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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NU E CRU / Paulo Francis
NU E CRU / Paulo Francis

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NU E CRU

 

 

                         INUTILIDADES

 

             EM DEFESA DOS EUA

       Agora que as cravelhas americanas estão caindo em alguns lugares, nenhum muito importante, falando nisso, até publicações conservadoras como The Economist acusam os EUA de uma política externa inepta e destrambelhada.

       Peço vênia para discordar. Nunca houve uma política externa que funcionasse tanto como a americana, quando consideramos, a bem da verdade e da justiça, os handicaps que tem de enfrentar.

       Considerem: durante 23 anos, de 1949 a 1972, Washington conseguiu convencer a 2/3 do mundo que a ilhota de Taiwan era A CHINA, enquanto que a China propriamente dita não passava de ilusão de ótica, sendo populada por 800 milhões de energúmenos cuja única ocupação consistia em correr de um lado a outro do imenso e desperdiçado território, sem Beba Coca-Cola discernível nas ruas, brandindo um livrinho vermelho.

       Se a China desapareceu 23 anos, o que dizer do inflacionamento da ilha de Cuba, que, entre 1959 e 1963, ameaçou militarmente o nosso champã, inclusive pretendendo converter Búzios em campo de colheita de cana, quando se tornaria insuportavelmente shangai? É com nostalgia sentida que recordo as manchetes de “O Globo” e outros diários democráticos em nossa pátria sobre o “barbudo tirânico” e a “cubanização do hemisfério”. Olhem o mapa e vejam o perigo de que escapamos graças à fiel praxis da máxima o preço da liberdade é a eterna vigilância.

       E há a infinita criatividade americana em face de circunstâncias extremamente adversas. Frustrada na tentativa humanitária de convencer a amarelos, marrons, negros, latinos e outras pessoas de cor, cuja tonalidade específica não me tenha ocorrido (ficam aqui, an­tecipadamente, minhas desculpas aos omitidos), a enfiarem anti­concepcionais nas respectivas mulheres, Washington, temendo que do jeito que os nativos iam procriando em breve os americanos médios não poderiam mais comer 50 quilos de carne de boi ao ano, Washington começou a resolver o problema de maneira pronta e cirúrgica. Um bom exemplo é o controle da natalidade na Indochina, menos 1 milhão de cambojanos de um total de 7 em 5 anos de jornadas, e milhões, ninguém sabe ao certo quantos, de outra variedade de amarelos, os chamados vietnamitas. Ingredientes: TNT, herbicidas, pesticidas e napalm. Há ainda incontáveis mutilados, es­fomeados e envenenados na região que se continuam vivos, por as­sim dizer, dificilmente poderão procriar, aumentando o excesso populacional. E demonstrando que não há hard feelings, nenhuma animosidade do povo americano na sua missão civilizadora. Wa­shington, em bom tempo, importou alguns milhares de órfãos, tor­nados tais pelos ingredientes acima referidos, como souvenirs. Em breve, nas escolas públicas locais, serão apedrejados pelas mamães e papais das crianças brancas, mas com a experiência que adqui­riram em escapar de bombas no Vietnam, o que é um paralelepípedo a mais ou a menos, sem falar do fato incontestável que estarão vivendo em muito melhores condições, pois, sob a chuva de pedras, terão o conforto de ler editoriais liberalíssimos no “New York Times” em defesa dos seus direitos de estudar, intitulados invariavelmente Irracionalismo em... segue-se o nome da cidade, já tendo sido sugerido que o “Times”, aderindo à nossa era eminentemente visual, coloque ao lado da palavra Irracionalismo o mapa completo dos EUA.

       Washington é pragmática. O que é bom para o Vietnã nem sem­pre funciona em toda parte. Assim é que houve enorme alegria em Washington, traduzida na frase do então Presidente Lyndon John­son, “uma grande vitória do mundo livre” quando o governo marrom da Indonésia, em 1965, eliminou 1 milhão de marrons da lista dos aspirantes à comida, revelando uma iniciativa insuspeitada da parte de marrons, principalmente porque os marrons “dispensados” per­tenciam às hostes do principal inimigo da humanidade e preocu­pação suprema de Washington, a “conspiração comunista inter­nacional”, ora, sem sede fixa (já se baseou em Moscou, Pequim, Praga e em Havana), pois demônios contam entre as artes que dominam a capacidade de desaparecer temporariamente da nossa vista. Mas estão sempre conosco. Eles se infiltram, eles se masca­ram.

       Há também a alternativa aplicada nos marrons da índia. Essa, sutil e rotineira. A fim de produzir uma agricultura de subsistência, já que dão à luz com maior assiduidade que o gado que adoram, uma bárbara se pitoresca religião, imaginem só um deus que faz “mu”, os marrons lá precisam de um dos produtos do gênio ame­ricano, os fertilizantes. Sempre disposta a auxiliar os menos favo­recidos (vide parágrafo acima sobre os órfãos vietnamitas), Washin­gton despachou para lá a Standard Oil da Califórnia (ou será de Indiana? Não tem importância, mudam os nomes apenas. “Uma rosa se chamada por outro nome”, como diz o mais famoso poeta da­quela deliciosa ilhota que os EUA administram, a Inglaterra, per­mitindo generosamente aos ilhéus a ilusão de que se autogovernam), de propriedade do filantropo Nelson Rockefeller, da fundação do mesmo nome. A líder marrom local achou os preços dos fertilizantes um tanto caros. Considerando que o freguês tem sempre razão, a Standard Oil não insistiu. Washington, porém, acredita que às vezes um pouco de energia é necessária no trato dos nativos, para o bem deles próprios, e suspendeu créditos (empréstimos, não doações. A caridade é um estímulo à preguiça) até que a líder marrom aceitasse os preços da Standard Oil. Isso feito, os créditos e os fertilizantes foram prontamente fornecidos. Tudo OK. O Calcutá!

       Washington sente-se profundamente incompreendida pelos que beneficia e protege. Um exemplo é o Chile. O país, em plena liber­dade, coisa a que os latinos não estão habituados, admitindo eles próprios que quem nunca comeu melado quando come se lambuza começou a adotar as sinistras práticas ditadas pela “conspiração comunista internacional”., encampando diversas empresas dos EUA, o que, evidentemente, provocou o caos na economia chilena. No afã de ensinar uma lição proveitosa aos latinos, Washington usou a influência que tem no chamado Banco Mundial e outras chamadas instituições internacionais de crédito, cortando completamente em­préstimos ao governo responsável pelo crime contra a economia chilena, e, apertando o parafuso, enviou en masse funcionários da maior agência filantrópica dos EUA, a CIA, a Havana, digo, a San­tiago, os nomes latinos são fáceis de confundir, e esses abnegados distribuíram 13 milhões de dólares suados dos contribuintes ame­ricanos às forças democráticas locais, não lhes cobrando recibo ou imposto de renda, como é típico de Washington, porque a gene­rosidade em alguns casos rende mais proventos a longo prazo do que rigores fiscais. A conseqüência disso foi a emergência do governo Pinochet, que rapidamente eliminou todos os focos de subversão, restabelecendo a democracia, que será implantada com todos os formalismos de praxe (formal trappings) nos próximos 40 ou 50 anos, a julgar pelo predecessor e êmulo de Pinochet, o generalíssimo Fran­co da Espanha que, há 37 anos, apesar de ele próprio já estar queimando óleo 70, aos 81 anos de idade, impede que o povo es­panhol, irresponsavelmente, seja seduzido pelas blandícias da “conspiração comunista internacional”.

       Acredito que os exemplos supracitados sejam suficientes para demonstrar os êxitos da política externa dos EUA e o espírito que a anima. Eu poderia citar outros, mas me contenho porque penso no preço do papel, que o Brasil importa a dólares, e não quero pesar sobre o PASQUIM, que colabora com as nossas importações, aceitando a desvalorização mensal do cruzeiro em face do dólar, o que estimula as exportações americanas para nossa pátria e, garan­tindo dest'arte a riqueza dos EUA, de tabela damos nossa modesta contribuição à segurança e integridade do Mundo Livre.

 

                 PATOS

       Em 1971, houve em Washington o famoso debate do ABM. “Famoso”, isto é, no reduzido círculo de pascácios que acompanha o debate sobre armas nucleares (estratégicas, no eufemismo militar) e tenta esclarecer o público, público sem nacionalidade específica, todo o público, pois se do debate passarmos à ação, será o fim de todo e qualquer debate. É uma das ironias supremas da nossa con­dição que esse debate mal penetre a consciência da maioria, en­quanto que trivialidades como formas de governo, por exemplo, excitam os ânimos à histeria, em muitos casos. Se a URSS é ditadurado ou uma ditadura do proletariado, socialmente democrática, ou se os EUA são uma democracia, ou uma ditadura velada em totalitarismo cultural, tema freqüente onde se discuta política, é irrelevante em fa­ce do poderio absurdo — indiscutível — que os Establishments mili­tares americano e soviético possuem, hoje em dia, ameaçando a nós todos. Armas existem para ser usadas, um sine qua non estratégico. E, no entanto, brincamos com nossa destruição, protegidos pela nossa ignorância. Ou seja, brincam conosco, e consentimos, ou nem sequer somos consultados.

       Considerem o ABM, um sistema anti-balístico americano. Em 1972, sob enorme estrondo publicitário, Nixon e Brezhnev toparam limitar os ABMS. O público aplaudiu. Aplaudiu o que? Havia razões de aplauso? O ABM, supostamente, é uma defesa, que torna um ataque nuclear rechaçável. Em outras palavras, quem dispusesse — EUA ou URSS — de um número suficiente de ABMS se tornaria in­vulnerável. Já, porém, que esse sistema é de uma grande comple­xidade tecnológica e custo, só era e é acessível aos EUA e URSS. O resto, a force de frappe francesa, vulgo bombete, os tijolos nucleares chineses, o estoque inglês, não valem dez réis de mel coado. O fran­cês não sabe que Giscard só pode atirar a 70 milhas, em suma, no máximo, sobre a Alemanha Ocidental, o que é divertido, exceto para os alemães. Os chineses precisariam de comprar Boeings 707 para transportarem as cabeças nucleares, que, sabem os chineses, foram inventadas por Mao Tsé-tung, e mais ninguém conhece o “segredo”. O tiro inglês vai até a URSS, mas e a volta, maciça, arrasadora? As­sim vão os impostos de franceses, ingleses e chineses (estes con­tribuindo voluntariamente, a forma suprema de servidão).

       Nixon e Brezhnev, escreveu a imprensa, ao assinarem o tratado de limitação de ABMS, se limitaram na defesa, o que significa, em miúdos, que desistiram de dar um golpe, um no outro, sem sofrerem retaliação. Paz, pelo terror, cantou James Reston, o sicofanta mor do Establishment americano, devidamente repetido e acreditado no Estadão e JB. Hosanas, às pampas, Nixon se reelege presidente em 1972, o “paladino da paz”, ou, como dizia ele, o criador de uma geração de paz (as bombas convencionais, na época, desabavam sobre as cabeças” dos vietnamitas, mas não contam, não são bran­cos). Ainda assim, nada disso. Havia o MIRV, multiple independent reentry vehicle. Nem por extenso, se eu me desse ao trabalho de traduzir, seria imediatamente compreensível. O MIRV é um foguete que, sobre o alvo, “se abre” em várias cabeças, multidirecionais e impossíveis de conter pelo ABM, que reage, digamos, linearmente, contra foguetes individuais. Bem, em 1972, os EUA tinham o MIRV, a URSS, não. Todo comunista imbecil, porém, saudou o tratado de limitação, sem notar (comunista imbecil não nota coisa alguma) que, naquele momento, a URSS aceitava a supremacia americana. Não é que aceitasse, no duro, a longo prazo, pois qualquer imbecil, comunista ou não, deveria supor que o Estado-Maior soviético ja­mais toparia ficar em segundo lugar nesse setor.

       Não é lógico? A tecnologia americana está, em armas, alguns anos na frente da da URSS, não o bastante para criar uma superiori­dade esmagadora dos EUA. No tempo da limitação dos ABMS, a URSS tentava se compensar fazendo foguetes de 3 a 5 vezes maior potên­cia do que os americanos, o que permitia a Time e outras publi­cações sórdidas que vocês lêem e levam a sério, afirmar que os soviéticos, numericamente, tinham mais foguetes nucleares do que os americanos. O fato de que os de Washington vinham de MIRV era cautelosamente omitido.

       Bem, em 1971, o Senado entrou em debate sobre se deveria aprovar ou não a construção de ABMS. Um debate feroz, vitória “moral” completa dos contra. Sim, porque (vejam parágrafo an­terior) era evidente que a URSS criaria o MIRV como, em 1945, sem bomba atômica, obteve-a a pulso. Um voto decidiu a favor dos pró-ABMS. O voto de Margaret Chase Smith, provando que as mulheres merecem mesmo igualdade com os homens. Maggie, Senadora do Maine, levou um pau firme em 1974, não se reelegendo. Deixou, porém, marca na história. Uma instalação de ABM, ao custo de 5,7 bilhões de dólares foi erguida. Em 1973, o secretário de “Defesa”, James Schlesinger, já avisava que a URSS “descobrira” o MIRV. Em suma, o ABM de “Maggie” se tornara obsoleto.

       Hoje, novembro de 1975, o ABM esse começa a ser desmon­tado. Cinco bilhões e setecentos milhões de dólares jogados fora. A imprensa registra o acontecimento.

       E registra quando uma cidade de 8 milhões de habitantes, Nova York, depois de aumentar brutalmente impostos, consegue, a muito custo, um empréstimo do governo federal, de 2 bilhões e 300 mi­lhões de dólares, para impedir que os serviços da cidade entrem em paralisia. Consegue sob insultos de Gerald Rudolph Ford, cuja ca­beça se choca, sempre, com objetos inanimados, provando que nem sempre atração é entre opostos, e consegue a um juro de 8% ao ano, no Brasil, refresco, nos EUA quase agiotagem.

       Nada acontece, porém, nesta formosa terra em que se plantan­do, tudo dá, os EUA. O público não percebe o golpe. Num ou outro colunista de elite, claro, a disparidade de tratamento dispensado a fabricantes de armas e a 8 milhões de pessoas, é notada, porém, a elite já sabia antes disso. O público, não. E morrerá sem saber.

       O que poderia modificar isso seria só uma revolução. Mas não dá pé. Quatro quintos do povo americano sobrevivem em conforto consumista. As diferenças de classe, apesar de brutais, permitem, mesmo no primeiro degrau da escada, um nível de vida tolerável. Não se quer bagunçar o coreto. Revolução é ânsia de quem não pode, de quem não tem condições de fazê-la, ou de repartir o bolo. Portugal é o último exemplo.

       Por que escrever sobre essas coisas? Foi-se o tempo em que eu achava útil jornalismo em que pensava que a imprensa esclarece. Hoje, me é possível argumentar que um máximo de liberdade de im­prensa resulta num máximo de confusão, porque o público é pan-glossiano e, em face do chamado “mercado livre de idéias”, caótico, prefere mesmo enxergar só até a ponta do respectivo nariz. Escrevo em 27 de novembro, Dia de Ação de Graças nos EUA. Perus são depenados e postos no forno. Depenados por patos, o público, depenado o ano inteiro.

 

                 JUSTIÇA POÉTICA

       Um presidente — sob o qual celebraremos o bicentenário da nação — corrido da rua a bala. Até que está melhor que Lyndon Johnson que só tinha entrada garantida em bases militares. Ford an­dou falando em algumas universidades, rurais, é verdade, mas sem­pre universidades, local em que Johnson, se pisasse, não sairia vivo.

       Time há muito informou às suas legiões de leitores fiéis no mun­do que a Nova Esquerda e a contra-cultura estão mortas. Tecni­camente, isso é correto. Ninguém mais protesta contra a guerra do Vietnam, pois os vietnamitas ganharam a guerra, o que era o ob­jetivo dos protestantes. A obra de devastação que historiadores como Gabriel Kolko, ou Diane Clemens, fizeram nos mitos ame­ricanos da Guerra Fria, não alteraram a política externa dos EUA, apenas a desmoralizaram perante a maioria do povo, o que uma es­tatística, a qual o governo nunca se refere, exemplifica: a maioria dos americanos só estaria disposta a ir a guerra por outro país se fos­se o Canadá. O resto que se goda (cada vez datilografo pior, santa maria). Isso era a Nova Esquerda: Vietnam, o símbolo do imperialis­mo militarista, e o domínio mundial da economia pelas grandes corporações, digo, é o que a Nova Esquerda queria destruir. Não des­truiu o domínio, o segundo. Destruiu o mito. Uma grande derrota.

       E a contra-cultura. As crianças flores sumiram das praças. Estão nas grandes lojas de costura. Mudaram totalmente a moda mundial, até em São Paulo, onde ponho paletó e gravata e, surpreso, encontro todos os meus amigos à paisana. Lendo o livro de Vincent Bugliosi e Curt Gentry, Helter Skelter (Norton, Nova York, 502 págs., $ 10), sobre os assassinatos conduzidos por Charles Manson, encontramos o nosso Steve McQueen, no dia seguinte, telefonando a todos os amigos para que se desfaçam dos “estoques”, e Bugliosi e Gentry comentam que nunca tanta descarga de latrina foi puxada em Holly­wood como naquele dia. Rico toma cocaína ($ 80 o grama, quali­dade média) e hash, e pobre, de heroína a maconha, a angel dust, a anfetamina. Nunca se tomou tanta droga nos EUA.

       Tudo isso, porém, é periférico ao espírito vigente. A contra-cultura se apresentava como alternativa à cultura que produziu Viet­nam, o racismo, a pobreza inexplicável de 50 milhões de americanos em face da riqueza do país. Chamava os líderes da cultura de corruptos e assassinos. Time diria que Watergate e Vietnam sugerem que a contra-cultura tinha uma certa razão, mas que ainda há uma América sadia, majoritária, por aí. Bem, se subiu, ninguém sabe, ninguém viu. Vimos fazendeiros aqui explodindo os miolos de bezerros, para manter os preços. E, nas artes populares, a corrupção é o tema único exclusivo mesmo. Hoje, a mais banal série de TV apresenta como vilões os agentes federais. Aquela série famosa, FBI, sumiu do mapa. O federal é o bandido. Não há um filme que se pretenda importante que não trate disso, de Shampoo (falando nis­so, Warren Beatty exigiu que na versão brasileira todas as palavras fossem traduzidas literalmente, sem eufemismo, o que provavel­mente garante que o dito cujo seja proibido. Há uma cena em que Julie Christie grita para um careta Republicano que quer suck o cock de Warren ali mesmo, numa festa em que celebram a vitória de Nixon em 1968) a Nashville. Os entretenimentos mais debilóides também, porque afinal a mensagem de Terremoto, The Towering In­ferno, Jaws e o Exorcista é a destruição da sociedade americana, seja física ou espiritualmente, porque todo mundo sente a destruição no ar. As publicações de Direita cairam firme em cima da Nashville, revistas como Commentary (o título da crítica, sutil como o editor: trashville), colunistas à la Joseph Kraft etc.

       Nashville é o primeiro filme totalmente contra-cultura. Até o método “narrativo” de Altman nega qualquer continuidade ou coerência. É um amontoado de coisas, todas sórdidas, pelos valores expressos da cultura oficial, one damned thing after another, ao som da ridícula, primitiva, neandertalesca e imbecil country music, o ser humano degradado in extremis por uma mística de sucesso que é em verdade, lastreado, pelo homicídio e a pilhagem. América. Não é mais preciso escrever Amerika.

       O interessante nisso é que se até os donos da pop, de Holly­wood às pioneiras (as fábricas de discos) se deixaram dominar pelo o que alguns chamam o niilismo da contra-cultura, o poder político e econômico permanece nas mãos dos representantes da cultura oficial. Comparem um retrato de Squeaky Fromme à Happy Roc­kefeller. Isso tem de ser resolvido de alguma maneira.

       O lógico seria uma ditadura militar de Direita, que eliminasse Squeaky. Não é não, meus amigos. A ditadura militar não poderia contentar todos os grupos de interesses que dominam o pais e mantêm o imperialismo. Imaginem entregar as complicadas negociações no Golfo da Pérsia a um general. Isso aqui, definitivamente, não é América Latina.

       A classe dirigente sabe que a democracia, controlada, dividida irmãmente entre os diversos centros de poder, é melhor negócio.

       O diabo é manter a ralé quieta. A ralé está cada dia mais atrevida. Não tem uma força que a coordene em movimento po­lítico, ou seja que a organize revolucionariamente (quando, então, a alternativa da ditadura militar seria considerada), mas causa um estrago constante, interno e externo. Até o velho criminoso de guerra, Hirohito, mandou perguntar se ele, aqui, não será baleado. Os deuses também morrem.

       Não vai acontecer nada de politicamente definitivo. Vai ser só o agravamento da guerra civil, que está no mundo e cujo centro é os EUA, que Time chamaria o clima de violência da nação, omitindo qualquer análise dos motivos da violência. Este país nasceu do genocídio. Talvez termine no suicídio. Seria justiça poética. Ao menos.

 

                             1976 É AGORA

       Em 1976, haverá uma importante eleição presidencial nos EUA, não porque seja o ano do bicentenário da Revolução. Isso é per­fumaria, uma chance a mais de que se fature em bandeirinhas e mementos. Em cidades do interior, já se celebra o acontecimento. As notícias custam a chegar a cidades do interior. Toda a máquina publicitária, governamental e particular, incentiva o povo a lembrar “nossas realizações”. Sempre agita um pouco. Pouco.

       A importância da eleição vem da presença de Gerald Ford, ou, até, se ele for superado (o que não é impossível) por Ronald Reagan, do que o Partido Republicano quer. Que é o seguinte: destruir, ou reduzir ao mínimo indispensável os 300 bilhões de dólares anuais que o governo federal, Estados e municipalidades gastam, impedin­do que entre 50 ou 70 milhões de americanos desçam ao nível de vida — alimentação seria a palavra exata — de países da América Latina. É uma estratégia clara, se apresentada em código ao público. Traduzo: o déficit atual é de 70 bilhões de dólares. Uma das causas de certo tipo de inflação é que há mais despesa do que receita. Facílimo de entender. Completamente minoritários no Congresso, Ford e Direita alegam que é a maioria Democrata que os impede de equilibrar o orçamento, acabando a inflação. A essa altura, o tipo de inflação que descrevi passou a ser, na propaganda Republicana, o único. São esses detalhes, chatos, reconheço, que constituem a lin­guagem política que determina eleições, logo, se o leitor quer en­tender o que se passa, precisa de paciência.

       Ford e Reagan sugerem que se eliminem os programas sociais, que custam 300 bilhões de dólares, que voltemos à ética protestante de trabalho, em que quem não trabalha, não come. Essa ética, falando nisso, não é protestante, é stalinista, mas isso não vem ao caso. Boa parte dos americanos acredita que seja ética protestante (que cristã, presume caridade), e é o americano que vota. Acrescentam que com todo o seguro de desemprego, medicina de indigentes (medicaid), selos de comida e Welfare (o mínimo a que todo cidadão tem di­reito, trabalhando ou não, procurando emprego ou não), o resultado é o nível de crime nos EUA, insuperado no resto do mundo, permissividade, deficits, a entrada compulsória dos negros nas escolas dos brancos, o descrédito das instituições do país junto à juventude, o enfraquecimento da vontade coletiva do país em face do III Mundo, que “quer nos arrancar o couro nos preços de matérias-primas”, a perda do Vietnam, do Camboja, do Laos, e, talvez, se a CIA não agir em tempo, de Portugal. Devo ter esquecido alguma coisa, mas isso é o essencial.

       Sintam a força de algumas dessas teses junto à classe média branca, dos 30% ou 40% de americanos que ganham, em média, de 10 a 15 mil dólares ao ano. Essa gente paga impostos. O negro em Welfare, não. Os preços nos supermercados disparam. As grandes cidades mês a mês estão cheias de gente de “fora”, que nem inglês sabe falar e que invade as escolas dos brancos. Se cortados os 300 bilhões de dólares não cairiam os impostos, não abaixaria a inflação? Bem, 60% do dólar pago em impostos vão para o Pentágono, que nada produz, exceto armas e munição (e um mínimo de empregos, em fábricas na maioria automatizadas). A esse argumento, Ford etc. respondem que os EUA têm de ser o “número 1”, para garantir a paz mundial. O público, assustado com a queda da Indochina, embora se oponha terminantemente a novas incursões militares, não acha má a idéia de que os EUA sejam o número 1, como defesa de pos­síveis ataques. A Fortaleza América. Talvez considere um preço barato, para evitar novos Vietnams (em verdade, 60% dos ameri­canos acham que o país só deveria ir à guerra em defesa do Canadá, lixando-se para o resto). Fiquemos aqui nas nossas costas, protegídissimos, e o resto que se dane. Razoável. O fato de que os EUA, no momento, já têm a capacidade de destruir o mundo 15 vezes e que superam a URSS, militarmente, em todos os setores, exceto o exército (e nada mais improvável que EUA e URSS tivessem um choque à la II Guerra, dispondo ambos de imensos arsenais nu­cleares), não tem, simplesmente, divulgação, fora das modestas publicações de esquerda, lidas exclusivamente pela minoria ínfima de esquerda. A magnífica posição geográfica dos EUA não é sequer mencionada. Duas fronteiras de países-colônia (México e Canadá), desarmadas, o controle de dois oceanos. Olhem as fronteiras da URSS e China, por exemplo. Inimigos de todos os lados. Nada disso pesa. Um documento, Counterbudget, feito por instituições do Establishment, em 1971, mostrava que 20 bilhões de dólares, em 5 anos, acabariam a fome nos EUA. E 20 bilhões, em 4 anos, terminariam o problema de moradia. E que 10 bilhões poderiam ser re­tirados da verba, da elefantíase anual do Pentágono, sem afetar num mínimo a segurança nacional. O documento jamais foi comentado sequer no New York Times. O documento tinha o aval do Presidente do Chase Manhattan e da General Motors.

       Não estou sugerindo que a estratégia Ford-Reagan é imbatível. Pelo contrário, é vulnerabilíssima. 9 milhões de uma força de trabalho de 71 milhões estão desempregados. A capacidade industrial dos EUA é só aproveitada em 3/4. As multinacionais americanas destroem todo o mercado médio e pequeno interno, pois produzem no exterior, a preço de banana e, aqui, vendem a preços baseados no custo da mão-de-obra americana, em suma, arruinando a compe­tição americana. Uma cartelização de produção que Schumpeter e Lenin, que inventaram o que chamamos, modernamente, de imperialismo, jamais sonharam. O prestígio de Ford, ao máxi­mo, chega a 38%. O de Reagan, a 17%. Por que, então, dar tanta atenção a eles?

       É porque, até o momento, inexiste alternativa. O capitalismo americano está em retirada no mundo inteiro, apesar de mais predatório que nunca (o que não é uma contradição: exércitos em retirada jamais primaram pelo bom comportamento). Não pode competir, em indústria média e leve, com o alemão ocidental e o japonês, que produzem melhor qualidade e mais barato. Resta-lhe tecnologia pesada (que só não perde para alemães e japoneses, por­que os proibiu de produzir, depois da II Guerra. Tecnologia pesada é quase sempre subproduto da indústria armamentista). O único forte, seguro, dos EUA, é produtos primários, setor abastecimentos. Os EUA dominam totalmente os cereais, por exemplo. Podem deter­minar a fome de 1 bilhão de pessoas, ou abastecê-las, e vão usar essa arma politicamente, como usaram a U.N.R.R.A., na II Guerra, para impedir o acesso ao poder — democrático, via eleições — da es­querda, na Europa (vota comunista? Não come. Arthur Miller tem um ensaio excelente a respeito). Agora, não basta. Os EUA, afim de se manterem o número 1, não podem reverter a uma política de ex­torsão “agrária”. Precisam alimentar o imenso parque industrial que construíram sobre os ossos e sangue do III Mundo e que garante o nível de vida, incomparável, dos EUA, mantendo a classe média crente no sistema. Para isso precisam importar praticamente tudo. Até petróleo, o que é um escândalo, pois até 2 semanas atrás, quando a URSS passou na frente, eram os maiores produtores do mundo. Já importam 35% do que consomem. Se o III Mundo fizer um cartel, ou cartéis, de bauxita, cromo, cobre e borracha, este país terá de ir à guerra, ou sofrer uma redução drástica no nível de vida, que poderia provocar uma convulsão social que faria 1929 parecer uma rebelião juvenil. Daí o pânico provocado pela OPEP. Não importa que a parte de leão da OPEP seja das 7 Irmãs, das quais 5 são americanas. O preço interno do petróleo, para os EUA, continua altíssimo, e o país não aguenta. Se unido ao de outras matérias primas essenciais, a casa tremerá nos alicerces.

       O que tem isso a ver com Ford e Reagan? Bem, passando do detalhe ao essencial, o que eles propõem é “economizar” os recursos internos à custa dos miseráveis ou meramente destituídos, quebrando todas as vantagens internas que o povo aqui, via sindicatos, con­seguiu. Em suma, tudo pelo capitalismo, o povo que se dane, e armando o capital para buscar a bauxita e o cromo na marra, se a situação se agravar. Começaram (querem começar) a reforma em casa. Depois, no resto do mundo.

       Quando digo que inexiste alternativa, não estou falando necessariamente de candidatos, afinal, meros atores de interesses que transcendem plataformas ridículas de partidos ou rótulos como “liberais” e “conservadores”. O Partido Democrata financiado e regido, com nuances insignificantes, pelas mesmas forças que os republicanos, de um capital acuado, proporia o que? Aceitar os direitos de uma associação equânime com o III Mundo, como su­gerido pela conferência das nações não alinhadas em Lima? Reduzir drasticamente o nível de vida do povo americano? Numa eleição?

       Nem existe a mentalidade para isso. David Caute escreveu que o grande efeito do macartismo não foi dar novos empregos a Elia Kazan, ou tirar os de John Garfield, mas sim, de destruir em todos os centros de poder a influência, a própria existência de uma alternativa esquerdista (ainda que apenas social-democrata). Um sucesso absoluto, o macartismo. Ford e Reagan podem parecer dois de­magogos, ou robôs, como disse a amiga de Squeaky Fromme, mas representam interesses concretos. O resto não existe.

 

               SE FICAR O BICHO COME

Sempre que leio alguma coisa de Raymond Aron me espanto, por alguns minutos, que a Direita não o promova às primeiras pá­ginas, como a Esquerda fez com Bertrand Russell e Sartre. Aí está um poderoso intelecto direitista, o único talvez, e a ênfase é no substan­tivo. Mas logo manjo. Falando dos estudantes de maio e junho de 1968, Aron nota que se o PC não se tivesse aliado a Pompidou, o regime gaullista tubularia. Isso é negado, de início, pelo PC, que continua revolucionário nas relações públicas e pela intelectuali­dade do Congresso da Liberdade de Cultura, “Encounter”, “Preuves”, “Commentary”, “Dissent” etc., que decretou ser impossível uma revolução esquerdista em país altamente industrializado. Aron não entra nessa. Aron é racional. Analisa e discute.

       O outro breve contra a promoção de Aron é que ele é francês, ou seja, escreve na língua de Sartre. É impossível ganhar uma discus­são com Sartre. Ele vence pelo cansaço, pela verborragia (daí o melhor livro dele). Não que convença necessariamente. Confesso que eu não saberia responder aos ataques dele a Freud, que sei errados do princípio ao fim. Agora mesmo, Sartre escreveu uma car­ta sobre anistia ao “New York Review”. A princípio explica que os americanos podem pensar que um estrangeiro não tem nada que se meter num problema dos EUA. É um equívoco. Os americanos acham perfeitamente natural que todo mundo os comente e espinafre. Não esperam outra coisa e, que eu saiba, não ficam cha­teados. Estão plenamente conscientes da condição imperial. Depois, Sartre fala no debate sobre anistia nos EUA. Não há debate. A mi­noria ativista contra a guerra é a favor. O resto é contra, porque se admitisse que desertores agiram direito (apesar da neutralidade moral do termo anistia), teriam de assumir a responsabilidade pelos crimes de guerra no Vietnam. Afinal, 60,8% do público reelegeram Nixon para se salvaguardarem de coisas desagradáveis como essa. Sartre não sabe do que está falando, mas, como de costume, fala, fala, fala.

       Li um diálogo de Aron sobre maio & junho 68 com Alain Duhamel, chamado “The Elusive Revolution” (nenhum título francês é oferecido). Ele diz uns troços ótimos. Em outras palavras, pergunta o que teria acontecido se o PC não houvesse traído os estudantes. Vocês já imaginaram um governo formado por George Marchais, o tromba do PC, e Cohn-Bendit? Os meninos nunca esconderam o horror pelo stalinismo, e Marchais e Cia. consideram os radicais es­tudantis uns vagabundos. Um dos dois grupos terminaria em frente ao pelotão de fuzilamento. E qual o programa da revolta? Nenhum, exceto ser do contra, botar o General de Gaulle na reserva, destruir o capitalismo e a tirania tecnológica da sociedade de consumo. Ms Susan Sontag escreveu que “quem experimentou a quebra, ainda que curta, das inibições no amor e na confiança naquela (nossa) sociedade nunca mais será o mesmo”. Emocional? Certamente, e Aron ridiculariza os moços que bancaram Saint-Just e Robespierre, acusa-os de “depravação ideológica” e de atores num “psicodrama”. E conclui: “Mais uma vez o povo francês, obsecado pelos mitos do passado, confundiu motim e baderna nas ruas com uma aventura de Prometeu.”

       Bem, que mitos serão esses? A Revolução Francesa, presumo, dada a menção de Saint-Just e Robespierre. Estes, porém, ao con­trário de Lenin (a quem Aron cita de passagem, sem explicar por que), não eram revolucionários profissionais. Apareceram no meio do “estado emocional” a que Ms Sontag se refere e desinibidos no amor e confiança (e violência, convém não esquecer) criaram politicamente o mundo moderno, que é o que a Revolução Francesa fez, em última análise. Aron parece querer que as revoluções sejam certinhas como os cursos de sociologia que ele ensina na Sorbonne. “Estados emocionais”, afinal, determinam nossa conduta quase sempre... Quando você lê, por exemplo, o discurso de Saint-Just in­sistindo em que Luiz XVI seja guilhotinado, sabe logo que não foi es­crito por uma assessoria composta de Arthur Schlesinger Jr., Sorensen, Aron etc. Na fria e quase sinistra justificação da violência há uma paixão pela justiça que até hoje nos faz tremer nas bases. Emocional, sem dúvida, mas o que seremos nós? Robôs?

       Aron, curiosamente, repete o argumento do PC stalinizado que quer predeterminar acontecimentos revolucionários. E, no entanto, ninguém mais surpreso com a Revolução de Fevereiro na Rússia, que derrubou o tzarismo, do que Lenin, na Suíça, pensando muito e dizendo a uns estudantes que revolução era coisa para as próximas gerações. Na hora se improvisa.

       Nada disso, claro, invalida o argumento de que Marchais e Cohn-Bendit são irreconciliáveis. A parte quem mataria quem, há o problema da transformação do ancien regime, o tormento de todas as revoluções, a meu ver, irresolvido até hoje.

       Aron, porém, não entra nesses assuntos (no que li, ao menos). Ele ocupa muito espaço contestando as credenciais dos estudantes. Antes, há algumas frases maravilhosas sobre os intelectuais que apoiaram os garotos, como por exemplo: “Os intelectuais franceses são tão sutis que terminam se esquecendo do óbvio”, o que, no caso, é a necessidade de hierarquia e organização em toda socie­dade moderna. Certo, mas Aron acrescenta: “Um professor precisaria ser muito ignorante mesmo para ser mais ignorante do que alunos, particularmente os primeiranistas em universidades”. Isto é o que chamam aqui de crap. Me lembro de uns dois ou três profes­sores que tive que eu não considerasse e considere até hoje imbecis, e os bons me ensinaram coisas irrelevantes que eu aprenderia, de qualquer maneira, fora da escola. E nada impede que um grande cientista (Edward Teller) seja também um cretino moral. Ou, se você lê, digamos, “O Ateneu”, verifica que a maioria dos alunos é bem superior intelectualmente aos professores. O sistema universitário francês, na época da revolta, era inteiramente arcaico, o que Aron, um fã da sociedade tecnocrática, sabe muito bem. E só mudou na marra, os estudantes forçaram as reformas posteriores, ainda insatis­fatórias para um homem como Aron, acrescento.

 

                     MITOS & SEGREDOS

       Maio & Junho de 1968 abalaram muito mais as classes dirigentes ocidentais do que imagina o ingênuo leitor de jornais. Era um axioma inclusive aceito e explicado por Marcuse (que, nos primeiros dias, não entendeu nada do que estava acontecendo), que uma revolução é uma impossibilidade em nações altamente industrializadas. Maio & junho destruíram completamente esse mito. 500 mil estudantes na rua assustam a qualquer um. As defesas do sistema se mostraram fragílimas. Apesar do fracasso final, deu um pânico até hoje não saneado nos senhores do mundo. E em nenhum lugar isso é mais sensível do que nos EUA.

       O que me parece tolice. Na França, se você toma Paris, o que a Comuna de 1871 (sem falar da Revolução Francesa) provou, o bolo está formado. Já nos EUA, se você conquista a Califórnia, digamos, ainda há um bocado de terra, gente, instituições etc. É verdade que quando Nixon invadiu o Camboja, em 1970, 700 das 5 mil faculdades dos EUA pararam em 24 horas. Nixon, sem saber até onde isso iria, suspendeu os trabalhos. A possibilidade existe.

       Não estou querendo colocar Aron no mesmo contexto de Nixon. Aron é ultra-sofisticado e partilho algumas das opiniões dele. Um exemplo: “Para que a História fosse comparável a um diálogo em que a Razão tivesse a última palavra seria necessário que as perguntas fossem tão razoáveis quanto as respostas, que as situações criadas por respostas anteriores ou que as coisas em si fossem tão razoáveis como as perguntas”. O negócio é se sair por aí. A contemplação platônica da realidade, em que Aron é mestre, afinal o único recurso que resta ao intelectual de Direita, que nada tem a declarar, exceto que se correr o bicho pega, nunca mencionando que se ficar o bicho come.

       As classes dirigentes mantêm mais ou menos esse segredo da potencialidade de maio & junho de 1968. E os intelectuais direitistas aqui, os Trillings, os Kennans, a equipe de “Commentary”, de “Dissent” etc., sem dispor do equipamento filosófico de Aron. Procuram demonstrar o “irracionalismo” dos estudantes. Racionais naturalmente são Nixon, o Pentágono e o carniceiro Thieu.

       Eles apresentam o caso deles, razoavelmente, para desinformados. Mr. Kennan, por exemplo, nota que a universidade deve ser desengajada de lutas políticas, que deve servir de laboratório para estudo da condição humana, o aperfeiçoamento do saber etc. E, no entanto, vêm esses vândalos jovens, barbudos, sujos etc., e que­bram tudo, aterrorizam professores, impedem o andamento das aulas. Esse, em síntese, o argumento que você ouve com mil variações.

       De fato, parece lógico. Já que querem vandalizar o Establishment, por que escolher Columbia University e não a General Dy­namics?

       É simples: mais de 2/3 dos fundos de pesquisa nas universidades americanas vêm do Pentágono, da Comissão de Energia Nuclear e da NASA. E não pesquisam híbridos de pêssego e laranja. Oitenta por cento das verbas da M.I.T. (Instituto de Tecnologia de Massachussets) vêm do governo. Columbia e Princeton, 50%. Há pesquisas de guerra bacteriológica e biológica nas 12 maiores universidades americanas. Estas são proprietárias de imóveis em guetos, fábricas de espagueti, de veneno de formiga, de casas bancárias especiali­zadas em hipoteca, de estádios de futebol (deles), hotéis, navios, companhias de aviação etc. Administradores universitários são membros da diretoria de 1/4 das corporações dos EUA. Vários são agentes de recrutamento da CIA.

       A essa altura, filosofar sobre “perguntas e respostas” deve parecer trivial a muitos jovens vândalos.

 

                         MACARTISMO

       Nesse período de Watergate pelo menos as pessoas inteligentes começam a reexaminar a história americana, à procura de preceden­tes, de explicações etc. E até a TV se anima um pouco à controvér­sia. Um exemplo é a exibição de “Pint of Order”, documentário produzido por Dan Talbot e dirigido por Emile de Antonio sobre o senador Joe McCarthy, que eu vi aqui na TV, em 1954, em estado bruto (o documentário é uma versão do inquérito sobre “penetração subversiva” no exército dos EUA), e, em 1971, no cinema (“Point of Order” estreou em 1963. A expressão equivale ao nosso “questão de ordem”, dos tempos parlamentares). É chato, mas instrutivo.

       Joe McCarthy é um dos mitos mais idiotas da Esquerda pró-URSS, PC e quejandos, que atribui uma enorme importância ao Senador e pensa que as atividades dele caracterizaram um período da história americana, quando não é nada disso. As principais vítimas de McCarthy foram funcionários do Departamento de Estado, quase todos muito mais reacionários que ele — que era um ignorantaço de política externa — se bem que muito mais sofisticados e, portanto, figuras incomparavelmente mais perigosas. Claro, houve também o chamado macartismo, um anticomunismo histérico em que agentes da conservadora URSS eram imaginados debaixo da cama de todo mundo, o que prejudicou um bocado de gente miúda. Um drama humano. Político jamais. McCarthy nunca teve a menor influência na conduta dos EUA no mundo.

       A prova da fraqueza de McCarthy é que nesse inquérito-documentário você o vê sendo tranqüilamente destruído por um ad­vogado, Joseph Welch, que defendeu o Exército. A tática de Welch foi de uma simplicidade infantil. McCarthy fez nome na base de acusações sem o menor fundamento, do tipo “Tenho aqui uma lista de funcionários do Departamento de Estado que são membros do PC”. Nunca exibiu as listas. No inquérito, Welch, depois de ouvir do segundo de McCarthy, Roy Cohn, que este tinha o nome de 130 comunistas em fábricas ligadas à defesa nacional, exigiu de Cohn, na TV, que passasse imediatamente a informação ao FBI, “an­tes do crepúsculo”, frase que soou, premeditadamente, saída de um Western C. Cohn começou a refugar, Welch não deixou. No fim, o público estava às gargalhadas. McCarthy começou a cair assim.

       A reação de McCarthy, obviamente irritado com a reação popular, foi dizer que Welch tinha na equipe dele um sujeito chamado Fred Fischer, que fora, na adolescência, de uma asso­ciação de advogados (Lawiers' Guild) que defendia comunistas. Wel­ch, admirável canastrão, concordou, explicando que Fred Fischer, hoje (1954), membro da organização dos Jovens Republicanos (hum...), na adolescência fora do Guild, tendo abandonado-o, desiludido (mau caráter certo), e que, apesar disso, sem ter resposta às perguntas importantes, McCarthy agora tentava desmoralizá-lo. E, no auge do canastronismo, fez as frases célebres: “Até hoje, Senador, eu não tinha a dimensão da sua irresponsabilidade e cruel­dade. O Sr. não tem um mínimo de decência”? Há povo que resista a isso?, pergunto eu, P. F. Nasce um otário a cada minuto. McCarthy, numa das maiores falta de simancol do século, não respondeu a Welch, dirigindo-se aos repórteres presentes, lembrando-lhes que não deixassem de noticiar a acusação que fizera a Fischer no dia seguinte. Não é engraçado? McCarthy esqueceu-se de que estava sob a televisão, falando à imprensa escrita (que, penhorada, agradece) e querendo obviamente manipulá-la. Welch repetiu: “O Sr. não tem um mínimo de decência”? O público aplaudiu-o de pé. Aí McCarthy se deu conta do que acontecera. Tarde demais. Aca­bou.

       Agora, não haveria no Establishment americano quem soubesse usar tática semelhante à de Welch? Claro, mas o Establishment, a princípio, tinha uma atitude ambígua em face de McCarthy. Achava-o útil como mobilizador de massas contra o comunismo, apesar de condenar-lhes os métodos (a atitude exata de “Time” magazine). Nunca deu a menor credibilidade às acusações do senador, bem en­tendido. O trampolim de McCarthy fora a queda da China sob Mao, em 1949, que ele acusava de ter sido promovida por comunistas no Departamento de Estado, Democratas liberais ou “cripto”, natural­mente. O fato é que todo Establishment já dava de barato a derrota de Chiang Kai-shek, desde 1943, no mínimo. Sustentou-o o tempo todo, porque a alternativa era horrenda: os maoístas. E procurou sempre uma “terceira força” que superasse Chiang, não a encontran­do. Há inclusive aspectos cômicos na “saga” de Chiang. Nada assus­tava mais o Departamento de Estado do que vitórias militares desse caudilho debochado, porque bastava Chiang tomar umas cidades (o que fez às pampas, entre 1946 e 1947), que os povos conquistados se tornavam automaticamente pró-Mao, não por simpatia ao comunis­mo, necessariamente. É que a claque de Chiang e a família do próprio saqueavam todas as camadas sociais chinesas, não excluin­do o exército “nacionalista”, três vezes maior que o de Mao e ar­mado pelos EUA (enquanto a URSS hostilizava Mao, também preferindo fazer negócios com o venal Chiang. Stalin chamava os maoístas de “comunistas margarina”). A partir de 1948 foi o exército de Chiang que começou a se passar de armas e bagagens para Mao, enquanto Chiang cuidava de transferir 138 milhões de dólares em Ouro de Pequim a Taiwan. E não havia mais um grupo no país pró-”nacionalistas”, ainda que muita gente temesse os comunistas. Truman só se referia ao pessoal de Chiang como “ladrões e jabaculeteiros” (sic). A conclusão, em 1949, foi inevitável. A alternativa seria uma aventura à la Vietnam, muito aumentada, de intervenção direta americana, o que ninguém aceitava em Washington, parti­cularmente porque o Establishment naquele tempo considerava a Europa Ocidental a primeira linha de defesa contra o “comunismo”.

       Todas essas informações você pode conseguir nas livrarias do governo americano, em Washington. Foi onde as comprei por uns míseros dólares. Assim, o Establishment tolerou e usou McCarthy enquanto ele explorava a balela da “conspiração moscovita” na China. Já em 1954, atacando o exército (a vítima seguinte seria a CIA), McCarthy começou a agredir o próprio Establishment, que tranqüilamente o destruiu (se Welch não tivesse existido, seria in­ventado). Enquanto o Senador perseguia pequenos funcionários públicos e professores universitários, perseguição que ajudava a im­por um absoluto conformismo ideológico nos EUA, ele era útil. Quando deixou de ser, pensando que era uma força independente, foi arquivado. O Império não brinca em serviço.

 

                      WINSTON CHURCHILL

       30 de novembro foi o centenário de Winston Leonard Spencer Churchill. Recordações: aos 10 anos de idade, ouvi num poderoso Telefunken a batalha da Inglaterra, transmitida pela BBC. Meu in­glês, que aprendi vendo filme em série (“The cops! Beat it!”), não dava para certas palavras que Churchill usava contra Hitler, como guttersnipe, mas o sentido era inequívoco e sempre gostei de dicionários. No “Meio-Dia”, jornal nazista, segui nos mapas o avanço irresistível das tropas de Hitler, na Europa Ocidental, que eu tentava reproduzir dirigindo meus soldadinhos de chumbo (se com a morte de Nero o mundo perdeu um grande artista, em mim perdeu um grande comandante militar. O chamado Plano Schlieffen, da I Guerra, que Hitler aplicou brilhantemente, usando acréscimos de Liddell Hart e De Gaulle, sem falar dos refinamentos do General Manstein, a mim me pareceu claríssimo, de primeira, enquanto Gamelin fazia uma asneira atrás da outra na França). Ouvi até alguns broadcasts de Edwader Murrow, de Londres, que começavam: “This is”, e aí se ouvia o silvo e a explosão de uma bomba, e Murrow con­tinuava: “London”. Entesourei fascinado durante anos o cartoon de David Low, publicado num dos jornais do Sr. Assis Chateaubriand, de um inglês sozinho, depois da queda da França, de punho erguido para o céu, e, na legenda: “Then, alone”. Dunquerque foi o nosso barato supremo, principalmente porque Tyrone Power, em “Um Ianque na R.A.F.”, teve ação decisiva contra a Luftwaffe e, na volta, Betty Grable estava à espera dele, rente como pão quente.

       Será exagero dizer que a Inglaterra teria se rendido a Hitler, en­tre junho de 1940 (fim da França) e junho de 1941 (invasão alemã da URSS), se não fosse Winston Churchill? Talvez. Traduzo livremente Brecht: “O jovem Alexandre conquistou a India/ Ele sozinho?/ César bateu os gauleses/ Não havia sequer um cozinheiro no exército dele?/ Felipe da Espanha chorou quando a Grande Armada foi des­truída. Não houve outras lágrimas?/ Frederico o Grande triunfou na Guerra dos Sete Anos. Quem triunfou com ele?”

       OK, e, a longo prazo, não é muito relevante. Se a Inglaterra caísse, os EUA entrariam na guerra de qualquer forma e, além disso, o principal objetivo de Hitler sempre foi a URSS, o país que o der­rotou, afinal, o que hoje já nem dá debate de historiadores leváveis a sério. Os EUA não tinham outra saída capitalista da Depressão exceto fazer o que fizeram.

       Sei disso e de muito mais. Agora, ninguém vive a História, no sentido que os profissionais usam a palavra. Vivemos nossa vidinha (aproxima-se a hora do almoço) conscientes de alguns fatos e valores, extrapessoais e, claro, não seria consolo para Churchill e os que pensavam como ele confiar em que, derrotados, a URSS e os EUA um dia restaurariam a Inglaterra. Logo, acredito que Churchill entre junho de 1940 e junho de 1941 representou, com todas as contra­dições do império britânico, o breque certo contra Hitler. Um ano em que ele foi o que Mário Faustino chamava a mocinha luminosa da Columbia Pictures.

       Ninguém mais consciente das contradições do império britâ­nico, tão bem expressas na personalidade de Churchill (um tanto pinteresco ele ficar falando de liberdade em face de Hitler, quando nos lembrávamos dos 500 milhões de colonizados sob Londres, em 1940), do que os ingleses. Em fins de 1945, derrotado esmagadoramente pelos Trabalhistas, Churchill foi a uma corrida de cavalos. Insistiu em entrar pela galeria, junto ao povo. Assessores caíram em pânico. Seria vaiado. Foi carregado em triunfo pelos populares que haviam votado contra ele. Em alguns momentos da História, vox populi é em verdade vox Dei.

       As contradições são incontáveis. Churchill é o formulador supremo da Guerra Fria. Claro, esta viria de qualquer jeito, pois outra necessidade vital do império americano, mas, bem, presumo que não precise repetir o que escrevi acima. E, nisso, foi injusto com a própria Inglaterra. Pois quem tronchou a Inglaterra, durante a luta, não foram os nazistas ou os soviéticos e, sim, os EUA, que, para a auxiliarem militarmente a arruinaram economicamente, transfor­mando-a num quase satélite americano (o que virou por completo, hoje, e, no futuro, dos árabes). A Carta do Atlântico, Lend-Lease etc, que Churchill chamava (Lend-Lease, principalmente) de “unsor­did”, marcaram o início do fim da economia inglesa. E acho avacalhante que a classe dirigente inglesa, até hoje, não reconheça esse fato (Lord Keynes fez referências intermitentes), preferindo — o que pensando bem, é coerente — ser satélite americano a ser socialista. Stalin, numa dessas ironias insondáveis da História, sempre foi escrupulosíssimo com Churchill, enquanto este adiou o quanto pôde a chamada segunda frente, na Europa, que aliviaria o povo soviético dos massacres sofridos sob os nazistas, que lhes mataram 20 milhões de pessoas. Quando Stalin já estava na ofensiva e devolvendo o massacre, claro, bananeou Churchill (e os EUA) sobre o controle da Europa Oriental, mas, ainda assim, conservador como era, permitin­do aos EUA o domínio da Europa Ocidental.

       Já está se tornando monótono, mas Churchill era muito con­traditório. Em 1951, voltando ao poder, propôs o que hoje cha­mamos de detente e foi chamado de gagá pelo advogado do Grupo Rockefeller, John Foster Duller, na época posando de ministro das Relações Exteriores dos EUA. Nas desonestíssimas memórias de guerra (ainda assim, leitura divertida) que escreveu, freqüentemente se derrama em admiração pelo heroísmo do soldado russo.

       Churchill foi um ator no nível de Marlon Brando (e, ça va sans dire, mais articulado). O velhinho sorridente e de V da vitória (e, camp supremo, aos primeiros acordes da V de Beethoven), ou o buldogue que, depois de Dunquerque, disse casualmente na Câmara dos Comuns, “Bem, aconteça o que acontecer, continuaremos lutando”, reanimando, num passe de mágica, o espírito de todos os Partidos, estarrecido ao ser abraçado em prantos até por esquerdis­tas que o haviam combatido a vida inteira, esse Churchill não era nada disso, em pessoa. Falando nisso, no famoso discurso, “Luta­remos nas praias, no ar, no mar etc”, foram omitidas, decorosamente, duas frases: “Lutaremos nos mictórios públicos e até com (o que D. H. Lawrence chama em “O Amante de Lady Chatterley”) os nossos John Thomases.” Magnífico.

       Churchill era um maníaco-depressivo. Passava horas olhando paredes, incapaz de um movimento, em profunda depressão (Abrahan Lincoln também, falando nisso). O suicídio era um pen­samento constante, nos conta Lord Moran, médico e amigo particular dele, que nos descreve também a incrível gama de doenças físicas que Churchill padeceu, bebendo non-stop, trabalhando non­-stop, pois, se parasse, se matava. O pai de Churchill, o que vocês devem ter visto no filme, morreu de sífilis quaternária, paralisia geral. O que não tem no filme Young Churchill é que a mãe de Chur­chill, bela americana, Jenny, o ignorava completamente. A única afeição que Churchill recebeu, na infância e adolescência, foi de uma babá (a quem escreveu cartas apaixonadas, até que ela morres­se, chorando copiosamente no túmulo da velha, a única mãe que conheceu).

       Talvez a melhor vinheta sobre a personalidade de Churchill es­teja no livro (deixei aí) do comandante da marinha americana, Harry Butcher, adido naval de Eisenhower, na II Guerra. Butcher, rapaz de boa família, foi levado a um jantar na casa de campo dos primeiros ministros ingleses (Chequers), acompanhando os generais Eise­nhower e o nosso conhecido Mark Clark, que, de classe média, não queriam cometer gafes na presença de Churchill, afinal, descenden­te de uma das mais velhas famílias da Inglaterra, do Duque de Mal-borough. Butcher conta que Churchill bebia uísque e vinho, sem parar, durante a “janta”, falando também sem parar e que estava de meias, sem sapatos. Fumava charutos na cara de Eisenhower e Clark, perplexos e comportadíssimos. Churchill derramou um copo de vinho na mesa. O vinho ficou pingando e os vales não deram um passo. Lá pelas tantas, Churchill pediu a um valé outro par de meias. Veio e Churchill levantou os pés nas fuças de Eisenhower e Clark, trocando-as. Butcher insiste que, em absoluto, Churchill não estava querendo insultar os oficiais americanos. Pelo contrário, tratou-os com a maior efusividade.

       Nos obituários também não encontraremos menção de que, em 1912, Churchill era considerado um radical pelos conservadores, pois passara-se para o liberalismo reformista de Lloyd George, que queria taxar os ricos. Radical e traidor. E que, ao voltar aos conser­vadores, no Ministério da Fazenda, nas crises econômicas de 1926 queria mandar tropas contra os trabalhadores em greve, o que lhe valeu o epíteto de “hiena fascista”, da Esquerda. Ou que, antes de 1940, não havia político de primeiro time mais odiado, desprezado e ignorado por todos os grupos do Establishment, da Direita à Esquer­da, na Inglaterra.

  1. Well, then alone. Um ano de vida. Quantos de nós ti­vemos um ano de vida assim? Teria Churchill consciência de que en­tregando todos os recursos da Inglaterra aos EUA, a fim de enfrentar Hitler, estava destruindo o império britânico que ele tanto queria preservar? O idealismo (contraditório) transcendeu interesses de classe? Churchill é uma obra de arte. Obra de arte não oferece res­postas conclusivas.

       ¨ A desimportância da liberdade nos países capitalistas como os EUA é um tema freqüente, da melhor literatura marxista (que se faz, não acidentalmente, em nações capitalistas livres, EUA, Inglaterra, França e Bélgica) à propaganda stalinista, com a qual não perderei tempo. Os marxistas alegam que essa liberdade é contida dentro de certos limites, que não afetam o controle dos meios de produção e o chamado Governo Permanente (os grupos econômicos dominantes), que transcende partidos ou nuanças ideológicas (a referência aí é aos EUA, em que não existe força política organizada que vise a derrubar o sistema, havendo apenas diferenças de opinião quanto à maneira de administrá-lo). Liberdade também permitida, pois caso se torne ameaçadora, será cerceada. E, descendo a miúdos, se o jor­nal do capitalismo, depende obviamente deste para sobreviver (o que seria do New York Times sem anúncios), logicamente não vai propor destruí-lo.

       ¨ Há um bocado de meias verdades tentadoras nesse raciocínio, mas o curioso é que, do ponto de vista marxista, é claramente antidialético. Quando muito, admite haver “contradições” no sistema, nunca um conflito dialético, exceto se surgir um movimento pro­letário disposto a empolgar o poder. A meu ver, isso é tolice. Ve­jamos uma realidade pouco política, explicitamente política, que se verifica nos EUA. Sindicatos operários que os marxistas chamam de “economistas”, epíteto de Lenin, referindo-se a organizações de trabalhadores que se interessavam apenas por melhorar o nível de vida dos membros, sem consciência ideológica e revolucionária. O problema com Lenin é que, na maioria dos casos, ele estava des­crevendo a situação na Rússia tzarista, num regime fechado e autocrático, onde só mesmo pela força o sistema desabaria (terminou se desintegrando na I Guerra, o que nenhum marxista esperava, ou previu). Nos EUA, 1974, a analogia é ridícula, não por culpa de Lênin, claro, e, sim, dos marxistas e propagandistas que o transfor­maram num ícone. Os sindicatos americanos, apesar da orientação direitista, gozam de total liberdade de reivindicar. E, nos EUA, não existe sequer Justiça do Trabalho. Ou seja, uma greve pode durar até que as partes se cansem, ou fiquem arruinadas.

       ¨ Um dos resultados disso é que o trabalhador, como todo mun­do, submetido à mística da sociedade de consumo (que jamais suprirá o que promete, a todos, porque é baseada nas iniquidades típicas do sistema na distribuição de renda e daí as variedades de desperdício que oferece, pois sempre se dirige a uma clientela definida, à exclusão de outras, e o seu critério é lucro, e não utili­dade), se sente à vontade para exigir mais e mais, ainda que um inocente político, em termos marxistas. A conseqüência disso é que o capitalismo aqui tornou-se incompetitivo com o de países onde a mão-de-obra é barata, e daí procurar produzir também fora dos EUA, gerando desemprego americano. Os sindicatos, por sua vez, tentam impedir a exportação de capital, porque obviamente já per­ceberam a jogada das transnacionais contra eles. O desemprego nos EUA já está, na realidade, em mais de 21%, fora das estatísticas oficiais, e é fatal que cedo ou tarde gere uma consciência política nas bases sindicais, que radicalize as lideranças, decrépitas e ra­ciocinando como se estivessem na Guerra Fria.

       ¨ Esse é um dos mil exemplos. O contraste com a URSS, que os marxistas ocidentais consideram um Estado comunista, se dege­nerado, seguindo Trotsky, não poderia ser maior. Dezenas de mi­lhões de trabalhadores ganham, em média, 30 rublos Dor mês, em valor real 4 dólares. Essa informação é encontrável em diversas publicações soviéticas. E, três semanas atrás, a TASS noticiou que o governo passaria a expedir passaportes internos para os 46 milhões de camponeses que vivem nas fazendas coletivas. O passaporte in­terno é uma invenção infame do tzarismo que Stálin readotou, na década de 1930, sem o qual você não viaja de uma cidade a outra no país. O significado da nota da TASS é que, no mínimo, 46 milhões de cidadãos eram, desde a década de 1930, prisioneiros do Estado nas fazendas coletivas etc. Os marxistas ocidentais alegam, porém, que, apesar de tudo, o stalinismo não destruiu o controle estatal da economia, condição sine qua non do socialismo. Na prática, fora mistificações ideológicas, isso é igual a zero. É verdade que o poten­tado partidário não pode acumular somas de dinheiros e controle particular de empresas à la Rockfeller. Qual, porém, a diferença en­tre poder e dinheiro, nesse contexto? Svetlana Stalin nos conta que quando o pai morreu ela encontrou vários envelopes fechados no gabinete dele. Continham cheques de anos de salários de Stalin. A explicação é simples: Stalin não precisava de dinheiro. A um apito teria o que quisesse. Idem, os donatários do Partido.

       ¨ Uma sociedade aberta sempre foi condição para o socialismo, como sabe quem já leu Marx, Rosa Luxemburg, ou mesmo Lenin e Trotsky, em profundidade. Os dois últimos impuseram uma ditadura num momento histórico difícil, em face de uma guerra civil que matou 13 milhões de pessoas, quando os bolcheviques dominavam apenas 10% da área que hoje é a URSS, ameaçados de intervenção estrangeira, invadidos pelos alemães, enfrentando uma insurreição dos Brancos e a dissidência agressiva de terroristas de Esquerda. Presumiam que a ditadura fosse passageira. Stalin consolidou-a e, agora, a dita cuja treme sob uma estrutura burocrática arcaica, impondo-se a uma nação onde a vontade individual, as aspirações coletivas e o resumível pela palavra liberdade foram esmagadas.

       ¨ Nos EUA, existe opressão, miséria etc. Mas a simples possi­bilidade de qualquer grupo de pressão se manifestar sem ir para a cadeia (o que acontece, comprovadamente, na URSS), impede os excessos do Governo Permanente. Este é uma realidade lamentável, que causa sofrimento infinito ao III Mundo e a muitos milhões de americanos. Não preciso, presumo, repetir as críticas que faço aqui e em outras publicações aos EUA, há 17 anos. Agora, a tradição de liberalismo de 1776 não é nada desprezível, pois institucionalmente estruturada e que funciona quando há suficiente interesse popular (“Watergate” sendo um exemplo imediato. Outro, a derrocada americana no Vietnam).

       ¨ E havendo liberdade, sempre existe a possibilidade de reno­vação. Os EUA que eu conheci, em 1954, sob o “macartismo”, eram passivos e conformistas, no geral. Os de 1968, fremiam sob os ata­ques da chamada Nova Esquerda. A URSS é um mausoléu de idéias e de movimentos. E significativo que os dissidentes sejam, em geral, fanáticos religiosos do tipo Solzhenitsyn. O sistema soviético des­truiu tão completamente a idéia de reforma política que a única maneira de contestá-lo é pelo babalaô. Essa, em última análise, a mais deprimente herança do stalinismo.

 

                       FOI TUDO QUE FICOU

       Alguém ainda se lembra da “linha chinesa”? Só existe hoje em roupas.

       Em 1968, Pequim era contra até que começassem negociações de paz entre os EUA e Hanoi, em Paris, não importa qual o resul­tado. Em 1972, é intermediária.

       Não houve mãe japonesa que escapasse até que Tanaka, nada panaca, fosse lá, e, durante, deu uma de passarinho na cabeça de Chiang.

       O “nazismo revanchista”, vulgo Alemanha Ocidental, vai lá, em 1973.

       Já faz tempo que pouca gente leva a sério a URSS como mãe do internacionalismo socialista. Eu não levo desde 1924, 6 anos antes, portanto, de ter nascido. Não sou o único, bem entendido, mas isso virou quase opinião geral, depois que Khruschev e Kennedy se arreglaram por causa dos mísseis soviéticos em Cuba (1962), quando ficou evidente que Cuba, em Moscou, era negociável. O “pouca” e o “quase” é em homenagem aos membros do Partido Comunista, cuja fé é o maior barato que conheço deixando os cristãos de antanho en­vergonhados pelos leões que os comeram perto do que os comunis­tas comem em propaganda, sem indigestão aparente.

       O próprio pau sino-soviético se baseava nisso: os chineses acu­savam a URSS de negociar uma detente em face dos EUA, quando 2/3 do mundo (estimativa conservadora) continuavam sob controle do capitalismo americano. E o argumento, do ponto de vista co­munista, era e é irrespondível: o campo socialista, mais fraco economicamente que o capitalista, só poderia acomodar-se com o dito em posição de inferioridade. Alguma dúvida? Funde um tam­borete e depois proponha sociedade ao Dr. Walter Moreira Salles. A solução pequinesa era as massas miseráveis que, mobilizadas, ven­ceriam a tecnologia imperialista, ainda que a custo de algumas gerações. A URSS respondia que o “tigre de papel”, vulgo EUA, tinha dentes nucleares. Os chineses ao contrário da lenda, nunca pro­puseram exercer um controle da natalidade provocando um holo­causto. Achavam que o arsenal nuclear soviético era suficiente para aleijar os EUA, o que neutralizaria os dois lados, enquanto os insurrectos do III Mundo fariam o resto.

       Simplifiquei bastante, mas não muito. Parte da polêmica, a maior, foi consumida no bizantinismo de saber quem citara Marx e Lenin corretamente. A resposta é simples: os dois, porque Marx e Lenin disseram coisas diferentes, em tempos diferentes, em face de situações diferentes.

       Esse debate provocou uma pura cisão na Esquerda, não neces­sariamente contida pelos rótulos “Moscou” e “Pequim”. Guevara e Fidel (até 1968, quando a pressão econômica soviética o amorda­çou) iam na linha “chinesa”, sem dar a fonte. As guerrilhas suicidas que tão bem conhecemos tinham e têm a mesma inspiração. Já os PCs em todo o III Mundo promovem coalizações, em geral atrelados a outros partidos ou grupos (quase sempre míticos) de “burgueses nacionais progressistas”. Nada fazem que possa provocar uma con­frontação armada entre EUA e URSS (e incluo o Chile, onde o PC é subordinado ao socialismo democrático de Allende).

       Ninguém “ganhou” a briga. Se a Indonésia é prova de um fracasso calamitoso de Pequim, depois da queda de Sukarno e do massacre de 700 mil pessoas que resultaram num governo pró-EUA, no Vietnam as tais massas sem dúvida demonstraram que a tec­nologia americana pode ser enfrentada por um povo motivado. Nas ocasiões em que a URSS e os EUA se defrontaram, ainda que de segunda mão, como na “guerra dos 6 dias”, em termos militares imediatos, a indecisão, os temores e a inferioridade da URSS ficaram patentes. Já o Chile confirma a paciência soviética — apesar de in­dependente, claro.

       A tese soviética (que muitos consideram uma mistificação com­pleta) é que, a longo prazo, a URSS prevalecerá, bastando para isso que se mantenha forte e influente, pois o império americano se es­cora exclusivamente na exploração dos países cativos, não raro pelo terror, o que, em última análise, provocará rebeliões (o exemplo do Vietnam a única iniciativa da Esquerda que deu certo desde a Re­volução Cubana, também entra aqui), fortalecendo as alianças da URSS em escala mundial. Notem que o socialismo mundial não é sequer mencionado. No ano 3000, talvez?

       Os chineses interpretam a atitude soviética de maneira diferen­te, como levando os insurrectos em potencial a aceitarem as ma­nobras da política externa da URSS, sob promessas espúrias, que visariam a garantir a Moscou um lugar de sócia menor de Washing­ton na divisão dos espólios — nós, em suma.

       Como de costume, as coisas não são tão simples quanto cla­mam, berram, soviéticos e chineses. A análise soviética da situação mundial me parece correta. O imperialismo americano no III Mundo só sobrevive por força de ditaduras “compreensivas” dos interesses do capitalismo dos EUA e que, mais e mais, em proporção direta ao aumento da miséria dos povos submetidos a esse sistema, se vêem, as ditaduras, obrigadas a exercer o terror nu e cru. A “defesa da democracia” pelos EUA já deixou até de constar das notas oficiais. Quando Marcos das Filipinas deu o golpe recente, num país total­mente subjugado por 800 empresas americanas e 3 bilhões de dó­lares de investimento — e daí o desespero popular — Washington não emitiu sequer o lamento de praxe pela morte da “democracia”. Ou a marreta, ou a revolução.

       As brechas no sistema, de resto, têm sempre um caráter anti-EUA, do Ceilão à Argentina. O capitalismo está na dele, que é explorar e lucrar. Não é preciso ser socialista para reconhecer esse fato, Lord Keynes, que salvou o capitalismo desenvolvido com algumas reformas, escreveu que a razão de ser do capitalismo era a eficiência. Já o comunismo podia se dar ao luxo da ineficiência. Isso é sutil paca. Keynes entendeu que comunismo pode pretender um futuro, por mais tirânico e incompetente que seja temporariamente, pois é uma fé. O capitalismo é negócios. Nada mais. Uns tomam, outros dão. A eficiência, no caso, seria os capitalistas se conterem, nos termos liberais de um reconhecimento prudente das aspirações de todos, prescritos por J.S. Mill. Talvez isso aconteça depois que Cristo volte à terra. Enquanto ELE não vem, o capitalismo é o que é e dá no que dá, ao menos no III Mundo.

       Nada disso, por certo, invalida a acusação chinesa de que os soviéticos traíram o ideal revolucionário internacionalista e que uma burocracia corrupta e decrépita quer uma fatiazinha do bolo americano, ao mesmo tempo que impõe os seguidores o que Pe­quim, parafraseando Lênin, chama de social-imperialismo.

       Os chineses, portanto, saíram na frente na polêmica (que, repito, ninguém “ganhou”) até receberem Nixon. Pois estão fazendo tintin por tintin aquilo de que acusaram os soviéticos. Discursos na ONU em defesa de “guerras justas” não convencem os críticos do contrário. E o que falei da URSS em face da economia capitalista se aplica ainda mais à China, cuja pobreza só é tolerável internamente porque é distribuída de maneira igual por todos (um feito importan­te, claro). E Pequim nem fala mais de urgência na revolução mun­dial.

       Os argumentos que expus são contestados pelos comunistas de maneira engraçada: eles dizem que a URSS e China, pela economia estatal, são imunes à penetração estrangeira. Isso é uma meia ver­dade. Claro que não há possibilidade de surgir uma ESSO da URSS, mas não é apenas assim que se determina a economia mundial. Comprando dos EUA, Europa Ocidental e Japão (e vendendo muito menos), URSS e China certamente se desenvolverão nos setores em que permanecem deficientes. Ao mesmo tempo, enriquecerão o inimigo (400 milhões de dólares de ouro soviético para os EUA no negócio do trigo) capitalista. E este, com essa dose nova e ines­perada de faturamento, de mercados imensos que antes lhe eram proibidos, apertará com maior facilidade as cravelhas no III Mundo, que China e URSS supostamente deveriam auxiliar na luta contra o imperialismo. Em verdade, facilitam o trabalho dos EUA a fim de nosfum.

       Não existe mais internacionalismo socialista. Existe uma forma (variada) de socialismo nacional, com ênfase no nacional. O na­cionalismo e não o capitalismo, derrotou o comunismo. Em nosso tempo, ao menos, até outubro de 1972. Batalha ou guerra?

 

                     O FUNDO DO TÚNEL

       Em 29 de março, li no noticiário da Reuter em TV (canais que só trazem notícias escritas, o dia inteiro. Há música de fundo, Rock etc, se você quiser som), às 11 da noite, que Da Nang havia caído. Os jornais de hoje, dominicais, o Times e o Post, não pegaram a “nova” a tempo, se prenunciam, corretamente, a queda. Às 6,30 da tarde, ontem, foi “melhor”. Um camara-person da CBS viajou num 727 da World Airways de Saigon a Da Nang, que fora recolher mulheres e crianças, segundo o dono, Ed Daley, fretado pelo governo dos EUA. Daley fez esse vôo a leite de pato, porque as autoridades dos EUA em Saigon desaconselharam, e qual é o problema? Rhett Butler, quando vê o Sul, que ridicularizara, derrotado, se alista nas tropas Confederadas. Daley seguiu uma tradição respeitável. Entre 260 pas­sageiros, voltaram 5 mulheres e 2 crianças. Os outros são membros de uma divisão de elite de Saigon, os Panteras Negras (sic), e com­bateram bem, na oportunidade, combateram as mulheres e crianças, não os norte-vietnamitas. Atiraram nas mulheres e crianças. Os que não subiram no 727, semi-destruído, atiraram em Daley, na tripu­lação e no avião. Vários se dependuraram nas rodas, caindo do Boeing no Mar da China.

       Pausa: um cavalheiro explica que gosta da mulher dele porque ela se cuida (“será que ele não me ama mais por que descuidei da minha aparência?”), e ela revela o segredo que preserva a fachada desejável. Toma Ceritol, que contém todo o ferro de que necessita. Ele gosta dela porque ela toma ferro. Em seguida, um executivo, um operário, um auxiliar de escritório (negro: realiza-se aos poucos a promessa dos direitos civis, pela qual Martin Luther King e tantos outros deram a vida, os negros começam a participar do sonho americano) e uma professora nos informa que “alívio” (relief) se soletra Rolaids (Relief spells Rolaids).

       Na sexta-feira, eu vira o documentário de Peter Davis sobre o Vietnam, Hearts and Minds. Um menino gane e se arrasta em volta do túmulo do pai. É inteiramente original, sensação que só os raros grandes atores adultos nos comunicam. Nunca vimos alguém chorar como Marlon Brando diante do túmulo da mulher, em Último Tan­go. As crianças fazem isso naturalmente. Há críticos. O general William (“há uma luz no fundo do túnel”) Westmoreland nos con­fidencia que a tenacidade dos norte-vietnamitas (nacionalidade do menino chorando) se deve ao fato de que os orientais não valorizam a vida humana como nós ocidentais.

       Há o tenente Coker, aviador da Marinha, aqui de New Jersey, pertinho, Niterói em relação ao Rio. Coker passou 7 anos numa prisão norte-vietnamita. Resistiu e foi recebido como herói. Foi voluntário na guerra e voltaria se lhe ordenassem. Já que o governo não quer obrigá-lo a novo sacrifício, Coker fala à comunidade, educa-a em patriotismo. Numa escola primária, a uma pergunta in­fantil, “Que tal é o Vietnam”, responde: “O país seria muito bonito senão fosse o povo, primitivo, sujo e desleixado”. Variety comunica que Hearts and Minds, no primeiro dia de exibição no Cinema I (ex­clusivamente), em N. Y., deu um potente (sic) $ 3378.

       Aqui já nos habituamos a chupar nossos Rolaids contra o exces­so de acidez e as nossas mulheres tomarem o ferro de que neces­sitam enquanto a TV nos mostra os gooks (intraduzível; o nosso “china” é suave demais) se segurando nas rodas dos aviões dos Bwanas brancos. Em 1971, depois de parcialmente massacrados no Laos, os sul-vietnamitas tentaram a “mesma manobra” até em he­licópteros americanos, obrigando os pilotos a fuzilá-los a pistola. Só de abril de 1970 a abril de 1975, desde que os EUA destruíram a paz do Camboja, morreram 1 milhão dos 7 milhões de cambojanos, o que eqüivaleria, em proporcionalidade populacional, a 35 milhões de americanos (que perderam 405 mil soldados em toda a II Guerra). O que é mais ou menos um gook? Um soldado diz em Hearts and Minds: “Isso é gente? Fazem coco no mato e compramos as mulheres deles a 3 dólares a noite.” Os vietnamitas têm 5 mil anos de civilização, dos quais 1.200 passaram lutando contra o imperialismo chinês, ao qual estariam servindo agora, segundo os estrategistas do Pentágono, enquanto os EUA foram fundados no Século XVII por “Puritanos”, seita de fanáticos religiosos, expulsa da Inglaterra porque queria queimar hereges, e criminosos vários, à procura de um novo mundo.

       Talvez o assunto não interesse muito aí. Afinal, todos nós temos os nossos Vietnams e o brasileiro certamente não fica no Sudeste da Ásia, mas, calma, se vocês vissem Hearts and Minds, e se vocês são de classe média, no mínimo, acostumados a passar o verão (digo, o inferno) fora do Rio ou São Paulo, no interior, vocês reconheceriam imediatamente os vietnamitas, na medida em que reconhecem o que no meu tempo de infância chamávamos de colonos, na minha juventude de camponeses e, hoje, esquecemos do que chamar, e es­quecemos, ponto.

       Não corto tão bem, nem de longe, quanto Peter Davis, mas ten­to: no World Almanac, de 1946, encontramos que os EUA, em 1941, quando entraram na II Guerra, tinham um Produto Nacional Bruto de 96 bilhões de dólares, em 1942 de 122 bilhões de dólares, em 1943 de 149 bilhões de dólares e em 1944 de 160 bilhões. Em suma, o PNB subiu, durante a guerra, em 64 bilhões de dólares. Hoje, em reces­são, é 1 trilhão e 300 bilhões de dólares. O motivo é simples: a guerra continuou em toda a parte em que existam mercados para expor­tação, importação e absorção pelo capitalismo americano, seja o intervencionismo direto (Coréia e Vietnam) ou indireto (Irã e Chile). É tolice de Peter Davis colocar Eisenhower sorrindo paternalmente en­quanto explica que a queda do Vietnam seria mau negócio porque “perderíamos o zinco e o tungstênio de que tanto necessitamos”. Tolice porque localiza, periferiza o problema. Não há tungstênio e zinco que valham 250 bilhões de dólares de investimento (na estatís­tica oficial, 140 ou 150 bilhões), 57 mil vidas, 300 mil feridos, 500 mil desertores e um laceramento das sensibilidades da elite irremendável, a meu ver, na sociedade americana. Isso é “injustiça” com Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon e até o pobre Ford. É inconcebível que amanhã a ITT dispute a pau o mercado de Mogi das Cruzes, exclusivamente, trazendo os fuzileiros navais, os B-52s etc. Não vale o investimento.

       O que está em jogo, no Vietnam, é o princípio estratégico da Pax Americana, simplificado, mais uma vez, na chamada Teoria do Dominó (se um cai, caem todos). As Filipinas e a Indonésia conti­nuarão sob os defensores da sociedade cristã e ocidental, os de­mocratas Marcos e Suharto, depois que a Indochina for libertada. Agora, se cai, o princípio se mostra furado, furável. Se um povo de mulheres a 3 dólares e que não conhece a infinita variedade de papel higiênico que temos aqui (há um, o Charmin', que somos aconse­lhados a espremer, de tão gostoso) é capaz de enfrentar a máquina tecnológica de submissão do Império, aonde vamos parar? Afinal, é sabido (de historiadores apenas, na nossa descontraída era visual) que Napoleão Bonaparte achou a Inglaterra conquistável porque es­ta se deixou vencer por um bando de colonos amotinados no que hoje chamamos de EUA, “uma nação de lojistas” é do que Napoleão apelidou a Inglaterra. Nossa vida individual, quando temos a des­graça ou graça de sermos notados, é um segundo histórico. Os es­trategistas pensam em horas, dias, semanas, anos. Kissinger liga o colapso de negociações no Oriente Médio, a rebelião em Portugal, a desobediência na Grécia e Turquia, ao desmoronamento do Cam­boja e Vietnam. Claro, ele fica nos dominós, não cita o World Al­manac, seria complexo demais para os usuários de Geritol, Rolaids e Charmin', poderia até chocá-los saber que o nível de vida americano (assim mesmo cheio de desnivelamentos brutais) está inexplicavel­mente ligado à miséria de 2/3 da humanidade, mantidos em subser­viência manu militari diretamente da matriz, ou à la romana, via compreensivos sátrapas locais. Se os soviéticos administram um GULAG nacional, como chora o milionário Solzhenitsyn, os EUA, que só se contentam com o primeiro lugar em tudo, a guerra do Vietnam sendo uma prova de que Hitler era pinto, estabeleceram o GULAG internacional.

       Se este artigo provocar em você, meu caro leitor, acidez, e Rolaids não resolver, temos o Turns. Se piriri, Kaopectate. Não se preocupe demais. A gente sempre encontra remédio aqui. Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta. E ferro na boneca.

 

               URSS: MINHA & DELES

       Virou lei na URSS A “taxa de imigração”, anunciada em 3 de agosto de 1972, como decreto. Em média, um diplomado tem de pagar 10 mil dólares ao governo para se mandar, definitivamente. O dinheiro é calculado em função do tempo de serviço de cada um, quanto mais serviço, menos pagamento. Ignorante sai quase a leite de pato. Como os judeus são o grupo étnico mais bem educado da URSS, vão ficar com a maior parte da conta. Ainda assim, 30 mil foram embora, em 1972. Não que tenham todos se estabelecido em Israel, ao contrário da lenda. Vários intelectuais judeus acharam Israel matutérrima e se fixaram nos EUA e Inglaterra. É difícil pruma pessoa inteligente encontrar onde viver hoje em dia.

       Há tanta molecagem nessa história, que começo pelo trivial. Por que Israel quer importar judeus da URSS? O motivo principal é que o sionismo não é atraente para a maioria dos judeus do Ociden­te, que preferem ficar onde estão — e, no que me concerne, são bem-vindos, perderíamos muito se se fossem. Israel, nesse sentido, como pátria de todos judeus, é um fracasso retumbante. Certo, ob­teve o apoio da maior parte, cá fora, não viveria, aliás, sem a con­tribuição financeira e moral dos que permanecem na Diaspora, porém, há mais ambigüidade aí do que parece. A parte a natural ligação atávica e cultural, existe o sentimento de culpa de muitos judeus que não querem se afundar em Israel, e o ressentimento (mudo, quase sempre, por conveniência) dos sionistas contra eles. Em suma, os judeus não sionistas pagam para não se aborrecerem.

       Israel precisa de gente para ocupar e desenvolver os territórios ocupados e, como direi, ter uma chance populacional contra os árabes. Logo, recorreu à URSS, onde ainda existem, na complexa e fracassada política de nacionalidade soviética, inúmeros judeus que não se adaptaram ao Estado soviético. Tudo que tenho lido sobre es­ses imigrantes deve estar estourando a cabeça dos dirigentes israelenses. São, na maioria, caipiras ultra-reacionários, que pre­cisam de longo período de treinamento a fim de se ajustarem a uma sociedade moderna como a de Israel e que, em muitos casos, ficam chocados com os costumes livres e o preponderante anti-religiosismo dos sabras. Em outras palavras, o governo trabalhista de D. Golda Meir está reforçando as forças mais retrógradas de Israel, o Partido Nacional e similares, recebendo esses botocudos soviéticos. E não se trata, exclusivamente, de um empreendimento humani­tário. Israel não pia sobre os judeus na Rumania, por exemplo, por­que tem boas relações com o governo comunista de lá. O “liberte o meu povo” (Let my people go) que cantam aqui é seletivo, concen­trando-se na URSS, que sustenta militarmente os árabes. Os inocen­tes, como de costume, pagam pela intrigalhada política dos po­derosos.

       Nada disso justifica a atitude soviética. É uma atitude infame, pura e simples. E é uma medida da alienação do poder em que vivem os dirigentes soviéticos que eles imaginem o “desconto pelo tempo de serviço”, mencionado no primeiro parágrafo, como atenuante, junto aos críticos do Ocidente. Uma sociedade, supostamente re­volucionária, que tem de arrancar o couro de quem quer sair dela, não é: a) revolucionária; b) é um fracasso ainda mais retumbante do que o Estado sionista.

       Confesso, inclusive, que invejo os comunistas. Que alguém ain­da consiga acreditar que URSS e China representem ideais socialistas meparece prova de uma imaginação prodigiosa. O problema chinês é bem mais complicado que o soviético e deixo-o para outra opor­tunidade. Adianto logo que de crítica fundamental ao regime maoísta só tenho a tranqüilidade com que Pequim permitiu o massacre no Vietnam a partir da visita de Nixon. Ainda assim, há poderosas atenuantes, enquanto que desconheço qualquer justificativa para explicar as posições da URSS.

       Uma nota pessoal: um amigo meu, comuna matriculado mas livre de preconceitos, me contou, às gargalhadas, uma discussão que teve com um diplomata soviético. O cavalheiro confessou-se perplexo em face dos meus escritos. Me considera “consistentemente anti-soviético”. Reconhecia, porém, que “não sou agente do imperialismo americano”, pois ataco tanto os EUA como a URSS (o que é, acrescento logo, falso: dada a minha condição de brasileiro, condição até geográfica, as relações do meu país & EUA são minha preocupação fundamental). Inclusive, o que mais irritava o soviético é o meu hábito de comparar a URSS, socialista, aos EUA, imperialista. Moral da história: o diplomata, exibindo um sorriso sutil, contou a meu amigo que descobrira que meu nome verdadeiro era Heilborn e que, em conseqüência disso, eu devo ser agente da Alemanha Ocidental. Passo a informação, sem maiores comentá­rios, à embaixada da Alemanha Ocidental, no Brasil. O que tenho de atrasados a receber, e quero em marcos, dará para eu saciar meus credores messalínicos e me garantirá uma vida à frescata (nenhum duplo sentido) em Correias, para onde pretendo me locomover, em breve, aposentando-me em meio de vacas, bois e outras criaturas pacíficas.

       O nível de debate desse diplomata é típico do que passa por inteligência na URSS de hoje. Antes, porém anuncio que tenho paixão pela URSS, ou melhor, me comovem às lágrimas os sofrimentos do povo soviético. Estive lá, a convite, em 1966 (o diplomata, falando nisso cobrou do meu amigo a hospedagem amável que me dera. Só tenho a dizer que: a) não me convidei; b) não me comprometi a coisa alguma, antes, durante e depois). Várias vezes, em diversos lugares históricos, senti vontade de chorar, e para ser franco, me emocionei aos potes, lembrando-me de certos episódios. Um dia, a maior crise de emoção, no Volga, vi um cavalheiro de seus 50 anos, muito mal vestido, meio bêbado e sem uma perna, com a conde­coração de herói da União Soviética, a maior do país. Ele me pa­receu o retrato vivo da União Soviética, aquela que inspirou milhões de pessoas de bem, em 1917, quando Lenin e Trotsky proclamaram a maior revolução libertária com que a humanidade já sonhou, os “10 dias que abalaram o mundo”. E ainda restou bastante do espírito dessa Revolução para que homens como aquele no Volga, sob o maior tirano que já existiu, Stálin, detivessem e destruíssem as 140 divisões de elite que Hitler lançou contra a URSS, em 1941. “Eles não lutam como homens, lutam como animais”, observou Hitler, sobre os soviéticos. Olha aqui, para alemão dizer isso, sendo o soldado que é, não pode haver maior elogio ao valor de um povo, povo que neste século sofreu como nenhum, na guerra civil, na fome dos anos 20, na coletivização de Stálin, nos expurgos de Stálin, contra Hitler e na Guerra Fria. Me digam uma coisa, principalmente meus amigos americanos que me honram com a leitura: há outro povo que per­deria 22 milhões de pessoas numa guerra, sem render-se? Franca­mente, sem querer insultar ninguém, conheço dois povos: o russo e o alemão.

       Mas é aquele homem no Volga, com a medalhinha conquistada na luta de casa em casa em Stalingrado, que eu admiro, respeito e até, à la Otávio Mangabeira, beijo as mãos, pois quando Zhukov, em 8 de dezembro de 1941 (um dia depois de Pearl Harbor), botou para fora os nazistas das portas de Moscou (onde tinham entrado já al­gumas patrulhas, expulsas pelos operários a marteladas. Estive no lugar), a humanidade sentiu a primeira possibilidade de que Hitler e a Wehrmacht não eram imbatíveis, o que foi devidamente registrado pelo chefe do Estado Maior do exército alemão, Franz Haider. Claro, isso foi esquecido no Ocidente, sabemos que Errol Flynn, William Holden e outros é que ganharam a guerra, e no nosso aterro no Rio falta uma bandeira soviética. Mas eu sei e muita gente mais sabe.

       Já o nosso amigo diplomata soviético só me provoca desprezo. É um sub-sub de uma tirania. Depois de 55 anos de revolução, o operário soviético não tem direito à greve. Ainda há milhões ga­nhando 60 rublos por mês, miséria certa. A maioria esmagadora do povo vive da mão para a boca. A censura é total. As outras nacio­nalidades que não a russa permanecem subalternas (não só os ju­deus). A freguesia das prisões políticas diminuiu bastante, mas ainda dá fácil para encher o Maracanã (ver os documentos cuidadíssimos da apolítica Anistia Internacional). Bastaria o medo que o governo tem de escritores como Solzhenitsyn e Amalrik para que meu veredito ficasse pronto. É um veredito modesto, acrescento. Muito dos horrores ocorridos na URSS são conseqüência indireta do que Stálin, falando a verdade para variar, chamou de “cerco capitalista”. Mas is­so não desculpa o rol de infâmias. A última refere-se a um cavalheiro chamado Pyotr Yakir. O pai, um soldado comunista dos mais co­rajosos, foi assassinado por ordem de Stálin, em 1937, no expurgo dos militares (Tukhachevky e Cia). O filho, que passou 14 anos num campo de concentração, é um dissidente. Ou era, pois depois de tratado pelos psiquiatras da KGB, “descobriu”, como o Winston de Orwell, que “Big Brother é quem está certo”.

       Não vou catalogar as recentes infâmias da URSS durante a guerra do Vietnam. A mais clamorosa foi receber Nixon, quando este bloqueou, sem aviso prévio, navios soviéticos em Haiphong, man­dando bombas sobre Hanoi. As bombas caíam e Brezhnev brindava com Nixon. Só esse quadro deve ter feito tremer o mausoléu na Praça Vermelha.

 

                     PENSO EM VOCÊS

       Falando a um grupo de homens de negócios e diplomatas americanos sobre a América Latina, este aqui sentiu, ou pensa que sentiu da platéia, reações de pasmo, repulsa, incompreensão e, no fim, dado o meu irresistível charme, uma certa cordialidade, pois botei chocolate em volta da pílula e, como de costume, eles lamberam o chocolate e ignoraram a pílula.

       Tentei uma perspectiva histórica em vez da discussão habitual sobre sistemas, regimes, modelos econômicos etc. Alguns exemplos; nunca entendi por que o Brasil, depois de destruir Solano Lopez, não aproveitou a oportunidade e seguiu até o Pacífico, o que nos daria o controle de dois oceanos — como os EUA possuem — e infinitas possibilidades de enriquecimento rápido. Ninguém tinha condições de nos conter militarmente naquele tempo, pelo que li do Duque de Caxias. Por que paramos? É inútil analisar o que aconteceu em termos de 1973. Se avançássemos, hoje, ao Pacífico, seríamos chamados de imperialistas, imorais etc. Nos 1860s, isso era rotina para quem podia. Os EUA tomaram 850 mil milhas quadradas do México, em 1948, aplaudidos entusiasticamente por Karl Marx e Friedrich Engels, que achavam os americanos capazes de civilizar os primitivos mexicanos. Well.

       Também falei da Contra-Reforma católica. Fomos colonizados por portugueses, fiéis súditos da Contra-Reforma que, entre outras coisas, era violentamente anticapitalista (e séculos mais tarde, se opôs à Revolução Industrial). A Inglaterra e EUA, pioneiros da Revolução Industrial, eram protestantes. Grandes potências sob a Contra-Reforma, como a França, experimentaram revoluções violentas (e anticlericais), antes de entrarem na modernidade. Inexistiam, praticamente, indústrias na França de 1789. Não é acidental que a maioria dos nossos republicanos originais tenha sido positivista e anticlerical. Encontraram no positivismo uma ideologia modernizadora contra o mundo “feudal” (falo do espírito, não, necessariamente, da estrutura econômica) da Igreja Católica, in­clusive, enfim separando-a do Estado. Ainda assim, perdemos o bonde da Revolução Industrial, só começando mesmo a correr atrás dele depois da Revolução de 1930 (precedida, claro, pelas revoltas dos tenentes). Os tenentes me fascinam, confesso Sempre planejei escrever um livro sobre eles. O problema é de centralização de poder. Os republicanos, entenderam a necessidade de modernizar o Brasil, mas cometeram um erro crasso. Fascinados pela Constituição e o exemplo dos EUA, acreditavam em autonomia dos Estados, ou seja, nas unidades da federação, quando toda a tendência do Estado (pais) moderno é para a centralização de poder. E nós já tínhamos essa centralização no II império, que os republicanos destruíram, a centralização, equivocadamente. A autonomia das unidades da federação soa bonita, mas é, obviamente, um mito. Na Velha Re­pública, São Paulo e Minas dominavam completamente o Brasil, ex­plorando os pequenos e atrasados, através do chamado café com leite. Já os tenentes planejaram uma revolução em nível nacional. Foram autênticos pioneiros e mereciam historiadores adequados.

       Imaginem o efeito dessas minhas palavras sobre uma platéia de americanos. Inclusive, a indignação deles subiu ao auge (ou assim me pareceu) quando eu disse que um dos motivos porque não ti­veram os mesmos problemas que nós é que escolheram o caminho do imperialismo em 1848, enquanto o Brasil, apesar de ser um gigan­te na América do Sul, se manteve dentro dos limites da moralidade e da autodeterminação dos povos, não engolindo, por exemplo, o Uruguai ou o Paraguai, o que não teria sido muito difícil, principal­mente se tivéssemos estabelecido uma detente com a Argentina, a exemplo do que os EUA e URSS fizeram na prática depois da II Guerra na Europa e, agora, no papel.

       O fato é que esses gringos pensam que não temos História. Que somos o que somos porque pertencemos à misteriosa raça que chamam de “latinos”. Que somos o que somos porque Deus quis. Bem, ouviram diferente. Pelas caras, imagino que a primeira vez na vida. E ainda pagaram 7 dólares por cabeça para me ouvirem. Me diverti muito. Devo ter sido o único.

       Aí, mudaram totalmente de assunto. Perguntaram se sou contra investimentos estrangeiros no Brasil. Respondi que essa é uma das perguntas mais tolas que já ouvi. Usei a palavra “dumb”, não muito agressiva. Minha vontade era soltar um “stupid”, bem agressiva. Contive-me.

       Quem pode ser contra investimentos estrangeiros, ou de qual­quer espécie, em abstrato? Uma economia só prospera se receber in­vestimentos (no que incluo tudo, de dar proteínas às crianças para que não cresçam débeis, física e mentalmente, à siderurgia). Agora, continuei, “Para os senhores, uma economia próspera significa altos índices de produção de lucros, de estabilidade política e financeira”. Minha opinião abrange outros fatores: o bem-estar da maioria da população. Há coisa mais empulhante, por exemplo do que essa his­tória de renda per capita? A per capita dos EUA é calculada dividin­do a renda da minha crioula automática, a quem pago $ 20 dólares por semana pela do presidente da ITT. E isso acontece em todos os países.

       Claro, o que eles queriam saber e o que eu achava de investi­mentos americanos na América Latina. Bem, o que sei é o seguinte: dados oficiais dos EUA mostram que, entre 1959 e 1969, americanos puseram 3 bilhões e 547 milhões de dólares na América Latina. Lucraram 9 bilhões e 397 milhões. Ou seja, ficou-nos um deficit de 5 bilhões e 850 milhões de dólares. Indignação na platéia: “O Sr. quer dizer que remetemos todos esses lucros”? Leiam o que escrevi acima. Não encontrarão a palavra remessa. Agora, noto que no mes­mo período os EUA puseram 16 bilhões e 231 milhões na Europa Ocidental, contra lucros de 7 bilhões e 318 milhões, ou seja, dei­xaram lá 8 bilhões e 913 milhões de dólares. No Canadá, idem pe­ríodo, investiram 10 bilhões e 896 milhões, obtiveram lucros de 6 bilhões e 162 milhões, ficando portanto, um surplus de 4 bilhões e 734 milhões para os canadenses. Por que essa diferença de trata­mento? Silêncio e murmúrios na platéia.

       Mas aí, comicamente, é que toquei na ferida filosófica do problema. Contei para eles a carta, que li no “Jornal do Brasil”, do ex-ministro da Agricultura Cirne Lima, ao General Mediei, em que o primeiro se queixava da insuficiência de investimentos na agricul­tura brasileira. Não sou economista. Há uma nova geração de tecnocratas no Brasil que não convém subestimar. Sabem o que dizem. Se sabem o que fazem é a pergunta implícita na carta de Cirne Lima.

       Temos imensas, férteis e inabitadas terras e uma população ín­fima para o espaço que ocupamos. Pensem na índia, um minuto. Não, é melhor nem pensar. Ou na própria China em que de cada vila você vê outras três, tal a superpopulação. O único país que remo­tamente se aproxima do nosso é a URSS, pois tem a Sibéria, um El­dorado a explorar, mas o nosso clima é, para dizer o mínimo, mais ameno. Por que investimos em produção de tecnologia industrial ou de consumo para a insaciável classe média, em vez de alocarmos os fundos necessários à nossa agricultura; como pediu Cirne Lima? Há um mercado inesgotável (literalmente) para produtos agrícolas, matérias-primas e manufaturados no mundo. Essa sempre foi uma das maiores pautas de exportação dos EUA, que, hoje, com os recur­sos dilapidados e incompetentemente administrados por Nixon, já não podem suprir a demanda.

       Por que temos de seguir o modelo americano de industriali­zação? Não somos nós só, claro. É uma obsessão mundial. Os países comunistas não fazem outra coisa. Aqui, não há divisões ideoló­gicas, se bem que os comunistas parecem ter esquecido os motivos da enfase de Stalin na indústria pesada, na década de 1930. O “es­quecido”, vai sem ironia, acrescento. Stalin temia um ataque militar das potências capitalistas, logo achou necessário desenvolver uma base industrial pesada a fim de defender-se. O que conseguiu, caso contrário não teria derrotado a superindustrializada Alemanha de Hitler. Bem, o Brasil, que eu saiba, não está sob ameaça de ataque de ninguém. Nossas fronteiras são pacíficas, não temos ambições territoriais e não há país que queira um naco nosso.

       Estou fazendo perguntas, sem dar respostas. Francamente, não sei as respostas, mas nunca vejo sequer debatidas as perguntas.

       O fato é que somos um país do gabarito potencial dos EUA, UR­SS e China, e hoje sob um poder altamente centralizado, que eli­minou os mitos da federação (um dos fatores decisivos do nosso atraso). Quaisquer que sejam as divergências políticas do momento, as nossas opções são imensas, inclusive porque temos uma cultura mais homogênea do que EUA, URSS e China. A URSS é uma coleção de nações estrangeiras sob o domínio da Rússia. A China, de povos, ao contrário do mito. O chinês que Mao prefere, por exemplo, só é entendido por uma minoria (que, na China, deve ser de 100 mi­lhões). E nos EUA, não importa que você fale inglês tão castiço como Katherine Hepburn. Você é “judeu”, “polonês”, “italiano”, “irlandês” etc... até a morte. No Brasil, como dizem os livros escolares, somos unos do Oiapoque ao Chuí. Isso é raríssimo no mun­do de hoje, até em paisinhos como a Bélgica, onde o Flamengo está sempre em guerra, ou subpopulados, como o Canadá, com uma nação inglesa e outra francesa mal se tolerando.

       Já tinham me avisado, mas não acreditei. Era verdade. Nunca pensei tanto no Brasil como fora dele. O presente é muito difícil para mim, daí eu me concentrar numa perspectiva histórica. É um lugar comum que merece um ladrilho em cada casa: nunca enten­deremos o nosso presente ou prepararemos o futuro sem analisarmos o passado.

 

                                         VIAGENS

 

                     CHEGUEI VI E EMPATEI

       Quando eu ouço a palavra Clipper me lembro de Joel McCrea, George Sanders, Laraine Day e Herbert Marshall na cena final do Correspondente Estrangeiro, de Alfred Hitchcock. Esqueceram? O Clipper cai, abatido por um navio nazista, e Marshall, espião do III Reich e pai da inocente Laraine Day, aproveita a oportunidade para suicidar-se galantemente, deixando a filha aos cuidados de Joel McCrea, que junto com George Sanders, queria encaná-lo, em defesa da democracia. O que mais me impressionou na seqüência foi o conforto interno do Clipper. Certo, levava 200 horas Rio-Niterói, mas a gente podia mover as pernas, braços.

       Não peguei essa época. Eu deveria ter uns 10 anos e estava es­tudando a Teoria da Relatividade, com pouco tempo para viagens. Mas já cruzei mundo a motor (frase Camões sintético), antes do jato. Levei 24 horas Rio-Miami, e sei lá quantas Miami-Nova York, nos anos 50. A velocidade aumentara em relação ao Clipper; em contraponto, nosso espaço interno encolhera. E na era do 707, a gente se sente numa solitária policial, ou o que Júnior (Magalhães) chamaria, no inimitável estilo dele, cama de Procusto. Já li que o Concorde dá claustrofobia num monge. Chegará o dia de viajarmos de caixão duma vez?

       E o enlouquecedor, quase homicida, para mim, são as coisinhas, os envelopinhos indecifráveis disso e daquilo, os bolinhos, as comidinhas, colherzinhas, servidas por aquelas moças com cara de recepcionistas de dentista (um sorriso que sugere sadismo por procuração). Eu já derramei mesas mil, lambuzei bolo de chocolate nas paredes etc. E uma namoradinha minha, entre Milão e Paris, fez melhor, quebrou logo a mesinha, virando o copo de uísque no uniforme da aeromoça (infelizmente uísque não mancha).

       A idéia disso tudo (das companhias) é que sendo tão rápido dói pouco. As companhias nos entulham para aumentar o faturamento, claro, e contam que o jato nos anestesie. Fim das metáforas odontológicas. Num vôo direto esse raciocínio calculista é intrinsecamente absurdo (o avião é o melhor meio de transporte disponível. Duvido que 10% dos povos possam utilizá-lo. E é ultraclassista. Até a cortina separando a primeira da segunda classe sugere um toque Luiz XIV no que deveria ser moderníssimo. A cortina abre nas de­colagens e aterrissagens, por motivos técnicos. Ao menos, reco­nhece-se a eventual democracia da morte), esse raciocínio, eu dizia, funciona. A gente olha o mapa, o pulo que damos de continente a continente e nos sentimos super-homens, ainda que em camisas-de­-força. E navio, mesmo de luxo, é um saco. Eu lá quero ir à piscina, jogar, ficar bêbedo, ver cinema etc. com gente desconhecida? E o mar é um chato, como a mesma mulher toda manhã na mesa do café de Cidadão Kane.

       Mas existe o vôo que pára. Vim num desses para Nova York. Caracas, Panamá, Guatemala, México. A loucura começou quando percebi a primeira parada: Viracopos, Cumbica, São Paulo. Ou seja, em vez de ir para cima, pra baixo, problema de editoria d'O PAS­QUIM, não meu. E Viracopos. Bem, noutra viagem, à Europa, em' 1969, saí do Rio, avião comum, porque o 707 ia sair de Viracopos. Certo, ou, pelo menos, como sempre viajei a trabalho, sem pagar a passagem, nem bufei. Primeira baldeação desse bicho: Rio.

       Bem, vamos lá. Viracopos me escandaliza. Em São Paulo tudo é mais organizado que no Rio. Já Viracopos supera o aeroporto de Karachi em matéria de ser scrotumtightening. Perto de Viracopos, o Galeão sugere Orly. O paperback mais recente à venda era Nosso Homem em Havana, de Graham Greene. Uma choça, em suma. Por quê? E o gigante que puxa sei lá quantos vagões vazios? Os ban­deirantes borraram-se diante dos pássaros de fogo? Onde está o Caramuru da aeronáutica civil paulista? E foi meu último naco de Brasil, um melancólico adieu.

       Sobe o DC-8. Lá vem a aeromoça explicando como usar más­cara de oxigênio etc. É fácil você distinguir os passageiros veteranos dos novos. Os primeiros, nem bolacha, os outros absorvem, aten­tamente, as palavras. Na hora do pega pra capar, essa explicação, que ouvi a cada nova decolagem, nada vale. Será a tripulação treinadíssima que, em segundos, auxiliará todo mundo. O terror imobilizará a maioria. Esse é um dos segredos mais manjados do ramo.

       A minha aeromoça era japonesa (até o Panamá). Falava mal in­glês, espanhol e português, mas, presumo, um excelente japonês (havia vários nipos a bordo e o ponto terminal, São Francisco, os atrai muito. Seja como for, é um sintoma de prestígio econômico do Japão que num vôo na América Latina já tenha direito a informações na língua nativa). Ao meu lado (felizmente havia um assento vago entre nós, o que nos permitia a mobilidade duma convenção política dentro dum Volkswagen), uma dessas figuras pateticamente co­rajosas que foram colhidas ainda vivas na era da tecnologia. Um lavrador do Paraná, 60 anos. Ia visitar o filho, missionário adventista na Guatemala, o qual não via há 10 ou 20 anos, não se lembrava direito. Tive de pôr o cinto nele, mostrar-lhe como se move o banco, onde ficava o cinzeiro, o banheiro, e traduzir seus pedidos (raríssimos) à aeromoça. Quando lhe veio a clássica palidez, eu lhe disse: é melhor no banheiro, o Sr. pode ficar à vontade, sem espectadores. Foi docilmente, voltou aliviado e grato. Enchi o cartão de desembar­que dele na Guatemala. Nenhum perigo que algum dia leia isso. Era analfabeto. Isso é coragem. E amor também, talvez.

       Os aeroportos de Caracas, Panamá e Guatemala estão na onda do Galeão. Em obras. Nenhum com o nosso senso de humor, claro. No Galeão havia aquele maravilhoso cartaz “we are labouring for your comfort”, ou seja, “estamos parindo para o conforto de vocês”, que provocava gargalhadas histéricas em visitantes, alguém tendo confundido a palavra “working” com “labouring”.

       Nesses aeroportos onde estive agora parece também que foi adotado o unisex. E a favor de mulheres e bichas. Em toda parte você dá de cara com o banheiro das mulheres; o dos homens leva tempo para achar. E as autoridades, pelo visto, acreditam mesmo que fumo leva ao câncer. Nenhum cinzeiro à vista.

       O avião encrencou no Panamá. Frescura do piloto. Uns fiozinhos desconectados no segundo propulsor. Ele me disse. O avião poderia ir ao fim do mundo assim, mas, me garantiu o cavalheiro, 100% (98% é a média habitual, ou estarei desatualizado?), ou nada. Está bem, retiro a frescura. Segurança absoluta pode ser um excesso. O inverso é ficar pela bola 7. Prefiro a primeira.

       Um avião novo ficou à nossa espera (dos passageiros que iam pro México) na Guatemala. Nesse intervalo, jantei e bati papo com um americano e um inglês. O americano, o executivo clássico, ins­petor geral de alguma empresa, viajando de primeira. Trocamos notas sobre nossas viagens. Ele pegou o Clipper de Hitchcock, e me confirmou o conforto mostrado no filme. O inglês, classe média, nem um amarfanho na roupa, gravata no lugar (o americano e eu já estávamos em meio strip). O inglês falava muito bem espanhol. Não tinha cara ou jeito de comerciante. Vinha de Montevidéu. Quando comentei as confusões políticas na Argentina e Uruguai ele fez um silêncio concentrado e analítico. Te manjo, bicho.

       Na Guatemala, como no labirinto grego, nos levaram correndo de corredor a corredor a outro avião, onde outros passageiros tor­ravam os ditos há hora e meia nos esperando. Falando nisso, vi umas pretas lindas nos recebendo em aviões de certas companhias americanas. O racismo acabou? Nas companhias, em si, inexiste. Todos os estudos a esse respeito confirmam. Elas temem é o racismo dos passageiros. Daí testam os fregueses com negras. Assim não vale. Quero ver é preta feia, como as brancas que me serviram no período.

       No México, depois de 17 horas de confinamento, caí num banho quente, numa cama e ar condicionado, que depois dessa ex­periência, valem todos os iates dos Onassis da terra. O hotel, Ho­lliday Inn é uma imitação grotesca do motel americano típico. Mil convitezinhos pra isso e aquilo, em termos que usamos com crian­ças: tchtchtchtch, que maravilha a nossa tortilla, ou qualquer outra cucarachada. Ao me revelar brasileiro, me perguntaram como ia o Pelé. Respondi: quem é? E no sétimo dia descansei.

       Agora, para Nova York. Três bichas americanas, com mil plumas mexicanas na fila ao lado. Perto de mim, um alemão lendo Der Spiegel e murmurando schwein, ou coisa semelhante. Quatro horas fáceis, o piloto explicando tintin por tintin onde estávamos a cada momento. É curioso. Voamos a 9 mil metros de altura. Ver o quê? Um relêvo de mapa?

       Aeroporto Kennedy. Em precisamente 4 minutos eu estava num táxi. Marquei no relógio. Na última vez que voltei ao Brasil perdi 45 minutos no Galeão. A alfândega de Nova York acreditou em mim de cara, quando eu disse só ter objetos pessoais, e o rapazinho ainda me desejou uma pleasant stay. Deve ser minha cara honesta.

       Entro no táxi. O chofer é judeu. Quem acha que todo judeu é rico deveria uma vez ao menos vir a Nova York. O que tem de chofer de táxi judeu não é mole. Acredito que a profissão não dê para enriquecer. O Sr. Arthur Mahler, que me conduziu, não me pareceu muito próspero. Num tapume perto da Rua 101 está escrito: “Viva la Revolution — Che Lives”. Nesta grafia.

       Me sinto muito à vontade neste país. Considero um privilégio poder assistir de perto à ascensão, declínio e queda do império romano, ao mesmo tempo, uma história bem mais complicada que aquela contada por Gibbon. E vou tentar extrair um pouquinho dela pra vocês. Em primeira mão.

 

                                 NOVA YORK

       Nora Sayre, jornalista & intelectual, conta no livro dela (Sixties Going on Seventies, Arbor, 419 págs., $9.95) que um dia um menino de 11 anos encostou nela e disse: “Moça, a senhora quer fazer o favor de me passar sua bolsa?” Nora olhou o pirralho e resolveu não dar confiança. Aí ele botou qualquer troço contra o corpo de Nora que, então, soltou um “grito operístico” de que “eu não me julgava capaz”. O garoto mandou-se, apavorado, mas quatro outros apa­receram perguntando o que havia. Nora disse. Meninos: “Está bem, minha senhora, só que não precisava gritar desse jeito por causa de uma simples bolsa. A senhora assustou toda a vizinhança. Venha que levamos a senhora a uma condução”.

       O assaltante-criança é rotina em muitas cidades, mas o humor de Nora e, mais importante, a escala de valores dos outros garotos, me parecem típica e unicamente novaiorquinos. Nova York já viu tu­do, não se surpreende, não se encanta ou se desespera com nada. Mes­mo o caso de uma Jane D'Alessandro, apesar do horror indizível que nos causa, é aceito estoicamente. Jane era uma menina de 7 anos; foi violentada e assassinada por um vizinho. Isso no dia em que John Lindsay, o prefeito, presidia uma “tômbola” em benefício da Bi­blioteca de Nova York, acho que a melhor do mundo, e Sua Excelên­cia disse à platéia: “Nenhum dos leões rugiu, o que quer dizer que todas as moças aqui estão bem”. Há dois leões à entrada da Bi­blioteca. Dizem que rugem quando passa uma virgem. No elevador do meu prédio, uma mãe falou a outra: “Minha filhinha não sai nun­ca de saias. Saias são muito vulneráveis. O negócio é calça comprida e cabelo curto, se bem que nem sempre adianta”. You can say that again, respondeu a outra. A questão é o tom das duas, único, acreditem.

       Em Nova York você não pára. As pessoas têm sempre um ar in­tenso e estão sempre indo a algum lugar, mesmo que seja ao cinema. Se você pára, acontece. Outro dia eu esperava um amigo numa agência do correio, e uma senhora me disse, em voz alta: “Você devia ter vergonha de você mesmo. Você não sabe o que é viver brigando com umjocador (a palavra, em português, não tem a força ancestral do inglês, “landlord”). Eu que tive a infelicidade de perder meu marido anos atrás, agora tenho de brigar sozinha, enquanto você está aí, cheio de saúde, sem fazer nada”. Depois que ela se foi fiquei olhando os cartazes “Wanted”, de bandidos, a maioria ofe­recendo boas recompensas pela alcagoetagem. Ouvi uma voz, a meu lado, de um senhor: “Quero ver se pego um desses ladrões. Os juizes aqui são muito lenientes”. E aí me pegou pelo braço (o que é raro, acrescento): “No Canadá é que sabem como lidar com os ladrões. Sabe como é que se lida com os ladrões no Canadá? Os juizes põem eles para trabalhar. Há! Há! Há!” Eu não disse uma palavra nos dois episódios.

       Sartre, que não conhece Nova York bem, escreveu que em nenhum outro lugar do mundo se vê tanto a simultaneidade da vida das pessoas. True, true. Nossos candidatos a prefeito: Blumenthau (judeu), Badillo (portorriquenho), Garelik (polonês), Marchi (italiano), Beame (judeu) e Biaggi (italiano). Um dos problemas sérios (de se viver no estrangeiro é a perda da identidade nacional e do status que temos em nosso país, seja este qual for. Do status sinto uma certa falta. Eu já me havia habituado a encontrar sempre mesa nos restaurantes, mesmo quando tinha 20 pessoas, esperando a vez. Aqui, espero com a massa. É cruel. Mas identidade nacional? Aqui ninguém tem. Nova York (e Paris, talvez) é uma cidade de estran­geiros. Meus 4 colegas no Departamento de Jornalismo na Univer­sidade de Nova York são todos de fora. Dou-lhes dicas sobre o que devem fazer para se divertir em Nova York. E todos são americanos. Gostaria de aconselhar a um deles, o mais simpático, a não usar cer­tas camisas e a abolir certas expressões como “ouquidouqui”, que aqui caem mal no meio jornalístico & literário a que ele pertence de direito (tem um romance publicado e prepara outro). Mas ele é do Texas e John Wayne sempre me meteu um certo medo.

       Afinal, as coisas não mudaram muito. No Rio eu via com fre­qüência umas 20 pessoas (no máximo: estou incluindo as obriga­tórias). Aqui, a mesma coisa. A diferença é que no Rio, se você quiser, faz mil amigos. Em Nova York, não. Os grupos são pequenos e se cortam mutuamente. Moro dois andares abaixo de um cara que já encontrei em várias reuniões. Nunca ocorreu a ele ou a mim tomarmos um drinque na casa um do outro. Ninguém toca a cam­painha da tua casa sem aviso prévio e muito claro. Ninguém puxa conversa com você se você está lendo. Ninguém lê o que está em cima da tua mesa. Prefiro assim. Não é à-toa que Garbo mora aqui.

       A cidade é grande demais, inconquistável. Manhattan, onde eu moro, é do tamanho do Rio. E ainda há Queens-Long Island, Brookl­yn, Bronx e Staten Island. Todos sentimos essa imensidão, esse peso, a nossa estatura anã. Nunca acreditem quando lerem — o que é freqüente — num jornal brasileiro que Y ou X “abafou” em Nova York. Aqui só se “abafa” por setores. Não há Flávios Cavalcantis, centros de conversa da praça. Cada macaco no seu galho. O talk of the town em Nova York é a própria town. A cidade é maior que todos nós e nos fascina infinitamente. Mary McCarthy diz que o charme de Veneza é o ouro. Em Nova York é a consciência da riqueza, da pos­sibilidade, da disponibilidade da riqueza, riqueza em todos os sen­tidos do termo, até riqu.eza no lixo empilhado. E sabemos todos, mesmo os que odeiam a cidade, que estamos no centro do mundo, que aqui, parafraseando Bob Dylan, is where it's at. A grandeza (às vezes monstruosa e repulsiva) da cidade roça um pouco na gente e torcemos o nariz para o resto do mundo, o “interior”. E há a cena em que alguém de fora começa a contar histórias tristes do lugar donde veio. O novaiorquino — em síntese, quem já pagou um mês de aluguel aqui — ouve impassível, pois em matéria de esplendores e misérias, you ain't seen nothing yet, antes de vir a Nova York. Sim, temos 34 companhias de ópera permanentes, mas não há no Rio ou Recife uma favela que se compare, em sujeira, pobreza e sofrimento, a Brownsville. Não há nada igual no Vietnam bombardeado, acredito.

       Há um ponto comum entre Nova York e Rio: o humor. O humor, acho eu, é uma fantasia de sanidade, talvez a única que nos reste. O humor aqui é em 70% judaico, o resto negro & portorriquenho, mas vai da suíte refrigerada do Sr. David Rockfeller a Brownsville, é uma linguagem secreta e comum do novaiorquino, mais que o próprio inglês. O inspetor da limpeza pública que explicou na TV que retirara as latas de lixo da Quinta Avenida porque as pessoas estavam botando lixo demais nelas é recebido com o mesmo sorriso na presidência do Chase Manhattan e no Harlem. E vocês precisam ouvir um novaiorquino dizer “Thanks a lot”, com ênfase no “lot”, ou “Sorry about that”. Os comentários de cafeteria sobre os programas espaciais dos EUA que ouvi não poderiam sair em Screw Magazine.

       As pessoas são rapidíssimas na compreensão das coisas. Você pode ir sempre direto ao assunto que será entendido imediatamente. Com a minha impaciência, isso é perfeito. Mas por quê? Não sei, mas, no Oriente, eu me exauria em face da lentidão da gente lá. O que eu digo aqui em 1 minuto leva meia-hora em Tóquio, apesar do intérprete. É o hábito da imprensa, das comunicações de massa, acho eu. O Ocidente já tem as duas, sempre crescentes, há séculos. No Oriente chegaram mal e porcamente pelo Século XIX (meados). Eles não têm o hábito de abrigar diversos sinais e mensagens ao mes­mo tempo, como nós. Isso não quer dizer que sejamos mais inteli­gentes ou profundos. Quer dizer apenas o que eu quis dizer.

       E Nova York, naturalmente, é aquela cidade em que você vê George Wallace ser baleado uma hora depois do acontecimento, quando não ao vivo. A qualquer minuto do dia as notícias estão à mão. Isso não resolve nada, mas excita e é agradável — para mim, ao menos.

       Continuando no pessoal, há as livrarias. Sempre que entro numa grande livraria aqui entendo porque eu nunca poderia viver sob um regime totalitário. Quero saber de tudo que estão publicando, mes­mo que 90% não me interessem da superpornografia à lógica matemática. A disponibilidade cultural de Nova York chega a ser inde­cente. Pense no que você quer. Aqui tem em triplo. Mesmo que você use pouco do que há, saber que há é um bálsamo da minha neurose.

       Talvez porque as pessoas estejam sempre se virando loucamen­te em procura de alguma coisa, a cidade parece sempre nova. Quan­do volto do “interior” sempre me lembro do que Fitzgerald escreveu (Great Gatsby): “A cidade vista da Ponte de Queensboro é sempre a cidade vista pela primeira vez, com a sua promessa enlouquecedora (wild promise)”.

       Relações pessoais. Bem, são pessoais. Aqui é igual a qualquer parte. Não há, sem dúvida, o agradável papo brasileiro, fiado, sem objetivo. As pessoas são demasiadamente intensas. Vi um filme de (baseado) Bergman com uma moça socialista e católica que dis­correu horas sobre os “neuróticos privilegiados” que gostam de Ber­gman. Chegou a derramar o ketchup do meu hamburger na Bras­serie. Mas o chato é um cidadão internacional. E calma feministas, andrógino.

       Se você quer beber sozinho, o que é meu caso, freqüentemente, há uma porção de pubs na Terceira Avenida. Se você quiser papo com o barman ele dá, se não, não. Em Nova York você não olha para as outras pessoas, não importa como estejam vestidas ou o que es­tejam fazendo. Há tanta gente e um comportamento tão variado que as 8,5 milhões de pessoas encontraram esse meio de manterem a própria privacy (é significativo que não tenhamos uma palavra em português para privacy).

       Para o tipo de pessoa que eu sou, os bares mais famosos de Nova York são Elaine's e P. J. Clarke's. Elaine é uma senhora gorda que já vi comendo duas vezes no P. J., o que diz tudo sobre a co­mida do Elaine's. Coquetel de camarão lá, por exemplo, são 6 ca­marões e, ao lado, ketchup. Você vê todo mundo importante, ou quase, do meio artístico-lítero-jornalístico e sem os excessos de in­timidade do Antonio's (sem falar das brigas). Mas o Elaine's é elitista. Se você não for conhecido, termina na Sibéria. Já o P. J. é outra coisa. Os Onassis esperam mesa como todo mundo. E não há Sibérias. Ê quem chegar primeiro. Você vê as mulheres mais bonitas de Nova York, mas não se canta ninguém, de resto atividade pueril em qualquer parte do mundo. O serviço é calmo. A comida, barata. Por 30 contos você faz a festa. Celebridades, claro, às pampas. Não sei como mantém o bar, dirigido democraticamente (Elaine, em prin­cípio, é quem tem razão). No Rio, a freqüência já teria obrigado o dono a abrir mais um monstro em fórmica.

       Há, claro, 6 mil restaurantes e bares agradabilíssimos em que você e teu grupo podem ficar à vontade, achando que valeu a nota. O melhor mesmo, naturalmente, são as reuniões em casa.

       Não mudei nada, nesta cidade. Só noto uma diferença: uso colírio, porque se não meus olhos inflamam no ar imundo, O “desenvolvimento” aqui já está definitivamente contra o ser humano, sem ter conseguido sequer satisfazê-lo no que prometeu, cacarecos da sociedade de consumo para todo mundo. Os EUA são o país mais pecaminoso do mundo e Nova York é a capital, a Babi­lônia, só que é, ao mesmo tempo, o confessionário da nação, e daí os provincianos, os que ainda acreditam na patuscada do American Dream, odiarem a cidade.

       Nixon detesta Nova York.

 

       No meu confortável hotel americano em Londres leio vereditos assustadores no “New York Times” sobre o futuro de Nova York, a place fit to live? e coisas no gênero. Bem, acho Londres do Balacobaco, Paris, idem, e Lisboa também, sou uma pessoa simples e fácil de contentar, tanto assim que continuo exercendo a profissão de jornalista, mas, por exemplo, estou neste hotel aqui porque me cansei um pouco de exigir chuveiro (ou será choveiro?), televisão a cor, ar condicionado, farmácia e banca de jornais, nos hotéis europeus, é coisa de que nem se cogita pedir em hotel americano, pois seria inconcebível um, de classe média, que não os tivesse. Friso o detalhe da classe média, a minha. Não é que esses confortos de turistas de Kansas City, de que já fui chamado, não existam em hotel europeu. Ponderem, todavia, que cheguei de Lisboa depois de uma semana em que entre uma bica e outra (bica é drinque) só ouvi e anotei político e política, li livros de comunistas, socialistas e li­berais. Fui para um famoso hotel inglês, em Londres, reservado de Lisboa. 20 libras fora as taxas. Chego. Não tem chuveiro, ou sequer choveiro. A TV é preto e branco. A simpática jovem na portaria me informou que Kansas City, eu, talvez quisesse uma suíte. Preço: 60 libras. Na madrugada seguinte, mudei-me, e fiquei uma hora de­baixo do chuveiro e do choveiro.

       Minha mão, minha cara e meu cabelo estão tão poluídos como em Nova York. Não é pau. Estou sobre o Hyde Park, joguei no Play­boy, fui ver Harold Pinter, Shakespeare e Shaw, andei Charing Cross Road, onde ainda não chegou o último número do “New York Re­view of Books”, hoje vou jantar no Simpson's onde todo mundo diz thank you, até quando te servem água, fui a pubs, deu Stavisky na TV (BBC-2), que eu já vi em Nova York, mas aqui deu antes que nos cinemas, é mesmo a menos pior TV do mundo. Londres, porém, tem uma coisa inencontrável em Nova York, o “Private Eye”, o melhor jornal único?) do pais. Nova York, em verdade, está cada vez mais parecida com toda cidade grande européia, uma frase em que por modéstia novaiorquina, inverti sujeito e objeto direto. As casas in­glesas estão sendo demolidas e prédios horrendos são postos no lugar. Paris está cada dia mais parecida com a Praça Paris, na ar­quitetura. E os preços bateram Nova York, esta é que é a verdade estarrecedora. Aqui a inflação está em 30%. Na França, Ciscard não permite estatística. Basta dizer que em Orly e Heathrow fui recebido por um aumento do preço de táxi de 40%, e num táxi francês, sintam a cena, debaixo do taxímetro já reajustado, vi escrito tip not in­cluded. O tempora, o mores.

       Todos os países são detestáveis, pensando bem. São bons se você está bem. Eu nunca estou bem, logo, ergo etc. É verdade que há países em que não adianta você estar bem, que não te permitem estar bem, mas isso é assunto para outro artigo, em tempos futuros, se os houver.

       Agora, as grandes metrópoles ficaram todas asiáticas, III Mun­do. É justiça histórica, se não poética. Os miseráveis do III Mundo vêm trabalhar nas matrizes que os exploram.

       E as classes dirigentes ensandeceram. Aqui, Tony Benn quer reformar o capitalismo. Harold Wilson quer bem servir aos ameri­canos, topando até um Schmidt. Ê o mordomo vocacional. E Mar­garet Thatcher tem olhos de guarda de campo de concentração, digo, de extermínio, se deixassem ela faria abajures de líderes operários. Nos EUA, vocês viram a foto, Ford, Kissinger, Rumy (o chefe da casa civil) e outro burocrata, com cara de que fizeram um gol (lindo, lindo), ao bombardearem os cambojanos, isto quando já se sabe que as baixas americanas são maiores que a tripulação do Mayagues que pretendiam salvar e que já fora solta pelos cambo­janos e que violara os limites marítimos cambojanos. Se isso não bastasse, lemos que a Tailândia quicou porque foi uma base local usada no ataque. O problema não é só esse. Todo país que abriga ba­ses americanas ficou sabendo que Ford, Kissinger e o resto da torcida pode infligir-lhes o mesmo, isso no momento em que Ford vai à Es­panha tentar negociar uma base de submarinos nucleares, que, antes do incidente, Franco já não queria dar. Com amigos como Kissinger e Ford, a dupla Catete & Botucatu, os EUA não precisam de ini­migos.

       Portugal, meu caro leitor paneleiro, ainda se pode ver entre uma foice e um martelo, Lisboa é um imenso poster do PC, que fez uma propaganda dos diabos na ejeição, arranjando 12,5% dos votos. Deixa eu contar uma historinha. No “Correio da Manhã” tínhamos uma seção editorial que era o orgulho nosso, dos que a fazíamos, o nervo, o coração, por Deus, a cabeça, do jornal. Um dia fizeram uma pesquisa e éramos a seção menos lida do Correio, perdendo até para (infames) histórias em quadrinhos (palavras cruzadas ganhava de tudo). Não será por que as pessoas não se interessam, na maioria, por política, e quando se interessam é porque estão passando fome, ou, mais intensamente, no caso da classe média para cima, por que temem que “eles” fiquem iguais a nós? Pondere, leitor insensato.

       Auberon Waugh, em “Private Eye”, achou ótima a idéia dos cambojanos fuzilarem também as mulheres dos líderes do governo que derrubaram. E compilou uma lista de mulheres de políticos in­gleses. E, depois, aplaude a Câmara dos Lordes que deu um voto de confiança aos estupradores, afirmando que elas querem o que acon­tece. Waugh acha necessário agora a criação de um fundo do gover­no que permita aos estupradores subornar a imprensa para não lhes publicar os nomes, alegando que fica muito caro o suborno ini­ciativa privada.

       Reformas de Giscard. O aborto livre. Acontece que a sociedade dos médicos franceses, dominada por devotos da Infame, apud Vol­taire, recusam-se a fazê-los, aos abortos, logo continua proibido. Giscard deveria imigrar para os EUA. Teria um imenso futuro político e afinal, depois de Nova York, Paris parece uma cidade escurinha e pequeninha.

       Vejo que o Congresso brasileiro rejeitou o divórcio. Não es­perava outra coisa. Não sei porque vocês se espantam ou se abor­recém. Se quando havia livre concorrência a maioria era um bando de desclassificados, hoje o que poderia ser?

       Não se diz manganão em Portugal. Se diz aldrabão. Outra coi­sa: onde andam as mulheres portuguesas? A gente só vê algumas, casadas, servindo a mesa. Está vendo, está vendo?

       E José Celso Martinez foi considerado avant-garde em Lisboa.

       Bem, vou ao encontro da princesa Anne e do marido, onde dis­cutiremos cavalos, o tema de amor que os atraiu. Também prefiro os cavalos o que de resto é óbvio, podem me chamar de Swift.

       Os tais dos estertores da nossa civilização duram demais e já cansaram minha beleza. Tá, tá.

 

                         CASTANHOLAS

       O turista típico brasileiro está se fazendo notar. Onde quer que eu vá, e batuco estas mal traçadas de Madri, ouço falar dele. Aqui, sabe, há um convento chamado Descalças Reais, reservado nos tem­pos imperiais a senhoras da aristocracia que sentiam a fé (ou não se casavam; inexistia um terceiro caminho, na época pré-Friedan, Steinem, (Ilse Koch). Cada recruta tinha direito a um altar próprio, pagando a decoração e manutenção. Deus é muito bom, amai-vos uns aos outros etc., mas as mulhas competiam desesperadamente em decoração de interiores e se, naquele tempo inexistia a OCA, elas se arranjavam com Goya, El Greco e outros primitivos. O resultado, em 1975, suscitou de várias senhoras e cavalheiros da “nossa ex­tremada pátria” (cito um chefe de grupo turista brasileiro, que ouvi em Paris) o seguinte comentário, extensivo também a outros en­tretenimentos menores como o Museu do Prado: “Chi, só tem troço velho na Espanha. Chato”. E a Espanha é agora a “porta” da Europa para o turista brasileiro, que antes preferia Portugal, mas que, hoje, evita a contaminação vermelha. Parabéns a Portugal, azar dos es­panhóis.

       Nos EUA, “eles” se portam de maneira diferente. Afinal, botar banca de novo rico nos EUA pode backfire, em suma, traria uma retaliação certa, porque é a própria terra do dito cujo, os Sérgios Dourados e Gomes, Almeida, Fernandes daqui (digo, de lá, estou em Madri) constróem mais alto que os daí, logo, o nosso turista, enraivecido como um mujique diante de complexas ferramentas ou os ludditas na Revolução industrial inglesa, depreda os instrumentos da tecnologia de consumo americana. Sério, há o Brazilian vandal, já fichado particularmente pela imprensa de Orlando, Fla., onde fica o Disney World, recebi recortes.

       Há também meu incidente favorito naquela praça em Veneza, onde, segundo o Garrincha, “o seu Zezé caiu” (ou seria em Roma?). Não tem importância. Entrou o grupo brasileiro pisando forte, e começaram os comentários que nos tornaram os japoneses do Ocidente (sem a educação formal dos japoneses, bem entendido, que, afinal, só nos ferem esteticamente porque mal conseguimos enxergá-los sob a massa de produtos duty free que ingenuamente compram em qualquer aeroporto): “É isso que é praça San Marcos?” Sim, porque quem já viu a favela Copacabana não pode sequer tolerar o primitivismo da arquitetura de Veneza. Ignorados na lição de arquitetura, passaram à musical, “aquela música”, entoando “Cidade Maravilhosa”. Um policial pediu que fechassem a butuca a fim de não matar de susto os pombos e levar ao suicídio os turistas provenientes de países civilizados. Saíram batendo o pé e mur­murando: “Italianos, comunistas”.

       Born in a half-savage, Ezra, eras pound. Um colega e eu, num restaurante em Madri (falando nisso, a comida não é divina. É ver­dade que antes pousei dois dias em Paris), discutíamos o nosso curioso métier. É terrível. A própria organização do trabalha jornalístico obriga o jornalista a cagar regra, e, se o assunto é quente, sai na primeira página em corpo gigantesco (um dos meus consolos é que raramente vejo). O ideal seria mandarmos um telex ao editor: “Olha, prefiro ficar alguns anos aqui, antes de escrever”. Claro, economicamente inviável, pense só no custo da passagem, despesas, relações públicas, de uma viagem rápida. Então, escondemos nossa ignorância em passos de valsa, como diz Wilfrid Sheed. Enganamos, em suma. Não é que sejamos desonestos. Afinal, falamos - a progressão é uniforme e rotineira - com diplomatas, líderes políticos, jornalistas, subversivos (do momento), uma salada a que nossa técnica e suposta cultura dá o molho e “edita”. O diabo é o “edita”, que nos faz parecer invariavelmente cagadores de regras. Nunca a expressão “deformação profissional” me pareceu mais justa. Sim, porque se coloque no nosso lugar, leitor, se você chegasse ao Brasil, inocente de Brasil, e procurasse diplomatas, políticos, jornalistas etc. Certo, uma ou outra coisa, sai, mas nada existe de mais superficial. Uma sociedade é como uma grande sinfonia; enquanto não entramos no ritmo e na complexidade estrutural, percebemos quando muito uma melodia aqui, uma nuance lá, uma dissonânciasotoposta. Not enough.

       E fiquei me lembrando (e usando, claro) de Raymond Carr, de Geraldo Brennan, de E. J. Hobsbawn, de George Orwell, de Koestler, de Hugh Thomas, e até de Malraux, que, em Paris (onde, ao con­trário da Espanha, parece estar acontecendo uma revolução espanhola), diz que o grande poder da Esquerda espanhola ainda é o anarquismo. Não é, e ele, no entanto, lutou aqui e escreveu L'Espoir, que quem não leu, ainda não viveu.

       De que adianta? Talvez países sejam abstrações que só existam para nós em função das imagens que fazemos deles. E na França há um poderoso resíduo da tradição espanhola que Franco interrompeu e crucificou, em 1936. Jean Daniel nota no Nouvel Observateur que a Guerra foi a adolescência da Esquerda européia (e americana), com toda a paixão enérgica, ingênua e vulnerável da juventude, que foi estruprada por Franco. OK, mas desconfiai dos franceses. Jean Daniel ataca Franco, um alvo fácil, mas se fosse honesto, e não é, citaria o dado histórico decisivo. Se o governo “de gauche” (há, há) de Leon Blum, do front populaire com comunistas e o escambal, tivesse, em 1936, fornecido armas aos Republicanos, estes teriam es­magado Franco, que foi um corajoso mas mau general (ver Liddell Hart), antes que Mussolini tivesse comparecido com 60 mil homens, Hitler com 10 mil e a legião Condor, e eliminasse Teruel, Oviedo e Guernica. Mas Blum perdeu-se nas complexidades da situação como Daniel, hoje, se delicia com Solzhenitsyn, embora reconheça que serve à Direita. Muito do ódio da Esquerda européia ocidental a Franco é transferência, é a incapacidade (perpétua) da Esquerda de reconhecer seus próprios erros, sua traição.

       Franco já tomou 30 litros de sangue, em transfusões. Não será muito, mesmo para ele?

       Deus castiga?

 

                             ROSA DE TÓQUIO

       Pra japonês duas pessoas é solidão. Eles só andam em tropel. E, em lugares públicos, saiam da frente. Uma pausa em homenagem a Hollywood. Realismo absoluto. Eu já tinha tido uma prova antes. Em Paris, 1963, uma insigne confreira me levou a um restaurante supos­tamente do balacobaco (e era) em Montmartre, onde “turista brasileiro não vai”. Estávamos lá ganhando potência com ostras quando descobrimos uma festa particular in loco, dos donos do res­taurante. Exatamente como em Hollywood, os bigodes, as excla­mações (alô Cocô, Alô Lulu etc), só faltando aquele idiota pra can­tar “It's Wonderfull”. Carmen Miranda também, quer dizer, ela foi um pouco prematura. Antecipou o Brasil de hoje. Estamos assim. E, agora, o Japão. Juro, é só “massa”, grunhindo guturalmente em cima da gente. E são tão reconhecíveis no resto da Ásia, entre os outros amarelos, como americano na Europa. Andam em dúzias, formam filas quíntuplas, todo mundo se acotovelando, cheios de caramalheques no peito, para serem identificados, rindo à-toa e gritando rai, rai (sim) a todo instante. O riso é temível. Num dos meus bordejos entre Hong-Kong e Tóquio, na Japan Air Lines, o cavalheiro a meu lado riu as 4 horas, só parando para fazer aquele barulhinho de sugar dente e os borborigmos sorvendo o café. O arroz caiu numa das minhas calças do J. Bezzerra. O que fui fazer no Oriente? Como diria Marlon Brando, “You dirty, stupid slob”.

       Como qualquer outro povo, japonês mente muito. Um guia, nos jardins do imperador, me informou que a família imperial é a mesma faz 2 mil anos e que se o MacArthur tivesse insistido em derrubar Hirohito, em 1945, o pau continuaria comendo. É “menas” verdade. Ou melhor, não é bem assim. Como a vida de Cristo que aprendemos na escola começa no III Século da Era Cristã (sentiram o copy desk?), a história japonesa escrita é do IV Século A.D. e via Coréia e China (naquele tempo não tinha jato, convém lembrar). E MacArthur não derrubou Hirohito não foi porque tivesse medo da guerra continuar. Pau contra bomba atômica não dá pé. Aliás, que história é essa de MacArthur? MacArthur empregado de Truman, Acheson e Cia. Cumpria ordens. Quando descumpriu, na guerra da Coréia, foi demitido por justa causa (com indenização). Mas MacArthur, eu dizia, não derrubou Hirohito, limitando-se a capar-lhe a divindade (Banzai! Banzai!), porque sentiu que sem o imperador haveria um vácuo de autoridade e os comunistas poderiam preenchê-lo.

       O imperador em si é um dois de paus e acredito que tenha sido a História toda, exceto no tal IV Século e durante o reino de Meiji que foi de 1800 e tantos a 1912 (o cara é o avô de Hirohito). Falando nis­so, visitei em Tóquio os parques do imperador Meiji, hoje públicos, e que têm santuários Shinto e budistas. São imensos, mas fajutos, ou seja, reconstruídos, porque os americanos tacaram bombas incen­diadas nos originais. Como vocês vêem, já na década de 1940 os EUA só bombardeavam alvos militares.

       O fato é que quem manda no Japão, ou mandou até MacArthur, é um negócio chamado Shogunate, vulgo ditadura militar. Há Confúcio por trás, complexas divisões de classe (mercadores, artesãos, fazendeiros e guerreiros), o pai manda ditatorialmente na família etc. MacArthur acabou (ou escondeu bem) o militarismo, mas o res­to me parece transferido para os conglomerados japoneses. Estive em vários (e em dois dos maiores, Mitsubishi e Mitsui) e examinei atividades e balanços (públicos, naturalmente). Acredito que não haja no mundo uma outra comparável cartelização. Aliás, acredito não, não há. A Nippon Steel, por exemplo, é o maior complexo de aço do mundo. Nos EUA, no petróleo e energia em geral, há, ao menos, 25 tubarões. Nos negócios, os japoneses gostam de solidão.

       O Japão poderá vir a ser o primeiro país superdesenvolvido a virar comunista, cumprindo a predição de Marx, que dizia que socialismo em país subdesenvolvido só podia ser socialismo sub­desenvolvido (a frase é de Paul Barran, mas Marx endossaria). Sério. Hoje, o Partido Liberal (conservador) ganha porque tem o voto lurív pen do campo, obra de MacArthur, cuja reforma agrária foi à la PRI mexicano, criando toneladas de pequenos fazendeiros que, em toda parte do mundo, votam com a Direita e, no caso, formam maioria. Nas cidades (o futuro do Japão, um êxodo rural galopante) a Esquer­da é fortíssima e dividida como sempre. Os socialistas apanham “al­gum” dos capitalistas, mas são bem radicais em algumas coisas, par­ticularmente no antimilitarismo. O PC, bem, o PC é o PC. Ainda as­sim, os prefeitos de Tóquio e Okinawa, postos chaves são de Esquer­da.

       Há motivos sociais. Em Tóquio falta água em 50% ou 80% da cidade (ouvi as duas versões e não tive tempo de apurar qual é a cer­ta, mas todo mundo reclama). Tanaka, ao contrário do que eu já es­crevi aqui, é um panaca e péssimo parlamentar, um PSD incom­petente e de olho rasgado. O japonês mora abominavelmente mal e caríssimo. Um executivo diretor de empresa ganha a metade do que o Millôr fatura. Quem manda no país é a entidade dos empresários, o Keidanren, mas os nativos estão inquietíssimos. Vi uma greve forte em frente ao Chase Manhattan. E era inteiramente comuna.

       Os marxistas que me perdoem mas acho que a maior chance do comunismo está em que explica e organiza tudo, ao menos no papel. Há um terrivel vácuo espiritual no Japão. A economia é um prodígio. Herman Khan diz que passa os EUA no fim do século. Logicamente, vindo de Khan a profecia, é claro que não passa. Ain­da assim, saiam de baixo e da frente. 30 bilhões de dólares de reserva no exterior (o que explica em parte, os péssimos serviços sociais. País com esse grau de reserva é que não está investindo em serviços sociais. Pobre é fácil de roubar mas custa caro, a fim de ser mantido vivo e continuando a trabalhar), um gênio tecnológico que já ul­trapassou há muito tempo o estágio imitativo, ao contrário do que dizem as más línguas (todas falando inglês fluente). Isso não basta. O japonês quer ordem, autoridade, dieta espiritual substanciosa, o que o shogunate tinha (o próprio militarismo japonês da década de 1930, apesar de basicamente aristocrático, tinha muito de religioso e revolucionário). Isso o capitalismo não dá. O capitalismo é a mãe do esculacho. É uma das coisas boas do capitalismo, aliás, se você par­ticipa dos benefícios. E o comunismo dá, sim, senhor. Seria en­graçado ver a experiência de longe.

       As mulheres são o sonho dos rapazes de punhos dinâmicos. Uns robôs infalíveis. É como ralar o coco até sair leite a dois, aquilo que o filho da D. Portnoy fazia adoidado. Farra de japonês é sair com homem e gueixa. Não há casa de gueixa. Gueixa você contrata e não faz necessariamente parte do menu. Mas sabe divertir o homem (não sei como, cantando daquele jeito). O japonês janta uma vez em casa, por semana, e olha lá. Chega à meia-noite, em geral. Diz que a casa dele é humilde e que os amigos merecem os lugares públicos. Não é só por prazer. A noite surgem grandes transas de negócios. E as escravas, minha filha, ficam cuidando da casa e dos filhos. Onde está Glória Steinem? Falando nisso, o lesbianismo está firme e forte no Japão.

       Meu maior problema foi a língua. Japonês que fala inglês (que eu conheci), com uma exceção (ex-oficial das Forças Armadas, um daqueles que bateu no Alec Guinness e William Holden), não sus­tentava uma conversação. E se você meter qualquer coloquialismo, ou mesmo falar fluentemente, perdeu o bicho. E, mais, do hotel você só sai com o nome do dito escrito, porque o Hotel Imperial, onde estive, por exemplo, é algo semelhante a Toconorucunucu, e é só o que os choferes de táxi entendem. Falar com japonês é como arrancar cabelo do etc, de anão a grampo.

       Eles, individualmente, são delicadíssimos e formalíssimos, nos recebendo com a maior, se glacial (para nosso gosto) cortesia. E não há L em japonês, o que cria certos problemas. Eles acreditam hor­rores no terexo, por exemplo. A comida é paupérrima.

       Bem, estou começando, já circulei duas vezes pelo Japão, es­tive em Taipei e Hong-Kong, volto ao Japão e depois não sei para onde vou (toparia Londres, por exemplo, mas nunca se obtém o que quer na vida). Antes que me esculachem porque exijo que os ja­poneses falem inglês, acrescento que não estou mencionando por­tuguês. Eu não falo a deles, eles não falam a minha. Qual vai ser o meio termo? Minha última imagem de Tóquio nessa passagem agora é que segui uma loja duty free a caminho da alfândega. A loja era um turista japonês sumido em meio de uns 8 pacotes, um, no mínimo, amarrado vocês sabem onde. Os americanos do Oriente. Inté.

 

                     SALÃO GRENAT

       Tomei um pileque no bar do Ritz em Paris, com 54 anos de atraso e ninguém estava mais lá. E os outros também não estavam. Só vi um entediado executivo de “multinacional” esperando a pa­troa, no cabeleireiro, nos anos 20 escreveríamos um entediado corretor da Bolsa, ela veio, salientando a cabeça, as mulheres fazem isso, as que continuam mulheres, vocês já notaram, não adiantou o perm, ou o que seja que essas broacas enfiam na cabeça, ele mordeu uns amendoins e bebeu o resto da cerveja — Carência — e depois se foram, entrou também um casal velho francês, ele caquéticoe ener­gético, tropeçando pelas mesas e atacando batatinhas, haviam es­quecido qualquer coisa na voiture, e não voltaram, e uma senhora de turbante, americana que fala francês, 40 e lá vai fumaça, que elevou os panos (calças largas, mangas compridas) ao sentar, procurando talvez a mesma coisa que eu, um clima que não existe mais, chego sempre atrasado. Mas os franceses servem uma tala­gada. Não peçam double, é 1/3 de pint. No bar do Fouquet's (aten­ção: é o bar, não o café ou o restaurante; o bar fica no meio e há poucos lugares, mulheres sozinhas não são permitidas. Até que Betty Friedan chegue a Paris, naturalmente), a dose é gigantesca e o meu double era um copo cheio, antes do gelo, o Fouquet's e o La Coupole, este completamente na “contra”, eram outras contas, ou restos a pagar.

       Ao descer a rua de (ou sem o de) Mouffetard, passando pela Espada do Bosque, rumo à Fleury (calma, onde morava Gertrude Stein) me lembrei de uma coisa de Edmund Wilson. Antes, esta coluna lamenta informar que o Café des Amateurs não existe mais, a pracinha aquela está toda “retapetada”, e os pardieiros cobram fortunas por uma água-furtada, para ingênuos que querem clima, como eu, só o mercado (antigo, do velho bairro dos judeus), sobrevive, até que os empreiteiros notem, no Ao Pé de Porco hoje se vai por puro masoquismo (e ostras, OK), olhar a ruína dos Les Halles, agora na estrada de Orly, com um ar inequívoco de fábrica da Avenida Brasil, aqui, leio, New Orleans destruiu o Halles local, enfim, terminaremos todos encaixotados, de qualquer maneira, os empreiteiros apenas apressam o processo.

       Edmundo Wilson escreveu não sei onde que os franceses ignoram críticas de estrangeiros porque ignoram a existência de estrangeiros. Nem tanto. Se tem poder, o óbvio, são celebrados. Há as avenidas e estações de Metrô Franklin (pronunciado Franklan) Roosevelt e Presidant Vilsón, dois velhos e declarados inimigos do ex-império francês. Não há uma pracinha, uma ruela, um boteco sequer, chamado Fitzgerald, Hermingway, ou G. Stein, que, ao menos, no mundo anglo-americano e adjacências, tornaram Paris um ideal de três gerações, eu fiz o que pude do roteiro Hemingway, por exemplo, foi divertido (res oblíqua) pagar uma conta gigantesca de um magnífico almoço no Closerie des Lilás, que Hemingway, quando não está falando mal do próximo, descreve como um bom “café”. Seria até turismo inteligente batizar alguma coisa com o nome eles, Fitzgerald e Hemingway vendem per capita 200 mil exemplares ao ano, só aqui, mas a França mais e mais se parece com a Jours de France, e a glória de Paris oficial é aquela fileira de ruas, Hoche, Foche etc, excetuo a Wagram do piche, pixe, porque ao menos lá se “faz a Vieira Souto”, as declaradas, quero dizer, Jackie morava na Foche, até ser despejada por aquela jovem crioula que andou pela aí no Bateau, esses generais foram péssimos, o que qual­quer historiador sabe. St. Just, um grande general, tem uma rueta obscura num bairro operário, comunista, no Norte de Paris, que se descobre só no mapa. Robespierre não existe, urbanamente, se per­guntarem a Marchais do PC, ele diria, Ro Who? No patois pseudo-marxista que emprega.

       A generosidade, até injusta com eles próprios, dos ingleses. Ao mencionar que eu ia ao British Museum, fui informado que Marx es­creveu o Das Capital lá (não é bem isso, pesquisou lá) e que Lenin planejou a revolução bolchevique do reading room (o que é total­mente falso, mesmo porque Lenin não planejou a revolução bol­chevique, ninguém planejou). A injustiça é que o BM tem a maior biblioteca do mundo e outras coisas muito antes de Marx dizer gu, gu.

       A outra glória da Paris oficial é a horrenda torre de Montparnasse, um predinho de 56 andares, cuja única importância é que é cenário de uma cena memorável de O Fantasma da Liberdade, de Bunuel. Confesso que na noite rumo à Lisboa, antes de passar uns dias em Paris, fiquei no Sheraton, mas isso é porque eu não durmo em avião e queria tomar ao menos um choveiro, chuveiro, decente, e o do Sheraton é supimpa (no exterior, aqui são cocôs, a cadeia inclusive destruiu o St. Regis de Nova York). Confesso a minha surpresa que a Embaixada do Brasil esteja na Avenida Montaigne, apenas perto da Foche. Um insuspeitado comedimento caboclo Já o Sr. Adolpho Bloch, o grand jornalista (sim, porque não sabe ler e escrever e assina uma coluna) e agora patrono do teatro brasileiro, ao chegar a Paris, me contaram, perguntou pelo lugar mais caro, alugando um andar nas vizinhanças da Foche, de cara para o Sena, totalmente, em frente ao Bateau Mouche mais caro, e, num restaurante onde se faz feijoada, depois de um briefing sobre as personalidades de Sartre e de Beauvoir, dirigiu-se os dois e se apresentou como Adolpho Bloch, diretor de Manchete, provocando os predizíveis ça, alors, e comment, “un macaco louro!!!”

       Na volta, fiquei num hotel na Rue de la Harpe, em algo cha­mado grand-standíngue, que presumo seja grand standing, pois tinha double v c, douche, e outras misteriosas necessidades de gente de paragens tropicais. Razoavelmente barato (o hotel anuncia or­gulhosamente que dispõe de elevador, mas não põe um jarro dágua no quarto) e me entupi de tartines etc, no café em frente da Notre Dame, próximo da Shakespeare and Co. e do Chatelet. Rodei me­trôs, subi e desci escadas, fui a Versailles, ao Bois, a Neully, almocei na Porte Dauphine, onde Marie entrou (presumo, estou quase cer­to), fui ver Gauguin, velho hábito, cobri a Alexandre Trois, a Neuf, a Royal, o Palais Royal, a Vendôme, mas isso já contei, mas não vou contar que bebi fel e gasolina. Paris é um barato, surprise, surprise.

       Na minha última noite, ouvi em baixo da janela uns alemães cantando alto. É que um time qualquer deles tinha dado num time qualquer local. Alemão cantando termina em Heil e imaginei que fosse quebrar o pau, afinal estávamos no Quarteirão Latino. Mas não. Eles se entendem. Ouvi umas menções a les boches, quando, antes, fui comprar um doce e duas Cocas (Colas) no argelino da es­quina, mas foi só. Giscard foi corajoso em suspender as comemo­rações do 8 de maio, até porque, a) a Alemanha foi derrotada, pela URSS, em 9 de maio; b) a França não teve nada com isso.

       Le Coupe Chou é um dos restaurantes mais bonitos de Paris, numa casa de um século em que ainda existiam arquitetos. Se chama assim porque uma senhora lá foi assassinada com uma foice de cor­tar repolho. A comida é estupenda, agora o serviço é feito, como direi, por andróginos, jovens e bonitos, mas precisavam se conter um pouco. Depois que você come, te põem numa sala à parte para o café e conhaque (não tem estrelas na máquina, eu queria por 4). Pedi o meu. O andrógino trouxe e serviu errado, aí ficou nervoso, pôs as duas mãos na cintura, bateu o pé, e gritou alto bom som; Ah, moi, je ne comprends plus rien! Assim marcha a humanidade. Giant.

       Chego à Babilônia, acordo 5 horas antes, às 4 da manhã, é que são 9 em Paris, e bato estas mal traçadas, ligo a TV, está levando um filme de Randolph Scott massacrando os índios. Recomeça.

       Cuidado, não é um relógio que você está segurando, é o meu coração.

 

                       NOTÍCIAS DA CORTE

       O filme de Luiz Bunuel, O Discreto Charme da Burguesia, teve 15 críticas favoráveis e nenhuma contra em Nova York, o que eqüivale aqui a um presidente ter 100% dos votos. Está tudo muito bem, bravos (aos críticos) etc., mas me pergunto se esses caras real­mente entenderam o filme, como eu entendi e vocês entenderão, quando virem. Porque é um filme brasileiro, sobre a classe dirigente brasileira, espanhola e latino-americana, no que incluo as perso­nagens francesas, todas falsas como francesas e autenticamente cosa nostra. E o vexaminoso é que nenhum cineasta brasileiro tenha feito um filme igual ou parecido. Não, não, a desculpa não vale. Podia ser feito hoje, exatamente como está. Tomem nota e depois que virem me contem. E não é só minha opinião. Bea Feitler e Lena Chaves viram juntas, em Paris, numa matinê. O público francês dan­do uma de Grande Mudo e elas às bandeiras despregadas. Muitas bandeiras despregadas. Definitivamente.

       Fazer crítica de qualquer coisa permanentemente faz mal à saúde. No meu tempo de crítico de teatro, nos últimos tempos, digo, eu tomava um copo de uísque puro (2/3 com o precioso líquido es­cocês, nada de gelo ou água), antes de me entregar às delícias trimestrais de Aurimar Rocha, Eva Tudor e similares. O crítico desenvolve uma técnica de prestar apenas 10% de atenção ao que vê, ocupando os restantes 90% em sonhos, ao gosto do freguês, eróticos, declamando para as massas submissas etc. etc. Mas chega um momento em que você sai ou vira outra coisa e vago assim mes­mo, “outra coisa”. Ou fica excessivamente bonzinho com todo mundo, o que é, apesar das aparências em contrário, uma forma de agressão ultra-reprimida, ou descobre “genialidade”, em autores ou produções que ninguém mais gostou; ou cai no sadismo Ruined Choirs: Doubt, Prophecy, and Radical Religion, de Garry Wills (Doubleday, 272 págs., $7,95). É um prato (talvez indigesto) para aqueles que no meu tempo se chamavam “católicos, apostólicos romanos”, revelando uma pena desdenhosa pelo bilhão e meio de pessoas que não pertenciam a esse clube. Wills é católico, Ph.D. em Clássicos (Yale) e analisa o que aconteceu à Santa Madre depois do que chama o “reinado dos dois joãos” (Kennedy e XXIII). As referên­cias dele a Paulo VI são um modelo de polêmica jesuítica (o humor de Joyce que vocês, pagãos, pensam que é do próprio), mas exces­sivamente cruéis, a meu ver, porque o pobre homem enfrenta problemas que vouvoscontar. A luta entre a “velha” e a “nova” Igreja tem aspectos tragicômicos. O agente do FBI (a maioria é católica), ao prender o ativista antiguerra, Daniel Berrigan, sapecou nele o moto jesuíta: “Ad majorem Dei gloriam”. Berrigan é um padre jesuíta.

       Confesso que o assunto não me fala ao cérebro há uns 20 anos, mas verifico que nas minhas poucas sintonizadas formei instinti­vamente do lado dos conservadores. Um exemplo: quando ouvi a primeira missa em morfético & matusquela & miquelino português, o maravilhoso texto latino que eu já soube praticamente de cor e salteado me voltou em boa parte. E não só eu. Wills conta que intelec­tuais não católicos, Robert Graves e Nancy Mitford, por exemplo, escreveram ao Papa protestando contra a banalização da liturgia, “um dos patrimônios culturais da humanidade”.

       Wills diz que mesmo os ex-católicos sempre viram na Santa Madre uma das raras instituições estáveis e imutáveis da nossa ci­vilização e que era confortador saber que sempre poderiam voltar a ela encontrando tudo igual ao passado (infância). Não mais.

       E me pergunto se o poder dos críticos não é um sintoma, ainda que menor, da totalizarização crescente da sociedade americana, ou de qualquer outra pós-industrial, tecnológica. Neste país, meus amiguinhos, se vende torrada gelada com manteiga idem, que você esquenta no fogão. “A maioria das pessoas se sente mais e mais presa a “confortos”, que são, em verdade, prisões, que tornam inútil e indesejável e, em alguns casos, temível a iniciativa individual. Há critérios de gosto coletivos em tudo, que as comunicações de massa impingem aos mais obtusos mortais. Ou seja, o cidadão, a menos que esteja entre os intelectualmente eleitos, é quase forçado a virar “horda”. Você vê isso nos menores detalhes. Há maior mistificação, por exemplo, que a chamada “individualidade de gosto” nas roupas da juventude? Todo mundo de blue jeans pseudo-desbotados, etc. Os caretas tinham muito mais variedade, entre o cinzento e o azul, me parece.

       E há o senso de complicação crescente. É minha impressão — baseado mais na análise política — que a maioria das pessoas não tem rigorosamente a menor idéia do que está se passando e que já desistiu de procurar saber. Logo, alguém que mande, uma figura divina-paterna, se torna praticamente obrigatória em todos os se­tores. Big Brother antecipou-se a 1984.

       29 milhões de americanos deixaram de fumar depois que os médicos decidiram que dá câncer no pulmão. E exatamente 29 milhões de adolescentes pegaram o vício. A polícia moita. Aliás, fuma. O outro fumo dá cana. O primeiro fumo é o chamado negócio legítimo. O segundo, não. Os meios de produção (e quem os con­trola) é que criam a consciência humana, e não vice-versa, já disse alguém. Falou.

       Não exagero. Um Variety recente faz um exame do compor­tamento dos críticos de cinema de Nova York. Sadismo: John Simon, um dos raros profissionais que merece o título de intelectual, é cis­mado com o físico das atrizes. Se a mulher não for ótima, ele descreve o jeito que ela baba, perspira; chama de aleijada etc. Xingou tanto a pobre Maureen Stapleton (Simon é também crítico de teatro), uma boa atriz, por sinal, que outros críticos, por um simples dever de humanidade, saíram em defesa pública da moça. As duas do New Yorker, Penelope Gilliat e Pauline Kael, maltratam brutal­mente (estou me valendo de outras fontes, além de Vanety) os fun­cionários de relações públicas das produtoras, que, claro, nada têm a ver com a qualidade dos filmes. Kael, quando não gosta de um fil­me, não deixa mais ninguém ver. Fala alto, conta piadas, chuta a poltrona da frente, faz cuspe em distância etc. Bernard Shaw estava certo, ainda que só falasse, no caso, de teatro: “Para o crítico, ir ao teatro é a praga de Adão”. Variety acha que as produtoras já estão se enchendo, depois de dependerem nos últimos 10 anos dos críticos de Nova York (citando-os em anúncios e usando-os nas vendas do produto americano na Europa), quando as bilheterias começaram a pifar em face da TV. Pode ser, mas as coisas vão continuar exata­mente como estão. A própria Vanety nota que, em 1946, 19,81% do dinheiro gasto pelos americanos em “recreação” era destinado ao cinema. Em 1962, o percentual caiu para 4,41%. Hoje, acho que nem ousam fazer o cálculo. Os produtores precisam de “autori­dades” que garantam ao público arredio a qualidade da mercadoria. Os críticos, “psicos” ou não, ao menos vão muito ao cinema.

       Fui a Canarsie, Brooklyn, N.Y., veros pais brancos tentando im­pedir a entrada de 31 crianças negras e porto-riquenhas (desculpem o pleonasmo) numa escola pública. O ódio é mesmo orgasmático,” talvez porque, amando, você só toca (se tiver sorte) algumas pessoas, enquanto que agredindo, você atinge todo mundo.

       Não sei se vocês são como eu, mas quando ouço a descrição de qualquer doença começo logo a sentir os sintomas. Vendo um comício McGovern & Kennedy em Hackensack (rir, rir, rir, ao ouvir o nome: é o mesmo que Pau Grande ou aqueles apelidos índios de que os paulistas gostam), apesar dos 28 agentes secretos em volta do palanque (fáceis de identificar porque olham para o público), fiquei imaginando — e é impossível — o que Ted Kennedy deve sentir se oferecendo às balas do mais recente e ainda não identificado ma­luco que vai, provavelmente, matá-lo. Todos os jornalistas discutem o assunto, se perguntando em voz alta se “vai ser hoje” (estar pre­sente ao assassinato daria aos jornalistas ou repórteres de TV americanos muito espaço, projeção nacional, famae glória). Muitos olham Kennedy como se fosse fabricante de bacon examinando um porco bem gordo.

       Repeteco de uma nota que dei “alhures”, mas que faleceu decapitada por forças ocultas: David Niven comemorou outro dia o 20° aniversário de um filme chamado The Moon is Blue, em que ele trabalhou. Pela primeira vez, no dito, Hollywood pós-1930 usou a palavra “virgem” em cinema. As associações encarregadas da defesa da moralidade protestaram, ninguém sabe por que, pois a palavra está em todos os dicionários como a descrição de um estado físico, e é só. Comentário de Niven: “Hoje que se pode usar virgem à von­tade, até na TV, ninguém mais sabe o que significa”.

       O preço do hamburger subiu 45% sob Richard Nixon. Isso deu alguns milhares de votos a McGovern. O povo entendeu a gravidade do fato.

       Falando nisso, Anthony Burgess, que está morando aqui e in­vestigando joyceanamente a cidade (duvido um pouco que saia vivo: foi morar no Upper West Side de Manhattan), informa que as drogas já chegaram aos jardins de infância.

Como eu ia dizendo: Deus castiga.

 

                       AS AMARGAS, YES

       Como nalgumas cidades do interior no Brasil, a gente no meio oeste americano, se você a encara, sorri. Se você for branco, digo.

       Isso não aconteceria no meu tempo. Nora Sayre conta que es­tava cobrindo uma passeata da Gay Activists Alliance, em Nova York, para o “New Statesman”, quando ouviu de um menino, também na platéia, a outro: “Ih! Olha lá mamãe. E marchando!”

       Em Divina Dama (That Hamilton Woman. 1940 ou 1941?), Laurence Olivier era Lord Nelson e Vivien Leigh, Lady Hamilton. Eles se amavam pelo que parecia ser polinização sintética. Na nova ver­são, Clenda Jackson acorda de manhã e informa à criada que o al­mirante (Peter Finch) na noite anterior (...) O café da manhã dela é cerveja e pernil de porco. Depois, arrota. Estamos em 1973. Vocês gostam? É o que me pergunto, mais e mais.

       Falando nisso, o filme (escritor: Terence Rattigan) diz que Nel­son, antes de morrer, pediu ao rei que garantisse a posição de Lady Hamilton na sociedade, já que ela era apenas concubina dele, sem direito a lhufas. Rattigan informa que o rei negou e que Lady Hamilton morreu na miséria em Calais (1815). Consultei minha assessora para esses assuntos, a Enciclopédia Britânica, e é menas verdade. Nelson deixou 500 paus anuais para a distinta, o que na época era dinheiro, e a administração dos 4 mil paus anuais que legou à filha dos dois (Horatia, cuja existência Rattigan ignora). Lady Hamilton estourou tudo no jogo. E a Enciclopédia conclui que ela morreu “in distress if not in want”, piçuda mas não dura. Rattigan omite deli­cadamente que Lady Hamilton era chantagista. O Duque escreveu-lhe cartas. Como Nelson, era casado. Lady Hamilton quis tomar-lhe algum, ameaçando publicar as cartas. O Duque: “Publique e vá para o diabo que a carregue”. Ela não publicou. Rattigan põe na boca de Glenda que a moça se dava tão bem com o rei e rainha de Nápoles, que dormia na mesma cama que eles. É um equívoco. O rei dormia alhures. E que Clenda foi conhecida por metade da nobreza inglesa. Metade é muito. A maioria, como o primo de Noel Coward, can't.

       Finch, no filme, me pareceu menos passional que em Sorvete, Sangrento Sorvete. Glenda pensa que bêbado vive caindo, mas é en­graçado ouvi-la chamar o segundo em comando de Nelson de bugger (ao que Finch responde: esperemos que você esteja enganada.) Há uns grumetes bonitinhos, mas prefiro (ainda) Vivien Leigh.

       Brasileiro, do Rio em dificuldades no estrangeiro à procura de emprego, sempre encontrará um rapaz do nordeste chamado Walderedo, Vamberto, Epaminondas etc, em posição de ajudá-lo, mas relutante. A melhor maneira de conquistá-lo é entrar no escritório dele, dizendo: “Falando nisso, sempre apoiei a SUDENE”.

       Acabei de ler as memórias de Simone de Beauvoir. Ela chama um conhecido meu, no Brasil, de católico de esquerda. Operacional seria a palavra exata. Diz que quase todos brasileiros são descenden­tes de judeu e negro. Achou o candomblé inesquecível. Eu nunca vi, logo não sei se esquecerei ou não. Considera Copacabana bonita. Diz que todos os brasileiros que conheceu são devotos de Nagô. Pegou uma febre, no norte, informa. Minha impressão é que só sen­tiu a febre no norte. Já tinha antes. Depois de lê-la fiquei com vontade de visitar o Brasil. Um dia desses vou aí, ouviram seus judeus e crioulos, e vocês vão me levar a conhecer Ogum, Oxalá etc. não adianta esconder.

       Quando Sartre e de Beauvoir estavam no Brasil, Richard Sasso e eu fomos entrevistar Graham Greene, no hotel Serrador, e depois tomamos um drinque na casa de Mr. Indeed Cates, o diretor do British Council. Fui um tanto agressivo com Greene que, porém, me desarmou completamente. De Brasil mesmo me disse que sabia que o apelido da poeira em Brasília era “lacerdinha” e que o nosso P.E.N. Clube daria um bom conto, que não escreveu até hoje. Na casa de Cates me contou sobre o lolitismo em Saigon, naquela época ainda não na moda (Saigon). D. de Beauvoir discute as diferenças entre Lott e Jânio Quadros, na eleição de 1960. Greene nem uma palavra. Ele manjou bem o Brasil. P.S. Minha agressão, apesar de infantil (acho hoje), tinha uma certa base: reclamei que nos romances dele nunca havia uma saída possível em vida, só depois da morte, graças ao Deus católico. Greene negou, a meu ver porque naquele tempo exato começava a evoluir para uma posição política ultra-progressista, depois de uma viagem a Cuba. Se vocês se interessam por curiosidades, noto que George Orwell, no auge do reacionaris­mo de Greene (“The Heart of the Matter”), previu que ele ia para a Esquerda. Como, não sei, pois não existe o menor indício disso nos primeiros romances, analisados por Orwell. Greene, sintomaticamente, considera hoje “The Heart of the Matter” uma joça. Minha infantilidade é que eu não apreciei o caráter verdadeiramente profético de “The Quiet American”, já publicado quando conheci o autor, e em que você encontra a matriz espiritual do comportamen­to posterior dos EUA no Vietnã. Às vezes penso que sou muito burro, mas mudo de opinião rapidamente.

       Vocês lembram da Kitty Genovese? Vão lembrar. É aquela senhora que anos atrás foi assaltada por vários crioulos, que lhe bateram a bolsa e a esfaquearam até morrer. Kitty berrou paca. A cena, num bairro de classe média, foi vista por um bocado de gente, mas ninguém se meteu. Isso deu manchetes, reportagens e, no mínimo, 13 mil teses sociológicas, ilegíveis, naturalmente, sobre o comportamento do americano médio. Agora, é com prazer que in­formo que o martírio de Kitty vingou. Outro dia, aqui do lado, na esquina de Bleecker e La Guardiã Place, uma senhora chamada Gloria Demarest foi assaltada pelos indefectívies crioulos que le­varam a bolsa e mataram a portadora a cacetadas. Gloria, pelo que li, também berrou paca, sem nenhum sucesso, apesar de haver precisamente nessa esquina um supermercado Grand Union onde há, sempre, umas 300 pessoas, sendo roubadas (mais sutilmente) pelos donos do Grand Union. Quando eu voltava à casa, o cadáver ainda estava lá, em decúbito dorsal, sendo examinado pelos tiras e muita gente em volta. E todo mundo comentava; “Exatamente como a Kitty Genovese”. É o nascimento da consciência social.

 

       Yves Montand está fazendo a história política moderna, di­tadura da Espanha (“A Guerra Acabou”, ou será “paixões exaustas”?), ditadura grega (“Z”), ditadura tcheca (“A” Confissão”) e, agora, ditadura uruguaia (“Estado de Sítio”).

 

       Entreouvido numa reunião da John Birch Society, quando al­guém falou de Platão: “That homo, Socrates”.

 

       Onde estão os cisnes? / Os cisnes morreram./ Onde estão os abutres? / Os abutres chegaram.

       Ao contrário do que diz o “New York Review” (3/4/1973), esses aí são os últimos versos de Marina Tsvetaeva, escritos em 1939, em Yelabuga, onde ela estava deportada por Stálin, que já lhe matara o marido e prendera a filha (que “desapareceu” em 1941). Pouco depois, Marina Tsvetaeva se enforcou. Ela era muito bonita.

 

       Estou ouvindo aqui no rádio Renata Scotto cantando a “ária da loucura” de “Lúcia de Lammemoor”. Só tenho um comentário a fazer: shut-up.

 

       Sartre tem várias passagens sobre a impossibilidade da criação “fora da História”, ou seja, sem que o artista expresse a realidade social e sobre si próprio em face da dita. Tem mais, mas basta para o que quero dizer, que é que isso é besteira — em alguns casos. Depois dos ruídos estranhos de D. Scotto, botei na vitrola “Der Rosenkavalier”, de Richard Strauss, com Regine Créspin e Yvonne Minton (uma senhora deveras pneumática e que entre os novos (relativamente) cantores dominou esta saison do Metropolitan Opera House). O trio do último ato, entre Minton, Crespin e Helen Donath é baseado num kitsch gagá e decadente, típico da pena do libretista, o poeta Hugo von Hofmannsthal. Uma “velha” (balzaca) cede o amante jovem a uma moça, sentindo que o “até logo” dele seria inevitável, mais cedo ou mais tarde. Octavian, o rapaz, é quase sempre cantado por uma mulher, em travesti, no caso D. Minton, uma australiana que não tem nada de canguru. A ópera é favorita daqueles que minha santa mãe chamava de “invertidos”. Em parte, é o caso do travesti, parte a renúncia da balzaca, parte a relação do velho com o moço e sei lá mais o quê. Bem, se você lê o texto de Hofmannsthal, fica esperando a orquestra da Metro sobre Sal Mineo, no rapaz, Sandra Dee, na moça, e Debbie Reynolds, na balzaca. E Strauss, acrescento, foi nazista baboso. A música e o canto atingem, porém, um lirismo leve e melancólico de que só existe igual em Mozart. Como explicar isso? Ninguém sabe. Nem Sartre. E a ópera se passa na Áustria de Maria Tereza, cujo marquês de Rabicó, alguns anos depois ficaria mais apertado que minha situação financeira em face da Revolução Francesa. Sartre aí empanou. Que que vocês acham?

 

       Agora, me digam uma coisa: comentários sutis sobre a socie­dade americana, notas políticas inquietantes, uma aula de poesia russa, um comentário agudo abt Graham Greene, Sartre, ópera, cinema, a dicotomia (êpa, ôba) nordeste & Rio, tudo isso por Cr$ 1,50, o que vocês querem mais? Um retrato autografado? Custa $ 1 dólar por unidade. Cheques só visados.

 

               POSSO FALAR UM MINUTO?

O único teste científico da pornografia é a excitação que provoca. Um livro, por exemplo. Seria entregue aos jurados (homens ou sapatões) escolhido um trecho sob acusação. Terminada a lei­tura, o juiz ordenaria ao júri que se levantasse e inspecionaria outros levantamentos. Não falha.

 

O Grande Inquisidor (Dostoiewsky) está sempre seco para beijar Jesus (cortesia de Saul Bellow).

 

As profundezas do espírito nunca estão super-populadas (cor­tesia de Saul Bellow).

 

Os físicos italianos B. Berttoti e A. Cavaliere alegam que só há 2% de galáxias luminosas no universo, Jaguar. O resto é reflexo e matéria morta. Menos que o juro que se paga para viver.

 

Das memórias de Julian Huxley: “Fiz outra descoberta quando estava de quarentena de cachumba. Hífen, reticências (P.F.). É verdadeiramente uma injustiça da natureza dar aos meninos essa ca­pacidade de irresistível prazer solitário. Nunca me esquecerei do meu primeiro e tremendo choque. Espero que os meninos modernos não sofram tais tormentos. Nós, às vezes, ficávamos arrasados com esse problema. Nunca acreditei nessa história de comadres de que aquilo fazia mal à saúde, mas sabia que era errado. Durante anos, mantive anotações com cruzes e traços, marcando os dias em que tinha resistido ou sucumbido”.

 

Um traficante de cocaína em Nova York fatura 10 mil dólares por semana. Descontos na fonte para a polícia.

       Fui à parada das liberacionistas, em 24 de agosto. Elas disseram na TV que pararam Wall Street. Wall Street não pára. Se parasse haveria algo mais que a libertação das mulheres.

 

Sabe por que você não é canhoto, Jaguar? Porque inside ma­mãe, além de ficar de cabeça para baixo, você permaneceu encos­tado na parede esquerda do útero, o que deu à direita maior campo de manobra e de fortalecimento muscular. A direita sempre leva todas as vantagens.

 

Houve três homens antes de você, Jaguar, o Pitencantropo, o Neanderthal e o Cro-Magnon (sei lá se é assim que se escreve em português). Do Pitecantropo ninguém nem fala. O Neanderthal sempre foi considerado a besta quadrada suprema. Parece que não era. Descobriram o cadáver de um deles, enterrado há 60 mil anos. Cego de um olho a boneca, um braço fora de circulação, e morreu de acidente (desmoronamento). Puseram flores no “túmulo” dele. Quer dizer, o Neanderthal tinha sentimentos. Caluniaram o bicho esse tempo todo. Desse susto não morreremos, quando nos investigarem daqui a 60 mil anos. Deixamos a nossa marca indelevelmente no universo.

 

Diz o Dr. R.D. Laing que os esquizofrênicos têm mais a ensinar aos psiquiatras sobre o mundo interior do homem do que vice-versa. Laing é inglês e está atrasado. Precisa vir à América Latina.

 

Há dois dias que não vejo a cara de ninguém e não falo com ninguém. Por comparação, estou me achando ótimo.

 

Li numa publicação européia uma entrevista de Pele onde ele diz que registrou a filha como branca. Isso confirma o que muitos dizem dele: é um preto de alma branca.

 

Vi a mãe do assassinado líder negro, este um negro de alma negra, George Jackson. Jackson foi condenado à prisão perpétua por um roubo de 70 dólares, quando era adolescente. Na prisão, quase sempre solitária, educou-se. Em 10 anos, tornou-se um panfletário do nível de Trotsky — sem a cultura, OK, mas com igual força. A mãe chorava desesperadamente. Que energia, depois desse tempo todo. Energia é beleza, nota Blake, mas o problema aqui não é es­tético.

 

Não existe nada que eu queira da vida. Atingi um nível de en­tendimento das coisas que considero satisfatório. Quer dizer, sei que sou ignorante, mas que tenho a base para deixar de ser naquilo que me interessar. O problema é que menos e menos me interesso por tudo. Considero programa ficar num sofá, sem fazer nada, nem len­do. A cabeça corre sozinha, forma conceitos, imagens, contradi­ções, impressões etc. Nada fica ou me estimula ao esforço de com­pletar o sugerido ou iniciado. Será a menopausa intelectual dos 40 anos, ou uma forma (ainda) branda de esquizofrenia?

 

Estive lendo aos pulos uma biografia de Einstein, como era mes­mo o nome? Depois de provar que os absolutos mecânicos de New­ton eram falsos e que não existe uma ordem no universo (em termos matemáticos, não exagerem nas generalizações), Einstein passou o resto da vida procurando provar que se enganara. Juro. Estou sim­plificando grosseiramente a questão, claro, mas isto aqui é um jornal dito popular, logo, excuse me. O fato é que, raspadas as comple­xidades suplementares do raciocínio de Einstein, é isso mesmo que ele tentou: encontrar um princípio normativo da desordem univer­sal, ou seja, ordem dentro da desordem. Sifu, evidentemente. O biógrafo acha essa história “trágica”. Foi aí que joguei o livro pro lado. Por que trágica? Rotineira seria a palavra exata. Sem a capa­cidade de Einstein não fazemos outra coisa se não buscar certezas de permanência, organização e lucidez, com os resultados conhecidos. O gênio apenas nos revela o que escondemos de nós próprios, o que já estava em nós o tempo todo. Agüenta firme, bicho.

 

                     DIÁRIO

       Os choferes de Nova York são todos surdos. Há, claro, em quase todos os carros a separação à prova de bala entre chofer e passageiro (aqui confiamos muito uns nos outros), o que dificulta a comuni­cação, mas eles são surdos, mesmo. Se você disser 70 Leste Rua 10 e ele te perguntar se é 20 Oeste Rua 12, não fique preocupado com teu inglês. Grite o endereço certo, spellando assim: ONE O, THAT'S TENTH, GOT IT? Ele não ficará ofendido pode ficar tranqüilo. Acho que espera os gritos, vibrando como um cardíaco sob adrenalina. Quebra a monotonia da vida dele ••• Não sei porque os pseudo-existenciais da pseudo-alienação, gente como Antonioni ou Camus, nunca se concentraram nos choferes de táxi. Afinal, vão pra lá e prá cá, sem nunca saberem porque, sem nunca terem nada que ver com os passageiros, sentiram o tema, a plasticidade, o simbolismo? ••• A gorjeta correta é 15%. Menos dá bronca. Mais, ele acha que você é um imbecil ••• Penso muito em condução (o diabo é que Anto­nioni poria Alain Delon no meu papel, e seria difícil acreditar que ele pensa). Foi num estribo de bonde, no Gozório, freqüentemente pisoteado pelo condutor, um acrobata português, cujo vocabulário se resumia na frase “faz favoire”, que, finalmente, cheguei à con­clusão que God não existia. Eu vinha discutindo comigo mesmo há meses, a polêmica mais difícil que já tive na minha vida, e, de re­pente, as peças do quebra-cabeça entraram todas no lugar. Uma sensação maravilhosa, uma prize, o corpo todo se relaxou, o vento na cara ficou vivo, a mão no balaústre se fortaleceu ••• Num táxi aqui, pensando na falta de imaginação de Antonioni e Camus em não usarem os choferes como assuntos, concluí que; o problema filosófico não é o suicídio, e, sim, que não há razão alguma para se viver e, no entanto, nos agarramos desesperadamente à vida. Por quê? ••• Não tenho em casa sequer o instrumental para um suicídio decente. Acho gás e cortar os pulsos de muito mau gosto, o negócio era ter uma pistola, o bangue tem éclat, e aprendi a cair sem me machucar, quando ator (é fácil: relaxe os músculos) ••• Atiro razoavelmente, uma vez fuzilei um beija-flor a 50 metros de distância, com uma Winchester 73. Noutra, acertei uma casca de tangerina, idem distância e arma. O Marcello Aguinaga é minha testemunha (ele está no catálogo). Vocês nunca diriam, né? ••• Mas eu nunca me entendi muito bem. Quando bebê, chorava à menor palavra rude, mas, um dia, levando um banho da babá, meu avô entrou no banheiro. Me parecia ter 6 metros de altura (eu tinha 4 anos), em verdade era 1 centímetro menor que eu hoje. Alemão, o pilar da família, às 7,30 da manhã já estava de banho frio tomado, paletó e gravata dentro de casa. Mandeio-o à Maria ••• Aos 7 anos, num uniforme ridículo, fui posto numa barca da Cantareira rumo ao internato São Bento em Paquetá. Em 1937, psicologia era terra incog­nita (não é incógnita, revisor, a expressão está em latim), no Brasil, se é que não continua até hoje. Traumas, traumas. Não me lembro de nada, a bem da verdade. Quer dizer, me lembro do uniforme, da barca que navegava no que me pareceu um oceano (num pileque muito posterior, acordei numa lancha que chegara a Paquetá. Até hoje não sei como fui parar lá) e de uma maçã, último presente maternal. Não me lembro é do trauma. Apesar disso, em 4 meses da selva que eram os internatos naquele tempo algo deve ter aconte­cido à minha sensibilidade chorona porque eu virei um autêntico bully. Qual seria uma boa tradução em português? O que é que eu chutava as canelas e dava tesouras em futebol nos colegas. Um dia bati tanto num menino que meu irmão mais velho, Fred, compa­nheiro de cárcere 'nos detestávamos. Adultos, ficamos amigos), teve de me tirar de cima do cara, porque eu estava dando com a cabeça dele no cimento, sincopadamente ••• Olhando os bagulhos abundantes nas ruas de Nova York, da janela do táxi, concordo com William Raspberry, colunista e preto, que a camada que mais sofre discriminação no mundo é mulher feia. Se for talento, não vale, claro, mas pensem na criatura comum. Quem a quer. Se você es­colhe uma secretária, se houver entre as candidatas uma bonitinha competente não há abantesma que consiga o lugar. Falei disso a um amigo meu, que odeia mulher, e ele negou. Eu disse que ele estava mentindo. E está. Mesmo sem nenhum “motivo ulterior”, pegaria a bonitinha. Enfeita, na pior das hipóteses ••• Nunca se viu nenhum tribuno libertário defendendo mulher feia. Se vocês viram, me infor­mem. Há, certo, criaturas teratológicas feito o Jaguar que gostam, mas é uma percentagem ínfima ••• A raça humana, de resto, é horrenda. Comparem-na aos outros animais. Um animal deficiente morre cedo, não é obrigado a arrastar os defeitos o resto da vida. Você pode achar um hipopótamo feio, não há dúvida. Mas a família é eugenicamente coerente. E há os felinos lindos. Nureyev é um saco de batatas perto de qualquer tigre de zoológico ••• Leio quase tudo sobre a URSS. Comprei outro dia um romance-thriller de Joyce Shub, “Moscow by Nightmare”. Ela é mulher do correspondente Anatole Shub, do “Washington Post”, que foi expulso da URSS há tempos. Ele é filho de um certo Shub, ex-menchevique, autor de uma bio­grafia não muito safada sobre Lenin. O que eu queria era sentir o clima de Moscou e Leningrado, onde Joyce viveu. Mas, sabem, ela começa a descrever a chegada dela na capital e diz que certas ár­vores estavam “swaying gently”, e eu simplesmente não agüento mais esse tipo de clichê. Jóquei o livro pela janela, esperando que tenha caído na cabeça de um dos pintores acadêmicos de porta do teatro Municipal que há semanas nos infligem as porqueiras deles aqui, aos sábados e domingos ••• Escrevi uma boa matéria para “Visão” sobre as condenações de Yakir e Krasin, na URSS. Três mil palavras caprichadas, se bem que o estilo austero de “Visão” me obriga a conter, ou seja, a eliminar, certos pontapés em “especialis­tas” ocidentais em URSS. Fico em dúvida se é safadeza ou burrice. Sou mais pela burrice, embora não exclua a safadeza. Sim, porque chamar o que está acontecendo lá de “neo-stalinismo” é o mesmo que dizer que a capital do Brasil é Buenos Aires (coisa que ocorre freqüentemente nos EUA). Os expurgos do stalinismo eram essen­cialmente voltados contra comunistas. O distinto público entrava de gaiato na história. Os dissidentes, agora são todos não comunistas ou anticomunistas. Quem não entende a diferença é melhor deixar o assunto de lado ••• Leonard Schapiro me aconselhou a aprender russo e ler as publicações soviéticas, ignorando as ocidentais. Não é que as soviéticas digam a verdade (pravda. Há!), antes muito pelo contrário. Mas Schapiro, que sabe das coisas, diz que nas russas a gente tira o material bruto donde basear nossas conclusões, enquan­to a imprensa ocidental é puro show business ••• Mas, enfim, men­cionei esse artigo de “Visão” porque uma hora lá eu digo que não devemos nos preocupar com os motivos de Yakir e Krasin em confes­sarem, pois as polícias secretas de hoje fariam Jesus Cristo confessar que o nome dele era Judas Iscariotes ••• E há também o famoso interrogador da MI-5 inglesa, William Skardon. Este não bate em ninguém. Talvez seja o mais perigoso. Em dias, quebrou completamente a resistência de Klaus Fuchs, físico nuclear, muito superior intelectualmente e moralmente a Skardon (afinal, queria apenas que os soviéticos tivessem armas nucleares a fim de impedir que os EUA destruíssem a URSS) ••• O que deve doer mais a Yakir é que o pai dele, o general Yakir, herói da guerra civil revolucionária, preferiu morrer em silêncio, sob Stalin, em 1937 ••• Talvez um dos motivos porque o PC ainda sobreviva nos lugares mais inesperados é o senso de disciplina dos membros. Claro, é a mesma disciplina que os faz acreditar que Trotsky era agente de Hitler, ou Kafka, fascista, para citar apenas dois pecadilhos. Agora, há o as­pecto positivo. Em Auschwitz, o Partido, a fim de manter-se coeso, continuou a cobrar mensalidades dos membros. Não conseguiam dinheiro, óbvio. Pagavam em cigarros, que naquele “hotel” não tinham preço. Quem me deu essa informação foi um ex-membro e hóspede. Não há realmente nada a dizer. Nenhum comunista, nota meu informante, se recusou a pagar. ••• O erro de Fuchs em face de Skardon é compreensível. Homem de gênio, jamais imaginou que um mero policial fosse capaz de levá-lo na conversa. ••• Eu, por exemplo, contei a um psiquiatra amigo que não agüento mais a minha própria autocrítica. Se vou a uma festa, se converso com al­guém, em suma, se faço o chamado “intercurso social”, no dia seguinte me analiso friamente como se fosse outra pessoa, e o resul­tado é invariavelmente negativo, para mim. Outro dia, discutindo com uma pessoa que gosto e respeito dei uma engrossada horrível sobre um certo assunto de que tenho certeza entender e que não acredito que essa pessoa manje. No dia seguinte, telefonei para pedir desculpas, graciosa e até comoventemente aceitas. O que me preocupa, porém, é ter engrossado. Por que não me calei, ou fiz o meu olhar de bacalhau de porta do Real Astória, ou simplesmente mudei de assunto? ••• Pois muito bem: o psiquiatra, que já sabia de vários episódios da minha vida pregressa, me apresentou, na hora, notem bem, na bucha, uma explicação altamente engenhosa do meu comportamento, que jamais me havia ocorrido. Não digo que seja verdadeira, mas fazia sentido, e o fato de nunca me ter passado pela cabeça é um tanto humilhante, porque me considero no apogeu dos meus (desperdiçados) poderes intelectuais, e aí vem esse cara, de suspensórios, ainda por cima, e me diz coisas sobre mim mesmo que eu não conhecia (se é que verdadeiras, insisto. Estou estudando o caso dele) ••• Só me resta repetir a curta nota de suicídio de Eleanor Marx: como a vida tem sido triste todos esses anos.

 

                         TRIO

       Aqui, de Nova York, a maior cidade de Porto Rico, noto que nos anos 60 a polícia baixava o pau nos negros que queriam entrar nas escolas dos brancos, e que, hoje, nos 70, a polícia baixa o pau nos brancos que querem impedir os negros de entrarem nas escolas deles. Um progresso sobre Atenas, não? Está bem, batia pior nos negros em 1960. Considerem: o policial médio é branco, filho de irlandeses ou italianos, povos para quem mamãe, ignorante das vantagens do feminismo, era a líder suprema da família; agora, na rua vê senhoras parecidas, gritando nigger, nigger, e jogando pedras nos ônibus. É um diadema retroz, inclusive porque quando os guar­das seguram esses simulacros de mamães, elas os chamam de “nigger-loving cocksuckers”. Não estou presumindo. Já vi e ouvi. Os rapazes enrubescem. Fossem as senhoras negras, baixariam pronto socorro. Sendo brancas, levam um safanão e são postas na Black Maria, mais conhecida por tintureiro. A civilização marcha.

 

       Arthur Koestler fez 70anos, os jornais ingleses comemoram. Fui grande fã dele, na adolescência. E divulgador. Um amigo meu, Afonsinho, que já experimentara comigo o misticismo, via Mau­gham e Huxley, um dia me disse que se tornara comunista. Passei a ele Darkness at Noon, de Koestler, vulgo O Zero e o Infinito, e Afon­sinho passou a noite em claro, lendo-o. No dia seguinte voltou à democracia ocidental cristã. Vi-o, de novo, em frente ao PASQUIM, quando na Clarice índio (ou será Clarrisse?). Saíamos Maciel, Glauber e eu numa alegria incomum àquela hora da tarde, por motivos impublicáveis, e vejo o meu ex-companheiro de luta, de São João da Cruz a Marx. Ao lado, a mulher, a quem ele fizera bem, quando éramos garotos, e que finalmente o fisgou, boa moça, atirável, porém, no Rio da Guarda. Ele empurrava um carrinho de bebê. No sorriso de Afonsinho, um rancor represso e indefinível. Ele devia pensar que eu sou alguma coisa, e apesar do charme barato de que sou herdeiro nessas ocasiões, não consegui quebrar o gelo. An­tes eu o tivesse deixado entrar para o PC. Seria hoje um perseguido, pessoa importante para ele próprio.

       Gostei de todas as novelas de Koestler que li, Arrival and Depar­ture e, principalmente, The Age Anxiety. Não sei seas releria, hoje. É até discutível que Darkness at Noon seja um romance. Mas foi uma bomba política. O herói, Rubashov, é um velho bolchevique, fi­sicamente parecido com Trotsky e intelectualmente com Bukharin, ambos assassinados por Stalin. Koestler mostra-nos Rubashov sendo destruído na cadeia, levado por pressão e convicção a confessar crimes que jamais cometeu, submetendo-se, no final, à indignidade suprema, o julgamento público, em que confessa ser “inimigo do povo” (parte do discurso de Rubashov é tirado do discurso famoso, dantoneano, de Bukharin). Um dos grandes dramas do século. O ex­purgo de 1 milhão de bolcheviques por Stalin, alguns se prestando ao papel de Rubashov. “Trevas ao Meio Dia”, uma revolução que a meio caminho se perverteu. Li, reli, tresli. Eu e milhões de pessoas. A expertise marxista de Koestler é indiscutível (os diários de Ru­bashov), de cadeia e morte também (ele foi preso e condenado a morte por Franco). O livro não é anticomunista, no meu entender. Analisa a perversão stalinista e propõe uma pesquisa sobre se de­vemos sacrificar totalmente o nosso ego por uma causa que, no en­tanto, nos responsabiliza pelos nossos erros individuais (um tema importante, que os críticos não notaram). Fica tudo em suspenso.

       Quando, porém, o romance explodiu depois da guerra, a Direita usou-o como arma anticomunista. Koestler virou celebridade. Os comunistas converteram-no num símbolo de ódio. Na França, o PC comprou toda primeira edição e queimou-a. Inútil. Como 7984, “Trevas ao Meio Dia” converteu-se em arma da guerra fria. Koestler é muito melhor que Orwell. Nunca perdeu a noção das forças econômicas e externas que ajudaram a URSS a cair no precipício. Orwell ficou em fantasias masturbatórias de poder, ancoradas num Estado estático, uma impossibilidade histórica.

       Koestler escreveu Thieves in the Night defendendo os terroristas judeus na Palestina. Outro bom livro. Ele termina dizendo que lugar de judeu sionista é em Israel, que, ele judeu húngaro, se considerava inglês. O Establishment israelense não gostou (e da descrição por­menorizada do terrorismo, que faz os palestinos parecerem filhas de Maria). Um livro que não será reeditado. Aí Koestler nos deu a autobiografia, Arrow in the Blue, em dois volumes. Devorei-os. É maior e mais duradoura obra dele. A vida de um intelectual de um país precário nas confusões do nosso século, freudianismo, marxis­mo, nazismo, liberalismo. Uma das grandes autobiografias de todos os tempos. Um capítulo que irritou o purismo literário, uma en­trevista com Thomas Mann, exibindo-o vaidoso, pretencioso, ri­dículo. Hoje, pouca gente discorda. Gênio não é documento.

       Koestler foi quase destruído pelo próprio sucesso, metendo-se no Congresso pela Liberdade de Cultura, que era o Congresso pela Liberdade da CIA. Em tempo, recuou, passando a escrever sobre temas científicos, tentando contestar Darwin, o que é asneira, con­testar os behavioristas, que, a meu ver, são caso de polícia, e se metendo em ESP, que deixo a Luis Carlos Maciel.

       Hoje é um medalhão. Cientistas o reduziram a pó de traque. Não posso concordar ou discordar. Desconheço o assunto. Politi­camente, ele sabe ser mesquinho (Deutscher), inclusive se atribuin­do uma importância excessiva no movimento comunista, quando nunca passou de um intelectual do PC, figura que, na década de 1930, era usado como porteiro da sede do Partido ou embrulhador de panfletos. Mas, porém, todavia, contudo, viveu intensamente, se metendo em todos os bodes do século. Morro de inveja dele, mesmo se não o levo muito a sério. Na infância estão as portas do céu e do inferno, como disse Sidney Guillarof .

 

       Livrinho quente é Money, de Galbraith (Houghton Mifflin, Bos­ton, 324 págs., $ 10). É tudo que você precisa saber really. Gosto muito da parte dos banqueiros. O que é um banqueiro? Um cava­lheiro que pega de graça o teu dinheiro e empresta teu dinheiro a juros, às vezes emprestando a você mesmo, e você agradece ainda, abjetamente. Não é à-toa que todo banqueiro é sério. Se começasse a rir, não se conteria mais, seria internado como louco, às risadas.

       Em toda parte do mundo, há o mito do banqueiro respeitável, conservador, que maneja as finanças do país. Aqui é um certo Arthur Burns. Se ele escrever ao Chase, digamos, que está preocupado porque o PASQUIM não pode levantar no dito 100 milhões de dólares, no dia seguinte David Rockefeller trará à Saint Roman 142 os 100 mi­lhões, em mãos. Para que fique à vontade, dão-lhe aqui um mandato de 14 anos, o presidente não pode demití-lo, só o Congresso criando lei especial. Burns, no momento, se nega a avalizar títulos da dívida pública de Nova York, pois considera que a cidade vive acima dos próprios meios. Quer disciplina, dos trabalhadores, naturalmente. Nunca se fala de disciplina dos lucros, no nosso mundo. E critica o Welfare o seguro de desemprego, que considera desperdícios (nenhuma palavra contra os 150 bilhões de dólares que o Pentágono mama, todo ano). Nova York pediu um aval de 1 bilhão. Nada. O Franklin National ia falir. Burns supriu 1.7 bilhão. O FN é do mafioso Michele Sindona. Mas é banco, iniciativa privada, manjaram? Não, pouca gente manja.

       Burns controla o suprimento de dinheiro do país. Dirige, em suma, a vida econômica dos EUA, e, no caso, em favor dos grandes grupos econômicos. Será, porém, um idealista conservador? Na minha opinião ele é pior que Henry Kissinger, que, ao menos é cínico, uma virtude negativa, que trai uma certa consciência.

       Vejamos: em 1972, os EUA estavam em recessão. Burns inun­dou os bancos de dinheiro. Boom. Nixon se reelegeu fácil. Burns foi o responsável. Ninguém o contestou. É honesto? Esse influxo de dinheiro está na raiz da super-inflação, em termos americanos, de 1974. Galbraith é o primeiro analista a notar isso. Até Çhris_Welles, meu comentarista econômico favorito, bobeou nessa. Galbraith, claro, não é levado a sério pelos economistas tradicionais. Um dos motivos é que ele escreve inglês admiravelmente. O outro, o principal, é que eles são reacionários hidrófobos. Discípulos de Burns dirigem a vida econômica do Brasil de hoje. E, no mais, Why do I write today?/ The beauty of/ the terrible faces/ of our nonentities/ stirs me to it.

 

               L'AFFAIRE DE MON COU

       Quando baixei à enfermaria 626 do Sloane Kettering Memorial Hospital (vulgo Memorial e é como vai ficar até o fim), me convenci logo no primeiro dia que estava no lugar certo. Lendo a página de obituários do “Times” notei que Sidney Blackmer, o diabo vizinho de Mia no Bebê da Rosamaria, tinha abotoado o paletó lá, de cân­cer, um dia antes, aos 78 anos. E semana passada, Diane Sands, 39 anos, cantora e atriz, idem. Nenhuma ironia, barata ou cara. Se essa gente, rica e famosa, escolheu o Memorial é porque sentiu que lá es­tava a última chance, a última rodada dos dados.

       Dos meus 5 companheiros da 626 dois estão pela bola 7 e golpe dos 20, respectivamente. Mike (nome verdadeiro) conseguia ainda ficar de pé, pesando-se todo dia. Passou 14 horas na sala de ope­rações nos meus 5 dias. Não fala. Frank também não, mas anda, arrastando um cabide com soros, e aplica em si próprio várias la­vagens ruidosas de garganta. Ninguém os visita, que eu visse. Um dia, eu histérico porque não conseguia trocar 1 dólar pro telefone, Frank me pegou pelo braço, me levou à cama dele e produziu uma carteirinha de níqueis donde tirou 1 dólar em moedas. Os olhos sorriam. Me senti envergonhado. Não foi a primeira nem a última vez.

       Havia um cubano, sem saber uma palavra de inglês (hospitais americanos não permitem acompanhantes). Interpretei, trocando os “ãos” pelos “ons”, meu espanhol. O drama dele é que odeia galinha. Dizia “no pollio” às enfermeiras. Em inglês, isso quer dizer “não quero saber de paralisia infantil”. Elas concordavam, já que ele operara os países baixos, e lhe serviam invariavelmente galinha, até que entrei em ação. Me disse que tivera de sair de Cuba por causa do comunismo, perdendo casa, automóvel e negócio. Não, não, senti só pena. Não sou leninista. Manjo, mas não sou.

       E na sala de curativos que o Memorial te confronta em toda plenitude. Não me impressiono, esteticamente. Vi meu irmão mais velho, Fred, aos 34 anos, agonizar durante 6 dias, fisicamente estropiado e intoxicado por queimaduras num hospital de São Paulo, 1962, por obra e graça de um acidente criminoso da Cruzeiro do Sul (laudo do tenente Montenegro Fernandes, da FAB. Presumo que o tenente hoje já seja oficial superior. Era brilhante e claríssimo o laudo pericial. Nada aconteceu à Cruzeiro do Sul. Lembra-se, oficial Montenegro Fernandes? Não por culpa tua, claro. A Cruzeiro do Sul, noto no último Quem é Quem da “Visão”, continua faturando firme. O crime não faz outra coisa senão compensar) E há muito perdi a crença na filosofia idealista. A esse respeito Dostoiewsky já botou tudo que há de dizer coloca na bola de Ivan Karamazov. Quem sou eu para competir? Aceito o que Darwin provou, que não passo de uma “mutação acidental”. Vale tudo, não importa a dor.

       Ainda assim, minha “mutação acidental” tem pruridos de lógica. Vendo meus companheiros na sala de curativos me pergunto se os pioneiros do cubismo conheciam a cirurgia do câncer. Acredito que não. É improvável historicamente Gertrude Stein diz que entendeu Picasso quando olhou a terra de um avião. Eu entendi o realismo do cubismo de Picasso ao ver meus companheiros da seção “head and neck” (cabeça e pescoço) na sala de curativos. Restos cubistas.

       É uma questão de temperamento e filosofia médica dos americanos. Se o paciente tem câncer decisivo, eles não acreditam em abri-lo, checar e fechá-lo. Tentam salvá-lo até o fim, cortando tudo que aparece de maligno, ou a menor ameaça. A chamada “cirurgia exploratória”, expressão inocente até você ver o que resulta na prática. Certo ou errado? A pergunta é, antes de tudo, acadêmica, pois os médicos precisam do consentimento escrito dos pacientes. Insisto, porém, que o temperamento americano, essa tenacidade que eles têm de ir até o fim em tudo, pesa. Se descobriram os meios mais terríveis de destruir outros seres humanos, procuram os mais extremos também para salvá-los. Marx e Freud entenderiam. Acho que você também pode entender, se quiser, meu caro leitor.

       O médico americano, ao menos os craques do Memorial (o melhor centro de câncer e doenças conexas do mundo) não tem nada em comum com o Dr. Marcus Welby. Eles são gentis, formalmente, mas te vêem como um problema que precisa ser urgentemente resolvido. Nós conhecemos a cena no Brasil. O médico se vira pra mulher do cara que vai perder o apêndice, faz charme paternal, e diz: “Não se preocupe, minha senhora, ele vai ficar novinho em folha”. Um longo papo, garantias, tranqüilizantes verbais. Bem, aqui, esqueçam. O Henfil esteve numa médica famosa e ela, depois de radiografá-lo 18 vezes, começou imediatamente a preparar os ferros, até que o Henfil, que ainda não fala inglês, percebeu e, via intérprete, conseguiu contê-la - por uma semana, e olhe lá.

       Eu próprio já fiz suficientes radiografias de pulmão (9), exames de sangue, urina, etc. para vendê-los autografados. Já tinha pegado um check-up (a palavra “completo” seria pleonasmo) num especialista, o que inclui o que Luzia perdeu na horta (definitivamente não é minha chávena de chá, e invejo a coragem e resistência dos praticantes). No Memorial, tudo de novo, inclusive Napoleão perdendo a guerra, sob os meus mais ingentes e inúteis protestos. E desta vez, humilhação suprema, um dedo iraniano, logo em cima de mim, que expus em brilhantes artigos como Mossadegh foi derrubado pela CIA.

       O Memorial lembra um pouco a cadeia. A polícia até que leva certas vantagens. Dá condução e estada gratuitas. No resto, a mesma condição objetal. Certo, na cadeia você é tratado como bagagem comum pelos carregadores. No hospital, você é fragile, handle with care. Mas é objeto sempre. Humor escasso. Me perguntaram minha religião. Respondi trotsquiaite original. A moça me pediu pra soletrar “trotsquiaite”. Eu disse: escreve none, nenhuma. Havia um padre, um pastor e um rabino disponíveis. Quando entravam na 626 eu ia rápido à madeira e toe, toe, toe, não que seja fácil, a madeira, nesta terra de sintéticos.

       Te põem uma pulseirinha, com a tua idade e um número de 6 digits. Rumo à mesa de operação, acrescentam uma tarja de papel. Sim, porque eu poderia cair no engano na maternidade e o nascimento do novo Ivan Lessa é só para daqui a 6 meses. Contentem-se com o velho, no momento.

       Era l'affaire de mon cou. Há 6 anos não tenho sequer um resfriado. 12 anos atrás enfrentei the great reaper (a grande ceifadora, mas fica melhor em inglês). De lá para cá, não sei o que é praticamente doença. Não me sinto sempre bem. Deus e Paul Simon bem que I´ve been running my body down, impiedosamente. Durmo só umas 4 horas. Sou provavelmente, o jornalista que mais escreve, em quantidade, no mundo. Umas 350 laudas mensais. Já cometi todos os excessos condenáveis da moda. Não fico, porém, doente. Minha energia é, inclusive, uma demasia. Falo demais, cortando os outros. Ando quarteirões quase a galope. Como é que pode?

       Na minha família não há sequer uma história de tireóide, o que, aprendi, é tolice, em termos médicos. O inusual é muito mais comum do que o usual, em medicina. Fui ao médico porque minha pressão estava alta. O último a me informar desse fato foi um major médico da Brigada Aero-Terrestre, no Rio, em dezembro de 1970, quando eu estive em vias de fazer um cruzeiro na Argélia. Bem, minha pressão já baixou, mas eu tinha uma massa no pescoço, corpo estranho imenso, que jamais havia notado. Não doía, era mole. Me pergunto se não é de nascença. Os caricaturistas que se servem de mim n'O PASQUIM, vejo em retrospecto, registravam a massa, gostaria até de ver umas fotos velhas do meu kisser. De que adianta? Vários especialistas acharam que o melhor era tirar, fosse o que fosse, inclusive uma capa do “Time”, Eliot Strong, justamente o chefe do “head and neck” do Memorial. Capa do “Time” será recomendação? Um dia, eu esperava uma consulta e peguei um “Time” onde havia uma crítica do romance de Tom Wicker, “Facing the Lions”. A crítica abria assim: “Neste primeiro romance”. Foi aí que parei. Wicker já escrevera 5 romances, listados no meu exemplar de “Facing the Lions”. Bem, o Dr. Strong não tem culpa de ter aparecido na capa do “Time”.

       Sérgio Augusto, perdi minha última ilusão sobre cinema. Um especialista brasileiro achou (e acertou, o único) que era negócio de tireóide. Não é do Memorial, mas foi lá que minha tireóide foi filmada, a cores, (thyroid scanning). Não deu nada.

       Depois da operação, verificou-se que era na tireóide. As imagens mentem tanto quanto você ou eu, meu caro leitor.

       A agonia prévia da biópsia. A primeira, de agulha. Eu já sabia o resultado: maligno, sem me dar tempo de terminar o documentário e romance que jurei a mim mesmo produzir. Eu estava enganado. O resultado foi negatiyo. A segunda biópsia é durante a operação. Sér­gio Augusto, há ainda esperanças na Sci-fi. Tiram a massa do teu pescoço e põem num túnel, onde é impulsionada eletronicamente para um laboratório, voltando segundos depois ao cirurgião, ana­lisada. Se fosse positivo (deu novamente negativa) o cirurgião me faria uma “exploratória” e eu entraria na galeria dos meus compa­nheiros cubistas. Ainda há uma terceira, feita sobre a massa con­gelada. Dizem que dificilmente contraditará as outras. Não quero nem saber o resultado. Última forma: soube e confirma o resto.

       O meu terror supremo é anestesia geral. Sempre me imaginei um covarde físico (e, daí, alguns espetáculos de machice excessiva no meu passado. Um covarde humilhado é uma fera) e um valente moral. Sou forçado a uma revisão, e me surpreendo não tê-la Feito antes. Afinal, sempre que me vi frente a frente à dor, não reagir mal. Com 13 anos, a um metro da minha casa, com dois amigos, vimos uns 20 moleques avançando em nossa direção. O lógico era nos barricarmos na minha casa. Os meninos lânguidos, cabeludos e unissex de hoje não sabem da sorte que têm. No meu tempo de menino, homem não chorava não recuava, não tinha direito sequer a manifestar afeição, que era motivo de ridículo dos companheiros. Brigamos com os 20 moleques. Não é tão difícil quanto parece, apesar de eu ainda ter a rnarca de uma navalhada e de, em breve, terem chegado nossas tropas. Aquilo que a gente vê no cinema, o mocinho contra multidões, é possível, porque as multidões ficam confusas. A minoria tem a vantagem de flexibilidade na manobra. Israel que o diga.

       Anos depois, quando o Dr. Jesse Teixeira me mostrou 1/3 do meu pulmão esquerdo derrotado pelas legiões do Dr. Koch, disse, bondosamente: “É um choque, não é”? Eu respondi secamente (por dentro e por fora): “E daí”? Não sou tão covarde assim. Físico, digo.

       Já a anestesia geral evoca um sonho que tenho freqüentemente. Estou no alto de uma colina e uma massa de gente avança sobre mim. Vou socando um a um, até que, desesperadamente, noto que meus braços não levantam mais e as caras vão se aproximando, se aproximando. Aí acordo, encharcado de suor e horror.

       Em 1954 ou 55, tive um abscesso num dente, por sinal em N. Y. Rosto inchado, dor horrível. O dentista disse que poderia lancetá-lo e depois trataria o dente, quando o rosto desinchasse. Eu disse OK. Ele trouxe a máscara de gás. Agarrei o braço dele, brutalmente, e or­denei: “Faz a frio”. Resposta: “Are you a nut”? (tradução com sabor da época: “Você é biruta”?). Duas enfermeiras me seguraram e levei o gás, tendo um pesadelo em que eu morria mas em que, miraculosamente, Jesus por fim me salvava (eu já era ateu, mas catolicismo é como o Flamengo: uma vez etc).

       O que será? Claro, conheço as hipóteses óbvias: medo de perder a lucidez diante dos outros, medo de que o meu ID emerja como o de Walter Pidgeon naquele filme, uma atração às avessas pela mor­te. É tudo muito bonito e plausível, mas não define ou resolve a minha angústia diante do fato concreto. Na noite anterior à ope­ração, avisei ao executivo do “Head and Neck”, Dr. Alfonso (filipino), que me cortou, do problema. E adiantei que meu corpo não era propriamente virgem de certas fortes substâncias químicas. Ele disse que tomaria providências.

       Bem, levei duas injeções de morfina, antes de ir para a sala de operações. Num esforço de vontade, me relaxei ao máximo, tentando ficar groggy. Foi a maior contra-onda que já vi. Quando entrei na sala, eu estava acesíssimo, como se tivesse levado duas injeções de speed ou snow, falando pelos cotovelos. Ainda vi os olhos do Dr. Alfonso, sorrindo sobre a máscara. Não sei aí o que me deram, apaguei. Ao acordar, Alfonso estava a meu lado, e disse: “Era mesmo benigno”. Nem liguei. Ainda estava no sonho, aquela gente subindo para me acertar (talvez eu mereça) e tentei me levantar da cama. Disse loucuras às enfermeiras que me continham. Pedi speed a uma que me dava um sedativo e não sei por que, chamei-a de egoísta, palavra que raramente uso, dado o meu telhado de vidro. Pedi um uísque nas pedras a outra, que me oferecia um suco qualquer. A uma enfermeira crioula, simpaticíssima, rugi: “Sai! Sai”! (em português). O meu horror interno foi, em verdade, indescritível. Nem voz toda eu tinha.

       No dia seguinte, na sala de curativos, Alfonso cercado de outros médicos, me examinou. Os médicos: “Beautiful!” “Great!” etc. Me senti como o porco que ganhou o primeiro prêmio na feira. É que a incisão é perfeita.

       Meus amigos me davam até certa pena, quando me visitavam. O Memorial parece a Central do Brasil. Cubistas desfilando em toda parte, a todas as horas (me pergunto se não há congestionamento de tráfego na sala de operações). Há gente fazendo ponto e, presu­mivelmente, dormindo nos corredores, à espera de uma cama vaga. As mulheres dos meus amigos, particularmente, me pareciam chocadíssimas com o espetáculo. Têm toda a razão. É horrível.

       Mas eu não. Pelo contrário, saí fascinado com a coragem das pessoas comuns, de Mike e Frank etc. No estado em que estão o en­frentam resoluta e serenamente. Eu sou uma criança pirracenta. Quero impor ordem às circunstâncias com o meu cérebro. Nenhum de nós dá para a saída contra as circunstâncias, em face da varie­dade de experiências de que as mutações acidentais são herdeiras. E meus amigos não viram o pessoal na sala de curativos. Eu vi e me permito saudar aqueles seres humanos, humildemente. Me ensinaram uma lição profunda que, para variar, não aproveitarei, mas não esquecerei também.

       Sentimento e sociologia. Conheci, em N. Y., um grupo de médicos brasileiros, todos em posição excelente. O que fizeram por mim, nesse período, desinteressada e carinhosamente, não posso sequer pôr no papel, porque não quero virar este artigo em mais um capítulo de “obrigado, doutor.” Mas se eles me lerem, quero que saibam que notei tudo e que um agradecimento em palavras nunca lhes faria justiça.

       Os EUA têm a melhor, porém a mais cara medicina do mundo. Se você é indigente ou tem mais de 65 anos, o Estado paga a maior parte das contas. Se você é de classe média, só com seguro parti­cular. Eu não tinha. Minha operação feita por um craque do nível do Dr. Alfonso custa, em média, 3 mil e 500 dólares. Ele não me cobrou nada, presumo porque um dos personagens do parágrafo anterior trabalhou em silêncio, a meu favor. Gastei relativamente pouco, pois nenhum médico (e fui examinado e tratado por uns 10) me cobrou nada. Quero apenas registrar o que aconteceu. Nada que eu possa comentar adianta.

       O Memorial, pelo que vi, tem médicos de todas as nacionali­dades. E tenho de terminar numa nota política. O que estão fazendo lá sumidades como o Dr. Alfonso, quando nas Filipinas deve haver uma necessidade desesperada de médicos? Bem, é uma questão difícil. É natural que um profissional do gabarito de Alfonso, ou dos meus amigos brasileiros, queiram trabalhar aqui, onde dispõem dos recursos que podem fazê-los senhores absolutos das especialidades que escolheram. E o imperialismo, habilmente, abre-lhes as portas, sem qualquer restrição, drenando os cérebros do III Mundo. Eu, se fosse médico, também quereria ficar aqui. Imagine trocar o Me­morial (6 prédios, toda a aparelhagem que vocês possam imaginar e não imaginar) pelos hospitais que conhecemos. O imperialismo ex­plora brilhantemente também a natureza humana. Mas e a nossa consciência? Pergunto. Não sei a resposta.

       No terceiro dia de hospital, como na cadeia, eu já me habituara à condição de objeto, acordando às 15 para as 6, tendo a minha pressão e temperatura tomadas de duas em duas horas. O ser humano se adapta até a Auschwitz, se lhe prometem a graça divina da vida. Não se impressione, meu caro leitor brasileiro de classe média com a palavra. “enfermaria”. Quarto aqui é coisa de mil dólares ao dia. Eram 6 camas com os lençóis trocados invariavelmente duas vezes ao dia, as enfermeiras sempre prestativas, acessíveis e de bom humor (havia apenas uma cripto-Mussolini, mas inócua). Quanto mais grave o caso, mais elas paparicam o paciente. As mulheres nos põem no mundo. Ninguém sabe melhor nos fazer deixá-lo.

       Bem, estou aqui de volta e o Loredano poderia, no nomento, me desenhar realisticamente, que seria já uma caricatura. Não há resposta final à pergunta que fiz ao Dr. Jesse Teixeira: “E daí”?

 

                 PAU NELES

       Só em Nova York há 400 mil viciados em drogas, 50 mil pros­titutas, 100 mil dementes vivendo em hotéis, com perdão da pa­lavra, em que um cachorro, são, se tornaria bolchevique, 1 milhão de velhos sobrevivendo na base de $ 1.15, ou seja, cerca de 11 cruzeiros ao dia, menos portanto que o salário mínimo no Rio e São Paulo, e se cometem 6 (4500 estupros) mil crimes sérios aqui, anual­mente. Não mencionei os guetos tipo Brownsville, ou Bedford-Stuyvesant, um destes, falando nisso, o Bronx Sul, já tendo sofrido 79 incêndios, apenas em 1975, o que, diria certo cavalheiro já fa­lecido, não foi acidental.

       Assim é na citadela suprema do capitalismo, que paga 14 bi­lhões de dólares de impostos ao governo federal, e recebe de volta 2 bilhões, per anum. O sistema funciona, diria o New York Times.

       Outros discordam, achando que essa gente, esse rebotalho, poderia e deveria ser eliminado. É, claro, quem não pertence à es­cória supracitada. Escória que, no código político americano, recebe o rótulo de crime e é o grande tema doméstico de 1976, nas eleições à presidência e renovação do Congresso (2/3 do Senado, toda a Câmara).

       Não sei muito bem como vivem os respeitáveis que transformaram o “crime” em obsessão permanente. Ganho mais de 2 mil dólares por mês, o que me permite, digamos, andar de táxi, e não de metrô ou ônibus (este, mais barato que o trem, é onde a maior parte da “ação” nas conduções está), morar seguramente, num prédio on­de porteiros e guardas armados até os dentes e dispostos a tudo protegem o meu delicado pelo. Escapei, economicamente, da con­dição de classe média que, em Nova York, significa, se usarmos a ex­pressão economicamente, os 70% que ganham menos de 7 mil dólares ao ano. Fora a ralé, claro.

       Logo, eu deveria parar aqui, pois o que vou dizer, lido pelos ad­miradores da gama política de Gerald Ford a George Wallace, me coloca, um tanto comicamente quando examino o meu saldo ban­cário e choro o que me custa em dinheiro manter-me jornalista in­dependente, entre os “muito ricos”, ou seja, eu e Nelson Rocke­feller. Não exagero, Wallace se diz o candidato da classe média, que estaria espremida por uma conspiração dos “muito ricos e elitistas” e a “welfare mess”; ponho em inglês, primeiro, porque o código de Wallace ficou bem mais sutil em 1975. Sim, eu não botei acima que entre a escória, em Nova York, há 1 milhão de pessoas que vivem de welfare, de “benefícios materiais do desemprego”.

       Usando a palavra “mess”, bagunça, Wallace bateu em retirada até de uma designação humana, fixou-se num arranjo abstrato, que é obra de “muito ricos e elitistas”. Todo mundo sabe o que “welfare mess' quer dizer, o código já foi estouradíssimo. Quer dizer gente de cor e pobre, nesta ordem. Por que entram nisso “os muito ricos e elitistas”? Simples, até Hitler, que é o precursor dos nossos me­díocres demagogos americanos, sabia que era necessário reconhecer que a maioria das pessoas se sente vitimizada pelo capitalismo, quando este, no Século XX, seguiu um caminho que reúne, na prática, as teorias conflitantes de Lenin e Rosa Luxemburgo sobre im­perialismo. Agora, claro, Hitler, George Wallace ou Ford não podem falar mal do capitalismo per se, pois servem-no dedicadamente. Hitler resolveu o problema, substituindo “judeus” por “capitalistas”, uma idéia brilhante se em última análise, contraproducente..Afinal, a classe média sempre achou, e acha, contra toda a evidência disponível, que os judeus dominam o dinheiro no mundo. Foi con­traproducente porque se Hitler não tivesse perpetrado o famoso holocausto, que escandalizou o público no Ocidente, a partir de 1943, quando se viu que a URSS, e mais ninguém, ia derrotar a Alemanha, e estender sua influência pela Europa, EUA e Inglaterra teriam se arreglado a Hitler contra as “hordas bolcheviques”, o que fizeram assim que eliminaram uma minoria niponazi manjada na Alemanha e Japão. Wallace, outro dia, sugeriu, cheio de panos quentes que não me esquentaram, que “lutamos do lado errado na 11 Guerra”.

       Águas passadas etc. Não dá, para Wallace ou Ford, invocar os judeus como “os culpados de tudo”. Aqui seria suicídio. Há 6 mi­lhões de judeus, embaladíssimos, e ouvimos sobre o holocausto dia e noite há mais de 30 anos. Então, Wallace escolheu os “muito ri­cos”, ou seja, não é o rico de 50 mil dólares ao ano, que tem casa própria, dois automóveis, põe os filhos em universidades particu­lares. Não, é Nelson Rockefeller que, de tão raro o tipo, se torna um alvo limitado e visibilíssimo. Sessenta por cento dos americanos se opuseram à nomeação de Rockefeller à vice-presidência, apesar de Nelson ter a imprensa nacional escancaradamente a favor dele (New York Times, Washington Post, Wall Street Journal, CBS, NBCe ABC, Time e Newsweek. Não há americano que escape de um desses “ór­gãos”, a menos que seja analfabeto e cego e surdo). O americano a que Wallace se dirige sente, vagamente, que não tem o menor con­trole econômico das mínimas necessidades, que comida, gasolina, remédios, juros, os básicos, em suma, não existem mais em nível local, de comunidade, e que obedecem a um comando nacional. Estão, claro, perfeitamente certos. Só não sabem é que toda a es­trutura do país, da presidência e Congresso até George Wallace ser­vem a esses grupos de 200 companhias que controlam cerca de 60% da economia e só fazem aumentar e diversificar de poder. No Estado de Wallace, Alabama, que ele domina há 13 anos, a incidência de impostos, diretos ou indiretos sobre a população mostra que o líder de cadeira de rodas (e surdo) está em 48° em matéria de taxar os ricos. Suga os pobres. E é líder populista.

       Ford nem entra nisso, na alusão enganadora sobre os “muito ricos”. Serve-se em silêncio e conivência absolutos. Em menos de 1 ano de governo vetou todas as leis que visavam ferir de uma maneira ou de outra os interesses das 200 companhias e propôs e sancionou todas que as favoreciam, das verbas do Pentágono à mineração de superfície, à “crise da energia” que enriqueceu à loucura o vice-presidente, co-proprietário de 4 das 5 irmãs americanas (entre as 7 mundiais), que dominam o comércio mundial de petróleo.

       Os dois se encontram e disputam a primazia no combate ao “crime”. Minha estatística sobre Nova York, aos capazes de ra­ciocinar, sugere que deve haver algo de profundamente errado num país — sim, porque Nova York é, em tamanho família, emblemática do resto dos EUA — que tem 1 trilhão e 300 bilhões de dólares de produto nacional bruto e controla 50% da riqueza mundial, e apresenta um tal quadro de miséria e privação. A raiz do crime é es­sa. Há exceções, claro. Os aberrantes. São, obviamente minoria. E não estou sugerindo que o criminoso indivíduo, a besta fera que você encontra solta em qualquer rua de metrópole americana, seja um ser humano tratável, redimível, em termos de sociabilidade. O melhor é sair da frente, porque o tipo inclusive não tem as graças sociais de William Colby, ou Nelson Rockefeller, dois criminosos que superam qualquer mafioso homologado, mas que desenvol­veram à perfeição uma fachada de respeitabilidade. Imaginem que Nelson é tão igual que chama o eleitor na rua de “fella”, “cara”. E William Colby, o assassino-chefe da CIA, é muito religioso. Passa o prato das esmolas na Igreja.

       Apesar de tudo, o criminoso é produto direto dos valores, da moral intrínseca da sociedade americana devotada ao lucro, à ex­ploração, ao golpe (rip-off). E é inatingível pela lei Ford, tentando competir com Wallace, oferece auxílio federal. Nos últimos 2 anos, o governo deu 3 bilhões de dólares ao combate ao crime nos Esta­dos. O crime subiu, só em 1974, 17%. Mais será como o Vietnã. Mais armas e mais gente e teríamos “uma luz no fundo do túnel”. E, claro, tanto Ford como Wallace, não admitem discutir sequer o fato sabido de que a chamada Máfia depende das polícias para sobre­viver. Que é uma organização internacional infiltrada nos mais altos círculos de governo e iniciativa privada. Richard Nixon e um de seus financiadores, o foragido Robert Vesco, estão sendo investigados como envolvidos no tráfico internacional de narcóticos. E, notem, desde que o Vietnã “caiu”, secando uma fonte de heroína, a Turquia reiniciou o cultivo do ópio. É tudo organizado.

       A classe média, porém, não vê isso, nas ruas, limite da sua visibilidade. Quer é tirar o negro de faca, o viciado, ou o vendedor, que, inclusive, vende aos seus filhos. Quer matá-los todos, se pos­sível. Não ousa formular o pensamento, pois é audacioso demais, acima da mediocridade típica da classe média. Os Wallaces e Fords suprem o código. O cinema e TV, as fantasias. Vocês viram Death Wish, pois não? É um de um milhão.

       Há uma nova lei de crime no Congresso, que passará. E, passan­do, os EUA se converterão numa ditadura disfarçada. Contêm coisas como uma zona de “tiro livre” nas cidades, gun free, ou seja, em que a polícia possa atirar sem fazer antes perguntas. O modelo é cla­ramente o Vietnã onde existiam milhares de zonas assim. O ministro da Justiça, um certo Levy, se diz indeciso (sic) sobre esse item. Recusou (é um liberal) o “passaporte interno”, o que não quer dizer que não passe no Congresso e desconhece-se a opinião de Ford. O “Passaporte” é uma invenção tzarista que não permitia ao cidadão do império ir de uma cidade a outra sem exibi-lo à polícia. Contém moradia, trabalho etc, uma mistura de Félix Pacheco e Carteira Profissional. E pode ser exigida pela polícia, a qualquer momento, em qualquer local. Stalin restabeleceu na URSS. Nos EUA é inconstitucional, me parece, e daí os pavores de Levy. O Congresso, porém, pode mudar a Constituição. É o poder supremo do país. Ford quer sentenças mandatórias para certos crimes, acabando com a cha­mada discrição judiciária. Esta “discrição” é produto de séculos de civilização, que permite a um juiz julgar cada crime em relação às circunstâncias em que foi cometido, o que garante, ou não, ate­nuantes.

       O pior é conosco, jornalistas. A lei transforma em crime passível de cadeia (mínima de 5 anos) que gente do governo (lato senso) passe a imprensa informações “secretas”, punindo quem entrega e recebe. Ou seja, não se poderia repetir o episódio dos Documentos do Pentágono ou de “Watergate”, a menos que a cadeia se enchesse de dissidentes e jornalistas, pois, claro, quem decide o que é “se­creto” é quem está no poder, que jamais admitirá erro. A ironia é que Nixon foi derrubado pelo judiciário ao alegar que tinha “privilégios executivos” que o colocavam acima das leis e da Constituição. Agora, Watergate deverá ser a nova lei do Establishment.

       A guerra do Vietnã vai ser lutada de novo aqui. Estamos já no período guerrilhas, vulgo crime. Agora vem a operação rolocompressor relâmpago. Uma shitstorm. Veramente.

 

                                         FUGAS

 

                 O BABALAÔ AMERICANO

       O preço das ações da Warner Brothers (hoje, Warner Com­munication) dobrou na bolsa dos EUA, em janeiro de 1974. O motivo é “O Exorcista”, filme extraído do romance de William Blatty, di­reção de William (The French Connection) Friedkin, sobre uma menina possuída pelo demônio e salva por dois exorcistas jesuítas (um dos quais se sacrifica absorvendo Satã e morrendo). Os inves­tidores sabem o que fazem. Em janeiro, em Nova York (e outras cidades), onde a temperatura média era 5 graus abaixo de zero, filas dobravam quarteirões, com gente disposta a ver “O Exorcista”. “Variety”, o jornal do comércio do show business, prevê uma renda só nos EUA de 85 milhões de dólares, superior à de “The Godfather”.

       Quem é o público? Sociólogos profissionais e amadores (mais conhecidos como jornalistas) desistiram de defini-lo, pois é todo mundo, sem uma faixa etária ou econômica precisa (desde que per capita disposto a pagar três dólares e cinqüenta centavos pela en­trada). Uma democratização, quem sabe até uma “comunização” cultural dos americanos redescobrindo Deus e o Diabo na terra da Coca-Cola e da EXXON (ESSO), da guerra do Vietnam e de Water­gate.

       Os humoristas nos dizem alguma coisa. Art Buchwald: “Satã é mais fácil de entender e de enfrentar do que Richard Nixon”. Os psicólogos, surpreendentemente, concordam, sem, claro, a agres­sividade de Buchwald quanto a nossos demônios modernos. O Dr.        Philip Manning, de Harvard: “O cidadão americano comum, até 1968 (época em que a guerra do Vietnam verdadeiramente atingiu a consciência popular P.F.), habitava um paraíso de idiotas, acre­ditando que vivia no melhor país do mundo, cuja política interna e externa se caracterizavam pela razoabilidade e benevolência. Havíamos ou não lutado duas guerras a contragosto e vencido ambas em nome da democracia? E nossa prosperidade não acomodava o protesto social, a harmonização de diferenças, como no caso dos negros, defendidos pela Justiça (a decisão da Corte Suprema desagregando racialmente as escolas públicas, Brown versus Board of Education, 1954.P.F.) e nas páginas editoriais do “New York Times” e nas três grandes cadeias de TV (CBS, NBC, ABC. P.F.). Esse senti­mento de complacência e euforia sobreviveu até aos assassinatos de John Kennedy e de Martin Luther King, Jr., e a emergência do ra­dicalismo dos negros, inconformados com a lentidão com que eram absorvidos pela sociedade de consumo, ou mesmo ao surgimento de uma agressiva Esquerda universitária nas escolas de elite do país (a chamada Ivy League: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Pensilvânia, Princeton e Yale, preferidas das famílias de classe média para cima e, precisamente, o centro — até hoje — dos esquerdistas juvenis. P.F.). Mas não resistiu à nossa derrota fragorosa em face de uma das nações mais pobres do mundo (o Vietnam do Norte, cujo Produto Nacional Bruto, 4 bilhões de dólares, é menor que o do Estado de São Paulo. P.F.), caracterizada na ofensiva do Tet (31 de janeiro de 1968, ataque dos insurrectos vietnamitas, que chegaram a penetrar por algumas horas na embaixada dos EUA, em Saigon.P.F.) e pelo reconhecimento do horror que causávamos à população civil. Assim é que nosso Presidente (Lyndon Johnson P.F), eleito com a maior votação da História (61% do voto popular. Nixon, em 1972, teve 60,8%) em 1964, literalmente abdicou em abril de 1968 (ou seja, anunciou que não tentaria reeleger-se. P.F.). Daí por diante foi ladeira abaixo. Todos os valores americanos passaram a ser violentamente contestados nos principais órgãos de informação, o que antes só acontecia nos veículos intelectuais, de circulação mínima: dos estragos na natureza produzidos pela nossa super-próspera sociedade pós-industrial, na corruptibilidade do sistema capitalista, na destruição de totens sexuais secularmente estabelecidos (Manning refere-se à emergência da Women's Lib e do Gay Power, mulheres e homossexuais procurando autonomia social) e, finalmente, no escândalo tentacular de Watergate, que, por assim dizer, trouxe o “Vietnam” para dentro de casa, mostrando que nosso governo é tão corrupto e cruel internamente como externamente. Nesse clima, é natural que o cidadão comum, perplexo e assustado, recorra a fantasias comparativamente simples à la “O Exorcista”. Afinal, o filme reconhece a inocência das crianças (de nós mesmos, do povo americano?), a honestidade da família tradicional, admitindo, sutilmente, porém, a corrupção de ambas mas, e aí a força fantasiosa do filme, a corrupção vem de fora para dentro, não está em nós mesmos, provem do Demônio. E os padres, seguindo o exemplo dos fuzileiros navais nos velhos filmes de John Wayne, salvam a criança e a nós todos. Deus e o Diabo, o bom “branco” e o mal, “preto”, são bem preferíveis à nossa condição atual”.                 

       Manning é um tanto pretencioso (para não dizer obscuro e esquemático), mas não há dúvida de que bateu em algumas teclas cer­tas. Quem conhecia o americano confiante da década de 1950, sob o governo de Eisenhower, e o compara aos espécimes da era de Vietnam e Watergate, reconhece a “perplexidade e o susto” de que o psicólogo fala, e ainda é mais claro que, num certo plano. “O Exorcismo” é uma fantasia infantil de pecado, expiação e pureza, ca­tegorias bem mais digeríveis pelo cidadão da rua do que as complexidades da política externa dos EUA na Indochina e de Watergate. Intelectuais radicais, como Gore Vidal, têm uma visão menos ca­ridosa do filme: “No fundo, o que esse bando de basbaques quer (em suma, o público P.F.) é ver um filme pornográfico em que uma criança é a protagonista, o que os legítimos e honestos (sic) pro­dutores de pornografia nunca haviam imaginado. Pois o que é o “Exorcista” se não um pornô infantil? Vemos aquela menina debilóide (Sic) introduzindo um cruxifixo na vagina, o que querem mais? Meus compatriotas (Vidal deu a declaração em Roma. P.F.) já se cansaram de “perversões” (aspas no original P.F.) entre sexos opos­tos ou os mesmos sexos, de resto à venda em qualquer esquina de Los Angeles e Nova York. Já uma menininha é uma novidade. E o de­mônio e os jesuítas se ajustam perfeitamente à hipocrisia da ética puritana. Da mesma forma que nossos puritanos ao desembarcarem na Nova Inglaterra (século XVII.P.F.) consideravam os índios que habitavam a terra invasores (grifo no original.P.F.) e não eles, os puritanos, é muito conveniente acusar o demônio pelos orgasmos da menina e pelo prazer da platéia em vê-la sadicamente torturada. Da mesma forma, a intervenção dos jesuítas me lembra Nixon depois do massacre de My Lai, afirmando que procurávamos paz com honra na Indochina”.

       Um observador menos extremado pode usar como ponto de partida uma capa de “Time” (certamente a revista mais lida pelo público de “O Exorcista”), no mesmo ano de 1968 escolhido por Manning e Vidal (em relação a My Lai), em que havia a pergunta: “Deus Está Morto”? A reportagem tinha uma certa sofisticação de coquetel de classe média. Desfilava a “nova” teologia de Teilhard de Chardin, que procura, em última análise, espiritualizar, ou seja des­truir a aparência física dos símbolos tradicionais do cristianismo, a fim de torná-lo intelectualmente aceitável junto aos intelectos ateus e agnósticos do nosso tempo, analisava superficialmente o impacto de idéias políticas e sociais revolucionárias sobre os diversos credos oficiais (particularmente na “abertura” proposta por João XXIII no Vaticano II) etc. Mas a revista pressupunha que o religiosismo fora derrotado pelo materialismo contemporâneo, essa era a “mensa­gem” em meio as mistificações estilísticas típicas de “Time”. Pres­supunha, em suma, que vivemos numa sociedade racional, em que o homem conquistou a matéria, ou está em vias de subjugá-la com­pletamente, encontrando soluções práticas para todos os problemas da existência e dispensando as extra-terrenas, que sempre foram o forte de todas as religiões.

       A previsão de Time provou-se errada (como de costume: quan­do apareceu “Love Story” a revista anunciou que o cinema ameri­cano iria retornar ao clima idílico da década de 1940, isto alguns meses antes de Sam Peckinpah começar a produção de Straw Dogs, e Stanley Kubrick, de “A Clockwork Orange”). Já era, o que sabemos hoje, completamente errada, pelo menos quanto aos EUA, em 1968. O fato é que a América do pragmático (filósofo) John Dewey, do reformismo de Franklin Delano Roosevelt e John F. Kennedy, que não admite limites para o bem estar material do povo, é também a terra do que no Brasil chamamos babalaô, de todo tipo de credo no sobrenatural, do satanismo à astrologia, à feitiçaria, ao misticismo de partes da chamada contra-cultura. Já em 1968, nota o sociólogo de Dartmouth, John S. Silberman. 61% dos americanos admitiam que “havia qualquer coisa nas estrelas”, em suma, na astrologia. Sofisticados brasileiros, particularmente em O PASQUIM, fizeram um carnaval quando Rubens Amaral, repórter da TV Globo, pergun­tou a um ginecologista, na presença de milhões de espectadores, se a subida do homem à lua afetaria a menstruação feminina. Acontece que essa “relação”, afirma Silberman, é dada de barato por 70% das mulheres, não incluindo poucas portadoras de diplomas universi­tários em ciência política (grifo no original. P.F.)

       Se o galã brasileiro, em visita a Nova York, quiser ter acesso rápido às moças nos bares de solteiros (onde se encontra companhia fácil. Nota: não se trata de prostituição) é aconselhável que leve no bolso um número considerável de figas da Bahia, pois será recebido como um príncipe encantado. Isto, em Nova York, centro do intelectualismo americano, onde se publicam o “New York Review of Books” e “Partisan Review”, sem falar do “New York Times”, cujo desprezo pelas religiões é pessimamente disfarçado até pelas editorias que cobrem especificamente o assunto (o “Times” é “católico” no seu desprezo: despreza todas por igual). E se descemos às regiões menos civilizadas do país, à Califórnia, por exemplo, verificaremos que o babalaô reina supremo. O assassino de Sharon Tate, Charles Manson, julga-se o novo Messias. Silberman calcula que há cerca de 10 mil seitas sobrenaturais na Califórnia, praticando desde simples sessões espíritas (uma das formas mais tradicionais e inofensivas de babalaô) à tortura e o canibalismo institucionais (sic).

       Certamente, muitos desses movimentos são pura picaretagem partindo de espertalhões que sabem aproveitar a longevidade dos americanos (que se aposentam, com as respectivas pensões, para Es­tados de clima ameno, como a Califórnia), a solidão da velhice, em suma, e também os efeitos sobre a juventude da dissolução da fa­mília moderna (2 de cinco casamentos nos EUA terminam em divór­cio), mas esse argumento é irrelevante, pois é a procura e não a ofer­ta que fascina pesquisadores, quer dizer, o fato de tanta gente, seja qual for o motivo, necessitar do “além” ou de equivalente, numa era em que o pensamento materialista, em termos teóricos, ao menos, literalmente massacrou o idealismo filosófico e, pensamento esse, plenamente correspondido, na prática, pela mecânica da sociedade de consumo, esta podendo ser considerada a aspiração suprema de todas sociedades na terra, exceto aquelas que, pela decisão dos res­pectivos líderes, imposta de cima para baixo, mantiveram a mística das comunidades agrárias (a China, claro, é o melhor exemplo, mas é difícil saber até que ponto Mao Tsé-Tung preservou o espírito cam­ponês do povo por escolha própria ou porque não tinha como super-industrializar-se em face da hostilidade conjunta de URSS e EUA, a última começando a desaparecer a partir de 1972, apenas, quando da visita de Richard Nixon a Pequim).

       Essas considerações foram violentamente contestadas pelo São Paulo apóstolo da contra-cultura, Theodore Rozsak, numa conversa de coquetel em Nova York (Rozsak devidamente uniformizado de sandálias, contas e outros apetrechos característicos) com o autor deste artigo. O que estava Rozsak fazendo num coquetel de intelec­tuais de 40 anos (média), devotados ao consumo do álcool e à ni­cotina? Seria mais fácil imaginá-lo numa reunião onde o haxixe e a heroína fossem as válvulas de escape dos presentes, mas Rozsak é um pedagogo e adora insultar a sociedade careta, racional, que “Time” imaginara implantada nos EUA, em 1968. Os insultados não o levam muito a sério, talvez por problemas de lacuna de geração, considerando-o um divertimento a mais, variação das conversas sobre quem está dormindo com quem, ou quando Y recebeu de direitos autorais da Editora X (as duas conversas dominantes, à parte Watergate, em reuniões de intelectuais de mais de 40 anos, em Nova York).

       O autor deste artigo perguntou a Rozsak quem dirigiria a so­ciedade de comunidades primitivas, onde todo mundo estaria doing his own thing (“estar na sua”, na versão brasileira), prevista por ele e pelo professor Charles Reich (“The Greening of America”, um dos maiores best-sellers de não-ficção da história editorial americana. Ou, como observou Herbert Marcuse, vendeu tanto porque é fic­ção). Rozsak, impaciente e agressivo, respondeu que odirigismo in­telectual, racional, super-planejado, é que levou à guerra na In­dochina. O argumento familiar e plausível até certo ponto, mas não resolve o problema. Se o sonho dos místicos da contra-cultura se realizasse, quem garantiria o sustento do país? Afinal, a complexa mecânica industrial e tecnológica do mundo (desenvolvido) moder no não nasceu da cabeça de Júpiter e, sim, da luta do homem contra a necessidade, contra a fome, a fúria dos elementos, a doença etc. , “Se tudo isso é abandonado em face de uma contemplação espiritual da existência, em nuvens de maconha, misticismo vagamente oriental (do qual o maior exponente é Herman Hesse, cujos livros, em edição pocket, vendem 200 mil exemplares ao ano, nos EUA), aonde iríamos parar?

       O fato é que os temas de Rozsak, Reich e, em parte, de Alan Watts, são mais sintomáticos do que expressivos. Em outras pala­vras, refletem com mais acuidade o “susto e a perplexidade”, sem falar do desespero, do americano médio em face das complicações aparentemente insuperáveis da sociedade aquisitiva, de desperdício e injustiça que existe nos EUA, do que qualquer solução verda­deiramente factível, em termos práticos. Nos tempos dos protestos mais violentos contra a guerra do Vietnam, dois líderes da contra-cultura, Jerry Rubin e Abbie Hoffmann, queriam levitar (sic) o Pen­tágono. O Pentágono, porém, é inlevitável. Duas coisas podem des­truí-lo: a vontade do povo americano e uma bomba nuclear. A primeira seria resistida à força (nada espiritual) pelos donatários do Pentágono. A segunda convém nem pensar.

       A lógica, entretanto, esbarra na realidade desse vasto (se in­coerente e longe de unificado) movimento de repulsa que há nos EUA contra sociedade vigente e que procura uma realidade mais humana, em bom português, anti-moderna, anticapitalista (contra o espírito aquisitivo do capitalismo) e anticomunista (os líderes da contra-cultura odeiam os métodos de arregimentação popular dos comunistas).

       A busca de um “algo mais” que os prazeres da sociedade de consumo não fica restrita, bem entendido, ao religiosismo. Existe a subcultura da droga, que penetrou profundamente a sociedade americana, muito mais que as autoridades ousam admitir. Silberman calcula que, no mínimo, 60% dos jovens, hoje, tomem, ocasional­mente que seja, um tipo qualquer de droga, desde a inócua ma­conha à perigosa heroína. É uma estatística assombrosa e de um potencial que os cientistas sociais ainda não ousaram analisar em profundidade. E ninguém ainda computou os adultos que aderiram, se bem que 36 milhões de pessoas, no país, tem problemas com o ál­cool. Não é difícil concluir que o povo americano não é muito feliz.

       Droga e religiosismo se fundem nas |comunidade (ditas) de Jesus. Um estudo anônimo de “Commonweal” (revista católica, porém, liberal) estima que cerca de 1 milhão de jovens, no momen­to, pertencem a uma dessas comunidades, que ocupam fazendolas, produzem uma agricultura de subsistência (entre os produtos plan­tados: grass), praticam uma razoável liberdade sexual (existe o direito, em algumas, à monogamia, mas não à imposição da monogamia) e se fecham a qualquer contato com o mundo moderno, de famílias aos meios de comunicação, alimentando-se espiritual­mente da Bíblia, Velho e Novo Testamento. Os grupos mais radicais cortam hostilmente as próprias famílias, em vez de meramente abandoná-las. Isso provocou em alguns bons burgueses o medo de que os filhos estejam sendo “programados”, que hajam sofrido lavagem cerebral de líderes pseudo-religiosos, que visam a explorar as crianças. Alguns pais seqüestram os próprios filhos e tentam (usando, principalmente, um crioulo, Pat Higgins ex-assessor do governador da Califórnia, Ronald Reagan, e que se diz especializado em “deslavagem cerebral”. Já montou uma firma e fatura alto, naturalmente, no melhor espírito da livre iniciativa americana) trazê-los de volta à realidade burguesa. A polícia, a princípio, fe­chou os olhos, apoiando os pais, mas os libertários agora come­çaram a defender direitos civis dos jovens (afinal, maiores de idade) e o assunto terminará ainda este ano na Corte Suprema.

       “Time” só acertou na decadência das religiões estabelecidas, que é um fato incontestável. Nem 40% dos católicos (maioria minoritária) americanos, nota ainda “Commonweal”, aceitam o conservadorismo litúrgico e ético de Paulo VI (em bom português, os 60% restantes apoiam o uso de anticoncepcionais e o do aborto legalizado). Quanto às protestantes, Bernard Shaw já notara, em 1924, no prefácio de “Santa Joana”, que, em última análise, pretex­tando uma revolta contra as iniquidades de Roma, em verdade ter­minaram todas braços dóceis do Estado, e ninguém as leva mais a sério como uma força de persuasão moral ou política nos EUA.

       O que nos devolve ao ponto de partida deste artigo, ao sucesso de “O Exorcista”. William Blatty, o autor do romance que deu o fil­me teve um “Ovo de Colombo”. Em vez de recorrer a babalaôs exóticos, importados do Oriente, explorou a riquíssima mina da Igreja Católica, que, afinal, durante séculos dirigiu o pensamento da humanidade, produzindo teorias incontáveis das relações entre Deus e o Diabo. “O Exorcista”, em última análise, é um exemplo do que os americanos chamam de “nostalgia”, muito em moda agora, em filmes como “Last Picture Show”, a volta das Andrew Sisters, de musicais como “No, No Nanette”, moda Bonnie and Clyde, da década dos trinta etc. Para que recorrer a Buda, vampiros etc, quando há uma literatura católica de milhões de páginas sobre o sexo dos anjos? Blatty, o Cristóvão Colombo da nostalgia católica, já promete escrever um trabalho sobre a “hereditariedade do pecado”, tema que muito preocupou o falecido Santo Agostinho, há muitos séculos atrás.

       As forças políticas do mundo careta não sabem o que fazer em face dessa ofensiva de babalaô. Comicamente, o direitista William Buckley Jr., num ensaio recente, invocou o espírito do ultra-esquerdista Trotsky que, analisando a Rússia de 1907 (depois do fracasso da revolução anti-tzarista de 1905), espinafrou violenta­mente os intelectuais que se recolhiam ao misticismo, em vez de continuar a luta contra a autocracia russa por todos os meios dis­poníveis. Buckley, naturalmente, quer que a juventude se motive a destruir o comunismo ateu, em vez de fumar maconha. Não é uma tese muito popular, no momento, nos EUA.

       Se até socialistas se sentem atraídos pelo babalaô, em horas de dificuldade, como nota Trotsky (alguns discípulos de Lênin, para fúria deste, tentaram unir o socialismo a Deus, pensando assim tor­ná-lo mais atraente às massas. Principais expoentes dessa teoria: os filósofos marxistas Ryazanov e Bogdanov e o super-intelectualizado Lunacharsky, o qual em 1917, seria o primeiro comissário de Edu­cação da nova República Soviética, aí já esquecido de Deus), o que dizer da gente comum nos EUA, que se ouve acusada de criminosa de guerra pelas elites intelectuais do país.

       Buchwald tem razão; em parte: o velho demônio e o velho deus da nossa infância eram brincadeira de criança em face dos nossos semel'iantes, principalmente — diria um americano de rua — dos que elegemos para nos governarem. Mangalô, três vezes.

 

                     MARILYN MAILER

       Norman Mailer escreveu um catatal sobre Marilyn Monroe, Marilyn (Grosset e Dunlap, 270 págs., 110 fotos, $ 19,95), que o Ênio servirá a vocês aí com 14 fotos, a preços moderados. Devo entrevis­tar Mailer, em breve, ou, pelo menos, tenho a promessa do editor da Grosse-dunlap, Bob Markel, e acho que ele, Mailer, não vai gostar. Talvez até me esmurre. Talvez eu mereça.

       Vou dar a vocês uma avant-premiere da entrevista, com a van­tagem que eu respondo por Mailer, ou seja, dou as respostas cor­retas. Por que o maior escritor americano gasta 60 dias da vida dele escrevendo sobre uma estrela de cinema? Não há precedentes disso, que eu saiba, no nível literário de Mailer. O motivo me parece sim­ples: Mailer tem 5 mulheres, ex-esposas, e diversos filhos. Gasta $ 12 mil por mês no que se chama aí pensões alimentícias. E se dão todos bem, inclusive aquela que ele esfaqueou, uma sul-americana, sem pegar uma cana, porque a moça não quis processá-lo. Mailer tem 1/3 dos direitos do livro, que já é escolha do Book of the Month, e que deverá render, antes dos impostos, $1,5 milhão. Quinhentinha, mesmo depois da contribuição à guerra no Camboja, via o imposto de renda, dá para pagar muita pensão alimentícia.

       Ao contrário de Pauline Kael, acho que Marilyn foi mesmo a úl­tima estrela de cinema. Ou seja, o público ia vê-la e não o filme. Isso acabou. Acho saudável, se bem que é sintoma, aqui, de uma so­ciedade que já se tornou incapaz de reconhecer tipos ideais. Sabemos demais sobre as outras pessoas e nós mesmos. Kael diz ainda que Marilyn era, como direi, “desejada” por todos os homens. Como é que ela sabe disso, sendo mulher? Bem, se for esse o caso, eu não sou homem, porque sempre achei Marilyn gorda demais (exceto em Asphalt Jungle), cheia de celulite, bocarra, e uma caricatura de mulher, dessas que os gays e diretores misóginos, tipo Billy Wilder, gostam (não é à-toa que Some Like it hot é o melhor filme dela, dirigido por Wilder). Mailer diz que Some Like it hot é Marilyn. Devo estar virando mesmo a mão, porque Some Like it hot, para mim, é Jack Lemmon.

       Enfim, diferenças de opinião. Ela não era atriz, com todos os Lee e Paula Strassberg, nos bastidores. Está muito bonitinha em The Prince and the Show Girl, linda mesmo (o associado dela, na época, Milton Greene, era um craque em maquilagem), mas comparar a atuação dela à de Olivier, favoravelmente, à la Mailer, me parece uma grotesquerie, pois Olivier fez cabelo, barba e bigode, em ter­mos de interpretação. Afinal, tirando um ou outro papel, em filmes desastrosos, tipo Cash by Night and the Misfits, ela só fez a vida in­teira a loura burra, um tipo que vem do vaudeville americano.

       O ser humano Marilyn é complexo, sem dúvida, mas qual ser humano não é complexo? Por que a preferência? Mailer nos entulha de interpretações, edipianas e outras, a ponto de nos engasgar com todas as modas psicológicas do momento. Certo, é brilhante, irresis­tível, pois Mailer é um grande escritor, mas me pergunto (e espero estar errado) se quando a cultura americana der outra guinada, me pergunto se então o delírio metafórico de Mailer não nos sugerirá um Coelho Neto americano.

       O fato é que desde Why Are We in Vietnam?, Mailer não escreve um único romance. Ou seja, é o maior romancista vivo, só que não escreve romances, engraçado, não? Claro, o jornalismo dele é novelístico. Os primeiros cinco capítulos de Armies of the Night são uma comédia de maneiras sobre a alta intelectualidade americana e o liberalismo idem, que ninguém, nem mesmo Henry James, con­seguiu igualar. Isso nos faz salivar, esperando o Gatsy, o Sun Also Rises, ou o Tender is the Night, de Mailer. E o gosto literário dele me parece discutível. Ele continua insistindo em que Hemingway foi o “monarca” das letras americanas no Século XX. Se há um monarca, e não há, pois nenhum americano chegou ao nível de D. H. Lawrence ou Proust (que é mais Século XIX, a meu ver), é F. Scott Fitzgerald. Outro dia, reli passagens de Tender is the Night. Como toda obra-prima, o livro me pareceu inteiramente novo, inexplorado. Tentei o mesmo com The Sun Also Rises e me senti cercado de poses e manerismos. Fitzgerald melhora quando você envelhece. Heming­way piora.

  1. Kael voltando à Marilyn, acha que Mailer trata muito mal Ar­thur Miller, o último marido da moça. Essa senhora descobre coisas fora do nosso alcance, pobres mortais, e já começa a cansar minha beleza. Mailer faz um retrato simpaticíssimo de Miller, inclusive tocando só de leve no problema central do casamento: o que pode fazer um homem normal casado com uma ninfomaníaca, maníaco-depressiva? Mailer é delicado. Não usa nunca, que eu me lembre, a palavra ninfomaníaca, mas a evidência é conclusiva que Marilyn não era outra coisa. Miller agüentou o diabo por muito tempo. Eu não o perdôo por Depois da Queda, uma exploração sórdida de Marilyn, mas, ao menos, Miller, como artista, é mais cândido do que Mailer, pois a ninfomania no palco é claríssima. Mailer limita-se a dizer que Marilyn gostava de sexo. Bem, quem não?

       E há a história patética de Marilyn tentando tornar-se culta. Tal­vez porque Miller e os Strassbergs sejam intelectuais meia bomba, ninguém nunca explicou a ela que cultura não é um processo de acumulação de conhecimento, e, sim, um processo de assimilação orgânica de conhecimento. Depois dos 30, só um gênio consegue yessa assimilação. É preciso tomar muito chá em criança. Afinal, todos os gangsters principais de Watergate tiraram doutorados em universidade. Alguém os imaginaria cultos?

       A melhor explicação de Marilyn ainda me parece a de Diana Trilling: Marilyn era sexo, pura e simplesmente sexo, uma deusa. Em 1962, quando se matou, tinha 36 anos, idade tatal, “moribunda”, para uma mulher que se vê nesses termos. A aposentadoria recente de Brigitte Bardot é, nesse sentido, prova de que BB sabe onde tem a cabeça. Ao perceber que estava pelo golpe dos 20, na confusão de drogas e de ressentimentos acumulados em que vivia, Marilyn preferiu a morte e teve uma posteridade bem superior ao que, na realidade, mereceu em vida.

       E o maior feito de Marilyn Mailer nem sequer analisa. Marilyn era uma call-girl particular da 20th Century fox. Explico: os estúdios tinham moças feito ela que “entretinham” os visitantes de Nova York, os homens de dinheiro, ou manipuladores de dinheiro, tipo Nick Schenck (para quem ela foi “reservada”). Hollywood é muito rígida em matéria de hierarquia. Em outras palavras, essas call-girls par­ticulares, por decisão conjunta dos magnatas, são proibidas de trabalhar em cinema. Daí o fato de que Darryl F. Zanuck nunca dirigiu a palavra a ela, mesmo quando a tinha sob contrato, o que deixa Mailer perplexo. A reação de Zanuck é a equivalente à da mãe da Rainha Elizabeth, se esta tivesse casado com um sentinela do Palácio de Buckingham.

       Um feito fantástico, sem dúvida, sem prós e pós, que eu saiba, mas Mailer não está muito interessado em fatos. Ele chama o livro de “romance biográfico”, e, se você gosta de Mailer, ou morre de paixão por Marilyn, conheço piores maneiras de passar o tempo do que ler Marilyn.

       Só há uma coisa realmente imperdoável no livro, o último capítulo. Mailer sugere (não afirma) que Marilyn poderia ter sido as­sassinada por direitistas do FBI e CIA, ressentidos com o fracasso da Baía dos Porcos. É que Bobby Kennedy, amigo de Marilyn, estaria de caso com a moça. Forjando um “suicídio”, os tais direitistas em­baraçariam os Kennedy, fazendo Bobby o pivô da morte.

       Não há, em primeiro lugar, o menor fundamento factual para essa hipótese. Mailer diz que Kennedy e Peter Lawford passaram parte daquela noite com Marilyn, antes do suicídio/assassinato. Eunice Maurray, caseira de Marilyn, diz que as duas estavam so­zinhas quando a morte aconteceu, que ninguém as tinha visitado etc.

       Nada disso é muito importante, exceto a parte política. Mailer não tem o direito, sabendo o que sabe, de insistir em apresentar os Kennedys como liberais odiados pela Direita, ao menos não em 1962. John Kennedy, em junho de 7963, fez um discurso propondo coexistência pacífica vis-à-vis a URSS, primeira palavra oficial dos EUA a respeito, e esse discurso pode ter originado uma conspiração direitista cujo desfecho teFia sido Dallas. Em 1968, Bobby Kennedy soava como um candidato à esquerdista.

       Em 1962, porém, os dois irmãos estavam favorecendo de todas as maneiras o “complexo industrial militar”, dobrando e, em alguns setores, triplicando as verbas militares, intervindo secretamente no Laos, iniciando a presença militar dos EUA no Vietnam, e, via a Aliança para o Progresso, estabelecendo a doutrina de “contra-insurreição” na América Latina. Por que a Direita haveria de querer matar a galinha dos ovos de ouro, em 1962? Ela pode ser doida, mas não rasga dinheiro.

       Mailer bebeu mal? Os 12 mil dólares de pensões o levaram a dar uma de Harold Robbins? Vou perguntar a ele, precisamente nesses termos. Talvez possamos resolver tudo numa queda de braço, em que ele se diz campeão e em que eu não sou dos piores, para sur­presa dos meus amigos e inimigos, acrescento.

       Quanto à Marilyn, OK, que Deus ajude ao Ênio, mas vou cobrar de Mailer o romance que ele nos deve e tem de pagar.

 

                   LACOMBE, LUCIEN

       Foi sorte minha ter visto O Último Tango em Paris antes de Bertolucci vir a Nova York, mas azarei com Louis Malle, a quem ouvi (li a respeito) só depois enfrentando Lacombe, Lucien. Invertendo (e parafraseando) uma piada minha, de que o Jaguar se apropriou sem pagar direitos autorais, Lacombe Lucien se aproxima do gênio e Malle é um imbecil. É, inclusive, historicamente analfabeto, pois pensa que o maquis e a resistência eram a mesma coisa, quando o maquis não passava de jacquerie e a resistência unia (nervosamente) comunistas e gaullistas planejando, com muita fricção, o futuro da França.

       Malle acha que fez um filme sobre o colaboracionismo. Não fez. “Viver? Deixamos isso para os nossos empregados”, disse o poeta (francês), mas é “menas” verdade, porque nossos empregados vivem em função nossa, a nosso serviço. Malle, sobre o colaboracionismo, ficou perdidamente na copa & cozinha. Ele considera natural que tantos franceses tenham sido empregados dos nazistas, e é, agora, o cerne do colaboracionismo já existia na França muito an­tes da ocupação alemã. Vichy foi o último capítulo (contra-revolucionário) da Revolução de 1789 (ou melhor, de 1793), em que uma classe dirigente inepta, decrépita, incapaz sequer de conduzir o país — em termos capitalistas que fosse — à industrialização, deixou-se docemente estuprar pelos boches. “Melhor Hitler do que Blum”, este sendo o esquerdista meia bomba que introduziu a moderna legislação trabalhista via a frente popular de 1936 (e judeu ainda por cima); a preferência, Hitler si, Blum no, era o slogan da Direita francesa, antes da invasão de 1940. Logo, analisar o colaboracionismo em termos da naturalidade com que a ralé — eco­nômica ou espiritual — serve a qualquer regime de força, é reduzir a História a uma miniatura caricata, o que, pensando bem, talvez seja o máximo de que o cinema é capaz, dadas as limitações intelectuais e estéticas do medium.

       Nem nesse plano menor Malle tem a coragem das próprias convicções. Entre os colaboracionistas, trabalhando na Gestapo, há um negro, o que espantou a patuléia (inclusive críticos) americana, que parece não ter a menor idéia de que as noções de Hitler sobre a raça superior eram extremamente operacionais. Afinal, os japoneses, que eu saiba, não são “arianos”, e foram aliados da Alemanha. Idem, os grupelhos árabes que serviram ao nazismo (o exemplo do Iraque é o mais evidente). Alguns povos, subjugados pelos impérios americano, inglês, ou stalinista, viam em Hitler um libertador, ou alternativa de vida. Malle explicou a presença do negro na Gestapo no tom excitado do analfabeto que acabou de ouvir falar em Dostoiewsky e pensa que este é um jovem universitário em Peoria, Illinois. E Malle acrescenta que havia também judeus na Gestapo. Fancy that, Hedda. Quem leu Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt — o maior clássico de jornalismo histórico do nosso tempo — ou as obras de Rousset, Kogon e Bettelheim, sabe muito mais que isso sobre o comportamento (natural) dos judeus sob o nazismo. Malle, porém, à maneira de quase todos os diretores de cinema, é um leitor de orelhas de livros Diz que o filme analisa a “banalidade do Mal”, frase célebre de Hannah Arendt, mas não dá a fonte (provavelmente não a conhece), ou o resto do comentário profundo de Miss Arendt: “Estou convencida agora (quando publicou Eichmann em Jerusalém) de que o Mal nunca é “radical”, é apenas extremo, não possuindo profundidade ou dimensão demoníaca. Só o Bem é profundo e pode ser radical”. É evidente que se Malle vislumbrasse o sentido do pensamento de Miss Arendt (influenciada, acrescento, por Simone Weil), Lacombe, Lucien seria muito diferente.

       Se deixamos de lado, porém, as pretensões intelectuais de Malle, Lacombe, Lucien é um filme desconcertante, uma experiên­cia extraordinária. Malle chegou a um complexo e radical humanis­mo, fora das rotineiras bitolas ideológicas do nosso tempo. Lucien é um camponês bronco de 17 anos, em 1944, no interior da França. Um animalzinho, que mata passarinhos, coelhos e gente, sem qual­quer concepção moral. A princípio quer entrar para o maquis, que Malle confunde, em diálogos, com a resistência. Rejeitado, adere à Gestapo, que lhe dá o primeiro terno, dinheiro, poder. Lucien é um libelo contra Vichy mais poderoso do que 5 mil panfletos marxistas. Que sociedade é essa que o produz, alienado, inclusive, dos prin­cípios liberais de 1789 (não, insisto, de 1793)? Marx, horrorizado com o fato de 5,5 milhões dos 7 milhões de eleitores votaram em Luiz Napoleão, em 1848, preparando o caminho para um golpe de Estado, castigou o campesinato francês, produzindo a análise fa­mosa sobre a “idiotia rural”, que todo comunista cita, à la Malle, ig­norando a fonte e o contexto. OK, mas por que Lucien, sendo um idiota rural, haveria de partilhar os sentimentos de Jean Paul Sartre, ou Winston Churchill, De Gaulle, ou Roosevelt, ou Stalin, contra os nazistas? Malle coloca essa questão no filme, profundamente radical que é, sem, porém, entendê-la ele próprio. Ou, talvez, esteja escondendo o jogo.

       Nem o mais radical ideólogo de Direita ou Esquerda espera que um paralítico seja campeão de corrida, mas se enfurece quando o “povo”, mantido secularmente em paralisia espiritual, não adere a Proudhon ou Maurras. Malle intui a réplica de Lucien (Pierre Blaise) na jovem judia, France (Aurore Clement), de quem se torna amante. France e o pai (Holge Lõwenadler) vivem escondidos e chantageados pela Gestapo na cidadezinha em que Lucien atua. France está viran­do mulher, em 1944. O pai vive no passado de alfaiate upper class de Paris, com todos os ressentimentos e lealdades do judeu “aceito” pré-guerra, e se horroriza que a filha se sinta atraída por um agente da Gestapo, cuja função principal, em 1944, era perseguir os judeus. France discorda, biologicamente. Enfurnada, quer viver, encontrar alguém da própria idade etc. E quando xingada de “judia sifilítica” não propõe fundar o Estado de Israel e, sim, abraçando-se compulsivamente a Lucien (que não sabe sequer o que é anti-semitismo) diz: “J'en ai marre d'etre juive”, estou cheia de ser judia, e, em seguida, se amam. Por que essa menina haveria de ser sionista ou guerrilheira local que fosse? Os bem pensantes, em Paris, manifes­taram repulsa pelo radicalismo de Malle. Compreende-se.

       Malle é um artista sutil e, ocasionalmente, profundo (o fato de que o chamei de analfabeto acima não é contradição. Duvido que Mozart conhecesse tanta música quanto o crítico do New York Times). Lucien está disposto a entregar France, só não o fazendo porque não admite que um guarda alemão (SS) o impeça de embol­sar um relógio de ouro. Mata-o e foge com France e avó. Esta, falan­do alemão, só reclama uma vez na “desabalada carreira” quando percebe que está faltando uma carta no baralho com que joga ha­bitualmente paciência (a maioria dos críticos judeus de Nova York achou que Malle não entende os sentimentos do povo judaico sobre Hitler...). Os três vivem no campo, graças às artes de caçador de Lucien. Num momento, France pensa em esmagar a cabeça de Lucien com um pedregulho. Hesita e desiste. Uma afirmação de vida. Lucien, nos informam legendas, foi preso e executado em outubro de 1944.

       As duas seqüências mais complexas do filme, ignoradas ou in­compreendidas pelos críticos americanos, são, primeiro, uma visita da mãe de Lucien ao filho, em que ela o avisa de que a resistência quer matá-lo. O diálogo é mínimo, lacônico, e a velha toma o ônibus de volta. Não contesta moralmente o filho. Apenas, no universo anticonceitual em que vive, exerce a maternidade. Ne­nhum crítico americano notou sequer a exatidão dessa cena. E todos disseram besteira sobre a transformação de Holger Löwenadler, o pai, que, a princípio, se submete dócil e amargamente às chantagens da Gestapo. Quando France, porém, mergulha no romance com Lucien, destruindo, por assim dizer, o que restava ao alfaiate, a unidade familiar, Lowenadler, da noite para o dia, se veste como um dandy, sai à rua, o que não fazia antes, e vai interpelar (amavelmente, jamais perde a classe) Lucien no quartel da Gestapo, onde é preso e despachado para um campo de extermínio. Os críticos americanos “não entendem” a mudança do velho.

       Pauline Kael, que gosta do filme, acha que metros de filme ficaram na sala de montagem, contendo a explicação. É uma aula entre as diferenças de uma cultura sedimentada, se arcaica, de­cadente, como a francesa, e a barbárie do “sabe tudo” americana (primeiro, minha amiga, duas colheres de manteiga, duas de leite uma pitada de canela etc). É uma grande seqüência, a melhor do filme.

       Eu não queria sair do cinema, queria ver mais. Não é que es­tivesse comovido (se bem que é difícil assumir uma atitude clínica em face da performance de Holger Lowenadler), o filme não visa a isso, mas me senti como se tivesse levado uma surra polêmica de que antes não tinha memória.

 

                       EVELYN WAUGH

       Evelyn Waugh, biografado em Evelyn Waugh, de Christopher Sykes (Collins, Londres,£ 5.50, 467 págs.), nos últimos anos, acor­dava pela manhã, começava a beber gin e ficava olhando pela ja­nela. Sykes foi amigo íntimo de Waugh, o quanto se podia ser íntimo de Waugh, e não esconde todas as “amargas” sobre o companheiro de 30 anos. O livro, porém, é fraco em análise da personalidade de quem foi um dos gênios cômicos do século XX, o autor de Decline and Fall, Vile Bodies, Black Mischief, Scoop, Put Out More Flags e The Ordeal of Gilbert Pinfold, A Handful of Dust, os livros dele que, a meu ver, ficarão. Ênio Silveira tentou publicá-lo no Brasil, com The Loved One, O Ente Querido, uma sátira menor que a maioria das pessoas conhece do filme abominável de Tony Richardson e foi um desastre. O humor de Waugh não viaja, provavelmente, ou será que o tradutor traiu, como de costume.

       O problema de Sykes é que é católico e, qua Waugh, leva esta religião extremamente a sério. Talvez seja uma deficiência minha, mas não consigo levar sequer o sentimento de religião a sério, a idéia de forças sobrenaturais agindo sobre nós, de um destino posterior à morte etc, não me causando a menor empatia. E religião é um dado importante em Waugh. Ele se converteu em 1930. O ano não é acidental. A Grande Depressão estava a toda sobre o ocidente ocidental cristão. As pessoas de sensibilidade, na Inglaterra da época, em geral se tornavam ou comunistas ou católicos. Não há a menor referência a isso em Sykes, talvez por que ele considere uma trivialização do catolicismo equipará-lo a comunismo. Angus Wil­son, numa excelente Review no Times Literary Suplement, menciona a qualidade de “evento” de conversões de ingleses ao catolicismo, mas ignora a alternativa, o comunismo, e, a meu ver, essa justa­posição é indispensável ao entendimento de Waugh, personalidade.

       Waugh é um ogre reacionário, um snob completo e um sádico. Inútil tentar esconder qualquer das três coisas, o que é, esconder, precisamente o que tentam os críticos ingleses que li. Waugh, de classe média detestava o pai por este ser de classe média. Sykes es­tende um blank total sobre a vida familiar de Waugh. Diz que ele amava a mulher, Laura (segunda; a primeira também chamada Evel­yn, chifrou-o e deixou-o) e os filhos. É possível que sim, mas tudo que sabemos sobre Waugh leva a crer que Laura fosse precisamente o que Sykes enfatiza que ela não era, um tapete. Dos filhos sabemos de Auberon, jornalista do New Statesman e do Private Eye, de um humor esplenético que, em geral, me faz bem a saúde. Um anarquista de Direita, coisa rara e, possivelmente, preciosa.

       Tirando Pinfold que é, veladamente, uma autocrítica, em que Waugh se mostra à beira da completa desintegração mental, o gênio dos livros que citei acima é de nos mostrar uma sociedade aristo­crática, totalmente amoral e corrupta entregue às práticas “mais condenáveis” concebíveis, do tráfico de drogas ao de mulheres, e nos convencer que é engraçada, deliciosa e desejável. Há, por certo, sob a narrativa, um desespero ilimitado, que emerge mais fortemen­te em Decline and Fall e A Handful of Dust, tão ilimitado quanto o amoralismo das personagens, que no entretanto, nunca perdem o charme e a espirituosidade. A comédia de maneiras é mantida de maneira implacavelmente antiintelectual, ou seja, nenhum ponto de vista é oferecido. Waugh, o que Sykes não cita, ficou furioso porque Stephen Spender, num ensaio altamente elogioso, descobriu nos romances uma nostalgia das virtudes da classe que satirizava. Ao contrário da maioria dos críticos, acho que Waugh tem toda a razão. Ele era um realista. E a classe dirigente inglesa que retrata era aquela mesma, sempre fora assim. O passado que Waugh queria era o católico, pré-Henry VIII, e aí, sim, ele se derrama em sentimentalismo nostálgico no detestável Brideshead Revisited, onde o herói, Charles Ryder, namorando a filha de uma das mais tradicionais famílias católicas da Inglaterra, no leito de morte do pai da moça, se converte, caindo de joelhos. Edmund Wilson, num ensaio famoso, diz que a impressão que se tem é que Ryder se ajoelha mais pela nobreza antiga da família do que qualquer sentimento religioso. Sykes repudia esse julgamento e lembra que Wilson foi insultadíssimo por Waugh, em Londres, em 1945, que Wilson era anglófobo etc. etc. Tudo perfeito, mas reli a cena e se Wilson escreveu alguma coisa certa na vida foi essa crítica. Daí por diante, com a exceção de Pinfold e, parcial, de The Loved One, a carreira de Waugh degrin­golou. Tentei ler a vida de Santa Helena e de Edmund Campion (um mártir católico inglês) e não consegui passar das primeiras páginas. Não me atrevi a tentar a vida de Ronald Knox, um padre inglês, cuja única distinção na vida foi ter tido um caso platônico, em Eton, com Harold Macmillan, futuro premier inglês, porém inteiramente chegado a mulher. Pinfold é o crack-up, à la Fitzgerald, de Waugh, mas sem a mesma força, porque Fitzgerald, ao contrário de Waugh, não é belicoso, e não trai o menor traço de pena de si próprio, no in­ferno individual que descreve, enquanto que Waugh é gráfico e for­te, porém, em momento algum chega o dito cujo à seringa. Uma verdadeira autocrítica tem de ser pejorativa, e a dele é estranha, o que quiserem, menos isso.

       A sociedade que Waugh descreve, pré-Brideshead, é exata, no sentido de que a classe dirigente da sociedade liberal capitalista ces­sou de ter razão de existir na guerra de 1914. levando com ela essa sociedade, que só se mantém no poder, em muitas partes do mundo, por ditaduras militares, ou falsificações eleitorais (onde há um sur­plus econômico: EUA, Europa Ocidental e Japão), mas que nem mais o mérito da eficiência pela eficiência (Thomas Mann) tem. A crack in the tea cup opens a lane to the land of the dead, notou um contemporâneo de Waugh, Auden, o império terminara, a classe dirigente se convertera numa espécie de Zombie de si própria, e, claro, se entregava ao que os psicanalistas chamam de “auto-gratificação”, o que Waugh satiriza in extremis, mas que, pelos mis­térios de criação da literatura, também glamoriza. Outra gente da idade dele via no marxismo a saída. Que esta, hoje, se tenha re­velado a decrepitude stalinista, ou o regime de jardim de infância de Cuba, é, talvez, motivo de desespero, é certamente a raiz do meu desespero, porém que Waugh fosse buscar no catolicismo, o mais antigo sistema totalitário da História, a panacéia, me parece sumamente ridículo, e mostra a pobreza intelectual do homem, que Sykes, de resto, não esconde. Ele acreditava, por exemplo, na asneira do católico Hilaire Belloc, de que o Banco da Inglaterra dirigiu a derrota de Napoleão (o amor dos católicos por Napoleão é porque ele reconhecera o Vaticano, e não pelo incubo que carregava da Revolução Francesa). Napoleão foi derrotado porque a França não tinha condições de resistir à superioridade industrial da Inglaterra somada aos sacrifícios de carne humana que o feudalismo alemão (prussiano) e russo jogaram contra ele.

       A grandeza da Inglaterra, que Waugh certamente nunca re­negou, se deve, inclusive, em boa parte, ao protestantismo, que Cromwell, mantendo à força e decisivamente, estendeu ao capitalis­mo (The Navegation Act). A Inglaterra, católica, teria sido, talvez, uma Itália, com um clima desagradável. O individualismo protes­tante fez a Inglaterra. Na França, para que emergisse, foi necessária a primeira revolução política do nosso tempo, que quebrasse as cadeias feudais que, na Europa, sempre foram católicas ou a varian­te ortodoxa, do Leste.

       A ignorância de Waugh é fantástica. A melhor explicação que conheço, referente a toda classe social que ele amava, é do primo de Waugh, Claud Cockburn, comunista. Cockburn nota que a estupidez intransigente do gentleman inglês é uma atitude. Se ele pensar, notará logo o absurdo da posição opressiva que exerce sobre a so­ciedade. Melhor falar de cavalos e cachorros que, inclusive, nunca se organizaram em sindicatos.

       Waugh ainda teve o dissabor, no fim da vida (morreu em 1966), de ver a Igreja Católica tentar um contato com a realidade, via João XXIII, quando ele acreditava que os bolcheviques, enfim, haviam penetrado no Vaticano. Restava o gin e olhar pela janela. Não há nada lá fora. Nunca houve. Apenas, hoje, sabemos melhor que em qualquer era.

       A trilogia dele, Sword of Honor, que li na versão unificada (Lit­tle Brown, Co., Boston, 796 págs., $ 8.95), apesar de algumas pas­sagens onde o velho humor reaparece e da criação de uma perso­nagem inesquecível (Apthorpe), é outro desastre católico, no santo e inepto herói, Guy Crouchback, e respectivo pai, este sendo, pos­sivelmente, o que Waugh gostaria de ser, se conhecesse a mais difícil das virtudes católicas, a humildade. A “Espada de Honra” é uma espada de ouro que o Rei George VI enviou a Stalin, pós-batalha de Stalingrado, via Churchill. Waugh considera isso um crime, uma abominação. George VI é quem estava certo. Se não fos­se a URSS, a Inglaterra teria sido invadida pelos nazistas, em 1941, e todas aquelas casas de campo maravilhosas virariam hostels da Raça  Superior (que tem, falando nisso, o mesmo amor por cachorros e cavalos). Tamanha ignorância é insuportável. A descrição que Waugh faz das crianças sujas e proletárias que se instalam no campo aristocrático, em Put Out More Flags, é um acinte, pois as crianças ficaram assim garantindo os rendimentos dos rentiers que ele tanto admirava. Um homem do mal. Um gênio cômico. Abra uma página de Decline and Fali, ou contemple o desfecho de Tony Last, em A Handful of Dust, e você tudo perdoa a Waugh, que dispensaria, claro, a nossa simples existência.

 

             NOSSO CORRESPONDENTE VAI AO CINEMA

       Em minutos de A Clockwork Orange, filme dirigido por Stanley Kubrick dum romance de Anthony Burgess, assistimos a) um bando de deliqüentes espancando um bêbado mendigo e velho; b) a dois estupros, um consumado, mas no outro há um bocado de patolação; no completo, o lider da gang, Malcolm McDowell, corta a roupa da moça com tesoura, surrando-a e ao marido, enquanto canta Singin' in the Rain (ela morre; marido fica entrevado); c) uma briga de quadrilhas de delinqüentes. Como os críticos americanos não can­sam de me informar, Kubrick estiliza ao máximo essas cenas e, além disso, usa partituras “clássicas” para estabelecer distância entre a violência em si e a intenção artística do diretor. Essa história de “dis­tância”, pelo menos hoje em dia, é tirada de Bertolt Brecht. Nunca funcionou com Bertolt Brecht, que é um artista um pouco superior a Kubrick (A Haamm...). Quem não tem piedade de Mãe Coragem, por exemplo, é mulher do padre. Atores que trabalharam sob Brecht depuseram dizendo que nunca ouviram uma palavra dele sobre “épico”, “distância”. Era o velho método de dirigir; “Levanta o dedo sua vaca”; “vai até o fundo do palco, animal”. Mas, perguntem-me, há “distância” no filme de Kubrick? Pra mim, não. Aquilo é um pau firme, uma descarga de fantasias eróticas e sádicas. Melhor feito do que nos pornógrafos do Times Square e tem um propósito, que, porém, não anula o que eu disse sobre a empatia da violência.

       Kubrick mostra a delinqüência, certo? Aí delinqüente é tratado por método behaviorista. Fica imune à tentação da violência, que o faz vomitar. Volta ao mundo “direito”. Aprende que este é tão sór­dido quanto o dos delinqüentes, só que agora não pode reagir. Tenta o suicídio, depois de sofrer o diabo. O governo que patrocinou o behaviorismo se vê acusado de “lavagem cerebral” pela imprensa. Faz um arreglo com o delinqüente. Dá-lhe um cala-a-boca. Na cena final, Malcolm McDowell entrou pro Establishment — delinqüente. Entenderam? Se não, podem tentar o suicídio também. A sátira é transparente e muito bem jogada comercialmente. O sujeito vai ao cinema atrás do pega-para-capar, mas sai de consciência limpa, por­que assistiu a mais um capítulo da decadência do mundo ocidental e cristão. Meninos, isso é puro velho Hollywood, levando verniz diferente. Nos filmes de gangsters, por exemplo, o espectador se identificava com os bandidos matando, sempre no ficús, roubando etc. No desfecho, a Lei vencia. É o mesmo processo adotado por Kubrick, só que ele usa a linguagem do cinema de 1960, décor surreal-futurista (os críticos, no delírio habitual, afirmam que o décor prova a dissolução da cultura na arte pop. Nada disso; prova que Kubrick manjou a cuca meia-confecção dos críticos).

       Em todos os filmes importantes de Kubrick há sempre uma falta de convicções que termina se sobrepondo à inventividade técnica do diretor — nada mais do que razoável, mas muito enérgica, muito americana, go, man, go, man, go! Em Strangelove, por exemplo, o desfecho caía em farsa fácil, depois de 2/3 de comédia satírica im­pecável (hoje, estou convencido de que predominou nas melhores passagens o dedo de Terry Southern). A parte central de 2007 era pura Aeroporto e sem os frissons baratos, bem mais tediosa. E, agora, A Clockwork Orange prova que Kubrick tem muito a dizer, mas nada a declarar. No duro, no duro, acho que Kubrick se auto-retratou no oficial feito por Kirk Douglas em Paths of Glory: ele acha uma injustiça a atitude do Alto Comando, mas continua na guerra.

       Made For Each Other, feitos um para o outro, literalmente (tradução provável no Brasil: Nem só do Pífaro Leiteiro Vive a Mulher) mostra o que acontece quando uma judia de Nova York namora um italiano de Nova York, ou pelo menos a judia e o italiano estereotipados em teatro, cinema etc. Confesso que sou criatura de Valery, que a mim me chatearia tanto como a ele escrever um romance, só porque se tem de pôr no papel “A Duquesa acordou às 4 horas”. O cotidiano, o comum, o normal, a santíssima trindade da chatice. O intelectualismo corrompe, meninos. Me sinto muito mais à vontade no A Clockwork Orange, de Kubrick, que é morfético, do que em Nem só do Pífaro Leiteiro porque Kubrick faja a minha língua, ainda que gaguejante. Depois desse show de modéstia, acrescento que o negócio é agüentar firme o Pífaro. Os autores do script e intérpretes principais, Renée Taylor e Joseph Bologna, acreditam que a patuléia seja interessante. Acabaram me convencendo.

       Eles se encontram numa análise de grupo. Minha companheira de cinema ficou danada porque não é nada assim, disse. Pode ser que não, mas se fosse, ao menos seria moderadamente divertido. O psicanalista, Dr. Furro (pelos nomes das personagens se conhece um talento cômico: ver Dickens, Evelyn Waugh) obriga todo mundo a dizer que é feliz, antes de contar os problemas, porque essa afir­mação, explica, é essencial à cura. Então, as pessoas dizem: “A vida é maravilhosa, sou muito feliz. Agora, o fato é que sou impotente”. E por aí vai. Taylor é como Judy Garland. Uma mãe judia chifrada dia e noite fez dela atriz, cantora, “artista”, em suma, a mãe goza com o talento da filha. Nada dá certo.

       Também não consegue contratos como intérprete. Já Bologna trata as mulheres como um coronel de engenho aos empregados. Nunca teve relação satisfatória. Provoca suicídios etc.

       Terminam os dois no carro do rapaz, fazendo galanteios (o Newspeak PASQUIM). Quando termina o primeiro galanteio (o carro balançou muito durante), a cara de Taylor sugere uma igreja po­lonesa depois de visitada por um Stukka.

       Vivem juntos até que num galanteio ela consegue fazer o que ele sempre faz (o Newspeak exige um bocado de ginástica, meninos). Delírio. Mas, ah, no início tudo são flores. Ele vai ver o show dela num cabaré que deveria ser importado completo para o Rio. Ela imita Marlene Dietrich e outras graças. Acho que aqui o filme foge ao controle do diretor Robert Bean (Pauline Kael, do New Yorker, discorda), porque o que deveria ser horrível-cômico fica só horrível (Kael diz que ela passa muito bem a vontade de agradar. Não senti). Na saída, a pedidos, uma opinião franca do rapaz. “Fedorenta” é a resposta dele. Ela explode de humilhação. Nossa vontade de rir é bloqueada por uma saudável inibição moral. O homem às vezes não pode viver sem piedade.

       Visita à família italiana, imaginem, uma judia, de nome Gold, que conheceu o filho da mãe italiana no Village (equivalente, a levar uma jovem da Geração Realidade à casa de uma TFM). Histeria da mãe: “Se casarem, não irei ao casamento. Se educar os filhos fora da Igreja, uma maldição etc.” O filho da mãe espinafra a mãe. O marido da mãe, idem. Salami, pastrami, minestrone.

       Volta à cidade. Ele não agüenta mais a pressão moral da moça, que subverte tudo que ele é, como filho da família que tem, como carcamano. Ela não dá folga. Ele a insulta, põe para fora do carro. Vai atrás, pede desculpas, ela não aceita, acaba aceitando. Os dois já sabem o que são, podem até tentar viver juntos. Romeu e Julieta desceram aos subúrbios. Há viagens piores.

 

                           A CUCA DE KUBRICK

       Me lembro que em Londres tentei entrevistar Stanley Kubrick via um amigo comum, Jack Braun, ex-jornalista (esteve no Brasil), autor de um livro sobre os Beatles e produtor de cinema. Não deu pé. Braun me explicou que Kubrick fica muito nervoso com a im­prensa. Que quando disse a ele que eu tinha entrevistado Bertrand Russell e Konrad Lorenz, a coisa piorou, e Kubrick disse: “Diz a ele que eu concordo com tudo que eles disseram”. Atenção, massas: is­so é humor, qua, qua.

       Mas, agora, o Mestre falou, e entendi bem porque ele não quis me ver. Fez muito bem. Azar o meu, que prato, meninos. Falou pra um cara do Times, Craig McGregor, muito favorável a ele. Lendo, notei uma coisa em que bobeei quando pedi a entrevista a Braun (minha conversa com Braun foi no primeiro bar inglês que tinha gelo suficiente). Braun me perguntou o que eu achava dos filmes de Kubrick. Eu, com a franqueza certa no momento errado, disse que não achava grande coisa, mas que, sendo a inteligência dos editores o que é, uma matéria sobre ele, Kubrick, era facilmente vendável, e eu escrevo por dinheiro. Não sei se Braun me cagoetou, mas, afinal, e amigo íntimo de Kubrick, e ainda que a minha matéria fosse pu­blicada em Queimada e eu um total desconhecido, o mercado de cinema dos EUA é hoje 60% no exterior.

       Kubrick a McGregor: “2001 dá uma idéia dos meus interesses metafísicos”. Atenção, massas: isso não é humor. O cara está falan­do a sério. Quanto renderão ao ano esses interesses metafísicos, per­gunto eu? 12%? A melhor crítica de 2001 é de Renata Adler, que resumo: “fica entre o hipnótico e o tremendamente chato”. Mas o Mestre diz mais: “Eu ficaria muito surpreso se o universo não esti­vesse permeado de uma inteligência que para nós parece divina. Acho emocionante ter uma crença semi-lógica de que existe muita coisa no universo que não entendemos, e de que há uma inteligência de incrível magnitude fora da terra”. Desde que Sócrates disse a Alcebíades: “Rapaz, você vai acabar mal”, não ouço coisa tão profun­da. E isso tudo em 2001, imagine só, Hedda.

       Mas o motivo real da entrevista do Mestre é A Clockwork Oran­ge, filme que vocês provavelmente não vão ver. Os críticos aqui se babaram. Kubrick nunca teve nos EUA sucesso maior de crítica. Mas há um certo mal-estar, pequenino e enganador, no ar. Kubrick foi capa de Newsweeíc e Saturday Review, o que é ótimo, do ponto de vista publicitário. Peso intelectual: 0,5, se tanto. E o Mestre é um Ar­tista. Pauline Kael, o crítico de cinema mais instruído dos EUA, des­ceu a lenha. Kubrick sabe que daqui a alguns anos, ninguém mais se lembrará das capas de Newsweek etc., mas que a opinião de gente como Miss Kael tende a perdurar. Miss Kael levou quase um mês depois da estréia para escrever, provavelmente caprichando para tomar uma posição que ia contra um filme que quase todo mundo estava saudando como “sátira satânica”. Eu próprio, que mandei minha primeira crítica depois da estréia pra Tribuna da Imprensa, tive aquela sensação que todo crítico auto-suficiente tem, nesses casos: “Será que estou maluco, ou eles”? Resolvi que eram eles. Porque A Clockwork Oran­ge é uma exploração e um apelo comercial ao sadismo, que pretende ser uma crítica satírica à sociedade e à na­tureza humana. Ou, como diz o Mestre: “O homem não é um sel­vagem nobre, é um selvagem ignóbil. É irracional, brutal, fraco, tolo, incapaz de ser objetivo quando os interesses dele estão envol­vidos. Estou interessado na natureza brutal e violenta do homem, porque é um retrato verdadeiro dele. E qualquer tentativa de criar instituições sociais com uma visão falsa da natureza do homem está provavelmente condenada ao fracasso”. Kubrick, que é judeu, diz que isso ele extraiu da teologia cristã. Protesto, massas. Até o pobre McGregor nota que isso é maniqueísmo e não cristianismo. E até o pobre McGregor está enganado. Maniqueu era bem mais sutil.

       Tirando o “provavelmente”, o resto da fala do Mestre é pura adolescência e leituras mal digeridas. Um debatedor de ginásio, per­guntaria logo: “Está bom. Se a natureza do homem é isso que você diz, como é que você homem (ou será marciano?), pode apresentar um retrato verdadeiro dele? E os teus interesses pessoais, boneca? Ou só o Mestre Kubrick é imune?”

       Mas, a sério, a teologia cristã, ética, falando nisso, seria a melhor palavra, teologia é outra coisa, a ética reconhece que o homem é falível e corrupto, mas reconhece também que ele pode melhorar, se tiver valores que transcendam os próprios apetites. É um troço complicadíssimo, sujeito a chuvas e trovoadas. Porque Kubrick quer dizer: “Se o estupro é inevitável etc. etc.” Ele está aderindo a aqueles que são os violentos e corruptos, em vez de analisá-los e enfrentá-los. E não é preciso conhecer muito as diversas dialéticas para perceber que nunca, na História, houve linhas retas. A crença na linha reta é coisa de criança, ou de adulto intelectual­mente atrofiado, como o Mestre. Os EUA, por exemplo, não fazem tudo que querem no Vietnam, nem dentro dos EUA. Citei logo o exemplo clichê-padrão, mas é mesmo o melhor. Logo, a violência é resistível, provoca a contraviolência. Civilização é o que sobra do choque.

       E que instituições são essas que têm “visão falsa do homem” a que Kubrick se refere? Novamente a historiadas linhas retas. Kubrick, sem dizer expressamente, está falando da juventude universitária americana. Abro um parêntese para assinalar que nunca pensei que o Movimento tivesse tanto prestígio. Meço o prestígio pelo ódio que desperta. Não há liberal da velha guarda aqui que não odeie — a palavra certa — esses jovens. Se ofendem com tudo que os moços fazem, da subcultura do rock e quejandos, das inalações não bem de Kaufman, da agressividade com que arrebentam alguns laboratórios universitários, usados para planejar estratégias de bombardeios no Vietnam (“A morte chovendo dos céus”, na fase do analista Ithiel de Sola Pool, da M.I.T.), ou para produzir pesticidas, herbicidas etc, que, na verdade, são humanicidas. Engraçado (pois sim) que os tais li­berais suportam perfeitamente a violência sistemática do Estado em que vivem, incomparavelmente superiora dos jovens. Claro, a violên­cia do Estado não lhes quebra os potes de creme. Os jovens, certo — notei, meninos — também são partidários das linhas retas, mas o que eles fazem ou são me parece muito menos ofensivo do que a adesão da maioria do Establishment intelectual à Guerra Fria até 1967-8, quando os Schlesingers e Cia., ao verificarem o fracasso americano no Vietnam, e o que estava provocando internamente no país — ameaçando uma desagregação que poderia prejudicar o status de Schlesingers e Cia., entre outras coisas — começaram a se opor à guerra.

       Mas Kubrick, que apresenta o jovem (não é acidental) delin­qüente como o paradigma social, não entende Ihufas de sociedade, nunca nos diz o que é um delinqüente, ou até o que é o delinqüente específico dele. Só vemos o tipo em ação. O filme se passa num vago “futuro”. Ou seja, é um vácuo social.

       Kubrick diz que reagimos a Alex, a personagem, porque nos identificamos com ele. No que me concerne, nucopardoca. Eu pra me identificar com alguém, preciso saber o que pensa. Alex, Kubrick, não pensa. E estamos conversados.

 

       Cenas: quando Oscar Wilde foi perseguido por croquetagem, Frank Harris preparou um manifesto em defesa e pediu a Bernard Shaw que assinasse. Shaw disse não, alegando que o nome dele só criaria maiores problemas para Wilde. Harris achou covardia. Análise: Shaw, na época, era tido como “perigoso radical” e agitava pelo socialismo, em pessoa & panfletos. A Rainha Vitória continuava viva. Harris morreu antes de terminar uma biografia de Shaw, atacando-o. Shaw corrigiu as provas finais e escreveu um epílogo muito simpático a Harris.

       Na guerra de 1914, Shaw lançou um panfleto, Common Sense About the War, mostrando que Inglaterra (“aliados”) e Alemanha serviam a propósitos imperialistas e capitalistas, mas que, dito isso, preferia uma vitória inglesa. Edmund Wilson acusa-o, em The Triple Thinkers, de “acomodação”. Uma pergunta e um comentário: você, meu caro leitor, em face do mesmo problema, o que faria ? Favorece­ria o Kaiser? Ou se tornaria pacifista, à la Bertrand Russell? Suponha­mos que Russell “vencesse”, e os ingleses baixassem as armas (três pontos, em verdade). O comentário: Wilson, em 1938 (data dos Triple Thinkers), acreditava que guerras eram sórdidas maquinações in­glesas que bebiam o sangue e o capital dos EUA. Wilson só mudou essa opinião pitoresca em 1963.

       Shaw apoiou Hitler, Mussolini e Stalin. Detestava o anti-semitismo de Hitler e previu que acabaria destruindo-o. Nunca acreditou que Trotsky fosse o vilão da literatura stalinista, ou que Stalin não passasse do bandido da literatura trotsquista. No mais, achava que os três cavalheiros eram revolucionários modernizadores do liberalismo podre e falso da Europa.

       Bernard Shaw foi o grande amor da minha adolescência. Es­colhi-o como tema do 300° número deste jornal porque Shaw é o humorista número uno (sem acento no “u”, fazendo o favor) da nos­sa fuckedup era e porque sei que ninguém mais se lembrará dele, logo, honra ao mérito. Reconheço o meu caretismo em falar de Shaw porque ele é um intelectual e nóis tem Berre, beatles, help, o rock horror show, motocicletas, surf (planchar, me dizem), Kojack, a teoria do auteur e, claro, Guttenberg já era, e Allan Bullock en­cabeçou uma comissão analisando porque a maioria dos univer­sitários em Oxford não sabe ler ou escrever. Quando William Archer conheceu Shaw na sala de leitura do Museu Britânico o distinto lia, alternadamente, O Capital, de Marx, e a partitura de Tristão e Isolda, de Wagner, uma combinação hemorrágica, de que estamos, feliz­mente, livres. Para sempre, gu, gu, gu.

       E, no entretanto, abram qualquer página, de um prefácio que seja. Jacques Barzun notou numa única 80 referências diferentes. E, acrescento eu, é quase sempre de morrer de rir. Na defesa que faz do stalinismo, ele nos dá uma versão hilariante de como a imprensa inglesa, controlada por meia dúzia de piratas, molda a opinião pública a serviço dos interesses da plutocracia, falsificando fatos, acontecimentos etc., com a mesma alegria que encontramos nas páginas de Pravda. Nada disso é novo, claro, mas Shaw deu um estilo, um humor, uma clareza (acessível a qualquer ginasiano não totalmente estupidificado por hash ou David Bowie), uma amplitude a essa crítica de que nunca existiu, ou existe, paralelo. Nada escapou à visão dele.

       Já sei, vocês querem que eu explique a defesa de Hitler, Mus­solini e Stalin. Edmund Wilson subiu pelas paredes e não foi o único. Até admiradores extremados, Eric Bentley etc, consideram um baixo. Eu acho coerente. Nas peças, Shaw sempre apresenta todas as opiniões por igual. Em Major Barbara, um “mercador da morte”, um fabricante de munições, Undershaft, faz uma defesa do capitalismo de que nenhum capitalista que conheço é ou foi capaz. Os inqui­sidores de Santa Joana se saem muito bem, lógica e historicamente. Quando Shaw saiu pró-Hitler, Mussolini e Stalin, o mundo estava na Grande Depressão, o capitalismo-liberal deteriorava sobre o cadáver-em-vida de milhões de desempregados e miseráveis e, obs­tinadamente, os donos da bola, se recusavam sequer a reformá-lo. É “bem” horrorizar-se com os fornos crematórios de Hitler e os expur­gos de Stalin, agora permanece inconvencional notar que a mani­pulação de preços de fertilizantes na índia pela familia Rockefeller via o Departamento de Estado tem o mesmo efeito sobre dezenas de milhões de pessoas. Shaw não caía nessa.

       Shaw percebeu os elementos modernizadores do fascismo. Há alguns meses atrás, li um ensaio de Geoffrey Barraclough, onde ele diz o mesmo, repudiando versões liberais do nazismo (cujo fim da linha é o cinema de Hollywood, “a mente diabólica de Adolf Hittler” etc). Shaw percebeu Adolf Hitler em 1934, os historiadores conven­cionais a partir de Origens da II Guera Mundial, de A.J.P. Taylor, atacadíssimo na época, hoje rotina.

       Não se trata de justificar os crimes abomináveis (OK, o clichê esperado) de Stalin, Hitler ou Mussolini (este muito superestimado em criminalidade), e Shaw, claro, morto em 1950, não pegou as pes­quisas de que nos beneficiamos na década de 1960: Os liberais, porém, que atacavam o führer, na década de 1930, o duce e o “guia genial das massas”, porque antilibertários e homicidas, não salvam da indignação o tratamento dado pelo Império Britânico aos súditos ou as devastações do capitalismo americano, capitalismo este que, ao contrário do desdentado leão inglês, ao sentir-se ameaçado, nos deu e nos dá o Vietnam, Camboja, Pinochet, Franco, Suharto etc. etc, que “nada ficam a dever” ao nazismo ou stalinismo. É até argumentável que ser posto num forno crematório “doi menos” do que morrer de fome durante 10 anos.

       A crítica possível a Shaw é que ele deveria ser individualmente contra toda a espécie de desumanidade, lixando-se para sistemas ou “visões a longo prazo”. Shaw, porém, era um racionalista, um salvacionista sistemático, e não um humanista à la Simone Weil, que chorava as desgraças do mundo. Shaw trouxe ao Século XX, com brilho incomparável, a tradição do iluminismo do Século XVIII. Acreditava na vida. Aos que desistiram, ele é, compreensivelmente, intolerável. Os verdadeiros anti-Shaw são Pinter e Beckett. Talvez sejamos aquilo que eles dizem, o que não é muito agradável, agora eu prefiro o mundo de Shaw ao de Henry Kissinger, este o “livre”, imundo.

       E nada disso nos impede de gozar o homem que escreveu Cinderela e a fonética (vulgo My Fair Lady), que estabeleceu a perfeita relação entre o careta e o não careta (Candida), que trouxe Joana D'Arc à terra, dando-nos uma aula sobre nacionalismo, feudalismo, inspiração e mediocridade que não se aprende no colégio, ou que deduziu, sempre comicamente, que o fim de uma classe dirigente não é o lamento, à la Chekov ou Eliot, e, sim, a bomba (Heartbreak House, grande sucesso do Old Vic, em Londres, quando escrevo), que nos ensinou, críticos de teatro, a diferença entre ator e estrelai que nos revelou Oscar Wilde (bobeando apenas e feio em The Im­portance of Being Earnest), o arauto de Wagner, Ibsen e de um fe­minismo inteligente (sem sucessores). E até os religiosos podem aprender. Desconheço versão mais satisfatória do Novo Testamento do que o prefácio de Androcles and the Lion. Se é falsa, o que são as outras?

       Parte da implicância contra Shaw em círculos alfabetizados é explicável pelo humor dele. Nada ofende tanto aos pomposos se­nhores da terra como o humor, de Platão em diante (Platão queria banir os poetas da República porque Aristófanes o ridicularizava). Essa gente quer ser tomada a sério, “seu”, o Brezhnev cara de porco, o AE na Casa Branca, os cavalheiros de penduricalhos.

       Shaw era humano o bastante para colocar-lhe na boca pensa­mentos expressos articuladamente — o que é excesso de generosida­de, no meu entender — mas ria deles, virava-lhes as pretensões ao avesso. E os críticos insistem em chamá-lo de “olímpico”, inumano, haverá coisa mais ridícula? Shaw fez muito em tratar-nos como seres racionais.

       Se a vaca vai mesmo para o brejo, Shaw ao menos puxou o rabo da bicha.

 

                   BOMBA, BOMBA, BOBAGEM

       Todo dia “útil”, depois do almoço, digiro meu burger numa livraria. É um vício caro. Comprei livros faz quase dois anos de que não li nem a orelha. E é bastante raro, hoje, eu ler um livro inteiro. Precisa ser um Wilson (Edmund) ou Auden, por prazer, ou algo que preciso profissionalmente (de Marcuse a Harrison Salisbury, diga­mos). Pulo praça, na maioria. Todo livro pode ser reduzido em 50%, na minha opinião, e mesmo os melhores, em média só são legíveis em 20%. Debussy ouvia os leitmotivs de Wagner e dizia: “Vamos embora que ele vai começar a desenvolver”. Certo. Uma das minhas grandes dificuldades com romances é o negócio das descrições de ambientes. Não é que eu prefira o visualismo (passivo, objetal) que o cinema ou TV impõem ao espectador. É que não me interesso pela casa das pessoas. Havendo uma poltrona que agüente meu peso e tédio, ar condicionado, álcool e gelo, dou-me por satisfeito.

       Se eu não esculhambasse fisicamente a maioria dos meus livros diria até que sou um bibliófilo. Gosto de livro novo, do papel, do tipo, daquele barulhinho que faz quando abre. E o primeiro pará­grafo é sempre o maior barato. Tenho a impressão de que, enfim, vou encontrar a verdade. No segundo parágrafo, já sei que não, mas, que diabo, o importante é competir.

       Conhecimento, cultura e quejandos me parecem uma vastís­sima perda de tempo. Coce a barriga e medite. E o que acumulei em mformações inúteis não é normal. Um exemplo: conheço duas moças que acham “Tristão e Isolda” o máximo, cantarolam, falam “que amor” etc. Fui com uma delas ver “Ludwig”, de Luchino Visconti, onde partes de “Tristão”e outras de Wagner (e Schumann) são audíveis e, a meu ver, tornam supérflua a bicharocagem de estufa da D. Luchina. O filme é chatíssimo, mas seria bem menos chato para mim se Visconti, ao menos, contasse a história direito. Wagner, em­bora não se saiba muitos detalhes, passava manteiga nos dois lados da torrada. Há quem diga até que não escapava vegetal. Bem, as datas não coincidem exatamente, entre ópera e vida, mas parece que houve um triângulo na Bavária, entre Ludwig, Wagner e um cer­to príncipe Paul. E, em Tristão, o que as duas moças faladas igno­ram, há também um triângulo Mark-Melot — Tristan. A última palavra que Melot diz, antes de morrer, é “Tristão”. No famoso en­contro Mark, Tristão e Isolda, Mark “corta” completamente Isolda (com quem ele deveria se casar) e espinafra Tristão. E, notem, o amor de Tristão & Isolda é exclusivamente na base do afrodisíaco, a cantáride da época. Era de se imaginar que dado o gosto de Visconti ele explorasse isso no filme. Não há uma palavra ou a mais leve sugestão. Claro, minha informação é inteiramente inútil e não influi sobre se você gosta ou não” de “Tristão e Isolda”, ou de ópera. Mas revela Visconti como um cretino à la Joseph Losey.

 

                   OS ROSENBERGS

       Otto Preminger está filmando, ou já filmou, o caso dos Rosen­bergs, Julius e Ethel que, em 1953, foram eletrocutados por passarem os “segredos” da bomba atômica aos russos. Os PCs, na época, or­ganizaram as “espontâneas” de praxe e, além disso, muita gente boa duvidou da culpa deles. Não sei como Preminger vai tratar o assunto (as indicações não são boas. Preminger é bem liberal, mas o script é de Paul Nizer, chicanista e débil mental). De qualquer maneira foi a chamada cause célebre, trazendo memórias de Dreyfus, Sacco-Vanzetti, Alan Bates e outros.

       Nunca tive a menor dúvida da inocência dos Rosenbergs e agora me vejo confirmado (se bem que por motivos diferentes) por “In­vitation to an Inquest”, de Walter e Miriam Schneir (Penguim, 487 págs., $ 2,95).

       Os Schneirs demonstram que todo o caso do governo se baseou em acusações de outros supostos espiões, Harry Gold, David Green-glass, etc. Nenhuma evidência de espionagem, exceto um desenho da bomba (que o advogado de defesa, Emanuel Bloch, pediu ao juiz que mantivesse em segredo do júri por causa da segurança nacional. Há! Há! Há!), que, examinado posteriormente por cientistas, foi declarado falso. Os Schneirs acusam o FBI de ter forjado um cartão de assinatura (de Harry Gold, o maior delator) num hotel. O FBI, até hoje, não respondeu, faz de conta que não é com ele. Herbert L. Packer e Leonard Boudin, dois luminares jurídicos americanos, dão crédito ao ataque legal dos Schneirs ao governo e pediram um in­quérito parlamentar. Não vai dar nada.

       Confissão ou acusação, ao contrário da lenda, não é evidência, principalmente se as vítimas exigirem que sejam corroboradas. Ethel e Julius se disseram inocentes até o fim, negando o que Gold e Greenglass (irmão de Ethel) diziam deles. Nos expurgos na URSS, entre 1934-38, a “velha guarda” bolchevique, de Zinoviev a Bukharin, também foi condenada sem provas, só na base da auto-incriminação, arrancada a vara. Sempre que os promotores de Stalin tentavam exibir provas, eram desmentidos no exterior, conclusivamente. Na época da polícia secreta, da tortura institucionalizada, ninguém leva a sério confissões de culpa.

       Isso, o argumento dos leguleios. Os meus são mais simples. Primeiro, o fato de que não há segredo da bomba atômica. Desde que foi descoberto o princípio da fissão (partir), do átomo, da dé­cada de 20, qualquer nação com capacidade industrial pode pro­duzi-la. Oppenheimer, Szilard e outros “pais” dela, em 1945, quan­do os EUA tinham o monopólio, avisaram que a URSS estaria na jogada dentro de 5 anos. Erraram por um ano. A primeira explosão soviética ocorreu em 1949. Comicamente, em 1945, os militares americanos se recusaram a acreditar nesses cientistas, duvidando da capacidade industrial soviética. Ou seja, entendiam mais do assunto do que os caras que fizeram a bomba. Não há salvação, certo?

       Claro, a URSS não se incomodaria de apressar a feitura da bom­ba, espionando os americanos. Klaus Fuchs, cientista brilhante, a serviço dos ingleses, deu informações à espionagem soviética. Pegou 15 anos de cadeia e se já não morreu está na Alemanha Orien­tal. Mas duvido que a URSS contratasse os Rosenbergs. Porque eram comunistas. Nenhuma contradição. O comunista manjado, nos EUA, no Brasil, ou onde for no mundo capitalista, é o pior espião possível, pois a polícia está sempre de olho nele (sem falar do des­prezo que os soviéticos têm pelos comunistas de outros países). E Ethel e Julius eram aquele tipo de comunista chato, que nunca tira folga. Onde quer que esteja, prega. E as conversas que supostamente tiveram com os outros “conspiradores”, Gold e Greenglass, sugerem uma versão Cinédia de James Bond. “Você precisa me arranjar um desenho da bomba atômica”, teria Julius dito a David, num jantar. Entra aqui, presumo, a orquestra de Guerra Peixe. E a todo momento usam a palavra “espionagem”, que espião algum jamais emprega. Ethel, então, só falta dizer às amigas, no telefone: “Oba, tudo bem? Hoje, David nos trouxe uns desenhos de umas lentes da Bomba. É, vamos dar aos soviéticos. Beijão”.

       E há também o chamado lado humano. O governo ofereceu a vida a Ethel e Julius, se confessassem. Eisenhower, presidente, deixou uma linha aberta para Sing Sing. Eles preferiram morrer. Não sei, não, há, certo, a possibilidade de mais um serviço à causa, mas a vidinha da gente é uma só. E me parece sinistro que o governo de qualquer país coaja alguém a confessar, sob ameaça de morte.

       Só não perdôo aos Rosenbergs as cartas bocós que escreveram um ao outro, à espera da morte. Não sei porque, tenho a impressão de que esse será o aspecto mais explorado do caso no filme de Preminger. Ethel e Julius morreram no ápice da histeria anticomunis­ta aqui, em plena guerra da Coréia, em pleno Joe McCarthy. Ser­viram à teoria conspiratória da História, que continua a ser a opinião popular do que acontece no mundo. Saudades do demônio. Im­becilidade irrecuperável.

 

                       E OUTROS

       Suponhamos que amanhã Leonid Brezhnev avisasse a Nixon que a URSS não venderia gás natural (que os americanos precisam como eu de dinheiro) aos EÜA, enquanto os negros americanos não obtivessem igualdade de oportunidade. Estaria todo mundo aqui berrando contra a “intervenção estrangeira em nossos assuntos”. Mas todo americano é paranóico até prova em contrário e, assim, a imprensa local acha muito justo que o Senado queira impedir ne­gócios americano-soviéticos, enquanto Brezhnev não permitir a imigração de judeus soviéticos para Israel, sem que estes paguem.

       Se Brezhnev topar, a meu ver, cai. Afinal, onde estamos em que um sub-Estado militarista como Israel vá ditar a política soviética? Brezhnev, bem entendido, já ofereceu a Washington a imigração dos judeus desde que não se estabelecessem em Israel. Isso os israelenses vetaram. Querem é gente que preencha as terras que tomaram dos árabes. Não ligam a mínima aos sofrimentos dos ju­deus na Rumânia, por exemplo, porque esta mantém boas relações com Israel.

       E os americanos? É levável a sério o humanitarismo deles? Onde está a pressão do Senado contra negócios vis-à-vis Grécia, Filipinas, Espanha, Portugal e etc. etal. A maioria das ditaduras nesses lugares não se agüentaria se não fosse a conivência dos EUA. E os cidadãos dos ditos passam tão mal ou pior que os judeus soviéticos.

       Israel, diga-se de passagem, nunca existiria se EUA e Inglaterra não tivessem “fechado acintosamente as portas aos judeus sobre­viventes de Hitler, depois da II Guerra. O sionismo sempre foi impopularíssimo entre os judeus. Só ganhou força quando estes não tinham aonde ir. E o sionismo continua, a meu ver, um fracasso. A maioria esmagadora dos judeus prefere continuar no Ocidente e mitigando o sentimento de culpa fazendo propaganda, coletando fundos etc, pró-Israel. Daí a necessidade de recolher “braços para a lavoura” na URSS, onde o anti-semitismo é tal que os nativos topam tudo desde que se safem do socialismo da polícia secreta, dos cam­pos de trabalhos forçados etc. O “sionista” no Ocidente eqüivale ao esquerdista que acha a URSS e China duas maravilhas, desde que não tenha de viver em nenhuma das duas.

       Quero deixar bastante claro que considero a “taxa de imigra­ção” soviética mais uma entre mil obscenidades dos burocratas corruptos e decrépitos que dirigem a URSS. Num país civilizado o cidadão tem o direito de ir aonde bem entender. Agora, a interferên­cia americana é safada, hipócrita e ridícula. Em troca, dariam a Brezhnev o que chamam aqui status de “nação muito favorecida”, no comércio. Sabem o que isso significa? O direito de comerciar com os EUA sob as tarifas normais. Os dirigentes americanos con­sideram um favor o comércio em que eles próprios também lucram, naturalmente.

       A ação do Senado exemplifica o poder do lobby sionista nos EUA. Lobby que financia eleições de muitos senadores “liberais”. Há outros motivos: o líder da campanha, Henry Jackson, é agente da Boeing, a qual teme a competição da aeronáutica soviética no III Mundo. Jackson, anticomunista feroz, propôs reconhecimento imediato de Pequim, dias depois que a Boeing iniciou negócios para a venda de dez 707s aos chineses.

       Nixon quer refugar a pressão do “Senado”. Mas no caso enfrenta gente tão desinibida como ele. E se insistir, virará anti-semita. Gastão explica.

 

                       ASSASSINATOS

       Em 1921, houve um motim de marinheiros na fortaleza naval Kronstadt, na Rússia. Os bolcheviques mandaram eles pararem. Negativo. Trotsky, o comissário da guerra, deu ordem de massacrá-los. Positivo. Tukhachevsky, o general encarregado do massacre, diz que os marinheiros lutaram como animais. Os animais sobreviventes foram fuzilados por Dzerzhinsky, o chefe da Cheka, polícia secreta, depois de torturá-los para que confessassem ser agentes dos “Bran­cos”. Não confessaram. Não eram.

       Não há comuna, simpatizante, dissidente, ou mero estudioso da Revolução Soviética que desconheça a importância desse epi­sódio na história do comunismo. A fortaleza era um alto símbolo revolucionário. Já em 1823, quando um grupo de oficiais aristocratas se revoltou contra o tzarismo, o líder do movimento (“Decembrista”) foi um oficial de Kronstadt. Na revolução de 1905, estendendo-se a 1906, os marinheiros estavam em todas (massacrados). Em 1917, o cruzador Aurora de Kronstadt (até hoje exposto em Leningrado) deu os tiros (pólvora seca, mas ninguém sabia) que garantiram a tomada do palácio do Inverno do tzar e de Kerensky. Em fevereiro de 1917, na “revolução burguesa”, os marinheiros mandaram os burgueses à etc., e proclamaram a República (socialista) de Kronstadt. Em julho, se rebelaram de novo, ao lado dos bolcheviques. Em 1919, sob bom­bardeio aéreo dos “Brancos”, os marinheiros ajudaram a repelir a ofensiva do general reacionário Yudenich contra Leningrado, Tro­tsky, nesse período não podia, literalmente, andar dentro da fortale­za. Era carregado em triunfo pelos marinheiros. Em 1921, matou-os.

       Não ele sozinho, claro. A decisão foi coletiva, do Politburo. E apoiada inclusive por comunistas dissidentes, do tipo Victor Serge, que pegaram armas (alguns chorando) contra os marinheiros. Estes queriam dois luxo? principalmente: pão e liberdade. Deitaram e deixaram manifesto. Não entendiam a lógica tirânica dos bolche­viques. Permitir liberdade (pão não havia) naquele momento, di­ziam Lenin, Trotsky e Cia. destruiria a revolução.

       Ainda assim o trauma foi geral. Na frase de Lenin, “um clarão que iluminou a cena toda”. Em seguida ao Kronstadt, Lenin decretou a Nova Política Econômica, aliviando as restrições do “comunismo de guerra” e estabelecendo uma razoável concórdia entre as classes, que durou até 1929. Comunistas manjam muito de símbolos. Sabiam muito bem que a História poderia identificá-los como mais um grupo de autocratas que massacrara os libertários do Kronstadt. Quiseram apagar a impressão. No que me concerne, o júri ainda não voltou das deliberações.

       Em 1940, 79 anos depois, Trotsky numa polêmica memorável com seguidores em Nova York (“A Nossa Moral e a Deles”), defen­deu o ato de 1921. No filme de Joseph Losey, Richard Burton, de colete, dita a um secretário a história do Kronstadt: “Há 17 anos etc.” Ou seja, Kronstadt foi transferido para 1923. Um cavalheiro próximo de mim, comentou: “'Why, the motherfucker can't even get the dates straight”. Tenho dito, Burton, juro, ainda faz o andar trôpego de velho que era a nossa especialidade no Teatro de Estu­dante do Brasil, circa 1952. Sempre que pode, dá um tapinha amigo em Natasha Sedova (Valentina Cortese), a mulher dele, que sorri emocionada. Vocês manjam, não? A “mulher do gênio” das bios Hollywood, sempre sorridente, sorridentemente servindo café, curando (juro: Oh cursed spite!) o que parece ser uma dor de barriga de Trotsky-Burton, a eterna disponível, sem benefício de Kafka. Acontece que a Natasha em questão era membra do PC também desde 1902 (no mínimo) e ocupou posições (menores) no governo soviético em 1917, onde fazia algo mais que servir bolinhos às vi­sitas. E Trotsky-Burton, falando a um secretário-guarda-costas, Shel­don Harte (no filme, “Hart”), declara, de olhos flamantes: “Nós ven­ceremos”. Comunista não fala assim e “assim” sem música de Max Steiner não vale. E precisa também, no mínimo, de uma aurorazinha que indique o “feliz” futuro trotsquista.

       Por que fizeram esse filme? O diretor é um certo Joseph Losey, que teve de deixar Hollywood, na década de 1950, sob o “macartismo”, porque era stalinista. Olha aí, até que o McCarthy não era de todo ruim, hem? Losey, hoje, falando nisso, não é nada. Apenas um decadente.

       O assassinato, propriamente dito: Sylvia Agelof, um bacalhau trotsquista, apaixonou-se por um tal de Frank Jacson, vulgo Jacques Mornard, que se chamava mesmo Ramon Mercader. Sylvia, no fil­me, é Romy Schneider, o que eqüivale a pôrCandice Bergen numa das irmãs bagaço de Cinderela. Mercader se fazia de apolítico, dizendo trabalhar em exportação-importação. Boa pinta, mantinha Sylvia pela cama. Losey faz Mercader (Alain Delon) ser mestre em brochurex. Vocês sabem como é que é, o sentimento de culpa que os assassinos sempre têm, ao menos na psicanálise de Reader's Digest. E, quando o agarram, Mercader berra: “Mamãe!” Manjaram? Fixado na mãe (dele). Estamos em Hollywood, em que o exilado Joseph Losey nunca deixou de habitar mentalmente. Mercader, sem dúvida, ficou nervoso antes e durante o crime. O motivo, que não parece ocorrer a ninguém (no que incluo estudiosos bem acima do meio fio intelectual de Losey), me parece simples: Mercader estava com medo de morrer. Trotsky vivia numa casa-fortaleza em Coyoacan, México, da qual raramente arredava pé (Losey faz Trotsky circular na cidade do México, mudança de ambiente, sentiram?). Os guarda-costas dele, jovens trotsquistas americanos, tinham ordens de atirar para matar. Mercader entrou sozinho na casa. Haja etc.

       Quem era Mercader? Bem, ganhou a Ordem de Herói da União Soviética, a maior condecoração comunista. Quando espancado pelos guarda-costas de Trotsky, berrou: “Eles pegaram minha mãe” (Caridad, comunista profissional, condecorada com a Ordem de Lênin. Ninguém “pegou” a madama). Alguns especialistas espe­culam que ele fosse um mero assassino da CPU (Cheka, segunda geração). Era mais. Pertencia, provavelmente, à “Esquadra Móvel Especial”, eufemismo para um grupo escolhidíssimo de gangsters a serviço pessoal de Béria, Poskrebyshev (um general fâmulo de Stálin) e de Stálin. O fichinha psicótico do filme (e outras versões menores) é puramente mítico. Mercader agüentou 20 anos de cadeia (pena máxima no México, na época) sempre se dizendo um trotsquista desiludido. Solto, visitou Caridad em Cuba e depois sumiu atrás da “Cortina”, onde, hoje, deve ser coronel da KGB (Cheka, quarta geração). Dou esses detalhes todos porque se vocês virem o filme não entenderão nada da personalidade de Mercader, apesar de Alain Delon, um bom ator, sugerir aspectos da personagem que inexistem no script.

       Trotsky foi novamente assassinado por Losey & asseclas. Burton parece um executivo em férias. A culpa não é dele, toda ao menos. Numa entrevista à Saturday Review, Losey conta que, pesquisando a vida de Trotsky, descobriu que este, perseguido violentamente pelo stalinismo, ainda pregava, em 1940 (sob o pacto nazi-soviético), a “defesa incondicional da URSS”. Essa informação está em qualquer dos 200 mil livros e artigos sobre o assunto. Mas Losey é um diretor de Hollywood, um analfabeto, e logicamente é incapaz de conferir ao filme a identidade (muito, muito complexa) cultural de Trotsky. E o pior é que há cenas idênticas à realidade. Numa passagem do diário de Trotsky ele se reserva o direito de suicidar-se caso fique in­válido (sofria de pressão alta, tinha 61 anos). Quando está escreven­do isso, Natasha abre a janela do estúdio dele, e Trotsky descreve de maneira simples e eloqüente o amor pela companheira de 38 anos. Burton lê essa passagem como se fosse um locutor da BBC anuncian­do um golpe militar na Nagalândia;

       Burton é um grande ator e poderia ser Trotsky no cinema. Mas Burton não trabalha desde Virginia Woolf. Passeia pelos filmes dan­do a impressão de que não foi apresentado aos outros intérpretes, como notou Penelope Cilliat. Numa entrevista ao Sunday Times confessou-se derrotado pela imbecilidade dos scripts que interpreta. Nisso, pelo menos, estamos de pleno acordo.

 

                         ASSASSINOS

       Foi lendo e gostando de The Crime of the Century, de Hal Higdon (Putnam, Nova York, 380 págs., $ 10), que admirei em toda a dimensão o In Cold Blood, de Truman Capote (A Sangue Frio, Nova Fronteira Rio), O crime de Higdon é muito melhor do que o de Capote, este cometido contra gente banal. As implicações intelec­tuais de Leopold e Loeb, dois quase gênios, que, menores de idade ainda, assassinaram por esporte um menino, nem existem na obra de Capote, que se limita a uma exposição algo mecânica de lugares comuns psicanalíticos. E, no entanto, Capote faz do dia a dia da família assassinada, da polícia e dos criminosos uma leitura compul­siva, obrigando-nos a nos interessar por essa gente, a quem nem olharíamos na rua, como seres humanos, enquanto que Higdon, dis­pondo das mentes complexas de Loeb e Leopold, sem falar da do advogado de defesa, Clarence Darrow, que os salvou da forca, não sai do nível de uma boa reportagem.

       O assassino que mata por paixão pode ser fascinante, e Dostoiewsky extraiu o máximo do tema. O assassino burocrata, nazista ou stalinista, encontrou vários autores. Eu recomendaria, em es­pecial, Eichmann in Jerusalem, de Hannah Arendt (Viking, 312 págs., $ 1,95, Nova York). Capote e Higdon, porém, tratam de outro tema. O indivíduo que numa sociedade totalmente destituída de critérios morais, exceto no papel, preza apenas a própria eficiência. Não é um tema “moderno”. Quando Hans Castorp vai subindo a montanha mágica, Thoman Mann nota que a sociedade que ele representa só vive para a eficiência que a eficiência é a única razão de ser de Hans, ao menos antes que ele se descubra entre os tuber­culosos. Mann escreveu antes da I Guerra, apesar de ter terminado o livro depois, e Mann é um humanista clássico (apesar de toda ironia e decadência que o perseguiram sempre). Ele via o doente, digamos, porém, acreditava que valia a pena tentar a cura, mesmo sem acreditar muito nela. Capote ou Higdon não estão nesse nível intelectual (ou criador). São gente nossa. Uma civilização terminou na Guerra de 1914, a liberal-capitalista. Desde então existe uma guerra civil no mundo. Higdon e Capote são como, digamos, dois viet­namitas nascidos em 1960, já em plena guerra, com uma vaga, se al­guma recordação cultural, do passado.

       Capote, o artista, fez o mais prudente. Anotou o que viu. Não julga. Por que valores julgaria? Camus perguntou isso antes dele, quando os nazistas entraram na França. Que valores tínhamos a opor-lhes? Os da III República Francesa, ou os da II, que em 1871 e 1848, respectivamente, haviam massacrado os trabalhadores e outros revolucionários? A anotação de Capote é maravilhosa mas não muito objetiva. A família que ele escolhe é rural, um tanto desligada do mundo hiperaquisitivo americano do massacre de comunicações e estímulos ao consumo, à auto-satisfação do ego, que formam o ethos urbano dos EUA. O que os torna patéticos em face dos assassinos, dois marginais que, no entanto, trazem no san­gue a filosofia urbana americana: o que você quiser, agarre.

       Os conservadores aqui escrevem toneladas contra a juventude da chamada contra-cultura, pois, supostamente, educada por pais liberais, permissivos, entrega-se hoje à droga, à promiscuidade e à violência de Squeaky Fromme, em farsa, a Charles Manson, o guru de Squeaky; que não é nada engraçado. Ah, se voltássemos aos velhos valores? Que valores? No dia em que Squeaky revelava ao mundo desconhecer que para colocar uma bala na agulha é preciso engatilhar a pistola, o New York Times trazia, na primeira página, uma longa reportagem sobre os experimentos feitos pelo Pentágono com cobaias humanas, das próprias Forças Armadas, submetidas a drogas, experiências que levaram a várias mortes e suicídios. A maioria das cobaias, nota logo o liberal, era voluntária. Sim, mas em que termos? Primeiro, não se dizia ao soldado que droga ele tomaria, apenas sendo informado de que não havia perigo. Dava-se um bônus de $ 45 (sim, senhor, 45 dólares), depois, arranjavam filmes pornôs que o divertissem, nas “horas de lazer”, e, claro, mulhas. E em al­gumas divisões os “voluntários” foram persuadidos excessivamente pelos comandantes. Qual é a diferença? Técnica, apenas. Squeaky caberia em Capote. Os generais do Pentágono são personagens de Arendt. Uma diferença de autores.

       E Nathan Leopold Jr. e Richard Loeb, em 1924, nunca ouviram sequer falar da era da permissividade. Eram filhos de milionários judeus-alemães, a elite do judaísmo da diaspora. Famílias respei­tadíssimas de Chicago (já o pai da vítima, Bobby Franks, por ter sido um tempo dono de um “prego”, era esnobado). Leopold, aos 17 anos, falava 15 línguas, escrevia em 5, inclusive sânscrito. Os dois se formaram nas universidades aos 16 anos, pouco estudando, pois Leopold, por exemplo, quando citava algum autor, dava a edição, a página, o parágrafo e a linha (ele sobreviveu e terminou solto, morrendo, em 1971, em Porto Rico. Aprendeu, na cadeia, 48 lín­guas). Leopold falava com 4 meses de idade. Fazia tremer os profes­sores universitários.

       Mataram Bobby Franks de sacanagem, pura e simplesmente. Podia ter sido qualquer um. Queriam demonstrar a superioridade ao mundo cometendo o crime perfeito. É possível que tenham matado mais gente (o que Higdon revela pela primeira vez) e inclusive cas­trado um pobre de um chofer de táxi. No mais, se vestiam muito bem, eram queridos em casa, tinham muitos amigos, membros da nossa melhor sociedade. Na fantasia de Camus l'Étranger, Mersaut é um alienado total do ambiente, da “família” Capote (se concebido mais sofisticamente e, acrescento, executado inferiormente). Mas essa explicação não cola. Você ouvindo Leopold falar sobre Direito, justiça, política, talvez o convidasse a um grupo de Estudos da Fun­dação Ford, ou Rockefeller, ou o imaginaria juiz, presidente etc.

       Entre os planos dos dois estava matarem os próprios país. Não porque amassem as mães, a quem consideravam também insetos, suscetíveis de experiências. Só não mataram os pais porque não en­contraram um plano adequado. Bobby Franks era mais engraçado, concluíram, tendo sido uma escolha ocasional, um ato digno de um deus que decide do destino humano. Permitam-me: Clemenceau e Lloyd George que haviam mandado milhões à morte estúpida, sob a mais violenta incompetência (provada) militar na I Guerra, acu­savam Lenin, que tentava uma revolução na Rússia, de assassino, falando de “terror vermelho”. Higdon é incapaz desse tipo de ilação. Em momento algum, ele relaciona o “crime do século” às lições da I Guerra, cuja lição suprema e que o poder supremo é o valor supremo. O que é a base do que chamamos, hoje de civilização.

       E os rapazes eram ótimos. Em momento algum, afetaram re­morso. Pelo contrário: ambos disseram que repetiriam a dose, se tivessem certeza de que não seriam pilhados. Isso, em sessões se­cretas (em suma, que a promotoria não poderia utilizar) com psi­quiatras contratados pela defesa. Mantiveram o deboche até o fim. Como se vestiam em lojas muito caras, Leopold explicava aos repór­teres, vestidos em meia confecção, como lhes descrever as roupas nas reportagens, certos de que não identificariam a classe sartorial dos dois.

       Darrow, claro, fez um dos mais eloqüentes libelos contra a pena de morte que se conhece na história da jurisprudência e salvou-os da pena de morte, conseguindo-lhes uma prisão perpétua (de que Leopold escapou, enquanto Loeb foi assassinado na prisão). No fil­me Compulsion, Orson Welles faz um bom Darrow, o bom liberal materialista americano. Leopold e Loeb nem de longe são perce­bidos no filme. Sou também contra a pena de morte; como arma jurídica, mas é impossível não concluir, lendo Higdon, que Leopold e Loeb durante o julgamento, deveriam estar rindo da visão simplista que Darrow tinha da vida e que lhes salvou o pescoço. Uma vez con­denados, passaram à história da jurisprudência. Serviram de forte ar­gumento contra a pena de morte e praticamente tornaram compul­sória a presença psiquiátrica em qualquer crime sério. Nesse sentido, foram benfeitores da humanidade. O que se mais não fosse, deve tê-los feito ir para o túmulo às gargalhadas.

 

               COMO, ERA DIFERENTE O AMOR EM VENEZA

       Se você é homossexual e gosta de meninos, Morte em Veneza, de Luchino Visconti, é o filme. Já se você leu — sexo à parte — o original de Thomas Mann, talvez partilhe o meu vago instinto homicida contra Visconti. A irônica e grande metáfora, no livro, sobre o conflito — insolúvel? — entre o espírito e a carne virou a caçada dum menino deslumbrante por uma bicha velha e enrustida. É a metamorfose de Kafka, ao vivo.

       “O amor não é homossexual. É amor sem erotismo, sem sexualidade. Os jovens de hoje sabem que o amor é o sentimento mai importante. Sexo é importante, também, mas uma conseqüência do amor... O menino, na história, representa o sentimento do amor; ele é um símbolo da beleza. Aschenbach persegue a idéia da beleza e quando descobre a existência dessa perfeição, sente-se consolado. Só que essa descoberta tem um aspecto fatal”. Aspas e grifos perten­cem a Visconti. Espero que ninguém me julgue capaz de escrever semelhante asneira.

       Mann estava impregnado de Nietzsche e Freud, quando es­creveu Morte em Veneza, Gustav Von Aschenbach é o intelectual protótipo do espírito humanitário e progressista do Século XIX, diante do qual a barbárie natural do homem, com a sua (dele) superestrutura de superstição religiosa, haveriam de ceder. Aschenbach cul­tivava a perfeição da forma literária, uma estética absoluta, tendo, na frase de Mann, “contido e esfriado as emoções”, porque incom­pletas e fugazes. Exausto, vai a Veneza em férias, quando, naquele sol e ambiente de relaxamento instintivo, que a própria arte da cidade parece consagrar e, ao mesmo tempo, transcender, descobre Tadzio, o menino polonês de 14 anos, lindamente animal. A repressão interna de Aschenbach desmorona ante esse espetáculo de carnalidade realizada. Ou Mann, novamente: “... Um senso de mito, como a descoberta poética do princípio do tempo, da origem das formas, do nascimento dos deuses”.

       Tadzio é o que Aschenbach poderia ter sido e, intimamente, as­pirava a ser. Aí entram Nietzsche e Freud, influências importantes em Mann. Nietzsche berrava contra a cultura da contenção dos ins­tintos, a ética judaico-cristã de amor ao próximo, da caridade, da auto-transcendência espiritual. Previa o aparecimento da besta-fera loura, o super-homem que arrasaria esses conceitos. Freud “ra­cionalizava” para nós o inconsciente, bem próximo da visão catas­trófica de Nietzsche. Morte em Veneza foi publicado em 1913. Em 1914, na I Guerra, as forças subterrâneas profetizadas por Nietzsche e Freud destruíram para sempre o universo estético-humanista que Aschenbach imaginava a realidade presente e o futuro perfectível.

       Há homossexualismo nisso? Sem dúvida, mas é apenas uma componente da descoberta de Aschenbach do narcisismo que re­primia em si próprio. Veneza, durante o “romance” Aschenbach & Tadzio, é vitimada por uma epidemia de cólera. Mann estende a metáfora do choque entre os ideais de Aschenbach superconscientizados, e o belo, livre e inconsciente animalismo do menino, à des­truição de uma era em que o velho e o novo são irreconciliáveis.

       Difícil de entender? Certo. Mann não é Agatha Christie. Ele complica ainda mais as coisas escrevendo sempre sob o prisma for­mal de Aschenbach, que é a antítese do menino. — Tadzio, assim, se torna um absoluto inatingível. Jamais as personagens se falam sequer. Tudo acontece no cérebro de Aschenbach, perfeito na per­cepção, à custa dum corpo morto para a comunicação. Mann é muito cruel. Aquele humanismo progressista que professava de público só engana críticos marxistas do tipo Luckács, sempre disposto a esperar pelo melhor dos mundos sobre escombros e milhões de cadáveres. Mann, à maneira de Proust, se delicia na decadência. Ex­plora-a sensorialmente, às últimas conseqüências, não quer sair dela, está na dele.

       Comparem o que escrevi à opinião de Visconti sobre Morte em Veneza. Aschenbach, no filme, vira músico. Diz Visconti que ouviu da filha de Mann ter Aschenbach sido baseado em Mahler, o com­positor. Provas, madame. Para mim, no escuro, Aschenbach é o próprio Mann, carregando a tocha humanista de Goethe e Cia. e que, de súbito, sentiu-se-lhe (bonito, hein?) queimar as mãos, edeu uma de narcisista, entregou-se àquele fascinante “inferno” carnal que Nietzsche e Freud lhe explicaram, mas que ele, naturalmente, já sentia dentro de si. Tadzio existe em todos os Aschenbachs da terra. Proust mobiliou um bordel homossexual em Paris com os móveis da mãe dele e gostava de ver ratos sendo torturados. Os gênios “é” fogo, turma. Habitam regiões de que nós temos uma consciência vaga, mas nunca penetramos.

       Já o fato de Visconti ter feito Aschenbach músico destrói a equação de Mann. Música é sempre sensorial, não importa as pretensões atonais ou outras de quem seja. Pega-nos no plexo solar, nunca na cuca, de saída, ao menos. Visconti, por certo, fabrica cenas em que Aschenbach discute com um discípulo (inspirado em Schoenberg). Este critica violentamente o espiritualismo do mestre, acusando-o de morto, insensível: “Todo acorde é uma catástrofe”, grita. O nível de debate é colegial, dos meus tempos de Santo Inácio, quando considerávamos Aldous Huxley um modelo de As­chenbach (de quem, na época, nem tínhamos ouvido falar). E a música de Mahler é boa demais para cinema. Quando entra de rijo eu ouvia em vez de ver.

       Desmentidos à parte, Visconti quer mesmo é que admiremos Tadzio à exclusão das mulheres. Uma propaganda clara do homos­sexualismo. Se alguém duvida de mim, basta ver a cena em que Tad­zio está massacrando Für Elise, de Beethoven, no piano, o que faz Aschenbach rever, em flashback, uma visita a um bordel feminino, para molhar o biscoito, em que a prostituta massacrava o mesmo Beethoven. A cara de nojo de Aschenbach ao sair do quarto é logo justaposta à divindade grega (desculpem o clichê, inevitável) de Tadzio. Nada disso, repito, veio do original.

       E olhamos Tadzio (Bjorn Andresen) de todos os ângulos, em doses que só uma juventude bela e perfeita suportaria, saindo dágua com o maio colado ao corpo (a forma do pipiu totalmente omissa), brincando de briga entre meninos (de vez em quando sai um beijinho nas bochechas), visto ao longe contra o mar em pose de es­tátua, ou, na frase do maldoso crítico de Newsweek, de modelo de modas. Aschenbach (Dirk Bogarde), bem, muito sofre quem padece.

       Se dei a impressão que o filme é uma porcaria total retifico-a logo. Visconti é um mestre de décor, de trajes, ou, ao menos, sabe escolher uma equipe. Põe-nos no ambiente da alta classe média da chamada L'Age D'Or, pré-guerra de 1914. A fotografia num semi-fluido permanente, para acentuar o universo espiritual de Aschenbach, me parece, apesar de truque óbvio, a coisa mais próxima de Mann na tela. E há uma certa mágica na família de Tadzio, conduzida por Silvana Mangano (que Visconti mantém à distância: Mangano derruba qualquer menino em beleza), falando ora francês ora uma língua es­tranha (polonês, creio).

       Gostaria que Dirk Bogarde deixasse Visconti. É um dos meus atores favoritos. Perfeito em Acidente e Na Casa do Nosso Pai, e mais que perfeito em O Homem de Kiev, aqui está quase tão perdido como em Os Deuses Malditos, em que Visconti converteu o nazismo numa bacanal de incesto e homossexualismo (o cavalheiro é mesmo um juquinha invertido). Em primeiro lugar, Bogarde não tem ga­barito para nos dar a cara de um superintelectual. Isso seria coisa ao alcance de Michael Redgrave, ou Laurence Olivier. Ele faz um tipo físico admirável, sumindo dentro de trajes que lhe caem como mor­talhas mal confeccionadas, consegue andar semi-trôpego e co­munica, através da couraça externa de repressão Aschenbachiana, o desejo por Tadzio. Melhor ainda quando ri de si próprio, ao per­ceber, em relances, o que é e o que gostaria de fazer da vida. Dá-nos uma amargura tragicômica, nesses momentos, à altura de Mann. É tolhido, porém, pelo script e pela já referida incapacidade de sugerir a personalidade de um Intelectual Superior.

       O resto é incidental. Bjorn Andresen tem futuro. Qual? Com aquela pinta, pode escolher. Mann nunca imaginaria semelhante possibilidade quando escreveu Morte em Veneza. Progredimos ou estamos no prolongamento do caos previsto no livro? Não fiquem contemplando como Aschenbach. Decidam.

 

                       POETA

Publicado no Pasquim nº177 de 21 a 27/11/1972

       Os artistas são, entre outras coisas, os historiadores supremos do indivíduo. O desenvolvimento acelerado das ciências sociais no Século XIX, a partir de Marx (e contra ele, na maioria dos casos), nos permite, hoje, ver qualquer era da humanidade em termos de forças econômicas, políticas e culturais, mas se queremos enxergar a pes­soa humana, fora do quadro de estatísticas e dos movimentos de­cisivos da História, Sófocles nos diz mais que qualquer tratado sobre helenismo em moda. E ficando em Sófocles, basta olhar o manjadérrimo Édipo. Sabemos, como espectadores, que o destino do protagonista foi predeterminado, mas Édipo pensa e age na “ilusão” de que é capaz de fazer o que quiser, ou o que for capaz. Em última análise, é uma ilusão mesmo. Nos tempos de Sófocles, os deuses determinavam nosso destino. Hoje, foram substituídos pela Bolsa de Nova York. Há quem chame isso de progresso.

       Mas é uma ilusão poderosa. Acredito que até o Jaguar se julgue senhor de si próprio. Mais não preciso dizer. E o artista é a expressão máxima dessa consciência que temos de nós mesmos. Há 700 mi­lhões de teorias estéticas negando o que acabei de dizer. E os úl­timos pensadores importantes a concordarem comigo, Nietzsche e Freud, são considerados, hoje, pouco “científicos”. É minha opinião que os esteticistas me confirmam indiretamente, o que tentarei provar. Quanto aos cientificistas, não pretendo discutir com eles. Limito-me a citar dois acontecimentos cientificamente organizados do século XX, o primeiro central a este artigo, a Revolução Soviética; e o segundo, a guerra no Vietnam, inserida marginalmente no meu contexto, mas nem por isso menos útil. Ambos, Revolução e Guerra, provariam a capacidade do ser humano de auto-conter-se dentro de normas históricas previsíveis, reveladas pela ciência.

       Ezra Pound (1885-1972) é o Artista por excelência do século XX. No E .P. Ode por L'Election de son Sepulchre, o poeta escreveu a linha autobiográfica citadíssima: “His true Penelope was Flaubert”. Não dá para traduzir, porque, em inglês, “true” quer dizer, ao mesmo tempo, “fiel” e “verdadeira”, em relação à fiel e verdadeira (única) mulher de Ulisses, Penélope, que, no caso de Pound, ele dizia ser Flaubert, o mestre consumado do estilo, do valor intrínseco da palavra, da literatura pela literatura, da arte pela arte, em suma. O esquerdista ingênuo estremece. Aí está um cavalheiro propondo uma torre de marfim, uma citadela do individualismo, alienado etc, em face das injustiças e crueldades do nosso tempo. Logo, Pound é “objetivamente” um apologista do status quo, do imobilismo social. Mas se você lê os poemas mais famosos de Pound, Homage to Sextus Propertius e Hugh Selwyn Mauberley, que eu considero, junto com os Pisan Cantos, os melhores (talvez porque não entenda vários outros, aclamados pelos cultistas e discípulos do poeta), en­contrará ataques devastadores à burguesia dominante. O mesmo pode ser dito de outros gigantes da literatura anglo-americana-irlandesa do século XX, Joyce, Eliot, Yeats e D.H. Lawrence, todos politicamente (em graus variáveis) reacionários, pelos critérios convencionais.

       O desprezo e o ódio que esses artistas têm pela sociedade bur­guesa é idêntico ao do mais virulento bolchevique de 1917. A di­ferença, claro, é que eles não aceitam a solução marxista. Até gran­des escritores progressistas como André Gide e Thomas Mann, na ficção, na obra criadora, individual, vão na mesma batida. É tolice dizer que Buddenbrooks mostra que o socialismo é a “saída”. Mann mostra apenas a falência integral da ordem burguesa. E a morbidez que caracteriza esse e outros romances demonstra o quanto ele es­tava identificado com o que condenava apesar de fazer discursos progressistas para marxista ouvir.

       Ao meu ver, Pound e Mann tinham em comum uma reação humanista contra a sociedade massificada que surgiu da Revolução Industrial. Esse é o tema de praticamente toda a literatura relevante de Flaubert em diante. A diferença entre os protótipos, Pound e Mann, é que o primeiro rejeitava o caminho bolchevique — em teoria, a organização racional e humanitária da sociedade de massas — e o segundo, de boca, dava um crédito de confiança à revolução. Mas é muito mais clara para mim a identificação do que a diferença. E não só em literatura. Se você ouve Strauss (Richard) e Stravinsky pré-1914, nota que a “selvageria” dos dois contrastava “inexplicavel­mente” com o otimismo o liberalismo capitalista na Europa, que não enfrentava uma guerra séria desde 1871 (ou na versão Metternich-Reader's Digest do Dr. Kissinger, desde 1815). Idem, em outro exemplo, o cubismo do “comunista” Pablo Picasso. Haverá coisa mais an­ti-humanista do que o cubismo, pergunto? É que esses artistas, não importa a posição política pública que assumiam, como artistas, in­conscientemente, a insatisfação do indivíduo com a sociedade de massas.

       Se ainda havia alguma dúvida, a guerra de 1914 revelou de vez e definitivamente a “face oculta” da ordem burguesa. Não é à-toa que Homage to Sextus Propertius é de 1917, Hugh Selwyn Mauberley de 1920, Women in Love, de D.H. Lawrence, de 1920, que Joyce ter­minou Ulysses em 1918, ou que todos esses escritores (tirando Mann) se tornaram realmente famosos no pós-guerra, assim como Freud, que analisara psicologicamente o estado de espírito que eles re­presentavam.

       Você lerá três mil análises sobre o imagismo de Pound, mas o que nos interessa é a tese do valor concreto de cada palavra, da realidade individualmente aferível, e o horror à retórica de qualquer espécie (que lembrava a Pound, antes de tudo, as racionalizações do liberalismo econômico e do romantismo literário. Pound e Eliot, por exemplo, professavam o amor pelo classicismo, mas foram os poetas que forçaram o coloquialismo na poesia em inglês, o que o leitor desatento talvez não perceba entre as citações poliglotas de que eles usam e abusam (talvez, em parte, como defesa contra o Esta­blishment acadêmico, para não serem julgados “vulgares”).

       Alguns tiveram a sorte de morrer antes da 11 Guerra, como Yeats e Lawrence, senão seriam tão vilificados como Pound, pois ambos pendiam para o fascismo (Yeats já estava pendurado como heroína de fita em série). Eliot redescobriu Deus. Pound, o espírito mais aventuroso, foi tragicamente às últimas conseqüências do ódio que tinha pela massificação. Enquanto Eliot rezava (decaindo muito como poeta), Pound resolveu enfrentar a natureza da fera, o ca­pitalismo. Não podia aceitar a crítica bolchevique, pois tão antiindividualista quanto a sociedade admirada pela TV Globo. Descobriu a usura e os judeus, substitutos pobres (miseráveis, quando se con­sidera o gênio de Pound) de capitalismo e capitalistas, respecti­vamente. E no bufão do fascismo e no carrasco do nazismo reviu, grotescamente, a individualidade que ansiava por recuperar na His­tória.

       É fácil zombar da “saída” de Pound, ou não “perdoá-lo” como certos intelectuais americanos que trabalharam dentro do Pentá­gono no horror do Vietnam e que se dizem chocados com o apoio verbal que o poeta deu ao fascismo. Mas as questões que ele levantou continuam de pé. A sociedade de massas é mesmo o nojo que ele descreveu e Stalin nada fica a dever a Hitler, apenas preferindo o tiro na nuca ao forno crematório. O impecável Nixon usa napalm, herbicidas, pesticidas e outras glórias da ciência. A reação triunfa em toda parte, sob os mais variados títulos e pretensões. Nunca fomos tão loucos e infelizes.

       O instinto de Pound era certo. Mas isso não presta e nunca vai valer nada. E os poetas, em última análise, fazem poesia. O mundo já esqueceu o Rimbaud contrabandista de armas. Em tempo es­quecerá o fascismo verbal de Pound. E resta o homem que pode se gabar de “To have gathered from the air a live tradition or from a fine old eye the unconquered flame...” Ele sacudiu como ninguém, este século, a cultura da civilização ocidental cristã. Não é pouca por­caria para se fazer com um cadáver.

 

       Antes de tudo, gostaria de pedir aos editores que deixassem o título no original, em francês. Afinal, se alguém não souber o que significa é só ir ao dicionário. E é uma novidade um pouco de fran­cês num jornal já parcialmente escrito em inglês. Mas confesso logo que gosto do título e não sei traduzi-lo. A tradução inglesa é The Sorrow and the Pity. Também não gosto. Acho que Chagrin é mais sutil e menos profundo que Sorrow e acho que Pity é mais forte que Pitié. Não esclarecido isso, acrescento que esse documentário de 4,20 h., com 10 de intervalo, onde comi dois sanduíches de presunto e tomei duas cocas (colas), é um grande filme e um filme muito falhado. Não o percam, se puderem vê-lo. Exijam. Ao menos a Cinemateca do MAM pode importá-lo. Garanto que Marcel Ophuls, o autor, que já entrou para ficar na modesta história do cinema, quer mesmo é público, antes de dinheiro (mas isso não é razão para roubá-lo).

       E gostaria de pedir a certos leitores meus que parassem com essa frescura que eu devo ser mais “político” e falar menos de cinema e outras coisas. Sou um jornalista de assuntos gerais, ao menos dos que julgo entende um pouco. Do particular procuro extrair uma idéia geral, e vice-versa. Profundo. Se consigo ou não, é outro papo. Mas não sou, com certeza, crítico de cinema. Não há muito o que criticar em cinema. É uma coisa menor, mas, como já dizia meu amigo Merleau-Ponty (vocês leram o ensaio dele que publiquei no Quarto Caderno do Correio da Manhã explicando por que Marx é um clássico? É um dos três ou quatro ensaios que qualquer pessoa civilizada tem a obrigação de ler).

       Mas o que dizia mesmo meu amigo Merleau-Ponty? Que ci­nema é ótimo para a gente ver o comportamento humano. Sem dú­vida. Isso não me basta. Qualquer romance de segunda me diz mais que o melhor filme de Bergman. Mas (cinema) é uma sensação toda especial, quando é bom, como um gole de cerveja geladíssima num dia de muito calor (ninguém, espero, compara cerveja a uísque, ou a certos vinhos). É um troço sui-generis, necessário hoje, porque a maioria das pessoas só vê mesmo do nosso complicadérrimo mundo um cartão postal. E no cinema, ao menos, o cartão postal é animado. What's up, Doc (percam o filme com este nome. Exijam a vol­ta de Bugs Bunny, o legítimo). Uso o cinema como base. Até Napoleão precisava de almofadas no cavalo. Piles, you know. 4,20, sim, senhor, Paulo Francis, na tua idade. E é documentário de te­levisão. Quer dizer, a base é middle shot e close-up, que pega bem em televisão, porque em televisão long shot não funciona. Em ci­nema, técnica de televisão chateia bastante. E um montador competente (o de The Godfather, por exemplo, é um gênio de concisão expressiva) cortaria tranqüilamente 2 das 4,20h, e teríamos um troço corrido, quente etc. Prefiro o original, chato como é, em partes. Uma coisa não tem nada que ver com a outra, em termos estéticos, mas quando reli recentemente aqui Os Irmãos Karamazov, tinha resolvido pular aquelas cenas insuportavelmente chatas de Alyosha. Comecei. Não deu pé. Voltei atrás. A chatice é parte da grardeza. A chatice é parte da vida, é talvez a maior parte, e isso tem de se refletir nas grandes obras de arte. Bem, aqui não bem de arte. É um grande momento sociológico do cinema.

       O filme de Marcel Ophuls é sobre a Ocupação nazista da Fran­ça. No mínimo, 80% dos franceses apoiaram, ou se lixaram. Pétain era popularíssimo. Laval e ele executaram tudo que Hitler queria (Pétain recusou compromissos militares e foi ambíguo quanto à Ar­mada Francesa, afinal destruída pelos ingleses, mas falo da política interna). Foi o único governo, o único povo a colaborar com as for­ças de ocupação. Inclusive, as leis anti-semitas francesas, algumas, eram mais violentas que as alemãs. A França estava cheia de campos de concentração. Deu tudo aos alemães. De operários a crianças judaicas, o que a Gestapo não queria (o Dr. Claude Levy, da Resis­tência, tem um depoimento a respeito, no filme, definitivo). Quatro mil e tantas crianças judaicas, fazendo nas calças, na prisão (que funcionou brilhantemente, nota Levy, porque a polícia civil francesa colaborou exemplarmente), enquanto Eichmann (exatamente) não sabia o que fazer delas. Lavai resolveu o problema. Mandou-as, ele próprio, aos campos de extermínio. Compreendo a paranóia atual dos judeus sobre Israel, que, às vezes, se volta contra mim. Mas as­sim mesmo, cuidado com a paranóia.

       Eu já sabia de tudo isso e de algumas coisas que Ophuls não conta (ver O QUE FICOU DE FORA), mas certamente é novidade para a maioria dos não especialistas. Só que o fato de eu já saber não me tira um mínimo da revelação do filme. Porque são as pessoas que viveram aquilo que aparecem, inclusive o genro de Lavai, defendendo-o até hoje. A gente vê: cinema. O filme mostra cenas da época e entrevistas com sobreviventes. Justapõe os dois períodos de maneira basicamente expositória, mas F-se objetividade, felizmente. Ophuls edita os fatos, claro, e muito equilibradamente, dando-nos várias surpresas, como vocês verão, se tiverem a paciência de ler este catatal.

       Notas: “80% apoiaram ou se lixaram”. Mais se lixaram. O Dr. Pangloss que só via até a ponta do nariz é uma imagem otimista de Voltaire. A maioria das pessoas tem um conhecimento da realidade inferior a de um gato. Só em certos momentos da História há ex­plosões de consciência que até hoje nenhum pensador explicou, a meu contento, pelo menos. Há depoentes que nem se lembram de ter visto alemães na França. Quase acredito. Se viram, não notaram.

       O que é um país ocupado? Entendam a minha definição no mais lato senso possível. Não precisa ser ocupação estrangeira. É um país onde, em primeiro lugar, haja “judeus”. Um país em que homens e não leis governem. Onde os ideais (os melhores) da civilização grega, cristã, renascentista e iluminista cessem ativamente de existir como substância e forma de vida, substituídos pela esterilidade, o aborto cultural. Onde não haja liberdade. Quem silencia, compac­tua.

       Le Chagrin et la Pitié nos põe todos na França daquele tempo. Devemos julgar-nos quando estivermos julgando. Estou sendo professoral e chato. Amém.

       Sou neto de um excelente senhor alemão, por parte de pai. Um homem decente em todos os sentidos. Mas ao ver um certo capitão Hausend, que lutou no exército nazista na França, tive uma fantasia homicida. Que eu gostaria pessoalmente de jogar uma bomba de hidrogênio na Alemanha, que os Aliados deveriam ter imposto uma paz cartaginesa ao III Reich. Retiro o que disse. Não faria isso. Mas pensei.

       Hausend é gordote, um sólido porco. Um bom burguês. Está casando uma filha em 1969, quando aparece no documentário. A mulher é a típica hausfrau alemã, abjetamente submissa e preo­cupada com a opinião dos vizinhos. Vários filhos de Hausend são do novo exército alemão, da democrática República Federal Alemã, vocês sabem? Hausend diz que os franceses logo se convenceram que os alemães não eram monstros e todos se deram bem. Ele não tem queixas, ou remorsos. Ophuls estranha que Hausend, em trajes civis, ainda use condecorações que ganhou de Hitler e pergunta se os vizinhos não o criticam. Hausend diz que já ouviu críticas, mas explica, delicadamente que é porque os críticos não ganharam con­decorações como ele.

       E tem uma crítica a fazer aos franceses: chama os maquis de bandidos, porque não se identificavam (sic). Acha que deveriam usar alguma espécie de uniforme para serem tratados como beligerantes. Ã paisana, não passavam de bandidos. Ophuls lhe pergun­ta se viu atrocidades cometidas pela Gestapo. Claro que não. Mas, afinal, conclui, a Gestapo estava lá para “nos” proteger.

       Hannah Arendt tem razão. O Mal é banal. Mas filosoficamente apenas. Não sejamos tão inteligentes quanto Miss Arendt. JDLódjo. põdeTer um sentimento extremamente saudável.

 

                   UM IDIOTA RURAL

       Louis Grave é um pequeno fazendeiro e vive no que Marx chamou a “idiotia rural”, falando da gente do campo. Foi maquis. Esteve em Buchenwald. Conta que morrendo de fome, um alemão lhe passou um dia uma maçã. (Nota: existia um alemão humano no III Reich, fora da cadeia) Não denunciou o vizinho que o denunciou à Gestapo, levando-o portanto a Buchenwald (já visitei: as acomodações não eram de primeira classe). Sabem por que? Porque delatando esse vizinho ele também seria delator, coisa para que não tem estômago. Louis Grave é o sal da terra. Idiota rural é a vovozinha.

 

                       DUAS PERSONALIDADES

       O que faltou a Mendès-France para ser um grande líder? Ele é de Esquerda, corajoso, simpático em si e com simpatia pela humani­dade, mas fracassou como primeiro-ministro, fraquejou diante do colonialismo. Aqui, ele está na melhor. Tenente da Aeronáutica querendo brigar e judeu, uma combinação perigosa em Vichy, 1940. Cana nele. Foge. Sobe num muro. Tem de pular. Embaixo um casal, impedindo o salto. Ele quer. Ela está em dúvida. Discutem, vocês sabem como é, “mas meu amorzinho”, “Meu bem, não é isso, é que”, “mas, meu amorzinho, você não me ama?” “Amo sim, meu amor, mais que tudo, mas é que” etc. A conversa não é muito brilhante como literatura, mas quem já a teve, sente o drama. Men­dès não podia pular em cima do casal e queria que a moça resolvesse logo para ele poder fugir. Por fim o casal se foi, separado. Mendes diz que gostaria de reencontrá-lo para congratular-se com a moça pela “modéstia” e solidarizar-se com o rapaz, pela frustração. É a parte principal do depoimento dele. Já sei o que faltou a Men­dès para ser um grande líder. Ele é humano demais.

       Christian de la Mazière é fascinante. Um aristocrata fascista. Nada de caricatura. Tem uma lógica irrespondível para as negras, digo, para os aristocratas dele. Explica que nos anos 30, os políticos franceses eram “corruptos” (sempre foram, inclusive os de Direita, o que a Direita sempre “esquece”, quando quer impor uma ditadura). Que o mundo estava polarizado entre fascismo e comunismo. Ele, aristocrata, cristão, amigo da hierarquia, da ordem, das tradições da França (quais? Dos Bourbons ou de Saint-Just?) só poderia optar pelo fascismo naquela luta mortal. E, depois, aquelas pessoas de “ascendência dúbia” (vulgo judeus) no poder, como permitir? Cômico. Nós que fomos educados por Trotsky, Rosa Luxemburg etc., sempre achamos a Frente Popular de Leon Blum (o governo a que de la Mazière se refere) uma mistificação do stalinismo e de um frágil reformismo. Para a direita, porém, era o próprio COMUNISMO, qua, qua. De la Mazière no palácio magnífico que habita, explica a OP­ÇÃO que fez. Agora, não pensem que tenha sido um parasita, um direitista de mero berço de ouro. Foi oficial das Waffen SS na URSS, onde não se brincava de guerra, não. Dos 7 mil franceses que se uniram a ele, só 300 sobreviveram, entre eles o educadíssimo Chris­tian, que depõe para nós, sem remorsos. Como classificá-lo? Não deixa de ser um herói, à maneira dele.

 

                       O MAIS COMOVENTE

       Denis Rake tem 70 anos e picos (sinto uma quase irresistível tentação ao trocadilho. Resisti). Acaricia o gato. Sotaque de média classe média, ou alta classe média? É por aí. Há aquele je ne sais quoi nos gestos e jeito que provoca o famoso grito no Maracanã. Mas Rake (ironiazinha: quer dizer devasso, em inglês) foi da S.O.E., durante a II Guerra, na França. O que é S.O.E.? foi uma das maiores organizações de terrorismo e sabotagem que se conhece, no nível da Seção 13 da KGB (a principal polícia secreta da URSS). Fez o diabo na Europa Nazista, criada sob medida por Churchill, preparando a invasão da Normândia, depois que se convenceu daquilo que eu in­formo invariavelmente a vocês: que o Serviço Secreto Inglês (MI-6 então, agora SIS) é a popular fórmula do cobre, idem CIA, etc. E Rake foi um dos mestres do terror e da sabotagem. Notem bem que se ele fosse capturado cairia nas mãos da Gestapo, que não era propriamente uma escola para moças.

       Ophuls nota que Rake já andava pelos 40 naqueles tempos, logo para que ser voluntário de serviço tão perigoso? Rake, ligeiramente encabulado, explica que, sendo homossexual, sempre fora muito criticado por certos amigos e queria provar-lhes que era capaz de fazer o que os machões mais-mais faziam. Pense nisso quando baixar o ódio tribal a algum rebolante, meu ilustre passageiro e leitor. Freud tinha razão: o sentimento de culpa é uma das grandes, talvez a maior fonte de criação do homem...

 

                 CHOQUES

       Hitler, meus amigos, parece que tinha um certo charme, quando não estava discursando. Orwell disse que o mataria imediatamente se pudesse, mas que reconhecia nele uma frustração de grande força empática. Nunca notei. Mas, ao natural, apesar do bigode e cabelo, ele me sugeriu uma vivacidade envolvente, é o que nos (me) mostra Ophuls. Sabemos que era um imbecil, em termos intelectuais. Moralmente, é impossível julgá-lo, porque supérfluo, não temos simplesmente a capacidade de caracterizá-lo. Mas aí está, em alguns momentos, um senhor que parece um bom papo. Essa impressão minha é o requinte de horror de Le Chagrin et la Pitié.

       Sempre amei Danielle Darrieux. Não mais. Rompemos defi­nitivamente. Foi quando a vi subindo num trem para a Alemanha onde ia filmar com os nazistas. Agüentei todos os chifres que ela me pôs nos filmes, mas isso é demais. E ainda rindo.

       Sempre detestei Maurice Chevalier. Sempre tive razão. É o fran­cês de anedota e cantou na Alemanha também. Diz que não. Que foi para os prisioneiros franceses. Os franceses o perdoaram. Talvez se reconheçam nele. Eu não tenho de que o perdoar, porque nunca o tolerei.

       As massas nas ruas, aplaudindo Pétain. As mesmas massas aplaudindo De Gaulle. Massas. É preciso acabar com as massas. Aristocratas e revolucionários concordam nisso, com objetivos diferentes, mas é impossível — e politicamente, acreditem, amo a humanidade, mas muito poucos seres humanos, talvez porque me sinta relfetido neles — é impossível, eu dizia, não me sentir como Coriolano quando vejo essas massas. Mas aí, nesse desespero, me lembro da química misteriosa de 1789 e de fevereiro de 1917, e consigo pensar no Brasil, no meu povo, na minha “gente” (não é esta a palavra) e murmurar um modesto, até quando, ó Senhor?

 

                         SURPRESAS

       Anthony Eden. Que elegância, quedasse, que sotaque. Me “es­queço” temporariamente que ele foi contra auxiliar os republicanos espanhóis. É com a maior gentileza, sem um traço de condescen­dência, que fala dos repulsivos Pétain, Laval e outros colaboracionistas. O repórter quer saber se houve outro governo de país ocupado à força (houve os que aderiram por gosto) pelos nazistas que colaborou como o francês. Eden, constrangido, diz que não, o repórter pergunta se não havia um acordo entre a França e a In­glaterra que nenhum assinaria armistício sem consentimento do outro Havia (cessar-fogo é outra coisa, na impossibilidade de resistir. Armistício é conivência. P.F). A França rompeu? Rompeu. Eden faz tudo para adoçar a pílula que tem gosto de pimenta-bólide. Diz que sem se “ser ocupado” é difícil julgar os que passaram por isso. Os in­gleses ganharam as duas últimas guerras, perdendo, ao mesmo tem­po, o império, e tornando-se nação de segunda. Um paradoxo sem paralelo na História. Mas a classe dirigente imperialista, teoricamen­te nojenta etc, manteve a moral, porque lutou bem, não se ava­calhou em 1914 ou 1939 (esteve a pique de, em 1939, Munique e o escambal, mas Churchill e Eden salvaram-lhe a cara). Daí, acredito, a dignidade de gente como Eden (que ainda deu aquele fora horrível em Suez). Dentro dos critérios em que foi educado, acredito que não tenha remorsos. Tem, pelo que vale, o meu respeito — da oposição.

       De Restier é outro aristocrata. Rosto chupado. É do ópio. Tem cara de quem já fez tudo em sexo. Parece um pouco o Cocteau. Tem todas as condecorações da Resistência (já morreu). Explica que para ser da Resistência era preciso ser um “desajustado” como ele. Mas não são as pessoas ajustadas as mais chatas e as piores? Quando vejo esses jovens bonitos americanos que voam em sofisticadíssimos jatos sobre a Indochina, matando a gente mais miserável da terra, e explicando que “apenas cumprem o dever” (Eichmann se tornou o filósofo preferido do Ocidente, em guerras), tenho certeza que são “ajustados”. Prefiro Restier. Tenho certeza que passaria uma noite de agradável e cético papo com ele ouvindo-o mais que falando, em que ele jamais mencionaria os atos de coragem insensata que praticou na Resistência — pode haver assunto mais chato, ele per­guntaria a sério — e cercados do melhor que a química pode ofe­recer. O único problema filosófico do Século XX não é o suicídio: é o tédio.”

 

                     O QUE FICOU DE FORA

       Depois de tanto elogio, eu poderia gentilmente chamar Ophuls de “idiota visual”, um desses rapazes que pensa que ver as coisas é entendê-las. Gentilmente porque é preferível isso a acusar safadeza nas omissões dele. Mas numa entrevista que deu ao Times, em que lhe cobraram o que vou cobrar aqui, ele estrepou-se. A primeira, a participação da Igreja Católica no colaboracionismo. Ophuls diz que não conseguiu entrevistar ninguém de peso. Pra que peso? Qualquer padre de uma ordem intelectualizada (jesuíta, beneditino, ou do­minicano) conhece as posições ideológicas da Igreja. O Vaticano tem um dos maiores quadros intelectuais do mundo, com especialis­tas no que quiserem. É a omissão mais importante.

       E o PC francês? Ophuls informa que o depoimento de Jacques Duelos, líder, sobre o Pacto Stalin-Hitler (agosto de 1939) é “inin­teligível”. Era só Ophuls me dar (o depoimento) que eu o tornaria in­teligível. Fato: o PC, por causa da “não-agressão” entre Stalin e Hitler, foi, entre 1939 e junho de 1941, tão derrotista como os pró-nazistas franceses, porque tinha instruções expressas de Stalin de “não provocar Hitler contra o bolchevismo” (a bem da verdade, acrescento que Stalin ficou desagradavelmente surpreso ante a derrota rápida das Forças Armadas francesas). Quando Hitler invadiu a URSS, em 21-22 de junho de 1941, o PC, que antes acusava a guerra de transformar o proletariado em bucha para canhão dos imperialistas, virou bicho. Converteu-se na força suprema da Resistên­cia. Tanto assim que o grande medo de De Gaulle era que os co­munistas tomassem o poder, em 1944. De Gaulle, ingênuo, na época (por pouco tempo), ignorava que Stalin cedera a França como esfera de influência anglo-americana, em troca do Leste europeu, nos papos vis-à-vis Churchill e Roosevelt. Stalin conteve os comunistas franceses, a partir da invasão dos Aliados na Normândia. Ordenou-lhes que se submetessem a De Gaulle. O PC obedeceu, apesar de uma certa revolta nas bases. Até hoje está nessa. Não quer o poder. Assustou-se mais que as madames burguesas quando os meninos começaram a tocar fogo no circo em maio-junho de 1968, fazendo um acordo por baixo do pano com Pompidou, que impediu a ten­tativa de revolução da juventude naqueles dias (O PC decretou greve geral, mas por melhoria de vida. O que pintava ser revolução passou a ser reivindicação).

       E a Igreja? Onde estavam os bispos e Cia. quando Laval começou a cumprir alegremente a perseguição aos judeus? Simples, na linha de Pio XII, que considerava o comunismo O INIMIGO, preferindo Hitler a Stalin, logo, nada de “provocar” o führer, que, apesar de meio anti-Cristo, afinal servia também de anti-anti-Cristo, no complicado raciocínio do Vaticano. Sim, porque se a Igreja da França, poderosíssima, berrasse, a Gestapo parava, e Lavai não ousaria sequer aquiescer na imundície do genocídio. E a coisa vai muito além ou muito atrás, se preferirem. A Igreja da França ainda está combatendo a Revolução Francesa de 1789. A França é um país esquizofrênico, o que o mais ingênuo turista é capaz de notar, de saída. De um lado, aquelas grandezas culturais: doutro a mesqui­nharia, a pequenez, o reacionarismo que vai da aristocracia à quitanda. Os três pilares do racionarismo são Igreja, Exército e Aris­tocracia, interligados. A massa deles é a pequena burguesia e o campesinato. Mas só a Igreja é consistente. Não consegue se livrar do fantasma de Robespierre (cuja substância é Saint-Just). Lembre-se que depois que a Espanha se arrebentou contra a Inglaterra (Eli­zabeth I, com certa ajuda de Errol Flynn), a França se tornou a única verdadeira grande potência católica na Europa (a Áustria em medíocre segundo lugar). 1789 foi o fim desse reinado. Uma das duas grandes revoluções estruturais da humanidade. A outra foi a de fevereiro de 1917, na Rússia. Não é a bolchevique, a de outubro, comunistas em 1789 e fevereiro de 1917 foram as massas mesmo que fizeram a Revolução. Em outubro de 1917, na Rússia, hou­ve uma revolução mais profunda, mas dirigida por brilhante grupo de intelectuais revolucionários — inteiramente dirigida por Lenin e Trotsky. Falando nisso, há marxistas que concordam comigo: Rosa Luxemburg é uma.

       Isso até hoje dói na Igreja da França. Ela nunca abateu o rea­cionarismo. Manteve espiritualmente a cabeça dos Bourbons. As outras forças reacionárias são menos coerentes. Afinal, o general De Gaulle, apesar de certas características pra trás, era, em muitos sen­tidos, progressista e iluminado. E foi um coronel, aristocrático e an­ti-semita, Picqart, que, sofrendo o diabo, acabou obrigando, com o depoimento dele, a libertarem e a “reabilitarem” Dreyfus. Entre a pequena burguesia e campesinato também sempre houve bons republicanos. E os aritocratas civis, bem, o próprio Ophuls nos mos­tra De Restier fazendo misérias e há todos aqueles cavalheiros com nomes entre hífens, lutando ao lado de De Gaulle e no poder até hoje, nem sempre na Direita.

       Não na Igreja. Não quero dizer que só tenha havido católicos reacionários na França, isso seria inexato e ridículo, mas a igreja, como instituição, esteve em todas contra os direitos humanos, se “ateus”. A favor da “restauração” de 1815, contra 1848, pró-Napoleão golpista de araque, em 1851. (sobrinho do verdadeiro, e que virou personagem de Marx, no 18 Brumário etc), contra a Comuna (que nada tinha de comunista, falando nisso, Lenin é que se apropriou do nome) de 1871, a favor de tudo quanto era movimento monarquista e anti-semita (na luta em que o caso Dreyfus é o mais famoso exemplo e pretexto) até 1914, e agitando furiosamente para derrubar a Frente Popular, de Leon Blum, em 1934, que a Igreja considerava “bolchevique”. Não se esqueçam que Maritain era tido como pen­sador católico “avançado” na França, até pouco tempo. Por aí se tira a média. Como em toda regra etc, alguém certamente me lembrará os “padres operários” (que João XXIII mandou parar, eu. hem?)- Hoje, as coisas melhoraram. Certo? Agora, na década de 1930, em que o “bolchevismo” (todas iniciativas de Esquerda ou meramente progressistas) e fascismo polarizavam as correntes dominantes das sociedades capitalistas, na crise da Depressão, da guerra civil da Es­panha e das convulsões na Alemanha, o clero francês obviamente preferiu Hitler e colaborou com Pétain e Lavai.

       Nada disso é sequer tocado no filme de Ophuls. Talvez seja as­sunto complicado demais para os modestos recursos formais do cinema. Mas nem uma palavrinha? Não, é imperdoável. Mas o filme é magnifício. Uma máquina do tempo na História passada e presen­te.

 

                       UM CASAL DO BARULHO

       Hoje mais um intelectual. Prometo restringir-me ao fino trivial. E como Aron é também francês, ou “esa”, Simone de Beauvoir. Eu raramente acho francês gostoso, logo devo uma explicação ao leitor. É que estou escrevendo um livro sobre política soviética e americana, e a reação da intelectualidade francesa, principalmente nos fifties, no auge da Guerra Fria, pesa, porque é bem mais articulada que as outras e costuma ir ao fundo das coisas. O terceiro volume da autobiografia de Dona de Beauvoir, “La Force de Choses”, que leio em inglês “Force of Circumstance”, Penguin, 685 págs., 9'6), pega todas as fofocas da época. E babo-me de inveja dela. Deve ter sido do balacobaco almoçar com Camus, Sartre e Merleau-Ponty na Lipp, ganhar lâmpadas de Giacometti de presente e conhecer Dorothy Baker, de passagem (Dona de Beauvoir é ainda mais descuidada em nomes do que o Vos. Cri. Obrig. A mulher aí é Dorothy Parker). Pensem na alternativa no Antonio + s, ou, para ficar nos fifties, no Vermelhinho. E Paris é a única cidade no mundo em que artistas e intelectuais de todos os setores se misturam. Aqui é cada macaco no seu (dele) galho. Na Inglaterra, os grã-finos recebem os artistas, mas não é a mesma coisa. O grupo de Sartre, além de escritores, inclui Mouloudji, Pierre Brasseur (morto) e Marie Therese, aquela prostituta que se contou toda no Les Temps Modernes. Grandes papos. É assim que deve ser.

       Nunca cheguei ao fim de um livro de de Beauvoir. E resolvi pensar no que me irrita tanto nessa mulher, que admiro e respeito. No fim da briga entre Henri e Dubreuiih, em Os Mandarins, eu já estava contra os dois e dizia a meus botões: o mandarim mandou na Lapa. O Segundo Sexo é civilizado e plausível até onde vai, em particular quando você o compara às iletradas Steinem, Millet e outras faturantes no feminismo, mas, como não sou mulher, não me senti estimulado a ler até o fim, depois que apreendi os argumentos da autora. De Beauvoir é uma feminista com quem se pode conversar, ao contrário de uma poeta (boa) que conheci numa festa outro dia, Adrienne Rich. Ela tinha escrito no “New York Review” que a su­jeição da mulher é como coisa de classe tão antiga que todo mundo acha normal. Eu disse a ela que, pelo contrário, há documentação de revoltas de escravos e camponeses (citei as óbvias, Espartaco e Münzer) seculares e até milenares, enquanto nunca ouvi falar de nenhuma insurreição feminina. Ela me respondeu que é porque as mulheres não tinham consciência. Bem então não é a mesma coisa, falei. Mas Rich, num gesto de politesse muito americaine, começou a falar com outra pessoa.

       O Há um livro de de Beauvoir, que é magnífico, e que não ter­minei por culpa minha. “A Velhice” me incomodou tanto que lar­guei no meio, minha vida já é triste demais sem precisar de acréscimos no momento gratuitos (por mais uns anos, ao menos). Mas, palavra, se há um proletariado que transcende classes e que só a morte liberta é a velhice, cujo tormento de Beauvoir reproduz e analisa implacavelmente. Só vejo três condutas possíveis na velhice: suicídio, religião e drogas.

       Por que, portanto, minha repulsa a uma escritora tão talentosa e séria? Ela escreve mal, mas Dreiser também e adoro Dreiser. Não, é a absoluta falta de humor de De Beauvoir que me repele. Eu não posso ter uma relação profunda com uma pessoa ou um artista sem senso de humor. Acreditem, já tentei e me dei muito mal, porque para quem não tem senso de humor este é um insulto. E, no entanto, não vejo como se possa contemplar a condição humana e manter um mínimo de sanidade (que nos dê para continuar funcionando), sem cair no desespero ou reagir pelo senso de humor. Quanto mais um intelectual.

       A princípio pensei que o problema fosse ela ser mulher. Não é piche. O mundo intelectual é masculino e as mulheres, para serem aceitas, têm de afetar uma seriedade que não sentem necessaria­mente. As melhores escritoras americanas, Eudora Welty, Joyce Carol Oates etc., ou as intelectuais, Diana Trilling, Elizabeth Hardwick etc., são todas taciturnas, sugerindo crianças que querem pas­sar por grandinhas junto a adultos. Mary McCarthy não chega a ser uma exceção. Ela é sarcástica, o que é um pouco diferente.

       Acredito que seja mais um problema francês. O prestígio de Voltaire e Moliere sempre parece excessivo a críticos não franceses, mas a meu ver vem do fato de que eles são exceções à falta de humor nacional. Comparem Shakespeare, debochado, botequineiro, à aristocratice sombria de Racine. Mesmo o sutil espírito satírico de um Montaigne e Renan é temperado de tragédia (idem Anatole France, cuja ironia, se nos faz rir, machuca). Os franceses não têm aquela aisance de ingleses, americanos e nós brasileiros, que nos faz expor comicamente os absurdos e as indignidades a que todo ser humano é submetido.

       Eles são penosamente sérios. Dou exemplo, extraído de de Beauvoir. Sartre pegou caxumba aos 40 anos ou por aí, o que além de chatice habitual é meio perigoso. Ela conta que o visitava e os dois discutiam lucidez e liberdade. Bem, se eu pegasse cachumba aos 40 anos a primeira coisa é que ninguém, fora o médico ou a em­pregada, entraria no meu quarto. E eu me sentiria muito pouco lúcido e livre. Provavelmente veria televisão ou leria thrillers o tem­po todo.

       E gostaríamos de saber um pouco mais de Sartre, que de Beauvoir conhece melhor que os outros. Mas ela se limita a discutir algumas idéias dele, muito bem, mas para isso temos os livros do distinto. O que eu queria saber, por exemplo, é quantas Sartre dá, se é adepto do papai e mamãe ou se é chegado a variantes. Sartre, in­clusive, parece um cara simpático, sempre acessível, tolerando com alegria inesgotável os tolos. Adorei ao contarem que ele e de Beauvoir só usaram a toalha de mão, quando hóspedes dos Mesquitas em São Paulo. Sartre é grande demais, a mim intimida. Sinto uma necessidade irresistível de reduzi-lo ao nível da minha me­diocridade, em alguma coisa que seja, a fim de aceitá-lo melhor. Dona de Beauvoir, porém, mantém o mito intacto.

       E ela parece inconsciente das hipocrisias de Sartre. Quando saiu o “Homme Revolte”, Sartre, já meio rompido com Camus, disse à equipe de “Les Temps Modernes” que queria uma crítica favorável. Ninguém quis fazer, nota de de Beauvoir, porque ninguém achava nada bom no livro. Bem, eu concordo quase inteiramente com Sar­tre na polêmica versus Camus, também acho, ao contrário de Ca­mus, que a moralidade é inseparável da História, que não é um con­ceito aplicável abstratamente (Camus chegou ao absurdo de com­parar Dostoiewsky favoravelmente a Marx, como humanista). Mas dizer que o ensaio de Camus não vale nada, espera lá. Ele coloca al­gumas questões que afetam todo intelectual, ainda que discordemos das respostas. Sartre, por fim, deu o livro a Francois Jeansson, pedin­do-lhe moderação. Em termos brasileiros, isso seria pedir moderação a Carlos Lacerda ou a Hélio Fernandes. Jeansson é um fero polemis­ta. No caso do “Homme Revolte”, claro, Jeansson também baixou a lenha e quando Sartre pediu-lhe que cortasse algumas passagens, recusou-se e o artigo saiu assim mesmo. Camus escreveu uma carta a Sartre, protestando, que Sartre respondeu e os dois romperam definitivamente. A hipocrisia de Sartre no episódio me parece ine­quívoca. A de Beauvoir, não.

       Algumas vezes ela quebra a crosta e aí me conquistou completamente. De Beauvoir teve um caso complicado, a prestações, com Nelson Algren, o escritor americano, um tipo meio grosso (prova do fascínio da personalidade de Sartre é que os dois se deram muito bem, apesar de Algren ser um intuitivo completo). Numa daquelas brigas intermináveis típicas de casos torturados, de Beauvoir sente o fim próximo e se pergunta: “De que eu sentiria mais saudade? Do homem? Da casa? De mim mesma?” Isso, Simone, dá-lhe, minha filha. Palavra, esse comentário é de uma lucidez rara, em intelectuais ou em qualquer pessoa. Pena que não tenha mais. Em outra passagem, Simone, já quarentena, reduzida a uma amizade amorosa com Sartre, pensa: “Nunca mais dormirei com um corpo aquecendo o meu”. Até que dormiu. Acrescento que eu não gosto de dormir tendo gente pendurada em mim, mas o sentimento aí é profundo. Acho que muita gente casa para fugir à solidão física depois dos 40.

       No assunto que me interessa mais, política, os dois me parecem de uma incrível naiveté. Acreditaram, por exemplo, que a Guerra da Coréia fosse o preparativo da III Guerra. Eu, no meu café Bar Itu, em Botafogo, conversando com o Pedrinho 7 mortes, sem sombra de Merleau-Ponty à vista, nunca acreditei, porque já não acreditava, ao contrário de Sartre, que os comunistas representam a História, ou que o capitalismo americano seja maniqueísta. Sartre é um pri­sioneiro de idéias. Ele não consegue raciocinar fora do sistemático. Toda a documentação agora revelada sobre a Coréia (principalmente no segundo volume de memórias de George Kennan) me confirma completamente. Sempre achei que EUA e URSS usavam a Guerra Fria em benefício próprio, para apertar as cravelhas nas respectivas esferas de influências, sem a menor intenção de se destruírem. Sartre e companheiros, entretanto, chegaram a pensar em fugir de Paris em caso de invasão soviética. Desistiram e Sartre fez um comentário que nos interessa: “Imagine acabar como Stefan Zweig no Brasil”.

       Também não entendo o problema de Sartre com o comunismo. Ele não se enganou sobre a mecânica do stalinismo e denunciou os “julgamentos de Moscou”, o zhdanovismo, o “código de trabalho” na URSS e outras misérias. O “Fantôme de Staline” dele só tem paralelo em Isaac Deutscher. Ainda assim, Stalin insistiu até recen­temente em fazer frente ampla com o PC, recusando-se a deixar que a moralidade pessoal fosse um obstáculo à marcha da História. Olha aqui, um intelectual engage deve denunciar a injustiça venha donde vier, do Vietnam à Tchecoeslováquia. E não acho que “injustiça” seja um conceito abstrato. Claro, há concessões inevitáveis. Não deixo de apoiar a luta dos vietnamitas contra os EUA, porque os norte-vietnamitas torturaram alguns prisioneiros americanos. Nem por isso deixo também de condenar a tortura, injustificável em quais­quer circunstâncias. Cada caso deve ser analisado isoladamente, do que Sartre, um construtor de sistemas, é incapaz. Ou quase. Nunca esqueci a abertura do artigo dele sobre a morte dos Rosenbergs: “Os Rosenbergs morreram. A vida continua. Não era isso que vocês queriam”? Aqui fala o artista de Huis-Clos. Bem melhor que o ativis­ta político.

       Mas deixa para lá. Devemos tanto a Sartre que quando ele erra continua com um crédito inesgotável. Se tivesse escrito apenas “L'Etre et le Neant” passaria a História como um dos pensadores mais originais e de influência permanente. E, no entanto, se meteu em tudo. “A Crítica da Razão Dialética”, detestada pelos comunistas, é, em verdade, a única atualização de Marx que conheço levável a sério, válida como defesa e crítica. E há o teatro, os romances, a crítica, o jornalismo prodigioso. Outro dia dei uma olhada num capítulo do ensaio dele sobre Flaubert. É de assustar, inclusive no comando que ele tem das técnicas de Freud, a quem criticou absur­damente. Há algum assunto importante que Sartre não tenha analisado? Há: sexo per se. Mas o resto passou por aquela cabeça e, em geral, saiu mais humanizado que antes. Ele e De Gaulle são a História da França no Século XX. Adversários irreconciliáveis, exceto na grandeza. E Dona de Beauvoir não se incomodaria de ter co­meçado como protagonista deste artigo e terminado coadjuvante. Entre os talentos dela está o reconhecimento realista do inevitável.

 

                     A FAVOR DO CONTRA

       A raiva que os coroas intelectuais aqui têm da juventude da “contracultura” não é normal. Aí está uma observação imprecisa, que simplifica e generaliza as coisas de maneira absurda, mas vou deixar assim mesmo, porque os ditos coroas fazem o mesmo com a “contracultura”, e já é tempo que alguém iguale o escore. Geralmente não ligo muito para essa polêmica, o que é difícil aqui, porque não para, os críticos da “contracultura” sempre nos dizendo que a “contracultura” está morta, o que faz deles espancadores de cadáver. Mas há um exemplo que vale a pena examinar. Está no Esquire de agosto, o que não é boa recomendação, já que esta porcaria de revista se especializa em implicar rancorosamente com o próximo. Os editores imaginam que estão promovendo sátiras. Sátira sem um ponto de vista alternativo não é sátira, digo eu. Qual é ponto de vista de Esquire em qualquer assunto? Nenhum, o que, noves fora, revela Esquire como campeão do status quo. Elementar, dementar, e chato que eu tenha de escrever a respeito.

       Mas o nome do autor está muito acima da estrebaria habitual de Esquire, dos Muggeridges e outros palhaços profissionais do conser­vadorismo. É Michael Harrington, teórico do socialismo demo­crático nos EUA, autor de um livro sobre a pobreza na América, que deu fim ao mito da “sociedade afluente”. E, agora, Harrington publicou um tratado socialista, com Marx à frente, que, ao menos, dá pra discutir. Em suma, é um intelectual de esquerda, mas, calma, não da abominada Nova Esquerda, que é a irmã estudiosa da “con­tracultura”.

       Harrington escreve sobre a boêmia do tempo dele e a compara com a dos “monstrengos da contracultura”. Costa mais da dele, o que é normal. Se ficasse nisso eu não diria nada. Inclusive nem sei se vale a pena discutir boêmia em termos culturais. Boêmia devia ser assunto pessoal, feita e não muito falada. Pra mim, boêmia é o melhor mito de liberdade que podemos criar pra nós, a sensação de que estamos caindo fora da rotina impiedosa a que a sociedade nos obriga. Essa rotina é impiedosa pra todo mundo, de uma maneira ou de outra. O que em si já valeria um outro artigo, mas não hoje.

       Harrington, como bom intelectual, quer se situar no tempo e no espaço. Alega que a boêmia é hoje impossível porque a classe di­rigente adotou, em boa parte, na vida privada, os costumes dos boêmios. Isso dito por um dos palhaços habituais de Esquire (e o palhaço-mor, o publisher Arnold Gingrich, repete com as frases descosidas de sempre) não mereceria comentário. Mas, espera lá, Harrington é marxista, ou, ao menos, versado. Será que ele acha que o fato de Nelson Rockefeller pendurar um quadro de Jackson Pollock iguala o mundo dos Rockefellers e dos Pollocks? É o que está im­plícito no artigo. Uma das razões que Rockefeller pendura Pollock é que é um bom investimento. Não necessariamente a única. Roc­kefeller pode sentir em Pollock coisas que reprimiu em si próprio. Pode — isso é o máximo em caridade — admitir confusamente que Pollock é o realista, e, ele, Rockefeller, o abstrato. Dou todas as colheres de chá, inclusive as que esqueci, mas um marxista não pode cair nessa de Harrington. Decadência por decadência (é o que Harrington quer dizer. Boêmia de classe dirigente é decadência), o império romano começou a decair depois de Augusto César (há quem ache que foi antes). A degeneração da classe dirigente já era um fato consumado sob o próprio Augusto. Mas se manteve na sela sei lá mais quantos séculos.

       Harrington acha que a classe dirigente americana deixou de ser filistéia (tira a mão, revisor). Mas o que ele entende por isso? Na semana em que li o artigo dele, Seymour Hersh do New York Times descreveu os planos do Pentágono de inundar os diques, tocar fogo nas florestas e meter toros artificiais no Vietnam do Norte. O fato de que os tecnocratas, que bolam essas coisas durante a semana, ce­dam desinibidamente o marquês de rabicó aos sábados, ou fumem maconha e enverguem jaquetas de pó etc, aos domingos (um exemplo, evidentemente), não muda nada pra mim. Pra Harrington muda.

       Mas o verdadeiro objetivo do artigo é esculhambar a “contra”. Harrington nos conta a primeira vez que ouviu Bob Dylan, no McCowan, em Greenwich Village. Traduzo alguns pedaços. “A insegurança, a falta de arte premeditada... Eu chamei aquilo de o es­tilo da gagueira. Presumia (o estilo P.F.) que qualquer demonstração de lógica ou habilidade retórica era... prova de hipocrisia e desonestidade, a marca do manipulador. O homem sincero, portanto, era supostamente confuso e semi-articulado e angustiado na própria autorevelação”. Seria fácil acabar o papo aqui, notando que Harrin­gton entende tanto de música popular como o Sérgio Jaguaribe da filosofia de Kant, mas seria injusto, apesar de certo. Injusto porque ele está expressando uma impressão pessoal, bem escrita, falando nisso, e que é certamente comum em pessoas da idade de Harring­ton, a caminho dos cinqüenta. No meio daquelas frases lá, ele conta que ouviu Blowin' in the Wind cantado pela massa de Martin Luther King na marcha contra a discriminação em Selma, e “aprendi com um calafrio a apreciar o gênio dele”, Dylan. Antes de ir adiante, conto que fui a três jantares aqui em casas de liberais de classe média, não muito intelectualizados, a maioria entre os 30 e 50. As três vezes depois de fazermos os comentários protestantes da ocasião apareceu um tipo qualquer de violão, o que me deu cala­frios, mas não pelos motivos de Harrington. E não deu outra coisa, Blowin' in the Wind. Bem, o espetáculo era abominável, mas emocionante, pra mim ao menos. Aquela gente ali, pelo visto, não tinha a menor dificuldade de entender o que diz o monstrengo Bob Dylan. E, claro, Harrington é muito do ignorante. Dylan é um leitor atento da melhor poesia moderna, cujo eco ouvimos nas letras dele. A música de Dylan e de outros foi durante algum tempo um negócio bem primitivo, mas se sofisticou de uma maneira extraordinária, in­corporando tudo que é descoberta importante da música, ponto, sem perder a característica popular (pelo que sei, inclusive, os puris­tas da música popular aqui preferem som anterior, supostamente não sofisticado).

       Mas não é disso que Harrington está falando. Como marxista, embora ele não diga no artigo, ficou chocado com a inocência da letra de Blowin' in the Wind. Antes, ele nos explicou as complicadas lutas ideológicas de que participou na década de 1930, 40 e 50, entre stalinistas, trotsquistas, socialistas democráticos e liberais. O mundo de Dylan, sem dúvida, é completamente inocente dessas velhas-guerras. E, pulando para a irmã estudiosa da “contra”, a Nova Es­querda simplesmente ignora a sabedoria dos veteranos das ditas, como Harrington. A Nova Esquerda fez uma crítica intuitiva, mo­ralista, mais de ação do que de teoria do império americano. Claro, é furadíssima em vários pontos, pois é impossível, em termos teóricos, fazer de conta que o passado não existiu e, mais importante, que não se reflete sobre o presente e futuro.

       Culturalmente, porém, a atitude da Nova Esquerda é justificável. Que “lógica” poderia herdar dos Harringtons? Aquela em que o stalinismo era o mal maior e o imperialismo americano o menor? Os Harringtons (não ele pessoalmente, acrescento) defenderam isso anos e anos. O resultado, um dos, é o Vietnam. Notem bem, a Nova Esquerda já estava nas ruas contra a guerra em 1965, a “Velha” só começou a se manifestar mesmo em 1967-68, quando a posição americana no Vietnam se tornou sustentável só pelo genocídio. Moralmente, digo eu, a Nova Esquerda não tinha por que se apoiar nos radicais do tipo Harrington. Estes agüentaram a sangreira no Vietnam porque pela “lógica” deles era necessário conter o co­munismo internacional. Hoje, até Nixon, parece, deixou de acreditar nisso. Mas por que Dylan (aqui funcionando como protótipo) have­ria de aceitar essa “lógica, ou a “habilidade retórica” dos Kennedys, enquanto a CIA convertia o mundo livre numa constelação de Es­tados policiais? E é bem natural que Dylan se sentisse “inseguro” e que caísse na inocência moralista de Blowin' in the Wind. Os Harrin­gtons são intelectuais poderosos. Têm toda a experiência marxista, somada à amargura muito bem documentada com as respectivas desilusões em face do stalinismo. Dylan, ou o que representa, estava certo no Vietnam, e Harrington, errado. Mas, num debate, Harring­ton achataria Dylan.

       E o aspecto “hippie” da “contra” é na mesma linha. Ninguém precisa me dizer o que há de mistificação nisso tudo. A “América Verde” do professor Reich (Charles) é inviável, não tenho dúvida. Mas pela negação do existente foi um grande serviço a este país. E, no fundo, os meninos são muito mais tolerantes que os Harringtons. A malícia rancorosa que estes despejam sobre a juventude é muito mais intensa do que qualquer crítica que façam ao status quo, essa gíria vai pegar. Intuitivamente, os meninos manjaram que eles são conservadores. E são mesmo. Ao mesmo tempo, bastou o sistema abrir um pouco, os meninos correram e elegeram McGovern can­didato do Partido Democrata. A “Velha” Esquerda jamais foi capaz disso. Ainda está nos botequins discutindo Althusser. Podem ficar com ele.

       Harrington comenta no fim que o Remo, boteco boêmio, hoje é cafeteria da cadeia Howard Johnson. Olhe aqui, rapaz, é justiça poética.

 

                       O TOQUE DE BERGMAN

       A história de The Touch, de Ingmar Bergman, é simplicíssima. Um arqueólogo americano “(Elliot Gould) conhece um casal sueco (Bibi Andersson, mãe e dona de casa, Max Von Sydow, médico). Se apaixona pela mulher. Ela vive bem com o marido, mas retribui. Têm um caso. O americano é enroladíssimo. Mistura amor e violência física, ciúme, comando, poder. É vulnerabilíssimo a qualquer de­sobediência da moça, que acha aquilo estranho, porque desco­nhecido, e apesar disso (ou talvez por causa disso) também se apaixona por ele. O marido não gosta. A filha dela a encara de mau jeito. A cidadezinha onde moram comenta o escândalo. O marido é civilizado. Quer apenas que a mulher se decida. A essa altura, o ar­queólogo se mandou, cheio das imperfeições da amante. Esta, grávida, o segue a Londres, onde encontra a irmã dele doente e que se diz inseparável do irmão (judeus; os pais morreram sob Hitler). Bibi desiste de Gould. Volta à Suécia e fica sozinha. Gould vai atrás dela, promete regenerar-se, se casarem, etc. Nada feito. Ele grita pra ela na última cena: “Você quer, você está mentindo”.

       Acho que nada omiti de importante. Ou melhor, ficamos sa­bendo, junto com Bibi Andersson, numa conversa entre Von Sydow e Gould, o confronto clássico entre o marido e o amante, que Gould tentou o suicídio uma vez. Não precisávamos da informação. Todos os contatos de Gould & Andersson, mesmo quando ele está arran­cando prazer, têm sempre um lastro de violência, um subtom de morte, de histeria dificilmente controlada. Ele cria casos com a amante pela necessidade de criá-los. A primeira vez que etc, não tira sequer a roupa. Ela remove a etc. com as pernas, coisa que os pornógrafos jamais seriam capazes de imaginar. A cena nada tem de erótica, acrescento. Gould cai sobre Bibi no que me lembrou a carga da brigada ligeira. Urra. Ignora a mulher. É um objeto, um território a ser conquistado. Bibi, quando sai debaixo dele, consegue trans­mitir a degradação a que foi submetida e, ao mesmo tempo, a com­preensão do ódio que Gould tem de si próprio — era isso que estava implícito no que escrevi acima; nenhum nevropata precisa que eu lhe diga, mas, enfim, há os outros leitores — ; e mais, o prazer que ela sente em tocar Gould, encarcerado em si próprio.

       Bibi Andersson é apenas uma boa atriz. Não é uma grande atriz. Qual a diferença? Não sei bem. Nenhum crítico sabe. A grande atriz nos faz perder a consciência de nós próprios, nos revela, paradoxal­mente, regiões da nossa consciência que nos proibimos reconhecer. Não serve? Paciência. Bibi Anderson é uma boa atriz. Basta. E Ber­gman a utiliza. O que também deve bastar ao mais agudo espec­tador.

       Reparem o momento em que ouve de Gould que ele se apai­xonou por ela. Estão conversando num jardim. Bibi continua a mes­ma, na aparência; afinal, vão jantar com o marido e todo aquele papo. Percebemos, no entanto, sem que diga uma palavra, ou faça qualquer gesto ou expressão óbvios, que uma nova dimensão da per­sonalidade dela foi tocada (a palavra chave do filme). É uma exultação interior, contida in extremis, como um pianissimo de Bartok.

       E isso ainda não é nada. Quando Gould foi embora a primeira vez, Bibi vai ao apartamento dele. A cena é um clichê, de que já nos esquecemos quantas vezes vimos. E nunca mais nos lembraremos depois de vermos Bergman e Bibi nela. A mulher anda pelo apar­tamento vazio. Corpo em movimento, objetos inanimados, rosto. Bergman poderia construir a seqüência até um clímax que nos provocasse uma descarga emocional. É sempre assim nos melo­dramas, variando apenas a qualidade da síntese que o cineasta nos apresenta — a estrutura da seqüência nunca muda. Bergman quer outra coisa. Bibi é uma sólida e civilizada burguesa. Encontrou Gould, a primeira vez, depois de perder a mãe (dela), quando chorava num vestiário de hospital. Naturalmente, se vê na mãe mor­ta. E o neurótico Gould é uma espécie de antecipação da morte da própria Bibi, mas ela, como boa bergmaniana, encontra na patologia dele um toque de vida também, mais gostoso precisamente por sugerir morte. É complicado paca, mas é o que é, ou assim me parece, como diria o Dr. Pirandello (em melodrama).

       Então, nessa cena no apartamento de Gould, Bibi é como al­guém que foi privada de algo essencial mas intangível, ou que não cabe em choradeiras melodramáticas (há bastante choradeira quan­do os amantes estão brigando; isso é outra história, faz parte do jogo). Na seqüência de que falo, Bibi chega à consciência total de si própria. O filme de certa maneira acaba aí. Começou com a morte da mãe da personagem. O que a faz perceber que tudo aquilo que ela tem de sólido, estável e “feliz” em casa um dia terminará. Fi­camos velhos e morremos, lembram-se? O sombrio Gould, que traz em si uma lembrança tão forte da morte dos pais, a neurose ho­micida e suicida do intelectual moderno (ajuda ser judeu também), é o remédio ideal para madame. Ela sabe que o efeito será de curta duração e perigoso. Mas quer tocá-lo. Vivemos do que perdemos, do que sabemos que vamos perder. O que parece sempre nosso nos chateia”

       O Toque não é tão sinistro como Uma Paixão, que virou A Paixão de Ana. Gould, no caso, é uma Ana masculina, com aquelas mesmas exigências terríveis de quem ama, que é em última análise, a quem quer destruir, destruindo-se a si próprio, no processo. Nenhum artista em cinema é capaz de entender a sensibilidade moder­na no amor como Bergman. Só que cada vez mais ele se despojou dos “fantasmas”, do estilo gongórico-barroco, que lhe deram fama. The Touch chega a parecer uma comédia naturalista, “lacrimogê­nea”, de tão simples na superfície. A crítica de Nova York, excetuan­do Penelope Gilliat, no New Yorker, odiou o filme. Vincent Canby, no New York Times, chama The Touch de “novela de rádio com­plicada”. É preciso ser muito imbecil.

       Quando alguém a que estamos muito ligados morre e exami­namos o corpo, é sempre uma parte do corpo qualquer que prende a nossa atenção, obsessivamente. Também experimentamos uma aguda percepção de todos os acontecimentos, ruídos, caras, objetos à nossa volta. É minha experiência pessoal, pelo que vale. Assim começa The Touch, com a morte da mãe de Bibi. A simplicidade com que Bergman nos mostra isso é, em verdade, uma ultra-condenação estilística, mas parece banal ao insensível, ao crítico ro­tineiro. Da mesma forma, a tal cena de Bibi Andersson no aparta­mento de Gould, sem a habitual explosão emocional, é um prodígio técnico da atriz e do diretor, mas certamente parecerá muito “aquém” de um bom berreiro ou ranger de dentes para os ingênuos ou senis.

       O crítico do Times, sem o saber, quase acertou na mosca. As novelas de rádio têm uma certa semelhança com a grande arte. Afinal, se metem sempre em temas transcendentais, amores deses­perados, filhos perdidos etc. A diferença está, naturalmente, no tratamento. As novelas de rádio (agora televisão) mostram ao espec­tador aquilo que o espectador já acha preconcebidamente desses as­suntos. O grande artista nos revela o que são, em verdade, e só pode fazê-lo na obra-de-arte. Se vivêssemos sempre conscientes do infer­no que The Touch — sem falar do trágico Uma Paixão — nos exibe, enlouqueceríamos.

       E há também em The Touch uma sinceridade nos diálogos sobre sexo que críticos acostumados à dieta de fantasias de Hollywood não agüentam, sem dor de barriga, o que confundem com a má quali­dade do texto. Vejam o primeiro encontro sexual de Bibi e Gould (não o que mencionei acima: é outra cena). Ela se explica a ele, como mulher, de uma forma tão honesta, que nos encabula. Temos a impressão de estarmos paqueirando as intimidades do próximo. Nada disso em Hollywood.

       Bergman me parece particularmente importante porque desmistifica as pretensões do machão típico e das mulheres da women's lib. Relações entre homens e mulheres são bem mais complicadas do que as imaginam os ideólogos sexuais. Quem é a vítima, quem é o algoz, na relação Gould & Bibi? Quando este a faz sofrer, sofre mais do que ela, me parece (e essa observação me lembra como o drama verdadeiramente intenso está sempre à beira do ridículo). E a própria solidez dela, ou o que parece ser solidez, assim como o marido com­preensivo, são uma ameaça muito maior à vulnerabilidade dele do que qualquer ato agressivo que tivessem executado.

       E o fim do filme é o que mais irrita aos tradicionalistas. Não há solução alguma. Cada um para o seu canto, com memórias confusas e contraditórias do que aconteceu. Não é uma “plataforma” devida agradável para ninguém. Mas que conclusão há em nossas vidas?

 

                   RIR-RIR-RIR

       Fugindo aos meus hábitos, li 2 romances numa semana, Winter Kills, de Richard Condon (304 págs. New York, Dial Pss, i 7.95) e Tinker Tailor, Soldier, Spy, de John Le Carre (Knopf, New York, 355 págs., $ 7.95). O primeiro eu nem ia, era uma encomenda que me fariam, mas abri e depois de pular alguns parágrafos chatos sobre prospecção de petróleo não consegui parar. Toda página de Condon tem qualquer coisa que te “titila”, e o assunto, o assassinato de Ken­nedy, presta-se muito bem ao estilo cartoon dele. Há quem discor­de. Um professor de literatura inglesa em Columbia, autor de um livro chamado jean Renoir (cujas relações com a literatura inglesa desconheço), no New York Times, acha que Condon é um mestre em “surrealism paranoid”. Não sei o que isso significa. Em cartoon, Condon pertence à tradição clássica de Oscar Wilde e Bernard Shaw, ou seja, os personagens dizem precisamente o que estão pensando e sentindo, por mais inconvencional, sem nenhum traço de remorso, autocrítica, ou ponto de referência ético. Ele não tem o peso in­telectual dos dois citados cavalheiros, caricaturando como David Levine, o que é elogio. O crítico do Times, Leo Braudy, professor de literatura que escreve sobre Jean Renoir, é uma personagem de Con­don.

       Não vi ainda críticas sobre Le Carré porque o livro “não saiu”. Quer dizer, como o romance de Condon, está à venda em todas as livrarias (idem, My Life as a Man, de Philip Palmita de La Mano Roth), mas já que a data de publicação oficial é em junho, os jornais literários aceitam a convenção que permanece inédito. Mas, usando meus contatos com forças sobrenaturais, mais conhecidas por 046 552 6-18 8 800 AX (American Express), obtive o livro na livraria na es­quina. É um companheiro decente de Call For Dead e O Espião Que Saiu do Frio. Não tem o entrecho smashing do último que me en­ganou até o fim. Na metade, eu já sabia quem era o espião soviético na cúpula do serviço secreto inglês e até o fim que ia ter, da mesma forma que matei o Condon rápido, o que não é nenhum problema se você tem prática desse tipo de literatura, e, tendo ou não, o prazer permanece o mesmo. A prática se adquire assim: confia nos teus ins­tintos. Não analisa nada. Lê “ouvindo” a música, deixando que te visite. A “saliência”, a chave, emerge de repente, como aquele nome que você levou dois dias sem se lembrar.

       Condon segue realisticamente, em caricatura, a vida dos Ken­nedys. Nada ali é novo para os informados, nem que o Presidente, caminhando ao lado de uma dama qualquer pelos corredores da Casa Branca a desviava de súbito para uma das salas laterais a fim de conhecê-la melhor, enquanto os agentes do serviço secreto vigiavam respeitosamente do lado de fora. Onde o “surrealismo paranóide”? Antes de escrever, hoje, li no Times que o tenente William Calley Jr. está soltinho da silva, de Mercedes branca, dispondo de um fundo de defesa de “six figures” (acima de 100 mil dólares), sem saber que emprego (relações públicas?) aceita dos muitos que lhe oferecem, cheio de mulheres. O Times slanteia, quer dizer, faz a nota contra Calley, pretendendo objetividade como de costume, mas omite o fato básico do episódio: Calley foi condenado por matar 22 civis, mas o Times sabe que o exército apurou que, na verdade, foram 400 e não 22, e quem apurou foi o maior repórter do Times, Seymour Hersh, que obteve uma cópia do relatório Peers (general: demitido), até Roje não divulgado, que levantou a história todinha. Nada do que Condon escreveu em Winter Kills se compara a isso. É a realidade americana.

       Em Winter Kills as pessoas não são o que pretendem ser, men­tem descaradamente. Mas o que há no livro, de comparável, ao trigésimo sétimo presidente dos EUA, Richard Nixon, o que ele deveria ser, digo, e o que é, pós-”Watergate”? Identidade definida é a matéria-prima mais escassa do nosso tempo, mais ainda do que a proteína que, segundo a UNICEF, a escassez da proteína, digo, levará à morte entre 400 e 500 milhões de crianças, hoje, amanhã, ou depois de amanhã, as sobreviventes tornando-se vegetais. E nós estamos aí mesmo, tomando nosso uisquinho e comendo um entrecôte à Oswaldo Aranha no Nino's, e Heinz Kissinger permanece no Oriente Médio, com aquele vara-pau à tiracolo, rindo, rindo, rin­do, e organizando outra paz à la Vietnam, que garanta a morte de umas 300 mil pessoas em combate per anum, e aparecendo na capa de Time, Newsweek etc, como o Metternich cum Talleyrand cum Castlereagh moderno. Condon é uma pálida caricatura da realidade. Em Winter Kills não existe nada melhor do que a resposta de Edward Kennedy a aqueles agentes da KGB fantasiados de estudantes numa Universidade em Moscou, que lhe perguntaram se tinha lido o re­latório Warren sobre o assassinato de John, Jack, Juquinha. “Não, mas falei com Warren e com meu irmão, Robert, que era ministro da Justiça e estou satisfeito que o assassino foi Lee Harvey Oswald”. Warren recebeu tudo mastigado pelo FBI e CIA que, nos nossos dias de “Watergate” (e antes mesmo, para os iniciados), são tão críveis quanto Pinóquio. E não há quem não saiba que Robert Kennedy ficou tão abalado com a morte do irmão que durante meses — os principais, da investigação — foi incapaz de funcionar politicamen­te. E, no entretanto, acredite, o possível futuro presidente dos EUA, Ted, dá uma de “não li o livro, mas vi o filme”, o que deve ter feito os agentes da KGB concluírem que, no fim, eles vão ganhar mesmo.

       Ou pensem em Indira Gandhi e Patty Hearst, estes dois exem­plos da capacidade das mulheres liberadas.

       Já D. Indira informa que fez uma explosão nuclear, ao custo de 173 milhões de dólares, num país onde 2/3 do povo morrem de fome e, na última contagem, havia 239 milhões de analfabetos (além de nascerem 1 milhão de desproteinizados por mês). Ela diz que a ex­plosão é para fins pacíficos (em termos de física, não existe sequer a distinção técnica). Bem, locutores impassíveis ou repórteres ob­jetivos nos transmitem maciçamente dados como esses todo dia, toda hora, todo minuto. É uma forma de droga, contra a qual já desenvolvemos anticorpos de indiferença. É preciso um satírico na linha de Condon para que sintamos que esse “surrealismo paranóide” é o pão nosso de cada dia.

       O mundo de Le Carré é, na aparência, diferente. George Smiley, a melhor personagem que ele já criou, o agente gordote, tímido, corno manso e sofrido, inseguro de si próprio, é um modelo de lógica e em Tinker, Tailor, Soldier, Spy, a descoberta do infiltrador soviético progride quase que socraticamente, numa sessão de per­guntas e respostas em que a realidade vai se formando peça por peça diante dos nossos olhos. Esse sempre foi o charme, basicamente conservador, do thriller clássico, ou seja, que o cérebro humano é capaz de controlar a vida material e instintiva. O cérebro, lem­bremo-nos, é uma “invenção” relativamente recente, de milhares de anos, enquanto nossos antepassados, meramente instintivos, an­daram a terra milhões de anos. A força atávica desses milhões é cer­tamente um dos motivos, se não O Motivo, do caos, dominante, das diferenças de desenvolvimento civilizador entre nações e seres humanos.

       Mas Le Carré, em última análise, concede uma vitória mera­mente episódica ao racional. Por que existem esses serviços de in­teligência que se massacram mutuamente, se intrigam, se espionam? No fim, se anulam uns aos outros, sacrificando um sem-número de vidas inutilmente. Smiley, por exemplo, concorda com o espião soviético sobre a absoluta irrelevância da Inglaterra na luta entre o Ocidente e o comunismo. E Le Carré, politicamente direitista, ad­mite que o comunista luta por princípios, ainda que desmentidos pela realidade das nações comunistas, enquanto o Ocidente quer apenas sobreviver, sem esperanças ou objetivos. O que ele detesta no comunismo é o fanatismo, mas nada tem a contrapor, exceto a melancolia profunda de Smiley.

       A obra é cheia de nuances psicológicas sutis, há as habituais e minuciosas descrições de classes sociais, que é um dos encantos (ao menos para nós, estrangeiros) do romance inglês. Le Carré desglamorizou completamente o espião, obra que Graham Greene e Eric Ambler apenas iniciaram. Ainda assim, Le Carré é criatura da Guerra Fria, acreditando que existe, de facto, uma rivalidade mortal entre EUA e URSS, e isso me parece simplificação. O mundo hoje se divide, confusamente a quem o examina a olho nu, admito, entre os “haves” e os “have nots”, os ricos e pobres, numa guerra civil per­manente e interminável que se estende das ações do ridículo general marechal cinque, executado na aprazível São Paulo americana, Los Angeles, à seriedade do guerrilheiro cambojano. A visão de Le Carré é elitista e velha.

       O espião soviético forneceu durante anos tudo de vital sobre as defesas da Inglaterra à URSS, enquanto deu, de lambuja, a fim de manter-se a salvo no serviço secreto inglês, algumas informações corretas, entre muita mentira, sobre o poderio soviético aos ingleses. Que importância tem isso? A URSS eliminaria a Inglaterra do mapa sem saber de nada que obteve. E o que a Inglaterra aprendeu de pouco sobre a URSS nunca a impediria de ser eliminada. Condon transformaria Tinker, Tailor, Soldier, Spy num cartoon. Le Carré prefere ir levando a sério. O ridículo, sob as duas superfícies diferen­tes, é o mesmo, incontrolavelmente letal.

 

                   CONFISSÃO

       Em Z, Costa-Gavras dramatizou o que é a justiça num regime autoritário de Direita: o instrumento do Estado, dos interesses que o manipulam. Metade do mundo está assim. Nenhuma instituição transcende os homens no poder. Eles são a lei. O resto é palavrório para cada ocasião, juridicamente codificado por fâmulos de toga, sempre disponíveis.

       Em A Confissão, Costa-Gavras escrupulosamente vai ao outro extremo. Existe uma Esquerda que se propõe acabar com o mundo de Z. Acabou? Costa-Gavras é um homem da lei. Quer provas. Prova-nos o contrário.

       Se Z tratava do caso Lambrakis, um crime menor numa nação menor (Grécia; o promotor Sarzetakis, que expôs o escândalo Lam­brakis, está preso incomunicável desde 20 de janeiro pela ditadura grega, sem culpa formada e, presume-se, sob tortura), A Confissão pega o stalinismo Do Guia das Massas, Stalin, nos estertores, caindo sobre a Tchecoeslováquia, em 1951-52. É o affair Slansky, que conhe­ço intimamente, pois veio à tona por completo no breve período de socialismo libertário sob Dubcek. Não há um fato inverídico no fil­me.

       Slansky era secretário-geral do PC tcheco. Ele e vários outros líderes, a maioria de ascendência judaica, foram julgados como “agentes da CIA, Titoístas, trotsquistas e sionistas”. Todos eram heróis da resistência nazista e comunistas dedicados. A maioria foi enforcada. Alguns sobreviveram, sendo até “reabilitados”. O destino dos que voltaram à Tchecoeslováquia depois da invasão soviética é incerto, para dizer o mínimo.

       Costa-Gavras está interessado em vários aspectos do cascv a) por que comunistas linha “justa se confessaram o oposto do que eram; b) qual o motivo da perseguição a eles; c) a conduta dum in­divíduo sob tortura moral e física; d) a gênese e futuro do stalinismo.

       O autor do script é Semprum, comunista, que eu saiba, basean­do-se num relato de sobreviventes que não identifiquei. Minhas fon­tes são outras, mas isso pouco importa. Tudo coincide.

       Costa-Gavras falha em B e D. A opinião do filme, apesar das calúnias universais de pecebistas, não é de Direita. A última imagem é a invasão soviética de Praga. Uns estudantes escrevem numa parede: “Acorda, Lênin. Eles enloqueceram”. O Dr. Corção assi­naria?

       Costa-Gavras falha em B (o motivo da perseguição) porque o alegado pelos torturadores é, paradoxalmente, verdadeiro. Stalin temia o advento da III Guerra Mundial com a tomada do poder pelos republicanos nos EUA, em 1952, inevitável para observadores ar­gutos, já em 1951. Foster Dulles anunciava que “faria rolar para atrás o poder soviético” no Leste europeu. Joe McCarthy atingira o apogeu. Stalin precisava duma frente única, rigidamente ortodoxa (stalinista), nos países satélites (eram satélites naquela época; alguns Rumania e Albânia, libertaram-se depois). Já perdera Tito. Estava no fim das fichas. A Tchecoeslováquia andara na bica de aceitar o Plano Marshall. Só não o fizera por ordem de Moscou. Inclusive Gottwald, presidente da república, fora favorável à idéia (miste­riosamente, sobreviveu ao expurgo). Stalin resolveu eliminar quais­quer líderes que tivessem um mínimo de “cosmopolitismo” (em suma, experiências no PCs do Ocidente) a fim de garantir a fideli­dade tcheca. Daí a escolha de Slansky e demais. Nenhuma coin­cidência que a maioria fosse de ascendência judaica. Stalin, o padrinho do Estado de Israel, ficara fulo de ódio quando Golda Meir ( a mesma) primeira embaixadora do país, chegou a Moscou e foi recebida pelos judeus soviéticos aos aplausos, não encomendados oficialmente. Daí começou a campanha anti-sionista do stalinismo. Logicamente, o grupo Slansky, também por motivos étnicos, tornou-se altamente suspeito.

       Não defendo as razões de Stalin. O stalinismo nada tem a ver com socialismo. Dentro do stalinismo, porém, há uma lógica perver­sa no processo Slansky, desconhecida, pelo visto, de Semprum e Costa-Gavras.

       Sem entender a corrupção que o comunismo sofreu sob o par­tido único, iniciado sob Lênin, e aproveitando os rigorosos pro­gramas desenvolvimentistas de Trotsky em 1920-21 — dessa fonte ideológica, Lênin, e da imaginação política de Trotsky nasceu o Frankenstein do stalinismo — Costa-Gavras deixa o público desinformado da razão de D (ver quarto parágrafo). O partido único representava a ditadura total. Nada mais anti-socialista, no sentido de Marx, Engels e Rosa Luxemburg. O resto foram aberrações na­turais desse excesso de poder. Stalin poderia justificar os processos em que liquidou 1 milhão de bolcheviques entre 1934-39, invocando Lênin, que proibiu facções até dentro do Partido (1921), e alegando que aplicara a pena de morte desses “objetivamente traidores” em virtude da iminência da guerra contra o nazi-fascismo. Em 1951-52, havia o imperialismo americano, ameaçando o “Estado Proletário” com armas nucleares, logo era também necessário limpar a área de dissidentes ainda que potenciais. Essa, a essência “racional” do stalinismo, muito acima do intelecto de Semprum e Costa-Gavras, infelizmente.

       Já A e C funcionam maravilhosamente. O vice-ministro das Relações Exteriores é deixado sem dormir, com um minimo de alimentação, andando sempre, até que a resistência física dele suma. Mas o “melhor” é a tortura mental. A personagem de Yves Montand apoiou os Processos de Moscou e outros, iguais ao dele. Agora, os interrogadores jogam esse fato na cara da nova vítima. Não concordou ele que Bukharin, Radek (comunistas fiéis, expur­gados por Stalin) etc., eram “objetivamente” traidores? O Partido não está sempre certo? Como pode estar errado em relação ao grupo Slansky. Esse problema de consciência dos comunistas sob o sta­linismo foi aprofundado em O Zero e o Infinito, de Koestler, e Costa-Gavras, em nível menor, o reproduz com literalismo superficial mas convincente. “Antes continuar errado dentro do Partido do que cer­to fora do Partido”, diz uma das personagens do filme. É fácil enten­der porque os PCs boicotam A Confissão.

       Claro, Koestler e Costa-Gavras exageram. Milhares de fun­cionários do PC na URSS e noutros países recusaram-se a participar da farsa. No íntimo, reconheceram que tinham errado quanto aos “objetivamente traidores” que haviam condenado antes, e prefe­riram morrer em silêncio do que trair-se a si próprios em público. Não resta dúvida, porém, que um bom número de líderes seguiu o caminho de Montand em A Confissão, inclusive grandes figuras de 1971, como Bukharin, Zinoview, Kamenev, Rykov, Mrachovsky, Rakovsky etc.

       A tortura de Montand nos é mostrada minuciosamente. Alguns críticos acham o filme repeticioso. Queriam tortura variada? Isso é ridículo. O drama de Montand é que ele é parte do sistema que o destrói. Daí nunca atingir a grandeza da personagem de Malamud em O Homem de Kiev (The Fixer). E os torturadores sabem disso. Não o espancam ou lhe arrancam as unhas. Esse primitivismo é reservado a camponeses recalcitrantes ou a inimigos verdadeiros do sistema. Têm de conquistar a mente de Montand, o comunista per­feito, obrigado a declarar-se publicamente anticomunista, em nome do comunismo. Um drama ideológico, raridade há muito esperada em cinema.

       Montand só conseguiria manter a dignidade se renegasse o comunismo. Mas isso ele não pode fazer, porque é comunista con­victo. Logo, termina na corte de justiça, dizendo-se tudo que exigem dele.

       Reabilitado pelo XX Congresso (a denúncia de Khruschev a Stalin), solto alguns anos depois, encontrâmo-lo em Paris, na dúvida e se deve contar a experiência de distorção do socialismo a que se submeteu. O período Dubcek lhe dá esperanças. Volta a Praga, onde publicará as memórias dele numa editora do Partido. No dia que chega, os soviéticos também chegam, com tanques. O filme termina nessa nota de perplexidade, que, certamente, corrói as bases da or­todoxia comunista na linha Moscou. O que resultará daí? Costa-Gavras fica na pergunta. A resposta não é fácil nem será simples.

       O filme é absorvente. Eu gostaria que Costa-Gavras tivesse maior cultura e explicasse ao público os temas que levantei. E tam­bém que explorasse o efeito do affair nas relações de Montand e mulher (Simone Signoret), outra comunista linha justa, que renega sinceramente o marido depois de ouvir-lhe a confissão na rádio es­tatal (mais tarde, os dois se reconciliam). Este último tema é par­ticularmente fascinante, mas Costa-Gavras apenas roça nele.

       Recomendo A Confissão. Nada menos comum que um filme político aceitável, e este é mais do que isso: o documentário do stalinismo em ação, visto da Esquerda (a demonologia da Direita é ridícula), há muito precisa ser divulgado além do alcance de eruditos e especialistas. Costa-Gavras deu um primeiro e significativo passo na direção certa.

 

                       BATENDO AS CINZAS

       Madame Bovary e eu éramos muito católicos, na infância. A pobrezinha insistiu em continuar, adulta, “trocando de objeto” e procurou nos homens o que encontrarano catequismo. Deu bode. É um grande livro feminista, se vocês quiserem, porque a Bova demonstra que é impossível à mulher conseguir dos homens o que ela espera, o que disseram, ordenaram a ela que esperasse. É também outros troços, porque os homens, até o Flauba, se identificam com ela, no sentido de que eles também procuram nas mulheres uma correspondente ideal. Há, claro, La Prisionniere, de Proust, ou se mergulhamos daquela rocha do Havaí no mar, que víamos sempre nos movietones, caímos no “Último Tango”, em que Marlon quer Marie de corpo inteiro, e que ela o queria, idem, à exclusão de tudo. Morre no fim. Ou se não, Albertine sempre se manda.

       Seria amor, se soubéssemos todos o significado da palavra, se pudéssemos concordar com o significado, que leva essas pessoas a se comportarem assim? A segunda pergunta é mais importante por­que a primeira é irrespondível em termos não exclusivamente individuais. Truman Capote manjou Tango, como eu, continua muito inteligente se cada dia se parece mais com Sidney Greenstreet, o que também não é mal. Sidney era muito engraçadinho. Não podemos viver dentro de nós mesmos apenas, ou em companhia de alguém, fechando o resto. Seria a morte certa, ainda que abotoemos sob os sons imortais de Antônio e Cleópatra ou deTristão e Isolda.

       O mundo está lá e nos abraça. Eu me lembro, na infância, em Botafogo, de dias ideais. O serviço, em casa, muito superior ao do Novo Antonino's. Companheiros tão íntimos que deveria haver al­guma coisa homossexual entre nós, nunca pensada, ou Deus me livre, expressa, pelo contrário, fazíamos todos os ruídos apropriados à passagem das domésticas tentadoras, e grossuras idem perto das “direitas”, a quem considerávamos inferiores às domésticas, ma­ricás. Existe um ritual, que Frazier não mencionou entre os três mil dele, na caminhada de uns dois quilômetros de casa ao colégio, em ruas em que nos sentíamos dominantes e aceitos. Todos sabiam quem eramos e sabíamos todos quem eram. Uma jornada daquelas de que temos ecos em romances ingleses do Século XIX, na natureza e da natureza. Na escola já era fácil enganar as autoridades cons­tituídas e o nosso círculo de relações se expandia na medida que queríamos. Era proibido fumar nos recreios. Francis, o gênio da sim­plicidade, resolveu o problema. Em vez de obrigar todo mundo a se esconder nos banheiros aviação, a gente ficava nos campos de basquete e voli, que, exceto em dias de jogos, só recebia povo conver­sando. Os padres prefeitos (em suma, os guardiães da ordem pú­blica) se instalavam no campo de futebol, acompanhando a maioria da garotada do balípodo, a uns cem metros de nós. Bem, num dia de sol, e não há outros no Rio, exceto quando o Negrão é governador, quem nos veria acender cigarro, cobrindo a chama, daquela distân­cia? Ninguém e os não fumantes à volta não nos entregariam. Porque se entregassem, ZONK! Havia, claro, a tolice das aulas, mas não perturbava muito. Eu, dono de jornal, recrutaria editores do meu colégio. Sabíamos, com a experiência, o que cairia ou não. De­corávamos o que cairia, e pronto; os de cabeça menos atenta, e havia vários, recebiam auxílio, trocavam as provas com os infor­mados, que as faziam por eles. Eu nunca manjei desenho. Tenho vários no museu do Colégio, da autoria de um companheiro que hoje é monsenhor no Vaticano, onde, espero, Deus já lhe tenha perdoado o pecado.

       No final, voltávamos e nos preparávamos. Havia a sinuca no Itu, em que sempre fui um medíocre, prudentemente só enfrentando gente como eu. Às vezes a polícia batia, à procura de menores, felizmente de menores negros, mulatos, ou brancos muito mal vestidos. Um Anjo nos protegia. E víamos, se havia um filme no Na­cional, ali perto, ou no Guanabara ou Sta que valiam uma caminhada e novas comunhões, à praia de Botafogo. A grande aventura era ir a Copacabana, pelo Gozório, ao Ipanema, Pirajá, ou Astória (aprendi a fumar e a outras coisas no terceiro andar do Astória, quase sempre, vazio, exceto de pessoas que tinham o que fazer ali). Antes, no jantar, uma certa ameaça, a presença do Pai, mas ele preferia ler o Correio da Manhã que não terminara, e iniciar O Globo.

       Não era possível namorar no local. Os amigos nos gozariam. Era pouco macho ficar de mãos dadas com “direitas”. E, além disso, para quê? Rara era a quinzena em que não aparecia uma esposa visitadora, ninguém nunca soube de onde vinha, e servia a todos, como um sultão atuando num harém (sentiram a inversão dialéti­ca?). Levávamos a ilustre visitante à Rua Icatu, onde até hoje ha­bitam famílias da nossa melhor sociedade. É porque era escura. Três amigos me ocorrem agora, que freqüentam casas naquela rua, chegando de automóvel, mulher, filhos e babá. Será que se lembram da fila na escuridão, pelos favores de Marlene? Eu me lembro, sem­pre que vou lá, ou até daqui.

       Alguns namoravam fora da rua. Até eu um dia tentei. A falta de assunto total. Eu tinha mais a dizer em qualquer momento a um membro desconhecido na sinuca do que a uma delas. Enfim, havia o processo a cumprir. Primeiro, pegar delicadamente a mão, no ci­nema, depois desajeitadíssimo passar-lhe o braço pelo ombro, os dois pretendendo mal e porcamente que nada havia acontecido e, o clímax, virar delicadamente o rosto da menina, a que nossos mem­bros não estavam habituados, à delicadeza, e encostar nossos lábios nos delas. As meninas tinham sempre os olhos fechados, se não me engano. Daí, lentamente, a outras pesquisas geológicas. Minha danação começou aí, não, lisonjeio as encantadoras meninas, já eu começara antes, em particular. Se releria em livros e se escreveria em fantasias, mas foi que naquele toque de lábios, afinal uma ex­periência avassaladora de entrega e colheita (as feministas diriam de colheita gratuita apenas) da minha alma, o que senti mais foi minha pobre cabeça analisando a mecânica da situação e, esta coluna lamenta informar, o ridículo da dita. Quando minha avó morreu fui ver Capitão Blood no Pirajá, concluindo corretamente que nada poderia fazer, considerando ridículas cenas de cemitério. Três primas minhas inclusive choravam sempre abraçadas pelas cabeças, em voz alta, em movimento permanente, o que me lembrava baile de car­naval.

       Seria falso eu dizer que certos livros já não me formavam a cabeça, se bem que todo dia eu lia o Gibi e o Globo Juvenil (este era meu. Ou seja, tinha o direito de lê-lo primeiro que meu irmão, dono do Gibi. Eu sempre achava o Gibi melhor). E, às noites, que pas­sávamos até 6 horas da manhã, conversando numa esquina da rua, eu, um outro ocasional e, infalivelmente, um cavalheiro idosíssimo, de 30 anos, que todo mundo chamava de Dr. Virgílio e um que não cito, porque identificável. Não tenho a mais remota opinião do que dizíamos, só que pensar e dizer se haviam tornado, dentro de mim, o sal da terra, sem que eu percebesse ou soubesse de nada. Achávamos a vida doméstica, de rua, de colégio, chatíssimas, o mundo deveria ser além do Túnel Velho, a que só íamos em viagens curtas.

       Naquele ano, 1945, eu não soube que Harry Truman jogara a bomba nuclear no Japão para iniciar a guerra contra a URSS, guerra que colheria até a rua onde eu estava, ou que Truman entrava no im­perialismo global, inclusive assumindo 78% das despesas de uma guerra que a França fazia num local de que devo ter ouvido falar nalguma aula de geografia: a Indochina. Não tomei nota.

 

                                                                                Paulo Francis  

 

                      

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