com uma surpresa manifesta.

 

Tu... russo?

 

Sim. Depressa. Ali, ao fundo do desfiladeiro, a minha mulher e a minha filha esperam.

 

Os soldados tiveram um gesto preocupado; levaram-no como um prisioneiro até um jipe ali estacionado, depois percorreram alguns quilómetros e entraram num campo militar irariano, rodeado de arame farpado, de projectores e de torres de vigia.

 

”Por toda a parte é a mesma coisa”, pensou tristemente Semionov. ”Sem arame farpado dir-se-ia que o mundo não pode girar...”

 

Conduziram-no a uma barraca e foi introduzido num gabinete coberto por um expesso tapete vermelho. O coronel Aref olhou-o com um ar pouco amável. ”O que é que este russo sujo pode esconder? Com eles, nunca se sabe...”, pensou o coronel.

 

Quem é você? perguntou num russo hoirrível. Semionov inclinou-se e perguntou por sua vez:

 

Fala inglês?

 

O outro olhou-o com espanto.

 

Sim respondeu finalmente indicando uma cadeira ao seu visitante. Como é que fala inglês? De onde vem? Passou a fronteira iraniana clandestinamente? É um refugiado político?

 

São muitas perguntas ao mesmo tempo...

 

Semionov apoiou-se ao encosto da cadeira: uma fadiga terrível apoderava-se dele e paralisara-o agora que estava à beira da salvação. Sentiu os olhares desconfiados dos soldados nas suas costas. Viu o ar frio e distante, quase desdenhoso, do coronel Aref e apercebeu-se de súbito de que a fuga ainda não terminara, que a liberdade era sinónimo de ordem, e que ele violara essa ordem.

 

”Como é que eles hão-de saber?”, pensou. ”Não percebem nada.”

 

Chamo-me Pavel Semionov disse em inglês. Mas, na realidade sou Franz Heller, um alemão dos serviços secretos americanos, encarregado de uma missão na Sibéria.

 

O coronel Aref fez um sinal de assentimento; os soldados respeitaram o silêncio.

 

Aref deixou a sala sem comentários e pôs-se em comunicação telefónica como seu general.

 

Meu general, está aqui um louco que diz ser russo, fala perfeitamente inglês e pretende ser de origem alemã, e espião nos serviços americanos... Bem, meu general. Mantê-lo-ei ao corrente.

 

Ao entrar na sala foi encontrar Semionov muito calmo.

 

Estou pronto a dar-lhe todas as informações que desejar disse o prisioneiro, mas antes suplico-lhe que vão buscar a minha mulher e a minha filha que estão no desfiladeiro.

 

Não está bom da cabeça, senhor Semionov. E, sem dúvida, também uma caravana de camelos...

 

Semionov baixou a cabeça. ”Como era difícil convencer os homens quando se vinha do Inferno. Que poderiam compreender se ele lhes falasse de um Karpuschin?”

 

Dê-me alguns soldados suplicou. Eu conduzi-los-ei.

 

Aonde?

 

Ao ”Passo do Diabo”.

 

Fica em território soviético!

 

Eu sei. Mas ajudem-me, por piedade!

 

Que é que julga? Que por sua causa nos vamos arriscar a uma violação da fronteira?

 

Ao fim de uma hora de discusssão, de frases, de perguntas e de comunicações telefónicas, de gritos desesperados e de alterações, chegaram a um meio termo.

 

Pode lá voltar sozinho, Semionov. Nós damos-lhe uma maca e se conseguir trazer a sua mulher e a sua filha damos-lhe asilo, claro...

 

Semionov respirou. Se não fosse Karpuschin voltaria imediatamente para Nova Bulinski. Como o Lena é livre e a taiga maravilhosamente infinita! a existência na cabana dos pesquisadores de ouro? Nem questões de ordem, nem de direito, nem de número, nem de violações de fronteira! A natureza em plena liberdade! Bem. Irei eu próprio buscá-las! concluiu em russo.

 

Teve de fazer duas vezes a viagem de ida e volta. Primeiro, Nadia e as bagagens, e, por fim, Ludmilla, chorando porque era o adeus definitivo à sua pátria.

 

Nesse mesmo dia, um avião transportou-os a Teerão onde o general Sahei os interrogou durante uma hora. Era uma bomba que ali estava e era preciso a todo o custo evitar que explodisse. Enquanto esperavam que fosse tomada uma decisão, puseram uma casa à sua disposição. As Embaixadas americanas de Moscovo e de Teerão receberam a notícia em plena noite e o tenente-coronel Hadley teve dificuldade em pensar que não se tratasse de uma brincadeira de mau gosto. Mas depois de ter esfregado violentamente os olhos, releu o texto.

 

Era exacto. E com a mulher e a filha, ainda por cima!

 

Eh, rapazes! disse para o pessoal superior da Embaixada. Esse Semionov foi o tipo que nos pregou a partida ao desistir da sua missão! Como se recordam, nós na altura denunciámo-lo aos Russos, mas ele agora voltou a surgir à superfície. Visitou as bases de lançamento de foguetões, assistiu à construção e ao desenvolvimento do centro de Olenekskais Kutbasa! Compreendem? Esse tipo está cheio de informações. Um diabo de um homem, esse Heller Semionov. Vai ser preciso reabilitá-lo e sou eu que me vou encarregar disso!

 

Nessa mesma noite, o tenente-coronel Hadley recebia uma lição do seu colega do Governo iraniano. Não havia possibilidade de se arriscarem a arranjar complicações diplomáticas com os susceptíveis vizinhos do norte. Heller Semionov era alemão e seria enviado à Embaixada alemã logo que terminasse o seu interrogatório.

 

Era bom poder ao menos uma vez ter superioridade sobre a grande potência ocidental, de uma petulância exasperante.

 

... De resto, Semionov reclamou o direito de asilo e um visto de estada permanente no Irão. Quer montar um negócio de exportação de tapetes...

 

Absurdo protestou Hadley. E que pensa o seu Governo desses projectos comoventes?

 

Vamos estudar o caso. Ele pode provar que é rico! Tem vários milhares de rubles; se não corrermos o risco dele ser uma carga para nós e...

 

Por outras palavras, ele poderá ficar em Teerão?

 

Se o desejar e o nosso inquérito for positivo...

 

Posso pelo menos falar-lhe?

 

Na presença dos meus oficiais.

 

Peço-lhe afirmou Hadley. Talvez eu consiga persuadi-lo de que Nova Iorque é mais agradável que Teerão.

 

Isso surpreender-me-ia muito. Ele passou um mau bocado.

 

O carro espera e nós podemos partir. Mas não esqueça também a estreita amizade que une o Irão e os Estados Unidos.

 

Não havia que enganar sobre o significado daquela ameaça. Mas, para Hadley, as rampas de lançamento na Sibéria valem qualquer amizade!

 

Semionov e Ludmilla recuperavam pouco a pouco um ar civilizado. Bem alojados e bem guardados, podiam passear de mãos dadas, descansar ou brincar com Nadia, no relvado. Os interrogatórios eram feitos num clima de compreensão e de harmonia. Enquanto esperavam que o Governo tomasse decisões a seu respeito, eram hóspedes, pelo que se sentiam finalmente em segurança.

 

Só a sombra da taiga caía por vezes sobre o olhar pensativo de Ludmilla e eram precisos então muitos sorrisos do marido para que ela recuperasse a alegria de viver.

 

Uma noite, jantavam em companhia de um major iraniano quando anunciaram uma visita. Semionov batia-se com uma fatia de carne assada e não prestara atenção ao recém-chegado.

 

Então, meu rapaz! Isso parece-me melhor que aquelas comidas russas, hem? exclamou uma voz cheia.

 

De repente, Semionov deixou cair o garfo e a faca. Ludmilla olhou-o com um ar assustado pois o rosto dele havia endurecido, como outrora, quando fazia frente ao tigre, na floresta.

 

Quem é você? perguntou levantando-se. Estou tentado a dar-lhe um bom par de bofetadas.

 

Bravo! troçou Hadley. Vê-se que não perdeu todos os ensinamentos adquiridos no Alasca e no Texas. Exactamente como o bom James! Congratulo-me por o ver novamente num território normal.

 

Quem é você? perguntou de novo Semionov. O seu coração apertou-se ao pensar em Bradcock. Hadley observou a grande sala de jantar decorada ao

 

estilo oriental. Soldados iranianos montavam guarda junto das portas e perto das janelas viam-se alguns oficiais. Ele não os vira entrar.

 

Sou o tenente-coronel Hadley disse.

 

Hadley? De Moscovo?

 

Ludmilla sobressaltou-se e empunhou a faca.

 

Que quer? perguntou Semionov.

 

Queria lembrar-lhe onde se encontra o seu lugar, Heller. Comércio de tapetes? Que projecto absurdo! Nós temos outra coisa a propor-lhe.

 

Eu sou Pavel Semionov e mais ninguém. Franz Heller desapareceu para sempre!

 

E porquê essa decisão?

 

Porque quero viver em paz, Hadley. Tenho mulher e uma filha e há uma hora que sei que irei ter outro filho.

 

Para preparar um mundo de paz e de liberdade é que você foi enviado à Sibéria, Heller! Você assistiu aos preparativos do fim do mundo. Você é alemão, Heller insistiu Hadley. Existe num mundo que vive num medo constante. Diga o que sabe!

 

Não. Ainda bem que o encontrei, Hadley. Ouvi falar muito de si, sobretudo por James, porque foi você que lhe deu ordem para me suprimir, não é verdade?

 

Não falemos mais disso, Heller. Sucede muitas vezes sermos obrigados a agir contra a nossa própria vontade.

 

Eu sei, conheço bem isso. Quanto a mim, sou e serei Semionov e começo por fim uma nova existência. Podem tentar fazer-me falar pela força ou tortura; mas faço-lhes notar que já suportei outras, até métodos requintados importados da China não me metem medo.

 

Bem. Como queira, Heller. Não se fala mais disso. Adeus.

 

No mesmo momento, um novo membro da delegação económica soviética chegava a Teerão. Era especialista em peles e tecidos e vinha acompanhado pela sua secretária; um passaporte diplomático evitou-lhe o controlo alfandegário. Um secretário da Embaixada soviética esperava-o no aeroporto.

 

Seja bem-vindo, camarada Karpuschin! Esperávamo-lo.

 

Ninguém desconfiava que aquele viajante desconhecido levava a morte na sua mala.

 

Ao fim de uma semana, obtiveram uma licença de estada provisória e puderam começar as suas pesquisas. Precisavam de um apartamento e de um local para abrirem a sua loja, arranjarem relações, obterem autorizações e créditos. A vida num país livre era-lhes totalmente desconhecida, e, ao princípio, Ludmilla tinha a impressão de abafar numa gaiola de vidro, de tal maneira estava habituada a viver à solta.

 

E chegou o dia em que, pela primeira vez desde há muitos anos, Semionov voltou a pôr os pés em território alemão. Tinham-lhe dito que no negócio de tapetes havia uma grande concorrência e que era preferível começar logo com mercadorias muito caras. Para isso tinha necessidade de garantias.

 

Quando chegou à Embaixada da Alemanha, em vez de o conduzirem ao adido comercial, levaram-no à chancelaria consular. Em cima da secretária do funcionário encarregado de o receber, encontrava-se um dossier com o nome de Franz Heller.

 

Deseja voltar à Alemanha? perguntou o funcionário, com ar aborrecido.

 

Tinham-no prevenido; o visitante era um homem perigoso, procurado por todos os governos e capaz, por si só, de arranjar um conflito político. Era preciso, portanto, manobrar o melhor possível e desembaraçarem-se rapidamente dele.

 

Não respondeu Semionov, admirado. Porquê?

 

Mas, no entanto, é alemão, não é?

 

Era.

 

Quando se é alemão não se deixa de o ser. Resumindo, senhor Heller, para todos, oficialmente, o senhor está morto. Agora, se deseja outro passaporte, preencha este formulário.

 

Prefiro ficar morto. Chamo-me Pavel Semionov. Tenho aqui o meu passaporte.

 

É falso!

 

Não. É verdadeiro!

 

Impossível!

 

Desaprendi o sentido da palavra impossível. Na taiga, essa palavra é desconhecida.

 

Mas estamos aqui no Irão, num país livre, na Embaixada da Alemanha. É comunista?

 

Ó meu Deus! Já percebeu a pergunta que está a fazer? Sou um homem, isso não lhe chega?

 

O que é que deseja afinal? Estamos prontos a fornecer-lhe novo passaporte. Bona está de acordo.

 

Mas quem vo-lo pediu?

 

Ninguém. As repercussões políticas da sua atitude...

 

Ah! exclamou, levantando-se. A Alemanha envergonha-se de mim como alemão?

 

Peço-lhe, senhor Heller, que meça as suas palavras!

 

E que fariam se eu, como alemão, viesse procurar junto de vocês ajuda e protecção?

 

Contra quem?

 

Contra os Russos.

 

Aqui ninguém lhe fará qualquer mal!

 

Conhece um certo Karpuschin? Sabe que a minha cabeça foi posta a prémio? Claro que nos círculos alemães se bebe cerveja e se joga ao golfe, enquanto se consultam os valores da Bolsa. Que podem saber de tudo isto?

 

Mas, senhor, trabalhou para a CIA, para os Americanos. Que temos nós a ver com isso?

 

Maravilhoso! Semionov inclinou-se. Se fosse o chefe do Soviete ou qualquer outro tipo da taiga que dissesse estas palavras, ter-lhe-ia pegado pelos ombros e lançado contra a parede até que o seu crânio rebentasse em mil pedaços. Mas aqui é diferente, estamos num país livre, temos de meter as mãos para o fundo dos bolsos e suportar tudo. É este, sem dúvida, o preço da liberdade. Adeus!

 

Onde vai? O adido comercial espera-o dentro de meia hora.

 

Trasmita-lhe os meus respeitos. Não consigo habituar-me a respirar um ar impregnado de poeira e de estupidez administrativa. Meu Deus, como tudo isto é estreito e mesquinho! E você não está ainda asfixiado? Pobre homem...

 

Na Embaixada soviética tinha acabado o feliz torpor. Há seis semanas que Karpuschin percorria os corredores e gabinetes, gritando, clamando, injuriando e brandindo os plenos poderes que lhe tinham sido conferidos pelo marechal Malinovski.

 

O general Jelankin, chefe da missão militar e especialmente encarregado do maçador personagem, suspirava baixinho: ”Que pena o avião dele não ter caído antes de chegar a solo iraniano.”

 

Como? gritava Karpuschin. Semionov vive a dois quilómetros daqui, confortavelmente instalado na sua casinha, sem preocupações e sem aborrecimentos, e vocês que fazem? Ficam sentados às secretárias, fumando e sem mexerem um dedo.

 

Onde quer chegar, camarada general? perguntou por fim Jelankin.

 

Quero fazer saltar a casa! Quero que Semionov desapareça de uma vez por todas! Que não se fale mais dele! O meio? Isso pouco importa, desde que ele desapareça.

 

Ele é protegido pelos Americanos protestou debilmente o diplomata. Pense nas repercussões políticas!

 

Não quero saber disso! replicou o outro, fora de si.

 

Que propõe?

 

Jelankin era um herói de Estalinegrado; fizer a guerra como soldado, uma guerra leal e limpa. Mas o seu ser revoltava-se à ideia de suprimir friamente um ser humano, fosse qual fosse.

 

Há seis semanas que observo as idas e vindas de Semionov; passei horas escondido atrás das cortinas da janela de um quarto nauseabundo, observando-o, e cheguei a esta conclusão: há apenas dois meios de realizarmos a nossa tarefa, ou o rapto de Ludmilla Barakova que o traria de certeza até nós, ou veneno.

 

Tem a intenção de o ir envenenar, camarada Karpuschin? perguntou Jelankin com ironia.

 

Todas as manhãs Semionov recebe o leite à mesma hora. Às sete em ponto ele leva para dentro de casa as garrafas que lhe deixam ali ao nascer do dia. Às oito horas vai abrir a loja. Temos, portanto, cerca de uma hora para ir deitar umas gotas de veneno no leite. Penso que chega, não? Faço-me entender?

 

Perfeitamente, camarada. O general Jelankin batia nervosamente com os dedos sobre a mesa. Mas não será só ele a beber o leite envenenado. A mulher e a filha também...

 

Karpuschin olhou-o com um ar assombrado:

 

Camarada, por favor... Não esqueça que Ludmilla Barakova foi comissária política e que traiu a Rússia.

 

Quanto à criança... As crianças são os nossos inimigos de amanhã.

 

O general Jelankin levantou-se tão depressa que a sua cadeira tombou sobre o tapete:

 

O senhor é que toma a decisão, Matwei Karpuschin. O senhor é que tem os plenos poderes. Faça como quiser. Mas eu sou chefe da missão militar, sou condecorado com a Ordem de Lenine e com medalha dos Heróis. Ignoro tudo sobre os métodos da KGB e quero continuar a ignorá-lo. Peço-lhe que me desculpe.

 

Karpuschin esperou que Jelankin saísse da sala. O seu olhar demorou-se sobre o mapa de Teerão, no qual ele desenhara, a um canto, um espesso círculo vermelho a rodear a casa de Semionov. Um estranho sorriso desenhou-se nos seus lábios.

 

Desde o episódio de Kisyl-Polvan, Marfa mudara por completo. Os tiros que haviam assassinado Jefimov tinham simultaneamente morto nela qualquer resto de simpatia por Karpuschin. Agora desejava apenas escapar ao monstruoso personagem, desprovido de pudor e de escrúpulos, ao qual o destino impiedoso a ligara.

 

Uma noite, ao regressar à Embaixada, Karpuschin declarou num tom alegre:

 

Está decidido, Marfa. Dentro de dias voltamos a Moscovo.

 

E Semionov?

 

Tudo ficará em ordem daqui a pouco tempo. Estou à espera do veneno que deve chegar pela mala diplomática, amanhã ou depois.

 

Vai envenená-los disse para consigo, sentindo-se invadida pela náusea. O vazio, o ódio, o frio encheram de novo o seu coração como em Kisyl-Polvan, diante do cadáver de Jefimov.

 

Dois dias mais tarde, Karpuschin levou um pequeno embrulho para o hotel.

 

É o veneno, Matwei? perguntou ela sem deixar de se pentear.

 

Ele respondeu com um sinal de cabeça afirmativo e mostrou-lhe o minúsculo embrulho.

 

É tão pouco...

 

É o bastante para suprimir vinte Semionov! Não tem cheiro, nem gosto, dilui-se como açúcar. Uma verdadeira maravilha! Pedi também bilhetes de regresso a Moscovo. Partimos depois de amanhã, boneca. Finalmente, vamos recomeçar a viver. Estás contente?

 

Sim, muito.

 

Marfa espreitava diante da montra da loja de tapetes e Semionov esperava os clientes, lá dentro. Não era difícil conseguir clientela no negócio de tapetes em Teerão. Mas a taiga ensinara-lhe a ter uma paciência a toda a prova e ele tinha tempo para descansar e pensar na vida livre da Sibéria, de se aborrecer com os burgueses capitalistas e indolentes de Teerão e com os funcionários da Embaixada da Alemanha. Podia também rodear Ludmilla de cuidados atentos. Ludmilla, cujo segundo bebé começava a notar-se bem. Ela prometera, de resto, solenemente, que dessa vez seria um rapaz.

 

Ao pensar nisso, na sua loja solitária, Semionov sorria. A campainha da porta de entrada tirou-o do seu doce devaneio. Entrara uma jovem mulher, cujo rosto não se via, oculto na contraluz. Quando ela se voltou, Semionov deu um salto e foi fechar a porta.

 

Marfa Babkinskaia...

 

Sim, sou eu, Pavel Semionov.

 

Ela observou-o atentamente. Pouco mudara desde que o vira no Jardim Botânico de Moscovo.

 

Onde está Karpuschin?

 

No Hotel Palace, de guarda a umas gramas de veneno que te são destinadas.

 

Como me descobriste?

 

Não fui eu, foi Karpuschin que os descobriu. Os serviços secretos soviéticos funcionam bem, como sabes.

 

Porque é que estás aqui? Karpuschin está ao corrente desta visita? É de propósito para semear o pânico? Terei de me liquidar, assim como Ludmilla e Nadia para não cair nas patas dele?

 

Oh, meu Deus, não, Pavel Semionov. Marfa ergueu as duas mãos num gesto que lhe não era familiar.

 

Queria protegê-los.

 

Proteger-nos, Marfa? A mim?

 

Mais tarde explicarei tudo, Pavel Semionov. Sorriu, mas o seu rosto maquilhado exprimia um desgosto profundo. Vou ser como vocês, exilada e apátrida. A vida é bela, Semionov. Poderão ajudar-me, depois, quando tudo estiver terminado?

 

Sim. Não prevemos exactamente um período de vacas gordas...

 

Eu ajudá-los-ei. Marfa baixou a cabeça; também para ela seria dessa vez o adeus definitivo à pátria, sobretudo a Moscovo. Amanhã, de manhã, Pavel Semionov, não bebam o vosso leite. Ponham-no de lado...

 

O leite...

 

O seu cérebro pôs-se a funcionar. Como não se tinha lembrado mais cedo? Que imprudência!

 

Amanhã de manhã, entre as seis e as sete horas, Karpuschin virá deitar veneno no leite. Estará aqui em frente, num quartinho sórdido, e observará cada um dos vosso gestos. Amanhã devemos partir para Moscovo, de avião. Ele quer uma cópia da certidão de óbito, para a mandar emoldurar.

 

E tu, Marfa, que tencionas fazer?

 

Ele partirá sozinho para Moscovo. Vocês dão-me o leite de amanhã, não dão?

 

Sim... que Deus nos perdoe...

 

Nesse mesmo dia, quando a noite invadiu as ruelas e avenidas, Marfa e Karpuschin dirigiram-se para o pequeno quarto. Nem pensar em dormir; de resto, o quarto não parecia prever tal eventualidade.

 

Sentaram-se cada um no seu canto e deixaram o tempo passar sem trocarem a mais pequena palavra. Marfa adormeceu sentada na cadeira e só de madrugada acordou, cheia de dores no corpo e gelada. Karpuschin continuava de guarda, alegre e descontraído; para ele era o dia mais triunfal da sua vida!

 

Mais uma meia hora, Marfuchka! Depois, quando o médico tiver vindo e eles forem levados para a morgue, poderás sair daqui. Espero-te na Embaixada.

 

Do outro lado da rua, Semionov estava também acordado, enquanto, ignorando tudo o que se passava, Ludmilla sonhava com a felicidade de se sentir quente. Por volta das cinco horas da manhã, levantou-se com precaução, para não alarmar a mulher, vestiu-se e foi-se pôr à espreita, por detrás da cortina.

 

Seis horas. O carro do leiteiro apareceu na rua. Karpuschin esperava-o com não menor impaciência. O carro parou à porta da loja durante uns segundos apenas, o tempo suficiente para mudar as garrafas, e partiu aos solavancos.

 

Vá, Marfuchka! Chegou a altura! Pensa no futuro...

 

Boa sorte, Matwei!

 

Ele atravessou a rua, despejou o pó na garrafa e com uma colher de pau trazida do hotel mexeu cuidadosamente o leite, sem se apressar. Depois, afastou-se. Estava tudo terminado.

 

É raro um homem ter ocasião de observar os ritos preparatórios da sua própria morte. Semionov sentiu o coração frio. No quarto ninguém se mexia.

 

Por volta das sete horas foi buscar o leite, como todas as manhãs. Aproveitou para aspirar o ar puro da manhã, sorriu para os primeiros raios de sol e deitou um olhar curioso para a rua vazia. Depois, desapareceu no interior da casa.

 

Um quarto de hora mais tarde, Marfa deixava o quartinho sórdido e atravessava por sua vez a ruela sem pressa. Semionov esperava-a no corredor sombrio.

 

Dá-me o leite, Pavel Semionov. Só umas gotas. Eu trouxe um frasco. E deitem o resto no esgoto. Irão ficar definitivamente desembaraçados de ratos!

 

Foram em seguida lavar as mãos. A calma espantosa da jovem mulher fazia estremecer Semionov.

 

Como sabes, por vezes, ser cruel, Marfa Babkinskaia. Mais cruel que um lobo solitário e esfomeado. Deita fora esse frasco de leite!

 

Não, Pavel Semionov! Não o conheces, é o pior dos monstros! Seria preferível abençoar este leite...

 

Semionov calou-se, e, lentamente, sem se despedir, foi refugiar-se lá em cima, perto da pureza e da inocência.

 

Marfa esperou até às dez horas num café, antes de voltar ao Hotel Palace. Karpuschin correu ao seu encontro, pois tinha-a visto descer do táxi.

 

Minha pomba disse, abraçando-a. Quando chegaram eles?

 

Há dez minutos. Levaram três caixões.

 

Ah! É o mais belo dia da minha vida! Começou a cantarolar e aproximou o carrinho que estava a um canto do quarto.

 

Pedi um pequeno-almoço copioso, Marfuchka. Ovos e presunto com caviar, chá da China com leite e mel... Vou fazer do leite a minha bebida preferida a partir de hoje!

 

Marfa manteve-se silenciosa, Karpuschin mostrava-se cheio de actividade e de dinamismo; correu à casa de banho para ir buscar uma garrafa de champanhe e Marfa aproveitou para completar a sua obra.

 

Champanhe e chá não ligam disse ela, com calma.

 

Hoje, até o céu e o inferno ligam bem! Que dirá Jelankin quando lhe der a notícia? Vá, bebamos ao futuro!

 

Ele bebeu um longo trago de champanhe, depois, agarrou na chávena de chá, deitou-lhe leite, mexeu com a colher e engoliu o líquido todo de uma só vez.

 

Oh, Marfuchka, como tudo parece bom quando reencontramos finalmente o nosso passado...

 

Não foram precisos mais de três minutos para os efeitos se fazerem sentir.

 

Que tenho eu? Marfuchka, onde estás?

 

Caiu da cadeira e ficou enrolado como uma bola sobre o tapete. Os seus óculos partiram-se, mas a partir daquela altura tinham-se tornado inúteis.

 

Marfuchka...

 

Marfa assistia à agonia abominável daquele homem que estragara a sua juventude. Apercebeu-se de que a sua vida chegava ao fim nesse instante; nunca poderia esquecer o que acabava de fazer, nem sequer junto de Semionov e dos seus tapetes. Esperou mais meia hora e telefonou para Jelankin.

 

General, quer chegar aqui, por favor? O camarada Karpuschin queria falar-lhe.

 

Meia hora mais tarde, um carro da polícia iraniana levava-a, enquanto lá em cima, no quarto, Jelankin prestava ao morto as honras devidas ao seu posto.

 

Enviá-lo-emos para Moscovo e far-lhe-ão funerais nacionais.

 

Semionov fez nessa manhã os mesmos gestos de todos os dias. Disse a Ludmilla que, pela primeira vez, o leite não estava fresco e beberam apenas café. Ludmilla devia manter-se na ignorância do que se havia passado até ao regresso de Marfa; depois disso, poderia alegrar-se sem qualquer pensamento reservado.

 

A manhã avançava lentamente. Como nos outros dias, apareceram poucos clientes. Um europeu, vestindo um impecável fato branco, apareceu por volta das onze horas e observou demoradamente os tapetes.

 

Tem aqui uma boa mercadoria.

 

Semionov sobressaltou-se: o seu cliente exprimira-se em russo.

 

Deseja comprar um tapete, camarada? pensando com alívio que o revólver se encontrava ali na gaveta, ao alcance da sua mão. Eu sou pacífico, Pavel Semionov. É inútil pensar em pegar na arma.

 

Quem é, camarada? Isto vai continuar ainda durante muito tempo? Não podem deixar-me viver em paz?

 

Chamo-me Fiodor Jelankin, general do Exército Vermelho.

 

É, sem dúvida, o sucessor de Karpuschin. Agradeço-lhe vir apresentar-se assim, mas aviso-o de que sou tenaz como um lobo; morderei até ao limite das minhas forças!

 

O general ergueu a mão:

 

Não poderíamos sentar-nos? E se tivesse alguma coisa para beber também não seria de recusar. Temos de falar. A morte de Karpuschin muda muitas coisas, pois creio que está ao corrente da sua morte. Tenho uma proposta a fazer-lhe.

 

Semionov suspirou, pensando: ”Deus queira que Ludmilla se demore na rua.”

 

Então, vamos ficar eternamente de pé no meio dos tapetes? Para ser sincero, devo declarar que o cheiro da sua loja não é muito agradável.

 

Vamos lá atrás e oferecer-lhe-ei um copo de bom vinho, camarada Jelankin.

 

Instalaram-se o melhor que puderam no compartimento desconfortável e iniciaram um estranho diálogo.

 

Como vê, depois da imensidade da taiga siberiana, o meu universo reduz-se agora a esta lojinha sombria. Mas sinto-me feliz e livre. Esperamos o nosso segundo filho e desta vez será um rapaz que virá ao mundo numa cama quente e branca, como todos os bebés. E agora, o camarada chegou e lançou uma sombra sobre esta felicidade.

 

Você tem uma maneira de se exprimir que me comove, Pavel Semionov respondeu Jelankin. Não espera antes a amizade?

 

Não, tudo o que vem da mesma direcção que Karpuschin...

 

Tenho um negócio para si! Conheço todos os detalhes da sua história, desde Moscovo a Teerão. Você é um bravo, Pavel Semionov, e procuro justamente esse bravo!

 

Cale-se, peço-lhe. Agora vendo tapetes e não quero saber mais nada daquilo a que chama de bravura e que na realidade era apenas desespero e amor. Sobretudo amor.

 

Também eu sou um homem desesperado, camarada Semionov.

 

Mais um copo de vinho?

 

E também eu amo! Não uma mulher cheia de encanto e de temperamento como a sua Ludmilla, mas uma grande dama de uma beleza incomparável, uma dama a quem as estrelas, o Sol e a Lua pertencem, a chuva, a tempestade, a neve e as correntes de água...

 

A Rússia... murmurou Semionov em voz baixa.

 

Sim, Pavel Semionov. Jelankin levantou-se de um salto; a expressão trágica do seu rosto ossudo perturbou Semionov. Mas a nossa pátria foi traída. Sim, traída por todos, por Estaline, por Kruchtchev, por Malinovski e Karpuschin! A revolução não alterou nada, apenas serviu para engordar as ratazanas. Quer ajudar a Rússia, camarada Semionov?

 

Não! Não, general.

 

Poderia fazer muito por nós, meu amigo. Poderia lançar uma ponte entre nós e os nossos irmãos do Ocidente, aqueles que pensam como nós. Um mundo fraterno, Semionov. Não é o seu ideal?

 

É uma utopia, camarada Jelankin. Isso não existe.

 

Cinquenta e cinco milhões de mortos numa só guerra, já viu! E na próxima morrerão dois milhares de milhões de seres humanos. Você pode continuar a evitar essa loucura. Na Rússia, somos um grupo de oficiais a pensar assim. Semionov, peço-lhe pela paz universal!

 

Semionov foi guardar a garrafa, suspirando. ”Pobre homem”, pensava ele. ”Apesar do belo uniforme e do seu orgulho, não passa de um sonhador. Não percebeu ainda que não há solução?”

 

Posso ir-me embora? perguntou Jelankin ao fim de um certo tempo.

 

Sim.

 

Adeus. É a última visita de um russo da antiga Rússia, Semionov. Nós estamos na agonia.

 

Eu sei. Que Deus os proteja.

 

Antes de partir, Jelankin voltou-se uma vez mais para Semionov e beijou-o calorosamente à maneira russa, três vezes em cada face.

 

Adeus. Nunca mais ninguém virá perturbar a tua felicidade e a tua sensatez.

 

Em fins de Fevereiro, Ludmilla sentiu que o bebé se anunciava. Em plena noite acordou suavemente o marido.

 

Estava tudo preparado há vários dias. Semionov fizera economias para oferecer à mulher aquilo com que ela tanto sonhara na taiga: um quarto individual, grande e claro, com varanda, uma enfermeira, um médico e uma cama suplementar para ele, pois Ludmilla tinha necessidade do reconforto das suas mãos firmes e meigas.

 

Vens comigo para o hospital, Paulucha?

 

Com certeza!

 

E para a sala de partos?

 

Não creio que os médicos o permitam.

 

Mas eu quero-o. Como da primeira vez na cabana à beira do Muna. Não me deixes só. Direi aos médicos que não deixarei passar a criança sem tu estares ao pé de mim. Terão de concordar!

 

Ele sorriu, com aquele bom sorriso reconfortante que ela tanto amava.

 

Aqui não é a taiga, sabes...

 

Para mim é. O hospital é bom, querido?

 

Sim. É um hospital alemão, com médicos alemães. Esperam-te com impaciência.

 

O bebé nasceu às sete horas da manhã.

 

Era um rapaz. Alexei Semionov nascera longe da presença do pai, mas Ludmilla não dera por nada. O seu grito forte fizera dizer a um jovem médico: ”Este vai para a ópera...”

 

Enquanto esperava, Semionov vira o dia nascer, e de repente, perdido num profundo devaneio, lá em baixo, muito longe, na taiga, perto dos canaviais do Muna, um nome pronunciado à maneira alemã fê-lo sobressaltar: ”Herr Semionov.” Levantou-se de um salto. Um jovem médico desconhecido olhava-o amavelmente.

 

Compreende-me, Herr Semionov? Infelizmente, não falo russo.

 

Sim, sim, pode falar alemão respondeu com a garganta seca.

 

Ah! Muito bem! Então felicito-o: é um rapaz!

 

Um rapaz! Sentiu as forças abandonarem-no, ele que vencera um tigre com uma lança.

 

Um rapaz repetiu. Alexei. Posso vê-lo? Como está a minha mulher!

 

Muito bem. Pode ver os dois, claro, mas só durante uns minutos. Ela está ainda muito fraca.

 

Obrigado, doutor.

 

Venha, vou acompanhá-lo. Quarto dez. O médico não deixava de observar atentamente o seu companheiro. Para um russo fala maravilhosamente bem a nossa língua. Sem o mínimo sotaque.

 

Eu sou alemão. Sentiu uma dor pungente no coração e emendou: Era alemão...

 

Não compreendo. O seu nome é Semionov...

 

Sim, mas chamava-me Franz Heller. E abandonei tudo, doutor.

 

Abandonou? O médico olhou Semionov dos pés à cabeça, com ar consternado. Era muito novo ainda, devia ser médico há pouco tempo. Não se pode abandonar assim a nacionalidade como se fosse uma camisa usada. É-se alemão e permanece-se alemão...

 

Com certeza, permanece-se... Semionov evitou olhar para o médico; a dor voltava-lhe e ele sentia-se surpreendido; nunca julgaria poder pensar na Alemanha e ter a nostalgia da sua pátria. Tem orgulho em ser alemão?

 

Certamente respondeu o médico sem hesitar.

 

Era essa a resposta que eu esperava. É normal. Mas não acha que será preciso um dia começar a perguntar se não será preferível ser apenas um homem? Só homem. Não será mais importante?

 

E porque é que se chama agora Semionov?

 

É uma longa história, doutor. Se um dia dispuser de muito tempo terei muito prazer em contar-lha. É a história maravilhosa e diabólica de uma vida exaltante e maldita. Onde está o meu filho Alexei Semionov?

 

No quarto dez. Posso falar-lhe depois?

 

Com certeza.

 

Creio que tenho uma porção de perguntas a fazer-lhe, Herr Semionov!

 

E eu nem uma só, doutor!

 

É um homem feliz!

 

Aquelas palavras partiam do coração e Semionov olhou à sua volta.

 

Feliz disse em voz baixa. Sim, sou feliz... Apesar de uma boa dose de pouca sorte. É um rapaz? Acha que poderei pedir a Deus para reservar ao meu filho uma vida menos dura do que a do pai? Um mundo melhor? Ou pensa que, para atingir esse resultado, será preciso que Deus comece por transformar a própria essência do homem?

 

Não sei murmurou o médico.

 

Eu também não! Semionov aspirou o ar matinal a plenos pulmões. E como nós somos felizes por ignorar isso!

 

Continuou a caminhar pelo comprido corredor branco; atrás das portas escondiam-se pequenas varandas floridas de onde a vista mergulhava sobre um país encantado.

 

O sol atravessava as janelas; fazia calor; com um gesto largo, Semionov limpou o suor que lhe perlava a testa.

 

Quando, finalmente, chegou junto da porta dez, o seu passo tinha recuperado o equilíbrio e a elasticidade, como compete a um caçador siberiano da taiga.

 

                                                                                Heinz G. Konsalik  

 

                      

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