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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NUM VENTO DIFERENTE / Ursula K. Le Guin
NUM VENTO DIFERENTE / Ursula K. Le Guin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

                           O CONSERTO DO CÂNTARO VERDE

Velas compridas e brancas como as asas de um cisne faziam avançar o navio Vê-longe pela baía no ar de Verão, entre os Braços da Falésia na direção do Porto de Gont. O navio, qual ser de vento seguro e gracioso, deslizou para as águas calmas do cais; e dois homens da cidade que se encontravam a pescar no velho cais saudaram a sua chegada e acenaram à tripulação e ao seu único passageiro, de pé à proa.

Era um homem delgado, com uma trouxa pequena e um velho capote negro, talvez um feiticeiro ou um pequeno mercador, ninguém de importância. Os dois pescadores ficaram a assistir à azáfama na doca e no convés do navio enquanto neste se faziam os preparativos para descarregar, e apenas deitaram um olhar de relance ao passageiro com alguma curiosidade quando ele desembarcou e um dos marinheiros fez um gesto nas suas costas com o polegar, o indicador e o mínimo da mão esquerda apontando para ele: Que nunca mais voltes!

O homem hesitou por um momento no molhe, pôs a trouxa ao ombro e partiu na direção das ruas do Porto de Gont. Eram ruas cheias de movimento e ele entrou logo pelo Mercado do Peixe, com a sua algazarra de vendedores ambulantes e regateiras e as lajes do chão a brilharem com escamas e salmoura. Se sabia o caminho, não tardou a perdê-lo por entre as carroças e as bancadas e as multidões e os olhares frios do peixe morto.

Uma velha alta voltou-se da bancada onde tinha estado a duvidar da frescura do arenque e da sinceridade da peixeira. Ao ver que ela o fitava, o forasteiro disse, pouco avisadamente:

 

 

 

 

 

— Terias a bondade de me indicar o caminho para Re Albi?

— Ora, vai-te afogar na lavadura dos porcos, para começar — lançou-lhe a velha e afastou-se a grandes passadas, deixando o forasteiro com um ar murcho e chocado. Mas a peixeira, aproveitando a oportunidade para marcar pontos, berrou:

— Re Albi, é? É Re Albi para onde queres ir, homem? Fala-me alto e bom som! A casa do Velho Mago, é só o que podes querer em Re Albi. E, pois. Então, sais ali naquela esquina e sobes a travessa dos Elvers ali, estás a ver, até chegar à torre...

Depois de sair do mercado, ruas largas conduziram-no pela colina acima, passando pela enorme torre de vigia até chegar a uma das portas da cidade. Guardavam-na dois dragões de pedra em tamanho natural, com dentes tão grandes como o seu antebraço e olhos de pedra que fitavam a cidade e a baía com um brilho cego. Um guarda que andava por ali disse-lhe que bastava virar à esquerda ao cimo da estrada e estaria em Re Albi.

— E atravessa a aldeia até chegares à casa do Velho Mago — acrescentou o guarda.

Foi subindo a custo a estrada, que era bastante íngreme, e, enquanto caminhava, olhava para as encostas ainda mais íngremes e os picos distantes da Montanha de Gont, que pairava sobre a ilha como uma nuvem.

Era uma longa estrada e o dia estava quente. Não tardou a despir o seu capote negro e seguiu caminho de cabeça descoberta e em mangas de camisa, mas não se lembrara de procurar água ou comprar comida na cidade, ou talvez a timidez o tivesse impedido de o fazer, já que não estava habituado a cidades nem se sentia à vontade com estranhos.

Ao fim de várias longas milhas, alcançou uma carroça que, durante muito tempo, vira lá em cima no caminho poeirento como uma mancha escura no mata-borrão branco do pó. A carroça avançava, a ranger e a chiar, ao ritmo de uma parelha de bois pequenos que pareciam tão velhos, enrugados e lentos como tartarugas. Ele saudou o carroceiro, que se parecia com os bois. O carroceiro nada disse, pestanejando apenas.

— Haverá alguma nascente de água mais acima na estrada? — perguntou o forasteiro.

O carroceiro abanou lentamente a cabeça. Ao fim de muito tempo, disse:

— Não — e pouco depois acrescentou: — Não há.

Avançaram todos devagar. Desanimado, o forasteiro tinha dificuldade em caminhar mais depressa do que os bois, a uma milha à hora, talvez.

Apercebeu-se de que o carroceiro estava a estender-lhe qualquer coisa sem dizer uma palavra; um grande jarro de barro com vime a toda a volta. Pegou nele e, achando-o muito pesado, bebeu quanta água quis, deixando-o pouco mais leve quando o entregou com os seus agradecimentos.

— Sobe — convidou o carroceiro ao fim de algum tempo.

— Obrigado. Eu vou a pé. A que distância fica Re Albi?

As rodas chiavam. Os bois soltaram fundos suspiros, primeiro um, depois o outro. À luz quente do sol, as suas peles poeirentas exalavam um cheiro doce.

— Dez milhas — disse o carroceiro. Pensou e corrigiu: — Ou doze — e, ao fim de algum tempo, rematou: — Menos não.

— É melhor eu ir indo, então — despediu-se o forasteiro.

Refrescado pela água, conseguiu ultrapassar os bois; e estes e a carroça e o carroceiro estavam já a uma boa distância atrás de si quando ouviu o carroceiro falar de novo: — Vais para a casa do Velho Mago.

Se era uma pergunta, não parecia requerer resposta. O viajante continuou a andar.

Quando começara a subir a estrada, ela estava ainda na sombra vasta da montanha, mas, ao virar à esquerda para a pequena aldeia que supôs ser Re Albi, o Sol ardia no céu a oeste e sob ele estendia-se o mar, branco como aço.

Havia pequenas casas espalhadas aqui e ali, uma praça pequena e empoeirada, uma fonte de onde corria um esguicho fino de água. Dirigiu-se para ela, bebeu da concha das mãos, uma e outra vez, pôs a cabeça debaixo do esguicho, esfregou o cabelo com a água fresca e deixou-a cair-lhe pelos braços abaixo, e sentou-se por uns momentos no rebordo de pedra da fonte, observado num atento silêncio por dois rapazinhos sujos e uma menina suja.

— Ele não é o ferreiro — afirmou um dos rapazinhos.

O forasteiro penteou o cabelo molhado para trás com os dedos.

— Deve ir para a casa do Velho Mago — disse a menina —, estúpido.

— Grrr! — fez o rapaz com uma careta horrível, puxando um lado da cara com uma mão enquanto arranhava o ar com a outra, feita garra.

— Tu vê lá, Calhau — avisou o outro rapaz.

— Levo-te lá — propôs a menina ao viajante.

— Obrigado — disse ele, levantando-se cansadamente.

— Não tem bordão, 'tás a ver — disse um dos rapazes, e o outro retorquiu: — Eu não disse que tinha.

Com um ar de poucos amigos, ficaram ambos a ver o forasteiro seguir a menina para fora da aldeia por um caminho para norte, atravessando terras de pasto rochosas ladeadas por uma encosta íngreme à esquerda.

O Sol ardia sobre o mar. Encandeava o forasteiro e a linha alta do horizonte e o vento que soprava faziam-no sentir-se atordoado. A criança era uma pequena sombra aos saltos à sua frente. Ele parou.

— Anda lá — animou ela, mas parou também. Ele aproximou-se dela no caminho. — Ali — apontou a pequena. O forasteiro avistou uma casa de madeira perto da beira do barranco, ainda a alguma distância.

— Eu não tenho medo — disse a menina. — Já fui buscar os ovos deles uma quantidade de vezes para o pai do Calhau levar ao mercado. Uma vez ela deu-me pêssegos. A senhora velha. O Calhau diz que os roubei, mas não roubei nada. Vai lá. Ela não está. Não está nem uma nem outra.

Ela deixou-se ficar parada, a apontar para a casa.

— Não está lá ninguém?

— Está o homem velho. O velho Falcão está.

O viajante continuou a andar. A criança ficou parada a segui-lo com os olhos até ele dobrar a esquina da casa.

Num campo íngreme vedado, duas cabras fitavam o forasteiro. Algumas galinhas e pintinhos meio crescidos debicavam e cacarejavam na erva alta junto aos pessegueiros e às ameixeiras. Em cima de um escadote pequeno encostado ao tronco de uma das árvores estava um homem; tinha a cabeça entre as folhas e o forasteiro só lhe via as pernas nuas e morenas.

— Olá — disse o forasteiro e, após algum tempo, repetiu a saudação um pouco mais alto.

As folhas abanaram e o homem desceu o escadote à pressa. Trazia uma mão cheia de ameixas e, quando saltou do último degrau do escadote, afastou com um gesto duas abelhas atraídas pelos frutos sumarentos. Avançou; era um homem baixo, de costas direitas, cabelo grisalho apanhado atrás, a deixar ver um rosto atraente, marcado pelo tempo. Parecia ter cerca de setenta anos. Cicatrizes antigas, quatro linhas brancas, iam-lhe do malar esquerdo até ao maxilar. Tinha um olhar claro, direto, intenso.

— Estão maduras — disse —, embora sejam ainda melhores amanhã — acrescentou, estendendo-lhe o punhado de pequenas ameixas amarelas.

— Meu Senhor Gavião — pronunciou o forasteiro em voz rouca. — Arquimago.

O ancião fez um aceno breve de assentimento.

— Vem para a sombra — convidou.

O forasteiro seguiu-o e fez o que lhe foi ordenado: sentou-se num banco de madeira à sombra da árvore nodosa junto à casa; aceitou as ameixas, agora lavadas e servidas num cesto de verga; comeu uma, depois outra, e outra ainda. Questionado, confessou que não tinha ainda comido nada nesse dia. Ficou sentado enquanto o dono da casa entrava nesta, saindo pouco depois com pão e queijo e meia cebola. O hóspede comeu o pão e o queijo e a cebola e bebeu a taça de água fria que o anfitrião lhe trouxera. Este comeu ameixas para lhe fazer companhia.

— Pareces cansado. Vieste de longe?

— De Roke.

A expressão do velho era difícil de decifrar. Apenas disse: — Não o teria adivinhado.

— Sou de Taon, Senhor. Fui de Taon para Roke. E aí o Mestre das Configurações disse-me que deveria vir até aqui. Até ti.

— Porquê?

Era um olhar de inspirar respeito.

— Porque atravessaste, vivo, a terra da sombra... — a voz rouca do forasteiro desfaleceu.

O velho tomou a palavra: — E alcancei as longínquas praias do dia. Sim. Mas essas palavras foram pronunciadas como profecia da chegada do nosso Rei, Lebánnen.

— Tu estavas com ele, meu Senhor.

— Estava. E ele ganhou o seu reino lá. Mas eu deixei o meu. Por isso, não me dês qualquer título. Falcão, ou Gavião, como queiras. E como devo chamar-te a ti?

O homem murmurou o seu nome de usar: — Amieiro.

A comida e a bebida e a sombra e o descanso tinham-no relaxado visivelmente, mas ainda parecia exausto. Envolvia-o uma tristeza fatigada; o seu rosto estava cheio dela.

O velho falara cora um tom duro na voz, que desapareceu quando propôs: — Vamos deixar a conversa para mais tarde. Viajaste quase mil milhas por mar e caminhaste quinze pela encosta acima. E eu tenho de regar os feijões e as alfaces e tudo o resto, visto que a minha mulher e a minha filha deixaram a horta a meu cargo. Por isso, descansa um pouco. Falaremos na frescura do fim da tarde. Ou na frescura da manhã. Raramente há tanta pressa como eu julgava dantes.

Quando voltou, meia hora depois, o seu hóspede estava a dormir deitado de costas na erva fresca à sombra dos pessegueiros.

O homem que tinha sido Arquimago de Terramar parou, com um balde numa das mãos e uma enxada na outra, e olhou para o forasteiro adormecido.

— Amieiro — murmurou. — Qual é a perturbação que trazes contigo, Amieiro?

Parecia-lhe que, se quisesse saber o nome-verdadeiro do homem, sabê-lo-ia pensando, aplicando a sua mente ao problema, como poderia ter feito quando era mago.

Mas não o sabia e pensar não lhe revelaria, e não era um mago.

Nada sabia sobre este Amieiro e tinha de esperar que lhe fosse dito.

— Nunca perturbar uma perturbação — disse de si para consigo, e foi regar os feijões.

Logo que a luz do sol foi cortada por um muro baixo de pedra ao longo do topo do barranco perto da casa, a frescura da sombra despertou o homem que dormia. Sentou-se com um arrepio e depois pôs-se de pé, um pouco retesado e desorientado, com sementes de erva no cabelo. Ao ver o seu anfitrião a encher baldes no poço e a carregá-los para a horta, foi ajudá-lo.

— Mais três ou quatro devem chegar — considerou o ex-Arquimago, regando as raízes de um renque de couves novas. O cheiro a terra molhada no ar seco e quente era agradável. A luz do Ocidente espalhava-se no chão como pedaços de ouro.

Sentaram-se num banco corrido ao lado da porta da casa a ver o pôr do Sol. O Gavião trouxera de casa uma garrafa e duas taças baixas e grossas de vidro esverdeado.

— O vinho do filho da minha mulher — disse. — Da Quinta do Carvalho, no Vale-do-Meio. Foi um bom ano, há sete anos.

Era um vinho tinto xistoso que aqueceu o Amieiro por completo. O Sol pôs-se com uma claridade calma. O vento amainara. As aves nas árvores do pomar fizeram alguns comentários finais.

O Amieiro ficara pasmado quando soubera pelo Mestre das Configurações de Roke que o Arquimago Gavião, esse homem lendário, que trouxera o rei de volta do reino da morte e depois se afastara a voar montado num dragão, ainda era vivo. Vivo, disse o Configurador, e a viver na sua ilha natal, Gont.

— Digo-te o que poucos sabem — concluíra o Configurador — porque julgo que precisas de o saber. E julgo que guardarás o seu segredo.

— Mas então ele ainda é Arquimago! — exclamara o Amieiro, com uma espécie de júbilo: pois era um quebra-cabeças e uma preocupação para todos os homens da arte que os sábios da Ilha de Roke, a escola e o centro dos magos no Arquipélago, não tivessem ainda, em todos os anos do reinado do Rei Lebánnen, nomeado um Arquimago para substituir o Gavião.

— Não — dissera o Configurador. — Não é sequer um mago.

O Configurador contara-lhe algo sobre a forma como o Gavião perdera o seu poder e a razão; e o Amieiro tivera tempo de refletir sobre tudo o que ouvira. Mas mesmo assim, aqui, na presença deste homem que falara com dragões e trouxera de volta o Anel de Erreth-Akbe, e atravessara o reino dos mortos e governara o Arquipélago antes do rei, todas aquelas lendas e canções não lhe saíam da mente. Mesmo ao vê-lo velho, contentado com o seu jardim, sem qualquer poder em si ou à sua volta que não fosse o de uma alma formada por uma longa vida de pensamento e ação, continuava a ver um grande mago. E, por isso, perturbava-o consideravelmente que o Gavião tivesse mulher.

Mulher, filha, enteado... Os magos não tinham família. Um feiticeiro comum como o Amieiro podia casar ou não, mas os homens com verdadeiro poder eram celibatários. O Amieiro conseguia imaginar este homem montado num dragão, não lhe custava nada; mas pensar nele como marido e pai era outra questão. Não conseguia. Tentou. Perguntou:

— A tua... esposa. Está com o filho dela, então?

O Gavião regressou de um lugar muito distante. Os seus olhos tinham estado nos golfos do Ocidente.

— Não — respondeu. — Está em Havnor. Com o Rei.

Ao fim de algum tempo, regressando completamente, acrescentou:

— Foi para lá com a nossa filha logo a seguir à Longa Dança. Lebánnen mandou chamá-las, para tomar conselho. Talvez sobre a mesma questão que te traz aqui. Veremos... Mas a verdade é que esta noite estou cansado e não muito disposto a considerar questões de peso. E tu também pareces cansado. Por isso, uma tigela de sopa, talvez, e outro copo de vinho, e dormir? E falaremos amanhã de manhã.

— Com todo o prazer, meu Senhor — disse o Amieiro —, a não ser dormir. E o que eu receio.

O ancião demorou algum tempo a entender o que lhe dizia o Amieiro, mas por fim perguntou: — Receias dormir?

— Os sonhos.

— Ah — e lançou-lhe um olhar penetrante dos seus olhos escuros sob sobrancelhas emaranhadas e grisalhas. — Fizeste uma boa soneca ali na erva, acho eu.

— O sono mais doce que já dormi desde que parti da Ilha de Roke. Estou-te grato por essa benesse, meu Senhor. Talvez volte esta noite. Mas, se não, debato-me com o meu sonho e grito e acordo, e sou um fardo para quem esteja perto de mim. Dormirei cá fora, se me permitires.

O Gavião acenou com a cabeça.

— A noite será amena — disse.

E foi uma noite amena, fresca, com uma brisa marítima a soprar do Sul e as estrelas do Verão a alumiarem todo o céu, a não ser a parte onde o cume amplo e escuro da montanha se erguia. O Amieiro pousou na erva onde dormira antes a esteira e a pele de carneiro que o seu anfitrião lhe dera.

O Gavião deitou-se na pequena alcova do lado oeste da casa. Dormira ali em pequeno, quando aquela era a casa de Óguion e ele era aprendiz de Óguion em feitiçaria. Era ali que dormia Tehanu há quinze anos, desde que passara a ser sua filha. Depois da partida dela e de Tenar, quando se deitava na cama do casal no canto escuro das traseiras do quarto sentia a sua solidão, pelo que começara a dormir na alcova. Gostava da cama estreita junto à parede grossa de madeira da casa, mesmo debaixo da janela. Dormia bem ali. Mas nesta noite não dormiu bem.

Antes da meia-noite, acordado por um grito e vozes lá fora, levantou-se de um salto e foi até à porta. Era o Amieiro a debater-se com um pesadelo, por entre os protestos ensonados que vinham da tipóia. O Amieiro gritava na voz espessa dos sonhos e depois acordou, com um sobressalto de pânico e aflição. Pediu desculpa ao seu anfitrião e disse que se deixaria ficar sentado durante algum tempo à luz das estrelas. O Gavião voltou a deitar-se. Não foi de novo acordado pelo Amieiro, mas teve um sonho mau.

Estava de pé junto a um muro de pedras perto do cume de uma longa encosta coberta por erva seca e cinzenta, que se precipitava da penumbra para o escuro. Sabia que já ali estivera, já estivera naquele lugar, mas não sabia quando ou que lugar era. Estava alguém do outro lado do muro, do lado que descia, não longe. Ele não conseguia ver-lhe o rosto, só que era um homem alto, envolto num manto. Sabia que o conhecia. O homem falou-lhe, usando o seu nome-verdadeiro. Disse:

— Em breve estarás aqui, Gued.

Trespassado de frio, sentou-se na cama, firmando o olhar para ver o espaço da casa à sua volta, para se envolver na sua realidade como se ela fosse um cobertor. Olhou pela janela para as estrelas. Foi nessa altura que o frio lhe entrou no coração. Não eram as estrelas do Verão, queridas, familiares, a Carroça, o Falcão, os Dançarinos, o Coração do Cisne. Eram outras estrelas, as estrelas pequenas e paradas da terra árida, que nunca nascem nem se põem. Soubera o seu nome, em tempos, quando sabia os nomes das coisas.

— Arreda! — exclamou em voz alta e fez o gesto de afastar a desgraça que tinha aprendido aos dez anos. Fixou o olhar na abertura da porta da casa, no canto por detrás da porta, onde julgou ver a escuridão a tomar forma, adensando-se e erguendo-se.

Mas o seu gesto, embora fosse desprovido de poder, acordou-o. As sombras por detrás da porta não passavam de sombras. As estrelas lá fora eram as estrelas de Terramar, a empalidecerem aos primeiros alvores da madrugada.

Ficou sentado, com a pele de carneiro à volta dos ombros, a ver as estrelas desvanecerem-se ao descerem a oeste, a ver a luz nascente, as cores da luz, os jogos e mudanças do dia que se aproximava. Havia nele uma mágoa, não sabia por quê, uma dor e uma ânsia como se por algo que lhe fosse querido e tivesse perdido, perdido para sempre. Estava acostumado a isso; muito lhe fora querido e muito perdera; mas esta tristeza era tão enorme que não lhe parecia sua. Sentia uma tristeza no âmago das coisas, mágoa até mesmo na chegada da luz da manhã. Agarrara-se a ele, do sonho que tivera, e não o largou quando se levantou.

Acendeu o lume na grande lareira e foi aos pessegueiros e à capoeira buscar o desjejum. O Amieiro vinha pelo caminho que se estendia para norte ao longo do topo do barranco; tinha ido passear ao nascer do dia, disse. Parecia cansado e o Gavião notou mais uma vez a tristeza no seu rosto, que ecoava o estado de espírito em que o seu próprio sonho o embrenhara.

Tomaram uma taça de papas quentes de cevada, que a gente do campo em Gont tinha por costume beber, um ovo cozido, um pêssego; comeram à lareira, porque o ar da manhã à sombra da montanha era demasiado frio para se sentarem lá fora. O Gavião tratou dos seus animais: deu de comer às galinhas, deitou grão aos pombos, levou as cabras para a pastagem. Quando voltou, sentaram-se de novo no banco junto à porta. O Sol ainda não tinha passado a montanha, mas o ar estava já seco e quente.

— Agora conta-me o que te traz aqui, Amieiro. Mas, como passaste por Roke, diz-me primeiro se está tudo bem na Casa Grande.

— Não entrei nela, meu senhor.

— Ah — um tom neutro, mas um olhar penetrante.

— Só estive no Bosque Imanente.

— Ah — um tom neutro, um olhar neutro. — O Configurador está bem?

— Disse-me: «Leva o meu afeto e homenagens ao meu senhor e diz-lhe: quem me dera que andássemos os dois juntos no Bosque como costumávamos.»

O Gavião sorriu com alguma tristeza. Ao fim de algum tempo, instou:

— Pois. Mas ele mandou-te vir ter comigo com algo mais para dizer do que isso, parece-me.

— Tentarei ser breve.

— Homem, temos todo o dia. E eu gosto de uma história contada desde o princípio.

Então, o Amieiro contou-lhe a história desde o princípio.

Era filho de uma bruxa e nascera na cidade de Elini em Taon, a Ilha dos Harpistas.

Taon situa-se na ponta sul do Mar de Éa, não longe de onde ficava Soléa antes de o mar a engolir. Era esse o antigo centro de Terramar. Todas aquelas ilhas tinham já estados e cidades, reis e feiticeiros, quando Havnor era ainda uma terra de tribos em guerra e Gont um lugar bravio governado por ursos. As pessoas nascidas em Éa ou Ebéa, Enlad ou Taon, mesmo que sejam a filha de um cavador de valas ou o filho de uma bruxa, consideram-se descendentes dos Magos Mais Antigos e partilham a linhagem dos guerreiros que morreram pela Rainha Elfarran na idade das trevas. Por conseguinte, têm muitas vezes uma fina cortesia de modos, embora também por vezes uma altivez indevida, e uma maneira de pensar e falar generosa e espontânea, uma forma de se elevarem acima de meros fatos e mera prosa, de que desconfiam aqueles cuja mente está dominada pelo negócio.

— Papagaios sem fio — dizem de tais pessoas os homens ricos de Havnor. Mas não o dizem por perto do Rei, Lebánnen da Casa de Enlad.

As melhores harpas de Terramar são feitas em Taon, onde existem escolas de música, e muitos dos cantores famosos dos Lais e Feitos nasceram ali ou ali aprenderam a sua arte. Elini, contudo, não passa de uma cidade nos montes, com um mercado e sem música, relatou Amieiro; e a sua mãe era uma mulher pobre, embora não fosse, nas suas palavras, pobre de passar fome. Tinha um sinal de nascença, uma mancha vermelha desde a sobrancelha e orelha direitas, até ao ombro. Muitas mulheres e homens, com um defeito ou diferença assim, tornavam-se bruxas ou feiticeiros, «marcados para isso», diziam as pessoas. A Amora aprendeu feitiços e sabia fazer o tipo mais comum de bruxarias; não tinha um verdadeiro dom, mas os seus modos eram quase tão bons como o dom em si. Ganhava a vida e treinou o filho tão bem quanto sabia; e poupou o suficiente para o pôr de aprendiz com o feiticeiro que lhe deu o seu nome-verdadeiro.

Do seu pai, o Amieiro nada disse. Nada sabia. A Amora nunca falara dele. Embora raramente sejam celibatárias, as bruxas quase nunca ficam com qualquer homem mais do que uma ou duas noites, e era uma coisa rara uma bruxa casar com um homem. Era muito mais freqüente duas bruxas viverem as suas vidas juntas e a isso chamava-se casamento de bruxas ou «noivada». O filho de uma bruxa tinha, pois, uma ou duas mães, mas não tinha pai. Toda a gente o sabia e o Gavião nada lhe perguntou a esse respeito; mas interrogou-o sobre o seu treino.

O feiticeiro Gannet ensinara ao Amieiro as poucas palavras que ele sabia da Verdadeira Fala e alguns sortilégios de encontrar e iludir, para os quais o Amieiro não tinha, disse, qualquer talento. Mas Gannet interessara-se o suficiente pelo rapazinho para tentar descobrir o seu verdadeiro dom. O Amieiro era um consertador. Sabia reunir o que se afastara. Sabia tornar inteiro. Uma ferramenta partida, a lâmina quebrada de uma faca ou machado, uma tigela de barro estilhaçada: ele sabia voltar a unir os fragmentos, sem junção, soldadura ou ponto fraco. Por isso, o seu mestre mandou-o procurar vários feitiços de consertar, que ele descobriu sobretudo entre as bruxas da ilha e, com elas e sozinho, aprendeu a arte de consertar.

— É uma espécie de poder de cura — comentou o Gavião. — Não é um dom menor, nem uma arte fácil.

— Era uma alegria para mim — disse o Amieiro com a sombra de um sorriso no rosto. — Desvendar os feitiços e descobrir por vezes como usar uma das Verdadeiras Palavras no trabalho... Voltar a pôr inteiro um barril que secou e ficou com as traves soltas dos anéis... é um verdadeiro prazer, vê-lo a construir-se de novo e a inchar com a curva certa e a ficar ali assente no fundo, pronto a receber o vinho... Havia um harpista de Meoni, um grande harpista, oh, tocava como um vendaval nos montes altos, como uma tempestade no mar. Tratava as cordas da harpa com dureza, dedilhando-as e puxando-as na paixão da sua arte, de forma que se quebravam mesmo no ponto mais alto e livre da música. E, por isso, contratou-me para ficar por perto quando ele tocasse e, quando quebrava uma corda, eu consertava-a com a mesma rapidez da nota e ele continuava a tocar.

O Gavião acenava com a cabeça, com o interesse de um colega de ofício a falar de trabalho.

— Já alguma vez consertaste vidro? — perguntou.

— Já, mas é um trabalho demorado e custoso — respondeu o Amieiro —, com todos os pedacinhos minúsculos e estilhaços em que o vidro se parte.

— Mas um buraco grande no calcanhar de uma meia pode ser pior — contrapôs o Gavião, e continuaram a falar sobre consertos durante algum tempo antes de o Amieiro voltar à sua história.

Tornara-se então um consertador, um feiticeiro com uma clientela modesta e uma reputação local. Quando tinha cerca de trinta anos, foi a Meoni, a principal cidade da ilha, com o harpista, que ia tocar num casamento ali. Uma mulher veio procurá-lo onde se albergavam, uma mulher jovem, que não fora treinada como bruxa; mas tinha um dom, disse ela, o mesmo que ele, e queria que ele a ensinasse. E, na verdade, tinha um dom maior do que o seu. Embora não soubesse uma palavra da Antiga Fala, conseguia voltar a pôr inteiro um jarro estilhaçado ou consertar uma corda esfiapada somente com o movimento das suas mãos e uma canção sem palavras que entoava baixinho, e tinha curado membros fraturados de animais e pessoas, o que o Amieiro nunca se atrevera a fazer.

Por isso, em vez de o Amieiro a ensinar, juntaram as suas capacidades e ensinaram um ao outro mais do que cada um deles jamais soubera. Ela voltou com o Amieiro para Elini e viveu com a mãe dele, a Amora, que lhe ensinou várias aparências e efeitos úteis e formas de impressionar os clientes, embora não muitos conhecimentos reais de bruxaria. Lírio era o seu nome; e Lírio e o Amieiro trabalhavam juntos ali e em todas as cidades dos montes nas redondezas, à medida que a sua reputação ia crescendo.

— E eu acabei por a amar — disse o Amieiro. A sua voz alterara-se quando tinha começado a falar sobre ela; perdera o tom hesitante, tornando-se insistente e musical.

— Tinha o cabelo escuro, mas com um brilho de ouro vermelho — recordou.

Não havia forma de esconder o seu amor dela, e ela sabia-o e correspondia-lhe. Quer fosse agora bruxa ou não, dizia que não se importava; dizia que os dois tinham nascido para estarem juntos, no trabalho e na vida; amava-o e casaria com ele.

E então casaram e viveram em grande felicidade por um ano, e a metade do segundo ano.

— Não havia nada de mal até chegar o momento de nascer a criança — prosseguiu o Amieiro. — Mas o parto estava atrasado, e cada vez mais atrasado. As parteiras tentaram provocá-lo com ervas e feitiços, mas era como se a criança não a deixasse dá-la à luz. Não quisesse separar-se dela. Não queria nascer. E não nasceu. Levou-a consigo.

Ao fim de algum tempo, disse ainda:

— Tivemos grande felicidade.

— Bem o vejo.

— E a minha dor foi na mesma proporção.

O ancião acenou com a cabeça.

— Podia suportá-la — afirmou o Amieiro. — Sabes como é. Não havia grande razão para continuar a viver que eu visse, mas podia suportá-la.

— Sim.

— Mas no Inverno. Dois meses depois da morte dela. Veio-me um sonho. Ela estava no sonho.

— Conte-me.

— Eu estava de pé na encosta de um monte. Ao longo do cume do monte e descendo a encosta, havia um muro baixo, como um daqueles muros que separam as terras de pasto. Ela estava do outro lado do muro, abaixo. Era mais escuro daquele lado.

O Gavião acenou com a cabeça uma vez. O seu rosto tinha agora a dureza de uma rocha.

— Estava a chamar-me. Ouvi a sua voz a dizer o meu nome e dirigi-me para ela. Sabia que estava morta, sabia-o no sonho, mas fui de bom grado. Não a via claramente e encaminhei-me na sua direção para a ver, para estar com ela. E ela debruçou-se do muro. O muro chegava-me ao coração. Eu tinha pensado que talvez ela tivesse a criança consigo, mas não tinha. Estendia-me as mãos e eu estendi-lhe as minhas e tomamos as mãos um do outro.

— Tocaram-se?

— Eu queria ir ter com ela, mas não conseguia passar o muro. As minhas pernas não se mexiam. Tentei puxá-la para mim e ela queria vir, dava a impressão que podia, mas o muro estava ali entre nós. Não conseguíamos passar-lhe por cima. Por isso, debruçou-se e beijou-me na boca e disse o meu nome. E disse: «Liberta-me!»

— Pensei que, se a chamasse pelo seu nome-verdadeiro, talvez conseguisse libertá-la, trazê-la para cá do muro, e pedi: «Vem comigo, Mevre!» Mas ela disse: «Esse não é o meu nome, Hara, já não é o meu nome.» E largou-me as mãos, embora eu tentasse segurá-la. Gritou: «Liberta-me, Hara!» Mas descia para o escuro. Estava escuro naquela encosta do monte para lá do muro. Chamei o seu nome e o seu nome de usar e todos os doces nomes que lhe dera, mas ela continuou a afastar-se. E então acordei.

O Gavião fitou longa e intensamente o seu visitante.

— Disseste-me o teu nome, Hara — salientou.

O Amieiro ficou com um ar consternado e inspirou fundo um par de vezes, mas olhou para cima com uma coragem desolada.

— A quem melhor poderia confiá-lo? — disse.

O Gavião agradeceu-lhe com gravidade.

— Tentarei ser digno da tua confiança — afirmou. — Diz-me, sabes que lugar é esse... esse muro?

— Não o sabia então. Agora sei que o meu senhor o atravessou.

— Sim. Já estive nesse monte. E passei para o outro lado do muro, pelo poder e arte que tinha dantes. E desci às cidades dos mortos, e falei com homens que conhecera em vida, e por vezes eles responderam-me. Mas, Hara, tu és o primeiro homem que já conheci ou de que já ouvi falar, entre todos os grandes magos das lendas de Roke, Paln ou das Enlades, que tenha tocado ou beijado o seu amor do outro lado desse muro.

O Amieiro estava sentado com a cabeça inclinada e as mãos enlaçadas.

— Diz-me: como era o seu toque? Tinha as mãos quentes? Era ar frio e sombra, ou como uma mulher viva? Perdoa as minhas perguntas.

— Quem me dera poder responder-te, meu senhor. Em Roke, o Mestre da Invocação perguntou-me o mesmo. Mas eu não sei responder com verdade. O meu anseio por ela era tão grande, eu queria tanto... talvez eu quisesse que ela fosse como em vida. Mas não sei. Em sonhos, nem todas as coisas são claras.

— Em sonhos, não. Mas nunca ouvi falar de nenhum homem que fosse até ao muro em sonhos. E um lugar a que um feiticeiro pode tentar chegar, se tiver de o fazer, se souber o caminho e tiver o poder. Mas sem o conhecimento e o poder, só os que estão à morte podem...

E parou de falar, recordando o seu sonho da noite anterior.

— Supus que era um sonho — disse o Amieiro. — Perturbou-me, mas era doce. Pensar nele era como uma seta no coração e, no entanto, agarrei-me àquela dor, acalentei-a ao peito. Queria-a. Tinha a esperança de sonhar de novo.

— E sonhaste?

— Sim. Sonhei de novo.

Olhou sem ver para o golfo azul de ar e oceano a oeste de onde estavam sentados. Do outro lado do mar tranqüilo, baixos e esfumados, estendiam-se os montes iluminados pelo sol de Kameber. Atrás deles, o Sol brilhava forte sobre o flanco norte da montanha.

— Foi nove dias depois do primeiro sonho. Eu estava naquele mesmo lugar, mas no cume do monte. Via o muro abaixo de mim, do outro lado da encosta. E corri pelo monte abaixo, a chamar o nome dela, com a certeza de a ver. Havia alguém lá. Mas, quando me aproximei, vi que não era a Lírio. Era um homem e estava debruçado sobre o muro, como se estivesse a consertá-lo. Disse-lhe: «Onde é que ela está, onde está a Lírio?» Ele não respondeu, nem olhou para cima. Vi o que ele estava a fazer. Não estava a consertar o muro, mas a destruí-lo, tentando deslocar com os dedos uma grande pedra. A pedra não se movia e ele disse: «Ajuda-me, Hara!» Depois, vi que era o meu mestre, Gannet, que me tinha dado o nome. Morreu há cinco anos. Ele continuava a tentar deslocar a pedra com os dedos e disse o meu nome outra vez: «Ajuda-me, liberta-me.» E endireitou-se e estendeu o braço para mim do outro lado do muro, como ela tinha feito, e agarrou-me a mão. Mas a mão dele ardia, com fogo ou frio, não sei, mas o seu toque queimava, por isso retirei a minha mão e a dor e o medo acordaram-me do sonho.

Estendeu a mão enquanto falava, mostrando uma mancha escura nas costas e na palma, como uma pisadura antiga.

— Aprendi a não deixar que me tocassem — acrescentou em voz baixa.

Gued olhou para a boca do Amieiro. Havia também uma mancha escura nos seus lábios.

— Hara, correste perigo de morte — disse, também em voz baixa.

— Há mais.

Forçando a voz contra o silêncio, o Amieiro continuou a contar a sua história.

Na noite seguinte, quando estava a dormir outra vez, deu consigo naquele monte sombrio e viu o muro que, abaixo do cume do monte, atravessava a encosta. Desceu na sua direção, com a esperança de encontrar a mulher. — Não me importava que ela não conseguisse passá-lo, que eu não conseguisse passá-lo, desde que pudesse olhá-la e falar-lhe.

Mas, se ela lá estava, não chegara a vê-la por entre os outros: porque, ao aproximar-se do muro, viu uma multidão de pessoas indistintas do outro lado, algumas mais nítidas e outras mais esfumadas, algumas que ele julgava conhecer e outras que não conhecia, e todas lhe estendiam as mãos e o chamavam pelo nome: «Hara! Deixa-nos ir contigo! Hara, liberta-nos!»

— É uma coisa terrível ouvir o nome-verdadeiro chamado por estranhos — disse o Amieiro —, e é uma coisa terrível ser chamado pelos mortos.

Tentara dar meia volta e subir o monte de novo, afastando-se do muro; mas as suas pernas tinham a fraqueza horrível dos sonhos e não lhe permitiam avançar. Caiu de joelhos para não ceder à tentação de voltar para o muro e pediu ajuda, embora não houvesse ninguém para o ajudar; e, nesse momento, acordou aterrorizado.

Desde então, sempre que dormia profundamente ia dar consigo de pé no monte, pisando a erva seca e cinzenta acima do muro, e os mortos apinhavam-se como sombras abaixo dele, em súplicas e gritos, a chamar o seu nome.

— Acordo — prosseguiu — e estou no meu quarto. Não estou lá na encosta daquele monte. Mas sei que eles estão lá. E tenho de dormir. Tento acordar freqüentemente e dormir durante o dia quando posso, mas acabo por ter de dormir. E então estou lá, e eles estão lá também. E não consigo subir o monte. Quando ando, é para baixo, em direção ao muro. Por vezes consigo voltar-lhes as costas, mas depois julgo ouvir a Lírio entre eles, a gritar por mim. E volto-me para a procurar. E eles estendem-me as mãos.

Olhou para baixo, para as suas, apertadas uma na outra.

— O que hei de fazer? — perguntou.

O Gavião nada disse.

Ao fim de muito tempo, o Amieiro continuou:

— O harpista de que te falei era um bom amigo meu. Após algum tempo, viu que havia alguma coisa errada e, quando lhe contei que não podia dormir com o medo de sonhar com os mortos, ele animou-me e ajudou-me a arranjar uma passagem no navio para Éa, para falar com um feiticeiro cinzento que ali há. — Queria ele significar que se tratava de um homem treinado na Escola em Roke. — Mal o feiticeiro ouviu os meus sonhos, disse que eu tinha de ir para Roke.

— Como se chama?

— Beryl. Serve o Príncipe de Éa, que é Senhor da Ilha de Taon.

O ancião acenou com a cabeça.

— Não podia ajudar-me, disse ele, mas os seus desejos eram ordens para o capitão do navio. Por isso, voltei a fazer-me aos mares. Foi uma longa viagem, ao largo da costa de Havnor e descendo para o Mar Interior. Pensei que estando no mar, longe de Taon, cada vez mais longe, talvez pudesse deixar o sonho para trás. O feiticeiro em Éa chamou àquele lugar do meu sonho a terra árida, e eu pensei que talvez me afastasse dela indo para o mar. Mas todas as noites lá estava na encosta do monte. E mais do que uma vez por noite, à medida que ia passando o tempo. Duas ou três vezes, ou de cada vez que os meus olhos se fecham, estou no monte, com o muro abaixo de mim e as vozes a chamarem-me. Por isso, sou como um homem louco com a dor de uma ferida, que só encontra paz no sono, mas o sono é o meu tormento, com a dor e a angústia dos desgraçados dos mortos, todos apinhados junto ao muro, e o meu medo deles.

Os marinheiros não tardaram a evitá-lo, acrescentou, à noite, porque ele gritava e os acordava com o seu despertar horrível, e durante o dia, porque pensavam que havia uma maldição sobre ele ou um gebbeth.

— E não encontraste alívio em Roke?

— No Bosque — respondeu o Amieiro, e o seu rosto alterou-se completamente quando pronunciou aquela palavra.

Por um momento, o rosto do Gavião assumiu a mesma expressão.

— O Mestre das Configurações levou-me até lá, para debaixo daquelas árvores, e consegui dormir. Até mesmo à noite conseguia dormir. A luz do dia, quando o sol brilha (foi assim de tarde, ontem, aqui), se me aquenta e a sua vermelhidão me trespassa as pálpebras, não receio os sonhos. Mas no Bosque não havia receio nenhum, e consegui gostar outra vez da noite.

— Diz-me como foi quando chegaste a Roke.

Embora o cansaço, a angústia e o receio o perturbassem, o Amieiro tinha o dom da palavra típico da sua ilha; e o que não disse, por receio de falar durante demasiado tempo ou dizer ao Arquimago o que ele já sabia, o seu ouvinte conseguia imaginar facilmente, recordando a primeira vez que chegara à Ilha dos Sages, aos quinze anos.

Quando o Amieiro desembarcara nas docas da Cidade de Thwil, um dos marinheiros tinha desenhado a runa da Porta Fechada no topo da prancha de embarque, para evitar que ele regressasse a bordo. Reparou nela, mas pensou que o marinheiro tinha boas razões para o fazer. O Amieiro sentia-se vítima de uma maldição; sentia que trazia em si as trevas. Essa sensação tornava-o mais tímido do que seria para ele habitual numa cidade estranha. E Thwil era uma cidade muito estranha.

— As ruas fazem-nos perder — disse o Gavião.

— Se fazem, meu Senhor! Perdão, a minha língua obedece ao meu coração e não a ti...

— Não importa. Em tempos, estive acostumado a esse tratamento. Posso ser Senhor das Cabras, se te facilita as palavras. Continua.

Devido às indicações erradas daqueles a quem perguntava o caminho ou à sua interpretação incorreta do que lhe diziam, o Amieiro vagueou pelo pequeno labirinto íngreme da Cidade de Thwil com a Escola sempre à vista e sem conseguir alcançá-la; até que, quando já quase desesperava, chegou a uma porta singela numa parede nua numa praça banal. Depois de a fitar durante algum tempo, reconheceu a parede como sendo aquela a que tentava chegar. Bateu à porta e um homem de rosto tranqüilo e olhos tranqüilos abriu-a.

O Amieiro ia dizer que fora enviado pelo feiticeiro Beryl de Éa com uma mensagem para o Mestre da Invocação, mas não teve oportunidade de falar. O Porteiro fitou-o por um momento e avisou em tom suave:

— Não podes trazê-los para dentro desta casa, amigo.

O Amieiro não perguntou quem era que não podia trazer. Sabia. Mal dormira nas últimas noites: adormecia e acordava logo em terror, dormitava à luz do dia, vendo a erva seca da encosta no convés do navio à luz do sol, o muro de pedras sulcando as ondas do mar. E, ao acordar, o sonho estava nele, com ele, à sua volta, velado, e ouvia, sempre, vagamente, por entre os ruídos do vento e do mar, as vozes que gritavam o seu nome. Naquele momento, não sabia se estava desperto ou a dormir. Sentia-se louco de dor e medo e cansaço.

— Barra-lhes a entrada — rogou — e deixa-me entrar a mim, por piedade, deixa-me entrar!

— Espera aqui — disse o homem, com a mesma suavidade na voz. Depois, apontando, acrescentou: — Há ali um banco. E fechou a porta.

O Amieiro foi sentar-se no banco de pedra. Lembrava-se disso e também de que alguns rapazes de cerca de quinze anos o olhavam com curiosidade ao passarem por ele e antes de entrarem pela porta, mas só recordava tudo o que acontecera depois em fragmentos.

O Porteiro regressou acompanhado por um homem ainda jovem, com o bordão e o capote dos feiticeiros de Roke. Depois, o Amieiro viu-se num quarto que devia ser numa estalagem. A esse quarto veio o Mestre da Invocação, para tentar falar com ele. Mas nessa altura o Amieiro não conseguia falar. Entre o sono e o despertar, entre o quarto iluminado pela luz do sol e o monte cinzento esfumado, entre a voz do Invocador a falar-lhe e as vozes a chamarem-no do outro lado do muro, não conseguia pensar e não conseguia mover-se no mundo dos vivos. Mas no mundo esfumado onde as vozes o chamavam, parecia-lhe que seria fácil descer aqueles poucos passos até ao muro e deixar que as mãos estendidas o tocassem e amparassem. Se fosse um deles, deixá-lo-iam em paz, pensou.

Nesse momento, segundo se recordava, o quarto iluminado pela luz do sol desapareceu completamente e deu consigo no monte cinzento. Mas com ele encontrava-se o Invocador de Roke: um homem grande, entrançado, de pele morena, com um enorme bordão de madeira de teixo que irradiava uma luz difusa naquele lugar escuro.

As vozes tinham deixado de o chamar. As pessoas, aquelas figuras apinhadas junto ao muro, tinham desaparecido. Ouvia-se um restolhar distante e soluços a descerem para a escuridão e a afastarem-se.

O Invocador deu um passo para o muro e nele pousou a mão.

Aqui e ali, as pedras estavam soltas. Algumas estavam caídas na erva seca. O Amieiro sentiu que deveria pegar nelas e pô-las no seu lugar, consertar o muro, mas não o fez.

O Invocador voltou-se para ele e perguntou:

— Quem te trouxe aqui?

— A minha mulher, Mevre.

— Chama-a aqui.

O Amieiro não conseguia falar. Por fim, abriu a boca, mas não foi o nome-verdadeiro da sua mulher que disse, antes o seu nome de usar, o nome por que a chamara em vida. Disse-o em voz alta: «Lírio...» Mas o seu som não era o de uma flor branca, antes o de um seixo a cair no pó.

Nenhum som. As estrelas brilhavam, pequenas e fixas, no céu negro. O Amieiro nunca tinha olhado para o céu neste lugar. Não reconhecia as estrelas.

— Mevre! — disse o Invocador, e, na sua voz grave, pronunciou algumas palavras da Antiga Fala.

O Amieiro sentiu que o ar lhe faltava e mal podia ter-se de pé. Mas nada se mexia na longa encosta que descia para o escuro informe.

E então houve algum movimento, algo mais leve a subir o monte, a aproximar-se lentamente.

Mas a figura que se aproximava era demasiado pequena para ser a Lírio. O Amieiro viu que era uma criança de cerca de doze anos, não saberia dizer se menina ou rapaz. A criança não lhes prestou atenção, a ele ou ao Invocador, e nunca olhou para lá do muro, sentando-se junto à sua base. Quando O Amieiro se aproximou e olhou para baixo, viu que a criança estava a deslocar e a puxar as pedras, tentando soltar uma e depois outra.

O Invocador murmurava palavras da Antiga Fala. A criança olhou para cima uma vez, com indiferença, e continuou a tentar deslocar as pedras com os seus dedos finos, que pareciam não ter força.

A cena era tão horrível que o Amieiro se sentiu estonteado; tentou desviar o olhar e não se lembrava do que acontecera a seguir até acordar no quarto soalheiro, deitado numa cama, fraco, doente e enregelado.

Tomaram conta dele: a mulher distante e sorridente que era a estalajadeira e um homem velho e atarracado, de pele morena, que entrara com o Porteiro. O Amieiro supôs que seria um médico-feiticeiro. Só depois de o ver com o seu bordão de madeira de oliveira percebeu que era o Mestre das Ervas, o curandeiro da Escola em Roke.

A sua presença trouxe alívio e conseguiu fazer com que o Amieiro dormisse. Preparou um chá e deu-o a beber ao Amieiro, e chegou lume a uma erva que ardeu lentamente com um odor semelhante ao da terra escura num pinhal, e, sentando-se perto dele, começou a entoar em voz baixa um cântico longo e suave.

— Mas eu não posso dormir — protestou o Amieiro, sentindo que o sono o inundava como uma grande maré escura. O curandeiro pousou a sua mão quente na mão do Amieiro. E então a paz entrou em Amieiro e ele resvalou para o sono sem medo. Enquanto a mão do curandeiro estava na sua, ou no seu ombro, mantinha-o afastado da encosta escura e do muro de pedras.

Acordou para comer algo e pouco depois o Mestre das Ervas estava de volta com o chá tépido e insípido e o fumo com cheiro a terra e o cântico monótono e sem melodia e o toque da sua mão; e o Amieiro pôde ter descanso.

O curandeiro tinha todos os seus deveres a cumprir na Escola, pelo que só podia ficar com o Amieiro algumas horas da noite. O Amieiro descansou o suficiente em três noites para conseguir comer e andar um pouco pela cidade durante o dia e pensar e falar com coerência. Na quarta manhã, os três mestres, o Mestre das Ervas, o Porteiro e o da Invocação, vieram ao seu quarto.

O Amieiro fez uma reverência ao Mestre da Invocação com temor, quase com desconfiança no coração. O Mestre das Ervas era também um grande mago, mas a sua arte não era completamente diversa do ofício do próprio Amieiro, pelo que havia entre eles uma espécie de entendimento; e havia a grande bondade da sua mão. O Invocador, porém, não lidava com coisas do corpo, mas antes com o espírito, com a mente e a vontade dos homens, com fantasmas, com significados. A sua arte era arcana, perigosa, cheia de riscos e ameaças. E estivera ao lado do Amieiro — mas não em corpo — na fronteira, junto ao muro. Com ele, a escuridão e o medo regressavam.

A princípio, nenhum dos três magos falou. Se tinham alguma coisa em comum, era uma grande capacidade de permanecer em silêncio.

Por isso, o Amieiro falou, esforçando-se por dizer o que lhe ia no coração, pois que menos do que isso não valeria a pena.

— Se eu fiz algum mal que me levou àquele lugar, ou trouxe a minha mulher até mim, ou as outras almas, se puder emendar ou desfazer o que fiz, fá-lo-ei. Mas não sei o que foi que fiz.

— Ou o que és — disse o Invocador.

O Amieiro ficou mudo.

— Poucos de nós sabemos quem somos ou o que somos — sublinhou o Porteiro. — Um vislumbre é tudo o que nos é dado.

— Conta-nos como foste até ao muro de pedras na primeira vez — instou o Invocador.

E o Amieiro contou-lhes.

Os magos escutaram-no em silêncio e nada disseram durante algum tempo depois de ele acabar de falar. Então, o Invocador perguntou: — Já pensaste no que significa passar para o outro lado daquele muro?

— Sei que não poderia regressar.

— Só os magos podem passar para o outro lado em vida, e somente em caso de grande necessidade. O Mestre das Ervas pode acompanhar até àquele muro alguém que padeça, mas, se o doente passar para o outro lado, ele não o segue.

O Invocador era tão alto e tão entroncado e escuro que, olhando para ele, o Amieiro pensou num urso.

— A minha arte de invocação dá-nos o poder de chamar os mortos do outro lado do muro por uns breves instantes, um momento, se disso houver necessidade. Duvido que alguma necessidade possa justificar uma tal violação da lei e do equilíbrio do mundo. Nunca fiz esse encantamento. Nem passei para o outro lado do mundo.

O Arquimago fê-lo, e o Rei com ele, para sarar a ferida do mundo que o feiticeiro chamado Cob lhe infligira.

— E porque o Arquimago não regressava, Thórione, que era o nosso Invocador na altura, desceu à terra árida para o procurar — lembrou o Mestre das Ervas. — Thórione regressou, mas alterado.

— Não há necessidade de falar disso — contrariou o homem grande.

— Talvez haja — redargüiu o Mestre das Ervas. — Talvez o Amieiro precise de o saber. Thórione confiou demasiado na sua força, penso eu. Ficou lá demasiado tempo. Pensou que podia chamar-se a si próprio de novo à vida, mas o que voltou foi apenas a sua habilidade, o seu poder, a sua ambição: o desejo de viver que não dá vida. E, no entanto, confiamos nele, porque o amávamos. E ele devorou-nos. Até Írian o destruir.

Longe de Roke, na Ilha de Gont, o ouvinte do Amieiro interrompeu-o.

— Que nome disseste? — perguntou o Gavião.

— Írian, foi o que ele disse.

— Conheces esse nome?

— Não, meu Senhor.

— Nem eu. — Após uma pausa, o Gavião continuou a falar em voz baixa, como contra a sua vontade. — Mas vi Thórione, lá. Na terra árida, onde ele se tinha arriscado a entrar para me procurar. Custou-me vê-lo ali. Disse-lhe que podia passar para o outro lado do muro. — O seu rosto ficou ensombrado e triste. — Fui imprudente. E imprudente tudo o que se diz entre os vivos e os mortos. Mas eu também o amara.

Ficaram sentados em silêncio. O Gavião levantou-se abruptamente, para espreguiçar os braços e massagear as coxas. Ambos deram uns passos. O Amieiro foi beber água ao poço. O Gavião foi buscar uma pá e o novo cabo para lhe pôr, e meteu mãos ao trabalho, aplanando a peça de carvalho e desbastando a ponta que entraria no encaixe. Disse:

— Continua, Amieiro — e o Amieiro continuou a contar a sua história.

Os dois mestres ficaram em silêncio algum tempo depois de o Mestre das Ervas falar sobre Thórione. O Amieiro arranjou coragem para lhes fazer uma pergunta sobre um assunto que lhe andava na cabeça: como vinham até ao muro os que tinham morrido, e como os magos lá chegavam.

O Invocador respondeu prontamente:

— É uma viagem do espírito.

O velho curandeiro mostrava-se mais hesitante. — Não é com o corpo que passamos para o outro lado do muro, visto que o corpo de quem morre fica cá. E, se um mago lá for em visões, o seu corpo adormecido está ainda aqui, vivo. E por isso chamamos a esse viajante... chamamos àquilo que faz essa viagem para fora do corpo a alma, o espírito.

— Mas a minha mulher pegou-me na mão — contrapôs o Amieiro. Não podia voltar a dizer-lhes que ela lhe beijara a boca. — Senti o seu toque.

— Assim te pareceu — disse o Invocador.

— Se lhe tocaram o corpo, se estabeleceram uma ligação — disse o Mestre das Ervas ao Invocador —, não poderia ser essa a razão por que os outros mortos conseguem vir até ele, chamá-lo, até mesmo tocar-lhe?

— É por isso que deve resistir-lhes — disse o Invocador, lançando um olhar ao Amieiro. Os seus olhos eram pequenos, ardentes.

O Amieiro sentiu estas palavras como uma acusação, uma acusação nada justa. Defendeu-se: — Eu tento resistir-lhes, meu senhor. Já tentei. Mas eles são tantos... e ela está com eles... e sofrem, gritam por mim.

— Não podem sofrer — afirmou o Invocador. — A morte põe fim a todo o sofrimento.

— Talvez a sombra da dor seja dor — discordou o Mestre das Ervas. — Há montanhas naquela terra, e chamam-se Dor.

O Porteiro, que mal tinha falado até àquele momento, comentou na sua voz baixa e calma:

— O Amieiro é um consertador, não um quebrador. Não me parece que possa quebrar aquela ligação.

— Se a fez, pode quebrá-la — disse o Invocador.

— E foi ele que a fez?

— Não tenho tal arte, meu senhor — atalhou o Amieiro, tão alarmado com o que estavam a dizer que falou num tom colérico.

— Então, tenho de descer até eles — deduziu o Invocador.

— Não, meu amigo — disse o Porteiro, e o velho Mestre das Ervas acrescentou: — Tu serás o último.

— Mas esta é a minha arte.

— E a nossa.

— Quem, então?

O Mestre Porteiro encerrou o assunto, dizendo: — Parece que o Amieiro é o nosso guia. Embora tendo vindo até nós em busca de auxílio, talvez possa ser ele a auxiliar-nos. Vamos todos com ele na sua visão. Até ao muro, embora não para lá dele.

E assim, nessa noite, quando, já tarde e a medo, o Amieiro deixou que o sono o vencesse e deu consigo no monte cinzento, os outros estavam com ele: o Mestre das Ervas, uma presença quente no ar gélido; o Mestre Porteiro, esquivo e prateado como a luz das estrelas; e o enorme Mestre da Invocação, o urso, uma força escura.

Desta vez, não se encontravam onde o monte descia para o escuro, mas na encosta mais próxima, a olhar para cima. O muro nesse lugar acompanhava o cume do monte e era baixo, pouco mais do que à altura dos joelhos. Acima dele, o céu com as suas estrelas, escassas e pequenas, era perfeitamente negro.

Nada se movia.

Seria custoso subir o monte até ao muro, pensou o Amieiro. Antes, estivera sempre abaixo dele.

Mas se pudesse ir até ao muro, talvez a Lírio lá estivesse, como da primeira vez. Talvez pudesse pegar-lhe na mão e os magos trá-la-iam de volta com ele. Ou podia passar para o outro lado do muro, onde era muito baixo, e ir ter com ela.

Começou a subir o monte. Era fácil, não custava nada, estava quase lá.

— Hara!

A voz grave do Invocador chamava-o de volta como uma corda à volta do pescoço, uma trela puxada com força. Tropeçou, cambaleou para a frente um passo mais, quase a chegar ao muro, tombou de joelhos e estendeu as mãos para as pedras. Estava a gritar: — Salvem-me! — mas a quem? Aos magos, ou às sombras para lá do muro?

Depois sentiu mãos nos seus ombros, mãos vivas, fortes e quentes, e estava no seu quarto, com as mãos do curandeiro nos seus ombros e a candeia a arder com uma luz branca à sua volta. E havia quatro homens no quarto com ele, e não três.

O velho Mestre das Ervas sentou-se na cama com ele e tentou sossegá-lo durante algum tempo, porque o Amieiro tremia, estremecia, soluçava. — Não consigo — dizia repetidamente, mas não sabia se estava a falar com os magos ou com os mortos.

Quando o medo e a dor começaram a abrandar, sentiu-se insuportavelmente cansado e olhou quase sem interesse para o homem que tinha entrado no quarto. Os seus olhos eram da cor do gelo, o seu cabelo e pele eram brancos. Um homem da Estrema Norte, de Enwas ou Bereswek, pensou o Amieiro.

Esse homem perguntou aos magos:

— O que fazeis, meus amigos?

— Corremos riscos, Azver — respondeu o velho Mestre das Ervas.

— Problemas na fronteira, Configurador — explicou o Invocador. O Amieiro apercebeu-se do respeito que tinham por aquele homem, do seu alívio por ele estar ali, quando lhe contaram de forma concisa o problema.

— Se ele vier comigo, deixam-no ir? — perguntou o Configurador quando eles acabaram de falar e, voltando-se para o Amieiro, disse: — Não terás por que recear os teus sonhos no Bosque Imanente. E, assim, nós não teremos por que recear os teus sonhos.

Todos assentiram. O Configurador acenou com a cabeça e desapareceu. Não estava ali.

Nem estivera lá; fora um envio, um pressentimento. Era a primeira vez que o Amieiro via os grandes poderes destes mestres tornados manifestos, o que o teria perturbado se não estivesse para lá do assombro e do medo.

Seguiu o Porteiro na noite lá fora, pelas ruas; passou as paredes da Escola, atravessou campos no sopé de um monte alto e redondo, seguiu ao longo de um ribeiro que cantava a sua música de água docemente na escuridão das margens. Mais à frente havia um bosque alto, com as árvores coroadas pela luz cinzenta das estrelas.

O Mestre das Configurações veio pelo caminho ao seu encontro, com o mesmo aspecto que tinha quando estivera no quarto. Ele e o Porteiro falaram durante um minuto e depois o Amieiro seguiu o Configurador para dentro do Bosque.

— As árvores são escuras — disse o Amieiro ao Gavião — mas não faz escuro debaixo delas. Há uma luz, uma claridade lá.

O seu ouvinte acenou com a cabeça, sorrindo um pouco.

— Mal lá cheguei, soube logo que conseguiria dormir. Sentia que tinha estado a dormir todo aquele tempo, mergulhado num sonho mau, e agora, ali, estava verdadeiramente acordado: por isso, podia verdadeiramente dormir. Havia um lugar para onde ele me levou, por entre as raízes de uma árvore enorme, um lugar macio com as folhas caídas da árvore, e disse-me que podia deitar-me ali. E eu deitei-me e dormi. Não tenho palavras para exprimir a doçura daquele sono.

O sol do meio-dia brilhava forte; entraram em casa e o anfitrião pôs na mesa pão e queijo e um naco de carne seca. O Amieiro olhava à sua volta enquanto comiam. A casa consistia numa divisão comprida com uma pequena alcova no lado oeste, mas era grande e escura e arejada, de boa construção, com traves e vigas largas, um soalho a brilhar, uma funda lareira de pedra.

— Esta é uma nobre casa — disse o Amieiro.

— Uma casa velha. Chamam-lhe a casa do Velho Mago. Não por causa de mim, nem do meu mestre Aihal que viveu aqui, mas devido ao seu mestre Heleth, que com ele acalmou o grande terremoto. É uma boa casa.

O Amieiro voltou a dormir um pouco sob as árvores, com o sol a brilhar sobre ele, coado pela folhagem em movimento. O seu anfitrião também descansou, mas não durante muito tempo; quando o Amieiro acordou, havia debaixo da árvore um cesto de bom tamanho cheio de ameixas pequenas e douradas, e o Gavião estava lá para cima, na terra de pasto das cabras, a consertar uma vedação. O Amieiro foi ter com ele para o ajudar, mas o trabalho já estava feito. As cabras, contudo, há muito se que tinham ido.

— Nenhuma delas está com leite — resmungou o Gavião ao regressarem a casa. — Não têm mais nada que fazer a não ser encontrar novas maneiras de escapar pela vedação. Tenho-as só para me consumirem... O primeiro encantamento que aprendi foi a chamar as cabras para que não se extraviassem. A minha tia ensinou-me. Agora, tem o mesmo efeito que se eu lhes cantasse uma canção de amor. É melhor ir ver se andam pela horta do viúvo. Não sabes o tipo de feitiçaria para encantar uma cabra e fazê-la voltar, pois não?

As duas cabras castanhas estavam de fato a invadir um canteiro de couves nos arredores da vila. O Amieiro repetiu o encantamento que o Gavião lhe ensinou:

Noth hierth malk man,

hiolk han merth han!

As cabras fitaram-no com um vivo desdém e afastaram-se um pouco. Com berros e um cajado conseguiram que saíssem do canteiro das couves para o caminho e aí o Gavião tirou algumas ameixas do bolso. Com promessas, ofertas e doces falas, conduziu lentamente as fugitivas para a sua terra de pasto.

— São criaturas estranhas — disse, fechando a cancela. — Nunca se sabe o que esperar de uma cabra.

O Amieiro pensou que nunca sabia o que esperar do seu anfitrião, mas não o disse.

Quando estavam de novo sentados à sombra, o Gavião retomou o assunto da manhã:

— O Configurador não é nórdico, é karguiano. Como a minha mulher. Era um guerreiro de Karego-At. O único homem que conheço a vir dessas terras para Roke. Os karguianos não têm feiticeiros. Desconfiam de toda a feitiçaria. Mas preservaram mais conhecimentos dos Velhos Poderes da Terra do que nós. Esse homem, Azver, quando era jovem, ouviu uma lenda do Bosque Imanente e veio-lhe a idéia de que o centro de todos os poderes da terra deveria encontrar-se ali. Por isso, abandonou os seus deuses e a sua língua materna e pôs-se a caminho de Roke. À soleira da nossa porta, disse: — Ensinem-me a viver naquela floresta! — e nós o ensinamos, até ser ele a ensinar-nos a nós... Assim se tornou o nosso Mestre das Configurações. Não é um homem doce, mas é de confiança.

— Eu nunca consegui receá-lo — comentou o Amieiro. — Era fácil estar com ele. Levava-me para o interior do bosque.

Ficaram ambos em silêncio, ambos pensando nas clareiras e nas alas daquele bosque, na luz do sol e das estrelas a incidir nas suas folhas.

— É o centro do mundo — disse o Amieiro.

O Gavião olhou para cima na direção do Leste, para as encostas da Montanha de Gont, com um negrume de árvores a cobri-las.

— Passearei ali — disse —, na floresta, quando chegar o Outono. Ao fim de algum tempo, voltou a falar: — Diz-me que conselho o Configurador tinha para te dar, e porque te mandou vir até mim.

— Ele disse, meu Senhor, que tu sabias mais da... da terra árida do que qualquer homem vivo, e por isso talvez compreendesses o que significa que as almas venham ter comigo a suplicar que as liberte.

— E disse-te qual pensa ser a causa?

— Sim. Disse que talvez a minha mulher e eu não soubéssemos como nos afastarmos, só como nos unirmos. Que eu não era o único responsável, que talvez fôssemos nós os dois, ela e eu, porque nos atraíamos um ao outro, como gotas de mercúrio. Mas o Mestre da Invocação não concordou. Disse que somente um grande poder de magia poderia transgredir assim a ordem do mundo. Como o meu velho mestre Gannet também me tocou do outro lado do muro, o Invocador disse que talvez houvesse nele um poder de mago que em vida estivera oculto ou disfarçado, mas agora se revelava.

O Gavião meditou durante algum tempo.

— Quando eu vivia em Roke — acabou por dizer —, talvez encarasse as coisas como o Invocador. Aí, não conhecia um poder mais forte do que aquele a que chamamos magia. Nem mesmo os Velhos Poderes da Terra, pensava... Se o Invocador que conheceste é o homem que penso, veio para Roke quando era ainda rapaz. O meu velho amigo Vetch de Iffish enviou-o para estudar conosco. E ele não voltou a partir. Essa é uma diferença entre ele e Azver, o Configurador. Azver viveu até ser adulto como filho de guerreiro e ele próprio guerreiro, entre homens e mulheres, em plena vida. As questões que as paredes da Escola excluem, conhece-as ele na carne e no sangue. Sabe que os homens e as mulheres se amam, fazem amor, casam... Tendo vivido estes últimos quinze anos fora das paredes da Escola, inclino-me a pensar que talvez o caminho de Azver seja o melhor. O laço entre ti e a tua mulher é mais forte do que a divisão entre a vida e a morte.

O Amieiro hesitou. — Pensei que assim poderia ser. Mas parece... uma falta de vergonha pensá-lo. Amamo-nos um ao outro, amamo-nos mais do que as palavras podem dizer, mas seria o nosso amor maior do que qualquer outro antes de nós? Seria maior do que o de Morred e Elfarran?

— Talvez não fosse menor.

— Como pode ser isso?

O Gavião olhou para ele como se saudasse algo e respondeu-lhe com uma solicitude que fez o Amieiro sentir-se honrado. — Bem — disse, lentamente —, por vezes existe uma paixão que, nas suas primícias, se depara com um mau fado ou a morte. E, como termina no apogeu da sua beleza, é a que os harpistas cantam e de que os poetas fazem histórias: o amor que escapa ao tempo. Foi esse o amor do Jovem Rei e de Elfarran. Foi esse o teu amor, Hara. Não era maior que o de Morred, mas seria o seu amor maior que o teu?

O Amieiro nada disse, refletindo sobre aquelas palavras.

— Não há menor ou maior quando se trata de uma coisa absoluta — acrescentou o Gavião. — Tudo ou nada, diz o verdadeiro amante, e essa é a verdade do amor. O meu amor jamais morrerá, diz ele. Exige a eternidade. E acertadamente. Como pode morrer, se é a própria vida? O que sabemos da eternidade a não ser o vislumbre que dela temos quando entramos nesse vínculo?

Falava em voz baixa, mas com fogosidade e energia; depois, recostou-se e, após um minuto, disse com um meio-sorriso:

— Cada rude moço da lavoura o canta, cada jovem moça que sonha com o amor o sabe. Mas não é uma coisa com que os Mestres de Roke estejam familiarizados. O Configurador sabia-o, talvez, em tempos. Eu aprendi-o tarde. Muito tarde. Não demasiado tarde — e olhou para o Amieiro, ainda com um olhar ardente, a desafiá-lo. — Tu tiveste isso.

— Tive-o — e o Amieiro inspirou profundamente. Em seguida, alvitrou: — Talvez estejam lá juntos, na terra tenebrosa. Morred e Elfarran.

— Não — afirmou Gavião com uma certeza sombria.

— Mas, se o vínculo é verdadeiro, o que poderia quebrá-lo?

— Não há amantes ali.

— Então o que são, o que fazem, naquela terra? Tu estiveste lá, passaste para o outro lado do muro. Caminhaste e falaste com eles. Diz-me!

— Fá-lo-ei — mas o Gavião nada disse durante algum tempo. — Não gosto de pensar sobre isso — confessou por fim. Esfregou a cabeça e fez um esgar. — Viste... viste aquelas estrelas. Estrelas pequenas, mesquinhas, que nunca se movem. Não há lua. Não há nascer do Sol... Há estradas, quando se desce o monte. Estradas e cidades. No monte há erva, erva morta, mas mais abaixo há só poeira e pedras. Nada cresce. Cidades escuras. As multidões de mortos estão paradas nas ruas ou caminham pelas estradas que não levam a lado nenhum. Não falam. Não se tocam. Nunca se tocam — a sua voz era baixa e seca. — Aí, Morred passaria por Elfarran e nem sequer voltaria a cabeça, e ela não olharia para ele... Não voltam a encontrar-se ali, Hara. Não há vínculo. Lá, a mãe não acalenta o filho nos braços.

— Mas a minha mulher veio ter comigo — lembrou o Amieiro —, chamou-me pelo nome, beijou-me na boca!

— Sim. E, como o vosso amor não era maior do que qualquer outro amor mortal e como tu e ela não são poderosos feiticeiros com a faculdade de alterar as leis da vida e da morte, por conseguinte, por conseguinte há algo nisso. Algo está a acontecer, a alterar-se. Embora aconteça através de ti e a ti, tu és o seu instrumento e não a sua causa.

O Gavião pôs-se de pé e avançou em grandes passadas até ao princípio do caminho ao longo do barranco e depois voltou para junto de Amieiro; estava com uma carga de energia tensa, quase fremente, como um falcão prestes a descer em vôo picado sobre a sua presa.

— A tua mulher não te disse, quando a chamaste pelo seu nome-verdadeiro: «Esse já não é o meu nome»?

— Disse — murmurou o Amieiro.

— Mas como se explica? Nós, os que temos nomes verdadeiros, mantemo-os quando morremos, é o nosso nome de usar que é esquecido... Isto é um mistério para os doutos, posso dizer-te, mas, tanto quanto sabemos, um nome-verdadeiro é uma palavra da Verdadeira Fala. É por isso que somente quem possui o dom pode saber o nome de uma criança e dar-lhe. E o nome vincula o ser — vivo ou morto. Aí reside toda a arte do Invocador... No entanto, quando o mestre chamou a tua mulher chamando-a pelo seu nome-verdadeiro, ela não veio. Tu chamaste-a pelo seu nome de usar, Lírio, e ela veio ter contigo. Terá respondido ao chamamento de quem verdadeiramente a conhecia?

Fitou o Amieiro com um olhar penetrante, como se visse algo mais do que o homem que estava sentado junto a si. Ao fim de algum tempo, prosseguiu:

— Quando o meu mestre Aihal morreu, a minha mulher estava aqui com ele; e, no seu leito de morte, ele disse-lhe: «Está mudado, está tudo mudado.» Estava a olhar para o outro lado do muro. De que lado olhava não sei. — E desde esse tempo houve de fato mudanças: um Rei no trono de Morred e nenhum Arquimago de Roke. Mas mais do que isso, muito mais. Vi uma criança convocar o dragão Keilessine, o Mais Antigo, e Keilessine veio e chamou-lhe filha, tal como eu. O que significa isso? O que significa terem sido visto dragões acima das ilhas do Ocidente? O Rei mandou-a chamar, enviou um navio ao Porto de Gont, pedindo à minha filha Tehanu que fosse aconselhá-lo a respeito de dragões. As pessoas receiam que o velho acordo tenha sido quebrado, que os dragões venham queimar campos e cidades como fizeram antes de Erreth-Akbe lutar contra Orm Embar. E agora, na fronteira entre a vida e a morte, uma alma recusa o vínculo do seu nome... Não compreendo. Tudo o que sei é que as coisas estão a mudar. Tudo está a mudar.

Não havia temor na sua voz, apenas uma intensa exultação.

O Amieiro não conseguia partilhar esse sentimento. Perdera demasiado e estava demasiado exausto pela sua luta contra forças que não controlava nem compreendia. Mas o seu coração ergueu-se à altura daquela galantaria.

— Que mude para o bem, Senhor meu — disse.

— Que assim seja — disse o ancião. — Mas tem de mudar.

Quando o calor deixava já o dia, o Gavião disse que tinha de ir à aldeia. Levou o cesto de ameixas com um cesto de ovos aninhado dentro dele.

O Amieiro acompanhou-o e conversaram. Quando o Amieiro compreendeu por fim que o Gavião trocava frutos e ovos e os outros produtos da sua pequena quinta por cevada e farinha de trigo, que a lenha que queimava era pacientemente recolhida na floresta, que o fato de as cabras não estarem a dar leite significava que tinha de fazer durar o queijo do ano passado, ficou admirado: como podia ser que o Arquimago de Terramar vivesse das suas mãos? O seu próprio povo não lhe prestava as homenagens que lhe eram devidas?

Quando o acompanhou à aldeia, viu mulheres a fecharem as portas ao verem o ancião aproximar-se. O tendeiro que lhe comprou os ovos e os frutos conferiu as contas na sua prancha de madeira sem uma palavra, com o rosto carrancudo e os olhos baixos. O Gavião falou-lhe com bons modos:

— Que tenhas um bom dia, Iddi — mas não recebeu resposta.

— Meu Senhor — perguntou o Amieiro no caminho de regresso a casa —, eles sabem quem tu és?

— Não — disse o ex-Arquimago, com um olhar breve, de lado. — E sim.

— Mas... — o Amieiro não sabia como exprimir a sua indignação.

— Sabem que não tenho poderes de feitiçaria, mas que há algo de sobrenatural em mim. Sabem que vivo com uma estrangeira, uma mulher karguiana. Sabem que a menina a que chamamos filha é uma espécie de bruxa, mas pior, porque o seu rosto e a sua mão foram queimados pelo fogo, e porque ela própria queimou o Senhor de Re Albi, ou o empurrou do barranco, ou o matou com mau olhado; as histórias variam. No entanto, respeitam a casa em que vivemos, porque era a casa de Aihal e Heleth, e um feiticeiro morto é um bom feiticeiro... És um homem da cidade, Amieiro, de uma ilha do reino de Morred. Uma aldeia em Gont é outra coisa.

— Mas por que permaneces aqui, senhor? Com certeza que o Rei te prestaria as honras devidas...

— Não quero honras — atalhou o ancião, com uma violência que silenciou o Amieiro completamente.

Continuaram a caminhar. Ao chegarem à casa construída na beira do barranco, falou de novo, dizendo:

— Este é o meu ninho de águia.

Beberam uma taça de vinho tinto à ceia, e outra enquanto, sentados cá fora, assistiam ao pôr do Sol. Pouco falaram. O temor da noite, do sonho, começava a entranhar-se no Amieiro.

— Não sou curandeiro — considerou o seu anfitrião —, mas talvez possa fazer o mesmo que o Mestre das Ervas para que dormisses.

O Amieiro olhou-o com um ar de interrogação.

— Tenho estado a pensar no assunto e parece-me que talvez não fosse um encantamento que te manteve afastado daquele monte, mas apenas o toque de mão viva. Se quiseres, podemos experimentar.

O Amieiro protestou, mas o Gavião argumentou: — Passo a metade da maior parte das noites acordado, de qualquer modo...

Assim, nessa noite o hóspede deitou-se na cama baixa ao canto das traseiras da grande sala e o seu anfitrião sentou-se ao seu lado, a olhar para o lume e a dormitar.

Olhava também para o Amieiro e viu que adormecia por fim; e pouco depois viu-o sobressaltar-se e estremecer no sono. Estendeu a mão e pousou-a no ombro do Amieiro, que estava deitado, de costas meio voltadas para ele. O homem adormecido mexeu-se um pouco, suspirou, relaxou os músculos e continuou a dormir.

O Gavião sentiu-se feliz por poder fazer pelo menos aquilo. Tão bom como um feiticeiro, disse para si próprio, com uma ponta de sarcasmo.

Não tinha sono; ainda o dominava a tensão. Pensou sobre tudo o que o Amieiro lhe contara e naquilo em que tinham falado nessa tarde. Viu o Amieiro de pé no canteiro das couves a pronunciar o encantamento para chamar as cabras e a altiva indiferença das cabras às palavras sem poder. Recordou como costumava dizer o nome do gavião, do falcão, da águia cinzenta, convocando-os do céu até si num bater de asas, para virem agarrar-lhe o braço com garras de ferro e fitarem-se nos olhos dourados e cheios de ira... Já nada disso acontecia. Podia gabar-se, chamando a esta casa o seu ninho de águia, mas não tinha asas.

Mas Tehanu sim. As asas do dragão eram suas para com elas voar.

O lume tinha-se apagado. Aconchegou aos ombros a pele de ovelha, encostou a cabeça contra a parede, ainda com a mão pousada no ombro inerte e quente de Amieiro. Gostava do homem e sentia pena dele.

Tinha de se lembrar de lhe pedir que consertasse o cântaro verde, no dia seguinte.

A erva junto ao muro era curta, seca, morta. Não soprava o vento para a fazer mover ou restolhar.

Despertou sobressaltado, soerguendo-se na cadeira, e, após um momento de confusão, voltou a pousar a mão no ombro do Amieiro, agarrando-o um pouco, e segredou: — Hara! Vem embora, Hara — e o Amieiro estremeceu e depois relaxou os músculos. Suspirou de novo, voltou-se mais de lado e ficou imóvel.

O Gavião continuou sentado com a mão no braço do homem adormecido. Como é que ele próprio ali chegara, ao muro de pedras? Já não tinha o poder de ir até lá. Não tinha forma de encontrar o caminho. Tal como na noite anterior, o sonho ou visão do Amieiro, a alma viajante do Amieiro arrastara-o consigo para a fronteira da terra tenebrosa.

Estava completamente desperto agora. Deixou-se ficar sentado, a fitar o quadrado cinzento da janela no poente, cheio de estrelas.

A erva junto ao muro... Não crescia mais abaixo, onde o monte se tornava plano na direção da terra sombria e seca. O Gavião dissera ao Amieiro que lá em baixo só havia poeira, só pedras. Vira essa poeira negra, essas pedras negras. Leitos mortos de ribeiros onde jamais corria água. Nenhum ser vivo. Nem ave, nem rato do campo amedrontado, nem o brilho e o zunido dos pequenos insetos, criaturas do sol. Só os mortos, com os seus olhares vazios e rostos silenciosos.

Mas as aves não morriam?

Um rato, um mosquito, uma cabra — uma cabra sem vergonha, branca e castanha, com patas ligeiras e olhos amarelos, a Beberrica, que tinha sido o animal de estimação de Tehanu e morrera no ano passado com muita idade — onde estava a Beberrica?

Não na terra árida, na terra tenebrosa. Estava morta, mas não lá. Estava onde pertencia, no pó da terra. No pó, na luz, no vento, o jorro de água da rocha, o olho amarelo do sol.

Então porquê, então porquê...

Pôs-se a ver o Amieiro consertar o cântaro. Era bojudo e verde como o jade, um dos cântaros preferidos de Tenar; ela trouxera-o da Quinta do Carvalho, há anos. Escorregara das mãos ao Gavião dias antes, ao tirá-lo da prateleira. Tinha apanhado os dois pedaços grandes e os pequenos fragmentos com a vaga idéia de os colar, de forma a poder expor o cântaro, se não a usá-lo. De cada vez que via os pedaços, que tinha metido num cesto, a lembrança dos seus gestos desastrados enraivecia-o.

Agora, fascinado, observava as mãos do Amieiro. Delgadas, fortes, hábeis, sem pressas, afagavam a forma do cântaro, tocavam, encaixavam e dispunham os pedaços de cerâmica, animando e acariciando, os polegares a guiarem os fragmentos mais pequenos para o seu lugar, reunindo-os, pacificando-os. Enquanto trabalhava, murmurava uma cantilena de duas palavras sem melodia. Eram palavras da Antiga Fala. Gued sabia e não sabia o que significavam. O rosto do Amieiro estava sereno, toda a tensão e mágoa desvanecidas: um rosto tão completamente absorvido no tempo e na tarefa entre mãos que brilhava nele uma calma intemporal.

As suas mãos soltaram-se do cântaro, abrindo-se como a bainha de uma flor a desabrochar. O cântaro estava em cima da mesa de carvalho, inteiro.

O Amieiro olhou para ele com um prazer calmo.

Quando Gued lhe agradeceu, disse:

— Não deu trabalho nenhum. As fraturas eram limpas. É uma peça bem feita, e bom barro. São as peças de má qualidade que custam a consertar.

— Tive uma idéia para conseguires dormir — anunciou Gued. O Amieiro acordara à primeira luz da manhã e levantara-se para que o seu anfitrião pudesse ir para a cama e dormir um bom sono até ser dia claro; mas era evidente que esta situação não poderia prolongar-se por muito tempo.

— Vem daí comigo — propôs o ancião. E partiram ambos na direção do interior da ilha, por um caminho que ladeava a terra de pasto das cabras e serpenteava por entre colinas, pequenos campos semicultivados e caminhos de acesso à floresta. Gont parecia ao Amieiro um lugar bravio, acidentado e casual, com a montanha arborizada, sempre carrancuda e sobranceira, a pairar acima deles.

— Achei que — disse o Gavião enquanto caminhavam —, se eu consegui os mesmos resultados que o Mestre das Ervas, evitando que fosses para o monte do muro de pedras somente com o toque da minha mão, talvez haja outros que possam ajudar-te. Se não tens objeções a animais.

— Animais?

— É que... — começou a explicar o Gavião, mas não prosseguiu, interrompido por uma estranha criatura que se dirigia para eles, avançando aos pulos pelo caminho. Estava entrouxada em saias e xales, da sua cabeça despontavam penas em todas as direções e calçava botas de couro de cano alto.

— Ó Mestião, ó Mestião! — gritou.

— Ora viva, Urze. Com calma, vá lá — disse o Gavião. A mulher estacou, a balançar o corpo, com as penas da cabeça a ondular e um sorriso rasgado no rosto.

— Ela sabeu que estavas para vir! — berrou. — Fez aquele bico de gavião com os dedos, assim, 'tás a ver, fez, pois, e disse-me vai, vai, vai, com a mão! Sabea que estavas para vir!

— E tinha razão.

— Para nos visitar?

— Para vos visitar. Urze, este é o Mestre Amieiro.

— Mestieiro — segredou ela, acalmando-se de súbito ao incluir na sua consciência a presença do Amieiro. Encolheu-se, ficou ensimesmada, olhou para os pés.

Afinal, não calçava botas de couro. As suas pernas nuas estavam era cobertas dos joelhos para baixo por uma camada macia, castanha e seca de lama. Trazia as saias dobradas, entaladas na cintura.

— Andavas às rãs, Urze?

Ela acenou com a cabeça, distraída.

— Vou dizer à Tiazinha — disse, começando a falar num murmúrio e terminando num berro, e voltou aos saltos pelo caminho por onde viera.

— É uma boa alma — disse o Gavião. — Costumava ajudar a minha mulher. Vive agora com a nossa bruxa e ajuda-a. Suponho que não tens objeções a entrar na casa de uma bruxa?

— Nunca, de maneira nenhuma, meu Senhor.

— Muitas pessoas as têm. Nobres e arraia-miúda, feiticeiros e mágicos.

— Lírio, a minha mulher, era bruxa.

O Gavião baixou a cabeça e caminharam em silêncio durante algum tempo.

— Como é que ela soube do seu dom, Amieiro?

— Nasceu com ela. Em criança, conseguia fazer com que um ramo quebrado voltasse a crescer na árvore e as outras crianças traziam-lhe sempre os brinquedos para ela os consertar. Mas quando o pai dela a apanhava nessas andanças, dava-lhe uma palmada nas mãos. Na cidade onde viviam, a família dela era gente de peso. Pessoas respeitáveis — foi relatando o Amieiro na sua voz harmoniosa e suave. — Não queriam que andasse com bruxas. Porque isso a impediria de casar com um homem de respeito. Por isso, ela guardou segredo de todos os seus estudos. E as bruxas da sua cidade não queriam ter nada a ver com ela, mesmo quando a Lírio procurava aprender com elas, porque receavam o pai dela, entendes? Depois, um homem rico veio fazer-lhe a corte, pois ela era muito formosa, como te disse, senhor meu. Mais formosa do que eu poderia descrever. E o pai disse-lhe que a ia casar. Ela fugiu de casa nessa noite. Viveu sozinha, a vaguear, durante alguns anos. Aqui e ali, uma bruxa dava-lhe guarida, mas ela ganhava o sustento com a sua arte.

— Não é uma ilha grande, Taon.

— O pai não a procurava. Dizia que uma bruxa vagabunda não podia ser sua filha.

Mais uma vez, o Gavião baixou a cabeça. — Então, ela ouviu falar de ti e veio ter contigo.

— Mas ensinou-me mais do que eu poderia ensinar-lhe — fez notar o Amieiro com intensidade. — Era um grande dom que ela tinha.

— Acredito.

Tinham chegado a uma pequena casa ou cabana grande numa clareira da floresta, com hamamélide e vassoura de bruxa densa à volta, uma cabra no telhado, um bando de galinhas pretas às pintas brancas a cacarejar e uma pequena cadela-pastora a levantar-se pensando em ladrar, a pensar melhor e a acenar a cauda.

O Gavião dirigiu-se à porta baixa, curvando-se para espreitar para dentro.

— Cá estás tu, Tiazinha! — disse. — Trago-te uma visita. O Amieiro, um homem de feitiçaria da ilha de Taon. A sua arte é consertar e é um verdadeiro mestre, posso afiançá-lo, pois que o vi a montar de novo os cacos do cântaro verde da Tenar, sabes qual é, que eu, tolo desajeitado que sou, deixei cair e parti em pedaços no outro dia.

Entrou na cabana e o Amieiro seguiu-o. Uma mulher de idade estava sentada numa cadeira almofadada perto da porta, de onde podia olhar para a luz do sol. Das farripas do seu cabelo branco despontavam penas. Uma galinha pedrês estava instalada no seu regaço. Sorriu ao Gavião com um doçura encantadora e acenou com bons modos ao visitante. A galinha acordou, cacarejou e saltou-lhe do regaço.

— Esta é a Caruma — apresentou o Gavião — uma bruxa de muitas artes, a maior das quais é a bondade.

Assim, imaginou o Amieiro, poderia o Arquimago de Roke ter apresentado um grande feiticeiro a uma grande dama. Fez uma reverência. A velhota inclinou a cabeça e riu um pouco.

Fez um gesto circular com a mão esquerda, olhando com ar interrogativo para o Gavião.

— Tenar? Tehanu? — disse o Gavião. — Estão ainda em Havnor com o Rei, tanto quanto sei. Estão a passar uma bela temporada lá, a ver as vistas da grande cidade e os palácios.

— Fiz coroas para nós — berrou a Urze, saltando da confusão escura e cheirosa do interior da casa. — Como reis e rainhas. Vêem? — alisou as penas de galinha que tinha espetadas no cabelo grosso em todas as direções. A Tia Caruma, tomando consciência do seu estranho penteado, bateu nas penas com a mão esquerda e fez uma careta.

— As coroas são coisas pesadas — lembrou o Gavião. Com modos suaves, tirou as penas do cabelo fino.

— Quem é a rainha, Mestião? — gritou a Urze. — Quem é a rainha? Bannen é o rei, quem é a rainha?

— O rei Lebánnen não tem rainha, Urze.

— Por que não? Devia ter. Por que não?

— Talvez ande à procura de uma.

— Ele vai casar com a Tehanu! — guinchou a mulher, encantada. — Ó se vai!

O Amieiro viu o rosto de Gavião mudar, fechar-se, tornar-se de pedra. Mas disse apenas:

— Duvido — e acariciou suavemente as penas que tinha tirado do cabelo da Caruma. — Vim visitar-te para te pedir um favor, como sempre, Tiazinha Caruma — disse.

Ela estendeu a mão sã e pegou na dele com tal ternura que o Amieiro se sentiu comovido.

— Quero pedir emprestado um dos teus cachorrinhos.

A Caruma ficou com um ar pesaroso. Ao seu lado estava a Urze, com um olhar fixo; pensou por um momento e depois berrou:

— Os cachorros! Tia Caruma, os cachorros! Mas já se foram todos!

A velhota acenou com a cabeça, com uma expressão de desânimo, acariciando a mão morena do Gavião.

— Alguém os quis?

— O maior fugiu de casa e talvez tenha corrido para a floresta e algum animal o tenha matado, porque não voltou, e depois o velho Caminheires veio cá e disse que precisava de cães-pastores e levava os dois e treinava-os e a Tiazinha deu-lhe-os, porque eles andavam atrás dos pintinhos da ninhada da Flocos de Neve e além disso comiam que se fartavam, ó se comiam.

— Bem, o Caminheiro é bem capaz de ter uma trabalheira a treiná-los — comentou o Gavião com um meio-sorriso. — Muito me apraz que tenha ficado com os cachorros, mas lamento que já não estejam aqui, porque queria pedir um deles emprestado por uma ou duas noites. Dormiam na tua cama, não dormiam, Caruma?

Ela acenou que sim, ainda desanimada. Depois, animando-se um pouco, olhou para cima com a cabeça de lado e pôs-se a miar.

O Gavião pestanejou, mas a Urze compreendeu o que ela queria dizer.

— Oh! Os gatinhos! — gritou. — A Cinzentinha teve quatro e o Preto Velho matou um antes que o pudéssemos impedir, mas ainda há uns dois ou três por aí, dormem com a Tiazinha e a Biddy todas as noites, desde que os cachorros foram embora. Bichano! Bichano! Bichano! Onde estás, bichaninho? — chamou; e, após bastante confusão e tropeções e miados lancinantes no interior escuro, voltou a aparecer agarrando um gatinho cinzento que gemia e se debatia nas suas mãos. — Aqui está um! — berrou, e atirou-o ao Gavião. Ele apanhou-o no ar, desajeitadamente. De imediato, o gato mordeu-o.

— Pronto, pronto — murmurou ele. — Acalma-te.

O gatinho rosnou ferozmente e tentou mordê-lo outra vez. A Caruma fez um gesto e o Gavião pousou-lhe o animalzinho no regaço. Ela acariciou-o com a sua mão lenta e pesada. O gato estendeu-se de imediato, espreguiçou-se, olhou para ela e pôs-se a ronronar.

— Posso levá-lo emprestado por algum tempo?

A velha bruxa ergueu a mão num gesto majestoso que significava claramente: — É teu e com prazer.

— Aqui o Mestre Amieiro anda a ter sonhos perturbadores, sabes, e pensei que talvez a companhia de um animal à noite pudesse ajudar a aliviar o problema.

A Caruma acenou gravemente com a cabeça e, olhando para o Amieiro, enfiou a mão por debaixo do gatinho e ergueu-o na sua direção. O Amieiro pegou-lhe com cuidado. O gatinho não rosnou nem lhe mordeu. Subiu-lhe pelo braço e agarrou-se ao pescoço debaixo do cabelo, que o Amieiro usava apanhado na nuca.

No caminho de regresso à casa do Velho Mago, com o gatinho enfiado na camisa do Amieiro, o Gavião explicou:

— Em tempos, quando eu era novo na arte, pediram-me que curasse uma criança que tinha febre escarlate. Eu sabia que o menino estava a morrer, mas não conseguia deixá-lo ir. Tentei segui-lo. Trazê-lo de volta. Fazê-lo passar para este lado do muro de pedras... E então, aqui no corpo, caí junto à cama e fiquei como morto. Havia lá uma bruxa que adivinhou qual era o problema e mandou que me levassem para a minha casa e me metessem na cama. E na minha casa havia um animal que era meu amigo quando eu era pequeno em Roke, uma criatura selvagem que veio ao meu encontro por iniciativa própria e ficou comigo. Um otaque. Conheces os otaques? Parece-me que não existem no Norte.

O Amieiro hesitou, antes de responder: — Sei da sua existência apenas através do Feito que conta como... como o mago veio para a Corte da Terrenon em Osskil. E o otaque tentou avisá-lo que havia um gebbeth que caminhava com ele. E ele libertou-se do gebbeth, mas o animalzinho foi capturado e morto.

O Gavião avançou uns vinte passos sem falar.

— Sim — disse. — Bem, o meu otaque também me salvou a vida quando fui apanhado pela minha própria tolice no lado errado do muro, com o meu corpo prostrado aqui e a minha alma perdida lá. O otaque veio ter comigo e lavou-me, como se lavam a si próprios e às crias, como os gatos se lavam, com a língua seca, pacientemente, tocando-me e devolvendo-me à vida com o seu toque, trazendo-me de volta ao meu corpo. E a dádiva que o animal me fez não foi somente a vida, mas também um conhecimento tão grande como o que eu alguma vez aprendera em Roke... Mas, sabes, esqueci-me de tudo o que aprendi. Um conhecimento, digo eu, mas é antes um mistério. Qual é a diferença entre nós e os animais? A fala? Todos os animais têm alguma forma de falar, de dizer vem e cuidado e muito mais; mas não sabem contar histórias e não sabem dizer mentiras. Ao passo que nós sabemos...

«Mas os dragões falam: falam a Verdadeira Fala, a Língua da Criação, na qual não há mentiras, na qual contar uma história é torná-la real! No entanto, chamamos animais aos dragões...

«Portanto, talvez a diferença não resida na linguagem. Talvez resida nisto: os animais não fazem o bem nem o mal. Fazem o que têm de fazer. Podemos chamar ao que fazem prejudicial ou útil, mas o bem e o mal pertencem-nos a nós, que escolhemos escolher o que fazer. Os dragões são perigosos, sim. Podem causar danos, sim. Mas não são maus. Estão abaixo da nossa moralidade, por assim dizer, como qualquer animal. Ou para além dela. Não têm nada a ver com ela.

«Nós temos de escolher e escolher sempre. Os animais só precisam de ser e de fazer. Nós estamos sob um jugo, e eles são livres. Por isso, estar com um animal é conhecer um pouco o que é a liberdade...

«Na noite passada, estive a pensar como as bruxas têm muitas vezes uma companhia, um familiar. A minha tia tinha um velho cão que nunca ladrava. Chamava-lhe Vai-antes. E o Arquimago Nemmerle, quando vim para a Ilha de Roke pela primeira vez, tinha um corvo que o acompanhava para todo o lado. E lembrei-me de uma jovem que conheci em tempos, que usava como pulseira um pequeno dragão-lagarto, um barrekki. E então, por fim, lembrei-me do meu otaque. E depois pensei, se aquilo de que o Amieiro precisa para se manter deste lado do muro é do calor de um toque, por que não o de um animal? Visto que eles vêem a vida, não a morte. Talvez um cão ou um gato seja tão eficaz como um Mestre de Roke...

Provou-se estar certo. O gatinho, evidentemente encantado por já não viver naquela casa de cães e gatos adultos, e galos e galinhas, e da imprevisível Urze, fez os possíveis por demonstrar que era um gato diligente e de confiança, patrulhando a casa à caça de ratos, acompanhando o Amieiro aninhado no seu ombro, debaixo do cabelo, quando lhe permitiam e instalando-se para dormir a ronronar-lhe debaixo do queixo mal ele se deitava. O Amieiro dormiu toda a noite sem sonhos de que se lembrasse e, quando acordou, encontrou o gatinho sentado no seu peito, a lavar as orelhas com um ar de calma eficiência.

Quando o Gavião tentou determinar de que sexo era, contudo, bufou e debateu-se. — Está bem — disse ele, retirando a mão a toda a pressa. — Seja como queres. Ou é macho ou é fêmea, Amieiro, disso tenho a certeza.

— Não lhe darei nome, pelo sim, pelo não — decidiu o Amieiro.

— Apagam-se como a chama de uma vela, os gatinhos pequenos. Quando se lhes dá um nome, custa mais a sua morte.

Nesse dia, por sugestão do Amieiro, foram consertar a vedação; caminhavam ao longo da cerca da terra de pasto das cabras, com o Gavião no interior e o Amieiro no lado exterior. Sempre que um deles encontrava um lugar onde as estacas aparentavam começar a apodrecer ou as traves de junção estavam enfraquecidas, o Amieiro passava a mão pela madeira; tocava e puxava e alisava e reforçava, entoando uma cantilena quase inaudível na garganta e no peito, com o rosto calmo e concentrado.

A dada altura, o Gavião, observando-o, murmurou:

— E eu que costumava encarar tudo isto como meu para sempre!

O Amieiro, embrenhado no seu trabalho, não perguntou o que ele queria dizer.

— Pronto — declarou —, vai agüentar. — E continuaram a avançar, seguidos de perto por duas cabras curiosas que marravam contra as partes consertadas como que a testá-las.

— Estive a pensar — disse o Gavião —, que talvez fosse boa idéia ires a Havnor.

O Amieiro olhou para ele com uma expressão alarmada.

— Ah! — exclamou. — Pensei que, se tenho uma maneira de me manter afastado de... daquele lugar, talvez pudesse regressar a Taon — mas, ao falar, ia perdendo confiança no que estava a dizer.

— Podias, mas não me parece que seja avisado.

O Amieiro disse com relutância: — É pedir muito a um gatinho, que defenda um homem contra os exércitos dos mortos.

— É.

— Mas eu... o que faria eu em Havnor? — e, com uma súbita esperança: — Acompanhar-me-ias?

O Gavião abanou a cabeça uma vez.

— Eu fico aqui.

— O Senhor das Configurações...

— Enviou-te até mim. E eu envio-te a quem deveria ouvir a tua história e descobrir o que significa... Olha, Amieiro. Penso que, no seu íntimo, o Configurador acredita que eu sou ainda quem fui. Julga que estou a apenas a esconder-me aqui nas florestas de Gont e que me apresentarei quando a necessidade for grande — o ancião olhou as suas roupas cheias de manchas e remendos, os seus sapatos sujos de poeira, e riu. — Em toda a minha glória — acrescentou.

— Béé — fez a cabra castanha atrás dele.

— Mas de qualquer forma, Amieiro, ele procedeu acertadamente ao enviar-te aqui, já que ela estaria aqui, se não tivesse ido para Havnor.

— A Dama Tenar?

— Hama Gondun. Assim lhe chamou o próprio Configurador — disse o Gavião, fitando o Amieiro do outro lado da cerca com uma expressão indecifrável. — Uma mulher em Gont. A Mulher de Gont. Tehanu.

 

                                     PALÁCIOS

Quando o Amieiro desceu às docas, o Vê-longe ainda se encontrava no porto, a receber um carregamento de madeiras; mas ele sabia que não seria bem recebido naquele navio. Dirigiu-se a uma pequena e modesta embarcação costeira atracada ao seu lado, Rosa Bonita.

O Gavião dera-lhe uma carta de salvo-conduto assinada pelo Rei e selada com a Runa da Paz.

— Enviou-a para que eu a usasse se mudasse de idéias — explicara o ancião com uma risada seca. — Servirá para ti.

Depois de mandar o comissário de bordo ler-lhe a carta, o mestre de bordo tratou o Amieiro com deferência e pediu-lhe desculpas pelas instalações acanhadas e a duração da viagem. A Rosa Bonita ia para Havnor, com certeza, mas era uma daquelas embarcações costeiras que transportavam pequenas mercadorias de porto em porto, e talvez demorasse um mês a percorrer a costa sudeste da Grande Ilha até à Cidade do Rei.

Isso não era problema para ele, sossegou-o Amieiro. Pois se receava a viagem, receava ainda mais o seu fim.

Da lua nova ao quarto crescente, a viagem por mar foi um tempo de paz para ele. O gatinho cinzento era um viajante resistente, ocupando-se a caçar ratos no navio durante todo o dia, mas enroscando-se fielmente debaixo do seu queixo ou ao alcance da mão durante a noite; e, para sua constante admiração, aquele pedacinho de vida quente mantinha-o afastado do muro de pedras e das vozes que o chamavam do outro lado. Não de todo. Não de modo a que alguma vez as esquecesse inteiramente. Estavam lá, do outro lado do véu de sono na escuridão, do outro lado da luz brilhante do dia. Deitado no convés naquelas noites quentes, abria os olhos muitas vezes para ver as estrelas a moverem-se e, embalado pelos balanços do barco ancorado, seguia o seu percurso pelo céu em direção ao oeste. Era ainda um homem preso de assombrações. Porém, durante o meio mês de Verão ao longo das costas de Kameber e Barnisk e da Grande Ilha, pôde voltar as costas aos seus fantasmas.

Durante alguns dias, o gatinho deu caça a uma ratazana nova, quase do seu tamanho. Ao ver o gato arrastar o cadáver pelo convés com orgulho e dificuldade, um dos marinheiros chamou-lhe Reboque. O Amieiro aceitou o nome.

Desceram os Estreitos de Ebavnor e entraram pelos portais da Baía de Havnor. Do outro lado da água iluminada pelo sol, as torres brancas da cidade no centro do mundo foram aparecendo a pouco e pouco com mais nitidez, saídas da bruma da distância. O Amieiro ficou à proa enquanto entravam no porto e, olhando para cima, viu no pináculo da torre mais alta um clarão de luz prateada, a Espada de Erreth-Akbe.

Agora só queria ficar a bordo, prosseguir viagem e não desembarcar na grande cidade, por entre o seu grande povo, com uma carta para o Rei. Sabia que não era um mensageiro à altura. Porque lhe tinha sido imposto um tal fardo? Como é que um mágico de aldeia que nada sabia de assuntos elevados e artes profundas era chamado a fazer estas viagens de terra em terra, de mago para monarca, dos vivos para os mortos?

Dissera algo semelhante ao Gavião. — Tudo isto me ultrapassa — tinha confessado. O ancião fitara-o durante algum tempo e depois, tratando-o pelo nome-verdadeiro, disse: — O mundo é vasto e estranho, Hara, mas não mais vasto nem mais estranho do que as nossas mentes. Pensa nisso de vez em quando.

Por detrás da cidade, o céu escurecia com uma trovoada para o interior da ilha. As torres ardiam brancas contra o negro-púrpura e, acima delas, as gaivotas voavam como centelhas de fogo à deriva.

O Rosa Bonita ancorou, a prancha de desembarque foi lançada. Desta vez, os marinheiros desejaram-lhe boa sorte quando pôs a trouxa ao ombro. Pegou no cesto de galinhas coberto, onde o Reboque ia pacientemente aninhado, e desembarcou.

Havia muitas ruas e estavam todas apinhadas de gente, mas o caminho para o palácio era fácil e o Amieiro não sabia o que fazer a não ser chegar lá e dizer que trazia uma carta do Arquimago Gavião para o Rei.

E foi o que fez, muitas vezes.

De guarda para guarda, de funcionário para funcionário, dos largos degraus no exterior do palácio para antecâmaras de tetos altos, por escadarias com corrimãos dourados, gabinetes interiores com paredes cobertas por tapeçarias, andando por pavimentos de azulejo e mármore e madeira de carvalho, sob tetos de caixão, travejados, em abóbada, pintados, foi repetindo o seu talismã:

— Venho da casa do Gavião, que foi o Arquimago, com uma carta para o Rei.

Recusava-se a entregar a sua carta a quem quer que fosse. Uma escolta, uma chusma de guardas, porteiros e funcionários suspeitosos, rudes, condescendentes, contemporizadores ou obstrutivos ia-se apinhando à sua volta e engrossando, e seguia-o e dificultava a sua lenta entrada no palácio.

Subitamente, desapareceram todos. Abriu-se uma porta. Fechou-se nas suas costas.

Estava sozinho numa sala silenciosa. Uma ampla janela dava para os telhados na direção do Noroeste. A nuvem da tempestade dissipara-se e o amplo cume cinzento do Monte Onn pairava acima de colinas distantes.

Abriu-se uma outra porta. Entrou um homem vestido de negro, mais ou menos da idade do Amieiro, ágil e com um belo rosto de feições fortes, liso como bronze. Veio direito ao Amieiro.

— Mestre Amieiro, sou Lebánnen.

Estendeu a mão direita para tocar a mão do Amieiro, palma contra palma, como era costume em Éa e nas Enlades. O Amieiro respondeu automaticamente ao gesto familiar. Depois pensou que talvez devesse ajoelhar-se, ou pelo menos fazer uma reverência, mas o momento para o fazer parecia ter passado. Ficou-se mudo e quieto.

— Vieste da parte do meu Senhor Gavião? Como está ele? Está bem?

— Sim, meu Senhor. Envia-vos... — à pressa, o Amieiro procurou no seu casaco a carta, que tencionara entregar de joelhos ao Rei, quando finalmente o conduzissem à sala do trono, onde o Rei estaria sentado no seu trono — ... esta carta, meu Senhor.

Os olhos que o observavam eram vivos, bondosos, tão implacavelmente penetrantes como os do Gavião, mas ocultando ainda mais a mente a que pertenciam. Ao pegar na carta que o Amieiro lhe oferecia, a cortesia do Rei foi perfeita.

— O portador de quaisquer notícias dele tem a gratidão do meu coração e é bem-vindo. Dás-me licença?

O Amieiro conseguiu por fim fazer uma reverência. O Rei foi até à janela para ler a carta.

Leu-a duas vezes pelo menos e depois voltou a dobrá-la. O seu rosto estava tão impassível como antes. Foi até à porta e falou com alguém que se encontrava do outro lado e depois voltou para junto de Amieiro.

— Por favor — disse —, senta-te aqui comigo. Vão trazer-nos algo para comer. Estiveste toda a tarde no palácio, eu sei. Se o capitão da guarda das portas tivesse tido a esperteza de me mandar recado, poderia ter-te evitado horas a trepar aos muros e a atravessar a nado os fossos com que me rodeiam... Ficaste na casa do meu Senhor Gavião? Na sua casa na beira do barranco?

— Sim.

— Invejo-te. Nunca lá estive. Não o vejo desde que nos despedimos em Roke, há meia vida minha. Ele não me permitiu que o fosse visitar a Gont. Não quis vir à minha coroação. — E Lebánnen sorriu como se nada do que dizia tivesse qualquer importância. — Foi ele que me deu o meu reino — acrescentou.

Sentando-se, fez sinal ao Amieiro para que ocupasse a cadeira à sua frente, do outro lado de uma pequena mesa. O Amieiro olhou para o tampo da mesa, embutido com motivos ondulantes de marfim e prata, folhas e rebentos de sorveira enlaçando espadas esguias.

— Fizeste boa viagem? — perguntou o Rei e continuou a falar de assuntos sem importância enquanto lhes serviam travessas de carnes frias e truta defumada e alfaces e queijo. Deu o exemplo ao Amieiro, comendo com bom apetite; e serviu ambos com um vinho de uma cor de topázio muito pálido, em taças de cristal. Ergueu a sua. — Ao meu Senhor e querido amigo — disse.

O Amieiro murmurou:

— À ele — e bebeu.

O Rei falou sobre Taon, que visitara alguns anos antes — o Amieiro recordava a excitação da ilha quando o Rei visitara Meoni. E falou de alguns dos músicos de Taon que se encontravam na cidade agora, harpistas e cantores que tinham vindo fazer música para a corte; talvez o Amieiro conhecesse alguns deles; e, de fato, os nomes que pronunciou eram-lhe familiares. Tinha grande facilidade em pôr o seu convidado à vontade, e a comida e a bebida eram também uma ajuda considerável.

Quando acabaram de comer, o Rei serviu mais meio copo de vinho e disse:

— A carta diz-te respeito, na maior parte. Sabia-lo? — e, como o seu tom não se tinha alterado muito em relação ao que empregara para falar de assuntos triviais, o Amieiro ficou confuso por um momento.

— Não — respondeu.

— Fazes idéia de que trata?

— É sobre o que sonho, talvez — aventou o Amieiro, falando num murmúrio e baixando os olhos.

O Rei olhou-o com atenção por um momento. Não havia nada de ofensivo no seu olhar, mas era menos disfarçado no seu escrutínio do que seria a maior parte dos homens. Em seguida, pegou na carta e estendeu-a ao Amieiro.

— Meu senhor, sei ler muito pouco.

Lebánnen não ficou surpreendido — alguns mágicos sabiam ler, outros não — mas clara e vivamente lamentava ter submetido o seu convidado a tal ofensa. O bronze dourado da sua pele ficou vermelho-escuro. Disse:

— Perdão, Amieiro. Posso ler-te o que ele diz?

— Por favor, meu Senhor — disse o Amieiro. Por um momento, o enleio do Rei fê-lo sentir-se seu igual e falou pela primeira vez natural e calorosamente.

Lebánnen passou os olhos pela saudação e por algumas linhas da carta e depois leu em voz alta:

— «Amieiro de Taon, o portador desta carta para ti, é chamado em sonhos e não por sua própria vontade àquela terra que tu e eu atravessamos em tempos. Falar-te-á de sofrimento onde o sofrimento é coisa do passado e de mudança onde nada muda. Nós fechamos a porta que Cob abrira. Agora, talvez o próprio muro venha a ruir. Ele foi a Roke. Só Azver o escutou. O meu Senhor Rei escutá-lo-á e agirá de acordo com as instruções da sabedoria e os requisitos da necessidade. Amieiro é portador das minhas homenagens e obediência de toda a vida ao meu Senhor Rei. Igualmente as minhas homenagens e afeto à minha senhora Tenar. Igualmente à minha amada filha Tehanu, com uma mensagem oral minha.» E assina com a runa de Talon — Lebánnen levantou os olhos da carta e fitou os olhos do Amieiro. — Conta-me o teu sonho — pediu.

Então, mais uma vez, o Amieiro contou a sua história.

Contou-a em poucas palavras e não muito bem. Embora se tivesse sentido intimidado pelo Gavião, o ex-Arquimago tinha o aspecto, a forma de vestir e o estilo de vida de um velho aldeão ou lavrador, um homem do mesmo tipo e posição social que o Amieiro, e essa simplicidade vencera toda a sua timidez superficial. Mas, por mais amável e cortês que o Rei fosse, tinha o aspecto de um rei, comportava-se como um rei, era o Rei, e para o Amieiro a distância era insuperável. Falou a toda a pressa, o melhor que sabia, e foi com alívio que acabou.

Lebánnen fez-lhe algumas perguntas. Lírio e depois Gannet tinham tocado no Amieiro uma vez e nunca mais desde então? E o toque de Gannet queimara-o?

O Amieiro estendeu a mão. As marcas eram quase invisíveis sob o bronzeado de um mês.

— Eu julgo que as pessoas no muro me tocariam se eu me aproximasse delas — respondeu.

— Mas manténs-te afastado delas?

— Tenho-o feito.

— E não são pessoas que conhecesses em vida?

— Por vezes, julgo reconhecer uma ou outra.

— Mas nunca a tua mulher?

— Há tanta gente, meu Senhor. Por vezes, penso que ela está lá. Mas não consigo vê-la.

Falar do assunto tornava-o presente, demasiado presente. Sentiu o medo a engolfá-lo de novo. Pensou que as paredes da sala poderiam desvanecer-se e o céu do fim do dia e a coroa flutuante da montanha desaparecerem como uma cortina que se afasta, deixando-o onde se encontrava sempre, num monte escuro junto a um muro de pedras.

— Amieiro.

Olhou para cima, abalado, com a cabeça a andar à roda. A sala parecia vivamente iluminada, o rosto do Rei duro e nítido.

— Ficas aqui no palácio?

Era um convite, mas o Amieiro só conseguiu acenar com a cabeça, aceitando o convite como uma ordem.

— Ótimo. Tomarei providências para que possas transmitir a mensagem de que és portador à Senhora Tehanu amanhã. E sei que a Dama Branca deseja falar contigo.

O Amieiro fez uma reverência. Lebánnen voltou-se para sair.

— Meu Senhor...

Lebánnen voltou-se para ele.

— Permitis-me ficar com o meu gato?

Nem uma sombra de sorriso, nem um sinal de mofa.

— É claro.

— Meu Senhor, confrange-me trazer-vos notícias que vos perturbam!

— Qualquer palavra do homem que te enviou é uma benesse para mim e para o seu portador. E prefiro receber más notícias de um homem honesto do que mentiras de um lisonjeador — retorquiu Lebánnen. E o Amieiro, ouvindo a pronúncia autêntica das suas ilhas nas palavras, sentiu-se um pouco mais animado.

O Rei saiu e logo em seguida um homem espreitou à porta por onde o Amieiro entrara. — Conduzir-vos-ei ao vosso quarto, se tiverdes a bondade de me seguir, senhor — convidou. Era um homem com um ar digno, idoso e bem-vestido, e o Amieiro seguiu-o sem fazer idéia se era nobre ou servo e, por conseguinte, sem se atrever a perguntar-lhe pelo Reboque. Na antecâmara da sala onde se encontrara com o Rei, os funcionários e guardas e porteiros tinham insistido que ele devia deixar o seu cesto de galinhas com eles. Fora já olhado com suspeita e inspecionado com reprovação por dez ou quinze funcionários. O Amieiro explicara já dez ou quinze vezes que trazia o gato consigo porque não tinha onde o deixar na cidade. A antecâmara onde fora obrigado a deixá-lo ficara lá muito para trás, não o vira ao passarem por ela, nunca a encontraria agora, ficava a meio palácio de distância, corredores, átrios, portas...

O seu guia fez uma reverência e deixou-o num pequeno quarto muito formoso, com tapeçarias nas paredes, tapetes no chão, uma cadeira com um assento bordado, uma janela que dava para o porto, uma mesa na qual se encontrava uma taça de frutos de Verão e um jarro de água. E o cesto das galinhas.

Abriu-o. O Reboque saiu do cesto com calma, indicando a sua familiaridade com palácios. Estirou-se, farejou os dedos do Amieiro numa saudação e pôs-se a andar pelo quarto a examinar o que continha. Por detrás de uma cortina, descobriu uma alcova com uma cama e saltou para cima da cama. Um toque discreto à porta. Um jovem entrou com uma caixa de madeira, grande e pesada, sem tampo. Fez uma reverência ao Amieiro e murmurou:

— Areia, senhor — e pousou a caixa no canto mais afastado da alcova. Fez nova reverência e saiu.

— Bem — disse o Amieiro, sentando-se na cama. Não tinha o hábito de falar com o gatinho. A sua relação era feita de toques silenciosos e confiantes. Mas tinha de falar com alguém. — Hoje, conheci o Rei — disse.

O Rei tinha de falar com muitas pessoas antes de poder sentar-se na sua cama. De entre elas, as principais eram os emissários do Alto Rei dos Karguianos. Estavam prestes a retirar-se, tendo completado a sua missão em Havnor a seu contento, embora não ao contento de Lebánnen.

Aguardara com expectativa a visita destes embaixadores como a culminação de anos de pacientes abordagens, convites e negociações.

Durante os primeiros dez anos do seu reinado, nada conseguira dos karguianos. O Rei-Deus em Áuabath rejeitava as suas sugestões de tratados e comércio e despedia os seus enviados sem os ter ouvido, declarando que os deuses não parlamentam com vis mortais, muito menos com mágicos malditos. Mas as proclamações de império divino universal do Rei-Deus não foram seguidas pela ameaça de esquadras de inúmeros navios com guerreiros emplumados enviados a dizimar o Oeste sem deuses. Até mesmo os ataques dos piratas que há tanto tempo acossavam as ilhas orientais do Arquipélago cessaram gradualmente. Os piratas tinham-se tornado contrabandistas, procurando trocar os produtos que conseguiam trazer de Karego-At por ferro e aço e bronze do Arquipélago, pois que as Terras de Kargad eram pobres em minas e metais.

Foi com estes negociantes ilícitos que primeiro chegaram as notícias da ascensão do Alto Rei.

Em Hur-at-Hur, a ilha grande e pobre no extremo oriental das Terras de Kargad, um guerreiro, Thol, afirmando-se descendente de Thoreg de Hupun e do Deus Ualuáh, proclamara-se Alto Rei daquela terra. Em seguida conquistara Atnini e depois, com um exército invasor formado em Hur-at-Hur e em Atnini, apossara-se da rica ilha central, Karego-At. Enquanto os seus guerreiros abriam caminho pela força das armas até Áuabath, a capital, os habitantes da cidade sublevaram-se contra a tirania do Rei-Deus. Mataram os sacerdotes, expulsaram os burocratas dos templos, abriram os portões de par em par e saudaram a ascensão do Rei Thol ao trono de Thoreg com bandeiras e danças nas ruas.

O Rei-Deus fugiu com os restantes guardas e adivinhos para o Lugar dos Túmulos em Atuan. Aí, no deserto, no seu templo junto às ruínas despedaçadas pelo tremor de terra do santuário de Aqueles-que-não-têm-Nome, um dos seus sacerdotes-eunucos cortou o pescoço ao Rei-Deus.

Thol autoproclamou-se Alto Rei das Quatro Terras de Kargad. Mal soube do sucedido, Lebánnen enviou embaixadores a saudar o seu irmão rei e a garantir-lhe as intenções amigáveis do Arquipélago.

Seguiram-se cinco anos de difíceis e cansativos esforços diplomáticos. Thol era um homem violento ocupando um trono ameaçado. Na destruição da teocracia, todo o controle do seu reino era incerto, toda a autoridade questionável. Reis menores autoproclamavam-se constantemente e tinham de ser comprados ou obrigados pela força a obedecerem ao Alto Rei. Os sectários saíam de santuários e cavernas gritando «Maldição aos poderosos!» e prevendo terremotos, maremotos, pragas sobre os deicidas. Governando um império conturbado e dividido, Thol não podia confiar no poderoso e rico Arquipélago.

Nada significava para ele que o seu Rei falasse de amizade, brandindo o Anel da Paz. Pois não tinham os karguianos direito a esse anel? Fora feito em tempos antigos no Ocidente, mas, há muito tempo, o Rei Thoreg de Hupun aceitara-o como oferenda do herói Erreth-Akbe, um sinal de amizade entre as terras karguianas e hárdicas. Desaparecera, e houvera guerra, não amizade. Mas então o Mago-Gavião encontrara o anel e voltara a roubá-lo, juntamente com a Sacerdotisa dos Túmulos de Atuan, e levara ambos para Havnor. Era essa a prova de confiança que davam os do Arquipélago.

Através dos seus enviados, Lebánnen lembrou com paciência e cortesia que o Anel da Paz tinha inicialmente sido uma oferta de Morred para Elfarran, um símbolo querido do rei e da rainha mais amados do Arquipélago. E também um objeto sagrado, pois que nele se encontrava a runa de ligação, um sortilégio mágico de bênção. Há quase quatro séculos, Erreth-Akbe levara-o para as Terras de Kargad como penhor de paz inquebrável. Mas os sacerdotes de Áuabath tinham quebrado a promessa e o Anel. Há cerca de quarenta anos, o Gavião de Roke e Tenar de Atuan tinham consertado o Anel. E a paz, então?

Esse era o teor das suas mensagens para o Rei Thol.

E há um mês, logo após a Longa Dança do Verão, uma frota de navios avançara a direito pelo Passo de Felkway, subira os Estreitos de Ebavnor e passara pelos portais da Baía de Havnor: compridos navios vermelhos com velas vermelhas, transportando guerreiros emplumados, emissários envergando ricos mantos e algumas mulheres com véus.

«Que a filha de Thol, o Alto Rei que ocupa o Trono de Thoreg e cujo antepassado é Ualuáh, use o Anel da Paz como a Rainha Elfarram o usou, e este será o sinal de paz duradoura entre as Ilhas do Ocidente e do Oriente.»

Era essa a mensagem do Alto Rei para Lebánnen. Estava escrita em grandes runas hárdicas num pergaminho, mas, antes de a entregar ao Rei Lebánnen, o embaixador de Thol leu-a em voz alta, em público, na recepção aos emissários na corte de Havnor, na presença de toda a corte, reunida para homenagear os enviados de Karg. Talvez porque o embaixador não sabia ler hárdico, antes recitava de memória em voz alta e lenta as palavras, estas tinham o tom de um ultimato.

A princesa nada dizia. Estava de pé entre as dez donzelas ou escravas que a tinham acompanhado até Havnor e o rebanho de damas da corte que tinham sido nomeadas à pressa para tomarem conta dela e a homenagearem. Cobria-a por inteiro um véu, como era, segundo parecia, o costume entre as mulheres bem-nascidas em Hur-at-Hur. Os véus, vermelhos com finos bordados a ouro, caíam a direito de um chapéu de aba rasa ou toucado, de forma que a princesa parecia uma coluna ou pilar vermelho, cilíndrica, sem traços distintivos, imóvel, silenciosa.

— O Alto Rei Thol muito nos honra — disse-lhe Lebánnen na sua voz calma e límpida; e depois fez uma pausa. A corte e os emissários aguardavam. — Sede bem-vinda, princesa — disse ele à figura coberta por véus. Ela não se mexeu.

— Que a princesa fique alojada na Casa do Rio e tudo seja conforme aos seus desejos — ordenou Lebánnen.

A Casa do Rio era um pequeno palácio de grande beleza no limite norte da cidade, encaixado na velha muralha da cidade, com pátios projetados sobre o pequeno Rio Serrénene. A Rainha Heru mandara-o edificar e chamavam-lhe freqüentemente a Casa da Rainha. Quando Lebánnen subiu ao trono, mandara-o restaurar e mobiliar, juntamente com o Palácio de Maharion, chamado o Novo Palácio, no qual instalara a sua corte. Utilizava a Casa do Rio apenas para as festividades do Verão e por vezes como retiro pessoal durante alguns dias.

Um sussurro perpassou entre os cortesãos. A Casa da Rainha?

Após trocar cumprimentos com os emissários de Karg, Lebánnen abandonou a sala de audiências. Dirigiu-se para o seu quarto de vestir, onde poderia estar tão sozinho quanto é possível a um rei, com o seu velho servo, Carvalho, a quem conhecia desde sempre.

Atirou com o pergaminho dourado para cima de uma mesa.

— Queijo numa ratoeira! — bradou. Estava a tremer. Desembainhou a espada que sempre trazia à cintura e trespassou a mensagem do Alto Rei. — Um cavalo a que não posso olhar o dente — continuou. — Uma peça de mercadoria. O Anel no braço dela e a coleira à volta do meu pescoço.

Carvalho fitou-o com um olhar de consternação. O Príncipe Arren de Enlad nunca perdera a calma. Quando era criança, talvez chorasse por um momento, um soluço amargo, mas era tudo. Era demasiado bem treinado, demasiado bem disciplinado para ceder à ira. E como Rei, um Rei que ganhara o seu reino atravessando a terra dos mortos, podia ser duro, mas era sempre, pensava Carvalho, demasiado orgulhoso, demasiado forte para se enfurecer.

— Não se servirão de mim! — disse Lebánnen, voltando a trespassar o documento com a espada, com o rosto tão ensombrado e cego de fúria que o velho servo recuou, verdadeiramente atemorizado.

Lebánnen viu-o. Via sempre as pessoas que o rodeavam.

Voltou a embainhar a espada. Num tom de voz mais firme, disse: — Carvalho, pelo meu nome o juro, destruirei Thol e o seu reino antes de o deixar usar-me como degrau para o trono.

Em seguida, respirou fundo e sentou-se para que Carvalho lhe retirasse dos ombros o manto pesado, carregado de ouro.

Carvalho jamais contou uma palavra que fosse sobre esta cena, mas houve, evidentemente, especulações imediatas e contínuas sobre a princesa dos karguianos e o que o Rei ia fazer quanto a ela — ou o que, de fato, fizera já.

Lebánnen não dissera que aceitava a oferta da princesa como sua noiva. Toda a gente estava de acordo em que ela lhe fora oferecida como noiva; a linguagem sobre o Anel de Elfarran mal ocultava a oferta, contrato ou ameaça. Mas também não a recusara. A sua resposta (interminavelmente analisada) fora dizer que ela era bem-vinda, que tudo seria feito de acordo com os seus desejos e que se alojaria na Casa do Rio: a Casa da Rainha. Com certeza isso queria dizer alguma coisa? Mas, por outro lado, porque não no Novo Palácio? Porquê mandá-la para o outro lado da cidade?

Desde a coroação de Lebánnen, as damas das casas nobres e as princesas das velhas linhagens reais de Enlad, Éa e Shelieth vinham visitar a corte ou nela permanecer por algum tempo. Tinham todas sido recebidas com grande fausto e o Rei dançara nos seus casamentos à medida que, uma a uma, se conformavam com nobres ou vilãos abastados. Era bem sabido que ele gostava da companhia de mulheres e também dos seus conselhos, que de bom grado namoricava com uma donzela formosa e convidava uma mulher inteligente para o aconselhar, troçar dele ou o consolar. Mas de nenhuma donzela ou mulher chegara alguma vez, nem por sombras, a constar que poderia vir a casar-se com ele. E nenhuma fora alguma vez alojada na Casa do Rio.

O Rei tinha de ter uma Rainha, lembravam-lhe os seus conselheiros a intervalos regulares.

«Tens mesmo de casar, Arren», dissera-lhe a mãe, da última vez que a viu com vida.

«O herdeiro de Morred não terá herdeiro?» perguntava a arraia-miúda.

A todos dissera, com palavras várias e de vários modos: «Dai-me tempo. Tenho as ruínas de um reino para reconstruir. Deixai-me edificar uma casa digna de uma rainha, um reino que o meu filho possa governar.» E, como toda a gente o amava e confiava nele, como ainda era jovem e, apesar de toda a sua gravidade, um jovem encantador e persuasivo, escapara a todas as donzelas esperançosas. Até agora.

O que se ocultava sob aqueles véus vermelhos e hirtos? Quem vivia dentro da tenda que nada revelava? As damas destacadas para o séquito da princesa eram assediadas cora perguntas. Era bonita? Feia? Era verdade que era alta e magra, baixa e musculosa, branca como o leite, bexigosa, cegueta, que tinha cabelo amarelo, cabelo negro, quarenta e cinco anos de idade, dez anos, que era uma idiota que se babava, uma beleza deslumbrante?

Gradualmente, os boatos começaram a encaminhar-se num sentido. Era jovem, embora não criança; o cabelo não era amarelo nem negro; bastante bonita, diziam algumas das damas; um pouco rude, diziam outras. Não falava uma palavra de hárdico, diziam todas, e não queria aprender. Escondia-se entre as suas acompanhantes e, quando era obrigada a deixar o seu quarto, escondia-se na tenda dos seus véus vermelhos. O rei fizera-lhe uma visita de cortesia. Ela não lhe fizera reverência, não falara nem dera qualquer sinal, deixando-se ficar de pé, disse a velha Dama Iyesa num tom exasperado, «como uma chaminé de tijolos».

Ele falou-lhe através de homens que tinham sido seus enviados nas Terras de Kargad e através do embaixador de Karg, que falava hárdico bastante bem. Com dificuldade, transmitiu os seus cumprimentos e perguntas sobre os desejos e vontades dela. Os tradutores falavam às mulheres do seu séquito, cujos véus eram mais curtos e um pouco menos impenetráveis. Estas juntavam-se à volta do pilar vermelho e imóvel e murmuravam e zumbiam e voltavam aos tradutores, e os tradutores informavam o Rei de que a princesa estava satisfeita e não requeria coisa alguma.

A princesa encontrava-se em Havnor há meio mês quando Tenar e Tehanu chegaram de Gont. Lebánnen enviara um navio e uma mensagem suplicando-lhes que viessem, pouco antes de a frota de Kargad trazer a princesa e por razões que nada tinham a ver com ela ou com o Rei Thol. Porém, na primeira vez que se encontrou a sós com Tenar, desabafou:

— O que vou fazer com ela? O que hei de fazer?

— Explica-me o que se passa — disse Tenar, com uma expressão algo admirada.

Lebánnen passara apenas um breve período com Tenar, embora tivessem escrito algumas cartas um ao outro ao longo dos anos. Ainda não se acostumara a vê-la com o cabelo grisalho e parecia-lhe mais pequena do que a recordava. Mas com ela sentiu imediatamente, como sentira quinze anos antes, que podia dizer o que quisesse e ela o compreenderia.

— Durante cinco anos formentei o comércio e tentei manter boas relações com Thol, porque ele é um nobre guerreiro e não quero o meu reino disputado, como no reino de Maharion, entre dragões no Ocidente e nobres guerreiros no Oriente. E porque governo sob o Signo da Paz. E tudo corria bastante bem, até isto. Até ele me enviar de surpresa esta moça, dizendo, se queres paz, dá-lhe o Anel de Elfarran. O teu Anel, Tenar! Teu e de Gued!

Tenar hesitou algum tempo.

— Ela é filha dele, ao fim e ao cabo.

— O que é uma filha para um rei bárbaro? Mercadoria. Uma peça para regatear e com ela obter vantagens. Tu sabes isso! Nasceste lá!

A forma como falou não era a habitual e ele próprio notou a diferença. Ajoelhou-se de súbito, agarrou-lhe a mão e pô-la sobre os olhos em sinal de contrição.

— Tenar, perdoa-me. Isto perturba-me para lá do razoável. Não consigo ver o que hei de fazer.

— Bem, enquanto nada fizeres, terás uma certa margem de manobra... Talvez a princesa tenha uma opinião própria?

— Como pode tê-la? Escondida naquele saco vermelho? Não fala, não olha, é como se fosse a vara de uma tenda — contrapôs ele. Tentou rir. O seu ressentimento incontrolável alarmava-o e tentou encontrar justificações para ele. — Isto coincidiu com notícias perturbadoras vindas do Ocidente. Foi por isso que te pedi e a Tehanu que viessem. Não para vos incomodar com esta tolice.

— Não é uma tolice — disse Tenar, mas ele pôs o assunto de parte, arredou-o com um gesto, e começou a falar de dragões.

Como as notícias do Ocidente eram de fato perturbantes, ele conseguia não pensar na princesa a maior parte do tempo. Tinha consciência de que não era seu hábito tratar de questões de Estado ignorando-as. Quando se é manipulado, manipulam-se os outros. Vários dias após esta conversa, Lebánnen pediu a Tenar que visitasse a princesa para tentar levá-la a falar. Afinal, salientou, falavam a mesma língua.

— Provavelmente — disse Tenar. — Nunca conheci ninguém de Hur-at-Hur. Em Atuan, chamávamos-lhes bárbaros.

Sentiu-se corrigido. Mas é claro que Tenar fez o que ele lhe pedira. Pouco depois, comunicou-lhe que ela e a princesa falavam a mesma língua, ou quase a mesma, e que a princesa não sabia que existiam outras línguas. Pensara que todas as pessoas ali, os cortesãos e as damas, eram lunáticos maldosos que troçavam dela tagarelando e guinchando como animais desprovidos de língua humana. Tanto quanto Tenar conseguira averiguar, a princesa criara-se no deserto, no domínio original do Rei Thol em Hur-at-Hur, e após uma breve passagem pela corte imperial em Áuabath fora enviada para Havnor.

— Está atemorizada — concluiu Tenar.

— Por isso se esconde na tenda. O que pensa ela que eu sou?

— Como pode saber o que és?

Lebánnen franziu a testa.

— Que idade tem?

— É nova. Mas já mulher.

— Não posso casar com ela — afirmou ele com uma resolução súbita. — Vou enviá-la de volta.

— Uma noiva devolvida é uma mulher desonrada. Se a enviares de volta, Thol talvez a mate para evitar que a desonra caia sobre a sua casa. Sem dúvida considerará que era tua intenção desonrá-lo.

A expressão de fúria anuviou mais uma vez o rosto de Lebánnen.

Tenar antecipou-se-lhe. — Costumes bárbaros — atalhou num tom rígido.

Lebánnen percorria a sala a grandes passadas.

— Muito bem. Mas não considerarei essa moça como rainha do Reino de Morred. É possível ensiná-la a falar hárdico? Ao menos algumas palavras? Conseguirá aprender? Direi a Thol que um rei hárdico não pode casar com uma mulher que não fale a língua do reino. Não me importo se lhe desagradar, ele precisa de um safanão. E dá-me algum tempo.

— E vais pedir-lhe que aprenda a língua hárdica?

— Como posso pedir-lhe seja o que for, se ela toma tudo o que dizemos por uma confusão? De que poderia servir eu ir ter com ela? Pensei que talvez pudesses falar tu com ela, Tenar... Com certeza vês que isto não passa de uma imposição, usar esta moça para fazer Thol parecer meu igual, usando o Anel — o Anel que nos trouxeste — como armadilha! Não posso sequer dar a impressão de que aprovo. Estou disposto a contemporizar, a adiar um confronto a fim de manter a paz. Nada mais. Até mesmo esta dissimulação é vil. Diz à moça o que te aprouver. Eu não quero ter nada a ver com ela.

E saiu numa fúria indignada, que arrefeceu lentamente até se transformar numa sensação desconfortável, muito parecida com vergonha.

Quando os emissários karguianos anunciaram que partiriam em breve, Lebánnen preparou cuidadosamente uma mensagem para o Rei Thol. Exprimia o seu apreço pela honra da presença da princesa em Havnor e o prazer que ele e a sua corte teriam em iniciá-la nos modos, costumes e língua do seu reino. Nada disse sobre o Anel ou sobre casar ou não casar com ela.

Foi ao fim do dia em que conversou com o bruxo perturbado por sonhos de Taon, que se encontrou pela última vez com os karguianos e lhes deu a sua missiva para o Alto Rei. Leu-a em voz alta primeiro, como o embaixador lera em voz alta a missiva de Thol para si.

O embaixador escutou-o com complacência.

— O Alto Rei ficará satisfeito — afirmou.

Enquanto falava de trivialidades com os emissários e exibia as dádivas que ia enviar a Thol, Lebánnen pensava, intrigado, nesta fácil aceitação das suas evasivas. Os seus pensamentos concorriam todos para uma conclusão: «Ele sabe que não tenho outro remédio senão aceitá-la.» Ao que a sua mente dava uma resposta silenciosa e cheia de raiva: «Nunca.»

Inquiriu se o embaixador passaria pela Casa do Rio para se despedir da sua princesa. O embaixador olhou para ele com um ar vazio, como se lhe tivessem perguntado se ia despedir-se de um embrulho que entregara. Lebánnen sentiu de novo a raiva a invadir-lhe o peito. Viu que o rosto do embaixador se alterava um pouco, tomando uma expressão cautelosa e apaziguadora. Sorriu e desejou aos emissários que um bom vento os levasse para as Terras de Kargad. Saiu da sala de audiências e dirigiu-se ao seu quarto.

Os rituais e as cerimônias delimitavam a maior parte dos seus atos e, como rei, tinha de estar em público a maior parte da sua vida; mas, como tinha subido a um trono vazio desde há séculos num palácio onde não existiam protocolos, conseguira que algumas coisas fossem tal como as queria. Excluíra do seu quarto o cerimonial. As noites eram só suas. Desejou as boas-noites a Carvalho, que dormiria na antecâmara, e fechou a porta. Sentou-se na cama. Sentia-se cansado, furioso e estranhamente desolado.

À volta do pescoço usava sempre uma fina corrente de ouro com uma pequena bolsa de malha de ouro. Na bolsa havia uma pedra: um pedaço de rocha negra e baça, com arestas ásperas. Tirou a pedra da bolsa e manteve-a nas mãos, permanecendo sentado e a pensar.

Tentou afastar do pensamento toda aquela estupidez sobre a moça karguiana, pensando no bruxo Amieiro e nos seus sonhos. Mas o que lhe vinha à mente era uma inveja dolorosa do Amieiro por ter desembarcado em Gont, ter falado com Gued, ter ficado com ele.

Era essa a razão por que se sentia desolado. O homem a quem chamava seu Senhor, o homem que amara acima de todos, não lhe permitia que se aproximasse dele, recusava-se a vir ter com ele.

Acreditaria Gued que, porque tinha perdido os seus poderes de feitiçaria, Lebánnen o tinha em menor estima? O desprezava?

Dado o poder que tinha sobre a mente e o coração dos homens, não era um pensamento improvável. Mas com certeza que Gued o conhecia melhor do que isso, ou pelo menos tinha-o em melhor conta.

Seria antes porque, tendo sido o senhor e guia de Lebánnen, Gued não conseguia suportar a idéia de ser seu súdito? Talvez tal fosse realmente difícil de suportar para o ancião: a inversão brutal e irrevogável das suas posições.

Mas Lebánnen recordava claramente como Gued se tinha ajoelhado à sua frente, sobre os dois joelhos, no Cabeço de Roke, à sombra do dragão e à vista dos mestres de quem Gued fora mestre. Erguera-se e beijara Lebánnen, recomendando-lhe que governasse bem, chamando-lhe meu senhor e querido companheiro.

— Foi ele que me deu o meu reino — dissera Lebánnen ao Amieiro. Fora esse o momento em que lhe dera. Completamente, livremente.

E essa era a razão por que Gued não vinha a Havnor, não permitia a Lebánnen que fosse aconselhar-se com ele. Entregara-lhe o poder — completamente, livremente. Recusava-se até a aparentar que interferia, que projetava a sua sombra no caminho da luz de Lebánnen.

— Está feito o que tinha de fazer — dissera o Porteiro.

Mas a história do Amieiro levara Gued a enviar o homem ali, a Lebánnen, pedindo-lhe que agisse de acordo com a necessidade.

Era realmente estranha, a história do Amieiro; e o fato de Gued ter dito que talvez o próprio muro viesse a ruir era ainda mais estranho. O que significaria? E por que razão os sonhos de um homem teriam tal peso?

Ele próprio sonhara com os arredores da terra árida, há muito tempo, quando ele e Gued, o Arquimago, viajavam juntos, antes mesmo de chegarem a Selidor.

E na ilha mais a oeste de todas seguira Gued para a terra árida. Para lá do muro de pedras. Descendo a cidades indistintas onde as sombras dos mortos se postavam à entrada das casas ou caminhavam sem destino ou objetivo por ruas iluminadas apenas pelas estrelas imóveis. Com Gued atravessara todo aquele país, por um caminho extenuante até um vale escuro de poeira e pedras, no sopé das montanhas cujo único nome era Dor.

Abriu a mão, olhou para a pequena pedra negra que segurava e fechou de novo a mão sobre ela.

Do vale do rio seco, depois de fazerem o que tinham vindo fazer, subiram pelas montanhas, porque não era possível voltar para trás. Tinham subido a estrada proibida aos mortos, trepando, escalando rochedos que lhes esfolavam e queimavam as mãos, até Gued não conseguir avançar mais. Lebánnen tomara-o nos braços e carregara-o até onde pudera, depois rastejou com ele até ao fim da escuridão, à falésia sem esperança da noite. E assim regressara, com ele, para a luz do sol e o som das ondas a rebentar na praia da vida.

Já há muito tempo que não recordava com tal vividez aquela terrível viagem. Mas trazia sempre sobre o coração o pedaço de rocha negra daquelas montanhas.

E parecia-lhe agora que a recordação daquela terra, a sua escuridão, a poeira, estava sempre na sua mente, logo abaixo das várias atividades e movimento dos dias, embora sempre desviasse o olhar dela. Desviava o olhar porque não conseguia suportar a idéia de que, no fim, era aí que regressaria de novo: sozinho, sem companhia e para sempre. Para permanecer de olhar vazio, sem falar, nas sombras de uma cidade de sombras. Para nunca mais ver a luz do sol, ou beber água ou tocar mão com vida.

Levantou-se abruptamente, arredando de si aqueles pensamentos mórbidos. Meteu a pedra na bolsa, preparou-se para ir para a cama, apagou a luz e deitou-se. De imediato, voltou a vê-la: a indistinta terra cinzenta de poeira e rochas. Erguia-se muito à frente em picos negros e pontiagudos, mas aqui estendia-se em socalcos, sempre para baixo, para a direita, para uma escuridão total.

— O que fica naquela direção? — perguntara a Gued, enquanto caminhavam sem parar. E o companheiro respondera que não sabia, que talvez naquela direção não houvesse fim.

Lebánnen sentou-se na cama, furioso e alarmado pela direção implacável que tomavam os seus pensamentos. Procurou a janela com o olhar. Dava para norte. Gostava da vista de Havnor para lá dos montes até à alta montanha de cume cinzento de Onn. Mais para norte, fora da vista, do outro lado da Grande Ilha e do Mar de Éa, estava Enlad, o seu lar.

Deitado na cama via apenas o céu, o noturno e límpido céu de Verão, com o Coração do Cisne a deslocar-se bem alto por entre estrelas menores. O seu reino. O reino da luz, da vida, onde as estrelas desabrochavam como flores brancas a oriente e murchavam na sua luz a ocidente. Não pensaria naquele outro reino onde as estrelas permaneciam imóveis, onde não havia poder na mão de um homem nem um caminho certo, porque nenhum caminho conduzia a sítio algum.

Deitado, fitando as estrelas, fez um esforço por afastar da mente aquelas recordações e os pensamentos sobre Gued. Pensou em Tenar: o som da sua voz, o toque da sua mão. Os cortesãos eram cerimoniosos, usando de cautela para quando e onde tocavam o Rei. Ela não. Era mais arrojada com ele do que o fora a sua própria mãe.

Rosa, a princesa da Casa de Enlad, morrera de uma febre há dois anos, quando Lebánnen estava a bordo de um navio para fazer uma visita real a Berila em Enlad e às ilhas a sul. Só soubera da sua morte ao regressar a uma cidade e a uma casa enlutadas.

A sua mãe estava lá agora, no país tenebroso, na terra árida. Se lá chegasse e passasse por ela na rua, não o olharia. Não lhe falaria.

Cerrou as mãos com força. Voltou a arranjar as almofadas na cama, tentou encontrar uma posição mais confortável, procurou afastar a mente daquele lugar, pensar em coisas que o impedissem de regressar àquele lugar. Pensar na sua mãe em vida, na sua voz, nos seus olhos escuros sob o arco escuro das sobrancelhas, nas suas mãos delicadas.

Ou pensar em Tenar. Sabia que pedira a Tenar que viesse a Havnor não apenas para se aconselhar com ela, mas porque ela era a mãe que lhe restava. Queria aquele amor, dá-lo e recebê-lo. O amor implacável sem concessões nem condições. Os olhos de Tenar eram cinzentos, não escuros, mas trespassavam-no com um olhar de penetrante ternura que não se deixava enganar por nada do que ele dissesse ou fizesse.

Lebánnen sabia que fazia bem o que fora chamado a fazer. Sabia que desempenhava bem o seu papel de rei. Mas somente com a mãe e com Tenar soubera, para além de qualquer dúvida, o que era ser rei.

Tenar conhecia-o desde muito novo, quando ele ainda não tinha sido coroado. Amara-o então e para sempre a partir desse momento; por ele, por Gued, por si própria. Lebánnen era para ela o filho que nunca despedaça o coração da mãe.

Mas pensava que talvez ele viesse a fazê-lo ainda, se continuasse a estar tão possuído pela fúria e a ser tão desonesto em relação àquela pobre moça de Hur-at-Hur.

Assistiu à audiência final dos emissários de Áuabath. Lebánnen pedira-lhe que estivesse presente e ela de bom grado comparecera. Ao encontrar karguianos na corte quando aí chegara no início do Verão, julgara que a evitariam ou que, pelo menos, a olhariam de lado; a sacerdotisa renegada que, com o gatuno Mago Gavião roubara o Anel de Erreth-Akbe do tesouro dos Túmulos de Atuan e traiçoeiramente fugira com ele para Havnor. Era devido a ela que o Arquipélago tinha novamente rei. Os karguianos talvez a responsabilizassem por tal fato.

E Thol de Hur-at-Hur restaurara o culto dos Irmãos-Deuses e de Aqueles-que-não-têm-Nome, cujo maior templo Tenar tinha saqueado. A sua traição não fora somente política mas também religiosa.

No entanto, tudo isso se passara há muito tempo, há mais de quarenta anos, era quase uma lenda; e os homens de Estado têm uma memória seletiva. O embaixador de Thol solicitara a honra de uma audiência com ela e saudara-a com respeito e veneração extremos, parte dos quais lhe parecera verdadeira. Chamou-lhe Senhora Arha, a Devorada, a Sempre Renascida. Há muitos anos que ninguém a chamava por esses nomes, pelo que lhe soaram estranhos. Mas deu-lhe um prazer vivo e culposo ouvir a sua língua materna e descobrir que ainda a sabia falar.

Assim, veio despedir-se do embaixador e do seu séquito. Pediu-lhe que garantisse ao Alto Rei dos karguianos que a sua filha se encontrava bem, e olhou com admiração uma última vez para os homens altos e de ossatura grosseira, com o seu cabelo pálido e entrançado, os seus toucados de plumas, as suas armaduras de cerimônia, de malha de prata entretecida de penas. Quando vivia nas Terras de Kargad, vira poucos homens da sua raça. Só viviam mulheres e eunucos no Lugar dos Túmulos.

Após a cerimônia, escapou-se para os jardins do palácio. A noite de Verão era quente e inquieta, com os arbustos em flor dos jardins a agitarem-se ao vento da noite. Os sons da cidade no exterior dos muros do palácio eram como o murmúrio de um mar calmo. Um par de jovens cortesãos passeava abraçado debaixo dos caramanchões e, para não os perturbar, Tenar pôs-se a caminhar por entre as fontes e as rosas do outro lado do jardim.

Lebánnen abandonara mais uma vez a audiência de testa franzida. O que se passava com ele? Tanto quanto ela sabia, nunca antes se revoltara contra os deveres da sua posição. Certamente sabia que um rei tinha a obrigação de casar e não podia realmente escolher com quem.

Sabia que um rei que não obedece ao seu povo é um tirano. Sabia que o seu povo queria uma rainha, queria herdeiros para o trono. Mas nada fizera. As damas da corte contavam de bom grado a Tenar os mexericos sobre as suas várias concubinas, nenhuma das quais perdera fosse o que fosse ao saber-se que era amante do Rei. Sem dúvida que lidara com tudo isso bastante bem, mas não podia esperar fazê-lo para sempre. Por que estava tão enraivecido pela oferta de uma solução perfeitamente apropriada por parte do Rei Thol?

Imperfeitamente apropriada, talvez. A princesa não deixava de ser um problema.

Tenar ia ter de tentar ensinar a língua hárdica à moça. E encontrar damas dispostas a instruí-la sobre os modos do Arquipélago e a etiqueta da corte — algo de que ela própria não era com certeza capaz. Identificava-se mais com a ignorância da princesa do que com a sofisticação dos cortesãos.

Irritava-a a má vontade ou incapacidade de Lebánnen para entender o ponto de vista da moça. Não conseguiria imaginar o que tudo aquilo era para ela? Criada nos aposentos das mulheres da fortaleza de um nobre guerreiro numa remota ilha deserta, onde provavelmente nunca vira nenhum homem a não ser o seu próprio pai e tios e alguns sacerdotes; subitamente arrancada por estranhos àquela pobreza e rigidez de vida imutáveis numa longa e assustadora viagem por mar; abandonada entre gente sobre quem sabia apenas serem monstros sem religião e sedentos de sangue que viviam no extremo do mundo, não verdadeiramente humanos porque eram feiticeiros que podiam transformar-se em animais e pássaros — E tinha de casar com um deles!

Tenar conseguira abandonar o seu povo e vir viver entre os monstros e feiticeiros do Oeste porque estava acompanhada por Gued, a quem amava e em quem confiava. Mesmo assim, não fora fácil; muitas vezes, lhe faltara a coragem. Apesar das boas-vindas do povo de Havnor, das multidões e aplausos e flores e elogios, dos doces nomes que lhe davam, a Senhora Branca, a Portadora de Paz, Tenar do Anel — apesar de tudo isso, encolhia-se no seu quarto do palácio naquelas noites distantes, infeliz porque se sentia só e ninguém falava a sua língua e não sabia nenhuma das coisas que eles sabiam. Logo que terminaram as celebrações e o Anel ficou no seu lugar, suplicara a Gued que a levasse dali, e ele mantivera a sua promessa, escapulindo-se com ela para Gont. Aí, vivera na casa do Velho Mago como pupila e aluna de Óguion, aprendendo a ser uma nativa do Arquipélago, até ver o caminho que queria seguir como mulher feita.

Era mais jovem do que aquela moça quando viera para Havnor com o Anel. Mas não se criara sem qualquer poder próprio, como a princesa. Embora o seu poder como Única Sacerdotisa fosse principalmente cerimonial, nominal, tomara o controle do seu destino ao libertar-se das lúgubres condições da sua educação e alcançar a liberdade para o seu prisioneiro e para si própria. Mas a filha de um nobre guerreiro apenas tinha controle sobre coisas triviais. Quando o pai se autoproclamou Rei, ela passou a ser chamada princesa, foram-lhe dadas vestimentas mais ricas, mais escravos, mais eunucos, mais jóias, até ela própria ser dada em casamento; mas não tinha direito a escolher. Tudo o que via do mundo fora dos aposentos das mulheres era através de frestas nas paredes grossas, através de camadas de véus vermelhos.

Tenar considerava-se afortunada por não ter nascido numa ilha tão atrasada e bárbara como Hur-at-Hur e nunca ter usado o feyag. Mas sabia o que era crescer dominada por uma tradição férrea. Era sua obrigação fazer tudo o que pudesse para ajudar a princesa, enquanto permanecesse em Havnor. Mas não tencionava ficar ali por muito mais tempo.

Enquanto passeava no jardim e olhava as fontes a brilhar à luz das estrelas, ia pensando em como e quando poderia regressar a casa.

Não a incomodavam as formalidades da vida na corte ou a consciência de que sob a civilidade fervilhava um caldeirão de ambições, rivalidades, paixões, cumplicidades, conluios. Criara-se com rituais e hipocrisia e políticas ocultas e nada disso a atemorizava ou preocupava. Simplesmente, tinha saudade de casa. Queria estar de novo em Gont, com Gued, na sua casa.

Viera a Havnor porque Lebánnen a mandara chamar, a ela e a Tehanu, e a Gued, se ele viesse; mas Gued recusara-se a vir e Tehanu não vinha sem ela. Isso assustara-a e preocupara-a. A sua filha não conseguia separar-se da mãe? Era dos conselhos de Tehanu que Lebánnen necessitava, não dos seus. Mas a filha agarrava-se a ela, tão pouco à vontade, tão fora do seu elemento na corte de Havnor como a moça de Hur-at-Hur e, como ela, em silêncio, escondida.

Por isso, Tenar tinha agora de desempenhar os papéis de ama, tutora e companheira de ambas, duas raparigas amedrontadas que não sabiam como assumir o seu poder, enquanto ela não queria nenhum poder na terra a não ser a liberdade de volver ao lar, onde pertencia, e ajudar Gued no jardim.

Quem lhe dera poderem criar rosas brancas como aquelas no seu jardim! A sua fragrância era tão doce no ar noturno. Mas era demasiado ventoso em Overfell e o sol demasiado forte no Verão. E, provavelmente, as cabras comeriam as rosas.

Por fim, voltou para dentro e atravessou a ala leste em direção aos aposentos que partilhava com Tehanu. A filha estava a dormir, pois era já tarde. Uma chama do tamanho de uma pérola ardia na torcida de uma minúscula lamparina de alabastro. Os quartos de teto alto eram suaves, ensombrados. Apagou a luz, meteu-se na cama e não tardou a mergulhar no sono.

Caminhava ao longo de um estreito corredor de pedra, com o teto alto e abobadado. Levava a lamparina de alabastro. A sua tênue luz oval esbatia-se na escuridão à frente e atrás de si. Chegou à porta de uma sala no corredor. Dentro da sala estavam pessoas com asas de pássaro. Algumas tinham cabeça de pássaros, falcões e abutres. Estavam de pé ou acocoradas, imóveis, sem olhar para ela nem para nada, com olhos rodeados por círculos brancos e vermelhos. As suas asas eram como enormes mantos negros pendurados às costas. Ela sabia que não conseguiam voar. Pareciam tão desoladas, em tal desespero, e o ar na sala estava tão empestado que ela tentou voltar-se e fugir, mas não conseguia mexer-se; e, lutando contra essa paralisia, acordou.

Havia as sombras cálidas, as estrelas na janela, a fragrância das rosas, o tênue ruído da cidade, a respiração de Tehanu a dormir.

Tenar sentou-se para sacudir de si os últimos vestígios do sonho. Era na Sala Pintada no Labirinto dos Túmulos, onde primeiro se encontrara com Gued face a face, há quarenta anos. No sonho, as pinturas nas paredes tinham adquirido vida. Mas não era vida. Era a não-vida interminável, intemporal, dos que morriam sem renascerem: os que tinham sido amaldiçoados pelos Sem-Nome: infiéis, ocidentais, mágicos.

Depois de morrer, renascia-se. Era essa a crença segura em que ela se criara. Quando, em criança, fora levada para os Túmulos a fim de ser Arha, a Devorada, disseram-lhe que só ela entre toda a gente renascera e voltaria a renascer como si própria, vida após vida. Por vezes, acreditara nisso, mas nem sempre, mesmo quando era a sacerdotisa dos Túmulos, e nunca desde então. Mas sabia o que toda a gente das Terras de Kargad sabia. Que, quando morressem, regressariam num novo corpo, a luz que se apagava acendendo-se de novo nesse mesmo instante num outro lugar, na matriz de uma mulher ou no ovo minúsculo de um peixinho de água doce ou na semente de uma erva levada pelo vento, regressando ao ser, esquecida da velha vida, fresca para a nova, vida após vida eternamente.

Só os párias expulsos pela própria terra, pelos Velhos Poderes, os mágicos de magia negra das Terras Hárdicas não renasciam. Quando morriam — segundo diziam os karguianos — não voltavam ao mundo dos vivos, indo antes para um lugar desolado de meios-seres onde, com asas mas sem poderem voar, nem pássaros nem seres humanos, tinham de permanecer sem esperança. Como a sacerdotisa Kossil se deleitara a falar-lhe da terrível sina daqueles inimigos vaidosos do Rei-Deus, cujas almas estavam condenadas a serem expulsas do mundo da luz para sempre!

Mas o lugar para onde se ia após a morte de que Gued lhe falara, o lugar para onde ele dizia que iam as pessoas, aquela terra imutável de poeira fria e treva — era menos desolador, menos terrível?

Atropelavam-se na sua mente perguntas sem resposta: como já não era karguiana, como tinha traído o lugar sagrado, teria de ir para aquela terra árida quando morresse? Teria Gued de ir para lá? Passariam um pelo outro, sem se importarem? Não era possível. Mas, e se ele tivesse de ir para lá e ela renascesse, de forma que a sua separação fosse eterna?

Não pensaria agora sobre tudo isso. Era evidente por que tinha sonhado com a Sala Pintada, todos estes anos após ter deixado tudo aquilo para trás. Estava relacionado com ter visto os embaixadores, ter falado karguiano de novo, claro. Mesmo assim, ficara perturbada, nervosa por causa do sonho. Não queria voltar a ter os pesadelos da sua juventude. Queria estar de novo na casa no Overfell, deitada junto a Gued, a escutar a respiração da Tehanu enquanto ela dormia. A dormir, Gued ficava imóvel como uma pedra; mas o fogo causara danos à garganta de Tehanu, de modo que havia sempre uma certa aspereza na sua respiração e Tenar escutara-a, fizera por escutá-la, noite após noite, ano após ano. Era a vida, era a vida a regressar, aquele som querido, aquela respiração ligeiramente áspera.

Escutando-a, adormeceu por fim mais uma vez. Se sonhou, foi apenas com golfos no ar e as cores da manhã a alastrarem pelo céu.

O Amieiro acordou muito cedo. O seu pequeno companheiro estivera inquieto toda a noite, e ele também. Ficou satisfeito por poder levantar-se e ir sentar-se à janela, olhando sonolento para a luz a alastrar pelo céu sobre o porto, para os barcos de pesca a partirem e as velas dos navios a despontarem do nevoeiro baixo na grande baía, e a escutar o zumbido e a azáfama da cidade a preparar-se para o novo dia. Quando começava a perguntar-se se deveria aventurar-se pela confusão do palácio para descobrir o que esperavam dele, ouviu bater à porta. Um homem trouxe-lhe uma bandeja de frutos frescos e pão, um jarro de leite e uma pequena taça com carne para o gatinho.

— Virei conduzir-te à presença do Rei quando soar a quinta hora — informou solenemente, e depois, com bastante menos formalidade, explicou-lhe como descer aos jardins do palácio se lhe apetecesse dar um passeio.

O Amieiro sabia, claro, que havia seis horas da meia-noite ao meio-dia e seis horas do meio-dia à meia-noite, mas nunca tinha ouvido as horas soarem, e perguntou-se o que quereria o homem dizer.

Ficou a saber pouco depois que ali, em Havnor, quatro trombeteiros saíam para a elevada varanda da qual se erguia a torre mais alta do palácio, a que estava encimada pela fina lâmina de aço da espada do herói, e, à quarta e quinta horas antes do meio-dia, e ao meio-dia, e à primeira, segunda e terceira horas após o meio-dia, tocavam as suas trombetas, um para o Oeste, um para o Norte, um para o Leste e um para o Sul. Assim, os cortesãos do paço e os mercadores e marinheiros da cidade podiam planejar as suas atividades e chegar a horas aos encontros marcados à hora combinada. Um rapaz que encontrou ao passear nos jardins explicou-lhe tudo isto, um rapaz pequeno e magro com uma túnica demasiado grande para ele. Explicou que os trombeteiros sabiam quando tocar as suas trombetas porque havia enormes relógios de areia na torre, assim como o Pêndulo de Ath, que pendia de lá do alto da torre e, se posto a oscilar à hora, cessaria de oscilar exatamente quando começasse a hora seguinte. E disse ainda ao Amieiro que as melodias que os trombeteiros tocavam pertenciam todas ao Lamento para Erreth-Akbe que o Rei Maharion compusera ao regressar de Selidor, uma parte diferente para cada hora, mas só ao meio-dia tocavam toda a composição. E quando se queria estar nalgum sítio a uma certa hora, devia olhar-se de vez em quando para as varandas, porque os trombeteiros saíam sempre alguns minutos antes e, se o Sol estivesse a brilhar, erguiam as suas trombetas de prata para darem sinal com a sua refulgência. O rapazinho chamava-se Rody e viera com seu pai, o Senhor de Metama em Ark, para ficar um ano em Havnor, e freqüentava a escola no paço, e tinha nove anos, e sentia saudades da mãe e da irmã.

O Amieiro regressou ao seu quarto a tempo de se encontrar com o seu guia, menos nervoso do que seria de esperar. A conversa com a criança recordara-lhe que os filhos dos nobres eram crianças, que os nobres eram homens e que não era de homens que devia temer-se.

O seu guia conduziu-o pelos corredores do palácio até a uma sala comprida e clara, com janelas ao longo de uma das paredes dando para as torres de Havnor e pontes fantásticas que lançavam arcos sobre os canais e saltavam de telhado para telhado e de varanda para varanda nas ruas. Entreviu esse panorama do seu lugar junto à porta, hesitante, não sabendo se deveria avançar na direção do grupo de pessoas que se encontrava do outro lado da sala.

O Rei viu-o e veio ter com ele, saudou-o com cordialidade, conduziu-o para junto das outras pessoas e apresentou-lhas uma a uma.

Havia uma mulher de cerca de cinqüenta anos, pequena e com a pele muito clara, de cabelo grisalho e grandes olhos cinzentos: Tenar, disse o Rei sorrindo: Tenar do Anel. Ela olhou o Amieiro nos olhos e cumprimentou-o discretamente.

Havia um homem mais ou menos da idade do Rei, vestido de veludo e elegantes linhos, com pedras preciosas no cinto e ao pescoço e um grande rubi no lóbulo da orelha: o Mestre de Navios Tosla, disse o Rei. O rosto de Tosla, escuro como madeira de carvalho envelhecida, era vivo e duro.

Havia um homem de meia-idade, vestido simplesmente, com um olhar firme que deu ao Amieiro a impressão de que poderia confiar nele; o Príncipe Sege da Casa de Havnor, disse o Rei.

Havia um homem de cerca de quarenta anos com um bordão de madeira da sua altura, pelo qual o Amieiro o reconheceu como sendo um feiticeiro da Escola em Roke. Tinha um rosto bastante marcado, mãos delicadas, modos distantes mas corteses. Mestre Ônix, disse o Rei.

Havia uma mulher que o Amieiro julgou ser uma serviçal, porque estava vestida muito simplesmente e se encontrava afastada do grupo, meio voltada como se estivesse a olhar pelas janelas. Viu o belo cair do seu cabelo negro, pesado e brilhante como uma cascata de água, quando Lebánnen a fez avançar.

— Tehanu de Gont — disse o Rei e a sua voz soou como um desafio.

A mulher olhou direto para o Amieiro por um instante. Era jovem; o lado esquerdo do seu rosto era de um rosa-acobreado macio, com um olho escuro e brilhante sob o arco da sobrancelha. O lado direito tinha sido destruído e estava sulcado, retalhado por cicatrizes, sem olho. A mão direita era como a garra recurva de um corvo.

Estendeu a mão ao Amieiro, à moda das pessoas de Éa e das Enlades, como os outros, mas foi a mão esquerda que estendeu. O Amieiro tocou-lhe a mão com a dele, palma contra palma. A dela estava quente, de um calor febril. Olhou-o de novo, um olhar inacreditável daquele olho único, brilhante, sério, intenso. Em seguida, baixou a vista e afastou-se como se não quisesse ser um deles, não quisesse estar ali.

— Mestre Amieiro traz-te uma mensagem de teu pai, o Falcão de Gont — adiantou o Rei, vendo que o mensageiro ficara sem palavras.

— Senhora minha — disse o Amieiro, com a boca seca e a voz rouca —, ele ordenou-me que te perguntasse duas coisas — e fez uma pausa, só porque tinha de umedecer os lábios e recuperar o fôlego num momento de pânico por julgar que tinha esquecido o que devia dizer; mas a pausa transformou-se num silêncio de espera.

Tehanu disse, numa voz mais rouca que a dele:

— Faz as perguntas.

— Disse-me que perguntasse primeiro: Quem são os que vão para a terra árida? E, ao despedir-se de mim, disse: «Pergunta também à minha filha: Poderá um dragão atravessar o muro de pedras?»

Tehanu acenou a cabeça em sinal de ter ouvido e recuou um pouco mais, como que para levar os enigmas com ela, para longe deles.

— A terra árida — pronunciou o Rei — e os dragões... — O seu olhar atento foi de rosto em rosto.

— Venham — disse —, sentemo-nos e conversemos.

— Talvez pudéssemos conversar lá em baixo nos jardins? — propôs a mulher pequena de olhos cinzentos, Tenar. O Rei concordou de imediato. O Amieiro ouviu Tenar dizer-lhe ao saírem para o jardim: — Ela tem dificuldade em ficar dentro de casa todo o dia. Precisa do céu.

Os jardineiros trouxeram-lhes cadeiras, que puseram à sombra de um velho e enorme salgueiro ao lado de um dos lagos. Tehanu foi até junto do lago, fitando a água verde onde algumas grandes carpas da cor da prata nadavam lentamente. Era evidente que queria refletir sobre a mensagem do pai, não falar, embora conseguisse ouvir o que diziam.

Depois de os outros estarem todos instalados, o Rei pediu ao Amieiro que contasse de novo a sua história. O silêncio enquanto o escutavam era compassivo e ele conseguiu falar sem constrangimento ou pressa. Quando terminou, ficaram em silêncio durante algum tempo e depois o feiticeiro Ônix fez-lhe uma pergunta:

— Sonhaste na noite passada?

O Amieiro disse que não tivera qualquer sonho que conseguisse recordar.

— Eu sim — contrapôs Ônix. — Sonhei com o Configurador que foi meu mestre na Escola em Roke. Dizem dele que morreu duas vezes: porque regressou desse país do outro lado do muro.

— Eu sonhei com os espíritos que não renascem — disse por sua vez Tenar em voz muito baixa.

O Príncipe Sege falou a seguir:

— Toda a noite julguei ouvir vozes lá em baixo nas ruas da cidade, vozes que conhecia da minha infância, chamando-me como costumavam. Mas quando escutei com atenção, eram só os vigias ou marinheiros embriagados aos gritos.

— Eu nunca sonho — afirmou Tosla.

— Eu não sonhei com aquele país — adiantou o Rei. — Recordei-o. E não conseguia deixar de o recordar.

Olhou para a mulher silenciosa, Tehanu, mas ela fitou o lago e não falou.

Ninguém mais falou; e o Amieiro não conseguiu suportar o silêncio.

— Se eu sou portador de uma maldição, deveis mandar-me embora! — exclamou.

O feiticeiro Ônix falou, não imperiosamente, mas num tom decisivo.

— Se Roke te enviou para Gont e Gont te enviou para Havnor, Havnor é onde deves estar.

— Muitas cabeças pensam melhor do que uma só — comentou Tosla, sardônico.

Lebánnen propôs:

— Deixemos os sonhos de lado por um momento. O nosso convidado precisa de saber o que nos preocupava antes da sua chegada; porque supliquei a Tenar e a Tehanu que viessem, no início do Verão, e mandei Tosla regressar das suas viagens para nos reunirmos em conselho. Explicas este assunto ao Amieiro, Tosla?

O homem de rosto escuro acenou com a cabeça. O rubi na sua orelha brilhava como uma gota de sangue.

— O assunto é dragões — começou. — Na Estrema Oeste, desde há alguns anos que vêm às quintas e vilas em Ully e Usidero em vôo baixo e agarram os telhados das casas com as suas garras, abanando-os e aterrorizando as pessoas. Nas Portas de Torin já vieram por duas vezes na época das colheitas e deitaram fogo aos campos com o seu bafo, e queimaram montes de feno e incendiaram os telhados de colmo das casas. Não atacam as pessoas, mas houve quem morresse nos incêndios. Não atacam as casas dos senhores destas ilhas à procura de tesouros, como faziam nos anos das trevas, mas somente as vilas e os campos. Veio a mesma notícia de um mercador que andara a negociar cereais no Sudoeste, indo até Simly: os dragões tinham chegado e queimaram os campos no momento em que se fazia a colheita.

«Então, no Inverno passado, em Semel, dois dragões instalaram-se no cume do vulcão, o Monte Andanden.

— Ah — fez Ônix e, perante o olhar inquiridor do Rei, acrescentou: — O feiticeiro Seppel de Paln disse-me que essa montanha era um lugar sagrado para os dragões, onde vinham beber fogo da terra nos tempos antigos.

— Bem, estão de volta — disse Tosla. — E descem e vêm assediar as manadas e os rebanhos que, lá, são a riqueza das pessoas, não ferindo os animais, mas assustando-os de tal modo que eles se debandam e fogem à toa. As pessoas dizem que são dragões jovens, negros e magros, sem muito fogo ainda.

«E em Paln há dragões a viver nas montanhas da parte norte da ilha, uma zona bravia sem quintas. Os caçadores costumavam ir lá caçar carneiros montanheses e apanhar falcões para os amestrar, mas foram afastados pelos dragões e agora ninguém se aproxima das montanhas. Talvez o teu feiticeiro de Paln tenha ouvido falar deles?

Ônix acenou com a cabeça.

— Ele diz que foram visto bandos deles a sobrevoarem as montanhas como bandos de gansos selvagens.

— Entre Paln e Semel e a Ilha de Havnor só existe o Mar de Paln — fez notar o Príncipe Sege.

O Amieiro estava a pensar que Semel não distava mais do que cem milhas de Taon, a sua ilha.

— Tosla dirigiu-se para o Passo dos Dragões no seu navio, o Andorinha do Mar — retomou o Rei.

— Mas mal chegara à vista da ilha mais a leste quando um enxame deles caiu sobre mim — prosseguiu Tosla, com um sorriso duro.

— Assediaram-me como fazem ao gado e aos carneiros, descendo em vôo picado para me chamuscarem as velas, até me porem em fuga. Mas isso não é novidade.

Ônix acenou mais uma vez com a cabeça.

— Ninguém a não ser um Senhor de Dragões alguma vez navegou pelo Passo dos Dragões.

— Eu naveguei — lembrou o Rei e, subitamente, fez um sorriso rasgado e juvenil. — Mas estava com um Senhor de Dragões... Ora, essa é precisamente uma época em que tenho andado a pensar. Quando estava na Estrema Oeste com o Arquimago, em busca de Cob, o Necromante, passamos por Jessage, que fica ainda mais ao largo do que Simly, e vimos ali campos queimados. E no Passo dos Dragões vimos que eles lutavam e se matavam uns aos outros, como animais atacados de raiva.

Ao fim de algum tempo o Príncipe Sege perguntou:

— Dar-se-ia o caso de alguns desses dragões não terem recuperado da sua loucura nesse tempo maldito?

— Já passaram mais de quinze anos — comentou Ônix. — Mas os dragões vivem muito tempo. Talvez o tempo passe de forma diferente para eles.

O Amieiro notou que, enquanto falava, o feiticeiro deitava um olhar a Tehanu, que continuava de pé, apartada deles, junto ao lago.

— E no entanto só há um ou dois anos é que começaram a atacar pessoas — contrapôs o príncipe.

— Isso não têm feito — lembrou Tosla. — Se um dragão quisesse destruir os habitantes de uma quinta ou vila, quem o deteria? Andam é atrás dos bens das pessoas. Colheitas, medas de feno, quintas, gado. Estão a dizer: Vão-se embora — saiam do Oeste!

— Mas por que estão a dizê-lo com fogo, com destruição? — perguntou o feiticeiro. — Eles sabem falar! Falam a Língua da Criação! Morred e Erreth-Akbe falaram com dragões. O nosso Arquimago falou com eles.

— Os que vimos no Passo dos Dragões — disse o Rei — tinham perdido o dom da fala. A brecha que Cob fizera no mundo estava a sugar-lhes o poder, como a nós. Só o grande dragão Orm Embar veio ter conosco e falou ao Arquimago, dizendo-lhe que fosse para Selidor... — fez uma pausa e o seu olhar tomou uma expressão distante. — E até mesmo a Orm Embar a fala foi retirada, antes da sua morte — disse e mais uma vez afastou o olhar dos outros e uma luz estranha iluminou-lhe o rosto. — Foi por nós que Orm Embar morreu. Abriu-nos o caminho para a terra das sombras.

Ficaram todos em silêncio durante algum tempo. A voz calma de Tenar quebrou-o por fim.

— Uma vez, o Gavião disse-me... deixem-me ver se me lembro como o disse: que o dragão e a fala do dragão são uma só coisa, um só ser. Que um dragão não aprende a Antiga Fala, ê a Antiga Fala.

— Como uma andorinha-do-mar é vôo. Como um peixe é nadar — acrescentou Ônix lentamente. — Sim.

Tehanu escutava, de pé e imóvel junto ao lago. Olharam todos para ela. A expressão no rosto da sua mãe era ansiosa, urgente. Tehanu voltou a cabeça.

— Como se leva um dragão a falar conosco? — perguntou o Rei. Disse-o num tom ligeiro, como se fosse uma graça, mas as suas palavras foram seguidas por outro silêncio. — Bem — continuou —, isso é algo que espero possamos aprender. Agora, Mestre Ônix, e dado que falamos de dragões, contas-nos a história da rapariga que veio para a Escola em Roke, já que ninguém a não ser eu a ouviu ainda?

— Uma rapariga na Escola? — ecoou Tosla, com um sorriso zombeteiro. — As coisas mudaram em Roke!

— De fato, mudaram — confirmou o feiticeiro, lançando um longo e frio olhar ao marinheiro. — Isto passou-se há cerca de oito anos. Ela veio de Way, disfarçada de rapaz, e queria estudar a arte da magia. E claro que o seu pobre disfarce não enganou o Porteiro. Mesmo assim, ele deixou-a entrar e tomou a sua defesa. Nessa altura, a Escola era dirigida pelo Mestre da Invocação, o homem — hesitou por um momento —, o homem com quem vos disse que sonhei na noite passada.

— Fala-nos sobre esse homem, se não te importas, Mestre Ônix — pediu o Rei. — Era Thórione, o que regressou do mundo dos mortos?

— Sim. Quando o Arquimago já partira há muito e não vinham notícias, receamos que tivesse morrido. Por isso, o Invocador empregou as suas artes para ir ver se ele passara de fato o muro para o outro lado. Ficou lá durante muito tempo, pelo que os mestres temeram também por ele. Mas por fim acordou e disse que o Arquimago estava lá entre os mortos e não regressaria, mas ordenara a Thórione que regressasse e viesse dirigir Roke. Porém, pouco depois, o dragão trouxe-nos o Arquimago Gavião com vida e na companhia do meu Senhor Lebánnen... Então, quando o Arquimago partiu de novo, o Invocador caiu e ficou prostrado como se a vida o tivesse abandonado. O Mestre das Ervas, com toda a sua arte, julgou-o morto. No entanto, quando nos preparávamos para o sepultar, ele moveu-se e falou, dizendo que tinha voltado à vida para fazer o que tinha de ser feito. Assim, como não podíamos escolher um novo Arquimago, Thórione, o Invocador, ficou a dirigir a escola. — Fez uma pausa. — Quando a rapariga chegou, embora o Porteiro a tivesse deixado entrar, Thórione recusou-se a admiti-la entre as paredes da Escola. Não queria ter nada a ver com ela. Mas o Mestre das Configurações levou-a para o Bosque e ela viveu ali durante algum tempo, na orla do arvoredo, e passeava entre as árvores com ele. Ele e o Porteiro e o Mestre das Ervas e Kurremkarmerruk, o Nomeador, acreditavam que existia uma razão para ela ter vindo para Roke, que era mensageira ou agente de algum grande acontecimento, mesmo que ela própria não o soubesse, e por isso a protegiam. Os outros mestres seguiam Thórione, que dizia que ela somente trazia dissensão e ruína e deveria ser expulsa. Nessa altura, eu era ainda estudante. Era doloroso para nós sabermos que os nossos mestres, sem mestre, discutiam entre si.

— E por causa de uma rapariga — insistiu Tosla.

O olhar que Ônix lhe lançou desta vez era extremamente frio.

— Pois — disse. Ao fim de um minuto, retomou a sua história.

— Para ser breve, então, quando Thórione enviou um grupo dos nossos para a obrigar a abandonar a ilha, ela desafiou-o a encontrar-se com ela nessa noite no Cabeço de Roke. Ele foi e chamou-a pelo nome para que lhe obedecesse. «Írian», chamou. Mas ela disse: «Eu não sou apenas Írian» e, enquanto falava, alterou-se. Tornou-se... tomou a forma de um dragão. Tocou em Thórione e o seu corpo desfez-se em pó. Depois trepou o monte e, observando-a, não sabíamos se estávamos a ver uma mulher a arder como uma fogueira, ou um animal alado. Mas no cume do monte vimo-la claramente, um dragão como uma chama de vermelho e ouro. E alçou as asas e voou para oeste.

A sua voz tornara-se um murmúrio e o seu rosto estava cheio do temor recordado. Ninguém falou.

O feiticeiro pigarreou.

— Antes de ela subir o monte, o Mestre dos Nomes perguntou-lhe: «Quem és tu?» Ela disse que não sabia o seu outro nome. O Configurador falou com ela, perguntando-lhe onde iria e se regressaria. Ela disse que ia para lá do Oeste, aprender o seu nome com o seu povo, mas que, se ele a chamasse, viria.

No silêncio, uma voz rouca e fraca, como metal a roçar por metal, falou. O Amieiro não compreendeu as palavras, mas pareciam-lhe familiares, como se quase conseguisse recordar o que significavam.

Tehanu aproximara-se do feiticeiro e estava agora ao seu lado, inclinada para ele, tensa como um arco retesado. Era ela quem tinha falado.

Sobressaltado e surpreso, o feiticeiro olhou para cima e fitou-a, pôs-se de pé, recuou um passo e depois, controlando-se, disse: — Sim, foram essas as suas palavras: 0 meu povo, para lá do Oeste.

— Chama-a. Oh, chama-a! — segredou Tehanu, estendendo ambas as mãos para ele. Mais uma vez ele recuou involuntariamente.

Tenar levantou-se e murmurou à filha:

— O que é, o que é, Tehanu?

Tehanu olhou à sua volta, fitando-os a todos. O Amieiro sentia-se como um espectro que ela trespassava com o olhar.

— Chama-a aqui — disse ela. Olhou para o Rei. — Podes chamá-la?

— Não tenho tal poder. Talvez o Configurador de Roke... talvez tu própria...

Tehanu sacudiu a cabeça com violência.

— Não, não, não, não — murmurou. — Eu não sou como ela. Não tenho asas.

Lebánnen olhou para Tenar como se buscasse conselho. Tenar olhou a filha com ar pesaroso.

Tehanu voltou-se e encarou o Rei.

— Lamento — disse ela rigidamente, na sua voz fraca e rouca. — Tenho de ficar sozinha, meu Senhor. Pensarei no que o meu pai disse. Tentarei responder às suas perguntas. Mas tenho de ficar sozinha, por favor.

Lebánnen fez-lhe uma reverência e olhou de relance para Tenar, que se dirigiu de imediato para a filha e lhe rodeou os ombros com um braço, afastando-se ambas pelo caminho iluminado pelo sol junto aos lagos e às fontes.

Os quatro homens voltaram a sentar-se e nada disseram durante alguns minutos.

Por fim, Lebánnen declarou:

— Tinhas razão, Ônix — e para os outros: — Mestre Ônix contou-me esta história da mulher-dragão Írian depois de eu lhe contar algo sobre Tehanu. Como, quando era criança, Tehanu convocou o dragão Keilessine a Gont e falou com o dragão na Antiga Fala e Keilessine lhe chamou filha.

— Senhor, isto é muito estranho, estes são tempos estranhos, quando um dragão é uma mulher e quando uma rapariga que não foi ensinada fala na Linguagem da Criação!

Ônix estava profunda e obviamente abalado, atemorizado. O Amieiro via-o e perguntava-se porque não sentia ele próprio tal medo. Provavelmente, pensou, porque não sabia o suficiente para ter medo, ou o que deveria recear.

— Mas há velhas histórias — lembrou Tosla. — Não as ouviste contar em Roke? Talvez os teus muros as excluam. Não passam de histórias que o povo simples conta. Canções, até. Há uma cantiga de marinheiro, «A Moça de Belilo», que conta como um marinheiro deixava uma moça a chorar em cada porto, até que uma das bonitas moças voou atrás do seu barco com umas asas de bronze e o agarrou e comeu.

Ônix olhou para Tosla com imaginação. Mas Lebánnen sorriu e disse: — A Mulher de Kemei... O velho mestre do Arquimago, Aihal, chamado Óguion, falou dela a Tenar. Era uma velha aldeã e vivia como tal. Convidou Óguion a entrar na sua casa e serviu-lhe sopa de peixe. E disse que a humanidade e os dragões tinham em tempos sido só um. Ela própria era simultaneamente dragão e mulher. E, sendo mago, Óguion viu-a como dragão.

— Como tu viste Írian, Ônix — acrescentou Lebánnen. Falando num tom formal e dirigindo-se somente ao Rei, Ônix disse: — Após Írian deixar Roke, o Mestre dos Nomes mostrou-nos excertos dos mais antigos livros de lendas que sempre tinham sido obscuros, mas que podiam ser interpretados como referindo-se tanto a seres humanos como a dragões. E a uma disputa ou grande divisão entre eles. Mas nada disto é claro ao nosso entendimento.

— Era minha esperança que Tehanu pudesse torná-lo claro — fez notar Lebánnen. A sua voz era calma, de modo que o Amieiro não sabia se ele desistira ou se ainda acalentava essa esperança.

Um homem vinha à pressa pelo caminho na sua direção, um soldado da guarda do Rei, de cabelos grisalhos. Lebánnen olhou para o lado, levantou-se e foi ter com ele. Conferenciaram durante um minuto, em voz baixa. O soldado afastou-se a grandes passadas; o rei voltou a aproximar-se da sua companhia.

— Aqui temos notícias — anunciou, mais uma vez com um tom de desafio na voz. — Para oeste de Havnor avistaram-se grandes bandos de dragões. Incendiaram florestas e a tripulação de uma embarcação costeira diz que pessoas em fuga para o Porto Sul lhes contaram que a cidade de Resbel está a arder.

Nessa noite, o navio mais veloz do rei transportou-o e à sua companhia, cruzando célere a Baía de Havnor, impelido pelos ventos mágicos que Ônix fizera levantar. Chegaram à embocadura do Rio Onneva, sob o flanco do Monte Onn, ao nascer do dia. Com eles desembarcaram onze cavalos, animais esplêndidos, fortes e de pernas finas da coudelaria real. Os cavalos eram raros em todas as ilhas, à exceção de Havnor e Semel. Tehanu conhecia bem os burros, mas nunca tinha visto um cavalo. Passara a maior parte da noite com eles e os seus tratadores, ajudando a controlá-los e acalmá-los. Eram cavalos de raça, bem amestrados, mas não estavam acostumados a viagens por mar.

Quando chegou o momento de os montar, ali, nas areias do Onneva, Ônix mostrou-se sobremaneira intimidado e teve de ser instruído e encorajado pelos tratadores, mas Tehanu saltou para a sela ao mesmo tempo que o Rei. Pôs as rédeas na sua mão aleijada e não as usou, parecendo comunicar com a égua por outros meios.

Assim, a pequena caravana partiu em direção ao Oeste pelos contrafortes das Falierns, mantendo um bom ritmo. Era a forma mais rápida de viajar que Lebánnen tinha ao seu dispor. Ir por mar ao longo da costa do Sul de Havnor demoraria demasiado tempo. Traziam o feiticeiro Ônix com eles para manter o tempo favorável, arredar eventuais obstáculos do caminho e defendê-los de qualquer perigo, desde que não fosse o fogo de dragões. Contra os dragões, se os encontrassem, não tinham qualquer defesa, a não ser Tehanu, talvez.

Ao consultar na noite anterior os seus conselheiros e os oficiais da sua guarda, Lebánnen rapidamente concluíra que não existia forma de lutar contra os dragões ou deles proteger as cidades e campos. As setas eram inúteis, os escudos eram inúteis. Apenas os maiores magos tinham alguma vez sido capazes de derrotar um dragão. Ele não tinha um desses magos ao seu serviço e não estava a par da existência de nenhum ainda vivo, mas cumpria-lhe defender o seu povo o melhor que podia, e não conhecia outra forma de o fazer a não ser tentar parlamentar com os dragões.

O seu mordomo ficara chocado quando ele se dirigiu aos aposentos onde se encontravam Tenar e Tehanu, pois o Rei devia mandar chamar as pessoas que desejava ver, ordenar-lhes que comparecessem à sua presença.

— Não, quando se vai suplicar-lhes um favor — retorquiu Lebánnen.

Ordenou à serviçal assustada que veio abrir a porta que perguntasse se ele poderia falar com a Dama Branca e a Mulher de Gont. Assim eram conhecidas pelos habitantes do palácio e da cidade. Que ambas usassem o seu verdadeiro nome abertamente, como o Rei, era caso tão raro, tão desafiador das regras e dos costumes, da segurança e da respeitabilidade que, embora as pessoas talvez lhes soubessem o nome, tinham relutância em pronunciá-lo e preferiam usar de rodeios.

Foi admitido à sua presença e, depois de lhes contar de forma concisa as notícias que recebera, acrescentou:

— Tehanu, talvez só tu no meu reino possas ajudar-me. Se consegues convocar estes dragões como convocaste Keilessine, se tens algum poder sobre eles, se podes falar com eles e perguntar por que guerreiam o meu povo, fá-lo-ás?

A jovem quis ignorar aquelas palavras, voltando-se para a mãe.

Mas Tenar não lhe ofereceu refúgio. Ficou impassível, e ao fim de algum tempo, lembrou-lhe:

— Tehanu, há muito tempo disse-te que, quando um Rei te dirigir a palavra, deves responder. Eras então uma criança, e não respondeste. Mas já não és uma criança.

Tehanu afastou-se de ambos um passo. Como uma criança, baixou a cabeça.

— Não posso convocá-los — afirmou na sua voz tênue e rouca. — Não os conheço.

— Mas podes convocar Keilessine? — perguntou Lebánnen.

Ela abanou a cabeça.

— Demasiado longe — murmurou. — Não sei onde.

— Mas tu és filha de Keilessine — insistiu Tenar. — Não podes falar com estes dragões?

Ela respondeu num tom abatido:

— Não sei.

Lebánnen instou com ela:

— Se existe alguma possibilidade, Tehanu, de eles falarem contigo, de tu conseguires falar com eles, suplico-te que a uses. Porque eu não consigo lutar contra eles, e não sei a sua língua, e como posso descobrir o que querem de nós através de seres que têm o poder de me destruir com um bafo, um olhar? Falarás por mim, por nós?

Tehanu ficou em silêncio. Depois, tão imperceptivelmente que Lebánnen mal conseguiu ouvi-la, respondeu:

— Sim.

— Então, apronta-te para viajar comigo. Partimos à quarta hora da noite. A minha gente virá buscar-te para te levar ao navio. Agradeço-te. E agradeço-te a ti, Tenar! — acrescentou, pegando-lhe na mão por um breve instante, pois tinha muito de que tratar antes de partir.

Quando desceu ao cais, tarde e à pressa, lá estava a figura magra e embuçada. O último cavalo a ser conduzido a bordo resfolegava e fincava as patas, recusando-se a subir a prancha de embarque. Tehanu parecia estar a conferenciar com o tratador. Pouco depois, pegou no freio do cavalo e, depois de falar com ele durante uns momentos, subiram ambos a prancha calmamente.

Os navios são casas pequenas e apinhadas; Lebánnen ouviu dois dos tratadores de cavalos a conversarem em voz baixa no convés da ré, perto da meia-noite.

— Ela tem mão — dizia um deles e o outro, que tinha uma voz mais jovem: — Lá isso tem, mas é horrorosa de se ver, não é? — O primeiro replicou: — Se um cavalo não se importa, por que é que há tu de te importar? — e o outro: — Não sei, mas importo-me.

Agora, ao cavalgarem das areias de Onneva para os contrafortes da montanha, onde o caminho se alargava, Tosla veio pôr-se ao lado de Lebánnen. — Ela vai ser a nossa intérprete, não é assim? — quis saber.

— Se puder.

— Bem, é mais corajosa do que eu pensei. Se lhe aconteceu aquilo da primeira vez que falou com um dragão, é provável que volte a acontecer.

— O que queres dizer?

— Foi queimada quase até à morte.

— Não por um dragão.

— Por quem, então?

— Pelas pessoas de quem nasceu.

— Como foi isso? — perguntou Tosla com uma careta.

— Vagabundos, ladrões. Tinha cinco ou seis anos. O que quer que ela ou eles tenham feito, o que é certo é que acabou com criança a ser espancada até perder os sentidos e lançada para a fogueira do acampamento. Pensaram, julgo eu, que estava morta ou morreria e que o caso seria tomado por um acidente. Fugiram. Alguns aldeãos encontraram-na e Tenar acolheu-a.

Tosla coçou a sobrancelha.

— Aí está um belo exemplo de bondade humana. Então, ela também não é filha do velho Arquimago? Mas então o que é que querem dizer ao afirmar que é a bastarda de um dragão?

Lebánnen navegara com Tosla, combatera ao seu lado há anos no cerco de Sorra e sabia que era um homem corajoso, empenhado e racional. Quando a rudeza de Tosla o irritava, culpava a sua própria sensibilidade excessiva.

— Não sei o que querem dizer — respondeu com modos suaves. — Tudo o que sei é que o dragão lhe chamou filha.

— Aquele teu feiticeiro de Roke, aquele Ônix, não perde tempo a dizer que não pode fazer nada neste caso. Mas ele sabe falar a Antiga Língua, não sabe?

— Sabe. Podia transformar-te em cinzas com algumas palavras dela. Se não o fez ainda, é por respeito para comigo, não para contigo, julgo eu.

Tosla acenou com a cabeça.

— Eu sei — disse.

Avançaram todo aquele dia a um ritmo tão rápido quanto os cavalos conseguiam manter, chegando ao cair da noite a uma pequena vila na montanha onde os cavalos podiam ser alimentados e descansar e os cavaleiros dormir em camas variadamente desconfortáveis. Os que não estavam habituados a montar descobriram então que mal conseguiam andar. As pessoas na cidade não tinham ouvido falar de dragões e sentiam-se intimidadas apenas pelo terror e a glória da chegada de um grupo de forasteiros abastados a quererem feno e camas e a pagarem com prata e ouro.

Voltaram a partir muito antes do nascer do dia. Eram quase cem milhas das areias de Onneva até Resbel. Nesse segundo dia, atravessariam o desfiladeiro baixo das Montanhas Faliern e desceriam a encosta oeste. Yenay, um dos oficiais de mais confiança de Lebánnen, cavalgava bem à frente dos outros; Tosla fechava a retaguarda; Lebánnen encabeçava o grupo principal. Trotava meio adormecido na calma monótona antes do nascer do dia, quando o som dos cascos de um cavalo a avançar na sua direção o acordou. Yenay voltara para trás. Lebánnen olhou para onde o homem estava a apontar.

Tinham acabado de sair dos bosques na crista de uma encosta e via-se todo o caminho até ao desfiladeiro na clara luminosidade. As montanhas de ambos os lados erguiam-se negras contra o brilho mate e avermelhado de uma madrugada enevoada.

Mas estavam a olhar para oeste.

— É mais perto do que Resbel — calculou Yenay. — Umas quinze milhas, talvez.

A égua de Tehanu, embora pequena, era o melhor de todos os cavalos e tinha uma forte convicção de que devia liderar os outros. Se Tehanu não a refreasse, não pararia de tentar ultrapassá-los até estar à cabeça da fila. A égua avançou de imediato logo que Lebánnen refreou o seu grande cavalo, e assim Tehanu encontrava-se agora ao seu lado, olhando para onde ele estava a olhar.

— A floresta está a arder — disse-lhe ele.

Como lhe via apenas o lado queimado do rosto, parecia que ela estava a olhar cegamente; mas ela viu e a sua mão em garra que segurava as rédeas tremia. A criança queimada receia o fogo, pensou ele.

Que loucura cruel e covarde o possuíra para dizer a esta rapariga: «Vem falar com os dragões, salva-me a pele!» e trazê-la direita ao fogo?

— Voltamos para trás — propôs ele.

Mas Tehanu ergueu a mão sã e apontou.

— Olha — disse. — Olha!

Uma chispa de uma fogueira, uma cinza ardente a cruzar a linha negra do desfiladeiro, uma águia de chamas a elevar-se, um dragão a voar direito a eles.

Tehanu levantou-se nos estribos e soltou um grito penetrante e rouco, como o grito de uma ave marinha ou de um falcão, mas era uma palavra, uma única palavra: — Medeu!

A enorme criatura aproximou-se com terrível velocidade, batendo quase indolentemente as asas longas e estreitas; perdera o reflexo do fogo e parecia negra ou da cor do bronze na luz que aumentava.

— Cuidado com os cavalos — avisou Tehanu na sua voz rouquejante e, nesse momento, o cavalo cinzento de Lebánnen viu o dragão e estremeceu violentamente, meneando a cabeça e recuando. Lebánnen conseguiu controlá-lo, mas, atrás de si, um dos outros cavalos relinchou de terror e ele ouviu-os a escarvar o chão, as vozes dos tratadores. O feiticeiro Ônix veio a correr e pôs-se ao lado do cavalo de Lebánnen. Montados ou a pé, todos ficaram a ver o dragão aproximar-se.

Mais uma vez, Tehanu gritou aquela palavra. O dragão mudou o curso do vôo, abrandou, parou e ficou a pairar no ar a cerca de quinze metros deles.

— Medeu! — chamou Tehanu e a resposta chegou como um eco prolongado: — Me-de-uuu!

— O que significa? — perguntou Lebánnen, inclinando-se para Ônix.

— Irmã, irmão — segredou o feiticeiro.

Tehanu desmontara, atirara as rédeas a Yenay e descia agora a pé a pequena encosta até onde o dragão pairava, com as suas longas asas batendo em movimentos rápidos e curtos como os de um falcão parado no ar. Mas essas asas mediam quinze metros de ponta a ponta e ao baterem produziam um som semelhante a tambores ou chocalhos de bronze. Ao aproximar-se dele, uma pequena língua de fogo soltou-se da grande boca aberta, munida de dentes compridos, do dragão.

Ela ergueu a mão. Não a mão delgada e morena, mas a mão queimada, a garra. As cicatrizes do braço e do ombro impediam-na de a erguer completamente. Mal conseguia chegar à altura da sua cabeça.

O dragão desceu um pouco no ar, baixou a cabeça e tocou a mão dela com o seu focinho alongado, escamoso, de narinas dilatadas. Como um cão, um animal a farejar, pensou Lebánnen; como um falcão a baixar sobre o pulso do falcoeiro; como um rei inclinando-se perante uma rainha.

Tehanu falou, o dragão falou, ambos com brevidade, nas suas vozes em que vibravam timbales. Mais uma troca de palavras, uma pausa; o dragão falou demoradamente. Ônix escutava com atenção. Nova troca de palavras. Um tufo de fumo das narinas do dragão; um gesto seco e imperioso da mão queimada e murcha da mulher. Pronunciou claramente uma ordem.

— Traga-a — traduziu o feiticeiro num murmúrio.

O dragão bateu as asas com força, baixou a sua cabeça comprida e silvou, falou novamente e depois subiu no ar, muito acima de Tehanu, voltou-se, descreveu um círculo e partiu como uma seta na direção do Oeste.

— Chamou-lhe Filha do Mais Antigo — segredou o feiticeiro, enquanto Tehanu se deixava ficar imóvel, vendo o dragão partir.

Ela voltou-se, parecendo pequena e frágil naquela paisagem grandiosa de montes e floresta, à luz cinzenta da madrugada. Lebánnen saltou do cavalo e correu para ela. Pensando que a encontraria esgotada e aterrorizada, estendeu-lhe a mão para a ajudar a caminhar, mas ela sorriu-lhe. O seu rosto, meio terrível e meio belo, brilhava com a luz vermelha do Sol que ainda não nascera.

— Não voltam a atacar. Vão esperar nas montanhas — afirmou. Depois olhou em volta como se não soubesse onde se encontrava e quando Lebánnen lhe tomou o braço deixou que o fizesse. Mas o fogo e o sorriso continuavam a pairar-lhe no rosto e caminhava com passos leves.

Enquanto os tratadores seguravam os cavalos, que pastavam já a erva molhada pelo orvalho, Ônix, Tosla e Yenay aproximaram-se dela, embora mantivessem uma distância respeitosa. Ônix disse:

— Minha Senhora Tehanu, jamais vi ato de tal coragem.

— Nem eu — corroborou Tosla.

— Eu estava com medo — confessou Tehanu, na sua voz sem emoção. — Mas chamei-lhe irmão e ele chamou-me irmã.

— Não consegui compreender tudo o que disseste — disse o feiticeiro. — Não tenho o mesmo conhecimento da Antiga Fala que tu. Queres contar-nos o que se passou entre vós?

Ela falou lentamente, com o olhar no Oeste para onde o dragão tinha voado. O vermelho baço do fogo distante empalidecia à medida que o Leste se iluminava.

— Eu disse: «Porque estão a queimar a ilha do rei?» E ele respondeu: «Chegou o momento de voltarmos a ser donos das nossas terras.» E eu perguntei: «O Mais Antigo ordenou-vos que as tomásseis pelo fogo?» Depois ele disse que o Mais Antigo, Keilessine, tinha ido com Gorm Írian para lá do Oeste, para voar num vento diferente. E disse que os dragões jovens que ficaram aqui nos ventos do mundo dizem que os homens são perjuros que roubaram as terras aos dragões. Dizem uns aos outros que Keilessine jamais regressará e que eles não vão esperar mais tempo, e expulsarão os homens de todas as terras ocidentais. Mas há pouco tempo Orm Írian regressou e está em Paln, disse ele. E eu disse-lhe para pedir a Írian que viesse. E ele prometeu que ela viria ter com a filha de Keilessine.

 

                                 O CONSELHO DOS DRAGÕES

Da janela do seu quarto no palácio, Tenar assistira à partida do navio que levava Lebánnen e a sua filha pela noite dentro. Não tinha ido até ao cais com Tehanu. Fora difícil, muito difícil recusar-se a acompanhá-la naquela viagem. Tehanu suplicara, ela que nunca pedia nada. Nunca chorava, não sabia chorar, mas falara com a voz entrecortada por soluços:

— Mas eu não posso ir, não posso ir sozinha! Vem comigo, mãe!

— Meu amor, meu coração, se eu pudesse poupar-te a este medo, fá-lo-ia, mas não vez que não posso? Fiz o que podia por ti, minha chama de fogo, minha estrela. O Rei tem razão, só tu, tu só podes fazer isto.

— Mas se estivesses lá, se eu soubesse que estavas lá...

— Estou aqui, estou sempre aqui. O que poderia fazer lá, senão ser um fardo? Têm de viajar depressa, será uma viagem difícil. Eu só iria atrasar-vos. E poderias recear por mim. Tu não precisas de mim. Não sou de utilidade para ti. Tens de aprender isso. Tens de ir, Tehanu.

E voltara as costas à filha, começando a preparar as roupas que Tehanu levaria, roupas caseiras, não as vestimentas finas que usavam ali, no palácio, os seus sapatos resistentes, o capote bom. Se chorou enquanto isto fazia, não deixou que a filha lhe visse as lágrimas.

Tehanu estava de pé, como que perplexa, paralisada pelo medo. Quando Tenar lhe deu as roupas para mudar, obedeceu. Quando o lugar-tenente do rei, Yenay, bateu à porta e perguntou se poderia conduzir a Senhora Tehanu ao cais, ela fitou-o como um animal sem entendimento.

— Vai — disse Tenar. Abraçou-a e pousou a mão na grande cicatriz que era a metade do seu rosto. — És tanto filha de Keilessine como minha.

A rapariga apertou-a ao peito com força por uns momentos, largou-a, voltou-se sem uma palavra e seguiu Yenay para fora do quarto.

Tenar ficou parada, sentindo a friagem da noite onde sentira antes o calor do corpo e dos braços de Tehanu.

Aproximou-se da janela. Luzes lá em baixo na doca, o vaivém dos homens, o tropel dos cascos dos cavalos a serem levados pelas ruas íngremes acima do mar. Um navio com três mastros estava no cais, um navio que ela conhecia, o Golfinho. Ficou à janela a olhar e viu Tehanu na doca. Viu-a embarcar por fim, conduzindo um cavalo que se recusara antes a entrar, e viu que Lebánnen a seguia. Viu as amarras a serem soltas, o movimento dócil do navio seguindo o barco a remos que o rebocava para fora da doca, a súbita queda e desabrochar das velas brancas na escuridão. A luz da lanterna na popa tremeluziu contra as águas escuras, minguou lentamente até não passar de uma gota minúscula de claridade e desapareceu.

Tenar andou pelo quarto a dobrar as roupas que Tehanu despira, a camisa e a saia de cima, de seda. Apanhou do chão as sandálias leves e encostou-as à face por um momento antes de as arrumar.

Deitada sem dormir na cama larga, viu na sua mente, uma e outra vez, a mesma cena: uma estrada, e Tehanu a andar por ela sozinha. E um nó, uma rede, uma massa negra e contorcida a descer dos céus, um enxame de dragões, o fogo a jorrar deles e a lambê-la, o seu cabelo a arder, as suas roupas a arderem — não, disse Tenar, não! Não acontecerá! Obrigaria a sua mente a afastar-se daquela cena até voltar a ver a estrada e Tehanu a caminhar por ela sozinha, e o nó negro e ardente no céu, cada vez mais próximo.

Quando a primeira luz do dia começou a acinzentar o quarto, adormeceu por fim, exausta. Sonhou que estava na casa do Velho Mago no Overfell, na sua casa, e ficou mais feliz do que saberia dizer por se encontrar ali. Tirou a vassoura de trás da porta para varrer o chão de carvalho lustroso, porque Gued deixara que a poeira se acumulasse. Mas havia uma porta nas traseiras da casa que não estava ali antes. Quando a abriu, encontrou um quarto pequeno e de teto baixo com paredes de pedra pintadas de branco. Gued estava encolhido no quarto, acocorado com os braços pousados nos joelhos e as mãos penduradas, flácidas. A sua cabeça não era de homem, mas pequena, negra e com um bico, uma cabeça de abutre. Disse numa voz fraca e rouca:

«Tenar, não tenho asas.» E quando o disse, uma tal fúria e terror a dominaram que acordou, ofegante, e viu a luz do sol na parede alta do seu quarto no palácio e ouviu o som doce e límpido das trombetas a anunciar a quarta hora da manhã.

Trouxeram-lhe o pequeno-almoço. Comeu pouco e conversou com Baga, a velha serviçal que escolhera de entre todo o séquito de servas e damas de honra que Lebánnen lhe pusera ao dispor. A Baga era uma mulher esperta e competente, nascida numa vila do interior de Havnor, com quem Tenar se dava melhor do que com a maioria das damas da corte. Estas eram polidas e respeitosas, mas não sabiam o que pensar dela, como falar com uma mulher que era meio sacerdotisa karguiana, meio lavradeira de Gont. Tenar via que era mais fácil para elas serem simpáticas para com Tehanu, na sua timidez feroz. Podiam ter pena dela. Não podiam ter pena de Tenar.

A Baga, contudo, podia e tinha, e reconfortou bastante Tenar nessa manhã.

— O Rei vai trazê-la de volta sã e salva — afirmou. — Ora, julga que ele ia meter a menina em perigos de que não a conseguisse tirar? Nunca! Ele, não!

Era um consolo falso, mas a Baga acreditava com tal força na sua verdade que Tenar teve de concordar com ela, o que, por si só, já era um pequeno alívio.

Precisava de algo para fazer, porque a ausência de Tehanu estava em toda a parte. Resolveu ir falar com a princesa karguiana, para ver se a moça estava disposta a aprender a língua hárdica ou, pelo menos, a dizer-lhe o seu nome.

Nas Terras de Kargad as pessoas não tinham um nome-verdadeiro que mantivessem secreto, como os falantes de hárdico. Tal como os nomes de usar aqui, era freqüente os nomes karguianos terem um significado — Rosa, Amieiro, Honra, Esperança. Ou então eram tradicionais, freqüentemente o nome de um antepassado. As pessoas diziam-nos abertamente e orgulhavam-se da antigüidade de um nome passado de geração em geração. Ela fora levada de casa de seus pais quando era demasiado nova para saber por que lhe tinham chamado Tenar, mas pensava que talvez fosse o nome de uma avó ou bisavó. Tiraram-lhe esse nome quando foi reconhecida como Arha, a Sem-Nome renascida, e esquecera-o até Gued lhe devolver. Para ela, assim como para ele, era o seu nome-verdadeiro; mas não era uma palavra da Velha Fala; não dava a ninguém qualquer poder sobre ela e ela nunca o tinha ocultado.

Sentia-se perplexa por a princesa o fazer. As suas escravas chamavam-lhe apenas Princesa, ou Senhora, ou Dona; os embaixadores referiram-se a ela como a Alta Princesa, a Filha de Thol, a Senhora de Hur-at-Hur e outros títulos. Se tudo o que a pobre moça tinha eram títulos, chegara o momento de ter um nome.

Tenar sabia que não era apropriado que uma hóspede do Rei andasse sozinha pelas ruas de Havnor e sabia também que a Baga tinha deveres no palácio, pelo que pediu que a acompanhasse um criado. Cederam-lhe um pajem encantador, um rapazinho, pois não tinha mais do que quinze anos, que a ajudava nos cruzamentos como se ela fosse uma trêmula velhinha. Tenar gostava de andar pela cidade. Já descobrira e confessara a si própria, ao dirigir-se para a Casa do Rio, que era mais fácil sem a Tehanu ao seu lado. As pessoas olhavam para Tehanu e desviavam o olhar e Tehanu caminhava rígida e com o orgulho ofendido, detestando que olhassem para ela e desviassem o olhar, e Tenar sofria com ela, talvez até mais do que ela.

Agora, podia passear sem pressas e assistir aos espetáculos de rua, olhar para as bancadas do mercado, para os vários rostos e vestimentas de todo o Arquipélago, desviar-se do caminho mais direto para que o pajem lhe mostrasse uma rua onde as pontes pintadas que ligavam os telhados faziam uma espécie de telhado em abóbada muito alto, do qual pendiam em arcos trepadeiras com flores vermelhas, e as pessoas penduravam gaiolas de pássaros das janelas em paus dourados por entre as flores, de forma que tudo aquilo parecia um jardim suspenso no meio do ar. «Oh, quem me dera que a Tehanu pudesse ver isto!» pensou. Mas não devia pensar em Tehanu, nem onde estaria.

A Casa do Rio, tal como o Palácio Novo, datava do reinado da Rainha Heru, há cinco séculos. Encontrava-se em ruínas quando Lebánnen subira ao trono; ele reconstruíra-a com mil cuidados e era um lugar maravilhoso, cheio de calma, com pouca mobília e soalhos escuros, encerados e sem carpetes. Fileiras de portas-janelas estreitas abriam-se em todo um lado de uma sala para uma vista dos salgueiros e do rio, e podia sair-se para grandes varandas de madeira construídas sobre a água. As damas da corte tinham dito a Tenar que era o lugar que o Rei preferia para passar uma noite de solidão ou uma noite de amor, o que emprestava ainda mais significado, sugeriam, ao fato de ele ter alojado a princesa ali. A sua própria suspeita era que ele não quisera ter a princesa sob o mesmo teto que ele e simplesmente nomeara o único outro lugar possível para ela, mas talvez as damas da corte tivessem razão. Os guardas, nas suas belas armaduras, reconheceram-na e deixaram-na passar, os pajens anunciaram-na e afastaram-se com o seu pajem para irem quebrar nozes e partilhar mexericos, o que parecia ser a principal ocupação dos pajens, e as damas-de-companhia vieram recebê-la, gratas pela chegada de um rosto novo e ansiosas por saberem mais notícias da expedição do rei contra os dragões. Depois de ultrapassar todas estas etapas, Tenar foi por fim conduzida aos aposentos da princesa.

Nas duas visitas anteriores tinham-na feito esperar numa antecâmara e só ao fim de algum tempo as escravas cobertas por véus a tinham conduzido a uma sala interior, a única divisão escura em toda a casa soalheira, onde Tenar encontrara a princesa de pé, com o seu chapéu de aba redonda do qual tombava o véu vermelho até ao chão a toda a volta, como se estivesse permanentemente fixo ali, sólido, exatamente como se ela fosse uma chaminé de tijolos, como dissera a Senhora Iyesa.

Desta vez foi diferente. Mal entrou na antecâmara, ouviram-se guinchinhos vindos lá de dentro e o som de pessoas a correr em várias direções. A princesa entrou de repente e, com um grito desesperado abraçou-se a Tenar. Tenar era pequena e a princesa, uma mulher alta, vigorosa e cheia de emoção, fê-la perder o equilíbrio, mas segurou-a nos seus braços fortes.

— Oh, Senhora Arha, Senhora Arha, salva-me, salva-me! — gritava.

— Princesa! O que se passa?

A princesa estava lavada em lágrimas de terror ou alívio ou ambos simultaneamente, e tudo o que Tenar conseguia compreender dos seus lamentos e súplicas era um balbuciar sobre dragões e sacrifício.

— Não existem dragões perto de Havnor — disse ela com firmeza, libertando-se dos braços da rapariga — e ninguém vai ser sacrificado. O que é que se passa? O que te disseram?

— As mulheres disseram que os dragões vinham aí e que sacrificariam a filha de um rei e não uma cabra, porque são mágicos e eu tenho medo.

A princesa limpou o rosto, crispou as mãos e começou a tentar dominar o pânico em que estivera. Era um terror real e incontrolável, e Tenar teve pena dela. Mas não o demonstrou. A moça precisava de aprender a manter a sua dignidade.

— As tuas mulheres são ignorantes e não sabem o suficiente da língua hárdica para compreenderem o que lhe dizem as pessoas. E tu não sabes hárdico. Se soubesses, compreenderias que não há nada a recear. Vês as pessoas da casa andarem por aí em choros e gritos?

A princesa fitou-a. Não trazia chapéu nem véu, apenas um vestido simples e leve, porque fazia calor. Era a primeira vez que Tenar a via sem que ela fosse uma forma vaga por detrás dos véus vermelhos. Embora os olhos da princesa estivessem inchados de chorar e ela tivesse o rosto às manchas, era magnífica: cabelo escuro, olhos escuros, braços roliços, seios fortes e cintura delgada, uma mulher no auge da beleza e do vigor.

— Mas nenhuma dessas pessoas vai ser sacrificada! — fez por fim notar.

— Ninguém vai ser sacrificado.

— Então, por que é que vêm aí os dragões?

Tenar respirou fundo.

— Princesa — disse —, há muitas coisas sobre as quais precisamos de conversar. Se me considerares tua amiga...

— Considero — disse a princesa. Avançou um passo e agarrou o braço direito de Tenar com força. — Tu és minha amiga. Não tenho mais nenhum amigo, derramarei o meu sangue por ti.

Embora fosse ridículo, Tenar sabia que era verdade. Correspondeu ao aperto forte da moça o melhor que pôde e disse:

— Tu és minha amiga. Diz-me o teu nome.

Os olhos da princesa arregalaram-se. Tinha ainda um pouco de ranho e baba no lábio superior. O inferior tremia-lhe. Disse, com um suspiro fundo:

— Seserakh.

— Seserakh, o meu nome não é Arha, mas Tenar.

— Tenar — disse a moça, agarrando-lhe o braço com mais força.

— Ora bem — disse Tenar, tentando recuperar o controlo da situação —, o caminho foi longo e tenho sede. Por favor, sentemo-nos. E podes dar-me um copo de água? Depois falaremos.

— Sim — disse a princesa e saiu da sala de um salto, como uma leoa à caça. Houve berros e gritos dos aposentos interiores e mais sons de corridas. Uma escrava apareceu, ajeitando o véu com mãos trêmulas e pairando num dialeto tão cerrado que Tenar não conseguia compreender o que dizia. — Fala na língua amaldiçoada! — berrou a princesa lá de dentro, e a mulher penosamente guinchou em hárdico:

— Sentar? Beber? Senhora?

Duas cadeiras tinham sido postas no meio da sala escura e abafada, uma defronte da outra. Seserakh estava de pé ao lado de uma delas.

— Gostava de me sentar lá fora, à sombra, por cima do rio — disse Tenar. — Se te aprouver, princesa.

A princesa berrou e as mulheres saíram disparadas, levando as cadeiras para a varanda grande. Tenar e a princesa sentaram-se lado a lado.

— Assim é melhor — disse Tenar. Ainda lhe parecia estranho estar a falar em karguiano. Não tinha qualquer dificuldade em o fazer, mas sentia-se como se não fosse ela própria, como se fosse outra pessoa a falar, um ator a desempenhar um papel.

— Gostas da água? — perguntou a princesa. O seu rosto regressara à cor normal, a cor de natas espessas, e os olhos, já não inchados, eram de um ouro azulado, ou azuis com pintas de ouro.

— Gosto. Tu não?

— Detesto. Não havia água onde eu vivia.

— No deserto? Eu também vivi no deserto. Até aos dezesseis anos. Depois cruzei os mares e vim para oeste. Adoro a água, o mar, os rios.

— Oh, o mar — discordou Seserakh, encolhendo-se e pondo a cabeça nas mãos. — Oh, detesto-o, detesto-o. Vomitei a alma. Vezes sem conta. Dias e dias e dias. Não quero voltar a ver o mar — e deitou um olhar de relance para lá dos ramos dos salgueiros para o ribeiro calmo e raso abaixo delas. — Este rio não tem mal — acrescentou, com um ar de desconfiança.

Uma mulher trouxe um tabuleiro com uma jarra e taças, e Tenar bebeu um longo gole de água fresca.

— Princesa — começou —, temos muito que falar. Primeiro, os dragões estão ainda a uma grande distância, no Oeste. O rei e a minha filha foram falar com eles.

— Falar com eles?

— Sim — ia prosseguir, mas disse antes: — Por favor, fala-me sobre os dragões em Hur-at-Hur.

Tinham dito a Tenar, quando ela era criança, em Atuan, que havia dragões em Hur-at-Hur. Dragões nas montanhas, bandidos nos desertos. Hur-at-Hur era pobre e longínqua e nada de bom vinha de lá, a não ser opalas e turquesas, e toros de cedro.

Seserakh soltou um profundo suspiro. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos.

— Faz-me chorar pensar na minha terra — disse, com uma simplicidade de sentimento tão pura que as lágrimas assomaram também aos olhos de Tenar. — Bem, os dragões vivem nas montanhas. A dois ou três dias de viagem de Mesreth. Lá em cima, só há penedos e ninguém incomoda os dragões e eles não incomodam ninguém. Mas, uma vez por ano, rastejam por uma parte da encosta abaixo. É um caminho, todo de terra batida, feito pela barrigas deles a rastejarem todos os anos desde que o tempo começou. Chama-se o Caminho dos Dragões — vendo que Tenar a escutava com grande atenção, prosseguiu: — É tabu cruzar o Caminho dos Dragões. Não se pode pôr lá o pé. Tem de se ir à volta, a sul do Lugar do Sacrifício. Eles começam a descê-lo no fim da Primavera. No quarto dia do quinto mês chegam todos ao Lugar do Sacrifício. Nunca nenhum chega atrasado. E toda a gente de Mesreth e das aldeias está lá, à espera deles. E então, depois de todos descerem o Caminho dos Dragões, os sacerdotes dão início ao sacrifício. E isso... Não têm o sacrifício da Primavera, em Atuan?

Tenar abanou a cabeça.

— Bem, por isso é que eu fiquei assustada, sabes, porque pode ser um sacrifício humano. Quando as coisas não estão a correr bem, sacrificam a filha de um rei. Noutros casos, é uma rapariga qualquer. Mas já não se faz isso há muito tempo. Não se faz desde que eu era pequena e o meu pai derrotou todos os outros reis. Desde então, só sacrificam uma cabra e um cabrito. E recolhem o sangue em bacias e atiram o sebo para o fogo sagrado e chamam os dragões. E os dragões vêm todos, a rastejar. Bebem o sangue e comem o fogo. — Fechou os olhos por um momento; o mesmo fez Tenar. — Depois, regressam para o cume das montanhas e nós voltamos para Mesreth.

— De que tamanho são os dragões?

Seserakh afastou as mãos cerca de um metro.

— Às vezes são maiores — acrescentou.

— E não voam? Nem falam?

— Oh, não. As asas deles são uns cotos pequenos. Soltam uma espécie de silvo. Os animais não sabem falar. Mas eles são animais sagrados. São o sinal da vida, porque o fogo é vida e eles comem fogo e cospem fogo. E são sagrados porque vêm ao sacrifício da Primavera. Mesmo que não viessem nenhumas pessoas, os dragões viriam reunir-se naquele lugar. Nós vamos lá porque os dragões lá vão. Os sacerdotes dizem-nos sempre isso antes do sacrifício.

Tenar refletiu por uns momentos sobre o que Seserakh lhe dissera.

— Os dragões aqui no Oeste — esclareceu por fim — são grandes. Enormes. E voam. São animais, mas sabem falar. E são sagrados. E perigosos.

— Bem — disse a princesa —, talvez os dragões sejam animais, mas são mais como nós do que os malditos-bruxos daqui.

Disse «malditos-bruxos» como uma só palavra e sem qualquer ênfase especial. Tenar recordava-se dessa expressão da sua infância. Significava o povo escuro, o povo hárdico do Arquipélago.

— Porquê?

— Porque os dragões são seres que renasceram! Como todos os animais. Como nós — disse Seserakh. Olhou para Tenar com franca curiosidade. — Pensei que, como foste sacerdotisa no Lugar Sagrado dos Túmulos, saberias muito mais sobre tudo isso do que eu.

— Mas lá não havia dragões — disse Tenar. — Eu não aprendi nada de nada sobre eles. Por favor, minha amiga, fala-me deles.

— Bem, deixa-me ver se sei contar a história. É uma história que se conta no Inverno. Suponho que não tem mal contá-la no Verão, aqui. Aqui, tudo está errado, de qualquer maneira — comentou, suspirando. — Bem, no início, sabes, no tempo primeiro, éramos todos o mesmo, as pessoas e os animais, fazíamos as mesmas coisas. E depois aprendemos a morrer. E assim aprendemos a renascer. Talvez como um tipo de ser, talvez como um outro. Mas não tem grande importância, porque, de qualquer maneira, morremos outra vez e renascemos outra vez, e, mais cedo ou mais tarde, acabamos por vir a ser tudo.

Tenar acenou com a cabeça. Até ali, a história era-lhe familiar.

— Mas o melhor é renascer como pessoas ou dragões, porque esses são os seres sagrados. Por isso, tentamos não quebrar os tabus nem violar os Preceitos, para termos mais probabilidades de voltarmos a ser uma pessoa ou, pelo menos, um dragão... Se os dragões aqui falam e são assim tão grandes, consigo perceber por que é que isso seria uma recompensa. Ser um dos nossos dragões nunca me pareceu nada que fosse de desejar.

«Mas a história é sobre como os malditos-bruxos descobriram o Vedurnan, que era uma coisa, não sei o quê, que disse a algumas pessoas que, se concordassem em nunca morrer e nunca renascer, poderiam aprender a fazer bruxarias. E então essas pessoas escolheram isso, escolheram o Vedurnan. E partiram para o Oeste com ele. E isso tornou-os escuros. E vivem aqui. Todas estas pessoas aqui são as que escolheram o Vedurnan. Vivem e podem fazer as suas malditas bruxarias, mas não podem morrer. Só os seus corpos morrem. O resto fica num lugar escuro e nunca renasce. E parecem-se com pássaros. Mas não conseguem voar.

— Sim — murmurou Tenar.

— Não aprendeste isso em Atuan?

— Não — retorquiu Tenar.

Recordava a história que a Mulher de Kemei contara a Óguion: no início do tempo, a humanidade e os dragões tinham sido só um, mas os dragões escolheram uma vida selvagem e livre e a humanidade escolheu riqueza e poder. Uma escolha, uma separação. Seria a mesma história?

Mas a imagem que Tenar tinha no coração era a de Gued acocorado num quarto de pedra, de cabeça pequena, negra, com um bico...

— O Vedurnan não é aquele anel, pois não, de que se fartaram de falar e que eu vou ter de usar?

Tenar lutou por desviar a mente da Sala Pintada e do sonho da noite anterior e concentrar-se na pergunta de Seserakh.

— Anel?

— O anel de Urthakby.

— Erreth-Akbe. Não. Esse anel é o Anel da Paz. E somente o usarás se e quando fores a rainha do Rei Lebánnen. E, se o fores, serás uma mulher com sorte.

A expressão do rosto de Seserakh era curiosa. Não era de amuo ou cinismo. Revelava ausência de esperança, algum humor, paciência — a expressão de uma mulher décadas mais velha.

— Não é uma questão de sorte, querida amiga Tenar — discordou. — Tenho de casar com ele. E assim me perderei.

— Por que te perderás, se casares com ele?

— Se casar com ele, terei de lhe dar o meu nome. Se ele disser o meu nome, rouba-me a alma. É o que os malditos-bruxos fazem. Por isso é que ocultam sempre o seu nome. Mas, se ele me roubar a alma, não poderei morrer. Terei de viver para sempre sem o meu corpo, como um pássaro que não pode voar, e nunca renascerei.

— Foi por isso que ocultaste o teu nome?

— Disse-o a ti, minha amiga.

— Muito me honra a tua confiança, minha amiga — disse Tenar com convicção. — Mas aqui podes dizer o teu nome a quem quiseres. Não podem roubar-te a alma com ele. Acredita em mim, Seserakh. E podes confiar nele. Ele não... não te fará mal.

A moça detectara a sua hesitação.

— Mas gostava de poder — contrapôs ela. — Tenar, minha amiga, eu sei o que sou, aqui. Naquela grande cidade de Áuabath onde está o meu pai, eu era uma estúpida e ignorante mulher do deserto. Uma feyagat. As mulheres da cidade sorriam e acotovelavam-se umas às outras sempre que me viam, as meretrizes de cara destapada. E aqui é pior. Não compreendo ninguém e ninguém me compreende e tudo, tudo é diferente! Nem sequer sei o que é a comida, é comida de bruxo, faz-me sentir tonta. Não sei quais são os tabus, não há sacerdotes a quem possa perguntar, só bruxas, todas negras e de cara destapada. E vi a maneira como ele olhava para mim. Pode ver-se através do feyag, sabes? Vi-lhe o rosto. Ele é muito formoso, parece um guerreiro, mas é um bruxo negro e odeia-me. Não digas que não, porque eu sei que me odeia. E acredito que, quando souber o meu nome, vai mandar a minha alma para aquele lugar para sempre.

Ao fim de algum tempo, fitando os ramos dos salgueiros a balouçar sobre a água que corria docemente, e sentindo-se abatida e cansada, Tenar disse:

— O que tens de fazer, então, princesa, é aprender a conseguir que ele goste de ti. Que outra coisa poderias fazer?

Seserakh encolheu os ombros, desanimada.

— Ajudaria se compreendesses o que ele diz.

— Bagaba-bagaba. É como me soam todos.

— E nós soamos assim aos ouvidos deles. Não vês, princesa? Como pode ele gostar de ti se tudo o que tu sabes dizer-lhe a ele é bagaba-bagaba? Olha! — E, erguendo a mão, apontou para ela com a outra pronunciou a palavra, primeiro em karguiano, depois em hárdico.

Seserakh repetiu ambas as palavras num tom obediente. Após aprender os nomes de mais algumas partes do corpo, descobriu de repente as potencialidades da tradução. Endireitou-se na cadeira.

— Como é que os bruxos dizem «rei»?

— Agni. Ê uma palavra da Antiga Fala. Foi o meu marido que me disse.

Apercebeu-se enquanto falava de que não era prudente aludir à existência de uma terceira língua naquele momento; mas não foi isso o que chamou a atenção da princesa.

— Tu tens marido? — Seserakh fitou-a com os seus olhos luminosos, leoninos, e riu alto. — Oh, que maravilha! Pensei que fosses uma sacerdotisa! Oh, por favor, minha amiga, fala-me dele! É um guerreiro? É formoso? Ama-o?

Após a partida do Rei para a caça ao dragão, o Amieiro não sabia o que fazer; sentia-se completamente inútil, sem razão para permanecer no palácio e comer a comida do Rei, culpado pela perturbação que trouxera consigo. Não podia ficar sentado todo o dia no seu quarto, pelo que saía e passeava pelas ruas, mas o esplendor e a azáfama intimidavam-no e, sem dinheiro nem objetivo, caminhava à sorte até ficar cansado. Regressava ao Palácio de Maharion perguntando-se se os guardas de expressão dura lhe autorizariam a entrada. Era nos jardins do palácio que encontrava alguma paz. Tinha a esperança de voltar a encontrar Rody, mas a criança não apareceu, o que talvez fosse melhor. O Amieiro achava que não devia falar com ninguém. As mãos que se estendiam para ele do mundo dos mortos estender-se-iam também para essas pessoas.

No terceiro dia após a partida do Rei, desceu a passear por entre os lagos do jardim. O dia estivera muito quente; o fim da tarde estava quedo e abafado. Trouxe o Reboque consigo e soltou o gatinho, que se pôs a perseguir insetos debaixo dos arbustos enquanto ele ficava sentado num banco perto do grande choupo e olhava para o brilho verde-prata das grandes carpas na água. Sentia-se só e desanimado; sentia que a sua defesa contra as vozes e as mãos que se estendiam estava a desmoronar-se. De que servia estar ali, afinal? Porque não ficar no sonho de uma vez por todas, descer aquele monte, acabar com aquilo? Ninguém no mundo o lamentaria e a sua morte pouparia as pessoas a essa doença que trouxera consigo. Com certeza já tinham bastante que fazer na luta contra os dragões. E, se fosse para lá, talvez visse Lírio. Se ele estivesse morto, não poderiam tocar-se um ao outro. Segundo os feiticeiros, nem sequer sentiriam desejo de se tocarem. Eles diziam que os mortos esqueciam o que era estar vivo. Mas Lírio estendera-lhe a mão. Ao princípio, talvez recordassem a vida o tempo suficiente para olharem um para o outro, se verem um ao outro, mesmo que não se tocassem.

— Amieiro.

Ergueu a cabeça lentamente e olhou a mulher que se encontrava de pé junto de si. A pequena mulher grisalha, Tenar. Viu a preocupação no seu rosto, mas não sabia a que se devia. Depois, lembrou-se que a filha dela, a moça com queimaduras, partira com o Rei. Talvez houvesse más notícias. Talvez tivessem morrido todos.

— Não estás bem, Amieiro? — perguntou ela.

Ele abanou a cabeça. Era-lhe difícil falar. Compreendia agora quão fácil seria, naquela outra terra, não falar. Não olhar as pessoas nos olhos. Não ser perturbado.

Ela sentou-se ao seu lado no banco.

— Pareces perturbado — disse.

Ele fez um gesto vago, como a dizer está tudo bem, não tem importância.

— Estiveste em Gont. Com o meu marido, o Gavião. Como estava ele? Tratava de si?

— Sim — respondeu o Amieiro. Depois, tentou dar uma resposta mais adequada. — Foi o melhor dos anfitriões.

— Muito me apraz sabê-lo — afirmou ela. — Preocupo-me com ele. Ele sabe tratar das coisas de casa tão bem quanto eu, mas, mesmo assim, custou-me deixá-lo sozinho... Por favor, dizes-me o que fazia enquanto lá estiveste?

O Amieiro contou-lhe como o Gavião apanhara as ameixas e as fora vender, como tinham consertado a cerca, como o Gavião o ajudara a dormir.

Ela escutava-o atentamente, com uma expressão séria, como se estas pequenas questões tivessem a mesma importância que os estranhos acontecimentos de que tinham falado neste mesmo lugar três dias antes — os mortos a chamarem por um homem vivo, uma rapariga a transformar-se em dragão, os dragões a incendiarem as ilhas do Oeste.

Na verdade, já não sabia o que tinha afinal mais importância, se as grandes estranhas coisas, se as menores e comuns.

— Quem me dera poder ir para casa — confessou a mulher.

— Eu poderia desejar a mesma coisa, mas seria em vão. Parece-me que nunca mais voltarei para casa. — o Amieiro não sabia porque dissera tais palavras, mas, ao ouvi-las, achou que era verdade o que dizia.

Ela olhou-o por um momento com os seus olhos calmos e cinzentos e não fez qualquer pergunta, mas adiantou:

— E eu poderia desejar que a minha filha fosse para casa comigo, mas também seria em vão. Sei que ela tem de continuar. Só não sei para onde.

— Dizes-me qual é o dom que ela tem, que mulher é para o Rei a ter mandado chamar e a ter levado com ele para defrontar os dragões?

— Oh, se eu soubesse o que ela é, dir-te-ia — respondeu Tenar com a voz cheia de mágoa, amor e amargura. — Eu não a dei à luz, como talvez tenhas adivinhado ou já soubesses. Veio viver conosco quando era pequena, salva do fogo, mas só por um pouco e não completamente ilesa... Quando o Gavião voltou para mim, ela passou a ser também sua filha. E salvou-nos a ambos de uma morte terrível convocando um dragão Keilessine, chamado o Mais Antigo. E esse dragão chamou-lhe filha. Por isso, ela é filha de muitos e de ninguém, é aquela a quem a dor não foi poupada mas que foi poupada ao fogo. Quem ela é de verdade talvez eu nunca venha a saber. Mas quem me dera que aqui estivesse agora comigo, a salvo!

Ele queria reconfortá-la, mas o seu coração estava demasiado apertado.

— Fala-me um pouco mais sobre a tua mulher, Amieiro — pediu ela.

— Não posso — disse ele por fim, quebrando o silêncio que se estabelecia sem problemas entre eles. — Fá-lo-ia se pudesse, Senhora Tenar. Há um tal peso em mim, um tal temor e receio esta noite. Tento pensar na Lírio, mas só há aquele deserto escuro a descer, a descer, e não consigo vê-la nele. Todas as recordações que tinha dela, que eram como água e ar para mim, desapareceram naquele lugar árido. Não me resta nada.

— Lamento — murmurou ela e ficaram sentados, de novo em silêncio. Escurecia. Não corria uma brisa e fazia muito calor. As luzes do palácio brilhavam através das persianas das janelas e eram filtradas pela folhagem imóvel dos salgueiros.

— Está a acontecer alguma coisa — acabou Tenar por dizer. — Uma grande mudança no mundo. Talvez não possamos ater-nos a nada do que conhecíamos.

O Amieiro olhou para o céu, que escurecia. As torres do palácio destacavam-se nítidas contra ele, com o seu pálido mármore e alabastro a absorver toda a luz que ainda vinha do Oeste. Os seus olhos procuraram a lâmina da espada erguida na ponta da torre mais alta e viu-a, prata pouco nítida.

— Olha — disse. Na ponta da espada, como um diamante ou uma gota de água, brilhava uma estrela. Enquanto olhavam para a estrela, ela libertou-se da espada, erguendo-se a direito acima dela.

Ia uma agitação no palácio ou no exterior das muralhas. Vozes. Soou uma trompa, num chamamento agudo e imperativo.

— Regressaram — disse Tenar, levantando-se. A excitação espalhara-se pelo ar e o Amieiro levantou-se também. Tenar apressou-se a voltar para dentro do palácio, de onde podia ver-se o cais. Mas, antes de levar o Reboque para dentro, o Amieiro voltou a olhar para a espada, que não passava agora de um débil bruxulear, e para a estrela, muito brilhante acima dela.

O Golfinho entrou no porto, naquela noite de Verão sem vento, inclinado para a frente, urgente, com o vento mágico a enfunar-lhe as velas. Ninguém no palácio contava que o Rei regressasse tão depressa, mas nada estava fora de ordem ou por preparar quando ele chegou. O cais ficou instantaneamente apinhado de cortesãos, soldados de folga e gente da cidade, todos prontos a dar-lhe as boas-vindas, e havia também jograis e harpistas à espera de saber como ele lutara contra os dragões e os derrotara para poderem compor baladas sobre o feito.

Ficaram decepcionados: o rei e os seus acompanhantes dirigiram-se imediatamente para o palácio e os guardas e marinheiros do navio disseram apenas:

— Subiram às terras acima das Areias de Onneva e voltaram ao fim de dois dias. O feiticeiro enviou-nos uma ave-mensageira, porque nessa altura estávamos nos Portais da Baía, visto que tínhamos ficado de ir ao seu encontro a Porto Sul. Regressamos e lá estavam eles à nossa espera na embocadura do rio, todos ilesos. Mas vimos o fumo das florestas incendiadas para lá das Faliernes do Sul.

Tenar estava entre a multidão no cais e Tehanu foi direto a ela. Abraçaram-se com força. Porém, enquanto subiam a rua por entre as luzes e as vozes de júbilo, Tenar pensava ainda: — Tudo mudou. Ela mudou. Nunca mais regressará a casa.

Lebánnen caminhava entre os seus guardas. Carregado de tensão e energia, tinha um aspecto real, guerreiro, radiante. «Erreth-Akbe», clamavam as pessoas ao vê-lo, e «Filho de Morred!». Nos degraus do palácio, voltou-se e encarou-os a todos. Quando queria, tinha uma voz forte, que retiniu agora, silenciando o tumulto.

— Escutai, povo de Havnor! A mulher de Gont falou em nosso nome com um chefe dos dragões. Prometeram uma trégua. Um deles virá até nós. Virá um dragão aqui, à cidade de Havnor, ao Palácio de Maharion. Não para destruir, mas para parlamentar. Chegou o momento em que os homens e os dragões têm de encontrar-se e falar. Por isso vos digo: quando o dragão chegar, não o receeis, não luteis contra ele, não lhe fujais, mas dai-lhe as boas-vindas no Sinal da Paz. Saudai-o como saudaríeis um grande senhor vindo de longe em missão de paz. E não tenhais medo. Pois que estamos bem protegidos pela Espada de Erreth-Akbe, pelo Anel de Elfarran e pelo Nome de Morred. E em meu nome vos prometo. Enquanto eu viva, defenderei esta cidade e este reino.

Escutaram-nos de respiração suspensa. Uma explosão de vivas e gritos seguiu-se às suas palavras quando ele se voltou e entrou no palácio a grandes passadas.

— Achei melhor avisá-los — explicou a Tehanu na voz calma que empregava usualmente e ela acenou com a cabeça. Falou-lhe como a um camarada e ela comportou-se como tal. Tenar e os cortesãos que estavam por perto viram isso.

Ordenou que o seu Conselho Plenário reunisse à quarta hora da manhã e depois todos dispersaram, mas ele reteve Tenar um minuto enquanto Tehanu se retirava.

— É ela quem nos protege — afirmou.

— Sozinha?

— Não receies por ela. É filha do dragão, irmã do dragão. Vai aonde nós não podemos ir. Não receies por ela, Tenar.

Ela baixou a cabeça, em sinal de aceitação.

— Agradeço-te por a teres trazido sã e salva — disse. — Por algum tempo ainda.

Estavam afastados das outras pessoas, no corredor que conduzia aos aposentos da ala oeste do palácio. Tenar olhou o Rei e contou-lhe:

— Estive a falar de dragões com a princesa.

— A princesa... — repetiu ele com uma expressão vaga.

— Ela tem nome. Não posso dizer-te, já que ela acredita que tu poderias usá-lo para destruir a sua alma.

Uma expressão carrancuda anuviou o rosto do Rei.

— Em Hur-at-Hur existem dragões. Pequenos, diz ela, e sem asas, e não falam. Mas são sagrados. São o sinal sagrado e garantia de morte e renascimento. Ela recordou-me que o meu povo não vai para onde o teu vai quando morre. Aquela terra árida de que fala o Amieiro, não é para onde vamos. A princesa, e eu, e os dragões.

A expressão do rosto de Lebánnen mudou de reserva cautelosa para intensa atenção.

— As perguntas de Gued para Tehanu — recordou em voz baixa. — Quais são as respostas?

— Somente sei o que a princesa me disse ou recordou. Falarei esta noite com Tehanu sobre estas coisas.

Lebánnen enrugou a testa, refletindo, e depois o seu rosto desanuviou-se. Inclinou-se e beijou a face de Tenar, desejando-lhe boa noite. Afastou-se em grandes passadas e ela ficou a vê-lo. Derretia o seu coração, deslumbrava-a, mas não a cegava. «Continua a temer a princesa», pensou.

A sala do trono era a dependência mais antiga do Palácio de Maharion. Fora a residência de Gemal Nascido-do-Mar, Príncipe de Iline, que se tornara rei em Havnor e de cuja linhagem descendiam a Rainha Heru e o seu filho Maharion. O Lai Havnoriano reza:

Um centenar de guerreiros,

um centenar de mulheres

tinham lugar na grande residência

de Gemal Nascido-do-Mar

à mesa do rei, em conversa gentil,

a bela e generosa nobreza de Havnor,

os mais bravos guerreiros, as mulheres mais belas.

Ao longo de mais de um século, os herdeiros de Gemal tinham edificado à volta dessa residência um palácio cada vez maior, e por fim Heru e Maharion tinham mandado erigir a Torre de Alabastro, a Torre da Rainha, a Torre da Espada.

Estas mantinham-se ainda; mas, embora o povo de Havnor lhe tivesse sempre chamado o Novo Palácio ao longo dos muito séculos desde a morte de Maharion, estava velho e meio em ruínas quando Lebánnen subiu ao trono. Mandara-o reconstruir quase de raiz, e ricamente. Os mercadores das Ilhas Interiores, no júbilo inicial por terem de novo um Rei e leis para proteger o seu comércio, tinham-lhe estipulado uma renda alta e ofereceram-lhe ainda mais dinheiro para todos esses empreendimentos. Durante os primeiros anos do seu reinado, nem sequer se queixaram de que os impostos lhes estivessem a dar cabo do negócio e a deixar na indigência os seus descendentes. Assim, Lebánnen pudera tornar novo o Novo Palácio mais uma vez, e esplêndido. Mas à sala do trono, depois de o teto travejado ser reconstruído, as paredes de pedra rebocadas, os vidros postos nas janelas estreitas e altas, deixou-a na sua antiga simplicidade.

Ao longo das falsas e passageiras dinastias e dos Anos de Trevas, de tiranos e usurpadores e senhores piratas, através de todas as agressões do tempo e da ambição, o trono do reino estivera ao fundo da grande sala: uma cadeira de madeira de espaldar alto num estrado simples. Em tempos, estivera pintada de ouro. O ouro há muito que desaparecera; as pequenas tachas de ouro tinham deixado fendas na madeira ao serem arrancadas. As suas almofadas e cortinas de seda tinham sido roubadas ou destruídas por traças, ratos e bolor. Nada indicava que fosse o que era, a não ser o lugar onde se encontrava e um baixo-relevo nas costas, uma garça a voar com um ramo de sorveira no bico. Esse era o brasão da Casa de Enlad.

Os reis dessa casa tinham vindo de Enlad para Havnor há oitocentos anos. Onde está o Trono de Morred, diziam, está o reino.

Lebánnen mandara-o limpar, restaurar e substituir a madeira podre, encerar e polir até parecer cetim escuro, mas deixou-o por pintar, por dourar, despido. Algumas das pessoas abastadas que vinham admirar o seu palácio faustoso queixavam-se da sala do trono e do trono. — Parece um celeiro — diziam; e: — É o Trono de Morred ou uma velha cadeira de lavrador?

Ao que alguns diziam que o Rei respondera: «O que é um reino sem os celeiros que o alimentam e os lavradores que cultivam os cereais?» Outros diziam que ele replicara: «É o meu reino adornos de dourados e veludo, ou sustenta-se na força da madeira e da pedra?» Outros ainda diziam que ele nada dissera a não ser que gostava da sala do trono tal como estava. E, como eram as nádegas reais que se sentavam naquele trono sem almofada, os seus críticos não tiveram a última palavra no assunto.

Para dentro daquela sala severa e de alto teto travejado, numa manhã que a neblina marítima do fim do Verão refrescava, desfilou o Conselho do Rei: noventa e um homens e mulheres, cem, se tivessem comparecido todos. Tinham sido todos escolhidos pelo Rei, alguns para representarem as grandes casas nobres e reais das Ilhas Interiores, vassalas da Coroa; outros para serem porta-vozes dos interesses de outras ilhas e partes do Arquipélago; outros ainda porque o Rei os achara, ou esperara achar, conselheiros de Estado úteis e dignos de confiança. Havia mercadores, exportadores-importadores e feitores de Havnor e das outras grandes cidades portuárias do Mar de Éa e do Mar Interior, esplêndidos na sua gravidade consciente e nas suas vestes escuras de seda pesada. Havia mestres das guildas de artesãos, negociadores flexíveis e astutos, destacando-se entre eles uma mulher de olhos claros e mãos fortes, a chefe dos mineiros de Osskil. Havia feiticeiros de Roke, como Ônix, com mantos cinzentos e bordões de madeira. Havia também um feiticeiro de Paln chamado Mestre Seppel, que não trazia bordão e de quem as pessoas se mantinham afastadas, embora parecesse bastante inofensivo. Havia mulheres nobres, jovens e velhas, dos condados e principados do reino, algumas envoltas em sedas de Lorbanery e com pérolas das Ilhas de Areia, e duas mulheres das ilhas, robustas, simples e dignas, uma de Iffish e a outra de Korp, para falarem em nome do povo da Estrema Leste. Havia alguns poetas, alguma gente de saber dos velhos colégios de Éa e das Enlades, e vários capitães de soldados ou dos navios do Rei.

Todos estes conselheiros o Rei tinha escolhido pessoalmente. Ao fim de dois ou três anos, solicitar-lhes-ia que servissem de novo ou enviá-los-ia de regresso a casa com agradecimentos e cobertos de honra, e seriam substituídos. Todas as leis e impostos, todos os julgamentos trazidos perante o trono o rei discutia com eles, tomando o seu conselho. A sua proposta era em seguida submetida a votação e apenas com o consentimento da maioria era implementada. Havia quem dissesse que o conselho não passava de um grupo de cãezinhos de trela e fantoches do Rei e, na verdade, assim poderia ter sido. Na maior parte dos casos, prevalecia a opinião do Rei quando ele a defendia. Mas, freqüentemente, não exprimia a sua opinião e deixava o conselho tomar decisões. Muitos conselheiros tinham descoberto que, se contassem com um número suficiente de fatos em que assentar a sua oposição e a argumentassem bem, poderiam influenciar os outros e até mesmo persuadir o Rei. Por conseguinte, os debates no seio das várias seções e organismos especiais do conselho decorriam freqüentemente com grande ardor e até em sessões plenárias os conselheiros se opunham ao Rei e questionavam as suas posições, e mais de uma vez o derrotaram na votação. O Rei era bom diplomata, mas um político medíocre.

Achava que o seu conselho o servia bem e as pessoas com poder tinham acabado por o respeitar. O povo não prestava grande atenção ao conselho. Concentrava as suas esperanças e atenção na pessoa do Rei. Havia um milhar de lais e baladas sobre o filho de Morred, o príncipe que voltara da morte para as margens do dia, montado no dorso de um dragão, o herói de Sorra, o que empunha a Espada de Serriadh, a Sorveira, o Freixo Alto de Enlad, o bem-amado Rei que reinava sob o Signo da Paz. Era mais difícil compor canções sobre conselheiros a debater impostos sobre navios.

Estes conselheiros que os poetas não cantavam desfilaram para a sala do trono e tomaram o seu lugar nos bancos almofadado, frente ao trono sem almofada. Voltaram a pôr-se de pé quando o Rei entrou. Vinha acompanhado pela Mulher de Gont, cuja aparência, porque muitos deles já a tinham visto, não causou qualquer perturbação na sala, e por um homem magro com vestes de um preto ferruginoso.

— Parece um mágico de aldeia — disse um mercador de Kamery a um armador de Way, que respondeu: — Sem dúvida — no tom resignado de quem está disposto a perdoar tudo. O Rei era amado ou, pelo menos, estimado por muitos dos conselheiros; afinal, depositara-lhes poder nas mãos e, mesmo que não sentissem qualquer dever de lhe demonstrar gratidão, respeitavam a sua capacidade de julgamento.

A idosa Senhora de Ebéa entrou à pressa, já atrasada, e o Príncipe Sege, que presidia ao protocolo, ordenou aos membros do conselho que se sentassem. Sentaram-se todos.

— Escutai o Rei — clamou Sege e todos se dispuseram a escutá-lo.

Falou — e, para muitas pessoas presentes na sala, aquelas eram as primeiras notícias reais sobre o assunto; contou-lhes os ataques dos dragões no Oeste de Havnor e como partira com a Mulher de Gont, Tehanu, a fim de parlamentar com eles.

Manteve-os em suspenso, enquanto falava sobre os anteriores ataques dos dragões às ilhas do Oeste, e resumiu-lhes a história que Ônix contara sobre a rapariga que se transformara em dragão no Cabeço de Roke; e recordou-lhes que Tehanu era reclamada como filha por Tenar do Anel, pelo ex-Arquimago de Roke e pelo dragão Keilessine, em cujo dorso o próprio rei fora trazido de Selidor. Por fim, contou-lhes o que acontecera no desfiladeiro das Montanhas Faliern, ao amanhecer três dias antes.

Terminou dizendo:

— Aquele dragão levou a mensagem de Tehanu para Orm Írian em Paln, que terá então de fazer o longo vôo até aqui, trezentas milhas ou mais. Mas os dragões são mais rápidos do que qualquer navio, mesmo que este seja ajudado pelo vento mágico. Podemos contar com a chegada de Orm Írian a qualquer momento.

O Príncipe Sege fez a primeira pergunta, sabendo que seria bem acolhida pelo Rei.

— O que esperas ganhar, meu senhor, parlamentando com um dragão?

A resposta não se fez esperar.

— Mais do que poderíamos alguma vez ganhar lutando contra ele. Custa-me dizê-lo, mas é a verdade: contra a fúria dessas grandes criaturas, se decidissem atacar-nos, não importa em que número, não temos verdadeira defesa. Os nossos sábios dizem-nos que talvez exista um lugar que poderia fazer-lhes frente, a Ilha de Roke. E em Roke talvez exista um homem que poderia defrontar a fúria de um só dragão e não ser destruído. Por conseguinte, temos de tentar descobrir a causa da sua fúria e, removendo-a, estabelecer a paz com eles.

— Mas, são animais — contrapôs o velho Senhor de Felkway. — Os homens não podem fazer ver a razão a animais, fazer a paz com eles.

— Não temos nós a Espada de Erreth-Akbe, que matou o Grande Dragão? — bradou um jovem conselheiro.

Respondeu-lhe de imediato um outro conselheiro:

— E quem matou Erreth-Akbe?

Os debates do conselho tinham tendência a ser tumultuosos, embora o Príncipe Sege mantivesse uma ordem firme, não permitindo a ninguém que interrompesse outro conselheiro ou ultrapassasse nas suas intervenções os dois minutos marcados pela ampulheta. Os faladores e maçadores eram interrompidos pelo som do bordão com ponta de prata do príncipe e a sua chamada do orador seguinte. Por conseguinte, falavam e gritavam uns com os outros a um ritmo rápido e todas as coisas que tinham de ser ditas — e muitas coisas que não precisavam de ser ditas — eram ditas e refutadas e repetidas. Argumentavam sobretudo que deveria optar-se pela guerra, combater os dragões, derrotá-los.

— Uma coluna de arqueiros num dos navios de guerra do rei poderia abatê-los como patos — gritou um mercador exaltado de Wathort.

— Devemos baixar-nos perante bestas sem raciocínio? Já não há heróis entre nós? — perguntou a imperiosa Senhora de O-tokne.

A esta pergunta Ônix deu uma resposta ríspida.

— Sem raciocínio? Eles falam a Língua da Criação, em cujo conhecimento residem a nossa arte e poder. São tanto bestas como nós. Os homens são animais que falam.

Um capitão de navio, homem idoso e muito viajado, adiantou:

— Então não sois vós, os feiticeiros, que deveríeis falar com eles? Visto que Sabeis a fala deles e partilhais talvez os seus poderes? O Rei referiu-se a uma rapariga sem estudos que se transformou num dragão. Mas os magos podem tomar essa forma quando lhes aprouver. Não podiam os Mestres de Roke falar com os dragões ou lutar contra eles, se tal fosse necessário, em pé de igualdade?

O feiticeiro de Paln levantou-se. Era um homem baixo, com uma voz suave.

— Tomar a forma é tornar-se nesse ser, capitão — esclareceu com modos corteses. — Um mago pode parecer-se com um dragão. Mas a verdadeira Mudança é uma arte arriscada. Especialmente agora. Uma pequena mudança no meio de grandes mudanças é como um sopro contra o vento... Mas temos aqui entre nós alguém que não precisa de recorrer a qualquer arte e, no entanto, pode falar em nosso nome com os dragões, melhor do que qualquer homem. Se estiver disposta a falar em nosso nome.

Ao ouvir estas palavras, Tehanu levantou-se do seu banco aos pés do estrado do trono.

— Fá-lo-ei — afirmou. E voltou a sentar-se.

Esta intervenção provocou uma pausa de um minuto no debate, mas em breve todos os conselheiros estavam de novo envolvidos no debate.

O Rei escutava e não falava. Queria saber qual era o estado de espírito do seu povo.

Do alto da Torre da Espada, as harmoniosas trombetas de prata tocaram a sua melodia quatro vezes, dando a sexta hora, o meio-dia. O Rei pôs-se de pé e o Príncipe Sege anunciou um intervalo até à primeira hora da tarde.

Para o almoço de queijo fresco, frutos de Verão e verduras, servido numa sala da Torre da Rainha Heru, Lebánnen convidou Tehanu e Tenar, o Amieiro, Sege e Ônix; e este último, com a autorização do Rei, trouxe Seppel, o feiticeiro de Paln. Sentaram-se e comeram juntos, falando pouco e em voz baixa. Das janelas via-se o porto e a costa norte da baía envolta numa névoa azulada que poderia ser os restos do nevoeiro matinal ou o fumo dos incêndios nas florestas do Oeste da ilha.

O Amieiro continuava intrigado por ter sido incluído entre os íntimos do rei e admitido à reunião do seu conselho. O que tinha ele a ver com dragões? Não era capaz de os combater nem de falar com eles. Para ele, a idéia de tais seres poderosos era grandiosa e estranha. Em certos momentos, a jactância e os desafios dos conselheiros tinham-lhe parecido como que latidos de cães. Vira uma vez um cachorro numa praia a ladrar ao oceano, correndo para a onda que se afastava e fugindo da rebentação com a cauda molhada entre as pernas.

Mas sentia-se contente por estar na companhia de Tenar, que o punha à vontade e a quem admirava pela sua coragem e bondade. E acabara de descobrir que também se sentia à vontade com Tehanu.

O seu desfiguramento fazia com que parecesse ter dois rostos. O Amieiro não podia ver ambos ao mesmo tempo, só um ou o outro. Mas habituara-se a esse fato, que já não o perturbava. Metade do rosto da sua mãe tinha também sido ocultado por um sinal de nascença cor de vinho. Era o que lhe recordava o rosto de Tehanu.

Ela parecia menos inquieta e perturbada do que antes. Estava sentada em silêncio e um par de vezes falou com o Amieiro, que se encontrava ao seu lado, com uma camaradagem tímida. O Amieiro sentia que, tal como ele, Tehanu estava ali não por escolha própria mas porque desistira de ter escolha, impelida a seguir um caminho que não compreendia. Talvez o caminho dela e o seu seguissem par a par, pelo menos durante algum tempo. Esta idéia deu-lhe coragem. Sabendo apenas que havia algo que tinha de fazer, algo iniciado que deveria ser terminado, sentiu que, fosse o que fosse, seria melhor fazê-lo com ela do que sem ela. Talvez ela se sentisse atraída por ele devido à mesma solidão.

Mas na sua conversa com ele não abordava estas questões sérias.

— O meu pai deu-te um gatinho — disse-lhe ao saírem da mesa. — Era um dos gatinhos da Tia Caruma?

Ele acenou com a cabeça e ela perguntou:

— O cinzento?

— Sim.

— Esse era o melhor gato da ninhada.

— Está a ficar gorda, aqui.

Tehanu hesitou e, em seguida, disse timidamente:

— Parece-me que é macho.

O Amieiro deu consigo a sorrir.

— É um bom companheiro. Um marinheiro deu-lhe o nome de Reboque.

— Reboque — repetiu ela, e pareceu satisfeita.

— Tehanu — interpelou-a o Rei, que se sentara ao lado de Tenar no assento fundo da alcova da janela. — Não te pedi hoje no conselho que falasses das perguntas que o Senhor Gavião te fez. Não era o momento apropriado. Será o lugar apropriado?

O Amieiro olhou para ela. Tehanu refletiu antes de responder. Lançou um olhar à mãe, que não reagiu.

— Preferia falar contigo aqui — disse ela na sua voz rouca. — E talvez com a Princesa de Hur-at-Hur.

Após uma breve pausa, o Rei disse com modos afáveis:

— Queres que a mande chamar?

— Não, eu posso ir falar com ela. Depois. Não tenho muito que dizer, na verdade. O meu pai perguntou: Quem vai para a terra árida quando morre? E a minha mãe e eu falamos sobre o assunto. E pensamos que as pessoas vão para lá, mas, e os animais? Irão também? Os pássaros voarão até lá? Há árvores, a erva cresce? Amieiro, tu viste-a.

Apanhado de surpresa, só pôde dizer:

— Há... há erva, deste lado do muro, mas parece morta. Do outro lado, não sei.

Tehanu olhou para o Rei.

— Tu atravessaste aquela terra, meu senhor.

— Não vi animal, pássaro ou coisa que crescesse.

O Amieiro falou de novo.

— O Senhor Gavião disse: poeira, rochas.

— Eu acho que só os seres humanos vão para lá quando morrem — disse Tehanu. — Mas nem todos.

Mais uma vez, olhou a mãe e não desviou o olhar.

Tenar falou.

— O povo karguiano é como os animais — disse. A sua voz era seca e não denunciava qualquer emoção. — Depois de morrerem, renascem.

— Isso é superstição — contrariou Ônix. — Perdoa-me, Senhora Tenar, mas tu própria... — interrompeu-se.

— Eu já não acredito — disse Tenar — que sou ou fui, como me disseram, Arha a sempre renascida, uma só alma, reencarnada constantemente e por conseguinte imortal. Acredito que, quando morrer, irei para junto do ser maior do mundo, como qualquer mortal. Como a erva, as árvores, os animais. Os homens não passam de animais que falam, senhor, como disseste esta manhã.

— Mas nós sabemos falar a Língua da Criação — protestou o feiticeiro. — Ao aprendermos as palavras pelas quais Segoy fez o mundo, a verdadeira fala da vida, ensinamos as nossas almas a conquistar a morte.

— Esse lugar onde nada existe a não ser poeira e sombras, é essa a vossa conquista? — agora, a sua voz não era seca e os seus olhos faiscavam.

Ônix ficou indignado, mas sem palavras.

O Rei interveio.

— O Senhor Gavião fez uma segunda pergunta. Poderá um dragão atravessar o muro de pedras? — lembrou, e olhou para Tehanu.

— Está respondida na primeira resposta — disse ela —, se os dragões não passam de animais que falam e os animais não vão para lá. Já alguma vez um mago viu um dragão lá? Ou tu, meu senhor? — perguntou, olhando primeiro para Ônix e depois para Lebánnen. Ônix ponderou apenas por um momento antes de dizer:

— Não.

O Rei parecia admirado.

— Por que foi que nunca pensei nisso? — estranhou. — Não, não vimos nenhum. Julgo que não existem dragões lá.

— Meu Senhor — disse o Amieiro, mais alto do que alguma vez falara no palácio —, está um dragão aqui.

Estava de pé, em frente à janela, e apontou para fora.

Voltaram-se todos. No céu, por cima da Baía de Havnor, viram um dragão a voar, vindo do Oeste. As suas longas asas em movimento, batendo lentamente, tinham um brilho vermelho-dourado. Atrás de si, uma voluta de fumaça pairou, por um momento, no ar enevoado do Verão.

— Ora bem — disse o Rei. — Que aposento mandarei aprontar para esta convidada?

Falou como se estivesse divertido, perplexo. Mas, logo que viu o dragão virar e vir voando em espiral na direção da Torre da Espada, saiu da sala a correr e desceu as escadas, apanhando os guardas de surpresa nos corredores e nas portas, de forma que foi o primeiro a chegar, sozinho, ao terraço sob a torre branca.

O terraço era o telhado de uma sala de banquetes, uma extensão larga de mármore com uma balaustrada baixa, a Torre da Espada a erguer-se diretamente acima e a Torre da Rainha perto. O dragão aterrara no pavimento e estava a encolher as asas com um forte ressoar metálico quando o Rei saiu para o terraço. Onde aterrara, as suas garras tinham deixado ranhuras riscadas no mármore.

A longa cabeça com a sua malha de ouro voltou-se. O dragão olhou para o Rei.

O Rei baixou os olhos e não o encarou. Mas manteve-se ereto e falou claramente.

— Orm Írian, seja bem-vinda. Eu sou Lebánnen.

— Agni Lebánnen — soou a grande voz sibilante, saudando-o como Orm Embar o saudara há muito tempo, no longínquo Oeste, antes de ele ser rei.

Atrás de si, Ônix e Tehanu tinham corrido até ao terraço juntamente com vários guardas. Um destes trazia a espada desembainhada e Lebánnen viu, numa janela da Torre da Rainha, um outro com o arco tenso e uma flecha apontada ao peito do dragão.

— Guardai as armas! — gritou Lebánnen numa voz que retiniu nas torres. O guarda obedeceu tão depressa que quase deixou cair a espada, mas o arqueiro baixou o arco com relutância, sentindo dificuldade em deixar o seu senhor sem defesa.

— Medeu — murmurou Tehanu, pondo-se ao lado de Lebánnen sem tirar os olhos do dragão. A cabeça da grande criatura girou de novo e o imenso olho de âmbar, com uma pálpebra de escamas brilhantes e enrugadas devolveu-lhe o olhar sem pestanejar.

O dragão falou.

Ônix, compreendendo, foi traduzindo para o Rei, num murmúrio, o que o dragão dizia e o que Tehanu respondia.

— Filha de Keilessine, minha irmã — dizia. — Tu não voas.

— Não posso mudar, irmã — volveu Tehanu.

— Mudo eu?

— Por algum tempo, se quiseres.

Então, os que se encontravam no terraço e às janelas das torres viram a coisa mais estranha que jamais poderiam ver por mais anos que vivessem num mundo de feitiçarias e maravilhas. Viram o dragão, aquela enorme criatura cuja barriga com escamas e cauda espinhosa se arrastavam e ocupavam metade da largura do terraço, e cuja cabeça com cornos vermelhos se erguia a uma altura duas vezes superior à do Rei — viram-na baixar aquela grande cabeça e tremer de tal modo que as suas asas retiniram como címbalos, e não fumo mas uma névoa soltou-se das suas profundas narinas, envolvendo a sua forma e tornando-as assim translúcida como nevoeiro ou vidro baço; e depois desapareceu. O sol do meio-dia incidia no pavimento branco riscado e retalhado. Já não havia dragão. Havia uma mulher. Estava a cerca de dez passos de Tehanu e do Rei. Estava onde o coração do dragão poderia ter estado.

Era jovem, alta e forte e tinha cabelo negro, negro. Vestia a túnica e calças típicas da lavradeira e estava descalça. Ficou imóvel, como que atônita. Olhou o seu corpo. Ergueu a mão e olhou-a também.

— Que coisa tão pequena! — comentou, na fala comum, e riu. Olhou para Tehanu. — É como calçar os sapatos que eu usava quando tinha cinco anos — disse.

As duas mulheres aproximaram-se uma da outra. Com dignidade, como guerreiros armados a saudarem-se ou navios a cruzarem-se no mar, abraçaram-se. O abraço foi leve, mas durou algum tempo. Por fim, afastaram-se e ambas se voltaram e olharam o Rei.

— Senhora Írian — saudou ele, fazendo uma reverência.

Ela pareceu um pouco atrapalhada e fez uma espécie de reverência rústica. Quando olhou para cima, Lebánnen viu que os seus olhos eram da cor do âmbar. Desviou imediatamente o olhar.

— Não te causarei qualquer dano nesta forma — afirmou ela, com um sorriso aberto, de dentes brancos. — Vossa majestade — acrescentou pouco à vontade, tentando ser delicada.

Ele fez nova reverência. Era ele quem estava perplexo agora. Olhou para Tehanu e virou a cabeça para olhar Tenar, que saíra para o terraço com Amieiro. Nenhum deles falou.

Írian olhou para Ônix, que, com o seu manto cinzento, estava ao lado do Rei, e o seu rosto iluminou-se de novo.

— Senhor — disse —, és da Ilha de Roke? Conheces o Senhor Configurador?

Ônix baixou a cabeça. Também ele lhe evitava o olhar.

— Ele está bem? Continua a andar por entre as suas árvores?

Mais uma vez o feiticeiro baixou a cabeça.

— E o Porteiro, e o Mestre das Ervas e Kurremkarmerruk? Foram meus amigos, deram-me apoio. Se regressares, transmite-lhes o meu amor e as minhas homenagens, se não te importas.

— Fá-lo-ei — prometeu o feiticeiro.

— A minha mãe está aqui — disse Tehanu em voz baixa a Írian. — Tenar de Atuan.

— Tenar de Gont — disse Lebánnen, com um certo timbre na voz.

Olhando com espanto visível para Tenar, Írian perguntou:

— Foste tu que trouxeste o Anel da Runa da terra dos homens brancos, juntamente com o Arquimago?

— Fui — disse Tenar, fitando Írian com igual franqueza. Acima deles, na varanda que rodeava a Torre da Espada perto do topo, ouviu-se movimento: os trombeteiros tinham saído para dar as horas, mas naquele momento estavam os quatro juntos no lado sul que dava para o terraço a espreitar para baixo para ver o dragão. Havia rostos em todas as janelas das torres do palácio e ouvia-se o ressoar das vozes lá em baixo, nas ruas, como uma maré enchente.

— Quando derem a primeira hora — disse Lebánnen —, o conselho reunir-se-á de novo. Os conselheiros devem ter-te visto chegar, senhora minha, ou ouviram dizer que chegaste. Por conseguinte, se te aprouver, parece-me melhor irmos diretamente para junto deles e permite-lhes que te vejam. E se lhes dirigires a palavra, prometo que te escutarão.

— Muito bem — disse Írian. Por um instante, houve nela uma impassibilidade solene e retilínea. Quando começou a andar, essa sensação desvaneceu-se, e dava a impressão de ser apenas uma jovem alta que caminhava de forma pouco elegante, dizendo a Tehanu: — Sinto que vou levantar vôo a qualquer momento, não tenho peso nenhum!

As quatro trombetas na torre tocaram para oeste, norte, leste e sul, à vez, uma frase do lamento que um rei compusera quinhentos anos antes por ocasião da morte do seu amigo.

Por um momento, o Rei recordou o rosto desse homem, Erreth-Akbe, de pé na praia de Selidor, os olhos ensombrados e cheios de mágoa, mortalmente ferido, entre os ossos do dragão que o matara. Lebánnen achou que era estranho pôr-se a pensar em coisas tão longínquas em tal momento; e, no entanto, não era estranho, porque os vivos e os mortos, homens e dragões, todos estavam a aproximar-se para um acontecimento que ele não conseguia prever.

Parou à espera de Írian e Tehanu. Ao entrar no palácio com elas, disse:

— Senhora Írian, há muitas coisas que gostaria de te perguntar, mas o que o meu povo receia e o que conselho desejará saber é se o teu povo tenciona mover-nos guerra, e porquê.

Ela acenou a cabeça, um aceno forte e decidido.

— Dir-lhes-ei o que sei.

Quando chegaram à porta com cortinados por detrás da plataforma, a sala do trono estava mergulhada em confusão, com um tal atroar de vozes que, a princípio, a pancada do bordão do Príncipe Sege quase não se ouviu. Em seguida, o silêncio abateu-se sobre a sala e todos os conselheiros se voltaram para ver o Rei entrar com o dragão.

Lebánnen não se sentou, ficando de pé em frente do trono, com Írian à sua esquerda.

— Escutai o Rei — chamou Sege, naquele silêncio de morte.

O Rei disse:

— Conselheiros! Este é um dia que surgirá em lendas e canções em anos vindouros. As filhas dos vossos filhos e os filhos das vossas filhas dirão: «Sou descendente de um dos conselheiros presente no Conselho do Dragão!» Por isso, honrai aquela cuja presença nos honra. Escutai Orm Írian.

Algumas das pessoas que assistiram ao Conselho do Dragão disseram mais tarde que, se olhassem a direito para Írian, ela parecia ser apenas uma mulher alta de pé perante eles, mas se olhassem de lado para ela o que viam pelo canto do olho era um vasto brilho de ouro esfumado que engolfava rei e trono. E muitos deles, sabendo que os seres humanos não devem olhar um dragão nos olhos, desviaram o olhar; mas lançavam-lhe olhares de esguelha. As mulheres olhavam para ela, algumas achando-a feia, outras muito bela, outras lamentando-a por ter de entrar descalça no palácio. E alguns conselheiros, não tendo compreendido bem o que se passava, perguntavam-se quem seria a mulher e quando chegaria o dragão.

Enquanto Írian falou, manteve-se um silêncio total. Embora a sua voz tivesse a leveza da maioria das vozes de mulher, enchia facilmente a vasta câmara. Falava lenta e formalmente, como se estivesse a traduzir mentalmente as palavras da fala mais antiga.

— O meu nome era Írian, do Domínio de Iria-a-Velha em Way. Sou Orm Írian agora. Keilessine, o Mais Antigo, chama-me sua filha. Sou irmã de Orm Embar, que o rei conhecia, e neta de Orm, que matou o companheiro do rei, Erreth-Akbe, e foi morto por ele. Estou aqui porque a minha irmã Tehanu me chamou.

«Quando Orm Embar morreu em Selidor, destruindo o corpo mortal do feiticeiro Cob, Keilessine veio de além do Oeste e trouxe o Rei e o grande mago para Roke. Depois, ao regressar ao Passo dos Dragões, o Mais Antigo chamou o povo do Oeste, a quem Cob tirara a fala e que estavam ainda perturbados. Keilessine disse-lhes: "Permitistes que o mal vos transformasse em mal. Estivestes loucos. Estais de novo sãos de espírito, mas, enquanto o vento soprar de leste, jamais podereis ser o que éreis, livres do bem e do mal."

«Keilessine disse: "Há muito tempo, fizemos uma escolha. Escolhemos a liberdade. Os homens escolheram o jugo. Nós escolhemos o fogo e o vento. Eles escolheram a água e a terra. Nós escolhemos o Oeste, e eles o Leste."

«E Keilessine disse também: "Mas sempre entre nós existem alguns que lhes invejam a riqueza e sempre entre eles existe quem nos inveje a liberdade. Foi assim que o mal entrou em nós e em nós entrará de novo, até escolhermos mais uma vez, e para sempre, ser livres. Em breve irei para lá do Oeste, para voar no vento diferente. Conduzir-vos-ei lá, ou esperarei por vós, se vierdes."

«Então, alguns dos dragões disseram a Keilessine: "Na sua inveja de nós, os homens roubaram-nos há muito tempo o nosso reino para lá do Oeste e ergueram muros de encantamentos para nos manterem de fora. Por isso, empurremo-los agora para o extremo Leste e reconquistemos as ilhas! Os homens e os dragões não podem partilhar o vento."

«Então, Keilessine disse: "Em tempos, éramos um só povo. E, em sinal disso, em cada geração de homens nascem um ou dois que são também dragões. E em cada geração do nosso povo, mais longa do que as vidas breves dos homens, nasce um de nós que é também humano. Destes, um deles vive agora nas Ilhas Interiores. E há um deles a viver ali agora que é um dragão. Estes dois são mensageiros, portadores da escolha. Não haverá mais destes nascidos entre nós ou entre eles. Porque o equilíbrio se altera."

«E disse-lhes ainda Keilessine: "Escolhei. Vinde comigo voar no outro lado do mundo, no vento diferente. Ou ficai e submetei-vos ao jugo do bem e do mal. Ou reduzi-vos a animais sem razão." E por fim Keilessine disse: "A última a fazer a escolha será Tehanu. Depois dela, não haverá mais escolha. Não haverá caminho para o Oeste. Só ficará a floresta, como sempre, no centro."»

Os membros do Conselho do Rei estavam imóveis como pedras, escutando. E enquanto falava, Írian permanecia imóvel, olhando em frente sem os ver.

— Depois de passarem alguns anos, Keilessine voou para lá do Oeste. Alguns seguiram-no, outros não. Quando vim para junto do meu povo, segui Keilessine. Mas vou lá e regresso, enquanto o vento me levar.

«O meu povo sente inveja e fúria. Os que ficaram aqui nos ventos do mundo começaram a voar em bandos ou isoladamente para as ilhas dos homens, dizendo: "Eles roubaram-nos metade do nosso reino. Agora vamos tirar-lhes todo o Oeste do seu reino e expulsá-los, de modo que deixarão de poder trazer-nos o seu bem e o seu mal. Não nos submeteremos ao seu jugo."

«Mas eles não tentaram matar os ilhéus, porque se recordavam de quando estavam loucos, quando os dragões matavam dragões. Odeiam-vos, mas não vos matarão a não ser que tenteis matá-los.

«Por isso, um desses bandos veio agora para esta ilha, Havnor, a que chamamos a Colina Fria. O dragão que veio à frente e falou com Tehanu é o meu irmão Ammaud. Procuram empurrar-vos para o Leste, mas Ammaud, tal como eu, tenta pôr em prática a vontade de Keilessine, libertando o meu povo do jugo que vós usais. Se ele e eu e os filhos de Keilessine pudermos evitar danos ao vosso povo e ao nosso, fá-lo-emos. Mas os dragões não têm rei, e não obedecem a ninguém, e voam para onde querem. Durante algum tempo, farão o que eu e o meu irmão lhes pedirmos em nome de Keilessine. Mas não por muito tempo. E nada receiam neste mundo, a não ser as vossas feitiçarias de morte.

Aquela última palavra reboou pesadamente pela grande câmara no silêncio que se seguiu à voz de Írian.

O Rei tomou a palavra, agradecendo a Írian:

— Honras-nos com as tuas palavras de verdade. Pelo meu nome, falaremos a verdade contigo. Suplico-te que me digas, filha de Keilessine, que me trouxe ao meu reino, o que é isso que dizes que os dragões receiam? Pensei que nada receavam, no mundo ou fora dele.

— Receamos os vossos encantamentos de imortalidade — respondeu ela bruscamente.

— De imortalidade? — Lebánnen hesitou. — Eu não sou feiticeiro. Mestre Ônix, fala por mim, se a filha de Keilessine o permitir.

Ônix levantou-se. Írian olhou para ele com olhos frios e imparciais, e acenou com a cabeça.

— Senhora Írian — disse o feiticeiro —, nós não fazemos encantamentos de imortalidade. Somente o feiticeiro Cob procurou tornar-se imortal, pervertendo a nossa arte a fim de o fazer.

Falava com lentidão e evidente cautela, pesando as palavras.

— O nosso Arquimago, com o Rei meu Senhor, e o auxílio de Orm Embar, destruiu Cob e o mal que ele causara. E o Arquimago desistiu de todo o seu poder para curar o mundo, restaurando o Equilíbrio. Nenhum outro feiticeiro nos nossos dias procurou... — e interrompeu-se subitamente.

Írian olhou diretamente para ele. Ônix baixou os olhos.

— O feiticeiro que eu destruí — disse ela —, o Invocador de Roke, Thórione: o que procurava ele?

Ônix, abalado, nada disse.

— Ele regressou da morte — prosseguiu Írian. — Mas não com vida, como o Arquimago e o Rei. Estava morto, mas passou para cá do muro com as suas artes, com as vossas artes, homens de Roke! Como poderemos confiar no que nos dizeis? Perturbastes o equilíbrio do mundo. Podeis restaurá-lo?

Ônix olhou para o Rei. Estava visivelmente emocionado.

— Meu Senhor, não me parece que este seja o lugar para discutir tais assuntos, perante todos os homens, até sabermos do que estamos a falar, e o que devemos fazer...

— Roke guarda os seus segredos — comentou Írian com um desprezo calmo.

— Mas em Roke... — pronunciou Tehanu, sem se levantar; a sua voz fraca desfaleceu. O Príncipe Sege e o Rei olharam ambos para ela e fizeram-lhe sinal para que falasse.

Ela levantou-se. A princípio, manteve o lado esquerdo do rosto voltado para os conselheiros, todos sentados imóveis nos seus bancos, como pedras com olhos.

— Em Roke há o Bosque Imanente — prosseguiu. — Não era isso o que Keilessine queria dizer, irmã, ao falar da floresta que está no centro? — E, voltando-se para Írian, deixou ver às pessoas que a olhavam a ruína do seu rosto. Mas tinha-se esquecido das pessoas.

— Talvez seja necessário irmos lá — disse. — Ao centro das coisas.

Írian sorriu.

— Eu irei lá — retorquiu.

Ambas olharam para o Rei.

— Antes de vos enviar a Roke, ou aí vos acompanhar — disse ele lentamente —, tenho de saber o que está em jogo. Mestre Ônix, lamento que questões tão graves e fortuitas nos obriguem a debater o curso das nossas ações tão abertamente. Mas confio que os meus conselheiros me apoiarão enquanto procuro e sigo esse curso. O que o conselho precisa de saber é que as nossas ilhas não têm necessidade de recear ataques do Povo do Oeste. Que as tréguas, pelo menos, continuam em vigor.

— Continuam em vigor — confirmou Írian.

— Podes dizer-me por quanto tempo?

— Meio ano — sugeriu ela casualmente, como se tivesse dito «um dia ou dois».

— Manteremos as tréguas por meio ano, na esperança de que sejam seguidas pela paz. Terei razão ao dizer, Senhora Írian, que, para estar em paz conosco, o teu povo pretende uma confirmação de que aquilo que os nossos feiticeiros fazem com... com as leis da vida e da morte não o porá em perigo?

— Não nos porá a todos em perigo — emendou Írian.

— Sim.

Lebánnen refletiu e depois disse, com os seus modos mais reais, afáveis, polidos:

— Então, julgo que devo acompanhar-vos a Roke — e, voltando-se para as bancadas: — Conselheiros, com as tréguas declaradas, devemos procurar a paz. Vou aonde tiver de ir em busca dela, pois que reino sob o Signo do Anel de Elfarran. Se vedes algum impedimento a esta viagem, falai aqui e agora. Pois que talvez o equilíbrio de poder dentro do Arquipélago, bem como o Equilíbrio do todo, estejam em questão. E se eu partir, devo partir agora. O Outono aproxima-se e a viagem para a Ilha de Roke não é curta.

As pedras com olhos ficaram ali sentadas durante um longo minuto, todas a fitarem-no, nenhuma falando. Em seguida, o Príncipe Sege disse:

— Vai, meu Senhor e Rei, vai com a nossa esperança e fé em ti, e o vento mágico nas velas.

Ouviu-se um leve murmúrio de assentimento dos conselheiros: «Sim, sim, apoiado.»

Sege perguntou se havia mais questões ou algo a debater; ninguém se pronunciou. Encerrou a sessão.

Ao sair da sala do trono com ele, Lebánnen disse:

— Obrigado, Sege — e o velho príncipe retorquiu:

— Entre ti e o dragão, Lebánnen, o que podiam aquelas pobres almas dizer?

 

                                 O GOLFINHO

Vários assuntos tinham de ser resolvidos e preparativos ultimados antes de o rei poder partir da sua capital; havia também a questão de decidir quem o acompanharia a Roke. Írian e Tehanu, claro, e Tehanu queria que a mãe fosse com ela. Ônix disse que o Amieiro devia ir com eles, e também o feiticeiro de Paln, Seppel, já que o Saber de Paln tinha muito a ver com estas questões da passagem entre a vida e a morte. O Rei escolheu Tosla para capitanear o Golfinho, como já antes fizera. O Príncipe Sege trataria dos assuntos de Estado na ausência do Rei, com um grupo selecionado de conselheiros, como já antes, também.

Tudo estava pois resolvido, ou assim pensava Lebánnen, até Tenar vir falar com ele dois dias antes da data prevista para a partida e lhe dizer:

— Falarás de guerra e de paz com os dragões e de assuntos que ultrapassam a guerra e a paz, diz Írian, assuntos que dizem respeito ao equilíbrio de todas as coisas em Terramar. O povo das Terras de Kargad deveria assistir a essas discussões e ter voz nelas.

— Serás tu o seu representante.

— Eu não. Não sou súdita do Alto Rei. A única pessoa aqui que pode representar o seu povo é a filha.

Lebánnen recuou um passo, voltou-se de lado e por fim disse, numa voz estrangulada pelo esforço de falar sem ira:

— Tu sabes que ela não está preparada para uma viagem destas.

— Não sei tal coisa.

— Não tem educação.

— É inteligente, prática e corajosa. Está ciente do que a sua posição requer dela. Não foi treinada para reinar, mas o que poderia aprender encerrada lá em cima na Casa do Rio com as suas servas e algumas damas da corte?

— A falar a nossa língua, para começar!

— Está a aprender. Eu serei sua intérprete quando for necessário. Após uma breve pausa, Lebánnen falou de modo ponderado:

— Compreendo a tua preocupação com o seu povo. Considerarei o que é possível fazer-se. Mas não há lugar para a princesa nesta viagem.

— Tanto a Tehanu como a Írian dizem que ela deveria acompanhar-nos. O Mestre Ônix diz que, tal como o Amieiro de Taon, a sua presença aqui neste momento não pode ser acidental.

Lebánnen afastou-se alguns passos. O tom da sua voz continuava a ser artificialmente paciente e cortês.

— Não posso permiti-lo. A sua ignorância e inexperiência torná-la-iam um pesado fardo. E não posso expô-la a riscos. As relações com o seu pai...

— Na sua ignorância, como lhe chamas, mostrou-nos como responder às perguntas de Gued. O teu desrespeito por ela é igual ao do seu pai. Falas dela como se fosse um objeto — disse Tenar. O seu rosto estava pálido de fúria. — Se receias expô-la a riscos, pede-lhe que se responsabilize por eles.

Fez-se novo silêncio. Lebánnen falou com a mesma calma rígida, sem olhar diretamente para ela.

— Se tu e a Tehanu e Írian acreditam que essa mulher deve vir conosco para Roke, e Ônix concorda contigo, aceito a vossa decisão, embora acredite que é errônea. Por favor diz-lhe que, se deseja acompanhar-nos, pode fazê-lo.

— És tu quem deveria dizer-lhe.

Lebánnen ficou em silêncio. Em seguida, saiu da sala sem uma palavra.

Passou junto a Tenar e, embora não olhasse para ela, viu-a claramente. Parecia envelhecida e cansada, e tremiam-lhe as mãos. Condoía-se dela, envergonhava-se da sua rudeza para com ela e sentia-se aliviado por ninguém ter presenciado a cena; mas estes sentimentos eram meras faíscas na enorme escuridão da ira que sentia contra ela, contra a princesa, contra tudo e todos que lhe tinham imposto aquela falsa obrigação, aquele grotesco dever. Ao sair da sala, puxou pelo colarinho da camisa como se estivesse a sufocá-lo.

O seu mordomo, um homem lento e calmo chamado Todo-Bom, não contava que ele regressasse tão cedo ou por aquela porta e deu um salto, olhando-o sobressaltado. Lebánnen olhou-o friamente e disse:

— Manda chamar a Alta Princesa à minha presença esta tarde.

— A Alta Princesa?

— Há mais do que uma? Não tens conhecimento de que a filha do Alto Rei é nossa convidada?

Espantado, Todo-Bom gaguejou uma desculpa, que Lebánnen interrompeu:

— Irei eu próprio à Casa do Rio.

E saiu em grandes passadas, perseguido, impedido e gradualmente controlado pelas tentativas do mordomo de o atrasar o tempo suficiente para reunir um séquito apropriado, mandar vir cavalos da estrebaria, adiar para essa tarde a audiência aos súditos que a aguardavam na Sala Comprida e por aí fora. Todas as obrigações, todos os deveres, todas as armadilhas e amarras, rituais e hipocrisias que faziam dele Rei o puxavam para baixo, sugando-o como areias movediças e sufocando-o.

Quando lhe trouxeram o cavalo do pátio da estrebaria, saltou para a sela tão abruptamente que comunicou o seu estado de espírito ao animal e este se empinou e recuou, fazendo recuar os moços da estrebaria. Ver o círculo alargar-se à sua volta deu a Lebánnen uma áspera satisfação. Encaminhou o cavalo para os portões sem esperar que os homens do seu séquito montassem. Conduziu-os a trote pelas ruas da cidade, muito à frente deles, consciente do dilema do jovem oficial que deveria precedê-lo gritando:

— Abri alas para o Rei! — mas que ficara para trás e agora não se atrevia a ultrapassá-lo.

Era quase meio-dia. As ruas e praças de Havnor estavam cheias de calor e luz e quase desertas. Ao ouvir o estrépito dos cascos dos cavalos, as pessoas corriam às portas das lojinhas escuras e viam o Rei, reconheciam-no, saudavam-no. Mulheres sentadas às janelas, a abanarem-se com os seus leques e a conversarem com as vizinhas, olhavam para baixo e acenavam, e uma delas atirou-lhe uma flor. Os cascos do seu cavalo ressoaram nos tijolos de uma praça larga inundada pelo sol, sem ninguém a não ser um cão de cauda encaracolada que se afastou nas três pernas, sem prestar atenção a realezas. O Rei saiu da praça por um beco estreito que dava para o caminho ao lado do Serrenen e seguiu-o à sombra dos salgueiros, ao longo da velha muralha da cidade, até à Casa do Rio.

A cavalgada alterara-lhe um pouco o ânimo. O calor e o silêncio e a beleza da cidade, a sensação de vidas variadas por detrás das paredes e das persianas, o sorriso da mulher que lhe atirara uma flor, a mesquinha satisfação de avançar à frente de todos os seus guardiães e séquito pomposo e depois, por fim, o aroma e a frescura da cavalgada ao longo do rio e da sombra do terreiro da casa onde passara dias e noites de paz e prazer, tudo isso aliviou um pouco a sua ira. Sentia-se afastado de si próprio, já não possesso, mas esvaziado.

Os primeiros cavaleiros do seu séquito entravam no terreiro quando ele saltou do cavalo, satisfeito por ficar à sombra. Entrou na casa e, para os lacaios que dormitavam, a sua presença foi como uma pedra na superfície espelhada de um lago, provocando ondas cada vez mais alargadas de consternação e pânico. Disse:

— Ide dizer à princesa que estou aqui.

A Dama Opalina, do Velho Domínio de Ilien, que estava encarregada das damas-de-companhia da princesa, apareceu de seguida, saudou-o graciosamente, ofereceu-lhe uma bebida, comportou-se como se a visita do rei não fosse surpresa nenhuma. Esta recepção aplacou-o, mas também o irritou. Hipocrisia sem fim! Mas o que havia de fazer a Dama Opalina — arregalar os olhos para ele qual peixe fora de água (como fazia nesse momento uma dama-de-companhia muito jovem), porque o rei tinha vindo por fim, e inesperadamente, visitar a princesa?

— Lamento muito que a Senhora Tenar não se encontre aqui neste momento — disse ela. — É tão mais fácil falar com a princesa com a sua ajuda. Mas a princesa está a fazer progressos admiráveis na aprendizagem da língua.

Lebánnen tinha-se esquecido do problema da língua. Aceitou a bebida fresca que lhe fora oferecida e não disse nada. A Dama Opalina tentou conversar disto e daquilo, com a assistência das outras damas-de-companhia, mas pouco conseguiu do Rei. Ele tinha começado a aperceber-se de que, provavelmente, se esperava que ele falasse com a princesa na companhia de todas as suas damas-de-companhia, como era apropriado. O que quer que tivesse tencionado dizer-lhe, tornara-se impossível dizer fosse o que fosse. Estava prestes a levantar-se e despedir-se quando uma mulher com a cabeça e ombros escondidos por um véu circular vermelho apareceu à porta, caiu sobre os joelhos e disse:

— Por favor? Rei? Princesa? Por favor?

— A princesa recebê-lo-á nos seus aposentos, Vossa Alteza — interpretou a Dama Opalina. Acenou a um lacaio, que o escoltou ao andar superior, ao longo de um corredor, atravessando uma antecâmara e uma sala grande e escura que parecia apinhada de mulheres com véus vermelhos, até chegar a uma varanda sobre o rio. Aí, encontrava-se de pé a figura que ele recordava: o cilindro imóvel de vermelho e ouro.

A brisa vinda do rio fazia estremecer e lucilar os véus, de tal modo que a figura não parecia sólida, mas algo delicado, em movimento e trêmulo como a folhagem dos salgueiros. Parecia minguar, encolher-se. Ela estava a fazer-lhe uma reverência. Ele correspondeu-lhe. Ambos endireitaram as costas e ficaram em silêncio.

— Princesa — disse Lebánnen, com uma sensação de irrealidade, ao ouvir a sua própria voz —, estou aqui para te pedir que nos acompanhes à Ilha de Roke.

Ela nada disse. Ele viu os finos véus vermelhos apartarem-se formando uma oval quando ela os afastou com as mãos. Mãos de dedos finos e compridos, da cor do ouro, afastadas para revelar o seu rosto na sombra vermelha. Não conseguia ver-lhe o rosto claramente. A princesa era quase tão alta como ele e os seus olhos fitavam os dele.

— A minha amiga Tenar — pronunciou por fim —, dizer: «rei ver rei, rosto e rosto. Eu dizer: sim. Ver».

Compreendendo mais ou menos o que ela tentava transmitir-lhe, Lebánnen fez nova reverência.

— Honras-me, senhora minha.

— Sim — disse ela. — Eu honrar ti.

Ele hesitou. Encontrava-se num terreno completamente diferente. No dela.

Ela continuava de pé, direita e imóvel, com o debrum dourado dos seus véus a brilhar e os seus olhos a fitarem-no da sombra.

— Tenar e Tehanu e Orm Írian concordaram que seria bom que a Princesa das Terras de Kargad nos acompanhasse à Ilha de Roke. Por isso te peço para vir conosco.

— Vir.

— À Ilha de Roke.

— Em navio — disse ela e, subitamente, soltou um gemido, uma espécie de lamento. Mas logo acrescentou:

— Eu vir. Eu ir.

Lebánnen não sabia o que dizer. Agradeceu:

— Obrigado, senhora minha.

Ela baixou a cabeça uma vez, de igual para igual.

Ele fez uma reverência. Saiu da sala como fora ensinado a deixar a presença do seu pai, o príncipe, em ocasiões formais na corte de Enald, recuando sem lhe voltar as costas.

Ela permaneceu de frente para ele, segurando ainda o véu até ele chegar à porta. Nesse momento, baixou as mãos e os véus cerraram-se e ele ouviu-a suspirar e respirar fundo como se aliviada após um ato de força de vontade, sustentado quase para além do suportável.

Corajosa, chamara-lhe Tenar. Ele não compreendia bem, mas sabia que estivera na presença de autêntica coragem. Toda a ira que o inundará e o trouxera até ali desvanecera-se, eclipsara-se. Não se sentira sugado e sufocado, mas antes confrontado com uma rocha, um lugar elevado com ar fresco à volta, uma verdade.

Saiu, atravessando a sala cheia dos murmúrios e perfumes de mulheres com véus, que se encolheram à sua passagem e se ocultaram nas sombras. No andar de baixo, conversou durante alguns minutos com a Dama Opalina e as outras e dirigiu umas palavras simpáticas à dama-de-companhia de doze anos que o fitava com olhos arregalados. Falou com bons modos aos homens do seu séquito que o aguardavam no terreiro. Montou calmamente o seu cavalo cinzento. E regressou ao Palácio de Maharion em silêncio, embrenhado nos seus pensamentos.

O Amieiro ouviu com uma atitude de aceitação fatalista a notícia de que ia regressar a Roke. Desperto, a sua vida tornara-se-lhe de tal modo estranha, mais de sonho que os seus sonhos, que lhe restava pouca força de vontade para questionar o que lhe diziam ou protestar. Se estava destinado a navegar de ilha em ilha para o resto da sua vida, que assim fosse; sabia que o regresso a casa era uma impossibilidade naquele momento. Pelo menos, estaria na companhia de Tenar e Tehanu, que lhe sossegavam o coração. E o feiticeiro Ônix também lhe dera provas de bondade.

O Amieiro era um homem tímido e Ônix profundamente reservado, e havia toda a diferença dos seus conhecimentos e estatuto a ultrapassar; mas Ônix viera ter com ele várias vezes simplesmente para conversar com ele como homem da mesma arte, demonstrando um respeito pela opinião do Amieiro que, na sua modéstia, o deixava perplexo; e por isso, quando se aproximava o momento da partida, o Amieiro dirigiu-se a Ônix com a questão que andava a preocupá-lo.

— É o gatinho — disse, embaraçado. — Não sinto que seja correto levá-lo comigo. Obrigá-lo a ficar fechado tanto tempo. Não é natural para um animalzinho pequeno. E penso, o que é que lhe aconteceria...

Ônix não perguntou o que ele queria dizer. Perguntou apenas:

— Ainda te ajuda a afastares-te do muro de pedras?

— Bem, muitas vezes ajuda.

Ônix refletiu.

— Precisas de alguma proteção, até chegarmos a Roke. Pensei... Já falaste com o feiticeiro Seppel aqui?

— O homem de Paln — disse o Amieiro num tom ligeiramente contrafeito.

Paln, a maior ilha a oeste de Havnor, tinha a reputação de ser um lugar estranho. Os habitantes de Paln falavam hárdico com uma pronúncia diferente, usando muitos vocábulos próprios. Em tempos idos, os seus senhores tinham-se recusado a prestar vassalagem aos reis de Enlad e Havnor. Os seus feiticeiros não eram treinados em Roke. O Saber de Paln, que recorria aos Antigos Poderes da Terra, era geralmente considerado perigoso, se não mesmo sinistro. Há muito tempo, o Mago Cinzento de Paln provocara a ruína da sua ilha ao invocar as almas dos mortos para o aconselharem a ele e aos seus senhores, e essa lenda fazia parte da educação de todos os mágicos: «Os vivos não devem aconselhar-se com os mortos.» Houvera mais do que um duelo em feitiçaria entre um homem de Roke e um homem de Paln; num desses combates, há dois séculos, uma praga assolara a população de Paln e Semel, deixando metade das cidades e dos campos arrasada. E há quinze anos, quando o feiticeiro Cob se servira do Saber de Paln para transitar entre a vida e a morte, o Arquimago Gavião esgotara todo o seu poder para o derrotar e sanar o mal que ele causara.

O Amieiro, como quase toda a gente na corte e no Conselho do Rei, evitara delicadamente o feiticeiro Seppel.

— Pedi ao rei que o trouxesse conosco para Roke — disse Ônix. O Amieiro piscou os olhos.

— Eles sabem mais do que nós sobre estes assuntos — disse Ônix. — A maior parte da nossa arte de Invocação vem-nos do Saber de Paln. Thórione era mestre nele... O atual Invocador de Roke, Brand de Venway, recusa-se a utilizar qualquer parte da sua arte que provenha dessa sabedoria. Quando é incorretamente usada, só causa danos. Mas talvez seja apenas a nossa ignorância que nos levou a empregá-la incorretamente. Remonta a tempos muito antigos. Talvez existam nela conhecimentos que perdemos. Seppel é um homem sábio e um mago. Julgo que deve acompanhar-nos. E julgo que talvez pudesse ajudar-te, se conseguires confiar nele.

— Se ele tem a tua confiança — disse o Amieiro —, tem a minha. Quando o Amieiro falava com a eloqüência de Taon, Ônix sorria algo secamente. — O teu juízo é tão bom como o meu, Amieiro, neste assunto — disse ele. — Ou melhor. Espero que o uses. Mas levar-te-ei até ele.

Desceram à cidade juntos. Seppel estava alojado numa parte antiga da cidade perto dos estaleiros navais, numa transversal da Rua do Estaleiro; existia ali uma pequena colônia de gente de Paln, que viera para trabalhar nos estaleiros do Rei, pois eram exímios construtores navais. As casas eram antigas, todas apinhadas, com as pontes entre os telhados que davam ao Grande Porto de Havnor uma segunda rede aérea de ruas acima das ruas pavimentadas.

Os aposentos de Seppel, ao cimo de três lances de escadas, estavam escuros e abafados no calor daquele fim do Verão. Seppel fê-los subir mais um lance de escadas até ao telhado. Este estava ligado aos outros telhados por uma ponte de cada lado, de forma que existia um cruzamento e ruas a atravessá-lo. Havia toldos junto aos parapeitos baixos e a brisa do porto refrescava a sombra. Aí, sentaram-se em tapetes de lona às riscas no canto do telhado que cabia a Seppel, e ele ofereceu-lhes um chá frio, ligeiramente amargo.

Era um homem baixo, de cerca de cinqüenta anos, anafado, com mãos e pés pequenos, cabelo ligeiramente encaracolado e revolto e, o que era raro entre os homens do Arquipélago, uma barba, aparada curta, nas suas faces e queixo escuros. Tinha modos agradáveis. Falava baixo, com uma pronúncia incisiva e cantada.

Ele e Ônix conversaram e o Amieiro escutou-os durante algum tempo. Alheou-se da conversa quando começaram a falar sobre pessoas e assuntos de que ele nada sabia. Olhou os telhados e os toldos, os jardins nos telhados e os arcos esculpidos das pontes, depois para norte, o Monte Omm, uma enorme cúpula de um cinzento pálido acima das colinas envoltas na neblina de Verão. Só voltou a prestar atenção à conversa quando ouviu o feiticeiro de Paln dizer:

— Pode ser que o Arquimago não tenha conseguido sanar completamente a ferida no mundo.

A ferida no mundo, pensou o Amieiro: sim. Olhou mais atentamente para Seppel e ele lançou-lhe um olhar. Apesar do seu aspecto suave, os seus olhos eram penetrantes.

— Talvez não seja apenas o nosso desejo de viver para sempre que manteve a ferida aberta — adiantou Seppel —, mas também o desejo dos mortos de morrerem.

Mais uma vez, o Amieiro ouviu as estranhas palavras e sentiu que as reconhecia sem as compreender. Mais uma vez, Seppel lançou-lhe um olhar, como se procurasse uma resposta.

O Amieiro nada disse e Ônix também não falou. Seppel disse por fim:

— Quando estás junto do muro, Mestre Amieiro, o que é que eles te pedem?

— Que os liberte — respondeu o Amieiro numa voz que não passava de um murmúrio.

— Liberdade — murmurou Ônix.

Silêncio de novo. Duas meninas e um rapazinho correram pelo telhado, rindo e gritando: — Descemos no seguinte! —, a brincarem a um dos jogos sem fim a que as crianças se entregavam no labirinto de ruas e canais e escadas e pontes da cidade.

— Talvez fosse um mau negócio desde o princípio — alvitrou Seppel e, quando Ônix o fitou com um ar de incompreensão, acrescentou: — Verw nadan.

O Amieiro sabia que as palavras eram da Antiga Fala, mas não conhecia o seu significado.

Olhou para Ônix, cujo rosto tinha uma expressão muito grave. Ônix disse apenas:

— Bem, espero que consigamos descobrir a verdade dessas coisas, e brevemente.

— Na colina onde se encontra a verdade — acrescentou Seppel.

— Muito me apraz que venhas conosco. Entretanto, aqui temos o Amieiro, chamado ao muro noite após noite e em busca de alívio. Eu disse-lhe que talvez conhecesses uma maneira de o ajudar.

— E tu aceitadas ser tocado pela feitiçaria de Paln? — perguntou Seppel ao Amieiro. O tom da sua voz era ligeiramente irônico. Nos seus olhos havia o brilho negro do azeviche.

Os lábios do Amieiro estavam secos.

— Mestre — respondeu —, dizemos na nossa ilha: o homem que está a afogar-se não pergunta o preço da corda. Se conseguires manter-me afastado daquele sítio nem que seja por uma noite, terás a gratidão do meu coração, por pouco que tal valha em paga de tal dádiva.

Ônix olhou para ele com um leve sorriso divertido, sem desaprovação.

Seppel não sorria.

— Os agradecimentos são raros, na minha profissão — disse ele. — Por eles, não me pouparia a esforços. Parece-me que posso ajudar-te, Mestre Amieiro. Mas tenho de te dizer que a corda é dispendiosa.

O Amieiro baixou a cabeça.

— Chegas ao muro em sonhos, não por vontade própria, não é verdade?

— Assim creio.

— Palavras sábias — o olhar penetrante de Seppel era de aprovação. — Quem conhece claramente a sua própria vontade? Mas se é em sonhos que lá vais, posso afastar-te desse sonho por algum tempo. E por um certo preço, como disse.

O Amieiro olhou-o com um ar de interrogação.

— O teu poder.

Ao princípio, o Amieiro não o compreendeu. Depois, inquiriu:

— O meu dom, queres dizer? A minha arte?

Seppel acenou com a cabeça.

— Sou um mero consertador — disse o Amieiro ao fim de algum tempo. — Não é um grande poder.

Ônix fez menção de protestar, mas olhou para o rosto do Amieiro e não disse nada.

— É o teu ganha-pão — lembrou Seppel.

— Foi a minha vida, em tempos. Mas perdi-o.

— Talvez voltes a recuperar o teu dom, quando acontecer o que tem de acontecer. Não posso prometê-lo. Tentarei restaurar o que puder do que te tirarei. Mas caminhamos todos na noite, agora, em terreno que não conhecemos. Quando chegar o dia, talvez saibamos onde estamos, ou talvez não. Então, se eu te poupar ao teu sonho, por esse preço, agradecer-me-ás?

— Agradecerei — afirmou o Amieiro. — O que é o pequeno bem do meu dom contra o grande mal que pode resultar da minha ignorância? Se me poupares ao receio em que vivo agora, o receio de talvez provocar esse mal, agradecer-te-ei até ao fim da minha vida.

Seppel respirou fundo.

— Sempre ouvi dizer que as harpas de Taon soam com verdade — disse ele. Olhou para Ônix. — E Roke não tem objeções? — perguntou, retomando o seu tom levemente irônico.

Ônix abanou a cabeça, mas tinha agora uma expressão muito séria.

— Então, iremos à caverna em Aurun. Esta noite, se quiseres.

— Por quê lá? — perguntou Ônix.

— Porque não sou eu, mas sim a Terra que ajudará o Amieiro. Aurun é um lugar sagrado, cheio de poder. Embora o povo de Havnor o tenha esquecido e apenas recorra a ele para o profanar.

Ônix conseguiu trocar umas palavras com o Amieiro antes de seguirem Seppel para o andar de baixo.

— Não tens de avançar com isto, Amieiro — segredou. — Eu pensava que confiava em Seppel, mas já não sei.

— Confiarei nele — disse o Amieiro. Compreendia as dúvidas de Ônix, mas dissera o que sentia, que faria qualquer coisa para se libertar do medo de provocar um dano terrível. De cada vez que era impelido em sonhos para aquele muro de pedras, sentia que algo estava a tentar vir ao mundo através dele, que o faria se ele escutasse o chamamento dos mortos, e, cada vez que os ouvia de novo, sentia-se mais fraco e era mais difícil resistir aos seus apelos.

Os três homens fizeram um longo caminho pelas ruas da cidade ao calor do fim da tarde. Chegaram por fim ao campo a sul de Havnor, onde os montes bravios e acidentados se precipitavam para a baía, uma zona pobre naquela ilha abastada: terras baixas e pantanosas entre os cumes, alguma terra arável nas encostas rochosas. Aqui, a muralha da cidade era muito antiga, construída com enormes pedras arrancadas aos montes e amontoadas sem argamassa; e, para lá delas, não havia subúrbios e poucas quintas se viam.

Caminharam ao longo de uma estrada tosca que ziguezagueava até ao primeiro cume e seguia pela sua crista para leste, em direção aos montes mais altos. Lá em cima, de onde podiam ver toda a cidade estendida para norte numa névoa dourada, à sua esquerda, a estrada alargava-se e transformava-se num labirinto de caminhos. Avançando a direito, chegaram subitamente a uma enorme fenda no chão, uma brecha negra de vinte pés de largura ou mais, atravessada no seu caminho.

Era como se a rocha que era a crista do monte se tivesse fendido devido a um estremecimento da terra e não tivesse voltado a sarar. A luz do sol vinda do Oeste, escorrendo pela abertura da caverna, iluminava as paredes verticais da rocha até um certo ponto, mas, para baixo, apenas se via escuridão.

Havia uma oficina no vale abaixo do cume, a sul. Os Curtidores traziam o refugo para aquele lugar e atiravam-no para dentro da abertura, à toa, de forma que a toda a volta havia uma lixeira de pedaços rançosos de couro meio-curtido e um fedor a podridão e urina. Um outro cheiro se libertou da caverna ao aproximarem-se da beira a pique um ar frio, acre, terroso, que obrigou o Amieiro a recuar.

— Isto enche-me de dor, enche-me de dor! — disse em voz alta o feiticeiro de Paln, olhando à sua volta com uma expressão estranha para o lixo e para os telhados da oficina, lá em baixo. Porém, ao fim de algum tempo, dirigiu-se ao Amieiro na sua habitual voz amena:

— Esta é a caverna ou fenda chamada Aurun, que conhecemos dos nossos mapas mais antigos em Paln, nos quais é também conhecida como os Lábios de Paor. Costumava falar com as pessoas aqui, quando cá chegaram vindas do Oeste. Há muito tempo. Os homens mudaram. Mas é o que era então. Aqui podes alijar o teu fardo, se isso é o que pretendes.

— O que devo fazer? — perguntou o Amieiro.

Seppel conduziu-o para a extremidade sul da grande fenda no chão, onde estreitava até voltar a fechar-se, em fissuras estriadas de pedra.

Mandou-o deitar-se de borco, de forma a poder fitar a profunda escuridão que se estendia para baixo.

— Segura-te à terra — disse-lhe. — É tudo o que tens de fazer. Mesmo que se mexa, segura-te a ela.

O Amieiro ficou ali deitado a fitar o espaço entre as paredes de pedra. Sentia as rochas a cravarem-se-lhe no peito e na barriga; ouviu Seppel começar a entoar uma cantilena numa voz aguda com palavras que ele sabia pertencerem à Língua da Criação; sentiu o calor do sol nos ombros e cheirou o fedor a carne podre da oficina. Depois, o ar da caverna soprou das profundezas com uma pungência oca que lhe cortou a respiração e lhe fez a cabeça andar à roda. As trevas subiam na sua direção. O chão moveu-se debaixo dele, em balanços e estremecimentos, e ele agarrou-se, enquanto escutava a cantilena da voz aguda e respirava o bafo da terra. As trevas ergueram-se e tomaram-no. Perdeu o Sol.

Quando regressou, o Sol ia baixo no Poente, uma bola vermelha na neblina que pairava sobre as praias ocidentais da baía. Viu-o. Viu Seppel sentado perto de si no chão, com um ar de cansaço e desamparo, a sua sombra negra a alongar-se no chão rochoso por entre as longas sombras dos penedos.

— Aí estás — disse Ônix.

O Amieiro apercebeu-se de que estava deitado de costas, com a cabeça sobre os joelhos de Ônix e uma rocha a espetar-lhe na espinha. Sentou-se, estonteado, e pediu desculpa.

Partiram assim que ele conseguiu andar, porque tinham ainda algumas milhas a percorrer e era evidente que nem ele nem Seppel conseguiriam manter um ritmo rápido. A noite tinha já caído quando chegaram à Rua do Estaleiro. Seppel despediu-se deles, fixando um olhar penetrante no Amieiro, à luz da porta de uma taverna vizinha.

— Fiz o que me pediste — disse, com a mesma expressão infeliz.

— E eu agradeço-te — afirmou o Amieiro, estendendo a mão direita ao feiticeiro à maneira da gente das Enlades. Após um momento, Seppel tocou-a com a sua mão. E assim se despediram.

O Amieiro estava tão cansado que mal conseguia mexer as pernas. Tinha ainda na boca e na garganta o sabor acre e estranho do ar da caverna, que o fazia sentir-se leve, estonteado, vazio. Quando por fim chegaram ao palácio, Ônix quis acompanhá-lo ao seu quarto, mas o Amieiro disse que se sentia bem e só tinha necessidade de descansar.

Entrou no quarto e o Reboque veio saudá-lo a dançar e a dar à cauda.

— Ah, já não preciso de ti — disse o Amieiro, baixando-se para acariciar o lombo macio e cinzento do gatinho. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Era só por estar muito cansado. Deitou-se na cama e o gato saltou-lhe para cima e enroscou-se a ronronar no seu ombro.

E o Amieiro dormiu. Um sono negro, vazio, sem sonhos que conseguisse recordar, sem vozes a chamarem o seu nome, sem monte com erva seca, sem muro de pedras esfumado, sem nada.

Passeando nos jardins do palácio ao fim da tarde, antes de partirem para sul, Tenar sentia ansiedade e um peso no coração. Não queria partir para Roke, a Ilha dos Sages, a Ilha dos Feiticeiros. (Malditos-bruxos, ouvia na sua cabeça uma voz em karguiano a dizer.) O que tinha a fazer lá? Queria voltar para casa, para junto de Gued. Para a sua casa, para o seu trabalho, para o seu querido homem.

Tinha antagonizado Lebánnen. Perdera-o. Ele comportava-se de forma cortês e afável, mas onde não havia perdão.

Como os homens receavam as mulheres! pensou, enquanto caminhava por entre as roseiras em flor. Não como indivíduos, mas as mulheres quando conversavam umas com as outras, trabalhavam juntas, defendiam uma outra mulher — então, os homens julgavam detectar conspirações, cabalas, coações, armadilhas.

É claro que tinham razão. Enquanto mulheres estavam mais predispostas a tomar o partido da geração seguinte, não desta; teciam os elos que os homens viam como cadeias, os laços que os homens viam como amarras. Ela e Seserakh estavam de fato conluiadas contra ele e dispostas a traí-lo, se ele verdadeiramente nada fosse, desde que não fosse independente. Se fosse somente ar e fogo, sem o peso da terra, sem a paciência da água...

Mas tal pessoa não era Lebánnen, antes Tehanu. Desenraizada da terra, a sua Therru, a alma alada que viera ficar com ela durante algum tempo e deveria em breve partir, bem o sabia. Do fogo para o fogo.

E Írian, com quem Tehanu iria. O que tinha esse ser vivo e intenso a ver cora uma velha casa que precisava de ser varrida, com um homem velho de quem era preciso cuidar? Como poderia Írian compreender tais coisas? Para ela, um dragão, que sentido tinha que um homem assumisse o seu dever, casasse, tivesse filhos, aceitasse o jugo da terra?

Vendo-se assim sozinha e sem préstimo entre seres de destino mais elevado e inumano, Tenar abandonou-se às saudades do lar. Saudades não de Gont apenas. Porque não haveria de conluiar-se com Seserakh, que talvez fosse princesa como ela tinha sido sacerdotisa, mas que não ia voar em asas de fogo, porque era profunda e inteiramente uma mulher da terra? E falava a sua língua. Tenar tinha-lhe ensinado a língua hárdica, deleitara-se com a rapidez com que ela aprendia e só agora se apercebia de que o verdadeiro deleite fora falar em karguiano com ela, ouvir e dizer palavras que continham toda a sua infância perdida.

Ao chegar ao caminho que levava para os lagos dos peixes, à sombra dos salgueiros, viu o Amieiro. Com ele estava um rapazinho pequeno. Falavam em voz baixa, calmamente. Tenar tinha sempre prazer em encontrar o Amieiro. Lastimava a dor e receio em que se encontrava e admirava a paciência com que suportava uma coisa e outra. Gostava do seu rosto honesto e formoso e da sua eloqüência. Que mal tinha adicionar uma ou duas notas de graciosidade à fala comum? Gued confiara nele.

Parando a alguma distância para não perturbar a conversa, viu que o Amieiro e a criança se ajoelhavam no caminho, a olhar para dentro dos arbustos. Daí a pouco, o gatinho cinzento do Amieiro saiu debaixo de um deles. Não lhes prestou qualquer atenção, atravessando o relvado, pata-ante-pata, com a barriga a rasar o chão e os olhos brilhantes, à caça de uma borboleta.

— Podes deixá-lo passar a noite fora, se quiseres — explicou o Amieiro à criança. — Aqui não se perde nem lhe acontecerá qualquer mal. Ele gosta muito do ar livre. Mas isto é como se fosse toda a ilha para ele, compreendes, estes grandes jardins. Ou podes soltá-lo de manhã. E assim, se quiseres, ele pode dormir contigo.

— Disso é que eu gostava — disse o rapazinho timidamente, mas com um ar decidido.

— Nesse caso, precisas de pôr a caixa de areia dele no teu quarto, sabes? E uma taça de água, que nunca deve ficar vazia.

— E comida.

— Sim, claro; uma vez por dia. Não em demasia. Ele é um bocadinho guloso. Tem tendência a pensar que Segoy fez as ilhas para o Reboque poder encher a barriga.

— Ele apanha peixes no lago?

O gato estava agora perto de um dos lagos com carpas, sentado na relva a olhar à sua volta; a borboleta tinha escapado.

— Gosta de os observar.

— Eu também gosto — disse o rapazinho. Ergueram-se e encaminharam-se os dois para os lagos.

Tenar sentiu-se comovida e enternecida. Havia uma inocência no Amieiro, uma inocência de homem, não infantil. Devia ter tido filhos. Teria sido um bom pai.

Pensou nos seus próprios filhos e nos netinhos — embora a mais velha da Maçã, a Camoesa... Seria possível que a Camoesa fosse já fazer doze anos? Receberia o seu nome neste ano ou no próximo! Oh, já era tempo de regressar a casa. Era tempo de visitar o Vale-do-Meio, levar um presente do dia do nome à sua neta e brinquedos para os bebês, verificar se o Faísca, na sua impaciência, não estaria de novo a podar demasiado as pereiras, sentar-se a falar com a sua bondosa filha Maçã... O verdadeiro nome da Maçã era Hayohe, o nome que Óguion lhe dera... O nome de Óguion provocou-lhe, como sempre, um baque de amor e saudade. Viu a lareira na casa de Re Albi. Viu Gued sentado à lareira. Viu-o voltar o rosto escuro para lhe fazer uma pergunta. Respondeu-lhe em voz alta, nos jardins do Novo Palácio de Havnor, a centenas de milhas daquela lareira: — Mal possa!

Na manhã seguinte, uma manhã soalheira de Verão, partiram todos do palácio para embarcar no Golfinho. O povo da Cidade de Havnor transformou a ocasião numa festa, inundando as ruas e os cais, entupindo os canais com os seus pequenos barcos com varas a que chamavam lascas, salpicando a grande baía com barcos à vela e botes, todos com bandeiras coloridas; e bandeiras e pendões adejavam nas torres das grandes casas e nos paus de bandeira nas pontes altas e baixas. Passando por entre estas multidões animadas, Tenar pensou no dia, há muito tempo, em que ela e Gued tinham chegado a Havnor de barco, trazendo de volta a Runa da Paz, o Anel de Elfarran. Trazia esse anel no braço, que erguera alto para a prata refletir os raios do sol e as pessoas poderem vê-lo, e elas tinham-na aclamado e estendido os braços como se quisessem todas abraçá-la. Sorriu ao recordar esse episódio. Sorria ao subir a prancha de embarque e fazer uma reverência a Lebánnen.

Ele saudou-a com a formalidade tradicional de um comandante de navio:

— Senhora Tenar, seja bem-vinda a bordo — e ela respondeu, movida por não sabia que impulso: — Agradeço-te, filho de Elfarran.

Ele olhou para ela por um momento, sobressaltado por aquele nome. Mas Tehanu vinha logo atrás dela e Lebánnen repetiu a saudação formal: — Senhora Tehanu, seja bem-vinda a bordo.

Tenar avançou na direção da proa do navio, lembrando-se de um canto junto a um cabrestante onde não iria atrapalhar a azáfama dos marinheiros, mas poderia presenciar tudo o que acontecia no convés e também fora do navio.

Na rua principal que conduzia à doca houve grande agitação. A Alta Princesa estava a chegar. Tenar viu com satisfação que Lebánnen, ou talvez o seu mordomo, tinha feito preparativos para que a chegada da princesa fosse magnífica. Escoltas montadas abriam caminho por entre a multidão, com os cavalos a relinchar e a trotar num belo estilo. Altas plumas vermelhas semelhantes às que os guerreiros karguianos usam nos seus capacetes adejavam ao vento no topo da carruagem fechada, enfeitada com dourados, que transportara a princesa pela cidade e nas frontes dos quatro cavalos cinzentos que a puxavam. Uma banda que aguardava no cais recebeu-a com trombeta, tambor e pandeiro. E o povo, descobrindo que tinha uma princesa a quem dar vivas e olhar com curiosidade, saudou-a com altas vozes e aproximou-se tanto quanto lhe permitiam os cavaleiros e os guardas, fitando-a de olhos arregalados e cheio de elogios e saudações algo improvisadas.

— Salve a Rainha dos Karguianos! — gritavam alguns; e outros: — Não é rainha! — e outros: — Olha para as mulheres todas de vermelho, finas como rubis, qual delas é a princesa? — e outros ainda: — Longa vida tenha a Princesa!

Tenar viu Seserakh — envolta em véus, evidentemente, da cabeça aos pés, mas inconfundível devido à sua altura e porte — descer da carruagem e flutuar, majestosa como um navio, em direção à prancha de embarque. Duas das suas aias, de véus mais curtos, trotavam no seu encalço, seguidas pela Dama Opalina de Ílien. Tenar sentiu um aperto no coração. Lebánnen decretara que nenhum servo ou séquito seriam levados nesta viagem. Não se tratava de um cruzeiro ou de uma viagem de prazer, dissera com modos duros, e quem estivesse a bordo deveria ter bons motivos para estar a bordo. Será que Seserakh não tinha compreendido isso? Ou estaria tão dependente das suas tontas compatriotas que tencionava desafiar as ordens do rei? Seria um início de viagem pouco auspicioso.

Mas junto à prancha de embarque, o cilindro vermelho com ondas de ouro parou e voltou-se. Estendeu as mãos, mãos com pele dourada e o brilho de anéis de ouro. A princesa abraçou as suas aias, manifestamente despedindo-se delas. Abraçou também a Dama Opalina da forma majestosa adotada pela realeza e a nobreza em público. Em seguida, a Dama Opalina arrebanhou as aias e conduziu-as de novo à carruagem, enquanto a princesa se virava para a prancha de embarque.

Fez-se uma pausa. Tenar pôde ver aquela coluna impenetrável de vermelho e ouro encher o peito de ar. E endireitar-se em toda a sua estatura.

A coluna avançou pela prancha de embarque, lentamente, porque a maré estava a subir e o ângulo era bastante inclinado, mas com uma dignidade sem hesitações que manteve em silêncio a multidão no cais, fascinada, a observá-la.

Chegou ao convés e parou, de frente para o Rei.

— Alta Princesa das Terras de Kargad, seja bem-vinda a bordo — saudou-a Lebánnen numa voz soante.

Ao isto ouvir, a multidão disse:

— Hurra pela Princesa! Longa vida à Rainha! Andaste bem, ó Vermelhusca!

Lebánnen disse algo à princesa que o clamor da multidão tornou inaudível aos outros. A coluna vermelha voltou-se para a multidão no cais e fez uma reverência, hirta, mas graciosa.

Tehanu aguardava-a perto de onde se encontrava o Rei, e naquele momento avançou e falou com ela e conduziu-a para o camarote na popa do navio, onde os véus vermelhos e dourados, pesados e esvoaçantes desapareceram. A multidão soltou vivas e gritou com mais entusiasmo do que nunca.

— Volta, Princesa! Onde está a Vermelhusca? Onde está a nossa Dama? Onde está a Rainha?

Da outra extremidade do barco, Tenar olhou para o Rei. Apesar da sua apreensão e do peso que tinha no peito, sentiu-se tomar por um riso incontrolável. Pensou: «Pobre rapaz, o que vais fazer agora? Apaixonaram-se por ela logo na primeira vez que tiveram a oportunidade de a ver, embora não pudessem vê-la... Oh, Lebánnen, estamos todos conluiados contra ti!»

O Golfinho era um navio de um tamanho razoável, equipado para transportar um rei com alguma pompa e conforto; mas, acima de tudo, era feito para navegar, para voar com o vento, para o levar aonde precisava de ir tão depressa quanto era possível. O alojamento era bastante acanhado quando se encontravam a bordo somente a tripulação e os oficiais, o Rei e alguns acompanhantes. Nesta viagem para Roke, os camarotes estavam apinhados. A tripulação, evidentemente, não sofria um desconforto maior do que o habitual, dormindo no espaço acanhado, de quatro metros e meio de altura, do porão na proa, mas os oficiais tinham de partilhar um espaço minúsculo e escuro sob o castelo da proa. Quanto aos passageiros, as quatro mulheres estavam no camarote normalmente destinado ao Rei, que ocupava toda a largura do castelo da popa, enquanto o camarote abaixo, normalmente ocupado pelo capitão e um ou dois oficiais, era partilhado pelo rei, os dois feiticeiros, o bruxo e Tosla. A probabilidade de desconforto e ânimos alterado, pensou Tenar, era ilimitada. Contudo, a primeira probabilidade, e a mais urgente, era que a Alta Princesa enjoasse.

Desciam a Grande Baía com um leve vento de feição, as águas calmas, o navio a deslizar como um cisne num lago, mas Seserakh estava encolhida no seu beliche, gritando com desespero de cada vez que olhava através dos seus véus e vislumbrava pelas janelas largas da popa o cenário soalheiro e tranqüilo do mar calmo e da esteira branca do navio.

— Vai subir e descer — lamuriava-se em karguiano.

— Não vai subir e descer nada! — contrariou Tenar. — Serve-te da cabeça, princesa!

— E o estômago, não é a cabeça — gemeu Seserakh.

— É impossível que alguém enjoe com este tempo. Estás é com medo.

— Mãe — protestou Tehanu, compreendendo o tom, se não o significado das palavras. — Não lhe ralhes. É horrível enjoar.

— Ela não está enjoada! — disse Tenar. Estava absolutamente convencida da verdade do que dizia. — Seserakh, não estás enjoada. Estás com medo de enjoar. Acalma-te. Vem até ao convés. O ar fresco vai fazer uma grande diferença. Ar fresco e coragem.

— Oh, minha amiga! — murmurou Seserakh em hárdico. — Fazer coragem a eu!

Tenar ficou sem palavras por uns momentos. — Tens de ser tu a fazê-la, princesa — acabou por dizer. Depois, com modos mais brandos, acrescentou: — Anda lá, tenta vir daí até ao convés, só por uns minutos. Tehanu, vê se consegues convencê-la. Pensa no que ela vai sofrer se o tempo piorar!

Entre elas, conseguiram pôr Seserakh de pé e enfiá-la no seu cilindro de véus vermelhos, sem o qual não podia, evidentemente, aparecer perante olhares masculinos. Persuadiram-na com meiguice a sair do camarote para a parte do tombadilho mesmo ao lado, à sombra, onde podiam sentar-se as três em fila no convés impecável, de uma brancura imaculada, e olhar para o mar azul e brilhante.

Seserakh apartou os véus o suficiente olhar em frente; mas quase só olhava para o regaço, lançando uma mirada ocasional, fugidia e aterrada à água, após o que fechava os olhos e voltava a baixá-los para o regaço.

Tenar e Tehanu falavam, apontando navios que passavam, pássaros, uma ilha.

— É maravilhoso. Tinha-me esquecido de como gosto de andar de barco — confessou Tenar.

— Eu gosto, quando consigo esquecer-me da água — comentou Tehanu. — É como voar.

— Ah, vocês, os dragões — disse Tenar.

Falara num tom ligeiro, mas sem ligeireza. Era a primeira vez que dizia alguma coisa do gênero à sua filha adotiva. Estava consciente de que Tehanu voltara a cabeça para ela e a fitava com o olho são. O coração de Tenar bateu com força.

— Ar e fogo — acrescentou.

Tehanu nada disse. Mas estendeu a mão, a mão delgada e morena, não a garra enclavinhada, e agarrou a mão de Tenar com força.

— Eu não sei o que sou, mãe — sussurrou na sua voz que raras vezes passava de um sussurro.

— Eu sei — disse Tenar. O coração batia-lhe com mais força ainda do que antes.

— Não sou como a Írian — acrescentou Tehanu. Estava a tentar reconfortar a mãe, sossegá-la, mas havia ânsia na sua voz, um ciúme cheio de avidez, um profundo desejo.

— Espera, espera e descobrirás — encorajou a mãe, sentindo dificuldade em falar. — Saberás o que fazer... o que és... quando chegar o momento.

Falavam em voz tão baixa que a princesa não conseguiria ouvir o que diziam, mesmo que o compreendesse. Tinham-se esquecido dela. Mas ela ouvira o nome de Írian e, apartando os véus com as suas mãos compridas e voltando-se para elas, fitou-as com os olhos brilhantes emoldurados pela sombra de um vermelho quente e perguntou:

— Írian, ela está?

— Em algum lugar lá para a frente... Lá em cima... — Tenar acenou para o resto do navio.

— Ela fazer coragem para ela. Sim?

Após um momento, Tenar disse:

— Não precisa de a fazer, acho eu. Ela é destemida.

— Ah — disse a princesa.

Da sombra, os seus olhos brilhantes perscrutaram todo o navio até à proa, onde se encontrava Írian ao lado de Lebánnen. O Rei estava a apontar para a frente, gesticulando e falando animadamente. Ria, e Írian, ao seu lado, tão alta como ele, ria também.

— Cara destapada — resmungou Seserakh em karguiano. E depois disse em hárdico, pensativa, num tom quase inaudível: — Destemida.

Cerrou os véus e ficou sentada, inexpressiva e imóvel.

As praias compridas de Havnor ficaram para trás envoltas numa névoa azul. O Monte Onn pairava, vago e alto, para norte. As colunas negras de basalto da Ilha de Omer erguiam-se como torres ao lado direito do navio enquanto ele atravessava os Estreitos de Ebavnor em direção ao Mar Interior. O sol brilhava, o vento soprava fresco, era mais um belo dia. Todas as mulheres estavam sentadas debaixo de um toldo de pano de vela que os marinheiros tinham montado de propósito para elas ao lado do camarote da popa. As mulheres traziam boa sorte a um navio e os marinheiros não se poupavam a esforços para lhes proporcionar pequenos confortos e mimos. Como os feiticeiros podiam trazer boa ou má sorte a um navio, os marinheiros também os tratavam muito bem; o seu toldo estava montado num canto do convés, de onde tinham boas vistas para a frente. As mulheres sentavam-se em almofadas de veludo (providenciadas pela previdência do Rei ou do seu mordomo); os feiticeiros dispunham de fardos de pano de vela, que serviam muito bem.

O Amieiro viu-se tratado e considerado como um dos feiticeiros. Nada podia fazer quanto a isso, embora o embaraçasse que Ônix e Seppel pudessem pensar que ele se julgava seu igual, e também o perturbava porque agora nem sequer era bruxo. O seu dom desaparecera. Não tinha qualquer poder. Sabia-o com a mesma certeza com que se aperceberia da perda da visão ou da paralisia das mãos. Agora não conseguiria consertar um cântaro partido, a não ser que usasse cola; e tê-lo-ia feito mal, porque nunca tivera de o fazer.

E, para além da sua arte, perdera algo mais, algo maior do que a sua arte, que tinha desaparecido. Essa perda, tal como a morte da mulher, deixara-o num vazio em que não havia felicidade e nada de novo existia ou poderia vir a existir. Nada podia acontecer, nada podia mudar.

Como só tivera consciência deste aspecto mais alargado do seu dom depois de o perder, refletia agora sobre ele, questionando-se sobre a sua natureza. Era como saber o caminho a seguir, pensou, como saber o caminho para casa. Não era uma coisa que se pudesse identificar ou sobre a qual pudesse dizer-se muito, mas antes uma ligação da qual tudo dependia. Sem ela, sentia-se desolado. Sentia-se sem préstimo.

Mas pelo menos não causava dano a ninguém. Os seus sonhos eram passageiros, sem sentido. Nunca o transportavam àqueles montes desolados, à colina da erva seca, ao muro. Nenhumas vozes o chamavam no escuro.

Pensava freqüentemente no Gavião, desejando poder falar com ele, o Arquimago que gastara todo o seu poder e, depois de ter sido grande entre os grandes, levava agora uma vida de pobreza e falta de consideração. No entanto, o Rei ansiava por cobri-lo de honrarias; a pobreza do Gavião era uma escolha pessoal. Talvez, pensou o Amieiro, as riquezas e as honrarias fossem uma fonte de vergonha para um homem que perdera a sua verdadeira riqueza, o seu caminho.

Era óbvio que Ônix lamentava ter levado o Amieiro a fazer esta troca ou trato. Sempre fora bastante cortês para com o Amieiro, mas tratava-o agora com consideração e contrição, ao mesmo tempo que passara a tratar o feiticeiro de Paln com modos um pouco mais distantes. O Amieiro não sentia qualquer ressentimento contra Seppel, nem suspeitas quanto à sua verdadeira intenção. Os Antigos Poderes eram os Antigos Poderes. Quem os usasse, fazia-o por sua própria conta e risco. Seppel dissera-lhe o que ele teria de pagar e ele pagara o preço. Inicialmente, não tinha compreendido bem quanto teria de pagar, mas tal não era culpa de Seppel. Era culpa do Amieiro, por nunca ter apreciado devidamente o verdadeiro valor do seu dom.

Por conseguinte, quando se sentava junto aos dois feiticeiros, considerava-se como uma moeda falsa entre ouro verdadeiro, mas escutava-os com toda a atenção, porque eles confiavam nele e falavam livremente e as suas palavras eram uma educação com que o Amieiro nunca sonhara quando era bruxo.

Sentados à sombra clara e pálida do toldo de lona, falavam de um trato, um trato maior que o que ele fizera para acabar com os seus sonhos. Ônix pronunciou mais do que uma vez as palavras da Antiga Fala que Seppel dissera no telhado. Verw nadan. A pouco e pouco, o Amieiro foi deduzindo pelas suas conversas que o significado daquelas palavras era algo como uma escolha, uma divisão, fazer duas coisas de uma só. Há muito, muito tempo, antes dos Reis de Enlad, antes de a língua hárdica passar a ser escrita, talvez até antes de existir, quando somente havia a Língua da Criação, parecia que as pessoas tinham feito uma espécie de escolha, tinham desistido de um grande poder ou bem para ganhar um outro.

O que os feiticeiros diziam sobre este assunto era difícil de seguir, não tanto porque escondessem alguma coisa, mas porque eles próprios andavam às apalpadelas à procura de coisas perdidas num passado envolto em brumas, o tempo anterior à memória. Algumas palavras da Antiga Fala entravam na sua conversa por necessidade e, por vezes, Ônix falava inteiramente nessa língua. Mas Seppel somente lhe respondia em hárdico. Seppel era parco no uso das palavras da Criação. A certo momento, ergueu a mão para interromper Ônix e, quando o feiticeiro de Roke o olhou com surpresa, sublinhou com modos suaves: — As palavras de encantamento produzem um efeito.

Também o mestre do Amieiro, Gannet, chamara aos vocábulos da Antiga Fala «palavras de encantamento».

— Cada uma delas é um ato de poder — dissera. — A palavra verdadeira dá existência à verdade — acrescentara. Gannet era parco com as palavras de encantamento que sabia, pronunciando-as apenas quando necessário, e sempre que escrevia qualquer runa, à exceção das comuns que se usavam para escrever em hárdico, apagava-a quase logo após tê-la escrito. A maior parte dos mágicos usava da mesma cautela, quer para guardarem o saber para si, quer porque respeitavam o poder da Língua da Criação. Até mesmo Seppel, feiticeiro como era, com um conhecimento e entendimento muito mais vastos daquelas palavras, preferia não as empregar em conversa, recorrendo antes à língua comum, que, se permitia dizer mentiras e cometer erros, permitia também a incerteza e a retratação.

Talvez tal fizesse parte da grande escolha que os homens tinham feito em tempos idos: prescindir do conhecimento inato da Antiga Fala, que partilharam com os dragões. Tê-lo-iam feito, perguntava-se o Amieiro, a fim de terem uma língua própria, uma língua apropriada à humanidade, na qual podiam mentir, enganar, trapacear e inventar maravilhas que nunca tinham existido e nunca existiriam?

Os dragões falavam apenas a Antiga Fala. No entanto, dizia-se que os dragões mentiam. Seria verdade? — perguntou-se o Amieiro. Se as palavras de encantamento eram verdadeiras, como poderia, mesmo um dragão, utilizá-las para mentir?

Na sua conversa, Seppel e Ônix tinham chegado a uma das pausas de reflexão, longas e cômodas. Vendo que Ônix estava na realidade meio adormecido, o Amieiro perguntou em voz baixa ao feiticeiro de Paln:

— É verdade que os dragões podem dizer mentiras com as palavras verdadeiras?

O homem de Paln sorriu.

— Essa, como dizemos em Paln, é a pergunta que Ath fez a Orm há um milhar de anos, nas ruínas de Ontuego. «Um dragão pode mentir?» perguntou o mago. E Orm respondeu: «Não», e depois soltou uma baforada sobre ele, reduzindo-o a cinzas... Mas será que devemos acreditar na história, visto que somente Orm poderia tê-la contado?

Infinitos são os argumentos dos magos disse o Amieiro de si para consigo, sem pronunciar as palavras em voz alta.

Ônix tinha mesmo adormecido, com a cabeça lançada para trás contra o tabique e o rosto sério e tenso relaxado.

Seppel falou num tom ainda mais baixo que o habitual.

— Amieiro, espero que não estejas arrependido do que fizemos em Aurun. Eu sei que o nosso amigo pensa que não te avisei com suficiente clareza.

O Amieiro declarou, sem hesitação:

— Estou satisfeito.

Seppel inclinou a cabeça escura.

Pouco depois, o Amieiro disse:

— Eu sei que tentamos manter o Equilíbrio. Mas os Poderes da Terra têm as suas próprias contas.

— E a sua justiça é de difícil compreensão para os homens.

— É isso. Eu tento compreender por que é que foi somente isso, a minha arte, quero dizer, que tive de perder para me libertar daquele sonho. O que tem uma coisa a ver com a outra?

Seppel não respondeu durante algum tempo e quando o fez foi com uma pergunta:

— Não foi por meio da tua arte que chegaste ao muro de pedras?

— Nunca — retorquiu o Amieiro com convicção. — O poder que eu tinha para lá ir por meio da minha própria vontade era tanto como o poder para o evitar.

— Então como chegavas lá?

— A minha mulher chamava-me e o meu coração ia ter com ela. Uma pausa mais demorada.

O feiticeiro disse:

— Outros homens perderam mulheres amadas.

— Foi o que eu disse ao Senhor Gavião. E ele disse: — É verdade, mas, no entanto, o laço entre verdadeiros amantes é o que mais se assemelha ao que dura para sempre.

— Para lá do muro de pedras, não há laço que dure.

O Amieiro olhou para o feiticeiro, para o seu rosto moreno, de traços suaves e olhos penetrantes.

— Porque é assim?

— A morte quebra os laços.

— Então, porque é que os mortos não morrem?

Seppel fitou-o, apanhado de surpresa.

— Perdão — disse o Amieiro. — Na minha ignorância, exprimo-me mal. O que quero dizer é isto: a morte quebra o laço entre a alma e o corpo, e o corpo morre. Regressa à terra. Mas o espírito tem de ir para aquele lugar escuro e revestir-se de algo semelhante ao corpo e permanecer ali... quanto tempo? Para sempre? Lá, na poeira e na penumbra, sem luz ou amor ou qualquer animação? Não consigo suportar a idéia de que a Lily esteja naquele lugar. Porque tem de lá estar? Porque não pode ser... — embargou-lhe a voz — ser livre?

— Porque lá não sopra o vento — foi a resposta de Seppel. A expressão do seu rosto era muito estranha, a voz agreste. — Foi impedido de soprar pela arte do homem.

Continuava a fitar o Amieiro, mas só gradualmente começou a vê-lo. A expressão que tinha nos olhos e no rosto alterou-se. Desviou o olhar para a bela curva branca do traquete, enfunado com o sopro do vento do noroeste. Voltou a olhar para o Amieiro.

— Sabes tanto quanto eu sobre esta matéria, meu amigo — disse, num tom de voz quase tão suave como o habitual. — Mas sabe-lo no corpo, no sangue, na batida do teu coração. E eu apenas conheço seis palavras. Palavras antigas... Por isso, o melhor é irmos para Roke, onde talvez os sábios possam dizer-nos o que precisamos de saber. Ou, se não puderem, talvez os dragões o façam. Ou talvez sejas tu a indicar-nos o caminho.

— Isso seria como o cego a indicar o caminho a quem vê para a beira do precipício! — comentou o Amieiro com uma gargalhada.

— Ah, mas nós já estamos na beira do precipício, com os olhos fechados — disse o feiticeiro de Paln.

Lebánnen sentia que o navio era demasiado pequeno para nele caber a enorme agitação que o enchia. As mulheres estavam sentadas debaixo do seu pequeno toldo e os feiticeiros estavam sentados debaixo do deles como patos em fila, mas ele percorria o navio para a frente e para trás, impaciente com os espaços confinados do convés. Sentia que era a sua impaciência e não o vento que impelia o Golfinho para sul com tanta rapidez, mas nunca com a rapidez suficiente. Ansiava por que a viagem chegasse ao fim.

— Ainda te lembras da frota a caminho de Wathort? — perguntou Tosla, aproximando-se de Lebánnen, que se encontrava junto ao timoneiro a estudar a carta de navegação e o mar límpido à sua frente. — Que belo espetáculo! Trinta navios alinhados!

— Quem me dera que estivéssemos a dirigir-nos para Wathort — respondeu Lebánnen.

— Eu nunca gostei de Roke — concordou Tosla. — Não há um vento ou uma corrente decentes a vinte milhas daquela costa, a não ser o que é cozinhado pelos feiticeiros. E os rochedos a norte nunca estão no mesmo sítio. E a cidade está cheia de trapaceiros e metamorfoseadores — disse, e cuspiu certeiro para sotavento. — Preferia encontrar-me com o velho Gore e os seus esclavagistas outra vez!

Lebánnen acenou com a cabeça mas não disse nada. Era com freqüência esse o prazer da companhia de Tosla: dizia aquilo que Lebánnen sentia ser melhor não dizer ele próprio.

— Quem era o homem sem fala, o mudo? — perguntou Tosla. — O que matou o Falcão no muro?

— Era Egre. Um pirata que tinha dado em caçador de escravos.

— É isso. Conheceu-te logo, lá em Sorra. Foi direto a ti. Sempre me perguntei como.

— Porque em tempos me tinha apanhado para escravo.

Não era fácil espantar Tosla, mas o homem do mar olhou boquiaberto para o Rei, evidentemente sem acreditar nele, mas incapaz de o dizer e, por conseguinte, sem nada para dizer. Lebánnen deleitou-se por uns instantes com o efeito que causara e depois apiedou-se de Tosla.

— Quando o Arquimago me levou à caça de Cob, fomos primeiro para sul. Um homem na Cidade de Hort entregou-nos aos caçadores de escravos. Deram uma pancada na cabeça ao Arquimago e eu fugi a correr, julgando que assim os afastaria dele. Mas era atrás de mim que eles andavam; eu podia ser vendido. Quando acordei, estava acorrentado numa galé com destino a Sowl. Ele libertou-me antes do final da noite seguinte. Os ferros tombaram aos pés de todos nós como pedaços de folhas secas. E ele disse a Egre para não voltar a falar até encontrar alguma coisa que valesse a pena dizer... Chegou àquela galé como uma grande luz sobre a água... Eu nunca tinha sabido o que ele era até àquele momento.

Tosla refletiu durante algum tempo sobre o que o Rei acabara de lhe contar.

— Tirou as correntes a todos os escravos? Porque é que os outros não mataram Egre?

— Talvez o tenham levado até Sowl e o vendessem lá — opinou Lebánnen.

Tosla refletiu durante mais algum tempo.

— Por isso é que estavas tão empenhado em acabar com o tráfico de escravos.

— Era uma das razões.

— Não melhora o caráter, em regra — comentou Tosla. Examinou a carta do Mar Interior afixada no quadro à esquerda do homem do leme. — Ilha de Way — fez ele notar. — De onde é a mulher-dragão.

— Já reparei que te manténs afastado dela.

Tosla comprimiu os lábios, embora não assobiasse, por estar a bordo de um navio.

— Sabes aquela canção a que eu me referi, sobre a Moça de Belilo? Bem, sempre julgara que não passava de uma lenda. Até a ver.

— Duvido que ela te comesse, Tosla.

— Seria uma morte gloriosa — retorquiu o homem do mar com bastante azedume.

O rei soltou uma gargalhada.

— Não te arrisques muito — aconselhou Tosla.

— Não há problema.

— Tu e ela estavam ali a falar tão livremente, tão à-vontade. É como pôr-se uma pessoa à-vontade com um vulcão, acho eu... Mas digo-te uma coisa, não me importava de ver melhor aquela prenda que os karguianos te enviaram. Vale a pena olhar para ela, a julgar pelos pés. Mas como é que se tira da tenda? Os pés são bem elegantes, mas eu gostava de ver um bocadinho mais de tornozelo, para começar.

Lebánnen sentiu que se lhe ensombrava o rosto e voltou-se de lado para que Tosla não o pudesse ver.

— Se alguém me desse um embrulho daqueles — insistiu Tosla, de olhos fixos no mar —, eu abria-o logo.

Lebánnen não conseguiu reprimir um ligeiro movimento de impaciência. Tosla detectou-o; era perspicaz. Fez o seu sorriso sardônico e não disse mais nada.

O mestre do navio saíra para o convés e Lebánnen começou a conversar com ele.

— Parece um bocado nublado para a frente — disse, e o mestre acenou com a cabeça: — Ventos de trovoada para sul e para oeste. Vamos apanhá-los hoje à noite.

O mar foi ficando cada vez mais encapelado ao longo da tarde, a benigna luz do sol adquiriu uma tonalidade de latão e sopravam rajadas de vento de um quadrante e a seguir de outro. Tenar dissera a Lebánnen que a princesa receava o mar e os enjôos e, por um par de vezes, o rei lançou um olhar na direção do camarote da popa, contando não ver uma forma envolta em véus vermelhos entre os patos em fila. Mas tinham sido Tenar e Tehanu a regressar ao camarote; a princesa ainda lá estava, com Írian sentada ao seu lado. Conversavam animadamente. De que poderia falar uma mulher-dragão de Way com uma mulher de um harém de Hur-at-Hur? Que língua tinham em comum? Esta questão pareceu tão premente a Lebánnen que se dirigiu para a popa.

Quando se aproximou, Írian olhou para ele e sorriu-lhe. Tinha um rosto forte e aberto, um sorriso rasgado; andava descalça por escolha própria, não trazia roupas cuidadas, deixava que o vento lhe despenteasse o cabelo; no geral, parecia uma mulher do campo bonita, calorosa, inteligente mas sem estudos, até se lhe verem os olhos. Eram da cor de âmbar esfumado e quando olhava a direito para Lebánnen, como agora, ele via-se obrigado a desviar os olhos. Baixou a cabeça.

Lebánnen deixara bem claro que não haveria cerimônias de corte a bordo, nada de reverências e cortesias, ninguém deveria levantar-se à sua aproximação; mas a princesa tinha-se posto de pé. Os seus pés eram, como observara Tosla, de uma grande beleza, não pequenos mas bem arqueados, fortes e delicados. Olhou para eles, para os dois pés elegantes sobre a madeira branca do soalho do convés. Olhou para cima e viu que a princesa estava a fazer o que fizera da última vez que a olhara de frente: apartava os véus de forma a que ele, e mais ninguém, pudesse ver-lhe o rosto. Sentiu-se algo perturbado pela beleza austera, quase trágica, do seu rosto naquela sombra vermelha.

— Está... está tudo bem, princesa? — perguntou a gaguejar, o que raramente lhe acontecia.

Ela disse:

— Minha amiga Tenar dizer, eu respirar vento.

— Sim — disse ele, ao acaso.

— Parece-te que há alguma coisa que os teus feiticeiros possam fazer por ela, talvez? — disse Írian, estendendo as suas pernas compridas e pondo-se também de pé. Ela e a princesa eram ambas mulheres altas.

Lebánnen tentava ver de que cor eram os olhos da princesa, visto que podia agora olhar para ela. Eram azuis, pensou, mas, tal como opalas azuis, continham outras cores, ou talvez esse efeito se devesse à luz do sol filtrada pelo vermelho dos seus véus.

— Fazer por ela? — indagou.

— Ela quer muito não enjoar. Passou um mau bocado na viagem das terras de Kargad.

— Eu não ir ter medo — disse a princesa. Olhou-o a direito, como que a desafiá-lo... a quê?

— É claro — apressou-se ele a dizer. — É claro. Eu pergunto ao Ônix. De certeza que poderá fazer alguma coisa.

Fez a ambas uma reverência curta e afastou-se à pressa em busca do feiticeiro.

Ônix e Seppel conferenciaram e em seguida consultaram o Amieiro. Um encantamento contra enjôos era mais da competência de bruxos, consertadores, curandeiros, do que de feiticeiros sábios e poderosos. O Amieiro não podia fazer nada naquele momento, claro, mas talvez se lembrasse de algum encantamento?... Ele não se lembrava, nunca tendo sonhado em fazer-se ao mar até começarem os seus problemas. Seppel confessou que enjoava sempre em barcos pequenos ou quando o mar estava encapelado. Por fim, Ônix dirigiu-se ao camarote da popa e apresentou as suas desculpas à princesa: não tinha capacidade para a ajudar, e nada para lhe oferecer a não ser — com mil perdões — um talismã que um dos marinheiros, ao saber do seu problema — os marinheiros ouviam tudo — o instara a entregar à princesa.

A mão de dedos compridos da princesa saiu de entre os véus vermelhos e dourados. O feiticeiro depositou nela um pequeno e estranho objeto, preto e branco: uma alga seca entrançada à volta do osso do peito de um pássaro.

— De um petrel, porque eles voam na tempestade — explicou Ônix com uma expressão embaraçada.

A princesa inclinou a cabeça oculta e murmurou um agradecimento em karguiano. O amuleto desapareceu dentro dos seus véus. Retirou-se para o camarote. Ônix, encontrando o rei nas imediações, pediu-lhe perdão. O navio balançava agora vivamente com a ventania forte e desregrada no mar encapelado, e ele disse:

— Eu podia, sabes, Senhor meu, dizer uma palavrinha aos ventos...

Lebánnen bem sabia que existiam duas teorias relativamente ao trabalho do tempo: a antiquada, dos mercadores-viajantes, que ordenavam aos ventos que servissem os navios como os pastores ordenam aos seus cães que corram para aqui e para ali; e a idéia moderna — no máximo com alguns séculos de existência — perfilhada pela Escola de Roke, segundo a qual o vento mágico poderia ser provocado em caso de real necessidade, mas era preferível deixar que os ventos do mundo soprassem. Lebánnen sabia que Ônix era um devoto defensor da linha de Roke.

— Segue a tua própria opinião, Ônix — disse. — Se parecer que vamos ter uma noite realmente má... Mas, se não passar de algumas sacudidelas...

Ônix olhou para o topo, onde já uma língua ou duas de fogo tremeluzira no fim da tarde escurecido pelas nuvens. Os trovões ribombavam no negrume à sua frente, por todo o Sul. Atrás deles, desvanecia-se a última luz do dia, desmaiada e trêmula, sobre as ondas.

— Muito bem — concordou, com ar bastante soturno, e desceu para o pequeno camarote sobrelotado.

Lebánnen ficava quase sempre fora do camarote, dormindo no convés quando dormia. Mas aquela noite não seria uma noite de sono para ninguém a bordo do Golfinho. Não se tratava de uma simples trovoada, mas antes de uma série de violentas tempestades de fim de Verão a fervilharem do Sudoeste e, entre a terrível agitação do mar ofuscado pelos relâmpagos, os trovões que pareciam prestes a fender o navio em dois e as rajadas loucas que o faziam balouçar e abanar e dar saltos estranhos, foi uma longa noite, uma noite tormentosa.

Ônix consultou Lebánnen uma vez: deveria dizer uma palavra ao vento? Lebánnen olhou para o mestre, que encolheu os ombros. Ele e a sua tripulação andavam atarefados, mas não estavam preocupados. O navio não se encontrava em perigo. Quanto às mulheres, constava-se que estavam sentadas no camarote a jogar. Írian e a princesa tinham saído para o convés, mas por vezes era difícil manter o equilíbrio e, ao verem que só atrapalhavam a tripulação, tinham-se retirado. A notícia de que estavam a jogar fora trazida pelo moço de cozinha, que tinha sido incumbido de ir perguntar-lhes se queriam alguma coisa para comer. Elas tinham respondido que aceitariam o que ele pudesse trazer-lhes.

Lebánnen sentiu-se possuído pela mesma intensa curiosidade que experimentara nessa tarde. Não havia dúvida de que as luzes estavam todas acesas no camarote da popa, porque o seu brilho escorria dourado na espuma deixada na esteira do navio. Por volta da meia-noite, Lebánnen foi até à popa e bateu à porta.

Írian veio abrir. Depois da ofuscação e do negrume da tempestade, a luz no camarote parecia quente e firme, embora os candeeiros oscilantes lançassem sombras oscilantes. E ele apercebeu-se confusamente de cores, das cores suaves e variadas das roupas das mulheres, da sua pele, morena ou pálida ou dourada, do seu cabelo, negro ou grisalho ou castanho, dos seus olhos — dos olhos da princesa a fitarem-no, sobressaltados, antes de ela agarrar num lenço ou pedaço de tecido para ocultar o rosto.

— Oh! Pensamos que era o moço da cozinha — disse Írian com uma gargalhada.

Tehanu olhou para ele e disse no seu tom tímido mas amigável:

— Há algum problema?

Lebánnen tomou consciência de que estava à porta a olhar fixamente para elas como um mensageiro de desgraças mudo.

— Não... Nada... Estão todas bem? Lamento que esteja tempo de tempestade...

— Não te responsabilizamos pelo tempo — disse Tenar.

— Ninguém conseguia dormir, por isso a princesa e eu temos estado a ensinar às outras um jogo karguiano.

Ele viu pauzinhos de deitar, de cinco lados, espalhados sobre a mesa, talvez pertença de Tosla.

— Temos estado a apostar ilhas — disse Írian. — Mas a Tehanu e eu estamos a perder. As karguianas já ganharam Ark e Ilien.

A princesa baixara o lenço; sentada, encarava Lebánnen resolutamente, extremamente tensa, como um jovem espadachim poderia enfrentá-lo antes de uma sessão de esgrima. No calor do camarote, estavam todas de braços nus e descalças, mas a consciência aguda da princesa de estar de rosto descoberto atraía Lebánnen como um imã atrai um alfinete.

— Lamento que esteja tempo de tempestade — disse ele de novo, com uma expressão idiota, e fechou a porta. Ao afastar-se, ouviu-as rir.

Foi pôr-se ao lado do homem do leme. Enquanto fitava a escuridão de chuva e vento alumiada por relâmpagos irregulares e distantes, via ainda tudo no camarote da popa, a toalha negra do cabelo de Tehanu, o sorriso afetuoso e levemente trocista de Tenar, os pauzinhos sobre a mesa, os braços roliços da princesa, da cor do mel à luz do candeeiro, o seu pescoço na sombra dos cabelos, embora não se lembrasse de lhe ter olhado para os braços e o pescoço, somente para o rosto, para os olhos cheios de desafio, de desespero. O que receava a moça? Pensaria que ele tencionava magoá-la?

Uma ou duas estrelas brilhavam alto, lá para o Sul. Lebánnen foi para o seu camarote sobrelotado, prendeu uma rede, porque os beliches estavam cheios, e dormiu durante algumas horas. Acordou antes do amanhecer, cansado como antes, e subiu ao convés.

O dia nasceu tão luminoso e calmo como se jamais tivesse havido tempestade. Lebánnen encostou-se à amurada, na proa, viu o primeiro raio de sol incidir na água e veio-lhe à cabeça uma velha cantiga:

Ó minha alegria!

Antes de existir o esplendor de Éa, antes de Segoy

Dar o ser às ilhas,

O vento matinal soprava no mar.

Ó minha alegria, sê livre!

Era um pedaço de uma balada ou canção de embalar da sua infância. Não conseguia lembrar-se do resto. A melodia era doce. Cantou-a baixinho e deixou que o vento lhe levasse as palavras dos lábios.

Tenar saiu do camarote e, ao vê-lo, aproximou-se dele.

— Bom dia, querido Senhor meu — disse, e ele saudou-a com ternura, recordando vagamente que se zangara com ela, mas sem saber porquê nem como.

— Vocês, as karguianas, conquistaram Havnor ontem à noite? — perguntou.

— Não, podes ficar com Havnor. Fomos para a cama. As novas ainda lá estão, a espreguiçar. Vamos... como é que se diz? avisar Roke hoje?

— Avistar Roke? Não. Só amanhã cedo. Mas antes do meio-dia devemos chegar ao porto de Thwill. Se nos deixarem aproximar-nos da ilha.

— O que queres dizer?

— Roke defende-se de visitas indesejáveis.

— Oh! Gued já me tinha dito. Estava uma vez num navio que tentava regressar a Roke e eles enviaram-lhe um vento contrário. Vento de Roke, chamou-lhe ele.

— Contra ele?

— Foi há muito tempo — respondeu ela, sorrindo de prazer com a sua incredulidade, a sua relutância em acreditar que alguma vez pudesse ter sido feita qualquer afronta a Gued. — Quando ainda era rapaz e se tinha metido com a escuridão. Foi o que ele disse.

— Quando já era homem, ainda se metia com ela.

— Agora não — lembrou Tenar com serenidade.

— Não, somos nós que temos de o fazer — disse Lebánnen. O seu rosto ensombrara-se. — Quem me dera saber o que estamos a enfrentar. Tenho a certeza de que as coisas estão a encaminhar-se para uma grande oportunidade ou mudança, como Óguion previu, como Gued disse ao Amieiro. E tenho a certeza de que Roke é onde precisamos de estar para a defrontar. Mas, para além disso, nenhuma certeza, nada. Não sei com que é que nos defrontamos. Quando Gued me levou à terra escura, conhecíamos o nosso inimigo. Quando levei a frota para Sorra, sabia qual o mal que queria aniquilar. Mas agora... Os dragões são nossos inimigos ou nossos aliados? O que é que correu mal? O que é que temos de fazer ou desfazer? Saberão os Mestres de Roke dizer-nos? Ou voltarão o seu vento contra nós?

— Receando...?

— Receando o dragão. O que conhecem. Ou aquele que não conhecem...

O rosto de Tenar estava também sério, mas gradualmente abriu-se num sorriso.

— Que bando lhes trazes, na verdade! — disse. — Um bruxo com pesadelos, um feiticeiro de Paln, dois dragões e duas karguianas. Os únicos passageiros respeitáveis a bordo és tu e Ônix.

Lebánnen não conseguiu rir.

— Se ao menos ele estivesse conosco! — disse.

Tenar pousou a mão no braço de Lebánnen. Ia começar a falar, mas calou-se.

Ele cobriu a mão dela com a sua. Ficaram assim em silêncio durante algum tempo, lado a lado, olhando para a ondulação do mar.

— A princesa tem uma coisa para te dizer antes de chegarmos a Roke — informou Tenar. — É uma história de Hur-at-Hur. Lá no deserto deles, recordam certas coisas. Penso que remonta a um tempo anterior a tudo aquilo de que eu alguma vez ouvi falar, à exceção da história da Mulher de Kemei. Tem a ver com dragões... Seria uma amabilidade da tua parte convidá-la, para não ter de ser ela a pedir-te para falarem.

Consciente do cuidado e da cautela com que ela se exprimira, Lebánnen sentiu um aguilhão de impaciência, uma pontada de vergonha. Lá ao longe, no mar, observava o curso de uma galé destinada a Kamery ou Way, o minúsculo e vago reflexo das ondas alteadas. Disse:

— Claro. Por volta do meio-dia?

— Obrigada.

Por volta do meio-dia, Lebánnen enviou um jovem marinheiro ao camarote da popa para solicitar à princesa que viesse encontrar-se com o Rei ao convés da proa. Ela saiu imediatamente do camarote e, como o navio não tinha mais que setenta e cinco milhas de comprimento, ele pôde observá-la a avançar na sua direção: não era uma caminhada longa, embora talvez o fosse para ela. Porque não era um cilindro vermelho sem quaisquer traços distintivos que se aproximava dele, mas sim uma jovem alta. Trazia calças brancas de um tecido leve, uma camisa comprida de um vermelho desmaiado, um aro de ouro a segurar-lhe um véu vermelho muito fino sobre a cabeça e o rosto. O véu adejava com a brisa do mar. O jovem marinheiro ajudou-a a evitar os vários obstáculos que se lhe deparavam e a subir e descer as descidas e subidas do convés atravancado e estreito. Ela caminhava devagar, com um porte soberbo. Vinha descalça. Todos os olhares no navio estavam pregados nela.

Chegou ao convés da proa e parou.

Lebánnen fez-lhe uma reverência.

— A tua presença honra-nos, princesa.

De costas muito direitas, ela inclinou-se e disse:

— Obrigada.

— Não te sentiste enjoada ontem à noite, espero?

Ela pôs a mão no talismã que trazia pendurado de um fio ao pescoço, um pequeno osso atado com algo negro, e mostrou-lho.

— Kerez akath akatharwa erevi — disse. Ele sabia que a palavra akath significava «mágico» ou «magia».

Havia olhos por todo o lado, olhos em escotilhas, olhos lá em cima no cordame, olhos que eram como augúrios, como verrumas.

— Vem para a frente, por favor. Talvez avistemos a Ilha de Roke em breve — disse ele, embora não houvesse qualquer hipótese, mesmo remota, de avistar Roke até de madrugada. Com a mão sob o cotovelo da princesa, embora sem lhe tocar, conduziu-a pelo declive acentuado do convés até à parte dianteira, onde, entre um cabrestante, o ângulo do gurupés e a amurada da proa existia um pequeno espaço triangular no convés, onde, depois de um marinheiro se ter afastado à pressa com o cabo que estava a consertar, puderam ficar a sós. Encontravam-se ainda à vista do resto do navio, como antes, mas podiam voltar-lhe as costas: tanta privacidade quanta a que um rei pode esperar.

Depois de chegarem a este minúsculo porto de abrigo, a princesa voltou-se para ele e afastou o véu do rosto. Ele tencionara perguntar-lhe o que podia fazer por ela, mas a pergunta parecia agora simultaneamente inadequada e irrelevante. Manteve o silêncio.

Ela disse:

— Senhor Rei. Em Hur-at-Hur, sou feyagat. Em Ilha de Roke eu ir ser filha de rei de Kargad. Para ser isto, não ser feyagat. Ser cara destapada. Se agradar a tu.

Após um momento, ele concordou:

— Sim. Sim, princesa. Isso é... isso é correto.

— Agradar a tu?

— Muito. Sim. Agradeço-te princesa.

— Barrezú — disse ela, numa aceitação principesca do seu agradecimento. A sua dignidade intimidava-o. O rosto dela estava afogueado quando tirara o véu; não havia nele agora qualquer cor. Mas manteve-se muito direita e imóvel e reuniu forças para falar de novo.

— Ainda — disse. — Também. Minha amiga Tenar.

— A nossa amiga Tenar — emendou ele com um sorriso.

— Nossa amiga Tenar. Ela diz eu ter falar ao Rei Lebánnen do Vedurnan.

Ele repetiu a palavra.

— Há muito, muito tempo... gente kargad, gente magia, gente dragão, ah? Sim? Toda gente um, todos falar um... um... Oh! Wuluah mekrevt!

— Uma língua?

— Ah! Sim! Uma língua — disse. Com o esforço de falar em hárdico para lhe dizer o que queria, perdera a timidez; brilhavam-lhe o rosto e os olhos. — Mas depois, gente dragão dizer: «Larga, larga todas as coisas. Voar!» Mas nós gente, nós dizer: «Não, guarda. Guarda todas as coisas. Ficar!» Por isso, afastar um do outro, ah? Gente dragão e nós gente? Então, eles fazer o Vedurnan. Estes para largar... estes para guardar. Sim? Mas para guardar todas as coisas, preciso largar aquela língua. A língua da gente dragão.

— A Antiga Fala?

— Sim! Então nós gente, nós largar língua Antiga Fala e guardar todas as coisas. E gente dragão largar todas as coisas, mas guardar aquela, guardar aquela língua. Ah? Seyneha? Isto é o Vedurnan — gesticulava eloqüentemente com as suas belas mãos, grandes e alongadas, e olhava para ele com a esperança visível de que a compreendesse. — Vamos leste, leste, leste. Gente dragão vai oeste, oeste, oeste. Nós ficar, eles voar. Alguns dragões vir leste com nós, mas não guardar língua, esquecer e esquecer como voar. Como gente karg. Gente karg fala língua karg, não língua de dragão. Todos guardar o Vedurnan, leste, oeste. Seyneha? Mas em...

Como lhe faltavam as palavras, aproximou as mãos, do «leste» e do «oeste», e Lebánnen disse:

— No meio?

— Ah, sim! No meio! — riu, com o prazer de encontrar a palavra. — No meio... vós! Gente magia! Ah? Vós, gente no meio, falar língua hárdico mas também guardar falar língua Antiga Fala. Vós aprender ela. Como eu aprender hárdico, ah? Aprender a falar. Depois, depois... isto ser o mau. O coisa mau. Depois, vós dizer, naquela língua magia, naquela língua Antiga Fala, dizer: Nós não morrer nunca. E ser assim. E o Vedurnan quebrar.

Os seus olhos eram como fogo azul.

Após um momento, perguntou:

— Seyneha?

— Não sei se compreendi bem.

— Vós guardar vida. Guardar. Muito tempo. Vós nunca largar. Mas morrer... — disse, e abriu as mãos num gesto largo, como se estivesse a deitar alguma coisa fora, para o ar, por sobre a água.

Lebánnen acenou com a cabeça em sinal de incompreensão.

— Ah — disse ela. Pensou por um minuto, mas não conseguia encontrar as palavras certas. Derrotada fez um gesto com as mãos para baixo, numa pantomima graciosa de quem se dá por vencida. — Eu ter aprender mais palavras — disse.

— Princesa, o Mestre das Configurações de Roke, o Mestre do Bosque... — Lebánnen fez uma pausa, observando-a para ver se ela o compreendia, e depois retomou: — Na Ilha de Roke há um homem, um grande mago, que é karguiano. Podes dizer-lhe o que me disseste, mas na tua língua.

Ela escutou-o com atenção e acenou com a cabeça.

— O amigo de Írian. Eu no meu coração falar com este homem — disse.

O seu rosto ganhara animação com a idéia, o que comoveu Lebánnen. E ele disse-lhe:

— Lamento que te sintas sozinha aqui, princesa.

Ela olhou para ele com uma expressão viva e luminosa, mas não respondeu.

— Espero que, à medida que o tempo for passando... ao aprenderes a língua...

— Eu aprender depressa — disse ela.

Ele não sabia se era uma afirmação ou um prognóstico.

Olharam-se de frente.

Ela voltou a tomar o seu porte digno e falou formalmente, como no início.

— Eu agradecer tu ouvir, Senhor Rei.

Baixou a cabeça, tapou os olhos em sinal formal de respeito e fez nova reverência profunda, pronunciando umas palavras em karguiano.

— Por favor — disse ele —, diz-me o que disseste.

Ela fez uma pausa, hesitou, refletiu e respondeu:

— Teus... teus, ah... reis pequenos?... Filhos! Filhos, teus filhos, deixar eles ser dragões e reis de dragões. Ah? — sorriu radiante, deixou o véu tombar-lhe sobre o rosto, recuou quatro passos, voltou-se e afastou-se, percorrendo o navio de uma ponta à outra com passos ágeis e seguros. Lebánnen ficou parado como se os raios da noite anterior tivessem por fim caído sobre ele.

 

                                     REUNIÃO

A última noite da viagem por mar estava calma, quente, sem estrelas. O Golfinho avançava com facilidade e rapidez sobre o mar sereno em direção ao Sul. Era fácil dormir e as pessoas dormiram e, dormindo, sonharam.

O Amieiro sonhou que um pequeno animal vinha tocar-lhe a mão no escuro. Não conseguia ver o que era e, quando estendeu a mão para o animal, ele tinha desaparecido. Depois, mais uma vez, sentiu o pequeno focinho aveludado a tocar-lhe a mão. Meio desperto, o sonho fugiu-lhe, mas a dor aguda da perda ficou-lhe no coração.

No beliche inferior, Seppel sonhava que estava na sua casa de Ferao, em Paln, a ler um livro do velho saber do Tempo das Trevas, contente com o seu trabalho; mas foi interrompido. Alguém queria vê-lo. — Só demorará um minuto — disse de si para consigo, e foi falar com quem o visitava. Era uma mulher. Tinha o cabelo escuro, com um brilho avermelhado, e um rosto belo e com uma expressão perturbada. «Tens de mandá-lo para junto de mim» disse ela. «Vais mandá-lo para junto de mim, não vais?» Ele pensou: «Não sei a quem ela se refere, mas tenho de fazer de conta que sei» e disse: «Não vai ser fácil, sabes?» Nesse momento, a mulher recolheu a mão e ele viu que ela segurava uma pedra, uma pedra pesada. Assustado, julgou que ela tencionasse atira-la ou dá-la com ela na cabeça, e, ao afastar-se dela, acordou na escuridão do camarote. Deixou-se ficar deitado a escutar a respiração dos outros que dormiam e o murmúrio do mar contra o costado do navio.

No seu beliche, do outro lado do pequeno camarote, Ônix estava deitado de costas a fitar o escuro; julgava que os seus olhos estavam abertos, julgava que estava acordado, mas julgava também que lhe tinham sido amarrados muitos cordões pequenos e finos à volta dos braços e das pernas e das mãos e da cabeça, e que todos esses cordões se estendiam para a escuridão, sobre a terra e o mar, sobre a curvatura do mundo: e os cordões estavam a puxá-lo, de forma que tanto ele como o navio em que se encontrava e todos os seus passageiros estavam a ser puxados suave, suavemente, para o lugar onde o mar secava, onde o navio encalharia silenciosamente em areias invisíveis. Mas não conseguia falar ou fazer fosse o que fosse, porque os cordões lhe cerravam os maxilares, as pálpebras.

Lebánnen descera ao camarote para dormir um pedaço, porque queria sentir-se fresco ao amanhecer, altura em que talvez chegassem à Ilha de Roke. Dormiu profundamente e os seus sonhos foram breves e variados: um monte verde acima do mar — uma mulher que sorria e, erguendo a mão, lhe mostrava que conseguia fazer com que o Sol nascesse — um requerente na sua corte em Havnor por quem ficou a saber, para seu horror e vergonha, que metade do povo do seu reino estava a morrer à fome em quartos trancados nas caves das casas — uma criança que lhe gritava: «Vem até mim!» mas sem que conseguisse encontrar a criança. Enquanto dormia, apertava com força na mão direita a pedra no saquinho de amuletos que trazia ao peito.

No camarote do convés acima destes sonhadores, as mulheres sonhavam. Seserakh subia as montanhas, as belas montanhas desertas da sua terra, que lhe eram tão queridas. Mas ia pelo caminho proibido, o caminho dos dragões. Pés humanos não deviam andar por aquele caminho, não deviam sequer pisá-lo. A poeira que o cobria era lisa e quente sob os seus pés descalços e, embora soubesse que não devia caminhar sobre ela, continuou a andar, até olhar para cima e ver que as montanhas não eram as que conhecia, mas sim precipícios negros e escarpados a que ela nunca conseguiria trepar. Mas tinha de os subir.

Cheia de alegria, Írian voava no vento da tempestade, mas ela desfechava raios em arco sobre as suas asas, empurrando-a para baixo, cada vez mais para baixo em direção às nuvens e, ao aproximar-se cada vez mais, viu que não eram nuvens mas antes penedos negros, uma cordilheira de montanhas negras e escarpadas. Tinha as asas atadas ao corpo por cordões de relâmpagos, e caiu.

Tehanu rastejava por um túnel muito abaixo da superfície. Não havia ar suficiente para respirar e o túnel ia-se estreitando à medida que ela avançava. Não podia voltar para trás. Mas as raízes brilhantes das árvores, a despontarem da terra no túnel, davam-lhe por vezes algo a que se agarrar e podia assim avançar pela escuridão.

Tenar subia os degraus do Trono dos Sem-Nome no Lugar Sagrado de Atuan. Era muito pequena e os degraus eram muito altos, e por isso custava-lhe muito subi-los. Mas quando chegou ao quarto degrau não parou nem olhou em volta, como a sacerdotisa lhe dissera que tinha de fazer. Prosseguiu. Subiu o degrau seguinte, e o seguinte, e o seguinte, numa poeira tão espessa que os degraus eram invisíveis e ela tinha de experimentar com o pé os níveis que nenhum outro pé jamais pisara. Subia à pressa, porque, detrás do trono vazio, Gued deixara ou perdera alguma coisa, algo de grande importância para muitas pessoas, e ela tinha de a encontrar. Mas não sabia o que era. «Uma pedra, uma pedra» dizia a si própria. Por detrás do trono, quando por fim o alcançou a rastejar, só havia poeira, porcaria de mocho e poeira.

Na alcova da casa do Velho Mago no Overfell de Gont, Gued sonhava que era Arquimago. Estava a conversar com o seu amigo Thórione, enquanto percorriam o corredor dos runas em direção à sala de reuniões dos Mestres da Escola. «Eu não tive qualquer poder» disse a Thórione, muito sério, «durante anos e anos». O Invocador sorriu e disse: «Isso não passou de um sonho, sabes?» Mas Gued sentia-se perturbado pelas longas asas negras que se arrastavam atrás de si pelo corredor; encolheu os ombros, tentando levantar as asas, mas elas arrastavam-se pelo chão como sacos vazios. «Tens asas?» perguntou a Thórione, que respondeu: «Oh, sim» de modo complacente, mostrando-lhe as suas, atadas firmemente às costas e às pernas com muitos cordões pequenos e fios. «Estou bem preso» disse.

Por entre as árvores do Bosque Imanente na Ilha de Roke, Azver, o Configurador, dormia, como era freqüente no Verão, numa clareira perto do limite leste do bosque, onde podia olhar para cima e ver as estrelas por entre as folhas. Aí o seu sonho era leve, transparente, a sua mente deslocava-se entre pensamento e sonho e sonho e pensamento guiada pelos movimentos das estrelas e das folhas ao trocarem de lugar na sua dança. Mas naquela noite não havia estrelas e as folhas estavam paradas. Olhou para cima, para o céu sem luz, e trespassou as nuvens com o olhar. No alto céu negro havia estrelas: pequenas, brilhantes e imóveis. Não se mexiam. Ele sabia que não haveria nascer do Sol. Sentou-se então, acordado, fitando a luz tênue e suave que sempre alumiava as alas entre as árvores. O coração batia-lhe lento e forte.

Na Casa Grande, os homens jovens, adormecidos, viraram-se na cama e soltaram gritos, sonhando que tinham de ir combater contra um exército numa planície de terra batida, mas que os guerreiros com que tinham de lutar eram homens velhos, mulheres velhas, pessoas fracas e doentes, crianças a chorar.

Os Mestres de Roke sonharam que um navio sulcava os mares na sua direção, com muita carga, baixo sobre a água. Um deles sonhou que a carga do navio era de pedras negras. Um outro sonhou que o navio transportava fogo ardente. Outro ainda sonhou que a sua carga era de sonhos.

Os sete Mestres que dormiam na Casa Grande acordaram um após outro nas suas celas de pedra, fizeram um pequeno fogo-fátuo e levantaram-se. Encontraram o Porteiro já a pé e à porta.

— O Rei vai chegar — disse ele com um sorriso —, ao nascer do dia.

— O Cabeço de Roke — anunciou Tosla, olhando em frente para a onda distante, vaga e imóvel, para o lado de sudoeste, acima das ondas iluminadas. Lebánnen, de pé ao seu lado, nada disse. O manto de nuvens tinha-se apartado e o céu arqueava a sua abóbada pura e incolor sobre o grande círculo das águas.

O mestre de bordo veio juntar-se-lhes.

— Um belo amanhecer — disse, um murmúrio no silêncio.

O Leste iluminou-se aos poucos em tons de amarelo. Lebánnen lançou um olhar à popa. Duas das mulheres estavam de pé na amurada, junto ao seu camarote; mulheres altas, descalças, silenciosas, a olharem na direção do Leste.

O cume do monte verde e redondo recebeu os primeiros raios do Sol. Já era dia claro quando passaram entre os promontórios da Baía de Thwill. Todas as pessoas a bordo estavam no convés, a assistir à chegada. Mas continuavam a falar pouco e em voz baixa.

O vento amainou no porto. Estava tão parado que a água refletia a cidadezinha que se erguia acima da baía e as paredes da Casa Grande, que se erguia acima da cidade. O navio deslizava mais lentamente, ainda mais lentamente.

Lebánnen lançou um olhar ao mestre de bordo e a Ônix. O mestre acenou com a cabeça. O feiticeiro ergueu as mãos e abriu os braços lentamente, tecendo um encantamento, e murmurou uma palavra.

O navio continuou a deslizar suavemente, sem diminuir a velocidade, até chegar ao lado da doca mais comprida. Nesse momento, o mestre falou e a grande vela foi recolhida enquanto os marinheiros a bordo atiravam as cordas a homens da doca, gritando, e o silêncio quebrou-se.

Havia gente no cais para lhes dar as boas-vindas, habitantes da cidade que iam formando uma multidão, e um grupo de jovens da Escola, entre eles um homem grande, de peito largo e pele morena, que trazia um pesado bordão, da sua altura.

— Bem-vindo a Roke, Rei das Terras do Ocidente — saudou, avançando depois de a prancha de desembarque ser lançada e firmada.

— E as boas-vindas a toda a tua companhia.

Os jovens que estavam com ele e todas as pessoas da cidade gritaram uma saudação ao Rei e Lebánnen respondeu-lhes alegremente, enquanto descia a prancha. Cumprimentou o Mestre da Invocação e conversaram um pouco.

Quem estivesse a observá-los veria que, apesar das suas palavras de boas-vindas, o olhar sério do Mestre da Invocação se desviava repetidamente para o navio, para as mulheres que estavam junto à amurada, e que as suas respostas não satisfaziam o Rei.

Quando Lebánnen se afastou dele e voltou a subir ao navio, Írian veio ao seu encontro.

— Rei meu Senhor — disse ela —, podes dizer aos mestres que eu não quero entrar na casa deles... desta vez. Não entraria nela mesmo que me pedissem.

O rosto de Lebánnen revelava uma viva determinação.

— É o Mestre das Configurações que te pede que vás até ele, ao Bosque — anunciou.

Ao ouvir estas palavras, Írian riu, radiante.

— Eu já sabia que ele o pediria — disse. — E Tehanu virá comigo.

— E a minha mãe — murmurou Tehanu.

Lebánnen olhou para Tenar; ela acenou com a cabeça.

— Assim seja — concordou ele. — E os outros ficarão alojados na Casa Grande, a não ser que alguém prefira um outro lugar.

— Com a tua permissão, senhor meu — disse Seppel —, também eu solicitarei a hospitalidade do Mestre das Configurações.

— Seppel, tal não é necessário — disse Ônix bruscamente. — Vem comigo para a minha casa.

O feiticeiro de Paln fez um pequeno gesto aplacador.

— Não é crítica aos teus amigos, meu amigo — disse. — Mas eu tenho ansiado toda a minha vida por caminhar no Bosque Imanente. E sentir-me-ia mais à vontade lá.

— Talvez as portas da Casa Grande me estejam vedadas, como antes — alvitrou o Amieiro, hesitante; e agora o rosto pálido de Ônix estava rubro de vergonha.

A cabeça da princesa, envolta em véus, voltara-se de rosto para rosto enquanto ela escutava com atenção, tentando compreender o que estava a ser dito. Então, falou:

— Por favor, Senhor Rei, eu ficar com minha amiga Tenar? Minha amiga Tehanu? E Írian? E falar com o karguiano?

Lebánnen olhou para todos, lançou um olhar ao Mestre da Invocação, uma figura maciça ao fundo da prancha de desembarque, e riu. Falou da amurada, na sua voz clara e afável.

— Esta minha gente veio encerrada nos camarotes do navio, Invocador, e parece que anseia por pisar a erva e ter um teto de folhas por cima da cabeça. Se todos suplicarmos ao Mestre das Configurações que nos receba, e ele concordar, perdoarás a aparente desfeita em recusar a hospitalidade da Casa Grande pelo menos por algum tempo?

Após uma pausa, o Invocador fez uma reverência rígida.

Um homem baixo e corpulento viera pôr-se ao seu lado na doca e olhava para cima, sorrindo a Lebánnen. Ergueu o seu bordão de madeira prateada.

— Senhor meu — disse —, levei-te a visitar a Casa Grande há muito tempo e contei-te mentiras sobre tudo que lá havia.

— Risco! — disse Lebánnen. Encontraram-se a meio caminho na prancha, abraçaram-se e, conversando, desceram para a doca.

Ônix foi o primeiro a segui-los; saudou o Invocador com gravidade e cerimônia e depois voltou-se para o homem chamado Risco.

— És Mestre Chave-do-Vento, agora? — perguntou, e, quando Risco disse que sim, abraçou-o também, dizendo: — Um mestre bem feito! — e, afastando-se um pouco com ele, falou-lhe com animação e um ar preocupado.

Lebánnen olhou para o navio, a dar sinal aos outros para desembarcarem, e, à medida que iam descendo um a um, ia-os apresentando aos dois Mestres de Roke, Brand, o Invocador, e Risco, o Chave-do-Vento.

Na maior parte das ilhas do Arquipélago, as pessoas não tocavam as palmas das mãos para se cumprimentarem, como era o costume de Enlad, mas apenas inclinavam a cabeça ou punham as mãos espalmadas no coração, em sinal de oferta. Quando Írian e o Invocador foram apresentados, não inclinaram a cabeça nem fizeram qualquer gesto. Ficaram rígidos, com as mãos ao lado do corpo.

A princesa fez a sua reverência profunda, de costas direitas.

Tenar fez o gesto convencional e o Invocador correspondeu-lhe de igual modo.

— A Mulher de Gont, a filha do Arquimago, Tehanu — apresentou Lebánnen.

Tehanu inclinou a cabeça e fez o gesto convencional. Mas o Mestre da Invocação fitou-a, susteve a respiração e recuou um passo como se tivesse sido atacado.

— Senhora Tehanu — disse Risco rapidamente, pondo-se entre ela e o Invocador —, damos-te as boas-vindas a Roke, por teu pai e por tua mãe, e por ti. Espero que a viagem tenha sido agradável.

Ela olhou para ele, perturbada, e baixou a cabeça, escondendo o rosto. Mas conseguiu murmurar uma espécie de resposta.

Com o rosto transformado numa máscara de bronze de calma imperturbada, Lebánnen disse:

— Sim, foi uma boa viagem, Risco, embora o seu fim esteja ainda em dúvida. Vamos então a pé pela cidade, Tenar, Tehanu, Princesa, Orm Írian? — Olhou à vez para cada uma delas enquanto falava, dizendo o último nome com especial clareza.

Começou a andar acompanhado por Tenar e os outros seguiram-no. Ao descer a prancha, Seserakh afastou resolutamente os véus vermelhos do rosto.

Risco ia ao lado de Ônix, o Amieiro acompanhava Seppel. Tosla ficou no navio. O último a abandonar o cais foi Brand, o Invocador, caminhando sozinho e com passos pesados.

Tenar interrogara já Gued sobre o Bosque por mais do que uma vez, porque gostava de o ouvir descrevê-lo.

— Parece-se com qualquer outro bosque com árvores, quando se vê ao princípio. Não é muito grande. E delimitado por campos a norte e a leste, e há montes a sul e, usualmente, também a oeste... Não parece grande coisa. Mas atrai a vista. E, por vezes, do Cabeço de Roke, vê-se que é uma floresta muito, muito grande. Uma pessoa tenta ver onde termina, mas não consegue. Estende-se para oeste... E, quando se passeia nele, parece mais uma vez vulgar, embora as árvores sejam de um tipo que quase só existe ali. Altas, com troncos castanhos, parecidas com carvalhos, com castanheiros.

— Como se chamam?

Gued riu.

— Arhad na Antiga Fala. Árvores... As árvores do Bosque, em hárdico... As suas folhas não amarelam todas no Outono, algumas mudam de cor em cada estação, por isso a folhagem está sempre verde, com uma luminosidade dourada. Mas num dia escuro aquelas árvores parecem reter alguma luz do sol. E à noite nunca fica completamente escuro debaixo das suas copas. Há uma espécie de reflexo nas folhas, como que do luar ou da luz das estrelas. Crescem lá salgueiros e carvalhos e abetos, outras espécies ainda; mas, quando se avança para o seu interior, cada vez mais se vêem somente as árvores do Bosque. E as raízes dessas árvores são mais fundas do que a ilha. Algumas são árvores gigantescas, outras delgadas, mas não se vêem muitas tombadas por terra, nem ainda pequenas. Vivem muito, muito tempo — contou, numa voz que se tornara baixa e sonhadora. — Podemos andar, andar à sua sombra, à sua luz, e nunca chegar ao fim.

— Mas Roke é uma ilha assim tão grande?

Ele olhou para ela com uma expressão calma e um sorriso.

— As florestas aqui na Montanha de Gont são essa floresta — disse. — Todas as florestas o são.

E agora Tenar via o Bosque. Atrás de Lebánnen, tinham subido as ruas tortuosas da Cidade de Thwill, atraindo um rebanho de gente da cidade e crianças que tinham saído a ver e saudar o Rei. Esse séquito animado foi-se dispersando a pouco e pouco, à medida que os viajantes iam deixando a cidade para trás e enveredavam por um caminho entre sebes e quintas, que se transformava numa vereda para lá do monte alto e redondo, o Cabeço de Roke.

Gued também lhe falara do Cabeço. Aí, tinha dito, toda a magia tem força; aí, todas as coisas assumem a sua verdadeira natureza.

— Aí — afirmou —, a nossa magia e os Antigos Poderes da Terra encontram-se, e são um.

Soprava o vento na erva alta e meio seca do monte. Um burro pequeno atravessava um campo ceifado a galopar, de pernas hirtas e cauda a abanar. O gado caminhava numa procissão lenta ao longo de uma vedação que atravessava um pequeno ribeiro. E havia árvores mais à frente, árvores escuras, ensombradas.

Seguiram Lebánnen por um desnível e atravessaram uma ponte pequena até chegarem a um prado iluminado pela luz do sol junto à entrada do bosque. Perto do ribeiro, havia uma casa pequena e quase em ruínas. Írian afastou-se do grupo, correu pela erva até à casa e deu palmadinhas na porta como quem acaricia um cavalo ou cão favorito após uma longa ausência.

— Querida casa! — murmurou ela. E, voltando-se para os outros com um sorriso: — Eu vivi aqui — revelou —, quando era Mosca-dragão, como por estes lados se chama às libélulas!

Olhou à sua volta, procurando a orla do bosque, e depois avançou, correndo mais uma vez.

— Azver! — chamou.

Um homem saíra da sombra das árvores para a claridade do Sol. O seu cabelo brilhava como prata. Ficou imóvel a ver Írian correr para ele. Ergueu as mãos e ela tomou-as entre as suas.

— Não te queimo, não te queimo desta vez — dizia ela, rindo e chorando, embora sem lágrimas. — Tenho o fogo apagado!

Aproximaram-se um do outro e ficaram frente a frente. Azver saudou-a:

— Filha de Keilessine, sê bem-vinda ao lar.

— A minha irmã está comigo, Azver — disse ela.

Ele voltou o rosto, um rosto de pele clara e traços duros, um rosto karguiano, viu Tenar e olhou imediatamente para Tehanu. Aproximou-se dela. Ajoelhou-se perante ela. — Hama Gondun! — disse, e, mais uma vez: — Filha de Keilessine.

Tehanu ficou imóvel por um instante. Lentamente, estendeu-lhe a mão — a mão direita, a mão queimada, a garra. Ele pegou nela, inclinou a cabeça e beijou-a.

— Honra-me ter sido o teu profeta, Mulher de Gont — declarou, com uma espécie de ternura exultante.

Em seguida, erguendo-se, voltou-se por fim para Lebánnen, fez-lhe uma vênia e disse:

— Meu Rei, seja bem-vindo.

— É com grande júbilo que volto a ver-te, Configurador! Mas trago muita companhia para a tua solidão.

— A minha solidão já está acompanhada — contrapôs o Configurador. — Algumas almas vivas talvez mantenham o equilíbrio.

Os seus olhos, de um pálido cinza azul-esverdeado, varreram os presentes. Sorriu de súbito, um sorriso caloroso, surpreendente no seu rosto duro.

— Mas aqui estão as mulheres do meu povo — exclamou em karguiano e aproximou-se de Tenar e Seserakh, que estavam lado a lado.

— Eu sou Tenar de Atuan. De Gont — disse ela. — Comigo está a Alta Princesa das Terras de Kargad.

O Configurador curvou-se. Seserakh fez a sua reverência rígida, mas as palavras saíram-lhe num tropel, em karguiano.

— Oh, Senhor Sacerdote, muito me alegra que aqui estejas! Se não fosse a minha amiga Tenar, eu teria enlouquecido, julgando que já não havia ninguém no mundo que soubesse falar como um ser humano a não ser as idiotas que mandaram vir comigo de Áuabath. Mas eu estou a aprender a falar como eles; e estou a aprender a ser corajosa, a Tenar é a minha amiga e a minha mestra. Mas na noite passada quebrei um tabu! Quebrei um tabu! Oh, Senhor Sacerdote, por favor diz-me o que devo fazer para o expiar! Eu andei pelo Caminho dos Dragões!

— Mas estavas a bordo do navio, princesa —, lembrou Tenar (— Sonhei — disse Seserakh, impaciente) — e o Mestre das Configurações não é um sacerdote mas um... um mágico.

— Princesa — disse Azver, o Configurador —, penso que andamos todos no Caminho dos Dragões. E é bem possível que todos os tabus estejam quebrados ou abalados. Não só em sonhos. Falaremos desse assunto mais logo, à sombra das árvores. Não tenhas receio. Mas permites-me agora que saúde os meus amigos?

Seserakh acenou com a cabeça e ele voltou-se para cumprimentar o Amieiro e Ônix.

A princesa pôs-se a observá-lo.

— Ele é um guerreiro — disse a Tenar em karguiano, com satisfação. — Não é um sacerdote. Os sacerdotes não têm amigos.

Começaram todos a andar lentamente até chegarem a um local à sombra das árvores.

Tenar olhou para cima, para as arcadas e ogivas de ramos, as camadas e galerias de folhas. Viu carvalhos e uma grande árvore-sebe, mas na maior parte eram árvores do Bosque. As suas folhas ovais moviam-se facilmente no ar, como as da faia e do choupo; algumas tinham amarelecido e havia um matizado dourado e castanho no chão junto às suas raízes, mas, à luz matinal, a folhagem era do verde do Verão, cheia de sombras e luz forte.

O Configurador conduziu-os por um caminho por entre as árvores. Enquanto caminhavam, Tenar pensou novamente em Gued, recordando a sua voz quando lhe falava sobre aquele lugar. Sentia-se mais próxima dele do que quando, com Tehanu, o tinha deixado ficar à entrada de casa no princípio do Verão e descera até ao Porto de Gont para embarcar no navio do Rei com destino a Havnor. Sabia que Gued vivera ali com o Configurador de há muito tempo, e ali passeara com Azver. Sabia que o Bosque era para ele o lugar central e sagrado, o coração da paz. Sentia que poderia olhar para cima e vê-lo ao fundo de uma das longas clareiras matizadas pelo sol. E essa idéia aliviava-lhe o coração.

Porque o sonho que tivera na noite passada perturbara-a e, quando Seserakh confessara o seu sonho de quebrar o tabu, Tenar tinha ficado profundamente sobressaltada. Também ela tinha quebrado um tabu no seu sonho, cometera uma transgressão. Subira os três últimos degraus do Trono Vazio, os degraus proibidos. O Lugar dos Túmulos em Atuan estava a grande distância no tempo e no espaço, e talvez o terremoto não tivesse deixado trono nem degraus no templo onde o seu nome lhe fora tirado: mas os Antigos Poderes da Terra estavam num e noutro lado. Não se tinham alterado nem mudado de lugar. Eram o terremoto, e a terra. A sua justiça não era a justiça humana. Ao passar ao lado do monte redondo, do Cabeço de Roke, sabia que caminhava por onde todos os poderes se encontravam.

Desafiara-os, há muito tempo, libertando-se dos Túmulos, roubando o tesouro, fugindo para ali, para o Oeste. Mas eles estavam ali também. Sob os seus pés. Nas raízes daquelas árvores, nas raízes do monte.

Então, ali no centro, onde os poderes da terra se encontravam, também os poderes humanos se tinham encontrado: um rei, uma princesa, os mestres de feitiçaria. E os dragões.

E uma sacerdotisa-ladra, que se transformara em lavradeira, e um bruxo de aldeia com o coração destroçado...

Tenar olhou para o Amieiro. Caminhava ao lado de Tehanu. Falavam em voz baixa. Tehanu falava mais prontamente com ele do que com qualquer outra pessoa, até mesmo Írian, e parecia sentir-se à vontade quando estava com ele. Tenar sentiu-se animada ao vê-los, e continuou a andar à sombra das grandes árvores, deixando-se deslizar para um estado de transe semiconsciente, induzido pela luz verde e o movimento das folhas. Teve pena quando, pouco depois, o Configurador parou. Sentia que poderia continuar a caminhar para sempre no Bosque.

Reuniram-se todos numa clareira relvada, aberta ao céu no centro, onde os ramos das árvores não se encontravam. Um afluente do Thwill atravessava um dos lados da clareira, com salgueiros e amieiros ao longo do seu curso. Perto do ribeiro havia uma casa baixa e atarracada, de pedra e barro, com um alpendre mais alto contra uma das paredes, construído com vime e placas de canas entrançadas.

— O meu palácio de Inverno, o meu palácio de Verão — declarou Azver.

Tanto Ônix como Lebánnen olharam para aquelas pequenas edificações com surpresa, e Írian disse:

— Não sabia que tinhas uma casa!

— Não tinha — esclareceu o Configurador —, mas os ossos começam a ficar velhos.

Depois de serem trazidas algumas coisas do navio, a casa não tardou a ficar pronta para receber as senhoras, e o alpendre foi destinado aos homens. Corriam moços de e para a orla do Bosque com provisões em abundância, vindas das cozinhas da Casa Grande. E ao fim da tarde os Mestres de Roke vieram visitar o grupo do Rei, a convite do Configurador.

— Ê aqui que se reúnem para escolher o novo Arquimago? — perguntou Tenar a Ônix, pois Gued falara-lhe daquela clareira secreta.

Ônix abanou a cabeça.

— Penso que não — retorquiu. — O Rei sabê-lo-ia, porque se encontrava presente quando se reuniram da última vez. Mas talvez somente o Configurador te possa dizer. Porque as coisas mudam neste bosque, sabes? «Nem sempre está onde está.» Nem os caminhos que o atravessam são sempre exatamente os mesmos, penso eu.

— Deveria ser assustador — comentou ela —, mas não consigo sentir medo.

Ônix sorriu.

— Assim é, aqui — disse.

Ela assistiu à chegada dos mestres à clareira, encabeçados pelo Invocador, grande como um urso, e por Risco, o jovem mestre do tempo. Ônix disse-lhe quem eram os outros. O Mestre da Mudança, o Chantre, o Mestre das Ervas, o Mestre de Mão: todos grisalhos, o Mestre da Mudança alquebrado pela idade, apoiando-se ao bordão de feiticeiro como a uma bengala. O Porteiro, de rosto liso e olhos em amêndoa, não parecia nem jovem nem velho. O Nomeador, que veio por último, aparentava ter cerca de quarenta anos. O seu rosto tinha uma expressão plácida e fechada. Apresentou-se ao Rei, dizendo chamar-se Kurremkarmerruk.

Ao ouvir isto, Írian bradou, indignada:

— Mas tu não és Kurremkarmerruk!

Ele olhou-a e sem se alterar, replicou:

— É o nome do Nomeador.

— Então o meu Nomeador está morto?

Ele acenou que sim.

— Ah! — gritou ela. — É uma terrível notícia, difícil de suportar! Ele era meu amigo, quando eu tinha poucos amigos aqui! — disse e voltou as costas ao Nomeador, recusando-se a olhar para ele, irada e sem lágrimas na sua dor. Saudara o Mestre das Ervas afetuosamente, e o Porteiro, mas não dirigiu a palavra aos outros.

Tehanu viu que eles olhavam para Írian disfarçadamente, com um ar pouco à vontade.

Dela, olharam para Tehanu; e desviaram a vista; e voltaram a olhá-las, de soslaio. E Tenar começou a perguntar-se o que veriam quando olhavam para Tehanu e Írian. Porque aqueles eram homens que viam com olhos de feiticeiro.

Por isso, obrigou-se a perdoar ao Invocador pela sua reação rude e óbvia de horror. Talvez tivesse sido um respeito atemorizado.

Depois de serem todos apresentados e se terem sentado em círculo, em almofadas e cepos de árvores para os que deles precisavam, com a erva como tapete e o céu e as folhas como teto, o Configurador disse na sua voz em que havia ainda traços da pronúncia karguiana:

— Se vos aprouver, meus colegas mestres, escutaremos o Rei.

Lebánnen pôs-se de pé. Enquanto ele falava, Tenar olhava-o com um orgulho irreprimível. Era tão formoso, tão sábio, apesar de jovem! Não seguiu tudo o que ele dizia ao princípio, somente o sentido e a paixão das suas palavras.

O Rei contou aos mestres, de forma concisa e clara, toda a questão que o trouxera a Roke: os dragões e os sonhos.

A terminar, disse:

— Parece-nos que, de noite para noite, todas estas coisas confluem, cada vez mais certamente, para algum acontecimento, algum fim. Pareceu-me que aqui, neste chão, com o auxílio do vosso conhecimento e poder, seria possível prever e enfrentar esse acontecimento, não permitindo que assoberbe o nosso entendimento. Os mais sábios de entre os nossos magos fizeram esta previsão: está iminente uma grande mudança. Devemos juntar forças para descobrir qual é essa mudança, quais são as suas causas, o seu curso, e como se poderá desviar este do conflito e da ruína para a harmonia e a paz, sob cujo signo governo.

Brando, o Invocador, pôs-se de pé para lhe responder. Após algumas fórmulas de cortesia, com um voto de boas-vindas especial à Alta Princesa, disse:

— Que os sonhos dos homens, e mais do que os seus sonhos, nos avisam de mudanças terríveis, todos os mestres e feiticeiros de Roke concordam. Que existe uma alteração nas fronteiras firmemente estabelecidas entre a morte e a vida, violações dessas fronteiras e a ameaça de pior ainda, confirmamo-lo. Mas que essas alterações possam ser compreendidas ou controladas por quem quer que seja, à exceção dos mestres da arte mágica, duvidamos. E temos vivas dúvidas de que se possa jamais confiar que os dragões, cuja vida e morte são totalmente diferentes da vida e da morte do ser humano, venham alguma vez a pôr a sua fúria e ciúme bárbaros ao serviço do bem humano.

— Invocador — atalhou Lebánnen, sem dar tempo a Írian de falar —, Orm Embar morreu por mim em Selidor. Keilessine trouxe-me até ao meu trono. Aqui, neste círculo, estão três povos: os Karguianos, os Hárdicos e o Povo do Oeste.

— Foram todos um só povo, em tempos — lembrou o Nomeador na sua voz monótona.

— Mas não o são agora — contrapôs o Invocador, pronunciando cada palavra destacadamente. — Não me interpretes mal, porque eu digo uma verdade difícil, Senhor meu Rei! Respeito a trégua que acordaste com os dragões. Quando o perigo em que nos encontramos tiver passado, Roke auxiliará Havnor a conseguir uma paz duradoura com eles. Mas os dragões nada têm a ver com esta crise que se avizinha. Nem os povos do Leste, que desistiram da imortalidade das suas almas ao esquecerem a Língua da Criação.

— Es eyemra — disse uma voz suave, sibilante. Tehanu, de pé.

O Invocador fitou-a.

— A nossa língua — repetiu ela em hárdico, fitando-o também.

Írian riu.

— Es eyemra — disse.

— Tu não és imortal — disse Tenar ao Invocador. Não tivera intenção de falar. Não se pôs de pé. As palavras chisparam-lhe dos lábios como fogo de uma pedra golpeada. — Mas nós, sim, somos! Morremos para voltarmos ao mundo imortal. Fostes vós que perdestes a imortalidade.

Ficaram todos imóveis. O Configurador fez um pequeno gesto com as mãos, um gesto suave.

No seu rosto havia uma expressão concentrada, mas imperturbada, enquanto examinava o padrão de alguns galhos e folhas que, sem se levantar, fizera na erva mesmo em frente das suas pernas cruzadas. Ergueu a vista, olhou em volta para todos os outros.

— Penso que teremos de lá ir em breve — disse.

Após novo silêncio, Lebánnen perguntou:

— Ir para onde, Senhor meu?

— Para dentro das trevas — disse o Configurador.

Sentado, o Amieiro escutava-os, mas, a pouco e pouco, as vozes foram-se tornando mais fracas, desvanecidas, e o Sol quente do fim do Verão extinguiu-se na escuridão. Nada restava a não ser as árvores, altas presenças cegas entre a terra cega e o céu. Os filhos mais antigos da terra. Ó Segoy, disse no seu coração: criado e criador, deixa-me ir até junto de ti.

A escuridão alastrava para lá das árvores, para lá de tudo.

Contra o pano de fundo desse vazio, via o monte, o monte alto que estava à sua direita quando tinham caminhado para fora da cidade. Viu a poeira da estrada, as pedras do caminho que levava para lá desse monte.

Afastou-se então do caminho, deixando os outros, e subiu a encosta.

A erva era alta. As flores secas balançavam-se por entre a erva. Chegou a um caminho estreito e seguiu-o, subindo a encosta íngreme. Agora sou eu próprio, disse no seu coração. Segoy, o mundo é belo. Deixa-me vir através dele e até ti.

Posso fazer de novo o que estava destinado a fazer, pensou enquanto caminhava. Posso consertar o que está partido. Posso voltar a juntar. A reunir.

Chegou ao cimo do monte. De pé, ao sol e ao vento, por entre as ervas em movimento, viu à sua direita os campos, os telhados da pequena cidade e da Casa Grande, a baía cintilante e o mar para além dela. Se ele se voltasse, veria atrás de si, no Oeste, as árvores da floresta interminável, estendendo-se cada vez menos nítidas na distância azul. À sua frente, a encosta do monte era indistinta e cinzenta, descia para o muro de pedras e para a escuridão para lá do muro e para as sombras apinhadas, a chamarem-no, junto ao muro. — Hei de vir! — disse-lhes. — Hei de vir!

Sentiu um calor nos ombros e nas mãos. O vento agitou as folhas por cima da sua cabeça. Vozes falavam, falavam, mas não a chamá-lo ou a gritar por ele. Os olhos do Configurador observavam-no do outro lado do círculo de erva. Também o Invocador o observava. O Amieiro baixou os olhos, desorientado. Tentou escutar o que diziam. Concentrou-se e pôs-se a ouvir.

O Rei estava a falar, recorrendo a toda a sua perícia e poder para conseguir que aquelas mulheres e aqueles homens, feros e decididos, se concentrassem num só objetivo.

— Permitam-me que tente contar-vos, Mestres de Roke, o que fiquei a saber pela Alta Princesa na viagem por mar até aqui. Princesa, autorizas-me a falar por ti?

Sem véu, ela fitou-o do outro lado do círculo e baixou a cabeça gravemente, em sinal de permissão.

— Esta é, então, a sua história: há muito tempo, os seres humanos e os dragões eram uma espécie que falava a mesma língua. Mas buscavam coisas diversas e, por isso, concordaram em separar-se, tomando caminhos diferentes. A esse acordo chamou-se Vedurnan.

Ônix levantou a cabeça e Seppel arregalou os olhos escuros e cheios de brilho.

— Verw nadan — murmurou.

— Os seres humanos foram para leste, os dragões para oeste. Os seres humanos desistiram do conhecimento da Língua da Criação e em troca receberam toda a perícia e arte da mão e a posse de tudo o que as mãos podem fazer. Os dragões desistiram de todas essas coisas. Mas mantiveram a Antiga Fala.

— E as asas — lembrou Írian.

— E as asas — ecoou Lebánnen. Vira que Azver estava a olhar para ele. — Configurador, talvez saibas continuar a história melhor do que eu.

— Os habitantes de Gont e Hur-at-Hur recordam o que os sábios de Roke e os sacerdotes de Karego esqueceram — disse Azver. — Sim, quando eu era criança contaram-me essa lenda, penso eu, ou algo semelhante. Mas nela os dragões tinham sido esquecidos. A lenda contava como o Povo Escuro do Arquipélago quebrara o seu juramento. Todos tínhamos prometido desistir da magia e da linguagem da magia, falando apenas a nossa língua comum. Não nomearíamos nomes nem faríamos encantamentos. Confiaríamos em Segoy, nos poderes da Terra nossa mãe, e mãe dos Deuses Guerreiros. Mas os do Povo Escuro quebraram o pacto. Mantiveram a Língua da Criação na sua arte, escrevendo-a em runas. Mantiveram-na, escreveram-na, utilizaram-na. Fizeram encantamentos com ela, com a perícia das suas mãos, pronunciando com línguas falsas as palavras verdadeiras. Por isso, o povo de Kargad não pode jamais confiar neles. É o que conta a lenda.

Írian falou:

— Os homens receiam a morte e os dragões não. Os homens querem possuir a vida, apoderar-se dela, como se fosse uma jóia numa caixa. Esses magos antigos cobiçavam a vida eterna. Aprenderam a usar nomes verdadeiros para evitar que os homens morressem. Mas quem não pode morrer jamais poderá renascer.

— O nome e o dragão são um — disse Kurremkarmerruk, o Nomeador. — Nós homens perdemos os nossos nomes no verw nadan, mas aprendemos a recuperá-los. O nome é o ser. Porque haveria a morte de alterar isso?

Olhou para o Invocador, mas Brand continuava sentado a escutar, com um ar sério e sombrio, e não falou.

— Diz-nos algo mais sobre esse assunto, Nomeador, se não te importas — pediu o Rei.

— Eu digo o que aprendi e deduzi, não pelas lendas de aldeia, mas através dos registros mais antigos na Torre Isolada. Mil anos antes da época dos primeiros reis de Enlad, havia homens em Éa e Soléa, os primeiros e maiores magos, os Criadores de Runas. Foram eles que aprenderam a escrever a Língua da Criação. Fizeram as runas, que os dragões nunca chegaram a aprender. Ensinaram-nos a dar a cada alma o seu verdadeiro nome: que é a sua verdade, o seu ser. E com o seu poder concederam aos que são portadores do verdadeiro nome a vida para além da morte do corpo.

— Vida imortal — Seppel tomou a palavra com a sua voz suave. Sorria um pouco ao falar. — Numa grande terra de rios e montanhas e belas cidades, onde não existe sofrimento nem dor e o ser se mantém sem mudanças, imutável, para sempre... Esse é o sonho do antigo Saber de Paln.

— Onde — perguntou o Invocador —, onde fica essa terra?

— Num vento diferente — respondeu Írian. — No Oeste para além do Oeste — olhou à sua volta para todos eles, com desprezo e ira. — Julgais que os dragões voam somente nos ventos deste mundo? Julgais que a nossa liberdade, pela qual desistimos de todos os nossos bens, não é maior do que a das gaivotas, que não pensam? Que o nosso reino consiste em alguns penedos na orla das vossas abastadas ilhas? Vós possuis a terra, vós possuis o mar. Mas nós somos o fogo da luz do sol, nós voamos no vento! Vós queríeis possuir terra. Queríeis coisas para fazer e guardar. E assim é. Foi essa a divisão, o verw nadan. Mas não ficastes contentes com o vosso quinhão. Não só queríeis as vossas preocupações como a nossa liberdade. Queríeis o vento! E, com os encantamentos e feitiços daqueles perjuros, roubastes-nos metade do nosso reino, emparedaste-o contra a vida e a luz para nele poderdes viver para sempre. Ladrões, traidores!

— Irmã — atalhou Tehanu. — Estes não são os homens que nos roubaram. Estes são os que estão a pagar o preço.

Seguiu-se um silêncio ao murmúrio áspero da sua voz.

— Qual foi o preço? — quis saber o Nomeador.

Tehanu olhou para Írian. Esta hesitou e depois disse, num tom de voz muito mais cordato:

— A cobiça extingue o sol. Estas são as palavras de Keilessine.

Azver, o Configurador, falou. Enquanto falava, olhava ao longo das alas de árvores do outro lado da clareira, como se estivesse a seguir o movimento quase imperceptível das folhas.

— Os antigos viram que o reino dos dragões não era apenas do corpo. Que eles podiam voar... fora do tempo, talvez... E, invejando-lhes essa liberdade, seguiram o caminho dos dragões para o Oeste, para além do Oeste. Aí, reivindicaram para si parte desse reino. Um reino intemporal, onde o ser pudesse existir para sempre. Mas não no corpo, como os dragões. Apenas em espírito poderiam os homens permanecer ali... Por isso construíram um muro que nenhum ser vivo poderia passar, nem homem nem dragão. Porque receavam a ira dos dragões. E com as suas artes de nomeação estenderam uma grande rede de encantamentos sobre todas as terras ocidentais, de forma que quando as pessoas das ilhas morressem, pudessem ir para o Oeste que fica para além do Oeste e viver aí em espírito para sempre.

«Mas quando o muro foi construído e o encantamento lançado, o vento deixou de soprar no espaço delimitado pelo muro. O mar recuou. As fontes deixaram de brotar. As montanhas do nascer do Sol transformaram-se nas montanhas da noite. Os que morriam iam para uma terra de trevas, uma terra árida.

— Eu caminhei por essa terra — disse Lebánnen em voz baixa e com relutância. — Não temo a morte, mas receio essa terra.

Fez-se silêncio.

— Cob, e também Thórione — afirmou o Invocador na sua voz áspera e contrafeita — tentaram derrubar esse muro. Trazer os mortos à vida.

— Não à vida, mestre — contrariou Seppel. — No entanto, tal como os Criadores de Runas, buscavam o ser incorpóreo e imortal.

— Mas os seus encantamentos causaram perturbação naquele lugar — disse o Invocador, concentrado. — E assim, os dragões começaram a recordar o antigo mal... E assim, as almas dos mortos tentam agora chegar ao outro lado do muro, ansiando por regressar à vida.

O Amieiro pôs-se de pé. Disse:

— Não é pela vida que anseiam. É pela morte. Voltar a ser um só com a terra. Voltar a reunir-se com ela.

Todos o olharam, mas ele mal se apercebeu da atenção que atraíra, a sua consciência estava repartida entre aquele lugar e a terra árida. A erva sob os seus pés era verde e estava iluminada pelo sol, estava morta e na sombra. As folhas das árvores estremeciam acima da sua cabeça e o muro baixo de pedras ficava a curta distância, na encosta do monte escuro. De todos eles, via apenas Tehanu; não conseguia vê-la claramente, mas reconhecia-a, de pé entre ele e o muro. Falou-lhe:

— Construíram este muro, mas não conseguem derrubá-lo — disse. — Ajudas-me, Tehanu?

— Ajudo-te, Hara — respondeu ela.

Precipitou-se uma sombra entre eles, uma enorme força, escura e volumosa, escondendo-a a ela, apoderando-se dele, agarrando-o; ele debateu-se, inspirou fundo, não conseguia respirar, viu um fogo vermelho na escuridão e nada mais viu.

Encontraram-se sob a luz das estrelas, à entrada da clareira, o Rei das terras ocidentais e o Mestre de Roke, os dois poderes de Terramar.

— Viverá? — perguntou o Invocador e Lebánnen respondeu: — O curandeiro diz que já não corre perigo.

— Fiz mal — disse o Invocador. — Lamento-o.

— Porque o chamaste? — perguntou o Rei, sem reprovação mas querendo uma resposta.

Ao fim de algum tempo, o Invocador confessou, sombrio:

— Porque tinha o poder de o fazer.

Percorreram em silêncio um caminho entre as grandes árvores. Estava muito escuro de ambos os lados, mas a luz das estrelas lançava um brilho cinzento por onde eles caminhavam.

— Eu estava errado. Mas não está certo querer morrer — argumentou o Invocador. O sotaque da Estrema Leste estava-lhe na voz. Falava baixo, quase de forma suplicante. — Para os muito velhos, os muito doentes, talvez. Mas a vida nos é concedida. É com certeza errado não nos agarrarmos a ela, a essa grande dádiva, como a um tesouro!

— Também a morte nos é dada — disse o Rei.

O Amieiro estava deitado numa padiola sobre a erva. Devia dormir à luz das estrelas, dissera o Configurador, e o velho Mestre das Ervas concordara. Deitado, dormia, com Tehanu sentada ao seu lado, imóvel.

Tenar sentou-se à porta da casa baixa de pedra e pôs-se a olhar a filha. As estrelas grandes do final do Verão brilhavam no céu sobre a clareira do bosque: a mais alta de todas era a estrela chamada Tehanu, o Coração do Cisne, a cavilha de segurança no eixo do céu.

Seserakh saiu silenciosamente da casa e sentou-se na soleira da porta ao lado de Tenar. Tinha tirado o aro que lhe segurava o véu, deixando tombar a cascata de cabelo castanho.

— Oh, minha amiga — murmurou —, o que vai acontecer-nos? Os mortos estão a vir até nós. Sente-os? Como a maré a subir. Do outro lado daquele muro. Eu acho que ninguém conseguirá detê-los. Todos os mortos das sepulturas de todas as ilhas do Oeste, de todos os séculos...

Tenar sentia a batida, o chamamento, na cabeça e no sangue. Sabia agora, todos sabiam, o que Amieiro já sabia antes. Mas agarrava-se àquilo em que confiava, mesmo que a sua confiança se tivesse transformado em mera esperança. Disse:

— Eles são apenas os mortos, Seserakh. Nós construímos um muro falso. Tem de ser derrubado. Mas existe um muro verdadeiro.

Tehanu levantou-se e aproximou-se delas com passos leves. Sentou-se no degrau da soleira da porta abaixo delas.

— Ele está bem, está a dormir — segredou.

— Estiveste lá com ele? — perguntou Tenar.

Tehanu acenou com a cabeça.

— Estivemos junto ao muro.

— O que fez o Invocador?

— Chamou-o, trouxe-o à força.

— Para a vida.

— Para a vida.

— Não sei o que deveria recear mais — disse Tenar —, se a morte ou a vida. Quem me dera conseguir deixar de ter medo.

Seserakh inclinou por um momento a cabeça, com a onda do seu cabelo quente, sobre o ombro de Tenar, numa carícia leve.

— És corajosa, corajosa — murmurou. — Mas, oh! Eu receio o mar! E receio a morte!

Tehanu ficou sentada em silêncio. A luz tênue e suave que se filtrava pelas copas das árvores, Tenar viu que a mão esbelta da filha estava pousada em cima da sua mão queimada e torta.

— Penso que — disse Tehanu na sua voz baixa, estranha —, quando morrer, poderei respirar de novo o ar que me deu vida. Posso devolver ao mundo tudo o que não fiz. Tudo o que poderia ter sido e não consegui ser. Todas as escolhas que não fiz. Todas as coisas que perdi e gastei e desperdicei. Posso devolvê-las ao mundo. Às vidas que ainda não foram vividas. Essa será a minha oferenda ao mundo que me deu a vida que vivi, o amor que amei, o ar que respirei.

Olhou para as estrelas e suspirou.

— Não por muito tempo ainda — segredou. Depois, voltou a cabeça e olhou para Tenar.

Seserakh fez uma carícia leve no cabelo de Tenar, pôs-se de pé e entrou silenciosamente na casa.

— Dentro de pouco tempo, mãe, acho...

— Eu sei.

— Eu não quero deixar-te.

— Tens de me deixar.

— Eu sei.

Ficaram sentadas na penumbra do Bosque, em silêncio.

— Olha — murmurou Tehanu.

Uma estrela cadente riscou o céu, um trilho de luz rápido, a desvanecer-se lentamente.

Cinco feiticeiros estavam sentados à luz das estrelas.

— Olhem — alertou um deles, acompanhando com a mão o trilho da estrela cadente.

— A alma de um dragão que morre — citou Azver, o Configurador. — É o que dizem em Karego-At.

— Será que os dragões morrem? — perguntou Ônix, meditativo.

— Não como nós, creio.

— Não vivem como nós. Movem-se entre os mundos. É o que diz Orm Írian. Do vento do mundo para um vento diferente.

— Como nós tentamos fazer — disse Seppel. — E falhamos.

O Risco olhou para ele com curiosidade.

— Em Paln, sempre conheceram esta lenda, esta tradição que aprendemos hoje, da separação do dragão e da humanidade e da construção da terra árida?

— Não como a ouvimos hoje. Ensinaram-me que o verw nadan foi o primeiro grande triunfo da arte mágica. E que o objetivo da feitiçaria era vencer o tempo e viver para sempre... Daí os males que o Saber de Paln causou.

— Pelo menos, vós mantivestes o saber-mãe que nós desprezamos — lembrou Ônix. — Tal como o teu povo, Azver.

— Bem, vós tivestes a inteligência de construir a vossa Casa Grande aqui — disse o Configurador, sorrindo.

— Mas construímo-la mal — retorquiu Ônix. — Tudo o que construímos, construímos mal.

— Por isso, temos de o derrubar — apoiou Seppel.

— Não — disse Risco. — Nós não somos dragões. Nós vivemos em casas. Temos de ter algumas paredes, pelo menos.

— Desde que o vento possa soprar pelas janelas — adiantou Azver.

— E quem entrará pelas portas? — perguntou o Porteiro. Fez-se uma pausa. Um grilo trilou, diligente, algures do outro lado da clareira, calou-se, trilou de novo.

— Dragões? — aventou Azver.

O Porteiro abanou a cabeça.

— Parece-me que a divisão que foi iniciada e em seguida traída talvez venha por fim a ser completada — disse. — Os dragões irão em liberdade e deixar-nos-ão entregues à escolha que fizemos.

— O conhecimento do bem e do mal — definiu Ônix.

— A alegria de fazer, de dar forma — contrapôs Seppel. — A nossa mestria.

— E a nossa cobiça, a nossa fraqueza, o nosso medo — acrescentou ainda Azver.

O trilar do grilo foi respondido por outro, mais próximo do ribeiro. Os dois pulsaram, cruzaram-se, ao mesmo ritmo e a ritmos diferentes.

— O que eu receio — disse Risco —, tanto que até receio dizê-lo, é isto: que quando os dragões partirem, a nossa mestria parta com eles. A nossa arte. A nossa magia.

O silêncio dos outros revelou que partilhavam os receios de Risco. Mas o Porteiro falou por fim, com suavidade mas também com alguma firmeza.

— Não, acho que não. Eles são a Criação, sim. Mas nós aprendemos a Criação. Tornamo-la nossa. Não pode ser-nos tirada. Para a perdermos teríamos de a esquecer, deitá-la fora.

— Como fez o meu povo — recordou Azver.

— No entanto, o teu povo lembra-se do que é a terra, do que é a vida eterna — disse Seppel. — Enquanto nós o esquecemos.

Instalou-se novo silêncio entre eles.

— Consegui chegar com a mão ao muro — soou muito baixo a voz de Risco, e Seppel disse: — Eles estão perto, estão muito perto.

— Como saberemos o que fazer? — interrogou-se Ônix.

No silêncio que se seguiu àquela pergunta, Azver tomou a palavra.

— Uma vez, quando o meu senhor Arquimago estava aqui comigo no Bosque, disse-me que passara a vida a aprender a optar por fazer o que não tinha outro remédio senão fazer.

— Quem me dera que ele aqui estivesse agora — disse Ônix.

— Já lhe basta o que fez — murmurou o Porteiro, sorrindo.

— Mas a nós não. Estamos aqui sentados a conversar à beira do precipício... todos o sabemos — disse Ônix, olhando à sua volta, para os rostos alumiados pela luz das estrelas. — O que querem os mortos de nós?

— E o que querem de nós os dragões? — acrescentou Risco. — Estas mulheres que são dragões, dragões que são mulheres... porque estão aqui? Podemos confiar nelas?

— Temos outra opção? — perguntou o Porteiro.

— Penso que não — disse o Configurador. Na sua voz havia um gume duro, o fio de uma espada. — Só podemos seguir.

— Seguir os dragões? — perguntou Risco.

Azver negou com um aceno de cabeça.

— O Amieiro.

— Mas ele não é propriamente um guia, Configurador — duvidou Risco. — Um consertador de aldeia?

Ônix apoiou-o:

— O Amieiro é sábio, mas a sua sabedoria é de mãos, não de espírito. Segue o coração. Com certeza que não é sua ambição guiar-nos.

— No entanto, foi ele o escolhido entre todos nós.

— Quem o escolheu? — perguntou Seppel em voz baixa.

E o Configurador respondeu:

— Os mortos.

Deixaram-se ficar sentados em silêncio. O trilar dos grilos cessara. Duas pessoas altas aproximaram-se deles, atravessando o relvado, cinzento à luz das estrelas.

— O Brand e eu podemos sentar-nos aqui convosco um pedaço? — perguntou Lebánnen. — O sono não vem esta noite.

Na soleira da porta da casa, no Overfell, Gued estava sentado a olhar as estrelas no céu, por cima do mar. Tinha ido dormir há uma hora ou mais, mas, ao fechar os olhos, viu a encosta do monte e ouviu as vozes a erguerem-se como uma onda. Levantou-se de imediato e saiu de casa, para onde pudesse observar o movimento das estrelas.

Estava cansado. Quando se lhe fechavam os olhos, lá estava ele junto ao muro de pedras, com o coração gelado no receio de ali ficar para sempre, sem saber o caminho de regresso. Por fim, impaciente e nauseado de medo, levantou-se mais uma vez, foi buscar uma candeia, acendeu-a e tomou o caminho da casa da Caruma. Talvez ela estivesse assustada; vivia muito perto do muro, ultimamente. Mas a Urze estaria certamente em pânico e a Caruma não conseguiria sossegá-la. E, visto que desta vez ele não poderia fazer o que quer que tivesse de ser feito, ao menos iria reconfortar a pobre débil mental. Poderia dizer-lhe que tudo não passava de um sonho.

Era árduo caminhar no escuro, com a candeia a atravessar-lhe no caminho grandes sombras de pequenas coisas. Caminhava mais devagar do que gostaria e tropeçava por vezes.

Viu uma luz na casa do viúvo, tarde como era. Uma criança chorava para os lados da vila. Mãe, mãe, porque estão as pessoas a chorar? Quem são as pessoas que estão a chorar, mãe? Também ali não se dormia. Não se dormia em parte nenhuma em Terramar naquela noite, pensou Gued. Sorriu ao ocorrer-lhe este pensamento, pois sempre gostara daquela pausa, daquela pausa temível, do momento antes de as coisas se alterarem.

O Amieiro acordou. Estava deitado sobre a terra e sentia-lhe a profundidade debaixo de si. Acima dele, as estrelas brilhavam, as estrelas do Verão, movendo-se entre folhas sopradas pelo vento, movendo-se de leste para oeste com o girar da terra. Olhou para elas durante algum tempo antes de despregar os olhos.

Tehanu estava à sua espera no monte.

— O que temos de fazer, Hara? — perguntou-lhe ela.

 

— Temos de consertar o mundo — respondeu ele. Sorriu, porque sentia o coração leve por fim. — Temos de derrubar o muro.

— Eles podem ajudar-nos? — quis saber ela, porque os mortos estavam reunidos à espera lá em baixo na escuridão, inúmeros como a erva ou a areia ou as estrelas, agora silenciosos, uma enorme praia sombria de almas.

— Não — retorquiu ele. — Mas talvez outros possam. Desceu o monte até ao muro. Dava-lhe pela cintura, naquele ponto.

Pôs as mãos numa das pedras da fila do remate e tentou deslocá-la. Estava bem segura, ou era mais pesada do que seria de esperar; não conseguia levantá-la, não conseguia deslocá-la.

Tehanu apareceu ao seu lado.

— Ajuda-me — pediu ele. Ela pousou as mãos na pedra, a mão humana e a garra queimada, agarrou-a o melhor que podia e tentou levantá-la como ele. A pedra deslocou-se um pouco, um pouco mais. — Empurra-a! — disse ela, e juntos empurraram-na lentamente para fora do seu lugar, raspando com força a pedra que estava por debaixo, até cair do outro lado do muro com um baque surdo e pesado.

A pedra seguinte era mais pequenas; juntos, conseguiram tirá-la do seu lugar. Deixaram-na tombar no pó, do lado de cá do muro.

Nesse momento, um tremor perpassou pela terra sob os seus pés. Pequenas pedras rachadas no muro começaram a chocalhar. E, com um longo suspiro, as multidões de mortos aproximaram-se do muro.

O Configurador levantou-se de repente e deixou-se ficar à escuta. As folhas restolhavam por toda a clareira, as árvores do Bosque vergavam-se e estremeciam como se fustigadas por um grande vento, mas não corria uma brisa.

— Está a mudar agora — avisou ele, e afastou-se dos outros, embrenhando-se na escuridão entre as árvores.

O Invocador, o Porteiro e Seppel levantaram-se e seguiram-no, rapidamente e em silêncio. Risco e Ônix seguiram-nos mais lentamente.

Lebánnen pôs-se de pé; deu alguns passos atrás dos outros, hesitou e atravessou a clareira a correr até à casa baixa de pedras e barro.

— Írian — chamou, baixando-se na entrada escura. — Írian, levas-me contigo?

Ela saiu da casa. Sorriu; havia nela uma espécie de vivacidade fogosa.

— Vem então, vem depressa — disse, dando-lhe a mão. A sua mão ardia como carvão incandescente ao erguê-lo para o vento diferente.

Ao fim de pouco tempo, Seserakh saiu da casa para a luz das estrelas e atrás dela veio Tenar. Ficaram de pé a olhar em volta. Nada se mexia; as árvores estavam novamente paradas.

— Partiram todos — murmurou Seserakh. — Pelo Caminho dos Dragões.

Deu um passo em frente, fitando a escuridão.

— O que havemos nós de fazer, Tenar?

— Temos de tomar conta da casa — volveu Tenar.

— Oh! — murmurou Seserakh, caindo de joelhos. Vira Lebánnen prostrado perto da entrada da casa, deitado de bruços na erva. — Ele não está morto... acho eu... Oh, meu querido Senhor Rei, não vás, não morras!

— Está com eles. Fica com ele, Seserakh. Mantém-no quente. Toma conta da casa — aconselhou Tenar. Dirigiu-se para onde se encontrava o Amieiro, com os olhos cegos voltados para as estrelas. Sentou-se ao seu lado, com a sua mão na dele. Esperou.

O Amieiro mal conseguia deslocar a grande pedra sob as suas mãos, mas o Invocador estava ao seu lado, curvado, com o ombro contra a pedra.

— Agora! — disse, e juntos empurraram a pedra até ela se desequilibrar e tombar com aquele mesmo baque pesado e terminante do outro lado do muro.

Estavam agora outras pessoas ali com ele e Tehanu, a arrancarem as pedras e a arremessarem-nas para o chão ao lado do muro. O Amieiro notou que, por um instante, as suas mãos lançaram uma sombra nascida de um brilho vermelho. Orm Írian, como a vira da primeira vez, uma forma grande de dragão, expelira uma baforada de fogo ao tentar deslocar um pedregulho da fila mais baixa, que estava encravado na terra. As suas garras chisparam, as costas com espinhos arquearam-se-lhe e a rocha deslizou pesadamente, soltando-se e abrindo uma fenda no muro naquele lugar.

Ouviu-se um grito, vasto e baixo, vindo das sombras do outro lado, como o som do mar numa praia vazia. A sua escuridão ergueu-se contra o muro. Mas o Amieiro olhou para cima e viu que já não estava escuro. Havia luz em movimento naquele céu onde as estrelas nunca se tinham movido, breves faíscas de lume ao longe na escuridão do oeste.

— Keilessine!

Era a voz de Tehanu. O Amieiro fitou-a. Ela olhava fixamente para cima, na direção do Oeste. Não tinha olhos para a terra.

Tehanu ergueu os braços. Corria-lhe fogo pelas mãos, pelos braços, o cabelo, o rosto e o corpo, as chamas transformaram-se em grandes asas acima da sua cabeça e levantaram-na no ar, um ser todo de fogo, incandescente, belo.

Soltou um grito, um grito nítido e sem palavras. Voou alto, de cabeça para a frente, a grande velocidade, para cima, para o céu, onde a luz alastrava e um vento branco apagara as estrelas sem sentido.

De entre as hostes dos mortos alguns, aqui e ali, tal como ela, ergueram-se transformados em dragões e cavalgaram o vento.

A maioria avançou caminhando. Não se empurravam, não gritavam já, caminhavam antes com uma certeza sem pressas em direção às partes derrubadas do muro: grandes multidões de homens e mulheres que, ao chegarem junto ao muro derrubado, não hesitavam, davam um passo em frente e desapareciam — um punhado de pó, um sopro de ar que brilhava por um momento na luz cada vez mais forte.

O Amieiro olhava para eles. Ainda tinha nas mãos, esquecida, uma lasca de pedra que arrancara ao muro para soltar um pedregulho maior. Assistia à libertação dos mortos. Por fim, viu-a entre eles. Então, atirou a pedra para o lado e deu um passo em frente.

— Lírio — exclamou.

Ela viu-o e sorriu e estendeu-lhe a mão. Ele tomou-a na sua e ambos atravessaram para a luz do Sol.

De pé, junto ao muro derrubado, Lebánnen viu o dia nascer no Oriente. Havia um Oriente agora, onde não houvera direção nem caminho a seguir. Havia Oriente e Ocidente, e luz e movimento. O próprio chão se movia, tremia, estremecia como um enorme animal, de tal forma que o muro de pedras, para além do ponto onde o tinham derrubado, estremeceu e se desfez em cascalho. O fogo despontou dos picos distantes e negros das montanhas chamadas Dor, o fogo que arde no coração do mundo. O fogo que alimenta os dragões.

Ele olhou para o céu sobre aquelas montanhas e viu, tal como vira uma vez com Gued, acima do mar ocidental, os dragões a voar no vento da manhã.

Três deles voavam na sua direção, para onde ele se encontrava entre os outros, perto do cume do monte, acima do muro derrubado. Reconheceu dois, Orm Írian e Keilessine. O terceiro tinha uma malha brilhante, de ouro, e asas também de ouro. Voava mais alto e não desceu até eles. Orm Írian dançava à sua volta no ar e começaram a voar juntas, uma a perseguir a outra, cada vez mais alto, até de repente os raios mais altos do Sol nascente incidirem em Tehanu e ela arder como o seu nome, uma grande estrela brilhante.

Keilessine voou em círculos, mais baixo, e veio aterrar por entre as ruínas do muro.

— Agni Lebánnen — disse o dragão ao Rei.

— Mais Antigo — disse o Rei ao dragão.

— Aissadan verw ndannan — retumbou a voz vasta e sibilante, como um mar de címbalos.

Ao lado de Lebánnen estava Brand, o Invocador de Roke, com os pés bem assentes na terra. Repetiu as palavras do dragão na Fala da Criação e depois disse-as em hárdico:

— O que foi dividido está dividido.

O Configurador encontrava-se perto deles, com o cabelo a brilhar à luz cada vez mais forte. Disse:

— O que foi construído está derrubado. O que foi derrubado está inteiro.

Depois, olhou para o céu com uma expressão de vivo desejo, para o dragão dourado e para o dragão de bronze vermelho; mas ambos tinham voado para longe, quase fora da vista, em vastos círculos sobre a terra longa e derrubada, onde se desvaneciam à luz do dia cidades de sombra vazias.

— Mais Antigo — disse ele, e a cabeça comprida rodou de novo lentamente para o seu lado. — Alguma vez ela seguirá o caminho de regresso pela floresta? — perguntou Azver, na língua dos dragões.

O olho amarelo, comprido e inescrutável de Keilessine fitou-o. A sua boca enorme, tal como a boca dos lagartos, parecia fechada num sorriso. Não falou.

Depois, arrastando-se pesadamente ao longo do muro, de modo que as pedras ainda por ruir escorregaram e caíram por baixo do seu ventre de ferro, Keilessine afastou-se a serpentear e, com um súbito estrondear de asas erguidas descolou da encosta e voou num vôo rasante sobre a terra em direção às montanhas, cujos picos estavam agora envoltos em fumo e vapor branco, fogo e luz do sol.

— Vinde, amigos — disse Seppel em voz baixa. — Ainda não chegou a hora de ficarmos livres.

A luz do sol já estava no céu acima das copas das árvores mais altas, mas a clareira do bosque continha ainda o frio cinzento da madrugada. Tenar estava sentada, com a sua mão sobre a mão do Amieiro e a cabeça baixa. Olhava para o orvalho frio que enfeitava a erva, suspenso em gotas minúsculas e delicadas, cada uma refletindo o mundo inteiro. Alguém pronunciou o seu nome. Tenar não ergueu os olhos.

— Partiu — disse ela.

O Configurador ajoelhou-se ao seu lado. Tocou ao de leve no rosto do Amieiro.

Ficou ali ajoelhado e em silêncio durante algum tempo. Depois, disse a Tenar, falando na sua língua:

— Senhora minha, vi Tehanu. Voa, dourada, num vento diferente.

Tenar olhou para ele. Tinha o rosto pálido e cansado, mas havia uma sombra de triunfo nos seus olhos.

Com um esforço, disse, falando numa voz rouca e quase inaudível:

— Inteira?

Ele acenou com a cabeça.

Ela acariciou a mão do Amieiro, a mão do consertador, fina, habilidosa. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos.

— Deixa-me ficar mais um pouco com ele — pediu, e começou a chorar. Cobriu o rosto com as mãos e chorou, chorou amargamente, em silêncio.

Azver dirigiu-se ao pequeno grupo junto à porta de casa. Ônix e Risco estavam perto do Invocador, que, sombrio e ansioso, se encontrava junto da princesa. Ela estava de joelhos ao lado de Lebánnen, com os braços lançados sobre ele, a protegê-lo, e desafiando qualquer feiticeiro a tocar-lhe. Os olhos chispavam-lhe. Segurava na mão o punhal curto de aço de Lebánnen, desembainhado.

— Eu regressei com ele — explicou Brand a Azver. — Tentei ficar com ele. Não tinha a certeza do caminho. Ela não me deixa aproximar-me.

— Ganaí — disse Azver, o honorífico de Seserakh em karguiano, princesa.

Ela desferiu-lhe um olhar inflamado.

— Oh, graças sejam dadas a Atuáh-Waluáh e louvada seja a Mãe para sempre! — bradou ela. — Senhor Azver! Faz com que estes malditos-bruxos se vão embora. Mata-os! Eles mataram o meu Rei. — E estendeu-lhe o punhal, segurando-o pela fina lâmina de aço.

— Não, princesa. Ele foi com o dragão Írian. Mas este feiticeiro trouxe-o de novo para junto de nós. Deixa-me vê-lo — pediu, e ajoelhou-se, virou a cabeça de Lebánnen um pouco para melhor o ver, e pousou-lhe as mãos no peito. — Está frio — constatou. — Foi um árduo caminho de regresso. Toma-o nos teus braços, princesa. Mantém-no quente.

— Já tentei — respondeu ela, mordendo o lábio. Arremessou o punhal para o chão e debruçou-se sobre o homem sem sentidos. — Oh, pobre Rei! — disse docemente em hárdico. — Querido Rei, pobre Rei!

Azver pôs-se de pé e disse ao Invocador:

— Julgo que ele vai ficar bom, Brand. Ela é-lhe agora muito mais útil do que nós.

O Invocador estendeu a sua mão enorme e segurou no braço de Azver.

— Vá, coragem! — disse.

— O Porteiro — disse Azver, empalidecendo ainda mais e olhando à sua volta.

— Regressou com o homem de Paln — informou Brand. — Senta-te, Azver.

Azver obedeceu-lhe, sentando-se no toro onde o velho Mestre da Mudança se sentara no círculo da tarde anterior. Há mil anos, parecia. Os anciãos tinham regressado à Escola ao cair do dia... E depois começara a longa noite, a noite que trouxera o muro de pedras para tão perto que dormir era estar lá e estar lá era um terror e por isso ninguém tinha dormido. Ninguém, talvez, em toda a ilha de Roke, em todas as ilhas... Somente o Amieiro, que lhes servira de guia... Azver apercebeu-se de que estava a dormitar e a tremer de frio.

Risco tentou convencer Azver a ir para a casa de Inverno, mas ele insistiu que tinha de ficar perto da princesa para ser seu intérprete. E perto de Tenar, pensou sem o dizer, para a proteger. Para que ela pudesse fazer o luto em paz. Mas o Amieiro já não sofria. Passara a sua dor para ela. Para todos eles. O seu júbilo...

O Mestre das Ervas veio da Escola e mostrou-se preocupado com Azver, aconchegou-lhe um manto quente aos ombros. Azver estava sentado, num sono febril e sem descanso, sem dar ouvidos aos outros, vagamente irritado com a presença de tantas pessoas na sua doce e silenciosa clareira, observando a luz do sol a esgueirar-se por entre as folhas. A sua vigília foi recompensada quando a princesa veio ter com ele, se ajoelhou à sua frente fitando-o com um respeito solícito e disse:

— Senhor Azver, o Rei gostaria de falar contigo.

Ajudou-o a levantar-se, como se ele fosse um velho. Azver não se importou.

— Obrigado, gaínha — agradeceu.

— Eu não sou rainha — disse ela com uma gargalhada.

— Sê-lo-ás— afirmou o Configurador.

Era a maré viva da lua cheia e o Golfinho teve de esperar para poder manobrar entre os Braços da Falésia. Tenar só desembarcou no Porto de Gont a meio da manhã e depois teve de percorrer o longo caminho pela encosta do monte acima. Foi quase ao pôr do Sol que atravessou Re Albi e enveredou pelo caminho entre penhascos até casa.

Gued estava a regar as couves, já bem crescidas.

Endireitou-se e, com o seu ar de falcão, de testa franzida, ficou a vê-la aproximar-se.

— Ah — fez ele.

— Oh, meu querido — disse ela. Apressou-se, naqueles últimos e poucos passos, enquanto ele caminhava para ela.

Estava exausta. Sentia-se contente por estar ali sentada com ele, com um copo de bom vinho tinto do Centelha, a ver o fim da tarde do princípio do Outono a incendiar-se em ouro sobre todo o mar ocidental.

— Como posso contar-te tudo? — perguntou ela.

— Conta de trás para a frente — aconselhou Gued.

— Está bem. É o que farei. Queriam que eu ficasse, mas eu disse que queria voltar para casa. Mas houve uma reunião do conselho, do Conselho do Rei, sabes, para o noivado. Vai haver um casamento de grande pompa, claro, mas não me parece que tenha de ir. Porque foi nesse momento que eles verdadeiramente se casaram. Com o Anel de Elfarran. O nosso anel.

Ele olhou para ela e sorriu, o sorriso rasgado e doce que ela achava, talvez erradamente, talvez com boa razão, que ninguém a não ser ela jamais lhe vira no rosto.

— Sim? — disse ele.

— Lebánnen veio pôr-se aqui, assim, à minha esquerda, e depois veio Seserakh e pôs-se ao meu lado direito. Em frente do trono de Morred. E eu ergui o Anel. Como quando o trouxemos para Havnor, lembras-te? No Vê-longe, à luz do sol? Lebánnen pegou nele, beijou-o e devolveu-me. E eu coloquei-o no braço dela, passou-lhe à justa na mão... Ela não é uma mulher pequena, a Seserakh... Oh, havias de a ter visto, Gued! Que beleza que ela é, que leoa! Ele encontrou alguém à sua altura. E toda a gente aplaudiu. E houve festejos e festins. E por isso eu pude vir-me embora.

— Continua.

— De trás para a frente?

— De trás para a frente.

— Bem, antes disso foi Roke.

— Roke nunca é simples.

— Não.

Beberam o vinho em silêncio.

— Fala-me do Configurador.

Ela sorriu.

— Seserakh chamava-lhe Guerreiro. Diz que só um guerreiro se apaixonaria por um dragão.

— Quem o seguiu para a terra árida... naquela noite?

— Ele seguiu o Amieiro.

— Ah — exclamou Gued, com surpresa e alguma satisfação.

— Assim como alguns dos outros mestres. E Lebánnen, e Írian...

— E Tehanu.

Um silêncio.

— Ela saiu da casa. Quando eu saí, já tinha partido. — Um longo silêncio. — Azver viu-a. Ao nascer do Sol. No vento diferente.

Um silêncio.

— Partiram todos. Já não há dragões em Havnor ou nas ilhas ocidentais. Ônix disse: quando aquele lugar de sombras e todas as sombras nele regressaram ao mundo da luz, voltaram a conquistar o seu verdadeiro reino.

— Quebramos o mundo para o tornar inteiro — disse Gued.

Ao fim de muito tempo, Tenar disse em voz baixa e débil:

— O Configurador acredita que Írian virá ao Bosque, se ele a chamar.

Gued não fez comentário algum. Ao fim de algum tempo, disse:

— Olha para ali, Tenar.

Ela olhou para onde o olhar dele se dirigia, para o golfo de ar pouco nítido sobre o mar ocidental.

— Se ela vier, virá dali — disse ele. — E se não vier, está ali.

Ela acenou com a cabeça.

— Eu sei — disse. Tinha os olhos marejados de lágrimas. — Lebánnen cantou-me uma canção no navio, na viagem de regresso a Havnor.

— Assim, Tenar não sabia cantar murmurou as palavras: «O minha alegria, seja livre! »

Ele desviou o olhar, para a floresta, a montanha, os cumes a escurecerem.

— Diz-me — pediu ela. — Conta-me o que fizeste na minha ausência.

— Tomei conta da casa.

— E passeaste na floresta?

— Ainda não — respondeu ele. 

 

                                                                  Ursula K. Le Guin

 

 

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