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NOS MEANDROS DA LEI / Michael Connelly
NOS MEANDROS DA LEI / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O ar matinal ao largo do deserto do Mojave no final do Inverno é o mais límpido e fresco que se pode respirar no condado de Los Angeles. Está carregado de um aroma de promessa. Quando começa a soprar assim, gosto de manter a janela do escritório aberta. Poucas pessoas conhecem esta minha rotina, como o Fernando Valenzuela. O fiador judicial e não o lançador de beisebol. Ligou-me quando eu ia a caminho de uma reunião em Lancaster para agendar um julgamento. Deve ter ouvido o vento a assobiar no meu telemóvel.
- Mick - disse -, estás pelo norte esta manhã?
- Já vou a caminho - disse, fechando o vidro para ouvir melhor.
- Tens alguma coisa?
- Sim. Acho que tenho lá um cliente franqueado. Mas só vai comparecer às onze. Consegues estar lá a tempo?
O Valenzuela tem um gabinete voltado para a rua na Van Nuys Boulevard, a um quarteirão de distância do centro administrativo, que inclui dois tribunais e a cadeia de Van Nuys. Chama ao seu negócio Cauções Judiciais Liberdade. No telhado do edifício há um néon vermelho com o número de telefone, visível da ala de alta segurança do terceiro piso da cadeia. Tem o número gravado na tinta da parede ao lado de cada cabina telefónica, em todas as alas da cadeia.
Pode dizer-se que o nome dele também está permanentemente gravado na minha lista de Natal. No final do ano costumo dar uma lata de salgadinhos mistos a todos aqueles que constam dessa lista. Produto especial. Cada lata vem com uma fita e um laço. Mas sem salgadinhos dentro. Só notas. Tenho uma data de fiadores judiciais na minha lista de Natal. A Tupperware vende uns salgadinhos mistos pelo Natal e costumo comê-los até à Primavera. Desde o meu último divórcio, às vezes é só isso que como ao jantar.

 

 

 


 

 

 

 


Antes de responder à pergunta do Valenzuela, pensei na reunião que ia ter daí a pouco. O meu cliente era o Harold Casey, Se a lista seguisse a ordem alfabética, não teria grandes problemas em conseguir estar na audiência em Van Nuys às onze horas. Mas o Juiz Orton Powell estava prestes a deixar a magistratura. Ia reformar-se. Isso significava que já deixara de tolerar pressões para a reeleição, como as dos advogados privados. E para demonstrar a sua liberdade - e talvez como forma de vingança em relação àqueles com quem estivera politicamente em dívida durante doze anos -, gostava de confundir as coisas nas suas audiências. Às vezes seguia a ordem alfabética, outras vezes começava pelo final da lista e outras pela data do requerimento. Só se sabia qual seria a ordem quando se chegava lá. Era frequente os advogados esperarem mais de uma hora na sala. E o Juiz Powell gostava disso.

- Acho que consigo estar lá às onze - disse, sem ter a certeza.
- Que caso é?

- Deve ser um tipo muito endinheirado. O endereço é de Beverly Hills e o advogado da família foi o primeiro a aparecer. Isto é coisa em grande, Mick. Puseram-lhe uma caução de meio milhão e o advogado da mãe veio aqui hoje prontinho para assinar a transferência de uma propriedade em Malibu para poder pagar a caução. Nem sequer tentou regatear o montante. Não devem estar muito preocupados com o facto de ele poder fugir.

- Qual é o motivo da detenção? - perguntei.

Mantive uma voz neutra. O cheiro do dinheiro provoca muitas vezes um frenesi de gula, mas como eu tinha cuidado bem do Valenzuela durante vários Natais seguidos, sabia que podia contar com a exclusividade dele. Não precisava de dar-me a pressas.

- A polícia prendeu-o por agressão e assalto, danos físicos graves e tentativa de violação, só para começar - respondeu. - Tanto quanto sei, a procuradoria ainda não deu início à instrução do processo.

Geralmente a polícia sobrecarregava nas acusações. O que interessava era aquilo que os procuradores públicos acabavam por instruir como processo para levar a tribunal. Digo sempre que os casos entram como leões e saem como cordeirinhos. Um caso que dê entrada como tentativa de violação e assalto agravado com danos físicos graves pode muito bem acabar em simples ofensas corporais. Não me admiraria nada e não daria um caso de grande monta. Mesmo assim, se pudesse chegar ao cliente e fazer um acordo de honorários com base nas acusações anunciadas, podia arrecadar uns trunfos quando mais tarde a procuradoria as anulasse.

- Que pormenores sabes? - perguntei.

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- Prenderam-no ontem à noite. Ao que parece, um engate num bar que correu mal. O advogado da família disse que a mulher anda atrás do dinheiro. Já sabes, acção cível na sequência do processo criminal. Mas não tenho assim tanta certeza. Pelo que ouvi, a mulher levou muita pancada.

- Quem é o advogado da família?

- Espera um segundo. Devo ter aqui o cartão dele.

Olhei pela janela enquanto o Valenzuela procurava o cartão. Estava a dois minutos da sala de audiências de Lancaster e a doze minutos da reunião. Precisava pelo menos de três desses minutos para conferenciar com o meu cliente e dar-lhe as más notícias.

- Pronto, já encontrei - disse o Valenzuela. - O tipo chama-se Cecil C. Dobbs. De Century City. Vês, eu tinha-te dito. Dinheiro.

O Valenzuela tinha razão. Mas não era a morada de Century City do advogado que anunciava dinheiro. Era o nome. Conhecia a fama do C. C. Dobbs e desconfiava que em toda a sua lista de clientes só haveria um ou dois nomes que não morassem em Bel-Air ou Holmby Hills. O tipo de clientes dele instalava-se em lugares onde as estrelas pareciam baixar à noite para tocar nos ungidos.

- Dá-me o nome do cliente - disse-lhe.

- Louis Ross Roulet. Soletrou-o e apontei-o num bloco.

- O último nome pronuncia-se Ru-lei - disse ele. - Vais estar aqui a horas, Mick?

Escrevi o nome C. C. Dobbs no bloco e só depois respondi ao Valenzuela, com uma pergunta.

- Porquê eu? Pediram que fosse eu? Ou foste tu que sugeriste o meu nome?

Tinha de ser cuidadoso com isto. Tinha de partir do princípio de que o Dobbs era o tipo de advogado que iria logo queixar-se à ordem dos advogados da Califórnia se encontrasse pela frente um advogado de defesa criminal que andasse a subornar um fiador judicial para arranjar clientes. Aliás, comecei a pensar se esta coisa toda não seria uma cilada na qual o Valenzuela não tinha reparado. O facto é que eu não era um dos filhos dilectos da ordem. Já me tinham tentado apanhar antes. Mais de uma vez.

- Sabes, perguntei ao Roulet se já tinha advogado. Um advogado de defesa criminal. Disse que não e falei-lhe de ti. Não forcei a coisa. Disse-lhe só que eras bom. Como quem não quer a coisa, sabes?

- Isso foi antes ou depois de o Dobbs entrar no caso?

- Foi antes. O Roulet ligou-me da cadeia hoje de manhã. Enfiaram-no na ala de alta segurança e deve ter visto o letreiro, acho. O Dobbs só

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chegou depois. Disse-lhe que estavas no caso, dei as tuas credenciais e o tipo aceitou na boa. Vai aparecer lá às onze. Depois já vês como ele é. Fiquei calado durante longos segundos. Perguntei-me até que ponto o Valenzuela estava a ser honesto comigo. Um tipo como o Dobbs certamente teria o seu próprio intermediário. E se não fosse o seu ponto forte, então de certeza que teria um especialista criminal na firma, ou pelo menos já teria contactado algum. Mas a história do Valenzuela parecia contrariar isto. O Roulet foi falar com ele de mãos vazias. Isso só queria dizer que havia neste caso mais do que aquilo que estavam a contar-me.

- Ei, Mick, 'tás aí? - perguntou o Valenzuela.

Tomei uma decisão. Uma decisão que acabaria por me levar de volta ao Jesus Menendez e da qual viria a arrepender-me muito. Mas foi a decisão do momento, mais uma escolha fruto da necessidade e da rotina.

- Estarei lá a horas. Encontro-me contigo às onze. Estava prestes a desligar quando voltei a ouvir o Valenzuela.

- E vais tratar-me bem por isto, certo, Mick? Tu sabes, se isto for um caso de franquia.

Era a primeira vez que o Valenzuela queria ter a certeza de que ia recompensá-lo. Fiquei ainda mais paranóico e construí uma resposta cuidadosa que o satisfizesse a ele e à ordem dos advogados - para o caso de a ordem estar a ouvir.

- Não te preocupes, Val. Estás na minha lista de Natal. Desliguei antes que ele pudesse falar e disse ao motorista para me

deixar à entrada do pessoal administrativo do tribunal. A fila junto ao detector de metais seria menor aí e perderia menos tempo, e os tipos da segurança geralmente não se importavam que os advogados
- os regulares - entrassem por ali para poderem chegar a tempo ao tribunal.

Enquanto pensava no Louis Ross Roulet, no caso e nas possíveis riquezas e perigos que me esperavam, desci o vidro da janela para apreciar os últimos momentos de ar fresco e límpido da manhã. Ainda pairava na atmosfera o aroma a promessa.

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A sala de audiências do Departamento 2A estava apinhada de advogados a negociar e a confraternizar de ambos os lados da barra, quando lá cheguei. Soube logo que a sessão ia começar a horas pois vi o oficial de justiça sentado à secretária. Isso significava que o juiz estava prestes a entrar.

No condado de Los Angeles os oficiais de justiça são, na verdade, delegados ajuramentados do xerife destacados para a divisão da cadeia. Aproximei-me do oficial, cuja secretária era logo ao lado da barra, para que os cidadãos pudessem fazer perguntas sem ter de violar o espaço atribuído aos advogados, arguidos e pessoal administrativo. Vi a lista pousada à frente dele. Verifiquei o cartão com o nome dele no uniforme - R. Rodriguez - antes de falar.

- Roberto, tem aí o meu cliente na lista? O Harold Casey?

O oficial correu o dedo pela lista, mas parou de imediato. A sorte estava do meu lado.

- Sim, Casey. É o segundo da lista.

- Por ordem alfabética hoje, óptimo. Tenho tempo para ir vê-lo?

- Não, vão trazer já o primeiro grupo. Acabei de ligar agora. E o juiz vem aí. Provavelmente terá alguns segundos para ver o seu cliente na gaiola.

- Obrigado.

Comecei a aproximar-me da barra, mas ele chamou-me.

- E não é Roberto, é Reynaldo.

- Certo, certo. Desculpe o lapso, Reynaldo.

- Nós, os oficiais de justiça, parecemos todos iguais, certo? Não soube bem se era uma tentativa de humor ou se estava a

meter-se comigo. Não respondi. Limitei-me a sorrir e entrei. Fiz um aceno com a cabeça a um par de advogados que não conhecia e a outros dois que conhecia. Um deles veio perguntar-me quanto tempo iria demorar à frente do juiz, para saber quando teria de voltar, de forma a chegar a tempo do seu cliente. Disse-lhe que iria ser rápido.

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Durante uma reunião para agendar um julgamento, os arguidos encarcerados são trazidos à sala de audiências em grupos de quatro e mantidos numa jaula de madeira e vidro conhecida como a gaiola. Isto permite aos arguidos conferenciar com os seus advogados antes de os seus casos serem chamados perante o tribunal.

Aproximei-me da gaiola no momento em que um delegado abriu a porta interior e entrou o primeiro dos quatro arguidos da lista. O último do grupo a entrar foi o Harold Casey, o meu cliente. Encostei-me ao canto, para podermos ter alguma privacidade, e fiz-lhe sinal.

O Casey era alto e forte, como tendem a recrutá-los no gang de motoqueiros dos Road Saints - ou clube, melhor dizendo, pois é como os membros preferem ser conhecidos. Tinha aparado o cabelo e a barba enquanto esteve detido na cadeia de Lancaster, como eu tinha pedido, e parecia razoavelmente apresentável, à excepção das tatuagens que lhe cobriam os braços e espreitavam por cima da gola. Foi o que se pôde arranjar. Não conheço bem o efeito que as tatuagens têm num júri, mas desconfio que não seja muito positivo, sobretudo quando há caveiras sorridentes envolvidas. Mas sei que, em geral, os jurados não dão grande importância a rabos-de-cavalo - tanto nos arguidos como nos advogados que os representam.

O Casey, ou Hard Case, como era conhecido no clube, era acusado de cultivo, posse e venda de marijuana, bem como de outros delitos relativos a drogas e armas. Numa rusga feita de madrugada ao rancho onde ele vivia e trabalhava, os delegados do xerife encontraram um celeiro e um complexo de barracões pré-fabricados, transformados em instalações de cultivo hidropónico. Foram apreendidas mais de duas mil plantas em plena maturação e vinte e oito quilos de marijuana colhida, já embalada em sacos de plástico em unidades de pesos variados. Mais trezentos e quarenta gramas de metanfetamina em cristais, que tinham pulverizado sobre a marijuana colhida para potenciar o seu efeito e ainda um pequeno arsenal de armas, muitas das quais se verificou posteriormente terem sido roubadas.

Tudo parecia indicar que o Hard Case estava mais do que tramado. Tinham-no encontrado a dormir num sofá no celeiro, a um metro e meio da mesa com as embalagens de droga. A somar a isto, já tinha sido antes condenado duas vezes por delitos de drogas e estava actualmente em liberdade condicional devido ao delito mais recente. No estado da Califórnia, à terceira é de vez. Em termos realistas, o Casey podia levar pelo menos dez anos de cadeia.

Mas o caso do Casey era invulgar, pois era um arguido ansioso pelo julgamento e até pela possibilidade da condenação. Tinha renunciado

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ao direito de um julgamento rápido e agora, passados quase três meses depois da detenção, só queria que o julgamento acontecesse. Estava ansioso porque a sua única esperança era provavelmente recorrer da possível condenação. O Casey tinha-se agarrado a um vislumbre de esperança graças ao seu advogado - aquela pequena luzinha a piscar que só um bom advogado consegue trazer à escuridão de um caso como este. Foi desta luzinha que nasceu a estratégia que poderia vir a salvar o Casey. Era ousada e o Casey precisaria de tempo enquanto esperava pelo resultado do recurso, mas sabia, tão bem como eu, que era a única hipótese real que tinha.

A falha no caso do estado não estava no pressuposto de que o Casey cultivava marijuana, a embalava em doses e a vendia. O estado estava absolutamente correcto nestes pressupostos e as provas corroboravam-nos bem. A maneira como o estado chegara a essas provas é que fazia o caso vacilar em fundamentos instáveis. Cabia-me a mim sondar essa falha no julgamento, explorá-la, registá-la e depois convencer um tribunal de recurso daquilo que não conseguira convencer o Juiz Orton Powell durante a moção antes do julgamento para suprimir as provas do caso.

As sementes da acusação do Harold Casey foram plantadas numa terça-feira em meados de Dezembro, quando o Casey entrou num armazém da Home Depot em Lancaster e fez uma série de compras mundanas que incluíam três lâmpadas do tipo usado no cultivo hidropónico. Aconteceu que o homem atrás dele na fila para pagar era um delegado do xerife que durante a folga viera comprar luzinhas de Natal para o exterior da casa. O delegado reconheceu algum do trabalho artístico nos braços do Casey - sobretudo a caveira com a tatuagem de um halo, que é a assinatura emblemática dos Road Saints
- e somou dois mais dois. Depois seguiu diligentemente a moto Harley do Casey até ao rancho perto de Pearblossom. Esta informação foi passada à brigada de narcóticos e o xerife tratou de arranjar um helicóptero sem placas de identificação para sobrevoar o rancho com uma câmara de imagens térmicas. As fotos subsequentes, com ricos pormenores de ondas de calor vermelho a sair do celeiro e do barracão, bem como a afirmação do delegado de que viu o Casey a comprar as lâmpadas hidropónicas, foram submetidas a um juiz numa declaração ajuramentada. Na manhã seguinte, os delegados acordaram o Casey à força do sofá, com um mandato de busca devidamente assinado.

Numa audiência anterior, eu tinha arguido que todas as provas contra o Casey deveriam ser excluídas porque a causa provável para o mandato constituía uma invasão do direito do Casey à privacidade. Usar as compras corriqueiras que um indivíduo fez num armazém

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como trampolim para proceder a uma invasão ainda maior da privacidade - por via de vigilância em terra e no ar, e através de imagens térmicas - seria seguramente encarado como excessivo pelos criadores da Constituição.

O Juiz Powell rejeitou a minha argumentação e o processo avançou para julgamento ou possível acordo de negociação de culpa. Entretanto, veio à luz nova informação que iria reforçar o recurso do Casey em relação à condenação. O exame das fotografias tiradas durante o voo sobre a casa do Casey e as especificações focais da câmara térmica usada pelos delegados indicavam que o helicóptero estava a voar a pouco mais de sessenta metros do chão quando as fotos foram tiradas. O Supremo Tribunal dos EUA estipulou que os voos de observação e vigilância legal sobre a propriedade de um suspeito só não violam o direito do indivíduo à privacidade se a aeronave se encontrar em espaço público. Pedi ao Raul Levin, o meu investigador, para verificar junto da Administração Federal de Aviação. O rancho do Casey não estava enquadrado em nenhum padrão de voo dos aeroportos. A distância para o espaço aéreo por cima do rancho era de trezentos e cinco metros. Os delegados tinham invadido claramente a privacidade do Casey enquanto recolhiam uma causa provável para fazer uma rusga ao rancho.

A minha tarefa era agora levar o caso a julgamento e conseguir dos delegados e do piloto um testemunho em relação à altitude do helicóptero quando sobrevoaram o rancho. Se dissessem a verdade, tinha-os apanhado. Se mentissem, tinha-os apanhado na mesma. Não que me agrade muito a ideia de embaraçar agentes da lei numa audiência pública, mas a minha esperança era que acabassem por mentir. Se um júri vê um polícia a mentir no banco das testemunhas, então mais vale acabar logo ali com o caso. Deixa de ser preciso apelar a um veredicto de não culpado. O estado nunca lucra com um veredicto de não culpado.

Fosse como fosse, estava confiante que ia ganhar. Só tínhamos de ir a julgamento e havia apenas uma coisa a intrometer-se no caminho. Era sobre isso que precisava de falar com o Casey antes de o juiz chamar

o caso.

O meu cliente aproximou-se da ponta da gaiola sem dizer sequer um olá. Também não o cumprimentei. Sabia bem o que ele queria. Já tivéramos esta conversa antes.

- Harold, chegou a hora de marcar o julgamento. Chegou a hora de dizer ao juiz se estamos prontos para ir a julgamento. Já sei que o estado está pronto. E hoje é a nossa vez.

- E?

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- Bem, há um problema. Da última vez que estiveste cá disseste-me que ia receber algum dinheiro. Só que já estamos aqui, Harold, e dinheiro nem vê-lo.

- Não te preocupes. Tenho o dinheiro para te dar.

- A minha preocupação é essa. És tu quem tem o dinheiro para mim. Só que ainda não me chegou às mãos.

- Vai chegar. Falei ontem com os meus rapazes. Vai chegar.

- Foi o que disseste da última vez. Não trabalho de borla, Harold. Nem o perito que contratei para examinar as fotos. A entrada inicial que deste há muito que já acabou. Quero mais dinheiro, senão vais ter de arranjar outro advogado. Um delegado do ministério público.

- Nada de delegados, homem. Quero-te a ti.

- Bem, tenho despesas e preciso de comer. Sabes a dor de cabeça que é todas as semanas só para pagar as Páginas Amarelas? Adivinha.

Continuou calado.

- Uma nota grandona. Uma média de mil por semana só para continuar lá com o anúncio, e isso antes de comer ou pagar a hipoteca ou a pensão de alimentos ou meter gasolina no Lincoln. Não posso fazer isto com base numa promessa, Harold. Só trabalho inspirado pelo verdinho das notas.

O Casey não pareceu ficar impressionado. - Já me informei disse. - Não podes largar-me assim sem mais nem menos. E muito menos agora. O juiz não te deixava.

Abateu-se o silêncio na sala de audiências assim que o juiz entrou e ocupou o seu lugar. Chegara a hora do espectáculo. Limitei-me a olhar para o Casey durante um longo momento e afastei-me. A cadeia tinha-lhe dado um conhecimento amador da lei e do seu funcionamento. Sabia mais do que a maioria. Mas ainda assim esperava-o uma surpresa.

Sentei-me encostado à barra atrás da mesa do arguido. O primeiro caso a ser chamado, o reexame de uma caução, foi rapidamente despachado. Depois o oficial chamou o caso Califórnia contra Casey e aproximei-me da mesa.

- Michael Haller pela defesa - anunciei.

O procurador também se fez anunciar. Era um tipo jovem chamado Victor DeVries. Não fazia ideia do que ia cair-lhe em cima quando fôssemos a julgamento. O Juiz Orton Powell fez as perguntas habituais sobre se era possível um acordo de última hora. Todos os juizes tinham uma agenda muito preenchida e um mandato prioritário para encerrar casos através de acordos. A última coisa que um juiz queria ouvir era que não havia nenhuma esperança de acordo e que o julgamento era inevitável.

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Mas o Juiz Powell ouviu as más notícias vindas de mim e de DeVries com descontracção e perguntou-nos se estávamos prontos para agendar o julgamento para essa semana. O DeVries disse que sim. Eu disse que não.

- Meritíssimo - disse -, gostaria de adiar esta decisão até à próxima semana, se possível.

- Qual é a causa do adiamento, Sr. Haller? - perguntou o juiz, com impaciência. - A acusação está pronta e quero concluir este caso.

- Também eu quero concluí-lo, Meritíssimo. Mas a defesa está a ter problemas em localizar uma testemunha necessária para este caso. Uma testemunha indispensável, Meritíssimo. Acho que o adiamento de uma semana será suficiente. Na próxima semana já deveremos estar prontos para prosseguir.

Como seria de esperar, o DeVries opôs-se ao adiamento.

- Meritíssimo, é a primeira vez que o estado ouve falar de uma testemunha em falta. O Sr. Haller teve quase três meses para localizar as testemunhas. Foi ele quem quis um julgamento rápido e agora quer adiar. Acho que não passa de uma táctica de atraso, pois o caso que está a defender...

- Pode guardar o resto das suas palavras para o júri, Sr. DeVries disse o juiz. - Sr. Haller, acha que uma semana lhe resolverá o problema?

- Sim, Meritíssimo.

- Muito bem, vemo-lo a si e ao Sr. Casey na próxima segunda-feira e deve estar pronto para prosseguir. Entendido?

- Sim, Meritíssimo. Obrigado.

O oficial chamou o caso seguinte e afastei-me da mesa da defesa. Vi um delegado tirar o meu cliente da gaiola. O Casey olhou-me com uma expressão que parecia ser de raiva e confusão em igual dose. Aproximei-me do oficial e perguntei se podia voltar a entrar na área restrita para consultar novamente o meu cliente. Era uma cortesia profissional concedida a quase todos os advogados regulares. O Rodriguez abriu uma porta atrás da secretária e fez-me entrar. Tive o cuidado de lhe agradecer sem me enganar no nome dele.

O Casey estava numa cela de detenção com outro arguido, o homem cujo caso fora o primeiro a ser chamado perante o tribunal. A cela era espaçosa e dispunha de bancos ao comprido de três lados. O aspecto negativo de um caso ser chamado logo de início no tribunal é que depois da audiência o arguido tem de esperar sentado nesta cela, que acaba por ficar tão apinhada de pessoas ao ponto de ser necessário um autocarro inteiro para as levar de volta para a prisão do condado. O Casey aproximou-se logo das grades para falar comigo.

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- Que testemunha era essa de que estavas a falar lá dentro? exigiu saber.

- O Senhor da Cor Verdinha. Só nos falta agora o Senhor da Cor Verdinha para este caso andar para a frente.

O rosto do Casey contorceu-se de raiva. Mas nem o deixei falar.

- Ouve, Harold, sei que queres que isto ande para a frente, chegar ao julgamento e depois meter recurso. Mas para isso tens de pagar o frete. A experiência já me ensinou que não me vale de nada andar atrás das pessoas para me pagarem depois de o cavalo já ter arrancado a galope. Se queres que isto se resolva agora, então paga já.

Estava prestes a sair, mas parei e voltei a falar com ele.

- E não penses que o juiz lá dentro não sabia o que estava a passar-se. Deram-te um procurador público ainda muito inexperiente, que não tem de se preocupar de onde lhe virá o próximo cheque de pagamento. Mas o Orton Powell passou muitos anos na barra da defesa antes de ser juiz. Sabe bem o que é andar atrás de testemunhas indispensáveis como o Senhor da Cor Verdinha e não me parece que veja com bons olhos um arguido que não paga ao advogado que o representa. Se eu quiser sair do caso, saio na boa. Mas preferia chegar aqui na próxima segunda-feira e dizer à frente do juiz que encontrámos a nossa testemunha e que estamos prontos para avançar. Percebido?

O Casey não disse nada de início. Afastou-se para o lado oposto da cela e sentou-se no banco. Não olhou para mim quando finalmente se decidiu a falar.

- Assim que eu puder fazer um telefonema - disse.

- Está muito bem, Harold. Vou dizer a um dos delegados que precisas de fazer um telefonema. Fazes a chamada, depois esperas quietinho e vemo-nos na próxima semana. Vamos andar com isto para a frente.

Avancei a passos rápidos para a porta. Detesto estar perto de celas. Não sei bem porquê. Se calhar porque às vezes a linha de separação parece tão ténue. A linha entre ser-se um advogado criminal e um advogado criminoso. Às vezes não tenho bem a certeza de que lado das grades estou. Para mim é sempre um milagre absoluto poder voltar a sair pelo mesmo sítio por onde entrei.

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Quando saí da sala de audiências para o átrio exterior telefonei ao meu motorista para lhe dizer que já ia sair. Depois verifiquei o gravador de chamadas e reparei que tinha mensagens da Lorna Taylor e do Fernando Valenzuela. Resolvi esperar até entrar no carro para lhes responder.

O meu motorista, o Earl Briggs, já tinha o Lincoln parado lá fora. O Earl nunca abandonava o volante para abrir a porta ou fazer o que quer que fosse. O acordo resumia-se a levar-me aos meus destinos como forma de abater a dívida que me devia pelo facto de lhe ter conseguido a liberdade condicional numa condenação por venda de cocaína. Tínhamos acordado vinte dólares à hora, mas só lhe pagava metade para ir reduzindo na dívida. Claro que assim não ganhava tanto como quando vendia crack nos estaleiros de obras, mas era mais seguro, legítimo e algo que poderia incluir depois no currículo. Tinha-me dito que queria endireitar a vida e acreditei nele.

Quando me aproximei ouvi o som de hip-hop por trás das janelas fechadas do luxuoso Lincoln. Mas o Earl desligava sempre a música mal eu estendia a mão para abrir a porta. Enfiei-me no assento de trás e dei-lhe a direcção de Van Nuys.

- Isso que estavas a ouvir era de quem? - perguntei.

- Hum, era dos Three Six Mafia.

- Estilo dirty south?

- Isso mesmo.

Ao longo dos anos tinha-me tornado um conhecedor das diferenças subtis, regionais e outras, do rap e do hip-hop. A maioria dos meus clientes ouvia esse tipo de som e muitos deles tinham até desenvolvido as suas estratégias de vida com base nas letras desse tipo de música.

Peguei numa caixa de sapatos cheia de cassetes do caso Boyleston e escolhi uma à sorte. Anotei o número da cassete e a data no caderno de apontamentos que guardava na caixa. Passei a cassete ao Earl e este enfiou-a no leitor de alta-fidelidade. Não precisei de lhe dizer que a pusesse a tocar baixinho ao ponto de não passar de um mero ruído de fundo. O Earl acompanhava-me há já três meses. Já sabia o que fazer.

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O Roger Boyleston era um dos poucos clientes que me tinham calhado por nomeação do tribunal. Enfrentava uma série de acusações federais relacionadas com o tráfico de droga. Escutas telefónicas da agência federal de luta contra a droga tinham conduzido à sua detenção e à apreensão de seis quilos de cocaína, que ele planeava distribuir através de uma rede de intermediários. Havia uma data de cassetes mais de cinquenta e quatro horas de conversas telefónicas gravadas. O Boyleston falava com muita gente acerca do tipo de produto que estava para chegar e em que data poderia começar a distribuí-lo. Um caso fácil para o governo. O Boyleston iria ficar muito tempo atrás das grades e não havia praticamente nada que eu pudesse fazer a não ser negociar um acordo de culpa com base na cooperação do Boyleston em troca de uma sentença mais leve. Mas não era a sentença que me interessava. O que me interessava eram as cassetes. Só aceitei o caso por causa das cassetes. O governo federal ia pagar-me por ouvir as cassetes enquanto preparava a defesa do meu cliente. Isso significava um mínimo de cinquenta horas facturáveis até o caso ficar resolvido. Sendo assim, fazia questão de pôr as fitas a rodar sempre que viajava no Lincoln. Se alguma vez tivesse de pousar a mão em cima da Bíblia e jurar dizer a verdade, assim ao menos podia afirmar, em boa consciência, que tinha ouvido cada uma daquelas cassetes pelas quais o Tio Sam estava a pagar-me.

Liguei primeiro à Lorna Taylor. A Lorna era a minha secretária. O número de telefone que aparece no meu anúncio de meia página nas Páginas Amarelas - e nos bancos de trinta e seis autocarros espalhados por áreas com elevados índices de criminalidade, a sul e a leste do condado - está directamente ligado ao gabinete em casa dela na Kings Road, na zona oeste de Hollywood. A morada que a Ordem dos Advogados da Califórnia e todos os funcionários dos tribunais têm como minha é também a de casa dela.

A Lorna é o primeiro amortecedor. Para alguém chegar a mim, primeiro tem de passar por ela. Poucos conseguem o meu número de telemóvel e a Lorna é o guardião. É dura, inteligente, profissional e atraente. Se bem que ultimamente só tenha conseguido verificar este último atributo aí uma vez por mês, quando a levo a almoçar fora e assino os cheques - sim, também é a minha contabilista.

- Gabinete de advocacia - atendeu ela quando liguei.

- Desculpa, ainda estava no tribunal - disse-lhe, explicando-lhe por que razão não tinha atendido a chamada. - Que se passa?

- Falaste com o Vai, certo?

-- Sim. Vou agora para Van Nuys. Está marcado para as onze.

- Ele ligou-me para ter a certeza. Parecia nervoso.

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- O Vai acha que este tipo é a galinha dos ovos de ouro e quer ter a certeza de que não vai ficar fora do caso. Depois ligo-lhe para o sossegar.

- Fiz uma pesquisa preliminar sobre o nome Louis Ross Roulet. Os créditos bancários são excelentes. E nos arquivos da Times há algumas entradas com o nome dele. Tudo a ver com transacções imobiliárias. Parece que trabalha para uma agência imobiliária em Beverly Hills que dá pelo nome de Windsor Residential Estafes. Parece que vendem apenas propriedades de listas exclusivas, nada que ver com o tipo de propriedades em que se costuma pôr uma placa de venda na parte de fora.

- Muito bem. Mais alguma coisa?

- Em relação a isso, mais nada. E ao telefone tem sido o habitual. O que significava que tinha recebido as chamadas habituais por via

dos bancos dos autocarros e das Páginas Amarelas, todas de pessoas que queriam um advogado. Antes de os potenciais clientes entrarem no meu radar, primeiro tinham de convencer a Lorna de que podiam pagar os serviços que pediam. Era uma espécie de enfermeira atrás da secretária na sala de emergências. Tinham de a convencer de que dispunham de um seguro válido antes de ela os deixar ver o médico. A Lorna tem ao lado do telefone um tarifário que começa num montante mínimo de 5000 dólares para um caso de condução sob efeito do álcool, até aos honorários que cobro à hora para julgamentos por crimes graves. A sua função é certificar-se de que cada potencial cliente é um cliente pagador e que sabe os custos do crime de que foi acusado. Há um ditado que diz: não te metas em delitos se não queres ir dentro. A Lorna gosta de dizer esta frase ao mesmo tempo do que eu: não te metas em delitos se não podes pagar os nossos serviços. Aceita MasterCard e Visa e trata de conseguir uma autorização de pagamento antes de um cliente conseguir chegar a mim.

- Ninguém conhecido? - perguntei.

- Ligou a Gloria Dayton das Torres Gémeas.

Resmunguei. As Torres Gémeas, localizadas na Baixa, eram a principal cadeia do condado. Mulheres numa torre e homens na outra. A Gloria Dayton era uma prostituta de luxo que precisava ocasionalmente dos meus serviços legais. A primeira vez que a representei foi há uns dez anos, era ela jovem e livre de drogas, e ainda com vida nos olhos. Agora era uma cliente pró hono. Nunca lhe cobrava. Só tentava convencê-la a deixar aquela vida.

- Quando é que a meteram dentro?

- Ontem à noite. Ou melhor, esta manhã. A primeira audiência é depois de almoço.

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- Não sei se vou ter tempo, ainda tenho esta coisa em Van Nuys.

- Há também uma complicação. Posse de cocaína, além das acusações habituais.

Sabia que a Gloria trabalhava exclusivamente através de contactos feitos na Internet, onde se fazia anunciar como Glory Days numa série de sites. Não era nenhuma prostituta de rua nem andava pelos bares. Quando ia dentro, geralmente era porque um agente encoberto tinha conseguido passar pelo sistema de controlo dela e marcar um encontro. O facto de ter sido apanhada com cocaína quando compareceu ao encontro pareceu-me um lapso inusual da parte dela ou talvez tivesse sido uma cilada do agente.

- Está bem, se ela voltar a ligar diz-lhe que vou tentar aparecer lá e que se não conseguir arranjo-lhe outra pessoa para tratar disso. Ligas ao tribunal para confirmar a audiência?

- Já estou a tratar disso. Mas quando é que lhe vais dizer que é a última vez, Mickey?

- Não sei. Talvez hoje. Que mais há?

- Não te chega já para um dia?

- Acho que sim.

Falámos um pouco mais da minha agenda para o resto da semana e abri o portátil em cima da mesinha rebatível para verificar se a minha agenda batia certo com a dela. Todas as manhãs tinha um par de audições e na quinta-feira um julgamento que iria ocupar-me o dia todo. Tudo casos relacionados com drogas na zona sul. O meu ganha-pão habitual. No final da conversa disse que lhe ligava depois da audiência em Van Nuys para a informar se o caso Roulet poderia vir a ter impacto nas coisas.

- Só mais uma coisa - disse-lhe. - Disseste que o lugar onde o Roulet trabalha só vende propriedades exclusivas, certo?

- Sim. Cada contrato anexado ao nome dele que encontrei nos arquivos referia uma quantia com sete algarismos. Um par deles ascendia até a montantes com oito algarismos. Holmby Hills, Bel-Air, esse tipo de lugares.

Lembrei-me de que o estatuto do Roulet poderia vir a torná-lo um roço de interesse para os meios de comunicação.

- E se desses uma apitadela ao Baquetas? - sugeri.

- Tens a certeza?

- Sim, pode ser que se consiga alguma coisa.

- Certo.

- Depois falo contigo.

Assim que desliguei, o Earl já tinha virado para a via rápida de Antelope Valley rumo a sul. Estávamos a andar bem e não ia ter

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problemas em chegar a Van Nuys a tempo da primeira audiência do Roulet. Liguei ao Fernando Valenzuela para lhe dizer.

- Óptimo - disse ele. - Fico a aguardar.

Enquanto falava com ele, vi passar duas motorizadas. Ambos os motoqueiros vestiam blusão de cabedal preto com a imagem da caveira e do halo estampada atrás.

- Mais alguma coisa? - perguntei.

- Sim, mais uma coisa que acho que devo dizer-te. Tratei de confirmar junto do tribunal quando ia ser a primeira audiência dele e descobri que o caso tinha sido entregue à Maggie McFierce. Não sei se isso vai ser um problema para ti ou não.

Maggie McFierce era como chamávamos à Margaret McPherson, que por acaso era um dos procuradores distritais mais duros e, sim, mais ferozes, destacados para o tribunal de Van Nuys. E que, por acaso, também tinha sido a minha primeira mulher.

- Para mim não é problema - disse, sem hesitação. - Vai ser um problema é para ela.

O arguido tem o direito de escolher o advogado de defesa. Se houver conflito de interesses entre o advogado de defesa e o procurador público, o procurador é substituído por outro. Sabia que a Maggie me culparia pessoalmente se perdesse as rédeas do que poderia vir a ser um caso importante, mas eu não podia fazer nada. Já tinha acontecido antes. Ainda tinha no meu portátil uma moção de desqualificação do último caso em que os nossos caminhos se cruzaram. Se fosse necessário, bastava-me mudar o nome do arguido e imprimir. Assim, com ela fora do caminho, já podia avançar sem entraves.

Os dois motoqueiros seguiam agora à nossa frente. Virei-me e espreitei pelo vidro de trás. Vi mais três Harleys atrás de nós.

- Mas já sabes o que isso significa.

- Não, o quê? - perguntou ele.

- Não vai aceitar caução. Faz sempre isso quando se trata de crimes contra mulheres.

- Raios, e achas que consegue? Quer-me parecer que ainda vai haver grandes mudanças nesta coisa.

- Não sei. Disseste que o tipo tem a família e o C. C. Dobbs. Isso diz-me alguma coisa. Depois vemos.

- Que raios.

O Valenzuela estava a ver a sua grande jogada ir por água abaixo.

- Encontramo-nos lá, Val.

"Motion to desqualify", no original. (NT)

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Desliguei. Falei com o Earl. - Há quanto tempo é que a escolta nos segue?

- Acabam de chegar. Queres que faça alguma coisa?

- Vamos ver o que é que eles...

Nem precisei de acabar a frase. Um dos motoqueiros que seguia atrás pôs-se ao lado do Lincoln e fez-nos sinal para virarmos na próxima saída para o Vasquez Rocks County Park. Reconheci-o: era o Teddy Vogel, ex-cliente meu e o membro dos Road Saints de posto mais elevado ainda não encarcerado. Também devia ser o membro mais gordo dos Road Saints. Pesava pelo menos uns 150 quilos e dava a impressão de ser um miúdo gordo montado em cima da motorizada do irmão mais novo.

- Encosta aí, Earl - disse. - Vamos ver o que ele quer. Parámos no parque de estacionamento ao lado da formação rochosa

irregular baptizada com o nome de um fora-da-lei que se tinha escondido aí um século antes. Vi duas pessoas sentadas a desfrutar de um piquenique na borda de umas das saliências mais elevadas. Acho que não ia sentir-me à vontade a comer sanduíches num lugar e numa posição tão perigosos.

Desci o vidro da janela quando o Teddy Vogel se aproximou. Os outros quatro Saints tinham desligado os motores, mas continuavam em cima das motorizadas. O Vogel inclinou-se para a janela e pousou um dos antebraços gigantescos no parapeito. Senti o carro inclinar uns poucos centímetros.

- Doutor, como vai isso? - disse ele.

- Tudo bem, Ted - respondi, não querendo tratá-lo pela óbvia alcunha que o bando lhe pusera de Teddy Bear.1 - Que contas?

- Que aconteceu ao rabo-de-cavalo?

- Algumas pessoas levantavam objecções e decidi cortá-lo.

- Os jurados, ha? Devem ter sido muitas queixas, para te obrigarem a cortá-lo.

- E que contas, Ted?

- Recebi uma chamada do Hard Case lá da cadeia de Lancaster. Disse-me que podia apanhar-te a caminho do sul. Disse que estavas a empatar-lhe o caso até receberes dinheiro. É verdade, doutor?

Disse-o como se fosse uma conversa rotineira. Sem qualquer ameaça na voz ou nas palavras. E não me senti ameaçado. Dois anos antes, consegui que um caso de rapto e assalto agravado contra o Vogel fosse reduzido para perturbação da paz pública. Na altura, dirigia um clube

À letra, "Ursinho de Peluche". (NT)

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de strip que era propriedade dos Saints, na Sepulveda, em Van Nuys. A detenção ocorreu quando uma das suas dançarinas mais produtivas decidiu demitir-se e atravessar a rua para ir trabalhar num clube da concorrência. O Vogel foi lá arrancá-la do palco e trouxe-a de volta para o clube. A dançarina estava nua. Um condutor que por ali passava chamou a polícia. Refutar o caso foi um dos meus melhores trabalhos e o Vogel sabia-o. O tipo gostava de mim.

- Sim, o Casey percebeu bem a mensagem - disse. - Trabalho para ganhar a vida. Se quer que trabalhe para ele, tem de me pagar.

- Demos-te cinco mil em Dezembro - disse o Vogel.

- Há muito que foi gasto, Ted. Mais de metade foi para o perito que vai arrasar o caso. O resto foi para mim e já fiz as horas de trabalho correspondente. Se é para levar isto a julgamento, então preciso de voltar a atestar o depósito.

- Queres mais cinco mil?

- Não, preciso de dez mil, e disse isso mesmo ao Hard Case na semana passada. É um julgamento de três dias e vou precisar de mandar vir o meu perito em Kodak, de Nova Iorque. Tenho de lhe pagar os honorários e o tipo quer primeira classe no ar e um castelo em terra. Pensa que vai estar a beber no bar com as estrelas de cinema ou coisa do género. Nesse sítio pagam-se quatrocentos dólares por noite, e refiro-me só aos quartos mais baratos.

- Matas-me, Doutor. Que aconteceu àquele slogan que tinhas nas Páginas Amarelas? "Dúvida razoável por honorários razoáveis"? Achas que dez mil dólares é ser razoável?

- Gostava desse slogan. Trouxe-me muitos clientes. Mas a Ordem dos Advogados da Califórnia não gostou e obrigou-me a tirá-lo. O preço é dez mil e é razoável, Ted. Se não puderes ou não quiseres pagar, devolvo hoje mesmo a papelada toda. Saio do caso e ele que arranje um delegado do ministério público. Entrego toda a papelada que tenho comigo. Mas o delegado se calhar nem tem orçamento para mandar vir o perito de fotografia.

O Vogel mexeu o braço e o carro estremeceu sob o peso.

- Não, não, queremos-te a ti. O Hard Case é importante para nós, percebes o que quero dizer? Quero-o cá fora pronto para trabalhar.

Vi-o enfiar dentro do blusão uma mão tão carnuda que os nós dos dedos pareciam amolgados. Tirou um envelope grosso que me passou para a mão.

- São notas? - perguntei.

- Certo. Tem algum mal que seja em notas?

- Tudo bem. Mas tenho de te passar um recibo. É obrigatório por causa do IRS. Estão aqui os dez mil todos?

30


- Tá tudo aí.

Abri a tampa de uma caixa de dossiers no assento ao meu lado. O meu livro de recibos estava atrás dos dossiers dos casos que me ocupavam de momento. Comecei a preencher o recibo. Muitos advogados acabam por ser expulsos da ordem por causa de infracções financeiras. Má administração ou aplicação fraudulenta dos honorários pagos pelos clientes. Eu mantinha registos e recibos meticulosamente. Nunca deixaria que a ordem me apanhasse por causa disso.

- Com que então sempre tinhas aí o dinheiro - disse, enquanto preenchia o recibo. - E se eu tivesse aceitado os cinco mil? Fazias o quê?

O Vogel sorriu. Faltava-lhe um dente de baixo. Deve ter sido de alguma luta no clube. Deu uma palmadinha no outro lado do blusão.

- Tenho aqui outro envelope com cinco mil, Doutor. Já vinha preparado.

- Raios, agora sinto-me mal por te deixar com dinheiro no bolso. Dei-lhe a cópia do recibo pela janela.

- Pus o nome do Casey. É ele o cliente.

- Por mim tudo bem.

Pegou no recibo e tirou o braço da janela. O carro voltou ao nível normal. Queria perguntar-lhe de onde vinha o dinheiro, qual tinha sido a empresa criminosa dos Saints a ganhá-lo, se cem miúdas tinham dançado cem horas para ele poder pagar-me, mas mais valia não saber a resposta. O Vogel voltou para a Harley e levantou com esforço a perna grossa como uma lata do lixo. Foi então que reparei nos amortecedores duplos na roda traseira. Disse ao Earl para voltar para a via rápida e seguir para Van Nuys, onde precisava agora de fazer uma paragem no banco antes de me encontrar no tribunal com o meu novo cliente.

Quando arrancámos, abri o envelope e contei o dinheiro: notas de vinte, cinquenta e cem dólares. Estava todo ali. O depósito estava atestado e já podia avançar com o Harold Casey. Iria a julgamento e ensinaria uma lição ao jovem procurador. Ganharia, se não em julgamento, de certeza no recurso. O Casey poderia voltar para a família e para o trabalho nos Road Saints. Enquanto preenchia um talão de depósito bancário destes honorários, nem sequer me passou pela cabeça se ele seria culpado do crime de que era acusado.

- Sr. Haller? - disse o Earl pouco depois.

- Que foi, Earl?

- Aquele homem que disse há pouco que vinha de Nova Iorque, o tal perito. É preciso ir buscá-lo ao aeroporto?

Abanei a cabeça.

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- Não vem nenhum perito de Nova Iorque, Earl. Os melhores peritos de fotografia e operadores de câmara estão aqui em Hollywood.

O Earl anuiu e olhou-me nos olhos por momentos através do retrovisor. Depois voltou a olhar para a estrada à sua frente.

- Estou a ver - disse, voltando a anuir com a cabeça. Também anuí. Nada de hesitações no que dizia ou fazia. Era esse o

meu trabalho. Era assim que funcionava. Depois de quinze anos de exercício da lei, acabara por encará-la em termos muito simples. A lei era uma máquina enorme e enferrujada que sugava pessoas e vidas e dinheiro. Não passava de uma máquina. Tinha-me tornado especialista em entrar na máquina e consertar coisas e, em troca, extrair dela aquilo de que precisava.

Não havia nada na lei que eu continuasse a apreciar. As noções da faculdade de Direito acerca da virtude do princípio do contraditório, do controlo e equilíbrio do sistema, da procura da verdade, há muito que se tinham erodido como os rostos de estátuas de outras civilizações. A lei já não tinha que ver com a verdade. Tinha que ver com negociação, correcção, manipulação. Eu não lidava com culpa e inocência, porque toda a gente era culpada de alguma coisa. Mas isso não importava, porque cada caso que aceitava era uma casa assente em alicerces construídos por trabalhadores exaustos e mal pagos. Faziam as coisas à pressa. Cometiam erros. E depois pintavam os erros com mentiras. O meu trabalho era descascar a tinta para encontrar as rachas. Enfiar os dedos e as minhas ferramentas nessas rachas e alargá-las. Torná-las tão grandes ao ponto de a casa ruir ou, caso isso falhasse, tirar o meu cliente de lá para fora.

Grande parte da sociedade tomava-me por um diabo, mas estavam enganados. Eu era um anjo oleoso. Era um verdadeiro santo da estrada. As pessoas precisavam de mim e queriam-me. De ambos os lados. Era eu o óleo da máquina. Deixava que a engrenagem funcionasse e girasse. Ajudava a manter o motor do sistema a funcionar.

Mas tudo isso iria mudar com o caso Roulet. Para mim. Para ele. E, de certeza, também para o Jesus Menendez.

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4


O Louis Ross Roulet estava numa cela de detenção com mais sete homens que tinham feito a viagem de autocarro da prisão até ao tribunal de Van Nuys. Havia só dois brancos na cela e estavam sentados ao lado um do outro; os seis negros estavam sentados do outro lado da cela. Era uma forma de segregação darwiniana. Todos estranhos uns para os outros, mas havia força nos números.

Como o Roulet vinha supostamente do dinheiro de Beverly Hills, olhei para os dois brancos e foi fácil escolher entre ambos. Um era um pau de virar tripas, com os olhos desesperados e aquosos de um drogado há muito a precisar de mais um chuto. O outro parecia o proverbial veado encadeado pelos faróis. Escolhi este.

- Sr. Roulet? - chamei, pronunciando o nome como o Valenzuela me tinha dito.

O veado anuiu com a cabeça. Fiz-lhe sinal para se aproximar das grades de modo a podermos falar à vontade.

- Michael Haller. As pessoas chamam-me Mickey. Vou representá-lo hoje durante a primeira audiência.

Estávamos na área de detenção, onde é costume deixar os advogados entrar para conferenciar com os clientes antes do início da audiência. Há uma linha azul pintada no chão, no exterior das celas. Uma linha de um metro. Tinha de manter essa distância em relação ao meu cliente.

O Roulet agarrou-se às grades. Tal como os outros na cela, tinha correntes nos tornozelos, nos pulsos e na barriga. Só lhas tirariam quando fosse levado para dentro da sala de audiências. Tinha trinta e poucos anos e parecia esguio, embora tivesse pelo menos um metro e oitenta e aí oitenta quilos de peso. A cadeia faz isso às pessoas. Os olhos eram de um azul-pálido e era raro deparar-me com aquele tipo de pânico tão claramente visível nos olhos de um detido. A maior parte das vezes, os meus clientes já estiveram antes na cadeia e têm aquele olhar frio de predador. É assim que conseguem sobreviver à prisão.

Mas o Roulet era diferente. Parecia uma presa. Estava assustado e não se importava que vissem e soubessem que estava assustado.

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- Alguém me tramou - apressou-se a dizer em voz alta. - Tem de me tirar daqui. Cometi um erro com aquela mulher, é tudo. Ela está a tentar tramar-me e...

Ergui as mãos para o calar.

- Tenha cuidado com o que diz aqui - disse-lhe em voz baixa.
- Aliás, tenha cuidado com o que diz até o tirarmos daqui e podermos falar em privado.

Ele olhou à volta, sem parecer compreender.

- Nunca se sabe quem está a ouvir - disse-lhe. - E nunca se sabe se alguém vai dizer que o ouviu dizer alguma coisa, mesmo que não tivesse dito nada. A melhor coisa a fazer é não falar de nada do caso. Percebe? A melhor coisa a fazer é não dizer nada nem falar com ninguém, ponto final.

Concordou com a cabeça e fiz-lhe sinal para se sentar no banco ao lado das grades. Do meu lado havia um banco encostado à parede e sentei-me.

- Só vim aqui para o conhecer e para lhe dizer quem sou. Depois falamos do caso quando o tirarmos daqui. Já falei lá dentro com o advogado da sua família, o Sr. Dobbs, e vamos dizer ao juiz que estamos preparados para apresentar a caução. Tudo claro até agora?

Abri uma pasta de couro Mont Blanc e preparei-me para tomar notas num bloco. O Roulet anuiu. Estava a aprender.

- Muito bem. Fale-me de si. Idade, se é casado, que laços tem com a comunidade.

- Hum, tenho trinta e dois. Vivi aqui a minha vida toda, até fiz a escola aqui. Na UCLA. Não sou casado. Não tenho filhos. Trabalho...

- Divorciado?

- Não, nunca casei. Trabalho no negócio da família. Windsor Residential Estales. O nome vem da segunda mulher do meu pai. Propriedades, vendemos propriedades.

Eu continuava a tomar notas. Sem olhar para ele, perguntei baixinho: - Quanto ganhou o ano passado?

Como o Roulet não respondeu, levantei a cabeça.

- Por que precisa de saber isso? - perguntou.

- Porque vou tirá-lo hoje daqui antes de o Sol se pôr. Para fazer isso, preciso de saber tudo sobre o seu estatuto na comunidade. E isso inclui o seu estatuto financeiro.

- Não sei exactamente quanto ganhei. Grande parte veio de acções da companhia.

- Não declarou os rendimentos?

O Roulet olhou para os outros detidos por cima do ombro e depois sussurrou a resposta.

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- Sim, declarei. Nesse caso, os meus rendimentos foram um quarto de milhão.

- Mas o que está a dizer é que com as acções da companhia ganhou realmente mais.

- Sim.

Um dos outros detidos aproximou-se das grades ao lado dele. O outro homem branco. Estava agitado, as mãos sempre a mexer nas coxas e nos bolsos com gestos desesperados.

- Ei, também preciso de um advogado. Tens aí um cartão?

- Para ti não, amigo. Lá dentro vão arranjar-te um advogado. Voltei a olhar para o Roulet e esperei alguns segundos para que o

drogado se afastasse. Não se afastou. Voltei a olhar para ele.

- Ouve, isto é privado. Podes deixar-nos sozinhos?

O drogado fez uma espécie de gesto e voltou de pés arrastados para o canto de onde tinha saído. Voltei a olhar para o Roulet.

- E organizações caritativas ? - perguntei.

- Refere-se a quê?

- Se está envolvido em acções de caridade. Contribui para acções de caridade?

- Sim, a companhia contribui. Damos dinheiro para a Make a Wish e para um centro de acolhimento em Hollywood. Acho que se chama My Friend's Place ou algo parecido.

- Okay, óptimo.

- Vai tirar-me daqui?

- Vou tentar. As acusações contra si são graves, estive a verificar antes de vir para aqui e tenho a impressão de que a procuradora distrital vai recusar o pedido de caução, mas isto é boa matéria. Posso trabalhar a partir disto.

Indiquei-lhe as notas que tinha tirado.

- Recusar o pedido de caução? - disse ele, em voz alta e em pânico.

Os outros detidos olharam na direcção dele porque o que ele acabava de dizer era o pesadelo de todos eles. Caução recusada.

- Acalme-se. Eu disse que é isso que ela vai tentar propor. Não disse que ela ia conseguir. Quando foi a última vez que esteve preso?

Costumava lançar sempre esta pergunta de repente, para poder olhá-los nos olhos e ver se haveria alguma surpresa à minha espera no tribunal.

- Nunca. Nunca fui preso. Tudo isto é...

- Eu sei, eu sei, mas é melhor não falarmos disso aqui, lembra-se? Anuiu. Verifiquei as horas. A audiência estava prestes a começar e

ainda precisava de falar com a Maggie McFierce.

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- Tenho de ir agora. Vejo-o lá dentro daqui a alguns minutos e tentaremos tirá-lo daqui. Quando estiver lá dentro, não diga nada sem me consultar primeiro. Se o juiz lhe perguntar como vai, não diga nada sem me consultar primeiro. Okay")

- Bem, não tenho de dizer que sou "inocente" das acusações?

- Não, nem sequer vão perguntar isso. Tudo o que vão fazer hoje é ler-lhe as acusações, falar da caução e marcar uma data para ser presente perante o juiz. Só nessa altura é que dizemos "inocente". Portanto, hoje não vai dizer nada. Nada de explosões emotivas, nada. Percebido?

Franziu a testa.

- Vai ficar bem, Louis? Anuiu, desalentado.

- Só para que saiba, cobro dois mil e quinhentos dólares por uma audiência para primeira apresentação e caução deste tipo. Algum problema quanto a isso?

Abanou a cabeça. Fiquei contente por ele não estar a falar. A maioria dos meus clientes fala de mais. Geralmente falam tanto que acabam por ir presos.

- Muito bem. Falamos do resto depois de sair daqui, quando pudermos conversar em privado.

Fechei a pasta de couro, esperando que ele tivesse reparado nela e tivesse ficado impressionado. Levantei-me.

- Só mais uma coisa - disse-lhe. - Por que me escolheu a mim? Há tantos advogados lá fora, porquê eu?

Era uma pergunta sem interesse para o nosso relacionamento, mas quis testar a veracidade do Valenzuela.

O Roulet encolheu os ombros.

- Não sei. Lembrei-me que tinha lido o seu nome no jornal.

- E o que leu acerca de mim?

- Era a história de um caso em que as provas contra um tipo tinham sido anuladas. Acho que tinha que ver com drogas ou algo do género. Você ganhou o caso porque depois disso ficaram sem provas.

- O caso Hendricks?

Era o único caso de que me lembrava que tinha sido referido nos jornais em meses recentes. O Hendricks era outro cliente dos Road Saints e o departamento do xerife tinha-lhe posto um dispositivo de GPS na Harley para vigiar as entregas que ele fazia. Fazer isso nas estradas públicas estava muito bem. Mas quando ele guardou a motorizada dentro da cozinha à noite, o dispositivo constituía já uma violação de domicílio pela polícia. O caso foi anulado por um juiz durante a audiência preliminar. Teve um certo destaque no Times.

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-- Não consigo lembrar-me do nome do cliente - disse o Roulet.

Só sei que me lembrei do seu nome. Do seu último nome, aliás.

Quando liguei hoje ao fiador judicial dei-lhe o nome Haller e pedi-lhe para falar consigo e ligar ao meu advogado de família. Porquê?

- Por nenhuma razão especial. Apenas curiosidade. Ainda bem que me escolheu. Vemo-nos no tribunal.

Resolvi deixar para mais tarde a questão das diferenças entre aquilo que o Roulet tinha dito sobre a decisão de me contratar e aquilo que o Valenzuela me tinha dito. Vi a Maggie McFierce sentada a uma das pontas da mesa da acusação, juntamente com mais cinco procuradores públicos. A mesa, em forma de L, era suficientemente larga para acomodar um infindável número de advogados, que podiam sentar-se e continuar virados para a mesa do juiz. Os procuradores públicos destacados para o tribunal lidavam com a maior parte das apresentações de rotina e leitura das acusações que por lá desfilavam todos os dias. Mas os casos especiais faziam sair os grandes espingardões do gabinete da procuradoria no segundo piso. O mesmo acontecia às câmaras de TV.

Assim que entrei na sala, vi um homem montar uma câmara de vídeo num tripé ao lado da secretária do oficial de justiça. Não havia na câmara nem nas roupas do homem nenhum símbolo que identificasse a estação televisiva. Era um freelancer que tinha ouvido falar do caso e que iria gravar a audiência para depois tentar vendê-la a alguma das estações locais cujo director de informação precisasse de uma história de trinta segundos. Quando verifiquei antes junto do oficial de justiça que lugar ocupava o Roulet na lista, disse-me que o juiz já tinha autorizado as filmagens.

Aproximei-me por trás da minha ex-mulher e baixei-me para lhe sussurrar ao ouvido. Estava a ver fotografias num dossier. Vestia um fato azul-escuro com uma fina risca a cinza. O cabelo cor de corvo estava atado atrás com uma fita cinza a condizer. Adorava o cabelo dela quando o prendia assim atrás.

- És tu quem estava encarregada do caso Roulet?

Ergueu a cabeça, sem reconhecer que era eu. O seu rosto estava a formar um sorriso involuntário, que depois se transformou num franzir ao ver que era eu. Sabia exactamente o que eu queria dizer ao usar o pretérito e fechou o dossier com força.

- Não me digas - disse ela.

- Lamento. Ele gostou do que fiz no caso Hendricks e ligou-me.

- Filho da mãe. Eu queria este caso, Haller. É a segunda vez que me fazes isto.

- Se calhar esta cidade não é suficientemente grande para os dois
- disse, numa pobre imitação do James Cagney.

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Ela resmungou. - Muito bem - disse, numa repentina rendição.

- Saio nas calmas depois da audiência. A não ser que também ponhas objecções a isso.

- Talvez. Vais recusar o pedido de caução?

- Correcto. Foi uma directiva vinda do segundo piso.

Isso significava que um supervisor do caso deve ter pedido para recusarem a caução.

- O tipo tem laços com a comunidade. E nunca foi preso. Esperei pela reacção dela, pois ainda não tinha tido tempo para

verificar se era verdade ou não que o Roulet nunca tinha estado preso. É sempre uma surpresa como muitos clientes mentem acerca dos seus encontros anteriores com a máquina, até porque essas mentiras nunca os levam longe.

Mas a Maggie não deu sinal de saber o contrário. Talvez fosse verdade. Talvez o meu cliente fosse mesmo um transgressor primário e completamente honesto.

- Não interessa se já fez alguma coisa antes - disse a Maggie.

- O que interessa é o que fez na noite passada.

Abriu o dossier e verificou rapidamente as fotos até encontrar aquela que queria.

- Vê o que o teu pilar da comunidade fez na noite passada. E não me importa realmente o que é que ele fez antes. Só quero ter a certeza de que vai dentro para não voltar a fazer isto.

Era uma foto de 8 por 10 do rosto de uma mulher. O inchaço à volta do olho direito era tão extenso que o olho estava completamente fechado. Tinha o nariz partido e deslocado. Gaze empapada em sangue em ambas as narinas. Um golpe profundo por cima da sobrancelha direita, fechado com nove pontos. O lábio inferior estava cortado e apresentava também um inchaço do tamanho de um berlinde. O pior da foto era o olho ileso. A mulher olhava para a câmara com medo, dor e humilhação inequivocamente expressos nesse olho lacrimejante.

- Se foi ele quem fez isso - disse-lhe, porque era o que se esperava que dissesse.

- Certo. Claro, se foi ele quem fez isto. Só que prenderam-no em casa dela, com sangue dela na roupa. Mas sim, tens razão, é uma pergunta válida.

- Gosto quando és sarcástica. Tens aí o relatório da detenção? Gostava de ter uma cópia.

- Podes pedir a quem vai ficar com o caso em vez de mim. Nada de favores, Haller. Desta vez não.

Fiquei à espera de mais provocações, mais indignação, talvez mais algum aviso, mas não disse mais nada. Concluí que arrancar-lhe mais coisas sobre o caso era uma causa perdida. Mudei de assunto.

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-- Pois bem. E ela, como está?

Está assustada de morte e com dores horríveis. Como achas que

estaria?

Olhou para mim. Vi-lhe nos olhos que acabava de compreender, mas também vi censura.

Nem sequer estavas a perguntar acerca da vítima, pois não?

Não respondi. Não queria mentir-lhe.

- A tua filha está bem - disse, num tom indiferente. - Gosta das coisas que lhe mandas, mas preferia que aparecesses mais vezes.

Não era nenhum aviso. Era um golpe directo e merecido. Parecia que eu andava sempre atrás de casos, mesmo aos fins-de-semana. Lá no fundo, sabia que precisava de começar a andar atrás da minha filha à volta do quintal mais vezes. O tempo para o fazer começava a esgotar-se.

- Vou fazer isso. A partir de agora. Que tal este fim-de-semana?

- Muito bem. Queres que lhe diga hoje à noite?

- Hum, é melhor esperar até amanhã para ter a certeza.

A Maggie anuiu, como se já soubesse. Já tínhamos passado por isto mais vezes.

- Óptimo. Diz-me amanhã, então. Desta vez não gostei do sarcasmo.

- Ela precisa de alguma coisa? - perguntei, tentando voltar a uma posição de empate.

- Acabei de te dizer do que ela precisa. Quer-te mais vezes na vida dela.

- Okay, prometo. Vou fazer isso. Ela não respondeu.

- Falo a sério, Maggie. Ligo-te amanhã.

Olhou para mim e estava prestes a atingir-me com dois balázios. Já o tinha feito antes, dizendo que eu era só conversa e nada de acção, no que dizia respeito à paternidade. Mas fui salvo porque a audiência começou nesse momento. O juiz entrou e ocupou o seu lugar. Saí da mesa da procuradoria sem dizer mais nada à Maggie e voltei para um dos lugares ao comprido da barra.

O juiz perguntou ao oficial se havia alguma matéria a discutir antes de os detidos serem apresentados. O oficial disse que não e o juiz mandou entrar o primeiro grupo. Tal como na sala de audiências de Lancaster, havia uma grande área de contenção para os arguidos detidos. Levantei-me e aproximei-me da porta de vidro, que estava a ser aberta. Quando vi o Roulet entrar, fiz-lhe sinal para se aproximar.

- Vai ser o primeiro - disse-lhe. - Pedi ao juiz para não seguir a ordem da lista, como um favor. Quero ver se consigo tirá-lo daqui.

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Não era verdade. Não tinha pedido nada ao juiz e, mesmo que tivesse, o juiz nunca faria tal coisa como um favor à minha pessoa. O Roulet ia ser o primeiro por causa da presença dos meios de comunicação na sala de audiências. Era prática geral chamar primeiro os casos mediáticos. Era uma cortesia ao operador de câmara, que supostamente tinha outras tarefas à sua espera. Mas a tensão na sala também se reduzia quando advogados, arguidos e até o próprio juiz podiam operar sem uma câmara a filmá-los.

- Por que é que a câmara está aqui? - perguntou o Roulet, num sussurro de pânico. - É por minha causa?

- Sim, é por sua causa. Alguém deve ter falado do caso. Se não quiser ser filmado, tente usar-me como escudo.

O Roulet mudou de posição, para que a câmara do outro lado da sala não pudesse filmá-lo. Isto reduzia as hipóteses de o operador de câmara vender a história e o filme a algum noticiário local. Ainda bem. Também significava que, se conseguisse vender a história, seria eu o ponto focal das imagens que a acompanhavam. Isto também era bom.

O caso Roulet foi chamado - o nome foi mal pronunciado pelo oficial -, a Maggie anunciou a sua presença pela procuradoria e eu a minha. A Maggie tinha carregado nas acusações, como era o seu habitual modus operandi no papel de Maggie McFierce. O Roulet enfrentava agora tentativa de homicídio juntamente com tentativa de violação. O que facilitaria a argumentação para o pedido de recusa da caução.

O juiz informou o Roulet dos seus direitos constitucionais e marcou a data de 21 de Março para ser presente perante o juiz. Falando pelo meu cliente, pedi para se discutir a questão da recusa da caução. Isto desencadeou uma espirituosa troca de palavras entre mim e a Maggie, tudo arbitrado pelo juiz, que sabia que tínhamos sido casados, porque tinha ido ao casamento. Depois de a Maggie listar as atrocidades sofridas pela vítima, por meu turno listei os laços comunitários do Roulet e os seus esforços caritativos e apontei para o C. C. Dobbs na assistência e propus chamá-lo a testemunhar para comprovar as boas referências do Roulet. O Dobbs era o meu trunfo na manga. O seu estatuto na comunidade jurídica suplantaria o estatuto do Roulet e influenciaria certamente o juiz, que ocupava o seu lugar por decisão dos eleitores e dos financiadores das campanhas.

- A conclusão, Meritíssimo, é que o estado não pode instaurar um processo contra este homem por haver risco de fuga ou ser um perigo para a comunidade - disse, à laia de conclusão. - O Sr. Roulet está ancorado nesta comunidade e a única coisa que pretende é atacar vigorosamente as falsas acusações que foram levantadas contra ele.

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Usei propositadamente a palavra atacar para o caso de a filmagem ser transmitida na TV e ser vista pela mulher que levantara as acusações.

- Meritíssimo - respondeu a Maggie -, pondo de lado todas essas considerações, não deve ser esquecido que a vítima deste caso foi brutalmente...

- Sra. McPherson - interrompeu-a o juiz. - Acho que já discutimos suficientemente esta questão. Estou a par dos danos da vítima, bem como do estatuto do Sr. Roulet. E também tenho a agenda muito preenchida hoje. Vou aplicar uma caução de um milhão de dólares. Vou também requerer que o Sr. Roulet seja supervisionado pelo tribunal com comparências semanais. Se faltar a alguma, ficará privado da liberdade.

Lancei um olhar rápido à assistência, onde o Dobbs estava sentado ao lado do Fernando Valenzuela. O Dobbs era magro e rapava a cabeça para esconder a calvície precoce. A magreza era exagerada pelo contraste com a cintura farta do Valenzuela. Esperei por um sinal para saber se deveria aceitar a ordem de caução do juiz ou tentar pedir um montante menor. Às vezes, quando um juiz pensa que está a oferecer-nos um presente, isso pode resultar numa pressão para pedir mais
- ou menos, como neste caso.

O Dobbs estava sentado no primeiro lugar da primeira fila. Levantou-se e começou a sair da sala de audiências, deixando o Valenzuela ali. Deduzi que aquilo significava que a família Roulet trataria de arranjar o milhão. Voltei a virar-me para a mesa do juiz.

- Obrigado, Meritíssimo.

O oficial chamou imediatamente o caso seguinte. Vi a Maggie fechar o dossier do caso que já não seria ela a representar. Levantou-se e saiu pelo corredor central da sala. Não falou com ninguém nem voltou a olhar para mim.

- Sr. Haller?

Virei-me para o meu cliente. Vi atrás dele um delegado que se preparava para o levar para a cela. Seria levado de autocarro para a prisão e depois, dependendo da rapidez do trabalho do Dobbs e do Valenzuela, seria libertado ainda nesse dia.

- Vou tratar das coisas com o Sr. Dobbs para o tirar daqui - disse-lhe. - Depois vamos sentar-nos para falar do caso.

- Obrigado - disse o Roulet enquanto o levavam. - Obrigado Por ter vindo aqui.

- Lembre-se do que lhe disse, não fale com desconhecidos. Não fale com ninguém.

- Sim, senhor.

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O Valenzuela estava à minha espera com um grande sorriso na cara. A caução do Roulet era provavelmente a mais alta que alguma vez lhe passara pelas mãos. Isso significava que a fatia que ia receber era a mais alta que alguma vez ganhara. Deu-me uma pancadinha no braço assim que me aproximei.

- Eu não te tinha dito? Conseguimos aqui uma franquia, patrão.

- A ver vamos, Vai. A ver vamos.

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5


Qualquer advogado que faz funcionar a máquina tem dois tarifários de honorários. Há o tarifário A, com os honorários que o advogado gostaria de cobrar por certos serviços prestados. E há o tarifário B, os honorários que está disposto a aceitar porque é tudo o que o cliente pode pagar. Um cliente franqueado é um arguido que quer ir a julgamento e tem dinheiro para pagar ao advogado os honorários do tarifário A. Desde a primeira apresentação perante o juiz, passando pela leitura das actas de acusação, audiência preliminar, julgamento e depois pelo recurso, o cliente franqueado requer centenas, se não milhares, de horas facturáveis. O que paga dá para manter o depósito atestado durante dois ou três anos. No meu terreno de caça, são a fera mais rara e a mais cobiçada da selva.

E tudo parecia começar a indicar que o Valenzuela já andava com o fito no dinheiro. O Louis Roulet parecia cada vez mais um cliente franqueado. Tinha sido um período de ressaca para mim. Há quase dois anos que não me aparecia nada que se parecesse sequer com um caso ou um cliente franqueado. Estou a falar dum caso que pode render um montante com seis algarismos. Havia muitos que começavam por parecer que iam chegar a esse patamar, mas nunca conseguiam alcançá-lo.

O C. C. Dobbs estava à espera no corredor quando saí. Estava parado ao lado das janelas sobranceiras ao largo dos serviços administrativos, em baixo. Apressei-me a ir ter com ele. Tinha alguns segundos de vantagem antes de o Valenzuela sair do tribunal e queria algum tempo a sós com o Dobbs.

- Desculpe - disse o Dobbs, antes que eu pudesse falar. - Não quis ficar ali nem mais um segundo. Fiquei tão deprimido ao ver o rapaz no meio daquela lista de contagem do gado.

- O rapaz?

- O Louis. Represento a família há vinte e cinco anos. Se calhar ainda o vejo como um rapaz.

- Vai conseguir tirá-lo da prisão?

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- Não vai ser um problema. Tenho de ligar à mãe do Louis para ver como ela quer tratar disto, se quer apresentar alguma propriedade ou alguma obrigação para venda.

Apresentar propriedade para cobrir uma caução de um milhão de dólares significava pelo menos que um milhão de dólares do valor da propriedade não podia ser agravado por uma hipoteca. Além disso, o tribunal poderia pedir uma avaliação actualizada da propriedade, o que poderia demorar dias e assim o Roulet continuaria na cadeia. Por outro lado, podia comprar-se uma obrigação através do Valenzuela por um prémio de dez por cento. Esse dinheiro ficaria para o Valenzuela pelos riscos corridos e era a explicação do largo sorriso dele na sala de audiências. Depois de pagar o prémio de seguro sobre a caução de um milhão de dólares, acabaria por arrecadar perto de noventa mil dólares. Mas, ainda assim, estava preocupado que me esquecesse da recompensa dele.

- Posso sugerir uma coisa? - perguntei.

- Faça favor.

- O Louis parecia um pouco frágil quando o vi lá na cela. Se fosse a si, tirava-o de lá o mais rápido possível. Para isso, tem de tratar da venda da obrigação com o Valenzuela. Irá custar-lhe uns cem mil, mas assim o rapaz ficaria livre e em segurança, se é que me percebe.

O Dobbs virou-se para a janela e encostou-se ao peitoril. Olhei para baixo e vi que o largo começava a encher-se de pessoas que saíam dos edifícios administrativos durante o intervalo do almoço. Vi muita gente com os cartões com o nome a vermelho e branco que eram dados aos membros dos júris.

- Estou a percebê-lo.

- A outra coisa é que casos como este tendem a fazer sair as ratazanas das paredes.

- Que quer dizer com isso?

- Refiro-me aos outros detidos que irão dizer que ouviram alguém dizer alguma coisa. Sobretudo num caso que chegue ao noticiário ou aos jornais. Podem pegar nessa informação da TV e dar a entender que foi o nosso homem a falar.

- Isso é um crime - disse o Dobbs, com indignação. - Isso não devia ser permitido.

- Sim, eu sei, mas acontece. E quanto mais tempo ele lá ficar, maior será a margem de oportunidade para algum desses tipos.

O Valenzuela juntou-se a nós. Não disse nada.

- Sugiro que avancemos com a venda da obrigação - disse o Dobbs. - Já telefonei, mas estava numa reunião. Assim que ela me ligar, avançamos com isto.

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Estas palavras trouxeram-me à mente algo que me incomodou durante a audiência.

- Não podia sair da reunião para vir falar da detenção do filho? por que não veio hoje ao tribunal se este rapaz, como você lhe chama, tem uma imagem assim tão limpa na comunidade?

O Dobbs olhou para mim como se eu não lavasse a boca há um mês.

- A Sra. Windsor é uma mulher muito ocupada e poderosa. Tenho a certeza de que me ligava imediatamente se lhe tivesse dito que era uma emergência relativa ao filho.

- A Sra. Windsor?

- Voltou a casar depois de se divorciar do pai do Louis. Já foi há muito tempo.

Anuí com a cabeça. Apercebi-me de que havia mais coisas que precisava de falar com o Dobbs, mas nada que quisesse discutir à frente do Valenzuela.

- Vai, e se fosses verificar quando o Louis vai voltar para a cadeia de Van Nuys, para podermos ir lá buscá-lo?

- Já sei - disse o Valenzuela. - Volta no primeiro autocarro depois do almoço.

- Sim. Bem, volta a confirmar isso enquanto acabo de falar com o Sr. Dobbs.

O Valenzuela estava prestes a protestar que não precisava de voltar a confirmar quando se apercebeu do significado das minhas palavras.

- Okay. Vou já tratar disso.

Assim que ele saiu, observei o Dobbs durante segundos antes de falar. Parecia estar no final dos cinquenta. Tinha uma presença respeitosa que provavelmente lhe vinha dos trinta anos a tomar conta de gente rica. O meu palpite era que tinha enriquecido ao longo desse processo, embora isso não lhe tenha alterado o comportamento em público.

- Se vamos trabalhar juntos, acho que devia perguntar-lhe como devo tratá-lo. Cecil? C. C.? Sr. Dobbs?

- Cecil serve.

- Bem, a minha primeira pergunta, Cecil, é se vamos trabalhar juntos. O caso fica a meu cargo?

- O Sr. Roulet tornou claro que o queria a si no caso. Para ser honesto, não teria sido a minha primeira escolha. E, se calhar, nem se tratou de nenhuma escolha, porque, francamente, nunca tinha ouvido falar de si. Mas foi a primeira escolha do Sr. Roulet e aceito isso. Aliás, acho até que se saiu bastante bem na audiência, sobretudo tendo em conta como a procuradora foi hostil com o Sr. Roulet.

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Reparei que o rapaz se tinha tornado agora o "Sr. Roulet". Perguntei-me o que teria acontecido para o Dobbs ter mudado de perspectiva.

- Sim, bem, chamam-lhe Maggie McFierce. É muito competente.

- Achei-a um pouco grosseira. Acha que há alguma maneira de a tirarem do caso e arranjar alguém com... com os pés mais assentes na terra?

- Não sei. Tentar comprar procuradores pode ser perigoso. Mas se acha que é preciso tirá-la do caso, posso conseguir isso.

- Folgo em ouvir. Se calhar já deveria ter ouvido falar de si antes do dia de hoje.

- Se calhar. Quer falar agora dos honorários e arrumar essa questão?

- Se assim quiser.

Olhei à volta do corredor para verificar se haveria ali algum advogado que pudesse ouvir-nos. Ia aplicar o tarifário A durante todo este processo.

- São vinte e cinco mil por hoje e o Louis já aprovou, aliás. Se a partir daqui quiser que seja à hora, são trezentos à hora e sobe até aos quinhentos em julgamento, porque isso vai ocupar-me o tempo todo. Se preferir uma tarifa uniforme, vou pedir sessenta mil para avançar com o caso para uma audiência preliminar. Se encerrarmos tudo com um acordo, serão mais doze mil em cima. Se em vez disso formos a julgamento, preciso de mais sessenta mil no dia em que decidirmos isso e mais vinte e cinco mil quando começarmos a escolher um júri. Não me parece que este caso vá durar mais do que uma semana, incluindo a selecção do júri, mas se for mais de uma semana, recebo um extra de vinte e cinco mil por semana. Podemos falar de um recurso se e quando isso for necessário.

Hesitei um segundo para ver como o Dobbs estava a reagir. Parecia impassível e continuei.

- Vou precisar de trinta mil para provimentos e mais dez mil para um investigador até ao final deste dia. Não quero perder tempo. Quero pôr um investigador a tratar disto antes que o caso chegue aos meios de comunicação e talvez até antes de a polícia se pôr a falar com as pessoas envolvidas.

O Dobbs anuiu devagar com a cabeça.

- São os seus honorários habituais?

- Quando posso cobrá-los. Os meus serviços valem isso. Quanto vai cobrar à família, Cecil?

Tinha a certeza de que ele não ia sair de barriga esfomeada deste pequeno episódio.

- Isso é entre mim e o meu cliente. Mas não se preocupe. Incluirei os seus honorários na minha discussão com a Sra. Windsor.

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- Agradeço-lhe. E, lembre-se, preciso do tal investigador para começar já hoje.

Dei-lhe um cartão que tirei do bolso direito do casaco. Os cartões do bolso direito têm o número do meu telemóvel. Os cartões do bolso esquerdo têm o número que liga à Lorna Taylor.

- Tenho outra audiência na Baixa - disse-lhe. - Quando for tirar o Louis da prisão, ligue-me para marcarmos uma reunião. O mais cedo possível. Já devo estar disponível mais logo e hoje à noite.

- Perfeito - disse o Dobbs, guardando o cartão sem o olhar sequer. - Vamos ter consigo?

- Não, vou eu ter com vocês. Gostava de ver como a outra metade vive naquelas torres altíssimas da Century City.

O Dobbs sorriu com à-vontade.

- Nota-se pelo seu fato que conhece e pratica o ditado de que um advogado nunca deve vestir-se demasiado bem. Quer que o júri goste de si e não que fique com ciúmes. Bem, Michael, um advogado da Century City não pode ter um gabinete melhor do que os gabinetes dos seus clientes. E, portanto, posso assegurar-lhe que os nossos gabinetes são muito modestos.

Anuí com a cabeça. Mas senti-me na mesma insultado. Estava com o meu melhor fato. Como sempre fazia às segundas-feiras.

- É bom saber.

A porta da sala de audiências abriu-se e vi sair o operador de câmara com o equipamento. O Dobbs também o viu e ficou imediatamente tenso.

- Os meios de comunicação - disse ele. - Como podemos controlar isto? A Sra. Windsor não vai...

- Espere um segundo.

Chamei o operador de câmara e estendi-lhe prontamente a mão. Teve de pousar o tripé para me dar a mão.

- Chamo-me Michael Haller. Vi-o lá dentro a filmar a audiência do meu cliente.

Usar o meu nome formal era um código.

- Robert Gillen - disse o operador. - As pessoas chamam-me Baquetas.

Apontou para o tripé à laia de explicação. O uso do nome formal era também um código de resposta. Estava a dizer-me que compreendia que eu estava ali no meio de uma jogada.

- Trabalha por conta própria ou de outrem? - perguntei.

- Hoje é por conta própria.

- Como soube disto?

Encolheu os ombros como se estivesse relutante em responder.

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- Através de uma fonte. Um polícia.

Anuí com a cabeça. O Gillen decidira entrar também no jogo.

- Quanto lhe dão se vender isso a uma estação de notícias?

- Depende. Levo setecentos e cinquenta dólares pelo exclusivo e quinhentos pelo não-exclusivo.

Não-excluswo significava que qualquer director de informação que comprasse a gravação poderia vendê-la a uma estação rival. O Gillen tinha duplicado o pagamento que geralmente recebia. Era uma boa jogada. Deve ter estado atento ao que foi dito na sala de audiências enquanto filmava.

- Proponho o seguinte - disse-lhe. - E se nos desse isso em exclusivo?

O Gillen foi perfeito. Hesitou como se não conhecesse bem a ética envolvida na proposta.

- E aliás, pagamos-te mil - disse-lhe.

- Okay. Negócio fechado.

Tirei um maço de notas do bolso enquanto o Gillen pousava a câmara no chão para tirar a fita. Tinha ficado com mil e duzentos dólares do dinheiro dos Saints que o Teddy Vogel me tinha dado. Virei-me para o Dobbs.

- Posso fazer esta despesa, certo?

- Absolutamente - disse ele, de rosto radiante.

Troquei o dinheiro pela gravação e agradeci ao Gillen. Este enfiou o dinheiro no bolso e afastou-se, feliz, em direcção aos elevadores.

- Foi brilhante - disse o Dobbs. - Temos de conter isto, poderia destruir literalmente o negócio da família se... aliás, acho que é por esse motivo que a Sra. Windsor não veio aqui hoje. Não queria que a reconhecessem.

- Bem, vamos ter de falar disso se esta coisa se espalhar. Entretanto, farei o possível para manter o caso longe dos radares.

- Obrigado.

Um telemóvel começou a tocar uma peça clássica de Bach ou Beethoven ou de algum outro tipo já morto e sem direitos de autor. O Dobbs enfiou a mão no bolso e verificou o número no ecrã.

- É ela.

- Então deixo-o à vontade - disse-lhe.

Enquanto me afastava, ouvi-o dizer: - Mary, está tudo sob controlo. Agora precisamos de tirá-lo da prisão. Vamos precisar de algum dinheiro...

Enquanto esperava que o elevador descesse, tive quase a certeza de que estava a lidar com um cliente e uma família para os quais "algum dinheiro" significava mais massa do que aquela que eu alguma vez

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tinha visto. Lembrei-me do comentário do Dobbs sobre o meu fato. Ainda me sentia picado. A verdade era que não tinha no guarda-roupa nenhum fato que custasse menos de seiscentos dólares e sentia-me sempre bem e confiante com qualquer deles. Perguntei-me se a intenção dele teria sido realmente insultar-me ou outra coisa. Talvez, nesta fase inicial do jogo, estivesse a tentar inculcar-me que era ele quem me controlava a mim e ao caso. Tinha de me manter alerta com o Dobbs. Mantê-lo-ia por perto, mas não muito perto.

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O trânsito que se dirigia para a Baixa estava engarrafado em Cahuenga Pass. Passei esse tempo agarrado ao telefone dentro do carro e tentando não pensar na conversa que tive com a Maggie McPherson sobre as minhas capacidades parentais. A minha ex-mulher tinha razão acerca de mim e isso doera. Há já muito tempo que eu punha o exercício da advocacia à frente da prática parental. Mas tinha prometido a mim mesmo mudar. Só precisava de tempo e dinheiro para abrandar. Pensei que talvez o Louis Roulet viesse a proporcionar-me ambas as

coisas.

Liguei primeiro ao Raul Levin, o meu investigador, para o avisar sobre o potencial encontro com o Roulet. Pedi-lhe para fazer uma investigação preliminar sobre o caso, para ver o que conseguia descobrir. O Levin tinha-se reformado há pouco do Departamento da Polícia de Los Angeles e ainda tinha contactos e amigos que de vez em quando lhe faziam favores. Provavelmente também tinha a sua própria lista de Natal. Disse-lhe para não ocupar muito tempo a investigar isso até eu ter a certeza de que o Roulet era um cliente pagante. Aquilo que o C. C. Dobbs me tinha dito no corredor do tribunal não importava. Só ia acreditar que o caso era meu quando recebesse o primeiro pagamento.

A seguir verifiquei o estado de alguns casos e depois liguei outra vez à Lorna Taylor. Sabia que lhe entregavam o correio quase sempre antes do meio-dia. Mas disse-me que não tinha chegado nada de importante. Nada de cheques nem correspondência dos tribunais à qual tivesse de dar atenção imediata.

- Verificaste a apresentação perante o juiz da Gloria Dayton? perguntei-lhe.

- Sim. Parece que vão retê-la até amanhã por razões médicas. Resmunguei. O Estado tem quarenta e oito horas para acusar um

indivíduo depois da detenção e levá-lo a tribunal. Adiar a primeira apresentação formal da Gloria Dayton para o dia seguinte por razões médicas significava que estava provavelmente sob efeito de drogas.

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Isso ajudaria a explicar por que razão tinha cocaína quando foi detida. Não a via nem falava com ela pelo menos há sete meses. A queda deve ter sido rápida e funda. Deve ter atravessado a ténue linha em que as drogas passaram a controlá-la a ela.

- Descobriste quem apresentou o caso? - perguntei.

- A Leslie Faire. Resmunguei outra vez.

- Que maravilha. Okay. Bem, vou lá ver o que posso fazer. Não tenho mais nada até o Roulet me ligar.

A Leslie Faire era uma famigerada procuradora pública cuja ideia de poupar um arguido ou dar-lhe o benefício da dúvida era aumentar o tempo de supervisão da liberdade condicional para além do tempo já cumprido na prisão.

- Mick, quando é que vais aprender em relação a esta mulher? disse a Lorna, referindo-se à Gloria Dayton.

- Aprender o quê? - perguntei, apesar de saber bem o que ela ia dizer.

- Deixa-te ficar mal sempre que tens de lidar com ela. Nunca mais vai largar aquela vida. Ouve o que te digo, sempre que ela te ligar agora é para te sair dois-em-um. O que não teria problema, só que tu nunca lhe cobras nada.

O que ela queria dizer com dois-em-um era que a partir de agora os casos da Gloria Dayton seriam mais complicados e mais demorados, pois era provável que acusações de posse de droga acompanhassem sempre as acusações de prostituição. O que incomodava a Lorna era que isto significava mais trabalho para mim, mas sem o respectivo ganho.

- Bem, a Ordem exige que todos os advogados façam um pouco de trabalho pró bono, Lorna. Tu sabes...

- Não estás a ouvir-me, Mick - disse ela, com indiferença. - Foi por essa mesma razão que não conseguimos continuar casados.

Fechei os olhos. Que dia. Tinha conseguido irritar as minhas duas ex-mulheres.

- Que influência é que esta mulher tem sobre ti? Porque é que não lhe cobras a tarifa mínima sequer?

- Ouve, ela não tem nenhuma influência sobre mim, okay") Podemos mudar de assunto?

Não lhe disse que, anos antes, quando examinava os velhos e poeirentos livros de contabilidade do meu pai, descobrira que ele tinha um fraquinho pelas ditas mulheres da noite. Tinha defendido muitas e a poucas delas cobrara pelos serviços. Talvez eu estivesse apenas a dar continuação a uma tradição familiar.

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- Pronto - disse a Lorna. - Como correu com o Roulet?

- Queres tu dizer se consegui ficar com o caso? Acho que sim. O Vai deve estar a tirá-lo da cadeia neste momento. E depois vamos marcar uma reunião. Já pedi ao Raul para começar a investigar a coisa.

- Já te deram algum cheque?

- Ainda não.

- Pede o cheque, Mick.

- Estou a tratar disso.

- Que tal te parece o caso?

- Ainda só vi as fotos, mas parece grave. Vou saber mais depois de ver o que o Raul conseguiu descobrir.

- E quanto ao Roulet?

Sabia o que ela estava a perguntar. Como era ele como cliente? Será que um júri, se o caso chegasse perante um júri, iria simpatizar com ele ou desprezá-lo? Os casos podiam ser ganhos ou perdidos com base nas impressões que os jurados tinham dos arguidos.

- Parece um bebé perdido no bosque.

- É virgem na matéria?

- Nunca esteve para lá das grades.

- Bem, e é culpado?

A Lorna fazia sempre a pergunta irrelevante. Em termos da estratégia do caso, não importava se o arguido era "culpado" ou não. O que importava eram os indícios contra ele - as provas - e se, e como, podiam ser neutralizados. A minha tarefa era enterrar as provas, pintar as provas num tom cinza. Cinza era a cor da dúvida fundamentada.

Mas a questão se ele era ou não culpado parecia importar sempre à Lorna.

- Quem sabe, Lorna? A questão não é essa, mas se é ou não um cliente pagante. E a resposta é sim, acho.

- Bem, depois diz-me se precisares de alguma... oh, há mais uma coisa.

- O quê?

- Ligou o Baquetas a dizer que te deve quatrocentos dólares e que tos dá quando estiver contigo.

- Sim, eu sei.

- Hoje saíste-te bastante bem.

- Não me queixo.

Despedimo-nos amigavelmente e a discussão, por causa da Gloria Dayton pareceu ficar esquecida, de momento. A segurança de saber que ia entrar dinheiro e que havia um cliente bem pagante preso pelo anzol provavelmente fizera a Lorna sentir-se um pouco melhor por eu

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não cobrar por certos casos. Mesmo assim, perguntei-me se ela se teria importado tanto se eu estivesse a defender de borla um traficante de droga em vez de uma prostituta. O meu casamento com a Lorna tinha sido curto e doce, pois ambos descobrimos rapidamente que tínhamos avançado demasiado depressa enquanto recuperávamos ainda dos respectivos divórcios. Separámo-nos, continuámos amigos e ela continuou a trabalhar comigo e não para mim. As únicas vezes que me sentia mal com este acordo era quando ela voltava a portar-se como minha mulher e me criticava pela escolha dos clientes e quem e quanto cobrava ou deixava de cobrar.

Sentindo-me confiante pelo modo como tinha lidado com a Lorna, liguei para o gabinete da procuradoria em Van Nuys. Pedi para falar com a Margaret McPherson e apanhei-a a comer sentada à secretária.

- Era só para dizer que lamento o que aconteceu esta manhã. Sei que querias o caso.

- Bem, se calhar precisas mais do caso do que eu. O tipo deve ser um cliente pagante, para ter o C. C. Dobbs atrás dele com o rolo de papel nas mãos.

Estava a referir-se a um rolo de papel higiénico. Os dispendiosos advogados de família eram geralmente vistos pelos procuradores como simples limpa-cus dos ricos e famosos.

- É, estava mesmo a precisar de um cliente assim: um cliente pagante, não o limpa-cus. Há muito tempo que não consigo um cliente franqueado.

- Bem, só que há pouco parece que a sorte deixou de te sorrir sussurrou ela ao telefone. - O caso foi entregue ao Ted Minton.

- Nunca ouvi falar dele.

- É um dos novos espingardões do Smithson. Acabam de o trazer da Baixa, onde andava a tratar de meros casos de posse de droga. O tipo nunca tinha visto um tribunal por dentro até o chamarem.

O John Smithson era o ambicioso chefe da Divisão da Procuradoria de Van Nuys. Tinha mais jeito para a política do que para a procuradoria e tinha-se servido dessa vantagem para passar rapidamente à frente de delegados mais experientes até conseguir o cargo de chefe de divisão. A Maggie McPherson era uma dessas pessoas que ele tinha passado à frente. Assim que ocupou o cargo, começou a formar uma equipa de jovens procuradores que não se sentiam melindrados e que lhe eram leais por lhes ter dado aquela oportunidade.

- O tipo nunca esteve num tribunal? - perguntei, sem perceber como é que podia ser um azar enfrentar em tribunal um tipo inexperiente.

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- Já esteve em alguns julgamentos aqui, mas sempre no papel de ama-seca. O Roulet vai ser o seu primeiro voo a solo. O Smithson pensa que está a dar-lhe um caso fácil.

Imaginei-a sentada no cubículo dela, talvez não muito longe do sítio onde estava sentado o meu oponente.

- Não estou a perceber, Maggie. Se o tipo ainda é verde, porque é que é um azar para mim?

- Porque estes tipos que o Smithson escolhe são todos moldados pela mesma bitola. Uns cabrões arrogantes. Julgam-se infalíveis e além do mais... - Baixou ainda mais a voz. - Não jogam limpo. E corre o boato que o Minton é um batoteiro. Tem cuidado contigo, Haller. Ou melhor, tem cuidado com ele.

- Bem, obrigado pelo aviso.

Mas ela ainda não tinha terminado.

- Muita desta gente nova simplesmente não percebe. Não vêem isto como uma vocação. Para eles não se trata de justiça. Não passa de um jogo para ver quem marca mais golos. O que querem é marcar pontos e ver até onde isso os leva dentro do gabinete. Não passam todos de uns Smithsons juniores.

Uma vocação. Foi esse sentimento de vocação dela que, em última instância, nos arruinou o casamento. A nível intelectual, a Maggie conseguia lidar com o facto de estar casada com um homem que trabalhava do outro lado da barra. Mas tendo em conta a realidade das nossas profissões, tivemos sorte por conseguir aguentar oito anos de casamento. Amor, que tal foi o teu dia? Oh, consegui um acordo de sete anos para um tipo que matou o colega de quarto com um picador de gelo. E tu? Oh, mandei um tipo dentro por cinco anos porque roubou o leitor de um carro para poder alimentar o vício... Simplesmente não funcionava. Quatro anos depois, nasceu-nos uma filha, mas a bebé não teve culpa, só nos fez aguentar mais outros quatro anos.

Mesmo assim, não lamentava nada. Gostava da minha filha. Era a única coisa boa da minha vida, algo de que podia orgulhar-me. Bem, no fundo, acho que não a via mais vezes - por andar atrás de casos em vez de estar com ela - por me sentir indigno dela. A mãe era uma heroína. Mandava as pessoas más para a prisão. Que podia eu dizer-lhe que fosse bom e sagrado naquilo que eu fazia, se eu próprio já tinha perdido isso de vista há muito tempo?

- Ei, Haller, estás aí?

- Sim, Mags. Estás a comer o quê?

- A salada oriental que servem lá em baixo. Nada de especial. Onde estás?

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- Em direcção à Baixa. Ouve, diz à Hayley que vou vê-la este sábado. Vou planear algo de especial para fazermos.

- Estás a falar a sério? Não quero dar-lhe esperanças.

Senti algo agitar-se dentro de mim, a ideia de que a minha filha poderia ficar contente por me ver. A única coisa que a Maggie nunca fazia era rebaixar-me no que dizia respeito à Hayley. Não era do género de fazer isso. Sempre admirei essa atitude dela.

- Sim, falo a sério.

- Óptimo, vou dizer-lhe. Depois diz-me a que horas chegas ou se tenho de a levar a algum lado.

- Okay.

Hesitei. Queria continuar a falar com ela, mas não havia mais nada para dizer. Despedi-me e desliguei. Pouco depois saímos do engarrafamento. Espreitei pela janela e não vi nenhum acidente. Não vi ninguém com um pneu furado nem nenhum carro da brigada parado. Não vi nada que explicasse a razão do trânsito parado. Era assim muitas vezes. O trânsito nas vias rápidas de Los Angeles era tão misterioso como o casamento. Avançava e fluía, depois engarrafava e parava sem nenhuma razão aparentemente explicável.

Venho de uma família de advogados: o meu pai, o meu meio-irmão, uma sobrinha e um sobrinho. O meu pai era um famoso advogado, numa altura em que não havia TV por cabo nem programas sobre tribunais. Foi o decano do direito penal em L.A. durante quase três décadas. Desde o Mickey Cohen às miúdas Manson2, os seus clientes eram sempre notícia de primeira página. Eu não passava de uma adição tardia na sua vida, uma visita-surpresa no seu segundo casamento com uma actriz secundária de cinema conhecida pelo aspecto latino exótico, mas não pelos talentos de representação. Foi essa mistura que me deu o aspecto de irlandês de cor escura. O meu pai já tinha uma idade avançada quando nasci e morreu antes de eu ter idade suficiente para chegar a conhecê-lo realmente ou falar com ele acerca da vocação da advocacia. Só me deixou o nome. Mickey Haller, a lenda do Direito Penal. Ainda continuava a abrir portas.

Mas o meu irmão mais velho - o meio-irmão do primeiro casamento - disse-me que o meu pai costumava falar com ele da advocacia e da defesa criminal. Costumava dizer que ele defenderia o próprio diabo desde que este pudesse pagar os honorários.

2 Mickey Cohen: famoso gangster de Los Angeles entre as décadas de 30 e 70. Miúdas Manson: as três mulheres de Charles Manson e que compunham a Família Manson, todos condenados por conspiração e assassinato no início dos anos 70. (NT)

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O único caso e cliente de monta que o meu pai recusou foi o de Sirhan Sirhan. Tinha dito ao meu irmão que gostava demasiado do Bobby Kennedy para defender o assassino dele, por mais que acreditasse no ideal de que o acusado merecia sempre a melhor defesa possível.

Enquanto crescia, li todos os livros sobre o meu pai e os casos dele. Admirava a perícia, o vigor e as estratégias que ele trazia para a mesa da defesa. Era um advogado muito competente e o nome dele era um orgulho para mim. Mas a lei agora era diferente. Era mais cinzentona. Há muito que os ideais se tinham reduzido a meras noções. E as noções eram opcionais.

O meu telemóvel começou a tocar e verifiquei quem era antes de atender.

- Há novidades, Vai?

- Vamos tirá-lo da prisão. Já o levaram do tribunal e estamos agora a tratar da libertação.

- O Dobbs decidiu vender a obrigação?

- Isso mesmo.

O deleite era patente na voz dele.

- Não lances já os foguetes. Tens a certeza de que ele não vai fugir?

- Nunca se tem a certeza. Vou obrigá-lo a usar uma pulseira. Se o perco, perco a minha casa.

Foi então que me apercebi de que aquilo que tinha entendido como deleite perante os benefícios inesperados que a obrigação de um milhão de dólares traria ao Valenzuela era, na verdade, nervosismo. O Valenzuela andaria retesado como um arame até o caso estar terminado, quer acabasse bem ou mal. Mesmo que o tribunal não o tivesse ordenado, o Valenzuela iria pôr uma pulseira electrónica no tornozelo do Roulet. Não ia correr riscos com este tipo.

- Onde está o Dobbs?

- À espera no meu escritório. Apareço lá com o Roulet mal o tire da prisão. Já não deve demorar muito.

- A Maisy está lá?

- Está.

- Okay, vou-lhe ligar.

Desliguei e liguei para o escritório do Valenzuela e foi atendido pela recepcionista e assistente dele.

- Maisy, é o Mick. Podes passar-me ao Sr. Dobbs?

- Claro, Mick.

Segundos depois, o Dobbs atendeu. Parecia irritado com alguma coisa. Notei logo pela maneira como disse "Fala Cecil Dobbs".

- Mickey Haller. Como correm as coisas aí?

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- Bem. Mas se tivermos em conta que estou a negligenciar os meus deveres para com outros clientes enquanto estou aqui sentado à espera, a ler revistas antigas, então está a correr mal.

- Não anda com o telemóvel para tratar desses assuntos?

- Sim. Mas a questão não é essa. Os meus clientes não são pessoas de tratar dos assuntos pelo telemóvel. Gostam que seja cara a cara.

- Percebo. Bem, a boa notícia é que ouvi dizer que o nosso rapaz está prestes a ser libertado.

- O nosso rapaz?

- O Sr. Roulet. Daqui a pouco o Valenzuela já o tem cá fora. Tenho agora um encontro com um cliente, mas, como lhe disse antes, de tarde estou livre. Quer encontrar-se para discutir o caso com o nosso cliente mútuo ou prefere que seja eu a tratar de tudo daqui para a frente?

- Não, a Sra. Windsor insistiu que eu supervisionasse tudo atentamente. Aliás, pode ser que ela apareça também.

- Não me importo de conhecer a Sra. Windsor e dizer-lhe olá, mas no que diz respeito à discussão do caso, vai ser só a equipa da defesa. Isso pode incluí-lo a si, mas não a mãe. Okay?

- Compreendo. Pode ser às quatro no meu escritório. E levo o Louis comigo.

- Combinado.

- Há um investigador muito hábil na minha firma. Vou pedir-lhe para se juntar a nós.

- Não é necessário, Cecil. Já tenho um e já começou a investigar. Vemo-nos às quatro, então.

Desliguei antes que ele se lembrasse de começar a discutir que investigador deveríamos usar. Precisava de ter cuidado para que o Dobbs não controlasse a investigação, a preparação e a estratégia do caso. Supervisionar era uma coisa. Mas agora era eu o advogado do Roulet. Não ele.

De seguida, liguei ao Raul Levin e este disse-me que já estava a caminho da Divisão da Polícia de Van Nuys para ir buscar uma cópia do relatório de detenção.

- Assim sem mais nem menos? - perguntei.

- Não, não foi assim sem mais nem menos. Pode dizer-se que levei vinte anos a conseguir este relatório.

Percebi. As ligações que ele tinha, conseguidas ao longo dos anos e da experiência, trocadas por favores e gestos de confiança, estavam a dar os seus frutos. Não admirava que ele cobrasse quinhentos dólares por dia sempre que podia. Informei-o da reunião às quatro e disse-me que estaria lá, pronto para nos pôr a par da perspectiva das autoridades policiais sobre o caso.

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O Lincoln parou quando desliguei a chamada. Estávamos à entrada dos edifícios prisionais das Torres Gémeas. A construção tinha menos de dez anos, mas o smog começava a deixar manchas permanentes de um sombrio cinzento nas paredes cor de areia. Era um lugar triste e desolador, onde eu passava demasiado tempo. Saí do carro e entrei na cadeia.

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Havia uma zona de acesso reservada a advogados que me permitia passar à frente da longa fila de visitantes à espera de entrar para ver os entes amados encarcerados nas torres. Quando disse quem queria ver, o delegado inseriu o nome no computador e não referiu nada sobre o facto de a Gloria Dayton não poder receber visitas por estar na ala médica. Imprimiu um passe de visita, inseriu-o dentro de um cartão de plástico e disse-me para o prender na lapela durante o tempo todo até sair da prisão. Depois disse-me para esperar pela pessoa que iria escoltar-me.

- Daqui a alguns minutos já pode entrar - disse.

Sabia, de visitas anteriores, que o meu telemóvel não tinha sinal dentro da cadeia e que se saísse para o usar poderia perder a escolta e depois teria de voltar a passar por todo o processo. Por conseguinte, esperei e pus-me a observar os rostos das pessoas que tinham vindo visitar os detidos. A maioria delas eram negros e mulatos. A maioria apresentava uma expressão de rotina no rosto. Provavelmente já todos conheciam melhor o processo de visitas que eu.

Vinte minutos depois, uma mulher corpulenta vestida com o uniforme da polícia entrou na sala de espera para me levar. Sabia que ela não tinha entrado para o departamento do xerife com a estrutura física actual. Tinha pelo menos uns quarenta e cinco quilos a mais e parecia arrastar esse peso todo enquanto andava. Mas também sabia que quando alguém ganhava peso, depois era difícil perdê-lo. O melhor que essa pessoa podia fazer, se houvesse uma fuga na prisão, era encostar-se contra a porta para a manter fechada.

- Desculpe por ter demorado tanto - disse ela, enquanto esperávamos entre as portas duplas de aço na torre das mulheres. - Tive de procurá-la, não tinha a certeza se ela ainda estava cá.

Fez sinal para uma câmara por cima da porta seguinte e ouviu-se o estalido da fechadura a abrir.

- Estava na ala médica a ser tratada.

- A ser tratada?

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Desconhecia que a prisão tivesse um programa de tratamento de drogas que incluía "tratar" os drogados.

- Sim, ficou ferida - disse a delegada. - Um par de lesões menores numa rixa. Depois ela conta-lhe.

Preferi não perguntar mais nada. De certo modo, estava aliviado por o atraso médico não se dever - pelo menos não directamente - à ingestão de drogas ou à ressaca por falta delas.

A delegada levou-me para a sala dos advogados, onde eu já tinha estado muitas vezes com muitos e diferentes clientes. A grande maioria dos meus clientes eram homens e eu não fazia nenhuma discriminação sexual, mas a verdade era que detestava representar mulheres que estivessem detidas. Desde prostitutas a assassinas - e tinha-as defendido a todas -, havia algo de comovente numa mulher detida. Tinha chegado à conclusão de que quase sempre os seus crimes se deviam a homens. Homens que se aproveitavam delas, que abusavam delas, que as abandonavam, que as magoavam. Não quero com isto dizer que elas não eram responsáveis pelas suas acções ou que algumas delas não mereciam os castigos que receberam. Havia predadores nas fileiras femininas que facilmente rivalizavam com os predadores das fileiras masculinas. Mesmo assim, as mulheres que eu via na cadeia pareciam sempre tão diferentes dos homens na outra torre. Os homens continuavam a viver recorrendo a truques e à força. Às mulheres não lhes restava nada assim que as trancavam.

A área das visitas era uma fila de cabinas onde os advogados podiam sentar-se a conversar com os seus clientes sentados do outro lado, separados por um painel transparente de plexiglas com cerca de cinquenta centímetros de espessura. Havia sempre um delegado sentado numa cabina de vidro, ao fundo da sala, a observar, mas supostamente sem ouvir. Se fosse preciso entregar alguma papelada ao cliente, primeiro tínhamos de a mostrar ao delegado para aprovar.

Fui levado para uma cabina e a delegada saiu. Depois esperei mais dez minutos até a mesma delegada aparecer do outro lado do painel com a Gloria Dayton. Reparei imediatamente que a minha cliente tinha um inchaço à volta do olho esquerdo e um ponto por cima de um golpe logo abaixo da linha do cabelo. A Gloria Dayton tinha cabelo muito escuro e pele cor de azeitona. Fora outrora muito bonita. A primeira vez que a representei, há sete ou oito anos, era uma mulher bonita. O tipo de beleza que nos deixa atordoados pelo facto de ela estar a vendê-la, por ter decidido que vender-se a desconhecidos era a sua melhor ou única opção. Agora parecia-me apenas uma mulher amargurada, com as linhas do rosto muito retesadas. Tinha recorrido a cirurgiões que não eram os melhores e,

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aliás, não havia nada que eles pudessem fazer por aqueles olhos que já tinham visto demasiado.

- Mickey Mantle - disse ela. - Vais voltar a defender a minha

liga?

Dizia-o numa vozinha de miúda, que certamente agradava aos seus clientes habituais. Só que a mim soava-me estranho, vindo daquela boca muito retesada e daquele rosto com olhos tão duros e com tanta vida como berlindes.

Chamava-me sempre Mickey Mantle, apesar de ter nascido depois de o grande jogador de beisebol já se ter retirado há muito; e aliás, provavelmente pouco sabia acerca dele ou de que jogo ele jogava sequer. Não passava de um nome para ela. Se calhar a alternativa possível teria sido chamar-me Mickey Mouse, coisa de que eu não iria gostar muito, certamente.

- Vou tentar, Gloria. Que te aconteceu à cara? Como arranjaste essa ferida?

Fez um gesto de indiferença com a mão. - Uma pequena desavença com umas raparigas do meu dormitório.

- Por causa de quê?

- Coisas de raparigas, é só.

- Tens andado pedrada lá dentro?

Ficou indignada e depois ensaiou uma expressão amuada.

- Não.

Observei-a. Parecia estar sóbria. Talvez não andasse pedrada e não tivesse sido essa a causa da luta.

- Não quero ficar aqui, Mickey - disse, na sua voz real.

- Não te censuro. Nem eu gosto de estar aqui, e posso sair à vontade.

Arrependi-me imediatamente de ter dito a última parte e lembrar-Ihe assim a sua situação. Mas ela pareceu não reparar.

- Achas que conseguias meter-me uma daquelas cenas pré-julgamento para eu poder ficar bem?

Era interessante como os drogados chamavam a mesma coisa a ficar pedrado e ficar sóbrio: ficar bem.

- O problema, Gloria, é que já da última vez pedimos um programa de intervenção pré-julgamento, lembras-te? E o facto é que não resultou. Portanto, desta vez não sei. Não costuma haver muitas vagas nesses sítios e os juizes e a acusação não gostam de voltar a mandar as pessoas para programas desses se elas não os aproveitaram da primeira vez.

- O que queres dizer com isso? - protestou. - Eu aproveitei. Fiquei lá o raio do tempo todo.

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- Certo. E ainda bem. Mas quando aquilo acabou, voltaste logo a fazer o mesmo e cá estamos nós outra vez. Eles não chamam a isso um sucesso, Gloria. Tenho de ser honesto contigo. Acho que desta vez não vou conseguir meter-te num desses programas. Acho que desta vez deves preparar-te pois vão ser mais duros contigo.

Ficou cabisbaixa.

- Não consigo - disse, numa voz quase inaudível.

- Ouve, têm desses programas na cadeia. Vais ficar sóbria e quando saíres tens outra oportunidade para recomeçar a vida.

Abanou a cabeça; parecia perdida.

- Já te deram uma oportunidade, mas não podes contar sempre com isso. Se fosse a ti, pensava em sair deste lugar. De L.A., quero eu dizer. Vai para outra terra e recomeça tudo.

Olhou-me com uma expressão de raiva.

- Recomeçar tudo? A fazer o quê? Olha para mim. Que vou fazer? Casar, ter filhos e cuidar do jardim?

Não sabia como responder a isto, nem ela própria sabia.

- Falamos disso quando for a altura. Por agora, preocupemo-nos com o teu caso. Conta-me o que aconteceu.

- A mesma coisa de sempre. Verifiquei o tipo e tudo parecia bem. O tipo parecia OK. Só que era um polícia e lixou-me.

- Foste ter com ele? Anuiu.

- Ao Mondrian. O tipo estava lá numa suite, e isso também me enganou. Os polícias não alugam suites. Não têm orçamento para isso.

- Não te disse já como é estúpido andares com coca quando trabalhas? E se um gajo te pedir para levares coca, então podes ter a certeza que é da polícia.

- Sei isso tudo e nem sequer me pediu para levar coca. Esqueci-me que tinha coca comigo, pronto. Arranjou-ma um tipo com quem tinha estado antes. O que é que eu ia fazer, deixá-la no carro para os empregados do Mondrian a encontrarem?

- Quem era o tipo que ta deu?

- Foi um gajo na Travelodge em Santa Monica. Encontrei-me com ele antes e deu-ma em vez de dinheiro. Depois ao vir embora verifiquei o telemóvel e lá estava a chamada do tipo no Mondrian. Liguei-lhe, marquei o encontro e fui directamente para lá. Esqueci-me que levava aquela cena na carteira.

Anuí com a cabeça e inclinei-me para a frente. Começava a ver um vislumbre de esperança nisto, uma possibilidade.

- Esse tipo do Travelodge, quem era?

- Não sei, um gajo que tinha visto o meu anúncio no site.

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A Gloria arranjava os encontros através de um website com fotos, números de telefone e endereços de e-mail de acompanhantes.

- Ele disse donde era?

- Não. Era mexicano ou cubano, ou algo do género. Estava todo suado de ter snifado coca. E quando te deu a coca, viste se tinha mais com ele?

- Sim, tinha mais. Estava a contar que ele quisesse marcar novo encontro... mas acho que eu não era bem aquilo de que ele estava à espera.

Da última vez que eu tinha verificado o anúncio dela na LA-Darlings.com para ver se ela ainda continuava naquela vida, as fotos que a Gloria tinha posto lá já tinham pelo menos cinco anos embora parecessem de há dez anos. Calculei que isso poderia causar alguma desilusão quando os clientes abriam a porta do quarto de hotel e a viam.

- Que quantidade é que ele tinha?

- Não sei. Só sei que devia ter mais porque, se só tivesse aquela, não ma ia dar.

Tinha razão. O vislumbre de esperança começava a brilhar com mais força.

- Verificaste o gajo?

- Claro.

- O quê, a carta de condução?

- Não, o passaporte. Disse que não tinha carta de condução.

- Como se chamava?

- Hector qualquer coisa.

- Vá lá, Gloria, Hector quê? Tenta recor...

- Hector qualquer coisa Moya. Tinha três nomes. Mas lembro-me do "Moya" porque eu disse "Hector, dá-me Moya" quando ele mostrou a coca.

- Okay.

- Achas que é alguma coisa que possas usar para me ajudar?

- Talvez, depende de quem este tipo é. Se é alguém que troca coca por certos serviços.

- Quero sair daqui.

- Okay, ouve, Gloria. Vou encontrar-me com a procuradora para ver o que se pode fazer por ti. Puseram-te uma caução de vinte e cinco mil dólares.

- O quê?

- É mais alta que o habitual por causa das drogas. Não tens vinte e cinco mil dólares para pagar a caução, pois não?

Abanou a cabeça. Vi os músculos da cara dela contraírem-se. Já sabia
o que vinha aí.

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- Podes adiantá-los por mim, Mickey? Prometo que...

- Não posso fazer isso, Gloria. É uma das regras e posso meter-me em problemas se a quebrar. Vais ter de passar aqui a noite e de manhã vais a tribunal para te lerem as acusações.

- Não. - Foi mais um gemido do que uma palavra.

- Sei que vai ser duro, mas vais ter de aguentar. E tens de estar sóbria de manhã quando fores a tribunal, senão não vou conseguir baixar-te a caução e tirar-te daqui. Portanto, nada de meter dessas merdas que vendem aqui. Percebido?

Ergueu os braços por cima da cabeça como se estivessem a cair-lhe detritos em cima. Cerrou os punhos com força. Tinha uma longa noite pela frente.

- Tens de me tirar daqui amanhã.

- Vou dar o meu melhor.

Fiz sinal ao delegado na cabina de vigia. Estava pronto para ir embora.

- Só mais uma coisa - disse-lhe. - Lembras-te em que quarto é que o tipo estava hospedado no Travelodget

Pensou, por momentos, antes de responder.

- Sim, é fácil. Trezentos e trinta e três.

- Okay, obrigado. Vou ver o que posso fazer.

Continuou sentada quando me levantei. Pouco depois voltou a aparecer a delegada de escolta e disse-me que ia ter de esperar enquanto levavam primeiro a Gloria para o dormitório. Verifiquei as horas. Quase duas. Ainda não tinha almoçado e começava a sentir dores de cabeça. E só tinha duas horas para falar com a Leslie Faire no gabinete da procuradoria acerca da Gloria e ir depois para a Century City à reunião de discussão com o Roulet e o Dobbs.

- Não há mais ninguém que possa acompanhar-me lá fora? perguntei com irritação. - Tenho de ir ao tribunal.

- Lamento, senhor, mas as regras são estas.

- Bem, volte rápido, por favor.

- É o que faço sempre.

Quinze minutos depois, apercebi-me de que a minha queixa só fez com que a delegada me deixasse ainda mais tempo à espera do que se tivesse ficado calado. Eu já devia saber, é como quando um cliente num restaurante manda para trás a sopa fria e lha trazem depois quente e com o sabor picante de uma cuspidela dentro.

Liguei ao Raul Levin durante a rápida viagem a caminho do tribunal criminal. Já tinha voltado para o gabinete em Glendale e estava a rever os relatórios da polícia sobre a investigação e a detenção do Roulet. Pedi-lhe para pôr isso de lado e ir fazer umas chamadas. Queria ver o

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que ele conseguia descobrir sobre o homem do quarto 333 do Travelodge em Santa Monica. Disse-lhe que precisava urgentemente dessa informação. Sabia que ele dispunha de fontes e maneiras de se informar sobre o nome Hector Moya. Não queria saber quem ou que fontes eram essas. Só estava interessado nos resultados.

Assim que o Earl parou à frente do tribunal, disse-lhe que enquanto estivesse lá dentro deveria ir ao Phillippe's buscar sanduíches de carne assada. Comeria a minha a caminho da Century City. Dei-lhe uma nota de vinte dólares e saí.

Enquanto esperava pelo elevador no átrio sempre apinhado, tirei da pasta um Tylenol para ver se me livrava daquela dor de cabeça por ainda não ter comido. Demorei dez minutos a chegar ao nono andar e outros quinze à espera que a Leslie Faire pudesse receber-me. Mas não me importei de esperar, porque o Raul Levin ligou-me antes de me chamarem para entrar. Se a Faire me tivesse recebido logo, não teria entrado no gabinete com munições extra.

O Levin disse-me que o homem do quarto 333 do Travelodge tinha dado entrada sob o nome Gilberto Garcia. O motel não exigiu identificação pois o tipo pagou uma semana adiantada em dinheiro e depositou cinquenta dólares para as despesas de telefone. O Levin também tinha investigado o nome que eu lhe tinha dado e encontrou um Hector Arrande Moya, um colombiano procurado pela justiça depois de ter fugido de San Diego quando o tribunal o acusou de tráfico de droga. A coisa parecia prometer e era minha intenção usá-la para refutar as acusações.

A Faire partilhava o gabinete com outros três procuradores. Cada um com a sua secretária num dos cantos. Dois deles estavam fora, talvez no tribunal, mas vi um homem que eu não conhecia sentado à secretária no lado oposto à da Faire. Ia ter de falar com ela com o tipo a ouvir. Detestava fazer isso porque os procuradores com quem era obrigado a lidar nestas situações muitas vezes punham-se a representar para os outros presentes no gabinete, tentando dar ares de duros e espertalhões, às vezes à custa dos meus clientes.

Fui buscar uma cadeira a uma das secretárias vazias e sentei-me. Pus de lado as cortesias, porque ali não havia nenhumas, e fui directo ao assunto pois estava com fome e não tinha muito tempo.

Apresentou as acusações esta manhã contra a Gloria Dayton. disse. - O caso é meu. Quero ver o que podemos fazer.

Bem, podemos pronunciá-la culpada e pode levar de um a três anos em Frontera.

disse-o num tom casual, com um sorriso que era mais um trejeito. Estava a pensar numa intervenção pré-julgamento.

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- E eu estava a pensar que ela já mordeu essa maçã e a cuspiu. Nem pensar.

- Ouça, quanta coca é que ela tinha, uns poucos gramas?

- Mesmo assim é ilegal, seja qual for a quantidade que ela tinha. A Gloria Dayton já teve inúmeras oportunidades para se reabilitar e evitar a prisão. Agora já não tem mais hipóteses.

Abriu um dossier e deu uma olhada rápida à primeira folha.

- Nove detenções só nos últimos cinco anos. É a terceira acusação de posse de droga e nunca passou mais de três dias na prisão. Esqueça a intervenção pré-julgamento. Algum dia vai ter de aprender e vai ser desta vez. Não estou aberta a discussão sobre este assunto. Se ela se confessar culpada, dou-lhe de um a três anos. Se não o fizer, consigo na mesma um veredicto e ela que se desenrasque perante o juiz na leitura da sentença. Vou pedir a pena máxima.

Anuí com a cabeça. Estava a correr como eu pensava que iria ser com a Leslie. Uma sentença de um a três anos provavelmente resultaria num período de nove meses a meter drogas. Sabia bem que a Gloria podia cair nisso e talvez até o devesse fazer. Mesmo assim, ainda tinha uma carta para jogar.

- E se ela tivesse alguma coisa para dar em troca?

A Faire soltou uma fungadela como se aquilo fosse uma piada.

- O número de um quarto de motel onde há um grande traficante a fazer negócio.

- Parece-me muito vago.

Era vago, mas a mudança na voz dela dizia-me que ficou interessada. Qualquer procurador gosta de negociar.

- Ligue aos vossos homens das drogas. Peça-lhes para fazerem uma pesquisa do nome Hector Arrande Moya. Um colombiano. Posso esperar.

Ela hesitou. Tornou-se claro que não gostava de ser manipulada por um advogado de defesa, sobretudo quando havia outro procurador a ouvir. Mas o anzol já tinha sido lançado.

Fez uma chamada. Ouvi-a dizer a alguém para verificar o nome Moya. Aguardou e depois ouviu a resposta. Agradeceu à pessoa e desligou. Demorou algum tempo até voltar a olhar-me.

- Okay. O que é que ela quer? Já tinha a resposta pronta.

- Quer uma intervenção pré-julgamento. Todas as acusações são anuladas após a conclusão com êxito do programa. Não testemunhará contra o tipo e o nome dela não constará de nenhum documento. Limita-se a dar o número do quarto do motel onde o tipo está e os vossos homens fazem o resto.

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- Vão precisar de instaurar um processo. Ela vai ter de testemunhar. Presumo que os dois gramas que ela tinha vieram desse sujeito. Portanto, vai ter de ser ela a contar-nos tudo.

- Não vai, não. A pessoa com quem acabou de falar disse-lhe que já há um mandato de busca. Podem prendê-lo com base nisso.

Reflectiu, por momentos, enquanto movia os maxilares como se estivesse a tomar o sabor do acordo e a ponderar se queria comer mais. Eu sabia bem qual era o obstáculo. Era um acordo com base na troca de informações, mas essa troca daria para instaurar um processo federal. Isso implicava prender o tipo e depois os federais assumiriam o controlo do caso. Não haveria nenhuma glória para a Leslie Faire a não ser que aspirasse chegar um dia ao Gabinete da Procuradoria-Geral dos EUA.

- Os federais vão adorá-la por isto - disse-lhe, tentando convencê-la. - O tipo é um criminoso, além de que é provável que não fique muito mais tempo no motel e lá se vai a oportunidade de o apanhar.

Olhou-me como se eu fosse um insecto.

- Não tente essa jogada comigo, Haller.

- Desculpe.

Continuou a reflectir. Voltei a tentar.

- Assim que tiver a localização do tipo, sempre pode tentar um acordo.

- Quer calar-se, por favor? Assim não consigo pensar. Ergui as mãos em rendição e mantive-me calado.

- Muito bem - acabou por dizer. - Deixe-me falar com o meu chefe. Deixe-me o seu número para lhe ligar mais tarde. Mas digo-lhe desde já, se avançarmos com isto, ela vai ter de cumprir o programa à risca. No centro médico de Los Angeles, por exemplo. Não vamos andar a desperdiçar oportunidades de tratamento com ela.

Ponderei e aceitei. O centro médico de Los Angeles era um hospital com uma ala para detidos onde eram tratados presos com ferimentos, doentes ou viciados em drogas. A Leslie estava a oferecer à Gloria Dayton um programa para se curar do vício e seria liberta após conclusão com sucesso. Não enfrentaria quaisquer acusações nem cumpriria mais tempo de cadeia.

- Por mim tudo bem - disse-lhe. Verifiquei as horas. Tinha de me pôr a caminho.

- A nossa oferta é válida até à primeira audiência amanhã - disse-lhe. - Depois disso, ligo para a agência federal para ver se querem negociar directamente. Depois deixa de estar nas nossas mãos.

Lançou-me um olhar indignado. Ela sabia que se eu fizesse um acordo com os federais, os tipos esmagavam-na. Quando confrontados

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directamente, os federais espezinhavam sempre o estado. Levantei-me e deixei um dos meus cartões na secretária dela.

- Não tente ser desonesto comigo, Ha. Jler. Se tentar alguma jogada vingo-me na sua cliente.

Não lhe respondi. Voltei a pôr a cadeira no lugar. Depois ela deixou-se de ameaças com o que disse a seguir.

- De qualquer modo, tenho a certeza de que podemos tratar disto de forma a ficarmos todos felizes.

Olhei para ela ao aproximar-me da porta. - Todos excepto o Hector Moya.

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Os gabinetes de advocacia Dohhs & Delgado ficavam no vigésimo nono andar de uma das torres gémeas que criaram a assinatura dos arranha-céus da Century City. Cheguei a tempo, mas já estavam todos reunidos numa sala de conferências com uma longa mesa de madeira polida e uma parede de vidro a emoldurar uma vista ampla através de Santa Monica até ao Pacífico e às ilhas de veraneio mais além. Estava um dia límpido e consegui ver Catalina e Anacapa mesmo ali no canto do mundo. Como o sol estava a baixar e parecia quase ao nível dos olhos, tinham descido um estore para cortar o brilho. Era como se a sala estivesse de óculos escuros.

O meu cliente também estava de óculos escuros. O Louis Roulet estava sentado à cabeceira da mesa, com um par de Ray-Bans de armação escura. Já sem o macacão cinzento da prisão, vestia agora um fato castanho-escuro por cima de uma T-shirt de seda de cor pálida. Parecia um jovem executivo confiante e descontraído e não o rapaz assustado que eu tinha visto na gaiola no tribunal.

A sua esquerda estava sentado o Cecil Dobbs e ao lado deste uma mulher bem conservada, bem penteada e cheia de jóias que calculei ser a mãe do Roulet. Também calculei que o Dobbs não lhe tinha dito que a reunião não deveria incluí-la.

A primeira cadeira à direita do Roulet estava vazia e à minha espera. No lugar a seguir estava sentado o meu investigado, o Raul Levin, com uma pasta fechada à frente dele em cima da mesa.

O Dobbs apresentou-me a Mary Alice Windsor. A senhora apertou-me a mão com força. Sentei-me e o Dobbs explicou que ela ia pagar pela defesa do filho e que tinha concordado com os termos que eu tinha delineado antes. Fez deslizar um envelope por cima da mesa na minha direcção. Abri-o e vi um cheque de sessenta mil dólares com o meu nome. Era o adiantamento que eu tinha pedido, mas só esperava metade deste valor no pagamento inicial. Já tinha ganho um total mais alto em casos anteriores, mas ainda assim era o cheque avulso mais alto que alguma vez tinha recebido.

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O cheque vinha assinado pela Mary Alice Windsor. O banco era sólido como ouro: o First National de Beverly Hills. Fechei o envelope e fi-lo deslizar pela mesa.

- Preciso que seja o Louis a pagar-me - disse, olhando para a Sra. Windsor. - Não quero saber se lhe dá o dinheiro para ele mo dar depois. Mas quero que o cheque seja passado pelo Louis. Trabalho para ele e quero que isso fique claro desde o início.

Sabia que isto contradizia até a minha própria prática dessa manhã

- aceitar um pagamento de uma terceira parte. Mas tratava-se de uma questão de controlo. Bastou-me olhar para a Mary Alice Windsor e para o C. C. Dobbs para saber que tinha de me certificar de que eles estavam cientes de que este caso estava a meu cargo, para ganhar ou perder.

Não esperava que isto fosse acontecer, mas a Mary Windsor ficou de rosto fechado. Não sei porquê, lembrou-me um daqueles antigos relógios de pêndulo, de mostrador achatado e quadrado.

- Mãe - disse o Roulet, tentando evitar uma possível discussão.

- Não há problema. Passo-lhe eu um cheque. Acho que tenho o suficiente para cobrir o montante até a mãe me dar o dinheiro.

A mulher olhou para mim e para o filho, e depois novamente para mim. - Muito bem - disse.

- Sra. Windsor - disse eu. - O seu apoio ao seu filho é muito importante. E não me refiro apenas à questão financeira. Se não conseguirmos anular estas acusações e optarmos pela alternativa do julgamento, vai ser muito importante a senhora mostrar publicamente o seu apoio.

- Não diga tolices - disse ela. - Vou apoiá-lo, caia o inferno ou um dilúvio. Estas acusações ridículas têm de ser removidas, e aquela mulher... não vai conseguir um único cêntimo de nós.

- Obrigado, mãe - disse o Roulet.

- Sim, obrigado - disse eu. - Posso assegurar-lhe que a informarei, provavelmente através do Sr. Dobbs, quando precisarmos de si. É bom saber que dá todo o apoio ao seu filho.

Não disse mais nada e esperei. Ela não demorou muito a compreender que a sua presença acabava de ser dispensada.

- Mas não quer que eu esteja aqui agora, é isso?

- Certo. Precisamos de discutir o caso e é melhor, e mais apropriado, que o Louis faça isso apenas com a sua equipa de defesa. O privilégio advogado-cliente não inclui mais ninguém. A senhora poderia ser forçada a testemunhar contra o seu filho.

- Mas se eu sair agora, como é que o Louis vai voltar para casa?

- Tenho motorista. Posso levá-lo a casa.

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Ela olhou para o Dobbs, na esperança de que as decisões deste pudessem sobrepor-se às minhas. O Dobbs sorriu e levantou-se para lhe puxar a cadeira para trás. Ela acabou por levantar-se e preparou-se para sair.

- Muito bem - disse ela. - Louis, vemo-nos ao jantar.

O Dobbs acompanhou-a à porta e vi-os conversar no corredor. Não consegui ouvir o que ela estava a dizer. Depois o Dobbs voltou a entrar.

Revi alguns dos procedimentos preliminares com o Roulet, disse-lhe que teria de ir a tribunal dentro de duas semanas para ouvir o despacho da acusação e contestar as acusações. Nessa altura já poderia informar o estado de que não renunciava ao seu direito de um julgamento rápido.

- É a primeira escolha que temos de fazer - disse-lhe. - Se queres que esta coisa se arraste ou se queres que avance rápido e pressionar assim o estado.

- Que opções temos? - perguntou o Dobbs.

Olhei para ele e depois para o Roulet. - Vou ser muito honesto. Quando um cliente meu não está preso, inclino-me para deixar a coisa arrastar-se. É a liberdade do cliente que está em causa; por isso, por que não aproveitar ao máximo antes que a sentença seja anunciada?

- Está a falar de um cliente que é culpado - disse o Roulet.

- Por outro lado - continuei -, se o caso apresentado pelo estado for inconsistente, então atrasar as coisas só vai servir para lhes dar tempo de reforçarem as acusações. Como deves saber, o tempo é a nossa única força nesta altura. Se não renunciarmos ao nosso direito de um julgamento rápido, isso vai exercer muita pressão sobre o procurador.

- Não fiz aquilo que dizem que eu fiz - disse o Roulet. - Não quero perder tempo. Quero ver esta merda pelas costas.

- Se não renunciarmos, então teoricamente são obrigados a levar-te a julgamento num período de sessenta dias depois de ouvido o despacho da acusação. A verdade é que tudo fica mais difícil quando eles avançam para uma audiência preliminar. Numa preliminar, o juiz ouve a acusação e decide se há matéria suficiente para garantir um julgamento. É um processo automático. O juiz notifica-te para julgamento, haverá nova audiência para ouvir o despacho da acusação e a data volta a ser marcada Para daí a sessenta dias.

- Não acredito nisto - disse o Roulet. - Isto nunca mais vai acabar.

- Sempre podemos renunciar também à audiência preliminar. ExerCeria uma enorme pressão sobre eles. O caso foi entregue a um

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procurador jovem, ainda bastante inexperiente em casos de crimes graves. Pode ser esse o caminho a seguir.

- Espere aí - disse o Dobbs. - As audiências preliminares não são úteis para saber quais são as provas apresentadas pelo estado?

- Nem por isso - respondi. - Agora já não é assim. A legislatura tentou reestruturar as coisas há pouco e transformaram as preliminares num processo automático porque atenuaram as regras dos testemunhos de ouvir dizer. Agora, geralmente só se chama a testemunhar o polícia envolvido no caso e este conta ao juiz aquilo que todos disseram. A defesa geralmente não chega a ver nenhuma testemunha a não ser o polícia. Se me perguntar, a melhor estratégia é forçar a acusação a agir ou calar-se. Obrigá-los a aguentar um período de sessenta dias desde a leitura do despacho da acusação.

- Essa ideia agrada-me - disse o Roulet. - Quero isto acabado o mais rápido possível.

Anuí. Tinha falado como se um veredicto de não culpado fosse a conclusão inevitável.

- Bem, talvez nem sequer chegue a julgamento - disse o Dobbs.
- Se estas acusações não tiverem fundamento...

- A procuradoria não vai largar o caso - interrompi-o. - Geralmente, os polícias sobrecarregam nas acusações e depois a procuradoria reduz essas mesmas acusações. Não foi o que aconteceu aqui. Em vez disso, a procuradoria agravou as acusações. Isso diz-me duas coisas. Uma é que eles acreditam que o caso é sólido e, outra, agravaram as acusações para poderem estar em vantagem quando começarmos a negociar.

- Está a falar de um acordo de culpa? - perguntou o Roulet.

- Sim, uma disposição.

- Esqueça essa ideia do acordo de culpa. Não vou para a cadeia por uma coisa que não fiz.

- Pode não implicar ir para a cadeia. Tens um cadastro limpo...

- Não importa que isso possa implicar que fico livre. Não vou declarar-me culpado de uma coisa que não fiz. E se isso for um problema para si, então é melhor separarmo-nos já aqui.

Olhei-o com atenção. Quase todos os meus clientes faziam protestos de inocência a certa altura durante o processo. Sobretudo quando se trata do nosso primeiro caso juntos. Mas as palavras do Roulet eram ditas com um fervor e uma franqueza como já não via há muito tempo. Os mentirosos vacilam. Desviam o olhar. O Roulet olhava-me com olhos que pareciam ímanes.

- Há que considerar também a responsabilidade civil - acrescentou o Dobbs. - Uma declaração de culpa permitirá que esta mulher...

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- Compreendo tudo isso - disse eu, interrompendo-o outra vez.

Acho que estamos todos aqui a antecipar-nos demasiado às coisas.

Só queria dar ao Louis uma ideia geral do caminho que isto vai seguir. Não precisamos de agir nem de tomar decisões rápidas, pelo menos durante duas semanas. Só precisamos de saber como vamos jogar aquando da leitura do despacho da acusação.

- O Louis frequentou um ano de Direito na UCLA - disse o Dobbs. - Acho que tem os conhecimentos básicos da situação.

O Roulet anuiu com a cabeça.

- Okay, muito bem - disse eu. - Vamos lá discutir o caso, então. Louis, comecemos por ti. A tua mãe disse que te espera ao jantar. Vives lá? Quer dizer, em casa dela?

- Vivo na casa de hóspedes. Ela vive na principal.

- Vive lá mais alguém?

- A criada. Na casa principal.

- Não há irmãos, namorados, namoradas?

- Mais ninguém.

- E trabalhas na firma da tua mãe?

- Mais do que isso, sou eu que a dirijo. Ela já não passa muito tempo lá.

- Onde estavas na noite de sábado?

- Na noite de sábado não fiz nada. Fiquei em casa a ver televisão.

- Sozinho?

- Sim.

- A ver o quê?

- Um DVD. Um filme antigo chamado O Vigilante. Do Coppola.

- Então ninguém estava contigo nem te viu. Ficaste a ver o filme e depois deitaste-te.

-- Basicamente.

-- Basicamente. Okay. Isso traz-nos agora à manhã de domingo. O que fizeste ontem durante o dia?

- Joguei golfe no Riviera, com os meus três parceiros habituais. Comecei às dez e acabei às quatro. Vim para casa, tomei um duche, jantei em casa da minha mãe... quer saber o que comemos?

- Não é necessário. Mas depois talvez precise de saber os nomes das pessoas com quem jogaste. Que aconteceu depois do jantar?

- Disse à minha mãe que ia para a casa de hóspedes, mas depois decidi sair.

Reparei que o Levin tinha começado a tomar notas num livrinho. Que carro conduz?

Temos dois, um Range Rover de 2004, que uso para andar com os Cientes, e um Porsche Carrera de 2001, quando não estou a trabalhar.

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- Usaste o Porsche ontem à noite, então?

- Sim.

- Aonde foste?

- Subi a colina e desci para o Valley.

Disse-o como se fosse arriscado um rapaz de Beverly Hills descer para os bairros operários de San Fernando Valley.

- E foste aonde? - perguntei.

- Ventura Boulevard. Tomei um copo no Nat's North e depois fui ao Morgan's tomar outro copo.

- Esses sítios são bares de engate, não são?

- Sim. Foi por isso que fui lá.

Disse-o num tom indiferente e apreciei a honestidade dele.

- Portanto, andavas à procura de alguém. Uma mulher. Alguém em particular, alguém que conhecesses?

- Ninguém em particular. Andava à procura de uma queca, tão simples como isso.

- Que aconteceu no Nat's North?

- Aconteceu que a noite estava fraca e decidi ir-me embora. Nem cheguei a acabar a bebida.

- Vais lá muitas vezes? Os empregados do bar conhecem-te?

- Sim, conhecem-me. Na noite passada, quem estava a servir lá era uma rapariga chamada Paula.

- Okay, portanto aquilo não estava a dar para ti e saíste. Foste para o Morgan's. Porquê o Morgan's?

- É um dos sítios onde costumo ir.

- Conhecem-te lá?

- Deviam. Dou boas gorjetas. Quem estava lá no bar na noite passada era a Denise e a Janice. Ambas me conhecem.

Virei-me para o Levin. - Raul, como se chama a vítima?

O Levin tirou da pasta um relatório da polícia, mas respondeu sem ter de o abrir. - Regina Campo. Os amigos chamam-lhe Reggie. Vinte e seis anos. Disse à polícia que é actriz e que trabalha actualmente como vendedora por telefone.

- E com esperanças de se reformar cedo - disse o Dobbs.

- Louis, já tinhas visto a Reggie Campo antes da noite passada? perguntei.

O Roulet encolheu os ombros. - Mais ou menos. Já a tinha visto pelos bares. Mas nunca tinha estado com ela. E nunca tinha falado com ela.

- E alguma vez tentaste?

- Não, nunca consegui aproximar-me dela. Parecia estar sempre com alguém ou com mais de uma pessoa. Não me agrada ter de furar

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pelo meio da multidão, sabe? O meu estilo é procurar mulheres que

não estão acompanhadas. - O que houve de diferente ontem à noite?

-- Ontem à noite foi ela quem me abordou, foi essa a diferença. - Conta-nos como foi.

- Não há nada para contar. Estava no balcão do Morgan's, a pensar
com os meus botões, a analisar as possibilidades, e ela estava sentada

na outra ponta do balcão com um tipo qualquer. Portanto, nem sequer

estava no meu radar porque tudo indicava que já tinha dono, percebe?

- - Sim, e que aconteceu depois?

- Bem, pouco depois o tipo que estava com ela levanta-se para ir

mijar ou ir lá fora fumar e, assim que ele sai, ela levanta-se e vem ter

comigo e pergunta-me se estou interessado. Disse-lhe que sim, mas e

o outro tipo já estava? Ela diz-me para não me preocupar, que o tipo

se ia embora por volta das dez e que depois ficava com o resto da noite

livre. Escreveu-me a morada e disse-me para aparecer depois das dez.

Disse-lhe que iria lá ter.

- Onde é que ela anotou a morada?

- Num guardanapo, mas a resposta à sua próxima pergunta é não, não o guardei. Decorei a morada e deitei o guardanapo fora. Trabalho no ramo imobiliário. Decorar moradas é comigo. - Isso foi por volta de que horas?

- Não sei.

- Bem, ela disse para apareceres por volta das dez. Chegaste a

verificar as horas alguma vez para ver quanto tempo tinhas de esperar até ires ter com ela?

- Acho que foi entre as oito e as nove. Assim que o tipo voltou, ambos saíram do bar

- E tu, quando saíste do bar?

- Fiquei mais uns minutos e depois saí. Ainda fiz outra paragem antes de ir a casa dela.

-Onde?

- Bem, ela morava num apartamento em Tarzana e, por isso, fui até ao Lamplighter. Ficava a caminho.

- Porquê?

- Bem, já sabe, queria ver se havia mais hipóteses. Sabe como é, ver se arranjava lá coisa melhor, uma coisa pela qual não tivesse de esperar nem...

- Nem o quê?

Não chegou a completar o pensamento.

- Sobre a qual tivesses dúvidas? Anuiu.

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- Okay, e com quem falou no Lamplighter? Onde fica isso, aliás? Até agora, era o único lugar que me era desconhecido.

- Fica na Ventura, perto de White Oak. Não cheguei a falar com ninguém. Estava cheio de gente, mas não vi lá ninguém que me interessasse realmente.

- Os empregados de lá conhecem-te?

- Não, acho que não. Vou lá poucas vezes.

- Costumas ter sorte antes de teres de ir a um terceiro bar?

- Na, geralmente desisto depois do segundo bar.

Anuí só para ganhar algum tempo para poder pensar no que perguntar de seguida, antes de abordarmos o que tinha acontecido em casa da vítima.

- Quanto tempo ficaste no Lamplighter?

- Cerca de uma hora. Talvez um pouco menos.

- Ao balcão? Quantas bebidas?

- Sim, tomei duas bebidas ao balcão.

- Quantas bebidas tomaste ao todo na noite passada, antes de ires ao apartamento da Reggie Campo?

- Hum, quatro no máximo. Num período de duas horas ou duas horas e meia. Deixei uma bebida intacta no Morgan's.

- Que bebidas eram?

- Martinis. Gray Goose.

- E em algum desses sítios pagaste as bebidas com cartão de crédito? - interveio o Levin, fazendo a sua primeira pergunta.

- Não - disse o Roulet. - Quando saio, pago em dinheiro. Olhei para o Levin e esperei para ver se ele tinha mais alguma

coisa a perguntar. Sabia mais sobre o caso do que eu neste momento. Queria dar-lhe rédea solta para perguntar o que quisesse. Olhou para mim e assentiu com a cabeça. Não tinha mais perguntas por enquanto.

- Okay - disse eu. - Que horas eram quando chegaste ao apartamento da Reggie?

- Doze para as dez. Tinha verificado as horas no relógio. Para ter a certeza de não estar a bater-lhe à porta cedo.

- E que fizeste então?

- Esperei no parque de estacionamento. Ela tinha dito às dez e, portanto, esperei até às dez.

- Viste sair o tipo com quem ela estava no Morgan's?

- Sim, vi-o sair. E depois saí eu do carro.

- Que carro tinha ele? - perguntou o Levin.

- Um Corvette amarelo - disse o Roulet. - Um modelo dos anos noventa. Não sei bem o ano.

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O Levin anuiu com a cabeça. Não tinha mais perguntas. Sabia que ele estava só a tentar obter informações sobre o tipo que tinha estado antes do Roulet no apartamento da Reggie Campo. Voltei às minhas perguntas.

-- Portanto, ele sai e entras tu. Que acontece?

- Entro no prédio e a casa dela é no segundo piso. Subo, toco à campainha, ela abre a porta e entro.

- Espera um segundo. Quero mais pormenores. Subiste? Como? Pelas escadas, de elevador, como? Dá-nos mais pormenores.

- De elevador.

- Ia mais alguém no elevador? Alguém te viu?

O Roulet abanou a cabeça. Fiz-lhe sinal para continuar.

- Ela só entreabriu a porta, viu que era eu e disse-me para entrar. Havia um corredor e era um espaço um pouco apertado. Afastei-me para o lado para ela poder fechar a porta. Foi por isso que ela ficou por trás de mim. E foi por isso que não me apercebi de nada. Ela tinha alguma coisa na mão. Atingiu-me com alguma coisa e caí. Desmaiei num instante.

Mantive-me calado enquanto pensava e tentava visualizar a cena.

- Portanto, não chegou a acontecer nada entre os dois e ela simplesmente ataca-te e desmaias. Ela não diz nada, nem grita, simplesmente põe-se atrás de ti e zás.

- Foi isso.

- Okay, e depois? Do que te lembras a seguir?

- Ainda é tudo muito confuso. Lembro-me de acordar com dois tipos sentados em cima de mim para me imobilizarem. E depois chegou a polícia. E os paramédicos. Estava sentado encostado à parede com as mãos algemadas e o paramédico pôs-me amoníaco ou algo do género por baixo do nariz e foi quando recuperei os sentidos por completo.

- Ainda estavas no apartamento?

- Sim.

- Onde estava a Reggie Campo?

- Sentada no sofá, com outro paramédico a tratar-lhe o rosto e estava a chorar e a dizer ao outro polícia que eu a tinha atacado. Tudo mentiras. Que eu a tinha apanhado de surpresa à porta e lhe tinha batido, que tinha dito que ia violá-la e depois matá-la, tudo coisas que não fiz. E mexi os braços para poder ver as mãos atrás das costas. Vi que me tinham enfiado a mão dentro de um saco de plástico e vi sangue na mão, e foi quando soube que aquela coisa toda era uma armadilha.

- Que queres dizer com isso?

- Ela pôs-me sangue na mão para dar a entender que tinha sido eu a bater-lhe. Mas era a minha mão esquerda. Não sou canhoto. Se fosse esmurrar alguém, teria usado a mão direita.

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Fez o gesto de dar um soco com a mão direita para ilustrar as suas palavras, caso eu não tivesse percebido. Levantei-me e aproximei-me da janela. Tive a sensação de estar num lugar mais elevado do que o Sol. Estava a olhar para o pôr do Sol em baixo. A história do Roulet incomodava-me. Parecia tão rebuscada que até poderia ser realmente verdade. E isso incomodava-me. Preocupava-me sempre a possibilidade de não reconhecer a inocência. Na minha profissão, essa possibilidade era tão rara que agia com medo de não estar pronto quando isso acontecesse. Com medo de isso me passar ao lado.

- Okay, falemos um pouco mais disto - disse eu, ainda virado para o Sol poente. - Estás a dizer que ela te pôs sangue na mão para te tramar. Na tua mão esquerda. Mas se ela quisesse tramar-te, não achas que teria posto o sangue na tua mão direita, dado que a grande maioria das pessoas são dextras? Não seria a escolha mais óbvia?

Virei-me para a mesa e deparei-me com os olhares vazios de todos.

- Disseste que ela tinha entreaberto a porta para te deixar entrar. Conseguiste ver-lhe a cara?

- A cara toda não.

- O que conseguiste ver?

- O olho. O olho esquerdo.

- E alguma vez chegaste a ver-lhe o lado direito da cara? Tipo, quando entraste?

- Não, ela estava atrás da porta.

- É isso! - disse o Levin num tom excitado. - Ela já tinha os ferimentos quando ele entrou lá. Tratou de os ocultar, depois ele entra e ela ataca-o. Todos os ferimentos foram no lado direito da cara e foi isso que a levou a pôr o sangue na mão esquerda dele.

Anuí enquanto pensava na lógica deste raciocínio. Parecia fazer sentido.

- Okay - disse eu, voltando a virar-me para a janela. - Acho que vai resultar. Ora bem, Louis, disseste-nos que já tinhas visto antes esta mulher pelos bares, mas que nunca tinhas falado com ela. Era uma desconhecida, portanto. Por que razão faria ela uma coisa destas, Louis? Por que razão te teria tramado, como afirmas?

- Por dinheiro.

Mas não tinha sido o Roulet a responder. Tinha sido o Dobbs. Virei-me para ele. O Dobbs sabia que se tinha sobreposto à conversa, mas parecia não se importar.

- É mais do que óbvio - disse o Dobbs. - Quer o dinheiro dele, da família. Devem estar a instaurar o processo cível neste preciso momento em que falamos. As acusações criminais são apenas o prelúdio do processo, o pedido de dinheiro. É disso que ela anda atrás.

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Voltei a sentar-me e olhei para o Levin.

- Vi hoje no tribunal uma foto dessa mulher - disse eu. - Tinha metade da cara numa polpa. Estás a dizer que é essa a nossa defesa, que ela fez isso a si própria?

O Levin abriu a pasta e mostrou uma fotocópia a preto e branco da foto da acusação que a Maggie McPherson me tinha mostrado no tribunal. A cara inchada da Reggie Campo. A fonte do Levin era boa, mas não suficientemente boa para lhe conseguir as fotos reais. Fez deslizar a fotocópia na direcção do Dobbs e do Roulet.

- Depois arranjamos as fotos reais - disse eu. - Parecem pior, muito pior. E se vamos avançar com a tua história, então o júri... quer dizer, se isto chegar perante um júri... vai ter de acreditar que ela fez isso a si própria.

Observei o Roulet enquanto ele examinava a fotocópia. Se tinha sido ele a atacar a Reggie Campo, não deu nenhum sinal disso enquanto examinava o trabalho que tinha feito. Não houve a mínima reacção.

- Sabes que mais? - disse eu. - Gosto de pensar que sou um bom advogado e um bom persuasor quando se trata de júris. Mas até eu estou a ter dificuldade em acreditar nesta história.

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Chegara agora a vez de o Raul Levin intervir. Tínhamos falado enquanto eu vinha a caminho da Century City e mordiscava a minha sanduíche de carne assada. Tinha ligado o meu telemóvel às colunas do carro e dissera ao Earl para meter os auscultadores. Tinha-lhe comprado um iPod na primeira semana em que o contratara. O Levin pusera-me a par do essencial do caso, apenas o suficiente para o interrogatório inicial ao meu cliente. Agora seria o Levin a assumir o comando enquanto revia o caso, baseando-se nos relatórios e nas provas da polícia para desfazer a versão do Roulet e mostrar-nos qual seria o caminho seguido pela acusação. Pelo menos inicialmente, queria que fosse o Levin a fazer isto pois, caso viesse a haver na defesa uma oposição bom tipo/mau tipo, queria ser eu o tipo de quem o Roulet gostasse e em quem confiasse. Queria ser eu o bom tipo.

O Levin tinha os seus próprios apontamentos para além das cópias dos relatórios da polícia, que tinha obtido através das suas fontes. Tudo material a que a defesa tinha certamente direito e que iria receber durante a constituição do processo, mas geralmente essa informação demorava duas semanas a passar pelos canais do tribunal em vez das poucas horas de que o Levin precisara. O Levin começou a falar, mantendo-se de olhos fixos nestes documentos.

- Às dez e onze da noite passada, o centro de atendimento da Polícia de Los Angeles recebeu uma chamada de emergência da Regina Campo, do número 1760 de White Oak Boulevard, apartamento 211. Informou que um intruso tinha forçado a entrada e a tinha atacado. Os agentes da patrulha chegaram ao local às dez e dezassete. Devia ser uma noite calma, acho, pois chegaram bastante depressa. Mais depressa do que a resposta normal a um tiroteio. De qualquer modo, os agentes encontraram a Sra. Campo no parque de estacionamento e esta disse-lhes que tinha fugido do apartamento depois do ataque. Informou que dois vizinhos chamados Edward Turner e Ronald Atkins estavam no apartamento dela a imobilizar o intruso. O agente Santos entrou no apartamento, onde encontrou o suspeito e intruso, mais tarde identificado

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como o Sr. Roulet, deitado no chão e imobilizado pelos senhores Turner e Atkins.

- Eram os dois panascas que estavam em cima de mim - disse o Roulet.

Olhei para ele e vi o clarão de raiva dissipar-se rapidamente.

Os agentes detiveram o suspeito - continuou o Levin, como se

não tivesse sido interrompido. - O Sr. Atkins...

- Espera um segundo - disse-lhe. - Estava deitado no chão onde? Em que divisão?

- Não diz aqui. Olhei para o Roulet.

- Estava na sala de estar. Não muito longe da porta. Tinha acabado de entrar.

O Levin anotou algo antes de continuar.

- O Sr. Atkins mostrou uma navalha com a lâmina aberta, a qual disse que tinha encontrado no chão ao lado do intruso. Os agentes algemaram o suspeito e chamaram os paramédicos para tratar a Sra. Campo e o Sr. Roulet, tendo este uma laceração na cabeça e uma leve contussão. A Sra. Campo foi transportada para o Centro Médico de Holy Cross para continuar o tratamento e ser fotografada por um técnico de provas. O Sr. Roulet foi levado para a prisão de Van Nuys. A zona envolvente do apartamento da Sra. Campo foi selada para análise da cena do crime e o caso foi entregue ao Detective Martin Booker, do Gabinete de Detectives de San Fernando Valley.

O Levin espalhou sobre a mesa mais fotocópias das fotos da polícia com as lesões da Regina Campo. Eram fotos de perfil e de frente do rosto dela, dois grandes planos de equimoses à volta do pescoço e uma pequena marca de punção por baixo do queixo. A qualidade era fraca e as fotocópias não permitiam uma análise detalhada. Mas reparei que todas as lesões faciais eram do lado direito. Nisso o Roulet tinha razão. Ou alguém lhe batera repetidamente com a mão esquerda - ou talvez tivesse sido ela com a mão direita.

- Estas fotos foram tiradas no hospital, onde a Sra. Campo forneceu também um depoimento ao Detective Booker. Em resumo, disse que tinha chegado a casa por volta das oito e meia na noite de domingo e que estava em casa sozinha quando ouviu alguém bater à porta por volta das dez. O Sr. Roulet fez-se passar por alguém que a Sra. Campo conhecia. Assim que abriu a porta, foi imediatamente atingida com um soco do intruso, que a fez recuar para dentro do apartamento. O intruso entrou e trancou a porta. A Sra. Campo tentou defender-se, mas foi agredida pelo menos mais duas vezes até cair ao chão.

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- É tudo mentira! - gritou o Roulet.

Bateu com os punhos na mesa e quando se levantou a cadeira rolou para trás e embateu com força no painel de vidro.

- Ei, calma! - disse o Dobbs. - Partes o vidro e é como se estivéssemos num avião. Seríamos todos sugados daqui e estatelávamo-nos lá em baixo.

Ninguém sorriu perante esta tentativa de humor.

- Louis, volta a sentar-te - disse eu, num tom calmo. - São relatórios da polícia, nada mais do que isso. Não se espera que sejam verdadeiros. São a visão de uma pessoa do que é a verdade. Tudo o que estamos a fazer aqui é dar uma primeira olhada ao caso, para saber aquilo que vamos enfrentar.

O Roulet pegou na cadeira e sentou-se sem mais protestos. Fiz sinal ao Levin para continuar. Reparei que o Roulet há muito tinha deixado de agir como a presa dócil que eu tinha visto antes na gaiola.

- A Sra. Campo informou que o homem que a atacou tinha o punho envolvido num pano branco quando a esmurrou.

Olhei para as mãos do Roulet e não vi nenhum inchaço nem equimoses nas articulações nem nos dedos. Proteger o punho com um pano ter-lhe-ia permitido evitar essas lesões denunciadoras.

- O pano foi levado como prova? - perguntei.

- Sim - disse o Levin. - No relatório das provas é descrito como um guardanapo de pano com sangue. O sangue e o pano estão a ser analisados.

Olhei para o Roulet.

- A polícia examinou-te ou fotografou-te as mãos ?

O Roulet confirmou com a cabeça. - O detective examinou-me as mãos, mas ninguém tirou fotos.

Anuí e disse ao Levin para continuar.

- O intruso pôs-se em cima da Sra. Campo deitada no chão e envolveu-lhe o pescoço com a mão. O intruso disse à Sra. Campo que ia violá-la e que não importava se ela estaria viva ou morta quando o fizesse. Ela não pôde responder porque o suspeito estava a sufocá-la com a mão. Quando ele afrouxou a pressão, ela disse que iria cooperar.

O Levin fez deslizar outra fotocópia pela mesa. Era uma foto de uma navalha de cabo escuro e de lâmina afiadíssima, o que explicava a foto anterior do ferimento no pescoço da vítima.

O Roulet pegou na fotocópia para ver melhor. Abanou a cabeça lentamente.

- Esta navalha não é minha - disse. Continuei calado e o Levin prosseguiu.

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- O suspeito e a vítima levantaram-se e ele disse-lhe que fosse para o quarto. O suspeito manteve-se atrás da vítima, com a ponta da navalha comprimida contra o lado esquerdo da garganta dela. Quando a Sra. Campo entrou num pequeno corredor que dava para os dois quartos do apartamento, virou-se e empurrou o atacante para trás, contra um vaso grande que havia no chão. O intruso tombou contra o vaso e ela fugiu para a porta. Com medo que o atacante pudesse recompor-se e apanhá-la junto da porta, enfiou-se na cozinha e agarrou numa garrafa de vodca que estava em cima da banca. Quando o intruso passou no corredor em direcção à porta da entrada, a Sra. Campo atingiu-o de imprevisto na nuca, acabando por derrubá-lo. A Sra. Campo passou depois por cima do corpo caído e destrancou a porta da entrada. Correu para o exterior e chamou a polícia do apartamento do primeiro andar, partilhado pelos senhores Turner e Atkins. Estes foram ao apartamento da vítima e encontraram o intruso inconsciente no chão. Imobilizaram-no assim que ele começou a recuperar os sentidos e mantiveram-se no apartamento até a polícia chegar.

- Isto é incrível - disse o Roulet. - Ter de estar aqui sentado a ouvir isto. Nem acredito que isto esteja a acontecer-me. NÃO FUI Eu que fiz isto! Só posso estar a sonhar. Ela está a mentir! Ela...

- Se são tudo mentiras, então vai ser o caso mais fácil que já tive
- disse-lhe. - Vou desfazê-la em pedaços e atirar-lhe as entranhas ao mar. Mas temos de saber o que ela declarou no relatório antes de podermos preparar armadilhas para a apanhar. E se já achas difícil estar aqui sentado a ouvir, espera só até irmos a julgamento, que vai estender-se por dias em vez de minutos. Tens de te controlar, Louis. Tens de te lembrar que depois chegará a tua vez de falar. Há sempre uma altura em que chega a vez da defesa.

O Dobbs estendeu a mão e deu uma palmadinha no antebraço do Roulet, num gesto amigável e paternal. O Roulet afastou o braço.

- Raios, pode ter a certeza que vamos apanhá-la - disse o Roulet, apontando-me o dedo por cima da mesa. - Quero que vá atrás dela com todas as armas que temos.

- É para isso que estou aqui, e prometo-te que vou apanhá-la. Deixa-me perguntar agora ao meu sócio um par de coisas antes de terminarmos isto.

Esperei para ver se o Roulet tinha mais alguma coisa a dizer. Não tinha. Recostou-se na cadeira de mãos unidas.

- Já acabaste, Raul? - perguntei.

- Por agora. Ainda estou a analisar os relatórios. Amanhã de manhã já devo ter uma transcrição da chamada de emergência e vou receber mais material.

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- Óptimo. E quanto ao kit de violação?

- Não houve. O relatório do Booker diz que ela não quis fazer o exame, já que a violação não chegou a ocorrer.

- O que é um kit de violação ? - perguntou o Roulet.

- É um procedimento do hospital em que os fluidos corporais, pêlos e fibras são recolhidos do corpo de uma vítima de violação disse o Levin.

- Não houve violação nenhuma! - exclamou o Roulet. - Nunca toquei...

- Já sabemos isso - disse eu. - Não foi por isso que perguntei. Ando à procura de brechas no caso do estado. A vítima disse que não tinha sido violada, mas estava a declarar aquilo que foi certamente um crime sexual. Geralmente a polícia insiste no kit de violação, mesmo quando a vítima afirma não ter havido violência sexual. E fazem-no para o caso de a vítima ter sido violada e estar demasiado humilhada para o dizer ou por estar a tentar ocultar a verdadeira extensão do crime em relação ao marido ou a algum membro familiar. É um procedimento normal e o facto de ela se ter escusado ao exame pode vir a jogar a nosso favor.

- A tipa não queria que encontrassem nela nenhum ADN do primeiro sujeito - disse o Dobbs.

- Talvez - respondi. - Pode significar uma data de coisas. Mas pode ser uma brecha. Continuemos. Raul, há alguma menção relativa ao tipo com quem o Louis a viu?

- Não. Não consta do processo.

- E o que é que a equipa da cena do crime encontrou?

- Não tenho o relatório, mas disseram-me que não encontraram nenhuma prova de natureza significativa durante o exame da cena do crime no apartamento.

- Ainda bem. Não houve surpresas. E quanto à navalha?

- Sangue e impressões digitais na navalha. Mas ainda não há resultados do exame. É pouco provável que consigam identificar o dono. Podem-se comprar navalhas dessas em qualquer loja de artigos para pesca ou de campismo.

- Já lhe disse que essa navalha não é minha - protestou o Roulet.

- Temos de partir do princípio de que as impressões digitais serão do homem que a encontrou - disse eu.

- O Atkins - disse o Levin.

- Certo, o Atkins. - Virei-me para o Louis. - Mas não me surpreenderia encontrar também impressões tuas na navalha. Não há maneira de saber o que aconteceu enquanto estavas inconsciente. Se ela te pôs sangue na mão, então provavelmente também pôs as tuas impressões na navalha.

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O Roulet estava prestes a dizer algo, mas não o deixei falar.

- Há algum depoimento dela que refira ter estado no Morgan's nessa noite? - perguntei ao Levin.

Ele abanou a cabeça. - Não, o interrogatório à vítima foi na sala de emergências e sem as formalidades habituais. Um procedimento de rotina e nem lhe pediram para rever os acontecimentos da primeira parte da noite. Ela não referiu o outro sujeito nem o facto de ter estado no Morgan's. Disse apenas que estava em casa desde as oito e meia. Só lhe perguntaram o que tinha acontecido às dez. Não a questionaram sobre o que tinha feito antes. Tenho a certeza de que vão encobrir isso tudo na investigação subsequente.

- Okay, quero essa transcrição, se a chamarem para um depoimento formal.

- Já ando a trabalhar nisso. Vai ser gravado em vídeo quando o fizerem.

- E se a equipa da cena do crime fizer algum vídeo, também o quero. Quero ver a casa dela.

O Levin sabia que eu estava a dar espectáculo à frente do cliente e do Dobbs, para lhes mostrar que era eu quem controlava o caso. Na verdade, não precisava de dizer nada disto ao Levin. Ele já sabia o que fazer.

- Okay, mais alguma coisa? - perguntei. - Alguma pergunta, Cecil?

O Dobbs pareceu ficar surpreendido quando as atenções recaíram, de repente, sobre ele. Abanou rapidamente a cabeça.

- Não, não, nada a perguntar. Tudo bem até agora. Estamos a fazer bons progressos.

Não fazia ideia do que ele queria dizer com "progressos", mas não lhe perguntei nada.

- E então, que pensa disto? - disse o Roulet. Olhei para ele e demorei alguns segundos a responder.

- Acho que o estado tem um caso forte contra ti. Encontraram-te em casa dela, têm uma navalha e as lesões dela. Também têm aquilo que suponho ser sangue dela nas tuas mãos. Além disso, as fotos são impressionantes. E, claro, vão levá-la a testemunhar. Como nunca a vi nem falei com ela, não sei que impacto pode causar.

Calei-me e prolonguei ainda mais o silêncio antes de continuar.

- Mas há muitas coisas que eles não têm: provas de entrada forçada, o ADN do suspeito, um motivo ou até um suspeito com um cadastro relativo a este tipo de crime ou qualquer outro crime. Há muitas razões, razões legítimas, para teres estado naquele apartamento. Além do mais...

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Olhei pela janela atrás do Roulet e do Dobbs. O Sol a pôr-se por trás de Anacapa começava a pintar o céu de cor-de-rosa e roxo. Superava tudo o que alguma vez vi das janelas do meu gabinete.

- Além do mais o quê? - perguntou o Roulet, demasiado ansioso para poder esperar.

- Além do mais tens-me a mim. Consegui tirar a Maggie McFierce do caso. O novo procurador é bom, mas é inexperiente e nunca enfrentou antes alguém como eu.

- Qual é o nosso próximo passo, então? - perguntou o Roulet.

- O próximo passo é deixar o Raul continuar a fazer o trabalho dele e tentar descobrir o que puder sobre esta alegada vítima e por que razão mentiu que estava sozinha. Precisamos de descobrir quem ela é e quem é esse homem misterioso e ver como isso se encaixa no nosso caso.

- E que vai fazer?

- Vou falar com o procurador. Vou fazer-lhe uma proposta para ver como reage e depois decidimos o caminho a seguir. Não tenho dúvidas de que consigo chegar à procuradoria e reduzir tudo isto a algo que possas negociar e pôr para trás das costas. Mas vai exigir uma cedência. Vais...

- Já lhe disse. Não vou...

- Eu sei que disseste, mas tens de me ouvir até ao fim. Posso não apresentar contestação para não teres de dizer realmente a palavra "culpado", mas não estou a ver o estado a ficar-se por aqui. Vais ter de aceitar responsabilidade em algum aspecto. É possível evitar tempo de cadeia, mas provavelmente vais ter de prestar algum tipo de serviço comunitário. E pronto, é isto. É esta a primeira apresentação do caso. Depois haverá mais. Como teu advogado, sou obrigado a informar-te e certificar-me de que compreendes as tuas opções. Sei que não é o que queres nem o que estás disposto a fazer, mas é meu dever esclarecer-te quanto às opções. Okay?

- Tudo bem. Okay.

- Claro, como sabes, qualquer cedência da tua parte faz com que qualquer acção cível que a Sra. Campo empreenda contra ti resulte logo em caso ganho para nós. Portanto, e como deves calcular, arrumar depressa o caso acabará provavelmente por te custar bastante mais do que os meus honorários.

O Roulet abanou a cabeça. A negociação de culpa já não era uma opção.

- Compreendo as minhas opções - disse. - O senhor cumpriu o seu dever. Mas não vou pagar um único cêntimo a ela por uma coisa que não fiz. Não vou declarar-me culpado nem contestar uma coisa que não fiz. Consegue ganhar se formos a julgamento?

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Olhei-o nos olhos antes de responder.

- Bem, compreendes que não sei o que vai surgir até lá e não posso garantir-te nada... mas, sim, com base no que vejo até agora, posso ganhar este caso. Estou confiante que sim.

Julguei ver-lhe nos olhos uma centelha de esperança. Havia um vislumbre de esperança para ele.

- Há uma terceira opção - disse o Dobbs.

Olhei para o Dobbs, perguntando-me que raios estava ele prestes a lançar para dentro da máquina de franquia.

- E que opção é essa? - perguntei.

- Investigamos tudo a fundo sobre ela e sobre este caso. Talvez até ajudemos o Sr. Levin com alguns dos nossos homens. Investigamos tudo de todos os modos possíveis e imagináveis e estabelecemos a nossa própria teoria e provas credíveis e apresentamo-las à procuradoria. Acabamos com a coisa antes de chegar sequer a julgamento. Mostramos a esse procurador aprendiz que vai perder definitivamente o caso e forçamo-lo a anular todas as acusações antes de sofrer essa humilhação profissional. Além do mais, tenho a certeza de que este tipo trabalha lá no gabinete para algum patrão que, digamos, é susceptível a pressões políticas. E aplicamos essa pressão até as coisas virarem a nosso favor.

Só me apetecia dar-lhe um pontapé por baixo da mesa. O seu plano não só implicava reduzir pela metade os meus maiores honorários de sempre, como implicava que a parte de leão do dinheiro do meu cliente iria para os investigadores, incluindo os próprios investigadores dele; e além do mais, uma opção assim só poderia ter vindo de um advogado que nunca tinha defendido um processo penal em toda a sua carreira.

- É uma ideia, mas é muito arriscada - disse-lhe, numa voz calma. - Se conseguir arrasar-lhes o caso e for lá antes do julgamento mostrar-lhes como as coisas vão ser, também estará a dar-lhes tempo para se prepararem e saberem o que evitar durante o julgamento. E isso não é coisa que eu goste de fazer.

O Roulet concordou e o Dobbs pareceu ficar ligeiramente estupefacto. Decidi deixar a coisa por ali e falar depois com ele quando o cliente não estivesse presente.

- E em relação aos meios de comunicação? - perguntou o Levin, mudando afortunadamente de assunto.

- Sim - disse o Dobbs, ansioso por mudar de assunto. - A minha secretária diz que recebi mensagens de dois jornais e de duas estações de televisão.

- Provavelmente também as recebi - disse eu.

Claro que não mencionei que eu próprio pedira à Lorna Taylor para deixar essas mensagens ao Dobbs. O caso ainda não tinha atraído as

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atenções dos meios de comunicação, para além do operador de câmara que tinha aparecido na primeira audiência. Mas queria que o Dobbs, o Roulet e a mãe acreditassem que podiam ser notícia nos jornais a qualquer momento.

- Não queremos nenhuma publicidade sobre isto - disse o Dobbs.
- É o pior tipo de publicidade que há.

Parecia ser adepto de declarar o óbvio.

- Todos os meios de comunicação devem ser redireccionados para mim - expliquei. - Lido eu com eles e a melhor maneira de o fazer é ignorá-los.

- Mas temos de dizer alguma coisa para o defender - disse o Dobbs.

- Não, não temos de dizer nada. Falar do caso seria legitimá-lo. Quando se entra no jogo de falar com os meios de comunicação, é para manter a história viva. A informação é como oxigénio. Sem isso morrem. E quanto a mim, é deixá-los morrer. Ou, pelo menos, esperar até não haver maneira de os evitar. Se isso chegar a acontecer, só uma pessoa pode falar pelo Louis. E essa pessoa sou eu.

O Dobbs anuiu com relutância. Apontei o dedo ao Roulet.

- Em nenhuma circunstância falarás com um repórter, mesmo que seja para negar as acusações. Se te contactarem, manda-os falar comigo. Percebido?

- Percebido.

- Óptimo.

Decidi que já tínhamos dito o suficiente para uma primeira reunião. Levantei-me.

- Louis, vou levar-te a casa agora.

Mas o Dobbs não estava disposto a largar tão depressa o cliente.

- Na verdade, a mãe do Louis convidou-me para o jantar - disse ele. - Posso levá-lo, já que vou para lá.

Concordei. Parecia que o advogado de defesa criminal nunca era convidado para os jantares.

- Muito bem - disse eu. - Encontramo-nos lá, então. Quero que o Raul veja a casa e o Louis precisa de me dar aquele cheque de que falámos antes.

Se pensavam que me tinha esquecido do dinheiro, então tinham muito que aprender comigo. O Dobbs olhou para o Roulet e este assentiu com a cabeça. Depois o Dobbs disse: - Parece ser boa ideia. Encontramo-nos lá.

Quinze minutos depois, eu e o Levin seguíamos no Lincoln, atrás do Mercedes com o Dobbs e o Roulet. Liguei à Lorna e a única mensagem importante tinha sido da Leslie Faire, a procuradora da Gloria Dayton. A mensagem era que chegáramos a acordo.

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- E então? - disse o Levin, quando desliguei. - O que achas mesmo?

-- Acho que há muito dinheiro a ganhar com este caso e estamos prestes a receber a primeira prestação. Desculpa ter-te arrastado para ires lá ver a casa. Não queria dar a entender que era tudo por causa do cheque.

O Levin anuiu, mas não disse nada. Continuei a falar.

- Ainda não sei bem o que pensar. O que quer que tenha acontecido naquele apartamento, aconteceu muito depressa. É essa a brecha que procuramos. Não há violação, não há ADN. Isso dá-nos uma centelha de esperança.

- Faz-me lembrar o Jesus Menendez, só que sem o ADN. Lembras-te dele?

- Sim, mas não quero lembrar-me.

Tentava não pensar nos clientes que estavam na cadeia sem qualquer esperança de recorrer da sentença. Faço o que posso com cada caso, mas às vezes não há nada a fazer. O Jesus Menendez era um desses casos.

- Como andas de tempo para tratar disto? - perguntei, voltando ao caso em mãos.

- Tenho algumas coisas para fazer, mas posso adiá-las.

- Vais ter de trabalhar nisto durante as noites. Preciso que vás àqueles bares. Quero saber tudo sobre ele e sobre ela. De momento, este caso parece simples. Se conseguirmos arrasar a tipa, arrasamos

o caso.

O Levin anuiu. Tinha a pasta no colo.

- Tens aí a tua máquina fotográfica?

- Sempre.

- Quando chegarmos à casa, tiras algumas fotos ao Roulet. Não quero que andes a mostrar a foto sinalética dele pelos bares. Pode afectar os resultados. Consegues arranjar uma foto da mulher sem ter o rosto naquela confusão?

- Tenho a foto da carta de condução. É recente.

- Óptimo. Põe-nas a correr. Se encontrarmos alguma testemunha que a viu aproximar-se dele ao balcão do Morgan's, então acertamos no filão.

- Era por aí que estava a pensar começar. Dá-me uma semana. Volto a encontrar-me contigo antes da leitura do despacho da acusação.

Seguimos em silêncio durante alguns minutos, enquanto reflectíamos no caso. Avançávamos agora pela zona residencial de Beverly Hills, em direcção às moradias onde o verdadeiro dinheiro estava escondido e à espera.

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- E sabes outra coisa que também acho? - disse-lhe. - Esquecendo o dinheiro e tudo o resto, acho que há uma hipótese de ele não estar a mentir. A história dele é suficientemente insólita para poder ser verdadeira.

O Levin assobiou baixinho entre dentes. - Achas que finalmente encontraste um homem inocente?

- Seria o primeiro. Se tivesse sabido logo esta manhã, tinha-lhe cobrado o prémio do homem inocente. Quando se é inocente, tem de se pagar mais porque dá muito mais trabalho a defender a pessoa.

- Verdade verdadinha.

Reflecti nesta ideia de ter um cliente inocente e nos perigos envolvidos.

- Sabes o que o meu pai dizia dos clientes inocentes?

- Pensava que o teu pai tinha morrido quando tinhas aí uns seis anos.

- Cinco anos, aliás. Nem sequer me levaram ao funeral.

- E punha-se a falar contigo de clientes inocentes quando tinhas cinco anos?

- Não, li num livro muitos anos depois de ele ter falecido. Dizia que o cliente mais assustador que um advogado pode ter é um cliente inocente. Porque se fizeres asneira e ele for para a prisão, ficas com essa cicatriz para toda a vida.

- Foram essas as palavras dele?

- Essas ou outras, o que interessa é o sentido. Dizia que não havia meios-termos com um cliente inocente. Nada de acordos, nada de negociar a culpa, nada de meios-termos. Só há um veredicto. O resultado tem de ser Inocente. Não há nenhum outro veredicto possível.

O Levin anuiu, pensativo.

- O facto é que o meu velho era um advogado muito bom e não gostava de ter clientes inocentes. E eu também não sei bem se gosto.

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Quinta-feira, 17 de Março


O primeiro anúncio que eu tinha posto nas Páginas Amarelas dizia "Qualquer Caso, Em Qualquer Altura, Em Qualquer Lugar", mas mudei-o alguns anos depois. Não porque a Ordem dos Advogados pusesse objecções, mas sim porque eu próprio punha objecções. Comecei a tornar-me mais particular. O condado de Los Angeles é um cobertor enrugado que abarca seis mil quilómetros quadrados desde o deserto até ao Pacífico. Há mais de dez milhões de pessoas a lutar por espaço nesse cobertor e um número considerável delas enveredam por actividades criminosas como opção de vida. As últimas estatísticas criminais revelam que todos os anos são relatados quase cem mil crimes violentos no condado. No ano passado houve 140 000 detenções por delitos graves e 50 000 detenções agravadas por delitos relacionados com drogas e violência sexual. Acrescente-se a isso os casos de condução sob os efeitos do álcool e todos os anos podia encher-se duas vezes o Estádio Rose Bowl com potenciais clientes. A única coisa a ter em conta é que não queremos nenhum dos clientes dos lugares mais baratos. Queremos aqueles que se sentam na linha de marcação das cinquenta jardas. Os que têm dinheiro no bolso.

Quando os criminosos são apanhados, entram num sistema judicial tipo funil que tem mais de quarenta tribunais espalhados pelo condado como se fossem Burger Kings prontinhos para os servir - como numa travessa. Estas fortalezas de pedra são os canais de água onde os leões da justiça vêm caçar para se alimentar. E os caçadores mais espertos aprendem rapidamente quais são os sítios mais abundantes, onde pastam os clientes pagantes. A caçada pode ser enganadora. A base de clientes de cada tribunal não reflecte necessariamente a estrutura socioeconómica do ambiente circundante. Os tribunais de Compton, Downey e do Leste de Los Angeles têm-me facultado uma linha contínua de clientes pagantes. Estes clientes são geralmente acusados

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de tráfico de droga, mas o dinheiro com que pagam é tão verdinho como o de um fraudulento corretor da bolsa de Beverly Hills.

Na manhã do dia dezassete, encontrava-me no tribunal de Compton a representar o Darius McGinley durante a condenação. Transgressores reincidentes significam clientes reincidentes e o McGinley era ambas as coisas, como a maior parte dos meus clientes tendiam a ser. Era já a sexta vez desde que o conhecia que era preso e acusado de traficar crack. Desta vez tinha sido em Nickerson Gardens, uma zona residencial conhecida pela maioria dos moradores como Nixon Gardens. Ninguém a quem perguntei sabia se este nome era uma abreviação do verdadeiro nome do lugar ou se lhe tinham chamado assim em homenagem ao presidente então a ocupar o cargo quando o vasto complexo residencial foi construído e o mercado de drogas floresceu. O McGinley tinha sido detido após a venda directa de um balão com doze pedras de crack a um agente dos narcóticos à paisana. Nessa altura estava em liberdade condicional, em resultado de uma detenção exactamente pelo mesmo delito dois meses antes. Também tinha no cadastro quatro condenações anteriores por venda de droga.

As coisas não pareciam boas para o McGinley, que tinha apenas vinte e três anos. Depois de tantas infracções, o sistema perdera agora a paciência com ele. O martelo ia abater-se. Embora o McGinley tivesse sido mimado anteriormente com condenações de liberdade condicional e tempo cumprido na cadeia do condado, desta vez a acusação pediu pena de prisão. Qualquer negociação de culpa começaria e terminaria com uma pena de prisão. Nenhum outro acordo era possível. A acusação estava contente por levar os dois casos notórios a julgamento e pedir uma pena de prisão com dois números.

A escolha era difícil mas simples. O estado tinha as cartas todas na mão. Tinham-no apanhado em flagrante em duas vendas directas de grandes quantidades de droga. A verdade era que um julgamento seria um exercício de futilidade. E o McGinley sabia-o. A verdade era que a venda de trezentos dólares de crack a um polícia ia custar-lhe pelo menos três anos de vida.

Como acontece com muitos dos meus clientes jovens da zona sul da cidade, a prisão era já uma parte antecipada da vida do McGinley. Cresceu a saber que um dia ia dentro. Só faltava saber quando e por quanto tempo e se viveria o suficiente para aguentar a prisão. Nos muitos encontros que tive com ele na prisão ao longo dos anos, tinha descoberto que se pautava por uma filosofia de vida pessoal, inspirada na vida e na morte e na música rap de Tupac Shakur, o poeta rufia cujas rimas falavam da esperança e desespero das ruas desoladas a que o McGinley chamava o seu lar. O Tupac profetizou correctamente a sua

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própria morte violenta. O sul de L.A. fervilhava de jovens que partilhavam dessa mesma visão.

O McGinley era um deles. Costumava recitar-me longas tiradas dos discos do Tupac e traduzia os significados das letras do gueto para eu perceber. Era uma educação que eu valorizava porque o McGinley era o único dos meus clientes que partilhava a crença de um destino final que era a "Mansão dos Rufias", o lugar entre o céu e a terra onde todos os criminosos acabavam por ir parar. Para o McGinley, a prisão era apenas um ritual de passagem na estrada que conduzia a esse lugar e estava pronto para fazer a viagem.

- Vou ficar quietinho, pôr-me mais forte e mais esperto e depois volto - disse-me.

Disse-me para avançar com a ideia de um acordo. Tinha-me enviado um vale postal de cinco mil dólares - não lhe perguntei donde viera esse dinheiro - e quando me encontrei com o procurador consegui que os dois casos pendentes fossem reunidos num só, e o McGinley concordou em declarar-se culpado. A única coisa que me pediu foi que tentasse arranjar-lhe uma prisão perto para que a mãe e os três filhos menores não tivessem de viajar muito para o visitar.

Quando a audiência começou, o Juiz Daniel Flynn entrou com uma toga verde-esmeralda, o que arrancou falsos sorrisos a muitos dos advogados e funcionários do tribunal ali presentes. Era conhecido por usar o verde em duas ocasiões por ano: no Dia de São Patrício e na sexta-feira antes de o Notre Dame Fighting Irish defrontar os Southern Cal Trojans em campo. Também era conhecido entre os advogados que trabalhavam no tribunal de Compton como "o Danny Boy"1, tipo "O Danny Boy é mesmo um irlandês chato e insensível, não é?".

O oficial chamou o caso. Aproximei-me e apresentei-me. Trouxeram o McGinley de uma porta lateral e deixaram-no ao meu lado, vestido com o macacão laranja e os pulsos algemados a correntes à cintura. Não havia ninguém na plateia para assistir à condenação. Estava sozinho, à excepção de mim.

- Muito bom dia para si, Sr. McGinley - disse o Flynn, num acentuado sotaque irlandês. - Sabe que dia é hoje?

Olhei para o chão. O McGinley balbuciou uma resposta.

- O dia da minha sentença.

Alusão ao verso inicial "Oh Danny Boy, the pipes, the pipes are calling" de uma canção que é uma espécie de hino da Irlanda do Norte, muito popular entre os imigrantes irlandeses e considerado por muitos o seu hino nacional (que não existe, de facto). (NT)

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- Sim, também. Mas estou a falar do Dia de São Patrício, Sr. McGinley. Um dia para festejar a herança irlandesa.

O McGinley virou-se ligeiramente e olhou para mim. Era um sobrevivente das ruas, mas não um sobrevivente da vida. Não tinha percebido o que estava a acontecer, se aquilo fazia parte da sentença ou se não seria alguma forma de desrespeito da parte do homem branco. A minha vontade era dizer-lhe que o juiz estava a ser insensível e provavelmente racista. Em vez disso, sussurrei-lhe ao ouvido: - Tem calma. O tipo é um cabrão.

- Sabe qual é a origem do seu nome, Sr. McGinley? - perguntou o juiz.

- Não, senhor.

- Gostava de saber?

- Nem por isso, senhor. É o nome de um traficante de escravos, acho. Que me importa saber quem esse cabrão é?

- Peço desculpa, Meritíssimo - apressei-me a dizer. Inclinei-me outra vez para o McGinley.

- Darius, tem calma - sussurrei. - E tem tento nessa língua.

- O gajo 'tá-me a insultar - disse, num sussurro quase audível.

- Só que ainda não te condenou. Queres dar cabo do acordo? O McGinley olhou para o juiz.

- Desculpe a minha linguagem, Meritíssimo. Fui educado na rua.

- Isso já eu sei - disse o Flynn. - Bem, é uma pena pensar assim acerca da sua história. Mas se não quer saber donde vem o seu nome, então passemos à frente. Vamos lá tratar da condenação e enviar-te para a cadeia, sim?

Disse a última parte num tom animado, como se estivesse muito satisfeito por enviar o McGinley para a Disneylândia, o lugar mais feliz à face da Terra.

A condenação processou-se rapidamente. Não havia nada no relatório da investigação preliminar ao julgamento além daquilo que já todos sabiam. O Darius McGinley conhecera apenas uma profissão desde os onze anos, traficante de droga. Só tinha uma verdadeira família, um bando. Nunca tinha tirado carta de condução, embora conduzisse um BMW. Nunca tinha casado, embora fosse pai de três crianças. Era a mesma velha história e o mesmo velho ciclo que passava uma dúzia de vezes por dia nos tribunais do condado inteiro. O McGinley vivia numa sociedade que só chegava a cruzar-se com a América da cultura predominante unicamente nos tribunais. Não passava de mais uma ração para a máquina. A máquina precisava de comer e o McGinley estava na travessa. O Flynn condenou-o de um a três anos de cadeia, como tinha sido negociado, e leu toda aquela linguagem formal e

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estandardizada decorrente de um acordo de culpa. Para gargalhada da assistência - embora só dois dos funcionários do tribunal se tenham rido - leu a gíria legal usando outra vez o carregado sotaque irlandês. E depois a sessão acabou.

Sei que o McGinley distribuía morte e destruição sob a forma de crack e que provavelmente cometera violências indescritíveis e outros delitos de que nunca chegara a ser acusado, mas mesmo assim tinha pena dele. Mais um que nunca tivera nenhuma oportunidade a não ser enveredar pela vida de rufia. Não chegara a conhecer o pai e tinha desistido da escola no sexto ano para aprender o negócio do tráfico de crack. Sabia contar o dinheiro com exactidão numa casa de venda de crack, mas nunca tivera uma conta-corrente. Nunca tinha ido a nenhuma das praias do condado, nem nunca saíra de Los Angeles. E agora a primeira viagem que ia fazer seria num autocarro com grades nas janelas.

Antes de o levarem para a cela de detenção donde seria transferido para a prisão, apertei-lhe a mão, embora as correntes lhe restringissem os movimentos, e desejei-lhe boa sorte. É algo que raramente digo aos meus clientes.

- Tudo bem - disse-me. - Hei-de voltar.

E não duvidei que voltaria. De certo modo, o Darius McGinley era também um cliente franqueado como o Louis Roulet. Se bem que o Roulet fosse mais provavelmente um negócio que só se tem uma vez na vida. Mas tinha a sensação de que ao longo dos anos o McGinley seria aquilo a que chamo um dos meus "clientes vitalícios". Uma dádiva, sempre de cordões abertos para mim - desde que ele vencesse as adversidades e continuasse vivo.

Guardei o dossier McGinley na pasta e saí da sala de audiências enquanto chamavam o caso seguinte. O Raul Levin estava à minha espera no corredor apinhado. Tínhamos marcado um encontro para rever o que ele tinha apurado sobre o caso Roulet. Como eu tinha uma agenda ocupada, tivera de vir ele a Compton.

- Muito bom dia para si - disse ele, num exagerado sotaque irlandês.

- Não me digas que estiveste lá dentro a ver?

- Espreitei da porta. O tipo é um bocado racista, não achas?

- E, mas consegue safar-se sempre porque, desde que centralizaram os tribunais num único distrito dentro do condado, o nome dele aparece nos escrutínios por toda a parte. Mesmo que as pessoas de Compton votassem todas para o tirar do cargo, os eleitores da zona oeste podiam voltar a elegê-lo. Está tudo lixado.

- Como é que ele chegou ao cargo?

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- Ei, tiras um diploma de Direito, fazes as contribuições certas às pessoas certas e também podes ser juiz. Foi nomeado pelo governador. A parte difícil é ganhar a primeira eleição para se manter no cargo por referendo popular. E ele ganhou. Nunca ouviste a história do "Sucesso à la Flynn"?

- Não.

- Vais adorar. Há cerca de seis anos o Flynn é nomeado pelo governador. Isto foi antes da centralização. Nessa altura, os juizes eram eleitos pelos eleitores do distrito onde exerciam as suas funções. O juiz supervisor pelo condado de L.A. verificou as credenciais dele e depressa percebeu que tinha pela frente um tipo com montes de ligações políticas, mas sem qualquer talento ou experiência de tribunal. O Flynn era basicamente um advogado de escritório. Provavelmente nunca conseguiria arranjar um cargo num tribunal e, muito menos, representar um caso se lhe pagassem para isso. Portanto, o juiz a exercer funções na altura atirou-o aqui para o tribunal criminal de Compton porque a regra obriga a ir a eleição para manutenção do cargo no ano após a nomeação. O juiz achou que o Flynn ia dar barraca e enfurecer as pessoas, e que nunca o elegeriam para se manter no cargo. Ou seja, daí a um ano, rua.

- E acabava-se a dor de cabeça.

- Exacto. Só que a coisa não correu dessa maneira. Logo na primeira hora do primeiro dia de inscrição para o escrutínio desse ano, a Frederica Brown foi à secretaria do tribunal apresentar a candidatura contra o Flynn. Conheces a Frederica Brown lá da Baixa?

- Pessoalmente não, mas já ouvi falar dela.

- Como toda a gente aqui. Além de ser uma advogada de defesa muito competente, é negra, é mulher e é popular na comunidade. Teria arrasado o Flynn com uma vantagem de cinco contra um ou mais.

- Então como raio é que o Flynn conseguiu ficar com o lugar?

- Estou quase lá. Com a Freddie no escrutínio, mais ninguém se candidatou. Para quê darem-se ao trabalho, era como se a tipa já tivesse ganho aquilo, embora fosse um bocado estranho ela querer ser juiz e aceitar a redução no salário. Nessa altura, como advogada, devia estar a ganhar um salário com uns bons seis algarismos.

- E que aconteceu?

- Aconteceu que dois meses depois, mesmo à última da hora antes de fecharem as candidaturas, a Freddie voltou à secretaria do tribunal para retirar a candidatura.

O Levin anuiu. - E o Flynn acabou por se candidatar sem qualquer oposição e manteve o lugar.

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- É isso. Depois veio a centralização e nunca mais conseguiram tirá-lo dali.

O Levin pareceu ficar indignado. - Que treta. Já deviam ter algum tipo de acordo e isso é uma violação das leis do escrutínio.

- Só se conseguisses provar que havia um acordo. A Freddie afirmou sempre que não a tinham subornado e que não fazia parte de nenhum plano arquitectado pelo Flynn para manter o lugar. Diz apenas que acabou por mudar de ideias e que se tinha retirado porque não ia conseguir manter o seu estilo de vida com o salário de juiz. Mas uma coisa te digo, a Freddie parece sair-se sempre bem quando leva um caso perante o Flynn.

- E chamam a isso o sistema de justiça.

- Pois é.

- E o que achas do Blake?

Já esperava que isto viesse à baila. As pessoas não falavam de outra coisa. O Robert Blake, o actor da televisão e do cinema, tinha sido absolvido do homicídio da mulher no dia anterior no Tribunal Superior de Van Nuys. A procuradoria e o Departamento da Polícia de Los Angeles tinham perdido mais outro grande caso mediático e, onde quer que se fosse, era o tópico principal de todas as conversas. Os meios de comunicação e a maioria das pessoas que viviam e trabalhavam fora da máquina não compreendiam. A questão não era se o Blake o tinha feito ou não, mas se havia provas suficientes apresentadas em tribunal para o condenarem por o ter feito. Eram duas coisas muito distintas, mas o discurso público que se tinha seguido ao veredicto acabara por misturar ambas as coisas.

- O que acho? Acho que admiro o júri por se concentrar nas provas. Se não havia provas, então é porque não as havia. Detesto quando a procuradoria pensa que consegue um veredicto baseado no senso comum: "Se não foi ele, quem mais poderia ter sido?" Por favor. Se querem condenar um homem e enfiá-lo atrás das grades para toda a vida, então que mostrem mas é a porra das provas. Não esperem que um júri lhes vá salvar os coiros.

- Dito como um verdadeiro advogado de defesa.

- Ei, ganhas a vida à custa de advogados de defesa, amigo. Devias memorizar essa frase. Esquece o Blake. Fico com ciúmes e já ando farto de ouvir falar disso. Disseste ao telefone que tinhas boas notícias para me dar.

- E tenho. Aonde queres ir para falarmos e veres o que tenho? Verifiquei as horas. Tinha a primeira audiência de um caso no

tribunal criminal na Baixa. Tinha de estar lá às onze e não podia faltar porque já tinha faltado no dia anterior. Depois tinha de ir a Van Nuys

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para um primeiro encontro com o Ted Minton, o procurador que tinha ficado com o caso Roulet em vez da Maggie McPherson.

- Não tenho tempo para ir a lado nenhum. Podemos sentar-nos no carro a tomar um café. Trouxeste o material?

Como resposta, o Levin mostrou a pasta.

- E o teu motorista?

- Não te preocupes com ele.

- Vamos lá, então.

 

 

 

 

 

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Depois de entrarmos no Lincoln, disse ao Earl para dar uma volta a ver se conseguia encontrar um café Starbucks. Precisava de um café. - Por aqui não há nenhum Starbucks - disse o Earl. Sabia que o Earl era daquela zona, mas sempre pensei que em qualquer ponto do condado, e até em qualquer ponto do mundo,

haveria sempre um Starbucks a pouco mais de um quilómetro de

distância. Mas não quis discutir. Só queria tomar um café.

- Okay, bem, dá uma volta à procura de um sítio que sirva café.

Só não vás para muito longe do tribunal. Depois precisamos de ir lá

É levar o Raul.

- Percebido.

- E põe os auscultadores, Earl, enquanto estamos aqui a falar de um caso, okay?

O Earl pegou no iPod e pôs os auscultadores. Arrancou e foi à procura de cafeína. Começámos a ouvir o som baixinho e metálico de hip-bop na frente do carro e o Levin abriu a pasta na mesinha rebatível atrás do assento do condutor.

- Okay, que tens para mim? - perguntei. - Vou estar hoje com o procurador e quero ter mais ases na mão do que ele. Na segunda-feira também temos a leitura do despacho da acusação. - Acho que tenho aqui alguns ases. Procurou dentro da pasta e começou a falar.

- Okay, comecemos pelo teu cliente e a seguir discutimos a Reggie Campo. O teu cliente está bastante limpinho. Multas de estacionamento e de excesso de velocidade, coisas que parece ter problemas em evitar e depois é um problema maior ainda para pagar. Tirando isso, não consegui descobrir mais nada sobre ele. É um daqueles cidadãos-modelo.

- Fala-me das multas.

- Nos últimos quatro anos houve duas ocasiões em que deixou acumular multas de estacionamento, uma data delas, e duas por excesso de velocidade. De ambas as vezes recebeu notificação do tribunal e o teu colega C. C. Dobbs apareceu lá para lhes pagar e resolver as coisas.

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- Ainda bem que o C. C. serve para alguma coisa. Quando dizes que ele apareceu para "lhes pagar", presumo que estejas a falar das multas e não dos juizes.

- Esperemos que sim. Tirando isso, só encontrei mais um sinalzinho no radar sobre o Roulet.

- O quê?

- Na primeira reunião, quando estavas a pô-lo a par do que esperar, etc., etc., ficámos a saber que ele tinha andado um ano na UCLA e conhecia o sistema. Bem, estive a verificar isso. Sabes, metade do que faço é tentar descobrir quem está a mentir e quem é o maior mentiroso de todos. Por isso, verifico praticamente tudo a fundo. E a maior parte das vezes é fácil porque encontra-se tudo na Internet.

- Certo, já percebi. Fala-me disso da Faculdade de Direito. Era mentira?

- Parece. Verifiquei na secretaria e ele nunca andou na Faculdade de Direito da UCLA.

Reflecti nisto. Tinha sido o Dobbs a trazer à baila esta coisa da Faculdade de Direito e o Roulet limitara-se a assentir com a cabeça. Era estranho que um deles me tivesse contado uma mentira porque essa informação não lhes serviria para nada. Fez-me pensar no motivo psicológico por trás. Teria alguma coisa que ver comigo? Queriam que eu pensasse que o Roulet estava ao mesmo nível que eu?

- Portanto, se mentiu numa coisa dessas... - disse eu, pensando em voz alta.

- Certo - disse o Levin. - Queria que soubesses disto. Mas devo dizer que até agora tem sido negativo para o Sr. Roulet. Pode ter-nos mentido acerca da Faculdade de Direito, mas parece que não mentiu em relação à história que conta, pelo menos nas partes que verifiquei.

- Conta.

- Bem, o seu paradeiro nessa noite bate certo. Tenho aqui testemunhas que o viram no Nat's North, no Morgan's e depois no Lamplighter. Bate certo com a história que nos contou. Certinho até ao número de Martinis. Quatro no total, e pelo menos um deles deixou-o intacto em cima do balcão.

- Lembram-se assim tão bem dele? Lembram-se até que não chegou a acabar a bebida?

Suspeito sempre de uma memória perfeita porque essa coisa não existe. E cabe-me a mim e à minha habilidade encontrar as falhas na memória das testemunhas. Fico nervoso sempre que alguém se lembra demasiado das coisas - sobretudo quando a testemunha é pela defesa.

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- Não, não estou a contar com a memória dos empregados de balcão. Tenho aqui uma coisa que vais adorar, Mick. E é bom que me adores também pois custou-me uma nota das grandes.

Tirou do fundo da pasta um invólucro almofadado com um pequeno leitor de DVD. Já tinha visto antes pessoas a usá-los nos aviões e há muito que andava a pensar comprar um para ter no carro. O motorista podia usá-lo enquanto esperava que eu viesse do tribunal. E podia até usá-lo de vez em quando para casos como este.

O Levin enfiou um DVD. Mas não chegámos a ver nada porque o Earl parou nesse instante. Olhei lá para fora. Estávamos à frente de um sítio chamado The Central Bean.

- Vamos buscar café e depois vemos o que tens aí.

Perguntei ao Earl se queria alguma coisa, mas ele disse que não. Lá dentro havia uma pequena fila para o café. Enquanto esperávamos, o Levin falou-me do DVD que íamos ver no carro.

- Quando estive no Morgan's falei com uma empregada chamada Janice, mas disse-me que primeiro tinha de falar com o gerente. Voltei lá noutro dia para falar com o gerente e o tipo quer que lhe diga exactamente o que pretendo saber da Janice. Havia algo de estranho neste tipo, só me perguntava por que raio queria saber tanto, percebes? Depois tudo se tornou claro quando o tipo faz uma proposta. Disse-me que no ano passado tiveram um problema atrás do balcão. Pequenos roubos na caixa registadora. Tem lá doze empregados a trabalhar e que não fazia ideia de quem teria tirado o dinheiro.

- E decidiu instalar lá uma câmara.

- Certo. Uma câmara oculta. Apanhou o ladrão e despediu-o. Tinha funcionado tão bem que deixou ficar a câmara. O sistema regista em fita de alta densidade desde as oito até às duas todas as noites. Tem um temporizador e cada fita dá para quatro noites. Sempre que há algum problema ou falta de algo, pode pegar nas fitas para verificar. Como todas as semanas fazem uma contabilização dos lucros e perdas, tem sempre ao seu dispor duas fitas com a gravação dessa semana.

- E tinha a gravação da noite em questão?

- Sim.

- E pediu mil dólares por ela.

- Acertaste outra vez.

- A polícia não sabe da câmara?

- Nem sequer foram ainda ao bar. Até agora têm-se ficado pela versão da Reggie.

Não era assim tão estranho. A polícia tinha demasiados casos e não podia investigá-los a fundo. E, aliás, já tinham mais do que suficiente. Tinham uma vítima, um suspeito apanhado no apartamento dela,

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tinham o sangue da vítima no suspeito e até a arma. Para eles, não havia razão para investigar mais.

- Mas o que nos interessa é o bar e não a caixa registadora - disse-lhe.

- Eu sei. E a caixa registadora está encostada à parede atrás do balcão. A câmara está escondida dentro de um detector de fumo no tecto. E a parede de trás é um espelho. Vi a gravação e reparei logo que se consegue ver o balcão todo pelo espelho. Só que ao contrário. Copiei a fita para um DVD porque assim é mais fácil manipular a imagem. Aumentar, ampliar, esse tipo de coisas.

Chegou a nossa vez de sermos atendidos. Pedi um copo grande de café com natas e açúcar e o Levin uma garrafa de água. Voltámos para o carro. Disse ao Earl para arrancar só quando tivéssemos acabado de ver o DVD. Consigo ler num carro em andamento, mas estar a olhar para o pequeno ecrã do leitor aos solavancos pelas estradas do sul do condado poderia deixar-me enjoado.

O Levin pôs o DVD e acompanhou as imagens com alguns comentários.

No pequeno ecrã surgiu a imagem do balcão rectangular do Morgan's. Havia duas empregadas a servir, ambas de calças de ganga preta e camisas brancas atadas à cintura para deixar à mostra os estômagos lisos, umbigos compieráng e tatuagens a espreitar por cima dos cintos. Como o Levin tinha dito, a câmara estava focada na parte traseira do balcão e na caixa registadora, mas o espelho que cobria a parede atrás da caixa deixava ver a linha de clientes sentados ao balcão. Vi o Louis Roulet sentado sozinho no centro da imagem. Havia um contador de imagens no canto inferior esquerdo e um código com a data e a hora no canto direito. Dizia 20h11, 6 de Março.

- Aí está o Louis - disse o Levin. - E mais ao fundo a Reggie Campo. Mexeu nuns botões e parou a imagem. Depois manipulou-a e

arrastou a margem direita para o centro. À direita do balcão, via-se uma mulher e um homem sentados ao lado um do outro. O Levin ampliou a imagem.

- Tens a certeza de que é ela? - perguntei.

Só tinha visto fotos da mulher, com a cara cheia de equimoses e inchada.

- Sim, é ela. E aquele é o nosso homem desconhecido.

- Okay.

- Observa agora.

Ampliou a imagem para ecrã inteiro e depois pôs o filme a correr rapidamente.

- O Louis a beber os Martinis, a falar com as empregadas e pouco mais se passa durante quase uma hora - disse o Levin.

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Consultou umas notas que tinha atribuído a números específicos de imagens. Pôs o filme a correr à velocidade normal e viu-se uma imagem da Reggie Campo e do desconhecido no centro do ecrã. Reparei, pelo código em baixo, que tínhamos avançado já para as 8h43.

Vi o homem desconhecido guardar um maço de cigarros e um isqueiro e levantar-se. Desapareceu no canto direito da imagem.

Vai lá fora - disse o Levin. - Na entrada há um alpendre para

fumadores.

A Reggie Campo pareceu ficar a ver o homem sair, depois levantou-se e passou por trás dos clientes sentados ao balcão. Ao passar pelo Roulet, pareceu roçar os dedos da mão esquerda pelos ombros dele. Isto fez o Roulet virar-se enquanto ela passava por trás.

- A tipa acaba de lhe fazer uma pequena insinuação ali - disse o Levin. - Levantou-se para ir à casa de banho.

- Não foi assim que o Roulet disse que se passou. Afirmou que ela o abordou e lhe deu...

- Espera - disse o Levin. - Espera até ela voltar da casa de banho. Esperei e vi o Roulet ao balcão. Verifiquei as horas. Ainda tinha

tempo, mas não podia faltar à audiência no tribunal criminal. Já tinha abusado de mais da paciência do juiz por não ter comparecido no dia anterior.

- Aí vem ela - disse o Levin.

Inclinei-me mais e vi a Reggie Campo voltar para o balcão. Desta vez, ao passar pelo Roulet, enfiou-se no espaço entre ele e um homem sentado no banco à direita. Teve de se enfiar de lado e os seios estavam claramente encostados ao braço direito do Roulet. Uma provocação, era mais do que óbvio. Disse algo e o Roulet inclinou-se para ouvir melhor. Segundos depois, anuiu e vi-a enfiar-lhe na mão o que parecia ser um guardanapo amarrotado. Trocaram mais um par de palavras e depois a Reggie Campo beijou-o na face e afastou-se. Voltou a sentar-se no banco ao fundo do balcão.

- És uma jóia, Mish - disse-lhe, chamando-o pelo nome que lhe tinha posto depois de ele me ter contado que tinha sangue judeu e mexicano. - E dizes que a polícia não tem esta gravação?

- Não sabiam dela na semana passada quando a obtive e ainda tenho a fita original comigo. Portanto, não a têm e provavelmente ainda não sabem da sua existência.

Segundo as regras da investigação, teria de a entregar à procuradoria depois de o Roulet ouvir o despacho da acusação. Mas podia continuar a tirar proveito disto. Tecnicamente, não tinha de entregar nada até ter a certeza de que tencionava usar isso em julgamento. Isso dava-me tempo e margem de manobra.

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Sabia que aquilo que estava no DVD era importante e sem dúvida que o usaria em julgamento. Só por si, podia ser causa para dúvida fundamentada. Parecia mostrar uma certa familiaridade entre a vítima e o alegado atacante, um aspecto que não tinha sido incluído no processo do estado. Mais importante ainda, também mostrava da parte da vítima um comportamento que, pelo menos parcialmente poderia ser interpretado como responsável pelo que aconteceu depois. Não quero com isto sugerir que o que aconteceu depois foi aceitável e não criminoso, mas os júris interessam-se sempre pelas relações causais do crime e dos indivíduos envolvidos. A gravação permitia transferir para uma zona cinzenta um crime que até agora poderia ter sido visto apenas através de um prisma a preto e branco. Como advogado de defesa, as zonas cinzentas eram o meu forte.

O reverso da medalha era que o DVD era tão bom que poderia vir a revelar-se demasiado bom para ser verdade. Contradizia directamente o depoimento que a vítima fizera à polícia de que não conhecia o homem que a tinha atacado. Contestava a veracidade do depoimento e revelava que ela tinha mentido. Bastava uma única mentira para destruir um caso. A gravação era aquilo a que eu chamava "uma prova viva". Acabaria com o caso mesmo antes de ir a julgamento. O meu cliente sairia incólume de tudo.

E assim chegaria o dia do grande pagamento.

O Levin pôs o DVD a correr rapidamente.

- Agora vê isto - disse. - Ela e o homem desconhecido separam-se às nove. Mas observa bem quando ele se levanta.

O Levin tinha focado a Reggie e o homem desconhecido. Quando o código chegou às 8h59, pôs a imagem em câmara lenta.

- Okay, preparam-se para sair. Olha bem para as mãos do tipo. Olhei com atenção. O homem deu uma última golada na bebida,

inclinando a cabeça para trás para esvaziar o copo. Levantou-se do banco, ajudou a Reggie a levantar-se e desapareceram no canto direito da imagem.

- Que era? - perguntei. - Escapou-me alguma coisa?

O Levin voltou atrás, até ao momento em que o desconhecido estava a esvaziar o copo. Parou a imagem e apontou para o ecrã. O tipo tinha a mão esquerda pousada em cima do balcão para se equilibrar enquanto emborcava o resto da bebida.

- Está a segurar no copo com a mão direita - explicou. - E podes ver um relógio no pulso esquerdo. Portanto, parece que este tipo é destro, certo?

- Sim, e depois? Aonde nos leva isso? As lesões da vítima vieram de golpes dados pela esquerda.

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Pensa bem no que te disse.

Reflecti. E segundos depois percebi.

Q espelho. Está tudo ao contrário. O tipo é canhoto.

O Levin assentiu com a cabeça e simulou dar um murro com a mão esquerda.

A solução do caso inteiro pode estar aqui - comentei, sem saber

se isso era uma coisa boa ou não.

Feliz Dia de São Patrício, rapaz - disse o Levin num carregado

sotaque irlandês, sem se dar conta de que eu podia estar já a ver o fim daquele filão.

Dei uma grande golada de café quente e tentei pensar numa estratégia para aquela gravação. Não via maneira de a reter na minha posse até ao julgamento. A polícia voltaria ao bar durante as investigações subsequentes e acabaria por descobrir que havia uma gravação. Se retivesse a gravação na minha posse, a coisa podia rebentar-me na cara.

- Não sei ainda como vou usá-la. Mas acho que posso dizer que o Sr. Roulet e a mãe e o Cecil Dobbs vão ficar muito felizes contigo.

- Diz-lhes que podem expressar o seu agradecimento financeiramente.

- Muito bem, há mais coisas de interesse na gravação? O Levin pôs o filme a correr rapidamente.

- Nem por isso. O Roulet lê o que diz no guardanapo e memoriza a morada. Depois fica mais uns vinte minutos no bar e sai, deixando uma bebida intacta em cima do balcão.

Abrandou a imagem no momento em que o Roulet estava prestes a sair. Deu um único gole no Martini acabado de servir e deixou-o no balcão. Pegou no guardanapo que a Reggie Campo lhe tinha dado, amarrotou-o na mão e deitou-o ao chão quando se levantou. Saiu do balcão, deixando lá a bebida.

O Levin ejectou o DVD e enfiou-o no invólucro de plástico. Desligou o leitor e guardou-o na pasta.

- Quanto à gravação, é tudo o que tinha para te mostrar. Inclinei-me para a frente e dei uma palmadinha no ombro do Earl,

que estava de auscultadores. Tirou um deles e virou-se para mim.

- Vamos para o tribunal. Continua de auscultadores. O Earl assim fez.

- Há mais alguma coisa? - perguntei ao Levin.

- A Reggie Campo. Não é nenhuma Branca de Neve.

- O que descobriste?

- Não se trata necessariamente do que descobri. Mas do que penso. Viste como ela era na gravação. Um tipo sai e ela começa logo a deixar

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bilhetinhos de amor a outro homem sozinho ao balcão. Além do mais andei a verificar umas coisas. É actriz, sim, mas de momento não está a trabalhar como tal. À excepção de algumas audições privadas, por assim dizer.

Passou-me para as mãos uma colagem fotográfica profissional que mostrava a Reggie Campo em várias poses. Era o tipo de portfolio enviado a directores de casting por toda a cidade. Era a primeira vez que via a cara dela de tão perto sem aquelas lesões feias e o inchaço. A Reggie Campo era uma mulher atraente e havia algo no seu rosto que me era familiar, mas não consegui descobrir o que era. Perguntei-me se a teria visto em algum programa da TV ou em algum anúncio. Virei a folha e li os créditos, relativos a programas que eu nunca tinha visto e anúncios de que não me lembrava.

- Nos relatórios da polícia ela refere como empregador actual a Topsail Telemarketing. A sede fica na Marina. Recebem chamadas de compra de muita da quinquilharia que anunciam na TV pela noite dentro. Máquinas de musculação e coisas do género. De qualquer modo, é um emprego. A pessoa trabalha quando quer. Só que a Reggie não trabalhou um único dia nos últimos cinco meses.

- Queres dizer o quê com isso, que ela voltou a mentir?

- Tenho andado a vigiá-la nas últimas três noites e...

- Fizeste o quê?

Virei-me para ele. Se um detective privado a trabalhar para um advogado de defesa criminal fosse apanhado a vigiar uma vítima de um crime violento, as consequências poderiam ser infernais e quem pagava era eu. A acusação só precisava de falar com um juiz e denunciar a coisa como perseguição e intimidação, e desprezar-me-iam rapidamente. Como vítima de um crime, a Reggie Campo era sacrossanta até ir a julgamento. Só nessa altura era minha.

- Não te preocupes, não te preocupes - disse o Levin. - Fui muito discreto. Muito discreto. E ainda bem que a vigiei. As equimoses, o inchaço, tudo isso já desapareceu, ou então ela anda a usar muita maquilhagem, porque esta senhora tem tido muitas visitas. Tudo homens, sempre sozinhos, todos em alturas diferentes da noite. Ao que parece, todas as noites tenta arranjar sempre dois pelo menos.

- Tem andado a engatá-los nos bares?

- Não, tem ficado em casa. Devem ser clientes regulares ou algo do género porque conhecem a morada. Apontei um par de matrículas. Caso seja necessário, posso fazer-lhes uma visitinha para tentar obter algumas respostas. Também fiz umas gravações vídeo de infravermelhos, mas ainda não as transferi para DVD.

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Não, por enquanto não fazemos nenhuma visita a esses tipos.

podia chegar aos ouvidos dela. Temos de ser muito cuidadosos com ela. Não quero saber se ela anda a mentir ou não.

Bebi mais um pouco de café e tentei decidir o rumo a seguir.

Andaste a verificá-la, certo? Nada no cadastro criminal?

- Está limpa. Palpita-me que anda nisto há pouco tempo. Tu sabes, estas mulheres que querem ser actrizes, é um meio complicado. Desgasta uma pessoa. Se calhar começou por aceitar uma ajudinha aqui e ali destes tipos e depois a coisa virou um negócio. Passou de amadora a profissional.

- E nada disto consta nos relatórios que conseguiste até aqui?

- Nadinha. Como te disse, a polícia não tem feito grande coisa. Pelo menos até agora.

-- Se passou de amadora a profissional, também pode ter decidido tramar um tipo como o Roulet. O Roulet conduz um belo carro, veste roupa cara... viste o relógio dele?

- Vi, um Rolex. Se for verdadeiro, então anda com dez mil dólares no pulso. Talvez ela tenha reparado no relógio do outro lado do balcão. Talvez tenha sido por isso que o escolheu no meio dos outros todos.

Chegámos ao tribunal. Agora tinha de ir para a Baixa. Perguntei ao Levin onde tinha estacionado o carro e ele deu a indicação ao Earl.

- Isto é bom material. Mas significa que o Louis mentiu sobre mais coisas e não apenas sobre a UCLA.

- Sim - concordou o Levin. - E não devia ter-te mentido.

- Pois, mas agora vai ter de me ouvir.

Parámos no exterior de um parque de estacionamento pago em Acácia. O Levin tirou da pasta um dossier com um elástico a prender uma tira de papel. Vi que o documento era uma factura de quase seis mil dólares por oito dias de serviços e despesas de investigação. Baseado no que tinha ouvido na última meia-hora, era uma pechincha.

- Esse dossier tem tudo aquilo de que acabámos de falar, mais uma cópia em DVD da gravação do Morgan's.

Peguei no dossier com hesitação. Se o aceitasse, estava a transferi-lo para o reino da descoberta. Se não o aceitasse e deixasse tudo à guarda do Levin, serviria de amortecedor e dar-me-ia algum espaço de manobra caso houvesse algum confronto com a procuradoria por causa dessas provas.

Bati com o dedo na factura. - Vou dar isto à Lorna e depois mandamos-te um cheque.

- Que tal anda ela? Tenho saudades de a ver.

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Quando estávamos casados, a Lorna costumava andar muito comigo e até assistia aos meus julgamentos. Às vezes, quando não tinha ninguém para me levar, era ela quem ocupava o volante. Nessa altura o Levin via-a com mais frequência.

- Anda bem. Sempre a mesma Lorna.

O Levin abriu a porta mas não saiu. - Queres que continue a vigiar a Reggie?

Era essa a questão fulcral. Se aprovasse, nunca conseguiria fazer um desmentido plausível se alguma coisa corresse mal. Porque já não poderia alegar que não sabia. Hesitei, mas depois aceitei.

- Muito discreto. E nada de meter mais gente nisto. Só confio em ti.

- Não te preocupes. Trato de tudo sozinho. Mais alguma coisa?

- O homem canhoto. Precisamos de saber quem ele é e se faz parte desta coisa ou se não passa de mais um cliente.

O Levin voltou a desferir o punho esquerdo. - Deixa por minha conta.

Pôs os óculos de sol e saiu. Vi-o caminhar pelo parque à procura do carro. Eu devia estar exultante com as novidades que acabava de saber. Fazia tudo pender acentuadamente a favor do meu cliente. Mesmo assim, algo me incomodava, mas não sabia o que era.

O Earl tinha desligado o iPod e esperava as minhas ordens.

- Leva-me à Baixa, Earl.

- Certo. Ao tribunal criminal?

- Sim. Estavas a ouvir o quê no iPod? Quase conseguia ouvir aqui atrás.

- O Snoop. Tenho de o pôr sempre bem alto.

Certo. Um músico cá de L.A. E um ex-arguido que enfrentou a máquina e uma acusação de homicídio e foi absolvido. Não havia história mais inspiradora nas ruas.

- E carrega aí no acelerador, Earl. Já vou atrasado.

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O Sam Scales era um vigarista de Hollywood. Tinha-se especializado em vigarices pela Internet destinadas a conseguir números de cartões de crédito e dados de validação que depois vendia no mercado negro das finanças. Da primeira vez que trabalhámos juntos, tinha sido detido por vender seiscentos números de cartões de crédito e respectiva informação de validação - datas de expiração e moradas, números de segurança social e palavras-passe dos legítimos proprietários dos cartões - a um delegado do xerife vestido à paisana.

O Scales tinha conseguido esses números e informações mediante o envio de e-mails a cinco mil pessoas que constavam da lista de clientes de uma empresa com sede em Delaware, que vendia pela Internet um produto de emagrecimento chamado TrimSlimó. A lista tinha sido roubada do computador da empresa por um pirata informático que fazia trabalhos para o Scales. O Scales enviou uma catadupa de e-mails a todos os nomes da lista usando um computador de aluguer à hora numa das lojas da Kinko's e um endereço electrónico temporário. Identificou-se como conselheiro da agência federal dos alimentos e fármacos e disse aos destinatários que iriam ser reembolsados do montante despendido na compra do TrimSlim6 na sequência da retirada do produto do mercado pela agência e que os testes da agência ao produto tinham provado que era ineficaz na perda de peso. Disse que os fabricantes do produto tinham concordado reembolsar todas as compras numa tentativa de evitar acusações de fraude. E terminava o e-mail com instruções para confirmação do reembolso. Isso incluía rornecer o número do cartão de crédito, data de expiração e todos os outros dados pertinentes de verificação.

Dos cinco milhares de destinatários da mensagem, seiscentos morderam o isco. O Scales tratou de arranjar depois contactos no Cercado negro e combinou uma venda directa de seiscentos números de cartões de crédito e restantes dados em troca de dez mil dólares em notas. Isso implicava que no espaço de dez dias os números teriam

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sido já gravados em cartões de plástico vazios e postos em uso. Era uma fraude que poderia ascender a milhões de dólares de perdas. Mas a façanha acabou mal num café da zona oeste de Hollywood, onde o Scales entregou as folhas impressas com a informação ao comprador em troca de um gordo envelope com dinheiro. Quando saiu com o envelope e um descafeinado nas mãos, deparou-se com os delegados do xerife. Tinha vendido os números a um agente à paisana.

O Scales contratou-me para lhe conseguir um acordo. Tinha trinta e dois anos nessa altura e um cadastro limpo, apesar de haver indicações e provas de que nunca tivera um emprego legítimo. Ao obrigar o procurador nomeado para o caso a concentrar-se no roubo dos números dos cartões e não nas potenciais perdas resultantes da fraude, consegui um acordo que fosse do agrado do Scales. Declarou-se culpado de burla informática e recebeu uma pena suspensa de um ano, sessenta dias de serviço comunitário no Departamento de Transportes da Califórnia e quatro anos de liberdade condicional.

Essa tinha sido a primeira vez. Três anos antes. O Sam Scales não aproveitou a oportunidade decorrente da pena sem prisão. Agora tinham voltado a detê-lo e ia defendê-lo num caso de fraude tão repreensível que desde o começo percebi que estava para lá das minhas capacidades mantê-lo fora das grades.

A 28 de Dezembro do ano transacto, o Scales usou uma empresa de fachada para registar o nome de domínio SunamiHelp.com na Internet. Na página de entrada do site pôs fotos da destruição e morte causadas dois dias antes quando um tsunami no Oceano Índico devastou partes da Indonésia, do Sri Lanka, da índia e da Tailândia. O site apelava à bondosa ajuda dos visitantes mediante um donativo à SunamiHelp, que depois o distribuiria pelas numerosas agências de resposta humanitária ao desastre. O site também mostrava a foto de um homem branco bem-parecido, identificado como o Reverendo Charles, empenhado na obra de cristianização da Indonésia. Havia ainda uma missiva pessoal do Reverendo Charles a apelar aos visitantes para doarem com o coração.

O Scales era esperto, mas não muito inteligente. Não queria roubar os donativos feitos ao site. Só queria roubar a informação dos cartões de crédito usados para fazer os donativos. A investigação subsequente à sua detenção provou que todos os donativos feitos através do site tinham sido de facto reencaminhados para a Cruz Vermelha Americana e distribuídos pelos esforços de ajuda às vítimas do devastador tsunami.

Mas os números e as informações dos cartões de crédito usados para fazer os donativos também foram reencaminhados para o

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mercado negro das finanças. O Scales foi preso quando o detective Roy Wunderlich da unidade de fraudes e vigarices do Departamento da Polícia de L.A. descobriu o site. Ciente de que os desastres atraem sempre vigaristas às dúzias, o Wunderlich começou a procurar possíveis sites em que a palavra tsunami estivesse mal escrita. Havia na Internet vários sites legítimos para donativos às vítimas do tsunami e procurou variações desses nomes, escrevendo sempre mal a palavra. A ideia era que os vigaristas escreviam propositadamente mal a palavra quando criavam sites fraudulentos numa tentativa de atrair potenciais vítimas com baixa escolaridade. A SunamiHelp.com era um dos muitos sites questionáveis que o detective encontrou. A maioria deles foi entregue a uma força operacional do FBI que andava a investigar este problema à escala nacional. Mas quando o detective verificou o registo do domínio da SunamiHelp.com, descobriu um apartado de Los Angeles. Estava dentro da sua jurisdição e decidiu investigar por conta própria.

O apartado era falso, mas não se deixou deter por isso. Lançou um isco, ou seja, fez uma compra controlada, neste caso um donativo controlado.

O número do cartão de crédito que deu para o donativo de vinte dólares seria monitorizado vinte e quatro horas por dia por uma unidade de fraudes de cartões Visa que o informaria imediatamente de qualquer compra feita com esse cartão. Três dias depois, o cartão de crédito foi usado para pagar um almoço de onze dólares num restaurante em Farmers Market. O detective sabia que não passava de um simples teste de compra, uma coisa pequena que o vigarista poderia facilmente cobrir com dinheiro vivo caso houvesse problemas durante a compra com o cartão falso.

Permitiu que a despesa no restaurante fosse processada e avançou com quatro detectives da unidade para Farmers Market, uma extensa zona de lojas antigas e recentes e restaurantes que estava sempre apinhada de gente e era, portanto, um lugar perfeito para os vigaristas dos cartões de crédito operarem. Os outros detectives iam dispersar-se pela zona e esperar enquanto o Wunderlich continuava a monitorizar por telefone o uso do cartão.

Duas horas depois da primeira compra, o cartão voltou a ser usado Para comprar um blusão de couro de seiscentos dólares. A aprovação da compra sofreu um atraso, mas não foi impedida. Os detectives avançaram e prenderam uma mulher jovem que estava a fazer a compra. O caso acabou por ficar conhecido como a "rede de bufos", com a

Polícia atrás de um suspeito a seguir a outro enquanto se denunciavam Uns aos outros.

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Acabaram por chegar ao homem no topo da escala, o Sam Scales. Quando a história rebentou na imprensa, o Wunderlich referiu-se a ele como o Svengali do Tsunami, dado que muitas vítimas da fraude eram mulheres que queriam ajudar o reverendo bem-parecido que aparecia no site. A alcunha enfureceu o Scales e durante os nossos encontros referia-se sempre ao detective que o tinha apanhado como o Rapaz Marabilha4.

Eram 10h45 quando cheguei ao Departamento 124 no décimo terceiro piso do tribunal criminal, mas a sala de audiências estava vazia à excepção da Marianne, a secretária da juíza. Aproximei-me dela.

- Ainda estão a chamar os casos? - perguntei.

- Estávamos mesmo à sua espera. Vou chamar todos e avisar a juíza.

- Ela está zangada comigo?

A Marianne encolheu os ombros. Não queria responder pela juíza. Sobretudo a um advogado de defesa. Mas, de certo modo, estava a dizer-me que a juíza não estava contente.

- O Scales ainda está lá dentro?

- Deve estar. Não sei aonde foi o Joe.

Sentei-me à mesa da defesa e esperei. A porta da cela de detenção abriu-se e vi o Joe Frey, o oficial de justiça do Departamento 124.

- Ainda tem o meu homem lá dentro?

- Foi por pouco. Pensávamos que o senhor ia voltar a falhar. Quer ir lá dentro?

Abriu a porta de aço e entrei numa pequena divisão com uma escadaria de acesso à prisão do tribunal no décimo quarto piso e com duas portas que davam para as celas de detenção mais pequenas. Uma das portas tinha um painel de vidro para as conversas entre advogados e clientes, e vi o Sam Scales sentado sozinho à mesa do outro lado. Estava vestido com um macacão laranja e tinha os pulsos algemados. Fora detido sem caução porque esta última detenção violava a sua liberdade condicional, por causa da condenação pelo caso TrimSlim6. O rico acordo que eu lhe tinha conseguido dessa vez estava prestes a ir pelo cano abaixo.

- Até que enfim - disse o Scales, quando entrei.

- Como se tivesses de ir a algum lado. Estás pronto para isto?

- Não tenho outra escolha.

4 Svengali: à letra significa "manipulador"; esta designação deriva do nome do infame hipnotizador do romance Trilby "1894 de George du Maurier. Rapaz Marabilha, no original Wunder Boy (derivado do apelido Wunderlich do detective) e que equivale a "Wonder Boy" mas com a ironia da pronúncia alemã. (NT)

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Sentei-me à frente dele.

- Sam, tens sempre uma escolha. Mas deixa-me explicar-te outra vez. Desta vez estás mesmo tramado, percebes? Foste apanhado a burlar pessoas que queriam ajudar as vítimas de um dos piores desastres naturais de que há memória. Têm três co-conspiradores que aceitaram acordos para testemunhar contra ti. Têm a lista dos números dos cartões encontrados em tua posse. O que estou a dizer é que ao fim do dia o juiz e o júri, se se chegar a isso, vão ter tanta simpatia por ti como teriam por um pedófilo. Ou menos até.

- Sei isso tudo, mas sou útil à sociedade. Posso educar pessoas. Que me ponham nas escolas. Que me ponham em clubes desportivos e recreativos. Que me ponham em liberdade condicional e assim ensino às pessoas como devem ter cuidado lá fora.

- As pessoas devem é ter cuidado contigo. Deste cabo das tuas oportunidades com esta última coisa e a acusação disse que a proposta final era esta. Se não aceitares, vão cair-te em cima com toda a força. A única coisa que posso garantir-te é que não vai haver misericórdia.

Muitos dos meus clientes são como o Sam Scales. Acreditam desesperadamente que há uma luz do outro lado da porta. E sou eu que tenho de lhes dizer que a porta está fechada e que, de qualquer forma, a lâmpada há muito que fundiu.

- Então se calhar vou ter de o fazer - disse o Scales, virado para mim com um olhar que me culpava por não ter encontrado uma saída.

- A escolha é tua. Queres julgamento, vamos a julgamento. Podes levar com dez anos, mais o ano que falta de liberdade condicional. E se os irritares à brava, também podem despachar-te para o FBI, para te incriminarem de fraude electrónica se quiserem.

- Deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Conseguíamos ganhar se fôssemos a tribunal?

Quase ri, mas ainda nutria alguma simpatia por ele.

- Não, Sam, não conseguíamos ganhar. Apanharam-te. Não podes ganhar. Mas estou aqui para fazer o que quiseres. Como disse, se queres ir a julgamento, vamos a julgamento. Mas devo dizer-te que, se formos, vais ter de pedir à tua mãe para voltar a pagar-me.

- Quanto é que ela já lhe pagou? - Oito mil.

Oito milenas! É o caralho do dinheiro todo da conta de reforma dela!

- Admira-me que ainda tenha dinheiro na conta, com um filho como tu.

Lançou-me um olhar duro.

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- Lamento, Sam. Não devia ter dito aquilo. Pelo que ela me disse, és um bom filho.

- Porra, eu devia ter ido para a merda da Faculdade de Direito. Você é tão vigarista como eu. Está a ouvir, Haller? Só aquele papel que dão é que o torna legal, é tudo.

Culpam sempre o advogado por ganhar a vida. Como se fosse um crime querer que nos paguem pelo dia de trabalho. Aquilo que o Scales acabava de dizer ter-me-ia feito reagir com violência há uns anos atrás, pouco depois de ter saído da faculdade. Mas como já tinha ouvido esse insulto tantas vezes, não fazia caso.

- Que posso dizer, Sam? Já tivemos esta conversa antes.

Ele anuiu e não disse nada. Presumi que significava que ia aceitar a proposta da procuradoria. Quatro anos no sistema penal estatal e uma multa de dez mil dólares, seguindo-se cinco anos de liberdade condicional. Estaria fora da prisão dentro de dois anos e meio, mas, para um vigarista nato como ele, seria muito difícil sobreviver ileso à liberdade condicional. Segundos depois, levantei-me e saí da sala. Bati à porta e voltei a entrar na sala de audiências.

- Já está pronto para ir dentro - informei o delegado Frey. Sentei-me à mesa da defesa e pouco depois o delegado trouxe o

Scales e sentou-o ao meu lado. Ainda estava algemado. Não me dirigiu a palavra. Segundos depois chegou o Glenn Bernasconi, o procurador que trabalhava no décimo quinto piso do Departamento 124 e disse-lhe que estávamos prontos para aceitar o acordo.

A Juíza Judith Champagne entrou às onze e o delegado Frey anunciou o início da sessão. A juíza era uma loira baixinha e atraente e uma ex-procuradora que já ocupava a magistratura pelo menos desde que eu tinha tirado a licença. Era da velha escola, justa mas dura, e dirigia a sala de audiências como se fosse um feudo. Às vezes até trazia o cão para o trabalho, um pastor alemão chamado Justiça. Se o Sam Scales tivesse enfrentado a juíza sem se ter chegado a este acordo, a sentença teria sido severa.

- Bom dia - disse a juíza. - Ainda bem que pôde vir hoje, Sr. Haller.

- Peço desculpa, Meritíssima. Fiquei retido na sala de audiências do Juiz Flynn em Compton.

Foi tudo o que precisei de dizer. A juíza sabia bem como o Flynn era. Toda a gente sabia, aliás.

- E logo no Dia de São Patrício - disse ela.

- Pois foi, Meritíssima.

- Segundo sei, chegámos a um acordo na questão do Svengali Tsunami.

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Olhou imediatamente para a estenógrafa judicial. - Michelle, risca isso.

Voltou a olhar para os advogados. - Segundo sei, temos um acordo sobre o caso Scales. Correcto?

- Correcto. Estamos prontos para avançar com isso.

- Muito bem.

O Bernasconi proferiu quase de memória a gíria legal necessária para obter o acordo do arguido. O Scales renunciou aos seus direitos e declarou-se culpado das acusações. Não disse mais nada a não ser "culpado". A juíza aceitou o acordo e proferiu a respectiva sentença.

- É um homem com sorte, Sr. Scales - disse ela, quando a audiência terminou. - Acho que o Sr. Bernasconi foi bastante generoso consigo. Eu não teria sido tão generosa.

- Não me sinto assim tão sortudo, Sra, Juíza - disse o Scales.

O delegado Frey tocou-lhe no ombro por trás. O Scales levantou-se e virou-se para mim.

- Acho que chegou a hora - disse ele.

- Boa sorte, Sam.

Vi a porta de aço fechar-se atrás deles. Não cheguei a apertar-lhe a mão.

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13


O Centro Administrativo de Van Nuys é um extenso largo de betão rodeado por edifícios governamentais. Numa das pontas fica a Divisão de Van Nuys da Polícia de Los Angeles. Ao comprido, de um dos lados, há dois tribunais, à frente dos quais fica uma biblioteca pública e um edifício administrativo. Ao fundo do canal de betão e vidro há um edifício da administração federal e um posto dos correios. Esperei pelo Louis Roulet num dos bancos de betão perto da biblioteca. O largo estava quase deserto, apesar do bom tempo que fazia. Nada que ver com o dia anterior, quando aquilo estava cheio de câmaras e pessoal dos meios de comunicação e mirones, todos apinhados à volta do Robert Blake, enquanto os advogados deste tentavam transformar um veredicto de não-culpado em inocência.

Estava uma tarde agradável e calma, e geralmente gosto de andar cá fora. A maior parte do meu trabalho é feito em salas de audiência sem janelas ou nas traseiras do Lincoln; portanto, sempre que podia, aproveitava para andar cá fora. Mas desta vez não senti a brisa nem o ar fresco. Estava chateado porque o Louis Roulet estava atrasado e aquilo que o Sam Scales tinha dito, que eu não passava de um vigarista encarteirado, estava a infectar-me a mente como um cancro. Finalmente vi o Roulet atravessar o largo na minha direcção e fui ao encontro dele.

- Onde estiveste? - disse-lhe, num tom abrupto.

- Tinha-lhe dito que viria mal pudesse. Estava com um cliente a fazer uma visita guiada a uma moradia quando você me ligou.

- Vamos caminhar um pouco.

Segui na direcção do edifício federal porque era o percurso mais longo até termos de voltar para trás. Ia encontrar-me com o Minton, o novo procurador destacado para o caso, daí a vinte e cinco minutos. Apercebi-me de que não parecíamos um advogado e um cliente a discutir um caso. Talvez mais um advogado e o seu agente imobiliário a discutir a oportunidade de compra de um terreno. Vestia o meu fato Hugo Boss e o Roulet estava com um fato de cor trigueira por cima de uma camisola verde de gola alta. Calçava mocassins com pequenas fivelas prateadas.

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- Não vai haver nenhuma visita guiada lá na Baía dos Pelicanos disse-lhe.

- O que quer dizer com isso? Onde fica isso?

- É um nome catita para uma prisão de segurança máxima para onde enviam os agressores sexuais violentos. Vais encaixar lá na perfeição com essa camisola de gola alta e os mocassins.

- Ouça, o que é que se passa? Está a falar de quê?

- Estou a falar de um advogado que não pode representar um cliente que lhe mente. Daqui a vinte minutos vou estar com o tipo que vai enviar-te lá para a Baía dos Pelicanos. Preciso de tudo aquilo a que possa deitar as mãos para que não vás dentro e não me ajuda nada ter descoberto que estás a mentir-me.

O Roulet parou e virou-se para mim. Levantou as mãos com as palmas abertas.

- Não lhe menti! Não fui eu que fiz esta coisa. Não sei o que aquela mulher quer, mas...

- Deixa-me perguntar-te uma coisa, Louis. Tu e o Dobbs disseram que andaste um ano na UCLA, certo? Não te ensinaram lá nada sobre a relação de confiança entre advogado e cliente?

- Não sei. Não me lembro. Andei lá pouco tempo. Aproximei-me mais dele, invadindo-lhe o espaço.

- Estás a ver? És um mentiroso de um raio. Não andaste um ano na UCLA. Nem sequer lá andaste o caralho de um único dia.

Baixou as mãos e bateu-as contra as coxas.

- Então é disso que se trata, Mickey?

- Sim, é disso, e daqui em diante não me chames Mickey. Só os amigos me chamam assim. Não os meus clientes mentirosos.

- O que tem que ver com o caso se andei ou não na Faculdade de Direito há dez anos atrás? Eu não...

- Porque se me mentiste acerca disso, então também me mentiste acerca de tudo e não posso aceitar isso se queres que te defenda.

Disse-o em voz alta. Duas mulheres sentadas num banco ali perto estavam a olhar para nós. Tinham presos nas blusas cartões de jurado.

- Segue-me. Por aqui.

Comecei a voltar para trás, em direcção à esquadra da polícia.

- Ouça - disse o Roulet, numa voz dócil. - Menti por causa da minha mãe, percebe?

- Não, não percebo. Quero uma explicação.

- Ouça, a minha mãe e o Cecil pensam que andei um ano na faculdade de Direito. Queria que eles continuassem a acreditar nisso. Ele trouxe o assunto à baila e limitei-me a concordar. Mas essa coisa Já foi há dez anos! Que mal tem?

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- O mal é que me mentiste. Podes mentir à tua mãe, ao Dobbs, ao teu padre e à polícia. Mas não me mintas quando te perguntar alguma coisa directamente. Tenho de agir a partir de uma posição em que só recebo factos de ti. Factos incontornáveis. Portanto, quando te faço uma pergunta, tens de dizer a verdade. Durante o resto do tempo podes dizer o que quiseres e o que te fizer sentir bem.

- Pronto, pronto.

- Se não andaste na faculdade, estavas onde então? O Roulet abanou a cabeça.

- Em nenhum sítio em especial. Simplesmente não fiz nada durante um ano. Passava a maior parte do tempo no apartamento perto da universidade, a ler e a pensar no que queria fazer da minha vida. Só sabia que não queria ser advogado. Sem querer ofender.

- Não fico ofendido. Portanto, ficaste por lá durante um ano e acabaste a vender propriedades a gente rica.

- Não, isso foi mais tarde. Riu-se com autodepreciação.

- Na verdade, decidi tornar-me escritor. Tinha-me especializado em Literatura Inglesa e tentei escrever um romance. Não foi preciso muito tempo para me dar conta de que não era capaz. Acabei por ir trabalhar para a minha mãe. Era o que ela queria.

Acalmei-me. Grande parte da minha raiva tinha sido fingida, de qualquer maneira. Estava a tentar prepará-lo para perguntas mais importantes. E agora achava que ele já estava pronto para isso.

- Bem, agora que estás limpinho e confessas tudo, Louis, fala-me da Reggie Campo.

- Que tem ela?

- Ias pagar-lhe para ter sexo, não ias?

- O que o leva a dizer...

Obriguei-o a calar-se assim que parei e o agarrei por uma das dispendiosas lapelas. Era mais alto e mais forte do que eu, mas quem dominava a conversa era eu. Estava a forçá-lo.

- Responde ao caralho da pergunta.

- Pronto. Sim, ia pagar-lhe. Mas como soube isso?

- Raios, porque sou um advogado bom. Por que não me contaste isso logo da primeira vez? Não vês como isso muda o caso?

- Por causa da minha mãe, não queria que a minha mãe soubesse que eu... você percebe.

- Vamos sentar-nos.

Levei-o para um dos bancos compridos junto da esquadra da polícia. Havia muito espaço livre e podíamos falar à vontade. Sentei-me no meio do banco e ele à minha direita.

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- A tua mãe nem sequer estava na sala quando falámos do caso. Acho que nem sequer estava lá quando falámos disso da Faculdade de Direito.

- Mas estava lá o Cecil e ele conta-lhe tudo.

Anuí e fiz uma anotação mental para retirar completamente o Cecil Dobbs de tudo relacionado com o caso daqui em diante.

- Okay, acho que compreendo. Mas quando é que ias decidir contar-me? Não vês como isso muda tudo?

- Não sou advogado.

- Louis, deixa-me contar-te um pouco como isto funciona. Sabes o que sou? Um neutralizador. O meu trabalho é neutralizar o caso do estado. Pegar em cada prova e indício e arranjar maneira de eliminar o carácter contencioso. Pensa nisso como um daqueles artistas de rua que se vê na passarela de madeira na praia de Venice. Nunca foste lá e viste um tipo a girar um montão de pratos em pauzinhos?

- Acho que sim. Já não vou lá há muito tempo.

- Não importa. O tipo pega nos pauzinhos, põe um prato em cima de cada um deles e faz o prato girar até ficar equilibrado. Põe montes deles a girar ao mesmo tempo e verifica cada prato e cada pauzinho até ter a certeza de que todos giram em equilíbrio. Estás a seguir-me?

- Sim. Estou a perceber.

- Bem, o caso do estado é assim, Louis. Uma data de pratos a girar. E cada um desses pratos é uma prova individual contra ti. A minha tarefa é pegar em cada prato e atirá-lo ao chão com tanta força que se parte em cacos e deixa de poder ser usado. Se o prato azul contém o sangue da vítima nas tuas mãos, então preciso de encontrar maneira de o atirar ao chão. Se o prato amarelo contém uma navalha com as tuas impressões digitais ensanguentadas, então preciso de derrubar também esse cabrão. Para o neutralizar. Percebes?

- Sim, percebo. E...

- Ora bem, no meio dessa data de pratos há um que é enorme. E o raio duma travessa, Louis, e se esse cabrão cair arrasta tudo o resto atrás. Os outros pratos todos. O caso inteiro cai por terra. Sabes que travessa é essa, Louis?

Abanou a cabeça.

- Essa travessa enorme é a vítima, a testemunha principal contra ti- Se conseguirmos derrubar essa travessa, então o espectáculo acaba e a multidão vai-se embora.

Esperei alguns segundos para ver a reacção dele. Não disse nada. Louis, durante quase duas semanas ocultaste-me o método que Poderia permitir-me derrubar a travessa grande. Um método que pergunta o porquê. Por que é que um tipo com dinheiro à sua disposição,

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com um Rolex no pulso, um Porsche no parque de estacionamento e morada em Holmby Hills precisava de usar uma navalha para ter sexo com uma mulher que à partida já vendia sexo? Quando tudo se resume a essa pergunta, o caso começa a desfazer-se, Louis, porque a resposta é simples. Nunca precisarias de usar uma navalha. O senso comum diz que não precisarias. E quando se chega a essa conclusão, todos os pratos param de girar. Vê-se que é uma armadilha, uma cilada, e agora o arguido é que começa a parecer a vítima. Olhei para ele. Assentiu com a cabeça.

- Lamento - disse ele.

- Pois deves lamentar-te. O caso teria começado logo a desfazer-se há quase duas semanas e, se calhar, nem estaríamos agora aqui se tivesses sido frontal comigo desde o início.

Foi nesse momento que me apercebi donde vinha verdadeiramente a minha raiva, e não era por o Roulet se ter atrasado ou por me ter mentido, nem por causa do Sam Scales me ter chamado um vigarista encarteirado. Era porque estava prestes a ficar sem um cliente franqueado. Não haveria julgamento neste caso, nada de honorários com seis algarismos. Teria sorte se conseguisse ficar com os honorários dos provimentos. O caso seria encerrado hoje quando entrasse no gabinete da procuradoria e contasse ao Ted Minton aquilo que sabia.

- Lamento - repetiu o Roulet numa voz lamuriosa. - Não era minha intenção atrapalhar as coisas.

Olhei para o chão. Estendi a mão e pousei-a no ombro dele.

- Desculpa ter gritado contigo, Louis.

- O que vamos fazer agora?

- Quero perguntar-te mais umas coisas sobre aquela noite e depois vou falar com o procurador e derrubar-lhe os pratos todos. Acho que quando sair de lá tudo isto já terá terminado e já podes voltar a fazer visitas guiadas das tuas mansões a gente rica.

- Assim sem mais nem menos?

- Bem, formalmente ele pode querer ir ao tribunal pedir a um juiz para encerrar o caso.

O Roulet abriu a boca estupefacto.

- Sr. Haller, nem lhe sei dizer como...

- Podes chamar-me Mickey. Desculpa a minha reacção de há pouco.

- Tudo bem. Obrigado. O que queria perguntar-me?

Reflecti por momentos. Não precisava realmente de mais nada para a reunião com o Minton. Já tinha tudo o que precisava. Tinha provas vivas.

- O que dizia no bilhete? - perguntei.

- Qual bilhete?

- O bilhete que ela te deu ao balcão do Morgan's.

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- Oh, dizia a morada dela e por baixo tinha escrito "quatrocentos dólares", e mais abaixo "Vem depois das dez".

- É uma pena não termos esse bilhete. Mas acho que temos o suficiente.

Verifiquei as horas. Ainda faltavam quinze minutos para a reunião, mas já não precisava de mais nada do Roulet.

- Já podes ir, Louis. Ligo-te quando estiver tudo terminado.

- Tem a certeza? Posso esperar aqui, se quiser.

- Não sei quanto tempo vai demorar. Vou ter de lhe apresentar tudo o que tenho. E depois provavelmente vai ter de falar com o patrão. Pode demorar bastante.

- Está bem. Bom, acho que vou, então. Mas depois liga-me, certo?

- Sim. Provavelmente vamos estar com o juiz na segunda ou terça-feira e depois estará tudo acabado.

Estendeu a mão e apertei-lha.

- Obrigado, Mick. É o maior. Eu sabia que ia ter o melhor advogado quando o contratei.

Vi-o atravessar o largo e passar pelo meio dos dois tribunais em direcção ao parque de estacionamento.

- Pois é, sou o melhor - disse eu baixinho.

Senti a presença de alguém e quando me virei vi um homem sentado ao meu lado no banco. Virou-se e reconhecemo-nos ao mesmo tempo. Era o Howard Kurlen, um detective da brigada de homicídios da Divisão de Van Nuys. Já nos tínhamos encontrado mais vezes ao longo dos anos por causa de certos casos.

- Olha quem ele é - disse o Kurlen. - O orgulho da ordem dos advogados da Califórnia. Não me digas que estavas a falar sozinho?

- Quem sabe.

- Pode ser mau para um advogado, se a coisa se souber.

- Não me preocupa. Como tens passado, detective?

O Kurlen estava a desembrulhar uma sanduíche que tinha tirado de um saco de papel.

- Dia ocupado. Almoço tardio.

Era uma sanduíche de manteiga de amendoim. Havia uma camada de mais alguma coisa além de manteiga de amendoim, mas não era geleia. Não consegui identificar o que era. Verifiquei as horas. Ainda tinha alguns minutos antes de ir para a fila do detector de metais à entrada do tribunal, mas não sei se queria passar esse tempo com o Kurlen e aquela sanduíche de aspecto horrível. Pensei em falar do veredicto do Blake, para picar um bocado a Polícia de Los Angeles, mas foi o Kurlen quem me picou primeiro.

Como tem passado o meu homem, o Jesus?

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Tinha sido o Kurlen o detective principal no caso Jesus Menendez. Tinha feito um cerco tão cerrado que o Menendez não teve outra escolha senão declarar-se culpado e esperar o melhor. Mesmo assim levou com prisão perpétua.

- Não sei. Já não falo com o Jesus.

- Pois, quando eles se declaram culpados e vão dentro, acho que deixam de te ser úteis. Nada de recursos, nadinha.

Fiz que sim com a cabeça. Todos os polícias eram hostis e cínicos em relação aos advogados de defesa. Era como se acreditassem que as suas próprias acções e investigações estivessem para lá de qualquer censura. Não acreditavam num sistema judicial baseado na separação de poderes.

- Acho que contigo acontece o mesmo. Avança-se sempre para o caso seguinte. Espero que o teu dia ocupado signifique que estás a trabalhar para me arranjar um novo cliente.

- Não vejo a coisa dessa maneira. Mas estava aqui a perguntar-me: dormes bem à noite?

- E sabes o que estava a perguntar-me? Que raio de sanduíche é essa?

Mostrou-me o que restava da sanduíche.

- Manteiga de amendoim e sardinhas. Montes de boas proteínas para aguentar mais um dia a caçar pulhas. E a falar com eles também. Não respondeste à minha pergunta.

- Durmo bem, detective. E sabes porquê? Porque desempenho um papel importante no sistema. Um papel necessário, tal como tu. Quando alguém é acusado de um crime, tem a oportunidade de testar o sistema. E quando querem isso, vêm ter comigo. Tem tudo que ver com isso. Quando uma pessoa percebe isso, não tem problemas em dormir.

- Boa história. Espero que acredites nela quando fechas os olhos.

- E tu, detective? Alguma vez deitaste a cabeça na almofada e te puseste a pensar se meteste dentro gente inocente?

- Na - apressou-se a dizer, com a boca cheia. - Nunca tal aconteceu nem acontecerá.

- Deve ser bom ter assim tanta certeza.

- Um tipo contou-me uma vez que, quando uma pessoa chega ao fim da estrada, tem de olhar para a pilha de madeira da comunidade para ver se contribuiu também enquanto cá andou ou se se limitou a roubar de lá. Bem, eu contribuo para a pilha de madeira, Haller. Durmo bem à noite. Mas quanto a ti e àqueles como tu, não sei. Vocês, os advogados, roubam todos da pilha.

- Obrigado pelo sermão. A ver se me lembro disso da próxima vez que estiver a rachar lenha.

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- Se não gostaste, tenho uma piada para ti. Qual é a diferença entre um peixe-gato e um advogado de defesa?

- Hummm, não sei, detective.

- Um é um canalha chupista que se alimenta no fundo da lama e o outro é um peixe.

Desatou a rir às gargalhadas. Levantei-me. Estava na altura de ir.

- Espero que laves os dentes depois de comeres essa coisa. Ia detestar ser teu parceiro se não os lavasses.

Afastei-me a pensar no que ele tinha dito sobre a pilha de madeira e naquilo que o Sam Scales me tinha chamado, um vigarista encarteirado. Hoje estavam a atacar-me de todas as frentes.

- Obrigado pelo conselho - disse o Kurlen, atrás de mim.

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14


De modo a discutirmos o caso Roulet em privado, o Ted Minton marcara a reunião para uma hora em que sabia que o delegado do procurador público com quem partilhava o gabinete estava numa audiência no tribunal. O Minton veio ao meu encontro na sala de espera e conduziu-me para o gabinete. Não aparentava mais de trinta anos, mas tinha uma presença forte. Eu tinha provavelmente mais dez anos que ele e uma experiência de uma centena de julgamentos, e no entanto não mostrou nenhum sinal de deferência ou respeito. Agia como se a reunião fosse um aborrecimento que era obrigado a aturar. Por mim tudo bem. Já estava habituado. E essa atitude atestou-me ainda mais o depósito.

Quando chegámos ao pequeno gabinete sem janelas, ofereceu-me a cadeira do colega e fechou a porta. Sentámo-nos e olhámos um para o outro. Deixei que fosse ele o primeiro a falar.

- Okay. Primeiro que tudo, queria conhecê-lo. Estou há pouco tempo aqui no Valley e ainda não conheci muitos advogados de defesa. Sei que é uma daquelas pessoas que abrange o condado inteiro, mas ainda não nos tínhamos encontrado.

- Talvez seja porque ainda não teve muitos julgamentos de delitos graves.

Sorriu e anuiu como se eu tivesse marcado alguma espécie de ponto.

- Talvez seja verdade. De qualquer modo, devo dizer-lhe que quando andava na Faculdade de Direito na SCI li um livro sobre o seu pai e os casos que defendeu. Acho que se chamava Haller pela Defesa. Ou algo parecido. Uma pessoa interessante e uma época interessante.

- Morreu antes que pudesse conhecê-lo bem, mas foram escritos alguns livros sobre ele e li-os todos mais de uma vez. Foi provavelmente por isso que acabei por me tornar advogado.

- Deve ter sido duro conhecer o pai pelos livros.

Encolhi os ombros. Não precisava de conhecer assim tão bem o Minton, particularmente à luz do que estava prestes a fazer-lhe.

- Acontece - disse eu.

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-- Pois é.

Bateu as mãos, num gesto de "vamos lá ao assunto que nos trouxe".

- Okay, portanto estamos aqui para falar do Louis Roulet,

não é? - Pronuncia-se Rouley.

- Rouuu-lei. Percebido. Portanto, vejamos, tenho aqui umas coisas

para si.

Rodou na cadeira para se virar para a secretária. Pegou num dossier fininho e entregou-mo.

- Quero jogar limpo. Isso são as últimas descobertas feitas. Só sou obrigado a dar-lhe isso depois da leitura do despacho da acusação, mas, raios, sejamos cordiais.

A experiência dizia-me que quando os procuradores nos dizem que estão a jogar limpo ou mais do que isso, então é melhor estarmos muito atentos. Folheei o dossier, mas não li nada. O dossier que o Levin tinha preparado para mim era pelo menos quatro vezes mais volumoso. Não fiquei entusiasmado por o Minton ter tão pouca informação. Desconfiava que estava a sonegar-me dados. A maioria dos procuradores obrigavam a defesa a esfalfar-se para descobrir provas exigindo-as vezes sem fim, ao ponto de irem a tribunal queixar-se disso ao juiz. Mas o Minton limitara-se a entregar-me casualmente pelo menos parte dela. Ou tinha mais a aprender do que eu julgava sobre o trabalho da acusação em delitos graves, ou então só podia ser uma espécie de jogada.

- Só há isto? - perguntei.

- Foi tudo o que consegui reunir.

Era sempre assim. Se o procurador não tinha informações, podia empatar a entrega desses dados à defesa. Mas eu sabia - por ter sido casado com uma procuradora - que não era invulgar um procurador dizer aos polícias encarregados da investigação de um caso para reunirem a papelada toda sem pressas. E assim, podiam dizer ao advogado de defesa que queriam jogar limpo sem lhes entregar praticamente nada. As regras sobre provas eram muitas vezes designadas pelos profissionais da defesa como as regras da desonestidade. Claro que isto se aplicava a ambos os lados. A descoberta de provas era supostamente uma via recíproca.

E vai a julgamento com isto?

Acenei-lhe com o dossier, como se estivesse a dizer que o magro conteúdo era tão magro como o caso

Não estou preocupado com isso. Mas se quiser falar de algum

tipo de acordo, estou disposto a ouvir. Não, nada de acordos quanto a este caso. Vamos até ao fim.

Vamos renunciar à audiência preliminar e ir a julgamento. Sem atrasos.

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- Ele não vai renunciar a um julgamento rápido?

- Não. A partir de segunda-feira tem sessenta dias para agir ou então desistir.

O Minton franziu os lábios como se aquilo que eu acabava de dizer fosse apenas uma inconveniência menor e uma surpresa. Era um bom disfarce. Sabia que lhe tinha assentado um murro potente.

- Bem, então acho que devíamos falar da descoberta unilateral. O que tem para mim?

Deixara-se já de falinhas mansas.

- Ainda estou a reunir as provas. Mas tenho-as prontas para a audiência de segunda-feira. Mas a maior parte do que tenho provavelmente consta já deste dossier que me deu, não acha?

- É bem provável.

- Então aqui no dossier também diz que a suposta vítima é uma prostituta que ofereceu os seus serviços ao meu cliente, certo? E que continuou nessa linha de trabalho desde o alegado incidente, certo?

Abriu ligeiramente a boca e depois fechou-a, mas bastou para se denunciar. Tinha-o atingido com outro soco potente. Mas recuperou rapidamente.

- Por acaso, estou a par da ocupação dela. Mas surpreende-me que já saiba disto. Espero que não ande a vigiar a minha vítima, Sr. Haller?

- Chama-me Mickey. E o que estou a fazer é o menor dos teus problemas. É melhor analisares bem este caso, Ted. Sei que não tens experiência de julgamentos de crimes graves e não vais querer sair disto como um perdedor. Sobretudo depois do fiasco Blake. Só que este caso é um cão feroz e vai acabar por te ferrar o eu.

- Ai é? Como assim?

Olhei por cima do ombro dele para o computador na secretária.

- Aquela coisa lê DVD?

O Minton olhou para o computador. Parecia ser antigo.

- Acho que sim. O que tens aí?

Apercebi-me de que mostrar-lhe a gravação do balcão do Morgan's seria como estar a revelar antecipadamente o maior trunfo que tinha; mas assim que ele a visse, tinha a certeza de que segunda-feira já não haveria nenhum despacho da acusação para ler e o caso seria encerrado. Cabia-me a mim neutralizar o caso e resgatar o meu cliente do peso do Governo. E a maneira de o fazer era esta.

- Ainda não reuni todas as minhas provas, mas tenho isto. Entreguei-lhe o DVD que o Levin me tinha dado. Meteu-o no computador.

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É uma gravação do balcão do Morgan's - disse-lhe. - Os

vossos homens nem chegaram a ir lá, mas o meu investigador sim. É a gravação da noite de domingo do suposto ataque.

- Só que isto podia ter sido adulterado.

Podia, sim, mas não foi. Podes mandar verificar. O meu investigador tem o original e vou dizer-lhe para a disponibilizar depois da leitura do despacho da acusação.

Depois de algum esforço, o Minton conseguiu pôr o DVD a dar. Observou em silêncio enquanto eu lhe apontava o código com as horas e todos os outros pormenores que o Levin me tinha salientado, incluindo o homem desconhecido que era canhoto. Disse-lhe para avançar rapidamente e para parar no momento em que a Reggie Campo se aproximou do meu cliente ao balcão. O Minton tinha a testa frisada em concentração. Quando a gravação chegou ao fim, ejectou o disco e segurou-o na mão.

- Posso ficar com isto até arranjar o original?

- Faça o favor.

Enfiou o disco no invólucro e pousou-o em cima de uma pilha de dossiers na secretária.

- Okay, mais alguma coisa? - perguntou.

Foi a minha vez de abrir ligeiramente a boca. - O que queres dizer com isso, mais alguma coisa? Não é suficiente?

- Suficiente para quê?

- Ouve, Ted, e se nos deixássemos de tretas?

- Faça o favor.

- Estamos aqui a falar de quê? Esse disco arrasa o caso por completo. Esqueçamos a leitura do despacho da acusação e o julgamento e falemos antes de ir a tribunal na próxima semana com uma moção conjunta para encerramento do caso. E nada de preconceitos, Ted. Nada de se vingarem no meu cliente se alguém daqui decidir mudar de ideias.

O Minton sorriu e abanou a cabeça.

- Não posso fazer isso, Mickey. Esta mulher sofreu lesões muito graves. Foi vitimizada por um animal e não vou simplesmente...

Lesões muito graves? A tipa tem andado a pregar truques durante a semana toda. E...

Como sabes isso? Abanei a cabeça.

- Ouve, estou aqui a tentar ajudar-te e poupar-te a vergonhas, mas a

única coisa que te preocupa é se pisei alguma linha com a vítima.

Eu tenho umas novidades para te dar. Não é ela a vítima. Não

percebes o que tens aqui? Se esta coisa chega a um júri e virem a

gravação, então todos os pratos caem, Ted. O caso acaba e vais ter de

127
vir aqui e explicar ao patrão Smithson por que razão não viste a coisa vir. Não conheço o Smithson assim tão bem, mas sei um par de coisas sobre ele. Não gosta de perder. E depois do que aconteceu ontem, diria que agora sente uma urgência maior nesse aspecto.

- As prostitutas também podem ser vítimas. Até as que são amadoras.

Abanei a cabeça. Decidi mostrar-lhe os trunfos todos.

- A tipa tramou-o. Sabia que ele tinha dinheiro e armou-lhe uma ratoeira. Quer processá-lo e encher os bolsos. Ou ela própria se feriu ou então pediu ao namorado com quem estava lá no bar, o canhoto para o fazer. Nenhum júri do mundo inteiro vai acreditar no que estás a vender. Sangue na mão ou impressões digitais na navalha, tudo encenado depois de lhe baterem até perder os sentidos.

O Minton anuiu, como se estivesse a seguir aquela sequência lógica, mas depois saiu-se com uma surpresa inesperada.

- Preocupa-me que possas estar a tentar intimidar a minha vítima seguindo-a e importunando-a.

- O quê?

- Conheces bem as regras. Deixa a vítima em paz senão vamos já falar com um juiz. Abanei a cabeça e abri as mãos.

- Por acaso estás a ouvir alguma coisa do que estou a dizer-te?

- Sim, ouvi tudo e isso não me faz mudar de ideias. Mas tenho uma proposta para ti, e só será válida até à audiência de segunda-feira. Depois disso, acabou-se. O teu cliente é apresentado perante o juiz e um júri. E não és tu nem os sessenta dias que me vão intimidar. Estarei preparado e à espera.

Senti-me como se estivesse debaixo de água e tudo o que eu dizia ficasse preso dentro de bolhas de ar à deriva, como se ninguém conseguisse ouvir-me bem. Foi então que me dei conta de que estava a escapar-me algo. Algo importante. Não importava se o Minton era muito inexperiente; não era nenhum estúpido, só que eu pensara erroneamente que estava a agir como um estúpido. O gabinete da procuradoria do condado de Los Angeles contratava alguns dos melhores alunos saídos da Faculdade de Direito. Mencionara antes a SCI, o Instituto de Direito da Califórnia do Sul, e eu sabia que era uma escola donde saíam advogados de primeira classe. Era só uma questão de ganharem experiência. O Minton podia não ter experiência, mas isso não significava que lhe faltava inteligência nas questões legais. Era eu e não o Minton quem não estava a perceber a situação.

- Há aqui alguma coisa que me está a escapar? - perguntei.

- Não sei. Tu é que és o advogado de defesa todo-poderoso. O que é que podia estar a escapar-te?

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Olhei-o fixamente durante alguns segundos e soube então. Havia uma pequena falha na descoberta de provas. Havia algo no magro dossier dele que não constava do grosso dossier que o Levin tinha preparado. Algo que permitiria à acusação ultrapassar o facto de a Reggie Campo estar a vender sexo. E, aliás, o próprio Minton já mo tinha dito. As prostitutas também podem ser vítimas.

Tive vontade de parar aquilo tudo e analisar o dossier das provas do estado para comparar com tudo o que eu sabia do caso. Mas não podia

fazê-lo ali à frente dele.

- Okay - disse-lhe. - Qual é a proposta? Ele não vai aceitar, mas apresento-lha na mesma.

- Bem, vai ter de cumprir pena de prisão. Isso é um facto adquirido. Estamos dispostos a reduzir tudo para assalto com arma mortífera e tentativa de agressão sexual. Ficamo-nos pelo meio-termo, o que dará uns sete anos de prisão.

Assalto com arma mortífera e tentativa de agressão sexual. Uma condenação de sete anos provavelmente seria reduzida para quatro

anos factuais. Não era uma proposta má, mas apenas da perspectiva de que tinha sido o Roulet a cometer o crime. Se estava inocente, então

nenhuma proposta era aceitável.

Encolhi os ombros. - Vou falar com ele.

- Lembra-te, só até à audiência de segunda-feira. Portanto, se ele aceitar, é melhor ligares-me logo no domingo de manhã.

- Certo.

Fechei a pasta e levantei-me para sair. Lembrei-me que o Roulet estava provavelmente à espera de um telefonema meu a dizer-lhe que o pesadelo tinha acabado. Em vez disso, ia ligar-lhe por causa de um acordo de sete anos de cadeia.

Apertámos as mãos, disse que lhe ligaria e saí. A caminho da recepção, encontrei a Maggie McPherson no corredor.

- A Hayley divertiu-se imenso no sábado - disse ela da nossa filha. Ainda fala disso. Disse que também ias vê-la este fim-de-semana.

- Sim, se achares bem.

- Estás bem? Pareces atordoado.

- Está a ser uma semana longa. Ainda bem que amanhã tenho a agenda livre. Qual é melhor para a Hayley, o sábado ou o domingo?

Qualquer um. Estiveste com o Ted por causa do caso Roulet?

Sim. Tenho aqui a proposta dele.

Ergui a pasta para lhe mostrar que levava comigo a proposta de acordo da acusação. - Agora vou ter de tentar vendê-la - acrescentei. Vai ser complicado. O tipo diz que não foi ele.

E não é o que todos dizem?

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- Este tipo não.

- Bem, boa sorte.

- Obrigado.

Seguimos caminhos diferentes mas lembrei-me de uma coisa chamei-a. - Ei, feliz Dia de São Patrício.

- Oh.

Virou-se e aproximou-se.

- A Stacey vai ficar umas horas até tarde com a Hayley e muitos de nós vamos ao Four Green Fields depois do trabalho. Apetece-te tomar uma cerveja?

O Four Green Fields era umpuh irlandês não muito longe do centro administrativo. Era frequentado por advogados de defesa e de acusação. As animosidades atenuavam-se sob o efeito da temperatura ambiente.

- Não sei. Acho que vou ter de ir ver o meu cliente. Mas nunca se sabe, pode ser que volte.

- Bem, só posso ficar até às oito, depois a Stacey vai-se embora.

- Okay.

Voltámos a despedir-nos e saí do tribunal. O banco onde me tinha sentado com o Roulet e depois com o Kurlen estava vazio. Sentei-me e tirei da pasta o dossier de provas que o Minton me tinha dado. Folheei relatórios dos quais o Levin já me tinha fornecido cópias. Parecia não haver nada de novo até chegar a um relatório de análise comparativa de impressões digitais que confirmava aquilo que pensávamos desde o início: as impressões digitais na navalha pertenciam ao meu cliente, Louis Roulet.

Mesmo assim, não era suficiente para justificar o comportamento do Minton. Continuei a procurar e foi então que vi o relatório de exame da arma. O relatório que o Levin me tinha entregue era completamente diferente, como se pertencesse a outro caso e a outra arma. Enquanto lia rapidamente, senti gotas de suor na testa. Tinham-me armado uma cilada. Tinha sido humilhado no encontro com o Minton e, pior ainda, tinha-lhe revelado antecipadamente todas as minhas cartadas. Agora ele tinha a gravação do Morgan's e todo o tempo de que precisava para se preparar para ir a tribunal.

Fechei o dossier com força e peguei no telemóvel. O Levin atendeu de imediato.

- Como correu? - perguntou. - Há bónus para todos?

- Nem por isso. Sabes onde é o gabinete do Roulet?

- Sei, Canon, Beverly Hills. Tenho a morada exacta no dossier.

- Encontro-me lá contigo.

- Agora?

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Daqui a meia-hora.

pesliguei a chamada e liguei ao Earl. Devia estar com os auscultadores do iPod porque só atendeu ao sétimo toque.

Vem buscar-me. Vamos subir a colina.

Desliguei e levantei-me do banco. Sentia-me zangado enquanto me dirigia para o lugar onde o Earl viria buscar-me. Zangado com o Roulet, com o Levin e acima de tudo comigo. Mas também tinha consciência do lado positivo disto. A única certeza agora era que a franquia e o chorudo pagamento daí resultante - voltava a entrar na parada. O caso ia seguir o seu curso até ao julgamento, a não ser que o Roulet aceitasse a proposta do estado. E as hipóteses de isso vir a acontecer eram as mesmas que cair neve em Los Angeles. Podia acontecer, mas só ia acreditar quando visse com os meus próprios olhos.

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Quando os ricos de Beverly Hills querem desembolsar pequenas fortunas em roupas e jóias, vão a Rodeo Drive. Quando querem largar fortunas maiores em casas e condomínios fechados, caminham alguns quarteirões até Canon Drive, onde estão sedeadas as agências imobiliárias de classe superior, com fotografias das propriedades de vários milhões de dólares em vitrinas de exposição, apoiadas em cavaletes de ornatos dourados como se fossem Picassos ou Van Goghs. Foi aqui que encontrei a Windsor Residential Estales e o Louis Roulet na quinta-feira à tarde.

O Raul Levin já estava à minha espera quando lá cheguei. Encontrei-o na sala de exposição a beber uma garrafa de água fresca enquanto o Louis estava ao telefone no gabinete privado. A recepcionista, uma loira toda bronzeada, com o cabelo caído de um dos lados do rosto como uma foice, pediu-me para aguardar só mais alguns minutos.

- Vais dizer-me o que está a passar-se? - perguntou o Levin.

- Vou, quando estivermos lá dentro com ele.

A sala de exposição tinha de ambos os lados fios de metal desde o tecto ao chão, onde estavam penduradas molduras de 8 por 10 com as fotos e a história das propriedades para venda. Fingi que estava a analisar as fileiras de casas que nunca poderia dar-me ao luxo de comprar, nem em cem anos, e segui para o corredor de acesso aos gabinetes. Reparei numa porta aberta e ouvi a voz do Louis Roulet. Parecia estar a marcar uma visita guiada a uma mansão de Mulholland Drive para um cliente que, segundo ele disse ao agente imobiliário do outro lado do telefone, queria manter o nome confidencial. Olhei para o Levin, ainda na parte da frente da sala de exposição.

- Isto é uma treta - disse eu ao Levin.

Segui pelo corredor e entrei no luxuoso gabinete do Roulet. La estava a imprescindível secretária com papelada e grossos catálogos de lista múltipla. Mas o Roulet não estava sentado à secretária. Estava ao lado da secretária, refastelado num sofá com um cigarro numa mão e o telefone na outra. Pareceu ficar chocado ao ver-me e pensei que a recepcionista não o tinha informado que tinha visitas.

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O Levin entrou também no gabinete, seguido da recepcionista com o corte de cabelo em foice a baloiçar para trás e para a frente. Receei que a foice acabasse por lhe decepar o nariz.

- Sr. Roulet, peço desculpa, mas estes homens entraram aqui.

- Lisa, tenho de desligar - disse o Roulet ao telefone. - Ligo-te depois.

Pousou o auscultador na mesinha de vidro. - Não faz mal, Robin. Podes ir.

Fez-lhe sinal para sair com um gesto indiferente. A Robin olhou-me como se eu fosse um caule de trigo a precisar de ser cortado com aquela lâmina loira e saiu do gabinete. Fechei a porta e olhei para o Roulet.

- O que aconteceu? - perguntou ele. - O caso foi encerrado?

- Nem por sombras - respondi-lhe.

Tinha trazido comigo o dossier de provas do estado, com o relatório da arma logo a abrir. Pousei o dossier em cima da mesinha.

- Passei por uma vergonha no gabinete do procurador. O caso contra ti vai continuar e se calhar vamos a julgamento.

O Roulet ficou boquiaberto. - Não estou a compreender. Disseste que ias arrasar o coiro àquele palerma.

- Acontece que o único palerma nisto tudo fui eu. Porque, uma vez mais, não foste honesto comigo.

Virei-me para o Levin e disse: - E porque deixaste que nos armassem uma ratoeira.

O Roulet abriu o dossier. A primeira página era uma fotografia a cores de uma navalha com sangue no cabo negro e na ponta da lâmina. Não era a mesma navalha das fotocópias que constavam dos registos que o Levin tinha obtido das suas fontes policiais e que nos tinha mostrado na reunião no gabinete do Dobbs no primeiro dia de discussão do caso.

- Que raio é isso? - disse o Levin enquanto olhava para a foto.

- É uma navalha. A navalha verdadeira, a que o Roulet tinha quando foi ao apartamento da Reggie Campo. A navalha com o sangue dela e as iniciais dele gravadas.

O Levin sentou-se no sofá ao lado do Roulet. Continuei de pé e ambos olharam para mim. Comecei pelo Levin.

- Estive hoje com o procurador para lhe arrasar o coiro, mas quem acabou de coiro arrasado fui eu. Quem era a tua fonte, Raul? Porque essa pessoa deu-te um baralho marcado.

Espera, espera. Isto não...

Não, quem vai esperar és tu. O relatório que te deram, e o facto de a navalha não poder ser identificada, era falso. Deram-to de propósito

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para nos lixarem. E enganaram-nos direitinho, porque entrei lá no gabinete dele a pensar que era impossível perder e acabei por lhe dar a gravação do Morgan's. Espetei-lhe com aquilo em cima da secretária como se fosse o martelo do juiz. Só que as coisas não se passaram assim, raios.

- Foi o operador - disse o Levin.

- O quê?

- O operador. O tipo que trata do envio dos relatórios entre a esquadra da polícia e o gabinete da procuradoria. Digo-lhe que casos me interessam e ele tira cópias extra para mim.

- Bem, agora vão cair-lhe em cima e funcionou direitinho. É melhor ligares-lhe a dizer que se precisar de um advogado de defesa criminal não estou disponível.

Apercebi-me de que estava a andar de um lado para o outro à frente do sofá, mas não conseguia parar.

- E agora tu - disse ao Roulet. - Agora tenho o verdadeiro relatório da arma e descubro que a navalha não só foi mandada fazer por encomenda como te pertence a ti, porque tem o raio das tuas iniciais gravadas! Mais uma mentira tua!

- Não menti! - gritou o Roulet. - Tentei dizer-te. Disse-te que a navalha não era minha. E disse-o duas vezes porque ninguém estava a ouvir-me.

- Então deverias ter especificado melhor. Deverias ter dito: "Ei, Mickey, talvez possa haver um problema com aquela navalha porque eu tinha de facto uma navalha, só que não é esta que mostra na foto." Que pensavas, que a coisa simplesmente acabava por desaparecer?

- Importas-te de não gritar, por favor? - protestou o Roulet. Pode haver clientes lá dentro.

- Não quero saber! Que se fodam os teus clientes. Não vais precisar de clientes no sítio onde te vão enfiar. Não percebes que esta navalha arrasa tudo o que temos? Levaste uma arma de assassino para um encontro com uma prostituta. A navalha não foi nenhum embuste para te tramarem. Era tua. E isso significa que nunca houve nenhuma cilada. Como vamos argumentar que ela te tramou quando o procurador consegue provar que tinhas a navalha quando entraste por aquela porta?

Não respondeu, mas também nem lhe dei tempo para isso.

- Foda-se, foste tu que fizeste aquilo à tipa e agora apanharam-te
- disse, de dedo apontado para ele. - Não admira que não estivessem interessados em nenhuma investigação subsequente no bar. Não era necessário, pois tinham a tua navalha com as tuas impressões digitais ensanguentadas.

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- Não fui eu! É uma ratoeira. Estou a DIZER-TE! Foi uma...

- Quem é que está a gritar agora? Ouve, não importa o que estás para aí a dizer. Não posso representar um cliente que não é honesto, que não compreende como é crucial dizer ao seu advogado o que está realmente a passar-se. E agora o procurador fez-te uma proposta e acho melhor aceitares.

O Roulet sentou-se de costas direitas e agarrou no maço de tabaco. Tirou um cigarro e acendeu-o na ponta do cigarro que ainda estava a fumar.

- Não vou confessar-me culpado de uma coisa que não fiz - disse, numa voz subitamente calma depois de dar uma passa.

- Sete anos. Estás cá fora daqui a quatro anos. Tens até segunda-feira e depois já não há proposta. Pensa nisso e depois diz-me que vais aceitar.

- Não vou aceitar. Não fui eu a fazer aquilo e se não levares o caso a julgamento, então arranjo alguém disposto a fazê-lo.

O Levin tinha o dossier das provas nas mãos. Inclinei-me e tirei-lho das mãos para poder ler directamente do relatório da arma.

- Não foste tu a fazer aquilo? Okay, se não foste tu, então importas-te de me dizer por que foste ao encontro desta prostituta com uma navalha Black Ninja feita por encomenda, com lâmina de 12,7 cm e com as tuas iniciais gravadas, não uma mas duas vezes em ambos os lados da lâmina?

Atirei o dossier na direcção do Levin. Escapou-lhe por entre as mãos e atingiu-o no peito.

- Porque ando sempre com ela!

A força da resposta do Roulet acalmou a atmosfera. Voltei a andar de um lado para o outro, sempre de olhos fixos nele. - Andas sempre com ela. - Não era uma pergunta.

- Sim. Sou agente imobiliário. Conduzo carros luxuosos. Uso artigos de luxo. E é frequente encontrar-me sozinho com pessoas desconhecidas em casas vazias.

Reconsiderei. Por mais exaltado que eu estivesse, ainda sabia reconhecer um vislumbre de esperança quando via um. O Levin chegou-se para a frente, olhou para o Roulet e depois para mim. também ele tinha reconhecido o vislumbre.

Estás a falar de quê? - perguntei. - Vendes casas a gente rica. Como saber se é gente rica quando nos ligam a dizer que querem Ver uma casa?

Senti-me confuso. - Deves ter algum tipo de sistema para os verificares, certo?

" Claro, podemos pedir um relatório de crédito e pedir referências. Mesmo assim, só sabemos aquilo que nos dizem, e este tipo

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de pessoas não gosta de esperar. Quando querem ver uma propriedade, tem de ser praticamente na hora. Há muitos agentes imobiliários por aí. Se não agirmos depressa, há sempre mais alguém disposto a fazê-lo.

Anuí. O vislumbre começava a brilhar com mais força. Talvez houvesse nisto algo que eu pudesse usar.

- Tem havido homicídios - disse o Roulet. - Ao longo dos anos. Todos os agentes imobiliários sabem que o perigo existe quando vão sozinhos a algum desses lugares. A certa altura chegou até a haver alguém a quem chamaram o Violador de Agentes Imobiliárias. Atacava e roubava mulheres em casas vazias. A minha mãe...

Não terminou a frase. Esperei. Nada.

- A tua mãe o quê? Hesitou antes de responder.

- Certa vez foi mostrar uma casa em Bel-Air. Estava sozinha e pensava que era seguro porque era Bel-Air. O homem violou-a. Deixou-a lá amarrada. Como ela nunca mais voltava para o gabinete, fui lá ver o que se passava. E encontrei-a naquele estado.

Ficou de olhos fixos no vazio enquanto se recordava do incidente.

- Há quanto tempo foi isso? - perguntei.

- Há cerca de quatro anos. Depois disso desistiu de mostrar casas. Ficou sempre no gabinete e nunca mais voltou a mostrar casas. Ocupei-me eu das vendas. E foi nessa altura que arranjei a navalha. Já a tenho há quatro anos e levo-a sempre para todo o lado, excepto quando viajo de avião. Tinha-a no bolso quando entrei naquele apartamento. Andava sempre com ela.

Afundei-me na cadeira à frente da mesinha. A minha mente fervilhava. Já começava a ver como aquilo poderia resultar. Continuava a ser uma defesa que dependia de coincidências. O Roulet tinha sido tramado pela Reggie Campo e a cilada tivera uma ajuda incidental quando encontrou a navalha depois de o ter feito perder os sentidos. Poderia resultar.

- A tua mãe fez participação à polícia? - perguntou o Levin

- Houve alguma investigação?

O Roulet abanou a cabeça enquanto apagava o cigarro no cinzeiro.

- Não, estava demasiado envergonhada. Receava que aquilo chegasse aos jornais.

- Quem mais sabe disso? - perguntei.

- Ha, eu... e de certeza que o Cecil também sabe. Acho que mais ninguém. Não podes usar isto. Ela ficaria...

- Não vou usar isto sem a permissão dela. Mas pode vir a ser importante. Vou ter de falar com ela sobre isso.

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- Não, não quero que tu...

- A tua vida e o teu sustento estão em jogo aqui, Louis. Enfiam-te na cadeia e não vais conseguir aguentar. Não te preocupes com a tua mãe. Uma mãe faz sempre o que tem a fazer para proteger um filho.

O Roulet abanou a cabeça. - Não sei...

Respirei fundo para tentar aliviar a tensão que sentia. Talvez tivesse conseguido evitar o desastre.

- Uma coisa sei ao certo. Vou voltar ao gabinete do procurador e dizer-lhe que a proposta morreu. Vamos a julgamento e corremos os riscos que tivermos de correr.

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Continuaram a chover mais golpes. O outro sapato só caiu em cima do caso do procurador depois de eu deixar o Earl num daqueles parques de estacionamento com ligação directa à rede de transportes públicos, onde ele ficava de serviço todas as manhãs e levei eu o Lincoln de volta a Van Nuys e ao bar Four Green Fields em Victory Boulevard. O balcão corria ao comprido do lado esquerdo e do direito havia uma fila de cabinas de madeira gasta, com mesas redondas e altas como as que se viam em cenas de tiroteio em bares nos filmes de cowboys - talvez fosse por essa razão que os advogados gostavam tanto daquele lugar. Estava apinhado de gente como só um bar irlandês podia estar na noite do Dia de São Patrício. O meu palpite era que havia ainda mais pessoas do que em anos anteriores porque este ano o feriado calhava numa quinta-feira e muitos dos folgazões tinham iniciado já um fim-de-semana prolongado. Eu próprio tinha arranjado as coisas de maneira a ficar com a agenda livre na sexta-feira. Nunca trabalho no dia a seguir às comemorações de São Patrício.

Quando abri caminho pelo meio da massa de gente à procura da Maggie McPherson, o indispensável "Danny Boy" começou a tocar aos berros numa jukebox algures ao fundo. Mas era uma versão punk rock do início dos anos oitenta e a batida fortíssima impediu-me de ouvir o que quer que fosse enquanto encontrava rostos familiares e lhes dizia olá ou lhes perguntava se tinham visto a minha ex-mulher. Os pequenos pedaços de conversa que conseguia ouvir enquanto abria caminho pareciam relacionar-se todos com o Robert Blake e o espantoso veredicto anunciado no dia anterior.

Encontrei o Robert Gillen no meio da multidão. O operador de câmara tirou do bolso quatro notas novinhas de cem dólares e deu-mas. Deviam fazer parte das dez notas originais que eu lhe tinha pago duas semanas antes no tribunal de Van Nuys quando tentava impressionar o Cecil Dobbs com a minha perícia em lidar com os meios de comunicação. Claro que já tinha tratado de debitar esses mil dólares

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por conta dos serviços ao Roulet. Por conseguinte, estes quatrocentos dólares eram puro lucro.

- Já esperava encontrar-te aqui - berrou-me ao ouvido.

- Obrigado, Baquetas. Vão direitinhos para as minhas despesas de

bar.

Riu-se. Olhei à volta da multidão para tentar encontrar a minha ex-mulher.

- Sempre às ordens, amigo - disse ele.

Deu-me uma palmadinha no ombro quando me afastei pelo meio da multidão. Acabei por encontrar a Maggie na última cabina ao fundo. Estavam seis mulheres lá dentro, todas elas procuradoras ou secretárias dos escritórios de Van Nuys. Conhecia a maior parte delas pelo menos de vista, mas foi uma cena estranha porque tive de gritar por cima da música e do ruído da multidão. Além de que eram procuradoras e me olhavam como se estivesse emparceirado com o diabo. Tinham dois jarros de cerveja Guinness em cima da mesa e um deles ainda estava cheio. Mas poucas hipóteses tinha de conseguir passar pela multidão para ir buscar um copo ao balcão. A Maggie apercebeu-se do meu dilema e ofereceu-se para partilhar o copo comigo.

- Tudo bem - gritou. - Já trocámos cuspo mais vezes.

Sorri e soube logo que os dois jarros em cima da mesa não eram os primeiros. Dei uma longa golada com satisfação. A Guinness refortalecia-me sempre.

A Maggie estava ao meio do lado esquerdo da cabina, entre duas jovens procuradoras que ela decidira tomar sob a sua protecção. Nos escritórios de Van Nuys, muitas mulheres jovens gravitavam em torno da minha ex-mulher porque o patrão lá do sítio, o Smithson, rodeava-se sempre de advogados como o Minton.

Ergui o copo num brinde a ela, mas não pôde acompanhar-me porque era eu que tinha o copo dela. Estendeu a mão e pegou no jarro.

- À tua!

Não chegou a beber do jarro. Pousou-o e sussurrou à mulher do lado de fora da cabina. Esta levantou-se para a deixar sair. A Maggie beijou-me na face e disse: - É sempre mais fácil quando é uma mulher a pedir um copo neste tipo de situações.

- Sobretudo quando é uma mulher bonita - disse-lhe. Lançou-me um dos seus olhares e virou-se para a multidão cerrada

entre nós e o balcão. Assobiou num tom agudo e conseguiu captar a atenção de um dos empregados irlandeses que serviam cerveja à pressão e conseguiam esculpir uma harpa ou um anjo ou uma mulher nua na espuma no cimo do copo.
- Preciso de um copo! - gritou.

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O empregado teve de lhe ler os lábios. E tal como um adolescente a ser passado por cima das cabeças da multidão num concerto dos Pearl Jam, o copo acabou por nos chegar às mãos. A Maggie pegou no jarro para encher o copo e depois brindámos um ao outro.

- E então? - disse ela. -Já te sentes melhor?

- Um bocadinho.

- O Minton arrasou-te?

- Sim, o Minton mais a polícia.

- Por causa daquele tipo, o Corliss? Eu já lhes tinha dito que o tipo era só tretas. Todos eles, aliás.

Não respondi e tentei agir como se aquilo que ela acabava de dizer não fosse nenhuma novidade e que já sabia quem era esse tal Corliss. Dei um longo gole de cerveja.

- Acho que não devia ter-lhes dito aquilo - continuou ela. - Mas a minha opinião não interessa. Se o Minton é tolo ao ponto de o usar, então vais acabar por arrancar a cabeça ao tipo, vais ver que sim.

Calculei que estivesse a falar de uma testemunha. Mas não tinha visto nada na minha análise do dossier de provas que referisse uma testemunha chamada Corliss. O facto de ser uma testemunha na qual ela não confiava fez-me crer que o tal Corliss era um denunciante. Muito provavelmente um bufo da prisão.

- Como sabes dele? - perguntei. - Foi o Minton que te falou dele?

- Não, fui eu que o mandei falar com o Minton. Não importa o que acho do que ele disse, o meu dever era mandá-lo falar com o procurador mais indicado e coube ao Minton avaliá-lo.

- Mas por que veio ele falar contigo? Franziu o rosto porque a resposta era tão óbvia.

- Porque fui eu que tratei da primeira audiência. O tipo estava lá na gaiola e pensava que o caso ainda era meu.

Agora compreendia. O Corliss era um nome começado por C. Na primeira audiência, o Roulet tinha sido o primeiro a ser chamado, por ordem não-alfabética. O Corliss certamente estava no grupo de detidos levados para o tribunal com o Roulet. Tinha-me visto a discutir com a Maggie por causa da caução do Roulet. E pensou que a Maggie ainda estava encarregada do caso. Deve ter-lhe feito uma chamada de denúncia.

- Quando é que ele te ligou? - perguntei.

- Já estou a contar-te de mais, Haller. Não vou...

- Diz-me só quando é que ele te ligou. Aquela audiência foi numa segunda-feira, portanto só pode ter sido ao final desse dia, não?

O caso não fora notícia nos jornais nem na televisão. Portanto, tinha curiosidade em saber onde o Corliss obtivera a informação que estava

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a tentar facultar à procuradoria. Tinha de partir do princípio de que

não viera do Roulet. Eu tinha-o assustado de tal modo que de certeza

se manteve sempre calado. Sem qualquer informação proveniente dos

meios de comunicação, o Corliss dispunha apenas dos dados que

conseguira reunir no tribunal quando foi lido o despacho da acusação

e eu e a Maggie discutíamos a caução.

Certamente fora isso. A Maggie tinha especificado em pormenor as lesões da Regina Campo enquanto tentava convencer o juiz a deter o Roulet sem caução. Se o Corliss esteve no tribunal, teria ouvido todos
os pormenores de que precisava para inventar uma confissão do meu cliente. Acrescente-se a isso a sua proximidade com o Roulet e nasce

assim um bufo de prisão.

- Sim, ligou-me na segunda-feira ao final da tarde - respondeu a Maggie.

- E o que te levou a pensar que era tudo inventado? O tipo já o ! tinha feito antes, não tinha? É um bufo profissional, certo? Estava a lançar o anzol e ela sabia-o. Abanou a cabeça. - Vais acabar por descobrir tudo o que precisas de saber durante a apresentação das provas. Podemos só estar aqui a beber um copo amigavelmente? Daqui a uma hora tenho de ir. Assenti com a cabeça, mas queria saber mais.

- Olha lá. Se calhar já bebeste o suficiente para este Dia de São Patrício. E se fôssemos comer alguma coisa?

- Para quê? Para continuares a fazer-me perguntas sobre o teu caso?

- Não, para podermos falar da nossa filha.

Semicerrou os olhos. - Passa-se alguma coisa?

- Que eu saiba, não. Mas quero falar-te dela.

- Aonde me vais levar a jantar?

Referi um restaurante italiano caro na Ventura, em Sherman Oaks,

e ficou contente. Era um lugar onde já tínhamos ido para celebrar

aniversários e a gravidez dela. O nosso apartamento, que continuava

na posse dela, ficava a poucos quarteirões na Dickens.

- Achas que conseguimos jantar numa hora? - perguntou.

- Se saírmos já e encomendarmos mal chegarmos.

- Combinado. Deixa-me só despedir-me rapidamente.

- Conduzo eu.

E ainda bem que era eu a conduzir, pois ela estava um pouco cambaleante. Tive de a amparar até ao Lincoln e ajudá-la a entrar.

Segui pelo sul de Van Nuys em direcção a Ventura. Segundos depois, a Maggie enfiou a mão para tirar de debaixo das coxas o invólucro de um CD que estava a incomodá-la. Era do Earl. Um dos CD que ele

A

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ouvia no leitor do carro quando eu estava no tribunal. Para poupar a bateria do iPod. Era um CD de um músico de dirty south chamado Ludacris.

- Bem me parecia que havia alguma coisa a incomodar-me - disse ela. - É isto que ouves quando vais a caminho dos tribunais?

- Por acaso não. E do Earl. Ultimamente tem sido ele a conduzir O Ludacris não me apela muito. Sou mais da velha escola. Tupac e Dre e gente assim.

Riu-se porque pensou que eu estava a brincar. Minutos depois seguíamos já pela rua estreita onde ficava o restaurante. Um empregado encarregou-se do carro e entrámos. A recepcionista reconheceu-nos e agiu como se só tivesse passado um par de semanas desde a última vez que ali estivéramos. A verdade é que se calhar ambos tínhamos estado ali recentemente, embora com outras companhias.

Pedi uma garrafa de Singe Shiraz e ambos escolhemos pratos de massa sem precisar de consultar o menu. Dispensámos saladas e entradas e disse ao empregado que estávamos com pressa. Verifiquei as horas: tínhamos ainda quarenta e cinco minutos. Tempo de sobra.

A cerveja começava a afectar cada vez mais a Maggie. Sorriu como se a pedir desculpa e disse-me que estava bêbeda. Maravilhosamente bêbada. Nunca ficava chata com a bebedeira. Ficava ainda mais doce. Deve ter sido por isso que acabámos por ter uma filha.

- Se calhar não devias tocar no vinho - disse-lhe. - Senão amanhã acordas com dores de cabeça.

Sorriu e retribuí-lhe o sorriso.

- E então, como tens andado, Haller? Sem rodeios.

- Óptimo. E tu? Sem rodeios também.

- Nunca estive melhor. Já superaste aquilo com a Lorna? 1

- Já, até ficámos amigos.

- E nós somos o quê?

- Não sei. Às vezes somos rivais, acho.

Abanou a cabeça. - Não podemos ser rivais se não podemos ficar juntos no mesmo caso. Além do mais, estou sempre pronta para te ajudar. Como aconteceu com este pulha do Corliss.

- Obrigado por teres tentado, mas mesmo assim o tipo fez estragos.

- Não tenho nenhum respeito por um procurador que usa bufos de prisão. E não importa que o teu cliente seja um pulha maior ainda.

- O Minton não me quis contar o que o Corliss afirma que o meu cliente disse.

- Estás a falar de quê?

- Só disse que tinha um bufo. Mas não quis revelar o que ele disse.

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- Não é justo.

Foi o que disse. Trata-se de provas, mas só vamos ter um juiz

depois da leitura do despacho da acusação na segunda-feira. Portanto, ainda não me posso queixar a ninguém por enquanto. E o Minton sabe-o bem. Tu já me tinhas avisado, o tipo não joga limpo.

Corou. Eu tinha carregado nos botões certos e agora estava zangada, para a Maggie, vencer com justiça era a única maneira de vencer. Era por isso que era uma procuradora competente.

Estávamos sentados num canto ao fundo do restaurante. A Maggje inclinou-se para mim, mas foi demasiado e demos uma cabeçada. Riu-se mas voltou a tentar. Falou baixinho.

- Ele disse que perguntou ao teu cliente por que tinha ido dentro e o teu cliente disse "Por ter dado a uma cabrona aquilo que merecia". Disse que o teu cliente lhe contou que a tinha atacado assim que ela abriu a porta.

Recostou-se num movimento muito rápido e sentiu vertigens.

- Estás bem?

- Estou, mas podemos mudar de assunto? Não quero falar mais de trabalho. Há muitos cabrões e é muito frustrante.

- Certo.

O empregado trouxe o vinho e a comida ao mesmo tempo. O vinho era bom e a comida tinha aquele agradável gosto caseiro. Começámos a comer em silêncio. Depois a Maggie lançou-me um golpe de imprevisto.

- Não sabias nada acerca do Corliss, pois não? Só soubeste quando comecei a dar à língua.

- Sabia que o Minton estava a esconder-me algo. Pensei que fosse um bufo de...

- Treta. Embebedaste-me para poderes descobrir o que eu sabia.

- Hum, acho que já estavas bêbeda quando me encontrei contigo. Ficou parada com o garfo por cima do prato, com um longo fio de

massa linguine com molho pesto pendurada. Apontou para mim com o garfo.

- Bem visto. O que querias falar da nossa filha?

Não estava à espera que se lembrasse disto. Encolhi os ombros.

- Acho que tinhas razão no que disseste na semana passada. Ela precisa que o pai esteja mais presente na sua vida.

- E?

- E quero estar mais presente. Gosto de a observar. Como quando a levei a ver aquele filme no sábado. Tive de me sentar quase de lado para poder observá-la enquanto via o filme. Observar-lhe os olhos percebes?

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- Bem-vindo ao clube.

- Mas não sei. Estava a pensar que podíamos marcar uma espécie de calendário, sabes? Tipo tornar isso uma coisa regular. Ela até podia ficar comigo algumas noites... quer dizer, se ela quisesse.

- Tens a certeza? Vindo de ti é uma novidade.

- É novidade porque dantes não sabia. Quando ela era mais pequena e não conseguia comunicar bem com ela, não sabia bem o que fazer. Sentia-me desajeitado. Agora não. Gosto de falar com ela. Estar com ela. Aprendo mais com ela do que ela comigo, podes ter a certeza.

De repente, senti a mão dela na minha perna por baixo da mesa.

- Isso é uma maravilha. Estou tão feliz por dizeres isso. Mas vamos avançar aos poucos. Não tens aparecido muito nestes últimos quatro anos e não quero que ela fique com muitas esperanças pois podes muito bem voltar a desaparecer.

- Percebo. Pode ser da maneira que quiseres. Só estou a dizer-te que vou estar presente. É uma promessa.

Sorriu, queria acreditar em mim. E fiz-me a mesma promessa que lhe tinha feito a ela.

- Óptimo, então - disse ela. - Estou contente por quereres fazer isso. Depois pegamos num calendário, marcamos algumas datas e

vemos como corre.

Tirou a mão e continuámos a comer em silêncio até acabarmos. Depois a Maggie voltou a surpreender-me.

- Acho que não estou em condições de conduzir o meu carro esta noite.

- Estava a pensar o mesmo.

- Mas tu pareces estar bem. Só bebeste meio copo lá no...

- Não, referia-me a ti. Mas não te preocupes, levo-te a casa.

- Obrigada.

Pousou a mão no meu pulso. - E depois trazes-me para ir buscar o carro de manhã?

Ofereceu-me um sorriso carinhoso. Olhei-a e tentei sondar esta mulher que quatro anos antes me tinha dito para sair da vida dela. Esta mulher que nunca consegui esquecer nem largar por completo e cuja rejeição me lançou para outro relacionamento que desde o início eu sabia que não ia resultar.

- Certo. Eu levo-te.

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Sexta-feira, 18 de Março

Quando acordei de manhã encontrei a minha filha de oito anos a dormir no meio de nós. A claridade escoava-se de uma janela alta. Quando vivia ali, aquela janela incomodava-me sempre porque deixava entrar muita luz logo pela manhã. Enquanto observava o padrão que a luz delineava no tecto inclinado, revi os acontecimentos da noite anterior e lembrei-me de que só tinha bebido um único copo da garrafa de vinho no restaurante. Recordava-me de ter levado a Maggie a casa e de encontrar a nossa filha a dormir profundamente - na sua própria

cama.

A Maggie tinha aberto uma garrafa de vinho depois de a babysitter ter saído. Quando esvaziámos a garrafa, deu-me a mão e levou-me para o quarto que tínhamos partilhado durante quatro anos. O que me incomodava agora era que a minha memória tinha absorvido aquele vinho todo e já não me lembrava se o regresso ao quarto tinha sido triunfante ou um fiasco. Também não me lembrava do que tínhamos dito, nem das possíveis promessas feitas.

- Isto não é justo para ela.

Virei a cabeça. A Maggie estava acordada, a olhar para o rosto angélico da nossa filha adormecida.

- O que é que não é justo?

- Ela acordar e ver-te aqui. Ainda fica com mais esperanças ou com uma ideia errada.

- Como é que ela veio parar aqui à cama?

- Trouxe-a eu. Ela estava a ter pesadelos.

- Costuma ter pesadelos?

- Quando dorme sozinha. No quarto dela.

- E por isso dorme aqui sempre? Algo no meu tom incomodou-a.

- Não comeces. Não fazes ideia do que é criar uma filha sozinha.

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- Eu sei. Não estou a dizer nada. Que queres que faça, então? QUe saia antes de ela acordar? Posso vestir-me e fingir que acabei de chegar para te levar ao carro.

- Não sei. Por agora é melhor vestires-te. Tenta não fazer barulho Saí da cama, agarrei na minha roupa e fui para o quarto de banho

dos hóspedes ao fundo do corredor. Estava perplexo com a mudança de comportamento da Maggie. Só podia ser do álcool, concluí. Ou talvez algo que eu fiz ou disse depois de entrarmos no apartamento. Vesti-me rapidamente e depois espreitei para dentro do quarto.

A Hayley ainda continuava a dormir. Parecia um anjo com asas com os braços estendidos em cima das duas almofadas. A Maggie estava a vestir uma T-shirt de mangas compridas e umas calças de fato de treino que já tinha na altura em que éramos casados. Entrei.

- Vou-me embora, mas depois volto - sussurrei-lhe.

- O quê? - disse ela numa voz irritada. - Pensava que ias levar-me ao carro.

- Mas pensei que não querias que ela acordasse e me visse aqui. Deixa-me ir tomar um café ou alguma coisa e volto daqui a uma hora. Podemos ir todos juntos buscar o teu carro e depois levo a Hayley à escola. Até vou lá buscá-la depois, se quiseres. Hoje estou livre.

- Assim sem mais nem menos? Vais começar a levá-la à escola agora?

- É minha filha. Não te lembras de nada do que te disse ontem à noite?

Cerrou os maxilares com força e a experiência dizia-me que vinha aí artilharia pesada. Havia algo que estava a escapar-me. A Maggie mudara de atitude.

- Bem, sim, mas pensei que estavas a dizer isso por dizer.

- Como assim?

- Pensei que só estavas interessado em arrancar-me informações por causa do teu cliente ou que querias simplesmente levar-me para a cama. Não sei.

Ri-me e abanei a cabeça. As fantasias que eu tinha acalentado acerca de nós na noite anterior desvaneceram-se rapidamente.

- Não fui eu que tive de carregar alguém pelas escadas acima até ao quarto - disse-lhe.

- Oh, então era mesmo por causa do teu cliente. Querias descobrir o que eu sabia do teu cliente.

Limitei-me a olhá-la durante alguns segundos.

- Nunca consigo ganhar-te, pois não?

- Não quando vens com manhas, quando te portas como um advogado de defesa criminal.

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A Maggie levava sempre a melhor neste jogo de arremesso de palavras afiadas como facas. A verdade era que estava grato por haver Um conflito de interesses entre nós que me impedia de a enfrentar em tribunal. Ao longo dos anos, algumas pessoas - a maioria profissionais de defesa que sofreram às mãos dela - chegaram ao ponto de dizer que era por essa razão que eu tinha casado com ela. Para evitar confrontos profissionais com ela.

- Ouve. Volto daqui a uma hora. Se queres que te dê boleia até ao carro que não pudeste conduzir porque estavas muito bêbeda ontem à noite, então prepara-te e põe a Hayley pronta.

- Não faz mal. Vamos de táxi. - Eu levo-te lá.

- Não, vamos de táxi. E fala mais baixo.

Olhei para a minha filha, ainda a dormir apesar da esgrima verbal dos pais.

- E ela? Queres que a leve amanhã ou no domingo?

- Não sei. Liga-me amanhã.

- Pronto. Adeus.

Saí. Caminhei um quarteirão e meio pela Dickens abaixo até encontrar o Lincoln mal estacionado contra o passeio. Tinha uma multa no pára-brisas a notificar-me por ter estacionado junto de uma boca-de-incêndio. Entrei no carro e atirei a multa para o assento de trás. Depois tratava disso quando voltasse a sentar-me atrás. Não ia fazer como o Louis Roulet, que deixava as multas acumular. Havia um condado inteiro de polícias mortinhos por me prenderem à mínima infracção.

As discussões deixavam-me sempre com fome e apercebi-me que estava esfomeado. Voltei pela Ventura em direcção à Studio City. Era cedo, especialmente na manhã depois do Dia de São Patrício, e fui ao DuPar's perto de Laurel Canyon Boulevard antes que ficasse cheio de gente. Sentei-me numa cabina ao fundo e pedi panquecas e café. Tentei esquecer a Maggie enquanto tirava da pasta um bloco de apontamentos e os dossiers sobre o Roulet.

Antes de examinar os dossiers liguei ao Raul Levin para a sua casa em Glendale. Acordei-o.

- Tenho uma coisa para fazeres.

- Não pode esperar até segunda-feira? Cheguei a casa há um par de horas. Estava a pensar prolongar o fim-de-semana.

- Não, não pode esperar e deves-me uma por causa de ontem. Além do mais, nem sequer és irlandês. Preciso que verifiques uma pessoa.

- Está bem, espera só um segundo.

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Ouvi-o pousar o telefone provavelmente para ir buscar uma caneta e papel para apontar.

- Pronto, diz lá.

- Um tipo de nome Corliss, que foi chamado na audiência logo a seguir ao Roulet no dia sete. Fazia parte do primeiro grupo de arguidos e também estava lá na gaiola. O tipo anda a tentar denunciar o Roulet e quero descobrir tudo o que há sobre ele para poder enfiar-lhe a picha na lama.

- Tens o primeiro nome dele?

- Não.

- Sabes por que foi dentro?

- Não, e nem sequer sei se ainda continua preso.

- Obrigadinho pela ajuda. E que anda ele a dizer que o Roulet lhe contou?

- Que o Roulet espancou uma puta que já estava a pedi-las. Ou algo do género.

- Okay, tens mais alguma coisa?

- Só isso, mas palpita-me que é um bufo profissional. Descobre se já tramou mais alguém, pode haver alguma coisa que eu possa usar. Pesquisa tudo a fundo em relação a este tipo. Geralmente os investigadores da procuradoria nunca pesquisam a fundo. Têm medo do que possam vir a descobrir. Preferem continuar na ignorância.

- Okay, eu trato disso.

- Depois liga-me quando souberes.

Desliguei no momento em que me trouxeram as panquecas. Reguei-as com uma generosa dose de xarope e comecei a comer enquanto analisava o dossier com as provas do estado.

A única surpresa continuava a ser o relatório da arma. Tudo o resto, à excepção das fotos a cores, já tinha visto no dossier que o Levin me tinha dado.

Peguei no dossier do Levin. Como seria de esperar de um investigador contratado, o Levin tinha recheado o dossier com tudo o que tinha encontrado na rede que tinha lançado. Até tinha cópias das multas de estacionamento e por excesso de velocidade que o Roulet acumulara e deixara por pagar nos anos mais recentes. De início fiquei irritado, pois havia muita coisa para ver até poder definir o que seria relevante para a defesa do Roulet.

Estava quase a terminar a leitura quando a empregada passou pela minha cabina com uma cafeteira para ver se .eu queria mais café. Estremeceu quando viu a cara espancada da Reggie Campo numa das fotos a cores que eu tinha pousado ao lado dos dossiers.

- Lamento que tenha visto - disse-lhe.

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Tapei a foto com um dos dossiers e chamei-a. Aproximou-se com hesitação e serviu-me mais café.

- É trabalho - disse-lhe, à laia de explicação. - Não era minha intenção assustá-la.

- Só lhe posso dizer que espero que apanhe o cabrão que fez isso. Anuí. Pensou que eu era polícia. Provavelmente porque eu já não

fazia a barba há vinte e quatro horas.

- Estou a trabalhar para isso.

Afastou-se e peguei no dossier. Ao tirar a foto da Reggie que estava por baixo, vi primeiro o lado ileso do rosto dela. O lado esquerdo. Havia algo ali e segurei na foto de modo a ver só a metade ilesa do rosto. Voltei a sentir a mesma onda de familiaridade, mas mesmo assim não consegui identificar o que era. Sabia que esta mulher se parecia com outra mulher que eu conhecia pelo menos ou que me era familiar. Mas quem?

Também sabia que aquilo ia continuar a incomodar-me até conseguir descobrir. Reflecti durante um bom bocado enquanto bebia café e tamborilava com os dedos na mesa. E foi então que resolvi tentar uma coisa. Peguei na foto do rosto da Reggie Campo e fiz-lhe uma dobra ao comprido pelo meio, ficando do lado direito a parte lesionada do rosto e do esquerdo a parte ilesa. Depois meti a foto dobrada no bolso do casaco e levantei-me para ir ao quarto de banho.

O quarto de banho estava vazio. Aproximei-me rapidamente do lavatório e peguei na foto dobrada. Inclinei-me e segurei a dobra da foto contra o espelho com o lado ileso da Reggie Campo virado para mim. O espelho reflectiu a imagem, mostrando um rosto inteiro e ileso. Olhei-a durante muito tempo e foi então que descobri por que razão a cara me era familiar.

- Martha Renteria - disse baixinho.

A porta do quarto de banho abriu-se de repente e entraram dois adolescentes ruidosos, já de mãos agarradas aos fechos das calças. Enfiei rapidamente a foto no bolso. Saí e ouvi-os desatar às gargalhadas lá dentro. Não imagino o que eles pensavam que eu estava a fazer.

Reuni as fotos e os dossiers e guardei tudo na pasta. Deixei dinheiro mais do que suficiente para pagar a conta e a gorjeta e saí apressado. Parecia que estava a ter uma estranha reacção à comida. Corei e senti calor por baixo do colarinho. Quase julguei ouvir o coração a bater descompassado por baixo da camisa.

Quinze minutos depois, estacionei à frente de um armazém de depósito na Oxnard Avenue na zona norte de Hollywood, onde tinha um espaço de trinta metros quadrados por trás da porta de uma garagem. O dono é um homem cujo filho defendi num caso de posse

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de droga, conseguindo tirá-lo da prisão para uma intervenção pré-julgamento. Em vez dos honorários, o pai disponibilizou-me aquele espaço grátis durante um ano. Mas como o filho toxicodependente não parava de se meter em sarilhos, continuei a ter o armazém de borla durante anos.

Era ali que guardava os caixotes com os dossiers de casos encerrados bem como dois outros Lincolns. No ano passado, tinha solvência e comprei quatro Lincolns de uma vez por causa da taxa de desconto para compra de uma frota. O plano era usar cada um até o conta-quilómetros atingir os sessenta mil e depois despachá-los para algum serviço de limusinas que os usasse para transportar passageiros. Até agora o plano estava a resultar. Ainda ia no segundo Lincoln e em breve seria altura de começar a usar o terceiro.

Abri a porta e fui à área dos arquivos onde guardava os caixotes com os dossiers ordenados por ano em prateleiras industriais. Fui à secção com os casos dos dois anos anteriores e corri o dedo pela lista com os nomes de clientes escritos num dos lados de cada caixote até encontrar o nome Jesus Menendez.

Peguei no caixote e abri-o. O caso Menendez durara pouco tempo pois ele acabara por aceitar o acordo de culpa proposto pela procuradoria. Por conseguinte, havia apenas quatro dossiers, que continham maioritariamente cópias dos documentos relacionados com a investigação da polícia. Folheei os dossiers à procura de fotografias e encontrei o que queria no terceiro dossier.

A Martha Renteria era a mulher que o Jesus Menendez confessara ter assassinado. Era uma dançarina de vinte e quatro anos detentora de uma beleza bronzeada e um grande sorriso de dentes brancos. Tinha sido esfaqueada até à morte no seu apartamento em Panorama City. Tinha sido espancada antes de ser esfaqueada e as lesões faciais eram no lado esquerdo da cara, ao contrário da Reggie Campo. Encontrei um grande plano do rosto que constava do relatório da autópsia. Dobrei também esta foto pelo meio e ao comprido, ficando de um lado a face lesionada e do outro a face ilesa.

Peguei nas duas fotos dobradas, uma da Reggie e outra da Martha, e uni-as pelas dobras. Tirando o facto de uma delas estar morta e a outra não, aqueles meios rostos quase encaixavam na perfeição, raios. As duas mulheres eram tão parecidas que poderiam ter passado por

irmãs.

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O Jesus Menendez estava a cumprir prisão perpétua em San Quentin porque tinha limpado o pénis a uma toalha num quarto de banho. Por mais que se analisasse o caso, tudo se resumia verdadeiramente a isso. A toalha fora o seu maior erro.

Sentado de pernas estendidas no chão de betão do meu armazém, com o conteúdo dos dossiers do caso Menendez espalhado em leque à minha volta, voltei a recordar-me dos factos do caso em que tinha trabalhado dois anos antes. O Menendez foi condenado pelo homicídio da Martha Renteria, depois de a ter seguido desde um clube de strip chamado The Cobra Room na zona leste de Hollywood até à casa dela em Panorama City. Violou-a e depois esfaqueou-a mais de cinquenta vezes, fazendo-a perder tanto sangue ao ponto de encharcar a cama e formar uma poça no chão de madeira por baixo. Até que um dia o sangue escoou pelas fendas no chão e começou a pingar do tecto no apartamento de baixo. Foi nessa altura que chamaram a polícia.

O caso contra o Menendez era formidável mas circunstancial. Também cometera o erro de confessar à polícia - antes de ser eu a defender o caso - que tinha estado no apartamento dela na noite do homicídio. Mas foi a análise do ADN na toalha felpuda cor-de-rosa no quarto de banho da vítima que acabou por denunciá-lo. Era uma prova que não podia ser neutralizada. Era um prato a girar que não podia ser derrubado. Os profissionais da defesa chamam a uma prova desse tipo um icebergue porque é essa prova que faz afundar o navio.

O homicídio Menendez era aquilo a que eu chamaria um "caudilho perdido". O Menendez não tinha dinheiro para pagar o tempo e o esforço necessários para estabelecer uma defesa sólida, mas o caso tinha colhido uma publicidade substancial e estava disposto a trocar o meu tempo e trabalho por publicidade grátis. O Menendez escolhera-me porque, alguns meses antes da sua detenção, eu defendera com êxito o seu irmão mais velho, Fernando, num caso de heroína. Pelo menos na

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minha opinião, tinha-o defendido com êxito. Consegui que a acusação de posse e venda fosse reduzida para simples posse. Assim, em vez de ir preso saiu em liberdade condicional.

Estes bons esforços levaram o Fernando a ligar-me na noite em que o Jesus tinha sido detido pelo homicídio da Martha Renteria. O Jesus decidira falar voluntariamente com os detectives na Divisão de Van Nuys. Todos os canais de televisão da cidade mostraram um desenho da cara dele, mas a difusão maior era nos canais de língua espanhola. Tinha contado à família que ia falar com os detectives para esclarecer as coisas e que voltaria. Como nunca mais voltava, o irmão ligou-me. Disse-lhe que a lição a tirar dali era nunca falar com os detectives para esclarecer as coisas sem ter consultado antes um advogado.

Já tinha visto inúmeras reportagens televisivas sobre o homicídio da exótica dançarina, que era apelidada de Renteria, quando o irmão do Menendez me ligou. As reportagens incluíam o desenho do homem latino que supostamente a tinha seguido desde o clube. Sabia que o interesse dos meios de comunicação antes da detenção significava que o caso provavelmente continuaria a ser noticiado, e assim também eu conseguiria alguma notoriedade. Aceitei o caso como se fosse uma aposta. De borla. Pró bono. Para o bem do sistema. Além do mais, há poucos casos de homicídio, todos temporalmente distanciados uns dos outros. Aceito-os sempre que posso. O Menendez foi o décimo segundo arguido acusado de homicídio que defendi. Os primeiros onze ainda continuavam na prisão, mas nenhum deles estava no corredor da morte. Na minha opinião, era um bom resultado.

Quando o encontrei na cela de detenção na Divisão de Van Nuys, o Menendez já tinha feito um depoimento à polícia. Disse aos detectives Howard Kurlen e Don Crafton que não tinha seguido a Renteria, como foi anunciado nos noticiários, mas sim que ela o tinha convidado a ir ao apartamento. Explicou que nesse dia tinha ganho mil e cem dólares na lotaria da Califórnia e que decidira gastar algum desse dinheiro em troca da atenção da Renteria. Disse que tinham tido sexo consentido no apartamento dela - embora não tivesse usado essas palavras - e que quando saiu ela estava viva e com quinhentos dólares a mais na carteira.

As brechas que o Kurlen e o Crafton abriram na história do Menendez eram muitas. Antes do mais, não houvera nenhum sorteio de lotaria nesse dia nem no dia anterior ao homicídio e o minimercado do bairro onde ele disse que tinha trocado o bilhete premiado por dinheiro não tinha nenhum registo de ter pago um prémio de mil e cem dólares ao Menendez nem a ninguém. Além disso, no apartamento da vítima foram encontrados apenas oitenta dólares. E por

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último, o relatório da autópsia indicava que equimoses e outras lesões no interior da vagina da vítima excluíam o alegado sexo consentido. O perito médico concluiu que ela tinha sido brutalmente violada.

No apartamento foram encontradas apenas as impressões digitais da vítima. Não foi encontrado nenhum sémen no corpo da vítima, o que indicava que o violador usara preservativo ou que não tinha ejaculado durante a violação. Mas no quarto de banho do quarto onde o ataque e o homicídio ocorreram, um investigador da cena do crime munido de uma luz negra encontrou uma pequena quantidade de sémen numa toalha cor-de-rosa pendurada ao lado da sanita. A teoria divulgada foi que, depois da violação e do homicídio, o assassino entrara no quarto de banho para tirar o preservativo e o deitara pela sanita abaixo. Depois limpara o pénis à toalha e voltara a pendurá-la. Quando limpou tudo depois do crime, nomeadamente as superfícies onde poderia ter tocado, esqueceu-se da toalha.

Os investigadores mantiveram em segredo a descoberta do ADN e a teoria daí resultante nunca chegou ao conhecimento dos meios de comunicação. Iria tornar-se a carta de trunfo do Kurlen e do Crafton.

Com base nas mentiras do Menendez e na sua confissão de que estivera no apartamento da vítima, acabaram por prendê-lo por suspeita de homicídio sem direito a caução. Os detectives conseguiram um mandado de busca, colheram amostras de saliva do Menendez e enviaram-nas para o laboratório para tipagem do ADN e comparação com o ADN colhido na toalha.

Foi nessa altura que entrei no caso. Como se costuma dizer na minha profissão, nessa altura o Titanic já tinha zarpado do cais. O icebergue estava no mar alto à espera. O Menendez tinha agravado a sua situação ao falar - e mentir - aos detectives. Mesmo assim, e ainda desconhecedor do processo de comparação do ADN já em curso, vi um vislumbre de esperança para o Jesus Menendez. Havia que preparar bem o caso para poder neutralizar o depoimento feito aos detectives - o qual, aliás, veio a tornar-se uma confissão completa quando os meios de comunicação noticiaram o sucedido. O Menendez era de origem mexicana e viera para os EUA aos oito anos. A família só falava espanhol em casa e tinha frequentado uma escola para hispanófonos até abandonar o ensino aos catorze anos. Falava um inglês rudimentar e os seus conhecimentos da escrita eram ainda mais rudimentares do que os da fala. O Kurlen e o Crafton nem se tinham dado ao trabalho de arranjar um intérprete e, segundo a gravação do depoimento, nunca chegaram a perguntar ao Menendez se queria um.

Foi esta brecha que tentei furar. O depoimento era a base de fundação do caso contra o Menendez. Era a travessa a girar. Se conseguisse

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derrubá-la, a maioria dos outros pratos cairiam também. O meu plano era atacar o depoimento como uma violação dos direitos do Menendez porque não teria compreendido os direitos constitucionais que o Kurlen lhe tinha lido nem o documento onde constavam esses direitos em inglês, que ele tinha assinado a pedido dos detectives.

Era esta a situação duas semanas depois da detenção do Menendez até que chegaram os resultados do laboratório com uma identificação positiva entre o ADN dele e aquele que tinha sido encontrado na toalha no quarto de banho da vítima. Depois disso, a procuradoria deixou de precisar do depoimento e das confissões dele. O ADN implicava o Menendez directamente numa violação brutal e num homicídio. Talvez eu pudesse tentar uma defesa à O. J. Simpson5 atacar a credibilidade da comparação do ADN. Mas a procuradoria e os técnicos do laboratório tinham aprendido bem a lição com esse fracasso e era improvável que eu conseguisse convencer um júri com base nessa contestação. O ADN era o icebergue e a velocidade do navio impossibilitava que se pudesse manobrá-lo a tempo de contornar

o obstáculo.

O próprio procurador distrital revelou os resultados da comparação do ADN numa conferência de imprensa e anunciou que o seu gabinete iria pedir a pena de morte para o Menendez. Acrescentou ainda que os detectives tambén tinham localizado três testemunhas oculares que tinham visto o Menendez atirar uma faca para as águas do rio de Los Angeles. E disse que tinham procurado a arma no rio, mas que não fora encontrada. Mesmo assim, considerou que os relatos das testemunhas eram sólidos eram três colegas de quarto do Menendez.

Baseado no caso da procuradoria e na ameaça da pena de morte, concluí que uma defesa à O. J. Simpson seria demasiado arriscada. Usando o Fernando Menendez como meu intérprete, fui à prisão de Van Nuys e disse ao Jesus que a única esperança era um acordo que a procuradoria me tinha proposto. Se o Menendez se declarasse culpado do homicídio, podia conseguir-lhe prisão perpétua com possibilidade de liberdade condicional. Disse-lhe que estaria fora da prisão daí a quinze anos. E disse-lhe que era a única hipótese.

Foi uma discussão muito emotiva. Os dois irmãos choraram e imploraram-me que encontrasse outra saída. O Jesus insistia que não tinha matado a Martha Renteria. Disse que tinha mentido aos detectives para proteger o Fernando, o qual lhe tinha dado o dinheiro depois

5 Estrela do futebol americano, comentador desportivo e actor. Foi absolvido do homicídio da sua multa depois de um controverso julgamento em 1995 (mas depois foi considerado culpado em julgamento civil em 1997. (NT)

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um bom mês de vendas de heroína. Pensava que revelar a geneidade do irmão poderia resultar numa investigação ao Fernando e possível detenção.

Ambos os irmãos insistiram para que eu investigasse o caso. O Jesus disse-me que a Renteria tivera mais pretendentes nessa noite no The Cobra Room e que lhe tinha pago muito dinheiro porque havia mais gente a querer os serviços dela.

O Jesus acabou por me dizer que era verdade que tinha atirado uma faca ao rio porque estava assustado. Não era a arma do crime. Não passava de uma faca que usava em trabalhos que fazia em Pacoima. Mas como se parecia com a faca que tinham descrito no canal hispânico, decidira livrar-se dela antes de ir à polícia esclarecer as coisas.

Ouvi-os e depois disse-lhes que nenhuma dessas explicações importava. A única coisa que importava era o ADN. O Jesus tinha uma escolha. Podia aceitar os quinze anos de cadeia ou ir a julgamento e arriscar-se à pena de morte ou prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional. Relembrei-lhe que ainda era um homem novo. Que poderia estar cá fora por volta dos quarenta. Que ainda podia refazer a vida.

Saí desse encontro na prisão com o consentimento do Jesus para aceitar o acordo. Depois disso, só o vi mais uma vez, na audiência da sua declaração de culpa e condenação quando estava ao lado dele perante o juiz e o orientei durante a confissão de culpa. Foi enviado para a Baía dos Pelicanos e depois para San Quentin. Vim a saber posteriormente através do canal de rumores dos tribunais que o irmão tinha sido apanhado outra vez - desta feita, por consumo de heroína. Mas não me telefonou. Contratou outro advogado e eu já sabia porquê.

Ainda sentado no chão do armazém, abri o relatório da autópsia da Martha Renteria. Estava à procura de duas coisas específicas que provavelmente ninguém analisara com a devida atenção antes. O caso estava encerrado. Era um arquivo morto. Já ninguém se importava mais.

A primeira dessas coisas era a parte do relatório que referia as cinquenta e três facadas que a Renteria sofrera durante o ataque na cama. Sob o cabeçalho "Perfil dos Ferimentos", a arma desconhecida era descrita como uma lâmina com cerca de 12,7 cm de comprimento e 2,5 cm de largura. A espessura indicada era de 3,17 mm. O relatório também referia a ocorrência de cortes irregulares na pele à superfície dos ferimentos da vítima, o que indicava que a ponta da lâmina tinha um gume irregular, ou seja, era uma arma destinada a infligir lesões

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tanto ao entrar como ao sair. Tudo parecia indicar que se tratava de uma navalha de lâmina móvel.

Havia também no relatório um esboço dos contornos de uma lâmina sem o cabo. Pareceu-me familiar. Tirei da pasta o dossier das provas do estado com a foto da navalha com as iniciais do Louis Roulet gravadas na lâmina. Comparei-a com o desenho do relatório da autópsia. A correspondência não era exacta, mas estava lá perto.

Peguei depois no relatório de análise da arma recuperada e li o mesmo parágrafo que tinha lido durante a reunião no gabinete do Roulet no dia anterior. A navalha era descrita como uma Black Ninja feita por encomenda, com lâmina de 12,7 cm, 2,5 cm de largura e 3,17 mm de espessura - as mesmas medidas da faca desconhecida usada para matar a Martha Renteria. A faca que o Jesus Menendez supostamente atirara para o rio de Los Angeles.

Sabia que facas com essas medidas não eram artigos únicos. Não havia nada de conclusivo, mas o instinto dizia-me que havia ali algo. Tentei não me deixar distrair pela ardência que comecei a sentir no peito e na garganta. Tentei concentrar-me e prossegui. Precisava de verificar um ferimento específico, mas não queria ver as fotos que constavam do relatório, as fotos que documentavam com frieza o corpo violentamente estuprado da Martha Renteria. Em vez disso, peguei na página com os dois perfis genéricos do corpo, um da parte da frente e outro da parte de trás. O perito médico tinha assinalado e numerado os ferimentos. Mas apenas no perfil da parte da frente. Pontinhos e números de 1 a 53. Parecia um macabro quebra-cabeças de união de pontinhos e não tinha dúvidas de que o Kurlen, ou outro detective à procura de algo nos dias antes de o Menendez se apresentar à polícia, os tinha unido na esperança de o assassino ter deixado as suas iniciais ou alguma pista bizarra.

Examinei o perfil do pescoço e vi dois pontinhos de ambos os lados. Com os números 1 e 2. Virei a página e vi a lista das descrições individuais dos ferimentos.

A descrição do ferimento número 1 dizia: Punção superficial na parte inferior direita do pescoço com níveis de histamina ante-mortem, indicativos de ferimento coercivo.

A descrição do ferimento número 2 dizia: Punção superficial na parte inferior esquerda do pescoço com níveis de histamina ante-mortem, indicativos de ferimento coercivo. Esta punção mede 1 cm mais do que o ferimento n." 1.

As descrições significavam que os ferimentos tinham sido infligidos enquanto a Martha Renteria ainda estava viva. E talvez por isso tenham sido os primeiros ferimentos a ser listados e descritos. O perito médico dissera que era provável que os ferimentos tivessem sido feitos por

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uma faca encostada ao pescoço da vítima de modo coercivo. Era o método do assassino para a controlar.

Voltei ao dossier de provas do estado do caso Regina Campo. Peguei nas fotos da Regina e no relatório do exame médico feito no Centro médico de Holy Cross. A Regina tinha um pequeno ferimento de punção na parte inferior esquerda do pescoço e nenhum ferimento na parte direita. De seguida, analisei o seu depoimento à polícia até encontrar a parte em que descrevia como recebera aquele ferimento. Afirmava que o atacante a levantou do chão da sala de estar e lhe disse para ir para o quarto. Controlava-a por trás, agarrando-lhe a alça do soutien com a mão direita e segurando na mão esquerda a ponta da navalha contra o lado esquerdo do pescoço. Quando o sentiu descansar momentaneamente o pulso em cima do ombro, virou-se de repente e empurrou-o para trás, derrubando-o contra um grande vaso que havia no chão, ficando assim livre para fugir.

Achei que compreendia agora por que razão a Reggie Campo só tinha um ferimento no pescoço, em comparação com os dois que a Martha Renteria recebera. Se o atacante da Reggie a tivesse levado para o quarto e a obrigasse a deitar-se na cama, teria ficado de frente para ela quando se pusesse em cima dela. Se mantivesse a navalha na mesma mão - a esquerda -, a lâmina teria sido deslocada para o outro lado do pescoço. Quando a encontraram morta na cama, tinha punções coercivas dos dois lados do pescoço.

Pus os dossiers de lado e fiquei ali sentado durante muito tempo, de pernas cruzadas no chão e sem me mexer. Os meus pensamentos eram como sussurros na escuridão interior. Visualizei a imagem do rosto em lágrimas do Jesus Menendez quando me disse que estava inocente - quando me suplicou que acreditasse nele - e lhe respondi que devia confessar-se culpado. Estava a dispensar-lhe mais do que um aconselhamento jurídico. Ele não tinha dinheiro, nem defesa possível nem qualquer hipótese - por essa ordem -, e disse-lhe que não lhe restava outra escolha. E embora a decisão tivesse sido sua e tivessem sido os seus lábios a proferir a palavra culpado perante o juiz, parecia-me agora que tinha sido eu, o seu próprio advogado, a segurar na navalha do sistema contra o pescoço dele para o forçar a confessar-se.

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Saí do gigantesco edifício de aluguer de carros no Aeroporto Internacional de San Francisco à uma da tarde e segui para norte da cidade. O Lincoln que me deram cheirava a tabaco: o último utente devia ser fumador, ou talvez tivesse sido o empregado que o limpou.

Não sei orientar-me em San Francisco. Só sei conduzir pelo meio da cidade. Três a quatro vezes por ano preciso de ir à prisão junto da baía, em San Quentin, para falar com clientes ou testemunhas. Sei lá chegar, na boa. Mas se me perguntarem como se vai para Coit Tower ou Fisherman's Wharf, então temos um problema.

Eram quase duas horas quando atravessei a cidade e a ponte Golden Gate. Chegaria a horas. Sabia que as visitas terminavam às quatro.

San Quentin tem mais de um século e é como se a alma de cada preso que viveu ou morreu ali tivesse sido gravada nos muros escuros. Era a prisão mais sinistra que já tinha visitado e já estive em todas as prisões da Califórnia.

Revistaram-me a pasta e fizeram-me passar pelo detector de metais. Depois revistaram-me ainda com um detector portátil para segurança extra. Mas nem assim me deixaram contactar directamente com o Menendez, porque não tinha feito a marcação oficial nos cinco dias anteriores como era de lei. Sendo assim, puseram-me numa sala sem contacto: uma parede de plexiglas ao meio, com buracos do tamanho de moedas de um cêntimo por onde podia falar. Mostrei ao guarda as fotos que queria dar ao Menendez e disse-me que teria de lhas mostrar através do plexiglas. Sentei-me, pousei as fotos ao lado e não tive de esperar muito até o Menendez aparecer do outro lado do painel.

Há dois anos atrás, quando o tinham enviado para a prisão, o Jesus Menendez era um homem novo. Agora parecia ter quarenta anos, a mesma idade que eu lhe disse que teria quando saísse da prisão se aceitasse declarar-se culpado. Olhou-me com olhos mortos como as pedras de gravilha do parque de estacionamento. Sentou-se com relutância. Eu já deixara de ter grande utilidade para ele.

Dispensámos as cortesias e fui directo ao assunto.

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-- Ouve, Jesus, não preciso de te perguntar como tens passado. Já sei a resposta. Mas surgiu uma coisa que pode vir a afectar o teu caso. Preciso de te perguntar algumas coisas. Estás a compreender-me?

- Perguntas agora porquê, pá? Dantes não tinhas perguntas.

- Tens razão. Devia ter-te feito mais perguntas nessa altura e não o fiz. Mas nessa altura ainda não sabia o que sei agora. Ou, pelo menos, aquilo que acho que sei agora. Estou a tentar endireitar as coisas.

- O que é que queres?

- Quero que me fales daquela noite no The Cobra Room. Encolheu os ombros. - A gaja estava lá e falei. Disse-me p'rá seguir

'té casa.

Voltou a encolher os ombros.

- Fui lá a casa dela, pá, mas não a matei.

- Volta ao clube. Disseste que tiveste de a impressionar, que tiveste de lhe mostrar o dinheiro e que gastaste mais do que pretendias. Lembras-te?

- Sim.

- Disseste que havia lá outro tipo a tentar sacá-la. Lembras-te disso?

- Sim, ele 'tava p'ra lá a falar. Ela falou com ele mas voltou p'ra mim.

- Tiveste de lhe pagar mais, não foi?

- Foi.

- Okay, lembras-te desse tipo? Se visses uma foto dele achas que te lembravas?

- O gajo que 'tava lá a armar-se? Acho que lembro.

- Okay.

Tirei da pasta seis fotos sinaléticas que incluíam a foto da detenção do Louis Ross Roulet e de outros cinco homens cujas fotos tinha seleccionado dos meus caixotes de arquivo. Levantei-me e encostei uma a uma ao painel de vidro, segurando-as depois com os dedos esticados contra o vidro. O Menendez levantou-se e olhou-as com atenção.

Quase de imediato, uma voz atroou num altifalante no tecto.

"Afastem-se do vidro. Afastem-se ambos do vidro e permaneçam sentados senão a entrevista termina já.

Abanei a cabeça e praguejei. Reuni as fotos e sentei-me. O Menendez também se sentou.

- Guarda! - chamei alto.

Olhei para o Menendez e esperei. O guarda não apareceu.

- Guarda! - voltei a chamar, mais alto. A porta abriu-se e o guarda entrou.

- Já terminou?

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- Não. Preciso que ele veja estas fotos. Mostrei-lhas.

- Mostre-lhas através do vidro. Não está autorizado a receber nada de si.

- Mas vou voltar a levá-las comigo.

- Não importa. Não lhe pode dar nada.

- Mas se não o deixa aproximar-se do vidro, como vai poder vê-las?

- Problema seu.

Rendi-me. - Muito bem. Pode ficar aqui só um segundo?

- Para quê?

- Quero que veja isto. Vou mostrar ao detido as fotos e se ele fizer uma identificação positiva quero que seja testemunha disso.

- Não me meta nas suas tretas. Saiu e fechou a porta.

- Que raios! - suspirei. Olhei para o Menendez.

- Bem, Jesus, vou-te mostrar na mesma. Vê se consegues reconhecer alguém daí.

Segurei nas fotos uma a uma, a cerca de trinta centímetros do vidro. O Menendez inclinou-se para a frente. Mostrei-lhe as cinco primeiras, ele olhou, reflectiu e depois abanou a cabeça. Mas vi-lhe os olhos brilhar quando lhe mostrei a sexta. Afinal, sempre parecia haver vida naqueles olhos.

- É esse - disse. - É ele.

Virei a foto para mim para ter a certeza. Era o Roulet.

- Eu lembro-me - disse o Menendez. - É ele.

- Tens a certeza? Assentiu com a cabeça.

- O que te faz ter a certeza?

- Porque sei. Passo aqui o tempo todo a pensar nessa noite. Anuí.

- Quem é esse homem? - perguntou.

- Não te posso dizer já. Mas quero que saibas que estou a tentar tirar-te daqui.

- E o que faço?

- O mesmo que tens feito. Fica quietinho, sê cuidadoso e mantém-te seguro.

- Seguro?

- Eu sei. Mas falo contigo assim que tiver alguma coisa. Estou a tentar tirar-te daqui, Jesus, mas pode demorar algum tempo.

- Foste tu que me disseste p'ra vir p'rá prisão.

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- Na altura achava que não havia outra escolha.

- E por que nunca me perguntaste se matei aquela rapariga? Tu, o advogado, pá. Não quiseste saber. Não quiseste ouvir.

Levantei-me e chamei alto pelo guarda. E respondi então à pergunta do Menendez.

- Não precisava de saber a resposta a essa pergunta para te defender legalmente. Se perguntasse aos meus clientes se eram culpados dos crimes de que eram acusados, pouquíssimos me teriam dito a verdade. E se dissessem, talvez não pudesse defendê-los com todas as minhas capacidades.

O guarda abriu a porta e olhou para mim.

- Já terminei - disse-lhe.

Verifiquei as horas. Se tivesse sorte com o trânsito, talvez pudesse apanhar ainda o comboio das cinco horas de regresso a Burbank. Ou o das seis, o mais tardar. Enfiei as fotos na pasta. Olhei para o Menendez, ainda sentado na cadeira do outro lado do vidro.

- Posso pousar a mão no vidro? - perguntei ao guarda.

- Seja rápido.

Encostei a mão ao vidro, de dedos estendidos. Esperei que o Menendez fizesse o mesmo.

O Menendez levantou-se, inclinou-se e cuspiu no vidro onde estava a minha mão.

- Nunca m'apertaste a mão - disse. - Não aperto a tua. Anuí. Compreendia a atitude dele.

O guarda fez um trejeito e disse-me para sair. Dez minutos depois, estava fora da prisão.

Tinha viajado quase seiscentos quilómetros para uma conversa de cinco minutos, mas esses minutos eram devastadores. Acho que o ponto mais baixo da minha vida e da minha carreira profissional aconteceu uma hora depois, quando me encontrava no comboio de carros alugados que iam ser devolvidos ao terminal da United. Como já não precisava de me concentrar na condução nem em voltar a tempo, só me restava pensar no caso. Nos casos, aliás.

Inclinei-me de cotovelos nos joelhos e com a cara nas mãos. O meu maior medo acontecera, acontecera já há dois anos, mas não me tinha apercebido. Só agora. Tivera a inocência à minha frente, mas não a vira nem a agarrara. Em vez disso, lançara-a para as mandíbulas da máquina como tudo o resto. Agora era uma inocência fria e cinzenta, tão morta como gravilha e oculta numa fortaleza de pedra e aço. E agora tinha de viver com isso.

Não havia consolação na alternativa, pois se tivéssemos lançado os dados e ido a julgamento, o Jesus provavelmente estaria agora no

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corredor da morte. Não havia consolação em saber que esse destino tinha sido evitado, porque eu tinha a certeza absoluta do mundo de que o Jesus Menendez estava inocente. Uma coisa tão rara como um verdadeiro milagre - um homem inocente - aparecera-me pela frente e não o tinha reconhecido. Tinha-lhe virado as costas.

- Mau dia?

Levantei a cabeça. Vi um homem sentado mais à frente. Éramos os únicos nesta carruagem. Parecia ser uns dez anos mais velho do que eu e o cabelo ralo dava-lhe um aspecto sábio. Talvez fosse até advogado também, mas não me apeteceu falar.

- Estou bem. Apenas cansado.

E ergui a mão de palma estendida, num sinal de que não queria conversar. Geralmente viajo com um par de auscultadores como os que usa o Earl. Pu-los nos ouvidos e enfiei o fio no bolso do casaco. Não fica ligado a nada, mas impede as pessoas de falar comigo. A pressa constante deste dia tinha-me feito esquecer os auscultadores. Uma pressa constante para acabar neste ponto de desolação.

O homem entendeu a mensagem e não disse nada. Voltei aos meus sombrios pensamentos acerca do Jesus Menendez. O facto é que acreditava que tinha um cliente que era culpado do homicídio pelo qual outro cliente estava a cumprir pena perpétua. Não podia ajudar um sem lesar o outro. Precisava de uma resposta. Precisava de um plano. Precisava de provas. Mas por agora, ali no comboio, só conseguia pensar nos olhos mortos do Jesus Menendez, porque sabia que tinha sido eu a matar a luz desses olhos.

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Liguei o telemóvel assim que saí em Burbank. Ainda não tinha nenhum plano mas já decidira o próximo passo a dar, que começava por telefonar ao Raul Levin. O telemóvel vibrou-me na mão, o que indicava que tinha mensagens. Resolvi verificá-las depois de falar com o Levin.

Ele atendeu e a primeira coisa que perguntou foi se tinha recebido a mensagem dele.

- Acabo de sair do avião. Ainda não a li.

- Do avião? Onde foste?

- Estive no norte. Que dizia a mensagem?

- Era acerca do Corliss. Se não me ligaste por causa disso, então de que se trata?

- Que vais fazer hoje à noite?

- Vou ficar por casa. Não gosto de sair às sextas nem aos sábados.

É a hora dos amadores. Demasiados bêbedos na estrada.

- Bem, quero encontrar-me contigo. Tenho de falar com alguém.

Estão a acontecer coisas más.

O Levin pareceu pressentir algo na minha voz porque mudou

imediatamente a sua política de não sair às sextas à noite e concordou

em encontrar-se comigo na Smoke House perto dos Estúdios da Warner. Ficava perto para ambos. Dei o bilhete ao empregado do parque de estacionamento do aeroporto e verifiquei as mensagens enquanto esperava que me trouxessem o Lincoln. Tinha três mensagens de voz, todas enviadas durante o voo de regresso de San Francisco. A primeira era da Maggie McPherson.

"Michael, só liguei para te pedir desculpa por causa desta manhã. Para te dizer a verdade, estava furiosa comigo por causa de coisas que disse ontem à noite e por escolhas que fiz. Descarreguei em ti e não o devia ter feito. Hum, se quiseres levar a Hayley a passear amanhã ou domingo, ela ia adorar e, quem sabe, talvez eu vá também. Bem, depois liga-me." Não era frequente ela chamar-me Michael, mesmo quando estávamos casados. Era uma daquelas mulheres que nos chamavam pelo

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apelido e o tornavam numa expressão de afecto. Isto é, quando assim o queria. Chamava-me sempre Haller. Desde o dia em que nos conhecemos na fila do detector de metais no tribunal de Compton. Ela ia para o gabinete da procuradoria e eu ia a uma audiência para resolver um delito de condução sob os efeitos do álcool.

Guardei a mensagem para voltar a ouvi-la mais tarde e abri a segunda. Estava à espera que fosse do Levin, mas a voz automática referia que a mensagem provinha de um número da área de código 310. A voz que ouvi era a do Louis Roulet.

"É o Louis. É só para saber em que pé estão as coisas depois de ontem. Também tenho uma coisa para lhe dizer."

Apaguei a mensagem e abri a terceira e última. Era do Levin.

"Ei, patrão, liga-me. Consegui umas coisas sobre o Corliss. Aliás, o nome é Dwayne Jeffery Corliss. Dwayne com D-W. E toxicodependente e já tem feito de bufo mais vezes aqui em L.A. Que grande novidade, não? Bem, tinha sido detido por roubar uma bicicleta que provavelmente planeava trocar por uma dose de heroína. Decidiu denunciar o Roulet em troca de um programa de noventa dias de reabilitação no centro médico do condado. Sendo assim, não vamos poder falar com ele, a não ser que consigas que um juiz nos dê a autorização. Bela jogada do procurador. Bem, ainda continuo a investigá-lo. Encontrei na Internet uma coisa que pode ajudar-nos bastante se se tratar da mesma pessoa. Uma coisa que o deixou de rastos. Segunda-feira já terei isso confirmado. Pronto, por agora é tudo. Liga-me no fim-de-semana. Vou ficar por casa."

Apaguei a mensagem e fechei o telemóvel.

- Não digas mais nada - disse com os meus botões.

Assim que ouvi que o Corliss era toxicodependente, já não precisei de saber mais nada. Agora percebia por que motivo a Maggie não tinha confiado no tipo. Os toxicodependentes - os viciados da seringa - eram as pessoas mais desesperadas e mais desonestas que nos podiam aparecer pela frente na máquina do sistema. Caso tivessem a oportunidade, até denunciavam as próprias mães só para conseguirem o próximo chuto, ou o próximo programa de metadona. Eram todos uns mentirosos e era fácil desmascará-los em tribunal.

Estava, porém, intrigado com esta jogada do procurador. O nome Dwayne Corliss não constava do dossier de provas que o Minton me tinha dado. E, no entanto, o procurador estava a agir como teria agido com uma testemunha. Confinara o Corliss a um programa de noventa dias para jogar seguro. O julgamento do Roulet acabaria por decorrer nesse período de tempo. Estaria ele a esconder o Corliss? Ou estaria simplesmente a pôr o bufo fechadinho no armário para saber sempre

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onde ele estava, caso o testemunho dele fosse necessário em julgamento? Estava nitidamente a agir na crença de que eu desconhecia a existência do Corliss. E se não tivesse sido aquela dica da Maggi ainda hoje não saberia. Mesmo assim, era uma jogada perigosa. Os juizes não vêem com bons olhos procuradores que desafiam tão abertamente as regras da descoberta de provas.

Isto levou-me a pensar numa possível estratégia para a defesa. Se o Minton fosse tolo ao ponto de chamar o Corliss a testemunhar no julgamento, talvez me decidisse por não objectar sequer. Talvez o deixasse trazer o heroinómano à barra para ter a oportunidade de o desfazer à frente do júri. Tudo iria depender daquilo que o Levin conseguira descobrir. Ia dizer-lhe para continuar a investigar tudo a fundo sobre o Dwayne Jeffery Corliss. Que não negligenciasse nada.

Também reflecti no facto de o Corliss estar num programa de reabilitação no centro médico do condado. O Levin estava errado, e o Minton também, se pensava que eu não conseguia chegar a uma testemunha confinada a um programa desses. Por coincidência, a Gloria Dayton também tinha sido colocada num desses programas no mesmo centro médico depois de ter denunciado o cliente que lhe pagara os serviços com droga. Embora houvesse vários programas desses no condado inteiro, era bem provável que viesse a participar das mesmas sessões de terapia de grupo e até das mesmas horas de refeição com o Corliss. Talvez eu não conseguisse chegar directamente ao Corliss, mas, como advogado da Gloria, podia falar com ela, que por sua vez poderia passar alguma mensagem ao Corliss.

O empregado trouxe-me o Lincoln e dei-lhe dois dólares. Saí do aeroporto e segui para o centro de Burbank, onde ficavam os estúdios de cinema. Cheguei à Smoke House antes do Levin e pedi um Vodca Martini ao balcão. Na televisão estava a dar uma actualização sobre o início do torneio de basquetebol universitário. A Flórida tinha derrotado o Ohio na primeira série. O cabeçalho no fundo do ecrã dizia "Loucura de Março" e brindei a isso. Começava a sentir já o que era a verdadeira Loucura de Março.

O Levin chegou e pediu uma cerveja antes de nos sentarmos para jantar. Serviram-lhe uma Guinness de algum barril que devia ter sobrado da noite anterior. Deve ter sido uma noite fraca aqui- Decerto tinham ido todos para o Four Green Fields.

- Nada como uma boa cerveja para nos espevitar, desde que seja fresquinha - disse ele no carregado sotaque irlandês que já estava a tornar-se um hábito de humor.

Deu um par de goladas para poder levar o copo sem entornar nada. A recepcionista levou-nos para uma cabina em forma de U e forrada

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a vermelho. Scntámo-nos à frente um do outro e pousei a pasta ao meu lado. A empregada anotou os nossos pedidos de saladas, bifes e batatas. Também pedi o pão de alho e queijo típico da casa.

- Ainda bem que não gostas de sair aos fins-de-semana - disse eu ao Levin depois de ela sair. - Comes aquele pão de alho e queijo e o teu bafo mata logo qualquer um que se aproxime.

- Não faz mal, arrisco na mesma.

Mantivemo-nos em silêncio durante bastante tempo. Comecei a sentir o efeito do Vodca Martini. Decidi pedir outro quando trouxessem as saladas.

- E então? - disse o Levin. - Querias encontrar-te comigo.

- Queria contar-te uma história. Nem todos os pormenores são ainda claros e conhecidos. Mas vou-ta contar da maneira que sei e depois dizes-me o que achas que devia fazer. Okay?

- Gosto de histórias. Conta lá.

- Acho que não vais gostar desta. Começou há dois anos com... Calei-me e esperei que a empregada pousasse as saladas e o pão.

Pedi outro Vodca Martini, embora só tivesse bebido ainda metade do primeiro. Só para não ter de esperar.

- Bem - retomei depois de ela sair. - Esta coisa começou há dois anos com o Jesus Menendez. Lembras-te dele, não lembras?

- Lembro, falámos dele no outro dia. Por causa daquilo do ADN. Estás sempre a dizer que está na prisão porque limpou a pila a uma toalha felpuda e cor-de-rosa.

Sorriu porque era verdade que eu muitas vezes reduzia o caso do Menendez a essa piada tão absurdamente grosseira. E várias vezes servira-me disso para arrancar gargalhadas quando trocava histórias de casos no Four Green Fields com outros advogados. Mas isso foi antes de saber o que sei agora.

Não lhe retribuí o sorriso.

- Bem, acontece que não foi o Jesus o culpado. <

- Como assim? Foi outro tipo que limpou a pila à toalha? Desta vez o Levin riu alto.

- Não, não estás a perceber. Estou a dizer-te que o Jesus Menendez estava inocente.

O rosto dele tornou-se sério. Anuiu enquanto reflectia.

- Está em San Quentin. E estiveste lá hoje.

- Deixa-me contar-te a história toda - disse-lhe. - Trabalhaste só num par de coisas para mim no caso Menendez porque não havia grandes hipóteses. Tinham o ADN, o próprio depoimento que o incriminava e as três testemunhas que o tinham visto atirar uma faca ao rio. Nunca encontraram a faca mas tinham as testemunhas, os

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colegas de quarto dele. Era um caso sem esperança. A verdade é que só tinha aceitado o caso por causa da publicidade que me traria. Portanto, basicamente o que fiz foi levá-lo a aceitar um acordo de culpa. Ele não gostou, dizia que não tinha sido ele, mas não havia outra escolha. O procurador ia pedir a pena de morte. Teria sido isso ou pena perpétua sem hipótese de liberdade condicional. Consegui-lhe pena perpétua com hipótese de liberdade condicional e obriguei o cabrãozinho a aceitar. Obriguei-o.

Olhei para a minha salada intacta. Dei-me conta de que não me apetecia comer. Só me apetecia beber até despertar as células de culpa no meu cérebro.

O Levin esperou que eu continuasse. Também não estava a comer.

- Caso não te recordes, era um processo sobre o homicídio de uma mulher chamada Martha Renteria. Era dançarina no The Cobra Room em East Sunset. Nunca chegaste a ir lá na altura, pois não?

O Levin abanou a cabeça.

- Não têm palco lá - continuei. - Têm uma espécie de arena ao meio e entre cada número aparecem uns tipos vestidos como o Aladino e com um enorme cesto de cobra apoiado em duas varas de bambu. Pousam-no e a música começa. A tampa do cesto cai e aparece uma miúda a dançar. Depois o top dela também cai. Uma espécie de recriação da cena da dançarina a sair de dentro do bolo.

- Hollywood é assim, rapaz - disse o Levin. - Tem de haver sempre espectáculo.

- Bem, o Jesus Menendez gostava desse espectáculo. Tinha mil e cem dólares que o irmão traficante de droga lhe deu e ficou com um fraquinho pela Martha Renteria. Talvez porque fosse a única dançarina que era mais baixa do que ele. Talvez porque ela falou em espanhol com ele. Depois do número dela sentaram-se a falar e em seguida ela circulou um pouco mas voltou, e pouco depois ele soube que havia outro tipo no clube interessado nela. Conseguiu pô-lo fora do jogo oferecendo quinhentos dólares à miúda se esta o levasse para casa.

- Mas não a matou quando lá chegou?

- Enfiou-se no carro e seguiu o carro dela. Chegaram lá, tiveram sexo, despejou o preservativo pela sanita abaixo, limpou a pila à toalha e depois foi para casa. A história começa depois de ele sair de lá.

- O verdadeiro assassino.

- O verdadeiro assassino bate à porta, talvez a fingir que é o Jesus e que se esqueceu de alguma coisa. Ela abre a porta. Ou talvez fosse já um encontro marcado. Ela estava à espera que alguém batesse e abriu a porta.

- O outro tipo lá do clube? Aquele que estava a competir com o Menendez?

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- Exacto. Ele entra, agride-a várias vezes para lhe quebrar a resistência e depois saca da navalha e encosta-lha ao pescoço para a obrigar a ir para o quarto. Soa-te familiar? Só que ela não teve tanta sorte como a Reggie Campo viria a ter dois anos depois. Obriga-a a deitar-se na cama, enfia o preservativo e põe-se em cima dela. Agora a navalha está do outro lado do pescoço e mantém-na aí enquanto a viola. E quando acaba, mata-a. Esfaqueia-a vezes sem conta com a navalha. É um caso de morte exagerada, se é que alguma vez houve algum. O tipo está a revolver algo na puta da mente doentia enquanto faz aquilo.

O meu segundo Vodca Martini chegou. Tirei-o das mãos da empregada e emborquei metade de uma só vez. Perguntou-nos se já tínhamos terminado as saladas e ambos lhe dissemos para as levar ainda intactas.

- Os bifes estão já a sair - disse ela. - Ou querem que os despeje já no lixo, poupando-lhes assim tempo?

Olhei para ela. Estava a sorrir-me, mas eu estava tão absorto na história que estava a contar, que não me apercebi do que ela tinha dito.

- Esqueça - disse ela. - Os bifes estão já a sair. Voltei à história. O Levin não disse nada.

- Depois de a matar, o assassino limpa a cena do crime. Tem tempo, não há pressas, ela não vai a nenhum lado nem vai ligar a ninguém. Limpa a casa para eliminar quaisquer impressões que pudesse ter deixado ali. E acaba por limpar também as impressões do Menendez. O que vai ser mau para o Menendez, quando mais tarde vai à polícia explicar que é ele o tipo dos retratos-robô, mas que não foi ele que matou a Martha. Os polícias olham para ele e perguntam: então por que usaste luvas quando estiveste lá?

O Levin abanou a cabeça.

- Rapaz, se isso for verdade...

- Não te preocupes, é verdade. O Menendez arranja um advogado que uma vez fez um bom trabalho com o irmão, só que este advogado não era capaz de reconhecer um homem inocente nem que este lhe desse um pontapé nos tomates. Este advogado só quer saber do acordo de culpa. Nunca chegou a perguntar ao miúdo se tinha sido ele. Parte do princípio de que foi ele porque têm o raio do ADN na toalha e as testemunhas que o viram desfazer-se da faca. O advogado mete mãos à obra e consegue o melhor acordo possível. De facto, sente-se até bastante feliz com o resultado porque salvou o Menendez do corredor da morte e ofereceu-lhe a possibilidade de sair um dia em liberdade condicional. Vai então falar com o Menendez e o martelo abate-se. Obriga-o a aceitar o acordo e declarar-se "Culpado" perante o tribunal. Levam-no para a prisão e todos estão felizes. O estado está

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feliz porque se poupou o dinheiro de um julgamento e a família da Martha Renteria está feliz porque não têm de enfrentar um julgamento com todas aquelas fotos da autópsia e as histórias dela a dançar nua e a levar homens para casa por dinheiro. E o advogado está feliz porque com este caso apareceu na TV pelo menos umas seis vezes, além de que tinha safado mais um cliente do corredor da morte.

Engoli o resto da bebida e olhei à volta à procura da empregada. Queria outro Vodca Martini.

- O Jesus Menendez vai para a prisão ainda um homem novo. Vi-o hoje e os vinte e seis anos que tem parecem quarenta. É baixinho, sabes o que acontece aos baixinhos lá naquele sítio?

Estava de olhos fixos no espaço vazio da mesa à minha frente quando uma travessa oval com um bife e batatas a fumegar foi pousada. Olhei para a empregada e pedi outro Vodca Martini. Nem lhe disse por favor. - É melhor ires com calma - disse o Levin depois de ela sair. -- Não deve haver um único polícia deste condado que não adorasse apanhar-te emborrachado e levar-te para a choldra para te enfiar uma lanterna pelo cu acima.

- Eu sei, eu sei. É o último que bebo. E se for de mais, não conduzo. Posso ir de táxi.

Pensei que a comida talvez me fizesse bem e comi um pedaço de bife. Depois peguei num pedaço de pão de alho com queijo, mas já não estava quente. Deitei-o no prato e pousei o garfo.

- Ouve, sei que estás a censurar-te por causa disto, mas estás a esquecer uma coisa - disse o Levin.

- Ai sim? E que coisa é?

- O depoimento que ele fez. Iam matá-lo por injecção e era um caso sem remédio. Não resultou porque não havia maneira de resultar. Tinham-no nas mãos e salvaste-o da morte. É esse o teu trabalho e fizeste-o bem. E agora julgas que sabes o que aconteceu verdadeiramente. Não podes censurar-te por não saberes nessa altura.

Ergui a mão num gesto de Pára aí.

- O homem estava inocente. Eu devia ter sabido. Devia ter feito alguma coisa. Em vez disso, fiz o que costumo fazer e segui de olhos fechados.

- Treta.

- Não é treta, não.

- Okay, voltemos à história. Quem era o outro tipo que veio à porta dela?

Abri a pasta. - Fui hoje a San Quentin e mostrei umas fotos ao Menendez. Todas fotos sinaléticas de clientes meus. Sobretudo clientes antigos. O Menendez escolheu uma delas em menos de dez segundos.

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Atirei a foto sinalética do Louis Roulet na direcção dele. Aterrou ao contrário. O Levin pegou nela e olhou-a por momentos; depois pousou-a com a face para baixo.

- Deixa-me mostrar-te mais uma coisa - disse-lhe.

Tirei da pasta as duas fotos dobradas, uma da Martha Renteria e a outra da Reggie Campo. Olhei à minha volta para ter a certeza de que a empregada não vinha aí com a minha bebida e pousei-as na mesa.

- É como um quebra-cabeças. Junta-as e vê o que obténs.

O Levin juntou as duas fotos pelas dobras e anuiu ao compreender o significado daquilo. O assassino - o Roulet - escolhia mulheres que se encaixavam num modelo ou perfil. A seguir mostrei-lhe o desenho da arma feito pelo perito médico durante a autópsia da Renteria e li-lhe a descrição dos dois ferimentos coercivos encontrados no pescoço dela.

- Lembras-te da gravação que trouxeste lá do bar? - perguntei.

- O que mostra é um assassino a operar. Tal como tu, viu que o tal homem desconhecido era canhoto. Quando atacou a Reggie Campo, bateu-lhe com a esquerda e depois segurou na navalha com a esquerda. Este tipo sabe o que está a fazer. Viu ali uma oportunidade e agarrou-a. A Reggie Campo é uma mulher incrivelmente sortuda.

- Achas que há mais? Outras mortes, quero eu dizer.

- Talvez. É isso que quero que investigues. Verifica todos os homicídios de mulheres por esfaqueamento nos últimos anos. Depois pega nas fotos das vítimas e vê se encaixam no perfil físico. E não procures só casos por resolver. A Martha Renteria era até agora supostamente um caso encerrado.

O Levin inclinou-se para a frente.

- Ouve, não vou lançar uma rede como a polícia pode fazer. Tens de meter a polícia nisto. Ou ir ao FBI. Têm lá especialistas de assassinos em série.

Abanei a cabeça.

- Não posso. Ele é meu cliente.

- O Menendez também é teu cliente e tens de o tirar da prisão.

- Já estou a tratar disso. E é por isso que preciso que faças essa coisa para mim, Mish.

Ambos sabíamos que só lhe chamava Mish quando precisava de alguma coisa que ia para além da nossa relação profissional e tocava na amizade entre os dois.

- E se contratássemos um assassino profissional? - disse o Levin.

- Ficávamos com os problemas resolvidos. Sabia que ele estava a brincar.

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- Pois é, resolvia tudo. E também tornava o mundo um lugar

melhor. Mas não me parece que isso conseguisse tirar o Menendez da

prisão.

O Levin voltou a inclinar-se para a frente. Agora estava com um ar

sério.

Vou fazer o que posso, Mick, mas não acho que seja a maneira

melhor de fazer as coisas. Podes declarar conflito de interesses e largar o Roulet. E depois tratas de tirar o Menendez de lá.

- Tirá-lo de lá com quê?

- Com a identificação que ele fez da foto. É uma prova sólida. Não conhecia o Roulet de nenhum lado e escolheu-o logo à primeira.

- E quem vai acreditar nisso? Sou advogado dele! Ninguém na polícia nem no conselho de clemência vai acreditar que não fui eu a inventar isso. Ainda não passa tudo de teoria, Raul. Sabes tão bem como eu. Sei que é a verdade, mas não posso provar nada.

- E os ferimentos? Podem fazer um exame de comparação entre a faca que têm do caso da Reggie Campo com os ferimentos da Martha Renteria.

Abanei a cabeça.

- Ela foi cremada. Tudo o que têm são as descrições e as fotos da autópsia e não são conclusivas. Não é o suficiente. Além do mais, não posso fazer isto a um cliente meu. Se me viro contra um cliente, então viro-me contra os meus clientes todos. Não posso fazer isso, senão acabo por perdê-los a todos. Tenho de pensar noutra solução.

- Acho que estás enganado. Acho que...

- Por agora vou fazer de conta que não sei nada disto, percebes? Mas quero que investigues. Tudo. Mantém essas descobertas separadas do caso Roulet para evitar problemas. Guarda tudo com o nome Jesus Menendez e quando me apresentares contas é em nome desse caso. Percebido?

Antes que o Levin pudesse responder, a empregada trouxe o terceiro Vodca Martini. Fiz-lhe sinal para o levar.

- Já não quero. Traga a conta.

- Bem, não posso voltar a despejá-lo na garrafa - disse ela.

- Não se preocupe, eu pago. Já não me apetece bebê-lo. Dê-o ao tipo que faz o pão de alho com queijo e traga-me a conta.

Afastou-se, provavelmente irritada por não lhe ter oferecido a bebida a ela. Olhei para o Levin. Parecia estar a sofrer com aquilo que eu lhe tinha revelado. Sabia bem o que ele estava a sentir.

- Que raio de cliente franqueado fui arranjar, ha?

- Pois é. Como vais conseguir lidar bem com este tipo quando andas ao mesmo tempo a desenterrar merdas do outro lado?

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- Com o Roulet? Faço intenção de vê-lo o menos possível. Só quando for necessário. Deixou-me hoje uma mensagem, quer falar comigo. Mas não vou telefonar-lhe.

- Por que é que te escolheu a ti? Quer dizer, por que é que ia escolher o único advogado capaz de resolver esta coisa toda?

- Não sei. Não pensava noutra coisa durante o voo para cá. Talvez o preocupasse que eu viesse a saber do caso e acabasse por descobrir a verdade. Mas sendo meu cliente, então sabia que eu estaria eticamente obrigado a protegê-lo. Pelo menos de início. Já para não falar da questão do dinheiro.

- Que dinheiro?

- O dinheiro da mãe. A franquia. Ele sabe bem como isto me vai valer uma quantia choruda. A maior que alguma vez recebi. Talvez pensasse que eu ia fechar os olhos para que o dinheiro continuasse a entrar.

O Levin assentiu com a cabeça.

- E talvez devesse fazê-lo, ha? - perguntei.

Era uma tentativa de humor instigada pela vodca, mas o Levin não sorriu. Lembrei-me da cara do Menendez por trás do vidro na prisão e nem eu próprio fui capaz de sorrir.

- Ouve, há mais uma coisa que preciso que faças - disse-lhe.
- Quero que investigues o Roulet também. Tenta descobrir tudo o que puderes sem chegar demasiado perto dele. E verifica aquela história da mãe, de ter sido violada numa casa que estava a vender em Bel-Air.

- Vou tratar disso.

- E não subdelegues em ninguém.

Era uma piada habitual entre nós. Tal como eu, o Levin actuava sozinho. Não tinha ninguém a quem subdelegar tarefas.

- Fica descansado. Trato de tudo sozinho.

Era a sua resposta habitual, mas desta vez faltava-lhe a falsa sinceridade e o humor que geralmente a acompanhavam. Tinha respondido por mero hábito.

A empregada aproximou-se e pousou a conta sem dizer obrigada. Pousei o cartão de crédito em cima da conta sem verificar a despesa. Só queria sair dali.

- Queres que ela embrulhe o bife para levares? - perguntei.

- Não é preciso - disse o Levin. - Acho que perdi o apetite por agora.

- E aquele cão de guarda que tens lá em casa?

- Boa ideia. Tinha-me esquecido do Bruno. Chamou a empregada para lhe pedir um saco.

- Leva o meu também - disse-lhe. - Não tenho cão.


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Apesar de ligeiramente tocado pela vodca, consegui sobreviver ao slalom que era Laurel Canyon sem dar cabo do Lincoln nem ser parado pela polícia. A minha casa fica em Fareholm Drive, na entrada sul do desfiladeiro. Todas as casas ficavam à face da rua e o único problema que tinha era quando chegava e descobria que algum parvalhão tinha estacionado o veículo todo-o-terreno à frente da minha garagem, impedindo-me de guardar o carro. Estacionar na rua estreita era sempre complicado e o espaço à frente da minha garagem era demasiado convidativo, sobretudo em noites de fim-de-semana, quando alguém da rua estava a dar uma festa.

Segui em frente e encontrei um espaço suficientemente largo para o Lincoln a cerca de quarteirão e meio. Quanto mais me afastava da minha casa, mais enfurecido ia ficando com o palerma que me tinha obstruído a entrada. Comecei a fantasiar uma vingança. Cuspir no pára-brisas, partir um dos retrovisores laterais, esvaziar os pneus e dar pontapés nos painéis laterais. Em vez disso, deixei-lhe um pequeno e digno bilhete: este não é lugar para se estacionar! Da próxima vez será rebocado. Afinal de contas, nunca se sabe quem pode ser o dono de um veículo todo-o-terreno em L.A. e quando se ameaça alguém por ter estacionado à frente da nossa garagem, essa pessoa fica a saber onde moramos.

Voltei para trás e estava a enfiar o bilhete debaixo do limpa-pára-brisas do transgressor quando reparei que o veículo todo-o-terreno era um Range Rover. Pousei a mão no capo, mas estava frio. Olhei para as janelas de minha casa, mas estava tudo escuro. Enfiei o bilhete debaixo do limpa-pára-brisas e subi as escadas do alpendre até à entrada. Quase esperava encontrar ali o Louis Roulet sentado numa das cadeiras altas a contemplar a vista tremeluzente da cidade, mas não estava lá.

Fui à ponta do alpendre e contemplei a cidade. Foi por causa desta vista que comprei esta casa. Dentro de casa era tudo vulgar e desactualizado. Mas o alpendre e a vista por cima de Hollywood Boulevard conseguiam despertar mil e um sonhos. Tinha usado o dinheiro do

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último caso de franquia para o pagamento da entrada. Mas como já tinha pago esse dinheiro e não tive outro caso de franquia, tive de fazer uma segunda hipoteca. Na verdade, todos os meses fazia um esforço enorme para poder pagar esta despesa. Precisava de largar a casa, mas aquela paisagem que se tinha do alpendre paralisava-me. Provavelmente iam encontrar-me a contemplar a cidade quando viessem buscar a chave para executar a hipoteca.

Estou ciente das questões que a casa me coloca. Mesmo esforçando-me para a manter, que justiça há quando uma procuradora e um advogado de defesa se divorciam e o advogado fica com a casa na colina com uma paisagem de um milhão de dólares enquanto a procuradora e a filha ficam com o apartamento de duas divisões no Valley? A resposta é que a Maggie McPherson podia comprar a casa que quisesse e eu ajudá-la-ia como pudesse. Mas ela recusara mudar-se enquanto esperava por uma promoção para o gabinete na Baixa. Comprar uma casa em Sherman Oaks ou noutro sítio transmitiria a mensagem errada, de um contentamento sedentário. Ela não estava contente em ver-se suplantada pelo John Smithson ou algum dos seus jovens espingardas. Era ambiciosa e queria trabalhar na Baixa, onde supostamente estavam os melhores e mais brilhantes procuradores dos crimes mais importantes. Recusava-se a aceitar o simples truísmo de que quanto mais competente se é, mais ameaçamos os que estão no topo da hierarquia, sobretudo se estes foram eleitos. Sabia que nunca iam convidar a Maggie a ir para a Baixa. Ela era demasiado competente.

De vez em quando esta situação importunava-a e lançava-se em ataques verbais inesperados. Fazia, comentários cortantes em alguma conferência de imprensa ou recusava-se a cooperar com alguma investigação a decorrer na Baixa. Ou fazia revelações sob o efeito da bebida a um advogado de defesa criminal e seu ex-marido sobre um caso de que não deveria falar-lhe.

O telefone começou a tocar dentro de casa. Procurei a chave para entrar. Os meus números de telefone e quem os tem podiam formar um gráfico de pirâmide. O número nas Páginas Amarelas toda a gente o tem ou consegue arranjá-lo. Logo a seguir na pirâmide vem o número do meu telemóvel, que foi disseminado por colegas fulcrais, investigadores, fiadores judiciais, clientes e outros elos da corrente de transmissão da máquina do sistema. O meu telefone de casa - a linha terrestre - ficava no topo da pirâmide. Pouquíssimos o tinham. Nenhum cliente ou advogado o tinha.

Entrei e agarrei no telefone da cozinha antes que o atendedor de mensagens disparasse. Quem estava a ligar era a única pessoa que tinha esse meu número. A Maggie McPherson.

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Recebeste as minhas mensagens?

- Tinha uma no telemóvel. Que se passa?

Nada. Deixei-te uma mensagem neste número há muito tempo já.

Oh, estive fora o dia todo. Acabei de chegar a casa.

- Onde estiveste?

Bem, fui a San Francisco e voltei, e acabo de jantar com o Raul

Levin. Tens alguma coisa a dizer sobre isso? Estava apenas curiosa. Que havia em San Francisco?

- Um cliente.

- Portanto, o que queres dizer mesmo é que foste a San Quentin e voltaste.

- Sempre foste demasiado esperta para mim, Maggie. Nunca consigo enganar-te. Ligaste-me por alguma razão especial?

- Só queria ver se tinhas recebido o meu pedido de desculpas. E também queria saber se sempre vais fazer alguma coisa com a Hayley amanhã.

- Sim e sim. Mas, Maggie, não é preciso pedires desculpa e já devias saber isso. Eu é que peço desculpa pela maneira como me portei antes de sair. E se a minha filha quer estar comigo amanhã, então também quero estar com ela. Diz-lhe que podemos ir até ao cais ou ver um filme se quiser. O que ela quiser.

- Bem, ela quer mesmo é ir ao centro comercial. Disse-o como se estivesse a calcar vidros.

- Ao centro comercial? Tudo bem, eu levo-a lá. Que mal tem ir ao centro comercial? Há alguma coisa especial que ela queira?

Apercebi-me, de repente, de um cheiro estranho dentro de casa. O cheiro de fumo. Verifiquei o forno e o fogão. Estavam desligados. O fio do telefone era curto e estiquei-o até chegar à porta para acender a luz da sala de jantar. Estava vazia e a luz iluminava tenuemente a divisão do lado, a sala de estar por onde tinha passado ao entrar em casa. Também me parecia vazia.

- Têm lá um sítio onde as pessoas podem fazer o seu próprio ursinho de peluche. Podem escolher o estilo e a caixa de voz e enfiar até um coraçãozinho no meio do enchimento. É muito giro.

Precisava de desligar para poder verificar melhor a minha casa.

- Óptimo. Eu levo-a lá. Qual é a hora melhor?

- Estava a pensar aí pelo meio-dia. Talvez pudéssemos almoçar primeiro.

- Nós?

- Seria um incómodo para ti?

- Não, Maggie, pelo contrário. Apareço então por volta do meio-dia?

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- Óptimo.

- Até amanhã.

Desliguei antes que ela pudesse despedir-se. Tinha uma arma, mas era uma peça de colecção que nunca tinha sido disparada desde que era minha e estava guardada numa caixa no armário do quarto nas traseiras da casa. Abri em silêncio uma das gavetas da cozinha e peguei numa faca curta mas afiada. Passei pela sala de estar para o corredor que dava para as traseiras da casa. Havia três portas no corredor, uma para o meu quarto, outra para um quarto de banho e a terceira para outro quarto que eu tinha transformado em escritório, o único e verdadeiro escritório que tinha.

O candeeiro da secretária estava aceso. Não era visível do ângulo onde eu estava no corredor, mas soube que estava aceso. Já não vinha a casa há dois dias, mas não me lembrava de o ter deixado aceso. Aproximei-me lentamente da porta do escritório, ciente de que o intruso poderia estar já à espera que eu me concentrasse na luz do escritório enquanto me esperava na escuridão do quarto ou do quarto de banho.

- Podes vir, Mick. Sou eu.

Reconheci a voz mas continuei tenso. O Louis Roulet estava à espera no escritório. Parei à entrada da porta. Estava sentado na cadeira de couro escuro da secretária. Rodou na cadeira para ficar de frente para mim e cruzou as pernas. A bainha da perna esquerda subiu um pouco e vi no tornozelo a pulseira electrónica que o Fernando Valenzuela o tinha obrigado a usar. Sabia que se o Roulet tivesse vindo para me matar, pelo menos deixaria um rasto por causa da pulseira. Mas não era um pensamento muito reconfortante. Encostei-me à porta para poder esconder a faca atrás da coxa sem ser demasiado óbvio.

- Então é aqui que trata da papelada legal? - perguntou o Roulet.

- Parte dela. Que fazes aqui, Louis?

- Vim ver-te. Como não me telefonaste, quis certificar-me de que ainda trabalhávamos em equipa.

- Estive fora da cidade. Acabo de chegar.

- E o jantar com o Raul? Não foi isso o que acabaste de dizer a quem te ligou?

- É um amigo. Jantei quando cheguei do aeroporto de Burbank. Como descobriste onde vivo, Louis?

Pigarreou e sorriu.

- Trabalho no ramo imobiliário, Mick. Consigo descobrir onde qualquer pessoa vive. Aliás, costumava ser eu a fonte do National Enquirer. Sabias disso? Sabia dizer-lhes onde vivia qualquer celebridade, por mais fachadas e corporações que usassem para ocultar as suas aquisições. Mas passado algum tempo desisti. Era bom dinheiro,

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as era tão... de mau gosto. Percebes o que quero dizer, Mick? E pronto, desisti. Mas ainda consigo descobrir onde qualquer pessoa vive. Também consigo descobrir se já chegaram ao valor máximo da hipoteca e até se estão a fazer os pagamentos a tempo.

Olhou-me com um sorriso cúmplice. Estava a dizer-me que sabia que a minha casa era um poço financeiro, que não tinha nada dentro de casa e que geralmente pagava as duas hipotecas sempre com um mês de atraso. O Fernando Valenzuela provavelmente não aceitaria esta casa como garantia de uma caução de cinco mil dólares.

- Como entraste aqui? - perguntei.

- Bem, essa foi a parte mais engraçada. Acontece que tinha uma chave. De quando este lugar estava à venda. Há quanto tempo já? Há um ano e meio atrás? Bem, quis ver a casa pois na altura pensava que tinha um cliente interessado por causa da vista e fui ao agente imobiliário buscar a chave. Entrei e dei uma vista de olhos, mas soube logo que não era casa para o meu cliente, que queria uma coisa mais requintada. Vim embora, só que me esqueci de devolver a chave ao agente. É um mau hábito que tenho. Não é estranho que durante todo este tempo o meu advogado esteja a viver nesta casa? E, a propósito, vejo que ainda não fizeste nada pela casa. Tem a vista, claro, mas precisas mesmo de remodelar isto.

Soube então que ele já andava de olho em mim desde o caso Menendez. E que provavelmente sabia que acabava de o visitar em San Quentin. Lembrei-me do homem no comboio da agência de aluguer de carros. Mau dia? Tinha-o visto depois no voo para Burbank. Andaria a seguir-me? Estaria a trabalhar para o Roulet? Seria o investigador que o Cecil Dobbs tentara impingir-me para o caso? Não sabia as respostas todas, mas só havia uma explicação para o facto de o Roulet estar ali em casa à minha espera: ele sabia aquilo que eu sabia.

- Que pretendes mesmo, Louis? Estás a tentar assustar-me?

- Não, não, eu é que devia estar assustado. Deves ter uma arma atrás das costas. É o quê, uma pistola?

Agarrei na faca com mais força mas não a mostrei.

- Que pretendes? - insisti.

- Quero fazer-te uma proposta. Não em relação à casa. Pelos teus serviços.

- Já contrataste os meus serviços.

Rodou na cadeira antes de responder. Olhei para a secretária para verificar se faltava alguma coisa. Reparei que ele tinha usado como cinzeiro um pequeno prato de barro que a minha filha tinha feito para mim. Supostamente era para guardar clipes.

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- Estava a pensar no nosso acordo de honorários e nas dificuldades que o caso apresenta - disse ele. - Francamente, Mick, acho que estás a ser mal pago. Quero propor outros honorários. Recebes na mesma a quantia já acordada, cujo pagamento total será feito antes do julgamento. Mas agora quero acrescentar um bónus de desempenho Quando o júri me declarar não-culpado deste crime horrível, os teus honorários duplicarão automaticamente. E passo-te o cheque no Lincoln quando viermos embora do tribunal.

- Tudo muito lindo, Louis, mas a Ordem de Advogados da Califórnia não permite que os advogados de defesa aceitem bónus com base nos resultados. Nunca poderia aceitar. É mais do que generoso, mas não posso aceitar.

- Mas a Ordem dos Advogados da Califórnia não está aqui presente, Mick. E não precisamos de lhe chamar um bónus de desempenho. Faz simplesmente parte dos honorários. Porque vais conseguir defender-me com êxito, não vais?

Olhou-me fixamente e percebi a ameaça.

- Não há garantias no tribunal. As coisas podem sempre correr mal. Mas continuo a achar que há boas hipóteses.

O rosto dele abriu-se num sorriso.

- O que posso fazer para tornar as hipóteses ainda melhores? Pensei na Reggie Campo. Ainda viva e pronta para ir a julgamento.

Ela não fazia ideia de quem era a pessoa contra quem ia testemunhar.

- Nada - respondi. - Ficar quietinho à espera. E não metas ideias na cabeça. Não faças nada. O caso está quase pronto e vamos sair-nos bem.

Manteve-se calado. Queria impedi-lo de pensar na ameaça que a Reggie Campo apresentava.

- Mas há uma coisa que surgiu agora - disse-lhe.

- Ai sim? O quê?

- Ainda não tenho os pormenores. O que sei provém de uma fonte que não pôde dizer-me mais nada. Mas parece que o procurador tem um bufo da cadeia. Não falaste com ninguém acerca do caso quando estavas lá, pois não? Lembra-te que te disse para não falares com ninguém.

- E não falei. Quem quer que seja essa pessoa, está a mentir.

- A maioria deles mente, sim. Só perguntei para ter a certeza. Depois trato disso na altura.

- óptimo.

- Só mais outra coisa. Falaste à tua mãe da hipótese de testemunhar acerca do ataque na casa vazia? Precisamos disso para justificar o facto de andares com a navalha.

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O Roulet franziu os lábios, mas não respondeu.

- preciso que a convenças. Pode ser muito importante para uma defesa sólida perante o júri. Além do mais, pode vir a granjear-te simpatias.

Assentiu com a cabeça ao ver nisto um vislumbre de luz.

Podes falar com ela, por favor?

- Está bem. Mas vai ser difícil. Ela nunca apresentou queixa. Nunca contou a ninguém a não ser ao Cecil.

Precisamos do testemunho dela e depois podemos pedir ao Cecil

que testemunhe para corroborar. Não é tão bom como ter um relatório da polícia, mas serve para o efeito. Precisamos dela, Louis. Se ela testemunhar, acho que consegue convencê-los. Os júris gostam de velhinhas.

- Okay.

- Ela alguma vez te disse que aspecto tinha o homem ou que idade teria, coisas desse género?

Abanou a cabeça. - Era impossível. O tipo usava máscara e óculos de esqui. Atacou-a mal ela abriu a porta. Já estava lá dentro à espera. Foi muito rápido e muito violento.

A voz esmoreceu-lhe enquanto falava. Fiquei intrigado.

- Pensei que tinhas dito que o atacante era um potencial cliente com quem ela ia encontrar-se lá. Ele já estava dentro da casa?

Olhou-me nos olhos.

- Sim. Conseguiu entrar de alguma maneira e estava lá à espera dela. Foi horrível.

Anuí com a cabeça. Não quis aprofundar esta questão nesse momento. Queria-o fora de minha casa.

- Ouve, obrigado pela proposta, Louis. E agora, se não te importas, vou dormir. Foi um dia longo.

Indiquei-lhe o corredor que dava para a porta. O Roulet levantou-se e aproximou-se de mim. Recuei para o corredor e depois para a porta aberta do meu quarto. Mantive a faca preparada atrás das costas. Mas o Roulet passou por mim sem qualquer incidente.

- E amanhã vais passear com a tua filha - disse.

Fiquei petrificado. Ele tinha ouvido o telefonema da Maggie. Não lhe disse nada. Mas ele falou.

- Não sabia que tinhas uma filha, Mick. Deve ser bom. - Olhou-me com um sorriso enquanto seguia pelo corredor. - Ela é linda.

A minha inércia transformou-se em ímpeto. Fui atrás dele pelo corredor, sentindo a raiva crescer a cada passo. Agarrei na faca com força.

- Como sabes que ela é linda? - exigi saber.

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Parou e parei também. Olhou para a faca na minha mão e depois para o meu rosto. Falou calmamente.

- Vi a foto em cima da secretária.

Tinha-me esquecido da foto. Um pequeno instantâneo dela tirado na Disneylândia e colado numa chávena.

- Oh - exclamei.

Sorriu, ciente do que me tinha passado pela cabeça.

- Boa noite, Mick. Diverte-te com a tua filha amanhã. Não deves estar com ela muitas vezes.

Atravessei a sala de estar e abri a porta da entrada. Olhou para mim antes de sair.

- Do que precisas é de um bom advogado - disse-me. - Um que te consiga a custódia.

- Não. Está melhor com a mãe.

- Boa noite, Mick. Obrigado pela conversa.

- Boa noite, Louis.

Estendi a mão para fechar a porta.

- Bela vista - disse ele do alpendre.

- Sim. - Fechei e tranquei a porta.

Fiquei ali com a mão na maçaneta, à espera de o ouvir descer as escadas para a rua. Mas segundos depois bateu à porta. Fechei os olhos, segurei na faca com força e abri. O Roulet estendeu a mão. Recuei um passo atrás.

- A chave - disse. - Acho que é melhor ficares com ela. Tirei-lhe a chave da palma aberta.

- Obrigado.

- Não tens de quê.

Fechei a porta e voltei a trancá-la.

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Terça-feira, 12 de Abril

O dia não podia ter começado melhor para um advogado de defesa. Não tinha nenhuma audiência no tribunal nem nenhuma reunião com clientes. Dormi até tarde, passei a manhã a ler o jornal de uma ponta a outra e tinha um bilhete para o jogo de abertura do novo campeonato de beisebol dos Los Angeles Dodgers. Era o jogo do dia e uma tradição consagrada entre os advogados de defesa. O bilhete tinha-me sido

dado pelo Raul Levin, que decidira presentear cinco dos profissionais

de defesa para quem trabalhava, num gesto de agradecimento. Tinha a certeza de que os outros iam resmungar e queixar-se no jogo por eu estar a monopolizar o Levin enquanto me preparava para o julgamento do Roulet. Mas não ia deixar que isso me importunasse.

Estávamos naquele período aparentemente lento antes do julgamento, quando a máquina avança com um movimento constante e gradual. O julgamento do Louis Roulet estava marcado para começar daí a um mês. À medida que a data se aproximava, aceitava cada vez menos clientes. Precisava de tempo para preparar a estratégia. Embora o julgamento fosse só daí a semanas, a vitória ou a derrota provavelmente dependia da informação que conseguisse reunir agora. Precisava de ter a agenda livre para isso. Só aceitava casos de clientes repetidos
- e só se o dinheiro fosse certo e pago logo no início.

Um julgamento era como uma fisgada. A chave estava na preparação. A sessão pré-julgamento é quando o projéctil é colocado e o elástico é lentamente puxado para trás até ficar esticado ao máximo. Finalmente, no julgamento, disparamos o projéctil infalivelmente contra o alvo. O alvo é a absolvição. Não culpado. Só conseguimos acertar no alvo se tivermos escolhido o projéctil adequado e

tivermos esticado bem o elástico até ao limite máximo.

Era o Levin que estava encarregado de esticar o elástico ao máximo.

Tinha continuado a desenterrar as vidas dos participantes nos casos


Roulet e Menendez. Tínhamos arquitectado uma estratégia e um plano a que chamávamos "uma dupla fisgada" porque eram dois os alvos pretendidos. Quando o julgamento começasse, em Maio, teríamos esticado já o elástico ao máximo e prontos para disparar.

A procuradoria cumpria a sua parte também para nos ajudar a carregar a fisga. Nas semanas seguintes à primeira audiência do Roulet o dossier de provas do estado tornou-se mais volumoso à medida que as investigações policiais decorriam e surgiam novos desenvolvimentos baseados nos relatórios científicos.

Entre esses novos desenvolvimentos dignos de nota constava a identificação do homem desconhecido, o canhoto que estava com a Reggie Campo no Morgan's na noite do ataque. Os detectives da Polícia de Los Angeles usaram a gravação que eu tinha fornecido à procuradoria e conseguiram identificá-lo mostrando uma das imagens tiradas do vídeo a prostitutas e acompanhantes que tinham sido detidas pela brigada dos costumes. O homem desconhecido foi identificado como Charles Talbot, um cliente regular, conhecido por muitas prostitutas. Algumas disseram que era o dono ou trabalhava numa loja de conveniência em Reseda Boulevard.

Os relatórios da investigação que me foram enviados revelavam que os detectives tinham falado com o Talbot e que na noite de 6 de Março este tinha saído do apartamento da Reggie Campo pouco antes das dez e que fora para a tal loja de conveniência aberta vinte e quatro horas. O Talbot era o dono da loja e tinha ido lá para verificar as coisas e abrir um armário onde guardava o tabaco e cuja chave só ele tinha. A gravação das câmaras de vigilância na loja confirmou que tinha estado lá desde as 10h09 até às 10h51 a reabastecer as prateleiras de tabaco por baixo do balcão. A conclusão da investigação era que o Talbot não tinha nenhuma ligação com o que acontecera depois de ter saído do apartamento da Reggie Campo. Não passava de mais um cliente dela.

No dossier de provas do estado não havia nenhuma menção ao Dwyane Jeffery Corliss, o bufo da prisão que tinha contactado a procuradoria com informações para contar acerca do Roulet. Ou o Minton resolvera não o usar como testemunha, ou então estava a guardá-lo bem para o usar só numa emergência. A última hipótese era a mais provável. O Minton tinha-o confinado a um programa de reabilitação e não se teria dado a esse trabalho se fosse sua intenção manter o Corliss fora de jogo mas pronto para testemunhar. Por mim tudo bem. O que o Minton não sabia era que o Corliss era o projéctil que eu ia pôr na fisga.

E apesar de o dossier de provas do estado conter pouca informação sobre a vítima do crime, o Raul Levin continuava a vigiar atentamente

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a Reggie Campo. Encontrou um site chamado PinkMink.com onde ela anunciava os seus serviços. A importância dessa descoberta não residia necessariamente no facto de provar que ela estava envolvida na prostituição, mas sim no facto de o anúncio dizer que ela era "de mente aberta e gostava de ser selvagem" e que estava "disponível para jogos sadomasoquistas - bates-me tu ou bato-te eu". Era uma boa munição para ser usada. Era o tipo de material que podia ajudar a colorir uma vítima ou uma testemunha aos olhos do júri. E ela era ambas as coisas.

O Levin também continuava a desenterrar a vida do Louis Roulet e tinha descoberto que fora um fraco estudante que frequentara cinco escolas privadas em Beverly Hills e arredores durante a juventude. Andara de facto na UCLA e tirara uma graduação em Literatura Inglesa, mas o Levin conseguiu localizar ex-colegas dele que disseram que o Roulet conseguira a graduação pagando a outros estudantes pelos trabalhos de pesquisa, pelas respostas nos testes e até por uma tese final de noventa páginas sobre a vida e obra de John Fante.

O perfil do Roulet como adulto era bem mais sombrio. O Levin descobriu várias mulheres que disseram que o Roulet as tinha tratado mal, quer física quer mentalmente ou ambas as coisas. Duas delas que tinham conhecido o Roulet quando eram estudantes na UCLA e disseram ao Levin que desconfiavam que numa festa académica o Roulet lhes tinha deitado nas bebidas a droga dos violadores e depois se aproveitara sexualmente delas. Nenhuma delas informara as autoridades dessas suspeitas, mas uma delas fizera um teste ao sangue no dia a seguir à festa. Disse que tinham encontrado vestígios de hidrocloreto de ketamina, um sedativo veterinário. Felizmente para a defesa, nenhuma delas tinha sido ainda localizada pelos investigadores da procuradoria.

O Levin investigou também os chamados casos do Violador de Agentes Imobiliárias desde há cinco anos. Quatro mulheres - todas elas agentes imobiliárias - tinham apresentado queixa de terem sido dominadas e violadas por um homem à espera no interior das casas que, segundo julgavam, estavam vazias para o efeito da visita guiada. Os ataques continuaram por resolver mas cessaram onze meses depois de a primeira queixa ter sido apresentada. O Levin falou com um perito de crimes sexuais da Polícia de Los Angeles que tinha trabalhado nesses casos. O perito disse que sempre desconfiara que o violador era alguém ligado ao ramo imobiliário, pois parecia saber como entrar nas casas e atrair as agentes de venda a irem lá sozinhas. O perito estava convencido de que o violador pertencia ao ramo imobiliário, mas nunca conseguiu provar esta teoria dado que não houve nenhuma detenção.

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Ainda relacionado com este ramo de investigação, o Levin pouco conseguiu descobrir que confirmasse que a Mary Alice Windsor fora uma das vítimas nunca declaradas do violador. Ela tinha aceitado falar connosco e testemunhar sobre essa tragédia secreta, mas só se o seu testemunho fosse vital. A data que forneceu do ataque coincidia com as datas dos assaltos documentados atribuídos ao Violador de Agentes Imobiliárias e a Mary Alice mostrou um livro de marcações e outros documentos que provavam que era de facto a agente imobiliária encarregada da venda dessa moradia em Bel-Air onde disse que foi atacada. Mas dispúnhamos apenas da palavra dela para provar isso. Não havia registos médicos ou hospitalares indicativos de tratamento por agressão sexual. E nenhum registo policial.

Mesmo assim, a história que a Mary Alice contou correspondia ao relato do Roulet em quase todos os pormenores. Mas o que nos intrigou posteriormente foi o facto de o Roulet saber tantos pormenores sobre o ataque. Se a mãe tinha decidido manter isso em segredo e nunca apresentar queixa, então por que partilharia tantos pormenores dessa provação traumática com o filho? Esta pergunta levou o Levin a postular uma teoria que era tão repulsiva como intrigante.

"Acho que ele sabe os pormenores todos porque esteve lá", dissera o Levin depois de saírmos do encontro com a Mary Alice.

"Estás a dizer que ele observou e não fez nada para o impedir?" "Não, estou a dizer que era ele o homem de máscara e óculos de esqui."

Fiquei em silêncio. Acho que a um nível subliminal eu próprio já andava a pensar o mesmo, só que a ideia era demasiado macabra para poder chegar à superfície.

"Oh, Levin..."

O Levin, pensando que eu estava em desacordo, voltou a insistir:

"É uma mulher muito forte. Construiu aquela firma do nada e nesta cidade o ramo imobiliário é uma competição agressiva. É uma mulher rija e não consigo perceber por que não apresentou queixa disto, por que não quis que o atacante fosse apanhado. Costumo ver as pessoas de duas maneiras. Ou são adeptas do olho por olho ou então dão a outra face. Ela é definitivamente do tipo olho por olho e não consigo perceber por que manteve a coisa em segredo, a não ser que estivesse a proteger o tipo. A não ser que esse tipo fosse o nosso homem. Ouve o que te digo, o Roulet é maligno. Não quero saber donde lhe vem a maldade ou como se tornou assim, mas quanto mais olho para ele, mais vejo o diabo."

Todas estas informações eram estritamente confidenciais. Não era o tipo de informação que se poderia apresentar como meio de defesa.

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Mesmo assim, era informação que eu precisava de saber enquanto tomava as minhas decisões e me preparava para o julgamento.

O meu telefone de casa tocou às 11h05, na altura em que estava diante do espelho a experimentar um boné dos Dodgers. Verifiquei o número antes de atender e vi que era a Lorna Taylor.

- Por que estás de telemóvel desligado? - perguntou.

- Porque estou de folga. Tinha-te dito, nada de telefonemas hoje. Vou ao jogo de beisebol com o Mish e vou encontrar-me mais cedo com ele.

- Quem é o Mish?

- Referia-me ao Raul. Como é que te lembraste de me chatear? Disse-o num tom espirituoso.

- Porque acho que vais gostar que te chateie com isto. Hoje o correio chegou um pouco mais cedo e recebeste uma notificação do Segundo Distrito.

O Tribunal de Recurso do Segundo Distrito revia todos os casos emanados do condado de Los Angeles. Era o primeiro obstáculo a qualquer recurso submetido ao supremo tribunal. Mas a Lorna nunca me ligaria só para me dizer que eu tinha perdido um recurso.

- Que caso é?

Tenho sempre uma média de quatro ou cinco casos à espera da apreciação do tribunal de recurso.

- Um dos teus Road Saints. O Harold Casey. Ganhaste!

Fiquei chocado. Não por ganhar, mas pelo timing. Tinha tentado avançar rapidamente com o recurso. Tinha redigido o sumário antes de o veredicto ser anunciado e pagara um suplemento extra pela entrega rápida das transcrições diárias emanadas do julgamento. No dia seguinte ao veredicto submetera o recurso a pedir uma revisão expedita. Mesmo assim, só esperava ouvir falar do Casey daí a dois meses.

Pedi à Lorna para ler o sumário e o meu rosto abriu-se num sorriso. O sumário era literalmente uma reescrita da minha própria súmula. O painel de três juizes concordara logo com a minha contestação de que o voo a baixa altitude do helicóptero de vigilância do xerife sobre o rancho do Casey constituía uma invasão de privacidade. O tribunal Anulou a condenação do Casey, afirmando que a rusga que levou à descoberta da cultura hidropónica de marijuana era ilegal.

O estado teria agora de decidir se haveria novo julgamento do Casey, mas, para ser realista, um novo julgamento estava fora de questão.

o estado não disporia de provas, já que o tribunal de recurso decidira que tudo o que fora recolhido durante a rusga ao rancho era inadmisSível como prova. Esta decisão do tribunal era claramente uma vitória Para a defesa, o que não é muito frequente.

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- Caramba, um dia em cheio para os oprimidos!

- Onde está ele, afinal? - perguntou a Lorna.

- Ainda deve estar no centro de recepção, mas iam mudá-lo para Corcoran. Vais fazer isto. Tira dez cópias da decisão, mete-as num envelope e manda-as ao Casey em Corcoran. Deves ter a morada aí.

- Mas não vão deixá-lo sair?

- Ainda não. Violou a liberdade condicional depois da detenção e o recurso não afecta isso. Só vai sair quando for apresentado à comissão de liberdade condicional e arguir com o fruto da árvore envenenada, ou seja, que essa liberdade foi violada por causa da rusga ilegal. Vai demorar talvez umas seis semanas até tudo ficar resolvido.

- Seis semanas? Nem dá para acreditar.

- Não te metas em delitos se não queres ir dentro. Trauteei-o como o Sammy Davis fazia naquele antigo programa

televisivo.

- Não me cantes isso, Mick.

- Desculpa.

- E para que vamos enviar-lhe dez cópias? Uma não chega?

- Porque vai guardar uma para ele e espalhar as outras nove pela prisão e depois o teu telefone vai começar a tocar. Um advogado que consegue ganhar num recurso é como ouro para quem está na prisão. Vão começar a telefonar e vais ter de os seleccionar para saber quais são os que têm família e podem pagar.

- Sempre atento às oportunidades, não é?

- Tento. Mais alguma coisa?

- O costume. Os tais telefonemas que me disseste que não querias ouvir. Foste ontem ver a Gloria Dayton ao centro médico?

- Foi a Gloria Dayton que ligou então. Sim, fui vê-la. Parece que o pior já passou. Mas ainda lhe falta mais de um mês de tratamento.

A verdade era que a Gloria Dayton parecia melhor do que nunca. Há anos que não a via assim tão vigorosa e de olhos brilhantes. Tinha ido visitá-la com um propósito em mente, mas vê-la assim reconvalescida foi um agradável bónus.

Como seria de esperar, a Lorna tinha de ser catastrofista.

- E quanto tempo vai durar desta vez até voltar a ligar-te e dizer "Estou na prisão. Preciso do Mickey"?

Disse a última parte imitando o tom nasal e choramingas da Gloria Dayton. Uma imitação bastante exacta, mas irritou-me. Depois lembrou-se de trautear uma cançoneta ao som do clássico da Disney.

- RA-TI-NHO... até daqui a pouquinho. MICKEY... o rei, que nunca me cobra um tostãozinho! Ratinho Mickey... Ratinho Mickey, o advogado que todos...

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- Não me cantes isso, Lorna, por favor. Riu-se.

- É só para me meter contigo.

Eu estava a sorrir, mas tentei que a voz não me denunciasse.

- Pronto. Percebido. Agora tenho de ir.

- Diverte-te muito... Ratinho Mickey.

- Nem que cantasses essa canção o dia inteiro e nem que os Dodgers perdessem vinte a zero contra os Giants, divertia-me na mesma. Depois de ouvir essa notícia, nada pode correr mal.

Depois de desligar fui ao escritório procurar o número de telemóvel do Teddy Vogel, o líder dos Road Saints. Dei-lhe a boa notícia e sugeri-lhe que talvez ele fosse mais rápido a passar palavra ao Harold Case do que eu. Há Road Saints em todas as prisões. Têm um sistema de comunicação com o qual o FBI e a CIA podiam aprender alguma coisa. O Vogel disse que daria ele a notícia. Depois disse que os dez mil dólares que me tinha dado no mês anterior na berma da estrada tinham sido um investimento válido.

- Agradeço, Ted. Lembra-te de mim da próxima vez que precisares de um advogado.

- Combinado, Doutor.

Desligámos. Tirei do armário do corredor a minha primeira luva de beisebol e saí de casa.

Como tinha dispensado o Earl nesse dia, tive de ser eu a conduzir até ao Estádio dos Dodgers na Baixa. Encontrei pouco trânsito até chegar perto do local. O jogo de abertura é sempre estádio sobrelotado, mesmo sendo a um dia da semana. O início da temporada é um ritual primaveril que arrasta para a Baixa milhares de trabalhadores. É o único evento desportivo na relaxada Los Angeles onde se pode ver os homens vestidos de camisas brancas e gravatas. Querem todos fazer gazeta ao trabalho. Não há nada como o começo da temporada, antes dos lançamentos perdidos e oportunidades desperdiçadas. Antes de a realidade se instalar.

Cheguei primeiro que o Levin à bancada, íamos ficar na terceira fila junto ao campo, em lugares que tinham sido acrescentados ao estádio durante o fecho da temporada. O Levin deve ter pago um bom dinheiro pelos bilhetes. Mas provavelmente era dedutível como despesa de entretenimento.

Tínhamos combinado chegar cedo. Ele tinha-me ligado na noite anterior e disse que queria algum tempo em privado comigo. Além do mais, enquanto observávamos o aquecimento dos jogadores e apreciávamos as remodelações que o novo proprietário fizera no estádio, podíamos discutir a visita que eu fizera à Gloria Dayton e ele

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podia pôr-me a par das suas várias investigações relacionadas com o Louis Roulet.

Mas o Levin não chegou a tempo de assistir ao aquecimento. Os outros quatro advogados apareceram - três deles engravatados, pois vinham do tribunal - e perdemos a oportunidade de falar a sós.

Conhecia os outros quatro advogados de casos relacionados com embarcações de tráfico de droga em cujos julgamentos tínhamos trabalhado juntos. Aliás, a tradição de os profissionais da defesa irem juntos aos jogos dos Dodgers começou com os casos das embarcações. De acordo com um extenso mandado para impedir o fluxo de drogas para os Estados Unidos, a Guarda Costeira norte-americana começara a inspeccionar embarcações suspeitas nos oceanos. Quando encontravam drogas - neste caso, cocaína -, apreendiam as embarcações e as tripulações. Muitos dos casos eram encaminhadas para o Tribunal Distrital de Los Angeles. Isto resultava em acusações que por vezes envolviam doze ou mais arguidos de uma só vez. Cada arguido tinha o seu próprio advogado, a maior parte deles nomeados pelo tribunal e pagos pelo Tio Sam. Foram casos lucrativos e divertimo-nos. Depois alguém surgiu com a ideia de fazer encontros sobre os casos no Estádio dos Dodgers. Certa vez fizemos uma vaquinha para comprar uma sttite privada para o jogo dos Cubs.

As cerimónias antes do jogo começaram e o Levin sem aparecer. Centenas de pombos foram largados de cestos no campo; agruparam-se, circundaram o estádio ao som de grandes vivas e depois voaram para longe. Pouco depois, um bombardeiro B-2 sobrevoou o estádio, para maior aplauso dos espectadores. L.A. é assim. Há sempre alguma coisa para todos, bem como uma pequena ironia.

O jogo começou e o Levin ainda sem aparecer. Tentei ligar-lhe do telemóvel, embora houvesse muito ruído à minha volta. Deixei-lhe uma mensagem de voz.

"Mish, onde estás, rapaz? Já estamos a ver o jogo e os lugares são fantásticos, mas faltas tu. Estamos à tua espera."

Desliguei, olhei para os outros e encolhi os ombros.

- Não sei dele. Não atendeu a chamada - disse-lhes.

Deixei o telemóvel ligado e guardei-o.

Antes da primeira volta terminar, comecei a arrepender-me de ter dito à Lorna que não me importava se os Giants nos arrasassem por
20 0. O resultado estava já a 5-0 antes de os Dodgers conseguirem as primeiras tacadas da temporada e a multidão começou a ficar frustrada. Ouvi pessoas a queixar-se dos preços, da remodelação e da excessiva comercialização do estádio. Um dos advogados, o Roger Mils, observou

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o estádio e comentou que estava mais apinhado de logotipos das empresas do que um carro de corrida na NASCAR.

Os Dodgers conseguiram ficar na dianteira, mas à quarta volta perderam o ímpeto. Durante uma das interrupções resolvi gabar-me da rapidez com que o tribunal de recurso decidira o caso do Casey. Os outros advogados ficaram impressionados, mas um deles, o Dan Daly, disse que a revisão do recurso tinha sido tão rápida porque os três juizes estavam na minha lista de Natal. Respondi-lhe logo que se tinha esquecido do memorando da Ordem dos Advogados sobre a desconfiança dos jurados em relação a advogados de rabo-de-cavalo. E o facto é que o dele lhe dava pelo meio das costas.

Foi também durante esta interrupção do jogo que ouvi o telemóvel tocar. Abri-o sem verificar quem era.

- Raul?

- Não, senhor, daqui fala o Detective Lankford do Departamento da Polícia de Glendale. Estou a falar com Michael Haller?

- Sim - respondi.

- Tem um momento livre?

- Sim, mas não sei se vou conseguir ouvi-lo. Estou no jogo dos Dodgers. Posso ligar-lhe depois?

- Não, senhor, não pode. Conhece uma pessoa chamada Raul Aaron Levin? É um...

- Sim, conheço-o. Que se passa?

- Lamento informá-lo, mas o Sr. Levin está morto. Foi vítima de um homicídio na sua própria casa.

A cabeça descaiu-me de tal modo para a frente que embati nas costas do homem sentado à minha frente. Tapei um ouvido com a mão e encostei o telemóvel ao outro. Tudo pareceu desaparecer à minha volta.

- Como aconteceu?

- Não sabemos - disse o Lankford. - É por essa razão que estamos aqui. Segundo parece, ele tem estado a trabalhar para si ultimamente. Há alguma possibilidade de vir aqui para responder a algumas perguntas e ajudar-nos?

Respirei fundo e tentei manter a voz calma.

- Vou já para aí.

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23


O corpo do Raul Levin estava na sala das traseiras da sua casa a alguns quarteirões de distância de Brand Boulevard. A sala destinava-se aparentemente a um solário ou a uma sala de estar para ver televisão, mas o Raul transformara-a em escritório. Tal como eu, não precisava de ter um espaço comercial. O seu negócio era pequeno. Nem sequer vinha anunciado nas Páginas Amarelas. Trabalhava para advogados e estes encarregavam-se de divulgar os seus serviços. Os cinco advogados com quem ia encontrar-se no jogo de beisebol eram testemunhos da sua perícia e competência.

Os polícias fizeram-me esperar na sala de estar da frente até os detectives virem falar comigo. Um agente de uniforme ficou no corredor, não fosse eu correr como um louco para as traseiras da casa ou para a porta da entrada. Na posição onde ele estava, facilmente me deteria. Fiquei sentado à espera enquanto pensava no meu amigo.

Durante o caminho do estádio pensava que sabia quem tinha matado o Levin. Não precisava que me levassem à sala das traseiras para ver ou ser informado dos indícios para saber quem era o assassino. Sabia que o Raul se tinha aproximado demasiado do Louis Roulet. E tinha sido eu a pedir-lhe para fazer isso. A única questão sem resposta era saber o que eu ia fazer.

Vinte minutos depois apareceram dois detectives. Levantei-me e falámos. Um deles identificou-se como Lankford, o detective que me tinha telefonado. Era o mais velho, o veterano. O parceiro era uma mulher chamada Sobel. Não tinha aspecto de andar a investigar homicídios há muito tempo.

Não apertámos as mãos. Estavam com luvas de borracha. Também tinham colocado protectores de plástico por cima dos sapatos. O Lankford estava a mascar uma pastilha elástica.

- Okay, eis o que descobrimos - disse num tom brusco. - O Levin estava no escritório, sentado à secretária. A cadeira estava um pouco afastada da secretária e, portanto, estava virado para o intruso. Levou

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um único tiro no peito. Uma bala pequena, de calibre 22 mm parece-me, mas vamos ter de esperar pelo perito para saber.

O Lankford bateu no meio do peito e ouvi o som áspero do colete à prova de balas por baixo da camisa.

Corrigi-o, pois tinha pronunciado mal o nome do Levin agora e quando me tinha telefonado, como se fosse Levine.

- Levin, pois seja - disse, corrigindo-se. - De qualquer modo, depois do tiro tentou levantar-se ou caiu simplesmente ao chão. Morreu de cara contra o chão. O intruso vandalizou-lhe o escritório e não sabemos ainda o que procurava ou o que possa ter levado.

- Quem o encontrou? - perguntei.

- Um vizinho que viu o cão correr solto. O intruso deve ter deixado sair o cão antes ou depois do homicídio. O vizinho encontrou-o solto, entrou e descobriu o corpo. Não me parece grande cão de guarda, se quer que lhe diga. É uma daquelas bolinhas de pêlo.

- Um caniche tibetano - expliquei.

Já tinha visto o cão e o Levin falava-me dele, mas não me lembrava do nome. Era qualquer coisa Rex ou Bronco - um nome que contradizia o pequeno porte do animal.

A Sobel consultou um livro de apontamentos antes de continuar com o interrogatório.

- Não encontrámos nada para podermos contactar com os familiares mais próximos. Sabe se ele tinha família?

- Acho que a mãe vive na zona leste. O Levin nasceu em Detroit. Talvez ela viva lá. Acho que não se relacionavam muito.

A detective assentiu com a cabeça.

- Encontrámos uma agenda dele. Tinha o seu nome em quase todos os dias durante o último mês. Estava a trabalhar em algum caso em particular para si?

- Em dois casos diferentes. Mas sobretudo num.

- Importa-se de nos falar disso? - perguntou.

- Tenho um caso prestes a ir a julgamento. No próximo mês. Tentativa de violação e homicídio. O Levin estava a investigar as provas e a ajudar-me na preparação.

- Quer você dizer que ele estava a ajudá-lo a tentar contornar a investigação oficial, ha? - disse o Lankford.

Apercebi-me de que a cordialidade do Lankford ao telefone não passara de falinhas mansas para me fazer vir ali. A partir de agora iria agir de outra maneira. Parecia até que estava a mascar a pastilha elástica com mais agressividade do que antes.

- Chame-lhe o que quiser, detective. Todos têm direito a defender-se.

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- Pois claro, e são todos inocentes, só que a culpa é dos pais por os terem desmamado demasiado cedo - disse o Lankford. - Seja como for, o Levine dantes era polícia, certo?

Voltou a pronunciar mal o nome.

- Sim, era da Polícia de L.A. Era detective do Departamento de Crimes Contra Pessoas, mas retirou-se da força doze anos depois. Acho que foi doze anos. Terá de verificar. E pronuncia-se Levin.

- Certo, Levin. Se calhar não conseguia amealhar o suficiente a trabalhar para os tipos bons, ha?

- Depende da perspectiva, acho.

- Podemos voltar ao caso em que está a trabalhar? - perguntou a Sobel. - Como se chama o arguido?

- Louis Ross Roulet. O julgamento vai ser no Tribunal Superior de Van Nyus, presidido pela Juíza Fullbright.

- Está detido?

- Não, saiu com caução.

- Havia alguma animosidade entre esse Roulet e o Sr. Levin?

- Que eu saiba, não.

Já me tinha decidido. Ia lidar com o Roulet do modo que melhor sabia. Seguiria o plano que já tinha arquitectado com a ajuda do Raul Levin. Lançar uma granada submarina no caso e afastar-me antes de rebentar. Sentia que devia isso ao meu amigo Mísh. Ele próprio quereria que fosse assim. E não iria subdelegar funções em ninguém. Trataria de tudo pessoalmente.

- Teria sido alguma coisa que ver com homossexuais? - perguntou o Lankford.

- O quê? Por que diz isso?

- Um cãozinho todo coquete e depois na casa inteira só se vê fotos de gajos e do cão. Por toda a parte. Nas paredes, ao lado da cama, em cima do piano.

- Olhe com mais atenção, detective. Provavelmente são fotos de uma pessoa só. O parceiro dele morreu há uns anos. Acho que desde então nunca esteve com mais ninguém.

- Morreu de sida, aposto.

Não corroborei. Limitei-me a aguardar. Por um lado, estava irritado com os modos do Lankford. Por outro, este método de investigação grosseiro talvez o impedisse de relacionar o Roulet com a morte do Levin. Por mim tudo bem. Só precisava de o empatar durante cinco ou seis semanas e depois já não me importava se viessem a descobrir ou não. Nessa altura, já teria completado o meu plano.

- Este sujeito costumava andar pela cena gay - perguntou o Lankford.

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Encolhi os ombros. - Não faço ideia. Mas se tivesse sido um homicídio gay, por que razão só o escritório foi vasculhado e não a casa inteira?

O Lankford pareceu ficar momentaneamente estupefacto com a lógica da minha pergunta. Mas depois atingiu-me com um golpe

imprevisto onde esteve você esta manhã, doutor?

- O quê?

- Pergunta de rotina. O cenário indica que a vítima conhecia o assassino. Deixou-o entrar nas traseiras da casa. Como disse há pouco, provavelmente estava sentado à secretária quando a bala o atingiu. Parece-me que estava à vontade com o assassino. Vamos ter de investigar todos os conhecidos dele, profissional e socialmente.

- Está a dizer que sou suspeito nisto?

- Não, só estou a tentar esclarecer as coisas.

- Estive em casa a manhã toda. Estava a preparar-me para me encontrar com o Raul no Estádio dos Dodgers. Saí para o estádio por volta do meio-dia e era aí onde estava quando o senhor me telefonou.

- E antes disso?

- Como disse, estive em casa. Sozinho. Mas por volta das onze recebi um telefonema que comprova que estava em casa, que fica pelo menos a meia-hora daqui. Se ele foi morto às onze, então nunca poderia ter sido eu.

O Lankford não mordeu o isco. Não me tinha dito ainda a hora da morte. Talvez de momento ainda não soubessem.

- Quando foi a última vez que falou com ele? - perguntou.

- Ontem à noite ao telefone.

- Quem ligou a quem e porquê?

- Ligou-me ele a perguntar se podia aparecer mais cedo no jogo. Disse-lhe que sim.

- Como assim?

- Ele gosta... gostava de assistir ao aquecimento. Disse que podíamos falar um pouco do caso Roulet. Nada de específico, mas há uma semana que ele não me punha a par do que tinha descoberto.

- Obrigado pela sua cooperação - disse o Lankford com um pesado sarcasmo na voz.

Espero que compreenda que acabo de fazer aquilo que digo a todos os meus clientes e a quem me quer ouvir para não fazer. Falei consigo sem um advogado presente, forneci-lhe o meu álibi. Devo estar louco, só pode.

Eu disse obrigado.

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A Sobel falou. - Há mais alguma coisa que nos possa dizer, Sr. Haller? Acerca do Sr. Levin e do trabalho que fazia.

- Sim, há mais uma coisa. Uma coisa que provavelmente deveriam verificar. Mas quero que isto seja confidencial.

Olhei para o agente uniformizado parado no corredor. A Sobel seguiu-me o olhar e compreendeu que eu queria privacidade.

- Agente, espere lá fora, por favor.

O agente saiu com um ar aborrecido, talvez porque tinha sido uma mulher a dar-lhe a ordem.

- Okay - disse o Lankford. - Que tem para dizer?

- Vou ter de verificar as datas exactas, mas há umas semanas atrás em Março, o Raul trabalhou para mim noutro caso que envolvia a denúncia que um dos meus clientes fizera de um traficante de droga. 'O Raul tinha feito alguns telefonemas e ajudara a identificar o tipo. E vim a saber depois que o tipo era colombiano e que estava bem relacionado. Talvez tivesse amigos que...

Deixei que fossem eles a inferir o resto.

- Não sei - disse o Lankford. - Isto foi muito rápido. Não me parece que tenha sido uma vingança. Não lhe cortaram a garganta nem lhe arrancaram a língua. Um único tiro, e o facto de lhe terem vasculhado o escritório. Essa malta do traficante andaria à procura de quê?

Abanei a cabeça.

- Talvez à procura do nome do meu cliente. O acordo que fiz impedia essa revelação.

O Lankford anuiu, pensativo.

- Como se chama esse cliente?

- Não posso dizer-lhe. Privilégio advogado-cliente.

- Okay, agora vamos começar com tretas. Como vamos conseguir investigar isto se nem sequer sabemos o nome desse cliente? Não se importa com o seu amigo ali caído no chão, com um pedaço de chumbo no coração?

- Importo-me, sim. Sou claramente o único aqui que se importa. Mas também sou obrigado a reger-me pelas regras e ética da lei.

- O seu cliente pode estar em perigo.

- O meu cliente está seguro. Está num programa de reabilitação.

- É uma mulher, não é? - disse a Sobel. - Só diz "cliente", sem especificar se é homem ou mulher.

- Não vou falar do meu cliente. Se querem o nome do traficante, é Hector Arrande Moya. Está sob prisão federal. Creio que a acusação inicial provinha da DEA em San Diego. É tudo o que posso dizer -

A Sobel anotou tudo. Achei que já lhes tinha dado motivos suficientes para investigarem para além do Roulet e da perspectiva gay.

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-- Sr. Haller, já esteve antes no escritório do Sr. Levin? - perguntou aSobel.

- Algumas vezes. Mas não nos últimos meses.

- Importa-se de vir lá atrás connosco? Talvez detecte alguma coisa fora do sítio ou que falta.

- Ele ainda está lá?

- A vítima? Sim, está como foi encontrado.

Não sabia se queria ver o corpo do Raul Levin no centro de uma cena do crime. Mas depois decidi, de repente, que precisava de o ver e que devia gravar essa visão na mente. Iria precisar disso para alimentar a minha determinação e o meu plano.

- Okay.

- Calce isto então e não toque em nada enquanto estiver lá - disse o Lankford. - Ainda estamos a examinar a cena do crime.

Deu-me um par de protectores de plástico para os sapatos. Sentei-me no sofá do Raul e calcei-os. Depois segui-os pelo corredor até à sala da morte.

O corpo do Raul Levin estava in situ - como o tinham encontrado. Estava de peito contra o chão, de cara virada para a direita, de boca e olhos abertos. O corpo estava numa posição estranha, com uma das coxas mais elevada que a outra e com os braços e as mãos por baixo dele. Tudo indicava que tinha caído da cadeira da secretária atrás dele.

Arrependi-me imediatamente de ter concordado entrar ali. De repente, soube que aquele olhar final na cara do Raul iria sobrepor-se a todas as outras memórias visuais que tinha dele. Seria obrigado a tentar esquecê-lo, para não ter de voltar a ver aqueles olhos na minha mente.

Aconteceu o mesmo com o meu pai. A única memória visual que tenho é de um homem deitado numa cama. Teria uns quarenta e cinco quilos no máximo e estava a ser devastado por um cancro. Todas as outras recordações visuais que tinha dele eram falsas. Provinham de imagens em livros que tinha lido.

Havia várias pessoas a operar ali. Investigadores da cena do crime e pessoal do gabinete do perito médico. A minha cara deve ter denunciado o terror que estava a sentir.

Sabe por que é que ainda não podemos tapá-lo? - perguntou-me o Lankford. - Por causa de pessoas como você. Por causa do

J. Simpson. É o que eles chamam transferência de provas. Uma coisa em que vocês, os advogados, gostam logo de saltar em cima. Portanto, nada de tapar o corpo agora. Só quando o tirarmos daqui.

Mantive-me calado. Limitei-me a assentir com a cabeça. Ele tinha razão.

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- Importa-se de vir aqui à secretária e dizer-nos se vê alguma coisa fora do normal? - pediu a Sobel, que aparentemente nutria alguma simpatia por mim.

Fiquei-lhe grato, porque assim podia ficar de costas viradas para o corpo. Aproximei-me da secretária, que era uma junção de três mesas de trabalho num dos cantos da sala. Reparei que era mobiliário da loja IKEA perto de Burbank. Nada de dispendioso. Era simples e funcional. A mesa do meio tinha um computador e prateleira para o teclado. As mesas de ambos os lados pareciam espaços de trabalho idênticos e talvez o Levin as usasse para separar as investigações.

Olhei para o computador e perguntei-me que ficheiros teria o Levin ali sobre o Roulet. A Sobel apercebeu-se do meu olhar.

- Não temos nenhum perito informático - disse ela. - É um departamento pequeno. Vem aí uma pessoa do gabinete do xerife, mas parece-me que a drive foi arrancada.

Apontou com a caneta para debaixo da mesa onde se via a torre do PC com um dos tampos removidos.

- Possivelmente não vamos encontrar nada lá dentro - disse ela.

- E quanto às mesas?

Observei primeiro a mesa com o computador. Havia papéis e ficheiros espalhados de modo aleatório. Verifiquei algumas das etiquetas e reconheci os nomes.

- Alguns destes nomes são clientes meus, mas são casos antigos. Já encerrados.

- Vieram provavelmente do arquivo do armário - disse a Sobel.

- O assassino podia tê-los espalhado aqui para nos confundir. Para esconder aquilo que estava a procurar ou que ia levar. E ali?

Aproximámo-nos da mesa à direita do computador. Esta não estava tão desarrumada. Havia um calendário no qual o Levin anotava as horas de trabalho e o advogado para quem estava a trabalhar nessa altura. Verifiquei as datas e vi que o meu nome constava várias vezes nas últimas cinco semanas. Era como eles me tinham dito: o Levin tinha trabalhado praticamente a tempo inteiro para mim.

- Não sei - disse. - Não sei que procurar. Não estou a ver nada que possa ajudar.

- Bem, a maioria dos advogados nunca consegue ajudar - disse o Lankford atrás de mim.

Não me dei ao trabalho de me virar para me defender. Ele estava junto do corpo e eu não queria ver o que ele estava a fazer. Estendi a mão para girar o Rolodex em cima da mesa para poder ver os nomes.

- Não toque nisso! - apressou-se a Sobel a dizer. Retirei a mão.

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- Desculpe. Ia só ver os nomes. Eu não...

não acabei a frase. Comecei a sentir-me mal. Só queria sair e beber alguma coisa. Tinha a sensação de que ia vomitar o cachorro-quente que me tinha sabido tão bem no estádio.

- Ei, vejam só - disse o Lankford.

Eu e a Sobel virámo-nos e vimos que o pessoal do perito médico estava a virar o corpo do Levin. O sangue tinha-lhe manchado a parte da frente da T-shirt dos Dodgers que tinha vestido. Mas o Lankford estava a apontar para as mãos do morto, até então ocultas debaixo do corpo. Os dedos médio e anelar da mão esquerda estavam dobrados contra a palma, com o indicador e o mindinho completamente esticados.

- Este tipo era fã da equipa dos Texas Longhorns ou quê? - disse o Lankford.

Ninguém se riu.

- Que acha? - perguntou-me a Sobel.

Olhei fixamente para aquele último gesto do meu amigo e limitei-me a abanar a cabeça.

- Ah, já sei - disse o Lankford. - É como um sinal. Um código. Está a dizer-nos que foi o diabo que fez isto.

Lembrei-me de o Raul ter chamado diabo ao Roulet, de ter a prova de que ele era perverso. E soube então o significado desta última mensagem do meu amigo. Tentou dizer-me enquanto morria no chão do escritório. Tentou avisar-me.

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24


Fui ao Four Green Fields e pedi uma Guinness, mas depressa passei para uma vodca com gelo. Achei que não fazia sentido atrasar as coisas. O jogo dos Dodgers estava a terminar na televisão do bar. O empregado estava de olhos colados ao ecrã, mas eu já não estava interessado na abertura da nova temporada. Já não queria saber do resultado.

Depois do segundo assalto à vodca, peguei no telemóvel e comecei a fazer chamadas. Primeiro liguei aos outros quatro advogados que estavam no jogo. Todos tínhamos saído do estádio quando eu soube do acontecido, mas eles tinham ido para casa sabendo apenas que o Levin estava morto, sem mais pormenores. Depois liguei à Lorna, que começou a chorar ao telefone. Falei com ela durante um bocado e depois fez-me a pergunta que eu tivera esperanças de evitar.

- Isto foi por causa do teu caso? Por causa do Roulet?

- Não sei - menti. - Falei disso aos polícias, mas pareciam estar mais interessados no facto de ele ser gay do que no resto.

- Ele era gay}

Sabia que isto ia funcionar como uma deflexão.

- Ele não andava por aí a anunciá-lo.

- E tu sabias e nunca me disseste?

- Não havia nada para dizer. Era a vida dele. Se ele quisesse contar às pessoas, já teria contado, acho.

- Os detectives disseram que foi isso que aconteceu?

- O quê?

- Tu sabes, que foi assassinado por ser gay.

- Não sei. Mas não paravam de perguntar isso. Não sei o que acham eles. Vão investigar tudo e esperemos que descubram alguma coisa.

Ficámos em silêncio. Olhei para a televisão no preciso momento em que a marcação virou a favor dos Dodgers e o estádio explodiu de alegria e confusão. O empregado gritou de alegria e pegou no comando para aumentar o volume. Desviei o olhar e tapei o ouvido livre com a mão.

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- Dá que pensar, não dá? - disse a Lorna.

- O quê?

- No que fazemos. Mickey, quando apanharem o cabrão que fez isto, o tipo pode ligar-me para te contratar.

Fiz sinal ao empregado agitando o gelo no copo vazio. Queria outra bebida. Não queria dizer à Lorna que acreditava que já estava a trabalhar para o cabrão que tinha matado o Raul.

- Tem calma, Lorna. Estás a...

- Podia acontecer!

- Ouve, o Raul era meu colega e também meu amigo. Mas não vou [mudar o que faço ou aquilo em que acredito por causa... - Talvez devesses. Talvez todos devêssemos. É o que te digo. Recomeçou a chorar. O empregado trouxe a bebida e emborquei um (terço de uma só vez. - Lorna, queres que vá aí?

- Não, não quero nada. Nem sei o que quero. Isto é tão horrível. - Posso dizer-te uma coisa? - O quê? Claro que podes.

- Lembras-te do Jesus Menendez? O meu cliente? - Sim, mas que tem ele que ver...

- Estava inocente. E o Raul estava a trabalhar nisso. Estávamos a [trabalhar nisso, íamos tirá-lo da prisão. - Por que estás a contar-me isso?

- Estou a contar-te porque não podemos aceitar o que aconteceu ao Raul e ficar parados sem fazer nada. Aquilo que fazemos é importante. É necessário.

As palavras soaram ocas enquanto as dizia. Ela não respondeu, Provavelmente tinha-a confundido porque eu próprio estava confuso. - Estás bem? - perguntei. - Estou.

- Óptimo. Tenho de fazer mais umas chamadas, Lorna. - Depois dizes-me quando vai ser o funeral? - Está bem.

Desliguei e decidi fazer uma pausa antes de voltar a telefonar. Pensei na última pergunta da Lorna e apercebi-me de que talvez tivesse de ser eu a organizar o funeral. A não ser que surgisse alguma senhora idosa de Detroit que há vinte e cinco anos tinha cortado os laços com o Raul Levin.

Empurrei o copo para a ponta do balcão e disse ao empregado: -- Dê-me uma Guinness e sirva-se também uma. Decidi que estava na altura de abrandar, e uma maneira de o fazer era beber uma Guinness pois demorava bastante tempo a encher o

199
copo na torneira. Quando ele ma trouxe, reparei que tinha esculpido uma harpa na espuma com o bocal da torneira. Uma harpa de anjo. Ergui o copo antes de beber.

- Deus abençoe os mortos - disse.

- Deus abençoe os mortos - disse o empregado.

Dei uma grande golada e a cerveja espessa parecia argamassa que estava a engolir para manter os tijolos bem unidos dentro de mim. De repente senti vontade de chorar. Mas o telemóvel começou a tocar Agarrei-o sem verificar quem era e atendi. O álcool distorcera-me a voz ao ponto de a tornar irreconhecível.

- É o Mick? - perguntou a outra pessoa.

- Sim, quem fala?

- É o Louis. Acabo de saber o que aconteceu ao Raul. Os meus pêsames.

Afastei rapidamente o telemóvel do ouvido como se fosse uma serpente prestes a morder-me. Lancei o braço para trás, pronto para atirar o telemóvel contra o espelho atrás do balcão, onde vi o meu reflexo. Parei e baixei o braço.

- Sim, filho da puta, como é que tu...

Parei e desatei a rir ao aperceber-me do que tinha acabado de lhe chamar e ao lembrar-me da teoria do Raul acerca do Roulet.

- Estás a beber? - perguntou o Roulet.

- Podes ter a certeza de que estou a beber, raios - disse. - Como raio já sabes o que aconteceu ao Mish?

- Se estás a referir-te ao Sr. Levin, acabo de receber uma chamada da polícia de Glendale. Uma detective disse que queria falar comigo por causa dele.

A resposta teve o efeito de espremer pelo menos duas das vodcas do meu fígado. Endireitei-me no banco.

- A Sobel? Foi ela que ligou?

- Sim, acho que sim. Disse que tinhas sido tu a dar-lhe o meu nome. Disse que eram meras questões de rotina. E vem cá falar comigo.

- Onde?

- Ao escritório.

Reflecti por momentos, mas achei que a Sobel não correria nenhum perigo, mesmo que fosse sem o Lankford. O Roulet não tentaria nada com um polícia, sobretudo no seu próprio escritório. A minha maior preocupação era que a Sobel e o Lankford andassem já a investigar o Roulet e me tirassem a oportunidade de vingar pessoalmente o Raul Levin e o Jesus Menendez. O Roulet teria deixado alguma impressão digital? Algum vizinho o teria visto entrar na casa do Levin?

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Ela só disse isso?

Só. Disse que estavam a falar com todos os clientes recentes dele

e era eu o mais recente.

Não fales com eles.

Tens a certeza?

Sem o teu advogado presente, não.

- Não irão suspeitar se não falar com eles, tipo dar-lhes um álibi ou algo do género?

Não importa. Não falam contigo a não ser que eu dê permissão.

E não vou permitir.

Cerrei com força a mão livre. Não aguentava a ideia de estar a dar conselhos legais ao homem que tinha matado o meu amigo nessa mesma manhã.

- Okay - disse o Roulet. - Vou dizer-lhe isso.

- Onde estiveste hoje de manhã?

- Eu? Estive aqui no escritório. Porquê?

- Alguém te viu?

- Bem, a Robin chegou às dez. Antes disso, mais ninguém. Visualizei a mulher com o corte de cabelo que parecia uma foice.

Não soube o que dizer ao Roulet porque desconhecia ainda a hora da morte. Não queria mencionar nada acerca da pulseira electrónica que ele supostamente tinha no tornozelo.

- Liga-me depois de a detective Sobel sair. E lembra-te, o que quer que ela ou o colega te digam, não fales com eles. Podem mentir-te se quiserem. E todos eles mentem. Considera tudo o que eles disserem como uma mentira. Estão só a tentar fazer-te falar. Se te disserem que dei permissão para falares, é mentira. Telefonas-me logo e mando-os dar uma volta.

- Certo, Mick. Vou fazer isso. Obrigado.

Desligou. Fechei o telemóvel e pousei-o em cima do balcão como se fosse algo sujo.

- Okay, não tens de quê - murmurei.

Emborquei um quarto da cerveja e voltei a pegar no telemóvel para ligar ao Fernando Valenzuela. Estava em casa, acabava de vir do jogo dos Dodgers. Isso significava que tinha saído cedo para evitar o trânsito. Típico de um fã de L.A.

- O Roulet ainda anda com a pulseira electrónica?

- Sim, ainda a tem.

- Como funciona? Consegues localizar onde ele esteve ou só o localizas no momento presente?

- É posicionamento global. Aquilo envia um sinal. Dá para localizar onde a pessoa esteve.

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- Tens o sistema aí ou é só no escritório?

- Tenho no meu portátil. O que se passa?

- Quero que verifiques onde ele esteve hoje.

- Bem, deixa-me ligar o computador. Espera um pouco. Esperei enquanto acabava a Guinness. Pedi ao empregado para me

servir outra antes que o Valenzuela voltasse a falar.

- Estás onde, Mick?

- No Four Green Fields.

- Passa-se alguma coisa?

- Sim, uma coisa má. Já tens isso pronto ou quê?

- Sim, já estou a ver. Que registos queres verificar?

- Começa pela manhã de hoje.

- Okay. Ele, ha... pouco se mexeu hoje. Tenho registos dele em casa e depois no escritório às oito. Parece que fez uma pequena viagem por perto, um par de quarteirões, se calhar para ir almoçar, e depois voltou para o escritório. Ainda continua lá.

Reflecti por momentos. O empregado trouxe a cerveja.

- Val, como se consegue tirar essa coisa do tornozelo?

- Queres tu dizer, se estivesses na pele dele? Não é possível. Está fechada e a pequena chave usada é única. E sou eu que tenho a única que existe.

- Tens a certeza disso?

- Sim. Tenho-a aqui no meu chaveiro.

- E não há nenhuma cópia, nem do fabricante?

- Supostamente, não. E aliás, não importa. Se o anel for quebrado, mesmo que ele tivesse conseguido abri-lo, recebia aqui um alarme no sistema. Também tem aquilo a que se chama um "detector de massa". Depois de lhe pôr aquela coisa no tornozelo, recebo sempre um alarme no computador mal o sistema detecte que aquilo foi retirado. E isso não aconteceu, Mick. Por isso, a única maneira possível seria com uma serra. Cortar a perna e deixar a pulseira no tornozelo. É a única maneira.

Dei um gole na cerveja. O empregado não tinha feito nenhum trabalho artístico desta vez.

- E a bateria? Se a bateria acabar, perdes o sinal?

- Não, Mick. Também tenho isso controlado. Ele tem um carregador e um receptáculo na pulseira. De tantos em tantos dias tem de ligá-lo durante um par de horas para carregar. Tipo quando está sentado à secretária ou a dormir uma sesta, ou algo do género. Se a bateria fica abaixo dos vinte por cento, recebo um alarme no computador e ligo-lhe para ele a carregar. Se não o fizer, recebo outro alarme aos quinze por cento e depois, aos dez por cento, a pulseira começa a

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soar um alarme e ele não tem maneira de a tirar ou de a desligar. Nada bom para quem pretende escapar. E esses dez por cento dão ainda para cinco horas de localização. Consigo localizá-lo em cinco horas sem problemas.

- Okay, okay.

Fiquei convencido com a explicação científica.

Contei-lhe do Levin. Disse-lhe que a polícia talvez fosse verificar o Roulet e que a pulseira e o sistema de localização seriam provavelmente o álibi do nosso cliente. O Valenzuela ficou aturdido com a notícia. Talvez não fosse muito chegado ao Levin como eu, mas conhecia-o há muito tempo.

- Que pensas que aconteceu, Mick?

Sabia que estava a perguntar-me se achava que o assassino era o Roulet ou que estivesse de algum modo por trás dessa morte. O Valenzuela não estava a par de tudo o que eu e o Levin tínhamos descoberto.

- Não sei o que pensar - disse-lhe. - Mas devias ter cuidado com este sujeito.

- E tu tem cuidado também.

- Certo.

Desliguei, perguntando-me se não teria escapado algo ao Valenzuela. Se o Roulet não teria arranjado maneira de tirar a pulseira do tornozelo ou subverter o sistema de localização. A explicação científica tinha-me convencido, mas não o lado humano da coisa. Há sempre falhas humanas.

O empregado aproximou-se de mim.

- Ei, amigo, perdeu as chaves do carro?

Olhei à volta para verificar se estava mesmo a falar comigo e abanei a cabeça.

- Não - respondi.

- Tem a certeza? Encontraram umas chaves no parque de estacionamento. É melhor verificar.

Procurei no bolso do casaco e mostrei-lhe as chaves na palma aberta.

- Está a ver, eu tinha-lhe dito...

O empregado tirou-me as chaves da mão num gesto rápido e inesperado e sorriu.

- Ter caído neste truque acho que serve bem como teste de sobriedade - disse. - Bem, amigo, não vai conduzir, pelo menos por

K enquanto. Quando quiser ir, chamo-lhe um táxi.

l Recuou para dentro do balcão, não fosse eu objectar com violência

àquela artimanha. Mas limitei-me a assentir com a cabeça.

- Apanhou-me.

Pousou as chaves em cima do balcão. Verifiquei as horas. Ainda não eram cinco sequer. O embaraço começou a espreitar através do torpor

203
alcoólico. Tinha optado pela saída mais fácil. A saída do cobarde, embebedando-me face àquele terrível acontecimento.

- Pode levar - disse, apontando para a minha Guinness.

Fiz outra chamada. A Maggie atendeu de imediato. Os tribunais fecham geralmente por volta das quatro e meia. Depois os procuradores costumam ficar a trabalhar à secretária até ao final do dia.

- Ei, já estás na hora de sair?

- Haller?

- Sim.

- O que se passa? Estás a beber? A tua voz está diferente.

- Acho que desta vez sou eu que preciso de ti para me levares a casa.

- Onde estás?

- No For Greedy Fucks.6

- O quê?

- Four Green Fields. Já estou aqui há um bom bocado.

- Michael, o que é que...

- O Raul Levin está morto.

- Oh, meu Deus, o que é...

- Assassinado. Podes levar-me a casa desta vez? Bebi demasiado.

- Deixa-me só ligar à Stacey a pedir-lhe que fique até tarde com a Hayley e já vou ter contigo. Não tentes sair daí, okayl Não saias daí.

- Não te preocupes, o empregado não me deixa sair.

6 Espécie de trocadilho fonético entre o nome do bar Four Green Fields (Quatro Campos Verdes) e For Greedy Fucks (P218
or Fodas Gananciosas). (NT)

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25


Depois de desligar, disse ao empregado que tinha mudado de ideias e queria mais uma cerveja enquanto esperava pela boleia. Peguei na carteira e pousei o cartão de crédito no balcão. Primeiro tirou a conta e depois serviu-me a Guinness. Demorou tanto tempo a encher o copo com cuidado para fazer pouca espuma que mal tive tempo para a provar pois a Maggie chegou entretanto.

- Que rápido - disse-lhe. - Queres beber alguma coisa?

- Não, ainda é muito cedo. Vou levar-te a casa.

- Okay.

Levantei-me, tendo o cuidado de guardar o cartão de crédito e o telemóvel, e saí de braço pelos ombros dela, com a sensação de que tinha despejado mais cerveja e vodca pelo ralo abaixo do que pela minha garganta.

- Parei mesmo à porta - disse a Maggie. - Four Greedy Fucks, como foste lembrar-te disso? São quatro os donos?

- Não, for no sentido de pelo estado. Como em Haller pela defesa. Não pelo número quatro. Fodas gananciosas como os advogados fazem.

- Obrigadinha.

- Não me refiro a ti. Não és advogada. És procuradora.

- Quanto bebeste, Haller?

- Algo entre muito e demasiado.

- Não vomites no carro.

- Está prometido.

Chegámos ao carro, um desses Jaguar baratuchos. Tinha-o comprado porque a fazia sentir-se com classe, mas toda a gente sabia que não passava de um Ford disfarçado. Nunca lhe critiquei a escolha. O que a fazia feliz, tornava a minha vida ainda mais feliz - à excepção da vez em que achou que divorciar-se de mim tornaria a sua vida mais feliz. Fiquei eu a perder.

Ajudou-me a entrar e partimos.

- E vê lá se não desmaias - disse enquanto saíamos do estacionamento. - Não conheço o caminho.

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- Segue por Laurel Canyon, pela colina acima. Depois é a primeira curva à esquerda no fundo.

Embora fosse supostamente uma estrada de ligação, demorámos quase quarenta e cinco minutos a chegar a Fareholm Drive por causa do trânsito ao final do dia. Contei-lhe do Raul Levin e o que tinha acontecido. Não reagiu como a Lorna porque não chegara a conhecer o Levin. Embora eu o conhecesse e recorresse aos seus serviços de investigador durante anos, só se tinha tornado um amigo depois de me divorciar. Aliás, foi o Raul que mais de uma noite me levou do Four Green Fields para casa enquanto eu tentava superar o fim do meu casamento.

Disse-lhe para parar no espaço à frente da garagem pois o meu comando estava no Lincoln estacionado perto do bar. Também me dei conta de que a chave da porta da frente tinha ficado junto com a chave do Lincoln, que tinha sido confiscada pelo empregado do bar. Tivemos de ir ao alpendre das traseiras buscar a chave sobressalente - a que o Roulet me tinha dado -, escondida debaixo de um cinzeiro na mesa de piquenique. Entrámos pelas traseiras, que davam acesso directo para o meu escritório. E ainda bem, porque estava tão embriagado que fiquei contente por não ter de subir as escadas da frente. Não só teria ficado esgotado como a visão daquela paisagem lembraria à Maggie as desigualdades entre a vida de procurador e a vida de fodilhão ganancioso.

- Ah, que lindo - disse ela. - A nossa chávena de chá. Segui-lhe o olhar e vi que estava a falar da foto da nossa filha em

cima da secretária. Fiquei entusiasmado por ter inadvertidamente marcado um ponto aos olhos dela.

- Pois é - disse eu, tentando capitalizar a oportunidade.

- Onde fica o quarto? - perguntou.

- Ora, ora, chama-se a isso ser frontal. À direita.

- Desculpa, Haller, não posso demorar. Só tenho algumas horas até a babysitter ir embora e vou ter de voltar cedo por causa do trânsito.

Levou-me para o quarto e sentámo-nos na cama.

- Obrigado por fazeres isto - disse-lhe.

- Uma boa acção merece outra, acho.

- Acho que fiz uma boa acção quando te levei a casa na outra noite. Agarrou-me no rosto e virou-me para ela. Beijou-me. Entendi isso

como uma confirmação de que tínhamos feito amor nessa noite. Sentia-me incrivelmente mal por não conseguir lembrar-me.

- Guinness - disse ela, lambendo os lábios.

- E um pouco de vodca.

- Boa combinação. De manhã vais acordar ressacado.

- Ainda é muito cedo, acho que a ressaca vai começar esta noite. E se fôssemos buscar jantar ao Dan Tana's? Podíamos...

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- Não, Mick. Tenho de ficar com a Hayley e tens de dormir. Esbocei um gesto de rendição.

- Okay, okay.

- Liga-me de manhã. Quero falar contigo quando estiveres sóbrio.

- Okay.

-- Queres despir-te e enfiar-te debaixo dos lençóis?

- Não, estou bem. Vou só...

Inclinei-me para trás e tirei os sapatos aos pontapés. Depois tirei da gaveta da mesinha-de-cabeceira um frasco de Tylenol e um CD que um cliente chamado Demetrius Folks me tinha dado. Era um rufia de Norwalk conhecido nas ruas como Diabinho. Certa vez disse-me que uma noite teve uma visão e que sabia que estava destinado a morrer jovem e de modo violento. Deu-me o CD e disse-me para o ouvir quando tivesse morrido. E assim fiz. A profecia do Demetrius tornou-se real. Foi morto num tiroteio entre veículos em andamento cerca de seis meses depois de me dar o CD. Tinha escrito Wreckrmm pelo Diabinho7 no disco com um marcador. Era uma colecção de baladas que ele tinha gravado de CD do Tupac.

Enfiei o disco no leitor Bose e começou a tocar a batida rítmica de "Deus Abençoe os Mortos". A canção era uma homenagem a camaradas caídos.

- Ouves estas coisas? - perguntou a Maggie, olhando-me com descrença.

Encolhi os ombros o melhor que consegui, assim apoiado no cotovelo.

- Às vezes. Ajuda-me a perceber melhor muitos clientes.

- Esta gente é que devia estar na prisão.

- Talvez alguns deles. Mas muitos deles têm mesmo algo a dizer. Alguns são verdadeiros poetas e este tipo era o melhor de todos.

- Era? Quem era, o tipo que foi alvejado à porta do museu automóvel em Wilshire?

- Não, esse era o Biggie Smalls. Este que está a tocar é o falecido e grande Tupac Shakur.

- Não acredito que ouves estas coisas.

- Já te disse. Ajuda-me a entender melhor.

- Faz-me um favor. Não ouças estas coisas com a Hayley por perto.

- Não te preocupes, não vou fazer isso.

- Tenho de ir.

- Fica só mais um bocado.

Concordou, mas sentou-se de modo rígido na beira da cama. Reparei que estava a tentar perceber a letra da música. Era preciso ter

Wreckrium: palavra inventada, num jogo semântico e fonético entre wreck (catástrofe, desastre) e réquiem. (NT).

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ouvido para esta música e levava algum tempo. A canção seguinte era "A Vida Continua" e vi que retesou o pescoço e os ombros ao captar algumas palavras.

- Já posso ir?

- Fica só mais alguns minutos, Maggie. Estendi a mão para baixar o volume.

- Ei, posso desligar isto se cantares comigo como costumavas fazer.

- Esta noite não, Haller.

- Ninguém conhece a Maggie McFierce que eu conheço. Sorriu um pouco e relembrei-me desses tempos.

- Maggie, por que continuas comigo?

- Já te disse, não posso ficar.

- Não, não me refiro a esta noite. Estou a perguntar por que razão continuas comigo, por que me deixas continuar a ver a Hayley e como estás sempre disponível quando preciso de ti. Não deve haver muitos homens cujas ex-mulheres continuam a gostar deles.

Reflectiu por instantes antes de responder.

- Não sei. Acho que é porque vejo um homem bondoso e um bom pai aí dentro à espera de sair um dia.

Anuí com a cabeça e só esperava que ela tivesse razão.

- Diz-me uma coisa. Que fazias se não pudesses ser procuradora?

- Estás a falar a sério?

- Sim, que fazias?

- Nunca pensei muito nisso. Por enquanto continuo a fazer aquilo que sempre gostei de fazer. Sou sortuda. Por que razão iria querer mudar?

Abri o frasco de Tylenol e engoli um comprimido em seco. A canção seguinte era "Tantas Lágrimas", outra balada por todos os perdidos e esquecidos. Parecia apropriado.

- Acho que gostava de ser professora - acabou por dizer. - Na escola primária. De meninas como a Hayley.

Sorri-lhe.

- Sra. McFierce, Sra. McFierce, o meu cão comeu-me os trabalhos de casa.

Deu-me uma palmadinha no braço.

- Na verdade, acho uma boa escolha - disse-lhe. - Davas uma boa professora... a não ser quando pusesses miúdos de castigo sem direito a caução.

- Engraçadinho. E tu? Abanei a cabeça.

- Não dava um bom professor.

- Refiro-me ao que farias se não fosses advogado.

- Não sei. Mas tenho três carros luxuosos. Acho que podia montar um serviço de limusinas, levar pessoas ao aeroporto.

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Ofereceu-me um grande sorriso.

- Eu contratava-te logo.

- Óptimo. Já tenho um cliente. Dá-me um dólar para colar na parede.

Mas os gracejos não estavam a resultar. Estendi-me na cama, tapei os olhos com as mãos e tentei afastar o dia, afastar a imagem do Raul Levin caído no chão e de olhos fixos num céu permanentemente escuro.

- Sabes do que costumava ter medo? - disse-lhe.

- Diz.

- De não conseguir reconhecer a inocência. De a ter ali à minha frente e não conseguir vê-la. Não me refiro a ser culpado ou não. Refiro-me à inocência. A simples inocência.

Manteve-se calada.

- Mas sabes do que devia ter medo mesmo?

- De quê, Haller?

- Do mal. Do puro mal.

- Como assim?

- Bem, a maioria das pessoas que defendo não são malignas, Mags. São culpadas, sim, mas não são malignas. Percebes o que quero dizer? Há uma diferença. Quando ouvimos essas pessoas e esse tipo de canções, compreendemos por que razão fazem aquelas escolhas. Estão só a tentar aguentar, a tentar viver com aquilo que lhes dão, e muitas delas nunca chegam a receber nadinha. Mas a maldade é outra coisa. É diferente. É como... não sei explicar. Existe lá fora e quando aparece... não sei. Não consigo explicar.

- Estás bêbedo, é o que é.

- Só sei que devia ter medo de uma coisa, mas acabei por ter medo da coisa completamente contrária a essa.

Estendeu a mão e afagou-me o ombro. A última canção era "Viver e Morrer em L.A." e era a minha preferida do CD. Comecei a trauteá-la baixinho e depois acompanhei o refrão.

morrer e viver em L.A. é o lugar para, se estar só estando lá é que sabes todos querem ver

Parei de cantar e afastei as mãos da cara. Adormeci vestido. A mulher que eu mais tinha amado na minha vida saiu de minha casa sem dar conta. Mais tarde dir-me-ia que a última coisa que eu tinha balbuciado antes de adormecer foi "Não consigo continuar a fazer isto".

E não estava a referir-me à cantoria.

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Quarta-feira, 13 de Abril

Dormi quase dez horas, mas ainda estava escuro quando acordei. O relógio digital do leitor Bose indicava as 5h18. Tentei voltar ao sonho que estava a ter, mas a porta já se tinha fechado. Às 5h30 levantei-me da cama, tentei equilibrar-me e enfiei-me no chuveiro. Fiquei debaixo da água até a água quente começar a arrefecer. Depois vesti-me para mais um dia de luta contra a máquina.

Ainda era muito cedo para ligar à Lorna e verificar a agenda desse dia, mas tenho na pasta outra agenda que costuma estar actualizada. Fui ao escritório e a primeira coisa em que reparei foi numa nota de um dólar colada com fita à parede por cima da secretária.

Senti a adrenalina correr-me pelo corpo enquanto os pensamentos se atropelavam e pensava que algum intruso tinha deixado o dinheiro na parede como uma espécie de ameaça ou mensagem. Mas depois lembrei-me.

- A Maggie - disse em voz alta.

Sorri e deixei ficar a nota colada à parede.

Tirei a agenda da pasta e verifiquei. Parecia que tinha a manhã inteira livre até à audiência às onze horas no Tribunal Superior de San Fernando. O caso era um cliente reincidente, acusado de posse de acessórios de droga. Era uma acusação ridícula que mal compensava o tempo e dinheiro dispendidos, mas a Melissa Menkoff estava já em liberdade condicional por uma série de delitos relativos a drogas. Se fosse condenada por um delito menor como posse de acessórios de droga, perderia a liberdade condicional e acabaria trancada atrás de uma porta de aço entre seis a nove meses.

Era a única coisa que constava da agenda. Depois dessa audiência, tinha o dia livre e congratulei-me pela minha sagacidade em ter conseguido ficar com o dia livre. Claro que nessa altura ainda não sabia que a morte do Raul Levin iria atirar-me para o Four Green Fields tão cedo, mas mesmo assim tinha planeado bem a minha agenda.:..:-.

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A audiência do caso Menkoff envolvia a minha moção para suprimir o cachimbo de crack encontrado durante a rusga ao veículo dela quando foi mandada parar por condução imprudente em Northridge. O cachimbo tinha sido encontrado no porta-luvas fechado. A Menkoff contou-me que não tinha dado permissão à polícia para revistar o carro, mas que eles o tinham feito na mesma. O meu argumento era que não houvera consentimento para revistarem o carro e, como tal, não havia causa provável para tal busca. Se a polícia mandou parar a Menkoff por condução imprudente, então não havia motivo para revistar os compartimentos fechados do seu carro.

Era um caso perdido e eu sabia-o, mas o pai da Menkoff tinha-me pago bem para fazer o melhor possível pela filha problemática. E era exactamente isso o que ia fazer às onze horas no tribunal de San Fernando. Ao pequeno-almoço tomei dois Tylenols juntamente com ovos estrelados, torradas e café. Reguei generosamente os ovos com pimenta e molho mexicano. A comida preencheu-me os espaços certos do estômago e deu-me o combustível necessário para prosseguir com a batalha. Folheei o Times enquanto comia, à procura de alguma notícia sobre a morte do Raul Levin. Inexplicavelmente, não havia nenhuma notícia sobre isso. De início não compreendi. Por que razão a polícia de Glendale manteria isso em segredo? Depois lembrei-me que todas as manhãs o Times publicava várias edições regionais de cada jornal. Eu vivia na zona oeste e Glendale era considerado parte de San Fernando Valley. Os editores do Times devem ter considerado a notícia de um homicídio no Valley sem importância para os leitores da zona oeste, que tinham as suas próprias histórias de homicídios com que se preocupar. A morte do Levin não tinha sido noticiada.

Resolvi comprar um segundo exemplar do Times num quiosque a caminho do tribunal de San Fernando para voltar a verificar. Enquanto pensava nisso, lembrei-me de que estava sem carro. O Lincoln tinha ficado no parque de estacionamento junto do bar - a não ser que o tivessem roubado durante a noite - e só podia ir buscar as chaves quando o bar abrisse às onze para o almoço. Estava com um problema, linha visto o carro do Earl no parque de estacionamento de ligação directa à rede de transportes públicos onde o ia buscar todas as manhãs. Era um Toyota catita e todo remodelado, de suspensão baixa e jantes de crómio rotativas. O meu palpite é que também tinha um Permanente fedor a marijuana. Não me apeteceu ir no carro dele. No norte do condado, era um convite a uma operação stop da polícia. a zona sul do condado, era um convite a sermos alvejados. E também ao queria que o Earl viesse buscar-me a casa. Nunca deixava os motoristas saberem onde morava.

morava.

'

211
Decidi apanhar um táxi até ao armazém na zona norte de Hollywood e usar um dos Lincolns. E aliás, o Lincoln parado no bar tinha já mais de oitenta mil quilómetros de rodagem. Talvez conduzir um carro novo me ajudasse a ultrapassar a depressão que de certeza se abateria sobre mim por causa da morte do Raul.

Depois de arrumar a louça, decidi acordar a Lorna para confirmar a minha agenda para esse dia. Quando peguei no telefone de casa, ouvi o sinal de que tinha uma mensagem.

Verifiquei de quem era e a voz electrónica disse que a chamada tinha sido feita às 11h07 da manhã do dia anterior. Assim que a voz recitou o número, fiquei paralisado. Era o número do telemóvel do Raul Levin. Não tinha atendido a última chamada dele.

"Ei, sou eu. Já deves ter saído para o jogo e também deves ter desligado o telemóvel. Se não ouvires isto, depois falo contigo no jogo. Mas consegui-te outro trunfo. Acho que..."

Calou-se por instantes e ouvi um cão a ladrar no fundo.

"...pode dizer-se que consegui o bilhete para tirar o Jesus da cadeia. Tenho de ir, rapaz."

E pronto. Desligou sem se despedir e usara aquele estúpido sotaque irlandês no fim. Esse sotaque sempre me irritara. Agora soava apenas carinhoso. Já começava a sentir saudades dele.

Carreguei no botão para voltar a ouvir a mensagem. Ouvi-a mais três vezes e guardei-a. Sentei-me à secretária e tentei encaixar na mensagem aquilo que já sabia. A primeira coisa intrigante tinha que ver com a hora da chamada. Só saí para o jogo aí pelas 11h30, mas acabei por perder a chamada dele feita vinte minutos antes.

Isto não fazia sentido, até que me lembrei da chamada da Lorna. Às 11h07 estava ao telefone com a Lorna. Como o meu telefone de casa era pouco usado e poucas pessoas tinham o número, nem me tinha dado ao trabalho de verificar se tinha mensagens. O telefonema do Levin tinha ido parar ao atendedor de chamadas enquanto eu falava com a Lorna.

Isso explicava as circunstâncias da chamada, mas não o seu conteúdo.

O Levin tinha claramente encontrado algo. Não era advogado, mas sabia reconhecer provas quando as encontrava e como as avaliar. Tinha encontrado algo que iria ajudar-me a tirar o Menendez da cadeia. Tinha encontrado o bilhete de regresso do Jesus.

A última coisa a considerar era o cão a ladrar e foi fácil perceber. Tinha estado na casa dele no dia anterior e sabia que o cão era um animal excitável. Sempre que lá tinha ido, ouvira-o ladrar antes de chegar sequer à porta para tocar. Os latidos de fundo no telefonema e a pressa com que o Levin desligara diziam-me que alguém se tinha aproximado da porta. Tinha visitas e podia muito bem ser o assassino.

212


Reflecti durante alguns segundos e concluí que, em boa consciência, tinha de informar a polícia da hora do telefonema. O conteúdo da mensagem levantaria novas questões às quais talvez me fosse difícil responder, mas o valor da hora da chamada sobrepunha-se a isso. Fui ao quarto e procurei nos bolsos das calças que tinha usado no dia anterior no jogo. Num dos bolsos de trás encontrei o bilhete do jogo e os cartões que o Lankford e a Sobel me tinham dado na casa do Levin.

Peguei no cartão da Sobel e reparei que só dizia Detective Sobel. Sem primeiro nome. Perguntei-me a razão de tal enquanto fazia a chamada. Talvez ela fosse como eu, com cartões diferentes em cada um dos bolsos. Um com o nome completo e o outro com o nome formal.

Atendeu de imediato e decidi ver o que conseguia arrancar-lhe antes de a informar.

- Há novidades sobre a investigação? - perguntei.

- Pouca coisa. Começámos a organizar os indícios que temos. Temos já o relatório balístico e...

- Já fizeram a autópsia? Foi rápido.

- Não, a autópsia é só amanhã.

- Então como é que já têm o relatório balístico? Não respondeu, mas depois compreendi porquê.

- Encontraram uma cápsula. Foi morto com uma automática que ejectou a cápsula.

- É bom nisto, Sr. Haller. Sim, encontrámos uma cápsula.

- Já estive em muitos julgamentos. E chame-me Mickey. Curioso que o assassino tenha vasculhado a casa toda e se tenha esquecido de recuperar a cápsula.

- Talvez porque a cáps
ula rolou pelo chão e caiu dentro de um radiador. O assassino teria precisado de uma chave de fendas e de bastante tempo.

Era um golpe de sorte. Muitas vezes os meus clientes tinham ido dentro porque a polícia tivera golpes de sorte assim. Só que também havia muitos clientes que se tinham safado com golpes de sorte desses. No final, todos ficavam quites.

- E então, o seu parceiro acertou quando disse que era de calibre
22 mm?

Manteve-se calada. Talvez estivesse a decidir se deveria revelar aquela informação a uma pessoa envolvida no caso mas que também era advogado de defesa - o inimigo.

- Sim, acertou. E graças às marcas da cápsula, sabemos até com exactidão que arma procurar.

Devido à minha experiência de interrogatórios em tribunal a peritos de balística e de armas de fogo ao longo dos anos, sabia que as marcas

213
deixadas numa cápsula durante o disparo podiam ajudar a identificar a arma usada. No caso de uma automática, o percutor, o obturador, o ejector e o extractor deixam marcas de assinatura na cápsula na fracção de segundo em que a arma é disparada. A análise conjunta das quatro marcas pode levar à identificação do modelo específico da arma.

- Acontece que o Sr. Levin tinha uma 22 mm - disse a Sobel.
- Mas encontrámo-la num cofre dentro de um armário e não é modelo Woodsman. Só não encontrámos ainda o telemóvel dele. Sabemos que tinha um, mas...

- Ele tinha-me ligado momentos antes de ser assassinado. Fez-se silêncio.

- O senhor disse-nos ontem que a última vez que falou com ele foi na sexta-feira à noite.

- É verdade. Mas foi por essa razão que decidi ligar-lhe. O Raul telefonou-me ontem de manhã às onze e sete e deixou-me uma mensagem. Só a ouvi hoje porque depois de sair da casa do Levin ontem fui embebedar-me. Depois fui dormir e só agora dei conta que tinha uma mensagem dele. Tinha-me ligado por causa dos casos em que estava a trabalhar paralelamente para mim. Um caso de recurso cujo cliente está preso. Um caso sem urgência. Seja como for, o conteúdo da mensagem não é importante, mas a chamada ajuda a determinar a hora da morte. E ouça só isto, enquanto está a deixar a mensagem, ouve-se o cão ladrar. E o animal fazia sempre isso quando alguém se aproximava da porta. E sei isso porque o cão ladrava sempre quando eu próprio ia lá.

Também desta vez não respondeu de imediato.

- Há uma coisa que não estou a perceber, Sr. Haller.

- O quê?

- Disse-nos ontem que esteve em casa até por volta do meio-dia antes de sair para o jogo. E agora diz que o Sr. Levin lhe deixou uma mensagem às onze e sete. Por que não atendeu a chamada?

- Porque estava a usar o telefone e não tem sinal de chamadas em espera. Pode verificar os meus registos, vai ver lá uma chamada da minha secretária, a Lorna Taylor. Estava a falar com ela quando o Raul ligou. Como não havia sinal, não soube que ele tinha ligado. E aliás, ele pensou que eu já tinha ido para o jogo e limitou-se a deixar a mensagem.

- Okay, estou a compreender. Provavelmente vamos precisar da sua autorização por escrito para verificar os registos de chamadas.

- Tudo bem.

- Onde está agora?

- Em casa.

 

214
Dei-lhe a morada. Disse-me que vinha com o parceiro a minha casa. -- Não demorem. Dentro de uma hora tenho de ir para o tribunal.

- Vamos sair já.

Desliguei com uma sensação de inquietação. Tinha defendido já uma

dezena de homicidas ao longo dos anos e esses casos tinham-me

possibilitado o contacto com vários investigadores de homicídios. Mas

era a primeira vez que eu próprio era interrogado sobre um homicídio.

O Lankford e agora a própria Sobel pareciam suspeitar de qualquer

resposta que eu dava. Perguntei-me se não saberiam mais do que eu

próprio sabia.

Arrumei as coisas em cima da secretária e fechei a pasta. Não queria que vissem nada que não deviam ver. Percorri a casa e verifiquei cada divisão até parar no quarto. Fiz a cama e enfiei o CD do Diabinho na gaveta da mesinha-de-cabeceira. E foi então que percebi. Sentei-me na cama enquanto recordava algo que a Sobel tinha dito. Algo que ela tinha referido por lapso e que me passara despercebido nessa altura. Ela tinha dito que encontraram a arma de calibre 22 mm do Raul mas que não era a arma do assassino. Ela tinha dito que não era uma Woodsman.

Tinha-me revelado inadvertidamente o modelo da arma do assassino. Sabia que a Woodsman era uma pistola automática fabricada pela Colt. Sabia-o porque eu próprio tinha uma Colt Woodsman Sport Model. Tinha-a herdado há muitos anos do meu pai. Depois da morte dele. Nunca cheguei a tirá-la da caixa de madeira, nem quando já tinha idade suficiente para a manusear.

Entrei no armário espaçoso. Era como se estivesse no meio de um nevoeiro cerrado. Os meus passos eram hesitantes e estendi a mão para a parede e depois para a porta para me orientar. A caixa de madeira polida estava na prateleira onde devia estar. Peguei nela.

Pousei-a em cima da cama e abri o fecho de latão. Levantei a tampa e removi o invólucro de lona.

A arma tinha desaparecido.

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PARTE DOIS


UM MUNDO SEM VERDADE
27


Segunda-feira, 23 de Maio

O cheque do Roulet entrou-me na conta. No primeiro dia do julgamento tinha mais dinheiro na conta do que alguma vez tivera na minha vida. Se quisesse, podia deixar de anunciar os meus serviços nos bancos dos autocarros e optar por cartazes grandes. Também podia optar pela contracapa das Páginas Amarelas em vez da meia página que tinha no interior. Podia dar-me a esse luxo. Finalmente conseguira um caso de franquia e compensara por completo. Em termos monetários, claro. A morte do Raul Levin tornaria esta franquia para sempre uma perda.

Tínhamos ocupado três dias com a selecção do júri e estávamos prontos para montar o espectáculo. O julgamento iria demorar uns três dias no máximo - dois dias para a acusação e um para a defesa. Tinha dito ao juiz que precisava de um dia para apresentar o caso ao júri, mas a verdade era que a maioria do meu trabalho seria feito durante a apresentação da procuradoria.

Há sempre uma sensação eléctrica no início de um julgamento. Um nervosismo que nos atinge fundo nas entranhas. Há tanta coisa em jogo. Reputação, liberdade pessoal, a integridade do próprio sistema. O facto de ter aquelas doze pessoas desconhecidas sentadas a julgar a nossa vida e trabalho mexe sempre connosco. E estou só a referir-me a mim, o advogado de defesa - o julgamento do arguido é uma coisa completamente diferente. Nunca consegui habituar-me, e a verdade é que nunca vou querer habituar-me. A sensação mais parecida com isso é a ansiedade e a tensão de estar perante o altar no dia do nosso casamento. Já vivi essa experiência duas vezes e recordo-a sempre que um juiz dá início a um julgamento.

Embora a minha experiência de julgamentos supere largamente a do meu oponente, não tinha dúvidas sobre a minha posição neste caso. Estava sozinho perante as gigantescas mandíbulas do sistema. E era eu indubitavelmente o perdedor. Sim, era verdade que estava a enfrentar

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um procurador no seu primeiro julgamento de um crime grave. Mas essa vantagem estava nivelada, ainda para mais tendo em conta o poder e a força do estado. As forças do sistema de justiça estavam às ordens do procurador. E eu dispunha apenas da minha pessoa contra tudo isso. E um cliente culpado.

Sentei-me ao lado do Louis Roulet à mesa da defesa. Estávamos sozinhos. Não tinha nenhum ajudante nem nenhum investigador atrás de mim - tinha decidido não contratar nenhum substituto, numa espécie de estranha lealdade ao Raul Levin. E não precisava realmente de nenhum. O Levin tinha-me fornecido tudo aquilo de que precisava. O julgamento e o modo como corresse serviriam de último testamento das suas capacidades como investigador.

O C. C. Dobbs e a Mary Alice Windsor estavam sentados na primeira fila da plateia. De acordo com as regras pré-julgamento, o juiz tinha autorizado a presença da mãe do Roulet no tribunal apenas durante as declarações de abertura. Como ia ser chamada como testemunha pela defesa, não tinha permissão para ouvir nenhum dos testemunhos que se seguiriam. Ficaria lá fora no átrio com o fiel cachorrinho Dobbs ao lado até eu a chamar.

Na primeira fila, embora afastados deles, também estava sentada a minha própria secção de apoio: a minha ex-mulher Lorna Taylor. Tinha-se aperaltado com um fato azul-escuro e blusa branca. Estava atraente e podia misturar-se facilmente com a falange de advogadas que iam todos os dias ao tribunal. Mas ela estava aqui por mim e adorei esse gesto.

Nas restantes filas havia muitos lugares vazios. Havia alguns jornalistas prontos para anotar citações das declarações de abertura e alguns advogados e espectadores casuais. Não aparecera ninguém da TV. O julgamento ainda só atraíra uma atenção superficial do público e isso era bom, pois significava que a nossa estratégia de contenção publicitária tinha resultado bem.

Eu e o Roulet estávamos sentados em silêncio enquanto esperávamos que a juíza entrasse e desse a ordem para o júri se sentar para podermos começar. Estava a tentar acalmar-me enquanto revia o que queria dizer ao júri. O Roulet estava de olhos fixos no selo do Estado da Califórnia que se via na parte da frente da cadeira da juíza.

O oficial de justiça atendeu uma chamada, disse algumas palavras e desligou.

- Dois minutos - disse em voz alta. - Dois minutos.

Quando um juiz anunciava antecipadamente a sua entrada na sala, isso significava que todos deviam estar nas suas posições e prontos para começar. E estávamos. Olhei para o Ted Minton na mesa da acusação e vi que estava a fazer o mesmo que eu. A acalmar-se enquanto

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ensaiava o discurso. Inclinei-me e olhei para os apontamentos à minha frente. O Roulet inclinou-se inesperadamente para a frente e quase embateu em mim. Falou num sussurro, embora ainda não fosse necessário para já.

- Chegou a hora, Mick.

- Eu sei.

Desde a morte do Raul Levin que o meu relacionamento com o Roulet se transformara num esforço de resistência fria. Tolerava-o porque era obrigado a fazê-lo. Mas vi-o o menos possível nas semanas antes do julgamento e só falei com ele o estritamente necessário. Sabia que a única fraqueza do meu plano era a minha própria fraqueza. Receava que qualquer interacção com o Roulet pudesse levar-me a soltar a raiva e o desejo de vingar pessoal e fisicamente o meu amigo. Os três dias da selecção do júri tinham sido uma tortura. Tive de me sentar ao lado dele e ouvir os seus comentários condescendentes sobre os possíveis membros do júri. A única maneira de conseguir aguentar aquilo foi fingir que ele não estava ali.

- Estás pronto? - perguntou-me.

- Estou a tentar. E tu?

- Estou pronto. Mas quero dizer-te uma coisa antes de isto começar. Olhei para ele. Estava demasiado perto de mim. Teria sido invasão

de privacidade mesmo que o amasse e não o odiasse. Recostei-me na cadeira.

- O quê?

Imitou-me e recostou-se também.

- És o meu advogado, não és?

Inclinei-me para a frente, tentando afastar-me dele.

- Louis, que pretendes dizer? Há mais de dois meses que estamos juntos nisto e agora estamos aqui sentados com um júri seleccionado e prontos para julgamento. Pagaste-me mais de cento e cinquenta mil dólares e ainda perguntas se sou o teu advogado? Claro que sou o teu advogado. O que foi? O que se passa?

- Não se passa nada.

Inclinou-se para a frente e continuou. - Quer dizer, se és o meu advogado, posso contar-te coisas e farás segredo disso, mesmo que esteja a contar-te um crime. Mais de um crime. Isso fica abrangido pela relação advogado-cliente, certo?

Senti uma leve convulsão no estômago.

-- Sim, Louis, fica abrangido. A não ser que me vás falar de um crime prestes a ser cometido. Nesse caso, posso dispensar-me do código de ética e informar a polícia para impedirem o crime. Aliás, Será meu dever informá-los. Um advogado é um oficial do tribunal.

221
Que me queres dizer, então? Ainda agora nos avisaram que só temos dois minutos. Estamos prestes a começar.

- Matei pessoas, Mick. Olhei-o por momentos.

- O quê?

- Ouviste-me bem.

Sim, tinha-o ouvido bem. E não deveria ter-me fingido surpreendido. Já sabia que ele tinha matado pessoas. O Raul Levin era uma delas e ele tinha usado a minha arma - embora ainda não soubesse como tinha conseguido derrotar a pulseira electrónica no tornozelo. Só estava surpreendido por ter decidido contar-me isso num tom tão casual dois minutos antes de o seu julgamento começar.

- Por que estás a contar-me isto? Estou prestes a tentar defender-te nisto e tu...

- Porque sei que já sabes. E porque sei qual é o teu plano.

- O meu plano? Que plano? Sorriu-me dissimuladamente.

- Vá lá, Mick. É simples. Estás a defender-me neste caso. Fazes o teu melhor, pagam-te em cheio, ganhas e saio em liberdade. Só que depois, quando tudo estiver acabado e tiveres o dinheiro no banco, vais virar-te contra mim porque deixo de ser teu cliente. Vais entregar-me à polícia para poder tirar o Jesus Menendez da prisão e redimires-te.

Mantive-me calado.

- Bem, não posso deixar isso acontecer - disse baixinho. - Agora sou teu cliente para sempre, Mick. Estou a dizer-te que matei pessoas, e sabes que mais? A Martha Renteria foi uma delas. Limitei-me a dar-lhe o que merecia, e se fores à polícia ou usares contra mim aquilo que te disse, não vais poder exercer advocacia durante muito tempo. Sim, talvez consigas ressuscitar o Jesus dos mortos. Mas nunca poderei ser acusado por causa da tua má conduta, Mick. Acho que se chama a isso "o fruto da árvore envenenada", e a árvore és tu, Mick.

Continuei calado. Limitei-me a assentir com a cabeça. O Roulet tinha obviamente reflectido nisto a fundo. Perguntei-me se não teria sido ajudado pelo Cecil Dobbs. Alguém andara nitidamente a instruí-lo nas matérias legais.

Inclinei-me para ele e sussurrei.

- Acompanha-me.

Levantei-me e avancei rapidamente para a porta das traseiras da sala de audiências. Ouvi atrás de mim a voz do oficial de justiça.

- Sr. Haller? Estamos prestes a começar. A juíza...

 

222
-- Só um segundo - disse-lhe sem me virar, com um dedo erguido

no ar.

Entrei no vestíbulo pouco iluminado, destinado a impedir que os

ruídos dos corredores do tribunal chegassem à sala de audiências. As

portas duplas do outro lado davam para o corredor. Afastei-me para

o lado e esperei que o Roulet entrasse.

Assim que entrou, agarrei-o e empurrei-o contra a parede, manttendo ambas as mãos contra o peito dele.

- Que caralho pensas que estás a fazer?

Tem calma, Mick. Achei só que devias saber em que pé nós...

- Seu filho da puta! Mataste o Raul, e a única coisa que ele estava

a fazer era a trabalhar para ti! Estava a tentar ajudar-te!

Tive vontade de lhe apertar o pescoço e estrangulá-lo nesse mesmo

instante.

- Numa coisa tens razão. Sou filho de uma puta. Mas estás errado

iquanto ao resto, Mick. O Levin não estava a tentar ajudar-me. Estava

a tentar enterrar-me e estava a aproximar-se demasiado. Teve o que

l merecia por causa disso.

Lembrei-me da última mensagem do Levin no meu telefone de casa.

mConsegui o bilhete para tirar o Jesus da cadeia. Essa descoberta, fosse

ela qual fosse, acabou por matá-lo. E tinha-o matado antes de poder

fornecer-me essa informação.

- Como fizeste? Se vais confessar-me tudo aqui, então quero saber

como fizeste. Como conseguiste livrar-te da pulseira? Os registos

indicam que nunca te aproximaste de Glendale.

Sorriu-me, como um rapazinho com um brinquedo que não fazia

intenção de partilhar.

- Digamos só que é uma informação confidencial e deixemos a

coisa por aí. Quem sabe se não vou precisar outra vez desse velho

truque à Houdini.

Detectei uma ameaça nas palavras dele e vi-lhe no sorriso a maldade

que o Levin tinha visto.

- Não te ponhas com ideias, Mick. Como provavelmente deves

saber, tenho uma apólice de seguro.

Encostei-o com mais força à parede.

- Ouve, seu pedaço de merda. Quero que devolvas a arma. Julgas que tens tudo controlado? Só tens merda. Eu é que tenho tudo

controlado. E tens de me devolver a arma se queres chegar vivo até ao

final da semana. Percebeste?

O Roulet ergueu lentamente as mãos, agarrou-me nos pulsos e

afastou-me dele. Começou a ajeitar a camisa e a gravata.

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- Posso sugerir um acordo? - disse numa voz calma. - No fim do julgamento saio do tribunal em liberdade. Quero conservar essa liberdade e, em troca disso, a arma nunca cairá, digamos, nas mãos erradas

Estava a referir-se ao Lankford e à Sobel.

- Porque ia odiar mesmo se isso acontecesse, Mick. Muita gente depende de ti. Muitos clientes. E, claro, não queres ir para onde eles vão.

Afastei-me dele, tentando conter-me desesperadamente para não o atacar. Falei numa voz baixa onde fervilhava toda a minha raiva e ódio.

- Isto te prometo, nunca te livrarás de mim se me foderes a vida
- disse-lhe. - Estamos entendidos?

O Roulet começou a sorrir. Mas a porta da sala de audiências abriu-se e o Delegado Meehan, o oficial de justiça, espreitou.

- A juíza já ocupou o lugar - disse numa voz austera. - E quer ambos lá dentro. Já.

Olhei para o Roulet.

- Eu perguntei, estamos entendidos?

- Sim, Mick - disse ele num tom cordial. - Perfeitamente entendidos. Entrei na sala de audiências a passos largos. A Juíza Constance

Fullbright lançou-me um olhar reprovador enquanto me sentava.

- Que gentileza a sua em se juntar a nós, Sr. Haller. Onde é que eu já tinha ouvido isto ?

- Peço desculpa, Meritíssima. Tive uma situação de emergência com o meu cliente. Tivemos de conferenciar.

- As conferências com os clientes podem ser tratadas na mesa da defesa.

- Sim, Meritíssima.

- Acho que não estamos a começar bem, Sr, Haller. Quando o meu oficial anuncia que a sessão vai abrir dentro de dois minutos, espero que toda a gente, incluindo os advogados de defesa e seus clientes, esteja nos seus lugares e pronta para começar.

- As minhas desculpas, Meritíssima.

- Não basta pedir desculpa, Sr. Haller. No final da audiência de hoje quero que faça uma visita ao meu oficial com o livro de cheques. Vou multá-lo em quinhentos dólares por desrespeito pelo tribunal. Não é o senhor quem preside a esta sala de audiência. Sou eu.

- Meritíssima...

- E agora, por favor, mandem entrar o júri - ordenou, interrompendo-me os protestos.

O oficial abriu a porta da sala do júri e os doze membros e dois suplentes começaram a ocupar a bancada. Inclinei-me para o Roulet, que acabava de se sentar, e sussurrei-lhe.

- Deves-me quinhentos dólares.

224
28


A declaração de abertura do Ted Minton foi um modelo de como arruinar a posição da acusação. Em vez de dizer ao júri que indícios iria apresentar para provar a acusação, tentou dizer-lhes o que tudo aquilo significava. Tinha optado por um enquadramento genérico e isto era quase sempre um erro. O enquadramento genérico implica inferências e sugestões. Extrapola factos aceites para o nível de suspeitas. Qualquer procurador experiente, com uma dezena ou mais de julgamentos de delitos graves, diria logo para não extrapolar. O objectivo é que o júri condene e não que compreenda necessariamente.

- Este caso tem que ver com um predador - disse ele. - Louis Ross Roulet é um homem que na noite de seis de Março andava a perseguir presas. E se não fosse a pura determinação de uma mulher em sobreviver, estaríamos aqui a julgar um caso de homicídio.

Reparei logo desde o início que o Minton tinha arranjado um marcador de pontos, aquilo a que chamo um membro do júri que não pára de tirar apontamentos durante um julgamento. Uma declaração de abertura não é uma oferta de provas e a Juíza Fullbright tinha advertido o júri disso, mas a mulher sentada na primeira fila da bancada do júri estava a escrever desde que o Minton começara a falar. Isto era bom. Gosto dos marcadores de pontos pois documentam apenas aquilo que os advogados dizem que vai ser apresentado e provado em tribunal e no fim servem-se desses apontamentos para confirmar. Ou seja, contam os pontos.

Consultei a lista do júri que tinha preenchido na semana anterior e vi que o marcador de pontos era Linda Truluck, uma dona de casa de Reseda. Era uma das três mulheres do júri. O Minton esforçara-se para reduzir ao máximo o número de mulheres porque, na minha opinião, receava que ficasse estabelecido em julgamento que a Regina Campo tinha oferecido serviços sexuais por dinheiro, o que poderia fazê-la perder a simpatia dessas mulheres e inclusive esses votos num veredicto. Acho que ele tinha razão nesse aspecto e empenhei-me a fundo para conseguir mulheres no painel. Ambos acabámos por levar

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o desafio ao limite e foi talvez por essa razão que demorámos três dias a seleccionar um júri. Acabei por conseguir três mulheres no painel e só precisava de uma para evitar uma condenação.

- E agora vão ouvir o testemunho da própria vítima sobre o seu estilo de vida, o qual não podemos desculpar - disse o Minton ao júri
- O facto é que estava a vender sexo a homens que convidava para sua casa. Mas quero lembrar-lhes que este julgamento não se centra naquilo que a vítima deste caso fazia para ganhar a vida. Qualquer pessoa pode ser vítima de um crime violento. Qualquer pessoa Independentemente daquilo que uma pessoa faz para ganhar a vida a lei não permite que seja agredida, que seja ameaçada com a ponta de uma navalha ou que viva a vida com medo. Não importa o que a pessoa faz para ganhar dinheiro. Goza da mesma protecção que todos nós.

Apercebi-me claramente de que o Minton não queria usar a palavra prostituição ou prostituta com receio que isso afectasse o caso. Anotei a palavra no bloco de apontamentos que ia usar quando fosse a minha vez de fazer as declarações. Era minha intenção colmatar as falhas da acusação.

O Minton fez uma exposição geral das provas. Falou da navalha com as iniciais do arguido na lâmina. Falou do sangue encontrado na mão esquerda dele. E alertou o júri para não se deixar enganar pelos esforços da defesa para confundir ou distorcer as provas.

- Trata-se de um caso muito nítido e simples - disse como conclusão. - Temos um homem que atacou uma mulher em casa dela. Planeava violá-la e depois matá-la. Foi só por graça de Deus que ela estará hoje aqui para vos contar a sua história.

Agradeceu ao júri pela atenção e sentou-se à mesa da acusação. Ajuíza Fullbright verificou as horas e olhou para mim. Eram 11h40 e estava provavelmente a ponderar se deveria fazer um intervalo ou deixar-me proceder às declarações iniciais. Uma das principais funções do juiz durante um julgamento é a gestão do júri. O dever do juiz é certificar-se de que o júri está em condições de prosseguir. A solução mais frequente é recorrer a intervalos, curtos ou demorados.

Conhecia a Connie Fullbright pelo menos há doze anos, antes de ela ser juíza. Tinha sido advogada de acusação e de defesa. Conhecia ambos os lados. Além de ser nitidamente rápida nas notificações por desrespeito pelo tribunal, era uma juíza generosa e justa -- até chegar à parte da condenação, íamos para a sala de audiências sabendo que estávamos ao mesmo nível que a acusação. se o júri condenar o nosso cliente, há que estar preparado para o pior. Fullbright era um dos juizes mais severos nas sentenças no condado inteiro. Era como se estivesse a punir-nos e ao nosso cliente por a

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fazermos perder tempo com um julgamento. Caso houvesse espaço de manobra na escolha da sentença, optava sempre pela pena máxima, quer fosse prisão ou liberdade condicional. Tinha ouvido os profissionais da defesa que trabalhavam no tribunal de Van Nuys referirem-se a ela com uma alcunha elucidativa. Chamavam-lhe Juíza Fullbite.8

- Sr. Haller - disse ela -, é sua intenção reservar a declaração de abertura?

- Não, Meritíssima, mas creio que vou ser bastante rápido.

- Muito bem. Então vamos ouvi-lo e depois fazemos intervalo para almoçar.

A verdade era que não sabia quanto tempo iria demorar. O Minton demorara cerca de quarenta minutos e eu sabia que iria demorar outro tanto. Mas tinha dito à juíza que ia ser rápido simplesmente porque não me agradava a ideia de os membros do júri irem almoçar apenas com a versão da história contada pela acusação para reflectirem enquanto comiam hambúrgueres e saladas de atum.

Levantei-me e aproximei-me do atril situado entre as mesas da acusação e da defesa. A sala de audiências tinha sido uma das salas recentemente remodeladas do velho tribunal. Tinha bancadas idênticas para o júri de ambos os lados da barra. Tudo em madeira de cor clara, inclusive a parede atrás da mesa da juíza. A porta para a sala privada da juíza estava quase oculta na parede, com os contornos camuflados nas linhas e granulado da madeira. O puxador era o único elemento que denunciava a presença de uma porta.

A Fullbright presidia aos seus julgamentos como um juiz federal. Os advogados não podiam aproximar-se das testemunhas sem permissão e nunca podiam aproximar-se da bancada do júri. Só podiam falar junto do atril.

Postei-me no atril, com o júri na bancada à minha direita e mais perto da mesa da acusação do que da mesa da defesa. Por mim tudo bem. Não queria que pudessem olhar o Roulet de muito perto. Queria que fosse uma espécie de mistério para eles.

Senhoras e senhores do júri - comecei -, chamo-me Michael

TT II

Aller e vou representar o Sr. Roulet durante este julgamento. É com

agrado que posso dizer-lhes que este julgamento será provavelmente

muito rápido. Só lhes ocuparemos mais um par de dias do vosso tempo.

Talvez posteriormente venham a reparar que demorámos mais

tempo a seleccionar-vos a todos do que a apresentar ambos os lados do

caso. arece que o procurador, o Sr. Minton, gastou o seu tempo esta


ullbite (à letra, Mordida Total), trocadilho com o nome Fullbright. (NT)

227
manhã a dizer-vos o que pensa do significado de todas as provas e quem o Sr. Roulet é realmente. O meu conselho é que ouçam simplesmente as provas e que deixem o senso comum dizer-vos o que tudo significa e quem o Sr. Roulet é.

Não parava de olhar de um jurado para outro. Raramente olhei para o bloco de apontamentos que tinha pousado no atril. Queria que pensassem que estava a conversar prazenteiramente com eles, de improviso.

- Geralmente gosto de reservar a minha declaração de abertura. Num julgamento criminal, a defesa tem sempre a opção de proferir uma declaração no início do julgamento, como o Sr. Minton fez, ou antes de apresentar o caso da defesa. Normalmente optaria pela segunda hipótese. Esperaria e faria a minha declaração antes de apresentar todas as testemunhas e provas. Mas este caso é diferente. É diferente porque o caso da acusação também vai ser o caso da defesa. Irão de facto ouvir algumas das testemunhas da defesa, mas o coração e alma deste caso irão centrar-se nas provas e testemunhas da acusação e no modo como os membros do júri irão interpretá-las. Garanto-lhes que acabará por surgir nesta sala uma versão dos acontecimentos e provas bem diferentes daquelas que o Sr. Minton acabou de delinear. E quando chegar a altura de apresentar o caso da defesa, provavelmente já nem será necessário.

Olhei para o marcador de pontos e vi-a tirar apontamentos com o lápis.

- Creio que aquilo que vamos descobrir aqui esta semana é que o caso inteiro se resume às acções e motivos de uma pessoa. Uma prostituta que viu um homem com sinais exteriores de riqueza e o escolheu como alvo. As provas assim o corroborarão claramente, bem como as testemunhas da própria acusação.

O Minton levantou-se e protestou, dizendo que eu estava a exceder os limites e a tentar atacar a credibilidade da testemunha principal do estado com acusações insubstanciais. Não havia fundamento legal para a objecção. Não passou de uma tentativa amadora para enviar uma mensagem ao júri. A reacção da juíza foi chamar-nos a ambos de lado.

Aproximámo-nos e a juíza ligou um dispositivo que emitia estática de um altifalante na direcção do júri para o impedir de ouvir o que era dito. A juíza foi rápida com o Minton, como uma assassina.

- Sr. Minton, sei que é novo nisto de julgamentos de crimes graves e por isso vou ter de o educar enquanto prosseguirmos. Mas nunca mais proteste durante uma declaração inicial na minha sala de audiências. Ele não está a apresentar provas. Não importa que ele diga

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que a sua própria mãe, Sr. Minton, é a testemunha que vai corroborar o álibi do arguido, mas não lhe permito que proteste à frente do meu

júri. -

- Meritíss...

- É tudo. Podem voltar.

Voltou a colocar-se no centro da mesa e desligou a estática. Eu e o fvlinton assumimos as nossas posições sem dizer nada.

- Protesto rejeitado - disse a juíza. - Continue, Sr. Haller, e deixe-me lembrar-lhe que disse que seria rápido.

- Obrigado, Meritíssima. É essa a minha intenção.

Consultei as minhas notas e voltei a olhar para o júri. Como o Minton continuaria a sentir-se intimidado com a ordem da juíza, decidi carregar um pouco mais na retórica, dispensar as notas e passar directamente à conclusão.

- Senhoras e senhores, em essência irão decidir aqui quem é o verdadeiro predador neste caso. O Sr. Roulet, um homem de negócios bem-sucedido e com um cadastro impecável, ou uma declarada prostituta cujo negócio é aceitar dinheiro de homens em troca de sexo. Irão ouvir testemunhos de que a alegada vítima deste caso estava envolvida num acto de prostituição com outro homem momentos antes do suposto ataque ocorrer. E irão ouvir testemunhos de que poucos dias depois deste suposto ataque à sua vida, ela tinha voltado já ao seu negócio de vender sexo por dinheiro.

Olhei para o Minton e vi que estava a ferver de raiva. De olhos fixos na mesa e a abanar lentamente a cabeça.

- Meritíssima, poderia dizer ao procurador para se abster de fazer demonstrações perante o júri? Não protestei nem tentei de nenhuma forma distrair o júri durante a declaração de abertura dele.

- Sr. Minton - disse a juíza num tom formal -, queira fazer o favor de se sentar direito e oferecer à defesa a mesma cortesia que lhe foi dispensada a si.

- Sim, Meritíssima - disse o Minton, num tom dócil.

Era já a segunda vez que o júri via o procurador a ser repreendido e nem sequer passáramos ainda das declarações iniciais. Encarei isto como um bom sinal e senti mais alento. Olhei para o júri e reparei que o marcador de pontos continuava a escrever.

- Finalmente, irão ouvir testemunhos de muitas-das próprias testemunhas da acusação que fornecerão uma explicação perfeitamente aceitável para muitas das provas físicas deste caso. Refiro-me ao sangue e à navalha que o Sr. Minton mencionou. Encarado individualmente ou como um todo, o próprio caso da acusação irá fornecer-lhes mais do que dúvidas fundamentadas sobre a culpa do meu cliente. Podem

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anotá-lo nos vossos apontamentos. E garanto-lhes que irão descobrir que só têm uma única escolha no final deste caso. E essa escolha é a descoberta de que o Sr. Roulet não é culpado destas acusações. Obrigado.

Ao voltar para o meu lugar, pisquei o olho à Lorna Taylor. Anuiu como que a dizer que me tinha saído bem. A minha atenção foi atraída por duas pessoas sentadas duas filas atrás. O Lankford e a Sobel Tinham entrado sem que me tivesse dado conta.

Sentei-me e não fiz caso do polegar esticado do Roulet. Só pensava nos dois detectives de Glendale e na razão de estarem ali. Teriam vindo para me observarem? Estariam à minha espera?

A juíza dispensou o júri para almoço e todos se levantaram enquanto o marcador de pontos e os colegas saíam. Depois o Minton pediu nova conversa privada com a juíza. Queria explicar o seu protesto e reparar os estragos, mas não durante a sessão aberta. A juíza disse não.

- Tenho fome, Sr. Minton, e a oportunidade de falar disso já passou. Vá almoçar.

Saiu da mesa. A sala, até aí em silêncio à excepção das vozes dos advogados, explodiu em conversas desde a plateia até aos funcionários do tribunal. Guardei o bloco de apontamentos na pasta.

- Estiveste muito bem - disse o Roulet. - Acho que ganhámos a dianteira no jogo.

Lancei-lhe um olhar vazio.

- Não é nenhum jogo.

- Eu sei. Não passa de uma maneira de dizer. Vou almoçar com o Cecil e a minha mãe. Gostávamos que te juntasses a nós.

Abanei a cabeça.

- Tenho de te defender, Louis, mas não tenho de comer contigo. Tirei o livro de cheques da pasta e afastei-me. Aproximei-me da

mesa do oficial de justiça para passar o cheque de quinhentos dólares. O que doía mais não era o dinheiro, mas o exame da Ordem dos Advogados que se segue sempre a uma notificação por desrespeito. Quando acabei, vi a Lorna à minha espera com um sorriso. Tínhamos combinado almoçar juntos e depois ela voltaria para casa para atender os telefonemas. Dentro de três dias eu ia voltar ao negócio e precisava de clientes. Dependia dela para começar a preencher-me a agenda.

- Acho que é melhor ser eu a pagar-te o almoço - disse-me. Enfiei o livro de cheques na pasta. - Obrigado.

Olhei para o lugar onde tinha visto o Lankford e a Sobel sentados minutos antes. Já não estavam lá.

230


29


A acusação começou a apresentar o seu caso ao júri na sessão da tarde e a estratégia do Ted Minton rapidamente se tornou clara para mim. As quatro primeiras testemunhas eram um operador de chamadas do serviço de emergências, os agentes de patrulha que responderam ao pedido de ajuda da Regina Campo e o paramédico que a tratou antes de ser transportada para o hospital. Antecipando-se à estratégia da defesa, tornou-se claro que o Minton queria estabelecer com nitidez que a Regina tinha sido brutalmente atacada e que era de facto a vítima neste crime. Não era uma má estratégia. Na maioria dos casos funcionava.

O operador de chamadas foi essencialmente usado para introduzir a chamada de emergência da Regina a pedir ajuda. Foram entregues transcrições da chamada aos jurados para poderem ler enquanto ouviam uma gravação áudio com bastante ruído. Protestei com base em que era prejudicial ouvir a gravação áudio pois a transcrição seria suficiente, mas a juíza foi rápida a rejeitar o protesto antes de o Minton ter tempo para contrapor. A gravação foi posta a tocar e não havia dúvida de que o Minton tinha começado com força enquanto os jurados ouviam atentamente a Regina a gritar e a suplicar por ajuda. Soava genuinamente aflita e assustada. Foi exactamente por essa razão que o Minton quis que os jurados ouvissem, e estes perceberam claramente a mensagem. Não ousei questionar o operador de chamadas num contra-interrogatório porque sabia que isso poderia dar ao Minton a oportunidade para voltar a apresentar a gravação.

Os dois agentes de patrulha que se seguiram ofereceram testemunhos diferentes porque tinham agido em separado ao chegarem à zona do apartamento em Tarzana, em resposta à chamada de emergência. Um deles manteve-se primariamente junto da vítima enquanto o outro subia ao apartamento e algemava o homem - o Louis Ross Roulet Mobilizado pelos vizinhos da Regina.

A agente Vivian Maxwell descreveu a Regina como estando magoada e assustada. Disse que a Regina não parava de perguntar se estava

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em segurança e se o intruso tinha sido apanhado. Que mesmo depois de a ter tranquilizado, a Regina continuava assustada e perturbada chegando até a dizer à agente para ter a arma pronta não fosse o atacante conseguir fugir. Quando o Minton terminou o interrogatório a esta testemunha, levantei-me para proceder ao meu primeiro contra-interrogatório do julgamento.

- Agente Maxwell, alguma vez chegou a perguntar à Sra. Campo o que lhe tinha acontecido?

- Sim, perguntei.

- E o que lhe perguntou exactamente?

- Perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido e quem lhe tinha feito aquilo. Ou seja, quem a tinha agredido.

- Que lhe disse ela?

- Disse que um homem lhe tinha batido à porta e que quando abriu ele a atacou. Disse que ele a esmurrou várias vezes e que depois pegou numa navalha.

- Ela disse que ele pegou na navalha depois de a ter agredido?

- Foi o que ela disse. Estava perturbada e ferida.

- Compreendo. Ela disse-lhe quem era o homem?

- Não, disse que não conhecia o homem.

- Perguntou-lhe especificamente se ela conhecia o homem?

- Sim. E ela disse que não.

- Portanto, ela simplesmente abriu a porta a um desconhecido às dez da noite.

- Não foram essas as palavras dela.

- Mas a senhora disse que ela lhe tinha dito que não o conhecia, correcto?

- Está correcto. Foi o que ela disse. Disse: "Não sei quem ele é".

- E escreveu isso no seu relatório?

- Sim.

Apresentei o relatório da agente de patrulha como prova material da defesa e pedi à Maxwell para ler partes ao júri, partes em que a Regina Campo dizia que o ataque não fora provocado e que ficara às mãos do desconhecido.

- "A vítima não conhece o homem que a atacou e não sabia por que estava a ser atacada" - leu ela do relatório.

John Santos, o colega da Maxwell, testemunhou em seguida, dizendo aos jurados que a Regina o tinha direccionado para o seu apartamento, onde encontrou um homem no chão junto à entrada. O homem, semiconsciente, estava a ser imobilizado no chão por dois vizinhos da Regina, Edward Turner e Ronald Atkins. Um deles estava sentado no peito dele e o outro em cima das pernas.

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O Santos identificou o homem imobilizado no chão como sendo o arguido, Louis Ross Roulet. Descreveu-o como tendo sangue na roupa e na mão esquerda. Disse que o Roulet parecia estar a sofrer de uma concussão ou algum ferimento na cabeça e que, de início, não reagia às ordens. O Santos virara-o e algemara-lhe as mãos atrás das costas. Depois enfiara um saco de plástico para provas, que trazia numa bolsa ao cinto, por cima da mão esquerda ensanguentada do Roulet.

O Santos disse que um dos homens que estavam a imobilizar o Roulet lhe tinha entregue uma navalha com a lâmina aberta e com sangue no cabo e na lâmina. Disse aos jurados que também guardara esse objecto num saco e que o entregara ao Detective Martin Booker mal este chegou à cena do crime.

No contra-interrogatório, perguntei ao Santos apenas duas coisas.

- Sr. Agente, havia sangue na mão direita do arguido?

- Não, não havia sangue na mão direita dele, senão também teria enfiado um saco nessa mão.

- Compreendo. Portanto, há sangue apenas na mão esquerda e uma navalha com sangue no cabo. Não lhe parece que, se o arguido tivesse usado essa navalha, o teria feito com a mão esquerda?

O Minton protestou, dizendo que o Santos era um agente de patrulha e que essa questão estava para lá das suas competências. Argumentei que a pergunta requeria apenas uma resposta de senso comum e não um perito. A juíza rejeitou o protesto e o oficial de justiça voltou a ler a pergunta à testemunha.

- Parece-me que foi dessa maneira, sim - respondeu o Santos. De seguida testemunhou Arthur Metz, o paramédico. Falou aos

jurados do estado da Regina e dos ferimentos quando a tratou quase meia hora depois do ataque. Disse que lhe parecia que ela tinha sofrido pelo menos três impactos significativos no rosto. Também descreveu um pequeno ferimento de punção no pescoço. Descreveu todos os ferimentos como superficiais mas dolorosos. Uma grande ampliação da mesma foto do rosto da Regina que eu tinha visto no primeiro dia em que aceitei o caso foi mostrada num cavalete à frente do júri. Protestei, dizendo que a foto era prejudicial porque a ampliação ultrapassava claramente o tamanho real, mas ajuíza Fullbright rejeitou o protesto.

Quando chegou a minha vez de contra-interrogar, usei a foto contra a qual tinha protestado.

- Quando nos diz que lhe parece que ela sofreu pelo menos três impactos no rosto, o que quer dizer com "impacto"?

- Foi atingida com alguma coisa. Ou um punho ou um objecto contundente.

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- Portanto, basicamente, alguém a agrediu três vezes. Importa-se de usar este ponteiro a laser para mostrar ao júri onde esses impactos ocorreram?

Tinha tirado do bolso da camisa um ponteiro a laser e mostrei-o à juíza. Deu-me permissão para o entregar ao Metz. Liguei-o e dei-lho O Metz apontou o feixe de laser para a foto do rosto espancado da Regina e desenhou círculos nas três áreas onde acreditava que ela tinha sido atingida. Rodeou-lhe o olho direito, a face direita e uma área que abrangia o lado direito da boca e do nariz.

Agradeci-lhe, guardei o ponteiro e voltei para o atril. - Portanto se foi atingida três vezes no lado direito da cara, os impactos teriam vindo do lado esquerdo do atacante, correcto?

O Minton objectou, dizendo uma vez mais que essa pergunta estava para lá do alcance das competências da testemunha. Recorri de novo ao argumento do senso comum e a juíza rejeitou uma vez mais o protesto da acusação.

- Se o atacante estava virado para ela, tê-la-ia atingido da esquerda, a não ser que tivesse desferido os golpes com as costas da mão - disse o Metz. - Nesse caso, poderia ter sido com a mão direita.

Anuiu e parecia satisfeito com a resposta que dera. Pensava claramente que estava a ajudar a acusação, mas o seu esforço foi tão dúbio que acabou por ajudar provavelmente a defesa.

- Está a sugerir que o atacante da Sra. Campo a agrediu três vezes com as costas da mão e causou estes ferimentos?

Apontei para a foto em cima do cavalete. O Metz encolheu os ombros ao aperceber-se de que talvez não tenha sido assim tão útil para a acusação.

- Tudo é possível - disse.

- Tudo é possível - repeti. - Bem, não lhe ocorrem outras hipóteses que pudessem explicar estes ferimentos como tendo sido causados por algo mais do que não golpes desferidos directamente com a mão esquerda?

O Metz voltou a encolher os ombros. Não era uma testemunha que causasse impressão, sobretudo depois dos dois polícias e do operador de chamadas, que tinham fornecido testemunhos muito precisos.

- E se tivesse sido a Sra. Campo a agredir o próprio rosto? Não teria ela usado a mão direita...

O Minton levantou-se de imediato para protestar.

- Isto é um ultraje, Meritíssima! Sugerir que a vítima se agrediu si própria é não só uma afronta a este tribunal mas também a todas vítimas de crimes violentos. O Sr. Haller enveredou agora...

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- A testemunha disse que tudo era possível - argumentei. - Estou a tentar explorar o que...

- Protesto aceite - disse a Fullbright, pondo fim à controvérsia. - Sr. Haller, não enverede por aí se não estiver a fazer mais do que uma exploração das possibilidades.

- Sim, Meritíssima. Não tenho mais perguntas.

Sentei-me. Olhei para os jurados e soube pelos seus rostos que tinha cometido um erro. Tinha transformado um contra-interrogatório positivo em algo negativo. A referência que tinha feito a um atacante canhoto foi obscurecida pela sugestão de que os ferimentos no rosto da vítima tinham sido auto-infligidos. As três mulheres do painel pareceram ficar particularmente irritadas comigo.

Mesmo assim, tentei concentrar-me no aspecto positivo. Era bom saber quais eram os sentimentos do júri neste momento, antes de a Regina Campo ser chamada a testemunhar e eu lhe perguntar o mesmo.

O Roulet inclinou-se para mim e sussurrou: - Que porra foi aquilo?

Virei-lhe as costas sem lhe responder e observei a sala de audiências. Estava quase vazia. O Lankford e a Sobel não tinham regressado à sala e os repórteres também tinham desaparecido. Restavam apenas algumas pessoas que pareciam ser um grupo díspar de reformados, estudantes de Direito e advogados num intervalo de descanso antes de começarem as suas próprias audiências noutras salas. Mas estava a contar que um destes espectadores pertencesse ao gabinete da procuradoria. O Ted Minton poderia estar a agir sozinho, mas o meu palpite era que o patrão dispunha de algum meio de o vigiar. Eu próprio sabia que estava a representar tanto para esse membro não-identificado como para o júri. No final do julgamento precisava de enviar uma nota de pânico ao segundo piso, cujos ecos seriam depois visíveis no Minton. Precisava de forçar o jovem procurador a tomar uma medida desesperada.

A tarde continuou a arrastar-se. O Minton ainda tinha muito que

aprender sobre timing e gestão do júri, um conhecimento que só se

Adquire com a experiência em tribunal. Mantive-me de olhos fixos na

bancada do júri - onde estavam sentados os verdadeiros juizes - e

reparei que os jurados começaram a sentir-se entediados enquanto

testemunha atrás de testemunha oferecia depoimentos que acrescentavam meros pormenores à apresentação linear da acusação sobre

acontecimentos do dia 6 de Março. Poucas perguntas fiz durante os

contra-interrogatórios e tentei manter no rosto uma expressão que

refelectia a do próprio júri.

 

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O Minton queria nitidamente guardar o material mais impressionante para o segundo dia do julgamento. Iria pedir ao Detective Martin Booker para unir todos os pormenores e depois chamaria a vítima, a Regina Campo, para convencer finalmente o júri. Era uma fórmula mais do que comprovada - terminando com força e emoção - e funcionava em noventa por cento dos casos, mas essa estratégia fazia com que o primeiro dia estivesse a avançar como um glaciar.

As coisas começaram finalmente a aquecer com a última testemunha do dia. O Minton chamou o Charles Talbot, o homem que estava com a Regina no Morgan's e a acompanhara ao apartamento dela na noite do dia seis. O que o Talbot tinha para oferecer à acusação era negligenciável. Basicamente, tinha sido chamado para testemunhar que a Regina gozava de boa saúde e não tinha nenhuma lesão quando saiu de casa dela. Foi tudo. Mas o que levou o seu testemunho a salvar o julgamento do poço de tédio foi o facto de o Talbot ser um honestíssimo homem com um estilo de vida alternativo e os jurados adoravam sempre visitar o outro lado da vida.

O Talbot era um homem de cinquenta e cinco anos e cabelo tingido de loiro que não enganava ninguém. Tinha dissimulado as tatuagens da Marinha nos dois antebraços. Tinha-se divorciado há vinte anos e era dono de uma loja de conveniência aberta vinte e quatro horas chamada Kwik Kwik. O negócio proporcionava-lhe uma vida confortável que incluía um apartamento no Warner Center, um Corvette modelo mais recente e uma vida nocturna que abrangia uma ampla gama das vendedoras profissionais de sexo da cidade.

O Minton estabeleceu tudo isto na fase inicial do interrogatório directo. Era quase possível sentir o ar parado na sala enquanto os jurados ouviam atentamente o Talbot. O procurador passou rapidamente para a noite do 6 de Março e o Talbot descreveu como tinha engatado a Regina Campo no Morgan's em Ventura Boulevard.

- Conhecia a Sra. Campo antes de a encontrar no bar nessa noite?

- Não, não conhecia.

- Como aconteceu encontrarem-se lá?

- Tinha-lhe telefonado a dizer que queria encontrar-me com ela e ela sugeriu o Morgan's. Eu conhecia o bar e concordei.

- E como lhe telefonou?

- Pelo telefone. Vários jurados riram-se.

- Peço desculpa. Sei que usou um telefone para lhe telefonar. O que queria dizer era como soube como contactá-la?

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- Vi o anúncio dela no site, gostei do que vi e resolvi ligar-lhe para marcar um encontro. Tão simples como isso. O número dela vem no anúncio.

- E encontraram-se no Morgan's.

- Sim, é onde ela marca os encontros, como ela me disse. Fui lá, tomámos um par de bebidas, falámos e gostámos um do outro e foi isso. Fomos para casa dela.

- Quando foram para o apartamento dela tiveram relações sexuais?

- Com certeza. Era para isso que eu estava lá.

- E pagou-lhe?

- Quatrocentos dólares. Valeu a pena.

Vi um dos jurados masculinos corar e soube que o tinha escolhido bem durante a selecção do júri na semana anterior. Seleccionara-o porque tinha aparecido com uma Bíblia para ler enquanto os outros candidatos estavam a ser entrevistados. O Minton não se apercebera desse pormenor, concentrando-se antes nos candidatos que estavam a ser entrevistados. Mas eu tinha reparado na Bíblia e fiz algumas perguntas ao homem quando chegou a vez dele. O Minton aceitou-o no júri e eu também. Calculei que seria fácil virá-lo contra a vítima por causa da ocupação dela. E a cara corada confirmava-o agora.

- A que horas saiu do apartamento dela? - perguntou o Minton.

- Cerca das cinco para as dez - disse o Talbot.

- Ela disse-lhe que estava à espera de outro cliente no apartamento?

- Não, não referiu nada sobre isso. Aliás, ela estava com todo o aspecto de que a noite ia ficar por ali.

Levantei-me e protestei.

- Não creio que o Sr. Talbot esteja qualificado para interpretar o que a Sra. Campo estava a pensar ou planear fazer.

- Aceite - disse a juíza antes que o Minton pudesse argumentar. O Minton prosseguiu.

- Sr. Talbot, pode descrever, por favor, o estado físico da Sra. Campo quando a deixou antes das dez na noite de 6 de Março?

- Estava completamente satisfeita.

Ouviu-se uma explosão de gargalhadas na sala e o Talbot pareceu irradiar orgulho. Olhei para o homem da Bíblia e vi-o de maxilares retesados com força.

- Sr. Talbot - disse o Minton. - Refiro-me ao estado físico dela. Se estava magoada ou a sangrar quando a deixou?

- Não, estava bem. Estava em boa forma. Quando a deixei, estava afinadinha como um violino, e sei isso porque tinha acabado de a dedilhar.

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Sorriu, orgulhoso do seu uso da linguagem. Desta vez não houve gargalhadas e a juíza fartou-se finalmente deste uso de duplos sentidos. Advertiu-o para não continuar a usar esses comentários indelicados.

- Desculpe, Sra. Juíza - disse ele.

- Sr. Talbot - prosseguiu o Minton. - A Sra. Campo não tinha nenhum ferimento quando a deixou?

- Não. Nenhum ferimento.

- Não estava a sangrar?

- Não.

- E não a agrediu nem abusou fisicamente dela de nenhum modo?

- Não. O que fizemos foi consensual e agradável. Sem dor.

- Obrigado, Sr. Talbot.

Consultei os meus apontamentos durante alguns segundos antes de me levantar. Queria uma pausa para marcar uma linha clara entre o interrogatório e o contra-interrogatório.

- Sr. Haller? - disse a juíza. - Quer contra-interrogar a testemunha?

Levantei-me e avancei para o atril.

- Sim, Meritíssima.

Pousei o bloco de apontamentos e olhei directamente para o Talbot. Estava a sorrir-me cordialmente, mas sabia que não ia continuar a olhar-me assim por muito tempo.

- Sr. Talbot, é destro ou canhoto?

- Sou canhoto.

- Canhoto - repeti. - E não é verdade que na noite de 6 de Março, antes de sair do apartamento da Sra. Campo, ela lhe pediu para a agredir repetidamente com o punho na cara?

O Minton levantou-se.

- Meritíssima, não há fundamento para este tipo de pergunta. O Sr. Haller está simplesmente a tentar turvar as águas fazendo declarações indignas e transformando-as em perguntas.

A juíza olhou para mim e esperou por uma resposta.

- Meritíssima, faz parte da teoria da defesa como esboçado na declaração de abertura.

- Vou permitir. Mas seja rápido, Sr. Haller.

A pergunta foi lida e o Talbot fez uma careta e abanou a cabeça.

- Não é verdade. Nunca magoei nenhuma mulher na minha vida.

- Agrediu-a três vezes com o punho, não foi, Sr. Talbot?

- Não, não é verdade. É mentira.

- Disse que nunca magoou nenhuma mulher na sua vida.

- Correcto. Nunca.

- Conhece uma prostituta chamada Shaquilla Barton?

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O Talbot teve de reflectir antes de responder.

- Acho que não.

- No site onde ela anuncia os seus serviços, usa o nome Shaquilla Shackles9. O nome continua a não lhe dizer nada, Sr. Talbot?

- Okay, sim, creio que sim.

- Alguma vez se envolveu em actos de prostituição com ela?

- Uma vez, sim.

- Quando foi isso?

- Deve ter sido pelo menos há um ano. Ou talvez há mais tempo.

- E magoôu-a nessa ocasião?

- Não.

- E se ela viesse aqui dizer que o senhor a agrediu com a mão esquerda, ela estaria a mentir?

- Pode ter a certeza que sim. Experimentei com ela e não gostei dessa cena bruta. Sou um perfeito missionário. Não lhe toquei.

- Não lhe tocou?

- Quero dizer que não a esmurrei nem a magoei de nenhuma maneira.

- Obrigado, Sr. Talbot.

Sentei-me. O Minton não quis voltar a interrogar. O Talbot foi dispensado e o Minton disse à juíza que só tinha mais duas testemunhas para apresentar, mas que esses depoimentos seriam extensos. A Juíza Fullbright verificou as horas e encerrou a sessão para esse dia.

Restavam duas testemunhas. Sabia que só podiam ser o Detective Booker e a Reggie Campo. Tudo indicava que o Minton ia dispensar o testemunho do bufo da prisão que tinha confinado a um programa de reabilitação no centro médico do condado. O nome Dwayne Corliss nunca constou de nenhuma lista de testemunhas nem em nenhum documento de provas associado ao caso da acusação. Talvez o Minton tivesse descoberto aquilo que o Raul Levin descobrira acerca do Corliss, antes da morte do Raul. Seja como for, parecia que a acusação tinha desistido do Corliss. E era disso que eu estava a precisar para mudar.

Enquanto guardava os papéis na pasta decidi-me a falar com o Roulet. Olhei para ele. Continuava ali sentado à espera que o dispensasse.

- E então, que achas? - perguntei.

-- Acho que te saíste muito bem. Houve vários momentos de dúvida fundamentada.

Shackles: algemas. (NT)

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Fechei a pasta.

- Hoje estive só a plantar sementes. Amanhã vão germinar e na quarta-feira florescem. Ainda não viste nada.

Levantei-me. A pasta estava pesada com todos aqueles documentos do caso e o meu portátil.

- Vemo-nos amanhã.

Saí. O Cecil Dobbs e a Mary Alice Windsor estavam no corredor. Assim que saí, viraram-se para falar comigo mas continuei a caminhar.

- Até amanhã - disse-lhes.

- Espere só um segundo - chamou o Dobbs. Virei-me.

- Ficámos aqui fora à espera - disse ele, aproximando-se. - Como estão a correr as coisas lá dentro?

Encolhi os ombros. - Para já, o caso é da acusação. Tudo o que tenho feito é tentar proteger. Acho que amanhã será a nossa vez. E na quarta-feira desferimos o golpe final. Tenho de me preparar.

Dirigi-me para o elevador e reparei que vários jurados do caso estavam já à espera para descer. O marcador de pontos estava lá também. Fui aos lavabos ao lado dos elevadores para não ter de descer com eles. Pousei a pasta na banca entre os lavatórios e lavei a cara e as mãos. Observei-me ao espelho à procura de sinais de stresse devido ao caso. Parecia razoavelmente são e calmo para um profissional da defesa que estava a jogar ao mesmo tempo com o seu cliente e com a procuradoria.

A água fria teve um efeito calmante e senti-me refrescado quando saí, esperando que os jurados já tivessem descido.

Os jurados já não estavam lá. Mas vi o Lankford e a Sobel ao lado do elevador. O Lankford tinha na mão uma série de documentos dobrados.

- Ah, está aí - disse ele. - Andávamos à sua procura.

240
30


O documento que o Lankford me entregou era um mandado de busca que concedia autorização à polícia para revistar a minha casa, o escritório e o carro à procura de uma pistola Colt Woodsman Sport Model calibre
22 mm com o número de série 6563000081-52. A autorização referia que se supunha que essa pistola tinha sido a arma do homicídio de Raul A. Levin no dia 12 de Abril. O Lankford tinha-me entregue o mandado com um sorriso de orgulho. Tentei agir de modo casual" como se fosse o tipo de coisa com que lidasse usualmente. Mas a vefdade era que os joelhos quase me cederam.

- Como conseguiu isto? - perguntei.

Recebi uma resposta absurda num momento absurdo.

- Assinada, selada e entregue - disse o Lankford. E então, por onde quer começar? Tem o carro aqui, certo? Aquele Lincoln onde o motorista o leva a passear como uma puta de classe alta -

Verifiquei a assinatura do juiz na última página e vi que era de um juiz de um tribunal municipal de Glendale de quem nunca tinha ouvido falar. Tinham recorrido a um juiz local que provavelmente precisaria dos votos da polícia quando fosse altura das eleições. Comecei a recuperar do choque. Talvez a busca a minha casa fosse uma fachada.

- Isto é um disparate - disse. - Não têm causa provável para isto. Podia anular isto em dez minutos.

- A Juíza Fullbright não opôs nenhuma reserva disse o Lankford.

- A Fullbright? Que tem ela a ver com isto?

- Bem, sabíamos que você estava no julgamento e achámos melhor perguntar-lhe se não havia problema em entregar-lhe o mandado. Nunca se deve enfurecer uma senhora como ela, sabe- Ela disse que podíamos fazê-lo depois de a audiência terminar e não disse nada sobre essa coisa da causa provável nem o que quer que fosse.

Devem ter falado com a Fullbright durante a pausa do almoço, logo depois de os ter visto na sala de audiências. O meu palpite era que fora

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ideia da Sobel falar primeiro com a juíza. Um tipo como o Lankford teria gostado de me arrancar da sala e interromper o julgamento.

Tinha de pensar rapidamente. Olhei para a Sobel, a mais simpática dos dois.

- Estou a meio de um julgamento de três dias. Há alguma maneira de adiarmos isto até quinta-feira?

- Nem pensar, raios - respondeu o Lankford antes que a parceira pudesse falar. - Não vamos perdê-lo de vista até executarmos o mandado. Não vamos dar-lhe tempo para se livrar da arma. Ora bem onde está o seu carro, Sr. Advogado do Lincoln?

Verifiquei a autorização do mandado. Tinha de ser muito específica e tive sorte. Autorizava a busca de um Lincoln com a matrícula da Califórnia NT GLTY. Apercebi-me de que alguém devia ter anotado a matrícula no dia em que me chamaram a casa do Raul Levin quando estava no jogo dos Dodgers. Porque esse era o Lincoln antigo - aquele que estava a conduzir nesse dia.

- Está em casa. Como tenho estado em julgamento, dispensei o motorista. Vim de boleia esta manhã com o meu cliente e ia voltar com ele. Deve estar lá em baixo à minha espera.

Menti. O Lincoln que andava a conduzir estava no estacionamento do tribunal. Mas não podia deixar a polícia revistá-lo porque havia uma arma num compartimento no descanso do assento de trás. Não era a arma que procuravam mas era um substituto. Depois de o Raul Levin ter sido assassinado e de a minha arma ter desaparecido, pedi ao Earl Briggs para me arranjar uma arma para protecção. Sabia que com o Earl não haveria os dez dias do período de espera. Mas não conhecia a história da arma nem o registo e não queria descobrir isso através do Departamento da Polícia de Glendale.

Mas estava com sorte porque o Lincoln que tinha a arma não era o carro descrito no mandado. Esse estava na minha garagem em casa, à espera que um comprador do serviço de limusinas viesse apreciá-lo. E era esse o Lincoln que seria revistado.

O Lankford tirou-me o mandado das mãos e enfiou-o no bolso do casaco.

- Não se preocupe com a boleia - disse ele. - Levamo-lo nós. Vamos.

À saída do tribunal, não encontrámos o Roulet nem a comitiva. Entrei para a parte de trás de um Grand Marquis a pensar que tinha feito a escolha certa ao optar pelo Lincoln. Era mais espaçoso e mais confortável.

O Lankford sentou-se ao volante. As janelas estavam abertas e ouvi-o mascar uma pastilha elástica.

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- Deixe-me ver outra vez o mandado - pedi. O Lankford não se mexeu.

- Não vou deixá-los entrar em minha casa até poder examinar bem o mandado. Posso fazê-lo durante o caminho e poupar-lhes assim algum tempo. Senão...

O Lankford tirou o mandado do bolso e entregou-mo por cima do

ombro. Sabia que ele estava hesitante. A polícia tinha geralmente de

expor a investigação toda no pedido de mandado, de modo a convencer um juiz da causa provável. Não gostavam que a pessoa notificada

[lesse o conteúdo, porque ficaria a par de toda a investigação.

Olhei pela janela enquanto passávamos pelos stands de automóveis da

IVan Nuys Boulevard. Vi um novo modelo num pedestal à frente do

concessionário Lincoln. Voltei a concentrar-me no mandado e li o sumário.

O Lankford e a Sobel tinham começado por fazer bem o trabalho

de casa. Tinha de dar a mão à palmatória. Um deles disparara um tiro

no escuro - calculo que tivesse sido a Sobel - e verificara o meu

nome no Sistema de Armas de Fogo Automáticas do estado e acertara

na lotaria. O computador referia que era o proprietário registado de

uma pistola da mesma marca e modelo que a arma do crime.

Tinha sido uma jogada em cheio, mas não era o suficiente para estabelecer causa provável. A Colt fabricava as Woodsman há mais de sessenta anos. Isso significava que haveria provavelmente um milhão delas, bem com um milhão de proprietários suspeitos.

Tinham o fumo. Depois tinham friccionado outros pauzinhos para fazer o fogo necessário. O sumário do pedido declarava que eu tinha ocultado dos investigadores o facto de possuir a arma em questão. Também referia que tinha inventado um álibi quando tinham falado comigo acerca da morte do Levin e que depois tentara despistar os detectives ao fornecer-lhes uma pista falsa sobre o traficante de droga Hector Arrande Moya.

Embora a motivação não fosse necessariamente uma questão obrigatória para se conseguir um mandado de busca, o sumário da causa provável aludia na mesma a isso, declarando que a vítima - Raul Levin - andava a extorquir-me tarefas de investigação e que eu me tinha recusado a pagar-lhe pela realização dessas tarefas.

Descontando o ultraje de uma tal asserção, a invenção do álibi era o ponto-chave da causa provável. A declaração referia que eu tinha dito aos detectives que estava em casa na altura do homicídio, mas que tinha recebido uma mensagem no meu telefone de casa pouco antes da provável hora da morte, e isso indicava que não estava em casa, o que estruía assim o meu álibi e ao mesmo tempo provava que estava a mentir.

243
Reli lentamente a declaração da causa provável mais duas vezes, mas a minha raiva não esmoreceu. Atirei o mandado para o assento ao meu lado.

- De certo modo, é mesmo uma pena não ser eu o assassino • .

disse-lhes.

- Ai sim, e porquê? - perguntou o Lankford.

- Porque este mandado é uma treta e ambos o sabem. Não tem fundamento. Eu disse-lhes que tinha recebido aquela mensagem quando estava ao telefone e que isso pode ser verificado e provado, só que vocês foram demasiado preguiçosos ou não quiseram verificar porque lhes teria dificultado a obtenção do mandado. Mesmo com o vosso juiz amiguinho de Glendale. Mentiram por omissão e comissão. É um mandado de má-fé.

Como estava sentado atrás do Lankford, só conseguia ver bem a Sobel. Observei-a, à procura de sinais de dúvida enquanto continuava a falar.

- E a sugestão de que o Raul estava a extorquir-me trabalho e que não queria pagar-lhe só pode ser uma piada. Extorquir-me com base em quê? E eu não lhe queria pagar o quê? Paguei-lhe de todas as vezes que me apresentou factura. Ouçam, se é assim que tratam de todos os vossos casos, vou ter de abrir escritório em Glendale. Vou enfiar este mandado pelo cu acima do vosso chefe.

- Você mentiu acerca da arma - disse o Lankford. - E devia dinheiro ao Levin. Está lá no livro de contabilidade dele. Quatro mil dólares.

- Não menti acerca de nada. Nunca me perguntou se tinha uma arma.

- Mentiu por omissão.

- Tretas.

- Quatro mil.

- Oh, sim, os quatro mil. Matei-o porque não queria pagar-lhe os quatro mil - disse com todo o sarcasmo que me era possível.

- Apanhou-me, detective. Já tem o motivo. Só que nunca lhe ocorreu verificar se ele já me tinha facturado os quatro mil ou se eu não lhe tinha pago já uma factura de seis mil dólares por semana antes de ser assassinado.

O Lankford manteve-se impassível. Mas vi a dúvida começar a assomar ao rosto da Sobel.

- Não interessa quanto ou quando lhe pagou - disse o Lankford.

- Um chantagista nunca fica satisfeito. Uma pessoa nunca pára de pagar até se chegar ao limite. E foi isso que aconteceu aqui. Chegou-se ao limite.

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Abanei a cabeça.

- E que coisa era essa exactamente que ele tinha para me obrigar a dar-lhe trabalho e pagar-lhe até chegar ao limite?

Ambos trocaram um olhar e o Lankford assentiu com a cabeça. A Sobel tirou um dossier de uma pasta e entregou-mo.

- Veja isso - disse o Lankford. - Isso escapou-lhe quando andava a vasculhar-lhe a casa. O Levin tinha isso escondido na gaveta de uma cómoda.

Abri o dossier e vi que continha várias fotos a cor de 8 por 10. Tinham sido tiradas de longe e eu aparecia em todas. O fotógrafo tinha seguido o meu Lincoln durante vários dias e ao longo de vários quilómetros. Cada imagem era um momento congelado no tempo e as fotos mostravam-me com vários indivíduos que reconheci imediatamente como clientes meus. Eram prostitutas, traficantes de rua e Road Saints. As fotos poderiam ser interpretadas como suspeitas porque mostravam apenas uma fracção de segundo. Um prostituto de minicalções a sair da parte de trás do Lincoln. O Teddy Vogel a dar-me pela janela um grosso maço de notas. Fechei o dossier e entreguei-o.

- Estão a brincar comigo, certo? Estão a dizer que o Raul se serviu disso? Que me extorquia com isso? Essas pessoas são meus clientes. Isto é alguma piada ou está a escapar-me alguma coisa?

- A Ordem dos Advogados da Califórnia pode achar que não é nenhuma piada - disse o Lankford. - Soubemos que não é bem visto pela ordem. O Levin sabia-o. E aproveitou-se disso.

Abanei a cabeça. - Incrível.

Sabia que tinha de ficar calado. Estava a fazer tudo mal com estas pessoas. Sabia que devia calar-me já. Mas senti uma necessidade quase avassaladora de os convencer. Comecei a compreender por que razão tantos dos meus casos eram estabelecidos nas salas de depoimento das esquadras. As pessoas simplesmente não conseguem ficar caladas.

Tentei recordar-me das fotos que tinha visto no dossier. O Vogel a dar-me o maço de notas tinha sido no parque de estacionamento no exterior do clube de strip dos Road Saints na Sepulveda. Tinha sido depois do julgamento do Harold Casey e o Vogel estava a pagar-me para meter recurso. O prostituto chamava-se Terry Jones e tinha-o representado numa acusação de solicitação sexual na primeira semana de Abril. Tive de o procurar pelos passeios de Santa Monica Boulevard na noite anterior à audiência para ter a certeza de que ele ia comparecer.

Tornou-se claro que as fotos tinham sido todas tiradas entre a manhã em que tinha aceitado representar o Roulet e o dia em que o Raul Levin foi assassinado. Depois tinham sido depositadas na cena do

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crime pelo assassino - tudo fazia parte dos planos do Roulet para me tramar e poder controlar-me. A polícia disporia assim de tudo o que precisava para me acusar da morte do Levin - à excepção da arma do crime. Enquanto o Roulet tivesse a arma em seu poder, também eu estava sob o poder dele.

Tinha de admirar o plano e o engenho, ao ponto de sentir o pavor do desespero. Tentei abrir a janela, mas o botão não funcionava. Pedi à Sobel para abrir uma janela. O ar fresco começou a entrar no carro.

Pouco depois o Lankford olhou-me pelo retrovisor e tentou voltar à conversa.

- Verificámos os registos daquela Woodsman. Chegou a estar na sua posse, ou não se lembra?

- O Mickey Cohen - respondi num tom casual enquanto contemplava as íngremes encostas de Laurel Canyon.

- Como é que conseguiu ficar com a arma do Mickey Cohen? Respondi sem tirar os olhos da paisagem.

- O meu pai era advogado. O Mickey Cohen foi cliente dele.

O Lankford assobiou com surpresa. O Cohen tinha sido um dos gangsters mais famosos de Los Angeles. Nos tempos em que os gangsters competiam com as estrelas de cinema nos cabeçalhos das coscuvilhices.

- E quê? O tipo limitou-se a dar a arma ao seu pai?

- O Cohen tinha sido acusado de um tiroteio e o meu pai defendeu-o. Reivindicou que tinha sido em defesa própria. Foi a julgamento e o meu pai conseguiu-lhe um veredicto de não-culpado. Quando a arma foi devolvida, o Mickey deu-a ao meu pai. Como uma espécie de recordação, por assim dizer.

- O seu pai nunca se perguntou quantas pessoas o Mick tinha despachado com ela?

- Não sei. Não cheguei a conhecer bem o meu pai.

- E o Cohen? Chegou a conhecê-lo?

- O meu pai representou-o ainda eu não era nascido. Herdei a arma em testamento. Não sei por que razão ma quis deixar. Só tinha cinco anos quando ele morreu.

- E quando cresceu tornou-se advogado como o paizinho e, sendo um bom advogado, decidiu registar a arma.

- Pensei que se alguma vez viesse a ser roubada ou algo do género, assim poderia voltar a recuperá-la. Vire aqui em Fareholm.

O Lankford assim fez e começámos a subir a colina em direcção a minha casa. Foi então que lhes dei a má notícia.

- Obrigado pela boleia. Podem revistar-me a casa e o escritório e o carro durante quanto tempo quiserem, mas devo dizer-lhes que estão

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a perder o vosso tempo. Não só sou a pessoa errada, como não vão encontrar essa arma.

Vi o Lankford erguer a cabeça para voltar a olhar-me pelo retrovisor.

- Como assim, Doutor? Já se livrou dela?

- Porque me roubaram a arma de casa e não sei onde está. O Lankford começou a rir. Vi alegria nos olhos dele.

- Ah, ah, roubada. Que conveniente. Quando foi isso?

- Não sei. Há anos que não pegava na pistola.

- Apresentou queixa à polícia ou fez um pedido de indemnização à seguradora?

- Não.

- Portanto, alguém entra-lhe em casa e rouba a pistola do Mickey Cohen e você não apresenta queixa. Mesmo depois de nos contar que a registou para o caso de uma coisa assim acontecer. E sendo você advogado e essas coisas todas, isso não lhe soa um bocadinho esquisito?

- Sim, mas sei quem a roubou. Foi um cliente. Ele disse-me que a levou e que se eu apresentasse queixa estaria a violar a confiança de um cliente porque o relatório dessa queixa conduziria à sua detenção. Uma espécie de situação absurda, detective.

A Sobel virou-se e olhou-me. Talvez pensasse que eu acabava de inventar aquilo tudo, e de facto estava.

- Isso soa-me tudo a gíria jurídica e a tretas, Haller - disse o Lankford.

- Mas é a verdade. Já chegámos. Estacione em frente da garagem. O Lankford estacionou e desligou o motor. Virou-se para me olhar

antes de sair.

- Quem foi o cliente que roubou a arma?

- Já lhe disse, não posso contar.

- Bem, o Roulet é o único cliente que tem agora, não é?

- Tenho muitos clientes. Mas já lhe disse, não posso contar.

- Talvez devêssemos verificar os registos da pulseira electrónica para ver se andou recentemente pela sua casa?

- Faça como entender. Ele esteve aqui realmente. Tivemos aqui uma reunião. No meu escritório.

- Talvez tenha sido quando ele a levou.

- Não estou a dizer que ele a levou, detective.

- Bem, de qualquer modo, aquela pulseira iliba o Roulet da coisa com o Levin. Verificámos os registos do GPS. Sendo assim, só resta o Doutor.

- Sim, para vos fazer perder tempo.

Apercebi-me de repente de algo acerca da pulseira electrónica do Roulet, mas tentei disfarçar. Talvez houvesse uma porta-alçapão para

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desvendar aquele acto à Houdini. Era algo que precisava de verificar mais tarde.

- Vamos ficar aqui sentados?

O Lankford saiu do carro e abriu-me a porta porque o puxador interior tinha sido removido para o transporte de suspeitos e detidos.

- Querem que lhes mostre a caixa da arma? Quando virem que está vazia, talvez possam ir embora e poupar-nos assim tempo a todos.

- Não me parece, Doutor - disse o Lankford. - Vamos revistar tudo. Começo pelo carro e a Sobel pela casa.

Abanei a cabeça.

- Não me parece, detective. A coisa não funciona assim. Não confio em si. O seu mandado é desonesto e, tanto quanto sei, também você é desonesto. Ficam juntos para poder observá-los ou podemos esperar até eu arranjar um segundo observador. A minha secretária pode estar aqui em dez minutos. Posso pedir-lhe para o vigiar e assim também pode perguntar-lhe acerca do telefonema na manhã em que o Raul Levin foi morto.

O Lankford corou de insulto e raiva, ao ponto de parecer que estava a ter dificuldades em se controlar. Decidi insistir. Peguei no telemóvel.

- Vou ligar já a esse vosso juiz a ver se ele...

- Está bem - disse o Lankford. - Começamos pelo carro. Depois revistamos a casa.

Guardei o telemóvel.

- Muito bem.

Aproximei-me do teclado de multifrequência no exterior da garagem. Introduzi o código e a porta começou a levantar, revelando o Lincoln azul-escuro à espera de ser inspeccionado. A matrícula era NT GLTY. O Lankford olhou para o carro e abanou a cabeça.

- Pois, certo.

Entrou na garagem, de rosto ainda retesado de raiva. Decidi aliviar um pouco as coisas.

- Ei, detective. Qual é a diferença entre um peixe-gato e umn advogado de defesa?

Não respondeu. Lançou um olhar zangado à matrícula do Lincoln-

- Um é um canalha chupista que se alimenta no fundo da lama e o outro é um peixe - rematei.

Ficou de rosto petrificado por um segundo. Depois esboçou um sorriso e desatou a rir às gargalhadas. A Sobel entrou na garagem, mas não tinha ouvido a piada.

- O que foi? - perguntou.

- Depois conto-te - disse o Lankford.

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Demoraram meia hora a revistar o Lincoln e depois passaram para a casa, começando pelo escritório. Observei-os durante esse tempo todo e só falei para explicar alguma coisa que me pediam. Pouco falaram entre si e estava a tornar-se bem nítido que havia uma divisão entre ambos sobre o rumo que a investigação estava a seguir por decisão do Lankford.

A certa altura o Lankford recebeu uma chamada no telemóvel e foi para o alpendre para atender em privado. As cortinas estavam abertas e podia vê-lo lá fora enquanto a Sobel continuava no escritório.

- Não está muito feliz com isto, pois não? - disse à Sobel quando teve a certeza de que o parceiro não estava a ouvir.

- Não interessa o que penso. Estamos a investigar o caso, é só.

- O seu parceiro é sempre assim, ou só com advogados?

- Gastou cinquenta mil dólares o ano passado com um advogado para tentar conseguir a custódia dos filhos. Não conseguiu. E antes disso perdemos um caso de monta, um homicídio, por uma questão técnica.

Assenti com a cabeça. - E ele culpou o advogado. Mas quem é que quebrou as regras?

Não respondeu, e isso confirmou que tinha sido o Lankford quem cometera o erro técnico.

- Já percebi - disse-lhe.

Voltei a olhar para o Lankford no alpendre. Estava a gesticular com impaciência, como se a tentar explicar algo a um idiota. Devia ser o advogado que estava a tratar-lhe da custódia. Resolvi mudar de assunto com a Sobel.

- Não acha que estão a ser completamente manipulados neste caso?

-- Está a falar de quê?

- Das fotos escondidas lá no gabinete, da cápsula da bala no radiador. Muito conveniente, não acha?

Que quer dizer com isso?

- Não estou a dizer nada. Estou a fazer perguntas que parecem não mteressar ao seu parceiro.

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Voltei a verificar o Lankford. Estava a marcar um número no telemóvel para fazer uma chamada. A Sobel estava a revistar atrás dos dossiers numa gaveta. Não encontrando nenhuma arma, fechou a gaveta e passou para a secretária. Falei em voz baixa.

- E aquela mensagem que o Raul me deixou? De ter encontrado o bilhete de regresso do Jesus Menendez. Acha que estava a referir-se a quê?

- Ainda não conseguimos descobrir.

- Que pena. Acho que é muito importante.

- É tudo importante até deixar de ser.

Anuí, sem saber bem o que ela queria dizer com isso.

- Sabe, o caso que estou a julgar é muito interessante. Devia continuar a assistir. Podia aprender alguma coisa.

Entreolhámo-nos durante um segundo. Depois semicerrou os olhos com desconfiança, como se estivesse a avaliar se um suposto suspeito de homicídio não estaria a atirar-se a ela.

- Está a falar a sério?

- Sim, por que não?

- Bem, primeiro, talvez venha a ter dificuldade em ir ao tribunal se ficar em detenção.

- Ei, sem arma não há caso. É por isso que vieram cá, certo? Não respondeu.

- Além do mais, isto é coisa do seu parceiro. Não concorda com ele nisto. Vê-se.

- Típico de um advogado. Acha que conhece os ângulos todos.

- Não, eu não. Tenho descoberto que não conheço nenhum ângulo.

Foi a vez dela de mudar de assunto.

- É a sua filha?

Estava a apontar para a foto em cima da secretária.

- Sim. A Hayley.

- Linda aliteração. Hayley Haller. Recebeu o nome do cometa?

- Mais ou menos. Mas escreve-se de maneira diferente. Foi a minha ex-mulher que escolheu o nome.

O Lankford entrou a falar alto sobre a chamada que tinha recebido de um supervisor a dizer-lhes que iriam tratar do próximo caso de homicídio em Glendale, quer o caso Levin continuasse activo ou não. Não falou da chamada que tinha feito.

A Sobel disse-lhe que tinha acabado de revistar o escritório sem encontrar nenhuma arma.

- Já vos disse que a arma não está aqui. Estão a perder o vosso tempo. E o meu. Amanhã tenho de estar no tribunal e preciso de me preparar para as testemunhas.

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- Vamos ver o quarto - disse o Lankford, não fazendo caso do meu protesto.

Recuei para o corredor para os deixar passar. Aproximaram-se das mesinhas-de-cabeceira. O Lankford abriu a gaveta de cima e pegou num CD.

Wreckrium pelo Diabinho - leu. - Só pode estar a gozar

comigo.

Não respondi. A Sobel abriu duas das gavetas da mesinha do lado dela e encontrou-as vazias, à excepção de um par de preservativos. Desviei o olhar.

- Vou ver o armário - disse o Lankford depois de terminar, deixando as gavetas abertas como era típico das rusgas policiais. Entrou no armário e começou a falar de lá de dentro.

- Aqui vamos.

Saiu do armário com uma caixa de madeira nas mãos.

- Bingo - disse eu. - Encontrou uma caixa vazia. Deve ser um bom detective.

O Lankford abanou a caixa antes de a pousar em cima da cama. Ou estava a tentar brincar comigo, ou então a caixa tinha algo pesado dentro. Senti uma espécie de descarga eléctrica percorrer-me a nuca ao aperceber-me de que o Roulet poderia facilmente ter voltado a infiltrar-se em minha casa para deixar ali a pistola. Teria sido o local mais indicado para a esconder. Seria o último lugar onde eu procuraria assim que descobrisse que a arma tinha desaparecido. Lembrei-me do estranho sorriso do Roulet quando lhe disse para me devolver a arma. Estaria a sorrir porque já tinha devolvido a arma?

O Lankford abriu o fecho e levantou a tampa. Tirou o oleado de protecção. O estojo de cortiça que outrora contivera a arma do Mickey Cohen continuava vazio. Respirei tão fundo que quase soou como um suspiro.

- Eu não lhes tinha dito? - apressei-me a dizer, tentando disfarçar o alívio que sentia.

- Sim, tinha-nos dito - disse o Lankford. - Heidi, tens aí um saco? Vamos levar a caixa.

Olhei para a Sobel. Não tinha nada o ar de se chamar Heidi. Perguntei-me se não seria uma espécie de alcunha que usavam lá na esquadra. Ou talvez fosse por essa razão que ela omitia o primeiro nome nos cartões. Não soava a agente policial dura.

- No carro - disse ela.

- Vai buscá-lo - disse o Lankford.

- Vão levar uma caixa vazia? - perguntei. - Para que lhes serve isso?

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- Faz tudo parte da série de provas, Doutor. Já devia saber isso. Além do mais, pode vir a dar jeito, pois tenho a impressão que nunca vamos encontrar a arma.

Abanei a cabeça.

- Pode vir a dar jeito só se for nos seus sonhos. A caixa não serve de prova para nada.

- É uma prova de que tinha a arma do Mickey Cohen. Diz aqui na pequena placa de latão que o seu paizinho ou alguém fez.

- Sim, e que porra interessa isso?

- Bem, acabo de fazer uma chamada lá fora no alpendre, Haller. Pedimos a alguém para verificar esse caso do Mickey Cohen. Acontece que lá no arquivo de provas da Polícia de L.A. ainda têm todos os relatórios balísticos desse caso. Sorte a nossa, pois o caso já foi há uns bons cinquenta anos, não?

Compreendi de imediato. Iriam comparar as cápsulas e balas do caso Cohen com as provas recolhidas no caso Levin. Iriam associar a morte do Levin à arma do Mickey Cohen, que depois associariam a mim e à caixa da arma que constava dos registos informáticos do estado. Duvidei que o Roulet, quando planeava este esquema para me controlar, tivesse sido capaz de antecipar os passos da polícia ao ponto de conseguirem instaurar um processo sem terem a arma.

Continuei calado. A Sobel saiu do quarto sem me olhar e o Lankford lançou-me um sorriso de assassino.

- Que se passa, Doutor? As provas comeram-lhe a língua? Finalmente consegui falar.

- Quanto tempo é que a balística vai demorar?

- Ei, para si, vamos pedir para apressarem a coisa. Portanto, continue a divertir-se enquanto pode. Mas não saia da cidade.

Riu-se, quase a transbordar de orgulho com o seu humor.

- Bem, pensava que só se dizia isso nos filmes. Mas pronto, acabei de o dizer! Quem dera que a minha parceira estivesse aqui.

A Sobel voltou com um grande saco castanho e um rolo de fita vermelha para provas. Vi-a guardar a caixa no saco e depois selá-lo com fita. Perguntei-me quanto tempo me restava e se tudo aquilo que pusera em marcha não estaria a ruir. Comecei a sentir-me tão vazio como a caixa de madeira que a Sobel acabava de selar.

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O Fernando Valenzuela vivia em Valência, a norte. De minha casa até lá demorava uma boa hora durante o resto do período de mais trânsito. O Valenzuela tinha-se mudado de Van Nuys alguns anos antes porque as três filhas estavam prestes a entrar para o liceu e receava pela sua segurança e educação. Mudou-se para um bairro cheio de pessoas que também tinham fugido da cidade e demorava entre cinco a quarenta e cinco minutos a ir de casa para o trabalho. Mas estava feliz. A casa era melhor e as filhas estavam mais seguras. Vivia numa casa de estilo espanhol, com telhado de telhas vermelhas numa comunidade cheia de casas do mesmo estilo. Era mais do que um fiador judicial sonharia vir a alcançar, mas as despesas mensais eram avultadas.

Eram quase nove horas quando lá cheguei. Estacionei à frente da garagem, que estava aberta. O espaço estava ocupado por duas carrinhas, uma pequena e outra de caixa aberta. Vi um caixote enorme no chão com as letras SONY, no chão entre a carrinha aberta e uma banca de ferramentas completamente equipada. Era um caixote comprido e fino. Aproximei-me para ver melhor e reparei que era o caixote de um televisor de ecrã de plasma de cinquenta polegadas. Fui à parte da frente da casa e bati à porta. O Valenzuela abriu segundos depois.

- Mick, que fazes por cá?

- Sabes que deixaste a porta da garagem aberta?

- Raios! Acabam de me entregar um televisor de ecrã de plasma. Correu pelo pátio para ir à garagem. Fechei a porta da frente e segui-o. Quando cheguei, vi-o parado ao lado do televisor com um sorriso.

- Caramba, se fosse em Van Nuys, esta coisa teria desaparecido logo. Anda, entramos por aqui - disse ele.

Seguiu para uma porta de acesso à casa. Ligou um interruptor e a porta da garagem começou a fechar-se.

- Ei, Val, espera um segundo - disse-lhe. - Vamos falar aqui. Ficamos mais à vontade.

- Mas a Maria vai querer dizer-te olá.

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- Talvez da próxima vez.

Aproximou-se com uma expressão de preocupação.

- Que se passa, Chefe?

- O que se passa é que perdi hoje algum tempo com a polícia a trabalhar no homicídio do Raul.

O Valenzuela assentiu vigorosamente com a cabeça.

- Sim, já sei, vieram ver-me uns dias depois do sucedido. Mostrei-lhes o sistema e como funciona e dei-lhes os registos do Roulet desse dia. Verificaram que ele estava a trabalhar. Também lhes mostrei a outra pulseira que tenho e expliquei-lhes que era impossível falsificar os registos. Por causa do detector de massa. Ou seja, é impossível retirá-la. O sistema detectaria logo e eu também.

Encostei-me à carrinha e cruzei os braços.

- E os dois polícias perguntaram-te onde estavas tu nesse sábado? Atingi o Valenzuela em cheio.

- Que disseste, Mick?

Olhei para o caixote do televisor e depois olhei para ele.

- O facto é que ele matou o Raul de alguma maneira, Val. Agora suspeitam de mim e quero saber como é que ele o fez.

- Ouve, Mick, o tipo está limpo. Estou a dizer-te, aquela pulseira nunca saiu do tornozelo dele. A máquina não mente.

- Pois, eu sei, a máquina não mente... Segundos depois compreendeu.

- Que pretendes dizer, Mick?

Colocou-se à minha frente numa postura rígida e agressiva. Desencostei-me da carrinha e baixei os braços.

- Só estou a perguntar, Val. Onde estavas nessa manhã de quinta-feira?

- Seu filho da puta, como podes perguntar-me isso?

Assumira agora uma postura de luta e apanhou-me momentaneamente desprevenido. Tinha-me chamado a mesma coisa que eu tinha chamado ao Roulet nesse mesmo dia.

O Valenzuela lançou-se de repente sobre mim e empurrou-me com força contra a carrinha. Empurrei-o com mais força ainda e embateu contra o caixote do televisor. Tropeçou e tombou-o no chão com uma pancada pesada. Ouviu-se o som agudo de algo a quebrar dentro do caixote.

- Oh, foda-se! - gritou. - Oh, foda-se! Partiste o ecrã!

- Foste tu que me empurraste primeiro. Só me defendi.

- Oh, foda-se!

Arrastou-se para junto do caixote e tentou erguê-lo, mas era demasiado pesado e difícil de manejar. Aproximei-me para o ajudar. Assim

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que endireitámos o caixote, ouvimos pedaços de material a deslizar dentro. Parecia vidro.

- Grande porra! - gritou.

A porta de acesso a casa abriu-se e Maria, a mulher dele, espreitou.

- Olá, Mickey. Val, o que é esta barulheira toda?

- Vai lá para dentro - ordenou ele.

- Bem, mas que...

- Cala a boca, porra, e vai para dentro!

Ela olhou-nos fixamente e fechou a porta. Ouvi-a trancá-la. Pelos vistos, esta noite o Valenzuela ia dormir aqui na garagem com o televisor partido. Olhei para ele. Estava de boca aberta devido ao choque.

- Custou oito mil dólares - murmurou.

- Fazem televisores que custam oito mil dólares? Fiquei chocado. Mas que mundo era este?

- E tinha sido com desconto.

- Val, onde arranjaste dinheiro para comprar um televisor de oito mil dólares?

Olhou para mim e a raiva reacendeu-se.

- Onde caralho pensas que foi? Com o trabalho, pá. Graças ao Roulet vou ter um ano dos diabos. Mas, porra, Mick, não fui eu que lhe tirei a pulseira para ele poder matar o Raul. Conhecia o Raul há tanto tempo como tu. Não tive nada que ver com isso. E não pus eu a pulseira dele para ele poder ir matar o Raul. E não fui eu que matei o Raul em troca da porra de um televisor. E se não acreditas em mim, então rua daqui e sai da minha vida!

Disse-o com toda a desesperada intensidade de um animal ferido. Lembrei-me fugazmente do Jesus Menendez. Não conseguira ver a inocência nas súplicas dele e não queria que isso voltasse a acontecer.

- Okay, Val.

Aproximei-me da porta e carreguei no botão para abrir a garagem. Quando me virei para trás, vi que ele tinha pegado num x-acto da banca de ferramentas e estava a cortar a fita no tampo do caixote. Parecia que estava a tentar confirmar aquilo que já sabíamos que acontecera ao ecrã de plasma. Saí da garagem.

- Acabaram-se os negócios entre nós, Val - disse-lhe. - Vou dizer à Lorna para te mandar um cheque amanhã de manhã.

- Não te dês ao trabalho. Vou dizer lá na loja que foi entregue assim.

Cheguei ao carro e olhei para ele.

- Então liga-me quando te prenderem por fraude. Depois de teres pago a tua própria caução.

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Entrei no carro e arranquei. Quando olhei para a garagem, vi que o Valenzuela tinha parado de cortar a fita e estava ali parado a olhar para mim.

Havia pouco trânsito e demorei pouco a chegar à cidade. Tinha acabado de entrar em casa quando o telefone começou a tocar. Atendi logo, pensando que talvez fosse o Valenzuela a dizer-me que ia começar a trabalhar com outro profissional de defesa. O facto é que nesse momento estava-me nas tintas.

Mas era a Maggie McPherson.

- Está tudo bem? - perguntei. Não era costume ela ligar tão tarde.

- Sim.

- Onde está a Hayley?

- A dormir. Não quis ligar antes de ela adormecer.

- O que se passa?

- Ouvi hoje uns rumores estranhos sobre ti lá no escritório.

- Referes-te ao boato de ser eu o assassino do Raul?

- Haller, isto é grave?

A cozinha era demasiado pequena para ter cadeiras e mesa. E como o fio do telefone era curto, sentei-me em cima da banca. Vi pela janela as luzes da Baixa a tremeluzir ao longe e um brilho no horizonte que vinha do estádio dos Dodgers.

- Eu diria que sim, a situação é grave. Andam a tramar-me para ser eu o culpado pela morte do Raul.

- Oh, meu Deus, Michael, como é que isso é possível?

- Uma data de ingredientes diferentes: um cliente perverso, um polícia ressentido, um advogado estúpido, acrescenta-se açúcar, especiarias e outros condimentos agradáveis.

- Foi o Roulet? Foi ele?

- Não posso falar dos meus clientes contigo, Mags.

- Bem, que pensas fazer?

- Não te preocupes, estou bem protegido. Não vai acontecer-me nada.

- E a Hayley?

Sabia ao que ela se referia. Estava a avisar-me para não deixar esta situação afectar a Hayley. Para não ter de ouvir na escola outros miúdos a dizer que o pai era o suspeito de um homicídio, com a foto e o nome a aparecer nos jornais.

- Não vai acontecer nada à Hayley. Ela nunca vai saber. Ninguém vai chegar a saber, se eu souber jogar bem esta coisa.

Manteve-se calada e não soube que mais lhe dizer para a tranquilizar. Mudei de assunto. Tentei parecer confiante e até animado.

- Que tal te parecia o miúdo Minton hoje depois do julgamento?

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Não respondeu logo, talvez por relutância em mudar de assunto.

- Não sei. Parecia estar bem. Mas o Smithson destacou um observador porque é o primeiro julgamento do Minton.

Já estava a contar que o Smithson, que dirigia os escritórios da procuradoria de Van Nuys, tivesse destacado alguém para vigiar o Minton.

- Disseram alguma coisa?

- Não, ainda não. Pelo menos que eu saiba. Ouve, Haller, estou realmente preocupada com isto. Corre o rumor de que recebeste um mandado de busca do tribunal. É verdade?

- Sim, mas não te preocupes com isso. Já te disse que tenho tudo sob controlo. Vai correr tudo bem. Prometo.

Sabia que não lhe tinha mitigado os medos. Ela estava a pensar na nossa filha e no possível escândalo. Também estava provavelmente a pensar um pouco nela própria e nas possíveis consequências para a sua carreira do facto de ter um ex-marido expulso da Ordem e acusado de homicídio.

- Além do mais, se tudo isto correr mal, continuas a ser o meu primeiro cliente, certo?

- Estás a falar de quê?

- Do Serviço de Limusinas do Advogado do Lincoln. Posso contar contigo, certo?

- Haller, não me parece que seja altura para dizer piadas.

- Não é nenhuma piada, Maggie. Tenho andado a pensar em largar isto. Já antes de toda esta merda acontecer. É como te disse naquela noite, já não consigo fazer mais isto.

Fez-se um longo silêncio antes de ela responder.

- Seja o que for que queiras fazer, por mim e pela Hayley tudo bem.

- Não sabes como é bom ouvir isso.

Suspirou ao telefone. - Não sei como consegues fazê-lo, Haller.

- Fazer o quê?

- És um advogado de defesa desonesto, com duas ex-mulheres e uma filha de oito anos. E mesmo assim gostamos de ti.

Fiquei em silêncio. Apesar de tudo, sorri.

- Obrigado, Maggie McFierce. Boa noite. E desliguei.

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Terça-feira, 24 de Maio

O segundo dia do julgamento começou logo com a ordem imediata para eu e o Minton comparecermos na sala privada da juíza. A Fullbright queria falar apenas comigo, mas as regras do julgamento impediam-na de falar comigo em privado sobre o que quer que fosse com a exclusão do procurador. A sala era espaçosa, com uma secretária e cadeiras rodeadas por três paredes de prateleiras com livros de Direito. Sentámo-nos virados para a secretária dela.

- Sr. Minton - começou por dizer -, não posso pedir-lhe para não ouvir, mas vou ter uma conversa aqui com o Sr. Haller na qual não espero que participe ou interrompa. Não lhe diz respeito a si nem, tanto quanto sei, ao caso Roulet.

O Minton, apanhado de surpresa, nem soube como reagir, limitando-se a ficar boquiaberto. A juíza virou-se para mim de mãos unidas sobre a secretária.

- Sr. Haller, há alguma coisa que queira falar comigo? E não se esqueça que está sentado ao lado de um procurador.

- Não, Meritíssima, está tudo bem. Desculpe se a incomodaram ontem.

Esforcei-me por esboçar um sorriso de arrependimento, como se para mostrar que o mandado de busca não passara de um inconveniente um pouco embaraçador.

- Se quiser chamar-lhe um incómodo, Sr. Haller. Investimos muito tempo neste caso. O júri, a acusação, todos nós. Espero que não tenha sido em vão. Não quero voltar a fazer isto. A minha agenda está já demasiado preenchida.

- Desculpe, Meritíssima Fullbright - disse o Minton. - Posso perguntar só o que é que...

- Não pode, não - disse ela, interrompendo-o. - O que estamos aqui a falar não diz respeito ao julgamento, a não ser pela perda de

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tempo. Se o Sr. Haller confirma que não há nenhum problema, então aceito a palavra dele. Não são necessárias mais explicações. Lançou-me um olhar penetrante.

- Tenho a sua palavra quanto a isto, Sr. Haller?

Hesitei antes de confirmar com a cabeça. Ela estava a dizer-me que as consequências seriam infernais se quebrasse a minha palavra e a investigação de Glendale viesse a afectar o julgamento do caso Roulet.

- Tem a minha palavra.

Levantou-se de imediato e virou-se para o cabide onde estava pendurada a sua toga escura.

- Muito bem, meus senhores, vamos então. Temos um júri à espera. Eu e o Minton saímos para a sala de audiências. O Roulet estava

sentado à espera à mesa da defesa.

- Que raio foi aquilo? - sussurrou-me o Minton.

Estava a fazer-se de parvo. Certamente já estava a par dos mesmos rumores que a minha ex-mulher ouvira nos corredores do escritório da procuradoria.

- Nada, Ted. Umas parvoíces que têm que ver com outro caso meu. É hoje que vais concluir?

- Depende de ti. Quanto mais demorares, mais tempo demoro também a limpar as merdas que lanças.

- Merdas, ha? Já estás a sangrar de morte e nem te dás conta. Ofereceu-me um sorriso cheio de confiança.

- Não me parece.

- Podes chamar-lhe uma morte causada por mil lâminas, Ted. Não basta uma só. São precisas muitas. Bem-vindo à prática criminal.

Afastei-me e fui para a mesa da defesa. Assim que me sentei, o Roulet falou-me baixinho.

- O que foi aquilo com a juíza?

- Nada. Estava só a alertar-me para o modo como vou lidar com a vítima durante o contra-interrogatório.

- Quem, a mulher? Ela chamou-lhe mesmo vítima?

- Louis, fala mais baixo. E, aliás, ela é mesmo a vítima nesta coisa. Talvez tenhas a rara capacidade de te convencer de quase tudo, mas ainda precisamos... não, falo só por mim, ainda preciso de convencer o júri.

Aceitou o comentário como se não tivesse importância e continuou.

- Bem, e que disse ela?

- Disse que não ia permitir-me grande liberdade no contra-interrogatório. E recordou-me que a Regina Campo é uma vítima.

- Estou a contar contigo para a desfazer em pedaços, como disseste naquela primeira reunião.

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- Bem, as coisas agora são bastante diferentes do que eram nessa altura, não achas? E o teu esquemazinho com a minha arma está prestes a rebentar-me na cara. E ouve o que te digo, não sou eu que vou cair Se tiver de andar a transportar pessoas para o aeroporto durante o resto da vida, faço-o na boa e será a minha maneira de sair disto. Percebes Louis?

- Percebo, Mick - disse num tom indiferente. - Tenho a certeza de que arranjas uma solução. És um homem esperto.

Olhei para ele. Felizmente não precisei de dizer mais nada. O oficial de justiça anunciou a abertura da sessão e a Juíza Fullbright ocupou o seu lugar.

A primeira testemunha do Minton para esse dia foi o Detective Martin Booker, da Polícia de Los Angeles. Era uma testemunha sólida para a acusação. Sólida como uma rocha. As respostas que dava eram claras e concisas, e sem a mínima hesitação. O Booker apresentou a peça-chave das provas, a navalha com as iniciais do meu cliente e, sob a orientação das perguntas do Minton, levou o júri a acompanhá-lo durante toda a sua investigação do ataque à Regina Campo.

Disse que na noite de 6 de Março estava a trabalhar no turno da noite no gabinete de Van Nuys. Tinha sido chamado ao apartamento da Regina Campo pelo comandante da Divisão da Zona Oeste, o qual, depois de ter sido informado pelos seus agentes de patrulha, acreditava que o ataque à Regina merecia a atenção imediata de um investigador. O Booker explicou que os seis gabinetes de detectives do Valley só tinham pessoal disponível durante o dia. E que a resposta mais rápida tinha sido destacar um dos detectives do turno da noite, aos quais muitas vezes são entregues casos de natureza urgente.

- O que é que tornava este caso de natureza urgente, detective? perguntou o Minton.

- Os ferimentos da vítima, a detenção de um suspeito e a crença de que provavelmente tinha sido evitado um crime mais grave ainda.

- E que crime mais grave seria esse?

- Homicídio. Parecia que o sujeito estava a planear matá-la. Poderia ter protestado, mas não me opus, pois era minha intenção

explorar essas palavras durante o contra-interrogatório.

O Minton pediu ao Booker para recordar todos os passos da investigação na cena do crime e o depoimento da Regina quando esta estava a ser tratada no hospital.

- Antes de ir para o hospital, os Agentes Maxwell e Santos informaram-no do que a vítima dissera que acontecera, correcto?

- Sim, forneceram-me uma visão geral.

- Disseram-lhe que a vítima ganhava a vida a vender sexo a homens?

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- Não, não disseram.

- E quando descobriu isso?

- Bem, já me tinha apercebido quando estive no apartamento dela e vi alguns dos objectos que ela tinha lá.

- Que objectos?

- Coisas que poderia descrever como acessórios sexuais, e num dos quartos havia um armário só com combinações e outras roupas de natureza sexual e provocante. Nesse quarto havia também um televisor e uma colecção de filmes pornográficos nas gavetas por baixo. Tinham-me dito que ela não tinha companheiro, mas deu-me a impressão que os dois quartos estavam a ser usados. Comecei a pensar que um dos quartos era o dela, para dormir quando estava sozinha, e o outro era para as actividades profissionais.

- Uma espécie de bordel caseiro?

- Por assim dizer.

- Isso fê-lo mudar a opinião que tinha dela como vítima deste ataque?

- Não.

- E porquê?

- Porque qualquer pessoa pode ser uma vítima. Seja uma prostituta ou o Papa, não importa. Uma vítima é uma vítima.

Dito como se estivesse ensaiado, pensei. O Minton marcou um ponto e prosseguiu.

- Ora bem, quando chegou ao hospital, perguntou à vítima sobre essa sua teoria em relação aos quartos ou o que ela fazia para ganhar a vida?

- Sim.

- Que disse ela?

- Disse simplesmente que vendia sexo. Não tentou ocultar isso.

- Houve alguma coisa do que ela disse que diferisse dos relatos do ataque que já tinha recolhido na cena do crime?

- Não, não houve nada que diferisse. Ela disse-me que abriu a porta ao arguido e que este a esmurrou de imediato na cara, obrigando-a. a recuar para dentro do apartamento. Ele continuou a agredi-la, sacou de uma navalha e disse-lhe que ia violá-la e depois matá-la.

O Minton continuou a sondar a investigação com mais pormenores, ao ponto de entediar o júri. Sempre que não estava a anotar Perguntas para depois fazer ao Booker durante o contra-interrogatório, olhava para os jurados e via a sua atenção começar a ceder sob o peso de tanta informação.

Finalmente, após noventa minutos de interrogatório directo, chegou a minha vez. O meu objectivo era entrar e sair logo. Ao passo que o

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Minton optara pela autópsia completa do caso, eu queria apenas raspar um pouco da cartilagem dos joelhos.

- Detective Booker, a Regina Campo explicou-lhe por que razão mentiu à polícia?

- Ela não me mentiu.

- Talvez não a si, mas ela disse aos primeiros agentes na cena do crime, aos agentes Maxwell e Santos, que não sabia por que razão o suspeito tinha ido ao apartamento dela, não foi?

- Não estava presente quando eles falaram com ela e, portanto, não posso testemunhar quanto a isso. Só sei que ela estava assustada, que tinha acabado de ser espancada e ameaçada de violação e morte na altura desse primeiro depoimento.

- Portanto, está a dizer que, dadas as circunstâncias, é aceitável mentir à polícia.

- Não, eu não disse isso.

Consultei os meus apontamentos e prossegui. Não ia seguir uma linha contínua de interrogatório. Estava a disparar tiros à toa, para tentar desequilibrá-lo.

- Catalogou as roupas que encontrou no quarto que, como o senhor disse, a Sra. Campo usava para o seu negócio de prostituição?

- Não. Não passou de uma observação que fiz. Não era importante para o caso.

- E em relação às roupas que viu no armário, não seriam apropriadas para actividades sexuais sadomasoquistas?

- Não sei responder a isso. Não sou nenhum perito nesse campo.

- E quanto aos filmes pornográficos? Não anotou nenhum dos títulos?

- Não. Como lhe disse, achava que não era pertinente para a investigação da pessoa que tinha atacado brutalmente esta mulher.

- Lembra-se se o assunto de algum desses filmes envolvia sadomasoquismo, algemas ou algo dessa natureza?

- Não me lembro.

- Ora bem, deu instruções à Sra. Campo para se livrar desses filmes e das roupas que estavam no armário antes que os membros da equipa de defesa do Sr. Roulet pudessem ver o apartamento?

- Com certeza que não.

Risquei esse aspecto da minha lista e continuei.

- Alguma vez falou com o Sr. Roulet sobre o que aconteceu no apartamento da Sra. Campo nessa noite?

- Não, ele pediu um advogado antes que pudesse falar com ele.

- Está a dizer que ele exerceu o seu direito constitucional em manter-se calado?

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- Sim, foi exactamente isso.

- Portanto, tanto quanto o senhor sabe, ele nunca falou com a polícia sobre o que aconteceu.

- Correcto.

- Na sua opinião, a Sra. Campo foi agredida com muita força?

- Sim, diria que sim. Tinha o rosto gravemente ferido e inchado.

- Importa-se de falar ao júri dos impactos das lesões que encontrou nas mãos do Sr. Roulet?

- Ele tinha o punho envolto num pano para o proteger. Não vi quaisquer lesões nas mãos dele.

- Documentou esta ausência de lesões?

O Booker pareceu ficar perplexo com a pergunta.

- Não - respondeu.

- Portanto, documentou as lesões da Sra. Campo com fotografias, mas não viu necessidade de documentar a ausência de lesões no Sr.

Roulet, correcto?

- Não me pareceu ser necessário fotografar algo que não estava lá.

- Como sabe que ele tinha envolto o punho num pano para o proteger?

- A Sra. Campo tinha-me dito que viu a mão dele envolta antes de a esmurrar à porta.

- Encontrou esse pano com que ele supostamente envolvera a mão?

- Sim, estava no apartamento. Era um guardanapo, como os dos restaurantes. Tinha sangue dela.

- E tinha sangue do Sr. Roulet?

- Não.

- Havia alguma coisa que o identificasse como pertencendo ao arguido?

- Não.

- Portanto, temos apenas a palavra da Sra. Campo quanto a isso, Lcorrecto?

- Sim, está correcto.

Deixei passar algum tempo enquanto escrevinhava algo nos meus

(apontamentos. Depois prossegui com o interrogatório.

- Detective, quando soube que o Louis Roulet negou ter atacado

e ameaçado a Sra. Campo e que iria defender-se vigorosamente dessas

acusações?

- Deve ter sido quando ele o contratou a si, acho. Ouviram-se murmúrios de risos na sala.

- Não tentou encontrar outras explicações para as lesões da Sra. Campo?

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- Não, ela contou-me o que tinha acontecido e acreditei nela. Ele atacou-a e ia...

- Obrigado, Detective Booker. Mas tente responder à pergunta.

- Era o que eu estava a fazer.

- Se não procurou nenhuma outra explicação porque acreditava na palavra da Sra. Campo, é seguro dizer que este caso inteiro se baseia na palavra dela e naquilo que ela disse que ocorreu no seu apartamento na noite de 6 de Março?

O Booker ponderou por segundos. Sabia que eu estava a tentar fazê-lo cair numa ratoeira. Como o ditado diz, não há ratoeira mais mortífera do que aquela que montamos a nós mesmos.

- Não é só a palavra dela - disse, achando que tinha encontrado uma saída. - Há as provas físicas. A navalha. As lesões dela. É mais do que a palavra dela.

- Mas a explicação para as lesões dela e outros indícios não começa de facto pelo relato que ela fez do que aconteceu?

- Pode dizer-se que sim - concordou, com relutância.

- Ela é a árvore de onde nascem todos estes frutos, não é assim?

- Eu talvez não usasse essas palavras.

- Então que palavras usaria, detective?

Tinha-o apanhado. O Booker estava literalmente a remexer-se. O Minton levantou-se e protestou, dizendo que eu estava a causticar a testemunha. Deve ter sido algo que ele ouviu na TV ou em algum filme. A juíza mandou-o sentar.

- Pode responder à pergunta, detective - disse a juíza.

- Que pergunta era? - disse o Booker, tentando ganhar tempo.

- O senhor discordou de mim quando caracterizei a Sra. Campo como a árvore de onde nasciam todas as provas deste caso - disse-lhe.
- Se estou errado, como descreveria então a posição dela neste caso?

O Booker ergueu as mãos num rápido gesto de rendição.

- Ela é a vítima! Claro que ela é importante porque nos contou o que tinha acontecido. Temos de confiar nela para estabelecer o curso da investigação.

- Têm confiado bastante nela neste caso, não acha? Vítima e testemunha principal contra o arguido, correcto?

- Correcto.

- Quem mais viu o arguido atacar a Sra. Campo?

- Mais ninguém.

Concordei com a cabeça, de modo a sublinhar a resposta perante o júri. Estabeleci contacto ocular com os jurados da fila da frente.

- Muito bem, detective. Quero perguntar-lhe agora sobre o Sr. Charles Talbot. Como soube da existência deste homem?

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-- Hum, o procurador, o Sr. Minton, pediu-me para o encontrar.

- E sabe como o Sr. Minton descobriu a existência deste homem?

- Creio que foi o senhor que o informou disso. O senhor tinha uma gravação de um bar que o mostrava com a vítima um par de horas antes do ataque.

Sabia que poderia aproveitar este momento para apresentar a gravação, mas decidi adiar. Queria ter a vítima a testemunhar quando mostrasse a gravação ao júri.

- E até essa altura chegar, nunca considerou que era importante encontrar este homem?

- Não, dado que não sabia da existência dele.

- Portanto, quando finalmente sabe da existência do Talbot e o localiza, pediu que lhe examinassem a mão para determinar se tinha alguma lesão que pudesse ser o resultado de esmurrar alguém repetidas vezes na cara?

- Não.

- Isso devia-se ao facto de confiar na sua decisão de que o Sr. Roulet era a pessoa que tinha agredido a Regina Campo?

- Não foi uma escolha. Foi o resultado da investigação. Só consegui localizar o Charles Talbot duas semanas depois da ocorrência do crime.

- Portanto, está a dizer que se ele tivesse lesões, já teriam desaparecido nessa altura, correcto?

- Não sou nenhum perito nisso, mas acho que sim.

- E nunca lhe examinou a mão, pois não?

- De modo específico, não.

- Perguntou a algum dos colegas de trabalho do Sr. Talbot se tinham reparado em alguma equimose ou lesão na mão dele por ocasião do crime ?

- Não, não perguntei.

- Portanto, nunca investigou mais ninguém para além do Sr. Roulet, pois não?

- Errado. Inicio cada caso de mente aberta. Mas o Roulet estava lá, detido desde o início. A vítima identificou-o como sendo o atacante. Ele era obviamente um ponto fulcral.

- Ele era um ponto fulcral ou o ponto fulcral, Detective Booker?

- Era ambos. De início era um ponto fulcral e mais tarde, depois de descobrirmos as iniciais dele na arma que foi encostada à garganta da Sra. Campo, tornou-se o ponto fulcral, por assim dizer.

- Como sabe que aquela navalha foi encostada à garganta da Sra. Campo?

- Porque ela nos contou e tinha um ferimento de punção para o comprovar.

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- Está a dizer que houve alguma espécie de exame forense que identificou positivamente aquela navalha com o ferimento no pescoço dela?

- Não, isso era impossível.

- Portanto, temos uma vez mais a palavra da Sra. Campo de que o Sr. Roulet lhe tinha encostado a navalha à garganta.

- Não tive razões para duvidar dela nessa altura. E continuo a não ter.

- E agora, sem nenhuma explicação para isso, posso dizer que considera a navalha com as iniciais do arguido como uma prova de inculpação altamente importante, não é assim?

- Sim. Mesmo que houvesse uma explicação, acho. Ele entrou ali com a navalha com um propósito em mente.

- O senhor sabe ler a mente dos outros, detective?

- Não, sou um detective. E estou só a dizer o que penso.

- Saliente-se que usa o verbo pensar.

- É o que descobri segundo as provas do caso.

- Ainda bem que está tão confiante. Não tenho mais perguntas. Reservo-me o direito de voltar a chamar o Detective Booker como testemunha pela defesa.

Não era minha intenção chamar o Booker a testemunhar, mas talvez essa ameaça soasse bem ao júri.

Sentei-me enquanto o Minton procedia a novo interrogatório para tentar estancar a hemorragia que eu causara no Booker. Os estragos residiam nas percepções e não havia muito que ele pudesse fazer. O Booker não passara de uma armadilha para a defesa. O verdadeiro perigo viria mais tarde.

Depois de o Booker sair, a juíza anunciou o intervalo do meio da manhã. Disse aos jurados para voltarem dentro de quinze minutos, mas eu sabia que o intervalo seria mais demorado. A Juíza Fullbright fumava e enfrentara já acusações administrativas largamente publicitadas por fumar às escondidas na sua sala privada. Isso implicava que, para saciar o vício e evitar mais escândalos, tinha de sair do edifício e ficar à entrada onde param os autocarros da prisão. Calculei que ela iria demorar cerca de meia hora.

Saí para o corredor para falar com a Mary Alice Windsor e fazer umas chamadas. Tudo indicava que eu ia chamar testemunhas na sessão da tarde.

Fui abordado pelo Roulet, que queria falar do meu contra-interrogatório ao Booker.

- Parece-me que correu tudo muito bem para nós - disse.

- Nós?

266


- Percebeste o que quis dizer.

- Nunca se sabe se corre bem até se ouvir o veredicto. E agora quero privacidade, Louis. Tenho de fazer umas chamadas. E onde está a tua mãe? Se calhar vou precisar dela esta tarde. Ela vai estar cá?

- Esteve ocupada esta manhã, mas vai estar cá. Basta ligar ao Cecil para ele a trazer.

Depois de ele se afastar apareceu o Detective Booker, que me abordou de dedo apontado à cara.

- Não vai pegar, Haller - disse.

- O que é que não vai pegar? - perguntei.

- Essas suas tretas todas da defesa. Vai acabar por ruir tudo sem remédio.

- Veremos.

- Sim, veremos. Sabe, é preciso ter tomates para tentar implicar o Talbot nisto. Grandes tomates, aliás. Vai precisar de um carrinho de mão para os transportar por aí.

- Estou só a fazer o meu trabalho, detective.

- Grande trabalho, não haja dúvida. A mentir para ganhar a vida. A enganar as pessoas para não verem a verdade. A viver num mundo sem verdade. Deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Sabe qual é a diferença entre um peixe-gato e um advogado?

- Não, qual é a diferença?

- Um é um canalha chupista que se alimenta no fundo da lama. O outro é um peixe.

- Boa piada, detective.

Afastou-se e fiquei ali a sorrir. Não por causa da piada nem pelo facto de ter sido provavelmente o Lankford a elevar o insulto dos advogados de defesa para o aplicar à advocacia em geral quando contou a piada ao Booker. Estava a sorrir porque a piada era a confirmação de que o Lankford e o Booker estavam em comunicação. Andavam a conversar e isso significava que as coisas estavam a avançar. O meu plano mantinha-se. Ainda tinha uma hipótese.

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Cada julgamento tem um acontecimento principal. Uma testemunha ou uma prova que se torna o fulcro que faz tudo baloiçar para um lado ou para o outro. Neste caso, o acontecimento principal era a Regina Campo, vítima e acusadora, e o caso parecia assentar no desempenho e testemunho dela. Mas um bom advogado de defesa dispõe sempre de um substituto e eu tinha o meu, uma testemunha à espera em segredo nos corredores e com a qual esperava conseguir mudar o peso do julgamento.

No entanto, quando o Mínton chamou a Regina Campo a testemunhar depois do intervalo, pode dizer-se que todos os olhos estavam postos nela quando foi trazida para o banco das testemunhas. Era a primeira vez que os jurados a viam em pessoa. Era também a primeira vez que eu a via. Fiquei surpreendido, mas não positivamente. Era baixinha, de passos hesitantes e a postura contrariava a imagem dela como a mercenária astuta que eu tinha estabelecido na consciência colectiva do júri.

O Minton estava definitivamente a aprender. Com a Campo, parecia ter chegado à conclusão de que menos era mais. Conduziu-a parcimoniosamente através do interrogatório. Começou pelo seu passado antes de passar aos acontecimentos do dia 6 de Março.

A história da Regina Campo era tristemente isenta de originalidade e era com isso que o Minton estava a contar. Ela contou a história de uma mulher jovem e atraente vinda de Indiana para Hollywood dez anos antes com esperanças de alcançar a glória do celulóide. Houve arranques e paragens na carreira, uma ou outra aparição num programa televisivo. Era um rosto novo e havia sempre homens dispostos a arranjar-lhe pequenos papéis insignificantes. Mas quando deixou de ser um rosto novo, arranjou trabalho numa série de filmes para televisão por cabo que exigiam amiúde que aparecesse nua. Complementava os rendimentos a posar nua e deslizou facilmente para um mundo de troca de favores sexuais. Acabou por deixar-se de fachadas e começou a trocar sexo por dinheiro. E chegou finalmente à noite em que encontrou o Louis Roulet.

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A versão que a Regina Campo contou do que aconteceu nessa noite não diferia dos relatos das testemunhas anteriores do julgamento. Mas era dramaticamente diferente na apresentação. A Campo, com o rosto emoldurado pelo cabelo escuro e encaracolado, parecia uma rapariguinha perdida. Parecia assustada e lacrimejante durante a segunda metade do testemunho. O lábio inferior e o dedo tremiam-lhe quando apontou para o homem que identificou como o seu atacante. O Roulet olhou-a fixamente com uma expressão vazia.

- Foi ele - disse, numa voz firme. - É um animal e deveria estar preso!

Não opus nenhuma objecção. Em breve teria a minha oportunidade para a confrontar. O Minton continuou a interrogá-la, referindo a fuga dela e depois perguntando-lhe por que razão não contara a verdade aos agentes, de que conhecia o homem que a tinha atacado e por que razão ele estava lá.

- Estava assustada - disse ela. - Não sabia se iam acreditar em mim se lhes dissesse por que razão ele estava ali. Só queria que eles o prendessem porque estava apavorada com ele.

- E agora está arrependida dessa decisão?

- Sim, porque sei que isso pode ajudá-lo a ficar livre para voltar a fazer isso a alguém.

Protestei pelo facto de a resposta ser prejudicial e a juíza aceitou. O Minton fez mais algumas perguntas, mas parecia saber que o clímax do testemunho dela já tinha passado e que devia parar antes que obscurecesse aquele dedo trémulo apontado a identificar o atacante.

A Campo tinha testemunhado durante pouco menos de uma hora. Eram quase 11h30, mas a juíza não fez pausa para o almoço como eu esperava. Disse aos jurados que queria obter o máximo de testemunhos possíveis durante o dia e que teriam um almoço mais tardio e abreviado. Perguntei-me se ela saberia algo que eu desconhecia. Os detectives de Glendale ter-lhe-iam ligado durante a pausa do meio da manhã para a avisar da minha possível detenção?

- Sr. Haller, a testemunha é sua - disse ela. Aproximei-me do atril com o bloco de apontamentos e consultei as

minhas notas. Se estava empenhado numa defesa de mil lâminas, tinha de usar pelo menos metade delas nesta testemunha. Estava pronto.

- Sra. Campo, contratou os serviços de um advogado para processar o Sr. Roulet por causa dos alegados acontecimentos do dia 6 de Março ?

Olhou para mim como se já esperasse essa pergunta, embora não em primeiro lugar.

- Não.

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- Falou com algum advogado sobre este caso?

- Não contratei ninguém para o processar. Tudo o que me interessa agora é que a justiça seja...

- Sra. Campo - interrompi-a. - Não lhe perguntei se tinha contratado um advogado ou quais são os seus interesses. Perguntei-lhe se tinha falado com algum advogado, qualquer advogado, sobre este caso e um possível processo contra o Sr. Roulet.

Observou-me atentamente, tentando ler-me as intenções. Eu tinha falado com a autoridade de alguém que sabia algo e que estava bem escudado. O Minton provavelmente tinha-a instruído sobre os aspectos mais importantes do testemunho: não se deixar apanhar numa mentira.

- Falei com um advogado, sim. Mas não passou de uma conversa. Não cheguei a contratá-lo.

- Terá sido porque o procurador lhe disse para não contratar ninguém até o caso criminal estar encerrado?

- Não, ele não me disse nada sobre isso.

- Por que falou com um advogado sobre este caso?

A Campo tinha optado agora pela rotina de hesitar antes de cada resposta. Por mim tudo bem. A percepção que a maior parte das pessoas tem é que se demora mais tempo a contar uma mentira. As respostas honestas são sempre mais rápidas.

- Falei com ele porque queria saber os meus direitos e ter a certeza de que estava protegida.

- Perguntou-lhe se podia processar o Sr. Roulet por danos?

- Pensava que aquilo que se diz a um advogado é privado.

- Se quiser, pode contar aos jurados aquilo que falou com o advogado.

Foi o primeiro golpe profundo com a lâmina. A Campo estava agora numa posição insustentável. Fosse qual fosse a resposta, não a favoreceria.

- Acho que prefiro manter isso em privado - acabou por dizer.

- Okay, voltemos ao dia 6 de Março, mas quero recuar um pouco mais do que o Sr. Minton. Voltemos ao balcão do Morgan's, quando falou pela primeira vez com o arguido, o Sr. Roulet.

- Está bem.

- Que estava a fazer nessa noite no Morgan's ?

- Ia encontrar-me com uma pessoa.

- O Charles Talbot?

- Sim.

- Ora bem, ia encontrar-se com ele para avaliar, por assim dizer, se queria levá-lo para sua casa para ter sexo por dinheiro, correcto?

Hesitou, mas depois concordou com a cabeça.

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- Responda verbalmente, por favor - disse-lhe a juíza.

- Sim.

- Diria que essa prática é uma precaução de segurança?

- Sim.

- Uma forma de sexo seguro, correcto?

- Acho que sim.

- Porque na sua profissão lida intimamente com estranhos e, portanto, tem de se proteger, correcto?

- Sim, correcto.

- As pessoas da sua profissão chamam a isso o "teste dos tarados", não é?

- Nunca usei essa expressão.

- Mas é verdade que se encontra com possíveis clientes em lugares públicos como o Morgan's para os testar e ter a certeza de que não são tarados nem perigosos antes de os levar para o seu apartamento. Não é assim?

- Pode dizer-se que sim. Mas a verdade é que nunca se pode ter a certeza sobre ninguém.

- Verdade. Portanto, quando estava no Morgan's, reparou que o Sr. Roulet estava sentado ao mesmo balcão que a senhora e o Sr. Talbot?

- Sim, ele estava lá.

- E já o tinha visto antes?

- Sim, já o tinha visto lá e noutros lugares.

- E alguma vez chegou a falar com ele?

- Não, nunca tínhamos falado.

- Alguma vez tinha reparado que ele usava um Rolex?

- Não.

- Alguma vez o viu chegar ou partir de algum desses lugares num Porsche ou num Range Rovert

- Não, nunca o vi conduzir.

- Mas tinha-o visto antes no Morgan's e noutros lugares parecidos.

- Sim.

- Mas nunca falou com ele.

- Correcto.

- Então o que a levou a abordá-lo?

- Sabia que ele andava na vida, é tudo.

- O que quer dizer com "andava na vida"?

- Das outras vezes que o tinha visto, soube logo que ele andava à procura de mulheres. Cheguei a vê-lo sair com raparigas que fazem o que eu faço.

- Viu-o sair com outras prostitutas?

- Sim.

 

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- Para onde?

- Não sei, só o vi sair. Para um hotel ou para o apartamento da rapariga. Não sei.

- Bem, como sabe se chegaram sequer a sair desses locais? Podem ter saído para fumar.

- Vi-os entrar no carro dele e partir.

- Sra. Campo, acabou de testemunhar há um minuto atrás que nunca viu os carros do Sr. Roulet. E agora diz que o viu entrar no carro com uma mulher que é uma prostituta como a senhora. Em que é que ficamos?

Apercebeu-se do erro e ficou paralisada por segundos até lhe ocorrer uma resposta.

- Vi-o entrar no carro, mas não sei que carro era.

- Não costuma reparar em coisas dessas, pois não?

- Geralmente não.

- Sabe distinguir um Porsche de um Range Rover'}

- Acho que um é pequeno e o outro maior.

- E quando viu o Sr. Roulet entrar, que tipo de carro era?

- Não me lembro.

Calei-me por momentos, ciente de que expusera já suficientemente as contradições dela. Consultei a minha lista de perguntas e prossegui.

- Essas mulheres que viu sair com o Sr. Roulet, alguma vez voltou a vê-las?

- Não estou a perceber.

- Se elas desapareceram? Alguma vez voltou a vê-las?

- Voltei a vê-las, sim.

- Tinham sido espancadas ou lesionadas?

- Que eu saiba, não, mas também não perguntei.

- Mas tudo isso contribuiu para a sua crença de que era seguro abordá-lo e oferecer-lhe os seus serviços, correcto?

- Quanto a estar segura, não sei. Só sabia que ele estava provavelmente ali à procura de uma rapariga e o homem com quem eu estava tinha-me dito que teria terminado pelas dez porque depois tinha de ir tratar dos seus negócios.

- Bem, pode contar ao júri por que razão não precisou de se sentar ao lado do Sr. Roulet como fez com o Sr. Talbot e sujeitá-lo ao teste dos tarados?

Olhou para o Minton, à espera que ele a salvasse.

- Pensava apenas que ele era alguém conhecido ali no bar, é tudo.

- Pensava que ele era seguro.

- Acho que sim. Não sei. Precisava do dinheiro e cometi um erro com ele.

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- Pensou que ele era rico e que poderia resolver-lhe os problemas de dinheiro?

- Não, nada disso. Vi-o como um potencial cliente que não era novo no jogo. Alguém que sabia o que andava a fazer.

- Testemunhou que nas ocasiões anteriores tinha visto o Sr. Roulet com outras mulheres que praticam a mesma profissão que a senhora, correcto?

- Sim.

- Eram prostitutas.

- Sim.

- Conhece-as?

- Somos conhecidas umas das outras.

- E a sua cortesia profissional estende-se a essas mulheres em termos de as alertar para clientes que possam ser perigosos ou renitentes em pagar?

- Às vezes.

- E elas retribuem-lhe a mesma cortesia, correcto?

- Sim.

- E quantas delas a tinham avisado sobre o Louis Roulet?

- Bem, nenhuma delas, senão não teria ido com ele.

Consultei as minhas notas durante alguns momentos antes de continuar. Pedi-lhe para recontar com mais pormenores os acontecimentos no Morgan's e depois apresentei a gravação de vigilância. O Minton objectou que fosse mostrada ao júri sem fundamentação adequada, mas o protesto foi rejeitado. Colocaram uma televisão num suporte à frente da bancada do júri e o vídeo começou a rolar. A atenção e concentração dos jurados indicaram-me que estavam encantados com a ideia de assistir ao trabalho de uma prostituta, bem como ao facto de verem dois intervenientes principais do caso a serem filmados sem saberem.

- O que dizia no bilhete que lhe deu? - perguntei, depois de o televisor ter sido afastado para o lado.

- Acho que dizia o meu nome e a morada.

- Não indicava nenhum preço pelos serviços que ia oferecer?

- É possível. Não me lembro.

- Quanto costuma cobrar?

- Normalmente peço quatrocentos dólares.

- Normalmente? O que é que pode levá-la a alterar essa quantia?

- Depende daquilo que o cliente quer.

Olhei para a bancada do júri e vi o rosto do homem da Bíblia contrair-se com desagrado.

- Alguma vez fez jogos de dominação com algemas com os seus clientes?

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- Às vezes. Mas não passa de um jogo. Ninguém sai magoado. Não passa de encenação.

- Está a dizer que na noite antes de 6 de Março nunca foi magoada por um cliente?

- Sim, é isso mesmo que estou a dizer. Aquele homem magoou-me e tentou matar-me...

- Por favor, responda à pergunta que lhe fiz, Sra. Campo. Obrigado. Voltemos ao Morgan's. Na altura em que deu o guardanapo ao Sr. Roulet com a sua morada e preço, estava confiante ou não que ele não seria um perigo para si e que ele tinha dinheiro suficiente para lhe pagar os quatrocentos dólares que pedia pelos serviços?

- Sim.

- Então como é que o Sr. Roulet não tinha nenhum dinheiro com ele quando a polícia o revistou?

- Não sei. Não fui eu que fiquei com o dinheiro.

- Sabe quem teria ficado com ele?

- Não.

Hesitei durante um longo momento, para pontuar a minha linha de interrogatório com pausas de silêncio.

- Ainda continua a trabalhar como prostituta, correcto? Hesitou antes de responder sim.

- E está satisfeita por trabalhar como prostituta? O Minton levantou-se.

- Meritíssima, que tem isto que ver com...

- Aceite - disse a juíza.

- Muito bem - prossegui. - E não é verdade, Sra. Campo, que contou a vários dos seus clientes que tinha esperanças de deixar este negócio?

- Sim, é verdade - respondeu sem hesitação pela primeira vez após tantas perguntas.

- E não é verdade também que encara os potenciais aspectos financeiros deste caso como um meio de sair desse negócio?

- Não, não é verdade - disse num tom firme e sem hesitação.
- Aquele homem atacou-me. Ia matar-me! Foi o que aconteceu!

Sublinhei algo nos meus apontamentos, fazendo mais uma pausa de silêncio.

- O Charles Talbot era um cliente repetido? - perguntei.

- Não, conheci-o nessa noite no Morgan's.

- E ele passou no seu teste de segurança.

- Sim.

- O Charles Talbot foi o homem que lhe esmurrou o rosto no dia
6 de Março?

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- Não - apressou-se a responder.

- A senhora ofereceu-se para dividir com o Sr. Talbot os lucros que iria receber do processo contra o Sr. Roulet?

- Não fiz isso. É mentira! Olhei para a juíza.

- Meritíssima, posso pedir ao meu cliente para se levantar?

- Faça o favor, Sr. Haller.

Fiz sinal ao Roulet para se levantar. Voltei a olhar para a Regina Campo.

- Ora bem, Sra. Campo, tem a certeza de que foi este homem que a agrediu na noite de 6 de Março?

- Sim, é ele.

- Quanto pesa, Sra. Campo?

Afastou-se do microfone como se espantada com esta questão evasiva, depois de tantas perguntas relacionadas com a sua vida sexual. Reparei que o Roulet ia sentar-se e fiz-lhe sinal para continuar de pé.

- Não sei bem - disse a Campo.

- No seu anúncio no site refere que o seu peso é de quarenta e sete quilos. Está correcto?

- Acho que sim.

- Portanto, para o júri poder acreditar na sua história acerca de
6 de Março, também tem de acreditar que a senhora era capaz de resistir e soltar-se do Sr. Roulet.

Apontei para o Roulet, que tinha mais uns trinta e cinco quilos que ela e media mais de um metro e oitenta.

- Bem, foi isso que fiz.

- E fê-lo enquanto ele supostamente lhe encostava uma navalha à garganta.

- Eu queria viver. Uma pessoa é capaz de fazer coisas espantosas quando a sua vida está em perigo.

Tinha usado a sua última defesa. Começou a chorar, como se a minha pergunta lhe tivesse despertado o horror de ter estado tão perto da morte.

- Pode sentar-se, Sr. Roulet. Não tenho mais nada a perguntar à Sra. Campo para já, Meritíssima.

Sentei-me ao lado do Roulet. Tinha a impressão de que o contra-interrogatório correra bem. As minhas lâminas tinham aberto muitas feridas. O caso do estado estava a sangrar. O Roulet inclinou-se e sussurrou-me uma única palavra. Brilhante!

O Minton optou por voltar a interrogá-la, mas não passava de um mosquito a esvoaçar à volta de uma ferida aberta. Não havia maneira de apagar algumas das respostas que a sua grande testemunha tinha

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dado, nem havia maneira de alterar algumas das imagens que eu tinha semeado nas mentes dos jurados.

Acabou passados dez minutos e renunciei voltar a contra-interrogá-la, sentindo que o Minton pouco conseguira durante este segundo esforço. A juíza perguntou se a acusação tinha mais testemunhas e o Minton disse que precisava de reflectir nessa questão durante o almoço antes de decidir se o caso do estado já estava apresentado.

Em condições normais, teria protestado porque ia querer saber para a eventualidade de eu próprio ter de trazer mais alguma testemunha depois do almoço. Mas deixei passar. Acreditava que o Minton estava a sentir a pressão e começava a vacilar. Era minha intenção forçá-lo a tomar uma decisão e dar-lhe a pausa do almoço talvez ajudasse.

A juíza dispensou o júri para almoço, dando-lhe apenas uma hora em vez dos habituais noventa minutos. Era intenção dela apressar as coisas. Disse que a sessão recomeçaria às 13h30 e saiu abruptamente. Devia estar a precisar de um cigarro, pensei.

Perguntei ao Roulet se a mãe podia almoçar connosco para podermos falar do testemunho dela, que seria durante a tarde, ou até mesmo logo depois do almoço. Ele disse que ia falar com ela e sugeriu que nos encontrássemos num restaurante francês em Ventura Boulevard. Disse-lhe que tínhamos menos de uma hora e que era melhor a mãe dele encontrar-se connosco no Four Green Fields. Não me agradava a ideia de os levar para o meu santuário, mas podíamos comer lá rapidamente e voltar a tempo para o tribunal. A comida talvez não correspondesse aos padrões do restaurante francês em Ventura, mas não estava preocupado com isso.

Quando saí da mesa da defesa, reparei que a sala já estava vazia. Todos tinham saído já para almoçar. A única pessoa que vi foi o Minton à minha espera.

- Posso falar contigo por um segundo? - perguntou.

- Claro.

Esperámos até o Roulet sair. Eu já sabia o que vinha aí. Era costume o procurador atirar uma proposta de acordo ao mínimo sinal de problemas. E o Minton sabia que estava com problemas. A sua testemunha principal era, no mínimo, um empate.

- O que se passa? - perguntei.

- Estava a pensar naquilo que disseste acerca das mil lâminas.

- E?

- E, bem, quero fazer-te uma proposta.

- És novo nisto, miúdo. Não precisas que algum dos mandões aprove a proposta de acordo?

- Tenho alguma autoridade. -

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- Okay, diz lá o que estás autorizado a propor.

- Reduzo tudo a assalto agravado e graves lesões corporais.

- E?

- Reduzo para quatro anos.

A proposta era uma redução substancial, mas se o Roulet aceitasse, continuaria a ser condenado a quatro anos de prisão. A concessão principal era que o caso deixava de ter o estatuto de crime sexual. O Roulet não teria de ficar cadastrado junto das autoridades como agressor sexual depois de sair da prisão.

Olhei para ele como se tivesse acabado de insultar a memória da minha mãe.

- Acho que é um bocado forte, Ted, considerando a actuação do teu ás no banco das testemunhas. Viste o jurado que anda sempre com uma Bíblia? Parecia prestes a cagar em cima da Bíblia quando ela estava a testemunhar.

O Minton não respondeu. Soube logo que nem sequer se tinha apercebido de que um dos jurados andava com uma Bíblia.

- Não sei - disse-lhe. - É meu dever apresentar a tua proposta ao meu cliente e vou fazer isso. Mas também lhe vou dizer que seria tolo em aceitar.

- Okay, que pretendes então?

- Num caso como este, só há um veredicto, Ted. Vou dizer-lhe que devia ir até ao fim. Acho que é seguro navegar a partir daqui. Que tenhas um bom almoço.

Afastei-me, quase esperando que ele gritasse uma nova proposta. Mas o Minton manteve-se firme.

- A proposta só é válida até à uma e meia, Haller - gritou num tom estranho.

Ergui a mão e acenei-lhe adeus sem me virar. Tinha a certeza de ter ouvido o som do desespero na sua voz.

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Depois do almoço ignorei propositadamente o Mimon. Queria mantê-lo em expectativa durante o tempo que fosse possível. Tudo fazia parte do meu plano para o pressionar a ele e ao julgamento a seguir o rumo que eu queria. Quando todos nos sentámos à espera da juíza, olhei finalmente para ele, à espera de contacto ocular, e limitei-me a abanar a cabeça. Nada de acordos. Ele anuiu, esforçando-se ao máximo para se mostrar confiante com o caso e confuso com a decisão do meu cliente. A juíza ocupou o seu lugar, pediu que o júri entrasse e o Minton tratou de desmontar a tenda.

- Sr. Minton, tem mais alguma testemunha? - perguntou a juíza.

- Meritíssima, o estado já concluiu a apresentação do caso.

O procedimento de rotina para a defesa seria pedir à juíza um veredicto de absolvição no final da apresentação do caso do estado. Mas não fiz isso, com receio de que o pedido fosse aceite. Ainda não podia deixar o caso ser encerrado. Disse à juíza que estava pronto para prosseguir com a defesa.

A minha primeira testemunha foi a Mary Alice Windsor. Entrou na sala acompanhada do Cecil Dobbs, o qual se sentou depois na fila da frente da plateia. A Mary Alice estava vestida com um fato azul e uma blusa de seda. O seu aspecto impunha respeito quando se sentou no banco das testemunhas. Ninguém teria adivinhado que tinha comido torta de carne picada ao almoço. Concluí rapidamente as perguntas de identificação e estabeleci a sua relação de sangue e empresarial com o Roulet. Depois pedi à juíza autorização para mostrar à testemunha a navalha que a acusação apresentara como uma das provas do caso.

A autorização foi concedida e fui buscar a navalha ao oficial de justiça, ainda inserida num saco de provas. As iniciais eram visíveis na lâmina. Pousei-a à frente da testemunha.

- Sra. Windsor, reconhece esta navalha?

Pegou no saco e tentou alisar o plástico sobre a lâmina para poder ver e ler as iniciais.

- Sim. É a navalha do meu filho.

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- E como sabe que essa navalha pertence ao seu filho?

- Porque ele mostrou-ma em mais de uma ocasião. sabia que ele andava sempre com ela e às vezes dava jeito no escritório quando chegavam brochuras e precisávamos de cortar os cordéis das encomendas. É uma lâmina muito afiada.

- Há quanto tempo é que ele tem essa navalha?

- Há quatro anos.

- Parece estar muito segura da data.

- Sim.

- Como pode ter a certeza?

- Comprou-a como protecção há quatro anos. Há quase quatro anos exactos.

- Protecção contra quê, Sra. Windsor?

- No nosso negócio, muitas vezes mostramos casas a completos desconhecidos. Às vezes ficamos sozinhos nessas casas com pessoas estranhas. Já houve mais de um incidente de agentes imobiliárias roubadas ou agredidas... ou até assassinadas ou violadas..

- Tanto quanto sabe, o Louis alguma vez foi vítima de um tal crime?

- Pessoalmente, não. Mas conhecia uma pessoa que tinha entrado numa dessas casas e lhe acontecera isso...

- Acontecera o quê?

- Uma mulher que foi violada e roubada por um homem com uma

 

navalha. Foi o Louis que a encontrou quando aquilo acabou. A primeira coisa que fez foi comprar uma navalha para se proteger depois do sucedido.

- Porquê uma navalha? Por que não uma arma?

- Ele disse-me que de início ia comprar uma arma, mas queria algo que pudesse trazer sempre no bolso sem dar nas vistas, ortanto, comprou uma navalha e também me deu uma. É por iSSO que sei que foi exactamente há quase quatro anos que comprou a dele.

Pegou no saco com a navalha.

- A minha é exactamente igual, com a diferença das iniciais. Ambos temos andado com elas desde essa altura.

- Portanto, se o seu filho andava com essa navalha no dia 6 de Março, na sua opinião isso seria um comportamento normal dele.

O Minton protestou, dizendo que eu não tinha estabelecido a fundamentação necessária para a Mary Alice responder a essa pergunta e a juíza aceitou. A Mary Alice, desconhecedora do Direito Penal, presumiu que a juíza estava a autorizá-la a responder -

- Ele andava sempre com ela. E o dia 6 de Março era um dia como outro...

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- Sra. Windsor - atroou a juíza. - Aceitei o protesto. Isso significa que a senhora não responde. O júri deverá desconsiderar a resposta dela.

- Peço desculpa - disse a Mary Alice numa vozinha débil.

- Pergunta seguinte, Sr. Haller - ordenou a juíza.

- É tudo, Meritíssima. Obrigado, Sra. Windsor.

A Mary Alice começou a levantar-se, mas a juíza voltou a adverti-la, dizendo-lhe para continuar sentada. Voltei para o meu lugar quando o Minton se levantou. Olhei para a plateia e não vi nenhum rosto reconhecível a não ser o Dobbs. Ofereceu-me um sorriso de encorajamento, mas não fiz caso.

O testemunho directo da Mary Alice tinha sido perfeito em termos da sua adesão à coreografia que tínhamos ensaiado durante o almoço. Apresentara sucintamente ao júri a explicação para a navalha, mas também deixara no seu testemunho um campo de minas que o Minton teria de atravessar agora. O seu testemunho directo cobria apenas aquilo que eu tinha fornecido ao Minton num sumário. Se ele se desviasse desse sumário, depressa ouviria o estalido fatal debaixo dos pés.

- Este incidente que inspirou o seu filho a começar a andar com uma navalha, quando foi exactamente?

- Aconteceu no dia 9 de Junho de 2001.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

Virei-me para poder ver melhor a cara do Minton. Estava a ler-lhe os pensamentos. Ele pensava que tinha ali algo. A memória exacta da data por parte da Mary Alice era uma óbvia indicação de um testemunho inventado. O homem estava excitado. Era notório.

- Houve alguma história nos jornais sobre esse suposto ataque a uma agente imobiliária?

- Não.

- Houve investigação policial?

- Não.

- E contudo sabe a data exacta. Como pode isso ser, Sra. Windsor? Deram-lhe essa data antes de vir aqui testemunhar?

- Não, sei a data porque nunca esquecerei o dia em que fui atacada. A Mary Alice calou-se por segundos. Vi pelo menos três jurados

ficarem boquiabertos. O Minton também. Quase ouvi o estalido.

- O meu filho também nunca esquecerá - continuou ela.
- Quando ele veio à minha procura, encontrou-me amarrada e nua naquela casa. Havia sangue. Foi traumático para ele ver-me naquele estado. Acho que foi uma das razões que o levou a comprar a navalha.

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De certo modo, acho que desejou tê-la comprado antes para poder ter impedido aquilo.

- Compreendo - disse o Minton, de olhos fixos nos seus apontamentos.

Estava paralisado, sem saber como prosseguir. Não queria levantar o pé com receio que a mina detonasse e o caso explodisse por completo.

- Sr. Minton, mais alguma pergunta? - perguntou a juíza, com uma nota de sarcasmo mal disfarçada na voz.

- Só um segundo, Meritíssima - disse ele.

Tentou recompor-se, conferiu os apontamentos e tentou resgatar algo.

- Sra. Windsor, a senhora, ou o seu filho, chamou a polícia depois de ele a encontrar?

- Não. O Louis queria, mas não o deixei. Achei que isso só iria agravar ainda mais o trauma.

- Não há, portanto, nenhuma documentação oficial deste crime, correcto?

- Correcto.

Sabia que o Minton queria desenvolver mais esta via e perguntar se tinha procurado tratamento médico depois do ataque. Mas pressentiu outra ratoeira e não fez essa pergunta.

- Portanto, está a dizer que só temos a sua palavra de que esse ataque ocorreu de facto? A sua palavra e a do seu filho, se ele optar por testemunhar.

- Ocorreu realmente. Vivo com isso todos os dias.

- Mas só temos a sua palavra quanto a isso.

Ela olhou para o Minton com uma expressão austera.

- É uma pergunta?

- Sra. Windsor, está aqui para ajudar o seu filho, correcto?

- Se puder. Sei que é um homem bom e que nunca teria cometido este crime horrendo.

- Estaria disposta a fazer tudo ao seu alcance para salvar o seu filho de uma condenação e da provável prisão, não é assim?

- Mas nunca mentiria acerca de uma coisa desta natureza. Com ou sem juramento, não mentiria.

- Mas quer salvar o seu filho, não quer?

- Sim.

- E salvá-lo implica mentir por ele, não é?

- Não. Não é.

- Obrigado, Sra. Windsor.

O Minton sentou-se apressadamente. Só me restava uma pergunta a fazer.

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- Sra. Windsor, que idade tinha quando esse ataque ocorreu?

- Tinha cinquenta e quatro.

Recostei-me na cadeira. O Minton não tinha mais nada a perguntar e a Mary Alice foi dispensada. Pedi à juíza para a autorizar a sentar-se na plateia durante o resto do julgamento, agora que o seu testemunho estava concluído. O pedido foi aceite, sem qualquer objecção do Minton.

A minha próxima testemunha era um detective da Polícia de Los Angeles chamado David Lambkin, um perito nacional em crimes sexuais que tinha trabalhado no caso da investigação do Violador das Agentes Imobiliárias. Estabeleci rapidamente os factos do caso e os cinco casos de violação que foram investigados. Passei depois para as perguntas-chave necessárias para reforçar o testemunho da Mary Alice.

- Detective Lambkin, qual era a faixa etária das vítimas do violador que foram investigadas?

- Eram todas mulheres profissionais com uma carreira de sucesso. Tendiam a ser mais velhas do que a vítima habitual de uma violação. Creio que a mais nova tinha vinte e nove e a mais velha cinquenta e nove.

- Portanto, uma mulher de cinquenta e quatro anos teria encaixado no perfil-alvo do violador, correcto?

- Sim.

- Pode dizer ao júri quando foi apresentada queixa do primeiro ataque ocorrido, bem como do último ataque?

- Sim. O primeiro foi no dia 1 de Outubro de 2000 e o último foi no dia 30 de Julho de 2001.

- Portanto, o dia 9 de Julho de 2001 corresponde ao período dos ataques do violador a mulheres do ramo imobiliário, correcto?

- Sim, correcto.

- No decurso da sua investigação deste caso, chegou a alguma conclusão ou crença de que havia mais de cinco violações cometidas por este indivíduo?

O Minton protestou, dizendo que a pergunta era especulativa. A juíza aceitou o protesto, mas não importava. O importante tinha sido fazer a pergunta e a recompensa foi o facto de o júri ver o procurador sonegar-lhes essa resposta.

O Minton surpreendeu-me durante o contra-interrogatório. Recuperou bem do passo falso com a Mary Alice e atingiu o Lambkin com três perguntas sólidas cujas respostas foram favoráveis para a acusação.

- Detective Lambkin, a equipa de investigação destas violações emitiu algum tipo de aviso a mulheres que trabalhavam no ramo imobiliário?

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- Sim. Distribuímos panfletos em duas ocasiões. A primeira para todas as agências imobiliárias registadas na área e a seguinte sob a forma de e-mails para todos os agentes imobiliários a operar individualmente, homens e mulheres.

- Esses e-mails continham informação sobre a descrição e métodos do violador?

- Sim.

- Portanto, se alguém quisesse inventar uma história de ter sido atacado por este violador, esses e-mails teriam fornecido toda a informação necessária, correcto?

- Sim, é uma possibilidade.

- Não tenho mais nada a perguntar, Meritíssima.

O Minton sentou-se com orgulho e o Lambkin foi dispensado. Pedi à juíza alguns segundos para conferenciar com o meu cliente e falei baixinho com o Roulet.

- Okay, chegou a hora - disse-lhe. - Só nos resta o teu testemunho. A não ser que haja mais alguma coisa que ainda não me tenhas contado, estás limpo e não há muito por onde o Minton possa atacar-te. Acho que estarás seguro ali, a não ser que o deixes atacar-te. Ainda queres continuar com isto?

O Roulet dissera sempre que iria testemunhar e negar as acusações. E reiterara esse desejo ao almoço. Aliás, exigia-o. Sempre encarei os riscos de deixar um cliente testemunhar como uma faca de dois gumes. Coisas que dissesse poderiam prejudicá-lo se a acusação conseguisse distorcer isso a favor do estado. Mas também sabia que, por mais advertências feitas a um júri sobre o direito de um arguido a permanecer em silêncio, o júri queria sempre ouvir o arguido a dizer que não tinha sido ele a cometer o crime. E quando se tira isso a um júri, pode haver ressentimentos.

- Quero continuar - murmurou o Roulet. - Consigo lidar com o procurador.

Levantei-me.

- A defesa chama Louis Ross Roulet, Meritíssima.

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O Louis Roulet avançou rapidamente para o banco das testemunhas como um basquetebolista chamado do banco para entrar em jogo. Parecia ansioso pela oportunidade de se defender. E sabia que essa decisão teria impacto no júri.

Depois de abordados os preliminares, passei de imediato aos pontos fulcrais do caso. Orientado pelas minhas perguntas, o Roulet admitiu livremente que tinha ido ao Morgan's na noite de 6 de Março à procura de companhia feminina. Disse que não andava especificamente à procura dos serviços de uma prostituta, mas que não era contra essa possibilidade.

- Já tinha estado antes com mulheres a quem paguei - disse. - Portanto, não era contra essa possibilidade.

Testemunhou que não teve nenhum contacto ocular consciente com a Regina Campo antes de ela o abordar no balcão. Disse que fora ela a agressora, mas que nessa altura isso não o tinha incomodado. Disse que tinha sido um convite aberto, pois ela tinha dito que estaria livre depois das dez e que ele podia ir a casa dela se não estivesse já comprometido.

O Roulet descreveu os esforços feitos durante a hora seguinte no Morgan's e depois no Lamplighter para encontrar uma mulher a quem não tivesse de pagar e disse que não conseguira. Foi então que decidiu ir à morada que a Campo lhe tinha dado e bateu à porta.

- Quem atendeu?

- Foi ela. Entreabriu a porta e olhou para mim.

- A Regina Campo? A mulher que testemunhou esta manhã?

- Sim, correcto.

- Conseguiu ver-lhe o rosto todo através da porta entreaberta?

- Não. Ela só a abriu um pouco e não consegui vê-la. Só lhe via o olho esquerdo e um pouco desse lado da cara.

- Como é que a porta foi aberta? Essa pequena abertura através da qual conseguia vê-la foi do lado direito ou esquerdo?

- Como estava a olhar para porta, a abertura deve ter sido do lado direito.

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- Esclareçamos bem isto, então. A abertura foi pelo lado direito, correcto?

- Correcto.

- Portanto, se ela estava atrás da porta a espreitar pela abertura, estaria a olhar para si com o olho esquerdo.

- Está correcto.

- Conseguiu ver-lhe o olho direito?

- Não.

- Portanto, se ela tivesse alguma equimose ou algum corte ou lesão no lado direito da cara, conseguiria ver?

- Não.

- Okay. Que aconteceu depois?

- Ela viu que era eu e disse-me para entrar. Abriu a porta mas continuou atrás dela.

- Não conseguia vê-la?

- Não completamente. Estava a usar a porta como para se esconder.

- Que aconteceu depois?

- Bem, era uma espécie de vestíbulo e ela apontou para a sala de estar. Segui nessa direcção que ela indicou.

- Isso significa que ela estava atrás de si?

- Sim, quando me virei para a sala de estar ela estava atrás de mim.

- Ela fechou a porta?

- Creio que sim. Ouvi a porta fechar.

- E depois?

- Algo me atingiu na nuca e caí. Perdi os sentidos.

- Sabe durante quanto tempo esteve inconsciente?

- Não. Acho que foi bastante tempo, mas nem a polícia nem ninguém chegou a dizer-me.

- De que se lembra quando recuperou os sentidos?

- Lembro-me de ter tido dificuldade em respirar e quando abri os olhos havia alguém sentado em cima de mim. Estava deitado de costas e um homem em cima de mim. Tentei mexer-me e foi então que me apercebi que também havia alguém sentado em cima das minhas pernas.

- Que aconteceu depois?

- Diziam à vez para não me mexer e um deles disse-me que tinham a minha navalha e que se tentasse mexer-me ou fugir usavam-na.

- A certa altura chegou a polícia e detiveram-no?

- Sim, minutos depois apareceu a polícia. Algemaram-me e obrigaram-me a levantar-me. Foi então que vi que tinha sangue no casaco.

- E na mão, não?

- Não conseguia ver porque estava com as mãos algemadas atrás das costas. Mas ouvi um dos homens que tinha estado sentado em cima

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de mim dizer ao polícia que havia sangue na minha mão e depois o polícia enfiou-a num saco; senti-o a fazer isso.

- Como é que ficou com sangue na mão e no casaco?

- Só sei que alguém o pôs aí porque não fui eu.

- É canhoto?

- Não.

- Não agrediu a Sra. Campo com o punho esquerdo?

- Não.

- Ameaçou violá-la?

- Não.

- Disse-lhe que ia matá-la se ela não cooperasse?

- Não.

Estava à espera de algum do fogo que tinha visto no primeiro dia no gabinete do Dobbs, mas o Roulet mantinha-se calmo e controlado. Decidi que antes de concluir o interrogatório directo ia precisar de forçar um pouco as coisas para o obrigar a mostrar alguma dessa raiva. Tinha-lhe dito ao almoço que queria ver isso.

- Está zangado-por ter sido acusado de atacar a Sra. Campo?

- Claro que estou.

- Porquê?

Abriu a boca mas não falou. Parecia indignado por eu lhe fazer essa pergunta.

- Porquê? Como assim? Alguma vez foi acusado de uma coisa que não fez e não há nada que possa fazer a não ser esperar? Esperar semanas e meses até ter finalmente a oportunidade de ir a tribunal dizer que lhe armaram uma ratoeira? E depois ter de esperar ainda mais tempo enquanto o procurador chama uma cambada de mentirosos e ter de ouvir essas mentiras todas e esperar por uma oportunidade. Claro que isso me deixa zangado. Estou inocente! Não fui eu!

Foi perfeito. Mesmo em cheio para todos aqueles que alguma vez foram falsamente acusados de algo. Ainda tinha mais perguntas que podia fazer, mas lembrei-me da regra: entrar e sair. Menos era sempre mais. Sentei-me. Se depois houvesse alguma coisa que me tivesse escapado, poderia esclarecer tudo num novo interrogatório directo.

Olhei para a juíza.

- Nada mais a perguntar, Meritíssima.

O Minton levantou-se antes de eu ter tempo para me sentar. Avançou para o atril sem deixar de olhar friamente para o Roulet. Estava a mostrar ao júri o que pensava deste homem. Os seus olhos eram como lasers a disparar pela sala. Agarrou o atril com tanta força que as mãos ficaram brancas. Era tudo um espectáculo para o júri.

- Nega ter tocado na Sra. Campo? - perguntou.


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- Correcto - respondeu o Roulet.

- Segundo afirmou, ela agrediu-se a si mesma, ou foi um homem que ela nunca tinha visto antes até essa noite, que a esmurrou como parte desta ratoeira, está correcto?

- Não sei quem o fez. Só sei que não fui eu.

- Mas o que está a dizer é que esta mulher, a Regina Campo, está a mentir. Que ela veio hoje a este tribunal e limitou-se a mentir à juíza e ao júri e ao mundo inteiro.

O Minton pontuou a frase abanando a cabeça com desprezo.

- Só sei que não fui eu que fiz as coisas que ela diz que fiz. A única explicação é que um de nós está a mentir. E não sou eu.

- Cabe ao júri decidir isso, não acha?

- Sim.

- E esta navalha que supostamente comprou para sua protecção. Está a dizer a este júri que a vítima deste caso sabia de algum modo que o senhor tinha uma navalha e que a usou como parte da ratoeira?

- Desconheço o que ela sabia. Nunca lhe mostrei a navalha a ela nem em nenhum bar onde ela possa ter estado. Portanto, não vejo como ela poderia saber disso. Acho que ela encontrou a navalha quando me revistou o bolso à procura do dinheiro. Guardo sempre a navalha e o dinheiro no mesmo bolso.

- Oh, portanto, agora ela também lhe roubou dinheiro do bolso. Quando é que isto vai acabar, Sr. Roulet?

- Tinha quatrocentos dólares no bolso. Quando me detiveram, o dinheiro tinha desaparecido. Alguém o tirou.

Em vez de tentar insistir nessa questão do dinheiro, o Minton foi sensato pois, por mais voltas que desse à questão, conseguiria no máximo um empate. Se tentasse postular que o Roulet não tinha dinheiro no bolso e que o seu plano era atacar e violar a Campo em vez de lhe pagar, sabia que eu ia espetar-lhe com as declarações de rendimentos do Roulet, o que lançaria sérias dúvidas sobre a ideia de que não podia pagar a uma prostituta. Era uma via testemunhal que os advogados designavam como "foda total" e o Minton teve o cuidado de não enveredar por aí. Avançou para a conclusão.

Num estilo dramático, pegou na prova constituída pela foto do rosto esmurrado e lesionado da Regina Campo.

- Portanto, a Regina Campo está a mentir - disse ele.

- Sim.

- Ela pediu que lhe fizessem isto ou talvez tenha sido ela a fazer a si mesma.

- Não sei quem o fez.

- Mas não foi o senhor.

 

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- Não, não fui eu. Nunca faria isso a uma mulher. Nunca magoaria uma mulher.

O Roulet apontou para a foto nas mãos do Minton.

- Nenhuma mulher merece isso.

Inclinei-me para a frente e esperei. O Roulet acabava de dizer a linha que eu lhe pedira para tentar encaixar numa das suas respostas durante o testemunho. Nenhuma mulher merece isso. Era a vez do Minton morder o isco. Era astuto. Mas deve ter percebido que o Roulet acabava de abrir uma porta.

- Que quer dizer com merece? Acha que os crimes de violência se reduzem a uma questão de uma vítima receber aquilo que merece?

- Não. Não foi nesse sentido. Queria dizer que, independentemente de como ela ganha a vida, nunca deveria ter sido espancada daquela maneira. Ninguém merece que isso lhe aconteça.

O Minton baixou o braço com a foto. Olhou-a por um momento e voltou a olhar para o Roulet.

- Não tenho mais perguntas a fazer-lhe, Sr. Roulet.

 

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Continuava a sentir que estava a ganhar a batalha das lâminas. Tinha feito o possível para manobrar o Minton para uma posição em que só dispunha de uma escolha. Chegara agora a altura de ver se esse possível tinha sido o suficiente. Depois de o Minton se sentar, optei por não voltar a interrogar o meu cliente. Aguentara-se bem durante o ataque do procurador e eu sentia que o vento nos era favorável. Levantei-me e olhei para o relógio na parede ao fundo da sala. Eram apenas três e meia. Olhei para a juíza.

- Meritíssima, a defesa terminou.

Ela concordou com a cabeça e olhou para o relógio. Anunciou ao júri a pausa do meio da tarde. Assim que os jurados saíram, olhou para a mesa da acusação onde o Minton estava a escrever algo.

- Sr. Minton?

O procurador olhou para ela.

- Ainda estamos em sessão. Preste atenção. O estado quer refutar? O Minton levantou-se.

- Meritíssima, queria pedir que a sessão fosse encerrada por hoje para o estado ter tempo de reconsiderar a refutação.

- Sr. Minton, ainda temos pelo menos noventa minutos para gastar hoje. Tinha-lhe dito para ser produtivo hoje. Onde estão as suas testemunhas?

- Francamente, Meritíssima, não estava à espera que a defesa terminasse depois de apenas três testemunhas e eu...

- Ele tinha avisado disso na declaração de abertura.

- Sim, mas ainda assim o caso avançou mais rápido do que se esperava. Estamos com meio dia de antecipação. Queria pedir a indulgência do tribunal. Se fosse forçado a chamar a testemunha em que estou a pensar, nunca estaria aqui no tribunal antes das seis horas.

Virei-me e olhei para o Roulet, que tinha voltado a sentar-se ao meu lado. Pisquei-lhe o olho esquerdo para que a juíza não reparasse. Parecia que o Minton tinha mordido o isco. Agora só precisava de me certificar de que a juíza não o obrigava a cuspir o isco. Levantei-me.

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- Meritíssima, a defesa não põe qualquer objecção ao atraso. Talvez possamos usar esse tempo para preparar as declarações finais e instruções para o júri.

A juíza lançou-me um olhar intrigado. Era raro a defesa não protestar contra os atrasos da acusação. Mas a semente que eu tinha plantado começou a brotar.

- Talvez tenha razão, Sr. Haller. Se encerrarmos cedo hoje, espero ouvir as declarações finais imediatamente após a refutação. Não haverá mais atrasos a não ser para considerar as instruções ao júri. Percebido, Sr. Minton?

- Sim, Meritíssima, estarei pronto.

- Sr. Haller?

- A ideia foi minha, Meritíssima. Estarei pronto.

- Muito bem. Está combinado. Assim que os jurados voltarem, vou dispensá-los por hoje. Amanhã as coisas correrão bem e depressa e não tenho dúvidas de que apresentarão a sua deliberação na sessão da tarde.

Olhou para o Minton e depois para mim, como se a desafiar-nos a discordar dela. Como não o fizemos, levantou-se e saiu, provavelmente para ir fumar.

O júri voltou vinte minutos depois e comecei a arrumar as minhas coisas. O Minton aproximou-se e disse: - Posso falar contigo ?

Olhei para o Roulet e disse-lhe para ir ter com a mãe e o Dobbs, e que depois lhe ligava se precisasse dele para alguma coisa.

- Mas também eu quero falar contigo - disse.

- Acerca de quê?

- De tudo. Como achas que me saí ali?

- Saíste-te bem e está tudo a correr bem. Acho que estamos em boa forma.

Apontei na direcção da mesa da acusação para onde o Minton tinha voltado e falei em voz baixa.

- E ele também o sabe. Está prestes a fazer outra proposta.

- Achas que devo ficar por aqui para saber o que é?

Abanei a cabeça. - Não, não interessa que proposta é. Só há um veredicto, certo?

- Certo.

Deu-me uma palmadinha no ombro quando se levantou e teve de fazer um esforço para não me afastar dele.

- Não me toques, Louis. Se queres fazer alguma coisa por mim, então devolve-me a puta da arma.

Não respondeu. Limitou-se a sorrir e saiu. Virei-me para o Minton, cujos olhos denunciavam agora o brilho do desespero: precisava de uma condenação - qualquer condenação - relativa a este caso.

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- Que se passa?

- Tenho outra proposta.

- Estou a ouvir.

- Posso reduzir ainda mais. Reduzir para simples agressão. Seis meses na prisão do condado. Pela maneira como esvaziam esse lugar todos os meses, provavelmente nem chega a cumprir dois meses.

Referia-se ao mandato federal para evitar a sobrelotação do sistema prisional do condado. Não importava o que fosse decidido em tribunal; a necessidade obrigava muitas vezes a encurtar drasticamente as sentenças. Era uma boa proposta, mas mantive-me impassível. Sabia que a proposta só podia ter vindo do segundo piso. O Minton não tinha autoridade para reduzir tanto a pena.

- Se ele aceitar, depois ela rouba-o num processo cível - disse-lhe.
- Duvido que ele aceite.

- É uma proposta muito boa - disse o Minton.

Detectei sinais de indignação na sua voz. O meu palpite era que o relatório do observador do Smithson não fora bom e agora o Minton tinha ordens para encerrar o caso com um acordo de culpa. Apressar o julgamento, a juíza e o júri, e conseguir sobretudo o acordo. Os escritórios de Van Nuys não gostavam de perder casos e só se tinham passado ainda dois meses depois do fiasco do caso Robert Blake. O Minton podia reduzir quanto quisesse, desde que conseguisse algo. O Roulet tinha de ir dentro - mesmo que fosse só por dois meses.

- Talvez da tua perspectiva seja uma proposta muito boa. Mas implica na mesma que tenho de convencer um cliente a declarar-se culpado de algo que ele diz que não fez. E ainda por cima, esse acordo abre a porta para um processo de responsabilidade civil. Portanto, enquanto ele estiver ali quietinho na prisão a tentar proteger o coiro durante dois meses, a Reggie Campo e o advogado dela estão aqui a depená-lo. Percebes? Não é uma proposta assim tão boa na perspectiva dele. Se depender de mim, vamos até ao fim com este julgamento. Acho que estamos a ganhar. Sei que temos o tipo da Bíblia do nosso lado e portanto temos no mínimo um apoiante. Mas quem sabe, talvez os doze estejam do nosso lado.

O Minton bateu com força na mesa.

- Que porra estás para aí a dizer? Sabes bem que foi ele que fez isto, Haller. E seis meses, ou até a redução para dois meses, por aquilo que ele fez àquela mulher, é uma piada. Não passa tudo do raio duma representação falsa que só me faz perder o sono, mas eles têm estado a observar e acham que vocês têm o júri do vosso lado, e por isso sou obrigado a continuar.

Fechei a pasta com um gesto autoritário e levantei-me.

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- Então, espero que consigas alguma coisa boa durante a refutação Ted. Porque vais desejar um veredicto do júri. E devo dizer-te que cada vez te pareces mais com um tipo que veio nu para uma batalha de lâminas. Deixa de proteger os tomates e combate.

Comecei a sair, mas parei e olhei para ele.

- Ei, sabes uma coisa? Se andas a perder o sono por causa disto ou de qualquer outro caso, então devias largar a profissão e fazer outra coisa. Porque não vais conseguir aguentar, Ted.

O Minton sentou-se à sua mesa, de olhos fixos no lugar vazio da juíza. Não deu nenhuma resposta. Deixei-o ali a pensar. Achei que tinha sido uma boa jogada. Na manhã seguinte descobriria se assim fora.

Fui para o Four Green Fields para preparar a minha declaração final. Não ia precisar das duas horas que a juíza nos tinha dado. Pedi uma Guinness ao balcão e sentei-me sozinho a uma das mesas. O serviço de mesa só começava às seis. Esbocei algumas notas básicas, mas o instinto dizia-me que iria reagir em grande parte à apresentação do estado. Nas moções pré-julgamento, o Minton pedira e recebera já a autorização da Juíza Fullbright para fazer uma apresentação em PowerPoint para ilustrar o caso ao júri. Era a última moda entre os jovens procuradores, usar um ecrã e gráficos vistosos, como se não confiassem no raciocínio dos jurados. Agora tinham de lhes servir tudo bem preparado como a TV fazia.

Os meus clientes raramente tinham dinheiro para me pagar os honorários e muito menos para apresentações em PowerPoint. O Roulet era uma excepção. Através da mãe poderia dar-se ao luxo de contratar o próprio Francis Ford Coppola para uma apresentação em PowerPoint se quisesse. Mas nunca cheguei a propor-lhe essa ideia. Só os da velha escola usavam um método desses. Eu gostava de ir sozinho para o ringue. O Minton podia atirar tudo o que desejasse no grande ecrã azul. Quando chegasse a minha vez, queria o júri a olhar unicamente para mim. Se não conseguisse convencê-los, então um computador também não conseguia.

Às cinco e meia liguei para o gabinete da Maggie McPherson.

- Está na hora de sair - disse-lhe.

- Talvez para os figurões profissionais da defesa. Nós, os funcionários públicos, temos de trabalhar até ficar escuro.

- E se fizesses uma pausa e viesses ter comigo para uma Guinness e uma torta de carne? Depois podias voltar para acabar o trabalho.

- Não, Haller. Não posso. Além do mais, já sei o que queres. Ri-me. Não havia uma única ocasião em que ela não achasse que

sabia o que eu queria. E a maior parte das vezes tinha razão, mas não desta vez.

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- Ai sim? Que quero então?

- Vais tentar corromper-me outra vez para descobrir o que o Minton anda a tramar.

- Nada disso, Mags. O Minton é um livro aberto. O observador do Smithson tem-lhe dado más notas. E o Smithson resolveu dizer-lhe para desmontar a tenda, conseguir alguma coisa e encerrar a coisa. Mas o Minton tem andado atarefado com a sua apresentaçãozinha final em PowerPoint e faz intenção de jogar e arrecadar tudo para a casa. Além do mais, está verdadeiramente indignado e não lhe agrada a ideia de desarmar a tenda.

- Nem a mim. O Smithson está sempre com medo de perder, sobretudo depois do caso Blake. Tu já não és assim.

- Sempre disse que perderam o caso Blake assim que te dispensaram. Devias dizer-lhes isso, Maggie.

- Se alguma vez tiver oportunidade.

- Um dia.

A Maggie não gostava de falar da sua carreira empatada. Mudou de assunto.

- Já pareces mais animado. Ontem eras suspeito de homicídio. Hoje falas como se tivesses a procuradoria sob controlo. A que se deve a mudança?

- A nada. É apenas a calmaria antes da tempestade, acho. Ei, deixa-me perguntar-te uma coisa. Alguma vez fizeste pressão para te entregarem relatórios balísticos?

- Que tipo de balística?

- Comparação de cápsulas e de balas.

- Depende de quem o faz. Que departamento é, quero eu dizer. Mas se houver urgência, conseguem apresentar um relatório em vinte e quatro horas.

Senti a pancada surda do medo atingir-me o estômago. Sabia que estava a ficar sem tempo.

- Mas na maior parte das vezes não é assim - continuou. - O normal é dois ou três dias, mesmo com urgência. E quando se quer o relatório completo, comparação de cápsulas e balas, pode levar mais tempo porque as balas podem estar danificadas e dificultar a análise. E demora mais tempo assim.

Tive a sensação de que nada daquilo podia ajudar-me. Sabia que tinham recolhido uma cápsula na cena do crime. Se o Lankford e a Sobel conseguissem uma identificação positiva entre essa cápsula e a cápsula da bala disparada há cinquenta anos da pistola do Mickey Cohen, podiam vir atrás de mim e deixar para mais tarde a comparação das balas.

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- Estás aí? - perguntou ela.

- Sim. Estava só a pensar numa coisa.

- Já não pareces animado como há pouco. Queres falar disto Michael?

- Não, para já não. Mas se vier a precisar de um bom advogado, já sabes quem vou chamar.

- Estou para ver isso.

- Podes vir a surpreender-te.

Deixei o silêncio voltar a instalar-se. Tê-la do outro lado da linha acalmava-me. Era uma sensação boa.

- Haller, tenho de voltar ao trabalho.

- Okay, Maggie, trata de mandar dentro todos esses mauzões.

- Está bem.

- Boa noite.

Desliguei e reflecti durante alguns segundos. Depois liguei para o Sheraton Universal para ver se tinham algum quarto disponível. Como precaução, tinha decidido não ir para casa esta noite. Podiam estar lá dois detectives de Glendale à minha espera.

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Quarta-feira, 25 de Maio

Depois de uma noite sem dormir numa cama desconfortável de hotel, fui cedo para o tribunal na quarta-feira de manhã e não houve nenhuma recepção: nenhum detective de Glendale à minha espera com um sorriso e um mandado de detenção. Senti o alívio percorrer-me enquanto passava pelo detector de metais. Vestia o mesmo fato do dia anterior, mas esperava que ninguém reparasse. Mas tinha posto uma das camisas e gravatas lavadas que guardo na mala do Lincoln para os dias de Verão quando estou a trabalhar no deserto e o ar condicionado do carro não chega para afastar o calor.

Quando cheguei à sala de audiências fiquei surpreendido ao descobrir que não tinha sido o primeiro a chegar. O Minton estava já a montar o ecrã para a apresentação em PowerPoint. Como a sala tinha sido construída antes da era das apresentações em computador, não havia espaço para colocar um ecrã de trezentos e sessenta e cinco centímetros a uma distância visível do júri, da juíza e dos advogados. Grande parte do espaço seria ocupado pelo ecrã e quem ficasse sentado atrás não conseguiria ver o espectáculo.

- Madrugador como as aves - disse ao Minton.

Olhou-me e pareceu ficar surpreendido por me ver ali tão cedo também.

- Tenho de preparar a logística desta coisa. Não está a ser fácil.

- Sempre podes optar pelo método antigo e limitares-te a olhar para o júri e falar-lhe directamente.

- Obrigado, mas não. Gosto mais assim. Falaste da proposta ao teu cliente?

- Falei, não aceita. Parece que vamos até ao fim.

Pousei a pasta na mesa da defesa e perguntei-me se o facto de o Minton estar a preparar a refutação para a sua declaração final não significaria que resolvera não apresentar nenhuma refutação. Senti uma

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pontada aguda de pânico. Olhei para a mesa da acusação e não vi nada que pudesse indicar-me o que o Minton andava a tramar. Podia perguntar-lhe directamente, mas não queria trair a minha aparência de confiança desinteressada.

Em vez disso, aproximei-me do oficial de justiça Bill Meehan que dirigia a sala de audiências da Fullbright. Vi um monte de papelada na secretária dele. Devia ser a agenda das sessões, bem como a lista de presos trazidos de autocarro nessa manhã para o tribunal.

- Bill, vou buscar um café. Quer alguma coisa?

- Não, obrigado. Já tive a minha dose de cafeína. Por enquanto. Sorri-lhe.

- Ei, isso é a lista de detidos? Posso dar uma olhada para ver se tem algum dos meus clientes?

- Claro.

Entregou-me várias folhas agrafadas. Era uma lista dos nomes dos presos que estavam agora à espera nas celas de detenção do tribunal. A seguir a cada nome aparecia a sala de audiências para onde cada preso seria levado. Agindo com todo o à-vontade de que era capaz, percorri a lista e depressa encontrei o nome Dwayne Jeffery Corliss. O bufo do Minton estava no tribunal e seria apresentado na sala da Fullbright. Quase soltei um suspiro de alívio, mas contive-me. Tudo indicava que o Minton ia jogar como eu esperava e planeara.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou o Meehan. Olhei para ele e devolvi-lhe a lista.

- Não, porquê?

- Não sei. Parece que lhe aconteceu alguma coisa, é só.

- Ainda não aconteceu nada, mas vai acontecer.

Saí da sala e fui à cafetaria no segundo piso. Quando estava na fila para pagar o café, vi a Maggie McPherson entrar para ir buscar um café. Depois de pagar aproximei-me por trás dela enquanto estava a pôr açúcar no café.

- Bem adoçado - disse-lhe. - A minha ex-mulher costumava dizer-me que gostava assim do café.

Virou-se para mim.

- Pára com isso, Haller. Mas sorriu-me.

- Pára com isso, Haller, senão grito - continuei. - Ela também costumava dizer isso. Uma data de vezes.

- O que fazes? Não devias ter-te levantado às seis da manhã para vires cá desligar a tomada do PowerPoint do Minton?

- Não estou preocupado. Aliás, devias ir lá ver. A velha escola contra a nova escola, uma batalha de eras.

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- Não me parece. A propósito, esse não é o mesmo fato que vestiste ontem?

- Sim, é o meu fato da sorte. Mas como sabes que o usei ontem?

- Oh, espreitei ontem na sala durante alguns segundos. Estavas tão ocupado a interrogar o teu cliente que nem reparaste.

Fiquei contente por ela reparar nos fatos que eu vestia. Isso significava alguma coisa.

- E por que não espreitas outra vez hoje de manhã?

- Hoje não posso. Tenho muito que fazer.

- O quê?

- Estou a tratar de um homicídio premeditado para o Andy Seville. Ele vai para o ramo privado e ontem entregaram-nos os casos dele. Fiquei com o caso melhor.

- Ainda bem. O arguido precisa de um advogado?

- Nem pensar, Haller. Não vou perder mais nenhum cliente para ti.

- Estava a brincar. Já estou mais do que ocupado.

Usou uma série de guardanapos para poder pegar no copo quente.

- É como eu. Desejo-te boa sorte, e já sabes que hoje não posso ir lá espreitar-te.

- Sim, eu sei. Há que manter a firma a funcionar. Mas podias animar o Minton quando ele chegar de mãos a abanar.

- Vou tentar.

Saiu da cafetaria e sentei-me a uma mesa vazia. Ainda tinha um quarto de hora antes de o julgamento recomeçar. Peguei no telemóvel para ligar à minha segunda ex-mulher.

- Sou eu, Lorna. O Corliss entrou no jogo. Estás preparada?

- Estou.

- Okay, era só para verificar. Depois ligo-te.

- Boa sorte para hoje, Mickey.

- Obrigado, vou precisar. Fica pronta para quando te ligar. Desliguei e estava prestes a levantar-me quando vi o Detective Howard

Kurlen da Polícia de Los Angeles caminhar por entre as mesas na minha direcção. Parecia que desta vez o homem que tinha posto o Jesus Menendez na prisão não tinha vindo ali para pedir uma sanduíche de manteiga de amendoim e sardinha. Trazia na mão um documento dobrado. Chegou à minha mesa e pousou-o à frente da minha chávena de café.

- Que merda é esta? - exigiu saber.

Comecei a desdobrar o documento, apesar de já saber o que era.

- Parece uma intimação judicial, detective. Pensei que saberias logo.

- Percebeste bem o que quis dizer, Haller. Que jogada é esta? Não tenho nada que ver com o caso em julgamento e não quero fazer parte dessas tuas tretas.

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- Não é jogada nenhuma nem nenhuma treta. Foste intimado a comparecer como testemunha de refutação.

- Para refutar o quê? Já te disse que não tenho nada que ver com o raio deste caso. Quem se ocupou dele foi o Martin Booker e acabo de falar com ele e disse-me que deve ter sido um engano.

Assenti com a cabeça como se pretendesse mostrar-me compreensivo.

- Ouve, vai lá à sala de audiências e senta-te. Se for um engano, resolvo isso assim que puder. Não demorará mais de que uma hora. E depois já podes voltar a perseguir os mauzões.

- E se for assim: saio já e resolves a coisa quando caralho quiseres?

- Não posso fazer isso, detective. É uma intimação válida e legal e tens de comparecer naquela sala a não ser que sejas dispensado. Já te disse que tratarei disso mal possa. O estado tem uma testemunha, depois é a minha vez e a seguir trato disto.

- Que grande treta.

Virou costas e afastou-se em direcção à porta. Felizmente, tinha deixado a intimação judicial na mesa, porque era falsa. Não chegara a registá-la junto do oficial de justiça e a assinatura no fundo era a minha.

Treta ou não, não me parecia que o Kurlen saísse do tribunal. Compreendia o que era o dever e a lei. Vivia em consonância com isso. E era com isso que eu estava a contar. Compareceria na sala de audiências até ser dispensado. Ou até compreender por que razão o tinha chamado ali.

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A juíza chamou o júri às 9h30 e prosseguiu de imediato com a ordem de trabalhos. Olhei para a plateia e vi o Kurlen na fila do fundo. Estava com uma expressão pensativa e talvez irritada. Estava junto da porta e não sabia quanto tempo ficaria ali. Talvez viesse a precisar da hora toda como lhe tinha dito.

Continuei a observar a plateia e vi o Lankford e a Sobel sentados ao lado da secretária do oficial de justiça, no banco que se destinava apenas aos agentes da lei. Os seus rostos não revelavam nada, mas continuei intrigado. Perguntei-me se conseguiria ter a hora de que precisava.

- Sr. Minton - disse a juíza -, o estado quer refutar?

O Minton levantou-se, ajeitou o casaco e pareceu hesitar antes de responder.

- Sim, Meritíssima, o estado chama Dwayne Jeffery Corliss como testemunha de refutação.

Levantei-me e reparei que o oficial de justiça, à minha direita, também se tinha levantado. Ia buscar o Corliss.

- Meritíssima? - perguntei. - Quem é Dwayne Jeffery Corliss e por que razão só fui informado agora?

- Delegado Meehan, espere um segundo - disse a Fullbright.

O Meehan parou, com a chave da cela de detenção na mão. A juíza pediu desculpa ao júri e disse-lhes para voltarem para a sala de deliberação até serem chamados. Depois de saírem, a juíza virou-se para o Minton.

- Sr. Minton, importa-se de nos falar desta testemunha?

- O Dwayne Corliss é uma testemunha cooperante que falou com o Sr. Roulet quando estavam detidos.

- É mentira! - gritou o Roulet. - Não falei com...

- Esteja calado, Sr. Roulet - atroou a juíza. - Sr. Haller, queira informar o seu cliente do perigo de explosões emocionais na minha sala de audiências.

- Obrigado, Meritíssima.

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Continuei de pé e inclinei-me para sussurrar ao ouvido do Roulet.

- Foi perfeito - disse-lhe. - Agora, acalma-te que eu trato disto a partir daqui.

O Roulet recostou-se enquanto cruzava os braços com fúria.

- Peço desculpa, Meritíssima, mas partilho da mesma indignação do meu cliente em relação a este último esforço do estado. É a primeira vez que ouvimos falar do Sr. Corliss. Gostava de saber quando surgiu ele com essa suposta conversa que teve com o meu cliente.

O Minton continuou de pé. Acho que foi a primeira vez durante o julgamento em que estávamos lado a lado a discutir perante a juíza.

- O Sr. Corliss contactou o nosso escritório através de um procurador que tinha tratado da primeira apresentação perante o juiz do arguido - disse o Minton. - No entanto, essa informação só me foi entregue ontem numa reunião quando me perguntaram por que razão nunca tinha usado essa informação.

Era mentira, mas não era minha intenção denunciar isso. Se o fizesse, estaria a revelar aquilo que a Maggie McPherson me tinha dito no Dia de São Patrício e também poderia fazer descarrilar o meu plano. Tinha de ser cuidadoso. Precisava de protestar vigorosamente contra o facto de o Corliss ser chamado a testemunhar, mas também precisava de sair perdedor dessa discussão.

Esforcei-me por mostrar um rosto indignadíssimo.

- Nem consigo acreditar, Meritíssima. Lá porque o gabinete da procuradoria está com problemas de comunicação, agora o meu cliente tem de sofrer as consequências de não ter sido informado que o estado tinha uma testemunha contra ele? Esse homem não deveria ser autorizado a testemunhar. É demasiado tarde para o chamar agora.

- Meritíssima - apressou-se o Minton a dizer. - Não tive tempo para falar com o Sr. Corliss ou ouvir o depoimento dele. Como estava a preparar a minha declaração final, tratei simplesmente que fosse trazido aqui hoje. O testemunho dele é fulcral para o caso do estado porque serve de refutação das declarações egoístas do Sr. Roulet. Não permitir o testemunho dele é um sério mau serviço ao estado.

Abanei a cabeça e sorri com frustração. Com esta última frase o Minton acabava de ameaçar a juíza de perder o apoio da procuradoria caso viesse a candidatar-se à reeleição contra outro oponente.

- Sr. Haller? - perguntou a juíza. - Quer dizer alguma coisa antes de eu decidir?

- Quero apenas que o meu protesto fique registado.

- Muito bem, ficará registado. Se tivesse de lhe dar tempo para investigar e falar com o Sr. Corliss, de quanto tempo precisaria?

- Uma semana.

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Foi a vez do Minton de esboçar um sorriso falso e abanar a cabeça.

- Que ridículo, Meritíssima.

- Quer ir lá falar com ele? - perguntou-me a juíza. - Dou-lhe autorização.

- Não, Meritíssima. Tanto quanto sei, todos os bufos de prisão são mentirosos. Não me valeria de nada falar com ele porque tudo que saísse daquela boca seria mentira. Tudo. Além do mais, não se trata do que ele tem para dizer. Trata-se daquilo que outros têm a dizer sobre ele. Era para isso que precisaria de tempo.

- Então vou aceitar que ele pode testemunhar.

- Meritíssima, se vai permitir que ele testemunhe nesta sala de audiências, posso pedir também uma indulgência para a defesa?

- Trata-se de quê, Sr. Haller?

- Gostava de ir ao corredor fazer um telefonema rápido a um investigador. Demorarei menos de um minuto.

A juíza ponderou por instantes e aceitou.

- Vá, então. Vou mandar entrar o júri enquanto faz isso.

- Obrigado.

Saí apressadamente da sala. Cruzei o olhar com o Howard Kurlen, que me ofereceu uma careta.

Já no corredor, liguei para o telemóvel da Lorna Taylor, que me atendeu de imediato.

- Okay, falta muito para chegares?

- Cerca de um quarto de hora.

- Trouxeste as folhas impressas e a gravação?

- Está tudo aqui comigo.

Verifiquei as horas. Faltava um quarto para as dez.

- Okay. Bem, já começámos aqui. Não te atrases. Mas quando chegares aqui, quero que esperes no corredor à saída da sala. Depois entras às dez e um quarto para me dar isso. Se estiver a contra-interrogar a testemunha, senta-te na primeira fila e espera até eu reparar em ti.

- Percebido.

Desliguei e voltei para a sala. O júri já estava sentado e vi o Meehan trazer um homem enfiado num macacão cinzento. O Dwayne Corliss era um homem magro e de cabelo desgrenhado a precisar de uma boa lavagem lá no programa de reabilitação no centro médico do condado. Tinha no pulso uma pulseira hospitalar de identificação em plástico azul. Reconheci-o. Era o homem que me tinha pedido um cartão quando falei com o Roulet na cela de detenção no meu primeiro dia no caso.

O Meehan levou o Corliss para o banco das testemunhas e fê-lo jurar. Depois o Minton ocupou-se do espectáculo.

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- Sr. Corliss, foi detido no dia 6 de Março deste ano?

- Sim, a polícia prendeu-me por roubo e posse de droga.

- Continua encarcerado neste momento? O Corliss olhou à sua volta.

- Hum, não, acho que não. Estou na sala de audiências.

Ouvi a gargalhada áspera do Kurlen atrás de mim, mas mais ninguém o imitou.

- Não, referia-me se continua presentemente em detenção. Quando não está aqui no tribunal.

- Estou num programa de reabilitação de toxicodependência na ala prisional do centro médico do condado de Los Angeles.

- É viciado em drogas ?

- Sim. Sou viciado em heroína, mas de momento estou limpo. Não tomei nada desde que fui detido.

- Há mais de sessenta dias.

- Está correcto.

- Reconhece o arguido deste caso?

O Corliss olhou para o Roulet e anuiu.

- Sim.

- Pode explicar como?

- Porque estava com ele na cela depois da detenção.

- Está a dizer que depois de ter sido detido ficou em grande proximidade com o arguido Louis Roulet?

- Sim, no dia seguinte.

- Como aconteceu isso?

- Bem, estávamos os dois na prisão de Van Nuys mas em alas diferentes. Depois, quando nos trouxeram de autocarro aqui para os tribunais, ficámos juntos, primeiro no autocarro e depois na cela de detenção e também quando nos levaram para a sala de audiências para a primeira apresentação. Estivemos sempre juntos durante esse tempo todo.

- Quando diz "juntos", a que se refere?

- Bem, ficámos juntos um do outro porque éramos os únicos brancos do grupo em que estávamos.

- Chegaram a falar enquanto estiveram juntos durante esse tempo todo?

O Corliss assentiu com a cabeça ao mesmo tempo que o Roulet abanava a dele. Toquei no braço do meu cliente em advertência para se abster de qualquer demonstração.

- Sim, falámos - disse o Corliss.

- Acerca de quê?

- Principalmente acerca de tabaco. Estávamos os dois a precisar de um cigarro, mas não nos deixam fumar lá na prisão.

302
O Corliss esboçou um gesto de "que se pode fazer" com as duas mãos e alguns dos jurados - provavelmente fumadores - sorriram e concordaram com as cabeças.

- Alguma vez chegou a perguntar ao Sr. Roulet por que estava preso? - perguntou o Minton.

- Sim.

- Que disse ele?

Levantei-me rapidamente e protestei, mas o protesto foi rapidamente rejeitado.

- Que lhe disse ele, Sr. Corliss? - repetiu o Minton.

- Bem, primeiro perguntou-me por que razão eu estava ali e contei-lhe. Depois perguntei-lhe também por que estava ali e disse: "Por ter dado a uma cabra exactamente aquilo que ela merecia."

- Foram essas as palavras dele?

- Sim.

- Ele chegou a aprofundar ou a especificar o que queria dizer com isso?

- Não. Sobre isso não.

Inclinei-me para a frente, à espera que o Minton fizesse a seguinte e óbvia questão. Mas não o fez.

- Ora bem, Sr. Corliss, foi-lhe prometida alguma coisa da minha parte ou da parte do gabinete da procuradoria em troca do seu testemunho?

- Não. Achei só que era o melhor a fazer.

- Qual é situação do seu caso?

- Continua a haver acusações contra mim, mas, se completar o meu programa, talvez as acusações sejam reduzidas. As da droga, pelo menos. Ainda não sei quanto à acusação de roubo.

- Mas não houve da minha parte nenhuma promessa de ajuda a esse respeito, correcto?

- Correcto, senhor, não houve nenhuma promessa.

- Alguém do gabinete da procuradoria lhe fez alguma promessa?

- Não, senhor.

- Não tenho mais perguntas.

Mantive-me impassível e de olhos fixos no Corliss. Na postura de um homem zangado, mas sem saber exactamente o que fazer. A juíza obrigou-me a agir.

- Sr. Haller, quer contra-interrogar?

- Sim, Meritíssima.

Levantei-me e olhei para a porta como se esperasse ver um milagre entrar por ali. Verifiquei as horas no enorme relógio da sala: faltavam cinco minutos para as dez. Ao virar-me para a testemunha, reparei que

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o Kurlen ainda continuava na fila de trás, com a mesma careta no rosto. Apercebi-me de que talvez fosse essa a expressão natural da sua cara. Concentrei-me na testemunha.

- Sr. Corliss, que idade tem?

- Quarenta e três.

- As pessoas chamam-lhe Dwayne?

- Está correcto.

- Não lhe chamam nenhum outro nome?

- Costumavam chamar-me D.J. quando era mais novo. Todos me chamavam isso.

- E cresceu onde?

- Em Mesa, no Arizona.

- Sr. Corliss, quantas vezes já foi preso antes?

O Minton protestou, mas a juíza rejeitou. Sabia que ela ia dar-me muito espaço de manobra com esta testemunha dado que era eu supostamente o prejudicado.

- Quantas vezes esteve preso antes, Sr. Corliss? - voltei a perguntar.

- Creio que sete vezes.

- Portanto, já esteve em várias prisões durante a sua vida, não foi?

- Pode dizer-se que sim.

- E foi sempre no condado de Los Angeles?

- Quase sempre. Mas também cheguei a ser detido uma vez em Phoenix.

- Portanto, sabe como o sistema funciona, não sabe?

- Tento sobreviver apenas.

- E às vezes sobreviver implica denunciar os outros detidos, não é?

- Meritíssima? - disse o Minton, levantando-se para protestar.

- Sente-se, Sr. Minton - disse a juíza. - Dei-lhe bastante espaço de manobra ao trazer aqui a testemunha. O Sr. Haller também tem os seus direitos. A testemunha deve responder à pergunta.

A estenógrafa leu a pergunta ao Corliss.

- Acho que sim - respondeu ele.

- Quantas vezes denunciou já outros detidos?

- Não sei. Algumas vezes.

- Quantas vezes testemunhou num tribunal a favor da procuradoria?

- Isso inclui os meus próprios casos?

- Não, Sr. Corliss. Para a procuradoria. Quantas vezes testemunhou contra outros detidos para a procuradoria?

- Acho que esta é a minha quarta vez.

Mostrei-me surpreendido e horrorizado, embora não estivesse.

- É portanto um profissional, não é? Quase se pode dizer que a sua ocupação é viciar-se em drogas e denunciar outros presos.

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- Limito-me a dizer a verdade. Se as pessoas me contam coisas más, sinto-me na obrigação de informar as autoridades.

- Mas tenta que as pessoas lhe contem coisas, não tenta?

- Não. Acho que sou um tipo amigável.

- Um tipo amigável. Portanto, espera que este júri acredite que um homem que não conhecia de nenhum lado chegasse de repente junto de si para lhe contar, a si, um perfeito desconhecido, que tinha dado a uma cabra aquilo que ela merecia. Está correcto?

- Foi o que ele disse.

- Portanto, ele limitou-se a referir-lhe isso e o senhor depois limitou-se a voltar a falar de cigarros depois disso, correcto?

- Não exactamente.

- Não exactamente? Que quer dizer com "não exactamente"?

- Ele também me disse que já o tinha feito antes. Disse que se tinha safado antes e que ia voltar a safar-se agora. E estava a armar-se disso porque, quando foi da outra vez, disse que tinha matado a cabra e se tinha safado.

Calei-me por momentos. Olhei para o Roulet, que continuava tranquilo como uma estátua de rosto surpreendido. Voltei a olhar para a testemunha.

- O senhor... - comecei por dizer, mas calei-me, como se fosse eu que estivesse no campo de minas e acabasse de ouvir o estalido debaixo dos pés. Reparei que o Minton adoptou uma postura rígida.

- Sr. Haller? - perguntou a juíza. Olhei para a juíza.

- Meritíssima, não tenho mais perguntas por agora.

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O Minton saiu da mesa da acusação como um pugilista a sair do canto do ringue contra o adversário a sangrar.

- Novo interrogatório directo, Sr. Minton? - perguntou a juíza. Mas ele já estava junto do atril.

- Absolutamente, Meritíssima.

Olhou para o júri como se para sublinhar a importância da próxima troca de palavras e depois olhou para o Corliss.

- O senhor disse que ele estava a armar-se. Como assim?

- Bem, ele contou-me da vez que matou uma rapariga e se safou com isso.

Levantei-me.

- Meritíssima, isto não tem nada que ver com o caso em julgamento e não é nenhuma refutação das provas apresentadas anteriormente pela defesa. A testemunha não pode...

- Meritíssima - interrompeu o Minton -, esta informação foi desencadeada pela defesa. A acusação tem o direito de a aprofundar.

- Vou permitir - disse a Fullbright.

Sentei-me e simulei estar abatido. O Minton prosseguiu com o interrogatório. Estava a avançar para onde eu queria que ele fosse.

- Sr. Corliss, o Sr. Roulet contou-lhe algum pormenor deste incidente prévio em que matou uma mulher e se safou com isso?

- Disse que a rapariga dançava com uma cobra, numa espelunca qualquer onde aparecia numa espécie de poço de cobras.

Senti os dedos do Roulet apertar-me o bíceps com força e depois senti a sua respiração quente junto ao ouvido.

- Que porra é esta? - sussurrou. Virei-me para ele.

- Não sei. Que raio contaste a este tipo? Voltou a sussurrar através dos dentes cerrados.

- Eu? Está a falar de quê? Já te disse, nunca falei com este tipo. Se não foste tu a contar-lhe estas merdas, então foi outra pessoa. Começa a pensar. Quem?

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Olhei para o Minton, que prosseguia com o interrogatório.

- O Sr. Roulet contou mais alguma coisa sobre esta dançarina que ele disse que matou? - perguntou.

- Não, só me contou isso.

O Minton consultou os apontamentos para verificar se havia mais alguma pergunta.

- Não tenho mais nada a perguntar, Meritíssima.

A juíza olhou para mim. Quase detectei simpatia na cara dela.

- Algum contra-interrogatório da defesa com esta testemunha? Não tive tempo para responder pois ouviu-se um ruído ao fundo

da sala e vi a Lorna Taylor entrar e avançar apressadamente para a frente da sala.

- Meritíssima, posso conferenciar por um momento com a minha equipa?

- Seja breve, Sr. Haller.

Aproximei-me e a Lorna entregou-me uma cassete de vídeo envolta numa folha de papel presa com um elástico. Como combinado, sussurrou-me ao ouvido.

- E aqui que finjo estar a sussurrar-te uma coisa muito importante ao ouvido - disse. - Como está a correr?

Assenti com a cabeça enquanto tirava o elástico e verificava a folha de papel.

- Chegaste na hora certa - murmurei-lhe. - Já posso continuar.

- Posso ficar a ver?

- Não, quero-te fora daqui. Não quero que ninguém fale contigo depois de isto explodir.

Trocámos um olhar e saiu. Voltei para o atril.

- Não haverá contra-interrogatório, Meritíssima. Sentei-me e esperei. O Roulet agarrou-me no braço.

- Que estás a fazer? Afastei-o de mim.

- Pára de me tocar. Temos novas informações que não podem ser abordadas num contra-interrogatório.

Olhei para a juíza.

- Mais alguma testemunha, Sr. Minton? - perguntou ela.

- Não, Meritíssima.

- A testemunha está dispensada - disse a juíza.

O Meehan aproximou-se do Corliss para o levar. A juíza olhou para mim e comecei a levantar-me.

- Nova refutação, Sr. Haller?

- Sim, Meritíssima, a defesa gostava de voltar a chamar D. J. Corliss à bancada das testemunhas.

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O Meehan parou e todos olharam para mim. Mostrei a cassete e o papel que a Lorna me tinha trazido.

- Tenho novas informações sobre o Sr. Corliss, Meritíssima. Não podia referir estas informações no interrogatório.

- Muito bem. Pode prosseguir.

- Dá-me só um segundo, Meritíssima?

- Seja muito breve.

Falei com o Roulet. - Ouve, não sei o que se passa, mas não importa - sussurrei-lhe.

- Que queres dizer com isso, que não importa?

- Ouve-me. Não importa porque mesmo assim consigo destruí-lo. Não importa se ele diz que mataste vinte mulheres. Se está a mentir, exponho-o como mentiroso. Se o destruir, nada disso importa depois. Percebes?

O Roulet anuiu e pareceu acalmar-se enquanto ponderava nisto.

- Então destrói-o.

- É o que vou fazer. Mas preciso de saber. Há mais alguma coisa que ele sabe que possa vir a ser revelado? Há alguma coisa contra a qual devo precaver-me?

O Roulet sussurrou lentamente, como se estivesse a explicar algo a uma criança.

- Não sei, porque nunca falei com ele. Não sou estúpido ao ponto de falar de cigarros e mortes com o caralho dum completo desconhecido!

- Sr. Haller - disse a juíza. Olhei para ela. - Sim, Meritíssima.

Peguei na cassete e na folha de papel e voltei para o atril. Enquanto o fazia, lancei um olhar rápido à plateia e reparei que o Kurlen tinha saído. Não sabia quanto tempo estivera lá a assistir nem aquilo que chegara a ouvir. O Lankford também já não estava lá. Só vi a Sobel, mas recusou-se a olhar para mim. Concentrei-me no Corliss.

- Sr. Corliss, pode dizer ao júri onde estava exactamente quando o Sr. Roulet lhe fez supostamente estas revelações relativas a ataques e mortes?

- Quando estávamos juntos.

- Juntos onde, Sr. Corliss?

- Bem, no autocarro não falámos porque íamos em lugares separados. Mas quando chegámos ao tribunal ficámos na mesma cela de detenção com cerca de outros seis tipos e sentámo-nos juntos e falámos.

- E esses outros seis homens viram-no falar com o Sr. Roulet, correcto?

- Só podiam. Estavam lá.

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- Portanto, e pelo que diz, se eu os trouxer aqui um a um e lhes perguntar se o viram falar com o Sr. Roulet, eles confirmariam isso?

- Bem, deviam. Mas...

- Mas o quê, Sr. Corliss?

- É só que eles provavelmente não iam falar, é tudo.

- Será porque ninguém gosta de bufos, Sr. Corliss? O Corliss encolheu os ombros. - Deve ser.

- Okay, vamos esclarecer bem isto. Não falou com o Sr. Roulet no autocarro, mas falou com ele quando estavam juntos na cela de detenção. Não falaram em mais nenhum lado?

- Sim, falámos quando nos trouxeram para a sala de audiências. Meteram-nos na área de contenção onde se fica à espera que chamem o nosso caso. Falámos um pouco aí também, até chamarem o caso dele. Ele entrou primeiro.

- E isso foi durante a sua primeira apresentação perante um juiz?

- Está correcto.

- Portanto, estavam os dois a falar na sala de audiências e foi então que o Sr. Roulet lhe revelou a sua participação nestes crimes que o senhor descreveu.

- Está correcto.

- Lembra-se especificamente do que ele lhe contou quando estavam na sala de audiências?

- Não, não me lembro bem. Especificamente não. Acho que deve ter sido quando ele me falou da rapariga que era dançarina.

- Okay, Sr. Corliss.

Mostrei a cassete vídeo, descrevi-a como sendo a gravação da primeira apresentação do Louis Roulet em tribunal e pedi para a apresentar como prova da defesa. O Minton tentou objectar, dizendo que era algo que não tinha sido apresentado durante a constituição do caso, mas a juíza rapidamente rejeitou o protesto sem eu precisar de argumentar.

- Estou a tentar poupar tempo ao tribunal - continuei. - Se for necessário, no espaço de uma hora posso chamar aqui a pessoa que fez a filmagem para a autenticar. Mas creio que a Meritíssima Juíza poderá autenticá-la pessoalmente com um único olhar.

- Vou permitir - disse a juíza. - Assim que virmos a gravação, a acusação pode voltar a objectar se quiser.

Voltaram a trazer o televisor e o leitor de vídeo que eu tinha usado anteriormente e colocaram-nos num ângulo que fosse visível para o Corliss, para o júri e para a juíza. O Minton teve de aproximar a cadeira da ponta da bancada do júri para poder ver bem. A gravação começou a dar. Durou vinte minutos e mostrou o Roulet desde que

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entrou na área de detenção da sala de audiências até sair depois de estipulada a caução. Quando a gravação terminou, deixei o televisor no lugar para o caso de voltar a ser necessário. Falei com o Corliss com um tom indignado.

- Sr. Corliss, viu algum momento durante a gravação em que estava a falar com o Sr. Roulet?

- Hum, não. Eu...

- E no entanto, testemunhou sob juramento e sob pena de perjúrio que ele lhe tinha confessado crimes quando estavam ambos na sala de audiências, não foi assim?

- Sei que disse isso, mas deve ter sido engano. Ele deve ter-me contado tudo isso quando estávamos na cela de detenção.

- Mentiu ao júri, não mentiu?

- Não foi com intenção. Era do que me lembrava, mas acho que estava enganado. Nessa manhã estava de ressaca. As coisas ficaram confusas.

- Assim parece. Deixe-me perguntar-lhe, as coisas estavam confusas quando testemunhou contra Frederic Bentley em 1989?

O Corliss franziu o sobrolho mas não respondeu.

- Lembra-se de Frederic Bentley, não lembra?

O Minton levantou-se. - Protesto. 1989? Que pretende ele com isto?

- Meritíssima, isto pretende comprovar a veracidade da testemunha. É isso que está em questão aqui - expliquei.

- Complete a apresentação, Sr. Haller - ordenou a juíza. - E depressa.

- Sim, Meritíssima.

Peguei na folha de papel e usei-a durante as perguntas finais ao Corliss.

- Em 1989, Frederic Bentley foi condenado, com a sua ajuda, por ter violado uma rapariga de dezasseis anos em Phoenix. Lembra-se disto?

- Quase nada - disse o Corliss. - Andei metido na droga desde então.

- O senhor testemunhou nesse julgamento que ele lhe tinha confessado o crime enquanto estavam ambos na cela de detenção numa esquadra da polícia. Está correcto?

- Como disse, mal me lembro desses tempos.

- A polícia colocou-o nessa cela porque já sabiam que o senhor estava disposto a denunciar, mesmo que tivesse de inventar tudo, não foi assim?

O meu tom de voz era cada vez mais alto a cada pergunta.

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- Não me lembro disso - respondeu o Corliss. - Mas não invento coisas.

- E oito anos depois, o homem contra o qual testemunhou foi absolvido quando um teste de ADN determinou que o sémen do atacante da rapariga pertencia a outro homem. Está correcto?

- Eu não... quer dizer... já foi há muitos anos.

- Lembra-se de ser interrogado por um repórter para o jornal Arizona Star na sequência da libertação de Frederic Bentley?

- Vagamente. Lembro-me de alguém me telefonar, mas não contei nada.

- Ele disse-lhe que os testes de ADN absolveram o Bentley e perguntou-lhe se tinha inventado a confissão do Bentley, não foi assim?

- Não sei. Mostrei o papel.

- Meritíssima, tenho aqui um artigo dos arquivos do jornal Arizona Star. Data de 9 de Fevereiro de 1997. Foi encontrado por um membro da minha equipa quando pesquisou no Google o nome D. J. Corliss no computador do escritório. Peço que seja apresentado como prova da defesa e aceite como documento histórico que confirma uma admissão tácita.

O meu pedido desencadeou um confronto brutal com o Minton acerca da autenticidade e justo fundamento. A juíza acabou por decidir a meu favor. Ela própria começava a mostrar alguma da indignação que eu estava a fingir e o Minton não teve grande hipótese.

O oficial de justiça entregou a folha ao Corliss e a juíza ordenou-lhe que a lesse.

- Não tenho jeito para ler, Meritíssima - disse ele.

- Tente, Sr. Corliss.

O Corliss começou a ler.

- Mais alto, por favor - ordenou a Fullbright. O Corliss pigarreou e leu numa voz entrecortada.

- "Um homem erroneamente condenado por violação foi libertado no sábado do Instituto Correccional do Arizona e jurou obter justiça para outros detidos falsamente acusados. Frederic Bentley, de trinta e quatro anos, cumpriu quase quatro anos de cadeia pelo ataque a uma rapariga de dezasseis anos. A vítima da agressão identificou Bentley, seu vizinho, e os exames de sangue identificaram positivamente como sendo dele o sémen colhido da vítima depois do ataque. O caso foi reforçado em julgamento pelo testemunho de um denunciante que disse que Bentley lhe tinha confessado o crime quando estavam juntos numa cela de detenção. Bentley declarou sempre a sua inocência durante o julgamento e mesmo depois de ser condenado. Assim que

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os testes de ADN foram aceites como prova válida pelos tribunais do estado, Bentley contratou advogados para contestar esse teste do sémen recolhido da vítima depois do ataque. Um juiz ordenou novo teste no início deste ano e a análise resultante provou que Bentley não era o atacante. Numa conferência de imprensa ontem em Arizona Biltmore, o recém-liberto Bentley protestou contra os denunciantes de prisão e pediu uma lei estatal que estipulasse linhas de orientação estritas para a polícia e procuradores que pretendessem usá-los. O denunciante que declarou em testemunho sob juramento que Bentley tinha confessado a violação foi identificado como D. J. Corliss, que tinha sido preso por acusações relativas a drogas. Quando informado da absolvição de Bentley, Corliss recusou-se a comentar. Durante a conferência de imprensa, Bentley acusou Corliss de ser um bem conhecido bufo da polícia e que já tinha sido usado em vários casos para poder aproximar-se dos suspeitos. Bentley declarou que era prática Corliss inventar confissões quando não conseguia arrancá-las aos suspeitos. O caso contra Bentley..."

- Okay, Sr. Corliss. Acho que é o suficiente - anunciei.

O Corliss pousou a folha e olhou para mim como uma criança que acabava de abrir a porta de um armário atafulhado de coisas prestes a cair-lhe em cima.

- Chegou a ser acusado de perjúrio no caso Bentley? - perguntei-lhe.

- Não, não fui acusado - disse numa voz firme, como se isso o absolvesse dos seus maus actos.

- Não terá sido porque a polícia também era cúmplice consigo nesta armadilha ao Sr. Bentley?

O Minton protestou: - Tenho a certeza de que o Sr. Corliss não fazia ideia do que constava da decisão de o acusar ou não de perjúrio.

A Fullbright aceitou o protesto, mas não importava. Estava já tão adiantado na destruição da testemunha que já não havia maneira de voltar atrás. Continuei o interrogatório.

- Algum procurador ou agente policial lhe pediu para se aproximar do Sr. Roulet e tentar que ele lhe fizesse confidências?

- Não, foi por mera sorte, acho.

- Não lhe pediram para obter uma confissão do Sr. Roulet?

- Não.

Olhei-o durante um longo momento com desprezo.

- Não tenho mais nada a perguntar.

Voltei para a mesa da defesa numa postura de raiva e pousei furiosamente a cassete de vídeo à minha frente antes de me sentar.

- Sr. Minton? - perguntou a juíza.

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- Não tenho mais nada a perguntar - respondeu ele numa voz frágil.

- Muito bem - apressou-se a Fullbright a dizer. - Vou dispensar o júri para um almoço antecipado. Quero todos aqui à uma hora em ponto.

Esboçou um sorriso tenso na direcção dos jurados e manteve-o até todos terem saído da sala. O sorriso fugiu-lhe do rosto assim que a porta foi fechada.

- Quero falar com ambos na minha sala privada - disse. - Imediatamente!

Não esperou pela resposta. Saiu tão depressa que a toga esvoaçou atrás dela como se fosse a túnica do próprio Anjo da Morte.

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A Juíza Fullbright já tinha acendido um cigarro quando eu e o Minton entrámos na sala privada dela. Deu uma passa demorada, apagou o cigarro num pisa-papéis de vidro e depois enfiou a beata num saquinho de plástico que tinha na bolsa. Fechou o saquinho, dobrou-o e guardou-o na bolsa. Não queria deixar nenhuma prova da sua transgressão que pudesse ser encontrada pelos empregados de limpeza do turno da noite ou outras pessoas. Exalou o fumo na direcção de uma conduta de ventilação no tecto e olhou o Minton nos olhos. A julgar pela expressão dela, fiquei feliz por não estar na pele dele.

- Sr. Minton, que porra fez ao meu julgamento?

- Meritíssima...

- Cale-se e sente-se. Ambos.

Sentámo-nos. A juíza recompôs-se e inclinou-se mais sobre a secretária. Continuava de olhos fixos no Minton.

- Quem fez a devida diligência com esta sua testemunha? perguntou num tom calmo. - Quem fez a investigação?

- Hum, deve ter sido... na verdade, fizemos só uma investigação sobre ele no Condado de Los Angeles. Não havia mais pistas. Verifiquei o nome dele no computador, mas não usei as iniciais dele.

- Quantas vezes ele já foi usado neste condado até hoje?

- Só houve mais uma vez que foi a tribunal. Mas ele tinha dado informações sobre outros três casos que consegui investigar. Mas não apareceu nada sobre o Arizona.

- Ninguém se lembrou de verificar se este sujeito tinha estado noutros lugares ou se usou variações do nome?

- Creio que não. A testemunha foi-me passada pela procuradora anterior do caso. Parti do princípio de que ela o tinha investigado.

- Tretas - disse eu.

A juíza olhou para mim. Podia recostar-me enquanto via o Minton ser arrasado, mas não ia deixá-lo arrastar a Maggie McPherson com ele.

- A procuradora anterior era a Maggie McPherson - expliquei. - Só esteve encarregada do caso durante três horas ao todo. É

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minha ex-mulher e assim que me viu na primeira audiência soube que tinha de se retirar do caso. E ficaste tu com o caso nesse mesmo dia, Minton. Como é que ela podia investigar as tuas testemunhas, sobretudo este tipo que só apareceu depois da primeira audiência? Ela limitou-se a entregar-te o caso, é só.

O Minton abriu a boca para falar, mas a juíza interrompeu-o.

- Não interessa quem deveria tê-lo feito. Não foi feito como devia ser e, seja como for, levar aquele homem a testemunhar foi, na minha opinião, uma grosseira má conduta da acusação.

- Meritíssima - protestou o Minton. - Eu...

- Guarde o discurso para o seu patrão. É ele quem vai precisar de convencer. Qual foi a última proposta que o estado fez ao Sr. Roulet?

O Minton parecia paralisado e incapaz de falar. Respondi por ele.

- Agressão simples, seis meses na cadeia do condado. A juíza franziu o sobrolho e olhou para mim.

- E não aceitou? Abanei a cabeça.

- O meu cliente não aceita uma condenação. Isso iria arruiná-lo. Vai tentar um veredicto.

- Pretende um julgamento anulado? Ri-me e abanei a cabeça.

- Não, não quero que o julgamento seja anulado. Isso só ia servir para dar tempo à acusação para arrumar a confusão, endireitar as coisas e voltar a atacar-nos.

- Então pretende o quê? - perguntou ela.

- O que pretendo? Um veredicto imposto seria bom. Sem hipóteses de pedidos de indemnização da parte do estado. Se não for isso, vamos até ao fim.

A juíza anuiu com a cabeça e uniu as mãos por cima da secretária.

- Um veredicto imposto seria ridículo, Meritíssima - disse o Minton finalmente. - E de qualquer modo, já estamos no fim do julgamento. Mais vale continuarmos até o veredicto ser pronunciado. O júri merece-o. Só porque o estado cometeu um erro, não há razão para subverter o processo inteiro.

- Não seja parvo, Sr. Minton - disse a juíza com desdém. - Não se trata daquilo que o júri merece. E, no que me diz respeito, um erro como aquele que o senhor cometeu é o suficiente. Não quero que esta coisa volte a ser despachada para mim pelo Segundo Tribunal, que é o mais certo. Vou, portanto, considerar a sua má conduta...

- Eu não conhecia o passado do Corliss! - disse o Minton numa voz alterada. - Juro por Deus que não sabia.

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A intensidade das suas palavras impôs um silêncio momentâneo na sala. Decidi lançar-me no vazio.

- Tal como não sabias da navalha, Ted?

A Fullbright olhou para o Minton, depois para mim e de novo para ele.

- Que navalha? - perguntou ela. O Minton manteve-se calado.

- Conta-lhe - insisti.

- Não sei do que ele está a falar - disse ele.

- Então conte-me você - ordenou-me a juíza.

- Meritíssima, se está à espera das provas da procuradoria, mais vale desistir logo. Testemunhas que desaparecem, histórias alteradas, pode-se perder um caso se ficamos sentados à espera.

- Muito bem, e quanto a essa navalha?

- Precisava de avançar com o caso. Por isso pedi ao meu investigador para entrar pela porta do cavalo para conseguir relatórios. Mas já havia alguém à espera dele e deram-lhe um relatório falso para que eu desconhecesse que havia iniciais na lâmina da navalha. E só vim a saber quando recebi o dossier oficial das provas.

A juíza cerrou os lábios com ira.

- Foi a polícia que fez isso e não o gabinete da procuradoria apressou-se o Minton a dizer.

- Há segundos disse que não sabia do que ele estava a falar - disse a Fullbright. - E agora, de repente, já sabe. Não me interessa quem o fez. Está a dizer-me que isto ocorreu de facto?

O Minton anuiu com relutância.

- Sim, Meritíssima. Mas juro-lhe que eu não...

- Sabe o que isto me diz? - interrompeu-o ela. - Diz-me que desde o início até ao fim o estado não jogou limpo neste caso. Não interessa quem fez o quê ou que o investigador do Sr. Haller possa ter agido de modo inapropriado. O estado deve estar acima disso. E, como foi hoje demonstrado na minha sala de audiências, o que houve foi má conduta da parte do estado.

- Meritíssima, não foi isso...

- Não quero ouvir mais, Sr. Minton. Acho que já ouvi o suficiente. Quero que ambos saiam agora. Dentro de meia hora vou reabrir a sessão e anunciar o que vamos fazer acerca disto. Ainda não sei bem como vai ser, mas, independentemente do que vá fazer, não vai gostar daquilo que tenho para dizer, Sr. Minton. E vou pedir que o seu patrão, o Sr. Smithson, esteja presente na sala de audiências ao seu lado para me ouvir.

Levantei-me. O Minton não se mexeu. Ainda parecia paralisado.

- Já disse que pode retirar-se! - gritou a juíza.

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Segui o Minton para dentro da sala de audiências. Estava vazia, à excepção do Meehan, que estava sentado à secretária. Peguei na pasta e dirigi-me para a saída.

- Ei, Haller, espera um segundo - disse o Minton, enquanto recolhia os dossiers na mesa da acusação.

Parei e olhei para trás.

- Que foi?

O Minton aproximou-se e apontou para a porta nas traseiras da sala.

- Vamos para ali.

- O meu cliente está lá fora à minha espera.

- Só um segundo.

Segui-o e entrei no vestíbulo onde tinha confrontado o Roulet dois dias antes. O Minton não disse nada. Estava a escolher as palavras para dizer. Decidi pressioná-lo ainda mais.

- Enquanto vais buscar o Smithson, acho que vou aos escritórios do Times para enviarem aqui um repórter pois dentro de meia hora vai haver fogo-de-artifício.

- Ouve - disse o Minton. - Temos de resolver isto.

- Temos?

- Não vás falar ainda com o Times, okay? Dá-me o teu número de telemóvel e falo contigo daqui a dez minutos.

- Para quê?

- Deixa-me ir lá abaixo ao gabinete ver o que posso fazer.

- Não confio em ti, Minton.

- Bem, se queres o melhor para o teu cliente em vez de um cabeçalho mediático, vais ter de confiar em mim durante dez minutos.

Fingi ponderar a proposta. Voltei a olhar para ele. Estávamos de rostos muito próximos.

- Sabes, Minton, podia ter tolerado todas as tuas tretas. A navalha e a arrogância e tudo o resto. Sou um profissional e todos os dias tenho de aturar essas tretas dos procuradores. Mas quando tentaste usar o Corliss para prejudicar a Maggie McPherson, decidi não ter nenhuma misericórdia contigo.

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- Ouve, não fiz nada de propositado para...

- Minton, olha à tua volta. Só estamos aqui nós. Nada de câmaras, nem gravações, nem testemunhas. Vais continuar a dizer-me que só tinhas ouvido falar do Corliss ontem na reunião do teu gabinete?

Respondeu apontando-me o dedo com fúria ao rosto.

- E vais continuar a dizer-me que só ouviste falar dele esta manhã? Olhámo-nos fixamente durante um longo momento.

- Posso ser inexperiente, mas não sou parvo - disse ele. - Toda a estratégia do teu caso consistiu em pressionar-me a usar o Corliss. Soubeste sempre o que podias fazer com ele. E deves ter sabido da existência dele através da tua ex-mulher.

- Se puderes prová-lo, então prova-o.

- Oh, não te preocupes, podia fazê-lo... se tivesse tempo. Mas só tenho meia hora.

Levantei lentamente o braço e verifiquei as horas.

- Vinte e seis minutos, aliás.

- Dá-me o teu número.

Dei-lho e ele saiu. Esperei no vestíbulo durante quinze segundos antes de sair também. O Roulet estava à espera junto da parede de vidro sobrejacente ao largo administrativo. A mãe e o Dobbs estavam sentados num banco do outro lado. Mais ao fundo do corredor vi a Detective Sobel à espera.

O Roulet reparou em mim e aproximou-se rapidamente. A mãe e o Dobbs seguiram-no segundos depois.

- O que se passa? - perguntou o Roulet. Esperei até estarem todos juntos antes de responder.

- Acho que está tudo prestes a rebentar.

- Como assim? - perguntou o Dobbs.

- A juíza está a considerar um veredicto imposto. Daqui a pouco já vamos saber.

- O que é um veredicto imposto? - perguntou a Mary Alice.

- É quando o juiz dispensa o júri e emite um veredicto de absolvição. Está furiosa porque o Minton agiu mal com o Corliss e noutras coisas também.

- Ela pode fazer isso? Absolvê-lo assim?

- A juíza é ela. Pode fazer o que quiser.

- Oh, meu Deus!

A Mary Alice levou a mão à boca e parecia quase a chorar.

- Eu disse que ela estava a considerar isso - alertei. - Não quer dizer que vá acontecer. Mas propôs-me um julgamento anulado e recusei a proposta.

- Recusou? - gritou o Dobbs. - Por que raio fez isso?

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- Porque é uma proposta insignificante. O estado podia voltar a julgar o Louis, e desta vez com o caso bem preparado porque já sabem a nossa estratégia. Esqueçam o julgamento anulado. Não nos cabe a nós educar a procuradoria. Ou nos propõem um acordo sem hipótese de represálias, ou então esperamos por um veredicto do júri hoje. Mesmo que seja desfavorável para nós, temos bases sólidas para um recurso.

- Não acha que cabe ao Louis tomar essa decisão? - perguntou o Dobbs. - Afinal, é ele que...

- Cala-te, Cecil - reprendeu-o a Mary Alice. - Cala-te e pára de desconfiar de tudo o que este homem tem feito pelo Louis. Ele tem razão. Não vamos passar outra vez por isto!

Foi como se ela tivesse esbofeteado o Dobbs. O homem afastou-se um pouco do grupo. Olhei para a Mary Alice e vi um rosto diferente. Era o rosto de uma mulher que montara um negócio a partir do zero e que conseguira torná-lo um sucesso. Também me apercebi de que o Dobbs andara provavelmente a sussurrar coisas negativas sobre mim durante esse tempo todo.

Não fiz caso e concentrei-me no assunto em discussão.

- Só há uma coisa que o gabinete da procuradoria odeia mais do que perder um veredicto - expliquei. - Passar pela vergonha de um juiz impor um veredicto, sobretudo depois de má conduta da acusação. O Minton foi lá baixo falar com o patrão, um tipo com muitas ligações políticas e sempre atento às mudanças do vento. Daqui a pouco já vamos saber.

O Roulet estava directamente à minha frente. Olhei por cima do ombro dele e vi a Sobel ainda parada no corredor. Estava a falar ao telemóvel.

- Ouçam, têm de ter calma e esperar. Se a procuradoria não falar comigo, então voltamos para a sala dentro de vinte minutos e já vamos ver o que a juíza pretende fazer. Mantenham-se por perto. E agora, se me dão licença, tenho de ir à casa de banho.

Afastei-me pelo corredor em direcção à Sobel. Mas o Roulet separou-se da mãe e do Dobbs e aproximou-se de mim. Agarrou-me pelo braço e obrigou-me a parar.

- Continuo sem saber como o Corliss soube aquelas merdas que estava a dizer.

- O que importa isso? Está a jogar a nosso favor. É isso que importa. O Roulet inclinou-se mais para mim.

- O tipo chamou-me assassino no banco das testemunhas. Como é que isso joga a nosso favor?

- Porque ninguém acreditou nele. E é por isso que a juíza está tão furiosa, porque usaram um mentiroso profissional para ir ao banco das

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testemunhas dizer as piores coisas sobre ti. Colocaram-no à frente do júri e depois o tipo veio a revelar-se um mentiroso, foi essa a má conduta. Não estás a ver? Eu tinha de subir a parada. Era a única maneira de pressionar o júri e a acusação. Estou a fazer exactamente aquilo que querias que fizesse, Louis. Absolver-te disto. Observei-o enquanto ele reflectia sobre isto.

- Portanto, deixa as coisas seguirem o seu rumo - continuei.
- Volta para junto da tua mãe e do Dobbs e deixa-me ir à casa de banho.

Abanou a cabeça. - Não, não vou deixar as coisas seguirem este rumo, Mick.

Encostou o dedo ao meu peito.

- Há mais alguma coisa a passar-se aqui, Mick, e não estou a gostar. Tens de te lembrar de uma coisa, tenho a tua arma. E tu tens a tua filha. Tens de...

Agarrei-lhe a mão e afastei-lha do meu peito.

- Nunca te atrevas a ameaçar a minha família! - disse-lhe, numa voz controlada mas enfurecida. - Se queres vingar-te de mim, óptimo, então vinga-te de mim. Mas se alguma vez voltares a ameaçar a minha filha, enterro-te tão fundo que nunca mais te encontram. Estás a perceber-me, Louis?

Assentiu lentamente com a cabeça e um sorriso assomou-lhe ao rosto.

- Certo, Mick. Foi só para que nos entendêssemos. Larguei-lhe a mão e afastei-me na direcção da ponta do corredor

onde ficavam os lavabos e onde a Sobel parecia estar à espera enquanto falava ao telemóvel. A ideia de ameaças à minha filha turvava-me os pensamentos. Mas recompus-me assim que me aproximei da Sobel. Já não estava a falar ao telemóvel.

- Detective Sobel.

- Sr. Haller - disse ela.

- Posso perguntar o que faz aqui? Veio prender-me?

- Estou aqui porque me convidou, lembra-se?

- Ha? Não, não me lembro. Ela semicerrou os olhos.

- Disse-me que eu devia assistir ao julgamento. Apercebi-me de repente de que estava a referir-se à desconfortável

conversa no meu escritório durante a busca à minha casa na segunda-feira à noite.

- Oh, certo, já me tinha esquecido. Bem, ainda bem que decidiu vir. Vi o seu parceiro aqui também. O que é que lhe aconteceu?

- Oh, anda por aí.

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Tentei decifrar estas palavras. Não tinha respondido se ia prender-me ou não. Apontei na direcção da sala de audiências.

- E então, que acha?

- Interessante. Quem me dera ser uma mosca na parede da sala privada da juíza.

- Bem, fique por cá. Ainda não acabou.

- Talvez fique.

O meu telemóvel começou a tocar. A chamada vinha do gabinete da procuradoria.

- Tenho de atender.

- Faça favor - disse a Sobel.

Avancei pelo corredor na direcção do lugar onde o Roulet estava a deambular de um lado para o outro.

- Sim?

- Mickey Haller, daqui fala Jack Smithson, do gabinete da procuradoria. Como tem corrido o seu dia?

- Já tive dias melhores.

- Então vai gostar de ouvir o que tenho para lhe propor.

- Sou todo ouvidos.

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A juíza só saiu da sua sala privada quinze minutos depois da meia hora que tinha prometido. Estávamos todos à espera: eu e o Roulet à mesa da defesa, a mãe dele e o Dobbs atrás de nós na primeira fila. O Minton já não estava sozinho na mesa da acusação. O Jack Smithson também estava lá. Creio que era a primeira vez no período de um ano que entrava numa sala de audiências.

O Minton parecia abatido e derrotado. Sentado assim ao lado do Smithson, quase parecia um arguido com o seu advogado. Parecia culpado de todas as acusações.

O Detective Booker não estava na sala. Perguntei-me se estaria a trabalhar em algo ou se simplesmente ninguém se dera ao trabalho de lhe ligar a dar as más notícias.

Verifiquei as horas no grande relógio de parede e observei a plateia. O ecrã para a apresentação em PowerPoint do Minton tinha desaparecido, um sinal do que estava para vir. Vi a Sobel sentada na fila de trás, mas não havia sinal do parceiro nem do Kurlen. Os restantes espectadores eram apenas a Mary Alice e o Dobbs, mas a sua presença não contava. A fila reservada para os meios de comunicação estava vazia. Não tinham sido alertados. E eu ia cumprir a minha parte do acordo com o Smithson.

O delegado Meehan anunciou o início da sessão. Quando a Juíza Fullbright ocupou o seu lugar com um floreado, pairou na sala uma fragrância a lilás. Devia ter fumado um ou dois cigarros na sala privada e carregara no perfume para disfarçar.

- Segundo me informou o meu oficial de justiça, temos uma moção na questão do estado contra Louis Ross Roulet.

O Minton levantou-se. - Sim, Meritíssima.

Não disse mais nada, como se fosse incapaz de falar.

- Bem, Sr. Minton, vai enviar-me a moção por telepatia?

- Não, Meritíssima.

O Minton olhou para o Smithson e este fez-lhe sinal para continuar.

- O estado retira todas as acusações contra Louis Ross Roulet.

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A juíza anuiu, como se já esperasse este resultado. Ouvi alguém respirar fundo atrás de mim e soube que era a Mary Alice. Ela já sabia o que ia acontecer, mas tinha contido as emoções até ouvir factualmente a decisão do tribunal.

- Com ou sem perda do direito a novo julgamento?

- Com perda.

- Tem a certeza disso, Sr. Minton? Isso significa que não haverá mais acções do estado nesta questão.

- Sim, Meritíssima, eu sei - disse o Minton, com uma nota de aborrecimento pelo facto de a juíza precisar de lhe explicar o funcionamento da lei.

A juíza anotou algo e voltou a olhar para o Minton.

- Creio que, para ficar registado, o estado precisa de oferecer alguma explicação para esta moção. Há um júri que foi seleccionado e ouvimos testemunhos durante quase três dias. Por que razão decidiu o estado fazer isto nesta fase, Sr. Minton?

O Smithson levantou-se. Era magro, alto e de pele pálida. Um típico espécimen da procuradoria. Ninguém queria um homem gordo para procurador distrital e era exactamente isso que ele esperava conseguir um dia. Vestia um casaco cinzento com aquilo que se tinha tornado a sua imagem de marca: um laço castanho com o correspondente lenço a espreitar da lapela. Corria o rumor entre os profissionais da defesa que um conselheiro político lhe tinha dito para começar a construir uma imagem mediática reconhecível, para que os eleitores pensassem que já o conheciam quando chegasse a altura de se candidatar. Só que, dada a presente situação, dispensava bem a presença dos meios de comunicação para veicular a sua imagem aos eleitores.

- Posso falar, Meritíssima? - disse o Smithson.

- Que fique registada a presença de John Smithson, Assistente do Procurador Distrital e Chefe da Divisão de Van Nuys. Seja bem-vindo, Jack. Pode continuar, por favor.

-Juíza Fullbright, consideramos que, no interesse da justiça, as

acusações contra o Sr. Roulet devem ser anuladas. Pronunciou mal o nome Roulet.

- É só essa a explicação que tem para dar, Jack? - perguntou a juíza.

O Smithson reflectiu antes de responder. Embora não houvesse repórteres presentes, o registo da audiência seria tornado público, bem como as suas palavras.

- Meritíssima, consideramos ter havido algumas irregularidades na investigação e na subsequente acusação. Este gabinete baseia-se na crença da santidade do nosso sistema judicial. Faço questão de

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salvaguardar isso na Divisão de Van Nuys e encaro isso com muita, muita seriedade. E, portanto, achamos melhor anular um caso do que incorrer na possibilidade de comprometer a justiça.

- Obrigada, Sr. Smithson. É bom ouvir isso. A juíza voltou a anotar algo e olhou para nós.

- A moção do estado é aceite - disse. - Todas as acusações contra Louis Roulet ficam anuladas com perda do direito a novo julgamento. Sr. Roulet, está absolvido das acusações e pode sair em liberdade.

- Obrigado, Meritíssima - agradeci pelo meu cliente.

- Ainda temos um júri que vai voltar à uma hora - disse a Fullbright. - Vou explicar-lhes que o caso foi encerrado. Se algum dos advogados quiser voltar nessa altura, tenho a certeza de que o júri gostaria de lhes fazer algumas perguntas. Mas não são obrigados a vir.

Anuí, mas não disse que voltaria. É claro que não voltaria. As doze pessoas que tinham sido tão importantes para mim durante a última semana acabavam de sair do meu radar. Eram agora tão insignificantes como os condutores a passar do outro lado da auto-estrada. Já não precisava deles.

A juíza saiu e o Smithson saiu imediatamente. Não tinha nada para dizer ao Minton nem a mim. A sua primeira prioridade era distanciar-se desta catástrofe da procuradoria. Reparei que o rosto do Minton estava branco como a cal. Talvez em breve visse o nome dele nas Páginas Amarelas. O gabinete da procuradoria dispensaria os seus serviços e iria juntar-se às fileiras dos profissionais da defesa. A sua primeira lição sobre delitos graves tinha sido muito custosa.

O Roulet estava a abraçar a mãe. O Dobbs tinha pousado a mão no ombro dele num gesto de congratulações, mas o advogado da família ainda não tinha recuperado da áspera repreensão que a Mary Alice lhe dera no corredor.

Quando os abraços terminaram, o Roulet virou-se para mim e apertou-me a mão sem hesitar.

- Não me tinha enganado acerca de ti. Sabia que ias ganhar.

- Quero a arma - disse-lhe simplesmente, sem qualquer alegria pela vitória acabada de alcançar.

- Claro que sim.

Virou-se para a mãe. Hesitei por segundos e virei-me para a mesa da defesa. Abri a pasta para guardar os dossiers.

- Michael?

Virei-me e vi o Dobbs de mão estendida. Apertei-lha.

- Bom trabalho - disse, como se eu precisasse de ouvir isso da parte dele. - Estamos todos muito gratos.

- Obrigado. Sei que no início não confiava muito em mim.

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Fui suficientemente cortês para não referir a repreensão da Mary Alice no corredor.

- Foi só porque ainda não o conhecia - disse o Dobbs. - Agora já o conheço. Agora sei quem recomendar aos meus clientes.

- Obrigado. Mas espero que o seu tipo de clientes nunca venha a precisar de mim.

Riu-se. - Também espero que não!

Depois foi a vez da Mary Alice. Estendeu a mão.

- Sr. Haller, obrigada pelo que fez pelo meu filho.

- Não tem de quê. Tome conta dele.

- É o que faço sempre.

Assenti com a cabeça. - E se esperassem todos no corredor? Preciso de concluir aqui umas coisas com o oficial de justiça e o Sr. Minton. Contornei a mesa e aproximei-me do oficial.

- Quanto vai demorar a conseguir uma cópia assinada da decisão da juíza?

- Vai ser entregue esta tarde. Podemos enviar-lhe uma cópia se não quiser voltar cá.

- Seria óptimo. Pode enviar-me também uma cópia por fax? Disse que sim e dei-lhe o número do fax da Lorna Taylor. Ainda

não sabia bem que utilidade dar a isso, mas a decisão do tribunal poderia de algum modo ajudar-me a conseguir um cliente ou dois. Quando estava prestes a pegar na pasta para sair, reparei que a Detective Sobel tinha saído da sala. Só lá ficara o Minton. Estava de pé a arrumar as suas coisas.

- Lamento não ter tido a oportunidade de ver essa tua apresentação em PowerPoint - disse-lhe.

Anuiu. - Sim, estava bastante boa. Acho que os teria convencido a todos.

- O que vais fazer agora?

- Não sei. Ver se consigo sobreviver a isto e manter o emprego. Pôs os dossiers debaixo do braço. Não tinha pasta. Só precisava de

descer até ao segundo piso. Virou-se e lançou-me um olhar duro.

- A única coisa que sei é que não quero trabalhar do outro lado. Não quero ser como tu, Haller. Acho que gosto de dormir bem à noite e não quero essa opção para mim.

Saiu da sala de audiências. Olhei para o oficial para verificar se tinha ouvido alguma coisa. O seu comportamento indicava que não.

Peguei na pasta. Olhei para o lugar vazio da juíza e para o selo do estado no painel da frente. Acenei com a cabeça e saí.

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O Roulet e a comitiva estavam à minha espera no corredor. Olhei para ambos os lados e vi a Sobel junto dos elevadores. Estava a falar ao telemóvel e tudo indicava que estava à espera de um elevador, mas parecia que nenhum dos botões de descida dos elevadores estava aceso.

- Michael, pode almoçar connosco? - perguntou o Dobbs ao ver-me. - Vamos celebrar!

Apercebi-me de que me chamara pelo primeiro nome. A vitória tornava todos amigáveis.

- Hum... Acho que não vou poder - disse, continuando a olhar para a Sobel.

- Porquê? Já não vai ter audiência de tarde.

Olhei finalmente para o Dobbs. Apetecia-me dizer que não podia almoçar com eles porque nunca mais queria vê-lo a ele, nem à Mary Alice, nem ao Louis Roulet.

- Acho que vou ficar por cá e falar com os jurados quando voltarem à uma hora.

- Porquê? - perguntou o Roulet.

- Porque sempre ajuda saber o que estavam a pensar deste caso. O Dobbs deu-me uma palmadinha no antebraço.

- Sempre a aprender, sempre a aperfeiçoar-se para o próximo caso. Não o censuro.

Parecia deleitado por não poder juntar-me a eles. E tinha bons motivos para isso. Provavelmente queria-me fora do caminho agora, para poder endireitar o relacionamento com a Mary Alice. Queria aquela franquia só para ele.

Ouvi o som abafado do elevador a descer e olhei para o corredor. A Sobel continuava parada à frente do elevador. Ia descer.

Mas, de repente, o Lankford, o Kurlen e o Booker saíram do elevador e juntaram-se a ela. Começaram a caminhar na nossa direcção.

- Então deixamo-lo aqui - disse o Dobbs, de costas para os detectives. - Temos reserva no Orso.

- Okay - disse eu, de olhos fixos no corredor.

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O Dobbs, a Mary Alice e o Roulet viraram-se para sair quando os quatro detectives se aproximaram.

- Louis Roulet - anunciou o Kurlen. - Está detido. Vire-se, por favor, e coloque as mãos atrás das costas.

- Não! - gritou a Mary Alice. - Não pode...

- O que é isto? - gritou o Dobbs.

O Kurlen não respondeu nem esperou que o Roulet se virasse. Obrigou-o a virar-se e o Roulet olhou-me nos olhos.

- Que se passa, Mick? - disse, numa voz calma. - Isto não devia estar a acontecer.

A Mary Alice aproximou-se do filho. Agarrou o Kurlen por trás, mas o Booker e o Lankford avançaram rapidamente para a afastar, tratando-a com delicadeza, mas obrigando-a a afastar-se.

- Afaste-se, minha senhora - ordenou o Booker. - Senão prendo-a também.

O Kurlen começou a enunciar os direitos do Roulet. A Mary Alice manteve-se afastada, mas não se calou.

- Como se atrevem? Não podem fazer isto!

Não parava de se mexer e era como se mãos invisíveis a impedissem de voltar a lançar-se sobre o Kurlen.

- Mãe - disse o Roulet num tom que veiculava mais peso e controlo do que o dos detectives.

O corpo da Mary Alice pareceu acalmar-se. Desistiu. Mas o Dobbs não.

- Estão a prendê-lo com que fundamento? - exigiu saber.

- Suspeita de homicídio - disse o Kurlen. - Pela morte de Martha Renteria.

- Isso é impossível! - gritou o Dobbs. - Tudo o que aquela testemunha Corliss disse ali dentro se comprovou que era mentira. Estão loucos? A juíza anulou o caso por causa das mentiras dele.

O Kurlen terminou de enunciar os direitos do Roulet e olhou para o Dobbs.

- Se era tudo mentira, como sabe que ele estava a falar da Martha Renteria?

O Dobbs apercebeu-se do seu erro e recuou alguns passos.

O Kurlen sorriu. - Pois, bem me parecia.

Agarrou o Roulet pelo cotovelo e obrigou-o a virar-se.

- Vamos - ordenou.

- Mick? - disse o Roulet.

- Detective Kurlen, posso falar um minuto com o meu cliente? perguntei.

O Kurlen olhou-me como se estivesse a avaliar algo em mim e assentiu com a cabeça.

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- Só um minuto. Diga-lhe para se portar bem e tudo correrá melhor para ele.

Empurrou o Roulet na minha direcção. Agarrei-o pelo braço e afastei-o um pouco para podermos falar em privado e em voz baixa. Aproximei-me mais dele e comecei a sussurrar.

- Chegou a hora, Louis. A hora do adeus. Consegui libertar-te. Agora estás por tua conta. Arranja outro advogado.

O choque era visível nos seus olhos. Depois o rosto turvou-se com uma raiva extremamente contida. Era pura raiva e apercebi-me de que era a mesma raiva que a Regina Campo e a Martha Renteria devem ter visto.

- Não vou precisar de outro advogado - disse. - Achas que conseguem instaurar um caso com base naquilo que obrigaste aquele bufo mentiroso a dizer lá dentro? Pensa bem.

- Não vão precisar do bufo, Louis. Acredita em mim, vão acabar por descobrir mais. Se calhar já sabem mais coisas.

- E tu, Mick? Não estás a esquecer-te de nada? Tenho...

- Eu sei. Mas já não importa. Não vão precisar da minha arma. Já têm tudo do que precisam. Mas, independentemente do que me acontecer, sei que fui eu que te meti dentro. No final, depois do julgamento e de todos os recursos, quando finalmente te enfiarem a agulha no braço, será por minha causa, Louis. Lembra-te disso.

Sorri-lhe, sem qualquer humor, e aproximei-me mais dele.

- Faço isto em nome do Raul Levin. Podes não ir dentro por causa dele, mas não te iludas, vais dentro.

Deixei-o absorver estas palavras e recuei. Fiz sinal ao Kurlen e este aproximou-se com o Booker para levarem o Roulet.

- Armaste-me uma armadilha - disse o Roulet, continuando a manter a calma. - Não és digno de ser advogado. Trabalhas para a polícia.

- Vamos - disse o Kurlen.

Começaram a levá-lo, mas ele afastou-se momentaneamente e olhou-me com uma expressão enfurecida.

- Isto ainda não acabou, Mick. Amanhã de manhã já estou cá fora. E que vais fazer então? Pensa nisso. Que vais fazer então? Não podes proteger toda a gente.

Agarraram-no com mais força e viraram-no com rudeza na direcção dos elevadores. Desta vez, deixou-se levar sem resistência. A mãe e o Dobbs seguiram atrás e o Roulet olhou-me por cima do ombro. Sorriu e senti um calafrio.

Não podes proteger toda a gente.

Um calafrio de medo atravessou-me o peito.

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O elevador abriu-se quando a comitiva lá chegou. O Lankford entrou no elevador e obrigaram o Roulet a entrar. O Dobbs e a Mary Alice estavam prestes a segui-los, mas o Lankford impediu-os. A porta do elevador fechou-se e o Dobbs carregou com fúria e impotência no botão do elevador ao lado.

Só esperava que fosse a última vez que via o Roulet, mas o medo continuou a apertar-me o peito, esvoaçando como uma traça encurralada dentro do candeeiro num alpendre. Afastei-me e deparei-me com a Sobel. Não me apercebera de que ela tinha ficado para trás.

- Já têm o suficiente, não têm? - perguntei. - Diga-me que não teriam avançado tão rapidamente se não tivessem o suficiente para o deter.

Olhou-me durante um longo momento antes de responder.

- Não podemos ser nós a decidir isso. Está nas mãos da procuradoria. Vai depender daquilo que conseguirem arrancar-lhe em interrogatório. Mas até agora ele teve um advogado bastante astuto. Provavelmente não vai dizer uma única palavra.

- Então por que não esperaram?

- Não dependia de mim.

Abanei a cabeça. Apetecia-me dizer-lhe que tinham avançado demasiado rápido. Não era esse o plano. Queria plantar a semente, é tudo. Queria que avançassem devagar, para tudo correr bem.

Senti a traça esvoaçar-me dentro do peito e olhei para o chão. Não conseguia afastar da cabeça a ideia de que todas as minhas maquinações tinham falhado, deixando-me a mim e à minha família expostos aos olhos duros de um assassino. Não pode proteger toda a gente.

Foi como se a Sobel me tivesse lido os pensamentos.

- Mas vamos tentar mantê-lo sob prisão. Temos aquilo que o bufo disse no tribunal e o bilhete. Estamos a falar com testemunhas e a analisar os resultados da medicina forense.

Olhei-a nos olhos.

- Que bilhete?

Assomou-lhe ao rosto uma expressão de suspeita.

- Pensava que já tinha adivinhado. Descobrimos isso assim que o bufo referiu a dançarina.

- Sim, a Martha Renteria. Isso percebi. Mas que bilhete é esse? Está a falar de quê?

Tinha-me aproximado demasiado dela e a Sobel recuou um passo. Não por causa do meu hálito. Mas por causa do meu desespero.

- Não sei se devia dizer-lhe, Haller. É advogado de defesa. É advogado dele.

- Agora não. Acabou.

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- Não importa. Ele...

- Ouça, acabam de o deter por minha causa. Posso vir a ser expulso da Ordem por causa disso. Posso até ir para a prisão por um homicídio que não cometi. De que bilhete está a falar?

Hesitou e esperou, mas acabou por falar.

- As últimas palavras do Raul Levin. Ele disse que tinha encontrado o bilhete para tirar o Jesus da cadeia.

- E isso significa o quê?

- Ainda não percebeu, pois não?

- Ouça, diga-me só. Por favor.

- Investigámos os últimos passos do Raul. Antes de ser assassinado, tinha andado a investigar as multas de estacionamento do Roulet. Tinha até cópias dessas multas no computador. Fizemos um inventário do que ele tinha no escritório e depois comparámos com o que havia no computador. Faltava uma multa. Uma das cópias tinha desaparecido. Não sabemos se o assassino a levou nesse dia ou se se esqueceu de a apagar. Portanto, tratámos nós de arranjar a cópia que faltava. Tinha sido emitida havia dois anos, na noite de 8 de Abril. Era uma multa por ter estacionado à frente de uma boca-de-incêndio no número 60700 de Blythe Street, em Panorama City.

De repente compreendi tudo, como se fosse o último grão de areia a cair numa ampulheta. O Raul Levin tinha realmente encontrado a salvação do Jesus Menendez.

- A Martha Renteria foi assassinada há dois anos, no dia 8 de Abril. E vivia em Blythe, em Panorama City.

- Sim, mas não sabíamos disso. Não nos tínhamos apercebido dessa ligação. Você disse-nos que o Levin estava a trabalhar em casos separados para si. O Jesus Menendez e o Louis Roulet eram investigações diferentes. E o Levin também os tinha arquivado como separados.

- Sim, ele mantinha os casos separados para evitar que eu confundisse os resultados das investigações.

- É uma das suas abordagens como advogado. Bem, isso impediu-nos de juntar as coisas até aquele bufo mencionar a dançarina. Foi esse o elo que acabou por ligar tudo.

- Portanto, quem matou o Raul levou a cópia que havia no computador?

- Pensamos que sim.

- Verificaram se havia alguma escuta nos telefones do Raul? Alguém sabia que ele tinha descoberto essa multa.

- Verificámos, sim. Mas não havia nenhuma escuta. Podiam ter sido removidas na altura do homicídio. Ou talvez fosse o telefone de outra pessoa que estivesse sob escuta.

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Referia-se ao meu telefone. O que talvez pudesse explicar o facto de o Roulet estar tão a par dos meus movimentos e estar convenientemente à minha espera em minha casa na noite em que cheguei da visita ao Jesus Menendez.

- Vou verificar os meus telefones - disse-lhe. - Isto significa que estou ilibado da morte do Raul?

- Não necessariamente - disse a Sobel. - Ainda temos de ver os resultados da balística. Estamos a contar que cheguem hoje.

Não soube o que responder. A Sobel parecia querer dizer algo mais ou perguntar-me alguma coisa.

- Que foi? - perguntei.

- Não sei. Há alguma coisa que me queira dizer?

- Não sei. Não há nada para dizer.

- De verdade? Na sala de audiências parecia que estava a tentar dizer-nos muita coisa.

Mantive-me calado por segundos, tentando ler nas entrelinhas.

- Que pretende de mim, Detective Sobel?

- Sabe bem o que quero. Quero o assassino do Raul Levin.

- Bem, também eu. Mas não podia entregar-lhes o Roulet pela morte do Levin mesmo que quisesse. Não sei como ele o fez. E isto fica entre nós.

- Mesmo assim, isso ainda o coloca a si na linha do alvo. Olhou na direcção dos elevadores, para tornar clara esta alusão. Se

os resultados da balística coincidissem, poderiam continuar a implicar-me na morte do Levin. E poderiam usar isso para me pressionar: ou contava como o Roulet matou o Levin ou então eu próprio ia dentro. Mudei de assunto.

- Acha que vão demorar muito a libertar o Jesus Menendez? Encolheu os ombros.

- É difícil dizer. Depende do caso que conseguirem instaurar contra o Roulet, se é que vai haver caso. Mas uma coisa sei. Não podem acusar o Roulet enquanto outro homem estiver preso pelo mesmo crime.

Aproximei-me da parede de vidro. Pousei a mão no corrimão ao comprido do vidro. Sentia um misto de exultação e pavor, bem como a traça, que continuava a esvoaçar-me dentro do peito.

- É só isso que me interessa - disse baixinho. - Tirá-lo da cadeia. Isso e justiça pela morte do Raul.

Aproximou-se de mim.

- Não sei o que você anda a fazer - disse-me. - Mas deixe o resto por nossa conta.

- Se fizer isso, o seu parceiro provavelmente enfia-me na prisão por um homicídio que não cometi.

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- Está a jogar um jogo perigoso - disse ela. - Deixe por nossa conta.

Olhei para ela e depois para o largo em baixo.

- Certo. Fica agora por vossa conta.

Tendo ouvido aquilo que queria ouvir, a Sobel começou a afastar-se.

- Boa sorte - disse-me. Voltei a olhar para ela.

- Para si também.

Saiu. Olhei para o largo em baixo. Vi o Dobbs a amparar a Mary Alice enquanto seguiam na direcção do parque de estacionamento. Duvidava que ainda fossem almoçar ao Orso.

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45


As notícias começaram a espalhar-se nessa mesma noite. Não os pormenores secretos, mas a história pública. A história de que tinha ganho o caso e que conseguira da procuradoria a moção de anulação do caso com perda do direito a novo julgamento, bem como o facto de o meu cliente ter sido logo detido por outro homicídio no corredor da sala de audiências onde eu acabava de conseguir a absolvição dele. Recebi chamadas de todos os profissionais da defesa que conhecia. Recebi chamada atrás de chamada até o telefone acabar por se calar. Todos os meus colegas me congratularam. Para eles, não havia nenhum revés nisto. O Roulet tinha sido a derradeira franquia. Cobrei honorários classe A por um julgamento e continuaria a cobrar honorários classe A no próximo. Era ganhar de dois tachos, algo com que a maioria dos profissionais da defesa só podia sonhar. E, claro, quando lhes disse que não ia representar a defesa do novo caso, todos me perguntaram se podia aconselhá-los ao Roulet.

Só me faltava receber a chamada que mais desejava ouvir, a da Maggie McPherson. Telefonou-me nessa mesma noite.

- Tenho estado à espera da tua chamada durante a noite toda disse-lhe.

Tinha verificado os meus telefones e não encontrei nenhum indício de escutas.

- Desculpa, estive em conferência - respondeu.

- Ouvi dizer que te chamaram para falar do Roulet.

- Sim, é por isso que estou a ligar. Vão soltá-lo.

- Como assim?! Vão soltá-lo?!

- Sim. Fecharam-no nove horas numa sala e não cedeu uma única vez. Deves tê-lo ensinado mesmo bem a não falar, porque se manteve firme como uma rocha e não conseguiram arrancar-lhe nada, e isso significa que não têm o suficiente para o incriminar.

- Estás errada. Há o suficiente. Têm a multa de estacionamento e deve haver testemunhas que podem confirmar que o viram no The Cobra Room. Até o Menendez pode confirmar que o viu lá.

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- Sabes tão bem como eu que o Menendez não conta. Identificaria qualquer pessoa só para sair da cadeia. E se houver outras testemunhas do The Cobra Room, então vai demorar algum tempo até conseguirem localizá-las. A multa de estacionamento comprova que esteve nessas vizinhanças, mas não que esteve no apartamento dela.

- E a navalha?

- Estão a investigar isso, mas também vai demorar algum tempo. Ouve, queremos fazer isto bem. Foi o Smithson que o pediu e, acredita, também ele o quer ver dentro. E assim, o fiasco que causaste hoje no tribunal seria um pouco mais tragável. Mas ainda não há indícios suficientes. Ainda não. Vão soltá-lo, analisar os resultados da medicina forense e procurar testemunhas. Se o Roulet for o culpado, então vamos apanhá-lo e o teu outro cliente será liberto. Não precisas de te preocupar. Mas temos de fazer bem as coisas.

Desferi o punho com impotência no ar.

- Precipitaram-se. Raios, não deviam ter avançado hoje!

- Pensaram que nove horas de interrogatório o fariam confessar.

- Foi uma estupidez.

- Ninguém é perfeito.

Fiquei irritado com a atitude dela, mas contive-me. Precisava dela para me manter a par da situação.

- Quando vão soltá-lo exactamente? - perguntei.

- Não sei. Acabo de saber. O Kurlen e o Booker vieram cá informar-nos e o Smithson remeteu-os para o Departamento da Polícia. Quando voltarem, presumo que vão soltá-lo.

- Ouve-me, Maggie. O Roulet sabe da Hayley.

Fez-se um longo e horrível momento de silêncio antes de responder.

- Que estás a dizer, Haller? Deixaste que a nossa filha ficasse...

- Não deixei que acontecesse nada. Ele entrou-me em casa às escondidas e viu a fotografia dela. Não quer dizer que saiba onde ela mora ou como se chama. Mas sabe dela e quer vingar-se de mim. Tens de ir já para casa. Quero-te junto da Hayley. Vai buscá-la e sai do apartamento. Quero-vos em segurança.

Algo me impediu de lhe contar tudo, que sentia que o Roulet tinha ameaçado especificamente a minha família. Não podes proteger toda a gente. Só usaria isso se ela se recusasse a fazer o que eu lhe dizia para proteger a Hayley.

- Tenho de desligar - disse ela. - E vamos para tua casa. Já esperava que ela dissesse isso.

- Não, não venham para cá.

- Porquê?

- Porque ele pode vir atrás de mim.

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- Que loucura. Que vais fazer?

- Ainda não sei bem. Vai buscar a Hayley e vai para um lugar seguro. Depois liga-me do telemóvel, mas não digas onde estás. É melhor que nem eu próprio saiba.

- Haller, mais vale chamares a polícia. Eles podem...

- E digo-lhes o quê?

- Não sei. Diz-lhes que foste ameaçado.

- Um advogado de defesa dizer à polícia que se sente ameaçado... sim, vinham logo, não há dúvida. Se calhar até enviavam a polícia de choque.

- Bem, tens de fazer alguma coisa.

- Pensei que já o tinha feito. Pensei que ele ia ficar na cadeia para o resto da vida. Mas vocês avançaram demasiado depressa e agora têm de o soltar.

- Já te disse, não havia o suficiente. Mesmo sabendo agora da possível ameaça à Hayley, continua a não ser suficiente.

- Então vai buscar a nossa filha e toma conta dela. Deixa o resto comigo.

- Vou, então.

Mas não desligou. Era como se estivesse a dar-me a oportunidade de dizer algo mais.

- Amo-te, Mags. Amo-vos às duas. Tem cuidado.

Desliguei antes que ela respondesse. Liguei imediatamente ao Fernando Valenzuela. Atendeu depois de cinco toques.

- Val, sou eu, o Mick.

- Merda! Se soubesse que eras tu não tinha atendido.

- Ouve, preciso da tua ajuda.

- Da minha ajuda? Queres a minha ajuda depois do que me disseste na outra noite? Depois de me teres acusado?

- Ouve, Val, é uma emergência. Aquilo que disse na outra noite foi uma estupidez e peço-te desculpa. Eu pago-te o televisor, faço o que quiseres, mas preciso da tua ajuda neste momento.

Aguardei. Respondeu após alguns segundos.

- O que queres que faça?

- O Roulet ainda tem a pulseira no tornozelo, certo?

- Sim. Já sei o que aconteceu no tribunal, mas ele ainda não me contactou. Um dos meus conhecimentos no tribunal disse que a polícia o prendeu outra vez, mas não sei o que se passa.

- Prenderam-no, mas estão prestes a soltá-lo. Provavelmente vai ligar-te para tirar a pulseira.

- Já vim para casa. Ele que me procure de manhã.

- É isso que quero. Que o faças esperar.

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- Isso não é nenhum favor.

- É, sim. Quero que abras o portátil e o vigies. Quando ele sair do Departamento da Polícia, quero saber para onde ele vai. Podes fazer isso por mim?

- Queres que faça isso já?

- Sim, já. Algum problema com isso?

- Mais ou menos.

Preparei-me para mais outra discussão. Mas ele surpreendeu-me.

- Já te tinha falado do alarme da bateria da pulseira, certo? - disse ele.

- Sim, lembro-me.

- Bem, recebi há uma hora o sinal de alarme de que a bateria está nos vinte por cento.

- E durante quanto tempo consegues vigiá-lo até a bateria acabar?

- Provavelmente entre seis a oito horas antes de o sinal enfraquecer. Depois disso haverá novos sinais de alarme a cada quinze minutos durante mais cinco horas.

Reflecti sobre estas informações. Só precisava de aguentar durante a noite e saber que a Maggie e a Hayley estavam em segurança.

- Acontece que quando a bateria enfraquecer, a pulseira começa a emitir um sinal - disse o Valenzuela. - E se ele se aproximar, consegues ouvir o sinal. Ou então ele vai fartar-se do barulho e carregar a bateria.

Ou talvez volte a fazer uma nova desaparição à Houdini, pensei.

- Okay. Disseste-me que havia outros alarmes que podias inserir no programa de localização - disse-lhe.

- Sim.

- Podes activar isso de maneira a receber um alarme se ele se aproximar de um alvo específico?

- Sim. Por exemplo, se ele fosse um pedófilo, pode-se activar um alarme se ele se aproximar de uma escola. Mas tem de ser um alvo fixo.

- Okay.

Dei-lhe o endereço do apartamento na Dickens, em Sherman Oaks, onde a Maggie e a minha filha viviam.

- Se ele estiver no raio de dez quarteirões desse lugar, liga-me. Seja a que horas for, liga-me. É esse o favor que te peço.

- Esta morada é de onde?

- É onde vive a minha filha.

Fez-se um longo silêncio antes de o Valenzuela responder.

- Com a Maggie? Achas que este tipo vai lá?

- Não sei. Só espero que ele não faça nenhuma estupidez enquanto tiver a pulseira no tornozelo.

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- Okay, Mick. Vou já tratar disso.

- Obrigado, Val. E liga-me para casa. Tenho o telemóvel desligado. Dei-lhe o número e mantive-me calado durante alguns segundos, a

pensar que mais poderia dizer para compensar pela minha traição há duas noites. Desliguei, por fim. Tinha de me concentrar na ameaça que era o Roulet.

Fui ao escritório. Verifiquei o Rolodex até encontrar o número que procurava e agarrei no telefone da secretária.

Marquei o número e esperei. Espreitei pela janela e reparei que estava a chover. Parecia estar a chover a cântaros e perguntei-me se a chuva poderia afectar o sistema de localização por satélite. Deixei de pensar nisso quando a chamada foi atendida pelo Teddy Vogel, o líder dos Road Saints.

- Estou a ouvir.

- Ted, fala o Mickey Haller.

- Doutor, como vai isso?

- Não vai muito bem esta noite.

- Então ainda bem que ligaste. Que posso fazer por ti? Espreitei a chuva pela janela antes de responder. Sabia que se continuasse, ficaria em dívida com pessoas com quem nunca quis associar-me.

Mas não havia outra escolha.

- Por acaso esta noite não tens ninguém perto da zona onde moro? Houve alguma hesitação antes de ele responder. O facto de o seu

advogado estar a telefonar-lhe a pedir ajuda tinha-lhe despertado a curiosidade. Estava a pedir-lhe o tipo de ajuda que só músculos e armas podiam oferecer.

- Tenho alguns homens a vigiar as coisas no clube. De que se trata? Referia-se ao clube de strip na Sepulveda, não muito longe de

Sherman Oaks. E eu já contava com isso.

- Ameaçaram a minha família, Ted. Preciso de gente musculada para protecção, talvez até agarrar um tipo, se for necessário.

- Armado e perigoso? Hesitei momentaneamente.

- Sim, armado e perigoso.

- Parece trabalho para nós. Onde os queres?

O Ted estava pronto para agir. Estava ciente do valor de me prestar um favor em vez de me pagar honorários. Dei-lhe a morada do apartamento na Dickens. Também lhe dei a descrição do Roulet e da roupa que ele vestia nesse dia no tribunal.

- Se ele aparecer nesse apartamento, quero que o detenham disse-lhe. - E preciso que os teus homens avancem já.

- É para já - disse o Vogel.

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- Obrigado, Ted.

- Não, eu é que agradeço. Ainda bem que podemos ajudar-te, pois já nos ajudaste muito.

Pois, certo, pensei. Desliguei, sabendo que acabava de pisar uma daquelas linhas que nunca gostaríamos de pisar e muito menos atravessar para o outro lado. Voltei a espreitar pela janela. A chuva tombava com força do telhado. Não tinha goteiras e a chuva caía num jorro translúcido, que esborratava as luzes ao longe. Só chuva este ano, pensei. Só chuva.

Saí do escritório e voltei para a frente da casa. Na mesa na sala de jantar estava a arma que o Earl Briggs me tinha dado. Olhei para a arma e pensei em todos os passos que tinha dado. O facto era que me tinha lançado às cegas e acabara por pôr mais pessoas em perigo.

O pânico começou a instalar-se. Agarrei no telefone da cozinha e liguei para o telemóvel da Maggie. Atendeu-me de imediato. Apercebi-me de que ela estava dentro do carro.

- Onde estás?

- Estou a chegar a casa. Vou só buscar umas coisas e saímos já.

- Óptimo.

- O que digo à Hayley, que o pai pôs a vida dela em perigo?

- Não é isso, Maggie. Trata-se dele. Do Roulet. Não consegui controlá-lo. Certa vez cheguei a casa à noite e encontrei-o aqui sentado. É agente imobiliário. Sabe como encontrar uma casa. E viu a foto dela em cima da secretária. O que podia eu...

- Podemos deixar isso para mais tarde? Tenho de ir a casa buscar a minha filha.

Não disse a nossa filha. Mas a minha filha.

- Certo. Liga-me quando já tiveres saído daí.

Desligou sem dizer mais nada. Continuei com a mão no telefone. Inclinei-me para a frente até tocar com a testa na parede. Tinham-se esgotado as soluções. Agora só me restava esperar que o Roulet desse o próximo passo.

O som do telefone a tocar sobressaltou-me e recuei. O telefone caiu ao chão e puxei-o pelo fio. Era o Valenzuela.

- Recebeste a minha mensagem? Acabei de ligar.

- Não, estava ao telefone. O que se passa?

- Ainda bem que liguei então. Ele começou a movimentar-se.

- Onde?

Gritei alto para o telefone. Estava a ficar desesperado.

- Dirige-se para sul na Van Nuys. Ligou-me a dizer que queria tirar a pulseira. Disse-lhe que já estava em casa e que podia ligar-me amanhã. Disse-lhe que era melhor carregar a bateria para não começar a emitir o sinal de alarme a meio da noite.

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- Bem pensado. Onde é que ele está agora?

- Continua na Van Nuys.

Tentei visualizar o Roulet a conduzir. Se seguia para sul na Van Nuys, isso significava que se dirigia directamente para Sherman Oaks e perto da zona onde a Maggie e a Hayley moravam. Mas também poderia vir directamente por Sherman Oaks, por cima da colina, em direcção à sua casa. Tinha de esperar para ter a certeza da direcção dele.

- O GPS tem estado a funcionar bem até agora? - perguntei.

- É em tempo real. Sabemos onde ele está a cada momento. Acabou de atravessar o cruzamento por baixo da auto-estrada 101. Pode estar a ir para casa, Mick.

- Eu sei, eu sei. Espera só até ele atravessar Ventura. A rua a seguir é a Dickens. Se ele virar aí, então não vai para casa.

Não sabia o que fazer. Comecei a andar de um lado para o outro, com o auscultador bem encostado ao ouvido. Mesmo que o Teddy Vogel pusesse os seus homens imediatamente em acção, iriam demorar alguns minutos a chegar. Não conseguiriam chegar a tempo de me ajudar.

- E a chuva? Pode afectar o GPS?

- Em princípio não.

- Ainda bem.

- Ele parou.

- Onde?

- Deve ser num semáforo. Acho que é em Moonpark Avenue. Era o quarteirão antes de Ventura e duas ruas antes da Dickens.

Ouvi um sinal no telefone.

- Que foi isso?

- O sinal de alarme da distância de dez quarteirões que me pediste para programar.

O sinal parou.

- Já o desliguei.

- Depois ligo-te.

Não esperei pela resposta dele. Desliguei e liguei para o telemóvel da Maggie. Atendeu de imediato.

- Onde estás?

- Disseste-me para não te dizer.

- Já saíste do apartamento?

- Ainda não. A Hayley foi buscar os lápis de cor e livros de colorir que quer levar.

- Raios, saiam já daí! Já!

- Estamos a ser o mais rápidas...

- Saiam já daí! Depois ligo-te. Atende-me logo.

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Desliguei e voltei a ligar ao Valenzuela.

- Onde é que ele está?

- Está na Ventura agora. Deve ter apanhado outro semáforo porque não está a mover-se.

- Tens a certeza que está na estrada e não estacionado nalgum lugar?

- Não, não tenho a certeza. Ele podia... esquece, está a mover-se. Merda, virou na Ventura.

- Em que direcção?

Comecei a andar de um lado para o outro, com o auscultador tão pressionado contra o ouvido ao ponto de doer.

- Para a direita... ha, para oeste. Vai para oeste.

Seguia agora paralelo à Dickens, a um quarteirão de distância, na direcção do apartamento da minha filha.

- Voltou a parar - disse o Valenzuela. - E não é nenhum cruzamento. Parece que está no meio da rua. Acho que estacionou.

Passei a mão livre pelo cabelo, como um homem desesperado.

- Grande porra, tenho de ir. Tenho o telemóvel desligado. Liga à Maggie e diz-lhe que ele segue na direcção dela. Diz-lhe só para se meter no carro e sair já dali!

Gritei o número do telemóvel da Maggie e larguei simplesmente o telefone. Saí da cozinha. Se saísse já, demoraria no mínimo vinte minutos a chegar à Dickens - mesmo fazendo as curvas em Mulholland a cem à hora no Lincoln -, mas não podia ficar parado a gritar ordens ao telefone enquanto a minha família corria perigo. Agarrei na arma que estava em cima da mesa e avancei para a porta. Estava a enfiar a arma no bolso quando abri a porta.

A Mary Alice Windsor estava parada lá fora, com o cabelo encharcado.

- Mary, mas que...

Ela ergueu a mão. Vi o brilho metálico da arma no preciso momento em que ela disparou.

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O ruído do disparo foi intenso e o clarão tão brilhante como o de uma câmara. Quando senti o impacto da bala, foi como se tivesse levado um coice de um cavalo. Caí para trás numa fracção de segundo. Caí com força no chão e embati na parede ao lado da lareira da sala de estar. Tentei mover as mãos para o buraco na barriga, mas tinha a mão direita presa no bolso do casaco. Apoiei-me na mão esquerda e tentei soerguer-me.

A Mary Alice entrou dentro de casa. Olhei para ela. Vi a chuva a cair lá fora através da porta aberta. Ergueu a arma e apontou-ma à testa. Vi o rosto da minha filha num clarão e soube que não podia desistir dela.

- Tentaste tirar-me o meu filho! - gritou a Mary Alice. - Pensavas que podia deixar-te fazer isso assim sem mais nem menos?

Foi então que compreendi. Tudo se cristalizou de repente. Soube então que ela tinha dito palavras similares ao Raul Levin antes de o matar. E soube que não tinha havido nenhuma violação numa casa vazia em Bei-Air. Era apenas uma mãe a fazer o que tinha de fazer. Lembrei-me das palavras do Roulet. Numa coisa tem razão. Sou filho de uma puta.

E soube também que o último gesto do Raul Levin não era para fazer o sinal do diabo mas para indicar a letra M ou W, dependendo de como se interpretasse esse gesto.

A Mary Alice avançou mais um passo.

- Vais para o inferno - disse ela.

Fez mira para disparar. Ergui a mão direita, ainda presa no bolso do casaco. Ela deve ter pensado que era um gesto de defesa porque não disparou logo. Estava a saborear aquele momento. Era visível. Até que disparei.

O corpo da Mary Alice cambaleou para trás com o impacto e aterrou de costas contra a porta. A arma caiu no chão e ouvi a mulher soltar um som agudo como um grunhido. Depois ouvi o som de passos rápidos nos degraus do alpendre.

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- Polícia! - gritou uma voz de mulher. - Larguem as armas! Olhei para a porta, mas não vi ninguém.

- Larguem as armas e saiam com as mãos bem à vista! Desta vez tinha sido um homem a gritar e reconheci a voz.

Tirei a arma do bolso e pousei-a no chão. Depois fi-la deslizar para longe de mim.

- Já larguei a arma! - gritei o mais alto que o ferimento na barriga me permitia. - Mas fui alvejado. Não consigo levantar-me. Ambos fomos alvejados.

Primeiro vi o cano de uma pistola a espreitar da porta. Depois uma mão e a gabardina escura do Detective Lankford. Entrou, logo seguido da parceira, a Detective Sobel. O Lankford afastou a arma com um pontapé para longe da Mary Alice. Mas continuou de arma apontada para mim.

- Está mais alguém em casa? - perguntou em voz alta.

- Não - respondi. - Ouça-me.

Tentei soerguer-me, mas a dor impediu-me e o Lankford gritou.

- Não se mexa! Fique aí!

- Ouça-me. A minha família...

A Sobel gritou ordens para um rádio portátil a pedir paramédicos e uma ambulância para duas pessoas com ferimentos de bala.

- Para uma pessoa - corrigiu o Lankford. - Ela está morta.

A Sobel enfiou o rádio no bolso da gabardina e aproximou-se de mim. Ajoelhou-se e afastou-me a mão do ferimento. Tirou-me a camisa para fora das calças para ver o ferimento. Depois pressionou-me a mão contra o buraco da bala.

- Pressione com toda a força. Está a sangrar muito. Pressione com muita força.

- Ouça-me - voltei a dizer. - A minha família está em perigo. Tem de...

- Espere.

Tirou um telemóvel do cinto e marcou um número. Atenderam de imediato.

- É a Sobel. É melhor voltarem a prendê-lo. A mãe dele acaba de alvejar o advogado. Mas ele despachou-a primeiro. - Escutou por segundos e perguntou: - Então onde é que ele está?

Voltou a escutar e depois desligou. Olhei-a fixamente enquanto ela guardava o telemóvel.

- Foram prendê-lo. A sua filha está em segurança.

- Estavam a vigiá-lo?

- Decidimos fazer uso do seu plano, Haller. Já tínhamos bastantes coisas para o incriminar, mas estávamos à espera de mais. Eu tinha-lhe

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dito que queríamos esclarecer a morte do Levin. Soltámo-lo e estávamos à espera que ele nos mostrasse como tinha conseguido fazer o truque, como conseguiu matar o Levin. Mas a mãe acabou por resolver esse mistério agora.

Compreendi. Mesmo com o sangue e a vida a escorrer-me do buraco na barriga, consegui compreender. A libertação do Roulet tinha sido uma jogada. Estavam à espera que ele viesse atrás de mim e acabasse por revelar o método que usara para desactivar a pulseira electrónica quando matou o Raul Levin. Mas não tinha sido ele a matá-lo. Tinha sido a mãe a fazê-lo por ele.

- A Maggie? - perguntei numa voz enfraquecida.

A Sobel abanou a cabeça. - Ela está bem. Teve de entrar no jogo porque não sabíamos se o Roulet tinha alguma escuta nos seus telefones. E ela não podia dizer-lhe que estava em segurança com a Hayley.

Fechei os olhos. Não sabia se devia estar simplesmente agradecido por elas estarem bem ou se deveria enfurecer-me por a Maggie ter usado a nossa filha como isco para o assassino.

Tentei soerguer-me.

- Quero ligar-lhe. Ela...

- Não se mexa. Mantenha-se quieto.

Voltei a pousar a cabeça no chão. Sentia frio e estava quase a tremer, mas também tinha a sensação de estar a suar. Comecei a perder as forças e era cada vez mais difícil respirar.

A Sobel pegou no rádio e perguntou quanto tempo iam demorar os paramédicos. Disseram-lhe que a ajuda ainda demoraria seis minutos.

- Tente aguentar - disse-me a Sobel. - Vai ficar bem. Depende dos estragos causados pela bala, mas vai ficar bem.

- Marav...

Pretendia dizer maravilha com todo o sarcasmo possível. Mas começava a perder as forças.

O Lankford aproximou-se e olhou para mim. Tinha na mão enluvada a arma com que a Mary Alice me alvejara. Reconheci os ornamentos em pérola. Era a arma do Mickey Cohen. A arma com que ela matara o Raul Levin.

Anuiu e entendi esse gesto como uma espécie de sinal. Talvez aos seus olhos eu tivesse sido uma espécie de engodo, por lhes ter facilitado o trabalho ao obrigar o assassino a sair do esconderijo. Talvez fosse uma espécie de tréguas e já não odiasse tanto os advogados depois disto.

Talvez não. Mas fiz-lhe um pequeno sinal com a cabeça e comecei a tossir. Senti algo na boca e soube que era sangue.

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- Não nos morra agora - ordenou o Lankford. - Se tudo isto tiver de acabar com um de nós a fazer respiração boca-a-boca a um advogado de defesa, não vamos conseguir viver com isso.

Sorriu e retribuí-lhe o sorriso. Ou pelo menos tentei. Depois a escuridão começou a turvar-me a visão. Segundos depois, senti-me a flutuar nessa escuridão.

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PARTE TRÊS

UM POSTAL DE CUBA
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Terça-feira, 4 de Outubro

Há cinco meses que não entrava numa sala de audiências. Durante esse tempo passei por três cirurgias, fui processado duas vezes em tribunal cível e fui investigado pelo Departamento da Polícia de Los Angeles e pela Ordem dos Advogados da Califórnia. As minhas contas bancárias ficaram a zero devido às despesas médicas, às despesas correntes, à pensão de alimentos da minha filha e, sim, também devido a despesas com os da minha própria espécie - os advogados.

Mas consegui sobreviver a tudo e hoje será o primeiro dia, desde que fui alvejado pela Mary Alice Windsor, em que poderei caminhar sem bengala ou sem o torpor dos analgésicos. Para mim, é o primeiro e verdadeiro passo de regresso à vida. A bengala é um sinal de fraqueza. Ninguém quer um advogado de defesa com aspecto de fraco. Tenho de endireitar as costas, estender os músculos que o cirurgião cortou para poder extrair a bala e caminhar sem a ajuda de ninguém, antes de poder voltar a entrar numa sala de audiências.

Não tenho estado nos tribunais, mas isso não significa que não seja alvo de processos judiciais. O Jesus Menendez e o Louis Roulet decidiram processar-me e estes casos irão provavelmente perseguir-me durante anos. São queixas separadas, mas os meus dois ex-clientes acusam-me de negligência profissional e violação da ética judicial. Apesar de todas as acusações específicas constantes do seu processo contra mim, o Roulet nunca conseguiu descobrir como contactei alegadamente com o Dwayne Jeffery Corliss no centro médico do condado e lhe contei essas informações secretas. E provavelmente nunca virá a descobrir. A Gloria Dayton há muito que desapareceu. Terminou o programa de reabilitação, pegou nos 25 000 dólares que lhe dei e mudou-se para o Havaí para recomeçar a vida. E o Corliss, que deve saber melhor do que ninguém o valor de manter a boca fechada, não divulgou mais nada a não ser aquilo que testemunhou em

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tribunal - mantendo que, durante a detenção, o Roulet lhe tinha contado do homicídio da dançarina. Retiraram as acusações de perjúrio contra ele porque avançar com isso minaria o caso contra o Roulet e seria um acto de autoflagelação da parte do gabinete da procuradoria. O meu advogado disse-me que o processo do Roulet contra mim é uma tentativa sem mérito e que acabará por ser encerrado. Provavelmente quando eu já não tiver mais dinheiro para pagar os honorários do meu advogado.

Mas o Menendez nunca desaparecerá da minha vida. Assombra-me à noite quando me sento a contemplar aquela vista de um milhão de dólares do alpendre de minha casa com uma hipoteca de um milhão de dólares. O governador concedeu-lhe o perdão da pena e foi libertado de San Quentin dois dias depois de o Roulet ser acusado da morte da Martha Renteria. Mas o Jesus limitara-se a trocar uma sentença perpétua por outra. Descobriu-se que tinha contraído sida na prisão e o governador não dispõe de um perdão para isso. Ninguém, aliás. O que quer que tenha acontecido ao Jesus, deve-se a mim. Sei-o bem. Vivo com isso todos os dias. O meu pai tinha razão. Não há cliente mais assustador do que um homem inocente. E não há cliente que nos deixe mais marcas.

O Menendez quer cuspir-me em cima e ficar com o meu dinheiro como castigo por aquilo que fiz e não fiz. E, no que a mim me diz respeito, tem esse direito. Mas por mais erros e lapsos éticos da minha parte, sei que no final distorci as coisas de modo a fazer a coisa certa. Troquei maldade por inocência. O Roulet está preso por minha causa. O Menendez está livre por minha causa. Apesar dos esforços dos novos advogados - contratou a parceria Dan Daly e Roger Mills para me substituir -, o Roulet nunca mais voltará a ver a liberdade. Segundo a Maggie McPherson me contou, a procuradoria constituiu um caso impenetrável contra ele pelo homicídio da Renteria. Também investigaram os passos do Raul Levin e ligaram o Roulet a outra morte: a perseguição, violação e esfaqueamento de uma mulher que servia ao balcão num clube de Hollywood. O perfil forense da navalha coincidiu com os ferimentos fatais infligidos a esta mulher. Para o Roulet, a ciência será sempre um icebergue que só conseguiu avistar demasiado tarde. O seu barco vai soçobrar e afundarse. A batalha que lhe resta é limitar-se a continuar vivo. Os seus advogados estão empenhados em acordos de culpa para o manterem afastado da injecção letal. E a polícia continua a investigar outros homicídios e violações que ele pudesse estar disposto a esclarecer em troca da vida. Seja qual for o resultado, vivo ou morto, acabará por desaparecer deste mundo e a minha salvação reside nisso. Foi isso que me curou melhor do que qualquer cirurgião.

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Eu e a Maggie McPherson também estamos a tentar curar as nossas feridas. Traz-me a minha filha a visitar-me todos os fins-de-semana e muitas vezes passamos o dia inteiro juntos. Sentamo-nos no alpendre a falar. Ambos sabemos que a nossa filha será sempre aquilo que nos salva. Já não tenho ressentimentos por ela me ter usado como isco para um assassino. E creio que a Maggie já não tem ressentimentos pelas escolhas que fiz.

A Ordem dos Advogados da Califórnia investigou todos os meus passos e enviou-me de férias para Cuba. É o que os profissionais da defesa dizem quando são suspensos por conduta imprópria de um advogado. CUBA. Fiquei suspenso por noventa dias. A investigação redundou em nada. Não conseguiram provar nenhuma violação ética específica em relação ao Corliss e decidiram censurar-me por ter pedido emprestada a arma ao meu cliente Earl Briggs. Tive sorte neste aspecto. A arma não era roubada e estava registada. Pertencia ao pai do Earl e, portanto, a minha infracção era menor.

Não me dei ao trabalho de contestar a reprimenda da associação nem pedi recurso da suspensão. Depois de levar com uma bala na barriga, noventa dias de suspensão não me parecia assim tão mau. Cumpri a suspensão durante a minha convalescença, quase sempre de roupão a ver o Canal Tribunal.

Nem a Ordem dos Advogados nem a polícia encontrou qualquer violação ética ou criminal da minha parte em relação à morte da Mary Alice Windsor. Ela entrou em minha casa com uma arma roubada. Disparou primeiro e a seguir disparei eu. O Lankford e a Sobel tinham-na visto a disparar esse primeiro tiro da minha porta. Em defesa própria, limpinho. Mas o que não ficou tão limpinho são os meus sentimentos pelo que fiz. Queria vingar o meu amigo Raul Levin, mas não era minha intenção que acabasse em sangue. Agora sou também um assassino. Ser sancionado pelo estado só atenua levemente os sentimentos daí decorrentes.

Pondo de lado todas as investigações e descobertas oficiais, penso agora que em toda essa questão do Menendez e do Roulet fui culpado de conduta imprópria. E o castigo por isso é mais severo que qualquer acusação que o estado ou a Ordem dos Advogados possam lançar contra mim. Não tem importância. Carregarei tudo isto aos ombros quando voltar ao trabalho. Ao meu trabalho. Sei qual é o meu lugar neste mundo e no primeiro dia de tribunal no próximo ano vou tirar o Lincoln da garagem para voltar à estrada à procura dos oprimidos. Não sei para onde vou nem que casos irei representar. Só sei que já estarei curado e pronto para voltar a enfrentar um mundo sem verdade.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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