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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NOITES DE SANGUE / Herman Tellgon
NOITES DE SANGUE / Herman Tellgon

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

NOITES DE SANGUE

 

Dois Agentes do FBI Tinham como missão descobrir o ou os assassinos de Jack Durant um Americano que desfrutava de algum dinheiro ganho na loteria. Argélia foi o seu ultimo destino, num emaranhado de acção e misterio estes dois agentes do FBI, escapam da morte por um fio.

 

              

Terroristas de Argel — Grande prêmio na loteria — Futuro esplendoroso e morte obscura

O mais jovem do grupo terrorista reclamou:

- Diabo de espera! E faz um frio de ra­char! Será que demoram muito ainda?

Eram quatro. Todos muito jovens quase me­ninos, ágeis, flexíveis, de olhos sagazes e nervos de aço.

O que chefiava o grupo consultou seu reló­gio, preso por uma corrente de ouro ao pulso delicado, quase feminino. Falou com uma vozinha aguda, que às vezes adquiria tonalidades metálicas:

- Faltam quinze minutos. Eles não estão atra­sados. Tenha calma.

Um vento frio varria as ruas. Estavam de to­caia no meio de alguns carvalhos centenários, num pequeno jardim situado a curta distância do hotel "Ville de France".

As luzes do hotel semelhavam um candelabro gigantesco erguido para um céu dramatizado por nuvens negras, que corriam furiosas. Em con­traste com a escuridão exterior, aquelas luzes eram como douradas promessas, e para elas vol­tavam-se ansiosos os olhares dos terroristas.

Falou um outro:

- Repartimos as armas?

A seus pés estava uma maleta de couro. O chefe autorizou:

- De acordo.

Pistolas automáticas, metralhadoras, granadas de plástico, munição abundante. As mãos crisparam-se ao contato daquelas armas, o sangue cir­culou mais depressa nas veias daqueles homens.

- Puxa vida! - exclamou um deles. - Ima­ginem que escarcel se os meganhas achassem de aparecer por aqui!

- Não tem perigo - afirmou o chefe. - Tudo foi bem planejado. - Consultou novamen­te o relógio. - Cinco minutos. Estão preparados?

Não houve resposta. Mas os quatro corpos pa­receram adquirir a ameaçadora consistência de um bloco de cimento.

- Não pode haver falhas - insistiu o chefe. - Entendido?

Indicou com gesto breve um dos componentes do grupo, tipo de baixa estatura, ombros robus­tos:

- Você os aborda. Pergunta ao sujeito: "Pode me dizer que horas são?" E antes que ele res­ponda, meta-lhe uma carga de chumbo na barri­ga.... Fez uma pausa, depois acrescentou com entonação maligna, onde soava uma nota de sa­dismo: - Não poupe munição. Temos bastante. E mais virá do mesmo lugar de onde esta veio.

Expressava-se com fria autoridade, como um chefe nato. Estava atuando como um militar.

Porque para eles, o crime que se dispunham a cometer era tão somente uma operação de guerra, mais um dos muitos serviços que lhes eram encomendados.

O chefe prosseguiu, dirigindo-se aos outros dois:

- Vocês, para o carro. - Sua mão direita apontou na direção do hotel. Não longe da en­trada, um pouco separada dos outros carros ali estacionados, distinguia-se a silhueta de um fur­gão de carga. - Ponham o motor em marcha. Um cobre a retirada. O outro ao volante.

Restabeleceu-se o silêncio. De longe, os rumo­res da cidade, o som de um aparelho de rádio, a buzina de um carro seguida do rinchar de pneus que acompanha uma brusca freada.

Novamente fez-se ouvir a voz monocorde do criminoso:

- Eu me encarrego da garota. Todos prontos, é claro, para qualquer emergência. Tudo enten­dido?

O vento húmido agitou a ramagem das árvores sobre suas cabeças, dando um apoio orquestral às ordens de morte.

Os quatro pares de olhos cravaram-se na por­ta giratória do "Ville de France". Um homem e uma mulher acabavam de sair. Alto, forçudo, com uma leve promessa de gordura no corpo antes atlético, o homem. Ela era esbelta, de mo­vimentos graciosos, cabelos longos, cabeça pe­quena, que apenas chegava ao ombro de seu com­panheiro.

- São eles!

- Vamos!

Mobilizararn-se caminhando sem ruído, fantas­mas obscuros da noite, mensageiros sinistros do destino.

Jack Durant era feliz. Todos os seus sonhos iam-se realizando. Boas roupas, hotéis de luxo, "confort"...

Um mês antes pertencia à massa cinzenta de milhões de seres aglomerados na imensa urbe nova-iorquina. Antes defrontava, sem a mínima esperança de melhora, uma perspectiva de vul­garidade e tédio. Cada manhã uma viagem no "subway", ainda sonolento, átomo infinitesimal no meio da multidão amorfa. Depois a loja, uma baiúca sombria, cheia de pó, medíocres artigos para homem e mulher, luta contra os fregueses vulgaríssimos.

E tudo isso submetido à estrita vigilância de um Argos de infinitos olhos: o dono do estabele­cimento, um judeu velho de nariz adunco.

E, súbito...

Cada vez que a lembrança voltava à sua me­mória, um sorriso prazenteiro distendia os lá­bios, Jazendo com que suas rudes feições se sua­vizassem miraculosamente.

Jogara na loteria. Uma combinação com o sis­tema de apostas do futebol inglês. Na realidade, Jack ainda não havia entendido bem o que ocor­rera. Mas sabia do resultado.

Quatrocentos mil dólares de prêmio! Um mon­tão de dinheiro tão grande como a Estátua da Liberdade. Esteve a ponto de morrer quando soube que se transformara num homem rico, o que obviamente não aconteceu. Ninguém morre de alegria.

Não teve dificuldade em amoldar-se à nova situação. Segundo seu julgamento pessoal, ele era diferente do resto do rebanho. Muitas vezes tinha sonhado com a possibilidade de um golpe de sorte como aquele. Sabia perfeitamente o que fazer em tal caso. Cada passo, cada movimento tinha sido previsto com enorme antecedência. Em primeiro lugar viajaria. Europa, África, talvez a índia...

Um norte-americano inteligente, audaz, que iria pelo mundo com os olhos bem abertos, apren­dendo, assimilando projetos e idéias... E quan­do retornasse a seu país, dono de melhores e novas perspectivas, se dedicaria aos negócios. Transformaria seu dinheiro em poderosa alavan­ca, que o projetaria para o cume...

- Nós já vamos, Jack?

A voz cantante de Mima Saad interrompeu seus devaneios, fazendo-o voltar à realidade. Olhou para sua companheira. Sim. Ponto por ponto, tinha cumprido a primeira parte de seu programa. Seus pés tinham trilhado os caminhos de muitas nações desde que a sorte o favorecera.

Agora, já de regresso, estava em Argel, uma cidade maravilhosa, de surpreendentes possibili­dades e oportunidades apesar dos maus momen­tos pelos quais estava passando, dos crimes e atentados que dia a dia ocorriam ali.

- Por que tanta pressa, gatinha? Não está bem em minha companhia?

Agradava-lhe aquela jovem como jamais ne­nhuma outra. Tudo nela era formidável. Seu cor­po suave, elástico, que em momentos de amor transformava-se numa labareda de intensa voluptuosidade. Seus brilhantes cabelos negros. Sua boca...

Ela falava um inglês imperfeito, que acrescen­tava novo atrativo à sua personalidade estranha.

De repente, ele surpreendeu-se a si mesmo, di­zendo:

- Você não gostaria de vir comigo para os Estados Unidos, gatinha? Eu lhe darei uma vida maravilhosa. Nos casaremos, teremos filhos, um lar...

À medida que falava, ia compreendendo que aquilo seria realmente a culminação de sua via­gem. As mulheres americanas... Bah! Liberdade e independência em demasia, pretensões excessi­vas. Eram egoístas, incapazes de criar uma vida feliz para homem algum.

Viu surgir um relâmpago de surpresa nas pupi­las negras que o contemplavam. Depois surgiu naqueles olhos insondáveis uma centelha que Jack Durant não foi capaz de interpretar. Medo talvez?

Deixou de lado aquelas idéias melodramáticas. Ele era um homem prático. Acreditava no dólar, na solidez das instituições democráticas, peque­nos e familiares deuses americanos... Prosse­guiu veemente:

- Escute, gatinha. Gosto de você. Não deve ter medo de mim. Saberei fazê-la feliz. Aquela nação é grande, imensa, cheia de oportunidades para todo o mundo. E eu tenho dinheiro, sabe você? Muito dinheiro. Darei a você...

Mima colocou uma das mãos sobre os lábios de Jack, impedindo-o de prosseguir.

- Cale-se, Jack. Não deve falar assim. Você não me conhece o bastante. Está agindo impensa­damente.

Todos os seus gestos eram encantadores, deli­ciosamente femininos. Incitavam Jack a mostrar-se insistente em sua pretensão. Achavam-se a um canto discreto do bar do "Ville de France". Jack atraiu-a com vigor irresistível contra si, bei­jou-a. Os lábios de Mirna foram pouco a pouco adquirindo calor, abrindo-se sob a carícia do beijo.

Ele voltou à carga:

- Pense bem, gatinha. Dispomos ainda de vá­rios dias. Meu navio sai segunda-feira...

- Mas, Jack...

O americano prosseguiu confiante:

- Nada poderá impedir-nos, gatinha. Nos casa­mos e você vem comigo. Sim, você vem comigo para os Estados Unidos.

A sensação de estar flutuando sobre nuvens acompanhava-o, enquanto seguia Mirna para a saída. A maravilhosa perspectiva de sua vida futura confundia-se em sua mente com a visão daquele corpo escultural, que ondulava diante de si e dentro em breve seria seu para sempre. Deu uma gorjeta exagerada ao boy que lhe entregou a capa de gabardina e o chapéu.

A noite estava fria. Os plátanos e as palmeiras que bordejavam ambas as calçadas da Avenida Joffre estremeciam sob o impulso do vento, dei­xando ouvir suas vozes de órgão, como se entoassem um poderoso cântico de amor que unica­mente Durant podia compreender. Chegou-lhe, distante, o eco de uma explosão e o matraquear ominoso de uma arma automática, sons a que não prestou absolutamente atenção.

Procurou com o olhar seu carro, um "Pakard" último modelo, alugado junto com um pitoresco e barbudo chofer árabe pelo tempo que perma­necesse na cidade.

De repente, como se materializado no meio da sombra, um indivíduo de pequena estatura, olhos brilhantes, febris, surgiu diante dele.

- Pode me dizer que horas são? - pergun­tou.

Expressava-se num inglês correto. Sua voz era rouca e ele arquejava um pouco, como se tivesse dado uma corrida.

Tudo aconteceu com a rapidez de um relâm­pago. Mirna retrocedeu às carreiras e de sua garganta, enquanto afastava-se velozmente, saíam sons inarticulados, soluços, gritos.

Jack fez menção de segui-la. Mas tal idéia en­contrava brusco empecilho. Na mão do homem surgira, como num jogo de prestidigitação, uma pistola, uma achatada presença ameaçadora que o contemplava com um olho sinistro, negro como a morte.

Por um instante, Jack Durant ficou paralisa­do. Como numa projeção em câmara lenta, viu o movimento da arma sendo apontada para seu estômago, o golpe último, seco, para firmar a pontaria, o ajustar da culatra à mão do assassi­no. Um dedo índice, muito curto, contraiu-se so­bre o gatilho da pistola.

Como fogos fátuos, os disparos saltaram con­tra Durant. Golpes brutais, mas indolores, abate­ram-se sobre seu corpo. Depois, uma onda de lava ardente subindo até seu coração.

Foi projetado para trás com terrível violência. Chocou-se contra o tronco rugoso de um carvalho. Pouco a pouco, as mãos sobre o ventre, no in­tento inútil de deter o sangue que escorria por entre seus dedos, inclinou-se para o solo.

Ouviu gritos de homens que corriam, o ruído de um carro arrancando a toda a velocidade. Seus olhos embaciados pelas sombras da morte viram, ao longe, Mirna. Ela corria, continuava fugindo...

Um último pensamento acudiu ao seu cérebro. Tinha que salvá-la de um fim igual ao seu! A qualquer custo, tinha que salvá-la!

Atrás dela deslizava uma sombra, uma figura de pesadelo, que logo a alcançaria...

 

Nem mulheres feias nem homens idiotas - Um aventureiro louco - Onde um equívoco significa morte. 

Com um olhar de bom conhecedor, Leo Barnard admirou as bonitas pernas da loura que se interpunha entre ele e a entrada do "Foresfs", onde tinha encontro marcado com Ben Hamilton.

Para dizer a verdade, as mulheres constituíam cinquenta por cento de sua atividade geral. Ruivas, morenas, louras, todas faziam bater mais depressa seu coração.

Costumava dizer: "Não tolero mulheres feias nem homens idiotas".

Emitiu um assobio encomiástíco. Realmente aquela loura merecia ser aclamada à sua passa­gem. Leo achava que devia ser uma dançarina de "ballet". E caso não fosse, que importava? Pos­suía o mesmo encanto, a mesma perfeita harmo­nia de movimentos.

A loura olhou-o ao passar. Seus olhares se cru­zaram durante alguns segundos. Ela enviou-lhe uma mensagem que ele compreendeu muito bem. Era um claro convite para que a seguisse.

Não obstante, deixou-a ir. Porque os outros cinquenta por cento das atividades de Leo Barnard, muito mais absorventes e importantes, eram constituídos por seu trabalho como agente federal. Ou, mais exatamente, como caçador de homens.

Leo era alto, de armação poderosa e gestos ágeis, cabeleira loura e sempre alvoroçada. Era desses homens a quem as mulheres olham duas vezes pelo menos, e com os quais mostram-se dispostas a colaborar. Seu cérebro possuía a agudeza de um estilete. Era amigo de seus amigos e implacável na consecução de seus objetivos.

Acolheu-o amável a discreta penumbra do "Foresfs". Monty, o garçom de aspecto esportivo que sempre o atendia, adiantou-se solícito. Comu­nicou:

- Um cavalheiro o espera, Mr. Barnard. Está ali, junto da janela.

Havia poucos clientes no estabelecimento àque­la hora do dia. Precisamente por isso havia-o es­colhido Leo para sua entrevista com Hamilton.

Enquanto avançava para a mesa designada por Monty, observou seu colega.

Feições enérgicas, como talhadas em granito. Sua fronte ampla contraía-se, formando um du­plo sulco em forma de V. Ao levantar-se para re­tribuir a saudação de Leo, tornou-se evidente que ambos possuíam idêntica contextura física e qua­se a mesma estatura. Seu aperto de mão foi enérgico e breve.

- Sou Benjamin Hamilton - informou. - Ben para os amigos. Como está, Barnard?

Leo conhecia parte da história de seu interlo­cutor. Tinha-a ouvido pouco antes, resumida, dos lábios do inspetor-chefe Maxwell.

- Leo - disse Maxwell, - você vai trabalhar com Ben Hamilton. É um dos homens mais efi­cientes do FBI. Fie-se nele enquanto fôr necessá­rio. A missão de que os incumbo é perigosa. Um país estranho, conflagrado por paixões violentas, onde a vida de um homem carece de valor em absoluto. A colaboração é mais necessária do que nunca neste caso. O êxito da empresa e as vidas de vocês são comuns. Não podem fracassar. Um equívoco significa a morte.

Estendeu-se Maxwell traçando uma curta bio­grafia de Hamilton. Suas palavras fizeram Leo conceber um profundo respeito pela capacidade do homem com quem ia colaborar.

Enquanto sentavam-se, Leo disse:

- Alegro-me por conhecê-lo, Ben. Que tal a viagem?

Porque Hamilton chegara de Chicago no dia anterior. Estava lotado na divisão do Federal Bureau of Investigation naquela cidade.

O garçom revoluteava ao redor, esperando. A um sinal de Leo, aproximou-se.

- Traga-me um uísque, Monty. E repita a dose do meu amigo. Depois, desapareça até que o torne a chamar. Entendido?

Hamilton avaliava seu companheiro, enquanto isto. Sua mente era um mecanismo preciso, me­tódico, ao qual aliava-se uma coragem que raiava pela temeridade.

Conhecia Barnard de nome, como de resto a maioria dos homens das forças federais. Todos se mostravam de acordo em afirmar que, entre os aventureiros loucos, dotados ao mesmo tempo de inteligência, Leo Barnard venceria o campeonato.

Permaneceram em silêncio até que Monty vol­tasse com as bebidas. Foi Leo o primeiro a falar.

- Um assunto dos diabos, hem, amigo? - Ben encolheu os ombros.

- A verdade é que não sei muito a respeito - murmurou. Seu rosto adquiriu de repente uma expressão divertida. - Maxwell limitou-se a uma filípica semipaternal. Creio que seja esse o seu costume. Falou-me em você. Recordou os rígidos princípios que regem o FBI. Falou de Fidelidade, Bravura, Integridade... mas sobre o assunto em si mostrou-se tão comunicativo quanto uma os­tra. Limitou-se a explicar-me que você me daria informação mais ampla. E acrescentou que nos devíamos pôr de acordo quanto à forma de levar a cabo o trabalho. Disse tudo, menos o que mais me interessava.

Barnard sorriu. O inspetor Maxwell tinha por costume pronunciar uma pequena arenga, seme­lhante à que ele próprio ouvira no dia anterior. Tal coisa constituía motivo de brincadeiras entre os agentes federais, embora cada um deles se deixasse fazer em pedaços por simples solicitação de Maxwell.

Hamilton continuou em tom especulativo:

- A verdade é que não consigo compreender o caso.

Barnard inquiriu:

- Disse-lhe Maxwell, pelo menos, por que mo­tivo o chamou, Ben?

Ben inclinou a cabeça com expressão dubitativa.

- Pois - respondeu - realmente não sei. Referiu-se à morte de um homem, um tal Jack Durant. Falou nisso e também em outros assun­tos. Não conheço o lugar onde morreu esse indi­víduo, nem o momento, nem as circunstâncias. Não consigo atinar também, tratando-se desse Jack Durant, com o motivo que torna tão im­portante sua morte. E não há dúvida que Maxwell concede grande importância a este trabalho. Não fosse assim, jamais me teria desviado do caso que tinha entre as mãos, compreende?

Seguiu-se uma breve pausa. Estavam sentados junto à janela que dava para a Sétima Avenida.

Uma morena de formas exuberantes passou, lan­çando um olhar curioso para o interior do bar. Leo piscou-lhe um olho, ganhando em troca um sorriso e uma careta graciosa. Comentou:

- Ben, gosto deste lugar mais que de nenhum outro em Nova York. É o melhor observatório da cidade. A estas horas, sobretudo, há um des­file de mulheres verdadeiramente impressionan­te. Alguém me disse uma vez que Nova Iorque era demasiado grande para se conseguir uma visão panorâmica, mas enganava-se. Que acha você?

Não esperou pela resposta. Na realidade, seu cérebro não se desviava um instante do problema que lhe fora proposto. Prosseguiu, sem pausa:

- Vejamos: Jack Durant foi assassinado há sete dias em Argel. Tudo quanto se sabe é que uns desconhecidos o esperavam perto do hotel onde estava hospedado, o "Ville de France". Re­cebeu cinco balaços no ventre. Teve morte quase instantânea. Acompanhava-o uma moça, uma tal Mirna Saad, que conseguiu escapar... no mo­mento. Poucas horas mais tarde os criminosos conseguiram descobrir onde morava e selaram também seus lábios para sempre.

Fez uma pausa. Tomou um gole de uísque. Seus olhos continuavam fixos na rua. Observa agora uma loura outonal, que se detivera junto à vitrina de uma loja em frente. Ben permanecia em silêncio, brincando com o seu copo ainda pela metade, do qual bebia ocasionalmente. Bernard continuou:

- Segundo parece, o crime, em sua execução, material, tinha sido perfeitamente estudado. Leva a marca dos trabalhos bem feitos. Vi as declarações da única testemunha de vista, o porteiro noturno do "Ville de France". Disse que um dos criminosos correu atrás da moça. Ambos perderam-se de vista ao entrar por uma rua transversal. O que atirara contra Durant subiu num furgão estacionado a pouca distância do local do crime, com o motor em marcha. O furgão desapareceu por sua vez se­guindo o mesmo caminho por onde enveredaram a moça e seu perseguidor.

Relatava os fatos com acento carente de infle­xões. Ben revivia a cena do crime em seu íntimo. Durante breves segundos sentiu a angústia da­quela jovem que corria na noite, levando atrás de si a morte.

- Desapareceram sem deixar rasto. O mes­mo sucedeu quando mataram a moça, mais tarde. Alguém a chamou por telefone, ou pelo menos isso consta da informação recebida. O fato é que saiu de casa e ninguém tornou a vê-la até horas depois quando foi encontrada morta.

Ben assentiu, ao mesmo tempo que falava:

- Perfeito, Leo. Isso quanto aos fatos em si. Mas gostaria que me explicasse o conjunto da situação. Evidentemente, começo a vislumbrar al­guma coisa, mas seria melhor que pudesse obter uma visão mais completa.

Bernard tomou de um trago o uísque que res­tava em seu copo. Depois sacou uma carteira de cigarros. Fumavam ambos, quando ele retomou a palavra:

- Diabo! A situação por lá não pode ser mais explosiva. Imagine você o lugar... - fez uma pausa de efeito, prosseguindo em seguida: - Ar­gélia. Um vasto e variado mundo submetido a convulsões tremendas, onde campeiam a ambição, o ódio, a violência... Homens de todas as raças e países lutando ali, servindo a múltiplos interes­ses. Argelinos puros, árabes, europeus, africanis­tas, fanáticos de toda espécie. E, sobre tudo isto, a França, encurralada, fustigada de todos os lados, tão perigosa como um velho leão que, em seu último refúgio, é capaz de matar com uma patada...

Após alguns instantes de silêncio, Ben Hamil­ton murmurou brandamente:

- Sem dúvida é um bonito cenário, Leo, tão confortável como o inferno com todos os caldei­rões acesos. Começo a compreender uma porção de coisas, especialmente as reservas do velho Maxwell. - Disparou a pergunta subitamente: - Você é de origem francesa, não?

- Sou - confirmou Leo. - E você nasceu em Túnis, não é assim?

- De fato - respondeu Ben.

- Este é o "quid" da questão, Ben. Meu fran­cês é perfeito e compreendo o árabe. Você fala o árabe como um nativo e, especificamente, a for­ma dialetal comum à região em que vamos atuar. Por outro lado, entende também o francês. Eis aí a razão pela qual fomos escolhidos para realizar este trabalho.

A loura da vitrina dispunha-se agora a atraves­sar a rua. Um pensamento alheio à conversação que mantinham fulgurou no cérebro de Leo Bar­nard. Perguntava-se por que algumas mulheres levantam ao redor de si ondas de paixão, enquan­to que outras, mais belas e até mais moças, às vezes deixam os homens indiferentes. Aquela lou­ra...

A voz de Hamilton cortou seus pensamentos filosófico-sensuais pela raiz, trazendo-o à reali­dade:

- Bom. Qual é o plano? Como se supõe que devemos atuar e até que ponto?

O olhar de surpresa com que Leo o contemplava obrigou-o a explicar:

- Refiro-me à profundidade da investigação, se é que a podemos chamar assim. Às vezes não convém eliminar determinados vespeiros, ou deve-se procurar fazê-lo de modo a não produzir alvo­roço entre as vespas. Qual é a determinação neste caso?

- Bom - esclareceu Barnard. - Essa é uma pergunta sem resposta. Lhe direi, entretanto, o que não podemos fazer nem esperar em nenhum caso. A partir deste momento, devemos conside­rar-nos desligados para todos os efeitos de nossa condição de cidadãos dos Estados Unidos e, está claro, do Federal Bureau of Investigation. Não se pode pedir ao governo francês nenhuma espécie de cooperação porque, entre outras coisas, seria con­traproducente. Não há também autoridade pro­priamente dita na Argélia à qual pudéssemos diri­gir-nos. Temos que agir por nossa conta, expos­tos à ira de todos os bandos em luta. Em defini­tivo, vamos entrar num covil de feras, onde cada uma delas pertence a uma tribo distinta e estão empenhadas entre si numa luta de morte.

Acendeu um novo cigarro. Deu duas tragadas nervosas e achatou-o, ato contínuo, contra o cin­zeiro que estava à sua frente. As perspectivas que suas próprias palavras tinham aberto en­chiam de gozo seu coração.

Leo Barnard era um lutador nato. Nada mais desejável à sua índole que mergulhar de cabeça no meio de conflitos e sentir-se parte ativa deles.

- Temos unicamente uma coisa a nosso favor - finalizou. - Uma só coisa...

- A que se refere, Leo?

- Não há limite para o jogo. Estamos do outro lado da barreira da lei, compreende? Nós dois contra todo o resto. Haverá situação melhor? Caçaremos os tipos que mataram Jack Durant, quanto a isso não há nenhuma dúvida... e nos divertiremos à grande!

Cessou de falar. Seus cabelos louros pareciam despedir chamas douradas, simbólicas da excitação de que estava possuído.

Ben permanecia silencioso, concentrado nas su­gestões que as palavras de Barnard infundiam em sua mente. Via claro o que o FBI esperava deles. Parecia-lhe agora elementar. A própria escolha de ambos para atuar naquele caso o sugeria. Disse por fim:

- Fale-me agora desse Durant. Que espécie de homem era Ele? Podia estar envolvido em negó­cios escusos ou atividades subversivas que o le­vassem à morte? Em tal caso, investigar seguin­do sua pista seria o caminho mais prático para chegar à solução, não lhe parece?

Barnard moveu negativamente a cabeça. Expli­cou:

- Não há nada a fazer por esse lado, Ben. Jack Durant nunca tinha saído antes dos Estados Unidos. Para sua informação, farei uma breve biografia dele e suas atividades.

Recostou-se na cadeira. Lembrava um leão sa­tisfeito, que se dispusesse a uma sesta reparadora após abundante repasto. Seu olhar atento captou a entrada de uma mulher no bar. Seguiu seus passos durante alguns segundos. Ben sorriu ao dar-se conta do motivo de seu silêncio.

Havia ainda poucos clientes no "Foresfs" e to­dos afastados de onde estavam conversando.

Leo traçou um retrato fiel do homem cuja morte iam investigar. Ben ouvia-o interessado.

- Como vê, Ben - finalizou -, Jack Du­rant era o típico americano médio, com dinheiro. Não importa que o obtivesse de um golpe. Todos os americanos dessa espécie estão sempre dispostos a sentir-se milionários. É algo que consideram tão normal como barbear-se pela manhã.

Inclinou-se para a frente. Com o dedo Índice foi pontilhando suas palavras sobre a polida su­perfície da mesa:

- Tudo foi investigado cuidadosamente. A vida de Durant, depois do trabalho realizado, é mais conhecida que a de Napoleão. Não há nada de especial nela. Abiscoitou um prêmio numa dessas combinações internacionais de loteria. Depois re­solveu viajar. Tudo simples, diáfano. Nada conse­guiríamos por esse lado, Ben.

- De acordo. Mas o próprio fato dessa perso­nalidade simples pode servir-nos de guia. Que sugere a você a morte violenta de um tipo tão vulgar?

- Pensei muito a esse respeito. A meu ver devemos partir da compreensão de se tratar de um assunto puramente argelino, determinado pe­las condições de guerra sem quartel ali predomi­nantes.

Acentuou o tom incisivo de suas palavras:

- Pense nisto: para qualquer das facções en­volvidas no conflito, um incidente de caráter in­ternacional podendo provocar a intervenção dos Estados Unidos seria com toda probabilidade de­cisivo. Num sentido ou em outro. Os "ultras" talvez desejem demonstrar que seus adversários são simplesmente uns criminosos. E os da Frente de Libertação Nacional podem estar procurando a internacionalização como meio de ganhar a úl­tima batalha. É um assunto embrulhado este que temos diante de nós, Ben, muito embrulhado mesmo.

- Sem dúvida. Quando partimos?

Leo reconheceu que o caráter de Ben lhe agra­dava. Era um tipo decidido, um desses homens para quem obstáculos são coisas que não existem. Decidiu:

- O quanto antes. As pistas já estão frias. Mas é melhor segui-las antes que se congelem por completo.

 

Uma espelunca tumultuada — Leo Barnard diverte-se à sua maneira na noite argelina

A entrada era esconsa, escura, simples patamar de uma escada íngreme. Uma série de mu­rais modernistas contribuía para emprestar-lhe ambiente.

Leo Barnard tateou seu caminho antes de se­guir adiante. Chegava a seus ouvidos o rumor abafado de conversas, música em surdina, entrechocar de copos.

Pouco a pouco, seus olhos foram-se habituando àquela penumbra. Um macio tapete cobria o chão em sua quase totalidade.

Empurrou a porta de carvalho, sobre a qual grandes cabeças de pregos dourados simulavam letras árabes.

A atmosfera era cálida, opressiva. Fumaça de cigarros, emanações de bebidas baratas, perfumes intensos, humanidade...

Havia diversos alto-falantes, de potência redu­zida, espalhados por toda parte. A voz fanhosa de Janine, a cantora da moda, arrastava-se desfiando uma letra tão idiota como a maioria delas.

O agente federal sorriu. Aquele covil era o quartel-general dos homens da FLN ou, pelo menos, assim era considerado pela polícia, que ali efetuava razias com frequência.

Entretanto, era total a influência francesa. In­clusive nos homens e nas mulheres, suas atitudes, a vivacidade afetada de suas frases, o extrava­gante polimorfismo de sua indumentária. Aquilo podia ser qualquer local de Montparnasse.

Aproximou-se do balcão. Dois ou três tambore­tes estavam ocupados. Encarapitou-se num livre. Uma morena de andar flexuoso, busto perfeita­mente modelado sob o jérsei muito justo, atendia os bebedores. Encaminhou-se para ele.

Leo admirou o gingar de suas cadeiras. Seus olhos eram negros, profundos, ardendo neles infi­nita sabedoria... para avaliar os homens. Per­guntou:

- Que vai tomar, bonitão?

Ele inclinou-se para a frente, acariciando as redondezas da mulher com o olhar.

- Se a guerra fosse aqui - disse ele - eu tomaria você de assalto. Nunca lhe disseram que você é estupenda?

Uma risada sensual escapou da garganta fe­minina, cascateante.

- Não estou muito segura do que faria em tal caso, bonitão - disse encantada. - Por que não experimenta? Acha que ofereceria resistência?

- Escute, boneca. Vale a pena tomar uma trin­cheira sem um pouco de luta? As vitórias são mais valiosas quando custam esforço. Correto?

A mulher tornou a rir. Seu amplo decote dei­xava parcialmente ver o estremecimento dos seios. Leo apoderou-se de uma de suas mãos. Acari­ciou-a com suavidade.

- Querida, diga-me a que horas você sai, que tomaremos um trago juntos. Estou muito só nes­te maldito buraco de Argel, onde um bando de monos mais ou menos negros quer escapar da gaiola. Eu...

Uma voz bronca, mal-humorada, interrompeu o agente do FBI:

- Ei! - gritou. - Então não há mais fre­gueses que esse conquistador barato, Pérola?

Leo olhou em direção ao que tinha falado. Mantinha seus nervos absolutamente sob controle. Sabia que as palavras pronunciadas por ele um pouco antes, mostrando desprezo pelos homens da FLN, provocariam uma revolução por demais violenta.

Inclusive a expressão da garçonete mudara de súbito, transformando-se em ódio intenso. Seu adversário era um argelino, sem dúvida alguma, um homem de raça árabe, mole de carne e osso, envergando uma indumentária metade à ociden­tal, metade ao modo de um personagem das mil e uma noites.

Tinha na cabeça um fez escarlate. Cobria seu corpo um blusão flutuante, pregueado. As calças era do tipo "cow-boy", propositalmente desbota­das.

Um súbito silêncio se fizera no "Sapo Branco". Todas as caras, exprimindo assombro, ira, aver­são, voltavam-se para ele.

Sua voz ressoou com inflexão gelada, ao mesmo tempo que ele procedia á uma avaliação completa dos presentes e suas possibilidades de evasão.

- Que há com você, porco? Acaso os animais piolhentos têm agora permissão para falar?

Agiu ao mesmo tempo em que estava falando. Colocou a mão direita sobre o rosto do homem e empurrou-o com enorme força. Calculou o movi­mento de forma se produzisse a maior confusão possível.

O efeito foi semelhante a um jogo de boliche em que homens substituíssem as garrafas. O ára­be foi despedido para trás como se o puxassem cordéis invisíveis. Chocou-se contra o tamborete mais próximo, à sua retaguarda, o qual estava ocupado por um indivíduo taciturno, de roupa escura, olhar suspicaz, que assistia interessado ao desenrolar dos acontecimentos.

Os dois, conjuntamente com os tamboretes, caí­ram ao solo com grande estrondo e estilhaçar de copos e garrafas.

Barnard percebeu à sua direita, no canto es­curo formado pela plataforma destinada à orques­tra em atuações ocasionais, o movimento furtivo de alguém que tentava atacá-lo pelas costas. Em sua mão via-se agora uma pistola.

- Quieto, animal rastejante! - disse com voz em que vibrava uma nota de exultação. - Se mover um dedo, levará chumbo!

Sempre constituíra motivo de assombro para ele a falta de inteligência de algumas pessoas diante dos fatos da vida.

Aquele, especificamente, continuou seu avanço. Barnard perguntava-se que esperaria ele que acontecesse. Disparou quando o insensato dispunha-se a investir de qualquer maneira. O tiro alcançou-o no ar. Caiu espetacularmente, ficando estirado, imóvel, entre Leo, e o resto dos adversá­rios, que gritavam num paroxismo de raiva.

Alguém disparou e a bala zumbiu acima da cabeça de Barnard. Estava claro que a fuga se impunha. Houve outros disparos, que também não o alcançaram, mas às suas costas uma voz de mulher elevou-se histericamente.

Enquanto corria, ergueu uma das mesinhas destinadas aos bebedores. Sem se deter nem vol­tar a cabeça, projetou-a para trás. Chegou à saída. De relance, viu que o improvisado projétil tinha-se chocado contra um grupo compacto de indivíduos que iniciavam a caçada.

Cruzou o limiar como um touro furioso. Divi­sou um jarrão de grandes proporções, que servia de adorno ao patamar da escada. Derrubou-o e prosseguiu na fuga. Chegaram-lhe vozes iracundas que praguejavam com fúria, em meio ao estrondo produzido pelo jarrão ao espatifar-se lá embaixo.

Não tardou a alcançar a rua. A brisa fresca da madrugada acariciou seu rosto afogueado. Percorreu a estreita ruela, flanqueada por casas de um só pavimento, construções de madeira que se retorciam em ângulos inverossímeis, com ter­raços baixos transformados pelos habitantes da Kasba em pequenos jardins que os protegiam do terrível calor dos dias ensolarados.

Leo Barnard estudara o terreno antes de pene­trar naquele setor. Conhecia as vias de escape possíveis, a menos que se produzisse um acidente irreparável. Em dois saltos, alcançou o arco de­corado com motivos árabes que assinalava a en­trada da Kasba.

Porque o "Sapo Branco" estava situado justa­mente no limite de separação entre a parte euro­péia de Argel e a árabe, olhou para trás. Gritos furiosos, maldições, verdadeiros rugidos soavam a distância. A pequena lâmpada colo­cada junto a tabuleta do "Sapo Branco" permitiu-lhe ver que seus perseguidores começavam a sair de lá.

Disparou várias vezes em rápida sucessão. Riu ostensivamente. Adorava a luta. Em momentos assim, julgava adivinhar um objetivo quase mís­tico nos atos em que a força, aliada à inteligên­cia, permitia-lhe desenvolver ao máximo suas potencialidades de homem. Então, o sangue corria mais impetuoso por suas veias, incitando-o a des­prezar o perigo.

Os caçadores retrocederam para o interior da espelunca, como ratos surpreendidos pelo facho de luz de uma potente lâmpada. Ele tornou a rir. E correu, sabendo agora que já não poderiam alcançá-lo, que estava mais bem preparado que aqueles homens para lutar.

Logo chegou à avenida Yamaa. Atrás ficavam as misteriosas, estreitas e retorcidas ruelas, se­melhantes a peles secas de serpentes, onde há vários dias ressoavam os incessantes "iuiuí" das mulheres, incitando os homens a lutar.

Atrás ficavam também os recantos escuros, pro­pícios para o amor e a morte, que ao nascer do sol inundavam-se de claridade e serviam de ce­nário a um mundo diverso, tão velho como o tempo.

Ali uma humanidade começava, rugindo, a des­pertar de um sono de séculos. E o ruído de suas cadeias ao romper-se aterrava os povos evoluídos.

Guardou a pistola. A avenida Yamaa estava profusamente iluminada, mas não se via alma viva. Argel era uma cidade morta àquelas horas. Ninguém, a menos que pertencesse a um dos ban­dos em luta, se atreveria a sair depois do anoi­tecer. As patrulhas de vigilância dos meganhas, inclusive, esquivavam-se o mais possível a deambular à noite. Cada árvore, cada recanto, podia ocultar um terrorista em sua caçada noturna.

Os passos de Leo Barnard ressoavam sobre o asfalto com ritmo acelerado. Eram como dispa­ros, como o matraquear de uma metralhadora que se perdia ao longe, chegando seu eco até o mar nas asas frias do vento.

 

Noite vermelha em Argel - Um grupo de terroristas "ultras" - Agora ele estava no bom caminho

 

Enquanto caminhava, ele parecia sentir ao seu redor presenças invisíveis. Não obstante, seu coração batia normalmente, poderosa máquina a serviço de um propósito de­finido.

Jogar a vida numa cartada era o que estava fazendo. Mas às vezes, quando se quer atingir um objetivo ambicioso, é necessário se expor. A mis­são de que estava incumbido era sumamente com­plicada. E a razão de tal complexidade residia no fato de não existir nada para apoiar sua inves­tigação.

Jack Durant fora assassinado. Mas, por quem e por quê? A única testemunha, Mirna Saad, tivera destino igual, possivelmente devido à sua vinculação com o americano.

Isso era quanto sabia o FBI: que um homem estava morto. Mas não tinha a menor idéia da identidade de seus assassinos. Cabia unicamente supor motivos, tão numerosos como as estrelas no firmamento.

Desde a simples questão pessoal até as com­plicações internacionais; desde o ratoneiro à pro­cura de uns dólares até um agente de alta di­plomacia.

Chegando junto do monumento aos heróis da guerra, Barnard diminuiu o passo. Ia mais alerta do que nunca. Pensamentos convergentes agita­vam seu cérebro. Estava cônscio do fato de que um descuido de sua parte significaria não só a morte, mas o fracasso da missão.

A incursão que aquela noite levara a termo no "Sapo Branco" era o resultado de um processo mental preciso, que havia de conduzi-lo até os assassinos de Jack Durant. E nenhuma conside­ração de ordem sentimental podia desviá-lo do rumo estabelecido.

Em consequência, Leo Barnard e Ben Hamilton tinham adotado a resolução mais lógica ao alcance de suas possibilidades. Tinham que estabelecer cabeças-de-ponte entre os homens de ação, que lutavam como cães raivosos na Argélia.

Assim, Ben Hamilton procurava entrar em con­tato com os componentes da FLN e Leo Bar­nard tratava de introduzir-se nas filas dos terro­ristas "ultras".

Tudo tinha sido previsto. Suas respectivas per­sonalidades foram adaptadas a documentos fal­sos ... de certo modo. O FBI fazia bem as coisas. Os nomes sob os quais Barnard e Hamilton traba­lhariam na Argélia eram autênticos. Só que seus primitivos donos estavam mortos e careciam de familiares ou amigos que pudessem descobrir o engano.

Custara muito trabalho encontrar as necessárias coincidências, mas os tentáculos das forças fe­derais de Washington chegavam até os mais re­motos e insuspeitos confins da terra.

Sobre esta base movia-se agora Leo Barnard. Claro que semelhante papel obrigava-o a correr riscos enormes, mas o perigo constituía para ele a melhor parte de suas atividades.

Realmente, Leo possuía um temperamento de jogador. Jamais perdia o controle de seus nervos, pelo menos aparentemente, quando se defrontava com a morte. Ninguém se poderia dar conta de que, em tais ocasiões, seu coração galopava de­senfreado, produzindo-lhe a sensação de mover-se num plano diverso ao do resto dos homens.

Sua chegada a Argel, que já conhecia de missões anteriores, causou-lhe uma impressão de fracasso. Parecia impossível atuar ali, em meio à guerra aberta, quando montões de cadáveres eram diariamente enterrados sem que ninguém desse importância a este fato. Imperava a confusão em toda parte. Ninguém parecia disposto a prestar informes ou auxílio de qualquer espécie.

Nem sequer o todo-poderoso dólar, chave mági­ca para abrir portas em todo o mundo, facilitava coisa alguma. A gente da Argélia sabia que nin­guém pode desfrutar das vantagens do dinheiro sob alguns palmos de terra.

Dedicou-se a recolher os boatos, a "tomar o pulso da cidade". Pouco a pouco foi-se inteirando de como estavam as coisas. Era como ter caído num formigueiro durante um violento processo de fumigação.

Americanos, ingleses, argelinos das diversas ten­dências existentes, homens de todos os países do globo ali se reuniam. Eram aventureiros, tipos rudes, a horda selvagem que sempre aparece nos lugares onde há agitação. Qualquer deles era ca­paz de matar por uns poucos centavos, estava dis­posto a servir sob qualquer amo, sempre que a paga lhe permitisse satisfazer seus apetites.

Lagaillarde, Ortiz etc, eram os atores do dra­ma. Entre os bastidores, porém, de acordo com a mais pura ortodoxia teatral, movia-se outro exército invisível, maquinistas, carpinteiros... e um diretor de cena.

Justamente aquele homem, o que manobrava os cordéis na sombra, era quem Barnard tratava de localizar. Ele imaginava seu adversário como um tipo frio, impiedoso, um indivíduo disposto a imo­lar milhares de vidas em holocausto às suas am­bições. Via-o como um Moloch sanguinário, ocupando um trono erguido sobre montões de ca­dáveres.

Veio-lhe de longe o som de uma sirena. Pensou que talvez os meganhas estivessem dispostos a uma incursão no "Sapo Branco", sabedores do dis­túrbio ali ocorrido. Ou talvez fosse simplesmente uma ambulância destinada a transportar um en­fermo. O certo é que os espíritos desassossegados pressentiam sempre em Argel violência e morte.

A elevada silhueta do "Hotel Comodore", onde estava hospedado, perfilou-se afinal na solitária avenida. Não vira sequer um táxi durante todo o trajeto. A tais horas, Argel tornava-se uma cidade deserta em aparência, mas repleta de seres vivos que respiravam temerosos atrás das portas de suas casas.

Perguntou-se quanto tempo levaria a produzir-se um contato entre ele e qualquer dos grupos terroristas "ultras" que assolavam a cidade.

Tal coisa teria necessariamente que suceder. O incidente que provocara pouco antes certamente chegaria aos ouvidos das pessoas com quem ten­tava relacionar-se. Ele sabia que centenas de olhos suspicazes anotavam diariamente as ocor­rências em Argel. Cada homem estava marcado. E as marcas neutro, "ultra" ou neo-argelino de­terminariam suas possibilidades.

Talvez naquele momento, em algum rincão da cidade, tivesse chegado a notícia de que um ho­mem, um solitário, travava uma batalha contra a Frente de Libertação Nacional.

De modo que...

Subitamente, uma silhueta humana recortou-se diante dele. O revólver passou à sua mão como por encanto. Imobilizou-se, apontando para o des­conhecido. Com instantânea percepção do perigo, deu-se conta de que estava rodeado por quatro homens.

Um deles, o que estava à sua frente, murmurou com uma voz aguda:

- Está tudo bem, não se preocupe. Não pen­samos fazer-lhe mal... por enquanto.

Notou a leve insinuação ameaçadora implícita nas palavras.

- Diabo! - exclamou. - Que pretendem? Quem são vocês ? Não estou gostando...

- Nós o seguimos desde que entrou no "Sapo Branco". Queríamos conhecer o tipo bastante doido para meter-se ali como se fosse uma "boite" pa­risiense.

Um riso desagradável sacudiu o desconhecido. Suas feições delineavam-se agora claramente. Era jovem, muito jovem ainda, imberbe, de lábios finos, cruéis. Suas mãos eram delicadas. E de toda a sua pessoa desprendia-se uma atmosfera malévola, inquietante.

Reconheceu o tipo. Indivíduos assim forneciam a maior porcentagem criminal no mundo inteiro.

Eram seres tarados, imbuídos de uma filosofia equívoca e conscientes de tal monstruosidade. O sujeitinho tornou a rir e informou:

- Sabe de uma coisa? Havia duas possibilida­des muito desagradáveis para você. Ou estava louco ou pertencia aos tipos indecentes que se identificam com esses porcos de rebeldes. E neste último caso...

O momento era tenso, cheio de perigo. A noite argelina manifestava-se em sua realidade ameaça­dora. O resto do grupo apertava-se em torno de Barnard. Este inquiriu com absoluta calma:

- E que conclusão tirou, amigo? Que teria sucedido se eu fosse um desses tipos a que se refere?

Um dos terroristas deixou escapar uma garga­lhada sinistra.

- Puxa vida! - exclamou. - Está louco, não há dúvida!

- Cale a boca, Gerard! - mandou o tal sujei­tinho. No silêncio que se seguiu, dirigiu-se nova­mente a Leo Barnard: - Que lhe parece? Acha que teria podido chegar vivo até aqui?

Seu riso estranho produzia em Barnard uma irritação profunda, um desejo quase incontrolável de esmagar sob o pé aquele tipo, como um verme repugnante. Súbito, um de seus companheiros fa­lou em tom de urgência:

- Parece que vêm aí, "Papillon'! -  (Em francês: borboleta)

Pouco a pouco, o ruído de motor aproximava-se do ponto onde se encontravam. O chamado "Papillon" disse com rapidez:

- Terá que acompanhar-nos agora. Vamos!

O agente do FBI não hesitou. Tinha acontecido exatamente o que estava esperando. Aqueles in­divíduos podiam representar um elo da cadeia. Seguiu atrás de "Papillon" e seus comparsas, que se internaram nas sombras que se estendiam mais além do monumento ao Soldado Desconhecido. Ficaram agachados, tensos, atrás de um dos ban­cos de pedra do passeio.

A voz de "Papillon" soou esganiçada a seu lado:

- Está vendo? Pensou que tinha despistado esses porcos, não é? Você está mesmo doido! Mas agora vai ver uma coisa interessante.

Nas mãos quase femininas de "Papillon" tor­nava-se incongruente aquela metralhadora. Os ou­tros três homens estavam também armados. Sur­preendeu-se Barnard com a disciplina que de­monstravam. Fez-se evidente para ele que aquele grupo pertencia a uma facção em constante luta, que cada um deles estava perfeitamente familia­rizado com situações de violência.

"Papillon", de maneira incisiva, deu uma ordem.

- Você, Maurice! Encarregue-se do carro! Agora!

Um dos componentes do grupo destacou-se. Cor­reu para a calçada, faixa cinzenta sob a luz dos postes de iluminação pública. Ele alcançou a borda da calçada justamente no momento em que o carro chegava àquela altura. Vinha devagar, como se seus ocupantes estivessem procurando avistar o homem que perseguiam.

Maurice atirou uma granada sob as rodas do veículo. Ato contínuo, produziu-se a explosão. O carro prosseguiu por mais alguns metros, zigue-zagueando, completamente descontrolado. Bateu finalmente contra o meio-fio.

"Papillon" e os seus, seguidos de Barnard, avançaram. O riso de "Papillon", em falsete, ele­vou-se exultante. Várias sombras fugitivas, que se arrastavam, saíram do carro. Uma delas cam­baleou e caiu pesadamente. Alguém disparou em direção ao grupo terrorista. A metralhadora, ma­nejada por mão insegura, matraqueou tragica­mente. Mas as balas passaram zumbindo por sobre suas cabeças.

"Papillon" achatou-se contra o solo. Disparou várias vezes, rosnando maldições entre os dentes. Foi então que Leo Barnard resolveu demonstrar àqueles indivíduos a conveniência de alistá-lo em suas fileiras.

Lançou-se em direção aos fugitivos. Junto a seu ouvido silvavam as balas. Às suas costas, ou­viu um advertência que vinha de "Papillon". Após percorrer alguns metros, deteve-se subitamente. Com um preciso movimento de pulso, apontou o revólver para os fugitivos. Apertou o gatilho duas vezes. Não precisava fazer pontaria. Em centenas de ocasiões tinha praticado aquela modalidade de tiro nas salas especiais de treinamento do Federal Bureau of Investigation.

Caçou dois dos fugitivos com seus dois dispa­ros. Um deles saltou no ar como um coelho sur­preendido em plena carreira. O outro deu ainda alguns passos, cambaleante. Ficou enfim sobre o asfalto, imóvel. "Papillon" e o resto dos terroristas colocaram-se a seu lado.

- Diabo! - grunhiu "Papillon". - Apenas um tiro para cada um! Foi a melhor coisa que já vi em ...!

Outra vez soou na noite o clamor de sirenas, aproximando-se rapidamente. "Papillon" engoliu o resto de suas palavras com um encaixar seco de mandíbulas.

- Malditos! - praguejou. - Vêm muito de­pressa! Temos que sair daqui a galope.

Não parecia, entretanto, preocupar-se demasia­do com o que pudesse ocorrer.

- São os meganhas, não? - perguntou Barnard.

- Quem havia de ser? Mas não tem impor­tância. Estão conosco, compreende? Embora não convenha que nos encontrem aqui. Vamos!

Barnard retrucou mal-humorado:

- Aonde pensa que vai me levar? Não gosto de ser manejado como um boneco. Se imagina que...

A voz impaciente do outro interrompeu-o, com uma nota histérica:

- Deixe de bobagens. Não discuta agora. Nin­guém em Argel, a menos que esteja completa­mente biruta, faz o que você fez esta noite.

Bateu com o índice no peito do agente federal, a fim de sublinhar suas palavras.

- E não seja idiota. Se os meganhas o encon­tram aqui, irá mofar na cadeia, entende? Não terão outro remédio, embora a contragosto, senão deitar as garras em você. Passaria uma boa tem­porada entre as grades, ou sofreria coisa ainda pior.

Deteve-se um momento, deixando que a voz das sirenas, cada vez mais próxima, penetrasse nos ouvidos de seus companheiros.

Finalizou:

- Venha conosco, repito. Depois terá ocasião de dizer o que pensa, entendido?

Leo Barnard conformou-se aparentando relu­tância. Seguiu em silêncio "Papillon" e seus cumpinchas. Agora tinha certeza de que estava no caminho certo. Aqueles homens, sem dúvida algu­ma, pertenciam à organização terrorista que tra­tava por todos os meios, pelo menos aparente­mente, de conservar a Argélia para a França.

 

Luta nas montanhas - O guerri­lheiro Naam Kaãar - Perspectiva de missão importante

Ben Hamilton tomou um longo trago do cantil recoberto de pano que trazia preso à cintura. Naam Kadar comentou: - Baixe a cabeça, Ben. E não beba tanta água. Poupe-a o quanto puder. Temos ainda muitas horas pela frente.

Seus olhos, de negror intenso, que reluziam sob as sobrancelhas espessas como carvões acesos, pa­reciam dotados da faculdade de abarcar o con­junto das coisas de uma só vez. Prosseguiu:

- Escute. Não pretenda ser um herói. Os he­róis, a primeira coisa que fazem é morrer. E isso não adianta nem à Argélia nem aos argelinos.

O sol, embora, prestes a desaparecer atrás das montanhas, batia com força sobre a colina pela­da onde os guerrilheiros da FLN esperavam pacientes.

Kadar continuou falando. Sua face escura desa­parecia quase sob a cerrada barba, que às vezes parecia encrespar-se furiosa, quando ele profe­ria determinadas palavras:

- Disse-lhe muitas vezes que esta não é uma guerra onde se possam ganhar condecorações. Todos têm que se arriscar o menos possível, pois aqui cada combatente representa um elemento quase impossível de substituir. Especialmente quando se trata de homens como você, Ben.

Uma metralhadora matraqueou ao longe. As balas zumbiram queixosamente sobre suas cabe­ças. Várias cravaram-se no solo com um estalido seco, bem perto de onde Kadar se encontrava.

Servia-lhe de refúgio uma concavidade natural do terreno. Não era muito eficaz, porém, devido à posição mais baixa do inimigo que fustigava os guerrilheiros, desempenhava mais ou menos seu papel de parapeito.

Kadar resmungou uma praga:

- Esses filhos de uma cadela!

Não havia, entretanto, verdadeira raiva em suas palavras. Aquilo era a guerra. Como todas, cruel, selvagem. Não obstante, entre os combatentes, raramente existe um autêntico sentimento de ódio.

Tratava-se, ali, de homens igualmente entedia-dos ou enervados, que padeciam do mesmo des­conforto e que em sua maior parte, se fossem outras as condições vigentes, teriam sido bons amigos dos que combatiam do outro lado.

O chefe dos guerrilheiros deu uma ordem com selvagem energia:

- Não disparem, rapazes! Deixem que esses im­becis gastem sua munição. O que eles estão querendo é fazer-nos sair daqui. Mas não vão conseguir.

Eram uns vinte homens sob o comando de Kadar. Uma patrulha de combatentes experimen­tados, capazes de enfrentar as circunstâncias mais adversas. Vestiam-se de maneira incongruente, estapafúrdia. Nada mais distante de uma aparên­cia de uniformidade. Predominavam, entretanto, os camponeses, com suas amplas calças de tecido claro, jaquetas multicores, camisas sem gola, o invariável fez cobrindo suas cabeças raspadas.

Havia uma razão primordial para justificar aquela falta de uniformidade indumentária. Em primeiro lugar, os homens da FLN não cons­tituíam um exército regular, nem dispunham de meios econômicos para isso. Mas de maior im­portância era que, num momento dado, em sua atual condição, podiam dispersar-se, desaparecer, tornando impossível sua captura. As armas fica­riam então depositadas em algum esconderijo.

E eles regressariam às suas aldeias sob a apa­rência de pacíficos lavradores... que no dia se­guinte, ou em qualquer outra ocasião, voltariam a transformar-se em guerrilheiros e a lutar pela independência.

Um indivíduo barbudo, corpulento, que se man­tinha vigilante atrás de um improvisado parapeito de pedras, gritou:

- Vá para o inferno, Kadar! Pensa que está tratando com recrutas? Ninguém aqui dispara um só cartucho sem fazer um meganha cair de patas para o ar.

- Cale-se, impostor! E continue vigiando. Esses guapecas, que o demônio confunda, têm orelhas grandes, e você uns pulmões fortes em excesso. É capaz de contar-lhes nossos segredos a um quilômetro de distância.

- Raios me partam! - grunhiu outro dos homens. - Estou farto! Seis horas dentro deste maldito buraco. Tenho fome, sede... e vontade de fazer outras coisas. Quando é que saímos daqui?

O barbudo riu atrás do seu parapeito. estrepitosamente:

- Ah ah! Vejam só que delicado. O Kobba tem vontade de "outras coisas"! Desde quando ir à privada se chama... ?

Suas palavras foram cortadas por uma rajada de metralhadora diretamente contra o parapeito que o protegia. Houve uma gargalhada geral en­tre os guerrilheiros. Kadar inquiriu, irônico:

- Você ainda está vivo, amigo? Tome cuidado, senão a sua mulher terá que procurar outro que lhe esquente a cama esta noite.

Todos silenciaram. O vigia resmungou ainda duas ou três pragas e cuidou de sua obrigação. Hamilton fez uma pergunta:

- Que pretendeu dizer, Kadar, com essa insi­nuação de que sou diferente dos outros guerri­lheiros.

Deteve-se. Uma leve intranquilidade mantinha-o sob tensão. Tinha tomado suas precauções até chegar onde se encontrava agora.

Encontrar a pista e segui-la, estabelecendo uma ligação com o FBI, era quase impossível. Mas os homens prudentes deixam sempre uma possibi­lidade ao erro e devem estar preparados para en­frentar o resultado de uma falha em seus planos.

Assim, Ben observou Kadar enquanto esperava a resposta. Tinham-se passado poucos dias desde que travara conhecimento com aquele homem, mas já sentia por ele um certo respeito. Reconhecia em Naam Kadar um verdadeiro lutador, dotado de inteligência suficiente para desempenhar o papel que o destino lhe reservara. Sua missão única era combater. E no cumprimento desta missão podia ser tão exato e eficiente como um tanque de guerra.

Além disso, Kadar possuía a qualidade de sa­ber mandar. Os homens que o seguiam mostra­vam-se capazes de todas as façanhas, movidos apenas pelo sentimento que Naam sabia despeitar-lhes, convencendo-os de que eram superio­res a seus inimigos.

O chefe dos guerrilheiros sacou de suas vestes um cachimbo enegrecido, representando a cabeça de um índio e encheu-o calmamente com o fumo verde produzido em sua própria terra, que todos os campônios argelinos utilizam. Acendeu-o e fu­mou em silêncio alguns instantes. Ao redor de sua cabeça formava-se uma nuvem de fumaça cin­zenta, na qual os raios moribundos do sol pu­nham reflexos dourados.

Falou por fim:

- Não sei explicar muito bem, Hamilton. Olhe: nossa luta é como a de uma formiga que ataca um urso. Sabe que logicamente deve perder, mas também sabe que se por momento deixa de ata­car está morta, sem escapatória possível.

Tirou o cachimbo da boca. Indicou com um gesto vago o resto dos guerrilheiros, que dormitavam, esperando que o anoitecer permitisse des­lizar através dos inimigos, burlando uma vez mais a vigilância a que estavam submetidos, Kadar prosseguiu:

- Esses homens são maravilhosos. Lutam há muitos anos para conseguir algo impossível para nós: a liberdade. Todos, estou certo, sentem no fundo de seus corações que os benefícios de um bem tão grande não serão para eles, que estão lutando em favor dos outros, dos que virão de­pois e colherão os frutos de seu sacrifício, de seu sofrimento constante. São os melhores com­batentes do mundo.

Em seus olhos ardia uma chama de orgulho e fanatismo. Ben estava pensando que aquelas pa­lavras eram as mesmas utilizadas pela parte con­trária. Possivelmente, algum chefe francês tam­bém contava a outro homem que seus combaten­tes eram os melhores, e que tinham plena cons­ciência do sacrifício que faziam em benefício das gerações futuras.

Ben possuía suas próprias idéias acerca de tudo aquilo. Mas não era o momento de expô-las.

A voz de Kadar fez-se ouvir novamente.

- Não posso negar que a frente mais impor­tante de todas está aqui, nas montanhas, onde em luta aberta ganhamos diariamente o direito à in­dependência. Entretanto... - Cravou os olhos no rosto de seu interlocutor. - Entretanto, qual­quer de nós é útil sabendo o suficiente para apertar um gatilho. Basta isso. E coragem. Há outros lugares, é claro, também muito importan­tes, onde são necessárias qualidades diferentes. Ali, os homens que conhecem o mundo, que possuem uma cultura, desempenham um papel de maior destaque. Esses homens não devem atuar fora de suas verdadeiras possibilidades.

Apertou o cachimbo entre os dentes. Sua ema­ranhada barba pareceu eriçar-se a um movimento da mandibula para diante.

- Significa tudo isso que você faz planos para mim, Barka?

- Talvez. De qualquer forma, esta noite, você saberá. Se esses cães aí em frente não encontra­rem maneira de mandar-nos para outro bairro.

Ficaram em silêncio. O enorme disco do sol ia desaparecendo agora atrás das montanhas. Pou­co a pouco, as sombras se haviam alongado, co­brindo vales e campinas.

De quando em quando, a metralhadora que os tinha fustigado durante todo o dia lançava uma rajada de chumbo que se perdia ao longe com melancólico ladrido. A serra abrupta que os ro­deava estava cheia de pára-quedistas, levando a morte no coração.

Mas não tinham tentado o assalto à colina, onde os cercaram pela manhã, já que sua posição era quase inexpugnável. Não havia ali árvores que atrapalhassem a visão. E aquele era o ponto mais elevado das circunvizinhanças.

Todos sabiam que, apenas caísse a noite, os milicos se arrastariam em direção àquele refú­gio. Mas também sabiam que Kadar não iria permitir que tal coisa acontecesse.

Kadar deu uma ordem:

- Vamos! Estejam todos preparados. Temos que sair daqui antes que eles comecem a mo­ver-se.

Sua silhueta perfilou-se, já meio apagada, quan­do se pôs em pé. Ben imitou-o, ao mesmo tempo que indagava:

- Por onde vamos escapulir?

- Você vem comigo. Saímos primeiro. Depois eles escaparão cada um por um lado.

Falava com indiferença, comentando um fato que aparentemente não tinha importância.

- Escute - disse Ben. - Isso não é justo, não lhe parece? Por que eles ficarão, enquanto nós escapamos? Têm o mesmo direito de conser­var a pele. Eu...

O cachimbo de Barka encostou-se em seu peito, obrigando-o a parar de falar.

- Diabo! - grunhiu o chefe dos guerrilheiros. - Você é um tipo raro. Às vezes, capaz de ar­riscar o pescoço como se estivesse louco. Outras vezes sai-se com essas idéias de velha chorona.

As palavras que lutavam por sair da garganta de Ben foram bloqueadas por um esforço de sua vontade. Não podia despertar suspeitas na mente de Naam Kadar. Para ele, cujo único objetivo era cumprir a missão de que o incumbira o FBI, aquele homem era a ponte que devia conduzi-lo à verdade.

Kadar prosseguiu:

- Aprenda isto de uma vez: as vidas não têm importância, nem lhes concedemos mais valor que o de sua utilidade. Não deixarei nunca que um de meus homens arrisque inutilmente sua pele. Mas se considerar alguma ação importante, não hesitarei em sacrificar quantos sejam neces­sários para realizá-la, compreende? - Concluiu de maneira incisiva. - Você tem que sair daqui são e salvo esta noite. Há alguém que deseja encarregá-lo de uma missão importante. Tirarei você daqui ainda que o céu desmorone.

Após um silêncio que sublinhou a energia de suas últimas palavras, ordenou:

- Vamos!

 

Emboscada noturna - Para-quedistas franceses na aldeia de Baã el Nass - Fala-se em Jack Durant

A noite caiu sobre a terra como um abutre sobre a presa. Engoliu as rochas, as árvores, os homens... e protegeu os que combatiam em seu intento de matar com impunidade.

Kadar e Ben Hamilton deslizaram pelo íngreme desfiladeiro que se abria numa das encostas da colina.

Atrás começaram a matraquear as armas auto­máticas com suas vozes secas. De quando em quando uma explosão mais forte abalava a terra, enviando ondas sonoras a distância.

Subitamente, Kadar agarrou o braço direito de Ben, imobilizando-o. Murmurou:

- Quieto!

Ficaram em silêncio, agachados, vultos que po­diam ser rochas, mas que se achavam dispostos a matar se fosse necessário.

Não longe produziu-se o ruído de pedras que rolam sob os passos de seres humanos. Hamilton surpreendeu-se ouvindo as batidas do próprio co­ração, que aceleravam seu ritmo. Não sentia medo. Era a exaltação do perigo, pois sabia que os homens que vinham eram os mesmos que os tinham acossado durante todo o dia.

Lentamente, uns metros à sua direita, viu des­lizar uma longa fila de sombras escuras, cami­nhando sigilosas. Moveu-se até ficar de frente para elas, apontando-lhes seu rifle automático. Novamente ouviu a voz de Kadar em surdina, como um sopro, apenas audível para ele:

- Não se mova!

Decorreram segundos angustiosos. Esperavam a cada momento o grito de alarma, indicando que tinham sido descobertos. Mas este não se pro­duziu. A escuridão tragou os inimigos em sua marcha silenciosa para a colina.

Esperaram ainda alguns instantes. De repente, no alto da colina onde estavam ainda os guerri­lheiros, irrompeu um inferno causado pelos im­pactos consecutivos de centenas de granadas. As armas automáticas disparavam num ritmo alu­cinante. As explosões sucediam-se sem cessar.

Kadar e Hamilton afastaram-se do lugar da ação. No íntimo do agente do FBI produzia-se um estranho fenômeno.

Nada o ligava àqueles homens que lutavam lá em cima. Unicamente um contato casual du­rante alguns dias. Mas uma raiva imensa o ator­mentava. Gostaria de voltar, combater junto com eles, morrer a seu lado.

Odiou Naam Kadar, enquanto caminhava distanciando-se do perigo. Odiou-se a si mesmo por ser incapaz de mandar ao diabo seus deveres profissionais. E também odiou os que lutavam e morriam para que eles pudessem escapar.

Chegaram ao pé de uma colina densamente co­berta de vegetação, a mesma que tinham contem­plado com olhos ansiosos durante as horas cruéis de sol implacável.

Kadar suspirou profundamente.

- Pelos chifres do diabo! - exclamou. - Pensei que não chegaríamos nunca. Às vezes...

- Quem vem lá? Alto!

Uma voz aguda perfurou a noite. Os dois ho­mens voltaram-se de salto em direção ao ponto em que ela soara. Várias sombras esboçavam-se na escuridão, protegidas por um grupo de árvores.

Kadar gritou, em tom de comando:

- Fuja, Hamilton! Depressa!

Alguém disparou. Uma bala cravou-se no corpo de Naam. Este, por sua vez, apertou o gatilho do rifle automático.

Ben Hamilton agiu velozmente. Atirou-se ao chão. A arma que apertava entre as mãos vomitou chumbo e fogo. Gritos de homens feridos mistu­raram-se ao estrondo das explosões.

Ben lançou uma granada. Viu um homem que caía e outros que procuravam salvar-se correndo. Aproximou-se do ponto onde Naam jazia imóvel. Levantou-o sem esforço, colocando-o sobre um ombro.

Sem perder um segundo, internou-se na es­pessura, caminhando ladeira acima e afastando-se do local da emboscada.

Vez por outra, ouvia atrás de si um disparo isolado. E fazia tempo que, no alto da colina, o combate terminara. Perguntou-se quantos de seus companheiros teriam conseguido sobreviver.

Caminhou sem cessar por muito tempo. Sabia para onde ir. Não longe dali estava a aldeia onde aquele árabe continuava a aparentar sua con­dição de camponês ignorante, preocupado unica­mente com a próxima colheita. No momento atual, inclusive, era ali o funcionário de mais catego­ria, eleito por seus concidadãos para exercer as funções de alcaide.

Deteve-se a pouca distância da aldeia, pois que ali se notava grande agitação. Era evidente que algo de anormal estava acontecendo. Não tinha dúvida quanto ao que poderia significar aquilo.

Tratava-se provavelmente de alguma incursão dos milicos, tentando capturar os guerrilheiros.

Subitamente chegou-lhe o som da voz de Kadar, cheia de tranquilidade, como se nada tivesse acon­tecido.

- Que está ocorrendo, Hamilton? Por que fi­camos aqui parados?

- Não podemos prosseguir no momento, Naam - respondeu. - Acho que os milicos estão em Bad e Nass. Temos que esperar.

Após alguns instantes, indagou:

- Como se sente, amigo? Pensei que tinha dado baixa definitiva.

Kadar riu.

- Você está louco, sem dúvida - murmurou.

- Por que me trouxe então com você? Tem ainda que aprender muita coisa...

Tornou a rir. Tinha razão. E aí estava o mau: ele tinha razão. Porque no código singelo daqueles combatentes a lógica imperava de forma absoluta.

Ben Hamilton, que se considerava duro e ex­perimentado, surpreendia-se a cada passo ante a dureza e experiência de seus atuais companhei­ros. Não disse nada.

Kadar acrescentou:

- Acho que me rebentaram uma veia, Ben. Enquanto esperamos, experimente fazer estan­car o sangue. Sinto-me cada vez mais fraco.

Tinha uma ferida no braço direito, que sangrava abundantemente. A lua, que se levantara esplêndida acima do horizonte, permitiu ao agente do FBI fazer o curativo. Terminado este, o árabe comentou:

- Gostaria de tomar um trago, amigo. So­brou-lhe alguma água?

Ben riu divertido.

- Não é em água que você leve estar pensan­do, Naam. Mas terá que conformar-se com ela.

- Que se pode fazer? - suspirou Kadar. Bebeu com ânsia. Depois ficaram em silêncio, escutando os rumores da noite, observando as idas e vindas dos indesejáveis visitantes da al­deia.

Pouco a pouco, entretanto, aquela atividade cessou. Os faróis de vários veículos perfuraram a noite, afastando-se para o vale.

Kadar decidiu:

- Bom, temos que ir. Vamos.

- Quer que o ajude?

- Não, que diabo. Fui ferido no braço. As pernas estão em perfeito estado.

Ben seguiu Kadar em silêncio. Este, após um momento, falou:

- Você é um bom rapaz, Ben Hamilton. Não pense que sou indiferente ao que fez por mim esta noite.

Ben nada respondeu. Depois de alguns minutos de marcha, perguntou:

- Ouça, Naam: quem é esse homem com quem vou falar?

- Não sei muito a seu respeito. Direi uma coisa apenas. Você vai meter o pescoço num laço muito pior que a guerra aberta, entendido? Quan­do Ferhat Abbas incumbe alguém de alguma coisa, esse alguém fica em posição tão confor­tável como se estivesse sentado num montão de carvões acesos.

Ben pensou naquelas palavras em silêncio. O nome de Ferhat Abbas tornava o assunto algo de primeira importância. Disse consigo que, segundo parecia, a sorte o estava ajudando. A sorte e o fato de que havê-lo escolhido o FBI para levar a cabo aquele trabalho na Argélia não era uma casualidade.

Justamente algumas das coisas que Kadar lhe dissera à tarde provaram o acerto do Federal Bureau of Investigation. Dissera bem Naam Ka­dar ao considerar que os homens do FBI deviam obter o máximo rendimento do material humano sujeito às suas ordens. Assim fazendo, ajudava-os a ganhar uma guerra que de outra forma teriam perdido irremediavelmente.

As primeiras casas de Bad el Nass surgiram diante deles como se repentinamente brotassem da terra. A aldeia estava silenciosa, mas para os nervos sensibilizados de Hamilton o silêncio que envolvia Bad el Nass estava carregado de tensão.

Ele parecia sentir como se o espírito dos ho­mens abrigados sob os tetos de palha daquelas choças formasse uma nuvem sombria, de tons avermelhados, que de um momento para outro descarregaria uma tormenta de sangue e vio­lência sobre a terra.

Atravessaram as silenciosas ruas poeirentas, esperando não ter-se equivocado ao deduzir que os milicos tinham abandonado o lugar. Tal racio­cínio tinha base em experiências anteriores. Os franceses procuravam fazer com que sua perma­nência naquelas aldeias fosse a mais breve pos­sível. Caso contrário, estavam expostos a uma rápida concentração dos homens da FLN, mes­tres em tal classe de surpresas.

Uma sombra surgiu subitamente diante deles. Kadar falou com voz tensa:

- Quem vem lá?

- Olá, Naam. Que aconteceu? Por que demo­rou tanto?

O recém-chegado era um homem alto, envolto num amplo "caftan" que lhe chegava até os joe­lhos. Kadar respondeu mal-humorado:

- Você fala demais, Ahmed. Veio o homem?

- Claro que sim. Verdade que esses mal­ditos, que Alá confunda, estiveram a ponto de descobri-lo. Mas a velha Murida o escondeu. Sabe onde? - Lançou uma gargalhada estentórea e concluiu: - Embaixo das saias. Ah-ah! Imagino que ele nunca mais esquecerá a Munira, não é mesmo?

- Onde está agora?

- No velho celeiro. Não fala muito. Ele...

- Ele não fala muito, Ahmed. Mas você sim. Algum dia o enforcarão por isso. Vamos!

Enquanto caminhavam, Ahmed ia contando, com minúcias, a incursão realizada pelos pára-quedistas. Segundo parecia, tinham perguntado pelo alcaide. O chefe muito se zangara ao saber que não estava. Disse que voltariam. Queriam falar com o alcaide para convencê-lo a denunciar os rebeldes. Ofereciam muito dinheiro aos possíveis informantes.

Acompanhava suas palavras com freqeentes exclamações a respeito de cães que lambiam as mãos dos odiados colonizadores. Ben achou que ele não era sincero.

E aparentemente sua opinião era comparti­lhada por Kadar, que acentuou:

- Claro que são uns cães os que vendem seus irmãos, Ahmed. Mas oferecem muito dinheiro, não é verdade? Você não sentiu desejos de ganhar alguma coisa?

O tagarela ficou calado, agora. Kadar concluiu:

- Já não fala tanto, hem? Bom, acho que você nunca será capaz de trair-me. E sabe por que, Ahmed? Porque embora você se escondesse na mais alta montanha ou no buraco mais fundo, seria encontrado e morreria no meio dos mais horríveis tormentos. Por isso você não me trairá, Ahmed.

Houve um silêncio. Os três homens tinham-se detido à altura das choças que marcavam o fim da aldeia.

- Agora suma de minha vista, Ahmed. Não gosto de tê-lo perto de mim. Você cheira pior que uma hiena.

Sem responder, Ahmed desapareceu.

- Bom - disse Hamilton. - Acho que você foi um pouco duro. Se pensa assim, por que mantém esse homem a seu lado? Algum dia ele o trairá, sem dúvida. E ainda que não o fizesse, de que serve um traidor em potência?

Continuando a caminhar, o árabe explicou:

- Não esqueça o que lhe disse acerca das condições da luta na Argélia. É possível que num país completamente civilizado, não submetido a tirania alguma, o que você diz seja certo. Mas aqui até os tipos repugnantes como Ahmed de­sempenham um papel nos acontecimentos. Esse abutre é homem de confiança dos franceses, com­preende? Enquanto esteja na aldeia e não fale, serve de escudo aos meus propósitos. O dia que falar... Bem, o mais que pode acontecer é que isso me custe o pescoço, mas neste meio-tempo eu vou fazendo meu trabalho. Isto é o que im­porta.

Outra vez a terrível crueza da realidade se fez patente a Ben Hamilton. Deu-se conta de que Naam Kadar e os homens que o seguiam tinham feito um sacrifício absoluto de suas vidas. Para eles, nada importava a não ser a vitória final. E para consegui-la qualquer sacrifício era bom.

Chegaram a uma construção de proporções maiores que as choças da aldeia. Sob a luz da lua, as fendas abertas pelo tempo em suas pa­redes semelhavam portas sinistras que davam ingresso a um mundo caduco e primitivo. Alguém saiu a recebê-los. Perguntou?

- É você, Naam?

- Sou. Boa noite, Hassan. Alguma novidade?

- Tudo bem. Trouxe Ben Hamilton? É esse que o acompanha?

Entraram no celeiro. Uma lâmpada a óleo iluminava cada um dos ângulos. Pó, teias de aranha, sujeira.

Ben observava agora o homem com quem devia entrevistar-se. Tornava-se este uma estranha apa­rição ali. Vestia-se à européia. Paletó e calça escuros, gravata cinzenta. Parecia um diplomata em visita protocolar. Era alto, esguio, de movi­mentos ágeis.

Unicamente seus olhos denunciavam a perso­nalidade que existia sob aquelas maneiras corre­tas. Eram como dois poços sem fundo, intensa­mente negros, contemplando o mundo de maneira fria, desagradável.

- Bem, este é Hassan Renard - disse Kadar. - Dele você receberá as ordens, daqui por diante. Procure demonstrar que não me enganei ao julgá-lo e sugerir seu nome para trabalhar num assunto delicado. É possível que não nos vejamos mais. Eu...

Hassan ergueu uma das mãos pedindo atenção

- Engana-se, Naam. Continuará trabalhando com Hamilton. Neste assunto cabe-lhe também um papel.

Ambos ficaram silenciosos, em atitude de es­cuta. Hassan prosseguiu:

- É um trabalho a ser realizado em Argel. Lá existe uma pessoa à qual devemos chegar por seu intermédio, Kadar. Você a conhece e ela a você. Sabe a quem me refiro?

Ben notou que Naam estava rígido. Era evidente que algo o emocionava sobremaneira. Murmurou:

- Fala de Leila, Renard?

- Evidentemente. Essa moça tem que ajudar-nos. Trata-se de algo muito importante. Ferhat Abbas em pessoa quer que se obtenham resultados rápidos. Por isso vamos empregar os meios mais decisivos.

Encarou Hamilton. Falou rapidamente em in­glês:

- Disse-lhe Kadar alguma coisa sobre o que pretendemos ?

- Nada, unicamente que sou necessário devido ao meu conhecimento de línguas. E também por outras qualidades menos pacíficas.

Renard mudou novamente de idioma, expressando-se agora em francês:

- Assim é, Hamilton. Este é um assunto em que devemos contar com homens capazes. Mas não apenas capazes de lutar. Homens dotados de bom intelecto. Infelizmente dispomos de poucos a quem recorrer. Temos magníficos lutadores, mas são simplesmente máquinas de matar.

Suas palavras adquiriram de repente maior velocidade ao voltar à língua árabe. Saíam de seus lábios como rajadas de metralhadora.

E o que disse fez com que se apoderasse de Ben Hamilton uma grande excitação. Porque se estava referindo a um homem chamado Jack Durant.

 

As risadas do mórbido "Papillon" - Um agente do FBI é assaltante - As coisas começam a formar sentido

“Papillon" ria à sua maneira perversa. As primeiras luzes da cidade começavam a acender-se, enquanto a noite caía rapidamente. Seu riso de anormal cessou de súbito, da mesma forma como tinha começado.

- É este o lugar, Leo. Pare!

Era uma transversal do Boulevard Lafarrière, escura e estreita viela ladeada de prédios de altura desigual e escadas ao ar livre, tão típicas em Argel.

Apeou-se do furgão. Nas mãos levava com cuidado duas granadas de plástico. Aproximou-se de uma lata de lixo. Deixou cair sua carga. Afastou-se a passos rápido. As granadas deviam explodir dentro de dois minutos. Tornou a entrar no furgão.

- Vamos!

Barnard comprimiu o acelerador. O veículo sal­tou para a frente como um potro esporeado.

Quando chegavam à rua Michelet, ouviram as explosões. Novamente espocou o riso de "Pa­pillon". Sua natureza equívoca encontrava um prazer esquisito em momentos como aquele.

Falou:

- Bom, meu amigo. Agora toque para o "haman" (x) Gilcourt. A "pílula" que vamos deixar lá é muito mais barulhenta. Espero que entretenha as patrulhas de vigilância enquanto termi­namos nosso trabalho.

Barnard não queria olhar para seu companhei­ro, não podia fazê-lo. Sem cessar, dizia a si mesmo que sua missão era descobrir os assas­sinos de Jack Durant e que nada do que acon­tecia naquele país lhe importava. Mas teria dado o braço direito para esmagar o repugnante sala­frário que ria a seu lado.

- Olhe só para isto!

"Papillon" mostrava uma granada de plástico dez vezes maior que as utilizadas anteriormente.

- O "haman" saltará em pedaços, não lhe pa­rece? Pena que não haja lá dentro muitas centenas de tipos. Seria uma boa carnificina, não é mesmo? De qualquer forma, teremos tempo para limpar a casa bancária do judeu. Deve haver lá um montão de dinheiro. E dinheiro sempre ajuda as boas causas, compreende?

O plano era simples. A granada que ia re­bentar no "haman" atrairia as patrulhas de vigi­lância do setor. Na casa bancária que se pro­punham assaltar havia unicamente um empre­gado, um velho que não representava obstáculo de qualquer espécie.

A casa de banho estava situada a meia altura da rua Medauar. No prédio fronteiro, a casa bancária.

"Papillon" não tardou nem um minuto em co­locar a granada de plástico. Voltou rapidamente ao furgão.

- Depressa! Vamos dar o fora daqui! Fizeram a volta da quadra. Barnard estacionou o veículo a poucos metros da casa bancária. Es­peraram impacientes. "Papillon" saltava sobre o assento, murmurando palavras soezes e maldi­ções, enquanto mordia as unhas.

De repente, o chão estremeceu. Uma explosão surda abalou em seus alicerces os edifícios ao redor. O tempo imobilizou-se por um instante. Em seguida, ouviram-se vozes excitadas, gritos, sirenas policiais que soavam estridentes na cidade aterrorizada.

"Papillon" ordenou:

- Vamos! Não podemos perder um segundo!

Um homem mostrou timidamente o nariz na porta da casa bancária. Justamente naquele mo­mento, "Papillon" lá chegava. Encostou o revólver que empunhava na barriga do velho. Ameaçou:

- Para dentro, Matusalém! Não fale nem se mova mais que o indispensável. Morrerá se o fizer!

O velho perdeu a côr. Obedeceu. Os dois ho­mens colaram-se atrás dele.

- Onde está o dinheiro?

Não esperou a resposta. Golpeou com raiva a cara do velho com o cano do revólver. Este reprimiu um grito e, se por um momento havia pensado em oferecer resistência, aquilo foi o bastante para dissuadi-lo.

Mobilizou-se com agilidade imprópria de seus anos. Conduziu-os por um estreito corredor até a casa-forte, que rapidamente abriu. "Papillon" emitiu seu risinho odioso:

- Ih, ih! Está vendo só, amigo? Não é possível contar com maiores facilidades. Inclusive está aberta a gaiola do dinheiro. Que lhe parece?

Levava uma porção de sacos enrolados na cin­tura. Barnard entrou na casa-forte, enquanto o terrorista ficava vigiando o empregado. Entregou-se à tarefa de encher os sacos com o dinheiro que ali havia. Assombrado, verificou que se sentia nervoso, necessitando dominar seus reflexos que o impeliam a correr. Liras, libras esterlinas, dó­lares, francos... Moedas de todos os países. Uma fortuna.

Acabou rapidamente. Um sorriso amargo distendia seus lábios. Às vezes o destino parecia divertir-se em preparar brincadeiras como aquela. Um agente do FBI colaborando ativamente num assalto. Mas assim eram as coisas...

Chegou-lhe a voz de "Papillon":

- Depressa! Não podemos ficar aqui o dia inteiro!

Apenas saiu, "Papillon" empurrou o velho para dentro da casa-forte. Logo trancou a porta e deslizou atrás de Barnard.

Fora, a cena não tinha mudado. Vários grupos de pessoas olhavam para cima e discutiam entre si. A mancha avermelhada de um incêndio ilu­minava o céu. O terrorista comentou:

- Bom truque, hem?

Uma vez no furgão, Barnard consultou seu relógio. O assalto completo durara apenas dez minutos. Fora um bom golpe.

- Bem, amigo. Ponha a geringonça em mar­cha. Temos que cair fora daqui. Vamos ao armazém. Depois, ao "Clube Vermelho". Preci­samos encontrar o Maurice e o Gerard. Outro trabalho em perspectiva. E ainda mais emocio­nante.

Barnard deu a partida, aguardando a possível aparição de um carro patrulha, temeroso do que poderia suceder. Não era medo da morte. Tra­tava-se de um sentimento mais complicado. Sim­plesmente: sentia o mesmo temor que qualquer fora-da-lei ao saber-se perseguido pela polícia.

Conduziu o furgão até o armazém onde os terroristas guardavam seu equipamento de ban­ditismo - os carros, as armas e o resto das ferramentas apropriadas às atividades específicas que desenvolviam.

Depois foram ao "Clube Vermelho". Tinha ali seu quartel-general o grupo de "Papillon" e seus amigos.

"Papillon" aproximou-se do balcão. Fez um sinal à garçonete, que se apressou a colocar diante dele uma garrafa de absinto. Aquele indi­víduo bebia sempre absinto. Barnard verificara que "Papillon" sempre se embebedava depois de cada operação. Assim, evidentemente, conseguia acalmar os nervos submetidos a uma tensão insu­portável.

Permaneceram silenciosos durante algum tem­po. "Papillon'' bebia sem parar. Por fim, recostou-se contra o balcão. Ergueu o copo e brindou:

- Pela guerra! Que não acabe nunca e tenha­mos sempre caça abundante!

Estava bêbado. Sua bebedeira era melancólica e traduzia-se finalmente por uma revelação de seus pensamentos íntimos.

Barnard compreendeu que aquele homem estava dizendo a verdade ao desejar que a guerra não se acabasse nunca. Para ele, uma situação excep­cional como a argelina era imprescindível. E não por gostar, como a ele próprio acontecia, da aventura e do perigo. Em seu caso tratava-se tão somente de amor à excitação, à luta, ao enfrentar outros homens e vencê-los.

"Papillon" não era assim. Aquele biltre neces­sitava da guerra para satisfazer uma psicologia contorcida, um desejo de fazer mal, de cometer crimes e deleitar-se com isto.

O terrorista apoiou-se em seu braço e aproxi­mou a cabeça, confidencial.

- Vou confessar-lhe uma coisa - murmurou. - Você é um tipo formidável, Leo. Os outros... bah! São uns jumentos destituídos de inteligên­cia. Você e eu vamos fazer grandes coisas. Não me olhe como a um bicho raro. Você sabe lutar. Vamos fazer grandes coisas.

Bebeu o que restava em seu copo. Bateu sobre o balcão chamando a garçonete. Leo olhou para esta acariciando-a com a vista. Loura, ancas opu­lentas, movimentos sinuosos e sorriso insinuante. "Papillon" não lhe dirigira sequer um olhar.

Com o copo novamente cheio, ele prosseguiu:

- Esta noite temos um trabalhinho. Um trabalhinho muito especial, dos que me agradam. Dois porcos piolhentos da FLN irão reunir-se a Alá e às huris.

Leo ofereceu-lhe um cigarro, que ele acendeu dificultosamente. No meio de uma baforada de fumaça, deixou escapar um risinho nervoso. Con­tinuou murmurando:

- Ah! Sabe de uma coisa? Um deles é um norte-americano. Imbecil! Enganou os rebeldes e pensa que conseguirá enganar-nos também. Um "tira", um tipo do FBI! Como no cinema! Ah-ah!

Barnard ouvia-o com enorme surpresa. As pa­lavras de "Papillon" sugeriam algo do importan­tíssimo.

Teria Ben Hamilton sido assinalado aos terro­ristas "ultras" como agente do FBI? Sim, isto parecia evidente. Mas como era possível seme­lhante coisa?

Manteve-se em silêncio. Não queria interromper o bêbado. Este, satisfeito consigo mesmo e com sua inteligência, queria assombrar seu compa­nheiro. Continuou falando:

- Hem? Que lhe parece? Enviaram aqui um espião para que descubra quem matou um pobre coitado que se chamava Durant. Um sujeito avantajado. Morreu há uns dois meses. Metemos... meteram-lhe uma dúzia de balas na barriga. San­grava como um porco... Ele tinha que ser morto. E também a garota. Começava a tornar-se peri­gosa para todos. As mulheres sempre são um pe­rigo, não é mesmo?

Pouco a pouco, as palavras de "Papillon" iam-se transformando num murmúrio confuso. Tornou a esvaziar o copo. Acabou por inclinar a cabeça e apoiá-la sobre o balcão.

A mente de Barnard trabalhava em ritmo ace­lerado. Subitamente, a missão de que fora incum­bido parecia atingir sua fase final. Conhecia agora a identidade dos homens que tinham sido os au­tores materiais da morte de Jack Durant.

O espirito conturbado de "Papillon" tinha dado a chave. Justamente o grupo de pistoleiros a que se tinha unido fora o executor daquela tarefa. Isto claramente se deduzia do que havia dito "Papillon".

Por outro lado, não o surpreendia que "Pa­pillon" e seu grupo fossem os assassinos. O crime tinha praticamente a assinatura deles. Na realidade, não eram senão uns "gangsters" pagos por alguém para cometer delitos.

Não obstante, tornava-se necessário continuar a investigação. Ainda desconhecia a identidade da pessoa que, na sombra, movia os fios da in­triga.

A garçonete aproximou-se ondulando as ca­deiras voluptuosamente. Comentou:

- Até que enfim! Estava estranhando que esse tipo se aguentasse por tanto tempo. Apagou-se por completo, não?

- Escute, benzoca. Que é que se faz quando ele fica assim?

- Por mim, jogava-o na lata de lixo. Mas é amigo do patrão. Há um quarto lá em cima para onde pode levá-lo. Não será a primeira vez que esse... "Papillon" cozinha aqui a bebedeira.

Havia um tom de forte desprezo na voz da mulher, sublinhando o sentido de suas palavras.

Barnard levantou "Papillon" sem o mínimo esforço e, seguindo as indicações da garçonete, levou-o até o quarto do andar superior. Havia uma série de quartos cuja justificativa eram os turistas que em tempos idos surgiam em busca de côr local e, ao mesmo tempo, de outras "especia­lidades" argelinas.

Deixou-o placidamente adormecido. Desceu no­vamente ao salão do bar. Consultou o relógio. Tinham uma entrevista dentro de poucos minutos com o resto dos homens. Pensou que não tarda­riam a chegar.

O "Clube Vermelho" era um ambiente decorado com fantasia surrealista, onde a luz do sol não havia penetrado jamais. A clientela era escassa. Tipos estranhos que imitavam na maneira de vestir as audácias mais avançadas de Paris, bar­budos e cabeludos cuja aspiração era lavar-se o menos possível.

Pediu um uísque enquanto meditava. Tornava-se imperativo avisar Ben Hamilton do que ocorria. Mas isto era simplesmente impossível. Não sabia em que lugar seu companheiro poderia encontrar-se agora, nem a missão que estivera desempe­nhando.

Do que dissera "Papillon", devia deduzir a presença de Ben na cidade. Tinha que encontrá-lo sem demora. Do contrário...

A entrada de Gerard e Maurice no "Clube Ver­melho" interrompeu seus pensamentos. Os recém-chegados vieram ao seu encontro.

Maurice, depois de olhar ao redor, perguntou:

- Onde está o "Papillon"?

Com o polegar, Barnard indicou o pavimento superior.

- Lá em cima. Está bêbado como um gambá.

- Essa agora! Por que o deixou beber? Temos um trabalho para esta noite. Você não sabia?

Barnard encolheu os ombros.

- Acha-me com cara de ama-seca? E é ele quem manda, não? Além disso, falta ainda muito tempo. Bastará metê-lo embaixo do chuveiro.

- Raios me partam!

Depois desta exclamação, Maurice ficou em silêncio. Seu rosto parecia a inexpressiva máscara de um gorila. Podia observar-se o lento trabalho de sua mente, que o obrigava a contrair as sobran­celhas, penosamente.

Por fim, falou:

- Bem. Terá que ser feito assim. Os tipos que devem ser liquidados já chegaram. Apanharão a garota e darão as caras no lugar combinado. Raios me partam!

Aquilo era uma espécie de charada para Bar­nard. Mas aparentou estar ao corrente do assunto.

- Você tem razão - afirmou. - Não podemos deixar passar esta oportunidade. Onde estão eles agora?

Aguardou a resposta anelante. Aquela era sua oportunidade de localizar Ben Hamilton. Mau­rice ofereceu a informação sem dificuldade.

- Estão hospedados num hotel da Avenida dos Cedros. Perto do cemitério israelita.

Barnard reprimiu a satisfação que sentia a fim de que não transparecesse em sua voz:

- Bem. Que fazemos ?

Gerard interveio. Seu falar era rouco, pausado. Sugeriu:

- Talvez convenha deixá-lo dormir por duas horas. Depois o despertaremos de qualquer ma­neira.

- De acordo. Faremos assim Maurice interpôs:

- E se os malditos escapulirem? Podem lar­gar-se do hotel e então...

- Então, quê? Não é lá que vamos eliminá-los. Sabemos o lugar do seu encontro com Leila Saad. Será a última coisa que farão na vida.

Gerard soltou uma gargalhada. Bateu no balcão. Pediu uma bebida. Maurice fez o mesmo.

Leo voltou-se para beber, de um trago, o que restava do uísque em seu copo.

As idéias galopavam em seu cérebro. Aquele nome de Leila Saad trouxera-lhe a lembrança de Mirna, a jovem que morrera um pouco depois do assassinato de Jack Durant.

Seu sobrenome não era também Saad? A excitação do caçador que está próximo à presa apo­derou-se dele. Tudo ia se enlaçando. Examinou seus compa­nheiros através das pálpebras semicerradas. Tinha que procurar um pretexto para utilizar o telefone e pôr-se em contato com Hamilton. Dis­sera o Maurice que ele estava hospedado no Hotel dos Cedros. Bem. Não seria difícil avisá-lo. E depois...

 

A sombra da tragédia envolve Leila Saad - O ódio de Jean Manker determina o extermínio dos "ultras"

Leila saad achava-se dominada pelo medo. Um medo profundo, que mantinha seus nervos sob tensão e fazia-a pressentir ao redor de si es­tranhas sombras ameaçadoras.

Como um raio num céu sereno, a morte de Mirna tinha-a surpreendido. Aquele terrivel acon­tecimento dava a medida exata dos perigos a que ela própria estava exposta. A qualquer mo­mento poderia ocorrer-lhe o mesmo que à irmã.

Não era uma brincadeira a situação argelina. Anos atrás, ao iniciar-se a guerra que agora cruelmente assolava o país, tinha podido pensar em termos de romantismo.

Era como se estivesse vivendo uma daquelas novelas que gostava de ler quando mais jovem, com rapazes heróicos lutando pela independência de sua pátria e belas jovens cheias de idealismo ajudando-os em seus esforços.

A própria morte, vista em semelhantes pers­pectivas, parecia rodeada de um halo de glória, que atenuava seu perfil trágico.

Agora... Cada vez que pensava na situação um estremecimento sacudia seu corpo. Fantas­mas horríveis erguiam-se a seu lado, seus ouvi­dos captavam vozes sussurrantes que exigiam mais e mais sangue, sacrifícios humanos, não importava de quem ou de onde.

Nada podia fazer, entretanto, para modificar o destino. E talvez, se uma oportunidade de con­servar-se à margem dos acontecimentos se lhe apresentasse não a aproveitaria, já que, apesar de tudo, aquilo que começara como aventura ro­mântica, sonho fantasioso de mocinha, constituía-se agora em parte inseparável de seu ser.

A Argélia devia ser libertada! Seus filhos, to­dos eles, brancos ou de cor, sem diferença algu­ma, deviam ser salvos para o futuro.

Não obstante, a horrorosa morte de Mirna era uma lembrança pungente para Leila. Não podia afugentar de seu espírito a suspeita angustiante de ter sido a causadora daquele funesto desfe­cho. Constantemente  perguntava a si  mesma,sem que pudesse obter resposta, qual a razão do assassinato da irmã.

Dizia consigo que Mirna jamais tivera con­tato com a violência. Era uma jovem meiga, tranquila, preocupada tão somente com assuntos femininos.

Talvez, nos últimos tempos, Mirna se mostrasse inquieta, ensimesmada, vivendo um momento que a afastava de Leila. Mas isso parecia natural. A situação em Argel obrigava cada um a preo­cupar-se. A vida, o futuro, uniam-se aos aconte­cimentos por um fio tênue, que a qualquer mo­mento se podia romper.

Leila pressentia que a única razão do assassínio de Mirna devia ser procurada nas atividades dos que a rodeavam, naquela luta fratricida que diariamente ensanguentava as ruas da cidade.

Sim, Mirna tinha estado preocupada. E, tanto quanto ela, a outra pessoa que ocupava o pri­meiro lugar no coração da jovem. Os pensamen­tos enredavam-se em seu cérebro como serpentes de cores sombrias.

Jean Manker! Outro remorso para Leila. Como estava pagando mal a bondade, o carinho, os desvelos de seu idoso protetor!

Porque, na realidade, nem Mirna nem Jean eram sua verdadeira família. Na verdade, o des­tino fora avaro com Jean Manker. Levado por seu grande coração, homem solitário que jamais conhecera o amor, quisera encher o vazio de sua existência perfilhando as duas jovens. Recolhera-as quando ainda meninas, criara-as, mimara-as... obtendo em troca o desastre atual.

Desde o dia em que Jean descobrira suas ativi­dades em prol da libertação da Argélia, pareceu que suportava sobre os ombros um peso superior às suas forças. Caminhava curvado, seus olhos não se erguiam do chão e ele mantinha-se cala­do, embora seu silêncio fosse bastante eloquente.

Apenas formulara um pedido. Dissera:

- Não deixe que Mirna venha a saber. Não deixe que ela se envolva, Leila. Essas coisas... Bem, ela não deve sofrer por algo que não com­preende. Seria horrível, você não acha?

E agora... Mirna assassinada selvagemente! Como pudera ocorrer tal coisa? De que modo aquela jovem fora enredada em tão dramático assunto como o crime cometido contra o ameri­cano Jack Durant?

Nunca compreendera o ocorrido. Afirmara a polícia que Mirna costumava sair com aquele homem, que fora vista com ele na noite em que o mataram. Era impossível, impossível!

Desde então os olhos de Jean cravavam-se fur­tivamente em Leila, com desesperante frequência.

Ele nada dizia. Nenhuma censura. Nenhuma queixa. Inclusive continuava ajudando-a com seus conselhos. Porque o intelecto de Jean Manker era agudo como um estilete, e seu conhecimento da vida superior em todos os aspectos.

Paulatinamente, Jean fora-se transformando em elemento ativo e importante dentro das células estabelecidas na cidade pela FLN.

Pouco a pouco, pensava Leila, sua influência ia dominando todas as pessoas que tinham algum contato com ela. A tranqüila existência de Jean era conturbada por seus manejos. Um homem velho obrigado a atuar em meio à violência e o terror.

Claro que a atividade de Jean tinha-se incre­mentado a partir da morte de Mirna. Tal como Leila, ele deduzia que o crime tinha sido praticado pelos "ultras". Desejava, pois, vingar-se.

Ela fechou os olhos. Não desejava ver refletido no espelho, diante do qual estava há alguns minutos, aquele rosto cansado, aqueles olhos que tinham um brilho febril.

Terminou rapidamente de pentear-se. Despiu  o| vaporoso negligée que a envolvia como uma carícia. Durante breves segundos esteve semi-nua. Sua carne jovem, dourada pelo sol, estremeceu ligeiramente. Sentia-se invadida por intensa amargura. Já nunca poderia conhecer as carícias de um homem apaixonado. O sangue e o ódio punham sua marca sinistra nas criaturas.| Acabando de vestir-se, abandonou o quarto.| Percorreu a casa silenciosa,  sempre escoltada pelos  sombrios   pensamentos que  de contínuo assediavam-lhe a mente.

Ali tivera seu único lar, um pai e uma irmã.

Não importava que nenhum laço de sangue ligasse aqueles seres: Constituíam o núcleo de seu carinho. E sua ânsia de amor, que a levara a unir-se aos que estavam lutando pela liber­dade da terra onde tinham nascido, encontrava leve compensação em Jean e Mirna.

Chegou ao escritório de Jean. Como o resto da casa, estava vazio. Ali também a lembrança de Mirna imperava. A imagem da jovem sorriu para Leila da moldura dourada que havia sobre a escrivaninha.

Ouviu o ruído da porta da rua ao fechar-se. Depois os passos de Jean, aproximando-se. Pas­sos que teria reconhecido em qualquer circuns­tância. Possuíam uma singular qualidade de le­veza. Dir-se-ia que ele caminhava como os gatos, sem que seus pés levantassem qualquer eco.

Manker entrou. Seus lábios pousaram-se sua­vemente nos cabelos dourados de Leila.

- Olá, querida. Como está passando?

Lembrou-se Leila de que na noite anterior pre­textara uma forte dor de cabeça para não ficar a sós com o ancião.

- Oh! Não era nada, realmente. Estou muito bem.

Continuou falando para evitar novas perguntas:

- Por que saiu tão cedo hoje, Jean?,São ape­nas dez horas da manhã. Você...

Calou-se. Seus olhos contemplaram Jean com assombro. Este se aproximara da porta do escri­tório e fechava-a com precaução.

O fato de não haver mais ninguém em casa parecia não lhe importar com relação às medidas de sigilo que adotava. Voltou-se para a jovem. Seus olhos claros, sob os supercílios brancos, es­tavam brilhantes, cheios de entusiasmo.

- Escute, Leila - disse exultante: - sei quem são os assassinos! Consegui descobrir! Agora não poderão escapar ao castigo que merecem. Esses malvados morrerão. Está compreendendo, Leila? Sei quem são eles!

Estava fora de si. Leila pensou que talvez ti­vesse ficado louco. E tal pensamento devia ter-se refletido claramente em sua expressão, pois Jean apressou-se a dizer:

- Não, Leila, não fiquei louco, embora talvez esteja um pouco transtornado. Mas sei o que digo. Descobri os homens que assassinaram Mirna!

Era a primeira vez que se pronunciava entre os dois o nome de Mirna, depois do crime. Leila estremeceu ao impulso de uma emoção profunda. A ira apoderou-se de seu coração. Gritou:

-É verdade? Conhece os criminosos que...?

Deteve-se. As palavras pareciam bloquear sua garganta. Eram como tampões de ódio que a im­pediam de falar.

Jean prosseguiu, a cabeleira branca revolta, as mãos, aquelas mãos que Leila sempre vira fa­zendo o gesto de dar, generosa e largamente, crispadas como garras:

- Não estive inativo todo este tempo, Leila. A princípio... - Um olhar furtivo deslizou de seus olhos para a filha adotiva. - A principio cheguei a ter ódio de você. Para mim, você era culpada do que sucedera a Mirna. Você e esses guerrilheiros com quem se uniu. Pensei... Bem, foram uns dias terríveis.

Endireitou as costas que, enquanto pronuncia­va as últimas palavras, tinham-se arqueado. No­vamente, mostrou-se cheio de uma alegria triunfante.

- Mas logo compreendi que era injusto. Não se pode condenar ninguém por defender um ideal. Tornei-me consciente de que eu mesmo, que de início a ajudara por tratar-se de você, agora sentia como própria a causa pela qual estávamos lutando. Afinal de contas, tão culpável podia ser eu como você do que sucedera. Assim, deixei de lado as lamentações e agi. O resultado é o que lhe disse. Conheço os homens que mataram Mirna!

- Que pensa fazer?

Jean refletiu uns instantes. Depois indagou:

- Escute, não é hoje que você tem uma en­trevista com Náam Kadar?

- É.

- De que assunto tratarão nessa entrevista?

- Não sei ao certo. Mas trata-se desses gru­pos "ultras" que estão atuando em Argel e que, como sabe, constituem simplesmente uma qua­drilha de criminosos. Ao que parece, Ferhat Abbas quer desmascarar o chefe desses terroristas, o homem que se esconde na sombra. Kadar vem acompanhado de outra pessoa. Segundo consta, devemos trabalhar os três juntos. Houve um silêncio, que Leila rompeu por fim:

- Que relação tem a vinda de Kadar com o assassinato de Mirna? Acaso... ?

Uma categórica inclinação de cabeça do velho fêz que parasse de falar.

- Claro que há uma relação, Leila - afirmou Manker. - Esses "ultras", os assassinos a que você se referia, são os mesmos que mataram Mirna. Ao menos assim creio. Portanto, minha descoberta tem a dupla vantagem de fazer com que possamos vingar Mirna e cumprir a missão de que Kadar está incumbido.

- Quem são esses homens, Jean?

- Houve uma curta hesitação por parte do velho. Depois declarou:

- Não lhe direi... ainda. Aproximou-se de Leila. Prosseguiu:

- Ouça-me com atenção. Fale com o Kadar. Comunique-lhe o que eu disse. Depois, volte para casa. Espere. A qualquer momento chamarei pelo telefone. Então lhe direi os nomes desses malva­dos e também o lugar onde estarão esta noite. Poderemos preparar-lhes uma armadilha. Nenhum escapará, entende? Nenhum.

- Mas...

- Nem mais uma palavra. Há de ser assim. Um acento de ódio infinito impregnou agora suas palavras:

- Quero que esses cães morram. São uns as­sassinos sem piedade, indivíduos monstruosos que devem ser exterminados como feras. Diga-o a Ka­dar. Todos devem morrer!

Terminou de falar e encaminhou-se para a por­ta. Pela primeira vez na vida, Leila sentiu medo.

Um sentimento terrivelmente violento, de ódio e furor, tinha palpitado na voz de Jean Manker.

 

Acelera-se o ritmo de um coração - Fecha-se o cerco em torno de um desconhecido - Uma galinha molhada sai do chuveiro

A casa parecia estar viva, cheia de rumores misteriosos, como se as paredes, os pisos, os móveis quisessem enviar uma mensagem à mu­lher que esperava impaciente.

O circulo de luz da lâmpada de mesa caía dire­tamente sobre a mancha negra do telefone.

Leila permanecia imóvel, o corpo relaxado, es­perando a chamada que devia pôr em movimento as forças malignas da destruição.

Fazia horas que regressara de sua entrevista com Naam Kadar e Ben Hamilton. E ainda não saíra de seu assombro. Porque a missão que Ka­dar devia levar a termo era, precisamente, aquela que iria ser concluída nas próximas horas: des­cobrir os homens que tinham assassinado Jack Durant e também Mirna Saad.

Parecia estranho como o acaso reunia os fios dos acontecimentos para formar uma trama per­feita.

Agora faltava somente o último ato da tragé­dia. Um telefonema que cumprisse a promessa de Jean. E os assassinos pagariam sua dívida de sangue com sangue.

Moveu-se inquieta em sua poltrona. Um senti­mento inusitado havia-se introduzido em seu co­ração. Motivava-o Ben Hamilton. Nunca antes ti­nha conhecido um homem que a pudesse preo­cupar tanto como aquele.

Rememorava sem cessar seu rosto enérgico, o olhar profundo de seus olhos pretos, que se cra­vavam nela e pareciam dotados do poder de adi­vinhar seus pensamentos.

Até então, Leila considerara os homens como simples camaradas, companheiros admiráveis nas horas amargas da guerra. Mas Ben Hamilton...

O ritmo sempre tranquilo de seu coração ace­lerava-se ao pensar nos braços poderosos de Ben estreitando-a com ardor. Parecia-lhe sentir o con­tato de seus lábios, a pressão de seu corpo atlé­tico ...

A campainha do telefone causou-lhe um so­bressalto. Deixou que tocasse várias vezes. De­pois atendeu.

A voz de Jean chegou-lhe da distância, tênuemente:

- Leila?

- Jean?

- Escute, querida. Está pronto. Tudo acabará esta noite. Sei onde vão reunir-se. Falou com o Naam?

- Claro que sim. Mostrou-se de acordo. Sua missão é precisamente encontrar esses homens.

- Ótimo! Diga-lhe que estou no "Richmond". Espero no bar. Traga os dois até aqui. Lhes darei a informação.

Leila hesitou um momento. Depois concordou:

- Está bem. Assim farei.

Ouviu que ele desligava. Desligou por sua vez. Saiu da casa sem olhar para trás.

Naam Kadar, ataviado num trajo europeu, a pele morena do rosto semi-oculta pela emara­nhada barba, sorria com ferocidade.

- Pelos chifres do diabo! - grunhiu. - Isto se chama ter sorte, hem? Vamos resolver o caso sem trabalho algum. Esse Jean Manker é uma jóia, não?

Ben Hamilton inclinou a cabeça em sinal de assentimento. Mas na realidade não escutava seu companheiro. Estava analisando sem cessar a in­formação que pouco antes Leo Bárnard lhe pres­tara pelo telefone. Segundo parecia, sua identi­dade como agente do FBI já não era segredo. Entretanto...

Achavam-se no quarto que ambos ocupavam no "Hotel dos Cedros". Kadar tinha a seu alcance uma garrafa de cerveja. Quanto a ele, tomava gin com limão.

Havia em tudo aquilo uma série de coincidên­cias que o mantinham alerta.

Ben era um caçador de homens. Ao longo de sua vida, em seu trabalho como agente do Fe­deral Bureau of Investigation, aprendera a des­confiar da casualidade.

Tudo estava saindo demasiado bem. E pare­cia-lhe que, um por um, todos os movimentos que se dispunham a executar tinham sido sin­cronizados, a fim de conduzi-los em determinada direção.

Naam tornou a falar, impaciente:

- Que há com você? Não lhe agrada comer um pastel com tanta facilidade?

Esteve a ponto de fazê-lo compartir seus pen­samentos. Desistiu, entretanto. Não era aquele seu papel. Desconhecia os atores do drama. Pa­recia coisa fácil desconfiar.

Mas Leila Saad e Jean Manker eram elementos ativos, que há muito tempo lutavam nas fileiras da FLN. Logicamente deviam possuir uma ex­periência que os capacitasse para a tarefa que desempenhavam.

Ouviu agora uma gargalhada reprimida de Naam. Olhou-o com assombro.

- Bem - disse Kadar. - Pensa você que não sei o que lhe acontece? É essa moça, hem? Ah-ha!

Você não é o primeiro que se deslumbra ao vê-la. Mas não vai conseguir nada. Leila só pensa numa coisa: a luta. Ela...

Deixou novamente de ouvi-lo. O rosto de Leila Saad surgiu com traços nítidos em sua memória. Sim, talvez aquela sensação procedesse, justa­mente, do choque experimentado ao vê-la.

Era uma mulher maravilhosa. Evocou seu corpo suave, de curvas feitas para a carícia, os lá­bios vermelhos, os cabelos dourados, que provo­cavam um prurido em suas mãos incitando-as a mergulhar neles e sentir seu contato sedoso.

Não lhe agradava experimentar uma sensação como aquela. As mulheres tinham sido algo dis­tante de sua vida. E agora...

A campainha do telefone, colocado sobre a mesinha que havia entre as duas camas, interrom­peu o curso de seus pensamentos.

Naam, sem abandonar a posição em que estava, espichado numa das camas, levantou o fone. Aproximou-o do ouvido. Escutou alguns instan­tes, respondendo com monossilabos. Deixou de­pois o aparelho sobre o suporte.

- Quem era? - indagou Ben.

- Leila. Temos que reunir-nos com Jean Man­ker no "Richmond". Está à nossa espera. Tem a informação.

Levantou-se. Sempre assombrava Ben Hamil­ton a capacidade daquele homem para recuperar instantaneamente seu poder de ação.

Por sua vez abandonou a poltrona em que estivera sentado. Saíram.

Maurice, cujo rosto simiesco parecia transfi­gurado pela bebida, disse:

- Bom, está na hora de acordar o rapazinho, não lhes parece?

Barnard aquiesceu. Desceu do tamborete que ocupara junto ao balcão do "Clube Vermelho" durante algumas horas intermináveis. Sorriu para a garçonete dos quadris rebolantes. Seguido de Maurice e Gerard, subiu a escada que conduzia ao quarto onde "Papillon" dormia, cozinhando sua bebedeira.

Não foi tarefa simples despertá-lo. Mal conse­guiam colocá-lo de pé, seus joelhos dobravam-se e ele tornava a cair.

Barnard começava a cansar-se daqueles indi­víduos. Manejou o afeminado sem mais contem­plações. Levantou-o sem esforço e levou-o para o chuveiro contíguo. Abriu as torneiras. Satisfei­to, observou como a chuva de água fria ia empapando a roupa de "Papillon".

Maurice emitiu um grunhido:

- Diabo! Tem menos carne que um telegrama. Parece uma senhorita, não é? Não fosse pelo...

Cortou suas palavras encaixando com ruído seco as mandíbulas. Leo sabia o que o terrorista queria dar a entender

Era algo evidente. Aquele tipo, "Papillon", cons­tituía a prova absoluta de um equivoco da natu­reza. Todos os seus traços, inclusive muitas de suas reações, pertenciam ao sexo contrário. O fato de que ocupasse um posto entre os homens devia-se exclusivamente à coragem, à fria e de­sumana ferocidade que demonstrava.

"Papillon" estremeceu e tentou escapar de sob o chuveiro. Sua vozinha aguda elevou-se indig­nada:

- Porcos asquerosos! Mando todos para o in­ferno! Mato um por um...!

Maurice soltou uma de suas gargalhadas bru­tais. Mantinha o empapado "Papillon" firmemen­te seguro. Disse:

- Vamos, Gerard, Barnard, ajudem-me! Te­mos que tirar-lhe até a última gota de álcool da barriga!

Certamente Maurice não precisava da ajuda que pedia. Porém, uma vez mais, o agente do FBI viu confirmado o medo que aquele sujeitinho inspirava a seus homens. Maurice, inclusive na­quele momento, requeria o apoio moral dos ou­tros dois, prevendo a reação violenta do chefe.

A luta durou ainda alguns minutos. Finalmen­te, Leo achou que "Papillon" já despejara o bas­tante para poder enfrentar suas responsabilida­des.

O criminoso saiu do chuveiro com a aparência de uma galinha molhada. Maurice e Gerard riam. Barnard, com grande esforço, manteve um ar sério. Mas o riso de seus cumpinchas cessou bruscamente sob o peso do olhar maligno que "Papillon" lhe dirigiu.

Logo deixou ouvir sua vozinha aguda, trêmula de cólera:

- Bem, quem foi o infeliz autor da brincadei­ra? Deus! Meto-lhe um quilo de chumbo nas tripas! Mato-o como um cão! Eu...!

Durante alguns instantes sua raiva extravasou. Intimamente, Barnard considerou o domínio fér­reo que "Papillon" possuía sobre o resto dos agitadores. Tinha-o visto atuar, durante os úl­timos dias, com outros homens de ação perten­centes às fileiras dos "ultras", e sempre de ma­neira igual, rude e violenta.

- Sinto muito, amigo. A idéia foi minha. Estes nada têm a ver com o banho. Apenas me aju­daram.

Os olhinhos carregados de malignidade fixa­ram-se nele.

- Acaso está cansado de viver, Barnard? - disse "Papillon" entre os dentes. - Que o diabo o carregue! Vou...!

Naquele momento decidiu o agente do FBI marcar a diferença existente entre ele e os ou­tros dois "pelegos". Em suas palavras havia ago­ra uma nota ameaçadora. Mantinha as mãos com o dorso voltado para a frente, prontas para a ação. Disse:

- Que pretende fazer, Meio-Homem? Acha que terá tempo de matar-me?

Moveu velozmente o braço direito em direção à axila do lado oposto. Em sua mão apareceu uma pistola. Acrescentou:

- Não seja louco, "Papillon". Nenhum de vo­cês poderia matar-me, nem em mil anos, a me­nos que me surpreendesse dormindo, está enten­dendo?

As roupas grudavam-se ao corpo de "Papillon", revelando sua esquálida anatomia. Em compara­ção com seus companheiros habituais, Maurice e Gerard, parecia ainda mais débil.

Entretanto, Leo Barnard não o subestimava. Sabia-o tão perigoso como uma vibora, capaz de atacar com terrível ferocidade e de improviso. Após alguns instantes de silêncio, os finos lábios de "Papillon" curvaram-se num sorriso acre.

- Você tem razão, Barnard - murmurou - muita razão. Não poderíamos matá-lo, a não ser que as circunstâncias fossem outras. Mas, quem fala aqui em matar? Acaso não somos seus ami­gos? Trabalhamos juntos, não?

Voltou-se para os silenciosos bandidos, que ti­nham presenciado a cena imersos em infinito assombro. Gritou:

- Vocês, imbecis, que fazem aí de boca aberta? Vão buscar roupa. Não é muito longe meu apar­tamento. Depressa!

Maurice e Gerard desapareceram a toda a velo­cidade. "Papillon", depois de apanhar um lençol da cama desfeita, meteu-se novamente no com-partimento do chuveiro.

Barnard tornou a ouvir a água jorrar. Sentou-se e esperou com paciência. Por fim, "Papillon" reapareceu envolto no lençol, como numa toga romana.

Mantiveram-se em silêncio durante alguns ins­tantes. Finalmente, "Papillon" rompeu-o, enquan­to sentava-se sobre a cama.

- Bem - disse. - Agora que não estão aqui aqueles idiotas, diga-me o que pretendeu com semelhante brincadeira.

- Raios! - exclamou Barnard. - Você ainda está bêbado? Núo foi brincadeira alguma, com os diabos! Fiz-lhe um favor, ou pelo menos assim penso. Não se lembra do que disse?

Uma expressão compreensiva ia aparecendo no rosto de "Papillon".

- Tínhamos um trabalho esta noite, não é assim? Algo de importante, segundo você disse. Sabe a que horas é?

Viu a cara de "Papillon" mudar num segundo. Pela primeira vez, nela transparecia uma expres­são de medo.

- Céus! - murmurou. - Você tem razão. Eu...

De repente, pôs-se de pé. Envolto no lençol, parecia a múmia de um faraó pobretâo.

- Vá para o inferno, Barnard! - gritou. - Por que me deixou dormir tanto tempo? Estou perdido! O chefe não perdoa os que fracassam! Mandará alguém me matar! Tão logo saiba que...!

Barnard levantou a mão, obrigando "Papillon” a calar-se.

- Calma - recomendou. - São sete horas apenas. Suponho que teremos tempo suficiente. Ainda não escureceu por completo. Calma.

Uma expressão de reconhecimento inundou o rosto do outro.

- Amigo - murmurou -, você me salvou a vida. Tem razão. Não é demasiado tarde. Mas... - Tornou a impacientar-se: - Malditos idiotas! Quando pensam voltar aqui? Tenho que falar pelo telefone para receber as instruções finais. E esses cretinos parecem ter ido ao Pólo Sul buscar minha roupa. Idiotas, filhos de uma ca­dela sarnenta!

- Quer que eu faça alguma coisa? "Papillon" olhou-o atento.

- A que se refere?

- Falar pelo telefone. Afinal de contas... Um risinho irônico  arregaçou  os lábios  de "Papillon".

- Não, Barnard - recusou. - Você é um bom companheiro, mas isso seria demasiado. O chefe não gosta que estranhos se misturem com nossos assuntos. Confia em mim e em poucas pessoas mais. - Teve um estremecimento, en­quanto acrescentava: - Se chegasse a cometer esse engano, seria o último de minha vida. Cor­taria meu pescoço com suas próprias mãos. É um diabo!

Terminou de falar num sussurro temeroso. Já não parecia o chefe de um grupo terrorista que ensanguentava a cidade, mas um ser aterrado con­templando a morte cara a cara.

Barnard nada disse. Mas tinha a sensação de encontrar-se muito próximo da verdade.

Havia muitas coisas estranhas naqueles homens e em suas atividades. Coisas que escapavam à simples qualificação de atividades terroristas de­sempenhadas com intuitos ideológicos. O agente do FBI começava a ver "Papillon" e seus com­panheiros no verdadeiro papel que lhes correspon­dia.

Não eram senão bandidos, chacais da pior es­pécie, indivíduos que se haviam misturado à tra­gédia argelina, dela aproveitando-se para seus torpes objetivos.

Mas existia uma falha na cadeia do raciocínio de Barnard. Cabia a possibilidade de que aquele chefe, a quem "Papillon" referia-se de contínuo, fosse um verdadeiro patriota, um homem que utilizasse o material humano disponível, empregando-o para fins nobres.

Os passos de Maurice e Gerard na escada pu­seram termo às suas reflexões.

Tinha, porém, chegado a uma conclusão. Im­punha-se arrancar a verdade de "Papillon", fosse como fosse. E estava disposto a fazê-lo naquela mesma noite. Para obter resultados, Barnard sa­bia de métodos únicos, aos quais homem algum podia resistir.

 

Barnard atua - Farrapo humano

Ambição, loucura... algo tão ve­lho como o tempo esperaram a volta de "Papillon" em silêncio. Maurice e Gerard, mergulhados em sua ha­bitual indiferença. Barnard dando voltas e mais voltas ao seu problema.

Por fim, "Papillon" abandonou a cabina tele­fônica situada na planta baixa do "Clube Verme­lho". Pediu uma bebida à garçonete, que a ser­viu com uma expressão de asco. Sorveu-a cer­rando os olhos. Sentenciou:

- Um prego arranca outro prego, rapazes. - Terminou de beber. Depois explicou: - Bem, está tudo arranjado. É mesmo para esta noite. Temos que ir à Kasba. Encarou Gerard.

- Você conhece aquilo melhor que ninguém. Sabe onde é a Sinagoga Velha? Bem, há ali uma ruela chamada Yuman. A meia altura, perto do cemitério judeu, num local chamado "Velho Moinho", é aí que os tipos se reúnem. Lá estará o ame­ricano. Ih-ih! Não é engraçado? É um desses tais do FBI, dos que se vêem no cinema. Gostaria de cortar-lhe o gasganete. No mínimo, seu san­gue é de outra côr, vocês não acham?

Maurice e Gerard fizeram coro a suas garga­lhadas. Barnard limitou-se a sorrir.

- A caminho! - ordenou agora "Papillon". - A distância é grande até lá.

Era uma noite suave. Logo surgiria a lua. Um jipe esperava-os não longe da entrada do clube.

Maurice e "Papillon" ocuparam o assento dian­teiro. Gerard e Barnard sentaram-se atrás. Mau­rice ia ao volante.

Barnard deixou que decorresse algum tempo antes de agir. Precisava encontrar-se fora dos limites de ação da polícia regular, a fim de que não pudesse haver interferências.

Para chegar à Kasba, desde o "Clube Verme­lho", era necessário percorrer a avenida litorâ­nea em sua totalidade, subindo depois por Bad el Rixa, onde se inicia a subida para a cidade velha.

Procurando não ser notado, sacou a pistola do coldre axilar. Empunhou-a pelo cano.

Maurice diminuiu a marcha para fazer a curva de Bad el Rixa. Naquele momento, Barnard dei­xou cair a culatra da pistola sobre a cabeça de Gerard. Este pendeu como um saco vazio. Em­purrou-o, abrindo ao mesmo tempo a portinhola do jipe.

Gritou:

- Pare, Maurice! O Gerard caiu!

Maurice obedeceu instantaneamente. Houve um guinchar agudo de pneus sobre o asfalto. O jipe deteve-se com forte solavanco.

"Papillon" imprecou:

- Diabo! Estão malucos? Por quê...?

Barnard desceu do veículo. O mesmo fez Mau­rice. Após alguns segundos de hesitação, "Pa­pillon" imitou-os.

Maurice aproximou-se do corpo caído de Ge­rard, montão de roupas inanimadas. Inclinou-se sobre ele. Contornou-o. Esteve examinando-o por um breve instante. Depois levantou a cabeça. Em seu rosto inexpressivo podia-se, contudo, perceber certa estranheza.

- Raios me partam! - exclamou. - Que sig­nifica isto? Tem o coco quebrado! Como...?

Novamente Barnard agiu. A culatra da pistola, que ainda empunhava, caiu agora sobre o crânio de Maurice. O golpe surdo do aço contra o osso ressoou sinistramente. Os dois homens ficaram atravessados, um por cima do outro.

Agora o cano da arma de Barnard apontava para "Papillon". O bandido imobilizou-se subita­mente. Um murmúrio rouco saiu de sua garganta.

- Que está acontecendo ? Por quê... ?

O agente do FBI acercou-se dele. Um sorriso distendia-lhe os lábios.

- Escute, Meio-Homem - disse. - A brin­cadeira se acabou. Disse-lhe antes que gostaria de falar pelo telefone com o seu chefe. Não me agrada que contrariem minha vontade. Suba para o jipe!

À guisa de acelerar o processo de obediência, bateu no rosto de "Papillon". com o dorso da mão livre. Foi um golpe cruel, deliberadamente dolo­roso. Era algo que desejava fazer desde que en­trara em contato com o efeminado. Porque "Pa­pillon" lhe parecia um verme venenoso, que ele gostaria de esmagar com o pé.

- Maldito! - gritou "Papillon". - Ficou doi­do? Não perdoarei...!

Outra vez Barnard bateu. O outro retrocedeu cambaleando. Agora, um pontapé no baixo ven­tre derrubou-o de costas. Ficou no chão, gemendo abjetamente.

Barnard levantou-o.

- Vamos! Obedeça, verme repugnante! "Papillon" caminhou diante dele, transformado num farrapo humano. O tratamento que lhe apli­cara Barnard era o adequado, já que sua feroci­dade, o sadismo que constituía o fundo de sua personalidade, incluía um tremendo medo à vio­lência contra sua pessoa.

- Pegue o volante!

Obedeceu. Barnard tornou a ordenar:

- Toque para a praia. Quero que estejamos num lugar onde seus gritos não possam ser ouvi­dos, Meio-Homem. Você vai cantar a sinfonia completa, porque do contrário...

O jipe pôs-se em marcha lentamente. As mãos trêmulas do efeminado traíram-no várias vezes e Barnard teve que corrigir a direção. Não tar­daram a alcançar a praia silenciosa. Barnard obri­gou "Papillon" a internar-se mais além das obras do novo cais.

Fez o jipe parar perto de uns rochedos, no ponto em que terminava a areia. Apoiando o cano da pistola nas costas de "Papillon", conduziu-o por entre os rochedos. Depois obrigou-o a deter-se. Falou:

- Bem, amigo. Vou dizer-lhe uma coisa. Não espere poder sair desta com evasivas. Claro que ainda ignora algo importante. Lembra-se do ho­mem do FBI que pretendia matar esta noite? Ouça um segredo: eu também pertenço ao Federal Bureau of Investigation. E quero que desembuche a história completa.

A luz da lua dava em cheio na cara de "Papil­lon". Tinha a boca entreaberta numa expressão de pasmo absoluto.

Barnard prosseguiu:

- Já sei que você e esses porcos que o acom­panham mataram Jack Durant e também Mirna Saad. Mas não me satisfaço com os autores mate­riais do crime. Preciso conhecer o cérebro oculto, o homem que ordenou o duplo assassinato. É ele, na realidade, quem mais me interessa. Portanto, pode começar a falar.

"Papillon" ficou em silêncio alguns instantes, refazendo-se da surpresa experimentada ante a brusca reviravolta dos acontecimentos. De repen­te, recuperou parte de sua energia. Gritou com ferocidade:

- Pode ir para o inferno, bastardo! Eu o ma­tarei, com toda a sua esperteza! Não saberá jamais o que pretende!

Novamente Barnard adiantou-se. Deixou cair a pistola no chão. E mergulhou o punho direito no estômago de seu inimigo.

"Papillon" dobrou-se como se um raio tivesse tocado sua nuca. Barnard aplicou-lhe uma joelhada no nariz, que levantou-o bem alto e fê-lo cair para trás. Soltou sobre ele. Obrigou-o a pôr-se de pé. Seus punhos converteram-se em dois êmbolos, batendo sem cessar no corpo do bandido. Quando parou, este permanecia imóvel, cara voltada para cima, um fio de sangue escorrendo da comissura dos lábios.

Barnard arrastou-o pela gravata, levando-o até a beira do mar. Mergulhou sua cabeça duas ou três vezes na água salgada. Quando verificou que recuperara  os   sentidos,   carregou-o  novamente para lugar soco. Ajoelhou-se junto a ele, apanhou a pistola. Sopesando-a com a mão aberta, falou:

- Não seja estúpido, Meio-Homem. Conheço uma quantidade de processos capazes de fazer até uma ostra falar. Sou um pouco índio, compreen­de? Você já viu filmes do Far-West, não? Pois bem, nada do que eles mostram se pode compa­rar em efetividade com o que meus antepassados me ensinaram. Quer falar agora?

Havia uma luz de terror imenso nas pupilas de "Papillon". Não obstante, negou com um movi­mento de cabeça. Barnard levantou a pistola e deixou-a cair sobre o rosto crispado do homenzinho.

Um uivo feroz subiu na noite, confundindo-se com o rumor das ondas. O sangue escorreu pela face direita de "Papillon". Barnard sorriu, irônico.

- Vamos, cretino - disse. - Quer que lhe des­trua a cara por completo? Não lhe resta outra saída senão vomitar o que sabe, entende?

Passou a pistola para a mão esquerda. Com a direita, apertou o pescoço de "Papillon". O bandi­do sentiu que sufocava. Sentia um latejar tumul­tuoso nas têmporas. O sangue acelerou-se em suas veias, adquirindo um volume de som que parecia anular o resto dos ruídos.

Depois a pressão afrouxou. A voz sarcástica de Barnard, na qual percebeu sua sentença de morte, sussurrou junto a seu ouvido:

- Ocorreu-me uma idéia melhor ainda, Meio-Homem. Vou levá-lo para a água. Farei com que afunde pouco a pouco. Lentamente, ela irá pene­trando em seus pulmões. Você sentirá que se afoga, tentará sair... mas não o conseguirá. Por­que apertarei sua cara contra o fundo, fazendo-o tragar lodo e areia...

De repente, os nervos de "Papillon" cederam como a amarra de um navio submetida a pressão excessiva.

Falou. Falou atropeladamente, desejando de uma vez afastar de si o terrível pesadelo que de maneira súbita abatera-se sobre ele.

O agente do FBI escutou atento, em silêncio sombrio. Ouvia relatar a história da ambição e da loucura de um homem, algo tão velho como o tempo.

Eram os abutres humanos de costume, misturando-se aos melhores sentimentos da humanida­de, conspurcando a luta por seus ideais de mi­lhões de pessoas.

Quando "Papillon" terminou a história, Barnard ergueu-se. Empurrou com o pé, nauseado, o repugnante e choroso frangalho em que se trans­formara o efeminado.

Mumurou:

- Está bem. Vamos. Você ainda tem um papel a representar no último ato da tragédia.

 

Noite na velha Kasba - Demônios do FBI - "Tudo terminado, amigo"

A Kasba estava silenciosa, adormecida, ou tal­vez alerta sob a prateada luz da lua. Era um silêncio carregado de ameaças, onde pare­ciam ressoar ainda as detonações, os gritos de furor e ódio, os "iuiuí" instigadores das mulheres.

Ben Hamilton disse para si mesmo que os som­brios recantos daquelas estreitas ruelas retorci­das, recortados pela claridade do luar, pareciam ali mais escuros que em parte alguma do mundo.

Não se movia. Estava acaçapado num canto, numa postura mourisca, vigiando continuamente o princípio da Rua Larga.

Sem descanso, um pensamento roía-lhe o cére­bro. As breves palavras de aviso pronunciadas por Leo Barnard haviam deixado em suspenso uma interrogação: tinha sido descoberta sua iden­tidade. Mas, quem podia ter passado o informe?

Duas pessoas teriam oportunidade para isso: Naam Kadar e Leila Saad. Mas, das duas, a mais suspeita parecia ser Leila. Primeiro sua irmã Mirna, comprometida na morte de Jack Durant e assassinada ela mesma. Agora, como se um destino fatal conduzisse ambas as irmãs ao cen­tro dos acontecimentos, produzia-se aquela de­lação.

Não lhe parecia impossível que tanto Mirna como Leila tivessem feito jogo duplo. A morte de Mirna podia ser explicada pela descoberta de sua traição. E em tal caso...

Ben moveu a cabeça tentando afastar aqueles pensamentos. Não lhe agradava a idéia de Leila traindo a confiança que nela depositara. Não queria admitir semelhante coisa. Porque se assim fosse... Bem, a marca permaneceria indelével em seu coração. Estava apaixonado por Leila Saad.

Uma sombra que se movia furtiva no início da Rua Larga desviou sua atenção. Esperou que se aproximasse, preparado para agir a qualquer mo­mento.

Quem quer que fosse movia-se com enormes precauções. Talvez se tratasse do Barnard. Mas aquele homem carregava sobre o ombro uma carga pesada. Um saco ou algo parecido.

Momentos mais tarde estava certo de que se tratava de Barnard. Avançou em sua direção. Chegou-lhe a voz sussurrante do companheiro:

- É você, Ben?

- Claro. Que traz aí? Diabo! Dedica-se agora ao transporte, Leo?

- Uma encomenda especial, Ben. Onde estão seu amigos?

- Na casa. Ofereci-me para ficar de vigia e concordaram. São cinco homens, e também uma moça. Vai ser difícil a tarefa.

Barnard afirmou:

- Não se preocupe com isso, Ben. Se puder­mos falar com esse indivíduo, esse Naam Kadar que você diz ser inteligente, tudo sairá às mara­vilhas. Mas é preciso que nos deixem abrir o bico, ainda que por cinco minutos apenas, compreende? Acha que conseguirá isso?

Ben perguntou:

- Você descobriu o pastel, não? Quem é o traidor do melodrama?

- Trago aqui um deles - indicou o vulto de "Papillon", que transportava sem esforço aparen­te. - Servirá de isca para atrair o peixe gordo. Mas precisamos da colaboração de Kadar e os seus, entendido?

Ben refletiu uns instantes. Depois falou:

- Bom, vejo só um jeito, amigo. Teremos que encostar-lhe uma pistola na barriga e impedir que se mova ou fale por algum tempo. Desde que comece a raciocinar, procederá de maneira inteligente. Eu me encarrego disso de qualquer maneira.

- De acordo.

- Espere aqui. Apresente-se quando o caminho estiver livre, entendido?

Barnard mergulhou na sombra, enquanto Ben afastava-se rua acima. Chegou ao muro do cemi­tério judeu.

Em frente, erguia-se uma construção cuja ar­quitetura deixava entender, pese os terríveis es­tragos produzidos pelo tempo, que tinha sido um moinho.

A aparência arruinada do prédio era apenas um disfarce. Porque ali alguém, com inteligência e tino comercial, antes dos tempos de guerra que agora corriam, havia instalado uma "boite" de luxo.

Para o visitante constituía sempre uma sur­presa agradável entrar no velho moinho, no cen­tro do coração da Kasba, rodeado pelas relíquias de outros tempos, e encontrar-se em pleno e adian­tado século vinte.

Kadar e um grupo de homens estavam no salão de frente. Permaneciam em silêncio, numa atitude de paciente espera. Leila Saad tinha-se isolado junto à lareira apagada, sentindo que os fantas­mas de suas lembranças agitavam-se sobre ela.

Ben deteve-se no limiar. Naam levantou a ca­beça. Seus olhos arregalaram-se vendo a metra­lhadora que o agente empunhava apontada em sua direção.

Falou indeciso: - Bem, amigo. Já estão vindo? Por que...?

- Que ninguém se mova! - ordenou Hamílton - Deixem cair as armas no chão. Você primeiro, Naam.

Durante alguns instantes a surpresa manteve os guerrilheiros petrificados. Por fim, Kadar explodiu com violência:

- Maldito traidor! Que significa isto?

 Um dos guerrilheiros sacou um revólver. Com um leve movimento, Ben apontou a metralhadora  em sua direção e disparou. O revólver saltou no  ar e um rugido de dor escapou dos lábios daquele homem. O sangue correu entre seus dedos, pingando no solo.

 - Quietos! Ouça, Kadar. Não quero matar ninguém. Desejo unicamente que você me escute.

É algo muito importante, diretamente relacionado com o assunto que nos trouxe aqui.

 - Vá para o inferno, maluco! Que espécie de  fantasia é esta? Pensa que está fazendo um filme? Você...

Ben cortou-lhe a palavra:

- Vamos, deixem cair as armas! Depressa, senão arrebento-lhe a cabeça, Naam!  Leila tinha permanecido imóvel até o momento,  convertida numa  sombra muda, pela  surpresa.

 Levantou-se:

- Não obedeça, Naam! - gritou. - Esse ho­mem é um traidor! Matará vocês todos!

- Cale a boca, boneca! - atalhou rudemente Ben. - Talvez seja você quem tenha que res­ponder às perguntas mais embaraçosas.

Doía-lhe tratá-la assim. Mas se fôsse verdade o que suspeitava, não hesitaria em entregá-la à justiça. Porque já não se tratava unicamente da morte de Jack Durant e Mirna Saad. Centenas de homens e mulheres tinham perecido nas ruas de Argel, imoladas à ambição e à loucura criminosa de alguns bandidos.

Sem mover-se de seu lugar, Ben esperou. Naam, de repente, pareceu aceitar a situação. Deixou cair a arma que segurava com a mão direita, pen­dente ao lado do corpo.

Com lentidão, os outros guerrilheiros o imita­ram. Atrás de Een Hamilton perfilou-se a silhueta de Leo Barnard, com sua carga humana sobre o ombro.

Colocou-se ao lado de Ben. Falou:

- Amigo, esta é uma reunião impressionante. Parece o último ato do umo, peça fantástica.

Palidamente, deixou "Papillon" cair no chão. Perguntou:

- Explicou-lhe a situação, Ben?

- Ia fazê-lo. - Indicou Naam Kadar com um gesto de cabeça. - Leo, esse homem é Naam Kadar. Ele é quem manda aqui.

Barnard fixou os olhos naquele árabe. Reco­nheceu nele o verdadeiro lutador, à espera de oportunidade para livrar-se de uma situação pe­rigosa.

Falou:

- Bem, amigo. Usarei de poucas palavras. Tra­ta-se do assassinato de Jack Durant. Em primeiro lugar, direi que Ben Hamilton e eu mesmo per­tencemos ao Federal Bureau of Investigation dos Estados Unidos. Vocês, provavelmente, conhecem esta organização pelas iniciais FBI.

Fez uma pausa. Viu que os olhos de Kadar brilhavam com súbito interesse. Compreendeu que o homem esperaria até saber o que tinha para dizer-lhe antes de agir em qualquer sentido.

Prosseguiu:

- Fomos designados para descobrir o crimi­noso ou os criminosos que tinham assassinado o cidadão americano Jack Durant. Meu colega Ha­milton introduziu-se nas fileiras da FLN. Por minha parte, procurei misturar-me com os "ul­tras". Qualquer dos dois bandos contendores po­dia ser o autor material do crime.

Empurrou com o pé o corpo inerte de "Papillon", o qual não mostrava outro sinal de vida além dos olhos esbugalhados numa expressão de terror imenso.

- A investigação levou-me até um grupo de terroristas que pareciam atuar de acordo com os "ultras". Este é "Papillon", o chefe de tal grupo. Foram eles os autores materiais do crime, sem dúvida alguma. Mas na sombra oculta-se um ho­mem, culpado de muitas mortes e, na verdade, um simples criminoso, falto de motivos idealistas de qualquer espécie.

Adiantou-se um passo para Naam Kadar, que o escutava como fascinado. Continuou:

- Sei quem é ele. E por isso está aqui "Pa­pillon", que vai ser quem meterá sua cabeça no laço. É necessário unicamente algum tempo de espera, duas horas apenas.

Após uma pausa, perguntou de súbito:

- Posso contar com isso, amigo? Cravava os olhos em Naam Kadar. Este de­morou a resposta um instante. Depois assentiu:

- Claro que sim. Não compreendo muito bem tudo isto. Mas prometeu trazer o homem res­ponsável pela morte de Jack Durant e essa, pre­cisamente, é a tarefa de que meus chefes me in­cumbiram. Pode agir como lhe convenha.

Calou-se. Leila Saad, que parecia estranha­mente tranquila agora, perguntou com voz inci­siva :

- Como se chama esse homem, Barnard?

A resposta veio peremptória dos lábios do agen­te do FBI.

- Sinto muito, Leila. É Jean Manker, seu pai. Pareceu que, de pronto, sobre os ombros da jovem caísse um peso enorme, obrigando-a a inclinar-se, assoberbada por ele.

Barnard lançou um pontapé ao caído "Papil­lon", ordenando:

- Levante-se, Meio-Homem! Tem que dar um telefonema. Vamos!

Levou-o até o balcão, onde se via um aparelho telefônico.

O bandido começou a discar um número com dedos trêmulos.

A campainha do telefone ressoou na casa vazia com som alarmante. Jean Manker levantou o fone. Seus nervos pregavam-lhe uma peça, fazendo-lhe a mão tremer. Chegou-lhe a voz anelante de "Papillon".

- É você, Jean?

- Fale, "Papillon".

- Bem. Liquidamos o assunto. Mas é preciso que você venha aqui. Sinto muito...

- Que aconteceu?

- Trata-se da moça, Jean. De Leila. Estava aqui. Um dos homens cometeu um engano. É o diabo! Ela vai morrer, Jean!

Uma lâmina de gelo penetrou no coração de Jean Manker. Durante alguns instantes foi inca­paz de reagir. Depois murmurou dèbilmente:

- Está bem. Vou já.

Repôs o fone no gancho. Lágrimas de dor autên­tica escorriam por suas faces. Saiu da casa como se estivesse louco, consciente apenas de que Leila ia morrer.

Primeiro fora Mirna. Teve que fazer com que a matassem. Ela começara a suspeitar de suas ver­dadeiras atividades, que ele estava jogando com dois baralhos e não tinha qualquer interesse sen­timental por nenhuma das duas facções.

Imprimiu ao seu carro, um Ford modelo ses­senta, uma velocidade vertiginosa. Pelo vídeo de sua memória desfilavam os últimos anos, quando a ambição, como um verme asqueroso, de poder imenso, dele se apoderara.

Tudo começou ao vir a saber das atividades de Leila junto aos homens que tentavam libertar a Argélia. Viu claramente a grande oportunidade que aquilo podia proporcionar-lhe, o dinheiro que podia extrair servindo aos dois bandos em luta.

Pouco a pouco, a rede foi-se espessando, apri-ionando-o sem possibilidade de fuga. Traiu mil vezes. E seus serviços eram bem pagos. Jogando com habilidade, conseguiu que Mirna se decidisse a atuar com os que supunha patriotas franceses, que defendiam o que julgavam seu.

Assim, Jean pôde estabelecer um laço com cada setor. Começou então a mover-se por conta própria. Levou a cabo, junto com aquele "Papil­lon" e seus cumpinchas, bandidos e criminosos, uma série de assaltos e assassinatos que lhe pro­porcionaram enormes proveitos.

Mas tudo se complicou quanto Mirna conheceu Jack Durant e apaixonou-se por ele. A jovem, que tinha começado a suspeitar, ameaçou denun­ciá-lo.

Em consequência, teve que matá-la. E para dar ao caso um matiz político, que evitasse que fossem as suspeitas desviadas para ele, Jack Du­rant foi assassinado também.

Um véu de lágrimas ocultava a Jean Manker os seres e as coisas, enquanto guiava o carro a toda a velocidade. Percorreu as estreitas ruelas da Kasba como se estivesse numa pista de corridas. Chegou ao princípio da Rua Larga. Por ali, a despeito do nome, o veículo não podia passar.

Uma raiva frenética convulsionava o coração daquele homem, que agora caminhava para o "Velho Moinho". Amaldiçoou uma e mil vezes os agentes americanos, aqueles demônios do FBI, culpados da morte de Leila. A necessidade de acabar com eles impelira-o a deixar que a jovem se arriscasse naquela expedição de morte.

Porque Jean Manker, um homem cujo coração parecia talhado em granito, amava aquelas me­ninas que um dia recolhera com o fim de aliviar a solidão em que vivia.

Não tomou precauções. Entrou na "boite" sem hesitar. E estacou de chofre ao perceber a arma­dilha em que tinha caído, ao ver em primeiro lugar Leila, que o olhava com olhos onde se re­fletia um mundo de desespero.

Um dos homens que estavam no meio da sala, alto, louro, de olhos intensamente azuis, foi quem falou primeiro. Parecia que estava lendo seus pen­samentos, em voz alta:

- Sim, amigo. Está tudo acabado. "Papillon" o traiu, como antes fez com muitos outros e como fez você mesmo ao longo de sua vida.

Teve a impressão que aquele homem crescia, à medida que ia falando.

- Jean Manker, não tenho jurisdição aqui na Argélia. Mas seus crimes hão de ser castigados. Creio que a melhor forma de conseguir isto é deixá-lo entregue aos mesmos homens a quem causou tanto mal...

Leo Barnard voltou-se para Naam Kadar. Con­cluiu:

- Amigo, esse e seus cúmplices são coisa sua. A missão do FBI terminou.

Kadar inclinou a cabeça em sinal de assentimento. Ben Hamilton aproximou-se de Leila. Se­gurou-a por um braço. E os três saíram, enquanto os homens da FLN rodeavam os prisioneiros. 

 

                                                                                            Herman Tellgon

 

 

                      

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