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NOVE DRAGÕES / Michael Connelly
NOVE DRAGÕES / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A NOVA AVENTURA do personagem mais famoso de Michael Conelly, o detetive Harry Bosch, se passa agora em Kowloon, que significa Nove Dragões, região mais populosa de Hong Kong. Acompanhado de seu parceiro Ignacio Ferras, Bosch está a cargo de uma investigação que parece rotineira, seguindo a pista do assassino do dono de uma loja de bebidas num gueto de Los Angeles. David Chu, policial de origem chinesa com experiência junto às gangues de imigrantes asiáticos da cidade, é chamado a colaborar e, de fato, uma quadrilha com ramificações do outro lado do oceano parece estar envolvida no crime. No meio da investigação, um telefonema ameaçador e uma mensagem em vídeo fazem com que o caso se torne pessoal para o detetive: as imagens foram registradas em Hong Kong e quem aparece nelas é Maddie, a filha dele que mora lá com a mãe, sua ex-mulher Eleanor. A relação de Bosch e Eleanor é estremecida e ele só vê a filha duas vezes por ano. Agora, ela foi sequestrada, a polícia local não deu muita importância e o pai não tem escolha senão pegar o primeiro avião e se aventurar pelo território chinês. Forçado a agir fora do ambiente que conhece para salvar a filha, Bosch protagoniza uma trama com elementos trágicos e reviravoltas surpreendentes.

 

 

 


 

 

 


Um

HARRY BOSCH olhou para o cubículo de seu parceiro do outro lado do corredor e o observou conduzir seu ritual diário de endireitar os cantos das pilhas de pastas, tirar a papelada do meio da mesa e finalmente guardar a xícara de café lavada em uma gaveta. Bosch olhou seu relógio e viu que eram apenas 3h40. Parecia que, a cada dia, Ignácio Ferras começava o ritual um ou dois minutos mais cedo do que no dia anterior. Era só terça-feira, o dia seguinte ao feriado do Dia do Trabalho e o começo de uma semana curta, e desde já ele se aprontava para sair mais cedo. Essa rotina sempre era iniciada com um telefonema de casa. Havia uma esposa esperando por lá com uma criança pequena e um par de gêmeos recém-saídos do forno. A mulher ficava olhando para o relógio como o dono de uma doceria olha para crianças gordas. Necessitava de uma pausa e precisava de seu marido em casa para proporcioná-la. Mesmo estando do outro lado do corredor, e com sólidas divisórias de pouco mais de um metro de altura separando os cubículos na nova sala da delegacia, Bosch normalmente conseguia ouvir os dois lados da conversa. Sempre começava com “Que horas você chega em casa?”. Tudo enfim em ordem em seu local de trabalho, Ferras se virou para Bosch:


— Harry, vou picar a mula, disse. — Fugir do trânsito. Tenho um monte de chamadas, mas eles têm o meu celular. Não preciso ficar esperando por causa disso. Ferras esfregava o ombro esquerdo conforme falava. Isso também era parte da rotina. Era seu modo tácito de lembrar a Bosch que levara um tiro alguns anos antes e que fizera por merecer o direito de sair mais cedo.


Bosch apenas balançou a cabeça. A questão não era realmente se o parceiro saía mais cedo do trabalho ou o que fizera por merecer. O que estava em jogo era seu comprometimento com a missão da Homicídios e se estaria por lá quando eles finalmente recebessem a próxima chamada. Ferras passara por nove meses de fisioterapia e reabilitação antes de se reapresentar na sala da delegacia. Mas em um ano desde que isso ocorrera, pegara os casos com uma relutância que começava a esgotar a paciência de Bosch. Seu envolvimento era nenhum, e Bosch se cansara de esperar por ele. Também cansara de esperar por um crime novo. Há quatro semanas que não surgia um caso e o calor do verão já estava chegando quase no fim. Tão certo quanto os ventos de Santa Ana soprando dos desfiladeiros nas montanhas, Bosch sabia que um novo crime estava prestes a acontecer.


Ferras se levantou e trancou sua mesa. Estava tirando o paletó do encosto da cadeira quando Bosch viu Larry Gandle sair de seu escritório no lado oposto da sala da delegacia e vir na direção deles. Como membro mais velho da dupla, Bosch ganhara a primazia na escolha de cubículos um mês antes, quando a Divisão de Roubos e Homicídios iniciou a mudança do decrépito Parker Center para o novo Police Administration Building, ou PAB. A maioria dos detetives seniores pegava os cubículos com janelas, dando vista para o prédio da prefeitura. Bosch escolhera o contrário. Deixara a vista para o parceiro e escolhera a sala que lhe permitia observar o que estava acontecendo na sala da delegacia. Agora ele via o tenente se aproximando e instintivamente percebeu que seu parceiro não ia mais voltar cedo para casa.


Gandle segurava um pedaço de papel arrancado de um bloco de anotações e suas passadas ganharam um ímpeto extra. Isso fez Bosch se dar conta de que a espera terminara. A chamada estava ali. O crime novo. Bosch começou a se levantar.


— Bosch, Ferras, é com vocês, disse Gandle quando chegou perto deles. — Preciso que peguem um caso para o South Bureau.


Bosch percebeu os ombros de seu parceiro afundando. Ignorou-o e esticou a mão para pegar o papel da mão de Gandle. Viu o endereço escrito ali. South Normandie. Já estivera lá antes.


— É uma loja de bebidas, disse Gandle. — Um sujeito baleado atrás do balcão, o policial está segurando uma testemunha. É tudo que eu sei. Vocês dois estão prontos para ir?

— Estamos, disse Bosch, antes que seu parceiro pudesse se queixar. Mas não funcionou.

— Tenente, isso aqui é a Especial de Homicídios, disse Ferras, virando e apontando para a cabeça de javali montada acima da porta da sala. — Por que a gente está pegando um caso de roubo numa loja de bebidas? Todo mundo sabe que é coisa de gangue e o pessoal do South Bureau consegue resolver a parada, ou pelo menos identificar o autor, antes da meia-noite.


Nisso Ferras estava certo. A Especial de Homicídios era para crimes difíceis e complexos. Era um esquadrão de elite que ia atrás dos casos cabeludos com a perícia implacável de um javali revirando a terra em busca de uma trufa. Um assalto à mão armada numa loja de bebidas em território de gangues dificilmente se encaixava no perfil. Gandle, cuja careca incipiente e expressão emburrada faziam dele o chefe arquetípico, abriu as mãos, num gesto oferecendo sua completa falta de simpatia.


— Falei para todo mundo na reunião da semana passada. Estamos cobrindo a South essa semana. Eles seguirão com uma equipe reduzida porque todos os outros estão na escola de homicídio até o dia 14. Pegaram três casos nesse fim de semana e um hoje de manhã. Então já era a equipe reduzida. Vocês dois estão livres e o caso é de vocês. Pronto. Mais alguma pergunta? O policial está lá embaixo com uma testemunha.

— A gente está pronto, chefe, disse Bosch, encerrando a discussão.

— Fico esperando notícias, então.


Gandle se encaminhou de volta a sua sala. Bosch puxou seu casaco do encosto da cadeira, vestiu e depois abriu a gaveta do meio de sua mesa. Do bolso de trás, tirou o caderninho de anotações com capa de couro e substituiu o bloco de papel pautado dentro dele por um novo. Um crime novo sempre ganhava um bloquinho novo. Essa era sua rotina. Olhou para o escudo de detetive gravado na aba do caderninho e depois o devolveu ao bolso. A verdade era que não se importava sobre que tipo de caso era. Apenas queria um. Era como tudo mais na vida. Você fica sem praticar e perde o jeito. Bosch não desejava isso. Ferras ficou parado com as mãos nos quadris, olhando para o relógio de parede acima dos quadros de avisos.


— Merda, disse Ferras. — Toda vez.

— Como assim, “toda vez”? Disse Bosch. — A gente não pega um caso há um mês.

— É, bom, eu estava começando a me acostumar.

— Bom, se você não quer cuidar de homicídios, sempre tem uma mesa das-nove-às-cinco, como furto de veículos.

— É, sei.

— Então vamos indo.


Bosch saiu do cubículo para o corredor e se dirigiu à porta. Ferras foi atrás, tirando o celular para ligar para a esposa e dar a má notícia. Ao deixar a sala da delegacia, ambos esticaram a mão e tocaram o focinho achatado do javali, para dar sorte.


* * *


Dois

BOSCH NÃO precisava passar um sermão em Ferras a caminho de South L.A. Dirigir em silêncio era o sermão. Seu jovem parceiro parecia murchar sob a pressão do que não estava sendo dito e finalmente se abriu.


— Esse negócio está me deixando maluco, disse.

— Que negócio? Perguntou Bosch.

— Os gêmeos. É trabalho demais, eles choram demais. É um efeito dominó. Um acorda e então põe o outro para funcionar. Daí o meu mais velho acorda. Ninguém está conseguindo dormir, e a minha mulher...

— O quê?

— Sei lá, está ficando louca. Me liga o tempo todo, perguntando quando eu chego em casa. Daí eu chego em casa e é a minha vez, e eu fico com os meninos e não tenho descanso. É trabalho, crianças, trabalho, crianças, trabalho, crianças todo dia.

— E uma babá?

— A gente não tem dinheiro para uma babá. Não com as coisas do jeito que estão, e a gente nem tem mais a hora extra.


Bosch não sabia o que dizer. Sua filha, Madeline, fizera 13 anos um mês antes e estava a mais de 16 mil quilômetros de distância. Ele nunca se envolvera diretamente em sua criação. Só a encontrava quatro semanas por ano, duas em Hong Kong e duas em Los Angeles e fim de papo. Que conselho legítimo poderia dar a um pai em período integral com três crianças, incluindo gêmeos?


— Olha, não sei o que falar para você, ele disse. — Você sabe que eu cubro a sua. Vou fazer o que der para fazer. Mas...

— Eu sei, Harry, e agradeço muito. É só o primeiro ano com os gêmeos, sabe? Vai ser bem mais fácil quando eles ficarem um pouco maiores.

— É, mas o que eu estou tentando dizer é que talvez seja mais do que só os gêmeos. Talvez seja você, Ignácio.

— Eu? Do que você está falando?

— Estou falando que o problema pode ser você. Vai ver você voltou cedo demais... Já pensou nisso? Ferras ficou digerindo o comentário e não respondeu. — Olha, acontece às vezes, disse Bosch. — O sujeito leva um tiro e fica pensando se o raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar.

— Olha, Harry, não sei que tipo de besteira é essa, mas eu estou legal. Estou pronto. O problema tem a ver com privação de sono e ficar cansado para caralho o tempo todo, sem conseguir pôr o sono em dia porque minha mulher fica me azucrinando no instante em que eu ponho o pé em casa, viu?

— Você é que sabe, parceiro.

— Isso mesmo, parceiro. Eu é que sei. Já fico com a orelha cheia por causa dela, não preciso escutar de você também. Bosch balançou a cabeça e isso foi tudo. Ele sabia quando era hora de desistir.


O endereço que Gandle lhes dera ficava na quadra Septuagésima da South Normandie Avenue. Isso era a poucos quarteirões da infame esquina da Florence com a Normandie, onde algumas das imagens mais horríveis dos tumultos de 1992 haviam sido capturadas por helicópteros de notícias e câmeras de televisão do mundo todo. Parecia ser a imagem definitiva de Los Angeles para muita gente. Mas Bosch percebeu rapidamente que conhecia a área e a loja de bebidas aonde estavam indo por causa de um tumulto diferente e um motivo diferente.


A Fortune Liquors já havia sido isolada com fita policial amarela. Um pequeno número de curiosos permanecia no lugar, mas assassinatos nesse bairro não eram motivo de grande interesse. As pessoas já os tinham visto antes, inúmeras vezes. Bosch estacionou seu sedã no meio de três radiopatrulhas e desligou o motor. Depois de abrir o porta-malas para pegar sua pasta, voltou para trancar o carro e se aproximou da fita amarela.


Bosch e Ferras informaram seus nomes e números de série para um policial com o registro de oficiais presentes à cena do crime e depois se abaixaram para passar sob a fita. Quando se aproximavam da porta de entrada da loja, Bosch levou a mão ao bolso direito do paletó e tirou uma caixa de fósforos de papelão. Estava velha e gasta. A aba da frente dizia FORTUNE LIQUORS e trazia o endereço do pequeno estabelecimento amarelo diante deles. Ele abriu a caixa com o polegar. Tinha apenas um fósforo faltando, e do lado de dentro vinha a “fortuna” que acompanhava cada unidade:


Feliz é o homem que encontra refúgio em si mesmo.

Bosch carregara essa caixinha consigo por mais de dez anos. Não tanto por causa da sorte escrita ali, embora acreditasse de fato naquelas palavras. Mas sim pelo que o fósforo faltando o lembrava.


— Harry, o que foi? Perguntou Ferras. Bosch percebeu que havia parado no meio do caminho.

— Nada, é só que eu já estive aqui antes.

— Quando? Em um caso?

— Mais ou menos. Mas isso faz muito tempo. Vamos lá. Bosch passou pelo parceiro e entrou pela porta da frente aberta da loja de bebidas.


Diversos policiais e um sargento estavam ali dentro. A loja era comprida e estreita. O típico prédio em forma de caixa de sapato, essencialmente com três corredores de largura. Bosch podia ver pelo corredor central que havia uma entrada dos fundos dando para um estacionamento atrás da loja. As caixas de bebida gelada estavam empilhadas ao longo da parede no corredor esquerdo e também nos fundos da loja. Os destilados ficavam no corredor da direita, enquanto o corredor do meio era reservado para os vinhos, tinto à direita e branco à esquerda.


Bosch viu mais dois policiais na entrada dos fundos e adivinhou que estavam segurando a testemunha no que provavelmente era um depósito dos fundos ou escritório. Deixou sua pasta no chão perto da porta. Do bolso do paletó tirou dois pares de luvas de látex. Deu um para Ferras e vestiu o outro. O sargento notou a chegada dos dois detetives e se separou de seus homens.


— Ray Lucas, disse, a título de cumprimento. — Temos uma vítima ali atrás do balcão. O nome é John Li, escreve L-I. A gente acha que faz menos de duas horas. Parece um roubo em que o elemento simplesmente não quis deixar testemunha. Muitos de nós na Setenta e Sete conhecíamos o Sr. Li. Era um bom sujeito, o velho.


Lucas sinalizou para que Bosch e Ferras contornassem o balcão. Bosch segurou o casaco de modo a não encostar em nada conforme dava a volta e se espremia no espaço apertado atrás do balcão. Agachou como um pegador de beisebol para observar mais de perto o homem morto no chão. Ferras se curvou por cima dele como um juiz.


A vítima era um asiático aparentando uns 70 anos. Caíra de costas, os olhos fitando o teto cegamente. Seus lábios estavam repuxados sobre os dentes travados, quase num sorriso de escárnio. Havia sangue em seus lábios, bochecha e queixo. Ele o tossira no momento da morte. A frente da sua camisa estava empapada de sangue e Bosch pôde ver pelo menos três pontos de entrada das balas em seu peito. A perna direita estava flexionada no joelho e dobrada esquisitamente sob a outra perna. O homem obviamente desabara no lugar em que estava ao ser baleado.


— Nenhum cartucho que tenhamos visto, disse Lucas. — O atirador recolheu tudo e depois teve presença de espírito suficiente para tirar o disco de gravação, nos fundos. Bosch balançou a cabeça. Os policiais sempre queriam ser úteis, mas isso era informação de que Bosch ainda não precisava e podia induzir a erro.

— A menos que tenha sido um revólver, ele disse. — Nesse caso não teria cartucho nenhum para recolher.

— Pode ser, disse Lucas. — Mas a gente não vê mais muito revólver por aqui, hoje em dia. Ninguém quer ser pego em emboscada de gangue rival só com seis balas para atirar. Lucas queria que Bosch soubesse em que tipo de terreno estava pisando. Bosch era só visita.

— Vou levar isso em consideração, disse.


Bosch se concentrou no corpo e examinou a cena em silêncio. Tinha certeza absoluta de que a vítima era o mesmo homem que havia conhecido nessa loja tantos anos antes. Estava até no mesmo lugar, no chão atrás do balcão. E Bosch podia ver um maço de cigarros no bolso da camisa. Notou que a mão direita da vítima estava manchada de sangue. Não viu nada de incomum nisso. Desde a mais tenra infância as pessoas levam a mão a um ferimento para tentar protegê-lo e ajudar a sarar. É um instinto natural. Essa vítima fizera a mesma coisa ali, muito provavelmente agarrando o peito depois que o primeiro tiro a atingiu.


Havia uma separação de cerca de 10 centímetros entre os ferimentos de bala, formando as pontas de um triângulo. Bosch sabia que três tiros rápidos à queima-roupa normalmente teriam provocado um agrupamento mais compacto. Isso o levou a crer que a vítima devia ter sido atingida uma vez e depois caído no chão. Então o assassino provavelmente se curvou sobre o balcão e disparou mais duas vezes, criando o padrão. As balas atravessaram o peito da vítima, causando um dano maciço ao coração e aos pulmões. O sangue expectorado pela boca mostrava que a morte não fora imediata. A vítima tentara respirar. Depois de todos esses anos resolvendo casos, Bosch tinha certeza de uma coisa. Não existe jeito fácil de morrer.


— Sem tiro na cabeça, disse Bosch.

— Correto, disse Ferras. — O que isso quer dizer? Bosch se deu conta de que estivera refletindo em voz alta.

— Talvez nada. É só que parece que, com os três no peito, o atirador não quis deixar dúvida. Mas nenhum tiro na cabeça para ter certeza.

— Meio que uma contradição.

— Pode ser.


Bosch parou de observar o corpo pela primeira vez e olhou em torno, de seu ângulo baixo. Seus olhos imediatamente se detiveram em uma arma dentro de um coldre preso sob o balcão. Estava localizada para fácil acesso em caso de um roubo ou pior, mas nem sequer fora puxada.


— Tem uma arma aqui embaixo, disse Bosch. — Parece uma 45 em um coldre, mas o velho nunca teve a chance de puxar.

— O atirador se aproximou rápido e atirou no velho antes que ele pudesse pegar a arma, disse Ferras. — Talvez o pessoal do bairro já soubesse que ele tinha essa arma debaixo do balcão. Lucas fez um som com a boca, como que discordando.

— O que foi, sargento? Perguntou Bosch.

— A arma só pode ser nova, disse Lucas. — O cara foi roubado pelo menos seis vezes nos últimos cinco anos desde que estou aqui. Até onde eu sei, ele nunca usou uma arma. Essa é a primeira vez que ouço falar de uma. Bosch assentiu. Era uma observação válida. Virou a cabeça para falar por cima do ombro com o sargento.

— Me conta sobre a testemunha, disse.

— Hã, não é bem uma testemunha, disse Lucas. — É a Sra. Li, a esposa. Ela entrou aqui e encontrou o marido quando estava trazendo o jantar. Estamos com ela na sala dos fundos, mas você vai precisar de um intérprete. Ligamos para UCA, pedimos um chinês para viagem.


Bosch deu mais uma olhada no rosto do morto, depois ficou de pé e seus dois joelhos estalaram bem alto. Lucas havia se referido ao que antes era conhecido como Unidade de Crimes Asiáticos. Fora mudado recentemente para Unidade de Gangue Asiática, devido ao medo de que o nome anterior denegrisse a população asiática da cidade, insinuando que todos os asiáticos estavam envolvidos em crimes. Mas macacos velhos como Lucas ainda a chamavam de UCA. Independente do nome ou acrônimo, a decisão de mandar chamar um investigador adicional de qualquer patente deveria ter sido deixada para Bosch, já que era ele quem chefiava as investigações.


— Fala chinês, sargento?

— Não, por isso chamei a UCA.

— Então como você sabia que era para chamar um chinês, e não um coreano ou quem sabe até um vietnamita?

— Estou nesse trabalho faz 26 anos, detetive. E...

— E você conhece um chinês quando vê um.

— Não, o que eu estou dizendo é que tenho tido uma tremenda dificuldade ultimamente para completar meu turno sem uma cafeína nas veias, sabe? Então todo dia dou uma passada aqui para pegar um desses energéticos. Dá uma turbinada de umas cinco horas. Mas continuando, acabei conhecendo um pouco o Sr. Li, de tanto vir aqui. Ele me contou que ele e a esposa vieram da China, e foi assim que fiquei sabendo. Bosch assentiu e ficou constrangido com seu esforço para constranger Lucas.

— Acho que vou ter que experimentar um desses energéticos, disse. — A Sra. Li chamou o nove-um-um?

— Não, como eu disse, ela quase não fala inglês. Pelo que entendi da ocorrência, a Sra. Li ligou para o filho e foi ele quem ligou para o nove-um-um. Bosch saiu e contornou o balcão. Ferras continuou atrás, se agachando para obter a mesma visão do corpo e da arma que Bosch acabara de ter.

— Onde está o filho? Perguntou Bosch.

— Está a caminho, mas trabalha no Vale, disse Lucas. — Deve chegar a qualquer minuto. Bosch apontou para o balcão.

— Quando chegar, você e seu pessoal mantenham ele longe disso.

— Entendido.

— E precisamos deixar esse lugar o mais limpo possível, agora.


Lucas entendeu o recado e pediu a seus policiais para saírem da loja. Tendo terminado atrás do balcão, Ferras se juntou a Bosch perto da porta de entrada, onde ele olhava para a câmera montada no centro da loja, no teto.


— Por que não vai lá no fundo dar uma checada? Disse Bosch. — Vai ver se o cara tirou mesmo o disco e dá uma olhada na nossa testemunha.

— Certo.

— Ah, e procura o termostato e diminui a temperatura aqui dentro. Está quente demais. Não quero esse corpo começando a cheirar.


Ferras foi pelo corredor do meio. Bosch deu uma olhada para pegar o cenário como um todo. O balcão tinha cerca de 4 metros. A caixa registradora ficava no centro, com um espaço disponível para os fregueses porem suas compras. De um lado da caixa havia prateleiras de chicletes e doces. Do outro lado havia produtos para ponto de venda, como bebidas energéticas, um mostruário de acrílico com charutos vagabundos e um display para bilhetes de loteria. No alto havia um suporte de malha metálica para maços de cigarros.


Atrás do balcão havia as prateleiras onde ficavam guardadas as bebidas caras, que o cliente precisaria pedir para pegar. Bosch viu seis fileiras de Hennessy. Ele sabia que o caro conhaque era um dos preferidos pelos membros de gangue mais esbanjadores. Tinha certeza absoluta de que a localização da Fortune Liquors a inseria no território dos Hoover Street Criminals, uma gangue de rua que chegara a ser parte dos Crips, mas que com o tempo ficou tão poderosa que seus líderes preferiram forjar um nome e uma reputação próprios. Bosch notou duas coisas e se aproximou do balcão.


A caixa registradora estava torta, revelando um retângulo de sujeira e pó no ponto onde estivera localizada sobre o tampo de fórmica. Bosch raciocinou que o assassino a puxara para perto enquanto tirava o dinheiro da gaveta. Era uma pressuposição importante, porque significava que o Sr. Li não abrira a gaveta para dar o dinheiro ao ladrão. Muito provavelmente mostrava que já havia sido baleado. A teoria de Ferras de que o assassino entrara atirando devia estar correta. E isso podia ser significativo em um eventual julgamento para provar o crime doloso. Mais importante, fornecia a Bosch uma ideia melhor sobre o que acontecera na loja e que tipo de pessoa estavam procurando.


Harry levou a mão ao bolso e tirou os óculos que usava para ver de perto. Ele os pôs no rosto e, sem tocar em nada, se curvou sobre o balcão para examinar os botões da caixa registradora. Não viu botão algum dizendo ABRIR, nem qualquer outra indicação óbvia de como acionar a gaveta. Bosch não tinha certeza sobre como abrir a caixa registradora. Ficou imaginando como o assassino poderia saber. Endireitou o corpo e olhou as prateleiras de garrafas na parede atrás do balcão. Os Hennessy ficavam na fileira da frente e no centro, de fácil alcance para o Sr. Li quando algum membro da Hoover Street viesse. Mas as fileiras estavam intocadas. Não faltava nenhuma garrafa. Novamente, Bosch se curvou sobre o balcão. Dessa vez tentou alcançar uma das garrafas de Hennessy. Percebeu que se pusesse a mão sobre o balcão para equilibrar o corpo, conseguiria alcançar o estoque e pegar facilmente uma garrafa.


— Harry? Bosch recuou o tronco e virou para o parceiro. — O sargento tinha razão, disse Ferras. — O sistema de câmera grava em disco. Não tem nenhum disco na máquina. Ou tiraram, ou não estava gravando e a câmera era só para fingir.

— Não tem discos de backup?

— Tem uns dois ali no balcão, mas o sistema é para um disco só. Ele fica regravando sempre no mesmo disco. Quando trabalhei na Roubos a gente via um monte desses. Duram mais ou menos um dia e são regraváveis. Você tira o disco se quiser checar alguma coisa, mas tem que fazer isso no mesmo dia.

— Ok, não esquece de pegar esses discos extras. Lucas voltou a entrar pela porta da frente.

— A UCA está aqui, disse. — Mando o cara entrar? Bosch ficou olhando para Lucas por um longo momento antes de responder.

— É U-G-A, disse, finalmente. — Mas não manda entrar. Eu saio.


* * *


Três

BOSCH DEIXOU a loja e ficou sob a luz do sol. O dia continuava quente, embora já fosse um pouco tarde. Os ventos secos de Santa Ana estavam atravessando a cidade. Incêndios nas colinas haviam deixado o ar com uma palidez de fumaça. Bosch sentiu o suor secando em sua nuca. Ao sair, foi quase imediatamente recebido por um detetive à paisana.


— Detetive Bosch?

— Eu mesmo.

— Detetive David Chu, UGA. Os policiais me chamaram. Em que posso ajudar?


Chu era baixo e de compleição leve. Não havia sinal de sotaque em sua voz. Bosch sinalizou para que o seguisse conforme se abaixava para passar novamente pela fita e ia para seu carro. Tirou o paletó enquanto andava. Tirou a caixa de fósforos e a guardou no bolso da calça, depois dobrou o paletó ao contrário e o guardou em uma caixa de papelão limpa que deixava no porta-malas do carro de trabalho.


— Está quente lá dentro, falou para Chu. Bosch abriu o botão do meio de sua camisa e enfiou a gravata por dentro. Planejava mergulhar com tudo na investigação da cena do crime e não queria a gravata atrapalhando.

— Está quente aqui fora também, disse Chu. — O sargento me pediu para esperar até você sair.

— É, desculpe por isso. Ok, o que temos é o seguinte: o homem de idade e dono dessa loja por vários anos está morto atrás do balcão. Baleado pelo menos três vezes no que parece ter sido um roubo. A mulher dele, que não fala inglês, entrou na loja e o encontrou. Ela ligou para o filho, que avisou a polícia. Obviamente precisamos interrogá-la e é aí que você entra. Talvez a gente também precise de ajuda quando o filho chegar aqui. É só o que eu sei até o momento.

— E vocês têm certeza de que ele é chinês?

— Absoluta. O sargento que mandou lhe chamar conhecia a vítima, o Sr. Li.

— Sabe que dialeto a Sra. Li fala? Foram na direção da fita.

— Negativo. Isso vai ser um problema?

— Estou familiarizado com os cinco principais dialetos chineses e domino bem cantonês e mandarim. São esses dois que a gente encontra com mais frequência aqui em Los Angeles. Dessa vez Bosch segurou a fita no alto para que Chu passasse sob ela.

— Qual é o seu?

— Eu nasci aqui, detetive. Mas minha família é de Hong Kong e fui criado falando mandarim em casa.

— É mesmo? Tenho uma filha que mora em Hong Kong com a mãe. Está ficando boa em mandarim.

— Bom para ela. Espero que seja útil um dia.


Entraram na loja e Bosch levou Chu para uma rápida olhada no corpo atrás do balcão, depois o acompanhou aos fundos da loja. Ferras foi ao encontro deles e então pediram a Chu que fizesse as apresentações para a Sra. Li.


A mulher recém-enviuvada parecia em choque. Bosch não percebeu o menor indício de que derramara sequer uma lágrima pelo marido. Parecia estar naquele estado dissociativo que Bosch já vira antes. Seu marido jazia morto na frente da loja. Ela estava cercada por estranhos que falavam uma língua diferente. Bosch imaginou que estava esperando seu filho chegar, e então as lágrimas começariam a rolar.


Chu foi educado e conversador no início. Bosch acreditava que falavam mandarim. Sua filha lhe dissera que o mandarim era mais cantarolado e menos gutural que o cantonês e alguns dos outros dialetos. Após alguns minutos, Chu interrompeu o diálogo para se dirigir a Bosch e Ferras.


— O marido ficou sozinho na loja enquanto ela foi para casa preparar a comida deles. Quando voltou, pensou que a loja estivesse vazia. Daí o encontrou atrás do balcão. Ela não viu ninguém quando entrou. Estacionou nos fundos e usou uma chave para abrir a porta de trás. Bosch balançou a cabeça.

— Quanto tempo ela ficou fora? Pergunte a que horas ela deixou a loja. Chu fez como instruído e virou para Bosch com a resposta.

— Ela sai às duas e meia todo dia para buscar a comida. Depois volta.

— Tem algum outro empregado?

— Não, já perguntei isso. Só o marido e a Sra. Li. Eles trabalham todos os dias das 11h às 22h. Fecham no domingo.


“A típica história de imigrante,” pensou Bosch. Só não contavam com as balas aparecendo no fim. Bosch escutou vozes vindo da frente da loja e pôs a cabeça para fora da salinha. A equipe forense da Divisão de Investigação Científica do DPLA acabara de chegar para começar a trabalhar. Ele se virou novamente para o depósito, onde a Sra. Li continuava a dar seu depoimento.


— Chu, interrompeu Bosch. O detetive da UGA virou para ele.

— Pergunte sobre o filho. Ele estava em casa quando ela ligou?

— Já perguntei, eles têm outra loja. Fica no Vale. Ele estava trabalhando lá. A família vive junto no meio das duas, em Wilshire District. Parecia claro para Bosch que Chu sabia o que estava fazendo. Não precisava de Bosch para lembrá-lo do que perguntar.

— Ok, a gente vai voltar para a frente da loja. Você fica com ela e depois que o filho chegar talvez seja melhor levar todo mundo para o centro. Tudo bem por você?

— Por mim sem problema, disse Chu.

— Ótimo. Você me diz se precisar de alguma coisa.


Bosch e Ferras seguiram pelo corredor para frente da loja. Bosch já conhecia todo mundo da equipe forense. Uma equipe do escritório do legista também chegara para documentar a cena do crime e levar o corpo. Bosch e Ferras decidiram se separar nesse ponto. Bosch permaneceria na cena do crime. Como detetive principal, iria supervisionar a coleta de evidências forenses e a remoção do corpo. Ferras sairia da loja para interrogar a vizinhança. A loja de bebidas estava localizada numa área de pequenos comércios. Ele bateria de porta em porta tentando encontrar alguém que escutara ou vira alguma coisa relacionada com o assassinato. Os dois investigadores sabiam que muito provavelmente seria um esforço inútil, mas era algo que tinha de ser feito. A descrição de um carro ou de uma pessoa suspeita podia ser a peça do quebra-cabeça que terminaria por elucidar o caso. Era o trabalho básico com homicídio.


— Tudo bem se eu levar um dos policiais comigo? Perguntou Ferras. — Eles conhecem o bairro.

— Claro.


Bosch pensou que conhecer as redondezas não era o verdadeiro motivo para Ferras levar um policial junto. Seu parceiro achava que precisava de apoio para aparecer nas residências e lojas do bairro. Dois minutos depois de Ferras ter saído, Bosch escutou uma altercação de vozes e uma agitação vindas da frente da loja. Saiu e viu dois policiais de Lucas tentando barrar a passagem de um homem pela fita amarela. O sujeito era asiático, com cerca de 20 e poucos anos. Vestia uma camiseta justa que ressaltava seu corpo musculoso. Bosch avançou rapidamente na direção do bate-boca.


— Vamos parando aí mesmo, disse com energia, de modo que ninguém tivesse dúvidas sobre quem estava no comando da situação. — Podem soltar, acrescentou.

— Quero ver o meu pai, disse o rapaz.

— Bom, não é assim que se resolve isso. Bosch se aproximou e sinalizou para os dois policiais. — Eu cuido do Sr. Li agora. Eles deixaram Bosch e o filho da vítima a sós.

— Como é o seu nome completo, Sr. Li?

— Robert Li. Quero ver o meu pai.

— Já entendi. Vou deixar você ver o seu pai, se quer mesmo ver. Mas não pode fazer isso enquanto não liberarem o local. Sou o detetive encarregado de tudo isso e nem eu pude ver o seu pai ainda. Então preciso que mantenha a calma. O único jeito de conseguir o que você quer é se acalmando. O jovem baixou os olhos para o chão e assentiu. Bosch esticou o braço e tocou em seu ombro. — Isso, ótimo, disse Bosch.

— Onde está a minha mãe?

— Está lá dentro, na sala dos fundos, conversando com outro detetive.

— Pelo menos posso falar com ela?

— Claro que pode. Vou acompanhar você até lá num minuto. Só preciso fazer umas perguntas antes. Tudo bem?

— Claro. Pode perguntar.

— Antes de mais nada, meu nome é Harry Bosch. Sou o detetive-chefe dessa investigação. Eu vou encontrar o assassino do seu pai. Isso é uma promessa.

— Não faça promessas que não pretende cumprir. Você nem conhecia ele. Não dá a mínima. Ele é só mais um... Esquece.

— Mais um o quê?

— Eu disse, esquece. Bosch ficou encarando o rapaz por alguns instantes antes de responder.

— Quantos anos você tem, Robert?

— Vinte e seis, e queria ver a minha mãe agora mesmo.


Ele ameaçou se virar e tomar a direção do fundo da loja, mas Bosch o agarrou pelo braço. O rapaz era forte, mas Bosch tinha uma força surpreendente na mão. O jovem parou e encarou a mão segurando seu braço.


— Deixa eu mostrar uma coisa para você e então pode ver a sua mãe. Largou o braço de Li e depois tirou a caixa de fósforos do bolso. Passou-a para ele. Li olhou para aquilo sem surpresa.

— O que tem isso? A gente costumava dar isso de brinde até a crise econômica tornar impossível manter a despesa extra. Bosch pegou a caixa de fósforos de volta e balançou a cabeça.

— Peguei isso na loja do seu pai há vinte anos, disse. — Acho que você devia ter uns 14 anos, na época. Quase teve um tumulto nessa cidade. Foi bem aqui. Neste cruzamento.

— Eu lembro. Eles saquearam a loja e espancaram o meu pai. Ele nunca devia ter reaberto isso aqui. Eu e a minha mãe falamos para ele abrir a loja no Vale, mas ele não quis escutar. Não deixou ninguém fazer com que mudasse de ideia, e agora olha só no que deu. Fez um gesto desamparado para frente da loja.

— É, bom, eu estava aqui naquela noite, também, disse Bosch. — Vinte anos atrás. Um tumulto começou, mas terminou rápido. Bem aqui. Uma baixa.

— Um policial. Eu sei. Tiraram ele do carro.

— Eu estava com ele naquele carro, mas não vieram atrás de mim. E quando cheguei nesse ponto, fiquei em segurança. Eu precisava de um cigarro e entrei na loja do seu pai. Ele estava ali atrás do balcão, mas os saqueadores tinham levado até o último maço de cigarros do lugar. Bosch ergueu a caixa de fósforos. — Encontrei muito fósforo, mas nada de cigarro. E daí o seu pai pôs a mão no bolso e tirou o maço dele. Só tinha mais um cigarro, e ele deu para mim. Bosch balançou a cabeça. Essa era a história. Toda ela. — Não conheci o seu pai, Robert. Mas vou achar a pessoa que matou ele. Isso é uma promessa, e eu vou cumprir. Robert Li assentiu e olhou para o chão. — Certo, disse Bosch. — Vamos ver a sua mãe agora.


* * *


Quatro

QUANDO OS DETETIVES liberaram a cena do crime e voltaram para a sala da delegacia, já era quase meia-noite. A essa altura, Bosch decidira não trazer a família da vítima ao Police Administration Building para prestar depoimentos formais. Depois de marcar para que aparecessem na quarta pela manhã, deixou que fossem para casa prantear o morto. Pouco depois de voltar à delegacia, Bosch também mandou Ferras para casa, de modo que pudesse reparar os estragos com sua própria família. Harry ficou para trás sozinho, organizando o levantamento das evidências e refletindo sobre os fatos do caso pela primeira vez sem interrupção. Ele sabia que quarta-feira prometia ser um dia cheio, com a família aparecendo de manhã e alguns resultados da equipe forense e do laboratório chegando, bem como a possível programação da autópsia.


Embora a procura de testemunhas realizada por Ferras pelos arredores tenha se provado infrutífera, como era de se esperar, o trabalho da noite produzira um possível suspeito. No sábado à tarde, três dias antes de seu assassinato, o Sr. Li confrontara um jovem que acreditava realizar costumeiramente pequenos furtos na loja. Segundo a Sra. Li e conforme traduzido pelo detetive Chu, o adolescente negara furiosamente ter roubado o que quer que fosse e se saiu com o argumento racial, alegando que o Sr. Li só o acusara porque ele era negro. Isso parecia risível, uma vez que 99 por cento das vendas da loja eram entre moradores do bairro, que eram negros. Mas Li não chamou a polícia. Simplesmente baniu o adolescente de seu estabelecimento, lhe dizendo para nunca mais voltar. A Sra. Li contou a Chu que, ao chegar na porta, o adolescente ameaçou seu marido dizendo que na próxima vez que aparecesse seria para meter uma bala na cabeça do homem. Li, por sua vez, puxara sua arma de sob o balcão e a apontara para o jovem, assegurando que estaria pronto para quando voltasse.


Isso significava que o adolescente sabia sobre a arma de Li embaixo do balcão. Se pretendesse cumprir a ameaça, teria de entrar na loja e agir rapidamente, atirando em Li antes que ele pudesse pegar sua arma. A Sra. Li seria apresentada aos catálogos das gangues pela manhã, num esforço de encontrar a foto do adolescente em questão. Se ele tivesse ligação com os Hoover Street Criminals, então havia chances de que sua foto estivesse nos livros. Mas Bosch não ficou muito convencido de que isso fosse uma pista viável ou de que o rapaz fosse um suspeito válido. Havia coisas relativas à cena do crime que não batiam com um homicídio por vingança. Certamente tinham de verificar o indício e conversar com o rapaz, mas Bosch não tinha esperança de fechar o caso com ele. Seria fácil demais, e havia coisas naquele caso que desafiavam a solução fácil.


Anexa à sala do capitão, havia uma sala de reuniões com uma comprida mesa de madeira. Era usada principalmente como refeitório e ocasionalmente para reuniões de pessoal ou discussões privadas de investigações envolvendo múltiplas equipes de detetive. Com a delegacia vazio, Bosch dominara a sala e havia espalhado diversas fotos da cena do crime, recém-chegadas dos técnicos forenses, em cima da mesa. Montara as fotos como um mosaico desconjuntado de imagens justapostas, que no todo criavam a cena do crime completa. Algo que lembrava bastante a obra fotográfica do artista inglês David Hockney, que vivera em Los Angeles por algum tempo e criara inúmeras colagens de fotos como objetos artísticos documentando cenas do sul da Califórnia. Bosch estava familiarizado com os mosaicos fotográficos e com o artista porque Hockney fora seu vizinho durante algum tempo nas montanhas acima de Cahuenga Pass. Embora nunca tivesse conhecido Hockney pessoalmente, ele guardava uma ligação com o artista, pois sempre fora um hábito de Harry espalhar fotos de cena do crime em um mosaico que lhe permitisse procurar novos detalhes e ângulos. Hockney fazia o mesmo com sua obra.


Olhando agora para as fotos enquanto dava goles em uma caneca de café preto que preparara, Bosch foi atraído primeiro para as mesmas coisas que haviam chamado sua atenção quando estivera na cena. Na frente e no centro estavam as garrafas de Hennessy, intocadas em uma fileira logo depois do balcão. Harry achava muito difícil de acreditar que o assassinato estivesse relacionado com gangues, porque duvidava que um membro delas pegaria o dinheiro sem tocar em uma única garrafa de Hennessy. O conhaque teria sido um troféu. Estava bem ali ao alcance, principalmente se o atirador tivesse de se curvar por cima do balcão ou contorná-lo para pegar os cartuchos das balas. Por que não levar um Hennessy também? A conclusão de Bosch foi de que estavam procurando um atirador que não ligava para Hennessy. Um atirador que não era membro de gangue.


O próximo aspecto interessante eram os ferimentos da vítima. Para Bosch, só isso já excluía o desconhecido ladrãozinho de loja como um suspeito. Três balaços no peito não deixavam dúvida de que a intenção fora matar. Mas não havia tiro no rosto e isso parecia demonstrar a inviabilidade da teoria de um assassinato motivado por raiva ou vingança. Bosch investigara centenas de homicídios, a maioria deles envolvendo o uso de armas de fogo, e ele sabia que tiros no rosto eram um indicativo de que o crime muito provavelmente fora assunto pessoal e que o assassino conhecia a vítima. Logo, o oposto podia ser tido como verdadeiro. Três tiros no peito não eram coisa pessoal. Eram negócios. Bosch tinha certeza de que o ladrão misterioso não era o assassino que procuravam. Pelo contrário, estavam procurando alguém que possivelmente era um completo estranho para John Li. Alguém que entrara na loja com toda frieza e desferira os três tiros no peito do velho, depois esvaziara calmamente a caixa registradora, recolhera seus cartuchos e fora até o fundo da loja para tirar o disco de gravação da câmera.


Bosch sabia que provavelmente não era um criminoso de primeira viagem. De manhã ele teria de verificar crimes parecidos em Los Angeles e arredores. Observando o retrato do rosto da vítima, Bosch de repente notou algo novo. O sangue na bochecha e no queixo de Li estava borrado. Além disso, os dentes estavam limpos. Não havia sangue ali. Bosch segurou a foto mais perto e tentou extrair algum sentido daquilo. Havia presumido que o sangue no rosto de Li fosse da expectoração. Sangue proveniente de seus pulmões destruídos nos últimos estertores arquejantes em busca de ar. Mas como uma coisa dessas podia ter ocorrido sem manchar os dentes de sangue? Pôs a foto no lugar e percorreu o mosaico procurando a mão direita da vítima. Estava caída ao lado do corpo. Havia sangue nos dedos, e no polegar uma linha gotejante indo para a palma da mão. Voltou a olhar para o borrão de sangue no rosto. Subitamente se deu conta de que Li levara a mão ensanguentada à boca. Isso significava que uma transferência dupla tivera lugar. Li tocara o peito com a mão, sujando-a de sangue, e então transferira sangue da mão para a boca.


A pergunta era por quê. Seriam esses gestos parte dos derradeiros espasmos da morte ou Li fizera alguma outra coisa? Bosch pegou seu celular e chamou o número dos investigadores na sala do legista. Ele o tinha na discagem rápida. Olhou o relógio enquanto chamava. Meia-noite e dez.


— Sala do legista.

— Cassel continua por aí? Max Cassel era o investigador que havia comparecido à cena do crime na Fortune Liquors e recolhido o corpo.

— Não, ele acabou de... Espere um minuto, olha ele aí. Ele esperou um pouco e Cassel atendeu.

— Não me interessa quem é, já fui. Só voltei aqui porque esqueci meu aquecedor de café. Bosch sabia que Cassel morava a pelo menos uma hora de viagem, em Palmdale. Canecas de café com aquecedores que a pessoa plugava no acendedor de cigarro eram item obrigatório para quem trabalhava na cidade e tinha de fazer longos trajetos de carro.

— É o Bosch. Você já guardou meu sujeito na gaveta?

— Negativo, todas as gavetas estão ocupadas. Ele está no freezer três. Mas já terminei com ele e estou indo para casa, Bosch.

— Entendo. Só uma perguntinha rápida. Você verificou a boca dele?

— Como assim, verifiquei a boca? Claro que eu verifiquei a boca. É o meu trabalho.

— E não tinha nada lá? Nada na boca ou na garganta?

— Não, tinha uma coisa, sim. Bosch sentiu a adrenalina começar a subir.

— Por que você não me contou? O que era?

— A língua. A adrenalina secou e Bosch se sentiu fazendo papel de bobo com as risadinhas de Cassel. Harry achara que havia encontrado algo.

— Hilário. E tinha sangue?

— Claro, um pouco de sangue na língua e na garganta. Está anotado no meu relatório, você vai receber amanhã.

— Mas três tiros. Os pulmões dele deviam estar parecendo queijo suíço. Não era para ter um monte de sangue?

— Não se ele já estivesse morto. Não se o primeiro tiro arrebentou com o coração e ele parou de bater. Olha, preciso ir, Bosch. Você tem um horário amanhã as duas com a Laksmi. Faz suas perguntas para ela.

— Vou fazer. Mas agora estou conversando com você. Acho que a gente deixou passar alguma coisa.

— Do que você está falando? Bosch olhou para as fotos diante dele, os olhos se movendo da mão para o rosto.

— Acho que ele enfiou alguma coisa na boca.

— Quem enfiou?

— A vítima. O Sr. Li. Houve uma pausa enquanto Cassel considerava isso e provavelmente também considerava se havia deixado passar qualquer coisa.

— Bom, se foi, não vi nem na boca, nem na garganta. E se foi alguma coisa que ele engoliu, daí não é mais minha jurisdição. É com a Laksmi e ela vai encontrar, seja lá o que for, amanhã.

— Você pode deixar um lembrete para ela ver isso?

— Bosch, estou tentando ir embora. Você pode pedir isso quando vier abrir o cara.

— Sei, mas por via das dúvidas, deixa um bilhete.

— Certo, tudo bem, eu vou escrever um bilhete. Você sabe que ninguém mais está recebendo hora extra por aqui, Bosch.

— É, eu sei. O mesmo por aqui. Valeu, Max.


Bosch fechou o telefone e decidiu, por ora, deixar as fotos de lado. A autópsia iria determinar se sua conclusão estava correta, e não havia nada que pudesse fazer sobre isso até lá.


Havia dois envelopes plásticos de evidências contendo os dois discos que tinham sido encontrados junto ao gravador. Cada um em uma caixa de acrílico achatada. Cada caixa marcada com uma data em caneta Sharpie. Uma estava escrito 01/9, exatamente uma semana antes, e a outra fora datada de 27/8. Bosch levou os discos para o equipamento de AV no outro canto da sala de reuniões e enfiou o disco de 27/8 no DVD. As imagens haviam sido gravadas em tela dividida. Um ângulo de câmera mostrava a frente da loja, incluindo o balcão da caixa registradora, e o outro ficava nos fundos. Um indicador de hora e data aparecia no alto. As atividades na loja eram mostradas em tempo real. Bosch percebeu que, como a loja ficava aberta das 11h às 22h, ele teria 24 horas de vídeo para assistir a menos que usasse o botão do FF.


Olhou seu relógio outra vez. Sabia que podia trabalhar durante a noite e tentar resolver o mistério de por que John Li pusera esses dois discos de lado, ou poderia ir para casa agora e descansar um pouco. Nunca se sabe onde um caso vai levar e o repouso sempre era importante. Além do mais, não havia nada nesses discos sugerindo que tivessem alguma coisa a ver com o assassinato. O disco que ficava no aparelho fora levado. Esse era o importante, e ele já era.


“Que se dane”, pensou Bosch. Decidiu assistir ao primeiro disco e ver se conseguia resolver o mistério. Puxou uma cadeira que estava junto à mesa, se acomodou diante da televisão e apertou o botão de velocidade para acelerar quatro vezes o tempo real. Imaginou que assim levaria menos de três horas para liquidar o primeiro disco. Depois iria para casa, dormiria um pouco e voltaria no mesmo horário em que todo mundo pela manhã.


— É uma ideia, disse consigo mesmo.


* * *


Cinco

BOSCH foi brutalmente arrancado do sono e abriu os olhos para dar com o tenente Gandle de pé encarando-o. Levou algum tempo para Harry clarear os pensamentos e entender onde estava.


— Tenente?

— O que você está fazendo na minha sala, Bosch? Bosch sentou no sofá.

— Eu... Eu estava assistindo a um vídeo na sala de reuniões e ficou tão tarde que não valia a pena voltar para casa. Que horas são agora?

— Quase sete, mas isso ainda não explica por que você está na minha sala. Quando eu fui embora ontem, tranquei a porta.

— Sério?

— É, sério.


Bosch balançou a cabeça e fingiu que ainda estava clareando os pensamentos. Sentiu-se agradecido por ter guardado seus apetrechos de abrir fechadura após ter entrado. Gandle tinha o único sofá na DRH.


— Vai ver o pessoal da limpeza veio e esqueceu de trancar, arriscou.

— Não, eles não têm a chave. Olha, Harry, eu não ligo que alguém use o sofá para dormir. Mas se a porta está trancada, é por algum motivo. Não posso permitir que abram a minha porta depois que eu tranquei.

— Tem toda razão, tenente. O senhor acha que é possível conseguirmos um sofá para a delegacia?

— Vou ver se consigo, mas não é disso que estou falando. Bosch ficou de pé.

— Entendi. Vou voltar ao trabalho, agora.

— Não tão rápido. Fale-me sobre esse vídeo que segurou você aqui a noite toda.


Bosch explicou brevemente o que vira quando passou cinco horas assistindo aos dois discos em plena madrugada e como John Li, sem querer, deixara para trás o que parecia uma pista sólida.


— Quer ir comigo até a sala de reuniões e eu passo para o senhor ver?

— Por que não espera até o seu parceiro chegar aqui? A gente pode assistir juntos. Vá tomar um café antes.


Bosch deixou Gandle para trás e saiu pela sala da delegacia. Era um labirinto impessoal de cubículos e barreiras sólidas. O lugar sussurrava como um escritório de seguradora e a verdade é que era tão silencioso que às vezes Bosch tinha dificuldades em se concentrar. No momento estava deserto, mas em breve se encheria rapidamente. Gandle sempre era o primeiro a chegar. Gostava de dar o exemplo para a delegacia.


Harry desceu até a cafeteria, que abrira às sete horas, mas estava vazia porque o grosso do efetivo no departamento de polícia continuava operando em Parker Center. A mudança para o novo Police Administration Building progredia lentamente. Primeiro alguns esquadrões de detetive, depois o pessoal administrativo e então o resto. Era uma soft opening e o prédio não seria inaugurado formalmente senão dali a dois meses. Por ora, significava que não havia filas na cafeteria, mas tampouco havia um cardápio completo. Bosch escolheu o café da manhã dos tiras: dois donuts e um café. Também pegou um café para Ferras. Comeu os donuts rapidamente enquanto punha creme e açúcar no copo do parceiro e depois tomava o elevador de volta para o andar de cima. Como esperava, ao chegar de novo na sala da delegacia, o parceiro estava em sua mesa. Bosch pôs um dos cafés diante dele e foi para seu próprio cubículo.


— Valeu, Harry, disse Ferras. — Eu devia ter imaginado que você já ia estar por aqui... Ei, você estava com esse mesmo terno ontem. Não vai me dizer que ficou a noite toda trabalhando.


Bosch sentou.


— Fiquei um tempo no sofá do tenente. A que horas chegam a Sra. Li e o filho hoje?

— Falei dez horas, para eles. Por quê?

— Acho que encontrei uma coisa que a gente precisa ir atrás. Eu assisti aos dois discos extras das câmeras da loja, ontem à noite.

— O que você descobriu?

— Pega o seu café e eu mostro. O tenente também quer ver.


* * *


Dez minutos mais tarde, Bosch ficava de pé com o controle remoto na frente do equipamento de AV, enquanto Ferras e Gandle sentavam na ponta da mesa na sala de reuniões. Ele andou com o disco marcado 01/9 até o ponto que queria e então pausou a imagem até ficar pronto para começar.


— Ok, nosso assassino tirou o disco do aparelho, então a gente não tem nenhum vídeo do que aconteceu na loja ontem. Mas o que continuou por lá foram dois discos extras marcados 27 de agosto e 1º de setembro. Esse é o disco do dia 1º de setembro, uma semana antes do dia de ontem. Tudo bem?

— Tudo, disse Gandle.

— De modo que o que o Sr. Li estava fazendo era registrar ladrões de loja agindo em dupla. O que esses dois discos têm em comum é que nos dois dias esses mesmos caras entram e um vai até o balcão pedir cigarros enquanto o outro anda pelo corredor das bebidas. O primeiro desvia a atenção de Li para que não veja seu parceiro, nem olhe para a tela da câmera que fica atrás do balcão. Enquanto Li está pegando cigarros para o sujeito no balcão, o outro enfia duas garrafas de vodca dentro da calça, depois leva uma terceira até o balcão para comprar. O que está no balcão puxa a carteira, diz que deixou o dinheiro em casa ou qualquer coisa assim e eles saem sem comprar nada. Isso acontece nos dois dias, com eles invertendo os papéis. Acho que foi por isso que o Li guardou os discos separados.

— Você acha que ele estava reunindo evidência ou qualquer coisa assim? Perguntou Ferras.

— Pode ser, disse Bosch. — Se tivesse filmagens dos dois, ele teria alguma coisa para apresentar na polícia.

— Isso é a sua pista? Disse Gandle. — Você trabalhou a noite toda por causa disso? Eu estava lendo os relatórios. Acho que prefiro o rapaz para quem Li mostrou a arma.

— Isso não é a pista, disse Bosch com impaciência. — Só estou explicando o motivo dos discos. Li tirou os discos da câmera porque devia ter visto que os dois estavam tramando alguma coisa e queria preservar a gravação. Sem querer, ele também preservou isso no disco de 1º de setembro.


Bosch apertou o play e a imagem começou a se mexer. Na tela dividida ambos os ângulos de câmera mostravam que a loja estava vazia, a não ser por Li atrás do balcão. A tarja de data no alto mostrava que eram 15h03, terça-feira, 1º de setembro. A porta da frente da loja abriu e um cliente entrou. Acenou casualmente para Li no balcão e seguiu para os fundos da loja. A imagem estava granulada, mas ficou bastante claro para os três homens assistindo que o cliente era um tipo asiático na casa dos 30. Ele foi capturado pela segunda câmera ao se aproximar de uma das geladeiras no fundo da loja e pegar uma única lata de cerveja. Ele a levou até o balcão.


— O que ele está fazendo? Perguntou Gandle.

— Fica só olhando, disse Bosch.


No balcão, o cliente disse alguma coisa para Li e o dono da loja levou a mão à prateleira de metal acima dele e pegou um pacote de Camels. Ele pôs o pacote em cima do balcão e depois enfiou a lata de cerveja em um saquinho marrom. O cliente tinha uma constituição impressionante. Embora baixo e atarracado, tinha braços grossos e ombros muito fortes. Depositou uma única nota sobre o balcão, Li a pegou e abriu a caixa registradora. Pôs a nota no último espaço da gaveta e então contou várias notas para o troco e passou o dinheiro através do balcão. O cliente pegou o dinheiro e guardou. Enfiou o pacote de cigarros debaixo do braço, pegou a cerveja e, com a mão livre, apontou o dedo como se fosse uma arma para Li. Abaixou o polegar imitando um disparo e então foi embora da loja. Bosch pausou a gravação.

 

— O que foi isso? Perguntou Gandle. — Era uma ameaça, aquilo com o dedo? É isso que você tem? Ferras não disse nada, mas Bosch tinha certeza absoluta de que seu parceiro vira o que Harry queria que ele visse. Voltou a imagem e começou a passar outra vez.

— O que você está vendo, Ignácio? Ferras deu um passo adiante, para conseguir apontar na tela.

— Para começar, o cara é asiático. Então não é do bairro. Bosch fez que sim com a cabeça.

— Assisti 22 horas de vídeo, ele disse. — Esse foi o único asiático a entrar na loja, além de Li e sua esposa. O que mais, Ignácio?

— Olha o dinheiro, disse Ferras. — Ele pega de volta mais do que dá. Na tela, Li tirava notas da caixa registradora. — Olha lá, ele põe o dinheiro do cara na gaveta e daí começa a devolver o dinheiro para ele, incluindo o que o cara deu. Então o cara fica com a cerveja e os cigarros de graça, e também todo o dinheiro. Bosch assentiu. Ferras era bom.

— Quanto ele tira? Perguntou Gandle. Era uma boa pergunta, porque a imagem de vídeo estava granulada demais para identificar os valores das notas mudando de mãos.

— A gaveta tem quatro espaços, disse Bosch. — Então você tem de um, cinco, dez e vinte. Eu vi isso em câmera lenta ontem à noite. Ele põe a nota do cara no quarto espaço. Um pacote de cigarros e uma cerveja, vamos presumir que seja no lugar das de vinte. Se for o caso, ele dá para o cara uma de um, uma de cinco, uma de dez e depois 11 de vinte. Dez de vinte sem contar a que o cliente deu no começo.

— É um pagamento, disse Ferras.

— Duzentos e trinta e seis dólares? Perguntou Gandle. — Parece um pagamento bem esquisito e dá para ver que ainda tem dinheiro na gaveta. Então é como se fosse uma quantia combinada.

— Na verdade, disse Ferras, — Duzentos e dezesseis, se você tira os vinte que o cliente deu no começo.

— Certo, disse Bosch. Os três ficaram olhando para a imagem pausada por alguns momentos sem falar.

— Então, Harry, disse Gandle, finalmente. — Você precisa tirar um tempinho para dormir e pensar sobre isso. O que quer dizer? Bosch apontou o registro de tempo no alto da tela.

— Esse pagamento foi feito exatamente uma semana antes do assassinato. Três horas na terça, uma semana atrás. Essa terça mais ou menos às três o Sr. Li é baleado. Vai ver que essa semana ele decidiu não pagar.

— Ou não tinha o dinheiro para pagar, sugeriu Ferras. — O filho contou para nós ontem que os negócios andavam mal e que a nova loja no Vale quase quebrou a família.

— Então o velho diz não e leva bala, disse Gandle. — Não é um pouco exagerado? Você mata o sujeito e, como se diz no mundo das finanças, perde o fluxo de caixa. Ferras encolheu os ombros.

— Sempre sobram a mulher e o filho, disse. — Eles iam receber a mensagem.

— Eles estão vindo aqui às dez para assinar os depoimentos, acrescentou Bosch. Gandle balançou a cabeça.

— Então como vão cuidar disso? Perguntou.

— Vamos pôr a Sra. Li com Chu, o cara da UGA, e Ignácio e eu iremos falar com o filho. A gente descobre do que se trata. A expressão normalmente emburrada de Gandle se desanuviou. Estava satisfeito com o progresso do caso e com o indício que viera à tona.

— Ok, senhores, quero ficar por dentro, ele disse.

— Quando a gente também ficar, disse Bosch. Gandle deixou a sala de reuniões, e Bosch e Ferras ficaram parados diante da tela.

— Bom trabalho, Harry. Você deixou o homem feliz.

— E ele vai ficar mais feliz se a gente destrinchar essa coisa.

— O que você está achando?

— Acho que a gente tem umas coisas para fazer antes da família Li chegar aqui. Vai checar o laboratório e veja se terminaram o trabalho deles. Veja se terminaram com a caixa registradora. Traz aqui, se conseguir.

— E você? Bosch virou para o aparelho e ejetou o disco.

— Vou ter uma conversa com o detetive Chu.

— Você acha que ele escondeu alguma coisa da gente?

— É isso que pretendo descobrir.


* * *


Seis

A UGA ERA parte da Gang and Operations Support Division (GOSD), de onde inúmeras investigações clandestinas e policiais infiltrados eram dirigidos. Desse modo, a GOSD estava localizada em um prédio não identificado a vários quarteirões do PAB. Bosch decidiu ir andando, pois sabia que demoraria mais em tirar seu carro da garagem, enfrentar o trânsito e depois ter de encontrar outro lugar para estacionar. Chegou diante da porta de entrada do prédio da UGA às oito e meia e apertou a campainha, mas ninguém atendeu. Pegou seu telefone, pronto para ligar para o detetive Chu, quando uma voz familiar apareceu atrás dele.


— Bom dia, detetive Bosch. Não esperava ver o senhor por aqui. Bosch virou. Era Chu, chegando com sua pasta.

— Vocês têm um ótimo horário para trabalhar nesse negócio, respondeu Bosch.

— É, a gente gosta de ir sem estresse. Bosch recuou, de modo que Chu pudesse abrir a porta com um cartão magnético.

— Vamos entrando.


Chu seguiu na frente para a pequena sala da delegacia com cerca de uma dúzia de mesas e a sala do tenente, à direita. Chu parou atrás de uma mesa e pôs sua pasta no chão.


— Em que posso ajudar? Perguntou. — Eu já tinha planos de ir à DRH às dez, quando a Sra. Li chegar. Chu começou a sentar, mas Bosch continuou de pé.

— Tenho uma coisa para mostrar. Vocês têm uma sala de AV em algum lugar por aqui?

— Claro, vamos lá.


A Unidade de Gangue Asiática tinha quatro salas de interrogatório no fundo da sala da delegacia. Uma delas fora convertida em sala de AV com a típica torre sobre rodinhas contendo aparelhos de televisão e DVD. Mas Bosch viu que eles também tinham uma impressora de imagens, algo com que ainda não contavam na nova sala da delegacia da DRH. Bosch passou a Chu o DVD da Fortune Liquors e ele deixou tudo pronto. Bosch pegou o controle remoto e adiantou o vídeo para 15h na tarja de tempo.


— Quero que dê uma olhada nesse sujeito que vai entrar, disse. Chu observou em silêncio conforme o homem entrava na loja, comprava uma cerveja e um pacote de cigarros e obtinha um grande retorno para seu investimento.

— Só isso? Perguntou depois que o cliente saiu da loja.

— Só isso.

— Pode passar outra vez?

— Claro.


Bosch repassou a sequência de dois minutos, depois pausou a imagem quando o homem se virava no balcão para ir embora. Depois continuou operando o controle, fazendo pequenos avanços na imagem até congelá-la na melhor visão possível do rosto do homem quando se afastava do balcão.


— Conhece o cara? Perguntou Bosch.

— Não, claro que não.

— O que você percebeu aí?

— Obviamente algum tipo de pagamento. Ele pegou muito mais do que deu.

— É, 216 além dos vinte que tinha dado. A gente contou. Bosch notou as sobrancelhas de Chu se erguendo. — O que isso quer dizer? Perguntou Bosch.

— Bom, provavelmente quer dizer que ele é da tríade, disse Chu casualmente.


Bosch balançou a cabeça. Nunca investigara um crime relacionado à tríade antes, mas sabia muito bem que essas chamadas sociedades secretas da China haviam transposto o Pacífico muito tempo antes e agora operavam na maioria das principais cidades americanas. Los Angeles, com sua enorme população chinesa, era um de seus redutos, junto com São Francisco, Nova York e Houston.


— O que leva você a dizer que esse sujeito é da tríade?

— Você falou que o pagamento foi de 216 dólares, correto?

— Isso mesmo. Li devolveu para o cara o dinheiro que ele mesmo deu. Também deu para ele dez notas de vinte, uma de dez, uma de cinco e uma de um. O que significa?

— O negócio de extorsão da tríade funciona com base em pagamentos semanais de pequenos lojistas buscando proteção. A quantia em geral é 108 dólares. Claro que 216 é um múltiplo disso. O pagamento dobrado.

— Por que 108? É imposto em cima de imposto? Eles cobram um extra para repassar para o governo ou algo assim? Chu ignorou o sarcasmo na voz de Bosch e respondeu como se estivesse ensinando uma criança.

— Não, detetive, o número não tem nada a ver com isso. Se me permite, vou dar uma breve aula de história para ajudar você a entender um pouco.

— Por favor, disse Bosch.

— A criação das tríades remonta ao século XVII na China. Havia 113 monges no mosteiro de Shaolin. Monges budistas. Os invasores manchus atacaram e mataram todos os monges, menos cinco. Os cinco monges restantes criaram as sociedades secretas com o objetivo de rechaçar os invasores. As tríades surgiram. Mas ao longo dos séculos elas mudaram. Deixaram a política e o patriotismo de lado e se tornaram organizações criminosas. Muito parecidas com as máfias italiana e russa, elas se envolveram com atividades de extorsão e proteção. Em homenagem aos espíritos dos monges massacrados, as quantias das extorsões geralmente são um múltiplo de 108.

— Mas sobraram cinco monges, não três, disse Bosch. — Por que chamaram de tríades?

— Porque cada monge iniciou sua própria tríade. Tian di hui. Significa “sociedade celestial e terrena”. Cada grupo tem uma bandeira no formato de um triângulo simbolizando a relação entre o céu, a terra e o homem. Por causa disso ficaram conhecidas como tríades.

— Ótimo, e trouxeram esse negócio para cá.

— Está aqui há muito tempo. Mas não foram eles que trouxeram. Foram os americanos. Isso veio junto com a mão de obra chinesa trazida para construir as ferrovias.

— E eles achacam seu próprio povo.

— Na maior parte, sim. Mas o Sr. Li era religioso. Percebeu o santuário budista na sala do depósito ontem?

— Não, não notei.

— Estava lá, e conversei com a esposa sobre isso. O Sr. Li era muito religioso. Ele acreditava em espíritos. Para ele, pagar a tríade talvez fosse como fazer uma oferenda a um espírito. A um ancestral. Sabe, você é um estrangeiro nessa história, detetive Bosch. Se aceitasse que seu dinheiro sempre fosse para a tríade com a mesma naturalidade que aceita que ele vá para a Receita Federal, então não ia ver a si mesmo como vítima. Seria simplesmente parte da vida.

— Mas a Receita Federal não mete três balas no seu peito quando você não paga.

— Você acha que Li foi assassinado por esse homem ou pela tríade? Apontando para o homem na tela, Chu parecia quase indignado de fazer a pergunta.

— Acredito que é a melhor pista que temos até o momento, retrucou Bosch.

— E quanto à pista que obtivemos por meio da Sra. Li? O membro de gangue que ameaçou o marido dela no sábado. Bosch negou com a cabeça.

— As coisas não casam. Ainda quero que ela olhe os livros e identifique o rapaz, mas acho que não vai dar em nada.

— Não entendo. Ele disse que ia voltar e matar o Sr. Li.

— Não, ele disse que ia voltar e meter uma bala na cabeça dele. O Sr. Li foi alvejado no peito. Não foi um crime cometido com raiva, detetive Chu. Isso não se encaixa. Mas não se preocupe, vamos investigar, mesmo que seja perda de tempo.


Ele ficou esperando que Chu respondesse, mas o jovem detetive não o fez. Bosch apontou a marcação do tempo na tela.


— Li foi morto ao mesmo tempo e no mesmo dia da semana. Devemos presumir que Li fazia pagamentos regularmente. Devemos presumir que esse homem estava lá quando Li foi assassinado. Em minha opinião isso faz dele o melhor suspeito.


A sala de interrogatório era minúscula e haviam deixado a porta aberta. Bosch foi até lá e a fechou, depois voltou a se virar para Chu:


— Me diga, você não fazia a menor ideia sobre nada disso ontem?

— Não, claro que não.

— A Sra. Li não disse coisa alguma sobre fazer pagamentos à tríade local? Chu enrijeceu o corpo. Era muito menor do que Bosch, mas sua postura sugeria que estava pronto para brigar.

— Bosch, o que você está sugerindo?

— Estou sugerindo que esse é o seu mundo e que você devia ter me contado. Descobri por acidente. Li guardou esse disco por causa dos furtos em sua loja. Não por causa da extorsão. Estavam agora se encarando a meio metro um do outro.

— Bom, não apareceu nada para mim ontem que pudesse sugerir isso, disse Chu. — Eu fui chamado lá para traduzir. Você não pediu minha opinião sobre mais nada. Deixou-me de fora propositalmente, Bosch. Talvez, se tivesse me incluído, eu teria visto ou escutado alguma coisa.

— Isso é besteira. Você não recebeu seu treinamento de detetive para ficar parado chupando o dedo. Não precisa de um convite para fazer perguntas.

— Com você achei que precisasse.

— E isso quer dizer o quê?

— Quer dizer que eu vi você, Bosch. Vi o jeito como tratou a Sra. Li, o filho dela... A mim.

— Ai, ai, lá vamos nós.

— Qual delas, Vietnã? Você serviu no Vietnã, não foi?

— Não pense que sabe alguma coisa sobre mim, Chu.

— Sei o que eu vi e já vi isso antes. Não sou vietnamita, detetive. Sou americano. Nasci aqui, como você.

— Olha, que tal deixar isso para lá e voltarmos para o caso?

— Você manda. A investigação é sua.


Chu pôs as mãos na cintura e virou de novo para a tela. Bosch tentou aplacar suas próprias emoções. Era obrigado a admitir que Chu tinha razão, em parte. E ficou constrangido por ter sido tão facilmente rotulado como alguém que voltou do Vietnã com um preconceito racial.


— Tudo bem, disse. — Talvez o jeito como lidei com você ontem tenha sido errado. Desculpe. Mas você está dentro, agora, e preciso saber o que sabe. Nada de segurar informação.


Chu também relaxou.


— Já contei tudo que eu sabia. A única coisa além disso que andei pensando foi nos 216 dólares.

— O que tem isso?

— É um pagamento dobrado. Como se o Sr. Li tivesse deixado de pagar uma semana. Talvez estivesse com dificuldade de pagar. O filho disse que os negócios iam mal.

— E vai ver foi por isso que o mataram.


Bosch apontou para a tela outra vez.


— Pode tirar uma cópia disso para mim?

— Queria uma para mim também. Chu foi até a impressora e apertou um botão duas vezes. Logo duas cópias da imagem do homem virando no balcão começaram a sair.

— Vocês têm livros de identificação por aqui? Perguntou Bosch. — Arquivos de inteligência?

— Claro, disse Chu. — Vou ver se descubro quem ele é. Vou fazer algumas averiguações.

— Não quero que ele saiba que estamos atrás dele.

— Obrigado pela dica, detetive. Mas pode deixar, eu já estava pensando nisso.


Bosch não respondeu. Foi mais uma bola fora. Estava passando por maus bocados com Chu. Percebeu que estava sendo incapaz de confiar nele, ainda que carregassem o mesmo distintivo.


— Eu queria ter uma cópia da tatuagem também, disse Chu.

— Que tatuagem? Perguntou Bosch.


Chu tirou o controle remoto da mão de Bosch e apertou o botão de voltar. Por fim, pausou a imagem no momento em que o homem esticava a mão para pegar o dinheiro com o Sr. Li. Chu usou o dedo para indicar uma linha quase imperceptível no lado interno do braço do homem. Chu tinha razão. Era uma tatuagem, mas a marca era tão leve na imagem granulada que Bosch quase não enxergava nada.


— O que é? Perguntou.

— Parece o desenho de uma faca. Uma tatuagem que ele mesmo fez.

— Ele já esteve preso. Chu apertou o botão para imprimir duas cópias da imagem.

— Não, geralmente isso é feito no navio. Quando estão atravessando o oceano.

— O que significa, em sua opinião?

— Faca é kim. Existem pelo menos três tríades presentes aqui no sul da Califórnia. Yee Kim, Sai Kim e Yung Kim. Quer dizer Faca Correta, Faca Ocidental e Faca Corajosa. São ramificações de uma tríade de Hong Kong chamada Fourteen K, ou Catorze K. Muito forte e poderosa.

— Aqui ou lá?

— Aqui e lá.

— Catorze K? Como ouro 14 quilates?

— Não, 14 é um número que dá azar. Tem o som da palavra morte, em chinês. K é de kill, matar.


Bosch sabia por sua filha e com as diversas visitas que fizera a Hong Kong que qualquer permutação do número 4 era considerada mau agouro. Sua filha morava com sua ex-mulher em um prédio de condomínio onde não havia andares marcados com o número 4. O quarto andar era assinalado com um P, de parking, e o 14 era omitido, assim como o 13 era omitido em muitos prédios do Ocidente. Os andares no prédio que eram de fato o 14º e o 24º continham as residências de anglófonos, que não compartilhavam das mesmas superstições do povo han, os chineses. Bosch fez um gesto para a tela.


— Então você acha que esse cara podia ser de uma das ramificações da Fourteen K?, ele perguntou.

— Talvez sim, disse Chu. — Assim que você for embora, vou começar a fazer umas averiguações.


Bosch olhou para Chu e tentou interpretá-lo outra vez. Acreditou ter captado a mensagem. Chu queria Bosch fora dali, de modo que pudesse trabalhar. Harry se aproximou do DVD, ejetou o disco e o pegou.


— Mantenha contato, Chu, disse ele.

— Claro, respondeu Chu secamente.

— Assim que conseguir alguma coisa, me informe.

— Compreendo, detetive. Perfeitamente.

— Ótimo, e vejo você às dez com a Sra. Li e o filho.


Bosch abriu a porta e deixou a sala apertada.


* * *


Sete

FERRAS ESTAVA com a caixa registradora da Fortune Liquors em sua mesa e havia um cabo indo da lateral da caixa a uma entrada na lateral de seu laptop. Bosch pôs as fotos do vídeo sobre sua mesa e virou para o parceiro.


— O que está acontecendo?

— Fui até o laboratório forense. Tinham terminado com isso aqui. Nenhuma digital fora as da vítima. Só estou verificando o que tem na memória, agora. Posso dizer a você que o que entrou no dia até o assassinato foi menos de duzentos paus. Não teria sido fácil para a vítima fazer um pagamento de 216 dólares, se é isso que você acha que aconteceu.

— Bom, tenho algumas informações sobre o assunto para falar com você. Mais alguma coisa da equipe forense?

— Não muita. Ainda estão processando tudo... Ah, o GSR da viúva deu negativo. Mas acho que a gente já esperava por isso.


Bosch assentiu. Como havia sido a Sra. Li quem descobrira o corpo do marido, era de praxe testar suas mãos e seus braços em busca de resíduo de pólvora, a fim de determinar se atirara recentemente com uma arma. Como esperado, o teste voltou negativo para GSR. Bosch tinha certeza absoluta de que ela podia agora ser apagada da lista de potenciais suspeitos, ainda que mal tivesse feito parte dela, para começar.


— Até onde vai a memória dessa coisa? Perguntou Bosch.

— Pelo jeito retrocede um ano inteiro. Tirei umas médias. O rendimento bruto daquele estabelecimento não chegava a 3 mil por semana. Se você imagina as despesas gerais e o custo com mercadoria, seguro e coisa e tal, esse sujeito estaria com sorte se conseguisse tirar cinquenta paus limpos por ano para ele. Não dá para viver com isso. Provavelmente é mais perigoso ficar naquele lugar fazendo o que ele fazia do que ser um policial naquelas ruas.

— Ontem o filho disse que os negócios andavam mal ultimamente.

— Olhando para isso, não consigo ver quando estiveram bem.

— Isso é movimentação de caixa. Ele talvez tirasse dinheiro de outras maneiras.

— Provavelmente. E também tem o cara que ele estava pagando. Se ele estava dando duzentos paus e mais uns trocos por semana para o cara, ia pesa. Isso seria uns dez paus a menos todo ano.


Bosch contou a Ferras o que ficara sabendo por meio de Chu e que esperava que a UGA conseguisse uma identificação. Ambos concordavam que o foco da investigação estava mudando para o homem na imagem granulada da câmera de vigilância da loja. O cobrador da tríade. Enquanto isso, o possível membro de gangue que discutira com John Li no sábado anterior ao seu assassinato ainda precisava ser identificado e interrogado, mas as contradições entre a cena do crime e um homicídio do tipo fúria ou vingança punham esse indício em segundo plano. Passaram a trabalhar nos depoimentos e outras papeladas volumosas que acompanhavam toda a investigação de assassinato. Chu chegou primeiro às dez horas, indo direto até a mesa de Bosch sem ser anunciado.


— Yee-ling ainda não chegou? Perguntou, a título de cumprimento. Bosch ergueu o rosto do que estava fazendo.

— Quem é Yee-ling?

— Yee-lingi Li, a mãe.


Bosch se deu conta de que não havia se inteirado do nome completo da esposa da vítima. Isso o deixou incomodado, porque foi um indicativo de como, na verdade, sabia tão pouco sobre o caso.


— Ela ainda não apareceu. Ainda não descobriram nada?

— Verifiquei nossos álbuns de fotos. Não vi o nosso homem. Mas estamos fazendo umas averiguações.

— Sei, você vive dizendo isso. O que exatamente significa “fazer averiguações”?

— Significa que a UGA tem uma rede de contatos dentro da comunidade e que vamos averiguar discretamente sobre quem é esse homem e qual era a afiliação do Sr. Li.

— Afiliação? Perguntou Ferras. — O homem estava sendo extorquido. A afiliação dele era ser a vítima.

— Detetive Ferras, disse Chu pacientemente. — Você está olhando para isso do típico ponto de vista ocidental. Como eu expliquei para o detetive Bosch hoje de manhã, o Sr. Li talvez tenha mantido uma relação por toda a vida com uma sociedade da tríade. Isso é chamado de quang xi, no dialeto nativo dele. Não tem uma tradução direta, mas está ligado à rede social da pessoa, e um relacionamento com uma tríade estaria incluído nisso. Ferras apenas ficou olhando para Chu por um longo momento.

— Que seja, disse, finalmente. — Por aqui a gente chama isso de babaquice. A vítima morou aqui quase trinta anos. Não me interessa como chamam na China. Aqui é extorsão. Bosch ficou admirado com a reação inflexível do jovem parceiro. Já contemplava a possibilidade de ter de entrar na briga quando o telefone em sua mesa tocou e ele atendeu.

— Bosch.

— Aqui é o Rogers, do térreo. Tem duas visitas para você, os dois chamam Li. Dizem que marcaram hora.

— Mande subir.

— Estão indo. Bosch desligou.

— Ok, eles estão vindo. Eu quero fazer o seguinte: Chu, você conduz a mulher para uma das salas de interrogatório e repassa o depoimento, depois pede para ela assinar. Depois que ela tiver assinado, quero que você pergunte sobre o pagamento e sobre o sujeito no vídeo. Mostre a foto. E não deixa ela se fazer de boba. Ela deve estar por dentro disso. O marido com certeza conversou sobre o assunto.

— Você ficaria surpreso, disse Chu. — Maridos e esposas não necessariamente conversam a respeito dessas coisas.

— Bom, faça o possível. Ela pode saber muita coisa, tendo o marido conversado ou não. Ferras e eu vamos falar com o filho. Quero descobrir se ele paga proteção na loja do Vale. Se paga, talvez a gente consiga pegar o cara por lá.


Bosch olhou para a sala da delegacia e viu a Sra. Li entrar, mas não com seu filho. Estava com uma mulher mais jovem. Bosch ergueu a mão para atrair sua atenção e acenou para que fossem até lá.


— Chu, quem é?


Chu virou quando as duas mulheres se aproximaram. Não disse nada. Não sabia. Quando as duas chegaram mais perto, Bosch viu que a jovem devia ter cerca de 30 e poucos anos e era atraente, a seu jeito reservado, o cabelo atrás das orelhas. Era asiática. Usava jeans azul e uma blusa branca. Andava um pouco atrás da Sra. Li, com os olhos voltados para o chão. A impressão inicial de Bosch foi de que era uma funcionária. Uma empregada levada a servir de motorista. Mas o recepcionista havia dito que as duas se chamavam Li. Chu falou com a Sra. Li em chinês. Depois que ela respondeu, ele traduziu.


— Essa é Mia, a filha do Sr. e da Sra. Li. Ela trouxe a mãe porque Robert Li está atrasado. Bosch ficou imediatamente frustrado com a notícia e balançou a cabeça.

— Ótimo, disse para Chu. — Como foi que não ficamos sabendo que tinham uma filha?

— Não fizemos as perguntas certas ontem, disse Chu.

— Quem fazia as perguntas ontem era você. Pergunte a Mia onde ela mora. A jovem limpou a garganta e olhou para Bosch.

— Moro com a minha mãe e o meu pai, disse. — Ou morava até ontem. Agora moro só com a minha mãe. Bosch se sentiu envergonhado por presumir que ela não falava inglês e por ela ter escutado e compreendido sua reação irritada com a presença dela ali.

— Desculpe. É só que precisamos de toda informação que pudermos obter.


Ele olhou para os outros dois detetives.


— Ok, vamos precisar do depoimento de Mia. Detetive Chu, talvez seja melhor seguir com o planejado e conduzir a Sra. Li a uma sala de interrogatório para repassar seu depoimento. Vou conversar com Mia, e você, Ignácio, pode esperar Robert aparecer.


Ele voltou a virar para Mia.


— Sabe se o seu irmão vai chegar muito atrasado?

— Ele deve estar a caminho. Disse que ia sair da loja lá pelas dez.

— Que loja?

— A loja dele. No Vale.

— Ok, Mia, por quê não vem comigo, a sua mãe pode acompanhar o detetive Chu.


Mia falou em chinês com sua mãe e eles se dirigiram ao conjunto de salas de interrogatório no fundo da delegacia. Bosch pegou um bloco de anotações amarelo e a pasta contendo a foto impressa do vídeo, e então começou a andar. Ferras ficou para trás.


— Harry, quer que eu comece com o filho quando ele chegar aqui? Perguntou.

— Não, disse Bosch. — Venha me procurar. Vou estar na sala 2.


Bosch conduziu a filha da vítima para uma salinha sem janelas com uma mesa no centro. Sentaram cada um de um lado e Bosch se esforçou para exibir uma expressão agradável no rosto. Era difícil. A manhã já começava com uma surpresa e ele não gostava de surpresas surgindo em suas investigações de homicídio.


— Ok, Mia, disse Bosch. — Vamos começar de novo. Sou o detetive Bosch. Fui designado como investigador-chefe do caso envolvendo o assassinato do seu pai. Lamento muito por sua perda.

— Obrigada. Ela manteve os olhos baixos sobre o tampo da mesa.

— Pode me dizer o seu nome completo?

— Mia-ling Li.


Seu nome fora ocidentalizado com o primeiro nome na frente e o nome de família por último. Mas ela não adotara um nome inteiramente ocidental, como seu pai e seu irmão. Bosch se perguntou se isso era porque seria natural que os homens se integrassem à sociedade ocidental, enquanto as mulheres eram proibidas disso.


— Qual o dia do seu nascimento?

— Catorze de fevereiro de 1980.

— Dia de São Valentino.


Bosch sorriu. Não sabia por quê. Estava apenas tentando estabelecer alguma afinidade. Então imaginou se na China podia haver Dia de São Valentino, mais conhecido como Dia dos Namorados. Seguiu em frente com seus pensamentos e fez as contas. Percebeu que, embora fosse de fato bastante atraente, Mia era mais nova do que aparentava, e apenas alguns anos mais velha que seu irmão, Robert.


— Você veio para aqui com seus pais? Quando foi isso?

— Em 1982.

— Você tinha só dois anos.

— É.

— E foi então que o seu pai abriu a loja?

— Ele não abriu. Comprou de outra pessoa e mudou o nome para Fortune Liquors. Antes chamava outra coisa.

— Ok. Tem mais algum irmão ou irmã além de você e Robert?

— Não, só a gente.

— Ok, ótimo. Agora, você disse que estava morando com seus pais. Quanto tempo faz? Ela ergueu o rosto brevemente e depois voltou a olhar para baixo.

— Minha vida inteira. Tirando dois anos, quando eu era mais nova.

— Você foi casada?

— Não. O que isso tem a ver com a pessoa que matou o meu pai? Vocês não deviam estar procurando o assassino?

— Desculpe, Mia. Só preciso reunir alguma informação básica e depois é isso mesmo, a gente vai sair à procura do assassino. Você conversou com o seu irmão? Ele contou para você que eu conhecia o seu pai?

— Ele disse que vocês se encontraram uma vez. Não conheceu ele de verdade. Isso não é conhecer. Bosch balançou a cabeça.

— Tem razão. Foi um exagero. Eu não o conhecia, mas por causa da situação em que estávamos quando a gente se... Encontrou, sinto como se o conhecesse. Quero encontrar o assassino, Mia. E vou encontrar. Só preciso que você e sua família me ajudem em tudo que puderem.

— Entendo.

— Não esconda nada, porque você nunca sabe o que pode ser de ajuda para nós.

— Não vou esconder.

— Ok, o que você faz para viver?

— Cuido dos meus pais.

— Você quer dizer, em casa? Você fica em casa e cuida dos seus pais? Agora ela ergueu o rosto e o fitou bem nos olhos. Suas pupilas eram tão escuras que era difícil ler alguma coisa nelas.

— Isso mesmo. Bosch percebeu que devia ter cruzado algum costume e norma culturais sobre os quais nada sabia. Mia pareceu ler seus pensamentos.

— É uma tradição na minha família que a filha cuide dos pais.

— Você vai à escola?

— Claro, fiz dois anos de universidade. Mas depois voltei para casa. Eu cozinho, limpo e mantenho a casa. Para o meu irmão também, embora ele queira se mudar e morar sozinho.

— Mas até ontem todo mundo estava morando junto.

— É.

— Quando foi a última vez que você viu o seu pai com vida?

— Quando ele saiu para trabalhar ontem de manhã. Ele sai lá pelas nove e meia. Eu fiz o café da manhã dele.

— E a sua mãe vai junto, também?

— É, eles sempre vão juntos.

— E daí a sua mãe voltou à tarde.

— Isso, eu preparo a refeição e ela vem buscar. Todo dia.

— Que horas ela chega em casa?

— Ela chega às três. Sempre assim. Bosch sabia que a família morava na área de Larchmont, do bairro de Wilshire, e a pelo menos meia hora de carro da loja. O trajeto sem desvios teria sido por ruas na superfície o tempo todo.

— Quanto tempo levou para ela pegar a comida e voltar para a loja ontem?

— Ela ficou mais ou menos meia hora e depois foi. Bosch balançou a cabeça. Tudo estava batendo com a história da mãe, os horários e tudo mais que eles sabiam.

— Mia, seu pai falou sobre alguém ligado ao trabalho de quem estava com medo? Como um cliente ou alguém assim?

— Não, meu pai era muito calado. Ele não falava do trabalho em casa.

— Ele gostava de morar aqui em Los Angeles?

— Não, acho que não.

— Por quê?

— Ele queria voltar para a China, mas não podia.

— Por que não?

— Porque quando você vem embora, você não volta. Eles partiram porque o Robert ia nascer.

— Está dizendo que a sua família viajou por causa do Robert?

— Na nossa província, só é permitido ter um filho. Eles já me tinham, e a minha mãe não quis me pôr no orfanato. Meu pai queria um filho e, quando a minha mãe engravidou, a gente veio para a América.


Bosch não conhecia os detalhes da política de único filho da China, embora soubesse de sua existência. Era um planejamento de contenção populacional que resultava em uma valorização maior dos filhos homens. Meninas recém-nascidas muitas vezes eram abandonadas em orfanatos ou conheciam destino até pior. Em vez de se livrar de Mia, a família Li preferiu abandonar o país e trocá-lo pelos Estados Unidos.


— Então seu pai sempre desejou ter podido permanecer na China e criar a família por lá?

— É. Bosch concluiu que já obtivera informação suficiente quanto a isso. Abriu a pasta e tirou a imagem impressa da câmera de vigilância. Pôs na frente de Mia.

— Quem é esse, Mia? Seus olhos se estreitaram conforme examinou a imagem granulada.

— Não conheço. Ele matou o meu pai?

— Não sei. Tem certeza de que não sabe quem ele é?

— Tenho. Quem é?

— A gente ainda não sabe. Mas vamos descobrir. Seu pai alguma vez falou sobre as tríades?

— As tríades?

— Sobre precisar pagar a elas? Ela pareceu ficar muito nervosa com a pergunta.

— Não sei sobre isso. A gente não conversava sobre isso.

— Você fala chinês, não fala?

— Falo.

— Alguma vez escutou seus pais conversando sobre isso?

— Não, isso nunca aconteceu. Não sei sobre isso.

— Ok, Mia, então acho que podemos parar por aqui.

— Posso levar a minha mãe para casa?

— Assim que ela terminar de falar com o detetive Chu. O que você acha que vai acontecer com a loja agora? Sua mãe e seu irmão vão continuar com o negócio? Ela negou com a cabeça.

— Acho que vai ser fechada. Minha mãe vai trabalhar na loja do meu irmão, agora.

— E quanto a você, Mia? Alguma coisa vai mudar para você daqui para frente? Ela levou um longo momento considerando, como se não houvesse pensado nisso até Bosch ter perguntado.

— Não sei, disse, finalmente. — Pode ser.


* * *


Oito

DE VOLTA à sala da delegacia, a Sra. Li já encerrara o depoimento com Chu e aguardava por sua filha. Ainda não havia nem sinal de Robert Li, e Ferras explicou que ele havia telefonado dizendo que não podia deixar a loja porque seu gerente assistente havia ligado para avisar que estava doente.


Depois de acompanhar as duas mulheres até o elevador, Bosch olhou o relógio e decidiu que ainda havia tempo para dar um pulo no Vale e conversar com o filho da vítima; depois voltaria para o centro a fim de acompanhar a autópsia, marcada para as duas da tarde. Além do mais, ele não precisava estar presente na sala do legista para os procedimentos preliminares. Podia chegar atrasado. Ficou decidido que Ferras continuaria por ali para trabalhar com a equipe forense na devolução das provas recolhidas no dia anterior. Bosch e Chu iriam até o Vale para conversar com Robert Li.


Bosch foi em seu Crown Vic, exibindo mais de 300 mil quilômetros rodados no marcador do velocímetro. O ar-condicionado funcionava, mas mal e porcamente. Conforme se aproximaram do Vale, a temperatura começou a subir, e Bosch desejou que houvesse tirado o paletó antes de entrar no carro. No caminho, Chu foi o primeiro a falar e relatou que a Sra. Li assinara seu depoimento e não tivera nada de novo a acrescentar. Não reconhecera o homem no vídeo da loja e alegou não saber coisa alguma sobre pagamentos à tríade. Bosch então falou da pouca informação que obtivera com Mia-ling Li e perguntou a Chu o que ele sabia sobre a tradição de manter uma filha adulta em casa para cuidar dos pais.


— Ela é uma chinderela, disse Chu. — Fica em casa, cozinha, limpa, faz essas coisas. Quase uma empregada para os pais.

— Eles não querem que ela se case e saia de casa?

— Não, cara, é mão de obra gratuita. Para que iam querer que ela casasse? Daí eles iam ter que contratar uma empregada doméstica, uma cozinheira e um motorista. Do jeito que está eles têm tudo numa coisa só e não precisam pagar.


Bosch dirigiu em silêncio por algum tempo depois disso, pensando na vida que Mia-ling Li levava. Duvidava que alguma coisa pudesse mudar com a morte de seu pai. Ainda havia a mãe para cuidar. Lembrou de algo relacionado ao caso e falou outra vez.


— Ela disse que a família provavelmente fecharia a loja agora e continuaria apenas com o estabelecimento no Vale.

— Não dava dinheiro nenhum, de qualquer jeito, disse Chu. — Talvez eles consigam vender para alguém dentro da comunidade e tirar alguma coisa.

— Não é muito, para alguém que ficou quase trinta anos ali.

— A história de imigrantes chineses nem sempre tem um final feliz, disse Chu.

— Mas e você, Chu? Você se deu bem.

— Eu não sou imigrante. Meus pais eram.

— Eram?

— Minha mãe morreu cedo. Meu pai era pescador. Um dia ele saiu com o barco e nunca mais apareceu.


Bosch ficou em silêncio pelo tom casual com que Chu contou essa tragédia familiar. Concentrou-se no caminho. O trânsito estava pesado e levaram 45 minutos para chegar a Sherman Oaks. A Fortune Fine Foods & Liquor ficava na Sepulveda, apenas um quarteirão ao sul de Ventura Boulevard. Isso localizava a loja num bairro de apartamentos e condomínios de alto padrão, abaixo de uma colina com residências de padrão ainda mais elevado. Era um bom ponto, mas ao que parecia carente de vagas para estacionar. Bosch encontrou um lugar na rua na frente de um hidrante. Abaixou o protetor de sol, onde se via um cartão preso mostrando um código de identificação de veículo municipal, e desceu.


Bosch e Chu haviam elaborado uma estratégia no longo trajeto até lá. Eles achavam que se havia mais alguém sabendo dos pagamentos à tríade além da vítima, esse alguém tinha de ser o filho e também gerente de loja, Robert. Por que não contara aos detetives sobre isso no dia anterior era a grande questão. A Fortune Fine Foods & Liquor era algo completamente diferente de sua contrapartida no sul de Los Angeles. A loja era pelo menos cinco vezes maior e exibia sinais abundantes da sofisticação que o bairro pedia.


Havia um café-bar com self-service. Os corredores de vinho tinham cartazes no alto indicando os tipos de vinho e o local de origem, e nada de garrafões empilhados no canto. Os refrigeradores eram bem-iluminados e com prateleiras abertas, em vez de portas de vidro. Havia corredores para alimentos finos e balcões de quentes e frios, onde os clientes podiam comprar filés e peixes frescos ou porções de frango assado, bolo de carne e costelas grelhadas. O filho herdara o negócio paterno e o fizera avançar muitos níveis. Bosch ficou impressionado.


Havia dois caixas, e Chu perguntou à mulher atrás de um deles onde estava Robert Li. Ela indicou onde era, e os detetives se dirigiram a uma entrada de portas duplas que dava em um depósito com três metros de prateleiras nas paredes. Bem mais adiante, à esquerda, uma porta dizia ESCRITÓRIO. Bosch bateu e Robert Li atendeu prontamente. Pareceu surpreso ao vê-los.

— Detetives, vamos entrando, disse. — Desculpe por não ter aparecido lá hoje. Meu gerente assistente ligou dizendo que estava doente e não posso deixar o lugar sem ninguém para supervisionar. Desculpe.

— Tudo bem, disse Bosch. — Só estamos tentando encontrar o assassino do seu pai.


Bosch queria deixar o rapaz na defensiva. Interrogá-lo em seus próprios domínios era algo que o deixava com uma vantagem. Bosch pretendia trazer um certo desconforto à situação. Se Li ficasse na defensiva, se mostraria mais cooperativo e predisposto a tentar agradar seus interrogadores.


— Bom, eu peço desculpas. Achei que a minha ida fosse só para assinar o meu depoimento, de qualquer jeito.

— Estamos com o seu depoimento, mas tem um pouco mais de coisas envolvidas do que só assinar papéis, Sr. Li. Isso é uma investigação em andamento. As coisas mudam. Novas informações seguem entrando.

— Não tem mais nada que eu possa fazer além de me desculpar. Sentem, por favor. Lamento pelo espaço tão apertado.


O escritório era exíguo e Bosch percebeu que ele o dividia com mais gente. Havia duas mesas lado a lado encostadas na parede direita. Duas cadeiras de escritório e duas cadeiras dobráveis, provavelmente para representantes de vendas e entrevistas de emprego. Li pegou o telefone em sua mesa, teclou um número e disse à pessoa que não podia ser interrompido. Depois fez um gesto com as mãos abertas, indicando que estava pronto para começar.


— Antes de mais nada, estou um pouco surpreso de vê-lo trabalhando hoje, disse Bosch. — Seu pai foi assassinado ontem. Li balançou a cabeça gravemente.

— Infelizmente não disponho de tempo para ficar de luto pela morte do meu pai. Preciso cuidar do negócio, ou então não vai haver negócio nenhum para cuidar.


Bosch assentiu e sinalizou para que Chu tomasse a dianteira. Ele havia digitado o testemunho de Li. Enquanto o repassava com o rapaz, Bosch observou o escritório. Na parede acima das mesas, estavam emolduradas as licenças do governo para trabalhar, o diploma que Li obtivera em 2004 na faculdade de administração da Universidade do Sul da Califórnia (USC) e um certificado de menção honrosa para o melhor novo estabelecimento de 2007, concedido pela American Grocers Association. Havia ainda retratos emoldurados de Li com Tommy Lasorda, o antigo gerente dos Dodgers, e um Li adolescente posando na escadaria do Tian Tan Buddha, em Hong Kong. Assim como reconhecera Lasorda, Bosch identificou a escultura de bronze de 30 metros de altura conhecida como o Grande Buda. Ele viajara com sua filha até a ilha de Lantau para vê-lo, certa vez.


Bosch esticou a mão e endireitou a moldura torta do diploma da USC. Ao fazer isso, notou que Li se formara na universidade com méritos. Pensou por um momento em Robert terminando os estudos e ganhando a oportunidade de assumir o negócio do pai para transformá-lo em algo maior e melhor. Enquanto isso, sua irmã mais velha largava a faculdade, voltava para casa e ia arrumar camas. Li não solicitou nenhuma mudança no depoimento e vistou o canto de cada folha. Quando acabou, olhou para o relógio de parede pendurado acima da porta e Bosch percebeu que, para Li, eles haviam terminado. Mas não. Agora chegara a vez de Bosch. Abriu sua maleta e tirou uma pasta. Dentro estava a foto impressa do sujeito que extorquira dinheiro do pai de Li. Bosch estendeu a imagem para o rapaz.


— Quero que me fale um pouco sobre esse cara, disse.


Li segurou a foto com as duas mãos e juntou as sobrancelhas enquanto olhava. Bosch sabia que as pessoas faziam isso para mostrar como estavam concentradas de verdade, mas em geral era um disfarce por algum outro motivo. Bosch sabia que provavelmente recebera uma ligação na última hora de sua mãe e que estava sabendo que talvez lhe mostrassem a cópia. Fosse qual fosse sua resposta, Bosch tinha certeza de que não seria sincera.


— Não sei o que falar, disse Li, após alguns segundos. — Não reconheço ele. Nunca vi o homem. Estendeu a foto de volta para Bosch, mas Harry não a pegou.

— Mas sabe quem é, não sabe? Não era uma pergunta de verdade.

— Não, para falar a verdade, não sei, disse Li, uma leve irritação em sua voz. Bosch sorriu para ele, mas era um desses sorrisos sem qualquer cordialidade ou humor.

— Sr. Li, sua mãe ligou avisando que iríamos mostrar essa foto?

— Não.

— Podemos mandar verificar as suas ligações, você sabe.

— E se ligou? Ela não sabia quem era e eu também não sei.

— Quer que encontremos o assassino do seu pai, não quer?

— Claro que quero! Que tipo de pergunta é essa?

— É o tipo de pergunta que eu faço quando sei que alguém está escondendo informação de mim e que isso...

— O quê? Como tem coragem!

— ... Pode ser útil na minha investigação.

— Não estou escondendo droga nenhuma! Não conheço esse homem. Não sei o nome dele e nunca o vi antes! É a pura verdade! O rosto de Li ficou vermelho. Bosch aguardou um instante e disse calmamente:

— Pode até ser que esteja falando a verdade. Talvez você não saiba o nome dele e pode ser que nunca o tenha visto antes. Mas você sabe quem ele é, Robert. Sabe que seu pai estava sendo extorquido. Talvez você também esteja. Se acha que existe algum perigo em conversar conosco, então talvez possamos protegê-lo.

— Sem dúvida, acrescentou Chu. Li balançou a cabeça e sorriu como se não conseguisse acreditar na situação em que se metera. Começou a respirar pesadamente.

— Meu pai acaba de morrer, foi assassinado. Será que não podem me deixar em paz? Vão ficar me atormentando? Eu também sou uma vítima nisso.

— Quem dera pudéssemos deixar você em paz, Robert, disse Bosch. — Mas se não encontrarmos o responsável pelo crime, ninguém mais vai encontrar. Você não deseja isso, não é?


Li pareceu se recompor e balançou a cabeça novamente.


— Olha, prosseguiu Bosch, — Temos um depoimento assinado aqui. Nada que você disser agora precisa deixar essa sala. Ninguém nunca vai ficar sabendo o que você nos contar.


Bosch esticou a mão e tocou a foto com o dedo. Li continuava a segurá-la.


— Seja lá quem for que matou seu pai tirou o disco do aparelho nos fundos, mas deixou os discos antigos. Esse cara aparece lá. Ele cobrou um pagamento do seu pai no mesmo horário e no mesmo dia uma semana antes do assassinato. Seu pai deu a ele 216 dólares como dinheiro de extorsão. O cara é de uma tríade e acho que você o conhece. Precisa ajudar a gente nisso, Robert. Ninguém mais vai ajudar. Bosch aguardou. Li pôs a foto em cima da mesa e esfregou as mãos suadas em sua calça jeans.

— Ok, tudo bem, meu pai pagava a tríade, disse. Bosch respirou lentamente. Haviam acabado de dar um grande passo. Queria manter Li falando.

— Por quanto tempo? Perguntou.

— Sei lá, a vida toda. Pelo menos a minha vida toda. Foi uma coisa que sempre fez. Para ele, era parte de ser chinês. Você paga.

— Obrigado por se abrir com a gente, Robert. Bom, ontem você disse que, com a economia ruim e tudo mais, as coisas não andavam bem na loja. Sabe se o seu pai estava atrasado com os pagamentos?

— Não sei, pode ser. Ele não me contava. A gente não se entendia sobre isso.

— Como assim?

— Em minha opinião, ele não devia pagar. Falei isso um milhão de vezes. Isso é a América, pai, você não devia ficar dando dinheiro para eles.

— Mas mesmo assim ele dava.

— É, toda semana. Ele funcionava à moda antiga, não tinha jeito.

— Então aqui você não paga? Li balançou a cabeça, mas seu olhar desviou para o lado por um momento. Isso o entregou. — Você paga, não paga?

— Não.

— Robert, a gente precisa...

— Eu não pago porque o meu pai pagava para mim. Agora não sei mais o que vai acontecer.


Bosch se curvou para perto dele.


— Você quer dizer que o seu pai pagava para os dois pontos.

— É. Os olhos de Li estavam baixos. Ele esfregou a palma das mãos na calça outra vez.

— O pagamento dobrado, 108 vezes 2, era para cobrir as duas lojas.

— Isso mesmo. Li fez que sim e Bosch achou que viu lágrimas brotando em seus olhos. Harry sabia que a próxima pergunta era a mais importante.

— O que aconteceu essa semana?

— Não sei.

— Mas você faz ideia, não faz, Robert? Ele assentiu.

— As duas lojas estão perdendo dinheiro. Expandimos o negócio na hora errada, bem antes da recessão. O governo corre para salvar os bancos, mas não a gente. Era capaz de perdermos tudo. Eu falei para ele... Falei para o meu pai que a gente não aguentava continuar pagando. Falei para ele que a gente estava pagando por coisa nenhuma e que íamos perder as lojas se não parássemos.

— Ele disse que ia parar de fazer os pagamentos?

— Ele não disse isso. Não disse nada. Achei que isso significava que ele ia continuar a pagar até a gente quebrar. Estava pesando cada vez mais. Oitocentos dólares por mês é muita coisa num negócio desses. Meu velho achava que se conseguisse encontrar algum outro jeito... Sua voz sumiu.

— Outro jeito do quê, Robert?

— Outro jeito de poupar dinheiro. Ele ficou obcecado em pegar quem furtava a loja. Achou que se cortasse esse tipo de perda, isso faria alguma diferença. Ele era de uma outra época. Não entendia. Bosch recostou em sua cadeira e olhou para Chu. Haviam quebrado suas defesas e feito com que Li se abrisse. Agora era a vez de Chu prosseguir fazendo perguntas específicas relacionadas à tríade.

— Robert, você está sendo de grande ajuda, disse Chu. — Quero fazer algumas perguntas sobre o homem na foto.

— Eu falei a verdade. Não sei quem ele é. Nunca vi na minha vida.

— Ok, mas seu pai alguma vez falou sobre ele, quando, bom, vocês estavam discutindo os pagamentos?

— Ele nunca mencionava o nome dele. Só dizia que ia ficar nervoso se a gente parasse de pagar.

— Alguma vez ele mencionou o nome do grupo para quem estava pagando? A tríade?

— Não, nunca... Espera, foi sim, ele falou uma vez. Era alguma coisa sobre uma faca. Como se o nome viesse de algum tipo de faca ou qualquer coisa assim. Mas não lembro qual era.

— Tem certeza? Isso pode nos ajudar a afunilar as opções. Li franziu o cenho e negou com a cabeça.

— Vou tentar lembrar. Agora não consigo.

— Tudo bem, Robert.


Chu prosseguiu com o interrogatório, mas suas questões eram específicas demais e Li continuava respondendo que não sabia. Isso não incomodava Bosch. Haviam feito um grande avanço. Ele via as peças do caso se juntando com maior nitidez, agora. Após algum tempo Chu deu suas perguntas por encerradas e passou a bola de volta para Bosch.


— Certo, Robert, disse Harry. — Você acha que o homem ou os homens a quem o seu pai estava pagando agora vão procurar você para pedir dinheiro? A pergunta fez Li franzir profundamente o rosto.

— Não sei, ele disse.

— Quer proteção do DPLA?

— Também não sei dizer.

— Bom, você tem os nossos telefones. Se alguém aparecer, coopere. Prometa dar dinheiro, se precisar.

— Eu não tenho dinheiro!

— É aí que está. Prometa dar o dinheiro, mas diz que vai levar um dia para conseguir. Depois liga para a gente. Nós cuidamos do assunto, daí para frente.

— E se ele simplesmente tirar das caixas registradoras? Você me contou ontem que a gaveta da caixa tinha sido esvaziada na loja do meu pai.

— Se ele fizer isso, deixa e depois liga para a gente. Nós pegamos o cara quando ele aparecer da próxima vez. Li balançou a cabeça e Bosch pôde perceber que deixara o rapaz completamente apavorado. — Robert, você tem uma arma na loja?


Era um teste. Eles já haviam verificado os registros de armas. Apenas a da outra loja estava registrada.


— Não, meu pai tinha uma arma. Quem estava na área ruim era ele.

— Ótimo. Não vai mexer com arma nessa história. Se o sujeito aparecer, apenas coopere.

— Ok.

— Falando nisso, por que o seu pai comprou aquela arma? Depois de ficar naquele lugar durante quase trinta anos, seis meses atrás ele vai e compra uma arma.

— Da última vez que foi roubado os caras machucaram ele. Dois membros de gangue. Bateram nele com uma garrafa. Falei que já que ele não ia vender a loja, devia comprar uma arma. Mas isso não ajudou em nada.

— Quase nunca ajuda.


Os detetives agradeceram Li e o deixaram em seu escritório, um rapaz de 26 anos que de certo modo parecia duas décadas mais velho, agora. Quando atravessavam a loja de volta, Bosch olhou seu relógio e viu que já passava da uma. Estava morrendo de fome e queria forrar o estômago com alguma coisa antes de se encontrar com o legista para a autópsia, às duas. Parou diante do balcão de alimentos quentes e cravou os olhos no bolo de carne. Puxou um número de senha do dispensador. Quando se ofereceu para pagar uma fatia para o colega, Chu disse que era vegetariano. Bosch balançou a cabeça.


— O que foi? Perguntou Chu.

— Acho que não vamos dar certo como parceiros, Chu, disse Bosch. — Não confio num cara que não come um cachorro-quente de vez em quando.

— Eu como cachorro-quente de tofu. Bosch fez uma careta.

— Isso não conta. Então viu Robert Li se aproximando deles.

— Esqueci de perguntar. Quando o corpo do meu pai vai ser liberado para nós?

— Provavelmente amanhã, disse Bosch. — A autópsia é hoje. Li pareceu desolado.

— Meu pai era um homem muito religioso. Vocês precisam mesmo profanar o corpo? Bosch fez que sim.

— É a lei. Sempre há uma autópsia depois de qualquer homicídio.

— Quando vão fazer isso?

— Daqui a uma hora, mais ou menos. Li assentiu, em aceitação.

— Por favor, não conte para minha mãe sobre isso. Vão me ligar quando eu puder retirar o corpo?

— Claro, pode deixar comigo.


Li agradeceu e voltou para seu escritório. Bosch ouviu seu número sendo chamado pelo homem atrás do balcão.


* * *


Nove

ACAMINHO do centro, Chu informou Bosch que, depois de 14 anos naquele trabalho, ele ainda não testemunhara uma autópsia e que não fazia questão de mudar isso agora. Disse que preferia voltar ao escritório da UGA para continuar tentando obter uma identificação do membro da tríade. Bosch o deixou por lá e depois rumou para o prédio de medicina legal do condado, na Mission Road. Quando terminou de informar sua chegada, vestir o jaleco médico e entrar na sala 3, a autópsia de John Li já estava bem adiantada. O departamento de medicina legal realizava 6 mil autópsias por ano. O uso e a programação das salas de autópsia eram rigorosamente controlados, e os legistas não esperavam por policiais que chegavam atrasados. Um profissional dos bons podia terminar o serviço de autópsia cirúrgica em uma hora. Bosch não se incomodou com isso. Estava interessado nos achados da autópsia, não nos procedimentos.


O corpo de John Li jazia nu e profanado sobre a fria mesa de aço inoxidável. O peito fora aberto e os órgãos vitais, removidos. A Dra. Sharon Laksmi trabalhava em uma mesa ao lado, pondo amostras de tecidos em lâminas.


— Boa tarde, doutora, disse Bosch.


Laksmi parou o que estava fazendo e virou para ver quem era. Por causa da máscara e da touca que Bosch vestia, ela não conseguiu identificá-lo prontamente. Lá se iam os tempos em que os detetives podiam ir entrando sem mais nem menos para assistir. Os regulamentos sanitários do condado exigiam o vestuário de proteção completo.


— Bosch, Ferras?

— Bosch.

— Está atrasado. Comecei sem você.


Laksmi era pequena e escura. O mais notável na mulher eram seus olhos pesadamente maquiados atrás do escudo plástico de sua máscara. Era como se tivesse percebido que seus olhos eram o único traço que as pessoas podiam ver além de todo o traje de segurança que usava a maior parte do tempo. Falava com um ligeiro sotaque. Mas quem não falava, em Los Angeles? Até mesmo o velho chefe de polícia prestes a se aposentar soa¬va como se fosse de South Boston.


— Certo, desculpe. Eu estava com o filho da vítima e a coisa acabou se prolongando. Ele não mencionou o sanduíche de bolo de carne que também lhe custara algum tempo.

— Olha aqui o que você provavelmente está procurando.


Ela bateu com a lâmina de seu bisturi num dos quatro copos metálicos com amostras alinhados à sua esquerda, sobre a bancada. Bosch se aproximou e olhou dentro deles. Em cada um havia alguma evidência extraída do corpo. Ele viu três projéteis deformados e um único cartucho de bala.


— Você encontrou um cartucho? Estava junto do corpo?

— Dentro do corpo, na verdade.

— Dentro do corpo?

— Isso mesmo. Alojado no esôfago. Bosch pensou no que descobrira olhando para as fotos da cena do crime. Sangue nos dedos da vítima, no queixo e nos lábios. Mas não nos dentes. Sua intuição acertara em cheio.

— Parece que você está atrás de um assassino bem sádico, detetive Bosch.

— Por que diz isso?

— Porque ou ele enfiou um cartucho na garganta da vítima ou o cartucho ejetado acabou indo parar de algum modo na boca. Como a probabilidade de um tiro desses seria de uma em um milhão, eu ficaria com a primeira.


Bosch balançou a cabeça. Não porque assinava embaixo do que ela dizia, mas porque estava pensando a respeito de um cenário que a Dra. Laksmi não havia considerado. Ele achou que agora tinha uma ideia sobre o que acontecera atrás do balcão na Fortune Liquors. Um dos cartuchos ejetados pela arma do atirador caiu em cima ou perto de John Li enquanto ele morria no chão atrás do balcão. Ou ele viu o atirador recolhendo os cartuchos ou sabia que seria uma evidência valiosa na investigação de seu próprio assassinato. Em seus momentos finais, Li apanhara o cartucho e tentara engolir, para esconder do atirador. O último ato de John Li foi uma tentativa de fornecer a Bosch uma pista importante.


— Você limpou o cartucho, doutora? Ele perguntou.

— Limpei, o sangue havia se acumulado na garganta e o cartucho agiu como um dique, impedindo a maior parte de subir para a boca. Eu tinha que limpar para ver o que era.

— Certo.


Bosch sabia que a possibilidade de haver digitais no cartucho era quase nula, de qualquer maneira. A explosão de gases quando uma bala era disparada quase sempre vaporizava as digitais. Mesmo assim, o cartucho podia ser útil para determinar a comparação com uma arma se as balas recuperadas estivessem muito danificadas. Bosch se curvou sobre os copos de evidência contendo as balas. Concluiu na mesma hora que haviam sido pontas côncavas. Tinham formado um cogumelo com o impacto e estavam muito deformadas. Ele não sabia dizer se alguma delas seria útil para fins de estabelecer similaridade. Mas o cartucho muito provavelmente constituía uma prova sólida. As marcas feitas pelo extrator da arma, pelo percussor e pelo ejetor poderiam ser úteis em identificar e determinar a correspondência, se é que a arma seria encontrada. O cartucho ligaria a vítima à arma.


— Quer ouvir meu resumo antes de ir embora? Perguntou Laksmi.

— Claro, doutora, pode mandar.


Enquanto Laksmi fazia um relatório preliminar sobre suas descobertas, Bosch pegava sacos plásticos de evidência em uma prateleira acima da mesa e guardava as balas e o cartucho separados. O cartucho parecia ter saído de uma 9 milímetros, mas ele ia esperar pela confirmação da balística quanto a isso. Marcou cada envelope com o seu nome, bem como o de Laksmi, e com o número do caso, e então ergueu seu avental manchado e guardou-os no bolso do paletó.


— O primeiro tiro foi na parte superior esquerda do peito. O projétil perfurou o ventrículo direito do coração e atingiu as vértebras superiores, partindo a medula espinhal. A vítima deve ter caído no chão imediatamente. Os dois tiros seguintes foram à direita e à esquerda do esterno inferior. É impossível estabelecer uma ordem para esses dois tiros. Os lobos direito e esquerdo dos pulmões foram perfurados e os projéteis se alojaram na musculatura das costas. O resultado dos três tiros foi a perda instantânea da função cardiopulmonar e a subsequente morte. Eu diria que ele não durou mais que trinta segundos. O relatório sobre o dano à medula espinhal aparentemente punha em dúvida a presente teoria de Bosch sobre a vítima ter engolido intencionalmente o cartucho da bala.

— Com o dano à medula espinhal, ele teria como efetuar algum movimento da mão e do braço?

— Não por muito tempo. A morte foi quase instantânea.

— Mas ele não ficou paralisado, ficou? Nesses últimos trinta segundos, teria sido possível pegar o cartucho e enfiar na boca? Laksmi considerou o novo cenário por alguns momentos antes de responder.

— Acredito que ele tenha, realmente, ficado paralisado. Mas o projétil se alojou na quarta vértebra torácica, partindo a medula ali. Isso certamente teria causado paralisia, mas começando por esse ponto. Os braços ainda funcionariam. Seria questão de tempo. Como eu disse, o corpo dele teria deixado de funcionar em um minuto.


Bosch balançou a cabeça. Sua teoria continuava funcionando. Li poderia rapidamente ter agarrado o cartucho com as forças restantes e enfiado em sua boca. Bosch se perguntou se o atirador sabia disso. Ele muito provavelmente teve de contornar o balcão para procurar os cartuchos. Nesse meio-tempo, Li poderia ter agarrado um deles. O sangue encontrado sob o corpo de Li indicava que ele havia sido deslocado. Bosch se deu conta de que isso muito provavelmente ocorreu durante a procura do cartucho sumido. Bosch foi ficando empolgado. O cartucho era uma evidência significativa, mas a ideia de que o atirador cometera um erro era ainda mais animadora. Queria levar a evidência o mais rápido possível para a unidade de Marcas de Instrumento e Balística.


— Muito bem, doutora, o que mais tem aí?

— Tem uma coisa que você vai preferir olhar agora, em vez de esperar pelas fotos. Ajude-me a virar ele.


Dirigindo-se à mesa de autópsia, eles cuidadosamente rolaram o corpo. O rigor mortis viera e se fora, e o procedimento foi fácil. Laksmi apontou os tornozelos. Bosch se aproximou desse lado e viu pequenos ideogramas chineses tatuados na parte posterior dos pés de Li. Parecia haver dois ou três símbolos em cada pé, localizados ao lado do tendão de aquiles.


— Você fotografou isso?

— Fotografei, vai estar no relatório.

— Tem alguém por aqui para traduzir isso?

— Acho que não. O Dr. Ming talvez consiga, mas ele está de folga essa semana.

— Ok, vamos deslizar ele um pouco mais para frente, assim os pés ficam para fora da beirada e eu tiro uma foto.


Ela o ajudou a mover o corpo sobre a mesa. Os pés ficaram pendendo no ar e Bosch posicionou os tornozelos bem próximos um do outro, de modo que os símbolos chineses ficaram alinhados. Levou a mão sob o avental e tirou seu celular. Mudou para o modo câmera e tirou duas fotos das tatuagens.


— Tudo bem.


Bosch pôs o telefone em cima da mesa e viraram o corpo outra vez, puxando-o de volta para o lugar. Bosch tirou as luvas e as jogou no recipiente de lixo médico, depois pegou seu celular e ligou para Chu.


— Qual é o seu e-mail? Quero mandar uma foto.

— Do quê?

— Símbolos chineses tatuados nos tornozelos do Sr. Li. Quero saber o que significam.

— Ok. Chu forneceu a ele seu e-mail no departamento. Bosch verificou como havia se saído com a câmera e lhe enviou a foto mais nítida das duas, depois guardou o celular.

— Dra. Laksmi, tem mais alguma coisa que eu precise saber aqui?

— Acho que já viu tudo, detetive. Tirando uma coisa que talvez a família queira saber.

— O que é? Ela fez um gesto na direção de uma das tigelas de órgãos que espalhara pela bancada de trabalho.

— Os tiros só anteciparam o inevitável. O Sr. Li estava morrendo de câncer.


Bosch foi até lá e olhou dentro da bandeja. Os pulmões da vítima haviam sido extraídos do corpo para serem pesados e examinados. Laksmi os abrira para investigar o caminho das balas e ambos os lobos inferiores estavam cinza-escuros com células cancerígenas.


— Ele era fumante, disse Laksmi.

— Eu sei, disse Bosch. — Quanto tempo você acha que ele tinha?

— Um ano, talvez. Talvez mais.

— Sabe me dizer se isso foi tratado?

— Não parece ter sido. Certamente, não com cirurgia. E não vejo sinal de quimio, nem de radioterapia. Pode ser que nunca tenha sido diagnosticado até então. Mas ele ia ficar sabendo logo, logo.


Bosch pensou em seus próprios pulmões. Há anos que havia parado de fumar, mas dizem que os danos acontecem no começo. Às vezes, de manhã, ele sentia os pulmões inchados e pesados no peito. Tivera um caso alguns anos antes que o levara a ter contato com uma dose elevada de radiação. Fizera os exames necessários e os médicos disseram que não fora afetado, mas no fundo nunca deixou de pensar ou espe¬rar que a exposição pudesse ter iniciado alguma coisa que talvez estivesse crescendo em seu peito. Bosch tirou o celular outra vez e novamente acionou a função de câmera. Curvou-se sobre a bandeja e bateu uma foto dos órgãos revirados.


— O que você está fazendo? Perguntou Laksmi.

— Quero mandar isso para uma pessoa. Verificou se a foto estava nítida o suficiente. Depois enviou-a para um e-mail.

— Quem? Não a família, espero.

— Não, para a minha filha.

— Sua filha? Havia um tom de indignação na voz dela.

— Ela precisa ver o que o cigarro pode fazer.

— Que beleza.


Ela não disse mais nada. Bosch guardou o celular e olhou o relógio. Era um relógio com dois mostradores, que lhe dizia a hora em Los Angeles e em Hong Kong, presente de sua filha após um sem-número de telefonemas mal calculados no meio da madrugada. Eram três e pouco em Los Angeles. Sua filha estava 15 horas adiantada, e dormindo. Iria se levantar para a escola dali a cerca de uma hora e então receberia a foto. Ele sabia que isso provocaria uma ligação de protesto por parte dela, mas até uma ligação assim era melhor que nenhuma. Ele sorriu com o pensamento e então voltou a se concentrar no trabalho. Estava pronto para ir embora.


— Obrigado, doutora, disse. — Para seu registro, estou levando a evidência balística para o laboratório forense.

— Você assinou o formulário?


Apontou uma prancheta na bancada e Bosch descobriu que ela já preenchera o relatório de trâmite de evidências. Bosch assinou na linha onde dizia que ele estava agora em posse das provas supracitadas. Dirigiu-se à porta da sala de autópsia.


— Me dê alguns dias para entregar isso por escrito, disse Laksmi. Ela se referia ao relatório formal da autópsia.

— Fechado, disse Bosch conforme passava pela porta.

* * *


Dez

ACAMINHO do laboratório, Bosh ligou para Chu e perguntou sobre as tatuagens.


— Eu ainda não traduzi, disse Chu.

— Como assim, você deu uma olhada?

— É, já olhei, mas não sei traduzir. Estou procurando alguém que saiba.

— Chu, vi você conversando com a Sra. Li. Você serviu de tradutor para ela.

— Bosch, só porque eu falo, não quer dizer que eu sei ler. Existem 8 mil símbolos chineses como esse. Todo o meu aprendizado foi em inglês. Eu falava chinês em casa. Nunca li.

— Ok, então tem alguém por aí que me consegue uma tradução? Aí é a Unidade de Crimes Asiáticos, não é?

— Unidade de Gangue Asiática. E sim, tem pessoas aqui que podem fazer isso, mas acontece que não estão por aqui agora. Assim que conseguir, eu ligo para você.

— Ótimo. Estou esperando.


Bosch desligou. Estava frustrado com a demora. Uma investigação tinha de se mover como um tubarão. Nunca perder o ímpeto, ou podia ser fatal. Olhou o relógio para saber a hora em Hong Kong, então parou junto à calçada e enviou a foto das tatuagens nos tornozelos para sua filha por e-mail. Ela receberia em seu celular, logo depois de ver a foto dos pulmões que ele lhe enviara. Satisfeito consigo mesmo, Bosch voltou ao trânsito. Estava ficando cada vez mais adepto das comunicações digitais graças à menina. Ela havia insistido em que se comunicassem por todos os meios modernos: e-mail, texto, vídeo, tentara até, inutilmente, fazer com que usasse uma coisa chamada Twitter. Ele, por sua vez, insistiu em que se comunicassem também pelo método antiquado, conversa verbal. Providenciou para que seus celulares fossem cobertos por planos de chamadas internacionais.


Conseguiu estar de volta no PAB em poucos minutos e foi direto para a unidade de Marcas de Instrumento e Balística, no quarto andar. Levou seus quatro saquinhos de evidências para um técnico chamado Ross Malone. Seu trabalho era pegar balas e cartuchos e usar para identificar a fabricação e o modelo dos quais eram provenientes. Mais tarde, na eventualidade da apreensão de uma arma, ele seria capaz de estabelecer a correspondência entre as balas e a arma por meio de testes e análises balísticas. Malone começou pelo cartucho, usando um par de pinças para removê-lo de seu invólucro e então segurá-lo sob uma lente de aumento de alta potência com um anel de iluminação. Examinou o objeto por um longo momento antes de falar.


— Nove milímetros Cor Bon, disse. — E você provavelmente está atrás de uma Glock. Bosch esperava que ele confirmasse o calibre e identificasse a marca do cartucho, mas ficou surpreso que dissesse o nome do fabricante da arma que disparara a bala.

— Como sabe disso?

— Dá só uma olhada.


Malone estava em um banquinho na frente da lente de aumento, que era presa a um braço ajustável fixo na bancada. Ele se moveu ligeiramente para o lado a fim de que Bosch pudesse olhar por cima de seu ombro. Segurava a ponta do cartucho sob a luz e a ampliação. Bosch conseguiu ler as palavras Cor Bon gravadas na beirada externa da cápsula. No centro havia uma depressão feita quando o percussor da arma atingira a espoleta, disparando a bala.


— Está vendo como a marca é alongada, quase retangular? Perguntou Malone.

— É, estou vendo.

— Isso é da Glock. Só Glocks têm esse retângulo, porque o percussor é retangular. Então você está atrás de uma Glock nove milímetros. Eles têm um monte de modelos diferentes que se encaixam.

— Ok, já ajuda. Mais alguma coisa? Malone voltou a pôr a lente diante de si e virou o cartucho de bala sob ela.

— Tem marcas nítidas do extrator e do ejetor aqui. Traga-me a arma que eu acho que consigo estabelecer a correspondência.

— Assim que eu encontrar. E quanto às balas?


Malone pôs o cartucho de volta no saquinho plástico, pegou as balas uma por uma e as examinou sob a lente. Deu uma olhada rápida em cada uma antes de passar à seguinte. Então voltou à segunda e deu mais uma olhada. Depois balançou a cabeça.


— Não servem para muita coisa. Não estão em grandes condições. O cartucho vai ser a melhor coisa para fazer uma comparação. Como eu disse, traz a arma que eu faço a correspondência.


Bosch percebeu que o último ato de John Li ganhava cada vez mais importância. Perguntou-se se o velho teria feito alguma ideia de como acabaria sendo importante. A contemplação muda de Bosch levou Malone a falar.


— Você tocou nessa cápsula, Harry?

— Não, mas a Dra. Laksmi do escritório do legista usou água para lavar o sangue. Esse cartucho foi encontrado dentro da vítima.

— Dentro? Impossível. Não tem como isso ir parar...

— Não estou dizendo que ele foi baleado com isso. Ele tentou engolir. Estava na garganta dele.

— Ah. Então é diferente.

— É.

— E Laksmi devia estar usando luva quando encontrou.

— Claro. O que foi, Ross?

— Bom, eu estava pensando. Recebi uma circular há mais ou menos um mês do pessoal das impressões latentes. Dizia que a gente logo poderia começar a usar algum método ultramoderno, eletro-não-sei-das-quantas, para identificar impressões no latão dos cartuchos, e estavam atrás de casos para testar. Você sabe, para usar no tribunal.


Bosch encarou Malone. Em todos aqueles anos trabalhando como detetive, nunca ouvira falar de impressões digitais sendo colhidas em um cartucho ejetado da câmera de uma arma de fogo. Impressões digitais eram compostas de óleos emitidos através da pele. Elas queimavam um milissegundo após a explosão na câmera.


— Ross, tem certeza de que você está falando de cartuchos usados?

— É, era isso que dizia. Teri Sopp é a técnica por lá mexendo com isso. Por que não vai falar com ela?

— Me devolve o cartucho que eu vou.


Quinze minutos depois, Bosch estava com Teri Sopp no laboratório de impressões latentes da Divisão de Investigação Científica. Sopp era uma especialista das antigas e estava por lá havia quase tanto tempo quanto Harry. Os dois se tratavam em termos amigáveis, mas Bosch ainda assim achava que tinha de usar de tato com ela se queria que colaborasse.


— Harry, o que você conta de novo? Era assim que sempre cumprimentava Bosch.

— Novidade nenhuma. Peguei um caso ontem lá no sul e hoje recuperei um cartucho de bala da arma do assassino.


Bosch ergueu a mão, segurando o saquinho de evidências que continha a cápsula. Sopp pegou, segurou diante do rosto e entrecerrou os olhos conforme examinava o cartucho através do plástico.


— Ejetada?

— Isso. Sei que é um tiro no escuro, mas eu esperava que talvez tivesse uma impressão aí. Não tem muito mais coisa acontecendo no caso, nesse momento.

— Bom, vamos ver. Normalmente precisa esperar a sua vez, mas como a gente já passou por cinco chefes de polícia juntos...

— Foi por isso que eu procurei você, Teri.


Sopp sentou diante de uma mesa de exames e, como Malone, usou um par de pinças para tirar o cartucho do saquinho de evidências. Primeiro ela o vaporizou com cianoacrilato e então o segurou sob a luz ultravioleta. Bosch observava por cima de seu ombro e obteve uma resposta antes mesmo de Sopp proferi-la.


— Tem uma marca aqui. Parece que alguém manuseou depois que ela foi disparada. Mas é só isso.

— Merda. Bosch imaginou que a marca muito provavelmente fora deixada no cartucho quando John Li o pegou para enfiar na boca.

— Sinto muito, Harry. Os ombros de Bosch afundaram. Ele sabia que era um tiro no escuro, ou talvez nem tiro nenhum, mas esperava transmitir a Sopp a urgência com que contava em obter uma digital. Sopp começou a guardar o cartucho de volta no pequeno envelope plástico.

— A Marcas de Instrumento já deu uma olhada nisso?

— Já, acabei de voltar de lá. Ela balançava a cabeça. Bosch percebeu que estava pensando em alguma outra coisa.

— Harry, me fala sobre o caso. Passe-me os parâmetros.


Bosch resumiu o caso, mas deixou de fora os detalhes sobre o suspeito que haviam obtido com o vídeo de segurança. Fez parecer que a investigação estava quase na estaca zero. Sem provas, sem suspeito, sem nenhuma outra motivação além do mero roubo. Um beco sem saída.


— Bom, tem uma coisa que talvez a gente consiga fazer, disse Sopp.

— O que é?

— A gente pretende lançar um comunicado sobre isso mais para o final do mês. Estamos nos preparando para começar com o realce eletrostático. Esse talvez seja um bom primeiro caso para nós.

— Que diabos é realce eletrostático? Sopp sorriu como a criança que ainda tem doce depois que o de todo mundo já acabou.

— É um processo desenvolvido na Inglaterra pela polícia de ¬Northamptonshire, em que eles fazem aparecer as digitais em superfícies de latão, como cartuchos de bala, usando eletricidade.


Bosch olhou em torno, viu um banquinho vazio em uma das outras bancadas de trabalho e o arrastou até lá. Sentou.


— Como funciona?

— Ok, o negócio é o seguinte. Quando você carrega balas em um revólver ou no pente de uma automática, é um processo preciso. Você segura cada bala entre os dedos e empurra. Você aplica uma pressão. Seria o cenário perfeito para alguém deixar digitais, certo?

— Bom, até a arma ser disparada.

— Exatamente. Uma impressão latente é essencialmente um depósito de suor que se acumula entre os sulcos de uma digital. O problema é que quando uma arma é disparada e o cartucho ejetado, a impressão latente normalmente desaparece na explosão. É raro você extrair uma digital de uma cápsula usada, a menos que pertença à pessoa que a apanhou no chão depois.

— Tudo isso eu sei, disse Bosch. — Quero ouvir uma novidade.

— Tá, tá. Bom, esse processo funciona melhor se a arma não é disparada imediatamente. Em outras palavras, para que esse processo seja bem-sucedido, é preciso haver uma situação em que talvez a bala estivesse carregada na arma, mas depois ficasse ali pelo menos alguns dias. Quanto mais tempo, melhor. Porque se ela fica ali dentro, o suor que forma a impressão latente está reagindo com o latão. Está entendendo?

— Você quer dizer, uma reação química.

— Uma reação química microscópica. O seu suor é composto de um monte de coisas diferentes, mas na maior parte por cloreto de sódio: sal. Ele reage com o latão, corroendo o metal, e deixa uma marca. Mas que simplesmente não conseguimos ver.

— E a eletricidade permite que você veja.

— Exatamente. A gente passa uma carga de 2.500 volts pelo cartucho, pulveriza com carbono e depois olha. Já fizemos inúmeros experimentos até agora. Já vi funcionar. Foi inventado por esse sujeito, um tal de Bond, na Inglaterra. Bosch começou a se empolgar.

— Então por que a gente não faz isso? Sopp abriu os dedos, num gesto pedindo paciência.

— Opa, calma lá, Harry. A gente não pode simplesmente ir fazendo.

— Por que não? O que vocês estão esperando, uma cerimônia de corte de fita com a presença do chefe ou algo assim?

— Não, nada disso. Esse tipo de evidência e procedimento ainda não foi introduzido na justiça da Califórnia. Estamos trabalhando com o promotor na elaboração dos protocolos e ninguém quer empregar isso pela primeira vez em um caso se não for favas contadas. A ¬gente precisa pensar no futuro. Quando usarmos esse procedimento pela primei¬ra vez como evidência, isso vai abrir o precedente. Se não for o caso certo, o tiro vai sair pela culatra e será um verdadeiro retrocesso para nós.

— Bom, talvez o caso seja esse. Quem decide?

— Primeiro vai depender do Brenneman pegar ou não o caso e depois a gente leva para o promotor.


Chuck Brenneman era o comandante da Divisão de Investigação Científica. Bosch percebeu que o processo de escolha do primeiro caso ia levar semanas, se não meses.


— Olha, você disse que o pessoal aqui vem fazendo experiências com isso, certo?

— É, a gente precisa ter certeza de que sabe o que está fazendo.

— Ótimo, então experimenta com esse cartucho. Vamos ver o que aparece.

— A gente não pode, Harry. Estamos usando balas de festim num experimento controlado.

— Teri, eu preciso disso. Pode ser que não haja nada aí, mas volto a repetir, a impressão do assassino talvez esteja nesse cartucho. Vocês podem descobrir. Sopp pareceu se dar conta de que fora acuada por alguém que não iria desistir.

— Tudo bem, escuta. A próxima série de experimentos está programada só para a semana que vem. Não posso prometer nada, mas vou ver o que dá para fazer.

— Obrigado, Teri.


Bosch preencheu o formulário do trâmite de evidências e deixou o laboratório. Estava empolgado com a possibilidade de usar a nova ciência para possivelmente obter a digital do assassino. Para ele, chegava quase a parecer que John Li soubera sobre o realce eletrostático o tempo todo. O pensamento fez correr um tipo de eletricidade diferente pela espinha de Bosch.


Conforme descia do elevador no quinto andar, ele olhou seu relógio e viu que era hora de ligar para a filha. Ela estaria andando pela Stubbs Road rumo à Happy Valley Academy. Se não conseguisse falar com ela agora, teria de esperar até o fim das aulas. Parou no corredor diante da sala da delegacia, tirou o celular e apertou uma discagem rápida. A ligação transoceânica levou trinta segundos para conectá-lo ao outro lado do Pacífico.


— Pai! Que negócio é esse de me mandar foto de gente morta? Ele sorriu.

— Oi para você também. Como sabe que o cara está morto?

— Hmm, deixa eu ver. Meu pai é investigador de homicídios e me manda uns pés descalços numa mesa de aço. E a outra foto? Os pulmões do cara? Isso é nojento!

— Ele era fumante. Achei que você devia ver aquilo. Houve um momento de silêncio e então ela falou muito calmamente. Sua voz não soou nem um pouco juvenil, agora.

— Pai, eu não fumo.

— É, bom, sua mãe me disse que, quando você sai com as suas amigas no shopping, você chega em casa com cheiro de fumaça.

— É, pode até ser, mas não é verdade que eu fumo com elas.

— Então com quem você fuma?

— Pai, eu não fumo! O irmão mais velho da minha amiga sai junto às vezes para ser a babá dela. Eu não fumo, nem He.

— He? Achei que você tivesse dito que era uma amiga, disse Bosch, confuso pelo som do pronome inglês “ele”.

— He é ela. He é um nome. Quer dizer “rio”. Ela pronunciou o nome novamente, dessa vez caprichando no sotaque chinês. O som era algo como He-yuh.

— Então por que você não chama ela de River?

— Porque ela é chinesa, então eu chamo pelo nome dela em chinês.

— Isso é muito Abbott e Costello. Chamar ela de Ele.

— Abbott e o quê? Bosch deu uma risada.

— Deixa para lá. Esquece os pulmões, Maddie. Se você me diz que não fuma, eu acredito. Mas não foi por isso que eu liguei. As tatuagens nos tornozelos, você consegue ler?

— Consigo, é nojento. Tem os pés de um cara morto no meu telefone.

— Bom, você pode deletar assim que me disser o que as tatuagens significam. Sei que você estuda esse negócio na escola.

— Não vou deletar. Vou mostrar para os meus amigos. Eles vão achar bacana.

— Não, não faz isso. É parte de uma investigação em que estou trabalhando e ninguém mais deveria ver. Mandei para você porque achei que podia me fazer uma tradução rápida.

— Está me dizendo que em todo o DPLA não tem uma pessoa capaz de traduzir para você? Você teve que ligar para sua filha em Hong Kong para uma coisa tão simples?

— No momento, é assim mesmo. Você precisa fazer isso. Sabe o que esses símbolos significam ou não sabe?

— Sei, pai. Muito fácil.

— Bom, o que é?

— É como um biscoitinho chinês. No tornozelo esquerdo os símbolos são Fu e Cai, que quer dizer “sorte” e “dinheiro”. E no lado direito tem Ai e Xi, que quer dizer “amor” e “família”.


Bosch pensou a respeito. Pareceu-lhe que os símbolos eram coisas importantes para John Li. Sua intenção devia ser que aquilo sempre o acompanhasse aonde fosse. Então pensou no fato de que os símbolos estavam localizados nas laterais do tendão de aquiles. Talvez Li tivesse feito as tatuagens ali intencionalmente, percebendo que as coisas com que mais sonhava também eram o que o tornava vulnerável. Eram um calcanhar de aquiles para ele também.


— Alô, pai?

— Oi, estou aqui. Só estou pensando.

— Bom, ajudou em alguma coisa? Resolvi o caso? Bosch sorriu, mas percebeu na mesma hora que ela não tinha como ver sua reação.

— Não totalmente, mas ajudou.

— Ótimo. Você me deve uma. Bosch balançou a cabeça.

— Você é uma menina muito inteligente, viu? Com quantos anos está agora? Tinha 13 e acordou com 20, de repente?

— Ai, pai, dá um tempo.

— Bom, a sua mãe deve estar fazendo alguma coisa direito.

— Não muita.

— Ei, isso não é jeito de falar dela.

— Pai, você não é obrigado a morar com ela. Eu sou. E é bem chato. Falei para você quando fui para Los Angeles.

— Ela ainda está namorando?

— Tá, e eu já não existo mais.

— Não é assim, Maddie.

— Pai, não fica do lado dela. Para ela, eu só estou no caminho o tempo todo. Mas quando eu falo, tá, então vou morar com o papai, ela diz: de jeito nenhum.

— O certo é você ficar com a sua mãe. Ela te criou. Olha, daqui a um mês eu vou passar uma semana aí. A gente pode conversar sobre essa coisa toda, então. Com a sua mãe.

— Tanto faz. Preciso ir. Cheguei na escola.

— Tudo bem. Diz para Ele que é uma ela que eu mandei um alô.

— Hilário, pai. Só não me manda mais nenhuma foto de pulmão, viu?

— Da próxima vez eu mando um fígado. Ou um baço, quem sabe. Baço é muito fotogênico.

— Paaaai!


Ele fechou o telefone e a deixou em paz. Pensou no que havia sido dito durante a conversa. Parecia-lhe que as semanas e os meses entre uma e outra visita a Maddie estavam ficando mais difíceis. Conforme ela se tornava uma pessoa com ideias próprias e ficava cada vez mais esperta e comunicativa, seu amor por ela crescia e também sua saudade. Ela acabara de viajar para Los Angeles em julho, voando o longo percurso sozinha pela primeira vez. Mal uma adolescente e já uma viajante do mundo, sabendo mais coisas do que condizem com a sua idade. Ele havia tirado licença do trabalho e os dois passaram duas semanas fazendo coisas juntos, explorando a cidade. Fora um período maravilhoso para ele e, no fim, foi a primeira vez que ela mencionou querer morar em Los Angeles. Com ele.


Bosch tinha inteligência suficiente para perceber que esses sentimentos eram externalizados após duas semanas de atenções em tempo integral de um pai que começava todos os dias perguntando o que ela queria fazer. Muito diferente do compromisso em tempo integral da mãe, que a criava no dia a dia ao mesmo tempo em que trabalhava pelo sustento de ambas. Mesmo assim, o dia mais difícil para Bosch enquanto pai das horas vagas foi aquele em que levou sua filha ao aeroporto para voltar sozinha no avião. Ele meio que esperou que ela virasse e ¬saísse correndo, mas Maddie embarcou sob protestos e partiu. Desde então, havia uma sensação de vazio em seu peito que nunca o abandonava. Agora suas próximas férias e a viagem para Hong Kong não estavam programadas senão para dali a um mês, e ele sabia que seria uma espera longa e penosa.


— Harry, o que você está fazendo aqui no corredor? Bosch virou. Seu parceiro, Ferras, estava ali parado após deixar a sala da delegacia, provavelmente para usar o banheiro.

— Estava conversando com a minha filha. Eu queria um pouco de privacidade.

— Ela está bem?

— Está ótima. Encontro você lá dentro.


Bosch se dirigiu à porta, guardando o telefone de volta no bolso.


* * *


Onze

BOSCH VOLTOU para casa às oito da noite, entrando pela porta com um saco de embalagem para viagem do In-N-Out, na Cahuenga.


— Querida, cheguei, exclamou enquanto lutava com a fechadura, o saco de papel e sua pasta.


Sorriu para si mesmo e foi direto para a cozinha. Pôs a pasta em cima do balcão, pegou uma garrafa de cerveja na geladeira e foi para o deque. No caminho, ligou o aparelho de CD, deixando a porta de correr aberta, de modo que a música no terraço se misturava com o som da 101 Freeway no fundo do desfiladeiro mais abaixo. O deque ficava voltado para o nordeste, com vista para a Universal City, Burbank e abrangendo até as montanhas San Gabriel. Harry comeu seus dois hambúrgueres, segurando-os sobre o saco aberto, para não sujar a roupa, e observou o pôr do sol mudar as cores nas encostas montanhosas. Estava ouvindo Seven Steps to Heaven, do álbum Dear Miles de Ron Carter. Carter era um dos baixistas mais importantes das últimas cinco décadas. Havia tocado com todo mundo e Bosch muitas vezes se perguntava que histórias não teria para contar sobre as sessões de jazz de que participara e os músicos que conhecera. Fosse em seus próprios discos ou no de algum outro, Carter sempre se sobressaía. Harry achava que isso era porque um baixista nunca podia ser apenas um coadjuvante, de fato. Era sempre o lastro. Sempre conduzia a batida, mesmo que estivesse atrás do trompete de Miles Davis.


A canção que tocava nesse instante transmitia uma inegável sensação de movimento. Como uma perseguição de carro. Fez com que Bosch refletisse sobre sua própria perseguição e os progressos obtidos ao longo do dia. Estava satisfeito com seus movimentos, mas pouco à vontade com a ideia de que levara o caso a um ponto em que, agora, ficava dependente do trabalho de outros. Precisaria esperar que outras pessoas identificassem o extorsionário da tríade. Precisaria esperar que outras pessoas decidissem se usariam o cartucho de bala como test case para um precedente na nova tecnologia de impressões digitais. Precisaria esperar que alguém ligasse.


Bosch ficava mais à vontade nos casos em que era ele quem punha as coisas em funcionamento, abrindo caminho para que os outros o seguissem. Não era um coadjuvante. Precisaria conduzir a batida. E, no ponto em que estava, chegara o mais longe que podia. Começou a pensar em seus próximos passos e as opções eram restritas. Podia começar a procurar lojistas chineses em South L.A. com a foto do membro da tríade. Mas sabia que, muito provavelmente, isso nada mais seria que um exercício fútil. O abismo cultural era grande. Ninguém identificaria de livre e espontânea vontade um homem da tríade para a polícia. Mesmo assim, estava preparado para seguir por essa via se nada mais aparecesse em pouco tempo. Pelo menos ajudaria a se manter em ação. Nada substitui o fato de estar em movimento, quer você o encontre na música, na rua ou nas batidas de seu coração.


Quando a luz desaparecia do céu, Bosch enfiou a mão no bolso e pegou os fósforos que sempre carregava. Abriu a caixinha com o polegar e leu a sorte. Desde a noite em que a lera pela primeira vez, ele a levara a sério. Acreditava ser um homem que encontrara refúgio em si mesmo. Com o tempo, pelo menos. Seu celular tocou quando mastigava o último pedaço. Tirou o celular e olhou para o visor. A identidade estava bloqueada, mas atendeu mesmo assim.


— Bosch.

— Harry, David Chu. Pelo jeito você está comendo. Onde você está? Sua voz estava tensa de empolgação.

— Estou em casa. E você?

— Monterey Park. Pegamos ele!


Bosch parou por um momento. Monterey Park era uma cidade no condado leste onde quase três quartos da população eram chineses. A 15 minutos do centro, era como um país estrangeiro com língua e cultura impenetráveis.


— Quem você pegou? Ele perguntou finalmente.

— Nosso homem. O suspeito.

— Quer dizer que conseguiu uma identificação?

— Nós conseguimos mais que uma identificação. Conseguimos o próprio cara. Estou olhando para ele. Havia diversas coisas no que Chu dizia que incomodaram Bosch na mesma hora.

— Primeiro de tudo, nós quem?

— Estou aqui com o Departamento de Polícia de Monterey Park (DPMP). Eles identificaram nosso cara do vídeo e então me trouxeram direto até ele.


Bosch podia sentir os batimentos em sua têmpora. Sem dúvida, conseguir a identificação do membro da tríade, se isso fosse legítimo, era um grande passo na investigação. Mas tudo mais que ele estava ouvindo não era. Trazer outro departamento de polícia para dentro do caso e agir para pegar o suspeito eram erros potencialmente fatais e jamais deveriam ter sido sequer levados em consideração sem o conhecimento e o aval do investigador-chefe. Mas Bosch sabia que não podia estrilar com Chu. Ainda não. Precisaria permanecer calmo e fazer seu melhor para conter uma situação ruim.


— Detetive Chu, escute muito bem o que eu vou falar. Você fez contato com o suspeito?

— Contato? Não, ainda não. Estamos esperando o momento certo. Ele não está sozinho, agora. “Graças a Deus por isso”, Bosch pensou mas não disse.

— O suspeito viu vocês?

— Não, Harry, estamos do outro lado da rua. Bosch exalou um pouco mais de ar. Estava começando a achar que a situação talvez pudesse ser salva do desastre.

— Ok, quero que espere onde está e me diga que medidas vocês já tomaram e onde exatamente estão. Como chegaram em Monterey Park?

— A UGA tem um relacionamento muito próximo com a unidade de gangues de Monterey Park. Hoje à noite, depois do trabalho, eu trouxe a foto do nosso cara para ver se alguém reconhecia. Consegui uma identificação positiva com o terceiro para quem mostrei.

— O terceiro. Quem era esse?

— O detetive Tao. Estou com ele e o parceiro dele bem agora.

— Ok, me dá o nome que você conseguiu.

— Bo-Jing Chang. Ele soletrou o nome.

— Então o último nome é Chang? Perguntou Bosch.

— Isso. E segundo o serviço de informações deles, faz parte da Yung Kim: Faca Corajosa. Confere com a tatuagem.

— Ok, e o que mais?

— Por enquanto é só. Possivelmente é um membro de escalão inferior. Todos esses caras têm empregos de verdade. Ele trabalha em um pátio de carros usados aqui em Monterey Park. Está aqui desde 1995 e tem cidadania dupla. Nenhum registro de prisão, pelo menos não aqui.

— E você tem uma localização positiva do suspeito?

— Estou vendo o cara jogar cartas. A Faca Corajosa fica na maior parte centralizada aqui em MP. E tem um clube aqui onde eles gostam de se reunir no fim do dia. Tao e Herrera me trouxeram. Bosch presumiu que Herrera fosse o parceiro de Tao.

— Você disse que está do outro lado da rua?

— Isso, o clube fica num centrinho comercial. Estamos do outro lado da rua. Dá para ver eles jogando cartas. A gente consegue ver o Chang com o binóculo.

— Ok, escuta, estou indo para aí. Quero que recue até eu chegar. Se afaste pelo menos um quarteirão. Houve uma longa pausa antes de Chu responder.

— A gente não precisa recuar, Harry. Se a gente perder a pista dele, pode ser que escape.

— Olha, detetive, preciso que vocês recuem. Se ele escapar, eu vou responder por isso, não você. Não quero arriscar que ele note a presença da polícia.

— Estamos do outro lado da rua, protestou Chu. — São quatro faixas de pista.

— Chu, você não está escutando. Se conseguem ver ele, então ele consegue ver vocês. Sai logo daí, porra. Quero que vocês se movam pelo menos um quarteirão para longe e me esperem. Chego aí em menos de meia hora.

— Isso vai ser meio constrangedor de dizer, disse Chu quase num sussurro.

— Não estou nem aí para o que vai ser. Se você tivesse procedido do modo certo, teria me ligado no momento em que conseguiu uma identificação. Em vez disso, está aí pondo meu caso em risco e quero que pare com isso antes de foder com tudo.

— Você entendeu errado, Harry. Eu liguei para você.

— É, bom, fico agradecido. Agora recua. Vou ligar quando estiver perto. Qual o nome do lugar? Após uma pausa, Chu respondeu numa voz amuada.

— É Club 88. Fica na Garvey, umas quatro quadras a oeste de Garfield. Pega a dez indo para...

— Sei como chegar. Estou indo.


Ele fechou o telefone para encerrar qualquer discussão ou questionamento posterior. Chu fora avisado. Se não saísse dali ou não conseguisse controlar os dois policiais de Monterey Park, então ia se haver com Bosch num processo de queixa interna.


* * *


Doze

HARRY ESTAVA fora do prédio em dois minutos. Ele desceu a encosta das colinas e depois tomou a 101 de volta através de Hollywood na direção do centro. Entrou na 10 e seguiu para o leste. Monterey Park ficava a dez minutos dali, com trânsito leve. No caminho, Bosch ligou para Ignácio Ferras em casa, deixou-o a par do que estava acontecendo e lhe ofereceu a oportunidade de se encontrarem em Monterey Park. Ferras recusou o convite, dizendo que seria melhor que um deles estivesse inteiro no dia seguinte de manhã. Além do mais, estava até o pescoço com a análise forense dos aspectos financeiros envolvidos no caso, tentando determinar em que medida os negócios iam mal para Li e até onde podia ter se envolvido com a tríade.


Bosch concordou e fechou o celular. Já esperava que o parceiro se recusasse a ir. Seu medo das ruas estava ficando cada vez mais evidente, e Bosch já chegara ao limite da paciência, esperando que superasse o problema. Mas Ferras parecia se desdobrar para encontrar trabalhos que pudessem ser feitos dentro da sala da delegacia. Papeladas, computadores e levantamentos financeiros haviam se tornado suas especialidades. Muitas vezes Bosch precisaria recrutar outros detetives para acompanhá-lo em missões externas, nem que fossem missões simples como interrogar testemunhas. Bosch fizera todo o possível para dar tempo a Ferras de se recuperar, mas a situação chegara a um ponto em que precisaria levar em consideração as vítimas que não estavam dispondo do respaldo que deveriam. Era difícil conduzir uma investigação sem trégua quando seu parceiro ficava atrelado a uma cadeira de escritório.


Garfield era, na maior parte, um corredor norte-sul, e ele tinha plena visão do distrito comercial da cidade conforme rumava para o sul. Monterey Park podia facilmente passar por um bairro de Hong Kong. Os neons, as cores, as lojas e a língua das placas eram dirigidos a uma população falante de chinês. A única coisa faltando eram as torres dos edifícios se esticando céu adentro. Hong Kong era uma cidade vertical. Monterey Park, não. Ele dobrou à esquerda na Garvey e pegou seu celular para ligar para Chu.


— Certo, estou na Garvey. Onde vocês estão?

— Continua vindo e você vai ver o hipermercado no lado sul. A gente está no estacionamento. Você vai passar pelo clube no lado norte antes de chegar aqui.

— Entendi.


Ele fechou o celular e continuou dirigindo, seus olhos esquadrinhando os anúncios em neon do lado esquerdo. Não demorou a ver o 88 vermelho brilhando sobre a porta de um pequeno clube sem nenhum outro sinal de identificação. Ver o número em lugar de ouvi-lo sendo dito por Chu fez cair a ficha. Não era o endereço do lugar. Era uma invocação. Bosch sabia, por sua filha e suas inúmeras visitas a Hong Kong, que 8 era um número da sorte na cultura chinesa. O número simbolizava o infinito, sorte infinita, amor infinito, dinheiro infinito ou seja lá o que você desejar para sua vida. Aparentemente, os membros da Faca Corajosa almejavam infinito em dobro pondo um 88 acima de sua porta.


Quando passou em seu carro, viu luzes acesas atrás da vitrine de vidro laminado. As persianas estavam ligeiramente abertas e Bosch pôde ver cerca de dez homens sentados e de pé em torno de uma mesa. Harry continuou andando e três quadras depois entrou no estacionamento do Big Lau Super Market. Viu um Crown Victoria modelo oficial no canto mais afastado do pátio. Parecia novo demais para ser do DPLA e então imaginou que Chu estava de carona com o DPMP. Estacionou na vaga ao lado dele.


Todos abaixaram suas janelas e Chu fez as apresentações do banco de trás. Herrera estava ao volante e Tao ia no banco do passageiro. Nenhum dos dois policiais de Monterey Park chegava perto de 30 anos, mas isso era de se esperar. As delegacias pequenas nas cidades em torno de Los Angeles funcionavam como departamentos tributários do DPLA. Os policiais começavam cedo, passavam por alguns anos de experiência e então se candidatavam ao DPLA ou ao L.A. County Sheriff’s Department, onde portar um distintivo era visto como mais glamoroso e emocionante e a experiência suplementar lhes dava um feeling interno.


— Foi você quem identificou Chang? Bosch perguntou a Tao.

— Isso mesmo, disse o rapaz. — Eu parei ele numa batida faz uns seis meses. Quando Davy chegou com a foto, eu lembrei.

— Onde foi isso? Enquanto Tao falava, seu parceiro ficava vigiando o Club 88 no fim da rua. Ocasionalmente ele erguia seus binóculos para checar mais de perto quem saía ou entrava.

— Cruzei com ele no bairro dos armazéns no fim da Garvey. Era tarde e ele estava dirigindo uma van. Parecia perdido. Ele deixou a gente olhar e a van estava vazia, mas imaginei que ia pegar uma carga ou algo assim. Um monte de produtos falsificados passa por aqueles depósitos. É fácil se perder ali porque tem muitos e todos parecem iguais. Além do mais, a van não era dele. Estava registrada em nome de Vincent Tsing. Ele mora em South Pasadena, mas é um membro conhecido da Faca Corajosa. É um rosto familiar. Tem um estacionamento de carros aqui em Monterey Park e Chang trabalha para ele.


Bosch entendeu o procedimento. Tao ordenara à van que encostasse, mas, sem nenhum motivo provável para dar uma busca ou prender Chang, ficou confiante que Chang acabaria se entregando. Preencheram o Field Interview (FI), o formulário de depoimento no local da ocorrência, com a informação que ele forneceu e verificaram a traseira da van após sua permissão.


— E daí, ele simplesmente foi entregando que era da tríade Faca Corajosa?

— Não, disse Tao, indignado. — A gente notou a tatuagem e o proprietário do veículo. Foi só juntar dois mais dois, detetive.

— Perfeito. Ele tinha carteira de motorista?

— Tinha. Mas já checamos o endereço agora há pouco. Não bate. Ele se mudou.


Bosch lançou um olhar de esguelha para Chu, no banco traseiro. Isso significava que, se o endereço na carteira de motorista de Chang tivesse sido o certo, eles provavelmente já teriam se encontrado com o suspeito sem Bosch. Chu desviou o rosto do olhar de Bosch, que se segurou e tentou ficar frio. Se explodisse com eles, perderia toda a cooperação e o caso iria sofrer por causa disso. Ele não queria isso.


— Você está com o cartão de batida com você? Perguntou a Tao.


Tao passou um cartão 3 x 5 pela janela para Bosch. Harry acendeu a luz no teto e leu a informação escrita à mão. Desde que os interrogatórios no local da ocorrência passaram a ser contestados, ao longo dos anos, por grupos de direitos civis como batidas sem mandado, os FIs preenchidos pelos policiais se tornaram universalmente conhecidos como “cartões de batida”.


Bosch examinou a informação sobre Bo-Jing Chang. A maior parte daquilo já fora passada a ele. Mas Tao conduzira um depoimento local muito detalhado. Havia um celular marcado no cartão. Era um momento crucial na investigação.


— Esse número funciona?

— Não sei mais; esses caras vivem jogando os celulares fora. Mas na hora funcionava. Liguei ali mesmo para ter certeza de que ele não estava bancando o malandro. Então só posso dizer que na hora funcionava.

— Ok, precisamos confirmar.

— Você vai ligar pro cara sem mais nem menos e perguntar, e aí, tudo bem?

— Não, você vai. Bloqueia sua identidade e liga para o número em cinco minutos. Se ele atender, fala que foi engano. Empreste-me esse binóculo por favor, e Davy, você vem comigo.

— Espera só um minuto, disse Tao. — Por que a gente vai ficar brincando com os telefones?

— Se o número for bom, a gente vai atrás de um grampo. Dê-me o binóculo. Liga quando eu estiver observando para a gente confirmar, entendeu?

— Claro.


Bosch devolveu o cartão de batida para Tao e pegou o binóculo. Chu desceu do carro em que estava, deu a volta no carro de Bosch e entrou. Bosch se afastou de Garvey e saiu na direção do Club 88. Esquadrinhou os vários pátios de estacionamento, procurando um lugar próximo o bastante.


— Onde vocês estavam parados antes?

— Ali na frente, na esquerda. Ele apontou um estacionamento e Bosch entrou, fez a volta e desligou as luzes enquanto estacionava em uma vaga de frente para o Club 88, do outro lado da rua.

— Segura o binóculo e vê se ele atende o celular, falou para Chu. Enquanto Chu se concentrava em Chang, Bosch examinou toda a visão do clube, procurando qualquer um que pudesse estar olhando pela janela na direção deles.

— Qual deles é o Chang? Perguntou.

— Ele está do lado esquerdo, perto do cara com chapéu. Bosch viu quem era. Mas estava longe demais para que confirmasse Chang como o homem no vídeo da Fortune Liquors.

— Você acha mesmo que é ele ou está simplesmente indo pela identificação de Tao? Perguntou.

— Não, a identificação foi certeira, disse Chu. — É ele. Bosch olhou seu relógio. Herrera deveria ter feito a ligação. Estava ficando cada vez mais impaciente. — Mas o que a gente está fazendo, afinal? Perguntou Chu.

— Estamos construindo um caso, detetive. A gente confirma o número, depois vai atrás de um mandado para grampear. A gente escuta o cara e descobre coisas. Com quem ele conversa, o que anda tramando. Talvez peguemos ele falando sobre Li. Talvez não, e a gente dá um susto nele e vê para quem ele telefona. Começa a fechar o cerco. O importante é ir com calma e fazer direito. Não dá para entrar na cidade a cavalo dando tiro para todo canto. Chu não respondeu. Mantinha os binóculos colados nos olhos. — Me diz uma coisa, disse Bosch. — Você confia nesses dois, Tao e Herrera? Chu não hesitou.

— Confio. Você não?

— Não conheço eles, então não posso confiar. Tudo que sei é que você pegou meu caso e meu suspeito e saiu mostrando pelo departamento de polícia inteiro.

— Olha, eu estava tentando fazer a investigação andar e consegui. A gente identificou o cara.

— É, identificamos o cara e vamos rezar para que o suspeito não descubra isso. Chu baixou o binóculo e olhou para Bosch.

— Acho que você só ficou puto da vida porque não foi você.

— Não, Chu, não ligo para quem faz a investigação andar, contanto que ela seja tratada do jeito certo. Mostrar as cartas que eu tenho na manga para pessoas que eu não conheço não é minha ideia de uma boa condução investigativa.

— Cara, você não confia em ninguém?

— Vigia o clube e fica quieto, respondeu Bosch duramente. Chu voltou a olhar no binóculo, como ele mandou. — Em mim eu confio, disse Bosch.

— Só fico imaginando se isso não tem a ver comigo e com o Tao. Se não é esse o problema.


Bosch virou para ele.


— Não começa com essa merda outra vez, Chu. Não estou nem aí pro que você imagina. Pode voltar para UGA e cair fora do meu caso. Nem fui eu que mandei te chamar, para começo de...

— Chang acabou de atender. Bosch olhou para o clube. Achou ter visto o homem que Chu identificara como Chang com um celular no ouvido. Logo depois baixou o braço.

— Ele desligou, disse Chu. — O número é esse. Bosch deu ré na vaga e começou a voltar para o supermercado. — Ainda não entendi por que a gente fica nessa brincadeira de celular, disse Chu. — Por que a gente não vai lá de uma vez e prende o cara? Temos ele gravado. O mesmo dia, a mesma hora. A gente usa isso para fazer ele se entregar.

— E se ele não se entregar? A gente não tem nada. A promotoria ia rir da nossa cara e dar um pé na nossa bunda se a gente aparecesse só com a gravação. A gente precisa de mais coisa. É isso que estou tentando ensinar para você.

— Não preciso de nenhum professor, Bosch. E ainda acho que a gente pode fazer ele falar.

— Tá, vai para casa assistir um pouco mais de tevê. Por que diabos ele ia dizer uma palavra para gente? Esses caras aprendem a lição no primeiro dia que entram: se te pegarem, fecha o bico. Se for em cana, vai em cana que a gente cuida de você.

— Você me disse que nunca tinha trabalhado numa investigação da tríade antes.

— E não trabalhei, mas algumas coisas não mudam e essa é uma delas. Você só tem uma chance nesses casos. Não pode errar.

— Tá, então a gente faz do seu jeito. E agora?

— A gente volta para o estacionamento e libera os seus amigos. De agora em diante é com a gente. É nosso caso, não deles.

— Eles não vão gostar disso.

— Não me interessa se vão gostar ou não. É assim que vai ser. Você pensa num jeito educado de se livrar deles. Fala que a gente chama de novo quando estiver pronto para agir.

— Eu?

— Isso, você. Você convidou, você desconvida.

— Obrigado, Bosch.

— Não tem de quê, Chu. Bem-vindo à Homicídios.


* * *


Treze

BOSCH, Ferras e Chu sentaram na beirada da mesa de reuniões diante do tenente Gandle e do capitão Bob Dodds, comandante da Divisão de Roubos e Homicídios. Espalhados sobre a superfície lustrosa entre eles, estavam os documentos e as fotografias do caso, mais notavelmente a imagem de Bo-Jing Chang da câmera de segurança da Fortune Liquors.


— Não estou convencido, disse Dodds.


Era terça de manhã, apenas seis horas após Bosch e Chu terem encerrado a vigilância de Chang, com o suspeito indo para um apartamento em Monterey Park e aparentemente se recolhendo para dormir.


— Bom, capitão, não era mesmo para estar convencido ainda, disse Bosch. — É por isso que a gente quer continuar vigiando e precisa do grampo.

— O que eu quis dizer foi: não estou convencido de que esse seja o jeito certo de prosseguir, disse Dodds. — Vigiar tudo bem. Mas grampear é muito trabalho e esforço para resultados de longo prazo.


Bosch compreendia. Dodds gozava de excelente reputação como detetive, mas agora era um gerente e quase tão distante do trabalho de investigação em sua divisão quanto um executivo do petróleo em Houston está da bomba de petróleo. Seu negócio agora eram números e orçamentos de pessoal. Precisaria encontrar meios de fazer muito com pouco e nunca permitir uma queda nas estatísticas de detenções e casos encerrados. Isso fazia dele um realista e a realidade era que vigilância eletrônica era algo muito caro. Primeiro, ela demandava diversos homens-hora para elaborar cuidadosamente uma declaração juramentada de mais de cinquenta páginas para obter permissão legal. E, além disso, assim que a permissão era concedida, uma equipe de policiais precisaria ficar de plantão 24 horas por dia com um detetive monitorando a linha. Muitas vezes o grampo de um único número levava a outros números que também precisariam ser grampeados e, pela lei, cada linha precisaria contar com seu próprio monitor. Uma operação dessas rapidamente sugava os recursos como uma esponja gigante, à medida que se arrastasse. Com o pagamento de horas extras da DRH seriamente comprometido pelas restrições orçamentárias do departamento, Dodds relutava em ceder qualquer quantia, por menor que fosse, para o que, em essência, nada mais era que uma investigação de assassinato de um balconista de loja de bebidas na região sul. Ele preferia guardar o dinheiro para coisas mais cabeludas, algum caso com ampla cobertura da mídia que eventualmente surgiria e exigiria seus recursos.


Dodds, é claro, não dizia nada disso com todas as letras, mas Bosch sabia, assim como todo mundo na sala, que esse era o problema com o qual o capitão se debatia e o motivo de não estar convencido. Não tinha nada a ver com os procedimentos da investigação. Bosch tentou um último argumento para convencê-lo.


— Isso é só a ponta do iceberg, capitão, ele disse. — A gente não está só falando de um homicídio numa loja de bebidas. Isso é só a porta de entrada. A gente pode desmantelar uma tríade inteira antes de encerrar o caso.

— Antes de encerrar o caso? Eu me aposento em 19 meses, Bosch. Esse tipo de coisa pode durar para sempre. Bosch deu de ombros.

— A gente pode procurar o bureau, montar uma parceria. Eles estão sempre dispostos a pegar um caso internacional e verba é o que não falta para grampos e tocaia.

— Mas aí a gente ia ter que compartilhar tudo, disse Gandle, querendo dizer os méritos de um sucesso. Manchetes, coletivas de imprensa, tudo.

— Não me agrada a ideia de fazer isso, disse Dodds segurando a foto de Bo-Jing Chang. Bosch jogou sua última cartada.

— E se a gente fizer isso sem hora extra? Perguntou.


O capitão segurava uma caneta em sua mão. Provavelmente era algo que o lembrava de sua autoridade. Era o responsável por assinar coisas. Ele a ficou girando nos dedos enquanto considerava a pergunta inesperada de Bosch, mas rapidamente balançou a cabeça.


— Você sabe que não posso pedir para fazerem isso, disse. — Não posso nem saber disso.


Era verdade. O departamento fora processado tantas vezes por práticas trabalhistas ilícitas que ninguém em um cargo administrativo jamais daria sequer aprovação tácita para detetives trabalhando com carga dobrada. A frustração de Bosch com orçamentos e burocracia finalmente chegou ao limite.


— Então o que a gente faz? Traz o Chang para cá. Todo mundo sabe que ele não vai dizer uma palavra e que a investigação vai morrer aqui mesmo. O capitão balançou sua caneta.

— Bosch, você sabe qual é a alternativa. Continue conduzindo a investigação até alguma coisa aparecer. Fique atrás das testemunhas. Fique atrás das evidências. Sempre tem uma ligação. Passei 15 anos fazendo o que você está fazendo e você sabe que sempre tem alguma coisa. Encontre. Um grampo é um tiro no escuro e você sabe disso. Bater perna é sempre a melhor aposta. Então, mais alguma coisa?


Harry sentiu seu rosto ficando vermelho. O capitão o estava dispensando. O que mais o irritava é que, lá no fundo, Bosch sabia que Dodds tinha razão.


— Obrigado, capitão, disse secamente, ficando de pé. Os detetives deixaram o capitão e o tenente na sala de reuniões e foram para o cubículo de Bosch, que jogou uma caneta que levava no bolso em cima da mesa.

— O cara é um babaca, disse Chu.

— Não, não é, disse Bosch rapidamente. — Ele está certo, e é por isso que é o capitão.

— Então o que a gente faz?

— A gente fica com o Chang. Não estou nem aí para as horas extras, e o que os olhos do capitão não veem o coração não sente. Vamos vigiar o Chang e esperar um passo em falso. Não me interessa quanto tempo leve. Por mim, pode virar até um hobby. Bosch olhou para os outros dois, já esperando que se recusassem a participar de uma tocaia que muito provavelmente ultrapassaria os limites das oito horas diárias. Para sua surpresa, Chu concordou.

— Já conversei com meu tenente. Fui destacado para esse caso. Por mim tudo bem. — Bosch balançou a cabeça e inicialmente considerou que se enganara em desconfiar tanto de Chu. Seu pensamento seguinte, contudo, era de que a desconfiança estava mantida e que a determinação de Chu em permanecer no caso era apenas um modo de ficar perto da investigação e monitorar Bosch. Harry virou para o parceiro.

— E você? Ferras fez que sim de um modo relutante e gesticulou na direção da sala de reuniões do outro lado da delegacia. Pela vidraça, Dodds podia ser visto ainda conversando com Gandle.

— Você sabe que eles sabem o que estamos fazendo, disse. — Não vamos receber por isso e vão deixar na nossa mão a escolha de continuar ou largar o caso. Porra, isso não é justo.

— Bom, e daí? Disse Bosch. — A vida não é justa. Você está dentro ou fora?

— Continuo dentro, mas tem um limite. Eu tenho família, cara. Não vou ficar de campana a noite toda. Não posso fazer isso, principalmente sem receber nada.

— Tudo bem, ótimo, disse Bosch, mesmo que seu tom de voz transmitisse sua decepção com Ferras. — Você faz o que puder. Cuida do trabalho interno e Chu e eu vamos ficar atrás do Chang. Notando o tom de Bosch, Ferras empregou um brando tom de protesto em sua voz.

— Olha, Harry, você não sabe como é. Três filhos... Tenta explicar isso em casa. Que você vai ficar sentado em um carro a noite toda vigiando o cara de uma tal de tríade e que o seu contracheque vai vir igual, independente de quantas horas você ficar fora. Bosch ergueu as mãos, como que dizendo não precisa dizer mais nada.

— Tem razão. Não preciso explicar. Só preciso fazer. Esse é o trabalho.


* * *


Quatorze

ATRÁS DO VOLANTE de seu carro, Bosch observava Chang realizando pequenos serviços na Tsing Motors, em Monterey Park. O pátio de carros usados fora antes um posto de gasolina em estilo anos 50 com duas coberturas para garagem e um escritório anexo. Bosch estacionara a meia quadra dali, na agitada Garvey Avenue, e não corria risco de ser identificado. Chu estava em seu próprio carro a meia quadra depois do pátio, na outra direção. Usar carros particulares para uma campana era uma violação da política do departamento, mas Bosch verificara com a oficina da polícia e não havia veículos disfarçados à disposição. A opção era usar as viaturas de detetive sem identificação, que podiam perfeitamente ter sido pintadas com o preto e branco policial por toda camuflagem que ofereciam, ou burlar as regras. Como o aparelho em seu carro podia tocar seis CDs, Bosch não se importava de violar a política do departamento. Hoje ele o carregara com música de seu último achado. Tomasz Stañko era um trompetista polonês que soava como o fantasma de Miles Davis. Seu som era limpo e expressivo. Boa música para vigiar alguém. Mantinha Bosch alerta.


Durante quase três horas observaram o suspeito lidando com suas tarefas normais no pátio. Ele havia lavado carros, engraxado pneus para fazer com que parecessem novos e até mesmo levado um possível comprador em um test drive num Mustang 1989. Na última meia hora, mudara sistematicamente de lugar cada uma das três dúzias de carros na loja, num esforço de fazer parecer que o estoque estava mudando, que havia atividades de vendas e que os negócios iam bem. Às quatro horas da tarde, “Soul of Things” começou no CD player e Bosch não conseguiu deixar de pensar que até mesmo Miles Davis, muito a contragosto, teria tirado o chapéu para Stañko. Harry acompanhava o ritmo com os dedos no volante quando viu Chang entrar no pequeno escritório e trocar de camisa. Quando saiu, estava dando o dia por encerrado. Pegou o Mustang e saiu sozinho do pátio. O celular de Bosch zumbiu imediatamente com uma ligação de Chu. Harry desligou a música.


— Está vendo ele? Perguntou Chu. — Ele saiu.

— É, estou vendo.

— Está indo para a dez. Você acha que ele já encerrou o dia?

— Ele mudou de camiseta. Acho que sim. Vou na frente e então você se prepara para vir.


Bosch o seguiu a cinco carros de distância e então se aproximou de sua rabeira quando Chang tomou a direção oeste na 10, sentido centro. Não estava indo para casa. Bosch e Chu haviam-no seguido na noite anterior até um apartamento em Monterey Park, cujo proprietário era Vincent Tsing, também, e observaram o lugar por uma hora após as luzes se apagarem, até ficarem convencidos de que não sairia mais de lá naquela noite.


Agora ele se dirigia a Los Angeles e os instintos de Bosch lhe diziam que era para cuidar de negócios da tríade. Ele acelerou e ultrapassou o Mustang, segurando o celular no ouvido de modo que Chang não pudesse ver seu rosto. Ligou para Chu e avisou que estava em posição. Bosch e Chu continuaram a se revezar na posição enquanto Chang pegava a 101 Freeway e seguia rumo norte através de Hollywood na direção do Vale. O trânsito estava parado com a hora do rush e seguir o suspeito foi fácil. Chang levou quase uma hora para chegar a Sherman Oaks, onde finalmente pegou a saída na ladeira da Sepulveda Boulevard. Bosch ligou para Chu.


— Acho que ele está indo para a outra loja dos Li, disse ao parceiro de campana.

— Parece que sim. Será que é melhor ligar para Robert Li e avisar?


Bosch parou para pensar. Era uma boa pergunta. Precisaria decidir se Robert Li estava em perigo. Nesse caso ele deveria ser avisado. Mas se não havia perigo, um aviso poderia fazer a operação toda ir por água abaixo.


— Não, ainda não. Vamos ver o que acontece. Se Chang entrar na loja, nós também entramos. E se alguma coisa sair errado, a gente intervém.

— Tem certeza, Harry?

— Não, mas é assim que vai ser. Cuidado para não ficar no semáforo.


Eles seguiram, mas não desconectaram a ligação. O sinal no alto da ladeira acabara de ficar verde. Bosch estava quatro carros atrás de Chang, mas Chu estava a pelo menos oito. O trânsito se movia lentamente e Bosch se arrastava junto, de olho no semáforo. O sinal mudou para amarelo bem no momento em que ele passava pelo cruzamento. Bosch conseguiu, mas Chu ficou para trás.


— Ok, estou com ele, disse no telefone. — Sem crise.

— Perfeito. Chego aí em três minutos. Bosch fechou o celular. Nesse exato momento escutou uma sirene diretamente atrás dele e viu as luzes azuis piscando no retrovisor.

— Merda! Olhou para frente e viu Chang continuando rumo sul na Sepulveda. Estava a quatro quadras da Fortune Fine Foods & Liquor. Bosch encostou rapidamente e pisou no freio. Abriu a porta e saiu com tudo. Estava segurando o distintivo no alto ao se aproximar da motocicleta que o havia detido.

— Estou numa campana! Não posso parar!

— Dirigir falando no celular não é permitido.

— Então me multa e manda pro chefe de polícia. Não vou foder com uma campana por causa disso.


Girou nos calcanhares e voltou para o carro. Forçou passagem para voltar ao trânsito e procurou o Mustang de Chang. Sumira. O semáforo seguinte ficou vermelho e precisou parar novamente. Bateu com o canto da mão no volante e ficou pensando se deveria ligar para Robert Li. Seu celular zumbiu. Era Chu.


— Estou fazendo a curva. Onde você está?

— Só um quarteirão na sua frente. Um policial me parou por falar no celular.

— Porra, que ótimo. Onde está o Chang?

— Em algum ponto mais à frente. Estou andando agora.


O trânsito se movia lentamente no cruzamento. Bosch não entrou em pânico porque a rua estava tão entupida de veículos que ele sabia que Chang não poderia ter ido muito longe. Ficou em sua faixa, consciente de que poderia chamar a atenção nos retrovisores de Chang se começasse a costurar o trânsito para ir mais rápido. Dois minutos depois chegou ao cruzamento principal da Sepulveda com a Ventura Boulevard. Avistou as luzes da Fortune Fine Foods & Liquor uma quadra adiante na Sepulveda no cruzamento seguinte. Não viu o Mustang de Chang em lugar nenhum a sua frente. Ligou para Chu.


— Estou no semáforo da Ventura e não estou vendo ele. Talvez já esteja lá dentro.

— Estou um semáforo antes desse. O que a gente faz?

— Vou estacionar e entrar. Você fica do lado de fora procurando o carro. Chama-me no celular se avistar ele ou o carro.

— Você vai direto falar com Li?

— Vamos ver.


Assim que o sinal ficou verde, Bosch apertou o acelerador e entrou no cruzamento, quase batendo em um carro que passou no vermelho. Percorreu a quadra seguinte e tomou a direita no estacionamento do mercado. Não viu o carro de Chang nem qualquer vaga além das reservadas para deficientes. Bosch atravessou o estacionamento até o beco e parou atrás de uma lixeira com um letreiro de NÃO ESTACIONE marcado. Saiu rapidamente e voltou trotando pelo estacionamento até a porta de entrada do mercado. Assim que Bosch passou pela porta automática escrita ENTRE, viu Chang vindo pela porta marcada SAÍDA. Bosch ergueu a mão e mexeu no cabelo, bloqueando o rosto com o braço. Continuou andando e tirou o celular do bolso. Passou entre os dois balcões do caixa. Duas mulheres, diferentes das que vira no dia anterior, estavam junto às caixas registradoras, aguardando por fregueses.


— Onde está o Sr. Li? Perguntou Bosch sem se deter.

— Nos fundos, disse uma mulher.

— No escritório, disse a outra. Bosch ligou para Chu enquanto caminhava apressadamente pelo corredor central em direção aos fundos da loja.

— Ele acabou de sair pela porta da frente. Fica na cola dele. Vou ver o Li.

— Pode deixar.


Bosch desligou e guardou o celular no bolso. Seguiu o mesmo caminho para o escritório de Li que fizera no dia anterior. Quando chegou, a porta estava fechada. Sentiu a adrenalina subir rapidamente conforme levava a mão à maçaneta. Bosch abriu a porta sem bater e encontrou Li e outro asiático sentados nas duas mesas. Estavam numa conversa que parou abruptamente quando a porta abriu. Li ficou de pé e Bosch viu na mesma hora que não tinha nenhum ferimento.


— Detetive! Exclamou Li. — Eu já ia ligar! Ele veio aqui! Aquele homem que você me mostrou esteve aqui!

— Eu sei. Eu estava seguindo o cara. Tudo bem com você?

— Fora o susto, tudo bem.

— O que aconteceu? Li hesitou por um momento para achar as palavras. — Senta e se acalma, disse Bosch. — Depois você me conta. E você, quem é? Bosch apontou para o homem sentado na outra mesa.

— Esse é Eugene, o meu gerente assistente. O homem se levantou e ofereceu a mão para Bosch.

— Eugene Lam, detetive. Bosch apertou sua mão.

— Você estava aqui quando o Chang entrou? Perguntou.

— Chang? Respondeu Li.

— Esse é o nome dele. O homem na fotografia que eu mostrei.

— Sim, eu e o Eugene estávamos aqui. Ele simplesmente foi entrando no escritório.

— O que ele queria?

— Disse que, com a morte do meu pai, eu é que tenho que pagar a tríade. Disse que ia voltar daqui a uma semana e eu ia ter que pagar.

— Ele falou alguma coisa sobre o assassinato do seu pai?

— Só disse que agora que o meu pai tinha morrido eu ia ter que pagar.

— Ele falou o que vai acontecer se você não pagar?

— Não precisou.


Bosch assentiu. Li tinha razão. A ameaça estava implícita, sobretudo depois do que acontecera com o pai de Li. Bosch ficou empolgado. A vinda de Chang à loja de Robert Li ampliava as possibilidades. Ele estava tentando extorquir Li e isso podia ter como consequência uma prisão que, em última instância, levaria a uma acusação de assassinato. Harry virou para Lam.


— E você testemunhou isso, tudo que disseram? Lam estava claramente hesitante, mas então fez que sim. Bosch pensou que talvez estivesse relutando em se envolver. — Viu ou não viu, Eugene? Acabou de me dizer que estava aqui. Lam balançou a cabeça antes de responder.

— Eu vi o sujeito, mas... Eu não falo chinês. Entendo um pouco, mas não muita coisa. Bosch virou para Li.

— Ele conversou com você em chinês? Li concordou com a cabeça.

— Isso.

— Mas você entendeu a conversa e ficou claro que ele estava dizendo para você começar a fazer pagamentos semanais agora que o seu pai morreu.

— Foi, isso ficou claro. Mas...

— Mas o quê?

— Você vai prender esse homem? A gente vai ter que aparecer no tribunal? Li estava claramente apavorado com a possibilidade.

— Olha, é cedo demais para afirmar que isso pode ir até mesmo além dessa conversa. A gente não quer o cara por extorsão. Se ele matou o seu pai, a gente quer que ele pague por isso. E tenho certeza de que você vai fazer o que for preciso para nos ajudar a prender o assassino do seu pai. Li assentiu, mas Bosch ainda percebia sua hesitação. Considerando o que acontecera ao seu pai, Robert claramente não queria problemas com Chang ou com a tríade.

— Preciso fazer uma ligação rápida para o meu parceiro, disse Bosch. — Vou sair para ligar e já volto. Bosch saiu do escritório e fechou a porta. Ligou para Chu.

— Achou ele?

— Achei, ele está voltando para a pista expressa. O que aconteceu?

— Ele falou para o Li que ele tinha que começar a fazer os pagamentos que o pai vinha fazendo. Para a tríade.

— Puta merda! Conseguimos!

— Não se empolga demais. Por enquanto a gente tem só um caso de extorsão, e isso somente se o rapaz cooperar. Ainda falta muita coisa para uma acusação de homicídio. Chu não respondeu e Bosch de repente se sentiu mal por ter lhe dado aquela ducha de água fria. — Mas você tem razão, disse. — Estamos chegando perto. Para que lado ele foi?

— Está na faixa da direita indo para o sul na um-zero-um. Parece com pressa. Ele colou na traseira do carro da frente, mas não está adiantando nada. Aparentemente Chang ia voltar pelo caminho que viera.

— Certo. Vou conversar com esses caras mais um pouco e depois saio. Me liga quando Chang parar em algum lugar.

— Esses caras? Quem mais além do Robert Li?

— O gerente assistente. Eugene Lam. Ele estava no escritório quando Chang entrou e contou para Li como as coisas seriam a partir de agora. Só que Chang conversou em chinês e Lam só fala inglês. Como testemunha não ia servir para grande coisa, a não ser para provar que Chang apareceu no escritório da loja.

— Ok, Harry, disse Chu. — A gente está na via expressa, agora.

— Fica na cola dele que eu ligo assim que terminar por aqui, disse Bosch. Bosch fechou o celular e voltou para o escritório. Li e Lam continuavam em suas mesas, esperando por ele.

— Você tem câmeras de segurança na loja? Perguntou, antes de mais nada.

— Tenho, disse Li. — O mesmo sistema da loja no sul. Só que a gente instalou mais câmeras aqui. Elas gravam em multiplex. Oito telas de uma vez. Bosch olhou para o teto e a parte de cima das paredes.

— Não tem câmera aqui, tem?

— Não, detetive, disse Li. — Não no escritório.

— Bom, mesmo assim vou precisar do disco para provar que Chang veio até aqui nos fundos para falar com você. Li balançou a cabeça hesitantemente, como um menino sendo puxado para a pista de dança por alguém com quem não queria dançar.

— Eugene, você pode buscar o disco para o detetive Bosch? Perguntou ele.

— Não, disse Bosch, rapidamente. — Preciso presenciar você puxando o disco. Chamamos isso de cadeia de evidência e custódia. Eu vou com você.

— Sem problema.


Bosch passou outros 15 minutos na loja. Primeiro assistiu à gravação do vídeo de segurança e confirmou que Chang viera e fora até o escritório de Li, depois saíra após três minutos fora da câmera com Li e Lam. Bosch então pegou o disco e voltou ao escritório para repassar uma vez mais o relato de Li sobre o que acontecera com Chang. A relutância de Li pareceu aumentar com o questionamento mais detalhado de Bosch. Harry começou a acreditar que o filho da vítima de homicídio acabaria se recusando a cooperar com a promotoria. Mesmo assim, continuava a haver um aspecto positivo nesse mais recente episódio. A tentativa de extorsão de Chang seria usada de outros modos. Ela poderia fornecer uma causa provável. E com uma causa provável, Bosch podia prender Chang e dar uma busca em suas coisas atrás de alguma evidência do assassinato, quer Li acabe cooperando com a promotoria, quer não. Quando passava pela porta automática da loja, Bosch ficou empolgado. O caso ganhara vida nova. Ele tirou o telefone do bolso e ligou para saber do suspeito.


— A gente voltou direto para o apartamento dele, disse Chu. — Nenhuma parada. Acho que ele já foi até dormir.

— É cedo demais. Ainda nem escureceu.

— Bom, tudo que posso dizer é que ele se mandou para casa. E fechou as cortinas, também.

— Ok. Estou indo para aí.

— Se incomoda de me trazer um cachorro-quente de tofu quando estiver a caminho, Harry?

— Não vai dar, você está por conta própria nessa, Chu. Chu deu risada.

— Imaginei, disse. Bosch fechou o celular. Chu obviamente pegara a mesma empolgação com o caso.


* * *


Quinze

CHANG NÃO SAIU de seu apartamento senão às nove da manhã de sexta-feira. E, quando saiu, carregava algo que deixou Bosch imediatamente em alerta máximo. Uma mala grande. Bosch ligou para Chu a fim de se certificar de que estava acordado. Haviam dividido a campana noturna em turnos de quatro horas, se revezando para os períodos de sono em seus carros. Chu ficou com o turno de sono das quatro às oito, mas Bosch ainda não recebera nenhuma notícia sua.


— Você está acordado? O Chang está saindo. A voz de Chu ainda estava carregada de sonolência.

— É, saindo, onde? Era para você me chamar às oito.

— Ele enfiou uma mala no carro. Está com pressa. Acho que alguém avisou a ele.

— Sobre a gente?

— Não, sobre as ações da Microsoft. Não banca o idiota.

— Harry, quem ia informar sobre a gente? Chang entrou no carro e começou a sair de ré de sua vaga no estacionamento do prédio.

— Boa pergunta, disse Bosch. — Mas se alguém sabe a resposta, esse alguém é você.

— Você está sugerindo que eu passei informações para o alvo de uma investigação importante? A voz de Chu veio carregada da devida afronta dos acusados.

— Não sei o que você fez, disse Bosch. — Mas você divulgou nossas ações por toda Monterey Park, então agora vai saber quem pode ter dado o toque para esse cara. Só o que eu sei agora é que ele está caindo fora da cidade.

— Toda Monterey Park? Você acabou de inventar essa merda? Bosch seguiu o Mustang na direção norte ao deixar o estacionamento, se mantendo a uma quadra de distância.

— Você me contou outra noite que o terceiro cara para quem mostrou a foto de Chang fez a identificação. Ok, então são três caras e todos eles têm parceiros, todos eles têm listas de chamada e todos eles falam.

— Bom, talvez isso não tivesse acontecido se a gente não tivesse pedido ao Tao e ao Herrera para saírem da investigação, como se a gente não confiasse neles. Bosch verificou seu retrovisor procurando por Chu. Estava tentando impedir que sua raiva estragasse a perseguição. Não podiam perder Chang agora.

— Acelera aí. Estamos na direção da 10. Depois que ele pegar a autoestrada, quero que você troque de lugar comigo e vá na frente.

— Entendido.


A voz de Chu continuava carregada de raiva. Bosch não se importava. Se Chang foi informado sobre a investigação, então Harry iria descobrir quem fizera a ligação para avisar e acabaria com a raça dele, mesmo se fosse Chu. Chang entrou na 10 Freeway e logo Chu ultrapassou Bosch para ficar na dianteira. Bosch olhou de relance e viu Chu lhe mostrando o dedo do meio. Bosch mudou de faixa, ficou para trás e ligou para o tenente Gandle.


— Harry, o que foi?

— Estamos com problemas.

— Fala.

— O primeiro é que nosso homem guardou uma bagagem no porta-malas de manhã e está na 10, na direção do aeroporto.

— Merda, que mais?

— Para mim alguém de dentro avisou para ele cair fora da cidade.

— Ou talvez as ordens dele fossem desde o começo se mandar depois de apertar o Li. Não fica procurando o lado podre da história, Harry. Não até você ter certeza de alguma coisa.


Bosch ficou irritado por seu próprio tenente não lhe dar o respaldo que esperava, mas conseguia lidar com isso. Se Chang tivesse recebido um toque e algum ponto da investigação estivesse infectado pelo câncer da corrupção, Harry iria descobrir. Tinha certeza absoluta. Deixou isso de lado por ora e se concentrou nas escolhas envolvendo Chang.


— Melhor dar voz de prisão para o Chang? Perguntou.

— Tem certeza de que ele vai pegar um avião? Vai ver só está fazendo uma entrega ou algo assim. Qual o tamanho da mala?

— Grande. Do tipo que você leva quando não pretende voltar. Gandle suspirou conforme punha no prato da balança mais um dilema e mais uma decisão a ser tomada.

— Ok, deixa eu conversar com umas pessoas e depois a gente volta a se falar. Bosch presumiu que seria o capitão Dodds e provavelmente alguém no gabinete da promotoria.

— Temos boas notícias também, tenente, disse.

— Puta merda, quem diria, exclamou Gandle. — Que boas notícias?

— Ontem à tarde a gente seguiu o Chang até a outra loja. A que o filho da vítima tem no Vale. Ele foi lá extorquir o rapaz, disse que ele precisa começar a pagar agora que o velho morreu.

— Isso é ótimo! Por que não me contou?

— Acabei de contar.

— Isso serve de causa provável para uma voz de prisão.

— Para prender sim, mas provavelmente não para uma ação penal. O rapaz é uma testemunha relutante. A gente ia precisar dele para montar um caso e não sei se isso é garantido. E de todo modo, não seria por homicídio. Que é o que a gente quer.

— Bom, mas no mínimo a gente podia impedir esse sujeito de entrar em um avião. Bosch balançou a cabeça conforme começou a conceber um plano.

— Hoje é sexta. Se a gente detivesse o cara e autuasse no fim do dia, ele não ia conseguir uma audiência até segunda de tarde. Isso daria para a gente pelo menos 72 horas para montar um caso.

— Deixando a extorsão como segunda opção.

— Certo.


Bosch tinha outra ligação bipando em sua orelha e imaginou que fosse Chu. Pediu a Gandle para voltar a falar com ele assim que tivesse apresentado o cenário diante das autoridades competentes. Bosch atendeu a outra ligação sem olhar o visor.


— Alô?

— Harry? Era uma mulher. Ele reconheceu a voz, mas não conseguiu se localizar.

— Ele mesmo, quem é?

— Teri Sopp.

— Ah, oi, achei que fosse meu parceiro ligando. Pode falar.

— Só queria falar que consegui convencer o pessoal a usar o cartucho que você me deu ontem no programa de teste para realce eletrostático. Vamos ver se dá para achar uma impressão naquilo.

— Teri, você é minha heroína! Isso vai ser hoje?

— Não, hoje não. A gente só volta a cuidar disso na semana que vem. Provavelmente na terça. Bosch odiava ter de pedir um favor quando acabara de receber um, mas achou que não tinha outra escolha.

— Teri, existe alguma maneira de isso ser feito na segunda de manhã?

— Segunda? Acho que a gente não consegue autorizar um requerimento antes de...

— Perguntei isso porque talvez a gente esteja com o suspeito em cana até o fim do dia. A gente acha que ele está tentando sair do país e talvez precise prendê-lo. Isso dá um prazo até segunda para montar um caso, Teri. Vamos precisar de tudo que pudermos conseguir. Houve uma hesitação antes que ela respondesse.

— Vou ver o que consigo fazer. Enquanto isso, se vocês pegarem o suspeito, me traga um cartão de digital para que eu possa fazer a comparação assim que tivermos alguma resposta por aqui. Se eu tiver uma resposta.

— Entendido, Teri. Mil vezes obrigado.


Bosch fechou o celular e esquadrinhou a pista diante de si. Não viu nem o carro de Chu, um Mazda Miata vermelho, nem o Mustang prata de Chang. Percebeu que ficara muito para trás. Apertou o número de Chu na discagem automática.


— Chu, onde você está?

— Quatro-zero-cinco sul. Ele está indo para o aeroporto. Bosch continuava na 10 Freeway e viu o cruzamento da 405 mais adiante.

— Certo, já alcanço você.

— O que está acontecendo?

— Passei a bola para o Gandle para ver se a gente prende o Chang ou não.

— A gente não pode deixar ele ir.

— Foi isso que eu disse. Vamos ver o que eles acham.

— Quer que eu fale com o meu chefe também? Bosch quase respondeu dizendo que não queria pôr mais um chefe na história, já que seria mais uma chance de informações vazarem em algum lugar.

— Vamos esperar e ver o que o Gandle diz, primeiro, falou diplomaticamente, em vez disso.

— Entendido.


Bosch desligou e costurou o tráfego num esforço de alcançá-los. Quando chegou ao elevado que ia da 10 para a 405, conseguiu avistar tanto o carro de Chu como o de Chang um quilômetro à frente. Eles haviam parado com o tráfego lento, no ponto em que as pistas convergiam. Revezando na dianteira mais duas vezes, Bosch e Chu seguiram Chang até a saída do Aeroporto de Los Angeles no Century Boulevard. Ficava claro agora que Chang estava partindo da cidade e que teriam de efetuar a detenção. Voltou a ligar para Gandle e ficou em espera. Finalmente, depois de dois longos minutos, Gandle atendeu.


— Harry, o que você conseguiu?

— Ele está no Century Boulevard, a quatro quadras do Aeroporto de Los Angeles.

— Ainda não tive tempo de falar com ninguém.

— Por mim é melhor prender logo. A gente autua por homicídio e, na pior das hipóteses, na segunda-feira autua por extorsão. Ele vai conseguir a fiança, mas o juiz vai proibir qualquer viagem, principalmente depois que ele tentou se mandar hoje.

— Você decide, Harry, e tem o meu apoio. Ou seja, ainda seria Bosch o responsável pela decisão errada caso na segunda tudo desse para trás e Chang saísse da prisão como um homem livre e pronto para partir de Los Angeles e nunca mais voltar.

— Obrigado, tenente. Mantenho o senhor informado. Momentos após Bosch ter desligado seu celular, Chang entrou à direita num estacionamento para período prolongado que fornecia serviço de ônibus para todos os terminais do aeroporto. Como era de se esperar, Chu ligou.

— Chegou a hora. O que a gente faz?

— Vamos prender. A gente espera até ele estacionar e tirar aquela mala do carro. Daí dá a voz de prisão e olha o que tem dentro da mala com um mandado.

— Onde?

— Eu uso esse estacionamento quando vou para Hong Kong. Tem um monte de filas e pontos de ônibus onde dá para embarcar. Vamos entrar lá e estacionar. A gente finge que está viajando e pega ele na parada do ônibus.

— Positivo.


Desligaram. Bosch estava na frente nesse momento, então entrou no estacionamento diretamente atrás de Chang, tirando um tíquete na cancela automática. A cancela se ergueu e ele passou. Seguiu Chang pela pista central e, quando Chang virou à direita numa rua secundária, Bosch passou direto, imaginando que Chu viria logo atrás e entraria à direita. Bosch estacionou na primeira vaga que viu, depois desceu do carro e voltou a pé até onde Chang e Chu tinham entrado. Avistou Chang uma faixa adiante, de pé atrás do Mustang e lutando para tirar a enorme bagagem do porta-malas. Chu estava oito carros depois estacionando. Percebendo que seria suspeito estar sem bagagem em um estacionamento de longa permanência, Chu começou a andar na direção de um ponto de ônibus próximo, carregando uma valise e um impermeável, como um homem em uma viagem de negócios. Bosch não tinha objeto algum com que se disfarçar, então se moveu pelo centro das fileiras de vagas, usando os veículos como cobertura.


Chang trancou seu carro e levou a pesada mala até o ponto de ônibus. Era uma mala antiga, sem as rodinhas que são praticamente o padrão em todos os tamanhos atualmente. Quando chegou no ponto, Chu já estava ali esperando. Bosch contornou por trás de uma minivan e surgiu dois carros adiante. Isso dava a Chang pouco tempo para eventualmente desconfiar de um homem que se aproximava sem bagagem em um estacionamento para período prolongado.


— Bo-Jing Chang, disse Bosch em voz alta quando se aproximou. O suspeito girou o tronco para olhar para Bosch. De perto, Chang parecia um homem forte e largo, um físico perfeito. Bosch viu a tensão em seus músculos. — Você está preso. Por favor, ponha as mãos nas costas.


O instinto de Chang de brigar ou fugir não teve a menor chance de vir à tona. Chu chegou por trás dele e habilidosamente prendeu as algemas em seu pulso direito enquanto agarrava o esquerdo. Chang resistiu por um segundo, reagindo mais pela surpresa do que por qualquer outra coisa, mas Chu prendeu o outro pulso e a prisão foi efetivada.


— O que é isso? Protestou Chang. — O que eu fiz? Seu sotaque era forte.

— Vamos conversar sobre tudo isso, Sr. Chang. Assim que levarmos você ao centro de polícia.

— Eu tenho um avião para pegar.

— Não hoje. Bosch lhe mostrou seu distintivo e identidade, e então apresentou Chu, sem deixar de mencionar que Chu era da Unidade de Gangue Asiática. Bosch queria que isso ficasse fermentando na cabeça de Chang.

— Preso por quê? Perguntou o suspeito.

— Pelo assassinato de John Li. Bosch não viu surpresa na reação de Chang. Percebeu que fisicamente entrava em modo de silêncio.

— Quero advogado, disse.

— Aguarde um minuto, Sr. Chang, disse Bosch. — Deixa a gente ler os seus direitos primeiro.


Bosch acenou para Chu, que tirou um cartão do bolso. Ele leu os direitos de Chang e perguntou se os entendia. A única reação de Chang foi pedir um advogado outra vez. Ele estava por dentro da rotina. O gesto seguinte de Bosch foi ligar para uma unidade de patrulha a fim de transferir Chang para o centro e um guincho para levar seu carro para a garagem da polícia. Bosch não tinha pressa agora; quanto mais demorasse para chegar o transporte de Chang, mais perto ficavam das duas da tarde, o último horário para o tribunal de denúncia contra delitos graves. Se postergassem a entrada de Chang no tribunal, ele ficaria detido na prisão municipal durante todo o fim de semana. Após cerca de cinco minutos em silêncio enquanto Chang permanecia sentado em um banco do ponto de ônibus, Bosch se virou apontando para a mala e falou com ele de um modo descompromissado, como se as perguntas e respostas não fizessem diferença.


— Aquilo ali parece pesar uma tonelada, disse. — Para onde você estava indo?


Chang não respondeu. Não existe essa coisa de jogar conversa fora quando você está sendo preso. Ele permaneceu olhando diretamente à frente e não reagiu de forma alguma à pergunta de Bosch. Chu traduziu a pergunta e obteve a mesma atitude. Bosch deu de ombros, como se não desse a mínima se Chang quisesse responder ou não.


— Harry, disse Chu. Bosch sentiu seu celular vibrar duas vezes, o sinal de que recebera uma mensagem. Fez um gesto para que seu parceiro se afastasse alguns metros do ponto, de modo que pudessem conversar longe dos ouvidos de Chang.

— O que acha? Perguntou Chu.

— Bom, está claro que ele não vai conversar com a gente e já pediu um advogado. Então é isso.

— Então o que a gente faz?

— Em primeiro lugar, vamos diminuir o ritmo. Não precisa ter pressa para levar ele para o centro nem para fazer a autuação. Ele só vai chamar o advogado depois que tiver sido citado, e com um pouco de sorte isso só vai acontecer depois das duas. Enquanto isso, a gente corre atrás dos mandados. O carro, a mala e o celular dele, se estiver com ele. Depois disso, a gente dá uma busca no apartamento e no trabalho. Em tudo que o juiz deixar a gente olhar. E vamos rezar para encontrar alguma coisa, como a arma, até segunda ao meio-dia. Porque, caso contrário, o cara fica em liberdade.

— E a extorsão?

— Serve como causa provável, mas a gente não consegue nada se o Robert Li bancar o covarde. Chu balançou a cabeça.

— Como em Matar ou Morrer, Harry. Isso é que era filme. Um faroeste.

— Nunca vi, ele disse para Chu.


Bosch olhou para a longa fila de carros estacionados e viu uma radiopatrulha entrando na direção deles. Acenou. Pegou o celular para verificar a mensagem. O visor dizia que recebera um vídeo de sua filha. Deixaria para assistir depois. Era muito tarde em Hong Kong e sabia que sua filha estaria na cama. Provavelmente não estava conseguindo dormir e esperava por uma resposta sua. Mas ele tinha trabalho a fazer. Guardou o telefone quando a viatura policial parou na frente deles.


— Vou acompanhar o suspeito, disse para Chu. — Caso ele decida falar alguma coisa.

— E o seu carro?

— Depois eu pego.

— Talvez fosse melhor se eu o acompanhasse em vez de você.


Bosch olhou para Chu. Era um desses momentos decisivos. Harry sabia que seria melhor que Chu fosse com Chang, porque conhecia as duas línguas e era chinês. Mas isso significaria que Bosch estava cedendo parte do controle sobre seu caso. Também significaria que estava demonstrando confiança em Chu, apenas uma hora depois de ter apontado um dedo acusador contra ele.


— Ok, disse Bosch finalmente. — Você vai com ele. Chu assentiu, parecendo compreender o significado da decisão de Bosch. — Mas faz o trajeto mais longo, disse Bosch. — Esses caras provavelmente trabalham longe da praia. Vai para a divisão primeiro, depois me liga. Eu falo para você que houve uma mudança de planos e que a gente vai autuar ele no centro. Isso deve adicionar uma hora extra ao trajeto.

— Entendido, disse Chu. — Vai funcionar.

— Quer que eu leve o seu carro? Perguntou Bosch. — Não me incomodo de deixar o meu aqui.

— Não, tudo bem, Harry. Vou deixar o meu e volto para buscar depois. Você não ia gostar muito do que tem no meu som, de qualquer jeito.

— O equivalente musical a cachorro-quente de tofu?

— Para você sim, provavelmente.

— Ok, então eu levo o meu. Bosch disse aos dois policiais para enfiar Chang na traseira da radiopatrulha e guardar a mala no porta-malas. Então Harry falou sério com Chu.

— Vou pôr o Ferras para trabalhar nos mandados de busca das coisas do Chang. Qualquer coisa que ele admitir pode ajudar na determinação da causa provável. O fato de ele ter dito que tinha um voo para tomar é uma admissão de que ia fugir. Tenta fazer ele abrir o bico quando estiver com ele no banco de trás.

— Mas ele já falou que quer um advogado.

— Faz parecer que está jogando conversa fora. Não um interrogatório. Tenta descobrir para onde ele estava indo. Isso vai ajudar o Ignácio. E não se esquece de esticar o passeio. Faz o caminho mais bonito.

— Certo. Eu sei o que fazer.

— Ok, vou ficar aqui esperando o guincho. Se você chegar no PAB antes de mim, põe o Chang numa sala e deixa ele cozinhando. Não esquece de ligar a câmera, o Ignácio mostra como é. A gente nunca sabe, às vezes esses caras sentam numa sala durante uma hora sozinhos e começam a confessar pras paredes.

— Entendido.

— Boa sorte.


Chu entrou no banco traseiro da radiopatrulha ao lado de Chang e fechou a porta. Bosch bateu duas vezes no teto e então ficou olhando enquanto o carro se afastava.


* * *


Dezesseis

ERA QUASE uma quando Bosch retornou à sala da delegacia. Havia esperado pelo guincho e depois voltara sem pressa, parando no In-N-Out perto do aeroporto para comer um hambúrguer. Encontrou Ignácio Ferras sentado em seu cubículo, trabalhando no computador.


— Em que pé estamos? Perguntou.

— Estou quase terminando a petição para o mandado de busca.

— O que a gente está tentando?

— Tenho um atestado a caminho para a mala, o celular e o carro. O carro está na garagem do departamento?

— Acabou de ser rebocado. E o apartamento dele?

— Liguei no Informações da promotoria e expliquei para a mulher o que a gente estava fazendo. Ela sugeriu duas frentes. Esses três que eu falei para você e depois a gente torce para aparecer alguma coisa que forneça causa provável para o apartamento. Ela disse que a gente não tem margem legal para o apartamento, por enquanto.

— Ok, você está com um juiz esperando isso?

— Estou, liguei para o assistente da juíza Champagne. Ela põe a gente dentro assim que eu estiver pronto. Parecia que Ferras tinha tudo sob controle e estava agindo rápido. Bosch ficou bem impressionado.

— Parece bom. Onde está o Chu?

— Da última vez que vi estava na sala de vídeo, vigiando o cara.


Antes de se juntar a Chu, Bosch foi até seu cubículo e jogou as chaves sobre a mesa. Viu que Chu deixara a pesada mala de Chang ali e embalara todos os objetos do suspeito e deixara em cima da mesa. Havia sacos de evidência contendo a carteira, o passaporte, dinheiro, chaves, celular e a passagem aérea de Chang, que ele aparentemente imprimira em casa. Bosch leu a passagem aérea através do plástico e viu que Chang tinha um voo pela Alaska Airlines para Seattle. Isso o fez parar para pensar, pois estivera esperando descobrir que Chang fosse viajar para a China. Um voo para Seattle não sustentava exatamente uma alegação de tentativa de fugir do país para evitar a justiça.


Pôs o saco plástico na mesa e pegou o outro contendo o celular. Teria sido muito fácil para ele abrir rapidamente o aparelho e verificar o registro de chamadas com os números dos comparsas de Chang. Talvez encontrasse até uma chamada de algum número pertencendo a um policial de Monterey Park, a Chu ou a quem quer que houvesse dado a dica para Chang sobre a investigação em torno dele. Talvez o celular tivesse um e-mail ou mensagens de texto que ajudariam a montar o caso de homicídio contra Chang. Mas Bosch decidiu agir segundo as regras. O resultado disso era incerto e tanto o departamento como a promotoria contavam, antes de ter acesso aos dados do telefone de um suspeito, com detetives encarregados de buscar as vias competentes para obter uma aprovação judicial. A menos, é claro, que a permissão fosse concedida pelo próprio suspeito. Abrir o celular era tratado da mesma maneira que abrir o porta-malas de um carro detido no trânsito. Você precisaria fazer do jeito correto, ou qualquer coisa que encontrasse no porta-malas poderia ser descartado do processo pelo tribunal.


Bosch deixou o celular de lado. Talvez contivesse algo para elucidar o caso, mas ele esperaria pela aprovação da juíza Champagne. Nesse exato momento, o telefone em sua mesa zumbiu. O identificador de chamada no aparelho dizia X, significando que era uma ligação transferida de Parker Center. Ele atendeu.


— Bosch falando. Ninguém do outro lado. — Alô. Aqui é o detetive Bosch, em que posso ajudar? — Bosch... Melhor ajudar você mesmo. A voz era nitidamente asiática.

— Quem está falando?

— Faz um favor para você mesmo e cai fora, Bosch. O Chang não está sozinho. Somos muitos. Cai fora dessa merda. Se não, você vai ter que lidar com as consequências.

— Escuta aqui, seu...


O outro desligou. Bosch pôs o fone no gancho e ficou olhando para o visor em branco. Sabia que podia ir até a central de comunicações em Parker Center e rastrear o número daquela ligação. Mas sabia também que alguém ligando para fazer uma ameaça teria bloqueado o número, usado um telefone público ou um celular descartável. Ninguém seria tão estúpido a ponto de utilizar um número passível de ser rastreado. Em vez de se preocupar com isso, ele se concentrou no momento em que a ligação foi feita e no conteúdo do que foi dito. De alguma forma, os comparsas da tríade de Chang já sabiam que ele havia sido detido. Bosch voltou a verificar a passagem e viu que o voo estava planejado para sair às 11h20. Isso significava que o avião ainda estava no ar e não tinha como acontecer de alguém esperando em Seattle por Chang saber que ele não estava entre os passageiros. Entretanto, os amigos de Chang de algum modo sabiam que ele estava nas mãos da polícia. Também conheciam Bosch pelo nome.


Mais uma vez pensamentos negros invadiram a mente de Bosch. A menos que Chang fosse se encontrar com alguém para viajar junto com ele no Aeroporto de Los Angeles ou estivesse sendo observado o tempo todo em que Bosch o observava, a evidência mais uma vez apontava para um vazamento na investigação. Ele deixou seu cubículo e foi direto para a central de vídeo. Era uma minúscula alcova de aparelhos eletrônicos entre as duas salas de interrogatório da DRH. As salas de interrogatório monitoravam som e imagem e o espaço entre as duas era onde os suspeitos podiam ser observados no equipamento de gravação. Bosch abriu a porta e encontrou Chu e Gandle ali olhando Chang no monitor. A entrada de Bosch fez o lugar ficar abarrotado.


— Alguma coisa? Perguntou Bosch.

— Nem uma palavra até agora, disse Gandle.

— E no carro?

— Nada, disse Chu. — Tentei puxar conversa e tudo que ele disse foi que queria um advogado. Isso encerrou o assunto.

— O cara é uma rocha, disse Gandle.

— Eu vi a passagem dele, disse Bosch. — Seattle também não adianta muita coisa para a gente.

— Não, na verdade adianta, disse Chu.

— Como?

— Ele queria ir até Seattle para atravessar a fronteira para Vancouver. Tenho um contato na RCMP e ele conseguiu verificar as listas de passageiro para mim. Chang agendou um voo essa noite de Vancouver para Hong Kong. Cathay Pacific Airways. Isso mostra sem sombra de dúvida que ele estava tentando fugir com rapidez e sigilo. Bosch balançou a cabeça.

— Royal Canadian Mounted Police? Você foi fundo, Chu. Bom trabalho.

— Obrigado.

— Você contou isso para o Ignácio? A tentativa de Chang de apagar as pegadas vai ajudar com a causa provável para o mandado de busca.

— Ele sabe. Já incluiu isso.

— Ótimo.


Bosch olhou para o monitor. Chang estava sentado a uma mesa com os pulsos algemados diante do corpo em um anel de ferro aparafusado no centro da mesa. Seus ombros musculosos pareciam prestes a rasgar a costura de sua camiseta. Sentava-se com as costas muito eretas e fitando de olhar vazio a parede diretamente diante de si.


— Tenente, até quando é confortável para o senhor deixar isso em banho-maria antes de autuar o cara? Gandle pareceu preocupado. Não gostava de ficar contra a parede com alguma coisa que depois podia reagir acertando-o de volta.

— Bom, a gente já esticou bastante. Chu me contou que você fez ele vir pelo roteiro turístico. Se demorar muito mais, pode acontecer de o juiz levantar alguma lebre contra a gente.


Bosch olhou o relógio. Precisavam de mais cinquenta minutos antes de permitir que Chang ligasse para seu advogado. O processo de autuar um prisioneiro envolvia preencher a papelada, tirar impressões digitais e depois realizar a transferência do prisioneiro para a cadeia, quando então ele teria acesso a um telefone.


— Ok, vamos começar o procedimento. Só vamos andar devagar. Chu, entra lá e começa a preencher o formulário com ele. Se tivermos sorte, ele não vai cooperar e isso só vai servir para demorar mais. Chu concordou.

— Entendido.

— A gente não vai pôr ele numa cela até as duas no mínimo.

— Certo.


Chu se espremeu entre o tenente e Bosch e deixou a saleta. Gandle ameaçou pegar a deixa, mas Bosch deu um tapinha em seu ombro e sinalizou que ficasse. Bosch esperou até que a porta estivesse fechada antes de falar.


— Acabei de receber uma ligação. Uma ameaça. Alguém me disse para cair fora.

— Cair fora do quê?

— Do caso. Chang. Cair fora de tudo.

— Como você pode saber que a ligação tem a ver com o caso?

— Porque o cara que ligou era asiático e mencionou Chang. Disse que Chang não estava sozinho, que eu precisava cair fora ou sofreria as consequências.

— Você tentou rastrear? Acha que é sério?

— Rastrear teria sido perda de tempo. E quanto às ameaças, manda vir. Estou só esperando. Mas a questão é: como eles sabiam?

— Sabiam o quê?

— Que a gente pegou o Chang. A gente traz ele para o prédio e, duas horas depois, algum babaca da tríade liga e me diz para cair fora da investigação. A gente está com um vazamento, tenente. Primeiro o Chang recebe um toque, agora eles sabem que pegamos o cara. Alguém está conversando com...

— Ei, ei, ei, a gente não sabe disso, Harry. Pode ter uma explicação.

— Ah, é? Então como eles sabem que a gente pegou o Chang?

— Pode ser um monte de coisa, Harry. Ele estava com um celular. Vai ver era para entrar em contato quando chegasse no aeroporto. Pode ser qualquer coisa. Bosch balançou a cabeça. Seus instintos lhe diziam o contrário. Havia um vazamento em algum lugar. Gandle abriu a porta. Não estava gostando da conversa e queria sair logo da sala. Mas virou e olhou para Bosch antes de ir.

— Melhor tomar cuidado com isso, disse. — Até conseguir provar uma coisa dessas com certeza, melhor tomar muito cuidado. Gandle fechou a porta atrás de si, deixando Bosch sozinho na sala. Harry virou para a tela de vídeo e viu que Chu entrara na sala de interrogatório. Ele sentou diante de Chang com uma caneta e uma prancheta, pronto para preencher o formulário de detenção.

— Sr. Chang, preciso lhe fazer algumas perguntas, agora.


Chang não respondeu. Não mostrou qualquer reconhecimento em seus olhos ou em sua linguagem corporal de que sequer escutara a pergunta. Chu em seguida traduziu isso para o chinês, mas Chang novamente permaneceu mudo e imóvel. Isso não foi surpresa para Bosch. Ele deixou o lugar e foi para a sala da delegacia, ainda se sentindo preocupado e agitado com a ameaça por telefone e a aparente falta de interesse de Gandle sobre aquilo ou o vazamento que estaria por trás dela. O cubículo de Ferras estava vazio agora, e Bosch presumiu que ele já havia saído com a petição do mandado de busca para sua reunião com a juíza Champagne.


Tudo dependia do mandado de busca. Tinham Chang por tentativa de extorsão contra Robert Li, se Li concordasse em dar queixa e testemunhar, mas não chegavam nem perto do homicídio. Bosch tinha esperança de um efeito dominó. O primeiro mandado de busca produziria evidência que sustentaria a necessidade de outros mandados de busca que acabariam conduzindo ao grande prêmio, a arma do crime, escondida em algum lugar no apartamento ou no local de trabalho de Chang.


Sentou em sua mesa e pensou em ligar para Ferras para ver se a juíza assinara o mandado, mas sabia que era muito cedo e que Ferras ligaria no minuto em que obtivesse a permissão para as buscas. Esfregou os olhos com os cantos das mãos. Tudo relacionado ao caso estava em compasso de espera até a assinatura da juíza. Tudo que podia fazer era esperar. Mas então lembrou que, um pouco antes, havia recebido uma mensagem com vídeo de sua filha, e que ainda não dera uma olhada. Sabia que já estaria dormindo havia um bom tempo, a essa altura, eram mais de quatro da manhã. Sábado, em Hong Kong. A menos que tivesse ido passar a noite na casa de alguma amiga. Nesse caso, talvez ficasse acordada a noite toda, mas de todo jeito não ia querer o pai ligando.


Ele tirou o celular e abriu. Ainda estava se acostumando com todos os toques e campainhas tecnológicos do aparelho. No último dia da visita mais recente de sua filha em Los Angeles, haviam ido a uma loja para que ela escolhesse celulares para ambos, algum modelo que lhes permitisse se comunicar em múltiplos níveis. Ele não usava muito os recursos para e-mail, mas sabia como abrir e enviar os vídeos de trinta segundos que ela gostava de mandar. Ele salvava todos e muitas vezes voltava a assistir, repetidamente.


Bo-Jing Chang temporariamente sumiu de seus pensamentos. A preocupação com o vazamento ficou em segundo plano. Bosch tinha um sorriso ansioso no rosto quando apertou o botão e abriu a última mensagem de vídeo dela.


* * *


Dezessete

BOSCH ENTROU na sala de interrogatório e deixou a porta aberta. Chu estava no meio de uma pergunta, mas parou e ergueu o rosto ao ser interrompido.


— Ele não está respondendo? Perguntou Bosch.

— Não disse uma palavra.

— Deixa eu tentar um pouco.

— Hã, claro, Harry. Ele ficou de pé e Bosch se moveu para o lado, de modo que pudesse sair da sala. Passou a prancheta para Bosch.

— Boa sorte, Harry.

— Obrigado.


Chu saiu, fechando a porta atrás de si. Bosch aguardou um momento até ter certeza de que ele se fora, então deu a volta agilmente por trás de Chang. Bateu com a prancheta em sua cabeça e o agarrou em volta do pescoço com seus braços. Sua fúria estava fora de controle. Sufocava o outro num mata-leão que havia muito tempo fora banido do departamento. Sentiu Chang ficando tenso conforme percebia que seu fluxo de ar fora cortado.


— Ok, filho da puta, a câmera tá desligada e a sala é à prova de som. Onde ela tá? Te mato agora mesmo se...


Chang se jogou para trás na cadeira, arrancando do tampo da mesa o anel de ferro onde as algemas estavam presas. Ele esmagou as costas de Bosch contra a parede atrás dos dois e caíram juntos no chão. Bosch continuou a segurar e apertou ainda mais. Chang lutou como um animal, usando os pés contra uma das pernas aparafusadas da mesa como alavanca e repetidamente esmagando Bosch no canto da sala.


— Onde ela tá? Gritou Bosch.


Chang grunhia, mas não dava o menor sinal de que estivesse perdendo as forças. Embora seus pulsos estivessem algemados, ainda assim era capaz de girar os braços juntos por cima da cabeça como um porrete. Tentava acertar o rosto de Bosch ao mesmo tempo em que usava seu corpo para esmagar Harry no canto. Bosch se deu conta de que o mata-leão não estava funcionando e que o melhor seria soltar e partir para o ataque. Largou o pescoço e segurou o pulso de Chang numa de suas tentativas de golpeá-lo. Mudou o peso do corpo e desviou o golpe para o lado. Os ombros de Chang viraram com o impulso do movimento e Bosch conseguiu ficar por cima dele no chão. Bosch ergueu as duas mãos e deu um soco como um martelo na nuca de Chang.


— Eu falei onde ela...

— Harry! A voz veio de trás. Era Chu.

— Ei! Chu gritou para a sala da delegacia. — Ajudem aqui!


A distração permitiu a Chang se erguer parcialmente e passar os joelhos sob o corpo. Então fez força para subir e jogou Bosch contra a parede e no chão. Chu pulou nas costas de Chang e lutou para voltar a derrubá-lo. Passos apressados surgiram e logo mais homens se espremiam na minúscula sala. Todos se empilharam sobre Chang, esmagando-o brutalmente contra o chão com o rosto espremido no canto. Bosch rolou para o lado, tentando recuperar o fôlego. Por um momento, todos ficaram em silêncio e a sala de interrogatório se encheu do som de homens respirando pesadamente. O tenente Gandle apareceu em seguida na porta aberta.


— O que está acontecendo aqui? Curvou-se para olhar o buraco no tampo da mesa. O parafuso obviamente não fora reforçado como deveria do lado de baixo. Uma das inúmeras coisas malfeitas que sem dúvida viriam à tona no novo prédio.

— Não sei, disse Chu. — Voltei para buscar o meu paletó e os dois estavam brigando. Todos os olhos se voltaram para Bosch.

— Eles pegaram a minha filha, disse.


* * *


Dezoito

BOSCH ESTAVA na sala de Gandle. Mas não parado. Não conseguia ficar parado. Andava de um lado para o outro diante da mesa. O tenente lhe dissera duas vezes para sentar, mas Bosch não obedeceu. Não com o terror crescendo dentro de seu peito.


— O que foi tudo isso, Harry? Bosch tirou o celular e abriu.

— Eles estão com ela. Apertou o botão do play no programa de vídeo, então passou o celular para Gandle, que permanecia sentado atrás de sua mesa.

— Como assim, “Estão com...”? Parou ao assistir o vídeo.

— Meu Deus... Meu D... Harry, como você sabe que isso é real?

— Do que você está falando? É claro que é real. Eles estão com ela e aquele cara sabe quem e onde! Apontou na direção da sala de interrogatório. Estava andando mais rápido, agora, como um tigre enjaulado.

— Como se mexe nisso? Quero ver de novo. Bosch pegou o celular e reiniciou o vídeo.

— Preciso entrar lá com ele outra vez, disse Bosch enquanto Gandle assistia. — Preciso fazer com que ele fale...

— Você não vai nem chegar perto dele, disse Gandle sem erguer o rosto. — Harry, onde ela está, em Hong Kong?

— É, Hong Kong, e é para lá que ele estava indo. É de lá que ele veio e é lá que fica a base da tríade. E eles também me ligaram. Eu falei para você. Disseram que eu ia sofrer as consequências se...

— Ela não diz nada aqui. Ninguém diz nada. Como você sabe que é o pessoal do Chang?

— É a tríade! Eles não precisam dizer nada! O vídeo diz tudo. Estão com ela. Essa é a mensagem!

— Tá, tá, vamos pensar um pouco. Eles estão com ela e qual é a mensagem? O que era para você fazer?

— Soltar o Chang.

— Como assim, simplesmente deixar que ele saísse andando daqui?

— Não sei. É, arquivar o caso de algum jeito. Perder a evidência ou, melhor ainda, parar de procurar pela evidência. Por enquanto a gente não tem prova suficiente para segurar ele depois da segunda-feira. É isso que eles querem, que a gente solte ele. Olha, não posso ficar aqui. Tenho que...

— A gente precisa levar isso para o laboratório. É a primeira coisa. Já ligou para sua ex-mulher para ver o que ela sabe?


Bosch se deu conta de que, no pânico imediato após ver o vídeo, não havia ligado para sua ex, Eleanor Wish. Tentara primeiro ligar para a filha. Depois, como ninguém atendeu, foi na mesma hora confrontar Chang.


— Tem razão. Me dá isso.

— Harry, isso tem que ir para o laborat...


Bosch se curvou por sobre a mesa e tirou o aparelho da mão de Gandle. Mudou para a função de telefone e apertou o número de Eleanor Wish na discagem automática. Olhou o relógio enquanto esperava a ligação ser completada. Eram quase cinco da manhã. Sábado, em Hong Kong. Ele não entendeu por que ainda não havia sido procurado por Eleanor se a filha havia sumido.


— Harry?


A voz estava alerta. Não havia sido tirada do sono.


— Eleanor, o que está acontecendo? Onde está a Madeline?


Ele saiu do escritório de Gandle e foi na direção de seu cubículo.


— Não sei. Ela não me ligou e não atende o celular. Como você sabe o que está acontecendo?

— Não sei, mas recebi uma... uma mensagem dela. Me diz o que você sabe.

— O que ela disse na mensagem?

— Não disse nada. Era um vídeo. Olha, só me explica o que está acontecendo aí.

— Ela não voltou para casa depois da escola e do shopping. Como é sexta-feira, eu deixo ela sair com as amigas. Normalmente ela me liga às seis e pede para ficar um pouco mais, só que dessa vez ela não ligou. Quando vi que não chegava em casa, comecei a ligar, mas ela não atendia. Deixei um monte de mensagens e fiquei louca da vida. Você sabe como ela é, provavelmente ficou com raiva também e não veio para cá. Liguei para todas as amigas dela e todas disseram que não sabem onde ela está.

— Eleanor, são mais de cinco da manhã aí. Você chamou a polícia?

— Harry...

— O quê?

— Ela já fez isso antes.

— Do que você está falando?


Bosch afundou pesadamente em sua cadeira e se encolheu, segurando o celular com força sobre a orelha.


— Ela já ficou na casa de uma amiga a noite toda para me “dar uma lição”, disse Eleanor. — Cheguei a ligar para a polícia e foi muito constrangedor, porque no fim acharam ela com a amiga. Desculpe não ter contado para você. Mas nós duas andamos com uns problemas. Ela está naquela idade, sabe? Age como se fosse bem mais velha do que é de verdade. E parece que não anda muito ligada em mim no momento. Fala em querer morar em Los Angeles com você. Ela... Bosch interrompeu.

— Escuta, Eleanor, entendo tudo isso, mas agora é diferente. Aconteceu alguma coisa.

— Como assim?


O pânico tomou conta de sua voz. Bosch reconheceu seu próprio medo nela. Ficou relutante em lhe contar sobre o vídeo, mas sentiu que Precisaria fazê-lo. Precisava saber. Descreveu os trinta segundos de vídeo, sem deixar nada de fora. Eleanor emitiu um som agudo que apenas uma mãe seria capaz de fazer por uma filha desaparecida.


— Ai, meu Deus, ai, meu Deus.

— Eu sei, mas a gente vai trazer ela de volta, Eleanor. Eu...

— Por que mandaram isso para você e não para mim? Ele percebeu que ela começava a chorar. Estava perdendo o controle. Ele não respondeu a pergunta porque sabia que só tornaria as coisas piores.

— Escuta, Eleanor, a gente precisa trabalhar juntos nisso. Você precisa fazer isso, por ela. Você está aí, eu não.

— O que eles querem, dinheiro?

— Não...

— Então o quê? Bosch tentou falar calmamente, na esperança de que a calma fosse transmitida para o lado de lá quando o impacto das palavras a atingisse.

— Acho que é uma mensagem para mim, Eleanor. Não estão pedindo dinheiro. Só estão me dizendo que estão com ela.

— para você? Por quê? O que eles... Harry, o que você fez? Ela fez essa última pergunta em tom de acusação. Bosch temeu que pudesse ser uma pergunta que o torturaria pelo resto da vida.

— Estou em um caso envolvendo uma tríade chinesa. Acho...

— Eles pegaram ela por causa de você? Como podiam saber sobre ela?

— Ainda não sei, Eleanor. Estou trabalhando nisso. Temos um suspeito sob cust...


Mais uma vez ela o cortou, agora com outro gemido. Era o som do pior pesadelo de qualquer pai ganhando vida. Nesse momento, Bosch percebeu o que devia fazer. Baixou a voz um pouco mais quando falou.


— Eleanor, me escute. Preciso que você mantenha a calma. Você vai ter que começar a ligar para umas pessoas. Estou indo para aí. Chego antes do amanhecer no domingo. Enquanto isso, você precisa procurar as amigas dela. Precisa descobrir com quem ela estava no shopping e onde ela foi. Qualquer coisa que puder descobrir sobre o que aconteceu. Está me ouvindo, Eleanor?

— Vou desligar e chamar a polícia.

— Não!


Bosch olhou em torno e viu que seu grito havia chamado a atenção de toda a sala da delegacia. Após o incidente na sala de interrogatório, ele já se tornara objeto de preocupação da delegacia inteiro. Afundou um pouco mais em sua cadeira e se curvou sobre a mesa de modo que ninguém pudesse vê-lo.


— O quê? Harry, a gente tem...

— Me escute primeiro e então você faz o que achar melhor. Acho que você não devia chamar a polícia. Ainda não. A gente não pode correr o risco de as pessoas que estão com ela ficarem sabendo. Pode ser que a gente nunca mais ache ela se isso acontecer.


Ela não respondeu. Bosch ouviu que chorava.


— Eleanor? Escuta! Você quer achar ela ou não? Se controle. Você foi agente do FBI! Você consegue. Preciso que aja como uma agente até eu chegar aí. Vou mandar analisar o vídeo. No vídeo, ela chutou a câmera e tirou do lugar. Deu para ver uma janela. Talvez consigam alguma coisa com isso. Vou pegar um avião hoje e vou direto te procurar quando chegar. Entendeu tudo? Houve um longo momento antes de Eleanor responder. Quando respondeu, sua voz estava calma. Havia recebido o recado.

— Entendi, Harry. Ainda acho que a gente precisa ligar para a polícia de Hong Kong.

— Se é isso que você acha, então tudo bem. Liga. Conhece alguém aí? Alguém em quem confie?

— Não, mas eles têm um bureau para a tríade. Eles frequentam o cassino.


Quase vinte anos afastada de sua época de agente, Eleanor era uma jogadora de cartas profissional. Havia pelo menos seis anos que morava em Hong Kong, trabalhando para o Cassino Cleópatra, perto de Macau. Todos os apostadores altos do continente queriam jogar contra a gweipo, a mulher branca. Ela era um chamariz. Jogava com o dinheiro da casa, ficava com parte dos ganhos e não arcava com nada das perdas. Era uma vida confortável. Ela e Maddie viviam num arranha-céu de luxo em Happy Valley e o cassino enviava um helicóptero para buscá-la no terraço quando era hora de trabalhar. Confortável até agora.


— Conversa com seu pessoal no cassino, disse Bosch. — Se tiver alguém em quem eles disserem que você pode confiar, então liga. Preciso desligar e ir para aí. Mando notícia antes de entrar no avião. Ela respondeu como que num transe.

— Tudo bem, Harry.

— Se descobrir alguma coisa, qualquer coisa, me liga.

— Tudo bem, Harry.

— Eleanor?

— O que foi?

— Vê se consegue uma arma para mim. Não posso levar a minha.

— Arma dá cadeia aqui.

— Eu sei disso, mas você conhece gente no cassino. Me arrume uma arma.

— Vou tentar.


Bosch hesitou antes de desligar. Desejava poder esticar a mão e tocá-la, tentar de algum modo acalmar seus temores. Mas sabia que isso era impossível. Não conseguia nem acalmar os seus próprios medos.


— Certo, preciso ir. Tenta ficar calma, Eleanor. Pela Maddie. Se a gente mantiver a calma, a gente consegue.

— A gente vai trazer ela de volta, não vai, Harry? Bosch balançou a cabeça para si mesmo antes de responder.

— Isso mesmo. A gente vai trazer ela de volta.


* * *


Dezenove

AUNIDADE de Imagem Digital (UID) era um dos subgrupos da Divisão de Investigação Científica (DIC) e continuava localizada no antigo quartel-general da polícia em Parker Center. Bosch atravessou as duas quadras entre os prédios novo e velho como um homem atrasado para um voo. No momento em que cruzou as portas de vidro do edifício onde passara a maior parte de sua carreira como detetive, estava arfando e havia um brilho de suor em sua testa. Passou mostrando o distintivo pelo balcão da recepção e tomou o elevador para o terceiro andar.


A DIC estava se preparando para a mudança para o PAB. As velhas mesas e bancadas de trabalho continuavam no lugar, mas o equipamento, os registros e os pertences pessoais estavam sendo encaixotados. O processo era cuidadosamente orquestrado e retardava ainda mais o andamento já moroso da ciência no combate ao crime. A UID era um conjunto de duas salas nos fundos. Bosch entrou e viu pelo menos uma dúzia de caixas de papelão empilhadas num canto da primeira sala. Não havia quadros nem mapas nas paredes e diversas prateleiras haviam sido esvaziadas. Encontrou um técnico trabalhando no laboratório do fundo.


Barbara Starkey era uma veterana que passara por diversas especialidades na DIC ao longo de quase quatro décadas no departamento. Bosch a conhecera quando era uma policial novata montando guarda nas ruínas fumegantes de uma casa, onde a polícia travara um terrível tiroteio com membros do Exército Simbionês de Libertação. Os militantes radicais haviam reivindicado o crédito pelo sequestro da herdeira do império jornalístico Patty Hearst. Starkey na época era da equipe forense, chamada para determinar se os restos mortais de Patty Hearst estavam no meio aos destroços da casa. Na época, o departamento tinha por prática deslocar as candidatas femininas para posições em que os confrontos físicos e a necessidade de portar arma fossem mínimos. A vontade de Starkey era ter entrado para a polícia. Acabou indo parar na DIC e desse modo assistiu em primeira mão ao explosivo crescimento da tecnologia no uso da detecção criminal. Como gostava de dizer aos técnicos novatos, quando entrou para a equipe forense, DNA eram apenas três letras no alfabeto. Agora ela era uma especialista em quase todas as áreas da investigação forense, e seu filho, Michael, também estava na divisão, trabalhando como especialista em vestígios de sangue.


Starkey ergueu o rosto da estação de trabalho. Na sua frente, havia uma tela dupla de computador em que estava observando o vídeo granulado de um assalto a banco. Nas telas havia imagens dobradas, uma mais focada que a outra, de um homem apontando a arma para o guichê do caixa.


— Harry Bosch! A que devo a honra? Bosch não tinha tempo para gracejos. Aproximou-se e foi direto ao ponto.

— Barb, preciso da sua ajuda. Starkey franziu o rosto quando notou a urgência em sua voz.

— Qual o problema, meu bem? Bosch mostrou seu celular.

— Tem um vídeo no meu telefone. Preciso ampliar e passar devagar para ver se consigo identificar a localização. É um sequestro. Gesticulando na direção da tela, Starkey disse:

— Estou bem no meio de uma dois-onze na West...

— Minha filha sumiu, Barbara. Preciso da sua ajuda imediatamente. Dessa vez Starkey não hesitou.

— Deixa eu ver.


Bosch abriu o celular e iniciou o vídeo, depois deu o aparelho na mão dela. Ela assistiu sem fazer nenhum comentário e sem exibir qualquer outra reação não profissional no rosto. Quando muito, Bosch notou que sua postura se enrijecera e transmitia uma aura de urgência profissional.


— Ok, pode me enviar isso?

— Não sei. Não sei como mandar isso para o seu telefone.

— Consegue enviar um e-mail com um anexo nisso aqui?

— Consigo enviar e-mail, mas não sei sobre o anexo. Nunca tentei. Starkey lhe mostrou como fazer e ele enviou para ela um e-mail com o vídeo anexado.

— Ok, agora a gente espera chegar. Antes que Bosch pudesse perguntar quanto tempo demorava, o computador emitiu um som. — Pronto.


Starkey fechou seu trabalho do assalto ao banco, depois abriu seu e-mail e baixou o vídeo. Logo estava com ele passando na tela esquerda. Vendo em tela cheia, a imagem ficava borrada por causa dos pixels estourados. Starkey reduziu para cinquenta por cento e a imagem ficou mais clara. Muito mais clara e mais brutal do que quando Bosch a vira em seu celular. Harry olhou para sua filha e precisou de todas as forças para não perder a concentração.


— Sinto muito, Harry, disse Starkey.

— Eu sei. Não vamos falar nisso.


Na tela, Maddie Bosch, de 13 anos, aparecia amarrada a uma cadeira. Uma mordaça feita de tecido vermelho brilhante apertava sua boca. Estava vestindo o uniforme escolar, uma saia xadrez azul e blusa branca com o timbre da escola acima do peito esquerdo. Olhava para a câmera, a câmera de seu próprio celular, com olhos que partiram o coração de Bosch. Desespero e pavor foram as duas primeiras palavras que passaram por sua mente para descrever aquilo. Não havia som algum, ou de início ninguém disse nada, no vídeo. Durante 15 segundos a câmera permaneceu fechada nela e isso foi tudo. Estava simplesmente sendo mostrada para ele. A raiva voltou a tomar conta de Bosch. E a impotência. Então a pessoa atrás da câmera surgiu no enquadramento e puxou a mordaça momentaneamente da boca de Maddie.


— Pai!


A mordaça foi devolvida ao lugar imediatamente, abafando o que ela gritou depois disso e tornando impossível para Bosch interpretar. A mão então desceu, numa tentativa de acariciar um dos seios da menina. Ela reagiu violentamente, se jogando para o lado com o corpo amarrado e chutando o braço de seu captor com a perna esquerda. A imagem do vídeo ficou caótica por um instante e depois voltou a mostrar Maddie. Ela estava caída em sua cadeira. Durante os últimos cinco segundos de vídeo a câmera apenas continuou a filmá-la. Depois a tela ficou escura.


— Nenhum pedido, disse Starkey. — Só mostram ela.

— É um recado para mim, disse Bosch. — Estão me avisando para cair fora da investigação.


Starkey não respondeu de início. Pôs as duas mãos em um painel de edição conectado ao teclado do computador. Bosch sabia que, manipulando os controles, ela conseguia fazer o vídeo avançar e retroceder com muita precisão.


— Harry, vou repassar isso quadro a quadro, mas vai levar algum tempo, disse. — Você tem trinta segundos de vídeo aqui.

— Posso repassar junto com você.

— Acho que seria melhor se você me deixasse fazer meu trabalho e então eu ligo assim que encontrar alguma coisa. Confia em mim, Harry. Sei que ela é sua filha. Bosch assentiu. Sabia que precisaria deixá-la trabalhar sem ninguém fungando em seu pescoço. Daria melhores resultados.

— Ok. Posso só dar uma olhada na hora do chute, depois deixo você com ele? Quero ver se tem alguma coisa aí. Ele balançou a câmera quando ela chutou, e uma luz brilhou. Parecia uma janela.


Starkey fez o vídeo voltar até o ponto em que Maddie chutava seu agressor. Em tempo real, aquele momento era um borrão de movimento súbito e luz seguido de uma rápida correção de volta à garota. Mas agora, no stop motion da reprodução quadro a quadro, Bosch viu que a câmera se movera momentaneamente para o lado esquerdo do lugar, passando por uma janela, antes de voltar.


— Muito bom, Harry, disse Starkey. — Talvez a gente tenha alguma coisa aqui.


Bosch se curvou para olhar por cima do ombro dela e ficar mais próximo. Starkey fez o vídeo voltar e o passou vagarosamente mais uma vez. O esforço de Maddie em chutar o braço estendido de seu sequestrador fez o enquadramento pular para a esquerda e na sequência mostrar o chão. Depois, ao subir de volta, passava pela janela e era corrigido para a direita novamente.


O quarto parecia ser de algum hotel barato com uma cama de solteiro, mesa e uma luminária diretamente atrás da cadeira em que Maddie estava amarrada. Bosch notou um tapete bege sujo com uma variedade de manchas. A parede acima da cama estava pontilhada de buracos feitos por pregos usados para a decoração de parede. As fotos ou pinturas possivelmente haviam sido removidas para tornar o lugar mais difícil de identificar. Starkey retrocedeu o vídeo até a janela e congelou ali. Era uma janela vertical com uma única vidraça que se abria para fora como uma porta. Ao que parecia, não havia veneziana de nenhum tipo. A manivela de abrir fora girada ao máximo e no vidro se via o reflexo de uma paisagem urbana.


— Onde você acha que fica isso, Harry?

— Hong Kong.

— Hong Kong?

— Ela mora lá com a mãe.

— Bom...

— Bom o quê?

— É só que isso vai tornar mais difícil para a gente determinar a localização. Você conhece bem Hong Kong?

— Tenho ido lá duas vezes por ano há mais ou menos seis anos. Só tenta limpar a imagem, se puder. Consegue deixar essa parte maior? Usando o mouse, Starkey contornou a janela e depois moveu uma cópia dessa parte do vídeo para a segunda tela. Então ampliou a imagem e melhorou a nitidez com algumas ferramentas.

— Faltam pixels, Harry, mas existe um programa que mais ou menos preenche o que está faltando, a gente consegue melhorar um pouco o foco da imagem. Pode ser que dê para reconhecer alguma coisa no reflexo.


Bosch balançou a cabeça, mesmo estando atrás dela. Na segunda tela, o reflexo na janela se tornou uma imagem mais nítida com três diferentes níveis de profundidade. A primeira coisa que Bosch notou foi que a localização do quarto era muito alta. O reflexo mostrava uma via acompanhando a rua de uma distância de no mínimo dez andares de altura, avaliou ele. Dava para ver as laterais dos prédios e o canto de um grande outdoor ou placa de prédio com as letras de uma palavra em inglês, N-O. Havia também uma série de placas no nível da rua com caracteres chineses. Essas, menores e não tão claras. Além desse reflexo, Bosch podia ver edifícios elevados a distância. Reconheceu um deles graças aos dois pináculos brancos no teto. As antenas de rádio gêmeas eram reforçadas por uma barra horizontal e a configuração sempre lembrava a Bosch uma meta de futebol americano. Delineando os prédios havia o terceiro nível de reflexo: uma aresta montanhosa interrompida apenas por uma estrutura em forma de tigela sustentada por duas colunas grossas.


— Isso está sendo de alguma ajuda, Harry?

— Está, sem dúvida. Aqui só pode ser o Kowloon. O reflexo vai do porto até o Central e depois o pico da montanha mais atrás. Esse edifício com um gol de futebol é o Banco da China. Um elemento muito famoso da linha do horizonte. E aqui atrás é o Victoria Peak. Essa estrutura que você vê no topo entre as traves do gol é uma espécie de mirante perto da Peak Tower ali em cima. Então, para refletir tudo isso, tenho certeza absoluta de que o lugar tem que ficar do outro lado do porto, em Kowloon.

— Nunca estive lá, então nada disso tem o menor significado para mim.

— A Hong Kong Central é na verdade uma ilha. Mas tem outras ilhas em volta dela e do outro lado do porto fica Kowloon e uma área que chamam de Novos Territórios.

— Soa complicado demais para mim. Mas se ajuda você, então...

— Ajuda para burro. Você pode imprimir? Ele apontou para a segunda tela com a vista isolada da janela.

— Claro. Mas tem uma coisa meio estranha aqui.

— O que é?

— Está vendo no primeiro plano esse reflexo parcial da placa? Ela usou o cursor para fazer uma caixa em torno das duas letras N e O, parte de uma placa maior, em inglês.

— Certo, o que tem isso?

— Você não pode esquecer que isso é um reflexo na janela. É como um espelho, então está tudo ao contrário. Está entendendo?

— Estou.

— Ok, então todos os cartazes devem estar ao contrário, mas essas letras não estão. Claro, com o O não dá para saber. Tanto faz de um lado ou de outro. Mas o N não está ao contrário, Harry. Então, se você pensar que isso é um reflexo, quer dizer que...

— A placa está ao contrário?

— Isso. Tem que ser assim para aparecer do jeito certo em um reflexo.


Bosch balançou a cabeça. Ela tinha razão. Era estranho, mas não era algo sobre o qual pudesse parar para pensar no momento. Ele sabia que era hora de se mexer. Queria ligar para Eleanor e lhe dizer que achava que a filha deles estava sendo mantida em Kowloon. Talvez isso levasse a alguma dedução por lá. Era um começo, pelo menos.


— Você me faz uma cópia?

— Já estou imprimindo. Demora uns minutos, é de alta resolução.

— Entendi.


Bosch ficou olhando para a imagem na tela, procurando mais algum detalhe que ajudasse. O que mais chamou sua atenção foi um reflexo parcial do próprio prédio onde sua filha estava. Uma fileira de aparelhos de ar-condicionado se projetava sob as janelas. Isso significava que era um edifício mais antigo e talvez fosse de alguma ajuda na identificação do lugar.


— Kowloon, disse Starkey. — Soa como coisa de mau agouro.

— Minha filha me disse o que significa: “Nove Dragões.”

— Não falei? Quem ia chamar o bairro de Nove Dragões se não quisesse espantar as pessoas para longe?

— É por causa de uma lenda. Durante uma das antigas dinastias diziam que o imperador era apenas um menino que foi caçado pelos mongóis até a região onde hoje é Hong Kong. Ele viu os oito picos de montanha em volta e queria chamar o lugar de Oito Dragões. Mas um dos homens que tomava conta dele lembrou para ele que o imperador também era um dragão. Então chamaram de Nove Dragões. Kowloon.

— Sua filha contou essa história?

— É. Ela aprendeu na escola.


O silêncio se seguiu. Bosch podia ouvir a impressora trabalhando em algum lugar atrás dele. Starkey levantou, foi atrás de uma pilha de caixas e tirou a cópia do reflexo da janela da impressora de alta resolução. Entregou a Bosch. Era uma cópia brilhante em papel fotográfico. Tão clara quanto a imagem na tela do computador.


— Valeu, Barbara.

— Ainda não terminei, Harry. Como eu disse, vou olhar o vídeo quadro a quadro, são trinta por segundo, e se tiver mais alguma coisa que possa ajudar, vou descobrir. Também vou examinar a banda sonora separada. Bosch apenas assentiu e baixou o rosto para a imagem impressa em sua mão.

— Você vai encontrar ela, Harry. Tenho certeza.

— É, eu também.


* * *


Vinte

BOSCH LIGOU para a ex-esposa com a discagem automática enquanto voltava para o PAB. Ela atendeu a ligação com uma pergunta ansiosa.


— Harry, alguma coisa?

— Não muito, mas estamos trabalhando nisso. Tenho certeza absoluta de que o vídeo que me enviaram foi filmado em Kowloon. Isso significa alguma coisa para você?

— Não. Kowloon? Por que lá?

— Não faço ideia. Mas talvez a gente consiga localizar o lugar.

— Quer dizer a polícia?

— Não, quero dizer você e eu, Eleanor. Quando eu chegar. Na verdade, ainda tenho que agendar o meu voo. Você ligou para alguém? O que conseguiu?

— Não consegui nada! Ela gritou, surpreendendo Bosch. — Minha filha está por aí em algum lugar e eu não tenho nada! A polícia nem acredita em mim!

— Do que você está falando? Você ligou para eles?

— Liguei, liguei para eles. Não posso ficar sentada aqui só esperando você chegar amanhã. Liguei pro Bureau de Tríade. Bosch sentiu um aperto nas entranhas. Não conseguia se convencer em confiar em estranhos, por mais especialistas que fossem, com a vida de sua filha em jogo.

— O que eles disseram?

— Puseram meu nome no computador e encontraram algo. A polícia tem uma ficha minha. Quem eu sou, para quem eu trabalho. E eles sabiam sobre a outra vez. Quando eu achei que ela tinha sido sequestrada e descobri que estava na casa de uma amiga. Então não acreditaram. Acham que ela fugiu outra vez e que os amigos dela estão mentindo para mim. Disseram para aguardar um dia e ligar de novo se ela não aparecer.

— Você contou a eles sobre o vídeo?

— Contei, mas eles não se importam. Disseram que se não houver pedido de resgate, então provavelmente foi tudo uma encenação dela e das amigas para chamar minha atenção. Eles não acreditam em mim! Ela começou a chorar de frustração e medo, mas Bosch considerou a reação da polícia e achou que isso podia trabalhar a seu favor.

— Eleanor, me escuta, acho que isso foi bom.

— Bom? Como pode ser bom? A polícia não está nem procurando por ela.

— Eu falei para você antes, não quero a polícia. As pessoas que estão com ela vão ver a polícia chegando a um quilômetro de distância. Mas não vão me ver.

— Isso aqui não é Los Angeles, Harry. Você não sabe se virar como faz por aí.

— Vou descobrir como e você vai me ajudar. Houve um longo silêncio antes que ela respondesse. Bosch já estava quase de volta ao PAB.

— Harry, você precisa me prometer que vai trazer ela de volta.

— Eu vou, Eleanor, ele respondeu sem hesitar. — Prometo para você. Vou trazer nossa filha de volta. Ele atravessou o saguão principal, segurando o paletó aberto de modo que o distintivo em seu cinto pudesse ser visto no balcão da recepção, novo e elegante.

— Preciso entrar no elevador agora, disse. — Provavelmente a conexão vai sumir.

— Certo, Harry. Mas ele parou antes de entrar na área dos elevadores.

— Acabei de pensar numa coisa, disse. — Uma das amigas com quem você conversou se chamava He?

— He?

— É, H-E. Maddie disse que significa “rio”. Ela me contou que era uma das amigas com quem costuma ir ao shopping.

— Quando foi isso?

— Você quer dizer quando ela me contou? Há poucos dias. Devia ser terça-feira aí. Terça de manhã, quando ela estava indo para a escola. Eu estava conversando com ela e perguntei sobre aquele problema do cigarro que você me contou. Ela... Eleanor interrompeu fazendo uma espécie de som de desgosto.

— O que foi? Perguntou Bosch.

— É por isso que ela andava me tratando mal ultimamente, disse. — Você me entregou.

— Não, não foi nada disso. Eu mandei uma foto que eu tinha certeza de que ia servir de isca para ela me ligar e fazer o assunto do cigarro aparecer na conversa. Funcionou. E quando falei para ela que fumar não era uma boa escolha, ela mencionou He. Disse que às vezes no shopping o irmão mais velho de He vai junto como acompanhante da irmã, e que ele é quem fuma.

— Não conheço nenhuma amiga dela chamada He, ou o irmão. Acho que isso mostra para você como perdi todo o contato com minha própria filha.

— Escuta, Eleanor, numa hora como essa a gente vai reavaliar tudo que já fez ou disse para ela. Mas isso é uma distração do nosso verdadeiro foco agora. Ok? Não se distrai com o que você fez ou deixou de fazer. Vamos ficar concentrados em trazer ela de volta.

— Ok. Vou procurar outra vez as amigas dela que eu conheço. Vou descobrir sobre He e o irmão.

— Tenta descobrir se o irmão tem alguma ligação com a tríade.

— Vou tentar.

— Preciso desligar, mas tem mais uma coisa. Você ainda não viu nada sobre aquele outro negócio?


Bosch cumprimentou com o queixo um grupo de detetives da DRH que iam na direção do elevador. Eram da Unidade de Abertos/Não Resolvidos, que tinha sua própria sala de esquadrão. Do jeito que olharam para ele, não pareciam fazer ideia do que estava acontecendo. “Isso era bom”, pensou Bosch. Talvez Gandle estivesse mantendo tudo em segredo.


— Quer dizer a arma? Perguntou Eleanor.

— É, isso.

— Harry, ainda nem amanheceu aqui. Vou cuidar disso quando não precisar tirar ninguém da cama.

— Certo, tudo bem.

— Mas vou começar a ligar para perguntar sobre He. Agora mesmo.

— Tudo bem. A gente liga um pro outro se encontrar alguma coisa.

— Tchau, Harry.


Bosch fechou o telefone e se aproximou das portas. Os outros detetives haviam entrado e ele pegou o elevador seguinte. Quando subia sozinho, olhou para o aparelho em sua mão e refletiu sobre o fato de ser alta madrugada em Hong Kong. Era dia no vídeo que havia sido enviado para ele. Isso significava que sua filha podia ter sido sequestrada até 12 horas antes. Não houvera uma segunda mensagem. Ele apertou a discagem rápida com o número dela e mais uma vez a ligação caiu direto na caixa de mensagens. Ele encerrou a ligação e guardou o celular.


— Ela está viva, disse para si mesmo. — Ela está viva.


Deu um jeito de entrar em seu cubículo na DRH sem chamar a atenção de ninguém. Não havia sinal de Ferras ou Chu. Bosch tirou uma agenda de endereços de uma gaveta e abriu na página em que anotara as empresas que faziam voos do Aeroporto de Los Angeles para Hong Kong. Sabia que havia mais de uma opção de empresa aérea, mas não muitas, com o tempo de que dispunha. Todos os voos partiam entre 23h e uma da manhã, com chegada para domingo de manhã. Entre o voo de 14 horas e a diferença de fuso de 15, o sábado inteiro iria evaporar durante o trajeto. Bosch ligou primeiro para a Cathay Pacific e conseguiu reservar um lugar junto à janela no próximo voo. A chegada estava prevista para as 5h25 do domingo.


— Harry? Bosch girou na cadeira e viu Gandle na entrada de seu cubículo. Bosch sinalizou para que aguardasse e encerrou a ligação, escrevendo o código da reserva de sua passagem. Depois desligou.

— Tenente, cadê todo mundo?

— Ferras ainda está no tribunal e Chu está fazendo a autuação do Chang.

— Qual a acusação?

— Vamos usar homicídio, como a gente planejou. Mas no momento a gente não tem nada para sustentar.

— E quanto à tentativa de deixar o país?

— A gente pôs isso, também.


Bosch verificou o relógio na parede acima dos quadros de aviso. Eram duas e meia. Com uma acusação de assassinato e a acusação adicional de tentativa de fuga, a fiança automaticamente seria fixada em 2 milhões de dólares. Bosch sabia que ere tarde demais para que um advogado conseguisse levá-lo a uma audiência nesse dia para tentar reduzir a fiança ou questionar a falta de provas da acusação. Com os tribunais fechados no fim de semana, também era improvável que Chang fosse liberado sem que alguém pusesse os 2 milhões em dinheiro vivo. A garantia de um fiador só poderia ser verificada na segunda. Tudo contribuía para o resultado de que tinham até segunda de manhã para juntar a evidência capaz de fazer colar a acusação de homicídio.


— Como o Ferras está se saindo?

— Não faço ideia. Ele continua por lá e não ligou. A questão é: como você está se saindo? O laboratório forense olhou o vídeo?

— Barbara Starkey está trabalhando em cima dele agora. Ela já conseguiu isso aqui. Bosch tirou a imagem impressa da janela do bolso de seu paletó e desdobrou. Explicou para Gandle o que achava que significava e como era a única pista até ali.

— Pelo jeito você estava agendando um voo. Quando parte?

— Hoje à noite. Chego lá no domingo de manhã.

— Você perde um dia inteiro?

— É, mas ganho na volta. Tenho o domingo todo para encontrá-la. Na volta eu pego um avião lá na segunda de manhã e chego na segunda de manhã aqui. A gente vai até a promotoria e entra com a ação contra o Chang. Vai funcionar, tenente.

— Olha, Harry, não se preocupa com um dia. Não se preocupa com o caso. Só vai para lá e encontre ela. Fica o tempo que for necessário. A gente se preocupa com o caso.

— Certo.

— E quanto à polícia? Sua ex deu queixa?

— Ela tentou. Eles não querem saber.

— Como? Você mandou aquele vídeo para eles?

— Ainda não. Mas ela contou sobre isso para eles. Eles ignoraram. Gandle pôs as mãos na cintura. Ele fazia isso quando havia alguma coisa que o deixava incomodado ou quando precisava mostrar sua autoridade em uma situação.

— Harry, o que está acontecendo?

— Eles acham que ela fugiu de casa e que é melhor a gente esperar para ver se ela aparece. Mas por mim tudo bem, porque não quero a polícia envolvida. Ainda não.

— Olha, eles devem ter unidades inteiras dedicadas às tríades. Sua ex provavelmente falou com um bosta qualquer atrás duma mesa. Vocês vão precisar de gente especializada e eles têm.


Bosch balançou a cabeça como se já soubesse disso tudo.


— Chefe, tenho certeza de que eles têm especialistas por lá. Mas as tríades sobreviveram por mais de trezentos anos. Elas prosperaram. Não dá para isso acontecer sem ramificações no departamento de polícia. Se fosse uma das suas filhas, o senhor ia querer contar com um monte de gente em quem não pode confiar ou ia cuidar disso pessoalmente? Bosch sabia que Gandle tinha duas filhas. As duas mais velhas do que Maddie. Uma estava na Costa Leste, na Hopkins, e ele se preocupava com ela o tempo todo.

— Eu entendo, Harry. Bosch apontou para a foto.

— Só preciso do domingo. Tenho uma pista sobre esse lugar e vou até lá e pego ela de volta. Se não conseguir encontrar, vou até a polícia na segunda de manhã. Vou conversar com o pessoal que cuida da tríade, vou até procurar o escritório local do FBI se precisar. Vou fazer o que for necessário, mas quero o domingo para procurar sozinho.


Gandle assentiu e olhou para o chão. Parecia querer dizer mais alguma coisa.


— O que foi? Perguntou Harry. — Deixa eu adivinhar: Chang quer prestar queixa de mim porque tentei estrangular ele. Engraçado, porque acabei levando mais do que dei lá dentro. O filho da puta é forte.

— Não, não, nada disso. Ele ainda não abriu a boca. É outra coisa.

— O quê, então? Gandle balançou a cabeça e pegou a foto.

— Bom, eu só ia dizer que se as coisas não funcionarem no domingo, você liga para mim. O negócio com esses filhos da puta é que eles nunca andam na lei. Sabe como é, mais um dia, mais um crime. A gente sempre pode pegar o Chang outra hora.


O que o tenente Gandle estava dizendo a Bosch era que estava disposto a soltar Chang se isso ajudasse a trazer a filha dele de volta para casa em segurança. Na segunda, a promotoria poderia ser informada de que não havia evidências a serem apresentadas para sustentar a acusação de homicídio e que Chang seria liberado.


— O senhor é um bom homem, tenente.

— E claro que eu nunca disse nada disso para você.

— Isso não vai acontecer desse jeito, mas aprecio o que o senhor acabou de não dizer. Além do mais, a triste verdade é que talvez a gente tenha que soltar o cara na segunda de um jeito ou de outro. A menos que consiga alguma coisa durante o fim de semana ou nas buscas.


Bosch lembrou que prometera a Teri Sopp que conseguiria uma cópia das digitais de Chang, de modo que as tivesse à mão se alguma coisa surgisse durante o teste de realce eletrostático do cartucho recuperado no corpo de John Li. Disse a Gandle para mandar que Ferras ou Chu levasse o cartão de digitais para ela. O tenente disse que ia cuidar disso. Devolveu a cópia da imagem impressa para Bosch e lhe disse o que sempre lhe dizia: para manter contato. Então rumou de volta a sua sala.


Bosch pôs a foto em cima da mesa e pegou seus óculos de leitura. Também pegou uma lente de aumento em uma gaveta e começou a examinar cada centímetro quadrado da imagem, procurando qualquer coisa que pudesse ajudar e que houvesse escapado antes. Fazia isso há dez minutos sem encontrar nada de novo quando seu celular tocou. Era Ferras e ele não estava sabendo nada sobre o sequestro da filha de Bosch.


— Harry, consegui. Estamos com a autorização para a busca no telefone, na mala e no carro.

— Ignácio, você é um grande redator. Nunca perde uma tacada.


Era verdade. Até então, nos três anos desde que se tornaram parceiros, Ferras ainda estava para ver um mandado de busca seu sendo recusado por um juiz com base em causa insuficiente. Podia ser que estivesse intimidado com o trabalho na rua, mas do tribunal ele não fugia. Parecia saber exatamente o que incluir e o que deixar de fora em cada petição.


— Valeu, Harry.

— Já encerrou por aí?

— Já, estou voltando.

— Por que não dá um pulo na OPG e cuida disso? Estou com o celular e a mala bem aqui. Vou me enfurnar nisso, agora. Chu está autuando o Chang.


Ferras hesitou. Ir até a Official Police Garage para lidar com o mandado de busca no carro de Chang era forçar a coleira psicológica que o prendia à sala da delegacia.


— Hã, Harry? Você não acha que eu devia ficar com o telefone? Quer dizer, você comprou seu primeiro celular multifuncional faz quase um mês, só.

— Acho que consigo cuidar disso.

— Tem certeza?

— Claro, certeza. E estou com ele aqui. Vai você para a garagem. Cuidado para eles não deixarem escapar os painéis das portas e o filtro de ar. Eu já tive um Mustang. Dá para guardar um 45 no filtro. Eles se referia à equipe da OPG. Seriam eles que desmantelariam o carro de Chang enquanto Ferras supervisionava a busca.

— Pode deixar, disse Ferras.

— Ótimo, disse Bosch. — Me liga se achar ouro.


Bosch fechou o celular. Não via necessidade de contar a Ferras sobre a provação de sua filha, ainda. Ferras tinha três crianças pequenas e um lembrete de como eram vulneráveis não seria de grande ajuda num momento em que Bosch contava com ele dando o melhor de si no trabalho. Harry apoiou as mãos na mesa para girar a cadeira e olhar para a enorme mala de Chang no chão, apoiada na parede do fundo do cubículo. Achar ouro significava encontrar a arma do crime em posse ou nas posses de um suspeito. Bosch sabia que Chang ia tomar um avião, então não haveria ouro algum na mala. Se ainda estivesse de posse da arma que matara John Li, seria mais provável que estivesse em seu carro ou em seu apartamento. Ou talvez já houvesse dado um sumiço nela havia tempos.


Mas a mala ainda assim podia fornecer alguma informação valiosa e evidência incriminadora, uma gota de sangue da vítima no punho de uma camisa, por exemplo. Talvez dessem sorte. Mas Bosch se virou de volta para a mesa e decidiu tentar o celular primeiro. Iria procurar ouro de um tipo diferente. Ouro digital.


* * *


Vinte e Um

LEVOU MENOS de cinco minutos para Bosch concluir que o celular de Bo-Jing Chang seria pouco útil para a investigação. Ele achou facilmente o registro de chamadas, mas o menu listava apenas duas ligações feitas recentemente, ambas para números 0800, e ele recebera apenas uma ligação. Todas as três foram discadas ou recebidas naquela manhã. Não havia mais nenhum registro além disso. O histórico do telefone fora varrido.


Bosch ouvira dizer que memórias digitais eram para sempre. Sabia que uma análise forense exaustiva do aparelho poderia possivelmente fazer com que os dados deletados do celular fossem recuperados, mas para seus propósitos imediatos o telefone era uma perda de tempo. Ele ligou para os dois números 0800 e descobriu que pertenciam à Hertz Car Rental e à Cathay Pacific Airways. Chang provavelmente estivera verificando seu itinerário e o plano de ir de carro de Seattle a Vancouver para pegar o avião para Hong Kong. Bosch também verificara o número da ligação recebida no diretório contrário e descobrira que viera da Tsing Motors, o empregador de Chang. Embora não desse para saber o teor da ligação, o número sem dúvida não acrescentava nenhuma evidência ou informação nova para o caso.


Bosch contara com o celular não só para trazer fatos novos à queixa-crime contra Chang, mas também porque possivelmente forneceria uma pista do destino de Chang em Hong Kong e, assim, da localização de Madeline. A decepção o atingiu com tudo e ele sabia que precisaria manter a mente trabalhando para não ficar ruminando a respeito disso. Enfiou o celular de volta no saco plástico e limpou a mesa de modo que pudesse pôr a mala em cima. Ergueu a mala com algum esforço, estimando que devesse pesar pelos menos uns 30 quilos. Pegou uma tesoura e a usou para cortar a fita adesiva de evidência que Chu pusera sobre o zíper. Descobriu um pequeno cadeado prendendo o fecho do zíper. Pegou seus apetrechos de abrir fechaduras e destravou o cadeado barato de loja de bagagens em menos de trinta segundos. Puxou o zíper e abriu a mala sobre a mesa.


A mala de Chang fora dividida igualmente em duas metades. Ele começou pelo lado esquerdo, desafivelando duas cintas diagonais que mantinham o conteúdo da bagagem no lugar. Retirou e examinou cada peça de roupa item por item. Empilhou tudo em uma prateleira que ficava acima de sua mesa e sobre a qual ainda não tivera oportunidade de pôr coisa alguma desde a mudança para o novo prédio. Era como se Chang houvesse guardado todas as suas posses terrenas na mala. As roupas estavam fortemente compactadas em pequenos fardos, e não cuidadosamente dobradas como costuma ser quando alguém vai viajar. No centro de cada fardo havia um objeto de valor ou algum outro pertence pessoal. Num ele encontrou um relógio de pulso, em outro, um antigo chocalho de bebê. No centro do último fardo que abriu havia uma pequena moldura de bambu contendo a foto esmaecida de uma mulher. “A mãe de Chang”, presumiu Bosch. Chang não ia voltar, concluiu Bosch depois de vasculhar apenas metade da mala.


O lado direito estava protegido por uma divisória que Bosch desafivelou e dobrou sobre a metade vazia. Havia mais fardos de roupas e sapatos ali, além de um pequeno nécessaire. Bosch começou primeiro pelos fardos, sem encontrar nada incomum no meio das roupas. O primeiro fardo estava enrolado em torno da estatueta de jade de um Buda; preso à figura havia um pratinho para queimar incenso ou deixar oferendas. O segundo fardo estava enrolado em torno de uma faca embainhada. A arma era uma peça trabalhada com uma lâmina de apenas 12 centímetros e punho de osso esculpido. O entalhe retratava uma batalha desigual em que homens com facas, flechas e machados massacravam homens desarmados que pareciam orar em vez de lutar. Bosch presumiu que fosse o massacre dos monges Shaolin, que, segundo Chu lhe contara, era a origem das tríades. A forma da faca era muito parecida com a tatuagem no lado interno do braço de Chang. A faca era um achado interessante e possivelmente uma prova de que Chang pertencia à tríade Faca Corajosa, mas não era evidência de crime algum. Bosch a pôs na prateleira junto com as outras coisas e continuou a procurar.


Em pouco tempo esvaziara a mala. Tateou o forro com as mãos para ter certeza de que não havia nada escondido debaixo, mas não achou nada. Ergueu a mala, na esperança de achá-la pesada demais para estar vazia. Mas não achou e teve certeza de que não deixara passar nada.


A última coisa que verificou foi os dois pares de calçado que Chang levava. Ele havia dado uma olhada em cada um no começo, mas depois os pusera de lado. Sabia que o único jeito de realmente procurar algo em um sapato era desmontando. Não era uma coisa que em geral apreciasse muito fazer, porque inutilizava o calçado, e Bosch não gostava de tirar o sapato de ninguém, suspeito ou não. Mas dessa vez ele não se importou.


O primeiro par em que se concentrou eram umas botas em estilo coturno que vira Chang usando no dia anterior. Eram velhas e surradas, mas dava para perceber que gostava delas. Os cadarços eram novos e o couro fora engraxado em repetidas ocasiões. Bosch removeu os cadarços de modo a poder puxar a língua inteiramente para fora e dar uma olhada na parte interna. Usando a tesoura, abriu a palmilha almofadada para ver se havia algum tipo de compartimento secreto no calcanhar. No primeiro pé não havia nada, mas no segundo ele encontrou um cartão de visita que fora inserido entre duas camadas de forro. Bosch sentiu uma descarga de adrenalina enquanto punha a bota de lado para verificar o cartão. Finalmente encontrara algo. O cartão era frente e verso. Em chinês de um lado e em inglês do outro. Bosch, é claro, examinou o lado em inglês.


JIMMY FONG

GERENTE DE FROTA

SERVIÇO DE TÁXI CAUSEWAY

O cartão tinha um endereço em Causeway Bay e dois números de telefone. Bosch sentou pela primeira vez desde que começara a vasculhar a mala e continuou a examinar o cartão. Imaginou o que tinha em mãos, se é que tinha alguma coisa. Causeway Bay não era muito longe de Happy Valley e do shopping-center onde sua filha muito provavelmente fora sequestrada. E o fato de que um cartão de visita de um gerente de frota de táxi estava escondido na bota que Chang usava para trabalhar o fazia levantar questionamentos. Ele virou o cartão e examinou o lado em chinês. Havia três linhas de texto, exatamente como no inglês, além do endereço e dos números de telefone no canto. Aparentemente o cartão dizia a mesma coisa dos dois lados.


Bosch tirou uma cópia do cartão e guardou o original no envelope de evidência, para que Chu pudesse dar uma olhada. Depois passou ao outro par de calçados. Vinte minutos depois havia terminado e não encontrara mais nada. Continuou intrigado com o cartão de visita, mas decepcionado com a falta de retorno da procura. Fez o possível para enfiar todos os pertences de volta do jeito mais próximo ao que estava antes. Então fechou a mala e puxou o zíper. Depois de pôr a mala de volta no chão, ligou para seu parceiro. Estava ansioso para saber se a busca no carro de Chang resultara em algo mais proveitoso do que a busca do celular e da mala.


— A gente está mais ou menos na metade, disse Ferras. — Começaram pelo porta-malas.

— Alguma coisa?

— Por enquanto nada.


Bosch sentiu suas esperanças indo embora. Chang provavelmente estava limpo. E isso significava que ficaria livre para ir embora na segunda-feira.


— Você conseguiu alguma coisa no telefone? Perguntou Ferras.

— Não, nada. Quase tudo apagado. Não tinha muita coisa na mala, também.

— Merda.

— É.

— Bom, como eu disse, a gente ainda não olhou dentro do carro. Só no porta-malas. Vamos checar os painéis das portas e o filtro de ar também.

— Ótimo. Me avisa.


Bosch fechou o celular e ligou na mesma hora para Chu.


— Continua na autuação dele?

— Não, cara, terminei isso faz uma meia hora. Estou no tribunal, esperando a juíza Champagne para ela assinar o DCP.


Depois de autuar um suspeito por homicídio era necessário que um juiz assinasse um documento de Detenção com Causa Provável, contendo o relatório de prisão e discriminando as evidências que haviam levado ao encarceramento do suspeito. A exigência para prender por causa provável era muito menor do que a de entrar com uma acusação criminal. Conseguir a assinatura de um DCP em geral era algo rotineiro, mas mesmo assim Chu optara por uma boa estratégia ao procurar a juíza que já assinara os mandados de busca.


— Ótimo. Só queria checar.

— Está tudo certo. O que você está fazendo aí, Harry? O que está acontecendo com a sua filha?

— Continua desaparecida.

— Merda, cara. O que eu posso fazer?

— Me fala da autuação. Levou um momento para Chu conseguir sair da conversa sobre a filha de Bosch para o encarceramento de Chang na L.A. City Jail.

— Não tem o que contar, na verdade. Ele não disse uma palavra. Grunhiu umas coisas e foi só. Está indo para segurança máxima e esperamos que fique por lá até segunda-feira.

— Ele não vai a lugar nenhum. Ele chamou um advogado?

— Iam permitir acesso ao telefone depois que ele estivesse dentro. Então não tenho certeza, mas imagino que sim.

— Ok. Bosch estava apenas sentindo a linha para ver se beliscava, procurando qualquer coisa que pudesse significar uma direção e fazer a adrenalina fluir. — A gente tem o mandado de busca, disse. — Mas não tinha nada no telefone e nada que ajude na mala. Tinha um cartão de visita num dos sapatos. Está em inglês de um lado e chinês do outro. Quero ver se os textos batem. Sei que você não lê chinês, mas se eu mandasse um fax para UGA, será que alguém podia dar uma olhada?

— Acho que sim, Harry, mas manda já. O lugar deve estar quase vazio. Bosch olhou seu relógio. Eram quatro e meia da sexta. As salas de policiais por toda Los Angeles viravam cidades fantasmas.

— Vou fazer isso já. Liga lá e diz que estou enviando.


Fechou o telefone e saiu do cubículo para ir até a máquina de fax do outro lado da delegacia. Quatro e meia. Dali a seis horas Bosch precisaria estar no aeroporto. Ele sabia que, uma vez que embarcasse no avião, sua investigação entraria em compasso de espera. Durante as 14 horas seguintes em que estivesse voando, as coisas continuariam a acontecer com sua filha e com o caso, mas Bosch estaria imobilizado. Como um viajante espacial de filmes de ficção científica que é posto em hibernação para a longa jornada de volta após a missão. Sabia que não podia entrar no avião sem nada. De um modo ou de outro, precisaria conseguir algum progresso.


Depois de enviar uma cópia do cartão de visita para a Unidade de Gangue Asiática, voltou para seu cubículo. Havia deixado o celular sobre a mesa e viu que perdera uma chamada de sua ex-esposa. Ela não deixara mensagem e ele retornou a ligação.


— Encontrou alguma coisa? Perguntou.

— Tive duas conversas bem longas com duas amigas da Maddie. Dessa vez elas resolveram falar.

— Falou com He?

— Não, com He não. Não tenho um nome completo nem o número dela. As outras garotas também não tinham.

— O que elas contaram para você?

— Que He e o irmão não são da escola. Elas conheceram os dois no shopping, mas eles nem são de Happy Valley.

— Elas fazem ideia de onde eles são?

— Não, mas sabem que daqui não eram. Disseram que Maddie parecia realmente ligada em He e que isso trouxe o irmão dela para a história. Isso tudo por volta do último mês. Desde que voltou da visita com você, na verdade. As duas garotas disseram que ela tinha se distanciado delas.

— Qual o nome do irmão?

— Tudo que consegui foi Quick. Ele disse que o nome dele era Quick, mas assim como foi com a irmã, elas nunca ouviram um sobrenome.

— Isso não ajuda muito. Mais alguma coisa?

— Bom, elas confirmaram o que a Maddie contou para você, que esse Quick era quem fumava. Disseram que fazia o tipo mais barra pesada. Tatuagens e braceletes e eu acho que... Bom, que elas meio que se sentiram atraídas pela imagem de perigo.

— Elas ou Madeline?

— Mais a Maddie.

— Elas acham que ela pode ter visto ele na sexta depois da aula?

— Não disseram isso, mas acho que sim, era o que estavam tentando dizer.

— Você perguntou se Quick alguma vez mencionou alguma coisa sobre ser da tríade?

— Perguntei, e elas disseram que nunca ouviram nada disso. Mas não teria como, de todo jeito.

— Por que não?

— Porque ninguém fala sobre isso por aqui. As tríades são anônimas. Eles estão em toda parte, mas os membros são anônimos.

— Ok.

— Sabe, você ainda não me disse de verdade o que acha que está acontecendo. Eu não sou estúpida. Sei o que você está fazendo. Está tentando me poupar dos fatos, mas acho que preciso ouvir agora mesmo, Harry.

— Tudo bem.


Bosch sabia que ela tinha razão. Se a queria dando o melhor de si, então ela precisaria saber tudo que ele sabia.


— Estou trabalhando no assassinato de um chinês dono de uma loja de bebidas no lado sul. Ele fazia pagamentos regulares para a tríade em troca de proteção. Foi morto no mesmo dia e na mesma hora em que a extorsão semanal era sempre realizada. Isso fez com que a gente se concentrasse em Bo-Jing Chang, o cobrador da tríade. O problema é que a gente não tem nada além disso. Nenhuma evidência ligando ele diretamente ao homicídio. Aí hoje a gente precisou deter o Chang porque ele ia embarcar num avião e deixar o país. Não tivemos escolha. O resultado é que a gente tem só o fim de semana para conseguir provas sustentando a acusação ou então vai ter que soltar o cara e deixar que entre num avião e suma para sempre.

— E o que isso tem a ver com a nossa filha?

— Eleanor, estou lidando com gente que não conheço. A Unidade de Gangue Asiática no DPLA e a polícia de Monterey Park. Alguém delatou diretamente para o Chang ou para a tríade que a gente estava na cola dele e foi por isso que ele tentou se mandar. Seria muito fácil para eles puxar informações sobre mim e atacar a Madeline como uma forma de me atingir, para mandar o recado de que é melhor eu me afastar. Eu recebi uma ligação. Alguém me disse que eu ia sofrer as consequências se não largasse do pé de Chang. Eu nunca imaginei que pudessem estar falando de...

— Maddie, disse Eleanor, concluindo o pensamento.


Um longo silêncio se seguiu e Bosch adivinhou que sua ex-esposa estava tentando controlar as emoções, odiando Bosch ao mesmo tempo em que precisaria confiar nele para salvar sua filha.


— Eleanor? Ele perguntou finalmente.

— O quê? Sua voz estava controlada, mas muito obviamente carregada de puro rancor.

— Por acaso as amigas da Maddie disseram a idade desse rapaz, o Quick?

— As duas disseram que ele devia ter no mínimo 17. Disseram que tinha carro. Conversei com cada uma em separado e as duas disseram a mesma coisa. Acho que estavam me contando tudo que sabiam.


Bosch não respondeu. Estava pensando.


— O shopping abre daqui a algumas horas, prosseguiu Eleanor. — Vou até lá com fotos da Maddie.

— Boa ideia. Eles podem ter um vídeo. Se esse Quick causou algum problema no passado, a segurança do shopping talvez tenha a ficha dele.

— Já pensei nisso tudo.

— Desculpe, eu sei.

— O que o seu suspeito disse sobre tudo isso?

— Nosso suspeito não abre a boca e acabei de dar uma busca na mala e no celular dele, e ainda estamos trabalhando no carro. Até agora, nada.

— E no lugar onde ele mora?

— No momento não temos o suficiente para um mandado de busca.


Isso ficou pairando no ar por alguns momentos, os dois tendo consciência de que, com a filha deles desaparecida, formalidades legais como mandados de busca não eram coisa que pudesse importar para Bosch.


— Acho melhor eu voltar para o caso. Tenho seis horas até o aeroporto.

— Ok.

— Falo com você assim que...

— Harry?

— O que foi?

— Estou tão furiosa que nem sei o que dizer.

— Eu entendo, Eleanor.

— Se a gente conseguir trazer ela de volta, pode ser que você nunca mais a veja. Só precisava te dizer isso. Bosch parou. Sabia que ela tinha o direito de sentir raiva e tudo mais. A raiva talvez a deixasse ainda mais empenhada em seu intento.

— Não existe se, disse, finalmente. — Eu vou achar a nossa filha. Esperou por uma resposta, mas só houve silêncio. — Ok, Eleanor. Eu ligo quando tiver alguma coisa.


Depois de desligar o telefone, Bosch virou para seu computador na mesa e puxou uma foto de Chang. Em seguida, a mandou para a impressora colorida. Queria levar uma cópia para Hong Kong.


Chu ligou outra vez depois disso e falou que conseguira a assinatura para o DCP e que estava saindo do tribunal. Disse que conversara com um policial na UGA que recebera o fax de Bosch e pôde confirmar que os dois lados do cartão de visita diziam a mesma coisa. O cartão vinha de um gerente de frota de táxi em Causeway Bay. Completamente inocente na aparência, mas Bosch continuava incomodado pelo cartão ter sido ocultado no calçado de Chang e por ser de um negócio localizado tão perto de onde sua filha fora vista pela última vez com as amigas. Bosch nunca fora de acreditar em coincidências. Não era agora que ia começar. Bosch agradeceu a Chu e desligou bem na hora em que o tenente Gandle parava em seu cubículo a caminho de ir embora.


— Harry, sinto que estou deixando-o sozinho nessa situação difícil. Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

— Não tem nada que possa ser feito que já não está sendo feito.


Ele deixou Gandle a par das buscas e da falta de evidências sólidas até então. Também informou-o que não havia nenhuma novidade sobre o paradeiro de sua filha ou sobre quem a sequestrara. O rosto de Gandle se endureceu.


— A gente precisa avançar na investigação, disse. — Precisa mesmo.

— Estamos trabalhando nisso.

— Quando você viaja?

— Daqui a seis horas.

— Ok, você tem meus telefones. Ligue-me a hora que for, de dia ou de noite, se precisar de qualquer coisa. Vou fazer tudo que puder.

— Obrigado, chefe.

— Quer que eu fique aqui com você?

— Não, estou bem. Estou de saída para a OPG para deixar o Ferras ir para casa, se ele quiser.

— Ok, Harry, me informe quando encontrar alguma coisa.

— Pode deixar.

— Você vai trazer ela de volta. Sei que vai.

— Eu também sei.


Então Gandle estendeu a mão meio sem jeito e Bosch a apertou. Provavelmente era a primeira vez que faziam isso desde que se conheceram, três anos antes. Gandle foi embora em seguida e Bosch passeou os olhos pela sala da delegacia. Ao que parecia, era o único ainda por ali.


Virou e olhou para a mala. Sabia que precisaria carregá-la para o elevador e descer com ela até o depósito de evidências. O celular também precisava ser registrado nas evidências. Depois disso, seria sua vez de deixar o edifício. Mas não para um fim de semana descansando em casa com a família. Bosch tinha uma missão a cumprir. E não pararia por nada até vê-la completada. Nem mesmo sob a última ameaça de Eleanor. Nem mesmo se salvar sua filha significasse que nunca mais voltaria a vê-la.


* * *


Vinte e Dois

BOSCH ESPEROU até escurecer para invadir a casa de Bo-Jing Chang. Ficava num conjunto popular com um saguão de entrada comum para o apartamento adjacente. Isso lhe serviu de cobertura conforme usava suas ferramentas para abrir as duas fechaduras, uma na maçaneta e outra mais abaixo. Enquanto trabalhava, não sentiu culpa alguma e não pensou duas vezes para transgredir essa linha. As buscas do carro, da mala e do celular haviam sido todas em vão e agora Bosch estava desesperado. Não procurava evidência para montar um caso contra Chang. Ele buscava qualquer coisa que o ajudasse a localizar sua filha. Ela sumira havia mais de 12 horas agora e a invasão de domicílio, o fato de pôr sua carreira e sua vida em risco pareciam ameaças mínimas se comparadas ao que teria de enfrentar consigo mesmo caso não a trouxesse de volta com vida.


Assim que escutou o último clique do mecanismo, abriu a porta e entrou rápido no apartamento, fechando e trancando a porta atrás de si. A busca na mala deixara claro para Bosch que Chang havia se preparado para partir em definitivo, que não pretendia voltar. Mas ele duvidava que Chang pudesse ter enfiado tudo numa mala só. Precisaria ter deixado coisas para trás. Coisas com menos significado pessoal para ele, mas possivelmente valiosas para Bosch. Chang imprimira sua passagem em algum momento antes de ir para o aeroporto. Como estava sob vigilância, Bosch sabia que não fizera nenhuma parada no caminho. Tinha certeza de que encontraria um computador e uma impressora no apartamento.


Harry esperou trinta segundos para seus olhos se ajustarem à escuridão antes de se afastar da porta. Assim que conseguiu enxergar razoavelmente bem, começou a andar pela sala, tropeçando em uma cadeira e quase derrubando um abajur antes de conseguir encontrar o interruptor e acender a luz. Depois se encaminhou rapidamente na direção das cortinas abertas na janela da frente e as fechou. Virando o corpo diante da janela, esquadrinhou o ambiente. Era uma pequena sala de estar e de jantar combinadas, com uma janela para a cozinha americana no fundo. Uma escada à direita dava no dormitório em estilo loft. Nada de computador, nada de impressora. Apenas a mobília. Deu uma busca rápida na sala e então passou à cozinha. Ali também não se via um único objeto pessoal. Os armários estavam vazios, nem sequer uma caixa de cereal fora deixada para trás. Sob a pia havia uma lata de lixo, mas estava vazia e recém-forrada com um saco plástico.


Bosch voltou pela sala e se dirigiu à escada. No lado de baixo havia um interruptor com regulagem de iluminação que controlava a luz do mezanino. Ele ajustou a regulagem no mínimo e então voltou ao abajur da sala e o desligou. O dormitório era esparsamente mobiliado, apenas com uma cama de solteiro grande e uma cômoda. Nada de mesa nem computador. Bosch foi rapidamente até a cômoda e abriu e fechou gaveta por gaveta, descobrindo que todas haviam sido esvaziadas. No banheiro, o cesto de lixo estava vazio e não havia coisa alguma no armário de remédios. Ele ergueu a tampa da caixa de descarga, mas tampouco encontrou qualquer coisa ali dentro. Alguém limpara o lugar. Devia ter sido depois que Chang saiu, levando para longe dali quem o estivesse vigiando. Bosch pensou na ligação da Tsing Motors registrada no aparelho do suspeito. Talvez ele tivesse dado a Vincent Tsing o sinal verde para que o apartamento fosse limpo e sumissem com qualquer evidência.


Decepcionado e com a sensação de que fora espertamente passado para trás, Bosch decidiu localizar a lixeira do conjunto e tentar encontrar os sacos plásticos que haviam sido tirados do apartamento. Podia acontecer de terem vacilado e deixado o lixo de Chang por lá. Um bilhete jogado fora ou um número de telefone rabiscado num papel já seriam de alguma ajuda.


Havia descido três degraus da escada quando escutou um ruído na fechadura da porta. Virou rapidamente e voltou para o mezanino, se ocultando atrás de uma coluna estrutural. As luzes embaixo foram acesas e o apartamento se encheu na mesma hora com as vozes de chineses. Encostado na coluna, Bosch calculou que eram dois homens e uma mulher. Um dos homens dominava a conversa e sempre que um dos outros dois falava, pareciam fazer alguma pergunta.


Bosch foi até a beirada da coluna e arriscou uma olhada para baixo. Viu o sujeito dominante gesticulando para a mobília. O homem então abriu a porta de um armário sob a escada e fez um movimento abrangente com a mão. Bosch percebeu que estava mostrando o imóvel para o casal. O apartamento já estava para alugar.


Com isso ele se deu conta de que mais cedo ou mais tarde os três ali embaixo subiriam para o quarto. Olhou para a cama. Era um colchão sem lençol sobre um estrado de molas a 30 centímetros do chão. Concluiu que era o único lugar onde poderia possivelmente se esconder sem ser descoberto. Rapidamente deitou de costas no chão e se enfiou sob a cama, seu peito raspando na parte de baixo do estrado. Ele se moveu para o centro e aguardou, acompanhando a visita do apartamento pelas vozes.


Finalmente, o grupo subiu a escada do mezanino. Bosch segurou o fôlego conforme o casal andava pelo quarto e passava dos dois lados da cama. Ficou esperando que alguém sentasse na cama, mas isso não aconteceu. Bosch de repente sentiu uma vibração no bolso e percebeu que não havia deixado o celular em mudo. Felizmente o homem que mostrava o apartamento não dava trégua no que provavelmente era um discurso de vendedor sobre como o lugar era maravilhoso. Sua voz encobriu qualquer detecção do zumbido baixo e vibratório. Bosch rapidamente levou a mão ao bolso e pegou o aparelho para ver se a chamada vinha do celular de sua filha. Nesse caso teria de atender a ligação, independente da circunstância.


Ergueu o telefone para perto do rosto sob o estrado de molas de modo que conseguisse ver quem era. O chamado era de Barbara Starkey, a técnica do vídeo, e Bosch apertou o botão de recusar a ligação. Nesse caso, ele podia retornar mais tarde. Ao abrir o aparelho para verificar a ligação, a tela fora ativada. A luz tênue iluminou o interior do estrado e Bosch viu uma arma enfiada atrás de um dos sarrafos de madeira. Mas decidiu não tocar nela enquanto o apartamento não estivesse vazio outra vez. Fechou o telefone e aguardou. Logo escutou os visitantes descendo a escada. Pelo que ouviu deram mais uma rápida olhada na parte de baixo e foram embora.


Bosch escutou a fechadura sendo trancada do lado de fora. Então se arrastou para fora de seu esconderijo. Após esperar alguns minutos até ter certeza de que os interessados no imóvel tinham ido embora de vez, voltou a acender a luz do mezanino. Foi até a cama e tirou o colchão de cima do estrado, apoiando-o na parede do fundo do quarto. Depois ergueu o estrado e o apoiou contra o colchão. Examinou a arma, sem soltá-la da estrutura de madeira. Ainda não conseguia enxergar com clareza, de modo que pegou o celular outra vez, abriu e usou a luz do visor como uma lanterna, aproximando o aparelho da arma.


— Merda, disse em voz alta.


Estava procurando uma Glock, a arma com percussor retangular. A pistola escondida sob a cama de Chang era uma Smith & Wesson. Não havia nada ali que fosse útil para ele. Bosch percebeu que mais uma vez se encontrava na estaca zero. Como que para enfatizar esse ponto, um levíssimo som de bipe foi emitido por seu relógio. Ele levou a mão ao pulso e o desligou. Havia programado o alarme para não correr o risco de perder seu voo. Era hora de se dirigir ao aeroporto.


Depois de pôr a cama de volta no lugar, Bosch apagou a luz do mezanino e saiu silenciosamente do apartamento. Seu plano era passar em casa primeiro para apanhar o passaporte e guardar sua arma. Não teria permissão de porte em um país estrangeiro sem uma autorização oficial, processo que podia levar dias, quando não semanas. Não planejava fazer as malas porque não se imaginava tendo tempo de trocar de roupa em Hong Kong. Estava em uma missão que começaria no momento em que pusesse o pé para fora do avião.


Entrou na 10 oeste de Monterey Park e tomaria a 101 passando por Hollywood para chegar em sua casa. Começou a bolar um plano para direcionar a polícia para a arma escondida no antigo apartamento de Chang, mas no momento não havia causa provável para darem uma busca no lugar. Mesmo assim, a arma precisava ser encontrada e examinada. Não tinha qualquer utilidade para Bosch na investigação envolvendo John Li, mas isso não significava que Chang a utilizara para boas ações e filantropia. Ela fora usada para negócios da tríade e podia muito provavelmente levar a alguma coisa.


Quando tomava a 101 norte passando pelo centro cívico, Bosch se lembrou da ligação de Barbara Starkey. Verificou o correio de voz em seu celular e ouviu Starkey lhe dizer para ligar assim que possível. Parecia ter encontrado algo. Bosch apertou o botão para retornar a chamada.


— Barbara, é o Harry.

— Harry, oi, eu queria falar com você antes de ir para casa.

— Você devia ter ido para casa faz umas três horas.

— É, bom, eu disse que ia olhar isso com atenção.

— Obrigado, Barbara. É uma tremenda ajuda. O que você achou?

— Algumas coisas. Antes de mais nada, tenho uma cópia aqui um pouco mais nítida, se você quiser.


Bosch ficou desapontado. Soava como se não houvesse muito mais coisa além do que ele já tinha, e que ela apenas queria informá-lo que estava com uma imagem mais clara da vista da janela de onde sua filha era mantida refém. Às vezes, ele notara, quando alguém fazia um favor para você, que a pessoa só queria que você ficasse sabendo disso. Mas ele decidiu que iria se virar apenas com o que tinha. Sair da autoestrada para apanhar a imagem tomaria tempo demais. Ele tinha um avião para pegar.


— Mais alguma coisa? Perguntou. — Preciso chegar no aeroporto.

— Tem, estou com mais alguns identificadores visuais e de áudio que podem ajudar você, disse Starkey. Agora Bosch prestava total atenção.

— O que é?

— Bom, um eu acho que pode ser um trem ou metrô. O outro é um fragmento de conversa que não é chinês. E o último acho que é um helicóptero silencioso.

— O que você quer dizer com silencioso?

— Quero dizer literalmente silencioso. Tenho um reflexo brilhante na janela de um helicóptero passando, mas não tem nenhuma banda sonora acompanhando ele.


Bosch não respondeu de início. Ele sabia do que ela estava falando. Os helicópteros Whisper Jet que os ricos e poderosos usavam para se locomover por Hong Kong. Ele vira alguns. Trabalhar de helicóptero não era incomum, mas ele também sabia que apenas uns poucos prédios em cada bairro tinham permissão de operar heliportos na cobertura. Um dos motivos para sua ex-mulher ter escolhido o edifício onde morava em Happy Valley era poder dispor de um heliporto. Ela conseguia chegar ao cassino em Macau em vinte minutos, em vez das duas horas que levaria para sair de casa, chegar ao embarcadouro, tomar uma balsa para o outro lado do porto e então pegar um táxi ou caminhar do cais até o cassino.


— Barbara, chego aí em cinco minutos, ele disse.


Ele tomou a saída da Los Angeles Street e rumou para Parker Center. Devido ao adiantado da hora, Bosch tinha diversas vagas a sua escolha na garagem atrás do antigo quartel-general da polícia. Estacionou, atravessou a rua rapidamente e entrou pela porta dos fundos. O elevador pareceu demorar uma eternidade para subir, e quando andou pelo laboratório da DIC, agora praticamente às moscas, fazia na verdade sete minutos desde que fechara seu celular.


— Está atrasado, disse Starkey.

— Desculpe, obrigado por esperar.

— Estou só brincando. Sei que você está com pressa, então vamos ver logo isso.


Ela apontou para uma de suas telas, onde havia uma imagem congelada da janela captada pelo vídeo do celular. Era a foto que Bosch imprimira. Starkey levou as mãos aos controles no painel.


— Ok, ela disse. — Fica de olho aqui no alto do reflexo do vidro. A gente não viu nem escutou isso antes.


Ela girou o dial vagarosamente, voltando a gravação. No reflexo obscuro da janela, Bosch enxergou o que não havia enxergado antes. No momento preciso em que o campo de visão da câmera começava seu movimento de volta na direção de sua filha, um helicóptero passava na parte de cima do reflexo como um fantasma. Era uma pequena aeronave preta com algum tipo de insígnia ilegível na lateral.


— Agora em tempo real.


Ela voltou o vídeo até o momento em que a câmera focava na filha de Bosch e ela dava o chute que a acertava. Starkey apertou um botão e a imagem passou em tempo real. A câmera desviou na direção da janela por uma fração de segundo e depois voltou. Os olhos de Bosch registraram a janela, mas em nenhum momento o reflexo da cidade, muito menos um helicóptero de passagem. Era um bom achado e Bosch se empolgou.


— O negócio, Harry, é que para aparecer nessa janela o helicóptero só pode estar voando muito baixo.

— Então ele estava decolando ou pousando.

— Acho que está subindo. Ele parece levemente erguido quando passa pelo reflexo. Nada que dê para ver com o olho, mas eu medi. Considerando que o reflexo mostra da direita para a esquerda o que está acontecendo da esquerda para a direita, ele teria decolado de um ponto do lado oposto da rua em relação ao prédio onde esse vídeo estava sendo filmado. Bosch assentiu.

— Agora quando eu procuro por uma faixa de áudio... Mudou para a outra tela onde havia um audiógrafo mostrando linhas de áudio isoladas que ela havia tirado do vídeo. — ... E eliminando o máximo de som conflituoso que consigo, eu tenho isso.


Ela tocou uma faixa com um gráfico quase em linha reta e tudo que Bosch conseguiu escutar foi o ruído distante do trânsito fatiado em ondas.


— Isso é perturbação do rotor, ela disse. — Você não ouve o próprio helicóptero, mas ele está interrompendo o barulho do ambiente. É como um helicóptero stealth ou algo assim.


Bosch balançou a cabeça. Havia dado mais um passo. Agora sabia que sua filha estava sendo mantida em um edifício próximo a um dos poucos heliportos em Kowloon.


— Isso ajuda? Perguntou Starkey.

— Pode apostar que sim.

— Ótimo. Também tenho isso. Ela tocou outra faixa que continha um ruído baixo e sibilante que lembrava a Bosch água corrente. Começava, ficava mais alto, depois se dissipava.

— O que é isso? Água? Starkey negou com a cabeça.

— Isso é com a máxima amplificação, ela disse. — Tive que trabalhar nisso. É ar. Ar escapando. Eu diria que estamos falando de uma entrada para uma estação de metrô subterrânea ou talvez um respiradouro por onde o ar em deslocamento é canalizado para cima e para fora quando um trem chega na estação. Metrôs modernos não fazem muito barulho. Mas tem um bocado de deslocamento de ar quando um trem pega um túnel.

— Entendi.

— Seu local fica no alto. Talvez 12, trinta andares, julgando pelo reflexo. Então é difícil localizar esse áudio com precisão. Pode vir do andar térreo desse prédio ou ser uma quadra distante. Difícil dizer.

— Mesmo assim ajuda.

— E por último temos isso.


Ela passou a primeira parte do vídeo, quando a câmera estava filmando a filha de Bosch e mostrando apenas ela. Aumentou o som e filtrou as faixas de áudio conflitantes. Bosch escutou um diálogo abafado.


— O que é isso? Perguntou.

— Acho que pode ser de fora do quarto. Ainda não consegui limpar melhor. Está abafado pela estrutura e não parece chinês para mim. Mas não acho que isso é importante.

— Então o quê?

— Ouça de novo o fim disso.


Ela tocou outra vez. Bosch fitou os olhos apavorados de sua filha enquanto se concentrava no áudio. Era uma voz masculina que estava abafada demais para ser compreendida ou traduzida, e então abruptamente terminava no que parecia ser o meio da frase.


— Alguém cortou ele?

— Ou talvez uma porta de elevador fechou e cortou ele.


Bosch balançou a cabeça. O elevador parecia uma explicação mais provável porque não havia estresse no tom de voz antes de ela ser interrompida. Starkey apontou para a tela.


— Então, quando você encontrar o prédio, vai encontrar esse quarto perto do elevador. Bosch ficou encarando os olhos de sua filha por um último longo momento.

— Obrigado, Barbara. Ficou atrás dela e deu um aperto caloroso em seus ombros.

— De nada, Harry.

— Preciso ir.

— Você disse que estava a caminho do aeroporto. Vai para Hong Kong?

— Isso mesmo.

— Boa sorte, Harry. Vá buscar sua filha.

— Pode apostar que vou.


Bosch voltou rapidamente para o carro e acelerou até a autoestrada. O tráfego mais pesado da hora do rush havia diminuído e ele conseguiu andar bem ao atravessar Hollywood para Cahuenga Pass e sua casa. Começou a se concentrar em Hong Kong e tudo aquilo ali em breve ficaria para trás. Não haveria nada além de Hong Kong a partir de agora. Ia encontrar sua filha e trazê-la de volta para casa. Ou morreria tentando.


Durante toda a sua vida Harry Bosch acreditara que tinha uma missão. E para cumprir essa missão ele teria de ser à prova de balas. Precisaria que ele próprio e sua vida fossem invulneráveis, de modo que nada nem ninguém jamais o atingisse. Tudo isso mudou no dia em que foi apresentado à filha que não sabia que tinha. Nesse momento, percebeu que fora salvo e que estava perdido. Estaria para sempre ligado ao mundo do modo que só um pai conhece. Mas também estaria perdido porque sabia que as forças sinistras que enfrentava um dia a encontrariam. Não fazia diferença que houvesse um oceano inteiro entre eles. Sabia que esse dia chegaria, que as forças obscuras a encontrariam e a usariam para atingi-lo.


E esse dia começara hoje.


* * *


Parte 2

O Dia de 39 Horas


* * *


Vinte e Três

O SONO de Bosch foi intermitente durante todo o voo através do Pacífico. Catorze horas no ar, pressionado contra uma janela na classe econômica, em nenhum momento conseguiu dormir mais do que 15 ou vinte minutos seguidos antes que pensamentos sobre sua filha e sua culpa pelo que ela estava passando se intrometessem e o arrancassem brutalmente do sono.


Movido a adrenalina durante o dia, se mantivera à frente do medo e da culpa, das recriminações contundentes. Ele era capaz de pôr tudo isso de lado porque sua caçada era mais importante do que o fardo que estava carregando. Mas no voo 883 da Cathay Pacific não havia mais para onde correr. Ele sabia que precisava dormir para estar descansado e pronto para o dia que viria em Hong Kong. Mas no avião ele ficou contra a parede e não havia mais como afastar a culpa e o medo de seus pensamentos. O pavor o subjugou. Passou a maior parte daquelas horas mergulhado no escuro, os punhos cerrados com força e os olhos fitando o vazio, conforme o jato rasgava o negrume rumo ao lugar onde Madeline estava sendo mantida como refém. Isso tornava o sono difícil, quando não totalmente impossível.


Os ventos contrários sobre o Pacífico estavam mais fracos do que o previsto e o voo chegou antes do horário programado, aterrissando no aeroporto de Lantau Island às 4h55. Bosch passou rudemente entre os passageiros que recolhiam seus pertences nos compartimentos acima e abriu caminho até a frente do avião. Carregava apenas uma pequena mochila contendo as coisas que achava que poderiam ajudá-lo a encontrar e resgatar sua filha. Quando a porta do avião foi aberta, ele se moveu com rapidez e logo conseguiu ser o primeiro passageiro a se dirigir à alfândega e ao controle de imigração. Sentiu uma pontada de medo ao se aproximar do primeiro posto de triagem, um scanner de temperatura destinado a detectar passageiros suspeitos. Bosch estava suando. Teria a culpa que ardia em sua consciência se manifestado como febre? Ele seria detido antes mesmo de dar início à missão mais importante de sua vida?


Olhou de relance a tela do computador quando passou. Viu as imagens de pessoas tornadas fantasmas azuis na tela. Nada de manchas vermelhas denunciadoras. Nenhum sinal febril. Pelo menos, não ainda.


No posto de controle alfandegário um inspetor folheou seu passaporte e viu os carimbos de entrada e saída das inúmeras viagens que fizera nos últimos seis anos. Depois, verificou algo em um computador que Bosch não conseguiu ver.


— Tem negócios a tratar em Hong Kong, Sr. Bosch? Perguntou o inspetor. Ele havia atropelado a sílaba única do sobrenome de Bosch, fazendo soar como Botch.

— Não, disse Bosch. — Minha filha mora aqui e venho visitá-la com frequência. Ele olhou para a mochila pendurada no ombro de Bosch.

— Já conferiu sua bagagem?

— Não, só trouxe isso. É uma viagem rápida.


O inspetor balançou a cabeça e voltou a olhar para seu computador. Bosch sabia o que ia acontecer. Invariavelmente, quando chegava a Hong Kong, o inspetor de imigração via sua classificação de agente da lei no computador e o mandava para a fila de revista.


— Trouxe sua arma com o senhor? Perguntou o inspetor.

— Não, disse Bosch, cansado. — Sei que não é permitido.


O inspetor digitou alguma coisa em seu computador e então instruiu Bosch, como o esperado, para uma fila de revista em sua bolsa. Seriam mais 15 minutos perdidos, mas Harry manteve a calma. Havia ganhado meia hora com a chegada antes do programado. O segundo inspetor revistou cuidadosamente a mochila e olhou com curiosidade para o binóculo e outros objetos, incluindo o envelope cheio de dinheiro. Mas nada disso era ilegal para entrar no país. Quando terminou, pediu a Bosch para passar por um detector de metal e então deu por encerrado. Harry foi para o terminal de bagagem e viu um guichê de câmbio que estava aberto, a despeito de ser tão cedo. Aproximou-se, voltou a tirar o envelope com dinheiro da mochila e falou para a mulher do outro lado do vidro que queria trocar 5 mil dólares americanos em dólares de Hong Kong. Era o fundo de terremoto de Bosch, dinheiro que guardava escondido no cofre da arma em seu quarto. Havia aprendido uma valiosa lição em 1994, quando um terremoto sacudiu Los Angeles e danificou severamente sua casa. O dinheiro manda. Não saía de casa sem ele. Ele esperava que, agora, as economias que mantinha escondidas para uma crise como aquela iriam ajudá-lo a superar uma de outro tipo. A taxa de câmbio estava um pouco abaixo de oito para um, e seus 5 mil dólares americanos se tornaram 38 mil dólares de Hong Kong.


Depois de pegar seu dinheiro, ele se dirigiu às portas de saída do outro lado do terminal de bagagem. A primeira surpresa do dia veio quando viu Eleanor Wish à sua espera no saguão principal do aeroporto. Ela estava junto a um sujeito de terno, parado com os pés ligeiramente abertos, na postura típica dos guarda-costas. Eleanor fez um pequeno gesto com a mão, só para o caso de Harry não tê-la notado. Ele viu a mistura de dor e esperança em seu rosto e teve de baixar os olhos para o chão ao se aproximar.


— Eleanor. Eu não...


Ela o agarrou em um abraço rápido e desajeitado que interrompeu abruptamente o que ele ia dizer. Ele compreendeu que estava lhe dizendo que a culpa e a recriminação ficavam para mais tarde. Havia coisas mais importantes em que pensar agora. Então ela deu um passo se afastando e gesticulou para o homem de terno.


— Esse é Sun Yee. Bosch acenou com a cabeça, mas depois estendeu a mão, esperando com esse gesto receber alguma indicação de como se dirigir a alguém chamado Sun Yee.

— Harry, ele disse.


O outro retribuiu o aceno de cabeça e apertou sua mão com firmeza, mas não disse coisa alguma. Nenhuma ajuda veio dali. Teria de esperar alguma dica vinda de Eleanor. Bosch imaginou que Sun Yee tinha perto de 50 anos. A idade de Eleanor. Era baixo, mas de constituição forte. Seu peito e braços pressionavam ao máximo os contornos do paletó de seda que usava. Estava de óculos escuros, embora o dia ainda nem tivesse nascido. Bosch virou para a ex-esposa.


— Ele vai dirigir para a gente?

— Ele vai ajudar a gente, ela corrigiu. — Ele trabalha na segurança do cassino. Bosch assentiu. Esse era um mistério resolvido.

— Ele fala inglês?

— Sim, eu falo, respondeu por conta própria o homem.


Bosch o examinou por um momento e então olhou para Eleanor e viu em seu rosto uma determinação familiar. Era uma expressão que ele vira inúmeras vezes quando estavam juntos. Ela não ia permitir uma discussão sobre o assunto. Aquele homem era parte do pacote ou Bosch teria de se virar sozinho. Bosch sabia que se as circunstâncias assim o exigissem ele poderia se separar e seguir seu caminho pela cidade sem mais ninguém. Era o que imaginara que fosse fazer, de qualquer maneira. Mas por ora estava disposto a concordar com os planos de Eleanor.


— Tem certeza de que quer fazer isso, Eleanor? Eu estava planejando trabalhar por conta própria.

— Ela é minha filha também. Onde você for eu vou.

— Ok, então.


Começaram a se dirigir às portas de vidro que os levariam para fora. Bosch deixou que Sun Yee ficasse mais à frente, de modo que pudesse conversar em particular com sua ex-esposa. A despeito da óbvia tensão denotada em seu rosto, estava linda como sempre, aos seus olhos. Tinha o cabelo preso de um jeito prático atrás da cabeça. Isso enfatizava a linha nítida e o formato determinado de seu queixo. Por menos frequente que fosse, e independente das circunstâncias em que se viam, Bosch nunca conseguia olhar para ela sem pensar em como poderia ter sido. Era um clichê surrado, mas Bosch sempre acreditara que estavam destinados um ao outro. A filha deles criara um vínculo para toda a vida, mas para Bosch isso não bastava.


— Então me conta o que está acontecendo, Eleanor, ele disse. — Fiquei no avião quase 14 horas. O que aconteceu por aqui que eu ainda não sei? Ela balançou a cabeça.

— Passei quase quatro horas no shopping ontem. Quando você ligou e deixou uma mensagem do aeroporto, eu devia estar com a segurança. Talvez não tivesse sinal ou eu não ouvi o celular tocando.

— Não se preocupe com isso. O que você descobriu?

— Eles têm um vídeo de vigilância mostrando ela com o irmão e a irmã. Quick e He. Tudo meio de longe. Não dá para identificar ninguém, a não ser Mad. Eu consigo perceber que é ela em qualquer situação.

— A câmera pegou o momento em que ela foi agarrada?

— Ninguém agarrou ninguém. Os três estavam passeando juntos, a maior parte do tempo na praça de alimentação. Daí Quick acendeu um cigarro e alguém reclamou. A segurança se aproximou e pôs ele para fora. Madeline saiu junto. Voluntariamente. E depois não voltaram mais.


Bosch balançou a cabeça. Conseguia imaginar. Podia ter sido um plano para atraí-la para fora. Quick acendia o cigarro, sabendo o tempo todo que seria expulso do shopping e que Madeline iria junto.


— O que mais?

— Do shopping é só isso. Quick é conhecido da segurança lá, mas não tinham nenhuma identificação nem ficha dele.

— Que horas eram quando eles saíram?

— Seis e quinze. Bosch fez as contas. Isso era na sexta-feira. Sua filha sumira da gravação do shopping há quase 36 horas.

— Quando escurece aqui? Que horas?

— Lá pelas oito, normalmente. Por quê?

— O vídeo que me mandaram foi feito à luz do dia. Então menos de duas horas depois que ela saiu do shopping-center com os dois ela estava em Kowloon e fizeram o vídeo.

— Quero ver o vídeo, Harry.

— Eu mostro no carro. Você disse que recebeu minha mensagem. Descobriu sobre os heliportos em Kowloon? Balançando a cabeça, Eleanor disse:

— Liguei para o chefe do transporte de clientes no cassino. Ele me contou que em Kowloon tem sete heliportos disponíveis. Estou com uma lista.

— Perfeito. Você contou para ele por que queria a lista?

— Não, Harry. Dê-me algum crédito. Bosch olhou para ela e então seus olhos viraram na direção de Sun Yee, que a essa altura estava vários passos à frente deles. Eleanor captou a mensagem.

— Sun Yee é outra história. Ele sabe o que está acontecendo. Eu trouxe-o porque é de confiança. Tem sido meu segurança no cassino há três anos.


Bosch assentiu. Sua ex-esposa era um bem valioso para seus patrões em Macau. Eles pagavam por seu apartamento e pelo helicóptero em que ia e voltava do trabalho nas mesas particulares em que jogava contra os clientes mais ricos do cassino. A segurança, na forma de Sun Yee, era parte do pacote.


— Sei, bom, uma pena que não estava tomando conta de Maddie também. Eleanor parou abruptamente e virou para Bosch. Sem perceber, Sun continuou andando. Eleanor encarou Bosch furiosa.

— Olha, você quer falar sobre isso agora mesmo? Porque se quiser, eu falo. A gente pode conversar sobre Sun Yee e também pode conversar sobre você e sobre como o seu trabalho pôs a minha filha nessa... Nessa... Ela não terminou. Em vez disso, agarrou o paletó de Bosch rudemente e começou a sacudi-lo com raiva, para depois abraçá-lo e começar a chorar. Bosch pôs a mão em suas costas.

— Nossa filha, Eleanor, disse. — Nossa filha, e a gente vai trazer ela de volta.


Sun notou que haviam ficado muito para trás e parou. Ficou fitando Bosch, seus olhos ocultos atrás dos óculos escuros. Ainda abraçado a Eleanor, Harry ergueu a mão sinalizando que aguardasse um minuto e mantivesse distância. Eleanor finalmente deu um passo para trás e limpou os olhos e o nariz com o dorso da mão.


— Você tem que aguentar firme, Eleanor. Eu preciso de você.

— Para de ficar repetindo isso, tá bom? Eu vou aguentar. Por onde a gente começa?

— Conseguiu o mapa do metrô como eu pedi?

— Consegui, está lá no carro.

— E o cartão da Causeway Taxi? Você verificou?

— A gente não precisou. Sun Yee já sabia o que era. A maioria das companhias de táxi são conhecidas por contratar gente da tríade. Os membros da tríade precisam de empregos legítimos para evitar suspeitas e manter a polícia longe. A maior parte deles tira licença de taxista e trabalha algumas horas de vez em quando, só para manter a fachada. Se o seu suspeito estava com um cartão do gerente da frota, provavelmente era porque ia tratar de algum emprego quando chegasse aqui.

— Você está com o endereço?

— A gente foi verificar ontem à noite, mas é só um ponto de táxi. Os carros vão lá para abastecer e fazer outros serviços e é lá que despacham os motoristas no começo do turno.

— Você conversou com o gerente da frota?

— Não. Eu não queria tomar uma decisão dessas sem perguntar para você primeiro. Mas você estava no avião e não tinha como a gente conversar. Além disso, para mim está parecendo que isso não vai dar em nada. Provavelmente ele era só um cara que ia arrumar um trabalho para o Chang. Só isso. É o que ele faz para as tríades. Não ia se envolver num sequestro. E se fosse, não ia querer falar a respeito.


Bosch achou que Eleanor provavelmente tinha razão, mas pensou também que o gerente de frota seria alguém a quem recorrer mais tarde, caso outros esforços de localizar sua filha não redundassem em nada.


— Ok, disse. — Quando vai ficar claro?


Ela virou e olhou para a enorme parede de vidro na entrada do saguão principal, como se fosse avaliar sua resposta pelo céu. Bosch olhou o relógio. Eram 5h45 e ele já estava em Hong Kong havia quase uma hora. Parecia que o tempo estava passando depressa demais.


— Talvez daqui a uma meia hora, disse Eleanor. Bosh concordou com a cabeça.

— E a arma, Eleanor? Ela balançou a cabeça com hesitação.

— Se você tem certeza de que quer, Sun Yee sabe onde arranjar uma. Em Wan Chai.


Bosch assentiu. Claro que seria o lugar para conseguir uma arma. Wan Chai era onde o submundo de Hong Kong vinha à superfície. Ele não passava pelo lugar desde que voltara do Vietnã de licença, quarenta anos antes. Mas sabia que algumas coisas e alguns lugares jamais mudavam.


— Ok, vamos logo para o carro. A gente está perdendo tempo. Passaram pelas portas automáticas e Bosch foi golpeado pelo ar abafado da cidade. Sentiu na mesma hora que a umidade começava a grudar em sua pele.

— Onde a gente vai primeiro? Perguntou Eleanor. — Wan Chai?

— Não, o Pico. A gente começa por lá.


* * *


Vinte e Quatro

NOS TEMPOS COLONIAIS, o lugar era conhecido como Victoria Peak. Agora era apenas o Pico, um cume montanhoso que assomava por trás do horizonte de Hong Kong e proporcionava vistas incríveis do distrito central e do porto de Kowloon. O acesso era por carro e túnel e constituía um destino popular de turistas o ano todo, procurado pelos moradores locais nos meses de verão, quando a cidade abaixo parecia absorver umidade como uma esponja absorve água. Bosch estivera ali diversas vezes com sua filha, muitas vezes almoçando no restaurante do observatório ou na galeria comercial construída atrás dele.


Bosch, sua ex-esposa e o segurança chegaram ao topo do monte antes que o dia raiasse sobre a cidade. A galeria e os quiosques turísticos continuavam fechados e os mirantes estavam desertos. Deixaram o Mercedes de Sun no estacionamento junto à galeria e desceram a trilha margeando a encosta da montanha. Bosch levava a mochila no ombro. O ar pesava de umidade. O caminho estava molhado e ele podia perceber que chovera durante a noite. A camisa já colava em suas costas.


— O que exatamente estamos fazendo? Perguntou Eleanor.


A pergunta era a primeira que ela fizera em um longo tempo. No trajeto do aeroporto Bosch acionara o vídeo e lhe dera seu celular para que assistisse. Percebeu como a respiração dela parou ao ver aquilo. Eleanor então pediu para ver uma segunda vez e lhe passou o celular de volta sem dizer mais nada. Seguiu-se um silêncio terrível que durou até chegarem na trilha. Bosch tirou a mochila das costas com um giro de ombros e abriu o zíper. Passou para Eleanor a cópia impressa da imagem no vídeo. Depois, emprestou para ela uma lanterna que também pegara na mochila.


— Essa é uma foto captada na reprodução quadro a quadro do vídeo. Quando Maddie chuta na direção do sujeito, a câmera sai do lugar e pega essa janela.


Eleanor ligou a lanterna e examinou a foto enquanto andavam. Sun caminhava vários passos mais atrás. Bosch continuou a explicar seu plano.


— Você precisa lembrar que tudo que está refletido na janela está ao contrário. Mas está vendo as traves do gol no alto do prédio do Banco da China? Tenho uma lente de aumento aqui, se quiser usar.

— Estou vendo.

— Certo, entre essas duas traves dá para ver o pagode do Pico. Acho que chama Pagode do Leão ou Mirante do Leão. Já estive aqui com Maddie.

— Eu também estive. Chama Pavilhão do Leão. Tem certeza de que aparece aqui?

— Tenho, você precisa olhar com a lente. Espera até a gente chegar.


A trilha fazia uma curva e Bosch avistou a estrutura em forma de pagode mais adiante. Ficava em posição proeminente, fornecendo uma das melhores vistas do Pico. Todas às vezes que Bosch estivera ali no passado o lugar se encontrava apinhado de turistas com suas câmeras. Na luz cinzenta do amanhecer ele estava deserto. Bosch passou pela entrada em arco e se dirigiu ao pavilhão usado como mirante. A cidade gigantesca se descortinou diante de seus olhos. Havia um bilhão de luzes ali embaixo brilhando nos vestígios da escuridão e ele sabia que uma delas pertencia a sua filha. Ele ia descobrir qual delas. Eleanor parou perto dele e segurou a imagem sob o facho da lanterna. Sun assumiu uma posição de guarda-costas mais atrás.


— Não entendo, ela disse. — Você acha que pode reverter a imagem e localizar onde ela está?

— Isso mesmo.

— Harry...

— Existem outros pontos de referência. Só quero estreitar a busca. Kowloon é um lugar enorme. Bosch tirou o binóculo da mochila. Era um instrumento muito potente que costumava usar em suas campanas. Ele o levou aos olhos.

— Que pontos de referência, Harry?


Bosch se aproximou dela de modo que pudesse ver a foto impressa e indicar os pontos de referência sobre os quais Barbara Starkey lhe falara, particularmente a parte do cartaz ao contrário com as letras O e N. Ele também contou a ela sobre a banda sonora com um trem de metrô por perto e a lembrou do helicóptero, que não aparecia na cópia.


— Juntando tudo isso, acho que a gente chega perto, disse. — Se eu chegar perto, eu acho ela.

— Bom, posso dizer desde já que você está olhando para a publicidade da Canon.

— Você quer dizer as câmeras Canon? Onde? Ela apontou um lugar distante na direção de Kowloon. Bosch olhou mais uma vez pelo binóculo.

— Eu sempre vejo quando estou sobrevoando o porto. Tem uma publicidade da Canon no lado de Kowloon. É só a palavra CANON no alto de um prédio. Ela fica rodando. Mas se a pessoa estiver atrás dela em Kowloon quando girar na direção do porto, vai ver ao contrário. Então no reflexo ia aparecer corrigido. Só pode ser isso. Ela bateu no O-N da imagem impressa.

— Certo, mas onde? Não estou vendo em lugar nenhum.

— Deixa eu ver. Ele lhe passou o binóculo. Ela falou enquanto olhava. — Normalmente, o letreiro está aceso, mas é provável que tenham apagado logo antes de amanhecer, para economizar energia. Vários já estão apagados. Ela baixou o binóculo e olhou o relógio. — Vamos conseguir ver daqui a uns 15 minutos. Bosch pegou o binóculo de volta e começou a procurar outra vez pelo letreiro.

— Sinto que estamos perdendo tempo.

— Não se preocupe. O sol já vai nascer.

Frustrado em seus esforços, Bosch relutantemente abaixou o binóculo e durante os dez minutos seguintes observou a luz se insinuar por cima das montanhas e dentro da bacia. A aurora surgiu rosada e cinzenta. O porto já estava agitado conforme os barcos e as balsas cruzavam a água de um lado para outro no que parecia uma espécie de coreografia natural. Bosch viu uma névoa insistente agarrada às torres no Central, em Wan Chai e no porto em Kowloon. Ele farejou fumaça.


— Tem cheiro de Los Angeles depois dos tumultos de 1992, disse. — Como se a cidade estivesse pegando fogo.

— E está, de certa forma, disse Eleanor. — Estamos na metade do Yue Laan.

— O que é isso?

— É o Festival dos Espíritos Famintos. Começou na semana passada. É uma data do calendário chinês. Dizem que no décimo quarto dia do sétimo mês lunar os portões do inferno se abrem e os espíritos malignos ficam espreitando o mundo. As pessoas queimam oferendas para apaziguar os ancestrais e afastar os fantasmas.

— Que tipo de oferenda?

— Geralmente cédulas de dinheiro e réplicas em papier-machê de coisas como TVs de plasma, casas, carros. Coisas que imaginam que os espíritos precisam do outro lado. Às vezes as pessoas queimam objetos de verdade, também. Ela riu e continuou. — Uma vez eu vi alguém queimando um ar-condicionado. Mandando um ar-condicionado para um ancestral no inferno, eu acho.


Bosch lembrou que sua filha lhe contou sobre isso, certa vez. Ela disse que vira uma pessoa queimando um carro inteiro. Olhou para a cidade lá embaixo e percebeu que o que tomara por névoa matinal era na verdade fumaça das fogueiras, pairando no ar como se fossem os próprios fantasmas.


— Parece que tem um bocado de gente que acredita nisso, por aí.

— Tem, tem mesmo.


Bosch ergueu os olhos para Kowloon e ajustou o binóculo no rosto. A luz do sol estava finalmente batendo nos prédios ao longo do porto. Ele movimentava o binóculo de um lado para o outro, sempre mantendo as traves de gol sobre o Banco da China em seu campo de visão. Finalmente, encontrou a publicidade da Canon que Eleanor mencionara. O letreiro ficava no topo de um edifício com estrutura de alumínio e vidro que lançava brilhantes reflexos de luz em todas as direções.


— Estou vendo o letreiro, ele disse, sem tirar os olhos. Estimou que o prédio com o letreiro tivesse uns 12 andares. O letreiro ficava em cima de uma armação de ferro que acrescentava pelo menos mais um andar a sua altura. Ele moveu o binóculo para frente e para trás, esperando ver mais alguma coisa. Mas nada chamou sua atenção.

— Deixa eu dar mais uma olhada, disse Eleanor. Bosch lhe passou o binóculo e ela focou rapidamente a publicidade da Canon.

— Achei, disse. — E dá para ver que o Península Hotel fica do outro lado da rua, a duas quadras dali. É um dos prédios que tem heliporto.


Bosch seguiu sua linha de visão através do porto. Levou um momento para encontrar o letreiro. O sol batia nele em cheio, agora. Harry começava a sentir o torpor do longo voo deixando seu corpo. A adrenalina estava subindo. Ele avistou uma via ampla indo para o norte através de Kowloon perto do edifício com o letreiro no topo.


— Que rua é aquela? Perguntou. Eleanor manteve os olhos no binóculo.

— Só pode ser a Nathan Road, disse. — É a principal avenida norte-sul de Kowloon. Vai do porto até os Novos Territórios.

— As tríades ficam por lá?

— Sem dúvida. Bosch voltou a olhar na direção da Nathan Road e de Kowloon.

— Nove Dragões, murmurou consigo mesmo.

— O quê? Perguntou Eleanor.

— Eu disse, é lá que ela está.


* * *


Vinte e Cinco

BOSCH e sua filha em geral iam de bonde em seus passeios ao Pico. O transporte lembrava a Bosch uma versão menos trepidante e muito mais extensa do Angels Flight, em Los Angeles, e, quando chegavam embaixo, sua filha gostava de visitar um pequeno parque próximo ao tribunal, onde podia pendurar uma bandeira de prece tibetana. Em geral, as bandeiras coloridas eram penduradas como roupa lavada em varais esticados através do parque. Ela dissera a Bosch que pendurar uma bandeira era melhor do que acender uma vela na igreja porque a bandeira ficava ao ar livre e suas boas intenções podiam ser transportadas para longe com o vento. Não havia tempo para pendurar bandeiras agora. Voltaram para o Mercedes de Sun e começaram a descer a montanha na direção de Wan Chai. No caminho, Bosch percebeu que um trajeto lá embaixo levava diretamente ao prédio de apartamentos onde Eleanor e sua filha moravam. Bosch se curvou para frente no banco traseiro.


— Eleanor, vamos passar em sua casa primeiro.

— Por quê?

— Tem uma coisa que eu esqueci de pedir para você trazer. O passaporte de Madeline. E o seu também.

— Por quê?

— Porque isso não vai estar terminado quando a gente pegar ela de volta. Quero as duas bem longe daqui até essa história acabar.

— E quanto tempo é isso? Ela havia se virado para olhar para ele do banco da frente. Ele podia ver a acusação nos olhos dela. Bosch queria tentar evitar tudo isso, de modo que o resgate de sua filha fosse o único foco.

— Não sei quanto tempo. Mas vamos buscar os passaportes. Só para o caso de não dar tempo mais tarde.


Eleanor virou para Sun e falou secamente em chinês. Ele desviou imediatamente para o canto e parou. Não havia veículo algum descendo a montanha atrás deles. Era cedo demais para isso. Ela virou inteiramente no banco para olhar para Bosch.


— A gente vai passar lá para pegar os passaportes, disse sem se alterar. — Mas se a gente precisar desaparecer, não pense nem por um minuto que vamos com você. Bosch fez que sim. A admissão de que estava disposta a fazer aquilo foi o suficiente para ele.

— Então talvez seja melhor você juntar algumas coisas e deixar no porta-malas, também. Ela virou para frente sem responder. Depois de um momento, Sun olhou para ela e falou em chinês. Ela respondeu com um aceno de cabeça e Sun começou a descer a montanha outra vez. Bosch sabia que ela ia fazer o que ele pedira.


* * *


Quinze minutos mais tarde, Sun parou diante das torres gêmeas popularmente conhecidas no local como “The Chopsticks”, os pauzinhos usados para comer. E Eleanor, após ficar sem abrir a boca durante esses 15 minutos, estendeu uma bandeira branca para o banco de trás.


— Quer subir um pouco? Pode fazer um café enquanto eu faço as malas. Pelo jeito você está precisando.

— Café seria ótimo, mas não temos tempo...

— Café instantâneo.

— Então tá.


Sun ficou no carro e os dois subiram. Os “pauzinhos” eram na verdade duas torres interligadas e ovais que se erguiam 73 andares desde a metade da encosta da montanha dominando Happy Valley. Era o prédio residencial mais alto de toda Hong Kong e, como tal, se destacava na ponta do horizonte como dois pauzinhos espetados numa pilha de arroz. Eleanor e Madeline haviam se mudado para um apartamento ali pouco depois de chegarem de Las Vegas, seis anos antes. Bosch segurou com força o corrimão do elevador superveloz conforme subiram. Não apreciava nem um pouco o fato de que logo sob o piso havia um poço que descia direto por 44 andares. A porta abriu em um pequeno espaço comum, dando para os quatro apartamentos nesse andar, e Eleanor usou uma chave para abrir a primeira porta à direita.


— O café está no armário acima da pia. Não vou demorar.

— Ótimo. Quer uma xícara?

— Não, para mim não. Já tomei no aeroporto.


Entraram no apartamento e Eleanor se separou para ir até seu quarto, enquanto Bosch achava a cozinha e começava a preparar o café. Encontrou uma caneca dizendo A MELHOR MÃE DO MUNDO na lateral e usou essa mesma. Fora pintada à mão muito tempo antes e as palavras haviam ficado meio apagadas de tantas vezes que aquilo passara pela lava-louça. Saiu da cozinha, bebericando a mistura quente, e parou para apreciar o panorama. O apartamento dava para o oeste e proporcionava uma vista estonteante de Hong Kong e do porto. Bosch estivera ali apenas algumas vezes e nunca cansava de ver aquilo. Na maioria das vezes em que aparecia para uma visita, encontrava sua filha no saguão embaixo ou na escola, após as aulas. Um imenso navio de cruzeiro atravessava o porto e soltava vapor a caminho do mar aberto. Bosch o observou por um momento e então notou o letreiro da Canon no topo do prédio em Kowloon. Era um lembrete de sua missão. Ele virou para o corredor que levava aos quartos. Encontrou Eleanor no quarto de sua filha, chorando enquanto punha as roupas dentro de uma mochila.


— Não sei o que levar, disse. — Não sei quanto tempo vamos ficar longe ou do que ela vai precisar. Não sei nem se algum dia vamos voltar a vê-la.


Seus ombros tremiam conforme deixava as lágrimas rolarem. Bosch pôs a mão em seu ombro esquerdo, mas ela o repeliu na mesma hora. Não aceitaria nenhum gesto de consolo vindo dele. Fechou o zíper da mochila com um movimento brusco e saiu com ela debaixo do braço. Bosch ficou sozinho, olhando em torno pelo quarto. Lembranças de viagens a Los Angeles e outros lugares estavam sobre todas as superfícies horizontais. Pôsteres de filmes e bandas de rock cobriam as paredes. Um movelzinho no canto guardava inúmeros chapéus, máscaras e colares de conta pendurados. Uma infinidade de bichos de pelúcia de uma idade anterior se empilhavam contra os travesseiros na cama. Bosch não conseguia evitar o pensamento de que estava de algum modo invadindo a privacidade de sua filha por estar no quarto sem ser convidado por ela.


Sobre uma pequena escrivaninha ficava um laptop, sua tela apagada. Bosch foi até lá e bateu na barra de espaço e após alguns momentos a tela se acendeu. A proteção de tela de sua filha era uma foto tirada em sua última viagem a Los Angeles. Mostrava um grupo de surfistas alinhados, flutuando em suas pranchas e aguardando a leva seguinte de ondas. Bosch lembrou que haviam ido de carro até Malibu para tomar café da manhã em um lugar chamado Marmalade e depois parado para observar os surfistas em uma praia ali nas imediações. Notou uma caixinha feita de osso esculpido junto ao mouse. Lembrou a Bosch o cabo esculpido da faca que encontrara na mala de Chang. Parecia o tipo de objeto em que alguém guardaria coisas importantes, como dinheiro. Ele a abriu e descobriu que continha apenas uma pequena fieira de macacos de jade esculpidos, os três macacos sábios, cobrindo os olhos, os ouvidos e a boca, em um fio vermelho trançado. Bosch tirou o berloque da caixa e o segurou no ar para ver melhor. Tinha cerca de 5 centímetros e havia um pequeno anel prateado na ponta, de modo que pudesse ser preso em algum lugar.


— Pronto? Bosch virou. Eleanor estava na porta.

— Estou. O que é isto? Um brinco? Eleanor se aproximou para ver.

— Não, as meninas usam essas coisas como pingente no celular. Você pode comprar um igual a esse no mercado de jade em Kowloon. São tantas com o telefone igual que elas usam isso para ser diferentes. Bosch balançou a cabeça enquanto guardava o pingente de volta no porta-joias de osso.

— É caro?

— Não, isso é jade vagabundo. Custa mais ou menos um dólar americano e elas vivem trocando. Vamos indo. Bosch deu uma última olhada nos domínios privados de sua filha e, quando saía, agarrou um travesseiro e uma manta dobrada que estavam na cama. Eleanor olhou para trás e viu o que ele estava fazendo.

— Ela pode estar cansada e querendo dormir, explicou Bosch.


Saíram do apartamento e no elevador Bosch segurou o cobertor e o travesseiro sob um braço e uma das mochilas no outro. Podia sentir o xampu de sua filha no travesseiro.


— Está com os passaportes? Perguntou Bosch.

— Estão aqui, disse Eleanor.

— Posso perguntar uma coisa?

— O quê? Ele parecia examinar o padrão de pôneis no cobertor que segurava.

— Até que ponto você confia em Sun Yee? Não tenho certeza se ele deveria continuar com a gente depois que conseguirmos a arma. Eleanor respondeu sem hesitar.

— Já falei, você não precisa se preocupar com isso. Confio totalmente nele e ele vai continuar com a gente. Sun fica comigo e ponto final. Bosch assentiu. Eleanor ergueu o rosto para o visor digital que mostrava os andares passando. — Confio cem por cento nele, acrescentou. — E Maddie também.

— Como Maddie pode conhecer...Ele parou no meio. De repente compreendeu o que ela estava dizendo. Sun era o homem sobre quem Madeline havia lhe falado. Ele e Eleanor estavam juntos.

— Está entendendo agora? Perguntou Eleanor.

— Certo, entendi, ele disse. — Mas tem certeza de que a Madeline confia nele?

— Claro, tenho certeza. Se ela falou outra coisa para você, então foi só porque estava tentando conquistar a sua simpatia. Ela é uma garota, Harry. Sabe como manipular. Sim, a vida dela acabou... Mudando um pouco por causa do meu relacionamento com Sun Yee. Mas ele nunca mostrou outra coisa além de gentileza e respeito. Ela vai superar. Quer dizer, assim que a gente a trouxer de volta.


Sun Yee estava com o carro esperando na entrada circular de embarque-desembarque na frente do prédio. Harry e Eleanor puseram as mochilas no porta-malas, mas Bosch levou o travesseiro e o cobertor consigo no banco traseiro. Sun se afastou da entrada e o resto do caminho eles seguiram pela Stubbs Road para Happy Valley e depois até Wan Chai. Bosch tentou deixar a conversa no elevador fora de seus pensamentos. Não era importante no momento porque não ia ajudar a recuperar sua filha. Mas era difícil isolar seus sentimentos. Sua filha lhe contara quando estivera em Los Angeles que Eleanor estava namorando. E tivera alguns relacionamentos desde o divórcio. Mas ser confrontado pela realidade disso ali em Hong Kong era difícil. Ele estava no carro com uma mulher que ainda amava em algum nível básico, e com o parceiro dela. Era duro de engolir. Estava sentado atrás de Eleanor. Olhou para Sun e examinou a postura estoica do sujeito. Não era nenhum guarda-costas que estava ali. Havia mais em jogo para ele do que isso. Bosch se deu conta de que poderia ser um recurso valioso. Se sua filha podia contar com ele e confiar nele, então Bosch também podia. O resto ele deveria deixar de lado. Como que sentindo seu olhar sobre ele, Sun virou e olhou para Bosch. Mesmo com os óculos muito escuros obscurecendo os olhos de Sun, Bosch percebia que o outro interpretara a situação e sabia que não havia mais segredos entre os dois. Bosch assentiu. Mas o gesto não simbolizava nenhum tipo de aprovação que estava fornecendo.


Era apenas a mensagem silenciosa de que agora compreendia que estavam todos juntos naquilo.


* * *


Vinte e Seis

WAN CHAI era a parte de Hong Kong que nunca dormia. O lugar onde tudo podia acontecer e qualquer coisa podia ser obtida pelo preço certo. Qualquer coisa. Bosch sabia que, se quisesse uma mira a laser na arma que eles iam buscar, ele poderia ter uma. Se quisesse um atirador junto, provavelmente poderia tê-lo também. E isso para não falar em outras coisas, como drogas e mulheres, que estariam disponíveis para ele nos bares de strip-tease e clubes noturnos ao longo da Lockhart Road.


Eram oito e meia, em plena luz do dia, quando atravessavam a Lockhart. Muitos clubes continuavam funcionando, as janelas fechadas para manter a luz matinal do lado de fora, mas o neon brilhava forte no alto, em meio ao ar enfumaçado. A rua estava úmida e abafada. Reflexos fragmentados de neon se espalhavam pelas poças e pelos para-brisas dos táxis enfileirados junto à calçada. Os leões de chácara guardavam seus postos e, nas portas das boates, funcionárias sentavam em banquinhos convidando pedestres e motoristas a entrar. Homens em ternos amarrotados, com passos inseguros por uma noitada de álcool e drogas, andavam lentamente pelas calçadas. Estacionado em fila dupla ao lado dos ubíquos táxis vermelhos, ocasionalmente um Rolls-Royce ou Mercedes podia ser visto parado, apenas aguardando o dinheiro sair para finalmente empreender o trajeto de volta.


Diante de praticamente todos os estabelecimentos havia uma lata de cinzas para queimar oferendas aos espíritos famintos. Em muitas delas o fogo ainda ardia. Bosch viu uma mulher vestindo uma túnica de seda com um dragão vermelho nas costas parada diante de um clube chamado Red Dragon. Ela jogava o que pareciam ser dólares de Hong Kong verdadeiros nas chamas que eram cuspidas da lata diante de seu clube. “Era como acender uma vela para deus e outra para o diabo”, pensou Bosch. Usando a coisa real em vez de um objeto, ela se garantia. O cheiro de fogo e fumaça se misturava ao odor de comida frita dentro do carro, a despeito dos vidros levantados. Então um cheiro penetrante que Bosch não conseguia identificar, quase como um dos produtos que usara às vezes no laboratório do legista para encobrir os odores da morte, invadiu suas narinas e ele começou a respirar pela boca. Eleanor baixou a viseira de sol do carro para vê-lo no espelhinho.


— Gway lang go, disse.

— O quê?

— Geleia de casco de tartaruga. Eles fazem isso por aqui toda manhã. É para vender nas lojas de remédios.

— É forte.

— Isso é um jeito educado de dizer. Se você acha o cheiro forte, devia provar o gosto um dia desses. Dizem que cura qualquer coisa.

— Acho que eu dispenso.


Duas quadras adiante as boates ficavam menores e mais sórdidas vistas de fora. Os luminosos de neon eram mais chamativos e em geral acompanhados por cartazes iluminados com as fotos das lindas mulheres que supostamente esperavam ali dentro. Sun estacionou em fila dupla junto ao primeiro táxi da fila no cruzamento. Três esquinas eram ocupadas por boates. A quarta era uma loja de macarrão que estava aberta e já fervilhando de gente. Sun soltou o cinto e abriu sua porta. Bosch fez a mesma coisa.


— Harry, disse Eleanor. Sun virou para olhar para ele.

— Você não vai, falou para Bosch. Bosch olhou para ele.

— Tem certeza? Tenho dinheiro.

— Nada de dinheiro, disse Sun. — Você espera aqui. Desceu e fechou a porta. Bosch fechou a sua e ficou no carro.

— O que está acontecendo?

— Sun Yee procurou um amigo para pedir a arma. Não é uma transação envolvendo dinheiro.

— Então envolve o quê?

— Troca de favores.

— Sun Yee faz parte de alguma tríade?

— Não. Ele não teria conseguido o emprego no cassino se fizesse. E eu não estaria com ele.


Bosch não tinha muita certeza sobre o negócio dos cassinos sendo proibido para membros de tríades. Às vezes o melhor modo de conhecer seu inimigo é contratar seu inimigo.


— Ele já foi de alguma tríade?

— Não sei. Duvido. Não é como se você pudesse pedir demissão quando quisesse cair fora.

— Mas ele vai conseguir a arma com um membro de tríade, não vai?

— Não sei sobre isso também. Olha, Harry, a gente vai conseguir a arma que você falou que precisava. Não pensei que você ia ficar fazendo esse monte de perguntas. Quer a arma ou não quer?

— Quero, claro.

— Então a gente vai fazer o que for necessário para conseguir. E Sun Yee está arriscando o emprego e a liberdade dele para fazer isso, se você quer saber. As leis contra porte de armas são muito duras por aqui.

— Entendo. Chega de perguntas. Apenas agradeço a ajuda.


No silêncio que se seguiu, Bosch pôde escutar as batidas abafadas da música vinda de uma das boates, ou talvez das três juntas, apesar das portas e janelas fechadas. Pelo para-brisa viu Sun se aproximar de três homens de terno que estavam diante de uma boate do outro lado do cruzamento. Como a maioria dos estabelecimentos em Wan Chai, o letreiro da fachada estava em chinês e inglês. O lugar se chamava Yellow Door. Sun conversou brevemente com os homens e então abriu o paletó num gesto bem casual, de modo que pudessem ver que não estava armado. Um dos homens fez uma revista rápida, mas competente, e Sun então recebeu permissão de entrar pela porta amarela que dava nome à boate. Aguardaram por cerca de dez minutos. Durante esse tempo Eleanor quase não abriu a boca. Bosch sabia que estava sofrendo pela situação de sua filha e com raiva de suas perguntas, mas ele precisava saber mais do que sabia no momento.


— Eleanor, não fique irritada comigo, ok? Só deixa eu falar o seguinte: a gente está com o fator surpresa a nosso favor. Até onde o pessoal que pegou Maddie sabe, eu continuo em Los Angeles, pensando se solto o cara ou não. Então se Sun Yee for procurar a tríade aqui para me conseguir uma arma, ele vai ser obrigado a dizer para eles onde a arma está indo e como vai ser usada, não é? O cara que está arrumando a arma não pode procurar os membros da tríade do outro lado do porto em Kowloon para que fiquem ligados? Mandar um “olha só quem está na cidade, e a propósito, ele está vindo atrás de vocês”.

— Não, Harry, disse ela, descartando as suspeitas. — Não é assim que funciona.

— Bom, então como funciona?

— Já falei para você. Sun Yee está cobrando um favor. É isso. Ele não tem que passar nenhuma informação porque o cara com a arma deve a ele esse favor. É assim que funciona. Ok?


Bosch olhou para a entrada da boate. Nenhum sinal de Sun.


— Ok.


Outros cinco minutos se passaram em silêncio no carro e então Bosch viu Sun saindo pela porta amarela. Mas em vez de voltar para o carro, ele atravessou a rua e foi para a loja de macarrão. Bosch tentou segui-lo através da vitrine, mas o reflexo do neon do lado de fora era muito forte e Sun desapareceu de vista.


— E agora, ele vai comprar comida? Perguntou Bosch.

— Duvido, disse Eleanor. — Provavelmente mandaram que fosse para lá.


Bosch balançou a cabeça. Precauções. Mais cinco minutos se passaram até que Sun surgisse pela porta da loja carregando uma embalagem de isopor para viagem fechada com dois elásticos. Ele carregava na horizontal, como que tentando não entornar a comida que levava dentro. Voltou para o carro e entrou. Sem dizer uma palavra, passou a embalagem para Bosch, no banco traseiro. Segurando a embalagem embaixo, Bosch tirou os elásticos e abriu, enquanto Sun se afastava da calçada com o Mercedes. A embalagem continha uma pistola de tamanho médio de aço tratado com óxido azulado. Não havia mais nada ali dentro. Nenhum pente sobressalente ou munição extra. Apenas a arma e o que estivesse nela.


Bosch pôs a embalagem no chão do carro e segurou a pistola na mão esquerda. Não havia nenhuma marca registrada ou símbolo na película azul-acinzentada. Apenas números de série e modelo, mas a estrela de cinco pontas gravada no cabo revelou a Bosch que se tratava de uma pistola Black Star, fabricada pelo governo da China. Ele vira algumas dessas ocasionalmente em Los Angeles. Eram feitas às dezenas de milhares para os militares chineses e um número cada vez maior acabava sendo roubado e contrabandeado para o outro lado do oceano. Muitas delas obviamente ficavam na China e eram contrabandeadas para Hong Kong.


Bosch segurou a pistola entre os joelhos e ejetou o carregador. Era um pente duplo com 15 balas Parabellum 9 mm. Ele tirou as balas uma por uma e as guardou no porta-copo do apoio para o braço. Depois ejetou uma décima sexta da câmara e a depositou no porta-copo com as outras.


Em seguida Bosch observou a linha de mira da arma. Olhou dentro da câmara, procurando algum sinal de ferrugem, e então examinou o percussor e o extrator. Verificou a ação da arma e do gatilho diversas vezes. A arma parecia funcionar apropriadamente. Ele então examinou bala por bala conforme recarregava o pente, procurando indícios de corrosão ou qualquer outro indicativo de que a munição fosse velha ou duvidosa. Não encontrou nada. Enfiou o carregador com firmeza no lugar e inseriu a primeira bala na câmara com um clac-clac. Depois ejetou a câmara outra vez, empurrou a última bala pela abertura e remontou a arma novamente. Tinha 16 tiros, e só.


— Satisfeito? Perguntou Eleanor do banco da frente. Bosch ergueu o rosto e viu que desciam a rampa na direção do Cross Harbour Tunnel. O túnel ia conduzi-los diretamente para Kowloon.

— Mais ou menos. Não gosto de contar com uma arma que nunca disparei antes. Até onde eu sei, o percussor dessa coisa pode ter sido limado e eu vou ficar na mão quando precisar dela.

— Bom, não tem nada que a gente possa fazer a respeito. Você vai ter que confiar em Sun Yee, simplesmente.


O trânsito de domingo de manhã estava leve no túnel de duas faixas. Bosch esperou até que houvessem passado o ponto baixo no meio e começado a subida na direção de Kowloon. Escutara diversos táxis com escapamento estourando ao longo do trajeto. Enrolou rapidamente o cobertor de sua filha em torno da arma e da mão esquerda. Depois empurrou o travesseiro para o canto e virou para olhar pelo vidro traseiro. Não havia nenhum carro à vista atrás deles, já que os carros que vinham ainda não haviam chegado à metade do túnel.


— De quem é esse carro aqui? Perguntou.

— Pertence ao cassino, disse Eleanor. — Peguei emprestado. Por quê?


Bosch baixou o vidro. Segurou o travesseiro mais alto e pressionou a boca da arma no estofo. Disparou duas vezes, o tiro duplo padrão que empregava para testar o mecanismo de uma arma. As balas estalaram contra as paredes de azulejo do túnel. Mesmo com todo o tecido em torno da arma, os dois estampidos ecoaram ruidosamente no carro. O carro deu uma ligeira guinada quando Sun olhou para o banco de trás. E Eleanor gritou.


— Que porra é essa? Bosch deixou o travesseiro cair no chão e ergueu o vidro. O carro cheirava a pólvora queimada, mas estava em silêncio outra vez. Ele desenrolou o cobertor e verificou a arma. Havia disparado com facilidade e sem engasgar. Ficara limitada a 14 tiros e estava pronta para a ação.

— Precisava ter certeza de que funcionava, ele disse. — Você não anda com uma arma a menos que tenha certeza.

— Você ficou louco? Podia ter feito a gente ser preso antes mesmo de ter chance de tentar qualquer coisa!

— Se você mantiver o tom de voz baixo e Sun Yee não sair da faixa, acho que a gente fica bem.


Bosch se inclinou para frente e enfiou a arma na cintura da calça, às costas. Sentiu o metal quente contra sua pele. Mais à frente viu uma luz no fim do túnel. Estariam em Kowloon em breve.


Chegara a hora.


* * *


Vinte e Sete

O TÚNEL os conduziu para Tsim Sha Tsui, a área central de Kowloon à beira d’água, e em poucos minutos Sun entrou com o Mercedes na Nathan Road. Um amplo bulevar de quatro faixas entre fileiras de edifícios elevados, até onde Bosch podia ver. Uma mistura caótica de uso comercial e residencial. Os primeiros dois andares de cada prédio abrigavam lojas e restaurantes, enquanto os andares acima, residências e escritórios. O aglomerado de telas de vídeo e placas em chinês e inglês era uma agitação intensa de cor e movimento. Os prédios iam desde construções desajeitadas de meados do século a estruturas reluzentes de vidro e aço da recente prosperidade. Era impossível para Bosch ver o alto daquele corredor de dentro do carro. Ele baixou sua janela e pôs a cabeça para fora, tentando achar o letreiro da Canon, o primeiro ponto de referência da foto gerado pelo vídeo do sequestro de sua filha. Não conseguiu vê-lo e voltou a sentar no carro. Ergueu o vidro.


— Sun Yee, pare o carro. Sun olhou para ele no retrovisor.

— Parar aqui?

— Isso, aqui. Não consigo ver nada. Preciso sair. Sun olhou para Eleanor buscando aprovação e ela assentiu.

— Vamos descer. Você procura um lugar para estacionar.


Sun encostou na calçada e Bosch saiu. Havia tirado a foto de sua mochila e estava com ela na mão. Sun então se afastou, deixando Eleanor e Bosch na calçada. Era a metade da manhã agora e as ruas e calçadas estavam apinhadas de gente. Havia fumaça no ar e o cheiro de fogueiras. Os espíritos famintos estavam por perto. A paisagem urbana era uma confusão de neons, vidros espelhados e telas de plasma gigantes transmitindo imagens de movimentos abruptos e edições vertiginosas. Bosch apontou a foto e então ergueu o rosto e esquadrinhou o horizonte.


— Onde está o letreiro da Canon? Perguntou.

— Harry, você se confundiu, disse Eleanor. Ela pôs as mãos em seus ombros e o girou 180 graus. — Lembre que tudo está ao contrário.


Ela apontou diretamente para cima, seu dedo traçando uma linha para o alto do prédio diante do qual estavam. Bosch ergueu o rosto. O letreiro da Canon estava bem acima deles, em um ângulo que o tornava ilegível. Ele estava olhando para o canto de baixo da peça de publicidade. O letreiro girava lentamente.


— Ok, estou vendo, ele disse. — A gente começa daqui. Ele voltou a baixar o rosto e apontou para a foto. — Acho que a gente tem que ir pelo menos mais uma quadra para lá do porto.

— Vamos esperar Sun Yee.

— Liga para ele e fala que a gente está indo. Bosch começou a andar. Eleanor não teve opção a não ser segui-lo.

— Tudo bem, tudo bem.


Ela pegou o celular e começou a fazer a ligação. Conforme andava, Bosch ficava de olho no alto dos edifícios, procurando unidades de ar-condicionado. Uma quadra ali significava diversos prédios percorridos. Olhando para cima como estava, quase trombou com outros pedestres algumas vezes. Parecia não haver qualquer uniformidade coletiva de caminhar à sua direita. As pessoas andavam por todos os lados e Bosch precisava prestar atenção para evitar colisões. A certa altura, as pessoas que andavam à sua frente subitamente deram um passo para a esquerda e depois para a direita e Bosch quase tropeçou numa velha que mendigava na calçada, as mãos juntas num gesto de súplica sobre uma cesta de moedas. Bosch conseguiu desviar e levou a mão ao bolso ao mesmo tempo. Eleanor rapidamente segurou seu braço.


— Não. Dizem que todo dinheiro que conseguem é coletado pelas tríades no fim do dia.


Bosch não fez perguntas. Continuou concentrado na tarefa à sua frente. Andaram por mais duas quadras e então Bosch viu e ouviu outra peça do quebra-cabeça se encaixando no lugar. Do outro lado da rua havia uma entrada para o Mass Transit Railway, o metrô de Hong Kong. Um abrigo envidraçado levando aos elevadores que desciam para o subterrâneo.


— Espera, disse Bosch, parando. — A gente está perto.

— O que foi? Perguntou Eleanor.

— O metrô. Dava para escutar no vídeo.


Como que pegando a deixa, o ruído surdo de uma massa de ar em movimento subiu quando um trem chegou à estação sob a superfície. Era como uma onda. Bosch baixou o rosto para a foto em sua mão e depois olhou para os prédios em torno.


— Vamos atravessar.

— Não dá para esperar só um minuto pelo Sun Yee? Não tenho como explicar onde a gente está se continuarmos andando.

— Assim que a gente atravessar.


Atravessaram apressadamente a rua no sinal de pedestres piscando. Bosch notou diversas mulheres esfarrapadas mendigando trocados perto da entrada do metrô. Mais gente saía da estação do que entrava. Kowloon começava a ficar cada vez mais cheio. O ar estava denso com a umidade e Bosch sentia a camisa grudando em suas costas. Bosch virou e olhou para o alto. Estavam numa área de construções mais velhas. Era quase como caminhar da primeira classe para a classe econômica em um avião. Os prédios nessa quadra e mais adiante eram mais baixos, cerca de vinte andares, e estavam em condições mais precárias do que os da área junto ao porto. Harry notou inúmeras janelas abertas e inúmeros aparelhos de ar-condicionado se projetando das janelas. Pôde sentir as reservas de adrenalina restantes começando a ser liberadas.


— Ok, é isso. Ela está num desses prédios.


Começou a andar para se afastar da multidão e do som alto de conversas em torno da entrada do metrô. Manteve os olhos nos andares superiores dos edifícios que o cercavam. Era um cânion de concreto e em algum lugar ali em cima, numa daquelas fendas, estava sua filha sequestrada.


— Harry, espera! Acabei de falar para Sun Yee encontrar a gente na entrada do metrô.

— Vai esperar ele. Eu vou estar logo ali.

— Não, eu vou com você.


Andando meia quadra, Bosch parou e voltou a consultar a foto. Mas não havia qualquer indicativo final para ajudá-lo. Ele sabia que estava perto, mas chegara num ponto em que precisava de ajuda, ou seria um jogo de adivinhação. Estava cercado por milhares de salas e janelas. A ficha começava a cair de que a última parte de sua busca era impossível. Havia viajado mais de 16 mil quilômetros para encontrar sua filha e se sentia tão desamparado quanto a mendiga maltrapilha pedindo moedas ali na calçada.


— Deixa eu ver a foto, disse Eleanor. Bosch a deu para ela.

— Não tem mais nada, ele disse. — Todos esses prédios parecem iguais.

— Só deixa eu dar uma olhada.


Ela examinou a foto detidamente e Bosch observou-a retroceder duas décadas, no tempo em que era uma agente do FBI. Seus olhos se estreitaram e ela analisou a foto como agente, não como mãe de uma menina desaparecida.


— Ok, ela disse. — Deve ter alguma coisa aqui.

— Achei que os aparelhos de ar-condicionado fossem ajudar, mas eles estão em toda parte por aqui.


Eleanor balançou a cabeça, mas não desgrudou os olhos da imagem. Nesse instante Sun apareceu, o rosto corado pelo esforço de tentar seguir um alvo em movimento. Eleanor não disse nada, mas fez um ligeiro movimento com o braço de modo a dividir a visão da foto com ele. Haviam chegado a um ponto no relacionamento em que palavras não eram necessárias. Bosch virou e fitou o longo corredor da Nathan Road. Fosse ou não um gesto consciente, não queria olhar para aquilo que não possuía mais. Às suas costas Eleanor disse:


— Espera um minuto. Tem um padrão aqui. Bosch voltou a se virar.

— Como assim?

— A gente vai conseguir, Harry. Tem um padrão aqui que vai levar a gente direto para o quarto. Bosch sentiu um espírito correndo por sua espinha. Ficou mais perto de Eleanor para conseguir ver a foto.

— Me mostra, disse, carregando de urgência cada sílaba pronunciada. Eleanor apontou para a foto e passou a unha do indicador ao longo de uma fileira de aparelhos refletidos na janela.

— Nem toda janela tem uma unidade de ar-condicionado no prédio que a gente está procurando. Alguns quartos, como esse, têm janelas abertas. A gente tem um padrão. Mas só um pedaço dele, porque não sabemos onde fica esse quarto em relação ao prédio.

— Provavelmente no centro. A análise do áudio captou vozes abafadas cortadas pelo elevador. O elevador provavelmente está localizado no centro.

— Isso é ótimo. Ajuda. Ok, então vamos imaginar que as janelas sejam traços e os aparelhos de ar-condicionado sejam pontos. Nesse reflexo, a gente está vendo um padrão do andar onde ela está. Começando pelo quarto onde ela está, um traço, a gente tem ponto, ponto, traço, ponto, traço. Ela batia a unha em cada parte do padrão na foto. — Esse é o nosso padrão, acrescentou. — No alto do prédio, a gente procura por isso, indo da esquerda para a direita.

— Traço, ponto, ponto, traço, ponto, traço, repetiu Bosch. — Janelas são traços.

— Certo, disse Eleanor. — Melhor dividir os prédios? A gente sabe que está perto, por causa do metrô.


Ela virou e encarou o paredão de prédios que percorria toda a extensão da rua. A primeira reação de Bosch foi de não confiar prédio nenhum a quem quer que fosse. Não ficaria satisfeito até ter esquadrinhado cada edifício por si mesmo. Mas se segurou. Eleanor encontrara o padrão e dera um novo alento à busca. Era sua vez de ir atrás dela.


— Vamos começar, disse ele. — Qual deles eu pego? Eleanor apontou.

— Você fica com aquele ali, eu olho esse aqui e Sun Yee, você vai olhar aquele. Quando acabar, passamos para o prédio seguinte. Até a gente encontrar. Vamos começar do topo. A gente sabe pela foto que o quarto fica no alto.


“Ela tem razão”, pensou Bosch. Isso tornaria a busca mais rápida do que ele havia previsto. Afastou-se e foi verificar o prédio que ela havia indicado. Começou pelo último andar e veio descendo, os olhos indo e voltando de andar em andar. Eleanor e Sun se separaram e fizeram a mesma coisa. Trinta minutos depois Bosch estava na metade de seu terceiro prédio quando Eleanor chamou.


— Achei. Bosch veio para onde ela estava. A mão dela estava erguida, contando os andares do prédio do outro lado da rua. Sun logo se reuniu a eles.

— Décimo quarto. O padrão começa um pouco à direita do centro. Você tinha razão sobre isso, Harry. Bosch contou os andares, erguendo o rosto cheio de esperança. Chegou ao décimo quarto andar e identificou o padrão. Havia 12 janelas de ponta a ponta e o padrão se ajustava às últimas seis à direita.

— É isso.

— Espera um pouco. Isso é só uma ocorrência do padrão. Pode ter mais. A gente precisa continuar...

— Não vou esperar. Você fica de olho. Se encontrar outra repetição, me liga.

— Não, a gente não vai se separar. Seus olhos fecharam o foco na janela que teria captado o reflexo visto no vídeo. Estava fechada agora.


Ele baixou o rosto para a entrada do prédio. Os dois primeiros andares do edifício eram de lojas e outros estabelecimentos. Uma faixa larga de sinalização comercial e publicidade, incluindo duas enormes telas digitais, envolvia todo o prédio. Acima disso o nome do edifício ia afixado à fachada em letras e ideogramas dourados: CHUNGKING MANSIONS. A entrada principal era ampla como uma garagem para dois carros. Pela abertura Bosch viu uma pequena escada levando ao que parecia ser um bazar de compras cheio de gente.


— Chungking Mansions, disse Eleanor, com um tom de reconhecimento na voz.

— Você conhece? Perguntou Bosch.

— Nunca estive aqui, mas todo mundo sabe sobre o Chungking Mansions.

— O que é?

— É um saco de gatos. O lugar mais barato da cidade para se hospedar, e a primeira parada de qualquer imigrante do terceiro e do quarto mundo que chega aqui. Mês sim, mês não, você lê sobre alguém sendo preso, baleado ou esfaqueado, e o endereço é esse. É como uma Casablanca pós-moderna: tudo num prédio só.

— Vamos.


Bosch começou a atravessar a rua longe de qualquer semáforo, contornando o trânsito lento, forçando táxis a parar e buzinar.


— Harry, o que você está fazendo?


Bosch não respondeu. Depois de atravessar a rua, começou a subir a escada dentro do Chungking Mansions. Era como estar em outro planeta.


* * *


Vinte e Oito

A PRIMEIRA coisa que atingiu os sentidos de Bosch assim que pisou no primeiro andar do Chungking Mansions foi o cheiro. Um odor intenso de temperos e frituras invadiu suas narinas conforme seus olhos foram se acostumando com a luz fraca do mercadão de terceiro mundo, que se esparramava diante dele por corredores e passagens estreitas. O lugar mal abrira, mas já fervilhava de vendedores e fregueses. Os estandes e as bancas com cerca de 2 metros de largura ofereciam de tudo, indo de relógios e celulares a jornais em todas as línguas e comidas para todos os gostos. O lugar tinha uma atmosfera agitada, nervosa, que fazia Bosch olhar para trás de tantos em tantos passos. Queria saber quem estava as suas costas.


Ele se deslocou até o centro, onde ficava a área dos elevadores. Havia uma fila de 15 pessoas esperando por dois elevadores, e Bosch notou que um elevador estava aberto, às escuras e obviamente sem funcionar. Havia dois seguranças no começo da fila, verificando se todos que iam subir possuíam uma chave do quarto ou se estavam com alguém que possuía. Acima da porta do único elevador funcionando havia um monitor de vídeo mostrando o lado interno. Estava lotado na capacidade máxima, como uma lata de sardinhas. Bosch estava olhando para o monitor e imaginando como ia subir para o décimo quarto andar quando Eleanor e Sun o alcançaram. Eleanor agarrou-o bruscamente pelo braço.


— Harry, chega de bancar o herói solitário! Não saia mais correndo na frente desse jeito outra vez. Bosch olhou para ela. Não foi raiva que viu em seus olhos. Era medo. Ela queria ter certeza de que não estaria sem ele quando fosse enfrentar o que quer que houvesse no décimo quarto andar.

— Só quero continuar avançando, disse Bosch.

— Então avança com a gente, não para longe da gente. Vamos subir?

— A gente precisa de uma chave para subir.

— Então precisamos alugar um quarto.

— Onde a gente faz isso?

— Sei lá. Eleanor olhou para Sun. — Precisamos subir.


Isso foi tudo que disse, mas a mensagem foi transmitida. Ele fez que sim e seguiu na frente, se afastando dos elevadores e mergulhando no labirinto de bancas. Logo chegaram a uma fileira de balcões com cartazes em múltiplas línguas.


— As pessoas alugam quarto aqui, disse Sun. — Tem mais de um hotel.

— Você quer dizer no edifício? Perguntou Bosch. — Tem mais de um?

— Sim, muitos. Você escolhe daqui.


Fez um gesto na direção dos cartazes sobre os balcões. E Bosch percebeu que o que Sun estava dizendo era que havia inúmeros hotéis dentro do prédio, todos eles competindo pela hospedagem dos viajantes de poucos recursos. Alguns, em virtude da língua nos cartazes, visavam viajantes de países específicos.


— Pergunte qual fica no décimo quarto andar, ele disse.

— Não tem décimo quarto. Bosch se deu conta de que ele tinha razão.

— Décimo quinto então. Qual fica no décimo quinto? Sun foi para o começo da fila, perguntando sobre o décimo quinto andar, até que parou no terceiro balcão e acenou para Eleanor e Bosch.

— Aqui.


Bosch avaliou o homem atrás do balcão. Parecia estar ali há quarenta anos. Seu corpo em formato de sino parecia projetado para o banquinho em que estava sentado. Ele fumava um cigarro preso a uma piteira de osso esculpido com pelo menos 10 centímetros de comprimento. Não devia gostar de fumaça nos olhos.


— O senhor fala inglês? Perguntou Bosch.

— Sim, eu tenho inglês, disse o sujeito, cansado.

— Certo. Queremos um quarto no... No décimo quinto andar.

— Todos vocês? Um quarto?

— Isso, um quarto.

— Não, não pode um quarto. Só dois pessoas. Bosch percebeu que ele queria dizer que a ocupação máxima de cada quarto eram duas pessoas.

— Então quero dois quartos no décimo quinto.

— Já vai.


O atendente empurrou uma prancheta através do balcão. Havia uma caneta presa a um barbante e sob o prendedor um fino maço de formulários de registro. Bosch rabiscou seu nome e endereço rapidamente e empurrou a prancheta de volta através do balcão.


— Identidade, passaporte, disse o atendente. Bosch tirou o passaporte e o homem verificou. Escreveu o número em um pedaço de papel para rascunho e lhe devolveu o documento.

— Quanto? Perguntou Bosch.

— Quanto tempo ficando?

— Dez minutos. O atendente passou os olhos pelos três, como que considerando o que a resposta de Bosch poderia significar. — Vamos logo, disse Bosch. — Quanto? Enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro.

— Duzentos americanos.

— Não tenho americanos. Só dólares de Hong Kong.

— Dois quartos, 1.500. Sun se adiantou e pôs a mão sobre o dinheiro de Bosch.

— Não, é muito. Começou a discutir rápida e peremptoriamente com o homem, se recusando a permitir que tirasse vantagem de Bosch. Mas Harry não se importava. Sua preocupação era o tempo, não o dinheiro. Tirou 15 notas de cem do seu rolo e jogou sobre o balcão.

— As chaves, exigiu. O atendente deixou Sun de lado e virou para a fileira dupla de escaninhos atrás dele. Conforme escolhia duas chaves, Bosch olhou para Sun e encolheu os ombros. Mas, quando o atendente se virou novamente e Bosch estendeu a mão, ele segurou as chaves.

— Depósito de chave um mil. Bosch percebeu que nunca deveria ter mostrado seu rolo de dinheiro. Sacou-o rapidamente outra vez, agora segurando sob o balcão, e tirou mais duas notas. Bateu com elas no balcão. Quando o homem no banquinho finalmente ofereceu as chaves, Harry as arrancou de sua mão e começou a se dirigir para o elevador.


As chaves dos quartos eram antiquados artefatos de latão com chaveiros de plástico losangonais contendo caracteres chineses e os números dos quartos. Os deles eram o 1.503 e o 1.504. Quando se dirigiam ao elevador, Bosch deu uma delas para Sun.


— Você sobe com ele ou comigo, disse para Eleanor.


A fila do elevador estava maior. Era de pelo menos trinta pessoas e o vídeo acima mostrava que os seguranças estavam pondo de oito a dez pessoas por vez, dependendo do tamanho dos ocupantes. Os 15 minutos mais longos da vida de Bosch foram passados à espera de subir. Eleanor tentou acalmar sua impaciência e ansiedade crescentes puxando conversa.


— Quando a gente subir, qual é o plano? Bosch balançou a cabeça.

— Plano nenhum. A gente age conforme a situação.

— Só isso? O que a gente vai fazer, simplesmente bater nas portas? Bosch balançou a cabeça e segurou a foto do reflexo outra vez.

— Não, vai dar para saber qual é o quarto. Só tem uma janela nesse quarto. É sempre uma janela por quarto. A gente sabe que a nossa janela é a sétima no lado que dá de frente para a Nathan Road. Quando a gente chegar, arromba a sétima porta a partir do fim do corredor.

— Arromba?

— Não vou tocar a campainha, Eleanor.


A fila andou até que finalmente chegou a vez deles. O segurança verificou a chave de Bosch e deixou que ele e Eleanor passassem em direção à porta do elevador, mas depois pôs o braço atrás deles e barrou a passagem de Sun. O elevador estava lotado.


— Harry, espera, disse Eleanor. — Vamos pegar o próximo. Bosch entrou no elevador e virou. Olhou para Eleanor e depois para Sun.

— Você espera, se quiser. Eu não vou esperar. Eleanor hesitou por um momento e em seguida entrou no elevador ao lado de Bosch. Exclamou alguma coisa em chinês para Sun quando a porta se fechou. Bosch encarou o indicador digital de andares.

— O que você disse para ele?

— Que a gente espera por ele no décimo quinto.


Bosch não fez nenhum comentário. Não importava. Tentou se controlar e respirar mais devagar. Estava se preparando para o que pudesse encontrar ou ter de enfrentar no décimo quinto. O elevador subia vagarosamente. Fedia a gente e a peixe. Bosch respirou pela boca para evitar o cheiro. Percebeu que ele também estava dando sua contribuição ao problema. A última vez que tomara banho fora na sexta de manhã em Los Angeles. Em sua mente, isso parecia uma outra vida. A subida foi ainda mais excruciante do que a espera na fila. Finalmente, ao parar pela quinta vez, a porta se abriu no décimo quinto andar. A essa altura, os únicos passageiros restantes eram Bosch, Eleanor e dois homens que haviam apertado o botão do 16º. Harry olhou de relance para os dois e então passou o dedo por todos os botões abaixo do que marcava o 15. Com isso, o elevador iria parar inúmeras vezes a caminho do térreo. Ele desceu primeiro, com a mão esquerda às costas e pronto para sacar a arma no momento em que fosse necessário. Eleanor vinha atrás dele.


— Acho que não vamos esperar por Sun Yee, não é? Ela disse.

— Não, disse Bosch.

— Ele devia estar aqui. Bosch virou para ela.

— Não, não devia.


Ela ergueu as mãos em sinal de rendição e recuou um passo. Não era hora para aquilo. Pelo menos ela sabia disso. Bosch virou e tentou se localizar. A saída do elevador ficava no centro do andar com um desenho de H. Ele pegou o corredor da direita porque sabia que ali ficava o lado do prédio de frente para a Nathan Road. Começou a contar as portas imediatamente e chegou ao número 12 no lado da frente do corredor. Foi até a sétima porta, quarto 1.514. Sentiu o coração engrenar numa batida mais acelerada com a adrenalina que passava por ele. Era hora. Era para isso que estava ali. Curvou-se para frente, colando o ouvido na porta junto ao batente. Concentrou-se com toda atenção mas não escutou nenhum som vindo de dentro.


— Ouviu alguma coisa? Sussurrou Eleanor. Bosch negou com a cabeça. Levou a mão à maçaneta e tentou girá-la. Não esperava que a porta estivesse destrancada, mas queria fazer uma ideia do mecanismo e saber até que ponto era sólido.


A maçaneta estava velha e bamba. Bosch precisaria decidir se arrombava a porta com um chute e usava o elemento da completa surpresa ou se tentava abrir a fechadura com suas ferramentas e corria o risco de fazer um som que alertaria quem quer que estivesse do outro lado. Ele se abaixou sobre um joelho e observou a fechadura de perto. Seria fácil de abrir, mas podia haver algum ferrolho ou corrente de segurança do lado de dentro. Ele pensou em algo e levou a mão ao bolso.


— Vai até o nosso quarto, sussurrou. — Vê se tem algum fecho ou correntinha do lado de dentro. Ele deu a ela a chave do 1.504.

— Agora? Sussurrou Eleanor.

— É, agora, Bosch sussurrou de volta. — Quero saber como é por dentro.


Ela pegou a chave e foi rapidamente pelo corredor. Bosch tirou sua carteira com distintivo. Antes de passar pela segurança do aeroporto havia escondido suas duas melhores ferramentas de abrir fechadura atrás do distintivo. Ele sabia que o distintivo apareceria no raio X, mas as duas finas tiras de metal atrás dele seriam muito provavelmente confundidas como parte do distintivo. Seu plano dera certo e ele agora pegava as ferramentas e silenciosamente as inseria na fechadura da maçaneta. Levou menos de um minuto para destrancar. Ele segurou a maçaneta sem abrir a porta até Eleanor voltar depressa pelo corredor mal iluminado.


— Tem uma corrente de segurança, sussurrou ela. Bosch assentiu e ficou de pé, ainda segurando a maçaneta com a mão direita. Ele sabia que podia facilmente arrombar a porta com o ombro, sendo só uma corrente de segurança.

— Pronto? Sussurrou.


Eleanor fez que sim. Bosch então enfiou a mão sob o paletó e sacou sua pistola. Usou o polegar para destravar o fecho de segurança da arma e olhou para Eleanor. Juntos, moveram os lábios mudamente fazendo um, dois, três e então ele empurrou a porta. Não havia nenhuma correntinha no lugar. A porta se abriu até o fim e Bosch entrou rapidamente no quarto. Eleanor entrou logo atrás dele.


O quarto estava vazio.


* * *


Vinte e Nove

BOSCH ATRAVESSOU o quarto até o banheiro minúsculo. Puxou a cortina de plástico suja que cobria a pequena ducha no box de azulejos, mas ali estava vazio. Voltou para o quarto e olhou para Eleanor. Disse as palavras que tanto temia.


— Ela não está mais aqui.

— Tem certeza de que esse é o quarto certo? Perguntou. Bosch tinha. Já havia olhado para o padrão de rachaduras e buracos de prego na parede acima da cama. Tirou a foto dobrada do bolso e mostrou para ela.

— O quarto é esse. Voltou a guardar a arma sob o paletó, na cintura da calça. Tentou impedir que a sensação acachapante de futilidade e medo o dominasse. Mas não tinha certeza sobre o caminho a seguir a partir dali. Eleanor largou a foto na cama.

— Deve ter algum sinal de que ela esteve aqui. Alguma coisa.

— Vamos indo. A gente conversa lá embaixo. Vamos descobrir quem alugou o quarto na sexta.

— Não, espera. A gente precisa dar uma olhada por aqui antes. Ela se abaixou e olhou sob a cama.

— Eleanor, ela não está embaixo da cama. Levaram ela daqui, e a gente precisa continuar procurando. Liga pro Sun e fala para ele não subir. Fala para ele buscar o carro.

— Não, não pode ser. Ela parou de olhar sob a cama e continuou ajoelhada ali, os cotovelos em cima, como uma criança rezando antes de dormir. — Ela não pode ter ido. A gente... Bosch contornou a cama e se curvou. Pôs os braços em torno dela e a puxou para que ficasse de pé.

— Vamos, Eleanor, a gente precisa continuar. A gente vai encontrar Maddie. Eu disse para você que a gente ia. Só não dá para ficar parado. Só isso. A gente precisa ser forte e continuar em frente. Ele começou a conduzi-la para a porta, mas ela se libertou e correu para o banheiro. Precisaria ver se estava vazio com seus próprios olhos. — Eleanor, por favor. Ela sumiu ali dentro e Bosch a escutou puxando a cortina da ducha. Mas não voltou depois disso.

— Harry!


Bosch atravessou o quarto rapidamente e entrou no banheiro. Eleanor estava curvada ao lado do vaso, erguendo o cesto de lixo. Virou para mostrar para ele. No fundo do lixo havia um chumaço de papel higiênico com sangue. Eleanor o pegou entre o polegar e o indicador e o segurou no ar. O sangue deixara uma mancha menor do que uma moeda. O tamanho da mancha e a quantidade de papel sugeriam que havia sido usado para pressionar um pequeno corte ou ferimento e estancar o fluxo de sangue. Eleanor se curvou sobre Bosch, e Harry percebeu que presumia que estavam olhando para o sangue de sua filha.


— A gente ainda não sabe o que isso significa, Eleanor. Seu conselho foi ignorado. A linguagem corporal dela sugeria que estava prestes a desabar.

— Eles drogaram ela, ela disse. — Enfiaram uma agulha no braço da Maddie.

— A gente ainda não sabe disso. Vamos descer e conversar com o cara do balcão. Ela não se moveu. Ficou olhando para o sangue no papel como se fosse uma flor vermelha e branca.

— Tem alguma coisa para guardar isso?


Bosch sempre carregava uma pequena quantidade de saquinhos de evidência lacráveis no bolso do paletó. Ele então tirou um e Eleanor guardou o chumaço de papel higiênico dentro. Ele o fechou e enfiou em seu bolso.


— Ok, vamos indo.


Finalmente deixaram o quarto. Bosch estava com um braço em volta das costas de Eleanor e olhava para seu rosto enquanto voltavam ao corredor. Parte dele esperava que ela fosse se soltar e entrar de volta no quarto. Mas então viu algum tipo de reconhecimento cintilar em seus olhos quando ela os fixou no fim do corredor.


— Harry?


Bosch virou, esperando que fosse Sun. Mas não era. Dois homens se aproximavam daquele lado do corredor. Andavam lado a lado com determinação. Bosch percebeu que eram os dois sujeitos que haviam permanecido com eles no elevador quando subiam. Os que se dirigiam ao 16º andar.


No momento em que os homens viram Harry e Eleanor no corredor, suas mãos foram para dentro dos paletós, na direção da cintura. Bosch viu um dos homens pegar algo e instintivamente soube que ia sacar uma arma. Bosch subiu o braço direito para o meio das costas de Eleanor e empurrou-a através do corredor na direção da porta do elevador. Ao mesmo tempo, levou a mão esquerda às costas e agarrou sua arma. Um dos homens gritou algo numa língua que Bosch não compreendeu e ergueu sua arma. Bosch puxou a sua e a trouxe diante do corpo, fazendo mira. Abriu fogo no mesmo momento em que tiros foram disparados por um dos homens no fim do corredor. Bosch atirou repetidamente, pelo menos dez tiros, e continuou mesmo depois que os dois homens tombaram no chão.


Ainda apontando, foi na direção deles. Um caíra sobre as pernas do outro. Um estava morto, seus olhos fitando cegamente o teto. O outro continuava vivo e respirando fracamente ao mesmo tempo em que tentava tirar a arma da cintura. Bosch olhou ali e percebeu que o cão da pistola prendera no tecido. Ele não conseguira sacar. Bosch se abaixou e tirou a mão do homem dali, soltando a arma com um gesto ríspido. A mão do homem tombou. Bosch empurrou a arma sobre o tapete para fora de seu alcance. Havia dois buracos na parte superior de seu peito. Bosch havia mirado no volume da massa corporal e seu tiro fora certeiro. O homem sangrava copiosamente.


— Onde ela está? Disse Bosch. — Onde ela está?


O homem emitiu um grunhido e o sangue escorreu por sua boca, descendo pela lateral de seu rosto. Bosch sabia que estaria morto dentro de um minuto. Bosch escutou uma porta se abrir na outra ponta do corredor e depois fechar rapidamente. Olhou mas não viu ninguém. A maioria das pessoas num lugar como esse não queria se envolver. Mesmo assim, ele sabia que não tardaria para a polícia enxamear pelo hotel, assim que corresse a notícia do tiroteio. Virou outra vez para o homem moribundo.


— Onde ela está? Repetiu. — Onde está a minha... Viu que o homem estava morto. —Merda! Bosch se levantou e virou na direção em que empurrara Eleanor. — Eles com certeza tinham...Ela estava no chão. Bosch correu até lá e se ajoelhou a seu lado. — Eleanor!


Tarde demais. Seus olhos estavam abertos e tão vazios quanto os do homem no corredor.


— Não, não, por favor, não. Eleanor!


Ele não viu nenhum ferimento, mas ela não estava respirando e tinha o olhar fixo. Ele a sacudiu pelos ombros e não obteve reação. Pôs uma das mãos em sua nuca e abriu sua boca com a outra. Curvou-se para frente e soprou ar em seus pulmões. Mas então percebeu o ferimento. Tirou a mão que tocava seus cabelos e viu que estava coberta de sangue. Virou sua cabeça e viu o ferimento na linha do cabelo, atrás da orelha esquerda. Ele percebeu que ela provavelmente fora baleada quando a empurrou na direção da área do elevador. Ele a empurrara na direção do tiro.


— Eleanor, disse, num sussurro.


Bosch se curvou para frente e pôs o rosto no peito dela, entre seus seios. Sentiu sua fragrância familiar. Escutou um gemido alto, pavoroso, e se deu conta de que havia sido ele mesmo que gemera. Durante trinta segundos permaneceu imóvel. Apenas continuou a segurá-la. Então ouviu a porta do elevador se abrindo às suas costas e finalmente se endireitou. Sun saiu do elevador. Seus olhos captaram toda a cena e rapidamente baixaram para Eleanor no chão.


— Eleanor! Ele correu para ficar a seu lado. Bosch percebeu que era a primeira vez que o escutava pronunciar o nome dela. Ele dizia I-leanor, não E-leanor.

— Ela está morta, disse Bosch. — Sinto muito.

— Quem fez isso? Bosch começou a se levantar. Falava numa voz sem expressão.

— Ali. Dois caras atiraram na gente. Sun olhou pelo corredor e viu os dois caídos no chão. Bosch viu a confusão e o terror em seu rosto. Então ele se virou para Eleanor outra vez.

— Não! Bosch voltou pelo corredor e pegou a arma que havia tirado da cintura do homem. Sem examinar, enfiou a pistola em sua calça e voltou para perto do elevador. Sun continuava ajoelhado junto ao corpo de Eleanor. Segurava a mão dela entre as suas.

— Sun Yee, sinto muito. Pegaram a gente de surpresa. Ele aguardou um momento. Sun não disse nada nem se moveu. — Preciso fazer uma coisa aqui e depois a gente tem que ir. A polícia já deve estar a caminho.


Pôs a mão no ombro de Sun e puxou-o para trás. Bosch se ajoelhou junto a Eleanor e segurou seu braço direito. Envolveu a mão dela em torno da arma que obtivera com Sun. Disparou um tiro na parede perto do elevador. Então, cuidadosamente pousou o braço inerte de volta no chão, a mão ainda em torno da arma.


— O que você está fazendo? Quis saber Sun.

— Resíduo de pólvora. Essa arma é limpa ou tem como rastrear de volta até o cara que passou para você? Sun não respondeu. — Sun Yee, a arma está limpa?

— Está limpa.

— Então vamos. A gente precisa ir pela escada. Não tem mais nada que a gente possa fazer pela Eleanor. Sun curvou a cabeça por um momento e então vagarosamente ficou de pé. — Eles vieram da escada, disse Bosch, se referindo aos atiradores. — Vamos por lá.


Andaram pelo corredor, mas subitamente Sun parou e examinou os dois homens caídos no chão.


— Vamos logo, insistiu Bosch. — A gente precisa cair fora. Sun finalmente o seguiu. Chegaram à escada e começaram a descer.

— Eles não são tríade, disse Sun. Bosch estava dois degraus adiante. Parou e olhou para trás.

— O quê? Como você sabe?

— Não são chineses. Não chineses, não tríade.

— Então são o quê?

— Indonésios, vietnamitas... Acho que vietnamitas. Chineses, não.


Bosch começou a descer outra vez e aumentou o ritmo. Eram 11 lances de escada para cobrir. Conforme descia, pensou na nova informação que Sun lhe passara e não conseguiu entender como isso se encaixava no que ele já sabia. Sun ficou para trás. E não era de admirar, pensou Bosch. Quando desceu do elevador, sua vida mudou de uma maneira irreversível. Isso faria qualquer um andar mais devagar. Em pouco tempo Bosch estava um andar inteiro à frente dele. Quando chegou ao fim das escadas, abriu apenas uma fresta da porta de saída para se localizar. Viu que a porta dava num beco só de pedestres que passava entre o Chungking Mansions e o prédio seguinte. Bosch escutou o som do trânsito e sirenes se aproximando e percebeu que a saída era bem próxima da Nathan Road. A porta foi fechada de repente. Bosch virou e viu a palma da mão de Sun pressionando a porta. Ele apontava raivosamente para Harry com a outra.


— Você! Você matou ela!

— Eu sei. Eu sei, Sun Yee. É tudo culpa minha. A minha investigação provocou tudo isso...

— Não, eles não tríade! Eu falei para você. Bosch o encarou por um momento, sem compreender.

— Certo, eles não são da tríade. Mas...

— Você mostra seu dinheiro e eles roubam. Agora Bosch compreendia. Ele estava dizendo que os dois homens mortos no 15º andar com Eleanor eram apenas ladrões atrás do dinheiro de Bosch. Mas havia alguma coisa errada. Isso não se encaixava. Harry fez que não com a cabeça.

— Eles estavam na nossa frente na fila do elevador. Não viram meu dinheiro.

— Contaram para eles. Bosch pesou isso e seus pensamentos se voltaram para o homem no banquinho. Ele já estava pretendendo fazer uma visita ao sujeito. O cenário pintado por Sun tornava essa necessidade ainda mais urgente.

— Sun Yee, precisamos sair daqui. A polícia vai fechar todas as saídas assim que subir lá e ver o que aconteceu. Sun tirou a mão da porta e Bosch a abriu outra vez. Não havia ninguém. Saíram para o beco. Cinco metros à esquerda a ruela dava na Nathan Road.

— Onde está o carro? Sun apontou para o lado oposto do beco.

— Paguei um homem para olhar.

— Certo, pega o carro e contorna até a frente. Vou entrar de novo, mas apareço na frente em cinco minutos.

— O que você vai fazer?

— Nem queira saber.


* * *


Trinta

BOSCH DEIXOU O BECO, entrou na Nathan Road e na mesma hora viu a multidão de curiosos se acotovelando para observar a resposta da polícia ao chamado vindo do Chungking Mansions. Viaturas e veículos de resgate chegavam e paravam, provocando engarrafamento e confusão. As barricadas ainda não haviam sido erguidas, já que os primeiros policiais no local provavelmente estavam ocupados demais tentando chegar ao 15º andar para descobrir o que acontecera. Harry colou num grupo de paramédicos carregando uma maca e subiu junto até o primeiro andar do prédio.


A comoção e o tumulto haviam feito inúmeros lojistas e clientes se aglomerarem em torno do saguão do elevador. Alguém vociferava ordens para a multidão em chinês, mas ninguém parecia dar a mínima. Bosch abriu caminho e conseguiu chegar ao corredor do fundo, onde ficavam os balcões de hotel. Viu que a distração operara a seu favor. O corredor estava completamente vazio. Quando chegou ao balcão em que alugara os dois quartos, viu que uma porta de segurança fora puxada até a metade desde o teto, indicando que o lugar estava fechado. Mas o homem do banquinho continuava por lá, virado de costas enquanto sentava diante do balcão de trás, enfiando papéis em uma pasta. Ao que parecia, estava prestes a ir embora. Sem perder um segundo, Bosch pulou e deslizou sobre o balcão, por baixo da grade, se chocando com o homem no banquinho e derrubando-o no chão. Bosch caiu em cima dele e o acertou no rosto com dois socos seguidos. A cabeça do homem estava no piso de cimento, e ele absorveu todo o impacto de seus punhos.


— Não, por favor! Conseguiu implorar entre um soco e outro. Bosch olhou rapidamente atrás de si, por cima do balcão, para ver se continuava tudo limpo. Então tirou a arma em sua cintura e apertou o cano contra a papada de gordura sob o queixo do homem.

— Você matou ela, seu filho da puta! E eu vou te matar.

— Não, por favor! Senhor, por favor!

— Você falou para eles, não foi? Você contou que eu tinha dinheiro.

— Não, eu não.

— Não mente para mim ou eu o mato agora mesmo. Você contou para eles! O homem ergueu a cabeça do piso.

— Certo, escuta, escuta, por favor. Eu disse ninguém devia machucar. Senhor compreende? Eu disse ninguém... Bosch ergueu a arma e acertou ferozmente o nariz do homem. A cabeça voltou a bater contra o cimento. Bosch encostou o cano em seu pescoço.

— Não me interessa o que você disse. Eles mataram ela, seu filho da puta! Tá me entendendo? O homem estava desnorteado e sangrando, seus olhos pestanejando conforme oscilava entre a consciência e a inconsciência. Com a mão direita, Bosch deu uma bofetada em sua bochecha.

— Fica acordado. Quero que veja a sua hora.

— Por favor, não... Eu lamento muito, senhor. Por favor, não...

— Ok, a gente vai fazer o seguinte. Você quer continuar vivo, então me conta quem alugou o quarto 1.514 na sexta-feira. Mil quinhentos e catorze. Quero saber agora mesmo.

— Ok, eu conto. Eu mostrar.

— Então mostra.


Bosch tirou o peso de cima dele. O homem sangrava pela boca e pelo nariz e Bosch sangrava nos nós dos dedos da mão esquerda. Rapidamente, levou a mão à porta de segurança e a puxou até o fim sobre o balcão.


— Me mostra. Agora.

— Está aqui. Ele apontou para a pasta de papéis em que estivera mexendo. Esticou o braço naquela direção; Bosch ergueu a arma e apontou para sua cabeça.

— Devagar.


O homem tirou uma pilha de formulários de registro dos quartos. Bosch viu o seu no alto. Esticou a mão, tirou-o do maço, amassou e guardou no bolso do casaco. Fez tudo isso sem deixar de apontar a arma para o outro.


— Sexta-feira, quarto 1.514. Anda.


O homem pôs o maço de formulários no balcão de trás e começou a folhear. Bosch percebeu que estava demorando demais. A polícia chegaria a qualquer minuto naquela área do hotel e os encontraria. Fazia pelo menos 15 minutos desde o tiroteio no 15º andar. Ele viu uma prateleira sob o balcão da frente e pôs a arma ali. Se a polícia o pegasse com ela, iria para a prisão, independentemente do que estava acontecendo. Olhar para a arma do assaltante conforme a punha ali trouxe à tona o pensamento de que deixara sua ex-esposa e mãe de sua filha caída sem vida e sozinha no 15º andar. Isso provocou uma pontada no peito de Bosch. Ele fechou os olhos por um momento para tentar afastar a imagem de sua cabeça.


— Aqui.


Bosch abriu os olhos. O homem virava para ele no balcão de trás. Bosch escutou um nítido ruído de metal. Viu o braço direito do homem começando a descrever um giro lateral e percebeu que havia uma faca antes mesmo de vê-la. Tomando uma decisão numa fração de segundo, preferiu bloquear o ataque a tentar desviar sua direção. Ele avançou direto para o homem, erguendo o braço esquerdo para bloquear a faca e dirigindo o punho direito para a garganta de seu atacante. A faca rasgou a manga do paletó de Bosch e ele sentiu a lâmina cortar o lado interno de seu antebraço. Mas esse foi todo o ferimento que sofreu. O soco na garganta fez o homem cambalear para trás e ele tropeçou no banquinho derrubado. Bosch caiu sobre ele outra vez, agarrando a mão com a faca e batendo-a repetidamente contra o chão, até a arma cair ruidosamente sobre o cimento. Bosch soergueu o corpo ainda segurando o homem pela garganta. Ele podia sentir o sangue escorrendo por seu braço a partir da ferida. Pensou mais uma vez em Eleanor caída no 15º andar. Sua vida e tudo mais arrancados dela antes que pudesse dizer sequer uma palavra. Antes que pudesse ver sua filha a salvo outra vez. Ergueu o punho esquerdo e socou o homem brutalmente nas costelas. Fez isso várias vezes, golpeando o corpo e o rosto, até ter certeza de que a maioria das costelas do homem e seu maxilar estavam quebrados e ele perdera os sentidos.


Bosch estava sem fôlego. Pegou a faca retrátil, fechou-a e guardou no bolso. Saiu de cima do corpo imóvel e juntou os formulários de registros espalhados pelo chão. Depois se levantou, enfiou tudo de volta na pasta e a fechou. Curvou-se sobre o balcão para olhar pela porta de segurança. Continuava tudo limpo no corredor, embora agora ouvisse anúncios sendo feitos por um megafone, vindo da direção do elevador. Ele sabia que o procedimento da polícia seria fechar o lugar e proteger as entradas. Ergueu a porta de segurança apenas meio metro, depois apanhou a arma na prateleira e a enfiou atrás da cintura. Subiu no balcão com a pasta e deslizou para fora. Depois de se certificar de que não deixara nenhum sangue para trás, no balcão, baixou a porta e saiu andando. Enquanto caminhava, Bosch esticou o braço para verificar o ferimento pelo rasgo em sua manga. Parecia superficial, mas sangrava muito. Pressionou a manga do casaco para ficar em torno da ferida e absorver o sangue. Olhou o piso atrás de si para ter certeza de que não estava respingando ali. Ao chegar ao saguão do elevador, a polícia estava conduzindo todo mundo para a rua e para uma área isolada, onde seriam mantidos para prestar depoimento sobre qualquer coisa que houvessem escutado ou visto. Bosch sabia que não podia passar por esse procedimento. Deu meia-volta e tomou um corredor na direção oposta do prédio. Chegou a um cruzamento de corredores e, ao olhar de relance o da esquerda, viu dois sujeitos apressados indo em direção contrária à atividade policial.


Bosch foi atrás, percebendo que não era o único no prédio que não queria ser interrogado pela polícia. Os dois desapareceram em uma passagem estreita entre duas lojas, que como todas as demais estavam fechadas. Bosch foi atrás. A passagem levava a uma escada que descia para um porão, onde ficavam armazenadas fileiras de caixas para os lojistas acima, que contavam com muito pouco espaço em suas lojas. Bosch seguiu os homens por um corredor e então virou à direita. Viu os dois indo na direção de um ideograma chinês brilhando vermelho sobre uma porta e sabia que só podia indicar uma saída. Os homens a empurraram e um alarme soou. Eles bateram a porta atrás de si. Bosch correu na direção da porta e a empurrou. Viu-se no mesmo beco de pedestres onde estivera antes. Caminhou rapidamente para a Nathan Road e procurou Sun e o Mercedes.


Faróis piscaram a meia quadra de distância e Bosch viu o carro esperando além do aglomerado de veículos policiais estacionados confusamente diante da entrada do Chungking Mansions. Sun se afastou da calçada e se aproximou dele. Bosch fez menção de entrar no banco de trás, mas então se deu conta de que Eleanor não estava mais com eles. Entrou na frente.


— Você demorou muito tempo, disse Sun.

— É, vamos cair fora daqui.


Sun baixou os olhos para a maleta e viu os dedos de Bosch sangrando em torno da alça. Não disse nada. Acelerou e se afastou do Chungking Mansions. Bosch virou no banco e olhou para trás. Seu olhar se ergueu pelo edifício até o andar em que haviam deixado Eleanor. Ele sempre achara que, de um modo ou de outro, envelheceriam juntos. O divórcio não importava. Outros parceiros ou parceiras não importavam. O relacionamento entre eles sempre sofrera seus altos e baixos, mas isso tampouco tinha importância. Nunca saíra de sua cabeça que aquelas separações eram apenas temporárias. A longo prazo, ficariam juntos. Claro, haviam tido Madeline juntos e isso sempre seria uma ligação. Mas ele acreditava que haveria mais. Agora tudo se fora e a culpa era das decisões que ele tomara. Se devido ao caso que investigava ou ao lapso momentâneo em mostrar o dinheiro, não importava. Todos os caminhos conduziam em sua direção e ele não tinha certeza se conseguiria conviver com isso. Ele se curvou para frente e enfiou a cabeça entre as mãos.


— Sun Yee, desculpa... Eu também amava ela. Sun não respondeu por um longo tempo e, quando falou, arrancou Bosch da espiral descendente e de volta ao foco.

— Precisamos encontrar a sua filha agora. Por Eleanor vamos fazer isso. Bosch se endireitou e assentiu. Então se curvou para frente e puxou a pasta para seu colo.

— Estaciona quando puder. Você precisa dar uma olhada nesse negócio. Sun entrou em diversas ruas e pôs vários quarteirões entre eles e o Chungking Mansions antes de parar junto à calçada. Estavam do outro lado da rua onde havia um mercado depauperado lotado de ocidentais.

— Que lugar é esse? Perguntou Bosch.

— O mercado de jade. Muito famoso para ocidentais. Você não vai ser notado aqui. Bosch assentiu. Abriu a pasta e estendeu a Sun a pilha desarrumada de formulários de registro do hotel. Havia pelo menos cinquenta deles. A maioria fora preenchida em chinês e era ilegível para Bosch.

— O que eu procuro? Perguntou Sun.

— Data e número do quarto. Sexta foi dia 11. Precisa ser esse dia e o quarto 1.514. Tem que estar aí no meio.


Sun começou a ler. Bosch observou por um momento e então olhou pela janela para o mercado de jade. Pelas entradas abertas viu filas e filas de barracas, velhos e mulheres vendendo seus artesanatos sob um telhado precário de compensado e lona. O lugar estava apinhado de gente entrando e saindo. Bosch pensou nos macacos de jade presos no barbante vermelho que ele encontrara no quarto de sua filha. Ela estivera ali. Ficou imaginando se ela fora tão longe de casa sozinha ou com amigos, talvez com He e Quick. Diante de uma das entradas uma velha vendia incensos e mantinha um balde com fogo aceso. Em uma mesa dobrável ao seu lado ficavam objetos de papier-machê à venda para serem queimados. Bosch viu uma fileira de tigres e se perguntou por que um ancestral morto precisaria de um tigre.


— Aqui, disse Sun. Ele segurou um formulário de registro diante dos olhos de Bosch.

— O que diz aí?

— Tuen Mun. Vamos lá. Para Bosch, parecia que ele dissera Tin Moon, lua de lata.

— O que é Tin Moon?

— Tuen Mun. Fica nos Novos Territórios. Esse homem mora lá.

— Qual o nome dele?

— Peng Qingcai. “Qingcai”, pensou Bosch. Um pulo fácil para um nome americanizado a ser usado com garotas no shopping poderia ser Quick. Talvez Peng Qingcai fosse o irmão mais velho de He, o rapaz com quem Madeline saíra do shopping na sexta.

— O registro tem a idade ou data de nascimento?

— Não, nenhuma idade. Era um tiro no escuro. Bosch não anotara sua data de nascimento quando alugara os quartos, e o atendente no balcão pegara apenas o número do seu passaporte, nenhum outro pormenor de identidade.

— O endereço está aí?

— Sim.

— Você sabe achar?

— Sei, conheço o lugar.

— Ótimo. Vamos. Quanto tempo?

— É longo tempo em carro. Vamos norte e depois oeste. Vai levar uma hora ou mais. De trem seria mais rápido. O tempo era um trunfo, mas Bosch sabia que o carro lhes daria autonomia.

— Não, ele disse. — Quando a gente encontrar a minha filha, vamos precisar do carro.


Sun assentiu e começou a se afastar da calçada. Assim que se puseram a caminho, Bosch tirou o paletó e enrolou as mangas da camisa para ver melhor o ferimento de faca em seu braço. Era um talho de 5 centímetros na parte interna superior do antebraço. O sangue finalmente começara a coagular no ferimento. Sun olhou de relance o corte e depois voltou a prestar atenção na rua.


— Quem fez isso com você?

— O sujeito atrás do balcão. Sun balançou a cabeça. — Ele armou para gente, Sun Yee. Ele viu meu dinheiro e armou a cilada. Como eu fui estúpido.

— Foi um erro. Ele sem dúvida retirava a acusação furiosa que fizera na escada. Mas Bosch não retirava sua própria avaliação dos fatos. Ele provocara a morte de Eleanor.

— Foi, mas não fui eu quem pagou por ele, disse.


Bosch pegou a faca retrátil no bolso do paletó e esticou o braço para apanhar o cobertor no banco de trás. Cortou uma longa tira e enrolou em torno do ferimento, prendendo as pontas por baixo da bandagem. Verificou se não estava apertado demais, apenas o suficiente para impedir o sangue de escorrer pelo braço. Desenrolou a manga da camisa. Estava empapada de sangue entre o cotovelo e o pulso. Voltou a vestir o paletó. Por sorte era preto e as manchas de sangue não se notavam imediatamente. À medida que seguiam para o norte através de Kowloon, a poluição urbana e o acúmulo de gente cresceram exponencialmente. “Era como qualquer cidade grande”, pensou Bosch. Quanto mais você se afasta do dinheiro, mais se tornam aparentes a imundície e o desespero.


— Me fala sobre Tuen Mun, ele disse.

— Muito cheio, disse Sun. — Só chinês. Barra pesada.

— Barra pesada da tríade?

— Isso. Não é bom lugar para sua filha estar.


Bosch não achou que seria. Mas viu um ponto positivo nisso. Transportar e esconder uma garota branca devia ser algo difícil de fazer sem ser notado. Se Madeline estava sendo mantida em Tuen Mun, ele a acharia. Eles a achariam.


* * *


Trinta e Um

NOS ÚLTIMOS cinco anos, a única contribuição financeira de Harry Bosch no sustento de sua filha fora pagar por suas viagens a Los Angeles, dar a ela algum dinheiro para gastar de tempos em tempos e mandar todo ano um cheque de 12 mil dólares para cobrir metade das despesas de ensino na exclusiva Happy Valley Academy. Essa última contribuição não era resultado de nenhuma exigência da ex-esposa. Eleanor Wish ganhava muito bem e nunca pedira a Bosch, direta ou indiretamente entrando na justiça com pedido de pensão, um único dólar. Era Bosch quem sentia necessidade e pedira para contribuir de alguma forma. Ajudar a pagar por seus estudos lhe permitia, bem ou mal, sentir que desempenhava uma espécie de papel integral na criação da filha.


Consequentemente, começou a ter um envolvimento cada vez maior em seus estudos. Fosse pessoalmente nas visitas a Hong Kong, fosse todo domingo de manhã bem cedo, para ele, em suas conversas telefônicas distantes, a rotina de Bosch era falar sobre a lição de casa de Madeline e perguntar sobre as atuais tarefas. Disso tudo resultou um conhecimento circunstancial, didático, sobre a história de Hong Kong. Desse modo ele sabia que o lugar para onde agora se dirigia, os Novos Territórios (NT), na verdade não era novo para Hong Kong. Mais de um século antes, a vasta zona geográfica em torno da península de Kowloon fora acrescentada por arrendamento a Hong Kong como uma forma de proteção contra invasores à colônia britânica. Quando o arrendamento chegou ao fim e a soberania de toda Hong Kong foi devolvida pelos ingleses à República Popular da China, em 1997, os Novos Territórios continuaram sendo parte da Região Administrativa Especial (RAE), que permitia a Hong Kong seguir funcionando como um dos centros mundiais do capitalismo e da cultura, um lugar único no mundo onde o Oriente encontra o Ocidente. Os NT eram vastos e eminentemente rurais, mas com centros populacionais construídos pelo governo que eram densamente povoados pelos cidadãos mais pobres e menos instruídos da RAE. A taxa de criminalidade era alta e o dinheiro, escasso. A atração exercida pelas tríades era forte. Tuen Mun seria um desses lugares.


— Muitos piratas ficavam aqui quando eu era garoto, disse Sun.


Era a primeira vez que ele ou Bosch dizia alguma coisa em mais de vinte minutos rodando, os dois homens perdidos em seus pensamentos. Entravam na cidade bem nesse momento por uma via expressa. Bosch viu fileiras e mais fileiras de elevadas estruturas residenciais que eram tão manifestamente uniformes e monolíticas que ele sabia que só podiam ser moradias populares construídas pelo governo. Os conjuntos eram cercados por colinas ondulantes cobertas de casas menores em bairros mais antigos. Uma paisagem urbana nada inspiradora. Um cenário monótono e deprimente, como uma aldeia de pescadores transformada em um maciço conjunto habitacional vertical.


— O que você quer dizer com isso? Você é de Tuen Mun?

— Eu cresci aqui, isso mesmo. Até fazer 22 anos.

— Você era da tríade, Sun Yee? Sun não respondeu. Agia como se estivesse muito ocupado dando seta e olhando atentamente os retrovisores conforme deixavam a pista. — Não me importo, viu, disse Bosch. — Só uma coisa me importa. Sun assentiu.

— A gente vai encontrar.

— Eu sei. Haviam atravessado um rio e entrado em uma verdadeira garganta criada pelos paredões dos prédios de quarenta andares de ambos os lados da rua.

— E esses piratas? Perguntou Bosch. — Quem eram?

— Contrabandistas. Subiam o rio do Mar da China Meridional. Eles controlavam o rio. Bosch ficou imaginando se Sun pretendia lhe comunicar alguma coisa ao mencionar isso.

— O que eles contrabandeavam?

— Tudo. Traziam armas e drogas quando vinham. Gente.

— E levavam o quê quando iam? Sun balançou a cabeça como se Bosch houvesse respondido uma pergunta, não feito uma. — O que eles levam hoje? Houve um longo silêncio antes de Sun responder.

— Aparelhos eletrônicos. DVDs americanos. Crianças, às vezes. Meninas e meninos.

— E para onde eles vão?

— Isso depende.

— Do quê?

— Da finalidade. Alguns são para sexo. Outros para órgãos. Muita gente no continente compra meninos porque não tem filho homem.


Bosch pensou no chumaço de papel higiênico com a mancha de sangue. Eleanor fora logo concluindo que haviam injetado alguma droga em Madeline para mantê-la mais facilmente sob controle. Ele agora percebia que talvez houvessem extraído sangue, em vez de injetado algo. Talvez tenham usado uma seringa para colher sangue e descobrir o tipo sanguíneo. O chumaço teria sido uma compressa para deter o sangramento após a remoção da agulha.


— Ela seria muito valiosa, não seria?

— Sim.


Bosch fechou os olhos. Tudo mudava de figura. Os sequestradores de sua filha talvez não estivessem apenas mantendo-a em seu poder até Bosch liberar Chang em Los Angeles. Talvez estivessem só esperando para transportá-la ou vendê-la em um submundo de opções tenebrosas do qual ela jamais voltaria. Ele tentou tirar essas possibilidades do caminho. Olhou pela janela lateral.


— A gente tem tempo, disse, sabendo muito bem que falava para si mesmo, não para Sun. — Não aconteceu nada com ela por enquanto. Eles não iam fazer nada enquanto não tivessem notícias de Los Angeles. Mesmo que o plano fosse nunca devolvê-la, ainda não teriam feito nada. Bosch virou para olhar para Sun, que balançou a cabeça, concordando.

— A gente vai encontrar ela, disse. Bosch levou a mão às costas e puxou a arma que havia tirado de um dos homens mortos no Chungking Mansions. Examinou-a pela primeira vez e reconheceu a arma na mesma hora.

— Acho que você tinha razão sobre aqueles caras serem vietnamitas, disse. Sun olhou a arma de relance e depois voltou a se concentrar na direção.

— Por favor, não atire com arma no carro, ele disse. A despeito de tudo que acontecera, Bosch sorriu.

— Não vou. Não preciso. Já sei como usar essa aqui e duvido que aquele cara estivesse carregando uma arma que não funcionasse.


Bosch segurou a arma com a mão esquerda e mirou o chão. Então ergueu-a e voltou a examiná-la. Era uma Colt.45 de fabricação americana, modelo 1911A1. Ele portara exatamente a mesma arma quando servira no Vietnã, havia quase quarenta anos, quando seu trabalho era entrar em túneis, procurar o inimigo e matá-lo. Bosch ejetou o pente e o cartucho extra da câmara. O máximo eram oito tiros. Verificou o mecanismo diversas vezes e então começou a recarregar a arma. Parou quando notou alguma coisa riscada na lateral do pente. Segurou perto dos olhos para tentar ler. Havia iniciais e números gravados à mão no metal preto da lateral, mas o tempo e o uso, o carregar e descarregar da arma, haviam quase apagado a inscrição. Olhando a superfície em ângulo para colher uma luz melhor, Bosch leu JFE Sp4, 27th.


De repente, Bosch se lembrou dos cuidados que todos os ratos de túnel tomavam com suas armas e munição. Quando tudo que você carregava ao descer no escuro eram sua .45, uma lanterna e quatro pentes extras, você checava tudo duas vezes e então checava novamente. Trezentos metros vala a dentro não era onde você ia querer descobrir uma arma emperrada, munição úmida ou pilhas descarregadas. Bosch e outros ratos como ele conservavam cuidadosamente seus pentes assim como soldados da superfície guardavam seus cigarros e revistas Playboy. Ele examinou a inscrição com cuidado. JFE, fosse lá quem fosse, tinha sido um especialista 4 com a 27ª Infantaria. Isso significava que poderia ter sido um rato. Bosch imaginava se a arma que estava segurando fora deixada para trás em um túnel em algum lugar do Triângulo de Ferro, se ela fora tirada da mão fria e morta de JFE.


— Chegamos, disse Sun.


Bosch ergueu o rosto. Sun havia parado no meio da rua. Não havia trânsito atrás deles. Ele apontou pelo para-brisa para um prédio de apartamentos do governo tão alto que Bosch teve de se abaixar sob a pala do automóvel para conseguir enxergar o topo. Passagens abertas na parte frontal de todos os andares ofereciam visão das portas e janelas da frente do que talvez fossem trezentas moradias diferentes. Havia varais de roupa pendurados a diferentes intervalos nas grades das passagens em quase todos os andares, tornando a decrépita fachada do prédio um mosaico colorido que o diferenciava dos prédios idênticos de ambos os lados. Uma placa em múltiplas línguas no centro, logo acima da entrada parecida com um túnel, anunciava de maneira incongruente que o lugar se chamava Miami Beach Garden Estates.


— O endereço é no sexto andar, disse Sun, depois de verificar duas vezes o formulário de registro do Chungking Mansions.

— Estacione e vamos subir.


Sun assentiu e estacionou depois do prédio. No cruzamento seguinte, deu meia-volta e retornou, encostando na calçada diante de um playground que estava cercado por um alambrado de 3 metros e cheio de crianças e suas mães. Bosch percebeu que Sun estacionara ali por garantia contra ter o carro roubado ou vandalizado depois que saíssem. Desceram e seguiram acompanhando a grade até virar à esquerda para a entrada do prédio. O túnel era coberto de ambos os lados por caixas de correio, a maioria delas com fechaduras arrombadas e pequenas pichações na superfície. A passagem dava num conjunto de elevadores onde duas mulheres segurando a mão de crianças pequenas esperavam. Elas não prestaram a menor atenção em Sun e Bosch. Um segurança sentava atrás de um minúsculo balcão, mas em nenhum momento ergueu os olhos de seu jornal.


Bosch e Sun entraram atrás das mulheres no elevador. Uma delas inseriu uma chave na parte inferior do painel de controle e então apertou dois botões. Antes que tirasse a chave Sun rapidamente esticou o braço e apertou o botão do 6. A primeira parada foi no sexto. Sun e Bosch seguiram pela passagem até a terceira porta no lado esquerdo do prédio. Bosch observou que em cima de uma grade diante da porta do apartamento seguinte havia um pequeno altar com uma lata de cinzas que ainda soltava fumaça após um sacrifício aos espíritos famintos. O cheiro de plástico queimado invadia o ar. Bosch se posicionou à direita da porta na frente da qual Sun havia parado. Enfiou o braço sob o paletó e segurou a arma, mas não sacou. Sentiu que o sangue coagulado da ferida em seu braço soltou com o movimento. Ia começar a sangrar outra vez. Sun olhou para ele e Bosch balançou a cabeça em sinal de tudo pronto. Sun bateu na porta e esperou. Ninguém respondeu. Bateu outra vez. Agora com mais força. Esperaram novamente. Bosch olhou de relance do playground para o Mercedes e viu que até o momento o carro continuava intocado. Ninguém atendeu. Sun enfim se afastou da porta.


— O que você quer fazer? Bosch olhou para a lata de cinzas fumegante 10 metros adiante.

— Tem gente em casa no apartamento do lado. Vamos perguntar se eles têm visto esse cara por aqui.


Sun foi na frente e bateu na porta. Dessa vez, abriram. Uma mulher pequena de uns 60 anos espiou quem era. Sun acenou com a cabeça, sorriu e falou com ela em chinês. A mulher logo relaxou e abriu a porta um pouco mais. Sun continuou conversando e em seguida ela abriu a porta inteiramente e deu um passo para o lado, permitindo a entrada dos dois. Quando Bosch ultrapassou a soleira, Sun sussurrou para ele.


— Quinhentos dólares de Hong Kong. Eu prometi para ela.

— Sem problema.


Era um pequeno apartamento de dois cômodos. O primeiro servia como cozinha, sala de jantar e sala de estar. Era escassamente mobiliado e cheirava a óleo de cozinha quente. Bosch puxou as cinco notas de cem dólares de seu rolo de dinheiro sem tirá-lo do bolso. Pôs as notas sob um prato de sal que estava na mesa da cozinha. Então puxou uma cadeira e sentou. Sun continuou de pé, assim como a mulher. Continuou sua conversa em chinês, apontando Bosch por um momento. Bosch acenou com a cabeça e sorriu, agindo como se soubesse o que estava sendo dito. Três minutos se passaram até que Sun interrompesse a conversa de modo a resumi-la para Bosch.


— Ela é Fengyi Mai. Mora sozinha aqui. Disse que não vê Peng Qingcai desde ontem de manhã. Ele mora no apartamento do lado com a mãe e a irmã mais nova. Não tem visto elas também. Mas escutou as duas ontem à tarde. Pela parede.

— Quantos anos tem Peng Qingcai? Sun transmitiu a pergunta e então traduziu a resposta.

— Ela acha que 18 anos. Ele não vai mais para a escola.

— Qual o nome da irmã? Outro diálogo e então Sun informou que o nome da irmã era He. Mas ele não pronunciou da forma como a filha de Harry o fazia. Bosch pensou nisso tudo por alguns momentos antes de fazer a pergunta seguinte.

— Ela tem certeza de que foi ontem que o viu? Sábado de manhã? O que ele estava fazendo?


Enquanto esperava pela tradução Bosch observou detidamente a mulher. Ela mantivera um bom contato visual com Sun durante as perguntas anteriores, mas começou a desviar os olhos quando respondia a essas últimas.


— Ela tem certeza, disse Sun. — Escutou um som do lado de lá da porta ontem de manhã e, quando abriu, Peng estava lá, queimando uma oferenda. Ele estava usando o altar dela. Bosch fez que sim, mas tinha certeza de que havia alguma coisa que a mulher deixara de fora ou sobre a qual estava mentindo.

— O que ele queimou? Sun perguntou à mulher. Ela ficou de olhos fixos no chão o tempo todo em que deu sua resposta.

— Ela disse que ele queimou dinheiro.


Bosch se levantou e foi até a porta. Lá fora, virou a lata de cinzas no corredor. Era menor que um balde comum. As cinzas enegrecidas se espalharam pelo chão. Fengyi Mai obviamente queimara uma oferenda na última hora ou algo assim. Ele pegou um bastão de incenso no altar e usou-o para remexer os fragmentos quentes. Havia alguns pedaços de cartolina não queimados, mas a maior parte se desfizera em cinzas. Bosch mexeu mais um pouco e logo descobriu um pedaço de plástico derretido. Estava preto e sem forma. Ele tentou pegá-lo, mas estava quente demais. Voltou para o apartamento.


— Pergunte a ela quando foi a última vez que usou o altar e o que ela queimou. Sun traduziu a resposta.

— Ela usou hoje de manhã. Também queimou dinheiro. Bosch continuou de pé.

— Pergunte por que ela está mentindo. Sun hesitou. — Pergunte.


Sun fez a pergunta e a mulher negou que estivesse mentindo. Bosch balançou a cabeça ao ouvir a resposta, então foi até a mesa. Ele tirou o prato de sal de cima das cinco notas e as enfiou de volta no bolso.


— Diga a ela que não vamos pagar nada por mentiras, mas que eu pago 2 mil pela verdade.


A mulher protestou após escutar a tradução de Sun, mas então o comportamento de Sun se alterou e ele gritou furiosamente com ela, e a mulher ficou claramente apavorada. Ela juntou as mãos em um gesto contrito e então foi para outro cômodo.


— O que você disse a ela? Perguntou Bosch.

— Disse que é melhor ela dizer a verdade ou vai perder o apartamento. Bosch ergueu as sobrancelhas. Sun fora para o tudo ou nada e deu certo. — Ela acha que eu sou um policial e que você é meu supervisor, acrescentou.

— De onde ela tirou essa ideia? Perguntou Bosch.


Antes que Sun pudesse responder, a mulher voltou carregando uma pequena caixa de papelão. Foi diretamente até Bosch e lhe ofereceu a caixa, depois recuou fazendo uma reverência. Harry abriu a caixa e encontrou os restos de um celular derretido e queimado. Enquanto a mulher dava uma explicação a Sun, Bosch pegou seu próprio celular e o comparou com o aparelho queimado. A despeito dos danos, ficou claro que o telefone recuperado pela mulher na lata de cinzas era igual.


— Ela disse que Peng estava queimando isso, disse Sun. — Soltou um cheiro terrível que iria desagradar os espíritos, então ela tirou.

— É da minha filha.

— Tem certeza?

— Eu comprei para ela. Tenho certeza. Bosch abriu seu próprio celular e verificou a pasta de fotos. Passou de imagem em imagem de sua filha até encontrar uma dela em seu uniforme escolar.

— Mostre isso para ela. Pergunte se a viu com Peng.


Sun mostrou o celular para a mulher e fez a pergunta. A mulher negou com a cabeça em resposta, juntando as mãos em oração para enfatizar que agora estava dizendo a verdade. Bosch não precisou de tradução. Ficou de pé e tirou seu dinheiro. Pôs 2 mil dólares de Hong Kong sobre a mesa, menos de trezentos dólares americanos, e se dirigiu à porta.


— Vamos embora, disse.


* * *


Trinta e Dois

BATERAM na porta de Peng mais uma vez, mas sem resposta. Bosch se abaixou para desamarrar e amarrar o cadarço. Examinou a fechadura na maçaneta enquanto fazia isso.


— O que a gente faz? Perguntou Sun assim que Bosch endireitou o corpo.

— Eu tenho umas ferramentas. Posso abrir a porta. Bosch notou um véu de relutância cobrir imediatamente o rosto de Sun, mesmo com os óculos. — Minha filha pode estar aí dentro. E se não estiver, pode ter alguma coisa que nos diga onde ela está. Fica atrás de mim e bloqueia a visão. Eu abro isso em menos de um minuto. Sun olhou para os prédios idênticos que os cercavam como gigantes.

— A gente vigia primeiro, ele disse.

— Vigia? Perguntou Bosch. — Vigia o quê?

— A porta. Peng pode voltar. Ele pode levar a gente até Madeline. Bosch olhou seu relógio. Uma e meia.

— Acho que a gente não tem tempo. Não dá para ficar aqui estático.

— O que é “estático”?

— A gente não pode ficar parado esperando, cara. Precisa continuar em frente para conseguir encontrá-la. Sun virou e olhou diretamente para Bosch.

— Uma hora. A gente vigia. Se a gente voltar para abrir a porta, você não pega a arma. Bosch assentiu. Ele entendia. Ser pego arrombando e invadindo era uma coisa. Ser pego arrombando e invadindo com uma arma dava uns dez anos ou mais.

— Ok, uma hora.


Desceram de elevador e seguiram pelo túnel. No caminho, Bosch cutucou o braço de Sun e perguntou qual daquelas caixas tinha o número do apartamento de Peng. Sun achou a caixa e eles viram que a fechadura fora arrombada havia muito tempo. Bosch olhou de relance por sob o ombro na direção do segurança lendo o jornal. Abriu a caixa do correio e viu duas cartas.


— Parece que ninguém pegou a correspondência do sábado, disse Bosch. — Acho que Peng e a família dele se mandaram.


Voltaram para o carro e Sun disse que queria ir para um ponto que desse menos na vista. Seguiu pela rua, fez a volta e então estacionou junto a um muro de isolamento que cercava as latas de lixo do prédio no outro lado da rua. Continuavam a ter visão da passagem no sexto andar e da porta do apartamento de Peng.


— Acho que estamos perdendo tempo, disse Bosch. — Eles não vão voltar.

— Uma hora, Harry. Por favor. Bosch notou que era a primeira vez que Sun o chamara pelo nome. Isso não o acalmou.

— Você está dando para ele mais uma hora de dianteira, só isso. Bosch tirou a caixa do bolso do paletó. Abriu e olhou o celular. — Fica de olho no lugar, ele disse. — Eu vou cuidar disso aqui.


As junções de plástico do aparelho haviam derretido e Bosch fez força para abri-lo. Finalmente, o celular se partiu em dois quando ele aplicou bastante pressão. A tela de LCD estava rachada e parcialmente derretida. Bosch deixou isso de lado e se concentrou na outra metade. A tampa do espaço para a bateria estava derretida, seus encaixes soldados. Ele abriu a porta do carro e se curvou para fora. Bateu com o celular na guia três vezes, cada vez com mais força, até que os impactos finalmente racharam as junções e a tampa do compartimento soltou. Ele se endireitou no carro e fechou a porta. A bateria do celular parecia intacta, porém mais uma vez o plástico deformado tornou difícil a remoção. Dessa vez, ele pegou o estojo do distintivo e tirou uma de suas ferramentas. Com isso conseguiu remover a bateria. Sob ela ficava o espaço para o cartão de memória do celular. Estava vazio.


— Merda!


Bosch jogou o telefone no chão do carro. Mais uma aposta errada. Olhou o relógio. Haviam se passado apenas vinte minutos desde que concordara em dar a Sun uma hora. Mas Bosch não conseguia ficar parado. Todos os seus instintos lhe diziam que precisaria entrar no apartamento. Sua filha podia estar lá dentro.


— Desculpe, Sun Yee, ele disse. — Você pode esperar aqui, mas eu não consigo. Vou entrar.


Curvou-se para frente e tirou a arma da cintura. Queria deixá-la fora do Mercedes, caso fossem pegos no apartamento e a polícia os ligasse ao carro. Embrulhou a arma no cobertor da filha, abriu a porta e saiu. Andou por uma abertura no muro de isolamento e pôs o embrulho em cima de uma das latas transbordando de lixo. Poderia recuperá-la facilmente depois. Quando voltou da área das lixeiras, viu que Sun descera do carro e estava esperando.


— Tudo bem, disse Sun. — Vamos. Começaram a se dirigir ao prédio de Peng.

— Deixa eu perguntar uma coisa, Sun Yee. Você alguma vez tira os óculos escuros? A resposta de Sun veio sem explicação.

— Não.


Mais uma vez o segurança na entrada em nenhum momento ergueu o rosto. O prédio era tão cheio que sempre havia alguém com uma chave esperando por um elevador. Em cinco minutos estavam outra vez diante da porta de Peng. Enquanto Sun permanecia junto à grade para vigiar e bloquear a visão, Bosch se abaixou sobre um joelho e cuidou da fechadura. Levou mais tempo do que imaginara, quase quatro minutos, mas conseguiu.


— Pronto, disse.


Sun deixou seu posto e seguiu Bosch ao entrar no apartamento. Antes mesmo de fechar a porta Bosch sabia que encontrariam alguém morto ali dentro. Não havia nenhum odor muito forte, nenhum sangue nas paredes, nenhum indício físico na sala. Mas depois de presenciar mais de quinhentas cenas de crime ao longo de sua carreira como policial, havia desenvolvido o que considerava uma percepção para sangue. Não tinha nenhum respaldo científico para sua teoria, mas Bosch acreditava que o sangue respingado alterava a composição do ar em um ambiente fechado. E ele percebia essa alteração nesse momento. O fato de que pudesse ser o sangue de sua própria filha tornava o reconhecimento apavorante. Ergueu a mão para impedir Sun de continuar andando pelo apartamento.


— Está sentindo isso, Sun Yee?

— Não. Sentir o quê?

— Tem alguém morto. Não encosta em nada, e se der, pisa só onde eu pisar.


O desenho do apartamento era idêntico ao do outro. Apenas dois ambientes, compartilhados pela mãe e seus dois filhos adolescentes. Não havia qualquer sinal de tumulto ou perigo na primeira sala. Sobre o sofá estavam um travesseiro e um lençol amarrotado, e Bosch deduziu que o rapaz dormia ali, enquanto a irmã e a mãe ficavam com o quarto. Bosch atravessou a sala e entrou no quarto. Uma cortina estava puxada sobre a janela, deixando o lugar às escuras. Com o cotovelo, Bosch acionou o interruptor e acendeu a luz no teto acima da cama. A cama estava desfeita mas vazia. Não havia sinais de luta, tumulto ou morte. Bosch olhou para o lado direito. Havia mais duas portas. Ele deduziu que uma dava em um closet e a outra em um banheiro. Ele sempre carregava luvas de látex no bolso do paletó. Tirou um par e calçou a mão esquerda. Abriu a porta do lado direito primeiro. Era um closet atulhado com roupas em cabides e empilhadas no chão. A prateleira em cima estava entupida também de caixas com coisas escritas em chinês. Bosch recuou e foi para a segunda porta. Abriu sem hesitar.


O pequeno banheiro estava coberto de sangue seco. O sangue espirrara sobre a pia, a privada e o chão de azulejo. Havia salpicos e gotejamentos de sangue na parede do fundo e na suja cortina branca de plástico decorada com padrões florais que separava o chuveiro. Era impossível entrar sem pisar no sangue. Mas Bosch não se preocupou com isso. Precisaria olhar atrás da cortina do chuveiro. Precisaria saber. Atravessou rapidamente o banheiro e puxou a cortina. O boxe era minúsculo para os padrões americanos. Não era maior do que as antigas cabines telefônicas diante do Du-Par’s, no Farmers Market. Mas de algum modo alguém dera um jeito de empilhar três corpos um em cima do outro ali dentro. Bosch prendeu a respiração conforme se curvava para tentar identificar as vítimas. Estavam inteiramente vestidas. O rapaz, que era o maior, ficara no topo. Estava de rosto virado para baixo em cima de uma mulher de cerca de 40 anos, sua mãe, que fora apoiada frouxamente na parede. A posição dos dois sugeria alguma espécie de fantasia edipiana que provavelmente não fora a intenção do assassino. A garganta de ambos havia sido selvagemente cortada de orelha a orelha. Atrás e parcialmente sob a mãe, como que se ocultando, estava o corpo de uma jovem. Seus cabelos longos e negros cobriam seu rosto.


— Meu Deus, exclamou Bosch. — Sun Yee!


Sun apareceu rapidamente atrás e ele escutou o áspero som de sua respiração. Bosch começou a calçar a segunda luva.


— Tem uma menina no fundo e não dá para dizer se é Maddie, disse. — Põe isso.


Ele tirou outro par de luvas do bolso e estendeu-as para Sun, que as calçou imediatamente. Juntos, puxaram o corpo do rapaz morto para fora do boxe e o depositaram no chão atrás da pia. Bosch então moveu delicadamente o corpo da mãe até que pudesse ver o rosto da garota no azulejo embaixo. Ela, também, tivera a garganta cortada. Seus olhos estavam abertos e exibiam o pavor da morte. Bosch ficou com o coração partido ao ver sua expressão, mas não era o rosto de sua filha.


— Não é ela, ele disse. — Só pode ser a amiga dela. He.


Harry desviou o rosto da carnificina e se espremeu para passar por Sun. Voltou para o quarto e sentou na cama. Ouviu um som surdo vindo do banheiro e deduziu que Sun estava pondo os corpos de volta onde os encontrara. Bosch respirava ruidosamente e se curvou para frente, os braços cruzados sobre o peito. Tinha os olhos apavorados da menina em sua mente. Quase caiu da cama.


— O que aconteceu aqui? Perguntou num sussurro. Sun saiu do banheiro e adotou sua postura de guarda-costas. Não disse nada. Harry notou o sangue em suas mãos enluvadas. Bosch ficou de pé e olhou pelo quarto como se o lugar pudesse conter alguma explicação para a cena no banheiro.

— Será que outra tríade tirou Maddie das mãos dele? Depois matou todo mundo para apagar o rastro? Sun balançou negativamente a cabeça.

— Isso teria começado uma guerra. Mas o menino não é tríade.

— O quê? Como você sabe disso?

— Só tem uma tríade em Tuen Mun vertical. Triângulo Dourado. Eu olhei e ele não tinha a marca.

— Que marca?


Sun hesitou por um momento, virando na direção da porta do banheiro, mas depois voltando a encarar Bosch. Ele tirou uma de suas luvas, levou a mão à boca e puxou o lábio inferior. Na macia pele interna havia uma tatuagem antiga e borrada com dois ideogramas chineses. Bosch presumiu que significava Triângulo Dourado.


— Então você é da tríade? Sun soltou o lábio e fez que não com a cabeça.

— Não mais. Faz mais de vinte anos.

— Eu achava que não dava para sair de uma tríade, simplesmente. Quando você sai, sai num caixão.

— Eu fiz um sacrifício e o conselho me permitiu sair. Também precisei partir de Tuen Mun. Foi assim que fui para Macau.

— Que tipo de sacrifício?


Sun pareceu ainda mais relutante do que no momento em que mostrara a tatuagem a Bosch. Mas então vagarosamente levou a mão ao rosto outra vez, só que agora removendo os óculos. Por um momento, Bosch não notou nada errado, mas então se deu conta de que o olho esquerdo de Sun era uma prótese. Ele tinha um olho de vidro. Havia uma cicatriz curva ligeiramente visível no canto externo.


— Você teve que dar a porra de um olho para sair da tríade?

— Não me arrependo da minha decisão. Ele voltou a pôr os óculos escuros.


Entre as revelações de Sun e a cena de horror no banheiro, Bosch começava a se sentir mergulhado em uma espécie de pintura medieval. Ele se forçou a lembrar que sua filha não estava no banheiro, que ela continuava viva e em algum lugar lá fora.


— Ok, ele disse, — Não sei o que aconteceu aqui nem por quê, mas a gente precisa continuar na trilha. Tem que ter alguma coisa nesse apartamento que vai nos dizer onde está Maddie. A gente precisa descobrir e nosso tempo está se esgotando.


Bosch levou a mão ao bolso, mas estava vazio.


— Acabaram minhas luvas, então cuidado onde você encosta. E a gente provavelmente está com sangue na sola dos sapatos. Não tem cabimento espalhar isso pelo apartamento todo.


Bosch tirou os sapatos e limpou o sangue na pia da quitinete. Sun fez o mesmo. Então os homens deram a busca no apartamento, começando pelo quarto e seguindo em direção à porta da frente. Não encontraram nada útil até chegarem à pequena cozinha, e Bosch notou que, como o apartamento do lado, havia um prato de sal sobre a mesa. A diferença era que a pilha de sal era maior nesse prato e Bosch notou marcas de dedo deixadas por alguém que amontoara os pequenos grânulos. Ele passou seus dedos no montinho e achou um pequeno quadrado de plástico preto que fora enterrado no sal. Bosch reconheceu imediatamente o cartão de memória de um celular.


— Achei uma coisa. Sun deixou de lado uma gaveta de cozinha em que estivera procurando. Bosch mostrou o cartão de memória. Ele tinha certeza de que era o cartão tirado do celular de sua filha.

— Estava no sal. Pode ser que ele tenha escondido na hora que eles chegaram.


Bosch olhou o minúsculo cartão de plástico. Havia um motivo para Peng Qingcai tê-lo removido antes de queimar o celular de sua filha. Havia um motivo para tê-lo escondido. Bosch queria refletir sobre esses motivos ali mesmo, mas decidiu que estender a permanência em um apartamento com três corpos no chuveiro não era uma decisão muito inteligente.


— Vamos cair fora daqui, disse.


Bosch foi até a janela junto à porta e observou a rua pela cortina antes de sinalizar que a barra estava limpa. Sun abriu a porta e os dois saíram rápido. Bosch fechou a porta antes de tirar suas luvas. Olhou de relance por cima do ombro quando se afastavam e viu que a velha do apartamento ao lado estava no corredor, ajoelhada diante do altar e queimando outra oferenda aos espíritos. Bosch olhou de novo, espantado, ao perceber que estava usando uma vela para pôr fogo em uma das notas de cem dólares que ele lhe dera. Bosch virou e caminhou rapidamente pelo corredor na direção oposta. Ele sabia que estava em um mundo além de sua compreensão.


A única coisa que compreendia era sua missão de encontrar a filha. Nada mais importava.


* * *


Trinta e Três

BOSCH RECUPEROU a arma, mas deixou o cobertor para trás. Assim que entrou no carro, pegou seu celular. Era uma réplica exata do de sua filha, que comprara como parte de uma promoção. Abriu o compartimento de trás e retirou a bateria e o cartão de memória. Então enfiou o cartão do celular de sua filha no lugar. Pôs a bateria de volta, fechou o compartimento e ligou o aparelho. Enquanto esperava que o telefone iniciasse, Sun se afastou da calçada e rumou para longe do prédio onde a família fora massacrada.


— Aonde estamos indo? Perguntou Harry.

— Para o rio. Tem um parque. A gente vai para lá até saber para onde está indo. Em outras palavras, nenhum plano, por ora. O cartão de memória era o plano.

— Aquela história que você me contou sobre os piratas quando era criança, aquilo era a tríade, não era? Após um instante, Sun assentiu. — Era isso que você fazia, contrabandear gente para dentro e para fora?

— Não, meu trabalho era diferente. Ele não disse mais nada e Bosch decidiu não pressionar. O telefone estava pronto. Entrou rapidamente no menu de chamadas. Nada. Estava vazio.

— Não tem nada aqui. Nenhum registro de chamada. Abriu a pasta de e-mails e mais uma vez não encontrou nada. — Não veio nada nesse cartão, disse, com uma agitação crescendo em sua voz.

— Isso é comum, disse Sun calmamente. — Só arquivos permanentes vão no cartão de memória. Olha se tem algum vídeo ou foto. Usando a pequena bola no meio do teclado de seu celular, Bosch foi para o ícone de vídeo e selecionou. A pasta estava vazia.

— Nenhum vídeo, disse.


Começou a ocorrer a Bosch que Peng talvez tivesse tirado o cartão do celular de Madeline porque acreditava conter todos os registros de uso do aparelho. Mas não continha. Essa pista derradeira, tão boa, começava a parecer um furo n’água. Ele clicou no ícone de fotos e encontrou uma lista de imagens JPEG armazenadas.


— Tem fotos.


Começou a abrir as fotos uma por uma, mas as únicas imagens que pareciam recentes eram as dos pulmões e das tatuagens no tornozelo de John Li que Bosch havia enviado. O resto eram fotos de amigas de Madeline e de passeios da escola. Não estavam datadas especificamente, mas não pareciam de modo algum relacionadas com seu sequestro. Ele encontrou algumas fotos de sua ida ao mercado de jade em Kowloon. Ela havia tirado fotos de pequenas esculturas de jade de casais em posições do Kama Sutra, fazendo sexo. Bosch pôs isso na conta da curiosidade de adolescente. Fotos que sem dúvida provocariam risadinhas constrangidas entre as garotas da escola.


— Nada, informou a Sun.


Continuou tentando, se movendo pela tela e clicando em ícone após ícone, na esperança de encontrar alguma mensagem oculta. Finalmente, descobriu que a agenda telefônica de Madeline também estava no cartão e fora transferida para o seu celular.


— A agenda de telefones dela está aqui.


Abiu a pasta e viu a lista de contatos. Não conhecia todos os seus amigos e muitos estavam gravados apenas pelo apelido. Clicou em Pai e abriu um menu com seu próprio celular e o número de sua casa, mas nada mais, nada que não devesse estar ali. Voltou à agenda e continuou, finalmente encontrando o que achou que podia estar procurando ao chegar o T. Havia um registro em Tuen Mun contendo apenas um número de telefone. Sun havia parado o carro em um parque comprido e estreito que se estendia junto ao rio e sob uma das pontes. Bosch mostrou o celular para ele.


— Encontrei um número. Está marcado como Tuen Mun. O único número que ela não listou com um nome pessoal.

— Por que ela iria ter esse número? Bosch pensou por um momento, tentando raciocinar.

— Não faço ideia, disse. Sun pegou o telefone e examinou a tela.

— Isso é um número de celular.

— Como você sabe?

— Começa com um nove. É um número de celular, em Hong Kong.

— Ok, então o que a gente faz com isso? Está marcado Tuen Mun. Pode ser do cara que está com a minha filha. Sun fitou o rio através do para-brisa, tentando elaborar uma resposta e um plano.

— A gente podia mandar uma mensagem para ele, disse. — Talvez responda. Bosch assentiu.

— Certo, podemos engambelar o cara. Pode ser que a gente consiga a localização dele.

— O que é “engambelar”?

— Jogar um chamariz, tirar o cara do esconderijo. A gente finge que sabe quem ele é e marca um encontro. Ele dá a localização para gente.


Sun refletiu sobre isso enquanto continuava a observar o rio. Uma balsa rumava lentamente para o sul, na direção do mar. Bosch começou a pensar em um plano alternativo. David Chu, lá em Los Angeles, talvez tivesse as fontes para puxar o nome e o endereço ligados a um número de celular.


— Ele pode reconhecer o número e saber que é chamariz, disse Sun, finalmente. — A gente devia usar o meu celular.

— Tem certeza? Perguntou Bosch.

— Tenho. Acho que a mensagem deve ser mandada em chinês tradicional. Para ajudar como chamariz. Bosch assentiu outra vez.

— Certo. Boa ideia. Sun tirou o seu celular e perguntou pelo número que Bosch encontrara. Abriu um campo de mensagem, mas então hesitou.

— O que eu digo?

— Bom, a gente precisa pôr um pouco de urgência nisso. Faça parecer que ele tem que responder de qualquer jeito, e depois encontrar a gente.


Conversaram sobre a estratégia por alguns minutos e finalmente pensaram em um texto que era simples e direto. Sun traduziu e enviou. Escrita em chinês, a mensagem dizia: “Temos um problema com a garota. Onde a gente pode se encontrar?”.


— Ok, vamos esperar, disse Bosch.


Havia decidido não envolver Chu naquilo, a menos que fosse obrigado. Bosch olhou o relógio. Eram duas da tarde. Há nove horas que estava em Hong Kong e não estava mais próximo de sua filha do que quando sobrevoava o Pacífico, a 10 mil metros de altura. Nesse meio-tempo perdera Eleanor Wish para sempre e agora a brincadeira de gato e rato permitia que pensamentos de culpa e perda entrassem em sua imaginação sem nada para desviá-los. Olhou de relance o celular na mão de Sun, esperando por um retorno rápido da mensagem. Nada veio.


Minutos de silêncio se passaram tão lentamente quanto os barcos do rio. Bosch tentou concentrar seus pensamentos em Peng Qingcai e no modo como o sequestro de sua filha acontecera. Havia coisas que não faziam sentido para ele sem estar de posse de toda informação, mas ainda havia uma cronologia e uma cadeia de eventos que ele podia relacionar. E enquanto o fazia, sabia que tudo levava de volta as suas próprias ações.


— Tudo isso está ligado a mim, Sun Yee. Eu cometi o erro que permitiu que tudo isso acontecesse.

— Harry, não tem motivo para...

— Não, espera. Só escute. Você precisa saber tudo isso porque talvez veja alguma coisa que eu não estou enxergando. Sun ficou calado e Bosch continuou. — Tudo começou comigo. Eu estava trabalhando em um caso com um suspeito da tríade em Los Angeles. Não estava conseguindo as respostas, então pedi a minha filha para traduzir as marcas chinesas numa tatuagem. Mandei uma foto para ela. Falei que era um caso envolvendo a tríade e que ela não podia mostrar a tatuagem ou conversar com ninguém sobre o assunto. Mas esse foi o meu erro. Dizer isso para uma menina de 13 anos é como fazer um anúncio para o mundo: o mundo dela. Ela andava por aí com Peng e a irmã dele. Os irmãos eram de outro universo. Ela provavelmente queria impressionar os dois. Falou para eles sobre a tatuagem e o caso e foi aí que tudo começou. Olhou para Sun, mas não conseguiu interpretar seu rosto.

— Que universo? Ele perguntou.

— É só uma expressão. Eles não eram de Happy Valley, só quis dizer isso. E como você disse, Peng não fazia parte de nenhuma tríade em Tuen Mun, mas talvez conhecesse gente, talvez quisesse entrar. Ele andava lá pelo outro lado do porto em Happy Valley. Podia ser que conhecesse alguém e achou que isso ia ser o ingresso para entrar. Ele contou para alguém o que tinha ouvido. Eles juntaram isso com Los Angeles e disseram a ele para pegar a garota e me mandar a mensagem. O vídeo. Bosch parou nisso por um momento enquanto pensamentos sobre a situação de sua filha voltaram a distraí-lo. — Mas, depois disso, alguma coisa aconteceu. Alguma coisa mudou. Peng a levou para Tuen Mun. Talvez ele tenha oferecido ela para a tríade daqui e eles a levaram. Só que não quiseram ele na organização. Em vez disso, mataram ele e a família. Sun balançou a cabeça ligeiramente em sinal negativo e finalmente falou. Havia alguma coisa na linha de raciocínio de Bosch que para ele não se encaixava.

— Mas por que fariam isso? Matar a família inteira.

— Pensa só no momento em que tudo acontece, Sun Yee. A mulher no apartamento do lado escutou as vozes pela parede no fim da tarde, certo?

— Sim.

— A essa hora, eu estava no avião. Estava a caminho, e de alguma forma eles sabiam. Não podiam arriscar que eu encontrasse Peng ou a irmã dele ou a mãe. Então eliminaram a ameaça e apagaram o rastro ali mesmo. Se não fosse o cartão de memória que Peng escondeu, onde a gente ia estar? Na estaca zero. Sun foi direto em algo que Bosch deixara de fora.

— Como eles sabiam que você estava vindo no avião? Bosch balançou a cabeça.

— Boa pergunta. Desde o início tem havido um vazamento na investigação. Mas eu achava que estivesse pelo menos um dia na frente.

— Em Los Angeles?

— É, lá em Los Angeles. Alguém entregou para o suspeito que a gente estava em cima dele, e isso fez ele tentar fugir. Foi por isso que a gente teve que prender o cara antes de estarmos prontos e por isso que pegaram Maddie.

— Você não sabe quem fez isso?

— Não tenho cem por cento de certeza. Mas quando voltar, vou descobrir. E vou cuidar disso. Sun inferira disso mais do que Bosch pretendera.

— Mesmo se Maddie estiver a salvo? Perguntou.


Antes que Bosch pudesse responder, o telefone na mão de Sun vibrou. Ele havia recebido uma mensagem. Bosch se curvou para olhar enquanto Sun lia. O texto, em chinês, era curto.


— O que diz aí?

— Número errado.

— Só isso?

— Ele não engoliu o chamariz.

— Merda.

— E agora?

— Mande outra mensagem. Diz para ele que a gente quer se encontrar ou vai procurar a polícia.

— Perigoso demais. Ele pode resolver se livrar dela.

— Não se ele tiver um comprador no aguardo. Você disse que ela é valiosa. Se for por sexo ou por órgãos, ela é valiosa. Ele não vai se livrar dela. Talvez tente apressar o negócio e essa é a chance que a gente aproveita, mas ele não vai se livrar dela.

— A gente não sabe nem se é a pessoa certa. Isso é só um número de telefone na agenda da sua filha.


Bosch balançou a cabeça. Ele sabia que Sun tinha razão. Enviar mensagens no escuro era arriscado demais. Seus pensamentos o levaram de volta a David Chu. O detetive da Unidade de Gangue Asiática podia muito bem ser o vazamento na investigação que teria levado ao sequestro da filha de Bosch. Será que corria o risco de ligar para ele agora?


— Sun Yee, você conhece alguém da segurança do cassino que pode rastrear esse número e conseguir um nome e endereço de conta? Sun considerou a pergunta por um longo momento e então negou com a cabeça.

— Não, isso não é possível com os meus colegas. Vai haver uma investigação por causa da Eleanor... Bosch entendia. Sun precisaria fazer o possível para limitar as consequências para sua empresa e o cassino. Isso fazia a balança pender por Chu.

— Tudo bem. Acho que talvez eu conheça alguém.


Bosch abriu o celular para ver sua lista de contatos mas então se deu conta de que o cartão do celular de sua filha continuava ali. Começou o procedimento de inserir seu próprio cartão e devolver suas configurações e sua agenda ao aparelho.


— Para quem você vai ligar? Perguntou Sun.

— Um cara que estava trabalhando comigo. Ele é da Unidade de Gangue Asiática e tem uns contatos por lá.

— Esse é o homem que, para você, pode ser o vazamento? Bosch fez que sim. Boa pergunta.

— Não posso descartar ele. Mas pode ter sido qualquer um na unidade dele ou em algum outro departamento de polícia com quem a gente estava trabalhando. No momento, não vejo que a gente tenha alguma escolha. Quando reiniciou o telefone, entrou no menu de contatos e encontrou o celular de Chu. Fez a ligação e olhou o relógio. Era quase meia-noite de sábado em Los Angeles. Chu atendeu ao primeiro toque.

— Detetive Chu.

— David, é o Bosch. Desculpe ligar tão tarde.

— Nem um pouco tarde. Ainda estou trabalhando. Bosch ficou surpreso.

— No caso Li? O que está acontecendo?

— É, passei boa parte dessa noite com o Robert Li. Estou tentando convencer ele a cooperar com um processo de extorsão contra Chang.

— Ele vai cooperar? Houve uma pausa antes de Chu responder.

— Até o momento, não. Mas tenho até domingo de manhã para trabalhar em cima dele. Você continua em Hong Kong, não é? Já encontrou a sua filha? A voz de Chu assumiu um tom de urgência quando perguntou sobre Madeline.

— Ainda não. Mas tenho uma pista. É aí que eu preciso da sua ajuda. Você consegue rastrear um número de celular de Hong Kong para mim? Outra pausa.

— Harry, a polícia aí é muito mais capacitada para isso do que eu.

— Eu sei, mas não estou trabalhando com a polícia nisso.

— Não está. Não era uma pergunta.

— Não posso me arriscar ao potencial de um vazamento. Estou perto. Fiquei no rastro dela o dia inteiro e só sobrou esse número. Acho que pertence ao cara que está com ela. Consegue me ajudar? Chu ficou sem responder por um longo momento.

— Se eu ajudar, a minha fonte vai ser alguém dentro da polícia de Hong Kong. Você sabe disso, não sabe?

— Mas você não precisa dizer para eles por que necessita da informação ou para quem você vai dar.

— Mas se a coisa toda estourar por aí, eles vão chegar a mim. Bosch começou a perder a paciência, mas tentou manter isso fora do tom da sua fala conforme dava voz ao pesadelo que sabia estar se desenhando.

— Olha, não temos muito tempo. Nossa informação é de que ela vai ser vendida. Muito provavelmente hoje. Talvez nesse exato instante. Preciso da informação, Dave. Você consegue ou não? Dessa vez, não houve a menor hesitação.

— Me dá o número.


*   *   *


Trinta e Quatro

CHU DISSE QUE precisaria de pelo menos uma hora para rastrear o celular com a ajuda de seus contatos na polícia de Hong Kong. Bosch odiava a ideia de abrir mão de tanto tempo quando cada minuto podia ser aquele em que sua filha mudava de mãos, mas ele não tinha escolha. Acreditava que Chu compreendia perfeitamente a urgência da situação. Continuou a ligação dizendo a Chu para não contar nada a ninguém do departamento.


— Você ainda acha que tem um vazamento, Harry?

— Eu sei que tem, mas agora não é hora de conversar sobre isso.

— E quanto a mim? Você confia em mim?

— Eu liguei para você, não liguei?

— Acho que você não confia em ninguém, Harry. Você me ligou porque não tinha mais ninguém.

— Quer saber? Só rastreia o número e liga de volta para mim.

— Claro, Harry. Você manda. Bosch fechou o celular e olhou para Sun.

— Ele disse que pode levar até uma hora. Sun permaneceu impassível. Girou a chave e ligou o carro.

— Você devia comer alguma coisa enquanto a gente espera.

— Não, não consigo comer. Não com ela por aí e... O que aconteceu. Meu estômago... Eu não ia conseguir segurar nada. Sun desligou o carro. Iriam esperar ali pela ligação de Chu.


Os minutos escoavam muito vagarosamente e pareciam quase insuportáveis. Bosch repassou seus movimentos, voltando ao momento em que se agachava atrás do balcão na Fortune Liquors e examinava o corpo de John Li. Ele chegou à plena constatação de que sua busca implacável pelo assassino pusera outros em perigo. Sua filha. Sua ex-mulher. Uma família inteira na remota Tuen Mun. O fardo da culpa que carregaria a partir de agora seria o mais pesado de sua vida, e ele não tinha certeza se era capaz de suportá-lo. Pela primeira vez, pôs um se na equação de sua vida. Se conseguisse resgatar sua filha, encontraria um jeito de se redimir. Se jamais voltasse a vê-la, não haveria redenção. Seria o fim de tudo. Perceber essas coisas fez com que ele começasse a tremer. Bosch virou e abriu a porta do carro.


— Vou andar um pouco.


Saiu e fechou a porta antes que Sun pudesse perguntar qualquer coisa. Havia um caminho que seguia ao longo do rio e ele começou a andar por ali. Permanecia de cabeça baixa, a mente mergulhada em pensamentos obscuros, e não notava as pessoas passando em volta ou os barcos deslizando rapidamente pelo rio.


Finalmente, Bosch se deu conta de que não estava sendo de nenhuma ajuda para ele ou sua filha se deter sobre coisas que não podia controlar. Tentou se livrar do véu negro que descera sobre ele e se concentrar em alguma coisa útil. A questão do cartão de memória do celular de sua filha continuava em aberto, e incomodando. Por que Madeline havia armazenado o número marcado como Tuen Mun em seu aparelho? Depois de remoer a questão, ele finalmente enxergou uma resposta que lhe escapara antes. Madeline fora sequestrada. Logo, seu celular teria sido tirado dela. Então provavelmente fora o sequestrador, não Madeline, quem armazenara o número na agenda. Essa conclusão levou a uma enxurrada de possibilidades. Peng fizera o vídeo e enviara para Bosch. Então ele estava de posse do telefone. Podia muito bem tê-lo usado em lugar de seu próprio celular para completar o sequestro e combinar a troca de Madeline por fosse lá o que pretendia negociar por ela.


Ele provavelmente salvara o número no cartão. Podia ser porque estava usando muito o aparelho nas negociações ou simplesmente porque queria deixar um rastro, só para o caso de alguma coisa acontecer. E teria sido por esse motivo que escondera o cartão no sal. Para que alguém encontrasse. Bosch fez meia-volta para levar sua nova conclusão para Sun. Estava a 100 metros de distância e pôde ver Sun já do lado de fora do carro, acenando agitado para que voltasse. Bosch olhou o celular em sua mão e verificou a tela. Não havia nenhuma ligação perdida e era impossível que a agitação de Sun pudesse estar relacionada com sua ligação para Chu. Bosch começou a trotar de volta. Sun entrou de novo no carro e fechou a porta. Bosch logo sentava ao seu lado.


— O que foi?

— Outra mensagem. Um texto. Sun segurou o celular para mostrar a mensagem para Bosch, mesmo sendo em chinês.

— O que diz?

— Diz: “Qual o problema? Quem está falando?”


Bosch balançou a cabeça. Havia ainda um bocado de subterfúgio na mensagem. O emissário continuava fingindo ignorância. Ele não sabia do que se tratava, contudo enviara aquilo sem ser solicitado, e isso revelou a Bosch que estavam chegando perto de algo.


— Como a gente responde? Perguntou Sun. Bosch não respondeu. Estava pensando. O celular de Sun começou a vibrar. Ele olhou para a tela.

— É uma ligação. É ele. O número.

— Não atende, disse Bosch, rapidamente. — Pode estragar tudo. Se precisar, a gente liga de volta. Vamos ver primeiro se ele deixa um recado.


O telefone parou de vibrar e eles aguardaram. Bosch tentou pensar no movimento seguinte a ser feito nesse jogo delicado e mortal. Após algum tempo, Sun balançou a cabeça.


— Sem mensagem. Eu já teria recebido um sinal, a essa altura.

— Como é a sua saudação na caixa de recados? Você usa o seu nome nela?

— Não, nome nenhum. Deixo na gravação automática. Isso era ótimo. Uma mensagem genérica. Quem ligou provavelmente estava tentando conseguir um nome, uma voz ou qualquer outro tipo de informação.

— Ok, manda uma mensagem de texto de volta para ele. Diga: nada de telefones ou texto, porque não é seguro. Diz que quer encontrar ele pessoalmente.

— Só isso? Eles perguntam qual é o problema. Eu não respondo?

— Não, ainda não. Fica enrolando. Quanto mais a gente mantiver esse negócio em suspenso, mais tempo dá para Maddie. Entendeu?

— Sim, entendi. Ele digitou a mensagem que Bosch havia sugerido e enviou.

— Agora a gente espera outra vez, disse.


Bosch não precisava que o lembrassem disso. Mas alguma coisa lhe dizia que a espera não seria longa. O chamariz estava funcionando e tinha alguém na outra ponta da linha mordendo a isca. Nem bem chegara a essa conclusão, outro texto chegou no celular de Sun.


— Ele quer que a gente se encontre, disse Sun, olhando para a tela. — Cinco horas, no Geo.

— O que é isso?

— Um restaurante na Costa do Ouro. Muito famoso. Vai estar bem lotado em um domingo à tarde.

— Onde fica a Costa do Ouro?

— Quase uma hora daqui.


Bosch teve de considerar se a pessoa com quem estavam lidando não estaria tapeando ambos, tirando-os uma hora para fora do caminho. Olhou o relógio. Fazia quase uma hora desde que conversara com Chu. Antes de se comprometer com o encontro na Costa do Ouro, ele primeiro precisava checar o que Chu havia conseguido. Assim que Sun ligou o carro e começou a se mover, Bosch ligou para o número de Chu outra vez.


— Detetive Chu.

— É o Bosch. Já passou uma hora.

— Ainda não, mas continuo esperando. Já fiz a ligação e ainda não tive resposta.

— Você conversou com alguém?

— Hã, não, deixei uma mensagem com um cara daí. Acho que por ser tão tarde ele pode não...

— Não é tarde, Chu! É tarde aí, não aqui. Você fez a ligação ou não?

— Harry, eu fiz a ligação. Só me confundi um pouco. É tarde aqui, é domingo aí. Acho que é por ser domingo que ele não está perto do telefone como normalmente está. Mas já fiz a ligação e ligo para você assim que tiver alguma coisa.

— É, bom, talvez seja tarde demais quando você ligar. Bosch fechou o telefone. Estava arrependido de ter confiado em Chu, para começo de conversa. — Nada, disse a Sun.


Chegaram à Costa do Ouro em 45 minutos. Era um ponto turístico no extremo oeste dos Novos Territórios que atraía gente não só do continente, como também de Hong Kong e do mundo todo. Um hotel elevado e reluzente erguia-se acima da Castle Peak Bay e restaurantes ao ar livre enchiam o calçadão beirando o porto.


O Geo foi uma escolha sábia do emissário das mensagens. Ficava espremido entre dois restaurantes parecidos ao ar livre e todos os três estavam abarrotados. Uma feira de artesanato no calçadão duplicava o número de gente na área e os lugares onde um observador poderia se ocultar. Tornaria a identificação de alguém que não queria ser identificado extremamente difícil.


Seguindo um plano esboçado por Bosch e Sun no caminho, Bosch desceu na entrada da Costa do Ouro. Os dois sincronizaram seus relógios e então Sun seguiu com o carro. Quando atravessava o hotel, Bosch parou na loja de presentes e comprou óculos escuros e um boné de beisebol com o emblema do hotel em dourado. Também comprou um mapa e uma câmera descartável.


Por volta das dez para as cinco, Bosch rumou para a entrada de um restaurante chamado Yellow Flower, que era ao lado e permitia uma visão completa da área de mesas do Geo. O plano era simples. Eles queriam identificar o dono do celular cujo número estava na agenda de sua filha e segui-lo quando deixasse o Geo.


O Yellow Flower, o Geo e um terceiro restaurante do outro lado, o Big Sur, estavam apinhados de mesas sob toldos brancos. A brisa marinha mantinha os clientes refrescados e os toldos inflados. Enquanto aguardava um lugar, Bosch olhava ora para o relógio, ora para a multidão nos restaurantes. Havia inúmeros grupos grandes, famílias inteiras reunidas para a refeição de domingo à tarde. Essas mesas podiam ser facilmente descartadas por Bosch ao procurar o dono do celular porque ele não esperava que o homem fizesse parte de um grupo grande. Mas, mesmo assim, Bosch rapidamente se deu conta de quão desanimadora seria a tarefa de localizar o contato. Só porque o suposto encontro fora marcado para o Geo isso não queria dizer que o sujeito que procuravam estava no restaurante. Ele podia estar em qualquer um dos três restaurantes fazendo exatamente o que Bosch e Sun estavam fazendo, tentando dissimuladamente identificar seu contato. Bosch não tinha escolha a não ser continuar com o plano. Ergueu um dedo para a hostess e foi conduzido a uma mesa ruim no canto que dava vista para todos os três restaurantes, mas nem um vislumbre do mar. Era o tipo de mesa ruim que empurravam para gente desacompanhada, exatamente o que ele estava procurando.


Ele olhou seu relógio outra vez e então abriu o mapa sobre a mesa. Usou a câmera para fazer peso e tirou o boné. Era um suvenir vagabundo e desconfortável. Ficou feliz de se ver livre daquilo. Havia feito mais uma verificação dos restaurantes antes das cinco, mas não viu nenhum candidato provável para o contato. Ninguém como ele, sentado sozinho ou com outros homens misteriosos, usando óculos escuros ou qualquer outro tipo de disfarce. Começou a achar que o chamariz não funcionara. Que o contato percebera a armadilha e passara a perna neles. Olhou o relógio bem no momento em que o ponteiro grande se movia para o 12, assinalando cinco horas. A primeira mensagem de Sun seria enviada exatamente às cinco. Bosch esquadrinhou os restaurantes, na esperança de ver um gesto rápido, alguém verificando um recado em seu celular. Mas havia gente demais e não avistou nada enquanto os segundos passavam.


— Olá, senhor. Só um? Uma garçonete se aproximara do lado de sua mesa. Bosch a ignorou, os olhos indo de pessoa em pessoa nas mesas do Geo. — Senhor? Bosch respondeu sem olhar para ela.

— Pode me trazer uma xícara de café por enquanto? Preto.

— Certo, senhor.


Ele pôde sentir sua presença se afastando. Bosch passou mais um minuto de olho na multidão. Expandiu sua procura para incluir o Yellow Flower e o Big Sur. Viu uma mulher conversando em um celular, mas ninguém mais usando telefone. O celular zumbiu em seu bolso. Ele o pegou e atendeu, sabendo que era Sun.


— Ele respondeu a primeira mensagem. Disse: “Estou esperando.” Só isso. O plano fora Sun enviar uma mensagem exatamente às cinco, dizendo que estava preso no trânsito e chegaria atrasado. Havia feito isso e a mensagem fora recebida e respondida.

— Não vi ninguém, disse Bosch. — Esse lugar é grande demais. Ele escolheu o lugar certo.

— Sim.

— Onde você está?

— No bar nos fundos do Big Sur. Não vi ninguém.

— Certo, pronto para a próxima mensagem?

— Pronto.

— Vamos tentar mais uma vez. Bosch fechou o celular quando a garçonete trazia seu café.

— Pronto para pedir?

— Não, ainda não. Preciso dar uma olhada no cardápio.


Ela se afastou. Bosch deu um gole rápido no café quente e então abriu o cardápio. Examinou os itens conforme mantinha a mão direita sobre a mesa, de modo que pudesse olhar o relógio. Às 5h05 Sun enviaria a mensagem seguinte. A garçonete voltou e mais uma vez perguntou a Bosch se queria fazer o pedido. A deixa era clara. Pedir ou cair fora. Precisavam da mesa.


— Você tem gway lang go?

— Isso é gelatina de casco de tartaruga. Ela disse isso em um tom que sugeria que ele cometera um erro.

— Eu sei. A cura para qualquer mal que nos aflige. Você tem?

— Não no menu.

— Ok, então me traz qualquer macarrão.

— Qual deles? Ela apontou o menu. Não havia fotos, de modo que Bosch ficou perdido.

— Deixa para lá. Me yraga arroz frito com camarão.

— Só isso?

— Só. Ele lhe devolveu o menu, para que fosse embora.


A garçonete o deixou e ele checou a hora outra vez antes de retomar a observação dos restaurantes. A mensagem seguinte estava a caminho. Ele esquadrinhou rapidamente de mesa em mesa. Mais uma vez não pegou nada que se encaixasse. A mulher que ele notara antes atendeu outra ligação e falou brevemente com alguém. Estava sentada em uma mesa com um menino pequeno que parecia entediado e desconfortável em suas roupas de domingo. O celular de Bosch vibrou sobre a mesa.


— Recebi mais uma resposta, disse Sun. — Se você não aparecer dentro de cinco minutos, o encontro está cancelado.

— E não viu ninguém?

— Nada.

— Você mandou a mensagem seguinte?

— Vou mandar às cinco e dez.

— Ok.


Bosch fechou o celular e o pousou sobre a mesa. Haviam planejado a terceira mensagem como a que finalmente faria o contato se mover. A mensagem diria que Sun estava cancelando o encontro porque vira alguém o seguindo e achava que era a polícia. Mandaria o contato desconhecido sair do Geo imediatamente. A garçonete veio e serviu uma tigela de arroz. O camarão em cima era inteiro, os olhos dilatados cozidos e esbranquiçados. Bosch empurrou a tigela para o lado. Seu celular zumbiu. Ele olhou o relógio antes de atender.


— Já enviou? Perguntou Bosch. No início, não houve resposta. — Sun Yee?

— Harry, é o Chu. Bosch olhou o relógio mais uma vez. Hora da última mensagem.

— Eu já ligo de volta.


Fechou o celular e mais uma vez olhou pelas mesas dos três restaurantes, esperançoso do momento em que a agulha saísse do palheiro. Alguém lendo um texto, talvez digitando uma resposta. Nada. Não viu ninguém tirando um celular e olhando para a tela. Havia gente demais para cobrir ao mesmo tempo e a futilidade do plano começou a abrir um vazio de angústia em seu peito. Seus olhos se dirigiram à mesa em que a mulher e o menino haviam sentado e ele viu que tinham ido embora. Esquadrinhou o restaurante e viu os dois se afastando. A mulher andava rápido, arrastando o menino pela mão. Na outra ela levava seu celular. Bosch abriu seu telefone e apertou o botão para ligar para Sun. Ele atendeu de imediato.


— A mulher e o menino. Estão indo na sua direção. Acho que pode ser ela.

— Ela recebeu a mensagem?

— Não, acho que foi enviada para fazer o contato. As mensagens foram para algum outro lugar. A gente precisa seguir a mulher. Onde está o carro?

— Lá na frente.


Bosch se levantou, pôs três notas de cem dólares sobre a mesa e foi na direção da saída.


*   *   *


Trinta e Cinco

SUN JÁ ESTAVA no carro esperando diante do Yellow Flower. Quando Bosch abria a porta, escutou uma voz chamando atrás dele.


— Senhor! Senhor! Virou e viu a garçonete vindo atrás dele, segurando o boné e o mapa. Também trazia o troco de sua conta.

— Esqueceu suas coisas, senhor. Bosch agarrou os objetos e disse obrigado. Fez um gesto empurrando o troco de volta para ela.

— Isso é para você, disse.

— O senhor não gostou do arroz com camarão, ela disse.

— Isso mesmo.


Bosch entrou no carro, esperando que o atraso momentâneo não lhes custasse a perseguição à mulher com o menino. Sun manobrou imediatamente, se afastou do restaurante e entrou no trânsito. Apontou pelo para-brisa.


— Eles estão no Mercedes branco, disse. O carro para o qual apontava estava a um quarteirão e meio de distância, rodando em meio ao trânsito leve.

— É ela quem está dirigindo? Perguntou Bosch.

— Não, ela e o menino entraram em um carro que estava esperando. Tem um homem no volante.

— Ok, você está de olho neles? Preciso fazer uma ligação.

— Pode deixar. Enquanto Sun seguia o Mercedes branco, Bosch retornava a ligação de Chu.

— É o Bosch.

— Consegui uma informação com a polícia de Hong Kong. Mas eles me fizeram um monte de perguntas, Harry.

— Me dá a informação primeiro. Bosch pegou seu bloquinho e uma caneta.

— Certo, o número de telefone que você me deu está registrado no nome de uma empresa. Northstar Seafood and Shipping. Northstar é uma palavra só. Fica em Tuen Mun. Isso é nos Nov...

— Já sei. Você tem o endereço exato? Chu deu para ele um endereço na Hoi Wah Road e Bosch repetiu em voz alta. Sun balançou a cabeça. Sabia onde era.

— Ok, mais alguma coisa? Perguntou Bosch.

— Tem. A Northstar está sob suspeita, Harry.

— O que isso quer dizer? Suspeita de quê?

— Não consegui nenhuma informação específica. Apenas sobre práticas ilegais de transporte e comércio.

— Como tráfico de seres humanos?

— Pode ser. Como eu disse, não consegui nenhuma informação específica. Só perguntas sobre o motivo de estar rastreando o número.

— O que você disse a eles?

— Que era um rastreamento no escuro. Que o número foi encontrado num pedaço de papel numa investigação de homicídio. Disse que não sabia qual era a ligação.

— Perfeito. Tem algum nome associado a esse número de celular?

— Não, diretamente com o número não. Mas o dono da Northstar Seafood and Shipping se chama Dennis Ho. Tem 45 anos e isso foi tudo que eu consegui sem dar bandeira de que estava trabalhando numa coisa específica. Ajudou?

— Ajudou. Obrigado. Bosch encerrou a ligação e depois atualizou Sun com a informação que recebera.

— Já ouviu falar de Dennis Ho? Perguntou. Sun negou com a cabeça.

— Nunca. Bosch sabia que tinham de tomar uma decisão importante.

— A gente não sabe se essa mulher tem alguma coisa a ver com isso, disse Bosch, apontando mais à frente para o Mercedes branco. — Pode ser um passo em falso. Por mim a gente larga isso agora mesmo e vai direto para a Northstar.

— A gente não precisa decidir, por enquanto.

— Por que não? Não quero ficar perdendo tempo nisso. Sun apontou o Mercedes branco com o queixo. Estava a cerca de 200 metros de distância.

— Estamos na direção certa, do embarcadouro. Eles podem estar indo para lá. Bosch balançou a cabeça. Os dois ângulos da investigação continuavam em aberto.

— Como você está de gasolina? Perguntou Bosch.

— Diesel, respondeu Sun. — E estamos bem.


Durante a meia hora seguinte, margearam a linha costeira na Castle Peak Road, mantendo um boa distância atrás do Mercedes, mas sem nunca perdê-lo de vista. Iam em silêncio. Haviam chegado ao ponto em que sabiam que o tempo era curto e que não havia mais nada a dizer. Se nem o Mercedes nem a Northstar os conduzisse Maddie Bosch, provavelmente eles jamais a veriam novamente. Quando a estrutura vertical dos conjuntos habitacionais em Tuen Mun central assomou diante deles, Bosch viu acender a seta do Mercedes. O carro ia virar à esquerda, afastando-se do embarcadouro.


— Estão virando, ele avisou.

— Isso é um problema, disse Sun. — O embarcadouro industrial fica na frente. Estão indo para a área residencial.


Ambos ficaram em silêncio por um momento, na esperança de que um plano pudesse se materializar ou de que talvez o motorista do Mercedes percebesse que precisavam seguir reto e corrigisse o rumo do carro. Nem uma coisa nem outra aconteceu.


— Pra que lado? Perguntou Sun finalmente.


Bosch sentiu ficar dilacerado por dentro. Sua escolha ali podia custar a vida de sua filha. Sabia que não podiam se separar para que um seguisse o carro enquanto o outro ia para o embarcadouro. Bosch estava em um mundo que não conhecia e seria inútil sozinho. Precisava de Sun com ele. Chegou à mesma conclusão que chegara após receber o telefonema de Chu.


— Deixa ela para lá, disse finalmente. — Vamos para a Northstar.


Sun continuou direto e passaram pelo Mercedes branco quando o carro entrava à esquerda numa rua chamada Tsing Ha Lane. Bosch olhou pela janela para o carro quando ele reduziu. O homem no volante olhou de volta, mas apenas por um segundo.


— Merda, disse Bosch.

— O que foi? Perguntou Sun.

— Ele olhou para mim. O motorista. Acho que sabia que a gente estava seguindo eles. A gente devia ter razão: ela é parte disso.

— Então isso é bom.

— O quê? Do que você está falando?

— Se eles sabiam que a gente estava na cola deles, então desviar do embarcadouro pode ter sido uma tentativa de desviar a gente para longe da Northstar. Entendeu?

— Entendi. Espero que você tenha razão.


Logo eles entraram em uma zona industrial à beira d’água repleta de armazéns e matadouros depauperados ao longo de cais e píeres. Havia barcaças fluviais e barcos marinhos de porte médio acostados aqui e ali, às vezes dois ou três lado a lado. Tudo aquilo parecia abandonado por esse dia. Nenhuma atividade no domingo. Inúmeros barcos pesqueiros estavam atracados no porto, todos em segurança atrás de uma proteção contra tufões criada por um longo píer de concreto que formava o perímetro externo do porto. O número de carros diminuiu e Bosch começou a ficar preocupado que o reluzente Mercedes preto do cassino pudesse ser excessivamente conspícuo à medida que se aproximavam da Northstar. Sun devia estar pensando o mesmo. Entrou no estacionamento de uma loja de comida fechada e parou o carro.


— Estamos bem perto, disse. — Acho melhor deixar o carro aqui.

— Concordo, disse Bosch.


Desceram e seguiram a pé pelo resto do caminho, andando muito rente às fachadas dos armazéns e esquadrinhando em todas as direções à procura de vigias avançados. Sun ia na frente e Bosch o seguia de perto.


A Northstar Seafood and Shipping ficava localizada no cais 7. Um grande armazém verde com coisas escritas em chinês e inglês na lateral ficava de frente para a zona portuária, e um píer se estendia pela baía mais além. Quatro botes de 75 pés com cascos negros e casas do leme verdes estavam amarrados de ambos os lados do píer. Atracado no fim se via um barco maior com um longo guindaste se projetando na direção do céu. Dessa perspectiva no canto de um armazém no cais 6, Bosch não conseguia ver movimento algum. As enormes portas do depósito Northstar estavam fechadas e as docas e os barcos pareciam sem atividade devido ao fim de semana. Bosch começou a pensar que cometera um terrível engano em não ficar na cola do Mercedes branco. Então Sun deu um tapinha em seu ombro e apontou longitudinalmente pelo píer para o barco-guindaste no fim.


Ele indicava um ponto elevado e o olhar de Bosch foi nessa direção até o guindaste. A haste de metal se estendia a partir de uma plataforma instalada sobre um sistema de trilhos 5 metros acima do convés do navio. O guindaste podia ser movido para cima e para baixo no sentido longitudinal da embarcação, dependendo de que compartimento do navio estivesse recebendo a carga. O barco era obviamente projetado para navegar em alto-mar e liberar as redes de barcos menores, de modo que pudessem continuar a pescar. O guindaste era controlado de uma pequena cabine na plataforma superior que protegia o operador do vento e outros elementos do mar. Era para os vidros filmados da cabine que Sun estava apontando. Com o sol iluminando por trás do barco, Bosch pôde ver a silhueta de um homem contra a janela. Bosch se espremeu atrás da quina com Sun.


— É isso, disse, sua voz já tensa com a súbita descarga de adrenalina. — Acha que ele viu a gente?

— Não, disse Sun. — Não notei nenhuma reação.


Bosch balançou a cabeça e pensou sobre a situação. Ele acreditava agora com toda convicção que sua filha estava em algum lugar daquele barco. Mas chegar ao barco sem que o vigia os notasse parecia impossível. Podiam aguardar que descesse para comer ou ir ao banheiro, ou esperar pela troca de guarda, mas não havia como dizer quando isso ia acontecer ou sequer se ia acontecer. Esperar atuava contra a urgência que crescia no peito de Bosch.


Olhou o relógio. Eram quase seis. Levaria pelo menos duas horas até escurecer totalmente. Podiam esperar até esse momento para agir. Mas duas horas talvez fosse tempo demais. A troca de mensagens pusera os sequestradores de sua filha em alerta. Eles podiam estar prestes a fazer algum tipo de movimento com ela. Como que para frisar a possibilidade disso, o profundo batimento de um motor de barco começou a reverberar vindo do cais. Bosch arriscou uma olhada além da quina e viu fumaça subindo pela popa do barco-guindaste. E então viu movimento atrás das janelas da casa do leme. Voltou a se esconder.


— Talvez ele tenha visto a gente, informou. — Ligaram o barco.

— Quantos você viu? Perguntou Sun.

— Pelo menos um na casa do leme e um ainda no guindaste. A gente precisa fazer alguma coisa. Agora.


Para enfatizar a necessidade de agir, ele levou a mão às costas e sacou a arma. Ficou tentado a deixar o canto do armazém e sair pelo cais atirando. Tinha uma .45 carregada e achava que suas chances eram boas. Já vira situações piores nos túneis. Oito balas, oito dragões. E depois seria ele. Bosch seria o nono dragão, tão impossível de ser detido quanto uma bala.


— Qual o plano? Perguntou Sun.

— Plano nenhum. Eu entro e pego ela. Se não sair vivo, garanto que nenhum deles sai. Daí você entra, pega ela e põe num avião para longe daqui. Você está com o passaporte dela no porta-malas. O plano é esse. Sun balançou a cabeça.

— Espera. Eles vão estar armados. Esse plano não é bom.

— Você tem uma ideia melhor? A gente não pode esperar escurecer. Aquele barco já vai sair.


Bosch foi até o canto e deu outra olhada. Nada havia se alterado. O homem continuava de sentinela na cabine e havia alguém também na casa do leme. O barco roncava sem se mover, ainda amarrado à ponta do píer. Era quase como se estivessem esperando algo. Ou alguém. Bosch voltou a recuar e se acalmou. Considerou tudo em volta de si e o que estava disponível para uso. Talvez houvesse uma outra possibilidade ali além de um ataque suicida. Ele olhou para Sun.


— A gente precisa de um barco.

— Um barco?

— Um barco pequeno. A gente não pode correr até o píer sem ser visto. Eles vão estar observando. Mas com um barco pequeno dá para criar um elemento de distração do outro lado. O suficiente para alguém se deslocar até o píer. Sun passou por Bosch e espiou pelo canto. Olhou para o fim do píer e então se escondeu outra vez.

— Sim, um barco pode funcionar. Quer que eu pegue o barco?

— Isso, estou com a arma e vou para o píer pegar a minha filha. Sun assentiu. Levou a mão ao bolso e tirou as chaves do carro.

— Fica com as chaves. Quando pegar a sua filha, vocês fogem de carro. Não se preocupe comigo. Bosch balançou negativamente a cabeça e tirou o celular.

— A gente vai procurar um lugar perto mas a salvo, daí eu ligo para você. A gente vai te esperar. Sun concordou.

— Boa sorte, Harry. Ele virou para ir.

— E boa sorte para você, disse Bosch.


Depois que Sun se foi, Bosch ficou de costas para a parede frontal do armazém e se preparou para a espera. Não tinha ideia de como Sun iria pilotar um barco, mas confiava que de algum modo ele daria conta disso, criando a distração que permitiria a Bosch fazer o resgate. Também pensou em finalmente fazer a ligação para a polícia de Hong Kong, agora que havia localizado sua filha, mas descartou rapidamente essa ideia também. Esquadrões enxameando pelo cais não seriam nenhuma garantia de segurança para sua filha. Precisaria se ater ao plano. Virou para olhar pelo canto do armazém e checar mais uma vez as atividades no barco da Northstar quando viu um carro se aproximando pelo sul. Notou o estilo familiar da grade da frente de um Mercedes. O carro era branco.


Bosch se esgueirou pela parede para dar menos na vista. As redes que haviam sido penduradas para secar nos cordames de dois barcos entre ele e o carro que se aproximava também lhe serviam de camuflagem. Observou enquanto o carro diminuía e virava no cais 7 e então percorria o píer na direção do barco-guindaste. Era o carro que haviam seguido desde a Costa do Ouro. Conseguiu dar uma olhada no motorista e identificá-lo como o mesmo homem que olhara para ele um pouco antes. Bosch raciocinou rapidamente e concluiu que o homem dirigindo era aquele cujo número de telefone fora registrado por Peng na agenda do celular de sua filha. Ele mandara a mulher e a criança, provavelmente sua mulher e seu filho, para o Geo como um disfarce para ajudá-lo a identificar a pessoa que andara lhe enviando mensagens. Alertado pela última mensagem enviada por Sun, ele os deixara em casa ou em algum outro lugar seguro e depois rumara para o cais 7, onde a filha de Bosch estava sendo mantida.


Era um bocado de coisa para juntar, considerando os poucos fatos conhecidos de que dispunha, mas Bosch acreditava estar no caminho certo e que algo estava prestes a acontecer que não fazia parte do plano original do sujeito do Mercedes. Ele estava se desviando desse plano. Apressando as coisas, ou mudando a mercadoria de lugar, ou fazendo algo ainda pior, se livrando da mercadoria. O Mercedes parou na frente do barco-guindaste. O motorista desceu e rapidamente atravessou a prancha de embarque até o barco. Gritou alguma coisa para o homem na cabine, mas não interrompeu seus passos conforme rumava rapidamente para a casa do leme. Por um momento, não houve mais nenhum movimento. Então Bosch viu o homem sair da cabine do guindaste e começar a descer da plataforma. Ao chegar ao convés, ele seguiu o homem do Mercedes para a casa do leme. Bosch sabia que haviam cometido um erro estratégico que lhe dava uma vantagem momentânea. Essa era sua chance de atravessar o píer sem ser visto. Pegou o celular e ligou para Sun. O celular tocou e entrou na caixa de mensagens.


— Sun, cadê você? O cara do Mercedes está aqui e deixaram o barco sem ninguém vigiando. Esquece o plano para distrair a atenção, volta agora e fica a postos no carro. Eu vou entrar.


Bosch guardou o telefone e se levantou. Verificou o barco-guindaste uma última vez e então pulou de seu esconderijo. Atravessou o cais na direção do píer e começou a ir para a ponta do píer. Segurava a arma com as duas mãos, apontando para o alto, pronto para agir.


*   *   *


Trinta e Seis

PILHAS de engradados vazios sobre o píer proporcionaram a Bosch uma cobertura parcial, mas os últimos 20 metros até a prancha de embarque do barco-guindaste eram totalmente abertos e ele ficaria exposto. Apertou o passo e venceu rapidamente a distância, abaixando no último momento atrás do Mercedes, estacionado junto à prancha. Bosch notou o som e o cheiro inconfundíveis do motor a diesel. Espiou por cima do porta-malas e não viu qualquer reação aos seus movimentos vindo do barco. Pulou de seu esconderijo, se moveu rápida e silenciosamente pela prancha de embarque e passou com cuidado entre as tampas de escotilha de 2 metros de largura no convés. Finalmente, retardou o passo quando chegou à casa do leme. Espremeu-se contra a parede perto da porta.


Harry respirou devagar e ficou atento. Não escutou nada além do ruído dos motores, a não ser o vento sibilando entre os cordames dos barcos no píer. Virou para olhar por uma pequena janela quadrada na porta. Não viu ninguém ali dentro. Levou a mão à maçaneta, abriu a porta silenciosamente e entrou. Ali era o centro de operação do barco. Além da roda do leme, Bosch viu mostradores luminosos, um par de telas de radar, o manete duplo de velocidade e uma grande bússola na suspensão cardan. Contra a parede do fundo havia uma mapoteca perto de uma série de beliches embutidos com cortinas que podiam ser puxadas para dar privacidade. No lado esquerdo do chão, à frente, havia uma escotilha aberta com uma escada que descia pelo interior do barco. Bosch se aproximou e ajoelhou junto à abertura. Escutou vozes vindo de baixo, mas a língua que falavam era chinês. Tentou identificar cada uma para contar quantos homens estavam ali, mas o eco reverberando pelo casco tornou isso impossível. Sabia que eram no mínimo três homens lá embaixo. Não escutou a voz de sua filha, mas sabia que ela estava ali em algum lugar, também.


Bosch se aproximou do centro de controle do barco. Havia inúmeros mostradores e interruptores diferentes, mas todos escritos em chinês. Finalmente, bateu os olhos em um par de interruptores com luzes de botão vermelho acima deles. Desligou um e imediatamente escutou o zumbido dos motores diminuindo pela metade. Havia desligado um motor. Aguardou cinco segundos e acionou o outro interruptor, desligando o segundo motor. Então foi para o canto e subiu em um dos beliches da parte de baixo. Puxou a cortina até a metade, se agachou e esperou. Sabia que estaria em um ponto cego para qualquer um que subisse pela escada vindo do casco. Devolveu a arma à cintura e tirou a faca do bolso do paletó. Abriu a lâmina em silêncio.


Logo escutou passos apressados embaixo. Com isso percebeu que o grupo de homens ali estava na seção dianteira do casco. Calculou pelas passadas que apenas um se aproximava. Isso facilitaria as coisas.


Um homem começou a subir pela escotilha, de costas para os beliches e com os olhos voltados para o centro de controle. Sem olhar em volta, foi rapidamente até os controles e procurou um motivo para a parada dos dois motores. Não encontrou nada errado e começou o procedimento para religar. Bosch se esgueirou silenciosamente do beliche e foi em sua direção. No momento em que o segundo motor voltava a funcionar, encostou a ponta da faca na espinha do homem.


Agarrando-o pela parte de trás do colarinho, Bosch fez com que recuasse do centro de controle e sussurrou em seu ouvido.


— Onde está a garota? O homem disse alguma coisa em chinês. — Me fala onde está a garota. O homem negou com a cabeça. — Quantos têm lá embaixo?


O homem não disse nada e Bosch o empurrou violentamente pela porta para o convés. Foi com ele até a amurada e o fez se curvar sobre ela. A água ficava 4 metros abaixo.


— Sabe nadar, seu filho da puta? Onde está a garota?

— Não... Inglês, o outro conseguiu dizer. — Não inglês. Segurando o homem sobre a amurada, Bosch olhou em volta à procura de Sun, seu tradutor, mas não o viu. Onde diabos ele estava?


A distração momentânea permitiu que o homem se mexesse. Ele desferiu uma cotovelada nas costelas de Bosch. Foi um impacto direto e Bosch foi arremessado contra a parede da casa do leme. O homem então girou e ergueu as mãos para atacar. Bosch se preparou para se proteger, mas foi o pé do homem que veio primeiro, chutando o pulso de Bosch e jogando a faca no ar. O homem não se deu o trabalho de acompanhar a trajetória da faca. Rapidamente investiu contra Bosch com os dois punhos, golpeando-o com socos curtos e poderosos no meio do corpo. Bosch sentiu o ar explodir de seus pulmões no exato momento em que outro chute subia e o acertava sob o queixo.


Bosch caiu. Tentou se recuperar do impacto, mas sua vista começou a se estreitar em visão de túnel. Seu atacante calmamente recuou e Bosch escutou o raspar da lâmina no convés quando ele recuperou a faca. Lutando para se manter consciente, Bosch levou a mão às costas para pegar a arma. Quando o atacante se aproximou, ele falou num inglês claro:


— Sabe nadar, filho da puta?


Bosch sacou a arma da cintura e disparou duas vezes, o primeiro tiro apenas resvalando no ombro do homem, quando ele ainda fixava a mira, e o segundo atingindo o centro do lado esquerdo de seu peito. O homem caiu com uma expressão de surpresa no rosto. Harry se apoiou vagarosamente nas mãos e nos joelhos. Viu o fio de sangue e saliva escorrendo de sua boca para o convés. Apoiando-se na parede da casa do leme, começou a ficar de pé. Sabia que precisaria agir rápido. Os tiros teriam sido ouvidos pelos homens no barco. No momento em que se levantou, um ruído de tiros estourou vindo da proa. Balas sibilaram acima de sua cabeça e ricochetearam na parede de aço da casa do leme. Bosch se abaixou no canto, atrás da casa do leme. Ficou de pé e obteve uma linha de visão através das janelas da estrutura. Viu um homem na proa avançando em direção à popa com uma pistola em cada mão. Atrás dele ficava a escotilha aberta pela qual subira do compartimento de carga da frente.


Bosch sabia que lhe restavam seis tiros e precisaria presumir que o homem se aproximando estava com os pentes cheios. Em termos de munição, ele levava desvantagem. Precisava partir para a ofensiva e eliminar o atirador de um modo rápido e eficiente. Olhou em torno tentando ter alguma ideia e viu uma fileira de para-choques de atracar guardados junto à amurada do fundo. Enfiou a arma na cintura e então tirou um dos para-choques de borracha de seu receptáculo. Esgueirou-se de volta à janela traseira da casa do leme e olhou outra vez através da estrutura. O atirador se postara a bombordo na casa do leme e se preparava para seguir na direção da popa. Bosch recuou um passo, ergueu o para-choque de um metro de comprimento com as duas mãos e o arremessou por cima do teto da casa do leme. Enquanto o objeto ainda estava no ar, Bosch começou a se deslocar a boreste, puxando a arma conforme se movia. Chegou na frente da casa do leme no momento em que o atirador se protegia do para-choque arremessado. Bosch abriu fogo, acertando o homem repetidas vezes, que desabou no convés sem disparar um único tiro.


Bosch se aproximou e verificou se ele estava mesmo morto. Então jogou sua .45 por cima da amurada e pegou as armas do morto, mais duas Black Star semiautomáticas. Voltou para a casa do leme. O lugar continuava vazio. Bosch sabia que havia pelo menos mais um no porão com sua filha. Tirou os pentes das duas pistolas e contou 11 tiros no total. Enfiou as armas em sua cintura e desceu a escada ao estilo dos bombeiros, travando os pés em torno das barras verticais e deslizando até o casco. Ao tocar o fundo, se jogou no chão e rolou, sacando as armas e esperando algum ataque, mas nenhum tiro veio em sua direção. Os olhos de Bosch se ajustaram à meia-luz e ele viu que estava em uma cabine vazia com beliches, que dava para um corredor central que se estendia longitudinalmente pelo casco. A única luz vinha da escotilha acima, no extremo mais distante da proa. Entre Harry e esse ponto havia seis compartimentos, três de cada lado, pela extensão do corredor. A última escotilha à esquerda estava totalmente aberta. Bosch se levantou e enfiou uma das armas de novo no cinto, para ficar com a mão livre. Começou a se mover, a outra arma de prontidão.


Cada compartimento tinha um sistema de trava quádrupla para armazenar e selar a pesca. Setas pintadas no metal enferrujado indicaram a Bosch em que direção virar cada alavanca para destrancar e abrir a escotilha. Ele seguiu pelo corredor, verificando os compartimentos um a um, e encontrou todos vazios, mas obviamente não usados para guardar peixe. Com paredes de aço e sem janelas, todos estavam cobertos por uma camada de restos de cereais e outras caixas de comida, além de galões de água vazios. Engradados de madeira transbordando com mais lixo. Redes de pesca, adaptadas para funcionar como redes de dormir, haviam sido presas em ganchos aparafusados às paredes. Todos os compartimentos exalavam um cheiro pútrido que não tinha nada a ver com a carga que o barco um dia transportara. Sua mercadoria era humana.


O que deixou Bosch mais perturbado foram as caixas de cereal. Eram todas da mesma marca, e na frente da caixa havia o desenho de um panda sorridente diante de uma tigela cheia de flocos de arroz cintilando com açúcar, como um tesouro. Era cereal para crianças.


O último lugar a ser verificado no corredor era o compartimento aberto. Bosch se agachou e entrou ali com um movimento fluido. Estava vazio como os demais. Mas esse era diferente. Não havia lixo acumulado ali. Uma lâmpada acesa à bateria pendia de um fio preso a um gancho no teto. Havia um engradado virado para baixo, cheio de caixas fechadas de cereal, pacotes de macarrão e galões cheios de água. Bosch procurou algum indício de que sua filha houvesse sido mantida ali dentro, mas não viu sinal dela. Bosch ouviu as dobradiças da escotilha atrás de si guincharem ruidosamente. Virou no momento em que o compartimento era fechado. Viu o pino no canto superior direito se movendo para a posição de travamento e na mesma hora percebeu que as alavancas internas haviam sido removidas. Ia ficar trancado ali. Sacou a segunda arma e mirou ambas na direção da escotilha, esperando o movimento do fecho seguinte.


Era o inferior direito. No momento em que o pino começou a se mexer, Bosch mirou e disparou as duas armas repetidamente contra a escotilha, e as balas perfuraram o metal enfraquecido por anos de ferrugem. Ele escutou alguém gritar como que tomado pela surpresa ou pela dor. Então ouviu um baque surdo no corredor quando o corpo caiu no chão. Bosch foi até a escotilha e tentou mover o ferrolho da trava superior direita com a mão. Era pequeno demais para conseguir agarrar com os dedos. Em desespero, recuou um passo e fez carga contra a escotilha com o ombro, na esperança de quebrar o mecanismo. Mas a trava não cedeu e ele percebeu pelo impacto em seu ombro que a escotilha não abriria. Estava trancado. Voltou a se aproximar da escotilha e encostou a cabeça para escutar. Só havia o som dos motores funcionando, agora. Golpeou fortemente o metal da porta com a coronha de uma das armas.


— Maddie? Chamou. — Maddie, você está aqui? Não houve resposta. Ele bateu novamente na escotilha, dessa vez ainda mais alto. — Me dê um sinal, querida. Se estiver aqui, faça algum barulho!


Outra vez nenhuma resposta. Bosch tirou seu celular e o abriu para ligar para Sun. Mas percebeu que estava sem sinal. Tentou ligar de qualquer maneira mas não houve resposta. Estava em uma sala revestida por metal e seu celular era inútil. Bosch virou e bateu mais uma vez na porta, gritando o nome de sua filha. Não houve resposta. Harry encostou a testa suada contra a escotilha enferrujada, derrotado. Estava trancado em uma caixa de metal, aprisionado com o pensamento de que sua filha nem estava naquele barco. Ele falhara e havia recebido o castigo que merecia.


Uma dor física atingiu seu peito, competindo com sua dor espiritual. Aguda, profunda, implacável. Começou a respirar ruidosamente e virou de costas contra a escotilha. Abriu um botão do colarinho e deslizou recostado contra o metal enferrujado até sentar no chão com os joelhos para cima. Percebeu que estava em um lugar tão claustrofóbico quanto os túneis que um dia percorrera. A bateria da lâmpada no alto começava a acabar e logo ficaria na escuridão. A derrota e o desespero tomaram conta dele. Havia fracassado com sua filha e fracassado consigo mesmo.


*   *   *


Trinta e Sete

DE REPENTE, Bosch deixou de contemplar seu fracasso e ergueu a cabeça. Havia escutado alguma coisa. Acima do ronco surdo dos motores, escutara uma batida. Não vinda de cima. Dali de baixo, no casco. Ficou de pé rapidamente e se virou outra vez para a escotilha. Escutou outro som de algo batendo e percebeu que alguém estava checando os compartimentos do mesmo jeito que ele fizera. Martelou a escotilha com a coronha das duas armas. Gritou acima do clangor do metal contra metal.


— Sun Yee? Ei! Aqui embaixo! Alguém aí! Aqui embaixo!


Não houve resposta, mas então o pino do fecho superior direito se moveu. A porta estava sendo destrancada. Bosch recuou, limpou o rosto com as mangas do paletó e esperou. O fecho inferior esquerdo foi movido em seguida e então a porta do compartimento começou a abrir lentamente. Bosch ergueu as armas, sem saber ao certo quantas balas lhe restavam. Na luz fraca do corredor viu o rosto de Sun. Bosch se adiantou e escancarou a escotilha.


— Onde você estava, cacete?

— Eu estava procurando um barco e...

— Eu liguei para você. Falei para você voltar.


Assim que pisou no corredor, Bosch viu o homem do Mercedes caído no chão a uma pequena distância da escotilha. Foi rapidamente até ele, na esperança de que ainda estivesse com vida. Harry o virou, rolando-o numa poça de seu próprio sangue. O homem estava morto.


— Harry, onde está a Madeline? Perguntou Sun.

— Não sei. Estão todos mortos e eu não sei! A menos...


Um derradeiro plano começou a se formar na cabeça de Bosch. Uma última chance. O Mercedes branco. Novo e moderno. O carro devia ter todos os opcionais, incluindo um sistema de navegação, e o primeiro endereço armazenado em seu GPS seria o do homem do Mercedes. Iriam para lá. Eles iriam para a casa do homem e Bosch faria o que fosse necessário para encontrar sua filha. Se tivesse de encostar uma arma na cabeça do menino entediado que vira no Geo, ele faria isso. E a mulher falaria. Ela entregaria a filha de Bosch.


Harry examinou o corpo diante dele. Presumiu que olhava para Dennis Ho, o homem por trás da Northstar. Apalpou os bolsos do morto, procurando as chaves do carro, mas não encontrou nada, e tão rápido quanto seu plano se formara, Bosch começou a sentir que se desmanchava. Onde estavam as chaves? Precisava do computador para lhe dizer aonde ir e como encontrar seu caminho.


— Harry, o que foi?

— As chaves! A gente precisa das chaves ou...


De repente parou. Percebeu que deixara escapar um detalhe. Quando correra pelo píer e se escondera atrás do Mercedes branco, havia escutado e cheirado o motor a diesel do carro. O Mercedes fora deixado ligado. Naquele momento, aquilo não significara muita coisa para Bosch, porque ele tinha certeza de que sua filha estava no barco-guindaste. Mas agora sabia que era diferente. Bosch se levantou e começou a se dirigir à escada, sua mente correndo à frente dele. Escutou Sun o seguindo.


Só havia um motivo para Dennis Ho ter deixado o carro ligado. Pretendia voltar ao veículo. Não com a garota, porque ela não estava no barco. Mas para pegar a garota assim que o compartimento de carga no porão estivesse pronto e seguro para transferi-la. Bosch saiu correndo da casa do leme e atravessou a prancha de embarque até o píer. Correu para a porta do motorista do Mercedes branco e abriu. Olhou o banco de trás e viu que estava vazio. Depois examinou o painel, procurando um botão para abrir o porta-malas. Sem encontrar nenhum, desligou o carro e pegou as chaves. Indo para a traseira, apertou o botão do porta-malas na chave da ignição. A tampa do porta-malas se ergueu automaticamente. Bosch se curvou e ali dentro do compartimento, deitada sobre um cobertor, estava sua filha. Havia sido vendada e amordaçada. Seus braços haviam sido presos junto ao corpo com diversas voltas de fita adesiva. Seus tornozelos também estavam atados desse modo. Bosch soltou um grito ao vê-la.


— Maddie! Quase se jogou dentro do porta-malas com ela enquanto puxava a venda para cima e começava a tirar a mordaça. — Sou eu, querida! É o papai! Ela abriu os olhos e começou a piscar. — Você está segura agora, Maddie! Está segura!


Quando a mordaça soltou, a menina deixou escapar um gemido que trespassou o coração de seu pai e ficaria com ele para sempre. Era ao mesmo tempo o medo sendo exorcizado, um grito por socorro e o som de alívio e até alegria.


— Pai! Ela começou a chorar enquanto Bosch a pegava no colo para tirá-la do porta-malas. Sun de repente estava lá também, ajudando.

— Vai ficar tudo bem agora, disse Bosch. — Vai ficar tudo bem.


Puseram a menina de pé e então Bosch usou os dentes de uma das chaves para começar a serrar a fita. Notou que Madeline continuava usando o uniforme da escola. No momento em que seus braços e suas mãos ficaram livres, agarrou Bosch no pescoço e o apertou com todas as forças.


— Eu sabia que você vinha, disse ela entre um soluço e outro. Para Bosch talvez ele nunca tivesse escutado palavras mais cheias de sentido do que essas. Ele a segurou com toda força também. Virou o rosto para sussurrar em seu ouvido.

— Maddie?

— O quê, pai?

— Você está machucada, Maddie? Fisicamente machucada? Se estiver, a gente precisa levá-la pro...

— Não, não estou machucada. Ele se separou dela e segurou seus ombros para examinar seus olhos.

— Tem certeza? Você pode me contar.

— Tenho certeza, pai. Estou bem.

— Ok. Então a gente precisa ir. Ele virou para Sun.

— Pode levar a gente pro aeroporto?

— Sem problema.

— Então vamos.


Bosch passou o braço em torno da filha e começaram a seguir Sun pelo píer. Ela ficou agarrada a ele o tempo todo e foi apenas quando entraram no carro que ela pareceu se dar conta do significado da presença de Sun e fez a pergunta que Harry tanto temia.


— Pai?

— O que foi, Maddie?

— Onde está a mamãe?


*   *   *


Trinta e Oito

BOSCH não respondeu diretamente sua pergunta. Simplesmente disse para sua filha que a mãe dela não podia estar com eles naquele momento, mas que havia feito as malas para ela e que precisavam chegar ao aeroporto para deixar Hong Kong. Sun permaneceu calado e acelerou o passo, andando na frente deles e se afastando da conversa. A explicação aparentemente concedeu a Harry algum tempo para considerar como e quando daria a resposta que alteraria o resto da vida de sua filha. Quando chegaram ao Mercedes preto, ele a pôs no banco de trás, antes de ir até o porta-malas para pegar a mochila. Não queria que ela visse a mala que Eleanor preparara para si mesma. Vasculhou os bolsos da bagagem de Eleanor e encontrou o passaporte de sua filha. Enfiou-o no bolso. Sentou no banco do passageiro e passou a mochila para ela. Disse-lhe para trocar o uniforme da escola. Então olhou o relógio e acenou com a cabeça para Sun.


— Vamos embora. Temos que pegar o avião. Sun começou a andar, abandonando a área das docas a uma boa velocidade, mas não de modo a chamar a atenção. — Tem alguma balsa ou trem onde você pode deixar a gente para chegar lá direto? Perguntou Bosch.

— Não, eles fecharam a rota da balsa e vocês teriam que fazer baldeação no trem. Melhor eu levar vocês. Eu prefiro.

— Certo, Sun Yee. Andaram por alguns minutos em silêncio. Bosch queria virar e conversar com sua filha, pôr os olhos nela para ter certeza de que estava bem.

— Maddie, você já se trocou? Ela não respondeu.

— Maddie?


Bosch virou e olhou. Ela havia trocado de roupa. Estava recostada contra a porta atrás de Sun, olhando pela janela enquanto segurava o travesseiro junto ao peito. Havia lágrimas em suas bochechas. Parecia não ter notado o buraco de bala no travesseiro.


— Maddie, tudo bem com você? Sem responder ou desviar os olhos da janela, ela disse:

— Ela está morta, não tá?

— O quê? Bosch sabia exatamente de quem e de quê ela estava falando, mas tentava ganhar tempo, postergando o máximo possível o inevitável.

— Não sou burra. Você está aqui. O Sun Yee está aqui. Ela devia estar aqui. Era para ela estar aqui, mas aconteceu alguma coisa. Bosch sentiu um soco invisível acertando-o no meio do peito. Madeline continuava abraçando o travesseiro e olhando através da janela com os olhos cheios de lágrima.

— Maddie, sinto muito. Eu queria contar, mas não era o momento certo.

— Quando é o momento certo? Bosch balançou a cabeça.

— Tem razão. Nunca. Ele esticou o braço para trás e pousou a mão em seu joelho, mas ela o repeliu na mesma hora. Era o primeiro indício da culpa que ele carregaria para sempre. — Sinto muito. Não sei o que dizer. Quando desci do avião hoje de manhã, sua mãe estava no aeroporto, me esperando. Com Sun Yee. Ela só queria uma coisa, Maddie. Salvar você. Ela não se importava com mais nada, nem com ela mesma.

— O que aconteceu com ela? Bosch hesitou, mas não havia outra resposta possível a não ser a verdade.

— Ela levou um tiro, querida. Alguém estava atirando em mim e ela foi atingida. Acho que nem sentiu. Madeline pôs as mãos sobre os olhos.

— É minha culpa. Bosch negou com a cabeça, mesmo que ela não estivesse olhando para ele.

— Maddie, não. Escute. Nunca diga uma coisa dessas. Nem mesmo pense isso. Não é sua culpa. É minha culpa. Tudo aqui é minha culpa. Ela não respondeu. Apertou ainda mais o travesseiro e continuou a olhar para a paisagem, que passava num borrão.


Uma hora mais tarde o carro parava na calçada da área de embarque do aeroporto. Bosch ajudou sua filha a descer do Mercedes e então virou para Sun. Pouco havia sido dito entre eles no carro. Mas agora era hora de se despedir, e Bosch sabia que sua filha nunca teria sido resgatada sem a ajuda de Sun.


— Sun Yee, obrigado por salvar a minha filha.

— Você salvou ela. Nada podia parar você, Harry Bosch.

— O que você vai fazer? A polícia vai lhe procurar por causa da Eleanor, sem falar do resto.

— Eu cuido dessas coisas e não faço menção de você. Isso é minha promessa. Aconteça o que acontecer, vou deixar você e a sua filha fora disso. Bosch assentiu.

— Boa sorte, disse.

— Boa sorte para você também.


Bosch apertou sua mão e então recuou. Após outra pausa desconfortável, Madeline se aproximou e abraçou Sun. Bosch viu a expressão no rosto dele, mesmo atrás da dissimulação dos óculos escuros. Independente de suas diferenças, Bosch sabia que Sun encontrara algum tipo de propósito no resgate de Madeline. Talvez com isso pudesse encontrar refúgio em si mesmo.


— Desculpe, disse Madeline. Sun recuou e desfez o abraço.

— É melhor vocês irem, disse. — Tenham uma vida feliz. Deixaram-no ali e rumaram para o terminal principal, passando pelas portas de vidro.


Bosch e sua filha encontraram o guichê da primeira classe na Cathay Pacific e Harry comprou duas passagens no voo das 23h40 para Los Angeles. Aproveitou o reembolso da passagem que já comprara para a manhã seguinte, mas ainda teve de usar dois cartões de crédito para cobrir o custo total. Mas não se importou. Sabia que os passageiros de primeira classe desfrutavam de uma condição especial, que lhes garantia uma rápida passagem por controles de segurança e os levava a serem os primeiros a entrar no avião. Os funcionários dos aeroportos e da segurança tendem a se preocupar menos com viajantes de primeira classe, mesmo se forem um homem desgrenhado com sangue no paletó e uma garota de 13 anos que aparentemente não consegue parar de chorar. Bosch compreendia também que sua filha ficara traumatizada com as últimas sessenta horas de sua vida, e embora ainda não fizesse ideia de como cuidar dela quanto a esse aspecto, instintivamente sentia que qualquer conforto adicional não faria mal algum.


Notando a aparência terrível de Bosch, a mulher atrás do balcão mencionou que a sala de espera da primeira classe oferecia instalações de banho para os clientes. Bosch agradeceu pela informação, pegou as passagens e então seguiu uma funcionária da primeira classe até a segurança. Como era de se esperar, passaram rapidamente pelo controle graças ao novo status recém-adquirido. Tinham quase três horas para matar, e, embora as instalações de banho previamente mencionadas fossem uma tentação, Bosch decidiu que comer talvez fosse uma necessidade mais premente. Não conseguia se lembrar de quando e o que comera pela última vez, e presumia que sua filha estivesse igualmente carente de alimento.


— Está com fome, Mads?

— Não muito.

— Eles alimentaram você?

— Não. Mas eu não ia conseguir comer, de qualquer jeito.

— Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? Ela precisou pensar.

— Eu comi um pedaço de pizza no shopping sexta-feira. Antes...

— Certo, a gente precisa comer, então.


Tomaram um elevador para uma área onde havia uma variedade de restaurantes com vista para o centro de duty-free do aeroporto. Bosch escolheu um lugar com mesas bem no meio da área, de onde podia ver muitas direções. Sua filha pediu iscas de frango e Bosch, um filé com fritas.


— Você nunca deve pedir carne em aeroporto, disse Madeline.

— Por quê?

— A qualidade não é boa.


Bosch balançou a cabeça. Era a primeira vez que ela dizia alguma coisa além de uma ou duas palavras seguidas desde que se despediram de Sun. Harry observara sua crescente prostração interior à medida que a liberação de medo que se seguira à sua fuga diminuía e a realidade dos maus momentos por que passara e do que acontecera com sua mãe entrava em sua mente. Bosch temera que pudesse estar entrando em algum tipo de estado de choque. O comentário estranho sobre a qualidade de um filé no aeroporto parecia indicar que sofria uma dissociação.


— Bom, acho que isso é o que vou descobrir. Ela em seguida pulou de conversa.

— Então eu vou morar em Los Angeles com você, agora?

— Acho que sim. Ele examinou seu rosto para ver qual seria sua reação. Sua expressão permaneceu inalterada, um olhar vago sobre bochechas marcadas com lágrimas secas e tristeza. — Eu quero que more, disse Bosch. — E da última vez que você foi lá, você disse que queria ficar.

— Mas não assim.

— Eu sei.

— Será que eu vou poder voltar para pegar as minhas coisas e me despedir dos meus amigos? Bosch pensou por um momento antes de responder.

— Acho que não, disse finalmente. — Pode ser que eu consiga fazer com que mandem as suas coisas. Mas você provavelmente vai ter que falar por e-mail com seus amigos, eu acho. Ou ligar para eles.

— Pelo menos eu vou conseguir me despedir. Bosch balançou a cabeça e ficou em silêncio, observando a óbvia referência à mãe que ela perdera. Logo ela falou outra vez, sua mente como um balão levado pelo vento, tocando aqui e ali sob as correntes imprevisíveis. — A gente vai ser procurado pela polícia daqui? Bosch olhou em volta para ver se alguém sentado nas proximidades escutara a pergunta; então se curvou para responder.

— Não sei, disse calmamente. — Pode ser. Pode ser que eu seja. Mas não quero descobrir isso estando aqui. Vai ser melhor lidar com tudo isso lá em Los Angeles.


Após uma pausa ela fez outra pergunta, e essa o pegou com a guarda totalmente baixa.


— Pai, você matou aqueles homens que me levaram? Escutei um monte de tiros. Bosch pensou em como responderia isso, enquanto policial, enquanto pai, mas não levou muito tempo.

— Vamos apenas dizer que eles receberam o que mereciam. E seja lá o que tiver acontecido, foi provocado pelas próprias ações deles. Ok?

— Ok.


Quando seus pratos chegaram, pararam de conversar e comeram vorazmente. Bosch havia escolhido o restaurante, a mesa e o lugar de modo a manter uma ampla visão da área de lojas e do portão da segurança, mais adiante. Enquanto comia, mantinha um olhar vigilante para qualquer agitação incomum envolvendo a equipe de segurança do aeroporto. Qualquer movimentação maior de pessoal ou atividade de busca o deixariam preocupado. Ele não fazia ideia se sequer estava no radar da polícia ainda, mas deixara uma trilha de sangue por Hong Kong e precisaria permanecer alerta para que isso não levasse até ele.


— Você vai querer todas as suas batatas? Perguntou Maddie. Bosch virou o prato de modo que ela pudesse pegar as batatas fritas.

— Pode comer.


Quando ela esticou o braço sobre a mesa, sua manga subiu e Bosch viu o curativo na dobra de seu cotovelo. Ele pensou no chumaço de papel manchado de sangue que Eleanor encontrara no cesto de lixo do quarto no Chungking Mansions. Bosch apontou para o braço.


— Maddie, como isso aconteceu? Eles tiraram o seu sangue? Ela pôs a outra mão sobre o ferimento, como se isso fosse impedir qualquer pensamento a respeito.

— A gente precisa conversar sobre isso agora?

— Você pode me dizer só uma coisa?

— É, o Quick tirou o meu sangue.

— Eu ia perguntar outra coisa. Onde você estava antes de a colocarem no porta-malas do carro e levarem para o barco?

— Não sei, um tipo de hospital ou alguma coisa assim. Tipo um consultório. Fiquei trancada no lugar o tempo todo. Por favor, pai, não quero falar sobre isso. Agora não.

— Tudo bem, meu amor, a gente conversa sobre isso quando você quiser.


Após comerem, foram para a área das lojas. Bosch comprou um conjunto completo de roupas numa loja masculina e um par de tênis e munhequeiras atoalhadas numa loja de esportes. Maddie recusou o oferecimento de roupas novas e disse que estava satisfeita com o que havia em sua mochila. A parada seguinte foi uma loja de presentes e Maddie escolheu um panda de pelúcia que disse querer usar como travesseiro e um livro chamado O LADRÃO DE RAIOS. Então se dirigiram ao saguão da primeira classe e se registraram para usar as instalações de banho. Apesar do longo dia acumulando sangue, suor e sujeira, Bosch tomou uma ducha rápida, porque não queria ficar separado de sua filha por muito tempo. Antes de se vestir, verificou o ferimento em seu braço. Estava fechando e começando a formar casca. Usou as munhequeiras que acabara de comprar para improvisar uma bandagem dupla sobre a ferida.

Assim que se vestiu, tirou a tampa da lata de lixo perto da pia do vestiário. Enrolou suas roupas velhas e sapatos e os enfiou sob as toalhas de papel e outras coisas dentro da lata. Não queria que ninguém visse suas coisas e as pegasse, sobretudo os sapatos com que pisara nos azulejos cheios de sangue, em Tuen Mun. Sentindo-se um pouco revigorado e pronto para o longo voo que os aguardava, saiu e olhou em torno procurando sua filha. Não a viu em parte alguma do saguão e voltou para esperá-la perto da entrada do vestiário feminino. Depois de 15 minutos e sem sinal de Madeline, começou a ficar preocupado. Esperou outros cinco e então foi até o balcão da recepção e pediu à atendente que mandasse alguém ao vestiário para ver sua filha. A mulher disse que iria ela mesma. Bosch a seguiu e aguardou enquanto ela entrava. Escutou o som do chuveiro ligado quando a porta abriu. Depois escutou vozes e logo a mulher da recepção reapareceu.


— Ela ainda está tomando banho e disse que está tudo bem. Disse que ia demorar mais um pouco.

— Ok, obrigado.


A mulher voltou para seu posto e Bosch olhou o relógio. Ainda havia no mínimo meia hora para o embarque. Tinham tempo. Ele voltou ao saguão e sentou na cadeira mais próxima do corredor que dava nos vestiários. Permaneceu de olho o tempo todo. Não conseguia imaginar onde estariam os pensamentos de Madeline. Sabia que ela precisava de ajuda e que ele era a pessoa menos preparada para fazê-lo. A ideia que o dominava era simplesmente levá-la para Los Angeles e depois ver o que faria. Uma coisa que já lhe ocorrera era procurar uma terapia para Maddie assim que chegassem. No momento em que o embarque para o voo deles foi anunciado, Madeline surgiu no corredor, o cabelo escuro penteado para trás e molhado. Estava usando as mesmas roupas que havia trocado no carro, mas vestira um moletom com capuz. Sentia um pouco de frio.


— Você está bem? Perguntou Bosch. Ela não respondeu. Apenas parou diante de Bosch com a cabeça baixa. — Sei, uma pergunta idiota, disse Harry. — Mas está preparada para viajar? Acabaram de anunciar nosso voo. A gente precisa ir.

— Estou pronta. Só queria demorar no banho quente.

— Entendi.


Saíram do saguão e se dirigiram à sala de embarque e, quando se aproximavam, Bosch não notou mais do que o usual número de seguranças. Conferiram suas passagens, verificaram seus passaportes e receberam permissão para subir a bordo.


O avião era um enorme double-decker com a cabine do piloto no andar superior e a primeira classe imediatamente abaixo, no nariz da aeronave. Uma comissária de bordo os informou que eram os únicos passageiros da primeira classe e que podiam escolher onde queriam sentar. Pegaram os dois lugares na fileira da frente e sentiram como se tivessem o avião só para si. Bosch planejava ficar sem tirar os olhos de sua filha enquanto não estivessem em Los Angeles. Quando o embarque do avião estava quase terminando, o piloto anunciou no alto-falante que iriam passar 13 horas no ar. Isso era menos do que a viagem de ida, porque os ventos estariam a seu favor. Contudo, viajariam contra o avanço do relógio. Iriam aterrissar em Los Angeles às 9h30 do domingo à noite, duas horas antes de terem partido de Hong Kong.


Bosch fez as contas e viu que seria um dia de 39 horas antes de chegar ao fim. O dia mais longo de sua vida. Finalmente, o enorme avião recebeu autorização de decolagem e saiu trovejando pela pista, ganhou velocidade e ascendeu ruidosamente no céu escuro. Bosch respirou com um pouco mais de facilidade ao olhar pela janela e ver as luzes de Hong Kong desaparecendo sob as nuvens. Esperava nunca mais voltar. Sua filha esticou o braço no espaço entre os assentos e segurou sua mão. Ele virou para ela e a fitou nos olhos. Ela havia começado a chorar outra vez. Bosch apertou sua mão e balançou a cabeça compreensivamente.


— Vai ficar tudo bem, Maddie. Ela fez que sim e continuou segurando sua mão.


Depois que o avião estabilizou, a comissária de bordo se aproximou e lhes ofereceu comida e bebida, mas tanto Bosch quanto sua filha recusaram. Madeline assistiu a um filme sobre vampiros adolescentes e depois deitou em seu assento, uma das vantagens da primeira classe, para dormir. Logo pegou no sono pesadamente e Bosch pressentiu que algum tipo de processo curativo interno começara a operar. Os exércitos do sono arremetendo contra seu cérebro e atacando as más lembranças. Ele se curvou e a beijou levemente na face. Conforme regrediam os segundos, minutos e horas, observou-a dormir e desejou o impossível, que o tempo regredisse o suficiente para que começasse o dia todo outra vez. Essa era a fantasia. A realidade era que sua vida se alterara de forma quase tão significativa quanto a dela. Sua filha estava com ele agora. E ele sabia que, independentemente do que houvesse feito ou provocado até esse ponto de sua vida, ela seria sua passagem para a redenção. Se pudesse protegê-la e servi-la, tinha a chance de compensar tudo. Cada coisa.


Planejou observá-la em seu sono durante a noite. Mas a exaustão enfim o derrotou e ele também fechou os olhos. Em pouco tempo sonhava com um lugar na beira de um rio. Havia uma mesa ao ar livre com uma toalha branca agitada pelo vento. Sentou na mesa diante de Eleanor e Madeline e elas sorriram para ele. Era o sonho com um lugar que nunca existira e nunca existiria.


*   *   *


Parte 3

Proteger e Servir


* * *


Trinta e Nove

O ÚLTIMO OBSTÁCULO era a alfândega em Los Angeles. O agente na cabine de entrada pegou seus passaportes e estava pronto para carimbar como de costume quando alguma coisa no computador chamou sua atenção. Bosch prendeu a respiração.


— Sr. Bosch. O senhor esteve em Hong Kong por menos de um dia?

— Isso mesmo. Não precisei nem levar bagagem. Só fui buscar minha filha. O agente balançou a cabeça como se compreendesse e já tivesse visto algo assim antes. Carimbou os passaportes, olhou para Madeline e disse:

— Bem-vinda a Los Angeles, menina.

— Obrigada, ela disse.


Era quase meia-noite quando chegaram à casa na Woodrow Wilson Drive. Bosch carregou a mochila para o quarto de hóspedes e sua filha o seguiu. Estava familiarizada com o quarto, após tê-lo usado em inúmeras visitas.


— Agora que você vai morar aqui, a gente pode arrumar este quarto do jeito que achar melhor, disse Bosch. — Sei que você tem um monte de pôsteres e coisas lá em Hong Kong. Pode ter o que quiser aqui. Havia duas caixas de papelão empilhadas num canto, contendo pastas de antigos casos que Bosch havia copiado. — Vou tirar isso daqui, ele disse. Levou uma de cada vez para o seu quarto. Continuou conversando com ela conforme ia e vinha pelo corredor. — Sei que você não tem um banheiro no quarto, mas o banheiro de hóspedes da entrada é todo seu. Não costumo ter visita, de qualquer jeito.


Depois de levar as caixas, Bosch sentou na cama e olhou para sua filha. Ela continuava parada no meio do quarto. A expressão em seu rosto o feriu profundamente. Ele pôde ver que a realidade da situação começava a atingi-la. Tanto fazia que houvesse repetidamente expressado um desejo de morar em Los Angeles. Agora estava ali de forma permanente e aceitar o fato era uma tarefa assustadora.


— Maddie, deixa eu falar só uma coisa, ele disse. — Eu me acostumei a ser seu pai quatro semanas por ano. Isso era fácil. Agora vai ser difícil. Sei que vou cometer erros e preciso que você tenha paciência comigo enquanto eu aprendo. Mas prometo fazer o melhor que eu puder.

— Tá.

— Bom, o que quer que eu faça? Está com fome? Cansada? O quê?

— Não, tudo bem. Acho que eu não devia ter dormido tanto no avião.

— Não tem importância. Você precisava descansar naquela hora. E dormir é sempre bom. Cura. Ela balançou a cabeça e lançou um olhar pouco à vontade pelo quarto. Era um quarto de hóspedes básico. Uma cama, cômoda, uma mesa com luminária. — Amanhã a gente compra uma TV para pôr aqui. Uma dessas de tela plana. E também um computador e uma mesinha. A gente vai precisar comprar um monte de coisas.

— Acho que eu vou precisar de um celular. O Quick pegou o meu.

— É, a gente compra um celular novo, também. Estou com seu cartão de memória do velho, assim você não perdeu os seus contatos. Ela olhou para ele e Bosch percebeu que cometera um erro.

— Você está com o cartão? Você tirou do Quick? A irmã dele estava lá? Bosch ergueu as mãos num gesto pedindo calma e negou com a cabeça.

— Não conheci Quick ou a irmã dele. Achei o seu aparelho, mas estava quebrado. Só consegui o cartão de memória.

— Ela tentou me salvar. Ela descobriu que o Quick ia me vender e tentou impedir. Mas ele chutou ela para fora do carro.


Bosch esperava que falasse mais, mas foi só isso. Ele queria fazer um monte de perguntas sobre os irmãos e tudo mais, mas seu papel como pai se sobrepunha ao de policial. Esse não era o momento certo. Ele precisaria fazer com que ela permanecesse calma e situada. Haveria tempo mais tarde para ser o tira, para perguntar sobre Quick e He e contar a ela o que aconteceu com ambos. Ele examinou seu rosto e ela parecia esvaziada de emoção. Continuava parecendo cansada, mesmo após todo aquele tempo dormindo no avião.


— Vai dar tudo certo, Maddie. Eu prometo. Ela balançou a cabeça.

— Hã, você acha que dá para me deixar sozinha um pouco?

— Claro que dá. O quarto é seu. Preciso fazer umas ligações, de qualquer jeito. Ele se levantou e foi para a porta. Hesitou quando a fechava atrás de si e virou para olhar para ela. — Você vai me dizer se precisar de qualquer coisa, não vai?

— Vou, pai. Obrigada. Ele fechou a porta e foi para a sala. Pegou seu celular e ligou para David Chu.

— É o Bosch. Desculpe por ligar tão tarde.

— Sem problema. Como está indo por aí?

— Estou de volta em Los Angeles.

— Você voltou? E a sua filha?

— Ela está a salvo. Como vão as coisas com o Chang? Houve uma hesitação antes que Chu respondesse. Ele não queria ser o mensageiro.

— Bom, ele sai livre de manhã. A gente não tem nada contra ele.

— E a extorsão?

— Fiz uma última tentativa com Li e Lam hoje. Eles não vão prestar queixa formal. Estão com medo demais da tríade. Li disse que alguém já ligou para ameaçar. Bosch pensou por um momento na ameaça que recebera na sexta. Presumiu que fosse o mesmo sujeito que tivesse ligado.

— Então o Chang sai pela porta da frente do DDC de manhã e vai para aeroporto, ele disse. — Entra num avião e a gente nunca mais vê o cara.

— Parece que esse a gente não consegue pegar, Harry. Bosch balançou a cabeça, sua raiva transbordando.

— Esses malditos filhos da puta.


Bosch se deu conta de que sua filha podia ouvi-lo. Abriu uma das portas de deslizar da sala e saiu para o deque, nos fundos. O ruído do trânsito no desfiladeiro abaixo ajudaria a abafar a conversa.


— Eles iam vender a minha filha, disse. — Pelos órgãos dela.

— Meu Deus, disse Chu. — Achei que só estivessem tentando intimidar você.

— É, bom, eles tiraram sangue e o tipo dela deve ter batido com alguém cheio de grana, porque o plano mudou.

— Bom, o teste podia ter sido para ter certeza de que ela estava limpa antes de eles... Parou, percebendo que o cenário alternativo nada precisaria tranquilizador. Mudou o rumo da conversa. — Ela está com você aí, Harry?

— Já falei, está a salvo. Bosch sabia que Chu interpretaria sua resposta indireta como falta de confiança, mas qual a novidade? Não podia evitar, depois do que passara. Tentou mudar de assunto. — Quando foi a última vez que você falou com Ferras ou Gandle?

— Não conversei com seu parceiro desde sexta-feira. Conversei com o tenente há umas horas. Ele queria saber em que pé as coisas estavam. Ele também ficou muito puto com isso.


Era quase meia-noite de um domingo e mesmo assim a via expressa ali embaixo estava entupida, todas as dez pistas. O ar estava limpo e fresco, uma mudança bem-vinda em relação a Hong Kong.


— Quem ficou encarregado de ligar para gabinete da promotoria e avisar para soltar? Perguntou Bosch.

— Eu ia ligar de manhã. A menos que você prefira ligar.

— Não tenho certeza se vou estar aí de manhã. Por que não cuida disso você mesmo, mas espera até as dez para ligar?

— Tudo bem, mas por que dez?

— Isso vai me dar algum tempo para ir até aí e me despedir do Chang.

— Harry, não faça nada de que você possa se arrepender. Bosch refletiu brevemente sobre os últimos três dias.

— Tarde demais para isso.


Bosch encerrou a ligação com Chu e se apoiou no parapeito, observando a noite. Sem dúvida havia algo de reconfortante em estar em casa, mas ele não conseguia deixar de pensar no que havia perdido e ficado para trás. Era como se os espíritos famintos de Hong Kong o houvessem seguido através do Pacífico.


— Pai? Ele virou. Sua filha estava no vão da porta.

— Oi, querida.

— Você está bem?

— Claro, por quê? Ela saiu no deque e ficou ao seu lado na grade.

— Parecia que você estava com raiva quando falou no telefone.

— É sobre o caso. Não está correndo bem.

— Droga. Puxa, eu...

— Você não tem culpa. Mas escute, de manhã eu preciso dar um pulo no centro. Vou ligar para umas pessoas e chamar alguém para ficar com você enquanto eu estiver fora. E quando eu voltar a gente vai fazer compras, como eu falei. Tá bom?

— Você quer dizer, tipo uma babá?

— Não... Quer dizer, é, acho que é.

— Pai, eu não fico com uma babá faz, sei lá, desde os 12 anos.

— Bom, isso faz só um ano.

— Acho que eu fico bem sozinha. A mamãe deixa eu ir sozinha pro shopping depois da escola.


Bosch notou que ela estava usando o tempo presente. Ficou tentado a lhe dizer que o plano de permitir que fosse sozinha ao shopping não funcionou lá muito bem, mas foi suficientemente inteligente para deixar para outra hora. A questão era que precisaria considerar a segurança dela antes de mais nada. Seria possível que as mesmas forças que se apossaram dela na distante Hong Kong poderiam encontrá-la também do outro lado do mundo, em sua própria casa? Não parecia muito provável, mas, mesmo que houvesse a mínima chance, não podia se arriscar a deixá-la sozinha. O problema nisso era que não sabia de fato quem podia chamar. Não conhecia ninguém no bairro. Ele era o policial da vizinhança, que era chamado quando havia um problema. Mas, tirando isso, nunca se socializara com as pessoas em sua rua, nem, falando nisso, com quem quer que fosse, excetuando outros policiais. Não sabia dizer quem seria de confiança ou que diferença havia dentre os perfeitos estranhos que anunciavam na lista telefônica. Bosch ficou perdido e começou a se dar conta de que parecia um peixe fora d’água na criação de sua própria filha.


— Maddie, escuta, esse é um daqueles momentos que eu falei que você ia precisar ter paciência comigo. Não quero deixar você sozinha. Ainda não. Você pode ficar no seu quarto, se quiser; provavelmente, vai continuar com sono, por causa da diferença de fuso horário. Mas quero um adulto na casa com você. Alguém em quem eu possa confiar.

— Tanto faz. O pensamento de que era o policial residente na vizinhança trouxe outra ideia a sua mente.

— Ok, vamos fazer o seguinte: se você não quer uma pessoa cuidando de você, então tenho outra ideia. Tem uma escola lá embaixo. É uma escola pública. Acho que as aulas começaram semana passada porque eu vi um monte de carros quando estava indo trabalhar. Não sei se é para lá que você vai acabar indo, ou se vou tentar lhe colocar numa escola particular, mas eu posso levar você para olhar. Você pode tentar conhecer e ver se gosta. Talvez sentar para assistir uma ou duas aulas e ver o que acha enquanto eu vou até o centro. Que tal? Eu conheço a diretora assistente e confio nela. Ela cuida de você. Sua filha enganchou uma mecha de cabelo atrás da orelha e ficou observando a vista por alguns momentos antes de responder.

— Acho que tudo bem.

— Certo, ótimo, então a gente faz isso. Vou ligar de manhã e arranjar tudo. Problema resolvido, pensou Bosch.

— Pai?

— O que foi, querida?

— Eu escutei o que você disse no telefone. Ele ficou paralisado.

— Desculpe. Vou tentar não usar mais esse tipo de linguagem. E nunca perto de você.

— Não, não quis dizer isso. Quis dizer quando você veio aqui para fora. Sobre o que você disse de vender os meus órgãos. É verdade?

— Não sei, querida. Não sei exatamente qual era o plano deles.

— O Quick tirou o meu sangue. Ele disse que ia mandar para você. Sabe, para você fazer um exame de DNA e saber que eu tinha sido mesmo sequestrada. Bosch balançou a cabeça.

— É, bom, ele estava mentindo para você. O vídeo que ele mandou foi suficiente para me convencer. O sangue não era necessário. Ele mentiu para você, Mad. Ele a traiu e teve o que merecia. Ela virou para ele na mesma hora e Bosch percebeu que cometera outro deslize.

— Como assim? O que aconteceu com ele?


Bosch não queria começar a descer a ladeira escorregadia da mentira com sua filha. Ele também sabia que ela obviamente se importava com a irmã de Quick, quando não com o próprio Quick. Provavelmente ainda não compreendia toda a extensão de sua traição.


— Ele está morto. Sua respiração ficou presa na garganta e ela levou as mãos à boca.

— Você...

— Não, Maddie, não fui eu. Encontrei o rapaz morto na mesma hora que encontrei o seu celular. Acho que você gostava dele de alguma forma, então eu sinto muito. Mas ele traiu você, querida, e vou falar uma coisa, eu teria feito o mesmo com ele se tivesse encontrado ele vivo. Agora vamos entrar. Bosch virou para ir.

— E a He? Bosch parou e olhou por cima do ombro.

— Não sei sobre a He.


Ele se dirigiu à porta e entrou. Pronto, havia mentido para ela pela primeira vez. Era para poupá-la de mais sofrimento, mas isso não importava. Já podia sentir que começava a escorregar pela ladeira.


*   *   *


Quarenta

ÀS ONZE da manhã da segunda-feira, Bosch esperava diante do Downtown Detention Center pela soltura de Bo-Jing Chang. Não tinha certeza sobre o que ia dizer ou fazer com o assassino quando ele passasse pela porta como um homem livre. Mas sabia que não podia deixar passar o momento. Se a prisão de Chang fora o gatilho que resultara em tudo que acontecera em Hong Kong, incluindo a morte de Eleanor Wish, então Bosch não conseguiria se olhar no espelho novamente se não confrontasse o homem quando surgisse a oportunidade. O celular zumbiu em seu bolso e ele ficou tentado a não responder e se arriscar a perder Chang, mas viu na tela que era o tenente Gandle ligando. Atendeu o telefone.


— Fiquei sabendo que você tinha voltado.

— É, eu ia ligar para você.

— Pegou a sua filha?

— Peguei, ela está a salvo.

— Onde? Bosch hesitou, mas não por muito tempo.

— Está comigo.

— E a mãe dela?

— Continua em Hong Kong.

— Como vai ser agora?

— Ela vai morar comigo. Por um tempo, pelo menos.

— O que aconteceu por lá? Alguma coisa com que eu precise me preocupar? Bosch não tinha certeza do que contar a ele. Decidiu deixar para depois.

— Espero que não tenha nenhuma consequência. Mas a gente nunca sabe.

— Eu informo você do que eu ficar sabendo. Você está vindo para cá?

— Hã, hoje não. Preciso de alguns dias para ajeitar a vida da minha filha, achar uma escola, coisas assim. Quero que ela faça uma terapia.

— Isso é hora branca ou adiantamento de férias? Preciso anotar. A compensação por horas extras, pagas em licenças, era chamada de “hora branca” no DPLA, por causa do formulário branco em que os supervisores mantinham um registro.

— Tanto faz. Acho que eu tenho hora branca.

— Então fica sendo isso. Tudo bem com você, Harry?

— Estou bem.

— O Chu já deve ter te contado sobre a soltura de Chang.

— É, ele contou.

— O babaca do advogado já passou aqui hoje de manhã para pegar a mala dele. Lamento, Harry. Não tem nada que a gente possa fazer. Não conseguimos sustentar uma acusação e aqueles merdinhas no Vale não vão colaborar para gente pegar o cara por extorsão.

— Eu sei.

— Seu parceiro ficando em casa o fim de semana todo também não ajudou. Falou que estava doente.

— É, bom...Bosch chegara ao limite da paciência com Ferras, mas aquilo era entre ele e seu parceiro. Não ia discutir o assunto com Gandle ainda.


A porta da sala de soltura abriu e Bosch viu sair um asiático de terno, carregando uma pasta. Não era Chang. O sujeito segurou a porta com o corpo e acenou na direção da rua para um carro que aguardava. Bosch sabia que Chang estava por ali. O homem de terno era um conhecido advogado de defesa chamado Anthony Wing.


— Tenente, preciso desligar. Posso ligar de volta?

— Ligue-me só para avisar quantos dias você decidiu tirar e quando eu posso pôr você de volta no cronograma. Enquanto isso, vou encontrar alguma coisa para o Ferras fazer. Algo interno.

— A gente conversa mais tarde.


Bosch fechou o celular assim que o Cadillac Escalade SUV preto se aproximou e Bo-Jing Chang saiu pela porta da sala de soltura da cadeia. Bosch se interpôs no meio do caminho entre ele e o SUV. Wing então ficou entre Bosch e Chang.


— Com licença, detetive, disse Wing. — Está obstruindo a passagem do meu cliente.

— É isso que eu estou fazendo, “obstruindo”? E que tal ele obstruindo a vida de John Li? Bosch viu Chang sorrir e balançar a cabeça atrás de Wing. Escutou uma porta de carro batendo atrás dele e a atenção de Wing se voltou para algo além do ombro de Harry.

— Não deixa de pegar isso aqui, ele ordenou. Bosch olhou para trás e viu que um homem com uma câmera de vídeo saíra do grande SUV. A lente da câmera estava apontada para Bosch.

— O que é isso?

— Detetive, se o senhor machucar ou prejudicar o Sr. Chang de alguma forma, isso será registrado e oferecido para a mídia. Bosch virou de volta para Wing e Chang. O sorrisinho de Chang se transformou num sorriso aberto de satisfação.

— Acha que acabou, Chang? Não me importa para onde você vai, isso não acabou. Você e os seus amigos fizeram essa história se tornar algo pessoal, seu babaca, e eu não vou esquecer disso.

— Detetive, abra espaço, disse Wing, claramente desempenhando para a câmera. — O Sr. Chang está indo porque é inocente das acusações que vocês tentaram forjar contra ele. Vai voltar a Hong Kong devido ao assédio do DPLA. Por sua causa, está impossibilitado de seguir usufruindo da vida que teve aqui por diversos anos. Bosch saiu do caminho e deixou que fossem para o carro.

— Você só fala merda, Wing. Pega essa sua câmera e enfia no cu. Chang entrou no banco traseiro do Escalade primeiro, depois Wing sinalizou para que o sujeito da câmera sentasse no da frente.

— Temos sua ameaça filmada agora, detetive, disse Wing. — Não se esqueça disso. Wing entrou ao lado de Chang e fechou a porta. Bosch ficou ali de pé vendo o grande SUV ir embora, provavelmente levando Chang diretamente para o aeroporto a fim de completar sua fuga.


Quando Bosch voltou à escola, foi até a sala da diretora assistente para anunciar sua chegada. Sue Bambrough concordara nessa manhã em permitir que Madeline assistisse às aulas do oitavo ano e visse se gostava da escola. Quando ele entrou, Bambrough convidou-o a sentar e depois relatou que sua filha continuava na classe e estava assimilando tudo muito bem. Bosch ficou surpreso. Ela estava em Los Angeles havia pouco mais de 12 horas após perder a mãe e passar um angustiante fim de semana no cativeiro. Bosch temera que a experiência na escola pudesse ser desastrosa.


Bosch já conhecia Sue Bambrough. Alguns anos antes, um vizinho que tinha um filho na escola pediu a ele para falar na classe sobre o trabalho da polícia e a criminalidade. Bambrough era uma administradora inteligente e atuante que entrevistara Bosch exaustivamente antes de permitir que ele se dirigisse a qualquer aluno. Bosch dificilmente fora acareado de forma tão completa por advogados de defesa no tribunal. Ela mostrou uma opinião bastante dura sobre a qualidade do trabalho policial na cidade, mas seus argumentos eram ponderados e articulados. Bosch a respeitava.


— A aula termina em dez minutos, disse Bambrough. — Então você vai poder vê-la. Tem uma coisa que eu queria conversar com o senhor antes disso, detetive Bosch.

— Como eu disse da última vez, pode me chamar de Harry. Pode falar.

— Bom, sua filha tem uma imaginação e tanto. Pudemos ouvi-la durante o intervalo da manhã contando aos outros alunos que havia acabado de chegar de Hong Kong porque sua mãe fora assassinada e ela fora sequestrada. Minha preocupação é de que esteja contando vantagem a fim de...

— É verdade. Tudo isso.

— Como assim?

— Ela foi sequestrada e a mãe foi morta tentando resgatá-la.

— Meu Deus! Quando isso aconteceu? Bosch se arrependeu de não ter contado a Bambrough a história toda após terem conversado naquela manhã. Simplesmente havia dito a ela que sua filha ia viver com ele e queria conhecer a escola.

— No fim de semana, respondeu ele. — Chegamos de Hong Kong ontem à noite. Sue Bambrough parecia ter levado um soco.

— No fim de semana? Está me dizendo a verdade?

— Claro que estou. Ela passou por momentos terríveis. Sei que pode ser muito cedo para ela entrar em uma escola, mas hoje de manhã eu tinha um... Compromisso que não podia evitar. Vou levá-la para casa agora e se ela quiser voltar daqui a alguns dias, eu aviso.

— Bom, e quanto a uma terapia? E exames físicos?

— Estou cuidando disso.

— Não tenha medo de conseguir ajuda para ela. As crianças gostam de falar as coisas. Só que às vezes não com os pais. Descobri que crianças têm uma capacidade inata de saber o que precisam para se curar e sobreviver. Sem a mãe e com a novidade de você como pai em período integral, Madeline pode precisar de uma terceira parte com quem conversar. Bosch balançou a cabeça ao fim da explanação.

— Ela vai ter tudo que precisar. O que eu necessito fazer se ela quiser frequentar a escola?

— É só me ligar. Você é do bairro e a escola tem vaga. Serão precisos alguns papéis para a matrícula e a transferência de Hong Kong. Vai precisar da certidão de nascimento, e é isso. Bosch lembrou que a certidão de nascimento de sua filha ficara provavelmente no apartamento em Hong Kong.

— Não tenho a certidão de nascimento dela. Vou ter que pedir uma. Acho que ela nasceu em Las Vegas.

— Acha?

— Eu, hã, só a conheci quando já estava com quase 4 anos. Na época, ela morava com a mãe em Las Vegas e eu presumi que tivesse nascido lá. Posso perguntar a ela. A assistente pareceu ainda mais perplexa. — Estou com o passaporte dela, sugeriu Bosch. — Ali diz onde ela nasceu. Eu só não olhei ainda.

— Bom, posso dar um jeito de me virar com isso até você conseguir a certidão de nascimento. Acho que o mais importante agora é cuidar da sua filha no aspecto psicológico. Isso é um trauma terrível para ela. Você precisa encontrar um terapeuta.

— Não se preocupe, vou fazer isso.


Um sinal tocou indicando a mudança de aula e Sue Bambrough ficou de pé. Saíram da sala e andaram por um corredor central. O pátio era comprido e estreito, pois a escola fora construída na encosta da montanha. Bosch percebeu que a assistente ainda estava tentando absorver a ideia de que Madeline havia enfrentado e sobrevivido àquilo tudo.


— Ela é uma criança forte, ele sugeriu.

— Vai ter que ser, depois de uma experiência como essa. Bosch queria mudar de assunto.

— Que aulas ela assistiu?

— Começou com matemática e depois teve um rápido intervalo antes de estudos sociais. Depois foi almoço e agora terminou o espanhol.

— Ela estava aprendendo chinês em Hong Kong.

— Acho que essa é uma das inúmeras mudanças difíceis pelas quais ela vai passar.

— Como eu disse, ela é forte. Acho que vai conseguir. Bambrough virou e sorriu ao caminhar.

— Como o pai, imagino.

— A mãe era mais forte. As crianças enxameavam pelo corredor ao mudar de classe. Bambrough viu a filha de Bosch antes dele.

— Madeline, ela chamou. Bosch acenou. Maddie caminhava com duas meninas e já parecia fazer amizade. Deu tchau para elas e veio rápido.

— Oi, pai.

— Ei, como foi?

— Tudo bem, eu acho. Sua voz foi reservada e Bosch não sabia se era por causa da diretora assistente ali na presença deles.

— Como foi com o espanhol? Perguntou a mulher.

— Hum, eu fiquei meio boiando.

— Soube que você estava aprendendo chinês. É uma língua muito mais difícil que espanhol. Acho que você vai pegar o espanhol bem rápido aqui.

— Acho que sim. Bosch decidiu poupá-la da conversa fiada.

— Bom, vamos indo, Mad? A gente ia comprar umas coisas hoje, lembra?

— Claro, vamos. Bosch olhou para Bambrough e acenou.

— Obrigado pela ajuda, eu ligo.


Sua filha também agradeceu e saíram da escola. Assim que entraram no carro, Bosch começou a subir a colina.


— Bom, agora que a gente está sozinho, o que você achou de verdade, Mad?

— Hã, foi tudo bem. É só que não é a mesma coisa, sabe?

— É, sei. A gente pode procurar escolas particulares. Tem umas aqui perto, para os lados do Vale.

— Não quero ser uma patricinha do Vale, pai.

— Eu duvido que você um dia seria uma. Isso não tem a ver com a escola que você frequenta.

— Acho que essa escola é legal, disse ela depois de pensar um pouco. — Conheci umas garotas lá e elas eram bem legais.

— Tem certeza?

— Acho que sim. Posso começar amanhã? Bosch olhou para ela e voltou a prestar atenção na estrada sinuosa.

— Isso é meio rápido demais, não acha? Você acabou de chegar, ontem à noite.

— Eu sei, mas o que eu vou fazer? Ficar dentro de casa chorando o dia inteiro?

— Não, mas eu achei que se a gente levasse as coisas mais devagar, podia...

— Não quero ficar para trás. As aulas começaram na semana passada. Bosch pensou por alguns momentos no que Bambrough dissera sobre crianças saber o que era necessário para sua cura. Decidiu confiar nos instintos de sua filha.

— Se é o que você quer, tudo bem. Vou ligar para a Sra. Bambrough e dizer que você quer se matricular. Falando nisso, você nasceu em Las Vegas, não foi?

— Você quer dizer que não sabe?

— Eu sei. Só preciso ter certeza para pedir uma cópia da sua certidão de nascimento para escola. Ela não respondeu. Bosch estacionou o carro na garagem junto à casa.

— Então, foi Vegas, não foi?

— Foi! Você realmente não sabia, não é? Meu Deus!


Antes que pudesse pensar numa resposta, Bosch foi salvo pelo telefone. O aparelho zumbiu e ele pegou. Sem olhar para a tela, disse a sua filha que precisava atender. Era Ignácio Ferras.


— Harry, soube que você estava de volta e que a sua filha está a salvo. Ele sem dúvida era um dos últimos a receber as notícias. Bosch destrancou a porta da cozinha e a segurou aberta para sua filha.

— É, a gente está bem.

— Vai tirar uns dias?

— A ideia é essa. No que você está trabalhando?

— Ah, só umas coisas. Escrevendo uns relatórios sobre John Li.

— Pra quê? Isso aí já era. A gente não conseguiu.

— Eu sei, mas a gente precisa manter a pasta do caso completa e eu tenho que registrar os resultados dos mandados de busca no tribunal. Foi também por isso que eu liguei. Você saiu na sexta sem deixar nada anotado sobre o que descobriu nas buscas do celular e da maleta. Já redigi o relatório da busca no carro.

— É, bom, não encontrei nada. Por isso a gente não tinha um caso para montar, lembra?


Bosch jogou as chaves na mesa da sala de jantar e observou sua filha andar pelo corredor até seu quarto. Estava cada vez mais irritado com Ferras. A certa altura, havia abraçado a ideia de bancar o mentor do jovem detetive e ensinar a ele qual era a missão de suas vidas. Mas agora finalmente começava a aceitar a realidade de que Ferras jamais iria se recuperar de ter sido ferido no cumprimento do dever. Fisicamente, sim. Psicologicamente, não. Nunca mais seria o pacote completo outra vez. Ele agora era só um burocrata.


— Então eu ponho resultado nulo? Perguntou Ferras.


Bosch momentaneamente pensou no cartão de visitas do serviço de táxi de Hong Kong. Não dera em nada e não valia a pena registrar nos resultados dos mandados que iam voltar para o juiz.


— É, resultado nulo. Não tinha nada.

— E nada no celular. Bosch de repente se deu conta de alguma coisa, mas soube no mesmo instante que provavelmente era tarde demais.

— No celular nada, mas vocês foram na companhia telefônica para checar o registro?


Chang podia ter apagado todo o registro de ligações de seu celular, mas era impossível ter feito qualquer coisa com o registro mantido por sua operadora. Houve uma pausa antes de Ferras responder.


— Não, achei... Você estava com o celular, Harry. Achei que você tinha contatado a operadora.

— Eu não, porque estava indo para Hong Kong.


Toda empresa telefônica tinha normas estabelecidas para receber e aceitar mandados de busca. Normalmente, se resumia a enviar o mandado de busca assinado por fax para o escritório de assuntos legais. Era uma coisa simples de se fazer, mas que haviam deixado passar. Agora Chang obtivera sua soltura e provavelmente nunca mais seria pego.


— Droga, disse Bosch. — Você devia ter visto isso, Ignácio.

— Eu? Você estava com o aparelho, Harry. Achei que você tivesse feito.

— Eu fiquei com o celular, mas você é que estava cuidando dos mandados. Você devia ter cuidado disso antes de ir embora na sexta.

— Isso não tem nada a ver, cara. Você está tentando jogar a culpa disso em cima de mim?

— A culpa é de nós dois. É verdade, eu podia ter feito, mas você devia ter checado se alguém tinha feito. Você não cuidou disso porque empurrou o trabalho com a barriga e caiu fora cedo. Aliás, é só isso que você anda fazendo ultimamente, empurrar com a barriga. Pronto, ele falou.

— E você só fala merda, respondeu Ferras. — Quer dizer que só porque eu não sou igual a você, só porque eu não troco a minha família pelo trabalho e nem ponho ela em risco por causa do trabalho eu estou empurrando com a barriga? Você não sabe do que está falando. Bosch ficou em silêncio, perplexo com o ataque verbal. Ferras o atingira bem no ponto pelo qual andara vivendo nas últimas 72 horas. Finalmente, se recuperou e voltou a falar.

— Ignácio, disse calmamente. — Isso não está funcionando. Não sei em que dia da semana volto para a delegacia, mas, quando eu estiver aí, a gente precisa conversar.

— Tudo bem. Eu vou estar aqui.

— Claro que vai. Você vive na delegacia. A gente se vê.


Bosch fechou o celular antes que Ferras pudesse protestar contra essa última acusação. Bosch tinha certeza de que Gandle daria respaldo quando pedisse pela troca de parceiro. Voltou para a cozinha para pegar uma cerveja e tentar esquecer a conversa. Abriu a geladeira e esticou o braço ali dentro, mas parou. Era muito cedo ainda e precisava levar sua filha para fazer compras no Vale pelo resto da tarde. Fechou a porta da geladeira e foi para o corredor. A porta do quarto da filha estava fechada.


— Maddie, está pronta para ir?

— Estou trocando de roupa. Já vou.


A resposta viera num tom irritado, como que dizendo “não enche”. Bosch não tinha certeza de como interpretar isso. A ideia era ir primeiro à loja de celulares e depois comprar alguma roupa, móveis e um laptop. Ele ia dar para sua filha qualquer coisa que ela quisesse e ela sabia disso. Mas mesmo assim estava se mostrando seca daquele jeito, e ele não tinha certeza sobre o motivo. Um dia na função de pai em período integral e ele já se sentia perdido.


*   *   *


Quarenta e Um

NA MANHÃ SEGUINTE, Bosch e sua filha começaram a montar o que haviam comprado no dia anterior. Maddie ainda não estava na escola porque, com a burocracia do ensino público, sua matrícula levaria mais um dia para ser efetivada, demora que pareceu bem-vinda para Bosch, pois significava mais tempo juntos.


A primeira coisa que decidiram montar foi a mesa de computador e a cadeira que haviam comprado na loja da IKEA em Burbank. Haviam se entregado a um descontrole consumista que durou quatro horas, acumulando materiais escolares, roupas, artigos eletrônicos e mobília, abarrotando o carro de Bosch e deixando-o com uma sensação de culpa que para ele era novidade. Ele sabia que comprar para a filha tudo que ela apontava ou pedia era uma forma de tentar comprar sua felicidade, e o perdão que ele esperava vir junto. Ele havia tirado a mesinha de centro do caminho e espalhado as partes da mesa pré-fabricada no chão da sala de estar. As instruções diziam que podia ser montada com uma única ferramenta, uma pequena chave Allen que viera junto. Harry e Madeline sentaram de pernas cruzadas no chão, tentando entender as instruções de montagem.


— Parece que é para começar prendendo as laterais na parte de cima da mesa, disse Madeline.

— Tem certeza?

— Tenho. Tá vendo, tudo que está marcado “um” faz parte do primeiro passo.

— Achei que queria dizer que só tinha uma dessas partes.

— Não, porque tem duas laterais e elas estão marcadas “um”. Acho que isso quer dizer passo um.

— Ah.


Um celular tocou e olharam um para o outro. Madeline tinha um novo aparelho desde o dia anterior e mais uma vez era um igual ao de seu pai. O problema era que ainda não havia selecionado um toque personalizado, então os dois estavam com o mesmo som. Ela havia recebido uma série de ligações durante toda a manhã, dos amigos em Hong Kong para quem enviara mensagens contando sobre a mudança para Los Angeles.


— Acho que é o seu, ela disse. — Eu deixei o meu no quarto. Bosch ficou de pé lentamente, os joelhos doendo após descruzar as pernas. Conseguiu chegar à mesa da sala e apanhar o telefone antes que a pessoa desligasse.

— Harry, aqui é a Dra. Hinojos, tudo bem?

— Estou levando, doutora. Obrigado pelo retorno. Bosch empurrou a porta de deslizar e foi para o deque, fechando-a depois que passou.

— Desculpe só ter ligado hoje, disse Hinojos. — Segunda-feira é sempre uma loucura por aqui. Qual o problema?


Hinojos chefiava a Seção de Ciência Comportamental do departamento, a unidade que oferecia serviços psiquiátricos aos policiais. Bosch a conhecia há quase 15 anos, desde que ela fora indicada para avaliá-lo após ele ter chegado às vias de fato com seu supervisor na Divisão de Hollywood. Bosch procurou não elevar a voz.


— Eu queria perguntar se você podia fazer uma coisa para mim, como um favor.

— Depende do que é.

— Queria que conversasse com a minha filha.

— Sua filha? Da última vez que você me falou dela ela morava com a mãe em Vegas.

— Elas se mudaram. Ela estava morando em Hong Kong nos últimos seis anos. Agora está comigo. A mãe dela morreu. Houve uma pausa antes de Hinojos prosseguir. Bosch recebeu um bipe de chamada em espera em seu ouvido, mas ignorou a ligação e aguardou.

— Harry, você sabe que a gente só recebe oficiais de polícia por aqui, não as famílias deles. Eu posso indicar um especialista em crianças para ela.

— Não quero um terapeuta infantil. Eu podia consultar as páginas amarelas aqui, se quisesse alguma coisa assim. É aí que entra o favor. Quero que ela converse com você. Você me conhece, eu conheço você. É por isso.

— Mas Harry, as coisas não funcionam desse jeito aqui.

— Ela foi sequestrada em Hong Kong. E a mãe dela foi morta tentando resgatá-la. A menina passou pelo inferno, doutora.

— Meu Deus! Quanto tempo faz que isso aconteceu?

— Foi na semana passada.

— Ai, Harry.

— É, não é nada bom. Ela precisa conversar com alguém que não seja eu. Quero que ela a veja, doutora. Mais uma pausa e novamente Bosch lhe deu um tempo. Não fazia muito sentido forçar a barra com a Dra. Hinojos. Bosch sabia disso por experiência própria.

— Acho que posso vê-la fora do trabalho. Ela pediu para falar com alguém?

— Não pediu, mas eu disse para ela que queria. Ela não fez objeção. Acho que vai gostar de você. Quando pode vê-la? Bosch estava forçando a barra e sabia disso. Mas era por uma boa causa.

— Bom, eu tenho algum tempo, hoje, disse Hinojos. — Eu poderia vê-la depois do almoço. Como ela se chama?

— Madeline. Que horas?

— Pode ser à uma?

— Sem problema. Eu levo ela aí, ou tem algum problema nisso?

— Acho que tudo bem. Não vou considerar como uma consulta oficial.


O celular de Bosch bipou outra vez. Dessa vez, ele o afastou do ouvido para verificar o identificador de chamadas. Era o tenente Gandle.


— Ok, doutora, respondeu Bosch. — Obrigado por essa.

— Seria bom ter uma conversa com você também. Quem sabe a gente pode se ver. Sei que a sua ex-esposa ainda significava muita coisa para você.

— Vamos cuidar primeiro da minha filha. Depois a gente se preocupa comigo. Vou deixá-la aos seus cuidados e sair de perto, quem sabe ir até o Philippe’s ou algo assim.

— Até mais então, Harry. Ele desligou e verificou se Gandle havia deixado mensagem. Nada. Voltou a entrar e viu que sua filha já montara a estrutura principal da mesa.

— Nossa, menina, você sabe mesmo o que está fazendo.

— É bem fácil.

— Não foi o que pareceu para mim.


Nem bem voltou a se ajeitar no chão o telefone da casa começou a tocar na cozinha. Ele se levantou e andou depressa para atender. Era um aparelho antigo, preso na parede, sem identificador de chamadas.


— Bosch, o que você está fazendo? Era o tenente Gandle.

— Eu falei que ia tirar uns dias.

— Preciso de você aqui, e traga a sua filha. Bosch estava fitando a pia vazia.

— Minha filha? Por quê, tenente?

— Porque tem dois sujeitos do Departamento de Polícia de Hong Kong na sala do capitão Dodds, e eles querem conversar com você. Você não me contou que a sua ex-esposa tinha morrido, Harry. Não me falou nada sobre os cadáveres que eles disseram que você deixou no seu caminho por lá. Bosch fez uma pausa enquanto considerava suas opções.

— Diga a eles que a gente se vê à uma e meia, ele disse, finalmente. A resposta de Gandle foi brusca.

— Uma e meia? Pra que você precisa de três horas? Venha para cá agora.

— Não posso, tenente. Eu falo com eles à uma e meia.


Bosch desligou e então tirou o celular do bolso. Ele sabia que os policiais de Hong Kong viriam mais cedo ou mais tarde, e já pensara em um plano. A primeira ligação que fez foi para Sun Yee. Sabia que era tarde em Hong Kong, mas não podia esperar. O telefone tocou oito vezes e caiu na caixa de mensagens.


— É o Bosch. Ligue-me.


Bosch desligou e ficou olhando para o celular por um bom tempo. Ficou preocupado. Era uma e meia da manhã em Hong Kong, não era um horário em que esperaria que Sun Yee pudesse ficar longe de seu telefone. A menos que não fosse por vontade própria. Em seguida, percorreu a lista de contatos e encontrou um número que não usava havia pelo menos um ano. Apertou o número então e dessa vez a resposta foi imediata.


— Mickey Haller.

— É o Bosch.

— Harry? Eu achava que não...

— Acho que preciso de um advogado. Houve uma pausa.

— Ok, quando?

— Já.


*   *   *


Quarenta e Dois

GANDLE SAIU como um raio de sua sala no momento em que Bosch pôs os pés no departamento.


— Bosch, eu falei que era para vir imediatamente. Por que você não está atendendo o seu...


Ele parou quando viu quem entrava atrás de Bosch. Mickey Haller era um conhecido advogado de defesa. Não havia um único detetive na DRH que não o reconhecesse de primeira.


— Esse é o seu advogado? Disse Gandle com raiva. — Eu falei para trazer a sua filha, não o seu advogado.

— Tenente, disse Bosch, — Vamos deixar uma coisa clara desde já. Minha filha não é parte dessa equação. O Sr. Haller está aqui para me aconselhar e me ajudar a explicar para os homens de Hong Kong que eu não cometi nenhum crime quando estava na cidade deles. Agora, o senhor quer me apresentar ou será que eu devo me apresentar sozinho? Gandle hesitou e então entregou os pontos.

— Por aqui.


Gandle os conduziu para a sala de reuniões junto à sala do capitão Dodds. Esperando ali, estavam os dois sujeitos de Hong Kong. Eles se levantaram quando Bosch chegou e lhe estenderam seus cartões de visita. Alfred Lo e Clifford Wu. Ambos eram do Bureau de Tríade do Departamento de Polícia de Hong Kong (DPHK). Bosch apresentou Haller e passou os cartões para ele.


— Vamos precisar de um intérprete, senhores? Perguntou Haller.

— Não é necessário, disse Wu.

— Bom, já é um começo, disse Haller. — Por que não nos sentamos para conversar com calma sobre toda essa história? Todo mundo, incluindo Gandle, pegou uma cadeira em torno da mesa de reuniões. Haller foi o primeiro a falar.

— Deixem-me começar dizendo que o meu cliente, o detetive Bosch, não está reivindicando seus direitos constitucionais no momento. Estamos em território americano e isso quer dizer que ele não tem que conversar com os senhores. Contudo, ele também é um detetive e sabe o que os dois costumam enfrentar no dia a dia. Indo contra meu aconselhamento, ele se dispôs a conversar com os senhores. Então conduziremos isso da seguinte forma: podem fazer perguntas, e ele tentará respondê-las se eu achar que deve. Essa sessão não será gravada, mas vocês podem fazer anotações, se quiserem. Esperamos que essa conversa se encerre com os senhores obtendo uma maior compreensão dos eventos passados neste último fim de semana em Hong Kong. Mas de uma coisa podem ter certeza: não sairão daqui com o detetive Bosch sob sua custódia. A cooperação dele nesse assunto se encerrará ao final dessa reunião. Haller finalizou seu discurso de abertura com um sorriso.


Antes de ir para o PAB, Bosch se encontrara com Haller durante quase uma hora no banco de trás do Lincoln Town Car de Haller. Ficaram estacionados no parque de cachorros perto de Franklin Canyon, onde puderam observar a filha de Harry passear e acariciar os cães mais amigáveis enquanto ambos conversavam. Depois que terminaram, levaram Maddie para ver a Dra. Hinojos e seguiram para o PAB. Não estavam agindo completamente de comum acordo, mas haviam planejado uma estratégia. Uma rápida busca de internet no laptop de Haller até fornecera algum material de apoio. Haviam chegado prontos para defender Bosch diante dos homens de Hong Kong.


Sendo um detetive, Bosch estava andando por uma linha tênue. Ele queria que seus colegas do outro lado do Pacífico soubessem o que acontecera, mas não pretendia pôr a si mesmo, nem sua filha ou Sun Yee, em uma situação de risco. Ele acreditava que todas as suas ações em Hong Kong foram justificadas. Contou para Haller que enfrentara circunstâncias em que era matar ou morrer iniciadas por outros. E isso incluía seu encontro com o gerente de hotel do Chungking Mansions. Em todas as situações ele saíra vitorioso. Não havia crime nisso. Não em sua cartilha.


Lo tirou uma caneta e um caderninho e Wu fez a primeira pergunta, revelando quem chefiava a dupla.


— Primeiro, queremos perguntar por que o senhor foi para Hong Kong numa viagem tão curta? Bosch deu de ombros, como se a resposta fosse óbvia.

— Para pegar a minha filha e trazê-la de volta.

— No sábado de manhã, sua ex-esposa deu queixa na polícia pelo desaparecimento de sua filha, disse Wu. Bosch ficou encarando o sujeito por um longo momento.

— Isso é uma pergunta?

— Ela estava desaparecida?

— Pelo que sei ela estava de fato desaparecida, mas no sábado de manhã eu estava a 10 mil metros de altura sobre o Pacífico. Não tenho como dizer o que a minha ex-esposa estava fazendo naquele momento.

— Acreditamos que a sua filha foi levada por alguém chamado Peng Qingcai. O senhor o conheceu?

— Nunca me encontrei com ele.

— Peng está morto, disse Lo. Bosch balançou a cabeça.

— Não fico nem um pouco triste com isso.

— A vizinha do Sr. Peng, a Sra. Fengyi Mai, se lembra de falar com o senhor na casa dela, no domingo, disse Wu. — O senhor e o Sr. Sun Yee.

— Isso mesmo, batemos na porta dela. Ela não foi de grande ajuda.

— Por quê?

— Porque não sabia de coisa nenhuma. Não sabia onde estava Peng. Wu se curvou para frente, sua linguagem corporal fácil de interpretar. Achou que estivesse pondo Bosch contra a parede.

— O senhor esteve no apartamento de Peng?

— Batemos na porta, mas ninguém atendeu. Depois de um tempo fomos embora. Wu se curvou para trás, desapontado.

— O senhor admite que estava com Sun Yee? Perguntou.

— Claro. Eu estava com ele.

— Como o senhor conheceu o homem?

— Por meio da minha ex-mulher. Eles foram me encontrar no aeroporto no domingo de manhã e me disseram que estavam procurando a minha filha porque o departamento de polícia local não acreditou que ela tivesse sido sequestrada. Bosch examinou os dois homens por um momento antes de continuar. — Olha, o seu departamento de polícia pisou na bola. Espero que incluam isso nos seus relatórios. Porque se eu for arrastado nisso, com certeza, vou incluir vocês. Vou ligar para todos os jornais de Hong Kong, não interessa em que língua, e contar a minha história.


A ideia era usar a ameaça de constrangimento internacional do DPHK para fazer os detetives irem com calma.


— O senhor está ciente, disse Wu, — De que sua ex-esposa, Eleanor Wish, morreu com um ferimento na cabeça em uma troca de tiros no 150 andar do Chungking Mansions, em Kowloon?

— Sim, estou ciente do fato.

— O senhor estava presente quando isso ocorreu? Bosch olhou para Haller e o advogado assentiu.

— Estava. Eu vi acontecer.

— Pode nos contar como foi?

— Estávamos procurando a nossa filha. Não a encontramos. Estávamos no corredor, prontos para ir embora, quando dois homens começaram a atirar em nós. Eleanor foi baleada e... Morreu. E os dois sujeitos também foram baleados. Foi autodefesa. Wu se curvou para frente.

— Quem atirou naqueles homens?

— Acho que o senhor sabe a resposta.

— Pode nos contar, por favor. Bosch pensou na arma que pusera na mão inerte de Eleanor. Estava prestes a soltar a mentira quando Haller se curvou para frente.

— Não acho que posso permitir que o detetive Bosch se envolva em hipóteses sobre quem atirou em quem, disse ele. — Tenho certeza de que o seu bom departamento de polícia conta com ótimas capacidades forenses e já foi capaz de determinar por meio da análise das armas e da balística a resposta para essa questão. Wu prosseguiu.

— Sun Yee estava no 15o andar?

— Não nesse momento.

— Pode nos fornecer mais detalhes?

— Sobre os tiros? Não. Mas posso contar alguma coisa sobre o quarto onde a minha filha foi mantida em cativeiro. Encontramos um lenço de papel com sangue nesse quarto. Haviam colhido sangue dela. Bosch estudou os dois para ver se reagiam à informação. Eles não deram mostras de nada. Havia uma pasta sobre a mesa diante dos homens de Hong Kong. Wu a abriu e tirou um documento preso com um clipe de papel. Empurrou-o através da mesa para Bosch.

— Isso é um depoimento de Sun Yee. Foi traduzido para o inglês. Por favor, leia e nos dê um parecer sobre a exatidão.


Haller se curvou para perto de Bosch e leram juntos o documento de duas páginas. Bosch reconheceu aquilo na mesma hora como um jogo de cena. Era a hipótese investigativa deles disfarçada como um depoimento de Sun. Mais ou menos a metade estava correta. O resto eram suposições baseadas em interrogatórios e evidências. Atribuía os assassinatos da família Peng a Bosch e Sun Yee. Harry percebeu que estavam tentando usar um blefe para fazê-lo falar o que realmente acontecera ou haviam prendido Sun e o forçado a assinar o documento com a versão da preferência deles, a saber, a de que Bosch fora o responsável pela fila de corpos deixada em toda Hong Kong. Seria a melhor maneira de explicar nove mortes violentas num único domingo. Foi o americano. Mas Bosch se lembrou do que Sun lhe dissera no aeroporto. Eu cuido dessas coisas e não faço menção de você. Isso é minha promessa. Aconteça o que acontecer, vou deixar você e a sua filha fora disso.


— Senhores, disse Haller, terminando primeiro de ler o documento. — Este documento é...

— Pura bobagem, finalizou Bosch. Empurrou o documento de volta através da mesa. O papel bateu no peito de Wu.

— Não, não, disse Wu rapidamente. — Isso é muito real. Isso está assinado por Sun Yee.

— Talvez, se vocês seguraram uma arma na cabeça dele. É assim que vocês fazem as coisas lá em Hong Kong?

— Detetive Bosch! Exclamou Wu. — O senhor terá que ir a Hong Kong e responder por essas acusações.

— Nunca vou chegar nem perto de Hong Kong outra vez.

— O senhor matou inúmeras pessoas. O senhor utilizou armas de fogo. O senhor pôs sua filha acima de todos os cidadãos chineses e...

— Eles colheram o sangue dela! Disse Bosch com raiva. — Tiraram sangue. Sabe para que fazem isso? Para determinar a compatibilidade de órgãos.


Ele parou e observou o desconforto cada vez maior no rosto de Wu. Bosch não se importava com Lo. Wu era a autoridade e se Bosch levasse a melhor em cima dele, estaria a salvo. Haller tinha razão. Na traseira do Lincoln, havia estabelecido a sutil estratégia para a entrevista. Em vez de se focar em justificar as ações de Bosch como autodefesa, deixar claro para os homens de Hong Kong o que seria levado ao palco da mídia internacional caso tentassem algum tipo de processo judicial contra Bosch. Agora era hora de fazer essa jogada e Haller assumiu a dianteira e calmamente partiu para o massacre.


— Senhores, vocês podem se prender ao seu depoimento assinado, disse, com um sorriso aparentemente fixo dançando em seu rosto. — Deixem eu resumir os fatos que são sustentados pelas reais evidências. Uma garota americana de 13 anos foi sequestrada na sua cidade. A mãe dela chamou devidamente a polícia para fazer a denúncia. A polícia se recusou a investigar o crime e então...

— A garota já tinha fugido antes, protestou Lo. — Não tinha mot... Haller ergueu um dedo para interrompê-lo.

— Isso não interessa, disse, agora com um tom de ofensa contida em sua voz e sem sinal do sorriso. — O seu departamento foi informado de que uma garota americana havia sumido e decidiu, sabe se lá por que motivo, ignorar a queixa. Isso obrigou a mãe da garota a procurar a filha ela mesma. E a primeira coisa que fez foi ligar para o pai da menina em Los Angeles. Haller fez um gesto para Bosch. — O detetive Bosch chegou e junto com sua ex-esposa e um amigo da família, o Sr. Sun Yee, começaram a busca em que a polícia de Hong Kong decidira não se envolver. Por conta própria, o que eles descobriram foram evidências de que ela fora sequestrada por traficantes de órgãos. Iam vender essa garota americana por seus órgãos!


O tom ofendido aumentou e Bosch acreditou que não era nenhuma encenação. Por alguns instantes, Haller deixou que isso flutuasse acima da mesa como uma nuvem de tempestade antes de prosseguir.


— Bom, como os senhores estão cientes, algumas pessoas foram mortas. Meu cliente não vai entrar em detalhes sobre nada disso. Basta dizer que, entregues à própria sorte em Hong Kong sem qualquer ajuda do governo ou da polícia, a mãe e o pai, na tentativa de encontrar sua filha, encontraram algumas pessoas ruins e se viram em situações de matar ou morrer. Houve provocação!


Bosch viu os dois detetives de Hong Kong se curvarem para trás quando Haller berrou essa última palavra. Ele então continuou numa calma e bem modulada voz de tribunal.


— Bem, sabemos que os senhores querem descobrir o que aconteceu e que vocês têm relatórios que precisam ser preenchidos e superiores que precisam ser informados. Mas os senhores se perguntaram com a devida seriedade se esse é de fato o curso de ação a tomar? Mais uma pausa. — Seja lá o que aconteceu em Hong Kong, aconteceu porque o seu departamento fracassou com essa menina americana e sua família. E se os senhores forem parar para analisar que medidas o detetive Bosch tomou porque o seu departamento deixou de agir do modo apropriado, se estão procurando um bode expiatório para levar de volta a Hong Kong, então não vão encontrar nenhum aqui. Nós não vamos cooperar. Contudo, eu de fato tenho alguém aqui com quem os senhores poderão conversar sobre tudo isso. Podemos começar por ele.


Haller tirou um cartão do bolso da camisa e o empurrou sobre a mesa para eles. Wu pegou e examinou. Haller o mostrara antes a Bosch. Era o cartão de visita de um jornalista do Los Angeles Times.


— Jock Mikivoy, leu Lo. — Ele tem informação sobre isso?

— É Jack McEvoy. E por enquanto ele não tem nenhuma informação. Mas estaria muito interessado numa história como essa.


Isso era parte do plano. O blefe de Haller. A verdade, e Bosch sabia disso, era que McEvoy fora cortado do Times seis meses antes. Haller apanhara o velho cartão em uma pilha de cartões de visita presos por um elástico em seu Lincoln.


— É por onde começaremos, disse Haller calmamente. — E acho que isso dará uma grande matéria. Garota de 13 anos sequestrada na China por traficantes de órgãos e a polícia não faz nada. Seus pais são forçados a agir e a mãe é assassinada na tentativa de salvar sua filha. A partir daí, a coisa com certeza vai virar internacional. Todo jornal, todos os canais de notícias do mundo vão querer um pedaço dessa história. Dá para fazer um filme com ela em Hollywood. E Oliver Stone vai dirigir!


Haller agora abria sua própria pasta que trouxera para a reunião. Continha as matérias que imprimira no carro após sua busca na internet. Ele empurrou uma série de folhas através da mesa para Wu e Lo. Eles se aproximaram para ler.


— E finalmente, o que tem aí é um pacote de artigos de imprensa que vou fornecer ao Sr. McEvoy e a qualquer jornalista que venha entrevistar a mim ou ao detetive Bosch. Esses artigos documentam o crescente mercado de órgãos humanos na China. Dizem que a lista de espera na China é a maior do mundo, com registros de até um milhão de pessoas esperando por um órgão em determinado momento. Não ajuda o fato de que há alguns anos, com a pressão do resto do mundo, o governo chinês proibiu o uso de órgãos de prisioneiros executados. Isso só aumentou a procura e o valor dos órgãos humanos no mercado negro. Tenho certeza de que os senhores serão capazes de perceber, a partir dessas matérias em jornais com grande credibilidade, incluindo o Beijing Review, onde o Sr. McEvoy chegará com essa história. Cabe aos senhores decidir se é isso que querem que aconteça.


Wu virou de modo a sussurrar uma enxurrada de palavras em chinês diretamente no ouvido de Lo.


— Não precisam sussurrar, disse Haller. — Não entendemos o que dizem. Wu se endireitou.

— Gostaríamos de fazer uma ligação particular antes de continuarmos as perguntas, disse.

— Para Hong Kong? Perguntou Bosch. — São cinco da manhã por lá.

— Isso não interessa, disse Wu. — Preciso fazer a ligação, por favor. Gandle se levantou.

— Podem usar a minha sala. Terão privacidade lá.

— Obrigado, tenente. Os investigadores de Hong Kong se levantaram para ir.

— Uma última coisa, cavalheiros, disse Haller. Eles olharam para ele com uma expressão de e o que é, agora? Estampada no rosto. — Só quero que os senhores e seja lá com quem forem falar agora saibam que também estamos preocupados com a situação de Sun Yee nessa questão. Queremos que saibam que vamos entrar em contato com o Sr. Sun e, se não formos capazes de encontrá-lo ou se descobrirmos que ele sofreu algum tipo de restrição de sua liberdade pessoal, planejamos oferecer o assunto ao julgamento da opinião pública do mesmo modo. Haller sorriu e fez uma pausa antes de continuar. — É um preço de pacote, senhores. Digam isso aos seus colegas.


Haller acenou com a cabeça, mantendo o sorriso no rosto o tempo todo, seu comportamento contradizendo a óbvia ameaça. Wu e Lo balançaram a cabeça, compreendendo a mensagem, e seguiram Gandle pela porta da sala de reuniões.


— O que você acha? Bosch perguntou a Haller quando se viram a sós. — Assunto encerrado?

— É, acho que sim, disse Haller. — Acho que isso morreu aqui. O que acontece em Hong Kong fica em Hong Kong.


*   *   *


Quarenta e Três

BOSCH decidiu não ficar esperando na sala de reuniões pela volta dos detetives de Hong Kong. Ele continuava incomodado com o bate-boca que tivera com seu parceiro no dia anterior e foi para a sala da delegacia procurar Ferras. Mas Ferras não estava lá, e Bosch se perguntou se não saíra para almoçar de propósito, a fim de evitar um novo confronto. Harry foi para seu próprio cubículo a fim de verificar a correspondência interna e outros recados. Não havia nada, mas ele viu uma luz vermelha piscando em seu telefone. Havia um recado. Ainda estava se acostumando à prática de verificar seu telefone para pegar recados. Na sala da delegacia em Parker Center, as coisas eram antiquadas e não havia correio de voz. Todos os recados iam para uma linha central, que a secretária da delegacia monitorava. Ela então escrevia pequenos bilhetes que ficavam nos escaninhos ou eram deixados sobre as mesas. Se a ligação era urgente, a secretária procurava pessoalmente o detetive em seu pager ou celular.


Bosch sentou e digitou seu código no telefone. Havia cinco recados para ele. Os três primeiros eram chamadas de rotina sobre outros casos. Ele fez algumas anotações em um bloco e apagou os recados. O quarto fora deixado na noite anterior pelo detetive Wu do DPHK. Ele acabara de chegar e se hospedar em um hotel e queria marcar uma hora. Bosch apagou. O quinto recado era de Teri Sopp, das impressões latentes. Fora deixado às 9h15 dessa manhã, no momento em que Bosch abria a caixa achatada contendo a mesa de computador de sua filha.


Harry, fizemos o teste de realce eletrostático no cartucho que você me deu. Conseguimos obter uma impressão e todo mundo por aqui está bem empolgado. Também conseguimos achar uma que bate com ela no computador do Departamento de Justiça. Então me liga assim que puder.

Enquanto ligava para o laboratório de impressões latentes, Bosch olhou por cima da parede de seu cubículo e viu Gandle conduzindo os dois detetives do DPHK de volta à sala de reuniões. Ele acenou para Bosch, lhe dizendo para voltar. Bosch ergueu um dedo, sinalizando que precisava de um minuto.


— Latentes.

— Quero falar com a Teri, por favor.


Ele aguardou mais dez segundos, a empolgação aumentando. Até onde Bosch sabia, Bo-Jing Chang podia ter sido solto e talvez já estivesse até de volta a Hong Kong, mas, se sua impressão digital aparecera no cartucho de uma das balas que mataram John Li, então a coisa mudava de figura. Era uma prova direta ligando-o ao assassinato. Poderiam fazer uma acusação e tentar um mandado de extradição.


— Alô.

— Sou eu, Harry Bosch. Acabei de receber o seu recado.

— Estava imaginando onde você podia estar. Conseguimos bater a impressão no seu cartucho.

— Maravilha. Bo-Jing Chang?

— Estou no laboratório. Deixa eu chegar na minha mesa. Era um nome chinês, mas não o do cartão que o seu parceiro me deu. Aquelas impressões não batem. Espera um pouco, vou pôr na espera. Ela se foi e Bosch sentiu uma fenda subitamente se abrindo em suas suposições sobre o caso.

— Harry, você vem?


Ele ergueu o rosto e olhou por cima da divisória. Gandle o chamava da porta da sala. Bosch apontou o telefone e negou com um movimento da cabeça. Sem se dar por satisfeito, Gandle deixou a sala de reuniões e foi até o cubículo de Bosch.


— Olha, a gente está resolvendo o problema, disse ele, com veemência. — Você precisa entrar lá e encerrar o assunto.

— Meu advogado cuida disso. Acabei de receber a ligação.

— Que ligação?

— Uma ligação que vai mudar t...

— Harry? Era Sopp de volta à linha. Bosch cobriu o bocal.

— Preciso atender, disse para Gandle. Então, tirando a mão e falando no telefone, disse:

— Teri, diz o nome. Gandle balançou a cabeça e voltou à sala de reunião.

— Tá, não é o nome que você mencionou. É Henry Lau, L-A-U. Nascimento: nove do nove de oitenta e dois.

— Por que ele está no computador?

— Foi pego dirigindo alcoolizado dois anos atrás em Venice.

— Só isso que ele tinha?

— É. De resto, está limpo.

— E quanto ao endereço?

— O endereço na carteira é Quarterdeck, 18, Venice. Unidade 11. Bosch copiou a informação em seu caderninho de bolso.

— Ok, e essa impressão que você conseguiu é sólida, certo?

— Sem dúvida, Harry. Ela apareceu brilhando como luzes de Natal. Essa tecnologia é impressionante. Vai mudar as coisas.

— E eles querem usar isso como um caso-teste para a Califórnia?

— Eu não apostaria nisso assim tão rápido. Meu supervisor quer ver primeiro como vai funcionar com o seu caso. Ver se esse cara é o seu assassino e que outras provas aparecem. Estamos procurando um caso em que a tecnologia seja parte integral da instauração do processo.

— Bom, você vai ficar sabendo assim que eu tiver algo, Teri. Obrigado por isso. Vamos começar a investigar agora mesmo.

— Boa sorte, Harry.


Bosch desligou. Antes de mais nada, olhou por cima da parede do cubículo para a sala de reuniões. As persianas estavam abaixadas, mas abertas. Viu Haller gesticulando para os dois homens de Hong Kong. Bosch verificou o cubículo de seu parceiro mais uma vez, porém ele continuava vazio. Tomou uma decisão e pegou o telefone outra vez. David Chu estava na Unidade de Gangue Asiática e atendeu a ligação de Bosch. Harry o atualizou sobre a informação mais recente obtida com as impressões latentes e lhe disse para jogar o nome de Henry Lau nos arquivos de tríade. Nesse meio-tempo, disse Bosch, estava a caminho para apanhar Chu.


— Onde a gente está indo? Quis saber Chu.

— Encontrar esse cara.


Bosch desligou e foi para a sala de reuniões, não para participar de fosse lá o que estivessem discutindo, mas sim para informar Gandle sobre o que aparentemente era uma revelação muito importante no caso. Quando abriu a porta, Gandle o encarou com aquela expressão de estava-mais-do-que-na-hora. Bosch fez um sinal para que ele saísse outra vez.


— Harry, esses homens ainda têm perguntas para você, disse Gandle.

— Eles vão ter que esperar. Conseguimos uma coisa no caso Li e preciso tocar a investigação. Agora. Gandle se levantou e foi na direção da porta.

— Harry, acho que eu posso cuidar disso, falou Haller de sua cadeira. — Mas tem uma pergunta que você precisa responder. Bosch olhou para ele e Haller acenou com a cabeça, dando a entender que a pergunta seguinte não oferecia ameaça.

— O que é?

— Você quer que o corpo da sua ex-esposa seja transportado para Los Angeles? A pergunta deixou Bosch paralisado. A resposta imediata era sim, mas ele hesitou conforme media as consequências para sua filha.

— Quero, disse finalmente. — Traga ela para mim. Deu passagem para Gandle e então fechou a porta.

— O que aconteceu? Perguntou Gandle.


Chu estava esperando diante do prédio da UGA quando Bosch encostou. Ele estava segurando uma maleta, o que levou Bosch a pensar que havia encontrado alguma informação sobre Henry Lau. Entrou no carro e Bosch começou a andar.


— Vamos começar por Venice? Perguntou Chu.

— Isso mesmo. O que você descobriu sobre Lau?

— Nada. Bosch olhou para ele.

— Nada?

— Até onde a gente sabe, o cara está limpo. Não consegui encontrar o nome dele em lugar nenhum dos nossos arquivos de inteligência. Também falei com umas pessoas e dei uns telefonemas. Nada. Falando nisso, imprimi a foto da carta de motorista.


Ele se curvou e abriu a valise, tirando a foto colorida copiada do documento de Lau. Passou-a para Bosch, que a olhou rapidamente conforme dirigia. Pegaram a entrada na Broadway para a 101 e tomaram a 110. As vias expressas estavam congestionadas no sentido centro. Lau havia sorrido para a câmera. Exibia uma expressão jovial e um cabelo cortado com estilo. Era difícil ligar aquele rosto com alguma atividade na tríade, particularmente com o assassinato a sangue-frio do dono da loja de bebidas. O endereço em Venice tampouco combinava.


— Chequei também o registro da arma na ATF. Henry Lau tem o porte de uma Glock Model Nineteen 9 mm. Ele não andava só com ela, ele é o dono legal.

— Quando ele comprou?

— Há seis anos, no aniversário de 21 anos dele.


Para Bosch isso queria dizer que estavam chegando perto. Lau possuía a arma certa, e a aquisição assim que atingiu a idade legal muito provavelmente indicava um desejo acalentado por muito tempo de ter uma arma. Isso o tornava um habitante do mundo que Bosch conhecia. Sua conexão com John Li e Bo-Jing Chang se tornaria óbvia assim que o tivessem sob custódia e começassem a remexer em sua vida. Entraram na 10 e seguiram no rumo oeste para o Pacífico. O celular de Bosch zumbiu e ele atendeu sem olhar, imaginando que seria Haller com notícias sobre o término da reunião com os detetives de Hong Kong.


— Harry, é a Dra. Hinojos. Estamos esperando você. Bosch esquecera. Por mais de trinta anos ele simplesmente seguira com a investigação quando era o momento de ir em frente. Nunca tivera de pensar em mais nada.

— Ah, doutora! Desculpe. Esqueci completamente. Estou indo buscar um suspeito.

— Como assim?

— Surgiu algo novo e eu tive que... Será que tem algum jeito de Maddie ficar aí com você só mais um pouco?

— Bom, isso é... Acho que ela pode ficar aqui. Na verdade só tenho trabalho de escritório para resolver pelo resto do dia. Tem certeza de que é isso que você quer fazer?

— Olha, eu sei que isso é péssimo. Parece péssimo. Ela acaba de chegar, eu deixo-a com você e esqueço. Mas esse caso é o motivo de ela estar aqui. Preciso ir atrás disso. Vou pegar esse cara se ele estiver em casa e voltar para o centro. Então eu ligo e vou buscá-la.

— Ok, Harry. Eu posso aproveitar o tempo extra com ela. Você e eu também vamos precisar de uma hora para conversar. Sobre Maddie e depois sobre você.

— Certo, a gente conversa. Ela está por perto? Posso falar com ela?

— Espera um pouco. Após alguns instantes Maddie pegou a ligação.

— Pai? Com uma palavra ela transmitiu todo o seu recado: surpresa, decepção, descrença, terrível desilusão.

— Eu sei, querida. Desculpe. Surgiu um problema e eu preciso cuidar disso. Fica com a Dra. Hinojos e eu chego aí o mais rápido que puder.

— Tudo bem. Uma dose dupla de desapontamento. Bosch receava que não seria a última vez.

— Certo, Mad. Eu te amo. Ele fechou o celular e o guardou. — Não quero falar sobre isso, ele disse antes que Chu pudesse fazer qualquer pergunta.

— Tudo bem, disse Chu.


O trânsito desafogou e chegaram em Venice em menos de meia hora. No caminho, Bosch atendeu outra ligação, dessa vez aquela que estava esperando de Haller. Ele contou a Harry que a polícia de Hong Kong iria deixá-lo em paz dali por diante.


— Assunto encerrado, então?

— Eles vão entrar em contato sobre o corpo da sua ex-mulher, mas é só isso. Estão desistindo de qualquer interrogatório sobre o seu envolvimento nisso.

— E Sun Yee?

— Disseram que vai ser liberado sem nenhuma acusação. Você precisa entrar em contato com ele para confirmar, é claro.

— Não se preocupe, eu faço isso. Obrigado, Mickey.

— É só o meu trabalho.

— Me manda a conta.

— Não, estamos quites, Harry. Em vez de cobrar você, por que não combinamos um encontro entre a sua filha e a minha? Elas têm quase a mesma idade.


Bosch hesitou. Ele sabia que Haller estava pedindo mais que um encontro entre as duas meninas. Haller era o meio-irmão de Bosch, porém nunca haviam se cruzado na vida adulta até participarem de um mesmo caso apenas um ano antes. Um compromisso entre as filhas significava um compromisso entre os pais, e Bosch não tinha certeza se estava realmente pronto para isso.


— Quando chegar a hora certa, a gente combina, ele disse. — Ela vai começar na escola amanhã e preciso arrumar as coisas para ela morar aqui.

— Por mim tudo bem. Cuida-se, Harry.


Bosch fechou o celular e se concentrou em encontrar a residência de Henry Lau. As ruas dos bairros no extremo sul de Venice eram uma malha organizada em ordem alfabética e a Quarterdeck era uma das últimas antes da entrada do canal para a Marina del Rey. Venice era uma comunidade boêmia com preços de regiões nobres. O prédio em que Lau morava era uma das novas estruturas de vidro e alvenaria que estavam lentamente esvaziando os pequenos bangalôs de fim de semana outrora ocupados diante da praia. Bosch estacionou em uma pequena travessa da Speedway e depois eles caminharam de volta. O prédio era parte de um complexo e havia placas na frente anunciando duas unidades para vender. Eles passaram por uma porta de vidro e deram em um pequeno saguão com uma porta de segurança interna e um painel de botões para chamar as unidades individuais. Bosch não gostou da ideia de apertar o botão da unidade 11. Se Lau percebesse que a polícia estava na entrada do prédio, ele poderia escapar por qualquer saída de incêndio do edifício.


— Qual é o plano? Disse Chu. Bosch começou a apertar os botões das outras unidades. Após alguma espera finalmente uma mulher atendeu.

— Quem é?

— Polícia de Los Angeles, disse Bosch. — Gostaríamos de conversar com a senhora.

— Conversar sobre o quê? Bosch balançou a cabeça. Houve um tempo em que a pessoa não o teria questionado. A porta teria sido aberta na mesma hora.

— É sobre uma investigação de homicídio, senhora. Pode abrir a porta? Seguiu-se uma longa pausa e Bosch quis interfonar outra vez, mas percebeu que não sabia qual dos botões era aquele que ela havia atendido.

— Podem mostrar os distintivos para a câmera, por favor? Disse a mulher. Bosch não se dera conta da câmera e olhou em torno.

— Ali.


Chu apontou para uma pequena abertura localizada no alto do painel. Ergueram seus distintivos e não demorou para que a porta interna abrisse com um zumbido de cigarra. Bosch empurrou a porta.


— Eu não fazia nem ideia da unidade em que ela estava, disse Bosch.


A porta conduzia a uma área de uso comum ao ar livre. Havia uma pequena piscina de natação no centro e todas as entradas residenciais do prédio eram ali, quatro nos lados norte e sul e duas nos lados leste e oeste. O número 11 ficava no lado oeste, o que significava que a unidade tinha janelas com vista para o mar. Bosch se aproximou da porta do número 11 e bateu, sem resposta. A porta do número 12 estava aberta e havia uma mulher ali.


— Achei que o senhor disse que queria conversar comigo, ela disse.

— Na verdade, estamos procurando o Sr. Lau, disse Chu. — Sabe onde ele está?

— Talvez trabalhando. Mas acho que ele disse que ia filmar à noite esta semana.

— Filmar o quê? Perguntou Bosch.

— Ele é roteirista e está trabalhando num filme ou programa de TV. Não tenho certeza. Nesse momento a porta do número 11 foi entreaberta. Um homem com olhos de sono e cabelo despenteado espiou para fora. Bosch o reconheceu da foto que Chu imprimira.

— Henry Lau? Disse Bosch. — Polícia de Los Angeles. Precisamos fazer algumas perguntas.


*   *   *


Quarenta e Quatro

HENRY LAU era dono de uma casa espaçosa com um deque no fundo que ficava 3 metros acima do passeio de tábuas à beira-mar e dava para o Pacífico na faixa mais ampla de oceano da praia de Venice. Ele convidou Bosch e Chu para entrar e lhes disse que sentassem na sala. Chu sentou, mas Bosch permaneceu de pé, de costas para o panorama, de modo a não se distrair durante as perguntas. Não era a sensação que viera esperando. Lau pareceu encarar a presença deles como algo rotineiro e previsto. Harry não contava com isso. Lau usava uma calça jeans, tênis e camiseta de manga comprida estampada com a imagem de um homem de cabelos longos e óculos escuros dizendo THE DUDE ABIDES. Se ele estava dormindo quando chegaram, dormira de roupa e tudo. Bosch lhe apontou uma poltrona preta de couro com braços muito largos.


— Sente ali, senhor Lau, e vamos tentar não tomar muito do seu tempo, ele disse. Lau era pequeno e flexível. Sentou e dobrou as pernas sobre o assento da poltrona.

— Isso tem a ver com os tiros? Ele perguntou. Bosch olhou para Chu e depois outra vez para Lau.

— De que tiros você está falando?

— Os que aconteceram na praia. O assalto.

— Quando foi isso?

— Não sei. Há umas duas semanas. Mas acho que não é por isso que estão aqui, já que nem sabem quando foi.

— Certo, Sr. Lau. Estamos investigando um crime, mas não esse. Incomoda-se de conversar conosco? Lau aprumou os ombros.

— Não sei. Não sei nada sobre crime nenhum, policiais.

— Somos detetives.

— Detetives. Que crime?

— Conhece um sujeito chamado Bo-Jing Chang?

— Bo-Jing Chang? Não, nunca ouvi esse nome.


Ele parecia genuinamente surpreso em ouvir o nome. Bosch sinalizou para Chu, que tirou da pasta uma foto de Chang ao ser fichado na polícia. Mostrou-a para Lau. Enquanto ele examinava a foto, Bosch se deslocou para outro ponto da sala, a fim de obter um outro ângulo seu. Queria continuar em movimento. Isso ajudaria a manter Lau com a guarda vulnerável. Lau balançou a cabeça após olhar para a foto.


— Não, eu não conheço. De que crime se trata?

— Deixe as perguntas com a gente, por enquanto, disse Bosch. — Depois vai chegar a sua vez. A sua vizinha disse que o senhor é roteirista?

— Isso.

— Escreveu alguma coisa que eu possa ter visto?

— Não.

— Como pode saber?

— Porque nunca escrevi nada que foi realmente produzido até hoje. Então não tem como o senhor ter visto.

— Bom, então quem paga por uma casa dessa, com vista para o mar?

— Eu pago. Eu sou pago para escrever. É só que ainda não tive nada produzido. Leva tempo, viu? Bosch ficou atrás de Lau e o jovem teve de se virar em sua poltrona confortável para conseguir acompanhá-lo.

— Onde você cresceu, Henry?

— São Francisco. Vim aqui para estudar e fiquei.

— Você nasceu por lá, também?

— Isso mesmo.

— Torce pro Giants ou pro Dodgers?

— Giants, cara.

— Azar o seu. Quando foi a última vez que esteve em South L.A.? A pergunta veio da esquerda e Lau teve de pensar um pouco antes de responder. Balançou a cabeça.

— Sei lá, cinco ou seis anos atrás, no mínimo. Faz bastante tempo, de qualquer jeito. Gostaria que me dissessem do que se trata tudo isso, porque assim quem sabe eu possa ajudar.

— Então se alguém dissesse que viu você por lá na semana passada estaria mentindo? Lau sorriu como se estivessem brincando de algum jogo.

— Ou isso ou a pessoa se enganou. É como dizem.

— O que é como dizem?

— Que chinês é tudo igual. Lau sorriu com gosto e olhou para Chu, esperando cumplicidade. Chu manteve a compostura e lhe devolveu apenas um olhar frio.

— E quanto a Monterrey Park? Perguntou Bosch.

— Quer dizer, se eu já estive lá?

— É, foi isso que eu quis dizer.

— Hã, fui lá umas duas vezes para jantar, mas realmente não vale a viagem.

— Então não conhece ninguém em Monterrey Park?

— Não, não de verdade. Bosch permanecera rodeando, fazendo perguntas genéricas e avaliando Lau. Era hora de fechar o cerco, agora.

— Onde está a sua arma, Sr. Lau? Lau pôs os pés no chão. Olhou para Chu e depois de novo para Bosch.

— Isso tem a ver com a minha arma?

— Seis anos atrás você comprou e registrou uma Glock Model Nineteen. Pode nos dizer onde ela está?

— Claro que posso. Está num cofre na gaveta perto da minha cama. Onde sempre ficou.

— Tem certeza?

— Certo, entendi, me deixa adivinhar. O Sr. Babaca da unidade 8 me viu segurando ela no deque depois dos tiros na praia e deu queixa?

— Não, Henry, não conversamos com o Sr. Babaca. Está me dizendo que tinha a arma em sua posse após os tiros na praia?

— Isso mesmo. Escutei tiros e depois um grito. Estou na minha propriedade e tenho o direito de me proteger. Bosch acenou com a cabeça para Chu. Chu abriu a porta de correr e saiu para o deque, fechando a porta atrás de si. Ele pegou o celular e fez uma ligação para descobrir sobre a ocorrência da praia. — Olha, se alguém disse que eu disparei a arma, está falando merda, disse Lau. Bosch o encarou por um longo momento. Tinha a sensação de que faltava alguma coisa, um pedaço da conversa sobre o qual ainda não sabia.

— Até onde eu sei, ninguém disse isso, falou.

— Então por favor pode me dizer do que se trata tudo isso?

— Já disse. É sobre a sua arma. Pode nos mostrá-la, Henry?

— Claro, vou buscar. Ele se levantou da poltrona e foi na direção da escada.

— Henry, disse Bosch. — Espera um pouco. Vamos subir com você. Lau virou para olhar dos degraus.

— À vontade. Vamos resolver isso.


Bosch virou para o deque. Chu passava pela porta. Seguiram Lau na escada e depois por um corredor que levava aos fundos da unidade. Fotos emolduradas, pôsteres de cinema e diplomas cobriam os dois lados. Passaram por uma porta aberta que dava em um quarto utilizado como escritório de trabalho e depois entraram no dormitório principal, um quarto enorme com pé-direito de mais de 3 metros e janelas panorâmicas de 3 metros com vista para a praia.


— Liguei para Divisão do Pacífico, disse Chu para Bosch. — Os tiros foram na noite do dia primeiro. Estão com dois suspeitos sob custódia.


Bosch folheou o calendário em sua mente. Dia primeiro caíra numa terça-feira, uma semana antes da morte de John Li. Lau sentou na cama desarrumada perto de um criado-mudo com duas gavetas. Abriu a gaveta de baixo e tirou uma caixa de metal com uma alça na tampa.


— Pode parar aí mesmo, disse Bosch. Lau pôs a caixa sobre a cama e se levantou, as mãos para cima.

— Ei, eu não ia fazer nada, cara. Você pediu para ver.

— Por que não deixa o meu parceiro abrir a caixa? Disse Bosch.

— À vontade.

— Detetive. Bosch tirou um par de luvas de látex do bolso do paletó e estendeu-as para Chu. Então se aproximou de Lau, para deixá-lo ao seu alcance, se necessário.

— Por que comprou a arma, Henry?

— Porque eu estava morando num buraco de merda na época e as gangues estavam em toda parte. Mas é gozado. Eu paguei um milhão de dólares por essa porra de casa e eles estão bem ali na praia, atirando. Chu calçou a segunda luva e olhou para Lau.

— O senhor nos dá permissão de abrir esta caixa? Perguntou.

— Claro, vai em frente. Não sei do que se trata tudo isso, mas por que não? É só abrir. A chave está num ganchinho atrás do criado-mudo.


Chu levou a mão ao lugar e encontrou a chave. Usou-a para abrir a caixa. Um saco de feltro preto para armas repousava sobre alguns papéis dobrados e envelopes. Havia um passaporte e uma caixa cheia de balas, também. Cuidadosamente, Chu tirou o saco de feltro e o abriu, revelando uma pistola semiautomática preta. Ele a virou e examinou.


— Uma caixa de balas Cor Bon 9 mm, uma Glock Model Nineteen. Acho que é isso, Harry. Ele tirou o pente da arma e examinou as balas pela fenda. Depois ejetou a que estava na câmara. — Carregada e pronta para usar. Lau deu um passo na direção da porta, mas Bosch na mesma hora pôs a mão em seu peito para impedi-lo e então o encostou na parede.

— Olha, disse Lau, — Não sei o que é tudo isso, mas vocês estão me deixando com medo. Que porra está acontecendo? Bosch continuou com a mão no peito dele.

— Só me fala sobre a arma, Henry. Você estava com ela na noite do dia primeiro. Ela esteve fora das suas mãos em algum momento desde então?

— Não, eu... É bem aí que eu deixo-a guardada.

— Onde você estava na última terça, às três da tarde?

— Hmm, na semana passada eu fiquei aqui. Acho que estava aqui, trabalhando. A gente só começou a filmar na terça.

— Você trabalha aqui sozinho?

— É, trabalho sozinho. Escrever é uma ocupação solitária. Não, espere! Espere! Na terça passada eu fiquei na Paramount o dia inteiro. A gente teve uma leitura de roteiro com o elenco. Eu fiquei lá a tarde toda.

— E tem alguém por lá para confirmar isso?

— Pelo menos uma dúzia de gente. Até o Matthew McConaughey pode confirmar, caralho! Ele estava lá. O papel principal é dele.


Bosch desviou completamente do assunto, então, pegando Lau com uma pergunta planejada para tirar seu equilíbrio. Era surpreendente o que podia cair dos bolsos das pessoas quando estavam sendo chacoalhadas com uma sequência de perguntas aparentemente sem relação.


— Você tem ligação com alguma tríade, Henry? Lau deu uma gargalhada.

— O quê? Que merda você... Olha, para mim chega.


Tirou a mão de Bosch com um tapa e começou a se afastar na direção da porta. Era um movimento para o qual Harry estava preparado. Ele agarrou Lau pelo braço e o girou. Acertando seu tornozelo com um chute, jogou-o de bruços sobre a cama. Então avançou, ajoelhando em suas costas conforme o algemava.


— Isso é um absurdo, porra! Berrou Lau. — Você não pode fazer isso!

— Calma aí, Henry, fica calmo, disse Bosch. — A gente está indo pro centro para esclarecer essa coisa toda.

— Mas eu tenho um filme! Eu preciso estar no set daqui a três horas!

— O filme que se foda, Henry. Isso é a vida real, e a gente está indo para o centro. Bosch o tirou da cama e apontou a porta.

— Dave, está com tudo aí?

— Pronto.

— Então vai na frente.


Chu saiu do quarto, carregando a caixa de metal com a Glock dentro. Bosch foi atrás, mantendo Lau na sua frente e segurando a corrente das algemas com a outra mão. Seguiram pelo corredor, mas, quando chegaram no topo da escada, Bosch puxou as algemas como se fossem uma rédea de cavalo e parou.


— Espera só um minuto. Volte aqui.


Ele fez Lau retroceder até a metade do corredor. Alguma coisa chamara a atenção de Bosch quando passaram, mas a ficha só caiu quando chegaram no alto da escada. Agora ele olhava para o quadro com o diploma da Universidade do Sul da Califórnia (USC). Lau se formara em artes em 2004.


— Você estudou na SC? Perguntou Bosch.

— É, fiz cinema. Por quê?


Tanto a faculdade como o ano em que ele se formou batiam com o diploma que Bosch vira no escritório dos fundos na Fortune Fine Foods & Liquor. E havia também a ligação chinesa. Bosch sabia que muitos jovens frequentavam a USC e milhares se formavam todo ano, muitos deles descendentes de chineses. Mas nunca pusera fé em coincidências.


— Conheceu um cara na SC chamado Robert Li? Escreve L-I. Lau fez que sim.

— É, conheci. Ele foi meu colega de quarto. Bosch sentiu as coisas de repente colidirem umas contra as outras com inegável força.

— E quanto a Eugene Lam? Você o conheceu? Lau fez que sim outra vez.

— Ainda conheço. Ele também foi meu colega de quarto.

— Onde?

— Como eu disse, naquele pardieiro onde eu morei, no meio das gangues. Perto do campus. Bosch sabia que a USC era um oásis de ensino bom e caro cercado por uma vizinhança de marginais onde a segurança pessoal era sempre um risco a se considerar. Alguns anos antes um jogador de futebol morrera em pleno treino, atingido por uma bala perdida de um tiroteio entre gangues nas imediações.

— Foi por isso que você comprou a arma? Para se proteger lá?

— Exatamente. Chu se deu conta de que haviam ficado para trás e voltou apressado pela escada e pelo corredor.

— Harry, qual o problema? Bosch ergueu a mão livre sinalizando a Chu que esperasse em silêncio. Voltou a falar com Lau.

— E esses caras sabiam que você comprou a arma há seis anos?

— A gente foi junto. Eles me ajudaram a escolher. Por que você...

— Vocês continuam amigos? Continuam a ter contato?

— Eu vi os dois na semana passada. A gente joga pôquer quase toda semana. Bosch olhou para Chu. O caso acabava de ser elucidado.

— Onde, Henry? Onde vocês jogam?

— Na maioria das vezes aqui. O Robert ainda mora com os pais e o apartamento do Huge no Vale é minúsculo. E, caramba, eu tenho a praia aqui.

— Que dia vocês jogaram na semana passada?

— Quarta-feira.

— Tem certeza?

— Tenho, porque eu lembro que foi uma noite antes de começar minha filmagem e eu não queria jogar. Mas eles apareceram e a gente jogou um pouco. Foi uma noite curta.

— E a vez antes disso? Quando foi?

— Na semana anterior. Quarta ou quinta, não lembro.

— Mas foi depois dos tiros na praia? Lau encolheu os ombros.

— É, com certeza. Por quê?

— E sobre a chave da caixa? Algum deles podia saber onde ficava?

— O que eles fizeram?

— Responde logo, Henry.

— É, eles sabiam. Eles gostavam de pegar a arma às vezes para ficar brincando. Bosch pegou as chaves e tirou as algemas de Lau. O roteirista virou e começou a massagear os pulsos.

— Sempre quis saber como era a sensação, disse. — Assim eu poderia escrever sobre isso. Da última vez eu estava bêbado demais para lembrar. Finalmente ergueu o rosto e percebeu o olhar tenso de Bosch. — O que está acontecendo? Bosch pôs uma das mãos em seu ombro e o virou na direção da escada.

— Vamos descer para a sala e conversar, Henry. Acho que tem um bocado de coisas que você pode nos contar.


*   *   *


Quarenta e Cinco

ESPERARAM Eugene Lam na viela atrás da Fortune Fine Foods & Liquor. Havia um pequeno grupo de empregados espremidos entre uma fileira de latas de lixo e as pilhas de caixas de papelão. Era uma quinta-feira, dois dias após terem visitado Henry Lau e resolvido o caso. Haviam aproveitado esse tempo para trabalhar na coleta de evidências e nos testes de laboratório e para preparar uma estratégia. Bosch usara o tempo também para matricular sua filha na escola do sopé da colina. As aulas haviam começado nessa manhã. Eles acreditavam que Eugene Lam fora o responsável pelos tiros, mas era também o mais fraco dos dois suspeitos. Iam prendê-lo primeiro, depois chegaria a vez de Robert Li. Ficaram preparados com todas as armas a postos e Bosch observando o estacionamento, certo de que o assassinato de John Li seria compreendido e definitivamente solucionado até o fim do dia.


— Chegou a hora, disse Chu. Ele apontou a entrada da viela. O carro de Lam acabara de entrar.


Puseram Lam na primeira sala de interrogatório e deixaram que cozinhasse por algum tempo. O tempo sempre estava a favor do interrogador, nunca do interrogado. No DPLA, chamavam isso de “temperar o assado”. Você deixa o suspeito de molho. Dá tempo ao tempo. Isso sempre amacia. Bo-Jing Chang fora uma exceção a essa regra. Não dissera uma palavra e aguentara o tranco como uma rocha. Ser inocente é o tipo de coisa que dá essa determinação à pessoa, e isso era algo de que Lam não dispunha.


Uma hora mais tarde, após conferenciar com o promotor do gabinete da promotoria, Bosch entrou na sala carregando uma caixa de papelão contendo a evidência do caso e sentou do outro lado da mesa, diante de Lam. O suspeito ergueu seus olhos assustados. Era sempre assim após um período de isolamento. O que representava apenas uma hora do lado de fora era uma eternidade ali dentro. Bosch pôs a caixa no chão, depois cruzou os braços sobre a mesa.


— Eugene, estou aqui para explicar os fatos da vida para você, ele disse. — Então escute com cuidado o que eu vou dizer. Você tem uma decisão importante para tomar aqui. O fato indiscutível é que você vai para a prisão. Não há dúvida sobre isso. Mas o que você pode escolher aqui nos próximos minutos é quanto tempo vai ficar lá. Pode ser até você se tornar um homem muito velho ou até enfiarem uma agulha no seu braço e sacrificarem como um vira-lata... Ou então você pode conseguir para você mesmo a chance de ganhar de volta a sua liberdade um dia. Você é um cara bem novo, Eugene. Espero que tome a decisão correta.


Ele parou e esperou, mas Lam não reagiu.


— É até gozado. Eu faço isso há muito tempo e já sentei na frente de um monte de gente que cometeu homicídio. Não sei dizer se eram todos homens maus ou cruéis. Alguns tinham um motivo e outros foram manipulados. Foram levados pelo mau caminho. Lam balançou a cabeça numa atitude desafiadora.

— Eu já falei pro seu pessoal, quero um advogado. Conheço os meus direitos. Você não pode me perguntar nada depois que eu pedir um advogado. Bosch assentiu.

— É, tem razão sobre isso, Eugene. Cem por cento de razão. Uma vez que tiver invocado seus direitos, não podemos mais interrogar você. Não é permitido. Mas olha só, é por isso que eu não estou perguntando nada aqui. Só estou dizendo como as coisas vão ser daqui para frente. Estou dizendo que você tem uma escolha a fazer. Ficar em silêncio sem dúvida é uma escolha. Mas se você optar pelo silêncio, nunca mais vai ver o mundo lá fora outra vez. Lam balançou a cabeça e baixou o rosto para a mesa.

— Por favor, me deixa em paz.

— Talvez ajude se eu resumir as coisas e der para você um quadro mais claro da sua situação nessa história. Olha, estou totalmente disposto a dividir isso com você, cara. Vou mostrar toda a minha mão, sabe por quê? É um royal flush. Você joga pôquer, não joga? Sabe que não dá para ganhar de uma sequência dessas. E é isso que eu tenho aqui. A porra de um royal flush. Bosch parou. Pôde notar a curiosidade nos olhos de Lam. Ele não conseguia evitar, queria saber o que tinham contra ele. — A gente sabe que você ficou com o trabalho sujo nesse negócio, Eugene. Você entrou na loja e matou o Sr. Li a sangue-frio. Mas a gente tem certeza absoluta de que a ideia não foi sua. O Robert mandou você lá para matar o pai dele. E é ele que a gente quer. Estou com um assistente do promotor esperando ali fora e ele está pronto para fazer um acordo com você: 15 anos se entregar o Robert para gente, e então vai ter a chance de tentar uma condicional. Os 15 você vai ter que cumprir com certeza, mas depois disso pode conseguir a liberdade. É só convencer a equipe da condicional de que você foi só uma vítima, de que foi manipulado por um cabeça, e sai livre... Pode acontecer. Mas se escolher outro caminho, está jogando com a sorte. Se perder, já era. Isso quer dizer mofar na prisão por cinquenta anos, isso se o júri não decidir enfiar uma agulha no seu braço antes. Lam disse em voz baixa:

— Quero um advogado. Bosch balançou a cabeça e respondeu com resignação na voz.

— Certo, cara, a escolha foi sua. A gente vai chamar um advogado para você.


Ele ergueu os olhos para o teto onde a câmera estava localizada e fez o sinal de um telefone ao ouvido. Então olhou de novo para Lam e percebeu que só palavras não seriam suficientes para convencê-lo. Era hora de fazer um pouco de teatro.


— Certo, eles vão ligar. Se não se incomoda, enquanto estamos esperando aqui, vou contar algumas coisas para você. Você pode contar para o seu advogado quando ele chegar.

— Faz o que você quiser, disse Lam. — Não estou nem aí pro que você vai dizer, contanto que eu consiga o advogado.

— Ok, então, vamos começar pela cena do crime. Sabe, tem umas coisas nela que estavam me incomodando desde o início. Uma foi que o Sr. Li estava com a arma bem ali debaixo do balcão e em nenhum momento teve oportunidade de usar. Outra foi o fato de não haver ferimentos na cabeça. O Sr. Li foi baleado três vezes no peito e fim de papo. Nenhum tiro no rosto.

— Muito interessante, disse Lam com sarcasmo. Bosch o ignorou.

— E quer saber o que isso tudo me revelou? Isso mostrou para mim que Li provavelmente conhecia o assassino e não se sentiu ameaçado. E que os três tiros foram pelo efeito dramático. Não era vingança, não era coisa pessoal. Foi puro jogo de cena.


Bosch abaixou e removeu a tampa da caixa. Depois tirou dali o saco plástico de evidência contendo o cartucho de bala tirado da garganta da vítima. Ele o jogou sobre a mesa diante de Lam.


— Aí está, Eugene. Lembra-se de procurar por isso? Dar a volta no balcão, mover o corpo, imaginando onde tinha ido parar a porra do cartucho? Bom, aqui está. Esse foi o erro que levou a gente até você.


Fez uma pausa enquanto Lam fitava o cartucho, o medo alojado permanentemente em seus olhos.


— Nunca deixe um soldado para trás. Não é essa a regra de um assassino? Mas você deixou, cara. Você deixou esse soldado para trás e atraiu a gente direto até você. Bosch pegou o saco e o ergueu entre eles. — Tinha uma digital no cartucho, Eugene. A gente identificou com um negócio chamado realce eletrostático. RE, para encurtar. É uma tecnologia nova. E a digital que conseguimos pertencia ao seu velho colega de quarto, Henry Lau. É, isso nos levou a Henry e ele foi muito cooperativo. Contou para gente quando foi a última vez que disparou e recarregou a arma em um estande de tiro, há mais ou menos oito meses. A impressão digital dele ficou no cartucho desde então. Harry levou a mão à caixa e tirou a arma de Henry Lau, ainda em seu saco de feltro negro. Ele a tirou do saco e pôs a arma sobre a mesa. — Fomos até Henry e ele nos deu a arma. Mandamos para balística ontem e eles confirmaram que sem a menor sombra de dúvida essa é a arma do crime. Essa é a arma que matou John Li na Fortune Liquors no dia 8 de setembro. O problema era que Henry Lau tinha um álibi sólido para a hora do crime. Ele estava numa sala com mais 13 pessoas. Até o Matthew McConaughey serviu de testemunha pro álibi dele. E, além do mais, Henry contou para gente que não tinha emprestado a arma para ninguém.


Bosch se recostou na cadeira e coçou o queixo, como que tentando imaginar ainda como a arma acabou sendo usada para matar John Li. — Droga, isso era um problemão, Eugene. Mas daí, claro, a gente teve sorte. Os caras bons quase sempre têm sorte. Você deu sorte para gente, Eugene.


Ele fez uma pausa dramática e então apresentou o seu trunfo.


— Sabe, a pessoa que usou a arma de Henry para matar John Li limpou e recarregou a arma depois, de modo que Henry nem sequer soubesse que ela tinha sido levada emprestada e usada para matar um homem. Foi um plano muito bom, mas o assassino cometeu um erro. Bosch se curvou para frente através da mesa e olhou bem nos olhos de Lam. Virou a arma sobre a mesa de modo que o cano apontasse para o peito do rapaz. — Uma das balas que tiraram do carregador tinha uma impressão digital nítida na superfície. A sua, Eugene. A gente bateu com a digital que tiraram de você quando você trocou sua carteira de motorista de Nova York por uma aqui da Califórnia. Os olhos de Lam lentamente desviaram de Bosch e baixaram para a mesa.

— Isso tudo não significa nada, afirmou ele. Havia pouca convicção em sua voz.

— Sério? Respondeu Bosch. — Sério mesmo? Não sei não. Acontece que, para mim, isso parece significar uma porrada de coisa, Eugene. E o cara da promotoria ali do outro lado dessa câmera está achando a mesma coisa. Ele diz que parece o som da porta da cela fechando, com você do outro lado das barras.


Bosch apanhou a arma e o saco com o cartucho e guardou de volta na caixa. Segurou a caixa com as duas mãos e se levantou.


— Então estamos nesse pé, Eugene. Pense nisso tudo enquanto você espera o seu advogado.


Bosch se dirigiu lentamente até a porta. Ele esperava que Lam lhe pedisse para parar e voltar, que queria fazer um acordo. Mas o suspeito não se manifestou. Harry segurou a caixa debaixo do braço, abriu a porta e saiu. Levou a caixa de evidência de volta para seu cubículo e a deixou cair pesadamente sobre a mesa. Olhou o cubículo de seu parceiro para verificar se continuava vazio. Ferras fora deixado no Vale, para ficar de olho em Robert Li. Se ele percebesse que Lam estava sob a custódia da polícia e possivelmente falando, talvez tentasse alguma coisa. Ferras não gostou da incumbência de servir de babá, mas Bosch não dava mais a mínima. Ferras pusera a si mesmo na periferia da investigação e era aí que teria de ficar. Logo Chu e Gandle, que estiveram observando Bosch lidar com Lam do outro lado da câmera, na sala do equipamento audiovisual, foram até seu cubículo.


— Eu falei para você que a estratégia era fraca, disse Gandle. — A gente sabe que o rapaz não é bobo. Não tinha como ele ter esquecido de usar luva quando recarregou a arma. Quando ele percebeu que você estava tentando manipular ele, você dançou.

— É, bom, disse Bosch. — Achei que era a melhor jogada que a gente tinha.

— Concordo, disse Chu, mostrando apoiar Bosch.

— Mesmo assim a gente vai ter que deixar ele ir, disse Gandle. — A gente sabe que ele teve a oportunidade de pegar a arma, mas não tem prova de que ele fez isso mesmo. Oportunidade não é suficiente. Não dá para ir para o tribunal só com isso.

— Foi o que o Cook disse?

— Foi o que ele estava pensando. Abner Cook era o assistente da promotoria que viera ao distrito para ficar observando da sala de audiovisual.

— Mas onde ele está? Como que respondendo por si mesmo, Cook chamou o nome de Bosch do outro lado da sala da delegacia.

— Volta para cá! Bosch endireitou o corpo e olhou por cima da divisória de seu cubículo. Cook estava acenando freneticamente da porta para a sala de audiovisual. Harry ficou de pé e começou a ir em sua direção.

— Ele está chamando você, disse Cook. — Volta lá! Bosch acelerou o passo conforme se dirigia à sala de interrogatório, mas então diminuiu e se recompôs antes de abrir a porta e entrar calmamente.

— Qual o problema? Disse. — Já chamamos o seu advogado, ele está vindo.

— E sobre o acordo? Ainda está de pé?

— Por enquanto. A promotoria está pronta para ir embora.

— Traz o cara aqui. Quero fazer um acordo. Bosch recuou até a porta e a fechou.

— O que você vai dar para gente, Eugene? Se quiser mesmo o acordo, preciso saber o que tem para me dar. Eu trago o assistente do promotor aqui quando souber que cartas estão na mesa. Lam balançou a cabeça.

— Eu dou o Robert Li para você... E a irmã dele. A coisa toda foi plano deles. O velho era cabeça-dura e não mudava de ideia. Eles precisavam fechar aquela loja e abrir outra no Vale. Uma que desse dinheiro. Mas ele dizia não. Sempre disse não, até que no fim o Rob não aguentou mais.


Bosch se ajeitou novamente na cadeira, tentando disfarçar sua surpresa com o envolvimento de Mia.


— E a irmã era parte disso?

— Foi ela quem planejou. Tirando...

— Tirando o quê?

— Ela queria que eu matasse os dois. A mãe e o pai. Ela queria que eu chegasse cedo e pegasse os dois. Mas o Robert falou para mim que não. Ele não queria machucar a mãe.

— De quem foi a ideia de fazer parecer um crime da tríade?

— Foi ideia dela, e então o Robert meio que planejou. Eles sabiam que a polícia ia morder a isca.


Bosch fez que sim. Ele mal conhecera Mia, mas sabia o suficiente de sua história para ficar triste com todo o episódio. Olhou de relance a câmera no alto, esperando que seu olhar comunicasse a Gandle a mensagem de que ele precisava pôr alguém para localizar Mia Li, de modo que as equipes de prisão pudessem agir simultaneamente. Bosch voltou a olhar para Lam. Ele olhava para baixo, desolado.


— E quanto a você, Eugene? Por que se envolveu nisso? Lam balançou a cabeça. Bosch podia perceber o arrependimento em seu rosto.

— Não sei. Robert disse que ia me mandar embora porque a loja do pai estava perdendo dinheiro demais. Ele me falou que eu podia salvar o meu emprego... E quando abrissem a segunda loja no Vale, eu poderia ficar como gerente.


Era uma resposta tão patética quanto tantas outras que Bosch ouvira ao longo dos anos. Não havia surpresas guardadas quando se tratava das motivações para um homicídio. Ele tentou pensar em alguma ponta solta que talvez ainda precisasse amarrar antes de Abner Cook chegar para selar o acordo.


— E quanto a Henry Lau? Ele deu a arma para vocês ou vocês a pegaram sem ele saber?

— A gente pegou... Eu peguei. A gente estava jogando pôquer uma noite na casa dele e eu disse que precisava ir ao banheiro. Entrei no quarto e peguei. Eu sabia onde ele guardava a chave do cofre. Peguei e depois pus de volta quando foi noite de jogar outra vez. Era parte do plano. A gente achou que ele nunca ia saber.


Isso pareceu inteiramente plausível para Bosch. Mas Harry sabia que, uma vez que o acordo fosse formalmente feito e assinado por Cook e Lam, ele estaria em condições de interrogar Lam com mais detalhes sobre todas as coisas envolvendo o caso. Havia um único aspecto a ser abordado antes de permitir a entrada da promotoria.


— E quanto a Hong Kong? Ele perguntou. Lam pareceu confuso com a pergunta.

— Hong Kong? Ele perguntou — O que tem a ver?

— Quem de vocês tinha uma conexão por lá? Lam balançou a cabeça, em perplexidade. Parecia genuína, para Bosch.

— Não sei o que você quer dizer. A minha família está em Nova York, não em Hong Kong. Não tenho nenhuma ligação com o lugar, e, até onde eu sei, nem Robert nem Mia. Hong Kong em nenhum momento foi mencionada. Bosch pensou a respeito. Agora ele estava confuso. Alguma coisa não batia.

— Está dizendo que, até onde você tem conhecimento, nem Robert nem Mia deram qualquer telefonema para lá sobre o caso ou sobre algum dos investigadores envolvidos?

— Até onde eu sei, não. Eu realmente acho que eles não conhecem ninguém por lá.

— E quanto a Monterey Park? A tríade que o Sr. Li estava pagando?

— A gente sabia sobre eles e Robert sabia quando Chang vinha para fazer a coleta, toda semana. Foi assim que ele planejou. Eu esperei e entrei quando vi o Chang saindo da loja. O Robert me falou para tirar o disco da máquina, mas para deixar os outros discos lá. Ele sabia que um deles tinha Chang gravado e a polícia ia ver isso como uma pista.


“Uma boa estratégia de manipulação da parte de Robert”, pensou Bosch. E ele havia caído, como planejado.


— O que vocês disseram para Chang quando ele foi à loja na outra noite?

— Isso também era parte do plano. Robert sabia que ele ia aparecer para coletar dinheiro dele. Ele baixou o rosto para desviar os olhos de Bosch. Parecia envergonhado.

— Então, o que vocês disseram para ele? Quis saber Bosch.

— Robert falou para ele que a polícia tinha mostrado uma foto dele e que disseram para gente que ele tinha cometido o crime. Falou que a polícia estava procurando por ele e ia prendê-lo. A gente achou que isso ia fazer ele fugir correndo. Que ele ia deixar a cidade e que isso provavelmente faria parecer que ele tinha cometido o crime. Se ele voltasse para China e sumisse, isso ia ajudar a gente.


Bosch ficou encarando Lam conforme o significado e as ramificações de sua confissão lentamente penetravam no sangue negro de seu coração. Ele fora totalmente manipulado, em cada etapa do caminho.


— Quem me ligou? Perguntou. — Quem me ligou e disse que eu devia me afastar do caso?


Lam balançou a cabeça lentamente.


— Fui eu, disse. — O Robert escreveu um texto para mim e eu fiz a ligação de um telefone público no centro. Lamento, detetive Bosch. Não queria assustar o senhor, mas eu tive que fazer o que o Robert mandou.


Bosch balançou a cabeça. Ele também lamentava, mas não pelos mesmos motivos.


*   *   *


Quarenta e Seis

UMA HORA depois Bosch e Cook saíram da sala de interrogatório com uma confissão completa e um acordo de cooperação de Eugene Lam. Cook disse que iria dar entrada imediatamente nas queixas contra o jovem assassino, bem como contra Robert e Mia Li. Afirmou ter provas mais do que suficientes para proceder às prisões da irmã e do irmão. Bosch se reuniu com Chu, Gandle e outros quatro detetives na sala de reuniões para discutir os procedimentos de detenção. Ferras continuava na campana de Robert Li, mas Gandle disse que um detetive enviado para a casa de Li no bairro de Wilshire informara que o carro da família não estava lá e que aparentemente não havia ninguém em casa.


— A gente espera Mia aparecer ou prende o Robert agora mesmo, antes que ele comece a se perguntar sobre o paradeiro de Lam? Perguntou Gandle.

— Acho que é melhor a gente agir, disse Bosch. — Se ele começar a desconfiar, pode ser que fuja. Gandle olhou em torno para ver se alguém fazia objeção. Ninguém se manifestou.

— Ok, vamos nos mexer, disse. — A gente prende Robert na loja e depois vai procurar pela Mia. Quero essas pessoas fichadas até o final do dia. Harry, fale com o seu parceiro e confirme a localização do Robert. Fala para ele que a gente está indo. Eu vou no carro com você e o Chu.


Não era muito comum que o tenente deixasse sua sala. Mas o caso transcendia o rotineiro. Ao que parecia, ele queria estar presente quando tudo fosse encerrado com as prisões. Todos se levantaram e começaram a sair da sala de reuniões. Bosch e Gandle ficaram mais para trás. Harry pegou o celular e apertou a discagem rápida para chamar Ferras. Na última vez em que verificara, ele continuava em seu carro, observando a Fortune Fine Foods & Liquor do outro lado da rua.


— Sabe o que eu ainda não entendo, Harry? Perguntou Gandle.

— O que é?

— Quem pegou a sua filha? Lam diz que não sabe nada sobre isso. E a essa altura ele não tem motivo para mentir. Você ainda acha que foi o pessoal do Chang, mesmo com a gente sabendo que ele não teve nada a ver com o homicídio? A ligação foi atendida antes que Bosch pudesse responder para Gandle.

— Ferras.

— Sou eu, disse Bosch. — Onde está o Li? Ele ergueu um dedo para Gandle, fazendo-o esperar enquanto atendia a ligação.

— Está na loja, disse Ferras. — Olha, a gente precisa conversar, Harry.


Bosch podia perceber pela tensão na voz do parceiro que não era sobre Robert Li que Ferras queria conversar. Sentado ali durante toda a manhã, sozinho no carro, alguma coisa ficara elucubrando em sua cabeça.


— A gente conversa mais tarde. Agora a gente precisa se mexer. Pegamos Lam. Ele entregou tudo. Robert e a irmã. Ela fazia parte disso. Ela está na loja?

— Não que eu tenha visto. Ela deixou a mãe, mas depois foi embora.

— Quando foi isso?

— Faz mais ou menos uma hora.


Cansado de esperar e precisando tomar as providências para se juntar às equipes de detenção, Gandle foi na direção de sua sala e Bosch ficou para trás, pensando que estava a salvo por ora de precisar responder à pergunta do tenente. Agora só precisaria lidar com Ferras.


— Ok, fica de olho, ele disse. — E me informa se qualquer coisa mudar.

— Quer saber, Harry?

— O que foi, Ignácio? Ele respondeu com impaciência.

— Você não me deu uma chance, cara. Havia um tom choroso na voz dele que deixou Bosch irritado.

— Chance do quê? Do que você está falando?

— Estou falando de você ter dito pro tenente que queria um novo parceiro. Você devia ter me dado mais uma chance. Ele está tentando me transferir para veículos, viu? Disse que não dá para contar comigo, então que sou eu quem precisa sair.

— Olha, Ignácio, já faz dois anos, ok? Eu lhe dei dois anos de chance. Mas agora não é hora de falar sobre isso. A gente conversa mais tarde, está bem? Enquanto isso, fica na sua e espera. A gente está a caminho.

— Não, fica na sua você, Harry. Bosch hesitou por um momento.

— O que você quer dizer com isso?

— Quero dizer que eu cuido do Li.

— Ignácio, escuta só. Você está sozinho aí. Não entra naquela loja enquanto não estiver com a equipe de prisão. Entendeu? Quer pôr as algemas nele, ótimo, pode fazer isso. Mas espera até a gente chegar aí.

— Não preciso de uma equipe e não preciso de você, Harry.


Ferras desligou. Bosch apertou o botão de rediscagem conforme se dirigia para a sala do tenente. Ferras não atendeu e a ligação caiu direto na caixa de mensagens. Quando Bosch entrou na sala de Gandle, o tenente terminava de abotoar sua camisa sobre o colete de Kevlar que vestira para entrar em ação.


— A gente precisa ir, disse Bosch. — Ferras resolveu entrar sozinho.


*   *   *


Quarenta e Sete

DEPOIS de voltar do enterro, Bosch tirou a gravata e pegou uma cerveja na geladeira. Saiu para o deque, sentou na espreguiçadeira e fechou os olhos. Pensou em pôr um pouco de música, talvez um Art Pepper, para sacudi-lo de seu estado de torpor. Mas percebeu que era incapaz de se mover. Apenas ficou de olhos fechados e tentou esquecer o máximo que pôde sobre as duas semanas que haviam se passado. Sabia que essa era uma tarefa inatingível, mas valia a tentativa, e a cerveja ajudaria, nem que fosse apenas temporariamente. Era a última em sua geladeira e ele jurou que seria a última também em sua vida. Tinha a filha para cuidar agora e precisaria dar o melhor de si com ela. Como se os pensamentos houvessem invocado sua presença, escutou a porta de correr sendo aberta.


— Ei, Mads.

— Pai.


Em uma única palavra a voz dela soou diferente, perturbada. Ele abriu os olhos e teve de entrecerrar a vista, com o sol do entardecer. Ela já trocara seu vestido por uma calça jeans e uma camiseta que viera na mala que sua mãe havia preparado. Bosch notou que usava mais as poucas coisas que sua mãe guardara na mochila em Hong Kong do que todas as roupas que haviam comprado juntos.


— E aí?

— Eu queria conversar com você.

— Tudo bem.

— Fiquei triste por causa do seu parceiro.

— Eu também. Ele cometeu um erro grave e pagou por isso. Mas não sei, parece que a punição foi desproporcional ao crime, sabe?


A mente de Bosch momentaneamente desviou para a cena terrível que encontrara no escritório do gerente da Fortune Fine Foods & Liquor. Ferras de bruços no chão, atingido quatro vezes nas costas. Robert Li encolhido no canto, tremendo e gemendo, olhando para o corpo de sua irmã perto da porta. Depois de matar Ferras, ela apontara a arma para si mesma. A Sra. Li, matriarca dessa família de assassinos e vítimas, estava estoicamente parada junto à porta quando Bosch chegou.


Ignácio não vira Mia chegando. Ela deixara sua mãe na loja e fora embora. Mas alguma coisa fez com que voltasse, entrando sorrateiramente com o carro na viela e estacionando no pátio dos fundos. Especulou-se depois na sala da delegacia que podia ter avistado Ferras fazendo a campana e sabia que a polícia estava prestes a cercá-los. Ela fora para casa, pegara a arma que seu pai morto mantinha sob o balcão da frente na loja e depois regressara à loja do Vale. Não ficou claro e continuaria para sempre um mistério o que planejava fazer. Talvez estivesse procurando Lam ou a mãe. Ou talvez estivesse apenas esperando pela polícia. Mas voltou para a loja e usou a entrada de serviço nos fundos aproximadamente no exato instante em que Ferras entrava pela porta da frente para tentar dar voz de prisão sozinho a Robert Li. Ela viu Ferras entrando no escritório de seu irmão e então ficou atrás dele.


Bosch imaginava quais teriam sido os últimos pensamentos de Ignácio quando as balas penetraram seu corpo. Imaginou que talvez seu parceiro tivesse ficado perplexo que um raio pudesse cair duas vezes no mesmo lugar, da segunda vez terminando o serviço. Bosch afastou a visão e os pensamentos de sua cabeça. Sentou ereto na cadeira e olhou para a filha. Viu todo o peso em seu olhar e soube o que estava por vir.


— Pai?

— O que foi, querida?

— Eu também cometi um erro. Só que não fui eu quem pagou por ele.

— Como assim, meu amor?

— Quando eu estava conversando com a Dra. Hinojos, ela disse para eu me abrir com você. Preciso contar o que está me incomodando.


As lágrimas começaram a correr, agora. Bosch sentou de lado na espreguiçadeira, segurou a mão de sua filha e a fez sentar do seu lado. Passou o braço em torno de seus ombros.


— Pode me contar tudo, Madeline. Ela fechou os olhos e pôs a mão sobre eles. Com a outra apertou a mão dele.

— Eu fiz a mamãe morrer, ela disse. — Eu fiz ela morrer e devia ter sido eu.

— Espera só um minuto, só um minuto. Você não é respons...

— Não, espera, escuta o que eu vou dizer. Escuta. Fui eu. A culpa foi minha, pai, e eu tenho que ir para cadeia. Bosch a puxou num abraço apertado e beijou o alto de sua cabeça.

— Escuta bem, Mads. Você não vai a lugar nenhum. Vai ficar bem aqui comigo. Eu sei o que aconteceu, mas isso não torna você responsável pelo que outras pessoas fizeram. Não quero que pense isso. Ela recuou e olhou para ele.

— Você sabe? Você sabe o que eu fiz?

— Acho que você confiou na pessoa errada... E o resto, todo o resto, foi responsabilidade dele. Ela balançou a cabeça.

— Não, não. A coisa toda foi ideia minha. Eu sabia que você ia vir e achei que talvez me fizesse voltar para cá junto com você.

— Eu sei.

— Como você sabe? Ela perguntou. Bosch deu de ombros.

— Não tem importância, disse. — O que importa é que não tinha como você saber o que o Quick ia fazer, que ele ia pegar o seu plano e usar de outra maneira. Ela curvou a cabeça.

— Tanto faz. Eu matei a mamãe.

— Madeline, não. Se tiver alguém responsável, fui eu. Ela foi morta numa coisa que não tinha nada a ver com você. Foi um assalto e aconteceu porque eu fui estúpido, porque eu mostrei meu dinheiro num lugar que nunca deveria ter mostrado. Ok? É culpa minha, não sua. Eu cometi o erro. Ela não podia ser acalmada ou consolada. Balançou a cabeça com violência e a força arrancou lágrimas dos olhos de Bosch.

— Não era nem para você estar lá, pai, se eu não tivesse mandado o vídeo. Eu fiz isso! Eu sabia o que ia acontecer! Que você ia entrar no primeiro avião! Eu ia fugir antes que você pousasse. Você chegaria lá e tudo ia estar bem, mas você diria para mamãe que não era seguro eu ficar lá e ia me trazer para cá com você.


Bosch apenas balançou a cabeça. Ele montara mais ou menos o mesmo cenário por conta própria alguns dias antes, quando se deu conta de que Bo-Jing Chang não tinha nenhuma relação com o assassinato de John Li.


— Mas agora a mamãe morreu! E eles morreram! E todo mundo morreu e a culpa é minha!


Bosch a segurou pelos ombros e a virou em sua direção.


— Quanto disso você contou para a Dra. Hinojos?

— Nada.

— Tudo bem.

— Eu queria contar para você primeiro. Você vai ter que me levar para prisão. Bosch a puxou em um outro abraço e segurou sua cabeça contra seu peito.

— Não, querida, você vai ficar aqui comigo. Ele afagou seu cabelo carinhosamente e falou com calma. — Todo mundo comete erros. Todo mundo. Às vezes, como o meu parceiro, você comete um erro e não tem como corrigir. Não tem chance de fazer isso. Mas às vezes é possível. A gente pode corrigir os nossos erros. Nós dois.


As lágrimas dela haviam diminuído. Ele a escutou fungar. Pensou que talvez fosse por isso que viera até ele. Para encontrar uma saída.


— A gente pode fazer alguma coisa boa e compensar as coisas que a gente fez errado. A gente vai compensar tudo.

— Como? Disse ela, quase num sussurro.

— Eu mostro o caminho. Vou mostrar para você e você vai ver que a gente pode compensar isso tudo.


Bosch balançou a cabeça para si mesmo. Abraçou sua filha com força e desejou nunca ter de soltá-la.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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