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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NOTAS DO SUBSOLO / Fiódor Dostoiévski
NOTAS DO SUBSOLO / Fiódor Dostoiévski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não quero me tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, nesse caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais.
Faz muito tempo que vivo assim – uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. Já que não aceitava propinas, devia me recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas não vou apagá-lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propósito não vou apagar.) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tímida, como são de hábito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu não podia suportar um certo oficial. Ele não queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, nós estivemos em guerra durante um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos. Aliás, isso se passou ainda na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal da minha raiva? A questão toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, até no instante do ódio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que não só não era mau, como não era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum propósito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um brinquedinho ou um chazinho com açúcar, na certa eu me acalmaria. Ficaria até enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de vergonha, passaria alguns meses com insônia. Esse é o meu jeito de ser.

 

 

 

 

Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva. Apenas me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau. Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrários a isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os soltava. Eles me torturavam ao ponto de me dar vergonha; até convulsões eu tinha por causa deles – e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! Não lhes parece que agora estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir perdão? Estou certo de que parece... Aliás, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso assim lhes parece...

Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. Essa é a minha convicção aos quarenta anos. Tenho agora quarenta. E quarenta anos é toda uma vida, é a velhice mais avançada. Depois dos quarenta é indecoroso viver, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo vou viver até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar fôlego!

Acaso os senhores estão pensando que quero fazê-los rir? Enganaram-se também quanto a isso. Não sou absolutamente esse sujeito brincalhão que os senhores imaginam, ou que talvez os senhores imaginem. Aliás, se os senhores, irritados com toda esta tagarelice (e já senti que estão irritados), inventarem de me perguntar: quem é o senhor exatamente? – eu lhes responderei: sou um assessor colegial[2]. Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer (mas somente para isso) e quando, no ano passado, um dos meus parentes distantes deixou-me seis mil rublos no seu testamento, imediatamente me aposentei e mudei para este canto. Meu quarto é detestável, nojento e fica quase fora da cidade. Já vivia aqui antes, mas agora me instalei definitivamente. Minha criada é uma mulher da aldeia, velha, raivosa devido à ignorância e, além de tudo, tem um fedor insuportável. Dizem que o clima de Petersburgo está se tornando prejudicial para mim e que, com os recursos insignificantes de que disponho, é muito caro viver aqui. Sei de tudo isso melhor do que esses conselheiros e protetores experientes e sábios. Mas permaneço em Petersburgo; não vou sair de Petersburgo! Não vou sair porque... Ora! Não faz diferença nenhuma se vou sair ou não.

Mas sobre o que um homem de bem pode falar com mais satisfação?

Resposta: sobre si mesmo.

Então, vou falar sobre mim.

 


2


Agora desejo lhes contar, queiram ou não ouvir, por que não consegui me tornar nem ao menos um inseto. Afirmo-lhes solenemente que muitas vezes quis tornar-me um inseto. Mas nem isso mereci. Asseguro-lhes que ter uma consciência exagerada é uma doença, verdadeira e completa doença. Para o dia-a-dia do ser humano seria mais do que suficiente a consciência do homem comum, ou seja, a metade ou um quarto menor do que a porção que toca a cada pessoa evoluída do nosso infeliz século XIX que, ainda por cima, tem a infelicidade excepcional de morar em Petersburgo, a cidade mais abstrata e premeditada de todo o globo terrestre. (Há cidades premeditadas e não-premeditadas.) Seria inteiramente suficiente, por exemplo, uma consciência igual à dos assim chamados indivíduos e homens de ação “diretos”. Aposto que os senhores estão pensando que estou escrevendo tudo isso por gabolice, para fazer graça às custas dos homens de ação, e estão pensando ainda que, num gracejo de péssimo gosto, faço tinir meu sabre, como o meu oficial. Mas, senhores, quem pode se gabar de suas próprias doenças e ainda usá-las para fazer pilhéria?

Aliás, que estou dizendo? É isso que todos fazem: vangloriar-se de suas doenças, e faço-o, talvez, mais do que todo mundo. Não vamos discutir; minha objeção é absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só a consciência em alto grau é uma doença, como também o é qualquer consciência. Insisto nisso. Deixemos isso de lado por um minuto. Respondam-me o seguinte: por que motivo, nos exatos minutos em que eu era mais capaz de perceber todas as sutilezas “de tudo o que é belo e sublime”[3], como se costumava dizer aqui numa certa época, como que propositalmente eu não as percebia e cometia atos tão indecorosos, atos tais que... bem, resumindo, atos que talvez todos pratiquem, mas que, como que de propósito, aconteciam comigo exatamente no momento em que eu mais tinha consciência de que não se deve absolutamente praticá-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de todo esse “belo e sublime”, mais afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me nele completamente. Mas a característica mais importante era que parecia que não era por acaso que isso acontecia comigo, que era para ser assim mesmo. Como se isso fosse o meu estado mais normal e de maneira nenhuma uma doença ou avaria, o que, finalmente, tirou-me a vontade de lutar contra esse defeito. O resultado disso foi que por pouco não acreditei (ou talvez tenha mesmo acreditado) que esse seria meu estado normal. E, no início, bem no comecinho, quanto sofrimento passei nessa luta! Não acreditava que o mesmo acontecia com as outras pessoas e por isso escondi isso comigo, como um segredo, durante toda a vida. Sentia vergonha (é até possível que ainda sinta); chegava ao ponto de sentir uma satisfaçãozinha secreta, anormal, sordidazinha, ao voltar para o meu canto, numa daquelas noites repugnantes de Petersburgo, e insistentemente perceber que naquele dia novamente fizera uma canalhice, que novamente o que tinha sido feito não poderia ser desfeito. E lá dentro, secretamente, me remoer, me retalhar e me sugar, até que a amargura se transformava, finalmente, numa doçura infame e maldita e, finalmente, num deleite sério e decisivo! Sim, num deleite, num deleite! Insisto nisso. Foi por isso que toquei nesse assunto e ainda quero saber com certeza: outras pessoas costumam ter tais deleites? Explico-lhes: o deleite aqui derivava precisamente da consciência excessivamente clara de minha humilhação; de que você sente que já chegou ao derradeiro limite; que isso é detestável, mas também, que outra coisa é impossível; que você já não tem saída, já não pode mudar. Mesmo se ainda restasse tempo e fé para se transformar em algo diferente, provavelmente você mesmo não iria querer se transformar; e, se quisesse, ainda assim não faria nada, porque talvez não houvesse no que se transformar. Mas o principal e o fim derradeiro é que tudo isso transcorre de acordo com as leis normais e básicas da consciência amplificada e pela inércia derivada diretamente dessas leis e, conseqüentemente, nesse caso não só não é possível transformar-se, como simplesmente não se pode fazer nada. Por exemplo, resulta o seguinte em conseqüência da consciência amplificada: você está certo em ser um patife, como se fosse consolo para um patife se ele mesmo já percebe que é realmente um patife. Mas basta de... Ora, falei pelos cotovelos e o que expliquei? Como se explica o deleite nesse caso? Mas hei de explicar-me! Irei até o fim! Foi para isso que peguei a pena...

Sou, por exemplo, uma pessoa com um amor-próprio exagerado. Sou desconfiado e ressentido, como um corcunda ou um anão, embora, verdade seja dita, houvesse momentos em que, se me dessem uma bofetada, eu talvez ficasse alegre até com isso. Estou falando sério: provavelmente eu conseguiria, aí também, achar um certo tipo de prazer; sem dúvida, o prazer do desespero, mas é no desespero que acontecem os prazeres mais intensos, especialmente quando você já percebe muito fortemente que sua situação não tem saída. E quando ocorre a bofetada, aí então você fica esmagado pela percepção de que o trituraram até virar pasta. O mais importante é que, por mais que se reflita a respeito, de qualquer maneira resulta que eu sempre sou o principal culpado de tudo e, o que é mais lastimável, sou culpado sem culpa e de acordo com as leis da natureza, por assim dizer. Sou culpado, em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do que todos os que me rodeiam. (Sempre me considerei mais inteligente do que todos os que me rodeiam e, às vezes – podem crer? – até disso me envergonhava. Pelo menos, toda a vida eu andei olhando para o lado e nunca conseguia olhar diretamente nos olhos das pessoas.) Sou, finalmente, culpado porque, mesmo se houvesse em mim generosidade, meus tormentos seriam maiores por perceber toda a sua inutilidade. Pois eu provavelmente não conseguiria usar minha generosidade para nada: nem para perdoar, porque o ofensor pode ter-me golpeado de acordo com as leis da natureza, e as leis da natureza não podem ser perdoadas; nem para esquecer, porque, mesmo que seja pelas leis da natureza, é insultuoso do mesmo jeito. Finalmente, até se eu não quisesse ser de maneira alguma generoso e, ao contrário, desejasse me vingar do meu ofensor, eu não conseguiria me vingar de nada e de ninguém, porque provavelmente não me decidiria a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse. E por que não me decidiria? Sobre isso quero dizer duas palavras em separado.

 


3


Como é que procedem as pessoas que sabem se vingar e, de maneira geral, fazer prevalecer seus direitos? Quando elas são tomadas, digamos, pelo sentimento de vingança, não permanece mais nada no seu ser além desse sentimento. Um cavalheiro desse tipo lança-se diretamente ao seu objetivo, como um touro enfurecido, abaixando os chifres, e talvez só um muro possa detê-lo. (Aliás, diante de um muro, tais cavalheiros, ou seja, os indivíduos e homens de ação “diretos”, se dão por vencidos e nisso são sinceros. Para eles, o muro não significa desvio, como, por exemplo, para nós, seres pensantes e, conseqüentemente, inertes; não é um pretexto para voltar atrás, pretexto em que pessoas como nós geralmente não acreditam, mas que sempre ficam muito felizes quando o encontram. Não, é com toda sinceridade que eles se dão por vencidos. O muro possui para eles algo que acalma, que soluciona a situação do ponto de vista moral, e é definitivo; talvez até possua algo místico... Mas, sobre o muro, falarei mais tarde.) Bem, senhores, é esse homem direto que eu considero o homem normal, verdadeiro, do jeito que sua terna mãe – a natureza – gostaria de vê-lo quando carinhosamente o criou na Terra. Invejo tal homem até a minha última gota de fel. Ele é um imbecil, indiscutivelmente, mas pode ser que o homem normal deva ser mesmo imbecil, quem sabe? Pode ser que isso seja até muito bonito. E estou tanto mais convencido dessa, por assim dizer, suposição, que se, por exemplo, tomarmos a antítese do homem normal, ou seja, um homem de consciência amplificada, que naturalmente não surgiu no seio da natureza, mas numa proveta (isso já é quase misticismo, senhores, mas suspeito disso também), esse homem de proveta às vezes vai dobrar-se tanto diante de sua antítese que, com toda a sua consciência amplificada, honestamente vai se considerar um camundongo, e não um homem. Um camundongo de consciência intensificada, que seja, mas de qualquer forma um camundongo; porém, temos aí também um homem e, conseqüentemente, tudo o mais. E o principal é que é ele mesmo que se considera um camundongo, ninguém lhe pede que o faça; esse é um ponto importante. Vamos dar uma olhada nesse camundongo em ação. Suponhamos, por exemplo, que ele se sinta também ofendido (e quase sempre se sente) e que também deseje se vingar. Vai acumular em si mais ódio do que l’homme de la nature et de la verité[4]. A vontadezinha repugnante, vil, de causar ao ofensor um mal equivalente à ofensa recebida, talvez fique corroendo dentro dele mais do que no homme de la nature et de la verité, porque este, com sua estupidez inata, acha que sua vingança é simplesmente justiça. Já o camundongo, devido à consciência intensificada, não reconhece justiça nesse caso. E chega, finalmente, à coisa em si, ao próprio ato de vingança. O infeliz camundongo, além da sujeira inicial, já conseguiu mergulhar em um monte de outras sujeiras na forma de perguntas e dúvidas; a uma única questão acrescentou tantas outras não respondidas que, independentemente de sua vontade, vai juntando-se ao seu redor uma gosma repugnante e fatal, uma lama fétida, formada por suas dúvidas, preocupações e, finalmente, de cusparadas que ele recebe dos homens de ação, postados solenemente em torno dele na qualidade de juízes e ditadores, e que, com suas possantes goelas, riem dele às gargalhadas. É evidente que só lhe resta fazer um gesto de pouco caso com a patinha e desistir e, com um sorriso falso de desprezo, que não convence nem a ele próprio, esgueirar-se vergonhosamente para o seu buraquinho. Lá no seu subsolo abjeto, fétido, nosso camundongo, humilhado, abatido e ridicularizado, rapidamente mergulha num rancor frio, peçonhento e, principalmente, perpétuo. No decorrer de quarenta anos ele vai ficar lembrando a ofensa sofrida, até nos últimos e mais vergonhosos detalhes, cada vez acrescentando por conta própria pormenores ainda mais vergonhosos, caçoando perversamente de si mesmo e provocando-se com a própria fantasia. Ele mesmo se envergonhará da sua fantasia, mas, mesmo assim, de tudo se lembrará, passará tudo em revista, inventará um monte de histórias fantásticas sobre si mesmo, com a desculpa de que elas poderiam também ter acontecido, e não perdoará coisa alguma. Talvez dê início à sua vingança, mas esporadicamente, com bobaginhas, escondido atrás do fogão, incógnito, sem acreditar nem no seu direito de vingar-se, nem no êxito de sua vingança, e sabendo de antemão que, em todas as suas tentativas de vingar-se, ele mesmo vai sofrer cem vezes mais do que aquele que pretende atingir, e este provavelmente nem se coçará. No seu leito de morte irá lembrar-se de tudo novamente, com os juros que se acumularam todo esse tempo e... Mas é precisamente nesse frio e asqueroso estado de semidesespero e semicrença, nesse consciente e angustiado sepultamento em vida de si mesmo no subsolo durante quarenta anos, nessa falta de saída de sua situação, que ele mesmo se empenhara em criar e que é, contudo, duvidosa, em todo esse veneno de desejos não satisfeitos que ele engoliu, em toda essa febre de vacilações, de resoluções tomadas para toda a vida e dos arrependimentos que sobrevêm novamente um minuto depois – é aí que se encerra a essência daquele estranho deleite de que eu falava anteriormente. É tão sutil esse deleite, é tão impossível às vezes de se perceber, que pessoas um pouquinho limitadas, ou até mesmo pessoas simplesmente com nervos fortes, não entenderão nada dele. “É possível que também não vão entender”, os senhores acrescentarão por sua conta, abrindo um sorriso, “aqueles que nunca levaram uma bofetada” e, desse modo, delicadamente insinuarão que na minha vida eu talvez tenha tido essa experiência e é por isso que falo como conhecedor. Aposto que pensam assim. Mas tranqüilizem-se, senhores, não recebi bofetadas, embora me seja totalmente indiferente o que os senhores pensem sobre isso. Eu mesmo, possivelmente, ainda me arrependo de ter distribuído poucas bofetadas na minha vida. Mas basta, não vou dizer mais nem uma palavra sobre esse assunto que tanto interessa aos senhores!

Vou prosseguir, falando calmamente das pessoas com nervos fortes que não compreendem a tal sutileza dos deleites. Esses senhores, em alguns casos, por exemplo, embora berrem como touros a plenos pulmões, embora, admitamos, isso até lhes traga imensa honra, o fato é que, como eu já disse, diante da impossibilidade eles imediatamente ficam resignados. A impossibilidade é o mesmo que um muro de pedra? Mas que tipo de muro de pedra? Bem, evidentemente, são as leis da natureza, as conclusões das ciências naturais, a matemática. Se alguém lhe prova, por exemplo, que você descende do macaco, não adianta fazer caretas, aceite-o. Se lhe provam que, na realidade, uma gotinha de sua própria gordura deve ser-lhe mais cara do que cem mil semelhantes seus, e que nesse resultado serão resolvidos finalmente todos os assim chamados deveres e virtudes, bem como os demais delírios e preconceitos, aceite também, não há o que se possa fazer, pois dois mais dois são quatro – isso é matemática. Tente objetar!

“Perdão, senhores”, hão de lhes gritar, “é impossível rebelar-se: trata-se de dois e dois são quatro! A natureza não lhes pede licença, não se importa com seus desejos e nem se suas leis lhes agradam ou não. Os senhores devem aceitá-la tal como é e, conseqüentemente, todos os seus resultados também. Um muro, portanto, é mesmo um muro... etc. etc.” Ó meu Deus! Que tenho a ver com as leis da natureza e com a aritmética, se essas leis e dois e dois são quatro, por alguma razão, não me agradam? Evidentemente, não quebrarei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque encontrei um muro e não tive forças para rompê-lo.

Como se tal muro de pedra fosse de fato um alívio e contivesse uma palavra que fosse para o mundo, unicamente por ele ser dois mais dois são quatro. Ó, cúmulo do absurdo! Muito melhor é compreender tudo, perceber tudo, todas as impossibilidades e muros de pedra; não se resignar diante de nenhuma dessas impossibilidades e muros de pedra, se isso lhe repugna; através das mais inevitáveis combinações lógicas, chegar às conclusões mais abomináveis sobre o eterno tema de que até desse muro de pedra você de certa forma é o próprio culpado, embora esteja perfeitamente claro e evidente que você não é culpado, e, em conseqüência disso, rangendo os dentes impotente e calado, ficar paralisado numa inércia voluptuosa, vendo em seus devaneios que na realidade você nem tem alguém de quem possa ter raiva; que não se encontra o objeto e que talvez nunca seja encontrado, que aqui existe uma fraude, um embuste, uma trapaça, existe simplesmente algo intragável – não se sabe o que, não se sabe quem, mas que, apesar de todas essas incógnitas e embustes, é doloroso para você, e quanto mais desconhecido, mais doloroso é!

 


4


– Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor sentirá prazer até numa dor de dente! – exclamarão rindo os senhores.

– E por que não? Existe mesmo prazer numa dor de dentes – responderei. – Um mês inteiro me doeram os dentes; sei o que é isso. Nessa situação, é lógico, a pessoa não se enfurece em silêncio, e sim põe-se a gemer. Mas tais gemidos não são sinceros, são gemidos sarcásticos, e no sarcasmo é que está a coisa toda. É nesses gemidos que se expressa o prazer do sofredor; se ele não sentisse prazer com isso, não gemeria. Este é um bom exemplo, senhores, vou desenvolvê-lo. Nesses gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de sua dor, humilhante para a nossa consciência; toda a legitimidade das leis da natureza, de que os senhores, certamente, podem fazer pouco caso, mas em conseqüência da qual os senhores sofrem, ao passo que ela não. Eles expressam a percepção de que é impossível encontrar para os senhores um inimigo, mas a dor está lá; a percepção de que os senhores, apesar de todos os Wagenheim[5], são inteiramente escravos de seus dentes; de que, se alguém quiser, seus dentes deixarão de doer; do contrário, doerão por mais três meses. E, finalmente, se os senhores ainda não aceitaram e continuam a protestar, só lhes resta, para seu consolo, surrar-se ou bater mais forte com os punhos na sua parede, e rigorosamente mais nada. Pois bem, é dessas ofensas sangrentas, dessas caçoadas anônimas, que se origina, por fim, um deleite que às vezes chega ao mais alto grau de voluptuosidade. Eu lhes peço, senhores, que, quando tiverem oportunidade, ouçam com atenção os gemidos do homem culto do século XIX sofrendo de dor de dente, lá pelo segundo ou terceiro dia do seu sofrimento, quando ele já começa a gemer de maneira diferente de como gemia no primeiro dia, isto é, não geme apenas porque lhe doem os dentes; ele não geme como um camponês grosseiro qualquer, e sim como um homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilização européia, um homem “que renegou seu solo e as raízes populares”[6], como agora se diz. Seus gemidos tornam-se detestáveis, grosseiramente raivosos, e continuam por vários dias e noites. Mas ele mesmo sabe que os gemidos não terão utilidade alguma; sabe melhor do que ninguém que é em vão que ele tortura e irrita a si e aos demais; sabe que até a platéia que ele quer impressionar e toda a sua família já sentem repulsa ao ouvi-lo gemer, não acreditam nem um pouquinho na sua sinceridade e estão convencidas de que ele poderia gemer de outra maneira, mais simples, sem tremer a voz e sem bancar o original, de que ele está fazendo palhaçada de raiva, por pura maldade. Pois bem, a volúpia está precisamente em todas essas tomadas de consciência e nessas indignidades. “Estou incomodando todos vocês, arrebentando seus corações, não deixo ninguém dormir. Pois então não durmam, sintam também minuto a minuto que meus dentes estão doendo. Já não sou mais para vocês o herói que antes quis parecer, sou simplesmente um homenzinho desprezível, um chenapan[7]. Que seja! Estou muito contente porque vocês me entenderam. Vocês acham terrível ouvir meus infames gemidos? Pois que seja terrível; e agora, para vocês, vou emitir uns garganteios ainda mais terríveis...” Ainda não entenderam, senhores? Não; pelo visto, é necessário desenvolver-se e adquirir consciência de maneira mais profunda e completa para compreender todos os meandros dessa volúpia. Estão rindo? Fico feliz, senhores. Naturalmente, minhas piadas são de mau gosto, irregulares, incompreensíveis e denotam minha falta de autoconfiança. Mas isso é porque eu mesmo não me respeito. Por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio?

 


5


Bom, mas será possível, será possível que um homem possa ter um mínimo de respeito próprio depois de ter tentado buscar prazer até mesmo no sentimento da própria humilhação? Não falo isso agora por causa de algum arrependimento meloso. Mesmo porque, em geral, eu não suportava dizer: “Perdoe-me, paizinho, não vou mais fazer isso” – não porque não fosse capaz de dizer isso, mas, pelo contrário, talvez mesmo porque eu fosse capaz até demais de fazê-lo. Como se fosse de propósito, às vezes me metia em certas situações nas quais nem de longe eu era culpado. Não havia baixeza maior. Nessas ocasiões eu me comovia, me arrependia, derramava lágrimas e, é claro, enganava a mim mesmo, apesar de não estar fingindo nem um pouco. Era o coração que de certa maneira agia aí de modo vil... Nesse caso, não se poderia culpar nem mesmo as leis da natureza, embora elas tenham toda a vida me ofendido, mais do que tudo. Dá asco recordar tudo isso, como era asqueroso também naquela época. Pois após não mais que um minuto eu costumava perceber com ódio que tudo aquilo era mentira, uma mentira repulsiva e pomposa, todos aqueles arrependimentos, enternecimentos e promessas de regeneração. Os senhores perguntarão: para que eu me mutilava e me torturava dessa maneira? Resposta: porque era muito chato ficar sentado de braços cruzados, e então entregava-me a essas extravagâncias. É a pura verdade. Observem-se melhor, senhores, e verão que é assim. Eu fantasiava peripécias e criava uma vida para mim, ao menos para viver, de alguma forma. Quantas vezes eu ficava ofendido, sem nenhum motivo real, simplesmente porque queria? E sabia que havia me sentido insultado sem razão, que havia bancado o ofendido, mas levava a coisa a tal ponto que no final ficava realmente ofendido. Toda a vida, algo me atraía para fazer essas esquisitices, a tal ponto que, afinal, perdi o domínio sobre mim mesmo. Noutra ocasião, quis a qualquer custo apaixonar-me, duas vezes até. E sofri, senhores, asseguro-lhes. No fundo, a pessoa não acredita que está sofrendo, quer fazer uma pilhéria sobre o assunto, mas, apesar disso, eu sofria, e era um sofrimento verdadeiro, real; sentia ciúmes, ficava fora de mim... E tudo isso por tédio, senhores, tudo por tédio; fui esmagado pela inércia. Pois o produto direto, imediato e legítimo da consciência é a inércia, isto é, o ficar-sentado-de-braços-cruzados conscientemente. Já mencionei isso antes. Repito, repito insistentemente: todos os indivíduos e homens de ação diretos são ativos precisamente porque são obtusos e limitados. Como isso se explica? Da seguinte maneira: em conseqüência de sua tacanhez, tomam os motivos mais próximos e secundários como se fossem os motivos originais e, assim, eles se convencem mais rápida e facilmente do que as outras pessoas de que encontraram um fundamento irrefutável para a sua causa, e então ficam tranqüilos. Isso é o mais importante. Pois, para se começar a agir, é preciso que antes se esteja completamente calmo e totalmente livre de dúvidas. E como eu, por exemplo, me tranqüilizaria? Onde estão os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los? Faço uma ginástica mental e, em conseqüência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais original, e vai por aí afora, até o infinito. Essa é precisamente a essência de toda consciência e reflexão. Portanto, novamente já estamos falando das leis da natureza. E, finalmente, qual é o resultado? O mesmo, ora. Lembrem-se: há pouco falei sobre a vingança (os senhores, na certa, não se aprofundaram no assunto). O que eu disse foi: o homem se vinga porque acha que está fazendo justiça. Isso significa que ele encontrou o motivo original, o fundamento, ou seja: a justiça. Disso decorre que ele está tranqüilo de todos os lados e conseqüentemente, efetua sua vingança tranqüila e eficiente, pois está convencido de que executa uma ação honesta e justa. De minha parte, não vejo nisso nenhuma justiça, não encontro nenhuma virtude e, por conseguinte, se resolvo me vingar, é unicamente por maldade. A raiva poderia, é claro, suplantar tudo, todas as minhas dúvidas e poderia com pleno êxito servir de motivo original, precisamente porque ela não é o motivo. Mas que fazer se nem mesmo tenho raiva? (Eu comecei, há pouco, falando exatamente disso.) A minha maldade, novamente em conseqüência dessas malditas leis da consciência, está sujeita à decomposição química. Quando você olha, o objeto já volatilizou, os motivos evaporaram, é impossível encontrar o culpado, a ofensa deixa de ser ofensa e passa a ser uma fatalidade, algo como uma dor de dente, em que não há culpados. Então, o que resta é aquela mesma saída – esmurrar com mais dor ainda o muro. E você desiste de sua vingança porque não encontrou um motivo original. Mas tente abraçar com paixão e cegamente o seu sentimento, sem reflexão, sem buscar o motivo original, afastando a consciência pelo menos temporariamente; sinta ódio ou amor, nem que seja para não ficar sentado de braços cruzados. No mais tardar, depois de amanhã você começará a sentir desprezo por si mesmo, por ter-se enganado conscientemente. O resultado disso: uma bolha de sabão e a inércia. Ah, senhores, pode ser que eu me considere um homem inteligente simplesmente porque em toda a minha vida nada consegui começar nem terminar. Está bem, está bem. Eu sou um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho, como todos nós. Mas que se há de fazer se o único e evidente destino de todo homem inteligente é tagarelar, ou seja, dedicar-se propositalmente a conversas para boi dormir?

 


6


Ah, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capacidade de possuir ao menos a preguiça; pelo menos eu teria uma característica quase positiva, que eu mesmo teria a certeza de possuir. Pergunta: quem é ele? Resposta: um preguiçoso. Seria mais do que agradável ouvir tal coisa a meu respeito. Mostraria que fui definido positivamente, que há o que dizer sobre mim. “Um preguiçoso!” – isto é de fato um título, uma função, é uma carreira, senhores. Não brinquem com isso, é a pura verdade. Eu seria, então, por direito, membro do clube mais importante, e minha única ocupação seria passar todo o tempo me respeitando. Conheci um senhor que toda a sua vida se orgulhou de ser entendido em Laffittes[8]. Para ele, isso era uma vantagem e uma qualidade positiva, e nunca duvidava de si mesmo. Morreu com a consciência não apenas tranqüila, mas até mesmo triunfante, e com toda razão. Eu poderia escolher uma carreira: preguiçoso e comilão, mas não um comilão qualquer, e sim um que tivesse sensibilidade para tudo que é belo e sublime. Que lhes parece? Sonho com isso há muito tempo. O tal “belo e sublime” pesa muito na minha nuca agora, aos quarenta anos, mas naquela época seria diferente! Eu teria encontrado imediatamente uma atividade correspondente, como brindar a tudo que é belo e sublime. Não perderia nenhuma oportunidade de começar por verter uma lágrima dentro da minha taça e depois bebê-la à saúde de tudo que é belo e sublime. Eu transformaria tudo que há no mundo em belo e sublime, encontraria o belo e o sublime até mesmo nas coisas mais horríveis, nas piores e mais indiscutíveis porcarias. Ficaria lacrimoso como uma esponja molhada. Um pintor, por exemplo, pintou um quadro de Gay[9]. Imediatamente eu beberia à saúde do pintor que pintou o quadro de Gay, porque amaria tudo que é belo e sublime. Um autor escreveu “como apraz a cada um”[10] e imediatamente eu beberia à saúde de “cada um”, porque amaria tudo que é belo e sublime. Exigiria respeito por isso, perseguiria quem não me respeitasse. Viveria tranqüilo, morreria solenemente – ah!, como seria formidável, uma verdadeira maravilha! Arrumaria uma bela pança, um queixo triplo, um nariz vermelho, e todos os que cruzassem comigo diriam: “Eis um homem de mérito! Isto é que é um homem de verdade!”. Digam os senhores o que quiserem, mas é superagradável ouvir coisas assim neste nosso século tão negativo.

 


7


Mas tudo isso não passa de sonhos dourados. Ah! Digam-me quem primeiro declarou, quem primeiro proclamou que o homem só age mal porque não conhece seus verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instrução, se lhe abrissem os olhos para os seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo sórdido, imediatamente se tornaria bom e nobre, porque, sendo esclarecido e entendendo suas vantagens reais, veria justamente no bem a sua própria vantagem?[11] E que, como é sabido que nenhum homem é capaz de agir conscientemente contra seus próprios interesses, conseqüentemente, por necessidade, digamos, ele passaria a fazer o bem? Ó criancinha pura e inocente! Em primeiro lugar, quando foi que, no decorrer de milênios, o homem agiu movido apenas pelos próprios interesses? Que fazer com os milhões de fatos que demonstram que conscientemente, isto é, compreendendo perfeitamente suas verdadeiras vantagens, pessoas deixaram-nas de lado e lançaram-se por outro caminho, ao acaso, arriscando-se, sem que ninguém ou nada as obrigasse a isso, como se simplesmente não quisessem exatamente o caminho que lhes fora indicado e teimosa e voluntariosamente abriram outro, mais difícil, absurdo, tateando no escuro quase às cegas? Significa, pois, que para elas essa teimosia e esse voluntarismo eram de fato mais agradáveis do que qualquer vantagem pessoal... Ah, a vantagem! Que é a vantagem? Os senhores aceitariam a tarefa de determinar com absoluta precisão em que consiste a vantagem para o ser humano? E se acontecer que, em alguns casos, para o homem a vantagem não só possa, como também deva consistir, algumas vezes, em desejar para si aquilo que é ruim, e não o vantajoso? E, se isso é possível, se pode acontecer um caso como este, então a regra não vale nada. Que pensam os senhores: tais casos podem acontecer? Podem rir, senhores, mas me respondam apenas: teriam sido determinadas corretamente as vantagens humanas? Não existiriam algumas que não se enquadraram e nem poderiam enquadrar-se em nenhuma classificação? Pois os senhores, ao que eu saiba, compuseram toda a sua lista de vantagens humanas fazendo uma média de valores estatísticos e de fórmulas da ciência econômica. De acordo com as suas conclusões, são elas o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranqüilidade, e assim por diante. De modo que, por exemplo, o homem que clara e deliberadamente rejeitasse toda essa lista seria, na sua opinião, e na minha também, é claro, um obscurantista ou um ser completamente louco, não é isso? Mas vejam uma coisa espantosa: por que acontece que todos esses estatísticos, esses sábios que tanto amam a humanidade, quando enumeram as vantagens humanas sempre omitem uma delas? Nem a levam em conta da maneira como deve ser levada, e disso depende toda a conta. Não seria um mal tão grande se pegassem essa vantagem e a colocassem na lista. Mas a desgraça é que essa vantagem problemática não se encaixa em nenhuma classificação. Eu, por exemplo, tenho um amigo... Mas vejam só! Ele é amigo dos senhores também; e de quem, de quem ele não é amigo?! Ao se preparar para realizar uma ação, esse senhor começará por lhes explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir para estar de acordo com as leis da razão e da verdade. Isto não é tudo: ele falará aos senhores com paixão e emoção sobre os interesses humanos normais e verdadeiros, criticará com ironia os idiotas míopes que não entendem nem suas próprias vantagens, nem o verdadeiro significado da virtude e, exatamente quinze minutos depois, sem que haja qualquer motivo repentino e exterior, mas precisamente por alguma coisa interna que é mais forte do que todos os seus interesses, ele aprontará uma das suas, fará claramente o inverso do que dissera pouco antes: agirá contra as leis da razão e contra os próprios interesses, ou seja, contra tudo... Quero preveni-los de que meu amigo é um personagem coletivo, por isso é um pouco difícil condenar só a ele. Mas é aí mesmo que eu quero chegar, senhores. Será que de fato não existe algo que seja mais caro a quase todos os homens do que suas melhores vantagens, ou (para não destruir a lógica) aquela mesma vantagem mais vantajosa (aquela que é sistematicamente omitida, de que falamos antes), que é mais importante e mais vantajosa do que todas as outras vantagens e que, para obtê-la, o homem está sempre pronto, se necessário, a afrontar qualquer lei, ou seja, ir contra a razão, a honra, o sossego, o bem-estar – numa palavra, contra todas essas coisas maravilhosas e úteis, apenas para alcançar essa vantagem mais vantajosa, a primeira, que para ele é mais cara do que tudo?

– Mas continua sendo uma vantagem – dirão os senhores, interrompendo-me.

– Permitam-me, nós vamos nos explicar, e a questão não se resume a um jogo de palavras, e sim a que essa vantagem é notável justamente porque destrói todas as nossas classificações e todos os sistemas que foram montados pelos amigos do gênero humano. Resumindo: ela atrapalha tudo. Mas, antes de lhes dar o nome dessa vantagem, quero comprometer-me pessoalmente e, por isso, insolentemente declaro que todos esses maravilhosos sistemas, todas essas teorias que pretendem explicar para a humanidade quais são seus interesses verdadeiros e normais, para que ela, necessariamente almejando alcançar esses interesses, torne-se no mesmo instante boa e nobre – até o momento, na minha opinião, não passam de falsa lógica. É isso mesmo, senhores, falsa lógica. Afirmar que a renovação do gênero humano através do sistema de suas próprias vantagens, bem, isso, para mim, é quase a mesma coisa que... bem, quase o mesmo que afirmar, seguindo Buckle[12], que o homem se abranda por influência da civilização e, em conseqüência, torna-se menos sanguinário e menos inclinado a fazer guerras. Parece que foi pela lógica que ele chegou a essa conclusão. Mas o ser humano é tão apaixonado pelo sistema e pela conclusão abstrata, que é capaz de fazer-se de cego e surdo somente para justificar sua lógica. Por essa razão vou trazer um exemplo que ilustra com muita clareza tudo isso. Olhem ao seu redor: sangue fluindo como rios e ainda por cima com alegria, como se fosse champanhe! Isto, senhores, é o século XIX, século em que Buckle também viveu. Vejam Napoleão, tanto o Grande como o atual! Vejam a América do Norte, com sua união perpétua![13] Finalmente, vejam essa caricatura que é Schleswig-Holstein![14] Em que a civilização nos está abrandando? A civilização desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensações... e nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessas sensações, é bem possível que o homem acabe por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. Isso já aconteceu. Já notaram que os sanguinários mais refinados quase sempre têm sido os cavalheiros mais civilizados, aos pés dos quais não chegam todos os Átilas e Stenkas Rázin?[15] E que, se eles não chamam muita atenção, como Átila e Stenka Rázin, é justamente porque são muito comuns e freqüentes e já nos acostumamos a eles? Pelo menos se pode dizer que, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, tornou-se, com certeza, um sanguinário pior, mais hediondo. Antes ele via no derramamento de sangue um modo de fazer justiça e com a consciência tranqüila massacrava aqueles que julgava merecê-lo; hoje, ainda que julguemos que derramar sangue seja uma torpeza, mesmo assim o praticamos, e ainda mais do que no passado. O que é pior? Decidam os senhores mesmos. Dizem que Cleópatra (desculpem se dou exemplo da história de Roma), gostava de fincar alfinetes de ouro nos seios de suas escravas e sentia prazer com seus gritos e contorções. Os senhores diriam que isso foi numa época relativamente bárbara; que agora também vivemos numa época bárbara (relativamente, também), pois hoje também se enfiam alfinetes; que também agora, embora o homem tenha aprendido, vez por outra, a enxergar com mais clareza do que nos tempos da barbárie, ele está longe de ter aprendido a proceder da maneira indicada pela razão e pela ciência. Porém, os senhores estão firmemente convencidos de que ele se acostumará, quando alguns hábitos antigos, ruins, tiverem desaparecido completamente, e quando o bom senso e a ciência tiverem reeducado totalmente a natureza humana, direcionando-a para um estado normal. Os senhores estão convencidos de que, então, o homem deixará voluntariamente de errar, e a contragosto, por assim dizer, não irá querer opor sua vontade aos seus interesses normais. E mais: nesse tempo, dizem os senhores, a própria ciência vai ensinar ao homem (embora isso já seja um luxo, na minha opinião) que ele, na verdade, não possui nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo não passa de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de órgão; e que, ainda por cima, existem também as leis da natureza, de modo que, não importa o que ele faça, isso não é feito por sua vontade, e sim por si mesmo, seguindo as leis da natureza. Conseqüentemente, basta descobrir essas leis da natureza que o homem não terá mais de responder pelos seus atos, e viver, para ele, será extremamente fácil. Evidentemente, todas as ações humanas serão calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, numa espécie de tábua de logaritmos, até 108.000, e serão inscritos nos calendários; ou, algo ainda melhor: surgirão algumas publicações bem-intencionadas, do tipo dos atuais dicionários enciclopédicos, em que tudo estará tão bem calculado e indicado, que no mundo não haverá mais nem ações nem aventuras.

Nesse tempo – isso tudo os senhores é que dizem –, surgirão novas relações econômicas, que serão também completamente calculadas, e com precisão matemática, de modo que, num piscar de olhos, todo tipo de questões deixarão de existir, precisamente porque alguém já terá encontrado todo tipo de respostas para elas. E então será construído um palácio de cristal[16]. Então... Bem, numa palavra: então seremos visitados pelo pássaro azul. Evidentemente, não se pode garantir (isto já sou eu que estou dizendo) que nesse tempo não será, por exemplo, terrivelmente aborrecido (porque, o que haverá para fazer, se tudo estará distribuído numa tabela?), mas, em compensação, tudo será extremamente sensato. Evidentemente, o que não se inventará por puro tédio! Pois alfinetes de ouro são fincados também por tédio, mas isso ainda não é nada. O ruim mesmo (novamente sou eu que estou dizendo) é que pode até acontecer que as pessoas vão se sentir felizes com os alfinetes de ouro. Pois o ser humano é burro, de uma burrice fenomenal. Ou melhor, ele não é nem um pouco burro, mas em compensação é ingrato. Não existe ser mais ingrato que ele. Eu, por exemplo, não me admiraria nada se, de repente, sem nenhum motivo, em meio ao futuro bom senso geral, surgisse um cavalheiro com um rosto nada nobre ou, melhor dizendo, com uma fisionomia retrógrada e zombeteira e, de mãos na cintura, dissesse a todos nós: e então, senhores, que tal dar um pontapé em todo esse bom senso e mandar esses logaritmos para o diabo para que possamos novamente viver segundo a nossa vontade idiota? E não acabaria nisso, pois o mais lamentável é que ele certamente encontraria seguidores: assim é o ser humano. E tudo isso por um motivo insignificante que não valeria a pena mencionar: precisamente pelo fato de que o homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja, sempre gostou de fazer o que quis, e não como mandam a razão e o interesse próprio; ele, inclusive, pode querer algo contra seus próprios interesses, e às vezes até deve indubitavelmente querê-lo (isto já é idéia minha). Sua vontade livre, um capricho seu, mesmo que seja o capricho mais estranho, uma fantasia sua, exacerbada às vezes até a loucura – eis a vantagem que é omitida, a vantagem mais vantajosa, que não se submete a nenhuma classificação e que manda para o diabo constantemente todos os sistemas e teorias. E de onde esses sabichões tiraram que o homem necessita não sei de que vontade normal, virtuosa? De onde partiu essa sua idéia de que o homem precisa ter obrigatoriamente uma vontade sensatamente vantajosa? O que o homem precisa é somente de uma vontade independente, custe ela o que custar e não importa aonde possa conduzir. Bom, essa vontade, o diabo conhece bem...

 


8


– Ha, ha, ha! Mas tal vontade, no fundo, nem ao menos existe! – interrompem-me os senhores com uma gargalhada. Na nossa época, a ciência já conseguiu dissecar a tal ponto o homem, que já é do nosso conhecimento que a vontade e o assim chamado livre-arbítrio não passam de...

– Um momento, senhores, eu mesmo queria começar dessa maneira. Confesso que até me assustei. Um instante atrás por pouco eu não quis gritar que a vontade depende sabe o diabo de que, coisa que, talvez, devamos agradecer a Deus, mas lembrei-me da ciência e... me calei. E nesse instante os senhores começaram a falar. Porque, de fato, bem, se algum dia encontrarem mesmo a fórmula de todos os nossos desejos e caprichos, ou seja, aquilo de que eles dependem, as leis segundo as quais eles se produzem, como precisamente se espalham, que objetivos eles buscam num caso ou noutro, etc., ou seja, se encontrarem uma verdadeira fórmula matemática – aí talvez o homem imediatamente deixe de ter vontade e, digo mais, ele seguramente fará isso. Quem vai querer ter vontade de acordo com uma tabela? E ainda: no mesmo instante o homem se transformará num pedal de órgão ou em algo no gênero; porque o que é esse homem sem desejos, sem vontade, sem seu próprio querer, senão um pedal de órgão? Que acham disso? Examinemos as probabilidades: pode isso acontecer ou não?

– Hum... – concluem os senhores. Nossos desejos, na sua maioria, são equivocados devido a uma avaliação errada das nossas vantagens. Se às vezes queremos coisas absurdas, isso se deve ao fato de que nessa coisa absurda nós vemos, por burrice nossa, um caminho mais curto para obtermos uma vantagem antecipadamente presumida. Bem, quando tudo isso estiver explicado e exposto numericamente no papel (o que é perfeitamente possível, porque é indigno e sem sentido crer antecipadamente que haja leis da natureza que o homem nunca descobrirá), então, evidentemente, não existirão as chamadas vontades. Pois, se a vontade um dia coincidir completamente com a razão, nós iremos raciocinar e não querer, propriamente, porque é impossível, por exemplo, conservando a razão, desejar coisas sem sentido, indo, desse modo, conscientemente contra a razão e desejando algo que nos prejudique... E, como todos os desejos e raciocínios poderão ser realmente calculados, pois algum dia serão descobertas as leis do nosso assim chamado livre-arbítrio, então, conseqüentemente, além de anedotas, também será possível estabelecer-se algo como uma tabela, de tal modo que nós realmente teremos desejos de acordo com essa tabela. Porque se, por exemplo, um dia me provarem com cálculos que se eu fiz um gesto obsceno com o dedo para alguém isso se deu precisamente porque não poderia deixar de fazê-lo, e porque era exatamente aquele dedo que eu deveria mostrar, então o que restará de livre em mim, especialmente se sou uma pessoa instruída e com um curso completo de ciência em algum lugar? Pois nesse caso eu vou poder calcular antecipadamente toda a minha vida futura por um período de trinta anos; em síntese, se isso for implantado, não nos restará nada a fazer; de todo modo, teremos de aceitar. E, de maneira geral, devemos repetir para nós mesmos sem descanso que, forçosamente, num determinado minuto e em certas condições, a natureza não pede a nossa opinião; que é necessário aceitá-la tal como ela é, e não como nós a fantasiamos, e se, de fato, almejamos chegar a uma tabela e a um calendário e a... bem, nem que seja a um tubo de ensaio, então, que se há de fazer, é preciso admitir também o tubo de ensaio! Senão ele mesmo se admitirá, sem esperar por sua aprovação...

– Pois é, senhores... Justamente neste ponto é que eu me enrasquei! Perdoem-me por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subsolo! Permitam-me fantasiar um pouco. Vejam os senhores: a razão é uma coisa boa, sem dúvida, mas razão é apenas razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; já a vontade, esta é a manifestação da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, aí incluindo-se a razão e todas as formas de se coçar. E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, naturalmente quero viver para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não para satisfazer apenas minha capacidade racional, ou seja, talvez a vigésima parte de toda a minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Ela sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras coisas, provavelmente, nunca saberá; isso pode não consolar, mas por que não dizê-lo?); já a natureza humana, esta age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente – e, mesmo mentindo, está vivendo. Desconfio de que os senhores estão olhando para mim com pena; estão repetindo que é impossível um homem evoluído e esclarecido, em suma, um homem do futuro, vir a querer conscientemente para si algo desvantajoso; que isso é matemática. Concordo plenamente, de fato é matemática. Mas repito pela centésima vez: há apenas um caso em que o homem é capaz de, proposital e conscientemente, desejar para si algo até mesmo nocivo, idiota, até mesmo idiotíssimo, e é precisamente quando quer defender o direito de desejar para si mesmo algo idiotíssimo e não ficar obrigado a desejar para si apenas o que é inteligente. Isso é a suprema idiotice, isso é um capricho pessoal e, na verdade, senhores, pode ser o que de mais vantajoso haja na Terra para os nossos semelhantes, principalmente em certos casos. E, particularmente, pode ser mais vantajoso do que todas as vantagens, mesmo no caso de nos causar um mal indiscutível e de contradizer as conclusões mais corretas de nossa razão quanto a vantagens – porque pelo menos conserva para nós o mais importante e o mais caro, ou seja, nossa personalidade e nossa individualidade. Alguns afirmam que isso é de fato o que é mais caro ao ser humano; a vontade pode, se assim o desejar, coincidir com a razão, especialmente se não abusar desta e usá-la com parcimônia; é uma coisa útil e às vezes elogiável. Mas a vontade, muito freqüentemente, e até mesmo na maior parte das vezes, discorda completa e teimosamente da razão, e... e... Sabem os senhores que isso também é útil e às vezes até elogiável? Senhores, admitamos que o homem não seja um idiota. (Realmente não se pode afirmar que ele seja um idiota, pelo menos pela única razão de que, se ele fosse um idiota, quem então seria inteligente?) Mas, se não é um idiota, ao menos é monstruosamente ingrato. Penso até que a melhor definição para o homem é: um ser bípede e ingrato. Mas isso ainda não é tudo, esse não é o seu pior defeito: seu defeito mais grave é sua constante má conduta. Sim, constante, desde o dilúvio universal até o período schleswig-holsteiniano dos destinos da humanidade. A má conduta e, por conseqüência, a falta de bom senso, pois há muito tempo se sabe que a falta de bom senso é resultado da má conduta. Tentem lançar uma olhada na história da humanidade; que vêem os senhores? É grandiosa? Talvez até seja grandiosa; qual não será, por exemplo, o valor de um Colosso de Rodes? Não é à toa que o sr. Anaiévski[17] nos informa que, na opinião de alguns, esse colosso foi obra humana, ao passo que, para outros, ele foi criado pela própria natureza. Os senhores acham a humanidade multicolorida? Vá lá, é mesmo multicolorida; quanto valeria, por exemplo, a simples descrição, em todos os séculos e em todos os povos, somente das fardas de gala de militares e civis? E se acrescentarmos as fardas de serviço, aí então é de morrer. Nenhum historiador resistiria à tentação de fazê-lo. Os senhores consideram a humanidade monótona? Talvez seja monótona: brigas e mais brigas; brigavam antes, brigam agora – concordem comigo que isso é monótono até demais. Em suma, tudo se pode dizer da história universal, tudo que possa ocorrer à imaginação mais perturbada. Só uma coisa não se pode dizer: que ela seja sensata. Os senhores engasgariam na primeira palavra. E vejam até o que acontece volta e meia: constantemente aparecem na vida pessoas tão corretas e sensatas, tão sábias e amantes do gênero humano que assumem como seu objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possível para, por assim dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que é possível de fato viver neste mundo de maneira correta e sensata. E daí? Sabe-se que muitos desses amantes do gênero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns já no fim da vida, traíram a si mesmos, dando margem a anedotas, algumas até bem obscenas. Agora pergunto-lhes: o que se pode esperar do homem, sendo ele um ser dotado de características tão estranhas? Pois bem, cubram-no de todos os bens que há na Terra, mergulhem-no de cabeça na felicidade mais completa, de modo que somente borbulhas subam à superfície; dêem-lhe tal bem-estar econômico, de modo que não lhe reste nada mais a fazer, além de dormir, comer pães de mel e tratar de garantir a continuação da história universal – pois os senhores verão que, mesmo assim, ele, o homem, por pura ingratidão, por galhofa, há de fazer besteira. Porá em risco até os pães de mel e desejará intencionalmente o absurdo mais prejudicial, a coisa, do ponto de vista econômico, mais sem pé nem cabeça, unicamente para adicionar a toda essa sensatez positiva seu elemento fantástico prejudicial. Ele desejará conservar consigo precisamente seus sonhos fantásticos, sua estupidez mais torpe, com a finalidade de afirmar para si mesmo (como se isso fosse mesmo absolutamente imprescindível) que os homens continuam a ser homens, e não teclas de piano, as quais, embora sejam tocadas pelas próprias mãos das leis da natureza, estão ameaçadas de serem tocadas até chegar ao ponto em que, além do calendário, não será possível desejar-se mais nada. Mas isto ainda não é tudo: mesmo que se constate que ele é de fato uma tecla de piano, mesmo que isso lhe seja demonstrado pelas ciências naturais e pela matemática, nem assim ele criará juízo e propositalmente fará alguma coisa oposta, unicamente por ingratidão; de fato, para impor a sua vontade. E, no caso de não possuir os meios para isso, ele inventará a destruição e o caos, inventará diversos sofrimentos e acabará por impor sua vontade! Ele lançará ao mundo sua maldição e, como só o homem é capaz de amaldiçoar (isso é um privilégio seu, o que ele tem de mais importante e que o distingue dos outros animais), talvez ele consiga o que procura apenas com a maldição, ou seja, realmente talvez se convença de que é um homem, e não uma tecla de piano! Se os senhores disserem que tudo isso também pode ser calculado pela tabela – o caos, a treva, a maldição, de modo que a mera possibilidade de cálculo prévio pare tudo e a razão triunfe –, então nesse caso o homem ficará propositalmente louco, para ficar privado da razão e defender sua opinião! Eu creio nisso, respondo por isso, porque toda a questão humana, creio, resume-se, na realidade, em o homem provar constantemente para si mesmo que ele é um homem, e não uma tecla! Ainda que arriscando sua pele, ele tentará prová-lo; ainda que se comporte como um troglodita, ele tentará prová-lo. E, depois disso, como não pecar, como não se felicitar por ainda não existirem tais coisas, e a vontade, por enquanto, depender só Deus sabe de quê...

Os senhores gritam-me (se é que ainda me concedem a honra de gritar comigo) que ninguém está me tirando a vontade; que todo o esforço que fazem é para, de alguma forma, conseguir que a minha vontade espontaneamente, por si mesma, passe a coincidir com meus interesses normais, com as leis da natureza e com a aritmética.

– Mas que nada, senhores! Que vontade própria vai existir quando chegarmos às tabelas e à aritmética, quando só houver dois e dois são quatro? Dois mais dois serão sempre quatro, mesmo sem a minha vontade. Será que vontade própria desse tipo pode existir?

 


9


Senhores, evidentemente estou brincando, e eu próprio sei que minhas brincadeiras não são muito felizes; entretanto, nem tudo deve ser interpretado como brincadeira. Talvez eu graceje rangendo os dentes. Tenho, senhores, algumas questões que me atormentam; resolvam-nas para mim. Por exemplo, os senhores querem fazer com que o homem desaprenda hábitos antigos e desejam corrigir sua vontade, de acordo com as exigências da ciência e do bom senso. Mas como os senhores sabem que não só é possível como também necessário mudar assim o homem? De onde os senhores tiraram essa conclusão de que é tão necessário corrigir a vontade humana? Em suma, por que os senhores sabem que tal correção será benéfica ao homem? E, se é para dizer tudo, por que os senhores têm tanta certeza de que realmente é sempre vantajoso para o homem e constitui uma lei para toda a humanidade não contradizer as vantagens verdadeiras, normais, aquelas garantidas por argumentos da razão e da aritmética? Pois, por enquanto, isso é apenas uma suposição dos senhores. Admitamos que isso seja uma lei da lógica, mas é possível que não seja absolutamente uma lei da humanidade. Os senhores pensam, talvez, que estou louco? Permitam-me explicar-me. Admito: o homem é, acima de tudo, um animal que constrói, condenado a buscar conscientemente um objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo incessante e eternamente, não importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez por outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele esteja condenado a abrir esse caminho, e também talvez porque, por mais idiota que geralmente seja o homem direto, de ação, às vezes ele pensa que aquele caminho, na realidade, quase sempre leva não importa aonde, o mais importante não é para onde ele leva, e sim que ele continue a levar, a fim de que a criança bem-comportada, fazendo pouco caso da arte da engenharia, não se entregue à ociosidade destrutiva, que, como é sabido, é a mãe de todos os vícios. O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor! Entretanto, eu mesmo quero dizer duas palavras à parte sobre isso. Não poderia ser, talvez, que ele ame tanto a destruição e o caos (bem, é indiscutível que ele às vezes gosta muito, não há dúvida) porque ele mesmo, instintivamente, teme atingir o objetivo e concluir o edifício que estava construindo? Como os senhores podem saber? Talvez ele ame o edifício somente de longe e não o ame de perto; talvez ele ame apenas o ato de construí-lo, e não viver nele, abandonando-o depois aos animaux domestiques, como formigas, carneiros, etc. Vejam como as formigas têm um gosto completamente diferente. Elas têm edifícios extraordinários, indestrutíveis para os séculos: os formigueiros.

As veneráveis formigas começaram com um formigueiro e terminarão também, provavelmente, com um formigueiro, o que muito honra sua constância e sua natureza positiva. Mas o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si. E quem sabe? Não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou, em outras palavras, à própria vida, e não ao objetivo exatamente, o qual, evidentemente, não deve passar de dois e dois são quatro, ou seja, uma fórmula, e dois e dois são quatro já não é vida, senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre teve um certo temor desse dois e dois são quatro, e eu até agora tenho. Suponhamos que o homem não faça outra coisa além de procurar esse dois e dois são quatro, atravessando oceanos, sacrificando a vida nessa busca, mas sou capaz de jurar que ele tem medo de encontrá-lo realmente. Porque ele sente que, assim que o encontrar, não haverá mais nada para procurar. Os trabalhadores, ao término do trabalho, pelo menos recebem seu dinheiro e podem ir para o botequim e depois podem acabar na delegacia – e têm, assim, ocupação para a semana. Mas o homem para onde irá? Pelo menos, sempre se nota que ele fica um pouco sem jeito quando consegue atingir algum desses objetivos. Ele ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro está, é terrivelmente engraçado. Em uma palavra, o homem é constituído de modo cômico; em tudo isso, pelo visto, há um jogo de palavras. Mas dois e dois são quatro é, de qualquer modo, uma coisa extremamente insuportável. Dois e dois são quatro, na minha opinião, é pura insolência. Dois e dois são quatro olha para você com ar petulante, fica no meio do seu caminho com as mãos na cintura e cospe pro lado. Concordo que dois e dois são quatro é uma coisa excelente; porém, se é para elogiar tudo, então dois e dois são cinco às vezes é também uma coisinha bem encantadora.

E por que os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isso é um fato. Para isso não há necessidade de consultar a história universal. Perguntem a si mesmos, se é que os senhores são homens e viveram nem que seja um pouco. Quanto à minha opinião pessoal, penso que amar apenas o bem-estar é, de certo modo, até indecente. Seja isso bom ou não, o fato é que, às vezes, quebrar alguma coisa é também muito agradável. Não estou propriamente defendendo o sofrimento e nem o bem-estar. Estou defendendo... o meu capricho, e que ele me seja garantido, quando necessário. O sofrimento não é admitido, por exemplo, nos vaudeviles, sei disso. No palácio de cristal, ele é até impensável: o sofrimento é dúvida, é negação – e que palácio de cristal seria esse, do qual é possível duvidar? Entretanto, estou convencido de que o homem nunca renunciará ao sofrimento verdadeiro, isto é, à destruição e ao caos. O sofrimento é a única causa da consciência. E, embora eu tenha declarado no início que, na minha opinião, a consciência é a maior infelicidade para o homem, eu sei que o homem ama a consciência e não a trocará por satisfação alguma. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior ao dois mais dois. Depois do dois mais dois, evidentemente não restará nada, não só para se fazer, como até mesmo para se conhecer. A única coisa que então será possível será trancar os cinco sentidos e mergulhar na contemplação. Com a consciência chega-se ao mesmo resultado, ou seja, também não haverá nada para fazer, mas pelo menos será possível surrar a si mesmo de vez em quando, e isso anima um pouco, apesar dos pesares. Embora seja uma coisa retrógrada, ainda é melhor do que nada.

 


10


Os senhores acreditam no edifício de cristal, para sempre indestrutível, ou seja, acreditam num edifício ao qual ninguém poderá mostrar a língua mesmo às escondidas, nem fazer-lhe uma figa com a mão no bolso. Bom, eu tenho medo desse edifício, talvez porque ele seja de cristal e indestrutível através dos séculos e porque não será possível mostrar-lhe a língua nem às escondidas.

Vejam os senhores: se em vez de um palácio houver um galinheiro, e se começar a chover, talvez eu suba no galinheiro para não me molhar, mas nem assim vou achar que o galinheiro é um palácio, só por gratidão por ele ter-me protegido da chuva. Os senhores estão rindo e dizendo que num caso como esse tanto faz um palácio como um galinheiro. Sim, respondo eu, se o único objetivo de viver fosse não se molhar.

Mas o que fazer se meti na minha cabeça que vivo não somente para isso e que, se vou viver, quero que seja num palácio? Isso é o meu desejo, é a minha vontade. Os senhores só a arrancarão de mim quando tiverem modificado os meus desejos. Bem, façam a transformação, seduzam-me com outra coisa, dêem-me outro ideal. Mas, por ora, não confundirei o galinheiro com um palácio. Admito até que o palácio de cristal seja uma quimera, que ele não esteja previsto pelas leis da natureza e que eu o inventei apenas devido à minha própria burrice e a alguns hábitos antigos, irracionais, próprios da nossa geração. Mas não me importa se ele não está previsto. Não dá na mesma se ele existe nos meus desejos, ou melhor, existe enquanto existem meus desejos? Os senhores talvez estejam rindo novamente? Riam à vontade; aceito qualquer caçoada. Mesmo assim, não direi que estou saciado se tenho fome; mesmo assim, sei que não me contentarei com um meio-termo, com um zero periódico constante, unicamente porque ele existe em decorrência das leis da natureza e existe realmente. Não aceitarei como triunfo de meus desejos um grande edifício com apartamentos para moradores pobres com contrato por mil anos e, para qualquer eventualidade, com a placa do dentista Wagenheim na entrada. Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que não vale a pena meter-se comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo.

Por enquanto ainda estou vivo e tenho desejos – e que minha mão seque se eu colocar um tijolinho que seja nesse edifício![18] Não dêem atenção ao fato de que há pouco renunciei ao palácio de cristal unicamente porque não será possível mostrar-lhe a língua. E de maneira nenhuma eu disse isso porque goste de mostrar a minha língua. Talvez eu tenha ficado irritado somente porque, dentre todos os seus edifícios, até agora não há nenhum ao qual não se possa não mostrá-la. Pelo contrário, por pura gratidão eu deixaria que me cortassem a língua, se as coisas se arranjassem de tal maneira que eu mesmo não tivesse mais vontade de mostrá-la. Não tenho nada a ver se isso não é possível e é preciso contentar-se com os apartamentos. Mas por que fui formado com tais desejos? Será possível que tenha sido somente para concluir que toda a minha conformação não passa de uma brincadeira de mau gosto? Será possível que todo o objetivo não passe disso? Não acredito.

E, ademais, saibam de uma coisa: estou convencido de que é preciso manter esses tipos do subsolo à rédea curta. Embora eles possam passar quarenta anos calados no subsolo, se conseguem sair para a claridade, ficam falando, falando, falando...

 


11


Conclusão final, senhores: é melhor não fazer nada! É melhor a inércia consciente! Pois, então, viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até a minha última gota de fel, nas condições em que o vejo, não quero ser ele. (Embora não pare de invejá-lo; não, não, o subsolo, em todo caso, é mais vantajoso!) Ao menos, lá é possível... Ah! Estou mentindo agora também! Porque eu mesmo sei, como dois mais dois, que o melhor não é o subsolo, mas outra coisa diferente, completamente diferente, pela qual eu anseio, mas que jamais encontrarei! Que vá para o diabo o subsolo!

Seria melhor até mesmo o seguinte: que eu mesmo acreditasse, ao menos um pouquinho, no que acabo de escrever. Juro aos senhores que não acredito em uma palavra sequer de tudo o que rabisquei até aqui! Ou melhor, eu acredito, talvez, mas, ao mesmo tempo, não sei por que, sinto e desconfio que estou mentindo desbragadamente.

– Então, por que o senhor escreveu tudo isso? – dizem-me os senhores.

– E se eu os deixasse presos por quarenta anos, sem nada para fazer, e, passado esse tempo, eu fosse visitá-los no seu subsolo para verificar o ponto a que chegaram? É admissível deixar um homem sozinho e sem ocupação durante quarenta anos?

– Mas isso não é também vergonhoso, não é humilhante?! – talvez os senhores me digam, balançando a cabeça com desprezo. – O senhor tem sede de viver e ao mesmo tempo tenta resolver problemas vitais com uma barafunda lógica. E como são impertinentes e insolentes seus disparates e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! O senhor diz absurdos e fica contente com eles; diz coisas insolentes, mas está o tempo todo com medo por causa delas e pede desculpas. O senhor afirma não ter medo de nada e, ao mesmo tempo, busca nossa aprovação. O senhor afirma que range os dentes e, ao mesmo tempo, fica fazendo graça para nos divertir. O senhor sabe que seus gracejos não são nada espirituosos, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. Talvez o senhor tenha sofrido realmente algumas vezes, mas o senhor não respeita nem um pouco o próprio sofrimento. Há alguma verdade no que diz, mas o senhor não tem pudor; pela vaidade mais mesquinha, o senhor fica exibindo sua verdade, no pelourinho, na feira... O senhor quer realmente dizer algo, mas, por medo, esconde sua última palavra, porque não tem coragem para proferi-la, e o que possui é apenas uma insolência covarde. O senhor se vangloria de ter consciência, mas só o que faz é vacilar, porque, embora sua inteligência funcione, seu coração está obscurecido pela depravação, e, sem um coração puro, é impossível uma consciência completa e justa. E como o senhor é importuno, insistente e afetado! Mentira, mentira, mentira!

Claro está que essas palavras dos senhores fui eu mesmo que acabei de inventar. Elas também vieram do subsolo. Durante quarenta anos seguidos fiquei escutando pela fresta as palavras que os senhores diziam. Eu mesmo as inventei, pois somente isso era possível inventar. É natural que eu as tenha aprendido de cor e que elas tenham adquirido forma literária...

Mas, será possível, será possível que os senhores sejam tão crédulos e imaginem que eu vá imprimir tudo isso e ainda lhes dar para ler? E eis ainda uma questão que preciso resolver: para que, na verdade, eu os chamo de “senhores”, para que dirijo-me aos senhores, como se de fato estivesse dirigindo-me a leitores? Confissões, como as que tenho a intenção de começar a narrar, não se publicam nem se dão a outros para que leiam. Eu, pelo menos, não sou uma pessoa tão segura e nem acho que isso seja necessário. Mas vejam os senhores: veio-me à cabeça uma fantasia e, custe o que custar, desejo realizá-la. Vou dizer-lhes do que se trata.

Entre as recordações de cada pessoa, há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é, mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, só recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até agora tinha evitado com uma certa inquietação. E agora, quando não só recordei, como até me decidi a escrevê-las, agora exatamente quero tirar a prova: é possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade? A propósito: Heine[19] afirma que é quase impossível existirem autobiografias sinceras, porque na certa o ser humano mentirá, falando de si mesmo. Na opinião dele, por exemplo, Rousseau sem dúvida mentiu sobre si mesmo em suas Confissões e fez isso até deliberadamente, por vaidade. Estou convencido de que Heine está certo; entendo perfeitamente como, às vezes, alguém pode confessar uma série de crimes por pura vaidade e percebo até muito bem de que tipo pode ser essa vaidade. Mas Heine comentava sobre uma pessoa que fez uma confissão pública. No meu caso, escrevo só para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a leitores, é unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me é mais fácil escrever. Isso é apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. Já havia declarado isso...

Não quero que nada me cerceie na redação de minhas notas. Não vou estabelecer ordem nem sistema. Escreverei tudo o que me vier à memória. Mas, por exemplo, alguém poderia implicar com o que eu disse e me perguntar: se o senhor realmente não conta com leitores, então por que está agora fazendo tratos consigo mesmo e, ainda por cima, por escrito, dizendo que não vai introduzir nenhuma ordem ou sistema, que vai escrever aquilo de que se lembrar, etc.? Por que está dando explicações? Por que está se desculpando?

Esperem, já vou responder.

Há, neste caso, toda uma psicologia. Talvez, inclusive, eu seja simplesmente covarde. Pode ser também que eu imagine de propósito um público na minha frente para me comportar mais decentemente enquanto escrevo. Pode haver umas mil razões.

Mas eis ainda uma questão: para que e por que eu, de fato, desejo escrever? Se não é para um público, então não seria possível guardar tudo na memória, sem pôr no papel?

Certamente, senhores. Mas no papel ficará, de certo modo, mais solene. O papel inspira respeito, serei mais exigente comigo mesmo, o estilo lucrará. Além disso, escrevendo, talvez eu sinta de fato alívio. Neste momento, por exemplo, uma recordação antiqüíssima me oprime. Ela me veio à memória com nitidez há alguns dias e desde então não me larga, como uma melodia aborrecida que não sai da cabeça. Entretanto, é necessário livrar-me dela. Tenho centenas de recordações desse tipo, mas de vez em quando alguma se destaca das outras e começa a me afligir. Por alguma razão, creio que, escrevendo-a, conseguirei livrar-me dela. Por que não tentar?

Finalmente: sinto-me entediado, pois fico o tempo todo sem fazer nada. O ato de anotar é, de certo modo, um trabalho. Dizem que o homem se torna bom e honesto com o trabalho. Bom, pelo menos, eis aí uma chance.

Agora está caindo uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem caiu também, nos dias anteriores também. Creio que foi por causa da neve molhada que me lembrei da anedota que agora não quer desgrudar-se de mim. Então, que isso se transforme numa novela sobre a neve molhada.

 


[1] . Tanto o autor das Notas como elas próprias são, evidentemente, fictícios. Entretanto, pessoas como o autor destas Notas não só podem como devem existir na nossa sociedade, se levarmos em conta as circunstâncias em que ela de modo geral se formou. Meu propósito foi trazer perante o público, com mais destaque que o habitual, um dos personagens típicos do nosso passado não remoto. Ele faz parte da geração que está vivendo seus últimos dias. Na primeira parte, denominada “Subsolo”, esse personagem faz sua própria apresentação, declara seus pontos de vista e procura explicar os motivos pelos quais ele surgiu e teria de surgir no nosso meio. Na segunda parte vêm as “Notas” propriamente ditas desse personagem a respeito de alguns acontecimentos de sua vida.

Fiódor Dostoiévski.

Dostoiévski aqui aponta para a ligação do personagem central de Notas do subsolo com a extensa galeria de “homens supérfluos” de que foi pródiga a literatura russa da primeira metade do século XIX. Em uma definição muito breve, seriam as pessoas cujo talento e inteligência não tinham aplicação naquela sociedade e, por falta de uma realização pessoal, tornavam-se amargas e destrutivas. (N.T.)

[2] . No tsarismo, assessor colegial era um posto intermediário da administração civil. (N.T.)

[3] . Alusão ao tratado de Kant, intitulado Sobre o sublime e o belo. A expressão o sublime e o belo era popular nos críticos russos nas décadas de 1830 e 1840. (N.T.)

[4] . Em francês no original, “o homem da natureza e da verdade”, alusão à obra Confissões de Jean-Jacques Rousseau. (N.T.)

[5] . Conhecidos dentistas de São Petersburgo. (N.T.)

[6] . Alusão aos ocidentalistas, adversários políticos dos eslavófilos. (N.T.)

[7] . Patife, desordeiro, vagabundo. Em francês no original. (N.T.)

[8] . Vinhos da marca Château-Laffitte. (N.T.)

[9] . É provável que se trate de N. N. Gay, autor do quadro “A última ceia”, que em 1863 foi motivo de polêmica na imprensa russa devido ao tratamento realista e inovador do tema religioso. (N.T.)

[10] . Alusão ao artigo “Como apraz a cada um”, publicado na revista Sovremênnik em 1863, de Mikhail Evgráfovitch Saltykov-Schedrin (1826-1889), escritor satírico russo, democrata e socialista utópico, que traz uma crítica positiva do quadro de Gay. (N.T.)

[11] . Neste trecho, Dostoiévski polemiza com Nikolai Gavrílovitch Tchernichévski, escritor democrata-revolucionário russo (1828-1889), o qual afirmara em um artigo de 1860 que “somente são prudentes as ações boas, só é sensato e ponderado aquele que é bom, e na medida exata em que é bom”. (N.T.)

[12] . Historiador inglês (1822-1862) que escreveu História da civilização na Inglaterra, publicada em tradução na Rússia de 1864 a 1866, e que foi muito popular entre a intelectualidade progressista. (N.T.)

[13] . Alusão tanto às guerras de conquista de Napoleão Bonaparte na Europa e de Napoleão III, que invadiu o México e tentou transformá-lo em uma colônia francesa, quanto à Guerra da Secessão entre os estados do norte e do sul dos Estados Unidos, em 1861, na qual houve uma verdadeira carnificina. (N.T.)

[14] . Alusão à guerra da Dinamarca com a Áustria e a Prússia pelos ducados de Schleswig e Holstein, de 1863 a 1864. (N.T.)

[15] . Apelido pelo qual é conhecido Stepan Timoféievitch Rázin, cossaco da região do rio Don que, em 1670, chefiou uma rebelião de camponeses no interior da Rússia. Foi traído por seus próprios companheiros e enforcado em Moscou. (N.T.)

[16] . Alusão a uma passagem do romance programático Que fazer?, de Tchernichévski, escrito na prisão em 1863, em que ele expõe didaticamente os ideais utópicos dos democratas revolucionários e cria a imagem de um palácio de cristal, inspirado em um edifício de vidro construído em Londres para uma exposição internacional, como metáfora da sociedade socialista do futuro. (N.T.)

[17] . Trata-se de um escritor que era ridicularizado na imprensa russa, nas décadas de 1850 e 1860, por sua falta de talento. (N.T.)

[18] . Provável alusão a uma frase de um discípulo de Charles Fourier, socialista utópico francês, V. Considerand (1808-1893), que escreveu: “Carrego minha pedra para o edifício da sociedade do futuro”. (N.T.)

[19] . Henrich Heine (1797-1856), poeta lírico alemão, de tendência democrática. (N.T.)


Parte II

 

A propósito da neve úmida[1]


Quando ergui tua alma caída

Das trevas da perdição

Com o calor da palavra amiga,

Em profunda dor e emoção

Tu maldisseste, torcendo as mãos,

O teu pecado, tua prisão.

Punindo a mente esquecida

Com a lembrança dolorosa,

Tu me contaste tua história,

Antes de mim acontecida.

Cobrindo o rosto com as mãos,

Cheia de vergonha e horror,

Desabafaste chorando

De indignação e de dor.

(De um poema de Nekrássov)[2]

 


1


Naquela época eu tinha apenas vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto. Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também – assim me parecia constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa. Às vezes eu me perguntava: por que será que, além de mim, ninguém tem essa impressão de ser olhado com repulsa? Um dos nossos funcionários tinha um rosto repugnante, cheio de marcas de varíola, com um certo ar de salteador de estrada. Penso que eu não teria coragem de olhar para ninguém se tivesse uma cara indecente assim. Um outro tinha um uniforme de serviço tão surrado que já exalava ao seu redor um leve mau cheiro. Apesar disso, nenhum desses senhores sentia-se constrangido – nem por causa da roupa, nem do rosto, nem por algum motivo moral. Nem um o outro podiam imaginar que eram olhados com aversão; e, se imaginassem, para eles seria indiferente, desde que o chefe não notasse. Está inteiramente claro para mim agora que, devido à minha desmesurada vaidade e, conseqüentemente, à tremenda exigência para comigo mesmo, eu me olhava com uma insatisfação furiosa que chegava às raias da aversão e, com isso, mentalmente transferia aos outros essa maneira de me ver. Odiava, por exemplo, o meu rosto, achava-o detestável e até mesmo acreditava que ele expressava uma certa canalhice, por isso, sempre que estava na repartição, esforçava-me desesperadamente por demonstrar um comportamento o mais independente possível. “Que o meu rosto seja feio”, pensava, “mas que, em compensação, seja nobre, expressivo e, principalmente, extraordinariamente inteligente.” Mas eu sabia com dolorosa certeza que meu rosto jamais expressaria essas perfeições. E, o que era mais terrível, eu o achava positivamente idiota. Ficaria plenamente satisfeito com a inteligência. Aceitaria a expressão vil, desde que meu rosto parecesse terrivelmente inteligente.

Naturalmente, eu odiava todos os funcionários do departamento, do primeiro ao último; desprezava-os, mas, ao mesmo tempo, de certa forma eu os temia.Vez por outra até os colocava acima de mim. Essas alternâncias em mim eram súbitas: ora os desprezava, ora os colocava acima de mim. Um homem honrado e evoluído não pode ser vaidoso sem possuir uma exigência infinita para consigo mesmo e sem, em certos momentos, se desprezar até o ponto de se odiar. Mas, seja desprezando o outro, seja julgando-me inferior, eu baixava os olhos diante de quase todas as pessoas com quem cruzava. Cheguei a fazer experiências para ver se agüentaria o olhar de alguém sobre mim. Sempre era eu o primeiro a baixar os olhos. Isso me torturava a ponto de me deixar furioso. Era doentio também o meu temor de parecer ridículo; por isso, adorava servilmente a rotina em relação a tudo o que era exterior. Entregava-me com amor à medianidade geral e com toda a alma temia qualquer sinal de excentricidade em mim. Mas como eu poderia ter resistido? Eu era evoluído de uma maneira doentia, como deve ser o homem evoluído do nosso tempo. Já eles, eram todos obtusos e parecidos uns com os outros, como um rebanho de carneiros. Talvez somente eu, em toda a repartição, tivesse permanentemente aquela impressão de que era covarde e servil, e isso se dava justamente porque eu tinha cultura. Mas não era apenas questão de parecer: de fato, eu era um covarde e um escravo. Digo isso sem nenhum constrangimento. Todo homem honesto neste nosso tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal. Estou profundamente convencido disso. Ele foi feito assim e para isso foi construído. E não é só no tempo presente, por causa de algumas circunstâncias eventuais, mas, em geral, em todos os tempos o homem honesto deve ser covarde e escravo. É uma lei natural para todos os homens honestos na Terra. E se acontece de algum deles se mostrar valente perante alguma coisa, isso não deve ser motivo de consolo ou de entusiasmo: fatalmente ele irá se acovardar diante de outras circunstâncias. Essa é a única e eterna conclusão. Bancam os valentes apenas os asnos e suas aberrações, e mesmo estes só até um determinado obstáculo. Nem vale a pena prestar atenção neles, pois nada significam.

Havia ainda naquela época outra circunstância que me torturava: precisamente o fato de que ninguém se parecia comigo e eu não era parecido com ninguém. “Eu sou único e eles são todos”, pensava eu.

Daí se vê que eu ainda era inteiramente criança.

Também ocorria o contrário. Em algumas ocasiões, era tão horrível para mim ir à repartição que eu chegava ao ponto de, muitas vezes, voltar doente do trabalho. Mas, de repente, sem mais nem menos, começava uma fase de ceticismo e indiferença (comigo tudo acontecia em fases), e eu mesmo começava a rir de minha intolerância e minhas aversões e censurava a mim mesmo pelo meu romantismo. Num determinado momento, não queria falar com ninguém; em outro, não só procurava conversa com alguém, como até mesmo decidia tornar-me seu amigo. De repente, sem mais nem menos, toda a aversão desaparecia. Quem sabe ela nunca tivesse existido realmente em mim, e fosse apenas pose tirada dos livros? Até agora não solucionei essa questão. Certa vez eu cheguei a fazer algumas amizades, comecei a freqüentar suas casas, a jogar cartas, a beber vodca e a conversar sobre nossa economia... Neste ponto, porém, permitam-me fazer um parêntese.

Em geral nós, russos, nunca tivemos autores românticos bobos, daqueles que pairam acima das estrelas, como os alemães e, particularmente, os franceses, a quem nada pode atingir, mesmo que a terra trema sob seus pés, mesmo que toda a França esteja morrendo nas barricadas – eles continuam os mesmos, não mudam nem por decoro e vão seguir cantando seus cantos siderais até, por assim dizer, o fim da vida, porque são tolos. Já aqui, na terra russa, não há tolos; é um fato conhecido; essa é a nossa diferença em relação às outras terras estrangeiras. Conseqüentemente, não surgem aqui naturezas etéreas em sua forma pura. Como sempre, foram nossos publicistas e críticos “positivos” que, na sua época, na caça aos Kostanjoglos e tios Piotr Ivânovitch[3], considerando-os, por burrice, nosso ideal, inventaram muita coisa sobre nossos românticos, julgando-os tão etéreos quanto os da Alemanha e da França. Ao contrário, as características do nosso romântico se opõem completa e frontalmente às dos europeus siderais, e nenhum criteriozinho europeu de avaliação é adequado para ele. (Permitam-me usar essa palavra: “romântico” – palavrinha antiga, respeitável, digna e conhecida de todos.) As características do nosso romântico são: compreender tudo, ver tudo e, freqüentemente, enxergar muito mais claramente do que as nossas inteligências mais positivas; não se resignar diante de nada ou de ninguém, mas, ao mesmo tempo, nada menosprezar, tudo contornar, ceder a tudo, comportar-se com todos de maneira política; nunca perder de vista um objetivo prático, útil (como algum apartamentinho do governo, uma pensãozinha, uma condecoraçãozinha), e ter em mira esse objetivo em todo entusiasmo e em todos os volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar incólume em si o “belo e sublime”, até o túmulo, e, a propósito, conservar a si mesmo embrulhado em algodão, como uma joiazinha, nem que seja, por exemplo, em prol do mesmo “belo e sublime”. Vive à larga o nosso romântico, e é o maior dos espertalhões, asseguro-lhes... até mesmo por experiência própria. Isso, é claro, se o romântico for inteligente. Mas que estou dizendo? O romântico é sempre inteligente, eu apenas queria observar que, ainda que entre nós tenha havido românticos tolos, isso não deve ser levado em conta, e apenas porque eles, ainda na flor da idade, transformaram-se definitivamente em alemães, a fim de conservarem mais confortavelmente sua joiazinha, e fixaram residência lá em algum lugar, a maioria em Weimar ou na Floresta Negra. Eu, por exemplo, desprezava profundamente meu trabalho e apenas por necessidade não o mandava às favas, porque ficava lá sentado e recebia dinheiro por isso. E o resultado – notem bem – era que, apesar de tudo, não o mandava às favas. Nosso romântico preferiria enlouquecer (o que, aliás, raramente ocorre), porém não mandaria seu emprego às favas se não tivesse outra carreira em vista, e ele não seria posto na rua aos trancos, antes o colocariam no hospício se ele se julgasse “o rei da Espanha”[4], e isso se ele estivesse muito louco mesmo. Mas aqui só enlouquecem os magrinhos e lourinhos... Já um número incalculável de românticos ascende aos cargos mais elevados. Que versatilidade fora do comum eles têm! E que talento para sensações as mais contraditórias! Já naquela época consolava-me com isso e continuo com a mesma opinião. É por causa disso que temos tantos “espíritos magnânimos”, que até no último degrau de sua queda nunca perdem seu ideal e, mesmo que não movam um dedo por seu ideal, mesmo que sejam bandidos e ladrões declarados, respeitam até às lágrimas seu primeiro ideal e são, no fundo de sua alma, extraordinariamente honestos. É, senhores, somente entre nós o mais rematado canalha pode ser inteiramente honesto de alma, e isso até mesmo de maneira sublime, sem, por isso, deixar de ser um canalha um pouquinho que seja. Repito: constantemente entre nossos românticos surgem velhacos tão hábeis nos negócios (utilizo com amor a palavra “velhacos”), e que demonstram tamanho senso da realidade e conhecimento do que é positivo, que as autoridades e o público, perplexos e paralisados, apenas estalam a língua em sua direção.

A versatilidade é verdadeiramente espantosa, e sabe Deus em que ela pode se transformar, como se desenvolverá nas circunstâncias futuras e o que promete a seguir. E o material até que não é ruim! Não falo isso por alguma patriotice ridícula. Aliás, tenho certeza de que passou novamente pela cabeça dos senhores que estou gracejando. Mas quem sabe? Talvez seja o contrário, talvez os senhores acreditem que eu realmente penso assim. De qualquer maneira, vou considerar uma honra para mim e um particular prazer ambas as opiniões dos senhores. Quanto ao meu parêntese, peço que me perdoem.

Com meus colegas, naturalmente eu não tinha amizade e em pouco tempo mandava-os às favas e, em conseqüência de minha inexperiência e pouca idade, até parava de cumprimentá-los, rompendo com eles. Isso, aliás, aconteceu comigo apenas uma vez; em geral, eu estava sempre só.

O que eu mais fazia em casa era ler. Queria que as impressões exteriores sufocassem tudo o que constantemente se acumulava dentro de mim. E a leitura era para mim a única fonte possível de impressões exteriores. A leitura, é claro, me ajudava muito: emocionava, deliciava e torturava. Mas de vez em quando ela me entediava terrivelmente. Apesar de tudo, sentia desejo de me movimentar e, de repente, mergulhava numa libertinagem, ou melhor, numa libertinagenzinha, escura, subterrânea, nojenta. Minhas paixõezinhas eram agudas, ardentes, devido à minha permanente e doentia irritabilidade. Aconteciam-me acessos histéricos, com lágrimas e convulsões. Tirando a leitura, não havia aonde ir, ou seja, não havia naquela época nada que eu pudesse respeitar e que me atraísse no meio em que vivia. Além disso, a angústia crescia dentro de mim. Surgia uma sede histérica de contradições, de contrastes, e entregava-me então à devassidão. Não foi absolutamente para me justificar que eu me pus agora a falar tanto sobre isso... Aliás, não! Menti! Justificar-me era precisamente o que eu queria. O que estou fazendo, senhores, é um pequeno lembrete para mim mesmo. Não quero mentir. Dei minha palavra.

Eu saía para a libertinagem à noite, secretamente, com medo e com sensação de sujeira, sentindo uma vergonha que não me abandonava nem nos instantes mais repugnantes, como uma maldição. Já então eu trazia na alma o meu subsolo. Sentia um medo terrível de ser visto e reconhecido, pois andava por vários lugares bastante sórdidos.

Uma noite, ao passar diante de uma pequena taverna, vi pela janela iluminada uns senhores brigando perto do bilhar, batendo-se com os tacos, e depois vi um deles ser atirado pela janela. Se fosse em outra hora, teria sentido asco, mas estava num momento tal, que comecei a invejar o senhor que foi atirado pela janela, a tal ponto que entrei na taverna, na sala de bilhar. “Quem sabe não me envolvo numa briga e também me atiram pela janela?”.

Não estava bêbado, mas os senhores querem o quê? A angústia pode levar a esse grau de histeria! Mas não deu em nada. Resultou que eu não era capaz nem de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado.

Mal eu havia entrado, um oficial mexeu com meus brios.

Eu estava parado junto ao bilhar e, sem notar, obstruí o caminho por onde ele precisava passar; ele me pegou pelos ombros e, sem dizer nada, sem me prevenir ou dar uma explicação, moveu-me para outro lugar e passou, como se nem me notasse. Eu o perdoaria até mesmo se ele tivesse me esmurrado, mas não pude perdoá-lo por me haver movido do lugar sem nem ao menos se dar conta disso.

Só Deus sabe o que eu não daria naquele momento por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais, por assim dizer, literária! Trataram-me como se eu fosse uma mosca. Aquele oficial era alto; quanto a mim, sou baixinho e franzino. A briga, aliás, estava a meu favor: bastava protestar e seria atirado pela janela. Mas mudei de idéia e preferi... sumir dali, morrendo de raiva.

Saí da taverna abalado e perturbado, indo direto para casa. E no dia seguinte, continuei a minha devassidãozinha de maneira ainda mais tímida, oprimida e triste do que antes, as lágrimas quase brotando nos meus olhos, mas mesmo assim continuei. Não pensem, aliás, que foi por covardia que eu recuei diante do oficial: no fundo, nunca fui covarde, embora na prática tenha constantemente me portado como tal, mas – não riam ainda, para isso há uma explicação; tenho explicação para tudo, estejam certos disso.

Ah, se esse oficial fosse daqueles que concordavam em se bater em duelo! Mas não, este era precisamente daquele tipo de senhores (que pena! desaparecidos faz tempo) que preferiam se valer de tacos de bilhar ou que, como o tenente Pirogov, de Gógol, recorriam às autoridades[5]. Não se batiam em duelo e considerariam uma coisa indecorosa duelar com nossos irmãos civis – e, de maneira geral, achavam que o duelo era coisa impensável, coisa dos livres-pensadores e dos franceses. Mas eles próprios humilhavam bastante o próximo, especialmente se eles mesmos eram de estatura elevada.

Naquele dia eu procedi como um covarde, mas não por covardia, e sim por uma vaidade descomunal. Tive medo não da altura do meu ofensor, nem da dor da possível surra ou de ser atirado pela janela; estou certo de que eu teria suficiente coragem física; mas faltou-me coragem moral. Tive medo de que os presentes – desde o rapaz insolente que marcava os pontos até o mais insignificante barnabezinho espinhento e malcheiroso que por ali rondava com seu colarinho ensebado – não compreendessem e zombassem quando eu começasse a protestar, expressando-me em linguagem literária. Porque sobre o ponto de honra, isto é, não sobre a honra, mas sobre o ponto de honra (point d’honneur), até hoje aqui não se pode falar de outra forma que não seja a literária. Ninguém se refere a esse “ponto de honra” com a linguagem comum. Eu tinha plena convicção (vejam o senso da realidade, apesar de todo o romantismo!) de que todos eles simplesmente morreriam de rir e de que o oficial não se contentaria em me bater, ou seja, não bateria de maneira inofensiva, e fatalmente me daria joelhadas, obrigando-me a correr ao redor da mesa de bilhar, e só depois faria o favor de me jogar pela janela. É evidente que essa história miserável não poderia terminar simplesmente assim em se tratando de mim. Encontrei depois muitas vezes o tal oficial na rua e o estudei bem. Só não fiquei sabendo se ele me reconhecia. Creio que não; alguns indícios me levam a essa conclusão. Quanto a mim, olhava para ele com raiva e ódio, e isso durou... vários anos, senhores! Minha raiva até mesmo se fortalecia e aumentava com o passar dos anos. Comecei por investigar às escondidas esse oficial. Isso era difícil para mim, pois não conhecia ninguém. Mas, uma vez, alguém na rua o chamou pelo sobrenome, no momento em que eu o seguia a uma certa distância, como se estivesse atado a ele, e fiquei sabendo então seu sobrenome. Em outro dia, eu o segui até seu prédio e por dez copeques consegui que o zelador me dissesse qual o seu andar, se morava sozinho ou com alguém, etc. – em suma, tudo que se pode extrair de um zelador. Certa manhã, embora eu nunca me dedicasse à literatura, veio-me de repente a idéia de descrever esse oficial na forma de uma denúncia, de maneira caricatural, e de fazer disso uma novela. Foi com deleite que escrevi essa novela. Fiz acusações e até calúnias; a princípio, modifiquei levemente o sobrenome, de uma maneira que ainda pudesse ser reconhecido; porém, depois de uma reflexão mais madura, troquei-o por outro e mandei a novela para os Anais da Pátria. Mas não estavam na moda ainda as denúncias, e eles não publicaram minha novela. Fiquei muito chateado com isso. Às vezes a raiva me sufocava. Finalmente, resolvi desafiar meu adversário para um duelo. Compus uma carta belíssima e atraente, suplicando-lhe que se desculpasse comigo; caso ele se recusasse, eu insinuava com bastante firmeza a idéia de um duelo. A carta foi escrita de tal maneira que, se o oficial entendesse ao menos um pouquinho do “belo e sublime”, viria correndo lançar-se ao meu pescoço e oferecer-me sua amizade. E como isso seria bom! Nós nos daríamos tão bem! Tão bem! Ele me defenderia com a importância da sua posição; eu o enobreceria com minha cultura e... bem... e com idéias também, e muitas outras coisas poderiam acontecer! Imaginem os senhores que já se haviam passado dois anos desde que ele me ofendera, e meu desafio era o mais horrível anacronismo, apesar de toda a astúcia da minha carta em explicar e disfarçar o anacronismo. Mas, graças a Deus (até hoje agradeço ao Altíssimo com lágrimas nos olhos), não enviei a minha carta. Um frio me percorre o corpo quando penso no que poderia ter acontecido se a tivesse enviado. E, de repente... de repente eu me vinguei da maneira mais simples e mais genial! Subitamente veio-me à cabeça uma idéia luminosa! Às vezes, nos feriados, eu costumava ir para a Avenida Névski depois das três horas e ficava passeando no lado ensolarado. Melhor dizendo, eu não fazia propriamente um passeio, e sim sofria inúmeras torturas, humilhações e derrames de bile, mas talvez fosse disso que eu precisasse. Da maneira mais abominável, eu serpenteava como uma enguia entre os transeuntes, cedendo constantemente a passagem ora a generais, ora a oficiais da cavalaria ou dos hussardos, ora às senhoras; nesses instantes, eu sentia dores agudas no coração e um calor nas costas quando me lembrava da miséria de minha vestimenta e da insignificância e vulgaridade de minha serpenteante figurinha. Aquilo era um verdadeiro suplício, uma humilhação constante e insuportável, proveniente da idéia, que se tornava uma sensação insistente e concreta, de que eu era uma mosca no meio de toda aquela gente, uma reles mosca desnecessária – mais inteligente, mais culta e mais nobre do que todos eles, evidentemente –, porém, uma mosca que cede sempre diante de todos, que todos humilham e ofendem. Para que eu buscava tal sofrimento, por que ia à Avenida Névski? Não sei dizer, mas alguma coisa simplesmente me arrastava para lá a cada oportunidade.

Já naquela época, eu começava a experimentar os acessos daqueles prazeres de que falei no primeiro capítulo. Mas, depois da história com o oficial, algo começou a me atrair ainda mais para a Avenida Névski: era lá que eu o via com mais freqüência, lá podia admirá-lo. Ele também freqüentava o lugar de preferência nos feriados. Embora ele também saísse do caminho diante de generais e pessoas de alta posição e também serpenteasse como uma enguia entre eles, quando se tratava de alguém como eu, ou mesmo um pouco melhor, ele simplesmente o esmagava; caminhava diretamente para essa pessoa, como se na sua frente houvesse um espaço vazio, e nunca cedia passagem. Eu me embriagava com a minha raiva, observando-o, e... todas as vezes cedia-lhe o caminho, furioso. Torturava-me ver que nem mesmo na rua eu conseguia ser igual a ele. “Por que você é o primeiro a se desviar?”, implicava eu comigo mesmo, numa histeria furiosa, quando me acontecia acordar antes das três da manhã. “Por que tem de ser você e não ele? Pois não existe lei para isso, isso não está escrito em nenhum lugar. Então, que haja igualdade, como acontece geralmente quando pessoas educadas se encontram: ele cede até a metade, você também cede até a metade, e os dois passam, respeitando-se mutuamente”. Mas isso não acontecia, e era eu que acabava cedendo a passagem; quanto a ele, nem notava o fato. E, de repente, uma idéia mais que espantosa me veio à cabeça: “E se”, pensei, “se eu cruzo com ele e não cedo o caminho? Intencionalmente não me desvio do caminho, nem que tenha de empurrá-lo? Que tal, hein?” Essa idéia audaciosa aos poucos tomou conta de mim, a ponto de não me dar mais sossego. Sonhava constantemente com isso e de maneira terrível e intencional passei a ir com mais freqüência à Avenida Névski, para imaginar mais claramente como eu procederia quando fosse executar aquilo. Estava animadíssimo. Cada vez mais o que me propunha a fazer me parecia mais plausível e possível. “É evidente que não vou dar um encontrão para valer”, pensava eu, já antecipadamente mais bondoso devido à alegria, “simplesmente não vou chegar para o lado e vou esbarrar nele sem lhe causar muita dor, ombro com ombro, o bastante para ficar dentro das normas da decência de maneira que ele se choque comigo na mesma medida que eu me chocar com ele”. Finalmente, decidi-me por completo. Os preparativos, no entanto, exigiram muito tempo. Antes de mais nada, durante a execução do plano eu teria de estar com a melhor aparência possível, e para isso precisava de me preocupar com minha roupa. “Se por acaso acontecer um escândalo público (e o público lá é superflu – a condessa costuma ir lá, o príncipe D. também, toda a literatura freqüenta o lugar), é preciso estar bem vestido; isso causa boa impressão e imediatamente nos colocará de certa forma em pé de igualdade aos olhos da alta sociedade.” Com essa finalidade, pedi um adiantamento do meu salário e comprei um par de luvas pretas e um chapéu decente na loja de Tchúrkin. As luvas pretas me pareceram respeitáveis e de bom tom, mais do que as cor de limão que eu andara namorando antes. “É uma cor gritante demais, parece que a pessoa quer muito aparecer” – e não levei as cor de limão. Já tinha preparado muito tempo antes uma boa camisa com abotoaduras brancas, de marfim. Mas meu capote exigiu mais tempo. Até que o meu não era tão ruim e aquecia bem; mas era acolchoado com algodão e a gola era de pele de guaxinim, o que o tornava a coisa mais parecida possível com um sobretudo de lacaio. Era necessário, custasse o que custasse, substituir aquela gola por uma de castor, como as que os oficiais usam. Para isso eu passei a freqüentar o Mercado dos Estrangeiros e, após algumas tentativas, fixei-me numa pele de castor alemã barata. Esses castores alemães, embora se gastem muito rapidamente e logo adquiram um aspecto lastimável, têm uma aparência bastante decente quando novos; eu precisava dele para uma única ocasião. Perguntei o preço: mesmo assim era caro. Depois de muito refletir, resolvi vender minha gola de guaxinim. O que faltava, e que para mim era uma soma bem considerável, resolvi pedir emprestado a Anton Antônytch Sétotchkin, meu chefe de seção, homem pacífico, embora sério e prático, que não emprestava dinheiro a ninguém, mas a quem, na ocasião do meu ingresso, eu tinha sido especialmente recomendado pela pessoa importante que me arranjara aquele emprego. Eu estava sofrendo terrivelmente. Pedir dinheiro a Anton Antônytch me parecia uma coisa monstruosa e indigna. Cheguei a ficar umas três noites sem dormir; aliás, de maneira geral, naquela época eu dormia pouco, sentia-me febril; meu coração às vezes parecia que ia parar, ou de repente começava a saltar, saltar, saltar... Anton Antônytch a princípio admirou-se, depois franziu o rosto, refletiu e acabou por emprestar-me o dinheiro, exigindo de mim um recibo que lhe dava o direito de receber o que me fora emprestado dentro de duas semanas, descontando-o do meu salário. Desse modo, tudo estava finalmente preparado: a bela gola de castor passou a reinar no lugar do miserável guaxinim, e comecei aos pouquinhos a executar o meu plano. Não era possível decidir-me de chofre, de maneira mal pensada; era necessário elaborar o plano com competência, pouco a pouco. Mas confesso que, depois de inúmeras tentativas, quase entrei em desespero: simplesmente não havia meio de darmos o encontrão! Com todos os preparativos que eu fazia, com toda a determinação que colocava na coisa, parecia que logo-logo haveríamos de nos esbarrar – mas, novamente, eu cedia o caminho e ele passava sem me notar. Ao me aproximar dele, eu chegava até a rezar para que Deus me desse firmeza. Certa vez, eu já me decidira definitivamente a enfrentá-lo, mas no final das contas caí bem aos seus pés, porque no último instante, a menos de um palmo de distância dele, faltou-me coragem. Ele passou por cima de mim com a maior tranqüilidade e eu voei para o lado, como uma bola. Naquela noite, novamente fiquei doente, febril, e tive delírios. E, de repente, tudo terminou da melhor maneira possível. Na véspera, à noite, eu havia decidido desistir definitivamente da execução do meu plano e deixar tudo para trás e, com esse objetivo, fui pela última vez à Avenida Névski, só para verificar como deixaria tudo para trás. De repente, a três passos do meu inimigo, repentinamente me decidi, fechei os olhos e – nós nos chocamos fortemente, ombro contra ombro! Eu não cedi nem uma polegada e passei por ele como um igual! Ele nem ao menos se virou e fingiu que não notara, mas foi somente fingimento, estou certo disso. Até hoje tenho certeza disso! Claro está que eu sofri mais, pois ele era mais forte, mas não era isso que importava. O importante foi que consegui o meu objetivo, mantive a minha dignidade, não cedi nem um passo e, à vista de todos, me comportei com ele como uma pessoa do mesmo nível social. Voltei para casa sentindo-me completamente vingado de tudo. Estava na maior alegria. Sentia-me vitorioso e cantava árias italianas. Evidentemente, não vou contar aos senhores o que se passou comigo três dias depois. Se leram a primeira parte, “O subsolo”, serão capazes de adivinhar sozinhos. Aquele oficial foi transferido mais tarde, nem sei para onde. Faz agora uns catorze anos que não o vejo. Que estará fazendo agora o meu querido amigo? Em quem estará pisando?

 


2


Mas a fase de minhas devassidõezinhas estava terminando, e eu começava a ficar terrivelmente nauseado. Se era assomado pelo arrependimento, eu o enxotava: a náusea que ele causava era demasiada. Aos poucos, porém, fui me acostumando com isso também. Eu me acostumava a tudo, ou melhor, não me acostumava, propriamente, e sim, de certa forma, concordava voluntariamente em suportar. Mas eu tinha uma saída conciliadora, que era refugiar-me em tudo que fosse “belo e sublime”, em sonhos, naturalmente. Eu era um terrível sonhador, sonhava até por três meses seguidos, enfiado no meu canto, e creiam-me: nesses momentos eu não me parecia com aquele senhor que, na perturbação de seu coração de galinha, costurava uma pele de castor alemã à gola do seu capote. De repente me transformava em herói. Não admitiria meu tenente grandalhão na minha casa nem como visita. Já nem conseguia mais imaginá-lo. Agora é difícil dizer quais eram os meus sonhos e como eles podiam me satisfazer, mas o fato é que naquela época eles me satisfaziam. Aliás, mesmo agora eu me satisfaço parcialmente dessa maneira. Sonhos particularmente mais fortes e doces me vinham depois da devassidãozinha, vinham com arrependimento e lágrimas, com maldições e arrebatamentos. Aconteciam momentos tão bons de inebriamento, de tal felicidade, que, juro por Deus, não sentia dentro de mim nem sombra de deboche. O que havia era fé, esperança e amor. Acontece que, naquela época, o que eu acreditava cegamente era que por um milagre, por uma circunstância exterior qualquer, tudo de repente iria mover-se, alargar-se; que de repente surgiria o horizonte da atividade conveniente, nobre e maravilhosa e, principalmente, completamente pronta (exatamente qual seria eu nunca soube, mas o mais importante é que estaria completamente pronta), e eu surgiria de repente neste mundo de Deus nada menos que montado num cavalo branco e com uma coroa de louros. Um papel secundário eu nunca pude aceitar, e era por isso que na vida real ocupava muito tranqüilamente o último lugar. Ou herói ou a lama, não havia meio-termo. Isso foi a minha perdição, porque, na lama, eu me consolava dizendo que em outras ocasiões eu era herói, e o herói encobria a sujeira: para uma pessoa comum, é vergonhoso sujar-se na lama, mas um herói está muito acima de tudo e não vai se sujar inteiramente, por isso ele pode sujar-se um pouco. É admirável que esses acessos de “tudo o que é belo e sublime” me vinham também durante minha devassidãozinha, e precisamente no momento em que eu me encontrava já no fundo; vinham como pequenos lampejos isolados, como que para se fazerem lembrar, mas, pelo fato de aparecerem, não a impediam; ao contrário, parece que a avivavam pelo contraste e vinham na medida exata para um bom molho. O molho, aqui, era constituído de contradições e sofrimentos, de uma análise interior martirizante, e todos esses suplícios e supliciozinhos conferiam um sabor picante e até um sentido à minha devassidãozinha – em suma, executavam perfeitamente a função de um bom molho. Tudo isso se dava não sem uma certa profundidade. E acaso eu poderia concordar com uma devassidãozinha de segunda, simples, vulgar, direta, de amanuense, e suportar toda essa sujeira? Que poderia haver nela para me seduzir e atrair para a rua à noite? Não, senhores, eu tinha uma escapatória nobre para tudo...

Porém, quanto amor, senhores, quanto amor eu experimentava nesses meus devaneios, nessas “salvações em tudo o que é belo e sublime”: embora fosse um amor fantástico que jamais se aplicaria a alguma coisa humana e real, ele era tão grande que nem se sentia necessidade de aplicá-lo à realidade, pois seria um luxo excessivo. Tudo, aliás, terminava sempre da maneira mais satisfatória, com a passagem preguiçosa e inebriante para a arte, ou seja, para as belas formas da existência, inteiramente acabadas, fortemente roubadas dos poetas e romancistas e que se adaptam facilmente a toda sorte de serviços e exigências. Eu, por exemplo, triunfo sobre todo mundo. Todos, evidentemente, viraram pó e são obrigados a reconhecer espontaneamente as minhas perfeições, mas eu os perdôo. Ora me apaixono, quando sou um poeta célebre e camerista da corte, ora recebo incontáveis milhões e logo em seguida sacrifico-os em prol do gênero humano e, na mesma ocasião, confesso diante do povo as minhas infâmias que, evidentemente, não são simplesmente infâmias, mas que encerram em si uma quantidade extraordinária de “belo e sublime”, algo “manfrediano”[6]. Todos choram e me beijam (de outra forma, que idiotas eles seriam!), e eu parto, descalço e faminto, para pregar novas idéias e derroto os retrógrados em Austerlitz![7] Em seguida começa a soar uma marcha, é decretada a anistia, o papa concorda em deixar Roma e ir para o Brasil[8]; depois há um baile para toda a Itália na Villa Borghese[9], que está situada na margem do lago de Como, que fora transportado para Roma especialmente para essa ocasião; depois há uma cena entre os arbustos, etc., etc. Será que senhores não sabem disso? Os senhores dirão que é vulgar e indigno expor tudo isso em praça pública, depois de tantos arrebatamentos e lágrimas que eu mesmo confessei. Por que seria indigno? Será possível que os senhores pensem que eu me envergonho de tudo isso e que tudo isso era mais idiota do que qualquer episódio de suas próprias vidas? Ademais, acreditem os senhores: algumas coisas estavam até bem resolvidas para mim... Nem tudo se passava no lago de Como. Aliás, os senhores estão certos: de fato era vulgar e indigno. Mas o mais indigno de tudo é que agora comecei a me justificar para os senhores. E mais indigno ainda é eu estar fazendo esta observação. Mas basta, senão isso nunca terá fim: sempre haverá uma coisa mais indigna que a anterior...

Eu não era capaz de ficar mais de três meses seguidos devaneando e começava então a sentir uma necessidade incontrolável de mergulhar na sociedade, o que, para mim, significava visitar o meu chefe de seção, Anton Anônytch Sétotchkin. Foi a única pessoa conhecida com quem mantive uma relação constante durante toda a vida, fato que, agora, até eu mesmo considero surpreendente. Mas, mesmo à sua casa, eu só ia quando entrava na fase oportuna, e meus sonhos atingiam tal felicidade que eu sentia uma necessidade imperiosa de imediatamente abraçar as pessoas e toda a humanidade; e, para isso, era necessário ter a presença de pelo menos uma pessoa concreta. Anton Antônytch recebia às terças-feiras e, conseqüentemente, a vontade de abraçar toda a humanidade tinha que cair sempre na terça-feira. Esse Anton Antônytch morava perto das Cinco Esquinas, no quarto andar, num apartamento de quatro peças, cada uma menor que a outra, com o teto baixinho, tudo meio amarelado e dando a impressão de economia. Viviam com ele as duas filhas e a tia delas, que servia o chá. As filhas tinham treze e catorze anos e ambas tinham narizinho arrebitado. Eu ficava terrivelmente constrangido na presença das meninas, porque elas cochichavam o tempo todo, dando risadinhas. O dono da casa geralmente permanecia no seu escritório, sentado num divã de couro em frente à mesa, em companhia de algum convidado de cabelos grisalhos, funcionário do nosso departamento ou mesmo de algum outro. Nunca vi lá mais de dois ou três visitantes, e eram sempre os mesmos. Conversavam sobre o imposto indireto, as licitações no senado, os salários, a produção, Sua Excelência, os meios de agradar, etc. etc. Pacientemente, eu ficava ali sentado umas quatro horas junto a essas pessoas como um idiota, ouvindo-as, sem coragem ou sem assunto para falar com elas. Sentia-me burro, vinham-me ondas de suor e parecia que estava tendo um ataque de paralisia, mas isso tinha seu lado bom e útil. Chegando em casa, por algum tempo desistia do meu desejo de abraçar a humanidade.

Pensando bem, eu ainda tinha um tipo de conhecido, o meu colega de escola Símonov. Eu tinha muitos ex-colegas de escola em Petersburgo, mas não me dava com eles e já nem os cumprimentava na rua. Talvez eu tenha pedido transferência para outro departamento justamente para não ficar junto deles e romper de uma vez por todas com a minha infância detestável. Que a maldição caia sobre aquela escola e aqueles terríveis anos de trabalhos forçados! Resumindo, eu me separei dos meus colegas assim que ganhei a liberdade. Restaram uns dois ou três que eu ainda cumprimentava quando encontrava. Um deles era Símonov, que na escola não se distinguia em nada, era quieto e constante, mas em quem eu percebi alguma independência de caráter e mesmo honestidade. Até nem acho que ele fosse muito limitado. Numa certa época, nós dois tivemos alguns momentos bastante agradáveis, mas que não duraram muito e, de repente, parece que foram encobertos por uma espécie de bruma. Aparentemente, essas recordações eram difíceis para ele, que parecia temer que eu voltasse ao antigo tom. Eu desconfiava de que lhe causava muita repugnância, mas apesar de tudo eu o visitava, pois não tinha certeza absoluta disso.

Certa quinta-feira, não suportando minha solidão e sabendo que naquele dia a porta de Anton Antônytch estava fechada, lembrei-me de Símonov. Quando subia para o quarto andar, estava exatamente pensando que esse senhor não se sentia à vontade comigo e que em vão eu o procurava. Mas, como sempre, tais reflexões, como que de propósito, incitavam-me ainda mais a me meter em situações dúbias, e eu entrei. Fazia quase um ano que eu não via Símonov.

 


3


Encontrei ali mais dois ex-colegas da escola. Eles pareciam conversar sobre algo muito importante. Nenhum deles pareceu prestar muita atenção à minha entrada, o que era estranho, pois fazia anos que não nos víamos. Pelo visto, consideravam-me algo semelhante a uma mosca, das mais comuns. Não me tratavam assim nem mesmo na escola, embora lá todos me odiassem. É claro que eu compreendia que agora eles deviam me desprezar devido ao meu fracasso na carreira de funcionário, e também porque minha aparência era péssima, andava mal vestido, o que, aos olhos deles, era um sinal evidente de minha incapacidade e pouca importância. Mesmo assim, eu não esperava tal grau de desprezo. Símonov até demonstrou espanto com a minha chegada. Antes também ele sempre parecia de certo modo se espantar com minhas visitas. Tudo isso me deixou desconcertado. Sentei-me com uma certa angústia e fiquei ouvindo o que eles diziam.

Peguei no meio uma conversa séria e até mesmo empolgada a respeito de um jantar de despedida que aqueles senhores queriam organizar já para o dia seguinte, em homenagem a um amigo, Zverkov, que servia no exército como oficial e estava de partida para uma província distante. Monsieur Zverkov tinha sido também meu colega durante toda a escola. Passei a odiá-lo especialmente nas últimas séries. Nos primeiros anos, ele era apenas um menino bonitinho e esperto, de quem todos gostavam. Aliás, eu o odiava também nos primeiros anos por ele ser bonitinho e esperto. Ele foi sempre um mau estudante e, quanto mais velho, pior. Apesar de tudo, conseguiu terminar o curso, pois era protegido de alguém importante. No último ano ele recebeu de herança duzentas almas[10] e, como a maioria de nós era pobre, ele começou a fanfarronar até diante de nós. Era um sujeito vulgar em alto grau, mas era também um bom rapaz, mesmo quando fanfarronava. Entre os estudantes, apesar das demonstrações externas, fantásticas e bombásticas de honra e amor-próprio, todo mundo, com raras exceções, cortejava esse Zverkov e, quanto mais ele fanfarronava, mais o cortejavam. E não buscavam alguma vantagem, faziam aquilo apenas porque ele fora privilegiado pela natureza, que lhe concedera aqueles dons. Acresce que entre nós ele era considerado um especialista em formas corretas de agir e em boas maneiras. Este último item me deixava furioso. Eu detestava sua voz cortante, cheia de autoconfiança, sua adoração das próprias piadas, na realidade terrivelmente idiotas, embora ele tivesse uma língua ferina; odiava seu rosto bonito, mas bobinho (pelo qual, aliás, eu trocaria de boa vontade o meu rosto inteligente), e suas maneiras despachadas de oficial dos anos quarenta. Odiava quando ele falava de seus futuros sucessos com as mulheres (ele não se decidia a procurar mulheres enquanto não tivesse galões de oficial e aguardava-os com impaciência) e também de que ele iria a cada instante bater-se em duelo. Lembro-me de uma vez em que eu, que ficava sempre calado, me engalfinhei de repente com Zverkov, que conversava no tempo livre com os colegas sobre suas futuras aventuras amorosas e, por farra, como um cãozinho novo que se espoja ao sol, declarou que nenhuma das camponesas jovens de sua aldeia deixaria de receber sua atenção, que isso era um droit de seigneur[11] e que, se os homens ousassem protestar, ele haveria de açoitar aqueles canalhas barbudos um por um e cobraria seus tributos em dobro. Nossos cretinos o aplaudiram por isso, mas eu me atraquei com ele, e não foi por pena das moças e de seus pais, mas simplesmente porque um inseto como aquele recebia tantos aplausos. Daquela vez eu venci, mas Zverkov, embora fosse burro, era alegre e atrevido e soube se sair bem por levar tudo na brincadeira, o que, verdade seja dita, diminuiu um pouco a minha vitória. Depois disso, ele me subjugou várias vezes, mas sem maldade, de brincadeira, ao passar por mim com um riso nos lábios. Cheio de raiva, eu o desprezava com o meu silêncio. Na ocasião de nossa formatura, ele demonstrou a intenção de se aproximar de mim; não me opus frontalmente, porque o fato me deixou lisonjeado, mas em seguida nos separamos naturalmente.

Mais tarde, ouvi narrativas sobre seus sucessos na caserna e como tenente, e também sobre suas farras. Depois ouvi outros boatos sobre seus avanços na carreira. Ele já não me cumprimentava na rua e eu desconfiava de que ele tinha medo de se comprometer se mostrasse conhecer alguém tão insignificante como eu. Vi-o certa vez no teatro, no terceiro balcão, já com alamares. Ele se curvava e fazia mesuras para as filhas de um velho general. Nesses três anos ele havia decaído muito, embora continuasse bastante bonito e ágil; parecia inchado e começava a engordar. Via-se que, lá pelos trinta anos, estaria completamente obeso. E era para esse Zverkov, que finalmente estava de partida, que meus colegas queriam oferecer um jantar. Eles sempre se encontraram durante esses três anos, embora no fundo não se considerassem do mesmo nível que ele, estou certo disso.

Um dos outros dois visitantes de Símonov era Ferfítchkin, russo descendente de alemães, de estatura baixa e cara de macaco, um idiota que zombava de todo mundo. Era o meu pior inimigo desde as primeiras séries – um calhorda insolente, um fanfarrãozinho que encenava ter um amor-próprio muito sensível, embora lá no íntimo fosse, evidentemente, o maior covarde. Era um dentre os admiradores de Zverkov, que o bajulavam abertamente e estavam sempre lhe pedindo dinheiro emprestado. O outro visitante de Símonov, Trudoliúbov, não tinha nenhuma característica especial na sua personalidade. Era um militar alto, com um rosto frio, bastante honesto, mas que se inclinava diante de qualquer um que fosse bem-sucedido, e só era capaz de conversar sobre produção. Era parente distante de Zverkov, o que, embora isso pareça tolo, lhe conferia no nosso meio alguma importância. Para ele, eu não era nada, embora me tratasse de uma maneira, eu não diria polida, mas suportável.

– Vejamos, se forem sete rublos de cada um – disse Trudoliúbov –, como somos três, serão vinte e um rublos. Dá para jantar bem. Zverkov, naturalmente, não vai pagar.

– Claro, se fomos nós que o convidamos – decidiu Símonov.

– Vocês acreditam mesmo – intrometeu-se Ferfítchkin de maneira arrogante e veemente, como um lacaio insolente que se vangloria das condecorações do seu patrão general – que Zverkov vai nos deixar pagar tudo? Ele vai aceitar por delicadeza, mas, em compensação, vai pedir champanhe por sua conta, uma meia dúzia.

– Ora, para que meia dúzia para nós quatro? – observou Trudoliúbov, que só prestara atenção na meia dúzia.

– Bom, então somos três, quatro com Zverkov, são vinte e um rublos para o Hôtel de Paris, amanhã às cinco horas – concluiu Símonov, que tinha sido eleito organizador.

– Como vinte e um? – disse eu, um tanto alterado e, creio, até mesmo meio ofendido. – Se contarem comigo, não são vinte e um rublos, e sim vinte e oito.

Julguei que oferecer-me de repente, sem que ninguém esperasse, seria um gesto até bem bonito e que todos eles imediatamente se renderiam a mim e me olhariam com respeito.

– Por acaso o senhor também quer ir? – perguntou Símonov aborrecido e de certo modo evitando olhar para mim.

Ele me conhecia de cor e salteado. Fiquei furioso por ele me conhecer tão bem.

– E por que não? Parece que eu também fui seu colega e confesso que até me sinto ofendido por não terem me convidado – disse eu, começando a me alterar de novo.

– Mas onde nós poderíamos encontrá-lo? – intrometeu-se indelicadamente Ferfítchkin.

– O senhor nunca se deu bem com Zverkov – acrescentou Trudoliúbov, franzindo o cenho.

Mas eu já me agarrara à idéia e não a soltava.

– Acho que ninguém tem o direito de julgar isso – objetei com voz trêmula, como se algo terrível tivesse acontecido. Talvez seja precisamente por não me ter dado bem com ele antes que agora eu queira ir.

– Ora, quem há de entendê-lo! O senhor com seus altos sentimentos... – escarneceu Trudoliúbov.

– O senhor será incluído – resolveu Símonov, dirigindo-se a mim. – Amanhã, às cinco horas, no Hôtel de Paris. Não vá se enganar.

– E quanto ao dinheiro? – começou Ferfítchkin para Símonov, a meia-voz e indicando-me com a cabeça, porém não terminou, porque até Símonov estava sem jeito.

– Basta – disse Trudoliúbov, levantando-se. – Se deu tanta vontade assim nele, que vá.

– Mas nós somos um grupinho de amigos – disse Ferfítchkin furioso, apanhando seu chapéu. Não era para ser uma reunião oficial. Pode ser que não queiramos de jeito nenhum a sua presença...

Eles se foram. Ferfítchkin saiu sem se despedir de mim e Trudoliúbov fez-me um leve aceno de cabeça, sem me fitar. Símonov, com quem fiquei frente a frente, estava meio perplexo e contrariado, olhando-me de modo estranho. Permanecia de pé e não me convidou para sentar.

– Hum... é... amanhã, então? Quanto ao dinheiro, vai dar agora? É só para eu saber com certeza – balbuciou confuso.

Fiquei vermelho de raiva, mas nesse momento lembrei-me de que desde tempos imemoriais eu devia a Símonov quinze rublos, que, aliás, eu nunca havia esquecido, mas que tampouco nunca devolvera.

– O senhor há de concordar que eu não podia saber quando aqui cheguei... e estou muito aborrecido por ter esquecido...

– Está bem, está bem, tanto faz. Pagará amanhã, no jantar. Perguntei só para saber... O senhor, por favor...

Embatucou de repente e ficou andando pela sala ainda mais contrariado. Ao caminhar, pôs-se a equilibrar-se nos saltos dos sapatos e a batê-los no chão.

– Estou tomando seu tempo? – perguntei, quando já estávamos uns dois minutos calados.

– Oh, não! – exclamou ele, como que acordando. – Ou melhor, para dizer a verdade, sim. É que eu ainda preciso dar uma passada... É aqui perto... – acrescentou meio envergonhado, com voz de quem pede desculpa.

– Oh, meu Deus! Por que não me disse? – exclamei, pegando meu boné, com um ar incrivelmente desinibido que baixou em mim vindo só Deus sabe de onde.

– É aqui pertinho... a dois passos daqui... – repetiu Símonov, acompanhando-me até a saída com uma maneira agitada que não combinava com ele. – Então, amanhã às cinco em ponto! – gritou-me, enquanto eu descia a escada. Ele estava muito contente com a minha saída. Quanto a mim, estava furioso.

– Mas por que eu tinha de me meter nessa história?! – ia eu rangendo os dentes pela rua. – E logo para aquele calhorda, aquele porco do Zverkov! É evidente que não devo ir; é evidente que devo mandar tudo isso às favas: sou obrigado a ir, por acaso? Amanhã mesmo mando uma carta a Símonov, avisando.

Mas o motivo verdadeiro da minha raiva era que eu tinha certeza absoluta de que iria ao jantar; de que propositalmente iria; e, quanto mais falta de tato e de decência houvesse na minha ida, mais vontade eu tinha de ir.

E tinha até um motivo de peso para não ir: não tinha dinheiro. Tudo o que possuía eram nove rublos, mas no dia seguinte eu teria de pagar ao meu criado Apollon sete rublos, seu salário mensal; ele morava na minha casa, mas vivia às próprias custas.

Deixar de pagar a Apollon era impossível, devido ao seu temperamento. Mas em outra ocasião falarei sobre esse canalha, sobre essa praga na minha vida.

Aliás, eu sabia perfeitamente que não lhe daria o dinheiro e que não faltaria ao jantar.

Naquela noite tive sonhos monstruosos. Não era de admirar: até conseguir pegar no sono, as lembranças dos anos de prisioneiro na minha vida escolar me oprimiram e não consegui me livrar delas. Eu tinha sido colocado naquela escola por uns parentes distantes, dos quais eu dependia e de quem nunca mais soube nada. Deixaram-me lá, órfão. Já então me retraía, devido às censuras deles. Era pensativo, calado e olhava desconfiado para tudo. Os colegas me receberam com zombarias impiedosas e malévolas pelo fato de eu não me parecer com nenhum deles. Mas eu não podia suportar as zombarias; não podia acostumar-me com a mesma facilidade com que eles se acostumavam uns aos outros. Odiei-os desde o início, isolando-me num orgulho assustado, ferido e exagerado. As grosserias deles me revoltavam. Eles riam cinicamente da minha cara, da minha figura desengonçada; no entanto, que caras idiotas eles tinham! Na nossa escola, as expressões dos rostos modificavam-se com o passar do tempo e tornavam-se particularmente estúpidas. Quantos meninos maravilhosos ingressavam lá! Depois de alguns anos, dava asco olhar para eles. Aos dezesseis anos, eu os observava carrancudo e me espantava com eles; já naquela época eu ficava admirado com a mesquinhez dos seus pensamentos, com as coisas idiotas com que se ocupavam, com seus jogos, suas conversas. Havia tantas coisas importantes que eles não entendiam, tantos assuntos empolgantes e apaixonantes que não despertavam o interesse deles, que sem querer eu comecei a me achar superior a eles. Não era uma vaidade despeitada que me levava a isso e, pelo amor de Deus, não me venham com aqueles chavões aborrecidos e nauseantes: “que eu ficava apenas sonhando, enquanto eles já entendiam a vida real”. Eles não entendiam nada da vida real e juro que era isso o que mais me revoltava neles. Ao contrário, a realidade mais evidente, que saltava aos olhos, era percebida por eles de maneira fantasticamente tola, e já naquela época tinham o hábito de curvar-se unicamente ao sucesso pessoal. Todas as coisas justas, mas oprimidas e humilhadas, eram motivo de suas zombarias impiedosas e infames. Eles achavam que ser inteligente era obter um cargo elevado; aos dezesseis anos já discorriam sobre sinecuras. Evidentemente, muito disso era por estupidez e por causa dos maus exemplos a que foram submetidos na infância e na adolescência. Eram monstruosamente depravados. É claro que isso, na maior parte das vezes, era pura fachada, um cinismo estudado; é claro que a juventude e um certo frescor às vezes transpareciam neles até por trás da depravação; mas mesmo esse frescor era desagradável e se manifestava como uma sensualidade grosseira. Eu os odiava terrivelmente, embora talvez fosse até pior que eles. Eles me pagavam na mesma moeda e não disfarçavam a repugnância que sentiam por mim. Mas eu já não desejava o afeto deles; ao contrário, ansiava o tempo todo por sua humilhação. Para me livrar de suas zombarias, esforçava-me para estudar o melhor possível e finalmente galguei um lugar entre os primeiros alunos. Dessa forma eu me impus. Além disso, pouco a pouco eles foram compreendendo que eu já lia livros que eles não conseguiam ler e entendia de assuntos que não faziam parte de nosso programa escolar, dos quais eles nunca tinham ouvido falar. Encaravam isso com sarcasmo e raiva, mas moralmente se submetiam, ainda mais porque, agindo assim, eu já tinha conseguido até que os professores me notassem. Pararam com as zombarias, mas a antipatia continuou e nossas relações se tornaram frias e tensas. No final, eu mesmo não agüentei mais: com o passar dos anos, cresceu uma necessidade de ter contato com pessoas, de ter amigos. Fiz várias tentativas de me aproximar de alguns deles, mas essa aproximação era sempre artificial e terminava por si mesma. Numa certa época, cheguei a ter um amigo. Mas, no íntimo, eu já era um déspota; queria ter poder absoluto sobre sua alma. Procurei inculcar nele desprezo pelo ambiente que o rodeava; arrogantemente exigi dele um rompimento total e definitivo com esse ambiente. Assustei-o com minha amizade cheia de paixão; levei-o muitas vezes às lágrimas e às convulsões. Era uma alma ingênua, que se entregava com facilidade, mas, quando ele se entregou totalmente a mim, imediatamente passei a odiá-lo e afastei-o de mim – como se eu precisasse dele apenas para triunfar sobre ele e subjugá-lo. Mas eu não poderia triunfar sobre todos; meu amigo também era diferente de todo mundo, era de fato uma exceção das mais raras. A primeira coisa que fiz quando deixei a escola foi abandonar o emprego especial que me haviam destinado, a fim de romper todas as ligações com o passado, amaldiçoá-lo e cobri-lo de cinzas... Com os diabos! Por que, depois de tudo isso, eu tinha de ir à casa daquele Símonov!?...

De manhã cedo acordei sobressaltado e pulei agitado da cama, como se tudo já fosse começar a acontecer. Estava convencido de que teria início naquele mesmo dia uma mudança radical na minha vida. Talvez por falta de costume, sempre me pareceu que o menor acontecimento exterior indicava que imediatamente uma mudança drástica na minha vida iria começar. Apesar disso, fui para o trabalho como de costume, mas escapuli duas horas mais cedo e vim para casa me preparar. “O mais importante é não ser o primeiro a chegar”, pensava, “senão vão achar que estou dando muito valor”. Mas tinha que resolver mil coisas importantes, que me deixaram exausto de tanta preocupação. Eu mesmo limpei novamente as minhas botas; por nada neste mundo Apollon as limparia duas vezes no mesmo dia, pois para ele isso seria quebra de regulamento. Eu as limpei, pegando às escondidas a escova no vestíbulo para que ele não visse e não me tratasse com desprezo depois. A seguir, examinei detalhadamente minhas roupas e vi que estava tudo velho, puído e surrado. Eu tinha descuidado demais de mim. Talvez o uniforme de serviço fosse a coisa mais apresentável, mas não ficava bem ir de uniforme a um jantar. O pior é que a minha calça tinha uma enorme mancha amarela na altura do joelho. Comecei a pressentir que somente essa mancha já tiraria nove décimos do meu amor-próprio. Sabia também que era muito mesquinho pensar assim. “Mas não é hora de ficar pensando; é hora de encarar a realidade”, pensei desanimado. Já naquele momento eu tinha também perfeita consciência de que estava exagerando de maneira monstruosa aqueles fatos; porém, que podia fazer? Não conseguia me dominar mais e tinha tremores febris. Já antevia, desesperado, que o “canalha” do Zverkov me receberia com frieza e arrogância; que o jumento do Trudoliúbov olharia para mim com um desprezo obtuso e inflexível; que o insignificante do Ferfítchkin daria risadinhas nojentas e insolentes às minhas custas para agradar a Zverkov; que no íntimo Símonov compreenderia tudo perfeitamente e me desprezaria pela baixeza de minha vaidade e covardia e, principalmente, eu já antevia como tudo seria paupérrimo, não literário, banal. Estava claro que o melhor seria não ir, mas isto já era totalmente impossível: quando algo começava a me puxar, eu me entregava inteiro, de cabeça. Senão, depois passaria o resto da vida implicando comigo mesmo: “Viu só? Acovardou-se, acovardou-se diante da realidade, acovardou-se!” Ao contrário, queria mostrar para toda aquela “corja” que não era absolutamente o covarde que eu mesmo me imaginava. Além disso: no mais intenso paroxismo da minha febre covarde, eu sonhava sair vencedor, fasciná-los e obrigá-los a me amar – nem que fosse pela “elevação das idéias e indiscutível presença de espírito”. Eles deixariam Zverkov de lado, num canto, calado e envergonhado, e eu o esmagaria. Depois, talvez eu fizesse as pazes com ele, nós brindaríamos, tratando-nos por você, mas o que mais me aborrecia e deixava furioso era que já então eu sabia perfeitamente que, no fundo, não precisava de nada daquilo; que, no fundo, não desejava de modo algum esmagar, dominar, magnetizar quem quer que fosse e, se alcançasse esse resultado, eu seria o primeiro a não dar um tostão por ele. Oh, como rezei a Deus para que aquele dia acabasse logo! Numa angústia indescritível, chegava à janela, abria a janelinha de ventilação e ficava olhando a obscuridade turva da neve úmida que caía densamente.

Finalmente, meu horrível relógio de pêndulo martelou as cinco horas. Agarrei meu chapéu e, esforçando-me para não olhar para Apollon, que desde a manhã esperava seu pagamento, mas que por orgulho não queria ser o primeiro a tocar no assunto, deslizei pela porta, passando por ele, e embarquei no carro de luxo que havia contratado com meus últimos cinqüenta copeques e, como um senhor importante, cheguei ao Hôtel de Paris.

 


4


Já na véspera eu sabia que seria o primeiro a chegar. Mas não era mais disso que se tratava agora.

Não só não havia ninguém, como até tive dificuldade para encontrar nosso reservado. A mesa nem estava totalmente pronta. Que significaria aquilo? Depois de muito perguntar, consegui finalmente com os empregados a informação de que o jantar tinha sido marcado para as seis horas, e não para as cinco. Isso foi confirmado também no bufê. Fiquei até envergonhado por estar perguntando. Eram ainda cinco e vinte. Se eles tinham mudado a hora, deveriam ter me avisado, para isso existe o correio municipal, e não submeter-me àquele “vexame” perante mim mesmo e... e até perante os empregados! Sentei-me. Um empregado começou a arrumar a mesa; comecei a me sentir ainda mais ultrajado com a presença dele. Pouco antes das seis, além dos lampiões que já estavam acesos na sala, foram trazidos castiçais com velas. Mas os criados nem tiveram a idéia de trazê-los logo que eu cheguei. Na sala ao lado havia dois senhores jantando em mesas separadas, ambos de aparência sombria, taciturnos e com ar zangado. Num dos reservados mais distantes havia muito barulho; algumas pessoas até gritavam; ouviam-se as gargalhadas de um batalhão de pessoas; soavam uns guinchos terríveis em francês... no jantar havia senhoras. Em suma, tudo aquilo era muito repugnante. Poucas vezes passei momentos tão deploráveis, por isso, quando às seis em ponto chegaram todos ao mesmo tempo, a princípio fiquei feliz, como se eles fossem meus libertadores, e por pouco não esqueci que precisava parecer ofendido.

Zverkov foi o primeiro a entrar, pelo visto chefiando o grupo. Todos estavam rindo, mas, ao ver-me, Zverkov empertigou-se, aproximou-se devagar meneando levemente a cintura, como que se pavoneando, e estendeu-me a mão, afetuosamente, porém não muito, com uma polidez cautelosa, quase de general. Era como se, dando-me a mão, estivesse se protegendo de alguma coisa. Eu estava imaginando, ao contrário, que ele entraria e imediatamente soltaria sua gargalhada de antigamente, fininha e esganiçada, e que, ao abrir a boca, só se ouviriam seus gracejos e pilhérias estúpidas. Já vinha me preparando para ele desde a noite anterior, mas não esperava nunca tal postura superior, tal carinho condescendente. Quer dizer que ele se considerava agora imensamente superior a mim em todos os sentidos? Se, com a pose de general, ele estivesse apenas querendo me ofender, isso não seria nada, de alguma maneira eu mandaria tudo às favas – pensava eu. Mas que fazer se ele realmente não tivesse nenhuma vontade de me ofender e se seriamente tivesse entrado naquela cabeça de carneiro a ideiazinha de que ele era imensamente superior a mim e de que só poderia me ver de uma posição protetora? Só de supor isso comecei a sentir falta de ar.

– Causou-me surpresa saber do seu desejo de participar junto conosco – começou ele, ciciando, sussurrando e alongando as palavras, o que ele não fazia antigamente. – Nós ficamos muito tempo sem nos encontrar. O senhor nos evitava. Sem razão. Não somos tão horríveis como lhe parecemos. Bom, de qualquer maneira, estou contente de res-ta-be-le-cer...

E ele displicentemente deu-me as costas para colocar o chapéu sobre a janela.

– Estava esperando há muito tempo? – perguntou-me Trudoliúbov.

– Cheguei às cinco em ponto, como me foi dito ontem – respondi em voz alta e com uma irritação que prenunciava uma explosão iminente.

– Mas você não comunicou a ele que mudamos a hora? – perguntou Trudoliúbov a Símonov.

– Não, esqueci – respondeu este sem mostras de qualquer arrependimento e, sem sequer me pedir desculpas, foi providenciar que servissem as entradas.

– Então, o senhor está aqui já faz uma hora. Coitado! – exclamou em tom de gracejo Zverkov. Na opinião dele, o fato devia ser mesmo terrivelmente engraçado. Seguindo seu exemplo, o canalha do Ferfítchkin disparou a dar gargalhadas com sua vozinha nojenta e estridente de cachorrinho. Ele também estava achando a minha situação muito confusa e engraçada.

– Isto não é nem um pouco engraçado! – gritei para Ferfítchkin, cada vez mais nervoso. – A culpa é de outros, não minha. Não se deram ao trabalho de me avisar. Isto... isto... isto... é simplesmente um absurdo!

– Não é apenas um absurdo, é algo mais – rosnou Trudoliúbov, ingenuamente tomando minha defesa. – O senhor está sendo muito brando. Foi simplesmente uma indelicadeza. É claro que não foi proposital. E como é que Símonov... Hum!

– Se alguém fizesse uma brincadeira dessas comigo, eu... – começou Ferfítchkin.

– Você mandaria que lhe servissem alguma coisa – interrompeu Zverkov –, ou simplesmente pediria o jantar, sem esperar.

– Os senhores hão de concordar que eu poderia ter feito isso sem a sua autorização – repliquei. Se esperei, foi...

– Vamos nos sentar, senhores – exclamou Símonov, entrando. – Está tudo pronto. Respondo pelo champanhe, está perfeitamente gelado... Mas não conheço seu apartamento, não sabia onde encontrá-lo – disse ele de repente, dirigindo-se a mim, mas novamente sem me fitar. Era evidente que tinha alguma coisa contra mim. Tudo indicava que, desde o dia anterior, ele andara refletindo.

Todos se sentaram; também me sentei. A mesa era redonda. À minha esquerda ficou Trudoliúbov, à direita, Símonov. Zverkov sentou-se à minha frente; Ferfítchkin ficou entre ele e Trudoliúbov.

– Di-i-i-ga-me, o senhor trabalha... num departamento? – perguntou-me Zverkov, continuando a dar-me atenção.

Percebendo que eu estava meio perdido ali, ele seriamente imaginou que era necessário tratar-me bem, infundir-me ânimo. “Será que ele está querendo que eu atire uma garrafa na sua cabeça?”, pensei furioso. Não estava acostumado àquela situação e irritava-me com uma rapidez injustificada.

– Na repartição nº... – respondi com voz entrecortada, olhando para o meu prato.

– Tem alguma vantagem lá? Di-iga-me, o que o fe-ez deixar o emprego anterior?

– O que me fe-e-ez, foi que eu qui-i-is deixar o emprego anterior – disse eu, alongando três vezes mais as sílabas. Quase não conseguia mais me dominar.

Ferfítchkin fungou; Símonov lançou-me um olhar irônico; Trudoliúbov parou de comer e pôs-se a examinar-me com curiosidade.

Zverkov ficou perplexo, mas disfarçou.

– Bem, e quanto ao seu sustento?

– Que sustento?

– O salário, quero dizer.

– Mas que é isto, uma argüição?

Entretanto, no mesmo instante eu lhe disse quanto ganhava e fiquei terrivelmente vermelho.

– Não é lá muita coisa – observou Zverkov com ar importante.

– É, com isso não dá para jantar em cafés-restaurantes! – acrescentou petulantemente Ferfítchkin.

– Na minha opinião, é simplesmente uma miséria – observou Trudoliúbov com seriedade.

– E como o senhor emagreceu, como mudou... de lá para cá – acrescentou Zverkov, já com uma ponta de veneno e uma certa solidariedade hipócrita, examinando-me e à minha roupa.

– Basta de deixá-lo encabulado – exclamou rindo Ferfítchkin.

– Prezado senhor, saiba que não estou encabulado – explodi, enfim –, está ouvindo? Estou jantando aqui, neste “café-restaurante”, às minhas custas, não às custas de outros, tenha isso em mente, Monsieur Ferfítchkin.

– Co-omo! Quem aqui não está jantando às próprias custas? O senhor parece que... – insistiu Ferfítchkin, vermelho como uma lagosta e olhando-me nos olhos com fúria.

– É assi-im mesmo – respondi, sentindo que tinha ido longe demais –, e suponho que seria melhor se falássemos de coisas mais inteligentes.

– O senhor, ao que parece, tem intenção de exibir sua inteligência?

– Não se preocupe, isso seria completamente inútil aqui.

– Mas o que, meu caro senhor, o que está cacarejando, hein? O senhor não terá enlouquecido de vez naquele seu lepartamento?

– Chega, senhores, chega! – gritou Zverkov em tom de comando.

– Que coisa idiota! – resmungou Símonov.

– De fato, é idiota. Nós nos reunimos entre amigos para a despedida de um bom companheiro, que parte em voyage, e o senhor fica ajustando contas – disse Trudoliúbov, dirigindo-se de maneira grosseira unicamente a mim. – Foi o senhor mesmo que se ofereceu ontem, agora não venha perturbar a harmonia geral.

– Basta, basta – gritava Zverkov. – Parem, senhores, assim não é possível. É melhor eu lhes contar como há três dias atrás eu quase me casei...

E aí começou uma espécie de narrativa burlesca de como aquele cavalheiro por pouco não se casara três dias atrás. Sobre casamento, aliás, nada foi dito, mas na narrativa passavam de relance generais, coronéis e até alguns jovens fidalgos da corte, entre os quais desfilava Zverkov quase que na posição de líder. As risadas incentivadoras fizeram-se logo ouvir. Ferfítchkin chegava até a ganir.

Todos me abandonaram e fiquei ali esmagado e reduzido a nada.

“Ó Senhor, será para mim esta sociedade?”, pensava eu. “E como fiz papel de bobo na frente deles! Além do mais, dei muita confiança ao Ferfítchkin. Os imbecis acham que me fizeram uma grande honra ao conceder-me um lugar na sua mesa, mas não entendem que sou eu que estou fazendo uma grande honra a eles, e não o contrário! Emagreceu! A roupa! Oh, malditas calças! Zverkov ainda há pouco notou a mancha amarela no meu joelho... Mas que estou esperando?! É melhor me levantar desta mesa agora mesmo, neste instante, pegar meu chapéu e simplesmente ir embora, sem dizer uma palavra... Por desprezo! Nem que seja necessário amanhã bater-me em duelo. Canalhas. Não vai ser por causa de sete rublos. Eles vão imaginar, talvez... O diabo os carregue! Não me importo com os sete rublos! Vou-me embora já!...”

Fiquei, obviamente.

De desgosto, tomei vários copos de Lafitte e xerez. Como não estava habituado, fiquei logo embriagado e, com isso, cresceu ainda mais meu ressentimento. De repente me deu vontade de ofender a todos da maneira mais insolente e depois ir embora. Aproveitar o momento propício e mostrar meu valor – eles que digam depois: apesar de ridículo, ele é inteligente... e... e... ora, ao diabo com eles!

Com petulância, percorri-os com meu olhar embaçado. Mas era como se eles tivessem me esquecido totalmente. O lado deles estava barulhento, alegre, cheio de gritaria. Era Zverkov que falava o tempo todo. Comecei a prestar atenção. Zverkov contava o caso de uma certa dama importante que teria sido forçada por ele a declarar-lhe seu amor (evidente que ele mentia descaradamente), no que fora especialmente auxiliado por um amigo íntimo, um principezinho qualquer, o hussardo Kólia, dono de três mil almas.

– E no entanto esse tal de Kólia, dono de três mil almas, não está aqui agora para se despedir do senhor – disse eu de repente, metendo-me na conversa.

Todos se calaram por um instante.

– O senhor já está bêbado – dignou-se finalmente Trudoliúbov a me notar, olhando-me desdenhosamente com o canto do olho.

Zverkov, calado, examinava-me como se examina um inseto. Baixei os olhos. Símonov apressou-se em servir o champanhe.

Trudoliúbov levantou a taça e os outros o acompanharam, menos eu.

– À sua saúde e boa viagem! – exclamou Trudoliúbov para Zverkov. – Aos nossos velhos tempos, senhores, e ao nosso futuro, hurra!

Todos beberam e rodearam Zverkov para beijá-lo. Não me movi; a taça cheia continuava intacta na minha frente.

– E o senhor, não vai beber? – urrou Trudoliúbov, que havia perdido a paciência e se dirigia a mim ameaçadoramente.

– Quero fazer um brinde especial, depois disso eu beberei, senhor Trudoliúbov.

– Sujeito ranzinza e nojento! – rosnou Símonov.

Endireitei-me na cadeira e peguei a taça febrilmente, preparando-me para algo fora do comum, mas sem mesmo saber o que iria dizer.

– Silence! – gritou Ferfítchkin. – Agora vai ficar inteligente!

Zverkov esperava com ar sério, compreendendo o que se passava.

– Sr. tenente Zverkov – comecei –, saiba que odeio as frases, os frasistas e fardas com cinturas apertadas... Este é o primeiro ponto. Depois dele virá o segundo.

Todos se agitaram nas cadeiras.

– Segundo ponto: odeio as aventuras amorosas e os mulherengos. Especialmente os mulherengos! Terceiro ponto: amo a verdade, a sinceridade e a honradez – continuei quase mecanicamente, porque eu mesmo já estava começando a gelar de pavor e não entendia como podia estar dizendo aquelas coisas... – Eu amo o pensamento, monsieur Zverkov; amo a verdadeira camaradagem, em pé de igualdade, e não... hum... Eu amo... Aliás, por que não? Também beberei à sua saúde, monsieur Zverkov. Conquiste as circassianas, atire nos inimigos da pátria e... e... À sua saúde, monsieur Zverkov!

Zverkov levantou-se, inclinou-se para mim e disse:

– Fico-lhe muito grato.

Ele havia ficado terrivelmente ofendido e até empalidecera.

– Vá pro inferno! – esbravejou Trudoliúbov, batendo com o punho na mesa.

– Ah, essa não! Uma coisa dessas merece um tapa na cara! – esganiçou Ferfítchkin.

– Devemos expulsá-lo daqui! – rosnou Símonov.

– Nem uma palavra, senhores, nem um gesto! – exclamou Zverkov com ar solene, fazendo cessar a indignação geral. – Agradeço a todos, mas eu mesmo saberei mostrar a ele o quanto aprecio suas palavras.

– Senhor Ferfítchkin, amanhã mesmo o senhor me dará uma satisfação pelas palavras que há pouco proferiu! – disse eu em voz alta, dirigindo-me com ar sério a Ferfítchkin.

– Quer dizer, um duelo? Pois não – respondeu Ferfítchkin.

Mas eu devia estar ridículo desafiando-o, e isso de tal modo não combinava com a minha figura, que todos, inclusive Ferfítchkin, quase se deitaram de tanto rir.

– Vamos ignorá-lo, é claro. Está completamente bêbado! – disse Trudoliúbov com asco.

– Não me perdoarei jamais por tê-lo incluído! – resmungou novamente Símonov.

“Esta é a hora de jogar uma garrafa em todos eles”, pensei. Peguei uma garrafa e... enchi meu copo até a borda.

“...Não, é melhor ficar aqui sentado até o fim!”, continuei a pensar. “Os senhores ficariam contentes se eu fosse embora. Por nada deste mundo! De propósito vou ficar aqui sentado e beber até o fim para mostrar-lhes que não dou a mínima importância aos senhores. Vou ficar aqui sentado e beber, porque isto aqui é um boteco e eu paguei para entrar. Vou ficar sentado e beber, porque para mim os senhores não passam de fantoches, fantoches que não existem. Vou ficar sentado e beber... e cantar, se eu quiser, é isso, senhores, e cantar, porque tenho esse direito... de cantar... hum”.

Mas não cantei. Apenas obrigava-me a não olhar para nenhum deles. Fazia as poses mais independentes e ficava esperando com impaciência que eles fossem os primeiros a me dirigir a palavra. Desgraçadamente, eles não a dirigiram. E como, como eu desejava naquele instante fazer as pazes com eles! Soaram as oito horas e, por fim, as nove horas. Eles deixaram a mesa e foram para o divã. Zverkov estendeu-se num canapé e colocou a perna sobre uma mesinha redonda. O vinho foi transferido para lá. Zverkov mandou de fato servirem três garrafas por sua conta. É obvio que ele não me convidou. Sentaram-se todos em volta dele, no divã, e ficaram ouvindo-o quase com veneração. Era evidente que gostavam dele. “Por quê? Por quê?”, pensava comigo. De vez em quando eles atingiam um entusiasmo etílico e se beijavam. Falavam do Cáucaso, da verdadeira paixão e de como ela seria, do gálbik[12], de postos vantajosos na carreira; falavam de quanto tinha de renda o hussardo Podkharjévski, que ninguém ali conhecia pessoalmente, mas ficaram felizes por ele ter uma renda tão grande; falou-se da beleza incomum e da graça da princesa D., que também nenhum deles jamais vira; finalmente, chegaram à afirmação de que Shakespeare era imortal.

Eu sorria com desprezo e caminhava no outro lado da sala, ao longo da parede, bem em frente ao divã, e ia da mesa à lareira e voltava. Queria a todo custo mostrar-lhes que podia passar sem eles; enquanto isso, fazia de propósito barulho com as botas, pisando com os tacões. Mas era tudo em vão. Eles nem prestavam atenção. Eu tive a paciência de ficar andando dessa maneira, bem na frente deles, das oito às onze horas, sempre no mesmo lugar, da mesa para a lareira e da lareira para a mesa. “Estou caminhando porque quero, e ninguém pode me proibir”. O empregado que nos atendia parou várias vezes e ficou me olhando; de tanto ir e vir, minha cabeça começou a girar; por momentos, tive a impressão de estar delirando. Nessas três horas, por três vezes fiquei empapado de suor e três vezes me sequei. De vez em quando, com uma dor profunda e venenosa, um pensamento perpassava meu coração: de que vão se passar dez, vinte, quarenta anos, e eu ainda me lembrarei com humilhação e asco desses momentos, os mais sórdidos, ridículos e terríveis de toda a minha vida. Era impossível humilhar-me de maneira ainda mais vergonhosa e voluntária. Eu entendia total e plenamente isso; no entanto continuava a caminhar da mesa para a lareira e vice-versa. “Ah, se vocês ao menos soubessem os sentimentos e as idéias de que sou capaz e como sou culto!”, pensava por alguns instantes, dirigindo-me mentalmente ao divã onde meus inimigos estavam sentados. Mas meus inimigos comportavam-se como se eu não estivesse na sala. Uma vez, somente uma única vez, eles se voltaram para mim, exatamente quando Zverkov falou sobre Shakespeare e eu repentinamente soltei uma gargalhada cheia de desdém. Soltei uma risada tão falsa e porca, que todos interromperam ao mesmo tempo a conversa e por alguns minutos ficaram observando sérios, sem rir, a minha caminhada ao longo da parede, entre a mesa e a lareira, e como eu não estava prestando a mínima atenção neles. Mas não deu em nada: eles não falaram comigo e dois minutos depois tornaram a me abandonar. Soaram as onze horas.

– Senhores – gritou Zverkov, levantando-se do divã –, agora todos para lá.

– Claro, claro! – disseram os outros.

Virei-me bruscamente para Zverkov. Eu estava tão torturado, tão alquebrado, que estava pronto a me matar para que tudo aquilo terminasse! Estava febril; meus cabelos, empapados antes de suor, estavam agora secos e grudados na testa e nas têmporas.

– Zverkov! Peço-lhe perdão – disse eu abrupta e decididamente. – Ferfítchkin, ao senhor também. A todos, todos, eu ofendi a todos!

– Olha só! Duelo não é com ele! – gritou Ferfítchkin com sua voz sibilante e venenosa.

Senti um baque dolorido no coração

– Não, não é do duelo que tenho medo, Ferfítchkin! Estou pronto para bater-me com o senhor amanhã mesmo, depois que fizermos as pazes. Até faço questão disso, e o senhor não pode recusar. Quero provar-lhe que não tenho medo do duelo. O senhor atira primeiro, e eu vou atirar para o ar.

– Está fazendo graça – observou Símonov.

– Simplesmente enlouqueceu! – replicou Trudoliúbov.

– Ora, permita-nos passar, o senhor parou no meio do caminho! Que o senhor deseja? – disse Zverkov com desprezo.

Todos eles estavam vermelhos e com os olhos brilhantes: haviam bebido muito.

– Peço a sua amizade, Zverkov, eu o ofendi, mas...

– Ofendeu?! O s-senhor?! A mi-im?! Pois saiba, prezado senhor, que nunca, em circunstância alguma, o senhor poderia me ofender.

– E basta para o senhor, dê o fora! – acrescentou Trudoliúbov. – Então vamos, pessoal.

– Olímpia é minha, senhores, está combinado! – gritou Zverkov.

– Tudo bem, não discutimos! – responderam os outros, rindo.

Fiquei parado ali com a sensação de que eles haviam cuspido em mim. A turma foi saindo ruidosamente da sala. Trudoliúbov começou a cantar uma canção idiota. Símonov ficou um instante para trás, para dar uma gorjeta aos empregados. Eu me acerquei dele de repente:

– Símonov, empreste-me seis rublos! – disse eu em tom decidido e desesperado.

Ele me fitou com um espanto fora do comum, com um olhar abobalhado. Estava bêbado também.

– Por acaso quer ir lá conosco?

– Quero!

– Não tenho dinheiro! – cortou-me, sorriu com desprezo e saiu da sala.

Agarrei-o pelo capote. Aquilo foi um pesadelo.

– Símonov! Eu vi que o senhor tem dinheiro, por que está negando? Por acaso eu sou algum canalha? Tenha cuidado, não me recuse: se soubesse, se soubesse para que estou pedindo! Disso depende tudo, todo o meu futuro, todos os meus planos...

Símonov tirou o dinheiro e quase o jogou em mim.

– Pegue, já que é tão descarado! – disse ele impiedosamente e correu para alcançar os outros.

Fiquei um minuto sozinho. Desordem, restos de comida, um cálice quebrado no chão, vinho derramado, pontas de cigarro, embriaguez e cabeça confusa, uma angústia torturante no coração e, por fim, um lacaio que tinha visto e ouvido tudo e me lançava olhares curiosos.

– Para lá! – exclamei. – Ou eles todos se ajoelham, abraçam minhas pernas e imploram minha amizade... ou eu dou uma bofetada em Zverkov!

 


5


– Então aí está, finalmente aí está o tal choque com a realidade – balbuciei enquanto corria como uma flecha escada abaixo. – Isto, é claro, não é mais o papa deixando Roma e indo para o Brasil; é claro, não é um baile no lago de Como! “Você é um canalha”, passou-me de relance pela cabeça, “se agora está rindo dessas coisas”.

– Não importa! – exclamei, respondendo a mim mesmo. – Agora está tudo perdido mesmo!

Não restava nem sinal dos outros, mas dava na mesma: eu sabia aonde eles tinham ido.

Junto à entrada estava parado um cocheiro noturno solitário, metido num capote de lã grosseira e todo salpicado da neve úmida que caía e que parecia morna. O ar estava abafado como numa estufa. O cavalinho malhado e peludo também estava todo salpicado e tossia, lembro-me bem disso. Atirei-me para o trenó de madeira; mas, mal havia levantado um pé para subir, a lembrança de Símonov dando-me pouco antes os seis rublos me fez fraquejar e deixei-me cair no trenó como um saco de farinha.

– Não! É preciso muita coisa para resgatar isso! – gritei. – Mas hei de resgatar, ou então esta noite mesmo serei reduzido a nada. Vamos embora!

Partimos. Minha cabeça girava em turbilhão.

“Implorar minha amizade de joelhos eles não vão. Isso é uma miragem, uma miragem infame, nojenta, romântica e fantástica; é o mesmo que o baile no lago de Como. Por isso eu tenho que dar uma bofetada em Zverkov! Sou obrigado a dar. Portanto, está decidido: estou agora voando para ir dar uma bofetada nele”.

– Mais depressa, vamos!

O cocheiro deu uma sacudida nas rédeas.

“Assim que eu entrar, dou-lhe a bofetada. Será que é necessário dizer algumas palavras introdutórias antes da bofetada? Não! Vou simplesmente entrar e esbofeteá-lo. Eles estarão todos sentados na sala e ele no divã com Olímpia. Maldita Olímpia! Uma vez ela riu da minha cara e me recusou. Vou arrastar Olímpia pelos cabelos e Zverkov pelas orelhas! Não, é melhor agarrá-lo por uma das orelhas e obrigá-lo a caminhar por toda a sala. Eles talvez comecem a me bater e me expulsem de lá. Na certa é o que vai acontecer. Que seja! De qualquer modo, quem primeiro deu a bofetada fui eu: a iniciativa foi minha e, de acordo com o código de honra, isso é o que importa. Ele já está desonrado e não se limpará da bofetada com surra nenhuma, apenas com um duelo. Ele terá de bater-se. E eles que me batam agora, que batam! Gentalha! Trudoliúbov é que vai bater mais: ele é muito forte. Ferfítchkin vai me agarrar de lado e pelos cabelos, provavelmente. Não importa! É para isso que estou indo. Suas cabeças de carneiro serão obrigadas a destrinchar, finalmente, o trágico de tudo isso! Quando eles estiverem me arrastando para a porta eu lhes gritarei que eles não valem o meu mindinho”.

– Mais depressa, cocheiro, mais depressa! – gritava eu. Ele até estremeceu e sacudiu o chicote. Meu grito soara completamente selvagem.

“O duelo será assim que clarear, está decidido. Quanto ao departamento, isso será o fim. Há pouco Ferfítchkin disse lepartamento, em vez de departamento. Mas onde conseguir as pistolas? Bobagem! Peço um adiantamento do salário e compro as pistolas. E a pólvora e as balas? Isso quem resolve é o padrinho. E como conseguir fazer tudo isso antes de clarear? E onde vou arrumar um padrinho? Não tenho conhecidos... Bobagem! – gritei, agitando-me ainda mais, como num turbilhão. – Bobagem! O primeiro que eu encontrar na rua e que eu abordar será obrigado a ser meu padrinho, do mesmo modo que é obrigado a salvar uma pessoa que está se afogando. Até as hipóteses mais excêntricas devem ser admitidas. E se amanhã eu pedisse ao próprio diretor para ser meu padrinho, ele também teria de concordar, por puro espírito cavalheiresco, e teria de guardar segredo. Anton Antônytch...”

O problema é que naquele exato instante eu percebia, de maneira mais clara e viva do que qualquer outra pessoa no mundo, todo o torpe absurdo de minhas suposições e todo o reverso da medalha, mas...

– Mais depressa, cocheiro, mais depressa, patife, mais depressa!

– Que é isso, patrão! – disse a força campesina.

De repente, um frio me percorreu.

“Não seria melhor... não seria melhor... se eu fosse direto para casa agora? Ó meu Deus! Para que fui me oferecer ontem para aquele jantar! Mas não, não posso! E meu passeio de três horas da mesa até a lareira? Não, eles, eles e ninguém mais devem me pagar por esse passeio! Eles têm que lavar essa desonra!”

– Mais depressa!

E se eles me entregarem à polícia? Não se atreverão! Ficarão com medo do escândalo. E se Zverkov, por desprezo, se recusar a duelar? Isso é até muito provável, mas então eu provarei para eles... Se isso acontecer, vou correndo amanhã à estação da posta na hora de sua partida, agarro-o pela perna, arranco seu capote quando ele for subir na diligência. Finco os dentes na sua mão e o mordo. “Vejam todos até que ponto podem levar um homem desesperado!”. Não importa que ele bata na minha cabeça com todos os outros atrás dele. Vou gritar para a platéia: “Vejam o moleque que parte para seduzir as circassianas com minha cusparada na cara!”.

Evidentemente, tudo estará terminado depois disso. Meu departamento terá desaparecido da face da terra. Serei preso, processado, demitido do emprego, encarcerado e enviado para a Sibéria, para viver lá sob vigilância. Tanto faz! Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adulta. Eu lhe direi: “Olhe, monstro, veja minhas faces fundas e meus farrapos! Perdi tudo – carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e... e eu o perdôo”. Então atiro para o ar e desapareço para sempre...

Quase caí em prantos, embora naquele momento soubesse muito bem que tudo aquilo vinha de Sílvio e da Mascarada, de Lérmontov[13]. E de repente eu senti uma vergonha terrível, tão terrível, que mandei parar o cavalo, desci do trenó e fiquei de pé na neve, no meio da rua. O cocheiro me olhava espantado e suspirava.

O que eu poderia fazer? Não podia ir para lá, era absurdo, mas tampouco podia abandonar as coisas como estavam, porque, senão, o resultado disso seria... Meu Deus! Como posso deixar isso de lado? Depois de tais insultos!

– Não! – exclamei, atirando-me de novo dentro do trenó –, isso já estava traçado, é o meu destino! Vamos, vamos depressa para lá!

E, na impaciência, bati com o punho no pescoço do cocheiro.

– Que há com você, por que está brigando? – gritou o pobre mujique, fustigando, porém, o pangaré com tanto ímpeto que ele começou a escoicear.

A neve úmida caía em flocos. Desabotoei meu casaco, sem me importar com ela. Esqueci de tudo o mais, porque havia me decidido definitivamente pela bofetada e sentia com pavor que ela teria de acontecer e que teria de ser obrigatoriamente naquele momento, e nenhuma força seria capaz de me impedir. Nas ruas desertas lampejavam lugubremente os lampiões através da bruma nevada, semelhantes a tochas de enterro. A neve penetrou dentro do meu capote, do meu paletó, da minha gravata, derretendo; não me cobri: tudo estava perdido mesmo! Finalmente chegamos. Saltei fora do trenó meio inconsciente, subi correndo os degraus e pus-me a bater na porta com as mãos e os pés. Sentia uma fraqueza terrível nos joelhos. Não tardaram a abrir, como se já soubessem da minha chegada. (De fato, Símonov havia prevenido que talvez viesse mais alguém, que era preciso avisar por lá e tomar algumas precauções. O local era uma das “lojas de modas” que já há muito tempo foram fechadas pela polícia. Durante o dia eram de fato lojas, mas, à noite, pessoas com recomendação podiam ser recebidas ali.) Atravessei com passos rápidos a loja escura e entrei no salão, já meu conhecido, onde brilhava uma única vela, e parei atônito: eles não estavam lá!

– Onde estão eles? – perguntei a alguém.

Mas, pelo visto, eles já tinham se dispersado...

Diante de mim estava uma mulher com um sorriso idiota – era a própria dona do lugar, que me conhecia ligeiramente. Um minuto depois abriu-se uma porta e entrou outra pessoa.

Sem prestar atenção a nada, fiquei caminhando pela sala e creio que falava comigo mesmo. Era como se tivesse sido salvo da morte e alegremente sentia isso com todo o meu ser: pois eu ia dar a bofetada, sem dúvida eu ia dar a bofetada! Mas agora eles não estavam mais lá e... tudo havia desaparecido, tudo havia mudado! Olhei em volta. Ainda não me dera conta totalmente da situação. Olhei mecanicamente para a moça que acabara de entrar: na minha frente perpassou um rosto fresco, jovem, um pouco pálido, com sobrancelhas retas e escuras e um olhar sério, que parecia um pouco espantado. Isso me agradou imediatamente; eu a teria odiado se ela estivesse sorrindo. Pus-me a olhá-la mais fixamente e com certo esforço: não tinha conseguido ainda organizar meus pensamentos. Havia algo simples e bondoso naquele rosto, mas era, de certo modo, estranhamente sério. Estou certo de que isso não a favorecia num lugar como aquele e que nenhum daqueles bobalhões havia prestado atenção nela. Ademais, ela não podia ser chamada de beldade, embora fosse alta e forte, de boa constituição. Sua roupa era extraordinariamente simples. Algo perverso me mordeu: marchei diretamente em sua direção.

Sem querer, vi-me de relance num espelho. Meu rosto desfigurado me pareceu extremamente repulsivo: pálido, cruel, vil, com os cabelos em desordem. “Não importa, estou feliz com isso”, pensei, “parecer a ela repulsivo me deixa de fato satisfeito; gosto disso...”

 


6


Em algum lugar atrás do tabique um relógio começou a roncar, como se estivesse sendo fortemente espremido ou asfixiado. Depois de uns roncos estranhamente prolongados seguiu-se um badalar fininho, nojentinho, inesperadamente rápido: era como se alguém de repente tivesse dado um salto para frente. O relógio deu duas horas. Recobrei a consciência, embora não tivesse dormido, apenas permanecera deitado, em estado semiconsciente. O quarto estreito, apertado e de teto baixo, entulhado por um enorme guarda-roupa, caixas de papelão, roupas amontoadas e todo tipo de trastes do gênero, estava quase totalmente escuro. Sobre uma mesa, na outra extremidade do quarto, extinguia-se a chama de um toco de vela, emitindo de quando em quando uns lampejos fracos. Dali a alguns segundos a treva seria total.

Voltei a mim rapidamente: veio-me tudo à memória, sem esforço e de uma vez só, como se as lembranças estivessem de tocaia, esperando que eu acordasse para saltarem sobre mim de novo. E, mesmo no estado de sonolência, havia permanecido sempre um pontinho na memória que se recusava a esquecer, e ao seu redor giravam pesadamente meus sonhos. Mas era estranho: tudo o que me acontecera naquele dia parecia-me agora, depois de desperto, algo acontecido havia muito tempo, como se eu tivesse vivido aquilo num tempo muito anterior.

Tinha a cabeça entorpecida. Parecia que alguma coisa pairava sobre mim, e essa coisa me roçava, excitava e incomodava. A angústia e a raiva novamente começaram a ferver e buscavam saída. Subitamente vi ao meu lado dois olhos abertos que insistentemente me examinavam com curiosidade. Era um olhar frio, indiferente, sombrio, como de uma pessoa totalmente estranha; passava uma impressão pesada.

Um pensamento sombrio nasceu no meu cérebro e espalhou-se pelo meu corpo como uma sensação horrível, semelhante à que se sente quando se entra num porão úmido e bolorento. Era pouco natural que aqueles dois olhos resolvessem me examinar precisamente naquele instante. Também me dei conta de que no decorrer de duas horas eu não dissera uma palavra àquela criatura, e nem havia julgado isso necessário: ao contrário, por algum motivo isso me parecera até agradável. Mas agora, de repente, surgiu-me com clareza a idéia da depravação, absurda, repugnante como uma aranha, que, sem amor, brutal e despudoradamente, começa diretamente por aquilo que deve coroar o verdadeiro amor. Olhamos um para o outro durante muito tempo, mas ela não baixava os olhos diante dos meus e não alterava seu olhar, de modo que, por fim, comecei a sentir um certo pavor.

– Qual é o seu nome? – perguntei de modo brusco, para terminar logo com aquilo.

– Liza – respondeu ela quase num sussurro, mas de uma maneira um pouco hostil e desviando os olhos.

Fiquei um certo tempo calado.

– Que tempo hoje... neve... horrível! – pronunciei quase que para mim, apoiando a cabeça no braço e olhando para o teto.

Ela não deu resposta. A situação era pavorosa.

– Você é daqui? – perguntei um minuto depois, voltando ligeiramente a cabeça para ela, prestes a explodir.

– Não.

– De onde é?

– De Riga – respondeu sem vontade.

– Alemã?

– Russa.

– Faz muito tempo que está aqui?

– Aqui onde?

– Nesta casa.

– Duas semanas.

Ela respondia de maneira cada vez mais lacônica. A vela apagou completamente e eu já não distinguia o seu rosto.

– Tem pai e mãe?

– Sim... não... tenho.

– Eles estão onde?

– Lá... em Riga.

– Que tipo de gente eles são?

– Gente comum.

– Como assim, gente comum? De que classe social?

– Da pequena burguesia.

– Você vivia com eles?

– Vivia.

– Quantos anos você tem?

– Vinte.

– Por que você os deixou?

– Por nada...

Esse por nada significava: deixe-me em paz, está ficando aborrecido. Ficamos em silêncio.

Só Deus sabe por que não fui embora. Eu mesmo estava me sentindo cada vez mais incomodado e angustiado. Independentemente de minha vontade, as imagens de todo o dia anterior começaram a desfilar sem ordem na minha memória. De repente lembrei-me de uma cena que vira pela manhã na rua, quando ia apressado e preocupado para a repartição.

– Hoje estavam carregando um caixão e por pouco não o deixaram cair – disse eu repentinamente em voz alta, sem ter nenhuma vontade de iniciar uma conversa, quase que por descuido.

– Um caixão?

– É, na rua Sênnaia; estavam tirando de um porão.

– De um porão?

– Não propriamente de um porão, mas de uma habitação no subsolo. Sabe como é... lá embaixo... de uma casa de má fama... Tinha tanta lama em volta... Cascas, lixo... cheirava mal... era terrível.

Silêncio.

– É horrível enterrar alguém num dia como hoje! – recomecei, apenas para não ficar calado.

– Horrível por quê?

– A neve, a umidade... (Bocejei.)

– Dá na mesma – disse ela de repente, após alguns instantes de silêncio.

– Não, é repulsivo... (Bocejei novamente.) Os coveiros com toda a certeza ficaram xingando porque estava caindo neve úmida. E a cova devia estar cheia de água.

– Água na cova por causa de quê? – perguntou ela com uma certa curiosidade, mas emitindo as palavras de maneira ainda mais brusca e entrecortada do que antes. Alguma coisa de repente começou a me atiçar.

– Ora, o fundo devia estar com uns seis verchoques[14] de água. Aqui, no cemitério de Vólkovo, é impossível abrir uma cova seca.

– Por quê?

– Como por quê! O lugar é cheio de água. Aqui há pântano por toda parte. Colocam o caixão na água mesmo. Eu já vi pessoalmente... muitas vezes...

(Não tinha visto nem uma vez e nunca estivera no cemitério de Vólkovo, apenas tinha ouvido relatos a respeito.)

– Será possível que para você seja indiferente... morrer?

– Mas por que eu vou morrer? – respondeu ela defensivamente.

– Você vai morrer algum dia e vai morrer como a defunta que eu vi de manhã. Ela também era uma moça jovem... Morreu tuberculosa.

– A garota deveria ter morrido no hospital... (Ela já sabia do caso, pensei, e disse “garota”, e não moça.)

– Ela estava devendo à dona da casa – objetei, cada vez mais estimulado pela discussão – e trabalhou para ela quase até a morte, embora estivesse tuberculosa. Os cocheiros que estavam lá conversando com os soldados assim disseram. Com certeza eles a conheciam. Eles estavam rindo. E depois foram beber à memória dela na taverna. (Aqui também eu disse um monte de mentiras.)

Silêncio, silêncio completo. Ela não fez um mínimo movimento.

– E seria melhor morrer no hospital, por acaso?

– Não dá no mesmo? Mas por que eu tenho de morrer? – acrescentou ela irritada.

– Que não seja agora; mas e depois?

– Nem depois...

– Era só o que faltava! Agora você é jovem, bonita, nova – por isso é bem cotada. Mas, depois de um ano desta vida, você não será mais a mesma, vai estar murcha.

– Depois de um ano?

– Dentro de um ano, no mínimo, seu preço terá caído – prossegui com um prazer perverso. Você sairá desta casa para uma pior. Mais um ano, e irá para uma terceira casa, cada vez descendo mais, e daqui a uns sete anos, chegará à rua Sênnaia, ao porão. E isso ainda não é o pior. Desgraça mesmo é se pegar alguma doença, ficar fraca do pulmão... ou se pegar um resfriado ou alguma outra coisa. Nesse tipo de vida é difícil curar uma doença. Ela se instala e não larga mais. Aí você morre.

– Morro, e daí? – respondeu ela com raiva, e seu corpo estremeceu.

– Mas dá pena.

– Pena de quem?

– Pena da vida.

Silêncio.

– Você teve um noivo? Ahn?

– Para que quer saber?

– Ora, não estou interrogando você. Para mim tanto faz. Por que está zangada? É claro que você pode ter passado por coisas desagradáveis. Não é da minha conta. Mas, de todo modo, tenho pena.

– Pena de quem?

– De você.

– Não há por quê... – sussurrou ela quase imperceptivelmente e tornou a estremecer.

No mesmo instante isso me deixou irritado. Mas como!? Fui tão gentil com ela, e ela...

– Mas o que você está pensando? Que está no bom caminho, é?

– Não estou pensando nada.

– Faz mal se não está pensando. Acorde enquanto é tempo. Ainda há tempo. Você ainda é jovem, bonita. Poderia se apaixonar, casar, ser feliz...

– Nem todas as casadas são felizes – cortou-me com sua fala rápida e brusca.

– Nem todas, é claro, mas, de qualquer modo, é bem melhor do que aqui. Não há comparação. E é possível viver se há amor, mesmo sem felicidade. Mesmo com amargura a vida é boa. É bom viver neste mundo, não importa como se viva. Mas aqui, o que há, além do... mau cheiro? Eca!

Virei-me com repugnância; já não estava argumentando com frieza. Começava a sentir o que dizia e me exaltava. Estava ansioso para discorrer sobre as minhas ideiazinhas secretas, que cultivara no meu canto. Algo em mim se inflamou: “surgira” um objetivo.

– Não leve em conta que eu estou aqui, não sou exemplo para você. Talvez eu seja até pior do que você. Aliás, estava bêbado quando cheguei aqui – apressei-me, entretanto, em justificar-me. – Além disso, o homem não pode nunca ser um exemplo para a mulher. São duas coisas diferentes; mesmo que eu me suje, me emporcalhe aqui, não sou escravo de ninguém; venho, vou embora e já não estou mais aqui. Com uma sacudida, já sou outro homem. Já você, de saída é uma escrava. É isso mesmo, uma escrava! Você entrega tudo, toda a sua liberdade. E mais tarde, vai querer romper essas correntes e já não será possível: elas vão prendê-la cada vez mais firmemente. É assim que é, essa corrente maldita. Eu a conheço. Já sobre outras coisas, não vou falar. Com certeza você não entenderia. Mas me diga uma coisa: você já está devendo à patroa? Aí, está vendo?! – acrescentei, embora ela não tivesse respondido e apenas me ouvisse calada, com todo o seu ser. – Aí está a sua corrente! Você nunca será capaz de comprar sua liberdade. É assim que eles vão proceder. É o mesmo que vender a alma ao diabo...

... E depois, como você pode saber? Talvez eu seja tão infeliz quanto você, talvez eu me atire na sujeira de propósito, por desespero. Alguns não bebem por desgosto? Eu estou aqui por desgosto. Diga-me uma coisa: que existe de bom aqui, se nós dois estivemos juntos e um não disse nem uma palavra ao outro, e você, depois, ficou me examinando como uma selvagem, e eu fiz o mesmo com você? Por acaso é assim que se ama? Será que é dessa maneira que as pessoas devem se relacionar? É uma pouca-vergonha, é o que é!

– É verdade! – concordou ela ríspida e apressadamente.

Fiquei até espantado com a rapidez daquele é verdade. Seria possível que na cabeça dela também estivera vagando esse pensamento, no momento em que ela estava me examinando? Quer dizer que ela também já é capaz de ter certas idéias? “Diabo! Isto é interessante, isto é afinidade”, pensei, e por pouco não esfreguei as mãos. “E por que eu não poderia me entender com uma alma assim tão jovem?...”

O que mais me atraía ali era o jogo.

Ela virou a cabeça para o meu lado, mais para perto de mim e, pelo que me pareceu na escuridão, apoiou-a no braço. Talvez estivesse me examinando. Como lamentei não poder ver seus olhos! Ouvia sua respiração profunda.

– Por que você veio para cá? – comecei, já com uma certa autoridade.

– Por nada...

– Mas é tão bom viver na casa dos pais! Você tem calor, liberdade. É seu ninho.

– E se for pior que isso?

“Preciso encontrar o tom certo”, pensei. “Com sentimentalismo talvez não se consiga muita coisa.”

Na verdade, esse pensamento passou pela minha mente apenas de relance. Juro que estava de fato interessado nela. Além do mais, eu relaxara um pouco e estava bem disposto. E depois, a trapaça convive bem com o sentimento.

– Quem está negando? – apressei-me a responder. – Acontece de tudo nesta vida. Garanto que alguém a ofendeu, e é mais provável que os outros sejam mais culpados perante você do que você perante eles. É verdade que não conheço sua história, mas uma moça como você seguramente não vem parar aqui por mera vontade...

– Que tipo de moça eu sou? – sussurrou ela quase imperceptivelmente, mas eu ouvi.

“Com os diabos, eu a estou bajulando. Que horror! Ou talvez seja bom...”

Ela permanecia calada.

– Olha, Liza, estou falando por mim! Se na infância eu tivesse tido uma família, não seria o que sou hoje. Penso muito nisso. Pois, por pior que seja a família, ainda assim são seu pai e sua mãe, e não inimigos, gente estranha. Nem que seja uma vez por ano, eles hão de demonstrar amor por você. Apesar de tudo, você sabe que está em sua casa. Eu, por exemplo, cresci sem família; talvez por isso tenha ficado assim... insensível.

Esperei novamente.

“Talvez ela não esteja entendendo”, pensei, “e é ridículo: uma pregação de moral.”

– Se eu fosse pai e tivesse uma filha, creio que amaria mais a filha do que os filhos homens, com certeza – comecei, desviando o assunto, para distrair a atenção dela. Confesso que até corei.

– Por quê? – ela perguntou.

– Não sei, Liza. Escute só: conheci um homem que era um pai muito severo e duro, mas, diante da filha, ele caía de joelhos, beijava suas mãos e seus pés, não se cansava de admirá-la, eu lhe juro. Se ela estava dançando numa festa, ele ficava cinco horas seguidas no mesmo lugar, sem tirar os olhos dela. Era louco por ela. Posso entender isso. À noite ela se cansava e ia dormir, ele acordava e ia beijá-la sonolenta e fazia o sinal-da-cruz sobre ela. Ele próprio andava com uma sobrecasaca sebenta, era sovina com todo mundo, mas, com ela, gastava o pouco que tivesse, dava-lhe presentes caros, e qual não era sua alegria quando ela gostava do presente. O pai sempre ama mais as filhas do que a mãe. Há moças que vivem muito contentes na casa dos pais! Creio que não deixaria minha filha se casar.

– Como assim? – perguntou ela com um risinho tímido.

– Ficaria com ciúme, juro. Bem, será possível ao menos imaginar que ela vai beijar um estranho? Que ela vai amá-lo mais do que ao pai? É doloroso até pensar nisso. É claro que tudo isso é bobagem; é claro que o indivíduo, no final, age com a razão. Mas creio que eu, antes de entregar minha filha, iria torturar-me com essa preocupação, alegaria defeitos e rejeitaria todos os pretendentes, um a um. Mas, no final, acabaria dando-a em casamento àquele que ela escolhesse. Mas aquele que a filha prefere é sempre o que parece ser o pior para o pai. É o que acontece. Isso causa muita infelicidade nas famílias.

– Há pessoas que ficam felizes vendendo suas filhas, e não casando-as honestamente – disse ela de repente.

Ah! Então é isso!

– Mas isso, Liza, acontece em famílias amaldiçoadas, sem Deus, sem amor – acudi exaltado –, e onde não existe amor não existe razão. Há famílias assim, é verdade, mas não é delas que estou falando. Parece que você não encontrou bondade na sua família, por isso fala assim. Você deve ser realmente infeliz. Hum... Isso acontece mais devido à pobreza.

– E por acaso será melhor entre os ricos? Pessoas honestas vivem bem, mesmo na pobreza.

– Hum... É, pode ser. Entretanto, veja, Liza: as pessoas gostam de levar em conta somente as amarguras. Não levam em conta sua felicidade. Se raciocinassem corretamente, veriam que para todos está reservada uma porção de tudo. E se tudo vai bem na família, Deus abençoa, o marido é bom, ama você, cuida de você, numa família assim é bom viver! Até mesmo se, às vezes, passam por maus momentos, ainda assim é bom. Quem não tem maus momentos? Se você se casar, vai saber por si mesma. Tomemos nem que sejam os primeiros tempos de casada com aquele que você ama: por vezes é tão grande a felicidade! Isso acontece a três por dois. Nos primeiros tempos, até as brigas com o marido terminam bem. Existem algumas mulheres que quanto mais amam seus maridos, mais arrumam brigas com eles. É verdade! Conheci uma assim: “Pois é, eu te amo muito, e é por amor que te faço sofrer, para que você saiba que te amo”. Você sabe que por amor se pode fazer alguém sofrer de propósito? As mulheres são as que mais fazem isso. E ainda ficam pensando: “Em compensação, depois vou amá-lo tanto, vou dar-lhe tanto carinho, que não faz mal torturá-lo um pouco agora”. E em casa todos ficam felizes com vocês, há conforto, alegria, paz e honestidade... Mas há algumas que são ciumentas. Se o marido sai (conheci uma assim), ela não agüenta esperar e no meio da noite corre secretamente para a rua para ver se ele está em tal lugar, em tal casa, com uma certa mulher. Isso já não é uma coisa boa. Ela mesma sabe que não é bom, e seu coração quase pára, ela se castiga, mas ela o ama; faz tudo por amor. E como é bom fazer as pazes depois de uma briga, pedir perdão a ele ou perdoá-lo! Como é bom para ambos, de repente fica tão bom, como se eles tivessem se conhecido novamente, tivessem casado novamente, e o amor deles tivesse começado de novo. E ninguém, ninguém precisa saber o que se passa entre marido e mulher, se há amor entre eles. Não importa qual a briga entre eles – nem as mães deles devem ser chamadas como juízas, nem eles devem falar mal um do outro. Eles próprios devem ser os juízes. O amor é um mistério de Deus e deve ser protegido dos olhares alheios, não importa o que aconteça. Ele se torna melhor, santo, assim. Um respeita mais o outro, e muita coisa é baseada no respeito. E se uma vez já existiu amor, se o casamento foi por amor, por que o amor tem de terminar? Será possível que não haja um meio de mantê-lo? Pois bem, se você tem sorte de encontrar um marido bom e honesto, por que o amor vai acabar? O amor dos primeiros tempos do casamento pode passar, é verdade, mas depois surgirá um amor ainda melhor. Aí então ficarão unidos de alma, todos os assuntos serão resolvidos a dois, não haverá segredos de um para o outro. E, quando vierem os filhos, até os períodos mais difíceis vão parecer felizes; basta amar e ter coragem. Em tal situação, até o trabalho é alegre, e se alguma vez for preciso recusar o pão para dá-lo aos filhos, até isso é motivo de alegria. Pois eles mais tarde vão amá-lo por isso; você estará poupando para si mesmo. Os filhos crescem e você sente que é um exemplo para eles, que é seu suporte, que quando você morrer eles vão levar seus sentimentos e idéias, que eles receberam de vocês, por toda a sua vida, e adotarão sua imagem e sua semelhança. Portanto, isso é um dever muito sério. Assim sendo, como o pai e a mãe não hão de se unir mais estreitamente? Dizem que é difícil criar filhos. Quem diz uma coisa dessas? É uma felicidade celestial! Você gosta de crianças pequenas, Liza? Eu gosto demais. Pense só: um bebê rosadinho sugando o seu seio... qualquer marido fica com o coração enternecido ao ver a esposa sentada com o seu filhinho! Um bebezinho rosado, gordinho, que se estica dengoso; as mãozinhas e os pezinhos gorduchos, as unhinhas limpinhas, pequeninas, tão pequeninas que dá vontade de rir; uns olhinhos que parecem compreender tudo. E, quando mama, brinca agarrando o seio da mãe. Se o pai se aproxima, ele larga o seio e se empina todo para trás, olha para o pai e ri – como se houvesse algo tão engraçado que só Deus sabe o quê – e começa de novo a mamar. Ou, se os dentinhos já despontaram, pega e mordisca o seio da mãe, enquanto a olha de soslaio, como a dizer: “Viu só? Mordi!”. Não será isso a felicidade quando os três, o marido, a esposa e a criança estão juntos? Por momentos como esse pode-se perdoar muita coisa. Não, Liza, é preciso que cada um primeiro aprenda a viver, para depois acusar os outros!

“Com quadrinhos como este é que chegarei até você!”, pensei comigo, embora, juro, tenha falado com sentimento. De repente fiquei vermelho: e se ela de súbito rebentar de rir? Onde poderei me esconder?”

Essa idéia me deixou furioso. No final do meu discurso, eu ficara de fato entusiasmado, mas agora meu amor-próprio de certo modo sofria. O silêncio se prolongava. Tive até vontade de sacudi-la.

– O que é que o senhor... – começou ela de repente, parando em seguida.

Mas eu já tinha entendido tudo: na sua voz vibrava algo diferente, não aquela coisa dura, bruta e obstinada de pouco antes, e sim uma coisa doce e pudica, tão pudica que eu mesmo de repente me senti meio envergonhado diante dela, senti-me culpado.

– O quê? – perguntei com curiosidade afetuosa.

– É que o senhor...

– O quê?

– Bem, o senhor... é que o senhor fala como se estivesse lendo um livro – disse ela, e uma nota zombeteira pareceu soar novamente em sua voz.

Sua observação foi para mim como uma alfinetada dolorosa. Não era o que eu esperava.

Não entendi então que ela estava usando de propósito a zombaria como um disfarce, que em geral esse é o último subterfúgio que pessoas pudicas e castas de coração usam contra alguém que tenta penetrar na sua alma de modo grosseiro e insistente e que, por orgulho, até o último minuto não se entregam, temendo mostrar seus sentimentos diante do outro. Já pela timidez com que ela várias vezes tentara expressar sua zombaria, e que só no final decidira exprimir, eu deveria ter adivinhado. Mas não adivinhei, e um sentimento mau se apossou de mim.

“Me aguarde”, pensei.

 


7


– Ah, Liza, não fale assim. Isso não tem nada a ver com livro! Eu estou de fora e ainda assim me sinto mal. Aliás, não estou de fora. Tudo isso foi despertado agora dentro de mim... Mas será possível que você mesma não se sinta mal aqui? Mas não, pelo visto o hábito significa muito! Só Deus sabe o que o hábito pode fazer com uma pessoa. Será que você crê seriamente que nunca vai envelhecer, que será sempre bonita e que vão abrigá-la aqui eternamente? Já nem estou falando da porcaria que é isto aqui... Além do mais, escute o que quero dizer sobre esta sua vida: agora você é jovem, bonita, tem alma, coração. Mas, sabe que assim que acordei, ainda há pouco, eu me senti mal por estar aqui com você? Só mesmo bêbado alguém pode vir parar neste lugar. Se você estivesse em outro lugar, vivendo como as pessoas direitas, talvez eu viesse não apenas a cortejá-la, mas até me apaixonaria por você; ficaria feliz apenas com um olhar seu, que diria com uma palavra sua; eu a espreitaria no portão, ficaria de joelhos diante de você e a veria como minha noiva, o que seria para mim uma honra. Não ousaria nem pensar em alguma coisa impura. Mas, aqui, eu sei que basta eu dar um assobio e você me seguirá, querendo ou não, e não sou eu que tenho de perguntar qual é a sua vontade, mas sim você a minha. O camponês mais desgraçado, quando faz um contrato de trabalho, não se escraviza por inteiro e, além disso, sabe que aquilo tem um prazo. E você, qual é o seu prazo? Reflita apenas: o que você está dando aqui, o que está entregando? Sua alma, a alma que não lhe pertence, você a está entregando junto com o seu corpo! Seu amor, você o entrega a qualquer bêbado para que ele o profane. O amor! Mas o amor é tudo, é um diamante, o tesouro de toda moça! Veja que para merecer esse amor há homens que são capazes de dar sua alma e até morrer se for preciso. E o seu amor quanto vale agora? Você foi comprada por inteiro, e para que alguém disputaria o seu amor, se mesmo sem amor pode obter tudo? Não existe ofensa maior para uma moça, você compreende isso? Ouvi dizer que dão uma alegria a vocês aqui deixando que tenham amantes. Ora, isso é pura farra, puro engodo, eles riem de vocês, mas vocês acreditam. Será que ele ama você realmente, o tal amante? Não acredito. Como ele poderia amar, se sabe que a qualquer momento você pode ser chamada e terá de deixá-lo? Ele seria um porco depois disso. Será que ele tem um pingo de respeito por você? Que você tem em comum com ele? Ele ri e ainda rouba de você – não passa disso o seu amor. E você ainda é feliz se ele não lhe bate. Mas talvez ele lhe bata. Quer ver? Se você tem um amante desses, pergunte a ele se vai casar com você. Ele vai dar uma gargalhada, isso se não cuspir na sua cara ou não lhe bater – e ele mesmo talvez não valha um tostão furado. E você vai se perguntar em troca de que destruiu toda a sua vida neste lugar. Será porque lhe dão café e comida farta? Mas por que motivo a alimentam? Uma moça honesta talvez não conseguisse engolir essa comida, porque saberia com que finalidade ela é dada. Você aqui é a eterna devedora, vai continuar devendo a eles até o final, até a hora em que os fregueses começarem a ter nojo de você. E isso não tardará a acontecer. Não confie tanto na juventude. Aqui tudo passa rápido como um galope. Eles se livrarão de você. Mas não a mandarão simplesmente embora. Bem antes, começarão a implicar, a censurar, a xingar – como se não fosse você quem deu a sua saúde para eles, quem em troca de nada destruiu sua mocidade e sua saúde em benefício deles. E a proprietária fará parecer que você a arruinou, roubou, pôs na miséria. E não conte com o apoio de ninguém: suas colegas também irão insultá-la para agradar à patroa, porque aqui são todas escravas e faz tempo que perderam a consciência e a compaixão. Tornaram-se mesquinhas, e não há na Terra nada mais vil, baixo, cruel, do que os insultos que lhe lançarão. E você deixará aqui tudo, sem retorno: sua saúde, sua mocidade, sua beleza, suas esperanças, e aos vinte e dois anos parecerá que tem trinta e cinco, e ainda terá sorte se não adoecer, reze a Deus por isso. Pois neste momento você talvez pense que não tem um trabalho, que isto aqui é uma farra. Mas não existe trabalho mais pesado, mais escravo do que este na face da Terra, e nunca houve. É de fazer o coração se debulhar em lágrimas. Você não ousará dizer nem meia palavra quando a expulsarem daqui e irá embora sentindo-se culpada. Irá para outro lugar, depois para um terceiro, para outra casa ainda e chegará finalmente à Sênnaia. Lá começarão a lhe bater; esta é a amabilidade por lá: o freguês não sabe fazer um carinho sem antes dar um tapa. Não acredita que lá seja tão horrível? Então vá lá uma hora dessas e veja com os próprios olhos. Uma vez vi ali uma mulher, no Ano Novo, diante de uma porta. Ela tinha sido posta para fora pelas próprias companheiras, para pegar um pouco de frio, porque estava chorando muito, e a deixaram lá fora e trancaram a porta. Às nove da manhã ela já estava completamente bêbada, descabelada, seminua e tinha levado uma surra. Ela tinha pó-de-arroz no rosto, mas manchas roxas ao redor dos olhos e sangue escorrendo do nariz e das gengivas: provavelmente algum cocheiro acabara de lhe fazer aquilo. Estava sentada nos degraus de pedra com um peixe salgado na mão. Ela soluçava, repetia umas lamentações sobre sua desgrama e batia com o peixe nos degraus da escada. Um bando de cocheiros e soldados bêbados juntou-se perto da porta e pôs-se a mexer com ela. Você não acredita que um dia ficará como ela? Eu também gostaria de não acreditar, mas quem pode saber? Talvez uns oito ou dez anos antes a mesma mulher, a do peixe salgado, tenha chegado aqui vinda de algum lugar, fresquinha como um querubim, inocente, pura; não conhecia o mal, corava a cada palavra. Talvez fosse como você, altiva, magoável, diferente das outras, com ar de princesa, certa de que uma imensa felicidade esperava aquele que a amasse e a quem ela amasse. Vê como terminou? E se ela, no instante em que batia com aquele peixe sobre os degraus sujos, bêbada e descabelada, se naquele instante ela se recordasse dos anos passados na casa paterna, quando ela ainda ia à escola, e o filho do vizinho a espreitava no caminho e jurava que a amaria para o resto da sua vida, que entregava a ela seu destino, e eles prometiam amar-se eternamente e casar-se assim que crescessem? Não, Liza, será uma felicidade, uma felicidade para você, se morrer rapidamente em algum canto de porão, de tuberculose, como a mulher que vi de manhã. No hospital, não foi o que você disse? Está certo, talvez a levem, mas e se a dona ainda precisar de você? A tísica é uma doença diferente, não é como a febre. Até o último instante a pessoa tem esperança e diz que está melhor. Ela se consola com isso. E, para a proprietária, isso é vantajoso. Não se preocupe, é assim mesmo. Você lhe vendeu sua alma, além disso lhe deve dinheiro, por isso não ousará soltar um pio. E, quando estiver morrendo, todos a abandonarão e lhe darão as costas – o que há mais para lhe tomar? E ainda hão de acusá-la de estar ocupando de graça um lugar e demorando a morrer. Você se cansará de pedir água e, quando a derem, será com um insulto: “Quando é que vai morrer, coisa ruim? Não deixa ninguém dormir com seus gemidos e afugenta os clientes.” É a pura verdade; eu mesmo já ouvi tais palavras. Vão enfiá-la, moribunda, no canto mais fétido do porão – escuridão, umidade... Em que pensará, deitada ali sozinha? E, quando morrer, mãos estranhas vão arrumá-la às pressas, com resmungos impacientes – não haverá ninguém para abençoá-la, ninguém vai suspirar por você, o que vão querer é só se livrar de você o quanto antes. Comprarão um caixão e a levarão, como levaram a outra de manhã, coitada, e depois irão ao botequim beber à sua memória. A cova estará cheia de lama, sujeira e neve derretida – mas não será com você que vão fazer cerimônia! “Vamos baixar ela, Vaniúkha. Eh, que desgrama, até aqui essa zinha continua de pernas pro ar! Puxa mais as cordas, moleque.” “Tá bom assim mesmo.” “Como tá bom? Ela tá caída de lado. Era gente também ou não? Tá bem, joga a terra.” E não vão querer ficar brigando muito tempo por sua causa. Vão cobri-la às pressas com lama azulada e correrão para o botequim... Aqui termina sua memória nesta Terra. Outros túmulos são visitados por filhos, pais, maridos, mas, para você, não haverá lágrimas, suspiros, recordações, e ninguém em todo o mundo virá à sua sepultura, seu nome desaparecerá da face da terra – como se você nunca tivesse existido, nem mesmo tivesse nascido! Só lama e pântano, mesmo que você bata na tampa do seu caixão à noite, quando os defuntos se levantam: “Deixe-me sair, gente boa, para eu viver um pouco no mundo! Eu vivi sem viver. Minha vida foi gasta em vão; foi bebida num botequim na Sênnaia. Deixe-me sair, gente boa, para eu viver novamente no mundo!...”

Eu me tornara tão patético que quase me deu um espasmo na garganta e... De repente parei, ergui o tronco assustado e, inclinando amedrontado a cabeça, pus-me a escutar, com o coração disparado. Algo perturbador estava de fato acontecendo.

Já bem antes eu havia pressentido que estava revolvendo toda a sua alma e partindo o seu coração e, quanto mais eu me certificava disso, mais queria atingir esse objetivo o mais rápida e poderosamente possível. Foi o jogo, o jogo que me estimulou; aliás, não foi apenas o jogo...

Eu sabia que meu discurso era pesado, artificial, livresco mesmo. Em suma: de outra forma eu não sabia me expressar, a não ser “como num livro”. Mas não estava preocupado com isso, pois sabia, tinha o pressentimento de que seria compreendido e de que o próprio estilo livresco iria ajudar-me ainda mais. Porém, depois que o resultado foi atingido, de repente me assustei. Nunca, nunca eu fora testemunha de tamanho desespero! Ela estava deitada de bruços, o rosto enfiado no travesseiro ao qual estava abraçada. Seu peito parecia que ia explodir. O corpo jovem estremecia em convulsões. Os soluços contidos dentro do seu peito pressionavam sua garganta, pareciam dilacerá-la e irrompiam de repente com urros e gritos. Então ela enfiou ainda mais o rosto no travesseiro: não queria que ninguém ali, nem uma alma viva sequer, soubesse do seu sofrimento e do seu pranto. Ela mordia o travesseiro, mordeu seu braço até tirar sangue (isso eu vi depois); ou então, agarrando com os dedos as tranças desfeitas, ficava paralisada no esforço, contendo a respiração e apertando os dentes. Quis dizer-lhe alguma coisa, pedir que se acalmasse, mas senti que não poderia e, de repente, senti um calafrio. Quase em pânico, atirei-me, tateando, para de alguma forma me arrumar e ir embora. Estava escuro: por mais que tentasse, não conseguia terminar logo com aquilo. De repente apalpei uma caixa de fósforos e um castiçal com uma vela inteira. Assim que a chama iluminou o quarto, Liza deu um pulo, sentou-se e olhou para mim com o rosto contraído e um sorriso meio demente, com um olhar que não expressava nada. Sentei-me ao seu lado e segurei suas mãos. Ela voltou a si, atirou-se para mim, fez menção de me abraçar, mas não teve coragem e ficou calada na minha frente, com a cabeça baixa.

– Liza, minha amiga, agi mal... perdoe-me – comecei, mas ela apertou seus dedos nas minhas mãos com tamanha força, que percebi que estava dizendo o que não devia e parei.

– Aqui está meu endereço, Liza, vá à minha casa.

– Eu vou... – murmurou ela com decisão, ainda de cabeça baixa.

– Agora eu vou embora, adeus... Até logo.

Levantei-me; ela fez o mesmo e de repente ruborizou-se toda, estremeceu, apanhou um xale da cadeira e atirou-o nos ombros, cobrindo-se até o queixo. Feito isso, deu novamente um sorriso sofrido, corou e olhou para mim de modo estranho. Aquilo era doloroso para mim; tive pressa de sair, de desaparecer.

– Espere – disse ela de repente, já no vestíbulo, quase na porta da rua, e puxou-me pelo casaco, fazendo-me parar. Deixou por ali o castiçal e correu para dentro – pelo visto, lembrara-se de alguma coisa que queria me mostrar. Naquele momento ela estava toda corada, seus olhos brilhavam e tinha um sorriso nos lábios – o que seria? Fui forçado a esperar. Ela voltou um minuto depois, com um olhar que parecia pedir perdão por alguma coisa. Seu rosto não parecia o mesmo, e seu olhar não era mais sombrio, desconfiado e obstinado como na noite anterior. Seu olhar agora era suplicante, suave e ao mesmo tempo confiante, carinhoso, tímido, um olhar como o que as crianças lançam às pessoas que elas amam ou a quem pedem alguma coisa. Seus olhos eram castanho-claros, belos olhos, vivos, capazes de expressar tanto o amor como o ódio mais sinistro.

Sem me explicar nada, como se eu fosse um ser superior e devesse saber de tudo, ela me estendeu um papel. Todo o seu rosto iluminou-se naquele instante com um ar de triunfo ingênuo e quase infantil. Desdobrei o papel. Era uma carta que um estudante de medicina lhe havia enviado, ou algo semelhante, com uma declaração de amor muito solene, floreada, mas extremamente respeitosa. Não me recordo agora das palavras, mas me lembro muito bem de que através do estilo rebuscado vislumbrava-se um sentimento verdadeiro, difícil de ser simulado. Quando terminei de ler, vi fixado em mim um olhar ardente, curioso, impaciente como o de uma criança. Ela havia cravado os olhos no meu rosto e esperava com ansiedade o que eu iria dizer. Às pressas, com poucas palavras, mas com uma certa alegria e aparente orgulho, ela me explicou que fora a uma festa na casa de uma família, de pessoas “muito, muito boas, que ainda não sabem de nada, absolutamente nada”, porque ela está aqui há muito pouco tempo, que veio só para ver como era e não ainda resolveu se vai ficar, e que sem falta vai embora, assim que pagar sua dívida... “Bom, disse que aquele estudante estava lá na tal festa e dançou a noite toda com ela, e que eles conversaram e descobriram que, quando eram crianças, ainda em Riga, eles se conheciam e brincaram juntos, só que isso fora há muito tempo – e que ele conhecia os pais dela, mas sobre isso ele não sabia nada-nada-nada, e nem desconfiava! E depois, no dia seguinte ao baile (isso fora três dias antes), ele lhe havia mandado pela amiga que a levara na festa aquela carta... e... isso era tudo”.

Meio envergonhada, ela baixou seus olhos brilhantes, assim que terminou de falar.

A pobrezinha guardava a carta daquele estudante como um tesouro, e correra a buscar o seu único tesouro porque não queria que eu me fosse sem saber que alguém a amava sincera e honestamente e que a tratava com respeito. Provavelmente aquela carta estava fadada a permanecer guardada num estojinho, sem maiores conseqüências. Mas isso não importa; estou certo de que ela iria guardá-la por toda a vida, como um tesouro, seria seu orgulho e sua justificação. E, naquele momento, ela se lembrou da carta e foi buscá-la, para ingenuamente se vangloriar diante de mim, para se reabilitar aos meus olhos, para que eu também a visse e também a elogiasse. Eu não disse nada, dei-lhe um aperto de mão e saí. Queria tanto ir embora... Fiz o caminho todo a pé, apesar de ainda estar caindo aquela neve molhada, em flocos. Eu estava exausto, abatido, perplexo. Mas a verdade já se entrevia através da perplexidade. Uma torpe verdade!

 


8


Não foi, porém, assim tão prontamente que aceitei reconhecer essa verdade. Ao acordar pela manhã, depois de algumas horas em que dormi profundamente, como chumbo, e ao me dar conta imediatamente de tudo o que se passara na véspera, fiquei até espantado com o meu sentimentalismo com Liza, com todos aqueles “horrores e compaixões da véspera”. “Cada um está sujeito a ter um ataque de nervos, como uma mulher, que diabo!”, decidi. “E para que fui dar a ela meu endereço? Que vou fazer se ela vier? De qualquer modo, ela que venha; não faz mal...” Mas, evidentemente, aquilo não era a minha preocupação mais grave naquele momento: era necessário apressar-me e tentar salvar o quanto antes minha reputação aos olhos de Zverkov e Símonov. Isso é que era importante. E, na agitação para tratar desse assunto, eu me esqueci completamente de Liza.

Antes de tudo, era preciso devolver a Símonov imediatamente o dinheiro que ele havia me emprestado na véspera. Tomei uma decisão desesperada: pedir de empréstimo a Anton Antônytch a considerável quantia de quinze rublos. Como que de propósito, ele estava naquela manhã num estado de espírito excelente e, assim que lhe pedi, ele me deu o dinheiro. Fiquei tão alegre por isso que, ao assinar o recibo, displicentemente pus-me a contar-lhe que “ontem eu e uns amigos fizemos uma farra no Hôtel de Paris, na despedida de um colega, aliás, um amigo de infância – sabe, um grande farrista, um rapaz mimado – bem, evidentemente, de boa família, com uma fortuna considerável e carreira brilhante, espirituoso, agradável e cheio de histórias picantes envolvendo certas damas, o senhor entende: daí que bebemos uma meia dúzia a mais e...”.

Nada de mais acontecera; e tudo isso foi dito com muita facilidade, com desembaraço e autoconfiança.

Chegando em casa, escrevi o quanto antes a Símonov.

Até hoje eu fico deslumbrado quando me lembro do tom verdadeiramente cavalheiresco, afável e aberto da minha carta. Com habilidade, nobreza e, principalmente, sem palavras supérfluas, assumi toda a culpa. Justificava-me, “se ainda tenho algum direito de justificar-me”, dizendo que, devido à completa falta de costume, eu me embriagara ao primeiro cálice, (que teria) bebido ainda antes da chegada deles, enquanto os esperava no Hôtel de Paris, das cinco às seis da tarde. Pedia desculpas sobretudo a Símonov, pedia-lhe também que transmitisse aos outros minhas explicações, especialmente a Zverkov, ao qual “tenho uma vaga lembrança” de ter ofendido. E acrescentava que gostaria de ir pessoalmente me desculpar com todos eles, mas estava com dor de cabeça e, sobretudo, envergonhado. Eu ficara particularmente satisfeito com “uma certa leveza”, até mesmo beirando a displicência (aliás, inteiramente digna), que de repente transpareceu no meu estilo e, melhor do que quaisquer explicações, deixava-os entender imediatamente que eu encarava “toda a sujeira de ontem” com bastante independência. Absolutamente, de modo algum, não estou destruído totalmente, como os senhores provavelmente estão pensando, mas, ao contrário, encaro os fatos como um cavalheiro que tranqüilamente se respeita deve encará-los. Como quem diz: “julguem-me pelo que sou, não pelo que tenha feito”.

– Não é que tem uma certa jocosidade digna de um marquês? – admirava-me, relendo o bilhete. Tudo isso porque sou evoluído e culto! Outro no meu lugar não saberia como desenredar-se, mas eu já me desembaracei e estou pronto para farrear de novo, e tudo porque sou “um homem culto e evoluído do nosso tempo”. E, na realidade, talvez tudo tenha acontecido ontem por causa do vinho. Hum... mas não, não foi a bebida. Não tomei vodca nenhuma das cinco às seis, enquanto os esperava. Menti para Símonov. Menti despudoradamente, e mesmo agora não me envergonho...

Aliás, isso não importa. O importante é que me saí bem.

Coloquei dentro do envelope os seis rublos, lacrei e pedi a Apollon que o levasse à casa de Símonov. Ao saber que a carta continha dinheiro, Apollon ficou mais respeitoso e concordou em levá-la. À tardinha saí para dar uma volta. Minha cabeça ainda doía e sentia tonturas devido aos acontecimentos da véspera. Mas, à medida que anoitecia e a escuridão se tornava mais densa, minhas impressões iam mudando e se embaralhando e, com elas, os meus pensamentos. Sentia que havia algo dentro de mim, no fundo do coração e da consciência, que se recusava a morrer e se manifestava como uma angústia que me queimava. Eu costumava vagar pelas ruas mais movimentadas, as do comércio, a Meschânskaia e a Sadôvaia, junto ao jardim de Iussúpov. Era especialmente ao anoitecer que eu gostava de passear por essas ruas, justamente quando é mais densa a multidão de transeuntes de todos os tipos, gente do comércio e artesãos, com rostos preocupados e irritados, que voltam para casa depois de um dia de trabalho. Eu gostava exatamente dessa agitação barata, dessa coisa descaradamente prosaica. Mas, dessa vez, todo esse empurra-empurra das ruas me fez ficar ainda mais nervoso. Não conseguia me controlar nem encontrar uma explicação. No meu íntimo algo crescia, crescia sem parar, dolorosamente, e não queria sossegar. Voltei para casa num péssimo estado de espírito. Era como se um crime me pesasse na alma.

Tornou-se um tormento para mim a idéia de que Liza viria à minha casa. Eu achava estranho que, de todas as recordações da véspera, a dela me torturasse de maneira especial, totalmente isolada do resto. À noite, de tudo o mais eu já havia me esquecido completamente, tinha deixado pra lá, e continuava completamente satisfeito com minha carta a Símonov. Mas quando pensava em Liza, me dava um certo aborrecimento. Era como se a única causa do meu tormento fosse ela. “E se ela vier?”, pensava sem parar. “Que se há de fazer, que venha. Hum... O simples fato de que ela iria ver como eu vivo, por exemplo, já é terrível. Ontem surgi diante dela como... um herói... e agora... Hum! Aliás, é terrível que eu tenha decaído tanto. Meu apartamento está simplesmente uma miséria. E como eu pude ir com esses trajes ao restaurante! E o meu divã de linóleo, com o enchimento saindo em tufos? E meu roupão, que não me cobre inteiramente? Que trapos... E ela vai ver tudo isso; também vai ver Apollon. Aquele animal vai ofendê-la, com certeza. Vai implicar com ela para me atingir. E eu, obviamente, vou me acovardar como de costume, vou ficar dando passinhos curtos na frente dela, tentando fechar as abas do roupão, vou mentir e sorrir. Ai, que coisa horrível! E isso ainda não é o pior! Existe algo mais importante, mais sujo, mais vil! Sim, mais vil! De novo, de novo colocar aquela máscara desonesta, mentirosa!...”

Quando cheguei a essa idéia, explodi de vez: “Por que desonesta? Ontem eu estava falando com sinceridade. Lembro-me de que o meu sentimento era verdadeiro. O que eu queria era despertar nela sentimentos nobres... se ela chorou, isso foi bom, vai influenciá-la de maneira benéfica...”

Entretanto, não houve meio de conseguir me acalmar.

Durante toda a noite, depois que voltei para casa e até já depois das nove, quando eu acreditava que não havia mais possibilidade de que Liza viesse, eu tinha constantemente a impressão de que ela estava lá e, em especial, ela me vinha à lembrança sempre na mesma posição. De tudo que se passara na véspera, havia um momento que vinha à minha mente de maneira particularmente nítida: foi quando eu iluminei o quarto com o fósforo e vi seu rosto pálido, contraído, seu olhar sofredor. E que sorriso triste, forçado, retorcido havia no seu rosto naquele instante! Mas, naquele momento, eu ainda não sabia que dali a quinze anos eu continuaria a me lembrar de Liza precisamente com aquele sorriso triste, contorcido e desnecessário que havia nela naquele momento.

No dia seguinte eu já estava de novo pronto para achar que tudo aquilo era bobagem, que meus nervos tinham me pregado uma peça e que, sobretudo, eu havia exagerado. Eu sempre tive consciência desse meu lado fraco e às vezes o temia bastante: “eu exagero tudo, por isso sou tão claudicante”, repetia constantemente para mim mesmo. “Mas, apesar de tudo, pode ser que Liza apareça” – com esse refrão terminavam todas as minhas reflexões naqueles dias. Eu ficava tão preocupado que às vezes chegava a ficar com raiva. “Ela virá! Não há dúvida de que virá!”, exclamava, correndo pelo quarto. “Se não hoje, amanhã ela virá e conseguirá me encontrar! Assim é o maldito romantismo de todos esses corações puros! Ó infâmia, ó estupidez, ó mediocridade dessas almas sórdidas e sentimentais! Mas como elas não entendem, como, ao que parece, não entendem?...” Aí eu mesmo parava, bastante perturbado até.

“E como foram necessárias poucas, pouquíssimas palavras”, pensava eu de passagem, “como foi necessário tão pouco idílio (e um idílio ainda por cima falso, livresco, inventado) para revirar imediatamente uma alma humana segundo a minha vontade. Isso é que é virgindade! Isso é que é um solo intocado!”

Às vezes vinha-me a idéia de ir eu mesmo procurá-la, “contar-lhe tudo” e pedir-lhe que não viesse à minha casa. Mas, ao pensar nisso, crescia em mim uma raiva tal, que parecia que eu arrebentaria essa “maldita” Liza, se ela de repente surgisse na minha frente, e lhe diria ofensas, cuspiria nela, seria capaz de enxotá-la, de bater nela!

Passou-se, porém, um dia, outro, um terceiro – ela não veio, e comecei a me acalmar. Eu criava ânimo e me sentia à vontade, particularmente depois das nove horas, quando às vezes até começava a sonhar, e de modo bastante doce. “Eu, por exemplo, salvo Liza, justamente por ela vir à minha casa, e então lhe digo... eu a instruo, faço-a evoluir. Finalmente descubro que ela me ama, ama apaixonadamente. Eu finjo que não estou entendendo (aliás, não sei por que finjo; talvez para a história ficar mais bonita). Finalmente, ela, toda confusa, maravilhosa, tremendo e soluçando, lança-se aos meus pés e diz que sou seu salvador e que ela me ama mais do que tudo no mundo. Eu fico surpreso, mas... – Liza – digo-lhe –, será possível que você pensa que não percebi o seu amor? Eu vi tudo, adivinhei, mas não ousei ser o primeiro a pretender seu coração porque tinha influência sobre você e temia que, por gratidão, você se obrigasse a corresponder ao meu amor, forçasse surgir em você um sentimento talvez inexistente, e eu não queria isso, porque isso... é despotismo... Isso é indelicado (bom, resumindo, naquele momento eu me embrenhava em alguma sutileza bem européia, à la George Sand, de uma nobreza indescritível...). Mas agora, agora – você é minha, é minha obra, você é pura, bela – você é minha esposa maravilhosa.”


E em minha casa, livre e orgulhosa,

Entra como legítima senhora![15]


Depois nós começamos a viver a nossa vida, fazemos uma viagem ao estrangeiro etc. etc. Resumindo: aquilo acabava me nauseando e no final eu botava a língua para mim mesmo.

“Nem vão deixar a ‘canalhinha’ sair!”, pensava eu. “Creio que eles não deixam que elas saiam para passear, ainda mais à noite (por alguma razão eu metera na cabeça que ela deveria vir à noite, às sete horas precisamente). De qualquer modo, ela dissera que não havia ainda aceitado o emprego definitivamente e que tinha alguns direitos especiais. Quer dizer que... hum! Diabo! Ela virá, isso é certo!”

Ainda bem que Apollon me distraiu durante esse tempo com suas grosserias. Ele estava me fazendo perder o que me restava de paciência! Aquilo era uma praga, um flagelo enviado a mim pela Providência. Nós nos espicaçávamos continuamente havia vários anos e eu o odiava. Meu Deus, como eu o odiava! Creio que nunca odiei ninguém no mundo como o odiava, especialmente em certos momentos. Ele era um homem de meia-idade, de ar importante, que trabalhava como alfaiate uma parte do dia. Porém, não se sabe por que, ele me desprezava, além dos limites até, e me olhava insuportavelmente de cima. Aliás, ele olhava todo mundo de cima. Bastava ver aquela cabeça de cabelos louro-claros muito alisados, com o topete untado com azeite que ele armava sobre a testa, aquela boca severa em forma de V, e imediatamente a pessoa sentia que na sua frente estava um ser que jamais duvidava de si mesmo. Era pedante no mais alto grau, o maior pedante que já encontrei na vida, e isso com uma auto-estima que só cairia bem em Alexandre da Macedônia. Ele era apaixonado até por um botão seu, por uma unha sua – é isso mesmo, apaixonado: seu ar demonstrava isso! Ele se relacionava comigo de uma maneira totalmente despótica, rarissimamente falava comigo e, se por acaso olhava para mim, era com um olhar duro, majestosamente autoconfiante e permanentemente zombeteiro, que às vezes me deixava completamente furioso. Executava seu trabalho com um ar de quem estava me fazendo um enorme favor. Aliás, ele quase não fazia nada para mim e nem se considerava obrigado a fazer alguma coisa. Não havia dúvida de que ele me considerava o maior idiota da face da Terra e, se “me mantinha junto de si”, era unicamente porque podia receber de mim todo mês um salário. Ele concordava em “não fazer nada” na minha casa por sete rublos mensais. Muitos pecados me serão perdoados por causa dele. Às vezes eu ficava com tanto ódio, que seu simples caminhar quase me provocava convulsões. Mas o que me causava mais aversão era sua maneira chiada de falar. Ele tinha uma língua mais comprida do que o normal, ou algo do gênero, e por isso chiava e ciciava constantemente, e creio que se orgulhava disso, imaginando que o fato lhe acrescentava uma dose extraordinária de dignidade. Falava baixinho, compassadamente, com as mãos atrás das costas e olhando para o chão. Ele me deixava furioso especialmente quando começava a ler alto os salmos atrás do seu tabique. Suportei muitas batalhas com ele por causa daquelas leituras. Mas ele gostava terrivelmente de ler à noite com sua voz suave, monótona, meio cantada, como numa cerimônia fúnebre. O curioso é que ele acabou fazendo isso mesmo: ele agora é contratado para ler salmos em velórios, além de exterminar ratos e fabricar graxa para sapato. Mas naquela época eu não conseguia mandá-lo embora, era como se ele estivesse ligado quimicamente à minha existência. Além disso, ele mesmo não concordaria por nada neste mundo em sair da minha casa. E eu jamais seria capaz de alugar um quarto mobiliado para viver: meu apartamento era meu palacete, minha casca, meu estojo, onde eu me escondia de toda a humanidade, e Apollon, só Deus sabe por que, era como se pertencesse àquele apartamento, e por sete longos anos eu não consegui expulsá-lo.

Atrasar, por exemplo, o pagamento dele, nem que fosse por dois ou três dias, era impossível, pois ele faria tal escândalo, que eu não saberia onde me meter. Mas, naqueles dias, eu estava tão furioso com todo mundo que, por algum motivo, resolvi castigar Apollon e atrasar por duas semanas o seu pagamento. Já havia tempo, uns dois anos, que eu pretendia fazer isso – unicamente para ensiná-lo a não bancar o importante comigo e para que soubesse que, se eu quisesse, sempre poderia deixar de entregar-lhe seu salário. Resolvi não falar sobre isso com ele e até ficar calado de propósito para vencer seu orgulho e obrigá-lo a ser o primeiro a tocar no assunto. Então eu tiraria os sete rublos da gaveta, mostraria a ele que tinha o dinheiro, que ele estava reservado para isso, mas que “não quero, não quero, simplesmente não quero entregar-lhe seu salário, não quero, porque é assim que eu quero”, porque estou exercendo “minha vontade de senhor”, porque ele é desrespeitoso, porque ele é um grosseirão. Porém, se ele me pedir com respeito, então pode ser que eu me abrande e lhe entregue o dinheiro; caso contrário, ainda terá de esperar duas semanas, três semanas, um mês inteiro...

Mas, por mais furioso que eu estivesse, apesar de tudo ele saiu vencedor. Não agüentei nem quatro dias. De início ele fez o que sempre fazia em casos semelhantes, porque já haviam acontecido ocasiões como esta, de tais tentativas (e observo que eu já sabia de antemão de tudo o que iria acontecer, conhecia de cor a sua tática sórdida): ele começava por lançar-me um olhar extremamente severo, que sustentava por alguns minutos, de preferência quando eu chegava ou saía de casa. Se eu resistia e fingia que não estava notando seus olhares, ele, ainda silenciosamente, passava às torturas seguintes. Acontecia de ele entrar sem mais nem menos no meu quarto, inesperadamente, com leveza e sem fazer barulho, quando eu estava caminhando ou lendo, e ficar parado junto à porta, com um dos braços às costas e um dos pés à frente, fixando em mim seu olhar, eu não diria severo, mas sim completamente desdenhoso. Se de repente eu lhe perguntava se precisava de alguma coisa, ele não respondia, continuava a me fitar alguns segundos mais, depois, apertando os lábios de um modo peculiar e bastante sugestivo, virava-se lentamente e lentamente ia para o seu quarto. Umas duas horas depois, ele aparecia outra vez e novamente ficava parado na minha frente. Às vezes eu, furioso, já não lhe perguntava se precisava de alguma coisa, simplesmente levantava minha cabeça de maneira autoritária e começava a fitá-lo também. Ficávamos uns dois minutos assim, nos olhando; finalmente, ele saía devagar e solenemente, e tornava a sumir por duas horas.

Se nem com isso eu me tornava mais razoável e continuava a me rebelar, ele de repente começava a suspirar olhando para mim. E dava suspiros longos, profundos, como se apenas com aqueles suspiros ele medisse toda a profundidade da minha queda moral. Obviamente, tudo terminava com a total vitória dele: eu tinha um acesso de ira, gritava, mas era obrigado a cumprir aquilo que fora o motivo de tudo.

Desta vez, mal começaram as manobras habituais dos “olhares severos”, na mesma hora fiquei fora de mim e me precipitei sobre ele, furioso. Eu já tinha motivos de sobra para estar irritado, mesmo sem ele.

– Pare! – gritei ensandecido, quando ele se virava lenta e silenciosamente para voltar ao seu quarto. – Pare! Volte aqui, volte aqui, estou mandando!

Eu devo ter soltado um urro tão surpreendente, que ele se virou e ficou me examinando com um olhar meio admirado. De resto, continuou sem dizer palavra, o que me enfureceu ainda mais.

– Como ousa entrar no meu quarto sem autorização e ficar olhando para mim desse jeito? Responda!

Mas, depois de me olhar tranqüilamente por uns trinta segundos, ele começou de novo a se virar.

– Espere! – urrei, correndo para ele. – Não se mova! Assim. Agora responda: que veio olhar aqui?

– Se o senhor tem alguma tarefa para mim, meu dever é executar – respondeu com sua voz baixa, comedida e ciciada, e voltou a calar-se, elevando as sobrancelhas e inclinando tranqüilamente a cabeça ora para um ombro, ora para o outro, tudo isso com uma calma horripilante.

– Não é isso, não é isso que estou lhe perguntando, carrasco! – gritei, tremendo de ódio. – Vou lhe dizer eu mesmo, carrasco, para o que você vem aqui: você já percebeu que não lhe dei seu salário, mas não quer, por orgulho, se curvar e pedir, e por isso vem aqui com seus olhares idiotas para me castigar, me torturar, e você não desconf-f-f-ia, carrasco, de como isso é idiota, idiota, idiota, idiota, idiota!

Ele já ia começando a se virar, mas eu o segurei.

– Escute – gritei. – Aqui está o dinheiro, está vendo?! Está aqui! (Tirei o dinheiro da gaveta.) Todos os sete rublos, mas você não vai receber, não rece-e-be enquanto não vier com respeito, de cabeça baixa, me pedir perdão. Ouviu bem?

– Isso é impossível! – respondeu ele com uma segurança meio forçada.

– Mas será assim! – gritei. – Dou-lhe minha palavra de honra que será assim!

– Não tenho por que pedir perdão ao senhor – continuou ele, como se nem notasse meus gritos –, porque foi o senhor que me chamou de “carrasco”, e eu posso dar queixa no distrito.

– Pois vá! Dê queixa! – urrei. – Vá agora, neste minuto, neste segundo! Mas você é mesmo um carrasco! Carrasco! Carrasco!

Entretanto ele apenas me olhou e em seguida deu meia-volta e, sem escutar meus chamamentos em altos brados, voltou tranqüilamente ao seu quarto, sem olhar para trás.

“Se não fosse Liza, nada disso teria acontecido!”, disse para mim mesmo. Depois, após um minuto de reflexão, dirigi-me eu mesmo ao quarto dele, atrás do tabique, com ar importante e solene, mas com o coração batendo forte e lentamente.

– Apollon! – disse em voz baixa e pausada, embora ofegante. – Vá agora mesmo, sem um minuto de demora, e chame a polícia aqui!

Nesse meio-tempo, ele já havia se sentado à sua mesa, colocado os óculos e se preparava para costurar alguma coisa. Porém, ao ouvir minha ordem, soltou uma risada, bufando.

– Vá agora, neste minuto! Vá, ou você nem tem idéia do que vai acontecer!

– O senhor realmente não está no seu juízo – observou, sem nem mesmo levantar a cabeça e ciciando devagarinho, enquanto enfiava a linha na agulha. – E onde já se viu uma pessoa dar queixa de si mesma? E quanto à ameaça, o senhor está se esgoelando inutilmente, porque não vai acontecer nada.

– Vá! – esganicei, agarrando-o pelo ombro. Sentia que estava prestes a esmurrá-lo.

Nem ouvi que naquele instante a porta do vestíbulo de repente se abrira, devagar e sem ruído, e uma pessoa havia entrado e ficado ali parada, olhando-nos perplexa. Olhei para ela, fiquei petrificado de vergonha e corri para o meu quarto. Lá, encostei a cabeça na parede, com as mãos agarradas nos cabelos, e fiquei estático nessa posição.

Uns dois minutos depois, ouviram-se os passos lentos de Apollon.

– Tem uma tal aí procurando pelo senhor – disse ele, olhando-me de modo especialmente severo. Depois afastou-se para o lado para deixar passar: Liza! Ele não queria ir embora e ficou olhando-nos com ar irônico.

– Fora! Fora! – ordenei-lhe, sem me controlar. Nesse instante, meu relógio fez um esforço, chiou e bateu as sete horas.

 


9


E em minha casa, livre e orgulhosa,

Entra como legítima senhora!


Fiquei parado diante dela, aniquilado, morto de vergonha, asquerosamente confuso e creio que sorrindo, enquanto tentava com todas as forças cobrir-me com as abas do meu roupãozinho de algodão puído – exatamente como eu imaginara não fazia muito, num momento de desânimo. Depois de observar-nos de cima uns dois minutos, Apollon se foi, mas isso não me trouxe alívio. O pior foi que ela também de repente ficou constrangida, num grau que eu nem esperava, evidentemente por ver-me naquela situação.

– Sente-se – disse eu mecanicamente e, movendo-lhe uma cadeira junto à mesa, sentei-me no divã. Ela obedeceu imediatamente e sentou-se, olhando-me de olhos bem abertos, pelo visto esperando algo de minha parte. Foi sua ingenuidade, a de esperar algo, que me deixou furioso, mas controlei-me.

O mais conveniente naquele momento seria esforçar-se para não prestar atenção em nada, como se tudo estivesse normal, mas ela... E eu senti confusamente que ela ainda pagaria caro por tudo aquilo.

– Você me pegou numa situação estranha, Liza – gaguejei, sabendo que era exatamente desse modo que não se deve começar.

– Não, não vá pensar sei lá o quê! – gritei, vendo que ela ficara corada de repente. – Não me envergonho de ser pobre. Pelo contrário, encaro a minha pobreza com orgulho. Sou pobre, mas tenho a alma nobre... É possível ser pobre e ter nobreza de alma – balbuciei. – Bem... você quer um chá?

– Não... – começou ela.

– Espere!

Levantei de um salto e corri ao quarto de Apollon. Precisava de um lugar onde pudesse sumir.

– Apollon – sussurrei apressada e febrilmente, atirando na sua frente os sete rublos que todo o tempo estiveram dentro de minha mão fechada –, aqui está o seu salário. Você vê que estou lhe pagando, mas em compensação você deve me salvar: vá sem demora à taverna e traga chá e dez torradas. Se não quiser ir, vai fazer uma pessoa muito infeliz! Você não sabe que mulher é essa... Ela é tudo! Talvez você esteja pensando sabe-se lá o quê... Mas você não sabe quem ela é!

Apollon, que já havia sentado para trabalhar e acabara de recolocar os óculos, deu inicialmente uma olhada de banda no dinheiro, sem largar a agulha; depois, sem me responder e sem prestar a mínima atenção em mim, continuou sua tentativa de enfiar a linha na agulha. Esperei uns três minutos parado na frente dele, com os braços à la Napoleon. Minhas têmporas estavam molhadas de suor. Sentia que devia estar pálido. Mas, graças a Deus, ele na certa ficou com pena, vendo o meu estado. Quando terminou com a agulha, levantou-se devagar, afastou devagar a cadeira, tirou os óculos devagar, contou o dinheiro devagar e, finalmente, após perguntar-me por sobre o ombro: “É para trazer uma porção inteira?”, saiu devagar do quarto. Enquanto eu voltava para onde estava Liza, passou-me pela cabeça se não seria melhor fugir, sair do jeito que estava, de roupão, ir para longe dali, sem rumo certo, e aí fosse o que Deus quisesse.

Tornei a me sentar. Ela ficou olhando para mim com ar preocupado. Ficamos em silêncio alguns minutos.

– Vou matar esse homem! – gritei de repente, batendo com o punho na mesa com tanta força que a tinta respingou do tinteiro.

– Ah, que está dizendo?! – exclamou ela, estremecendo.

– Vou matá-lo, vou matá-lo! – gritava eu com voz esganiçada, batendo na mesa, completamente descontrolado e, ao mesmo tempo, com plena noção de que aquela fúria era totalmente idiota.

– Você não sabe, Liza, o que esse carrasco é para mim. Ele é o meu carrasco... Ele foi agora comprar torradas. Ele...

E, de repente, desatei em pranto. Era uma crise nervosa. Tinha muita vergonha no intervalo entre os soluços, mas não conseguia contê-los. Ela se assustou.

– Que o senhor tem? O que há com o senhor? – gritava ela em grande agitação, andando em volta de mim.

– Água, traga-me água, está ali! – balbuciei com voz fraca, aliás, consciente de que poderia perfeitamente passar sem a água e não precisava balbuciar com voz fraca. Mas eu estava representando, para salvar as aparências, embora o ataque fosse verdadeiro.

Ela me trouxe a água, olhando-me meio desnorteada. Nesse instante entrou Apollon com o chá. De repente me pareceu que aquele chá comum e prosaico era terrivelmente inconveniente e miserável depois do que havia acontecido e fiquei ruborizado. Liza olhava para Apollon um pouco assustada. Ele saiu, sem olhar para nós.

– Liza, você me despreza? – perguntei, olhando diretamente nos seus olhos e tremendo de impaciência por saber o que ela estava pensando.

Ela ficou embaraçada e não soube o que responder.

– Beba o chá! – disse eu com raiva.

Estava furioso comigo, mas obviamente quem deveria pagar era ela. De repente ferveu no meu peito uma raiva terrível dela; creio que seria capaz de matá-la naquele instante. Para me vingar, jurei mentalmente ficar o tempo todo sem lhe dirigir nem uma palavra. “Ela é a causa de tudo isto”, pensava.

Nosso silêncio já durava uns cinco minutos. O chá continuava sobre a mesa; não o havíamos tocado. Cheguei ao ponto de deliberadamente não querer começar a beber, para com isso causar-lhe mais mal-estar ainda, e ela estava sem jeito de ser a primeira a beber. Olhou para mim várias vezes, triste e perplexa. Eu permanecia teimosamente calado. O principal mártir era evidentemente eu mesmo, porque estava plenamente consciente de toda a baixeza asquerosa daquela minha raiva estúpida, e ao mesmo tempo não conseguia absolutamente me dominar.

– Eu quero ir embora... definitivamente... daquele lugar – começou ela, tentando de algum modo quebrar o silêncio. Mas coitada! Era justamente sobre isso que ela não deveria ter começado a falar, naquele momento por si só idiota, e para uma pessoa por si só estúpida como eu. Meu coração até doeu de pena de sua inabilidade e sua sinceridade desnecessária. Mas algo monstruoso esmagou imediatamente toda a minha compaixão e até me provocou ainda mais: pouco me importava se o mundo acabasse! Passaram-se mais cinco minutos.

– Eu não vim incomodar o senhor? – começou ela timidamente, com uma voz quase inaudível, e começou a levantar-se.

Mas assim que percebi esse primeiro lampejo de dignidade ofendida, estremeci de raiva e explodi.

– Para que você veio à minha casa, diga você para mim, por favor? – comecei a falar, perdendo o fôlego e sem nem prestar atenção à ordem lógica das palavras. Queria dizer tudo de uma vez, num só jato. Nem me preocupei em como iria começar.

– Para que veio? Responda! Responda! – gritava quase fora de mim. – Pois vou lhe dizer, minha cara, por que você veio. Você veio porque naquele dia eu lhe disse palavras de compaixão[16]. E aí você ficou enternecida e quis ouvir mais “palavras de compaixão”. Pois fique sabendo que naquele dia eu estava rindo de você. E agora também estou rindo. Por que está tremendo? É, eu estava rindo! Antes de ir para lá eu tinha sido ofendido, num jantar, por aquelas pessoas que chegaram antes de mim. Fui até lá para espancar um deles, um oficial, mas não pude, não o encontrei; eu precisava descarregar minha humilhação em alguém, você apareceu, eu despejei meu ódio sobre você, zombei de você. Fui humilhado, então também quis humilhar; fui pisado como se eu fosse um trapo e quis demonstrar o meu poder... Foi isso o que aconteceu, e você pensou que eu fui lá para salvá-la, não foi? Não foi o que você pensou? Não foi?

Eu sabia que ela poderia se confundir e não compreender alguns detalhes, mas também sabia que ela compreenderia perfeitamente o essencial. Foi o que aconteceu. Ela ficou branca como um lençol, quis dizer alguma coisa, seus lábios se contraíram dolorosamente, mas, como se tivesse sido derrubada por um golpe de machado, caiu sobre a cadeira. Depois ficou o tempo todo ouvindo-me de boca aberta, olhos arregalados e tremendo de terror. O cinismo de minhas palavras deixou-a esmagada...

– Salvar! – continuei, levantando-me de um salto e correndo diante dela pelo quarto, para frente e para trás. – Salvar de quê? E talvez eu seja pior do que você. Por que você não me atirou na cara naquela hora, quando eu estava lhe fazendo um sermão: “E você, para que veio aqui? Veio pregar moral, é?” Poder, poder era o que eu queria naquele dia. O importante era o jogo, levá-la às lágrimas, humilhar você, levá-la à histeria – era disso que eu precisava naquele dia! Mas eu mesmo não consegui resistir, porque sou um patife, eu me assustei e só Deus sabe por que eu lhe dei bobamente meu endereço. E depois, antes mesmo de chegar em casa, eu já estava xingando você violentamente por causa desse endereço. Estava com ódio de você porque lhe menti naquele dia. Porque para mim o que importa é brincar com as palavras, é sonhar, e quanto à realidade, sabe do que preciso? De que vocês todos vão para o diabo! É isso aí! O que eu quero é tranqüilidade. Sou capaz de vender agora mesmo o mundo inteiro por um copeque para que me deixem em paz. Entre o mundo acabar e eu beber o meu chá, eu quero que o mundo se dane, quero ter sempre o meu chá para beber. Você sabia disso ou não? Pois eu sabia que era canalha, patife, egoísta, preguiçoso. Nestes três últimos dias fiquei tremendo de medo de que você viesse. E sabe o que mais me preocupava nesses três dias? Que eu tinha surgido diante de você como um herói, e aqui de repente você me veria neste roupãozinho rasgado, como um mendigo miserável. Eu lhe disse há pouco que não me envergonho de minha pobreza; pois saiba que me envergonho, é do que eu mais me envergonho, é do que eu mais tenho medo, mais do que se eu fosse um ladrão, porque sou tão vaidoso, que é como se tivessem arrancado a minha pele e eu sentisse dor até com o ar. Mas será possível que você ainda não entendeu que eu jamais a perdoarei por você ter me surpreendido neste roupãozinho no momento em que eu me atirava como um cãozinho raivoso sobre Apollon? O salvador, o recente herói, se atira como um vira-latas ordinário e desgrenhado sobre o seu criado, e este fica rindo dele! E as lágrimas que eu há pouco não consegui conter diante de você, parecendo uma mulherzinha envergonhada, nunca lhe perdoarei! E estas coisas que estou confessando a você agora, também nunca lhe perdoarei por elas! Você, unicamente você deverá responder por tudo isso, porque foi você que surgiu na minha frente, porque sou um canalha, porque sou o mais sórdido, o mais mesquinho, o mais tolo, o mais invejoso de todos os vermes da terra, que não são nem um pouco melhores do que eu, mas que, sabe-se lá por que, nunca ficam constrangidos. Enquanto eu, toda a vida vou receber petelecos dos mais reles insetos, esta é a minha característica! Que me importa se você não vai entender nada do que estou dizendo! E que me importa, que tenho a ver com você e com o fato de que você está ou não se destruindo naquele lugar? Você entende que agora, depois que eu lhe disse isso, vou odiá-la porque você ficou aí ouvindo? Pois uma pessoa só se abre assim uma vez na vida, e isso se estiver histérica!... Que mais você quer? Por que você, depois de tudo isso, ainda está plantada na minha frente, por que me tortura, por que não vai embora?

Mas então de repente aconteceu uma coisa estranha.

Eu estava a tal ponto acostumado a pensar e a fantasiar tudo como nos livros e a imaginar que tudo no mundo era igual ao que eu antes havia criado nos meus sonhos, que nem entendi de imediato aquela coisa estranha. O fato foi o seguinte: Liza, que eu havia humilhado e esmagado, compreendeu muito mais do que eu poderia imaginar. De tudo a que assistira, ela compreendeu aquilo que as mulheres sempre compreendem se amam com sinceridade: ela percebeu que eu era infeliz.

A humilhação e o medo estampados no seu rosto foram substituídos inicialmente por uma perplexidade amargurada. E quando comecei a dizer que eu era um canalha, um patife, e as lágrimas rolaram dos meus olhos (eu havia pronunciado toda aquela tirada por entre lágrimas), seu rosto foi todo tomado por uma espécie de convulsão. Quis levantar-se e me interromper. Quando terminei, ela não prestou atenção aos meus berros de “Por que está aqui, por que não vai embora?!”; ao contrário, compreendeu que devia estar sendo muito difícil para mim dizer aquelas coisas. Além disso, a coitada estava completamente intimidada; ela se considerava infinitamente inferior a mim; como ela poderia ficar com raiva ou ofendida? De repente saltou da cadeira como num impulso incontrolável e, querendo precipitar-se para mim, mas ainda tímida e sem ousar sair do lugar, ela me estendeu os braços... Nesse momento senti um aperto no coração. Então, repentinamente, ela se atirou para mim, enlaçou meu pescoço com os braços e chorou. Eu também não resisti e solucei de uma maneira como nunca havia soluçado antes...

– Não me permitem... Eu não posso ser... bom! – mal consegui pronunciar, e depois fui até o divã, caí de bruços sobre ele e fiquei quinze minutos soluçando numa verdadeira histeria. Ela me abraçou e ficou ali colada em mim, como que imobilizada naquele abraço.

Mas o fato é que de algum modo o ataque histérico teria de terminar. Então (o que estou escrevendo é uma verdade asquerosa), deitado de bruços no divã, tenso e com o rosto enfiado numa miserável almofada de couro, pouco a pouco, como se estivesse longe dali, involuntariamente e de maneira incontrolável, comecei a perceber que naquele momento eu ficaria encabulado de levantar a cabeça e olhar Liza nos olhos. Do que eu tinha vergonha? Não sei, mas tinha. Na minha cabeça transtornada passou também a idéia de que os papéis agora estavam definitivamente invertidos, que ela é que era a heroína, enquanto eu era exatamente igual àquela criatura humilhada e esmagada que se mostrara diante de mim naquela noite – quatro dias antes... E tudo isso me passou pela cabeça naquele momento em que eu permaneci deitado de bruços no divã!

Meu Deus! Será que naquele momento eu tinha inveja dela?

Não sei, não consegui ainda solucionar isso, e naquele instante ainda menos do que agora eu tinha condições de entender o que se passava comigo. Sem tirania e poder sobre alguém eu não posso viver... Mas... mas, com racionalizações, não se pode explicar nada e, conseqüentemente, é inútil racionalizar.

No entanto, consegui me dominar e levantei a cabeça, pois em alguma hora eu teria de levantá-la... E aí... Estou até hoje convencido de que, justamente porque eu tinha vergonha de olhar para ela, no meu coração de repente acendeu-se e pôs-se a arder outro sentimento... o sentimento de domínio e posse. Meus olhos brilharam de paixão e eu apertei fortemente suas mãos. Como eu a odiava e me sentia atraído por ela naquele instante! Um sentimento reforçava o outro. Parecia quase uma vingança! Seu rosto a princípio expressou uma certa perplexidade, próxima do medo, mas apenas por um instante. Ela me abraçou com ardor e arrebatamento.

 


10


Quinze minutos depois eu andava de um lado para o outro no quarto, numa impaciência furiosa, e de minuto a minuto aproximava-me do biombo e dava uma espiada em Liza pela fresta. Ela estava sentada no chão com a cabeça recostada na cama e provavelmente chorava. Mas não ia embora e era isso que me irritava. Desta vez ela já sabia de tudo. Eu a ofendera definitivamente, mas... não vale a pena contar. Ela adivinhou que o arroubo de minha paixão não passava de vingança, de uma nova humilhação para ela, e que ao meu ódio anterior, quase sem objeto, agora se acrescentava um ódio por ela que já era pessoal, invejoso... Aliás, não afirmo que ela tenha entendido tudo isso claramente, mas em compensação ela compreendeu perfeitamente que eu sou uma pessoa vil e que não tinha condição de amá-la.

Eu sei, vão me dizer que isso é inverossímil – alguém ser assim tão mau e idiota como eu me mostrei. Talvez acrescentem ainda que é inverossímil que alguém não a amasse ou, pelo menos, que não desse valor ao seu amor. Por que seria inverossímil? Em primeiro lugar, eu já não tinha capacidade de amar, porque, repito, amar para mim significava tiranizar e dominar moralmente. Toda a minha vida eu nunca pude nem ao menos imaginar outro tipo de amor e cheguei ao ponto de que, agora, às vezes penso que o amor, na realidade, consiste no direito que o objeto do amor voluntariamente concede de ser tiranizado. E também nos meus devaneios no subsolo eu não imaginava o amor de outra forma que não fosse uma luta que se iniciava sempre do ódio e terminava com a submissão moral, depois da qual eu não tinha idéia do que fazer com o objeto submetido. E que haveria de inverossímil, se eu já estava tão podre moralmente, tão distante da “vida viva”[17], a ponto de um momento antes ocorrer-me censurá-la e causar-lhe vergonha dizendo que ela teria vindo à minha casa para ouvir “palavras compassivas”, porém eu mesmo não pude adivinhar que ela tinha vindo não por palavras compassivas, e sim para me amar, pois para a mulher é no amor que está contida toda a sua ressurreição, a sua salvação de qualquer tipo de desastre e todo o seu renascer, e não pode se manifestar de outra forma que não seja essa. Verdade seja dita, eu já não a odiava tanto no momento em que corria pelo quarto e a espiava pela fresta do biombo. Eu apenas me sentia terrivelmente incomodado por sua presença ali. Queria que ela desaparecesse. “Tranqüilidade” era o que eu queria; queria ficar sozinho no subsolo. A “vida viva” me sufocava tanto, devido à minha falta de costume, que até respirar estava difícil.

Mas passaram-se mais alguns minutos e ela não se levantava, como se estivesse em letargia. Cometi a indignidade de bater de leve no biombo para lembrar-lhe... De repente ela estremeceu, ergueu-se prontamente e começou a procurar seu lenço, seu chapéu, seu casaco, como se quisesse fugir para longe de mim... Dois minutos depois ela saiu lentamente de trás do biombo e me lançou um olhar cheio de tristeza. Sorri com raiva, aliás, um sorriso forçado, por educação, e me virei para evitar seu olhar.

– Adeus – disse ela, dirigindo-se para a porta. De repente corri para ela, tomei sua mão, abri-a e coloquei ali... e tornei a fechá-la. Depois virei-me imediatamente e corri para o outro canto, para pelo menos não ver...

Neste momento eu já ia mentindo, quase escrevi que fiz aquilo sem querer, sem pensar, por tolice, porque tinha perdido a cabeça. Mas não quero mentir e por isso digo sinceramente que foi por raiva que abri a mão dela e coloquei lá... Tive a idéia de fazer isso no momento em que eu corria de um lado para o outro no quarto, enquanto ela permanecia sentada atrás do biombo. Porém o que eu posso dizer com certeza é que fiz aquela crueldade, mas não de coração, embora tivesse sido intencional, e que a fiz devido à minha cabeça ruim... Essa crueldade era tão falsa, intelectual, inventada, livresca, que eu mesmo não agüentei nem um minuto – inicialmente, corri para um canto, para não ver, mas depois, envergonhado e desesperado, atirei-me atrás de Liza. Abri a porta de entrada e fiquei de ouvido atento.

– Liza! Liza! – chamei na direção da escada, mas a meia-voz, sem firmeza...

Não houve resposta, mas pareceu-me ouvir seus passos nos degraus inferiores.

– Liza! – gritei mais alto.

Nenhuma resposta. No mesmo instante ouvi abrir-se vagarosamente, rangendo, a porta de vidro que dava para a rua, e depois ouvi-a fechar-se pesadamente. Sua batida ecoou pela escada.

Ela partiu. Voltei para o quarto, pensativo. Estava me sentindo terrivelmente mal.

Parei junto à mesa, perto da cadeira onde ela estivera sentada, e fiquei olhando estupidamente para frente. Um minuto depois, repentinamente estremeci todo: bem diante de mim, sobre a mesa, vi... em uma palavra, vi uma nota azul amassada de cinco rublos, a mesma que instantes atrás eu colocara em sua mão. Era a mesma nota; não havia outra na casa. Significava que ela conseguira atirá-la sobre a mesa no instante em que eu corria para o canto.

E então? Eu podia esperar que ela fizesse aquilo. Podia mesmo? Não. Eu era tão egoísta, tinha tão pouco respeito pelos outros, que nem fui capaz de imaginar que até ela faria aquilo. Isso eu não pude suportar. Passado um instante, fui vestir-me às pressas, enlouquecido, joguei sobre mim a primeira coisa que encontrei e sai correndo atrás dela. Ela não poderia ter dado nem duzentos passos quando saí pela porta da rua.

Tudo estava calmo lá fora, a neve caía em flocos quase perpendicularmente, deixando um tapete macio na calçada e na rua deserta. Não se via um transeunte, não se ouvia um som. Melancólica e inutilmente brilhavam os lampiões. Corri uns duzentos passos até a encruzilhada e parei. “Para onde ela terá ido? E para que estou correndo atrás dela? Para quê? Para cair de joelhos na sua frente, soluçar arrependido, beijar seus pés, implorar seu perdão? Eu até desejava isso; meu peito estava inteiramente dilacerado e jamais, jamais me lembrarei com indiferença daquele momento. “Mas, para quê?”, pensei. “Por acaso não irei odiá-la talvez amanhã mesmo, precisamente por ter beijado seus pés hoje? Por acaso eu não soube hoje novamente, pela centésima vez, o quanto valho? Será que não irei torturá-la?”

Fiquei ali parado na neve, vasculhando atentamente a névoa espessa e pensando sobre isso.

“Não será melhor”, fantasiava eu mais tarde, já em casa, tentando abafar com minhas fantasias a dor lancinante no meu coração “não será melhor que ela carregue para sempre consigo a humilhação? A humilhação é uma forma de purificação; é a consciência mais corrosiva e dolorosa! Amanhã mesmo minha presença teria sujado sua alma e extenuado seu coração. Mas a humilhação não morrerá nunca dentro dela e, por pior que seja a imundície que a espera, a humilhação vai elevá-la e purificá-la.... pelo ódio... hum... talvez também pelo perdão... Por outro lado, será que tudo isso tornará sua vida mais fácil?”

E de fato agora eu mesmo estou colocando uma questão ociosa: é melhor uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Então, o que é melhor?

Era isso que me passava pela mente, em casa naquela noite, quase a ponto de morrer com a dor que trazia na alma. Eu nunca havia suportado tanto sofrimento e remorso. Mas será que poderia existir a menor dúvida de que, quando saí correndo de casa, eu não voltaria da metade do caminho? Nunca mais encontrei Liza e nem ouvi falar dela. Acrescento ainda que durante muito tempo fiquei satisfeito com a frase sobre a utilidade da humilhação e do ódio, apesar de eu mesmo naquela ocasião quase ter adoecido de angústia.

Mesmo agora, quando já se passaram tantos anos, isso tudo me vem à memória de maneira excessivamente ruim. Tenho tido muitas lembranças ruins agora, mas... não será melhor terminar aqui estas notas? Parece-me que cometi um erro ao começar a escrevê-las. Pelo menos fiquei envergonhado durante todo o tempo que levei para escrever esta narrativa: conseqüentemente, isto já não é literatura, e sim um castigo correcional. Pois fazer longos relatos de como estraguei minha vida apodrecendo moralmente num canto, com as deficiências do ambiente, desabituando-me da vida e com meu ódio vaidoso no subsolo – por Deus que não é interessante. Um romance precisa de um herói, e aqui foram reunidos intencionalmente todos os traços para um anti-herói, e, o que é mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão muito desagradável, porque nós todos nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância pela verdadeira “vida viva”, e por isso não podemos suportar que nos façam lembrar dela. Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. E por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos. Pois bem, façam uma experiência, dêem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela. Sei que os senhores talvez fiquem bravos comigo, comecem a gritar e a bater com os pés: “Fale somente sobre si mesmo e sobre suas misérias no subsolo, mas não ouse dizer todos nós”. Permitam-me, senhores, eu não estou me justificando quando digo todos. E no que me diz respeito, eu apenas levei às últimas conseqüências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso. De modo que talvez eu esteja mais “vivo” que os senhores. Olhem com mais atenção! Nós nem sabemos onde vive essa coisa viva, o que ela é, como chamá-la! Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos – não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da idéia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”...

Entretanto, aqui não terminam as “notas” desse paradoxista. O autor não resistiu e prosseguiu com elas. Mas nós também pensamos que é possível terminar por aqui.

 

 

 

[1] . A neve derretida era uma imagem bastante empregada pelos escritores da escola naturalista quando caracterizavam a paisagem de São Petersburgo. (N.T.)
[2] . Uma tradução livre da integra do poema: “Quando ergui tua alma caída/ Das trevas da perdição/ Com o calor da palavra amiga,/ Em profunda dor e emoção/ Tu maldisseste, torcendo as mãos,/ O teu pecado, tua prisão.// Punindo a mente esquecida/ Com a lembrança dolorosa,/ Tu me contaste tua história,/ Antes de mim acontecida.// Cobrindo o rosto com as mãos,/ Cheia de vergonha e horror,/ Desabafaste chorando/ De indignação e de dor.// Crê-me: ouvi com piedade,/ Atento a cada palavra.../ Tudo entendi, filha da desdita!/ Tudo perdoei e esqueci.// Por que da dúvida secreta/ És tu escrava perpétua?/ Por que da opinião vazia/ Da turba segues cativa?// Descrê do povo falso e vão,/ Esquece tua insegurança./ Que tua alma vacilante/ Não dê abrigo à opressão!// Em teu seio não acalentes/ Da tristeza estéril a serpente,/ E em minha casa, livre e orgulhosa,/ Entra como legítima senhora! (N.T.)
[3] . Kostanjoglo é um personagem da segunda parte de Almas mortas, de Gógol, que o pinta como um proprietário de terras exemplar, e o titio Piotr Ivânovitch é personagem de Uma história comum, de Gontcharov, encarnação do bom senso e da praticidade. (N.T.)
[4] . Alusão ao personagem Popríschin, de Memórias de um louco, de Gógol, que se imaginava o rei da Espanha. (N.T.)
[5] . Personagem de Avenida Névski, de Gógol, que, após levar uma surra de um marido enganado, quis queixar-se às autoridades. (N.T.)
[6] . Alusão ao herói do drama Manfred, de Byron, cujas características são “ser altivamente solitário, independente e desprezar o perigo”. (N.T.)
[7] . Referência à batalha próxima de Austerliz, na Áustria, em 20 de novembro de 1805, em que Napoleão Bonaparte derrotou as forças aliadas austríacas e russas, que representavam sistemas monárquicos retrógrados se comparados com a França. Aqui e em outras passagens o personagem revela sua admiração pela figura de Napoleão. (N.T.)
[8] . Trata-se do papa Pio VII, que foi destituído dos seus poderes em 1809 por Napoleão Bonaparte, que ocupou os Estados Pontifícios. O papa viveu aprisionado em Savona e em Fontainebleau, tendo regressado a Roma em 1814. A alusão ao Brasil é uma fantasia do homem do subsolo. (N.T.)
[9] . O baile para toda a Itália na Villa Borghese provavelmente seja uma alusão às festas em comemoração à fundação do império francês, ocorrida em 15 de agosto de 1806. Nessa época, a Villa Borghese pertencia a Camillo Borghese, cunhado de Napoleão. (N.T.)
[10] . “Almas” era uma maneira de se referir aos servos camponeses na Rússia antes da abolição da servidão. (N.T.)
[11] . Em francês no original, “direito de senhor”. Prática que teria existido no feudalismo e que dava ao senhor feudal o direito de passar a primeira noite com uma camponesa que acabasse de se casar nos seus domínios. (N.T.)
[12] . Jogo de cartas, de azar. (N.T.)
[13] . Sílvio é o personagem principal da novela O tiro, de Puchkin. Esse personagem passou sua vida obcecado pela idéia de vingança; o mesmo pode-se dizer do personagem Desconhecido, da Mascarada, de Lérmontov. (N.T.)
[14] . Verchoque é uma antiga medida russa de comprimento, equivalente a 4,4cm. (N.T.)
[15] . Últimos versos do poema de Nekrássov que serve de epígrafe à segunda parte. Esse poema era muito popular nos círculos democráticos da Rússia no tempo de Dostoiévski, com os quais o autor antagoniza. De certo modo tenta desmoralizar a idéia contida no poema por julgá-lo um símbolo do romantismo. (N.T.)
[16] . Com “palavras de compaixão”, Dostoiévski faz uma alusão ao romance Oblómov, de I. A. Gontcharóv. Nesse romance, o empregado Zakhar dá esse nome aos sermões que seu patrão lhe costumava fazer. (N.T.)
[17] . A idéia de “vida viva” era bastante freqüente na literatura e na imprensa do século XIX na Rússia, especialmente entre os eslavófilos. No romance O adolescente, de Dostoiévski, o personagem Versílov assim a define: “[...] a vida viva, ou seja, aquela que não é mental nem inventada, [...] deve ser algo terrivelmente simples, aquilo que é mais comum e que se lança aos olhos de cada um, diariamente e a cada instante [...]”. (N.T.)

 

 

                                                                  Fiódor Dostoiévski

 

 

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