Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NOVA CASTRO / João Batista Gomes
NOVA CASTRO / João Batista Gomes

                                                                                                                                                   

                                                                                                    

 

 

João Batista Gomes

 

 

 

 

ATORES: D. AFONSO IV (Rei de Portugal) D. PEDRO (Príncipe) D. INÊS DE CASTRO D. SANCHO (Mestre do Príncipe) COELHO (Conselheiro) PACHECO (Conselheiro) D. NUNO (camarista do Rei) O EMBAIXADOR DE CASTELA ELVIRA (aia de D. Inês) DOIS MENINOS (filhos de D. Pedro e D. Inês)
A cena é em Coimbra, numa Sala do Palácio, em que reside D. Inês. A ação começa ao romper do dia.

#
#

#
#
#

ATO I
 
CENA I Inês e Elvira.
 
INÊS (entra na cena delirante e horrorizada. Assenta-se desfalecida) Sombra implacável! Pavoroso Espectro! Não me persigas mais... Constança! Eu morro.
 
ELVIRA  Que aflição!... Que delírio!... Oh Deus! Senhora...
 
INÊS (ainda fora de si e atemorizada)
 
Onde está... onde está o meu Esposo?...
 
ELVIRA  O Príncipe, Senhora, inda repousa, Tudo jaz em silêncio: tu somente, Negando-te ao sossego, atribulada, Neste Paço, ululando, errante vagas? Que dor acerba o coração te rasga? Que sonhadas visões assim te anseiam?
 
INÊS  Contra Inês se conspira o Céu, e a Terra. Até das campas os mortos se levantam Para me flagelar: continuamente Negros fantasmas ante mim volteiam... Que horror!... Oh Céus!... Agora mesmo, Elvira, Debuxados na mente inda diviso Os medonhos espectros, que, girando Em torno de mim, me assombraram... Surgir vejo Constança do sepulcro, Que em fúrias abrasada a mim caminha... Relâmpagos fuzilam, treme a terra... Eis que lá dos abismos arrojados Ímpios Ministros da feroz vingança No peito agudos ferros vêm cravar-me: Debalde agonizante o Esposo invoco... Proferido por mim seu doce nome Exacerba os furores de Constança, Que à morada dos mortos me arremessa. Oh do crime funestas consequências!... Desgraçados mortais! (Levantando-se)
 
ELVIRA  E pode um sonho...
 
INÊS  Não é um sonho, Elvira, são remorsos.
 
ELVIRA  Devem eles acaso inda ralar-te? Não bastou Himeneu a sufocá-los? Ah! Se antes que os seus laços te cingissem, Sucumbiste do amor à paixão cega, Assaz tens expiado este delito, Delito mais que todos desculpável.
 
INÊS uma alma como a minha jamais julga Ter assaz expiado seus delitos: Embora de Himeneu os sacros laços Agora o meu amor lícito fação, Este amor foi no crime começado. Mirrada de pesares, sim, foi ele, Quem despenhou Constança no sepulcro, Constança, essa Princesa desgraçada, Que, a não ser eu, talvez fosse ditosa, Talvez, do Esposo amada, inda vivesse; Eu fui a origem dos seus males todos; Traí sua amizade, fui-lhe ingrata, Sua rival, oh Céus! assassinei-a. Oh crime involuntário! Horrendo crime! Tuas iras são justas, sim, Constança; Arrasta-me contigo à sepultura, Acaba de punir-me, e de vingar-te... Mas ah! Que digo!... Não... poupa-me a vida, Nela a vida do Príncipe se interessa: Tu não hás de querer envenenar-lhe: A morte não, não pode certamente A paixão extinguir de que morreste; Mesmo lá do sepulcro inda o adoras... E talvez compassiva me desculpes. Quem melhor do que tu conhecer deve, Que aos afetos de Pedro, aos seus extremos Humanas forças resistir não podem? Se tu, sem ser amada, tanto o amaste,
 
Deixaria eu de amá-lo sendo amada? Sabe o Céu quanto tempo em viva guerra, Contra o meu coração lutei debalde: Quantas vezes chamando em meu socorro A virtude, e a razão... auxílio inútil! Emudece a razão quando amor fala. Triunfar de paixões iguais à minha... Os míseros mortais não podem tanto... Que profiro infeliz? Até blasfemo!... Perdoa, Sumo Deus, ao meu delírio: A meu pesar, Senhor, fui criminosa; Porém tua Justiça adoro, e temo.
 
ELVIRA  O Céu é justo, Inês, o Céu te absolve: Tua alma, onde morou sempre a virtude, Tem por graves delitos leves faltas; Tranquiliza, Senhora, os teus sentidos, Modera as aflições.
 
INÊS Em breve a morte Às minhas aflições virá pôr termo.
 
ELVIRA  Oh Céus! Na primavera de teus anos, Engolfada em fatais, loucos pesares, Tu própria buscas terminar teus dias, Sem que ao menos te lembres que depende Da tua vida a vida do Consorte; Que numa lágrima só que tu derrames, Se o Príncipe jamais a divisasse, Seria de sobejo a envenenar-lhe O terno coração, que afagar deves!... Se neste estado agora ele te achasse, Em que estado sua alma ficaria! Por seu amor, te rogo, enxuga o pranto,
 
As aflições desterra, em que soçobras.
 
INÊS  Oxalá que pudesse desterrá-las! Mas buscarei ao menos reprimi-las, Porque não participe o caro Esposo Dos males, dos horrores que me cercam. Embora o Céu me oprima, e me castigue, Entorne sobre mim suas vinganças; Porém sobre ele só prazeres mande: O seu sossego, mais que o meu, desejo: A fim de lhe mostrar alegre o gesto, A que esforços me não dou continuamente? Para o não afligir... ah! Quantas vezes Calco, sufoco dentro do meu peito Aflições, que no peito me não cabem!... Quantas vezes, sumindo-se a seus olhos, Dos meus ao coração recua o pranto! Mas ah, que os meus pesares, meus martírios, Quanto mais os escondo, mais se azedam, Nem podem já ter fim senão com a vida. A qualquer parte, oh Céus, que os olhos mande, Motivos de aflição somente encontro. Do passado a lembrança me horroriza, E do futuro a ideia me intimida: Contra mim conspirada a intriga, a inveja, Sobranceiras as iras de um Monarca, Tudo me vai cavando a sepultura: O coração me diz.
 
ELVIRA  Ele te ilude: Que podes tu temer, quando enlaçada Ao mais digno dos Príncipes do Mundo, Ao melhor dos mortais que os Céus formaram, O seu braço invencível te defende? Em vez de recear sonhados males,
 
Olha os imensos bens, a fausta sorte, Que propicio futuro te aparelha; O Lusitano Sólio, que te espera; O respeito, o amor dos Portugueses, A glória de imperar sobre este povo, A quem teme, e venera o Mundo inteiro... Tudo, tudo, Senhora, te promete Permanentes venturas: nada temas.
 
INÊS  Essas mesmas quiméricas venturas, Esses bens ilusórios, que me apontas, Justos motivos são dos meus temores. Oxalá que D. Pedro não tivesse Um trono por herança que ofertar-me! Então fora eu feliz, passara a vida No regaço da paz, e da alegria: Não haveria então quem se opusesse À perpétua união das nossas almas; Nem bárbara política empecera De nossos ternos corações a escolha: Um do outro na posse, ambos ditosos, Aos transportes d'amor sem susto entregues, Rodeados dos tenros, caros filhos, Sem ter que desejar, o trono excelso, Todos esses fantasmas da grandeza Nem uma vez sequer nos lembrariam; Mas o fado não quis...
 
ELVIRA  Aí vem D. Sancho.
 
INÊS  Que motivo o conduz a procurar-me? Venero as suas cãs, e o seu caráter; Como ele, junto aos Reis, acham-se poucos.
 
 
CENA II D. Sancho, Inês e Elvira.
 
(Elvira, logo que D. Sancho entra na cena, retira-se para o fundo dela e pouco depois desaparece)
 
D. SANCHO  O Céu neste lugar faz que eu te encontre: É preciso, Senhora, com franqueza Mostrar-te os iminentes precipícios, Que só tua virtude evitar pode. O Príncipe despreza os meus conselhos, Meus rogos não atende, nem já cede Às lágrimas de um velho que aprecia, Mais do que a própria vida, a sua glória: De um velho, que incumbido de educá-lo, Sempre a nua verdade ante os seus olhos Tem feito aparecer, buscando sempre Afastar-lhe a lisonja dos ouvidos, Esse das Cortes péssimo veneno, Que os corações dos Príncipes corrompe. Seu caráter violento, caprichoso, Agora por amor mais inflamado, Já não deixa dobrar-se às minhas vozes; Cego resiste aos Paternais preceitos; É necessário pois que a obedecer-lhe O resolvas tu mesma. Bem conheces Do inflexível Afonso o gênio iroso. Já três vezes o tem chamado à Corte, Sem que D. Pedro cumpra os seus mandados, Nem queira pesar bem seus ameaços: Muito do Rei severo temo as iras, Por cruéis Conselheiros atiçadas: Vendo talvez do filho a rebeldia, Se esqueça de que é Pai. Cumpre, Senhora, Que atalhes as funestas consequências,
 
Que podem resultar da pertinácia Em que o Príncipe insiste: que o convenças A benefício seu, e em teu proveito, A cumprir sem demora os seus deveres: Eu sei que na sua alma podes tudo, E das tuas virtudes tudo espero.
 
INÊS  O teu zelo, candura, e probidade Assaz louvo, e respeito. Não te enganas Em supor-me capaz de empreender tudo, Inda mesmo arriscando a própria vida, Para chamar D. Pedro aos seus deveres; Não tem sido por falta de lembrar-lhos, Que ele às ordens de um Pai tem resistido. (Tu, não menos do que eu, seu gênio sabes) Nem atender-me quer quando lhe imploro, Que à Corte vá lançar-se às Regias Plantas. Todavia, D. Sancho, eu te prometo, Que não hão de cessar minhas instâncias; Embora, longe dele, Inês saudosa, Ao furor dos seus émulos exposta, Venha talvez a ser vítima triste De insidiosa política: antes quero Morrer, do que lembrar-me que sou causa De que o Príncipe falte aos seus deveres.
 
D. SANCHO  Quem nutre em si tão nobres sentimentos, Inda sendo oprimida, é venturosa. Zombou sempre a virtude da desgraça, Debalde a emulação, armando a intriga, Conspira contra ti: mas é preciso Seus desígnios frustrar: sim...
 
INÊS  Eis D. Pedro.
 
D. SANCHO  Queira o Céu que o convenças! Eu vos deixo.
 
 
CENA III D. Pedro e Inês.
 
D. PEDRO  Quanto são vagarosos, cara Esposa, Os poucos melancólicos momentos, Que distante de ti saudoso passo? Só ao teu lado, Inês, sossego encontro, Não existo senão quando te vejo.
 
INÊS Quanto me adoras sei, Príncipe amado; Mais terno cada vez, mais extremoso, As tuas expressões meu pranto excitam; Porém de amor agora não tratemos: Bradando estão deveres mais sagrados Que preencher te cumpre: antes de tudo Tenho, Esposo, um favor que suplicar-te: Negar-me-ás tu, Senhor?
 
D. PEDRO  Inês, que dizes? Tu, que tens na minha alma todo o império, Ah! Podes duvidar que eu te obedeça?
 
INÊS  Pois bem, Senhor, atende à tua Esposa, Ouve meus rogos, e a meus rogos cede: Se tu só junto a mim sossego encontras, Também só junto a ti sossego eu tenho; Porém quer o destino, o dever manda, Que te apartes de mim por algum tempo.
 
D. PEDRO  Apartar-me de ti? Oh Céus! Que escuto! Apartar-me de ti? Castro é quem fala?
 
INÊS  É Castro, sim, Senhor, aquela mesma, Que preza mais que tudo a tua glória; Aquela, cujo brio não tolera, Que seja o terno amor, que lhe consagras, Motivo de infringires teus deveres. Bem o sabes, Senhor, em nenhum tempo Procurei ardilosa fascinante: Cedi ao teu amor, porque te amava, Porque em ti divisei uma alma terna, Alma que o Céu formou para encantar-me, De todas as virtudes adornada. Agora pois te cumpre conservá-las, E a mim não consentir que as abandones: Eu de mim própria assaz me horrorizara Se visse que as perdias por amar-me. Não, Príncipe querido, eu te suplico Por este mesmo amor que a ti me prende, Que à Corte sem demora te dirijas, Onde teu Pai, talvez já fatigado De te chamar em vão, te espera ansioso. Obedecer aos Paternais preceitos É lei da Natureza, é lei sagrada; Cumpri-la deves: vai...
 
D. PEDRO  Basta: Eu conheço Quais meus deveres são, e sei cumpri-los; Sei que é devida aos Pais a obediência; Mas igualmente sei que tem limites A Paternal, sagrada autoridade. Tenho pensado bem no que obrar devo:
 
Justos motivos, que não sabes inda, Exigem que eu não cumpra as Regias ordens. Obedecera a um Pai, se Pai tivera... Mas eu não vejo mais do que um tirano Nesse que o ser me deu...
 
INÊS  Senhor, suspende: É teu Pai; muito embora cruel seja; Tu deves respeitá-lo, e obedecer-lhe.
 
D. PEDRO  Se quer que lhe obedeça, e que o respeite, Não me imponha preceitos desumanos.
 
INÊS  Não prometeste há pouco à tua Esposa Conceder-lhe o favor que te pedisse?
 
D. PEDRO  Vê pois quando não posso comprazer-te, Se terei razões justas que me estorvem De obedecer a um Pai!
 
INÊS Não pode havê-las.
 
D. PEDRO (sem atender a Inês, transportado) Tiranos... que nos julgam seus escravos! Para nos flagelar o ser nos deram!
 
INÊS  Tu me fazes tremer.
 
D. PEDRO Sabe enfim tudo. Afonso, e o Monarca de Castela
 
Acabam de firmar a nova aliança, Em que sem meu consenso contrataram, Que eu daria a Beatriz a mão de Esposo: Para este fim à Corte sou chamado. Afonso, não contente da violência Que ao meu coração fez, quando forçado De rojo me levou ante os altares Para unir-me a Constança em laço eterno, Pesado laço, que rompeu a morte; Não contente de haver sido o motivo De... Mas que digo? Não, ah! não foi ele; Eu em lhe obedecer fui o culpado: Que desenfreie agora as suas iras; Que rogue, que ameace; mesmo quando Em secreto Himeneu não estivessem Ligadas para sempre nossas almas, Debalde intentaria submeter-me A um jugo que a vontade recusasse, Reconheço porém que a pertinácia, O despótico orgulho de seu gênio, Sem que atenda senão ao seu Tratado, Quererá que por força o desempenhe. Não convém descobrir nosso consórcio; E outra escusa qualquer que eu fosse dar-lhe De irritá-lo inda mais só serviria. Agora julga pois se partir devo. Se me devo ir expor, talvez... quem sabe! A faltar-lhe ao respeito inteiramente... Mas tu choras?... Que vejo!... Acaso temes?...
 
INÊS  Nada temo por mim, por ti só temo: Sim, quando vejo sobranceiros males, Por desditoso amor originados; Quando vejo engrossar a tempestade, Que me denota próxima ruína; Nem por isso me assusto: o que me aflige,
 
É ver um Pai, um Reino, e o próprio Esposo, Tudo por meu respeito alvorotado. Em situação tão árdua, e tão penosa, Até chego a desejar... (infeliz Castro!) Que o sacrossanto nó que a mim te prende, Este laço tão doce, e desejado, Dos bens o maior bem que Inês possui, A ser possível, hoje se rompesse, Só porque tu pudesses livremente Obedecer a um Pai, fazer ditosos Por um feliz consórcio dois Impérios. Muito embora Beatriz te possuísse... Mas que digo? Ai de mim! Nos braços de outra!... Nos braços de outra ver o amado Esposo! Ah! não... Não posso tanto, antes a morte.
 
D. PEDRO  É teu meu coração, será teu sempre. Os laços de Himeneu são as mais débeis Prisões que a ti me ligam. Quando amamos, Desnecessários são ritos, promessas: Mais força tem amor que os juramentos. Inda que ante os altares sacros votos De permanente fé, de amar-te sempre Não tivesse a teu lado proferido, Seria sempre teu, sempre te amara; Sem que jamais pudesse força humana Separar corações, que amor unira.
 
INÊS  Mas que, talvez em breve sopeados, Aos golpes da política sucumbam.
 
D. PEDRO  Para lhe resistir basta o meu braço.
 
INÊS  O teu braço, Senhor, só deve armar-se Para empresas mais dignas do teu nome: No lance melindroso em que nos vemos Convém, mais que os furores, a brandura; E apesar das razões que ponderaste, Julgo que deves dirigir-te à Corte; Pois talvez, se não corres a embargá-los, Teu Pai avance os começados passos Para as núpcias da Infanta de Castela, Na esperança de ser obedecido, E a ponto chegue que depois não possa...
 
D. PEDRO  Sem lhe dizer porque, já fiz saber-lhe, Que tais núpcias jamais celebraria.
 
INÊS  Mas não fora melhor...
 
 
CENA IV D. Pedro, Inês e D. Sancho.
 
D. SANCHO  Senhor: ah! corre, Vem esperar teu Pai.
 
INÊS Oh Céus!
 
D. PEDRO  Que dizes?
 
D. SANCHO  Dirigido a Coimbra em veloz marcha Partiu da Corte Afonso, aqui não tarda.
 
INÊS (falando consigo mesma) Agora sim, minha desgraça é certa.
 
D. PEDRO (pensativo e admirado) Meu Pai? oh Céus!... meu Pai?
 
D. SANCHO Coelho, e Pacheco, Seus cruéis Conselheiros, o acompanham: Toda a Corte, Senhor, em sobressalto Ficou com esta partida inesperada: Mendonça que ligeiro vem trazer-te A importante notícia, assim o afirma: Murmura o Povo já de recusares As núpcias de Beatriz, que aplaudem todos.
 
D. PEDRO  Murmure muito embora, embora venha Armado de poder, ardendo em raiva, Da vingança, e das fúrias escoltado, Esse a quem por meu mal devo a existência; Que, se intentar comigo ser tirano, Há de em seu filho achar um inimigo Capaz dos mais tremendos atentados; Que em casos tais os crimes não são crimes, São forçoso dever das almas grandes. Esperá-lo não vou.
 
D. SANCHO Senhor, que fazes?
 
D. PEDRO  O que me apraz fazer.
 
INÊS  Oh Céus! Nem posso Das tuas expressões horrorizada,
 
Soltar do coração trêmulas vozes: Falem por mim as lágrimas que choro... Não me consternes mais. Ah! vai, não tardes; Voa a encontrar teu Pai, se ver não queres Estalar de aflição a tua Esposa.
 
D. PEDRO (depois de ficar um pouco pensativo, diz resoluto) Eu vou satisfazer-te, sim eu parto; Vou rasgar do segredo a cauta venda: Saiba, sim, saiba Afonso antes que chegue Estes sítios a entrar, que Inês habita, Que a deve respeitar como Princesa; Que inquebrável prisão a Inês me liga. (Em ação de partir, e D. Sancho retendo-o)
 
D. SANCHO  Oh Céus! Não faças tal, melhor discorre; Para lhe revelar um tal segredo Ocasião mais oportuna espera: A cólera azedar não vás de Afonso; No transporte cruel das suas iras, Bem sabes que é capaz...
 
D. PEDRO  De que? De nada: Mais de mim, do que eu dele, tremer deve... Se ousasse contra Inês... Ah! nem pensá-lo. Para vingar o seu menor insulto Seria pouco todo o sangue humano.
 
INÊS  Bem me dizia o coração pressago... Meu mal é sem remédio; o próprio Esposo É quem vai despenhar-me no sepulcro. Meus cruéis inimigos não me assustam: O popular tumulto, um Rei severo Nada temo, ai de mim! a ti só temo.
 
Ah! Lembra-te, Senhor, do que juraste Antes de conduzir-me às sacras Aras, Onde eu te não seguira, se primeiro Tu me não prometesses guardar sempre O devido respeito ao teu Monarca, E a paz não perturbar dos seus Domínios: Tu não hás de faltar, o tempo é este, Que eu já previa então: oh caro Esposo! Lança do coração fatais transportes; Não percas tempo, vai, corre a prostrar-te Aos pés do grande Afonso; mas submisso, Ao beijar de teu Pai a mão augusta, Sobre ela de teus olhos chova o pranto. Pondera que te perdes, que me perdes, Se com ele furioso praticares; Só nos pode salvar dócil brandura: Se não queres matar-me, sê submisso.
 
D. PEDRO  O temor de afligir-te pode tudo. Respeitoso serei, terei brandura, Se ele brandura igual usar comigo. Nada temas, Princesa: Adeus. Eu juro Pelos Céus outra vez, e por ti mesma, Que inda que o Mundo inteiro se me oponha, Castro há de ser de Portugal Rainha. (Parte)
 
INÊS  Não te apartes, D. Sancho, do seu lado: Moderem teus conselhos seus transportes.
 
D. SANCHO  Dai forças, justos Céus, às minhas vozes, Lançai a Portugal piedosas vistas.
 
 
CENA V
 
INÊS (só) Que temor, infeliz! de mim se apossa! (Sem poder despregar os olhos do caminho que tomou D. Pedro) Caro Príncipe!... Esposo!... oh Deus, quem sabe Se a ver-te tornaram inda os meus olhos. Vai, ó Castro, abraçar-te aos caros filhos, E entrega-te nas mãos da Providência.
 
 
ATO II
 
CENA I D. Afonso e D. Pedro.
 
D. AFONSO  Basta, Príncipe, basta: prescindamos De justas arguições, de escusas fúteis; Não quiseste ir, vim eu. Quero esquecer-me, Perdoar quero mesmo as tuas faltas, Uma vez que obediente hoje as repares. Concluam-se estas núpcias proveitosas, Que para teu prazer, e a bem do Estado, Prudente contratei. Verás com gosto, Quando Lisboa entrares a meu lado, Com quanto regozijo o Povo todo, Teu consórcio aplaudindo, a festejá-lo Com pompa jamais vista se prepara. Que doçura não é para os Monarcas, Espalhar alegria entre os Vassalos! Vê-los mandar ao Céu ardentes votos, Pela conservação da Régia Prole, Que lhe segura a paz, a dita, a glória! Ver que as suas ações o Povo aprova, E contente abençoa o seu Reinado, Curvando-se de grado ao leve jugo,
 
Que somente os maus Reis fazem pesado! Mil graças dou aos Céus, pois satisfeitos Julgo estarão de mim os Lusitanos. E nada mais desejo que deixar-lhes, Em meu filho, outro eu, que sempre os ame, E que por eles seja sempre amado. Começa desde já neste consórcio A firmar o seu bem. Sim, hoje mesmo Deves partir comigo para a Corte, A fim de o celebrar, logo que chegue A Infanta de Castela, digno objeto Que escolhi para Esposa de meu filho.
 
D. PEDRO  Ah! Que seja possível, por meu dano, Que o melhor dos Monarcas do Universo, Igualmente não seja o Pai mais terno! Que um Rei, que desvelado buscou sempre Fazer os seus Vassalos venturosos, Queira fazer seu filho desgraçado!... Contratares, Senhor, sem consultar-me Um consórcio, ignorando se teu filho Pode, ou quer d'Himeneu às leis cingir-se! Se essa, que lhe destinas para Esposa, Pode ao seu coração ser agradável! Acaso julgas tu desnecessária A minha aprovação para estas núpcias! Não será livre um coração ao menos Na escolha de uma Esposa, que amar deve... Ah! Não queiras, Senhor, com tal violência...
 
D. AFONSO  Emudece, insensato; não prossigas Indignas expressões que me envergonham... Bem conheço a razão porque assim pensas. Que indignos sentimentos, que fraqueza, Para quem deve um dia ser Monarca!
 
Como, quando do Império as rédeas tomes, Quando na mão a espada formidável Da severa Justiça sustentares, Das paixões punirás o torpe efeito, Sendo tu próprio das paixões escravo? Como jamais serás obedecido, Se tu mesmo ao teu Rei desobedeces? Com quanta repugnância os Portugueses, Murmurando, verão no Luso Sólio, Que de tantos Heróis tem sido assento, Um Rei dado às paixões, afeminado, Incapaz de empunhar o Cetro augusto!
 
D. PEDRO  Mas capaz de os reger, e defendê-los. Se das grandes paixões sou susceptível, A moleza detesto, bem o sabes: Quando cumpre, Senhor, em campo armado; Ensinado por ti, brandindo a espada Sei por ações mostrar que sou teu filho; Nem para ser bom Rei (Senhor, perdoa) Eu julgo necessário uma alma dura; Mas antes me persuado não devera O que fosse insensível reger Homens. Corações que à ternura se não rendem, Jamais sabem carpir alheios males; Nem doer-se das lágrimas do aflito.
 
D. AFONSO  Apagada a razão, cego deliras; Isentos de paixões os Reis ser devem; Manam dos seus os públicos costumes: Se exemplificam mal os seus Estados, Os vícios dos Vassalos são seus vícios; Devem sacrificar os seus desejos; Ser consigo cruéis a bem dos Povos, Que o Céu lhes confiou; e os que se ensaiam
 
Para lhes dar as Leis, devem mostrar-se Capazes destes nobres sacrifícios. Os consórcios dos Príncipes são obra Dos interesses do Estado, eles decidem, Eles dispõem de nós. Deixem-se ao Vulgo Caprichosos melindres com que exige, Que aos laços d'Himeneu Amor presida. As doçuras de Amor para os Monarcas São de pouca valia: a nossa glória Não se firma em tão fracos alicerces.
 
D. PEDRO  Se aos que devem reinar é necessário Ceder dos privilégios, dos direitos Que a Natureza deu aos Homens todos; Por tal preço, Senhor, não quero o Trono! Laços formar, que o coração repugna, Origem de desgraças, e de crimes... Assaz o experimentei... grilhões tão duros, Por tuas mãos lançados, longo tempo Com bem custo arrastei... Suportar outros... Ah! Não, Senhor, não posso.
 
D. AFONSO  Temerário! Basta já de sofrer um filho ingrato. Se aos rogos, às razões de um Pai benigno Tu não queres ceder; cede aos preceitos De um Monarca severo, e justiçoso. Eu dei minha palavra, hás de cumpri-la: Os tratados dos Reis não são falíveis: Debalde pois te opões...
 
D. PEDRO  Mas ah! Pondera...
 
D. AFONSO  Tenho enfim decidido. Acaso queres, Deixando de cumprir o meu Tratado, Entre os Povos soprar horrenda guerra? Queres ver Portugal nadando em sangue? Contra nós conspirada a Europa inteira, Abraçando o partido de Castela, Vir vingar sua injuria? Ah!...
 
D. PEDRO  Que receias? Portugal vencedor, nunca vencido, Zombará do poder do Mundo inteiro. Tão ousada será, tão néscia a Espanha, Que contra nós se atreva a mover guerra? Não há de inda lembrar-se o seu Monarca, Que te deve os Domínios que possui? Que há bem pouco, cercado de inimigos, Vendo nas mãos o Ceptro vacilante, Mandou a própria Esposa, filha tua, A implorar-te que fosses socorrê-lo, Ou antes sobre o trono sustentá-lo? E que do filial pranto comovido, Não contente em mandar-lhe tuas Tropas, Tu próprio à testa delas generoso Quiseste ir debelar seus inimigos, E segurar-lhe a Coroa na cabeça? Há de ofender quem soube defendê-lo! Quem pode, apenas queira, aniquilá-lo? Não; quem viu pelejar, ao teu comando Nas margens do Salado os Portugueses, A atacar Portugueses não se atreve; E se o tanto chegar a sua insânia, À maneira dos seus antepassados, Chorando o opróbrio de ficar vencido, Caro lhe custará seu louco arrojo. Oxalá que ele à guerra nos convide! Poderia teu filho então mostrar-te,
 
Que te sabe imitar quando é preciso, Novos louros cingindo ao teu Diadema.
 
D. AFONSO  Que desatino! Oh Céus!... Eu me envergonho De te haver dado o ser: de te ouvir tremo... Tristes Vassalos meus, amados filhos, Que Monarca vos deixo sobre o trono! Tu desejas a guerra? Esse flagelo, Que envergonha, e devasta a Humanidade? O capricho dos Reis que imposta aos Povos? Ouve as lições de um Pai, posto que iroso Só devera tratar do teu castigo. Eu não posso deixar quando te escuto, De repreender-te, ó filho, e de ensinar-te: Talvez por ti mandado à sepultura, Bem depressa no trono me sucedas; Não te esqueças então dos meus ditames: Poupa o sangue dos míseros Vassalos, Do mais ínfimo deles preza a vida Outro tanto que a tua; teme a guerra, Que ao próprio vencedor sempre é funesta: No meio do triunfo os bons Reis choram. Nessa mesma tão célebre batalha, Que julgas me cingiu de louro eterno, Quando juncavam do Salado as margens Os montões de cadáveres sem conto De infiéis derrotados inimigos; Por perder trinta só dos meus Soldados, Muito cara julguei esta vitória, E, dentro de mim próprio recolhido, Mais pranto derramei, do que eles sangue. Os Reis devem ser Pais de seus Vassalos; Nada mais que o seu bem deve importar-lhes... Ele exige estas núpcias, que te ordeno; Suas vozes escuto, e não as tuas. Já te disse que dei minha palavra,
 
E torno-te a dizer que hás de cumpri-la. Afonso é teu Monarca: mando, e basta. Hoje mesmo comigo para a Corte Vê que deves partir, vai preparar-te.
 
D. PEDRO  Teus passos seguirei, porém debalde... Celebrar o consórcio que pretendes... Quisera obedecer-te, mas não posso... Sem que te diga mais, assaz te digo.
 
 
CENA II
 
D. AFONSO (só) É possível, oh Céus, que assim meu filho Temerário resista aos meus preceitos!... Que cegueira! Que arrojo! é necessário Desarraigar-lhe d'alma por violência A funesta paixão que o traz de rojo: Mas de que modo?... Cumpre meditá-lo... Seja enfim como for, desempenhado Meu Tratado há de ser: o ingrato filho, Em vez de um Pai benigno, um Rei severo Há de encontrar em mim. Oh lá, D. Nuno (chamando).
 
 
CENA III D. Afonso e D. Nuno.
 
D. NUNO Que me ordenas, Senhor?
 
D. AFONSO  Os Conselheiros Vai chamar... mas espera, aí vem Pacheco.
 
 
CENA IV D. Afonso, Pacheco e D. Nuno.
 
D. AFONSO (se dirige a Pacheco, e D. Nuno se afasta para o fundo da Cena) Quem tal dissera, Amigo! Eu me envergonho Somente de o pensar: o iroso aspeto De um Monarca, de um Pai, razões, ameaços Nada bastante foi: ousa o rebelde Às núpcias recusar-se, aos meus preceitos; Mas há de obedecer-me, aos Céus o juro. Os meios estudemos, que eficazes A sua contumácia vencer possam: Se necessário for, inexorável, Rigoroso serei.
 
PACHECO  Dever funesto É, Senhor, na verdade, o de um Vassalo, Que fiel ao seu Rei, bem que sensível, Na precisão se vê de suplicar-lhe, Que sufoque a piedade, e que castigue... Mas o interesse do Estado, e mais que tudo O decoro do trono assim o exigem. De incorrupta lealdade claras provas Eu protesto dar sempre ao Rei, e à Pátria. Longe de desculpar, porque é teu filho, Do Príncipe a Paixão, funesta origem Da sua contumácia; com franqueza Direi meus sentimentos, sem que possa Tolher-me as expressões o temor justo De perder o favor, de ser odiado De um Príncipe que adoro, e que respeito. Se queres que teu filho te obedeça, Corta a indigna prisão que maniatado O coração lhe traz, e que o estorva
 
De entrar em seus deveres: pune, extingue Esse objeto falaz que a alma lhe encanta: De contrário, Senhor, serão baldados Outros meios quaisquer que projetares.
 
D. AFONSO  Seja punida, sim, seja punida Mulher que tantos males origina; Que impera mais do que eu, e que se atreve A usurpar-me do filho a obediência. Seu crime... Mas que digo!... por ventura Não é meu filho mais culpado que ela! Serei eu parcial punindo Castro, Sem que seja igualmente castigado Quem deve mais do que ela ser punido?
 
PACHECO  O Príncipe é teu filho, tanto basta Para ser absolvido, e desculpado: A condição de Inês é mui diversa.
 
D. AFONSO  Não puno condições, puno delitos. Antes de tudo interrogá-la devo. D. Nuno, chama Inês.  (Parte D. Nuno)  Ouvi-la quero, Sondar seu coração; depois veremos Se é digna de castigo.
 
PACHECO Ah! Se atenderes Suas vozes, Senhor, suas escusas, Por seu astuto pranto subornado, Deixarás por piedoso de ser justo. Quem foi capaz de fascinar o Filho, Pode o Pai fascinar. Arte impostora
 
A peitos feminis Amor sugere: Quando as abrasa criminosa chama, Negam as expressões o que a alma sente, E com o auxílio das lágrimas convencem. Atende, atende só ao bem do Estado, Ao exemplo que deves ao teu Povo, Que, murmurando já, talvez se azede Se vir que em nova guerra o precipita Do Príncipe a paixão escandalosa. Não sofrerá Castela a grave afronta De ser, do seu Tratado em menoscabo, Por teu Filho Beatriz repudiada: E o consórcio D. Pedro não celebra, Sem que até da lembrança Inês lhe afastes. Atalha em quanto podes tantos males: Muitas vezes punir é ser piedoso.
 
D. AFONSO  Tu me fazes entrar nos meus deveres. Para me resolver a castigá-la Basta o bem do meu Povo que me lembras. No coração de um Rei digno do trono, Se os interesses do Estado a voz levantam, Compaixão, amizade, natureza, Tudo, tudo emudece. Exterminada, Em remota clausura Inês reclusa, Da presença do Príncipe se afaste: Não torne a ver meu filho essa que o cega, Em quanto, da razão aceso o facho, As tochas de Himeneu arder não faça; E se isto não bastar, mão lançaremos De outro mais eficaz, duro remédio.
 
PACHECO  Não bastará talvez; por mais que seja Recatado, e remoto qualquer sítio, Que para o seu desterro escolher possas,
 
Lá mesmo irá teu Filho arrebatá-la. Eu calo o mais que sinto, e só te lembro Que a quereres com ela ser piedoso, Poupando-lhe um maior, justo castigo, De Portugal ao menos a desterres. Ocasião, Senhor, tens oportuna De enviá-la ao Monarca de Castela, Que zeloso da filha no decoro, Guardará providente em segurança A rival que se atreve a disputar-lhe O coração do Príncipe. Este arbítrio Segue pois, se te apraz, bem que inda o julgo Para tão grande mal remédio fraco.
 
D. AFONSO  Seguirei teu conselho; porém antes Já de brandura usando, já de ameaços, Quero tentar o coração de Castro; Ver se a posso mover a que ela mesma As chamas que acendeu apagar busque... Mas ela para aqui já se encaminha.
 
 
CENA V. D. Afonso, Inês, Pacheco e D. Nuno.
 
(Pacheco afasta-se para o fundo da Cena, logo que Inês se chega ao Rei, e D. Nuno que a conduz te retira)
 
INÊS (prostra-se aos pés do Rei) Eu desfaleço... Oh Céus... Excelso Afonso, Permite que a teus pés Inês prostrada...
 
D. AFONSO  Levanta-te, ardilosa. Não é digna De beijar a Mão Regia uma vassala, Que a perpetrar se atreve altos delitos.
 
INÊS  Eu perpetrar delitos! Quais são eles? Fiel sempre ao meu Rei, vassala humilde, Ignoro em que ofendesse a Majestade.
 
D. AFONSO (contemplando-a iroso) Além de criminosa, inda impostora!... A falaz artificio em vão recorres. De sobejo ciente do teu crime. Tua simulação mais me enfurece: Ousarás tu negar que amas meu filho?
 
INÊS  Não, Senhor, a negá-lo não me atrevo... Nem, por mais que eu quisesse, poderia Deixar de confessar o que os meus olhos, O rubor de meu rosto assaz te explicam: Sim, se é delito amar, e ser amada, Meu coração, Senhor, é criminoso... Mas eu não sou culpada.
 
D. AFONSO  Que proferes? Se confessas tu mesma o teu delito, Dizes não ser culpada?
 
INÊS  Sou ingênua. Em chamar-me impostora te enganaste: Tenho-te dito assaz... e mais dissera, Se lícito me fosse.
 
D. AFONSO  Acaba, dize: Que cegueira fatal, que louco arrojo, Vãs, altivas ideias te inspiraram?
 
Como intentaste ousada ter império No coração e um Príncipe? Não vias A distância empinada, inacessível, Que do teu berço vai ao trono excelso?
 
INÊS  Quando amante paixão nos predomina, Ofuscada a razão, a ninguém lembram As distinções fatais do berço, e sangue. São iguais ante amor os mortais todos: De virtude somente se enamora Uma alma virtuosa: só virtudes Convidaram Inês a amar teu filho.
 
D. AFONSO  E atreves-te a falar inda em virtude? Não profanes palavra tão sagrada; Antes dize que estólida esperança, Avidez de reinar, te fez culpada. Talvez da minha já cansada vida Contando os longos importunos dias, Te tardava o momento suspirado, Em que, baixando Afonso à sepultura, Vazio o trono, aos teus desejos franco, Te cingisse o Diadema a indigna fronte.
 
INÊS  Que injustiça!... Minha alma não conheces, Não conheces de amor o desinteresse: Quem ama, só deseja ser amado. E a par de um coração como o de Pedro, Os Diademas que são? Que vale o Mundo? Quem de seu terno peito o império obteve, Mais império não quer: nem se deslumbram As almas grandes com o esplendor do trono. Quando a amor sucumbi, do Sólio estava Mais longe que o meu berço a minha ideia;
 
Por isso não medi como devera A declive distância que os separa; Mas hoje a vejo assaz, e mais deploro A condição do Príncipe, que a minha; Quisera que tivesse antes nascido Vassalo o meu amante, que eu Princesa: Longe de o cobiçar, detesto o trono: Nele diviso só barreira odiosa, Que entre peitos sensíveis sorte adversa Alçou para que nunca unir-se possam... Sei que sou infeliz... e o serei sempre.
 
D. AFONSO  Podes inda evitar maior desgraça; Quem logo que o conhece o crime atalha, A inocência recobra. Extingue, ó Castro, As criminosas chamas que sopraste; Quanto são detestáveis não ignoras, E bem vês que nutri-las mais não podes. Antes pois que do Príncipe te afastes, (A tão graves delitos leve pena, Que um benigno Monarca te destina) Teu completo perdão merecer busca. Tu mesma de seus erros o dissuade, E o convence a cingir-se aos dignos laços Do plausível consórcio que lhe ordeno: Concorre para o público sossego, Em vez de o perturbar: não exacerbes Pertinaz em teu crime as minhas iras. Teme o castigo atroz de que és credora, Se ao coração do Príncipe as que urdiste Prisões abomináveis não desatas.
 
INÊS  Muito exiges de mim!... Ah! Se eu pudesse As algemas romper que nos vinculam, Só por te obedecer (crê-me) o fizera:
 
Mas como num momento arrancar posso Do peito de teu filho sentimentos, Que amor, e simpatia originaram? Para sempre deixar a terna amante, E súbito ir lançar-se em braços de outra!... Se ele tivesse uma alma tão volúvel, Por amá-lo increpada eu não seria? Que proferi?... Deliro... Oh Céus... Perdoa... Perdoa-me, Senhor, talvez o tempo... Extinguir poderá... Não sei que digo.
 
D. AFONSO  Basta: emudece já, mulher soberba. De sobejo em tua alma tenho entrado. Ousas alardear, ante mim próprio, Do mais nefando crime! Ah! que castigos Bastaram a punir teus atentados! Tudo quanto há de horrível...
 
 
CENA VI D. Afonso, Inês, Coelho e Pacheco.
 
COELHO  De Castela Embaixador chegou, que Audiência pede.
 
D. AFONSO  Entrar pode.
 
 
CENA VII D. Afonso, Inês e Pacheco.
 
D. AFONSO  Retira-te atrevida; De meus olhos te afasta; vai, que em breve
 
Te serão minhas ordens intimadas.
 
INÊS  Humilde, e respeitosa hei de cumpri-las. Mas só te rogo que, antes de punir-me, Te dignes sem paixão sondar meu crime; Pois se pesares bem os meus delitos, Espero que me julgues desculpável.
 
(Retira-se Inês, e D. Afonso fica pensativo, em quanto Pacheco fala)
 
 
CENA VIII D. Afonso e Pacheco.
 
PACHECO Que insolente altivez ostentar ousa!... Eu te lamento, ó Rei, quando te vejo Na dura precisão de repelires Da tua alma os impulsos compassivos, Constrangido a punir asperamente, Para evitar terríveis consequências.
 
 
CENA IX D. Afonso, Coelho, Pacheco e o Embaixador.
 
EMBAIXADOR  A Filha do meu Rei, que te saúda, Já dos Domínios teus pisa as fronteiras; Mas o boato geral de que teu filho, Por violenta paixão alucinado, De Beatriz ao consórcio se recusa, Aos ouvidos chegou do meu Monarca, Que me ordena te diga, e te assegure, Que se com tal repulsa, em seu desdouro, O Tratado solene for violado,
 
(O que ele não espera) dignamente Saberá sustentar a toda a força O decoro da filha, e do seu trono.
 
D. AFONSO  Dize da minha parte ao teu Monarca, Que para dissipar seus vãos receios, Bastaria lembrar-se que os Reis Lusos, Fidelíssimos sempre, seus Tratados Sabem desempenhar: não porque temam, Quaisquer que sejam, estrangeiras forças; Mas por dever, por glória, e por costume. E para lhe mostrar como procedo, Hoje mesmo desterro de meus Reinos, E à sua guarda entrego Inês de Castro, Que ele julga estorvar da Infanta as núpcias. Podes certificar-lhe, que consorte Há de meu Filho ser da Filha sua.
 
EMBAIXADOR  Nem era de esperar que um Rei tão sábio Procedesse jamais doutra maneira, Pronto vou expedir ao meu Monarca A plausível resposta, que lhe envias.
 
 
CENA X D. Afonso, Coelho e Pacheco.
 
D. AFONSO  Sem demora, Pacheco, aprontar faze, Para Inês conduzir, segura escolta: Vai, Coelho, dizer-lhe que se apreste: Partirá hoje Inês para Castela, E meu filho comigo para a Corte.
 
COELHO  Oxalá que assim seja! Mas duvido. Em castigar avaro em demasia, Além de ser, Senhor, simples desterro Aos delitos de Inês pena mui leve; Receio que de horríveis atentados Seja origem fatal este projeto. Fora talvez melhor lançar mão logo Dos eficazes, últimos remédios. Eu conheço o caráter de teu filho: Mal souber que roubar-lhe Inês intentas, Dos filiais deveres esquecido, Com braço armado, temo que se atreva Contra seu próprio Pai.
 
D. AFONSO  Nem tal profiras: Não faças a meu filho essa injustiça: De tão feio atentado basta a ideia Para me horrorizar. Ide ligeiros Fazer que as minhas ordens se executem. Ah! Se alguém se atrevesse a contravi-las, Seu tremendo castigo serviria De memorando exemplo ao Mundo inteiro.
 
 
ATO III
 
CENA I
 
INÊS (só) Miseranda!... Que trance! Oh desventura!... Oh sentença, cruel!... Venceste, ó Fado. Aprazíveis lugares, testemunhas Do mais ardente amor, ah, para sempre A malfadada Inês de vós se aparta...
 
Quanto fora melhor, quanto mais doce Deixar a vida, que deixar o amante! Que!... Eu... deixar o amante?... Oh caro Esposo!... Oh Céus! podeis mandá-lo, ou permiti-lo? Sereis também cruéis como os humanos? Condenareis os mesmos, que soprastes, Sentimentos d'Amor, da Natureza? Para um castigo tal quais são meus crimes?... Se me queres punir, Deus de vingança, Os raios tens nas mãos, acende os raios, Meu terno coração reduze ao nada; Mas doutro coração, a que o ligaste, Separá-lo jamais... Ah! nem tu mesmo, Nem tu, que podes tudo, tanto podes... Que proferes, blasfema! Aos Céus te através?... Oh virtude! Oh razão! Desamparais-me?... Onde, Inês, onde está tua constância? Aos teus deveres torna, entra em ti mesma. Órgão do Ser Supremo, um Rei te ordena, Que do Esposo te apartes; não resistas; É força obedecer; enfreia n'alma, Sufoca as aflições, cala os queixumes: Com as desgraças os crimes não mistures: Mas deixá-lo!... Ai de mim... Deixá-lo!... Agora, Agora é que eu conheço as fúrias todas, Toda a força d'amor: ele triunfa Da razão, da virtude, e dos Céus mesmo.
 
 
CENA II Inês e Elvira.
 
ELVIRA  Senhora... (Ai triste!... o pranto me sufoca!) Se é certo que ímpias ordens te condenam A deixar Portugal, a triste Elvira, Que protestou viver, morrer contigo,
 
Sempre junto ao teu lado, a qualquer parte A que te arroje a sorte, há de seguir-te: Confio que esta graça me concedas.
 
INÊS  Ah! Não venhas juntar aos meus pesares O quadro da Amizade consternada: Para esmagar-me o coração sensível Bem basta Amor, a Natureza basta. Não posso resistir a tantos males, Aos golpes da saudade que retalham Da atribulada Inês o peito aflito. Mais pranto com teu pranto não me arranques, Que a um terno coração inda mais custam As lágrimas que move, que as que verte. É mesmo o ser amado um bem funesto, Que exacerba a desgraça aos desgraçados.
 
ELVIRA  É possível haver almas tão duras, Que um tão sensível coração flagelem!... Mas ah!... Porque aos pesares sucumbimos? D. Pedro é teu Esposo; ele há de opor-se Defensor poderoso em teu socorro; Há de frustrar da tirania as ordens; Nele pois confiemos: a excitá-lo Bastarão tuas lágrimas...
 
INÊS  Que dizes! Que terrível ideia me despertas! Em vez de confortar-me, vens, Elvira, Abater-me a constância, aconselhar-me A que contra seu Pai revolte um filho?... Ah! Não... Embora Inês infeliz seja; Mas nunca origem de rebeldes crimes: Amortecida já, mas inda acesa
 
Brilha a luz da razão dentro em minha alma. Não consintas, oh Céus, que amor a apague; Fortalecei meu peito. Sim, eu devo, Eu devo submeter-me ao meu destino: Cumpram-se as duras leis do duro fado: Amargurada irei longe do Esposo Acabar entre as garras da saudade... Porém os caros filhos... Ah! comigo, Comigo os levarei. Doces penhores Do mais constante amor, sereis ao menos Na minha adversidade terno alívio... Entre os meus braços sempre, sempre unidos Da inconsolável Mãe ao peito ansiado, Cobertos de carícias, de suspiros, Banhados com meu pranto, em seus semblantes O semblante verei do Esposo ausente. Aprenderão de mim... Mas ah! Que digo!... Quereria eu acaso, associando Ao pavoroso horror do meu destino O destino dos filhos inocentes, Tolher sua ventura?... Não; entregues De seu Pai aos desvelos, abrigados À sua sombra fiquem; lembrem-lhe eles A misérrima Inês continuamente... O retrato da Mãe nos filhos veja, Que eu memórias do Esposo não careço; No coração gravada a sua imagem, Ante os meus olhos sempre há de seguir-me, Há de, em quanto viver, viver comigo, E comigo baixar à sepultura.
 
 
CENA III D. Pedro, Inês e Elvira.
 
(Inês, apenas vê D. Pedro, busca enxugar as lágrimas. Elvira afastase para o fundo da Cena e pouco depois se retira)
 
D. PEDRO  Inês, querida Esposa... Mas que vejo!... Debalde buscas enxugar teu pranto: Aos olhos de um amante nada escapa. Impressas no teu rosto bem diviso As aflições, que o coração me partem. Que motivo... Mas devo eu perguntá-lo? Não sei assaz a origem dos teus males?... Eu sou, sim, sou eu mesmo o teu flagelo; Mas o teu defensor, o teu Esposo: Nada receies pois, nada te aflija... Porém as tuas lágrimas se dobram?... Oh Céus!...
 
INÊS  Amado Esposo, não repares, Não te aflijas com as lágrimas que choro: As tuas expressões, tua presença Agravam minha dor, meu pranto aumentam. Ah! pelos tristes olhos sair deixa Meu coração em lágrimas desfeito.
 
D. PEDRO  Antes em borbotões todo o meu sangue Eu quero ver correr, do que o teu pranto. De tua alma desterra vãos temores, Extermina os pesares, não sucumbas A males transitórios que te oprimem. Os caprichos do Fado, a desventura Calcaremos aos pés: sim, cara Esposa, Sempre unidos seremos venturosos.
 
INÊS  Unidos dizes tu!... Oh Céus!... Unidos?...
 
D. PEDRO  Pois quem, quem poderia separar-nos?
 
INÊS  O rigor... Ai de mim! Que vou dizer-te?... Que raio a triste Inês vai fulminar-te?... Poupar teu coração, oh Céus, quisera; Porém eu a deixar-te não me atrevo, Sem que te diga adeus... Ah! caro Esposo! Aperta-me em teus braços, e recebe As minhas derradeiras despedidas.
 
D. PEDRO  Que escuto!... Que acontece?... Inês, que dizes?
 
INÊS  Para sempre de ti vou separar-me.
 
D. PEDRO  Separar-te de mim!
 
INÊS  Atroz conflito!... Caro Príncipe, Esposo, não te esqueças Da desditosa Inês... Mas ah! Que digo! Esquece-me se podes; sê ditoso; Vive, vive feliz. Eu só te rogo, Que dos queridos filhos te encarregues; Que afagues sua infância, que os ampares; Que os defendas da inveja, da impiedade: Não cogites de mim, deles só cuida, É forçoso ceder às leis do Fado: Longe de ti, mirrada de saudades, Vou exalar meus últimos suspiros.
 
D. PEDRO  Oh desesperação! Que ideia horrível Surge dentro em minha alma! Acaso (eu tremo!)
 
Atrever-se-á meu Pai...
 
INÊS  Aos seus preceitos Obedecer devemos: intimados. Me foram já: de Portugal banida, Partir devo hoje mesmo para Espanha.
 
D. PEDRO  Oh Fúrias! é possível? Rei tirano, Não levarás avante os teus projetos... Nem ele, nem os Céus, nem os Infernos Poderão arrancar-te de meus braços. Desenganá-lo vou, parto a falar-lhe: Trema o cruel de mim, se não revoga A bárbara sentença.
 
INÊS Oh Céus! Que fazes?
 
 
CENA IV D. Pedro, Inês e D. Sancho.
 
D. SANCHO  Teu Pai, Senhor, te busca: tudo prestes Para voltar à Corte... Mas que vejo! Ele mesmo é que vem.
 
D. PEDRO  Querida Esposa, Retira-te, eu te rogo... Nada temas.
 
INÊS  Eu me retiro, sim; mas só te imploro, Que te lembres que és filho, e que és vassalo.
 
D. PEDRO  Mas Esposo também, que é mais que tudo.
 
CENA V D. Afonso, D. Pedro e D. Sancho.
 
D. AFONSO  Então, quem nestes sítios te demora? Eia, segue-me já.
 
D. PEDRO  Quem, eu!... Seguir-te?... Abandoná-la! Não, não te obedeço.
 
D. AFONSO  Que escuto, oh Céus!
 
D. PEDRO  Inda não disse tudo. Atende-me, Senhor: é necessário Declarar-me contigo; o véu se rasgue; É tempo, é tempo enfim que me conheças. Entra em meu coração desesperado, De virtudes capaz, capaz de crimes, Se a crimes o excitar a tirania. Sabes que adoro Inês, e projetavas Roubá-la ao meu amor? Que infernal fúria Te aconselha a punir uma inocente, Que é só culpada, se a virtude é crime? E esperavas acaso que eu pudesse Covarde tolerar seu menor dano, A injustiça maior, sem defendê-la, Sem opor-me aos desígnios da impiedade? Eu fora dos mortais o mais abjeto, Se deixasse oprimir...
 
D. AFONSO  Ah! Não prossigas: Emudece, rebelde. Não sei como Reprimir posso a cólera... Que arrojo!... Ousas tu murmurar dos meus Decretos?...
 
D. PEDRO  Não só murmuro, atrevo-me a frustrá-los. A razão, e os Céus mesmos me autorizam. Defendendo a minha Esposa.
 
D. AFONSO  A tua Esposa!...
 
D. PEDRO  A minha Esposa, sim. Sabe que os laços Do sagrado consórcio a Inês me ligam. Intentarias pois inda oprimi-la?...
 
D. AFONSO  Não julgues iludir-me, não te creio: A tão sutil ardil em vão recorres. Que! Esposa de meu filho uma vassala!...
 
D. PEDRO  Uma vassala, sim, para quem fora Do Mundo todo o Império inda pequeno: Não duvides, Senhor. Que encontras nela Que indigna de teu filho julgar possas? Eu não quero falar do Régio sangue, Que, dos teus ascendentes derivado, Lhe circula nas veias: outros dotes Mais belos, mais sublimes a enobrecem: Vassala, a quem os Céus pródigos deram Todas as perfeições que os Céus dar podem, Para ser do teu filho digna Esposa, Ser filha de Monarcas não precisa.
 
Se Inês é virtuosa, que lhe falta? Quem mais digna do trono que a Virtude! Mas dos seus predicados prescindamos. Castro é minha Consorte, tanto basta; É Princesa, por tal a reconhece, E o decoro lhe guarda de que é digna.
 
D. AFONSO  Sim, tratada será como merece... Brevemente o verás.
 
D. PEDRO  Olha o que fazes... Não queiras constranger-me inexorável A perpetrar horríveis atentados: Se como Pai benigno, e Rei clemente Praticares comigo, hás de em mim sempre Encontrar um Vassalo respeitoso, E um filho obediente; mas se acaso Insistes em roubar-me a cara Esposa, Um mortal inimigo em mim contempla, Que cego, furioso, e desesperado, Sem atender senão aos seus transportes, Será capaz de horrendos sacrilégios. Evitando-os, atalha uma injustiça: Revoga pois a bárbara sentença.
 
D. AFONSO  Sim, por outra mais justa, revogada (descansa) ela vai ser. Espadanando Há de ver teu coração da infame o sangue As chamas apagar que te devoram.
 
D. PEDRO (desesperado) Primeiro que o seu peito a ferir chegues, Hão de ser-me as entranhas arrancadas: Há de em rios correr todo o meu sangue
 
E o teu sangue também, se for preciso.
 
D. AFONSO  Oh Céus!... Tremo de horror!...
 
D. SANCHO Senhor, que fazes? Ousas contra teu Pai?
 
D. PEDRO  Ah! Que proferes? Pai? Eu tenho inda Pai?...  (A D. Afonso, no mesmo frenético arrebatamento)  Não, não, tirano, Tu meu Pai já não és: não sou teu filho... Um cruel como tu... Porém que digo!... Com quem falo?... Onde estou?... Quem me arrebata! O inferno, as fúrias todas me espedaçam... Quem fala não sou eu, trovejam elas... Sacrílego!... que fiz!...
 
D. AFONSO  Céus, estais surdos!... Onde os raios estão, que inda não chovem Sobre um monstro, que tanto os desafia? Vingança!... Maldições!...
 
D. PEDRO  Tudo mereço. Ah! Se os Céus inda imóveis não fulminam, É talvez que, assombrados de escutar-me, A desprender os raios não se atrevem. Debaixo de meus pés tremendo a terra, Quer abrir-se, e não ousa devorar-me... Até mesmo os abismos se horrorizam De um monstro, que soltou tantas blasfêmias... Oh terror!... Oh remorsos!... Crime horrendo!...
 
Mas sabe o Céu, Senhor, que, involuntárias, Não teve o coração parte nas vozes, Que por meus lábios despejou o Inferno... O Inferno todo, que no peito encerro. Não me julgues capaz... Porém que digo!... Infeliz!... Desculpar-me intento ainda?... Horror da Natureza, e de mim próprio, Nem me atrevo, Senhor, a suplicar-te O perdão... Não, eu dele não sou digno. Do peso da existência me alivia; Vinga da Natureza as leis sagradas, O respeito devido à Majestade, Que atropelei feroz: eterno exemplo Tu deves dar em mim ao Mundo inteiro. Salpicadas de sangue estas paredes, Que ouviram minha voz blasfemadora, Aos séculos vindouros apregoem Meu lastimoso fim: ao vê-las tremam As Gerações futuras de imitar-me. (Prostra-se aos pés de Afonso) Eis-me a teus pés prostrado: vibra o ferro; Eis meu peito, retalha-o: não te lembres Que foste já meu Pai... sou delinquente: Lembra-te só que és Rei, castiga o crime. Porém... ah! não flageles a virtude... Se me deves punir como culpado, Inês como inocente absolver deves. Não me custa morrer; porém não posso, Não posso consentir que Inês padeça... Nem há de padecer em quanto eu viva. Pretender separar-nos é debalde; Até duvido que a morte possa tanto... (Tornando em si) Releva ao meu amor estes transportes... (No tom mais poético) Eu sou sensível... amo... e sou amado.
 
D. AFONSO  Todos os meus sentidos perturbados, Cheio de ira, e de horror... Nem falar posso... Afastem-me da vista esse rebelde. Ao próximo Castelo conduzido, Seja em prisão segura aferrolhado: Sua guarda, D. Sancho, eu te confio; Em quanto justiçoso, inexorável, Em Conselho de Estado não decido Qual ser deva o castigo de seus crimes, E o suplício da infame, que os motiva. Treme do meu furor, malvado, treme: Este dia talvez, dia horroroso! Será na longa série das idades, De eterno espanto a Portugal, e ao Mundo.
 
 
CENA VI D. Pedro e D. Sancho.
 
D. PEDRO  Inda mais horroroso do que pensas Certamente será, se não desistes De tão cruéis desígnios. Que impiedade! O suplício de Inês! Da minha Esposa!... Como posso deixar de rebelar-me! Como evitar um crime necessário, Que o dever, e a ternura me prescrevem?... Um crime disse?... Ah, não; longe os remorsos; Defender uma Esposa não é crime; Crime fora deixá-la ao desamparo. Longe, máximas vãs, leis opressivas, Que a tirania impôs sobre a ignorância, Nada se deve aos Pais pela existência: Os desvelos depois, seus benefícios São os títulos só que lhes conferem À nossa obediência um jus sagrado.
 
Meu coração revoca os seus direitos: Arrependo-me só de arrepender-me Pelos ter justamente sustentado. Querias, Rei cruel, aferrolhar-me Em segura prisão, para a teu salvo Me poderes roubar a cara Esposa?... Debalde o projetaste, não...
 
D. SANCHO  Deliras?... Que intentos são os teus?... Resistir queres Às ordens de teu Pai, que enfurecido...
 
 
CENA VII D. Pedro, D. Sancho e D. Inês.
 
INÊS  Esposo, que fizeste?... Oh Céus, eu tremo!... Da tua voz medonha horríveis ecos Inda nestas abóbadas retumbam; De furor sufocado, o rosto em fogo, Afonso espavorido, a longos brados Chama pelos atrozes Conselheiros: Certamente, faltando-lhe ao respeito, Lhe exacerbaste as iras. Que fizeste?
 
D. PEDRO  Menos inda talvez do que devia. Não te importe o que fiz, faze o que digo. As fúrias não receies do tirano; Vai súbito buscar os tenros filhos, E dispõe-te a seguir-me.
 
INÊS  Como!... Aonde?...
 
D. PEDRO  Deixamos estes sítios, onde imperam A discórdia, a injustiça, a iniquidade. Evitemos o extremo dos horrores: Acompanha-me, Esposa, se não queres Ver-me inda parricida.
 
D. SANCHO Oh Céus!
 
INÊS  Que insânia? Ah! Que dizes? Que intentas?
 
D. PEDRO  Defender-te, E possuir-te em paz; poupar-me ao crime. A tua vida, Inês, ameaçar ousam; Afonso pretendia encarcerar-me, Talvez para ordenar o teu suplício: Atreveu-se a dizer-me: é necessário Fugir-lhe; ou repelir com braço armado Seus bárbaros desígnios: eia, vamos, Não te demores mais.
 
INÊS Eu desfaleço!... Desgraçada!... Onde queres conduzir-me?
 
D. PEDRO  Se necessário for, ao fim do Mundo: A meu lado segura, em qualquer parte Seremos venturosos; ermas grutas, Morada simples de prazeres puros, Mais gratas nos serão que áureos Palácios, Habitação fatal dos males todos.
 
INÊS  Que me propões, Senhor! A voz me falta...
 
D. SANCHO  Ah, Príncipe! Contempla o precipício Em que vás despenhar-te, e a que me arrastas. Responsável por ti...
 
D. PEDRO A nada atendo. (Para D. Sancho) Podes tombem, querendo, acompanhar-nos. Sim, eu te rogo, vem... De cãs coberto Tens conhecido assaz o ar pestilento, Que nas Cortes costuma respirar-se, Hálito venenoso, que derramam A traidora lisonja, a fraude, a intriga, Que em torno aos Sólios quase sempre giram. Longe de tanto horror, ah, vem ao menos Gozar em paz o resto de teus dias.
 
D. SANCHO  Feliz eu, se ontem fosse o derradeiro! Ah! Querias que próximo ao sepulcro Fosse ao meu Rei traidor? Que concorresse Para um tal desatino?... Eu, que incumbido Da tua educação (funesto emprego) Por ele mesmo fui, sócio seria Em teus crimes, sofrendo que infringisses Teu dever!...
 
D. PEDRO  Qual dever? Fúteis quimeras! O primeiro dever é ser ditoso, É seguir d'alma o natural instinto. Vamos, querida Inês.
 
INÊS  Oh Deus! Que trance! Frenético... ai de mim!... Que premeditas? Teu nome, tua glória ofuscar queres? Seria a triste Inês tão desgraçada, Que, origem de teus crimes, tolerasse A infâmia de te ver por seu respeito A Pátria abandonar, e o trono excelso?... Ah, que diria o Mundo...
 
D. PEDRO  Que diria? Que o esplendor do Sólio não deslumbra Uma alma como a minha. Eu nada perco Em deixá-lo por ti, não, cara Esposa; Vale mais ser feliz, que ser Monarca.
 
INÊS  E pode ser feliz quem atropela Da sociedade as leis, do sangue as vozes? Ah! Desiste, Senhor, de teus projetos; Obedece ao teu Rei: jamais esperes, Que eu aprove, ou consinta os teus delírios: Nem te deixo partir, nem te acompanho... Eu não quero roubar a um Pai seu Filho, Nem tolher a ventura aos Lusitanos, Privando-os do melhor dos seus Monarcas. Se os meus rogos...
 
D. PEDRO  Teus rogos são inúteis: Que! Recusas, Inês, acompanhar-me?... Ah, não vês nestes sítios horrorosos Girar em torno a nós a morte, e os crimes!
 
INÊS  É para os evitar que eu te não sigo.
 
A honra, a glória valem mais que a vida. Entre os crimes, e a morte, a morte escolho. Mas ah! por que tão próxima a divisas? Decretou-ma teu Pai? Nada me encubras: Sabe ele já que em vínculo sagrado...
 
D. PEDRO  Tudo lhe revelei: mas o tirano, Fingindo não poder acreditar-me, Orgulhoso, tenaz em seu capricho, Ameaçou-me... que horror! com teu suplício; E, para a seu sabor poder julgar-te, Em segura prisão manda encerrar-me No próximo Castelo. É pois forçoso...
 
INÊS  Obedecer-lhe, sim.
 
D. PEDRO Obedecer-lhe?...
 
INÊS  Indispensável é, vai, caro Esposo; Submisso aos Paternais Régios preceitos, Eu te rogo, Senhor, à prisão corre. Outro meio não tens para salvar-me; Nem eu por outro meio a vida quero: Outra vez te asseguro, eu não te sigo; Jamais conseguirás...
 
D. PEDRO  Basta: não queres Estes sítios deixar? Queres ver neles Derramados por mim rios de sangue?... De uma austera virtude entusiasmado Ao parricídio, enfim, queres forçar-me? Pois bem, a perpetrá-lo estou disposto.
 
Eu vou, sim, eu vou já...
 
INÊS  Cruel; detém-te: Meus gemidos, meu pranto já não podem Mover-te o coração, domar-te as fúrias? Onde o império que Inês tinha em tua alma?
 
D. PEDRO  Não te canses, debalde são agora Teus rogos, o teu pranto, os teus gemidos: Este dia horroroso é consagrado À desesperação, ao crime, à morte. Inflamado em meu peito, só com sangue Das fúrias o tição pode apagar-se. Impedir ninguém pode, nem tu mesma, Os golpes espantosos, que o meu braço Vai já descarregar.
 
INÊS Por mim começa: Rasga-me o coração, da Esposa o sangue Seja o primeiro sangue que derrames; E se ele não bastar a saciar-te, Aos sacrilégios todos te arremessa... Que horror! Nem ouso em ti fitar meus olhos. És tu? Não, tu não és o meu Esposo; O meu Esposo detestava os crimes: Eu amava um Consorte virtuoso; Virtudes já não tens, já te não amo. Vai, monstro sanguinário... Mas que disse? Eu deixar de te amar? Não me acredites: O terno coração desmente as vozes, Que, a meu pesar, de ouvir-te horrorizada, Sem tino proferi... Olha o meu pranto. Abatida a teus pés, com eles me abraço... Ou tu hás de ceder aos meus lamentos,
 
Ou ver-me aqui morrer, e aos pés calcar-me. (Prostra-se, e abraça-se com os pés de D. Pedro)
 
D. PEDRO  Oh Céus!... Querida Esposa. (Enternecido, querendo levantar D. Inês)
 
INÊS  Eu não te deixo, Daqui me não levanto, sem primeiro De tua alma banir as negras fúrias; Sem que tu me prometas obediente Ir súbito cumprir as Regias ordens. Ah! se tu amas inda as minhas preces, Não hás de resistir...
 
D. PEDRO  Nem já resisto. (Levanta D. Inês) Deixar de obedecer-te, ah, quem, quem pode!... Para a prisão já parto. (A Sancho) Amigo, vamos. (Voltando-se para D. Inês e com a maior ternura) Poderás duvidar inda do império Que em meu coração tens?
 
INÊS  Oh Deus! Conforto! (Voltando-se ternissimamente) Não me retalhes mais o peito aflito. (Afetando tranquilidade) À trêmula razão ceda a ternura; Não te demores mais...
 
D. PEDRO  Mas tu...
 
INÊS Sossega; Nada temas por mim: o Céu me inspira Os meios de abrandar de Afonso as iras. Irei com os filhos a seus pés prostrar-me: Ninguém resiste à voz da natureza: Por mais duro que seja o seu caráter, Se tem um coração, ao ver os Netos Abraçados em mim, chorar comigo, Não poderá deixar de comover-se, De perdoar-me enfim; nada receies. Adeus, Esposo, adeus. (Muito a seu pesar precipitadamente se retira)
 
D. PEDRO  Céus! que suplício!
 
 
ATO IV
 
CENA I Coelho e Pacheco.
 
COELHO  Vão decidir-se enfim nossos destinos: Este o dia arriscado, em que a Fortuna Segura mão nos dá, ou nos despenha: Ou morre Inês de Castro, ou nos perdemos. Resolutos a tudo, é necessário Os perigos afrontar; deve um Valido, No cume da grandeza vigilante, Aos Adversários seus tramando a ruína, Primeiro que o derrubem, derrubá-los; O futuro prever, prever a intriga, E destro em conhecê-la, e manejá-la, A vida antes perder que o valimento. Nosso plano até que tem produzido
 
O desejado efeito. Afonso irado, O Príncipe em prisão, tudo parece Prometer-nos um êxito ditoso. Tens tu já prevenido, aliciado Os poucos Conselheiros, que nos restam? Constantes votarão de Inês a morte?
 
PACHECO  Apenas lhe propus, me asseguraram; Dependentes de nós em grau mais baixo, A um leve aceno autómatos flexíveis, Ecos da nossa voz, a nosso grado Amoldando-se a tudo, a tudo prestes, Servir nossos caprichos tem por glória. Entre todos D. Sancho unicamente Velho estoico, singelo em demasia, Que as honras, e os empregos menoscaba, Poderá combater nossos desígnios; Mas Álvaro Gonçalves, que se interessa Igualmente que nós de Inês na morte, Se incumbiu de sondá-lo, e persuadi-lo.
 
COELHO  Desnecessário é, que, encarregado Da guarda de D. Pedro, ele não pode Ao Conselho assistir. Nada mais resta Do que azedar a cólera de Afonso, Dar-lhe a beber na taça da Justiça Adoçado veneno, que o perturbe, E a voz da compaixão d'alma lhe afaste. Convém não perder tempo: aproveitemos Propicia ocasião, que fugir pode: Vamos...
 
PACHECO (pensativo)  Espera...
 
COELHO  Quê! tu desfaleces!
 
PACHECO  Confesso que algum tanto perturbado O coração não sei que me anuncia... Calculemos melhor sobre o futuro. Inda mesmo supondo inevitável, Suscitada por nós, de Castro a morte, É de temer que o Príncipe ferido Na parte mais sensível da sua alma, Raivando inexorável, desesperado, Sobre nós descarregue atroz vingança. Quem poderá suster?...
 
COELHO Tarde receias: Nas bordas já do aberto precipício, É preciso transpô-lo, ou cair nele: Retroceder o passo não podemos. Assaz já sabe o Príncipe quais sejam As nossas intenções, nossos conselhos; Seu ódio contra nós é já sobejo. Que lucraremos pois, se ora cobardes Da começada empresa desistirmos?... Apressar nossa ruína, exacerbá-la? Se foi razão bastante a conspirar-nos Contra a vida de Inês, justo receio De ver um dia alçada sobre o trono A Irmã de nossos feros inimigos, Que em nosso dano então fartar pudessem A perpétua aversão que nos juraram; Se a nossa ruína assim era infalível; Quanto mais o será tendo atraído Do Príncipe o rancor!... Prosseguir firmes É somente o recurso que nos resta. Morta Inês, com o tempo talvez possa
 
O Príncipe, esquecendo-a, sujeitar-se Ao Consórcio, que Afonso lhe prescreve, E, apagada a paixão, ver-nos sem ódio. Ou vítima talvez d'amor infausto, De saudades mirrado, não podendo Sobreviver a Inês idolatrada, De Inês à sepultura a dor o arraste. Afonso há de entretanto defender-nos, E se acaso abortarem finalmente Nossos desígnios todos, então mesmo Não me hei de arrepender de os ter forjado: Antes quero morrer, inda o repito, Do que ser por meus émulos calcado, Contemplados Irmãos de uma Rainha.
 
PACHECO  Sentimentos iguais me fervem n'alma; Eia, tudo se arrisque; prossigamos: Descarregue-se o golpe derradeiro, Inda que, errando-o, sobre nós desfeche. Eu parto a congregar os Conselheiros, Segurar inda mais todos os votos; E tu no entanto ao Rei procura, e move; Sua cólera atiça; que eu não tardo, Juntos os do Conselho, a vir chamá-lo.
 
COELHO  Bem: não poupes promessas, nem te esqueça Desculpar ante o Rei sempre a D. Pedro, Fazendo recair de seus arrojos Sobre Inês tão somente a culpa toda. Afonso para aqui dirige os passos... Não percas tempo, vai.
 
CENA II D. Afonso e Coelho.
 
(D. Afonso entra na cena pensativo)
 
D. AFONSO Cruéis remorsos! Horroroso castigo de meus crimes!... Que torpel de aflições, que acerbos males Vem funestar o resto de meus dias!... Infeliz Pai!... Monarca desgraçado!
 
COELHO  Releva-me, Senhor, que ouse, pungido Da dor, em que o meu Rei vejo abismado, Recordar-te que deves mitigá-la. Tua vida, Senhor, não é só tua. Do teu Povo é também: ah não, não queiras À força de aflições abreviar-lha. Sei quanto custa a um Rei ouvir blasfêmias De um filho, que feroz o não respeita: Mas deves ponderar que um tal arrojo Tão desculpável é, quanto é violenta A funesta paixão, de que instigado Teu filho, a teu pesar, o perpetrara; Delito involuntário...
 
D. AFONSO O seu delito Não é só filho da paixão que o cega: Força maior o arrasta aos sacrilégios: Mais que o seu ímpio arrojo, o que me aflige, É ver que assaz mereço um tal castigo, Das maldições celestes justo efeito. Oh remorsos cruéis!... Era forçoso Que um filho de tal Pai fosse rebelde. Mais do que ele rebelde, filho ingrato Eu fui, eu fui também... Ardendo em fúria Atrevi-me, que horror! a tomar armas Contra Diniz meu Pai; movi-lhe a guerra,
 
Sublevei-lhe os Vassalos, assolei-os; Cavei-lhe assim feroz a sepultura; Todas as leis calquei da Natureza, A Natureza agora quer vingar-se. De um Pai, que contra o Pai se revoltara, És, sim, filho rebelde, és digno filho! Mais me sofreu Diniz do que eu te sofro; Mas tu hás de igualar meus atentados, Inda os hás de exceder; talvez já tardas! Nem vós podeis, ó Céus, jamais impunes Sacrilégios deixar tão execrandos. Dos Avós implacáveis vingadores São, por justo castigo, quase sempre Maus filhos os do Pai, que foi mau filho. Diniz! Grande Diniz! Sombra iracunda! Terrível sombra, que ante mim volteias! Sobre a minha cabeça criminosa, Por mão do ousado neto, descarrega O já tardio, merecido golpe... Ah! Sim... bem vejo... ameaçador me apontas O tremendo futuro, que me espera... Que flagelo! Que horror! Que mar de sangue!... Tristes vassalos meus! Ah filho! Filho! Suspende...
 
COELHO  Que delírio te arrebata?... Teu grande coração sentir não deve Remorsos, que aos malvados só competem: Passadas, leves faltas não recordes; Males não temas, que atalhar bem podes.
 
D. AFONSO  Por que não vens, ó morte, aliviar-me Do peso da existência, e de meus crimes!
 
COELHO  Que seria de nós, se os Céus te ouvissem! Em desordens submerso, dessolado, Contigo Portugal acabaria. Os clamores escuta do teu Povo, Conserva-lhe o seu Rei; tão necessário A teus tristes Vassalos jamais foste: De mil calamidades ameaçados, Só lhes pode valer tua justiça.
 
D. AFONSO  E como? De que modo evitar posso Desordens, que a mim mesmo me soçobram?
 
COELHO  Do mal a causa extinta, o mal expira; Extingue a causa pois de tantos males: Em quanto existir Castro, que os fomenta, Debalde intentarás dar-lhe o remédio.
 
D. AFONSO  Que dizes? Condenar Inês à morte? Tão graves são seus crimes, que mereçam...
 
COELHO  Os seus crimes, Senhor... Ah! por desgraça, Nunca o Mundo viu crimes que brotassem Tão funestas, horríveis consequências: Desnecessário julgo referi-las; Tu bem as sabes, pois assaz te afligem. Do Príncipe ardilosa sedutora, Se teu filho é rebelde, se é blasfemo, Quem, senão ela, o força aos sacrilégios! Não vaciles, Senhor; o seu suplício Chega a ser, mais que justo, indispensável. Mas não basta o que eu digo a condená-la: Tens melhores, mais sábios Conselheiros,
 
Que juntar já mandaste; ouve os seus votos: Que se eles zelo igual ao que me inflama, Por ti, pelo bem público, tiverem, Hão de todos unanimes rogar-te Que o suplício de Inês logo decretes; Pintar-te com as mais negras, próprias cores De Portugal a ruína, se o dilatas; As dissensões cruéis, a horrível guerra, Que a vingativa Espanha vai mover-nos, E de que os teus Vassalos, fatigados Das recentes batalhas, já murmuram, A Viúva, que o Esposo perdeu nelas, Não quer perder agora o caro filho, Nem o filho, que em luto inda o Pai chora, Desamparando a Mãe, expor-se à morte. Finalmente, Senhor, tudo te brada Que sacrifiques uma a tantas vidas; Que deixes ao futuro eterno exemplo, Para que ninguém mais seduzir ouse, À imitação de Inês, corações Régios.
 
D. AFONSO  Se assim o exige o público sossego, O Conselho decida o que for justo, Que eu aflito não sei o que obrar deva.
 
COELHO (avistando Inês ainda fora da Cena)
 
Que vejo! Inês!... é muito! Inda se atreve A vir aparecer-te?... Ah, melhor fora Retirar-te, Senhor, sem dar-lhe ouvidos.
 
D. AFONSO  Vamos, sim... Porém não, devo escutá-la.
 
COELHO  Talvez os do Conselho já te esperem.
 
D. AFONSO  Vai tu juntar-te a eles, que eu não tardo.
 
 
CENA III D. Afonso, Inês, Elvira e os meninos.
 
INÊS  Chegai, filhos, chegai, vinde prostrar-vos Aos pés de vosso Avô; vinde beijar-lhe Pela primeira vez a Mão Augusta. (Prostra-se com os meninos aos pés de Afonso, e Elvira se retira) Eis, ó Senhor, os filhos de teu filho, Que vem com tristes lágrimas rogar-te, Que desta triste Mãe te compadeças. Chorai, chorai comigo, tristes filhos, Intercedei por mim com vosso pranto, Pranto mais expressivo do que as vozes, Que a vossa tenra infância não permite: Ajudai meus lamentos, minhas preces, Impetrai meu perdão. Sim, Rei clemente, Eis a Mãe desgraçada de teus Netos, Que abraçada com eles te suplica, Que a misérrima vida lhe conserves. Sei que vai decretar-se o meu suplício! Alvo da intriga, vítima da Inveja, Temerosa, infeliz, desamparada, A morte já diviso, a injusta morte, Que raivosos, tiranos Conselheiros, Iludindo a piedade de tua alma, Fulminam contra mim... Que atrocidade!... Por que enormes delitos sou punida?... Amar, Senhor, teu filho, ser amada, Crime acaso será digno de morte? Imploro, ouso atestar tua justiça. Ah! Consulta, Senhor, tua clemência,
 
Teu coração consulta, que ele mesmo Te há de dizer, que a morte não mereço.
 
D. AFONSO  Levanta-te, infeliz...  (Enternecido)  Oh Natureza! (Vai abraçar os netos, volta o rosto aflito e exclama) Oh de um Monarca rígidos deveres!... Levanta-te, infeliz.  (Levanta Inês)  Funesta origem Das cruéis aflições que me consternam... Ao ver-te me enfureço... e me comovo... O Pai quer perdoar-te... o Rei não pode.
 
INÊS (prostra-se outra vez aos pés de Afonso) Ah Senhor! Perdoar aos desgraçados É dos Reis o poder mais doce, e augusto: Sim, do teu coração segue os impulsos; Triunfe a compaixão, e a natureza, Não te hás de arrepender por ser piedoso; Antes porém, se à morte me condenas, Hão de eternos remorsos flagelar-te, Incessantes angústias consumir-te: De Portugal a glória, as esperanças Vão sobre a minha campa espedaçar-se. Verás por ti mandado à sepultura Comigo, a teu pesar, descer teu filho. Matando-me, Senhor, ah, vê que o matas! Os nossos corações, unidos ambos, Tão ligados estão, que o mesmo golpe Que retalhar o meu, traspassa o dele; Existir um sem outro não podemos... Por ele, e não por mim te imploro a vida. Sim, de rojo outra vez torno a abraçar-me Com tuas Regias Plantas. Tem piedade
 
Da Esposa de teu filho. Ah, se não fossem Estas doces prisões, que me constrangem A viver infeliz, e amar a vida, Longe de instar por ela, sem queixar-me, Tranquila recebera o fatal golpe... Mas deixar para sempre o que mais amo!... Sou Esposa, sou Mãe... Céus! Desfaleço! (Abraça os filhos com a maior ternura e aflição) Queridos filhos... Desgraçados órfãos!... E que será de vós quando vos falte. A mais terna das Mães, o Pai mais terno!... Ah Senhor! Se inflexível ao meu pranto, A minha situação te não comove, Presta ouvidos à voz da Natureza: Mova-te a compaixão o desamparo Destas vítimas tenras, e inocentes: Eles culpa não tem dos meus delitos. Não te lembres, Senhor, que são meus filhos; Ah, não: lembra-te só, que são teus netos... Mas tu choras? Que vejo! Os Céus me ouviram: Tuas lágrimas vêm em meu socorro, Elas o meu perdão já me anunciam. Acaba de extinguir os meus temores, Dize, dize, Senhor, que me perdoas.
 
D. AFONSO  Não posso resistir... Oh quem pudera Neste instante deixar de ser Monarca!
 
 
CENA IV D. Afonso, Inês, seus filhos e Coelho.
 
(Inês, apenas avista Coelho, levanta-se atemorizada)
 
COELHO  Por ti, Senhor, se espera: vem, não tardes;
 
Que já começa o Povo a amotinar-se.
 
INÊS  Oh Deus! Eu morro!
 
D. AFONSO Inês, não desesperes. Inflexível não sou: meu pranto o afirma; Mas não posso faltar aos meus deveres; Não sou senhor de mim, tenho Vassalos; Perante eles, perante os Céus, e a Terra, De tudo quanto obrar sou responsável; Despótico não sou; mas sou piedoso. Tens Afonso por ti, nele confia: Ao Conselho de Estado vou eu mesmo Tua Causa advogar. Céus, inspirai-me.
 
 
CENA V Inês e seus filhos.
 
INÊS  Debalde sedutoras esperanças Por mais tempo iludir-me já não podem. O coração me augura que é chegado De meus dias o termo desastroso. Sim, próximos estais, queridos filhos, A perder vossa Mãe... Vinde a meus braços... Em breve... ai triste!... em breve hão de faltar-vos Os maternais, terníssimos afagos... Para sempre vos deixo... para sempre... Cruel separação!... dor insofrível!... Horrorosos momentos! Céus!... Nem posso; Nem me atrevo... ai de mim! a ver meus filhos: Quanto mais os contemplo, mais me aflijo... De todo sinto já faltar-me o alento... O coração rebenta... que ansiedade!
 
Ah! parece que a morte... ela já chega... A descarnada mão... que horror! Espera Suspende, ó Morte... deixa que primeiro... Meus filhos onde estão?... Quero inda vê-los... Cruéis, não me roubeis... Antes que morra, Ao menos uma vez quero abraçá-los... Quem se atreve a arrancá-los de meu peito?... Ah bárbaros!... Meu sangue... Esposo? Esposo?... Onde estás, que não vens em meu socorro!... Mas em vão... Já é tarde... a sepultura...
 
 
CENA VI Inês, seus filhos e Elvira.
 
ELVIRA  Que vejo, oh Deus! (Corre para Inês)
 
INÊS Abertos os abismos... (Delirante ainda)
 
ELVIRA  Inês... (que mágoa!) Inês...
 
INÊS  Que!... Quem me chama?... És tu, Constança, És tu, que vens ainda Da habitação da morte perseguir-me?
 
ELVIRA  Torna, Senhora, em ti... Já não conheces, Não vês a triste Elvira?...
 
INÊS Quem!... Elvira...
 
És tu? Aonde estou?... Ah, que me queres?
 
ELVIRA  Mitigar tua dor, chamar-te à vida. Os alentos recobra, as esperanças: Serás inda feliz, verás em breve Trocados em prazer os teus pesares.
 
INÊS  Prazeres para mim!... ah!...
 
ELVIRA  Quê! Não viste As lágrimas do Rei, que o teu indulto No enternecido aspeto prometia?
 
INÊS  Qual quimérico indulto!... Nada esperes: Que importam suas lágrimas, que importa Que perdoar-me queira, sé o rodeiam Vis Cortezão, escândalo do trono, Algozes da inocência, feros monstros, Sedentos do meu sangue, que ardilosos Seu coração benigno senhoreiam? Elvira, a minha morte é infalível; Pouco pode tardar: antes que chegue, Toma, toma estes órfãos inocentes, Conduze-os à prisão ao meu Esposo; Entrega ao triste Pai os tristes filhos, E dize-lhe que Inês... Mas ah, que faço?... Retalhar quero do consorte o peito? (Com a notícia fatal da minha morte O mortífero golpe antecipar-lhe?... Ah, não; bem basta que de dor expire. Quando entrar nesta lúgubre morada, Onde, chamando em vão a extinta Esposa, Tristes ecos somente lhe respondão;
 
E tintas as paredes do meu sangue, Lutuosos vestígios da consorte A cada passo espavorido encontre. Então, Elvira, então é que eu te rogo Lhe digas...  (Olhando atemorizada em volta da Cena)  Ah, parece que ouço passos... Serão talvez meus bárbaros verdugos... Que cheios de furor, ardendo em raiva Venham cevar-se no meu sangue?... Ai triste!... Ei-los que chegam... Não me engano... Elvira! Vamos na minha Câmara encerrar-nos: Já melhor poderei recomendar-te O que exijo de ti; sim, vamos, filhos, Quero morrer ao menos junto ao leito, Que tem sido até agora testemunha De envenenados, rápidos prazeres, Dos contínuos remorsos do meu crime, Das minhas aflições, e do meu pranto.
 
 
 
ATO V
 
CENA I
 
D. AFONSO Que aflição, que tumulto n'alma sinto! Vacilante, confuso, atribulado, Mal posso respirar. Céus! que tormento! De um lado a compaixão, doutro a Justiça... Formidável Justiça! Enfim venceste. Satisfeito estarás, dever tirano... O suplício de Inês... Oh Deus, e pude, Tremendo, subscrever da sua morte A rígida sentença!... Eu me horrorizo:
 
Dentro em meu coração queixosas sinto Bradar a compaixão, e a natureza... Que! surdo à sua voz, consentir devo, Que à morte, a meu pesar, severamente Seja a Mãe de meus Netos condenada? E por que crimes? Por amar meu Filho? Ah, não: é tempo ainda; revoguemos A sentença cruel... Porém que faço?... O público sossego, o bem do Estado, O popular clamor, o exemplo, tudo, Tudo enfim contra a triste me constrange, E me estorva o prazer de perdoar-lhe, Ah, dura condição! Pesado Cetro, E haverá quem dos Reis inveje a sorte? Tormentoso lugar, terrível Sólio, Assento de aflições, e de amarguras; Desgraçados aqueles que te ocupam!
 
 
CENA II D. Afonso e D. Sancho.
 
D. SANCHO  Ah Senhor! Se teu filho inda te é caro, Se não queres privar os Lusitanos Do herdeiro Augusto de teu trono, e glória; Não percas tempo, evita, remedeia A desesperação que o assassina. Eu conter já não posso os seus transportes, Nem ver as aflições que o despedaçam: Umas vezes convulso, delirante, Cintilando furor, aceso em raiva, Morde, intenta romper os duros ferros Da prisão, que o retém; blasfema, e brama: Consternado outras vezes, abatido, Em profundo letargo, entre agonias, Os olhos rasos d'água, o peito ansiado,
 
Sucumbe à sua dor, cai, desfalece. Eis que súbito agora por mim chama: "Vai, amigo, (me diz) corre apressado, Saber da minha Esposa, e de meus filhos. Certamente os perversos Conselheiros Ousaram conspirar contra os seus dias: Ah, procura meu Pai, por mim lhe fala; Por mim de Inês o indulto lhe suplica; O estado em que me vês lhe representa; E se ele persistir inexorável, Protesta-lhe por mim..." Ah! nem me atrevo A referir-te...
 
D. AFONSO  Basta: não aumentes A minha confusão: oh Deus!
 
D. SANCHO Perdoa: Tu silêncio me impões; mas eu não posso, Não posso obedecer-te; o grande risco, Em que os dias do Príncipe contemplo, O amor que lhe consagro, não permitem Que eu cesse de clamar-te que perdoes À miseranda Inês, de cuja vida A vida de teu filho está pendente. Inês já agora é de D. Pedro Esposa... É até digna de o ser. Não acredites Danados corações; que seus contrários, De inveja, de ambição, de rancor cheios, Intentam denegrir o seu caráter. Vê, meu Rei, que te iludem: crer-mo deves Por meus lábios falou sempre a verdade. Inês uma alma tem singela, e nobre, Sensível de sobeja, a amar propensa; Não pôde resistir a amar teu filho: Seu delito é só este, não tem outros;
 
Doutros não é capaz, e um tal delito, Quando tantas virtudes o acompanham, É digno de perdão, é desculpável. (Prostra se aos pés de D. Afonso) Perdoa-lhe, meu Rei, não diga o Mundo, Que inflexível, severo em demasia, Nem de teu filho à Esposa perdoaste.
 
D. AFONSO (depois de pensar um pouco) Não, não há de dizer. (Chamando para dentro da Cena)  Oh lá, D. Nuno! (Consigo mesmo) Deixar eu de ser Pai por ser Monarca?... Ah! Não.
 
 
CENA III D. Afonso, D. Sancho e D. Nuno.
 
D. NUNO Que determinas?
 
D. AFONSO  Apressado Parte em busca de Inês; aqui ma envia; E aos duros Conselheiros participa, Que a sentença revogo; a Inês perdoo.
 
D. SANCHO  Graças, benigno Rei!...
 
D. NUNO (partindo)  Oh feliz Castro! Já próxima ao sepulcro à vida tornas.
 
CENA IV D. Afonso e D. Sancho.
 
D. SANCHO  Que escuto! à morte já sentenciada!...
 
D. AFONSO  Longe de nós lembrança tão funesta. O Príncipe vai pôr em liberdade: Que me venha abraçar; Inês é sua.
 
D. SANCHO  Que júbilo!  (Prostra-se e beija a mão do Rei)  Ah Senhor! Deixa que eu banhe Tua mão generosa com meu pranto, Suave pranto, que o prazer me arranca. (Levanta-se) Eu vou... Sim; a alegria asas me empresta: Vou levar a D. Pedro a feliz nova, Restituir-lhe vou a paz, e a vida.
 
 
CENA V
 
D. AFONSO Oh mil vezes feliz todo o que pode Venturosos fazer os desgraçados!... Desafogado o coração já sinto... Um Rei somente é Rei quando perdoa. Minha alma de antemão já saboreia O júbilo de Inês, e de meu filho, De um, e de outro os abraços, os transportes, A inocente alegria de meus netos... Delicia dos mortais, oh Natureza! Cedam às tuas leis as mais leis todas.
 
 
CENA VI D. Afonso e o Embaixador.
 
EMBAIXADOR  Condoído, Senhor, da infeliz Castro, Releva que eu me atreva a suplicar-te, Que a decretada morte lhe perdoes: Eu sei que a teu pesar foi condenada, Satisfação que dás ao meu Monarca, Quando ele certamente, persuadido Da tua fidelíssima amizade, Não quererá, Senhor, que lha confirmes Com o sangue de Inês, que inda é seu sangue, Atrevo-me em seu nome assegurar-to, Rogando-te pratiques generoso, A piedade que é própria da tua alma.
 
D. AFONSO  Muito folgo de ver teus sentimentos Tão conformes aos meus; sim, eu espero, Que o teu Rei me não culpe de piedoso, A Inês já perdoei; fiz mais ainda; Reconheci-a de meu filho Esposa. Não me atrevo a romper o nó sagrado, Em que Himeneu, e Amor os enlaçava, Ignorado por mim, quando sincero O Tratado firmei, que prometia Com Beatriz de meu Filho os Desposórios, Deves pois ao teu Rei fazer ciente, Das razões poderosas que os estorvam; E por mim segurar-lhe ao mesmo tempo Constante, inalterável amizade.
 
EMBAIXADOR  Teu leal proceder, as razões todas Que a decidir assim te constrangeram,
 
Lhe exporei fielmente, e não duvides Que tal resolução lhe agrade, e a louve.
 
D. AFONSO  Ditou-ma o coração, e de abraçá-la Não me hei de arrepender: nunca a piedade Pode manchar as purpuras: se o Mundo De Bruto inda com pasmo escuta o nome, Mais saudoso de Tito o nome adora. Porém que vejo!... oh Céus!... D. Nuno em pranto...
 
 
CENA VII Os ditos e D. Nuno.
 
D. NUNO Oh fereza!... Oh desgraça!...
 
D. AFONSO Que acontece?...
 
D. NUNO A dor, e o pranto as expressões me tolhem... Cheguei tarde, Senhor... Inês...
 
D. AFONSO  É morta?...
 
D. NUNO Brevemente o será.
 
EMBAIXADOR Oh Deus!...
 
D. NUNO Debalde À mísera e mesquinha perdoaste:
 
De seu preclaro sangue sequiosos, Os Ministros cruéis se anteciparam...
 
D. AFONSO  Oh detestáveis, sanguinários monstros! E pudestes... acaba.
 
D. NUNO Mensageiro Da piedosa faustíssima notícia, À Câmara de Inês veloz caminho; Pouco distante já de seus lamentos Parece, que as abóbadas gemiam: Acelero inda mais ligeiros passos, E ao tempo que os cruéis descarregavam Sobre o peito de Inês os duros golpes, Entro... (que horror!) perdão, perdão, exclamo: À palavra perdão os ímpios tremem, E até da mão os ferros lhes caíram: Em vão porém; que o sangue já corria. Serviram só meus gritos de que fosse A ferida talvez menos profunda. Então Coelho, e Pacheco, estátuas ambos, Como espantados do seu crime horrendo, Sem proferir palavra largo tempo, Olhando um para o outro espavoridos, Apenas afinal dizer poderão: "Não há mais que um recurso; eia, fujamos;" E súbito os cruéis desaparecem. Inês desfalecida, mal ouvira Que tu lhe perdoaras, levantando As mãos aos Céus, e os macerados olhos, Mil vezes te bendiz, por ti mil vezes Aos Céus envia fervorosas preces. Cheia de gratidão, inda o seu rosto Entre as sombras da morte parecia Que ao proferir teu nome se alegrava;
 
Em quanto as tristes Damas, que a rodeiam, O sangue de seu peito estancar buscam, "Por último favor (lhes diz) imploro, Que à presença de Afonso me conduzam; Inda quero ir beijar-lhe a mão clemente, E a seus pés expirar agradecida." Com os filhinhos ao lado a malfadada, Buscando-te, Senhor, para estes sítios Já com trêmulos passos se encaminha.
 
D. AFONSO  Oh destino!... Oh fereza!... Infeliz Castro!... Filho infeliz!... Mais infeliz do que ambos, Atribulado Pai!... Todos os males, As fúrias, as desgraças, e os remorsos Desde o berço ao sepulcro me acompanham. Nasci para flagelo dos humanos, Para opróbrio nasci da natureza: Portugal, dos seus Reis na clara história, Chamará com razão ao quarto Afonso Mau Irmão, Filho ingrato, e Pai tirano. O culpado sou eu de Inês na morte, Eu que, pelos perversos enganado, Tarde o grito escutei da humanidade. Ah! fujamos, fujamos destes sítios, Que a ver a desgraçada não me atrevo... Mas ai de mim!... As forças me abandonam: Eis ela chega... Amigos, socorrei-me: Afastai-me daqui...
 
CENA VIII Os mesmos, Inês, os dois meninos seus filhos, Elvira e duas aias.
 
(As aias sustentam Inês, que vem ferida)
 
INÊS  Ah!... Não me fujas...
 
Não me fujas, Senhor... toma os teus Netos... Para tos entregar, agonizante, O Maternal amor aqui me arrasta... Tristes órfãos, adeus... Adeus, meus filhos... Nas tuas mãos, Senhor, os deposito... Em teu bom coração abrigo encontrem... Ampare-os seu Avô, já que a Mãe perdem... Possam eles um dia, de ti dignos, Dignos filhos do Pai mais virtuoso, Com virtudes iguais, egrégios feitos, Compensar-te o perdão, que me outorgaste... E por última graça me concede, Que inda antes de expirar meu Pai te chame.
 
D. AFONSO  Chama-me o teu algoz: não queiras dar-me O doce nome que me não compete: Bem quisera eu também chamar-te Filha:.. Mas não me atrevo, não; a Natureza, Se visse por meus lábios profanado Nome tão deleitoso, estremecera... Teu sangue está bradando; tu só deves O cruel detestar, que te assassina; Mas bem vingada estás; mais desgraçado Mil vezes do que tu, mil mortes sofro. Ah, poupa ao teu verdugo o horror de ver-te Exalar d'alma os últimos arrancos... Eu vou, sim, porque até minha presença Deve ser a teus olhos odiosa. (Vai a partir e, vendo que D. Nuno o quer acompanhar, volta-se, e diz) Ninguém me siga, ah, não; deixem-me todos, Fujam todos de mim; quero esconder-me A todos os viventes, até que possa Nos abismos sumir-me para sempre. (Parte arrebatadamente)
 
 
CENA IX Os mesmos, exceto Afonso.
 
INÊS  Ah Senhor!... mas debalde; não me atende; Inda mais este golpe!. Não me custam As suas aflições menos que a morte... Oh quantos desgraçados tenho feito! O triste Pai, o Esposo... Ai! triste Esposo!... E que será de ti!... Lembrança horrível!... D. Nuno, Elvira, confortai-o todos, À sua dor buscai dar lenitivo... Ah, se eu pudesse ao menos vê-lo ainda... Morrera satisfeita... Céus!... já sinto A agonia da morte... Filhos... Filhos... Quanto a sua presença me consterna!... Ah, levem-nos daqui... mas para onde?... Não; chegai, filhos meus... em vossos lábios Quero entornar minha alma... Neles quero Deixar a vosso Pai depositados Meus últimos suspiros... Ah! são estes... São estes... Que ansiedade! A luz me foge... Adeus, Filhos... adeus, Esposo... Eu morro. (Cai e espira nos braços das Damas)
 
EMBAIXADOR  Que doloroso trance!
 
 
CENA X. Os mesmos, D. Pedro e D. Sancho.
 
D. PEDRO (entra na cena cheio de alegria, sem ver o cadáver de Inês) Amada Esposa, Inês, querida Inês, voa a meus braços, Vem completa fazer minha alegria.
 
(Vendo chorar D. Nuno e o Embaixador, que estão defronte do cadáver de Inês) Porém que!... Vós chorais! que infausto agouro. (Olha para traz, dá com os olhos em Inês morta, quer correr a ela, recua espavorido e cai desfalecido nos braços de D. Sancho e do Embaixador)
 
D. SANCHO  Oh Príncipe infeliz!... Mortal angústia! Afastai-lhe da vista a extinta Esposa.
 
(Elvira e as aias retiram da cena Inês, e os meninos, acompanhadas de D. Sancho)
 
D. PEDRO (em delírio)  A Esposa!... Onde está ela? Ide chamar-ma.
 
D. NUNO Ah! Senhor!...
 
D. PEDRO  Não tardeis, ide chamar-ma. Eu mesmo, eu mesmo vou... Inês, Esposa! (Convulso, quer caminhar e não pode)
 
EMBAIXADOR  A extrema dor o priva dos sentidos.
 
D. NUNO A tua Esposa... oh Deus!... já não existe.
 
D. PEDRO é morta? Injustos Céus! Clarão terrível! (Olhando para o lugar onde vira Inês morta) Ah! Sim, eu mesmo a vi... hórrida imagem!... E tornarão a abrir-se inda os meus olhos? Vi morta a cara Esposa, e vivo ainda! (Em ação de desembainhar a espada) Espera, espera Inês, eu te acompanho,
 
Eu já te sigo, sim...  (D. Nuno e o Embaixador impedem que D. Pedro desembainhe, e este refletindo um pouco, diz) Mas não, primeiro É preciso vingar a sua morte. Quem a matou?... Dizei... talvez... foi ele, Esse tirano, que meu Pai se chama?
 
D. NUNO Ah! não, Senhor, teu Pai lhe perdoava, Mas Coelho, e Pacheco os ímpios foram, Que...
 
D. PEDRO  Basta: nada mais.  (Na mesma furiosa desesperação)  Ímpios são todos, E eu de todos o sangue beber quero. Treme, bárbaro Rei; cruenta guerra Eu protesto fazer-te: sim, eu juro Pelo sangue de Inês, cujos vestígios Bradando por vingança ali diviso, Juro, cruel, do trono derrubar-te, E em teu lugar, coroada alçar a ele A Esposa que me roubas. A meu lado, Mesmo depois de morta, a bela Castro Será Rainha, reinará comigo: Que importa que o seu corpo não respire, Se a sua alma inda existe unida à minha! Hão de todos beijar-lhe a mão já fria, Tributar-lhe as devidas homenagens: Do seu trono degraus por mim calcados Os tiranos serão que a assassinaram: Seus corações malvados, das entranhas Eu mesmo hei de arrancar, hei de trincar-lhos. Às minhas iras escapar não podem: Inda que nos infernos vão sumir-se,
 
Lá mesmo, ardendo em raiva irei buscá-los. Será tal meu furor, minha vingança, Que o Mundo tremerá de ouvir meu nome: Por toda a parte se hão de ouvir somente Pranto, desolação, e horrores... tantos Os estragos serão, as mortes tantas, Que há de em sangue nadar Portugal todo: Sangue o Douro, o Mondego, e sangue o Tejo Hão de, em vez d'água, despejar aos mares; E os próprios mares arrojar bramindo Ondas de sangue às mais longínquas praias. Eu vou já começar a derramá-lo. Oh fúrias! Oh vingança! Acompanhai-me, Meus passos dirigi; guiai meu braço. (Parte furioso arrebatadamente da Cena)
 
EMBAIXADOR  Ah Príncipe, suspende! Mas quem pode Conter as fúrias, que lhe lutam n'alma! (Segue a D. Pedro)
 
D. NUNO Que espantoso tropel de horríveis males!... Oh de cegas paixões funesto exemplo!... Mísero Esposo!... Malfadada Castro!... De quanta compaixão são dignos ambos!... Muito se amavam, desgraçados foram, Chore-os o Mundo, e de imitá-los trema.
 
(Finda a Tragédia quando não há coroação)
 
 
CENA X D. Nuno e D. Sancho, impaciente.
 
D. NUNO Onde corres?...
 
D. SANCHO  Oh Céus!
 
D. NUNO Novos desastres Acaso sobre nós envia o Fado?
 
D. SANCHO  O nosso Excelso Rei, o invito Afonso, Com força de pesar sucumbe aos males, E violenta paixão lhe arranca a vida.
 
D. NUNO Em que montão de horrores nos abisma O destino fatal!
 
D. SANCHO  Oh desventura! O Príncipe me ordena que vos chame: Vinde prestes, D. Nuno; ele turbado Sente a falta de um Pai, da Esposa a perda. (Parte)
 
D. NUNO Morreu enfim?... Morreu! No centro d'alma Sofro as ânsias cruéis, a dor mais ímpia!
 
 
ATO DA COROAÇÃO PARA SE REPRESENTAR NO FIM DA TRAGÉDIA “NOVA CASTRO”, DE JOÃO BATISTA GOMES
 
A lembrança de que muitas pessoas desejam ver no fim daquela ótima Tragédia uma Coroação, fez com que se imprimisse esta, apesar da falta de unidade que há, o que forma um erro Dramático, que o seu Autor não desculparia se existisse. Nota do Editor.
 
(Mutação)
 
Magnífica sala com dossel e cadeira de espaldar no meio do Teatro, em a qual está D. Inês assentada, e em lugar competente, e magnifico uma Coroa riquíssima.
 
(Saem D. Pedro, D. Sancho, D. Nuno, Elvira, os dois meninos, grandes, e guardas reais)
 
D. NUNO Esta é a pompa, Senhor, que a brevidade Me permitiu do tempo.
 
D. PEDRO  Que impiedade! É possível, Inês, oh dura sorte!... Quem vida me deu te desse a morte?! A sacrílega mão, bárbara, e fera, Que o teu sangue verteu no duro efeito Não caiu com o ferro? Oh quem pudera Soldar a pura neve de teu peito!... Quem pudera animar-te a luz perdida, Repartindo contigo a minha vida?! Quais serão os castigos acertados Que excogite a lembrança desta cena Contra estes desumanos inimigos, Sem lei, sem compaixão, e sem respeito? Farei abrir com golpes mui profundos, As espáduas a um, a outro o peito; E a seus mesmos olhos moribundos, Que viram este Sangue, desejara Mostrar os corações, que os animara A tão cruel, e áspera fereza, Como abortos cruéis da natureza Para monstros indômitos gerados: Choro, meu bem, a tua adversidade,
 
E vivo para minha saudade!...
 
D. SANCHO  Aqui te outorgo a Coroa...
 
D. PEDRO  De outra sorte Coroar-te intentei, fiel Consorte; Mas prefiro à glória a tirania!... E vós, meus caros, meus fiéis Vassalos, Reverentes beijai esta mão fria, Que beijar deveríeis noutro estado, Se tão ímpio não fosse o nosso fado.
 
D. SANCHO  O primeiro sou eu, que esta mão bela Reconheço da minha Soberana, Com o respeito que devo a vós, e a ela. (Beija-lha)
 
D. NUNO Com minha gratidão, e o meu respeito, Qual Vassalo fiel, cumpro o preceito. O mesmo. (Os grandes beijam-lhe a mão ao som de música, e no fim diz)
 
D. PEDRO  Esse Corpo gentil desanimado, Mais na morte que em vida respeitado, Depressa cobrir faze, Condestável. (D. Sancho corre as cortinas) A incumbência do enterro vos entrego: Com majestoso fausto venerável A levai a Alcobaça, e as estradas De tochas estarão iluminadas; E o mesmo esplendor fazer quisera Se, como dezessete léguas são, Dezessete mil fossem; pois venera Tanto minha alma a essa cinza amada,
 
Que desejo exceder no majestoso Aquela maravilha celebrada, Que Artemísia erigiu a seu esposo. E vós, que ainda apesar do esquecimento Recomendais com pranto merecido Os amores de Inês ao sentimento, E seu nome ao respeito que é devido, Com verso humilde aqui vos represento O trágico infortúnio desabrido, Que aconteceu à mísera mesquinha, Que inda depois de morta foi Rainha.

 

 

                                                                  João Batista Gomes

 

 

              Voltar a "Biblio TEATRO"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades