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NOME DE CÓDIGO / Ken Follet
NOME DE CÓDIGO / Ken Follet

 

 

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NOME DE CÓDIGO

 

O PRIMEIRO DIA

Domingo, 28 de Maio de 1944

Um minuto antes da explosão a praça em Sainte-Cécile encontrava-se tranquila. A tarde estava quente e uma camada de ar parado cobria a aldeia como um cobertor. O sino da igreja tocava preguiçosamente, chamando os fiéis para a missa com pouco entusiasmo. Felicity Clairet achou que o som parecia uma contagem decrescente.

 

A praça era dominada pelo castelo do século xv. Uma pequena versão de Versailles, tinha uma monumental entrada projectada e alas de ambos os lados que faziam ângulos rectos e desapareciam para trás. Havia uma cave e dois andares cobertos por um telhado alto com águas-furtadas.

 

Felicity, a quem chamavam sempre Flick, amava a França. Gostava dos seus edifícios graciosos, do clima ameno, dos almoços demorados, do povo culto. Gostava de quadros franceses, de literatura francesa e de roupas francesas elegantes. Os visitantes consideravam frequentemente os Franceses pouco amistosos, mas Flick falava a língua desde os seis anos e ninguém percebia que ela era estrangeira.

 

Irritava-a o facto de a França que ela amava já não existir. Não havia comida suficiente para almoços demorados, os quadros tinham sido todos roubados pelos nazis e só as prostitutas usavam roupas bonitas. Como a maior parte das mulheres, Flick envergava um vestido informe cujas cores há muito haviam desbotado. O seu maior desejo era que a verdadeira França regressasse. Isso poderia acontecer em breve se ela e pessoas como ela fizessem aquilo que tinham a fazer.

 

Podia não viver para ver isso aliás, podia não sobreviver aos minutos seguintes. Não era fatalista; desejava viver. Planeava fazer uma centena de coisas depois de a guerra terminar: acabar o doutoramento, ter um filho, ver Nova Iorque, comprar um carro desportivo, beber champanhe na praia de Cannes. Mas se estivesse prestes a morrer, agradava-lhe passar os últimos minutos numa praça soalheira, a olhar para um bonito edifício antigo, com os sons cadenciados da língua francesa nos ouvidos.

 

O castelo fora construído para alojar a aristocracia local, mas o último conde de Sainte-Cécile perdera a cabeça na guilhotina em

1793. Os jardins há muito que haviam sido transformados em vinhas, pois aquela era uma região vinícola, o coração do distrito de Champagne. O castelo albergava agora uma importante central telefónica, localizada ali porque o ministro responsável nascera em Sainte-Cécile.

 

Quando os Alemães chegaram aumentaram a central para permitir a ligação entre o sistema francês e o novo cabo para a Alemanha. Também havia um quartel da Gestapo no castelo, com escritórios nos andares de cima e celas na cave.

 

Há quatro semanas o castelo fora bombardeado pelos Aliados. Aquela precisão nos bombardeamentos era recente. Os pesados Lancasters e Flying Fortresses de quatro motores que rugiam nos céus da Europa todas as noites eram pouco precisos. Às vezes falhavam por completo uma cidade mas a última geração de bombardeiros, os Lightnings e os Thunderbolts, apareciam sorrateiramente durante o dia e atingiam um alvo pequeno, uma ponte ou uma estação de caminho-de-ferro. A maior parte da ala oeste do castelo era agora uma pilha de tijolos vermelhos irregulares do século xvii e pedras quadradas brancas.

 

Mas o raide aéreo falhara. Decorriam as reparações e o serviço telefónico fora interrompido apenas enquanto os Alemães instalavam novas centrais. Todo o equipamento telefónico automático e os amplificadores vitais para as linhas de longa distância se encontravam na cave, que escapara aos danos.

 

Era por isso que Flick estava ali.

 

O castelo ficava situado no lado norte da praça, rodeado por um muro alto de pilares de pedra e grades de ferro, guardado por sentinelas. A leste ficava uma pequena igreja medieval, as suas antigas portas de madeira escancaradas para o ar do Verão e para a congregação que chegava. Em frente à igreja, no lado oeste da praça, ficava a câmara, dirigida por um presidente ultraconservador que tinha poucos desentendimentos com os ocupantes nazis. No lado sul havia diversas lojas e o Café des Sports. Flick encontrava-se sentada na esplanada do café, à espera que o sino acabasse de tocar. Na sua mesa estava um copo de vinho branco produzido na região, leve e claro. Ela ainda não lhe tocara.

 

Era uma oficial britânica com o posto de major. Oficialmente, pertencia à First Aid Nursing Yeomanry, o serviço feminino de enfermagem que era inevitavelmente conhecido por FANY. Mas isso era um disfarce. Na verdade, ela trabalhava para uma organização secreta, o Executivo de Operações Especiais, responsável pela sabotagem nas linhas inimigas. Aos vinte e oito anos, era uma das agentes mais velhas. Não era a primeira vez que estava perto da morte. Aprendera a viver com a ameaça e a controlar o medo, mas mesmo assim sentiu uma mão fria pousada no coração quando olhou para os capacetes de aço e para as espingardas potentes dos guardas do castelo.

 

Três anos antes, a sua maior ambição fora ser professora de Literatura Francesa numa universidade britânica, ensinar aos alunos o vigor de Hugo, a perspicácia de Flaubert, a paixão de Zola. Trabalhava no Ministério da Guerra, a traduzir documentos franceses, quando fora convocada para uma reunião misteriosa num quarto de hotel e lhe tinha sido perguntado se estava disposta a fazer uma coisa perigosa.

 

Aceitara sem pensar muito. Decorria uma guerra e todos os rapazes com quem ela estudara em Oxford arriscavam a vida diariamente; porque não poderia ela fazer o mesmo? Dois dias depois do Natal de 1941 começara o treino do EOE.

 

Seis meses mais tarde era mensageira especial, levando mensagens do quartel do EOE, no número 64 de Baker Street, em Londres, para os grupos da Resistência na França ocupada, nos tempos em que os aparelhos de telegrafia eram escassos e os seus operadores o eram ainda mais. Saltava de pára-quedas, deslocava-se com a sua identidade falsa, contactava a Resistência, transmitia-lhes as ordens e tomava nota das suas respostas, das suas queixas e dos seus pedidos de armas e munições. Para a viagem de regresso apanhava secretamente um avião, normalmente um Westland Lysander de três lugares, suficientemente pequeno para aterrar em seiscentos metros de relva.

 

Pouco depois passara de mensageira à organização de sabotagens. Quase todos os agentes do EOE eram oficiais e na teoria os seus «homens» eram a Resistência local. Na prática, a Resistência não se encontrava sob disciplina militar, e um agente tinha de merecer a sua colaboração mostrando-se duro, conhecedor e peremptório.

 

O trabalho era perigoso. Seis homens e três mulheres tinham terminado o treino com Flick e ela era a única que continuava no activo dois anos volvidos. Sabia-se que dois estavam mortos: um alvejado pela Milícia, a odiada polícia política francesa, e o outro devido à não abertura do pára-quedas. Os outros seis tinham sido capturados, interrogados e torturados e depois haviam desaparecido em campos prisionais na Alemanha. Flick sobrevivera porque era implacável, tinha reacções rápidas e era cuidadosa com a segurança quase ao ponto da paranóia.

 

Ao seu lado estava sentado o marido, Michel, líder do circuito da Resistência com o nome de código Bollinger, sedeado na cidade de Reims, a dezasseis quilómetros dali. Embora prestes a arriscar a vida, Michel encontrava-se recostado na cadeira, o tornozelo direito pousado no joelho esquerdo, e tinha na mão um copo de cerveja pálida e aguada, a única disponível em tempo de guerra. O seu sorriso despreocupado arrebatara o coração de Flick quando ela era aluna na Sorbonne e preparava uma tese sobre a ética de Molière, que depois abandonara com o início da guerra. Na altura ele era um jovem leitor de Filosofia de aspecto descontraído com uma legião de alunas que o adoravam.

 

Continuava a ser o homem mais sensual que ela conhecera. Era alto e tinha uma elegância descuidada nos seus fatos amarrotados e camisas azuis desbotadas. Usava sempre o cabelo demasiado comprido. Tinha uma voz sedutora e um intenso olhar azul que fazia com que uma rapariga se sentisse a única mulher ao cimo da terra.

 

Aquela missão dera a Flick a agradável oportunidade de passar uns dias com o marido, mas não haviam sido uns dias felizes. Não tinham propriamente discutido, mas a afeição de Michel parecera ter esmorecido, como se ele estivesse a fingir, e ela sentira-se magoada. O seu instinto disse-lhe que ele estava interessado noutra pessoa. Tinha apenas trinta e cinco anos, e o seu charme descuidado continuava a fascinar mulheres mais jovens. Também não ajudava o facto de, após o casamento, terem passado mais tempo afastados do que juntos, por causa da guerra. E havia muitas francesas receptivas, pensou ela com amargura, dentro da Resistência e fora dela.

 

Ainda o amava. Não da mesma forma: já não o idolatrava como na lua-de-mel, já não ansiava dedicar a vida a fazê-lo feliz. As névoas matinais do amor romântico haviam-se dissipado, e à luz clara da vida de casados ela apercebia-se de que ele era fútil, egocêntrico e de pouca confiança. Mas quando ele se dispunha a dedicar-se a ela, ainda conseguia fazê-la sentir-se única, bela e estimada.

 

O encanto de Michel também funcionava nos homens, e ele era um excelente líder, corajoso e carismático. Ele e Flick haviam delineado juntos o plano de batalha. Iriam atacar o castelo em duas frentes, dividindo os defensores, depois reagrupar-se-iam no interior para formar uma única força que penetraria na cave, descobriria a sala onde estava o equipamento principal e fá-lo-ia explodir.

 

Tinham uma planta do edifício fornecida por Antoinette Dupert, supervisora do grupo de mulheres locais que limpavam o castelo todas as noites. Antoinette era também tia de Michel. As mulheres da limpeza começavam a trabalhar às sete, na altura das vésperas, e Flick via naquele momento algumas delas, a mostrarem os seus passes especiais ao guarda que se encontrava junto ao portão de ferro forjado. O esboço de Antoinette indicava a entrada para a cave, mas pouco mais, pois era uma zona de acesso restrito, aberta apenas aos alemães, e limpa por soldados.

 

O plano de ataque de Michel era baseado em relatórios do MI6, os serviços secretos britânicos, que diziam que o castelo era guardado por um destacamento das Waffen-SS com três turnos, cada um com doze homens. Os funcionários da Gestapo no castelo não eram tropas de combate, e a maior parte nem sequer devia estar armada. O circuito Bollinger conseguira reunir quinze combatentes para o ataque, que se encontravam naquele momento quer entre os fiéis na igreja, quer na praça a passear, com as armas escondidas na roupa ou em sacolas e sacos. Se o MI6 estivesse certo, as pessoas da Resistência seriam em maior número que os guardas.

 

Mas uma preocupação atormentava Flick e deixava-a apreensiva. Quando ela falara a Antoinette da previsão do MI6, esta franzira o sobrolho e dissera: «Acho que eles são mais.» Antoinette não era tola. Fora secretária de Joseph Laperriére, director de uma das produtoras de champanhe, até a ocupação reduzir os seus lucros e de a mulher dele ter passado a secretária e podia estar certa. Michel fora incapaz de resolver a contradição entre a estimativa do MI6 e o cálculo de Antoinette. Vivia em Reims, e nem ele nem os seus homens conheciam bem Sainte-Cécile. Não houvera tempo para maiores reconhecimentos. Se a Resistência estivesse em minoria, pensou Flick atemorizada, não iria conseguir dominar os disciplinados soldados alemães.

 

Olhou em volta para a praça reparando nas pessoas conhecidas, aparentemente transeuntes inocentes que na realidade estavam à espera de matar ou de ser mortos. À porta da loja de tecidos, a observar uma peça de tecido verde na montra, encontrava-se Geneviève, uma rapariga alta de vinte anos com uma Sten oculta sob o casaco fino. A Sten era uma metralhadora portátil muito apreciada pela Resistência porque podia ser desmontada em três e transportada num saco pequeno. Geneviève podia perfeitamente ser a rapariga que Michel trazia debaixo de olho, mas mesmo assim Flick sentiu-se horrorizada ao pensar que ela poderia ser morta por tiros de metralhadora dali a poucos segundos. A atravessar a praça empedrada dirigindo-se à igreja ia Bertrand, ainda mais jovem, com dezassete anos, um rapaz louro de rosto ansioso e um Colt automático de calibre quarenta e cinco escondido num jornal dobrado debaixo do braço. Os Aliados tinham largado de pára-quedas milhares de Colts. Inicialmente, Flick proibira Bertrand de fazer parte da equipa por causa da sua idade, mas ele implorara para ser incluído e como ela precisava de todos os homens disponíveis acabara por aceitar. Esperava que a sua bravata juvenil resistisse após o início do tiroteio. Parado junto à porta da igreja, aparentemente a acabar de fumar o cigarro antes de entrar, estava Albert, cuja mulher dera à luz o primeiro filho, uma menina, naquela manhã. Albert tinha um motivo extra para sobreviver àquele dia. Transportava um saco de tecido que parecia estar cheio de batatas, mas que, na realidade, continha granadas de mão Mark l Mills n.” 36.

 

A cena na praça parecia normal, à excepção de um elemento. Ao lado da igreja encontrava-se estacionado um carro desportivo enorme e potente. Era um Hispano-Suiza 68 Bis de fabrico francês, com um motor V12, um dos carros mais rápidos do mundo. Era azul-celeste e tinha um radiador de prata alto e de aspecto arrogante encimado pela mascote que era uma cegonha em voo.

 

Chegara havia meia hora. O condutor, um homem atraente com cerca de quarenta anos, tinha vestido um fato de bom corte mas devia ser um oficial alemão mais ninguém teria coragem de exibir um carro daqueles. A companheira dele, uma ruiva alta e vistosa com um vestido de seda verde e sapatos altos de camurça, era demasiado chique para não ser francesa. O homem instalara uma máquina fotográfica sobre um tripé e tirava fotografias ao castelo. A mulher tinha uma expressão de desafio, como se soubesse que os habitantes locais que os observavam enquanto iam a caminho da igreja a rotulavam mentalmente de prostituta.

 

Poucos minutos antes o homem pregara um susto a Flick ao pedir-lhe que tirasse uma fotografia dele e da amiga com o castelo por trás. Falara com cortesia, com um sorriso cativante, e apenas com um ligeiro sotaque alemão. A distracção num momento crucial era absolutamente enlouquecedora, mas Flick achara que uma recusa levantaria problemas, especialmente se estava a fingir que era alguém da zona que nada melhor tinha para fazer do que estar sentada numa esplanada. Por isso reagira como a maioria dos franceses teria reagido nas mesmas circunstâncias: adoptara uma expressão de indiferença e acedera ao pedido do alemão.

Fora um momento grotescamente assustador: a agente secreta britânica atrás da máquina fotográfica; o oficial alemão e a sua amiga a sorrirem para ela, e o sino da igreja a tocar os segundos que faltavam para a explosão. Depois o oficial agradecera e oferecera-se para lhe pagar uma bebida. Ela recusara com firmeza: nenhuma francesa podia beber com um alemão a menos que estivesse preparada para ser chamada de prostituta. Ele assentira com ar compreensivo e ela regressara para junto do marido.

 

O oficial devia estar de folga e aparentava não estar armado, pelo que não oferecia perigo, mas mesmo assim incomodou Flick. Ela meditou sobre aquele sentimento durante os últimos segundos de calma e por fim chegou à conclusão de que não acreditava que ele fosse um turista. Havia uma certa vigilância nos seus modos pouco própria para quem aparentava admirar a beleza da arquitectura antiga. A mulher podia ser exactamente aquilo que aparentava, mas ele era outra coisa.

 

Antes de Flick conseguir perceber o quê, o sino calou-se.

 

Michel despejou o copo e limpou a boca às costas da mão.

 

Flick e Michel levantaram-se. Tentando aparentar um ar descontraído, dirigiram-se ao café e ficaram à porta, abrigando-se de forma discreta.

 

Dieter Franck reparara na rapariga sentada na esplanada assim que entrara na praça. Reparava sempre nas mulheres bonitas. Aquela parecera-lhe bastante sensual. Era loura de olhos verdes e provavelmente tinha sangue alemão não era pouco comum ali no Nordeste de França, tão perto da fronteira. O seu corpo pequeno e elegante encontrava-se envolto num vestido semelhante a uma saca, mas ela acrescentara um lenço amarelo-vivo de algodão barato, com um toque de elegância que ele considerava tipicamente francês. Quando lhe dirigira a palavra, notara o medo habitual nos Franceses sempre que eram abordados por um dos ocupantes alemães; mas logo a seguir vira no seu rosto bonito uma expressão de desafio mal oculta que lhe despertara o interesse.

 

Estava na companhia de um homem bem-parecido que não parecia muito interessado nela provavelmente o marido. Dieter pedira-lhe que lhe tirasse a fotografia apenas porque quisera falar com ela. Tinha mulher e dois filhos bonitos em Colónia, e partilhava o seu apartamento em Paris com Stéphanie, mas isso não o impedia de namoriscar outras mulheres. As mulheres bonitas eram como os quadros dos impressionistas franceses que ele coleccionava: ter um não o impedia de desejar ter outros.

 

As mulheres francesas eram as mais bonitas do mundo. Mas tudo o que era francês era belo: as pontes, as avenidas, os móveis, até as porcelanas. Dieter adorava clubes nocturnos parisienses, foie gras e baguetes mornas. Gostava de comprar camisas e gravatas no Charvet, o lendário chemisier em frente ao Hotel Ritz. Não se importaria de viver para sempre em Paris.

 

Não sabia onde adquirira aqueles gostos. O pai era professor de Música a única forma de arte em que os Alemães e não os franceses eram os indisputados mestres. Mas a insípida vida académica do pai parecera a Dieter insuportavelmente monótona, e ele chocara os pais ao tornar-se polícia, um dos primeiros homens formados na Alemanha a fazê-lo. Em 1939 era já director dos serviços secretos da Polícia de Colónia. Em Maio de 1940, quando os tanques do general Heinz Guderian tinham atravessado o rio Meuse em Sedan e atravessado em triunfo a França até ao canal da Mancha numa semana, Dieter candidatara-se impulsivamente a uma comissão no exército. Devido à sua experiência na Polícia, recebera de imediato um lugar nos serviços secretos. Falava fluentemente francês e um pouco de inglês, por isso haviam-no colocado a interrogar prisioneiros. Tinha talento para o trabalho, e dava-lhe especial prazer sacar informações que poderiam ajudar a sua facção a vencer batalhas. No Norte de África os seus feitos haviam sido elogiados pelo próprio Rommel.

 

Estava disposto a utilizar a tortura sempre que necessário, mas gostava de persuadir as pessoas através de meios mais subtis. Fora assim que conseguira Stéphanie. Calma, sensual e astuta, havia sido dona de uma loja parisiense que vendia chapéus de senhora enormemente elegantes e obscenamente dispendiosos. Mas ela tinha uma avó judia. Ficara sem a loja, passara seis meses numa prisão francesa, e estava prestes a ser enviada para um campo na Alemanha quando Dieter a salvara.

 

Podia tê-la violado. Ela estaria à espera disso. Ninguém teria protestado e muito menos punido Dieter. Mas, em vez disso, ele alimentara-a, dera-lhe roupas novas, instalara-a num quarto vago no seu apartamento e tratara-a com meiguice até que uma noite, depois de um jantar de foie de veau e uma garrafa de La Tache, a seduzira deliciosamente no sofá em frente à lareira.

 

Contudo, naquele dia ela fazia parte da sua camuflagem. Dieter estava de novo a trabalhar com Rommel. O marechal-de-campo Erwin Rommel, a Raposa do Deserto, era agora comandante do Grupo B do exército que defendia o Norte da França. Os serviços secretos alemães esperavam uma invasão dos Aliados naquele Verão. Rommel não possuía homens suficientes para vigiarem as centenas de quilómetros de costa vulnerável, por isso adoptara uma estratégia ousada de resposta flexível: os seus batalhões encontravam-se a quilómetros do mar, prontos a entrar rapidamente em acção sempre que necessário.

 

Os Britânicos sabiam isso também tinham serviços secretos. O seu plano era retardar a reacção de Rommel destruindo as suas comunicações. Noite e dia, os bombardeiros britânicos e americanos destruíam estradas e caminhos-de-ferro, pontes e túneis, estações e pátios de manobras. E a Resistência fazia explodir centrais eléctricas e fábricas, descarrilar comboios, cortava linhas telefónicas e mandava raparigas adolescentes deitar areia nos depósitos de óleo de camiões e tanques.

 

A missão de Dieter era identificar os principais alvos das comunicações e avaliar a capacidade de ataque da Resistência. Nos últimos meses, a partir da sua base em Paris, ele patrulhara todo o Norte de França, gritando às sentinelas ensonadas e apavorando os capitães preguiçosos, aumentando a segurança nos semáforos das linhas férreas e torres de controlo das pistas de aviação. Naquele dia ia fazer uma visita surpresa a uma central telefónica de grande importância estratégica. Por aquele edifício passava todo o tráfico telefónico do Alto Comando em Berlim para as forças alemãs no Norte da França. Isso incluía as mensagens de telégrafo, o meio pelo qual, actualmente, a maior parte das ordens era enviada. Se a central fosse destruída, as comunicações alemãs seriam seriamente afectadas.

 

Claro que os Aliados sabiam isso e haviam tentado bombardear o local, com pouco êxito. A central era uma candidata perfeita a um ataque da Resistência. Contudo, a segurança era demasiado descuidada para os padrões de Dieter. Isso devia-se provavelmente à influência da Gestapo, que tinha um destacamento no mesmo edifício. A Geheime Staatspolizei era o serviço de segurança do Estado, e os homens eram muitas vezes promovidos pela sua lealdade a Hitler e entusiasmo pelo fascismo e não pela sua inteligência e capacidades. Dieter estava ali havia meia hora, a tirar fotografias ao local, e a sua ira aumentava devido ao facto de os responsáveis pela segurança continuarem a ignorá-lo.

 

No entanto, quando o sino parou de tocar um oficial da Gestapo com uniforme de major saiu disparado pelos portões de ferro do castelo e dirigiu-se a Dieter.

 

Dê-me essa máquina! gritou ele num francês mau. Dieter virou-lhe costas, fingindo não ouvir.

 

É proibido tirar fotografias ao castelo, imbecil! gritou o homem. Não vê que isto é um posto militar?

 

Dieter virou-se para ele e respondeu calmamente em alemão:

 

Demorou bastante tempo a reparar em mim.

 

O homem ficou espantado. As pessoas com roupas civis tinham normalmente medo da Gestapo.

 

O que está a dizer? perguntou ele com menos agressividade. Dieter olhou para o relógio.


Estou aqui há trinta e dois minutos. Podia ter tirado uma dezena de fotografias e ter-me ido embora há muito tempo. Você é o responsável pela segurança?

 

Quem é você?

 

Major Dieter Franck, ao serviço do marechal-de-campo Rommel.

 

Franck! exclamou o homem. Lembro-me de si. Dieter observou-o com mais atenção.

 

Meu Deus! murmurou ao reconhecê-lo. Willi Weber.

 

Sturmbannfúhrer Weber às suas ordens. Tal como a maior parte dos oficiais da Gestapo, Weber tinha um posto de SS que considerava de maior prestígio do que o vulgar posto na Polícia.

 

Raios me partam! exclamou Dieter. Não admirava que a segurança fosse desleixada.

 

Weber e Dieter tinham trabalhado juntos na Polícia de Colónia durante os anos vinte. Dieter fora uma promessa, Weber uma desilusão. Weber tinha inveja do êxito de Dieter e atribuía-o ao seu passado privilegiado. (O passado de Dieter não havia sido extraordinariamente privilegiado, mas Weber, filho de um estivador, achava que sim.)

 

Weber acabara por ser despedido. Dieter começou a recordar-se dos pormenores: houvera um acidente de viação, juntara-se uma multidão, Weber entrara em pânico, disparara e um transeunte morrera.

 

Dieter não via aquele homem há quinze anos, mas era capaz de adivinhar qual fora a carreira dele: filiara-se no Partido Nazi, tornara-se um organizador voluntário, candidatara-se a um cargo na Gestapo citando o seu treino na Polícia, e ascendera rapidamente naquela comunidade de frustrados.

 

O que está aqui a fazer? perguntou Weber.

 

A verificar a vossa segurança a pedido do marechal-de-campo.

 

A nossa segurança é boa retorquiu Weber indignado.

 

Boa para uma fábrica de salsichas. Olhe em volta. Dieter indicou com a mão a praça. E se estas pessoas fizessem parte da Resistência? Podiam alvejar os seus guardas em poucos segundos. Apontou para uma rapariga alta com um casaco fino sobre o vestido. E se ela tivesse uma arma debaixo do casaco? E se...

 

Calou-se.

 

Aquilo não se tratava apenas de uma fantasia imaginada por ele para ilustrar a sua argumentação. O seu inconsciente vira as pessoas na praça disporem-se em formação militar. A lourinha e o marido tinham-se refugiado no café. Os dois homens à entrada da igreja haviam-se colocado atrás das colunas. A rapariga alta com o casaco fino, que até há pouco estivera a olhar para uma montra, encontrava-se à sombra do carro de Dieter. Enquanto Dieter a observava o casaco dela abriu-se, e para seu espanto ele viu que a sua imaginação havia sido profética: sob o casaco ela tinha uma pistola-metralhadora com uma coronha em forma de tubo, as preferidas da Resistência.

 

Meu Deus! exclamou.

 

Enfiou a mão sob o casaco e lembrou-se de que não vinha armado.

 

Onde estava Stéphanie? Olhou em volta, o choque transformando-se quase em pânico, mas ela encontrava-se atrás dele, esperando pacientemente que ele acabasse a conversa com Weber.

 

Baixa-te! gritou. Depois ouviu-se uma explosão.

 

Flick encontrava-se à porta do Café dês Sports, atrás de Michel, em bicos de pés para poder ver sobre o ombro dele. Estava alerta, com o coração a bater com força, os músculos contraídos, e observava a cena com desprendimento.

 

Havia oito guardas à vista: dois no portão a verificar os passes, dois logo a seguir ao portão, dois a patrulharem o terreno junto à vedação de ferro e dois no cimo de um pequeno lanço de escadas que conduzia à entrada principal do castelo. Mas a força principal de Michel iria evitar o portão.

 

O lado norte da igreja formava parte do muro que rodeava os terrenos do castelo. O transepto norte entrava alguns metros pelo parque de estacionamento que fizera outrora parte do jardim ornamental. Nos dias do Ancien Regime, o conde tivera a sua entrada privada para a igreja, uma pequena porta na parede do transepto. A porta fora entaipada e estucada havia mais de cem anos, e mantivera-se assim até àquele dia.

 

Havia cerca de uma hora, um cabouqueiro aposentado de nome Gaston entrara na igreja vazia e colocara cuidadosamente quatro barras de duzentos gramas de explosivo plástico amarelo na base da porta bloqueada. Inserira detonadores, ligara-os para que explodissem todos ao mesmo tempo, e acrescentara um rastilho de cinco segundos. Depois camuflara tudo com cinzas da lareira da sua cozinha e arrastara um velho banco de madeira até à porta, para protecção adicional. Satisfeito com o seu trabalho, ajoelhara-se para rezar.

 

Quando o sino da igreja deixara de tocar havia alguns segundos, Gaston levantara-se do banco, dera alguns passos desde a nave até ao transepto, carregara no detonador e atirara-se rapidamente para o chão depois de dobrar a esquina. A explosão devia ter levantado séculos de pó dos arcos góticos. Mas o transepto não se encontrava ocupado durante as missas, pelo que ninguém ficara ferido.

 

Depois do estrondo da explosão houvera um longo momento de silêncio na praça. Toda a gente ficou imóvel: os guardas no portão do castelo, as sentinelas que patrulhavam a vedação, o major da Gestapo, o alemão bem vestido e a sua amiga elegante. Flick, apreensiva, olhou para o outro lado da praça, para os terrenos no interior da vedação de ferro. No parque de estacionamento encontrava-se um vestígio do jardim do século xvii, uma fonte de pedra com três querubins cheios de musgo no lugar de onde outrora haviam saído jactos de água. Em volta da bacia de mármore seca estavam estacionados uma camioneta, um carro blindado, um Mercedes do exército alemão cinzento-esverdeado e dois Citroèns pretos com tracção dianteira utilizados pela Gestapo em França. Um soldado enchia o tanque de um dos Citroèns a partir de uma bomba incongruentemente colocada diante de uma das janelas altas do castelo. Durante alguns segundos nada se moveu. Flick aguardou, retendo a respiração.

 

Misturados na congregação no interior da igreja encontravam-se dez homens armados. O padre, que não era um simpatizante e consequentemente não fora avisado, devia ter ficado satisfeito com o facto de a sua missa da tarde estar tão concorrida, ao contrário do que era normal. Devia ter-se interrogado por que motivo alguns deles envergavam casacos compridos apesar do calor, mas após quatro anos de austeridade as pessoas vestiam roupas estranhas e um homem podia levar uma gabardina à igreja por não ter um casaco. Flick achava que o padre já devia ter percebido. Naquele momento, os dez homens estariam a pôr-se de pé, de armas na mão, e correriam para o novo buraco na parede.

 

Finalmente apareceram junto à extremidade da igreja. O coração de Flick encheu-se de orgulho e medo ao vê-los, um exército heterogéneo com casacos velhos e sapatos gastos, a correr pelo parque de estacionamento em direcção à entrada principal do castelo, os pés a baterem no solo empoeirado, agarrados às armas pistolas, revólveres, espingardas e uma pistola-metralhadora. Ainda não tinham começado a dispará-las, pois tentavam aproximar-se o máximo do castelo antes de o tiroteio começar.

 

Michel viu-os ao mesmo tempo. Emitiu um som entre um resmungo e um suspiro e Flick soube que ele sentia o mesmo misto de orgulho pela sua coragem e medo pelas suas vidas. Chegara o momento de distrair os guardas. Michel levantou a espingarda, uma Lee-Enfield n.” 4 Mark /, a que a Resistência chamava «espingarda canadiana» porque muitas delas eram feitas no Canadá. Puxou a culatra, tirou da segurança o gatilho e disparou. Aguentou o coice com um movimento treinado pelo que a arma ficou de imediato pronta a voltar a disparar.

 

O som da espingarda pôs fim ao momento de silêncio espantado na praça. No portão, um dos guardas gritou e caiu, e Flick sentiu um momento selvagem de satisfação: agora havia menos um homem para disparar contra os seus camaradas. O tiro de Michel era o sinal para toda a gente abrir fogo. No alpendre da igreja, o jovem Bertrand disparou dois tiros que soaram como bombas de Carnaval. Estava demasiado longe dos guardas para lhes poder acertar e não atingiu nenhum. Ao lado dele, Albert puxou a espoleta de uma granada e atirou-a por cima da vedação para os terrenos do castelo, onde ela explodiu na vinha, lançando vegetação pelo ar. Flick desejava gritar-lhes: «Não disparem só para fazerem barulho, assim revelam as vossas posições!» Mas só as tropas melhores e mais bem treinadas podiam conter-se depois do início de um tiroteio. De trás do carro desportivo Geneviève abriu fogo e o som ensurdecedor da sua Sten ecoou nos ouvidos de Flick. Os seus disparos foram mais eficazes, e outro guarda caiu.

 

Por fim os alemães começaram a agir. Os guardas abrigaram-se atrás das colunas de pedra ou deitaram-se no chão, e empunharam as espingardas. Com alguma dificuldade, o major da Gestapo conseguiu tirar a pistola do coldre. A ruiva virou-se e desatou a correr, mas os seus sapatos escorregaram nas pedras e ela caiu. O companheiro deitou-se por cima dela, protegendo-a com o corpo, e Flick percebeu que acertara ao identificá-lo como soldado, porque um civil não saberia que era mais seguro deitar-se no chão que desatar a correr.

 

As sentinelas abriram fogo. Quase de imediato Albert foi atingido. Flick viu-o cambalear levando a mão à garganta. A granada que ele tinha na mão caiu. Em seguida foi atingido por outro tiro, desta vez na testa. Tombou como uma pedra, e Flick recordou pesarosa a menina que nascera naquela manhã e que agora ficara sem pai. Ao lado de Albert, Bertrand viu a granada rolar pelo degrau gasto do alpendre da igreja. Atirou-se para a porta no momento da explosão. Flick esperou que ele reaparecesse, mas isso não aconteceu, e ela pensou com uma incerteza angustiante que ele podia estar morto, ferido ou apenas atordoado.

 

No parque de estacionamento, a equipa da igreja deixou de correr, virou-se para as restantes seis sentinelas e abriu fogo. Os quatro guardas perto do portão foram apanhados num fogo cruzado entre os que se encontravam no interior da vedação e os que se encontravam na praça, e foram mortos em segundos, restando apenas os dois dos degraus. O plano de Michel estava a funcionar, pensou Flick esperançada.

 

Mas as tropas inimigas no interior do edifício já haviam tido tempo de pegar nas armas e correr para as portas e janelas, e começaram a disparar, fazendo de novo pender a balança para o lado alemão. Tudo dependia do número de soldados presentes no castelo.

 

Durante alguns momentos as balas caíram como chuva, e Flick deixou de contar. Depois apercebeu-se, horrorizada, de que havia muito mais armas no castelo do que ela esperara. As balas pareciam vir de pelo menos doze portas e janelas. Os homens da igreja, que naquela altura já deviam encontrar-se no interior do castelo, recuaram para se abrigarem atrás dos carros no parque de estacionamento. Antoinette estivera certa e o MI6 errado a respeito do número de tropas ali posicionadas. A estimativa do MI6 era de doze, contudo a Resistência tinha abatido seis e havia pelo menos catorze ainda a disparar.

 

Flick praguejou. Num combate como aquele, a Resistência podia apenas vencer graças a um ataque súbito e violento. Se não esmagassem de imediato o inimigo estariam metidos em sarilhos. À medida que os segundos iam passando, o treino militar e a disciplina começaram a fazer a diferença. No fim, os militares acabariam por vencer num conflito aparentemente empatado.

 

No andar de cima do castelo, uma janela do século xvii bastante alta foi rebentada e uma metralhadora começou a disparar. Devido à sua posição elevada provocou uma enorme carnificina entre os elementos da Resistência no parque de estacionamento. Flick assistiu horrorizada à queda gradual dos homens que ficavam a sangrar junto à fonte seca, até haver apenas dois ou três a disparar.

 

Acabara tudo, percebeu Flick desesperada. Haviam sido batidos numericamente e tinham falhado. Sentiu na boca o sabor amargo da derrota.

 

Michel estivera a disparar na direcção da metralhadora.

 

Não conseguimos abater aquele soldado! exclamou. Olhou em volta para a praça e depois para os telhados, para a torre do sino e para o primeiro andar da câmara. Se eu conseguisse ir para o gabinete do presidente, tinha um ângulo melhor.

 

Espera. Flick tinha a boca seca. Não podia impedi-lo de arriscar a vida, por muito que o desejasse. Mas podia melhorar as probabilidades. Geneviève! gritou a plenos pulmões.

 

Geneviève virou-se na direcção dela.


Cobre o Michel!

 

Geneviève assentiu vigorosamente, depois saiu de trás do carro disparando na direcção das janelas do castelo.

 

Obrigado disse Michel a Flick, desatando a correr pela praça na direcção da câmara.

 

Geneviève continuou a correr, dirigindo-se ao alpendre da igreja. As suas balas distraíram os homens no castelo, dando a Michel a possibilidade de atravessar a praça incólume. Foi então que Flick viu qualquer coisa à sua esquerda. Olhou nessa direcção e viu o major da Gestapo, encostado à parede da câmara, a fazer pontaria a Michel.

 

Era difícil atingir um alvo em movimento com uma pistola àquela distância mas o major podia ter sorte, pensou Flick receosa. As suas ordens eram observar e não participar no confronto, mas naquele momento ela pensou: «Que se lixe!» Tinha na mala uma pistola automática Browning de nove milímetros, que preferia em relação ao Colt porque tinha treze balas no carregador em vez de sete e porque podia carregá-la com as mesmas balas de nove milímetros Parahellum utilizadas na pistola-metralhadora Sten. Tirou a arma da segurança, armou o cão, esticou o braço e disparou dois tiros na direcção do major.

 

Falhou, mas as balas soltaram fragmentos de rocha junto ao rosto dele, obrigando-o a atirar-se para o chão.

 

Michel continuou a correr.

 

O major recuperou rapidamente e tornou a fazer pontaria.

 

Quando Michel se aproximou do seu objectivo aproximou-se igualmente do major, facilitando a pontaria deste. Michel disparou a espingarda na direcção do major, mas a bala falhou e o major manteve a calma, tornando a disparar. Desta vez Michel foi atingido e Flick soltou um grito de medo.

 

Michel caiu, tentou levantar-se e não foi capaz. Flick obrigou-se a ter calma e a pensar rapidamente. Michel ainda estava vivo. Geneviève chegara ao alpendre da igreja e a sua metralhadora continuava a chamar a atenção do inimigo no interior do castelo. Flick tinha a possibilidade de salvar Michel. Isso ia contra as suas ordens, mas não havia ordens capazes de a obrigar a deixar o marido a sangrar no chão. Para além disso, se o deixasse ali, ele seria capturado e interrogado. Enquanto líder do circuito Bollinger, Michel sabia todos os nomes, todas as moradas, todas as palavras-código. A sua captura seria uma catástrofe.

 

Não havia alternativa.

 

Tornou a disparar na direcção do major. Falhou novamente, mas puxou várias vezes o gatilho e os disparos constantes forçaram o homem a recuar em busca de abrigo.

 

Flick saiu do café e correu para a praça. Pelo canto do olho viu o dono do carro desportivo, ainda deitado em cima da amante para a proteger. Flick esquecera-se dele. Estaria armado? Se assim fosse, poderia atingi-la com facilidade. Mas dali não vieram balas.

 

Chegou junto de Michel e pousou um joelho no chão. Virou-se na direcção da câmara e disparou dois tiros ao calha para manter o major ocupado. Depois olhou para o marido.

 

Para seu alívio viu que ele tinha os olhos abertos e que estava a respirar. Parecia estar a sangrar da nádega esquerda. O medo dela diminuiu um pouco.

 

Tens uma bala no rabo disse ela em inglês.

 

Dói que se farta respondeu ele em francês.

 

Flick tornou a virar-se para a câmara. O major recuara vinte metros e atravessara a rua estreita até à entrada de uma loja. Daquela vez Flick levou alguns segundos a fazer pontaria. Apertou o gatilho quatro vezes. A montra da loja explodiu em mil fragmentos de vidro, e o major cambaleou para trás e caiu.

 

Tenta pôr-te de pé disse ela em francês. Ele rolou, gemendo de dor, e apoiou-se sobre um joelho, mas foi incapaz de mover a perna ferida. Anda incitou ela com aspereza. Se ficares aqui és morto. Agarrou-o pela camisa e levantou-o a custo. Ele apoiou-se sobre a perna boa, mas foi incapaz de suportar o seu peso e apoiou-se nela. Flick apercebeu-se de que ele não seria capaz de andar e gemeu desesperada.

 

Olhou para o lado da câmara municipal. O major começava a levantar-se. Tinha sangue na cara, mas não parecia gravemente ferido. Ela calculou que ele fora superficialmente cortado pelos estilhaços de vidro mas que ainda seria capaz de disparar.

 

Havia apenas uma coisa a fazer: pegar em Michel e transportá-lo até local seguro.

 

Dobrou-se, agarrou-o pelas coxas e pô-lo sobre o ombro, como faziam os bombeiros. Ele era alto, mas magro a maior parte dos franceses era magra nos dias que corriam. Mesmo assim, teve a sensação de que iria desfalecer sob o peso dele. Cambaleou, ligeiramente tonta, mas conseguiu manter-se de pé.

 

Passado um momento, deu um passo.

 

Foi avançando pelo empedrado da praça. Calculou que o major estivesse a disparar na sua direcção, mas não podia ter a certeza devido aos disparos vindos do castelo, de Geneviève e dos atiradores da Resistência ainda vivos no parque de estacionamento. O medo de que uma bala pudesse atingi-la a qualquer momento deu-lhe forças para correr. Rumou à rua que saía da praça em direcção a sul, a saída mais próxima. Passou pelo alemão deitado em cima da ruiva, e por breves momentos os seus olhares cruzaram-se e Flick viu no dele uma expressão de surpresa e de admiração. Depois chocou com uma mesa do café e quase caiu, mas conseguiu endireitar-se e continuou a correr. Uma bala atingiu a montra do café e Flick viu uma teia de linhas de fractura espalhar-se pelo vidro. Logo a seguir, dobrou a esquina e deixou de ser vista pelo major. «Vivos», pensou grata. «Nós os dois... pelo menos durante mais alguns momentos.»

 

Até àquele momento ainda não pensara para onde deveria dirigir-se depois de abandonar o campo de batalha. Dois carros aguardavam-nos para a fuga a algumas ruas dali, mas ela não conseguiria carregar Michel até tão longe. No entanto, Antoinette Dupert vivia naquela rua, apenas a alguns passos. Antoinette não fazia parte da Resistência, mas simpatizava com eles o suficiente para ter fornecido a Michel uma planta do castelo. E Michel era sobrinho dela, pelo que com certeza não iria mandá-lo embora.

 

Fosse como fosse, não tinha outras alternativas.

 

Antoinette morava no rés-do-chão de um prédio com um pátio. Flick chegou à entrada, a alguns metros da praça, e cambaleou. Empurrou a porta e deitou Michel nos azulejos.

 

Bateu à porta de Antoinette, ofegando devido ao esforço.

 

Quem é? perguntou uma voz amedrontada. Antoinette assustara-se com o tiroteio e não queria abrir a porta.

 

Depressa, depressa! exclamou Flick. Tentou falar baixo. Alguns dos vizinhos simpatizavam com os nazis.

 

A porta não se abriu, mas a voz de Antoinette aproximou-se mais.

 

Instintivamente, Flick evitou dizer nomes.

 

O seu sobrinho está ferido!

 

A porta abriu-se. Antoinette era uma mulher de cinquenta anos com as costas muito direitas, e envergava um vestido de algodão que já fora elegante e agora estava desbotado, mas muito bem engomado. O seu rosto encontrava-se muito pálido devido ao medo.

 

Michel! exclamou. Ajoelhou-se ao lado dele. É grave?

 

Dói, mas não estou a morrer disse Michel entre dentes.

 

Coitadinho! Afastou-lhe o cabelo da testa num gesto semelhante a uma carícia.

 

Vamos levá-lo lá para dentro! exclamou Flick impaciente. Pegou em Michel pelos sovacos e Antoinette agarrou-o pelos joelhos. Ele gemeu de dor. Transportaram-no as duas para a sala de estar e deitaram-no num sofá de veludo desbotado.


Olhe por ele enquanto eu vou buscar o carro disse Flick. Correu para a rua.

 

O tiroteio abrandara. Não lhe restava muito tempo. Correu pela rua e dobrou duas esquinas.

 

À porta de uma padaria estavam dois carros com o motor a trabalhar: um Renault ferrugento, o outro uma carrinha com umas letras desbotadas de lado onde se lia a custo: Lavandaria Bisset. A carrinha fora pedida emprestada ao pai de Bertrand, que conseguia arranjar gasolina porque lavava lençóis para os hotéis usados pelos alemães. O Renault fora roubado naquela manhã em Châlons, e Michel tinha trocado as chapas de matrícula. Flick decidiu levar o carro, deixando a carrinha para os sobreviventes que conseguissem escapar à carnificina no castelo.

 

Espere aqui durante cinco minutos, depois vá-se embora disse ela ao condutor da carrinha. Correu para o carro, sentou-se no banco do pendura e exclamou: Vamos, depressa!

 

Ao volante do Renault encontrava-se Gilberte, uma morena de cabelos compridos com dezanove anos, bonita mas estúpida. Flick não sabia por que motivo ela estava na Resistência não parecia ser o seu género.

 

Para onde? perguntou Gilberte, em vez de arrancar.

 

Eu vou-te dizendo... pelo amor de Deus, arranca! Gilberte engatou a mudança e arrancou.

 

Esquerda e depois direita.

 

Durante os dois minutos de inacção que se seguiram Flick percebeu, chocada, que haviam falhado. A maior parte do circuito Bollinger fora arrasada. Albert e os outros tinham morrido. Geneviève, Bertrand e os que estivessem vivos seriam provavelmente torturados.

 

E tudo aquilo para nada. A central telefónica continuava intacta, bem como as comunicações alemãs. Flick sentia-se uma inútil. Tentou pensar no que correra mal. Teria sido um erro tentar um ataque frontal a um edifício militar vigiado? Não necessariamente o plano poderia ter corrido bem não fora a informação errada fornecida pelo MI6. No entanto, teria sido melhor, pensou ela, entrar no edifício de forma mais discreta. Isso teria dado à Resistência mais hipóteses de chegar ao equipamento.

 

Gilberte parou junto à entrada para o pátio.

 

Faz inversão de marcha ordenou Flick, saindo. Michel estava deitado de barriga para baixo no sofá de Antoinette, com as calças nos joelhos e um ar muito pouco digno. Antoinette encontrava-se de joelhos ao seu lado, tendo nas mãos uma toalha ensanguentada, os óculos empoleirados no nariz, e olhava para o rabo do sobrinho.

 

A hemorragia diminuiu, mas a bala ainda ali está disse ela.

 

A mala dela estava no chão ao lado do sofá. Esvaziara o seu conteúdo numa mesinha, provavelmente enquanto procurara os óculos à pressa. Flick viu uma folha de papel escrita à máquina e carimbada, com uma pequena fotografia de Antoinette colada, protegida por uma pequena pasta de cartão. Era o passe que lhe permitia entrar no castelo. Nesse momento Flick teve uma ideia.

 

Tenho um carro lá fora disse. Antoinette continuou a observar a ferida.

 

Ele não devia ser deslocado.

 

Se ficar aqui, os boches matam-no. Agarrou no passe de Antoinette com ar casual. Como é que te sentes? perguntou a Michel.

 

Acho que já sou capaz de andar respondeu ele. As dores diminuíram.

 

Flick enfiou o passe na sua mala. Antoinette não reparou.

 

Ajude-me a levantá-lo pediu ela à mulher mais velha. As duas puseram Michel de pé. Antoinette subiu-lhe as calças de lona azuis e apertou-lhe o cinto gasto.

 

Fique aqui dentro disse Flick a Antoinette. Não quero que a vejam connosco. Ainda não desenvolvera a sua ideia, mas já sabia que ela seria prejudicada se as suspeitas recaíssem sobre Antoinette e as outras senhoras da limpeza.

 

Michel pôs um braço sobre os ombros de Flick e apoiou-se pesadamente. Ela aguentou o peso dele e levou-o a cambalear até à rua. Quando chegaram ao carro, ele estava branco devido às dores. Gilberte olhou para eles da janela com uma expressão aterrorizada.

 

Levanta-te e abre a merda da porta, imbecil! sibilou Flick. Gilberte saltou do carro e abriu a porta de trás. Com a ajuda dela, Flick deitou Michel no banco.

 

Sentaram-se as duas à frente.

 

Vamos embora daqui! exclamou ela.

 

Dieter estava horrorizado e estupefacto. Quando o tiroteio começou a abrandar e as batidas do seu coração regressaram ao normal, ele começou a reflectir no que vira. Não julgara a Resistência capaz de um ataque tão bem planeado e cuidadosamente executado. Por tudo o que aprendera durante os últimos meses, julgara que os seus ataques eram atabalhoados e sem planificação. Mas aquela fora a primeira vez que vira os seus elementos em acção. Estavam carregados de armas e não lhes faltavam munições ao contrário do exército alemão! Pior ainda, tinham sido corajosos. Dieter ficara impressionado com o homem que atravessara a praça de espingarda em riste, com a rapariga da pistola-metralhadora que o cobrira e em especial com a pequena loura que pegara no homem ferido e o carregara. A um homem dez centímetros mais alto que ela para fora da praça, até um local seguro. Aquelas pessoas tinham de ser uma grande ameaça para a força militar de ocupação. Não eram como os criminosos com que Dieter havia lidado enquanto era polícia em Colónia, antes da guerra. Os criminosos eram estúpidos, preguiçosos, cobardes e abrutalhados. As pessoas da Resistência francesa eram combatentes.

 

Mas a derrota delas deu-lhe uma oportunidade rara.

 

Quando teve a certeza de que o tiroteio parara, pôs-se de pé e ajudou Stéphanie a levantar-se. O rosto dela estava corado e ela respirava com dificuldade. Agarrou nas mãos dele e olhou-o nos olhos.

 

Protegeste-me disse. Surgiram lágrimas nos seus olhos. Transformaste-te num escudo para me protegeres.

 

Ele limpou alguma terra da coxa dela. Ficou surpreendido com a sua própria galanteria. O gesto fora instintivo. Quando recordou o que acontecera, ficou sem saber se estaria mesmo disposto a dar a vida para salvar Stéphanie. Tentou aligeirar as coisas.


Não ia acontecer nada de mal a este corpo perfeito disse. Ela começou a chorar.

 

Dieter pegou-lhe na mão e levou-a até aos portões do castelo.

 

Vamos lá para dentro disse. Depois podes sentar-te um bocadinho. Entraram na propriedade. Dieter viu um buraco na parede da igreja. Isso explicava como é que a força principal havia entrado.

 

Os soldados das Waffen-SS tinham saído do edifício e estavam a desarmar os atacantes. Dieter olhou atentamente para os combatentes da Resistência. A maior parte morrera, alguns apresentavam ferimentos, e um ou dois parecia terem-se rendido incólumes. Teria bastantes para interrogar.

 

Até àquele momento, o seu trabalho havia sido defensivo. O máximo que conseguira fazer fora fortificar edifícios-chave contra a Resistência através do aumento da segurança. Os prisioneiros que interrogara haviam-lhe dado poucas informações. Mas agora, com vários prisioneiros, todos provenientes de um circuito grande e evidentemente bem organizado, era outra coisa. Podia ser a sua oportunidade de passar ao ataque, pensou.

 

Você aí! gritou a um sargento. Arranje um médico para estes prisioneiros. Quero interrogá-los. Não deixe nenhum deles morrer.

 

Embora Dieter não estivesse fardado, devido aos seus modos o sargento partiu do princípio de que ele era um oficial e obedeceu.

 

Dieter ajudou Stéphanie a subir os degraus e a entrar no enorme vestíbulo. Era uma visão arrebatadora: o chão de mármore cor-de-rosa, as janelas altas com cortinas elaboradas, as paredes com motivos etruscos em gesso realçados por tons rosa e verdes, e um tecto com querubins desbotados. Dieter calculou que o aposento já tivesse tido móveis muito belos: aparadores com espelhos altos, aparadores com bronze dourado incrustado, cadeiras elegantes com pernas douradas, quadros a óleo, jarras grandes, pequenas estatuetas de mármore. Tudo isso desaparecera, claro. Agora havia uma fila de secretárias com PBX, cada uma com uma cadeira, e um amontoado de fios no chão.

 

As telefonistas pareciam ter fugido para as traseiras, mas agora que o tiroteio parara algumas encontravam-se junto às portas espelhadas, ainda com os auscultadores e os microfones de peito, interrogando-se se seria seguro voltar para dentro. Dieter sentou Stéphanie a uma das secretárias, depois chamou uma telefonista de meia-idade.

 

Madame disse ele num tom educado mas autoritário. Falou em francês. Traga um café quente a esta senhora, por favor.


A mulher avançou, lançando a Stéphanie um olhar de ódio.

 

Muito bem, monsieur.

 

E um conhaque. Ela acabou de sofrer um choque.

 

Não temos conhaque.

 

Tinham, mas ela não queria dá-lo à amante de um alemão. Dieter não insistiu.

 

Então só café, mas seja rápida senão vai arranjar problemas. Deu uma palmadinha no ombro de Stéphanie e deixou-a. Passou pelas portas duplas e chegou à ala oriental. O castelo era uma sucessão de salas, todas ligadas umas às outras no padrão de Versalhes, segundo pareceu a Dieter. As salas estavam cheias de PBX, mas estes tinham um aspecto mais permanente, os fios no interior de tubos de madeira que desapareciam no chão para a cave. Dieter calculou que o vestíbulo tinha aquele ar desarrumado porque fora posto a funcionar à pressa depois de a ala oeste ter sido bombardeada. Algumas das janelas tinham sido tapadas permanentemente, sem dúvida como protecção contra os bombardeamentos aéreos, mas outras tinham cortinas pesadas abertas, e Dieter calculou que as mulheres não gostavam de trabalhar sempre num ambiente nocturno.

 

No fim da ala oriental havia umas escadas. Dieter desceu-as. No fim delas passou por uma porta de aço. Logo a seguir viu uma pequena secretária com uma cadeira e calculou que normalmente estaria ali um guarda. Este devia ter abandonado o posto para participar no confronto. Dieter entrou sem impedimentos e tomou mentalmente nota daquela falha na segurança.

 

Ali deparou com um ambiente diferente do do rés-do-chão. Desenhado para acomodar as cozinhas, as despensas e os quartos das dezenas de criados que deviam ter servido naquela casa havia trezentos anos, tinha tectos baixos, paredes nuas e chão de pedra ou até, em alguns dos aposentos, de terra batida. Dieter avançou por um corredor largo. Cada porta estava identificada com pequenas placas com escrita alemã, mas mesmo assim Dieter espreitou para dentro delas. À sua esquerda, na parte da frente do edifício, ficava o equipamento complexo de uma central telefónica: um gerador, baterias enormes e salas cheias de cabos emaranhados. À sua direita, para as traseiras, ficavam as instalações da Gestapo: um laboratório fotográfico, uma sala grande com aparelhos de escuta para espiar a Resistência, e celas com orifícios nas portas. A cave fora protegida das bombas: todas as janelas estavam tapadas, havia sacos de areia encostados às paredes e os tectos haviam sido reforçados com vigas de aço e cimento, provavelmente para evitar que os bombardeiros aliados destruíssem o serviço telefónico.


No fim do corredor estava uma porta com a indicação «Sala de Interrogatórios». Dieter entrou. A primeira sala tinha paredes brancas despidas, luzes fortes e mobiliário normal para uma sala de interrogatórios: uma mesa barata, cadeiras resistentes e um cinzeiro. Dieter passou à sala seguinte. Ali as luzes eram menos intensas e as paredes de tijolo. Havia uma coluna ensanguentada com ganchos para amarrar pessoas; um suporte para chapéus-de-chuva com vários tacos de madeira e barras de aço; uma mesa para intervenções cirúrgicas com um torniquete para a cabeça e correias para os pulsos e tornozelos; uma máquina de choques eléctricos e um armário fechado que deveria conter drogas e seringas hipodérmicas. Era uma câmara de tortura. Dieter já estivera em várias, mas mesmo assim elas deixavam-no maldisposto. Tinha de lembrar a si próprio que as informações recolhidas em locais como aquele ajudavam a salvar as vidas dos jovens soldados alemães para que eles pudessem regressar a casa para as suas mulheres e filhos em vez de morrerem nos campos de batalha. Mesmo assim, o local deixava-o pouco à vontade.

 

Dieter ouviu barulho atrás de si, e sobressaltou-se. Deu meia volta. Quando viu o que estava à porta, recuou um passo, assustado.

 

Deus do céu! exclamou. Estava a olhar para um vulto baixo com o rosto mergulhado na sombra devido à luz intensa proveniente da sala ao lado. Quem é você? perguntou, e ouviu o medo na sua voz.

 

O vulto avançou para a luz e revelou ser um homem com a camisa do uniforme de um sargento da Gestapo. Era baixo e atarracado, com um rosto carnudo e cabelo louro claro cortado tão rente que o fazia parecer careca.

 

O que está a fazer aqui? perguntou numa voz com sotaque de Frankfurt.

 

Dieter recompôs-se. A câmara de tortura enervara-o, mas recuperou o habitual tom autoritário e respondeu:

 

Sou o major Franck. O seu nome?

 

O sargento adoptou uma atitude imediatamente deferente.

 

Becker, meu major, às suas ordens.

 

Traga os prisioneiros cá para baixo o mais depressa possível, Becker ordenou Dieter. Os que puderem andar devem vir imediatamente, os outros só depois de terem sido vistos por um médico.

 

Muito bem, meu major.

 

Becker afastou-se. Dieter regressou à sala de interrogatórios e sentou-se numa cadeira. Perguntou de si para si quanta informação conseguiria sacar aos prisioneiros. Eles poderiam saber apenas coisas relativas à vila. Se tivesse azar, e a segurança da Resistência fosse boa, cada indivíduo deveria saber apenas pouca coisa do que se passava no seu circuito. Por outro lado, uma segurança perfeita não existia. Algumas pessoas sabiam bastante do que se passava no seu circuito e noutros. O seu sonho era que um circuito conduzisse a outro numa cadeia e que ele pudesse provocar danos irreversíveis à Resistência durante as semanas que antecediam a invasão dos Aliados.

 

Ouviu passos no corredor e olhou nessa direcção. Os prisioneiros estavam a ser trazidos. O primeiro era a mulher que ocultara a pistola-metralhadora sob o casaco. Dieter ficou satisfeito. Era muito útil ter uma mulher entre os prisioneiros. Sob interrogatório, as mulheres podiam ser tão resistentes como os homens, mas muitas vezes a forma de obrigar um homem a falar era espancar uma mulher à frente dele. Aquela era alta e sensual, o que ainda ajudava mais. Parecia ilesa. Dieter ergueu uma mão, fazendo parar o soldado que a escoltava, e dirigiu-se à mulher em francês:

 

Como é que se chama? perguntou num tom amigável. Ela fitou-o com um olhar altivo.

 

Porque haveria de dizer-lhe?

 

Ele encolheu os ombros. Aquele nível de oposição era fácil de ultrapassar. Deu-lhe uma resposta que já o ajudara uma centena de vezes.

 

Os seus familiares podem perguntar se você está detida. Se soubermos o seu nome podemos responder-lhes.

 

Chamo-me Geneviève Delys.

 

Um belo nome para uma bela mulher. Fez-lhe sinal para que avançasse.

 

A seguir veio um homem com cerca de sessenta anos, a sangrar de um ferimento na cabeça e a coxear.

 

O senhor é um pouco velho para este tipo de coisas, não é? perguntou Dieter.

 

Fui eu que pus os explosivos respondeu o homem com uma expressão orgulhosa num tom de desafio.

 

Nome?

 

Gaston Lefèvre.

 

Lembre-se de uma coisa, Gaston continuou Dieter num tom simpático: A dor só dura aquilo que você quiser. Quando decidir pôr-lhe fim, ela acaba.

 

O medo surgiu no olhar do homem quando ele percebeu aquilo que o esperava.


Dieter assentiu, satisfeito.

 

Continue.

 

A seguir veio um jovem com cerca de dezassete anos, calculou Dieter, um rapaz bonito que estava apavorado.

 

Nome?

 

O rapaz hesitou, aparentemente atordoado pelo choque. Depois de pensar, respondeu:

 

Bertrand Bisset.

 

Boa tarde, Bertrand saudou Dieter. Bem-vindo ao Inferno.

 

O rapaz pareceu ter sido esbofeteado. Dieter mandou-o avançar.

 

Willi Weber apareceu, com Becker ao lado como se fosse um cão perigoso preso por uma coleira.

 

Como é que chegou aqui? perguntou Weber a Dieter num tom rude.

 

Caminhando respondeu Dieter. A sua segurança não presta.

 

Isso é ridículo! Acabou de nos ver a rechaçar um ataque.

 

Por uma dezena de homens e algumas mulheres!

 

O que importa é que os derrotámos.

 

Pense bem, Willi argumentou Dieter. Eles conseguiram aproximar-se sem que vocês dessem por isso, depois entraram na propriedade e mataram pelo menos seis soldados alemães. Desconfio que você só os derrotou porque eles pensavam que vocês eram menos. E entrei nesta cave sem impedimentos porque o guarda tinha abandonado o posto.

 

É um alemão corajoso, quis participar no combate.

 

Que Deus me dê forças! exclamou Dieter desesperado. Um soldado não abandona o posto para combater, obedece às ordens!

 

Não preciso que me dê um sermão sobre a disciplina militar. Dieter cedeu, momentaneamente pelo menos.

 

E não tenciono dar-lhe um.

 

O que deseja então?

 

Vou interrogar os prisioneiros.

 

Isso é trabalho da Gestapo.

 

Não seja idiota. O marechal-de-campo Rommel pediu-me a mim, não à Gestapo, para limitar a capacidade da Resistência de danificar as nossas comunicações em caso de invasão. Estes prisioneiros podem dar-me informações valiosíssimas. Tenciono interrogá-los.


Não enquanto se encontrarem sob as minhas ordens respondeu Weber com teimosia. Irei eu próprio interrogá-los e enviar os resultados ao marechal-de-campo.

 

Os Aliados devem invadir-nos este Verão... não acha que chegou a altura de deixar-se de guerrinhas?

 

Nunca é altura para abandonar uma organização eficiente. Dieter teve vontade de gritar. Desesperado, engoliu o orgulho e tentou chegar a um compromisso.

 

Interroguemo-los juntos.

 

Weber sorriu, adivinhando a vitória.

 

De maneira nenhuma.

 

Isso significa que terei de passar por cima de si.

 

Se for capaz.

 

Claro que sou capaz. Só vai conseguir um atraso.

 

Isso é o que o senhor diz.

 

Seu idiota! exclamou Dieter irado. Que Deus guarde a pátria de patriotas como você! Deu meia volta e foi-se embora.

 

Gilberte e Flick deixaram para trás a vila de Sainte-Cécile e dirigiram-se a Reims por uma estrada secundária. Gilberte conduzia o mais depressa possível pela estrada estreita. Flick olhava apreensiva para a estrada. Esta subia e descia pelas colinas baixas e serpenteava pelas vinhas enquanto seguia de uma aldeia para a outra. O seu progresso foi abrandado por vários cruzamentos, mas o seu elevado número impossibilitava a Gestapo de bloquear todas as estradas que saíam de Sainte-Cécile. Contudo, Flick continuava a morder o lábio, aflita com a possibilidade de poderem vir a ser detidas por uma patrulha. Não seria capaz de arranjar uma explicação para o homem no banco de trás a sangrar de um ferimento provocado por uma bala.

 

Depois de muito pensar, concluiu que não podia levar Michel para casa. Depois de a França se ter rendido em 1940 e de Michel ter sido desmobilizado, não voltara a dar aulas na Sorbonne mas regressara à cidade natal para ocupar o cargo de director adjunto de um liceu e organizar um circuito da Resistência, o seu verdadeiro motivo. Mudara-se para casa dos falecidos pais, uma vivenda encantadora perto da catedral. Mas, decidiu Flick, ele não poderia voltar para lá naquele momento. Era conhecida por muita gente. Embora os membros da Resistência muitas vezes não soubessem as moradas uns dos outros por motivos de segurança, revelavam-no apenas em caso de uma entrega ou de um encontro Michel era um dos dirigentes e muitas pessoas sabiam onde ele morava.

 

Em Sainte-Cécile alguns membros da equipa deviam ter sido capturados. Dali a pouco seriam interrogados. Ao contrário dos agentes britânicos, os elementos da Resistência francesa não andavam com cápsulas contendo veneno para se suicidarem. Sabia-se que num interrogatório toda a gente acabava por falar. Às vezes a Gestapo perdia a paciência e matava os prisioneiros devido a um excesso de entusiasmo mas, se fossem cuidadosos e determinados, seriam capazes de levar a personalidade mais forte a trair os camaradas. Ninguém era capaz de suportar a dor por muito tempo.

 

Por esse motivo, Flick tinha de partir do princípio que a morada de Michel era conhecida do inimigo. Para onde poderia levá-lo então?

 

Como é que ele está? perguntou Gilberte com ansiedade.

 

Flick olhou para o banco de trás. O marido tinha os olhos fechados, mas respirava normalmente. Adormecera, felizmente. Olhou-o com ternura. Michel precisava de alguém que olhasse por ele pelo menos durante um ou dois dias. Virou-se para Gilberte. Jovem e solteira, devia viver ainda com os pais.

 

Onde é que moras? perguntou Flick.

 

Nos subúrbios da cidade, na Route de Cernay.

 

Moras sozinha? Gilberte pareceu assustada.

 

Sim, claro que moro sozinha.

 

Numa vivenda, num apartamento, num quarto alugado?

 

Num apartamento de duas assoalhadas.

 

Vamos para lá.

 

Não!

 

Porque não? Estás com medo? Ela pareceu ofendida.

 

Não, com medo não.

 

Então?

 

Não confio nos vizinhos.

 

Não há uma entrada pelas traseiras?

 

Sim, uma viela que dá para uma pequena fábrica admitiu Gilberte com relutância.

 

Parece perfeita.

 

Está bem, tens razão, vamos para minha casa. Só que... apanhaste-me de surpresa, mais nada.

 

Desculpa.

 

Flick deveria regressar a Londres nessa noite. Iria apanhar o avião num prado junto à aldeia de Chatelle, oito quilómetros a norte de Reims. Perguntou-se se o avião daria com o local. Orientando-se pelas estrelas, era muito difícil encontrar um determinado campo perto de uma pequena aldeia. Os pilotos afastavam-se muitas vezes da rota, e era um milagre se chegavam ao local combinado. Flick olhou para o céu claro, que estava a tornar-se azul-escuro com o cair da noite. Haveria luar se o estado do tempo se mantivesse.

 

«Se não for hoje à noite é amanhã», pensou ela.

 

A sua mente regressou aos camaradas que deixara para trás. O jovem Bertrand estaria vivo ou morto? E Geneviève? Talvez estivessem melhor mortos. Vivos enfrentariam a agonia da tortura. Flick sentiu uma enorme angústia ao pensar que os conduzira à derrota. Bertrand devia ter um fraquinho por ela. Era suficientemente jovem para sentir remorsos por amar secretamente a mulher do comandante. Flick desejou tê-lo mandado ficar em casa. Não teria feito diferença no resultado e ele teria continuado a ser um jovem inteligente e simpático durante mais algum tempo, em vez de se transformar num cadáver ou numa coisa pior.

 

Ninguém ganhava sempre, e, na guerra, quando os líderes falhavam, morriam pessoas. Era um facto cruel, mas ela agarrou-se a ele à procura de conforto. Tentou pensar numa forma de impedir que o sofrimento dos camaradas fosse em vão. Talvez a partir do sacrifício deles pudesse obter uma vitória.

 

Pensou no passe que roubara a Antoinette e na possibilidade de entrar clandestinamente no castelo. Uma equipa poderia entrar disfarçada de funcionários civis. Abandonou rapidamente a ideia de os fazer passar por telefonistas: era um trabalho técnico que levava algum tempo a aprender. Mas toda a gente sabia usar uma vassoura.

 

Os alemães reparariam que as funcionárias eram desconhecidas? Provavelmente não prestavam atenção às mulheres que lavavam o chão. E as telefonistas francesas denunciá-las-iam? Podia valer a pena correr o risco.

 

O EOE tinha um excelente serviço de falsificações capaz de copiar qualquer tipo de documento, às vezes fabricando até papel igual ao do original em dois ou três dias. Seriam capazes de falsificar rapidamente o passe de Antoinette.

 

Flick sentiu remorsos por tê-lo roubado. Naquele momento Antoinette podia andar freneticamente à procura dele debaixo do sofá e nos bolsos de todos os casacos, e até no pátio com uma lanterna. Quando dissesse à Gestapo que o perdera estaria metida em sarilhos. Mas no fim acabariam por dar-lhe outro em substituição. E não seria acusada de ajudar a Resistência. Se fosse interrogada, podia afirmar que não se lembrava de onde o deixara pois acreditaria ser essa a verdade. Para além do mais, pensou Flick carrancuda, se ela tivesse pedido autorização para levar o passe de empréstimo, Antoinette poderia ter recusado.

 

Claro que havia uma grande restrição naquele plano. Todas as pessoas que faziam limpezas eram mulheres. A equipa da Resistência que entrasse no castelo teria de ser constituída unicamente por mulheres.

 

«E porque não?», pensou Flick.

 

Estavam a chegar aos subúrbios de Reims. Era já noite quando Gilberte parou junto a um barracão fabril rodeado por uma vedação de arame farpado. Desligou o motor.

 

Acorda! exclamou Flick para Michel. Temos de te levar para dentro. Ele gemeu. Temos de ser rápidos acrescentou. Estamos a violar o recolher obrigatório.

 

As duas mulheres tiraram-no do carro. Gilberte apontou para uma viela nas traseiras do barracão. Michel apoiou-se nos ombros delas e com o auxílio das duas mulheres começou a avançar pela viela. Gilberte abriu uma porta que dava para o pátio de um prédio pequeno. Atravessaram o pátio e entraram por outra porta.

 

Era um prédio de andares baratos com cinco pisos e sem elevador. Infelizmente, Gilberte morava no último andar. Flick mostrou-lhe como fazer um assento com os braços. Cruzaram os braços e deram as mãos sob as coxas de Michel e levantaram-no. Ele pôs um braço sobre os ombros de cada uma das mulheres para se equilibrar. Subiram com ele quatro lanços de escadas. Felizmente não encontraram ninguém durante o trajecto.

 

Estavam sem fôlego quando chegaram à porta de Gilberte. Puseram Michel de pé no chão e ele conseguiu coxear para dentro de casa, onde se atirou para um cadeirão.

 

Flick olhou em volta. Via-se que estavam na casa de uma mulher, bonita, mimosa e limpa. O mais importante de tudo é que à volta não havia outros prédios da mesma altura. Era essa a vantagem do último andar: ninguém podia espreitar lá para dentro. Michel estaria em segurança.

 

Gilberte ocupou-se de Michel, tentando pô-lo mais confortável com o auxílio de almofadas, limpando-lhe o rosto com uma toalha, oferecendo-lhe aspirinas. Era atenciosa mas pouco prática, tal como Antoinette o fora. Michel tinha esse efeito nas mulheres, embora não em Flick e fora em parte por isso que ele se apaixonara por ela: era incapaz de resistir a um desafio.

 

Precisas de um médico disse ela com brusquidão. E que tal o Claude Bouler? Ele costumava ajudar-nos, mas da última vez que falei com ele fingiu não me conhecer. Pensei que ia fugir, de tão nervoso que estava.

 

Ele ganhou medo desde que se casou respondeu Michel. Mas há-de vir ajudar-me.


Flick assentiu. Muitas pessoas abriam excepções por causa de Michel.

 

Gilberte, vai buscar o doutor Bouler.

 

Prefiro ficar com o Michel.

 

Flick resmungou mentalmente. Uma rapariga como Gilberte servia apenas para dar recados, e ainda por cima fazia-se difícil em relação a isso.

 

Por favor, faz o que te digo retorquiu Flick com firmeza. Preciso de estar sozinha com o Michel antes de regressar a Londres.

 

E o recolher obrigatório?

 

Se fores detida, diz que vais chamar um médico. É uma desculpa aceite. Podem acompanhar-te a casa do Claude para ter a certeza de que estás a dizer a verdade. Mas não hão-de vir aqui.

 

Gilberte pareceu perturbada, mas vestiu um casaco e saiu. Flick sentou-se no braço do cadeirão de Michel e beijou-o.

 

Aquilo correu muito mal disse ela.

 

Eu sei. Ele soltou um gemido. Grande MI6. Deviam lá estar o dobro dos homens.

 

Nunca mais vou confiar naqueles palhaços.

 

Perdemos o Albert. Vou ter de dizer à mulher dele.

 

Vou voltar esta noite. E peço a Londres que te envie outro operador de rádio.

 

Obrigado.

 

Vais ter de descobrir quem mais morreu e quem está vivo.

 

Se conseguir disse ele com um suspiro. Ela pegou-lhe na mão.

 

Como é que te sentes?

 

Idiota. É um sítio pouco digno para apanhar uma bala.

 

Mas fisicamente?

 

Um pouco tonto.

 

Precisas de beber qualquer coisa. O que é que ela terá cá em casa?

 

Um uísque sabia bem. Antes da guerra, os amigos de Flick em Londres tinham ensinado Michel a gostar de uísque.

 

Isso é forte de mais. A cozinha ficava numa das extremidades da sala. Flick abriu um armário. Para sua surpresa, viu uma garrafa de Dewar’s White Label. Os agentes da Grã-Bretanha traziam muitas vezes uísque com eles, para consumo próprio ou para os camaradas franceses, mas parecia uma bebida pouco própria para uma rapariga francesa. Havia também uma garrafa encertada de vinho tinto, muito mais indicado para um homem ferido. Ela encheu

meio copo e acabou de o encher com água da torneira. Michel bebeu com avidez: a perda de sangue deixara-o sedento. Esvaziou o copo, depois recostou-se e fechou os olhos.

 

Flick tinha vontade de beber um uísque, mas não era simpático proibir Michel de o beber e depois ir bebê-lo ela. Para além do mais, precisava de estar bem alerta. Tomaria um copo quando chegasse a solo britânico.

 

Olhou em volta. Havia algumas fotografias na parede, uma pilha de revistas de moda já antigas, mas nenhum livro. Espreitou para o quarto.

 

O que estás a fazer? perguntou Michel com aspereza.

 

A dar uma olhadela.

 

Não achas que é falta de educação, não estando ela em casa? Flick encolheu os ombros.

 

Nem por isso. De qualquer forma, preciso de ir à casa de banho.

 

Fica lá fora. Ao fundo das escadas e depois ao fundo do corredor. Se bem me lembro.

 

Ela seguiu as instruções dele. Enquanto estava na casa de banho percebeu que algo a incomodava, algo no apartamento de Gilberte. Concentrou-se. Nunca ignorava os seus instintos: já tinham salvado a sua vida mais do que uma vez.

 

Há aqui qualquer coisa errada disse ela a Michel quando regressou. O que é?

 

Ele encolheu os ombros-, parecendo pouco à vontade.

 

Não sei.

 

Pareces nervoso.

 

Talvez porque tenha sido ferido num tiroteio.

 

Não, não é isso. É o apartamento. Tinha a ver com o nervosismo de Gilberte, com o facto de Michel saber onde ficava a casa de banho, com o uísque. Flick foi até ao quarto. Daquela vez Michel não fez comentários. Ela olhou em volta. Na mesa-de-cabeceira estava a fotografia de um homem com os olhos grandes de Gilberte e sobrancelhas negras, talvez o pai dela. Havia uma boneca na colcha. A um canto estava uma bacia com um armário espelhado por cima. Flick abriu a porta do armário. Lá dentro viu uma lâmina de barbear, uma tigelinha e um pincel da barba. Gilberte não era assim tão inocente: já ali dormira um homem vezes suficientes para lá deixar as coisas da barba.

 

Flick olhou com mais atenção. A lâmina e a escova faziam conjunto e tinham cabos de osso polido. Ela reconheceu-os. Dera-os a Michel no seu trigésimo segundo aniversário.


Então era isso.

 

Ficou tão chocada que durante um momento foi incapaz de falar.

 

Desconfiara que ele estava interessado noutra pessoa, mas não imaginara que tivesse ido tão longe. Contudo, ali estava a prova, diante dos seus olhos.

 

O choque transformou-se em dor. Como podia ele dormir com outra mulher quando ela estava sozinha em Londres? Virou-se e olhou para a cama. Tinham-no feito ali, naquele quarto. Era insuportável.

 

Depois ficou zangada. Fora leal e fiel, aguentara a solidão mas ele não. Enganara-a. Estava tão furiosa com ele que se sentia capaz de explodir.

 

Dirigiu-se para a sala a passos largos e parou diante dele.

 

Seu filho da mãe! exclamou em inglês. Seu reles filho da mãe.

 

Não te zangues comigo respondeu Michel na mesma língua.

 

Sabia que ela achava muita graça ao seu fraco inglês, mas daquela vez isso não ia resultar.

 

Como foste capaz de me trair com uma atrasada mental de dezanove anos? perguntou ela já em francês.

 

Não significa nada, ela é apenas uma miúda gira.

 

E achas que isso muda alguma coisa? Quando ela andava a estudar e Michel fora seu professor, Flick sabia que atraíra a atenção dele desafiando-o na aula as alunas francesas eram deferentes quando comparadas às suas congéneres inglesas, e ainda por cima Flick tinha o hábito de não respeitar a autoridade. Se uma mulher parecida consigo tivesse seduzido Michel, uma mulher como Geneviève, com a sua fibra, teria sido mais fácil de suportar. Custava mais ele ter escolhido Gilberte, uma rapariga sem outro interesse que não o verniz das unhas.

 

Estava sozinho disse Michel.

 

Poupa-me da história do desgraçadinho. Para além de estares sozinho, foste fraco, desonesto e desleal.

 

Flick, minha querida, não vamos discutir. Metade dos nossos amigos acabaram de ser mortos. Tu vais voltar para Inglaterra. Podemos morrer ambos em breve. Não partas zangada.

 

Porque é que não posso estar zangada? Vou deixar-te nos braços de uma sirigaita!

 

Ela não é uma sirigaita...

 

Dispenso os pormenores técnicos. Sou tua mulher, mas tu dormes com ela.


Michel mexeu-se no cadeirão e fez um esgar de dor, depois pousou o seu olhar azul intenso em Flick.

 

Declaro-me culpado disse ele. Sou um patife. Mas sou um patife que te ama, e estou apenas a pedir que me perdoes, só desta vez, para o caso de não voltar a ver-te.

 

Era difícil resistir. Flick comparou cinco anos de casamento com um caso com uma miúda e cedeu. Avançou um passo na direcção dele. Ele abraçou-a pelas pernas e encostou o rosto ao algodão gasto do vestido dela. Flick fez-lhe uma festa no cabelo.

 

Está bem cedeu. Está bem.

 

Lamento muito disse ele. Sinto-me pessimamente. És a mulher mais extraordinária que já conheci, de que já ouvi falar. Não vou voltar a fazê-lo. Prometo.

 

A porta abriu-se e Gilberte entrou com Claude. Flick deu um salto, sobressaltada e, sentindo-se culpada, libertou-se do abraço de Michel. Depois sentiu-se uma idiota. Ele era seu marido, não de Gilberte. Porque havia de sentir-se culpada por abraçá-lo, mesmo que fosse no apartamento de Gilberte? Ficou zangada consigo própria.

 

Gilberte ficou chocada ao ver o amante a abraçar a mulher ali, mas recuperou rapidamente e o seu rosto adquiriu uma expressão de indiferença.

 

Claude, um jovem médico atraente, seguiu-a, parecendo ansioso.

 

Flick dirigiu-se a ele e beijou-o na cara.

 

Obrigada por vires disse. Ficamos-te muito gratos. Claude olhou para Michel.

 

Como é que te sentes, companheiro?

 

Tenho uma bala no rabo.

 

Então é melhor eu tirá-la de lá. Abandonou o ar preocupado e adoptou uma expressão profissional. Virando-se para Flick, disse: Põe umas toalhas na cama para ensopar o sangue, depois tira-lhe as calças e deita-o de barriga para baixo. Eu vou lavar as mãos.

 

Gilberte colocou algumas revistas velhas na cama e cobriu-as com toalhas enquanto Flick ajudava Michel a levantar-se e a saltitar até à cama. Quando ele se deitou, ela não conseguiu impedir-se de perguntar a si própria quantas vezes se teria ele deitado ali.

 

Claude inseriu um instrumento metálico na ferida e fê-lo circular à procura da bala. Michel gritou de dor.

 

Desculpa, meu amigo disse Claude.

 

Flick quase sentiu prazer ao ver o sofrimento de Michel na cama onde ele já devia ter gritado de prazer. Esperava que ele recordasse o quarto de Gilberte daquela forma.


Acaba lá com isso implorou Michel.

 

O sentimento de vingança de Flick desapareceu rapidamente, e ela ficou cheia de pena do marido. Aproximou uma almofada do rosto dele.

 

Morde aqui, vais ver que ajuda.

 

Michel enfiou a ponta da almofada na boca.

 

Claude voltou a remexer na ferida com o instrumento e desta vez a bala saiu. O sangue escorreu durante alguns segundos, depois abrandou, e Claude tapou a ferida com um penso.

 

Mexe-te o menos que puderes durante uns dias aconselhou ele.

 

Isso significava que Michel teria de ficar em casa de Gilberte. No entanto, estaria demasiado dorido para o sexo, pensou Flick com satisfação.

 

Obrigada, Claude agradeceu ela.

 

Ainda bem que pude ser útil.

 

Tenho outro pedido a fazer-te.

 

Qual? perguntou Claude com ar assustado.

 

Vou apanhar um avião às onze e quarenta e cinco. Preciso que me leves a Chatelle de carro.

 

Porque é que a Gilberte não te leva no carro que levou a minha casa?

 

Por causa do recolher obrigatório. Mas contigo estaremos em segurança porque és médico.

 

Porque é que eu hei-de ter duas pessoas comigo?

 

Três. Precisamos que o Michel segure numa lanterna. O procedimento nas recolhas era sempre o mesmo: quatro elementos da Resistência formavam um L gigante com lanternas na mão, indicando a direcção do vento e o local de aterragem do avião. As pequenas lanternas precisavam de estar voltadas para o avião para garantir que o piloto as via. Podiam simplesmente ser colocadas no chão, mas isso era menos seguro, e se o piloto não visse aquilo que esperava ver podia desconfiar de uma armadilha e decidir não aterrar. Era melhor ter quatro pessoas se isso fosse possível.

 

Como é que vou explicar a vossa presença à Polícia? perguntou Claude. Um médico numa emergência não viaja com três pessoas no carro!

 

Havemos de inventar uma história.

 

É muito perigoso!

 

Não leva mais do que uns minutos a esta hora da noite.

 

A Marie-Jeanne vai matar-me. Está sempre a dizer que tenho de pensar nas crianças.


Tu não tens filhos.

 

Ela está grávida.

 

Flick assentiu. Isso explicava por que motivo ele estava tão sobressaltado.

 

Michel rolou na cama e sentou-se. Depois apoiou-se ao braço de Claude.

 

Claude, imploro-te, isto é muito importante. Fá-lo por mim, por favor?

 

Era difícil dizer que não a Michel. Claude suspirou.

 

Quando?

 

Flick olhou para o relógio. Eram quase sete.

 

Agora.

 

Claude olhou para Michel.

 

A ferida dele pode voltar a abrir.

 

Eu sei respondeu Flick. Deixa-a sangrar.

 

A aldeia de Chatelle consistia em meia dúzia de casas construídas em torno de um cruzamento: três quintas, uma fila de pequenas casas, e uma padaria que fornecia as quintas e as aldeias mais próximas. Flick estava de pé no meio de um pasto a quilómetro e meio do cruzamento, tendo na mão uma lanterna do tamanho de um maço de tabaco.

 

Frequentara um curso de uma semana dado por pilotos do Esquadrão 161 para aprender a orientar a aterragem de um avião. Aquele local obedecia às especificações que lhe haviam dado. Tinha quase um quilómetro de comprimento um Lysander precisava de seiscentos metros para aterrar e levantar voo. O chão sob os seus pés era firme, e não havia declives. Um lago próximo era bem visível do céu ao luar, dando aos pilotos um ponto de referência.

 

Michel e Gilberte formavam com Flick uma linha recta que indicava a direcção do vento, e Claude estava alguns metros para o lado de Gilberte, formando a base do L invertido que guiaria o piloto. Em áreas isoladas, podiam usar-se fogueiras em vez de lanternas, mas ali, perto de uma aldeia, era demasiado perigoso deixar uma reveladora marca de fogo no chão.

 

As quatro pessoas formavam aquilo a que os agentes chamavam «comité de recepção». Os comités de Flick eram sempre silenciosos e disciplinados, mas grupos menos bem organizados transformavam muitas vezes as aterragens em festas, com grupos de homens a gritar anedotas e a fumar, e os espectadores das aldeias mais próximas vinham assistir. Isso era perigoso. Se o piloto desconfiasse que os alemães sabiam da aterragem e achasse que a Gestapo podia estar à sua espera tinha de reagir com rapidez. As instruções dadas aos comités de recepção indicavam que quem se aproximasse do avião pelo ângulo errado podia ser abatido pelo piloto. Aquilo nunca acontecera, mas uma ocasião um espectador fora atropelado por um bombardeiro Hudson e morrera.

 

Esperar pelo avião era sempre um inferno. Se ele não aparecesse Flick teria de suportar outras vinte e quatro horas de tensão e de perigo antes da oportunidade seguinte. Mas um agente nunca sabia se um avião ia aparecer. Mas não porque a RAF não fosse de confiança. Como os pilotos do Esquadrão 161 tinham explicado a Flick, navegar um avião pelo luar sobre centenas de quilómetros de campo era uma tarefa monumentalmente difícil. O piloto calculava a sua posição pela direcção, pela velocidade e pelos minutos passados e tentava confirmar o resultado através de pontos de referência como rios, vilas, linhas de caminho-de-ferro e florestas. O problema daquele método era o facto de ser impossível ajustar a rota se houvesse um desvio causado pelo vento. E o problema dos pontos de referência era que ao luar os rios são todos parecidos. Chegar mais ou menos à área já era difícil, mas aqueles pilotos tinham ainda de descobrir um determinado campo.

 

Se houvesse nuvens a ocultar a Lua seria impossível e o avião nem sequer levantaria voo.

 

Contudo, o céu estava limpo e Flick sentia-se esperançada. E poucos minutos antes da meia-noite ouviu o inconfundível som de um avião monomotor, primeiro ténue, depois cada vez mais intenso, como um aplauso, e sentiu a excitação de regressar a casa. Começou a acender e a apagar a lanterna para formar a letra X no alfabeto morse. Se formasse a letra errada o piloto desconfiaria de uma armadilha e ir-se-ia embora.

 

O avião descreveu um círculo, depois foi perdendo altitude. Aterrou à direita de Flick, travou, virou entre Michel e Claude, deslizou até Flick e virou-se de novo para o vento, descrevendo uma elipse e parando já pronto para a descolagem.

 

O aparelho era um Westland Lysander, um monoplano pequeno de asas elevadas, pintado de preto mate. Tinha apenas uma pessoa a bordo. Possuía dois lugares para passageiros, mas Flick já vira Lizzies transportar quatro, um no chão e outro na prateleira das bagagens.

 

O piloto não desligou o motor. O seu objectivo era não ficar no chão mais do que alguns segundos.

 

Flick queria abraçar Michel e desejar-lhe boa sorte, mas também lhe apetecia esbofeteá-lo e mandá-lo manter-se afastado de outras mulheres. Ainda bem que não tinha tempo nem para uma coisa nem para outra.

 

Depois de um breve aceno, Flick subiu a escada metálica, abriu a escotilha e entrou no avião. Fechou a cúpula de vidro sobre a sua cabeça.

 

O piloto olhou para trás e Flick levantou os polegares. O pequeno avião deu um solavanco para a frente e ganhou velocidade, depois levantou voo e subiu num ângulo bastante acentuado.

 

Flick conseguia ver algumas luzes na aldeia: os camponeses eram descuidados com o blackout. Quando Flick aterrara em França, já demasiado tarde, às quatro da manhã, conseguira ver do ar a luz avermelhada do forno de uma padaria e ao atravessar a aldeia de carro sentira o cheiro do pão acabado de cozer, a essência da França.

 

O avião inclinou-se para virar, e Flick viu os rostos de Michel, Gilberte e Claude iluminados pelo luar, assemelhando-se a manchas brancas no pano de fundo negro do pasto. Quando o avião se endireitou rumo a Inglaterra, ela apercebeu-se com um certo pesar de que poderia nunca mais voltar a vê-los.

 

O SEGUNDO DIA

Segunda-feira, 29 de Maio de 1944

Dieter Franck conduziu durante a noite o grande Hispano-Suiza, acompanhado pelo seu jovem assistente, o tenente Hans Hesse. O carro tinha dez anos, mas o seu monstruoso motor de onze litros era incansável. Na véspera à noite, Dieter encontrara mais marcas de balas na curva generosa do pára-choques, uma recordação da escaramuça na praça de Sainte-Cécile, mas não havia danos mecânicos e ele era de opinião que os buracos contribuíam para o charme do carro, como a cicatriz de um duelo no rosto de um oficial prussiano.

 

O tenente Hesse tapou os faróis para percorrerem as ruas de Paris, que estava em blackout, mas destapou-os quando chegaram à estrada que conduzia à Normandia. Revezaram-se ao volante, duas horas cada um, embora Hesse, que adorava o carro e idolatrava o seu proprietário, tivesse conduzido de bom grado durante todo o percurso.

 

Meio a dormir no banco do passageiro, fascinado com as estradas secundárias que se desenrolavam diante dos faróis, Dieter tentou imaginar o seu futuro. Iriam os Aliados reconquistar a França e expulsar as forças de ocupação? Imaginar a Alemanha derrotada era assustador. Talvez houvesse uma espécie de acordo de paz, com a Alemanha a entregar a França e a Polónia, mas mantendo a Áustria e a Checoslováquia. Isso parecia pouco melhor. Teve dificuldade em imaginar a vida em Colónia, de novo com a mulher e os filhos, depois da excitação e dos prazeres de Paris e de Stéphanie. O único final feliz para Dieter e para a Alemanha seria se o exército de Rommel empurrasse os invasores de novo para o mar.

 

Antes do nascer do Sol, naquela manhã húmida, Hesse entrou em La Roche-Guyon, uma pequena aldeia medieval na margem do Sena entre Paris e Rouen. Parou no bloqueio de estrada no final da aldeia, mas eles eram esperados e mandaram-nos rapidamente continuar. Passaram por casas silenciosas e de janelas tapadas até chegarem a outro posto de controlo junto às portas do antigo castelo. Por fim estacionaram no grande pátio empedrado. Dieter deixou Hesse no carro e entrou no edifício.

 

O comandante-em-chefe alemão da zona oeste era o marechal-de-campo Gerd von Runstedt, um general da velha guarda. Sob as ordens dele, encarregue da defesa da costa francesa, encontrava-se o marechal-de-campo Erwin Rommel. O castelo de La Roche-Guyon era o quartel-general de Rommel.

 

Dieter Franck tinha afinidades com Rommel. Ambos eram filhos de professores o pai de Rommel fora director de uma escola e, consequentemente, ambos eram alvo de um certo desdém por parte de militares snobes como Von Runstedt. De resto, eram bastante diferentes. Dieter era um bon vivant, saboreando todos os prazeres culturais e sensuais que a França tinha para oferecer. Rommel era um trabalhador obsessivo que não fumava nem bebia e muitas vezes se esquecia de comer. Casara com a primeira namorada e escrevia-lhe três vezes por dia.

 

No vestíbulo, Dieter encontrou o ajudante de Rommel, o major Walter Goedel, um homem frio com um cérebro formidável. Dieter respeitava-o, mas era incapaz de simpatizar com ele. Tinham falado ao telefone na noite anterior. Dieter contara-lhe o problema que tivera com a Gestapo e dissera que queria ver Rommel o mais depressa possível.

 

Esteja cá às quatro da manhã dissera Goedel. Rommel começava sempre a trabalhar às quatro da manhã.

 

Naquele momento Dieter perguntou a si mesmo se fizera o correcto. Rommel poderia perguntar «Como ousa vir incomodar-me com essas trivialidades?», embora Dieter pensasse que não. Os comandantes gostavam de sentir que controlavam todos os pormenores. Quase de certeza que Rommel daria a Dieter o apoio que ele vinha pedir-lhe. Mas nunca se sabia, especialmente quando o comandante estava sob tensão.

 

Goedel acenou um cumprimento.

 

Ele quer vê-lo de imediato. Venha por aqui.

 

Tem tido notícias de Itália? perguntou Dieter enquanto avançavam pelo corredor.

 

Apenas más notícias respondeu Goedel. Estamos em retirada de Arce.

 

Dieter assentiu, resignado. Os Alemães lutavam com determinação, mas haviam sido incapazes de deter o avanço para norte do inimigo.


Pouco depois, Dieter entrou no gabinete de Rommel. Era um salão no rés-do-chão. Dieter reparou com inveja numa tapeçaria valiosíssima do século xv, da fábrica Gobelin, numa das paredes. Havia poucos móveis, à excepção de algumas cadeiras e de uma enorme secretária antiga que pareceu a Dieter ser da mesma época da tapeçaria. Na secretária havia um único candeeiro. À secretária encontrava-se sentado um homem baixo com cabelo alourado a rarear.

 

O major Franck está aqui, meu marechal anunciou Goedel.

 

Dieter aguardou cheio de nervosismo. Rommel continuou a ler durante alguns segundos, depois fez uma marca numa folha de papel. Parecia o gerente de um banco a rever as contas dos clientes mais importantes até levantar os olhos. Dieter já vira antes aquele rosto, mas nunca deixava de se sentir ameaçado. Era um rosto de pugilista, com um nariz achatado, um queixo largo e olhos muito juntos, e possuía aquela agressividade que tornara Rommel um comandante lendário. Dieter recordou a história da primeira missão de Rommel durante a Primeira Guerra Mundial. Liderando uma patrulha de três homens, Rommel deparara com vinte soldados franceses. Em vez de recuar e de requisitar reforços, Rommel abrira fogo e avançara para o inimigo. Tivera a sorte de sobreviver mas Dieter recordou-se de uma frase de Napoleão: «Mandai-me generais com sorte.» Desde essa altura, Rommel preferia sempre os ataques súbitos e ousados aos ataques cuidadosamente planeados. Nisso era o oposto do seu opositor no deserto, o general Montgomery, cuja filosofia era nunca atacar até se ter a certeza da vitória.

 

Sente-se, Franck disse Rommel com brusquidão. O que é que se passa?

 

Dieter já ensaiara o que iria dizer.

 

Seguindo as suas instruções, tenho visitado edifícios-chave passíveis de serem vulneráveis a um ataque da Resistência e tenho aumentado a sua segurança.

 

Óptimo.

 

Também tenho tentado determinar qual a capacidade da Resistência em provocar danos graves. Serão capazes de prejudicar a nossa reacção a uma invasão?

 

E qual foi a sua conclusão?

 

A situação é mais grave do que imaginávamos.

 

Rommel resmungou entre dentes, como se uma suspeita desagradável tivesse acabado de ser confirmada.

 

Motivos?

 

Rommel não ia arrancar-lhe a cabeça. Dieter descontraiu-se um pouco. Relatou o ataque da véspera a Sainte-Cécile: o plano imaginativo, as armas abundantes, e acima de tudo a bravura dos combatentes. O único pormenor que deixou de fora foi a beleza da loura. Rommel levantou-se e dirigiu-se à tapeçaria. Olhou para ela, mas Dieter achou que ele não estava a vê-la

 

Eu temia isso disse Rommel. Falava baixo, quase de si para si. Sou capaz de rechaçar uma invasão, mesmo com as poucas tropas de que disponho, se puder continuar a ter mobilidade e flexibilidade... mas se as minhas comunicações falharem, estou perdido.

 

Goedel assentiu em concordância.

 

Acho que podemos transformar o ataque à central telefónica numa oportunidade.

 

Rommel virou-se para ele com um ligeiro sorriso.

 

Quem me dera que todos os meus oficiais fossem como você! Continue. O que é que propõe?

 

Dieter começou a achar que a reunião lhe estava a ser favorável.

 

Se eu puder interrogar os prisioneiros capturados eles poderão conduzir-me a outros grupos. Com sorte, poderemos provocar bastantes danos na Resistência antes da invasão.

 

Rommel parecia céptico.

 

Isso soa a fanfarronice. Dieter começou a assustar-se. Depois Rommel prosseguiu. Se fosse outra pessoa a dizê-lo, talvez já estivesse a mandá-la embora. Mas recordo-me do seu trabalho no deserto. Consegue que as pessoas lhe contem coisas que julgavam não saber.

 

Dieter sentiu-se satisfeito. Aproveitando aquele momento favorável, disse:

 

Infelizmente, a Gestapo recusa deixar-me interrogar os prisioneiros.

 

São mesmo imbecis.

 

Preciso da sua intervenção.

 

Com certeza. Rommel olhou para Goedel. Ligue para a Avenue Foch. O quartel-general da Gestapo em França ficava no número 84 da Avenue Foch em Paris. Diga-lhes que o major Franck irá interrogar os prisioneiros hoje, senão o próximo telefonema virá de Berchtesgaden. Estava a referir-se à fortaleza de Hitler na Baviera. Rommel nunca hesitava em servir-se do privilégio de acesso directo a Hitler que tinham os marechais-de-campo.

 

Muito bem respondeu Goedel.

 

Rommel contornou a sua secretária do século xvii e tornou a sentar-se.


Por favor, mantenha-me a par das coisas, Franck disse, voltando a concentrar-se nos papéis. Dieter e Goedel saíram da sala.

 

Goedel acompanhou Dieter à entrada principal do castelo. Lá fora ainda era de noite.

 

Flick aterrou em Tempsford, um campo de aviação da RAF oitenta quilómetros a norte de Londres, perto de Sandy, uma aldeia em Bedfordshire. Apenas pelo gosto fresco e húmido do ar da noite na sua boca seria capaz de dizer que estava de regresso a Inglaterra. Adorava a França, mas ali encontrava-se em casa.

 

Atravessando o campo de aviação a pé, recordou-se de regressar de férias em criança. A mãe dizia sempre a mesma coisa quando voltavam a ver a casa:

 

É bom saír, mas é bom voltar a casa.

 

Flick recordava-se sempre nos momentos mais estranhos das coisas que a mãe dizia.

 

Uma jovem com o uniforme de cabo das FANY aguardava junto a um potente Jaguar para levá-la a Londres.

 

Mas que luxo comentou Flick sentando-se no banco de cabedal.

 

Vou levá-la imediatamente para Orchard Court disse a condutora. Estão à sua espera para o interrogatório.

 

Flick esfregou os olhos.

 

Meu Deus! exclamou. Eles acham que eu não preciso de dormir?

 

A condutora não fez comentários.

 

Espero que a missão tenha corrido bem, meu major.

 

Foi uma SNCF.

 

Desculpe?

 

SNCF repetiu Flick. É uma sigla. Quer dizer «Situação Normal Completamente fodida».

 

A mulher ficou calada. Flick calculou que ela devia sentir-se pouco à vontade. Ainda bem, pensou com amargura, que ainda havia mulheres que se chocavam com a linguagem de caserna.


O dia nasceu enquanto o carro avançava rapidamente pelas aldeias de Stevenage e Knebworth. Flick olhou para as casas modestas com pequenas hortas à frente, para os correios rurais onde as funcionárias distribuíam selos de um penny, e para os vários pubs com a sua cerveja morna e os seus pianos velhos, e sentiu uma enorme felicidade pelo facto de os nazis ainda não terem chegado ali.

 

Esse sentimento deixou-a ainda mais determinada a regressar a França. Queria outra oportunidade para atacar o castelo. Recordou as pessoas que deixara para trás em Sainte-Cécile: Albert, o jovem Bertrand, a bela Geneviève, e os outros mortos ou capturados. Pensou nas suas famílias, aflitas de tão preocupadas ou atordoadas pela dor. Decidiu que o sacrifício delas não seria em vão.

 

Teria de começar imediatamente. Ainda bem que ia ser interrogada: teria oportunidade de propor ainda naquele dia o seu plano. Os homens que dirigiam o ÊOE mostrar-se-iam receosos a princípio, pois nunca ninguém enviara uma equipa só de mulheres para uma missão daquelas. Havia muitos tipos de empecilhos. Mas havia sempre empecilhos.

 

Quando chegou aos subúrbios a norte de Londres o Sol já nascera e as pessoas especiais das madrugadas já andavam na rua: carteiros e leiteiros nas suas entregas, maquinistas e motoristas de autocarros a dirigirem-se a pé para o trabalho. Por todo o lado havia vestígios da guerra: um cartaz a prevenir contra os desperdícios, um papel na montra de um talho a dizer «Hoje não há carne», uma mulher a empurrar um carro do lixo, uma correnteza de casas bombardeadas. Mas ninguém ali mandaria Flick parar nem exigiria ver os seus documentos, nem a mandaria para uma cela, nem a torturaria para obter informações nem a mandaria num comboio de carga para um campo onde ela morreria à fome. Sentiu desaparecer a tensão de viver sob disfarce, recostou-se no banco e fechou os olhos.

 

Acordou quando o carro entrou em Baker Street. Passou pelo número 64: os agentes nunca entravam no quartel-general para não poderem revelar os seus segredos no caso de serem interrogados. Na verdade, muitos agentes desconheciam aquela morada. O carro entrou em Portman Square e parou junto a Orchard Court, um prédio. A condutora saiu e abriu-lhe a porta.

 

Flick entrou e rumou ao andar do EOE. Animou-se ao ver Percy Thwaite. Era um homem calvo de cinquenta anos com um bigode à escovinha que gostava de Flick como um pai. Estava vestido à civil e nenhum deles fez continência, porque o EOE não tinha paciência para formalidades militares.


Pela tua cara calculo que tenha corrido mal disse Percy. O tom compreensivo dele foi demasiado para Flick. A tragédia do que acontecera dominou-a subitamente e ela rompeu em lágrimas. Percy abraçou-a e deu-lhe palmadinhas nas costas. Flick enterrou o rosto no velho casaco de tweed dele.

 

Tudo bem disse Percy. Sei que fizeste o teu melhor.

 

Desculpa estar a comportar-me como uma rapariga.

 

Quem me dera que todos os meus homens fossem raparigas assim disse Percy com a voz embargada.

 

Ela desprendeu-se do abraço dele e limpou os olhos à manga.

 

Não me ligues.

 

Ele virou-se e assoou o nariz num lenço grande.

 

Chá ou uísque? perguntou.

 

Chá, acho. Ela olhou em volta. A sala estava cheia de móveis velhos, rapidamente lá colocados em 1940 e nunca substituídos: uma secretária barata, um tapete gasto, cadeiras todas diferentes umas das outras. Flick sentou-se num cadeirão com molas frouxas. Adormeço se beber álcool.

 

Observou Percy a preparar o chá. Ele sabia ser duro e mostrar compaixão. Muito condecorado durante a Primeira Guerra Mundial, tornara-se um agitador dos operários durante os anos 20 e fora um veterano da Batalha de Cable Street, em 1936, quando os cockneys tinham atacado os fascistas que tentavam desfilar num bairro judeu do East End de Londres. Iria fazer-lhe perguntas minuciosas acerca do seu plano, mas manteria o espírito aberto.

 

Entregou-lhe uma caneca de chá com leite e açúcar.

 

Vai haver uma reunião esta manhã disse ele. Tenho de apresentar um relatório ao chefe às nove. Daí a pressa.

 

Ela deu uns goles no chá quente e sentiu uma onda de energia. Contou-lhe o que acontecera na praça em Sainte-Cécile. Ele sentou-se à secretária e tomou notas com um lápis afiado.

 

Devia ter adiado tudo concluiu ela. Com base nos receios de Antoinette sobre os serviços secretos, devia ter adiado o ataque e ter-te enviado uma mensagem via rádio, informando-te de que estávamos em desvantagem numérica.

 

Percy abanou a cabeça com ar triste.

 

Não é altura para adiamentos. A invasão deve ocorrer daqui a uns dias. Se nos tivesses consultado, duvido que tivesse feito diferença. Creio que te teríamos mandado avançar. Tínhamos de tentar. A central telefónica é demasiado importante.

 

Bem, isso serve de consolação. Flick gostou de saber que não tinha de achar que Albert morrera porque ela cometera um erro táctico. Mas isso não iria trazê-lo de volta.


E o Michel está bem? perguntou Percy.

 

Ferido, mas a recuperar. Quando o EOE recrutara Flick, ela não os informara de que o marido trabalhava na Resistência. Se tivessem sabido, podiam tê-la mandado fazer um trabalho diferente. Mas ela própria não o sabia, embora tivesse desconfiado. Em Maio de 1940 estivera em Inglaterra a visitar a mãe, e Michel estivera no exército, como a maior parte dos franceses sãos, pelo que a queda da França os retivera em países diferentes. Quando ela regressara como agente secreta e tomara conhecimento do papel desempenhado pelo marido, já tinham investido demasiado treino em Flick e ela era demasiado útil ao EOE para ser despedida por causa de hipotéticas distracções emocionais.

 

Ninguém gosta de ser alvejado no rabo comentou Percy. As pessoas devem pensar que fugiste. Levantou-se. Bem, é melhor ires para casa dormir.

 

Ainda não retorquiu Flick. Primeiro quero saber o que vamos fazer a seguir.

 

Vou escrever este relatório...

 

Não, estou a referir-me à central telefónica. Se é assim tão importante, temos de a destruir.

 

Ele tornou a sentar-se e fitou-a com uma expressão astuta.

 

No que é que estás a pensar?

 

Flick tirou da mala o passe de Antoinette e atirou-o para a secretária dele.

 

Aqui está uma forma melhor de entrarmos. Isso é utilizado pelas mulheres da limpeza todas as noites às sete horas.

 

Percy pegou no passe e observou-o.

 

Menina esperta comentou ele com uma certa admiração. Continua.

 

Quero voltar para lá.

 

No rosto de Percy surgiu uma breve expressão de dor e Flick soube que ele receava que ela arriscasse de novo a vida. Mas ele não disse nada.

 

Desta vez vou levar uma equipa inteira comigo prosseguiu. Cada uma terá um passe como esse. Vamos substituir as mulheres da limpeza de forma a entrar no castelo.

 

Presumo que queiras só mulheres.

 

Exacto. Preciso de uma equipa só de mulheres. Ele assentiu.

 

Pouca gente aqui irá levantar objecções... vocês mulheres já mostraram o que valiam. Mas onde irás encontrar as mulheres? As que temos já estão quase todas lá.


Consegue que o meu plano seja aprovado que eu trato de encontrar as mulheres. Vou pegar nas que foram rejeitadas pelo EOE, nas que falharam o curso, todas. Devemos ter várias que falharam por um motivo ou por outro.

 

Sim... porque não tinham preparação física, porque não sabiam ficar de bico calado, porque gostavam demasiado de violência ou porque perderam a coragem no treino de pára-quedismo e se recusaram a saltar do avião.

 

Não interessa que sejam segundas escolhas retorquiu Flick com seriedade. Sei lidar com isso. Na sua mente uma voz perguntou «Sabes mesmo?», mas ela ignorou-a. Se a invasão falhar, perdemos a Europa. Não voltaremos a tentar durante anos. Este é o ponto de viragem, temos de atirar tudo ao inimigo.

 

Não podias usar francesas que já lá estejam, combatentes da Resistência?

 

Flick já considerara e rejeitara essa ideia.

 

Se eu dispusesse de algumas semanas, poderia formar uma equipa a partir de meia dúzia de circuitos da Resistência, mas levaria muito tempo a encontrá-las e a fazê-las chegar a Reims.

 

Ainda pode ser possível.

 

E depois temos de forjar passes com a fotografia de cada uma delas. Isso é difícil de conseguir lá. Aqui podemos fazê-los num dia ou dois.

 

Não é assim tão fácil. Percy levantou o passe de Antoinette e aproximou-o de uma lâmpada despida, observando-o a contraluz. Mas tens razão, o nosso pessoal é capaz de fazer milagres nesse âmbito. Pousou-o na secretária. Está bem. Mas vão ter de ser mulheres rejeitadas pelo EOE.

 

Flick sentiu-se triunfante. Ele iria tentar ajudá-la.

 

Mas partindo do princípio de que encontras mulheres que falem francês em número suficiente, achas que vai resultar? prosseguiu Percy. E os guardas alemães? Não conhecem as mulheres da limpeza?

 

Não devem ir trabalhar sempre as mesmas todos os dias... devem ter folgas. E os homens nunca reparam em quem limpa a porcaria deles.

 

Olha que não sei. Os soldados são normalmente rapazes ávidos de sexo que prestam muita atenção a todas as mulheres que encontram. Calculo que os homens desse castelo namorisquem pelo menos com as mais novas.

 

Vi as mulheres entrarem no castelo ontem à noite e não vi sinais de namoriscos.


Mesmo assim não podes ter a certeza de que os homens não vão reparar no aparecimento de uma equipa completamente desconhecida.

 

Não posso ter a certeza, mas estou suficientemente confiante.

 

Está bem, e quanto às pessoas francesas lá dentro? As telefonistas são da zona, não são?

 

Algumas sim, mas a maior parte vem de Reims num autocarro.

 

Nem todos os franceses gostam da Resistência, ambos sabemos isso. Há alguns que aprovam as ideias dos nazis. Deus sabe que houve muitos idiotas na Grã-Bretanha que acharam que o Hitler oferecia o tipo de governo forte e modernizador de que precisamos... embora hoje em dia não se ouça falar muito nessas pessoas.

 

Flick abanou a cabeça. Percy ainda não fora a França depois da ocupação.

 

Lembra-te de que os Franceses tiveram quatro anos de domínio nazi. Toda a gente lá anseia pela invasão. As mulheres do PBX vão ficar de bico calado.

 

Mesmo depois de a RAF as ter bombardeado? Flick encolheu os ombros.

 

Pode haver algumas mais hostis, mas a maioria saberá como controlá-las.

 

E o que esperas.

 

Volto a dizer que acho que vale a pena tentar.

 

Ainda não sabes se a entrada para aquela cave tem muitos guardas.

 

Não foi isso que nos impediu ontem de entrar.

 

Ontem dispunhas de quinze combatentes da Resistência, alguns com bastante calo. Da próxima vez vais ter uma mão-cheia de refugo.

 

Flick lançou na mesa o seu trunfo.

 

Ouve, muita coisa pode correr mal, mas e depois? A operação é barata e vamos arriscar as vidas de pessoas que já não estavam a contribuir para o esforço de guerra. O que temos a perder?

 

Eu ia chegar aí. Olha, gosto deste plano. Vou apresentá-lo ao chefe. Mas creio que ele irá rejeitá-lo por um motivo que ainda não discutimos.

 

Qual?

 

Só tu podes liderar essa equipa. Mas a viagem de que acabaste de regressar devia ter sido a tua última. Sabes demasiado. Há dois anos que entras e sais de França. Contactaste com a maior parte dos circuitos da Resistência no Norte da França. Não podemos voltar a mandar-te para lá. Se fores capturada, podes denunciá-los a todos.

 

Eu sei admitiu Flick com ar soturno. É por isso que ando sempre com um comprimido para poder suicidar-me.

 

O general Bernard Montgomery, comandante do 21.° Grupo do exército prestes a invadir a França, instalara um quartel improvisado na zona ocidental de Londres, numa escola cujos alunos tinham sido evacuados para instalações mais seguras na zona rural. Por coincidência, era a escola que o próprio Monty tinha frequentado em criança. Faziam-se reuniões na sala maior e todos se sentavam nos bancos duros generais e políticos e, numa ocasião famosa, até o próprio rei.

 

Os Britânicos achavam aquilo engraçado. Paul Chancellor, de Boston, Massachusetts, achava uma parvoíce. Custava-lhes muito levar para ali algumas cadeiras? No geral gostava dos Britânicos, mas não quando eles decidiam exibir as suas excentricidades.

 

Paul trabalhava directamente com Monty. Muita gente achava que isso se devia ao facto de o seu pai ser general, mas não era verdade. Paul sentia-se à vontade com oficiais mais velhos em parte por causa do pai e em parte porque antes da guerra o exército norte -americano fora o maior cliente do seu negócio, que consistia em gravar discos educativos, essencialmente cursos de línguas. Gostava das virtudes militares da obediência, da pontualidade e da precisão, mas também sabia pensar pela sua cabeça, e Monty confiava nele cada vez mais.

 

A sua área eram os serviços secretos. Era um organizador. Certificava-se de que os relatórios de que Monty precisava estavam na sua secretária quando ele os queria, perseguia os que estavam atrasados, combinava reuniões com pessoas-chave e fazia investigações suplementares em nome do chefe.

 

Tinha experiência no trabalho clandestino. Trabalhara para o Gabinete de Serviços Estratégicos, a agência secreta americana, e estivera a trabalhar clandestinamente em França e nas zonas do Norte de África onde se falava francês. (Em criança vivera em Paris, onde o pai fora adido militar na Embaixada dos Estados Unidos.) Paul fora ferido havia seis meses num tiroteio com a Gestapo em Marselha. Uma das balas arrancara-lhe a maior parte da orelha esquerda, mas isso apenas afectara a sua aparência. A outra desfizera-lhe a rótula direita, que nunca mais voltaria a ser a mesma, e essa era a verdadeira razão por que ele tinha um trabalho de secretária.

 

O trabalho era fácil quando comparado à vida permanentemente em fuga no território ocupado, mas não era monótono. Estavam a planear a Operação Overlord, a invasão que poria cobro à guerra. Paul era uma das cem pessoas no mundo que sabiam a data, embora muitas mais fossem capazes de adivinhar. Aliás, havia três datas possíveis com base nas marés, nas correntes, na Lua e nas horas de sol. A invasão precisava de uma lua tardia para que os movimentos iniciais do exército estivessem protegidos pela escuridão, mas teria de haver luar mais tarde, quando os primeiros pára-quedistas saltassem dos aviões e dos planadores. Era necessária maré baixa de madrugada para expor os obstáculos que Rommel espalhara pelas praias. E outra maré baixa antes do cair da noite para o desembarque das forças seguintes. Estas exigências limitavam a intervenção a um pequeno espaço de tempo: a frota poderia partir na segunda-feira seguinte, 5 de Junho, ou na terça ou quarta seguintes. A decisão final seria tomada no último minuto, dependendo do tempo, pelo supremo comandante dos Aliados, o general Eisenhower.

 

Três anos antes Paul teria tentado tudo por tudo obter um lugar na força invasora. Teria ansiado a acção e sentido vergonha por ser um daqueles que ficava em casa. Agora era mais velho e mais sensato. Pagara as suas dívidas: no liceu fora capitão da equipa que vencera o campeonato do Massachusetts, mas nunca mais voltaria a dar um pontapé numa bola com o pé direito. Mais importante ainda, sabia que a sua capacidade organizativa era mais importante para a vitória na guerra do que a sua capacidade de dar um pontapé a direito.

 

Estava encantado por fazer parte da equipa que planeava a maior invasão de todos os tempos. Com a excitação vinha a ansiedade, claro. As batalhas nunca corriam conforme o plano (embora Monty tivesse o defeito de fingir que as suas corriam). Paul sabia que um erro cometido por si um deslize da caneta, um pormenor descurado, uma informação não reconfirmada poderia matar soldados aliados. Apesar do tamanho monstruoso da força de invasão, a vitória poderia pender para ambos os lados, e o mais pequeno dos erros poderia desequilibrar a balança.

 

Naquele dia às dez da manhã, Paul reservara quinze minutos para a Resistência francesa. Fora ideia de Monty. Era um homem minucioso. O caminho para vencer batalhas, acreditava ele, era começar a lutar apenas depois de todos os preparativos terem sido efectuados.

 

Às cinco para as dez Simon Fortescue entrou na sala. Era um dos funcionários mais antigos do M16, o departamento de serviços secretos. Era um homem alto, envergava um fato às riscas, tinha modos ligeiramente autoritários, mas Paul duvidava de que ele soubesse muito sobre trabalho clandestino no mundo real. Vinha seguido de John Graves, um funcionário de aspecto nervoso do Ministério da Economia de Guerra, o departamento do governo que tutelava o EOE. Graves envergava o «uniforme» habitual de Whitehall: casaco preto e calças cinzentas às riscas. Paul franziu o sobrolho. Não convidara Graves.

 

Mister Graves! exclamou. Não sabia que haviam pedido a sua presença.

 

Eu já explico respondeu Graves, sentando-se com ar afogueado num dos bancos da escola e abrindo a pasta.

 

Paul sentiu-se irritado. Monty detestava surpresas. No entanto, Paul não podia expulsar Graves da sala.

 

Pouco depois chegou Monty. Era um homem baixo com um nariz pontiagudo e cabelo a rarear. Tinha um rosto cheio de rugas e um bigode pequeno. Fizera cinquenta e seis anos, mas parecia mais velho. Paul gostava dele. Monty era tão meticuloso que algumas pessoas impacientavam-se com ele e chamavam-lhe «velha». Paul acreditava que a meticulosidade de Monty já salvara a vida a muitos homens.

 

Com Monty vinha um americano que Paul desconhecia. Monty apresentou-o como general Pickford.

 

Onde está o homem do EOE? perguntou Monty olhando para Paul.

 

Foi Graves quem respondeu:

 

Ele foi convocado pelo primeiro-ministro e envia as suas desculpas. Espero poder ajudar...

 

Duvido retorquiu Monty.

 

Paul gemeu interiormente. Aquilo era uma embrulhada e iam atribuir-lhe a culpa. Mas passava-se mais qualquer coisa. Os britânicos estavam a planear algo que ele desconhecia. Observou-os atentamente, à procura de pistas.

 

Tenho a certeza de que posso preencher as lacunas disse Simon Fortescue.


Monty parecia zangado. Prometera ao general Pickford um relatório e a pessoa mais importante estava ausente. Mas não perdeu tempo com recriminações.

 

Na próxima batalha começou sem mais delongas os momentos mais perigosos serão os primeiros. Não era costume ele falar de momentos perigosos, pensou Paul. Costumava falar como se tudo fosse correr sobre rodas. Durante um dia vai parecer que estamos suspensos acima de uma ravina apenas pelas pontas dos dedos. «Ou talvez durante dois dias», pensou Paul, «ou uma semana, ou mais.» Esta vai ser a melhor oportunidade do inimigo. Ele só precisa de nos pisar as pontas dos dedos com o calcanhar da bota.

 

«Seria muito fácil», pensou Paul. A Overlord era a maior operação militar da história do homem: milhares de barcos, centenas de milhares de homens, milhões de dólares, dezenas de milhões de balas. O futuro do mundo dependia do resultado. Contudo, aquela força imensa poderia ser facilmente repelida se as coisas corressem mal durante as primeiras horas.

 

Tudo o que pudermos fazer para abrandar a reacção do inimigo será de importância crucial terminou Monty e olhou para Graves.

 

Bem, a secção F do EOE tem mais de cem agentes em França... aliás, praticamente todos os nossos agentes estão lá começou Graves. E abaixo deles, claro, estão milhares de combatentes da Resistência. Ao longo das últimas semanas temos largado lá muitas centenas de toneladas de armas, munições e explosivos.

 

Era a resposta de um burocrata, pensou Paul. Dizia tudo e não dizia nada. Graves estava prestes a continuar, mas Monty interrompeu-o com a pergunta fulcral:

 

Qual será a eficácia delas?

 

O funcionário público hesitou e Fortescue interveio.

 

As minhas expectativas são modestas disse. O desempenho do EOE tem sido bastante irregular.

 

Havia ali qualquer coisa nas entrelinhas, Paul sabia-o. Os velhos espiões profissionais do MI6 detestavam os recém-chegados do EOE com o seu estilo desempoeirado. Quando a Resistência atacava alvos alemães, a Gestapo procedia a investigações que às vezes conduziam à captura de funcionários do MI6. Paul tomou o partido do EOE: atacar o inimigo era o único objectivo da guerra,

 

O que estaria ali em jogo? Uma disputa burocrática entre o MI6 e o EOE?

 

Alguma razão específica para o seu pessimismo? perguntou Monty a Fortescue.


O fiasco de ontem à noite respondeu Fortescue prontamente. Um grupo da Resistência com um comandante da EOE atacou uma central telefónica perto de Reims.

 

O general Pickford falou pela primeira vez.

 

Julgava que a nossa política era não atacar centrais telefónicas... vamos precisar delas se a invasão for bem sucedida.

 

Tem toda a razão comentou Monty. Mas Sainte-Cécile foi considerada uma excepção. É uma porta de acesso ao novo cabo até à Alemanha. A maior parte do tráfego de telefone e telex entre o Alto Comando em Berlim e as forças alemãs em França passa por aquele edifício. Destruí-lo não iria prejudicar-nos muito... não iremos ligar para a Alemanha... mas afectaria seriamente as comunicações do inimigo.

 

Vão passar a comunicar por telegrafia sem fios.

 

Exactamente disse Monty. E nessa altura conseguiremos ler os códigos deles.

 

Graças aos nossos decifradores de códigos em Bletchley interveio Fortescue.

 

Paul sabia, embora muitas pessoas o desconhecessem, que os serviços secretos britânicos tinham decifrado os códigos utilizados pelos alemães e que por isso conseguiam ler muito do tráfego via rádio do inimigo. O M16 estava orgulhoso disso, embora na verdade o crédito não fosse seu: o trabalho fora feito não pelos seus funcionários, mas sim por um grupo de matemáticos e entusiastas de palavras cruzadas e quebra-cabeças, muitos dos quais teriam sido presos se tivessem entrado num gabinete do MI6 em tempos normais. Sir Stuart Menzies, o director do MI6, odiava intelectuais, comunistas e homossexuais, mas Alan Turing, o génio matemático que liderara os descodifícadores, era as três coisas.

 

No entanto, Pickford tinha razão: se os alemães não pudessem usar as linhas telefónicas teriam de usar o rádio, e nessa altura os Aliados saberiam o que eles diziam. Destruir a central telefónica de Sainte-Cécile daria aos Aliados uma vantagem crucial.

 

Mas a missão correra mal.

 

Quem é que a liderou? perguntou Monty.

 

Ainda não vi um relatório completo... começou Graves.

 

Eu posso dizer-lhe interveio Fortescue. O major Clairet. Fez uma pausa. Uma mulher.

 

Paul já ouvira falar de Felicity Clairet. Era uma espécie de lenda entre o pequeno grupo que conhecia o segredo da guerra clandestina dos Aliados. Ela sobrevivera sob disfarce em França durante mais tempo do que qualquer outra pessoa. O seu nome de código era Leoparda, e as pessoas diziam que ela se movia pelas ruas da França ocupada com as passadas silenciosas de um perigoso felino. Também diziam que era uma mulher bonita com um coração de pedra. Matara mais do que uma vez.

 

E o que aconteceu? perguntou Monty.

 

Má planificação, um líder com pouca experiência e falta de disciplina dos homens respondeu Fortescue. O edifício tinha poucos guardas, mas os soldados que lá se encontravam estavam bem treinados e arrasaram com a força da Resistência.

 

Monty parecia zangado.

 

Parece que não devemos confiar muito na Resistência francesa para destruir as linhas de Rommel interveio Pickford.

 

Fortescue assentiu.

 

Os bombardeamentos são o melhor meio para se atingir esse fim.

 

Não sei se isso é justo protestou Graves com pouca convicção. Os bombardeamentos também tiveram os seus falhanços. E o EOE é bastante mais barato.

 

Não estamos aqui para ser justos, por amor de Deus! exclamou Monty. Só queremos ganhar a guerra. Levantou-se. Acho que já ouvimos o suficiente disse ao general Pickford.

 

Mas o que vamos fazer em relação à central telefónica? perguntou Graves. O EOE elaborou um novo plano...

 

Deus do Céu! interrompeu Fortescue. Não queremos outro fracasso, pois não?

 

Bombardeiem-na disse Monty.

 

Já tentámos respondeu Graves. O edifício foi atingido, mas os estragos não foram suficientes para impedir o funcionamento da central durante mais do que algumas horas.

 

Então tornem a bombardeá-la disse Monty, saindo porta fora.

 

Graves lançou um olhar de fúria petulante ao homem do MI6.

 

Francamente, Fortescue disse. Quero dizer... francamente.

 

Fortescue não respondeu.

 

Saíram todos da sala. No corredor aguardavam duas pessoas: um homem de cinquenta anos com um casaco de tweed e uma loura pequena com um velho casaco de malha azul sobre um vestido de algodão desbotado. Parados junto a uma vitrina com taças ganhas em competições desportivas, faziam lembrar um professor a falar com uma aluna, exceptuando o facto de a rapariga usar ao pescoço um lenço amarelo-vivo atado num estilo que pareceu a Paul claramente francês. Fortescue passou por eles rapidamente, mas Graves deteve-se.

 

Disseram que não informou ele. Vão voltar a bombardear a central.

 

Paul calculou que a mulher fosse a Leoparda, e observou-a com interesse. Era pequena e magra, com cabelo louro encaracolado cortado curto e reparou Paul uns encantadores olhos verdes. Não a consideraria bonita: tinha um rosto demasiado adulto para isso. A impressão inicial de aluna foi passageira. Havia uma expressão agressiva no seu nariz aquilino e no queixo que parecia ter sido esculpido. E havia nela algo de sensual, algo que fez Paul pensar no corpo esguio sob o vestido velho.

 

Ela reagiu com indignação à declaração de Graves.

 

Não serve de nada bombardear o local do ar, pois a base foi reforçada. Por amor de Deus, porque é que eles decidiram isso?

 

Talvez deva perguntar a este cavalheiro disse Graves, virando-se para Paul. Major Chancellor, apresento-lhe o major Clairet e o coronel Thwaite.

 

Paul ficou aborrecido por ser obrigado a defender a decisão de outra pessoa. Apanhado desprevenido, respondeu com uma franqueza pouco diplomática.

 

Creio que não há muitas explicações a dar disse com brusquidão. Vocês estragaram tudo e não vão ter uma segunda oportunidade.

 

A mulher fitou-o furiosa. Era trinta centímetros mais baixa que ele e falou com irritação.

 

Estragámos tudo? O que raio quer dizer com isso? Paul sentiu-se corar.

 

Talvez o general Montgomery tenha sido mal informado, mas não foi a primeira vez que o meu major comandou uma acção deste tipo?

 

Foi isso que lhe disseram? Que a falta de experiência foi minha?

 

Ela era linda, percebeu Paul naquele momento. A ira fazia-a abrir mais os olhos e corava-lhe o rosto. Mas estava a ser grosseira, por isso ele decidiu responder na mesma moeda.

 

Isso e um mau planeamento...

 

Não havia nada de errado com o maldito plano!

 

... e o facto de soldados treinados estarem a defender o local de uma força indisciplinada.

 

Seu porco arrogante!

 

Paul recuou um passo sem querer. Nunca uma mulher lhe falara naquele tom. «Ela pode ter apenas um metro e cinquenta, mas aposto que mete medo aos malditos nazis», pensou ele. Olhando para o rosto furioso da Leoparda, percebeu que ela estava essencialmente irritada consigo própria.

 

Você acha que a culpa é sua disse. Ninguém fica tão irritado com os erros dos outros.

 

Foi a vez dela de ser apanhada desprevenida. Ficou de boca aberta e sem palavras.

 

O coronel Thwaite falou pela primeira vez.

 

Acalma-te, Flick, por amor de Deus! Virando-se para Paul, prosseguiu: Deixe-me adivinhar: o relato foi-lhe transmitido pelo Simon Fortescue do MI6, não foi?

 

Exacto confirmou Paul.

 

Ele comentou por acaso que o plano de ataque foi feito com base nas informações fornecidas pela sua organização?

 

Creio que não.

 

Foi o que pensei disse Thwaite. Obrigado, meu major, não preciso de o incomodar mais.

 

Paul achou que a conversa ainda não terminara, mas fora mandado embora por um oficial de patente superior e restava-lhe apenas afastar-se.

 

Fora apanhado num fogo cruzado entre o MI6 e o EOE. Estava furioso com Fortescue, que se servira da reunião para marcar pontos. Teria Monty tomado a decisão certa ao mandar bombardear a central telefónica em vez de deixar que o EOE tentasse de novo o ataque? Paul não sabia.

 

Ao regressar ao seu gabinete, olhou para trás. O major Clairet ainda estava a discutir com o coronel Thwaite, a voz baixa mas o rosto animado, expressando a sua ira por gestos. Tinha a pose de um homem, a mão na anca e inclinada para a frente, realçando as palavras com um dedo ameaçador apontado, mas mesmo assim havia nela algo de encantador. Paul perguntou de si para si como seria tê-la nos braços e percorrer com as mãos o seu corpo gracioso. «Embora seja rija, é muito feminina», pensou ele.

 

Mas teria ela razão? Seria o bombardeamento em vão?

 

Paul decidiu fazer mais algumas perguntas.

 

A catedral vasta e escura elevava-se no centro de Reims como uma admoestação divina. O Hispano-Suiza azul-celeste de Dieter Franck parou ao meio-dia à porta do Hotel Frankfort, controlado pelos ocupantes alemães. Dieter saiu e olhou para as torres gémeas da enorme igreja. No desenho medieval original constavam elegantes pináculos pontiagudos que nunca tinham sido construídos por falta de verba. Os obstáculos mais mundanos frustravam as mais sagradas das aspirações.

 

Dieter ordenou ao tenente Hesse que levasse o carro para o castelo de Sainte-Cécile e se certificasse de que a Gestapo estava pronta a colaborar. Não queria arriscar ser maltratado uma segunda vez pelo major Weber. Hesse arrancou e Dieter dirigiu-se à suíte onde deixara Stéphanie na noite anterior.

 

Ela levantou-se da cadeira quando ele entrou. Dieter deleitou-se com o que viu. O cabelo ruivo tombava-lhe sobre os ombros nus e ela envergava um roupão de seda castanho-clara e chinelos de salto alto. Dieter beijou-a com avidez e percorreu o corpo esguio com as mãos, grato pela dádiva da beleza dela.

 

Que bom gostares tanto de me ver disse ela com um sorriso. Falavam em francês, como sempre que estavam juntos.

 

Dieter inalou o cheiro dela.

 

Bom, cheiras melhor que o Hans Hesse, especialmente depois de uma noite a pé.

 

Ela empurrou-lhe um cabelo para trás com a mão.

 

Estás sempre a dizer piadas. Mas não terias protegido o Hans com o teu corpo.

 

É verdade. Ele suspirou e largou-a. Bolas, estou cansado!


Vem deitar-te. Dieter abanou a cabeça.

 

Tenho de interrogar os prisioneiros. O Hesse vem ter comigo daqui a uma hora. Sentou-se no sofá.

 

Vou mandar vir qualquer coisa para comeres. Carregou na campainha e um minuto depois um empregado francês de idade bateu à porta. Stéphanie já conhecia Dieter o suficiente para pedir comida para ele. Pediu um prato de presunto com pãezinhos quentes e uma salada de batata. Queres vinho? perguntou.

 

Não... depois fico com sono.

 

Então um bule de café disse ela ao empregado. Depois de o homem se ter ido embora, ela sentou-se no sofá ao lado de Dieter e pegou-lhe na mão. Correu tudo conforme o plano?

 

Sim. O Rommel foi muito simpático. Franziu a testa com uma expressão ansiosa. Só espero ser capaz de cumprir as promessas que lhe fiz.

 

Tenho a certeza de que és. Stéphanie não perguntou mais pormenores. Sabia que ele lhe diria apenas o que queria e nada mais.

 

Dieter fitou-a com uma expressão terna, sem saber se devia ou não dizer-lhe aquilo que estava a pensar. Poderia estragar a atmosfera agradável... mas tinha de o dizer. Tornou a suspirar.

 

Se a invasão for bem sucedida e os Aliados recuperarem a França, vai ser o fim para nós os dois. Sabes isso.

 

Ela fez uma careta como se devido a uma dor e largou-lhe a mão.

 

Será que sei?

 

Dieter sabia que o marido dela fora morto no início da guerra e que não haviam tido filhos.

 

Ainda tens família?

 

Os meus pais morreram há muito tempo. Tenho uma irmã em Montreal.

 

Talvez devêssemos pensar em mandar-te para lá. Ela abanou a cabeça.

 

Não.

 

Porquê?

 

Stéphanie recusava-se a olhar para ele.

 

Quem me dera que a guerra acabasse murmurou.

 

Isso é mentira.

 

Ela pareceu irritada, algo que raramente acontecia.

 

Não é nada.

 

Mas que convencional estás! comentou ele com um ligeiro desdém.


Não me digas que achas que a guerra é uma coisa boa!

 

Tu e eu não estaríamos juntos se não fosse a guerra.

 

E então o sofrimento todo?

 

Eu sou um existencialista. A guerra permite às pessoas serem aquilo que realmente querem: os sádicos tornam-se carrascos, os psicopatas dão excelentes soldados na linha da frente, os rufiões e as vítimas ganham uma nova dimensão e as prostitutas têm sempre trabalho.

 

Ela pareceu irritada.

 

Isso diz-me claramente qual o meu papel.

 

Dieter fez-lhe uma festa na cara e tocou-lhe nos lábios com a ponta do dedo.

 

Tu és uma cortesã... e muito boa, por sinal. Ela afastou a cabeça.

 

Não podes estar a falar a sério. Estás a improvisar, tal como improvisas quando te sentas ao piano.

 

Ele sorriu e assentiu: sabia tocar um pouco dejazz, para desgosto do pai. A analogia era correcta. Ele estava a experimentar ideias em vez de expressar uma convicção firme.

 

Talvez tenhas razão.

 

A ira de Stéphanie evaporou-se e ela pareceu triste.

 

Estavas a falar a sério quando mencionaste a nossa separação, caso os alemães deixem a França?

 

Ele abraçou-a pelos ombros e puxou-a para si. Stéphanie descontraiu-se e encostou a cabeça ao peito dele. Dieter deu-lhe um beijo na cabeça e fez-lhe uma festa no cabelo.

 

Isso não vai acontecer disse ele.

 

Tens a certeza?

 

Garanto-te.

 

Era a segunda vez naquele dia que ele fazia uma promessa que talvez não conseguisse cumprir.

 

O empregado regressou com o seu almoço e o momento passou. Dieter estava quase demasiado cansado para ter fome, mas comeu algumas garfadas e bebeu o café todo. Depois lavou-se e fez a barba e sentiu-se melhor. Quando estava a abotoar a camisa do uniforme, o tenente Hesse bateu à porta. Dieter deu um beijo a Stéphanie e saiu.

 

O carro tivera de contornar uma rua bloqueada: houvera outro bombardeamento durante a noite e uma correnteza de casas junto à estação de comboios ficara destruída. Saíram da cidade rumo a Sainte-Cécile.

 

Dieter dissera a Rommel que o interrogatório aos prisioneiros poderia ajudá-lo a enfraquecer a Resistência antes da invasão mas Rommel, tal como qualquer comandante militar, aceitara o talvez como uma promessa e agora estava à espera de resultados. Infelizmente, não havia nada certo num interrogatório. Os prisioneiros mais espertos diziam mentiras impossíveis de confirmar. Alguns arranjavam formas engenhosas de se matarem antes de a tortura se tornar insuportável. Se a segurança fosse bastante apertada naquele circuito específico da Resistência, cada um saberia apenas o mínimo indispensável sobre os outros e teria poucas informações de valor. Pior ainda, podiam ter recebido informações falsas dos pérfidos Aliados, de forma a que quando finalmente cedessem sob tortura aquilo que dissessem fosse parte de um plano falso.

 

Dieter começou a preparar-se para o interrogatório. Precisava de ser insensível e calculista. Não podia deixar-se comover pelo sofrimento físico e psíquico que estava prestes a infligir a outros seres humanos. A única coisa que importava era a obtenção de resultados. Fechou os olhos e sentiu-se invadir por uma grande calma, um frio interior familiar que às vezes pensava ser o frio da própria morte.

 

O carro parou nos terrenos do castelo. Alguns trabalhadores andavam a substituir os vidros partidos das janelas e a tapar os buracos feitos pelas granadas. No vestíbulo, as telefonistas murmuravam para os seus microfones num zumbido perpétuo. Dieter avançou pelas salas da ala oriental, com Hans Hesse na sua peugada. Desceram as escadas para a cave fortificada. A sentinela à porta fez-lhes continência e não tentou deter Dieter, que vinha fardado. Ele encontrou a porta com a placa a dizer «Sala de Interrogatórios» e entrou.

 

Na antessala, Willi Weber encontrava-se sentado à secretária.

 

Heil Hitler! gritou Dieter, fazendo a saudação e obrigando Weber a levantar-se. Depois Dieter pegou numa cadeira, sentou-se e disse: Sente-se por favor, meu major.

 

Weber ficou furioso por ter sido convidado a sentar-se no seu quartel-general, mas não tinha alternativa.

 

Quantos prisioneiros temos? perguntou Dieter.

 

Três.

 

Dieter ficou desapontado.

 

Tão poucos?

 

Oito inimigos foram mortos durante a escaramuça e outros dois morreram esta noite devido a ferimentos.

 

Dieter resmungou, abalado. Ordenara que os feridos fossem mantidos vivos. Mas naquele momento não valia a pena interrogar Weber sobre o tratamento deles - continuou Weber.

- A mulher na praça e o homem

 

Creio que dois fugiram continuou Weber.

 

Sim confirmou Dieter. A mulher na praça e o homem que ela carregou.

 

Exacto. Então, de um total de quinze atacantes, temos três prisioneiros.

 

Onde é que eles estão? Weber pareceu pouco à vontade.

 

Dois estão nas celas. Dieter semicerrou os olhos.

 

E o terceiro?

 

Weber inclinou a cabeça na direcção de uma sala interior.

 

O terceiro está neste momento a ser interrogado.

 

Dieter levantou-se, apreensivo, e abriu a porta. A figura inclinada do sargento Becker encontrava-se logo a seguir à porta, tendo na mão um taco de madeira semelhante a um cassetete. Becker estava todo suado e respirava a custo, como se tivesse acabado de fazer exercício físico. Olhava para um prisioneiro que se encontrava amarrado a um poste.

 

Dieter olhou para o prisioneiro e os seus receios foram confirmados. Apesar da calma que queria aparentar, fez uma careta de nojo. O prisioneiro era a jovem mulher, Geneviève, que transportara a pistola-metralhadora debaixo do casaco. Estava nua, amarrada ao poste por uma corda que lhe passava sob os braços e sustentava o seu peso inerte. Tinha o rosto tão inchado que era incapaz de abrir os olhos. O sangue que lhe escorria da boca cobria-lhe o queixo e a maior parte do peito. Tinha o corpo cheio de nódoas negras. Um dos braços encontrava-se torcido num ângulo estranho, aparentemente deslocado na zona do ombro. Os seus pêlos púbicos estavam manchados de sangue.

 

O que é que ela lhe disse? perguntou Dieter a Becker. Este pareceu atrapalhado.

 

Nada.

 

Dieter assentiu, reprimindo a raiva. Já estava à espera daquilo. Aproximou-se da mulher.

 

Geneviève, ouça disse em francês. Ela não deu sinal de ter ouvido.

 

Quer descansar agora? continuou ele. Não obteve resposta.

 

Virou-se. Weber encontrava-se parado junto à porta com uma expressão de desafio.

 

O senhor foi informado de que eu iria conduzir o interrogatório disse Dieter furioso.


Mandaram-nos deixá-lo ter acesso aos prisioneiros respondeu Weber cheio de presunção. Não nos proibiram de os interrogar.

 

E está satisfeito com os resultados que obteve? Weber não respondeu.

 

E os outros dois?

 

Ainda não começámos a interrogá-los.

 

Graças a Deus! No entanto, Dieter ficara abalado. Esperara interrogar meia dúzia de prisioneiros, não apenas dois. Leve-me até eles.

 

Weber assentiu na direcção de Becker, que pousou o cassetete e saiu da sala à frente. Sob as luzes fortes do corredor Dieter viu as manchas de sangue na farda de Becker. O sargento parou junto a uma porta com uma pequena janela. Dieter abriu o postigo e olhou lá para dentro.

 

Era uma sala com chão de terra batida. Havia um balde a um canto. Sentados no chão encontravam-se dois homens, calados, a olhar para o vazio. Dieter observou-os com atenção. Vira-os ambos na véspera. O mais velho chamava-se Gaston, e fora ele quem colocara os explosivos. O outro era muito novo, com cerca de dezassete anos, e Dieter recordou-se de que o seu nome era Bertrand. Não tinha ferimentos visíveis, mas Dieter, ao recordar o confronto, achou que ele podia ter ficado atordoado com a explosão de uma granada de mão.

 

Dieter observou-os durante mais algum tempo, pensativo. Tinha de fazer aquilo bem. Não podia dar-se ao luxo de perder outro prisioneiro: só lhe restavam aqueles dois. O rapaz devia ficar apavorado, previu ele, mas poderia suportar muita dor. O outro era demasiado velho para ser torturado a sério podia morrer antes de começar a falar mas teria um coração mole. Dieter começou a delinear a estratégia do interrogatório.

 

Fechou o postigo e regressou à sala de interrogatórios. Becker seguiu-o, fazendo-o lembrar-se de um cão estúpido mas perigoso.

 

Sargento Becker, desamarre a mulher e ponha-a na cela com os outros dois ordenou Dieter.

 

Uma mulher na cela de um homem? protestou Weber. Dieter olhou-o com ar incrédulo.

 

Acha que ela está em condições de sentir vergonha? Beker foi até à câmara de tortura e reapareceu transportando o corpo inerte de Geneviève.

 

Certifique-se de que o velho a vê bem, depois traga-o cá. Becker saiu.


Dieter decidiu que seria melhor ver-se livre de Weber. No entanto, sabia que se lhe desse uma ordem directa Weber resistiria.

 

Acho que devia ficar aqui a assistir ao interrogatório sugeriu. Pode aprender muito com as minhas técnicas.

 

Tal como Dieter esperava, Weber fez o contrário.

 

Não me parece retorquiu ele. O Becker pode manter-me informado.

 

Dieter fingiu-se indignado e Weber saiu.

 

Dieter olhou para o tenente Hesse, que se sentara discretamente a um canto. Hesse percebera como Dieter manipulara Weber e olhava-o com admiração.

 

Dieter encolheu os ombros.

 

Às vezes é fácil de mais.

 

Becker regressou com Gaston. O velhote estava pálido. Sem dúvida ficara bastante chocado ao ver Geneviève.

 

Por favor, sente-se disse Dieter em alemão. Quer um cigarro?

 

Gaston manteve-se imóvel.

 

Isso dava a entender que o homem não percebia alemão, o que era útil saber.

 

Com um gesto, Dieter indicou-lhe que se sentasse e ofereceu-lhe cigarros e fósforos. Gaston pegou num cigarro e acendeu-o com mãos trémulas.

 

Alguns prisioneiros iam-se abaixo naquela altura, antes da tortura, com receio do que poderia acontecer-lhes. Dieter esperou que fosse esse o caso naquele momento. Mostrara a Gaston as alternativas: por um lado, a visão terrífica de Geneviève, por outro, cigarros e bondade.

 

Vou fazer-lhe algumas perguntas disse em francês num tom simpático.

 

Não sei nada afirmou Gaston.

 

Oh, acho que sabe retorquiu Dieter. Tem cerca de sessenta anos e deve ter vivido em Reims ou lá perto durante toda a vida. Gaston não negou. Dieter prosseguiu: Sei que os elementos de uma célula da Resistência usam nomes de código e dão uns aos outros o mínimo de informações pessoais, como medida de precaução. Gaston assentiu involuntariamente. Mas o senhor conhece a maior parte das pessoas há dezenas de anos. Um homem pode dizer que se chama Elegante ou Padre ou Beringela quando a Resistência se encontra, mas o senhor conhece o rosto dele, e reconhece-o como Jean-Pierre, o carteiro, que mora na Rue du Pare e visita às escondidas a viúva Martineau às terças-feiras quando a mulher dele julga que ele vai jogar boliche.


Gaston desviou o olhar, não querendo fitar Dieter, confirmando que este estava certo. Dieter continuou.

 

Quero que perceba que é o senhor quem controla tudo o que acontece aqui. A dor ou o alívio da dor; a condenação à morte, ou a sua suspensão; tudo depende das suas escolhas. Viu com satisfação que Gaston parecia ainda mais apavorado. Vai responder às minhas perguntas prosseguiu. Todos acabam por fazê-lo. Só não se sabe quando.

 

Aquele era o momento em que um homem podia ceder, mas não foi o caso de Gaston.

 

Não tenho nada para lhe dizer disse ele quase num sussurro. Estava assustado, mas ainda lhe restava alguma coragem e não iria desistir sem lutar.

 

Dieter encolheu os ombros. Se não ia a bem iria a mal.

 

Vá à cela ordenou ele a Becker em alemão. Dispa o rapaz. Depois traga-o para aqui e ate-o ao poste na sala ao lado.

 

Muito bem, meu major respondeu Becker. Dieter tornou a virar-se para Gaston.

 

Vai dizer-me os nomes e os nomes de código de todos os homens e mulheres que estiveram consigo ontem, e de outros no seu circuito da Resistência. Gaston abanou a cabeça, mas Dieter ignorou-o. Quero saber a morada de cada um dos membros e de todas as casas usadas pelos membros do circuito.

 

Gaston puxou uma baforada do cigarro e olhou para a ponta incandescente deste.

 

Na verdade, aquelas não eram as perguntas mais importantes. O principal objectivo de Dieter era obter informações que o conduzissem a outros circuitos da Resistência. Mas não queria que Gaston soubesse isso.

 

Pouco depois, Becker regressou com Bertrand. Gaston olhou de boca aberta para o rapaz enquanto ele era levado para a câmara adjacente à sala de interrogatórios.

 

Dieter levantou-se.

 

Fique de olho no velho ordenou ele a Hesse. Depois seguiu Becker até à câmara de tortura.

 

Teve o cuidado de deixar a porta entreaberta para que Gaston pudesse ouvir tudo.

 

Becker amarrou Bertrand ao poste. Antes que Dieter pudesse intervir, Becker deu um soco no estômago de Bertrand. Foi um soco forte dado por um homem forte, e o seu som foi bastante desagradável. O jovem gemeu e contorceu-se com as dores.


Não, não, não disse Dieter. Tal como esperara, a abordagem de Becker não era minimamente científica. Um jovem forte podia suportar ser socado quase indefinidamente. Primeiro coloque-lhe uma venda. Tirou um lenço grande de algodão do bolso e com ele tapou os olhos de Bertrand. Assim, cada golpe atinge-o de surpresa e os momentos entre os golpes são uma agonia expectante.

 

Becker pegou no taco de madeira. Dieter assentiu e Becker brandiu o taco, atingindo a cabeça da vítima de lado, provocando um som de madeira a bater em pele e osso. Bertrand gritou de medo e dor.

 

Não, não repetiu Dieter. Nunca bata na cabeça. Pode deslocar o maxilar, impedindo o indivíduo de falar. Pior ainda, pode danificar o cérebro, e nada do que ele disser terá valor. Tirou o taco das mãos de Becker e arrumou-o no suporte para os chapéus-de-chuva. Das várias armas que ali se encontravam, Dieter escolheu um pé-de-cabra de aço e entregou-o a Becker.

 

Agora lembre-se, o objectivo é infligir a máxima agonia sem pôr em perigo a vida do indivíduo ou a sua capacidade de nos dizer aquilo que precisamos de saber. Evite os órgãos vitais. Concentre-se nas partes ósseas: tornozelos, canelas, rótulas, dedos, cotovelos, ombros, costelas.

 

No rosto de Becker surgiu uma expressão matreira. Contornou o poste e depois, fazendo pontaria, atingiu com força o cotovelo de Bertrand com o pé-de-cabra. O rapaz soltou um grito de verdadeira agonia, um som que Dieter reconheceu.

 

Becker pareceu satisfeito. «Que Deus me perdoe», pensou Dieter, «por ensinar esta besta a infligir dor com maior eficácia.»

 

Sob as ordens de Dieter, Becker atingiu o ombro ossudo de Bertrand, em seguida a mão e o tornozelo. Dieter obrigou Becker a fazer uma pausa entre os golpes, permitindo que a dor abrandasse um pouco e que o rapaz começasse a temer a pancada seguinte.

 

Bertrand começou a pedir misericórdia.

 

Chega, por favor implorou com histeria, devido à dor e ao medo. Becker levantou o pé-de-cabra, mas Dieter interrompeu-o. Queria que o rapaz continuasse a implorar. Por favor, não me batam outra vez! gritou Bertrand. Por favor, por favor!

 

Costuma ser boa ideia partir uma perna no início do interrogatório disse Dieter a Becker. A dor é lancinante, especialmente quando o osso partido é novamente atingido. Tirou um martelo do suporte para chapéus-de-chuva. Logo abaixo do joelho indicou, entregando-o a Becker. Com toda a força.


Becker fez pontaria e brandiu o martelo com força. O som do osso a partir ouviu-se com toda a nitidez. Bertrand gritou e desmaiou. Becker pegou num balde com água que se encontrava a um canto e atirou a água ao rosto de Bertrand. O jovem voltou a si e tornou a gritar.

 

Por fim, os gritos foram substituídos por gemidos de partir o coração.

 

O que é que querem? implorou Bertrand. Por favor, digam-me o que querem de mim!

 

Dieter não lhe fez perguntas. Em vez disso, entregou o pé-de-cabra a Becker e apontou para a perna partida onde a extremidade branca do osso se encontrava à mostra. Becker atingiu a perna naquele sítio. Bertrand gritou e tornou a desmaiar.

 

Dieter achou que já devia chegar.

 

Foi até à sala ao lado. Gaston continuava onde Dieter o deixara, mas parecia um homem diferente. Estava inclinado para a frente, o rosto oculto nas mãos, a soluçar, a gemer e a rezar. Dieter ajoelhou-se à frente dele e afastou-lhe as mãos do rosto molhado. Gaston fitou-o por entre as lágrimas.

 

Só o senhor pode pôr fim àquilo disse Dieter.

 

Por favor, pare com aquilo, por favor gemeu Gaston.

 

Vai responder às minhas perguntas? Houve uma pausa. Bertrand tornou a gritar.

 

Sim! exclamou Gaston. Sim, sim, eu conto-lhe tudo se parar!

 

Dieter elevou a voz.

 

Sargento Becker?

 

Sim, meu major?

 

Chega por agora.

 

Sim, meu major respondeu Becker, parecendo desapontado. Dieter tornou a falar em francês.

 

Agora, Gaston, vamos começar pelo líder do circuito. Nome e nome de código. Quem é ele?

 

Gaston hesitou. Dieter olhou na direcção da câmara de tortura.

 

Michel Clairet respondeu Gaston rapidamente. O nome de código é Monet.

 

Era o ponto de viragem. O primeiro nome era o mais difícil. Os restantes surgiriam facilmente. Ocultando a sua satisfação, Dieter entregou a Gaston um cigarro e acendeu um fósforo.

 

Onde é que ele mora?

 

Em Reims. Gaston expeliu o fumo e o tremor da sua mão começou a diminuir. Forneceu um endereço junto da catedral.


Dieter assentiu na direcção do tenente Hesse, que sacou de um caderninho de apontamentos e começou a escrever as respostas de Gaston. Pacientemente, Dieter levou Gaston a referir-se a cada membro da equipa de ataque. Em alguns casos, Gaston sabia apenas o nome de código, e havia dois homens que ele disse nunca ter visto antes de domingo. Dieter acreditou nele. Tinha havido dois condutores à espera não muito longe, disse Gaston: uma jovem chamada Gilberte e um homem com o nome de código Marechal. Havia outros no grupo, que era conhecido como «circuito Bollinger».

 

Dieter fez perguntas sobre as relações entre os membros da Resistência. Havia alguns romances? Algum deles era homossexual? Alguém dormia com a mulher de outro?

 

Embora a tortura tivesse parado, Bertrand continuava a gemer e às vezes gritava devido às dores fortes dos ferimentos.

 

Ele vai ser tratado? perguntou Gaston. Dieter encolheu os ombros.

 

Por favor, arranje-lhe um médico.

 

Muito bem... mas depois de termos terminado a nossa conversa.

 

Gaston contou a Dieter que Michel e Gilberte eram amantes, embora Michel fosse casado com Flick, a rapariga loura da praça.

 

Até ali, Gaston falara acerca de um circuito que fora praticamente destruído, pelo que as suas informações haviam tido um interesse praticamente académico. Dieter passou para perguntas mais importantes.

 

Quando os agentes aliados vêm a este distrito, quem é que contactam?

 

Ninguém devia saber o que acontecia, disse Gaston. Havia um grande sigilo. No entanto, ele sabia parte da história. Os agentes encontravam-se com uma mulher cujo nome de código era Burguesa. Gaston não sabia o local do encontro, mas sabia que ela os levava para casa e depois os entregava a Michel.

 

Nunca ninguém vira Burguesa, nem sequer Michel.

 

Dieter ficou desapontado por Gaston saber tão pouco sobre a mulher. Mas essa era a ideia do sigilo.

 

Sabe onde ela mora? Gaston assentiu.

 

Um dos agentes descaiu-se. Ela tem uma casa na Rue du Bois. Número onze.

 

Dieter tentou não se mostrar radiante. Aquela informação era crucial. O inimigo provavelmente enviaria mais agentes para tentar reconstruir o circuito Bollinger. Talvez Dieter conseguisse apanhá-los em casa da Burguesa.


E quando se vão embora?

 

Eram apanhados por um avião num campo com o nome de código Champ de Pierre, um pasto perto da aldeia de Chatelle, revelou Gaston. Havia uma pista de aterragem alternativa com o nome de código Champ d’Or, mas ele não sabia onde ficava.

 

Dieter perguntou a Gaston quem era o elemento de ligação com Londres. Quem ordenara o ataque à central telefónica? Gaston explicou que Flick o major Clairet era o oficial dirigente do circuito, e que trouxera ordens de Londres. Dieter ficou intrigado. Uma mulher no comando. Mas ele vira a coragem dela durante o tiroteio. Devia ser um bom líder.

 

Na sala ao lado, Bertrand começou a rezar pela chegada rápida da morte.

 

Por favor pediu Gaston. Um médico.

 

Fale-me só mais um pouco do major Clairet ordenou Dieter. Depois mando alguém dar uma injecção ao Bertrand.

 

Ela é uma pessoa muito importante disse Gaston, ansioso por fornecer a Dieter informações que o deixassem satisfeito. Dizem que sobreviveu mais tempo do que qualquer outro sob disfarce. Tem andado por todo o Norte da França.

 

Dieter estava fascinado.

 

Ela contacta com circuitos diferentes?

 

Creio que sim.

 

Isso era pouco comum e significava que ela podia ser uma fonte de informações sobre a Resistência francesa.

 

Ela escapou ontem depois do confronto. Para onde acha que foi?

 

De regresso a Londres, com certeza respondeu Gaston. Para apresentar o relatório.

 

Dieter praguejou interiormente. Queria-a em França, onde poderia apanhá-la e interrogá-la. Se lhe deitasse as mãos, poderia destruir metade da Resistência francesa tal como prometera a Rommel. Mas ela estava fora do seu alcance.

 

Levantou-se.

 

Por hoje é tudo disse. Hans, arranje um médico para os prisioneiros. Não quero que nenhum deles morra hoje... podem ter mais para nos dizer. Depois dactilografe os seus apontamentos e entregue-mos de manhã.

 

Muito bem, meu major.

 

Faça uma cópia para o major Weber... mas não lha entregue até eu dizer.

 

Com certeza.


Eu levo o carro de regresso ao hotel.

 

E, com isto, Dieter saiu do castelo. A sua dor de cabeça começou assim que ele respirou ar puro.

 

Esfregando a testa com a mão, dirigiu-se ao carro e saiu da aldeia rumo a Reims. O sol da tarde parecia reflectir-se na estrada directamente para os seus olhos. Aquelas enxaquecas surgiam muitas vezes depois de um interrogatório. Dali a uma hora estaria cego e indefeso. Tinha de chegar ao hotel antes de a dor atingir o ponto máximo. Com pouca vontade de travar, não tirou a mão da buzina. Os trabalhadores vinícolas que se dirigiam lentamente a casa afastaram-se do seu caminho. Os cavalos empinaram-se e uma carroça caiu num fosso. Os olhos de Dieter lacrimejavam devido à dor e ele sentia-se cheio de náuseas.

 

Chegou à cidade sem bater com o carro. Conseguiu dirigir-se ao centro. À porta do Hotel Frankfort não chegou a estacionar o carro, abandonando-o simplesmente. Cambaleando escadas acima, conseguiu chegar à suíte.

 

Stéphanie soube imediatamente o que acontecera. Enquanto ele despia a farda e a camisa, ela tirou o estojo de primeiros socorros da mala e encheu uma seringa com a mistura de morfina. Dieter caiu na cama e ela espetou-lhe a agulha no braço. Quase de imediato a dor abrandou. Stéphanie deitou-se ao lado dele, fazendo-lhe festas na cara com as pontas dos dedos.

 

Pouco depois, Dieter ficou inconsciente.

 

Flick morava num estúdio numa velha casa grande em Bayswater. Aquele ficava no sótão: se uma bomba entrasse pelo tecto aterraria na sua cama. Ela passava ali pouco tempo; não devido ao medo das bombas, mas sim porque a sua verdadeira vida decorria noutro local em França, no quartel-general do EOE, ou num dos centros de treino do EOE espalhados pelo país. Havia pouco dela naquele quarto: uma fotografia de Michel a tocar guitarra, uma prateleira com livros de Flaubert e Molière em francês, uma aguarela de Nice que ela pintara com quinze anos. A pequena cómoda tinha três gavetas com roupa e uma com armas e munições.

 

Sentindo-se cansada e deprimida, Flick despiu-se e deitou-se na cama a folhear um exemplar da revista Parade. Berlim fora bombardeada por um esquadrão de mil e quinhentos aviões na última quarta-feira, leu ela. Era difícil imaginar. Tentou visualizar o que teriam sentido os alemães comuns que ali viviam, e só conseguiu pensar num quadro medieval que representava o Inferno, com pessoas nuas a serem queimadas vivas com uma saraivada de fogo. Virou a página e leu uma história tola sobre invólucros de bombas V de segunda categoria que andavam a ser vendidos como recipientes para guardar carvão.

 

A sua mente voltava constantemente ao fracasso da véspera. Reviu mentalmente o confronto, imaginando uma dezena de diferentes decisões que poderia ter tomado, conduzindo-os à vitória e não à derrota. Tal como perdera a batalha, receava estar a começar a perder o marido, e perguntou de si para si se as duas coisas estariam relacionadas. Má líder, má esposa, talvez houvesse uma falha grave no seu carácter.

 

Agora que o seu plano alternativo fora rejeitado, não se via a redimir-se. Todas aquelas pessoas corajosas tinham morrido em vão.


Acabou por cair num sono inquieto. Foi acordada por alguém a bater à porta e a gritar:

 

Flick! Telefone!

 

A voz era de uma das raparigas do andar de baixo. O relógio de Flick marcava seis horas.

 

Quem é? perguntou ela.

 

Só disseram que era do gabinete.

 

Já vou. Vestiu um roupão. Sem saber se eram seis da manhã se seis da tarde, espreitou pela pequena janela do quarto. O Sol estava a pôr-se sobre as elegantes casas de Ladbroke Grove. Correu escadas abaixo até ao telefone do vestíbulo.

 

Desculpa ter-te acordado disse a voz de Percy Thwaite.

 

Não faz mal. Ela gostava sempre de ouvir a voz de Percy do outro lado da linha. Afeiçoara-se bastante a ele, embora ele a mandasse constantemente para situações perigosas. Dirigir agentes era um trabalho emocionalmente muito desgastante, e alguns oficiais anestesiavam-se adoptando uma atitude empedernida em relação à morte ou à captura dos seus agentes, mas Percy nunca o fizera. Chorava cada uma das baixas. Consequentemente, Flick sabia que ele nunca a obrigaria a correr riscos desnecessários. Confiava nele.

 

Podes vir a Orchard Court?

 

Flick perguntou de si para si se as autoridades teriam reconsiderado o seu novo plano para tomar a central telefónica, e encheu-se de esperança.

 

O Monty mudou de ideias?

 

Infelizmente não. Mas preciso que dês indicações a uma pessoa.

 

Ela mordeu o lábio, reprimindo o seu desapontamento.

 

Estou aí dentro de minutos.

 

Vestiu-se rapidamente e apanhou o metro até Baker Street. Percy aguardava-a no andar de Portman Square.

 

Encontrei um operador de rádio. Não tem experiência, mas já fez o treino. Vou mandá-lo amanhã para Reims.

 

Flick olhou para a janela para ver como estava o tempo, como era hábito dos agentes sempre que se fazia referência a um voo. As cortinas estavam corridas, por razões de segurança, mas ela sabia que o tempo estava bom.

 

Para Reims? Porquê?

 

Hoje não tivemos notícias do Michel. Preciso de saber o que é que resta do circuito Bollinger.

 

Flick assentiu. Pierre, o operador de rádio, fizera parte da equipa de assalto. Provavelmente, fora capturado ou morto. Michel podia ter encontrado o rádio transmissor-receptor de Pierre, mas não fora treinado para o operar, e também não sabia os códigos.

 

Mas qual é o objectivo?

 

Mandámos-lhes toneladas de explosivos e munições nos últimos meses. Quero que eles provoquem algumas explosões. A central telefónica é o alvo mais importante, mas não é o único. Mesmo que só reste o Michel e mais dois ou três elementos, podem fazer explodir linhas de caminho-de-ferro, podem cortar linhas telefónicas e alvejar sentinelas... tudo ajuda. Mas não posso dar-lhes indicações se não conseguir comunicar com eles.

 

Flick encolheu os ombros. Para ela, o castelo era o único alvo importante. Tudo o resto era de somenos importância. Mas que se lixasse.

 

Claro que lhe dou indicações.

 

Percy fítou-a. Após alguma hesitação, perguntou:

 

Como estava o Michel... para além do tiro que levou?

 

Bem. Flick ficou em silêncio durante algum tempo. Percy não tirou os olhos dela. Flick não conseguia enganá-lo, ele conhecia-a demasiado bem. Por fim, suspirou e disse: Há uma rapariga.

 

Era o que eu temia.

 

Não sei se resta alguma coisa do meu casamento declarou com amargura.

 

Lamento.

 

Ajudava se eu pudesse dizer a mim mesma que me sacrificara com um objectivo, que ganhara pontos para o nosso lado, que facilitara o êxito da invasão.

 

Fizeste mais do que a maioria durante os últimos dois anos.

 

Mas na guerra não há prémios de consolação, pois não?

 

Não.

 

Ela levantou-se. Estava grata a Percy pela sua compreensão, mas esta começava a fazê-la sentir-se piegas.

 

É melhor dar indicações ao novo operador de rádio.

 

O seu nome de código é Helicóptero. Está à tua espera no escritório. Não é um rapaz muito inteligente, mas é corajoso.

 

Aquilo desmoralizou Flick.

 

Se não é muito inteligente, porquê mandá-lo? Pode pôr os outros em perigo.

 

Como disseste antes... esta é a tua grande oportunidade. Se a invasão falhar, perdemos a Europa. Temos de atacar o inimigo com tudo o que temos, porque não iremos dispor de outra oportunidade.

 

Flick assentiu com ar soturno. Ele usara o seu argumento contra ela. Mas tinha razão. A única diferença era que as vidas que eram colocadas em perigo naquele caso incluíam a de Michel.

 

Está bem anuiu ela, é melhor avançarmos.

 

Ele está ansioso por te ver. Flick franziu o sobrolho.

 

Ansioso? Porquê? Percy sorriu.

 

Descobre tu mesma.

 

Flick saiu da sala e dirigiu-se ao corredor. A secretária dele estava a dactilografar na cozinha e dirigiu Flick para outra assoalhada.

 

Ela deteve-se à porta. «As coisas são assim: levantamos a cabeça e continuamos a trabalhar, esperando acabar por esquecer», disse a si própria.

 

Entrou no escritório, um aposento pequeno com uma mesa quadrada e algumas cadeiras. Helicóptero era um rapaz de pele clara com vinte e poucos anos, que envergava um fato de tweed em tons mostarda, laranja e verde. Via-se que era inglês a milhas. Felizmente, antes de entrar no avião dar-lhe-iam roupa que passaria despercebida numa vila francesa. O EOE empregava alfaiates franceses que faziam roupa de estilo continental para os agentes (depois passavam horas a fazê-las parecer usadas para não atraírem as atenções). Não podiam fazer nada pela pele rosada de Helicóptero e pelo seu cabelo louro-avermelhado, mas a Gestapo iria pensar que ele tinha sangue alemão.

 

Flick apresentou-se e ele disse.

 

Eu sei. Por acaso já nos conhecemos.

 

Lamento, mas não me recordo.

 

Você estudou em Oxford com o meu irmão Charles.

 

O Charlie Standish... claro! Flick recordou-se de outro rapaz louro vestido de tweed, mais alto e mais magro que Helicóptero, mas provavelmente pouco mais inteligente... não chegara a acabar o curso. Charlie falava francês com fluência, recordou Flick... fora algo que haviam tido em comum.

 

Uma vez foi a nossa casa, no Gloucestershire.

 

Flick recordou-se de um fim-de-semana numa casa rural nos anos trinta, e de uma família com um pai inglês simpático e uma mãe francesa muito elegante. Charlie tinha um irmão mais novo, Brian, um adolescente desajeitado de calções, muito excitado com a sua nova máquina fotográfica. Ela conversara um pouco com ele, e o rapaz ficara com um fraco por ela.

 

Então como está o Charlie? Não o vejo desde a faculdade.

 

Morreu respondeu Brian com uma expressão cheia de tristeza. Morreu em quarenta e um. No maldito deserto, por acaso.

 

Flick receou que ele fosse começar a chorar. Tomou a mão dele nas suas e disse:

 

Lamento imenso, Brian.

 

Gosto muito de voltar a vê-la. Ele engoliu a custo. Animou-se com algum esforço. Vi-a uma vez desde essa altura. Você deu uma palestra ao meu grupo de treino no EOE. Na altura não consegui falar consigo.

 

Espero que o que eu disse tenha sido útil.

 

Falou sobre os traidores na Resistência e no que fazer com eles. «É muito simples», disse você. «Encostam o cano da pistola à nuca do desgraçado e puxam o gatilho duas vezes.» Por acaso, deixou-nos bastante assustados.

 

Fitava-a com uma expressão de adoração e Flick começou a perceber onde Percy tinha querido chegar. Parecia-lhe que Brian ainda tinha um fraquinho por ela. Flick afastou-se dele e sentou-se no outro lado da mesa.

 

Bom, é melhor começarmos. Sabe que vai entrar em contacto com um circuito da Resistência que sofreu baixas pesadas.

 

Sim, vou ter de descobrir o que resta do circuito e o que é que ele pode ainda fazer.

 

É provável que alguns dos membros tenham sido capturados durante o confronto de ontem e que estejam neste momento a ser interrogados pela Gestapo. Por isso vai ter de ser muito cuidadoso. O seu contacto em Reims é uma mulher com o nome de código Burguesa. Todos os dias às onze da manhã ela vai rezar à cripta da catedral. Normalmente, é a única pessoa que lá se encontra mas, no caso de haver mais, ela leva sapatos diferentes, um preto e outro castanho.

 

É fácil de recordar.

 

Você diz-lhe «Reze por mim». Ela responde «Rezo pela paz». É essa a senha.

 

Ele repetiu as palavras.

 

Ela há-de levá-lo para casa. Depois vai pô-lo em contacto com o cabecilha do circuito Bollinger, cujo nome de código é Monet. Estava a falar sobre o marido, mas Brian não precisava de saber isso. Por favor, não refira a morada nem o nome verdadeiro da Burguesa a outros membros do circuito quando os conhecer: por razões de segurança, é melhor que eles nada saibam. Fora a própria Flick quem recrutara Burguesa. Nem Michel a conhecia.

 

Compreendo.

 

Quer perguntar-me alguma coisa?

 

Tenho a certeza de que gostaria de lhe fazer centenas de perguntas, mas neste momento não me ocorre nenhuma.

 

Ela levantou-se e contornou a mesa para lhe ir apertar a mão.

 

Bem, então boa sorte.

 

Ele manteve a mão dela na sua.

 

Nunca esqueci o fim-de-semana em que foi a nossa casa. Suponho que fui muito chato, mas você foi muito simpática para mim.

 

Ela sorriu e respondeu com ligeireza:

 

Você era um miúdo simpático.

 

Apaixonei-me por si, por acaso.

 

Flick teve vontade de arrancar a sua mão da dele e afastar-se, mas o rapaz poderia morrer no dia seguinte e ela não tinha coragem de ser tão cruel.

 

Sinto-me lisonjeada respondeu, tentando manter um tom de brincadeira.

 

De nada serviu: ele estava a falar muito a sério.

 

Será que... importava-se... de me dar um beijo, só para me dar sorte?

 

Ela hesitou. «Oh, que se lixe!», pensou. Pôs-se em bicos de pés e beijou-o ao de leve nos lábios. Deixou que o beijo durasse um segundo, depois afastou-se. Ele parecia radiante. Flick fez-lhe uma festa na cara.

 

Mantenha-se vivo, Brian disse, saindo do escritório. Regressou à sala de Percy. Ele tinha uma pilha de livros e algumas fotografias em cima da secretária.

 

Já está? perguntou.

 

Ele não tem perfil de agente secreto, Percy. Este encolheu os ombros.

 

É corajoso, fala francês como um parisiense e tem boa pontaria.

 

Há dois anos tê-lo-ias mandado de volta para a tropa.

 

É verdade. Agora vou mandá-lo para Sandy. Numa grande casa rural na aldeia de Sandy, perto da pista de aviação de Tempsford, Brian receberia as roupas de estilo francês e os documentos falsos de que iria precisar para passar pelas patrulhas da Gestapo e para comprar alimentos. Percy levantou-se e foi até à porta. Enquanto o despacho, importas-te de dar uma olhadela a essa galeria de vilões? Apontou para as fotografias em cima da secretária. São as únicas fotografias de oficiais alemães que o MI6 tem. Se o homem que viste na praça em Sainte-Cécile estiver entre eles, gostava de saber o nome dele. Saiu.


Flick pegou num dos livros. Era um dos livros de curso de uma academia militar, com fotografias do tamanho de um selo de algumas centenas de jovens. Havia cerca de uma dezena de livros semelhantes e várias centenas de fotografias avulsas.

 

Ela não estava com vontade de passar a noite toda a olhar para fotografias, mas talvez pudesse reduzir o leque de possibilidades. O homem da praça aparentara ter cerca de quarenta anos. Devia ter acabado o curso aos vinte e dois, ou seja, por volta de 1926. Nenhum daqueles livros era tão antigo.

 

Virou a sua atenção para as fotografias avulsas. Enquanto as passava, tentou recordar o mais possível acerca do homem. Era bastante alto e estava bem vestido, mas isso não se via numa fotografia. Possuía cabelo escuro espesso, pensou ela, e embora não usasse barba, se a deixasse crescer esta deveria ser abundante. Flick recordava-se de uns olhos escuros, de sobrancelhas bem delineadas, de um nariz aquilino, de um maxilar quadrangular... bem ao estilo de um ídolo das matinés.

 

As fotografias avulsas haviam sido tiradas nas ocasiões mais diversas. Algumas eram recentes, mostrando oficiais a apertar a mão a Hitler, a passar revista às tropas ou a olhar para tanques e aviões. Algumas pareciam ter sido tiradas por espiões. Essas eram as mais inocentes, tiradas no meio de multidões, de carros ou de janelas, mostrando os oficiais às compras, a falar com crianças, a chamar táxis, a acender cachimbos.

 

Flick observou as fotografias o mais rapidamente que pôde, separando-as das outras. Hesitava sempre que via a de um homem de cabelo escuro. Nenhum era tão bem-parecido como o homem que ela se recordava de ter visto na praça. Pôs de lado uma fotografia de um homem com farda de polícia, depois tornou a pegar-lhe. A farda despistara-a, mas após uma observação mais atenta, Flick teve a certeza de que era ele.

 

Virou a fotografia. Colada às suas costas havia uma folha dactilografada. Nela lia-se:

 

FRANCK, Dieter Wolfgang, também chamado «Frankie»; nascido em Colónia a 3 de Junho de 1904; estudou na Universidade de Humboldt em Berlim (não chegou a formar-se) e na Academia de Polícia de Colónia; casou em 1930 com Waltraud Loewe, um filho uma filha; superintendente, Departamento de Investigação Criminal, Polícia de Colónia, até 1940; major, secção de serviços secretos, Afrikakorps, até?

 

Uma das estrelas dos serviços secretos de Rommel, diz-se que este oficial é um interrogador hábil e um torturador implacável.

 

Flick estremeceu ao pensar que estivera perto de um homem tão perigoso. Um detective com experiência que se virara para os serviços secretos militares era um inimigo temível. Aparentemente, o facto de ter família em Colónia não o impedia de ter uma amante em França.

 

Percy regressou e ela entregou-lhe a fotografia.

 

É este o homem.

 

O Dieter Franck! exclamou Percy. Já ouvimos falar dele. Que interessante. Por aquilo que o ouviste dizer na praça, parece que o Rommel o mandou ocupar-se do desmantelamento da Resistência. Tomou algumas notas no seu bloco. É melhor informar o MI6, uma vez que eles nos emprestaram as fotografias.

 

Bateram à porta e a secretária de Percy espreitou para o escritório.

 

Está aqui uma pessoa para vê-lo, coronel Thwaite. A rapariga estava com um ar coquete. Percy, com o seu ar paternal, não inspirava às secretárias esse comportamento, pelo que Flick calculou que a visita devia ser um homem atraente. Um americano acrescentou a rapariga. «Isso explica tudo», pensou Flick. Os americanos eram o paradigma do charme, pelo menos para as secretárias.

 

Como é que ele descobriu esta morada? perguntou Percy. Orchard Court era supostamente um endereço secreto.

 

Parece que foi ao número sessenta e quatro de Baker Street e lá mandaram-no para aqui.

 

Não deviam ter feito isso. Ele deve ser muito insistente. Quem é?

 

O major Chancellor.

 

Percy olhou para Flick. Ela não conhecia ninguém chamado Chancellor. Depois recordou-se do major arrogante que fora tão mal-educado para ela nessa manhã no quartel-general de Monty.

 

Oh, meu Deus, ele! exclamou ela. O que é que ele quer?

 

Mande-o entrar ordenou Percy.

 

Paul Chancellor entrou. Naquela manhã, Flick não reparara que ele coxeava ligeiramente. As dores deviam aumentar à medida que o dia ia passando. O homem tinha um rosto americano agradável, com um nariz grande e um queixo proeminente. Teria sido bonito se não fosse a orelha esquerda, ou o que restava dela: apenas a parte de baixo, essencialmente o lóbulo. Flick calculou que ele devia ter sido ferido em combate.


Chancellor fez a continência.

 

Boa noite, coronel. Boa noite, major.

 

Não costumamos fazer continências no EOE, Chancellor. Sente-se, por favor. O que o traz aqui?

 

Chancellor sentou-se e tirou o boné.

 

Ainda bem que vos apanho a ambos. Passei a maior parte do dia a pensar na conversa desta manhã. Esboçou um sorriso de modéstia. A maior parte do tempo, tenho de confessar, foi passada a imaginar frases perspicazes que podia ter dito se me tivesse lembrado delas na altura.

 

Flick não conseguiu impedir-se de sorrir. Tinha feito o mesmo. Chancellor prosseguiu.

 

O senhor deu a entender, major Thwaite, que o MI6 pode não ter dito toda a verdade sobre o ataque à central telefónica, e isso ficou-me na cabeça. O facto de o major Clairet ter sido tão indelicado para comigo não quer dizer que estivesse a mentir.

 

Flick estivera prestes a perdoar-lhe, mas aquelas palavras deixaram-na furiosa.

 

Indelicada? Eu?

 

Cala-te, Flick ordenou Percy. Ela calou-se.

 

Por isso pedi o seu relatório, coronel. Claro que o pedido partiu do gabinete de Monty, não de mim pessoalmente, por isso foi levado ao nosso quartel-general por uma motociclista das FANY em menos de nada.

 

Chancellor era um tipo directo que sabia accionar os mecanismos da máquina militar, pensou Flick. Podia ser um porco arrogante, mas daria um aliado útil.

 

Quando o li, percebi que a razão principal da derrota foram as informações erradas.

 

Fornecidas pelo MI6! exclamou Flick com indignação.

 

Sim, reparei nisso disse Chancellor com um ligeiro sarcasmo. É evidente que o MI6 tentou disfarçar a sua incompetência. Eu não sou um soldado de carreira, mas o meu pai é, pelo que conheço os truques dos burocratas militares.

 

Oh, fez Percy com ar pensativo. É filho do general Chancellor?

 

Sim.

 

Continue.

 

O MI6 nunca se teria safado se o seu chefe tivesse estado presente na reunião desta manhã para apresentar a versão do EOE. Pareceu-me uma coincidência demasiado grande ele ter sido convocado no último minuto.


Percy não parecia muito convencido.

 

Ele foi convocado pelo primeiro-ministro. Não vejo como é que o MI6 pode ter forjado isso.

 

O Churchill não foi à reunião. Esta foi presidida por um assessor de Downing Street. E fora convocada a pedido do MI6.

 

Raios me partam! exclamou Flick irritada. Que grandes víboras.

 

Quem me dera que fossem tão inteligentes a reunir informações como são a enganar os colegas comentou Percy.

 

Também considerei o seu plano, major Clairet, de tomar o castelo com uma equipa disfarçada de pessoal da limpeza disse Chancellor. É arriscado, claro, mas pode resultar.

 

Isso significaria que o plano seria reconsiderado? Flick não teve coragem de perguntar.

 

O que vai fazer a respeito disto tudo? perguntou Percy.

 

Por coincidência, fui jantar com o meu pai esta noite. Contei-lhe a história toda e perguntei-lhe o que faria o assessor de um general numa situação destas. Estávamos no Savoy.

 

O que respondeu ele? perguntou Flick com impaciência. Estava-se nas tintas para o restaurante em que eles haviam estado.

 

Que eu devia ir ter com o Monty e informá-lo de que havíamos cometido um erro. Chancellor fez uma careta. Não é fácil com alguns generais. Eles nunca gostam de rever decisões. Mas às vezes isso tem de ser feito.

 

E vai falar com ele? perguntou Flick esperançada.

 

Já falei.

 

Você não perde tempo, pois não?! comentou Percy surpreendido.

 

Flick susteve a respiração. Custava a crer que, após um dia de desespero, ela pudesse vir a ter a segunda oportunidade por que tanto ansiava.

 

O Monty acabou por ser bastante simpático disse Chancellor.

 

Flick foi incapaz de conter a agitação.

 

Por amor de Deus, o que é que ele disse a respeito do meu plano?

 

Autorizou-o.

 

Graças a Deus! Ela levantou-se de um pulo, incapaz de estar quieta. Outra oportunidade!

 

Esplêndido! Chancellor levantou a mão.

 

Mais duas coisas. A primeira pode não ser do vosso agrado. Ele pôs-me à frente da operação.


A si?! exclamou Flick.

 

Porquê? inquiriu Percy.

 

Não fazemos perguntas ao general quando ele nos dá uma ordem. Lamento que isso os abale tanto. O Monty confia em mim, mesmo que vocês não confiem.

 

Percy encolheu os ombros.

 

Qual é a outra coisa?

 

Temos uma limitação de tempo. Não posso dizer-vos quando será a invasão, e de facto a data ainda não foi decidida. Mas posso dizer-vos que temos de executar rapidamente a nossa missão. Se não tiveram atingido o objectivo na meia-noite da próxima segunda, será provavelmente tarde de mais.

 

Na próxima segunda! exclamou Flick.

 

Sim confirmou Paul Chancellor. Temos exactamente

 

uma semana.

 


O TERCEIRO DIA

 

Terça-feira, 30 de Maio de 1944

 

Flick partiu de Londres de madrugada, conduzindo uma mota Vincent Comet com um potente motor de quinhentos centímetros cúbicos. As estradas estavam desertas. A gasolina era severamente racionada, e os condutores podiam ser presos por fazerem viagens «desnecessárias». Ela conduzia bastante depressa. Era perigoso mas excitante. A excitação valia o risco.

 

Sentia o mesmo em relação à missão: receio e ansiedade. Ficara a pé até tarde com Percy e Paul, a beber chá e a fazer planos. Tinham decidido que a equipa devia ter seis mulheres, uma vez que as equipas de limpeza tinham sempre esse número de pessoas. Uma tinha de ser especialista em explosivos; outra engenheira electrotécnica, para decidir exactamente onde seriam colocados os explosivos, a fim de garantir que a central ficava permanentemente danificada. Flick queria ainda uma boa atiradora e dois soldados valentes. Consigo totalizavam seis.

 

Dispunha de um dia para encontrá-las. A equipa necessitaria de um treino com a duração mínima de dois dias pelo menos tinham de aprender a saltar de pára-quedas. Isso ocuparia a quarta e a quinta. Seriam largadas perto de Reims na sexta à noite, e entrariam no castelo na tarde de sábado ou de domingo. Isso deixava um dia de manobra em caso de erro.

 

Atravessou o rio por London Bridge. A mota ecoou pelos molhes e casas bombardeadas de Bermondsey e Rotherhithe. Em seguida, meteu por Old Kent Road, o tradicional caminho dos peregrinos rumo a Cantuária. Quando deixou para trás os subúrbios, acelerou e seguiu a toda a velocidade. Durante algum tempo permitiu que o vento lhe fustigasse o cabelo, levando com ele as preocupações.


Não eram ainda seis horas quando chegou a Somersholme, a casa de campo dos barões de Colefield. O barão, William, encontrava-se em Itália, a abrir caminho para Roma com o Oitavo Exército, conforme era do conhecimento de Flick. A irmã dele, a Honourable Diana Colefield, era o único membro da família que ali vivia agora. A enorme casa, com as suas dezenas de quartos para hóspedes e criadagem, estava a ser utilizada como local de convalescença para soldados feridos.

 

Flick diminuiu a velocidade da mota e subiu a alameda ladeada por tílias com cem anos de idade, sem tirar os olhos do amontoado de granito rosado à sua frente, com as suas janelas de sacada, varandas, empenas e telhados, dezenas de janelas e chaminés. Parou ao lado de uma ambulância e de vários jipes no pátio de gravilha.

 

No vestíbulo, as enfermeiras corriam de um lado para o outro com chávenas de chá. Os soldados podiam estar ali a convalescer, mas continuavam a ter de acordar de madrugada. Flick perguntou por Mrs. Riley, a governanta, e foi dirigida para a cave. Encontrou-a a olhar muito preocupada para a fornalha na companhia de dois homens em fato-macaco.

 

Olá, mãe! exclamou Flick.

 

A mãe abraçou-a com força. Era ainda mais baixa que a filha e igualmente magra, mas, tal como Flick, era mais forte do que parecia. O abraço deixou Flick sem fôlego. Por fim, lá conseguiu libertar-se, a ofegar e a rir.

 

Olha que assim esmagas-me, mãe!

 

Nunca sei se estás viva até te ver respondeu a mãe. Na sua voz ainda havia vestígios do sotaque irlandês: deixara Cork com os pais havia quarenta e cinco anos.

 

O que se passa com a fornalha?

 

Não foi criada para aquecer tanta água. Aquelas enfermeiras são fanáticas da limpeza, obrigam os pobres soldados a tomarem banho todos os dias. Vem até à minha cozinha que eu preparo-te o pequeno-almoço.

 

Flick estava com pressa, mas disse a si mesma que tinha tempo para a mãe. De qualquer maneira, precisava de comer. Seguiu a mãe escadas acima até aos aposentos dos criados.

 

Flick crescera naquela casa. Brincara na ala dos criados, correra nos bosques, frequentara a escola da aldeia a dois quilómetros e regressara ali de férias do colégio interno e da faculdade. Fora extraordinariamente privilegiada. A maior parte das mulheres na posição da mãe eram obrigadas a abandonar o emprego quando tinham um filho. A mãe fora autorizada a ficar, em parte porque o velho barão era um homem pouco convencional, mas essencialmente porque era uma governanta tão eficaz que ele temera perdê-la. O pai de Flick havia sido mordomo, mas morrera quando ela tinha seis anos. Todos os anos em Fevereiro, Flick e a mãe acompanhavam a família até à sua mansão em Nice, e fora ali que Flick aprendera francês.

 

O velho barão, pai de William e Diana, gostara muito de Flick e encorajara-a a estudar, pagando-lhe até as propinas. Ficara muito orgulhoso quando ela ganhara uma bolsa de estudo para Oxford. Quando ele morrera, pouco depois do início da guerra, Flick sofrera tanto como se ele tivesse sido o seu verdadeiro pai.

 

A família ocupava actualmente apenas uma ponta da casa. A despensa do velho mordomo era agora a cozinha. A mãe de Flick pôs a chaleira ao lume.

 

Chega uma torrada, mãe disse Flick.

 

A senhora ignorou-a e começou a fritar bacon.

 

Vejo que estás bem comentou ela. E como está o bonitão do teu marido?

 

O Michel está vivo respondeu Flick. Encontrava-se sentada à mesa da cozinha. O cheiro do bacon estava a deixá-la com água na boca.

 

Vivo? Mas pelos vistos não está bem. Foi ferido?

 

Tem uma bala no rabo. Não vai morrer.

 

Então viste-o.

 

Flick soltou uma gargalhada.

 

Mãe, pára com isso! Não posso dizer mais nada.

 

Claro que não. Ele tem-se mantido longe das outras mulheres? Não sei se isso é um segredo militar...

 

Flick nunca deixava de se espantar com a perspicácia da mãe. Era quase sobrenatural.

 

Espero que sim.

 

Hum. Esperas que ele se mantenha longe de alguém em particular?

 

Flick não respondeu directamente à pergunta.

 

Já reparaste, mãe, que às vezes os homens não se apercebem de que uma rapariga é mesmo estúpida?

 

A mãe emitiu um som desgostoso.

 

Então é isso. Calculo que ela seja bonita.

 

Hum.

 

Jovem?

 

Dezanove anos.

 

E falaste com ele?

 

Sim. Ele prometeu parar.

 

Pode cumprir a promessa... se não estiveres longe demasiado tempo.

 

Tenho esperança.

 

A mãe ficou muito abalada.

 

Então vais voltar.

 

Não posso dizer.

 

Não fizeste já o suficiente?

 

Ainda não ganhámos, por isso acho que ainda não fiz o suficiente.

 

A mãe colocou um prato de bacon e ovos à frente de Flick. Devia ser a ração da semana, contudo Flick reprimiu o protesto. Era melhor aceitar aquela dádiva. Para além do mais, sentiu-se subitamente faminta.

 

Obrigada mãe. Estragas-me com mimos.

 

A mãe sorriu, satisfeita, e Flick atacou a comida. Enquanto mastigava, admitiu contrariada que a mãe lhe sacava facilmente tudo o que queria saber, apesar de ela tentar não responder às perguntas.

 

Devias trabalhar para os serviços secretos disse ela com a boca cheia de ovo. Podiam meter-te à frente dos interrogatórios. Obrigaste-me a contar-te tudo.

 

Sou tua mãe. Tenho o direito de saber.

 

Pouco importava. A mãe não repetiria uma palavra do que ouvira. Bebia chá enquanto observava Flick a comer.

 

É claro que tens de ganhar a guerra sozinha disse ela com um sarcasmo terno. Desde pequena que és assim... muito independente.

 

Não sei porquê. Tive sempre quem olhasse por mim. Quando tu estavas demasiado ocupada havia meia dúzia de empregadas a mimar-me.

 

Acho que te encorajei a ser auto-suficiente porque não tiveste um pai. Sempre que querias que eu te fizesse alguma coisa, como arranjar a corrente da bicicleta ou coser um botão, eu costumava dizer: «Experimenta tu fazer isso, e se não conseguires eu ajudo-te.» Nove em cada dez vezes safaste-te sozinha.

 

Flick acabou o bacon e limpou o prato com uma fatia de pão.

 

A maior parte das vezes o Mark costumava ajudar-me. Mark era o irmão de Flick, um ano mais velho.

 

O rosto da mãe ficou inexpressivo.

 

Não me digas.

 

Flick reprimiu um suspiro. A mãe discutira com Mark havia dois anos. Ele trabalhava num teatro como contra-regra e vivia com um actor chamado Steve. Há muito que a mãe sabia que Mark não era «do tipo casadoiro», como ela costumava dizer. Mas, num ataque de honestidade excessivo, Mark cometera o erro de contar à mãe que amava Steve, e que eram como marido e mulher. Ela ficara mortalmente ofendida e não dirigia a palavra ao filho desde essa altura.

 

O Mark ama-te, mãe disse Flick.

 

Pois sim.

 

Gostava muito que o visses.

 

Com certeza. A mãe pegou no prato vazio de Flick e lavou-o no lava-louça.

 

Flick abanou a cabeça, exasperada.

 

És um bocadinho teimosa, mãe.

 

Então presumo que tenhas herdado isso de mim.

 

Flick foi obrigada a sorrir. Fora muitas vezes acusada de teimosia. «Cabeçuda» era o termo utilizado por Percy. Ela fez um esforço para conciliar as coisas.

 

Bem, suponho que não consegues evitar aquilo que sentes. Mas não vou discutir contigo, especialmente depois de um pequeno-almoço tão bom. Mesmo assim, uma das suas ambições era levar os dois a fazerem as pazes.

 

Mas não naquele dia. Levantou-se. A mãe sorriu.

 

Gosto muito de te ver. Ando sempre tão preocupada contigo.

 

Vim cá também por outro motivo. Preciso de falar com a Diana.

 

Para quê?

 

Não posso dizer.

 

Espero que não estejas a pensar levá-la para França contigo.

 

Cala-te, mãe! Quem é que falou em ir para França?

 

Calculo que seja por causa de ela manejar tão bem as armas.

 

Não posso dizer.

 

Ela vai fazer com que te matem! Não sabe o que é disciplina, e também porque haveria de saber? Não foi educada para isso. A culpa não é dela, claro. Mas és uma idiota se confiares nela.

 

Sim, eu sei respondeu Flick num tom impaciente. Tomara uma decisão e não ia voltar atrás por causa da mãe.

 

Ela já teve bastantes empregos durante a guerra e foi despedida de todos.

 

Eu sei. Mas Diana tinha uma excelente pontaria, e Flick não podia dar-se ao luxo de ser esquisita. Tinha de aproveitar o que lhe aparecia. A sua principal preocupação era Diana poder recusar.


Ninguém podia ser obrigado a fazer trabalho secreto. Era estritamente para voluntários. Sabes onde está a Diana?

 

Creio que está no bosque respondeu a mãe. Saiu cedo, atrás de coelhos.

 

Claro. Diana adorava todos os desportos sangrentos: caça à raposa, ao veado, à perdiz, à lebre, e até pesca. Se não havia mais nada para fazer, punha-se a caçar coelhos.

 

Basta-te seguir o som dos tiros. Flick deu um beijo na cara da mãe.

 

Obrigada pelo pequeno-almoço disse, dirigindo-se para a porta.

 

E não vás parar ao lado errado da arma! gritou a mãe. Flick saiu pela porta dos criados, atravessou o jardim da cozinha

 

e entrou no bosque situado nas traseiras da casa. As árvores estavam cheias de folhas novas, e as urtigas davam-lhe pela cintura. Flick abriu caminho pela vegetação com as suas pesadas botas de motociclista e calças de cabedal. A melhor forma de atrair Diana, pensou, seria colocar-lhe um desafio.

 

Depois de ter avançado uns quatrocentos metros pela floresta, ouviu o estrondo de uma caçadeira. Parou, escutou e gritou:

 

Diana!

 

Não houve resposta.

 

Avançou na direcção do barulho, gritando de minuto a minuto.

 

Estou aqui, sua idiota barulhenta, seja você quem for.

 

Vou já, mas por favor baixa a arma.

 

Viu Diana numa clareira, sentada no chão encostada a um carvalho, a fumar um cigarro. Tinha a caçadeira sobre os joelhos, pronta a ser carregada, e meia dúzia de coelhos ao lado no chão.

 

Oh, és tu! Espantaste a caça toda.

 

A caça volta amanhã. Flick observou a sua amiga de infância. Diana era atraente e tinha um ar arrapazado, com cabelo escuro bem curto e sardas no nariz. Envergava um colete de caçador e calças de bombazina. Como estás, Diana?

 

Chateada. Frustrada. Deprimida. De resto, bem.

 

Flick sentou-se na relva atrás dela. Talvez aquilo fosse mais fácil do que ela julgara.

 

O que é que se passa?

 

Estou aqui a apodrecer nos campos de Inglaterra enquanto o meu irmão anda a conquistar a Itália.

 

Como é que está o William?

 

Está bem, contribui para o esforço de guerra, mas a mim ninguém dá um emprego decente.


Talvez eu possa ajudar-te nisso.

 

Tu fazes parte das FANY. Diana puxou uma baforada do cigarro e expeliu o fumo. Minha querida, não posso ser motorista.

 

Flick assentiu. Diana tinha demasiada classe para fazer o trabalho servil que era proposto à maior parte das mulheres.

 

Bem, estou aqui para te propor uma coisa mais interessante.

 

O quê?

 

Podes não gostar. É bastante difícil e perigosa. Diana fez um ar céptico.

 

E o que é que envolve, conduzir durante o blackout?

 

Não posso dizer muito, porque é segredo.

 

Flick, querida, não me digas que estás metida em coisas de capa e espada.

 

Não fui promovida a major por conduzir generais entre as reuniões.

 

Diana fitou-a.

 

Estás a falar a sério?

 

Claro.

 

Deus do Céu! Contra sua vontade, Diana ficou impressionada.

 

Flick tinha de levá-la a oferecer-se para o trabalho.

 

Então? Sempre estás disposta a fazer uma coisa muito perigosa? Quero dizer, há muitas hipóteses de seres morta.

 

Diana pareceu animada em vez de desencorajada.

 

Claro que estou disposta. O William está a arriscar a vida dele, porque não hei-de eu fazer o mesmo?

 

Estás a falar a sério?

 

Muito a sério.

 

Flick ocultou o seu alívio. Recrutara o primeiro membro da equipa.

 

Diana parecia tão receptiva que Flick decidiu aproveitar.

 

Há uma condição, e talvez a aches pior do que o perigo.

 

Qual é?

 

És dois anos mais velha do que eu, e durante toda a vida fizeste parte de uma classe superior. És a filha do barão e eu a filha da governanta. Não há nada de errado nisso, e não estou a queixar-me. A minha mãe diria que as coisas são mesmo assim.

 

Sim, querida, onde é que queres chegar?

 

Eu dirijo a operação. Vais ter de obedecer às minhas ordens. Diana encolheu os ombros.

 

Tudo bem.


Vai ser um problema insistiu Flick. Vais estranhar. Mas vou ser dura contigo até te habituares. Estou a avisar-te!

 

Sim, meu major!

 

Não ligamos muito a formalidades no meu departamento, por isso não tens de me tratar por major. Mas exigimos uma disciplina militar, especialmente depois do início de uma operação. Se te esqueceres disso, a minha ira há-de ser a menor das tuas preocupações. Desobedecer a ordens pode fazer com que se seja morto neste tipo de actividade.

 

Querida, que dramática! Mas claro que compreendo.

 

Flick não tinha a certeza se Diana compreendia mesmo, mas fizera o seu melhor. Tirou um bloco do bolso da camisa e escreveu uma morada em Hampshire.

 

Faz uma mala para três dias. Vais ter de ir ter a este endereço. Apanhas o comboio de Waterloo para Brockenhurst.

 

Diana olhou para a morada.

 

Ora, isto é a propriedade do lorde Montagu.

 

A maior parte está agora ocupada pelo meu departamento.

 

Qual é o teu departamento?

 

O Departamento de Investigação Interserviços respondeu Flick, utilizando o nome falso.

 

Espero que seja mais excitante do que parece.

 

Podes crer que é.

 

Quando é que começo?

 

Preciso que estejas lá hoje. Flick levantou-se. O teu treino começa amanhã de madrugada.

 

Volto para casa contigo e começo já a fazer as malas. Diana levantou-se também. Diz-me uma coisa.

 

Se puder.

 

Diana começou a mexer na arma, parecendo atrapalhada. Quando olhou para Flick, o seu rosto tinha pela primeira vez uma expressão franca.

 

Porquê eu? perguntou. Deves saber que fui rejeitada por toda a gente.

 

Flick assentiu.

 

Vou ser sincera. Olhou para os coelhos ensanguentados no chão e depois para o rosto bonito de Diana. Es uma assassina declarou. E é disso que preciso.

 

Dieter dormiu até às dez. Acordou com dor de cabeça devido à morfina, mas de resto sentia-se bem: animado, optimista, confiante. O interrogatório sangrento da véspera dera-lhe boas pistas. A mulher com o nome de código Burguesa, com a casa na Rue du Bois, podia ser a sua porta de entrada na Resistência francesa.

 

Ou podia conduzi-lo a um beco sem saída.

 

Bebeu um litro de água e engoliu três aspirinas para se livrar da ressaca de morfina, depois pegou no telefone.

 

Primeiro ligou para o tenente Hesse, que estava hospedado num quarto mais modesto do mesmo hotel.

 

Bom dia, Hans, dormiu bem?

 

Sim, obrigado, meu major. Fui à câmara municipal investigar o endereço da Rue du Bois.

 

Muito bem comentou Dieter. E o que descobriu?

 

A casa é propriedade de uma pessoa, que é também a única moradora, a Mademoiselle Jeanne Lemas.

 

Mas pode lá haver mais gente.

 

Também passei por lá de carro, para dar uma olhadela, e pareceu-me tudo muito sossegado.

 

Prepare-se para sair, com o meu carro, dentro de uma hora.

 

Muito bem.

 

E Hans... fez muito bem em usar a sua iniciativa.

 

Obrigado, meu major,

 

Dieter desligou. Perguntou de si para si como seria Mademoiselle Lemas. Gaston dissera que ninguém do circuito Bollinger a vira, e Dieter acreditava nele: a localização da casa era um enigma. Os agentes que chegavam sabiam apenas onde contactar a mulher: se fossem apanhados não poderiam revelar informações importantes sobre a Resistência. Pelo menos, essa era a teoria. Nunca havia uma segurança perfeita.

 

Provavelmente, Mademoiselle Lemas não era casada. Podia ser uma jovem que herdara a casa dos pais, uma solteirona de meia-idade à procura de marido, ou uma velhota. Talvez fosse boa ideia levar uma mulher consigo, decidiu Dieter.

 

Regressou ao quarto. Stéphanie escovara o seu abundante cabelo ruivo e estava sentada na cama, com os seios à mostra por cima da dobra do lençol. Sabia mesmo como ser sedutora. Mas ele resistiu ao impulso de voltar para a cama.

 

Fazes-me um favor? perguntou ele.

 

Por ti faço qualquer coisa.

 

Qualquer coisa? Ele sentou-se na cama e tocou-lhe no ombro nu. Eras capaz de me ver com outra mulher?

 

Claro respondeu ela. Lamber-lhe-ia os mamilos enquanto fizesses amor com ela.

 

Eu sei que sim. Ele riu-se com gosto. Já antes tivera amantes, mas nenhuma como Stéphanie. No entanto, não é isso. Quero que venhas comigo enquanto prendo uma mulher da Resistência.

 

O rosto dela manteve-se inexpressivo.

 

Muito bem disse calmamente.

 

Dieter sentiu-se tentado a obter dela uma reacção, a perguntar-lhe o que achava daquilo, e se tinha a certeza de que não se importava, mas decidiu aceitar o anuimento dela.

 

Obrigado disse, regressando à sala de estar. Mademoiselle Lemas podia estar sozinha mas, por outro lado, a casa podia estar cheia de agentes dos Aliados, armados até aos dentes. Dieter precisava de reforços. Consultou o bloco de apontamentos e deu à telefonista o número de Rommel em La Roche-Guyon.

 

Quando os Alemães tinham ocupado o país, o sistema telefónico francês ficara inundado. Desde então, os Alemães tinham melhorado o equipamento, acrescentando milhares de quilómetros de cabos e instalando centrais automáticas. O sistema continuava sobrecarregado, mas estava melhor do que antes.

 

Pediu para falar com o major Goedel, o assessor de Rommel. Pouco depois ouviu a familiar voz fria e precisa.

 

Goedel.

 

Fala o Dieter Franck disse ele. Como está, Walter?

 

Ocupado respondeu Goedel abruptamente. O que é?

 

Estou a fazer progressos rápidos aqui. Não quero entrar em pormenores porque estou a falar pelo telefone do hotel, mas estou prestes a prender pelo menos um espião, senão mais. Pensei que o marechal-de-campo gostaria de saber isso.

 

Eu comunico-lhe.

 

Mas dava-me jeito alguma assistência. Estou a fazer tudo isto com um tenente. Estou tão desesperado que já pedi ajuda à minha namorada francesa.

 

Isso não parece muito aconselhável.

 

Oh, ela é de confiança. Mas não me servirá de muito contra terroristas treinados. Pode mandar-me meia dúzia de homens?

 

Utilize a Gestapo... é para isso que eles cá estão.

 

Esses não são de confiança. Sabe que eles só colaboram connosco porque são obrigados. Preciso de pessoas em quem confiar.

 

Isso está fora de questão respondeu Goedel.

 

Ouça, Walter, sabe como o Rommel acha que isto é importante... encarregou-me de impedir que a Resistência dificulte a nossa mobilidade.

 

Sim, mas o marechal-de-campo espera que você o faça sem lhe roubar os soldados.

 

Não sei se serei capaz.

 

Por amor de Deus, homem! Goedel elevou a voz. Estamos a tentar defender toda a costa atlântica com um punhado de soldados, e você encontra-se rodeado por homens robustos sem nada melhor para fazer do que perseguir judeus velhos escondidos em celeiros. Faça o seu trabalho e não me incomode! Ouviu-se um clique quando o telefone foi desligado.

 

Dieter ficou perplexo. Não era nada normal Goedel explodir daquela maneira. Deviam andar todos tensos com a ameaça da invasão. Mas a mensagem fora bem clara. Dieter tinha de fazer aquilo sozinho.

 

Com um suspiro, carregou várias vezes no descanso e pediu que o ligassem ao castelo de Sainte-Cécile.

 

Chegou a Willi Weber.

 

Vou arrombar uma casa da Resistência disse ele. Posso precisar de alguns dos seus pesos-pesados. Importa-se de mandar quatro homens e um carro ao Hotel Frankfort? Ou será que preciso de falar novamente com o general Rommel?

 

A ameaça era desnecessária. Weber tinha todo o gosto em que os seus homens participassem na operação. Dessa forma, a Gestapo poderia reclamar os louros. Prometeu enviar-lhe um carro dali a uma hora.

 

Dieter tinha umas certas reservas em trabalhar com a Gestapo. Não era capaz de a controlar. Mas não lhe restava alternativa.


Enquanto fazia a barba, ligou o rádio, sintonizado num posto alemão. Ficou a saber que a primeira batalha entre carros de assalto no teatro do Pacífico tivera lugar na véspera, na ilha de Biak. Os ocupantes japoneses tinham empurrado os invasores americanos do 162.° Batalhão de Infantaria de regresso à sua cabeça de ponte. «Empurrem-nos para o mar», pensou Dieter.

 

Vestiu um fato cinzento-escuro de lã, uma camisa de algodão com ténues riscas cinzentas e uma gravata preta com bolinhas brancas. As pintas eram bordadas no tecido e não estampadas, um pormenor que lhe agradava. Pensou por um momento, depois despiu o casaco e colocou um coldre de ombros. Tirou a pistola automática Walther P38 da escrivaninha e enfiou-a no coldre, e depois tornou a vestir o casaco.

 

Sentou-se com uma chávena de café na mão e observou Stéphanie a vestir-se. Os franceses faziam a roupa interior mais bonita do mundo, pensou ele quando ela vestiu um body de seda amarelada. Adorava vê-la calçar os collants, a alisar a seda sobre as coxas.

 

Porque é que os antigos mestres não pintaram este momento? perguntou ele.

 

Porque as mulheres do Renascimento não tinham meias de seda respondeu Stéphanie.

 

Quando ela ficou pronta, saíram.

 

Hans Hesse esperava-os lá fora com o Hispano-Suiza de Dieter. O jovem olhou para Stéphanie com uma expressão de admiração e temor. Para ele, ela era infinitamente desejável e ao mesmo tempo intocável. Fez lembrar a Dieter uma mulher pobre a olhar para uma montra da Cartier.

 

Atrás do carro de Dieter encontrava-se um Citroen Traction Avant preto com quatro homens da Gestapo vestidos à civil. Dieter reparou que o major Weber também decidira estar presente: encontrava-se sentado à frente, no banco do passageiro, envergando um fato de tweed verde que o fazia parecer um agricultor a caminho da igreja.

 

Sigam-me disse Dieter. Quando lá chegarmos, fiquem por favor no carro até eu vos chamar.

 

Onde raio é que você arranjou um carro desses? perguntou Weber.

 

Fui subornado por um judeu respondeu Dieter. Ajudei-o a fugir para a América.

 

Weber grunhiu com descrença, mas de facto a história era verdadeira.

 

Com homens como Weber, a melhor atitude a tomar era de bravata. Se Dieter tivesse tentado manter Stéphanie escondida, Weber teria imediatamente desconfiado que ela era judia e podia ter dado início a uma investigação. Mas como Dieter a exibia, essa ideia nunca lhe passara pela cabeça.

 

Hans sentou-se ao volante e dirigiram-se à Rue du Bois.

 

Reims era uma cidade de província relativamente grande com mais de cem mil habitantes, mas viam-se poucos veículos motorizados nas ruas. Os carros eram apenas utilizados por pessoas em missões oficiais: polícias, médicos, bombeiros e, claro, alemães. Os cidadãos deslocavam-se de bicicleta ou a pé. Havia gasolina disponível para a distribuição de comida e de outros bens essenciais, mas a maior parte das coisas era transportada em carroças. A principal indústria da zona era o champanhe. Dieter adorava champanhe em todas as suas formas: os vintages mais velhos de travo intenso, os cuvées frescos e leves não vintage, o refinado branco de branco, as variedades meio-secas de sobremesa, até o divertido rosado adorado pelas cortesãs de Paris.

 

A Rue du Bois era uma agradável ruazinha ladeada de árvores na periferia da cidade. Hans estacionou em frente a uma casa alta na extremidade de um quarteirão, com um pátio pequeno num dos lados. Aquela era a casa de Mademoiselle Lemas. Seria Dieter capaz de a fazer vergar? As mulheres eram mais difíceis que os homens. Choravam e gritavam, mas aguentavam-se mais tempo. Ele já chegara a falhar com mulheres, mas nunca com um homem. Se aquela o derrotasse, a investigação dele acabava já ali.

 

Vem ter comigo se eu fizer sinal disse ele a Stéphanie quando saiu do carro. O Citroen de Weber parou atrás, mas os homens da Gestapo ficaram dentro do carro, conforme combinado.

 

Dieter olhou para o pátio da casa. Para lá dele, viu um pequeno jardim com sebes aparadas, canteiros rectangulares e um caminho de gravilha. A dona tinha uma mente arrumada.

 

Ao lado da porta da frente havia uma antiquada corda vermelha e amarela. Ele puxou-a e ouviu lá dentro o toque metálico de uma campainha mecânica.

 

A mulher que abriu a porta devia ter cerca de sessenta anos. Usava o cabelo preso com um gancho de tartaruga. Envergava um vestido azul com pequenas flores brancas. Por cima tinha um avental branco engomado.

 

Bom dia, monsieur cumprimentou ela educadamente. Dieter sorriu. Estava diante de uma senhora da província com comportamento irrepreensível; já pensara numa forma de a torturar. Sentiu-se mais esperançado.


Bom dia... Mademoiselle Lemas?

 

Ela observou o fato dele, reparou no carro estacionado e talvez tenha detectado o sotaque alemão; o medo surgiu nos seus olhos.

 

Em que posso ajudá-lo? perguntou com um certo tremor na voz.

 

A senhora está sozinha? Dieter observou-a atentamente.

 

Sim respondeu ela. Completamente sozinha. Estava a dizer a verdade. Dieter tinha a certeza. Uma mulher como aquela não podia mentir sem se trair com o olhar.

 

Ele virou-se e chamou Stéphanie.

 

A minha colega irá fazer-nos companhia. Não iria precisar dos homens de Weber. Tenho umas perguntas para lhe fazer.

 

Perguntas? Sobre o quê?

 

Posso entrar?

 

Muito bem.

 

A sala para onde ela os levou tinha móveis de madeira escura, muito bem polidos. Havia também um piano sob uma cobertura para o pó e uma gravura da catedral de Reims na parede. A prateleira sobre a lareira tinha vários bibelôs: um cisne de vidro soprado, uma apanhadora de flores em porcelana, um globo transparente com uma miniatura do palácio de Versalhes e três camelos de madeira.

 

Dieter sentou-se num sofá com estofo de pelúcia. Stéphanie sentou-se ao seu lado e Mademoiselle Lemas numa cadeira de frente para eles. Era roliça, observou Dieter. Havia poucos franceses roliços ao fim de quatro anos de ocupação. A comida era o vício dela.

 

Numa mesa baixa havia uma cigarreira e um isqueiro de mesa pesado. Dieter abriu a tampa e viu que a caixa estava cheia.

 

Pode fumar se quiser disse ele.

 

Ela pareceu ligeiramente ofendida: as mulheres da sua geração não fumavam.

 

Eu não fumo.

 

Então para quem são estes cigarros?

 

Ela tocou no queixo, um sinal de desonestidade.

 

Para as visitas.

 

E que tipo de visitas recebe?

 

Amigos... vizinhos... Parecia pouco à vontade.

 

E espiões britânicos.

 

Isso é um absurdo.

 

Dieter esboçou o seu sorriso mais cativante.

 

A senhora parece ser uma pessoa respeitável que se envolveu em actividades criminosas por equívoco disse ele num tom cândido. Não vou brincar consigo, e espero que não cometa o erro de me mentir.


Não vou dizer-lhe nada respondeu ela.

 

Dieter fingiu-se desapontado, mas ficou satisfeito por estar a fazer progressos tão rápidos. Ela já deixara de fingir que não sabia do que é que ele estava a falar. Isso equivalia a uma confissão.

 

Vou fazer-lhe algumas perguntas continuou Dieter. Se não responder, voltarei a fazer-lhas no quartel da Gestapo.

 

Ela dirigiu-lhe um olhar de desafio.

 

Onde é que se encontra com os agentes britânicos? Mademoiselle Lemas não respondeu.

 

Como é que eles a reconhecem?

 

O olhar dela enfrentou o dele com uma expressão calma. Já não estava ansiosa, mas sim resignada. «É uma mulher corajosa», pensou ele. Seria um desafio.

 

Qual é a senha? Ela não respondeu.

 

A quem é que entrega depois os agentes? Como é que contacta a Resistência? Quem é o responsável por ela?

 

Silêncio.

 

Dieter levantou-se.

 

Venha comigo, por favor.

 

Muito bem disse ela num tom firme. Dá-me licença que coloque o meu chapéu?

 

Com certeza. Dieter fez sinal a Stéphanie. Vai com a mademoiselle, por favor. Certifica-te de que ela não faz telefonemas nem escreve nada. Não queria que ela deixasse qualquer espécie de recado.

 

Aguardou no vestíbulo. Quando elas voltaram, Mademoiselle Lemas tirara o avental, vestira um casaco leve e pusera um chapéu cloche que saíra de moda muito antes do início da guerra. Trazia uma mala castanha de pele. Quando se dirigiam os três à porta da frente, Mademoiselle Lemas exclamou:

 

Oh! Esqueci-me da chave.

 

Não vai precisar dela respondeu Dieter.

 

A porta tranca-se sozinha retorquiu ela. Preciso da chave para voltar a entrar.

 

Dieter olhou-a nos olhos.

 

Ainda não percebeu? Tem abrigado terroristas britânicos na sua casa, foi apanhada e está nas mãos da Gestapo. Abanou a cabeça com uma expressão de pena que não era completamente falsa. Independentemente do que acontecer, a mademoiselle nunca mais vai voltar para casa.

 

Ela percebeu então horrorizada o que estava a acontecer-lhe.


Empalideceu e vacilou. Apoiou-se na extremidade de uma mesa em forma de rim. Uma jarra chinesa com umas ervas secas balançou perigosamente, mas não caiu. Depois Mademoiselle Lemas recuperou a postura. Endireitou-se e largou a mesa. Dirigiu-lhe de novo aquela expressão de desafio, depois saiu de casa com a cabeça bem erguida.

 

Dieter pediu a Stéphanie para se sentar no banco da frente, enquanto ele ia no de trás com a prisioneira. Durante a viagem para Sainte-Cécile, Dieter trocou algumas palavras de cortesia.

 

A mademoiselle nasceu em Reims?

 

Sim. O meu pai dirigia o coro da catedral.

 

Um passado religioso. Eram boas notícias para o plano que começava a formar-se na mente de Dieter.

 

Ele aposentou-se?

 

Morreu há cinco anos, após uma doença prolongada.

 

E a sua mãe?

 

Morreu quando eu era menina.

 

Então calculo que tenha olhado pelo seu pai durante a doença.

 

Durante vinte anos.

 

Ah! Isso explicava por que motivo ela era solteira. Passara a vida a olhar pelo pai inválido. E ele deixou-lhe a casa.

 

Ela assentiu.

 

Uma pequena recompensa, poderão pensar alguns, por uma vida de dedicação.

 

Ela lançou-lhe um olhar altivo.

 

Não se fazem coisas daquelas à espera de uma recompensa.

 

Pois não. Dieter decidiu ignorar a reprimenda subentendida. Ajudaria o seu plano se ela se convencesse de que era moral e socialmente superior a ele. Tem irmãos?

 

Não.

 

Dieter imaginou a cena com clareza. Os agentes que ela abrigava, todos homens e mulheres jovens, deviam ter sido para ela como filhos. Dera-lhes de comer, lavara-lhes a roupa, falara com eles, e provavelmente mantivera-se de olho nas relações entre os sexos, certificando-se de que não havia imoralidade, pelo menos não debaixo do seu tecto.

 

E agora iria morrer por isso.

 

Mas primeiro, esperava ele, iria contar-lhe tudo.

 

O Citroen da Gestapo seguiu o carro de Dieter até Sainte-Cécile. Quando estacionaram junto ao castelo, Dieter virou-se para Weber.


Vou levá-la lá para cima para um gabinete disse.

 

Porquê? Há celas na cave.

 

Já vai ver.

 

Dieter conduziu a prisioneira escadas acima até aos gabinetes da Gestapo. Espreitou para dentro de todos e escolheu o mais movimentado, um misto de sala de dactilografia e de correios. Encontrava-se cheia de homens e mulheres jovens de camisa e gravata. Deixando Mademoiselle Lemas no corredor, fechou a porta e bateu palmas para chamar a atenção.

 

Vou trazer para aqui uma francesa. Ela é prisioneira, mas quero que sejam todos simpáticos e educados para ela, compreendido? Tratem-na como se fosse uma convidada. É importante que ela se sinta respeitada.

 

Conduziu-a até à sala, sentou-a a uma mesa e, com um pedido de desculpas murmurado, algemou-lhe o tornozelo à perna da mesa. Deixou Stéphanie com ela e levou Hesse lá para fora.

 

Vá à cantina e peça-lhes que preparem um tabuleiro com um almoço. Sopa, prato, um pouco de vinho, uma garrafa de água mineral e muito café. Traga talheres, copos, um guardanapo. Arranje tudo de forma a ficar bonito.

 

O tenente sorriu admirado. Não fazia ideia daquilo que o seu superior estava a tramar, mas tinha a certeza de que devia ser algo inteligente.

 

Minutos depois regressou com um tabuleiro. Dieter tirou-lho das mãos e levou-o para o gabinete. Colocou-o à frente de Mademoiselle Lemas.

 

Por favor disse. Está na hora do almoço.

 

Não sou capaz de comer nada, obrigada.

 

Talvez só um pouco de sopa. Deitou-lhe vinho para o copo. Ela misturou água ao vinho e bebeu um gole, depois experimentou a sopa.

 

Que tal está?

 

Muito boa admitiu ela.

 

A comida francesa é tão refinada. Nós, alemães, não conseguimos imitá-la. Dieter falou de coisas triviais, tentando descontraí-la, e ela comeu a maior parte da sopa. Ele encheu-lhe um copo com água.

 

O major Weber entrou e olhou incrédulo para o tabuleiro diante da prisioneira.

 

Agora recompensamos as pessoas por albergarem terroristas? perguntou ele em alemão.


A mademoiselle é uma senhora. Devemos tratá-la de forma adequada.

 

Deus do Céu! exclamou Weber, dando meia volta e saindo. Ela recusou comer mais, mas bebeu o café todo. Dieter estava satisfeito. Tudo corria conforme o plano. Depois de ela ter terminado, ele tornou a fazer-lhe as perguntas.

 

Onde é que se encontra com os agentes aliados? Como é que eles a reconhecem? Qual é a senha?

 

Ela parecia aflita, mas mesmo assim recusou-se a responder. Dieter olhou-a com ar triste.

 

Lamento imenso que se recuse a colaborar comigo depois de ter sido tão bem tratada.

 

Ela pareceu intrigada.

 

Agradeço a sua bondade, mas não posso dizer-lhe nada. Stéphanie, sentada ao lado de Dieter, também estava intrigada.

 

Ele adivinhou o que ela estava a pensar: «Acreditavas mesmo que uma boa refeição seria o suficiente para fazer falar esta mulher?»

 

Muito bem disse ele. Levantou-se, preparando-se para sair.

 

E agora, monsieur disse Mademoiselle Lemas. Parecia atrapalhada. Tenho de pedir-lhe que... hum... me deixe ir pôr pó-de-arroz.

 

Quer ir à casa de banho? perguntou Dieter com aspereza. Ela corou.

 

Sim.

 

Lamento, mademoiselle. Isso não vai ser possível.

 

A última coisa que Monty dissera a Paul Chancellor ao fim da noite de segunda-feira, fora:

 

Se fizer apenas uma coisa nesta guerra, certifique-se de que a central telefónica é destruída.

 

Paul acordara naquela manhã com aquelas palavras a ecoarem-lhe na cabeça. Era uma ordem simples. Se ele conseguisse executá-la, teria ajudado a ganhar a guerra. Se falhasse, morreriam muitos homens... e ele poderia passar o resto da vida a reflectir que ajudara a perder a guerra.

 

Dirigiu-se cedo a Baker Street, mas Percy Thwaite já lá se encontrava, sentado no gabinete, a fumar cachimbo e a olhar para seis caixas com pastas de arquivo. Parecia um típico militar absolutamente banal, com o casaco aos quadrados e o bigode tipo escova. Olhou para Paul com uma certa hostilidade.

 

Não sei por que motivo o Monty o pôs a dirigir esta operação disse. Não me importa o facto de o senhor ser apenas major e eu coronel... isso não é importante. Mas nunca dirigiu uma operação clandestina, ao passo que eu não faço outra coisa há três anos. Acha que faz sentido?

 

Sim respondeu Paul. Quando se quer ter a certeza de que um trabalho é executado, entregamo-lo a alguém de confiança. O Monty confia em mim.

 

Mas não em mim.

 

Ele não o conhece.

 

Estou a ver resmungou Percy.

 

Paul precisava da ajuda de Percy, por isso decidiu apaziguá-lo. Olhando em volta, viu a fotografia emoldurada de um jovem oficial com farda de tenente e uma mulher mais velha com um chapéu grande. O rapaz podia ter sido Percy há trinta anos.


É o seu filho? adivinhou Paul. Percy acalmou-se de imediato.

 

O David está no Cairo. Passámos uns maus momentos durante a guerra do deserto, especialmente depois de Rommel ter chegado a Tobruk, mas agora, claro, ele está fora da linha de fogo e devo confessar que isso me apraz.

 

A mulher tinha cabelo escuro e olhos escuros, um rosto forte, atraente mas não bonito.

 

E Mistress Thwaite?

 

Rosa Mann. Tornou-se uma sufragista famosa nos anos vinte e sempre usou o seu nome de solteira.

 

Sufragista?

 

Fez campanha para que as mulheres pudessem votar. Percy gostava de mulheres formidáveis, concluiu Paul; era por isso que gostava de Flick.

 

Sabe, a sua reserva a meu respeito faz sentido disse com ar inocente. Tenho estado no outro extremo das operações clandestinas, mas esta será a minha estreia como organizador. Por isso ficaria muito grato se tivesse a sua ajuda.

 

Percy assentiu.

 

Começo a perceber por que motivo você adquiriu a reputação de conseguir que as coisas se façam disse com um ligeiro sorriso. Mas se quiser um conselho...

 

Por favor.

 

Deixe-se guiar pela Flick. Mais ninguém viveu tanto tempo com uma identidade secreta. Os conhecimentos e a experiência dela são ímpares. Na teoria posso mandar nela, mas na prática o que faço é dar-lhe o apoio de que ela precisa. Nunca tentaria dizer-lhe o que fazer.

 

Paul hesitou. Monty encarregara-o de dirigir a operação e ele não tencionava entregar o comando a mais ninguém.

 

Vou ter isso em conta respondeu.

 

Percy pareceu satisfeito. Apontou para as pastas.

 

Vamos começar?

 

O que são?

 

Registos de pessoas que foram por nós consideradas possíveis agentes, e depois rejeitadas por qualquer motivo.

 

Paul tirou o casaco e arregaçou as mangas.

 

Passaram a manhã a ver juntos as pastas. Algumas das candidatas não tinham sequer sido entrevistadas; outras haviam sido rejeitadas depois de terem sido vistas; e muitas tinham chumbado numa parte do curso de treino do EOE por baralharem os códigos, não terem jeito para armas, ou terem ficado apavoradas quando lhes pediram que saltassem de um avião de pára-quedas. Tinham na maioria pouco mais de vinte anos e apenas uma coisa em comum; falavam uma língua estrangeira com a fluência de um nativo.

 

Havia muitas pastas, mas poucas candidatas indicadas. Quando Paul e Percy eliminaram todos os homens, e todas as mulheres cuja língua estrangeira não fosse o francês, ficaram apenas com três nomes.

 

Paul sentiu-se desencorajado. Ainda mal tinham começado e já deparavam com um obstáculo difícil.

 

Quatro é o número mínimo de que precisamos, mesmo partindo do princípio de que Flick recruta a mulher que foi visitar esta manhã.

 

A Diana Colefield.

 

E nenhuma destas é especialista em explosivos ou engenheira electrotécnica.

 

Percy estava mais optimista.

 

Não eram quando o EOE as entrevistou, mas podem ser agora. As mulheres aprenderam a fazer todo o tipo de coisas.

 

Bem, vamos descobrir.

 

Levaram algum tempo a localizar as três mulheres. Para azar, uma delas já tinha morrido. As outras duas viviam em Londres. Infelizmente uma estava na prisão de Holloway, cinco quilómetros a norte de Baker Street, a aguardar julgamento por homicídio. E Maude Valentine, cuja pasta dizia apenas «psicologicamente inadequada», era motorista nas FANY.

 

Estamos reduzidos a duas! exclamou Paul desanimado.

 

Não são os números mas sim a qualidade que me preocupa retorquiu Percy.

 

Já sabíamos que iríamos analisar rejeições.

 

Mas não podemos arriscar a vida de Flick com pessoas destas! exclamou Percy irritado.

 

Percy desejava desesperadamente proteger Flick, reparou Paul. Estivera disposto a entregar o controlo da operação, mas não era capaz de abandonar o seu papel de anjo da guarda de Flick.

 

A conversa foi interrompida por um telefonema. Era Simon Fortescue, o homem do fato às riscas do MI6 que culpara o EOE pelo fracasso de Sainte-Cécile.

 

Em que posso ajudá-lo? perguntou Paul com uma certa reserva. Fortescue não era de confiança.

 

Acho que quem pode ajudá-lo sou eu respondeu Fortescue. Sei que vai avançar com o plano do major Clairet.


Quem lhe disse? perguntou Paul desconfiado. A operação devia ser segredo.

 

Não vale a pena irmos por aí. Claro que lhe desejo o maior sucesso, embora tenha sido contra a operação, e gostaria de ajudar.

 

Paul ficou irritado com o facto de a operação ser assunto de conversa, mas não valia a pena chatear-se com isso.

 

Conhece alguma engenheira electrotécnica que fale francês?

 

Nem por isso. Mas há uma pessoa com quem vocês deviam falar. Chama-se Lady Denise Bouverie. É uma rapariga muitíssimo simpática, o pai era o marquês de Inverlocky.

 

Paul não ficou impressionado com o pedigree da rapariga.

 

Onde é que ela aprendeu francês?

 

Foi educada pela madrasta francesa, a segunda esposa de lorde Inverlocky. Sei que ela gostava muito de ajudar.

 

Paul desconfiava de Fortescue, mas estava desesperado por arranjar recrutas adequados.

 

Onde posso encontrá-la?

 

Na base da RAF em Hendon. A palavra «Hendon» nada significava para Paul, mas Fortescue explicou: É um campo de aviação nos subúrbios a norte de Londres.

 

Obrigado.

 

Depois diga-me que tal ela se saiu. Fortescue desligou. Paul contou a Percy o que o outro dissera.

 

O Fortescue quer colocar uma espia no nosso campo comentou Percy.

 

Não podemos dar-nos ao luxo de a rejeitar por causa disso.

 

Pois não.

 

Foram primeiro procurar Maude Valentine. Percy combinou um encontro no Hotel Fenchurch, perto da sede do EOE. Nunca se levavam pessoas desconhecidas ao número 64, explicou.

 

Se a rejeitarmos, ela pode adivinhar que pensámos nela para uma missão secreta, mas não saberá o nome da organização que a entrevistou, nem onde são os seus escritórios, por isso, mesmo que dê com a língua nos dentes não nos fará muita mossa.

 

Muito bem.

 

Qual é o nome de solteira da sua mãe?

 

Paul foi surpreendido pela pergunta e teve de pensar um pouco.

 

Thomas. Chamava-se Edith Thomas.

 

Então você será o major Thomas e eu o coronel Cox. Não vale a pena darmos os nossos nomes verdadeiros.

 

Percy não era tão simplório como Paul pensara. Encontrou-se com Maude na recepção do hotel. Ela despertou-lhe imediatamente interesse. Era uma rapariga bonita com modos coquetes. A camisa da farda ficava-lhe bastante justa no peito e usava o bivaque num ângulo elegante. Paul falou-lhe em francês.

 

O meu colega está à nossa espera lá em cima.

 

Ela olhou-o com ar sobranceiro e respondeu na mesma língua.

 

Não costumo ir para quartos de hotel com estranhos disse com atrevimento. Mas no seu caso, major, vou abrir uma excepção.

 

Ele corou.

 

É uma sala, com uma mesa e cadeiras, não um quarto.

 

Oh, bem, assim não faz mal retorquiu ela a gozá-lo. Paul decidiu mudar de assunto. Reparou que ela tinha sotaque do Sul da França.

 

De onde é?

 

Nasci em Marselha.

 

E o que faz nas FANY?

 

Sou motorista do Monty.

 

Ai sim? Paul não devia dar informações a seu respeito, mas não foi capaz de evitar dizer: Trabalhei para o Monty durante algum tempo e não me recordo de a ver.

 

Oh, não é sempre o Monty. Sou motorista de vários generais.

 

Ah. Bom, venha por aqui, por favor.

 

Levou-a para a sala e serviu-lhe uma chávena de chá. Maude estava a gostar das atenções, percebeu Paul. Enquanto Percy fazia perguntas, ele estudou a rapariga. Era pequena, embora não tão pequena como Flick, e engraçada: tinha uma boca em forma de botão de rosa acentuada com batom vermelho, e um sinal que até podia ser falso numa das faces. O cabelo escuro era ondulado.

 

A minha família veio para Londres quando eu tinha dez anos disse ela. O meu pai é chef.

 

E onde é que ele trabalha?

 

É o pasteleiro-chefe no Hotel Claridge.

 

Impressionante.

 

O dossiê de Maude encontrava-se em cima da mesa e, discretamente, Percy aproximou-o alguns centímetros de Paul. Este apercebeu-se e o seu olhar caiu sobre um comentário escrito aquando da primeira entrevista de Maude. «Pai Armand Valentin, 39, ajudante de cozinha no Claridge», leu ele.

 

Depois de terem terminado, pediram à rapariga que aguardasse lá fora.

 

Ela vive num mundo de fantasia disse Percy assim que ela saiu. Promoveu o pai a chef, e mudou o nome para Valentine.


Paul assentiu.

 

Na recepção disse-me que era motorista do Monty... e eu sei que isso é mentira.

 

Foi sem dúvida por causa disso que a rejeitaram antes. Paul achou que Percy se preparava para rejeitar Maude.

 

Mas agora não podemos dar-nos ao luxo de sermos tão picuinhas.

 

Percy olhou para ele surpreendido.

 

Ela seria uma ameaça para a operação!

 

Não temos alternativa.

 

Isto é uma loucura!

 

Percy estava meio apaixonado por Flick, pensou Paul, mas, sendo mais velho e casado, expressava o seu amor de forma paternal e protectora. Paul ficou sensibilizado com isso, mas apercebeu-se de que teria de combater a cautela de Percy se quisesse levar aquela tarefa por diante.

 

Ouça, não devemos eliminar a Maude. A Flick pode decidir quando a conhecer.

 

Calculo que tenha razão admitiu Percy com relutância. E a capacidade de inventar histórias pode ser útil num interrogatório.

 

Muito bem. Vamos convidá-la a subir a bordo. Paul voltou a chamá-la. Gostaria que fizesse parte da equipa que estou a reunir disse. O que acha de participar numa coisa perigosa?

 

E iríamos a Paris? perguntou Maude ansiosa. Era uma reacção estranha. Paul hesitou.

 

Porque pergunta?

 

Adorava ir a Paris. Nunca lá fui. Dizem que é a cidade mais bonita do mundo.

 

Independentemente do seu destino, não terá tempo para ver as vistas respondeu Percy sem ocultar a sua irritação.

 

Maude pareceu não reparar.

 

Que pena disse. Mesmo assim, gostava de ir.

 

Qual é a sua opinião em relação ao perigo? insistiu Paul.

 

Não há problema respondeu Maude com ligeireza. Não sou de me assustar.

 

«Mas devias ser», pensou Paul, achando melhor não dizer mais nada.

 

Rumaram para norte de Baker Street e passaram por um bairro da classe operária que fora bastante afectado pelos bombardeamentos.


Em cada rua pelo menos uma das casas tinha apenas paredes enegrecidas ou não passava de um monte de entulho.

 

Paul deveria encontrar-se com Flick à porta da prisão e entrevistariam Ruby Romain juntos. Percy seguiria para Hendon a fim de entrevistar Lady Denise Bouverie.

 

Percy, ao volante, dirigia com confiança pelas ruas escuras.

 

Conhece bem Londres comentou Paul.

 

Nasci neste bairro respondeu Percy.

 

Paul ficou intrigado. Sabia que era pouco comum um rapaz de uma família pobre ascender ao cargo de coronel do Exército Britânico.

 

O que fazia o seu pai?

 

Vendia carvão nas ruas, com uma carroça puxada por um cavalo.

 

O negócio era dele?

 

Não, trabalhava para o negociante de carvão.

 

Frequentou a escola aqui?

 

Percy sorriu. Sabia que estava a ser investigado, mas parecia não se importar.

 

O vigário da zona ajudou-me a conseguir uma bolsa para uma boa escola. Foi lá que perdi o meu sotaque londrino.

 

Intencionalmente?

 

Não foi por querer. Vou dizer-lhe uma coisa. Antes da guerra, quando eu andava metido na política, as pessoas às vezes diziam-me: «Como é que podes ser socialista com um sotaque desses?» Eu expliquei que era chicoteado na escola por não dizer os agás expirados. Isso calou um ou dois idiotas presunçosos.

 

Percy parou o carro numa rua ladeada de árvores. Paul olhou pela janela e viu um castelo, com ameias, torreões e uma torre alta.

 

Isto é uma prisão?

 

Arquitectura vitoriana explicou Percy.

 

Flick aguardava-o à entrada. Envergava o seu uniforme das FANIS: uma túnica com quatro bolsos, uma saia-calça e um chapelinho com a aba virada para cima. O cinto de cabedal bastante apertado em torno da cintura estreita acentuava o seu tamanho minúsculo, e os seus caracóis louros apareciam sob o chapéu. Paul ficou sem fôlego.

 

Ela é tão bonita comentou ele.

 

É casada observou Percy com rispidez. «Estou a ser avisado», pensou Paul divertido.

 

Com quem?

 

Acho que precisa de saber isto. O Michel faz parte da Resistência francesa. É o líder do circuito Bollinger.


Ah. Obrigado. Paul saiu do carro e Percy arrancou. Paul perguntou de si para si se Flick ficaria zangada por ele e Percy terem arranjado tão poucas candidatas a partir dos dossiês. Só estivera com ela duas vezes, e das duas vezes ela gritara-lhe. No entanto, pareceu animada quando ele lhe falou de Maude.

 

Assim já temos três membros na equipa, contando comigo. Isso significa que estamos a meio do caminho, e são apenas duas da tarde.

 

Paul assentiu. Era uma maneira de encarar as coisas. Estava preocupado, mas não ganhava nada em dizê-lo.

 

A entrada para Holloway era uma guarita medieval com janelas em forma de fenda.

 

Porque é que eles não levaram a coisa mais longe e construíram uma grade e uma ponte levadiça? perguntou Paul. Atravessaram a guarita e entraram num átrio, onde algumas mulheres com vestidos escuros plantavam legumes. Todos os terrenos baldios de Londres tinham legumes plantados.

 

A prisão erguia-se diante deles. A entrada encontrava-se guardada por monstros de pedra, enormes grifos alados com chaves e grilhões nas garras. A casa junto ao portão encontrava-se ladeada por edifícios de quatro andares, cada andar representado por uma longa fila de janelas estreitas e pontiagudas.

 

Que lugar! exclamou Paul.

 

Foi aqui que as sufragistas fizeram greve de fome explicou Flick. A mulher do Percy foi alimentada à força aqui.

 

Meu Deus.

 

Entraram. O ar cheirava a lixívia forte, como se as autoridades esperassem que o desinfectante pudesse matar as bactérias do crime. Paul e Flick foram conduzidos ao gabinete de Miss Lindleigh, a directora adjunta com corpo de barril e um rosto achatado de expressão dura.

 

Não sei por que motivo desejam visitar a Romain disse ela. Depois acrescentou com um certo ressentimento: E parece que não me vão dizer.

 

No rosto de Flick surgiu uma expressão desdenhosa e Paul apercebeu-se de que ela estava prestes a dizer algo mordaz, por isso apressou-se a intervir:

 

Peço desculpa pelo sigilo disse com o seu sorriso mais encantador. Estamos apenas a cumprir ordens.

 

Calculo que todos tenhamos de as cumprir retorquiu Miss Lindleigh, ligeiramente mais calma. Seja como for, tenho de prevenir-vos que a Romain é uma reclusa violenta.


Sei que é uma assassina.

 

Sim. Devia ser enforcada, mas os tribunais hoje em dia são demasiado brandos.

 

Pois são anuiu Paul, embora na verdade não o achasse.

 

Ela veio cá parar por embriaguez, depois matou outra reclusa num confronto no pátio, por isso agora aguarda julgamento por homicídio.

 

Uma cliente difícil comentou Flick com um certo interesse.

 

Sim, major. A princípio ela pode parecer-vos razoável, mas não se deixem enganar. Ela irrita-se facilmente e perde a paciência num abrir e fechar de olhos.

 

E é mortífera quando a perde disse Paul.

 

Estou a ver que já percebeu.

 

Dispomos de pouco tempo interveio Flick impaciente. Gostaria de vê-la agora.

 

Se não se importar, Miss Lindleigh acrescentou Paul rapidamente.

 

Muito bem. A directora adjunta conduziu-os até ao exterior do gabinete. O chão duro e as paredes nuas faziam o local ecoar como uma catedral, e havia um constante ruído de fundo composto por gritos, portas a bater e botas a andar em passadiços metálicos. Seguiram por corredores estreitos e escadas íngremes até uma sala.

 

Ruby Romain já lá se encontrava. Tinha pele acastanhada, cabelo escuro liso e olhos negros penetrantes. No entanto, não possuía a tradicional beleza cigana: tinha o nariz curvo e o queixo pontiagudo, o que lhe conferia o ar de um gnomo.

 

Miss Lindleigh deixou-os com uma guarda na sala ao lado a observá-los através de uma porta espelhada. Flick, Paul e a reclusa sentaram-se em torno de uma mesa barata com um cinzeiro sujo. Paul trouxera um maço de Lucky Strike. Pô-lo em cima da mesa.

 

Sirva-se disse em francês.

 

Ruby tirou dois, pôs um na boca e outro atrás da orelha. Paul fez algumas perguntas de rotina para quebrar o gelo. Ela respondeu de forma clara e educada, mas com um forte sotaque.

 

Os meus pais são nómadas disse ela. Quando eu era miúda percorremos a França com um parque de diversões. O meu pai tinha uma barraca de tiro e a minha mãe vendia crepes com molho de chocolate.

 

Como é que veio para Inglaterra?

 

Aos catorze anos apaixonei-me por um marinheiro inglês que conheci em Calais. Chamava-se Freddy. Casámos... menti a respeito da minha idade, claro... e viemos para Londres. Ele morreu há dois anos, o barco dele foi afundado por um submarino no Atlântico. Estremeceu. Um túmulo gelado. Pobre Freddy.

 

Flick não estava interessada na história da família dela.

 

Conte-nos por que motivo se encontra aqui pediu.

 

Arranjei uma braseira pequena e comecei a vender crepes na rua. Mas a Polícia estava sempre a incomodar-me. Uma noite, depois de ter bebido uns cálices de brande... uma das minhas fraquezas, devo admitir... envolvi-me num confronto. Passou a falar em inglês com um forte sotaque cockney. O chui mandou-me aguentar os cavalos e eu insultei-o. Ele empurrou-me e eu atirei-o ao chão.

 

Paul observou-a ligeiramente divertido. Ela era de altura mediana, e magra, mas tinha mãos grandes e pernas musculadas. Imaginava-a perfeitamente a derrubar um polícia londrino.

 

O que aconteceu a seguir? perguntou Flick.

 

Dois colegas dele apareceram na esquina e eu levei algum tempo a ir-me embora, por causa do brande, por isso eles espancaram-me e levaram-me para a pildra. Vendo a expressão perplexa de Paul, acrescentou: Para o calabouço. Bom, o primeiro chui teve vergonha de me acusar de agressão, não queria admitir que tinha sido derrubado por uma rapariga, por isso fiquei detida quinze dias por embriaguez e conduta desordeira.

 

E depois meteu-se noutra briga. Ela lançou a Flick um olhar curioso.

 

Não sei se consigo explicar a alguém como a senhora o que é isto aqui. Metade das mulheres são loucas e todas têm armas. Pode afiar-se o cabo de uma colher para fazer uma faca, ou aguçar um arame para servir de estilete, ou torcer uns fios para fazer um garrote. E as guardas nunca interferem numa briga entre reclusas. Gostam de nos ver a dar-mos cabo umas das outras. É por isso que tantas reclusas têm cicatrizes.

 

Paul ficou chocado. Nunca contactara com presos. A imagem pintada por Ruby era horrível. Talvez estivesse a exagerar, mas parecia sincera. Parecia não se importar se acreditavam nela ou não, mas apresentou os factos com a forma seca e calma de alguém que não está muito interessado, mas não tem nada melhor para fazer.

 

O que aconteceu à mulher que você matou? perguntou Flick.

 

Roubou-me uma coisa.

 

O quê?


Uma barra de sabão.

 

«Meu Deus», pensou Paul. «Matou por um pedaço de sabão.»

 

O que é que você fez? perguntou Flick.

 

Recuperei-o.

 

E depois?

 

Ela foi atrás de mim. Tinha transformado a perna de uma cadeira num bastão, com um pedaço de chumbo dos canos na ponta. Bateu-me na cabeça com ele. Pensei que ela ia matar-me. Mas eu tinha uma faca. Tinha encontrado um pedaço comprido e aguçado de vidro, parecido com o estilhaço de uma vidraça, e envolvi a ponta mais larga com um bocado do pneu gasto de uma bicicleta para poder agarrar nele. Espetei-lho na garganta. Ela não teve oportunidade de me agredir uma segunda vez.

 

Flick reprimiu um estremecimento.

 

Parece-me autodefesa comentou.

 

Não. É preciso provar que não conseguimos fugir. E eu tinha premeditado o homicídio fazendo uma faca a partir de um vidro.

 

Paul levantou-se.

 

Espere aqui um momento com a guarda, por favor disse ele. Vamos só até ali fora.

 

Ruby sorriu-lhe, e pela primeira vez pareceu atraente.

 

O senhor é tão educado comentou ela.

 

Que história horrível! exclamou Paul já no corredor.

 

Lembre-se de que aqui dentro toda a gente diz que está inocente retorquiu Flick.

 

Mesmo assim, acho que ela é mais vítima do que outra coisa.

 

Duvido. Penso que ela é uma assassina.

 

Então vamos rejeitá-la.

 

Pelo contrário. Ela é precisamente aquilo que eu quero. Regressaram à sala.

 

Se pudesse sair daqui perguntou Flick estaria disposta a contribuir para o fim da guerra com um trabalho perigoso?

 

Ela respondeu com outra pergunta.

 

Iríamos para França? Flick arqueou as sobrancelhas.

 

Porque pergunta isso?

 

Falaram comigo em francês no princípio. Calculo que tenham querido verificar se eu falava a língua.

 

Bem, não posso falar-lhe muito do trabalho.

 

Aposto que envolve sabotagem atrás das linhas do inimigo. Paul ficou perplexo: Ruby era de raciocínio bastante rápido. Vendo a surpresa dele, Ruby prosseguiu:


Olhe, a princípio pensei que queriam que eu vos traduzisse qualquer coisa, mas não há nada de perigoso nisso. Por conseguinte, devemos ir para França. E o que faria o exército britânico senão destruir pontes e caminhos-de-ferro?

 

Paul não disse nada, mas ficou admirado com a capacidade de dedução dela.

 

O que não percebo é por que motivo é uma equipa só de mulheres disse Ruby de sobrolho franzido.

 

Flick arregalou os olhos.

 

Porque pensa isso?

 

Se pudessem usar homens, porque é que viriam falar comigo? Devem estar desesperados. Não deve ser muito fácil tirar uma assassina da prisão, mesmo que para esforço de guerra vital. Então o que tenho eu de especial? Sou rija, mas deve haver centenas de homens rijos que falem francês e que estejam ansiosos por fazer coisas perigosas. A única razão por que me escolheram em vez de a eles é eu ser mulher. Talvez as mulheres corram menos riscos de serem interrogadas pela Gestapo... é isso?

 

Não posso dizer respondeu Flick.

 

Bem, se me quiserem, eu faço o trabalho. Posso ficar com outro desses cigarros?

 

Com certeza respondeu Paul.

 

Espero que perceba que este trabalho é perigoso disse Flick.

 

Sim respondeu Ruby acendendo um cigarro. Mas não tão perigoso como viver nesta maldita prisão.

 

Regressaram ao gabinete da directora adjunta depois de terem deixado Ruby.

 

Preciso da sua ajuda, Miss Lindleigh disse Paul, lisonjeando-a novamente. Diga-me o que seria necessário para poder libertar a Ruby Romain.

 

Libertá-la? Mas ela é uma assassina! Por que motivo seria ela libertada.

 

Lamento, mas não posso dizer-lhe. No entanto garanto-lhe que se soubesse para onde ela vai não diria que se safou de boa... antes pelo contrário.

 

Estou a ver disse ela ainda pouco convencida.

 

Tenho de tirá-la daqui esta noite prosseguiu Paul. Mas não quero colocar a senhora numa posição difícil. É por isso que preciso de saber de que tipo de autorização a senhora precisa.


O que ele queria mesmo era certificar-se de que ela não teria desculpas para levantar obstáculos.

 

Não posso libertá-la sob quaisquer circunstâncias disse Miss Lindleigh. Ela foi enviada para aqui por um tribunal, pelo que só o tribunal poderá libertá-la.

 

Paul continuou, pacientemente:

 

E acha que isso exigiria o quê?

 

Ela teria de ser presente a um juiz sob escolta policial. O delegado do Ministério Público, ou o seu representante, teria de dizer ao juiz que todas as queixas foram retiradas. Depois o juiz teria de dizer que ela era livre de se ir embora.

 

Paul franziu o sobrolho, adivinhando mais empecilhos: Ela teria de assinar os papéis para se juntar ao exército antes de ser presente ao juiz, para estar sob disciplina militar assim que o tribunal a libertasse.... senão poderia ir-se embora.

 

Miss Lindleigh continuava incrédula:

 

Porque haveriam as queixas de ser retiradas?

 

Esse tal delegado é funcionário do Governo?

 

Sim.

 

Então não haverá problema. Paul levantou-se. Voltarei aqui ao fim da tarde, com um juiz, alguém do gabinete do delegado e um motorista do Exército para levar a Ruby ao... seu destino seguinte. Prevê mais algum obstáculo?

 

Miss Lindleigh abanou a cabeça.

 

Eu cumpro ordens, major, tal como o senhor.

 

Óptimo.

 

Saíram do gabinete. Lá fora, Paul parou e olhou para trás.

 

Nunca tinha estado antes numa prisão disse ele. Não sei o que esperava, mas não era algo retirado de um conto de fadas.

 

Estava a fazer um comentário inofensivo acerca do edifício, mas Flick não ficou muito satisfeita.

 

Foram ali enforcadas várias mulheres disse ela. Isso não é um conto de fadas.

 

Ele perguntou de si para si por que motivo estaria ela mal-humorada. Depois percebeu.

 

Diz isso porque pode ir parar a uma prisão francesa. Ela pareceu abalada.

 

Acho que tem razão disse. Não tinha percebido por que motivo detestei tanto o sítio, mas deve ser por isso.

 

Ela também podia ser enforcada, constatou ele, mas preferiu ficar calado.

 

Continuaram a andar rumo à estação de metro mais próxima. Flick ia pensativa.


Você é bastante perspicaz disse. Percebeu logo como é que haveríamos de manter Miss Lindleigh do nosso lado. Eu tê-la-ia transformado numa inimiga.

 

Não valia a pena.

 

Precisamente. E depois transformou a tigreza Ruby numa gatinha.

 

Não me agradava nada que uma mulher daquelas antipatizasse comigo.

 

Flick soltou uma gargalhada.

 

Depois disse-me uma coisa que eu ainda não tinha percebido a meu respeito.

 

Paul ficou satisfeito por tê-la impressionado, mas já estava a pensar no problema seguinte.

 

À meia-noite devemos ter metade da equipa no centro de treino de Hampshire.

 

Chamamos-lhe escola de aperfeiçoamento disse Flick. Sim: a Diana Colefield, a Maude Valentine e a Ruby Romain.

 

Paul assentiu com ar carrancudo.

 

Uma aristocrata indisciplinada, uma miúda bonita incapaz de distinguir a fantasia da realidade e uma cigana assassina com mau feitio. Quando pensou na possibilidade de Flick ser enforcada pela Gestapo, sentiu-se tão preocupado quanto Percy acerca do calibre das recrutas.

 

A cavalo dado não se olha o dente comentou Flick animada. A sua má disposição desaparecera.

 

Mas ainda nos falta uma especialista em explosivos e uma engenheira electrotécnica.

 

Flick olhou para o relógio.

 

Ainda só são quatro da tarde. E talvez a RAF tenha ensinado a Denise Bouverie a rebentar uma central telefónica.

 

Paul sorriu. O optimismo de Flick era irresistível. Chegaram à estação e apanharam o metro. Não podiam falar sobre a missão porque havia mais passageiros.

 

Esta manhã fiquei a saber um pouco mais sobre o Percy disse Paul. Passámos pelo bairro onde ele cresceu.

 

Ele adoptou os modos e até o sotaque da classe alta britânica, mas não se deixe enganar. Debaixo daquele velho casaco de tweed bate o coração de um verdadeiro rufia.

 

Ele disse-me que foi chicoteado na escola por falar com o sotaque da classe baixa.

 

Foi bolseiro. Os bolseiros costumam passar um mau bocado nas pretensiosas escolas britânicas. Eu sei isso porque também fui bolseira.


Teve de mudar o seu sotaque?

 

Não. Cresci na casa de um conde. Sempre falei assim.

 

Paul calculou que era por esse motivo que Flick e Percy se davam tão bem: pertenciam ambos à classe baixa que havia subido a escada social. Ao contrário dos Americanos, os Britânicos achavam que não havia nada de errado no preconceito social. No entanto, ficavam chocados quando os sulistas lhes diziam que os negros eram inferiores.

 

Acho que o Percy gosta muito de si.

 

Eu amo-o como a um pai.

 

O sentimento parecia genuíno, pensou Paul, mas ela estava também a esclarecer quaisquer dúvidas quanto à sua relação com Percy.

 

Flick combinara encontrar-se com Percy em Orchard Court. Quando chegaram, havia um carro estacionado em frente à casa. Paul reconheceu o motorista: pertencia ao séquito de Monty.

 

Meu major, está uma pessoa no carro à sua espera disse o homem.

 

A porta de trás abriu-se e de lá saiu a irmã mais nova de Paul, Caroline. Ele sorriu encantado.

 

Bem, raios me partam! exclamou. Ela aproximou-se e ele abraçou-a com força. O que estás a fazer em Londres?

 

Não posso dizer, mas tive umas horas de folga, por isso convenci o pessoal do Monty a emprestar-me um carro para poder vir ver-te. Queres pagar-me um copo?

 

Não tenho tempo respondeu ele. Nem sequer para ti. Mas podes levar-me de carro até Whitehall. Tenho de encontrar um homem com o cargo de promotor público.

 

Então levo-te lá e pomos a conversa em dia durante a viagem.

 

Claro. Vamos então!

 

Flick virou-se à porta do edifício e viu uma rapariga bonita com farda de tenente a sair do carro e a abraçar Paul. Reparou no sorriso encantado dele e na força do seu abraço. Devia ser a mulher dele, a namorada ou a noiva, provavelmente a fazer uma visita surpresa a Londres. Pertencia provavelmente às forças norte-americanas estacionadas na Grã-Bretanha que ajudavam a preparar a invasão. Paul entrou no carro.

 

Flick entrou em Orchard Court sentindo-se um pouco triste. Paul tinha uma rapariga, estavam loucos um pelo outro, e tinham podido encontrar-se inesperadamente. Flick desejou que Michel aparecesse assim, saído do nada. Mas o marido estava ferido, deitado num sofá em Reims, a ser tratado por uma desavergonhada de dezanove anos.

 

Percy já regressara de Hendon. Naquele momento estava a fazer chá.

 

Que tal a rapariga da RAF? perguntou ela.

 

Lady Denise Bouverie... já vai a caminho da escola de aperfeiçoamento respondeu ele.

 

Óptimo! Assim já temos quatro.

 

Mas estou preocupado. Ela é uma gabarolas. Vangloriou-se do trabalho que está a fazer na Força Aérea, contou-me vários pormenores que deviam ter ficado em segredo. Vais ter de ver o que pensas dela durante o treino.

 

Presumo que ela não perceba nada de centrais telefónicas.

 

Nada. Nem de explosivos. Chá?

 

Por favor.

 

Ele estendeu-lhe uma chávena e sentou-se atrás da velha secretária barata.


Onde está o Paul?

 

Foi à procura do promotor público. Está a contar tirar a Ruby Romain da prisão esta noite.

 

Percy lançou-lhe um olhar intrigado.

 

Gostas dele?

 

Mais do que gostava inicialmente.

 

Eu também. Flick sorriu.

 

Ele encantou a velha que dirige a prisão.

 

Que tal era a Ruby Romain?

 

Assustadora. Cortou a garganta a outra reclusa durante uma discussão por causa de uma barra de sabão.

 

Credo! Percy abanou a cabeça com ar incrédulo. Que raio de equipa é que estamos a juntar, Flick?

 

Uma equipa perigosa. E é assim que deve ser. O problema não é esse. Para além disso, com o rumo que as coisas estão a tomar, podemos dar-nos ao luxo de eliminar uma ou duas durante o treino, as que se portarem pior. Preocupa-me é o facto de não termos as especialistas de que precisamos. Não vale a pena levar uma equipa de mulheres para França e depois destruir os cabos errados.

 

Percy esvaziou a chávena de chá e começou a encher o cachimbo.

 

Conheço uma especialista em explosivos que fala francês. Flick ficou surpreendida.

 

Mas isso é óptimo! Porque não disseste antes?

 

Quando pensei nela pela primeira vez, pu-la de lado. Achei que não servia. Mas ainda não tinha percebido que estávamos desesperados.

 

Porque achaste que ela não servia?

 

Tem cerca de quarenta anos. O EOE raramente usa pessoas tão velhas, especialmente numa missão em que é preciso saltar de pára-quedas. Acendeu um fósforo.

 

A idade não iria ser um obstáculo naquela fase do campeonato, pensou Flick. Animada, perguntou.

 

Achas que ela se oferece?

 

Creio que há uma forte possibilidade de isso acontecer, especialmente se eu lhe pedir.

 

Vocês são amigos? Ele assentiu.

 

Como é que ela se tornou especialista em explosivos? Percy pareceu atrapalhado. Ainda com o fósforo aceso na mão, começou a explicar.


Ela é uma arrombadora de cofres. Conheci-a há uns anos, quando andava a fazer trabalho político no East End. O fósforo apagou-se e ele acendeu outro.

 

Percy, não fazia ideia de que o teu passado era tão ordinário. Onde está ela agora?

 

Percy olhou para o relógio.

 

São seis horas. A esta hora deve estar ao balcão privado do Mucky Duck.

 

Um pub.

 

Sim.

 

Então acende esse maldito cachimbo e vamos até lá agora. No carro, Flick perguntou: Como é que sabes que ela é uma arrombadora de cofres?

 

Percy encolheu os ombros.

 

Toda a gente sabe.

 

Toda a gente? Até a Polícia?

 

Sim. No East End a Polícia e os vilões cresceram juntos, frequentam as mesmas escolas, moram nas mesmas ruas. Todos se conhecem.

 

Mas se sabem quem são os criminosos, porque é que não os metem na prisão? Calculo que não possam provar nada.

 

As coisas funcionam da seguinte maneira: quando precisam de condenar alguém, prendem uma pessoa que esteja na mesma actividade. Se for um assalto, prendem um assaltante. Não interessa se ele foi responsável por esse crime determinado, pois podem sempre fabricar um caso: subornam testemunhas, forjam confissões falsas e provas. Claro que às vezes cometem erros e prendem pessoas inocentes e muitas vezes, também, servem-se do sistema para se vingarem de afrontas pessoais, e assim por diante; mas nada nesta vida é perfeito, pois não?

 

Então estás a dizer que todos esses tribunais e júris são uma farsa?

 

Uma farsa bem-sucedida e com bastantes anos que providencia trabalho lucrativo a cidadãos de outra forma inúteis que desempenham o papel de detectives, solicitadores, advogados e juizes.

 

A tua amiga arrombadora de cofres já esteve presa?

 

Não. Pode escapar-se de uma acusação se se estiver disposto a pagar bons subornos e se se tiver o cuidado de fomentar amizade com os detectives. Suponhamos que vives na mesma rua que a mãezinha querida do inspector-detective Callahan. Vais visitá-la uma vez por semana, perguntas se ela precisa que lhe façam as compras, olhas para as fotografias dos netos... dificultas ao inspector-detective Callahan a tarefa de te meter na prisão.


Flick pensou na história que Ruby lhe contara havia umas horas. Para algumas pessoas, viver em Londres era quase o mesmo do que viver sob a alçada da Gestapo. As coisas podiam ser tão diferentes daquilo que ela imaginara?

 

Não consigo perceber se estás a falar a sério disse ela a Percy. Não sei em que acreditar.

 

Oh, eu estou a falar a sério! respondeu ele com um sorriso. Mas não conto que acredites em mim.

 

Encontravam-se em Stepney, não muito longe das docas. Os danos provocados pelas bombas eram os mais graves que Flick já vira. Ruas inteiras haviam ficado destruídas. Percy meteu para um beco sem saída estreito e estacionou à porta de um pub.

 

Mucky Duck era uma alcunha humorística: o pub chamava-se The White Swan. O balcão privado não era privado, mas era assim designado para o distinguir do balcão público, onde havia serradura no chão e a cerveja era um penny mais barata. Flick imaginou-se a explicar aquelas idiossincrasias a Paul. Ele haveria de achá-las divertidas.

 

Geraldine Knight encontrava-se sentada num banco na extremidade do balcão, com ar de quem era dona do local. Tinha cabelo louro e usava uma maquilhagem carregada, mas aplicada nos locais estratégicos. A sua figura roliça tinha a firmeza aparente que só podia ser causada por um espartilho. O cigarro que ardia no cinzeiro tinha uma extremidade manchada de batom vermelho. Era difícil imaginar alguém que tivesse tão pouco ar de agente secreto, pensou Flick desanimada.

 

Percy Thwaite, raios me partam! exclamou a mulher. Soava como uma pessoa da classe baixa que tivera aulas de dicção. O que andas a fazer por estas bandas, meu maldito comunista? Ficara visivelmente encantada por vê-lo.

 

Olá, Jelly, apresento-te a minha amiga Flick.

 

Muito prazer disse ela, apertando-lhe a mão.

 

Jelly? perguntou Flick.

 

Ninguém sabe onde fui buscar essa alcunha.

 

Oh, fez Flick. Jelly Knight, gelignitel. Jelly ignorou o comentário.

 

Vou beber um gim e companhia, Percy, já que és tu que pagas.

 

Vive nesta zona de Londres? perguntou Flick em francês.

 

1 Também chamada nitrogelatma explosivo do grupo das dinamites, preparado com nitratos de celulose, tnmtrato de gliccrol (nitroglicerina) e diversos nitratos e cargas (N do T]


Desde os dez anos respondeu ela, falando um francês com sotaque norte-americano. Nasci no Quebec.

 

Aquilo não era tão bom, pensou Flick. Os alemães poderiam não reparar no sotaque, mas de certeza que os franceses reparariam. Jelly teria de desempenhar o papel de uma cidadã francesa nascida no Canadá. Era uma história perfeitamente plausível, mas suficientemente fora do comum para despertar curiosidade. Raios.

 

Mas considera-se britânica.

 

Inglesa, não britânica retorquiu Jelly com indignação. Voltou a falar inglês. Pertenço à Igreja de Inglaterra, voto no Partido Conservador e não gosto de estrangeiros, ateus e republicanos. Com um olhar na direcção de Percy, acrescentou: Exceptuando algumas pessoas presentes, claro.

 

Devias viver no Yorkshire, numa quinta, num daqueles sítios onde não se vê um estrangeiro desde os Viquingues. Não sei como aguentas viver em Londres, rodeada de bolcheviques russos, de judeus alemães, de católicos irlandeses e de galeses dissidentes da Igreja Anglicana que constróem pequenas capelas por toda a parte, tal como as toupeiras desfiguram os relvados.

 

Londres já não é o que era, Perce.

 

Não o que era quando eras estrangeira?

 

Aquela discussão já devia ser antiga. Flick interrompeu-os impaciente.

 

Folgo muito em ouvir que é tão patriota, Jelly.

 

E porque havia uma coisa dessas de lhe interessar?

 

Porque há uma coisa que a senhora pode fazer pelo seu país.

 

Eu falei à Flick da tua... especialidade, Jelly interveio Percy.

 

Discrição, Percy, por favor. A discrição é a melhor das virtudes, como diz a Bíblia.

 

Presumo que saiba que houve recentemente alguns desenvolvimentos fascinantes na área disse Flick. Nos explosivos plásticos, quero eu dizer.

 

Tento manter-me a par retorquiu Jelly com um ar de modéstia. A sua expressão alterou-se e ela olhou para Flick com uma expressão astuta. Isto tem qualquer coisa a ver com a guerra, não tem?

 

Sim.

 

Conte comigo. Farei qualquer coisa pela Inglaterra.

 

Vai estar ausente durante uns dias.

 

Não há problema.

 

Pode não regressar.


O que raio quer isso dizer?

 

Vai ser muito perigoso respondeu Flick calmamente. Jelly pareceu abalada.

 

Òh! fez, engolindo em seco. Bem, isso não faz diferença acrescentou, pouco convencida.

 

Tem a certeza?

 

Jelly pareceu pensativa, como se estivesse a fazer cálculos.

 

Quer que eu faça explodir qualquer coisa. Flick assentiu em silêncio

 

Não é no continente, pois não?

 

Pode ser.

 

Jelly empalideceu sob a pintura.

 

Oh, diacho! Quer que eu vá a França, não quer? Flick não respondeu.

 

Atrás das linhas inimigas! Verdade seja dita, sou demasiado velha para esse género de coisas. Tenho... hesitou trinta e sete anos.

 

Tinha com certeza mais cinco anos, pensou Flick, mas disse:

 

Bem, somos quase da mesma idade, eu tenho quase trinta. Não somos demasiado velhas para um pouco de aventura, pois não?

 

Fale por si, querida.

 

Flick começou a ficar angustiada. Jelly não iria aceitar.

 

O plano fora mal concebido, pensou ela. Não iria ser possível encontrar mulheres que desempenhassem aquelas tarefas e falassem francês na perfeição. O plano estivera condenado desde o início. Virou as costas a Jelly. Sentiu vontade de chorar.

 

Jelly, estamos a pedir-te que faças uma coisa muito importante para o esforço de guerra disse Percy.

 

Vai enganar outra, Perce respondeu ela, mas em vez de ter um ar de gozo exibia uma expressão solene.

 

Ele abanou a cabeça.

 

Não estou a exagerar. Pode contribuir para a derrota ou para a vitória dos Aliados.

 

Ela olhou para ele sem dizer nada. O conflito interior transformou a sua expressão numa careta de indecisão.

 

E tu és a única pessoa no país capaz de o fazer acrescentou Percy.

 

Pára com isso! exclamou ela com cepticismo.

 

És uma arrombadora de cofres que fala francês... quantas mais julgas que há? Eu digo-te: nenhuma.

 

Estás a falar a sério, não estás?

 

Nunca falei tão a sério na minha vida.


Bolas, Perce. Jelly ficou em silêncio. Não falou durante bastante tempo. Flick susteve a respiração. Por fim, Jelly disse: Está bem, desgraçado, eu aceito.

 

Flick ficou tão satisfeita que lhe deu dois beijos.

 

Que Deus te abençoe, Jelly disse Percy.

 

Quando começamos? perguntou ela.

 

Agora respondeu Percy. Se acabares esse gim, levo-te a casa para fazeres a mala e depois levo-te ao centro de treino.

 

O quê, esta noite?

 

Eu disse-te que era importante. Ela engoliu o que restava da bebida.

 

Muito bem, estou pronta.

 

Fez deslizar o seu traseiro amplo do banco, e Flick perguntou de si para si: «Como é que ela se desenvencilhará com um pára-quedas?»

 

Saíram do pub.

 

Não te importas de regressar de metro? perguntou Percy a Flick.

 

Claro que não.

 

Então vemo-nos amanhã na escola de aperfeiçoamento.

 

Lá estarei respondeu Flick, e separaram-se.

 

Ela dirigiu-se para a estação de metro mais próxima, sentindo-se radiante. Estava uma noite de Verão amena, e o East End fervilhava: um grupo de rapazes de rosto sujo jogava críquete com um pau e uma bola de ténis; um homem cansado com roupas sujas do trabalho dirigia-se a casa para o lanche tardio; um soldado fardado, de licença com um maço de tabaco e alguns xelins no bolso, avançava pelo passeio com um ar lampeiro, como se todos os prazeres do mundo estivessem ao seu alcance; três raparigas bonitas com vestidos sem mangas e chapéus de palha riram-se para o soldado. O destino de todas aquelas pessoas seria decidido nos dias seguintes, pensou Flick.

 

No metro para Bayswater tornou a desanimar. Ainda lhe faltava encontrar o membro mais importante da equipa. Sem uma engenheira electrotécnica, Jelly poderia colocar os explosivos no local errado. Ainda provocariam alguns estragos mas, se os danos pudessem ser reparados num dia ou dois, o enorme esforço que haviam feito e o risco que haviam corrido teriam sido em vão.

 

Quando regressou ao quarto, Flick encontrou Mark, o irmão, à sua espera. Abraçou-o e beijou-o.

 

Que surpresa agradável!

 

Tenho a noite livre, por isso lembrei-me de te convidar para beber um copo disse ele.


Onde está o Steve?

 

A desempenhar o papel de lago para os soldados em Lyme Regis. Durante a maior parte do tempo trabalhamos para a ANSE. A ANSE era a Associação Nacional de Serviços de Entretenimento, que organizava espectáculos para as forças armadas. Onde é que vamos?

 

Flick sentia-se cansada, e a sua primeira reacção foi declinar o convite. Depois lembrou-se de que iria para França na sexta-feira e que podia ser a última vez que via o irmão.

 

Que tal ao West End? sugeriu.

 

Vamos a um cabaré.

 

Perfeito!

 

Saíram de casa e avançaram de braço dado pela rua.

 

Estive com a mãe esta manhã disse Flick.

 

Como é que ela está?

 

Bem, mas lamento informar-te que ainda não mudou de ideias em relação a ti e ao Steve.

 

Não estava à espera que ela mudasse. E onde é que a viste?

 

Fui a Somersholme. Levava muito tempo a explicar porquê.

 

Deve ser qualquer coisa secreta, calculo.

 

Ela sorriu, depois suspirou ao recordar-se do seu problema.

 

Calculo que não conheças uma engenheira electrotécnica que fale francês, pois não?

 

Ele parou.

 

Bem, mais ou menos respondeu.

 

Mademoiselle Lemas agonizava. Estava sentada muito direita na cadeira junto à mesa, o seu rosto imobilizado numa máscara de autodomínio. Não ousava mexer-se. Ainda tinha o chapéu na cabeça e segurava no regaço a mala de cabedal demasiado cheia. As suas mãozinhas gordas apertavam a pega da mala ritmicamente. Os seus dedos não exibiam anéis; aliás, tinha apenas uma jóia, uma pequena cruz de prata num fio.

 

À sua volta, os funcionários e as secretárias nas suas fardas bem engomadas continuavam a escrever à máquina e a arquivar documentos. Seguindo as instruções de Dieter, sorriam educadamente quando olhavam para ela e de vez em quando uma das raparigas perguntava-lhe se ela queria água ou café.

 

Dieter observava-a sentado, com o tenente Hesse a um lado e Stéphanie do outro. Hans Hesse era o típico alemão robusto e imperturbável. Assistia com estoicismo: já vira muitas formas de tortura. Stéphanie era mais excitável, mas tentava dominar-se. Parecia descontente, mas ficou calada: o seu único objectivo na vida era agradar a Dieter.

 

A dor de Mademoiselle Lemas não era apenas física, como Dieter sabia. Pior ainda do que a dor na bexiga era o pânico de se urinar numa sala cheia de pessoas educadas e bem vestidas que tratavam dos seus assuntos. Para uma senhora de idade respeitável, esse era o pior dos pesadelos. Ele admirou-a pela sua firmeza e perguntou de si para si se ela iria ceder e contar-lhe tudo, ou dominar-se.

 

Um jovem cabo bateu os calcanhares ao lado de Dieter.

 

Peço desculpa, meu major, mas pediram-me que o levasse ao gabinete do major Weber.

 

Dieter ainda pensou em mandar uma resposta a dizer: «Se deseja falar comigo, venha ver-me», mas decidiu que nada ganharia em antagonizar o outro antes de ser estritamente necessário. Weber poderia até mostrar-se mais cooperante se ele o deixasse marcar alguns pontos.

 

Muito bem. Virou-se para Hesse Hans, sabe o que tem de perguntar-lhe se ela ceder.

 

Sim, meu major.

 

No caso de isso não acontecer... Stéphanie, importas-te de ir ao Café dês Sports buscar uma garrafa de cerveja e um copo, por favor?

 

Com certeza. Ela parecia grata por ter um motivo para sair dali.

 

Dieter seguiu o cabo até ao gabinete de Willi Weber. Era um aposento enorme na parte da frente do castelo, com três janelas altas que davam para a praça. Dieter olhou para o Sol que se punha sobre a cidade. A luz oblíqua realçava os arcos e os arcobotantes da igreja medieval. Viu Stéphanie atravessar a praça com os seus sapatos de salto alto, caminhando como um cavalo de corrida, simultaneamente delicada e poderosa.

 

Na praça encontravam-se alguns soldados a erigir três pilares de madeira. Dieter franziu o sobrolho.

 

Um pelotão de fuzilamento?

 

Para os três terroristas que sobreviveram à escaramuça de domingo respondeu Weber. Sei que já terminou o interrogatório.

 

Dieter assentiu.

 

Eles disseram-me tudo o que sabiam.

 

Irão ser mortos publicamente como aviso a outras pessoas que pensem em juntar-se à Resistência.

 

Boa ideia disse Dieter. No entanto, embora o Gaston esteja bem, tanto o Bertrand como a Geneviève têm ferimentos graves... admirar-me-ia se conseguissem andar.

 

Então serão levados para o seu destino. Mas não o chamei aqui para falarmos deles. Os meus superiores em Paris perguntam-me que progressos foram feitos.

 

E o que lhes respondeu, Willi?

 

Que depois de quarenta e oito horas de investigações você prendeu uma velha que pode ou não ter albergado agentes aliados em casa, e que até agora nada nos disse.

 

E o que deseja dizer-lhes? Weber deu um murro teatral na mesa.

 

Que desfizemos a espinha dorsal da Resistência francesa!

 

Isso pode levar mais do que quarenta e oito horas.


Porque não tortura o raio da velha?

 

Estou a torturá-la.

 

Recusando-lhe uma ida à casa de banho! Que raio de tortura é essa?

 

Neste caso, a mais eficaz, creio eu.

 

Você julga que sabe mais que os outros. Sempre foi muito arrogante. Mas agora estamos numa nova Alemanha, major. Já não se espera que seja mais esperto que os outros só porque é filho de um professor.

 

Não seja ridículo.

 

Acha mesmo que teria sido o director mais jovem dos serviços secretos de Colónia se o seu pai não fosse um homem importante na universidade?

 

Tive de passar os exames tal como toda a gente.

 

Mas que estranho as outras pessoas, tão capazes como o senhor, nunca se saírem tão bem.

 

Seria aquela a fantasia com que Weber tentava enganar-se?

 

Por amor de Deus, Willi, não pode acreditar que toda a força policial de Colónia conspirou para me atribuir melhores notas do que a si só porque o meu pai era professor de música... isso é ridículo!

 

Essas coisas eram vulgares antigamente.

 

Dieter suspirou. Weber não deixava de ter uma certa razão. O despotismo tinha existido na Alemanha. Mas não fora por isso que Willi não obtivera a promoção. A verdade era que ele era estúpido. Nunca chegaria a nenhures excepto numa organização onde o fanatismo era mais importante do que as capacidades de raciocínio.

 

Dieter já estava farto daquela conversa estúpida.

 

Não se preocupe com Mademoiselle Lemas disse ele. Não tardará a falar. Dirigiu-se para a porta. E iremos também desfazer a espinha dorsal da Resistência francesa. Espere só mais um bocadinho.

 

Regressou ao gabinete principal. Mademoiselle Lemas emitia agora alguns gemidos. Weber impacientara Dieter, e ele decidiu acelerar o processo. Quando Stéphanie regressou, ele pousou o copo na mesa, abriu a garrafa e verteu lentamente a cerveja diante da prisioneira. Lágrimas de dor surgiram nos olhos dela e rolaram pelas suas faces roliças. Dieter bebeu um longo gole e pousou o copo.

 

A sua agonia está prestes a terminar, mademoiselle disse ele. O alívio está próximo. Daqui a uns momentos irá responder às minhas perguntas, e depois ficará bem.

 

Ela fechou os olhos.


Onde é que se encontra com os agentes britânicos? Fez uma pausa. Como é que se reconhecem? Ela não respondeu. Qual é a senha?

 

Aguardou um momento, depois acrescentou:

 

Tenha as respostas prontas, na sua mente, e certifique-se de que são claras para que quando chegar a altura possa dizer-mas rapidamente, sem hesitações ou explicações; depois poderá aliviar rapidamente a sua dor.

 

Tirou do bolso a chave das algemas.

 

Hans, segure-lhe os pulsos com firmeza. Baixou-se e abriu a algema que prendia o tornozelo à perna da mesa. Vem connosco, Stéphanie disse. Vamos à casa de banho das senhoras.

 

Saíram do gabinete com Stéphanie à frente, Dieter e Hans a segurarem a prisioneira, que avançava com dificuldade, dobrada e a morder o lábio. Avançaram até ao fundo do corredor e pararam junto a uma porta que tinha escrito «Damen». Mademoiselle Lemas gemeu quando a viu.

 

Abre a porta - ordenou Dieter a Stéphanie.

 

Ela obedeceu. Viram uma casa de banho com azulejos brancos, um lavatório, um toalheiro e vários cubículos.

 

Muito bem disse Dieter. A dor está prestes a terminar.

 

Por favor murmurou ela. Deixe-me ir.

 

Onde é que se encontra com os agentes britânicos? Mademoiselle Lemas começou a chorar.

 

Onde é que se encontra com eles? perguntou Dieter suavemente.

 

Na catedral soluçou ela. Na cripta. Por favor, deixe-me ir! Dieter suspirou satisfeito. Ela cedera.

 

Quando é que se encontra com eles?

 

Sempre às três da tarde. Vou lá todos os dias.

 

Como é que se reconhecem?

 

Levo sapatos de cores diferentes, um castanho e outro preto, agora já posso ir?

 

Só mais uma pergunta. Qual é a senha?

 

Reze por mim.

 

Ela tentou avançar, mas Dieter segurou-a com firmeza, e Hans fez o mesmo.

 

Reze por mim repetiu Dieter. Isso é o que a senhora diz ou o que o agente diz?

 

O agente. Oh, peço-lhe!


E a sua resposta?

 

Rezo pela paz, é essa a minha resposta.

 

Obrigado disse Dieter, libertando-a. Ela correu lá para dentro.

 

Dieter assentiu na direcção de Stéphanie, que a seguiu e fechou a porta. Ele foi incapaz de ocultar a sua satisfação.

 

Pronto, Hans, estamos a fazer progressos. Hans também estava satisfeito.

 

Na cripta da catedral, todos os dias às três da tarde, um sapato preto e outro castanho, «Reze por mim» e a resposta «Rezo pela paz». Muito bem!

 

Quando elas saírem, leve a prisioneira para uma cela e entregue-a à Gestapo. Eles fá-la-ão desaparecer algures num campo.

 

Hans assentiu.

 

Parece cruel, major. Por ela já ser idosa, quero eu dizer.

 

Pois parece... até pensarmos nos soldados alemães e nos civis franceses mortos pelos terroristas que ela albergou. Nessa altura parece um castigo pequeno.

 

Vistas as coisas por essa perspectiva, parece.

 

Veja como uma coisa leva à outra disse Dieter pensativo. O Gaston dá-nos uma casa, a casa dá-nos Mademoiselle Lemas, ela dá-nos a cripta, e a cripta irá dar-nos... quem sabe? Começou a pensar na melhor forma de aproveitar a informação.

 

O desafio era capturar agentes sem que Londres soubesse. Se a coisa fosse bem manipulada, os Aliados enviariam mais pessoas pelo mesmo caminho, perdendo bastantes recursos. Já fora feito na Holanda: mais de cinquenta sabotadores dispendiosamente treinados tinham aterrado de pára-quedas direitinhos nos braços dos Alemães.

 

Se tudo corresse bem, o agente seguinte enviado por Londres iria à cripta da catedral e encontraria Mademoiselle Lemas à espera. Ela levaria o agente para casa, e ele enviaria uma mensagem via rádio para Londres a dizer que estava bem. Depois, quando ele saísse de casa, Dieter poderia deitar a mão aos seus livros de códigos. Em seguida, poderia prender o agente e continuar a enviar mensagens para Londres em nome dele e a ler as respostas. Na prática, estaria a dirigir um circuito da Resistência que não passava de ficção. Era uma perspectiva excitante.

 

Willi Weber apareceu.

 

Então, major, a prisioneira já falou?

 

Sim.

 

Já não era sem tempo. E disse alguma coisa útil?

 

Pode informar os seus superiores que ela revelou o local do encontro e as senhas. Podemos apanhar os agentes à medida que eles forem chegando.

 

Weber pareceu interessado, apesar da sua hostilidade.

 

E onde é o encontro?

 

Dieter hesitou. Teria preferido não contar nada a Weber. Mas seria difícil recusar sem o ofender, e ele precisava da ajuda do outro. Tinha de lhe contar.

 

Na cripta da catedral, todas as tardes pelas três horas.

 

Irei informar Paris disse Weber afastando-se.

 

Dieter continuou a pensar no passo seguinte. A casa na Rue du Bois era secreta. Ninguém no circuito Bollinger conhecera Mademoiselle Lemas. Os agentes vindos de Londres não sabiam como ela era daí a necessidade de sinais de reconhecimento e de senhas. Se arranjasse alguém que pudesse passar por ela... mas quem?

 

Stéphanie saiu da casa de banho das senhoras com Mademoiselle Lemas.

 

Poderia ser ela.

 

Era muito mais nova que Mademoiselle Lemas e muito diferente, mas os agentes não sabiam isso. Era claramente francesa. Só teria de ocupar-se do agente durante um ou dois dias.

 

Dieter pegou no braço de Stéphanie.

 

O Hans irá ocupar-se agora da prisioneira. Anda, deixa-me oferecer-te um copo de champanhe.

 

Saiu com ela do castelo. Na praça, os soldados tinham feito o seu trabalho e os três postes projectavam sombras longas à luz da tarde. À porta da igreja havia algumas pessoas da terra a observar a cena em silêncio.

 

Dieter e Stéphanie entraram no café. Dieter pediu uma garrafa de champanhe.

 

Obrigado por me teres ajudado hoje disse. Estou muito grato.

 

Amo-te disse ela. E sei que também me amas, embora nunca o digas.

 

Mas o que achas daquilo que fizemos hoje? És francesa, e tens aquela avó de cuja raça não podemos falar, e tanto quanto sei não és fascista.

 

Ela abanou a cabeça com força.

 

Já deixei de acreditar na nacionalidade, na raça e na política respondeu ela apaixonadamente. Quando fui presa pela Gestapo nenhum francês me ajudou. Nenhum judeu me ajudou. Nem os socialistas, ou os liberais ou os comunistas. E tive tanto frio naquela prisão. A expressão dela alterou-se. Os seus lábios perderam o meio sorriso sensual que costumavam exibir, e o brilho sedutor desapareceu do seu olhar. Fitava outra cena noutra época. Cruzou os braços e estremeceu, embora a noite estivesse amena. Não apenas frio por fora, não apenas na pele. Senti frio no coração, nas entranhas e nos ossos. Achei que nunca mais voltaria a estar quente, que iria fria para o túmulo. Ficou em silêncio durante bastante tempo, o rosto apático e pálido, e Dieter sentiu nesse instante que a guerra era uma coisa terrível. Nunca me hei-de esquecer do lume no teu apartamento. Das brasas. Tinha-me esquecido do que era sentir aquele calor agradável. Fez-me sentir de novo humana. Saiu do transe. Salvaste-me. Deste-me comida e vinho. Compraste-me roupa. Esboçou o seu velho sorriso, aquele que dizia: «consegues, se tiveres coragem». E amaste-me diante daquele lume.

 

Ele pegou-lhe na mão.

 

Não foi difícil.

 

Manténs-me em segurança num mundo onde já nada é seguro. Por isso agora só acredito em ti.

 

Se estás mesmo a falar a sério...

 

Claro.

 

Podias fazer outra coisa por mim.

 

Tudo.

 

Quero que desempenhes o papel da Mademoiselle Lemas. Ela arqueou as sobrancelhas bem delineadas.

 

Que finjas ser ela. Vai à cripta da catedral todas as tardes às três, e leva calçado um sapato castanho e outro preto. Quando alguém se aproximar e disser «Reze por mim», responde «Rezo pela paz». Leva a pessoa para a casa da Rue du Bois. Depois liga-me.

 

Parece simples.

 

O champanhe chegou e ele encheu dois copos. Decidiu ser franco com ela.

 

Deve ser simples, mas há um ligeiro risco. Se o agente já viu a Mademoiselle Lemas antes, saberá que és uma impostora. Pode pôr-te em perigo. Estás disposta a correr esse risco?

 

É importante para ti?

 

É importante para a guerra.

 

Estou-me nas tintas para a guerra.

 

Também é importante para mim.

 

Então aceito.

 

Ele levantou o copo.

 

Obrigado.


Brindaram e beberam

 

Lá fora, na praça, ouviu-se uma rajada de tiros. Dieter olhou pela janela. Viu três corpos amarrados aos pilares de madeira, curvados, um pelotão de soldados a baixar as armas, e um grupo de cidadãos a observar, silencioso e imóvel.

 

A austeridade da guerra não se fizera sentir muito no Soho, o bairro da prostituição no coração do West End londrino. Os mesmos grupos de homens jovens cambaleavam pelas ruas, embriagados de cerveja, embora a maior parte envergasse fardas. As mesmas raparigas pintadas e com vestidos justos passeavam pelas ruas, em busca de potenciais clientes. Os néons à porta dos clubes e dos bares estavam desligados, por causa do blackout, mas todos os estabelecimentos se encontravam abertos.

 

Mark e Flick chegaram ao Clube Criss-Cross às dez da noite. O gerente, um homem novo com blazer preto e laço vermelho, cumprimentou Mark como se este se tratasse dum amigo. Flick sentia-se animada. Mark conhecia uma engenheira electrotécnica. Flick estava prestes a conhecê-la e estava optimista. Mark não dissera muito a respeito dela, a não ser que se chamava Greta, como a actriz. Quando Flick tentara fazer-lhe perguntas, ele limitara-se a responder:

 

Tens de ver por ti.

 

Enquanto Mark pagava a entrada e trocava algumas palavras de circunstância com o gerente, Flick reparou que ele parecia diferente. Tornara-se mais extrovertido, a sua voz adquirira uma cadência, e os seus gestos eram teatrais. Flick perguntou de si para si se o irmão assumiria outra personalidade depois do anoitecer.

 

Desceram um lanço de escadas até à cave. O local estava mal iluminado e cheio de fumo. Flick viu uma banda de cinco elementos num palco baixo, uma pequena pista de dança, meia dúzia de mesas e alguns compartimentos reservados em volta da sala, na zona mais escura. Interrogou-se se seria um clube só para homens, o tipo de local dirigido a tipos como Mark, que não eram «do tipo casadoiro». Embora os clientes fossem maioritariamente homens, havia algumas raparigas, algumas delas muito bem vestidas.

 

Olá, Markie cumprimentou um dos empregados, pousando a mão no ombro de Mark, mas lançando a Flick um olhar hostil.

 

Robbie, apresento-te a minha irmã disse Mark. O nome dela é Felicity, mas sempre a tratámos por Flick.

 

A atitude do empregado alterou-se, e ele esboçou um sorriso simpático na direcção de Flick.

 

Muito prazer em conhecê-la. Levou-os até uma mesa. Flick calculou que Robbie pensara que ela era namorada de Mark e ficara aborrecido por ela o ter persuadido a passar-se para o outro lado. Depois mudara de atitude quando soubera que ela era irmã de Mark.

 

Este sorriu a Robbie e perguntou:

 

Como está o Kit?

 

Oh, acho que está bem disse Robbie com um gesto de desdém.

 

Discutiram, não foi?

 

Mark estava a ser galante. Flick nunca vira aquele lado do irmão. Aliás, aquele é que devia ser o verdadeiro Mark. A outra personagem discreta que ele personificava durante o dia não devia passar de ficção.

 

Quando é que nós não discutimos? retorquiu Robbie.

 

Ele não sabe dar-te valor disse Mark com uma melancolia exagerada, tocando na mão de Robbie.

 

Tens razão, Deus te abençoe. Bebem alguma coisa? Flick pediu um uísque e Mark um martini.

 

Flick sabia pouca coisa sobre homens como aqueles. Fora apresentada ao amigo de Mark, Steve, e visitara o andar que partilhavam, mas nunca conhecera qualquer um dos seus amigos. Embora tivesse imensa curiosidade sobre o mundo deles, não parecia bem fazer perguntas.

 

Nem sequer sabia que nomes é que eles se davam. Todas as palavras que conhecia eram mais ou menos desagradáveis: paneleiro, bicha, maricas.

 

Mark, que nome dás tu aos homens que, sabes, preferem homens? perguntou.

 

Ele sorriu.

 

Musicais, querida respondeu ele, fazendo um gesto efeminado com a mão.

 

«Tenho de lembrar-me disso», pensou Flick. «Agora posso perguntar ao Mark: «Ele é musical?» Aprendera a primeira palavra do código secreto de ambos.


Uma loura alta com um vestido comprido vermelho subiu ao palco com uma chuva de aplausos.

 

Aquela é a Greta disse Mark. De dia é engenheira electrotécnica.

 

Greta começou a cantar Nobody Knows You When You ’ré Down and Out. Tinha uma voz poderosa, como as dos cantores de blues, mas Flick reparou logo que ela tinha um sotaque alemão.

 

Pensei que tinhas dito que ela era francesa gritou ao ouvido de Mark para se fazer ouvir acima da música.

 

Ela fala francês corrigiu ele, mas é alemã.

 

Flick ficou muito desiludida. Aquilo não servia. Greta devia ter o mesmo sotaque alemão quando falasse francês.

 

O público adorava Greta, aplaudindo cada canção de forma entusiástica, gritando e assobiando quando ela acompanhava a música com movimentos de dança. Mas Flick não era capaz de se descontrair e apreciar o espectáculo. Estava demasiado preocupada. Ainda não arranjara a engenheira electrotécnica e perdera metade da noite a ir ali em vão.

 

Mas o que iria fazer? Perguntou de si para si quanto tempo levaria a aprender os rudimentos da engenharia electrotécnica. Tinha jeito para as coisas técnicas. Construíra um rádio na escola. E precisava apenas de aprender o suficiente para destruir o equipamento de forma eficaz. Poderia tirar um curso de dois dias, talvez com algumas pessoas dos Correios?

 

O problema era que ninguém sabia ao certo que tipo de equipamento as sabotadoras iriam encontrar quando entrassem no castelo. Podia ser francês ou alemão ou uma mistura de ambos, possivelmente incluindo até maquinaria americana importada. Os Estados Unidos estavam muito à frente da França em tecnologia. Havia muitos tipos de equipamento, e o castelo tinha várias funções. Possuía uma central manual, uma central automática, servia de ligação entre várias centrais e era também uma estação de amplificação para a importante e nova linha telefónica principal para a Alemanha. Mas só uma engenheira experiente podia ter a certeza de saber reconhecer o que visse quando lá chegasse.

 

Havia engenheiras em França, claro, e ela poderia encontrar uma delas se tivesse tempo. Não era uma ideia prometedora, mas valia a pena considerá-la. O EOE poderia enviar uma mensagem a todos os circuitos da Resistência. Se houvesse uma mulher que se encaixasse no perfil pretendido, levaria um ou dois dias a chegar a Reims, o que seria óptimo. Mas o plano era falível. Haveria alguma engenheira electrotécnica na Resistência francesa? Senão, Flick perderia dois dias para saber que a missão estava condenada.


Não, precisava de uma coisa mais segura. Voltou a pensar em Greta. Não podia passar por francesa. A Gestapo poderia não reparar no sotaque dela, uma vez que os alemães falavam francês da mesma maneira, mas a Polícia francesa repararia. Teria ela de fingir ser francesa? Havia muitas alemãs em França: mulheres de oficiais, raparigas nas forças armadas, motoristas, dactilógrafas e operadoras de rádio. Flick começou de novo a ficar animada. Porque não? Greta poderia desempenhar o papel de secretária do Exército. Não, isso talvez causasse problemas. Um oficial poderia começar a dar-lhe ordens. Seria mais seguro fazê-la passar por civil. Podia ser a esposa jovem de um oficial, a viver com o marido em Paris não, em Vichy, que era mais longe. Teriam de inventar uma história para justificar o facto de Greta estar a viajar com um grupo de francesas. Talvez uma da equipa pudesse fingir ser a sua criada.

 

E quando entrassem no castelo? Flick tinha a certeza de que não havia alemãs a trabalhar como empregadas da limpeza em França. Como poderia Greta não levantar suspeitas? Mais uma vez, os alemães poderiam não reparar no seu sotaque, mas os franceses reparariam. Poderia evitar falar com franceses? Fingir que tinha uma laringite?

 

Podia safar-se durante alguns minutos, pensou Flick.

 

Não era exactamente infalível, mas era melhor do que qualquer outra opção.

 

Greta acabou o número com um blues divertido e sugestivo chamado Kitchen Man, cheio de subentendidos. O público adorou a frase: «Quando como donuts, só deixo o buraco.» Desceu do palco no meio de fortes aplausos. Mark levantou-se:

 

Podemos falar com ela no camarim disse.

 

Flick seguiu-o por uma porta ao lado do palco, passando por um corredor de cimento malcheiroso e chegando a uma área suja cheia de caixas de cartão com garrafas de cerveja e gim. Parecia a cave de um pub reles. Chegaram a uma porta com uma estrela cor-de-rosa colada com tachas. Mark bateu e abriu-a sem aguardar resposta.

 

O pequeno aposento tinha uma cómoda, um espelho rodeado de lâmpadas, um banco e um cartaz de Greta Garbo no filme A Mulher de Duas Caras. Uma cabeleira loura elegante repousava sobre uma cabeça de madeira. O vestido que Greta envergava em palco encontrava-se pendurado num cabide. Sentado no banco em frente ao espelho, reparou Flick espantada, encontrava-se um jovem com peito peludo.

 

Ela ficou boquiaberta.


Era Greta, não havia dúvida. Tinha o rosto muito maquilhado, com batom vermelho e pestanas postiças, sobrancelhas arranjadas e uma camada de pó-de-arroz a esconder a sombra da barba. O cabelo estava muito curto, sem dúvida para acomodar a peruca. Os seios falsos deviam estar dentro do vestido, mas Greta ainda tinha vestidas as cuecas, os collants e sapatos vermelhos de salto alto.

 

Flick virou-se para Mark:

 

Não me tinhas dito! acusou ela. Ele riu-se deliciado.

 

Flick, apresento-te o Gerhard disse. Ele adora que as pessoas não dêem por nada.

 

Flick reparou que Gerhard parecia satisfeito. Claro que devia estar contente por ela o ter confundido com uma mulher. Era um elogio à sua arte. Flick escusava de achar que o insultara.

 

Mas era um homem. E ela precisava de uma engenheira electrotécnica.

 

Flick estava muito desiludida. Greta teria sido a última peça do quebra-cabeças, a mulher que completaria a equipa. Agora a missão era de novo posta em causa.

 

Ficou zangada com Mark.

 

Isto é tão mauzinho da tua parte! exclamou. Pensei que irias resolver o meu problema, mas afinal quiseste pregar-me uma partida!

 

Não foi uma partida respondeu Mark indignado. Se precisas de uma mulher, leva a Greta.

 

Não é possível respondeu Flick. Era uma ideia ridícula. Ou não? Greta convencera-a. Provavelmente poderia convencer

 

a Gestapo. Se a prendessem e despissem ficariam a saber a verdade, mas se chegassem a esse ponto era porque as coisas já tinham corrido mal.

 

Pensou na hierarquia do EOE e em Simon Fortescue no MI6.

 

Os grandes chefes nunca concordariam.

 

Não lhes digas.

 

Não lhes digo!? Flick ficou a princípio chocada com a ideia, e depois intrigada. Se Greta ia enganar a Gestapo, poderia também enganar toda a gente no EOE.

 

Porque não? perguntou Mark.

 

Porque não? repetiu Flick.

 

Mark, queridinho, o que vem a ser isto? perguntou Gerhard. O seu sotaque era ainda mais forte quando ele falava.

 

Não sei respondeu Mark. A minha irmã está envolvida numa coisa muito secreta.


Eu explico interveio Flick. Mas primeiro fale-me de si: como é que veio parar a Londres?

 

Bem, querida, por onde é que começo? Gerhard acendeu um cigarro. Sou de Hamburgo. Há doze anos, quando eu era um rapaz de dezasseis e começava a aprender engenharia electrotécnica, Hamburgo era uma cidade maravilhosa, com bares e clubes cheios de marinheiros a aproveitarem ao máximo a licença para ir a terra. Diverti-me bastante. E quando fiz dezoito anos conheci o amor da minha vida. Chamava-se Manfred.

 

As lágrimas surgiram nos olhos de Gerhard, e Mark segurou-lhe na mão.

 

Gerhard fungou, um hábito muito pouco feminino, e prosseguiu.

 

Sempre adorei roupa de mulher, lingerie de renda e sapatos de salto, chapéus e malas. Adoro o som de uma saia rodada. Mas arranjava-me muito mal na altura. Nem sabia onde pôr o risco nos olhos. O Manfred ensinou-me tudo, embora nunca se vestisse de mulher. Uma expressão terna surgiu no seu rosto. Aliás, ele era bastante masculino. Trabalhava nas docas, como estivador. Mas adorava ver-me vestido de mulher e ensinou-me a fazê-lo bem.

 

Porque é que saiu de lá?

 

Eles levaram o Manfred. Os filhos da mãe dos nazis, querida. Vivemos juntos cinco anos, mas uma noite eles foram buscá-lo e não tornei a vê-lo. Deve estar morto, acho que a prisão o mataria, mas não sei ao certo. As lágrimas fizeram escorrer o rímel para o seu rosto cheio de pó-de-arroz. Ele ainda pode estar vivo num dos malditos campos, sabe?

 

A dor dele era contagiante, e Flick deu consigo a reprimir as lágrimas. O que levaria as pessoas a perseguir as outras?, perguntou de si para si. O que levava os nazis a atormentar excêntricos inofensivos como Gerhard?

 

Por isso vim para Londres disse Gerhard. O meu pai era inglês, um marinheiro de Liverpool que saiu do barco em Hamburgo, se apaixonou por uma rapariga alemã bonita e casou com ela. Morreu quando eu tinha dois anos, por isso nunca cheguei a conhecê-lo, mas deu-me o seu nome, que é O’Reilly, e tive sempre dupla nacionalidade. Mesmo assim gastei as minhas poupanças todas para obter um passaporte, em mil novecentos e trinta e nove. E parece que saí de lá a tempo. Felizmente, em todas as cidades há sempre trabalho para um engenheiro electrotécnico. Por isso aqui estou, a alegria de Londres, a diva desviada.

 

É uma história triste disse Flick. Lamento imenso.

 

Obrigado, querida. Mas hoje em dia o mundo está cheio de histórias tristes, não está? Porque se interessa pela minha?


Preciso de uma engenheira electrotécnica.

 

Para quê?

 

Não posso explicar. Como disse o Mark, é uma coisa secreta. Só posso dizer que é um trabalho muito perigoso. Você pode ser morto.

 

Que arrepiante! Mas deve calcular que não aguento muito coisas cruéis. Consideraram-me psicologicamente inapto para o serviço militar, e acertaram. Metade dos soldados haveria de querer espancar-me e a outra metade haveria de querer meter-se na cama comigo.

 

Já tenho todos os soldados duros de que preciso. O que quero de si são os seus conhecimentos.

 

Isso permitir-me-ia fazer mal aos cabrões dos nazis?

 

Com certeza. Se tivermos êxito, causaremos bastantes estragos ao regime do Hitler.

 

Então, querida, encontrou a sua rapariga. Flick sorriu.

 

«Meu Deus», pensou. «Consegui.»

 

O QUARTO DIA

 

Quarta-feira, 31 de Maio de 1944

 

A meio da noite, as estradas do Sul de Inglaterra estavam cheias de trânsito. Grandes comboios de camiões do Exército enchiam todas as estradas, rugindo ao atravessar as cidades escurecidas, rumo à costa. Os aldeões perplexos observavam-nos das janelas dos quartos, olhando incrédulos para o interminável fluxo de tráfego que não os deixava dormir.

 

Meu Deus murmurou Greta. Isto é que vai ser uma invasão.

 

Ela e Flick tinham saído de Londres pouco depois da meia-noite num carro emprestado, um grande Lincoln Continental branco que Flick adorava conduzir. Greta tinha vestida uma das suas indumentárias menos vistosas, um vestido preto simples acompanhado de uma cabeleira castanha. Só voltaria a ser Gerhard depois de a missão ter chegado ao fim.

 

Flick esperou que Greta fosse tão boa engenheira como Mark dissera. Trabalhava nos Correios, por isso devia saber do que falava. Mas Flick ainda não pudera testá-la. Enquanto avançavam lentamente atrás de um camião-cisterna, Flick explicou-lhe a missão, esperando ansiosamente que a conversa não pusesse a descoberto alguma falha nos conhecimentos de Greta.

 

O castelo alberga uma central automática nova instalada pelos alemães para gerir o tráfego telefónico e telegráfico entre Berlim e as forças de ocupação.

 

A princípio Greta parecia céptica em relação ao plano.

 

Mas, querida, mesmo que sejamos bem-sucedidas, o que impede os alemães de utilizar outra central?

 

O volume de tráfego. O sistema está sobrecarregado. O centro de comando do exército com o nome Zeppelin, às portas de Berlim, faz cento e vinte mil chamadas interurbanas e envia vinte mil telexes por dia. Serão ainda mais quando invadirmos a França. Mas a maior parte do sistema francês é constituído por centrais manuais. Agora imagine que a principal central automática está fora de serviço e todas aquelas chamadas têm de ser feitas da forma antiga, por telefonistas, demorando dez vezes mais. Noventa por cento delas nunca chegará ao destino.

 

Os militares podem proibir chamadas civis.

 

Isso fará pouca diferença. O tráfego civil já é bastante pequeno.

 

Muito bem. Greta ficou pensativa. Bem, podíamos destruir as estantes de equipamento.

 

O que fazem elas?

 

Fornecem os tons e as voltagens de toque e assim por diante às chamadas automáticas. E os registadores-tradutores transformam o indicativo marcado num código de destino.

 

Isso deixaria a central inoperacional?

 

Não. E os danos poderiam ser reparados. Precisamos de destruir a central manual, a central automática, os amplificadores de longa distância, a central de telex e os amplificadores de telex... que devem estar em salas diferentes.

 

Não se esqueça de que não podemos transportar uma grande quantidade de explosivos connosco... apenas o que seis mulheres conseguirem levar nas malas.

 

Isso é um problema.

 

Michel falara de tudo aquilo com Arnaud, um membro do circuito Bollinger que trabalhava para a PTT francesa Postes, Télégraphes, Téléphones mas Flick não perguntara pormenores e Arnaud morrera no assalto ao castelo.

 

Deve haver algum equipamento comum a todos os sistemas.

 

Sim, há... o QDP.

 

O que é isso?

 

O quadro de distribuição principal. Dois conjuntos de terminais em estantes grandes. Todos os cabos do exterior entram de um lado do quadro; todos os cabos da central entram do outro; e estão ligados uns aos outros.

 

E onde ficará isso?

 

Numa sala perto da sala dos cabos. O ideal seria provocarmos um incêndio suficientemente grande para derreter o cobre dos cabos.

 

Quanto tempo levaria a tornar a ligá-los?

 

Dois dias.


Tem a certeza? Quando os cabos da minha rua foram cortados por uma bomba, um engenheiro dos correios voltou a ligá-los ao fim de umas horas.

 

As reparações de rua são simples, apenas uma questão de unir as pontas partidas, vermelho com vermelho e azul com azul. Mas um QDP tem centenas de ligações. Dois dias é uma previsão optimista, e é preciso que quem fizer as reparações tenha os cartões de representação.

 

Cartões de representação?

 

Indicam como é que os cabos se ligam. Normalmente encontram-se num armário na sala do QDP. Se os queimarmos também, seriam precisas várias semanas para descobrir como são feitas as ligações.

 

Flick recordou-se de Michel ter dito que a Resistência tinha alguém na PTT disposto a destruir os registos duplicados guardados na sede.

 

Isto parece prometer. Agora ouça. De manhã, quando eu explicar a nossa missão às outras, vou dizer-lhes uma coisa completamente diferente.

 

Porquê?

 

Para que a nossa missão não seja posta em perigo se uma de nós for capturada e interrogada.

 

Oh! Greta recordou-se da gravidade da missão. Que terrível.

 

Você é a única que sabe a verdadeira história, por isso não a conte a ninguém.

 

Não se preocupe. Nós, bichas, estamos habituados a guardar segredos.

 

Flick ficou espantada com a escolha de palavras de Greta, mas não fez comentários.

 

A escola de aperfeiçoamento ficava situada nos terrenos de uma das maiores mansões inglesas. Beaulieu, que se pronunciava «Bewly», era uma propriedade enorme na Floresta Nova perto da costa sul. A residência principal, Palace House, era a casa de lorde Montagu. Ocultas nos bosques circundantes havia várias outras casas com grandes terrenos à volta. A maior parte delas ficara vaga no início da guerra: os proprietários mais jovens tinham ido para o exército e os mais velhos dispunham geralmente de meios para fugir para locais mais seguros. Doze das casas tinham sido requisitadas pelo EOE e eram utilizadas para treinar agentes em segurança, manuseamento de rádios, leitura de mapas e actividades menos dignas como furto, sabotagens, falsificações e como matar alguém de forma silenciosa.


Chegaram ao local às três da manhã. Flick avançou por uma estrada em mau estado e atravessou um intervalo na vedação antes de parar em frente a uma casa grande. De cada vez que ali ia tinha a sensação de entrar num mundo de fantasia onde a ilusão e a violência eram consideradas comuns. A casa tinha um adequado ar irreal. Embora possuísse cerca de vinte quartos, fora construída ao estilo de uma casa de campo uma afectação cultural que fora popular nos anos que haviam antecedido a Primeira Guerra Mundial. Parecia graciosamente antiquada ao luar, com as suas chaminés e águas-furtadas, telhados esconsos e janelas de sacada. Era como uma ilustração de um livro infantil, uma grande casa onde podia brincar-se às escondidas todo o dia.

 

O local estava em silêncio. O resto da equipa encontrava-se ali, mas devia estar a dormir. Flick conhecia bem a casa e descobriu dois quartos vagos no sótão. Ela e Greta deitaram-se com bastante vontade. Flick ficou algum tempo acordada, perguntando de si para si como iria transformar aquela mão-cheia de inadaptados numa unidade de combate, mas pouco depois adormeceu.

 

Tornou a levantar-se às seis. Da janela via o estuário do Solent. A água parecia mercúrio à luz matinal. Pôs ao lume uma chaleira com água para Greta fazer a barba e levou-a ao quarto dela. Depois foi acordar os outros.

 

Percy e Paul foram os primeiros a chegar à grande cozinha na parte de trás da casa, Percy pedindo chá e Paul café. Flick disse-lhes que os fizessem eles mesmos. Não se alistara no EOE para servir homens.

 

Às vezes faço chá para ti! exclamou Percy indignado.

 

Fá-lo com um ar de noblesse oblige retorquiu ela. Como um duque que abre a porta para a criada passar.

 

Paul soltou uma gargalhada.

 

Mas que dois! exclamou.

 

Por volta das seis e meia apareceu um cozinheiro do Exército, e pouco depois estavam à mesa a comer ovos estrelados e fatias grossas de bacon. A comida não estava racionada para os agentes secretos: estes precisavam de fortalecer as suas reservas. Assim que entrassem em acção poderiam ter de estar vários dias sem se alimentarem em condições.

 

As raparigas desceram uma a uma. Flick ficou surpreendida quando viu Maude Valentine: nem Percy nem Paul lhe haviam dito que ela era tão bonita. Apareceu imaculadamente vestida e perfumada, a sua boca em forma de botão de rosa acentuada por um batom de cor viva, e parecia que ia almoçar ao Savoy. Sentou-se ao lado de Paul e perguntou com um ar sugestivo:


Dormiu bem, major?

 

Flick ficou aliviada por ver o rosto escuro de pirata de Ruby Romain. Não teria ficado admirada se lhe tivessem dito que Ruby fugira durante a noite. Claro que nessa altura Ruby voltaria a ser presa por homicídio. Não fora perdoada: as queixas haviam sido retiradas. Mas podiam voltar a ser apresentadas. Isso devia impedir Ruby de desaparecer, mas ela era rija e podia ter decidido arriscar a sua sorte.

 

Jelly Knight aparentava os anos que tinha àquela hora da manhã. Sentou-se ao lado de Percy e dirigiu-lhe um sorriso carinhoso.

 

Calculo que tenhas dormido como uma pedra disse ela.

 

Tenho a consciência tranquila retorquiu ele. Ela soltou uma gargalhada.

 

Não tens é consciência!

 

O cozinheiro ofereceu-lhe um prato de bacon e ovos, mas ela fez uma careta.

 

Não, muito obrigada. Tenho de cuidar da silhueta. O pequeno-almoço dela foi uma chávena de chá e vários cigarros.

 

Quando Greta apareceu à porta, Flick susteve a respiração.

 

Ela trazia um vestido de algodão bonito e uns seios pequenos. Um casaco de malha cor-de-rosa disfarçava os ombros e um lenço de chiffon ocultava o pescoço masculino. Trazia a peruca escura e curta. Tinha muito pó-de-arroz na cara, mas pusera pouco batom e maquilhara discretamente os olhos. Contrastando com a sua personagem esfuziante em palco, naquela manhã ela desempenhava o papel de uma jovem simples que se sentia envergonhada de ser tão alta. Flick apresentou-a e observou as reacções das outras mulheres. Aquele era o primeiro teste de Greta.

 

Todas elas sorriam de forma simpática, não dando a entender que tivessem visto algo de errado, e Flick suspirou de alívio.

 

Para além de Maude, a outra mulher que Flick não conhecia era Lady Denise Bouverie. Percy entrevistara-a em Hendon e recrutara-a apesar de ela ter dado a entender ser pouco discreta. Era uma rapariga de ar vulgar com muito cabelo escuro e uma expressão de desafio. Embora fosse filha de um marquês, faltava-lhe a autoconfiança típica das raparigas da classe alta. Flick sentiu uma certa pena dela, mas Denise era demasiado insípida para ser agradável.

 

«Esta é a minha equipa», pensou Flick. «Uma engatatona, uma assassina, uma arrombadora de cofres, um travesti e uma aristocrata desajeitada.» Faltava alguém, reparou ela: a outra aristocrata. Diana não aparecera. E já eram sete e meia.

 

Disseste à Diana que o despertar era às seis? perguntou Flick a Percy.


Disse a toda a gente.

 

E eu bati à porta dela às seis e um quarto. Flick levantou-se. É melhor ir ver o que se passa. Quarto dez, não é?

 

Subiu as escadas e bateu à porta de Diana. Não obteve resposta, por isso entrou. O quarto parecia ter sido atingido por uma bomba. Uma mala aberta na cama desfeita, almofadas no chão, cuecas na cómoda mas Flick sabia que aquilo era normal. Diana estivera sempre rodeada de pessoas cuja função era arrumar o que ela desarrumava. A mãe de Flick fora uma dessas pessoas. Não, Diana fora simplesmente algures. Iria ter de perceber que o seu tempo deixara de lhe pertencer, pensou Flick com irritação.

 

A Diana desapareceu disse aos outros. Começamos sem ela. Encontrava-se à cabeceira da mesa. Temos dois dias de treino à nossa frente. Depois, na sexta-feira à noite, aterramos de pára-quedas em França. Somos uma equipa só de mulheres porque é mais fácil as mulheres deslocarem-se na França ocupada; os tipos da Gestapo desconfiam menos. A nossa missão é fazer explodir um túnel de caminho-de-ferro perto da aldeia de Marles, não muito longe de Reims, na principal linha férrea entre Francoforte e Paris.

 

Flick olhou para Greta, que sabia que a história era falsa. Ela estava calmamente a barrar manteiga numa torrada e não olhou para Flick.

 

O curso de um agente dura normalmente três meses prosseguiu ela. Mas este túnel tem de ser destruído na segunda-feira à noite. Em dois dias esperamos ensinar-vos algumas regras de segurança básicas, ensinar-vos a fazer pára-quedismo, a manejar uma arma e a matar pessoas sem fazer barulho.

 

Maude empalideceu apesar da maquilhagem.

 

Matar pessoas? perguntou ela. Não está à espera que as mulheres matem, pois não?

 

Jelly emitiu um grunhido de desprezo.

 

Estamos em guerra, não sei se sabe.

 

Diana apareceu vinda do jardim com erva nas calças de bombazina.

 

Fui dar um passeio disse ela entusiasmada. Que maravilha. E olhem o que o homem da estufa me deu. Tirou do bolso uma mão-cheia de tomates maduros e pousou-os na mesa da cozinha.

 

Senta-te, Diana, já estás atrasada para a reunião disse Flick.

 

Desculpa, querida, será que perdi o teu discurso?

 

Agora estás no exército retorquiu Flick exasperada. Quando te dizem para estar na cozinha às sete, é para cumprires.


Não vais armar-te em preceptora comigo, pois não?

 

Senta-te e cala-te.

 

Lamento muito, querida. Flick elevou a voz.

 

Diana, quando eu te mandar calar, não me respondas «Lamento muito» e não me trates por «querida». Nunca. Cala-te.

 

Diana sentou-se em silêncio, mas tinha uma expressão rebelde. «Oh, bolas!», pensou Flick, «acho que não lidei com a situação da melhor forma.»

 

A porta da cozinha abriu-se com estrondo e um homem baixo e musculado com cerca de quarenta anos entrou. Tinha as divisas de sargento na camisa da farda.

 

Bom dia, meninas! exclamou.

 

Este é o sargento Bill Griffíths, um dos instrutores disse Flick. Não gostava de Bill. Era instrutor de Educação Física, gostava demasiadamente de confrontos físicos e nunca parecia arrependido quando magoava alguém. Ela reparara que ele era ainda pior com mulheres. Estamos prontas para o ouvir, sargento, por isso, porque não começa? Afastou-se e encostou-se à parede.

 

Os seus desejos são ordens disse ele, desnecessariamente. Ocupou o lugar que ela deixara vago na cabeceira da mesa. Aterrar com um pára-quedas começou é como saltar de um muro de quatro metros. O tecto desta cozinha é um pouco mais baixo, por isso é como saltar do primeiro andar para o jardim.

 

Oh, diacho! exclamou Jelly baixinho.

 

Não podem aterrar de pé e ficar direitas prosseguiu Bill. Se tentarem aterrar de pé, partem as pernas. A única forma segura é cair. Se alguém desejar não sujar a roupa, vá até àquela sala ali e vista um fato-macaco. Se nos reunirmos lá fora dentro de três minutos, começamos.

 

Enquanto as mulheres mudavam de roupa, Paul levantou-se.

 

Amanhã à noite precisamos de um avião para ensaiar isto e eles vão dizer-me que não há aviões disponíveis disse ele a Flick. Vou a Londres bater em alguém. Volto logo à noite.

 

Flick perguntou de si para si se ele iria ver também a namorada.

 

No jardim encontrava-se uma velha mesa de pinho, um roupeiro de mogno vitoriano muito feio e uma escada de mão com quatro metros. Jelly parecia desanimada.

 

Não nos vai obrigar a saltar do maldito roupeiro, pois não? perguntou a Flick.

 

Só depois de vos terem explicado como é que se faz respondeu ela. Vai ver como é fácil.


Jelly olhou para Percy.

 

Seu patife! exclamou. Onde é que me meteste? Quando estavam todas prontas, Bill continuou.

 

Primeiro vamos aprender a cair. Há três maneiras: para a frente, para trás e para o lado.

 

Exemplificou cada uma das maneiras, atirando-se para o chão sem esforço e levantando-se com a agilidade de um ginasta.

 

Têm de manter as pernas fechadas. Fez uma expressão maliciosa e acrescentou: Como todas as senhoras deviam. Ninguém se riu. Não estiquem os braços para amparar a queda, mas mantenham-nos junto ao corpo. Não se preocupem com a possibilidade de se magoarem. Se partirem um braço vai doer muito mais.

 

Tal como Flick esperara, as mulheres mais novas não tiveram qualquer dificuldade: Diana, Maude, Ruby e Denise conseguiram cair como atletas depois de lhes terem explicado como é que isso se fazia. Ruby, como conseguira cair bem logo à primeira, perdeu a paciência com o exercício. Subiu as escadas.

 

Ainda não! gritou Bill, mas foi tarde de mais. Ela saltou e aterrou na perfeição. Depois afastou-se, sentou-se à sombra de uma árvore e acendeu um cigarro. «Acho que ela me vai dar problemas», pensou Flick.

 

Flick estava mais preocupada com Jelly. Era um elemento muito importante da equipa, o único que percebia de explosivos. Mas havia anos que perdera a agilidade da juventude. Ia ser difícil para ela saltar de pára-quedas. No entanto, revelou-se corajosa. Atirou-se para o chão, caiu com um gemido e praguejou quando se levantou, mas mostrou-se disposta a tentar de novo.

 

Para surpresa de Flick, a pior aluna era Greta.

 

Não consigo fazer isto disse ela a Flick. Eu disse-lhe que não era boa em coisas destas.

 

Era a primeira vez que Greta dizia mais do que duas ou três palavras e Jelly franziu o sobrolho.

 

Que sotaque esquisito murmurou.

 

Deixe-me ajudá-la disse Bill a Greta. Mantenha-se direita. Descontraia-se. Agarrou-lhe nos ombros. Depois, com um movimento súbito, atirou-a para o chão. Ela aterrou pesadamente e gemeu de dor. Levantou-se a custo e, para surpresa de Flick, começou a chorar.

 

Por amor de Deus! exclamou Bill enojado. Que raio de pessoas é que nos mandaram?

 

Flick lançou-lhe um olhar furioso. Não queria perder a engenheira electrotécnica por causa da brutalidade de Bill.


Vá com calma! ordenou ela. Ele não se mostrou arrependido.

 

Os tipos da Gestapo são muito piores que eu!

 

Flick tinha de reparar os estragos sozinha. Pegou na mão de Greta.

 

Vamos fazer um treino as duas. Contornaram a casa e chegaram a outra parte do jardim.

 

Peço desculpa disse Greta. Odeio aquele homenzinho!

 

Eu sei. Agora vamos fazer isto as duas. Ajoelhe-se. Ajoelharam-se de frente uma para a outra e deram as mãos. Faça o que eu fizer. Flick inclinou-se lentamente para o lado. Greta imitou-a. Juntas, caíram no chão ainda de mãos dadas. Pronto disse Flick. Foi fácil, não foi?

 

Greta sorriu.

 

Porque é que ele não é como você? Flick encolheu os ombros.

 

Homens! exclamou com um sorriso. Agora está pronta a pôr-se de pé e a tentar cair? Fazemos da mesma maneira, de mãos dadas.

 

Fez com Greta todos os exercícios que Bill estava a fazer com as outras. Greta ganhou confiança rapidamente. Regressaram para junto do grupo. As outras estavam a saltar da mesa. Greta juntou-se-lhes, aterrou na perfeição e recebeu uma salva de palmas.

 

Em seguida saltaram do cimo do roupeiro e finalmente das escadas. Quando Jelly saltou das escadas, rolou na perfeição e quando se levantou, Flick abraçou-a.

 

Estou muito orgulhosa de si disse ela. Muito bem. Bill fez uma careta de desagrado. Virou-se para Percy.

 

Que raio de exército é este em que se é abraçado por ter obedecido a ordens?

 

É bom que se habitue, Bill respondeu Percy.

 

Na casa da Rue du Bois, Dieter levou a mala de Stéphanie para o primeiro andar, até ao quarto de Mademoiselle Lemas. Olhou para a cama de solteira muito bem feita, para a antiquada cómoda de nogueira e para o genuflexório com o terço na estante.

 

Não vai ser fácil para ti fingir que a casa é tua comentou ele ansioso, pousando a mala na cama.

 

Vou dizer que a herdei de uma tia solteirona e que tenho demasiada preguiça para a decorar a meu gosto respondeu ela.

 

Espertinha! Mesmo assim, vais ter de desarrumar isto um pouco.

 

Ela abriu a mala, tirou um roupão preto e atirou-o para cima do genuflexório.

 

Já está melhor disse Dieter. O que é que fazes se o telefone tocar?

 

Stéphanie pensou um pouco. Quando falou, fê-lo em voz mais baixa e o seu sotaque elegante de Paris fora substituído pelo sotaque da província.

 

Está lá? Sim, daqui fala Mademoiselle Lemas. Quem fala, por favor?

 

Muito bem elogiou Dieter. Aquela imitação poderia não enganar um amigo chegado ou um familiar, mas um interlocutor casual não notaria nada de errado, especialmente com a distorção da linha telefónica.

 

Exploraram a casa. Havia mais quatro quartos, cada um pronto a acomodar um hóspede, as camas feitas, uma tolha lavada junto a cada bacia. Na cozinha, onde deveriam ter encontrado vários tachos pequenos e uma cafeteira para uma única chávena, encontraram várias caçarolas grandes e um saco de arroz que teria alimentado mademoiselle Lemas durante um ano. O vinho na cave era vin ordinaire barato, mas havia meia caixa de bom uísque. A garagem ao lado da casa acomodava um pequeno Simca Cinq anterior à guerra, a versão francesa do Fiat a que os italianos chamavam Topolino. Encontrava-se em bom estado e tinha o depósito cheio. Ele fez girar a manivela de ignição e o motor pegou de imediato. Não havia possibilidade de as autoridades terem permitido a Mademoiselle Lemas comprar gasolina e peças para um carro que a levasse às compras. O veículo devia ter sido mantido pela Resistência. Ele perguntou de si para si que história teria ela inventado para justificar as suas deslocações num carro. Talvez tivesse fingido ser parteira.

 

A velha estava bem organizada comentou Dieter.

 

Stéphanie preparou o almoço. Tinham feito compras no caminho. Não havia carne nem peixe nas lojas, mas tinham comprado cogumelos, uma alface e um pain noir, o pão que os padeiros franceses faziam com a farinha e o farelo que conseguiam arranjar. Stéphanie fez uma salada e aproveitou os cogumelos para fazer arroz, e encontraram um pouco de queijo na despensa para completar a refeição. Com migalhas na mesa da sala de jantar e tachos sujos no lava-louça, a casa começou a parecer mais habitada.

 

A guerra deve ter sido a melhor coisa que lhe aconteceu disse Dieter enquanto bebiam café.

 

Como é que podes dizer uma coisa dessas? Ela vai a caminho de um campo de prisioneiros!

 

Pensa na vida que ela levava antes. Uma mulher sozinha, sem marido, sem família, sem pais. Depois entraram na sua vida todos aqueles jovens, rapazes e raparigas corajosos em missões arriscadas. Provavelmente contavam-lhe tudo sobre os seus amores e os seus medos. Ela escondia-os em casa, dava-lhes uísque e cigarros, e encaminhava-os para as suas missões, desejando-lhes sorte. Foi provavelmente o período mais excitante da vida dela, e aposto que nunca foi tão feliz.

 

Talvez tivesse preferido uma vida calma, a comprar chapéus com uma amiga, a arranjar as flores na catedral, a ir a Paris uma vez por ano assistir a um concerto.

 

Ninguém prefere realmente uma vida pacífica. Dieter olhou pela janela da sala de jantar. Raios! Uma rapariga aproximava-se da porta, empurrando uma bicicleta com um cesto sobre a roda da frente. Quem diabo é esta?

 

Stéphanie olhou para a visita.

 

O que é que eu faço?

 

Dieter não respondeu durante uns momentos. A intrusa era uma rapariga de aspecto simples e em forma, com calças enlameadas e uma camisa com manchas de suor nos sovacos. Não tocou à campainha, mas levou a bicicleta até ao pátio. Ele ficou abalado. Iria a sua charada ser desmascarada tão depressa?

 

Ela vai para a porta das traseiras. Deve ser uma amiga, ou uma conhecida. Vais ter de improvisar. Vai lá ter com ela que eu fico aqui à escuta.

 

Ouviram a porta da cozinha abrir e fechar.

 

Bom dia, sou eu! anunciou a rapariga em francês. Stéphanie foi à cozinha. Dieter ficou junto à porta da sala. Dali

 

ouvia tudo.

 

Quem é você? perguntou a rapariga admirada.

 

Sou a Stéphanie, a sobrinha de Mademoiselle Lemas.

 

A rapariga não se deu ao trabalho de ocultar as suas suspeitas.

 

Não sabia que ela tinha uma sobrinha.

 

Ela também não me falou de si. Dieter notou o tom divertido de Stéphanie, e percebeu que ela tentava ser simpática. Quer sentar-se? O que traz nesse cesto?

 

Mantimentos. Sou a Marie. Vivo no campo. Consigo arranjar mantimentos extra e trago alguns para... para a mademoiselle.

 

Ah fez Stéphanie. Para as... visitas dela. Ouviu-se o som de papéis e Dieter calculou que ela estava a inspeccionar a comida embrulhada que vinha no cesto. Isto é uma maravilha! Ovos... porco... morangos...

 

«Isto explica como é que a Mademoiselle Lemas conseguiu manter-se roliça», pensou Dieter.

 

Então sabe disse Marie.

 

Sei tudo sobre a vida secreta da tia, sim. Ao ouvi-la dizer «tia», Dieter apercebeu-se de que nem ele nem Stéphanie tinham perguntado a Mademoiselle Lemas qual era o seu nome próprio. A brincadeira chegaria ao fim se Marie descobrisse que Stéphanie não sabia o nome próprio da «tia».

 

Onde é que ela está?

 

Foi a Aix. Lembra-se do Charles Menton, que era o deão da catedral?

 

Não, não me lembro.

 

Talvez seja demasiado nova. Ele era o melhor amigo do pai da tia, até se ter aposentado e mudado para a Provença. Stéphanie estava a improvisar de forma brilhante, pensou Dieter com admiração. Mantinha a calma e possuía uma grande imaginação. Teve um ataque cardíaco e ela foi tratar dele. Pediu-me para tratar das visitas enquanto está ausente.


Quando é que ela volta?

 

O Charles já não deve viver muito. Por outro lado, a guerra pode acabar depressa.

 

Ela não falou a ninguém desse Charles.

 

Mas falou-me a mim.

 

Parecia que Stéphanie ia sair-se bem daquela embrulhada, pensou Dieter. Se conseguisse aguentar-se mais um pouco, Marie ir-se-ia embora convencida. Contaria o que tinha acontecido, mas a história de Stéphanie era plausível e era o tipo de coisa que acontecia nos movimentos da Resistência. Não era como no exército: uma pessoa como Mademoiselle Lemas podia facilmente tomar a decisão unilateral de abandonar o seu posto e de colocar outra pessoa no comando. Isso dava com os líderes da Resistência em loucos, mas eles nada podiam fazer: todos os seus membros eram voluntários.

 

Começou a sentir-se esperançado.

 

De onde é? perguntou Marie.

 

Sou de Paris.

 

A sua tia Valérie tem mais alguma sobrinha escondida? «Então o nome próprio de Mademoiselle Lemas é Valérie», pensou Dieter.

 

Que eu saiba, não.

 

Você é uma mentirosa.

 

O tom de Marie alterara-se. Alguma coisa correra mal. Dieter suspirou e tirou a pistola automática do coldre.

 

O que é que está para aí a dizer? perguntou Stéphanie.

 

Que você está a mentir. Nem sequer sabe o nome dela. Não é Valérie, é Jeanne.

 

Dieter destravou a arma.

 

Sempre a tratei por tia desculpou-se Stéphanie com pouca convicção. Você está a ser bastante mal-educada.

 

Percebi logo continuou Marie num tom desdenhoso. A Jeanne nunca confiaria em ninguém como você, com esses sapatos altos e esse cheiro a perfume.

 

Dieter apareceu na cozinha.

 

Que pena, Marie disse ele. Se tivesse confiado mais, ou sido menos esperta, poderia ter escapado. Assim está presa.

 

Marie olhou para Stéphanie.

 

Você é uma puta da Gestapo.

 

Foi um comentário cruel, e Stéphanie corou. Dieter ficou tão furioso que quase bateu com a coronha da pistola em Marie.

 

Vai arrepender-se desse comentário quando estiver nas mãos da Gestapo disse ele com frieza. Vai ser interrogada pelo sargento Becker. Quando estiver aos gritos, a sangrar e a implorar por misericórdia, lembre-se desse insulto cruel.

 

Marie parecia prestes a fugir. Dieter esperava que ela tentasse fazê-lo. Assim podia dar-lhe um tiro e o problema ficaria resolvido. Mas ela não fugiu. Passado um longo momento, os seus ombros curvaram-se e começou a chorar.

 

As lágrimas dela não o comoveram.

 

Deite-se de barriga para baixo com as mãos atrás das costas. Ela obedeceu.

 

Dieter guardou a arma.

 

Acho que vi uma corda na cave disse para Stéphanie.

 

Vou buscá-la.

 

Regressou com um bocado de corda da roupa. Dieter amarrou as mãos e os pés de Marie.

 

Vou ter de levá-la para Sainte-Cécile disse ele. Não podemos mantê-la aqui, não vá um agente britânico chegar hoje. Olhou para o relógio. Eram duas horas. Tinha tempo de levar a prisioneira para o castelo e de estar de volta às três. Vais ter de ir sozinha à cripta disse a Stéphanie. Leva o carro que está na garagem. Eu vou estar na catedral, embora talvez não me vejas. Beijou-a. Parecia um marido a ir para o escritório, pensou ele. Levantou Marie e pô-la em cima do ombro. Vou ter de me despachar disse, dirigindo-se para a porta.

 

Saiu, e depois voltou-se para trás.

 

Esconde a bicicleta.

 

Não te preocupes respondeu Stéphanie.

 

Carregou a rapariga amarrada até à rua. Abriu o porta-bagagens do carro e meteu-a lá dentro. Se ela não tivesse feito o comentário da «puta», tê-la-ia sentado no banco de trás.

 

Fechou o porta-bagagens e olhou em volta. Não viu ninguém, mas havia sempre alguém à espreita pelas frinchas das gelosias numa rua como aquela. Deviam ter visto Mademoiselle Lemas ser levada na véspera e reparado no grande carro azul-celeste. Assim que ele se fosse embora, começariam a falar do homem que meteu uma rapariga no porta-bagagens do carro. Numa altura normal teriam ligado à Polícia, mas ninguém num território ocupado falaria com a Polícia a menos que a isso fosse obrigado, especialmente se a Gestapo pudesse estar envolvida.

 

A pergunta-chave para Dieter era a seguinte: iria a Resistência ter conhecimento da prisão de Mademoiselle Lemas? Reims era uma cidade, não uma aldeia. Todos os dias eram presas pessoas: ladrões, assassinos, contrabandistas, comunistas, judeus. Havia boas possibilidades de os acontecimentos da Rue du Bois não chegarem aos ouvidos de Michel Clairet.

 

Mas não havia certezas.

 

Dieter meteu-se no carro e dirigiu-se a Sainte-Cécile.

 

A equipa efectuara com relativa facilidade os treinos da manhã, para alívio de Flick. Todas tinham aprendido a cair, o mais difícil do pára-quedismo. A sessão de leitura dos mapas fora menos bem-sucedida. Ruby nunca fora à escola e mal sabia ler: um mapa era chinês para ela. Maude ficara perplexa com direcções como nor-noroeste, e pestanejou sedutoramente na direcção do instrutor. Denise, apesar da sua educação cara, mostrou ser incapaz de perceber coordenadas. Se o grupo se separasse em França, pensou Flick preocupada, ela não podia contar que elas encontrassem o caminho.

 

Da parte da tarde passaram para coisas mais brutas. O instrutor de tiro era o capitão Jim Cardwell, um homem bastante diferente de Bill Griffiths. Jim era um homem afável com um rosto de feições marcadas e um espesso bigode preto. Sorriu de forma agradável quando as raparigas descobriram como era difícil acertar numa árvore a seis metros com uma pistola Colt de calibre 45.

 

Ruby manejava bem a arma e tinha boa pontaria: Flick calculou que ela já devia ter usado uma arma antes. Ruby mostrou-se especialmente satisfeita quando Jim pôs os braços à volta dela para lhe mostrar como se pegava na espingarda Lee-Enfield. Ele murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido e ela sorriu-lhe com um brilho travesso nos olhos negros. Estivera presa três meses, reflectiu Flick: sem dúvida, gostava de ser tocada por um homem.

 

Também Jelly manejava as armas com familiaridade. Mas Diana foi a estrela da sessão. Com a espingarda, acertou sempre no meio do alvo, despejando o depósito de cinco balas numa rajada mortífera.

 

Muito bem! exclamou Jim surpreendido. Pode ficar com o meu trabalho.


Diana olhou para Flick com ar triunfante.

 

Há algumas coisas em que não és a melhor disse ela. «O que raio fiz eu para merecer isto?», perguntou Flick de si

 

para si. Estaria Diana a pensar nos tempos da escola, em que Flick se saíra sempre melhor? A rivalidade infantil ainda perduraria?

 

Greta foi o único fracasso. De novo, mostrou-se mais feminina do que as verdadeiras mulheres. Tapou os ouvidos com as mãos, saltou nervosa a cada disparo e fechou os olhos aterrorizada quando puxou o gatilho. Jim ensinou-a cheio de paciência, dando-lhe tampões para os ouvidos a fim de abafar o barulho, segurando-lhe a mão para lhe ensinar a puxar o gatilho devagar, mas de nada serviu: ela era demasiado retraída para conseguir ter boa pontaria.

 

Não fui feita para isto! exclamou ela desesperada.

 

Então que raio estás aqui a fazer? perguntou Jelly.

 

A Greta é engenheira interpôs Flick rapidamente. Vai dizer-lhe onde pôr os explosivos.

 

Porque é que precisamos de uma engenheira alemã?

 

Sou inglesa disse Greta. O meu pai nasceu em Liverpool.

 

Jelly fez uma expressão céptica.

 

Se isso é o sotaque de Liverpool, eu sou a duquesa de Devonshire.

 

Guarde a agressividade para a próxima sessão disse Flick. Vamos treinar o combate corpo a corpo. Aquelas picardias incomodavam-na. Precisava que as mulheres confiassem umas nas outras.

 

Regressaram ao jardim da casa, onde Bill Griffiths as aguardava. Vestira calções e calçara uns ténis, e estava a fazer flexões no chão sem a T-shirt. Quando se levantou, Flick teve a sensação de que ele queria que elas admirassem o seu físico.

 

Bill gostava de ensinar autodefesa entregando à aluna uma arma e dizendo «Ataque-me». Depois demonstrava como um homem desarmado podia repelir um atacante. Foi uma lição dramática e memorável. Às vezes, Bill era desnecessariamente violento, pensou Flick, mas era melhor que as agentes se habituassem a isso.

 

Naquele dia ele colocara várias armas na velha mesa de pinho: uma faca de aspecto temível que ele afirmava ter pertencido às SS, uma pistola Walther P38 semelhante às que Flick vira nos oficiais alemães, um cassetete da Polícia francesa, um pedaço de fio eléctrico preto e amarelo a que ele chamou «garrote», e uma garrafa de cerveja com o gargalo partido.

 

Vestiu a T-shirt para a sessão de treino.


Como fugir a um homem que vos aponta uma arma começou ele. Pegou na Walther, destravou-a e entregou-a a Maude. Ela apontou-lha. Mais tarde ou mais cedo, o vosso captor vai querer que vocês vão a qualquer lado. Virou-se e pôs as mãos no ar. É provável que ele vá atrás de vocês, e vos encoste a arma às costas. Descreveu um círculo grande, com Maude atrás. Agora, Maude, quero que puxe o gatilho no momento em que julgar que eu vou fugir. Estugou ligeiramente o passo, obrigando Maude a andar mais depressa para o acompanhar, e quando ela o fez ele deslocou-se para o lado e para trás. Agarrou-lhe o pulso direito e bateu-lhe na mão com um movimento seco. Ela gritou e largou a arma. É aqui que vocês podem cometer um erro grave disse ele enquanto ela esfregava o pulso. Não fujam nesta altura. Senão o boche pega na arma e dispara-vos para as costas. Têm de fazer o seguinte... Pegou na pistola, apontou-a a Maude e puxou o gatilho. Ouviu-se um estrondo. Maude gritou e Greta também. A arma está carregada com balas de salva, claro disse Bill.

 

Às vezes Flick desejava que Bill não fosse tão dramático nas suas demonstrações.

 

Dentro de minutos treinaremos estas técnicas uns nos outros prosseguiu ele. Pegou no fio eléctrico e virou-se para Greta. Ponha isto à volta do meu pescoço. Quando eu disser, aperte-o o mais possível. Deu-lhe o fio. O seu captor da Gestapo, ou o gendarme colaboracionista, pode matá-la com o fio, mas não consegue suster o seu peso com ele. Muito bem, Greta, estrangule-me. Greta hesitou, depois apertou o fio com força. Este enterrou-se no pescoço musculado de Bill. Ele lançou os dois pés para a frente e caiu no chão, aterrando de costas. O fio soltou-se das mãos de Greta.

 

Infelizmente, isto deixa-vos no chão com o inimigo em cima de vocês disse Bill, o que é uma situação desfavorável. Levantou-se. Vamos repetir. Mas desta vez, antes de eu cair, vou agarrar no meu captor por um pulso. Retomaram as posições e Greta esticou o fio com força em torno do pescoço de Bill. Este agarrou-lhe no pulso e atirou-se para o chão, puxando-a consigo. Quando ela caiu em cima dele, ele dobrou uma perna e atingiu-a com força no estômago.

 

Ela rolou para o chão e curvou-se, gemendo de dor e inspirando a custo.

 

Por amor de Deus, Bill, isso foi um pouco cruel! exclamou Flick.

 

Ele pareceu satisfeito.


A Gestapo é muito pior do que eu respondeu. Flick aproximou-se de Greta e ajudou-a a levantar-se.

 

Desculpe disse ela.

 

Ele é um maldito nazi! exclamou Greta.

 

Flick acompanhou Greta até à casa e sentou-a na cozinha. O cozinheiro, que estava a descascar batatas para o jantar, ofereceu-lhe uma chávena de chá que ela aceitou com gratidão.

 

Quando Flick regressou ao jardim, Bill escolhera a próxima vítima, Ruby, e dera-lhe o cassetete. Ruby tinha uma expressão astuta e Flick pensou: «Se eu fosse o Bill tinha cuidado com ela.»

 

Flick já vira Bill exemplificar aquela técnica. Quando Ruby levantasse a mão direita para lhe bater com o cassetete, Bill iria agarrar-lhe no braço, virar-se e atirá-la ao chão por cima do ombro. Ela aterraria de costas.

 

Muito bem, caganita disse Bill. Acerte-me com o cassetete, com toda a força.

 

Ruby levantou o braço e Bill avançou para ela, mas a acção não seguiu o padrão habitual. Quando Bill tentou agarrar o braço dela, aquele não estava no sítio esperado. O cassetete caiu no chão. Ruby aproximou-se de Bill e bateu-lhe com o joelho nas virilhas. Ele gritou de dor. Ela agarrou-lhe na T-shirt, puxou-o para si e bateu-lhe com a cabeça no nariz. Depois, bateu-lhe na canela com o sapato de atacadores e ele caiu no chão a sangrar do nariz.

 

Não precisava de fazer isso, sua cabra! gritou ele.

 

A Gestapo é muito pior do que eu respondeu Ruby.

 

Faltava um minuto para as três quando Dieter estacionou em frente ao Hotel Frankfort. Atravessou rapidamente a praça empedrada rumo à catedral sob o olhar petrificado dos anjos esculpidos nos arcobotantes. Parecia quase de mais esperar que um agente aliado aparecesse no ponto de encontro logo no primeiro dia. Por outro lado, se a invasão estivesse realmente iminente, os Aliados estariam a tentar tudo por tudo.

 

Viu o Simca Cinq de Mademoiselle Lemas estacionado num dos lados da praça, o que significava que Stéphanie já lá se encontrava. Ficou aliviado por ter chegado a tempo. Se alguma coisa corresse mal, não queria que ela estivesse sozinha.

 

Entrou na penumbra fresca do interior pela grande porta virada para ocidente. Procurou Hans Hesse e viu-o sentado na última fila de bancos. Cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, mas não falaram.

 

Dieter sentiu-se imediatamente um violador. A missão em que estava empenhado não devia ter lugar naquela atmosfera. Não era muito devoto ainda menos que o alemão comum, pensou mas não era descrente. Sentia-se pouco à vontade a apanhar espiões num local que fora um refúgio sagrado durante centenas de anos.

 

Rejeitou a sensação como superstição.

 

Dirigiu-se ao lado sul da catedral e subiu a longa nave, os seus passos ecoando no chão de pedra. Quando chegou ao transepto viu o portão, o gradeamento e os degraus que conduziam à cripta, que ficava sob o altar. Stéphanie encontrava-se lá em baixo, calculou ele, tendo calçados um sapato castanho e outro preto. De onde estava podia ver em ambas as direcções: para trás, toda a nave sul, e para a frente, para lá do ambulatório, até à outra extremidade da catedral. Ajoelhou-se e uniu as mãos para rezar.


Meu Deus, perdoa-me o sofrimento que inflijo aos meus prisioneiros orou. Sabes que tento cumprir o meu dever da melhor forma. E perdoa-me o meu pecado com a Stéphanie. Sei que é errado, mas fizeste-a tão bela que não consigo resistir à tentação. Olha pela minha querida Waltraud e ajuda-a a tomar conta do Rudi e da pequena Mausi, e protege-os das bombas da RAF. E acompanha o marechal-de-campo Rommel quando a invasão acontecer e dá-lhe poder para empurrar os Aliados para o mar. É uma oração muito pequena para tantos pedidos, mas sabes que tenho muito a fazer neste momento. Ámen.

 

Olhou em volta. Não estava a decorrer qualquer missa, mas havia várias pessoas sentadas nos bancos das capelas laterais, orando ou apenas a saborear a calma sagrada. Alguns turistas passeavam pelas naves, comentando em voz baixa a arquitectura medieval, inclinando a cabeça para trás para contemplar a vastidão das abóbadas.

 

Se um agente aliado aparecesse naquele dia, Dieter tencionava apenas observar e certificar-se de que nada corria mal. O ideal seria ele não ter de fazer nada. Stéphanie falaria com o agente, trocariam as senhas, e levá-lo-ia para a casa da Rue du Bois.

 

Depois disso, os seus planos eram pouco claros. De alguma forma, o agente iria conduzi-lo a outros agentes. A certa altura, surgiria uma oportunidade: encontraria uma pessoa incauta com uma lista de nomes e moradas; um rádio e um livro de códigos cairiam nas mãos de Dieter; ou ele capturaria alguém como Flick Clairet, que, sob tortura, trairia metade da Resistência francesa.

 

Olhou para o relógio. Passavam cinco minutos das três. Provavelmente ninguém viria naquele dia. Levantou a cabeça. Para seu horror, viu Willi Weber.

 

O que raio estaria ele a fazer ali?

 

Weber vinha à civil com o seu fato de tweed verde. Com ele encontrava-se um agente da Gestapo mais novo com um casaco aos quadrados. Vinham da extremidade oriental da igreja, avançando pelo ambulatório na direcção de Dieter, embora ainda não o tivessem visto. Chegaram junto à entrada para a cripta e pararam.

 

Dieter praguejou baixinho. Aquilo podia estragar tudo. Quase rezou para que nenhum agente britânico aparecesse.

 

Olhou para a nave sul e viu um jovem com uma pequena mala. Dieter semicerrou os olhos: a maior parte das pessoas na igreja era mais velha. O rapaz trazia um fato barato de corte francês, mas parecia um viquingue, com cabelo ruivo, olhos azuis e pele rosada. Era uma combinação muito inglesa, mas podia também ser alemã.


À primeira vista, o rapaz podia ser um oficial à paisana, a ver as vistas ou até com intenção de rezar.

 

No entanto, o seu comportamento traiu-o. Avançava decidido pela nave, sem olhar para os pilares como um turista nem sentando-se como um dos fiéis. O coração de Dieter bateu mais depressa. Um agente no primeiro dia! E a mala que ele transportava continha quase de certeza um rádio. Isso significava que tinha também um livro de códigos. Aquilo era mais do que Dieter estava à espera.

 

Mas Weber tinha de aparecer ali para estragar tudo.

 

O agente passou por Dieter e abrandou o passo, visivelmente à procura da cripta.

 

Weber viu o rapaz, dirigiu-lhe um olhar duro, depois virou-se e fingiu estar a estudar a canelura de uma das colunas.

 

«Pode ser que corra tudo bem», pensou Dieter. Weber fizera uma estupidez ao ir ali, mas talvez tencionasse apenas observar. Com certeza não era imbecil ao ponto de intervir. Poderia dar cabo de uma oportunidade única.

 

O agente encontrou a entrada para a cripta e desapareceu nos degraus de pedra.

 

Weber olhou para o transepto sul e fez um gesto de assentimento. Seguindo o seu olhar, Dieter viu mais dois homens da Gestapo sob o órgão. Aquilo era mau sinal. Weber não precisava de quatro homens apenas para observar. Dieter perguntou-se se teria tempo de falar com Weber, de o mandar retirar os homens. Mas Weber haveria de argumentar, e haveria uma discussão, e...

 

Como se veio a ver, não houve tempo. Quase de imediato Stéphanie apareceu vinda da cripta com o agente atrás dela.

 

Quando chegou ao primeiro degrau viu Weber. No seu rosto surgiu uma expressão chocada. Ficou desorientada com aquela presença inesperada, como se tivesse entrado num palco e se tivesse descoberto na peça errada. Cambaleou e o jovem agente agarrou-a pelo ombro, amparando-a. Ela recuperou a compostura com a sua rapidez característica e dirigiu-lhe um sorriso de gratidão. «Muito bem, miúda», pensou Dieter.

 

Então Weber avançou.

 

Não! exclamou Dieter sem querer. Ninguém o ouviu.

 

Weber agarrou no braço do agente e disse qualquer coisa. Dieter ficou estarrecido ao aperceber-se de que Weber ia dar-lhe voz de prisão. Stéphanie recuou da cena, perplexa.

 

Dieter levantou-se e avançou rapidamente para o grupo. Só lhe ocorria que Weber decidira ficar com os louros pela captura do agente. Era de loucos, mas era possível.


Antes de Dieter chegar junto deles, o agente libertou-se da mão de Weber e desatou a correr.

 

O jovem companheiro de Weber, com o casaco aos quadrados, reagiu depressa. Deu duas passadas largas na direcção do agente, lançou-se para ele e agarrou-o pelos joelhos. O agente cambaleou, mas trazia bastante ímpeto, e o homem da Gestapo não conseguiu detê-lo. O agente recuperou o equilíbrio, endireitou-se e continuou a correr, ainda agarrando a mala.

 

Os súbitos passos apressados e os grunhidos emitidos pelos dois homens ecoaram pela catedral em silêncio, e toda a gente olhou para eles. O agente correu na direcção de Dieter. Este apercebeu-se do que ia acontecer e soltou um gemido. O segundo par de homens da Gestapo surgiu vindo do transepto sul. O agente viu-os e pareceu adivinhar quem eram, pois guinou para a esquerda, mas tarde de mais. Um dos homens pregou-lhe uma rasteira. Ele caiu, o seu corpo atarracado batendo no chão com um baque. A mala voou. Os dois agentes da Gestapo caíram-lhe em cima. Weber apareceu a correr com ar satisfeito.

 

Merda! exclamou Dieter, esquecendo-se de onde estava. Aqueles tresloucados iam dar cabo de tudo.

 

Mas talvez ele ainda conseguisse salvar a situação.

 

Enfiou a mão dentro do casaco, sacou da Walther P38, destravou-a e apontou-a para os agentes da Gestapo que seguravam o agente. Falando francês, gritou a plenos pulmões:

 

Saiam já de cima dele senão disparo!

 

Meu major, eu... começou Weber.

 

Dieter disparou para o ar. O som do tiro ecoou pelas abóbadas da catedral, abafando as palavras de Weber.

 

Silêncio! gritou Dieter em alemão. Weber pareceu assustado e calou-se.

 

Dieter encostou o cano da pistola à cara de um dos agentes da Gestapo.

 

Vá lá! Saiam de cima dele! ordenou ele de novo em francês.

 

Os dois homens levantaram-se com expressões aterrorizadas e recuaram.

 

Dieter olhou para Stéphanie.

 

Jeanne! Vá! Fuja! ordenou ele, tratando-a pelo nome de Mademoiselle Lemas.

 

Stéphanie começou a correr. Contornou os agentes da Gestapo e correu para a porta ocidental.

 

O agente começava a levantar-se.


Vá com ela! Vá com ela! gritou Dieter, apontando. O rapaz agarrou na mala e desatou a correr, passando por trás dos bancos de madeira do coro.

 

Weber e os seus três assistentes pareciam intrigados.

 

Deitem-se de barriga para baixo! ordenou Dieter. Depois de eles obedecerem, Dieter começou a recuar sem deixar de os ameaçar com a arma. Depois virou-se e correu atrás de Stéphanie e do agente.

 

Quando estes saíram pela porta da igreja, Dieter parou e falou com Hans, que se encontrava ao fundo da catedral.

 

Fale com aqueles malditos idiotas pediu Dieter ofegante. Explique-lhes o que estamos a fazer e certifique-se de que eles não nos seguem. Enfiou a pistola no coldre e correu lá para fora.

 

O motor do Simca acabara de ser ligado. Dieter empurrou o agente para o banco de trás e sentou-se à frente ao lado da condutora. Stéphanie carregou no acelerador e o pequeno carro avançou disparado pela praça como uma rolha de champanhe.

 

Enquanto avançavam pela rua, Dieter virou-se e olhou pela janela de trás.

 

Ninguém nos segue disse. Abranda. Não queremos ser detidos por um gendarme.

 

Eu sou o Helicóptero disse o agente em francês. O que raio aconteceu ali?

 

Dieter calculou que «Helicóptero» devia ser um nome de código. Recordou-se de que Gaston lhe dissera o nome de código de Mademoiselle Lemas.

 

Esta é a Burguesa disse, indicando Stéphanie. E eu sou o Charenton improvisou, lembrando-se por qualquer motivo da prisão onde o marquês de Sade estivera preso. A Burguesa começou a desconfiar nos últimos dias de que o encontro na catedral podia ser vigiado, por isso pediu-me que viesse com ela. Não faço parte do circuito Bollinger... a Burguesa trabalha sozinha.

 

Sim, eu sei.

 

Bem, agora sabemos que a Gestapo preparara uma armadilha e ainda bem que ela me pediu que a apoiasse.

 

Você foi brilhante! exclamou Helicóptero cheio de entusiasmo. Meu Deus, tive tanto medo, pensei que tinha estragado tudo logo no primeiro dia.

 

«E estragaste», pensou Dieter.

 

Começou a achar que podia salvar a situação. Helicóptero acreditava agora piamente que Dieter era membro da Resistência. O francês do agente era perfeito, mas pelos vistos ele fora incapaz de reconhecer o ligeiro sotaque alemão de Dieter. Haveria mais alguma coisa que pudesse levantar suspeitas, talvez mais tarde quando ele recapitulasse os acontecimentos? Dieter levantara-se e exclamara «Não!» logo no início do confronto, mas um simples «Não» pouco significavam, e fosse como fosse Dieter achava que ninguém o ouvira. Willi Weber gritara «Major» em alemão para Dieter, e este disparara a arma para impedir mais indiscrições. Teria Helicóptero ouvido aquela palavra, saberia o que significava, lembrar-se-ia dela mais tarde e meditaria sobre ela? Não, decidiu Dieter. Se Helicóptero percebera a palavra, partiria do princípio de que Weber estava a dirigir-se a outro homem da Gestapo: estavam todos vestidos à civil, por isso podiam ter qualquer posto.

 

Helicóptero iria agora confiar totalmente em Dieter, pois estaria convencido de que ele o arrancara das garras da Gestapo.

 

Outros agentes poderiam não ser tão fáceis de enganar. A existência de um novo membro da Resistência com o nome de código Charenton e recrutado por Mademoiselle Lemas necessitaria de ser explicada de forma plausível tanto a Londres como ao líder do circuito Bollinger, Michel Clairet. Ambos poderiam fazer perguntas e querer certificar-se de que não havia problemas. Dieter teria de lidar com eles quando chegasse a altura. Não era possível antecipar tudo.

 

Permitiu-se saborear um momento de triunfo. Estava um passo mais próximo do seu objectivo: atingir a Resistência no Norte da França. Safara-se bem apesar da estupidez da Gestapo. E fora extasiante.

 

O desafio agora era aproveitar ao máximo a confiança de Helicóptero. O agente deveria continuar a operar, livre de qualquer suspeita. Assim poderia conduzir Dieter a mais agentes, talvez até a dezenas deles. Mas não seria fácil.

 

Chegaram à Rue du Bois e Stéphanie meteu o carro na garagem de Mademoiselle Lemas. Entraram em casa pela porta das traseiras e sentaram-se na cozinha. Stéphanie foi buscar uma garrafa de uísque à cave e serviu uma rodada.

 

Dieter estava ansioso por confirmar que Helicóptero tinha um rádio.

 

É melhor enviar uma mensagem para Londres imediatamente.

 

O combinado é enviar às oito e receber às onze. Dieter tomou mentalmente nota daquela informação.

 

Mas tem de lhes dizer o mais depressa possível que o ponto de encontro da catedral está comprometido. Não queremos que mandem para cá mais homens. E pode vir mais alguém a caminho esta noite.


Oh, meu Deus, sim! exclamou o rapaz. Vou utilizar a frequência de emergência.

 

Pode instalar o rádio aqui na cozinha.

 

Helicóptero içou a pesada mala para cima da mesa e abriu-a.

 

Dieter ocultou um suspiro de satisfação. Ali estava o rádio.

 

O interior da mala estava dividido em quatro: dois compartimentos laterais e, no meio, um à frente e outro atrás. Dieter reparou que o compartimento do meio atrás continha o transmissor, com a tecla de morse no canto inferior direito, e o da frente o rádio, com uma entrada para os auscultadores. O compartimento da direita era a fonte de energia. A função do compartimento da esquerda tornou-se clara quando o agente levantou a tampa para revelar uma selecção de acessórios e peças sobressalentes: um fio eléctrico, adaptadores, fio de antena, cabos de ligação, auscultadores, tubos sobressalentes, fusíveis e uma chave de fendas.

 

Era um estojo funcional e compacto, pensou Dieter com admiração; o tipo de coisas que os Alemães fariam, bem diferente do que seria de esperar nos desorganizados Ingleses.

 

Já sabia as horas de transmissão e de recepção de Helicóptero. Agora tinha de descobrir as frequências utilizadas e mais importante ainda o código.

 

Helicóptero enfiou uma ficha na tomada.

 

Pensei que funcionava a pilhas comentou Dieter.

 

A pilhas ou a electricidade. Creio que o truque favorito da Gestapo, quando tenta localizar a fonte de uma transmissão de rádio ilícita, é desligar a electricidade da cidade quarteirão a quarteirão até a emissão ser interrompida.

 

Dieter assentiu.

 

Bem, com este rádio, se ficarmos sem corrente em casa, só temos de reverter esta ficha e o rádio passa a funcionar a pilhas.

 

Muito bem. Dieter passaria aquela informação à Gestapo, não fossem os seus homens desconhecerem-na.

 

Helicóptero ligou a ficha a uma tomada, depois pegou no fio da antena e pediu a Stéphanie que o colocasse em cima de um armário alto. Dieter procurou nas gavetas da cozinha e encontrou um lápis e um bloco que Mademoiselle Lemas provavelmente utilizara para anotar a lista das compras.

 

Pode usar isto para codificar a sua mensagem sugeriu esperançado.

 

Primeiro é melhor pensar no que vou dizer. Helicóptero coçou a cabeça e começou a escrever em inglês:

 

CHEGUEI BEM STOP ENCONTRO CRIPTA POUCO SEGURO STOP DETECTADO PELA GESTAPO MAS FUGI TERMINADO


Acho que chega por agora disse.

 

Devíamos indicar-lhes um novo local de encontro para os próximos agentes. Sugira o Café de la Gare, perto da estação de comboios.

 

Helicóptero tomou nota.

 

Tirou da mala um lenço de seda com um quadro complexo estampado com letras agrupadas por pares. Também tirou um bloco com cerca de uma dezena de folhas com palavras disparatadas de cinco letras impressas. Dieter reconheceu aquele sistema de encriptação. Era impossível de decifrar a menos que se tivesse o bloco.

 

Por cima das palavras da sua mensagem, Helicóptero escreveu os grupos de cinco letras que se encontravam no bloco; depois utilizou as letras que escrevera para seleccionar transposições do lenço de seda. Sobre as primeiras cinco letras de CHEGUEI escrevera o primeiro grupo do bloco, que era BGKRU. A primeira letra, B, indicou-lhe que coluna utilizar do quadro no lenço de seda. Quase no cimo da coluna B estavam as letras «Ce». Isso dizia-lhe para substituir o C de CHEGUEI pela letra «e».

 

O código não podia ser descoberto da forma habitual, porque o C seguinte seria representado não por um «e» mas sim por outra letra. Aliás, qualquer letra podia substituir uma outra, e a única maneira de descodificar a mensagem era utilizar o bloco com os grupos de cinco letras. Mesmo que alguém deitasse as mãos a uma mensagem codificada e à original, não podia utilizá-las para ler outra mensagem, porque a mensagem seguinte seria codificada com uma folha diferente do bloco. Cada folha era utilizada uma vez e depois queimada.

 

Depois de ter codificado a mensagem, Helicóptero ligou o interruptor do rádio e rodou um botão que tinha escrito em inglês «comutador de cristais». Olhando com mais atenção, Dieter reparou que o mostrador tinha três riscos ténues a lápis de cera amarelo. Helicóptero não confiara na sua memória e marcara as posições de emissão. O cristal que estava a utilizar devia ser reservado para emergências. Dos outros dois, um seria para a transmissão e outro para a recepção.

 

Por fim, sintonizou o rádio, e Dieter viu que o mostrador da frequência também tinha riscos feitos com lápis de cera amarelo.

 

Antes de enviar a mensagem, testou o posto receptor enviando:

 

HLCP DXDX QTCl QRK? K

 

Dieter franziu o sobrolho, pensativo. O primeiro grupo tinha de indicar «Helicóptero». O seguinte, «DXDX», era um mistério. O número 1 no fim de «QTC1» sugeria que aquele grupo significava algo como «tenho uma mensagem para enviar». O ponto de interrogação no fim de «QRK?» fê-lo pensar que ele perguntava se estava a ser recebido em boas condições. «K» significava «terminado», ele sabia. Isso deixava de fora o misterioso «DXDX». Aventou uma hipótese.

 

Não se esqueça do código de segurança disse.

 

Não esqueci respondeu Helicóptero. «Deve ser o DXDX», concluiu Dieter.

 

Helicóptero mudou para «Recepção» e ouviram a resposta em morse:

 

HLCP QRK QRV K

 

De novo, o primeiro grupo indicava «HLCP». O segundo grupo, «QRK», aparecera na mensagem original. Sem o ponto de interrogação significava provavelmente «estou a recebê-lo em boas condições». Não tinha a certeza quanto a «QRV», mas calculou que queria dizer «prossiga».

 

Dieter observou radiante Helicóptero enviar a mensagem em morse. Aquele era o sonho do captor de espiões: tinha um agente nas mãos e o agente não sabia que fora capturado.

 

Quando a mensagem foi enviada, Helicóptero desligou rapidamente o rádio. Como a Gestapo utilizava equipamento que permitia descobrir mensagens de rádio para localizar espiões, era perigoso operar um rádio durante mais que alguns minutos.

 

Em Inglaterra, a mensagem tinha de ser transcrita, descodificada e passada ao controlador de Helicóptero, que poderia ter de consultar outras pessoas antes de responder; tudo aquilo levaria várias horas, por isso Helicóptero esperaria até à hora combinada pela resposta.

 

Agora Dieter tinha de o separar do rádio e, mais importante ainda, dos códigos.

 

Calculo que agora queira contactar o circuito Bollinger disse.

 

Sim. Londres precisa de saber o que resta dele.

 

Vamos pô-lo em contacto com Monet, que é o nome de código do líder. Olhou para o relógio e entrou em pânico: era um dos relógios especialmente feitos para os oficiais do Exército Alemão, e se Helicóptero o reconhecesse a brincadeira chegaria ao fim. Tentando ocultar o tremor da voz, Dieter continuou: Ainda temos tempo, eu levo-o de carro a casa dele.


É longe? perguntou Helicóptero com ansiedade.

 

No centro da cidade.

 

Monet, cujo verdadeiro nome era Michel Clairet, não deveria estar em casa. Já não a utilizava; Dieter verificara isso. Os vizinhos diziam não ter ideia de onde ele se encontrava. Dieter não ficara surpreendido. Monet calculara que o seu nome e morada passariam a ser do conhecimento dos alemães depois de um dos seus camaradas ser interrogado, e fora para um esconderijo.

 

Helicóptero começou a fechar o rádio.

 

Essa pilha tem de ser recarregada de vez em quando? perguntou Dieter.

 

Sim... aliás, disseram-me para a ligar à tomada sempre que possível, para ter sempre a carga toda.

 

Porque não o deixa aqui? Podemos vir buscá-lo mais tarde, quando já estiver carregado. Se alguém entrar aqui entretanto, a Burguesa consegue escondê-lo em poucos segundos.

 

Boa ideia.

 

Então vamos. Dieter foi à frente até à garagem e saiu de marcha atrás com o Simca Cinq. Espere aqui um pouco, tenho de dizer uma coisa à Burguesa.

 

Regressou a casa. Stéphanie estava na cozinha, a olhar para a mala do rádio em cima da mesa da cozinha. Dieter tirou do compartimento dos acessórios o bloco e o lenço de seda.

 

Quanto tempo é que levas a copiar isto? perguntou. Ela fez uma careta?

 

Essas letrinhas todas? No mínimo uma hora.

 

Fá-lo o mais depressa possível, mas não te enganes. Vou mantê-lo fora daqui durante hora e meia.

 

Regressou ao carro e levou Helicóptero ao centro da cidade.

 

A casa de Michel Clairet era uma vivenda pequena e elegante perto da catedral. Dieter esperou no carro enquanto Helicóptero foi bater à porta. Passados poucos minutos, o agente regressou.

 

Não está ninguém.

 

Pode tentar outra vez de manhã disse Dieter. Entretanto, conheço um café utilizado pela Resistência. Era mentira. Vamos até lá ver se eu reconheço alguém.

 

Estacionou perto da estação e escolheu um café ao acaso. Estiveram sentados durante quase uma hora a beber cerveja, depois regressaram à Rue du Bois.

 

Quando entraram na cozinha, Stéphanie assentiu discretamente na direcção de Dieter. Ele deduziu que isso significava que ela conseguira copiar tudo.


Agora calculo que gostaria de tomar um banho, uma vez que passou a noite ao relento disse ele para Helicóptero. E devia também fazer a barba. Vou mostrar-lhe o seu quarto enquanto a Burguesa lhe põe o banho a correr.

 

É muito simpático da vossa parte.

 

Dieter colocou-o no quarto do sótão, o mais longe possível da casa de banho. Assim que ouviu o rapaz na banheira, foi ao quarto dele e revistou-lhe as roupas. Helicóptero trazia uma muda de roupa interior e meias, tudo com etiquetas francesas. Nos bolsos do seu casaco havia cigarros e fósforos franceses, um lenço com etiqueta francesa e uma carteira. Na carteira havia bastante dinheiro meio milhão de francos, o suficiente para comprar um carro de luxo, isto se houvesse carros à venda. Os documentos de identificação pareciam verdadeiros, embora devessem ser forjados.

 

Também havia uma fotografia.

 

Dieter olhou para ela surpreendido. Era de Flick Clairet. Não havia dúvidas. Era a mulher que ele vira na praça em Sainte-Cécile. Tê-la encontrado era um grande golpe de sorte para Dieter e um desastre para ela.

 

Flick envergava um fato de banho que revelava pernas musculadas e braços bronzeados. Sob o fato de banho tinha seios bonitos, uma cintura fina e ancas agradavelmente arredondadas. Havia um brilho de humidade, quer de água ou de transpiração, na sua garganta, e ela olhava para a máquina fotográfica com um ligeiro sorriso. Atrás dela e ligeiramente desfocados, dois jovens em calções de banho pareciam prestes a mergulhar para um rio. A fotografia parecia ter sido tirada numa reunião inocente. Mas a seminudez dela, a humidade na sua garganta e o ligeiro sorriso combinavam-se para conferir à fotografia uma carga sexual. Se não fossem os rapazes em pano de fundo, ela poderia parecer prestes a despir o fato de banho e a revelar o seu corpo à pessoa atrás da máquina fotográfica. Era assim que uma mulher sorria ao seu homem quando queria que ele fizesse amor com ela, pensou Dieter. Percebeu perfeitamente por que motivo o rapaz guardava a fotografia.

 

Supostamente, os agentes não deviam levar fotografias para território inimigo por diversas razões. A paixão de Helicóptero por Flick Clairet poderia destruí-la, bem como a grande parte da Resistência francesa.

 

Dieter enfiou a fotografia no bolso e saiu do quarto. Afinal de contas, tivera um dia bastante produtivo.

 

Paul Chancellor passou o dia a combater a burocracia militar a persuadir, a ameaçar, a implorar, a lisonjear e, como último recurso, a utilizar o nome de Monty até por fim conseguir um avião para os treinos de pára-quedismo da equipa no dia seguinte.

 

Quando apanhou o avião de regresso a Hampshire, constatou que estava ansioso por tornar a ver Flick. Gostava bastante dela. Era inteligente, corajosa e agradável à vista. Quem lhe dera que fosse solteira.

 

No comboio leu no jornal as notícias sobre a guerra. A longa calmaria na frente oriental fora quebrada, na véspera, por um ataque surpreendentemente forte dos Alemães na Roménia. A capacidade de recuperação dos Alemães era formidável. Estavam a recuar em toda a parte, mas continuavam a ripostar.

 

O comboio atrasou-se e ele perdeu o jantar na escola de aperfeiçoamento às seis da tarde. Depois do jantar havia sempre outra palestra e às nove os alunos podiam finalmente descontrair durante cerca de uma hora antes de irem para a cama. Paul encontrou a maior parte da equipa reunida na sala de estar da casa, que tinha uma estante com livros, um armário cheio de jogos, um rádio e uma mesa de bilhar pequena. Paul sentou-se no sofá ao lado de Flick.

 

Que tal correu hoje o dia?

 

Melhor do que esperávamos respondeu ela. Mas foi tudo tão resumido. Não sei se elas irão lembrar-se de muito quando estiverem em acção.

 

Acho que qualquer coisa é melhor que nada.

 

Percy Thwaite e Jelly jogavam póquer a moedas. Jelly era uma figura castiça, pensou Paul. Como é que uma arrombadora de cofres profissional podia considerar-se uma mulher respeitável?


Que tal se saiu a Jelly? perguntou ele a Flick.

 

Bem. Teve mais dificuldades que as outras no treino físico, mas encheu-se de coragem e não desistiu, e no fim acabou por fazer tudo o que as mais novas fizeram. Flick hesitou e franziu o sobrolho.

 

O que foi? perguntou Paul.

 

A hostilidade dela em relação à Greta é um problema.

 

Não é de admirar que uma inglesa odeie os Alemães.

 

Mas é ilógico... a Greta sofreu mais às mãos dos nazis do que a Jelly.

 

A Jelly não sabe isso.

 

Sabe que a Greta está disposta a combater os nazis.

 

As pessoas não são lógicas em relação a essas coisas.

 

Pode crer.

 

Greta conversava com Denise. Ou melhor, pensou Paul, Denise falava e Greta escutava.

 

O meu meio-irmão, lorde Foules, pilota bombardeiros ouviu-a ele dizer com o seu sotaque aristocrata. Tem-se treinado para levar apoio às tropas aquando da invasão.

 

Paul franziu o sobrolho.

 

Ouviu aquilo? perguntou ele a Flick.

 

Sim. Ou ela está a inventar, ou está a ser bastante indiscreta. Paul observou Denise. Era uma rapariga esquelética que tinha sempre o ar de quem acabara de ser insultada. Não lhe pareceu que ela estivesse a inventar.

 

Não creio que ela tenha uma grande imaginação comentou.

 

Concordo. Acho que ela está a revelar segredos verdadeiros.

 

É melhor eu providenciar um pequeno teste para amanhã.

 

Certo.

 

Paul queria estar sozinho com Flick para poderem falar mais à vontade.

 

Vamos dar um passeio pelo jardim sugeriu ele. Saíram da sala. O ar da noite era ameno e ainda lhes restava uma hora de claridade. A casa tinha um jardim grande com vários hectares de relva e algumas árvores. Maude e Diana estavam sentadas num banco sob uma faia. Maude tentara namoriscar com Paul, mas como ele não a encorajara, ela parecia ter desistido. Naquele momento escutava avidamente algo que Diana dizia, e olhava para o seu rosto com uma expressão quase de adoração.

 

O que será que a Diana está a dizer? perguntou Paul. Conseguiu fascinar a Maude.


A Maude gosta de a ouvir falar dos sítios onde esteve respondeu Flick. Dos desfiles de moda, dos bailes, dos transatlânticos.

 

Paul recordou-se de que Maude os surpreendera ao perguntar se a missão os levaria a Paris.

 

Talvez ela quisesse ir para a América comigo disse ele.

 

Reparei que ela se atirou a si comentou Flick. É bonita.

 

Mas não é o meu género.

 

Porque não?

 

Quer mesmo saber? Não é suficientemente inteligente.

 

Óptimo disse Flick. Fico contente. Ele arqueou uma sobrancelha.

 

Porquê?

 

Se assim não fosse ficaria com má opinião a seu respeito. Ele achou que ela estava a ser um pouco condescendente.

 

Ainda bem que tenho a sua aprovação.

 

Não seja irónico admoestou ela. Estava a fazer-lhe um elogio.

 

Ele sorriu. Não conseguia impedir-se de gostar dela, mesmo quando ela se mostrava arrogante.

 

Então é melhor eu desistir enquanto estou em vantagem. Passaram perto das duas mulheres e ouviram Diana dizer:

 

Então a condessa disse «Mantenha essas garras pintadas longe do meu marido» e despejou o copo de champanhe na cabeça da Jennifer, e a seguir esta puxou o cabelo da condessa... e ficou com ele na mão, porque era uma peruca!

 

Maude riu-se.

 

Quem me dera ter lá estado!

 

Parece que estão todas a fazer amigas comentou Paul.

 

Isso agrada-me. Preciso que elas trabalhem em equipa.

 

O jardim foi-se fundindo com a floresta e passado pouco tempo estavam embrenhados nela. Sob a copa das árvores a luz já era muito ténue.

 

Porque é que chamam a isto Floresta Nova? perguntou Paul. A mim parece-me velha.

 

Ainda está à espera que os nomes ingleses sejam lógicos? Ele soltou uma gargalhada.

 

Acho que não.

 

Caminharam em silêncio durante algum tempo. Paul sentia-se bastante romântico. Apetecia-lhe beijá-la, mas ela tinha uma aliança na mão.


Quando tinha quatro anos conheci o rei disse Flick.

 

O actual rei?

 

Não, o pai dele, Jorge V. Foi a Somersholme. Puseram-me bem longe dele, claro, mas ele foi até ao jardim da cozinha no domingo de manhã e viu-me. Disse-me: «Bom dia, menina, está pronta para ir à igreja?» Era um homem pequeno, mas tinha uma voz possante.

 

E o que é que você disse?

 

Eu perguntei: «Quem é o senhor?» Ele respondeu «Sou o rei». E depois, segundo reza a lenda da família, eu retorqui: «Não pode ser, o senhor é demasiado pequeno.» Felizmente, ele desatou a rir.

 

Já em pequena você não tinha respeito pela autoridade.

 

Parece que não.

 

Paul ouviu um gemido. Franzindo o sobrolho, olhou na direcção do som e viu Ruby Romain com Jim Cardwell, o instrutor de tiro. Ruby estava encostada a uma árvore e Jim abraçava-a. Beijavam-se apaixonadamente. Ruby tornou a gemer.

 

Não estavam só abraçados, percebeu Paul, sentindo-se simultaneamente atrapalhado e excitado. As mãos de Jim encontravam-se dentro da blusa de Ruby. Ela tinha a saia subida até à cintura. Paul viu uma perna bronzeada e uma mancha de cabelo negro nas virilhas dela. A outra perna estava levantada e dobrada pelo joelho, e o pé de Ruby repousava nas ancas de Jim. O movimento que faziam juntos era inconfundível.

 

Paul olhou para Flick. Ela vira o mesmo. Fitou-os durante um momento, a sua expressão mostrando surpresa e outra coisa. Depois virou-lhes rapidamente as costas. Paul seguiu-a e voltaram por onde tinham vindo, caminhando o mais silenciosamente possível.

 

Quando já se encontravam a alguma distância, ele falou.

 

Lamento imenso aquilo.

 

A culpa não é sua respondeu ela.

 

Mesmo assim, peço desculpa por tê-la levado para ali.

 

A sério que não me importo. Nunca tinha visto ninguém... a fazer aquilo. Achei bastante doce.

 

Doce? Não era a palavra que ele teria escolhido. Sabe, você é bastante imprevisível.

 

Só agora é que reparou?

 

Não seja irónica, estava a fazer-lhe um elogio retorquiu ele, repetindo as palavras dela.

 

Flick riu-se.

 

Então é melhor afastar-me enquanto estou em vantagem.


Saíram da floresta. A luz do dia começava a desaparecer e as cortinas do blackout já tinham sido corridas em casa. Maude e Diana tinham abandonado o seu banco debaixo da faia.

 

Vamos sentar-nos aqui um bocado disse Paul. Não estava com pressa de entrar.

 

Flick assentiu em silêncio.

 

Ele sentou-se de frente para ela. Flick aguentou o seu escrutínio sem comentários, mas parecia pensativa. Ele pegou-lhe na mão e acariciou-lhe os dedos. Ela fitou-o com uma expressão neutra, mas não afastou a mão.

 

Eu sei que não devia, mas apetecia-me imenso beijá-la.

 

Ela não respondeu, mas continuou a olhar para ele com uma expressão enigmática, meio divertida e meio triste. Ele tomou o silêncio dela por consentimento e beijou-a.

 

A boca dela era macia e húmida. Paul fechou os olhos, concentrando-se na sensação. Para sua surpresa, os lábios dela entreabriram-se, e ele sentiu a ponta da língua dela. Abriu a boca.

 

Abraçou-a e puxou-a para si, mas ela libertou-se e pôs-se de pé.

 

Chega disse. Virou-se e dirigiu-se para casa.

 

Ele viu-a afastar-se no crepúsculo. O seu corpo pequeno e bonito pareceu-lhe subitamente a coisa mais desejável do mundo.

 

Depois de ela ter entrado, ele seguiu-a. Na sala de estar, encontrou Diana sozinha, a fumar um cigarro com ar pensativo. Num impulso, Paul sentou-se ao pé dela.

 

Você conhece a Flick desde pequena. Diana sorriu com uma ternura surpreendente.

 

Ela é adorável, não é?

 

Paul não queria revelar muito do que lhe ia na alma.

 

Simpatizo bastante com ela, e gostava de saber mais coisas a seu respeito.

 

Ela sempre gostou muito de aventuras disse Diana. Adorava aquelas longas viagens que fazíamos a França todos os meses de Fevereiro. Passávamos uma noite em Paris, depois apanhávamos o Comboio Azul até Nice. Num Inverno, o meu pai decidiu ir a Marrocos. Acho que foi a melhor altura da vida de Flick. Aprendeu algumas palavras árabes e falava com os mercadores nos suks. Costumávamos ler as memórias daquelas exploradoras vitorianas audazes que foram até ao Médio Oriente vestidas de homem.

 

Ela dava-se bem com o seu pai?

 

Melhor do que eu.

 

Como é o marido dela?

 

Todos os homens da Flick são um pouco exóticos. Em Oxford, o melhor amigo dela era um rapaz nepalês, o Rajendra, o que causou uma grande consternação no dormitório de Saint Hilda, embora eu não tenha a certeza de que ela se chegou a portar mal com ele. Havia outro rapaz loucamente apaixonado por ela, o Charlie Standish, mas era demasiado aborrecido. Ela apaixonou-se pelo Michel porque ele é encantador e estrangeiro e inteligente, como ela gosta.

 

Exótico repetiu Paul. Diana riu-se.

 

Não se preocupe, você serve. É americano, tem uma orelha e meia e é bastante inteligente. Pelo menos tem hipótese.

 

Paul levantou-se. A conversa estava a tomar um rumo desconfortavelmente pessoal.

 

Considero isso um elogio disse ele com um sorriso. Boa noite.

 

A caminho dos seus aposentos passou pelo quarto de Flick. Havia luz sob a porta.

 

Paul vestiu o pijama e deitou-se, mas não foi capaz de adormecer. Estava demasiado excitado e feliz para conseguir dormir. Recordou o beijo uma e outra vez. Desejou que ele e Flick pudessem ser como Ruby e Jim e ceder ao desejo sem vergonha. «Porque não?», pensou de si para si. «Porque não mesmo?»

 

A casa foi ficando em silêncio.

 

Pouco depois da meia-noite, Paul levantou-se. Avançou pelo corredor até ao quarto de Flick. Bateu de mansinho à porta e entrou.

 

Olá disse ela.

 

Sou eu.

 

Eu sei.

 

Estava deitada de costas numa cama de solteira; a cabeça apoiada em duas almofadas. As cortinas haviam sido abertas e o luar entrava por uma janela pequena. Ele via com clareza a linha direita do nariz dela e o queixo cinzelado que já achara feio. Naquele momento pareceu-lhe angelical.

 

Ajoelhou-se ao lado da cama.

 

A resposta é não disse ela.

 

Ele pegou-lhe na mão e beijou-a na palma.

 

Por favor suplicou.

 

Não.

 

Paul aproximou-se para a beijar, mas ela desviou a cara.

 

Só um beijo? perguntou ele.

 

Se o beijo, estou perdida.

 

Aquilo agradou a Paul. Dizia-lhe que ela sentia o mesmo que ele. Beijou-lhe o cabelo, depois a testa e a cara, mas ela continuou a esquivar-se. Beijou-lhe o ombro por cima da camisa de dormir de algodão, depois passou os lábios pelo seio dela.

 

Você quer.

 

Fora ordenou ela.

 

Não diga isso.

 

Ela virou-se para ele. Paul aproximou o rosto para a beijar, mas ela encostou um dedo aos lábios dele como que para o calar.

 

Vá-se embora. Estou a falar a sério.

 

Paul fitou o seu rosto encantador ao luar. Flick tinha uma expressão determinada. Embora mal a conhecesse, percebeu que não conseguiria vergá-la. Com relutância, levantou-se.

 

Tentou mais uma vez.

 

Olhe, vamos...

 

Chega de conversa. Vá-se embora. Ele virou-se e saiu do quarto.

 

O QUINTO DIA

 

Quinta-feira, 1 de Junho de 1944

 

Dieter dormiu algumas horas no Hotel Frankfort e levantou-se às duas da manhã. Estava sozinho: Stéphanie encontrava-se na casa da Rue du Bois com o agente britânico Helicóptero. Durante a manhã, Helicóptero iria procurar o dirigente do circuito Bollinger e Dieter tinha de o seguir. Sabia que Helicóptero começaria pela casa de Michel Clairet, por isso decidiu mandar para lá uma equipa de vigilância logo ao romper do dia.

 

Conduziu até Sainte-Cécile às primeiras horas do dia, serpenteando por entre as vinhas banhadas pelo luar no seu carro grande, e estacionou em frente ao castelo. Dirigiu-se primeiro ao laboratório fotográfico na cave. Não havia ninguém na câmara escura, mas as suas fotografias estavam lá, penduradas numa corda a secar como roupa. Pedira duas cópias da fotografia de Flick Clairet. Tirou-as da corda e observou uma delas, recordando-se de como ela correra debaixo de fogo para salvar o marido. Tentou ver alguma dessa determinação de aço na expressão despreocupada da rapariga bonita em fato de banho, mas não havia vestígios dela. Sem dúvida surgira com a guerra.

 

Enfiou no bolso a cópia e pegou na fotografia original, que teria de ser sub-repticiamente devolvida a Helicóptero. Arranjou um sobrescrito e uma folha em branco, pensou por momentos e escreveu:

 

Minha querida,

 

Enquanto o Helicóptero estiver a fazer a barba, mete isto no bolso de dentro do casaco dele, por favor, para que pareça ter caído da carteira. Obrigado.

 

D.


Meteu o bilhete e a fotografia dentro do sobrescrito, fechou-o e escreveu «Mlle. Lemas» à frente. Deixá-lo-ia mais tarde em casa dela.

 

Passou pelas celas e espreitou para a de Marie, a rapariga que o surpreendera na véspera ao aparecer na casa da Rue du Bois com comida para as visitas de Mademoiselle Lemas. Estava deitada em cima de um lençol ensanguentado, a olhar para a parede com uma expressão horrorizada, a gemer como uma máquina avariada que não fora desligada.

 

Dieter interrogara Marie na noite anterior. Ela não possuía informações úteis. Afirmava não conhecer ninguém na Resistência, apenas Mademoiselle Lemas. Dieter sentira-se inclinado a acreditar nela, mas deixara o sargento Becker torturá-la na mesma. No entanto, ela não alterara a sua história e agora ele tinha quase a certeza de que o desaparecimento dela não alertaria a Resistência em relação à impostora na Rue du Bois.

 

Sentiu-se um pouco deprimido ao olhar para o seu corpo mutilado. Lembrou-se de a ver na véspera com a bicicleta a aproximar-se da casa, uma imagem que exalava saúde. Fora uma rapariga feliz, embora um pouco tonta. Cometera um erro simples e agora a sua vida aproximava-se de um fim trágico. Merecia o seu destino, claro; ajudara terroristas. Mesmo assim, era horrível pensar naquilo.

 

Afastou-a dos seus pensamentos e subiu as escadas. No rés-do-chão, as telefonistas do turno da noite encontravam-se na central. Por cima, no que outrora fora um andar cheio de quartos gigantescos, ficavam os escritórios da Gestapo.

 

Dieter não voltara a ver Weber desde o fiasco na catedral e calculava que o homem devia estar algures a lamber as feridas. No entanto, falara com o ajudante de Weber e pedira quatro homens da Gestapo à paisana para as três da manhã, para a vigilância do dia. Dieter também ordenara ao tenente Hesse que estivesse presente. Afastou uma cortina e olhou lá para fora. O luar iluminava o parque de estacionamento e viu Hans a atravessar o pátio, mas mais ninguém.

 

Dirigiu-se ao gabinete de Weber e ficou admirado de o encontrar ali sozinho, à secretária, fingindo trabalhar à luz do candeeiro com um quebra-luz verde.

 

Onde estão os homens que eu pedi? perguntou Dieter. Weber levantou-se.

 

Você ontem apontou-me uma arma disse ele. O que raio pretendia ao ameaçar um oficial?

 

Dieter esperava aquilo. Weber estava a ser agressivo por causa de um incidente em que fizera figura de parvo. Seria possível ainda não ter percebido o erro que cometera?


A culpa foi sua, seu idiota respondeu Dieter exasperado. Eu não queria aquele homem preso.

 

Pode ir a tribunal militar por causa do que fez.

 

Dieter estava prestes a ridicularizar a ideia, mas calou-se. Era verdade, percebeu. Fizera apenas o que era necessário para salvar a situação; mas não era impossível, no burocrático Terceiro Reich, um oficial ser penalizado por ter demasiada iniciativa. Sentiu-se abalado e teve de fingir-se confiante.

 

Vá lá, faça queixa de mim. Acho que vou conseguir justificar as minhas acções perante o tribunal.

 

Você disparou mesmo a arma! Dieter não conseguiu impedir-se de dizer:

 

Calculo que isso seja uma coisa a que você tenha assistido poucas vezes na sua carreira militar.

 

Weber corou. Nunca presenciara acção.

 

As armas devem ser utilizadas contra o inimigo, não contra colegas oficiais.

 

Eu disparei para o ar. Peço desculpa se o assustei. Estava prestes a dar cabo de uma operação de contra-espionagem de primeira classe. Não lhe parece que um tribunal militar poderia ter isso em linha de conta? Que ordens estava você a cumprir? Foi você quem revelou falta de disciplina.

 

Prendi um espião terrorista inglês.

 

E para quê? Ele é apenas um. O inimigo tem muitos mais. Mas, deixado em liberdade, ele irá conduzir-nos a outros... talvez a muitos outros. A sua insubordinação podia ter dado cabo dessa possibilidade. Felizmente para si, eu impedi-o de cometer um erro grave.

 

No rosto de Weber surgiu uma expressão matreira.

 

Algumas pessoas iriam achar bastante suspeito o facto de você estar tão ansioso por libertar um agente aliado.

 

Dieter suspirou.

 

Não seja estúpido. Não sou um desgraçado comerciante judeu que se assuste com a ameaça de boatos maliciosos. Não pode fingir que eu sou um traidor, ninguém iria acreditar em si. Bem, onde é que estão os meus homens?

 

O espião tem de ser preso imediatamente.

 

Não tem, não, e se você tentar, disparo contra si. Onde estão os meus homens?

 

Recuso-me a enviar homens que me fazem muita falta para uma missão irresponsável.

 

Recusa?


Sim.

 

Dieter olhou para ele. Não julgara que Weber fosse suficientemente corajoso ou idiota para fazer uma coisa daquelas.

 

O que pensa que irá acontecer-lhe quando o marechal-de-campo tiver conhecimento disto?

 

Weber pareceu assustado, mas desafiador.

 

Não estou no exército respondeu ele. Isto é a Gestapo. Infelizmente, ele tinha razão, pensou Dieter desanimado. Era muito bom Walter Goedel ordenar a Dieter que usasse pessoal da Gestapo em vez de levar soldados que faziam muita falta na costa, mas a Gestapo não era obrigada a aceitar ordens de Dieter. O nome de Rommel assustara Weber durante algum tempo, mas o susto já passara.

 

E agora Dieter podia apenas dispor do tenente Hesse. Conseguiriam ele e Hans seguir Helicóptero sem ajuda? Ia ser difícil, mas não havia alternativa.

 

Tentou mais uma ameaça.

 

Tem a certeza de que está disposto a suportar as consequências desta recusa, Willi? Vai meter-se num grande sarilho.

 

Pelo contrário, acho que você é que está metido num sarilho.

 

Dieter abanou a cabeça desesperado. Não havia mais nada a dizer. Já perdera demasiado tempo a argumentar com aquele idiota. Saiu do gabinete.

 

Encontrou Hans no vestíbulo e explicou-lhe a situação. Foram até à parte de trás do castelo, aos antigos aposentos dos criados, onde ficava a secção de engenharia. Na noite anterior Hans conseguira pedir emprestadas uma carrinha da PTT e uma bicicleta motorizada cujo pequeno motor era accionado quando se pedalava.

 

Dieter perguntou de si para si se Weber teria tido conhecimento daquilo e ordenado aos engenheiros que não os emprestassem. Esperava que não: o dia iria nascer dentro de meia hora, e ele não podia perder mais tempo com discussões. Mas não houve qualquer problema. Dieter e Hans vestiram fatos-macaco e foram-se embora com a bicicleta motorizada na parte de trás da carrinha.

 

Seguiram para Reims, rumo à Rue du Bois. Estacionaram na esquina e Hans voltou a pé para trás, à luz ténue do nascer do dia, e enfiou o sobrescrito com a fotografia de Flick na caixa do correio. O quarto de Helicóptero ficava nas traseiras, por isso não corriam o risco de ele ver Hans e poder reconhecê-lo mais tarde.

 

O Sol estava a nascer quando chegaram a casa de Michel Clairet, no centro da cidade. Hans estacionou algumas centenas de metros mais abaixo, e abriu uma tampa da PTT que se encontrava no pavimento. Fingiu estar a trabalhar enquanto observava a casa. Era uma rua movimentada com vários carros estacionados, pelo que a carrinha não dava nas vistas.

 

Dieter ficou no interior desta, escondido, a pensar na discussão com Weber. O homem era estúpido, mas tinha uma certa razão. Dieter corria um grande risco. Helicóptero podia fugir e desaparecer. Nessa altura Dieter ficaria numa posição difícil. O mais fácil seria torturar Helicóptero. Mas, embora deixá-lo em liberdade fosse arriscado, podia trazer bastantes recompensas. Se as coisas corressem bem, Helicóptero poderia ser uma mina. Quando Dieter pensou no triunfo que poderia estar quase ao seu alcance, o seu pulso acelerou devido à antecipação.

 

Por outro lado, se as coisas corressem mal, Weber iria aproveitar-se ao máximo da situação. Diria a toda a gente que se opusera ao plano arriscado de Dieter. Mas Dieter não podia permitir-se ficar preocupado com uma disputa de pontos tão burocrática. Homens como Weber, que gostavam desses joguinhos, eram as pessoas mais desprezíveis do mundo.

 

A cidade foi despertando aos poucos. As primeiras pessoas a aparecer foram mulheres que se dirigiram para a padaria em frente à casa de Michel. A loja estava fechada, mas elas esperaram pacientemente à porta enquanto conversavam. O pão era racionado, mas Dieter calculou que mesmo assim às vezes ele não devia chegar, pelo que as donas de casa mais zelosas faziam as suas compras bem cedo para ter a certeza de que conseguiam a sua parte. Quando, por fim, as portas se abriram, todas tentaram entrar ao mesmo tempo ao contrário das donas de casa alemãs, que formavam uma fila ordeira, pensou Dieter com um sentimento de superioridade. Quando viu algumas delas saírem com o pão lamentou ainda não ter tomado o pequeno-almoço.

 

Depois disso, apareceram os trabalhadores com as suas botas e boinas, cada um com um saco ou uma lancheira de fibra barata contendo o almoço. As crianças começavam a sair para a escola quando Helicóptero apareceu na bicicleta que pertencera a Marie. Dieter endireitou-se. No cesto da bicicleta encontrava-se um objecto rectangular coberto por um trapo: o rádio, calculou Dieter.

 

A cabeça de Hans apareceu no buraco.

 

Helicóptero foi até à porta de Michel e bateu. Não obteve resposta, claro. Demorou-se algum tempo no degrau, em seguida espreitou pelas janelas, depois percorreu a rua para cima e para baixo à procura da entrada das traseiras, que não existia, como Dieter sabia.


Dieter sugerira a Helicóptero o que fazer a seguir: «Vá ao café do outro lado da rua, o Chez Régis. Peça café e pão e espere.» A esperança de Dieter era que a Resistência estivesse a vigiar a casa de Michel, à espera de um emissário de Londres. Não esperava uma vigilância a tempo inteiro, mas talvez um vizinho pudesse ter concordado em manter a casa debaixo de olho. A ingenuidade evidente de Helicóptero iria tranquilizar um observador. Qualquer pessoa percebia, apenas pela forma como ele andava por ali, que ele não era um homem da Gestapo ou um agente da Milícia, a polícia de segurança francesa. Dieter estava certo de que a Resistência seria de alguma forma alertada e que dentro de pouco tempo alguém iria aparecer para falar com Helicóptero e essa pessoa poderia conduzir Dieter ao coração da Resistência.

 

Pouco depois Helicóptero fez o que Dieter sugerira. Pedalou a bicicleta rua abaixo até ao café e sentou-se numa mesa da esplanada, aparentemente a saborear o sol. Pediu um café. Devia ser um sucedâneo, mas mesmo assim ele pareceu bebê-lo com gosto.

 

Cerca de vinte minutos mais tarde pediu outro café e um jornal. Começou a lê-lo de uma ponta à outra. Tinha um ar paciente, como se estivesse preparado para esperar o dia todo. Isso era bom.

 

A manhã foi passando. Dieter começou a duvidar de que aquilo pudesse resultar. Talvez o circuito Bollinger tivesse sido tão dizimado pelo massacre de Sainte-Cécile que já tivesse deixado de funcionar, e não houvesse ninguém para executar as tarefas mais essenciais. Seria um grande desapontamento se Helicóptero não o conduzisse a outros terroristas. E Weber ficaria muito satisfeito.

 

Chegou uma altura em que Helicóptero teria de encomendar o almoço para justificar a sua ocupação da mesa. Apareceu um empregado que lhe dirigiu algumas palavras e lhe trouxe em seguida um pastis. Também aquela bebida devia ser um sucedâneo, feito com um substituto sintético da semente de anis, mas mesmo assim Dieter passou a língua pelos lábios: ter-lhe-ia sabido bem uma bebida.

 

Outro cliente sentou-se a uma mesa perto da de Helicóptero. Havia cinco mesas e o mais natural teria sido ocupar a mais afastada. Dieter sentiu-se esperançado. O recém-chegado era um homem de pernas e braços compridos com cerca de trinta anos. Vestia uma camisa de cambraia e calças de lona azul-escuras, mas Dieter não achou que ele tivesse ar de trabalhador. Era outra coisa, talvez um artista a fingir ter um ar proletário. Estava sentado com o tornozelo direito apoiado no joelho esquerdo, e a pose pareceu familiar a Dieter. Será que já vira aquele homem?


O empregado apareceu e o cliente pediu qualquer coisa. Durante cerca de um minuto nada aconteceu. Estaria o homem a observar Helicóptero? Ou apenas à espera da bebida? O empregado trouxe um copo de cerveja pálida num tabuleiro. O homem bebeu um grande gole e limpou a boca com ar satisfeito. Dieter começou a achar que ele não passava de um homem com sede. Mas ao mesmo tempo achou que já vira aquele gesto de limpar a boca.

 

Depois o recém-chegado falou a Helicóptero.

 

Dieter ficou tenso. Iria acontecer aquilo que ele esperava?

 

Os dois homens trocaram algumas palavras. Mesmo àquela distância, Dieter pressentiu que o recém-chegado tinha uma personalidade cativante: Helicóptero sorria e falava com entusiasmo. Passados poucos momentos, Helicóptero apontou para a casa de Michel, e Dieter calculou que ele devia estar a perguntar onde se encontrava o proprietário. O outro homem encolheu os ombros, um gesto tipicamente francês, e Dieter imaginou-o a dizer: «Eu cá não sei.» Mas Helicóptero pareceu insistir.

 

O recém-chegado esvaziou o copo de cerveja e Dieter recordou-se de onde o vira antes. Soube subitamente quem era aquele homem, e essa constatação sobressaltou-o tanto que ele deu um salto no banco. Vira o homem na praça, sentado a outra mesa de café com Flick Clairet, pouco antes da escaramuça aquele era o marido dela, o próprio Michel.

 

Sim! exclamou Dieter, dando um murro de satisfação no tabliê. Ficara provado que a sua estratégia estava correcta. Helicóptero conduzira-o ao coração da Resistência local.

 

Mas não esperara um êxito tão grande. Contara com a vinda de um mensageiro, e que esse mensageiro levasse Helicóptero e Dieter até Michel. Agora Dieter estava com um dilema. Michel era um prémio demasiado elevado. Deveria Dieter prendê-lo de imediato? Ou deveria segui-lo, na esperança de apanhar um peixe ainda maior?

 

Hans colocou a tampa do buraco no sítio e entrou na carrinha.

 

Contacto, meu major?

 

Sim.

 

O que fazemos a seguir?

 

Dieter não sabia ao certo. Deveria prender Michel ou segui-lo? Michel levantou-se, e Helicóptero fez o mesmo. Dieter decidiu segui-los.

 

O que é que eu faço? perguntou Hans ansioso.

 

Tire a bicicleta motorizada, depressa.

 

Hans abriu as portas de trás da carrinha e tirou de lá a bicicleta motorizada.


Os dois homens deixaram algum dinheiro em cima das mesas do café e afastaram-se. Dieter reparou que Michel coxeava ligeiramente e recordou-se de que ele fora baleado durante o confronto.

 

Siga-os, e eu sigo-o a si disse ele a Hans, pondo a carrinha a trabalhar.

 

Hans subiu para a bicicleta motorizada e começou a pedalar, accionando o motor. Avançou devagar pela rua, mantendo-se cerca de cem metros atrás dos homens. Dieter seguiu Hans.

 

Michel e Helicóptero dobraram uma esquina. Quando Dieter fez o mesmo, cerca de um minuto depois, viu que eles tinham parado a olhar para uma montra. Era uma farmácia. Não iam comprar medicamentos, claro: aquilo era uma precaução para o caso de estarem a ser seguidos. Quando Dieter passou por eles, os dois homens viraram-se e voltaram para trás. Deviam estar à espera que algum carro fizesse inversão de marcha, por isso Dieter não foi atrás deles. No entanto, viu Hans atrás de uma camioneta a voltar para trás, mantendo-se do lado oposto da rua mas sem os perder de vista.

 

Dieter contornou o quarteirão e tornou a apanhá-los. Michel e Helicóptero aproximavam-se da estação dos comboios, com Hans na peugada.

 

Dieter perguntou de si para si se eles saberiam que estavam a ser seguidos. O truque da farmácia poderia indicar que desconfiavam de qualquer coisa. Calculou que não deviam ter reparado na carrinha da PTT, porque ela estivera quase sempre bastante longe, mas podiam ter visto a bicicleta motorizada. Provavelmente, pensou Dieter, a mudança de direcção era uma precaução tomada regularmente por Michel, habituado a mover-se sem dar nas vistas.

 

Os dois homens atravessaram os jardins em frente à estação. Não havia flores nos canteiros, mas algumas árvores estavam em flor, desafiando a guerra. A estação era um edifício clássico com pilastras e frontões triangulares, pesadão e excessivamente decorado, sem dúvida semelhante aos homens de negócios do século xix que o haviam mandado construir.

 

O que faria Dieter se Michel e Helicóptero apanhassem um comboio? Seria demasiado arriscado apanhar o mesmo comboio que eles. Helicóptero iria de certeza reconhecê-lo, e era até possível que Michel se recordasse dele na praça de Sainte-Cécile. Não, Hans teria de subir para o comboio e Dieter segui-los-ia pela estrada.

 

Entraram na estação por um dos três arcos clássicos. Hans abandonou a bicicleta motorizada e seguiu-os. Dieter parou e fez o mesmo. Se os dois homens se dirigissem às bilheteiras, ele diria a Hans para se pôr atrás deles na fila e para comprar um bilhete para o mesmo destino.


Não se encontravam na bilheteira. Dieter entrou na estação mesmo a tempo de ver Hans descer as escadas que conduziam ao túnel sob as linhas que ligava as plataformas. Talvez Michel tivesse comprado bilhetes previamente, pensou Dieter. Isso não era problema. Hans entraria no comboio sem bilhete.

 

Dos dois lados do túnel havia degraus que conduziam às plataformas. Dieter seguiu Hans, passando por todas as entradas. Pressentindo perigo, estugou o passo ao subir as escadas próximas da entrada de trás da estação. Apanhou Hans e saíram ambos para a Rue de Courcelles.

 

Vários prédios tinham sido recentemente bombardeados, mas havia carros estacionados nas zonas sem entulho. Dieter observou a rua, começando a sentir medo. A cerca de cem metros, Michel e Helicóptero estavam a entrar num carro preto. Dieter e Hans nunca os apanhariam. Dieter pousou a mão na arma, mas a distância era demasiado grande para o alcance da pistola. O carro arrancou. Era um Renault Monaquatre preto, um dos carros mais comuns em França. Dieter não conseguiu ver a matrícula. O carro avançou a grande velocidade pela rua e dobrou uma esquina.

 

Dieter praguejou. Era um esquema simples mas infalível. Ao entrar no túnel, haviam obrigado os perseguidores a abandonar os seus veículos; depois tinham um carro à espera do outro lado, permitindo-lhes fugir. Podiam nem sequer ter detectado as suas sombras: tal como a mudança de direcção junto à farmácia, o truque do túnel fora provavelmente uma precaução rotineira.

 

Dieter sentiu-se irritado. Arriscara e perdera. Weber ficaria radiante.

 

O que fazemos agora? perguntou Hans.

 

Regressamos a Sainte-Cécile.

 

Voltaram para a carrinha, meteram a bicicleta motorizada na parte de trás e seguiram para o quartel-general.

 

Restava ainda uma esperança a Dieter. Sabia as horas a que Helicóptero deveria efectuar o contacto via rádio e as frequências que lhe haviam sido atribuídas. A Gestapo dispunha de um sistema sofisticado, desenvolvido e melhorado durante a guerra, para detectar emissões ilícitas e segui-las até à sua origem. Muitos agentes aliados haviam sido capturados dessa forma. À medida que o treino inglês ia melhorando, os operadores de rádio foram adoptando melhores medidas de segurança, emitindo sempre de um local diferente, nunca ficando no ar mais de quinze minutos; mas os descuidados ainda podiam ser apanhados.

 

Iriam os britânicos desconfiar que Helicóptero fora descoberto?


Helicóptero devia naquele momento estar a contar as suas aventuras a Michel. Este iria interrogá-lo sobre a prisão na catedral e subsequente fuga. Estaria particularmente interessado no recém-chegado com o nome de código Charenton. No entanto, não teria motivos para desconfiar que Mademoiselle Lemas não era quem dizia ser. Michel nunca a vira, por isso não desconfiaria de nada mesmo que Helicóptero comentasse que ela era uma jovem ruiva atraente em vez de uma solteirona de meia-idade. E Helicóptero não fazia ideia de que o seu bloco e o seu lenço de seda tinham sido meticulosamente copiados por Stéphanie, ou que as suas frequências haviam sido vistas devido às marcas a lápis de cera amarelo nos mostradores por Dieter.

 

Talvez ainda não estivesse tudo perdido, pensou Dieter.

 

Quando entrou no castelo encontrou Weber no vestíbulo. Weber fitou-o.

 

Perdeu-o?

 

«Os chacais conseguem farejar sangue», pensou Dieter.

 

Sim admitiu. Não era digno de si mentir a Weber.

 

Ah! exclamou ele triunfante. Devia ter deixado esse trabalho para os peritos.

 

Muito bem, é o que vou fazer respondeu Dieter. Weber pareceu surpreendido. Ele vai comunicar com Inglaterra às oito horas. Aqui está a sua oportunidade de exibir os seus dotes. Mostre o que vale. Localize-o.

 

The Fisherman’s Rest era um grande pub que se erguia na margem do estuário como um forte, com chaminés a substituir torres de tiro e vidros fumados em vez de fendas de observação. Um cartaz desbotado no jardim da frente avisava os clientes para se manterem afastados da praia que fora minada em 1940, em antecipação da invasão alemã.

 

Desde que o EOE se mudara para aquela zona o pub estava cheio todas as noites. As suas luzes brilhavam atrás das cortinas do blackout, o piano tocava alto, os balcões não tinham espaço para mais clientes e os que sobravam iam até ao jardim nas noites quentes de Verão. As canções eram gritadas, bebia-se muito e as carícias raiavam a indecência. Pairava uma atmosfera de abandono, pois toda a gente sabia que alguns dos jovens que se riam ruidosamente naquela noite iriam no dia seguinte embarcar em missões das quais poderiam nunca regressar.

 

Flick e Paul levaram a equipa ao pub no final do treino de dois dias. As raparigas aperaltaram-se para a saída. Maude estava mais bonita do que nunca num vestido de Verão cor-de-rosa. Ruby nunca seria bonita, mas estava atraente num vestido comprido preto que pedira emprestado a alguém. Lady Denise trazia um vestido de seda cor de ostra com ar de ter custado uma fortuna, embora não favorecesse nada o seu corpo magro. Greta vestira um dos trajes que usava em palco, um vestido comprido e sapatos vermelhos. Até Diana trazia uma saia bonita em vez das habituais calças de bombazina e, para espanto de Flick, pusera um pouco de batom.

 

A equipa recebera o nome de código Gralhas. Iam saltar de pára-quedas perto de Reims, e Flick recordou-se da lenda da gralha-de-nuca-cinzenta de Reims que roubara o anel do bispo.


Os monges não conseguiram descobrir quem o tinha levado, por isso o bispo amaldiçoou o ladrão desconhecido explicou ela a Paul enquanto bebiam uísque, o dela com água e o dele com gelo. Pouco depois, apareceu uma gralha de aspecto estranho, e os monges perceberam que ela sofria os efeitos da maldição e devia ser o ladrão. Aprendi tudo na escola:

 

O dia acabou

 

A noite começou Os monges e os frades procuraram até de madrugada

 

Quando o sacristão viu

 

Sobre garras retorcidas Aproximar-se a coxear a pobre gralha coxa

 

Menos alegre

 

Do que na véspera

 

As suas penas pareciam estar ao contrário As asas pendentes, mal se aguentava de pé Estava tão careca como a palma de uma mão

 

Os olhos sem brilho

 

Tão abatida Que, sem delongas, todos gritaram: «Foi ela!»

 

«Ah! E é claro que encontraram o anel no ninho da gralha acabou Flick de dizer.

 

Paul assentiu, sorrindo. Flick sabia que ele teria assentido e sorrido da mesma forma mesmo que ela tivesse estado a falar em islandês. Não se importava com o que ela dizia, só queria olhar para ela. Flick não tinha muita experiência naquela matéria, mas percebia quando um homem estava apaixonado, e Paul estava apaixonado por si.

 

Ela passara o dia em piloto automático. Os beijos da noite anterior haviam-na chocado e excitado. Disse de si para si que não queria ter um romance extraconjugal. Queria, isso sim, recuperar o amor do marido infiel. Mas a paixão de Paul alterara as suas prioridades. Perguntou-se irritada por que motivo teria de implorar o afecto de Michel quando um homem como Paul estava disposto a atirar-se aos seus pés. Estivera quase a deixá-lo entrar na sua cama aliás, desejara que ele tivesse sido menos cavalheiro, porque se tivesse ignorado a sua recusa e se tivesse metido dentro dos lençóis, ela poderia ter cedido.

 

Noutros momentos sentia vergonha de o ter beijado. Era uma coisa bastante comum: por toda a Inglaterra, as raparigas esqueciam os maridos e os namorados na linha da frente e apaixonavam-se pelos soldados americanos. Seria ela tão má como aquelas lojistas de cabeça oca que iam para a cama com os ianques só porque eles falavam como as estrelas de cinema?

 

E o pior de tudo era que os seus sentimentos por Paul ameaçavam distraí-la do trabalho que tinha em mãos. As vidas de seis pessoas dependiam de si, bem como um elemento crucial no plano da invasão, e não lhe fazia nada bem estar a pensar se os olhos dele eram cor de avelã ou verdes. Era muito diferente dos ídolos das matinés, com o seu queixo grande e a orelha mutilada, embora houvesse um certo encanto no seu rosto...

 

Está a pensar em quê? perguntou Paul. Flick percebeu que devia ter estado a fitá-lo.

 

Se iremos conseguir fazer isto bem mentiu ela.

 

Iremos, com um pouco de sorte.

 

Até agora tenho tido sorte. Maude sentou-se ao lado de Paul.

 

Por falar em sorte disse ela, pestanejando, dá-me um dos seus cigarros?

 

Sirva-se respondeu ele empurrando o maço de Lucky Strike na direcção dela.

 

Maude colocou um cigarro entre os lábios e Paul acendeu-o. Flick olhou na direcção do balcão e apercebeu-se da expressão irritada de Diana. Maude e Diana haviam-se tornado grandes amigas e Diana nunca fora muito boa a partilhar. Então por que motivo estaria Maude a namoriscar com Paul? Para aborrecer Diana, talvez. Ainda bem que Paul não iria para França, pensou Flick; não ajudaria nada sendo uma presença perturbadora num grupo de jovens mulheres.

 

Olhou em volta do pub. Jelly e Percy estavam no meio de um jogo chamado «spoof», em que um dos jogadores tinha de adivinhar quantas moedas o outro tinha na mão fechada. Em seguida Percy pagou uma rodada. Aquilo era propositado. Flick precisava de saber como agiam as Gralhas sob a influência do álcool. Se alguma delas se tornasse arruaceira, indiscreta ou agressiva ela teria de tomar algumas precauções quando estivessem em acção. A que mais a preocupava era Denise, que naquele momento se encontrava sentada a um canto a conversar animadamente com um homem fardado de capitão.

 

Ruby também estava a beber bastante, mas Flick confiava nela. Era uma mistura curiosa: mal sabia ler e escrever, e saíra-se muito mal nas aulas de leitura de mapas e de criptografia, mas mesmo assim era a mais esperta e intuitiva do grupo. Ruby lançava de vez em quando um olhar duro a Greta, e talvez tivesse adivinhado que ela era um homem, mas teve a cortesia de nada dizer.


Ruby encontrava-se sentada ao balcão ao lado de Jim Cardwell, o instrutor de tiro, a falar com a empregada ao mesmo tempo que acariciava o interior da coxa de Jim com uma pequena mão castanha. Viviam ambos um romance escaldante. Passavam o tempo a desaparecer. Durante o café da manhã, na meia hora de descanso depois do almoço, durante o chá das cinco ou em qualquer oportunidade, escapuliam-se durante alguns minutos. Jim parecia ter saltado de um avião sem ter aberto o pára-quedas. Exibia no rosto uma expressão de êxtase permanente. Ruby não era uma beldade, com o seu nariz curvado e o queixo empinado, mas devia ser uma bomba sexual e Jim andava maravilhado com a explosão dela. Flick quase sentiu ciúmes. Não que Jim fosse o seu tipo de homem todos os homens por quem já se apaixonara eram intelectuais, ou pelo menos bastante espertos mas invejava a felicidade cheia de luxúria de Ruby.

 

Greta estava encostada ao piano com um cocktail cor-de-rosa na mão, a falar com três homens que pareciam ser habitantes locais e não pertencer à escola. Aparentemente, tinham ultrapassado a surpresa do sotaque alemão dela sem dúvida Greta contara-lhes a história do seu pai de Liverpool e agora mantinha-os hipnotizados com as suas histórias sobre os clubes nocturnos de Hamburgo. Flick apercebeu-se de que eles não desconfiavam do sexo dela: tratavam-na como uma mulher exótica mas atraente, oferecendo-lhe bebidas, acendendo-lhe os cigarros e rindo agradados de cada vez que ela lhes tocava.

 

Enquanto Flick observava, um dos homens sentou-se ao piano, tocou algumas notas e olhou para Greta com ar expectante. O pub ficou em silêncio e Greta começou a cantar Kitchen Man:

 

Ninguém toca nas minhas coxas como aquele rapaz que abre ostras.

 

O público apercebeu-se rapidamente de que cada verso tinha uma conotação sexual e as gargalhadas inundaram a sala. Quando Greta terminou beijou o pianista nos lábios e ele pareceu maravilhado.

 

Maude deixou Paul e regressou para junto de Diana. O capitão que estivera a falar com Denise aproximou-se.

 

Ela contou-me tudo, meu major disse ele a Paul. Flick assentiu, desiludida mas pouco surpreendida.

 

O que é que ela lhe contou? perguntou Paul.

 

Que amanhã à noite ia fazer explodir um túnel do comboio em Marles, perto de Reims.


Era a história falsa, mas Denise pensara que era a verdadeira e revelara-a a um desconhecido. Flick ficou furiosa.

 

Obrigado disse Paul.

 

Lamento. O capitão encolheu os ombros.

 

É melhor saber agora do que mais tarde comentou Flick.

 

Quer falar com ela, meu major, ou prefere que seja eu?

 

Eu falo primeiro com ela retorquiu Paul. Espere lá fora, se não se importa.

 

Sim, meu major.

 

O capitão saiu do pub e Paul chamou Denise.

 

Ele foi-se embora de repente disse Denise. Um comportamento bastante suspeito, não acham? Parecia despeitada. É instrutor de explosivos.

 

Não é, não disse Paul. É polícia.

 

O que quer dizer? perguntou Denise admirada. Trazia vestida a farda de capitão e disse-me...

 

Disse-lhe mentiras terminou Paul. A função dele é apanhar pessoas que contem tudo a desconhecidos. E apanhou-a a si.

 

Denise ficou boquiaberta, mas depressa se recompôs e mostrou-se indignada.

 

Então foi um truque? Você tentou enganar-me?

 

E consegui, infelizmente disse Paul. Você contou-lhe tudo.

 

Ao aperceber-se de que fora descoberta, Denise tentou aligeirar as coisas.

 

Qual é o meu castigo? Escrever cem linhas no quadro e não ir para o recreio?

 

Flick sentiu vontade de a esbofetear. A indiscrição de Denise podia ter colocado em perigo as vidas de todos os membros da equipa.

 

Não há qualquer castigo respondeu Paul com frieza.

 

Oh. Muito obrigada.

 

Mas você está fora da equipa. Não vai connosco. Esta noite vai sair daqui com o capitão.

 

Vou sentir-me uma idiota ao regressar ao meu antigo trabalho em Hendon.

 

Paul abanou a cabeça.

 

Ele não vai levá-la a Hendon.

 

Porque não?

 

Você sabe demasiado. Não pode ser deixada à solta a dar com a língua nos dentes.


Denise começou a ficar preocupada.

 

O que é que me vai fazer?

 

Vou mandá-la para um sítio onde você não cause estragos. Acho que costuma ser para uma base isolada na Escócia, onde a principal actividade é arquivar papelada dos regimentos.

 

Isso é tão mau como a prisão!

 

Paul reflectiu durante um momento, depois assentiu.

 

Quase.

 

Durante quanto tempo? perguntou Denise abalada.

 

Quem sabe? Até ao fim da guerra, provavelmente.

 

Seu patife! exclamou Denise furiosa. Quem me dera nunca o ter conhecido.

 

Agora pode ir-se embora disse Paul. E dê graças por ter sido eu a apanhá-la. Podia ter sido a Gestapo.

 

Denise saiu.

 

Espero não ter sido desnecessariamente cruel comentou Paul.

 

Flick achava que não. A parvinha merecia um destino muito pior. No entanto, queria causar boa impressão em Paul, por isso respondeu:

 

Não vale a pena esmagá-la. Algumas pessoas não são talhadas para este trabalho. A culpa não é dela.

 

Paul sorriu.

 

Você mente muito mal disse ele. Acha que fui muito brando com ela, não acha?

 

Acho que a crucificação era um castigo demasiado leve confirmou Flick irritada, mas Paul sorriu e isso pareceu suavizar a ira dela levando-a a sorrir. Não consigo enganá-lo, pois não?

 

Espero que não. Paul ficou de novo sério. Ainda bem que tínhamos uma pessoa a mais na equipa. Podemos dar-nos ao luxo de ficar sem a Denise.

 

Mas agora temos o mínimo indispensável. Flick levantou-se a custo. É melhor mandarmos as outras para a cama. Esta vai ser a última noite descansada que elas vão ter durante algum tempo.

 

Paul olhou em volta.

 

Não vejo a Diana nem a Maude.

 

Devem ter ido apanhar ar. Vou à procura delas enquanto você reúne as outras. Paul assentiu e Flick saiu do pub.

 

Não havia sinal das duas raparigas. Deteve-se um momento para ver o luar reflectido na água calma do estuário. Depois contornou o pub até ao parque de estacionamento. Um Austin castanho do exército estava a arrancar e Flick viu Denise no banco de trás a chorar.


Continuava sem ver Diana e Maude. Franzindo o sobrolho, intrigada, Flick atravessou o parque de estacionamento e regressou às traseiras do pub. Deparou com um pátio cheio de barris velhos e caixas de madeira empilhadas. Do outro lado do pátio havia uma espécie de cabana com uma porta de madeira, que naquele momento se encontrava aberta. Flick entrou.

 

A princípio não conseguiu ver nada no escuro, mas sabia que não estava sozinha porque ouvia respirar. O instinto aconselhou-a a fazer pouco barulho. Os seus olhos foram-se ajustando à penumbra. Estava numa cabana cheia de ferramentas, com filas de chaves-inglesas e pás em ganchos, e um grande cortador de relva no meio do chão. Diana e Maude encontravam-se no canto mais afastado.

 

Maude encontrava-se encostada à parede e Diana estava a beijá-la. Flick ficou de boca aberta. A blusa de Diana estava aberta, revelando um sutiã grande e prático. Maude subira a saia cor-de-rosa até à cintura. Quando a imagem se tornou mais clara, viu que a mão de Diana estava enfiada nas cuecas de Maude.

 

Flick ficou ali um momento, imóvel devido ao choque. Maude viu-a.

 

Já viu tudo? perguntou provocadora. Ou quer tirar uma fotografia?

 

Diana deu um salto, recolhendo a mão e afastando-se de Maude. Virou-se e no seu rosto surgiu uma expressão horrorizada.

 

Oh, meu Deus! exclamou. Fechou a blusa com uma mão e tapou a boca com a outra num gesto de vergonha.

 

Só... só... só vim dizer que nos vamos embora gaguejou Flick. Depois virou-se e cambaleou para o exterior.

 

Os operadores de rádio não eram propriamente invisíveis. Viviam num mundo de espíritos onde as suas formas fantasmagóricas podiam ser vislumbradas. Os homens da equipa de detecção de rádio da Gestapo olhavam para a escuridão à procura delas alojados numa sala cavernosa e escura em Paris. Dieter visitara o local. Trezentos ecrãs redondos de osciloscópios brilhavam com uma luz esverdeada. As emissões de rádio eram linhas verticais nos monitores, a posição da linha indicando a frequência da transmissão, a altura indicando a potência do sinal. Os ecrãs eram vigiados, dia e noite, por operadores silenciosos e atentos, que o fizeram lembrar anjos a observar os pecados da humanidade.

 

Os operadores conheciam as estações regulares, quer as controladas pelos Alemães quer as estrangeiras, e conseguiam identificar imediatamente uma emissão irregular. Assim que isso acontecia, o operador pegava no telefone que tinha na sua secretária e ligava para três postos de detecção: dois no Sul da Alemanha, em Augsburgo e Nuremberga, e outro na Bretanha, em Brest. Dava-lhes então a frequência da emissão irregular. Os postos de detecção estavam equipados com goniómetros, aparelhos que mediam ângulos, e cada um podia indicar passados poucos segundos de que direcção provinha a emissão. Mandavam a informação para Paris, onde o operador desenhava três linhas compridas num grande mapa de parede. As linhas cruzavam-se no local de onde provinha a emissão de rádio suspeita. O operador ligava em seguida para o gabinete da Gestapo mais próximo desse local. A Gestapo tinha sempre carros prontos para o efeito, equipados com os seus próprios aparelhos de detecção.

 

Dieter encontrava-se sentado num desses carros, um Citroen preto comprido estacionado nos arredores de Reims. Com ele encontravam-se três agentes da Gestapo com experiência em detecção de rádios. Naquela noite não era necessária a ajuda do centro de Paris: Dieter já sabia a frequência que Helicóptero iria utilizar e partiu do princípio de que ele iria emitir algures da cidade (porque era muito fácil um operador de rádio perder-se no campo). O receptor do rádio estava sintonizado na frequência de Helicóptero. Media a potência, bem como a direcção, da emissão, e Dieter saberia que estava a aproximar-se do transmissor quando a agulha subisse no mostrador.

 

Para além disso, o agente da Gestapo sentado ao lado de Dieter tinha um receptor e uma antena ocultos debaixo da gabardina. No seu pulso estava um contador semelhante a um relógio que indicava a potência do sinal. Quando a busca fosse reduzida a uma determinada rua, quarteirão ou edifício, eles entrariam em acção.

 

O agente da Gestapo sentado no banco da frente tinha no regaço uma marreta para arrombar portas.

 

Dieter fora uma vez à caça. Não gostava muito de perseguições no campo, preferindo os prazeres mais refinados da vida citadina, mas tinha boa pontaria. Recordou isso naquele momento, enquanto esperava que Helicóptero começasse a enviar o seu relatório codificado para Inglaterra. Era como estar deitado no esconderijo de caçador, na alvorada, tenso de antecipação, impaciente para que o veado começasse a deslocar-se, saboreando a antecipação.

 

Os elementos da Resistência não eram veados, mas sim raposas, pensou Dieter, ocultas nas suas tocas, saindo para provocar carnificina no galinheiro e voltando de novo às tocas. Sentia-se mortificado por ter perdido Helicóptero. Estava com tanta vontade de tornar a apanhar o homem que mal se importava por ter de contar com a ajuda de Willi Weber. Só queria matar a raposa.

 

Estava uma agradável noite de Verão. O carro encontrava-se estacionado na extremidade norte da cidade. Reims era uma cidade pequena, e Dieter calculou que um carro conseguiria atravessá-la em menos de dez minutos.

 

Olhou para o relógio: passava um minuto das oito. Helicóptero atrasara-se na emissão. Talvez não emitisse nessa noite... embora isso fosse pouco provável. Naquele dia Helicóptero encontrara Michel. Logo que possível, iria querer comunicar o seu êxito aos superiores e dizer-lhes quanto restava do circuito Bollinger.

 

Michel telefonara para a casa da Rue du Bois havia duas horas. Dieter estava lá. Fora um momento de tensão. Stéphanie atendera, imitando a voz de Mademoiselle Lemas. Michel dera o seu nome de código e perguntara se a Burguesa se lembrava dele uma pergunta que tranquilizara Stéphanie, porque indicava que Michel não conhecia muito bem Mademoiselle Lemas e que por isso não iria aperceber-se de que estava a falar com uma impostora.

 

Fizera-lhe perguntas acerca do novo recruta com o nome de código Charenton.

 

É meu primo resmungara Stéphanie. Conheço-o desde criança, e confiar-lhe-ia a minha vida. Michel dissera-lhe que ela não tinha o direito de recrutar pessoas sem falar do assunto com ele, mas pareceu acreditar na história dela, e Dieter beijara Stéphanie e dissera-lhe que ela era suficientemente boa actriz para poder juntar-se à Comédie Française.

 

Mesmo assim, Helicóptero saberia que a Gestapo estaria à escuta a tentar apanhá-lo. Era um risco que tinha de correr: se não enviasse mensagens para casa, não estaria a ajudar os Aliados. Ficaria no ar apenas o tempo indispensável. Se tivesse muita informação para enviar, dividi-la-ia por duas ou mais mensagens e enviá-las-ia de locais diferentes. Dieter só esperava que ele se sentisse tentado a permanecer no ar mais tempo do que o necessário.

 

Os minutos foram passando. No carro reinava um silêncio pesado. Os homens fumavam com nervosismo. Depois, às oito e cinco, o receptor apitou.

 

Tal como combinado, o condutor arrancou de imediato rumo a sul.

 

O sinal foi aumentando, mas lentamente, e Dieter teve receio de que não estivessem a ir na direcção do emissor.

 

E assim que passaram pela catedral no centro da cidade o ponteiro baixou.

 

No banco do pendura, o agente da Gestapo começou a falar para um rádio de onda curta. Consultava alguém num camião para detecção de rádios a cerca de quilómetro e meio. Pouco depois, disse:

 

Quadrante noroeste.

 

O condutor virou imediatamente para oeste, e o sinal começou a ficar mais forte.

 

Apanhei-te murmurou Dieter. Mas tinham passado cinco minutos.

 

O carro rumou para oeste a grande velocidade e o sinal foi ficando mais forte, enquanto Helicóptero continuava a bater na tecla morse do rádio no seu esconderijo uma casa de banho, um sótão, um armazém algures no noroeste da cidade. No castelo de Sainte-Cécile, um operador de rádio alemão estava sintonizado na mesma frequência e anotava a mensagem codificada. Esta estava também a ser gravada. Mais tarde, Dieter iria decifrá-la, usando o bloco copiado por Stéphanie. Mas a mensagem não era tão importante como o mensageiro.

 

Entraram num bairro de casas grandes, na sua maior parte decrépitas e subdivididas em pequenos apartamentos e quartos alugados a estudantes e enfermeiras. O sinal tornou-se mais forte, e em seguida começou a diminuir.

 

Estamos a afastar-nos! exclamou o agente da Gestapo no banco da frente. O condutor fez inversão de marcha e travou.

 

Tinham passado dez minutos.

 

Dieter e os três agentes da Gestapo saíram rapidamente do carro. O que tinha a unidade portátil de detecção sob o casaco avançou rapidamente, consultando o indicador de pulso, e os outros seguiram-no. Avançou cerca de cem metros, depois voltou subitamente para trás. Parou e apontou para uma casa.

 

Aquela disse. Mas a transmissão chegou ao fim. Dieter reparou que não havia cortinas nas janelas. A Resistência

 

gostava de utilizar casas abandonadas para as suas transmissões.

 

O agente da Gestapo que tinha a marreta arrombou a porta com dois golpes. Entraram todos.

 

Os andares encontravam-se vazios e no ar pairava um cheiro a mofo. Dieter escancarou uma porta e espreitou para uma assoalhada vazia. Atravessou-a com três passadas e deparou com uma cozinha abandonada.

 

Subiu as escadas a correr. No andar seguinte havia uma janela que dava para um jardim nas traseiras. Dieter olhou lá para fora e viu Helicóptero e Michel a correrem sobre a relva. Michel coxeava, Helicóptero transportava a sua mala pequena. Dieter praguejou. Deviam ter fugido por uma porta das traseiras enquanto a Gestapo arrombava a da frente. Dieter virou-se e gritou:

 

No jardim das traseiras!

 

Os agentes da Gestapo correram nessa direcção e ele seguiu-os.

 

Quando chegou ao jardim viu Michel e Helicóptero a trepar a vedação que dava para outra casa. Juntou-se à perseguição, mas os fugitivos levavam um bom avanço. Trepou a vedação com os três agentes da Gestapo e correu pelo segundo jardim.

 

Chegaram à rua seguinte mesmo a tempo de verem um Renault Monaquatre preto desaparecer numa esquina.

 

Raios! praguejou Dieter. Era a segunda vez naquele dia que Helicóptero lhe escapava.

 

Quando regressaram a casa, Flick preparou cacau para a equipa. Não era hábito os oficiais fazerem cacau para as suas tropas, mas na opinião de Flick isso só demonstrava quão pouco o exército percebia de liderança.

 

Paul estava de pé na cozinha a observá-la enquanto ela esperava que a chaleira começasse a apitar. Ela sentia o olhar dele pousado em si como uma carícia. Sabia o que Paul iria dizer, e já preparara uma resposta. Teria sido fácil apaixonar-se por ele, mas não iria trair o marido que estava a arriscar a vida a combater os nazis na França ocupada.

 

No entanto, a pergunta dele surpreendeu-a.

 

O que vai fazer quando a guerra acabar?

 

Estou ansiosa por me aborrecer respondeu ela. Paul soltou uma gargalhada.

 

Já teve animação suficiente.

 

Demasiada. Flick pensou durante um momento. Ainda quero ser professora. Gostaria de partilhar o meu amor pela cultura francesa com pessoas mais novas. Ensinar-lhes literatura e pintura francesas, e também coisas menos eruditas como culinária e moda.

 

Então vai tornar-se catedrática?

 

Vou acabar o doutoramento, arranjar trabalho numa universidade, ser tratada com condescendência pelos professores mais tacanhos. Talvez escreva um guia sobre a França, ou um livro de cozinha.

 

Parece uma coisa fácil depois disto.

 

Mas é importante. Quanto mais os jovens souberem sobre os estrangeiros, menores serão as probabilidades de serem tão estúpidos como nós e começarem uma guerra com os vizinhos.


Será que isso é mesmo assim?

 

E você? O que tenciona fazer depois da guerra?

 

Oh, os meus planos são muito simples. Quero casar consigo e levá-la a Paris na lua-de-mel. Depois assentamos e temos filhos.

 

Ela fitou-o.

 

E já pensou em pedir o meu consentimento? perguntou indignada.

 

Há vários dias que não penso noutra coisa respondeu ele com ar solene.

 

Eu já tenho marido.

 

Mas não o ama.

 

Não tem o direito de dizer isso!

 

Eu sei, mas não consigo evitá-lo.

 

Porque é que eu achava que você era um homem de falinhas mansas?

 

Normalmente sou. A chaleira já está a apitar.

 

Flick pegou nela e verteu a água a ferver sobre a mistura de cacau que estava num grande jarro de barro.

 

Meta algumas canecas nesse tabuleiro disse ela a Paul. Talvez o trabalho doméstico o cure dos seus sonhos de uma vida pacata.

 

Ele obedeceu.

 

Não me afasta com esses ares de mandona retorquiu ele. Antes pelo contrário.

 

Ela juntou leite e açúcar ao cacau e encheu as canecas que ele pusera no tabuleiro.

 

Nesse caso, leve o tabuleiro para a sala.

 

É para já, chefe.

 

Quando entraram na sala depararam com Jelly e Greta a discutir frente a frente, enquanto as outras observavam, meio divertidas e meio horrorizadas.

 

Não estavas a usá-lo! gritava Jelly.

 

Estava a descansar os pés nele! respondeu Greta.

 

Não há cadeiras suficientes. Jelly tinha na mão um pequeno pouffe e Flick calculou que ela o roubara a Greta.

 

Minhas senhoras, por favor! exclamou ela. As outras ignoraram-na.

 

Só tinhas de pedir, querida.

 

Não tenho de pedir nada a estrangeiras no meu próprio país.

 

Não sou estrangeira, sua puta gorda!

 

Oh! Jelly ficou tão ofendida com o insulto que puxou o cabelo de Greta. A cabeleira morena de Greta veio agarrada à mão dela.


Com o cabelo curto à mostra, Greta parecia-se inconfundivelmente com um homem. Percy e Paul já tinham conhecimento disso, e Ruby adivinhara, mas Maude e Diana ficaram estupefactas.

 

Deus do Céu! exclamou Diana, e Maude soltou um grito de medo.

 

Jelly foi a primeira a recuperar.

 

Um pervertido! exclamou com ar triunfante. Caramba, um estrangeiro pervertido!

 

Greta estava lavada em lágrimas.

 

Maldita nazi! soluçou.

 

Aposto que é um espião! exclamou Jelly.

 

Cale-se, Jelly. A Greta não é espia. Eu sabia que ela era um homem.

 

Sabia!?

 

O Paul e o Percy também.

 

Jelly olhou para Percy, que assentiu com ar solene.

 

Greta preparava-se para sair dali, mas Flick agarrou-lhe no braço.

 

Não se vá embora pediu. Por favor. Sente-se. Greta sentou-se.

 

Jelly, dê-me a maldita cabeleira. Jelly entregou-a a Flick.

 

Esta pôs-se à frente de Greta e voltou a colocar-lhe a cabeleira. Ruby, percebendo rapidamente aquilo que Flick tentava fazer, pegou no espelho que estava por cima da lareira e segurou-o em frente a Greta, que estudou o seu reflexo enquanto ajustava a cabeleira e limpava as lágrimas com um lenço.

 

Agora ouçam-me todas disse Flick. Greta é engenheira e não podemos executar a nossa missão sem uma engenheira. Temos mais hipóteses de sobrevivência em território ocupado se a nossa equipa for constituída apenas por mulheres. Resumindo: precisamos da Greta e precisamos que ela seja uma mulher. Por isso habituem-se.

 

Jelly emitiu um grunhido de desprezo.

 

Tenho de vos explicar ainda outra coisa prosseguiu Flick. Olhou para Jelly com uma expressão dura. Devem ter reparado que a Denise já não está connosco. Preparámos-lhe esta noite um pequeno teste, e ela chumbou. Está fora da equipa. Infelizmente, a Denise ficou a saber alguns segredos nos últimos dois dias e não podemos permitir que ela volte para casa. Mandámo-la para uma base remota na Escócia onde irá ficar, provavelmente até ao fim da guerra, sem licença.


 Não pode fazer isso! exclamou Jelly.

 

Claro que posso, sua idiota retorquiu Flick com impaciência. Estamos em guerra, recorda-se? E aquilo que fiz à Denise fá-lo-ei a quem tiver de ser despedida desta equipa.

 

Eu nem cheguei a entrar para o exército! protestou Jelly.

 

Chegou sim. Recebeu o posto de oficial, ontem depois do lanche. E vai receber o salário de um oficial, embora ainda não tenha visto qualquer dinheiro. Isso significa que está sob disciplina militar. E todas vocês sabem demasiado.

 

Então somos prisioneiras? perguntou Denise.

 

Estão no exército respondeu Flick. É quase a mesma coisa. Por isso bebam o vosso cacau e vão para a cama.

 

Foram saindo uma a uma até só restar Diana. Flick já estivera à espera daquilo. Ver as duas mulheres praticamente a fazer amor fora um verdadeiro choque. Recordou-se de que na escola algumas raparigas se tinham apaixonado umas pelas outras, mandando bilhetes de amor, andando de mão dada, e às vezes até a beijarem-se; mas tanto quanto sabia, as coisas não tinham ido além disso. A certa altura ela e Diana tinham treinado os beijos com a língua, para que soubessem o que fazer quando arranjassem namorado, e agora Flick começava a achar que aqueles beijos tinham significado mais para Diana do que haviam significado para ela. Mas nunca conhecera uma mulher adulta que desejasse outras mulheres. Teoricamente, sabia que elas existiam, os equivalentes femininos do seu irmão Mark e de Greta, mas nunca as imaginara a... bem, a apalparem-se numa cabana.

 

Importaria isso? Não na vida de todos os dias. Mark e os amigos eram felizes, ou pelo menos eram-no quando ninguém os incomodava. Mas iria a relação de Diana e Maude afectar a missão? Não necessariamente. A própria Flick trabalhava com o marido na Resistência. Aquilo não era bem a mesma coisa, admitiu. Um novo romance apaixonado poderia provocar distracções.

 

Flick podia tentar manter as duas amantes separadas mas isso poderia tornar Diana ainda mais insubordinada. E o romance podia também ser uma inspiração. Flick tentava desesperadamente que as mulheres funcionassem em equipa, e aquilo poderia ajudar. Decidira não intervir. Mas Diana queria falar.

 

Não é o que parece, a sério que não disse Diana sem preâmbulos. Bolas, tens de acreditar em mim. Foi apenas uma coisa estúpida, uma piada...

 

Queres mais cacau? perguntou Flick. Acho que ainda sobrou um pouco.


Diana olhou para ela, pasmada.

 

Como é que podes falar de cacau? perguntou, passado um momento.

 

Só quero que te acalmes e percebas que o mundo não vai acabar apenas porque beijaste a Maude. Beijaste-me uma vez, lembras-te?

 

Sabia que irias falar nisso. Mas isso foram coisas de miúdas. Com a Maude não foi só um beijo. Diana sentou-se. A sua expressão orgulhosa desapareceu e ela começou a chorar. Sabes que foi mais do que isso, viste, meu Deus!, as coisas que fiz. O que raio pensaste?

 

Flick escolheu cuidadosamente as palavras.

 

Achei querido.

 

Querido? repetiu Diana incrédula. Não te sentiste enojada?

 

Claro que não. A Maude é uma rapariga bonita, e parece-me que te apaixonaste por ela.

 

Foi precisamente isso que aconteceu.

 

Então pára de te sentires envergonhada.

 

Como é que posso não sentir-me envergonhada? Sou uma fufa!

 

Se eu fosse a ti não encarava as coisas dessa maneira. Tens de ser discreta, para evitar ofender pessoas antiquadas como a Jelly, mas não há necessidade de ter vergonha.

 

E serei sempre assim?

 

Flick pensou um pouco. A resposta era provavelmente sim, mas ela não desejava ser abrupta.

 

Olha, acho que algumas pessoas, como a Maude, adoram ser amadas, e podem ser felizes com um homem ou com uma mulher. Na verdade, Maude era superficial, egoísta e leviana, mas Flick achou por bem não dizer nada daquilo. Há outras pessoas mais inflexíveis acrescentou. É necessário manter o espírito aberto.

 

Suponho que é o fim da missão para mim e para a Maude.

 

Claro que não.

 

Sempre vais levar-nos?

 

Continuo a precisar de vocês. E não vejo que diferença faz isto.

 

Diana tirou um lenço do bolso e assoou-se. Flick levantou-se e foi até à janela, dando tempo à amiga para se recompor. Passado um momento, Diana falou numa voz mais calma.

 

És extremamente bondosa disse com um toque da sua antiga soberba.


Vai-te deitar ordenou Flick. Diana levantou-se, obediente.

 

E se eu fosse a ti...

 

O quê?

 

Ia para a cama com a Maude. Diana pareceu chocada.

 

Flick encolheu os ombros.

 

Pode ser a vossa última oportunidade disse.

 

Obrigada murmurou Diana. Avançou para Flick e abriu os braços como se quisesse abraçá-la, mas depois parou. Podes não querer beijar-me agora...

 

Não sejas tonta retorquiu Flick, abraçando-a.

 

Até amanhã disse Diana, saindo da sala.

 

Flick virou-se e olhou para o jardim. A Lua estava alta. Dali a uns dias estaria cheia e os Aliados iriam invadir a França. Uma brisa agitava as folhas novas na floresta: o vento ia mudar. Flick só esperava que não se abatesse uma tempestade sobre o canal da Mancha. Todo o plano de invasão poderia ser arruinado pelo caprichoso clima britânico. Calculou que muita gente devia estar a rezar para que fizesse bom tempo.

 

Devia ir dormir um pouco. Saiu da sala e subiu as escadas. Pensou no que tinha dito a Diana. «Se eu fosse a ti ia para a cama com a Maude. Pode ser a vossa última oportunidade.» Hesitou à porta do quarto de Paul. Para Diana as coisas eram diferentes ela era solteira. Flick era casada.

 

Mas podia ser a sua última oportunidade.

 

Bateu à porta e entrou.

 

Deprimido, Dieter regressou ao castelo em Sainte-Cécile no Citroen com a equipa de detecção de rádio. Foi até à sala de escuta na cave à prova de bombas. Willi Weber encontrava-se lá, parecendo irritado. A única consolação que podia retirar do fiasco daquela noite, pensou Dieter, era o facto de Weber não poder vangloriar-se de que fora bem-sucedido onde Dieter falhara. Mas Dieter teria sido capaz de aguentar o ar triunfante de Weber se tivesse Helicóptero na câmara de tortura.

 

Apanhou a mensagem que ele enviou? perguntou Dieter. Weber entregou-lhe uma cópia feita a papel químico da mensagem dactilografada.

 

Já foi enviada para o gabinete de criptoanálise em Berlim. Dieter olhou para as letras que formavam palavras sem sentido.

 

Lá não vão conseguir descodificar isto. Ele utilizou um bloco de utilização única. Dobrou a folha e meteu-a no bolso.

 

O que pode fazer com isso? perguntou Weber.

 

Tenho uma cópia do livro de código dele respondeu Dieter. Era uma vitória pequena, mas sentiu-se melhor.

 

Weber engoliu em seco.

 

A mensagem pode dizer-nos onde é que ele está.

 

Sim. E vai receber uma resposta às onze da noite. Olhou para o relógio. Faltavam alguns minutos para as onze. Vamos gravá-la e depois eu decifro as duas.

 

Weber foi-se embora. Dieter aguardou na sala sem janelas. Às onze em ponto, um receptor sintonizado na frequência de Helicóptero começou a emitir os bipes longos e curtos do morse. Um operador anotou as letras enquanto um gravador as gravava ao mesmo tempo. Quando os bipes pararam, o operador puxou uma máquina de escrever para junto de si e dactilografou aquilo que tinha no bloco. Deu a Dieter uma cópia.

 

As duas mensagens podiam ser tudo ou nada, pensou Dieter quando se sentou ao volante do seu carro. O luar iluminava a estrada que serpenteava pelas vinhas de Reims e ao fim de alguns minutos ele estacionou na Rue du Bois. Estava um tempo óptimo para uma invasão.

 

Stéphanie aguardava-o na cozinha da casa de Mademoiselle Lemas. Ele pousou as mensagens codificadas na mesa e pegou nas cópias que Stéphanie fizera do bloco e do lenço de seda. Esfregou os olhos e começou a descodificar a primeira mensagem, aquela que Helicóptero enviara, anotando-a no bloco que Mademoiselle Lemas utilizava para escrever as suas listas de compras.

 

Stéphanie fez uma cafeteira de café. Espreitou por cima do ombro de Dieter durante algum tempo, fez algumas perguntas, depois pegou na segunda mensagem e começou a decifrá-la.

 

A mensagem que Dieter decifrara era um relato conciso do incidente na catedral, referindo Dieter como Charenton e dizendo que ele fora recrutado pela Burguesa porque ela estava preocupada com a segurança do encontro. Dizia que Monet tomara a precaução pouco habitual de telefonar à Burguesa para confirmar que Charenton era de confiança, e que ficara satisfeito.

 

Listava os nomes de código dos membros do circuito Bollinger que não tinham perecido no confronto do último domingo e que continuavam no activo. Eram apenas quatro.

 

Era útil, mas não lhe dizia onde encontrar os espiões.

 

Bebeu uma chávena de café enquanto esperava que Stéphanie terminasse. Ela entregou-lhe uma folha de papel coberta com a sua letra exuberante.

 

Quando a leu, Dieter mal pode acreditar na sua sorte. Dizia:

 

PREPARE-SE PARA RECEBER GRUPO DF SEIS

 

PARA-QUEDISTAS COM NOME DE CÓDIGO GRALHAS LÍDER

 

LEOPARDA CHEGA ONZE HORAS SEXTA-FEIRA

 

DOIS DE JUNHO CHAMP DE PIERRE.

 

Meu Deus! murmurou ele.

 

Champ de Pierre era um nome de código mas Dieter sabia o que ele significava, pois Gaston dissera-lho durante o primeiro interrogatório. Era uma zona de aterragem de pára-quedistas num pasto perto de Chatelle, uma pequena aldeia a sete quilómetros de Reims. Dieter sabia exactamente onde Helicóptero e Michel estariam no dia seguinte à noite, e poderia apanhá-los.


Também poderia capturar mais seis agentes aliados quando aterrassem de pára-quedas.

 

E um deles era Leoparda: Flick Clairet, a mulher que sabia mais do que qualquer outra pessoa sobre a Resistência francesa, a mulher que, sob tortura, lhe daria todas as informações de que ele precisava para destruir a espinha dorsal da Resistência, a tempo de evitar que o seu grupo ajudasse a força invasora.

 

Deus do Céu! exclamou Dieter. Que grande sorte!

 

O SEXTO DIA

 

Sexta-feira, 2 de Junho de 1944

 

Paul e Flick estavam a conversar.

 

Encontravam-se deitados lado a lado na cama. As luzes haviam sido apagadas, mas o luar entrava pela janela. Ele estava nu, como estivera quando ela entrara no quarto. Dormia sempre nu. Só vestia o pijama para ir à casa de banho.

 

Encontrava-se a dormir quando ela entrara, mas acordara rapidamente e saltara da cama, a sua mente inconsciente a partir do princípio que uma visita clandestina durante a noite deveria ser a Gestapo. Colocara as mãos no pescoço dela antes de se aperceber de quem se tratava.

 

Ficou perplexo, encantado e grato. Fechara a porta, depois beijara-a ali de pé durante bastante tempo. Fora surpreendido e parecia que estava a viver um sonho. Tinha medo de poder acordar.

 

Ela acariciara-o, as suas mãos percorrendo os ombros dele, as costas e o peito. Tinha mãos macias, mas o seu toque era firme, explorador.

 

Tens muitos pêlos murmurara.

 

Como um macaco.

 

Mas não tão giro brincara ela.

 

Ele olhara para os lábios dela, deliciando-se com a forma como eles se moviam quando ela falava, pensando que dali a um momento iria tocar neles com os seus e que a sensação seria maravilhosa. Sorrira.

 

Vamos deitar-nos.

 

Deitaram-se na cama, de frente um para o outro, mas ela não despiu a roupa, nem sequer descalçou os sapatos. Ele achou estranhamente excitante estar nu ao lado de uma mulher completamente vestida. Estava a gostar tanto que não tinha pressa para avançar. Queria que aquele momento durasse para sempre.

 

Diz-me uma coisa pediu ela com a sua voz lenta e sensual.

 

O quê?

 

Qualquer coisa. Sinto que não te conheço.

 

O que era aquilo? Nunca tivera uma rapariga que se comportasse assim. Fora ter ao seu quarto durante a noite, deitara-se na sua cama sem tirar a roupa, depois interrogava-o.

 

Foi para isso que vieste? perguntou ele num tom ligeiro, observando o rosto dela. Para me interrogares?

 

Ela riu.

 

Não te preocupes, quero fazer amor contigo, mas não à pressa. Fala-me da tua primeira amante.

 

Ele acariciou-lhe o rosto ao de leve com as pontas dos dedos, seguindo a curva do maxilar. Não sabia o que ela queria, para onde ia. Apanhara-o desprevenido.

 

Podemos tocar-nos enquanto falamos?

 

Sim.

 

Beijou-a nos lábios.

 

E beijar-nos também?

 

Sim.

 

Então acho que devíamos falar só um bocadinho, talvez um ano ou dois.

 

Como é que ela se chamava?

 

Flick não estava tão confiante como queria parecer, achou ele. Aliás, estava bastante nervosa, e esse era o motivo que a levava a fazer perguntas. Se isso a deixava mais à vontade, então ele responderia.

 

Chamava-se Linda. Éramos muito novos... tenho vergonha só de pensar nisso. Da primeira vez que a beijei ela tinha doze anos e eu catorze, imaginas?

 

Claro que sim. Ela soltou uma risada, e durante um instante pareceu de novo uma criança. Costumava beijar rapazes aos doze anos.

 

Tínhamos sempre de fingir que íamos sair com um grupo de amigos, e normalmente começávamos assim a noite, mas pouco depois afastávamo-nos do grupo e íamos para o cinema ou algo parecido. Fizemos isso durante alguns anos antes de passarmos ao sexo.

 

Onde foi isso, nos Estados Unidos?

 

Em Paris. O meu pai era o adido militar na embaixada. Os pais da Linda tinham um hotel que hospedava normalmente visitantes americanos. Costumávamos andar com um grupo de miúdos expatriados.


Onde é que fizeram amor?

 

No hotel. Não era difícil. Havia sempre muitos quartos vazios.

 

Como é que foi a primeira vez? Utilizaste alguma... bem, alguma precaução?

 

Ela roubou um dos preservativos do pai.

 

Os dedos de Flick deslizaram pelo ventre dele, em sentido descendente. Paul fechou os olhos.

 

Quem é que o enfiou? perguntou Flick.

 

Foi ela. Foi muito excitante. Quase atingi o orgasmo nessa altura. E se tu não tiveres cuidado...

 

Ela mudou a mão para a coxa dele.

 

Gostava de te ter conhecido quando tinhas dezasseis anos. Ele abriu os olhos. Já não queria que aquele momento durasse para sempre. Aliás, descobriu que estava com bastante pressa para avançar.

 

Gostavas... Tinha a boca seca, e engoliu. Gostavas de despir alguma dessa roupa?

 

Sim. Mas por falar em precauções...

 

Na minha carteira. Na mesa-de-cabeceira.

 

Óptimo. Ela sentou-se e desapertou os atacadores dos sapatos, atirando-os em seguida para o chão. Levantou-se e desabotoou a blusa. Paul apercebeu-se de que ela estava tensa, por isso disse:

 

Não te apresses, temos a noite toda.

 

Já há uns anos que não via uma mulher despir-se. Vivera a olhar para os calendários das pin-ups, e elas usavam sempre confecções elaboradas de seda e renda, espartilhos e cintos de ligas e roupões transparentes. Flick tinha uma camisola interior de algodão, nenhum sutiã, e ele calculou que os seios pequenos e firmes que via sedutoramente delineados não precisavam de suporte. Flick deixou cair a saia. As suas cuecas eram de algodão branco com um folhinho nas pernas. O seu corpo era pequeno mas musculado. Parecia uma colegial a mudar de roupa para o treino de hóquei, mas ele achou-a mais excitante do que uma pin-up.

 

Flick voltou a deitar-se.

 

Está melhor assim? perguntou.

 

Ele acariciou-lhe a anca, sentindo a pele morna, depois o algodão macio, em seguida pele de novo. Apercebeu-se de que ela ainda não estava pronta. Obrigou-se a ser paciente e a deixá-la marcar o ritmo.

 

Não me falaste da tua primeira vez.


Para sua surpresa, ela corou.

 

Não foi tão agradável como a tua.

 

Porquê?

 

Foi num sítio horrível, numa arrecadação cheia de pó.

 

Ele sentiu-se indignado. Que raio de idiota levaria uma rapariga tão especial como Flick para uma arrecadação para a sujeitar a uma rapidinha encostada a um armário?

 

Que idade tinhas?

 

Vinte e dois.

 

Paul esperara que ela respondesse dezassete.

 

Credo! Nessa idade já merecias uma cama confortável.

 

Mas não foi isso que aconteceu.

 

Estava de novo a descontrair-se. Paul encorajou-a a falar mais um pouco.

 

Então o que correu mal?

 

Provavelmente eu não queria realmente fazer aquilo. Fui persuadida.

 

Não amavas o tipo?

 

Sim, amava. Mas não estava preparada.

 

Como é que ele se chamava?

 

Não quero dizer-te.

 

Paul calculou que tivesse sido o marido dela, Michel, e achou melhor não fazer mais perguntas. Beijou-a.

 

Posso tocar nos teus seios?

 

Podes tocar onde quiseres.

 

Nunca ninguém lhe tinha dito aquilo. Achou a franqueza dela surpreendente e excitante. Começou a explorar-lhe o corpo. Segundo a sua experiência, a maior parte das mulheres fechava os olhos naquele momento, mas ela manteve os olhos abertos, observando o rosto dele com um misto de desejo e curiosidade que o excitou ainda mais. Parecia que ao observá-lo era ela quem estava a explorá-lo, e não o contrário. As mãos dele descobriram os seios dela e as pontas dos seus dedos exploraram os seus mamilos tímidos, aprendendo aquilo de que gostavam. Despiu-lhe as cuecas. Ela tinha pêlos da cor do mel, muitos, e sob os pêlos, do lado esquerdo, um sinal como uma gota de chá derramada. Ele baixou a cabeça e beijou-a aí, os seus lábios sentindo a aspereza dos pêlos, a sua língua provando a humidade dela.

 

Sentiu que ela estava a ceder ao prazer. O nervosismo dela desapareceu. Os seus braços e pernas abriram-se em forma de estrela, indolentes, abandonados, mas as suas coxas moviam-se na direcção dele com avidez. Ele explorou os recantos do sexo dela com um prazer lento. Os movimentos dela tornaram-se mais urgentes.


Flick afastou a cabeça dele. Tinha o rosto afogueado e estava ofegante. Esticou o braço na direcção da mesa-de-cabeceira, abriu a carteira dele e encontrou os preservativos, três num pequeno embrulho de papel. Rasgou o invólucro com dedos trémulos, tirou um e colocou-o nele. Depois sentou-se em cima dele enquanto ele se deitava. Dobrou-se para o beijar e murmurou-lhe ao ouvido:

 

Hum, sabe tão bem ter-te dentro de mim! Depois endireitou-se e começou a mover-se.

 

Despe a camisola pediu ele. Ela obedeceu.

 

Paul observou-a por cima de si, o seu rosto bonito com uma expressão de concentração, os seus seios agitando-se de forma sedutora. Sentia-se o homem mais sortudo do mundo. Queria que aquilo durasse para sempre: que não houvesse nascer do dia, nem amanhã, nem avião, nem pára-quedas, nem guerra.

 

Na vida não havia nada melhor que o amor, pensou.

 

Quando terminou, o primeiro pensamento de Flick foi: «O que vou dizer ao Michel?»

 

Não se sentia infeliz. Estava cheia de amor e de desejo por Paul. Num curto espaço de tempo tornara-se mais íntima dele do que alguma vez fora com Michel. Queria fazer amor com ele todos os dias até ao fim da sua vida. Esse era o problema. O seu casamento chegara ao fim. E teria de dizer isso a Michel assim que o visse. Não era capaz de fingir, ainda que por poucos minutos, que continuava a sentir o mesmo por ele.

 

Michel fora o único homem com quem tivera intimidade antes de Paul. Devia ter dito isso a Paul, mas sentia-se desleal a falar de Michel. Parecia mais traição do que adultério. Um dia diria a Paul que ele era apenas o seu segundo amante, e poderia dizer que ele fora o melhor, mas nunca lhe diria como fora o sexo com Michel.

 

No entanto, não era apenas o sexo que era diferente com Paul, era ela própria. Nunca fizera perguntas a Michel, como fizera a Paul, sobre as suas experiências sexuais anteriores. Nunca lhe dissera «podes tocar onde quiseres». Nunca lhe colocara o preservativo, ou subira para cima dele para fazer amor, nem lhe dissera que sabia bem tê-lo dentro de si.

 

Quando se deitara na cama ao lado de Paul, outra personalidade parecia ter surgido dentro de si, tal como Mark sofrera uma transformação ao entrar no Clube Criss-Cross. Subitamente sentia que podia dizer tudo o que lhe apetecesse, fazer tudo o que quisesse, ser ela própria sem se preocupar com o que pensassem de si.


Nunca fora assim com Michel. Tendo começado como sua aluna, querendo impressioná-lo, nunca se sentira em pé de igualdade com ele. Continuara a procurar a sua aprovação, algo que ele nunca fizera em relação a ela. Na cama, tentara agradar a Michel, não a si própria.

 

Em que estás a pensar? perguntou Paul passado algum tempo.

 

No meu casamento respondeu ela.

 

O que é que tem?

 

Flick perguntou de si para si quanto deveria confessar. Ele dissera ainda há pouco que desejava casar com ela, mas isso fora antes de ela entrar no seu quarto. Segundo o folclore feminino, os homens nunca casavam com raparigas que dormiam com eles antes do casamento. Nem sempre isso era verdade, tal como Flick sabia pela sua experiência com Michel. Mas mesmo assim decidiu dizer a Paul uma meia verdade.

 

Acabou.

 

É uma decisão drástica.

 

Ela soergueu-se sobre um cotovelo e olhou para ele.

 

Isso incomoda-te?

 

Pelo contrário. Espero que signifique que voltaremos a ver-nos.

 

Estás a falar a sério? Ele abraçou-a.

 

Até tenho medo de te dizer quão sério estou a falar.

 

Medo?

 

Medo de te assustar. Disse uma coisa idiota há pouco.

 

Sobre casar comigo e ter filhos?

 

Estava a falar a sério, mas disse-o de forma arrogante.

 

Não faz mal retorquiu ela. Quando as pessoas são muito bem-educadas, geralmente significa que se estão nas tintas. Uma certa brusquidão é mais sincera.

 

Acho que tens razão. Nunca tinha pensado nisso.

 

Ela acariciou o rosto dele. Conseguia ver os pêlos da barba dele, e apercebeu-se de que a luz do dia era cada vez mais intensa. Obrigou-se a não olhar para o relógio: não queria saber quanto mais tempo tinham juntos.

 

Percorreu o rosto dele com a mão, tocando-lhe com as pontas dos dedos: as sobrancelhas farfalhudas, os olhos encovados, o nariz grande, a orelha cortada, os lábios sensuais, o maxilar forte.

 

Tens água quente? perguntou de repente.

 

Sim, isto é um quarto fino. Há um lavatório no canto.


Ela levantou-se.

 

O que vais fazer?

 

Fica aí. Avançou descalça pelo quarto, sentindo o olhar dele pousado no seu corpo nu, e desejou não ter as ancas tão largas. Na prateleira por cima do lavatório havia uma caneca com pasta de dentes e uma escova de dentes de madeira que ela reconheceu ser francesa. Ao lado da caneca estava uma lâmina de barbear, um pincel e uma tigela com sabonete de barbear. Flick abriu a torneira da água quente, molhou o pincel e preparou a espuma na tigela.

 

Então, o que é isto? perguntou ele.

 

Vou fazer-te a barba.

 

Porquê?

 

Já vais ver.

 

Encheu-lhe o rosto de espuma de barbear, depois pegou na lâmina e encheu a caneca com água quente. Sentou-se em cima dele como se sentara quando haviam feito amor e fez-lhe a barba com movimentos cuidadosos e ternos.

 

Onde é que aprendeste a fazer isto? perguntou ele.

 

Não fales respondeu ela. Vi a minha mãe a fazer a barba ao meu pai muitas vezes. O meu pai era alcoólico e no fim já não conseguia segurar com firmeza na lâmina, por isso a minha mãe tinha de o barbear todos os dias. Levanta o queixo.

 

Ele obedeceu, e ela barbeou a pele sensível da sua garganta. Depois de ter terminado, ensopou um pano com água quente e limpou o rosto de Paul com ele. Em seguida secou-o com uma toalha lavada.

 

Devia pôr-te um pouco de creme, mas calculo que sejas demasiado masculino para usar creme.

 

Nunca me ocorreu que devia usar creme.

 

Não faz mal.

 

E agora?

 

Lembras-te do que me estavas a fazer antes de eu ter estendido o braço para a tua carteira?

 

Sim.

 

Interrogaste-te por que motivo não te deixei continuar?

 

Pensei que estavas impaciente para... fazer amor.

 

Não, a tua barba estava a arranhar-me as coxas, naquele sítio onde a pele é mais sensível.

 

Oh, desculpa.

 

Bem, agora podes compensar-me. Ele franziu o sobrolho.

 

Como?


Ela soltou um gemido de frustração fingida.

 

Ora, Einstein. Agora que já tens a barba feita...

 

Oh, estou a ver! Foi por isso que me fizeste a barba? Sim, claro que foi. Queres que eu...

 

Ela deitou-se de costas, sorrindo, e abriu as pernas.

 

Será que isto é suficientemente sugestivo? Ele soltou uma gargalhada.

 

Claro que é respondeu, baixando a cabeça. Ela fechou os olhos.

 

O antigo salão de baile ficava na ala ocidental do castelo de Sainte-Cécile, a ala bombardeada. O salão estava apenas parcialmente danificado: numa das extremidades havia um monte de entulho, pedras quadradas, frontões triangulares esculpidos e pedaços de parede pintados num monte empoeirado, mas a outra extremidade estava intacta. O efeito era pitoresco, pensou Dieter, com o sol da manhã a entrar por um grande buraco no tecto e a incidir em vários pilares partidos, como num quadro vitoriano de ruínas clássicas.

 

Dieter decidira fazer a reunião naquele salão. A alternativa era fazê-la no gabinete de Weber, e Dieter não queria dar aos homens a impressão de que era Weber quem mandava. Havia um pequeno estrado, provavelmente destinado à orquestra, sobre o qual ele pusera um quadro. Os homens haviam trazido cadeiras de outras partes do castelo e haviam-nas disposto em frente ao estrado em quatro filas de cinco cadeiras muito alemão, pensou Dieter com um pequeno sorriso; os Franceses teriam disposto as cadeiras ao calha. Weber, que reunira a equipa, encontrava-se sentado no estrado de frente para os homens para enfatizar que era um dos comandantes, não um subordinado de Dieter.

 

A presença de dois comandantes, iguais no posto e hostis em relação um ao outro era a maior ameaça da operação, pensou Dieter.

 

No quadro desenhara a giz um mapa da aldeia de Chatelle. Consistia em três casas grandes presumivelmente quintas ou adegas mais seis vivendas e uma padaria. Os edifícios situavam-se à volta de um cruzamento, com vinhas a norte, oeste e sul e um grande pasto a este, com cerca de um quilómetro de comprimento, ladeado por um lago de grandes dimensões. Dieter calculou que o terreno era usado para pasto porque o solo era demasiado húmido para as vinhas.


Os pára-quedistas vão tentar aterrar neste pasto disse Dieter. Deve ser uma zona de aterragem e descolagem: é plana, suficientemente grande para um Lysander, e suficientemente comprida até para um Hudson. O lago ali perto é um bom ponto de referência, visível do ar. Há um estábulo na extremidade sul do campo onde o comité de recepção deverá abrigar-se enquanto espera pelo avião. Fez uma pausa. A coisa mais importante de que todos os presentes devem recordar-se é que queremos que aqueles pára-quedistas aterrem. Temos de evitar qualquer acção que possa trair a nossa presença ao comité de recepção ou ao piloto. Temos de ser silenciosos e invisíveis. Se o avião der meia volta e regressar a casa com os agentes a bordo teremos perdido uma oportunidade de ouro. Um dos pára-quedistas é uma mulher que pode dar-nos informações sobre a maior parte dos circuitos da Resistência no Norte da França... se conseguirmos deitar-lhe a mão.

 

Weber interveio, principalmente para recordar toda a gente de que estava presente.

 

Permitam-me sublinhar aquilo que o major Franck acabou de dizer. Não corram riscos! Não façam nada que dê nas vistas! Sigam o plano!

 

Obrigado, major disse Dieter. O tenente Hesse dividiu-vos em equipas de dois, de A a L. Cada edifício no mapa está assinalado com a letra de uma equipa. Chegaremos à aldeia às oito da noite. Iremos entrar rapidamente em cada uma das casas. Todos os moradores irão ser levados para a maior das três casas grandes, conhecida como La Maison Grandin, e mantidos lá até tudo ter terminado.

 

Um dos homens levantou uma mão.

 

Schuller! exclamou Weber. Pode falar.

 

Meu major, e se as pessoas da Resistência baterem a uma das portas? Verificarão que as casas estão vazias e podem ficar desconfiadas.

 

Dieter assentiu.

 

Boa pergunta. Mas não me parece que o façam. Calculo que os elementos do comité de recepção não sejam conhecidos ali. Normalmente os agentes não costumam aterrar de pára-quedas perto do local de residência de simpatizantes... é um risco desnecessário. Aposto que vão chegar depois do anoitecer e irão directamente para o estábulo sem incomodar os aldeões.

 

Weber tornou a falar.

 

Isto é um procedimento normal da Resistência disse com o ar de um médico a expor um diagnóstico.


A Maison Grandin vai ser o nosso quartel-general continuou Dieter. O major Weber será ali o comandante. Aquele era o seu esquema para manter Weber afastado do local da acção. Os prisioneiros irão ser trancados num sítio conveniente, preferencialmente numa cave. Deverão ser mantidos em silêncio, para que possamos ouvir o carro em que o comité de recepção irá chegar, e depois o avião.

 

Qualquer prisioneiro que insista em fazer barulho deve ser abatido disse Weber.

 

Assim que os aldeões forem encarcerados, as equipas A, B, C e D ocuparão as suas posições nas estradas que conduzem à aldeia. Se algum veículo ou alguma pessoa entrarem na aldeia as equipas comunicá-lo-ão via rádio, mas nada mais farão. Não impedirão ninguém de entrar na aldeia nem farão algo que possa trair a vossa presença. Olhando em volta, Dieter interrogou-se com pessimismo se os homens da Gestapo seriam suficientemente inteligentes para cumprir aquelas ordens. O inimigo precisa de transporte para seis pára-quedistas e para o comité de recepção, por isso chegará num camião ou num autocarro, ou possivelmente em vários carros. Creio que irão entrar no pasto por este portão... o chão está bastante seco nesta altura do ano, por isso não há o perigo de os carros ficarem atascados... e estacionar entre o portão e o estábulo, aqui. Apontou para um ponto no mapa. As equipas E, F, G e H irão estar neste aglomerado de árvores perto do lago, cada uma equipada com um holofote. As equipas I e J irão ficar na Maison Grandin para guardar os prisioneiros e manter o posto de comando com o major Weber. Dieter não queria Weber no local onde as detenções iriam ser feitas. As equipas K e L estarão comigo, atrás desta sebe junto ao estábulo.

 

Hans descobrira quais os homens que tinham melhor pontaria e incumbira-os de trabalhar com Dieter.

 

Contactarei via rádio com todas as equipas e terei o comando no pasto. Quando ouvirmos o avião... não fazemos nada! Quando virmos os pára-quedistas... não fazemos nada! Veremos os pára-quedistas aterrar e esperaremos que o comité de recepção se reúna em torno deles e os leve para o local onde os veículos estão estacionados. Dieter levantou a voz, especialmente para que Weber o ouvisse. Só quando o processo estiver completo é que prenderemos alguém! Os homens só sacariam das armas se um oficial assustadiço lhes ordenasse.

 

«Quando estivermos prontos, eu darei o sinal. A partir deste momento, e até a ordem de retirada ser dada, as equipas A, B, C e D prenderão quem tentar entrar ou sair da aldeia. As equipas E, F, G e H acenderão os holofotes e apontá-los-ão ao inimigo. As equipas K e L aproximar-se-ão dele comigo e prendê-lo-ão. Ninguém deve disparar sobre o inimigo... estamos entendidos?

 

Schuller, obviamente o único pensador do grupo, tornou a levantar a mão.

 

E se eles dispararem sobre nós?

 

Não ripostem. Aquelas pessoas não nos servirão para nada se estiverem mortas! Mantenham-se no chão de holofotes apontados para elas. Só as equipas E e F têm autorização para usar as armas, e têm ordens de atirar para ferir. Queremos interrogar aqueles pára-quedistas, não matá-los.

 

O telefone do salão tocou, e Hans Hesse atendeu.

 

É para si disse ele a Dieter. Quartel-general do Rommel.

 

O telefonema chegara na altura certa, pensou Dieter ao atender. Ligara havia pouco para Walter Goedel em La Roche-Guyon e deixara recado a pedir que Goedel retribuísse a chamada.

 

Walter, meu amigo, como está o marechal-de-campo?

 

Bem, o que é que você quer? ripostou Goedel, abrupto como sempre.

 

Achei que o marechal-de-campo iria gostar de saber que esta noite vamos estar ocupados... a prender um grupo de sabotadores assim que eles chegarem. Dieter tinha uma certa relutância em contar mais pormenores pelo telefone, mas estava numa linha militar alemã e o risco de ser ouvido pela Resistência era bastante pequeno. E o apoio de Goedel era crucial para a operação. Tenho informação de que um deles pode dizer-nos muito sobre vários circuitos da Resistência.

 

Excelente! exclamou Goedel. Por acaso, estou a ligar-lhe de Paris. Quanto tempo levo a chegar a Reims de carro... duas horas?

 

Três.

 

Então faço-vos companhia. Dieter ficou encantado.

 

Faça favor, se é isso que o marechal-de-campo deseja. Venha ter connosco ao castelo de Sainte-Cécile até às dezanove horas o mais tardar. Olhou para Weber, que empalidecera ligeiramente.

 

Muito bem. E Goedel desligou. Dieter devolveu o telefone a Hesse.

 

O assessor do marechal Rommel, o major Goedel, irá fazer-nos companhia esta noite. Sorriu olhando em volta, e por último o seu olhar pousou em Weber. Não acham que temos sorte?

 

Durante toda a manhã as Gralhas rumaram a norte num pequeno autocarro. Foi uma viagem lenta por entre bosques frondosos e campos de trigo verdes, ziguezagueando de uma vila para outra, contornando Londres para oeste. O mundo rural parecia alheado da guerra e até do século xx, e Flick desejou que ele continuasse assim por muito tempo. Enquanto avançavam pela Winchester medieval, ela pensou em Reims, outra cidade com catedral, com nazis fardados a marchar pelas ruas e agentes da Gestapo por todo o lado nos seus carros pretos, e deu graças por eles terem parado junto ao canal da Mancha. Ia sentada ao lado de Paul e observou a paisagem durante algum tempo, mas depois como estivera acordada toda a noite a fazer amor caiu num sono profundo com a cabeça apoiada no ombro dele.

 

Às duas da tarde chegaram à aldeia de Sandy, em Bedfordshire. O autocarro desceu por uma estrada secundária cheia de curvas, meteu por um caminho de terra no meio de um bosque e chegou a uma mansão chamada Tempsford House. Flick já ali estivera antes: era o ponto de encontro para o campo de aviação Tempsford. A tranquilidade que sentira até ali abandonou-a. Apesar da elegância oitocentista do local, para ela simbolizava a insustentável tensão das horas imediatamente antecedentes a um voo para território inimigo.

 

Chegaram demasiado tarde para o almoço, mas tinham chá e sandes à espera na sala de jantar. Flick bebeu o chá, mas estava demasiado ansiosa para comer. Em seguida conduziram-nos aos quartos.

 

Pouco depois as mulheres encontraram-se na biblioteca. Esta parecia mais o camarim de um estúdio de cinema. Havia cabides com casacos e vestidos, caixas de chapéus e sapatos, caixas de cartão com etiquetas a dizer «Culottes», «Chaussettes» e «Mouchoirs», e uma mesa no meio da sala com várias máquinas de costura.

 

Madame Guillermin era a encarregada da operação, uma mulher magra com cerca de cinquenta anos que envergava um vestido de corpete abotoado com uma casaquinha elegante a condizer. Tinha óculos na ponta do nariz e uma fita métrica ao pescoço, e falou-lhes num francês perfeito com sotaque parisiense.

 

Como sabem, as roupas francesas são bastante diferentes das britânicas. Não direi que são mais elegantes, mas sabem, são... mais elegantes. Encolheu os ombros e as mulheres riram-se.

 

Não era apenas uma questão de elegância, pensou Flick com sobriedade: os casacos franceses eram normalmente quinze centímetros mais compridos que os ingleses, e havia numerosos pormenores diferentes que poderiam trair um agente secreto. Por isso todas as roupas haviam sido compradas em França, trocadas por roupas britânicas novas com refugiados, ou fielmente copiadas de peças originais francesas, depois usadas durante algum tempo para não parecerem novas.

 

Estamos no Verão por isso temos vestidos de algodão, fatos leves de lã e casacos impermeáveis. Indicou com a mão duas jovens sentadas junto às máquinas de costura. As minhas assistentes farão alterações se as roupas não servirem na perfeição.

 

Precisamos de roupas relativamente caras, mas usadas disse Flick. Quero que pareçamos mulheres respeitáveis se formos interrogadas pela Gestapo. Quando precisassem de passar por mulheres da limpeza, poderiam facilmente piorar a sua aparência tirando chapéus, luvas e cintos.

 

Madame Guillermin começou com Ruby. Observou-a atentamente durante um minuto, depois tirou do cabide um vestido azul-escuro e uma gabardina castanha.

 

Experimente estes. É uma gabardina de homem, mas hoje em dia em França ninguém se pode dar ao luxo de ser comichosa. Apontou para o outro lado da sala. Podem mudar de roupa atrás daquele biombo se quiserem, e para as mais tímidas há uma pequena antessala atrás da secretária. Achamos que o dono da casa costumava trancar-se ali dentro para ler livros porcos. Riram-se todas menos Flick, que já ouvira anteriormente as piadas de Madame Guillermin.

 

A costureira olhou para Greta, depois passou para outra mulher dizendo:

 

Já volto para si.

 

Escolheu roupas para Jelly, Diana e Maude e estas foram-se vestir atrás do biombo. Depois virou-se para Flick e perguntou em voz baixa:

 

Isto é alguma piada?

 

Porque diz isso? Ela virou-se para Greta:

 

Você é um homem.

 

Flick soltou um gemido de frustração e virou-lhe costas. A costureira detectara o disfarce de Greta em segundos. Era um mau presságio.

 

Pode enganar muita gente, mas a mim não me engana acrescentou Madame. Percebi logo.

 

Como? perguntou Greta. Madame Guillermin encolheu os ombros.

 

As proporções estão todas erradas... os seus ombros são demasiado largos, as ancas demasiado estreitas, as pernas demasiado musculadas, as mãos demasiado grandes... é evidente para uma entendida.

 

Ela tem de ser uma mulher nesta missão, por isso vista-a o melhor que puder disse Flick com irritação.

 

Com certeza... mas, por favor, não a deixem ser vista por uma costureira.

 

Não há problema. A Gestapo não emprega muitas. A confiança de Flick era fingida. Não queria que Madame Guillermin percebesse o quanto estava preocupada.

 

A costureira voltou a olhar para Greta.

 

Vou dar-lhe uma saia e uma blusa que contrastem, para reduzir a sua altura, e um casaco a três quartos. Escolheu as roupas e deu-as a Greta.

 

Greta olhou com ar de desaprovação para elas. Gostava de roupas mais elegantes. No entanto, não se queixou.

 

Vou ser tímida e mudar de roupa na antessala disse. Por fim, Madame Guillermin deu a Flick um vestido verde-maçã

 

e um casaco a condizer.

 

A cor realça-lhe os olhos observou. Desde que não dê nas vistas, porque não há-de parecer bonita? Isso pode ajudá-la a livrar-se de problemas.

 

O vestido era largo e ficava enorme a Flick, mas ela pôs um cinto de cabedal para realçar a cintura.

 

Você é muito chique, tal como uma rapariga francesa disse Madame Guillermin. Flick não lhe disse que o principal objectivo do cinto era segurar uma arma.

 

Vestiram as roupas novas e desfilaram pela biblioteca, pavoneando-se e rindo. Madame Guillermin escolhera bem, e elas gostavam do que lhes havia sido dado, mas algumas das roupas precisavam de ser ajustadas.

 

Enquanto fazemos as alterações vocês podem escolher alguns acessórios disse Madame.

 

As mulheres perderam rapidamente a timidez e começaram a andar de um lado para o outro em roupa interior, experimentando chapéus e sapatos, lenços e malas. Tinham esquecido momentaneamente os perigos que as esperavam, pensou Flick, e estavam a deliciar-se com as roupas novas.

 

Greta saiu da antessala com um aspecto surpreendentemente elegante. Flick observou-a com interesse. Virara para cima a gola da blusa branca simples e usava o casaco informe sobre os ombros, como se fosse uma capa. Madame Guillermin arqueou uma sobrancelha, mas não fez comentários.

 

O vestido de Flick tinha de ser encurtado. Enquanto isso era feito ela estudou o casaco. Trabalhar sob disfarce aguçara o seu olhar para os pormenores, e ela observou com ansiedade as costuras, o forro, os botões e os bolsos para se certificar de que eram de estilo francês. Não encontrou falhas. A etiqueta do casaco dizia «Galeries Lafayette».

 

Flick mostrou a Madame Guillermin o seu punhal de lapela. Tinha apenas sete centímetros de comprimento, e uma lâmina estreita, mas era muito aguçado. Possuía um pequeno cabo e nenhum punho.

 

Quero que cosa isto ao casaco sob a lapela pediu Flick. Madame Guillermin assentiu.

 

Não há problema.

 

Deu a cada mulher uma pequena pilha de roupa interior, duas peças de cada coisa, tudo com etiquetas de lojas francesas. Com uma exactidão infalível escolhera não só o tamanho exacto mas também o estilo preferido de cada mulher: espartilhos para Jelly, cuecas de renda bonitas para Maude, coulottes e sutiãs bicudos para Diana, combinações e cuecas simples para Ruby e Flick.

 

Os lenços têm as marcas de diferentes blanchisseries de Reims disse Madame Guillermin com uma ponta de orgulho.

 

Por fim, fez aparecer vários tipos de malas: um saco de lona, uma mala de viagem que se abria em dois compartimentos iguais, uma mochila e um conjunto de malas baratas de fibra de diferentes cores e tamanhos. Cada mulher recebeu uma. Lá dentro encontraram uma escova de dentes, pasta, pó-de-arroz, graxa, cigarros e fósforos tudo de marcas francesas. Muito embora fossem estar pouco tempo em França, Flick insistira para que cada uma recebesse um conjunto completo.


Lembrem-se de que não podem levar convosco nada que não vos tenha sido entregue esta tarde disse Flick. A vossa vida depende disso.

 

As risadas pararam quando elas se recordaram do perigo que iriam enfrentar dali a poucas horas.

 

Muito bem, voltem aos vossos quartos e vistam a roupa francesa, incluindo a roupa interior. Depois encontramo-nos lá em baixo para o jantar.

 

Fora instalado um bar na principal sala da casa. Quando Flick lá entrou viu cerca de uma dezena de homens, alguns com a farda da RAF, mas todos Flick sabia-o de visitas anteriores destinados a efectuarem voos clandestinos sobre França. Um quadro exibia os nomes ou os nomes de código dos que iriam partir nessa noite ao lado das horas a que tinham de sair da casa:

 

Aristóteles 19.50

 

Cap. Jenkins e Ten. Ramsey 20.05

 

Gralhas 20.30

 

Colgate e Bunter 21.00

 

Mr. Blister, Paradoxo, Saxofone 22.05

 

Olhou para o relógio. Eram seis e meia. Dispunham de duas horas.

 

Sentou-se ao balcão e olhou em volta, perguntando de si para si quantos regressariam e quantos morreriam. Alguns eram bastante jovens, fumando e contando piadas como se não tivessem preocupações. Os mais velhos pareciam calejados e saboreavam os uísques e os gins sabendo que poderiam ser os últimos. Flick pensou nos pais deles, nas mulheres e namoradas, nos bebés e nos filhos mais velhos. O trabalho daquela noite causaria a alguns deles um sofrimento que nunca desapareceria.

 

As suas reflexões foram interrompidas por uma visão que a surpreendeu. Simon Fortescue, o burocrata matreiro do MI6, entrou no bar com um fato às riscas acompanhado por Denise Bowyer.

 

Flick ficou boquiaberta.

 

Felicity, ainda bem que a apanho disse Simon. Sem esperar pelo convite, puxou para trás um banco para Denise. Um gim tónico, por favor. O que deseja tomar, Lady Denise?

 

Um martini, muito seco.

 

E você, Felicity?

 

Flick não respondeu à pergunta.

 

Ela devia estar na Escócia! exclamou.


Olhe, parece ter havido um mal-entendido. A Denise contou-me tudo acerca do tal polícia...

 

Não houve qualquer malentendido interrompeu Flick. A Denise chumbou no curso. Não há mais nada.

 

Denise emitiu um grunhido.

 

Não vejo como é que uma rapariga inteligente de uma boa família pode chumbar...

 

É uma fala-barato.

 

O quê?

 

Não consegue ficar de bico calado. Não é de confiança. Não devia sequer andar por aí em liberdade!

 

Sua maldizente! exclamou Denise.

 

Fortescue controlou com algum esforço a sua crescente irritação e baixou a voz.

 

Olhe, o irmão dela é o marquês de Inverlocky, que é muito amigo do primeiro-ministro. O próprio Inverlocky pediu-me que desse à Denise outra oportunidade. Por isso, está a ver, seria uma enorme falta de tacto rejeitá-la.

 

Flick levantou a voz.

 

Deixe-me ver se percebo. Alguns dos homens que se encontravam mais próximo levantaram a cabeça. Como favor para o seu amigo da classe alta, está a pedir-me que leve alguém que não é de confiança numa missão perigosa atrás das linhas inimigas. É isso?

 

Enquanto ela falava, Percy e Paul entraram. Percy olhou para Fortescue com malevolência.

 

Será que ouvi bem? perguntou Paul.

 

Trouxe a Denise comigo porque seria, francamente, um embaraço para o Governo se ela ficasse para trás... disse Fortescue.

 

E um perigo para mim se ela fosse! interrompeu Flick. Está a desperdiçar o seu tempo. Ela foi expulsa da equipa.

 

Olhe, não quero ter de puxar dos galões...

 

Que galões? perguntou Flick,

 

Demiti-me da Guarda como coronel...

 

Aposentou-se!

 

... e na administração pública tenho o equivalente a brigadeiro.

 

Não seja ridículo respondeu Flick. O senhor não está sequer no exército.

 

Ordeno-lhe que leve a Denise consigo.

 

Então vou ter de reconsiderar a minha resposta disse Flick.

 

Isso já é melhor. Tenho a certeza de que não irá arrepender-se.


Muito bem, aqui está a minha resposta. Vá-se foder! Fortescue ficou muito vermelho. Provavelmente, jamais uma rapariga lhe havia dito aquilo. Ficou estranhamente calado.

 

Bem! exclamou Denise. Agora já sabemos com que tipo de pessoa estamos a lidar.

 

Estão a lidar comigo interveio Paul. Virou-se para Fortescue. Sou o comandante desta operação, e não quero a Denise na equipa. Se lhe apetecer discutir, telefone ao Monty.

 

Bem dito, meu rapaz comentou Percy.

 

Por fim Fortescue recuperou a fala. Brandiu um dedo na direcção de Flick.

 

Há-de chegar a altura, Mistress Clairet, em que irá arrepender-se de me ter dito isso. Levantou-se do banco. Lamento o que aconteceu, Lady Denise, mas acho que já fizemos tudo o que podíamos.

 

Foram-se embora,

 

Parvalhão murmurou Percy.

 

Vamos jantar sugeriu Flick.

 

As outras já estavam na sala de jantar, à espera. Quando as Gralhas iniciaram a sua última refeição em Inglaterra, Percy deu a cada uma um presente dispendioso: cigarreiras de prata às fumadoras, estojos de ouro para o pó-de-arroz às outras.

 

Têm contraste francês, por isso podem levá-las convosco disse. As mulheres ficaram contentes, mas ele voltou a desanimá-las com o comentário seguinte. Também têm uma finalidade. São objectos que podem ser facilmente penhorados para vocês conseguirem algum dinheiro se se meterem em apuros.

 

A comida era abundante, um autêntico banquete, considerando que se estava em guerra, e as Gralhas comeram com gosto. Flick não tinha muita fome, mas obrigou-se a comer um bife grande, sabendo que numa semana em França não conseguiria obter tanta carne.

 

Quando terminaram a refeição chegou a altura de irem para o campo de aviação. Regressaram aos quartos para irem buscar os sacos e as malas francesas, depois subiram para o autocarro. Este levou-as por outra estrada rural, atravessando uma linha férrea, depois aproximou-se do que parecia uma quinta na extremidade de um campo plano e grande. Uma placa anunciava «Quinta Gibraltar», mas Flick sabia que se encontravam na base de Tempsford da RAF e que os celeiros eram abrigos pré-fabricados disfarçados.

 

Entraram no que parecia uma vacaria e depararam com um oficial da RAF fardado, de guarda a estantes de aço com equipamento. Antes de receberem o material, cada uma delas foi revistada. Na mala de Maude encontraram uma caixa de fósforos britânicos; Diana tinha no bolso uma folha com palavras cruzadas meio feitas arrancada do Daily Mirrar, que ela jurou tencionar deixar no avião; e Jelly, a jogadora inveterada, tinha um baralho de cartas com Fabricado em Birmingham» impresso em cada uma.

 

Paul distribuiu os cartões de identificação, os cartões de racionamento e os cupões para a roupa. Cada mulher recebeu cem mil francos franceses, quase tudo em notas de mil bastante usadas. Era o equivalente a quinhentas libras, o suficiente para comprar dois Fords.

 

Também receberam armas, pistolas automáticas Colt de calibre 45, e facas de dois gumes. Flick declinou ambos. Levava a sua arma pessoal, uma Browning automática de nove milímetros. À cintura levava o cinto de cabedal, no qual podia prender a pistola, ou, em caso de necessidade, a metralhadora. Também levou o punhal de lapela em vez do outro, que era mais comprido e mais letal, mas mais incómodo. A grande vantagem do punhal de lapela era que quando a mandassem identificar-se, ela podia inocentemente enfiar a mão num bolso interior e depois no último momento sacar do punhal.

 

Para além disso havia uma espingarda Lee-Enfield para Diana e uma metralhadora Sten Mark H com silenciador para Flick.

 

Os explosivos plásticos de que Jelly iria precisar foram distribuídos equitativamente pelas seis mulheres para que mesmo que uma ou duas malas se perdessem ainda restasse o suficiente para fazer o trabalho.

 

Aquilo pode rebentar comigo! queixou-se Maude. Jelly explicou-lhe que o explosivo era bastante seguro.

 

Conheço um tipo que pensou que era chocolate e comeu um bocado disse ela. E olha que não teve diarreia acrescentou.

 

Ofereceram-lhes as habituais granadas redondas Mills com o acabamento convencional em relevo, mas Flick insistiu para que levassem granadas em latas quadradas, porque também podiam ser utilizadas como cargas explosivas.

 

Cada mulher recebeu uma caneta de tinta permanente com um compartimento para um comprimido de suicídio.

 

Havia uma visita obrigatória à casa de banho antes de vestirem o fato de aviação. Este tinha um bolso para a pistola para que a agente pudesse defender-se imediatamente ao aterrar, se necessário. Com o fato vestido, colocaram os capacetes e os óculos e por fim os pára-quedas.

 

Paul pediu a Flick que chegasse lá fora durante um momento.


Tinha com ele os importantes passes especiais que permitiriam às mulheres entrar no castelo como mulheres da limpeza. Se uma das Gralhas fosse capturada pela Gestapo, aquele passe revelaria o objectivo da missão. Por uma questão de segurança, entregou todos os passes a Flick para que ela os distribuísse no último minuto.

 

Depois beijou-a. Ela retribuiu o beijo com uma paixão desesperada, apertando o corpo dele junto ao seu, enfiando sem vergonha a língua na boca dele até ficar sem fôlego.

 

Não te deixes matar murmurou-lhe ele ao ouvido. Foram interrompidos por um tossir discreto. Flick sentiu o cheiro do cachimbo de Percy e largou Paul.

 

O piloto deseja falar consigo disse Percy a Paul. Este assentiu e afastou-se.

 

Certifique-se de que ele percebe que a Flick é a oficial que detém o comando gritou Percy.

 

Claro respondeu Paul.

 

Percy parecia carrancudo e Flick teve um mau pressentimento.

 

O que se passa?

 

Ele tirou uma folha do bolso do casaco e entregou-lha.

 

Um correio motorizado de Londres trouxe isto da sede do EOE antes de termos saído da mansão. Foi enviado pelo Brian Standish ontem à noite. Puxou umas baforadas ansiosas no cachimbo e expeliu nuvens de fumo.

 

Flick olhou para a folha. A mensagem já fora descodificada. O seu conteúdo atingiu-a como um soco no estômago. Olhou para Percy, abalada.

 

O Brian esteve nas mãos da Gestapo!

 

Apenas durante uns segundos.

 

É o que diz aí.

 

Algum motivo para pensar o contrário?

 

Ah, foda-se! exclamou ela. Um aviador que ia a passar olhou para ela, surpreendido por ouvir uma voz feminina a dizer aquela palavra. Flick amarrotou o papel e atirou-o para o chão.

 

Percy baixou-se, pegou nele e voltou a alisá-lo.

 

Vamos tentar manter a calma e pensar com clareza. Flick respirou fundo.

 

Temos uma regra insistiu ela. Qualquer agente que seja capturado pelo inimigo, independentemente das circunstâncias, deve regressar imediatamente a Londres.

 

Então ficas sem operador de rádio.

 

Safo-me bem sem ele. E quanto a esse Charenton?

 

Calculo que seja natural a Mademoiselle Lemas ter recrutado alguém para a ajudar.


Todos os recrutamentos têm de ser aprovados por Londres.

 

Sabes que essa regra nunca foi seguida.

 

No mínimo devia ser aprovada pelo comandante local.

 

Bem, já foi... o Michel acha que o Charenton é de confiança. E o Charenton salvou o Brian da Gestapo. Aquele episódio na catedral não pode ter sido encenado, pois não?

 

Talvez nunca tenha sequer tido lugar, se esta mensagem tiver vindo directamente da Gestapo.

 

Mas têm todos os códigos de segurança. Seja como for, não iriam inventar que ele fora capturado e depois libertado. Saberiam que isso iria deixar-nos desconfiados. Diriam apenas que ele chegou em segurança.

 

Tens razão, mas mesmo assim isto não me agrada.

 

Pois, nem a mim disse ele, surpreendendo-a. Mas não sei o que fazer.

 

Ela suspirou.

 

Temos de arriscar. Não há tempo para precauções. Se não destruirmos a central telefónica nos próximos três dias será demasiado tarde. Temos de ir na mesma.

 

Percy assentiu. Flick reparou que ele tinha lágrimas nos olhos. Levou o cachimbo à boca e voltou a tirá-lo.

 

Linda menina disse, a sua voz reduzida a um murmúrio. Linda menina.

 

O SÉTIMO DIA

 

Sábado, 3 de Junho de 1944

 

O EOE não dispunha de aviões próprios. Tinha de pedi-los emprestados à RAF, o que não era nada fácil. Em 1941, a força aérea entregara-lhe relutantemente dois Lysanders, demasiado lentos e pesados para o seu papel de apoio, mas ideais para aterragens clandestinas em território inimigo. Mais tarde, sob a pressão de Churchill, dois esquadrões de bombardeiros obsoletos foram entregues ao EOE, embora o comandante da força aérea, Arthur Harris, nunca tivesse deixado de tentar recuperá-los. Na Primavera de 1944, quando dezenas de agentes eram transportados de avião para França a fim de preparar a invasão, o EOE dispunha de trinta e seis aviões.

 

O avião em que as Gralhas embarcaram era um bombardeiro Hudson de fabrico americano com dois motores, fabricado em 1939 e já obsoleto devido à aparição do bombardeiro Lancaster, de quatro motores. Os Hudson vinham com duas metralhadoras à frente, e a RAF acrescentara na retaguarda uma torre de atirador com outras duas. Na parte de trás da cabina dos passageiros havia um resvaladouro semelhante a uma calha de escoamento, através do qual os pára-quedistas podiam atirar-se. Não havia bancos no interior, e as seis mulheres e o homem que as ia ajudar a saltar sentaram-se no chão de metal. Sentiam frio, desconforto e medo, mas Jelly teve um ataque de riso que animou todas.

 

Partilhavam a cabina com uma dezena de contentores metálicos, cada um com a altura de um homem e equipado com um pára-quedas, e todos contendo calculou Flick armas e munições que iriam permitir a outro circuito da Resistência causar distúrbios atrás das linhas alemãs durante a invasão. Depois de deixar as Gralhas em Chatelle, o Hudson voaria até outro destino antes de dar a volta e regressar a Tempsford.


A descolagem fora atrasada devido a avaria do altímetro, que tivera de ser substituído, por isso era já uma da manhã quando deixaram para trás a costa inglesa. Sobre o canal da Mancha o piloto baixou a altitude do avião, tentando ocultar-se abaixo do nível do radar inimigo, e Flick rezou para que não fossem alvejados por navios da Royal Navy, mas o bombardeiro voltou a subir para os oito mil pés para poder atravessar a costa francesa fortificada. Manteve-se alto para atravessar a «Parede Atlântica», a faixa costeira muito bem defendida, depois voltou a baixar para os trezentos pés, para facilitar a navegação.

 

O navegador estava constantemente atarefado com os seus mapas, a calcular a posição do avião por estimativa e a tentar confirmá-la através da paisagem. A Lua estava em quarto crescente e apenas a três dias da Lua cheia, pelo que as grandes cidades eram facilmente visíveis, apesar do blackout. No entanto, estas possuíam geralmente baterias antiaéreas, pelo que tinham de ser evitadas, tal como as bases militares, pela mesma razão. Os rios e os lagos eram as referências mais úteis, especialmente quando o luar reflectia na água. As florestas eram manchas escuras, e a ausência inesperada de uma significava que o voo se desviara da rota. O brilho das linhas férreas, a claridade do lume de uma carruagem a vapor e os faróis de um carro ocasional que rompia o blackout eram igualmente uma ajuda preciosa.

 

Durante o percurso, Flick reflectiu nas notícias recebidas de Brian Standish e no recém-chegado Charenton. A história era provavelmente verdadeira. A Gestapo tomara conhecimento do encontro na cripta da catedral por um dos prisioneiros feitos no passado domingo no castelo, e tinha montado uma armadilha, na qual Brian caíra, mas da qual fugira, com a ajuda no novo recruta de Mademoiselle Lemas. Tudo era possível. No entanto, Flick detestava explicações plausíveis. Sentia-se em segurança apenas quando os acontecimentos seguiam o seu curso normal e não eram necessárias explicações.

 

À medida que se iam aproximando da região de Champagne, outro auxiliar de navegação entrou em acção. Era uma invenção recente conhecida como «Eureka/Rebecca». Um rádio emitia um sinal de chamada a partir de um local secreto algures em Reims. A tripulação do Hudson desconhecia a sua localização exacta, mas Flick conhecia-a, porque Michel o colocara na torre da catedral. Era a metade Eureka. No avião encontrava-se Rebecca, o receptor de rádio, entalado na cabina ao lado do navegador. Estavam oitenta quilómetros a norte de Reims quando o navegador captou o sinal da Eureka na catedral.


A intenção dos inventores era que a Eureka estivesse no local de aterragem juntamente com o comité de recepção, mas isso era impraticável. O equipamento pesava mais de quatrocentos quilos, era demasiado volumoso para ser transportado de forma discreta e nem o oficial da Gestapo mais crédulo acreditaria na explicação. Michel e outros líderes da Resistência estavam dispostos a colocar uma Eureka numa posição permanente, mas recusavam-se a andar com ela de um lado para o outro.

 

Por isso o navegador tinha de recorrer a métodos tradicionais para descobrir Chatelle. No entanto, tinha a sorte de ter Flick a seu lado, uma pessoa que já aterrara ali várias vezes e era capaz de reconhecer o local a partir do ar. Passaram cerca de dois quilómetros a este da aldeia, mas Flick avistou o lago e redireccionou o piloto.

 

Descreveram um círculo e sobrevoaram o pasto a trezentos pés de altitude. Flick viu as luzes de referência, quatro luzes fracas e bruxuleantes dispostas em L, com a luz no ângulo do L a dar o código previamente combinado. O piloto subiu para os seiscentos pés, a altitude ideal para um pára-quedista: se subisse mais, o vento poderia afastar o pára-quedista da zona; se descesse mais, o pára-quedas não dispunha de tempo para se abrir completamente antes de o agente tocar no chão.

 

Estou pronto quando você estiver disse o piloto.

 

Não estou pronta respondeu Flick.

 

O que se passa?

 

Há qualquer coisa errada. O instinto de Flick soava como um alarme. Não era apenas a sua preocupação com Brian Standish e Charenton. Havia outra coisa. Apontou para oeste, para a aldeia.

 

Olhe, não há luzes.

 

Isso surpreende-a? Há um blackout. E passa das três da manhã.

 

Flick abanou a cabeça.

 

Estamos no campo, as pessoas são descuidadas com o blackout. E há sempre alguém a pé: uma mãe com um bebé, um insone, um aluno a estudar para os exames. Nunca vi isto completamente às escuras.

 

Se acha que há qualquer coisa errada devíamos sair daqui rapidamente disse o piloto com nervosismo.

 

Havia ainda outra coisa a incomodá-la. Tentou coçar a cabeça, mas foi impedida pelo capacete. A ideia fugiu-lhe.

 

O que deveria fazer? Não podia abortar a missão apenas porque os moradores de Chatelle estavam a obedecer pela primeira vez às regras do blackout.


O avião sobrevoou o campo e preparou-se para virar.

 

Lembre-se de que cada vez que sobrevoamos a aldeia aumenta o risco disse o piloto ansioso. Toda a gente na aldeia ouve os nossos motores e alguém pode chamar a Polícia.

 

Exactamente! exclamou ela. Já devemos ter acordado a aldeia inteira e ainda ninguém acendeu uma luz!

 

Não sei, as pessoas do campo às vezes não são curiosas. Gostam de ser reservadas.

 

Que disparate. São tão curiosas como qualquer outra pessoa. Isto é estranho.

 

O piloto parecia cada vez mais preocupado, mas continuou a voar em círculos.

 

De repente, Flick lembrou-se.

 

O padeiro devia ter o forno aceso. Normalmente vê-se a luz do céu.

 

Não estará fechado hoje?

 

Que dia é hoje? Sábado. Uma padaria pode fechar à segunda ou à terça, mas nunca ao sábado. O que aconteceu? Parece uma aldeia fantasma!

 

Então vamos embora daqui!

 

Parecia que alguém juntara os aldeões, incluindo o padeiro, e os trancara num celeiro e isso era provavelmente o que a Gestapo faria se se encontrasse à sua espera.

 

Flick não podia abortar a missão. Era demasiado importante. Mas o seu instinto dizia-lhe para não cair de pára-quedas em Chatelle.

 

Um risco é um risco disse ela.

 

O piloto começava a perder a paciência.

 

Então o que quer fazer?

 

De súbito ela lembrou-se dos contentores com mantimentos na cabina dos passageiros.

 

Qual é o seu destino a seguir?

 

Não devia dizer-lhe.

 

Normalmente não. Mas agora preciso mesmo de saber.

 

É um campo a norte de Chartres. Isso significava o circuito Vestryman.

 

Eu conheço-os disse Flick com crescente excitação. Aquilo podia ser uma solução. Pode lançar-nos com os contentores. Haverá um comité de recepção à espera que poderá tomar conta de nós. Podemos estar em Paris esta tarde, e em Reims amanhã de manhã.

 

Ele estendeu a mão para os comandos.


É isso que quer fazer?

 

É possível?

 

Posso largar-vos lá, não há problema. A decisão táctica é sua. Está a comandar a missão: disseram-mo de forma bem clara.

 

Flick hesitou, preocupada. As suas suspeitas podiam ser infundadas, e nesse caso deveria fazer chegar uma mensagem a Michel pelo rádio de Brian, dizendo que embora a aterragem tivesse sido abortada, ela continuava a caminho. Mas se o rádio de Brian estivesse nas mãos da Gestapo, a informação teria de ser mínima. No entanto, isso era viável. Podia escrever uma mensagem breve que o piloto entregaria a Percy: Brian tê-la-ia dentro de algumas horas.

 

Também teria de alterar o local de recolha das Gralhas depois da missão. O que estava combinado era um Hudson aterrar em Chatelle às duas da manhã de domingo, e se as Gralhas não se encontrassem ali, voltar na noite seguinte à mesma hora. Se Chatelle tivesse sido revelada à Gestapo e não pudesse voltar a ser utilizada, ela teria de divergir o Hudson para o outro campo em Laroque, a oeste de Reims, com o nome de código Champ d’Or. A missão levaria um dia a mais, porque teria de viajar de Chartres para Reims, pelo que o voo de recolha teria de aparecer às duas da manhã de segunda e se necessário na terça à mesma hora.

 

Ela sopesou as consequências. Ir para Chartres significava a perda de um dia. Mas aterrar em Chatelle podia significar o falhanço da missão e a detenção das Gralhas nos calabouços da Gestapo. Não restavam dúvidas.

 

Vá para Chartres ordenou ela ao piloto.

 

Com certeza.

 

Quando o avião começou a dar a volta, Flick regressou à cabina. As Gralhas olharam para ela expectantes.

 

Houve uma mudança de planos disse Flick.

 

Dieter estava deitado sob uma sebe e viu, perplexo, o avião britânico voar em círculos sobre o pasto.

 

Porquê a demora? O piloto já passara duas vezes pelo local de aterragem. As luzes estavam em posição. Teria o líder do comité de recepção dado o código errado com as luzes? Teriam os homens da Gestapo feito algo que levantasse suspeitas? Era enlouquecedor. Felicity Clairet encontrava-se a alguns metros dele. Se Dieter disparasse para o avião, uma bala poderia atingi-la.

 

Depois o avião deu a volta e rumou para sul.

 

Dieter ficou mortificado. Flick Clairet fugira-lhe em frente a Walter Goedel, Willi Weber e a vinte agentes da Gestapo.

 

Enterrou o rosto nas mãos durante um momento.

 

O que teria corrido mal? Podia haver uma dezena de razões. À medida que o som dos motores do avião se foi distanciando, Dieter começou a ouvir gritos de indignação em francês. A Resistência estava tão perplexa como ele. Calculou que Flick, uma oficial experimentada, desconfiara de uma armadilha e abortara o salto.

 

O que vai fazer agora? perguntou Walter Goedel deitado no chão ao seu lado.

 

Dieter pensou. Encontravam-se ali quatro elementos da Resistência: Michel, o líder, ainda a coxear devido ao ferimento da bala; Helicóptero, o operador de rádio britânico, um francês que Dieter não reconheceu e uma jovem mulher. O que deveria fazer com eles? A sua estratégia de deixar Helicóptero em liberdade fora boa em teoria, mas tivera consequências humilhantes, e ele não tinha coragem para persistir. Tinha de fazer algo a respeito do fiasco daquela noite. Iria ter de recorrer aos tradicionais interrogatórios e tentar salvar a operação... e a sua reputação.


Encostou o rádio aos lábios.

 

A todas as unidades, fala o major Franck disse baixinho. Acção, repito, acção. Depois levantou-se e sacou da pistola automática.

 

Os projectores ocultos nas árvores foram acendidos. Os quatro terroristas no meio do campo viram-se impiedosamente iluminados, e pareceram perplexos e vulneráveis.

 

Estão cercados! gritou Dieter em francês. Mãos ao ar! Ao seu lado, Goedel sacou da Luger. Os quatro agentes da Gestapo que acompanhavam Dieter apontaram as armas para as pernas dos elementos da Resistência. Houve um momento de incerteza: iria a Resistência abrir fogo? Se o fizessem, seriam chacinados. Com sorte, ficariam apenas feridos. Mas naquela noite Dieter não estava com sorte. E se aqueles quatro fossem mortos, ele ficaria de mãos a abanar.

 

Eles hesitaram.

 

Dieter avançou para a luz, e os quatro atiradores avançaram com ele.

 

Há vinte armas apontadas para vocês! gritou. Não saquem das armas.

 

Um deles começou a correr.

 

Dieter praguejou. Viu cabelo ruivo brilhar à luz: era Helicóptero, o estúpido do rapaz, a correr como um touro.

 

Disparem sobre ele ordenou Dieter calmamente. Os quatro atiradores fizeram pontaria e dispararam. Os tiros quebraram o silêncio da noite. Helicóptero deu mais dois passos e depois caiu.

 

Dieter olhou para as outras três pessoas, à espera. Devagar, elas levantaram os braços.

 

Todas as equipas no pasto, avancem e vigiem os prisioneiros disse ele para o rádio. Guardou a pistola.

 

Dirigiu-se para o local onde Helicóptero jazia. O corpo estava imóvel. Os atiradores da Gestapo tinham feito pontaria às suas pernas, mas não era fácil acertar num alvo em movimento no escuro e um deles apontara demasiado para cima, acertando-lhe no pescoço, cortando a espinal medula, ou a veia jugular, ou ambas. Dieter ajoelhou-se e tentou sentir o pulso do rapaz, mas não sentiu nada.

 

Não foste o agente mais esperto que encontrei, mas foste um rapaz corajoso disse. Que Deus dê descanso à tua alma. Fechou-lhe os olhos.

 

Olhou para os outros três elementos da Resistência enquanto eram desarmados e manietados. Michel resistiria bem ao interrogatório: Dieter já o vira em acção, e o homem tinha coragem. A sua fraqueza era provavelmente a vaidade. Era atraente e mulherengo. A melhor forma de o torturar seria em frente a um espelho: partir-lhe o nariz, os dentes, deixar-lhe cicatrizes na cara, fazê-lo compreender que a cada minuto que continuasse a resistir ficava irreversivelmente mais feio.

 

O outro homem tinha ar de advogado. Um agente da Gestapo revistou-o e mostrou a Dieter um passe que permitia ao Dr. Claude Bouler infringir o recolher obrigatório. Dieter calculou que fosse uma falsificação, mas ao revistarem os carros da Resistência encontraram uma mala de médico, cheia de medicamentos e instrumentos cirúrgicos. O médico estava pálido, mas calmo; também não seria fácil fazê-lo ceder.

 

A rapariga era a mais prometedora. Tinha cerca de dezanove anos e era bonita, com cabelo comprido escuro e olhos grandes, mas tinha uma expressão vazia. Os seus documentos indicavam que se chamava Gilberte Duval. Dieter sabia por Gaston que Gilberte era amante de Michel e rival de Flick. Se fosse bem manobrada poderia falar.

 

Os veículos alemães foram levados do celeiro para La Maison Grandin. Os prisioneiros seguiram numa camioneta com os agentes da Gestapo. Dieter deu ordens para que fossem postos em celas separadas e impedidos de comunicarem uns com os outros.

 

Ele e Goedel regressaram a Sainte-Cécile no Mercedes de Weber.

 

Que grande farsa comentou Weber num tom desdenhoso. Um desperdício completo de tempo e de mão-de-obra.

 

Nem por isso retorquiu Dieter. Tirámos quatro agentes subversivos de circulação... o que é, afinal de contas, aquilo que a Gestapo deve fazer... e, ainda melhor, três deles continuam vivos e podem ser interrogados.

 

O que espera obter deles? perguntou Goedel.

 

Helicóptero, o homem que morreu, era operador de rádio explicou Dieter. Tenho uma cópia do livro de código dele. Infelizmente, ele não trazia o rádio. Se eu conseguir encontrá-lo, posso fazer-me passar por Helicóptero.

 

Mas não pode usar um rádio qualquer, desde que saiba a frequência que lhe foi atribuída?

 

Dieter abanou a cabeça.

 

Cada rádio tem um som diferente para um ouvido treinado. E estes pequenos rádios de mala são especialmente distintos. Todos os circuitos não essenciais são omitidos, para minimizar o tamanho, e o resultado é um tom fraco. Se tivéssemos um rádio igual, capturado a outro agente, poderíamos tentar correr o risco.


Podemos ter um algures.

 

Se tivermos, é em Berlim. Vai ser fácil descobrir o rádio de Helicóptero.

 

Como?

 

A rapariga vai dizer-me onde ele está.

 

Durante o resto da viagem Dieter pensou na estratégia do interrogatório. Podia torturar a rapariga diante dos homens, mas eles poderiam resistir a isso. O melhor seria torturar os homens diante da rapariga. Mas talvez houvesse uma maneira melhor.

 

O plano começava a formar-se na sua mente quando passaram pela biblioteca no centro de Reims. Ele já reparara antes no edifício. Era uma pequena pérola, com arquitectura art déco em pedra castanha, diante de um pequeno jardim.

 

Importa-se de parar um carro por um momento, major Weber?

 

Weber murmurou uma ordem ao condutor.

 

Tem alguma ferramenta no porta-bagagens?

 

Não faço ideia respondeu Weber. Para quê?

 

Meu major, claro que temos o estojo de ferramentas regulamentar disse o motorista.

 

Tem algum martelo grande?

 

Sim. O motorista saiu do carro.

 

Isto vai ser rápido disse Dieter, saindo também.

 

O motorista entregou-lhe um martelo de cabo comprido com uma cabeça de aço volumosa. Dieter passou por um busto de Andrew Carnegie no caminho para a biblioteca. O local estava fechado e às escuras. As portas de vidro encontravam-se protegidas por uma grade de ferro forjado muito elaborada. Ele dirigiu-se para um dos lados do edifício e encontrou uma entrada para a cave com uma porta de madeira simples com uma placa a dizer «Archives Municipales».

 

Dieter bateu na porta com o martelo, acertando na fechadura. Esta partiu-se ao fim de quatro golpes. Ele entrou e acendeu as luzes. Subiu umas escadas estreitas até ao andar principal e atravessou o átrio até à secção da ficção. Ali localizou a letra F, de Flaubert, e pegou numa cópia do livro que procurava, Madame Bovary. Não foi uma grande sorte: aquele livro devia existir em todas as bibliotecas do país.

 

Abriu o livro no capítulo nove e localizou a passagem em que estivera a pensar. Recordara-a com exactidão. Serviria perfeitamente o seu objectivo.

 

Regressou ao carro. Goedel parecia divertido.


Precisava de uma coisa para ler? perguntou Weber com ar incrédulo.

 

Às vezes tenho dificuldade em adormecer respondeu Dieter.

 

Goedel soltou uma gargalhada. Tirou o livro a Dieter e leu o título.

 

Um clássico da literatura mundial disse. Mesmo assim, calculo que seja a primeira vez que alguém força a entrada numa biblioteca para o levar.

 

Seguiram para Sainte-Cécile. Quando chegaram ao castelo, o plano de Dieter já estava formado.

 

Ele ordenou ao tenente Hesse que despisse Michel e o amarrasse a uma cadeira na câmara de tortura.

 

Mostre-lhe o instrumento que serve para arrancar unhas disse. Deixe-o na mesa à frente dele. Enquanto isso era feito, foi buscar uma caneta, um frasco de tinta, e um maço de papel de carta aos gabinetes do primeiro andar. Walter Goedel pôs-se a um canto da câmara de tortura para observar.

 

Dieter estudou Michel durante uns momentos. O líder da Resistência era um homem alto, com rugas bonitas em redor dos olhos. Tinha um ar travesso que agradava às mulheres. Naquele momento, parecia assustado, mas determinado. Devia estar a pensar na melhor forma de resistir à tortura durante o máximo de tempo possível, calculou Dieter.

 

Dieter pousou a caneta, a tinta e o papel na mesa ao lado do arrancador de unhas, para mostrar que eram alternativas.

 

Desamarre-lhe as mãos ordenou.

 

Hesse obedeceu. O rosto de Michel revelou um grande alívio e medo de que aquilo não fosse verdade.

 

Antes de interrogar os prisioneiros costumo pedir-lhes uma amostra da letra explicou Dieter a Walter Goedel.

 

Da letra?

 

Dieter assentiu, observando Michel, que parecia ter compreendido a breve troca de palavras em alemão. Começou a ter esperança.

 

Dieter tirou Madame Bovary do bolso, abriu-o e pousou-o na mesa.

 

Copie o capítulo nove disse ele a Michel em francês. Michel hesitou. Parecia um pedido inofensivo. Desconfiava de um truque, percebeu Dieter, mas não percebia qual poderia ser. Dieter aguardou. Era dito aos elementos da Resistência que fizessem tudo para adiar o início da tortura. Michel deveria encarar aquilo como um adiamento. Com certeza não seria uma coisa inofensiva, mas sempre era melhor do que ver as suas unhas arrancadas.


Muito bem disse após uma longa pausa. Começou a escrever.

 

Dieter observou-o. A letra dele era grande e cheia de floreados. Duas páginas impressas encheram seis folhas de papel de carta. Quando Michel virou a página, Dieter impediu-o. Disse a Hans para levar Michel de regresso à cela e para trazer Gilberte.

 

Goedel olhou para aquilo que Michel escrevera e abanou a cabeça intrigado.

 

Ainda não percebi o que está a tramar disse. Tornou a entregar-lhe as folhas e regressou à cadeira.

 

Dieter rasgou uma das folhas com bastante cuidado para deixar apenas certas palavras.

 

Gilberte entrou com um ar apavorado, mas desafiador.

 

Não vou dizer-lhe nada afirmou. Não trairei os meus amigos. Para além disso, não sei nada. Só conduzo carros.

 

Dieter mandou-a sentar-se e ofereceu-lhe café.

 

Café do bom disse, quando lhe entregou uma caneca. Os Franceses só conseguiam arranjar sucedâneo.

 

Ela bebeu um gole e agradeceu-lhe.

 

Dieter estudou-a. Era uma rapariga bonita, com cabelo comprido escuro e olhos também escuros, embora tivesse uma ligeira expressão bovina.

 

É uma mulher muito bonita, Gilberte disse ele. Não acredito que no seu íntimo seja uma assassina.

 

E não sou! exclamou ela grata.

 

Uma mulher faz coisas por amor, não faz? Ela olhou-o surpreendida.

 

O senhor entende.

 

Sei tudo a seu respeito. Está apaixonada pelo Michel. Ela baixou a cabeça e ficou calada.

 

É um homem casado, claro. Isso é lamentável. Mas você ama-o. E é por isso que ajuda a Resistência. Por amor, não por ódio.

 

Ela assentiu.

 

Estou certo? perguntou. Tem de responder.

 

Sim murmurou ela.

 

Mas tem sido enganada, minha querida.

 

Sei que fiz mal...

 

Não está a compreender. Foi enganada não só no que respeita ao infringir da lei, mas também quanto ao amor de Michel.

 

Ela fitou-o perplexa.

 

Eu sei que ele é casado, mas...


Acho que ele não a ama.

 

Ama sim!

 

Não. Ele ama a mulher. Felicity Clairet, mais conhecida por Flick. Uma inglesa... nada chique, pouco bonita, mais velha do que você... mas ele ama-a.

 

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

 

Não acredito em si.

 

Ele escreve à mulher, sabe. Calculo que consiga arranjar quem lhe leve as cartas para Inglaterra. Manda-lhe cartas de amor, dizendo o quanto sente a falta dela. São bastante poéticas, um pouco antiquadas. Li umas quantas.

 

Não é possível.

 

Ele trazia uma no bolso quando vos prendemos. Tentou destruí-la há pouco, mas conseguimos salvar uma parte. Dieter tirou do bolso a folha que rasgara e entregou-lha. Não é a letra dele?

 

Sim.

 

E isso é uma carta de amor... não é? Gilberte leu-a devagar, movendo os lábios.

 

«Penso constantemente em ti. Recordar-te leva-me ao desespero. Ah! Perdoa-me! Vou deixar-te! Adeus! Irei para longe, para tão longe que não voltarás a ouvir falar de mim; e contudo... hoje... não sei que força me impeliu na tua direcção. Porque não é costume fazermos frente ao céu; não podemos resistir ao sorriso dos anjos; deixamo-nos levar pelo que é belo, encantador, adorável.»

 

Ela atirou a folha para o chão com um soluço.

 

Lamento ser eu a contar-lho disse Dieter baixinho. Tirou o lenço de linho branco do bolso do peito do casaco e entregou-lho. Ela escondeu o rosto dele.

 

Chegara a altura de conduzir a conversa para o interrogatório de forma imperceptível.

 

Calculo que o Michel tenha estado a viver consigo desde que Flick se foi embora.

 

Há mais tempo do que isso corrigiu ela, indignada. Há seis meses, todas as noites menos quando ela vinha cá.

 

Em sua casa?

 

Tenho um apartamento. Muito pequeno. Mas era suficiente para duas... para duas pessoas que se amavam. Continuou a chorar.

 

Dieter tentou manter um tom ligeiro enquanto se aproximava do tópico que lhe interessava.


Não foi difícil ter o Helicóptero também a viver com vocês num espaço tão reduzido?

 

Ele não estava a viver lá. Só chegou hoje.

 

Mas não se perguntou onde ele iria ficar?

 

Não. O Michel arranjou-lhe um sítio, um quarto vazio por cima da velha livraria na Rue Molière.

 

Walter Goedel mexeu-se subitamente na cadeira; percebera o rumo que a conversa estava a tomar. Dieter ignorou-o e perguntou a Gilberte num tom casual:

 

Ele deixou as coisas em sua casa quando foram para Chatelle esperar o avião?

 

Não, levou-as para o quarto. Dieter fez a pergunta-chave.

 

Incluindo a malinha?

 

Sim.

 

Ah! Dieter conseguira o que queria. O rádio de Helicóptero estava num quarto por cima da livraria na Rue Molière. Já terminei com a vaca estúpida disse ele a Hans em alemão. Entregue-a ao Becker.

 

O carro de Dieter, o Hispano-Suiza azul, encontrava-se estacionado em frente ao castelo. Com Walter Goedel ao lado e Hans Hesse no banco de trás, percorreu rapidamente as aldeias até Reims e encontrou com facilidade a livraria da Rue Molière.

 

Arrombaram a porta e subiram a escada de madeira até o quarto por cima da loja. A única peça de mobiliário era um colchão de palha tapado com um cobertor áspero. No chão ao lado da cama estava uma garrafa de uísque, um saco com artigos de toilette e a pequena mala.

 

Dieter abriu-a e mostrou o rádio a Goedel.

 

Com isto disse ele triunfante posso transformar-me no Helicóptero!

 

No regresso a Sainte-Cécile discutiram a mensagem a enviar.

 

Em primeiro lugar, Helicóptero havia de querer saber por que motivo os pára-quedistas não saltaram disse Dieter. Por isso vai perguntar: «O que aconteceu?» Concorda?

 

E havia de estar zangado observou Goedel.

 

Então dirá talvez: «Que diacho aconteceu?» Goedel abanou a cabeça.

 

Eu estudei em Inglaterra antes da guerra. A expressão «que diacho» é um eufemismo para «que diabo». Um jovem do exército nunca a utilizaria.

 

Talvez devêssemos perguntar «que porra?».


É demasiado rude objectou Goedel. Ele sabe que a mensagem pode ser descodificada por uma mulher.

 

O seu inglês é melhor que o meu, por isso decida.

 

Acho que ele diria: «O que raio aconteceu?» Expressa a sua ira, e é uma imprecação masculina que não ofende a maior parte das mulheres.

 

Está bem. Depois ele há-de querer saber o que fazer a seguir, por isso fará mais perguntas. O que vai dizer?

 

Provavelmente «enviem instruções». Os Ingleses não gostam da palavra «ordens», acham que é pouco elegante.

 

Certo. E vamos pedir uma resposta rápida, porque o Helicóptero haveria de estar impaciente, e nós também estamos.

 

Chegaram ao castelo e foram para a sala de rádio na cave. Um operador de meia idade chamado Joachim ligou o rádio e sintonizou-o na frequência de emergência de Helicóptero enquanto Dieter escrevia a mensagem combinada:

 

O QUE RAIO ACONTECEU? ENVIEM INSTRUÇÕES. RESPONDAM IMEDIATAMENTE.

 

Dieter obrigou-se a controlar a impaciência e explicou a Joachim como codificar a mensagem.

 

Eles não irão saber que não é o Helicóptero no rádio? perguntou Goedel. Não conseguem reconhecer o «pulso» do emissor, semelhante a uma escrita?

 

Sim respondeu Joachim. Mas eu ouvi duas vezes este tipo enviar mensagens e consigo imitá-lo. É quase como imitar o sotaque de alguém, falar como um nativo de Frankfurt, digamos.

 

Goedel continuava céptico.

 

Consegue imitá-lo na perfeição depois de o ouvir duas vezes?

 

Na perfeição, não. Mas os agentes estão frequentemente sob pressão quando emitem, num esconderijo e com receio de que nós os apanhemos, por isso é natural existirem pequenas variações. Começou a bater as letras.

 

Dieter calculou que teriam de esperar pelo menos uma hora. No posto de escuta britânico a mensagem teria de ser descodificada, em seguida passada ao controlador de Helicóptero, que com certeza estava a dormir. O controlador poderia receber a mensagem por telefone e compor uma resposta de imediato, mas mesmo nesse caso a mensagem teria de ser codificada e transmitida, e depois descodificada por Joachim.


Dieter e Goedel foram até à cozinha no rés-do-chão, onde encontraram um dos cabos da messe a começar a preparar o pequeno-almoço, e pediram-lhe que lhes fizesse salsichas e café. Goedel estava impaciente por regressar ao quartel de Rommel, mas queria ficar para ver o que é que aquilo iria dar.

 

O dia já nascera quando uma rapariga com o uniforme das SS veio dizer-lhes que a resposta chegara e Joachim a tinha quase descodificado.

 

Apressaram-se para a cave. Weber já lá se encontrava, com o seu jeito especial de aparecer no local da acção. Joachim entregou-lhe a mensagem dactilografada e cópias químicas a Dieter e Goedel.

 

Dieter leu:

 

AS GRALHAS ABORTARAM A DESCIDA MAS ATERRARAM NOUTRO LOCAL

 

AGUARDE CONTACTO DA LEOPARDA.

 

Isto não nos diz muito resmungou Weber.

 

É um desapontamento concordou Goedel.

 

Estão ambos enganados! exclamou Dieter radiante. A Leoparda está em França... e eu tenho uma fotografia dela! Com um floreado tirou da algibeira as fotografias de Flick Clairet e entregou uma a Weber. Tire o impressor da cama e mande fazer mil cópias. Quero ver essa fotografia espalhada por Reims nas próximas doze horas. Hans, vá encher o depósito do meu carro.

 

Aonde vai? perguntou Goedel.

 

A Paris, com a outra fotografia, fazer a mesma coisa. Já a apanhei!

 

A aterragem de pára-quedas correu sem incidentes. Os contentores foram empurrados primeiro para fora do avião para não aterrarem em cima de uma das pára-quedistas; depois, as Gralhas revezaram-se a sentar-se no escorrega e, quando o tripulante lhes tocava no ombro, deixavam-se cair.

 

Flick foi em último. Enquanto caía, o Hudson virou para norte e desapareceu na noite. Desejou boa sorte à tripulação. Era quase alvorada: devido aos atrasos da noite, teriam de percorrer a última parte da viagem à luz do dia.

 

Flick aterrou na perfeição, com os joelhos flectidos e os braços encostados ao tronco quando bateu no chão. Ficou imóvel durante um momento. «Solo francês», pensou com um tremor de medo; «território inimigo.» Agora era uma criminosa, uma terrorista, uma espia. Se fosse apanhada seria executada.

 

Afastou aquele pensamento da cabeça e pôs-se de pé. A alguns metros, um burro observava-a ao luar, e em seguida baixou a cabeça para continuar a pastar. Flick viu três contentores ali perto. Um pouco mais longe, espalhados pelo campo, encontravam-se meia dúzia de elementos da Resistência, a trabalhar em pares, a pegar nos contentores volumosos e a levá-los.

 

Ela libertou-se do pára-quedas, do capacete e do fato de voo. Enquanto isso, um jovem aproximou-se dela a correr e disse ofegante em francês:

 

Não estávamos à espera de ninguém, só de contentores!

 

Houve uma mudança de planos respondeu ela. Não se preocupe. O Anton está consigo? Anton era o nome de código do líder do circuito Vestryman.

 

Sim.


Diga-lhe que a Leoparda está aqui.

 

Ah... você é a Leoparda? O jovem pareceu impressionado.

 

Sim.

 

Eu sou o Chevalier. Muito prazer em conhecê-la.

 

Ela olhou para o céu. Começava a passar de preto para cinzento.

 

Encontre o Anton o mais depressa possível, Chevalier. Diga-lhe que temos seis pessoas a precisar de transporte. Não há tempo a perder.

 

Muito bem. O rapaz afastou-se a correr.

 

Flick dobrou o pára-quedas, depois foi à procura das outras Gralhas. Greta aterrara em cima de uma árvore e magoara-se ao bater nos ramos, mas não sofrera ferimentos graves e conseguira libertar-se do pára-quedas e escorregar até ao chão. As outras tinham aterrado em segurança na erva.

 

Estou muito orgulhosa do que fiz comentou Jelly, mas não repetia a proeza nem por um milhão de libras!

 

Flick reparou que as pessoas da Resistência levavam os contentores para a extremidade sul do campo, e conduziu as Gralhas nessa direcção. Encontrou ali uma camioneta de carga, um cavalo e uma carroça, e uma velha limusina Lincoln sem capo e movida por uma espécie de motor a vapor. Não ficou admirada: a gasolina só estava disponível para deslocações justificadas, e os Franceses tinham de inventar outras maneiras de fazerem mover os seus carros.

 

Os homens da Resistência tinham enchido a carroça de contentores e começavam a escondê-los sob caixotes de legumes vazios. Outros contentores foram metidos na parte de trás da camioneta. Anton encontrava-se a dirigir as operações; era um quarentão com uma boina gordurosa e uma jaqueta azul, e um cigarro francês amarelado colado ao lábio. Fitou-as perplexo.

 

Seis mulheres? perguntou. É algum clube de costureiras?

 

Flick sabia que o melhor era ignorar as piadas. Falou-lhe num tom solene.

 

Esta é a operação mais importante da minha vida, e preciso da sua ajuda.

 

Com certeza.

 

Temos de apanhar um comboio para Paris.

 

Posso levá-las até Chartres. Ele olhou para o céu, para calcular quanto tempo teriam até ao nascer do dia, depois apontou para uma quinta pouco visível na extremidade do terreno.

 

Por enquanto podem esconder-se no celeiro. Depois de nos termos visto livres destes contentores vimos buscar-vos.


Isso não serve retorquiu Flick num tom firme. Temos de partir já.

 

O primeiro comboio para Paris parte às dez. Levo-as à estação a essa hora.

 

Que disparate! Ninguém sabe o horário de partida dos comboios. Era verdade. Os bombardeamentos dos Aliados, as sabotagens da Resistência e os erros deliberados dos trabalhadores ferroviários antinazis tinham alterado todos os horários, e a única coisa que havia a fazer era ir para a estação e aguardar a chegada de um comboio. Mas era melhor chegar lá cedo. Ponha os contentores no celeiro e leve-nos agora.

 

Impossível! respondeu ele. Tenho de guardar as coisas antes do nascer do dia.

 

Os homens pararam para ouvir a conversa.

 

Flick suspirou. As armas e as munições nos contentores eram a coisa mais importante do mundo para Anton. Eram a fonte do seu poder e prestígio.

 

Isto é mais importante, acredite em mim.

 

Lamento...

 

Anton, ouça. Se não fizer isto por mim prometo-lhe que nunca mais recebe um contentor de Inglaterra. Sabe que sou capaz disso, não sabe?

 

Houve uma pausa. Anton não queria ceder perante os seus homens. No entanto, se o fornecimento de armas acabasse, os homens iriam para outro lado. Aquele era o único poder que os oficiais britânicos tinham sobre a Resistência francesa.

 

Mas resultou. Ele fitou-a. Devagar, tirou a beata da boca, beliscou a ponta e atirou-a para longe.

 

Muito bem disse. Subam para a camioneta.

 

As mulheres ajudaram a descarregar os contentores, depois subiram. O chão estava coberto por pó de cimento, lama e óleo, mas encontraram algumas sacas e usaram-nas para se manterem limpas quando se sentaram. Anton fechou-lhes a porta.

 

Chevalier ocupou o lugar do motorista.

 

Muito bem, minhas senhoras disse ele em inglês. Cá vamos nós!

 

Nada de piadas, por favor, e nada de falar em inglês retorquiu Flick com frieza.

 

Arrancaram.

 

Depois de voarem oitocentos quilómetros no chão metálico de um bombardeiro, as Gralhas percorreram trinta quilómetros na parte de trás de uma camioneta. Surpreendentemente, era Jelly a mais velha, a mais gorda e menos em forma das seis quem se mostrou mais estóica, brincando acerca do desconforto e rindo de si própria quando a camioneta fez uma curva apertada e ela rolou pelo chão. Mas quando o Sol nasceu e a camioneta entrou na pequena cidade de Chartres, o ambiente ficou novamente mais pesado.

 

Não acredito que estou a fazer isto disse Maude, e Diana apertou-lhe a mão.

 

Flick organizou-as.

 

A partir de agora vamos andar duas a duas disse. As equipas haviam sido determinadas na escola de aperfeiçoamento. Flick pusera Diana com Maude, senão Diana teria feito um escarcéu. Flick andaria com Ruby, porque queria poder discutir os problemas com alguém, e Ruby era a Gralha mais inteligente. Infelizmente, isso deixava Greta com Jelly.

 

Ainda não percebo porque é que tenho de ficar com a estrangeira queixou-se Jelly.

 

Isto não é um piquenique! exclamou Flick, irritada. Não ficamos ao pé da nossa melhor amiga. É uma operação militar e fazemos aquilo que nos mandam.

 

Jelly calou-se.

 

Vamos ter de modificar as nossas histórias para explicar a viagem de comboio continuou Flick. Alguma ideia?

 

Sou a esposa do major Remmer, um oficial alemão destacado em Paris, a viajar com a minha criada francesa disse Greta. Ia visitar a catedral de Reims. Agora, acho que posso estar a voltar da visita à catedral de Chartres.

 

Serve. Diana?

 

A Maude e eu somos secretárias da companhia de electricidade de Reims. Viemos a Chartres porque... a Maude perdeu o contacto do noivo e pensámos que ele podia estar aqui. Mas não estava.

 

Flick assentiu, satisfeita. Havia milhares de francesas à procura de familiares desaparecidos, especialmente de homens jovens, que podiam ter ficado feridos nos bombardeamentos, sido presos pela Gestapo, enviados para campos de trabalho na Alemanha ou recrutados pela Resistência.

 

Sou a viúva de um corretor que foi morto em mil novecentos e quarenta disse Flick. Vim a Chartres buscar a minha prima órfã para a levar comigo para Reims.

 

Uma das grandes vantagens que as mulheres tinham enquanto agentes secretas era o facto de poderem deslocar-se pelo país sem levantar suspeitas. Já um homem encontrado fora da zona onde trabalhava era automaticamente considerado um membro da Resistência, especialmente se fosse jovem.


Flick dirigiu-se ao motorista, Chevalier.

 

Procure um local sossegado para nos deixar sair.

 

Seis mulheres de aspecto respeitável a descerem de uma camioneta de carga não era coisa que se visse todos os dias, mesmo na França ocupada, onde as pessoas utilizavam todos os meios de transporte que tinham à mão, e poderia levantar suspeitas.

 

Somos capazes de encontrar a estação sozinhas.

 

Poucos minutos depois ele parou a camioneta e fez marcha a trás para uma perpendicular, depois desceu e abriu a porta de trás. As Gralhas saíram e viram-se numa viela estreita com chão empedrado e casas altas de ambos os lados. Por um dos intervalos entre os telhados, Flick avistou parte da catedral.

 

Recordou às outras o plano.

 

Vão para a estação, comprem um bilhete de ida para Paris e metam-se no primeiro comboio. Cada um dos pares vai fingir não conhecer os outros, mas vamos tentar sentar-nos perto umas das outras. Juntamo-nos em Paris: têm a morada.

 

Iriam para um albergue com o nome Hotel de la Chapellê, onde a proprietária, embora não fosse membro da Resistência, era discreta e não faria perguntas. Se chegassem a tempo, poderiam seguir imediatamente para Reims; se não, poderiam pernoitar no albergue. Flick não estava muito satisfeita por ter de ir a Paris esta estava pejada de agentes da Gestapo e dos seus colaboradores, os «Kollabos» mas a viajar de comboio tinham mesmo de ir lá.

 

Só Flick e Greta conheciam a verdadeira missão das Gralhas. As outras ainda pensavam que iam fazer explodir um túnel ferroviário.

 

Diane e Maude, vão primeiro, depressa! Jelly e Greta, a seguir, mais devagar. Arrancaram, parecendo assustadas. Chevalier apertou-lhes a mão, desejou-lhes boa sorte e foi-se embora na camioneta, regressando ao campo para ir buscar o resto dos contentores. Flick e Ruby saíram da viela.

 

Os primeiros passos numa cidade francesa eram sempre os piores. Flick tinha a sensação de que as pessoas que a viam sabiam quem ela era, como se tivesse uma placa nas costas a dizer: «Agente britânica! Abram fogo!» Mas as pessoas passaram por ela como se ela não fosse especial, e depois de se terem cruzado com um gendarme e alguns oficiais alemães, o seu pulso começou a regressar ao normal.

 

Continuava a sentir-se estranha. Durante toda a vida fora uma mulher respeitável, e fora ensinada a considerar os polícias amigos.

 

Detesto estar no lado errado da lei murmurou a Ruby em francês. Parece que fiz qualquer coisa de errado.


Ruby soltou uma gargalhada.

 

Eu já estou habituada. Os polícias sempre foram meus inimigos.

 

Flick recordou-se com um sobressalto que na terça-feira anterior Ruby estivera presa por homicídio. Os quatro dias seguintes pareciam ter passado muito devagar.

 

Chegaram à catedral, no cimo da colina, e Flick sentiu um arrepio ao vê-la, um expoente da cultura medieval francesa, uma igreja ímpar. Arrependeu-se de não ter passado algumas horas a admirá-la antes do início da guerra.

 

Desceram a colina até à estação, um edifício moderno de pedra com a mesma cor da catedral. Entraram num átrio quadrado de mármore castanho. Havia fila na bilheteira. Isso era bom sinal: significava que as pessoas dali achavam que em breve iria partir um comboio. Greta e Jelly estavam na fila, mas não havia sinal de Diana e de Maude, que já deviam encontrar-se na plataforma.

 

Tinham à frente um cartaz de propaganda contra a Resistência, que mostrava um rufia armado com Estaline atrás. A legenda dizia:

 

ELES MATAM!

 

envoltos na

 

NOSSA BANDEIRA!

 

«Aquilo aplica-se a mim», pensou Flick.

 

Compraram os bilhetes sem incidente. A caminho da plataforma passaram por um posto de controlo da Gestapo, e o coração de Flick começou a bater mais depressa. Greta e Jelly estavam à frente delas na fila. Aquele seria o primeiro encontro com o inimigo. Flick rezou para que todas conseguissem manter a calma. Diana e Maude já deviam ter passado.

 

Greta dirigiu-se aos homens da Gestapo em alemão. Flick ouviu-a contar-lhes a história.

 

Eu conheço um major Remmer disse um dos homens, um sargento. O seu marido é engenheiro?

 

Não, trabalha para os serviços secretos respondeu Greta. Parecia muito calma, e Flick calculou que ela já devia estar habituada a fingir ser alguém que não era.

 

Deve gostar de catedrais continuou ele para fazer conversa. Não há mais nada para ver nesta terra.

 

Sim.

 

O oficial olhou para os papéis de Jelly e começou a falar em francês.


Viaja sempre com Frau Remmer?

 

Sim, ela é muito boa para mim respondeu Jelly. Flick apercebeu-se do tremor na voz dela e soube que ela estava apavorada.

 

Viram o palácio do bispo? perguntou o sargento. Vale a pena.

 

Vimos respondeu Greta em francês. É impressionante. O sargento estava a olhar para Jelly, à espera de uma resposta.

 

Ela pareceu atordoada por um momento, depois disse:

 

A mulher do bispo é muito bonita.

 

O coração de Flick caiu-lhe aos pés. Jelly falava francês na perfeição, mas desconhecia completamente tudo o que se passava fora de Inglaterra. Não se apercebera de que só na Igreja de Inglaterra é que os bispos tinham mulher. A França era um país católico, e os padres eram celibatários. Jelly traíra-se no primeiro posto de controlo.

 

O que iria acontecer agora? A Sten de Flick, com a coronha fina e o silenciador, encontrava-se na sua mala de viagem, desmontada em três, mas ela trazia a Browning na mala de cabedal que tinha ao ombro. Abriu discretamente o fecho da mala para poder ter acesso rápido à arma e viu Ruby levar a mão direita ao bolso da gabardina, onde se encontrava a sua pistola.

 

Mulher? perguntou o sargento a Jelly. Que mulher? Jelly manteve uma expressão perplexa.

 

A senhora é francesa? perguntou ele.

 

Claro.

 

Greta interveio rapidamente.

 

Não era a mulher, era a criada disse em francês. Era uma explicação plausível: naquela língua, uma mulher era «une femme» e uma criada era «une femme de ménage».

 

Jelly apercebeu-se de que cometera um erro.

 

Sim, claro, a criada, era isso que eu queria dizer. Flick suspendeu a respiração.

 

O sargento hesitou durante um momento, depois encolheu os ombros e entregou-lhes os documentos.

 

Espero que não tenham de aguardar muito pelo comboio disse, novamente em alemão.

 

Greta e Jelly avançaram e Flick pôde respirar de novo.

 

Ela e Ruby chegaram ao princípio da fila e estavam quase a entregar os documentos quando dois gendarmes fardados lhes passaram à frente. Detiveram-se no posto de controlo e fizeram continência aos alemães, mas não lhes mostraram os documentos. O sargento assentiu e disse:


Sigam.

 

«Se eu fosse responsável pela segurança», pensou Flick, «aquilo não acontecia.» Qualquer pessoa podia fingir ser polícia. Mas os Alemães costumavam ser deferentes para com as pessoas fardadas: fora em parte por isso que haviam deixado o seu país cair na mão de alguns psicopatas.

 

Depois foi a sua vez de contar uma história à Gestapo.

 

São primas? perguntou o sargento, olhando para Ruby e para ela.

 

Não somos muito parecidas, pois não? retorquiu Flick com uma alegria que não sentia. Não havia a mínima semelhança: Flick era loura, tinha olhos verdes e pele clara, ao passo que Ruby tinha cabelo escuro e olhos negros.

 

Ela parece uma cigana comentou o sargento. Flick fingiu ficar indignada.

 

Mas não é! À laia de explicação acrescentou: A mãe dela, mulher do meu tio, era de Nápoles.

 

Ele encolheu os ombros e dirigiu-se a Ruby.

 

Como é que os seus pais morreram?

 

Num comboio descarrilado por sabotadores.

 

A Resistência?

 

Sim.

 

Os meus sentimentos, menina. Aquelas pessoas são animais. Devolveu-lhe os documentos.

 

Muito obrigada disse Ruby. Flick limitou-se a acenar com a cabeça. Avançaram.

 

Não fora um posto de controlo fácil. «Espero que não sejam todos assim», pensou Flick. «O meu coração não ia aguentar.»

 

Diana e Maude tinham ido ao bar. Flick espreitou pela janela e viu que estavam a beber champanhe. Ficou irritada. As notas de mil francos do EOE não deviam ser gastas naquilo. Para além disso, Diana devia perceber que não podia perder a lucidez. Mas naquele momento Flick nada mais podia fazer.

 

Greta e Jelly encontravam-se sentadas num banco. Jelly parecia mortificada, sem dúvida porque a sua vida acabara de ser salva por alguém que ela considerava um estrangeiro pervertido. Flick perguntou de si para si se a atitude dela iria melhorar a partir daquele momento.

 

Ela e Ruby sentaram-se noutro banco a alguma distância.

 

Durante as horas seguintes a plataforma foi-se enchendo de pessoas. Havia homens de fato que aparentavam ser advogados ou governantes locais em viagem de trabalho a Paris, algumas francesas relativamente bem vestidas, e meia dúzia de alemães fardados. As Gralhas, como tinham dinheiro e senhas de racionamento falsas, conseguiram obter pam noir e sucedâneo de café no bar.

 

Eram onze horas quando um comboio entrou na gare. As carruagens vinham cheias e poucas pessoas saíram, pelo que Flick e Ruby tiveram de ficar de pé. Greta e Jelly também, mas Diana e Maude conseguiram lugares num compartimento para seis pessoas, com duas mulheres de idade e os dois gendarmes.

 

Os gendarmes preocupavam Flick. Ela conseguiu arranjar um lugar mesmo à porta do compartimento, de onde as podia ver através do vidro. Felizmente, a noite agitada à mistura com o champanhe fez com que Diana e Maude adormecessem assim que o comboio arrancou da estação.

 

Avançaram lentamente por florestas e campos. Uma hora mais tarde, as duas francesas desceram do comboio e Flick e Ruby ocuparam rapidamente os dois lugares vagos. No entanto, Flick arrependeu-se quase imediatamente da sua decisão. Os gendarmes, ambos na casa dos vinte, meteram de imediato conversa, encantados por terem duas raparigas com quem conversar.

 

Chamavam-se Christian e Jean-Marie. Christian era atraente, com cabelo encaracolado negro e olhos castanhos; Jean-Marie tinha um rosto astuto de raposa e bigode claro. Christian, o mais falador, ocupava o lugar a meio do banco, e tinha Ruby ao lado. Flick estava em frente, com Maude ao lado, com a cabeça pousada no ombro de Diana.

 

Os gendarmes iam a Paris buscar um prisioneiro. Nada tinha a ver com a guerra; era um homem local que matara a mulher e o enteado, depois fugira para Paris, onde fora apanhado pelos flics, a polícia citadina, e confessara. A sua missão era trazê-lo de volta para Chartres onde seria julgado. Christian meteu a mão no bolso do casaco e tirou de lá as algemas que colocariam ao prisioneiro, como se quisesse provar a Flick que não estava a inventar.

 

Durante a hora seguinte Flick ficou a saber tudo sobre Christian. Esperava-se reciprocidade da parte dela, por isso Flick teve de desenvolver a sua história muito para além dos elementos-base que imaginara previamente. Isso exigiu bastante da sua imaginação, mas ela disse a si própria que era um bom treino para um interrogatório mais hostil.

 

Passaram Versalhes e avançaram lentamente até ao pátio de manobras bombardeado de St. Quentin. Maude acordou. Lembrou-se de falar em francês, mas esqueceu-se de que não devia conhecer Flick.


Olá, sabes onde estamos? perguntou.

 

Os gendarmes ficaram intrigados. Flick dissera-lhes que ela e Ruby não tinham qualquer ligação com as duas raparigas adormecidas, no entanto Maude dirigira-se a Flick como se ela fosse sua amiga.

 

Flick manteve a calma. A sorrir, disse:

 

Você não me conhece. Creio que me confundiu com a sua amiga. Ainda está meio a dormir.

 

Maude fez uma expressão como que quisesse dizer «Não sejas parva», depois viu Christian a olhar para ela. Revelou surpresa e tapou a boca com a mão, horrorizada.

 

Claro, tem toda a razão, peço desculpa disse com ar pouco convincente.

 

No entanto, Christian não era um homem desconfiado e sorriu a Maude.

 

Esteve a dormir duas horas disse ele. Encontramo-nos nos arredores de Paris. Mas, como vê, o comboio está parado.

 

Maude dirigiu-lhe um sorriso encantador.

 

Quando acha que devemos chegar?

 

A mademoiselle está a exigir muito de mim. Sou apenas humano. Só Deus é capaz de adivinhar o futuro.

 

Maude riu-se como se ele tivesse dito uma piada, e Flick descontraiu-se.

 

Depois, Diana acordou, e disse bem alto em inglês:

 

Deus do Céu, dói-me a cabeça, que horas são?

 

Nesse momento, viu os gendarmes e apercebeu-se imediatamente do que fizera mas era demasiado tarde.

 

Ela falou em inglês! exclamou Christian. Flick viu Ruby levar a mão à arma.

 

Você é britânica! disse ele a Diana. Olhou para Maude. Você também! Quando o seu olhar percorreu o resto do compartimento ele compreendeu a verdade. Todas vós!

 

Flick inclinou-se para Ruby e agarrou-lhe no braço quando a arma dela já estava quase de fora do bolso da gabardina.

 

Christian viu o gesto e viu aquilo que Ruby tinha na mão.

 

E estão armadas! O espanto dele teria sido cómico se as suas vidas não corressem perigo.

 

Oh, bolas, agora é que foi! exclamou Diana. O comboio deu um solavanco e avançou um pouco. Christian baixou a voz.

 

Vocês são agentes dos Aliados!

 

Flick aguardou a reacção dele. Se o gendarme sacasse da arma, Ruby dava-lhe um tiro. Depois teriam de saltar todas do comboio. Com sorte, conseguiriam desaparecer no bairro pobre junto à linha antes de a Gestapo ser alertada. O comboio ganhou velocidade. Ela perguntou-se se deveriam saltar naquele momento, antes de avançarem demasiado depressa. Passaram vários segundos.

 

Boa sorte! murmurou então Christian com um sorriso. O vosso segredo está em segurança connosco.

 

Eram simpatizantes... graças a Deus! Flick respirou de alívio.

 

Obrigada disse.

 

Quando irá ter lugar a invasão? perguntou Christian. Era uma grande ingenuidade da parte dele pensar que alguém que conhecesse esse segredo o revelaria sem mais nem menos, mas, para o manter motivado, respondeu:

 

Já falta pouco. Talvez seja na terça-feira.

 

A sério? Isso é óptimo. Viva a França!

 

Ainda bem que você está do nosso lado observou Flick.

 

Fui sempre contra os Alemães disse Christian todo inchado. Com a minha profissão, já consegui ajudar a Resistência algumas vezes, com discrição. Bateu com o indicador no nariz.

 

Flick não acreditou nele. Sem dúvida que estava contra os Alemães: a maior parte dos Franceses estava, depois de quatro anos de pouca comida, roupas velhas e recolheres obrigatórios. Mas se ele tivesse mesmo ajudado a Resistência não o revelaria a ninguém pelo contrário, teria demasiado medo que as pessoas o soubessem.

 

No entanto, isso não interessava. O mais importante era que Christian percebia para que lado o vento começava a soprar e não iria entregar agentes aliados à Gestapo poucos dias antes da invasão. Havia fortes possibilidades de vir a ser castigado por esse gesto.

 

O comboio abrandou e Flick viu que estavam a chegar à Gare d’Orsay. Levantou-se. Christian beijou-lhe a mão.

 

Você é uma mulher corajosa disse com um tremor na voz. Boa sorte!

 

Ela saiu da carruagem em primeiro lugar. Ao descer para a plataforma, viu um trabalhador a colar um cartaz. Qualquer coisa lhe pareceu familiar. Observou melhor o cartaz e o seu coração parou.

 

Era uma fotografia sua.

 

Nunca a vira antes, e não fazia ideia de que fora fotografada em fato de banho. O fundo estava pouco nítido, como se tivesse sido pintado, por isso não podia descobrir mais pistas. O cartaz tinha também o seu nome e um dos seus velhos nomes falsos, Françoise Boule, e dizia que ela era uma assassina.


O trabalhador estava a terminar a tarefa. Pegou no balde de cola e num maço de cartazes e afastou-se.

 

Flick percebeu que a sua fotografia devia estar espalhada por Paris.

 

Aquilo era um golpe terrível. Ficou imóvel na plataforma. Estava tão assustada que tinha vontade de vomitar. Depois dominou-se.

 

O seu primeiro problema era sair da Gare d’Òrsay. Olhou em volta e viu um posto de controlo na barreira dos bilhetes. Tinha de partir do princípio de que os oficiais da Gestapo que lá se encontravam tinham visto a fotografia.

 

Como poderia passar por eles? Não a andar calmamente. Se eles a reconhecessem, prendê-la-iam e nenhuma história inventada os convenceria do contrário. Conseguiriam as Gralhas abrir caminho a tiro? Poderiam matar os homens no posto de controlo, mas haveria outros na estação, mais a Polícia francesa que provavelmente abriria fogo primeiro e faria as perguntas depois. Era demasiado arriscado.

 

Havia uma saída. Podia entregar o comando da operação a uma das outras talvez a Ruby depois deixá-las passar pelo posto de controlo e finalmente entregar-se às autoridades. Assim, a missão não estaria condenada logo à partida.

 

Virou-se. Ruby, Diana e Maude já tinham descido do comboio. Christian e Jean-Marie estavam prestes a descer. Então Flick lembrou-se das algemas que Christian tinha no bolso e teve uma ideia maluca.

 

Empurrou Christian de novo para dentro da carruagem e subiu atrás dele.

 

Ele não sabia se aquilo era alguma piada e sorriu ansioso.

 

O que se passa?

 

Olhe. Há um cartaz com a minha fotografia colado na parede. Os dois gendarmes olharam lá para fora. Christian empalideceu.

 

Meu Deus, vocês são mesmo espias! exclamou Jean-Marie.

 

Têm de salvar-me suplicou Flick.

 

Mas como? retorquiu Christian. A Gestapo...

 

Tenho de passar pelo posto de controlo.

 

Mas eles irão prendê-la.

 

Não se eu já tiver sido presa.

 

O que quer dizer?

 

Ponha-me as algemas. Finja que me capturou. Empurre-me pelo posto de controlo. Se eles o mandarem parar, diga que me leva para o número oitenta e quatro da Avenue Foch. Era a morada do quartel-general da Gestapo.


E depois?

 

Chame um táxi. Meta-se nele comigo. Depois de nos termos afastado da estação, tire-me as algemas e deixe-me sair numa rua sossegada. E continue para o seu destino.

 

Christian parecia apavorado. Flick percebeu que ele tinha muita vontade de fugir. Mas não podia, depois de se ter vangloriado de ajudar a Resistência.

 

Jean-Marie estava mais calmo.

 

Vai resultar disse. Não vão desconfiar de dois polícias fardados.

 

Ruby voltou a entrar na carruagem.

 

Flick! exclamou. Aquele cartaz...

 

Eu sei. Os gendarmes vão levar-me até ao posto de controlo algemada e libertam-me depois. Se as coisas correrem mal, tu ficas a comandar a operação. Depois falou em inglês. Esquece o túnel do comboio, isso era só para disfarçar. O verdadeiro alvo é a central telefónica de Sainte-Cécile. Mas não digas às outras por enquanto. Agora manda-as subir para aqui, por favor.

 

Pouco depois estavam todas na carruagem. Flick contou-lhes o plano.

 

Se não resultar, e eu for presa, não disparem por favor. Há demasiados polícias na estação. Se começarem uma batalha vão perder. A missão está em primeiro lugar. Abandonem-me, saiam da estação, reagrupem-se no hotel e continuem. A Ruby terá o comando. Não discutam porque não há tempo. Virou-se para Christian. As algemas.

 

Ele hesitou.

 

Flick tinha vontade de gritar «Despache-se, seu cobardolas presunçoso!», mas em vez disso baixou a voz e disse:

 

Obrigada por me salvar a vida... nunca o esquecerei, Christian.

 

Ele tirou as algemas do bolso.

 

Vá, vão-se embora ordenou Flick às outras. Christian algemou o pulso direito de Flick ao pulso esquerdo de

 

Jean-Marie, depois desceram do comboio e avançaram lado a lado pela plataforma, Christian com as malas de Flick e a sua pistola automática. Havia fila no posto de controlo.

 

Afastem-se, por favor disse Jean-Marie em voz alta. Afastem-se por favor, senhoras e senhores. Vamos passar. Avançaram até ao princípio da fila, tal como o haviam feito em Chartres. Os dois gendarmes fizeram continência aos oficiais da Gestapo, mas não pararam.


No entanto, o capitão responsável pelo posto de controlo levantou os olhos do bilhete de identidade que tinha na mão e disse:

 

Esperem.

 

Pararam os três. Flick soube que estava muito perto da morte. O capitão olhou para Flick.

 

Ela é a mulher do cartaz.

 

Christian parecia demasiado assustado para falar. Passado um momento, Jean-Marie respondeu à pergunta.

 

Sim, capitão, prendemo-la em Chartres.

 

Flick agradeceu a Deus por um deles ter mantido a calma.

 

Muito bem disse o capitão. Mas para onde a levam?

 

Temos ordens para deixá-la na Avenue Foch continuou Jean-Marie a responder.

 

Precisam de transporte?

 

Há um veículo da Polícia à nossa espera à porta da estação. O capitão assentiu, mas não os mandou seguir. Continuou a olhar para Flick. Ela começou a achar que havia qualquer coisa na sua aparência que dizia ao capitão que ela estava apenas a fingir ser prisioneira.

 

Estes britânicos disse por fim o capitão. Mandam rapariguinhas lutar por eles! Abanou a cabeça com ar descrente.

 

Jean-Marie teve o bom senso de não fazer comentários.

 

Prossigam disse por fim o capitão.

 

Flick e os gendarmes passaram pelo posto de controlo e saíram para o sol.

 

Paul Chancellor zangara-se com Percy Thwaite, zangara-se violentamente, ao tomar conhecimento da mensagem de Brian Standish.

 

Você enganou-me! gritou Paul. Certificou-se de que eu estava longe antes de a mostrar a Flick!

 

É verdade, mas pareceu-me melhor...

 

Eu detenho o comando... não tinha o direito de me sonegar informações!

 

Achei que você iria abortar o voo.

 

Talvez o fizesse... talvez o devesse ter feito!

 

Mas tê-lo-ia feito por amor a Flick, não porque fosse o melhor para a operação!

 

Com aquilo Percy tocara no ponto fraco de Paul, pois este comprometera a sua posição de líder ao dormir com um membro da sua equipa. Isso deixou Paul ainda mais irritado, mas foi forçado a reprimir a sua fúria.

 

Não podiam contactar o avião de Flick, porque os voos sobre território inimigo estavam proibidos de contactar via rádio, por isso os dois homens ficaram na pista a noite inteira, a fumar e a andar de um lado para o outro preocupados com a mulher que ambos, de forma diferente, amavam. Paul tinha, no bolso da camisa, a escova de dentes de madeira que ele e Flick haviam partilhado na sexta-feira de manhã, depois da noite passada juntos. Não era supersticioso, mas tocava nela continuamente, como se estivesse a tocar em Flick, certificando-se de que ela estava bem.

 

Quando o avião regressou e o piloto lhes contou que Flick desconfiara do comité de recepção em Chatelle e o fizera seguir para Chartres, Paul ficou tão aliviado que quase chorou.


Pouco depois, Percy recebera uma chamada da sede do EOE em Londres, e tomara conhecimento da mensagem de Brian Standish, que queria saber o que correra mal. Paul decidiu responder reencaminhando a mensagem que Flick enviara pelo piloto. No caso de Brian ainda se encontrar em liberdade, ficava a saber que as Gralhas haviam aterrado e iriam contactá-lo, mas não obtinha mais informação, porque havia a possibilidade de ele se encontrar nas mãos da Gestapo.

 

Ainda ninguém sabia o que acontecera em França. A incerteza era insuportável para Paul. Flick tinha de ir para Reims, de uma forma ou de outra. Ele precisava de saber se ela iria cair numa armadilha da Gestapo. Deveria haver uma forma de verificar se as transmissões de Brian eram genuínas.

 

Estas observavam os requisitos de segurança: Percy verificara isso. Mas a Gestapo também sabia da sua existência e podia muito bem ter torturado Brian para as obter. Havia métodos de verificação mais subtis, disse Percy, mas dependiam das raparigas no posto de escuta. Por isso Paul decidiu ir até lá.

 

A princípio Percy opôs-se. Era perigoso os operacionais visitarem os postos, disse; perturbavam o funcionamento do serviço a centenas de agentes. Paul ignorou isso. Depois, o comandante do posto dissera que teria muito gosto em marcar uma visita a Paul dentro de duas ou três semanas. Não, respondera Paul, o que ele tinha em mente era duas ou três horas. Insistira, suave mas firmemente, usando a ameaça da ira de Monty como último recurso. E assim fora a Grendon Underwood.

 

Quando era criança e frequentava a catequese, Paul sentira-se vexado por um problema teológico. Reparara que em Arlington, na Virgínia, onde vivia com os pais, a maior parte das crianças da sua idade ia para a cama à mesma hora, às sete e meia. Isso significava que diziam as suas orações em simultâneo. Com todas aquelas vozes a elevarem-se ao céu, como conseguiria Deus ouvir aquilo que ele, Paul, estava a dizer? Não ficou contente com a resposta do pastor, que lhe dissera que Deus era capaz de fazer tudo. O pequeno Paul sabia que era uma evasiva. A pergunta incomodou-o durante anos.

 

Se pudesse ter visto Grendon Underwood, teria compreendido.

 

Tal como Deus, o EOE tinha de ouvir inúmeras mensagens, e muitas vezes acontecia várias delas chegarem ao mesmo tempo. Agentes secretos nos seus esconderijos martelavam nas suas teclas de morse em simultâneo, como as crianças de Arlington ajoelhadas junto à cama às sete e meia a rezarem. O EOE escutava-as todas.


Grendon Underwood era outra casa de campo monumental vagada pelos proprietários e ocupada pelos militares. Oficialmente, chamava-se «Estação 53», e era um posto de escuta. Nos terrenos envolventes havia antenas agrupadas em grandes arcos como as orelhas de Deus, a escutar mensagens provenientes de qualquer local entre o árctico norte da Noruega ao Sul empoeirado de Espanha. Quatrocentos operadores de rádio e descodificadores, na sua maioria jovens mulheres das FANY, trabalhavam na mansão e viviam em pré-fabricados erigidos à pressa nos terrenos.

 

Paul visitou o local acompanhado por uma supervisora, Jean Bevins, uma mulher pesada com óculos. A princípio ela ficou apavorada com a visita do homem que representava o próprio Montgomery, mas Paul sorriu e falou com bons modos e pô-la à vontade. Ela levou-o à sala de transmissão, onde cerca de uma centena de raparigas estava sentada em filas, cada uma com auscultadores, um bloco de apontamentos e lápis. Um quadro grande mostrava os nomes de código dos agentes e os horários de transmissão e as frequências que iriam utilizar. Havia uma atmosfera de concentração e o único som era o matraquear do código morse enquanto uma operadora dizia a um agente que estava a recebê-lo em boas condições.

 

Jean apresentou Paul a Lucy Briggs, uma loura bonita com um sotaque do Yorkshire tão carregado que ele teve de se concentrar para conseguir percebê-la.

 

Helicóptero? perguntou ela. Sim, conheço o Helicóptero... é novo. Envia às vinte horas e recebe às vinte e três. Até agora não houve problema.

 

Ela não pronunciava os agás. Assim que Paul percebeu isso teve mais facilidade em entender o sotaque.

 

O que quer dizer com isso? perguntou. Que tipo de problemas podem ocorrer?

 

Bem, alguns deles não sintonizam bem o transmissor, por isso temos de procurar a frequência. Depois o sinal pode ser fraco, impedindo-nos de ouvir bem as letras, e podemos correr o risco de confundir os traços com os pontos... a letra B é muito parecida com a D, por exemplo. E o tom é sempre mau naqueles rádios de mala, por serem muito pequenos.

 

Seria capaz de reconhecer o «punho» dele? A rapariga fez uma expressão de dúvida.

 

Ele só emitiu três vezes. Na quarta-feira estava um pouco nervoso, provavelmente porque era a primeira transmissão, mas o ritmo foi regular, como se soubesse que dispunha de bastante tempo.


Fiquei satisfeita... achei que ele devia sentir-se em segurança. Preocupamo-nos com eles, sabe? Estamos aqui sentadas no quentinho e eles encontram-se algures para lá das linhas inimigas a tentar iludir a Gestapo.

 

E a segunda transmissão dele?

 

Foi na quinta-feira, e ele estava com pressa. Quando isso acontece, às vezes é difícil perceber o que eles querem dizer... sabe, será que aquilo foram dois pontos juntos ou um traço curto? Não sei de onde é que ele estava a transmitir, mas tenho a certeza de que queria sair de lá depressa.

 

E depois?

 

Na sexta não transmitiu. Mas não fiquei preocupada. Eles não transmitem, a menos que sejam forçados, porque é muito perigoso. Depois surgiu no ar no sábado de manhã, antes do nascer do dia. Era uma mensagem de emergência, mas ele não me pareceu em pânico, aliás lembro-me de ter pensado que estava a ganhar o jeito. Sabe, o sinal era forte, o ritmo regular, todas as letras claras.

 

Pode ter sido outra pessoa a utilizar o transmissor? Ela pareceu pensativa.

 

Soava como ele... mas sim, podia ter sido outra pessoa. E se fosse um alemão a passar-se por ele teria soado com clareza, porque nada teria a temer.

 

Paul teve a sensação de estar a andar no meio do lodo. Todas as perguntas que fazia tinham duas respostas. Queria saber algo concreto. Tinha de combater o pânico de cada vez que se lembrava de que podia perder Flick menos de uma semana depois de ela ter surgido na sua vida como uma dádiva dos deuses.

 

Jean desaparecera, mas regressou naquele momento com um molho de folhas na mão roliça.

 

Trago-lhe as descodificações das três mensagens recebidas de Helicóptero disse ela. A eficiência discreta da mulher agradou a Paul.

 

Ele olhou para a primeira folha.

 

SINAL CHAMADA HLCP (HELICÓPTERO)

 

REQUISITO DE SEGURANÇA PRESENTE

 

30 MAIO 1944

 

MENSAGEM DIZ!

 

CHEGUEI BEM STOP LOCAL DE ENCONTRO CRITA INSEGURO STOP APANHADO POR GESTAPO MAS FUGI STOP DE FUTURO ENCONTROS CAFÉ DE LA GARE TERMINADO


Enganou-se a soletrar comentou Paul.

 

O soletrar não é problema respondeu Jean. Eles enganam-se sempre no morse. Ordenamos às descodificadoras que deixem os erros na mensagem em vez de os corrigirem, não vão eles ter algum significado.

 

A segunda transmissão de Brian, com informação sobre o circuito Bollinger, era mais longa.

 

SINAL CHAMADA HLCP (HELICÓPTERO)

 

REQUISITO DE SEGURANÇA PRESENTE

 

31 MAIO 1944

 

MENSAGEM DIZ:

 

AGENTES ACTIVOS NOMERO CINCO COMO SEGUE STOP

 

MONET QUE ESTA FEIDO STOP CONDESA OK STOP CHEVAL AJUDA AS VESES STOP BURGUESA AINDA EM CASA STOP MAIS MEU SALVADOR NOME CODIGO CHARENTON STOP

 

Paul levantou a cabeça.

 

Esta está muito pior.

 

Eu disse-lhe que da segunda vez ele estava com pressa disse Lucy.

 

A segunda mensagem continuava com a descrição pormenorizada do incidente na catedral. Paul passou para a terceira.

 

SINAL CHAMADA HLCP (HELICÓPTERO) REQUISITO DE SEGURANÇA PRESENTE

2 JUNHO 1944

 

MENSAGEM DIZ!

 

O QUE DIABO ACONTECEU PERGUNTA ENVIEM INSTRUÇÕES STOP RESPONDAM IMEDIATAMENTE TERMINADO.

 

Ele está a melhorar disse Paul. Só fez um erro.

 

Achei que ele estava mais descontraído no sábado comentou Lucy.

 

Ou isso, ou foi outra pessoa que enviou a mensagem. De súbito, Paul achou que havia uma forma de testar se «Brian» era realmente Brian ou alguém da Gestapo. Se resultasse, pelo menos teria a certeza. Lucy, costuma dar erros nas transmissões?

 

É muito raro. Lançou um olhar ansioso à supervisora. Se uma rapariga nova é um pouco descuidada, o agente fica furioso.


E com razão. Não devem acontecer erros... os agentes já têm problemas suficientes com que se preocupar. Paul virou-se para Jean.

 

Se eu redigir uma mensagem, será que pode codificá-la exactamente como estiver? Seria uma espécie de teste.

 

Com certeza.

 

Olhou para o relógio. Eram dezanove e trinta.

 

Ele deve transmitir às oito. Pode enviá-la nessa altura?

 

Sim respondeu a supervisora. Quando ele transmitir, dizemos-lhe que se mantenha a postos para receber uma mensagem de emergência logo a seguir à transmissão.

 

Paul sentou-se, pensou durante um momento, depois escreveu num bloco:

 

INDIQUE VOSSAS ARMAS QUANTS AUTOMATICS QUANTS STENS E MUNIÇÕES QUANTS BALAS CDA MAIS GRADANAS RESPONDA IMEDIATAMENTE

 

Observou-a durante um momento. Era um pedido pouco razoável, feito num tom autoritário, e parecia ter sido codificado e transmitido de forma descuidada. Paul mostrou-o a Jean. Ela franziu o sobrolho.

 

É uma mensagem terrível. Eu teria vergonha.

 

Qual acha que seria a reacção de um agente? Ela soltou uma gargalhada.

 

Enviaria uma resposta irritada com alguns palavrões.

 

Por favor codifique-a tal como está e mande-a ao Helicóptero. Ela pareceu perturbada.

 

Se é isso que quer.

 

Sim, por favor.

 

Com certeza. Afastou-se.

 

Paul foi à procura de comida. A cantina funcionava vinte e quatro horas por dia, tal como o posto, mas o café não tinha sabor e para comer havia apenas umas sandes retardadas e bolo ressequido.

 

Poucos minutos depois das oito, a supervisora apareceu na cantina.

 

Helicóptero enviou uma mensagem a dizer que ainda não teve notícias da Leoparda. Estamos a enviar-lhe neste momento a mensagem de emergência.

 

Obrigado. Brian... ou o seu imitador da Gestapo... levaria pelo menos uma hora a descodificar a mensagem, a compor uma resposta, a codificá-la e a transmiti-la. Paul olhou para o prato, perguntando-se como é que os Britânicos tinham a lata de chamar àquilo uma sandes. duas fatias de pão branco besuntadas com margarina e uma fatia fina de presunto. Sem mostarda.

 

O bairro de prostituição de Paris era composto por ruas estreitas e sujas numa colina pequena atrás da Rue de la Chapelle, não muito distante da Gare du Nord. No seu centro ficava a Rue de la Charbonnière, mais conhecida como «La Charbo». No lado norte da rua, o convento de La Chapelle erguia-se como uma estátua de mármore numa lixeira. O convento consistia numa pequena igreja e numa casa onde oito freiras dedicavam a vida a ajudar os parisienses mais pobres. Faziam sopa para velhos famintos, dissuadiam do suicídio mulheres deprimidas, tiravam da sarjeta marinheiros embriagados e ensinavam os filhos das prostitutas a ler e a escrever. Ao lado do convento ficava o Hotel de la Chapelle.

 

O hotel não era exactamente um bordel, porque não moravam lá prostitutas, mas quando os quartos não estavam todos ocupados, a proprietária alugava quartos à hora às mulheres muito pintadas com vestidos de noite baratos que chegavam com homens de negócios gordos, soldados alemães furtivos ou jovens ingénuos demasiado embriagados.

 

Flick entrou no hotel com uma enorme sensação de alívio. Os gendarmes haviam-na deixado a cerca de quinhentos metros dali. No caminho para o hotel vira dois cartazes com a sua cara. Christian dera-lhe um lenço, um quadrado de algodão limpo, vermelho com bolinhas brancas, e ela atara-o à cabeça para tentar ocultar o seu cabelo louro, mas sabia que quem a observasse com atenção a reconheceria do cartaz. A sua única opção fora fazer figas e manter os olhos postos no chão. Parecera-lhe a caminhada mais longa da sua vida.

 

A dona do hotel era uma mulher afável e gorda com um roupão de seda cor-de-rosa sobre um espartilho de barbatana. Flick calculou que ela devia ter sido voluptuosa. Já antes ficara no hotel, mas a dona pareceu não se lembrar dela. Flick tratou-a por «madame», mas ela respondera «Trate-me por Régine». Aceitara o dinheiro de Flick e entregara-lhe a chave de um quarto sem fazer perguntas. Flick estava prestes a subir as escadas quando olhou pela janela e viu Diana e Maude chegarem num táxi esquisito, um sofá sobre rodas preso a uma bicicleta. O percalço com os gendarmes parecia não as ter afectado, e vinham a rir-se do veículo.

 

Deus do Céu, que espelunca disse Diana ao entrar no hotel. Talvez seja melhor irmos comer fora.

 

Os restaurantes de Paris continuavam a funcionar depois da ocupação, mas muitos dos seus clientes eram oficiais alemães e os agentes evitavam-nos o mais possível.

 

Nem penses nisso! exclamou Flick irritada. Vamos ficar aqui muito quietas durante algumas horas e seguimos para a Gare de l’Est às primeiras horas do dia.

 

Maude olhou para Diana com uma expressão acusadora.

 

Prometeste que me levavas ao Ritz! Flick controlou o seu temperamento.

 

Em que mundo é que você vive? murmurou para Maude.

 

Está bem, acalme-se.

 

Ninguém sai daqui! Estamos entendidas?

 

Sim, sim.

 

Daqui a algum tempo uma de nós vai até lá fora comprar comida. Agora tenho de me ir esconder. Diana, senta-te aqui e espera pelas outras enquanto a Maude vai para o vosso quarto. Informa-me quando todas tiverem chegado.

 

Subindo as escadas, Flick passou por uma rapariga negra num vestido vermelho justo e reparou que ela tinha cabelo liso preto.

 

Espere disse Flick. Vende-me a sua peruca?

 

Podes comprar uma ao virar da esquina, querida. Mirou Flick de alto a baixo, tomando-a por uma prostituta amadora. Mas, francamente, acho que vais precisar de algo mais do que apenas uma peruca.

 

Estou cheia de pressa.

 

A rapariga tirou a peruca e revelou os seus caracóis negros muito curtos.

 

Não posso trabalhar sem ela.

 

Flick tirou do bolso do casaco uma nota de mil francos.

 

Vá comprar outra.

 

A rapariga olhou para Flick com uma expressão diferente, percebendo que ela tinha demasiado dinheiro para poder ser prostituta. Com um encolher de ombros, aceitou o dinheiro e deu-lhe a peruca.

 

Obrigada disse Flick.

 

A rapariga hesitou. Sem dúvida estava a interrogar-se sobre quantas mais notas daquelas Flick teria.

 

Também vou com mulheres disse. Estendeu o braço e tocou ao de leve num dos seios de Flick.

 

Não, obrigada.

 

Talvez tu e o teu namorado...

 

Não.

 

A rapariga olhou para a nota de mil francos.

 

Bem, acho que esta noite estou de folga. Boa sorte, querida.

 

Obrigada respondeu Flick. Bem preciso.

 

Encontrou o quarto, pôs a mala em cima da cama e despiu o casaco. Havia um espelho pequeno sobre um lavatório. Flick lavou as mãos e ficou a olhar para o seu rosto durante um momento.

 

Penteou o cabelo louro curto para trás e prendeu-o com ganchos. Depois colocou a peruca e ajeitou-a. Era um bocadinho grande, mas manter-se-ia no sítio. O cabelo preto alterava radicalmente o seu aspecto. No entanto, as suas sobrancelhas louras davam-lhe agora um aspecto estranho. Tirou do estojo de maquilhagem o lápis preto e escureceu-as. Assim estava melhor. Não só parecia morena como também tinha um aspecto mais ameaçador do que a rapariga doce em fato de banho. Tinha o mesmo nariz aquilino e queixo severo, mas isso parecia mais uma semelhança familiar entre duas irmãs bastante distintas.

 

Em seguida tirou do bolso os documentos. Com cuidado, retocou a fotografia, servindo-se do lápis para desenhar madeixas de cabelo escuro e sobrancelhas escuras. Depois de ter terminado olhou para a fotografia. Parecia-lhe que ninguém perceberia que ela fora retocada se não a esfregasse o suficiente para a borrar.

 

Tirou a peruca, descalçou-se e deitou-se na cama. Há duas noites que não dormia, porque passara a noite de quinta a fazer amor com Paul e a noite de sexta no chão de metal do bombardeiro. Fechou os olhos e adormeceu segundos depois.

 

Foi acordada por uma pancada na porta. Para sua surpresa, viu que escurecera: dormira várias horas. Aproximou-se da porta.

 

Quem é?

 

A Ruby. Deixou-a entrar.

 

Está tudo bem?

 

Não tenho a certeza.


Flick correu as cortinas e só depois acendeu a luz.

 

O que aconteceu?

 

Já chegaram todas. Mas não sei onde estão a Diana e a Maude. Não se encontram no quarto.

 

Onde é que foste ver?

 

Ao gabinete da proprietária, à igreja aqui do lado, ao bar ali em frente.

 

Meu Deus! exclamou Flick. Aquelas idiotas saíram.

 

Onde terão ido?

 

A Maude queria ir ao Ritz. Ruby mal podia acreditar.

 

Não podem ser assim tão estúpidas!

 

A Maude pode.

 

Mas pensei que a Diana fosse mais esperta.

 

A Diana está apaixonada respondeu Flick. Calculo que faça tudo o que a Maude lhe pedir. E quer impressioná-la, levá-la a sítios bonitos, mostrar-lhe que sabe movimentar-se no mundo da alta sociedade.

 

Dizem que o amor é cego.

 

Neste caso, o amor é suicida. Ainda me custa a crer... mas aposto que elas foram para lá. É bem feita se acabarem mortas.

 

O que vamos fazer?

 

Vamos buscá-las ao Ritz... se não chegarmos demasiado tarde. Flick voltou a colocar a peruca.

 

Já me tinha perguntado porque é que estavas com as sobrancelhas escuras comentou Ruby. Resulta, pois pareces outra pessoa.

 

Óptimo. Traz a tua arma.

 

No vestíbulo Régine entregou a Flick um bilhete. Vinha endereçado a ela com a letra de Diana. Flick rasgou o envelope e leu-o:

 

Vamos para um hotel melhor. Encontramo-nos na Gare de lEst às cinco da manhã. Não te preocupes!

 

Mostrou-o a Ruby, depois rasgou-o em mil pedaços. Estava sobretudo irritada consigo própria. Conhecia Diana desde que nascera e não a surpreendia que ela agisse de forma idiota e irresponsável. «Porque é que eu a trouxe?», perguntou de si para si. «Porque não tinha mais ninguém», foi a resposta.

 

Saíram do hotel. Flick não queria utilizar o metro, porque sabia que havia postos de controlo da Gestapo em algumas estações e às vezes nas próprias carruagens. O Ritz ficava na Place Vendôme, a meia hora a pé de La Charbo. O Sol já se pusera e a noite começava a cair. Tinham de manter-se atentas às horas: o recolher obrigatório era às onze.

 

Flick imaginou quanto tempo levariam os empregados do Ritz a chamar a Gestapo por causa de Diana e Maude. Iriam aperceber-se de imediato que havia algo de estranho nelas. Os seus documentos diziam que eram secretárias de Reims... o que faziam duas secretárias no Ritz? Estavam vestidas de forma apresentável pelos padrões da França ocupada, mas não tinham o ar das clientes típicas do Ritz as mulheres dos diplomatas dos países neutros, as namoradas dos homens que dirigiam o mercado negro ou as amantes dos oficiais alemães. O gerente do hotel poderia nada fazer, especialmente se fosse antinazi, mas a Gestapo tinha informadores em todos os grandes hotéis e restaurantes da cidade, que recebiam dinheiro para denunciar os desconhecidos com histórias pouco plausíveis. Esta informação era matraqueada aos ouvidos dos agentes no curso do EOE mas esse curso demorava três meses e Diana e Maude haviam feito um de dois dias.

 

Flick estugou o passo.

 

Dieter estava exausto. Mandar imprimir e distribuir mil cartazes em meio dia exigira todos os seus poderes de persuasão e intimidação. Fora paciente e persistente sempre que pudera e enfurecera-se quando a situação o exigira. Para além disso, não pregara olho na noite anterior. Tinha os nervos em franja, uma enorme dor de cabeça e começava a ferver em pouca água.

 

Mas assim que entrou no apartamento monumental na Porte de la Muette com vista para o Bois de Boulogne foi invadido por uma enorme sensação de paz. O trabalho que fizera para Rommel exigia que viajasse pelo Norte da França, por isso precisava de ter uma base em Paris, mas conseguir aquela casa exigira muitos subornos e ameaças. Valera a pena. Dieter adorava os painéis de mogno escuro, os reposteiros pesados, os tectos altos, as pratas do século xvii no aparador. Percorreu o apartamento fresco na penumbra a olhar para os seus objectos preferidos: uma pequena escultura de Rodin que representava uma mão, um quadro a pastel de Degas de uma bailarina a calçar uma sapatilha, uma primeira edição de O Conde de Monte Cristo. Sentou-se ao piano de cauda Steinway e tocou uma versão lânguida de A in ’t Misbehavin’:

 

No one to talk with, ali by myself...

 

Antes da guerra, o apartamento e a maior parte do recheio pertencera a um engenheiro de Lião, que fizera fortuna a fabricar pequenos aparelhos eléctricos, aspiradores, rádios e campainhas. Dieter soubera isso por uma vizinha, uma viúva rica cujo marido fora um dos líderes fascistas franceses nos anos 30. O engenheiro era um novo-rico, dissera ela: contratara pessoas para escolherem o papel de parede certo e as antiguidades. Para ele, o único objectivo dos objectos de arte era impressionar os amigos da mulher. Fora para a América, onde toda a gente era rude, dissera a viúva. Agradava-lhe que agora o apartamento tivesse um inquilino que sabia apreciá-lo.

 

Dieter despiu o casaco e a camisa e lavou do rosto e do pescoço a sujidade de Paris. Depois vestiu uma camisa branca lavada, colocou nela botões de punho de ouro e escolheu uma gravata cinzento-prateada. Enquanto fazia o nó ligou o rádio. As notícias de Itália eram más. O jornalista dizia que os Alemães combatiam ferozmente na retaguarda. Dieter concluiu que Roma deveria cair nos dias seguintes.

 

Mas Itália não era França.

 

Agora restava-lhe aguardar que alguém avistasse Felicity Clairet. Não sabia se ela iria passar por Paris, claro, mas era o sítio mais provável, a seguir a Reims, para ela ser vista. Fosse como fosse, nada mais podia fazer. Desejou ter trazido Stéphanie consigo. No entanto, precisava dela na casa da Rue du Bois. Mais agentes aliados podiam aterrar e bater-lhe à porta. Era importante atraí-los discretamente para a armadilha. Deixara ordens para que nem Michel nem o Dr. Bouler fossem torturados na sua ausência: poderia ainda precisar deles.

 

Havia uma garrafa de Dom Pérignon na geleira. Abriu-a e verteu um pouco de champanhe para um/tóte de cristal. Depois, sentindo-se bem consigo próprio e com o mundo, sentou-se à secretária para ler o correio.

 

Havia uma carta da mulher, Waltraud.

 

Meu querido Dieter,

 

Lamento que não possamos estar juntos no teu quadragésimo aniversário.

 

Dieter esquecera-se do seu aniversário. Olhou para a data no relógio de secretária Cartier. Estava-se a 3 de Junho. Fazia quarenta anos nesse dia. Serviu-se de mais champanhe para comemorar.

 

No envelope da mulher vinham mais duas cartas. A filha de sete anos, Margarete, a quem chamavam «Mausi», desenhara o pai fardado junto à Torre Eiffel. No desenho, o pai era mais alto que a torre: as crianças ampliavam sempre os pais. O filho, Rudi, com dez anos, escrevera-lhe uma carta com letras muito redondas desenhadas a tinta azul-escura:


Meu querido papá,

 

Estou a sair-me bem na escola, embora a sala de aula do Dr. Richter tenha sido bombardeada. Felizmente foi de noite e a escola estava vazia.

 

Dieter fechou os olhos em sofrimento. Não suportava pensar que havia bombas a cair na cidade onde viviam os seus filhos. Amaldiçoou os assassinos da RAF, embora soubesse que bombas alemãs tinham morto muitas crianças britânicas.

 

Olhou para o telefone em cima da secretária, pensando em ligar para casa. Era difícil conseguir obter ligação: o sistema telefónico francês estava sobrecarregado e o tráfego militar tinha prioridade, por isso podiam esperar-se horas para conseguir uma chamada particular. Mesmo assim decidiu experimentar. Tinha imensas saudades de ouvir as vozes dos filhos e queria tranquilizar-se sabendo que estavam vivos.

 

Estendeu a mão para o telefone. Este tocou antes de ele pegar no auscultador. Atendeu.

 

Major Franck.

 

Fala o tenente Hesse.

 

O coração de Dieter bateu mais depressa.

 

Encontrou a Felicity Clairet?

 

Não. Mas aconteceu uma coisa quase tão boa como isso.

 

Flick já fora ao Ritz uma vez, quando estudava em Paris antes da guerra. Ela e uma amiga haviam-se pintado e posto chapéus, calçado luvas e collants e entrado pela porta como se o fizessem todos os dias. Tinham passeado pela galeria de lojas do hotel, rindo-se dos preços absurdos dos lenços, das canetas de tinta permanente e dos perfumes. Depois haviam-se sentado no átrio, a fingir que estavam à espera de alguém que se atrasara, e criticado as roupas das mulheres que ali vinham tomar chá. Não se atreveram sequer a pedir um copo com água. Naquela altura Flick poupava todo o dinheiro que podia para comprar lugares baratos no teatro.

 

Desde que tivera lugar a ocupação, ela ouvira dizer que os proprietários tentavam gerir o hotel da forma mais normal possível, embora muitos dos quartos tivessem sido permanentemente ocupados por oficiais nazis. Naquele dia ela não trazia luvas nem collants, mas colocara pó-de-arroz no nariz e inclinara ligeiramente a boina e tinha esperança de que algumas das clientes actuais do hotel se vissem forçadas a recorrer a estratagemas semelhantes.

 

À porta do hotel na Place Vendôme encontravam-se vários veículos militares cinzentos e limusinas pretas. Na fachada do edifício, seis estandartes nazis vermelho-sangue adejavam altivamente com a brisa. Um porteiro de cartola e calças vermelhas olhou com uma expressão de dúvida para Flick e Ruby.

 

Não podem entrar disse ele.

 

Flick trazia um fato azul-claro, muito amarrotado, e Ruby um vestido azul-escuro e uma gabardina de homem. Não estavam vestidas para jantar no Ritz. Flick tentou imitar a superioridade de uma francesa a lidar com alguém inferior e irritante. Erguendo o nariz, perguntou:


O que se passa?

 

Esta entrada está reservada para os grandes oficiais, madame. Nem os coronéis alemães podem entrar por aqui. Tem de contornar o hotel até à Rue Cambon e utilizar a porta das traseiras.

 

Como queira disse Flick com um ar de cortesia cansada, mas na verdade ficara satisfeita por ele não lhes ter dito que estavam mal vestidas. Ela e Ruby deram rapidamente a volta ao quarteirão e encontraram a entrada das traseiras.

 

O átrio encontrava-se bastante iluminado e os bares de ambos os lados cheios de homens em traje de noite ou uniforme. No zumbido das conversas destacava-se o som áspero das consoantes alemãs, não das vogais lânguidas do francês. Flick teve a sensação de entrar em território inimigo.

 

Dirigiu-se à recepção. Um recepcionista com botões dourados olhou para ela com uma expressão de superioridade. Partindo do princípio que ela não era nem alemã nem uma francesa rica, perguntou-lhe com frieza:

 

O que foi?

 

Veja por favor se Mademoiselle Legrand se encontra no quarto pediu Flick num tom peremptório. Calculava que Diane estivesse a usar o nome falso dos seus documentos, Simone Legrand. Tenho um encontro com ela.

 

Ele pareceu menos petulante.

 

Posso perguntar quem deseja falar com ela?

 

Madame Martigny. Sou empregada dela.

 

Muito bem. Aliás, a mademoiselle está na sala de jantar de trás com a amiga. Talvez queira falar com o chefe de mesa.

 

Flick e Ruby atravessaram o átrio e entraram no restaurante. Diante dos seus olhos surgiu uma imagem da vida elegante: toalhas de mesa brancas, talheres de prata, velas e empregados vestidos de preto a deslizar pela sala com pratos cheios de comida. Ninguém adivinharia que em Paris se passava fome. Flick sentiu o cheiro do café verdadeiro.

 

Detendo-se à porta, viu de imediato Diane e Maude. Encontravam-se sentadas numa pequena mesa na extremidade mais afastada da sala. Diana tirou uma garrafa de vinho de um frappé de prata e encheu o copo de Maude e o seu. Flick teve vontade de a estrangular.

 

Fez menção de se dirigir até elas, mas o chefe de mesa atravessou-se-lhe à frente. Olhando para a sua roupa barata, perguntou:

 

Sim, madame]

 

Boa noite respondeu ela. Tenho de falar com aquela senhora ali.


Ele não se mexeu. Era um homem pequeno de ar preocupado, mas não se deixava convencer.

 

Talvez eu possa transmitir-lhe o seu recado.

 

Infelizmente não, é pessoal.

 

Então vou dizer-lhe que está aqui. O seu nome?

 

Flick olhou na direcção de Diana, mas esta não a vira ainda.

 

Sou Madame Martigny respondeu Flick, desistindo. Diga-lhe que tenho de falar com ela imediatamente.

 

Muito bem. Se a madame não se importa de esperar aqui... Flick rangeu os dentes de frustração. Quando o empregado se afastou, ela sentiu-se tentada a ultrapassá-lo a correr. Depois reparou num jovem com a farda negra de major das SS a olhar para si numa mesa próxima. Desviou rapidamente o olhar, começando a ficar com medo. Ter-se-ia ele interessado apenas por acaso na sua conversa com o chefe de mesa? Ou estaria a tentar recordar-se de onde a vira antes, ainda incapaz de a relacionar com o cartaz? Fosse como fosse, percebeu Flick, seria muito perigoso armar um escândalo.

 

Cada segundo que ficava ali parada o perigo aumentava. Resistiu à tentação de dar meia volta e fugir.

 

O empregado dirigiu-se a Diana, depois virou-se e chamou Flick.

 

É melhor esperares aqui disse ela a Ruby. Uma só dá menos nas vistas. Depois atravessou rapidamente a sala até à mesa de Diana.

 

Nem Diana nem Maude pareciam arrependidas, reparou Flick com irritação. Maude tinha um ar de satisfação, Diana de altivez. Flick pousou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente falando em voz baixa.

 

Isto é muito perigoso. Levantem-se já e venham comigo. Pagamos a conta à saída.

 

Tentara mostrar autoridade, mas as duas mulheres viviam num mundo de fantasia.

 

Sê razoável, Flick retorquiu Diana.

 

Flick ficou furiosa. Como podia Diana ser uma idiota tão arrogante?

 

Sua vaca estúpida! Ainda não percebeste que podes ser morta? Percebeu de imediato que fora um erro insultá-la. Diana fez um ar superior.

 

A vida é minha. Tenho o direito de correr esse risco...

 

Também estás a pôr-nos em perigo, e à missão. Levanta-te já dessa cadeira!


Ouve lá... Atrás de Flick ouviu-se barulho. Diana calou-se e olhou nessa direcção.

 

Flick virou-se e ficou estarrecida.

 

À porta da sala estava o oficial alemão bem vestido que ela vira pela última vez na praça de Sainte-Cécile. Abarcou-o num único olhar: um vulto alto num fato escuro elegante com um lenço branco no bolso do peito do casaco.

 

Virou-lhe rapidamente as costas, com o coração a bater muito depressa, e rezou para que ele não a tivesse visto. Com a sua cabeleira preta era possível que ele não a tivesse reconhecido à primeira vista.

 

Recordou-se do nome dele: Dieter Franck. Encontrara a fotografia dele nos ficheiros de Percy Thwaite. Era um antigo detective da Polícia. Recordou-se do comentário na parte de trás da fotografia dele. «Estrela dos serviços secretos e carrasco implacável.»

 

Pela segunda vez naquela semana, estava suficientemente próxima para poder alvejá-lo.

 

Flick não acreditava em coincidências. Havia um motivo para ele se encontrar ali ao mesmo tempo que ela.

 

Pouco depois percebeu o que era. Tornou a olhar e viu-o avançar na sua direcção, rodeado por quatro homens da Gestapo. O chefe de mesa vinha atrás dele com uma expressão de pânico.

 

Mantendo o rosto voltado noutra direcção, Flick afastou-se.

 

Franck dirigiu-se para a mesa de Diana.

 

A sala ficou subitamente em silêncio: os clientes calaram-se a meio das frases, os empregados deixaram de servir os legumes, o escanção imobilizou-se com um decantador de clarete na mão.

 

Flick chegou à porta onde Ruby a esperava.

 

Ele vai prendê-las murmurou Ruby. A sua mão moveu-se na direcção da arma.

 

Flick reparou que o major das S S as observava de novo.

 

Deixa-a estar no bolso murmurou. Não podemos fazer nada. Éramos capazes de o matar, e aos quatro tipos da Gestapo, mas estamos rodeadas por oficiais alemães. Mesmo que matemos aqueles cinco, somos chacinadas pelos outros todos.

 

Franck estava a interrogar Diana e Maude. Flick não percebia o que diziam. A voz de Diana tinha o tom de indiferença desdenhosa que ela usava sempre que estava em apuros. Maude começou a chorar.

 

Franck devia ter-lhes pedido os papéis, porque as duas mulheres estenderam em simultâneo as mãos para as malas que se encontravam no chão ao lado das cadeiras. Franck mudou de posição, ficando ao lado de Diana e um pouco atrás, espreitando sobre o ombro dela, e de súbito Flick soube o que iria acontecer a seguir.

 

Maude tirou os documentos, mas Diana sacou de uma arma. Ouviu-se um tiro, e um dos agentes da Gestapo dobrou-se sobre si e caiu. O restaurante entrou em erupção. As mulheres gritaram, os homens atiraram-se para o chão. Houve um segundo tiro, e outro agente da Gestapo gritou. Alguns comensais correram para a saída.

 

A arma de Diana virou-se para um terceiro agente da Gestapo. Flick recordou-se de ver Diana no bosque de Somersholme, sentada no chão a fumar um cigarro com coelhos mortos espalhados à sua volta. Lembrou-se do que lhe dissera: «És uma assassina.» E não se enganara.

 

Mas Diana não chegou a disparar o terceiro tiro.

 

Dieter Franck manteve a calma. Agarrou no antebraço direito de Diana com ambas as mãos e bateu com o pulso dela na mesa. Ela gritou de dor e soltou a arma. Dieter arrancou Diana da cadeira, atirou-a de cara para baixo para a alcatifa, e aterrou de joelhos no fundo das costas dela. Puxou-lhe as mãos para trás das costas e algemou-a, ignorando os gritos de dor que ela dava quando ele lhe mexia no pulso dorido. Levantou-se.

 

Vamos sair daqui disse Flick a Ruby.

 

Havia uma multidão à porta, homens e mulheres em pânico que tentavam sair todos ao mesmo tempo. Antes de Flick conseguir mexer-se, o jovem major das SS que já a observara anteriormente levantou-se de um pulo e agarrou-a pelo braço.

 

Espere um momento disse em francês. Flick tentou controlar o pânico.

 

Tire as mãos de cima de mim! Ele agarrou-a com mais força.

 

Você parece conhecer aquelas duas mulheres.

 

Não conheço, não! exclamou ela tentando libertar-se. Ele deu-lhe um safanão.

 

É melhor ficar aqui e responder a algumas perguntas. Ouviu-se outro tiro. Várias mulheres gritaram, mas ninguém soube de onde tinha vindo o tiro. O rosto do oficial das SS contorceu-se num esgar de agonia. Quando ele caiu no chão Flick viu Ruby atrás dele, a guardar a pistola no bolso da gabardina.

 

Abriram caminho à força pela multidão que estava à porta, empurrando as pessoas com brusquidão e chegaram ao átrio. Conseguiram correr sem atrair as atenções, porque toda a gente estava também a correr.

 

Havia carros estacionados em fila ao longo da berma da Rue Cambon, alguns deles com motorista. A maior parte dos motoristas corria na direcção do hotel para ver o que acontecera. Flick escolheu um Mercedes 230 preto com um pneu sobressalente em cima do estribo. Olhou para a frente: a chave estava na ignição.

 

Entra! gritou ela para Ruby.

 

Sentou-se ao volante e carregou no botão de ignição. O motor potente começou a trabalhar. Engatou a primeira, rodou o volante e acelerou para longe do Ritz. O carro era pesado e lento, mas estável: a grande velocidade agarrava-se bem à estrada.

 

Quando se encontrava a vários quarteirões de distância meditou na sua posição. Perdera um terço da equipa, incluindo a melhor atiradora. Perguntou a si mesma se deveria abandonar a missão e decidiu continuar. Levantaria alguns problemas: teria de explicar por que motivo apenas quatro mulheres da limpeza tinham ido ao castelo em vez de seis, mas conseguiria inventar uma desculpa qualquer. Talvez fossem interrogadas com maior minúcia, mas ela estava disposta a correr o risco.

 

Largou o carro na Rue de la Chapelle. Ela e Ruby já não corriam perigo imediato. Entraram rapidamente no albergue. Ruby foi buscar Greta e Jelly e levou-as ao quarto de Flick. Ela contou-lhes o que acontecera.

 

A Diana e a Maude vão ser interrogadas imediatamente disse. O Dieter Franck é um interrogador eficiente e implacável, por isso temos de partir do princípio que elas lhe vão dizer tudo aquilo que sabem... incluindo a morada deste hotel. Isso quer dizer que a Gestapo pode chegar aqui a qualquer momento. Temos de partir imediatamente.

 

Jelly começou a chorar.

 

Pobre Maude! Era uma tontinha, mas não merecia ser torturada.

 

Greta mostrou-se mais prática.

 

Para onde vamos?

 

Iremos esconder-nos no convento ao lado do albergue. Lá aceitam qualquer pessoa. Já escondi prisioneiros de guerra em fuga. Hão-de deixar-nos ficar até ao nascer do dia.

 

E depois?

 

Vamos para a estação conforme combinado. A Diana vai dizer ao Dieter Franck os nossos verdadeiros nomes, os nossos nomes de código e as nossas identidades falsas. Ele porá toda a gente à procura de alguém que viaje com os nossos pseudónimos. Felizmente, tenho documentos extra para toda a gente, com as mesmas fotografias mas nomes diferentes. A Gestapo não tem fotografias de vocês as três, e eu mudei o meu aspecto, por isso os guardas do posto de controlo não poderão reconhecer-nos. No entanto, para jogar pelo seguro, não iremos para a estação ao romper do dia... esperamos até às dez horas, pois nessa altura ela já deve estar cheia de gente.

 

A Diana também irá dizer-lhes qual é a nossa missão comentou Ruby.

 

Irá dizer-lhes que vamos fazer explodir um túnel ferroviário em Marles. Felizmente, essa não é a nossa verdadeira missão. É uma história que eu inventei.

 

Flick, você pensa em tudo! exclamou Jelly com admiração.

 

Sim retorquiu ela carrancuda. É por isso que ainda estou viva.

 

Paul estava sentado há mais de uma hora na cantina escura de Grendon Underwood a pensar ansioso em Flick. Começava a acreditar que Brian Standish estava comprometido. O incidente na catedral, o facto de La Chatelle ter estado completamente às escuras e a correcção pouco natural da terceira mensagem de rádio apontavam todos na mesma direcção.

 

No plano original, Flick teria sido recebida em Chatelle por um comité de recepção constituído por Michel e pelos restantes elementos do circuito Bollinger. Michel tê-las-ia levado para um esconderijo durante algumas horas, depois arranjado transporte para Sainte-Cécile. Após terem entrado no castelo e feito rebentar a central telefónica, ele deveria levá-las de volta para La Chatelle, onde esperariam pelo avião que as traria de volta. Tudo isso se alterara, mas Flick continuaria a precisar de transporte e de esconderijo quando chegasse a Reims, e estaria a contar com a ajuda do circuito Bollinger. No entanto, se Brian fora apanhado, restaria alguma coisa do circuito? A casa segura continuaria a ser segura? Estaria Michel também nas mãos da Gestapo?

 

Por fim, Lucy Briggs apareceu na cantina.

 

A Jean pediu-me para lhe dizer que a mensagem de Helicóptero já foi descodificada. Importa-se de me acompanhar?

 

Ele seguiu-a até ao minúsculo aposento que devia ter sido outrora uma espécie de despensa que servia de gabinete a Jean Bevíns. Esta parecia aborrecida.

 

Não consigo compreender isto disse ela. Paul leu rapidamente a mensagem.

 

SINAL CHAMADA HLCP (HELICÓPTERO) REQUISITO DE SEGURANÇA PRESENTE


3 JUNHO 1944

 

MENSAGEM DIZ:

 

DUAS STENS COM SEIS PENTES CADA STOP UMA ESPINGARDA LEE ENFELD

 

COM DEZ CARREGADORES STOP SEIS AUTOMÁTICAS COLT COM CERCA DE

 

CEM BALAS STOP NENHUMA GRANADA TERMINADO

 

Paul olhou perplexo para a mensagem, como se esperasse que as palavras pudessem transformar-se em algo menos horrendo, mas claro que ficaram na mesma.

 

Esperava que ele estivesse furioso disse Jean. Não se queixa, limita-se a responder às perguntas de forma muito educada.

 

Exactamente disse Paul. E isso é porque não foi ele a escrever isto. Aquela mensagem não vinha de um agente tenso que se vira confrontado com um pedido pouco razoável e súbito por parte dos seus superiores burocráticos. A resposta fora redigida por um oficial da Gestapo que tentava desesperadamente manter as aparências. O único erro ortográfico fora «Enfeld» em vez de «Ênfield», e mesmo isso sugeria um alemão, porque «feld» era o mesmo que «field», campo.

 

Já não restavam dúvidas. Flick corria um grave perigo.

 

Paul massajou as têmporas com a mão direita. Agora havia apenas uma coisa a fazer. A operação começava a soçobrar e ele precisava de a salvar e a Flick.

 

Olhou para Jean e viu que ela o fitava com uma expressão de compaixão.

 

Posso utilizar o seu telefone? perguntou.

 

Com certeza.

 

Ligou para Baker Street. Percy estava à secretária.

 

Daqui fala o Paul. Estou convencido de que o Brian foi capturado. O rádio dele está a ser operado pela Gestapo.

 

Jean Bevins ficou boquiaberta.

 

Oh, raios! exclamou Percy. E sem o rádio não temos maneira de avisar a Flick.

 

Temos sim retorquiu Paul.

 

Como?

 

Arranje-me um avião. Vou para Reims... esta noite.

 

O OITAVO DIA

 

Domingo, 4 de Junho de 1944

 

A Avenue Foch parecia ter sido construída para as pessoas mais ricas do mundo. Era uma avenida larga que ia desde o Arco do Triunfo ao Bois de Boulogne, com jardins dos dois lados flanqueados por ruas interiores que permitiam o acesso às casas apalaçadas. O número 84 era uma residência elegante com uma escadaria larga que conduzia a cinco pisos de assoalhadas bonitas. A Gestapo transformara-a numa casa de tortura.

 

Dieter encontrava-se sentado numa sala de proporções perfeitas. Olhou para a decoração intrincada do tecto durante um momento e em seguida fechou os olhos, preparando-se para o interrogatório. Tinha de melhorar a sua argúcia e ao mesmo tempo anestesiar os sentimentos.

 

Alguns homens gostavam de torturar prisioneiros. O sargento Becker, em Reims, era um deles. Sorriam quando as vítimas gritavam, tinham erecções quando infligiam feridas, e experimentavam orgasmos durante os estertores de morte das vítimas. Mas não eram bons interrogadores, porque se concentravam na dor e não na informação. Os melhores carrascos eram homens que, como Dieter, abominavam todo aquele processo.

 

Ele imaginou-se a fechar as portas da sua alma, a fechar as emoções em armários. Pensou nas duas mulheres como peças de uma engrenagem que forneceriam informação assim que ele descobrisse a forma de as ligar. Sentiu uma frieza familiar invadi-lo como um manto de neve e percebeu que estava pronto.

 

Traga a mais velha disse.

 

O tenente Hesse foi buscá-la.

 

Observou-a atentamente quando ela entrou e se sentou na cadeira. Tinha cabelo curto e ombros largos e envergava um fato de homem.


A sua mão direita pendia inerte, e ela suportava o antebraço inchado com a mão esquerda: Dieter partira-lhe o pulso. Estava visivelmente com dores, o seu rosto pálido e reluzente de suor, mas os seus lábios eram uma linha de determinação. Ele dirigiu-se-lhe em francês.

 

Tudo o que acontecer nesta sala será controlado por si. As decisões que tomar, as coisas que disser irão provocar-lhe dores insuportáveis ou trazer-lhe alívio. Depende inteiramente de si.

 

Ela ficou calada. Estava assustada, mas não entrou em pânico. Iria ser difícil fazê-la ceder, percebeu Dieter.

 

Para começar, diga-me onde fica a sede londrina do Executivo das Operações Especiais.

 

Regent Street, oitenta e um. Ele assentiu.

 

Deixe-me explicar-lhe uma coisa. Sei que o EOE ensina os seus agentes não só a ficarem calados sob interrogatório mas também a darem respostas falsas que são difíceis de verificar. Mas como eu sei isto, vou fazer-lhe várias perguntas para as quais já sei as respostas. Assim saberei se está a mentir-me. Onde fica a sede londrina?

 

Carlton House Terrace.

 

Ele aproximou-se e deu-lhe uma bofetada com toda a força. Ela gritou de dor. A sua face adquiriu um tom vermelho. Costumava ser útil começar com um estalo na cara. A dor era mínima, mas a pancada era uma demonstração humilhante da impotência do prisioneiro e fazia-o perder a bravura inicial.

 

Mas ela fitou-o com uma expressão de desafio.

 

É assim que os oficiais alemães tratam as senhoras? Tinha modos insolentes e falava francês com o sotaque das classes altas. Devia ser uma espécie de aristocrata, calculou ele.

 

Senhoras? repetiu ele com desdém. Você acabou de matar dois agentes que estavam a cumprir o seu dever. A jovem mulher do Specht é agora viúva, e os pais de Rolfe perderam o seu único filho. Você não é um soldado fardado, não tem desculpa. Em resposta à sua pergunta... não, não é assim que tratamos as senhoras, é assim que tratamos as assassinas.

 

Ela desviou o olhar. Dieter ganhara um ponto com aquele comentário Começava a fazer fraquejar a determinação dela.

 

Diga-me outra coisa. Conhece bem a Flick Clairet?

 

Os olhos dela abriram-se mais numa expressão involuntária de surpresa. Isso confirmou-lhe que adivinhara correctamente. Aquelas duas mulheres faziam parte da equipa do major Clairet. Ele tornara a surpreendê-la.


Mas Diana recuperou a compostura e respondeu:

 

Não conheço ninguém com esse nome.

 

Ele inclinou-se e deu-lhe uma pancada na mão esquerda, empurrando-a. Ela gritou de dor quando o pulso partido perdeu o seu apoio e tombou. Ele pegou-lhe na mão direita e sacudiu-a. Ela gritou.

 

Porque foi jantar ao Ritz, por amor de Deus? perguntou ele, largando-lhe a mão.

 

Ela calou-se. Ele repetiu a pergunta. Diana inspirou e respondeu:

 

Porque gosto da comida de lá. Era mais rija do que ele supusera.

 

Levem-na ordenou. Tragam a outra.

 

A rapariga mais nova era muito bonita. Não oferecera resistência quando fora presa por isso ainda estava apresentável, o vestido sem rugas e a maquilhagem intacta. Parecia muito mais assustada que a colega. Ele fez-lhe a pergunta que já fizera à mulher mais velha.

 

Porque foram jantar ao Ritz?

 

Sempre quis lá ir respondeu ela. Dieter mal podia acreditar nos seus ouvidos.

 

Não teve receio de que pudesse ser perigoso?

 

Achei que a Diana iria olhar por mim. Então o nome da outra era Diana.

 

Como é que se chama.

 

Maude.

 

Aquilo estava a ser demasiado fácil.

 

E o que vieram fazer a França, Maude?

 

Temos de fazer explodir qualquer coisa.

 

O quê?

 

Não me recordo. Parece que tem a ver com caminhos-de-ferro.

 

Dieter começou a achar que estava a ser enganado.

 

Há quanto tempo conhece a Felicity Clairet? experimentou.

 

Refere-se à Flick? Há poucos dias. Ela é muito mandona. Ocorreu-lhe algo. Mas ela tinha razão... não devíamos ter ido ao Ritz. Começou a chorar. Nunca quis fazer nada de errado. Só queria divertir-me e visitar coisas, mais nada.

 

Qual o nome de código da vossa equipa?

 

Melros respondeu ela em inglês.

 

Ele franziu o sobrolho. A mensagem de rádio destinada a Helicóptero referira-se a elas como «Gralhas».


Tem a certeza?

 

Sim. É por causa de um poema qualquer, «O Melro de Reims», acho eu. Não, «A Gralha de Reims», é isso.

 

Se ela não era completamente estúpida imitava muito bem.

 

Onde acha que está a Flick neste momento? Maude pensou durante bastante tempo.

 

Sinceramente não sei respondeu por fim.

 

Dieter suspirou de frustração. Uma das prisioneiras era demasiado resistente para falar, a outra demasiado estúpida para saber algo útil. Aquilo iria levar mais tempo do que ele julgara.

 

Poderia haver forma de encurtar o processo. Dieter tinha uma certa curiosidade quanto ao relacionamento das duas mulheres. Por que motivo a mais velha, um pouco masculina, arriscara a vida para levar a rapariga bonita e tonta a jantar ao Ritz? «Talvez eu tenha uma mente porca», pensou ele. «Mas se calhar...»

 

Leve-a ordenou em alemão. Ponha-a ao pé da outra. Certifique-se de que o quarto tem um orifício na porta para espreitarmos.

 

Depois de ter trancado as prisioneiras, o tenente Hesse levou Dieter a um pequeno quarto no sótão. Ele espreitou por um orifício para o quarto ao lado. As duas mulheres estavam sentadas lado a lado na beira da cama estreita. Maude chorava e Diana confortava-a. Dieter observou-as com atenção. O pulso direito partido de Diana repousava no seu regaço. Com a mão esquerda ela acariciava o cabelo de Maude. Estava a falar em voz baixa, Dieter não conseguiu ouvir o que diziam.

 

Seria a relação de ambas muito forte? Seriam camaradas de armas, amigas do peito... ou mais? Diana inclinou-se para a frente e beijou a testa de Maude. Aquilo não significava muito. Então, Diana encostou o indicador ao queixo de Maude, virou o rosto da rapariga para o seu e beijou-a nos lábios. Era um gesto de consolo, mas talvez demasiado íntimo para uma simples amiga?

 

Por fim, Diana pôs a ponta da língua de fora e lambeu as lágrimas de Maude. Esse gesto fez com que Dieter se decidisse. Não eram preliminares ninguém podia fazer sexo em circunstâncias daquelas mas era o tipo de consolo oferecido apenas por uma amante, não por uma simples amiga. Diana e Maude eram lésbicas. E isso resolvia o problema.

 

Traga outra vez a mais velha disse ele, regressando à sala de interrogatórios.

 

Quando Diana foi levada pela segunda vez à sua presença, ele mandou amarrá-la à cadeira.


Preparem a máquina eléctrica. Aguardou pacientemente enquanto a máquina de choques eléctricos era trazida no carrinho e a sua tomada ligada. A cada minuto que passava aumentava a distância entre ele e Flick Clairet.

 

Quando tudo estava a postos, ele agarrou no cabelo de Diana com a mão esquerda. Mantendo-lhe a cabeça imóvel prendeu duas pinças ao lábio inferior dela.

 

Dieter ligou a máquina. Diana gritou. Ele deixou-a sofrer durante dez segundos e depois desligou a máquina.

 

Quando os soluços dela começaram a abrandar, ele disse:

 

Aquilo foi menos de metade da potência. Era verdade. Praticamente nunca utilizara a potência total. Apenas quando a tortura durava já há bastante tempo e o prisioneiro estava sempre a desmaiar é que a potência total era utilizada para penetrar na consciência desvanecente da pessoa. E nessa altura costumava ser tarde de mais, porque a loucura já se instalara.

 

Mas Diana não sabia isso.

 

Outra vez não implorou ela. Por favor, por favor, outra vez não.

 

Está disposta a responder às minhas perguntas? Ela gemeu mas não disse que sim.

 

Tragam a outra ordenou Dieter. Diana abriu os olhos de espanto.

 

O tenente Hesse trouxe Maude e amarrou-a a uma cadeira.

 

O que é que quer? perguntou Maude.

 

Não digas nada... é melhor disse Diana.

 

Maude trazia vestida uma blusa fina de Verão. Tinha um corpo elegante e seios redondos. Dieter rasgou-lhe a blusa, arrancando os botões.

 

Por favor! suplicou Maude. Eu digo-lhe tudo!

 

Sob a blusa tinha uma camisola interior de algodão orlada a renda. Ele agarrou-a pela gola e arrancou-a. Maude gritou.

 

Dieter recuou e observou. Os seios de Maude eram redondos e firmes. Uma parte da sua mente reparou na sua beleza. Diana devia gostar muito deles, pensou.

 

Tirou as pinças da boca de Diana e com cuidado prendeu cada uma delas aos mamilos rosados de Maude. Depois regressou para junto da máquina e pousou a mão no controlo.

 

Está bem disse Diana calmamente. Eu conto-lhe tudo.

 

Dieter ordenou que o túnel ferroviário junto de Marles fosse bem vigiado. Se as Gralhas chegassem até lá, seria quase impossível entrarem no túnel. Estava confiante de que Flick não alcançaria o seu objectivo. Mas isso era secundário. A sua maior ambição era capturá-la e interrogá-la.

 

Já eram quase duas da madrugada de domingo. Na noite de terça haveria lua cheia. A invasão podia estar apenas a algumas horas. Mas nessas poucas horas Dieter podia desfazer a espinha dorsal da Resistência francesa se conseguisse meter Flick numa câmara de tortura. Precisava apenas da lista de nomes e moradas que ela tinha na cabeça. A Gestapo de todas as cidades de França poderia entrar em acção, milhares de homens treinados. Não eram os mais inteligentes, mas sabiam como prender pessoas. Dali a algumas horas podiam já ter detido centenas de elementos da Resistência. Em vez do levantamento maciço por que os Aliados sem dúvida aguardavam para ajudar à sua invasão, haveria calma e ordem para os Alemães organizarem a sua resposta e empurrarem os invasores de novo para

o mar.

Mandara uma equipa da Gestapo revistar o Hotel de la Chapelle, mas isso era apenas um pró-forma: estava certo de que Flick e as outras três se tinham ido embora minutos depois da detenção das camaradas. Onde estaria Flick naquele momento? Reims era o ponto de partida natural para um ataque a Marles, e fora por esse motivo que as Gralhas haviam tencionado aterrar perto da cidade. Dieter achou provável que Flick ainda passasse por Reims. Para se chegar a Marles de carro e de comboio tinha de passar-se por lá, e provavelmente ela precisava da ajuda dos elementos do circuito Bollinger que ainda não tinham morrido. Apostava que ela se encontrava naquele momento a sair de Paris em direcção a Reims.

 

Mandou informar todos os postos de controlo da Gestapo entre as duas cidades das falsas identidades utilizadas por Flick e pela sua equipa. Contudo, também isso era apenas uma formalidade: ou as mulheres tinham identidades alternativas, ou arranjariam forma de evitar os postos de controlo.

 

Ligou para Reims, tirou Weber da cama e explicou-lhe a situação. Pela primeira vez Weber não levantou objecções. Concordou em enviar dois agentes da Gestapo para vigiarem a casa de Michel na cidade, outros dois para a casa de Gilberte e mais dois para a casa da Rue du Bois para guardarem Stéphanie.

 

Por fim, quando a dor de cabeça começou, Dieter telefonou a Stéphanie.

 

As terroristas britânicas vão a caminho de Reims disse. Vou mandar dois homens para te guardarem.


Obrigada respondeu ela com a calma habitual.

 

Mas é importante que continues a ir ao local de encontro. Com sorte, Flick não desconfiava até que ponto Dieter penetrara no circuito Bollinger e cair-lhe-ia nos braços. Lembra-te, mudámos o local. Já não é na cripta da catedral, mas sim no Café de la Gare. Se alguém aparecer, leva-o para casa, tal como fizeste com Helicóptero. A partir daí, a Gestapo encarrega-se do resto.

 

Certo.

 

Tens a certeza? Tentei minimizar o risco para ti, mas isto continua a ser perigoso.

 

Tenho a certeza. Desconfio de que estás com uma enxaqueca.

 

Isto é só o começo.

 

Tens o medicamento?

 

O Hans tem.

 

Lamento não estar aí para poder dar-to. Ele também lamentava.

 

Estava com vontade de regressar a Reims esta noite, mas acho que não sou capaz.

 

Nem tentes. Eu fico bem. Toma a injecção e vai para a cama. Aparece cá amanhã.

 

Ele sabia que ela tinha razão. Já iria ser difícil conseguir chegar ao seu apartamento, a menos de um quilómetro de distância. Não podia viajar para Reims até ter recuperado do cansaço do interrogatório.

 

Está bem disse Dieter. Vou dormir algumas horas e arranco de manhã.

 

Parabéns!

 

Lembraste-te! Eu tinha-me esquecido.

 

Tenho uma coisa para ti.

 

Uma prenda?

 

É mais uma... acção.

 

Ele sorriu, apesar da dor de cabeça.

 

Ai, ai.

 

Amanhã dou-ta.

 

Mal posso esperar.

 

Amo-te.

 

As palavras «também te amo» ainda lhe chegaram aos lábios, mas ele hesitou, com a habitual relutância em dizê-las, e depois ouviu-se um clique quando Stéphanie desligou.

 

Às primeiras horas do domingo de manhã, Paul Chancellor aterrou de pára-quedas num batatal perto da aldeia de Laroque, a oeste de Reims, sem o benefício ou o risco de um comité de recepção.

 

A aterragem provocou-lhe uma dor fortíssima no joelho magoado. Rangeu os dentes e manteve-se imóvel no chão, à espera que a dor abrandasse. Provavelmente o joelho iria doer-lhe de vez em quando até ao fim da sua vida. Quando fosse velho diria que uma pontada significava chuva isto se chegasse a velho.

 

Cinco minutos depois conseguiu pôr-se de pé e libertar-se do pára-quedas. Encontrou a estrada, orientou-se pelas estrelas e começou a andar, mas coxeava bastante e fez poucos progressos.

 

Os seus documentos, mandados fazer à pressa por Percy Thwaite, identificavam-no como professor em Epernay, alguns quilómetros a oeste. Ia à boleia para Reims visitar o pai, que estava doente. Percy obtivera-lhe todos os documentos necessários, alguns deles forjados à pressa na noite anterior e levados de mota a Tempsford. O coxear adequava-se às mil maravilhas na sua história: um veterano de guerra podia muito bem ser um professor, ao passo que um jovem activo teria sido enviado para um campo de trabalho na Alemanha.

 

Chegar ao destino era o mais fácil. Agora tinha de encontrar Flick. A única forma de a contactar seria através do circuito Bollinger. Restava-lhe esperar que parte do circuito continuasse intacta, e que Brian fosse o único elemento nas mãos da Gestapo. Tal como todos os novos agentes que chegavam a Reims, ele iria entrar em contacto com Mademoiselle Lemas. Teria apenas de ser bastante cuidadoso.


Pouco depois do nascer do dia ouviu um veículo. Saiu da estrada e escondeu-se atrás de umas videiras. Quando o barulho aumentou, ele apercebeu-se de que o veículo era um tractor. Isso era relativamente seguro: a Gestapo nunca viajava de tractor. Regressou à estrada e pediu boleia.

 

O tractor era conduzido por um rapaz com cerca de quinze anos que puxava uma carrada de alcachofras. O condutor olhou para a perna de Paul e perguntou:

 

Ferida de guerra?

 

Sim respondeu Paul. A altura mais provável de um soldado francês ter sido ferido fora a Batalha de França, por isso acrescentou: Sedan, mil novecentos e quarenta.

 

Eu era demasiado novo retorquiu o rapaz, pesaroso.

 

Sorte a sua.

 

Mas espere até os Aliados regressarem. Então há-de ver alguma acção. Olhou de lado para Paul. Não posso dizer mais nada. Mas espere e há-de ver.

 

Paul puxou pela memória. Aquele rapaz seria membro do circuito Bollinger?

 

Mas será que a nossa gente tem as armas e as munições de que necessita? perguntou. Se o rapaz soubesse alguma coisa saberia que os Aliados tinham feito aterrar toneladas de armas durante os últimos meses.

 

Usaremos as armas que tivermos à mão.

 

Estaria a ser discreto em relação ao que sabia? Não, pensou Paul. O rapaz tinha uma expressão vaga. Estava a fantasiar. Paul não disse mais nada.

 

O rapaz deixou-o nos arredores e ele foi a coxear até à cidade. O local de encontro mudara da cripta da catedral para o Café de la Gare, mas a hora mantinha-se a mesma, três da tarde. Ainda faltavam bastantes horas.

 

Entrou no café para tomar o pequeno-almoço e fazer o reconhecimento. Pediu café simples. O empregado idoso arqueou as sobrancelhas e Paul percebeu que cometera um deslize. Rapidamente, tentou corrigir-se.

 

Calculo que não seja necessário pedir café simples disse. Provavelmente os senhores não têm leite.

 

O empregado sorriu, tranquilizado.

 

Infelizmente não. Afastou-se.

 

Paul respirou fundo. Há oito meses que não ia a França sob disfarce e já esquecera a tensão constante que era fingir ser outra pessoa.


Passou a manhã a dormitar durante os serviços religiosos na catedral, depois regressou ao café à uma e meia para almoçar. O local ficou vazio por volta das duas e meia e ele ficou a beber sucedâneo de café. Entraram dois homens às duas e quarenta e cinco e pediram cerveja. Paul observou-os. Usavam fatos velhos e falavam de uvas num francês coloquial. Discutiam de forma erudita o florescimento das vinhas, um período crítico que terminara havia pouco. Não achou que fossem agentes da Gestapo.

 

Exactamente às três em ponto, uma mulher atraente entrou, vestida com elegância, com um vestido de Verão em algodão verde e um chapéu de palha. Trazia sapatos desencontrados: um preto, outro castanho. Devia ser a Burguesa.

 

Paul ficou um pouco surpreendido. Esperara uma mulher mais velha. No entanto, não havia justificação para tal: Flick nunca chegara a descrevê-la.

 

Mesmo assim, ainda não estava preparado para confiar nela. Levantou-se e saiu do café.

 

Percorreu o passeio até à estação dos comboios e deteve-se à entrada, voltado para o café. Não dava nas vistas: como de costume, havia várias pessoas ali paradas à espera de outras.

 

Observou a clientela do café. Apareceu uma mulher com uma criança a pedir-lhe um bolo e, quando chegaram à porta do café, a mãe cedeu e levou a criança lá para dentro. Os dois especialistas em vinhas saíram. Entrou um gendarme e saiu imediatamente com um maço de tabaco na mão.

 

Paul começou a acreditar que aquilo não era uma armadilha da Gestapo. Não havia ninguém à vista que parecesse remotamente perigoso. Mudar a localização do ponto de encontro despistara-os.

 

Só uma coisa o intrigava. Quando Brian Standish fora apanhado na catedral, fora salvo por Charenton, um amigo da Burguesa. Onde estaria ele naquele dia? Se estivesse a guardá-la na catedral, porque não estaria também ali? Mas as circunstâncias não eram perigosas. E podia haver uma centena de explicações simples.

 

A mãe e a criança saíram do café. Depois, às três e meia saiu a Burguesa. Avançou pelo passeio na direcção oposta à estação. Paul seguiu-a do outro lado da rua. Ela dirigiu-se a um pequeno carro preto de design italiano a que os Franceses chamavam Simca Cinq. Paul atravessou a rua. Ela entrou no carro e ligou o motor.

 

Chegara a altura de Paul tomar uma decisão. Não podia ter a certeza de que aquilo era seguro, mas fora até onde pudera com precaução, só lhe faltando apresentar-se à mulher. A certa altura, era necessário correr riscos. Senão mais valia ter ficado em casa.


Aproximou-se do carro pelo lado do pendura e abriu a porta. Ela olhou-o com frieza.

 

Monsieur,

 

Reze por mim disse ele.

 

Rezo pela paz.

 

Paul entrou no carro. Atribuindo-se um nome de código, disse:

 

Sou o Danton. Ela arrancou.

 

Porque não me falou no café? perguntou. Vi-o assim que entrei. Fez-me esperar lá dentro meia hora. É perigoso.

 

Queria ter a certeza de que não era uma armadilha. Ela olhou para ele.

 

Já sabe o que aconteceu ao Helicóptero.

 

Sim. Onde está aquele seu amigo que o salvou, o Charenton? Ela dirigia-se rapidamente para sul.

 

Está a trabalhar.

 

Ao domingo? O que é que ele faz?

 

É bombeiro. Está de prevenção.

 

Isso explicava tudo. Paul decidiu ir direito ao assunto que o levara ali.

 

Onde está o Helicóptero? Ela abanou a cabeça.

 

Não faço ideia. A minha casa é um local de passagem. Eu encontro-me com as pessoas e passo-as ao Monet. Não tenho de saber mais nada.

 

O Monet está bem?

 

Sim. Ligou-me na quinta à tarde para saber como estava o Charenton.

 

E depois disso?

 

Não. Mas não é estranho.

 

Quando é que o viu pela última vez?

 

Pessoalmente? Nunca o vi.

 

Teve notícias da Leoparda?

 

Não.

 

Paul ficou pensativo enquanto o carro avançava pelos subúrbios. A Burguesa não tinha qualquer informação para ele. Tinha de avançar até ao elo seguinte da cadeia.

 

Ela estacionou no quintal ao lado de uma casa alta.

 

Venha até lá dentro lavar-se disse ela.

 

Ele saiu do carro. Tudo parecia estar em ordem: a Burguesa estivera no local de encontro certo, apresentara-se como era esperado, dera as respostas correctas e ninguém a seguira. Por outro lado, não lhe dera informações úteis e ele continuava sem saber até que ponto o circuito Bollinger fora afectado e se Flick corria perigo. Quando a Burguesa se dirigiu até à porta e a abriu, ele tocou na escova de dentes de madeira que trazia no bolso: era de fabrico francês, por isso pudera levá-la. Um impulso dominou-o. Quando a Burguesa entrou em casa, ele tirou a escova do bolso e deixou-a cair no chão mesmo em frente à porta. Seguiu-a até ao interior.

 

Que grande casa comentou. Tinha papel de parede escuro e antiquado e móveis pesados, bastante contrastantes com a proprietária. Já aqui mora há muito?

 

Herdei-a há três ou quatro anos. Gostava de a redecorar, mas agora não se arranjam os materiais. Abriu uma porta e desviou-se para ele passar primeiro. Venha até à cozinha.

 

Ele entrou e viu dois homens fardados. Ambos seguravam pistolas automáticas. E ambas estavam apontadas para Paul.

 

O carro de Dieter tivera um furo na RN3 entre Paris e Meaux. Um prego curvo enfiara-se no pneu. O atraso irritou-o, e ele pôs-se a andar de um lado para o outro à beira da estrada, mas o tenente Hesse içou o carro com o macaco e mudou o pneu com uma eficiência calma. Minutos depois encontravam-se de novo a caminho.

 

Dieter dormira até tarde sob a influência da injecção de morfina que Hans lhe dera de madrugada, e agora olhava com impaciência enquanto a paisagem industrial feia a este de Paris se transformava gradualmente em campo. Queria estar em Reims. Tinha montado uma armadilha a Flick Clairet e precisava de lá estar quando ela caísse nela.

 

O grande Hispano-Suiza voou pela estrada em linha recta ladeada por choupos uma estrada provavelmente construída pelos Romanos. No começo da guerra, Dieter pensara que o Terceiro Reich viria a ser como o Império Romano, uma hegemonia pan-europeia que traria uma paz e uma prosperidade sem precedentes a todos os seus súbditos. Agora já não tinha tanta certeza.

 

Estava preocupado com a amante. Stéphanie corria perigo, e ele era o responsável. Todas as vidas estavam em risco naquele momento, disse de si para si. Os métodos de guerra modernos colocavam a população inteira na linha da frente. A melhor forma de proteger Stéphanie e ele próprio, e a sua família na Alemanha era derrotar a invasão. Mas havia momentos em que ele se amaldiçoava por envolver tanto a amante na sua missão. Jogava um jogo arriscado e utilizava-a numa posição exposta.

 

Os combatentes da Resistência não faziam prisioneiros. Como corriam perigo constante, não tinham o menor escrúpulo em matar os franceses que colaboravam com o inimigo.


Pensar que Stéphanie podia ser morta fê-lo sentir um aperto no coração, e a sua respiração acelerou-se. Não conseguia imaginar a vida sem ela. Essa perspectiva não era agradável, e ele apercebeu-se de que devia estar apaixonado por ela. Sempre dissera a si próprio que ela era apenas uma cortesã bonita e que a usava da forma que os homens sempre haviam utilizado esse tipo de mulheres. Naquele momento percebeu que andara a iludir-se. E desejou ainda mais já estar em Reims ao lado dela.

 

Era domingo à tarde, por isso havia pouco trânsito na estrada, e avançaram a bom ritmo.

 

O segundo furo ocorreu quando se encontravam a menos de uma hora de Reims. Dieter teve vontade de gritar de frustração. Era outro prego curvo. Seriam de fraca qualidade os pneus do tempo da guerra, perguntou-se ele? Ou será que os Franceses atiravam deliberadamente os pregos velhos para a estrada, sabendo que nove veículos em cada dez eram conduzidos pelas forças de ocupação?

 

O carro não dispunha de um segundo pneu sobressalente, pelo que o pneu tinha de ser remendado antes de poderem seguir viagem. Abandonaram o carro e puseram-se a andar. Cerca de dois quilómetros mais à frente chegaram a uma quinta. Uma família numerosa encontrava-se sentada em redor do que restava de um almoço de domingo substancial: na mesa havia queijo e morangos e várias garrafas de vinho vazias. Os habitantes do campo eram os únicos franceses que se alimentavam bem. Dieter convenceu o agricultor a prender o cavalo à carroça e a levá-los até à vila mais próxima.

 

Na praça da vila havia uma única bomba de gasolina no passeio do lado de fora de uma oficina com uma placa a dizer «Fechado» na montra. Bateram à porta e acordaram o garagiste carrancudo da sua sesta de domingo à tarde. O mecânico pôs em funcionamento uma camioneta velha e arrancou com Hans.

 

Dieter ficou sentado na sala de estar do mecânico, sob a observação de três crianças andrajosas. A esposa do mecânico, uma mulher cansada com cabelo sujo, andava de um lado para o outro na cozinha mas nem sequer lhe ofereceu um copo com água.

 

Dieter tornou a pensar em Stéphanie. Havia um telefone no vestíbulo. Ele espreitou para a cozinha.

 

Posso fazer um telefonema? pediu com bons modos. Pago-lhe, claro.

 

Ela lançou-lhe um olhar hostil.

 

Para onde?


Reims.

 

Ela assentiu e olhou para o relógio que se encontrava em cima da lareira para controlar o tempo.

 

Dieter obteve ligação para a telefonista e deu-lhe o número de telefone da casa na Rue du Bois. O telefone foi prontamente atendido por uma voz áspera que recitou o número com um sotaque rural. Subitamente alerta, Dieter disse em francês.

 

Fala Pierre Charenton.

 

A voz no outro lado da linha transformou-se na de Stéphanie.

 

Meu querido.

 

Ele percebeu que ela atendera o telefone fazendo por precaução a sua imitação de Mademoiselle Lemas. Sentiu um enorme alívio.

 

Está tudo bem? perguntou.

 

Capturei outro agente inimigo para ti respondeu ela com uma grande calma.

 

Dieter ficou com a boca seca.

 

Meu Deus... parabéns! Como é que aconteceu?

 

Contactou-me no Café de la Gare e veio para aqui. Dieter fechou os olhos. Se alguma coisa tivesse corrido mal

 

se ela tivesse feito algo que deixasse o agente desconfiado ela podia estar morta naquele momento.

 

E depois?

 

Os teus homens amarraram-no.

 

Ela dissera «amarraram-no». Isso significava que o terrorista não era Flick. Dieter ficou desapontado. Mesmo assim, a sua estratégia funcionava. Aquele homem era o segundo agente dos Aliados a cair na armadilha.

 

Como é que ele é?

 

Um tipo novo que coxeia e tem metade da orelha arrancada.

 

O que lhe fizeste?

 

Ele está aqui na cozinha, no chão. Estava prestes a ligar para Sainte-Cécile e pedir que o viessem buscar.

 

Não faças isso. Tranca-o na cave. Quero falar com ele antes do Weber.

 

Onde estás?

 

Numa aldeia qualquer. Tivemos um maldito furo.

 

Despacha-te a regressar.

 

Devo chegar aí dentro de uma hora ou duas.

 

Está bem.

 

Como estás?

 

Bem.

 

Dieter queria uma resposta séria.


Mas como é que te sentes?

 

Como é que me sinto? Ela fez uma pausa. Não costumas fazer-me essa pergunta.

 

Dieter hesitou.

 

Não costumo envolver-te na captura de terroristas.

 

Sinto-me bem respondeu ela num tom mais meigo. Não te preocupes comigo.

 

Ele deu por si a perguntar algo que não tinha planeado.

 

O que vamos fazer depois da guerra?

 

Houve um silêncio surpreendido do outro lado da linha.

 

Claro que a guerra pode continuar por mais dez anos continuou ele, mas por outro lado pode acabar daqui a duas semanas, e depois o que é que vamos fazer?

 

Ela recuperou um pouco a compostura, mas havia um tremor pouco normal na sua voz quando voltou a falar.

 

O que gostarias tu de fazer?

 

Não sei respondeu ele, mas aquilo deixou-o insatisfeito, e passado um momento acrescentou num impulso: Não quero perder-te.

 

Oh.

 

Dieter esperou que ela dissesse mais qualquer coisa.

 

Em que estás a pensar? perguntou.

 

Ela ficou em silêncio. Dieter ouviu um som estranho do outro lado da linha e apercebeu-se de que ela estava a chorar. Sentiu um nó na garganta. Olhou para a mulher do mecânico, que continuava a controlar a duração do telefonema. Engoliu em seco e virou-lhe as costas, pois não queria que uma desconhecida visse como estava perturbado.

 

Não tarda nada estou contigo. Depois falamos.

 

Amo-te disse ela.

 

Dieter olhou para a mulher do mecânico. Ela fitava-o. «Que se lixe a mulher», pensou.

 

Também te amo disse para o bocal. Depois desligou o telefone.

 

As Gralhas levaram quase todo o dia a ir de Paris para Reims.

 

Passaram por todos os postos de controlo sem incidente. As suas novas identidades falsas funcionavam tão bem como as antigas, e ninguém reparou que a fotografia de Flick fora retocada com lápis para os olhos.

 

Mas o comboio em que seguiam atrasou-se várias vezes, chegando a parar durante uma hora no meio de nenhures. Flick estava sentada na carruagem quente, impaciente à medida que os preciosos minutos se escoavam em vão. Percebia bem a razão dos atrasos: metade da linha fora destruída pelos bombardeiros da Força Aérea Americana e pela RAF. Quando o comboio voltou a ganhar vida e a avançar, espreitaram pelas janelas e viram equipas de reparação a cortar os carris retorcidos, a pegar nas chulipas esmagadas e a assentarem uma nova linha férrea. O seu único consolo era que os atrasos seriam ainda mais enlouquecedores para Rommel quando ele tentasse deslocar as suas tropas para repelirem a invasão.

 

Sentia no peito um nó frio e a cada cinco minutos os seus pensamentos regressavam a Diana e a Maude. Naquela altura já deviam ter sido interrogadas, possivelmente torturadas, possivelmente mortas. Flick conhecera Diana toda a vida. Iria ter de contar ao irmão de Diana, William, o que acontecera. E a mãe de Flick ficaria quase tão perturbada como William, pois ajudara a criar Diana.

 

Começaram a ver vinhas, depois armazéns de champanhe ao lado da via-férrea e por fim chegaram a Reims, pouco passava das quatro horas de domingo à tarde. Como Flick temera, era demasiado tarde para levarem a cabo a sua missão na mesma tarde. Isso significava outras enervantes vinte e quatro horas em território ocupado. Também colocava outro problema premente: onde iriam as Gralhas passar a noite?


Aquilo não era Paris. Não havia um bairro de prostituição com albergues cujos proprietários faziam poucas perguntas, e Flick não conhecia um convento onde as freiras davam abrigo a quem lhes pedisse. Não havia vielas escuras onde os mais desfavorecidos dormiam atrás dos caixotes do lixo ignorados pela Polícia.

 

Flick conhecia três esconderijos possíveis: a casa de Michel, o apartamento de Gilberte e a casa de Mademoiselle Lemas na Rue du Bois. Infelizmente, qualquer deles podia estar sob vigilância, dependendo do grau de penetração da Gestapo no circuito Bollinger. Se Dieter Franck estava encarregue da investigação, ela tinha de temer o pior.

 

Só lhe restava ir aos locais verificar.

 

Temos de voltar a separar-nos em pares disse ela às outras. Quatro mulheres juntas dão nas vistas. A Ruby e eu vamos à frente. Greta e Jelly, sigam-nos a cerca de cem metros.

 

Dirigiram-se à casa de Michel, não muito distante da estação. Era a casa onde Flick vivera depois de casada, mas sempre a considerara a casa de Michel. Havia espaço suficiente para as quatro mulheres. Mas a Gestapo devia ter conhecimento do local: seria de admirar se nenhum dos homens capturado no domingo passado tivesse revelado a morada sob tortura.

 

A casa ficava numa rua movimentada com várias lojas. Enquanto avançava pelo passeio, Flick olhou sub-repticiamente para cada um dos carros estacionados enquanto Ruby olhava para as casas e para as lojas. A casa de Michel era um edifício alto e estreito no meio de várias casas elegantes do século xvii. Tinha um pequeno jardim à frente com uma magnólia. O local parecia calmo e em silêncio, sem movimento nas janelas. O degrau da porta estava coberto de pó.

 

Da primeira vez que passaram pela rua não vira nada de suspeito: nem trabalhadores a abrir buracos na estrada, nem vadios atentos nas mesas da esplanada do Chez Régis, ninguém encostado ao poste do telégrafo a ler um jornal.

 

Regressaram pelo lado oposto da rua. À porta da padaria encontrava-se um Citroen Traction Avant preto com dois homens de fato sentados à frente a fumar com um ar aborrecido.

 

Flick ficou tensa. Tinha posta a cabeleira escura, por isso tinha a certeza de que não iriam reconhecê-la como sendo a rapariga do cartaz, mas mesmo assim o seu pulso bateu com mais força e ela passou por eles rapidamente. Enquanto avançava pelo passeio esperava ouvir um grito atrás dela, mas o grito não foi dado e por fim ela dobrou a esquina e respirou com mais facilidade.


Abrandou o passo. Os seus medos haviam sido justificados. A casa de Michel não tinha qualquer utilidade para ela. Não possuía uma entrada pelas traseiras, pois fazia parte de um grupo de casas sem uma viela atrás. As Gralhas não conseguiriam entrar sem serem vistas pela Gestapo.

 

Flick considerou as outras duas possibilidades. Michel devia ainda estar a viver no apartamento de Gilberte, a menos que tivesse sido capturado. O edifício tinha uma entrada pelas traseiras bastante útil. Mas era uma casa minúscula, e quatro hóspedes a dormir num apartamento de uma assoalhada não só seria desconfortável como poderia chamar a atenção dos vizinhos.

 

O sítio mais óbvio para passarem a noite era a casa na Rue du Bois. Flick estivera lá duas vezes. Era uma casa grande com vários quartos. Mademoiselle Lemas era de confiança e tinha muito gosto em dar de comer a visitas inesperadas. Havia anos que dava abrigo a agentes britânicos, pilotos abatidos e prisioneiros de guerra em fuga. E talvez soubesse o que acontecera a Brian Standish.

 

Ficava a cerca de três quilómetros do centro da cidade. As quatro mulheres puseram-se a caminho, seguindo aos pares e mantendo uma distância de cerca de cem metros.

 

Chegaram meia hora mais tarde. A Rue du Bois era uma rua calma dos subúrbios: uma equipa de vigilância teria alguma dificuldade em ocultar-se ali. Havia apenas um único carro estacionado à vista, um Peugeot 201 que era demasiado lento para a Gestapo. Estava vazio.

 

Flick e Ruby passaram uma primeira vez pela casa de Mademoiselle Lemas. Tinha o mesmo aspecto de sempre. O seu Simca Cinq encontrava-se estacionado ao lado da casa, o que não era normal, porque ela costumava estacioná-lo na garagem. Flick abrandou o passo e olhou sub-repticiamente para uma janela. Não viu ninguém. Mademoiselle Lemas só raramente utilizava aquela assoalhada: era uma salinha antiquada, o piano imaculadamente limpo, as almofadas sempre fofas, a porta mantida firmemente fechada excepto quando havia visitas de cerimónia. Os seus convidados secretos sentavam-se na cozinha, nas traseiras da casa, onde não corriam o risco de serem vistos pelos transeuntes.

 

Quando Flick passou pela porta, o seu olhar captou qualquer coisa no chão. Era uma escova de dentes em madeira. Sem abrandar o passo, baixou-se e apanhou-a.

 

Precisas de lavar os dentes? perguntou Ruby.

 

Parece a escova do Paul. Chegou quase a pensar que era a do Paul, embora devesse haver centenas iguais em França, talvez mesmo milhares.


Achas que ele pode estar aqui?

 

Talvez.

 

Porque viria?

 

Não sei. Para nos avisar do perigo, talvez. Contornaram o quarteirão. Antes de se aproximarem de novo da

 

casa, ela deixou que Greta e Jelly as apanhassem.

 

Desta vez vamos juntas disse. Greta e Jelly, batam à porta.

 

Ainda bem, os meus pés estavam a dar cabo de mim! suspirou Jelly aliviada.

 

A Ruby e eu vamos pelas traseiras, como precaução. Não digam nada a nosso respeito, mas esperem que apareçamos.

 

Avançaram novamente pela rua, desta vez juntas. Flick e Ruby entraram no quintal, passaram pelo Simca Cinq e foram até às traseiras. A cozinha ocupava quase toda a largura da casa nas traseiras, e tinha duas janelas e uma porta ao meio. Flick esperou até ouvir o toque metálico da campainha, depois arriscou-se a espreitar pela janela.

 

O seu coração parou.

 

Havia três pessoas na cozinha: dois homens fardados e uma mulher alta com cabelo ruivo luxuriante que não era com certeza Mademoiselle Lemas.

 

Numa fracção de segundo, Flick reparou que os três tinham afastado o olhar das janelas, virando a cabeça num gesto reflexo na direcção da porta da frente.

 

Flick voltou a baixar-se.

 

Pensou rapidamente. Os homens eram agentes da Gestapo. A mulher devia ser uma traidora francesa a fazer passar-se por Mademoiselle Lemas. Parecia-lhe vagamente familiar, mesmo de costas: havia algo elegante no seu vestido verde de Verão que lhe pareceu familiar.

 

Tornou-se evidente para Flick que aquela casa já não era segura. O local era agora uma armadilha para os agentes aliados. O pobre Brian Standish devia ter caído direitinho nela. Flick perguntou-se se ele ainda estaria vivo.

 

Foi invadida por uma determinação gelada. Sacou da pistola. Ruby fez o mesmo.

 

Três pessoas murmurou ela para Ruby. Dois homens e uma mulher. Respirou fundo. Chegara a altura de ser implacável. Vamos matar os homens, combinado?

 

Ruby assentiu.

 

Flick deu graças pela calma de Ruby.


Preferia manter a mulher viva para a interrogarmos, mas mata-a se ela tentar fugir.

 

Percebido.

 

Os homens estão no canto esquerdo da cozinha. A mulher deve ir abrir a porta. Fica com esta janela que eu vou para a outra. Aponta para o homem que estiver mais próximo de ti. Dispara quando eu disparar.

 

Rastejou ao longo da casa e acocorou-se debaixo da outra janela. Arfava e o seu coração batia muito depressa, mas os seus pensamentos eram claros como se estivesse a jogar xadrez. Nunca experimentara disparar através de vidro. Decidiu disparar três tiros rápidos: um para despedaçar o vidro, outro para matar o homem, e um terceiro para confirmar que o matara. Tirou a pistola da segurança e virou o cano para cima. Depois endireitou-se e espreitou pela janela.

 

Os dois homens estavam virados para a porta que dava para o vestíbulo. Tinham ambos as armas na mão. Flick fez pontaria ao que se encontrava mais próximo.

 

A mulher desaparecera, mas enquanto Flick espreitava ela apareceu, mantendo a porta da cozinha aberta. Greta e Jelly passaram por ela com um ar tranquilo; depois viram os homens da Gestapo. Greta soltou um grito de medo. Foram ditas algumas palavras Flick não percebeu quais depois Greta e Jelly levantaram as mãos.

 

A falsa Mademoiselle Lemas entrou na cozinha. Vendo o rosto dela de frente, Flick reconheceu-a. Já a vira antes. Um instante depois lembrou-se onde. A mulher estivera na praça em Sainte-Cécile no domingo anterior com Dieter Franck. Flick pensara que ela era a amante do oficial. Obviamente era mais do que isso.

 

Um segundo depois a mulher viu o rosto de Flick à janela. Ficou de boca aberta e olhos muito abertos, e em seguida levantou a mão para apontar naquela direcção. Os dois homens começaram a virar-se.

 

Flick apertou o gatilho. O tiro soou quase em simultâneo com o estilhaçar do vidro. Segurando a arma com firmeza, disparou mais duas vezes.

 

Um segundo depois, Ruby disparou.

 

Os dois homens caíram ao chão.

 

Flick abriu a porta das traseiras e entrou.

 

A jovem mulher já se virara. Tentava chegar à porta da frente. Flick levantou a arma, mas tarde de mais: a mulher já se encontrava no vestíbulo, fora do seu campo de visão. Então, Jelly, movendo-se surpreendentemente depressa, atirou-se para a porta. Ouviu-se um estrondo de corpos a cair no chão e móveis a partirem-se.

 

Flick atravessou a cozinha e espreitou. Jelly atirara a mulher para o chão de mosaicos. Também partira as delicadas pernas curvas de uma mesa em forma de rim, esmagara uma jarra chinesa que se encontrara em cima da mesa e espalhara uma mão-cheia de ervas secas que haviam estado na jarra. A francesa tentava levantar-se. Flick apontou a arma na direcção dela mas não disparou. Jelly, evidenciando reacções espantosamente rápidas, agarrou a mulher pelo cabelo e bateu com a cabeça dela nos mosaicos até ela deixar de lutar.

 

A mulher usava sapatos diferentes, um preto e outro castanho.

 

Flick virou-se e olhou para os dois homens da Gestapo no chão da cozinha. Estavam ambos imóveis. Pegou nas armas deles e guardou-as nos bolsos. Armas deixadas espalhadas no chão podiam ser usadas pelo inimigo.

 

Por enquanto as quatro Gralhas estavam em segurança.

 

Flick funcionava a adrenalina. Chegaria a altura, sabia-o, em que iria pensar nos homens que matara. O termo de uma vida era um momento terrível. A sua solenidade podia ser adiada, mas regressaria. Dali a algumas horas ou alguns dias, Flick perguntar-se-ia se o jovem fardado deixara para trás uma mulher que estava agora sozinha, e crianças órfãs. Mas de momento conseguiu esquecer isso e pensar apenas na sua missão.

 

Jelly, vigie a mulher ordenou. Greta, vá à procura de corda e amarre-a a uma cadeira. Ruby, vai lá acima e certifica-te de que não há mais ninguém em casa. Eu vou ver a cave.

 

Desceu as escadas. No chão de terra viu o vulto de um homem, amarrado e amordaçado. A mordaça cobria-lhe a maior parte da cara, mas ela reparou que metade da orelha dele havia sido arrancada.

 

Destapou-lhe a boca, baixou-se e deu-lhe um beijo longo e apaixonado.

 

Bem-vindo a França. Ele sorriu.

 

Foi a melhor recepção que já tive.

 

Tenho a tua escova de dentes.

 

Foi uma ideia que me ocorreu no último minuto, porque não estava muito seguro quanto à ruiva.

 

Fez-me ficar um nadinha mais desconfiada.

 

Graças a Deus.

 

Ela tirou o punhal que trazia oculto sob a lapela e começou a cortar as cordas que o amarravam.


Como chegaste aqui?

 

Aterrei de pára-quedas ontem à noite.

 

Para quê?

 

O rádio do Brian está a ser operado pela Gestapo. Queria avisar-vos.

 

Ela lançou-lhe os braços ao pescoço num impulso de afecto.

 

Estou tão contente por te encontrares aqui! Ele abraçou-a e beijou-a.

 

Nesse caso estou contente por ter vindo. Subiram as escadas.

 

Vejam o que encontrei na cave anunciou Flick. Estavam todas à espera de instruções. Ela pensou durante um minuto. Tinham passado cinco minutos desde o tiroteio. Os vizinhos podiam ter ouvido os disparos, mas poucos franceses tinham pressa em chamar a Polícia nos dias que corriam: tinham medo de acabar num gabinete da Gestapo a responder a perguntas. No entanto, ela não iria correr riscos desnecessários. Tinham de sair dali o mais depressa possível.

 

Virou a sua atenção para a falsa Mademoiselle Lemas, agora amarrada a uma cadeira da cozinha. Sabia o que tinha de ser feito, mas custava-lhe bastante.

 

Como é que se chama? perguntou.

 

Stéphanie Vinson.

 

Você é a amante do Dieter Franck.

 

Ela estava branca como a cal, mas manteve uma expressão de desafio e Flick reparou na sua beleza.

 

Ele salvou-me a vida.

 

Então fora assim que Franck conseguira a lealdade dela. Não fazia diferença: um traidor era um traidor, independentemente do motivo.

 

Trouxe o Helicóptero até aqui para o capturarem. Ela ficou calada.

 

O Helicóptero está vivo ou morto?

 

Não sei.

 

Flick apontou para Paul.

 

Trouxe-o também para aqui. Teria ajudado a Gestapo a apanhar-nos. A sua voz soava irada quando ela pensou no perigo que Paul tinha corrido.

 

Stéphanie baixou o olhar.

 

Flick pôs-se atrás da cadeira e sacou da pistola.

 

É francesa, e no entanto colaborou com a Gestapo. Podia ter-nos morto a todos.


Os outros, percebendo o que ia acontecer, desviaram-se da linha de fogo.

 

Stéphanie não conseguia ver a arma, mas pressentiu o que estava prestes a acontecer.

 

O que vai fazer comigo? murmurou.

 

Se a deixar aqui agora, você dirá ao Dieter Franck quantos somos e irá descrever-nos e ajudá-lo a apanhar-nos para que possamos ser torturados e mortos... não é?

 

Stéphanie não respondeu.

 

Flick apontou a arma para a nuca de Stéphanie.

 

Tem alguma desculpa para ter ajudado o inimigo?

 

Fiz o que tinha a fazer. Não é o que todos fazem?

 

Exacto respondeu Flick, puxando o gatilho duas vezes.

 

A arma fez um barulho ensurdecedor no espaço confinado. Sangue e mais qualquer coisa saltou do rosto da mulher e foi cair na saia do seu elegante vestido verde; ela tombou para a frente, inerte.

 

Jelly encolheu-se e Greta virou as costas. Até Paul ficou branco. Apenas Ruby manteve uma expressão impassível. Ficaram todos em silêncio durante um momento.

 

Vamos embora daqui disse Flick finalmente.

 

Eram seis da tarde quando Dieter estacionou em frente à casa da Rue du Bois. O seu carro azul-celeste encontrava-se coberto de pó e de insectos mortos depois da longa viagem. Quando saiu do carro, o Sol da tarde escondeu-se atrás de uma nuvem e a rua suburbana ficou mergulhada em sombras. Ele estremeceu.

 

Tirou os óculos de condução viera com a capota baixa e passou os dedos pelo cabelo para o alisar.

 

Espere por mim aqui, por favor, Hans disse. Queria estar sozinho com Stéphanie.

 

Ao abrir o portão e entrar no jardim da frente reparou que o Simca Cinq de Mademoiselle Lemas desaparecera. A porta da garagem estava aberta e a garagem encontrava-se vazia. Estaria Stéphanie a usar o carro? Mas onde teria ela ido? Devia estar ali à espera dele, guardada por dois homens da Gestapo.

 

Atravessou o jardim a passos largos e puxou o fio da campainha. O toque esmoreceu deixando a casa estranhamente silenciosa. Espreitou pela janela da sala da frente, mas aquela divisão estava sempre vazia. Tocou de novo. Não houve resposta. Baixou-se e espreitou pela caixa do correio, mas não conseguiu ver muito: parte das escadas, um quadro com uma cena passada numa montanha suíça e a porta da cozinha, entreaberta. Não havia movimento.

 

Olhou para a casa do lado e viu um rosto desaparecer rapidamente da janela e uma cortina a agitar-se.

 

Contornou a casa e entrou no jardim das traseiras. As duas janelas estavam partidas e a porta escancarada. O medo surgiu no seu coração. O que teria acontecido ali?

 

Stéphanie? chamou. Não obteve resposta. Entrou na cozinha.


A princípio não entendeu aquilo para que estava a olhar. Havia qualquer coisa amarrada a uma cadeira da cozinha com cordel. Parecia o corpo de uma mulher com uma massa nojenta em cima. Passado momentos, a sua experiência como polícia disse-lhe que a coisa nojenta era uma cabeça alvejada. Depois viu que a mulher morta tinha sapatos diferentes calçados, um preto e outro castanho, e compreendeu que ela era Stéphanie. Soltou um uivo de angústia, tapou os olhos com as mãos e caiu lentamente sobre os joelhos, a soluçar.

 

Passado um minuto, destapou os olhos e obrigou-se de novo a olhar. O detective que ele também era reparou no sangue na saia do vestido e concluiu que ela fora alvejada por trás. Talvez isso tivesse sido um gesto misericordioso; ela podia não ter experimentado o terror de saber que iria morrer. Dois tiros haviam sido disparados, pensou. Eram as duas feridas grandes que tornavam o seu rosto bonito tão feio, destruindo os olhos e o nariz, deixando os seus lábios sensuais salpicados de sangue mas intactos. Se não tivesse sido pelos sapatos não a teria reconhecido. Os seus olhos encheram-se de lágrimas até ela se tornar um borrão.

 

O sentimento de perda era como uma ferida. Nunca sentira um choque tão grande como a constatação súbita de que ela desaparecera. Não voltaria a lançar na sua direcção aquele olhar orgulhoso; não mais faria virar cabeças ao atravessar restaurantes; ele nunca mais a veria puxar as meias de seda pela barriga das pernas perfeitas. Teve a sensação de ter sido alvejado e perdido parte de si próprio. Murmurou o nome dela: pelo menos restava-lhe isso.

 

Depois ouviu uma voz atrás dele.

 

Gritou, assustado.

 

Ouviu-a de novo: um grunhido indistinto mas humano. Levantou-se de um pulo, virando-se e limpando as lágrimas dos olhos. Reparou pela primeira vez nos dois homens caídos no chão. Ambos usavam farda. Eram os guarda-costas da Gestapo que ele destacara para proteger Stéphanie. Não tinham conseguido protegê-la, mas pelo menos haviam perdido as suas vidas a tentar.

 

Ou um deles perdera.

 

Um estava imóvel, mas o outro tentava falar. Era um rapaz novo, de dezanove ou vinte anos, com cabelo preto e um pequeno bigode. O boné da farda estava no chão de linóleo ao lado da sua cabeça.

 

Dieter atravessou a cozinha e ajoelhou-se ao lado dele. Reparou nos ferimentos de saída de balas no seu peito: o homem fora alvejado por trás. Jazia numa poça de sangue A sua cabeça tremia e os seus lábios moviam-se. Dieter aproximou a orelha da boca do homem.


Água murmurou ele.

 

Estava a esvair-se em sangue. Pediam sempre água quando estavam prestes a morrer, como Dieter sabia. Já vira isso no deserto. Arranjou uma caneca, encheu-a na torneira e levou-a à boca do homem. Ele bebeu-a toda, a água pingando-lhe pelo queixo até ao casaco ensopado de sangue.

 

Dieter sabia que devia chamar um médico, mas tinha de descobrir o que acontecera ali. Se se demorasse muito, o homem poderia morrer sem lhe contar o que sabia. Dieter hesitou apenas um momento quanto à decisão a tomar. O homem era dispensável. Dieter iria interrogá-lo primeiro e depois chamar o médico.

 

Quem foi? perguntou, e baixou de novo a cabeça para ouvir os murmúrios do homem.

 

Quatro mulheres disse com voz rouca.

 

As Gralhas murmurou Dieter com amargura.

 

Duas à frente... duas nas traseiras.

 

Dieter assentiu. Imaginou o curso dos acontecimentos. Stéphanie fora abrir a porta. Os homens da Gestapo tinham ficado a postos, a olhar na direcção do vestíbulo. As terroristas tinham-se aproximado sub-repticiamente das janelas da cozinha e haviam-nos alvejado por trás. E depois...

 

Quem matou a Stéphanie?

 

Água...

 

Dieter controlou a sua impaciência a custo. Foi até ao lava-louça, tornou a encher a caneca e encostou-a de novo aos lábios do homem. Ele bebeu a água toda outra vez e suspirou de alívio, um suspiro que se transformou num gemido horrível.

 

Quem matou a Stéphanie? repetiu Dieter.

 

A mais pequena respondeu o homem da Gestapo.

 

Flick murmurou Dieter, e o seu coração encheu-se de desejo de vingança.

 

Lamento, major... murmurou o homem.

 

Como é que aconteceu?

 

Rápido... foi muito rápido.

 

Conte-me.

 

Amarraram-na... disseram que ela era uma traidora... encostaram-lhe a arma à nuca... depois foram-se embora.

 

Traidora? repetiu Dieter. O homem assentiu.

 

Dieter reprimiu um soluço.

 

Ela nunca alvejou ninguém na nuca sussurrou ele cheio de sofrimento.


O agente da Gestapo não o ouviu. Os seus lábios encontravam-se imóveis e deixara de respirar.

 

Dieter esticou o braço direito e fechou as pálpebras do homem com as pontas dos dedos.

 

Descanse em paz disse.

 

Depois, mantendo-se de costas para a mulher que amava, foi até ao telefone.

 

Foi difícil meter cinco pessoas no Simca Cinq. Ruby e Jelly ocuparam o rudimentar banco de trás. Paul ia ao volante. Greta ocupou o banco ao lado do condutor e Flick sentou-se ao colo de Greta.

 

Normalmente ter-se-iam rido da situação, mas estavam taciturnos. Tinham morto três pessoas e quase haviam sido capturados pela Gestapo. Agora estavam atentos, hiperalerta, prontos a reagir rapidamente a tudo o que acontecesse. As suas mentes pensavam apenas na sobrevivência.

 

Flick guiou Paul até à rua paralela à de Gilberte. Flick recordou-se de ter ido ali com o marido ferido exactamente há sete dias. Disse a Paul que estacionasse perto do fim da viela.

 

Esperem aqui disse. Eu vou verificar o local.

 

Despache-se, por amor de Deus implorou Jelly.

 

Vou o mais depressa que conseguir. Flick saiu do carro e percorreu a viela a correr, passando pelas traseiras da fábrica até à porta no muro. Atravessou rapidamente o jardim e entrou na porta das traseiras do prédio. O corredor encontrava-se vazio e tudo estava em silêncio. Ela subiu devagar os degraus até ao sótão.

 

Parou à porta do apartamento de Gilberte. O que viu deixou-a muito perturbada. A porta encontrava-se escancarada. Fora arrombada e pendia de um dos gonzos. Pôs-se à escuta mas não ouviu nada e algo lhe disse que o arrombamento tivera lugar há alguns dias. Com cautela, entrou.

 

Fora passada revista à casa. Na sala pequena, as almofadas do sofá estavam tortas e na cozinha as portas dos armários encontravam-se abertas. Flick olhou para o quarto e viu uma cena semelhante. As gavetas haviam sido arrancadas da cómoda, o roupeiro estava aberto e alguém se pusera de pé em cima da cama com botas sujas.


Foi até à janela e olhou para a rua. Estacionado em frente ao prédio encontrava-se um Citroen Traction Avant preto com dois homens sentados à frente.

 

A situação não era boa, pensou Flick desesperada. Alguém dera com a língua nos dentes e Dieter Franck aproveitara. Seguira meticulosamente o rasto que o conduzira primeiro a Mademoiselle Lemas, depois a Brian Standish e por fim a Gilberte. E Michel? Estaria ele preso? Era provável.

 

Pensou em Dieter Franck. Sentira um arrepio de medo da primeira vez que lera a curta biografia que o M16 preparara sobre ele na parte de trás da fotografia do arquivo. Não se assustara o suficiente, percebia agora. Ele era inteligente e persistente. Quase a apanhara em La Chatelle, tinha mandado afixar cartazes com o seu rosto por toda a Paris e capturara e interrogara os seus camaradas uns após outros.

 

Só o vira duas vezes e apenas por breves momentos. Recordou o rosto dele. Havia inteligência e energia no seu olhar, pensou, e uma determinação que podia facilmente transformar-se em implacabilidade. Tinha a certeza de que ele ainda lhe seguia o rasto. Decidiu ficar ainda mais atenta.

 

Olhou para o céu. Faltavam cerca de três horas para o cair da noite.

 

Desceu rapidamente as escadas, atravessou o jardim e regressou ao Simca Cinq estacionado.

 

Não vale a pena disse ao enfiar-se no carro. O local foi revistado e a Gestapo está a vigiar a outra entrada.

 

Bolas! exclamou Paul. Para onde vamos agora?

 

Podemos tentar mais um sítio disse Flick. Vamos para o centro.

 

Perguntou de si para si quanto mais tempo conseguiriam continuar a usar o Simca Cinq; o seu minúsculo motor de 500 centímetros cúbicos só com bastante esforço conseguia fazer andar o carro sobrelotado. Partindo do princípio de que os corpos na casa da Rue du Bois haviam sido descobertos em menos de uma hora, quanto tempo lhes restaria até que a Polícia e a Gestapo de Reims fossem alertadas para procurar o carro de Mademoiselle Lemas? Dieter não tinha forma de contactar os homens que já se encontravam na rua, mas na mudança de turno seguinte todos seriam informados. E Flick não sabia a que horas os turnos da noite tinham início. Concluiu que não lhe restava praticamente tempo nenhum.

 

Vai para a estação disse. Deixamos lá o carro.

 

Boa ideia respondeu Paul. Assim talvez pensem que saímos da cidade.


Flick procurou nas ruas Mercedes militares ou Citroêns pretos da Gestapo. Susteve a respiração quando passaram por dois gendarmes que andavam a patrulhar as ruas. Mas chegaram ao centro da cidade sem incidentes. Paul estacionou perto da estação, saíram e afastaram-se rapidamente do veículo incriminatório.

 

Tenho de fazer isto sozinha disse Flick. É melhor vocês irem para a catedral e esperarem lá por mim.

 

Os meus pecados foram perdoados várias vezes, pois hoje já passei tempo de sobra na igreja comentou Paul.

 

Podes rezar para que encontremos um sítio onde passar a noite retorquiu Flick, afastando-se.

 

Regressou à rua onde Michel vivia. A cem metros da casa dele ficava o bar Chez Régis. Flick entrou. O dono, Alexandre Régis, estava sentado atrás do balcão a fumar. Acenou com a cabeça na direcção dela em sinal de reconhecimento, mas ficou calado.

 

Flick abriu a porta com a indicação das casas de banho. Percorreu um pequeno corredor, depois abriu o que parecia ser a porta de um armário. Atrás dela encontrava-se uma escada íngreme e no cimo desta uma porta pesada com um buraco. Flick bateu à porta com força e colocou-se de modo a que o seu rosto pudesse ser visto por quem espreitasse pelo buraco. Momentos depois a porta foi aberta por Mémé Régis, a mãe do dono.

 

Flick entrou numa assoalhada espaçosa cujas janelas tinham sido tapadas com tecido escuro. Estava cruamente decorada com tapetes no chão, tinta castanha nas paredes e várias lâmpadas penduradas do tecto. Numa das extremidades do aposento encontrava-se uma roleta. Havia um grupo de homens em volta de uma mesa redonda a jogar às cartas e um bar num dos cantos. Flick encontrava-se numa sala de jogo ilegal.

 

Michel gostava de jogar póquer com grandes somas envolvidas e em boa companhia, por isso de vez em quando ia ali passar a noite. Flick nunca jogava, mas por vezes ficava sentada durante uma hora a assistir ao jogo. Michel dizia que ela lhe dava sorte. Era um bom local para uma pessoa se esconder da Gestapo e Flick esperava encontrá-lo ali, mas ao olhar para os rostos presentes na sala ficou desapontada.

 

Obrigada, Mémé disse à mãe de Alexandre.

 

É bom vê-la. Como é que está?

 

Bem, obrigada. Tem visto o meu marido?

 

Ah, o encantador Michel. Lamento, mas esta noite ainda não o vi. As pessoas ali não sabiam que Michel pertencia à Resistência.


Flick dirigiu-se ao bar e sentou-se num banco, sorrindo para a empregada, uma mulher de meia-idade com batom vermelho-vivo. Era Yvette Régis, a mulher de Alexandre.

 

Tem uísque?

 

Claro respondeu Yvette. Para aqueles que podem dar-se ao luxo de o pagar. Fez aparecer uma garrafa de Dewar’s White Label e verteu uma medida para um copo.

 

Ando à procura do Michel.

 

Já há cerca de uma semana que não o vejo comentou Yvette.

 

Raios! exclamou Flick, bebendo um gole de uísque. Vou esperar mais um pouco, não vá ele aparecer.

 

Dieter estava desesperado. Flick demonstrara ser demasiado esperta. Escapara da sua armadilha. Encontrava-se algures em Reims, mas ele não tinha maneira de a encontrar.

 

Já não podia mandar seguir mais elementos da Resistência de Reims na esperança de que ela contactasse um deles, porque se encontravam todos detidos. Dieter mandara vigiar a casa de Michel e o apartamento de Gilberte, mas tinha a certeza de que Flick era demasiado matreira para se deixar ver por um simples agente da Gestapo. Havia cartazes dela espalhados por toda a cidade, mas ela já devia ter mudado o seu aspecto, pintado o cabelo ou algo no género, porque ninguém comunicara tê-la visto. Fora mais esperta do que ele.

 

Dieter precisava de um golpe de génio.

 

E ocorrera-lhe um, pensava ele.

 

Estava sentado numa bicicleta na berma da estrada. Encontrava-se no centro da cidade, junto ao teatro. Tinha uma boina, óculos, uma camisola de algodão áspero e as calças enfiadas nas meias. Estava irreconhecível. Ninguém desconfiaria dele. A Gestapo nunca andava de bicicleta.

 

Olhou para a rua a oeste, semicerrando os olhos por causa do sol-poente. Estava à espera de um Citroen preto. Olhou para o relógio: já não devia faltar muito.

 

Do outro lado da rua, Hans encontrava-se ao volante de um velho Peugeot que chegara praticamente ao fim da sua vida útil. O motor estava ligado: Dieter não queria correr o risco de ficar pendurado se ele decidisse não pegar. Hans também se disfarçara, com óculos escuros e um boné, e vestia um fato barato e sapatos cambados, como um cidadão francês. Nunca fizera nada parecido, mas acatara as suas ordens com estoicismo.


Também Dieter nunca fizera nada do género. Não sabia se iria resultar. Muitas coisas podiam correr mal e tudo podia acontecer.

 

O seu plano era desesperado, mas o que tinha ele a perder? Terça-feira era noite de lua cheia. Tinha a certeza de que os Aliados estavam prestes a invadir a França. Flick era o trofeu máximo, suficientemente importante para que se corressem vários riscos.

 

Mas vencer a guerra já não era o seu principal pensamento. O seu futuro fora destroçado; estava-se nas tintas para quem governasse a Europa. Pensava constantemente em Flick Clairet. Ela destruíra a sua vida; assassinara Stéphanie. Queria encontrar Flick, capturá-la e levá-la para a cave do castelo. Aí poderia saborear o prazer da vingança. Fantasiava constantemente sobre a forma como iria torturá-la: os ferros que iriam despedaçar os seus ossos pequenos, a máquina de choques eléctricos no máximo, as injecções que a deixariam impotente devido a esgotantes espasmos de náusea, o banho gelado que lhe provocaria convulsões e gelaria o sangue nos seus dedos. Destruir a Resistência e repelir os invasores tornara-se apenas uma parte do castigo que iria infligir a Flick.

 

Mas primeiro tinha de a encontrar.

 

Ao longe viu um Citroen preto.

 

Olhou para ele. Seria aquele? Era um modelo de duas portas, o que era utilizado para o transporte de prisioneiros. Tentou espreitar lá para dentro. Teve a impressão de ver quatro pessoas. Tinha de ser o carro de que estava à espera. O carro aproximou-se e ele reconheceu o rosto atraente de Michel no banco de trás, guardado por um agente da Gestapo fardado. Ficou tenso.

 

Estava satisfeito por ter dado ordens para que Michel não fosse torturado enquanto ele estivesse ausente. Aquele plano não teria sido possível de outra forma.

 

Quando o Citroen se aproximou de Dieter, Hans arrancou subitamente com o velho Peugeot. O carro foi para o meio da estrada, avançou e chocou com a frente do Citroen.

 

Ouviu-se o barulho do metal a retorcer-se e de vidros a partirem-se. Os dois agentes da Gestapo que iam nos bancos da frente saíram do carro e começaram a gritar para Hans num francês péssimo aparentemente sem reparar que o colega no banco de trás batera com a cabeça e parecia estar inconsciente no banco, ao lado do prisioneiro.

 

Aquele era o momento crítico, pensou Dieter com nervosismo. Iria Michel morder o isco? Observou a cena no meio da rua.

 

Michel levou algum tempo a aperceber-se da sua oportunidade. Dieter quase chegou a pensar que ele não iria aproveitá-la. Depois o francês pareceu acordar. Debruçou-se sobre os bancos da frente, tentando abrir a porta com as mãos amarradas. Conseguiu, baixou o banco e saiu cambaleante.

 

Dieter sentiu-se triunfante. O seu plano estava a funcionar.

 

Foi atrás de Michel.

 

Hans seguiu Dieter a pé.

 

Dieter pedalou na sua bicicleta durante alguns metros, mas viu que se aproximava demasiado de Michel, por isso desmontou e levou-a à mão. Michel dobrou a primeira esquina a coxear ligeiramente por causa do tiro que levara, mas a caminhar com rapidez com as mãos à frente encostadas ao tronco, para que ninguém reparasse nelas. Dieter seguiu-o discretamente, às vezes a passo, outras vezes montado na bicicleta, deixando-se ficar para trás sempre que podia, escondendo-se atrás de carros altos sempre que a oportunidade surgia. Michel olhava para trás de vez em quando, mas não fez qualquer tentativa sistemática de despistar quem quer que o pudesse seguir. Não fazia ideia de que caíra num logro.

 

Passados alguns minutos Hans ultrapassou Dieter, conforme o combinado, e Dieter seguiu atrás de Hans. Depois voltaram a trocar.

 

Para onde iria Michel? Era fundamental para o plano de Dieter que ele o conduzisse a outros elementos da Resistência para que pudesse de novo apanhar o rasto de Flick.

 

Para surpresa de Dieter, Michel dirigiu-se para a sua casa perto da catedral. Será que não desconfiava que a casa estava a ser vigiada? Mesmo assim, entrou na rua. No entanto, não entrou em casa mas sim num bar em frente chamado Chez Régis.

 

Dieter.encostou a bicicleta à parede do edifício ao lado, um antigo estabelecimento com uma placa desbotada onde se lia «Charcutene». Esperou alguns minutos, não fosse Michel voltar a sair de imediato. Quando se tornou evidente que Michel iria demorar-se algum tempo, Dieter entrou.

 

Tencionava apenas certificar-se de que Michel ainda ali estava esperando que os óculos e a boina impedissem que Michel o reconhecesse. Iria comprar um maço de tabaco como desculpa e voltaria a sair. Mas Michel não estava à vista. Intrigado, Dieter hesitou.

 

Posso ajudá-lo? perguntou o homem ao balcão.

 

Uma cerveja pediu Dieter. De pressão. Esperava que mantendo a conversa reduzida a um mínimo o barman não repararia no seu ligeiro sotaque alemão e aceitá-lo-ia como um ciclista que parara ali para matar a sede.

 

É para já.

 

Onde fica a casa de banho?


O homem apontou para uma porta a um canto. Dieter dirigiu-se a ela. Michel não se encontrava na casa de banho dos homens. Dieter arriscou espreitar para a das mulheres: estava vazia. Abriu o que parecia ser a porta de um armário e viu que atrás dela havia umas escadas. Subiu-as. No cimo encontrava-se uma porta pesada com um buraco. Ele bateu à porta, mas não obteve resposta. Escutou durante um momento. Não ouviu nada, mas a porta era espessa. Tinha a certeza de que havia alguém do outro lado, a observá-lo pelo buraco, reparando que ele não era um dos clientes habituais. Tentou agir como se se tivesse enganado no caminho para a casa de banho. Coçou a cabeça, encolheu os ombros e tornou a descer as escadas.

 

O bar aparentava não ter uma saída para as traseiras. Michel estava ali, Dieter tinha a certeza, atrás da porta espessa. Mas o que poderia ele fazer?

 

Levou o copo para uma mesa para que o barman não tentasse meter conversa com ele. A cerveja era aguada e insípida. Mesmo na Alemanha a qualidade da cerveja declinara durante a guerra. Obrigou-se a bebê-la toda, depois saiu.

 

Hans estava do outro lado da rua, a olhar para a montra de uma livraria. Dieter atravessou a estrada.

 

Ele deve estar com outros elementos da Resistência. Por outro lado, aquilo pode ser um bordel, ou coisa parecida, e não quero entrar por ali adentro antes que ele nos conduza a alguém que valha a pena.

 

Hans assentiu, compreendendo o dilema. Dieter tomou uma decisão. Era demasiado cedo para tornar a prender Michel.

 

Quando ele sair, eu sigo-o. Assim que nos tivermos afastado, reviste o local.

 

Sozinho?

 

Dieter apontou para os dois agentes da Gestapo num Citroen preto que vigiava a casa de Michel.

 

Eles que o ajudem.

 

Está bem.

 

Tente fazer com que pareça uma inspecção de rotina... prenda as prostitutas, se as houver. Não fale da Resistência.

 

Certo.

 

Até lá, esperamos.

 

Flick estivera pessimista até ao momento em que Michel aparecera.

 

Encontrava-se sentada ao balcão do pseudocasino, a fazer conversa com Yvette, observando com indiferença os rostos intensos dos homens concentrados nas suas cartas, nos seus dados e na roleta. Ninguém lhe prestou grande atenção: eram jogadores a sério, pouco dispostos a deixarem-se distrair por um rosto bonito.

 

Se Flick não encontrasse Michel estava em apuros. As outras Gralhas estavam na catedral, mas não podiam ficar ali toda a noite. Podiam dormir ao relento sobreviveriam ao clima ameno de Junho mas poderiam facilmente ser apanhadas.

 

Também necessitavam de transporte. Se não conseguissem obter um carro ou uma camioneta do circuito Bollinger, teriam de roubar um. Mas depois seriam forçadas a executar a missão com um veículo procurado pela Polícia. Isso trazia mais perigos a uma tarefa já perigosa.

 

Havia outro motivo para a sua tristeza: a imagem de Stéphanie Vinson não lhe saía da cabeça. Fora a primeira vez que Flick matara um prisioneiro amarrado e indefeso e a primeira vez que alvejara uma mulher.

 

A morte perturbava-a bastante. O agente da Gestapo que ela matara poucos minutos antes de Stéphanie fora um combatente de arma na mão, mas continuava a parecer-lhe terrível ter posto cobro a uma vida. Acontecera o mesmo com os outros homens que matara: dois agentes da Milícia em Paris, um coronel da Gestapo em Lille, e um traidor francês em Rouen. Mas Stéphanie era pior. Flick encostara-lhe uma pistola à nuca e executara-a. Exactamente como ensinara os alunos no curso do EOE. Stéphanie merecera-o, claro Flick não tinha quaisquer dúvidas a esse respeito. Mas começou a pensar em si. Que tipo de pessoa era capaz de assassinar a sangue frio um prisioneiro indefeso? Ter-se-ia tornado um carrasco abrutalhado?

 

Acabou o uísque mas declinou outra dose com receio de ficar sentimental. Foi então que Michel apareceu.

 

Um enorme alívio invadiu-a. Michel conhecia toda a gente na cidade. Seria capaz de ajudá-la. De súbito a missão tornou a parecer possível.

 

Sentiu algum afecto ao olhar para o homem magro com o casaco amarrotado, o rosto bonito com olhos sorridentes. Calculava que iria gostar sempre dele. Sentiu um certo arrependimento ao pensar na paixão que já sentira por Michel. Nunca mais voltaria a sentir o mesmo, tinha a certeza.

 

Quando ele se aproximou, Flick reparou que ele não estava com muito boa cara. O seu rosto parecia ter adquirido rugas novas. Sentiu uma enorme compaixão por ele. O cansaço e o medo estavam patentes na expressão de Michel, que aparentava ter cinquenta anos e não trinta e cinco, pensou ela com ansiedade.

 

Mas a sua maior preocupação era decorrente do facto de saber que tinha de lhe dizer que o casamento de ambos chegara ao fim. Tinha medo. Isso pareceu-lhe irónico: acabara de matar um agente da Gestapo e uma traidora francesa, e estava sob disfarce em território ocupado; contudo, o seu maior medo era o de ferir os sentimentos do marido.

 

Ele ficou visivelmente encantado por vê-la.

 

Flick! exclamou. Sabia que conseguirias cá chegar! Atravessou a sala na direcção dela, continuando a coxear por causa do ferimento da bala.

 

Tive receio de que a Gestapo te tivesse apanhado retorquiu ela calmamente.

 

E apanhou! Ele virou-se de forma a ficar de costas para as outras pessoas e mostrou-lhe as mãos, amarradas nos pulsos com uma corda grossa.

 

Ela tirou o punhal de baixo da lapela e cortou-lhe discretamente a corda. Os jogadores não viram nada. Flick voltou a guardar o punhal.

 

Mémé Régis viu Michel quando ele estava a enfiar a corda nos bolsos das calças. Abraçou-o e beijou-o na cara. Flick viu-o namoriscar com a mulher mais velha, falando-lhe na sua voz sensual, dirigindo-lhe um sorriso também sensual. Depois Mémé regressou ao trabalho, servindo bebidas aos jogadores, e Michel contou a Flick como conseguira fugir. Ela tivera receio de que ele quisesse beijá-la apaixonadamente e de não saber como lidar com a situação, mas ele estava demasiado ébrio com as suas aventuras para se pôr com romantismos com a mulher.

 

Tive tanta sorte! exclamou. Estava sentado num banco ao balcão, a esfregar os pulsos, e pediu uma cerveja.

 

Flick assentiu.

 

Demasiada sorte, talvez comentou.

 

O que queres dizer com isso?

 

Pode ser uma armadilha.

 

Ele ficou indignado e sem dúvida pouco satisfeito com o facto de Flick estar a sugerir que ele era fácil de enganar.

 

Não me parece.

 

Podes ter sido seguido até aqui?

 

Não respondeu ele com firmeza. Verifiquei, claro. Ela não ficou convencida, mas decidiu esquecer o assunto por enquanto.

 

Então o Brian Standish está morto e os outros três encontram-se presos: Mademoiselle Lemas, Gilberte e o doutor Bouler.

 

Os outros estão mortos. Os alemães entregaram-nos os corpos dos que morreram no confronto do castelo. E os sobreviventes, o Gaston, a Geneviéve e o Bertrand, foram mortos por um pelotão de fuzilamento na praça de Sainte-Cécile.

 

Meu Deus!

 

Ficaram em silêncio durante algum tempo. Flick sentia-se abatida ao pensar nas vidas perdidas e no sofrimento suportado por causa daquela missão.

 

A cerveja de Michel foi servida. Ele bebeu metade de um trago e limpou os lábios.

 

Calculo que tenhas regressado para mais uma tentativa no castelo.

 

Ela assentiu.

 

Mas a versão oficial é a de que vamos rebentar com um túnel ferroviário em Marles.

 

É uma boa ideia, devíamos levá-la para a frente.

 

Agora não. Dois elementos da minha equipa foram detidos em Paris e devem ter falado. Calculo que lhes tenham contado essa versão... desconheciam a verdadeira missão... e de certeza que os Alemães redobraram a guarda ao túnel. Vamos deixar isso para a RAF e concentrar-nos em Sainte-Cécile.

 

O que posso fazer?

 

Precisamos de um sítio onde passar a noite.


Michel pensou durante um momento.

 

A adega do Joseph Laperrière.

 

Laperrière era fabricante de champanhe. Antoinette, a tia de Michel, já fora sua secretária.

 

Ele é dos nossos?

 

É simpatizante. Dirigiu-lhe um sorriso amargo. Agora já são todos simpatizantes. Acham que a invasão deve ocorrer a qualquer momento. Olhou para ela com uma expressão inquiridora. Calculo que tenham razão...

 

Sim respondeu Flick. Não deu mais pormenores. Qual é o tamanho da adega? Nós somos cinco.

 

É grande, ele podia esconder lá cinquenta pessoas.

 

Óptimo. E também preciso de um veículo para amanhã.

 

Para ires a Sainte-Cécile?

 

E para depois, para irmos ao encontro do avião que nos vem buscar, se ainda estivermos vivos.

 

Sabes que não podes utilizar o local do costume em La Chatelle, não sabes? A Gestapo conhece-o... foi lá que me apanharam.

 

Sim. O avião vai para o outro em Laroque. Dei indicações para isso.

 

O batatal. Óptimo.

 

E o veículo?

 

O Philippe Moulier tem uma camioneta. Entrega carne a todas as bases alemãs. Folga à segunda.

 

Lembro-me dele, é simpatizante dos nazis.

 

Era. E há quatro anos que anda a ganhar dinheiro com eles. Agora tem receio de que a invasão seja bem-sucedida e que depois de os Alemães se terem ido embora seja acusado de colaboracionismo. Está desesperado por fazer algo por nós, para provar que não é um traidor. Há-de emprestar-nos a camioneta.

 

Leva-a à adega amanhã às dez da manhã. Ele tocou-lhe no rosto.

 

Não podemos passar a noite juntos? perguntou com o velho sorriso e parecendo tão atraente como dantes.

 

Ela sentiu uma agitação familiar, mas não tão forte como dantes. Outrora, aquele sorriso tê-la-ia deixado louca. Agora parecia a recordação de um desejo.

 

Queria dizer-lhe a verdade, pois detestava a falta de honestidade. Mas isso poderia colocar em risco a missão. Precisava da ajuda de Michel. Ou isso seria apenas uma desculpa? Talvez lhe faltasse apenas a coragem.

 

Não respondeu. Não podemos passar a noite juntos.


Ele pareceu abatido.

 

Por causa da Gilberte?

 

Flick assentiu, mas não foi capaz de mentir e deu por si a dizer:

 

Bem, em parte.

 

Qual é a outra parte?

 

Não quero discutir isto no decorrer de uma missão importante. Ele pareceu vulnerável, quase assustado.

 

Tens outra pessoa?

 

Flick não foi capaz de o magoar.

 

Não mentiu. Ele observou-a.

 

Ainda bem disse por fim. Fico satisfeito. Flick detestou-se naquele momento.

 

Michel acabou a cerveja e levantou-se do banco.

 

A casa do Laperrière fica no Chemin de la Carrière. Levas meia hora a chegar lá.

 

Conheço a rua.

 

É melhor eu ir falar com o Moulier por causa da camioneta. Abraçou Flick e beijou-a nos lábios.

 

Ela sentiu-se pessimamente. Não podia recusar o beijo uma vez que negara ter outra pessoa, mas beijar Michel parecia-lhe desleal para com Paul. Fechou os olhos e aguardou imóvel que ele a libertasse.

 

Michel reparou na falta de entusiasmo dela. Olhou-a com uma expressão pensativa.

 

Vemo-nos às dez disse, indo-se embora.

 

Flick decidiu esperar cinco minutos antes de o seguir. Pediu outro uísque a Yvette.

 

Enquanto o bebia uma luz vermelha surgiu sobre a porta.

 

Ninguém falou, mas toda a gente na sala começou a mexer-se. O croupier parou a roleta e virou-a para baixo, de forma a que a mesa parecesse uma mesa vulgar. Os jogadores de cartas recolheram o dinheiro e vestiram os casacos. Yvette pegou nos copos que estavam em cima do balcão e pô-los no lava-louça. Mémé Régis apagou as luzes, deixando a sala iluminada apenas pela lâmpada vermelha por cima da porta.

 

Flick apanhou a mala do chão e pousou a mão sobre a arma.

 

O que se passa? perguntou a Yvette.

 

É a Polícia respondeu a outra.

 

Flick praguejou. Era um grande azar ser presa por jogo ilegal.

 

O Alexandre lá em baixo deu o sinal explicou Yvette. Vá-se embora, depressa! Apontou para o outro lado da sala.


Flick olhou nessa direcção e viu Mémé Régis a entrar no que parecia ser um armário. Mémé afastou alguns casacos velhos em cabides revelando, ao fundo, uma porta, que se apressou a abrir. Os jogadores começaram a sair pela porta escondida. Talvez conseguisse escapar, pensou Flick.

 

A luz vermelha sobre a porta continuava a brilhar e começaram a ouvir-se pancadas na porta. Flick atravessou a sala às escuras e juntou-se aos homens que desciam pelo armário. Seguiu-os até um aposento sem móveis. O chão ficava cerca de trinta centímetros abaixo do que o esperado, e ela calculou que se encontrassem no apartamento por cima da loja do lado. Desceram rapidamente as escadas e, conforme calculara, Flick deu por si na charcutaria abandonada, com um balcão de mármore manchado e vitrinas empoeiradas. O estore da janela da frente estava descido para que ninguém pudesse espreitar da rua.

 

Saíram todos pela porta das traseiras. Havia um quintal de terra rodeado por um muro alto. Uma porta no muro dava para uma viela, e a viela dava para a rua ao lado. Quando chegaram à rua, os homens seguiram em várias direcções.

 

Flick começou a andar rapidamente e em breve viu-se sozinha. Ofegante, olhou em volta para perceber onde estava e dirigiu-se para a catedral, onde as outras Gralhas a esperavam.

 

Meu Deus murmurou, esta foi por pouco.

 

Quando recuperou o fôlego, começou a ver a visita da Polícia por outro prisma. Ocorrera minutos depois de Michel se ter ido embora. Flick não acreditava em coincidências.

 

Quanto mais pensava no assunto, mais ficava convencida de que quem batera à porta andava à sua procura. Sabia que já desde antes da guerra se jogava ali a dinheiro. A Polícia local devia conhecer o sítio. Porque teriam decidido de repente fechá-lo? Se não fora a Polícia, devia ter sido a Gestapo. E esses não estavam interessados nos jogadores. Queriam apanhar comunistas, judeus, homossexuais... e espiões.

 

A história da fuga de Michel pusera-a imediatamente desconfiada, mas ela deixara-se convencer em parte pela insistência dele em como não fora seguido. Agora mudara de opinião. A fuga dele devia ter sido encenada, tal como a «libertação» de Brian Standish. Apercebeu-se da argúcia de Dieter Franck por detrás do plano. Alguém seguira Michel até ao café, adivinhara a existência da sala secreta no primeiro andar, e esperara encontrá-la ali.


Nesse caso, Michel continuava a ser vigiado. E se ele continuasse a ser tão descuidado, seria seguido nessa noite até à casa de Phihppe Moulier, e na manhã seguinte, ao volante da camioneta, seria seguido até à adega onde as Gralhas estariam escondidas.

 

«E que raio posso fazer a respeito disso?», pensou Flick.

 

O NONO DIA

 

Segunda-feira, 5 de Junho de 1944

 

A enxaqueca de Dieter começou pouco depois da meia-noite, quando ele se encontrava no quarto do Hotel Frankfort a olhar para a cama que não voltaria a partilhar com Stéphanie. Achava que se conseguisse chorar a dor diminuiria, mas as lágrimas não surgiram e ele injectou-se com morfina e caiu sobre a cama.

 

O telefone acordou-o antes do amanhecer. Era Walter Goedel, o assessor de Rommel. Meio a dormir, Dieter perguntou:

 

A invasão já começou?

 

Hoje não respondeu Goedel. O tempo está mau no canal da Mancha.

 

Dieter endireitou-se e sacudiu a cabeça para ficar com as ideias mais claras.

 

Então o que foi?

 

A Resistência estava claramente à espera de alguma coisa. Durante a noite ocorreram vários actos de sabotagem no Norte da França. A voz de Goedel, já normalmente fria, adquiriu um tom gélido. Parece que era sua missão evitá-los. O que está a fazer na cama?

 

Apanhado desprevenido, Dieter tentou recobrar a sua fleuma habitual.

 

Estou na peugada da mais importante líder da Resistência disse ele, esforçando-se por não parecer que estava a desculpar-se pelo fracasso. Quase a apanhei ontem à noite. Vou prendê-la hoje. Não se preocupe... amanhã de manhã vamos estar a prender terroristas às centenas. Prometo-lhe. Arrependeu-se imediatamente do tom implorativo da última palavra.

 

Goedel não se deixou comover.

 

Depois de amanhã será provavelmente tarde de mais.


Eu sei... Dieter calou-se. Goedel tinha desligado. Dieter pousou o auscultador e olhou para o relógio de pulso.

 

Eram quatro da manhã. Levantou-se.

 

A enxaqueca passara, mas ele sentia-se enjoado, não sabia se por causa da morfina se por causa do telefonema desagradável. Bebeu um copo de água e engoliu três aspirinas, e em seguida começou a fazer a barba. Enquanto ensaboava o rosto, reviu nervosamente os acontecimentos da noite anterior, perguntando a si mesmo se teria feito tudo o que estava ao seu alcance.

 

Tendo deixado o tenente Hesse à porta do Chez Régis, ele seguira Michel Clairet até casa de Philippe Moulier, um fornecedor de carne dos restaurantes e cantinas militares. A casa tinha a loja à frente, o espaço de habitação por cima e um pátio ao lado. Dieter vigiou a casa durante uma hora, mas ninguém saíra.

 

Decidindo que Michel tencionava passar ali a noite, Dieter encontrara um café e telefonara a Hans Hesse. Hans arranjara uma moto e juntara-se-lhe à porta da casa de Moulier às dez horas. O tenente contou a Dieter a história da sala inexplicavelmente vazia por cima do Chez Régis.

 

Deve haver um sistema qualquer de aviso especulou Dieter. O barman no andar de baixo está pronto a disparar o alarme se alguém suspeito aparecer.

 

Acha que a Resistência utilizava o local?

 

Provavelmente. Creio que o Partido Comunista costumava lá fazer reuniões e que a Resistência tomou depois conta do local.

 

Mas como é que eles fugiram ontem à noite?

 

Por um alçapão debaixo da alcatifa, ou algo parecido... os comunistas deviam estar preparados para uma eventualidade. Prendeu o barman!

 

Prendi toda a gente que lá estava. Agora encontram-se no castelo.

 

Dieter deixara Hans de vigia a casa de Moulier e seguira para Sainte-Cécile. Ali interrogara o apavorado proprietário, Alexandre Régis, e rapidamente ficara a saber que a sua especulação estivera completamente errada. O local não era nem um esconderijo da Resistência nem um local de encontro para comunistas, mas sim um clube de jogo ilegal. No entanto, Alexandre confirmou que Michel Clairet tinha lá ido nessa noite. E, disse ele, Michel encontrara-se lá com a mulher.

 

Fora outra tangente para Dieter. Capturara inúmeros membros da Resistência, mas Flick conseguira sempre eludi-lo.

 

Acabou de fazer a barba, limpou a cara e telefonou para o castelo a pedir um carro com motorista e dois agentes da Gestapo. Vestiu-se e foi à cozinha do hotel pedir meia dúzia de cruassãs quentes, que embrulhou num guardanapo de linho. Depois saiu para o ar fresco da madrugada. As torres da catedral pareciam prateadas por causa da luz. Um dos Citroéns velozes tão do gosto da Gestapo aguardava-o.

 

Deu ao condutor o endereço da casa de Moulier. Encontrou Hans num armazém cinquenta metros mais abaixo. Ninguém entrara ou saíra durante toda a noite, informou Hans, pelo que Michel devia ainda estar lá dentro. Dieter disse ao condutor para esperar depois de virar a esquina, e ficou com Hans, a partilhar os cruassãs e a ver o Sol nascer sobre os telhados da cidade.

 

Esperaram bastante tempo. Dieter esforçou-se por controlar a impaciência à medida que os minutos e as horas passavam inutilmente. A perda de Stéphanie pesava-lhe no coração, mas já recuperara do choque e voltara a interessar-se pela guerra. Pensou nas forças aliadas aglomeradas algures no Sul ou no Este de Inglaterra, barcos carregados de homens e tanques ansiosos por transformar as calmas vilas costeiras do Norte da França em campos de batalha. Pensou nos sabotadores franceses armados até aos dentes graças às armas, munições e explosivos caídos de pára-quedas prontos a atacar por trás os defensores alemães, a apunhalá-los pelas costas e a limitar fatalmente a capacidade de acção de Rommel. Sentiu-se idiota e impotente, ali parado numa porta em Reims, à espera que um terrorista amador terminasse o pequeno-almoço. Naquele dia, talvez, iria ser conduzido ao âmago da Resistência mas tudo o que lhe restava era a esperança.

 

Já passava das nove quando a porta da frente se abriu.

 

Finalmente suspirou Dieter. Recuou um pouco, para passar despercebido. Hans apagou o cigarro.

 

Michel saiu da casa acompanhado por um rapaz com cerca de dezassete anos que, calculou Dieter, podia ser filho de Moulier. O rapaz abriu um cadeado e em seguida os portões do pátio. Ali estava uma camioneta preta com letras brancas a dizer: «Moulier & Fils Viandes.» Michel entrou.

 

Dieter ficou excitadíssimo. Michel ia pedir emprestada uma camioneta para a entrega de carne. Tinha de ser para as Gralhas.

 

Vamos! exclamou.

 

Hans correu para a moto estacionada na berma, e ficou de costas para a estrada, a fingir estar a mexer no motor. Dieter correu para a esquina, fez sinal ao motorista para pôr o carro a trabalhar e depois observou Michel.


Este saiu do pátio e afastou-se na camioneta.

 

Hans ligou a moto e seguiu-o. Dieter meteu-se no carro e ordenou ao condutor que seguisse Hans.

 

Dirigiram-se para este. Dieter, no banco da frente do Citroen preto da Gestapo, olhava para a frente com ansiedade. A camioneta de Moulier era fácil de seguir, uma vez que tinha uma caixa alta com uma ventoinha em cima semelhante a uma chaminé. «Aquela ventoinha há-de conduzir-me a Flick», pensou Dieter cheio de optimismo.

 

A camioneta abrandou no Chemin de la Carrière e estacionou no pátio de um fabricante de champanhe chamado Laperrière. Hans passou pela casa e virou na esquina seguinte, e o motorista de Dieter seguiu-o. Estacionaram e Dieter saltou do carro.

 

Acho que as Gralhas se esconderam aqui durante a noite disse Dieter.

 

Vamos revistar a casa? perguntou Hans animado.

 

Dieter ponderou. Na véspera enfrentara o mesmo dilema, à porta do café. Flick podia estar ali. Mas se ele avançasse demasiado depressa, poderia pôr fim ao papel de Michel como batedor.

 

Ainda não respondeu. Michel era a única esperança que lhe restava. Era demasiado cedo para correr o risco de perder essa arma. Vamos esperar.

 

Dieter e Hans caminharam até ao fim da rua e observaram a casa de Laperrière da esquina. Era uma casa alta, elegante, com um pátio cheio de barris vazios, e um edifício industrial baixo com um telhado plano. Dieter calculou que as caves ficavam situadas sob esse edifício. A camioneta de Moulier encontrava-se estacionada no pátio.

 

O coração de Dieter batia muito depressa. A qualquer momento, Michel iria reaparecer com Flick e as outras Gralhas, pensava ele. Meter-se-iam na camioneta, prontas a rumarem ao alvo, e Dieter e a Gestapo avançariam e prendê-las-iam.

 

Enquanto observavam, Michel saiu do edifício baixo. Tinha uma expressão intrigada e parou indeciso no quintal, olhando em volta com perplexidade.

 

O que se passa com ele? perguntou Hans. Dieter sentiu um aperto no coração.

 

Alguma coisa inesperada. Com certeza Flick não voltara a fugir-lhe!

 

Passado um minuto, Michel subiu o lanço de escadas até à porta da casa e bateu. Uma criada com uma toucazinha branca deixou-o entrar.


Voltou a sair minutos depois. Continuava intrigado, mas já não parecia indeciso. Dirigiu-se para a camioneta, entrou na cabina e fez inversão de marcha.

 

Dieter praguejou. Parecia que as Gralhas não se encontravam ali. Michel parecia tão surpreendido como Dieter, mas isso não servia de consolo.

 

Dieter tinha de descobrir o que acontecera ali.

 

Vamos fazer o mesmo que ontem à noite, só que desta vez você segue o Michel e eu revisto o local ordenou ele a Hans.

 

Este pôs a moto a trabalhar.

 

Dieter viu Michel afastar-se na camioneta de Moulier, seguido a alguma distância por Hans Hesse na moto. Quando eles desapareceram, Dieter chamou os três agentes da Gestapo com um aceno de mão e dirigiu-se rapidamente à casa de Laperrière.

 

Indicando dois dos homens, disse.

 

Revistem a casa. Certifiquem-se de que ninguém sai. Assentindo na direcção do terceiro homem, continuou: Você e eu vamos revistar a cave. Foi à frente para o edifício mais baixo.

 

No piso térreo havia uma grande prensa e três enormes tonéis. A prensa estava imaculada: a vindima só teria lugar daí a três ou quatro meses. Não havia ninguém à vista, salvo um velhote a varrer o chão. Dieter encontrou as escadas e desceu. Na cave fresca havia mais actividade: as garrafas armazenadas estavam a ser voltadas por uma meia dúzia de empregados de bata azul. Estes pararam e olharam para os intrusos.

 

Dieter e o homem da Gestapo revistaram aposento após aposento cheio de garrafas de champanhe, milhares delas, algumas encostadas às paredes, outras em prateleiras com os gargalos para baixo em garrafeiras em forma de A. Mas não havia mulheres em parte alguma.

 

Numa alcova na extremidade do último túnel, Dieter encontrou migalhas de pão, beatas e um gancho de cabelo. Os seus piores receios confirmaram-se. As Gralhas tinham passado ali a noite. Mas haviam fugido.

 

Olhou em volta à procura de alguém onde descarregar a ira. Os trabalhadores não deviam saber de nada, mas o dono devia ter-lhes dado autorização para se esconderem ali. Iria pagar por isso. Dieter regressou ao piso térreo, atravessou o pátio e entrou na casa. Um agente da Gestapo abriu-lhe a porta.

 

Estão todos na sala da frente informou ele.

 

Dieter entrou numa sala grande e agradável com uma decoração elegante mas desmazelada: reposteiros pesados que não eram limpos há anos, uma carpeta puída, uma mesa de jantar comprida e doze cadeiras condizentes. Os empregados da casa, aterrorizados, encontravam-se à entrada da sala: a criada que abrira a porta, um homem de idade que parecia ser o mordomo, com um fato preto puído, e uma mulher roliça de avental que devia ser a cozinheira. O agente da Gestapo apontava-lhes uma arma. Junto à ponta mais afastada da mesa estava uma mulher magra com cerca de cinquenta anos, com cabelo ruivo já um pouco grisalho, envergando um vestido de Verão de seda amarelo-pálida. Tinha um ar de superioridade calma.

 

Dieter virou-se para o agente da Gestapo e perguntou em voz baixa:

 

Onde está o marido?

 

Saiu de casa às oito. Não sabem onde foi. Estão a contar com ele para o almoço.

 

Dieter dirigiu à mulher um olhar duro.

 

Madame Laperrière?

 

Ela assentiu com ar grave, mas não se dignou a responder.

 

Dieter decidiu ferir-lhe a dignidade. Alguns oficiais alemães tratavam com deferência a classe alta francesa, mas Dieter considerava-os idiotas. Não iria mostrar-se subserviente percorrendo a sala para falar com ela.

 

Tragam-na até mim.

 

Um dos homens dirigiu-lhe a palavra. Devagar, ela levantou-se da cadeira e aproximou-se de Dieter.

 

O que deseja? perguntou.

 

Um grupo de terroristas inglesas escapou-me ontem depois de ter morto dois oficiais alemães e uma civil francesa.

 

Lamento saber isso respondeu Madame Laperrière.

 

Amarraram a mulher e deram-lhe um tiro na nuca à queima roupa continuou ele. O cérebro dela salpicou-lhe o vestido.

 

A mulher fechou os olhos e virou a cabeça para o lado.

 

A noite passada o seu marido abrigou essas terroristas na vossa cave. Pode dar-me uma razão para ele não ser enforcado?

 

Atrás dele, a criada começou a chorar.

 

Madame Laperrière ficou abalada. Empalideceu e teve de sentar-se.

 

Não, por favor murmurou.

 

Pode ajudar o seu marido dizendo-me aquilo que sabe continuou Dieter.


Não sei nada disse ela em voz baixa. Elas vieram depois de jantar, e foram-se embora antes do nascer do dia. Não as vi.

 

Como é que partiram? O seu marido deu-lhes um carro? Ela abanou a cabeça.

 

Não temos combustível.

 

Então como é que distribuem o champanhe que produzem?

 

Os nossos clientes tem de vir até cá.

 

Dieter não acreditou nela. Tinha a certeza de que Flick precisara de transporte. Fora por isso que Michel pedira a Moulier a camioneta emprestada e a levara até ali. No entanto, quando Michel ali chegara, Flick e as Gralhas tinham-se ido embora. Deviam ter arranjado um transporte alternativo e decidido ir andando. Sem dúvida Flick deixara recado a explicar a situação e a pedir a Michel que fosse ao seu encontro.

 

Está a pedir-me para acreditar que elas partiram a pé? perguntou Dieter.

 

Não respondeu ela. Estou a dizer-lhe que não sei. Quando acordei elas já tinham partido.

 

Dieter continuava a pensar que a mulher estava a mentir, mas obter dela a verdade iria levar tempo e paciência, e ele já tinha pouco de ambos.

 

Prendam-nos a todos ordenou, e a sua frustração irada emprestou à sua voz um tom petulante.

 

O telefone tocou no vestíbulo. Dieter saiu da sala e atendeu.

 

Quero falar com o major Franck disse uma voz com sotaque alemão.

 

É o próprio.

 

Daqui é o tenente Hesse, meu major.

 

O que aconteceu, Hans?

 

Estou na estação. O Michel estacionou a camioneta e comprou um bilhete para Marles. O comboio está prestes a partir.

 

Era como Dieter pensara. As Gralhas tinham ido à frente e deixado instruções a Michel para se lhes juntar. Continuavam a querer fazer rebentar o túnel do comboio. Sentiu-se frustrado por Flick continuar um passo à frente dele. No entanto, ela não conseguira escapar-lhe por completo. Ele continuava na sua peugada. Iria apanhá-la em breve.

 

Meta-se no comboio, depressa ordenou ele a Hans. Siga o Michel. Eu vou ter consigo a Marles.

 

Muito bem respondeu Hans, desligando. Dieter regressou à sala.


Liguem para o castelo e peçam-lhes que enviem transporte disse aos homens da Gestapo. Entreguem os prisioneiros ao sargento Becker para interrogatório. Digam-lhe que comece pela madame. Apontou para o motorista. Você pode levar-me a Marles.

 

No Café de la Gare, perto da estação dos comboios, Flick e Paul tomaram um pequeno-almoço constituído por sucedâneo de café, pão escuro e chouriço com pouca ou nenhuma carne. Ruby, Jelly e Greta ocupavam uma mesa à parte, e fingiam não os conhecer. Flick mantinha-se atenta à rua.

 

Sabia que Michel corria bastante perigo. Ainda pensara em avisá-lo. Podia ter ido a casa de Moulier mas assim cairia nas mãos da Gestapo, que devia ter seguido Michel na esperança de que ele os conduzisse até ela. Se telefonasse a Moulier arriscava-se igualmente a revelar o seu esconderijo a um funcionário da Gestapo que estivesse a escutar a chamada na central telefónica. De facto, decidira ela, o melhor que podia fazer para ajudar Michel era não o contactar directamente. Se a sua teoria estivesse certa, Dieter Franck deixaria Michel em liberdade até Flick ter sido apanhada.

 

Por isso deixara uma mensagem para Michel com Madame Laperrière. Dizia o seguinte:

 

Michel,

 

Tenho a certeza de que estás a ser vigiado. O local onde nos encontrámos ontem à noite foi revistado depois de teres saído. Provavelmente foste seguido esta manhã.

 

Vamos sair daqui antes de chegares e tentar passar despercebidos no centro da cidade. Estaciona a camioneta perto da estação e deixa a chave debaixo do banco do condutor. Apanha um comboio para Marles. Despista quem te seguir e volta para cá.

 

Tem cuidado... por favor!

 

Flick.

 

Agora queima isto.


Parecia boa ideia em teoria, mas Flick aguardou toda a manhã muito tensa para ver se a coisa funcionava.

 

Depois, às onze horas, viu uma camioneta aproximar-se e estacionar perto da entrada da estação. Flick susteve o fôlego. De lado, em letras brancas, leu: «Moulier & Fils Viandes.»

 

Michel saiu, e ela tornou a respirar.

 

Ele dirigiu-se à estação. Estava a seguir o plano dela.

 

Flick tentou perceber quem estava a segui-lo, mas era impossível. As pessoas chegavam constantemente à estação a pé, de bicicleta, de carro e qualquer delas podia ir na peugada de Michel.

 

Ela permaneceu ali sentada, fingindo beber o substituto amargo e pouco satisfatório do café, de olho na camioneta, tentando perceber se aquela estava a ser vigiada. Estudou as pessoas e os veículos que iam e vinham no exterior da estação, mas não viu ninguém que pudesse estar a vigiar a camioneta. Passados quinze minutos, assentiu na direcção de Paul. Levantaram-se, pegaram nas malas e saíram.

 

Flick abriu a porta da camioneta e sentou-se no banco do condutor. Paul ocupou o lugar ao seu lado. Flick tinha o coração na boca. Se aquilo fosse uma armadilha da Gestapo, aquele seria o momento em que a prenderiam. Baixou-se e encontrou a chave. Ligou o motor.

 

Olhou em volta. Ninguém parecia ter reparado em si.

 

Ruby, Jelly e Greta saíram do café. Flick fez-lhes sinal com a cabeça, indicando que deveriam entrar para trás.

 

Olhou por cima do ombro. A camioneta estava cheia de prateleiras, armários e tabuleiros para o gelo. Tudo parecia ter sido bem lavado, mas pairava no ar um vago e desagradável aroma a carne crua.

 

As portas de trás abriram-se. As outras três mulheres atiraram as malas para dentro da camioneta e entraram. Ruby fechou as portas.

 

Flick engatou a primeira e arrancou.

 

Conseguimos! exclamou Jelly. Que bom!

 

Flick esboçou um ligeiro sorriso. Ainda faltava a parte mais difícil.

 

Saiu da cidade pela estrada que levava a Sainte-Cécile. Procurou carros da Polícia e Citroèns da Gestapo, mas sentia-se relativamente segura por enquanto. As letras pintadas na camioneta anunciavam a sua legitimidade. E não era estranho uma mulher ir a conduzir um veículo daqueles, uma vez que muitos homens se encontravam em campos de trabalho na Alemanha ou tinham fugido para as montanhas juntando-se à Resistência, a fim de evitarem ser enviados para os campos.


Pouco depois do meio-dia chegaram a Sainte-Cécile. Flick reparou no súbito silêncio miraculoso que invadia sempre as ruas francesas àquela hora em que as pessoas voltavam as suas atenções para a primeira refeição a sério do dia. Dirigiu-se ao prédio de Antoinette. Um portão alto de madeira, entreaberto, dava para o pátio interior. Paul saiu da camioneta e abriu completamente o portão; Flick entrou com a camioneta e Paul voltou a fechar o portão. Agora, a camioneta, com a sua legenda bem legível, não podia ser vista da rua.

 

Saiam quando eu assobiar disse Flick, descendo da cabina. Dirigiu-se à porta de Antoinette enquanto as outras aguardavam

 

dentro do veículo. Da última vez que batera àquela porta, havia oito dias e uma eternidade, a tia de Michel hesitara em abri-la, nervosa por causa do tiroteio na praça, mas naquele dia abriu a porta imediatamente. Era uma mulher magra de meia-idade e envergava um vestido de algodão amarelo elegante mas desbotado. Olhou para Flick com o rosto inexpressivo: esta ainda tinha a peruca castanha. Depois reconheceu-a.

 

Você! exclamou. Pareceu ficar em pânico. O que é que quer?

 

Flick assobiou para as outras, depois empurrou Antoinette para dentro.

 

Não se preocupe respondeu. Vamos amarrá-la para os alemães pensarem que a obrigámos.

 

O que é isto? perguntou Antoinette com voz trémula.

 

Já explico. Está sozinha?

 

Sim.

 

Óptimo.

 

As outras entraram e Ruby fechou a porta do apartamento. Dirigiram-se para a cozinha de Antoinette. A mesa estava posta: viram um pão escuro, salada de cenoura, uma fatia de queijo, uma garrafa de vinho sem rótulo.

 

O que é isto? tornou Antoinette a perguntar.

 

Sente-se ordenou Flick. Acabe o almoço. Ela sentou-se.

 

Não sou capaz de comer disse.

 

É muito simples declarou Flick. A senhora e as suas amigas não vão limpar o castelo esta noite. Vamos nós.

 

Antoinette pareceu desconcertada.

 

Como é que isso vai acontecer?

 

Vamos enviar bilhetes a cada uma das mulheres de serviço esta noite, dizendo-lhes para virem aqui ter consigo antes de irem trabalhar. Quando elas chegarem, amarramo-las. Depois vamos ao castelo no lugar delas.

 

Não podem, não têm passes.

 

Temos sim.

 

Como...? perguntou Antoinette. Depois percebeu. Você roubou-me o passe! No domingo passado. Julguei que o tinha perdido. Arranjei um grande sarilho com os Alemães!

 

Lamento ter-lhe causado problemas.

 

Mas isto vai ser pior... vocês vão fazer rebentar o castelo! Antoinette começou a gemer e a balouçar-se. Vão deitar-me as culpas, sabe como eles são, e seremos todas torturadas.

 

Flick ficou calada. Sabia que Antoinette era capaz de ter razão. A Gestapo poderia muito bem matar as verdadeiras mulheres da limpeza, não fossem elas estar relacionadas com o assunto.

 

Vamos tentar tudo para vos fazer parecer inocentes retorquiu por fim. Serão as nossas vítimas, tal como os Alemães. Mesmo assim, havia ainda um certo risco, como Flick bem sabia.

 

Não vão acreditar em nós! gemeu Antoinette. Podemos ser mortas.

 

Flick endureceu o coração.

 

Sim respondeu. É por isso que isto se chama «guerra».

 

Marles era uma pequena cidade a leste de Reims, onde a linha férrea iniciava a sua longa subida para as montanhas a caminho de Francoforte, Estugarda e Nuremberga. No túnel logo a seguir à cidade passavam constantemente mantimentos vindos da pátria para as forças alemãs que ocupavam a França. A destruição do túnel deixaria Rommel sem munições.

 

A própria cidade parecia pertencer à Baviera, com as suas casas de madeira pintadas de cores alegres. A câmara municipal ficava numa praça cheia de árvores, de frente para a estação de caminhos-de-ferro. O chefe local da Gestapo ocupara o gabinete do presidente da câmara e naquele momento encontrava-se debruçado sobre um mapa com Dieter Franck e o capitão Bern, encarregado da vigilância do túnel.

 

Tenho vinte homens em cada um dos lados do túnel e outro grupo a patrulhar constantemente a montanha disse Bern. A Resistência precisaria de muitos homens para nos derrotar.

 

Dieter franziu o sobrolho. Segundo a confissão da lésbica que ele interrogara, Diana Colefield, Flick começara com uma equipa de seis mulheres, incluindo ela própria, e que agora devia estar reduzida a quatro. No entanto, podia ter-se juntado a outro grupo, ou ter entrado em contacto com outros grupos da Resistência em Marles e nos arredores.

 

Eles têm muita gente redarguiu. Os Franceses acham que a invasão está prestes a ter lugar.

 

Mas é difícil esconder um grupo grande. Até agora não vimos nada suspeito.

 

Bern era baixo e leve e usava óculos de lentes grossas, motivo pelo qual devia ter sido colocado naquele fim de mundo em vez de numa unidade de combate, mas pareceu a Dieter um jovem oficial inteligente e eficiente. Dieter sentiu-se inclinado a acreditar nas palavras dele.

 

O túnel é muito vulnerável a explosivos? perguntou.

 

Atravessa rocha sólida. Claro que pode ser destruído, mas seria necessário um camião de dinamite.

 

Eles têm muita dinamite.

 

Mas precisam de a trazer para cá... mais uma vez, sem que nós demos por isso.

 

É verdade. Dieter virou-se para o chefe da Gestapo.

 

Recebeu informação de veículos estranhos ou de um grupo de pessoas a chegarem à cidade?

 

Não. Só há aqui um hotel, e de momento não tem hóspedes. Os meus homens foram aos bares e restaurantes à hora de almoço, tal como todos os dias, e não viram nada fora do comum.

 

Será possível, meu major, que o relatório que lhe foi feito sobre o ataque ao túnel seja uma espécie de engodo? perguntou o capitão Bern algo hesitante. Uma diversão para afastar a sua atenção do verdadeiro alvo?

 

Aquela possibilidade enfurecedora já ocorrera a Dieter. Aprendera à sua custa que Flick Clairet era especialista em manobras de diversão. Tê-lo-ia enganado novamente? Era demasiado humilhante pensar nisso.

 

Fui eu próprio que interroguei a informadora, e tenho a certeza de que ela estava a ser sincera respondeu Dieter, tentando manter a ira afastada da voz. Mas talvez você tenha razão. É possível que ela tenha recebido uma informação falsa, deliberadamente, como medida de precaução.

 

Bern inclinou a cabeça.

 

Vem aí um comboio.

 

Dieter franziu o sobrolho. Não ouvia nada.

 

Tenho muito bom ouvido disse o homem com um sorriso. Sem dúvida para compensar a minha fraca visão.

 

Dieter já se informara de que o único comboio que saíra de Reims para Marles naquele dia fora o das onze horas, pelo que Michel e o tenente Hesse deveriam vir no próximo a chegar.

 

O chefe da Gestapo aproximou-se da janela.

 

Este comboio vai para oeste disse ele. O seu homem dirige-se para leste, não foi o que disse?

 

Dieter assentiu.

 

Na verdade, vêm aí dois comboios, um de cada lado disse Bern.


O chefe da Gestapo olhou na outra direcção.

 

Pois vêm, tem razão.

 

Os três homens foram até à praça. O motorista de Dieter, encostado ao capô do Citroen, endireitou-se e apagou o cigarro. Ao seu lado encontrava-se um motociclista da Gestapo, pronto a seguir Michel.

 

Dirigiram-se para a entrada da estação.

 

Há outra saída? perguntou Dieter ao homem da Gestapo.

 

Não. Ficaram à espera.

 

Já sabe da novidade? perguntou o capitão Bern.

 

Que novidade? retorquiu Dieter.

 

Perdemos Roma.

 

Meu Deus!

 

O Exército Americano entrou na Piazza Venezia ontem às sete da tarde.

 

Como oficial de patente mais alta, Dieter sentiu que era seu dever manter a moral.

 

São más notícias, embora não inesperadas disse. No entanto, a Itália não é a França. Se eles tentarem invadir-nos, vão ter uma surpresa desagradável. Esperava ter razão.

 

O comboio que seguia para oeste chegou primeiro à estação. Enquanto os passageiros descarregavam a bagagem e desciam para a plataforma, o comboio que rumava para este entrou. Havia um pequeno grupo de pessoas à entrada da estação. Dieter observou-as sub-repticiamente, perguntando de si para si se a Resistência local iria esperar Michel ao comboio. Não viu nada suspeito. Havia um posto da Gestapo junto ao controlo dos bilhetes. O chefe da Gestapo juntou-se ao seu subalterno na mesa. O capitão Bern encostou-se a um pilar, tentando não dar nas vistas. Dieter regressou ao carro e sentou-se no banco de trás, a observar a estação.

 

O que faria se o capitão Bern estivesse certo e o túnel fosse uma diversão? A perspectiva não era agradável. Teria de pensar em alternativas. Que outros alvos militares havia perto de Reinns? O castelo de Sainte-Cécile era um, mas a Resistência não fora capaz de destruí-lo havia uma semana decerto não iriam voltar a tentar tão depressa... Havia um campo militar a norte da cidade, uns pátios de manobras entre Reims e Paris...

 

Não era por aí. Adivinhar não conduzia a lado algum. Precisava de informações.

 

Poderia interrogar Michel imediatamente, assim que ele saísse do comboio, arrancar-lhe as unhas uma a uma até ele falar mas saberia Michel a verdade? Poderia contar uma história qualquer, acreditando que fosse a genuína, tal como Diana fizera. Era melhor Dieter segui-lo até ele se encontrar com Flick. Ela conhecia o verdadeiro alvo. Era a única pessoa que valia a pena interrogar naquela altura.

 

Dieter impacientou-se enquanto os documentos eram cuidadosamente inspeccionados e os passageiros autorizados a passar. Ouviu-se um apito, e o comboio com rumo a oeste arrancou. Saíram mais passageiros: dez, vinte, trinta. O comboio para leste arrancou.

 

Depois, Hans Hesse saiu da estação.

 

O que raio...? começou Dieter.

 

Na praça, Hans olhou em volta, viu o Citroen e correu para ele. Dieter saiu do carro.

 

O que aconteceu? perguntou Hans. Onde é que ele está?

 

O que quer dizer? retorquiu Dieter irritado. Você vinha a segui-lo!

 

Pois vinha! Ele desceu do comboio. Perdi-o de vista na fila para o posto de controlo. Passado um bocado fiquei preocupado e rompi a fila, mas ele já tinha desaparecido.

 

Será que voltou a entrar no comboio?

 

Não... segui-o até ao fim da plataforma.

 

Não terá entrado no outro comboio? Hans ficou de boca aberta.

 

Perdi-o de vista quando estávamos a passar pelo fim da plataforma de Reims...

 

Foi isso! exclamou Dieter. Ele está a caminho de Reims. Serviu de engodo. Esta viagem foi uma diversão. Estava furioso. Deixara-se cair na esparrela.

 

O que fazemos?

 

Vamos esperar o comboio a Reims para você voltar a segui-lo. Continuo a achar que ele ainda nos vai conduzir a Flick. Entre no carro. Vamos embora!

 

Flick mal podia acreditar que chegara tão longe. Quatro das seis Gralhas tinham conseguido escapar à captura, apesar de um adversário brilhante e de alguma pouca sorte, e naquele momento encontravam-se na cozinha de Antoinette, a poucos passos da praça de Sainte-Cécile, mesmo debaixo do nariz da Gestapo. Dali a dez minutos iriam dirigir-se aos portões do castelo.

 

Antoinette e quatro das outras mulheres da limpeza encontravam-se firmemente amarradas a cadeiras da cozinha. Paul amordaçara todas com excepção de Antoinette. Cada uma chegara com um cesto de compras ou saco de lona com comida e bebida pão, batatas frias, fruta e um termo com vinho ou sucedâneo de café que comeriam normalmente no intervalo das nove e meia, uma vez que não tinham autorização para utilizar a cantina alemã. Naquele momento, as Gralhas encontravam-se a esvaziar rapidamente os cestos e a enchê-los com as coisas que precisavam de levar para o castelo: gambiarras, armas, munições e explosivo plástico amarelo em paus de duzentos e cinquenta gramas. As malas das Gralhas, que haviam contido os seus haveres até àquele momento, teriam sido um elemento de estranheza nas mãos de mulheres da limpeza que iam pegar ao trabalho.

 

Flick apercebeu-se rapidamente de que os sacos das mulheres não eram suficientemente grandes. Ela própria tinha uma metralhadora Sten com silenciador, cada uma das suas três partes com cerca de trinta centímetros de comprimento. Jelly tinha dezasseis detonadores numa lata à prova de choque, uma bomba incendiária de térmite e um bloco químico que produzia oxigénio para pegar fogo a locais fechados como bunkers. Depois de colocarem as suas coisas nos sacos, tinham de as ocultar com a comida. Não havia espaço suficiente.


Raios! praguejou Flick, tensa. Antoinette, tem sacos maiores?

 

Não estou a perceber.

 

Sacos, sacos grandes como sacos de compras; deve ter algum.

 

Há uma cesta na despensa que uso quando vou comprar legumes.

 

Flick encontrou-a; era uma cesta barata rectangular feita de palha entrançada.

 

É perfeita disse ela. Tem mais alguma parecida?

 

Não, porque haveria eu de ter duas? Flick necessitava de quatro.

 

Bateram à porta. Flick foi abrir. Deparou com uma mulher de bata às flores e rede no cabelo: a última das mulheres da limpeza.

 

Boa tarde disse Flick.

 

A mulher hesitou, surpreendida por ver uma desconhecida.

 

A Antoinette está? Recebi um bilhete... Flick esboçou um sorriso tranquilizador.

 

Na cozinha. Por favor, entre.

 

A mulher entrou no apartamento, evidentemente familiarizada com o local, e chegou à cozinha, onde estacou surpreendida e soltou um gritinho.

 

Não se preocupe, Françoise disse Antoinette. Estão a amarrar-nos para que os Alemães não saibam que os ajudámos.

 

Flick tirou das mãos da mulher o saco. Era feito de linha aos nós bom para carregar um pão e uma garrafa, mas de pouca utilidade para Flick.

 

Aquele pormenor insignificante enfureceu-a minutos antes do clímax da missão. Não podia continuar até ter solucionado o problema. Obrigou-se a pensar com calma, e em seguida perguntou a Antoinette:

 

Onde comprou a sua cesta?

 

Na lojinha do outro lado da rua. Consegue vê-la da janela. As janelas encontravam-se abertas, uma vez que a noite estava

 

quente, mas as gelosias haviam sido fechadas por causa do sol. Flick entreabriu uma ligeiramente e olhou para a Rue du Château. Do outro lado havia uma loja que vendia velas, lenha, vassouras e molas da roupa. Virou-se para Ruby.

 

Vai comprar três cestas, depressa. Ruby dirigiu-se para a porta.

 

Se houver, traz de diferentes formatos e cores. Tinha medo de que as cestas chamassem a atenção se fossem todas iguais.


Está bem.

 

Paul atou a última das mulheres a uma cadeira e amordaçou-a. Foi muito gentil e pediu desculpa, e ela não ofereceu resistência.

 

Flick entregou a Jelly e a Greta os passes. Guardara-os até ao último minuto, porque eles teriam revelado a missão se encontrados na posse de uma das Gralhas. Foi até à janela com o passe de Ruby na mão.

 

Ruby vinha a sair da loja com três cestas diferentes na mão. Flick sentiu-se aliviada. Olhou para o relógio: faltavam dois minutos para as sete.

 

Então o azar bateu à porta.

 

Quando Ruby estava prestes a atravessar a rua, foi abordada por um homem que envergava roupas de estilo militar. Tinha uma camisa de ganga azul com botões nos bolsos, uma gravata azul-escura, uma boina e calças escuras enfiadas no cano das botas. Flick reconheceu a farda da Milícia que fazia o trabalho sujo do regime.

 

Oh, não! exclamou.

 

Tal como a Gestapo, a Milícia era composta por homens demasiado estúpidos e abrutalhados para poderem pertencer à Polícia normal. Os seus oficiais eram versões da classe alta do mesmo género, patriotas snobes que falavam da glória da França e mandavam os seus subalternos prender crianças judias escondidas em caves.

 

Paul aproximou-se e olhou por cima do ombro de Flick.

 

Bolas, é um maldito miliciano!

 

A mente de Flick trabalhava a toda a velocidade. Aquele encontro seria casual ou faria parte de uma operação de segurança para capturar as Gralhas? Os milicianos eram abelhudos infames, que adoravam dispor do poder de incomodar os concidadãos. Mandavam parar pessoas se não gostavam do seu aspecto, examinavam os seus documentos de forma minuciosa e procuravam um pretexto para as deter. Seria o interrogatório de Ruby um desses incidentes? Flick esperava que sim. Se a Polícia estivesse a mandar parar todas as pessoas que passavam pelas ruas de Sainte-Cécile, as Gralhas nunca chegariam aos portões do castelo.

 

O homem começou a interrogar Ruby de forma agressiva. Flick não ouvia bem, mas apanhou as palavras «mestiça» e «preta», e perguntou-se se o homem estaria a acusar a morena Ruby de ser cigana. Ruby tirou os documentos do bolso. O homem examinou-os e continuou a interrogá-la sem lhos devolver.

 

Paul sacou da pistola.

 

Guarda isso ordenou Flick.

 

Não vais deixá-lo prendê-la!


Vou sim respondeu Flick com frieza. Se há um tiroteio nesta altura, estamos fritos... a missão chega ao fim, aconteça o que acontecer. A vida da Ruby não é tão importante como a destruição da central telefónica. Guarda o raio da arma!

 

Paul meteu-a dentro do cós das calças.

 

A conversa entre Ruby e o miliciano tornou-se mais acesa. Flick viu Ruby passar as cestas para a mão esquerda e enfiar a direita no bolso da gabardina. O homem agarrou o ombro esquerdo de Ruby com força, aparentemente para a prender.

 

Ruby agiu com rapidez. Largou as cestas. A mão direita saiu do bolso com uma faca na mão. Ela avançou um passo com a faca virada para cima do nível da cintura e espetou-a no homem mesmo abaixo das costelas, apontada ao coração.

 

Oh, merda! praguejou Flick.

 

O homem soltou um grito que se transformou rapidamente num gorgolejar horrendo. Ruby soltou a faca e voltou a espetar-lha, desta vez de lado. Ele lançou a cabeça para trás e abriu a boca num grito mudo de dor.

 

Flick pensava rapidamente. Se Ruby conseguisse esconder rapidamente o corpo, poderiam ainda safar-se. Teria alguém visto o crime? O seu ângulo de visão estava limitado pelas gelosias. Abriu-as completamente e inclinou-se para a frente. À sua esquerda, a Rue du Château estava deserta, com excepção de uma carrinha estacionada e um cão a dormir na soleira de uma porta. Quando olhou para o outro lado viu aproximarem-se três jovens com fardas semelhantes à da Polícia, dois rapazes e uma rapariga. Deviam ser funcionários da Gestapo pertencentes ao castelo.

 

O miliciano caiu no chão, o sangue a escorrer-lhe da boca.

 

Antes que Flick pudesse avisar Ruby, os dois rapazes avançaram e agarraram-na pelos braços.

 

Flick enfiou-se rapidamente em casa e fechou as gelosias. Ruby estava perdida.

 

Continuou a observar a cena pelos intervalos das gelosias. Um dos rapazes bateu com a mão direita de Ruby na parede da loja até ela largar a faca. A rapariga debruçou-se sobre o miliciano ensanguentado. Levantou-lhe a cabeça e falou com ele, e em seguida disse qualquer coisa aos rapazes. Houve uma breve troca de palavras. A rapariga correu até à loja e saiu com o dono de avental branco. Ele inclinou-se sobre o miliciano, depois tornou a endireitar-se com uma expressão de desagrado no rosto quer pelos ferimentos do homem ou pelo seu odiado uniforme, Flick não percebeu. A rapariga desatou a correr na direcção do castelo, à partida para pedir ajuda; os dois homens empurraram Ruby na mesma direcção.


Paul, vai buscar as cestas que a Ruby deixou cair ordenou Flick.

 

Paul não hesitou.

 

Sim, senhora. Saiu.

 

Flick viu-o aparecer lá em baixo e atravessar a rua. O que iria dizer o dono da loja? O homem olhou para Paul e fez um comentário. Paul não respondeu, mas baixou-se, pegou rapidamente nas três cestas e voltou a entrar.

 

O homem olhara perplexo para Paul e Flick viu-lhe os pensamentos estampados no rosto: a princípio choque pela aparente insensibilidade de Paul, depois perplexidade e estranheza, e em seguida compreensão.

 

Vamos agir depressa disse Flick assim que Paul entrou na cozinha. Encham as cestas depressa e saiam, já! Quero entrar no castelo enquanto os guardas ainda estão todos excitados com a Ruby. Meteu rapidamente numa das cestas uma lanterna potente, a sua Sten desmontada, seis pentes de trinta e duas munições e a sua parte de explosivo plástico. Tinha a pistola e a faca nos bolsos. Cobriu as armas com um pano e juntou uma fatia de terrine de legumes embrulhada em papel vegetal.

 

E se os guardas no portão revistarem as cestas? perguntou Jelly.

 

Então estamos feitas respondeu Flick. Tentaremos matar o maior número de inimigos possível. Não deixem que os nazis vos capturem vivas.

 

Ai, mãezinha murmurou Jelly, mas verificou o carregador da sua pistola automática com um ar profissional e voltou a fechar a arma com um clique determinado.

 

O sino da igreja deu as sete. Estavam prontas.

 

Alguém há-de reparar que só vão três mulheres em vez das habituais seis disse Flick a Paul. A Antoinette é a supervisora, por isso podem decidir mandar cá alguém perguntar-lhe o que se passa. Se alguém cá aparecer, vais ter de o matar.

 

Está bem.

 

Flick beijou Paul nos lábios com força, depois saiu seguida de Jelly e Greta.

 

Do outro lado da rua, o dono da loja olhava para o miliciano moribundo no chão. Levantou a cabeça e viu as três mulheres, e em seguida desviou o olhar. Flick calculou que ele já devia estar a ensaiar as respostas: «Não vi nada. Não havia mais ninguém.»

 

As três Gralhas que restavam dirigiram-se para a praça. Flick obrigou-as a andar rapidamente, querendo chegar ao castelo o mais depressa possível. Podia ver os portões mesmo à sua frente, do outro lado da praça. Ruby e os seus dois captores iam nesse momento a entrar. «Bem», pensou Flick, «pelo menos a Ruby está lá dentro.»

 

As Gralhas chegaram ao final da rua e atravessaram a praça. A janela do Café dês Sports, partida no tiroteio da semana anterior, encontrava-se entaipada. Dois guardas do castelo atravessaram a praça a correr, de armas na mão, as botas a bater nos paralelepípedos, sem dúvida dirigindo-se para o miliciano ferido. Não prestaram atenção ao pequeno grupo de mulheres da limpeza que se afastaram do seu caminho.

 

Flick chegou ao portão. Aquele era o primeiro momento realmente perigoso.

 

Depararam apenas com um guarda. Este estava concentrado com o que se passava com os camaradas que iam a atravessar a praça. Olhou de relance para o passe de Flick e mandou-a entrar. Ela transpôs o portão e virou-se, ficando à espera das outras.

 

Greta avançou em seguida, e o guarda fez a mesma coisa. Estava mais interessado no que se passava na Rue du Château.

 

Flick achou que já se tinham safado, mas quando ele verificou o passe de Jelly olhou para a cesta dela.

 

Tem aí uma coisa que cheira bem comentou ele. Flick susteve a respiração.

 

É uma salsicha para o meu jantar respondeu Jelly. Consegue cheirar o alho.

 

Ele mandou-a entrar e olhou de novo para a praça. As três Gralhas avançaram alguns passos, subiram as escadas e entraram finalmente no castelo.

 

Dieter passou a tarde a seguir o comboio de Michel, detendo-se em cada uma das paragens rurais para o caso de Michel sair. Tinha a certeza de que estava a perder o seu tempo e que Michel era um engodo, mas não lhe restava alternativa. Michel era a sua única pista. Estava desesperado.

 

Michel fez a viagem de regresso a Reims.

 

Uma sensação ameaçadora de fracasso e descrédito invadiu Dieter, sentado num carro junto a um edifício bombardeado próximo da estação de Reims, enquanto esperava que Michel aparecesse. Onde teria errado? Parecia-lhe ter feito tudo o que estava ao seu alcance mas nada funcionara.

 

E se seguir Michel não o conduzisse a lado algum? A determinada altura, Dieter teria de deixar de correr riscos e interrogar o homem. Mas quanto tempo lhe restaria? Naquela noite havia lua cheia, mas o canal da Mancha estava de novo revolto. Os Aliados poderiam adiar a invasão ou poderiam decidir arriscar a sua sorte com o tempo. Dali a algumas horas poderia ser tarde de mais.

 

Michel chegara naquela manhã à estação na camioneta de Philippe Moulier, o fornecedor de carne, e Dieter olhou em volta à procura dela, mas não a viu. Calculou que a camioneta fora ali deixada para Flick. Naquele momento ela poderia estar em qualquer parte num raio de cento e sessenta quilómetros. Amaldiçoou-se por não ter posto ninguém a vigiar a camioneta.

 

Tentou distrair-se pensando na forma como iria interrogar Michel. O ponto mais fraco do homem era provavelmente Gilberte. Naquele momento ela encontrava-se numa cela do castelo, a perguntar-se o que lhe iria acontecer. Ficaria ali até Dieter ter a certeza de que ela já não tinha qualquer utilidade, depois seria executada ou enviada para um campo na Alemanha. Como poderia ser utilizada para obrigar Michel a falar e depressa?

 

Pensar nos campos na Alemanha deu a Dieter uma ideia. Inclinando-se para a frente, dirigiu-se ao motorista:

 

Quando a Gestapo envia os prisioneiros para a Alemanha eles vão de comboio, não é?

 

Sim, meu major.

 

É verdade que são metidos em vagões normalmente utilizados para o transporte de gado?

 

É, sim, meu major, e são bons de mais para aquela escumalha: comunistas, judeus e afins.

 

Onde é que eles embarcam?

 

Aqui em Reims. O comboio de Paris pára aqui.

 

E com que frequência passam esses comboios?

 

Há um quase todos os dias. Parte de Paris ao fim da tarde e chega aqui por volta das oito, isto se não vier com atraso.

 

Antes de poder desenvolver a sua ideia, Dieter viu Michel sair da estação. Dez metros atrás dele no meio da multidão encontrava-se Hans Hesse. Estavam quase em frente a Dieter.

 

O motorista pôs o carro a trabalhar.

 

Dieter virou-se no banco para observar Michel e Hans.

 

Passaram por Dieter. Depois, para surpresa deste, Michel meteu por uma viela paralela ao Café de la Gare.

 

Hans estugou o passo e virou na mesma esquina menos de um minuto depois.

 

Dieter franziu o sobrolho. Estaria Michel a tentar despistar os seus potenciais seguidores?

 

Hans saiu da viela e olhou para um lado e para o outro da rua com uma expressão intrigada. Não havia muita gente no passeio, apenas alguns viajantes a entrarem e a saírem da estação, e os últimos trabalhadores rumando a casa vindos do centro da cidade. Hans soltou uma imprecação e voltou a entrar na viela.

 

Dieter soltou um gemido. Hans perdera Michel.

 

Aquele era o pior fracasso em que Dieter se via envolvido desde a batalha de Alam Halfa, em que informações erradas haviam conduzido Rommel à derrota. Esse fora o ponto de viragem na guerra do Norte de África. Dieter rezou para que aquele não fosse o ponto de viragem na Europa.

 

Enquanto olhava, abatido, para a entrada da viela, Michel saiu pela porta do café.

 

Dieter ficou mais animado. Michel despistara Hans, mas não se apercebera de que havia mais gente a segui-lo. Ainda não estava tudo perdido.


Michel atravessou a rua, começando a correr, e voltou para trás pelo caminho que acabara de percorrer em direcção a Dieter no carro.

 

Dieter pensou rapidamente. Se tentasse seguir Michel também ele teria de correr, e isso tornaria óbvio que se encontrava no encalço de alguém. Não podia ser: a vigilância chegara ao fim. Estava na altura de prender Michel.

 

Este corria pelo passeio, empurrando os outros transeuntes. Corria de forma desajeitada, por causa do ferimento, mas avançava rapidamente, aproximando-se do carro de Dieter.

 

Dieter tomou uma decisão.

 

Abriu a porta do carro.

 

Quando Michel se aproximou, Dieter saiu, estreitando o espaço disponível no passeio ao manter a porta completamente aberta. Michel guinou para contornar o obstáculo. Dieter estendeu a perna. Michel tropeçou e desequilibrou-se. Era um homem grande e caiu pesadamente no passeio.

 

Dieter sacou da pistola e apontou-lha.

 

Michel ficou imóvel durante um segundo, atordoado. Depois, cambaleante, tentou levantar-se.

 

Dieter encostou o cano da pistola à cabeça de Michel.

 

Não se levante disse em francês.

 

O motorista tirou umas algemas do porta-bagagens, manietou os pulsos de Michel e fê-lo sentar-se no banco de trás. Hans reapareceu com uma expressão abalada.

 

O que aconteceu?

 

Ele entrou pela porta das traseiras do Café de la Gare e saiu pela da frente explicou Dieter.

 

Hans ficou aliviado.

 

E agora?

 

Venha comigo até à estação. Dieter virou-se para o motorista. Está armado?

 

Sim, meu major.

 

Vigie este homem atentamente. Se ele tentar fugir, dê-lhe um tiro nas pernas.

 

Sim, meu major.

 

Dieter e Hans dirigiram-se rapidamente para a estação. Dieter deteve um funcionário do caminho-de-ferro.

 

Quero ver imediatamente o chefe da estação. O homem fez um ar carrancudo, mas respondeu:

 

Vou levá-lo ao gabinete dele.

 

O chefe da estação envergava um casaco e colete pretos e calças às riscas, uma elegante farda antiquada, puída nos cotovelos e joelhos. Mantinha o chapéu de coco posto até no gabinete. Ficou assustado com aquela visita de um alemão de alta patente.

 

O que posso fazer por si? perguntou com um sorriso nervoso.

 

Esta noite está à espera de um comboio de Paris com prisioneiros?

 

Sim, às oito horas, como de costume.

 

Quando ele vier, retenha-o até ter notícias minhas. Tenho um prisioneiro especial que desejo embarcar.

 

Muito bem. Se eu puder ter uma autorização escrita...

 

Com certeza. Vou tratar disso. Faz alguma coisa com os prisioneiros enquanto o comboio está aqui parado?

 

Às vezes, molhamos os vagões com uma mangueira. São utilizados vagões para transporte de animais, está a ver, por isso não há casas de banho, e francamente às vezes torna-se bastante desagradável, sem querer estar a criticar...

 

Não limpe os vagões esta noite, entendido?

 

Com certeza.

 

Fazem mais alguma coisa? O homem hesitou.

 

Nem por isso.

 

Dieter apercebeu-se de que ele ocultava algo.

 

Vá lá homem, desembuche, não vou castigá-lo.

 

Às vezes, os funcionários apiedam-se dos prisioneiros e dão-lhes água. Não é permitido, claro, mas...

 

Esta noite não será dada água.

 

Compreendido. Dieter virou-se para Hans.

 

Quero que leve o Michel Clairet para a esquadra da Polícia e que o meta numa cela, depois volte para aqui e certifique-se de que as minhas ordens são cumpridas.

 

Com certeza, meu major.

 

Dieter levantou o auscultador do telefone do chefe da estação.

 

Ligue-me ao castelo de Sainte-Cécile. Quando a ligação foi estabelecida, mandou chamar Weber. Há uma mulher nas celas chamada Gilberte.

 

Eu sei respondeu Weber. É muito bonita. Dieter perguntou-se porque soaria Weber tão satisfeito.

 

Meta-a por favor num carro para a estação de comboios de Reims. O tenente Hesse está aqui e ocupar-se-á dela.


Muito bem anuiu Weber. Espere um momento, está bem? Afastou o telefone da boca e dirigiu-se a alguém ali perto, dando ordens para que Gilberte fosse deslocada. Dieter aguardou com impaciência. Já tratei de tudo disse Weber.

 

Obrigado...

 

Não desligue. Tenho novidades para si. Seria por isso que parecia tão satisfeito?

 

Continue retorquiu Dieter.

 

Capturei um agente aliado.

 

O quê? perguntou Dieter. Que golpe de sorte! Quando?

 

Há alguns minutos.

 

Onde, por amor de Deus?

 

Aqui mesmo em Sainte-Cécile.

 

Como é que isso aconteceu?

 

Atacou um miliciano, e três dos meus jovens e inteligentes subordinados testemunharam por acaso o crime. Tiveram presença de espírito para capturar a culpada, que tinha um Colt automático.

 

Disse «a culpada»? O agente é uma mulher?

 

Sim.

 

Isso explicava tudo. As Gralhas encontravam-se em Sainte-Cécile. O alvo delas era o castelo.

 

Weber, ouça. Acho que ela faz parte de uma equipa de sabotadoras que tenciona atacar o castelo.

 

Já tentaram antes respondeu Weber. Demos-lhes uma tareia.

 

Dieter controlou a impaciência com algum esforço.

 

Pois sim, por isso desta vez elas podem ser mais astuciosas. Posso sugerir um alerta de segurança? Duplique a guarda, reviste o castelo e interrogue todas as pessoas não alemãs que se encontram aí.

 

Já dei ordens nesse sentido.

 

Dieter não sabia se devia acreditar que Weber já pensara num alerta de segurança, mas isso não importava, desde que o fizesse agora.

 

Ainda pensou em cancelar as suas ordens em relação a Gilberte e Michel, mas decidiu não o fazer. Podia muito bem precisar de interrogar Michel antes do final da noite.

 

Vou regressar imediatamente a Sainte-Cécile disse ele a Weber.

 

Como quiser respondeu Weber, dando a entender que conseguia desenvencilhar-se perfeitamente sozinho sem a assistência de Dieter.


Tenho de interrogar a nova prisioneira.

 

Já começámos a fazer isso. O sargento Becker está a amansá-la

 

Por amor de Deus! Quero-a lúcida e capaz de falar.

 

Com certeza.

 

Por favor, Weber, isto é demasiado importante para que haja erros. Peço-lhe que mantenha o Becker sob controlo até eu chegar aí

 

Muito bem, Franck Vou certificar-me de que ele não exagera

 

Obrigado. Vou para aí o mais depressa possível disse Dieter desligando.

 

Flick deteve-se à entrada do salão do castelo. O seu coração batia muito depressa e sentia o peito oprimido devido ao medo. Estava no antro dos leões. Se fosse apanhada, nada poderia salvá-la.

 

Observou rapidamente o salão. Os PBX haviam sido dispostos em filas como numa parada, incongruentemente modernos em contraste com a grandiosidade desbotada das paredes verdes e rosa e dos querubins rechonchudos pintados no tecto. Rolos de cabo estendiam-se pelo chão de mármore aos quadrados pretos e brancos como cordas no convés de um barco.

 

Ouvia-se o zumbido das conversas de quarenta telefonistas. As mais próximas da entrada olharam para as recém-chegadas. Flick viu uma rapariga dirigir-se à vizinha e apontar para elas. As telefonistas eram todas de Reims e da zona envolvente, muitas de Sainte-Cécile, por isso deviam conhecer as mulheres da limpeza e perceberiam que as Gralhas eram desconhecidas. Mas Flick contava que elas não dissessem nada aos alemães.

 

Orientou-se rapidamente, recordando o mapa que Antoinette desenhara. A ala ocidental bombardeada, à sua esquerda, não estava a ser usada. Virou-se para a direita e conduziu Greta e Jelly através de uma porta dupla alta e apainelada que dava para a ala oriental.

 

As salas comunicavam umas com as outras, todas as salas do palácio cheias de PBX e estantes com equipamento que zunia e emitia estalidos à medida que os números eram discados. Flick não sabia se as mulheres da limpeza costumavam cumprimentar as telefonistas ou se passavam por elas em silêncio: os Franceses tinham o hábito de se cumprimentar, mas aquele local era dirigido por militares alemães. Contentou-se em esboçar um sorriso vago e em não olhar nos olhos de ninguém.


Na terceira sala, uma supervisora alemã encontrava-se sentada a uma secretária. Flick ignorou-a, mas a mulher falou-lhe.

 

Onde está a Antoinette?

 

Já aí vem respondeu Flick sem abrandar o passo. Ouviu o tremor de medo na sua voz e esperou que a supervisora não tivesse reparado.

 

A mulher olhou para o relógio, que indicava sete e cinco.

 

Estão atrasadas.

 

Peço desculpa, madame, vamos começar já. Flick apressou-se em chegar à sala seguinte. Escutou durante um momento, com o coração na boca, à espera de que alguém a chamasse com um grito irado, mas ninguém apareceu, e ela respirou fundo e continuou a andar, seguida de Greta e Jelly.

 

No fim da ala oriental havia uma escadaria que conduzia aos gabinetes no primeiro andar e à cave. As Gralhas tencionavam ir para a cave, mas antes tinham coisas para fazer.

 

Viraram à esquerda e dirigiram-se para a ala de serviço. Seguindo as indicações de Antoinette, encontraram uma sala pequena onde os produtos de limpeza eram guardados: esfregonas, vassouras e baldes do lixo, mais as batas castanhas de algodão que as mulheres tinham de usar em serviço. Flick fechou a porta.

 

Até agora tudo bem comentou Jelly.

 

Tenho tanto medo! exclamou Greta. Estava pálida e a tremer. Acho que não vou conseguir.

 

Flick dirigiu-lhe um sorriso tranquilizador.

 

Vai ver que consegue. Vamos então avançar. Meta as suas coisas nestes baldes.

 

Jelly começou a transferir os explosivos para um balde, e, após um momento de hesitação, Greta imitou-a. Flick montou a metralhadora sem a coronha, reduzindo o comprimento em cerca de trinta centímetros, tornando-a assim mais fácil de esconder. Meteu o silenciador e pôs o comutador para disparar tiro a tiro. Quando usava o silenciador, a câmara tinha de ser carregada manualmente antes de cada tiro.

 

Meteu a arma sob o cinto de cabedal. Depois vestiu uma bata. Esta ocultava a arma. Não a abotoou para poder pegar na arma mais depressa. As outras duas também vestiram batas, ocultando as armas, e encheram os bolsos de munições.

 

Estavam quase prontas para ir até à cave. No entanto, era uma zona de alta segurança, com um guarda à porta, e os funcionários franceses não tinham autorização para lá entrarem os próprios alemães tratavam da sua limpeza. Antes de entrarem, as Gralhas iriam criar alguma confusão.


Estavam prestes a sair dali quando a porta se abriu e um oficial alemão espreitou lá para dentro.

 

Passes! gritou.

 

Flick ficou tensa. Já estava à espera de um certo alerta de segurança. A Gestapo devia ter calculado que Ruby era um agente dos Aliados mais ninguém andaria com uma pistola automática e uma faca e fazia sentido tomarem maiores precauções no castelo. No entanto, esperara que a Gestapo agisse de forma demasiado lenta de modo a não interferir na sua missão. Esse desejo não fora concedido. Andavam provavelmente a confirmar a identificação de todos os funcionários franceses que se encontravam no edifício.

 

Depressa! exclamou o homem com impaciência. Era um tenente da Gestapo, reparou Flick, olhando para a camisa da farda. Tirou o passe do bolso. Ele examinou-o com atenção, comparando a fotografia com o rosto dela, e devolveu-o. Fez o mesmo com Jelly e Greta. Tenho de vos revistar disse. Olhou para o balde de Jelly.

 

Atrás dele, Flick tirou a Sten de debaixo da bata.

 

O oficial franziu o sobrolho perplexo e tirou do balde de Jelly o recipiente à prova de choque.

 

Flick destravou a patilha de segurança.

 

O oficial desenroscou a tampa do recipiente. No seu rosto surgiu uma expressão de compreensão quando ele viu os detonadores.

 

Flick alvejou-o nas costas.

 

A arma fazia algum barulho. O silenciador não era totalmente eficaz e o ruído do tiro assemelhou-se ao som de um livro a cair no chão.

 

O tenente da Gestapo estremeceu e caiu.

 

Flick tirou o invólucro e puxou para trás a culatra, depois atingiu-o mais uma vez na cabeça para ter a certeza.

 

Recarregou a arma e meteu-a sob a bata.

 

Jelly arrastou o corpo até à parede atrás da porta, onde não seria visto por alguém que por acaso espreitasse para ali.

 

Vamos embora disse Flick.

 

Jelly saiu. Greta estava imóvel e pálida, a olhar para o oficial morto.

 

Greta, temos um trabalho a fazer. Vamos embora.

 

Greta assentiu, pegou na esfregona e no balde e avançou para a porta, movendo-se como um robô.

 

Dirigiram-se para a cantina. Não havia lá ninguém, com excepção de duas raparigas fardadas a beberem café e a fumar.

 

Sabem o que têm a fazer disse Flick baixinho em francês.


Jelly começou a lavar o chão. Greta hesitou.

 

Não me desiluda disse Flick.

 

Greta assentiu. Respirou fundo, endireitou as costas e retorquiu:

 

Estou pronta.

 

Flick entrou na cozinha e Greta seguiu-a.

 

As caixas de fusíveis do castelo encontravam-se num armário à saída, ao lado de um forno eléctrico grande, segundo Antoinette. Junto ao fogão encontrava-se um jovem alemão. Flick dirigiu-lhe um sorriso sensual e perguntou:

 

O que tem para oferecer a uma rapariga esfomeada? Ele retribuiu-lhe o sorriso.

 

Atrás do rapaz, Greta pegou num alicate com as pegas envoltas em borracha e abriu a porta do armário.

 

O céu estava parcialmente nublado e o Sol desapareceu quando Dieter Franck entrou na pitoresca praça de Sainte-Cécile. As nuvens tinham o mesmo tom acinzentado do telhado de ardósia da igreja.

 

Reparou nos quatro guardas à entrada do castelo, em vez dos habituais dois. Embora ele se encontrasse num carro da Gestapo, o sargento examinou cuidadosamente os seus documentos e os do motorista antes de abrir o portão de ferro forjado e de os mandar entrar. Dieter ficou satisfeito: Weber percebera a necessidade de maior segurança.

 

Soprava uma brisa fresca quando ele saiu do carro e se dirigiu aos degraus da entrada principal. Ao entrar no salão e ao ver as filas de mulheres nos vários PBX pensou na agente secreta que Weber prendera. As Gralhas eram uma equipa formada inteiramente por mulheres. Ocorreu-lhe que talvez tentassem entrar no castelo disfarçadas de telefonistas. Seria possível? Quando se dirigiu para a ala oriental parou junto à supervisora alemã.

 

Alguma destas mulheres começou cá a trabalhar nos últimos dias?

 

Não, meu major respondeu ela. Foi admitida uma rapariga nova há três semanas, e depois disso nenhuma.

 

Isso punha fim à sua teoria. Dieter assentiu e continuou a andar. No final da ala oriental desceu as escadas. A porta que dava para a cave estava aberta, como de costume, mas havia dois soldados em vez de um. Weber duplicara a guarda. O cabo cumprimentou-o e o sargento pediu-lhe os documentos.

 

Dieter reparou que o cabo se punha atrás do sargento enquanto este inspeccionava os documentos.


Como vocês estão agora era fácil alguém dominar-vos. Cabo, deve afastar-se dois metros para o lado, de forma a poder disparar se o sargento for atacado.

 

Sim, meu major.

 

Dieter entrou no corredor da cave. Podia ouvir o som do gerador a gasóleo que fornecia electricidade ao sistema telefónico. Passou pelas portas das salas onde se encontrava o equipamento e entrou na sala de interrogatórios. Esperava encontrar ali a nova prisioneira, mas a sala estava vazia.

 

Intrigado, entrou e fechou a porta. Depois, a sua pergunta obteve uma resposta. Da câmara interior veio um longo grito de agonia.

 

Dieter escancarou a porta.

 

Becker encontrava-se de pé junto à máquina dos choques e Weber sentado numa cadeira ali perto. Na maca jazia uma jovem com os pulsos e tornozelos amarrados e a cabeça manietada. Envergava um vestido azul, e os fios da máquina de choques passavam-lhe por entre as pernas e subiam pelo vestido adentro.

 

Olá, Franck cumprimentou Weber. Faça-nos companhia, por favor. Aqui o Becker lembrou-se de inovar. Mostre-lhe, sargento.

 

Becker enfiou a mão sob o vestido da mulher e retirou de lá um cilindro de ebonite com cerca de quinze centímetros de comprimento e dois ou três de diâmetro. O cilindro tinha duas cintas metálicas distanciadas alguns centímetros. Dois fios da máquina de choques encontravam-se ligados às cintas.

 

Dieter estava habituado à tortura, mas aquela caricatura infernal do acto sexual enojou-o, e ele estremeceu.

 

Ela ainda não disse nada, mas só começámos agora disse Weber. Dê-lhe outro choque, sargento.

 

Becker subiu o vestido da mulher e inseriu-lhe o cilindro na vagina. Pegou num rolo de fita isoladora, rasgou um bocado e prendeu o cilindro de forma a ele não cair.

 

Desta vez aumente a voltagem ordenou Weber. Becker aproximou-se da máquina.

 

Então as luzes apagaram-se.

 

Atrás do forno viu-se um clarão azulado e ouviu-se um estalido. As luzes apagaram-se e a cozinha ficou a cheirar a plástico queimado. O motor do frigorífico desligou-se com um gemido quando a electricidade foi cortada.

 

O que se passa? perguntou o jovem cozinheiro em alemão.


Flick saiu pela porta a correr e atravessou a cantina com Jelly e Greta atrás. Percorreram o corredor pequeno a seguir ao local onde estavam guardados os produtos de limpeza. Flick deteve-se ao cimo das escadas. Pegou na sua arma e segurou-a oculta sob o casaco.

 

A cave vai estar completamente às escuras? perguntou.

 

Cortei todos os cabos, incluindo os do sistema de emergência asseverou Greta.

 

Vamos.

 

Desceram as escadas. A luz que entrava pelas janelas do rés-do-chão desapareceu rapidamente quando começaram a descer, e a entrada para a cave encontrava-se na semiobscuridade.

 

Havia dois soldados do lado de dentro da cave. Um deles, um jovem cabo com uma espingarda, sorriu e disse:

 

Não se preocupem, meninas, é só uma falha de energia. Flick alvejou-o no peito, depois virou a arma para o lado e acertou no sargento.

 

As três Gralhas entraram pela porta. Flick segurava a arma na mão direita e a lanterna na esquerda. Ouvia o zumbido de máquinas e várias vozes a gritar perguntas em alemão nas salas mais afastadas.

 

Acendeu por momentos uma lanterna. Encontrava-se num corredor largo com um tecto baixo. Um pouco adiante, abriram-se portas. Ela desligou a lanterna. Pouco depois viu o clarão de um fósforo na extremidade mais afastada. Tinham passado cerca de trinta segundos desde que Greta cortara a electricidade. Os alemães não demorariam muito a recuperar do choque e a encontrar lanternas. Ela dispunha apenas de um minuto, ou talvez de menos, para se esconder.

 

Tentou a porta mais perto. Estava aberta. Apontou a lanterna lá para dentro. Viu um laboratório fotográfico, com fotografias penduradas a secar e um homem com uma bata branca a tactear à procura do caminho de saída.

 

Flick bateu com a porta, atravessou o corredor em duas passadas e tentou a porta do outro lado. Estava trancada. Adivinhou, pela posição da sala na frente do castelo sob uma extremidade do parque de estacionamento, que ela devia conter os tanques de combustível.

 

Avançou mais um pouco e abriu a porta seguinte. O zumbido de máquinas tornou-se mais intenso. Acendeu novamente a lanterna, apenas por uma fracção de segundo, o que lhe permitiu ver um gerador a fonte de energia independente do sistema telefónico, calculou e em seguida sussurrou:

 

Arrastem os corpos para aqui!

 

Jelly e Greta empurraram os guardas mortos pelo chão. Flick regressou à entrada da cave e trancou a porta de aço. Naquele momento o corredor ficou completamente às escuras. Pelo sim, pelo não, decidiu correr as três trancas de dentro. Isso poderia dar-lhe alguns preciosos segundos a mais.

 

Regressou à sala do gerador, fechou a porta e acendeu a lanterna.

 

Jelly e Greta tinham arrastado os corpos para trás da porta e ofegavam devido ao esforço.

 

Já está murmurou Greta.

 

Havia um emaranhado de canos e cabos na sala, mas estavam todos identificados por cores graças à eficiência alemã, e Flick percebeu quais eram quais: os canos amarelos eram os do ar fresco, os castanhos os do combustível, os verdes os da água, e os fios eléctricos eram às riscas vermelhas e pretas. Apontou a luz da lanterna para o cano castanho do combustível que alimentava o gerador.

 

Mais tarde, se tivermos tempo, quero que faça um buraco naquilo.

 

É fácil respondeu Jelly.

 

Agora, ponha uma mão no meu ombro e siga-me. Greta, siga a Jelly da mesma forma. Entendido?

 

Entendido.

 

Flick desligou a lanterna e abriu a porta. Tinham de explorar a cave às escuras. Encostou a mão à parede para se orientar e começou a andar. O som de várias vozes indicou-lhe que havia alguns homens no corredor.

 

Quem fechou a porta principal? perguntou uma voz autoritária em alemão.

 

Ouviu Greta responder com voz de homem:

 

Parece estar trancada.

 

O alemão praguejou. Pouco depois ouviu uma tranca ser aberta. Flick chegou a outra porta. Abriu-a e tornou a acender a lanterna. A sala continha dois enormes caixotes de madeira do tamanho e do formato de lajes mortuárias.

 

Greta murmurou:

 

É a sala das baterias. Vá até à porta seguinte.

 

Isso era uma lanterna? perguntou a voz alemã. Traga-a para aqui!

 

Já vai respondeu Greta na sua voz de Gerhard, mas as três Gralhas caminharam na direcção oposta.

 

Flick chegou à sala seguinte, conduziu as companheiras lá para dentro e fechou a porta antes de voltar a acender a lanterna. Era uma câmara comprida e estreita com estantes cheias de equipamento de ambos os lados. Na extremidade mais próxima havia um armário que devia conter folhas grandes com desenhos. Na outra ponta, o foco da sua lanterna revelou uma mesa pequena. À volta dela estavam três homens sentados com cartas de jogar nas mãos. Parecia terem ficado sentados desde que a luz faltara. Naquele momento começaram a levantar-se.

 

Flick levantou a arma. Jelly foi igualmente rápida. Flick alvejou um. A pistola de Jelly disparou e o homem ao lado dele tombou. O terceiro homem atirou-se para o chão, mas a luz da lanterna de Flick seguiu-o. Flick e Jelly tornaram a disparar e o homem ficou imóvel.

 

Flick não se permitiu pensar nos homens como seres humanos. Não havia tempo para sentimentos. Com a lanterna iluminou o espaço em volta. Aquilo que viu animou-a. Quase de certeza aquela era a sala que procurava.

 

A cerca de um metro de uma das paredes estavam duas estantes até ao tecto com milhares de terminais em filas. Os cabos telefónicos entravam em feixes vindos do exterior pela parede até aos terminais da estante mais próxima. Na outra ponta, cabos semelhantes saíam da parte de trás dos terminais, atravessavam o tecto e ligavam aos PBX lá em cima. Na parte da frente da estante, um emaranhado de fios ligava os terminais da estante mais próxima aos da mais distante. Flick olhou para Greta.

 

Então?

 

Greta estava a examinar o equipamento com a sua lanterna, e tinha no rosto uma expressão fascinada.

 

Isto é o QDP, o quadro de distribuição principal disse. Mas é um pouco diferente do nosso na Grã-Bretanha.

 

Flick olhou para Greta surpreendida. Ainda há minutos dissera que estava demasiado assustada para continuar. Naquele momento parecia imperturbável com a morte dos três homens.

 

Junto à parede mais afastada mais estantes com equipamento brilhavam com a luz dos tubos de vácuo.

 

E do outro lado? perguntou Flick. Greta virou a lanterna para lá.

 

São os amplificadores e o equipamento para as linhas interurbanas.

 

Óptimo disse Flick. Mostre à Jelly onde deve colocar as cargas.

 

Puseram mãos à obra. Greta desembrulhou o explosivo plástico amarelo enquanto Flick cortava o rastilho em vários bocados iguais. Aquele ardia um centímetro por segundo.


Vou cortá-lo em bocados de três metros disse ela. Assim disporemos exactamente de cinco minutos para sair.

 

Jelly juntou os fusíveis aos detonadores.

 

Flick segurou na lanterna enquanto Greta prendia as cargas às estantes nos locais vulneráveis e Jelly enfiava o detonador no explosivo mole.

 

Trabalharam depressa. Em cinco minutos o equipamento ficou coberto de cargas. Os rastilhos conduziam todos ao mesmo sítio e estavam amarrados, para que um fósforo bastasse para os acender a todos.

 

Jelly pegou numa bomba de térmite, uma lata preta do formato e do tamanho de uma lata de sopa, contendo óxido de alumínio e óxido de ferro em pó muito fino. Ao arder emitiria um calor intenso e libertaria chamas grandes. Tirou a tampa para pôr à mostra dois rastilhos, depois colocou-a no chão atrás do QDP.

 

Algures por aqui devem estar milhares de desenhos a mostrar de que forma os circuitos estão ligados. Devíamos destruí-los. Assim, quem vier reparar isto levará duas semanas, e não dois dias, a tornar a ligar os cabos.

 

Flick abriu o armário e encontrou quatro caixas com diagramas intercalados por separadores identificadores.

 

É isto que procuramos?

 

Greta estudou uma das folhas à luz da lanterna.

 

Sim.

 

Espalhe-os em volta das bombas de térmite. Assim arderão logo. Flick atirou os desenhos para o chão.

 

Jelly colocou um gerador de oxigénio no canto atrás da porta.

 

Isto ajudará o fogo a ficar mais quente disse. Normalmente, só poderíamos queimar as estantes de madeira e o isolamento em torno dos cabos, mas com isto os cabos de cobre também deverão derreter.

 

Tudo estava pronto.

 

Flick iluminou a sala com a lanterna. As paredes exteriores eram de tijolo antigo, mas as de dentro entre as salas eram de madeira. A explosão destruiria as divisórias de madeira e o fogo espalhar-se-ia rapidamente pelo resto da cave.

 

Haviam passado cinco minutos desde que as luzes se tinham apagado.

 

Jelly tirou do bolso um isqueiro.

 

Vão as duas para o exterior do castelo ordenou Flick. Jelly, pelo caminho passe pela sala do gerador e faça um buraco no cano do combustível, onde lhe indiquei.


Percebido.

 

Encontramo-nos em casa da Antoinette.

 

Onde é que vai? perguntou Greta com ansiedade.

 

Procurar a Ruby.

 

Tem cinco minutos preveniu Jelly. Flick assentiu.

 

Jelly acendeu o rastilho.

 

Quando Dieter passou da escuridão da cave para a semiobscuridade das escadas reparou que os guardas haviam saído da entrada. Sem dúvida tinham ido chamar ajuda, mas a falta de disciplina enfureceu-o. Deviam ter permanecido no seu posto.

 

Talvez tivessem sido obrigados a sair dali. Ter-lhes-iam apontado armas? Estaria já a decorrer um ataque ao castelo?

 

Subiu as escadas a correr. No rés-do-chão não viu vestígios de luta. As telefonistas continuavam a trabalhar: o sistema telefónico tinha um circuito eléctrico à parte e das janelas ainda vinha luz suficiente para lhes permitir ver os PBX. Atravessou a cantina a correr, dirigindo-se para a entrada de trás, onde ficavam situadas as oficinas, mas no caminho olhou para a cozinha e viu três soldados de bata a olharem para uma caixa de fusíveis.

 

Não há luz na cave disse Dieter.

 

Eu sei respondeu um dos homens. Na camisa tinha as divisas de sargento. Estes fios foram cortados.

 

Então vá buscar as ferramentas e torne a ligá-los, seu idiota! gritou Dieter. Não fique aí especado a coçar a cabeça!

 

O sargento ficou perplexo.

 

Sim, meu major.

 

Acho que é um forno eléctrico, meu major disse um jovem cozinheiro com ar preocupado.

 

O que aconteceu? perguntou Dieter.

 

Bem, meu major, estavam a limpar atrás do forno e ouviu-se um estrondo...

 

Quem? Quem é que estava a limpar?

 

Não sei, meu major.

 

Um soldado, alguém conhecido?

 

Não, meu major... só uma mulher da limpeza.

 

Dieter não sabia o que pensar. Era evidente que o castelo estava a ser atacado. Mas onde se encontrava o inimigo? Saiu da cozinha, dirigiu-se às escadas e correu até aos gabinetes do primeiro andar.

 

Quando virou para o segundo lanço das escadas viu algo pelo canto do olho e olhou para trás. Uma mulher alta de bata vinha a subir as escadas da cave, com uma esfregona e um balde na mão.

 

Ficou imóvel a olhar para ela. A mulher não devia estar ali. Só os alemães podiam entrar na cave. Claro que durante a confusão da falha de energia tudo podia ter acontecido. Mas o cozinheiro culpara uma mulher da limpeza pelo corte de energia. Dieter recordou a sua breve conversa com a supervisora das telefonistas. Nenhuma era nova no trabalho mas não fizera perguntas sobre as mulheres francesas da limpeza.

 

Desceu as escadas e aproximou-se dela no rés-do-chão.

 

O que estava a fazer na cave? perguntou ele em francês.

 

Fui lá para limpar, mas as luzes apagaram-se.

 

Dieter franziu o sobrolho. Ela falava francês com um sotaque que ele não conseguia identificar.

 

Não devia ter ido lá abaixo.

 

Sim, foi o que o soldado me disse, eles é que limpam, mas eu não sabia.

 

O sotaque dela não era inglês, pensou Dieter. Mas qual seria?

 

Há quanto tempo trabalha aqui?

 

Há uma semana, e sempre limpei o primeiro andar até hoje. A história dela era plausível, mas Dieter não ficou satisfeito.

 

Venha comigo. Agarrou-a pelo braço. Ela não resistiu enquanto ele a conduzia à cozinha.

 

Reconhece esta mulher? perguntou Dieter ao cozinheiro.

 

Sim, meu major. Era a que estava a limpar atrás do forno.

 

É verdade? perguntou Dieter olhando para a mulher.

 

Sim, senhor, e peço desculpa se estraguei alguma coisa. Dieter reconheceu o sotaque.

 

Você é alemã disse.

 

Não senhor.

 

Sua traidora imunda! Olhou para o cozinheiro. Agarre nela e siga-me. Ela vai contar-me tudo.

 

Flick abriu a porta com a indicação «Sala de Interrogatórios», entrou, fechou a porta e fez incidir a luz da lanterna no espaço em volta.

 

Viu uma mesa de pinho barata com cinzeiros, várias cadeiras e uma mesa de aço. Não havia ali ninguém.

 

Ficou intrigada. Localizara as celas naquele corredor e espreitara para cada uma delas. As celas estavam vazias: os prisioneiros que a Gestapo havia feito nos últimos oito dias, incluindo Gilberte, tinham sido levados para outro lado... ou mortos. Mas Ruby tinha de estar ali algures.

 

Depois viu, à sua esquerda, uma porta que devia conduzir a uma câmara interior.

 

Desligou a lanterna, abriu a porta, entrou, fechou a porta e acendeu a lanterna.

 

Viu imediatamente Ruby. Jazia numa mesa semelhante às mesas de operações dos hospitais. Correias desenhadas para o efeito manietavam-lhe os pulsos e os tornozelos e impossibilitavam-na de mover a cabeça. O arame de uma máquina eléctrica subia por entre os seus pés e desaparecia sob a saia. Flick adivinhou imediatamente o que fora feito a Ruby e ficou horrorizada.

 

Avançou para a mesa.

 

Ruby, consegues ouvir-me?

 

Ruby gemeu. Flick encheu-se de alegria: ela ainda estava viva.

 

Vou soltar-te. Pousou a arma na mesa.

 

Ruby tentava falar, mas as suas palavras não passavam de um gemido. Rapidamente, Flick desapertou as correias que amarravam Ruby à mesa.

 

Flick conseguiu Ruby dizer por fim.

 

O que foi?

 

Atrás de ti.

 

Flick deu um salto para o lado. Um objecto pesado raspou-lhe a orelha e embateu no seu ombro esquerdo com força. Ela gritou de dor, largou a lanterna e caiu. Ao embater no chão rolou para o lado, afastando-se o mais rapidamente possível da sua posição original para que o agressor não pudesse atingi-la de novo.

 

Ficara tão chocada ao ver Ruby que não inspeccionara a sala com o foco da lanterna. Alguém se ocultara nas sombras, à espera de uma oportunidade, e aproximara-se lentamente por trás.

 

O seu braço esquerdo estava dormente. Servindo-se da mão direita, Flick tacteou o chão à procura da lanterna. Antes de conseguir encontrá-la, ouviu-se um clique e as luzes acenderam-se.

 

Flick pestanejou e viu duas pessoas. Uma era um homem baixo e atarracado de cabeça redonda e cabelo muito curto. Atrás dele estava Ruby. No escuro ela pegara no que parecia ser uma barra de aço e erguera-a bem alto. Assim que as luzes se acenderam, Ruby viu o homem, virou-se e bateu-lhe com a barra na cabeça com toda a força. Foi um golpe intenso e o homem caiu no chão, ficando imóvel.

 

Flick levantou-se. O braço esquerdo começava a ter circulação. Pegou na arma.


Ruby ajoelhara-se ao lado do corpo inerte do homem.

 

Apresento-te o sargento Becker disse.

 

Estás bem?

 

Estou cheia de dores, mas vou vingar-me deste maldito estupor. Agarrando no casaco da farda de Becker, Ruby sentou-o e depois, com algum esforço, empurrou-o para a mesa de operações.

 

Ele gemeu.

 

Está a recuperar os sentidos! exclamou Flick. Eu acabo com ele.

 

Dá-me dez segundos. Ruby endireitou os membros do homem e prendeu-lhe os pulsos e os tornozelos, e em seguida a cabeça, de forma a que ele não pudesse mover-se. Por fim, pegou no terminal cilíndrico da máquina de choques eléctricos e enfiou-lho na boca. Ele tossiu, engasgado, mas foi incapaz de mover a cabeça. Ruby pegou no rolo de fita adesiva, rasgou um pedaço com os dentes e prendeu o cilindro para que ele não saltasse da boca de Becker. Depois aproximou-se da máquina e ligou o interruptor.

 

Ouviu-se um zumbido. O homem na mesa soltou um grito abafado. O seu corpo amarrado estremecia com convulsões. Ruby olhou para ele durante um momento, depois disse:

 

Vamos embora.

 

Saíram da sala, deixando o sargento Becker a contorcer-se na mesa, a guinchar como um pulho no matadouro.

 

Flick olhou para o relógio. Tinham passado dois minutos desde que Jelly acendera os rastilhos.

 

Atravessaram a sala de interrogatórios e saíram para o corredor. A confusão acalmara. Havia apenas três soldados junto à entrada, a falarem baixo. Flick avançou rapidamente na direcção deles com Ruby atrás.

 

O seu instinto dizia-lhe para passar pelos soldados, contando com o seu ar confiante para passar, mas foi então que viu o vulto alto de Dieter Franck a aproximar-se do outro lado da porta, seguido de duas ou três pessoas que ela não conseguiu ver com clareza. Estacou abruptamente. Ruby embateu nas suas costas. Flick virou-se para a porta mais próxima. Esta tinha as palavras «Sala de Telegrafia» escritas. Abriu-a. A sala estava vazia. Entraram ambas.

 

Deixou a porta entreaberta. Ouviu o major Franck gritar em alemão:

 

Capitão, onde se encontram os dois homens que deviam estar a guardar esta entrada?

 

Não sei, meu major, estava agora a perguntar isso.

 

Flick tirou o silenciador da arma e preparou-a para tiro rápido. Até ali usara apenas quatro balas, e tinha vinte e oito no pente.


Sargento, fique de guarda com o nosso cabo. Capitão, vá ao gabinete do major Weber e diga-lhe que o major Franck recomenda que ele reviste imediatamente a cave. Vá lá, homem, mexa-se!

 

Pouco depois ouviram os passos de Franck junto à porta. Flick aguardou, à escuta. Uma porta bateu. Ela espreitou para o corredor. Franck desaparecera.

 

Vamos disse a Ruby. Deixaram a sala e dirigiram-se para a porta principal.

 

O que estão aqui a fazer? perguntou o cabo em francês. Flick já tinha a resposta pronta.

 

A minha amiga Valérie é nova no trabalho e entrou no local errado durante a confusão da falta de energia.

 

O cabo não pareceu convencido.

 

Lá em cima ainda há luz, como é que ela se perdeu?

 

Lamento imenso, senhor, pensei que também devia limpar aqui em baixo e ninguém me impediu.

 

Devíamos impedi-las de entrar e não de sair, cabo disse o sargento em alemão. Soltou uma gargalhada e fez-lhes sinal para que passassem.

 

Dieter amarrou a prisioneira a uma cadeira, depois mandou ir embora o cozinheiro que o acompanhara desde a cozinha. Olhou para a mulher durante um momento, perguntando-se de quanto tempo disporia. Uma das agentes fora presa na rua junto ao castelo. Outra, se é que era agente, fora apanhada ao subir as escadas provenientes da cave. Teriam as outras vindo e ido? Aguardariam algures que as deixassem entrar? Ou já estariam dentro do castelo? Era enlouquecedor não saber o que estava a acontecer. Mas ele ordenara que revistassem a cave. A única coisa que lhe restava fazer era interrogar a prisioneira.

 

Dieter começou com a tradicional bofetada na cara, súbita e desmoralizante. A mulher ofegou devido ao choque e à dor.

 

Onde estão as tuas amigas? perguntou ele.

 

O rosto da mulher enrubesceu. Ele estudou a expressão dela. O que viu deixou-o perplexo. Ela parecia feliz.

 

Estás na cave do castelo disse Dieter. Depois daquela porta fica a câmara de tortura. Do outro lado, a seguir àquela divisória, há equipamento telefónico. Estamos no fim do túnel. Se as tuas amigas tencionam fazer explodir este edifício, tu e eu vamos com certeza morrer nesta sala.


A expressão dela não se alterou.

 

Talvez o castelo não estivesse prestes a explodir, pensou Dieter. Mas então qual seria a missão?

 

És alemã disse. Porque estás a ajudar os inimigos do teu país?

 

Por fim ela falou.

 

Eu digo-lhe. Falava alemão com o sotaque de Hamburgo. Há muitos anos tive um amante. Ele chamava-se Manfred. Olhou para um ponto distante, recordando-se. Vocês, nazis, prenderam-no e mandaram-no para um campo. Creio que ele morreu lá... nunca soube nada. Fez uma pausa para engolir. Dieter aguardou. Pouco depois ela prosseguiu: Quando mo levaram, jurei que iria vingar-me... e aqui estou. Esboçou um sorriso feliz. O seu regime nojento está perto do fim. E eu ajudei a destruí-lo.

 

Havia ali qualquer coisa errada. Ela falava como se o acto já estivesse consumado. Para além do mais, a luz falhara e voltara. Teria a escuridão já servido o seu objectivo? Aquela mulher não aparentava medo. Mas será que não se importava de morrer?

 

Porque foi preso o teu amante?

 

Chamaram-lhe pervertido.

 

De que espécie?

 

Era homossexual.

 

Mas era teu amante?

 

Sim.

 

Dieter franziu o sobrolho. Depois observou a mulher com mais atenção. Era alta e tinha ombros largos, e sob a maquilhagem possuía um nariz e um queixo masculinos...

 

És um homem? perguntou perplexo. Ela limitou-se a sorrir.

 

Dieter começou a ficar seriamente desconfiado.

 

Porque estás a contar-me isso? perguntou. Estás a tentar manter-me ocupado enquanto as tuas amigas fogem? Estás a sacrificar a tua vida para garantir o êxito da missão...

 

Os seus pensamentos foram interrompidos por um ruído fraco. Parecia um grito abafado. Agora que pensava nisso, apercebeu-se de que já o ouvira duas ou três vezes e o ignorara. O som parecia vir da sala ao lado.

 

Dieter levantou-se de um pulo e foi até à câmara de tortura.

 

Esperava ver a outra agente deitada na mesa e ficou chocado ao encontrar ali outra pessoa. Era um homem, percebeu de imediato, mas a princípio não o reconheceu, porque o seu rosto estava distorcido... o maxilar deslocado, os dentes partidos, as faces manchadas de sangue e vómito. Depois reconheceu o corpo atarracado do sargento Becker. Os fios da máquina de choque seguiam na direcção da boca dele. Dieter percebeu que o terminal da máquina se encontrava na boca de Becker, preso com fita isoladora. O sargento ainda estava vivo, contorcia-se e emitia um guinchar horrível. Dieter ficou horrorizado.

 

Desligou rapidamente a máquina. Becker ficou quieto. Dieter agarrou no fio e puxou-o com força. O terminal saiu da boca de Becker. Ele atirou-o para o chão.

 

Inclinou-se sobre a mesa.

 

Becker! exclamou. Consegue ouvir-me? O que aconteceu aqui?

 

Não obteve resposta.

 

Lá em cima tudo estava normal. Flick e Ruby caminharam rapidamente ao longo das filas de telefonistas, muito ocupadas com os seus PBX, murmurando para os bocais enquanto enfiavam jacks em tomadas fêmeas, ligando as pessoas importantes de Berlim às de Paris e da Normandia. Flick olhou para o relógio. Dali a exactamente dois minutos todas aquelas ligações seriam destruídas, e a máquina militar sucumbiria, deixando uma confusão de componentes isolados, incapaz de trabalharem em conjunto. «Agora», pensou Flick, «se ao menos conseguirmos sair...»

 

Chegaram à porta e desceram para a rua sem incidentes. Dali a segundos estariam na praça. Tinham quase conseguido. Mas, no pátio, encontraram Jelly que voltava para trás.

 

Onde está a Greta? perguntou.

 

Ela saiu consigo! respondeu Flick.

 

Parei para pôr uma carga no cano do gasóleo na sala do gerador, como você disse. A Greta continuou a andar. Mas não chegou a casa da Antoinette. Estive agora com o Paul, ele não a viu. Voltei para trás para a procurar. Jelly tinha um pacote na mão. Disse ao guarda no portão que ia buscar o meu almoço.

 

Flick ficou amargurada.

 

A Greta deve estar lá dentro... raios!

 

Vou buscá-la disse Jelly com determinação. Ela salvou-me da Gestapo em Chartres, por isso estou em dívida para com ela.

 

Flick olhou para o relógio.

 

Temos menos de dois minutos. Vamos!

 

Voltaram para dentro a correr. As telefonistas observaram-nas enquanto elas corriam pelas salas. Flick começava a arrepender-se.


Para tentar salvar um membro da equipa estava prestes a sacrificar outros dois., e ela própria?

 

Quando chegaram ao cimo das escadas, Flick deteve-se. Os dois soldados que as tinham deixado sair da cave com uma piada não as voltariam a deixar entrar com tanta facilidade.

 

Fazemos como antes disse baixinho às outras. Aproximem-se dos guardas com ar inocente e disparem no último momento.

 

O que se passa aqui? perguntou uma voz acima delas. Flick imobilizou-se.

 

Olhou por cima do ombro. Na escada que vinha do primeiro andar encontravam-se quatro homens. Um, com a farda de major, apontava-lhe uma pistola. Ela reconheceu o major Weber.

 

Eram os reforços que Dieter Franck mandara chamar. Tinham aparecido no pior momento possível.

 

Flick amaldiçoou-se por ter tomado uma decisão errada. Agora estavam as quatro perdidas em vez de uma.

 

Vocês estão com ar conspirativo disse Weber.

 

O que quer de nós? perguntou Flick. Somos as mulheres da limpeza.

 

Talvez sejam retorquiu ele. Mas há uma equipa de agentes inimigas no distrito.

 

Flick fingiu ficar aliviada.

 

Oh, ainda bem disse. Se está à procura de agentes inimigas, estamos safas. Tive receio de que não estivesse satisfeito com a limpeza. Obrigou-se a dar uma gargalhada. Ruby imitou-a. Ambas soaram falsas.

 

Mãos ao ar ordenou Weber.

 

Flick olhou para o relógio quando ergueu as mãos. Faltavam trinta segundos.

 

Desçam as escadas ordenou Weber.

 

Com relutância, Flick obedeceu. Ruby e Jelly seguiram-na, e os quatro homens foram atrás. Flick desceu o mais lentamente que pode, contando os segundos.

 

Deteve-se no fundo das escadas. Vinte segundos.

 

Vocês de novo? perguntou um dos guardas.

 

Fale com o seu major respondeu Flick.

 

Continuem a andar ordenou Weber.

 

Pensei que não podíamos entrar na cave.

 

Não parem! Cinco segundos. Entraram pela porta da cave.


Ouviu-se um enorme estrondo.

 

Na extremidade mais afastada do corredor, as paredes divisórias da câmara onde se encontrava o equipamento rebentaram para fora. Ouviu-se uma série de estrondos. As chamas elevavam-se dos destroços. Flick foi projectada para o chão.

 

Ergueu-se sobre um joelho, tirou a arma debaixo da bata e virou-se para trás. Jelly e Ruby ladeavam-na. Os guardas, Weber e os outros três homens também tinham caído. Flick puxou o gatilho.

 

Dos seis alemães, só Weber mantivera a presença de espírito. Enquanto Flick disparava a metralhadora, Weber deu um tiro com a pistola. Ao lado de Flick, Jelly, que tentava levantar-se, gritou e tombou. Depois Flick atingiu Weber no peito e matou-o.

 

Flick despejou o pente nos seis corpos que jaziam no chão. Tirou um novo do bolso, e trocou-o com o vazio.

 

Ruby debruçou-se sobre Jelly, tacteando à procura de pulso. Passados momentos, levantou a cabeça.

 

Está morta disse.

 

Flick olhou para o fundo do corredor onde Greta se encontrava. As chamas saíam da câmara do equipamento, mas a parede da sala de interrogatórios parecia intacta.

 

Flick rumou para o inferno.

 

Dieter viu-se deitado no chão sem saber como fora lá parar. Ouviu o rugido das chamas e sentiu o cheiro de fumo. Levantou-se e olhou para a sala de interrogatórios.

 

Percebeu imediatamente que as paredes de tijolo da câmara de tortura lhe haviam salvado a vida. A divisória entre a sala de interrogatórios e a câmara do equipamento desaparecera. As peças de mobiliário da sala de interrogatórios haviam sido projectadas contra a parede. A prisioneira tivera o mesmo destino e jazia no chão, ainda amarrada à cadeira, o pescoço num ângulo estranho que indicava que estava partido e ela ou ele se encontrava morta. A câmara de equipamento ardia e o fogo espalhava-se rapidamente.

 

Dieter percebeu que dispunha de poucos segundos para fugir.

 

A porta da sala de interrogatórios abriu-se e Flick Clairet apareceu, de metralhadora na mão.

 

Trazia uma peruca preta que estava ligeiramente torta, revelando o seu cabelo louro por baixo. Corada, ofegante, com uma expressão selvagem nos olhos, estava linda.

 

Se ele tivesse uma arma na mão nesse momento, tê-la-ia crivado de balas num acesso de fúria. Ela seria um trofeu incomparável se fosse capturada com vida, mas ele estava tão furioso e humilhado com o êxito dela e o seu próprio fracasso que não teria sido capaz de se controlar.

 

Mas era ela quem tinha a arma.

 

A princípio ela não viu Dieter, pois olhava fixamente para o corpo da camarada. A mão de Dieter deslizou para o interior do casaco. Depois o olhar dela deslocou-se e cruzou-se com o dele. Dieter viu a sua expressão de reconhecimento. Ela sabia quem ele era. Soubera quem estivera a combater durante os últimos nove dias. Havia um brilho de triunfo nos seus olhos. Mas Dieter viu também a sede de vingança no trejeito da boca dela. Flick ergueu a arma e disparou.

 

Dieter atirou-se para a câmara de tortura enquanto as balas dela arrancavam lascas de tijolo da parede. Sacou da sua pistola Walther P38, tirou-a da segurança e apontou para a porta, esperando que Flick aparecesse.

 

Ela não apareceu.

 

Dieter aguardou mais uns segundos e depois arriscou-se a olhar.

 

Flick fora-se embora.

 

Ele atravessou a correr a sala de interrogatórios em chamas, abriu a porta e saiu para o corredor. Flick e outra mulher corriam ao fundo. Quando ele levantou a arma, elas saltaram por cima de um grupo de corpos fardados no chão. Apontou para Flick, mas sentiu uma dor quente no braço. Gritou e largou a pistola. Viu que tinha a manga em chamas. Despiu o casaco.

 

Quando voltou a olhar, as mulheres tinham desaparecido.

 

Dieter pegou na pistola e foi atrás delas.

 

Enquanto corria, sentiu o cheiro de combustível. Havia uma fuga ou talvez as sabotadoras tivessem furado um cano. A qualquer momento a cave iria explodir como uma bomba gigante.

 

Mas ele ainda podia apanhar Flick.

 

Desatou a correr e subiu as escadas.

 

Na câmara de tortura, a farda do sargento Becker começou a desfazer-se.

 

O calor e o fumo fizeram-no recobrar os sentidos e ele gritou a pedir ajuda, mas ninguém o ouviu.

 

Tentou libertar-se das correias de cabedal que o manietavam, tal como muitas das suas vítimas haviam lutado no passado mas, tal como elas, estava indefeso.

 

Pouco depois, as suas roupas começaram a arder e ele desatou aos gritos.


Flick viu Dieter subir as escadas atrás dela de arma na mão. Receou que se parasse e se virasse para fazer pontaria ele conseguisse disparar primeiro. Decidiu correr em vez de lutar.

 

Alguém fizera disparar o alarme de incêndio, e uma sirena ecoava pelo castelo enquanto ela e Ruby percorriam a correr as salas dos telefones. As telefonistas tinham abandonado os seus postos e aglomeravam-se junto às portas, pelo que Flick se viu rodeada de gente. Isso impediria que Dieter disparasse contra ela ou Ruby, mas as outras mulheres estavam a atrasá-las. Flick distribuiu socos e pontapés para abrir caminho.

 

Chegaram à entrada e desceram as escadas a correr. Na praça, Flick viu a camioneta de Moulier com a parte de trás virada para o castelo, o motor a trabalhar e as portas de trás abertas. Paul encontrava-se ao lado da camioneta, a olhar ansioso pelo gradeamento de ferro. Flick achou que nunca vira algo tão agradável.

 

No entanto, enquanto as mulheres saíam do edifício, dois guardas encaminhavam-nas para a vinha no lado ocidental do pátio, para longe dos carros estacionados. Flick e Ruby ignoraram as instruções deles e correram para os portões. Quando os soldados viram a metralhadora de Flick estenderam as mãos para as suas armas.

 

Uma espingarda apareceu nas mãos de Paul. Ele fez pontaria através do gradeamento. Ouviram-se dois tiros e os dois guardas tombaram.

 

Paul abriu o portão.

 

Quando Flick passou por ele, algumas balas passaram a assobiar rente à sua cabeça e foram cravar-se na camioneta: Dieter estava a disparar.

 

Paul saltou para a cabina.

 

Flick e Ruby atiraram-se para a parte de trás.

 

Quando a carrinha arrancou, Flick viu Dieter correr para o parque de estacionamento, onde se encontrava o seu carro azul-celeste.

 

Nesse momento, na cave, o fogo chegou aos tanques de combustível.

 

Ouviu-se um rugido subterrâneo semelhante ao de um tremor de terra. O parque de estacionamento explodiu, gravilha, terra e pedaços de cimento a voarem em todas as direcções. Metade dos carros estacionados em redor da velha fonte ficaram virados ao contrário. Pedras enormes e pedaços de tijolo caíram sobre os restantes. Dieter foi projectado contra os degraus do castelo. A bomba de gasolina elevou-se no ar, e uma rajada de fogo saiu do chão, no local onde ela se encontrara. Vários carros começaram a arder e os depósitos de combustível explodiram um a um. Nesse momento, a camioneta saiu da praça, e Flick não conseguiu ver mais nada.

 

Paul conduziu a toda a velocidade para fora da povoação. Flick e Ruby balançavam no chão de metal da camioneta. Lentamente, Flick começou a aperceber-se de que tinham executado com êxito a missão. Ainda lhe custava a crer. Pensou em Greta e em Jelly, ambas mortas, e em Diana e Maude, mortas ou moribundas num campo de concentração, e foi incapaz de sentir-se feliz. Mas sentiu uma satisfação selvagem quando recordou a sala do equipamento em chamas e o parque de estacionamento a explodir.

 

Olhou para Ruby.

 

Esta sorriu-lhe.

 

Conseguimos disse. Flick assentiu.

 

Ruby abraçou Flick e apertou-a com força.

 

Sim disse Flick. Conseguimos.

 

Dieter ergueu-se do chão. Estava todo dorido, mas era capaz de andar. O castelo encontrava-se envolto em chamas e o parque de estacionamento completamente destruído. As mulheres gritavam em pânico.

 

Olhou em volta para toda aquela destruição. As Gralhas tinham conseguido executar a missão. Mas ainda não estava tudo terminado. Continuavam em França. E se ele conseguisse capturar e interrogar Flick Clairet, poderia ainda transformar a derrota em vitória. Durante a noite que se aproximava, ela deveria ir ao encontro de um avião num campo não muito distante de Reims. Ele tinha de descobrir onde e quando.

 

E sabia quem lhe iria dizer.

 

O marido dela.

 

O ÚLTIMO DIA Terça-feira, 6 de Junho de 1944

 

Dieter estava na plataforma da estação de caminhos-de-ferro de Reims. Alguns funcionários franceses e soldados alemães aguardavam com ele, esperando pacientemente sob as luzes intensas. O comboio-prisão vinha atrasado várias horas, mas vinha a caminho, como lhe haviam assegurado. Restava-lhe esperar por ele. Já não tinha mais cartas para jogar.

 

Sentia-se cheio de raiva. Fora humilhado e vencido por uma rapariga. Se ela fosse uma rapariga alemã, ele ter-se-ia sentido orgulhoso dela. Teria dito que ela era brilhante e corajosa. Poderia até ter-se apaixonado por ela. Mas ela pertencia ao inimigo, e derrotara-o em todas as etapas. Matara Stéphanie, destruíra o castelo e escapara. Mas ele ainda iria apanhá-la. E quando isso acontecesse, ela iria passar por torturas piores do que todos os seus pesadelos e depois iria falar.

 

Todos falavam.

 

O comboio entrou na estação poucos minutos depois da meia-noite.

 

Ele sentiu o cheiro ainda antes de o comboio se imobilizar. Era semelhante ao de uma quinta, mas desagradavelmente humano.

 

Havia diversos vagões, nenhum deles talhado para transportar passageiros: vagões de mercadorias, de transporte de animais, até um vagão-postal com as suas estreitas janelas partidas. Todos estavam apinhados de gente.

 

Os vagões para transporte de animais tinham paredes de madeira com ripas que permitiam a observação dos animais. Os prisioneiros mais próximos enfiaram os braços pelas ripas, mãos com as palmas viradas para cima, a mendigarem. Pediam que os deixassem sair, imploravam que lhes dessem de comer, mas acima de tudo imploravam por água. Os guardas observavam-nos com ar impassível: Dieter dera instruções para que os prisioneiros não recebessem água em Reims nessa noite.

 

Tinha consigo dois cabos das Waffen SS, guardas do castelo, ambos bons atiradores. Retirara-os dos escombros de Sainte-Cécile, fazendo-se valer da sua autoridade como major. Naquele momento, virou-se para eles e ordenou:

 

Tragam o Michel Clairet.

 

Michel encontrava-se fechado no aposento sem janelas onde o chefe da estação guardava o dinheiro. Os cabos afastaram-se e reapareceram com Michel entre eles. Michel tinha as mãos amarradas atrás das costas e os tornozelos presos um ao outro com uma corda de alguns centímetros de forma a impedi-lo de correr. Não lhe haviam dito o que acontecera em Sainte-Cécile. Ele sabia apenas que fora capturado pela segunda vez na mesma semana. Pouco restava do seu ar de fanfarrão. Tentava aparentar coragem, fingir-se animado, mas a tentativa falhara. Coxeava ainda mais, tinha as roupas sujas e uma expressão carrancuda. Era a imagem da derrota.

 

Dieter agarrou no braço de Michel e aproximou-o do comboio. A princípio, Michel não percebeu o que estava a ver, e o seu rosto revelava apenas perplexidade e medo. Depois, quando distinguiu as mãos que mendigavam e percebeu as vozes que metiam dó, cambaleou, como se tivesse sido agredido, e Dieter teve de segurá-lo.

 

Preciso de uma informação disse ele. Michel abanou a cabeça.

 

Meta-me no comboio respondeu. Prefiro estar com eles do que consigo.

 

Dieter ficou chocado com o insulto e surpreendido com a coragem de Michel.

 

Diga-me onde vai aterrar o avião das Gralhas... e quando. Michel fítou-o.

 

Não as apanhou disse, e voltou a mostrar-se esperançado. Elas fizeram explodir o castelo, não foi? Conseguiram! Inclinou a cabeça para trás e gritou de alegria. Bom trabalho, Flick!

 

Dieter fez Michel andar ao lado do comboio, devagar, mostrando-lhe os prisioneiros e o seu sofrimento.

 

O avião repetiu.

 

No campo à saída de La Chatelle, às três da manhã disse Michel.

 

Dieter tinha quase a certeza de que era mentira. Flick ficara de aterrar em La Chatelle havia setenta e duas horas mas abortara a aterragem porque desconfiara de uma armadilha da Gestapo. Dieter sabia que havia algures uma pista de reserva, porque Gaston lho dissera; mas Gaston soubera apenas o seu nome de código, Champ d’Or, não a sua localização. Contudo, Michel conhecia a sua localização exacta.

 

Está a mentir afirmou Dieter.

 

Então meta-me no comboio respondeu Michel. Dieter abanou a cabeça.

 

A alternativa não é essa... nada tão fácil. Viu perplexidade e medo nos olhos de Michel.

 

Dieter fê-lo voltar para trás e parar junto ao vagão das mulheres. As suas vozes femininas imploravam em francês e alemão, algumas invocando a misericórdia de Deus, outras pedindo aos homens que pensassem nas suas mães e irmãs, meia dúzia oferecendo favores sexuais. Michel baixou a cabeça, recusando-se a olhar.

 

Dieter fez sinal a dois vultos que se encontravam na sombra.

 

Michel levantou a cabeça e no seu rosto surgiu uma expressão de temor.

 

Hans Hesse saiu das sombras acompanhando uma jovem. Ela podia ter sido bonita, mas o seu rosto era terrivelmente branco, as madeixas de cabelo oleosas, e tinha os lábios em chaga. Parecia fraca e caminhava com dificuldade.

 

Era Gilberte.

 

Michel susteve a respiração.

 

Dieter repetiu a pergunta.

 

Onde vai aterrar o avião, e quando? Michel ficou calado.

 

Meta-a no comboio ordenou Dieter. Michel soltou um gemido.

 

Um guarda abriu a porta do vagão. Enquanto dois outros mantinham as mulheres para trás sob a ameaça de baionetas, o guarda empurrou Gilberte para o vagão.

 

Não! gritou ela. Não, por favor!

 

Os guardas estavam prestes a fechar a porta, mas Dieter interveio.

 

Esperem. Olhou para Michel. As lágrimas corriam-lhe pela cara.

 

Por favor, Michel, peço-te! gritou Gilberte. Michel assentiu.

 

Está bem.


Não volte a mentir-me preveniu Dieter.

 

Liberte-a.

 

O local e a hora.

 

No batatal a leste de Laroque, às duas da manhã. Dieter olhou para o relógio. Era meia-noite e um quarto.

 

Leve-me até lá.

 

A cinco quilómetros de Laroque, a aldeia de L’Epine encontrava-se adormecida. O luar prateado iluminava a enorme igreja. Atrás dela, a camioneta de Moulier encontrava-se discretamente estacionada junto a um celeiro. Na sombra projectada por um arcobotante, as Gralhas sobreviventes aguardavam.

 

Pelo que é que anseiam mais? perguntou Ruby.

 

Por um bife respondeu Paul.

 

Por uma cama macia com lençóis lavados respondeu Flick. E tu?

 

Por ver o Jim.

 

Flick recordou-se de que Ruby tivera um caso com o instrutor de tiro.

 

Pensei... calou-se.

 

Pensaste que não passara de uma aventura? perguntou Ruby. Flick assentiu, atrapalhada.

 

O Jim também disse Ruby. Mas eu tenho outros planos.

 

Paul riu-se.

 

Aposto que consegue aquilo que quer.

 

E você? perguntou Ruby.

 

Sou solteiro respondeu ele olhando para Flick. Ela abanou a cabeça.

 

Tencionava pedir o divórcio ao Michel... mas como podia, no meio de uma operação?

 

Então vamos esperar até ao fim da guerra para casarmos retorquiu Paul. Sou paciente.

 

«Resposta tipicamente masculina», pensou Flick. «Introduz a palavra casamento no meio da conversa como se fosse um pormenor sem importância. Lá se vai o romantismo.»

 

Mas na verdade ficara satisfeita. Era a segunda vez que ele falava em casamento. «Quem precisa de romantismo?», pensou ela.

 

Olhou para o relógio. Era uma e meia.

 

Está na hora de irmos.


Dieter apoderara-se de uma limusina Mercedes que se encontrava fora dos terrenos do castelo, e escapara assim à explosão. O carro estava naquele momento estacionado na extremidade da vinha junto ao batatal em Laroque, camuflado com folhas de videira arrancadas do chão. Michel e Gilberte estavam no banco de trás, de mãos e pés atados, à guarda de Hans.

 

Dieter tinha também consigo os dois cabos, armados com espingardas. Dieter e os dois homens vigiavam o batatal. Viam perfeitamente ao luar.

 

Os terroristas devem aparecer dentro de minutos disse ele. Contamos com o elemento surpresa. Eles não fazem ideia de que estamos aqui. Mas lembrem-se, quero-os vivos, especialmente à líder, a mulher mais pequena. Têm de disparar para ferir, não para matar.

 

Não podemos garantir isso retorquiu um dos atiradores. Este campo deve ter trezentos metros de largura. Suponhamos que o inimigo se encontra a cento e cinquenta metros. A essa distância é quase impossível acertar nas pernas de alguém a correr.

 

Eles não vão correr respondeu Dieter. Vêm ter com um avião. Têm de formar uma linha, apontar lanternas para o avião de forma a ajudar o piloto na aterragem. Isso significa que irão ficar imóveis durante vários minutos.

 

No meio do batatal?

 

Sim.

 

O homem assentiu.

 

Então vamos conseguir. Olhou para cima. A menos que a Lua desapareça atrás de uma nuvem.

 

Nesse caso, acendemos os faróis do carro no momento exacto. O Mercedes tinha faróis gigantescos.

 

Escutem disse o outro atirador.

 

Calaram-se. Aproximava-se um veículo motorizado. Ajoelharam-se todos. Apesar do luar, não seriam vistos junto ao emaranhado escuro das vinhas, desde que mantivessem as cabeças baixas.

 

Na estrada que vinha da aldeia apareceu uma camioneta com os faróis desligados. Um vulto feminino saltou para o chão e abriu o portão. A carrinha entrou e o motor foi desligado. Desceram mais duas pessoas, outra mulher e um homem.

 

Agora silêncio murmurou Dieter.

 

De repente o silêncio foi interrompido por uma buzina incrivelmente ruidosa.

 

Dieter deu um salto e praguejou. O som vinha de trás dele.

 

Credo! exclamou. Era o Mercedes. Pôs-se de pé e correu para a janela aberta da porta do condutor. Percebeu imediatamente o que acontecera.

 

Michel saltara para a frente, debruçando-se sobre o banco do condutor, e antes que Hans pudesse impedi-lo carregara na buzina com as duas mãos. Hans, no banco do pendura, tentava disparar, mas Gilberte juntara-se a Michel e atirara-se para cima de Hans, limitando-lhe os movimentos uma vez que ele tinha de estar sempre a afastá-la.

 

Dieter enfiou os braços pela janela e empurrou Michel, mas este resistiu, e a posição de Dieter não lhe permitia exercer muita força. A buzina continuava a apitar com um ruído ensurdecedor para que os agentes da Resistência não pudessem deixar de ouvi-lo.

 

Dieter procurou a sua arma.

 

Michel encontrou o botão das luzes e os faróis do carro acenderam-se. Dieter olhou para cima. Os atiradores estavam horrivelmente expostos devido à luz. Tinham-se ambos levantado, mas antes que conseguissem sair da luz ouviu-se uma metralhadora disparar do meio do campo. Um dos atiradores gritou, largou a espingarda, levou as mãos à barriga e caiu em cima do capô do Mercedes; o outro foi atingido na cabeça. Dieter sentiu uma dor intensa no braço e soltou um grito de surpresa.

 

Depois ouviu-se um tiro dentro do carro, e Michel gritou. Hans conseguira finalmente libertar-se de Gilberte e sacar da pistola. Tornou a disparar e Michel tombou, mas tinha ainda a mão sobre a buzina e o seu corpo pressionava a mão, pelo que a buzina continuava a apitar. Hans disparou pela terceira vez, em vão, porque a bala entrara num cadáver. Gilberte gritou e tornou a lançar-se para cima de Hans, agarrando-lhe no braço que segurava a arma com as mãos manietadas. Dieter conseguira pegar na sua pistola mas não podia disparar sobre Gilberte com receio de atingir Hans.

 

Ouviu-se um quarto tiro. Fora de novo a pistola de Hans, mas como ela estava apontada para cima, ele ferira-se, a bala tendo-lhe acertado sob o queixo. Hans gorgolejou horrivelmente, o sangue escorrendo-lhe da boca, e tombou sobre a porta, os seus olhos já sem vida.

 

Dieter fez pontaria e acertou na cabeça de Gilberte.

 

Enfiou o braço direito pela janela e afastou o corpo de Michel do volante.

 

A buzina foi silenciada.

 

Encontrou o botão das luzes e apagou os faróis.

 

Olhou para o campo.

 

A camioneta ainda ali estava, mas as Gralhas tinham desaparecido.

 

Escutou. Ouviu apenas silêncio.

 

Estava sozinho.


Flick gatinhou pela vinha, dirigindo-se ao carro de Dieter Franck. O luar, tão necessário para os voos clandestinos sobre território inimigo, era agora o seu inimigo. Desejou que uma nuvem ocultasse a Lua, mas por enquanto o céu estava limpo. Mantinha-se encostada às videiras, mas projectava uma sombra indiscreta.

 

Ordenara a Paul e Ruby que ficassem para trás, escondidos na extremidade do campo perto da camioneta. Três pessoas faziam o triplo do barulho, e ela não queria que um companheiro traísse a sua presença.

 

Enquanto gatinhava, ouviu o avião a aproximar-se. Tinha de localizar os inimigos que restavam e matá-los antes da chegada do avião. As Gralhas não podiam ir para o meio do campo com lanternas enquanto houvesse soldados na vinha de armas apontadas na sua direcção. E se não tivessem as lanternas acesas, o avião regressaria a Inglaterra sem aterrar. Isso era impensável.

 

Encontrava-se mais para o meio da vinha que o carro de Dieter Franck, estacionado na extremidade. Flick estava a uma distância de seis filas de videiras. Aproximar-se-ia do inimigo por trás. Tinha a metralhadora na mão direita, pronta a disparar, enquanto gatinhava.

 

Aproximou-se do carro. Franck camuflara-o com vegetação, mas quando ela espreitou do meio das videiras viu o luar reflectido no vidro de trás.

 

As videiras haviam sido plantadas transversalmente, mas ela conseguiu rastejar sob o ramo mais baixo. Esticou a cabeça e olhou para um lado e para o outro da fila seguinte. Não viu ninguém. Rastejou até ao espaço livre e repetiu o exercício. À medida que se aproximava do carro foi redobrando os cuidados, mas não viu ninguém.

 

Quando estava a duas filas de distância conseguiu ver os pneus do carro e o chão em volta. Distinguiu dois corpos imóveis fardados. Quantos haveria no total? O carro era uma limusina Mercedes e comportava facilmente seis pessoas.

 

Aproximou-se mais. Nada se mexia. Estariam todos mortos? Ou teriam um ou dois sobrevivido, encontrando-se agora escondidos, à espera de atacar?

 

Por fim, Flick aproximou-se do carro.

 

As portas estavam escancaradas e o interior parecia cheio de corpos. Espreitou para a frente e reconheceu Michel. Reprimiu um soluço. Era um mau marido, mas fora a sua escolha, e agora estava morto, com três buracos de bala orlados a sangue na blusa de cambraia. Calculou que tivesse sido ele a carregar na buzina. Se assim fora, Michel morrera a tentar salvar-lhe a vida. Naquele momento não havia tempo para pensar naquelas coisas; ponderaria nelas mais tarde, se vivesse o suficiente.

 

Ao lado de Michel encontrava-se um desconhecido que fora alvejado na garganta. Tinha o uniforme de tenente. Havia mais corpos no banco de trás. Flick espreitou pela porta aberta. Um era o de uma mulher. Inclinou-se para a frente para ver melhor. Ficou de boca aberta: a mulher era Gilberte, e parecia estar a olhar para Flick. Pouco depois esta percebeu que os olhos nada viam, e que Gilberte morrera com um tiro na cabeça.

 

Inclinou-se sobre Gilberte, a fim de olhar para o quarto corpo. Este elevou-se do chão num movimento rápido. Antes de ela ter tido tempo de gritar, o corpo agarrou-a pelo cabelo e encostou-lhe o cano de uma arma à carne macia do pescoço.

 

Era Dieter Franck.

 

Largue a arma ordenou ele em francês.

 

Ela segurava a metralhadora na mão, mas virada para cima e, antes de conseguir fazer pontaria, ele conseguiria atingi-la. Não tinha alternativa: largou-a. Estava fora da segurança, e ela esperava que o impacte da queda a fizesse disparar, mas a metralhadora aterrou inocuamente no chão.

 

Recue.

 

Quando ela obedeceu ele seguiu-a, saindo do carro, mantendo a arma encostada à garganta dela. Endireitou-se.

 

É tão pequena observou Franck, olhando-a de cima a baixo. E causou tantos estragos.

 

Flick viu sangue na manga do casaco dele e calculou que o ferira com a metralhadora.

 

Não apenas a mim prosseguiu ele. Aquela central telefónica é tão importante como você pensa.

 

Ela recuperou a voz.

 

Óptimo.

 

Não fique com esse ar tão satisfeito. Agora vai causar estragos na Resistência.

 

Flick desejou não ter ordenado a Paul e Ruby que aguardassem escondidos. Agora não havia possibilidade de eles virem salvá-la. Dieter desviou a arma e encostou-a ao ombro dela.

 

Não quero matá-la, mas tenho muito gosto em deixá-la incapacitada. Preciso que você fale, claro. Vai dar-me todos os nomes e moradas que tem na cabeça.


Flick pensou no comprimido para o suicídio oculto na tampa oca da sua caneta de tinta permanente. Teria oportunidade de o engolir?

 

É pena que tenha destruído a sala de interrogatórios em Sainte-Cécile prosseguiu ele. Vou ter de levá-la para Paris. Lá tenho o mesmo tipo de equipamento.

 

Flick recordou horrorizada a mesa de operações e a máquina de choques eléctricos.

 

Será que conseguirei fazê-la falar? perguntou ele. A dor acaba por fazer ceder qualquer um, claro, mas tenho o pressentimento de que você deve suportar a dor durante demasiado tempo. Levantou o braço esquerdo. A ferida pareceu dar-lhe uma pontada e Franck fez um esgar de dor, mas não gemeu. Tocou no rosto dela. A perda da sua beleza, talvez. Imagine este rosto bonito desfigurado: o nariz partido, os lábios feridos, um olho negro, as orelhas cortadas.

 

Flick sentiu náuseas, mas manteve uma expressão empedernida.

 

Não? A mão dele moveu-se para baixo, afagando-lhe o pescoço, depois o seio. Então humilhação sexual. Ficar nua à frente de muita gente, ser acariciada por um grupo de bêbados, obrigada a executar actos nojentos com animais...

 

E qual de nós ficaria mais humilhado com isso? perguntou ela em tom de desafio. Eu, a vítima impotente... ou você, o verdadeiro perpetrador da obscenidade?

 

Ele afastou a mão.

 

Por outro lado, temos torturas que impossibilitam para sempre uma mulher de ter filhos.

 

Flick pensou em Paul e estremeceu involuntariamente.

 

Ah! exclamou Franck satisfeito. Acho que descobri o que a fará falar.

 

Ela apercebeu-se de que fora uma idiota ao falar com ele. Tinha-lhe dito o que ele precisava de ouvir para a fazer ceder.

 

Vamos directos a Paris disse Franck. Estaremos lá de madrugada. Ao meio-dia você estará a implorar-me que pare com a tortura e a ouça debitar todos os segredos que conhece. Amanhã à noite prenderemos todos os membros da Resistência no Norte da França.

 

Flick ficou gelada de medo. Franck não estava a vangloriar-se. Seria capaz de fazer o que dizia.

 

Acho que pode viajar no porta-bagagens do carro continuou ele. Não é selado, pelo que você não irá sufocar. Mas vai na companhia dos corpos do seu marido e da amante dele. Umas quantas horas aos encontrões com mortos irão deixá-la com a disposição que pretendo.

 

Flick estremeceu de repulsa. Não conseguiu evitar.

 

Mantendo a pistola encostada ao ombro dela, Franck enfiou a outra mão no bolso. Moveu o braço com cuidado: o ferimento da bala doía-lhe, mas não o incapacitava. Tirou do bolso umas algemas.

 

Estenda as mãos ordenou. Ela permaneceu imóvel.

 

Posso algemá-la ou inutilizar-lhe os braços com dois tiros nos ombros.

 

Impotente, ela levantou as mãos.

 

Franck fechou uma das algemas em redor do seu pulso esquerdo. Ela aproximou dele o direito. Depois fez uma última tentativa desesperada.

 

Deu uma pancada de lado com a mão esquerda algemada, afastando a arma dele do seu ombro. Ao mesmo tempo usou a mão direita para tirar o pequeno punhal escondido sob a lapela do casaco.

 

Ele recuou, mas não suficientemente depressa.

 

Flick lançou-se para a frente e enfiou a lâmina no olho esquerdo dele. Franck virou a cabeça, mas a lâmina já estava lá dentro e Flick avançou, encostando o corpo ao dele, empurrando o punhal para dentro. Sangue e fluido jorraram da ferida. Franck gritou de dor e disparou a arma, mas os tiros foram disparados para o ar.

 

Ele cambaleou para trás, mas ela seguiu-o, continuando a pressionar o punhal com a palma da mão. A arma não tinha bainha, e ela continuou a empurrar até os sete centímetros da lâmina estarem dentro da cabeça dele. Franck tombou para trás e bateu no chão.

 

Flick caiu em cima dele, os joelhos no seu peito, e sentiu algumas costelas partirem-se. Ele largara a arma e estendera as duas mãos para o olho, tentando tirar o punhal, mas ele estava demasiado enterrado. Flick agarrou na arma. Era uma Walther P38. Pôs-se de pé, agarrou nela com as duas mãos e fez pontaria a Franck.

 

Ele ficou imóvel.

 

Flick ouviu passos. Paul apareceu.

 

Flick, estás bem? Ela assentiu.

 

Continuava a apontar a arma a Dieter Franck.

 

Acho que isso não vai ser necessário disse Paul baixinho. Pouco depois baixou as mãos dela, tirou-lhe a arma e meteu-a na segurança.

 

Ruby apareceu.


Ouçam! exclamou. Ouçam! Flick ouviu um som de um Hudson.

 

Vamos sair daqui disse Paul.

 

Correram para o campo, a fim de fazer sinais ao avião que os levaria a casa.

 

Atravessaram o canal da Mancha com ventos fortes e chuva intermitente. Durante um momento de acalmia, o navegador foi ao compartimento dos passageiros.

 

Talvez queiram espreitar lá para fora disse.

 

Flick, Ruby e Paul estavam a dormitar. O chão era duro, mas eles iam exaustos. Paul abraçava Flick e ela não tinha vontade de se mexer.

 

O navegador insistiu.

 

É melhor despacharem-se, antes que volte tudo a ficar nublado. Nunca mais vão voltar a ver uma coisa assim, mesmo que vivam até aos cem.

 

A curiosidade sobrepôs-se ao cansaço de Flick. Levantou-se e cambaleou até à pequena janela rectangular. Ruby fez o mesmo. O piloto inclinou ligeiramente o avião.

 

O canal da Mancha estava picado e soprava um vento forte, mas havia lua cheia e Flick via com clareza. A princípio mal pôde acreditar nos seus olhos. Sob o avião encontrava-se um navio de guerra cheio de canhões. Ao seu lado um pequeno paquete, a tinta branca a brilhar ao luar. Atrás deles, um velho barco a vapor ferrugento içava a proa devido a uma onda. Atrás deles havia navios de carga, transportes de soldados, velhos petroleiros e barcos de pouco calado. Até onde a vista alcançava havia embarcações, centenas delas.

 

O piloto inclinou o avião para o outro lado e Flick foi espreitar pela janela da direita. Viu a mesma coisa.

 

Paul, olha para isto! exclamou. Ele aproximou-se e parou ao lado dela.

 

Caramba! exclamou. Nunca vi tantos barcos em toda a minha vida!

 

É a invasão!

 

Vão espreitar à frente disse o navegador.

 

Flick avançou e olhou por cima do ombro do piloto. Os navios cobriam o mar como uma carpete com muitos quilómetros de comprimento, até onde a vista alcançava.

 

Não sabia que havia tantos barcos no mundo! comentou Paul com incredulidade.


Quantos julga que são? perguntou Ruby.

 

Ouvi falar em cinco mil respondeu o navegador.

 

Espantoso! murmurou Flick.

 

Gostava muito de fazer parte daquilo declarou o navegador. E vocês?

 

Flick olhou para Paul e Ruby e todos sorriram.

 

Oh, mas fazemos retorquiu ela. Fazemos parte daquilo, sem dúvida.

 

UM ANO MAIS TARDE

 

Quarta-feira, 6 de Junho de 1945

 

A rua de Londres chamada Whitehall tinha de ambos os lados prédios grandiosos que reflectiam a magnificência do império britânico como ele fora cem anos antes. No interior desses belos prédios, muitas das salas de tecto alto com enormes janelas haviam sido subdivididas com paredes de madeira para formar escritórios para os oficiais menores e salas de reuniões para grupos de pouca importância. Como subcomité de um subcomité, o Grupo de Trabalho das Medalhas (Acções Clandestinas) reunia-se numa sala sem janelas com cinco metros quadrados e uma lareira enorme e fria que ocupava metade duma parede.

 

Simon Fortescue do MI6 dirigia a reunião, envergando um fato às riscas, uma camisa às riscas e uma gravata às riscas. O Executivo das Operações Especiais estava representado por John Graves do Ministério da Economia de Guerra, que na teoria supervisionara o EOE durante a guerra. Tal como os outros funcionários públicos do comité, Graves envergava a «farda» de Whitehall: casaco preto e calças cinzentas às riscas. O bispo de Marlborough trazia a camisa púrpura do clero, sem dúvida para dar dimensão moral à tarefa de honrar homens por terem morto outros homens. O coronel Algernon «Nobby» Clarke, um oficial dos serviços secretos, era o único membro do comité que vira acção durante a guerra.

 

O chá foi servido pela secretária do comité e um prato com bolachas circulou enquanto os homens deliberavam.

 

Já a manhã ia a meio quando chegaram ao caso das Gralhas de Reims.

 

Havia seis mulheres nesta equipa, e só duas regressaram disse John Graves. Mas destruíram a central telefónica de Sainte-Cécile, que era também a sede da Gestapo local - perguntou o bispo. Disse seis mulheres?

 

O seu tom era de desaprovação. Por-

 

Mulheres? perguntou o bispo. Disse seis mulheres?

 

Sim.

 

Deus nos acuda. O seu tom era de desaprovação. Porquê mulheres?

 

A central telefónica estava muito bem guardada, mas elas entraram fazendo-se passar por mulheres da limpeza.

 

Estou a ver.

 

«Nobby Clarke», que passara a maior parte da manhã em silêncio, a fumar cigarro atrás de cigarro, interveio.

 

Depois da libertação de Paris interroguei um tal major Goedel, assessor de Rommel. Ele disse-me que tinham ficado virtualmente paralisados pela falha nas comunicações no dia D. Isso fora bastante importante para o êxito da invasão, achava ele. Não fazia ideia de que os responsáveis eram uma mão-cheia de raparigas. Creio que se impõe a Cruz de Guerra, não?

 

Talvez interveio Fortescue, e os seus modos tornaram-se afectados. No entanto, houve problemas disciplinares neste grupo. Foi feita uma queixa contra a líder, major Clairet, depois de ela ter insultado um oficial da guarda.

 

Insultado? perguntou o bispo. Como?

 

Houve uma discussão num bar, e creio que ela o mandou foder, com a sua licença, bispo.

 

Deus nos acuda. Não me parece o tipo de pessoa capaz de ser considerada uma heroína pela próxima geração.

 

Exactamente. Uma condecoração inferior à Cruz de Guerra, então... talvez membro da Ordem do Império Britânico.

 

«Nobby» Clarke tornou a intervir.

 

Discordo disse calmamente. Afinal de contas, se essa mulher fosse uma insubordinada não deveria ter conseguido fazer rebentar uma central telefónica debaixo dos narizes da Gestapo.

 

Fortescue estava irritado. Não costumava deparar com oposição. Odiava as pessoas que não se sentiam intimidadas na sua presença. Olhou em volta.

 

A opinião dos presentes parece ser contrária à sua. Clarke franziu o sobrolho.

 

Calculo que possa fazer uma recomendação embora estando em minoria disse ele com teimosia.

 

É verdade respondeu Fortescue. Embora eu duvide que valha a pena.

 

Clarke puxou uma baforada do cigarro com ar pensativo.

 

Porque não?

 

O ministro deve conhecer uma ou duas pessoas da nossa lista.


Nesses casos seguirá as suas inclinações, independentemente das nossas recomendações. Nos outros casos fará o que sugerirmos. Se o comité estiver quase todo em unanimidade, ele aceitará a recomendação da maioria.

 

Estou a ver disse Clarke. Mesmo assim, gostaria que a acta registasse a minha divergência de opinião e que recomendei a Cruz de Guerra para a major Clairet.

 

Fortescue olhou para a secretária, a única mulher presente.

 

Certifique-se disso, por favor, Miss Gregory.

 

Muito bem respondeu ela.

 

Clarke apagou o cigarro e acendeu outro. E foi o fim do assunto.

 

Frau Waltraud Franck chegou a casa feliz. Conseguira comprar um pescoço de carneiro. Era a primeira carne que via num mês. Fora a pé da sua casa suburbana até ao centro bombardeado de Colónia e passara a manhã na fila à porta do talho. Também se obrigara a sorrir quando o talhante, Herr Beckmann, lhe acariciara o rabo, pois, se tivesse objectado, a resposta dele passaria a ser «Já não temos», a partir daí. Mas conseguia suportar as mãos curiosas de Beckmann. Iria conseguir três dias de refeições com um pescoço de carneiro.

 

Voltei! cantarolou quando entrou em casa. As crianças estavam na escola, mas Dieter encontrava-se em casa. Guardou a carne preciosa na despensa. Reservá-la-ia para essa noite, quando os filhos estivessem em casa. Para o almoço ela e Dieter comeriam sopa de couve e pão escuro.

 

Entrou na sala de estar.

 

Olá, querido! cumprimentou alegremente.

 

O marido estava sentado à janela, imóvel. Uma pala preta à pirata cobria-lhe um olho. Envergava um dos seus belos fatos antigos, mas este ficava-lhe muito largo, e não pusera gravata. Ela tentava vesti-lo bem todas as manhãs, mas nunca conseguira aprender a fazer um nó de gravata. O rosto dele tinha uma expressão vaga, e um fio de saliva pendia-lhe da boca aberta. Não respondeu à saudação da mulher.

 

Ela estava habituada a isso.

 

Adivinha! Consegui um pescoço de carneiro! Ele fitou-a com o olho bom.

 

Quem és tu? perguntou. Ela inclinou-se e beijou-o.


Esta noite vamos ter guisado de carne para o jantar. Somos uns sortudos!

 

Nessa tarde, Flick e Paul casaram-se numa pequena igreja de Chelsea.

 

Foi uma cerimónia simples. A guerra na Europa chegara ao fim, e Hitler estava morto, mas os Japoneses defendiam Okinawa com ferocidade e a austeridade dos tempos de guerra continuava a afectar os londrinos. Flick e Paul envergavam as fardas: era difícil encontrar tecido para fazer um vestido de noiva, e como Flick era viúva não queria ir de branco.

 

Percy Thwaite levou Flick ao altar. Ruby foi a dama de honor. Também já casara com Jim, o instrutor de tiro da escola de aperfeiçoamento, que se encontrava sentado na segunda fila de bancos.

 

O pai de Paul, o general Chancellor, foi o padrinho. Continuava destacado em Londres, e Flick tivera oportunidade de o conhecer bastante bem. Tinha a reputação de um ogre no exército americano, mas para Flick era amoroso.

 

Na igreja estava também Mademoiselle Jeanne Lemas. Fora levada para o campo de concentração de Ravensbruck, com a jovem Marie; e Marie morrera lá, mas Jeanne Lemas conseguira sobreviver, e Percy Thwaite mexera uns cordelinhos para conseguir fazê-la estar em Londres para o casamento. Estava na terceira fila, com um chapéu em forma de sino na cabeça.

 

O Dr. Claude Bouler também sobrevivera, mas Diana e Maude tinham morrido em Ravensbruck. Antes de morrer, Diana tornara-se uma das líderes do campo, segundo Mademoiselle Lemas. Contando com a fraqueza alemã de mostrar deferência para com a aristocracia, enfrentara destemidamente o comandante do campo para se queixar das condições e para exigir um melhor tratamento dos prisioneiros. Não conseguira muito, mas a sua coragem e optimismo tinham levantado a moral dos outros prisioneiros esfomeados, e vários sobreviventes afirmaram que deviam a ela a vontade de viver.

 

A cerimónia religiosa foi breve. Quando terminou, e Flick e Paul eram já marido e mulher, limitaram-se a virar e a parar à entrada da igreja para receber os votos de felicidade dos presentes.

 

A mãe de Paul também se encontrava ali. O general conseguira meter a mulher num transatlântico. Ela chegara bastante tarde na véspera e Flick estava a vê-la pela primeira vez. Olhou Flick de cima a baixo, obviamente perguntando de si para si se aquela rapariga seria suficientemente boa para o seu maravilhoso filho. Flick sentiu-se ligeiramente deprimida. Mas disse a si própria que aquilo era natural numa mãe orgulhosa e beijou afectuosamente Mrs. Chancellor.

 

Iriam viver em Boston. Paul voltaria a estar ligado ao ensino. Flick tencionava acabar o doutoramento e em seguida ensinar cultura francesa aos jovens americanos. A viagem de cinco dias pelo Atlântico seria a lua-de-mel.

 

A mãe de Flick encontrava-se presente com um chapéu que comprara em 1938. Chorou, embora fosse a segunda vez que a filha casava.

 

A última pessoa na pequena congregação a beijar Flick foi o irmão, Mark.

 

Flick precisava de mais uma coisa para que a sua felicidade fosse perfeita. Ainda abraçada a Mark, virou-se para a mãe, que não dirigia palavra ao filho havia cinco anos.

 

Olha, mãe, está aqui o Mark.

 

Mark ficou apavorado. A mãe hesitou durante um longo momento. Depois abriu os braços.

 

Olá, Mark.

 

Oh, mãe murmurou ele, abraçando-a.

 

Em seguida, saíram todos para a rua e para o sol.

 

Da história oficial

«Normalmente, as mulheres não organizavam sabotagens; mas Pearl Witherington, uma correio britânica treinada, tomou as rédeas e dirigiu um grupo da Resistência com cerca de dois mil homens, em Berry, com elegância e distinção depois de a Gestapo ter prendido o seu organizador. Recomendou-se que recebesse a Cruz de Guerra, embora se dissesse que as mulheres estavam impossibilitadas disso; e em vez disso recebeu o título de membro civil da Ordem do Império Britânico, que devolveu, dizendo que não fizera nada civil.»

 

                                                                                            Ken Follet  

 

                      

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