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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NUNCA LHE PROMETI UM JARDIM DE ROSAS / Hannah Gree
NUNCA LHE PROMETI UM JARDIM DE ROSAS / Hannah Gree

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NUNCA LHE PROMETI UM JARDIM DE ROSAS

 

O carro percorria uma bela região de campos e fazendas, em pleno outono, atravessando curiosos e antigos vilarejos cujas árvores de troncos retorcidos davam, com suas tonalidades vivas, um colorido pitoresco às ruas. Seus ocupantes falavam pouco. Dos três, o pai parecia o mais cansado. Vez por outra, interrompia o pesado silêncio com migalhas de conversa, coisas casuais, sem importância, que mesmo a ele exasperavam. Voltou-se, uma vez, para o rosto da menina refletido no espelho retrovisor e perguntou: - Você sabe, não sabe, que eu não passava de um tolo quando me casei, um tolo consumado? Não tinha a menor noção de como educar uma criança, do que significava ser um pai. Defendia-se, e sua defesa também era em parte uma agressão. A menina continuou calada. A mãe sugeriu então que parassem para tomar um café e, num esforço desesperado para melhorar o clima de tensão, disse que parecia realmente que estavam fazendo uma viagem de férias, em pleno outono, com sua filha adorável, e numa região maravilhosa.

Encontraram um restaurante à beira da estrada e pararam. A menina saltou ligeira, e encaminhou-se para o motel, nos fundos do prédio. Tão logo se afastou do carro, os olhos dos pais se voltaram sobressaltados: - Deixe, ela está bem! - tranqüilizou o pai.

- Esperamos ou entramos logo? - perguntou em voz alta a mãe, falando consigo mesma. Dos dois, ela era a mais analítica. Antecipava-se às coisas, planejando tudo minuciosamente - como agir e o que dizer - enquanto o marido se deixava guiar, não só por comodismo, mas também porque geralmente era ela quem tinha razão. Naquele momento sentia-se confuso e só. Deixou-a entregue a seus planos e especulações, inclusive porque era assim que ela se consolava. Ele preferiu se manter em silêncio.

- Ficando no carro - dizia ela - estaremos ao alcance dela, caso precise de nós. Se ela sai e não nos vê... Por outro lado, devemos mostrar que confiamos nela. É importante que sinta que confiamos nela...


Decidiram finalmente entrar no restaurante, procurando aparentar a maior descontração possível. Sentaram-se numa mesa junto às vidraças, de onde podiam avistá-la dobrando a esquina do prédio, vindo em sua direção. Procuravam observála como se fosse uma desconhecida, filha de alguma outra pessoa a quem tivessem sido apresentados naquele instante, uma Déborah que não era a deles. Estudaram com atenção o corpo adolescente e desgracioso: julgaram-no bom. O rosto era inteligente e vivo, embora, para dezesseis anos, sua fisionomia ainda fosse excessivamente infantil.

Estavam habituados à sua precocidade meio tristonha, mesmo não a reconhecendo no rosto familiar que agora procuravam tratar como estranho. O pai pensou com seus botões: ”Como é que desconhecidos podem ter certeza? Ela é nossa... sempre foi nossa. Eles não a conhecem. Trata-se de um erro - só pode ser um erro!”

A mãe, por sua vez, disse a si mesma observando a filha: ”Minha expressão. .. não deve estar aparentando nada de anormal, nenhuma ruga - uma expressão ideal.” E sorriu satisfeita. No fim da tarde, pararam em outra cidadezinha e jantaram no melhor restaurante, numa atitude de desafio e aventura, pois não estavam vestidos de forma conveniente. Terminado o jantar, foram a um cinema. Déborah parecia contentíssima com a noitada. Brincaram durante o jantar e durante o filme todo; depois, caminhando sob a noite densa da região, conversaram sobre outras viagens, congratulando-se mutuamente cada vez que recordavam algum detalhe engraçado de outras férias. Encostaram num motel para dormir, e Déborah ficou num quarto só para ela, privilégio cuja importância nem mesmo os pais que tanto a amavam podiam avaliar.

Já no quarto, sentados frente a frente, Jacob e Esther Blau perscrutavam o íntimo de cada um, perguntando-se por que, agora que estavam a sós, não conseguiam despojar-se de suas poses, respirar livremente, relaxar, e criar um clima de paz e espontaneidade. No quarto vizinho, separados apenas por uma delgada parede, podiam escutar a filha trocando de roupa para se deitar. Eram incapazes de se confessar, mesmo com os olhos, que passariam a noite em alerta, interrogando cada ruído que não fosse o de sua respiração - qualquer ruído que pudesse significar. . . perigo.- Apenas uma vez, antes de se deitarem para a vigília noturna, Jacob deixou cair a máscara, e sussurrou, com voz áspera, no ouvido da mulher: - Por que a estamos mandando embora?

- Os médicos acham que ela deve ir - respondeu Esther, também num sussurro, estendida rigidamente sobre a cama, com os olhos pregados na parede.

- Os médicos!. . . - Jacob jamais quisera envolvê-los no problema, mesmo no início.

- O lugar é bom - afirmou a mulher, elevando um pouco a voz.

- Eles chamam aquilo de hospital psiquiátrico, mas é um lugar, Teca, um lugar onde imprensam as pessoas. Como pode ser bom para uma menina - quase uma criança!

- Deus do Céu, Jacob - exclamou - quanto já nos custou tomar essa decisão? Se não tivermos confiança nos médicos, a quem vamos pedir conselhos, em quem confiar? O Dr. Lister diz que é a única forma de ajudá-la agora. Temos que tentar! - insistiu e voltou resolutamente a fixar os olhos na parede.

Ele se calou. Rendia-se mais uma vez à mulher, tão ágil no uso das palavras. Deram-se boa noite; fingiam dormir, respirando pesadamente para enganar um ao outro, enquanto os olhos ardiam vigilantes devassando a escuridão.

No quarto vizinho, Déborah deitou-se disposta a dormir. O reino de Yr possuía uma espécie de zona neutra chamada o Quarto Nível. Só por acaso é que se podia alcançá-la. Fórmulas e atos de vontade eram inúteis. No Quarto Nível não havia emoções para afligi-la, nenhum passado e nenhum futuro contra o qual lutar. Nem memória. Perdia-se a posse de si mesmo. Nada, exceto fatos mortos que sobrevinham espontaneamente quando ela os desejava, despojados de emoção ou sentimento.

Deitada na cama, subiu ao Quarto Nível. O futuro deixou de preocupá-la. As pessoas no quarto ao lado eram, supostamente, seus pais. Muito bem. Só que agora faziam parte de um mundo fantasmagórico, que pouco a pouco se desvanecia. Ela transitava sem dificuldade para um mundo novo, onde não se conheciam preocupações. Abandonar o mundo antigo eqüivalia a também abandonar os labirintos do reino de Yr, o Coletor de Outros, o Censor, e todos os deuses Yri. Revolveu-se na cama e mergulhou num sono profundo, sem sonhos, repousante.

Reiniciaram a viagem na manhã seguinte. O carro já se afastava do hotel, penetrando no dia luminoso, quando ocorreu a Déborah que talvez aquela viagem pudesse durar para sempre, e que a sensação maravilhosa de calma e liberdade que sentia, fosse uma nova dádiva dos deuses e dos habitantes, normalmente tão exigentes, de Yr.

Viajaram durante algumas horas, percorrendo uma região mesclada de reflexos, dourados e castanhos, e as ruas salpicadas de sol dos pequenos vilarejos. Foi então que a mãe perguntou: - Onde é o desvio, Jacob?

Em Yr, uma voz clamou das profundezas do Poço: Inocente! Inocente!

Num instante desfez-se toda aquela sensação de liberdade. Déborah Blau foi impetuosamente tragada pelo choque de dois mundos. Houve, como em todas as outras vezes, um dilaceramento silencioso, fantástico. No universo onde se sentira até há pouco radiante, o sol cindiu-se no céu, a terra entrou em erupção, seu corpo foi despedaçado, os dentes e os ossos se fragmentaram em mil pedaços. Enquanto isso, no outro universo, habitado por fantasmas e sombras, um carro tomava um desvio lateral e penetrava numa estrada que desembocava num prédio de tijolos vermelhos, muito antigo. Em estilo vitoriano, cercado de árvores, seu aspecto era bastante decadente. Fachada ideal para um manicômio. Quando o carro parou diante da portaria, Déborah ainda estava atordoada pelo choque. Foi difícil saltar, e mais ainda subir condignamente as escadas de acesso ao prédio, onde aguardavam os médicos. Havia grades em todas as janelas. Déborah sorriu: ”Ótimo! Não poderia ser melhor!”

Ao ver as grades, Jacob Blau ficou lívido. Não havia mais como se iludir: aquilo não era nem ”clínica de repouso” nem ”tratamento de convalescência”. A verdade impunha-se nua, gélida como o ferro das grades. Esther tentou alcançá-lo em pensamento: - Não devíamos contar com isso? Por que essa surpresa?

Enquanto esperavam, Esther Blau procurava todas as formas de se mostrar jovial. Exceto pelas janelas gradeadas, a sala parecia qualquer outra sala de espera, e ela aproveitou para troçar das revistas antiquíssimas que estavam por ali. De repente, ouviram no fundo do corredor o ranger metálico de uma chave na fechadura - pelo som devia ser imensa - e Jacob retesouse de novo, sobressaltado, gemendo baixinho: - Não, ela não, nossa Debbizinha. . . E não percebeu o olhar implacável que cintilou no rosto da filha.

O médico percorreu o corredor e, antes de entrar na sala, compôs uma expressão grave. Era um homem corpulento e atarracado, de modos bruscos. Entrou e sentiu logo a angústia que pairava no ar, quase palpável. O prédio era antigo, um lugar realmente assustador. Sua missão consistia em afastar a menina o mais rápido possível e tranqüilizar suficientemente os pais para que consentissem em deixá-la, convictos de que tinham feito o que era certo.

Quantas vezes, naquela mesma sala, pais, maridos ou esposas no último minuto, rejeitavam com repugnância a pavorosa realidade da doença. Agarravam o parente, coitado, com seus olhos esgazeados, e o levavam embora de novo. Era medo, ou uma justa impressão negativa ou - e nisto seus olhos perscrutaram de novo o casal - aquele grão híbrido de ciúme e ódio que sempre os impedia de interromper a longa sucessão de misérias uma geração após a sua. Procurou mostrar-se compadecido, mas sem leviandade. Pouco depois, chamou uma enfermeira para conduzir a menina ao interior do hospital. Ela parecia uma vítima em estado de choque; quando a levaram dali, sentiu a dor em que os pais se revolviam.

Depois de prometer que ainda se despediriam dela antes de partir, o médico os conduziu à secretaria para que preenchessem os formulários de praxe. Quando voltou a vê-los, após as despedidas, pareciam também em estado de choque. ”Que coisa dolorosa ter que se amputar de uma filha”, pensou.

Jacob Blau não era um homem dado a exames introspectivos, nem tinha o hábito de revolver o passado para pesar e medir sua configuração. Julgava a esposa, em certos momentos, uma mulher excessivamente voraz, moendo e remoendo suas paixões num discurso interminável. Contudo, invejava-a um pouco. Ora, também ele amava a filha, embora nunca tivesse declarado esse amor. Também ele desejava ouvir confidencias e, no entanto, jamais fora capaz de se abrir. Era natural que nenhum dos seus o procurasse para confidencias. Acabara de deixar a filha mais velha naquele lugar sombrio, cheio de trancas e grades. No momento da despedida, ela se mostrara bastante ansiosa, e se afastara dele recusando o beijo. Aparentemente, não quisera aceitar qualquer consolo de sua parte, encolhendo-se todas as vezes em que procurou tocá-la. Homem de temperamento forte, precisava agora explodir com alguém, extravasar sua raiva. Mas a raiva vinha de tal modo imbuída de compaixão, de medo e de amor, que não teve como se libertar dela. E seu enorme desgosto não fez senão despertar sua velha e caprichosa úlcera.

Levaram Déborah para um quartinho modesto, onde ficou até que se desocupassem os chuveiros. Ali também foi vigiada: uma mulher, placidamente sentada em meio às nuvens de vapor, não parou de observá-la enquanto tomava banho. Déborah executou obedientemente todas as instruções, procurando manter o braço esquerdo ligeiramente voltado para dentro, de modo a esconder as duas cicatrizes em seu pulso. Já acomodada à nova rotina, voltou para o quarto, onde teve que responder a algumas perguntas sobre sua vida. O médico que as fazia, num tom sardônico, pareceu-lhe insatisfeito. Era óbvio que ele não ouvia a algazarra, os clamores, os rugidos que ressoavam dentro dela.

No vácuo do Mundo Intermediário onde se achava, entre Yr e o Agora, o Coletor começava a dar sinais de vida. Em breve, eles a estariam maldizendo e insultando, tomando-a igualmente distante de seus dois mundos. Lutava contra essa iminência como uma criança que, esperando a punição, a antecipa ferindo-se selvagemente. Começou por responder a verdade às primeiras perguntas do médico. Agora pouco importava que a chamassem de sonsa e mentirosa. Dentro dela cresceu um pouco a algazarra, e Déborah conseguiu distinguir algumas das palavras que se formavam. Não havia nada no auarto que pudesse distrair sua atenção. Para se defender contra a onda que ameaçava tragá-la, contava apenas com o Aqui, com aquele médico frio de cademo de notas na mão, ou então com Yr, seus campos dourados e seus deuses. Ah, mas Yr também possuía regiões de terror e desespero. Déborah já não sabia mais para qual dos reinos de Yr havia passagem. Os médicos que a ajudassem.

Ergueu os olhos para aquele que estava sentado ali, prestes a desaparecer em meio à algazarra, e disse: - Contei toda a verdade sobre essas coisas que o senhor perguntou. Vai me ajudar agora?

- Isso depende de você - respondeu secamente, fechou o cademo e saiu.

- Um especialista! zombou Anterrabae, O Deus Cadente.

- Deixa eu ir com você - ela implorou, caindo, caindo, junto com ele, porque também ele caía etemamente.

- Que assim seja! - E seus cabelos, ardendo em chamas, ondulavam levemente na queda interminável.

Naquele dia e no seguinte, Déborah vagueou pelas planícies de Yr, imensas extensões de terras nuas, onde os olhos se perdiam no espaço infinito.

Déborah estava profundamente agradecida aos Poderes que lhe haviam concedido tamanha misericórdia. Os últimos meses tinham sido dificílimos de suportar: tanto frio, tanta dor e tanta cegueira em Yr. Agora, tal como no mundo, sua imagem passeava e respondia, perguntava e agia; Ela - não mais Déborah, e sim uma pessoa com um nome apropriado para uma habitante das planícies de Yr - cantava, dançava e entoava hinos rituais, louvando a brisa acariciante que varria a imensa ravina.

Para Jacob e Esther Blau a volta para casa não foi mais fácil do que a ida ao hospital. Embora Déborah já não estivesse em sua companhia, a possibilidade de dizerem aquilo que realmente queriam dizer se mostrava menor do que antes.

Esther julgava conhecer Déborah melhor que o marido. A seu ver, não fora a tentativa infantil de suicídio que dera início àquele ciclo interminável de médicos e decisões. Sentada no carro ao lado do marido, a vontade que tinha era de dizer a ele que se sentia de certa forma aliviada com aquele incidente, aquele gesto tolo e teatral de cortar os pulsos. A suspeita, que vinha se arrastando há tanto tempo, de que havia alguma coisa profunda e terrivelmente errada, finalmente se concretizara num fato. A xícara, cheia de sangue até o meio, que encontraram no chão do banheiro, dera consistência a todas as suas impressões nebulosas e a seus temores vagos. No dia seguinte, levaram a menina ao médico. Gostaria agora de mostrar a Jacob todas as coisas que ele desconhecia, mas tinha certeza de que não poderia fazer isso sem magoá-lo. Voltou-se para ele, vendo-o dirigir com os olhos fixos na estrada, a fisionomia contraída: - Poderemos visitá-la dentro de um mês ou dois, disse.

Puseram-se então a construir a história que contariam aos amigos e aos parentes mais afastados, ou àqueles cujos preconceitos impediriam de aceitar a simples idéia de um hospital psiquiátrico na família. A estes, falariam qualquer coisa a respeito de uma escola. Quanto a Suzy, que no mês anterior tantas vezes escutara a palavra ”doente”, e que, mesmo antes disso, vinha se mostrando inteiramente desnorteada, diriam alguma coisa sobre anemia ou fraqueza e um sanatório especial para convalescença. A papai e mamãe, diriam, para tranqüilizá-los, que estava tudo bem. .. tratava-se apenas de uma clínica de repouso. Embora eles soubessem das recomendações do psiquiatra, Jacob e Esther teriam que amenizar um pouco a descrição do lugar omitindo especialmente o grito lancinante vindo de uma das janelas gradeadas, que haviam escutado quando saíam, e que os fizera estremecer da cabeça aos pés. Ao escutar aquilo, Esther não pôde mais sufocar as dúvidas que a assaltavam. O grito ficaria trancafiado em seu coração, como Déborah Naquele Lugar.

A Dra. Fried ergueu-se da cadeira e foi até a janela de onde se descortinavam os pavilhões do hospital, um pequeno jardim e logo adiante o pátio onde os intemos costumavam passear. Olhou o relatório que tinha nas mãos. Àquelas três páginas datilografadas contrapunham-se as conferências que não poderia dar, os escritos que seria obrigada a negligenciar, e as supervisões que seria forçada a recusar caso decidisse aceitar a nova paciente. Gostava muito de trabalhar diretamente com doentes. A própria doente facultava-lhe analisar a sanidade como poucos ”sãos” seriam capazes de fazer. Impossibilitados de amar, de conviver e de se comunicar, geralmente manifestavam sua carência com uma paixão intensa, pura e fascinante.

Há momentos - lembrou-se com pesar - em que o mundo parece ser mil vezes mais doente do que aqueles que esse mesmo mundo intema em suas instituições. Recordou-se de Tilda, intemada num hospital psiquiátrico na Alemanha, na época em que do outro lado dos muros estava Hitler: qual dos lados era o mais são? Tilda, com suas crises de fúria destruidora, sempre amarrada às camas, alimentada pelas veias, freqüentemente submetida à força, tinha, apesar de tudo, os seus momentos de extraordinária lucidez. Lembrava-se bem de uma vez em que Tilda, atada à cama, erguera para ela os olhos e com um sorriso que procurava ser gentil, dissera: - Oh, entre por favor querida Doutôra. A senhora chegou bem a tempo de presenciar o chá tranqüilizante da paciente e o fim do mundo. Tilda e Hitler não existiam mais. Agora, havia muito a ensinar aos médicos que saíam das escolas com uma vivência limitada. Seria justo iniciar o tratamento individual de pacientes, sabendo-se que qualquer progresso real poderia exigir anos, enquanto dezenas de milhares de pessoas chamam, escrevem e telefonam implorando ajuda? Sorriu, percebendo que se deixava levar pela vaidade, vício que denunciara numa de suas aulas como o pior inimigo do médico, depois da doença do paciente. Ora, se para Deus eram importantes as individualidades, por que não para ela? Sentou-se, abriu a pasta, e começou a ler o relatório.

BLAU, DÉBORAH F. 16 anos, Hosp. Prev.: nenhum. Dl AG. INICIAL: ESQUIZOFRENIA

1 -       Testes: Os testes evidenciam um quociente de inteligência (140-150) elevado, embora ocorram distorções nas amostragens resultantes da doença. Várias questões mal interpretadas, de maneira excessivamente subjetiva. Reação inteiramente subjetiva à entrevista e aos testes. Os testes de personalidade revelam comportamento tipicamente esquizofrênico, com componentes compulsivos e masoquistas.

2 -       Entrevista (inicial): De início, a paciente parecia bem orientada e lógica nos seus pensamentos, mas com o desenrolar da entrevista, a lógica começou a ruir, ela passou a demonstrar extrema ansiedade diante de tudo o que pudesse ser interpretado como correção ou crítica. Fez o que pôde para impressionar o entrevistador com sua perspicácia, utilizando-a como uma formidável defesa. Em três ocasiões diferentes, riu inoportunamente: a primeira, quando declarou que a hospitalização resultará de uma tentativa de suicídio; as duas outras, por ocasião de perguntas relativas à data do mês. À medida que prosseguia a entrevista, sua atitude foi mudando. Começou a falar alto, citando episódios casuais de sua vida que considerava responsáveis por sua doença. Mencionou uma operação aos cinco anos de idade, cujos efeitos foram traumáticos, uma babá cruel, etc. Os incidentes não tinham relação entre si, nem se incluíam em qualquer padrão. Subitamente, em meio à narrativa de um acontecimento, a paciente avançou, dizendo em tom acusador: - Eu disse a verdade sobre essas coisas; e agora, vai me ajudar? Consideramos recomendável encerrar a entrevista.

3 -       História familiar - Nasceu em Chicago, Illinois. Outubro, 1932. Amamentada até o oitavo mês. Uma irmã, Susan, nascida em 1937. Pai, Jacob Blau, contador, cuja família emigrou da Polônia em 1913. Parto normal. Aos cinco anos de idade, a paciente sofreu duas operações para extirpar um tumor no aparelho urinário. Dificuldades financeiras obrigaram a família a se mudar para a casa dos avós, nos subúrbios de Chicago. A situação melhorou, mas o pai adoeceu: úlcera e hipertensão. Em 1942, a guerra forçou-os a mudar para a cidade. A paciente não se ambientou bem, tendo sido ridicularizada pelos colegas de escola. Puberdade fisicamente normal. Aos 16 anos, contudo, a paciente tentou suicídio. Há antecedentes de hipocondria na família, mas, exceto o tumor, a saúde tem sido boa.

A doutôra virou a página e examinou por alto as diversas avaliações estatísticas de fatores de personalidade e os resultados dos testes. Déborah seria sua paciente mais jovem. Abstraindo as considerações relativas à individualidade da pessoa em questão, talvez fosse interessante descobrir se uma menina com tão pouca experiência de vida poderia lucrar com a terapia. E como seria o trabalho: mais fácil ou mais difícil? O que decidiu a questão foi, enfim, a idade da menina: graças a isso o relatório acabou prevalecendo sobre os compromissos com reuniões e os artigos por escrever.

- Aber wenn wir. . . Ah, se conseguirmos. . . - murmurou, forçando-se a evitar a língua matema - quantos belos anos de vida ainda pela frente. . .

Voltou a se concentrar nos fatos e nos números. Um relatório semelhante levara-a, certa vez, a comentar com o psicólogo do hospital: - Algum dia precisamos descobrir um teste que também nos mostre onde está a saúde.

O psicólogo respondeu que poderiam saber isso por meio do hipnotismo, do ametil e do pentotal.

- Discordo - retrucou a Dra. Fried. - Essa força que se mantém oculta é um segredo profundo demais. Mas no fundo, no fundo, é nossa única aliada.

Durante um bom tempo - exatamente quanto, segundo os critérios da Terra, ela não saberia dizer - Déborah esteve em paz. O mundo lhe exigia pouco, o que reforçava sua convicção de que a causa de tantas agonias no reino de Yr se originavam de pressões exteriores. Algumas vezes, inclusive, conseguia ficar em contacto com a ”realidade”, a partir de Yr, como se a ruptura existente entre ambos não fosse mais do que uma névoa muito tênue. Nesses momentos, passava a se chamar Januce, porque se sentia como a Juno das duas faces - cada uma voltada para cada mundo. O primeiro incidente na escola ocorreu exatamente quando, por um deslize, deixou escapar esse nome. Estava vivendo naquele dia conforme o Calendário Secreto (em Yr não se media o tempo da mesma forma que no mundo) quando, de repente, retcomou ao Calendário Pesado. Sobreveio uma sensação tão maravilhosa e onisciente de transição, que Déborah não resistiu ao ímpeto de anotar, no cabeçalho da folha de aula, as palavras JANUCE AGORA, A professora, vendo-as, perguntou: - Déborah, o que foi que você escreveu no papel? O que significa essa palavra, Januce? E ficou ali, parada junto à carteira, aguardando a resposta.

Déborah sentia renascer dentro de si como que os terrores de algum pesadelo remoto, e o ambiente luminoso e saudável da sala de aula se desvanesceu completamente. Olhou ao redor e descobriu que só era capaz de perceber os objetos em seus contornos, tudo estava envolto em tonalidades cinzas, sem qualquer dimensão de profundidade. As coisas se tomaram planas, como num quadro. As palavras inscritas no papel simbolizavam a passagem do tempo de Yr para o da Terra. Surpreendida, porém, em plena transição, Déborah teria que responder agora pelos dois mundos. Só que responder implicava em descortinar o horror em toda a sua plenitude - um horror do qual não teria acordado racionalmente. Por isso, mentira e dissimulara, o coração sufocando de medo. Perigos desse gênero deveriam ser, a partir de então, evitados a todo custo. Naquela mesma noite, os personagens do Grande Coletor afluíram em massa ao Mundo Intermediário - deuses e demônios vindos de Yr e sombras da Terra - e decidiram erguer sobre seus reinos um Censor que se interpusesse entre as palavras e as ações de Déborah e assim protegesse o segredo da existência de Yr.

com o correr dos anos, o poder do Censor cresceu assustadoramente, até que, recentemente, terminou por impor sua presença em ambos os mundos, e com tamanha severidade que, algumas vezes, nenhuma palavra e nenhuma ação lhe escapavam. Um nome sigiloso segredado por descuido, um sinal eventualmente escrito, um raio de luz que penetrasse na região oculta, para sempre poderiam destruir Déborah e seus dois mundos.

Na Terra, a vida do hospital prosseguia normalmente. Déborah trabalhava na oficina de artesanato, aliviada por saber que também o mundo tinha esconderijos a oferecer. Aprendeu a fabricar cestos, aceitando todas as instruções, embora sem dispensar os modos impacientes e ásperos. Sabia que nenhuma de suas companheiras de trabalho gostavam dela. As pessoas, aliás, jamais gostaram dela. Certa vez, uma menina grandalhona de sua ala veio convidá-la para jogar tênis, e o choque repercutiu até o fundo de Yr. Ainda voltou a ver algumas vezes o médico do cademinho, e soube que se tratava do ”administrador da ala”, a quem cabia conceder os ”privilégios” - etapas análogas às do mundo normal - como, por exemplo, sair do quarto pela manhã, jantar na companhia dos outros, passear no pátio, e por último, sair do próprio hospital e ir sozinha a um cinema ou fazer compras. Cada uma dessas etapas constituía um privilégio e possuía uma certa conotação de recompensa que, curiosamente, parecia se exprimir em termos de distância. O médico permitiu que Déborah passeasse sem restrições no pátio, mas não fora do hospital. Déborah comentaria depois com a tal grandalhona, que se chamava Carla: - Pois é, veja só, eu tenho cem metros quadrados de sanidade! Se havia unidade de medidas, tais como homens-hora, anos-luz, por que não sanidademetro?

Carla consolou-a: - Não se preocupe! Logo você receberá mais privilégios. Se você se esforçar bastante com o seu médico, eles vão aliviar um pouco a barra. O que eu não sei é quanto tempo vou ficar aqui. Já se passaram três meses. E, imediatamente, ambas pensaram nas mulheres lá do final da ala: todas tinham mais de dois anos de hospital.

- As pessoas saem algum dia daqui? - perguntou Déborah. - Quer dizer, ficam boas e então saem?

- Não sei - respondeu Carla. Resolveram perguntar a uma enfermeira.

- Não sei! - foi a resposta. - Não estou aqui há tanto tempo assim.

Ressoaram ao mesmo tempo um grunhido de Lactamaeon, o deus Negro, e a risada zombeteira do Coletor: a síntese de todas as imagens de professoras, parentes, colegas de escola, etemamente reunidos em segredo para julgá-la e atormentá-la para sempre.

Para sempre, menina maluca! Para sempre, menina preguiçosa!

Mais tarde, uma das enfermeiras estagiárias se aproximou de Déborah, que estava deitada, os olhos fixos no teto.

- Vamos, é hora de se levantar - disse ela, com uma voz vacilante e assustada, que denunciava sua inexperiência. Fazia parte de um novo grupo de estagiários cumprindo um período de treinamento psiquiátrico no hospital. Déborah suspirou e se levantou obediente, pensando consigo mesma: Ela deve ficar atônita com a densidade de loucura com que sou capaz de impregnar esse quarto.

- Venha comigo - disse a estudante. - A doutôra quer vê-la. Ela é uma das chefes aqui, uma médica muito famosa, por isso devemos nos apressar, Srta. Blau.

- Ora, já que ela é tão boa assim, vou pôr os sapatos! - respondeu Déborah, observando divertida a expressão de surpresa da moça e o esforço que fazia para reprimir o olhar de desaprovação. Ela devia ter recebido instruções para ocultar todo e qualquer sentimento mais intenso, como ódio, medo ou prazer.

- Você devia ficar agradecida - disse a estagiária. - Já é muita sorte ser recebida por ela.

- Conhecida e amada por loucos do mundo inteiro! - ironizou Déborah. - Vamos!

A enfermeira destrancou a porta da ala e, em seguida, a que dava para as escadas. Desceram para o andar inferior, que estava aberto, e saíram pelos fundos do prédio. A enfermeira apontou para uma casa toda caiada, com venezianas verdes - uma dessas casas branquinhas que se vê em cidades menores à beira de uma rua sombreada por carvalhos. Erguia-se, por incrível que pareça, bem no meio do hospital. Dirigiram-se à porta da frente e tocaram a campainha. Depois de algum tempo, uma mulherziriha baixa e gorducha, cabelos grisalhos, veio abrir.

Scomos da Seção de Admissões. .Aqui está ela - disse a enfermeira.

- Poderia vir buscá-la dentro de uma hora?

- Tenho ordem para esperar.

- Está bem.

Mal Déborah entrou na casa, o Censor começou a dar sinais de alarma: Onde está a médica? Será que ela está espiando a gente por trás de alguma porta? A govemanta acenou com a cabeça em direção a um quarto.

- Onde está a doutôra? - perguntou Déborah, querendo anular a justaposição atordoante de paredes e portas.

- Sou eu a doutôra - respondeu a mulher. - Pensei que você soubesse. Sou a Dra. Fried.

Anterrabae soltou uma sonora gargalhada, caindo, mergulhando em suas próprias trevas: - Que disfarce! E o Censor resmungou: - Tome cuidado. .. muito cuidado.

A Govemanta-Famosa-Médica levou Déborah para um quarto ensolarado e, voltando-se, convidou-a: - Sente-se. Fique à vontade. - Invadiu-a uma sensação de total exaustão. Quando, porém, a doutôra perguntou: - Há alguma coisa que você queira me dizer? - Déborah, num ímpeto de cólera, ergueu-se de um salto e exclamou (para ela, para Yr, para o Coletor e para o Censor): - Está bem. .. Você faz as perguntas e eu respondo; você elimina meus ”sintomas” e me manda para casa... e depois o que é que eu terei?

com voz suave e pausada a doutôra respondeu: - Se você realmente não quisesse se livrar desses sintomas, não me teria dito isso. - Déborah sentiu apertar o laço do medo. - Vamos, sente-se. Você não terá que se livrar de nada enquanto não estiver pronta. E quando isso acontecer, haverá outras coisas para tomar o lugar dos sintomas.

Déborah sentou-se. O Censor preveniu-a: Ouça, Pássaroum; há mesinhas demais por aqui. As mesas não têm como se defender da sua falta de jeito.

- Você sabe por que está aqui? - perguntou a doutôra.

- Porque sou desastrada. Desastrada em primeiro lugar, depois há uma enorme lista de defeitos: preguiçosa, geniosa, cabeçuda, egocêntrica, gorda, feia, má, grosseira e cruel. Ah, e mentirosa também. Essa última categoria inclui vários itens: (a) falsa perda de visão, dores imaginárias que causam verdadeiros tormentos, lapsos inverídicos de audição, ferimentos inventados na pema, tonteiras fingidas, e outras doenças que não existem; (b) falta de esportividade. Mencionei antipatia?. .. Antipatia também.

Seguiu-se um longo silêncio. Acompanhando com os olhos as partículas de pó que flutuavam nos feixes de sol projetados da janela, éeborah percebeu que, possivelmente pela primeira vez, dissera aquilo que realmente sentia. Se essas coisas eram verdadeiras, azar, que fossem! Deixaria o consultório tendo pelo menos confessado seu cansaço e seu desgosto desse mundo sombrio e angustiante.

A doutôra contentou-se em dizer: - Bem, é uma lista e tanto. Algumas dessas coisas, creio, não existem, mas de qualquer forma já temos um trabalho definido pela frente.

- Fazer com que eu vire simpática, carinhosa, encantadora e feliz pelas mentiras que eu prego.

- Ajudá-la a ficar boa.

- Para abafar minhas queixas.

- Para acabar com elas, quando forem produtos de uma revolta de seus sentimentos.

O laço apertou mais ainda. Déborah tremia de medo e começava a ver tudo cinza de novo. - Você está dizendo a mesma coisa que todo mundo diz: queixas falsas de doenças falsas.

- Pelo contrário, parece que eu disse que você está muito doente.

- Como todos os outros aqui? - Era o mais perto que ousava chegar, perto demais até, das negras regiões do terror.

- Por acaso você quer saber se acho que seu lugar é aqui, e se o que você tem é o que se costuma chamar de uma doença mental? A resposta, nesse caso, é sim. Nesse sentido você está mesmo doente, mas com um esforço decidido de sua parte e com a ajuda séria de um médico, acho que você pode melhorar. Verdade nua e crua. Sim, era isso, ”louca”. Apesar do horror que essa inefável noção despertava, agora irremediavelmente localizada, emanava das palavras da doutôra uma espécie de luz que se projetava sobre vários outros recintos do passado: sua casa, a escola e todos os consultórios faziam repercutir a mesma acusação bem-humorada: Não Há Nada De Errado com Você. E, no entanto, durante anos e anos, Déborah soube que havia algo de errado sim - algo profundo e grave, mais sério ainda do que as perdas momentâneas de visão, as dores lancinantes, a manqueira temporária, as crises de terror e as repentinas ausências de memória. Eles, porém, viviam insistindo: não há nada de errado com você, basta apenas que. . . Justificava-se enfim toda a revolta que sempre sentira naqueles consultórios.

- Em que é que você está pensando? Vejo que seu rosto se descontraiu um pouco - interveio a doutôra.

- Estou pensando na diferença que há entre a má conduta e a felonia.

- Como assim?

- O prisioneiro se declara culpado, recusando a sentença de que não é portador de nenhum mal grave, e agora aceita o veredito de culpado por loucura em primeiro grau.

- Em segundo grau, talvez - corrigiu a doutôra, sorrindo. - Loucura nem totalmente espontânea, nem totalmente premeditada.

Uma imagem instantânea passou pela cabeça de Déborah: visualizou seus pais - ao mesmo tempo bem individualizados e bem unidos - postados do outro lado da maciça porta do consultório. Premeditada realmente não, mas com um pouco mais do que simples malícia.

Déborah foi despertada pela enfermeira, que ia e vinha na sala ao lado, como se quisesse preveni-las de que o tempo havia expirado.

A doutôra propôs então: - Se você estiver de acordo, podemos combinar outra hora e começar nossas conversas, porque acredito que se você e eu trabalharmos juntas para valer, venceremos tudo isso. Gostaria de repetir que não pretendo destruir sintomas nem doença alguma contra a sua vontade.

Déborah recusou-se, por medo, a manifestar abertamente seu consentimento, mas deixou que o rosto expressasse um cauteloso ”sim”, imediatamente compreendido pela médica. Ao sair do consultório, procurou controlar todos os seus gestos, de modo a parecer outra pessoa, afetando a maior indiferença possível em relação ao lugar e a quem estava ali.

- Amanhã, à mesma hora - avisou a doutÔra à enfermeira e à paciente.

- Ela não pode entendê-la - disse Déborah. - Caronte fala grego.

A Dra. Fried riu, mas logo seu rosto se tcomou grave. - Algum dia, espero poder ajudar você a ver o mundo como algo diferente de um inferno Estígio.

Foram-se então, Caronte, de touca branca e uniforme listrado, atravessando o espírito para trancafiá-la de volta na ala. A Dra. Fried, observando as duas retomarem ao prédio do hospital, pensou consigo mesma: Em alguma parte de toda essa precocidade e amargura, em alguma parte da doença, cujos limites ainda não sou capaz de determinar, pulsa uma força oculta. Sim, essa força existia e se manifestava. Prova disso é que luzira na expressão de alívio que sobreveio ao ser admitida a existência da doença. Luzira especialmente na ”tentativa de suicídio”, que não fora senão um mudo grito de socorro, e na declaração, franca e dramática, gesto característico dos adolescentes e dos doentes que insistem em lutar, de que se acabara o jogo e caíra a máscara. Agora, a doença mental estava exposta. Suas raízes, porém, mergulhavam tão profundamente quanto, por exemplo, o núcleo branco de um vulcão camuflado pelas florestas de suas encostas. Debaixo mesmo do vulcão, estava sepultada a preciosa semente de força e determinação.

- Dessa vez. . . ah, se dessa vez eu pudesse fazê-la germinar! - suspirou a doutôra, enveredando pelo vocabulário de sua língua natal.

Suzy Blau aceitou bem a história da escola para convalescentes. Quando Esther, no entanto, informou os pais, procurando apresentar o hospital como uma simples clínica de repouso, eles ficaram decepcionados e furiosos.

Não há nada de errado com os miolos dela! A menina

tem uma inteligência excepcional - protestou o avô (este era o seu maior elogio). - O problema é que nessa família, os miolos pularam uma geração e foram cair nela. Ela é igual a mim, carne da minha carne. Para o diabo vocês todos! - E retirou-se da sala, indignado.

Nos dias seguintes, Esther voltou a procurá-los, suplicando que apoiassem sua decisão, mas foi inútil. Só quando Claude, o irmão mais velho, e a outra irmã, Natalie - os favoritos da família - fizeram ver ao velho e à velha que a medida era realmente necessária, ele se acalmou um pouco. Déborah, afinal, era a menina dos seus olhos.

Jacob, por sua vez, permanecia calado, inseguro do que ele e Esther haviam feito. Foram duas vezes consultar o Dr. Lister. Jacob ouvia, tentando se consolar e se convencer de que o intemamento fora de fato necessário. Diante de perguntas objetivas, tinha que concordar: a realidade era inexorável. Quando, porém, se deixava levar pelo que os sentimentos diziam, por pouco tempo que fosse, todo o seu mundo vibrava de apreensão. As discussões entre ele e Esther, que sempre escamoteavam a questão crucial, invariavelmente terminavam num mudo clima de rancor e acusação.

No final do primeiro mês, receberam uma carta do hospital, relatando em termos bastante vagos as atividades de Déborah. ”Ajustara-se bem” à rotina e à equipe do hospital, iniciara a terapia e já passeava pelos pátios. Esther empenhou-se em extrair todas as migalhas de esperança incrustadas no tom reservado da carta, lendo e relendo cada palavra, destacando qualquer evidência positiva, interpretando os comentários sob os mais diversos ângulos, até descobrir qual o aspecto mais favorável.

Ao mesmo tempo, lutava numa outra frente, contra a relutância de Jacob e do velho, ensaiando, antes de cada batalha verbal, o.s argumentos diante de sua imagem no espelho. Quanto ao velho, tinha a impressão de que no íntimo ele sabia que a decisão era necessária. O ressentimento com a hospitalização de Déborah mascarava, na realidade, seu orgulho ferido de imigrante. Era um homem de temperamento dominador e enérgico, de uma inteligência arguta e brilhante. Esther notava que ele começava a amolecer, embora sua linguagem continuasse tão ríspida quanto antes. Parecia-lhe, em determinados momentos, que a doença de Déborah, desde que chegara àquele desenlace, transtomara o ritmo e o sentido de suas vidas, sujeitando-as a constantes reavaliações críticas. Certa noite, perguntou abruptamente a Jacob: - Qual é nossa responsabilidade em tudo isso? Quais os erros, terríveis, que cometernos?

- E eu sei? - respondeu ele. - E se soubesse, teria cometido erros? Parecia uma vida boa, uma vida muito boa a que ela tinha. Agora dizem que não. Demos amor, demos conforto. Ela nunca sofreu ameaça de frio ou de fome.

Esther lembrou-se que Jacob também fora um imigrante. Conhecera o frio, a umidade, a fome, enfim, todas as agruras da vida de um estrangeiro. Quantas vezes deve ter jurado poupar os filhos de tais privações! Acariciou-lhe o braço, num gesto protetor. Ele se virou e perguntou desalentado:

- O que pode haver mais, Esther? O que pode haver mais?

Ela não soube o que responder. No dia seguinte, escreveu para o hospital, perguntando quando poderiam visitar a filha e ver a médica.

Jacob, reanimado, passou a esperar ansiosamente a resposta. O velho contentou-se em resmungar: - O que é que eles vão fazer? Admitir que foi um engano? O mundo está cheio de imbecis. Por que esse lugar seria imune à imbecilidade?

- Bobagem! - disse Jacob irritado, num tom que jamais ousara empregar com o sogro. - Os médicos têm um código de ética a cumprir. Se acharem que se trata de um engano, nos deixarão trazê-la de volta imediatamente.

Esther compreendeu que ele ainda esperava uma mudança de diagnóstico, um milagre qualquer, que fizesse com que todas as portas do hospital se escancarassem, e o filme de suas existências voltasse um ano atrás, e então todos ririam juntos das peças que a vida prega na gente - retroceder, retroceder até que tudo estivesse apagado e esquecido. Sentiu pena de Jacob, mas não podia permitir que continuasse se iludindo a respeito da visita ao hospital. - Eu gostaria de dizer aos médicos, perguntar a eles.. . Bem, nossas vidas mudaram. .. e há coisas que talvez Déborah desconheça e que nos levaram a fazer o que fizemos. Há razões para muitas delas que, por melhores que fossem nossas intenções, não teriam sido diferentes.

- Nossas vidas foram simples, foram boas, foram dignas!

ele afirmou com convicção inabalável. Esther percebeu que

certas coisas que tinha dito se refletiam nele e em sua relação com ele, tanto antes de se casarem como depois, quando ela deveria ter mudado seus vínculos de dedicação e não o fizera. Faltava-lhe agora a coragem de magoá-lo. De qualquer modo, não adiantaria nada. Os conflitos decisivos pertenciam ao passado. Para todos, exceto Déborah, eram questões já mortas. Agora, como saber o que tinham representado para ela?

No correr dos primeiros meses, após o intemamento, houve momentos de calma, até mesmo de felicidade. Suzy, depois que ficou sozinha em casa, começou a definir sua personalidade. Jacob, por mais que negasse, acabou reconhecendo que, por muito tempo, até a partida de Déborah, andara na ponta dos pés, num clima de expectativa e sobressalto, assustado com algo que ninguém ousava mencionar.

Certo dia, Suzy trouxe para casa um grupo de colegas de escola. Entraram aos tropéis, rindo e brincando, e Esther, contagiada pela algazarra, convidou todos para jantar. Suzy brilhou aquela noite. Depois que foram embora, Jacob comentou bem humorado: - Que bobinhos! Será que nós fcomos tão bobos assim? Você viu aquele gurizinho de boné? - Soltou uma gargalhada e dando-se conta de como estava contente, comentou: - Meu Deus, como ri essa noite. Há séculos não me divertia tanto! - Calou-se, pensativo. - Puxa! Será que foi mesmo há tanto tempo? Anos?

- Sim - disse ela. - Foi há muito tempo.

- Então talvez seja verdade que ela estava... infeliz.

- Doente - emendou Esther.

- Infeliz! - gritou Jacob, retirando-se furioso da sala. Alguns minutos depois repetiu: - Apenas infeliz!

- Seus pais escreveram pedindo uma visita - disse a Dra. Fried. Déborah estava sentada do outro lado do sólido portão levadiço do século XII que, ocasionalmente, a separava da doutôra. Nem bem a médica mencionara seus pais e a visita, Déborah ouviu bruscamente o ranger metálico das correntes, e o portão, invisível, interpôs-se entre as duas.

- O que há? - perguntou a doutôra que, mesmo sem escutar os rangidos, notara os efeitos.

- Não posso vê-la de verdade nem ouvi-la de verdade - disse Déborah. - Você está do outro lado do portão.

- Ah, o seu portão medieval de novo. Sabe, costuma haver uma portinhola neles. Por que você não experimenta abri-la?

- A portinhola está trancada também.

A doutôra fitou o cinzeiro. - Ora, esses seus construtores de portões não são lá muito espertos. Constróem as barreiras com portas laterais e depois não conseguem abri-las.

Déborah ficava aborrecida quando a doutôra se apoderava de fatos que eram só seus, manuseava-os e utilizava-os para seus próprios fins. A barreira entre elas tornava-se cada vez mais indevassável. A voz suave, com sotaque peculiar, que vinha do outro lado do muro metálico ia se apagando aos poucos, cada vez mais perto do silêncio. As últimas palavras foram! - Você quer que eles venham?

- Quero que mamãe venha - disse Déborah - mas ele não. Não quero a visita dele.

Ficou surpresa consigo mesma. Sabia que falava sério, que dissera algo de certo modo importante, mas importante em quê? Durante muitos anos, foi assim: as palavras que dizia pareciam não corresponder a uma ordem de seu cérebro. Ocorria-lhe, às vezes, uma determinada sensação. Essa sensação era verbalizada, mas a lógica que havia por trás dela, sem a qual jamais conseguiria convencer o mundo, permanecia muda. O resultado foi que acabou perdendo a confiança em seus próprios desejos. Por isso mesmo, passou a defendê-los mais cegamente ainda. O que sentia no momento era em parte - sabia muito bem - o contentamento por dispor do poder de gratificar e punir. O amor do pai era a arma que Déborah possuía contra ele. Pressentia, ainda que fosse difícil expressar, que o amor e a compai. ãò dele seriam perigosos naquele momento. Sabia que o hospital estava sendo bom para ela. Sabia também que não conseguiria defender essa certeza, nem justificar por que se sentia tão bem lá. Diante de sua nudez e da eloqüência das trancas e grades, Jacob poderia se deixar vencer pelo horror e pela tristeza que ela mesma percebera nele quando a trouxeram para o hospital. Quem sabe não decidiria acabar com aquela ”prisão”? Além disso, as mulheres da Seção das Perturbadas viviam gritando e uivando Uma delas poderia entomar o caldo. Déborah tinha consciência de tudo isso, embora fosse incapaz de expressá-lo.

Reparou nos lábios da doutôra que se moviam e imaginou-os cuspindo perguntas e acusações. Começou a despencar para Yr, junto com Anterrabae, que rasgava a escuridão com seu fogo. A queda, dessa vez, foi longa. Durante muito tempo, ficou mergulhada numa escuridão absoluta. Pouco a pouco, as coisas se revestiram de tonalidades cinzentas, demarcando faixas nítidas e regulares diante de seus olhos. O lugar lhe pareceu familiar: era o Poço. Ali, os deuses e o Coletor gemiam, berravam, só que de um modo inteiramente ininteligível. Ouviam-se sons humanos e também estes vinham desprovidos de sentido. O próprio mundo se introduzia ali, só; que distorcido, irreconhecível.

Há tempos atrás, numa de suas quedas no Poço, Déborah se queimara toda com água fervendo. Estava ao lado do fogão, viu a chaleira em ebulição, mas a finalidade e a forma daqueles objetos careciam de sentido. Nessas ocasiões, saber o sentido das coisas se tomava irrelevante. Inexistia, por exemplo, medo no Poço, porque ali o medo perdia o sentido. Chegava até a esquecer, freqüentemente, sua própria língua.

O Poço surgia horrendo justamente no momento em que emergia dele, ao readquirir a vontade e a capacidade de responder aos estímulos do ambiente, ao sentir necessidade de recuperar o sentido das coisas, antes mesmo que esse sentido voltasse a vigorar. Certa vez (aconteceu na escola também), ela emergira do Poço e encontrara a professora apontando uma palavra no seu livro e perguntando - Que palavra é essa? Ela lutou desesperadamente para tomar inteligível aquele amontoado difuso de curvas negras destacadas no branco da folha. Inútil. Foi necessário reunir todas as suas forças para lembrar o suficiente de inglês e perguntar - O quê?. A professora ficou furiosa. Estava se fazendo de sonsa então? - Vamos, que palavra é essa? - Nada. Ela foi incapaz de extrair o menor fragmento de realidade daquela confusão de linhas e de pontos na superfície branca. Alguém riu no fundo da sala e a professora, temendo comprometer sua autoridade, deixou Déborah muda como estava e desapareceu na neblina cinzenta. O presente esvaiu-se, o mundo todo esvaiu-se.

Agora, no consultório da Dra. Fried, Déborah continuava imersa nas profundezas do Poço. Os horrores da volta à tona ainda não tinham começado; por enquanto, coisas como linguagem, significado ou mesmo luz não tinham a menor importância.

Esther Blau abriu anciosamente a carta à medida que lia, sua expressão facial ia passando da perplexidade à indignação. - Aqui diz que Déborah quer que eu vá, mas que ela pediu à doutôra que eu vá sozinha dessa vez. - Procurou assim tomar as coisas mais fáceis para Jacob, evitando os termos em que vinha redigida a carta - ”não verá o Sr. Blau.”

- Bem, vamos até lá ficar um pouco com ela e então vocês duas podem ter uma longa conversa se quiserem.

com toda a cautela, Esther procurou fazê-lo entender. - É, Jacob, só que se fôssemos os dois seria demais por enquanto. Eu posso dirigir sozinha ou tomar um trem.

- Não seja tola - disse ele. - Besteira! Eu vou.

- Não é besteira - ela insistiu. - Por favor, Jacob. ..

Ele apanhou a carta sobre a mesa e leu. Sua indignação voltou-se de início muito mais contra a esposa, por ela ter tentado encobrir a verdade e poupá-lo, do que propriamente contra os termos da carta. - Quem pensa ela que é!

- Ela está doente, Jacob...! Eu avisei, o Dr. Lister avisou.

- Está bem! Está bem!

O ressentimento acabou por vencer a indignação. - Mas você não pode ir sozinha. Eu a levo de carro até lá e espero nos fundos. Caso ela mude de idéia, ainda poderá me ver.

- Claro! - Ela capitulava de novo. Seria sempre assim: pressionada de ambos os lados o tempo todo. Não podia impedir que Jacob fizesse isso por ela. Quem sabe a conversa com a doutôra não o reconfortaria? Levantou-se e tirou a carta das mãos dele, desejando que a viagem aliviasse sua dor por ter sido rejeitado tão inequivocamente.

Ao se dirigir para seu quarto, onde ia guardar a carta, ouviu Suzy conversando com um amigo pelo telefone. - Mas eu não sei... Não dá para planejar isso com antecedência. Eu já te falei. Minha irmã Debbie está muito doente. Não..’Eles recebem uns relatórios todos os meses. Não... não se trata disso. É que se o próximo for ruim, eles não ficarão muito dispostos a receber gente aqui... Claro. Bem, eu te aviso se for possível.

Esther não pôde conter a cólera que a invadiu, súbita, irreversível - Déborah! Déborah! Olhe só o que ela fez conosco!

A Dra. Fried recebeu Esther Blau na sala clara e desarrumada de seu consultório. Considerava essencial descobrir se a mãe de Déborah seria uma aliada ou uma adversária do tratamento. Muitos pais afirmavam - freqüentemente com sinceridade - que queriam ajuda para seus filhos, e no final acabavam mostrando que havia todo um esquema montado em segredo, consciente ou inconsciente, e que inevitavelmente redundaria na ruína dos filhos. Isso porque a independência de uma criança representa uma ameaça inadmissível quando o equilíbrio dos pais é precário. Sob a aparência impecável de Esther, a Dra. Fried viu que se tratava de uma mulher inteligente, sofisticada e íntegra. Demonstrava também ser dona de um temperamento enérgico, que transparecia em seu sorriso um tanto duro. Como devem ter lutado ao longo dos anos aquelas duas personalidades resolutas, mãe e filha!

Sentaram-se nas confortáveis poltronas do consultório. A doutôra sentia-se um pouco constrangida diante das jóias magníficas e da elegância de Esther, que realçavam ainda mais seu próprio desalinho. Começou a estudá-la mais detidamente. Era, sem dúvida, saudável: aceitava os penosos sacrifícios que a realidade impunha, sem deixar de gozar suas dádivas. A filha não. Onde estava a diferença?

Depois de passear os olhos pela sala, a mãe perguntou: - É aqui. . . é aqui que Déborah vem?

- Sim.

Na sua fisionomia, cuidadosamente estudada, estampou-se uma expressão de alívio - É agradável! Não há. . . grades.

A doutôra ficou impressionada com o esforço que ela fez, ao pronunciar aquela palavra, para conservar o ar despreocupado.

- No momento, isso pouco importa. Não sei ainda se Déborah confia em mim o bastante para ver essa sala tal como é.

- Ela vai ficar boa? Ah, a senhora não imagina como eu a amo.

Veremos se é verdade, pensou a Dra. Fried. O amor terá que enfrentar uma duríssima prova no que ainda está por vir. - Para que ela fique boa, todos teremos que ser muito pacientes e trabalhar como nunca. - Sua pronúncia dava um toque curioso ao tom coloquial. - Ela vai precisar mobilizar uma quantidade extraordinária de energia para resistir aos impulsos que a compelem a se defender em segurança... por isso, é provável que a senhora a encontre cansada e que ela não esteja convenientemente arrumada para a visita. Há alguma coisa sobre ela que a preocupe de modo especial agora?

Esther procurou estruturar suas idéias. Realmente era muito cedo para pensar nos progressos de Déborah. Estava preocupada com outra coisa: - Sabe, todos esses dias... todos esses dias não paramos de pensar em como e por que isso aconteceu. Ela recebeu tanto amor! Disseram-me que essas doenças são causadas pelo passado e pela infância da pessoa. Por isso todos esses dias não paramos de pensar sobre o passado. Eu procurei, Jacob procurou, e toda a família pensou e especulou, e ainda assim não conseguimos encontrar qualquer razão. Não existe uma causa, entende, e é isso que nos assusta tanto.

Ela falara num tom de voz muito mais elevado do que desejava, como se quisesse convencer as cadeiras e as mesas e a doutÔra e a instituição toda com suas grades e as pessoas que gritavam por trás delas e cujas razões para estarem ali tinham que ser outras. . . tinham que ser.

- As causas são tão vastas que é impossível percebê-las de imediato; dificilmente chegaremos a compreendê-las em toda a sua complexidade. Podemos, isso sim, contar nossas verdades pessoais e localizar causas pessoais. Fale-me a respeito de Déborah e de você mesma com suas próprias palavras e da forma como você vê as coisas.

- Bem, acho que devo começar com a história de meu próprio pai. Papai veio de Latvia. Era aleijado de um pé. De certo modo, esses dois fatos explicam-no melhor do que se eu começasse pelo seu nome e sua ocupação. Veio para a América jovem ainda, pobre, marginalizado e coxo. Lançou-se contra a vida como se ela fosse uma inimiga de verdade. Graças a sua força de vontade ferrenha, educou-se, fez negócios, fracassou e finalmente alcançou o sucesso e adquiriu fortuna. Comprou então uma mansão num bairro elegante, onde moravam as famílias mais ricas e mais tradicionais. Se, por um lado, admirava os modos respeitáveis de seus vizinhos, estes, por sua vez, desprezavam sua religião, seu sotaque e seus hábitos. Tomaram a vida de sua mulher e de seus filhos extremamente miserável. Ele, contudo, permanecia inabalável amaldiçoando os vizinhos, a mulher e os filhos, com os termos crus e ásperos que herdara de seu detestável passado. Os palavrões em polonês e em idiche que aprendemos sentados em seu colo, eram temperados com as mais refinadas lições de francês.

Em 1878, era-comum as filhas das famílias nobres aprenderem harpa. Sei disso porque tive que aprender harpa, embora esse instrumento já não estivesse mais na moda, embora eu o odiasse, e não tivesse o menor talento. Era um dos trunfos a conquistar, entende, e ele precisava conquistá-lo a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse eu. Lembro-me bem de que papai me pedia para tocar e ficava andando de um lado para o outro, resmungando para o nobre fidalgo que existia na cabeça dele: - Veja, maldito, sou eu, o aleijadinho!

”Os filhos ’americanos’ de papai cresceram sabendo que seu valor pessoal, e sua distinção (refinamento, nobreza, boas maneiras), cultura e sucesso não passavam de aparência. Para avaliar a consistência desses atributos bastava observar o olhar que os vizinhos nos dirigiam, ou então escutar os comentários de papai quando a sopa estava fria ou um dos noivos chegava atrasado. Quanto a estes, era preciso que também fossem trunfos; soberbos estandartes das grandes famílias, emblemas de conquistas feitas através de alianças, tal como entre a nobreza no velho Continente. No entanto, Esther, a obstinada, escolheu um pretendente aquém das expectativas da família. Tratava-se de um rapaz bastante esperto, educado e apresentável, embora só tivesse cursado uma escola de contabilidade e sua família não passasse de um ”bando de simplórios e pobretões”. Não, ele não estava ao nível de Esther, nem dos sonhos que ela corporificava. Discutimos, brigamos e enfim, diante das belas perspectivas imaginadas por Jacob para o futuro, papai acabou cedendo. Natalie se casara bem. A família podia, portanto, arriscar. Pouco tempo depois, ambas estávamos grávidas: papai começou a se considerar o fundador de uma dinastia.

”Pois não é que a filha de Esther nasceu loura! Acontecimento único, emocionante, inconcebível mesmo: loura e de tez clara. Ela veio, assim, libertar Esther de seu isolamento secreto, ao passo que para o Velho representou a réplica final a um fidalgo de aldeia morto havia tempos e suas filhas de pele clara. Um autêntico fecho de ouro.”

Esther relembrou, em seguida, os tempos da Grande Crise de 1929. Um sopro de medo impregnava tudo. Medo e - procurou uma palavra que trouxesse de volta aqueles anos - a sensação de irrealidade. Jacob iniciou sua carreira justamente no momento mais crítico da época, quando as oportunidades eram mais do que escassas. Garantiu que pegaria mil serviços de contabilidade para merecer Esther como esposa - serviços enjoados e rotineiros, as sobras que os outros rejeitavam - embora esses serviços tivessem simplesmente desaparecido. Cada coluna de números era cobiçada por cem cérebros tão famintos e tão bem formados quanto o dele. Ainda assim, vivíamos num dos melhores e mais novos bairros da cidade. Afinal, nós, as filhas da dinastia, tínhamos que viver bem. Papai pagava todas as despesas. Déborah nasceu envolta em rendas tecidas a mão - herança de alguma importante casa européia derrubada pela Revolução. Apossar-se de uma bandeira ancestral e respeitável valia mais do que acenar com uma nova. Era por isso que luxuosos gorros que Déborah usava em seus passeios tinham outrora coberto a cabeça de um pequeno príncipe qualquer. Embora a aldeia lamacenta, as origens do camponês, já estivessem soterradas havia mais de uma geração, subsistia naquele camponês um sonho de camponês ainda mais ambicioso: não apenas ser livre, mas ser livre para ser nobre. Ao Novo Mundo, exigia-se mais do que apagar a amargura do Velho. Como o ateu que exclama para Deus: - Você não existe e eu odeio você! Papai continuava a esbravejar suas injúrias nos surdos ouvidos do passado. Enquanto Jacob ganhava quinze ou vinte dólares por semana, Déborah tinha doze vestidos de seda bordados a mão, e uma babá alemã.

Jacob sequer estava em condições de alimentá-la. Depois de algum tempo, voltamos para a mansão da família, agora rodeada pelo desdém de uma nova geração de vizinhos. Mesmo acorrentada a meu próprio passado, percebia que Jacob se sentia infeliz, sobretudo por ter que aceitar a caridade de um homem que o desprezava. O medo, contudo, me levou a apoiar, sutil e decisivamente, meu pai contra meu marido. O nascimento de Déborah parecia ter tomado minha submissão necessária e justa. Jacob era o consorte da dinastia, mas Déborah - a dourada e dadivosa Déborah, sempre risonha e contente - era o eixo em tcomo do qual giravam todos os sonhos.

Um belo dia, descobrimos que o brinquedo de ouro estava defeituoso. Naquela criança perfumada, cercada dos maiores cuidados, crescia um tumor. O primeiro sintoma foi uma incontinência das mais embaraçosas. A austera govemanta alemã ficava possessa. Mas a ”preguiça” não pôde ser remediada nem pelas humilhações, nem pelas lágrimas, nem pelas ameaças.”

- Nós não sabíamos! exclamou Esther. A doutÔra olhou para ela. Como era ardente e impetuoso o temperamento oculto por trás daquela fisionomia estudada e impassível. - Nessa época, os horários e as govemantas e os preceitos eram coisas absolutamente indiscutíveis! Era a pedagogia ”científica” da época, tudo bem esterilizadinho e o insano pavor dos germes e de toda e qualquer mudança.

- O quarto das crianças parecia um hospital! Sim, eu me lembro - disse a doutÔra sorrindo, como se tentasse consolar Esther, porquejá era tarde demais, exceto para o remorso pelos tapas injustos e a interpretação excessivamente zelosa de especialistas equivocados.

- Por fim, fizemos os exames e veio o diagnóstico; saímos consultando médico atrás de médico em busca de uma confirmação. Déborah, é óbvio, teria do bom e do melhor. O especialista que a operou, uma das maiores sumidades do país, era um médico excessivamente ocupado para se dar ao luxo de explicar alguma coisa à menina ou de assisti-la quando, depois dos milagres da cirurgia modema, sobreviesse a dor, a milenária e bárbara dor. Duas operações e, depois da primeira, um sofrimento impiedoso.

”Esforcei-me por parecer alegre e confiante ao entrar no quarto de Debbie, sem apagar o sorriso em meus lábios. Estava grávida de novo, e preocupada porque tinha acabado de perder dois gêmeos nascidos mortos. Contudo, na presença dos funcionários do hospital, da família e de Déborah, meu rosto não variava nunca e, como é natural, fui ficando orgulhosa da força que era capaz de demonstrar. Quando finalmente soubemos que as operações tinham sido bem sucedidas, não contivemos nossa euforia e o sentimento de gratidão que nos invadiu. Decoramos a casa toda, e convidamos os parentes para uma festa em honra ha saúde de Déborah. Dois dias depois, Jacob conseguiu se empregar como responsável pela contabilidade de Sulzburger. - Esther passou a remcomorar velhos nomes que ressurgiam do nada.

A contabilidade de Sulzburger nos pareceu, àquela época, a coisa mais importante de nossas vidas. Consistia numa série de pequenos serviços extremamente lucrativos. Ficamos todos meio desvairados. Jacob poderia, finalmente, se libertar, ser mais do que um simples consorte em sua própria família. Compramos uma casa nova, pequena, num bairro tranqüilo e mais modesto, não muito longe do centro da cidade. Tinha um jardim cheio de árvores e não faltavam crianças pelas redondezas. Déborah manifestou um pouco de medo no início, mas logo se desinibiu, começou a sair e fez amigos. Também eu fiz amigas, e havia as flores que eu mesma cultivava, o sol, as janelas sempre escancaradas, nenhuma necessidade de empregados e o começo de minha autonomia em tomar decisões. Isso durou um ano - um ano maravilhoso. Uma tarde, Jacob chegou em casa e com a notícia de que o negócio de Sulzburger era, na realidade, uma vasta e intrincada fraude. Investigara durante três meses a origem e o destino de todo aquele dinheiro até comprovar suas suspeitas. Pretendia pedir demissão no dia seguinte. - Uma fraude complicada e engenhosa como essa até que tem o seu lado bonito. Vai nos custar. .. tudo. Você sabe disso, não é? Pois mesmo assim não posso deixar de admirar a cabeça quemontou tudo isso.

Tivemos que vender a casa e, um mês depois, estávamos de volta à mansão da família. Restava-nos pouquíssimo dinheiro. Meus pais resolveram dar a mansão para nós. Sem a família toda, ela se tomara grande demais só para eles dois e por isso tinham alugado um apartamento em Chicago. É claro que a mansão tinha que ficar nas mãos da família: foi assim que aquele lugar odioso se transformou no lar dos Blaus.

No inverno, Déborah freqüentava as melhores escolas, e no verão, as melhores colônias de férias. Sentia muita dificuldade em fazer amigos, mas afinal, isso também acontece com muita gente. Anos depois é que viemos a saber que a primeira colônia de férias (que ela freqüentou em silêncio três anos seguidos) era de um anti-semitismo cruel. Déborah nunca se referira a isso. Víamos apenas os grupos alegres de meninas brincando, assando batata-doce em volta da fogueira e cantando velhas canções de acampamento.

- - Ela não demonstrava nenhum sinal de que estava doente ou infeliz? Só essa atitude omissa? - perguntou a Dra. Fried.

- Bem, sim. . . Eu falei da escola. . . Era uma escola pequena e simpática. Todos gostavam dela lá. Seu aproveitamento era excelente; um dia, porém, o psicólogo nos chamou e mostrou um teste que fora aplicado em todas as crianças. Segundo eles as respostas de Déborah indicavam uma ”perturbação” qualquer. ..

- Qual a idade dela na época?

- Dez anos.. . - respondeu Esther com voz cansada - Comecei a observar com mais atenção minha filha prodígio, tentando desvendar sua mente, verificar se aquilo era verdade ou não. Reparei que ela não brincava com as outras crianças. Vivia escondida em casa, comia demais, e acabou engordando. O processo foi tão gradativo e lento que só vim a notar naquele momento. Ah, e. .. e ela nunca dormia.

- Uma pessoa tem que dormir. Você quer dizer que ela dormia pouco?

- Sim, ela devia dormir, mas é que nunca a vi dormindo. Quando entrávamos em seu quarto à noite, sempre a encontrávamos acordada. Dizia que tinha ouvido nossos passos na escada. No entanto, os degraus eram cobertos por tapete espesso. Costumávamos brincar a respeito de seu sono leve, mas não tinha graça nenhuma. A escola recomendou que a levássemos a um psiquiatra infantil. Fizemos isso. Não adiantou nada. Ela ficava cada vez mais perturbada e insatisfeita. Depois da terceira sessão, virou-se e perguntou: ”Por acaso não sou aquilo que vocês queriam? Será que vocês têm que corrigir o meu cérebro também? ”Era esse o seu modo de falar já aos dez anos de idade, com uma amargura excessivamente precoce para ela. Suspendemos as visitas ao psiquiatra. Não queríamos que ela se sentisse assim. Não sei bem como, mesmo sem nos darmos conta, adquirimos o hábito, inclusive dormindo, de ficar à escuta...

- De quê?

- Não sei. .. - Esther sacudiu a cabeça para expulsar a palavra proibida.

Ao estourar a Segunda Guerra, foi impossível continuar sustentando uma mansão de quinze quartos. Enquanto tentávamos nos livrar dela, eu me dilacerava interiormente. Sentia-me ao mesmo tempo esmagada por aqueles quartos bolorentos, por uma terrível compulsão de ’guardar as coisas’, e pelo olhar crítico do Velho, da Velha e de toda a família. Até que finalmente encontramos um comprador. Sacudimos aliviados o peso morto do passado e mudamos para um apartamento na cidade. Pareceu-nos uma boa medida, especialmente para Déborah; suas pequenas excentricidades, seus pavores, sua solidão perderiam um pouco da estranheza no anonimato da cidade grande. Na realidade, ela continuou infeliz, embora os professores da nova escola a tivessem em alta conta, e os estudos andassem bem, sem exigirem grandes esforços da parte dela. Começou a aprender música e a se dedicar a todas as atividades próprias às meninas de sua idade.”

Esther procurou uma definição que tomasse verossímel o estado atual da filha.

- Bem.. . Déborah era intensa. Lembro-me de ter conversado algumas vezes com ela sobre isso, recomendando-lhe que não tomasse as coisas assim tão a peito. Não adiantava. Era uma característica intrínseca a nós duas, que não seria eliminada por uma decisão ou por um pedido. Na cidade, Déborah descobriu a arte. Seu interesse despertou com o ímpto de uma tempestade. Consumia todas as suas horas vagas desenhando. Nos dois anos seguintes, isto é, aos onze e doze anos de idade, ela deve ter feito milhares de desenhos, sem contar os esboços e os rascunhos na escola.

Levamos alguns deles a professores e críticos de arte, que reconheceram que a menina era realmente talentosa e devia ser estimulada. O que só veio a calhar: foi uma resposta fácil e luminosa às sombrias e vagas suspeitas, e não poupei esforços para me convencer de que era a resposta exata. A família encontrou de repente a explicação providencial para todas as esquisitices de Déborah: o aspecto doentio, a sensibilidade, a insônia, a intensidade e os súbitos olhares de desamparo, rapidamente substituídos pela rigidez e inexpressividade facial, ou por uma espécie de entorpecimento mental. Tudo estava claro agora... Déborah era uma pessoa especial, um espírito raro, de grande talento. Passamos a encarar com indulgência as doenças de que se queixava, as suas distrações: era a adolescência, a adolescência de uma menina excepcional, não me cansava de repetir, mas no íntimo, nunca cheguei a acreditar totalmente nisso. Uma evidência importuna qualquer sempre vinha relativizar essas racionalizações. Certa tarde, Déborah foi ao médico, por causa de mais uma de suas indisposições misteriosas. Chegou em casa estranhamente pálida e assustada. No dia seguinte, saiu cedo para fazer qualquer coisa e voltou muito tarde para casa. Cerca das quatro horas da madrugada, por alguma razão oculta e instintiva, acordei. Fui até o quarto dela com a certeza íntima de que havia algo de errado (narrando agora o episódio, ocorria-lhe uma estranha sensação de culpa). O quarto de fato estava vazio. Procurei no banheiro e a encontrei sentada no chão, muda, olhando o sangue escorrer de seu pulso numa bacia.

- Perguntei-lhe por que simplesmente não deixara o sangue escorrer pela pia - contou a doutÔra. - Sua resposta foi bastante significativa. Ela disse que não queria que o sangue se afastasse muito. Veja, portanto, que, a seu modo, ela sabia, que não estava tentando se suicidar, mas gritando por socorro, gritando muda e confusamente. Você mora num apartamento. As janelas ofereciam morte muito mais fácil, rápida e segura; no entanto.. . E há mais: Déborah sabia que o sono de vocês era leve porque o dela também era.

- Quer dizer que foi uma atitude premeditada? Uma coisa planejada com antecedência?

- Não conscientemente, é claro, mas a mente dela escolheu o melhor caminho. Afinal de contas, agora ela está aqui. Seu grito de socorro foi ouvido. Vamos voltar um pouco atrás de novo, às colônias de férias e à escola. Sempre houve atritos entre Déborah e suas colegas? Resolvia os problemas sozinha ou recorria a você?

- Eu procurava ajudar, é claro. Lembro-me de várias ocasiões em que ela precisou de mim e eu fiquei de seu lado. Certa vez as aulas mal tinham começado, ela começou a ter problemas com um determinado grupinho. Convidei-os para um passeio no jardim zoológico e foi o bastante para quebrar o gelo. Na colônia de férias, durante o verão, muitas vezes as pessoas não a compreendiam bem. Eu, então, sempre procurava ser amável com os professores, e isso facilitava um pouco as coisas. Ela teve um problema sério com uma das professoras na escola pública da cidade. Convidei essa professora para um chá, e conversa vai, conversa vem, expliquei que minha filha tinha medo das pessoas, que isso algumas veçes era mal interpretado; enfim, ajudei a professora a compreendê-la. Ficaram amigas enquanto Déborah freqüentou a escola, e no final a professora veio me dizer que conhecer Déborah fora um verdadeiro privilégio: era uma menina realmente excepcional.

- De que forma Déborah encarava essa ajuda?

- Bem, ela se mostrava aliviada, é claro. Esses problemas crescem muito nessa idade e eu me sentia contente por poder ser uma verdadeira mãe para ela, ajudando-a nesse tipo de coisas. Minha própria mãe nunca pôde.

- Numa visão retrospectiva, de que forma eram sentidos esses tempos? De que forma você se sentia?

- Feliz. As pessoas com quem Déborah tinha dificuldades eram conquistadas e eu me sentia feliz por poder ajudá-la. Tive que me esforçar um bocado para superar minha própria timidez, para me divertir nos lugares onde eu estava. Cantávamos e brincávamos. Precisei aprender a fazer as pessoas se desinibirem. Sentia orgulho dela e nunca deixei de dizer isso. Também nunca deixei de dizer o quanto eu a amava. Déborah jamais ficou desprotegida ou sozinha.

- Entendo - concordou a doutôra.

Esther, no entanto, teve a impressão de que ela não estava entendendo. De certo modo, tinha-se configurado um quadro falso das coisas, que ela procurou corrigir.

- Lutei por Déborah durante toda a sua vida. Talvez isso tudo tenha começado com o tumor. Não fcomos nós, não foi o amor que Jacob e eu tínhamos um pelo outro ou por nossos filhos. Essa coisa horrorosa aconteceu apesar de nosso amor e de nossos cuidados.

- Durante muito tempo, você soube que as coisas não iam bem com sua filha, não é? Antes mesmo do psicólogo da escola. Na sua opinião, quando começou o problema?

- Vejamos, as férias na colônia. . . não. . . foi antes disso. Como é que uma pessoa percebe que a atmosfera mudou? De repente, pronto, a coisa acontece.

- E quanto à colônia?

- Ah, era o terceiro ano consecutivo que ela ia. Tinha nove anos de idade. Fcomos visitá-la no final do verão e ela nos . pareceu infeliz. Contei-lhe como eu mesma tinha conseguido superar certas dificuldades de crescimento fazendo esportes. É um bom meio de se obter reconhecimento e fazer amigos quando se é jovem. Quando fcomos embora, parecia estar bem, No entanto, desde aquele ano alguma coisa começou a funcionar mal nela Daí em diante foi como se ela mantivesse a cabeça baixa já esperando pelas bofetadas.

- Esperando pelas bofetadas. . . - repetiu a doutôra, pensativa. - E então veio a época, isso depois, a época em que ela mesma começou a providenciar as pancadas. . .

Esther voltou-se para a doutÔra, os olhos transbordando de gratidão: - É isso que é a doença?

- Um sintoma talvez. Tive um paciente que costumava aplicar em si mesmo as torturas mais pavorosas, e quando lhe perguntei por que agia assim, respondeu: ”Ora, faço antes que o mundo o faça.” Eu insisti: ”Por que não espera para ver o que o mundo realmente faz?” Ele respondeu: ”Você não entende? Mais cedo ou mais tarde acontece. Assim pelo menos sou dono de minha própria destruição.”

- Esse paciente. . . ficou bom?

- Ficou. Só que vieram os nazistas e o infemaram em Dachau, onde ele morreu. Estou contando isso porque quero que você entenda que é impossível tentar refazer o mundo para proteger as pessoas que amamos. O que não significa que você deva se mortificar por ter tentado.

- Sim, eu tinha que tentar melhorar as coisas - disse Esther, recostando-se na cadeira, pensativa. - Vejo agora que, de certo modo, cometi erros, erros graves, mas muito mais em relação a Jacob do que a Déborah. - Calou-se, fitando a doutôra com olhos incrédulos. Como pude fazer isso com ele?

Todos esses longos anos. . . Desde aquele apartamento caríssimo, e mais o período em que vivemos da caridade de papai, anos e anos permiti que Jacob ficasse em segundo plano, e isso ainda hoje. ”Papai acha”, ”Papai quer”. Como pude, quando ele é que era meu marido, e seus desejos tão simples e modestos! - Olhou de novo para a doutôra. - Amar apenas não basta, não é? Meu amor por Jacob não me impediu de magoá-lo e humilhá-lo aos seus próprios olhos e aos de meu pai. E nosso amor por Déborah não nos impediu de. . . bem, de causar. . . essa. . . doença.

A Dra. Fried observava o contraste entre a Esther dos modos estudados e a fisionomia circunspecta, e a Esther-mãe daquelas palavras sentidas de amor e sofrimento, e de uma filha que padecia de uma decepção mortal. Comovida com a sinceridade de seus sentimentos, ela disse num tom de voz suave:

- Deixe que nós, Déborah e eu, procuremos as causas. Não se torture nem se culpe a si ou a seu marido ou a qualquer outra pessoa. Ela precisará de seu apoio, não de sua auto-recriminação.

Trazida de volta à realidade. Esther compreendeu que teria que enfrentar a Déborah do presente.

- Como. . . como saber o que dizer quando estiver conversando com ela? Sabe, ela não quer ver Jacob, e seu olhar era tão estranho, um olhar de sonâmbula, da última vez que a vi. . .

- Só há uma coisa realmente perigosa, sobretudo agora que ela se mostra tão sensível a isso.

- O que é, doutôra?

- Mentir.

Ambas se levantaram. Terminara a entrevista. ”Muito curta”, pensou Esther, ”não deu para dizer nem um décimo do que precisava ser dito”. A Dra. Fried conduziu-a até a porta, procurando tranqüilizá-la. Sabia, por experiência, que a versão da filha diferia radicalmente da apresentada pela mãe: a mãe desvelada, a filha agradecida. Se não fosse assim, a menina não estaria intemada. As concordâncias e contradições entre as duas versões da realidade permitiriam atribuir a verdadeira dimensão de profundidade a uma das interpretações.

Ao deixar o consultório, Esther estava convencida de que não conseguira explicar devidamente sua posição. Tinha a impressão de que, ao tentar ajudar, acabara interferindo. O hospital dera permissão para sair com Déborah sozinha. Iriam juntas a um cinema, jantariam na cidade e depois conversariam. ”Juro - prometeu mentalmente a Déborah - juro que não vou usá-la. Não vou perguntar o que fizemos ou o que não fizemos.”

Passou no hotelzinho onde estavam hospedados para dizer a Jacob que Déborah ainda se recusava a vê-lo. A doutôra sugeriu que não insistissem com a filha, pois achava que essa decisão não representava tanto um desapreço a Jacob, mas uma tentativa, tímida e desorientada, de tomar suas próprias decisões. Esther interpretou aquilo como uma conciliação, mas ficou calada. ”Pobre Jacob, aqui estou eu no meio de novo, encarregada de transmitir a bofetada.”

Jacob protestou, mas acabou aceitando. Mais tarde, contudo, Esther viu-o no fundo do cinema, com os olhos pregados em Déborah. E ao saírem, viu-o novamente escondido na sombra, observando-as. Quando entraram no restaurante, Esther voltou a localizá-lo, parado na esquina, tremendo de frio no âmago daquela noite de inverno.

- Conte como era sua vida antes de você vir para o hospital - pediu a doutÔra.

Minha mãe já lhe contou tudo - respondeu Déborah asperamente, das altas e gélidas regiões de seu reino.

- Sua mãe contou o que ela deu, não o que você recebeu; o que ela viu, não o que você viu. Falou, por exemplo, sobre aquele tumor.

- Ela não sabe muito a respeito disso.

- Diga então o que você sabe.

Tinha cinco anos na época, idade suficiente para morrer de vergonha quando os médicos meneavam a cabeça referindo-se ao mal que a roía por dentro, justamente sua parte mais feminina e mais secreta. Penetravam com suas sondas e agulhas na região proibida, como se toda a realidade de seu corpo se resumisse naquela coisa perversa que estava escondida lá. Na noite em que ouviu o pai discutindo os planos para intemá-la no dia seguinte no hospital, voluntariosa como era, ardeu de ódio, sentindo-se usada, manipulada como um objeto. Naquela mesma noite, teve um pesadelo: sonhou que a devassavam à força, como se estivessem saqueando um quarto: desmontaramna, esfregaram, limparam cada uma de suas partes com sabão em pó, e em seguida, remontaram-na, morta mas apresentável. Houve, mais tarde, outro sonho com um vaso despedaçado, cuja flor representava sua própria vitalidade destruída. Depois dos sonhos, ela se afogou num silêncio mudo e atordoado. Os pesadelos só não tinham anunciado a pavorosa dor que viria a sentir.

- Fique quietinha agora. Não vai doer nada - foi o que disseram. Logo depois veio a ferroada da agulha. - Está vendo, vamos fazer a sua bonequinha dormir. - A máscara baixou, sufocando-a com a substância adocicada e enjoativa do sono.

- Que lugar é esse? - ela perguntara assustada.

- A terra dos sonhos - responderam e em seguida comeÇaram a cauterização insuportavelmente longa e dolorosa da Parte proibida.

Certa vez, virou-se para um deles, um médico intemo visivelmente perturbado com seu sofrimento e perguntou: - Por que vocês todos contam mentiras tão horríveis? Ele respondeu:

- Oh, você então não vai ficar com medo? - Dias depois, imobilizaram-na mais uma vez sobre aquela mesa e disseram:

- Agora nós vamos consertar você direitinho. - Para ela aquilo significava que iam assassiná-la, e de novo apelavam para o engodo mais do que óbvio da boneca.

Quanto desprezo deviam sentir para mentirem daquele jeito! Quer dizer então que era pior do que um assassinato? - O que haveria naquelas cabeças malucas, naquelas cabeças assassinas, para que ficassem hipocritamente perguntando ”tudo bem”? E depois, em meio à dor brutal: ”Como vai sua bonequinha?”

À medida que contava, ia observando a reação da Dra. Fried. Estava curiosa para saber se, num mundo onde as pessoas ligavam tão pouco umas às outras, seu passado despertaria algo mais do que aborrecimento. Para sua surpresa, o rosto da doutôra estava contraído de raiva e a voz carregada de indignação, em protesto por aquela menina de cinco anos sofrendo ali à frente das duas.

- Que cretinos! Quando é que aprenderão a não mentir para as crianças! Que horror! - exclamou e pôs-se a apagar o cigarro impaciente e irritada.

- Quer dizer que você não vai ficar indiferente. . . - disse Déborah, tateando cautelosamente o novo terreno.

- Não, não vou! Pode estar certa disso! respondeu a doutôra.

- Então vou contar uma coisa que mais ninguém sabe. Nunca disseram que estavam arrependidos, nenhum deles. Por terem penetrado em mim sem a menor consideração, por terem me obrigado a suportar toda aquela dor e a vergonha de sentila, por terem mentido tanto e de modo tão estúpido, mentiras que para mim soavam como deboche. Nunca pediram que eu perdoasse a eles por essas coisas e nunca perdoarei a eles.

- Como assim?

- É porque nunca perdi o tumor. Continua lá, continua me comendo por dentro. Só que agora é invisível.

- Isso pune a você, não a eles.

O upuru nos pune, a eles e a mim.

- Upu o quê?

Yr irrompera de repente, e ela compreendeu, horrorizada, que um de seus segredos acabara de escapulir para o mundo, para o consultório ensolarado e sua mobília traiçoeira. A linguagem de Yr era um segredo ciosamente guardado, tanto mais inacessível às pessoas quanto mais rígido fosse o controle da voz interior. O termo Upuru nomeava em Yr a síntese das lembranças e das ”emoções” daquele último dia no hospital, desde quando todas as coisas se tomaram cada vez mais cinzentas e obscuras.

- O que foi que você disse? - insistiu a doutôra. Era tarde. Déborah batera asas, fugindo assustada para Yr, que se fechou sobre ela como um oceano, sem deixar vestígios de sua passagem. A superfície voltou à tranqüilidade. Déborah não estava mais ali.

- A Dra. Fried contemplou-a longamente, distante das palavras, das razões ou de qualquer possibilidade de alívio, “Como os doentes sentem medo”, pensou consigo mesma, ”da força incontrolável que possuem! Por alguma razão, não conseguem acreditar que são apenas pessoas, donas de um ressentimento puramente humano!”

Dias depois, Déborah retcomou ao Mundo Intermediário, de onde podia conviver com a Terra. Estava no corredor da ala, sentada com Carla e algumas outras meninas.

- Você tem o privilégio de ir à cidade? - perguntou Carla.

- Não, mas me deixaram sair quando minha mãe veio aqui.

- A visita foi boa?

- Acho que foi. Ela não conseguiu se controlar e acabou insistindo para que eu falasse sobre os motivos da minha doença. Mal nos sentamos e a coisa transbordou como uma enxurrada. Eu tinha certeza que ela ia perguntar, mas não pude dizer nada; e mesmo que eu soubesse, não diria.

- Há momentos em que odeio as pessoas que me fizeram ficar doente - declarou Carla. - Dizem que a pessoa deixa de odiá-los depois de algum tempo de terapia, mas acho que isso é ”furado”. Além do mais, meu inimigo está acima do ódio ou do perdão.

- Quem é? - perguntou Déborah, descrente de que pudesse existir um único inimigo.

- Minha mãe - respondeu Carla sem titubear. - Ela deu um tiro em mim, no meu irmão e depois em si mesma. eles morreram, eu sobrevivi. Meu pai se casou de novo, e eu fiquei doida.

Palavras cruas, palavras impiedosas, despidas de eufemismos bem educados. Impiedade, crueza: duas regalias importantes do hospital, utilizadas ao máximo por todos. Para aqueles que nunca ousaram pensar em si mesmos, a não ser em segredo e como indivíduos estranhos e excêntricos, a liberdade significava liberdade para ser doido, pancada, biruta, lunático e, num plano mais sério, louco, insano, demente, fora de si. Havia toda uma hierarquia de privilégios para gozar dessas liberdades. As intemas na Ala D, mulheres que viviam gritando, com um olhar sempre esgazeado, eram chamadas pelos outros de ”doentes” e por si mesmas, de ”loucas”. Só elas tinham o direito de se referirem a si mesmas pelos termos mais extremos da escala, tais como ”insanas” e ”loucas”, sem caírem em contradição. As alas mais tranqüilas, A e B, ocupavam o nível inferior daquela escala de valores invertida e só podiam reivindicar as categorias mais leves: biruta, maluco, pirado. Tratava-se de uma norma criada espontaneamente pelos pacientes, e que os recém-chegados aprendiam sem que ninguém precisasse ensinálos. Desse modo, uma paciente da Ala B que se dissesse ”louca” passaria por faroleira. Depois que soube disso, Déborah compreendeu a reação desdenhosa de Kathryn, uma menina de olhos lânguidos e modos agressivos, quando uma enfermeira disse para ela: ”Ora vamos, você está ficando perturbada!” ”Eu não estou perturbada. Eu estou pirada!” - respondera a mesma.

Fazia já dois meses que Déborah estava no hospital. Novos pacientes tinham chegado, outros subido para a Ala D (a dos ”insanos”) e alguns transferidos do hospital.

- Daqui há pouco, vamos acabar veteranas - comentou Carla. - Velhas lavradoras dessa estranha colônia penal. - E talvez fosse verdade. Excetuando-se a D, o lugar já não assustava Déborah. Fazia tudo o que mandavam e, afora aquela instieadora de horrores, a Dra. Fried, na sua casinha branca de aparência tão pacata, o Censor vinha interferindo de forma bastante branda.

Quanto tempo leva para sabermos se nos daremos bem ou não? - perguntou Déborah.

Meninas, vocês ainda estão na fase da lua-de-mel - aparteou uma garota, sentada perto delas. - Leva mais ou menos três meses. Estou ”por dentro”. Já passei por seis hospitais. Fui analisada, paralisada, eletrocutada, sacudida, revolvida, tomei metrazol, amatil e sei lá mais o quê. Só me falta agora uma lobotomia, aí esgoto todos os recursos. Nada disso adianta, nem essa droga de lugar nem nada. - Ela se levantou, com gestos dramáticos de condenada, e se afastou. Lactamaeon, segundo personagem mais importante de Yr, segredou: Para que se faça de condenada, a vítima tem de ser linda, caso contrário o drama se toma uma comédia ridícula. Tu que não és linda. . .

Mate-me, senhor, sob a forma de uma águia, implorou Déborah no idioma de Yr. - Há quanto tempo ela está aqui? - perguntou a Carla no idioma da Terra.

- Mais de um ano, acho.

- E isso. . . é para sempre?

- Não sei.

O inverno chegou. Dezembro. As janelas emolduravam os galhos nus e enegrecidos das árvores. Na sala de estar, um grupo decorava uma árvore de natal. Cinco pertenciam à equipe médica e dois eram pacientes. Meu Deus, que esforço faziam para que o hospício se parecesse com um lar! Puro faz-de-conta. Os risos pendiam no ar tão artificiais quanto os enfeites na árvore (nenhum vidro, nenhuma extremidade ponteaguda, por sinal) e, aos olhos de Déborah, tinham pelo menos a decência de se mostrarem embaraçados. Enquanto isso, na casa da doutôra, sua história ia se arrastando, cheia de retiradas, camuflagens e defesas. Excetuando-se o convívio com Carla e Marion na ala, ia se afastando de tudo e de todos no mundo, inclusive da voz exterior que a substituía e respondia por ela quando desejava se recolher a Yr.

- Não consigo descrever a sensação - disse à doutôra. Pensou nas metáforas Yri, a que costumava recorrer quando queria descrever para si mesma e para os personagens de Yr os seus desejos. Era freqüente, nos últimos anos, acorrerem-lhe pensamentos e acontecimentos, os quais não tinha com quem compartilhar - no mundo inóspito à sua volta. As planícies, os abismos e os picos de Yr começaram então a gerar um vocabulário cada vez mais rico, que conseguia exprimir suas estranhas agonias e seus momentos de grandeza.

- Deve haver algumas palavras - insistiu a doutôra. - Procure lembrar para que possamos compartilhá-las juntas.

- São metáforas... você não entenderia.

- Talvez você possa explicá-las.

- Existe uma palavra. Significa Olhos Trancados, mas quer dizer muito mais.

- O quê?

- Corresponderia a sarcófago. - Isso significava, para Déborah, que, em determinados momentos, o alcance de sua visão não ultrapassava a cobertura do sarcófago onde estaria encarcerada. Para ela, assim como para os mortos, o mundo se reduzia à dimensão de seu próprio ataúde.

- com os Olhos Trancados... você consegue me ver?

- como uma gravura apenas, uma gravura de alguma coisa que é real.

Aquela conversa estava deixando Déborah terrivelmente amedrontada. As paredes começaram a pulsar de leve, como um coração. Anterrabae pôs-se a recitar uma fórmula de encantamento em Yri, mas ela não conseguiu entender.

- Espero que sua curiosidade esteja satisfeita - disse para a doutôra, que se recostara na cadeira.

- Não quero assustá-la, Déborah - retrucou a doutôra, para quem as paredes não estremeciam. - Só que ainda há muito por fazer. Eu gostaria de lhe perguntar, já que falamos sobre as operações do tumor, como foi que o mundo de repente ficou cinza depois disso, e o que se passou no resto daqueles primeiros anos.

Era difícil falar com um vulto parcialmente submerso, no cinza que cobria tudo fora de Yr. O passado, no entanto, lhe trazia uma dolorosa sensação de perda e aflição; se a doutÔra pudesse decifrá-la, talvez ficasse mais fácil suportar a memória. Déborah começou a revolver lembranças, e para onde olhasse, ”via fracasso e confusão. Mesmo no hospital, onde anos atrás o tumor fora extirpado com tanto sucesso, de certa forma não estivera à altura do jogo deles. Suas regras não passaram de mentiras, de tramóias, e por mais consciente que estivesse delas, não soubera se comportar no jogo, isto é, fechar os olhos e crer. A convalescença também não passou de uma grande farsa, já que a própria doença continuava existindo.

Quando sua irmã Suzy nasceu, só conseguira enxergar naquele ser intruso um monte de rugas com um rosto vermelho, que berrava e cheirava mal. Os parentes, contudo, se apinhavam em volta do berço, expulsando-a, maravilhados com a beleza e a delicadeza da recém-nascida. Ficaram chocadíssimos e revoltados com o que, para Déborah, era uma verdade mais do que evidente: achava feia aquela coisa, não a amava, nem lhe passava pela cabeça que viesse a ser sua companheira.

- Mas ela é sua irmã! - exclamavam indignados.

- Não fui eu quem fez! Não ajudei a tomar a decisão de fazê-la.

Esse comentário marcou o início do incômodo da família em relação a Déborah. Uma observação inteligente e bastante precoce para uma menina de cinco anos, disseram, mas fria, quase cruel. Honesta sem dúvida, ponderaram, mas fruto do ódio e do egoísmo, e não do amor. com o passar dos anos, as tias e os tios foram se afastando de Déborah. Continuavam orgulhosos dela, mas não carinhosos. Quanto a Suzy, que veio saltitando atrás com uma radiante e despreocupada doçura, menina sempre com ares de moça, foi amada sem reservas.

Como se estivesse possuída por um demônio, a maldição transbordou do corpo e da boca de Déborah, para nunca mais abandoná-la. Por cáüsa da operação, só começou a freqüentar a escola tarde e foi rejeitada das primeiras amizades e grupos que suas coleguinhas tinham formado em sua ausência. A mãe, boa e aflita, pressentindo a desgraça inevitável, tcomou conta da questão: fez-se anfitriã das meninas do grupo mais popular. Déborah ficou tão ressentida com isso, que foi incapaz de fazêla desistir. Quem sabe se, sob os auspícios de uma mãe adorável, Déborah, por mais negada que fosse, não seria tolerada. E foi mais ou menos isso o que aconteceu. Na vizinhança, porém, os códigos seculares da fortuna ainda vigoravam, e a ”judia imunda”, que por si mesma já se considerava imunda, constituía alvo ideal para os provocadores do quarteirão. Um deles morava na casa ao lado. Sempre que a encontrava, lançava-lhe ao rosto, do alto de sua nobreza, a maldição predileta: judia, judia, judia imunda; minha avó odiava tua avó, minha mãe odeia tua mãe, eu te odeio! Três gerações de ódio! Aquelas palavras tinham uma ressonância especial, até mesmo ela era capaz de perceber. E no verão ia para a colônia de férias.

Diziam que ali não havia preconceito, o que bem poderia ser verdade, já que as diferenças entre os vários cultos protestantes da classe média sempre foram extremamente sutis; mas o fato é que ela era a única judia. Rabiscavam palavras ofensivas nas paredes especialmente as da privada (onde, certa vez, a menina feia do tumor gritara ao sentir a urina queimando por dentro).

No entanto, não eram só aquelas crianças que a odiavam. Algumas vezes Déborah já ouvira falar que um homem chamado Hitler, na Alemanha, matava judeus por mero prazer e maldade. Lembrava-se bem da cena que presenciou um dia, na primavera, antes de sua partida para a colônia: seu pai chorava, com a cabeça apoiada na mesa da cozinha; lágrimas terríveis e pungentes de homem, por causa dos ”tchecos-e-os-poloneses”. Nas férias, um professor de equitação da colônia declarou brutalmente que Hitler fazia pelo menos uma coisa boa, eliminando aquele ”povo imundo”. Depois de ouvir isso, ficou imaginando se eles todos não teriam tumores.

O mundo de Déborah apoiava-se na certeza de que era vítima de uma maldição ináta, e na crença fervorosa, ao mesmo tempo doce e amarga, em Deus, nos tchecos e nos poloneses. Era um mundo carregado de mistérios, farsas e conturbações. O entendimento dos mistérios eram as lágrimas. A realidade oculta pelas farsas era a morte. As conturbações eram combates travados em segredo, nos quais os judeus, isto é, Déborah, sempre perdiam.

Foi na colônia que descobriu Yr pela primeira vez, mas decidiu não contar isso à doutôra, nem falar sobre os Deuses, o Coletor e seus vastos reinos. Estivera completamente absorta narrando esses acontecimentos. Ao voltar ao presente, viu a indignação estampada no rosto expressivo da médica. Quis agradecer àquela mulher por se mostrar capaz de se emocionar até o ódio.

- Eu não sabia que as pessoas na Terra eram dotadas de interior - disse pensativamente; sentia-se exausta.

Quando voltou à ala, estava inteiramente sob o domínio de Yr. Sentou-se numa cadeira desconfortável e ficou escutando os gemidos e os gritos do Coletor, e os urros oriundos dos níveis mais baixos dos reinos de Yr. Escuta, Pássaro-um; escuta, Cavalo-selvagem-um; não és como os outros! As palavras em Yri anunciavam a etema retirada. Olhe para mim! chamou Anterrabae caindo. Brincas com o Abismo de um modo muito perigoso. Estás beirando a tua destruição, cutucando aqui e ali com o dedinho para ver o que acontece. Assim, acabarás quebrando o sigilo. Vais sucumbir.

Tu não és dos nossos, ralhou ao fundo o Coletor. Tu nunca foste como os outros, nunca! és inteiramente diferente, disse Anterrabae.

Essas palavras infundiram nela uma profunda e duradoura sensação de alívio. Alegre e silenciosamente, Déborah se aventurou a confirmar essa distância, a brecha que se abria para diferenciá-la dos outros. Guardava consigo a tampa de uma lata de conservas, recolhida num de seus passeios, sabendo e não sabendo ao mesmo tempo o que pretendia fazer com ela. As bordas eram denteadas e cortantes. Rasgou o antebraço, com o o metal, e ficou observando o sangue escorrer dos seis ou sete sulcos abertos até abaixo do cotovelo. Não sentiu dor, apenas a sensação desagradável causada pela resistência da carne. Rasgou de novo o antebraço, acompanhando minuciosamente os sulcos originais. Agia com meticulosidade, aprofundando os cortes, indo e voltando umas dez vezes seguidas, até que o braço ficou reduzido a uma posta ensangüentada. Só então se recostou e dormiu.

- Onde está a Blau? Não encontro o nome dela aqui.

- Ah, você não sabe? Foi transferida para a ala dos ”Perturbados”. Cafés entrou no quarto hoje de manhã para acordá-la, e encontrou uma bagunça incrível: os lençóis e o rosto dela empapados de sangue, e o braço cortado com uma tampa de lata. Um horror! Deram-lhe uma injeção antitetânica e colocaram-na direto no elevador.

- Engraçado.. . Nunca achei que aquela guria estivesse realmente doente. Sempre que nos cruzávamos, pensava: lá vai a menina rica. Andava como se estivéssemos muito abaixo dela para que se dignasse a nos olhar. Tudo estava abaixo dela. E o jeito sarcástico de falar; não propriamente o que dizia, mas a frieza. Uma guria rica e estragada, só isso!

- Nunca se sabe o que se passa dentro delas. Os médicos dizem que são todas doentes mesmo, que precisam ficar aqui, e que as sessões de terapia são muito difíceis.

- Essa vaquinha sofisticada nunca fez nada difícil na vida.

Déborah estava apavorada na Ala dos Perturbados. As últimas pretensôes a conforto e normalidade acabavam de ser suprimidas. As mulheres passavam o dia empertigadas em cadeiras nuas e incômodas, ou sentadas e deitadas no chão. Umas viviam mudas, outras não paravam de resmungar sozinhas, algumas tinham acessos de cólera. As enfermeiras e as serventes da ala eram corpulentas, pesadas, musculosas. O que a intrigava, porém, é que o lugar apresentava um aspecto ao mesmo tempo assustador e reconfortante, num sentido que ultrapassava a finalidade por que estava ali. Déborah apoiou-se a uma janela - parecia uma máscara de esgrima, revestida de grades e telas - e começou a pensar febrilmente, tentando desvendar aquele mistério.

Uma jovem se aproximou por trás dela.

- Você está assustada, não está?

- Estou.

- Eu sou Lee.

- Enfermeira ou qualquer coisa no gênero?

- Lógico que não. Sou psicótica, como você. . . Isso mesmo, você é psicótica; todos scomos psicóticos.

O corpo dela era miúdo, os cabelos escuros, os gestos aflitos e ansiosos. Tinha sido capaz de olhar para fora de si mesma o bastante para perceber outro medo idêntico ao seu, e abordá-lo com a franqueza e a desinibição características do doente (coisa que ninguém da equipe médica conseguiria). ”É corajosa”, pensou Déborah. ”Eu poderia ter agredido essa moça até não poder mais.” Compreendeu num estalo o que havia afinal de reconfortante na Ala D: ali as pessoas estavam dispensadas de manter os falsos bons modos, ou de respeitar as incompreensíveis normas de conduta da Terra. Quando sobreviessem as perdas de visão, as violentas dores do tumor fictício, ou o Abismo, ninguém diria: ”O que é que as pessoas vão pensar?” Seja educado! Não faça escândalo!”

Na cama vizinha à sua, dormia a 3ª esposa secreta de Eduardo VIII, rei que abdicara do Trono da Inglaterra. Dizia que tinha sido intemada (tratava-se de uma Casa de Prostituição) pelos inimigos do antigo rei. Depois que a enfermeira trancou os objetos pessoais de Déborah na pequena cômoda embutida, a mulher - que estava sentada na cama discutindo sua estratégia com a figura invisível do Primeiro-Ministro - levantou-se e veio toda compungida para o lado de Déborah.

- Você é tão jovem para estar nessa casa de pecado, minha querida. E ainda deve ser virgem. Os miseráveis me violentam todas as noites desde que cheguei - disse ela e voltou à sua discussão imaginária.

- Onde posso encontrá-lo a sós aqui? - Déborah perguntou a Lactamaeon e seus pares.

Sempre se dá um jeito, trovejou Yr. Não viremos abarrotar o local onde se reúnem os convidados dessa antiesposa anti-secreta do abdicante Rei da Inglaterra! Soltou uma sonora gargalhada. O Abismo estava muito perto.

- Escoltada? - perguntou a doutôra, olhando zombeteiramente para a auxiliar que acompanhava Déborah.

- Agora ela está lá em cima, na Ala D - respondeu impassível a auxiliar, saindo em seguida do civilizado, pacato e traiçoeiro consultório.

- O que foi que aconteceu? - A doutôra reparou no olhar desnorteado e no medo, que davam à fisionomia de Déborah um estranho ar de truculência. Déborah sentou-se, meio curvada sobre o abdômen vulnerável e á região inferior, protegendo o tumor que ameaçava despertar ao menor estímulo.

- Foi algo que eu tive que fazer. Arranhei um pouco o braço, só isso.

A doutôra encarou-a atentamente: esperava um sinal qualquer que denunciasse qual o grau de honestidade que ela estava disposta a empenhar na terapia.

- Mostre. Mostre o braço.

Déborah arregaçou a manga, rubra de vergonha.

- Meu Deus! - exclamou a doutôra, com seu sotaque engraçado. - Isso vai dar uma cicatriz horrível!

- É claro! Todos os meus parceiros de dança vão tremer de repugnância ao vê-la.

- Olhe, não é nada impossível que você venha a dançar um dia e a viver no mundo de novo. Você que se meteu numa grande encrenca, não sabe? Já é hora de me dizer, sem esconder nada, o que foi que levou você a fazer essa coisa aí.

Déborah notou que ela não estava nem assustada, nem escandalizada, que não procurou ridicularizá-la, nem recorreu às mil e uma expressões desastrosas que as pessoas habitualmente empregavam quando a surpreendiam perturbada. Mostravase apenas absolutamente séria. Decidiu então falar sobre Yr.

Houve um tempo - e era estranho pensar nisso agora - em que os deuses de Yr foram companheiros, verdadeiros príncipes com quem partilhava em segredo sua solidão, fosse na colônia, onde a odiavam, fosse na escola, onde sua excentricidade, no correr dos anos, só fez marginalizá-la. Quanto mais profunda a solidão, maior o espaço que Yr ocupava em sua vida. Ia ao encontro das divindades, douradas e risonhas, como quem vai ao encontro de seu anjo-de-guarda. Mas alguma coisa mudou. De uma fonte de beleza e proteção, Yr se transformou em fonte de medo e dor. Pouco a pouco, Déborah foi sendo forçada a mitigar, a apaziguar e, finalmente, a renunciar a seus privilégios de soberana de um reino luminoso e consolador, para assumir a figura de prisioneira das regiões mais tenebrosas de Yr. De rainha entre deuses, nos dias do alto calendário, ficou reduzida às piores humilhações e desgraças nos do baixo calendário. Como se não bastasse, passou a ter que suportar as atormentadoras transições entre os mundos, a ter que arcar com as ofensas do mundo, proclamadas em salmos pelo Coletor, a ter que ser súdita e escrava do Censor. O Censor fora incumbido de impedir que Yr espalhasse suas misteriosas sementes sobre a Terra, onde germinariam, floresceriam e desabrochariam, expondo sua loucura para que o mundo inteiro, ao contemplá-la, recuasse horrorizado. Uma vez empossado no cargo de guardião, foi se tomando aos poucos um verdadeiro tirano, com jurisdição sobre os dois mundos. Déborah encontrou na crueldade de Yr, por incrível que pareça, a prova irrefutável de que ele existia, pois isso o igualava ao mundo, cujas promessas redundavam em trapaças e cujas vantagens e privilégios, no final das contas, só traziam desgraça e agonia.

O encanto fez-se necessidade, a necessidade fez-se coerção, a coerção fez-se tirania implacável.

- E existe uma linguagem própria? - perguntou a doutôra, lembrando-se dê certas palavras fascinantes que provocavam um retraimento imediato.

- Existe - disse Déborah. - É uma linguagem secreta, por isso às vezes uso uma linguagem meio latinizada em seu lugar, mas que não passa de uma cortina de fumaça.

- Você não pode usar a linguagem verdadeira o tempo todo?

Déborah riu da pergunta absurda.

- Seria como dar a um vagalume a potência luminosa dos raios.

- No entanto, você parece bastante competente no uso do inglês.

- O inglês é para o mundo, para comunicar decepção e ódio. Yri é para dizer o que deve ser dito.

- Que linguagem você emprega quando desenha, quero dizer, você imagina o que vai desenhar em inglês ou em iiri?

- iri.

- Desculpe - disse a doutôra. - Talvez eu sinta um pouco de ciúme pelo fato de você usar essa linguagem exclusivamente para se comunicar com você mesma e não conosco, os do mundo.

- Pratico minha arte nas duas línguas - disse Déborah, percebendo a ameaça e o pedido implícitos nas palavras da doutôra.

- Bem, por hoje chega - anunciou a doutôra gentilmente. - Você fez bem em me falar sobre seu mundo secreto. Quero que volte e diga a esses deuses, ao Coletor e ao Censor, que não conseguirão me intimidar e que nenhuma de nós vai deixar de trabalhar, por mais poderosos que eles sejam.

Déborah voltou para o hospital com a auxiliar. Estava pasmada. Q primeiro segredo fora aberto e, mesmo assim, o dia continuava dia. Nenhum rugido de Yr. Às suas costas, trancaram a última porta de acesso à ala. Começavam a servir o almoço. Houvera uma troca de enfermeira-chefe na ala, e a nova estava distribuindo colheres de metal em vez das de madeira. Faltavam duas para receber as suas, quando Doris, uma menina recém-chegada, desatou a rir. ”Calma, pessoal! Calma!” Estas foram, por algum tempo, as últimas palavras que Déborah ouviu da Terra. Houve como que uma dobra no tempo.

Como está se sentindo? perguntava o administrador da, Ala D. Déborah tinha grande dificuldade de falar. Descreveu com as mãos os movimentos agitados de uma onda. Enxergava mal também.

- Você parece um bocado assustada - Comentou ele. Como um prolongamento do gesto, começou a ouvir o marulhar de ondas em ressaca. Após uma pausa, voltou a ouvir a voz dele:

- Você conhece o envoltório de lençol-frio? Vou providenciar um para você. No início é incômodo, mas depois de algum tempo, acalma. Não dói nada, não se preocupe.

Cuidado com essas palavras. . . são exatamente as mesmas. O que vem depois é a decepção e. . . A dor violenta irrompeu do tumor e jogou-a ao chão; ela se contorceu toda. O terror, como uma veia que se rompe, espraiou-se dentro dela; tudo se cobriu de trevas. A crise explodiu mais poderosa do que Yr.

Recuperou a consciência pouco depois, mas seus sentidos continuaram embotados. Percebeu vagamente que estava deitada numa cama, nua, sobre um lençol frio e úmido. Estenderam outro por cima dela e esticaram-no firmemente. Sentiu então que a rolavam de um lado para o outro, envolvendo seu corpo em outros lençóis. Apertaram, repuxaram, obrigando-a a expelir o ar, e pressionando-a com força contra a cama. Voltou a mergulhar na inconsciência antes que pudesse assistir ao final daquelas operações.

Horas depois, Déborah emergiu do Abismo com suas percepções límpidas como uma manhã de sol. Continuava embrulhada e completamente imóvel dentro daquele ”casulo”. Seu próprio calor aquecera os lençóis na temperatura de seu corpo. Quanto mais se contorcia e se agitava, mais quente ficava o casulo, e quanto mais quente, menos energia lhe sobrava. Mexeu um pouco a cabeça, no único movimento possível. Estava exausta.

Passado algum tempo, entrou um homem.

- Está se sentindo bem?

- Como? - Virou-se surpresa. - Há quanto tempo estou aqui?

- Mais ou menos três horas e meia. Quatro horas é a média. Se continuar bem, soltaremos você dentro de meia hora.

O homem saiu. As juntas doíam por causa da pressão dos lençóis. Tinha, contudo, recuperado inteiramente o senso de realidade. Estava surpresa por ter emergido de regiões tão fundas sem qualquer angústia.

Após um tempo que lhe pareceu eterno, vieram soltá-la. Aproveitou a liberdade para estudar a forma daquele casulo. Um saco de gelo sob a nuca, outro de água quente nos pés; lençóis esparramados por cima e por baixo dos panos que a envolviam como uma múmia; sobre os lençóis, três correias de lona, largas e compridas, firmemente retesadas, atravessando o estômago e os joelhos, e presas nos dois lados da cama; uma quarta correia, amarrando seus pés, muito esticada e presa com ganchos nos pés da cama; envoltórios eram lençóis enormes enrolados em volta do corpo: três superpostos como folhas brancas e úmidas, e o último prendendo, no interior, os braços ao corpo.

Déborah sentia se extremamente fraca. Foi difícil levantar e andar, mas o importante é que tinha recuperado sua noção de estar no mundo. Vestiu-se e voltou para a cama. A antisecreta antiesposa do abdicante rei da Inglaterra mostrou-se toda solícita:

- Pobre ”vaquinha” Eu vi tudo que fizeram com você só porque não quis dormir com aquele médico nojento! Amarraram você para que não se mexesse, então ele entrou e violentou você.

- Um privilégio e tanto, hein! - respondeu Déborah mordaz.

- Não minta para mim! Você está falando com a antisecreta antiesposa do abdicante Rei da Inglaterra! - gritou ela, zangada. Mas seus fantasmas vieram acalmá-la, e pôs-se a conversar com eles, imitando as tagarelices da nobreza, e o tinir das xícaras de chá. Por simples cortesia, apresentou Déborah, em cuja pele as marcas deixadas pelos lençóis só agora começavam a desaparecer:

- Esta é a putinha sobre quem eu tinha falado a vocês. . .

Perturbada. . . o que quer dizer perturbada? - indagou

Esther Blau, voltando a olhar o relatório. Em seu íntimo ansiava que a palavra, num passe de mágica, tivesse mudado, que alguma outra viesse modificá-la, convertê-la no fato agradável pelo qual tanto almejava. Em sua linguagem impessoal e breve, o relatório mensal aconselhava paciência. No entanto, os fatos contidos ali não deixavam margem a dúvida, e a assinatura era de outro médico, o administrador da Ala dos Perturbados. Imediatamente Esther escreveu uma carta para o hospital e, dias depois, recebeu a resposta desaconselhando a visita.

com um medo que beirava o pânico, Esther voltou a escrever agora para a Dra. Fried. Insistia em sua ida, não para ver Déborah, já que o hospital julgava inconveniente, mas para discutir com os médicos a mudança. A resposta era uma tentativa, honesta sem dúvida, de reconfortá-la. Aconselhava também que tivesse paciência. Claro que, se ela e o marido julgavam necessário vir, marcariam as entrevistas. Ressaltava, porém, que o aparente revés não constituía razão para que ficassem ansiosos.

Lembrando-se dos gritos que escutara, vindo daquelas janelas altas, revestidas de grades duplas, um calafrio percorreu sua espinha. Só depois de ler e reler várias vezes a carta, Esther conseguiu isolar suas implicações mais sutis, como uma mensagem cifrada. Concluiu que deveria impedir que seu medo, ou o de Jacob, interferissem no que estava acontecendo com a filha. Era melhor resignar-se e esperar. Guardou a carta e o relatório junto com os anteriores e não voltou mais a olhar para eles.

- Eu me pergunto se não há um padrão de conduta.. . - disse a Dra. Fried. - Você expõe um segredo a nossos olhos, depois fica tão apavorada que foge para se esconder no pânico ou em seu mundo misterioso. Aqui ou ali.

- Pare com esses trocadilhos - zangou-se Déborah, e ambas riram.

- Pois bem, conte-me como é o ritmo desses seus distúrbios Observava Déborah atentamente, tentando penetrar naquele mundo que já fora um esconderijo fechado sobre si mesmo, para se tomar, de repente, sombrio e cinza, uma tirania cujos tiranos tinham que ser incansavelmente aplacados.

- Um dia - começou Déborah - voltando da escola para casa, Lactamaeon veio a mim e disse: Três Mudanças e Seus Espelhos, e depois a Morte. Ele falava em Yri, e em Yri a palavra que significa morte significa também sono, loucura e o Abismo. Eu não sabia qual dos significados era. A primeira mudança, isso sim eu sabia, foi sair do hospital e voltar para casa depois da suposta extirpação do tumor. O espelho dessa mudança era a flor partida que vi anos mais tarde. A segunda mudança foi a humilhação que sofri na colônia, e seu espelho, o episódio do carro quando eu estava com quatorze anos. A terceira foi justamente a mudança para a cidade, e seu espelho, já previsto, fez com que a profecia se tomasse realidade. Se foi cortar os pulsos ou vir para cá, não sei, o fato é que se realizou a morte anunciada por Lactamaeon.

- Duas das mudanças ocorreram antes que o deus, ou seja lá o que for, as anunciassem, não é?

- Mas não a terceira, nem os espelhos. - E ela começou a explicar como profecia e destino, entretecidos, formavam a textura de seu mundo interior.

Quando o tumor foi removido, a família ficou eufórica. No carro, ao transportarem-na para casa, todos riam e brincavam. Lá fora caía uma chuvinha fina. Déborah, ajoelhada no banco de trás, olhava o céu pesado e cinza, as ruas molhadas onde as pessoas caminhavam apressadas, levantando a gola dos capotes para se protegerem da chuva. A realidade não era o carro, nem a mãe que cantava, tampouco a animação do pai, mas aquele céu chuvoso, sombrio e extenuado. Ocorreu-lhe que o cinza era, e seria sempre, a cor de sua vida. Anos mais tarde, depois que outras sensações se cristalizaram entre ela e o mundo, Lactamaeon veio lembrar-lhe a revelação daquele dia.

Antes mesmo de ser intemada no hospital para a operação, teve um sonho: um quarto branco - a imagem que fazia de um quarto de hospital - e uma janela aberta que descortinava um céu azul e luminoso, onde flutuava uma nuvem branca compondo formas curiosas. No parapeito da janela, havia um vaso onde crescia um gerânio vermelho. ”Vê?” - disse uma voz no sonho. ’Existem flores num hospital, e força também. Você viverá e será forte.” De repente, desfez-se no sonho a luminosidade do ar, e o céu que se avistava da janela tornou-se escuro. Uma pedra, arremessada de um lugar qualquer, despedaçou o vaso e partiu a flor. Ecoaram gritos. Déborah foi invadida pelo pressentimento de que algo horrível ia acontecer. Muitos anos depois, a estudante de arte - uma Déborah completamente mudada, amarga e cáustica - encontrou um vaso de flores caído e despedaçado na rua. A terra se espalhara em volta, e havia uma flor vermelha, emaranhada em suas próprias raízes, com o talo partido. Lactamaeon sussurrou a seu lado: - Vê! Vê! A mudança sobreveio. Eis o espelho da mudança. Está consumado! Mais duas mudanças e seus respectivos espelhos e, então, Imorth (palavra que significava morte, sono ou loucura; palavra que soava como um suspiro de desesperança).

A segunda mudança ocorreu com a humilhação sofrida aos nove anos de idade. Já freqüentava a colônia de férias havia três anos. Logo no primeiro dia, lutando ainda contra o que julgava ser a injustiça de lhe imputarem um estigma de nascença, denunciou duas meninas que, além de a ridicularizarem, se tinham recusado a passear com ela. O diretor da colônia lançou-lhe um olhar severo:

- Quem disse essas palavras a você: ”Nós não passeamos com judias fedorentas”? Claire ou Joan?

Era natural que, no primeiro dia, Déborah confundisse os nomes e as fisionomias daquela multidão de meninas.

- Claire - afirmou.

Só quando Claire foi chamada e negou calorosamente ter dito tal coisa, Déborah percebeu o erro. Claire se limitara a ouvir e concordar; a culpada era Joan.

- Claire nega. O que é que você tem a dizer agora?

- Nada! - A sensação de ruína se avolumava dentro dela. Abandonou a luta, não disse mais nada. À noite, acenderam uma fogueira, daquelas que as pessoas lembram anos depois com nostalgia e saudade, revivendo o clima de amizade e a inocência da juventude. O diretor proferiu um exaltado sermão, mencionando uma ”mentirosa” que há em nosso meio e que usa sua confiança para obter compaixão e envolver meninas inocentes em dificuldades; uma pessoa entre nós capaz de se rebaixar a qualquer maldade, a qualquer desonra!” Não dissera o nome, mas todos sabiam quem era.

Dias depois, enfim solitária consigo mesma, ouviu uma voz vinda de alguma parte, dizendo-lhe num tom suavemente fúnebre: Tu não és como os outros. Tu és um dos nossos. Procurou saber de onde vinha a voz, mas só encontrou o deslumbrante mosaico de folhas entremeadas de raios de sol. Não lutes mais contra as mentiras deles. És diferente. Ficou esperando que a voz falasse de novo, sua ausência a entristecia. Reencontrou-a mais tarde, ao erguer os olhos para a noite estrelada; a mesma voz, ricamente modulada, inaudível para os que caminhavam a seu lado, dizendo, como num poema: Se quiseres, podes ser nosso pássaro; voarás livre na melodia do vento. Podes ser um cavalo selvagem; sacudirás tua crina e expulsarás toda vergonha, todo opróbio.

A humilhação foi, portanto, a segunda mudança. Mas o nascimento dos deuses, as primeiras e cristalinas insinuações do que viria a ser Yr, relegaram-na a segundo plano. O ódio que as pessoas extemavam no mundo, em vez de feri-la, inesperadamente provava a veracidade de Yr. Via-se em seu espelho, de forma também inesperada, quando Anterrabae chamou-a para abandonar o grupo com que estava dentro de um carro, obrigando-a a fazê-los parar imediatamente para que saltasse. Na colônia de férias, o mundo fora capaz de retê-la horas e horas a fio; a partir de agora, porém, nada mais poderia contê-la: como se afirmava em Yr, agora ela pertencia a outra vida.

A terceira mudança foi justamente a mudança para a cidade. Esther ficou contentíssima com a idéia. Finalmente teriam casa própria, mesmo que um apartamento, e a filha encontraria amigas de sua idade. Déborah riu por dentro ao deixarem a casa antiga, certa de que a ruína os acompanhava inexoravelmente. Na cidade, o estigma fatal reluziria com brilho ainda maior, e os próprios impasses se tomariam mais claros. Enfim não poderiam mais atribuir o velho ódio e a solidão ao fato de serem judeus. Tinham se habituado à hostilidade que fervilhava na vizinhança antiga. Na cidade, porém, o novo desprezo e a nova solidão de fato sulcaram fundamente regiões virgens de seus sentimentos.

O espelho, dessa vez, se revelou numa outra situação embaraçosa: um professor de ginástica que a pusera em evidência com um comentário desdenhoso sobre sua falta de jeito. A violência do impacto fez com que ela despencasse no Abismo: três dias de pesadelo, surda e invisível para si mesma.

Uma tarde, então, pouco antes de seu décimo sexto aniversário, voltava do consultório de um médico, vítima de dores falsas de seu tumor falso. Anterrabae, Lactamaeon, o Censor e o Coletor, vinham todos em sua companhia. Em meio à algazarra que faziam, com suas exigências absurdas e grosseiras imprecações, Déborah, subitamente, se deu conta de que desperdiçara mais um dia. De modo inexplicável, houve novamente uma dobra no tempo, surgindo um outro tempo, onde um policial a perseguia. Quando ele a alcançou, perguntou-lhe o que é que tinha acontecido, de que estava correndo tão apavorada. Déborah garantiu que não era nada e, tão logo pôde, enfiou-se por um edifício a dentro para despistá-lo. Quando saiu de novo à rua, seus passos obedeciam ao ritmo lento e grave das batidas de um tambor. Aconteceu! Finalmente Imorth chegou! As batidas soavam longas e calmas. Sobreveio uma grande paz interior, pois já não era mais necessário lutar e resistir.

As três mudanças e os três espelhos, exatamente como Lactamaeon profetizara.

- Mas eu ainda não tinha certeza. Em matéria de decepção sou especialista, sabe. Inclusive, um de meus nomes em Yr é A Etema Decepcionada.

- Visto que duas das três mudanças ocorreram antes que os deuses começassem a existir, eu me pergunto se a sabedoria deles não chegou um tanto ou quanto atrasada. Pergunto-me também se eles não decepcionam você apenas para se sujeitarem à própria visão que você formou do mundo. - A doutôra inclinou-se para a frente na cadeira. Déborah estava visivelmente exausta do esforço que lhe custara a revelação de todas aquelas coisas, que sinceramente acreditava explicar suas motivações. Uma linguagem secreta que camuflava uma ainda mais secreta. Um mundo que dissimulava outro mundo. Sintomas que resguardavam sintomas muito mais densos (era cedo para devassálos), e estes por sua vez, que encobriam numa região muito mais funda o ardente desejo de viver. Sentia ganas de dizer aquela garota de olhar aturdido que a doença, embora afastasse e assustasse as pessoas, era antes de tudo uma forma de ajuste; que os mundos secretos - todos os mundos secretos - as linguagens, os códigos e os sacrifícios expiatórios não passavam de expedientes que ela manipulava para sobreviver num mundo anárquico e opressivo.

- Sabe... a grande desvantagem de estar mentalmente doente é o preço terrível que se tem de pagar para sobreviver.

- bom, mas pelo menos estar maluco é estar em algum lugar.

- Exatamente, mas isso não impede que outro grupo se forme em meio a outros grupos.

- Não! Não!

- A um preço terrivelmente alto, mas você não pode deixar de pertencer a outro grupo.

- Não pertenço & ninguém aqui! Nem a você nem ao mundo! Anterrabae me garantiu isso, há muito tempo atrás. Só pertenço a Yr! - Déborah sabia, no entanto, que talvez a doutôra tivesse um pouco de razão. Abrira a mente para as palavras delas, tal como um olho, acostumado à escuridão e protegido por cílios cerrados, que se abre cautelosamente à luz e, ofuscado por ela, se fecha tarde demais. A luz penetrara, inexoravelmente, ainda que o olho quisesse ter renunciado a ela. Era tarde demais para não ver. Sentia-se, afinal, ”em casa” na Ala D, como nunca se sentira antes e, pela primeira vez, como um ente reconhecível e definido: uma das loucas. Agora dispunha de um letreiro para mostrar.

Terminada a sessão, a Dra. Fried foi à cozinha preparar um café. Espelhos e mudanças! Por acaso, todos os olhos humanos não serão espelhos que deformam? Via-se, pela enésima vez, colocada entre duas verdades conflitantes. O que a deixava admirada era como divergiam, apesar do amor e das experiências compartilhadas durante tantos anos. Depois da questão do tumor e do anti-semitismo da colônia de férias, deve ter começado a solidão, pemiciosa e maligna solidão, terreno propício para a doença mental. Todo o amor dado por Esther foi reinterpretado por Déborah. Se a filha se julgava condenada, devia achar que a mãe sabia e que lhe dedicava compaixão em vez de amor, e era por isso que se sentia martirizada, e não orgulhosa.

O bule de café começou a vibrar, despertando sua atenção e ao mesmo tempo, uma certa sensação de velhice e frustração A mãe era formidável. - Encantadora.. . Uma pessoa que precisa demais de ser encantadora e bem sucedida em tudo.. . murmurou para a xícara vazia diante de si. - Ela é competitiva, pelo menos eu acho. . . E dominadora, embora o seu amor seja sincero. . . Ahh! - Ergueu-se num pulo, com aquela exclamação familiar no idioma de sua infância e juventude, ao reparar que o café estava fervendo e transbordando do bule.

Déborah retcomou à ala, ansiosa por encontrar um lugar qualquer onde pudesse estar completamente só. Ali, a solidão era um estado ambíguo, pois, embora o hospital, seus andares e suas alas estivessem apinhados de gente, as pessoas mal conviviam umas com as outras. Todos os hospitais de que ouvira falar abrigavam multidões atomizadas de indivíduos que tinham rompido inteiramente seus vínculos com os outros grupos e instituições do mundo. Alguns pacientes de sua ala viviam imóveis, como bonecos sem corda. Outros, como a prostituída Esposa do Ex-Presidente Assassinado, improvisavam seus próprios reinos e, aparentemente, jamais beiravam sequer, como Déborah fazia, a realidade terrestre.

A maioria dos pacientes dispunha da habilidade quase sobrenatural de discemir, num único relance, onde residiam as fraquezas de uma determinada pessoa, e qual a dimensão e a influência dessas fraquezas. Associada, porém, a esse poder de discemimento, como se tendências autodestrutivas a temessem, estava a total inabilidade de usá-lo de um modo consciente. Todos aprendiam a ser ”civilizados”, isto é, nunca rir de aleijados, nunca apedrejá-los, e nunca olhar para os velhos na estrada. Cumpriam à risca esses mandamentos, mas quando se tratava de imperfeições invisíveis eram impiedosos: penetravam com olhos argutos e escutavam com ouvidos afinadíssimos os segredos e as súplicas íntimas dos ”sãos”. Só que essa crueldade estava além de sua compreensão e de seu controle.

Déborah presenciou um auxiliar ser agredido pelos pacientes noite após noite. Os agressores eram invariavelmente os mais doentes da ala: refratados ao convívio, desligados da ”realidade ’. No entanto, escolhiam como alvo sempre o mesmo homem. Um dia, houve uma briga mais violenta do que o normal, que acabou degenerando numa verdadeira batalha campal; pacientes e funcionários saíram contundidos e ensangüentados. No dia seguinte, abriram um inquérito. O administrador da ala foi obrigado a interrogar todo mundo. Déborah assistira à luta estirada no chão, com a pema bem estendida, esperando que algum auxiliar tropeçasse em seu pé para que mais tarde pudesse dizer, parodiando santo Agostinho: ”Bem, o pé estava já; não fui eu quem mandou usá-lo. Livre-arbítrio, meu caro. .. livre-arbítrio. ..

O administrador da ala interrogou a todos sobre a briga. Os pacientes se orgulhavam de afirmar seu não-envolvimento. Até os mais inertes e os mais desvairados deram um jeito de afetar o maior desdém e distorcer propositalmente as perguntas.

- Como começou? - perguntou o médico a Déborah, a sós com ela na sala de estar, o que a fez sentir-se extremamente importante.

- bom... Hobbs vinha pelo corredor e então começou a briga. Aliás, foi uma briga maravilhosa, nem muito barulhenta nem muito calma. O soco de Lucy Martenson penetrou nos processos mentais do Sr. Hobbs, enquanto o pé dele ia de encontro a Lee Miller. Meu pé também estava estendido, mas ninguém quis usá-lo.

- Ora vamos, Déborah - protestou ele com severidade. Ela compreendeu a intenção do brilho nos olhos dele, uma esperança que envolvia seu próprio sucesso como médico, caso obtivesse a resposta quando outro certamente teria falhado. - Quero que você me diga... Por que é sempre Hobbs e nunca McPherson ou Kendon, por exemplo? Talvez Hobbs seja grosseiro com as pacientes, e nós não saibamos.

Quanta esperança! Não por ela, mas pela resposta. Não pelos pacientes, mas pelo momento, secretamente saboreado, em que pudesse afirmar taxativamente: ”Ah sim, já resolvi o problema!”

Déborah sabia por que Hobbs e não McPherson, mas não ia dizer, nem encarava com simpatia a avidez e a ambição que lia no rosto do médico. Realmente, às vezes Hobbs se comportava de modo um pouco brutal, mas isso era o de menos. Morria de medo da loucura com que convivia, porque era uma extensão de algo que existia dentro dele. Por isso mesmo, desejava que as pessoas fossem mais loucas e mais estranhas do que na verdade eram, para que ficassem bem demarcadas as fronteiras existentes entre ele, suas inclinações, seus pensamentos gratuitos, seus desejos semicontidos, por um lado, e a loucura dos pacientes vicejando e explodindo às claras. McPerson, por sua vez, era uma pessoa forte e até mesmo feliz. Queria que os doentes fossem iguais a ele, e quanto mais próximos estivessem, melhor se sentia. Sempre estimulava o que havia de comum entre ele e os pacientes, sem ser exigente, procurando, sutil e cautelosamente, atraí-los, e o menor sintoma positivo que se manifestasse, era por ele recebido de braços abertos. Os pacientes, no final das contas, se limitavam a dar a cada homem o que este realmente desejava. Não havia injustiça alguma, e Déborah concluiu que o pulso quebrado de Hobbs, vinha apenas adiar, por algum tempo, o dia em que ele acabaria num hospital psiquiátrico também como paciente. Déborah não se conteve:

- Olhe, não tem havido injustiça alguma. -A afirmação pareceu ao médico um tanto enigmática, considerando-se que o saldo da briga fora uma paciente acamada, outra com fratura na costela, uma terceira com um dedo quebrado, duas enfermeiras com olhos roxos e contusões faciais. O médico se levantou para ir embora. Não conseguira fazer com que falasse além do que ela própria queria. Notou que estava furioso e desapontado por ela ter contribuído para frustrar suas intenções. De repente, a porta bruscamente aberta fez com que ele se voltasse. Era Helene, outra doente, que vinha com sua bandeja de almoço para a sala de estar. O almoço, ao que parecia, fora servido enquanto conversavam.

Déborah pensou, de início, que Helene pretendia apenas comer na sala, onde havia sol em abundância, mas ao reparar bem na expressão dela viu que não se tratava de sol. O médico, encarando-a com severidade, ordenou:

- Volte para seu lugar, Helene. - Num único e gracioso gesto, ela recuou o pé, volveu o braço, e com um movimento delicado e preciso, arremessou a bandeja direto sobre a cabeça de Déborah. Déborah apreciava, sem se mexer, a beleza daquele baile, quando o mundo subitamente explodiu numa avalancha de comida pegajosa e quente. Virou-se para o administrador e viu-o encolhido contra a parede, implorando num tom bem diferente de sua fala pausada e profissional:

- Não me machuque, Helene... Não me machuque! Eu sei que você é forte! - Seus gritos atraíram os auxiliares, que logo acudiram, com braços musculosos e fisionomias contraídas de medo, para subjugar a estranha bailarina. Déborah ficou impressionada com o número de homens para uma mulher tão pequena, ainda que ela parecesse mais uma máquina debulhadora, e eles, o trigo. Por entre a sujeira que escorria de seus cabelos e do rosto, Déborah murmurou:

- Até logo Helene, faça a guerra!

- O que foi que você disse? - perguntou o médico, concertando a roupa e tentando fazer o mesmo com sua pose.

- Eu disse, ”Relevez, soufflé, arraste-se.”

Ouvia-se a recalcitrante sendo conduzida numa cama para o casulo gelado. O médico saiu afobado para ajudar a debelar o tumulto e os gritos que vinham de um dos quartos dos fundos. Déborah ficou sozinha no meio da desordem, examinando-se para ver se sangrava.

Devido à confusão, teve que esperar meia hora até que um auxiliar viesse destrancar o banheiro para que se limpasse um pouco. Ali, como em toda parte, os agressores eram mais favorecidos do que os agredidos. Não estavam, afinal, tão distantes do mundo. Déborah rogou mentalmente algumas pragas contra aquela balbúrdia. Foram rudes com Helene ao subjugála, não há dúvida, mas o importante é que se ocupavam dela, preocupavam-se com ela. Limpou a sujeira e foi para a cama, onde a aguardava o seu almoço, já frio e meio comido por uma paciente que dormia junto à janela.

- Coma, querida - recomendou a Esposa do Abdicado, que veio sentar-se em sua cama. - Eles vão arrancar tudinho de você depois.

- Não quero - respondeu Déborah, olhando de relance para o cozido. - Já comi isso. - A Esposa do Assassinado encarou-a com severidade. - Minha querida, assim, com essa aparência, você nunca achará um homem! - Deu as costas e voltou à sua conferência imaginária.

Déborah compreendeu num estalo o motivo da agressão. Cerca de uma hora antes da entrevista com o médico, Helene abordou-a e, conversando com bastante clareza, mostrou-lhe algumas fotografias que recebera dentro de uma carta. Costumava ficar em reclusão num quarto, pois era temida por seus acessos de fúria e violência, durante os quais virava uma verdadeira fera. Nesse dia, contudo, a porta tinha ficado aberta e ninguém reparou quando ela foi procurar Déborah, nem escutou as pequenas confidencias que trocaram a respeito das fotografias. Estiveram juntas assim durante um bom tempo: ela ia indicando um ou outro personagem, explicando quem era, até que se deparou com um determinado retrato e disse:

- Essa aí fez faculdade comigo. - Referia-se a uma menina simpática, que figurava no mundo real, terra de ninguém, terra de pesadelos. Helene tirou bruscamente a fotografia de suas mãos, jogou-se na cama, e pediu:

- Vá embora, estou cansada.

Conhecendo seu temperamento explosivo, Déborah apressou-se a sair de seu próprio dormitório, e foi para o corredor. Pouco depois, a auxiliar encontrou Helene e mandou-a voltar para seu quarto.

Compreendia agora que o motivo da agressão era querer desacreditá-la como testemunha da vergonha e da miséria lembradas por aquele retrato. Era preciso manchar o espelho para que deixasse de refletir a recôndita vulnerabilidade que transparecera subitamente, numa traição à sua máscara agressiva, sua fama de mulher violenta e obscena.

- Filósofa! - murmurou Déborah para si mesma, tirando um pedaço de comida grudado no canto da orelha.

- Temos as mudanças e temos o mundo secreto - ponderou a Dra. Fried - mas o que se passou na sua vida nesse meio tempo?

- É difícil abordar esse período; tudo parece se resumir em ódio: o mundo, a colônia de férias, a escola...

- Na escola támbém havia anti-semitismo?

- Não, não. Na escola as coisas eram mais verdadeiras. A hostilidade visava só a mim. E aparecia na forma de uma antipatia intensa, apesar-das-lições-de-boas-maneiras. Freqüentemente, essa antipatia se transformava em ódio ou aversão. Eu nunca soube por quê. As pessoas chegavam para mim e diziam; ”depois do que você fez. . .”, ou ”depois do que você falou. . . nunca mais vou defender você sem que eu soubesse o que tinha feito ou dito. As empregadas não paravam em casa; demitiam-se uma atrás da outra, e eu sempre tinha que ”pedir desculpas”, sem saber por que pedia desculpas. Um belo dia, cumprimentei minha melhor amiga e ela me virou as costas. Quando fui perguntar a razão, ela se voltou e disse: ”Depois do que você fez?” Nem falou mais comigo, nem descobri o que tinha feito.

- Você tem certeza de que não está omitindo nada aí: algo que você era levada a fazer e que enfurecia seus amigos?

- Tentei, não sei quantas vezes, imaginar, pensar, lembrar. Não faço a menor idéia. A menor!

- O que é que você sentia nestas ocasiões?

- Depois de algum tempo, apenas uma sensação meio cinzenta e a surpresa do inevitável.

- Surpresa do inevitável?

- Onde não existe lei alguma, só essa destruição terrível, aproximando-se, aproximando-se cada vez mais - Imorth - e a gente acaba se conformando com a sombra dela. Mas - a razão disso eu não sei - por mais inevitável que seja, sofro o tempo todo com a iminência dessa destruição, com as pancadas que se repetem sem parar, vindo das mais inesperadas direções.

- Quem sabe não é porque você mesma procura as pancadas e os sustos nesse mundo?

Isso quer dizer que eu mesma preparo as decepções? - perguntou e sentiu que o terreno começava a ficar perigoso.

Ora, você tinha que preparar as decepções por sua própria conta. Caso contrário, não entenderia nada, não é verdade?

Déborah recordou-se de uma cena ocorrida numa época em que sua vida consistia unicamente em esperar o fim inevitável. Embora já tivesse saído da colônia anti-semita, a vida continuava sombria e o desespero só fazia crescer. Passava os dias sozinha, desenhando sem parar. Não permitia que alguém visse seus desenhos. Carregava o bloco por toda parte, agarrada a ele como a um escudo. Certa vez, ao passar por um grupo de jovens que brincavam e riam, um de seus desenhos escorregou do bloco sem que percebesse.

- Ei, o que é isso? quem deixou cair? - perguntou o rapaz apanhando a folha.

Era um desenho intrincado, cheio de figuras estranhas. As pessoas do grupo negaram uma a uma - eu não, não é meu, não é meu, eu não, não.. . - até chegar a Déborah. O rapaz olhou para ela e perguntou:

- É seu?

- Não.

- Ora, vamos... Confesse.

- Não!

Ao encará-lo com mais atenção, Déborah percebeu que ele só estava tentando ajudá-la. Caso admitisse que o trabalho era Seu - assumisse a punição - isto é, o riso dos outros, ele a defenderia. Queria assumir o papel de benfeitor, mas a que preço?

- Não é seu?

- Não, não é meu!

- Está vendo - concluiu ela com amargura para a doutÔra - eles me fizeram repudiar minha arte.

- Mas Déborah, o rapaz estava implorando que você não a repudiasse e, na verdade, ninguém riu. Foi você que imaginou que eles ririam. A responsável pela mentira foi você mesma.

Encarou a doutÔra, ao mesmo tempo irritada e assustada:

- Quantas vezes dizemos a verdade e morremos por causa disso!

Ergueu-se furiosa, foi até a escrivaninha, apanhou uma folha de papel e começou a desenhar uma réplica às acusações que todos pareciam lhe dirigir. A doutÔra, que viria a culpá-la, o Coletor, com suas recriminações intermináveis; todo mundo a censurava Desenhou furiosamente por algum tempo ao Terminar, entregou a folha à doutôra.

- Vejo claramente a raiva, mas há símbolos aqui que você precisa explicar. Coroas... cetros... pássaros.

- Estes são rouxinóis. Tão graciosos! Olhe, a menina tem todas as regalias, tudo o que o dinheiro pode comprar. Os pássaros usam os cabelos dela para construir seus ninhos e para polir essas coroas, e é com os ossos dela que eles dão brilho no cetro. Ela possui a mais bela das coroas e o mais pesado dos cetros, e todos exclamam: ”Que menina de sorte, quantas coisas ela tem!”

A Dra. Fried viu sua paciente correr e voltar-se, correr e voltar-se, em pânico. Dentro em breve, não haveria mais para onde fugir: teria que encarar a si mesma, e a destruição que ela própria tramara se consumaria. Ergueu os olhos para Déborah. Agora a batalha, pelo menos, estava sendo travada com determinação. Fora-se a antiga apatia. Sentiu que brotava dentro de si uma grande esperança e, com ela, uma excitação inigualável. O eco emitido de regiões tão profundas testemunhava a saúde que sobrevivia em potencial dentro da menina. Recompôs a fisionomia, banindo os sinais de excitação, para evitar que Déborah se danasse de vez e partisse para querer provar que seu Yr existia.

- Coroas e rouxinóis! - exclamou Déborah sarcasticamente. - Guarde isso para mostrar em suas conferências aos médicos eruditos. Diga a eles que não é preciso ser saudável para entender de perspectiva linear.

- Depende do tipo de perspectiva - retrucou a doutôra. - Mesmo assim, acho que vou guardá-lo para me lembrar, isso sim, de que a força criativa é suficientemente vigorosa e profunda para germinar e florescer, apesar da doença.

Déborah estava sentada no chão da ala, aguardando preguiçosamente o encontro com Anterrabae, quando viu Carla vindo pelo corredor em sua direção. - Oi, Déb. . .

Carla! Não sabia que você estava aqui em cima.

Carla parecia exausta.

- Deb, eu tinha ódio demais arrolhado dentro de mim.

Decidi vir para cá, onde posso gritar, gritar, até cair de tão rouca.

Entreolharam-se e sorriram. Sabiam que a D não era em absoluto a ”pior” ala, apenas a mais honesta. Nas outras, era preciso conservar um status e respeitar certos simulacros de formalidade.

As pessoas, enquanto beiravam o Inferno, tremiam de medo do demônio. Mas, quando chegavam lá, descobriam que o demônio não passava de mais um entre tantos, e ninguém em particular. Assim, nas alas A e B, as pessoas sussurravam seus sintomazinhos e tomavam sedativos e estremeciam de alto a baixo a cada barulho mais alto, uma agonia exposta ou desesperos violentos. As ”Perturbadas” podiam estremecer nas bases sempre, mas estavam livres das sutis e traiçoeiras correntes da loucura clandestina.

Formavam-se às vezes grupinhos, em que as pacientes ficavam contando lances passados de suas vidas ou trocando os boatos que corriam. Os ociosos e os marginalizados expressavam desse modo, por mais que negassem, o instinto que clamava por algum vínculo de participação no mundo. Só que o mundo agora era povoado de psicóticos e limitado por muros e por alas.

- Onde você esteve antes?

- Crown State.

- Jessie esteve lá. Nós nos conhecemos em Concord.

- Em Concord? Em que ala?

- Na cinco e na dezoito.

- Tive uma amiga que foi da sete. Ela disse que aquilo era um verdadeiro manicômio.

- Pô, se era! O chefe lá era Hesketh, um cara mais pirado do que os pacientes.

- Hesketh?... - perguntou Helene, que passava por elas, percorrendo o corredor como se acompanhasse em transe uma procissão. - Baixo e meio magro? Olhos azuis? Engole os erres? Ele levanta a cabeça assim?

- O próprio.

- Filho da mãe! Fui espancada por ele no Mount Saint Mary.

Retcomou a caminhada, mergulhando de novo em seu transe. Lee Miller coçou a orelha pensativamente:

- Mount Saint Mary.. . Estou me lembrando. .. Doris passou por lá. Doris Rivera.

- Quem é?

- Ah, guria, foi antes de seu tempo. Era veterana em todos os tratamentos de que já ouvi falar, e continuava doida varrida. Ficou aqui durante três anos.

- Para onde mandaram ela depois?

- Para lugar nenhum. Agora ela está vivendo lá fora e trabalhando.

A incredulidade foi geral. Será que realmente alguém saía? Será que alguém poderia apontar uma pessoa bem sucedida - uma pessoa para quem esse lugar fora um meio e não um fim? As perguntas choveram sobre Lee, até que ela perdeu a paciência e disse:

- Escutem, conheci Doris quando esteve aqui na D, mas não sei a fórmula do sucesso e não vi mais a Doris desde que ela saiu! Sei apenas que está lá fora e tem um emprego. Agora vão para o inferno! Quero ficar sozinha!

As meninas se afastaram e se dispersaram pela sala de estar, banheiro, corredor e pelas camas. Veio a noite. A Esposa do Assassinado empreendeu uma de suas tentativas mensais de fuga: investiu de cabeça, como um touro cego, contra a porta da ala, no momento em que a trancavam, tão logo as bandejas do jantar foram retiradas.

Déborah ficou no seu canto, ouvindo o Coletor que recriminava suas faltas em salmos intermináveis. No meio da zoeira, Anterrabae exclamou: ”És)orça-te para que algum dia saias e

Vivas. Esforça-te para que algum dia saias e trabalhes e te tomes uma pessoa! Tremeu de medo. O mundo exterior e os seres que lá viviam eram absolutamente estranhos para ela, como se jamais tivesse comido com eles nas mesmas mesas, ou participado do perene ciclo de vida e morte a que estavam sujeitos. Reviu as ações mais simples e mais triviais, que agora lhe pareciam dificílimas, reduzidas a uma única dimensão, como uma série de imagens instantâneas. Meninas dizendo alô, caminhando juntas, entrando sem medo na escola. Meninas graciosas, sendo cortejadas, namorando e depois se casando. Lembrou-se de Helene, da angústia que a impelira a destruir o rosto visto, e compreendeu a fotografia da bela colega de faculdade.

Tu não és como os outros! Gritou Lactamaeon do fundo de Yr, querendo protegê-la.

Todas as outras mães estão orgulhosas de suas filhinhas! repetia o Coletor, no tom provocador e mordaz que empregava quando as coisas pioravam muito.

Vai, volta para o mundo com aquela tua famosa doutôra? Rosnava o Censor. Achas, então, que podes ficar abrindo segredos e continuar segura para sempre? Há outras mortes além da morte - muito piores!

O momento agora é para te esconderes e ficares escondida. .. Sussurrava Idat, deusa raramente vista, chamada também -a Dissimuladora.

Em meio ao ensurdecedor burburinho de vozes, aos atordoantes lampejos de deuses e rostos do Coletor, Déborah avistou, como num desenho animado, plano e em perspectiva reduzida, a figura de McPherson chegando pelo corredor. vou chamá-lo, vou pedir ajuda, avisou. Vá, chama! Anterrabae soltou uma gargalhada. Tenta! Afastou-se deixando uma aragem que cheirava a coisa queimada. Idiota!

McPherson passava diante dela. Logo estaria longe. Débora se aproximou, mas não conseguiu falar. com um gesto imperceptível de mãos, tentou chamar a atenção. McPherson olhou de soslaio e parou- atraído pela veemência de sua expressão, os movimentos quase espasmódicos de sua mão, retorcida de um modo estranho por causa da tensão nervosa.

- Déb?. . . O que há?

Não conseguiu responder. O máximo que conseguiu foi gesticular timidamente com o corpo e com as mãos. Percebendo que ela estava em pânico, disse:

- Agüente firme, Déborah. Volto já, já!

Déborah esperou. O pavor crescia à medida que seus sentidos iam deixando de obedecer à sua vontade. Passou a enxergar tudo cinzento e a ouvir muito mal. O tato também sumia; a realidade tátil de seu próprio corpo e de suas roupas se tomava extremamente tênue. Avolumavam-se os murmúrios oriundos de Yr. Pouco depois, sentiu, em meio ao intenso odor de éter e clorofórmio que emanava do Abismo, o cheiro de pessoas, o que despertou nela o desejo de vê-las. Estava tudo branco: ou eram as enfermeiras, ou a neve de inverno.

- Déborah. Você está conseguindo me ouvir? - a voz de McPherson. Alguém dizia ao fundo: - O que há com as meninas essa noite? - McPherson procurou de novo se comunicar com ela: - Déb... não tenha medo. Você pode andar?

Ensaiou alguns passos, mas perdera inteiramente o senso de direção. Cambaleou. Tiveram que conduzi-la, apoiada em alguém, até o final do corredor, onde o casulo aguardava já aberto. Desmoronou nele, quase que agradecida, e nem sentiu o primeiro choque gelado do lençol úmido...

Só muito tempo depois recuperou os sentidos. Deixou-se ficar respirando, escutando sua própria respiração e, finalmente, soltou um longo suspiro. Uma voz chamou a seu lado:

- Deb? É você?

- Carla?

- Eu mesma.

- O que foi que aconteceu?

- Sei lá! - disse Carla. - Eu também ainda sou novata aqui, mas a ala está mesmo uma loucura essa noite.

- Essa noite só? - riram um pouco.

- Quanto tempo durou? - perguntou Déborah.

- Você voltou a si um pouco depois de mim. Puseram Helene e Lena no quarto ao lado; Lee Miller está com um ataque histérico.

- Quem foi que pegou o turno da noite?

- Hobbs. - O tom denotava uma clara aversão. - Preferia que fosse McPherson.

Conversaram durante um bom tempo, deixando a realidade voltar aos poucos. Sentiam-se contentes de estarem ali juntos embora fossem incapazes de admitir que, em certa medida, eram amigas. Carla contou que tinha escutado uma das sessões de Helene com seu médico, sessões que se realizavam na própria ala por causa da violência de Helene.

O silêncio é mesmo fatal - ponderou Carla. - O velho Craig simplesmente não conseguiu suportar aquele silêncio todo. Desandou a falar, e o tom de voz foi subindo, subindo, e ele cada vez mais perturbado. Eu esperava que a qualquer momento Helene dissesse: ”Acalme-se, doutor. Estou aqui apenas para ajudá-lo.” Quando ele saiu de lá, parecia... parecia uma de nós!

Déborah, já inteiramente consciente, começou a seespreguiçar, sentindo a costumeira dor nos ossos dos pés e dos joelhos provocada pela má circulação. De onde estava, podia ver) na cama vizinha o corpo mumificado e imóvel de Carla.

Déborah. .. Déb. .. Eu sei o que foi que aconteceu

conosco.

- O quê? - perguntou Déborah, hesitando se realmente queria saber.

- Doris Rivera!

Aquilo despertou, em seu íntimo, uma amargura terrível, uma amargura recente mas que já se tomara familiar, identificada de início por meio de palavras Yri; uma amargura que encobria uma velha e contundente palavra: Verdade.

- Não, não foi.

- Foi sim! - insistiu Carla com convicção. - Ela ficou boa saiu e agora está trabalhando. E nós ficamos assustadas porque algum dia teremos. .. que ficar ”boas” e voltar para o mundo, porque existe uma possibilidade de que nos abram essas portas para o mundo... - a voz de Carla foi cortada pela lâmina do pânico.

No interior do invólucro branco e estático, o coração de Déborah martelava, o estômago pesava. O corpo tremia. ”Meu Deus - pensou consigo mesma - voltei a ser o que eu era lá fora: uma montanha imóvel que guarda um vulcão dentro de si.”

- Vá para o inferno! - berrou para Carla. - Só porque a sua mãe era louca e acabou se matando, você acha que tem razões para ser mais louca do que eu! - ouviu a inspiração agoniada na cama vizinha. A seta atingira o alvo. Sua crueldade, contudo, não lhe trouxe alívio. Pressionou a cabeça com força de encontro à bolsa de gelo, cujo contato na nuca lhe lembrava a realidade.

Naquele instante, acendeu-se a luz. Piscaram os olhos ofuscados pela claridade.

- Estou apenas verificando - era Hobbs. Entrou e tcomou a pressão de Déborah pela têmpora. - Ainda está bem alta - declarou para o auxiliar que entrara atrás dele. - Essa aqui também - concluiu reaprumando-se ao lado de Carla. Apagaram a luz e saíram.

Déborah; morta de vergonha, virou a cabeça para a parede.

- A carne já está cozida? - gracejou Carla num tom amargo. - Não? Deixe mais uns vinte minutos!

- Nós não scomos como os outros - murmurou Déborah. A fórmula consoladora de Yr pàreceu-lhe, nesse novo contexto, quase chocante. - Carla... - as palavras custavam a sair.

- Perdoe-me pelo que eu disse. Reagi para me proteger; não foi para agredir você. Não queria magoar você, fazer você sofrer mais.

Por alguns minutos o peso do silêncio pairou absoluto sobre as duas; o único som audível eram as suas respirações. Ouviu-se, então, a voz de Carla e, para surpresa de Déborah, sem o menor rancor, sem maldade:

- Minha doença... é como um copo cheio que transborda. A gotinha que você pingou já se perdeu na inundação.

- O que disse sobre Doris Rivera talvez... seja verdade. Doeu de novo, um pouco menos dessa vez.

- Eu sei.

Déborah começou a lutar contra o casulo, a realidade, as dúvidas, choramingando e contorcendo-se dentro das amarras que a imobilizavam.

- O que foi que houve? - perguntou Carla na escuridão.

- Você poderia ter me magoado, mas não me magoou!

- E como não podia entender a razão pela qual tinha sido poupada, seu corpo tremia, seus dentes rangiam de pavor e frio. . .

A família Blau sentou-se para o jantar. Esther estava desolada, Jacob furioso. Tinham recebido mais um relatório, redigido! como sempre, em termos vagos e pouco comprometedores. Jacob leu e deduziu que os ódios, os terrores e a agressividade que sua querida filha reprimira tinham enfim vindo à tona. Fora transferida para que ”melhor a protegessem”. O que significava isso para Debby, afinal? No íntimo, via apenas aquele andar superior, revestido de grades e barras de ferro. Estava obcecado com o grito pavoroso que partira de lá, da ”ala dos violentos”, e que noite após noite vinha atormentar seus sonhos. Para aquele andar, para aqueles gritos, para lá é que tinham levado sua Debby. Esther sabia desde o início que não lhe poderia esconder a verdade. Dissimulou, camuflou e trancou os relatórios o quanto pôde. Agora, Jacob também sabia, e o máximo que ela podia fazer era tentar acalmá-lo, repetindo mil e uma vezes as palavras prudentemente vagas do administrador da ala.

- Dizem que ela melhorou em alguns aspectos - insistia Esther. Jacob, no entanto, não queria acreditar. Ela própria, aliás, freqüentemente duvidava do que dizia.

Ao se sentarem à mesa, decidiram esquecer o relatório para o bem de Suzy, mas acabaram voltando a ele, para esmiuçá-lo daqui e dali, discutindo-o numa espécie de código. Os argumentos driblavam a filha, que comia e tagarelava jovialmente, consciente e inconsciente ao mesmo tempo da causa daquele clima pesado, aquela espessa neblina que os envolvia e os distanciava tanto um do outro. Era Debby. Sempre Debby. Chegou a se perguntar se sofreriam, de forma tão palpável, caso fosse ela quem estivesse longe e doente. A perspectiva deixou-a terrivelmente assustada: sofreriam menos, era quase certo. O medo e o desejo de tirar a limpo de uma vez por todas aquela derrota, a culpa por prever a derrota, o ódio contra Debby por ela se apossar de todo o amor, enfim, a convergência desses sentimentos conflitantes, levaram Suzy a exclamar, encarando o pai e a mãe:

- Muito bem! Ela não está jogada numa cova aí qualQuer! Tem mÉdicos e o diabo! Por que então todo mundo vive chorando e lamentando a pobrezinha, a coitadinha da Debby! Levantou-se furiosa e abandonou a mesa, mas não sem reparar no sofrimento estampado no rosto dos pais.

Carla estava sentada ao lado de Déborah na sala de estar, saboreando cada tragada de seu cigarro. Segundo os regulamentos, reformulados pela nova enfermeira-chefe, bem mais severos que os anteriores, os pacientes que desejassem fumar deveriam fazê-lo no corredor ou na sala de estar, desde que ”autorizados” por uma enfermeira óu auxiliar. Já havia duas semanas que os gritos ”Cigarro!” ”Cigarro!” ecoavam, o dia todo, do corredor e dos quartos, e o pessoal médico começava a dar sINais de irritação.

Carla tinha vindo do último dormitório até a porta gradeada da ala, pedindo sem parar: - Cigarro, por favor! - Virara-se para DÉborah coM uma piscadela de olhos e dissera: - Se você não pode se aliar a eles, lute contra eles. - Sentaram-se depois, e ficaram esperando o tempo passar.

Nos primeiros dias de sua permanência na Ala D, DÉborah pôde dramatizar sua condição por meio de um simples recurso mental. Pensava: o asilo de loucos, a ala dos violentos. Isso bastava para despertar imagens grandiosas e feéricas em sua mente. A nova situação oferecia a possibilidade de uma segurança física maior, só que vivenciá-la implicava em arcar coM um tédio interminável como a própria doença. Havia dezenove fendas no sentido da largura do chão gélido do corredor, e vinte e três no do comprimento (incluindo a junção coM a parede) . Nos momentos em que estava presente à realidade da ala, DÉborah costumava ficar acompanhando o piso, para cima e para baixo do corredor, contomando-o onde se ampliava para formar o chamado ”saguão”, seguindo-o ao redor da sala de estar, atravessando, em seguida, a enfermaria, passando diante das portas do banheiro da frente, das de reclusão, dos dormitórios (onde não era permitido ficar perambulando), do banheiro dos fundos e, finalmente, contomava e retomava pelo outro lado do corredor, recomeçando tudo de novo. No teto, revestido de placas à prova de som, havia dezenove furos por dezenove furos. Quando se cansava desses passeios, ia para junTo das mulheres petrificadas, perto da enfermaria, e ficava esperando que algo acontecesse ou não acontecesse. O tédio da loucura era como um deserto, onde os acessos de violência e as crises de agonia despontavam como um oásis, e os momentos efêmeros e singelos de companheirismo abençoavam como a chuva, sendo narrados, enumerados e relembrados por muito tempo. DÉborah e Carla, esta deleitando-se coM o cigarro, gozavam justamente de um desses momentos.

- Assim que puder, Vou desenhar um retrato seu - disse DÉborah, seguindo coM os olhos a fumaça do cigarro da amiga. Carla logo compreendeu que ela dera um jeito de furtar lápis e papel e escondê-los. Estavam atrás do cano de água fria, no banheiro da frente. Dentro dos banheiros, na parte dos fundos, ficavam as banheiras, sempre trancadas. Só podiam ser usadas na presença de um auxiliar. Carla apanhou no ar a insinuação.

- É necessário papel para fazer retratos - sugeriu.

- Verdade.

- Que tipo de desenho seria?

- Aquarela. Precisaria de muita, muita água.

Carla sorriu: - Você vai precisar também de alguma coisa onde possa apoiar o papel. - Isso queria dizer que tinha um livro escondido num lugar acessível.

Nos momentos de lucidez, os pacientes se divertiam bastante, comunicavam-se por meio de códigos e siderados armas e, portanto, proibidos na ala, a não ser que fossem utilizados na presença de um auxiliar.

- Ai, ai... acho que preciso lavar os cabelos - disse Carla displicentemente. Segundo o código, estava sugerindo que ambas fossem pedir autorização para lavar os cabelos. Carla pediria primeiro e ficaria coM o banheiro dos fundos onde havia uma pia ótima. O regulamento autorizava apenas uma paciente a usar as pias de cada vez, exceto se houvesse três auxiliares de serviço no banheiro. DÉborah teria, portanto, que pedir o banheiro da frente, onde convenceria a auxiliar a abrir a porta que dava para a banheira e a distrairia durante o tempo suficiente para pegar seu tesouro.

- Meus cabelos estão sujos. Se não gosta, agüente. - Isso significava ”muito obrigado”.

O plano funcionou às mil maravilhas e, um pouco antes da hora do almoço, o ambicionado lápis se achava enrolado em elásticos e enganchado sob a quarta mola da cama de Déborah. Depois, foi preciso esperar pela distribuição das bandejas, pelo término do almoço, pela mudança de turno, pelo jantar, pela distribuição de sedativos e, finalmente, pela hora de deitar.

A Dra. Fried estava ausente, assistindo a um congresso qualquer, e por isso não havia sequer as sessões terapêuticas para quebrar um pouco a monotonia. Déborah poderia ter-se inscrito para a oficina de artesanato, freqüentada na parte da manhã pelo pessoal da D, mas não o fez. Desistira de ”fazer coisas”. Às vezes, desenhava um pouco sentada no chão e amparada pela cama da Esposa do Abdicado. Ouvia as denúncias do Coletor, os sarcasmos das divindades e os elogios de Yr. cumpria as exigências tirânicas do Censor, mas, ao fim daquelas punições e sacrifícios, nada restava senão esperar o interminável transcorrer do tempo, pontilhado pelas refeições, o sono, uma ou outra palavra trocada de passagem, uma briga, um caso, o acesso de furor de algum paciente - acontecimentos, enfim, desprovidos de qualquer interesse, relembrados apenas durante a perseguição aos frisos, empreendida pelos doentes ao longo das paredes da ala. Tinha, algumas vezes, sonhos pavorosos, erupções vulcânicas de terror, sustos entremeados de alucinações sonoras, visuais e táteis. Passava, contudo, a maior parte do dia contemplando o relógio, mascarado como o rosto de um esgrimista, permanentemente en garde, afixado sobre a porta da enfermaria.

Esther escrevera outra carta ao hospital, pedindo autorização para visitar Déborah em suas novas acomodações, e uma entrevista coM os médicos da ala, especialmente coM a Dra. Fried. A resposta, procurando, como de hábito, reconfortá-la, repetia que a paciente estava progredindo conforme as melhores expectativas. Poderia, se quisesse, entrevistar-se coM a médica de Déborah. O administrador da ala não se ocupava diretamente coM a família dos pacientes, e visitas à Ala D não eram permitidas. Caso houvesse algo a tratar, marcariam uma hora coM a assistente social, a Sra. Rollinder.

Esther fez a exaustiva viagem de trem só para avistar-se coM a Dra. Fried. Felizmente, compromissos de trabalho impediram que Jacob insistisse em levá-la de carro. Chegando ao hospital, constatou que sua presença em nada facilitava o acesso aos médicos, frustrando as esperanças de que, pessoalmente, conseguiria dar um jeito de burlar os regulamentos. A Dra. Fried mostrou-se gentilmente reservada, procurando desfazer os temores de Esther pela transferência da filha para a Ala D. Continuava otimista, julgando que se tratava de ”uma base da doença”. Esther conversou coM a assistente social e obteve as mesmas respostas, embora de forma ainda mais fria e mais impessoal. Quanto ao regulamento que proibia visitas, foi impossível contomá-lo.

Terminadas as entrevistas, apanhou o trem de volta para casa e, já na viagem, foi preparando as mentiras que contaria a Jacob e à família. Diria que tinha visto Déborah, a ala e os médicos, e que tudo ia muito bem. Estariam ansiosos para escutar isso, portanto, ninguém ousaria contradizer suas histórias pelo menos durante algum tempo. Esther tinha levado uma boa coleção de revistas para Déborah: sequer permitiram que as entregasse. Olhava distraidamente pela janela do trem quando reparou que as revistas continuavam em seu poder. Começou a folheá-las. A mentira que contaria a Jacob e a dor que precisava guardar dentro de si pareciam refletir-se em tudo o que via. Procurou distrair-se coM as fotografias e as ilustrações, mas não encontrou refúgio. Ao contemplá-las, seus olhos se encheram de lágrimas, embaçando os modelos horrivelmente alegres que ilustravam os anúncios:

FACULDADE NO OUTONO ELEGÂNCIA CLÁSSICA PARA O CAMPUS

E na página seguinte:

PARA AS NOSSAS JOVENS DEBUTANTES BRANCO, BRANCO, BRANCO NO PRIMEIRO BAILE

A página era toda de miosótis, e Esther mergulhou o rosto nas flores, até que as lágrimas parassem de escorrer. As colegas de turma de Déborah provavelmente estavam admirando aquelas mesmas páginas, vendo-se nos modelos, sonhando coM o dia da formatura e preparando-se para ingressar na faculdade. Suas amigas e as filhas de suas amigas já comentavam as faculdades escolhidas como se trocassem cartões de visita. Davam os últimos retoques nos vestidos maravilhosos que suas filhas usariam, e estas, por sua vez, desfiavam seus sonhos nas páginas de um diário íntimo qualquer. Quando se encontrava coM essas mães e as ouvia contar os problemas das filhas, parecia-lhe que não faziam mais do que reproduzir em escala menor, os de Déborah: ”Marjorie é tão tímida; nunca se sente à vontade coM as amigas!” ”Helene encara tudo como se fosse uma questão de vida ou de morte... ela é tão tensa”. Esther repassou todos esses diálogos, reconhecendo um pouco de Déborah em cada um deles. Suas pequenas idiossincrasias eram idênticas às daquelas meninas. Também era tímida. Também mascarava seu medo coM a precocidade e uma certa sagacidade cínica. Também era tensa. Será que’algum dia voltaria a participar do mundo dessas meninas? O hospital teria sido afinal um erro desde o princípio?

Ao chegar em casa, conversou coM Jacob e depois coM a família, sorridente e tranqüila, iludindo-os e aparando as perguntas mais embaraçosas coM fluência e convicção. Quando tudo parecia ter ido às mil maravilhas, Jacob virou-se para ela e disse:

- Maravilhoso. Acho ótimo que ela tenha feito tantos ProGressos, porque da próxima vez estou decidido a ir coM você.

- Como foi que você destruiu sua irmã? - perguntou a

Dra. Fried a Déborah, que se aconchegara no divã, tremendo com o frio que vinha de Yr, apesar do calor de agosto que fazia na Terra.

Não foi por querer... Ela estava exposta à minha

essência. Existe um termo Yri para isso. É algo inerente ao meu eu, algo venenoso, venenoso para a mente.

- Alguma coisa que você diz e que destrói? Alguma coisa que você faz ou deseja?

- Não, é uma qualidade do meu eu, uma secreção, como o suor por exemplo. Trata-se de uma emanação da pessoa Déborah, uma emanação venenosa.

Subitamente, Déborah teve um acesso de autocomiseração pela criatura cheia de miasmas que era e pôs-se a discorrer sobre o fenômeno, ampliando cada vez mais seus contornos e a virulência de sua substância.

- Um momentinho... - aparteou a doutôra com um gesto de mão, mas o prazer de se auto-acusar arrebatara Déborah com tamanho vigor, que parecia uma paixão às avessas: ela esbravejou, tomeou, adornou cada uma de suas infâmias com uma eloqüência absurda. Quando terminou, sua sombra tomara-se imensa. A doutôra esperou até que Déborah estivesse em condições de ouvi-la, e então perguntou com voz pausada:

- Quer dizer que continua tentando jogar areia em meus olhos?

Déborah protestou, defendendo e embalando a imagem irreconhecível criada por ela, mas a doutôra foi irredutível:

- Não, minha querida... isso realmente não adianta. É um truque velho. Esse disfarce sequer foi inventado pelos seus iiris.

- iris.

- Engraçado... Para que uma pessoa se esconda, basta esquecer, ou inventar outros acontecimentos, ou truncar os verdadeiros. Não passam de bons métodos para fugir de uma verdade que pode vir a ser dolorosa.

- Ora, por que então não escondê-la e continuar em segurança?

- E continuar louca.

- Que seja, continuar louca. Por que não, considerando o que fizeram comigo!

- Ah, sim. Você vem, muito a propósito, me lembrar de um dado que eu tinha esquecido. O disfarce que consiste em pôr toda a culpa nos outros. Evita que você tenha que encarar não apenas o que realmente fizeram com você, mas também o que você fez com você mesma e continua fazendo.

Para Déborah, o que dissera sobre a emanação maléfica era, em parte, sincero e parecia mesmo acontecer. Contudo, as exaltações subseqüentes se encarregaram de transformar o fenômeno numa coisa bastante irreal, e a menina monstruosa que acabara criando, se tomara uma criatura estranha e irreconhecível. A doutôra insistiu para que voltasse a falar sobre a destruição de Suzy. Descreveu os ciúmes dos primeiros tempos e o amor que surgiu depois, carregado de culpa e tormento. A doença, segundo Déborah, vinha se desenvolvendo havia bastante tempo, e todas as pessoas que conhecia acabavam, mais cedo ou mais tarde, sendo corrompidas por ela: Suzy mais do que ninguém, por ser amorosa e impressionável.

- Diga uma coisa: você fazia com que ela tivesse alucinações ou sentisse o cheiro de coisas que não existiam por perto? Você fazia com que ela duvidasse de sua própria sanidade ou perdesse a noção de realidade?

- Não - respondeu Déborah. - A doença não está em ver ou ouvir coisas, está por baixo disso. Nunca transmiti sintomas a ela. A doença é o vulcão. As encostas e escarpas, ela as enfeitará como bem entender.

- Você ainda tem sentido muito frio? - perguntou a doutôra.

- Tenho, desde que começaram essas chuvas e esses nevoeiros gelados. Nunca ligam o aquecedor na ala.

- Pois bem, lá fora no mundo é agosto. O céu está limpo e o sol quentíssimo. Lamento, mas o frio e a névoa só existem dentro de você.

O tumor despertou furioso, ao saber que outras potências disputavam a sujeição dela, e desferiu uma flecha aguda que atravessou seus domínios para lembrá-los de sua supremacia. Déborah dobrou-se trêmula e ofegante de dor. Eu te preveni, exclamou o Censor. O cheiro nauseante de éter e clorofórmio envolveu-a e as pulsações do coração se fizeram ensurdecedoras.

- Eu tentei matar minha irmã quando ela nasceu - disse e ficou surpresa ao ouvir sua própria voz pronunciando tais palavras. Não houve estrondo nenhum de nenhum canhão.

- Como foi?

- Tentei atirá-la pela janela. Quando ia fazer isso, mamãe entrou e me impediu.

- Seus pais castigaram você?

- Não. Nunca mais tocaram nesse assunto. Invadiu-a um sentimento de profunda gratidão pela família,

que consentira em viver com um monstro e tratá-lo como pessoa.

- Depois da operação... - continuou a doutôra.

- Morávamos naquela casa ensolarada onde ficamos só por um ano. E apesar de tudo o que me deram, você compreende, de tudo o que fizeram por mim... Por um instante esteve à beira das lágrimas, mas a doença se apressou a lembrá-la de que chorar era humano. Tu não és como os outros, repetiu Yr, e as lágrimas se recolheram imediatamente.

- Não foi só a idéia de matá-la?

- Não! Cheguei a carregá-la até a janela, pronta para atirá-la.

- E seus pais de fato nunca tocaram no assunto nem fizeram perguntas?

- Nunca. - Déborah achava que eles tinham apanhado o fato escabroso e sepultado às pressas num lugar qualquer, como se faz com um cadáver em decomposição. Por outro lado, sabia muito bem que nessas circunstâncias, o mau cheiro do cadáver persegue o criminoso, paira no ar, impregna tudo com sua podridão e seu ranço. Havia em Yr uma região chamada Pântano do Medo. Certa vez, Lactamaeon levou-a até o pântano para que visse, flutuando na superfície de lodo, acumulando-se ano após ano, os monstros e os corpos de seus mais temíveis pesadelos.

- Que cheiro horrível é esse? - perguntou ela.

- Vergonha e intimidade, Pássaro-um, vergonha e intimidade, foi a resposta dele.

Déborah desatou a rir.

- O que é? Leve-me com você - pediu a doutôra, inclinando-se para ela.

- Compaixão... compaixão. Em algum lugar, há um ladrão que ouviu dizer que as pessoas costumam enterrar e esconder seu ouro e suas jóias. Imagine a cara dele quando descobrir o que eu enterrei! - Ambas riram.

Quando entrou o turno da noite, Helene postou-se diante da enfermaria e começou a bater os pés com força. O barulho atraiu logo um auxiliar.

- O que é que você tem agora, Helene?

Caso encerrado - declarou ela. - Vim anunciar que o caso do Sr. Hobbs está encerrado.

Seu sorriso sarcástico deixou o auxiliar furioso. O caso era para ser mantido em sigilo absoluto. Na noite anterior, o Sr. Hobbs tinha ido para casa depois do serviço, fechado as portas e janelas, ligado o gás e se matado. Todas as pigméias-monjasprisioneiras confinadas na Ala D, até as mais alheadas, sabiam do acontecimento.

Só por serem loucas, birutas, lunáticas, piradas, as pacientes não se sentiam obrigadas a manter a decência e a evitar de falar mal do morto. As deformações físicas mereciam uma certa piedade, mas a morte e suas convenções eram encaradas com o maior desdém. Helene tinha uma frase lapidar: ”Um louco é um enforcado cuja corda arrebentou a tempo”. Todas tinham desejado se matar, tentado o suicídio de uma forma mais ou’ menos diligente, e todas invejavam a morte. Um dos aspectos de sua doença é que todas se julgavam o centro do mundo. Segundo essa visão, o que o Sr. Hobbs fizera tinha sido mostrar a língua para elas, caçoar a uma distância segura, enquanto as loucas furiosas, tentavam acertar uns bons tapas nele, mesmo que em vão.

Quando o turno da noite entrou, as pacientes acorreram ansiosas ao saguão para ver quem tinha substituído Hobbs. As que se achavam à frente do grupo, logo que o viram, espalharam a notícia para as de trás.

- É um Nariz. O sujeito é um Nariz. - E o burburinho foi crescendo. Nariz era um desses condenados arrependidos, que optaria por trabalhar em hospitais psiquiátricos como altemativa à prisão. A expressão fora inventada por Lee Miller, numa ocasião em que ela disse: ”Ah, esses desertores... Detesto todos eles. Eles se recusam a lutar, aí vem o govemo e diz: Vamos esfregar o nariz de vocês naquilo para verem o que é bom! Escolham: ou a prisão ou o hospício! - Helene riu e alguém completou: - Pois é, eles são os Narizes e nós o aquilo. Ao saber da novidade, Carla limitou-se a murmurar:

Gosto de ser a punição dele, me sinto necessária - e riu, mas com uma amargura que era rara nela.

- Os Narizes costumam vir aos pares. Suponho que devemos chamar um deles de Narina - comentou a cerimoniosa Mary, enquanto esfregava nódoas invisíveis de sangue. As pacientes caíram na gargalhada.

- Talvez ele seja bonzinho - disse Carla. - Qualquer coisa é melhor do que Hobbs.

Ficaram para assistir a primeira caminhada, extenuante e interminável, que o novo membro da equipe teve de empreender ao longo da ala. O homem, coitado, estava aterrorizado. Ao perceberem isso, a reação delas oscilou entre o divertimento e o ódio. Constantsa, da seção de reclusão, começou a gritar assim que o viu, e Mary, ao ouvir os gritos, comentou rindo:

- Chiii! Meu Deus, ele vai desmaiar! e depois ressentida - Ela também é uma pessoa, sabia?

- Aposto que está com medo de que a gente o contagie - disse Déborah. Caíram todas na gargalhada com essa alusão a Hobbs, que tinha morrido por causa disso.

A expedição acercou-se delas.

- Levantem-se do chão, por favor! - pediu a enfermeira-chefe da ala às meninas que estavam sentadas de encontro a parede no chão do saguão e do corredor.

Déborah ergueu os olhos para o Nariz. - Obstáculo! - declarou com voz cantada.

Queria dizer com isso que os seus pés estendidos à frente do assustado rapaz simbolizavam os aparelhos nas corridas de obstáculo que os recrutas tinham que saltar durante o treinamento militar, que ela e as outras compreendiam que lhes cabia substituir os ”horrores de guerra”., e que iriam se esforçar para satisfazer o desejo do exército de que o treinamento desse homem fosse rigoroso. As enfermeiras, contudo, não riram, muito menos entenderam. Seguiram adiante, contentando-se em repreendê-las novamente para que saíssem do chão. As pacientes sabiam que aquilo era mera formalidade. Viviam sentadas no chão e ninguém dava por isso, mas bastava chegar um convidado, para que as enfermeiras, tal como esposas provincianas, cacarejando desculpas por tudo e por todas, lamentan aue a casa estivesse ”tão desarrumada”.

Constantia parecia estar decidida a passar aquela noite ando. Abriu-se de repente a porta da ala e McPherson enTrou Num instante todas se acalmaram. Déborah olhou para com severidade e comentou num tom significativo: - Deviam ter trocado a fechadura.

A entrada de McPherson constituía para ela um acontecimento absolutamente diferente do anterior, como se a porta e a fechadura fossem outras. Sentiu obscuramente que essas palavras feriam-no de algum modo. Repetiu-as, procurando descobrir qual delas era a culpada.

Deviam... ter... trocado.. .a.. .fechadura.

Eu também não gosto desse negócio de chaves - disse McPherson. Carla olhou à sua volta, tal como Déborah anteriormente, e percebeu que ninguém tinha compreendido. No entanto, por se tratar de McPherson, isso não lhe despertava nenhuma reação sarcástica ou agressiva. Voltou a se recostar em silêncio.

Todas ficaram contentes com a presença dele, só que demonstrar esse sentimento significava demonstrar que eram vulneráveis, daí terem que ocultá-lo. - Sem essas chaves, você não se distinguiria de nós!

McPherson, contentou-se em rir, um riso bonachâo, muito mais de si mesmo do que delas. Ora, que é isso? Não scomos assim tão diferentes! - disse antes de entrar na enfermaria.

- Vejam só! A quem pensa que está enganando? - exclamou Helene sem nenhuma malícia. Apressara-se apenas a tapar a brecha que ele, por descuido, tinha aberto no. muro. Afastou-se dali, perdida de novo no seu limbo. Como a presença de McPherson pairasse ainda no ar, ninguém fez comentários irônicos a respeito daquelas súbitas ausências mentais dela. Quando, porém, a procissão de magos voltou a desfilar diante delas, carregando consigo o Nariz todo empertigado, com os maxilares contraídos de pavor, não puderam conter a crueldade que, para elas, era a expressão verdadeira e natural de suas personalidades. Helene estremeceu de repugnância quando ele Passou. Carla armou um olhar de pasmo. Mary, com sua jovialidade importuna, soltou uma gargalhada e proclamou: - Atenção carrascos de Hobbs, aí vem outro freguês para o gás!

- Vamos chamá-lo Hobbs Leviatã. Ele deve ser mil vezes pior que o outro!

- A religião deles condena o suicídio - falou Sylvia que estava encostada à parede.

Todas emudeceram assombradas. Fazia um ano que Sylvia não dizia absolutamente nada. Sua voz era tão inexpressiva que o som parecia ter vindo da própria parede. O silêncio pairou sobre a ala; as pessoas procuravam se convencer de que realmente haviam escutado aquelas palavras e de que elas partiram da criatura muda e enregelada que era Sylvia, tão muda e enregelada que se confundia com os móveis da ala. Entreolharamse descrentes de seus sentidos - ela falou ou fui eu que escutei? - Lee Miller foi a primeira a reagir. Dirigiu-se à porta da enfermaria, mas estava fechada. Bateu, bateu, até que vieram abrir. A enfermeira olhou para ela aborrecida, como se estivesse diante de um vendedor inoportuno.

- Chame a médica - disse Lee lacônicamente. - Sylvia falou!

- O relatório da ala ainda não está pronto - retrucou a enfermeira e fechou a porta. Lee bateu de novo. Passado algum tempo, voltaram a abrir. - E então...?

- £ bom que você chame a médica, pois se não chamar a culpa será sua, não minha. Adams virá! - Sempre vem. Da última vez que Sylvia falou, ela veio às três da madrugada!

- Por que vocês estão tão excitadas, hein Miller? - perguntou a enfermeira - O que foi que ela falou?

- Isso não tem importância, nem faria sentido para você porque foi parte de uma conversa.

- Sobre o que?

- Ai, Cristo! Por favor!

Déborah, que observava o desespero de Lee Miller, compreendeu como seria absurdo reproduzir qualquer fragmento da conversa. De qualquer maneira, extinguira-se o breve e pálido lampejo de vida em Sylvia. Uma aura de luz sombria rodeava Lee; era o sinal de Yri para quem estava tankutuku - a descoberto - exposta aos perigos e distante do refúgio. Expusera-se por causa de outra pessoa que jamais iria elogiá-la ou demonstrar gratidão pelo seu gesto. O Yri tinha um

outro termo para designar tal estado, raramente usado: nelaq, ou seja, falta de visão. Gostaria de agradecer a Lee por se ter exposto sua falta de visão. Yr louvava a coragem de Lee, mas não conseguia articular as palavras necessárias.

Era preciso que se fizesse algo por Lee. Ela se encontrava naquela região medonha chamada ”Envolvimento” ou ”Realidade” e ninguém podia ajudá-la. Encerrada num corpo inerte inerte como o de Sylvia agora - incapaz de pronunciar uma palavra sequer, Déborah tremia, transida de medo. Atirou-se impetuosamente em Yr: - Quanto mais fundo, melhor. O flamejante Anterrabae acossou-a às gargalhadas: Como ousas solidarizar-te com o mundo! Traidora! Serás punida! Yr cerrou-se sobre ela.

Não! Não! Se fizerem isso, enlouqueço! - implorou Déborah.

Não admiras a nelaq tankutuku? Pois bem, aí está o mundo. Toma-o!

Irrompeu um vento tempestuoso. Dissolveram-se as paredes e o mundo se desfez num grande caos de sombras. Déborah tateou em busca de chão firme onde pudesse se erguer, mas seus esforços foram em vão: o chão se desvaneceu como uma miragem no deserto. Avistou à distância um fragmento de superfície mas o vento logo carregou-o para longe. As direções embaralhavam-se. Foram revogadas todas as leis da física e dos sólidos, as noções habituais de tato, movimento, forma, gravidade e luz. Era impossível determinar se estava de pé ou sentada, o que era vertical e o que era horizontal. E de onde provinha essa luz, cujos raios feriam-na como facadas? Perdeu totalmente o controle de seus membros: não sabia onde estavam os braços, nem como movê-los. Tudo girava à sua volta, ora próximo, ora distante. Procurou coordenar as idéias e constatou que perdera também a memória: sentiu-se incapaz de recordar uma só palavra, e até mesmo o Yri transformara-se num emaranhado de sons inarticulados. Depois da memória, foi a Vêz do cérebro esfumar-se. Restou-lhe apenas uma sucessão vertiginosa de sensações inidentificáveis posto que faltavam palavras e idéias para enquadrá-las. Pressentiu que sugeriam algum segredo pavoroso, mas não houve como decifrá-lo. Finalmente, nada em Déborah respondia mais. O terror, agora, não tinha limites.

Ao emergir da Punição, a primeira coisa que viu foram as unhas das mãos. Estavam roxas de frio. Lá fora, o sol de verão resplandecia sobre uma paisagem verdejante. No entanto, não ousava participar desse outro tempo, temerosa de que a Punição voltasse a fustigá-la e a arrebatá-la de novo. Notou que estava deitada numa cama que não era a sua. Levantou-se, envolveu-se no cobertor e, tiritando ainda, saiu para o saguão. Embora não conseguisse reconhecer ninguém, tinha, pelo menos, uma consciência razoável de que existia, de que via corpos em três dimensões, chamados pessoas, que se moviam num elemento chamado tempo. Dirigiu-se a uma delas para esclarecer uma questão que lhe parecia irrelevante: - Que dia é hoje?

- Quarta-feira.

- Puxa! Então em que dia foi? - A pessoa obviamente não entendeu, e como estava atordoada demais para insistir, preferiu se afastar À sua volta, os; corpos de três dimensões reclamavam do calor e abanavam-se, tentando diminuí-lo.

Nauseada com o frio que sentia, voltou para o quarto, deitou-se numa cama, e ficou aliviada ao reconhecer que era a sua.

Estás vendo como é... - disse Anterrabae num tom condescendente. - Scomos capazes de manipulá-la. Não brinques conosco, Pássaro-um, porque podemos jogá-la para cima, para baixo e para os lados, e virá-la pelo avesso. Imaginavas, por 1 acaso, que todas essas descrições não passavam de metáforas? Perder a cabeça, fundir a cuca, ficar louco, demente, lunático? Pobre de ti! Vês agora que elas são todas muito, muito verdadeiras. Não brinques conosco, Pássaro-um, porque estamos te protegendo. Da próxima vez que admirares o mundo, conhecerás um castigo mil vezes mais terrível.

Mais tarde, a Dra. Fried perguntou a ela o que havia descoberto desde a última sessão.

- Descobri o que é ser insana - respondeu Déborah, lembrando-se com reverência da imensidão, do poder e do horror contidos nela. Meneou a cabeça - É realmente incrível! é realmente é incrível!

A guerra entre o Nariz - ou Hobbs Leviatã, como decidiram chamá-lo, - e as pacientes prosseguiu. De acordo com os preconceitos alimentados no homem, a insanidade ou era deserto merecido para suas vítimas, ou uma vingança de Deus ou uma obra do diabo, ou ainda, as três coisas juntas, o medo dos primeiros dias foi cedendo lugar à cólera, para ele virtuosa e justa. Passou a se julgar vítima de uma perseguição religiosa, um mártir, enfim.

Contra a repugnância que ele extemava, as doentes lutavam com as armas que seu estado lhes permitia. As letradas reescreviam a Bíblia, ridicularizando algumas de suas passagens para escandalizá-lo. Constantia fazia-lhe propostas ostensivamente libidinosas. Helene, quando ele vinha trazer a toalha, tomava-a, com uma pequena mesura, e dizia: - De Paracleto a Paranóica. Amém, Amém. - E Déborah atormentava-o com observações ferinas sobre as similaridades entre os psicóticos e os fanáticos religiosos. McPherson sentia essa atmosfera de ódio e violência pairando sobre a ala, sem saber o que fazer. O problema é que não havia gente suficiente na equipe. Os dois outros novos condenados arrependidos, estavam se saindo bem em alas diferentes, e um deles até demonstrava habilidade no trato com os pacientes. Pessoalmente, também não gostava muito de Ellis, o que tinha ingressado na Ala D, mas procurava mostrar-se simpático com ele. Ellis não servia de jeito nenhum para o trabalho. Detestava e temia os pacientes, e encarava o govemo que o punira do mesmo modo que os mártires cristãos deviam encarar os procuradores romanos. Não era para menos que estava condenado a carregar o espectro de Hobbs que os pacientes lhe haviam imposto com os seus apelidos. E para tomar as coisas piores, a religião de Ellis considerava o suicídio um dos pecados mais terríveis, uma verdadeira monstruosidade.

Vendo, portanto, o coitado arrastar o seu Leviatã, morto e putrefato, McPherson pensava com seus botões que não havia no mundo caçadores mais sagazes e implacáveis, do que esses doentes na arte de desferir as setas sobre o ponto mais fraco do animal. Um fato, porém, o intrigava: porque agrediam Hobbs e nunca a ele; porque agora agrediam Ellis, e não a ele, mePherson. Helene jamais voltara seu arsenal de conhecimentos contra ele. Déborah Blau, a carrancuda, evitava feri-lo com palavras cruéis. Suspeitava que não se tratava apenas de uma questão de sorte. Não compreendia como e por que escapava aos desafogos de amargura e infelicidade que o rodeavam.

Observou as pacientes apáticas esperando o jantar, o cair da noite, os sedativos e finalmente o sono. Blau estava parada ao lado das grades do aquecimento, fitando alguma coisa para além da parede. Perguntara-lhe uma vez o que estava olhando. ”Sou a morta que medita”, respondera ela com uma voz sumida.

Constantia, embora estivesse fora do quarto de reclusão, continuava enclausurada em si mesma, murmurando para si num canto. Lee Miller cerrava e descerrava os dentes. A srta. Cabot insistia do dormitório - Eu sou a Esposa de um Ex-Presidente Assassinado dos Estados Unidos! - Linda, Marion, Sue Jepson e as demais estavam entregues às suas manias habituais. E, no entanto, sentia-se que pairava no ar uma intranqüilidade ameaçadora - mais do que a simples soma das intranqüilidades individuais. Nisso, sai Ellis da enfermaria onde estivera redigindo os relatórios médicos. As provocações imediatamente recomeçaram:

- Ei-lo que surge, o grande monstro marinho, Hobbs Leviatã!

- Afasta-te do meu caminho, satanás!

- Hobbs cometeu suicídio e o exército cometeu Ellis!

- O cara recebeu uma comissão, mas não é bem a do tipo que confere patente.

- Não... dá é grilos na cuca!

- Quais são as últimas do Inferno hoje, pastor?

- Isso é hora de perguntar? Deixe-o cuidar primeiro de suas ovelhas!

Havia um rádio embutido por detrás de outra espessa grade na parede, o qual era ligado apenas durante certas horas do dia e sintonizado em músicas inócuas, não muito contagiantes. McPherson, sem vacilar, foi até o rádio, destrancou a grade, e ligou-o bem alto. Ecoaram os sons delicados de uma música romântica para dança, instaurando um contraste patético, hilariante mesmo, com a atmosfera pesada, rescendendo a urina e a desinfetante, que envolvia a ala. Quando a voz lânguida do locutor desejou-lhes uma ”boa noite sob esse céu estrelado”, Carla replicou, numa paródia melancolicamente romântica: - Bati as asas em despedida, livre das minhas amarras, delicadamente, adeus... adeus...

Foi uma gargalhada geral. Os ânimos se acalmaram, embora O rasto de tensão permanecesse ainda por alguns instantes Evitara-se por pouco um grave incidente. Assim que tcomou o sedativo, Déborah enfiou-se na cama como de hábito, ficou esperando que o sono chegasse Deuses e o Coletor foram gradativamente se reduzindo a um sonolento meio-tom e iam apagar-se quando McPherson entrou no dormitório e parou junto à sua cama.

Deb - a voz dele era suave - deixe em paz o Sr. Ellis, está bem?

Por que eu?

Quero que todas vocês deixem-no em paz. Nada de piadinhas. Nada de referências a Hobbs.

Pretende falar com todo mundo? (A suspeita e a cautela contra os pedidos, as intenções e os homens do mundo superou a prudência e motivou a pergunta).

- Hum, hum! com todo mundo.

- Mesmo com Marie e Lena? (Os próprios pacientes consideravam-nas os casos mais graves da ala).

- Déb... deixe ele em paz, tá?

Sentiu-se, naquele momento, usada. McPherson era o único que conseguia chamar as pacientes por seus apelidos sem que isso soasse falso. Desta vez, porém, soou.

- Ora, por que eu? Pensei que vocês, os normais, tinham convencionado que nós estamos fora do jogo, das suas convenções e rotinas. Não sou simpática, muito menos delicada, e conheci Hobbs melhor do que você. Fique sabendo que ele era um dos nossos! A única coisa que o separava de nós eram os cinco centímetros de metal da sua chave, os quais ele se apressava em afagar, mal se sentia ameaçado.

McPherson, ao retrucar, continuou falando baixo, mas sua voz vibrava de indignação, surpreendendo Déborah com uma atitude que ele nunca tomara antes.

- Escute, você acha que todas as pessoas doentes estão em hospitais? Vocês se julgam, por acaso, donas de todo sofrimento? Não pretendo trazer à tona questão de dinheiro - isso é mais do que sabido - mas quero lembrar-lhe que muita gente lá fora gostaria de receber ajuda e não pode. Você deve saber reconhecer uma perturbação mental à primeira vista. Nunca a vi molestar outras pacientes. Nunca a ouvi insultar uma delas. (Déborah lembrou-se do que dissera à Carla e voltou a sentir-se culpada). Deixe Ellis em paz, Déb. Um dia você se sentirá satisfeita consigo mesma.

- Vou tentar.

Ele a encarou com o rosto severo. Embora não conseguisse enxergá-lo na escuridão, sentiu que ele estava tranqüilo. McPherson deu meia volta e saiu do dormitório. Déborah lutou, por algum tempo, contra o efeito dos sedativos, pensando sobre o que ele tinha dito e como o tinha dito: palavras duras mas verdadeiras. Sob a indignação percebia-se um tom - raro em qualquer parte, sobretudo num hospital psiquiátrico - um tom de respeito e sinceridade entre iguais. O pavor que sentiu ante a responsabilidade que aquela franqueza impunha veio temperado com uma sensação nova: alegria.

já uma coisa que você disse numa das sessões anteriores que não me sai da cabeça - recomeçou a Dra. Fried. - Afirmou que estar doente era como ter um vulcão dentro de si e depois, falando a respeito de sua irmã, disse que caberia a ela decorar as encostas como bem entendesse. Percebe agora o que isso significa? Será que você realmente não vê que os deuses os diabos e todo este seu Yr são coisas criadas por você mesma?

Não foi isso o que eu quis dizer! - exclamou Déborah, recuando sobressaltada. Lembrou-se do estribilho que durante anos o Coletor repetia, imitando as pessoas: Acorda menina! Tire essas besteiras da cabeça! - Yr existe!

Não tenho dúvidas de que, para você, ele existe. No entanto, há um outro aspecto que você parece admitir: a doença e os sintomas são coisas distintas, ainda que se confundam freqüentemente. Você não concorda que, embora os sintomas estejam intimamente relacionados à doença e influam por vezes sobre ela, não se trata da mesma coisa?

Concordo.

- Ótimo. Gostaria, então, que você me levasse de volta ao seu passado, antes das encostas terem sido decoradas para darmos uma olhada juntas no próprio vulcão. - Percebendo o olhar assustado de Déborah, acrescentou - Não de uma só vez, é claro. Aos poucos.

Tinham percorrido já as Grandes Decepções, bem como as inúmeras pequenas decepções que são inevitáveis na vida, mas que, devido à sensibilidade e aos temores de Déborah, pareciam também apontar o caminho da destruição final, como se tudo fizesse parte de uma trama, uma brincadeira misteriosa que todos conheciam mas ninguém admitia conhecer. Graças àqueles meses de terapia, Déborah começou a perceber que havia muitas razões para o horror que o mundo lhe inspirava. A sombra do avô, o poderoso soberano da dinastia, projetava-se ainda sobre todos os da família. Lembrava-se nitidamente da sua voz familiar incitando: - A segunda da classe não basta, você tem que ser a primeira! Ou então: - Quando a machucarem, nunca chore. Ria! Não permita emhipótese alguma que eles vejam que conseguiram-atingi-la. - Estas e outras advertências visavam precavê-la contra os cúmplices sorridentes da brincadeira secreta. O orgulho, segundo ele, consistia em morrer com dignidade e agonizar como se o fizéssemos todos os dias. Esta noção de orgulho, entretanto, vinha carregada de ódio. - Você é esperta - dizia - ainda dará uma boa lição neles! - Empenhara-se em aguçar a sagacidade verbal da neta nos moldes da sua, burilando-lhe as arestas ferinas. Vivia chamando as mulheres de vacas e putas parideiras e, dando-lhe tapinhas de uma brutalidade mal contida, lamentava o fato de Déborah ter nascido mulher. Ainda assim, teria que desafiar o mundo todo, o qual para ele se resumia num bando de tolos e ingratos, e vencer, pelo avô, a ancestral e mística guerra entre um imigrante aleijado e um Conde de Latvia morto há séculos?

Déborah cresceu num ambiente e numa época em que os judeus americanos continuavam acossados pelos terrores da lembrança das velhas batalhas das quais haviam fugido do Velho Mundo alguns anos antes. Recrudesciam, por outro lado, as novas batalhas, à medida que o poderiu de Hitler se ia expandindo pela Europa, e seu ódio repercutia intensamente na América. Nas cidades maiores, ocorriam manifestações germanófilas e atentados contra sinagogas e vizinhos judeus que ousaram abandonar os guetos. Déborah lembrava-se de ter encontrado várias vezes a mansão dos Blau salpicada de tinta, ou ratos mortos fedendo de manhã ao lado do jornal que noticiava a fuga dos judeus para a fronteira da Polônia, onde eram fuzilados pelos poloneses ”amantes da liberdade”. Conheceu de perto esse ódio anti-semita e chegou mesmo a ser agredida uma ou mais vezes por valentões da vizinhança. O avô, no entanto, como se visse nesses episódios uma espécie de obscura confirmação, exclamava triunfante: - É inveja! Os mais capazes e os mais espertos são sempre invejados. Caminhe de cabeça erguida, e se a agredirem, não dê o braço a torcer! - E, em seguida, com palavras cheias de ódio, acrescentava: - Você ainda vai lhes dar uma boa lição! Nós dois scomos iguais. Os outros... são todos uns idiotas. Deixe estar, algum dia você vai lhes dar uma boa lição!

A ”lição” que ela tinha que dar consistia em exibir uma impostura que seduzisse e impressionasse as pessoas: sua precocidade. Os resultados pareciam confirmar as palavras do velho. Durante muito tempo, enquanto vigorou a trégua armada o mundo, Déborah usou sua sagacidade cáustica para estarrecer os adultos. No entanto esta precocidade mais iludiu, as crianças de sua idade. Percebiam temerosas o que se passava com ela, e sábias, partiam imediatamente para uma posição de ataque.

Portanto, você se constituía num solo dos mais propícios para que a semente de Yr germinasse - concluiu a doutôra - As decepções com o mundo dos adultos. O abismo existente entre as pretensões do seu avô e o mundo que a cercava. As ilusões inspiradas pela própria precocidade: você era especial. Só que essa condição, por mais impressionante que fosse para os mais velhos, esbarrava contra a impossibilidade cruel de você conseguir a ascendência desejada junto às pessoas de sua idade.

O abismo existente entre a menininha rica, cercada de cuidados, empregadas, vestidos importados, e... e a...

- E o quê? Onde está você agora?

- Não sei. - Sentia, no entanto, que falava de um lugar onde já estivera antes - Não existe cores, apenas tonalidades cinzas. Ela é grande e branca. Eu sou pequenina. Há barras nos separando. Ela dá comida. Tudo cinza. Eu não como. Onde está a minha. . . minha. . .

- Sua o quê? Vamos!

- Salvação! - deixou escapar Déborah.

- Continue - encorajou a doutôra.

- Meu.. . eu, meu. .. amor.

A Dra. Fried perscrutou atentamente a fisionomia de Déborah por algum tempo e, em seguida, disse: - Tenho um pressentimento. Vamos experimentá-lo juntas?

- E você confia em mim?

- Mas é claro. Se não confiasse, essa ciência com a qual nós duas estamos trabalhando, não existiria. O conhecimento básico que você tem a respeito de si mesma, da verdade, é corretíssimo. Acredite nele.

- Vá em frente ora. Justifiquemos a psiquiatria (Risos).

- Sua mãe não teve problemas de gravidez quando você era bem pequena?

- Teve, ela abortou. Gêmeos.

- E depois viajou para repousar por algum tempo, não é?

Uma luz projetou-se sobre o passado, expondo a verdade, sólida e indiscutível daquele momento. A coisa veio num estalo. Déborah, tropeçando nas palavras, pôs-se avidamente a preencher as lacunas, e o distante pesadelo foi, pouco a pouco, perdendo seu aspecto sobrenatural até se tomar, simplesmente, a vivência de uma situação de abandono.

- O vulto branco deve ter sido uma babá. A sensação que eu tinha era a de que todo calor havia desaparecido. Esta sensação ocorre freqüentemente, mas nunca imaginei que pudesse ser verdade que estive realmente num lugar assim. As barras, então, eram as barras do berço. Meu próprio berço... provavelmente... A babá era distante e fria... Ei! Ei! - A luz, agora plenamente gratificante, projetou-se sobre uma outra região, transformando subitamente as conexões, ainda limitadas e hesitantes, numa revelação imensa e maravilhosa. - As barras do berço, e o frio e a perda da capacidade de distinguir cores... exatamente o que acontece agora! É uma parte do Abismo... é o que acontece agora, agora! Quando sinto que vou despencar, essas faixas escuras diante dos meus olhos são as antigas barras do berço, e o frio é o mesmo frio de antes. Sempre me intrigou o fato de que não era um frio como qualquer outro que eu pudesse suprimir vestindo um casaco.

A enxurrada de palavras chegou ao fim. A Dra. Fried sorriu: - Portanto, é tão vasto quanto a sensação de abandono e a da perda de todo o amor.

- Cheguei a pensar que ia morrer até que, finalmente, eles voltaram. - Seu pensamento pousou um instante. De repente, outra dúvida a assaltou, como se estivesse aguardando ali há muito tempo. - Por que só eu vejo essas faixas escuras? Não há ninguém que não tenha ficado sozinho em certas ocasiões, por uma semana ou duas talvez. Muitas crianças até mesmo perdem os pais, e nem por isso acabam loucas, vendo faixas escuras subir e descer diante de suas retinas. A dúvida logo se transformou em certeza, em mais uma prova irrevogável de que havia nela algum defeito, um defeito intrínseco, genético, uma semente ruim. Esperava que a doutôra ensaiasse qualquer objeção tímida, uma mentira inócua e reconfortante com a qual pudesse iluminar o caminho de volta a Yr. Ao invés disso, vieram palavras incisivas.

- As recordações não perdem necessariamente suas formas originais, mas depois de recalcá-las anos e anos seguidos, acabam adquirindo um peso que pode vir a ser insuportável. Cada vez que você é chamada a recordar o frio do abandono, barras e a solidão, essa vivência grita lá no fundo: ”Está vendo? No final das contas, a vida é assim.”

A doutôra ergueu-se, encerrando a sessão. - Fcomos muito bem hoje. Localizamos dentro de você onde certos fantasmas do passado continuam agarrados ao presente.

Eu me pergunto qual será o preço... - murmurou Déborah.

A doutôra tocou-a no braço: - É você quem estabelece o preço. Diga a todos em Yr que não ousem prejudicá-la nessa sua busca.

Déborah retirou o braço das mãos da doutôra, impelida por um medo obscuro ao contato físico. Teve razão, pois o lugar onde a mão pousara começou a fumegar sob a manga do suéter e a pele encarquilhou cobrindo-se de bolhas.

- Perdoe-me - desculpou-se a doutôra, notando a palidez do seu rosto. - Não pretendia tocá-la antes que estivesse pronta para aceitar isso.

- Pára-raios - disse Déborah, olhando através do suéter a carne chamuscada, e imaginando como devia ser horrível alguém servir de condutor à terra para uma potência dessa ordem.

A doutôra, concentrada em suas deduções lógicas, buscava para além do corpo trêmulo de sua paciente vestígios do almejado espírito que reluzira por alguns minutos, para logo depois submergir. - Trabalharemos com afinco, juntas, e acabaremos compreendendo.

- Enquanto for possível suportar - concluiu Déborah.

O tempo passava. Déborah era jogada daqui para lá como uma peteca, de estágio a estágio em Yr, da terra à terra de ninguém, da luz do sol às trevas da noite, no limite das fronteiras que demarcam o mundo dos sãos, tentando, de passagem, não ser cruel com o Sr. Ellis. Libertou-o de Hobbs, e procurou se mostrar obediente, quando não simpática, arcando com o martírio dele - sua própria existência - do melhor modo que pôde. Um novo grupo de estudantes de enfermagem veio e se foi. Uns se foram aliviados por terem perdido o medo dos doentes mentais, outros fugindo atemorizados à descoberta de uma similaridade sutil existente entre os pensamentos expressos pelas loucas e os seus pensamentos inconfessáveis. Veio, depois, um segundo grupo que estava sendo domesticado pela nudez espontânea de Constantia, pela violência devastadora e graciosa de Helene e pelos olhos alheios de Déborah. Surpreendeu certa vez uma enfermeira comentando: -Aquela menina me olha como se eu absolutamente não existisse. Procurando tranqüilizá-la, Déborah sussurrou depois ao cruzar com ela: ”Errada não.” Queria dizer com isso que não era a enfermeira quem estava ausente, e sim ela, a repulsiva Déborah. No entanto, a escolha inadequada das palavras só fez deixar a estagiária mais alarmada, o que veio confirmar mais uma vez a distância intransponível que a separava dos chamados ”seres humanos normais”.

Déborah ergueu-se no diminuto quarto onde estava enclausurada, situado a pouca distância do saguão. Uma enfermeira ” trouxe-lhe a bandeja do almoço. A mulher remexia as chaves (sua diferença), muito pálida, revendo provavelmente os pesadelos, terríveis e inconfessáveis, onde ela própria figurava como a vítima do seu hospício imaginário. Estes, ao menos, Déborah compartilhava, acreditava neles, compreendia-os. Murmurou algumas palavras para deixá-la à vontade mas ao invés disso, a fisionomia da enfermeira contraiu-se de medo. A mulher se voltou precipitadamente para sair, tropeçou no próprio pé, perdeu o equilíbrio, e quase foi ao chão.

Déborah estendeu a mão num gesto instintivo - a falta de jeito tomava os seus gestos extremamente bruscos - e agarrando °braço da enfermeira, firmando-a por alguns segundos. Nem bem ela recuperou o equilíbrio, afastou de sopetão o braço trânsida de medo, e e saiu cambaleando do quarto. sofram, disse Déborah a todas as divindades reunidas em utilizando a habitual saudação Yri. Sou uma condutora de raios e queimaduras. Percorrem-me, vindos da doutôra, e desaguam na enfermeira. Aqui tenho sido fio de cobre e as pessoas me confundem com bronze!

Anterrabae riu. Seja esperta, sugeriu ele, desprendendo faíscas dos cabelos, na sua queda flamejante e etema. Fora desse quarto, dessa ala, desse hospital, terminado o expediente, as pessoas iguais a elas riem, andam e respiram num elemento que nunca compreenderás ou conhecerás. O inspirar e o expirar, o sangue e os ossos, as noites e os dias desses outros seres são de uma substância que não é a tua. A tua substância é fatal para eles. Se forem contagiados por teu elemento, morrerão ou enlouquecerão.

- Assim como o Poço?

- Exatamente. Déborah, horrorizada com o seu imenso poder de destruição, desferiu um grito e caiu no chão, gemendo baixinho: - É poder demais, é magoar demais. Não permitam a ninguém magoar assim. Não assim! Não assim. . . não assim. ..

Déborah, a outra Déborah, erguida por sobre si mesma, investida da autoridade honorífica que detinha em Yr, chutava aquele seu outro eu estirado ao chão, chutava-o na boca do estômago e na região tumorosa que se rompia como um melão podre. Quando soou o áspero canto cerimonial, anunciando a partida, o céu cobria-se de sombras por entre as barras da janela. Ela se achava, sem saber como, debruçada na janela olhando para fora e repetindo de mansinho: - Deixem-me morrer! Pedia que a esmagassem de uma vez por todas. Não havia prazer, alegria, paz ou liberdade que compensasse esse pavoroso sofrimento. - Vamos logo com isso Anterrabae, Coletor, vocês todos. Acabem comigo, esmaguem-me de encontro ao mundo!

Acenderam a luz pelo lado de fora. A chave rangeu na fechadura. - Só verificando - tranqüilizou, jovialmente a enfermeira do novo turno. Notando, contudo, a expressão do rosto de Déborah, virou-se para uma pessoa que vinha atrás e ordenou: - Termine logo a inspeção da ala e vá preparar um casulo.

Déborah não tinha a menor idéia do que eles estariam vendo no seu rosto, e qual dos seus ”eus” a dominava naquele momento. O fato é que se sentiu profundamente aliviada por receber ajuda, e isso graças às aflições que, pelo visto transpareciam em seu rosto. - Através das órbitas dos olhos, quem sabe... - murmurou algum tempo depois para os que vieram buscá-la.

Ao recuperar os sentidos, estava tudo escuro. Sentiu-se como uma gigantesca baleia emergindo das profundezas do mar: vinha de um outro elemento regido por lei e climas próprios. A janela que emoldurava a noite coalhada de estrelas já não era aquela de onde assistira às primeiras horas do crepúsculo. Havia agora duas camas mergulhadas na escuridão. Pelo vidro anteposto às grades, e estas, por sua vez, às barras que compunham a tripla couraça vedando a janela, filtrava-se a luminosidade pálida das estrelas. Da cama vizinha veio um som abafado. - Quem está aí? - indagou Déborah.

- Nossa Senhora da Cócega no Nariz! - respondeu Helene - Ou, se quiser, Vênus de Milo com cócegas no nariz.

- Alguma vez já lhe caiu um fio de cabelo nos olhos quando você está no casulo? - perguntou Déborah, lembrando-se das lutas que travara com fios de cabelo, felpas, ciscos, essas coisinhas diabólicas e importunas que se tomam um mundo quando não se pode coçá-las e afastá-las.

- Eu sou um fio de cabelo nos meus olhos - declarou Helene secamente - e você é outro!

Em face desta reação pouco amistosa, Déborah recolheu-se ao silêncio e ficou descansando do eterno apocalipse. Seus pensamentos fluíam com extrema nitidez. Pensou em Helene, deitada como uma gêmea na cama vizinha. Embora ela fosse uma pessoa mordaz e demasiadamente agressiva, Déborah a respeitava sobretudo por sua inteligência. Helene, apesar de seus modos espinhosos e intolerantes, deixara também de perseguir o martirizado Ellis. Mantinha-se, a maior parte do tempo, distante e inacessível. Soltava, às vezes, um ou dois comentários imprevistos e cortantes, ou então, uma agressão tão violenta muito surpreendente. Déborah percebia, no entanto, que Helene mais desesperadamente enferma que estivesse, manifestava seus Pemsamentos s momentos de lucidez, sempre discretos e silencioSOS, ou aquela quantidade indefinida de energia ou determinação ou seja lá o que for, que era o essencial da recuperação. Helene poderia se curar, tinha certeza. Por causa disso, a invejava, respeitava e temia ao mesmo tempo.

Um dia, tinha inadvertidamente cometido uma grande crueldade com ela: dissera-lhe que achava que ela ia ficar boa, sem inclusive, se dar conta do tormento que a afirmação despertava em si mesma. Ao escutar aquilo, o pavor enrijecera o corpo musculoso de Helene. Virara-se para Déborah e, com uma voz pausada e contida, avisara que se ela não se afastasse dali, e rápido, quebraria osso por osso daquela cabeça de merda. Déborah, é claro, não se fizera de rogada.

De repente, acenderam a luz. Ambas resmungaram baixinho, chocadas com a revelação de si próprias, estendidas lugubremente naquelas camas, num contraste chocante com a beleza da noite e das estrelas. Ellis entrou sozinho, e foi direto à cama de Helene para tirar-lhe o pulso.

As enfermeiras e auxiliares diziam, geralmente, alguma coisa antes de entrarem, de modo a introduzir gradativamente a sua presença e a do mundo, sabendo que os pacientes poderiam estar em transição e, conseqüentemente, atordoados ainda, e só entravam, depois que eles acusassem a sua presença, nem que fosse por uma piscadela de olhos. Num lugar vulnerável como aquele, a maneira como Ellis entrou foi brusca demais. Quando ele estendeu a mão para captar, na têmpora, o pulso de Helene, e extrair assim um número para o seu relatório, ela afastou a cabeça com violência. Esse era o único movimento possível dentro de um casulo. Ellis agarrou o rosto de Helene e o imobilizou com uma das mãos, enquanto tentava tomar-lhe o pulso com a outra. Ela conseguiu se livrar mais uma vez. Ellis, então, retesou ligeiramente o corpo, e com gestos deliberados e precisos, sem demonstrar raiva, começou a esbofetear o rosto dela. Os tapas atingiram-na firmes e fortes. Helene reagiu lançando-lhe uma cusparada na cara, um jato difuso e furioso de saliva, Déborah, que tudo presenciava, assistia a essa cena, que ficaria Para sempre gravada em sua mente como o símbolo da impotência do doente mental: os tapas, calmos, precisos e ritmados, e as cusparadas frenéticas, convulsas e raivosas. Helene nem sequer conseguia atingi-lo; seus lábios já estavam secos, sua respiração ofegante, mas após cada tentativa, a mão assentava-se implacavelmente sobre seu rosto. No silêncio do quarto, cusparadas e tapas ressoavam sem parar. Ficaram horas absorvidos naquela guerra, até que finalmente, o enfermeiro conseguiu submetê-la. Registrou sua pulsação, em seguida a de Déborah, e saiu. Helene tossia, engasgada com sangue.

No dia seguinte, foi a vez de Déborah assumir voluntariamente a condição de participante, expor-se cega e irremediavelmente, tomar-se uma nelaq tankutuku, e portanto, uma inimiga de si própria nos termos Yri. Dirigiu-se à enfermeira e pediu para falar com o médico da ala assim que ele viesse assinar os pedidos da semana.

- Para que você quer vê-lo? - perguntou a enfermeira.

- Tenho uma coisa para contar a ele.

- Posso saber o que é?

- Que pacifista é aquele que, ao invés de bater com os punhos fechados, bate com a mão espalmada!

A enfermeira mandou que ela procurasse a enfermeira encarregada da ala. Repetiu as explicações. A enfermeira da ala, por sua vez, a mandou para a enfermeira-chefe do dia. Repetiu novamente as explicações. Enquanto duravam esses trâmites burocráticos, a nuvem prenunciadora da Punição ia se adensando sobre Déborah. No entanto precisava, custasse o que custasse, chegar até ao médico, livrar de sua consciência a responsabilidade de ter sido testemunha -, e por um encadeamento de idéias não muito claro - de cúmplice no episódio, tanto do vitorioso como da vítima. A enfermeira-chefe não a levou muito a sério. Déborah teve que implorar, sentindo a nuvem cada vez mais ameaçadora e o vento que já começava a soprar. A muito custo, obteve finalmente permissão para ver o médico da ala. Narroulhe, contidamente, o incidente, poupando ao máximo as palavras, procurando ostentar a aparência de sanidade convencionada pelo mundo, para que ele acreditasse nela. Não se deu ao trabalho de procurar lhe mostrar a gravidade da questão, nem tampouco foi mais longe referindo-se às tendências de Ellis, que só eram objeto de segredo porque ele detinha as chaves e as pacientes não. Terminou de falar e durante muito tempo, o médico continuou calado, com os olhos pregados nela. Débora sabia, por experiência, que ele não podia ver a nuvem, nem sentir o vento tenebroso, menos ainda a iminência da Punição. Sentado ali calmamente, ele vivia uma outra dimensão de realidade, gozando, quem sabe, as estações - primavera, talvez - sob um outro sol cujos raios não ultrapassavam a periferia do campo de visão dela, os limites de sua realidade, as fronteiras de seu reino.

- Por que Helene não veio me contar isso? - perguntou enfim o médico.

- Helene saiu logo depois que acabou tudo. - Esteve a ponto de acrescentar que Helene tinha sumido, deixando-a ali com cara de boba, como vingança porque uma vez lhe dissera que achava que ela iria ficar boa. Percebeu a tempo que não seria prudente dizer isso, mordeu os lábios e se calou. A idéia, contudo, fixou-se na sua mente como um trapo agarrado a um prego, e não saiu mais de lá.

- É do nosso maior interesse impedir qualquer brutalidade aqui no hospital, mas não podemos aceitar uma denúncia dessas sem provas. Você estava no casulo e, naturalmente, um pouco transtomada... Quem sabe você não pensou ter visto isso.. .

- Pergunte, pelo menos a Ellis. com aquela Alma. . . não vai ser nada fácil se tiver de mentir.

- Tomarei nota do caso - assegurou o médico, sem, no entanto, esboçar qualquer movimento em direção ao onipotente cademinho de notas. Era evidente que estava colocando em prática o que Lee Miller chamava Tratamento Número Três: consistia numa variação do velho ”sem dúvida! sem dúvida!”, que dizia ”Sim, sim, é claro!”, uma forma de conciliar sem alterar, silenciar sem compreender, encerrar os atritos sem tomar qualquer providência. Déborah se lembrou de sua autorização para sedativos. Queria que lhe aumentassem a dose, e tinha certeza de que aquela era a hora certa de pedir. O homem autorizaria. Ergueu os olhos para ele, hesitando, mas decidiu, em tempo, que seria injusto comprar sono ao preço do sangue que Helene engolira. Deixou-o partir, enquanto murmurava para si mesma: ”Generosidade de hidrato de cloro, caridade em centímetros cúbicos”. Azar! vou contar o caso à Dra. Toque-de-Fogo. - Reparou que, da nuvem, caíam vermes.

Furii ou Toque-de-Fogo era o nome em Yri que Déborah encontrara para a Dra. Fried, em homenagem ao poder espantoso que tinha revelado ao lhe queimar o braço com uma chama invisível.

- Você contou isso ao médico da ala? - perguntou Furii.

- Contei, e a reação dele foi a Número Três com Sorriso: ”sim - sim é claro!” - Sentia-se agora ridícula por ter rejeitado, num gesto de nobreza, a idéia de pedir um aumento na dose de sedativos. Afinal, era justo que um ato que seguramente iria lhe custar muito, rendesse pelo menos alguma coisa.

- O problema - disse Furii - é que eu não estou ligada à direção da ala. Não posso interferir na política deles.

- Quem disse que eu estou propondo mudança de política? - protestou Déborah. - A não ser que essa política consista em espancar pacientes indefesas!

- Também não posso interferir na disciplina do pessoal da ala.

- Vem cá, o sobrenome de todo mundo aqui é Pilatos, é? Furii concordou, finalmente, em mencionar o assunto na reunião da equipe médica, mas Déborah não ficou muito convencida. - Talvez você esteja duvidando de que eu tenha visto tudo isso.

- Absolutamente, Déborah! Procure compreender. Não participo das decisões relativas à ala. Não estou ligada à administração do hospital.

Déborah se sentia como um fósforo tentando atear fogo a um tonel de combustível vazio. - De que vale então essa sua realidade, se a justiça fracassa, a desonestidade impera e aqueles que conservam a fé acabam se dando mal. Helene cumpriu a promessa de não importunar Ellis, e eu também. Grande realidade essa sua, hein?

- Escute aqui - disse Furii. - Nunca lhe prometi um jardim de rosas! Nunca lhe prometi a justiça ideal. .. - (Lembrou-se de Tilda: um belo dia fugiu do hospital em Nurembergue, desaparecendo naquela cidade repleta de suásticas, para voltar logo depois, rindo às gargalhadas, um riso grotesco e áspero que mal chegava a ser riso. - ”Shalom Aleichem, doutôra, eles estão mais loucos do que eu!”) - também nunca lhe prometi paz ou felicidade. O meu objetivo é exclusivamente ajudá-la a ser livre para lutar por todas essas coisas. A única realidade que eu lhe ofereço é o desafio: ficar boa significa ficar livre para aceitá-lo ou não, e essa opção você assumirá de acordo com suas possibilidades. Não prometo mentiras. Um mundo perfeito como um jardim de rosas é mentira. . . e enfadonho também.

Você vai mesmo levantar a questão de Helene na reunião?

Se eu disse que ia é porque vou, mas não prometo nada.

Depois que Helene a deixou sozinha com a responsabilidade de testemunha, Déborah, impelida por um estímulo inconsciente, procurou se aproximar de Lee Miller, aquela que também era tankutuku por causa das palavras, já esquecidas, ditas por Sylvia. Lee tinha uma mania: não suportava ninguém às suas costas, e como não gostasse de ficar encostada à parede como as outras, passava o dia todo circulando para ”manter as pessoas nos seus devidos lugares”. Déborah, não por uma questão de devotamento ou lealdade, mas por um misterioso senso de conveniência, começou a segui-la por toda parte, Lee, o Sol ptolomaico girando em tcomo de seus planetas.

- Afaste-se, Blau!

Isso também convinha. O fato dè ela lhe dirigir a palavra - refletia Déborah - significava admitir que estavam no mesmo palco, que eram atrizes do mesmo drama e, conseqüentemente, que havia uma relação entre as duas.

- Suma-se, Blau!

Déborah persistia, suportando estoicamente os grilhões daquele relacionamento.

- Enfermeira! Tire essa puta daqui!

- Retire-se do saguão, Déborah, ou então pare de seguila. A enfermeira, embora não fosse tankutuku, era uma terceira atriz. O elo gravitational se desfez. Déborah voltou a se afastar.

Aproveita a luz do meu jogo, Pássaro-um, e vê que todos cuidam para que te afaste dos menores perigos: alfinetes, fósforos, cintos, cordões de sapato, olhares maldosos. Uma pergunta: Ellis espancará a testemunha trancafiada nua num quarto de reclusão?

Déborah foi escorregando pela parede, até um local familiar, acomodou-se no chão, junto às outras estátuas, e ficou acompanhando as imagens que lhe percorriam a mente - imagens simples, mas terrivelmente explícitas.

À tardinha, Lúcia, uma paciente recém-chegada que angariara um certo prestígio devido à sua violência e aos nove anos que havia passado num dos hospitais mais rigorosos do país, virou-se de repente, para o pequeno grupo de pessoas que estavam aconchegadas ao redor do aquecimento - viviam permanentemente com frio - e declarou: - Aqui é diferente. Já estive numa ”pá” de espeluncas, numa ”pá” de alas. Meu irmão também; numa pá de alas. Aqui as pessoas ... são mais assustadas, mais piradas. Vivem mijando no chão, não param de gritar - mas é por causa do talvez. Por causa de um minúsculo, minúsculo talvez.

Desgarrou-se de novo, e desatou a correr ao longo do saguão, rindo para neutralizar o imenso e pavoroso alcance de suas palavras. Mas era tarde. Elas pairavam no ar junto com a murrinha de zoológico que infestava a ala. Todos temiam aquela esperança, aquele: minúsculo, minúsculo talvez. Para Déborah, as palavras da menina tiveram uma ressonância especial. Perscrutou os seus dois mundos e avistou a tempestade iminente, a nuvem baixando ameaçadoramente, os vermes que despencavam dela, a lei da gravidade ondulando como um trapo no vento tenebroso.

- Deixe o talvez de lado. Trata-se de um problema puramente administrativo.

Jacob e Esther estavam sentados no consultório. Vinham - percebeu logo a Dra. Fried - em busca de paz e tranqüilidade. Sentiu ímpeto de dizer a eles, de uma vez por todas, que não Deus. Não poderia prometer nada em definitivo, nem pretendia desempenhar o papel de juiz, apontando o que haviam ou não haviam feito de errado para que a filha acabasse nesse campo de batalha.

Que mal há em desejar uma criança como todas as outras? - perguntou Jacob - Eu... eu quero dizer, ela vai ficar boa, ou terá que continuar aqui, sendo amparada e reconfortada ... para sempre? - Percebendo a frieza de suas palavras, apressou-se a emendar: - Não vem ao caso a questão do amor. Doente ou sadia - o fato é que precisamos alimentar alguma expectativa, ter uma esperança qualquer, seja qual for. A senhora poderia nos dizer o que podemos esperar?

- Se o que vocês querem para Déborah é um diploma universitário, convites para dançar, buquês de rosas e um pretendente distinto e de boa família, sinceramente não sei se posso lhes dar esperanças. Não sei se ela virá algum dia a ter essas coisas ou mesmo se as desejará. O trabalho que estamos desenvolvendo juntas visa, em parte, descobrir e chegar a um acordo quanto ao que ela realmente quer.

- Será que poderíamos vê-la?

Teve desde o início certeza de que eles acabariam, inevitavelmente, pedindo isso. Pois, era justamente a pergunta que ela não estava disposta a responder. - é claro que, se vocês decidiram vê-la, vocês a verão, mas eu pessoalmente não aconselho ainda dessa vez. - Procurou usar um tom bem tranqüilo.

- Porque não! - exclamou Jacob sobressaltado elevando a voz para sufocar o medo.

- Porque o senso de realidade dela anda um bocado abalado atualmente. Sua aparência pode alarmá-los um pouco, e «ela sabe disso e teme por vocês .. . e também por si mesma.

Jacob recostou-se aturdido. Arrependeu-se pela centésima vez de ter intemado a filha. A sua adorada Déborah de antes Podia até estar doente como todos afirmavam; insegura e infeliz, nao importa, o fato é que lhes pertencia: insegura, para ser patemalmente protegida e orientada; infeliz, para ser matemalmente mimada e consolada. Antes, pelo menos, ela era uma pessoa da família; agora, a imagem que essa médica sugeria era a de uma pessoa inteiramente irreconhecível.

- É importante que fique claro que os sintomas não são a doença - disse a doutôra. - Tais sintomas representam defesas, formas dela se proteger. Acreditem ou não, a doença é o único solo firme de que Déborah dispõe. É este solo que estamos trabalhando juntas. Se houver um outro mais firme, depois que esse for destruído, bem, nisso ela só poderá acreditar por um voto de fé. Imaginem por vocês mesmos, um bocadinho, os dilemas que Déborah vive, e aí compreenderão porque ela não dá atenção à sua aparência, porque ela fica tão assustada, e porque os sintomas proliferam tanto.

A Dra. Fried procurou uma forma de descrever os sentimentos de uma pessoa que jamais soube realmente o que era a saúde mental em sua vida. - Nós, que nunca vivenciamos essa doença diretamente, só podemos supor o horror e a solidão que se escondem por trás dela. Déborah, agora, está sendo instada a anular, entendam bem, anular todos esses anos de vivência do que conheceu como realidade, e a aceitar a outra versão do mundo, sem nenhuma garantia concreta além da fé. A doença de Déborah consiste, atualmente, numa luta desesperada pela saúde.

- O mundo que nós demos a ela não foi tão horrível assim! - protestou Jacob.

- Mas ela nunca assumiu esse mundo, o senhor não compreende? Déborah criou uma espécie de robô que se encarregava de reproduzir os movimentos exigidos pela realidade, enquanto que por detrás dele, a verdadeira Déborah ia se distanciando cada vez mais dessa realidade. Sabendo que os pais temiam a desconhecida que se ocultava por detrás do familiar robô, ela foi deixando as coisas ficarem como estavam.

- Mesmo assim, eu quero vê-la - insistiu Jacob baixinho.

- Não, Jacob.. . é melhor não...

- Esther . . . Eu quero vê-la! Está no meu direito!

- Muito bem... - assentiu a doutôra afavelmente - vou ligar para a ala e pedir que tragam Déborah. Esperem-na na sala de visitas. - Dirigiu-se ao telefone. - Se quiserem depois conversar comigo de novo, peçam por favor ao auxiliar que está de serviço para me chamar. Ficarei aqui até às quatro Horas. Observou-os saírem e se encaminharem com passos rígidos, direção ao prédio do hospital. Ah essas famílias! ”Faça o meu filho ficar bom”. Ou então, ”Conserte a nossa filha; faça 111 que e]a tenha boas maneiras na mesa e um futuro que corresponda aos nossos sonhos tão almejados!” Suspirou. Até mesmo os pais inteligentes, honestos e bons acabam vendendo seus filhos com a maior tranqüilidade. São capazes de lhes impor decepções, futilidades e arrogâncias, diante das quais jamais se curvariam! Ah! Ocorreu-lhe, subitamente, que nunca tivera ou educara filhos. Deixou escapar outro suspiro. Quem sabe, não faria também concessões a esse tipo de conduta, não se mostraria ambiciosa, não compraria sonhos e os imporia inflexivelmente a uma Déborah, se essa Déborah fosse a sua filha. Ficou um bom tempo absorta nessas considerações. Sacudiu-as de repente para longe, apanhou o telefone e, depois de alguma relutância, discou para a Ala D.

- Acabaram de levá-la para a sala de visitas, doutôra - informou o auxiliar.

- Ah, está bem, não tem importância. Eu só queria. . .

- Sim, doutôra?

- Só queria saber se deu tempo para ela pentear os cabelos.

No carro, viajando de volta para casa, Esther e Jacob mantinham-se calados. Esperavam que, nessa visita, a verdade se descortinasse de uma vez por todas. Tudo o que viram, porém, contradizia frontalmente suas esperanças do que fosse essa verdade. A confusão os emudecera. Confiavam na Dra. Fried. Ela não procurara tranqüilizá-los com frases hipócritas, e ainda assim conseguira infundir-lhes o ânimo de que necessitavam desesperadamente. A filha, no entanto, mal a haviam reconhecido. O que os assustou não foram resmungos desconexos ou ataques de violência, não, nada disso, mas uma espécie de retraimento, uma ausência impalpável e aterradora, como se ela não habitasse o próprio corpo.

Ao deixarem a sala de visitas, Jacob limitou-se a comentar: - Ela está muito pálida...

Esther por sua vez, esforçando-se por definir as suas impressões, murmurou: - Uma pessoa ... uma pessoa mortalmente arrasada por dentro.

Jacob aproveitou para descarregar a raiva que sentia sobre a mulher: - Você fala demais! Deixe as coisas como estão e fique quietinha, tá? - E afastou-se furioso.

Voltando agora para Chicago, traziam uma única certeza: era mais do que tempo de contar a verdade a Suzy.

A Dra. Fried continuou a perseguir, a encurralar, a instigar sua recalcitrante paciente através dos meandros do amor e do ódio. Déborah por sua vez, se esquivava, se dissimulava, quer nas trevas de Yr, quer confundindo a doutôra. Fechava-se na cegueira e na ignorância porque, quando via ou descobria qualquer coisa, sentia-se irresistivelmente compelida a colocar essa descoberta em discussão, por mais vergonhosa, assustadora ou repugnante que fosse. E para Déborah, a razão de ser dessa força que a compelia era tão misteriosa quanto as recônditas regiões de Yr.

- Já permiti que você fugisse de seu pai o tempo suficiente - anunciou Furii no decorrer de uma sessão. - Quando fala dele, é com medo, ódio... e alguma coisa mais.

O segredo mais profundo, em direção ao qual Furii procurava estender as garras do mundo, jazia sob injustiças triviais: a surra motivada por uma razão qualquer, o simples desentendimento num momento crucial. Parte do segredo, consistia em que Déborah tinha muito em comum com o pai: o temperamento explosivo, o hábito de ficar remoendo por dentro as coisas e extravasá-las em súbitos acessos de fúria. Consciente da similaridade, tinha medo dele e de si mesma. Sentia que o amor do pai era um amor extremamente cego e que ete não fora capaz de compreendê-la por um momento sequer. Mas não era só isso...

- Senti desprezo por ele algumas vezes - confessou Déborah.

- Acho que você atingiu um filão importante.

- Ele tinha verdadeiro pavor dos homens. Homens .emboscados em vielas escuras, prontos para saltarem sobre mim e me agarrar. De cada três homens, um era maníaco sexual ou possuidor de algum vício qualquer, esperando para me seduzir. vivia me advertindo contra esses perigos. Os homens eram brutos lascivos até não poder mais. Eram verdadeiros animais. . . no íntimo, eu concordava. Uma vez, me repreendeu por eu ter olhado para um exibicionista na rua. Pelo fato de eu ter atraído a atenção do indivíduo, ele deduziu, não sei como, que alguma coisa eu devia ter feito. Explodindo de raiva e de medo, desandou a esbravejar como se todos esses homens obedecessem a uma lei de gravidade que os atraía para mim. Inquiri-lhe com indignação: - O que é que eles querem afinal comigo, se já estou toda arruinada e estragada. Não presto para ninguém! Papai, então, me esbofeteou com força, porque sabia que era verdade o que eu estava dizendo.

- Quem sabe se o problema não era o medo que ele tinha de seus próprios instintos?

- O que? É meu pai...

- Claro, mas é antes de tudo um homem, e conhece seus próprios pensamentos. Será que os outros homens alimentam os mesmos pensamentos? Sabe que sim! E os outros homens serão capazes de controlar estes pensamentos tão bem quanto ele? Seguramente não!

Déborah refletiu sobre a dissimulada sensualidade que vira transparecer tantas vezes nas atitudes do pai. Atitudes carregadas de culpa e amor, que não só a deixavam extremamente confusa como lançavam sobre ela um estigma ao transformaremna numa cúmplice secreta de todos os crimes infames cometidos pelos maníacos e que ele não se cansava de descrever. Confundido na sua sensibilidade pelo medo, o pai acabara despertando pela filha aqueles mesmos apetites, e aquela mesma culpa que existia nos monstros, contra quem se empenhava tanto em recriminar. Falava freqüentemente nas partes infectadas destes homens. Déborah sabia que as suas partes íntimas também já haviam sido infectas. Tinha pesadelos nos quais fugia, fugia, para finalmente voltar a se defrontar com dois rostos familiares e apavorantes: o do pai e o seu.

- Continuam tão apavorantes assim?

- Não... - Percebeu que aquele fantasma que tinha adquirido dimensões enormes no Pântano do medo, era somente a figura do pai e uns poucos pensamentos seus, inconfessáveis, mal formulados e revestidos de tamanha culpa que acabaram perdendo seus verdadeiros contornos. - Não, apavorantes não. Que bom... Compreendo agora que não fui para ele apenas... apenas uma filha que vivia o colocando em situações embaraçosas. Parte desse mal-estar era o ... desejo ... humano ... - Déborah desatou a chorar.

Beirava o ceme da questão quando o temor se abateu. Furii viu que a crise era iminente.

- Déborah, escute! - Talvez a doença venha a cobrar o castigo por termos nos distanciado tanto dela. Escute Déborah, quero lhe dizer que você roçou o discemimento, o que significa verdade, amor, generosidade, e isto tudo faz parte da realidade da qual você tem tanto medo. São ou não são maravilhosos e emocionantes esses sentimentos? - Via, porém, que a lucidez extinguia-se. A voz que se fez ouvir em seguida vinha de Yr.

- Muito bem... - disse num tom desalentado - você conseguiu. Eu chorei. Perdoei minha mãe e meu pai, de verdade. Suponho agora que devo voltar para casa.

- Ora, Déborah, que tolice! - repreendeu Furii com severidade, tentando alcançá-la, apesar da distância que crescia. - Ainda faltam muitos segredos para desvendarmos, e você sabe disso. O que acontece é que você está rejeitando o alimento que a sustentava - todos esses segredos e poderes secretos - e nenhum outro apareceu até agora para substituí-lo. Esses são os tempos mais difíceis, mais difíceis inclusive do que a doença naquela fase que precedeu a sua vinda para cá. A doença tinha, pelo menos, um significado, por pior que pudesse ser ele às vezes. Você terá que confiar o suficiente em mim e crer que o novo alimento, quando surgir, será muito mais rico!

Conversaram por algum tempo ainda. Furii procurou fazer com que ela trouxesse à tona os inúmeros fragmentos de evidência com os quais justificava os seus temores, acumulados até ali. Déborah estava exausta, mas a teimosia a instigava ora a ceder ora a reagir, jogando com Furii e seu mundo, enquanto aguardava a colisão final que a deixaria louca para sempre.

- Ainda há mais, muito mais - disse Furii. - Prosseguiremos até enxergarmos tudo. Quando terminarmos você poderá optar por Yr, se realmente quiser. A única coisa que quero lhe dar é a possibilidade dessa opção, uma opção verdadeira e consciente.

- Isso significa que vou poder continuar louca se quiser?

Louca Varrida ... se você quiser.

Doida de pedra!... por falar nisso, já escutei uma outra expressão, ”com macaquinhos”, acho. Você conhece?

- Conheço. É ”macaquinhos-no-sótão”. Quer dizer o seguinte: na cabeça da gente, que seria o sótão, está tudo escuro e os macaquinhos, como não enxergam nada, ficam pulando de um lado para o outro, fazendo a maior algazarra, inteiramente desorientados.

- Ah, essa eu não posso esquecer! Os americanos captam as sensações peculiares à doença mental com uma precisão surpreendente às vezes.

- E se eu quiser isso... se eu precisar disso. . . mais tarde...

Você ainda não teve a vivência da saúde mental para saber como ela é. Acho que não vai querer nem precisar de macaquinhos no sótão. De qualquer modo, a resposta é sim. A escolha caberá exclusivamente a você.

Pairava sobre a ala uma excitação mal contida. Dois casulos esperavam num quarto de reclusão pelos seus ocupantes. Enfermeiras e auxiliares riscavam o saguão de branco e caqui com suas idas e vindas febris. Reinava uma grande expectativa.

- O que está acontecendo? - sussurrou Déborah para Lee, que estava sempre por dentro das coisas.

- A Srta. Coral vai voltar de novo - informou Lee. - Ela esteve intemada bem antes de você chegar. Graças a Deus! Isso aqui tem estado chatíssimo.

Um pouco antes da hora de trazerem para cima o almoço, o pesado elevador desceu, pesado e estreptoso. Ergueram-se todas num pulo e ficaram à escuta. Após alguns minutos, ouviram-no subir novamente, até que parou diante das portas duplas que se abriam para a Ala D. Vultos de uniforme branco delinearam-se na superfície translúcida e embaçada do vidro. A chave virou a fechadura e o administrador da ala surgiu em toda a sua magnificência. Seguiam-no quatro auxiliares, dois para os pés e dois para a cabeça, transportando, firmemente imobilizada, uma velhinha de corpo mirrado e cabelos inteiramente brancos. Fechando a procissão, uma miscelânea de personagens secundários: enfermeiras do dia pertencentes à recepção, acólitos, o clero regular, noviços, postulantes e outros.

- Aquilo é a tal Srta. Coral?

- Cinqüenta quilos cheinhos dela! - exclamou Lee. O equilíbrio, a riqueza de tipos e o colorido davam ao espetáculo um quê de profano. A procissão, cercada de um silêncio absoluto, percorreu com o seu fardo o corredor, passando sem se deter pelos dois casulos (surpreendentemente) até chegar ao quarto de reclusão Número Quatro.

Passado algum tempo, os carregadores começaram a sair de novo para o corredor. Déborah se preparava para voltar ao seu posto na janela do dormitório, quando reparou no último dos auxiliares que saía para se juntar aos demais, cujo comportamento a impressionou vivamente: era absurdo, assustador e hilariante ao mesmo tempo: negava todos os princípios newtonianos da física. Ele não andava, voava! Estava inclinado no ar, com uma expressão de pasmo como- se toda a vida se resumisse a uma trajetória.

Não chegou a alcançar os outros. A meio caminho, desabou. O ruído surdo da queda despertou a atenção dos companheiros que vieram logo acudi-lo. Déborah suspirou desapontada. Era só um homem, afinal.

Não se machucara nem no vôo nem na queda mas, por pouco, não foi pisoteado pela multidão de funcionários que acorreu em pânico, para subjugar a fonte de sua propulsão. A Srta. Coral surgira no vão da porta que, por descuido, tinha ficado aberta. Seu corpo franzino parecia carregado de eletricidade. O branco dos cabelos é que fora reduzido a cinzas pelo fogo, murmurou Déborah em Yri. Os três homens que se atracaram com ela fizeram um papel deplorável. A velha não só era combativa como ágil! Literalmente sacudiu-os para longe, mantendo o rosto impassível e os olhos vazios e fixos à frente. Quando os outros auxiliares mergulharam na escaramuça, continuou, mais ainda, dona da situação: permaneceu imóvel deixando simplesmente que um desfizesse o que o outro fazia. Helene, sentindo-se desafiada na sua supremacia de até então ser a mulher mais temida da ala, correu para o saguão deserto, removeu os pinos das dobradiças que seguravam a porta da enfermaria, derrubou-a com o peso do seu corpo, arremessou-a no corredor e pôs-se a destruir tudo o que estava ao seu alcance.


A frágil Sylvia, plantada como uma estátua de encontro à parede, não conseguiu suportar a tensão provocada pela violência de Helene: explodiu subitamente, arremessando contra ela, através dos restos da porta, bandejas, instrumentos médicos e toalhas. Acionaram a campainha de emergência, interviram mais doze pessoas que conseguiram finalmente, subjugar o motim, e colocar Helene e Sylvia no casulo. No meio daquele tumulto o administrador da ala esqueceu-se aparentemente de fazer cumprir os cuidados recomendados à Srta. Coral: limitaram-se a metê-la no quarto e trancar a porta.

- Puxa! - comentou Lee ao cruzar com Déborah no saguão - Você tem de admitir que isso superou tudo o que aconteceu por aqui nos últimos tempos.

- Incrível. .. Nunca imaginei que uma velhinha tão frágil, fosse forte o suficiente para pôr o cabresto num homem! Pena eu não ter conseguido chegar até o armário de narcóticos...

- Ela esteve intemada aqui há dois anos atrás. Certa vez, vi, com os meus próprios olhos, uma cena extraordinária: a velha jogar uma cama - não foi empurrar não - jogar, Parece mentira, mas ela é a mais instruída de todas nós.

- Mais do que Helene?

- Ora se é! Fala quatro ou cinco idiomas e transa acho que com matemática lá fora. Tentou me explicar uma vez, mas você sabe não é, nunca passei da oitava série. . . - Olhou à sua volta e logo recomeçou a circular, ansiosa para repor o mundo no seu devido lugar.

Quatro dias depois, destrancaram a porta do quarto da Srta. Coral e lhe deram autorização para que saísse para a ala. Quando, depois de algumas horas, ela surgiu hesitante à soleira da porta, deu de cara com Déborah sentada do lado oposto.

- Oi! - cumprimentou Déborah.

- Oi... Você não é um pouco jovem demais para estar aqui? - A voz era idosa, mas nem um pouco desarmônica, prolongava as vogais, que soavam como ditongos, numa pronúncia bem típica do extremo sul dos Estados Unidos.

- Ah... e o que é que tem ... temos o direito de ser tão loucos quanto qualquer um. - Objetou Déborah armando um bçicinho. - Lee Miller contou que você sabe línguas e matemática. É verdade?

Oh, ela ainda está aqui? Que pena... - e soltou uma risadinha que mais parecia um cacarejo.

- Você sabe mesmo falar línguas?

- Não ... que nada! Só nos ensinavam a ler e escrever um idioma naqueles tempos, e apenas o suficiente para lermos os clássicos.

- E você ainda se lembra? - A pergunta a colocou de sobreaviso. Encarou Déborah longamente. Tinha, naquele momento, o porte de um Anterrabae bruscamente imobilizado na sua queda perene. Seus olhos, de um azul cristalino, pareciam chispas. Os cabelos fartos, brancos e eletrostáticos, ameaçavam inflamá-la como a um tição. - O que é que você quer de mim? - indagou finalmente.

- Quero que me ensine.

A rigidez das feições como que se dissolveu, o corpo afrouxou desalentado e os olhos, aqueles olhos inflexíveis, se encheram de lágrimas. - Estou doente, menina... - disse ela - Estive muito doente. Esqueci tudo. E depois, eu acabaria cometendo erros por causa da idade... (Déborah acompanhava a luta feroz e invisível que ela travava no íntimo para se recompor) .. . e a doença.. .

- Não faz mal!

- Estou cansada agora - disse a Srta. Coral, recuando de novo para dentro do quarto - vou tomar uma decisão, mais tarde informo. - E bateu a sólida porta atrás de si.

Déborah voltou a se sentar no chão, diante do quarto dela, e ficou ouvindo os sons abafados da batalha que se travava lá dentro: imprecações, gritos, quedas, uma pancadaria dos diabos. Um auxiliar que vinha passando, deteve-se intrigado: - Ué, pensei que tinha aberto essa porta... o que é que está acontecendo lá dentro?

- Coral versus Coral: ação de divórcio. Estão brigando pela custódia da criança!

- Déborah, você a viu sair, não viu? Foi ela quem fechou essa porta?

- Sabe lá se ela não tinha que conversar com alguém!

O auxiliar se afastou vagarosamente, retomando a distribuição de privilégios e autorizações. Déborah se sentou novamente diante da porta, e despejou no chão todos os tesouros que carregava nos bolsos. Encontrou duas guimbas de cigarro que tinha conseguido surrupiar a uma enfermeira estagiária num momento de distração. Foi até a cama de Lee Miller e as colocou sob o travesseiro dela como oferenda de agradecimento. Pagava, pela segunda vez, a dívida de Sylvia.

Voltou ao seu posto em frente ao quarto da Srta. Coral. Sentia-se extremamente culpada. Sua substância parecia ter-se espalhado pela ala impregnando a todos de angústia. Por cada dilaceramento íntimo, como o que ocorria por detrás daquela porta, julgava-se simbolicamente responsável. Lembrou-se, porém, do que Carla tinha dito: a doença era como um copo que transbordava e, por’isso, uma ou duas gotas a mais não alteravam as coisas. Mesmo assim se perguntava se era ou não responsável?

Incapaz de decidir, pôs de lado a questão. Passado algum tempo, silenciaram os ruídos dentro do quarto. A voz da Srta. Coral, arrastada e exausta, a chamou do outro lado da porta.

- Mocinha!.. . Mocinha! Você ainda está aí?

- É. .. É comigo? Está me chamando? - Déborah mal conseguiu articular as palavras, tamanho era o nervosismo que sentia.

- Sim, é com você - E então ela declamou:

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- O que é isso?

- Amanhã - respondeu a Srta. Coral - e teremos ditado também!

Mary (paciente do Dr. Dowben e, para não confundir com a primeira, chamada Mary Dowben): - Assassinato e incêndio! Há um incêndio!

Carla queria ir ao cinema na cidade porém como paciente da D, precisava de uma permissão especial e de dinheiro. A Srta. Coral, que voltava a palmilhar desde o princípio a sua via crucis, estava ali para requerer alguns privilégios básicos.

Nem bem o médico pisou na ala, os pedidos e as respostas começaram a chover de todos os lados. Quando Déborah falou no cademo de anotações, os olhos do médico detiveram-se nela por alguns segundos, avaliando-a de alto a baixo.

- Vamos ver! - respondeu por sobre os ombros, dando as costas e prosseguindo seu caminho.

Naquela tarde, a Dra. Adams veio à ala para ver Sylvia. Ao sair, deu por falta de um exemplar de Loock Homeward Angel que trazia consigo. Pouco depois, no mesmo dia, uma das enfermeiras estagiárias procurava em vão o seu cademo de aulas. As páginas escritas reapareceram dois dias depois no elevador, fora da Ala dos Perturbados, mas a metade do cademo cujas folhas estavam em branco continuaram desaparecidas.

Déborah pôs-se a chatear Helene para que lembrasse das poesias que sabia, e tanto chateou, que um dia ela recitou trechos de Hamlet e Ricardo in, arrancados, para sua própria surpresa, de algum canto empoeirado da memória. Passava horas transcrevendo conscienciosamente todas as palavras gregas e latinas que possuía no seu arsenal de tirinhas de papel. Leu e releu o ”Look Homeward Angel”, escondido sob o maior sigilo debaixo do colchão, até o dia em que Mary Dowben o descobriu e o comeu todinho, poupando apenas a capa. Conversou uma vez sobre o romance com Carla, que já o havia lido.

- Se eu sou capaz de aprender essas coisas... - perguntou Déborah, - ... capaz de ler e aprender, porque a vida continua tão obscura?

Carla a fitou, sorrindo complacente. - Deb, quem foi que lhe disse que aprender fatos, teorias ou línguas tem alguma coisa a ver com a gente entender a si mesma? Entender o que você tem Ce específico e distinto das outras pessoas. . . - Déborah compreendera subitamente que embora a sua sagacidade precoce tivesse uma ligação íntima com a doença, estimulando-a em certas ocasiões, ela agia independentemente dos problemas que turvavam a sua noção de realidade.

- Quer dizer então que a pessoa pode aprender, aprender e continuar esquizofrênica?

- com Déborah, pelo menos, isso pode acontecer - interveio Helene ferina.

Déborah foi esconder seu cademo atrás do aquecedor do dormitório, e deitou-se, em seguida, na cama, de onde só saiu três meses depois. Durante todo esse período levantou-se apenas para ir ao banheiro ou para comparecer às sessões com a Dra. Fried. Foi uma das épocas mais sombrias e obscuras de sua vida. Deixava-se arrebatar por Yr, entregava-se às divindades e aos personagens do Coletor, sem opor a menor resistência, exceto no decorrer das sessões com a Dra. Fried. Carla aparecia, às vezes, para contar os boatos que corriam na ala e os pequenos incidentes do dia. Déborah era incapaz de expressar o quanto essas visitas significavam para ela. Constituíam, ultimamente, o único contato humano que mantinha por dias e dias seguidos, pois a máscara por detrás da qual se ocultava, dava a ela uma expressão tão hostil que os auxiliares, quando vinham trazer as refeições ou trocar as roupas de cama, afastavam-se o mais rápido possível sem lhe dirigir uma só palavra, sequer um aceno de cabeça. Voltou a ter pesadelos, a acordar sobressaltada e gritando durante as noites. Logo a transferiram do dormitório da frente, cheio de gente e barulhento, para um quartinho escuro, nos fundos do corredor, junto com duas outras mortas vivas. Criaturas acostumadas às trevas, sentiam-se mal com a luz: quando raiava o dia, calavam-se completamente e não enxergavam nada diante dos olhos. Reinava um silêncio sepulcral. De repente, uma delas, atormentada por algum pesadelo, irrompia em gritos dilacerantes, fazendo com que se despedaçasse a crosta quebradiça do sono narcotizado das outras. Mantinhamnas entregues a si mesmas, sepultadas entre aquelas quatro paredes, acordando-se umas às outras, justamente para evitar que transtomassem a ala toda. Havia noites em que Déborah tinha a impressão de estar vendo se realizarem suas fantasias mais diabólicas a respeito da loucura, fantasias construídas a partir do arsenal de ameaças com que as babás costumavam acenar quando era criança. Despertava, freqüentemente, com uma das companheiras de quarto de pé sobre ela, com os braços erguidos num gesto de sacerdotiza, ou então esmurrando-a num sonâmbulo acesso de fúria. Sonhava uma noite com o pai e aquela outra faceta do seu amor, que consistia num desejo puramente humano, quando foi bruscamente acordada por uma das mortas vivas, uma menina gordinha que andava por todo o quarto batendo os pés com força. Déborah, pela primeira vez, rompeu o silêncio e o terror nos quais estivera encerrada até então: - Oh, Delia, pelo amor de Deus, volte para a cama e me deixe dormir um pouco, tá?

A menina se afastou. Déborah sentiu uma alegria dentro de si que ultrapassava o pequeno motivo que a produziu. Uma outra noite, Helene - furiosa e embrutecida - veio assustá-la, fingindo-se de fantasma. Julgando que fosse, como de hábito, uma das companheiras de quarto, Déborah esbravejou:

- Dê o fora, pôrra! Suma-se!

- Eu sou louca. , - ameaçou Helene, aproximando-se - Eu sou louca...

Reconheceu a voz e, embora fosse familiar a agressividade explosiva de sua dona, gargalhou com a maior naturalidade, como se o riso fosse uma constante no seu quotidiano.

- Pensa que me assusta! Você não seria capaz de competir com o menor dos meus pesadelos, e numa das minhas piores noites?

- Eu seria capaz de tudo... - ameaçou ela novamente, mas Déborah percebeu que o tom era muito mais de orgulho ferido do que de selvageria.

- Escute, Helene. Você está sujeita às mesmas leis que eu, e não há nada que você possa fazer comigo que a minha própria loucura já não tenha feito de uma forma muito mais eficiente e dolorosa. Boa noite, Helene, volte para a cama.

Ela não disse nada. Deu as costas e foi embora. Déborah, com um suspiro de alívio, se permitiu pela primeira vez algumas palavras em louvor à boa luz que a iluminou num momento tão providencial.

Durante os meses transcorridos naquela cama, pensou muitas vezes na figura semi-legendária de Doris Rivera: ocupara os mesmos quartos, sofrerá os mesmos terrores, percebera nos olhos das pessoas a mesma descrença de que viesse a se recuperar e, apesar de tudo, recuperara-se, voltara de novo ao mundo.

- Como ela consegue suportar, dia após dia, aquele caos horrível? - perguntou a Carla.

- Talvez ela se limite a ranger os dentes e a lutar a cada minuto, seja acordada, seja dormindo.

- Será que ela pôde escolher? Será que a sanidade representa uma opção para ela? - perguntou Déborah. A imagem que tinha de Doris era de um fantasma glacial, insensível, canalizando todas as suas energias para sustentar a aparência.

- Segundo a minha médica, scomos nós quem escolhemos esses diferentes caminhos.

- Ah, como foram terríveis aqueles anos que vivi no mundo... - murmurou Déborah. Recordou-se do Censor, o sumo guardião da Aparência: Agora dê um passo. Agora sorria e diga ”como vai”. Fora necessário reunir uma energia extraordinária para suportá-lo. - Desisti de tudo porque estava cansada ... cansada demais para continuar lutando!

Furii tinha dito que a sanidade consistia, antes de tudo, num desafio, numa escolha, mas os desafios que Déborah conhecia eram surpresas preparadas por Yr: cobras que se desprendiam inesperadamente das paredes, pessoas e lugares que apareciam e desapareciam, os choques medonhos resultantes da colisão dos mundos.

Furii dissera: - Esqueça essas experiências Déborah! Você provavelmente não conhece nem de longe o que é se sentir mentalmente sã. Confie no nosso trabalho juntas e na saúde que se oculta no fundo de você!

Nas sombras, contudo, um vulto angustiado e macilento aguardava que seus pensamentos voltassem a pousar nela: Doris Rivera que saíra para o mundo.

Um belo dia, Déborah levantou-se finalmente da cama. Por que razão? Não sabia. Levantou-se tão inesperadamente quanto se deitara. Foi até o saguão e parou junto à porta da ala. Sua visão, tingida de cinza, continuava ainda muito limitada, mas não a importunava muito.

A Srta. Coral estava sentada no chão, fumando um cigarro. Logo que a viu, sorriu, um sorriso de boas-vindas.

- Ora, ora, seja bem-vinda, Déborah! - disse ela. - Estive me lembrando de mais algumas coisas. Você ainda quer ouvir?

- Claro que sim! - exclamou Déborah. Foi à enfermaria, ícomou emprestado um dos lápis ”oficiais” numerados, uma folha de papel, e ficou até a hora do jantar copiando os devaneios poéticos da velha, as citações filosóficas de Abelardo, e estrofes tiradas de Medéia. Nunca lhe ocorrera que a Srta. Coral pudesse ficar contente de vê-la. Carla, então, quando a encontrou no saguão, sorriu e a cumprimentou efusivamente: - Deb, que bom! Como vai? - Era uma atitude corajosa agir assim com tamanha espontaneidade. Demonstrava uma confiança e uma lealdade comoventes, já que, quando uma pessoa saia’de uma fase difícil, era mais seguro esperar algum tempo para ver que conseqüências resultaram, antes de se aproximar. Déborah não atinava com uma razão que justificasse a coragem e a generosidade de Carla. Seria simplesmente porque ela estava contente de vê-la? Existiria realmente um mundo para além dos muros que vedavam seus olhos?

Sofra, vítima, saudou amavelmente Anterrabae (esta era a saudação habitual em Yri). Imediatamente, como que em resposta ao seu comando, ampliou-se o campo de visão de Déborah, surgindo, ao mesmo tempo, algo semelhante a um potencial para a cor, embora a cor propriamente continuasse imperceptível.

- Fico contente por você ter saído hoje, Déb. Já ia passar lá para lhe comunicar que amanhã cedo desço para a Ala B.

Não dês ouvidos ao que ela diz, Pássaro-um! recomendou Anterrabae com voz suave - Eles semeiam em solo fértil. Sol, água, alimentos, nada poupam. Adulam a semente, instigam-na a germinar no solo onde foi plantada. ”Junta-te a nós, junta-te a nós”, chamam eles. Ê doce a chamada e reconfortante o calor. Despontam, então, os primeiros brotos, e eles - ah, sabei o que fazem, Pássaro-um? Eles se armam com um conta-gotas cheio de ácido. . . esperando!

Uma verdade terrível se impôs a Déborah: Carla se tomara sua amiga, e por sua vez, gostava de Carla. A corda da amizade, embora tão debilitada, ainda tinha o poder de vibrar.

O Censor desatou a rir às gargalhadas. Anterrabae se afastava na sua queda vertiginosa. Procurava atraí-la com sua deslumbrante beleza. Os dentes reluziam como diamantes e os cabelos formavam cachos de fogo.

Déborah apercebeu-se de que ainda não tinha dito nada a Carla, não mexera sequer um músculo do rosto.

- Não diga - e então, para espezinhar bem o seu sofrimento, completou com a verdade: - vou sentir falta de você!

O terror despertado por essa declaração foi tão grande que começou a tremer e a suar frio. Levantou-se do chão e foi se aconchegar às outras vítimas daquele terceiro círculo do inferno de Dante, para gozar a inconstante clemência do aquecimento.

Na manhã seguinte, antes de descer, Carla veio se despedir de novo: - Tchau, Deb, estarei por aí. Você poderia até pedir autorização para ir me visitar lá embaixo na B.

Déborah a encarou com uma expressão aturdida, como se a visse pela primeira vez: graças aos códigos e à mágica de Yr, havia se livrado da dolorosa sensação de perda e amizade, e da própria realidade da existência de Carla. Yr, era forte! Sua rainha e vítima conservava ainda vestígios de poder, o suficiente para se defender contra a determinação do mundo em fazê-la sofrer. Passou aquele dia quase alegre. Procurou a Srta. Coral para lhe recitar alguns versos de Lucrécio, e mais tarde, teve oportunidade de dar um outro ”chega-pra-lá” em Helene, deliciando-se com a expressão ao mesmo tempo de inveja, respeito e temor, que se estampou no rosto dela. Pela primeira vez desde que chegara à Ala D, Déborah usou conscientemente a máscara, defendendo-se contra o medo suscitado pela partida de Carla. Doris Rivera tinha ficado boa e ido embora. Doris Rivera, a personagem legendária que Déborah visualizava como um fantasma, incapaz de morrer, vítima de uma resignação patética e desesperada. Só nesses termos conseguia imaginar o reencontro com o mundo. Carla, no entanto, não era um fantasma: estava viva, reagia, e dera o primeiro passo em direção àquele pesadelo que as pessoas denominavam ”realidade”. O olho da destruição aproximava-se cada vez mais de Déborah, que esperava como um animal acuado. Em breve a avistaria. O pior é que, contando com a segurança que lhe oferecia a Ala D, sentindo-se à vontade na doença, pusera de lado o disfarce da normalidade. O olho a focalizaria e a lançaria em plena selva da realidade, desprovida da tênue malha de defesas que levara a vida tecendo, e que se desfazia lentamente durante aquele ano no hospital.

Acima de todas essas preocupações, na dimensão de Ir, Lactamaeon, ofuscamente belo e livre, pairava em céu aberto, metamorfoseado num gigantesco pássaro. Voara já uma vez com ela, a grandes altitudes, devassando todos os horizontes. O que é que você está vendo? perguntou ela em Yri.

Os penhascos e desfiladeiros do mundo. A lua e o sol na mesma esfera, respondeu o pássaro.

Leve-me com você!

Um momentinho! interveio o Censor com sua voz áspera. Déborah, nunca o vira, pois ele não pertencia exclusivamente a nenhum dos mundos; dividia-se entre os dois.

Sim. . . espere - reafirmou Idat, a divindade dissimuladora, e que também era andrógina, nem macho, nem fêmea. Enquanto discutiam a questão cuidadosamente, reproduzindo com trejeitos termos psiquiátricos, agora familiares, Lactamaeon avistou uma brecha na terra, mergulhou nela com um grito triunfal de águia, e desapareceu.

Quando Déborah deu por si, já anoitecera. A Srta. Coral aproximou-se dela: - Acho que a gente só consegue gostar da comida do hospital quando está tão doente que não pode reparar nela.

- Mary deve ter algumas balas. Por que você não pede uma a ela?

- Não, eu não posso pedir. Nunca pude pedir nada a ninguém. Pensei que você soubesse disso. Quando tenho que pedir, acontece alguma coisa comigo e eu ... bem, eu acabo brigando.

- Nunca percebi. - Ocorreu a Déborah, que jamais prestava atenção ao que se passava à sua volta.

- Queria lhe dizer uma coisa - principiou a Srta. Coral com timidez. - Encontrei um tutor para você! Uma pessoa que lê os clássicos fluentemente, conhece grego a fundo. Se você pedir, tenho certeza de que ele a ajudará com a maior boa vontade.

- Quem é? Alguém daqui? Um paciente?

- Não, é o Sr. Ellis, e justamente hoje ele está de serviço no turno da noite.

- Ellis! - exclamou horrorizada. Lembrou-se, porém, que o incidente com Helene tinha acontecido antes dela chegar. Era natural que não soubesse da história, do preço que tivera que pagar por ter testemunhado e se posto à descoberto. Desde a conversa com McPherson que não falava com Ellis. O sarcasmo e o desdém irritantes dela, embora continuassem tão vivos quanto o fogo de Anterrabae, acabaram se diluindo no meio-tom rotineiro da ala. Ele falava pouco agora, pois pouco tinha a defender. Já se habituara ao emprego, os pacientes não o testavam mais, enfim, assumira de vez, aos olhos dos outros, inclusive aos seus, o papel de zelador de coisas, algumas das quais ainda vivas. Talvez lhe tivessem repreendido por bater nas pacientes, talvez não. Provavelmente muitas saíam do casulo, menos convencidas do mundo do que estavam ao entrar, graças a ele.

- Se você quer conhecer - prosseguiu a Srta. Coral amavelmente - é ele quem detém as chaves. - Ela riu da alusão. - Já ensinei a você todo o grego que sabia.

Por coincidência, Déborah avistou no fundo do corredor a figura de Ellis, destrancava o banheiro para a Esposa do Abdicado. Não se dignou a olhar, muito menos a falar com ela, tratava a paciente como a um fardo. Aberto o banheiro, limitouse a recuar para deixá-la passar. com o mesmo rosto inexpressivo, percorreu de volta o corredor, sem olhar parà nada e ninguém. Ao passar por Déborah, esta sentiu o tumor distender-se violentamente dentro dela, obrigando-a a se curvar em duas com tamanho ímpeto que acabou de quatro no chão. Quando se ergueu, ainda meio atordoada, encharcada de suor, foi Castle, um auxiliar novo, e não Ellis, que encontrou ao seu lado, todo solícito, observando-a livrar-se do torpor.

- O que houve, Blau?

- As suas leis espaciais são ótimas - disse ela - mas, por Deus, cuidado com as opções que vocês nos oferecem!

Esther Blau passou muitas semanas preocupada e agitada, hesitando em revelar a Suzy a doença da irmã. Quem já não havia escutado os velhos melodramas a respeito da insanidade como, por exemplo, o da louca em ”Jane Eyre”; as histórias descrevendo o manicômio, com suas construções sombrias e lúgubres, rodeadas de muros sólidos e indevassáveis, sepulcro de uma multidão de trapos humanos; quem já não ouvira falar dos maníacos assassinos, que transmitiam suas taras aos seus descendentes, ameaçando o futuro? Sim, a ”Ciência Modema” fornecera uma série de racionalizações oficiais para explicar muitos desses casos, mas, a despeito dos fatos, as antigas crenças e temores sobreviviam incólumes na mentalidade popular. As pessoas tinham o maior respeito pelas novas teorias com toda a sua gama de comprovações empíricas sensacionais, mas só superficialmente. Ao menor arranhão, a casca da cultura se desfazia, cedendo lugar ao terror primitivo ao peso de dez mil gerações de medo e misticismo. Esther queria evitar a todo custo que Suzy viesse a substituir a imagem familiar da irmã por aquele estereótipo da louca de olhar selvagem, enfiada numa camisa de força c acorrentada num porão. Dava-se conta agora de que fora justamente este estereótipo que ela e Jacob haviam evocado da primeira vez que viram as janelas guarnecidas de barras e que escutaram o ranger das fechaduras ou o grito atormentado de mulher, que partira de alguma janela do hospital. Suzy, no entanto, precisava saber; já era tempo. Ela estava deixando de ser criança e, por isso, tornava-se cada dia mais difícil conversar perto dela. Além disso, era injusto continuar a alijá-la da fonte de suas preocupações mais profundas. O problema se resumia em achar uma maneira adequada de contar. Chegaram a pedir ao Dr. Lister que o fizesse, mas ele se recusara, alegando que isso cabia exclusivamente a Esther e Jacob.

- Vamos esperar mais um pouco - propôs Jacob. Esther sabia, contudo, que esse ”esperar-um-pouco” era mais uma das portas por onde ele se esquivava discretamente dos problemas. Ou seja: feche os olhos e pronto! Tudo volta a correr às mil maravilhas. Isso nunca! Discutiram, discutiram, até que finalmente venceu a posição de Esther. Naquela mesma noite, ao terminarem o jantar, Suzy, como de hábito, levantou-se para fazer os seus exercícios de piano. Esther lhe pediu que ficasse.

É um assunto sério... - Seus próprios ouvidos estranharam aquelas palavras, ao mesmo tempo solenes e embaraçadas. Empertigou-se na cadeira, temperou a garganta e com voz formal começou a explicar à filha caçula que a ”escola de convalescência” de Déborah era, na realidade, um hospital; due seus médicos eram psiquiatras, que sua enfermidade era mental e não física. O clima foi pouco a pouco se descontraindo. Jacob de vez em quando a aparteava, acrescentando, modificando ou elucidando um ou outro aspecto da questão, com uma convicção nem sempre sincera.

Suzy escutava com a passividade que só uma menina de doze anos é capaz. Seu rosto não extemava um sinal, uma contração muscular sequer que denunciasse aos pais como estava recebendo aquelas palavras, arrancadas a tanto custo. Quando terminaram, ela permaneceu em silêncio por algum tempo, e então falou em voz lenta e pausada.

- Uma coisa que sempre me intrigou é que esses relatórios tratavam mais das idéias de Déborah do que de seu corpo. Nunca mencionavam, por exemplo, o pulso ou a temperatura.

- Você leu os relatórios?

- Não. Ouço, às vezes, você citar trechos para a vovó, e um dia você leu um bom pedaço para o tio Claude que eu achei meio esquisito, tratando-se de um relatório sobre essas doenças comuns. - Suzy esboçou um sorriso, lembrando-se, sem dúvida, de alguma outra referência que a deixara confusa. Tudo se encaixa direitinho agora! Até que enfim as coisas fazem sentido! Levantou-se da mesa e foi para a sala ao lado praticar suas lições de piano. Esther e Jacob continuaram sentados, atônitos, com os olhos perdidos nas xícaras de café. Passados alguns minutos, Suzy voltou.

- Escuta, ela não fica dizendo que é Napoleão ou coisa no gênero.. . fica?

- Claro que não! - Falaram sobre o otimismo dos médicos, as vantagens dela ser tratada cedo, a força vigorosa e o amor que demonstravam, tudo isso pesando em favor de Deorah. O tom em que falavam traía um pouco a esperança que tentavam transmitir.

Tomara que volte logo para casa. Às vezes, sinto muita falta dela - disse Suzy, voltando, em seguida, à peça de Schubert.

Permaneceram ali sentados por um bom tempo, refazendo-se do contraste entre as expectativas e o que acontecera de fato. Esther se sentia fraca devido ao brusco relaxamento da tensão.

- Isso é tudo?... quer dizer, é só isso ou será que realmente ela não nos compreendeu? A impressão que eu tenho é que, assim que passar o choque, ela vai reaparecer com o olhar que há meses venho imaginando!

- Não sei não. Talvez o troar de canhão que temíamos foi o que nós ouvimos.

Jacob deu uma longa tragada no cigarro e expeliu junto com a fumaça, toda a angústia que o dominava.

- O inglês é mesmo uma língua maravilhosa - comentou Furii. Contém expressões incríveis! Hoje - como se diz?

- você parece estar ”na maior fossa”.

- O inglês não é melhor do que o Yri!

- Elogiar uma coisa não significa condenar outra.

- Não? Não é condenável cortejar a morte? (Suas mãos haviam manejado com destreza a lâmina da precocidade, cujos gumes ela própria afiara. Ser rainha de Yr, sua escrava e prisioneira, era ter sempre razão).

- No entanto, você cometeu erros que lhe custaram caro, não foi? - perguntou Furii com delicadeza - Por exemplo, quando identificou a menina errada na colônia de férias.

- Admito que errei mil vezes! Mas você esquece que eu era feia, arruinada, sem esperanças, que possuía uma substância envenenada e venenosa, e por isso, podia me dar ao luxo de ter razão! Se eu estivesse errada, por menos que fosse, então o que sobraria?

Notou que se deixara levar pela vaidade e riu meio constrangida: - Até mesmo emPemai - que significa ”Nada”

- eu tinha que preservar alguma coisa.

- Todos nós temos! - disse Furii - Você se envergonha disso? Para mim é uma evidência de que Déborah ainda mantém vínculos com a Terra, pelo menos tanto quanto com Yr. Você acredita que essa sua substância seja realmente venenosa?

Déborah começou a explicar as leis de Yr que regiam o nganon, isto é, uma substância original que definia cada pessoa. iA composição do nganon dependia não só de fatores inatos como de fatores circunstanciais. Segundo Déborah, ela e alguns outros possuíam um nganon que as diferenciava das demais pessoas. Julgava, de início, que isto só acontecia consigo, mas veio encontrar depois, na Ala D, alguns mortos vivos que, pareciam carregar o mesmo estigma. Durante toda a sua vida, ela e tudo aquilo que a pertencia, estiveram impregnados dessa venenosa essência. Por isso, sempre se recusara a emprestar suas roupas, livros, lápis ou permitir sequer que alguém tocasse em suas coisas. Ficava encantada com a pureza, a graça, a saúde que vicejavam nas outras crianças da escola ou da colônia de férias, inclusive em seus objetos pessoais. Roubava-os freqüentemente conservando-os até que se dissipasse esse nganon purificador que os impregnava.

- Mas você não disse que costumava subornar as crianças na colônia de férias com os doces que sua mãe mandava? - perguntou Furii.

- Sim, é verdade. Só que os doces vinham em caixas impessoais cobertas de papel celofane. Enquanto não fossem abertas, não havia perigo de contaminação. Além do mais, a podridão-Déborah só começa a agir depois de um dia. Eu dava as caixas imediatamente, logo que as recebia.

- E comprava assim, por algumas horas, uma pequena dose de popularidade!

- Eu tinha consciência de que estava sendo uma farsante, uma covarde. Por aquela época, o Coletor já se manifestava, e cada vez mais intensamente; ”farsante e covarde” eram acusações que ouvia dele.

- Compreendo. E esse sentimento vinha entremeado à precocidade que você tinha que sustentar, e à noção inculcada

’pelo seu avô de que você era especial.

Déborah já não a escutava. Estava longe... A doutôra perscrutou-a com um olhar penetrante, e, pressentiu que ela beirava uma descoberta importante.

- Anterrabae... - chamou Déborah em Yri.

- Onde você está agora? - interveio a Dra. Fried.

Anterrabae! Poderá ela arcar com tão grande peso?

O que está acontecendo, Déborah? - insistiu a Doutôra.

Ela gemeu baixinho para o deus e, então, voltou-se desesperada e disse: - Anterrabae sabe o que vi... sabe o que tenho a confessar... Ah, quisera não ter visto! Quisera banir da memória essa coisa horrível... horrível.

Déborah tiritava de frio, aquele frio que remontava à distante vivência de uma separação. Furii deu-lhe um cobertor com o qual ela se enrolou e deitou no dívã.

- Durante a guerra... eu fui uma japonesa.

- Uma japonesa de verdade?

- Eu estava disfarçada de americana, mas na realidade não era uma americana.

- Por quê?

- Porque eu era a Inimiga!

Para Déborah, esta revelação constituía um segredo crucial. Sintomaticamente, a Dra. Fried era obrigada a pedir inúmeras vezes que ela falasse mais alto, no decorrer do relato. Déborah contou que, logo que se sentiu capaz de transitar entre Yr e o mundo exterior, de percorrer as imensas distâncias que os separavam, sem extemar qualquer alteração visível, Yr lhe deu de presente, no dia em que fez nove anos de idade, o poder de transmutar sua forma. Assim, durante cerca de um ano, viveu ora sob a forma de um cavalo selvagem, ora sob a forma de um enorme pássaro de penas de bronze. Bastava que recitasse um encantamento Yri para que se dissipasse a ilusão, e a menina feia e detestada se transformasse num esplendoroso pássaro. O encantamento dizia:

”e, quio quaru ar Yr aedat temoluqu’ braown elepr’ kyryr. . .”

(Liberta e alada, no alto do céu, sobrevôo os desfiladeiros das tuas canções de ninar...)

Quando Déborah se transformava nessa enorme criatura alada, as relações pareciam se inverter: os seres do mundo passavam a ser amaldiçoados, cometiam erros, enquanto ela tornava-se a síntese perfeita do amor e do ódio. Os homens eram os cegos, eram os que dormiam agora, ela não, desperta, contemplava todas as belezas e todas as maldades.

Quando em dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbour, forçando a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, o nome daquelas ilhas do Pacífico adquiriram uma conotação odiosa e infemal para os americanos. Um dia, o Coletor lembrou a Déborah: - Eles odeiam esses japoneses como sempre te odiaram. - E Anterrabae, o deus cadente, completou com um sorriso amável: - Pássaro um, tu não és como os outros!

Recordava-se de ter escutado o trecho de algum discurso no rádio que dizia: ”Os que não estão do nosso lado, estão contra nós!” O Coletor segredou-lhe: - Ah! Tu deves ser esse inimigo contra o qual eles lutam!

Certa noite, estava quase adormecendo, quando despertou sentindo-se como um soldado japonês capturado. Por detrás da máscara de judia americana, os olhos oblíquos do Inimigo ansiavam pelo dia em que seriam desmascarados. A dor contínua e insuportável causada pelo tumor, era o seu ferimento de guerra. Sua mente, versada num idioma estranho, elaborava, sonhos de fuga. O prisioneiro não odiava seus captores; pelo contrário; desejava até que vencessem. O importante é que o mundo começava a dar um sentido às oposições irreconciliáveis que dilaceravam Déborah, à ruína de suas partes mais recônditas e femininas, à dolorosa intimidade de seus ferimentos, à linguagem secreta. Fazia sentido, agora, a condição de prisioneira, o universo de segredos, assim como a glória e a miséria pressupostas na declaração de Yr: Tu não és como os outros!

No dia em que terminou a guerra do Pacífico, Anterrabae fez com que Déborah quebrasse um copo e pisasse sobre os cacos com os pés descalços. Não sentiu nenhuma dor. O próprio médico estremecendo a cada caco que extraía, ficou abismado e confuso com o seu estoicismo semelhante ao ”de um soldado”.

Até que enfim esses malditos médicos me acham suficientemente corajosa! exclamara Déborah em Yri para Lactamaeon.

Tu és prisioneira e vítima, respondera Lactamaeon. Não queríamos que escapasses!

- Quer dizer que você escondeu essa identidade de japonesa de todos os que conviviam com você. - Escondeu-a também de Yr? - perguntou Furii.

- Não havia lugar para ela em Yr. Fazia parte exclusivamente da dimensão da Terra.

- E por isso, o Censor teve o cuidado de mantê-la em segredo. Não foi assim? Não consigo é entender bem o lugar desse Censor no seu reino.

- Á função do Censor é me proteger. No início, ele fazia parte da Zona do Mundo Intermediário para impedir que os segredos de Yr transpirassem nas conversas mantidas na Terra. Censurava todos os meus atos para não deixar que as vozes e os ritos de Yr chegassem ao conhecimento das pessoas. Só que acabou se tomando, sem que eu o percebesse, um verdadeiro tirano. Começou a interferir em tudo o que eu fazia ou dizia, mesmo fora de Yr.

- Ainda assim, continuo achando que esse Censor, e o próprio Yr, representavam apenas uma tentativa de interpretar e explicar a realidade, de construir uma espécie de verdade onde você pudesse viver Bem - concluiu a doutôra - tenho certeza de que há muito para descobrirmos e estudarmos aí. Você agora já não é uma vítima, e sim uma pessoa que luta comigo em prol de uma vida boa e sadia para si mesma!

A Dra. Fried conduziu Déborah até a porta, e consultou em seguida o relógio que havia sobre a escrivaninha. Embora marcasse a hora de sempre, a sessão fora longa e exaustiva. Exigira dela muita atenção e uma participação intensa. O pior é que tinha ainda a tarde pela frente, o pranto e o sofrimento de outras pacientes, e depois as aulas e as dúvidas dos estudantes de psiquiatria. ”Qual é mesmo o programa de hoje?” Consultou a agenda. ”Ah, sim, o seminário.” Mas dispunha, miraculosamente, de uma hora antes de subir. Há três semanas que seus discos de Schumann e Beethoven jaziam sem tocar na prateleira. ”Droga! Por que o tempo é tão curto?” Espreguiçou-se e se encaminhou para a sala de estar cantarolando alguns trechos de uma melodia. ”Como se sente a doutôra hoje?”

Enquanto retirava o disco da capa, pensava sobre um paciente, cujo médico viera lhe pedir conselhos a respeito de um problema aparentemente insolúvel. ”Não! Chega de pacientes!”

Ligou a vitrola e pôs o disco. A música suave e graciosa invadiu a sala. Seus pensamentos deslizaram suavemente relembrando os tempos e as poesias de sua juventude. encostou-se numa poltrona, fechou os olhos e relaxou o corpo. Nesse exato momento, pela décima segunda vez naquele dia, o telefone tocou.

Déborah retcomou à ala apreensiva com a nuvem que ameaçava desencadear os prenúncios terríveis de que vinha carregada Soaram os primeiros ribombos nas esferas de Yr. A tempestade era iminente. Logo que chegou à ala, viu a enfermeirachefe saindo, foi atrás dela, mas não conseguiu falar nada. Queria pedir ajuda, mas o terror a emudecia. A última enfermeira do turno do dia saiu. Pouco depois chegava o pessoal da noite. Pressentindo que a onda rebentaria a qualquer momento, Déborah correu para a enfermeira da ala que supervisionava a contagem de colheres para o jantar.

- Sra. Olson...

- Sim?

- Estou sentindo que a crise vai se abater. Por favor! A crise vai se abater e sinto que não terei forças pára suportá-la. Preciso do casulo imediatamente!

A enfermeira a encarou atentamente - Está bem, Déborah. Vá se deitar.

A onda arrebentou com a violência prevista. Foi um mar de gargalhadas e zombarias ensurdecedoras! Déborah não perdeu inteiramente os sentidos. Como uma brasa que seus dentes fossem triturando, a voz do Censor trovejava em seus ouvidos: Cativa e vítima! Sabes, por acaso, por que fizemos isso? Lembra-te do terceiro espelho: a decepção maior ainda está por vir! Vieste para esse hospital - Muito bem, estava nos planos. Permitimos que confiasses nessa médica. Foste descerrando um a um teus segredos. Esse ê o último. Agora que já te expuseste o bastante, verás só o que ela há de fazer - ela e o mundo! A gargalhada que sucedeu à advertência deixou Déborah completamente fora de si. Sentiu os dentes estilhaçarem dentro da boca.

Trazia uma expressão absolutamente estupidificada ao chegar ao casulo e deitar-se nos lençóis frios. Quando a punição se abateu com todo o seu vigor, já se achava firmemente atada na cama. Lutou e se contorceu como uma fera, e a cama não cedeu um milímetro. . .

Só recuperou a lucidez muito tempo depois. Passeou os olhos ao redor, pelo simples prazer de olhar. Reaver a nitidez de visão era como uma benção. Reparou num montículo branco na cama vizinha mas não deu para ver quem era.

- Helene?

Silêncio. A crise durara um bocado de tempo. Nos pés, o sangue quase não circulava, e os calcanhares, mais expostos ao contato com os lençóis molhados, ardiam como fogo. Recostou-se na cama e fez força para suspender o corpo, de modo a deslocar dos tornozelos a pressão das correias que os imobilizavam. Quando se cansou, procurou relaxar ao máximo o corpo e aproveitar a lucidez que lhe permitia ver tão fundo em seus pensamentos. A crise devia ter durado umas quatro horas. Logo viriam os auxiiiares para retirá-la daquelas dolorosas ”vestimentas de luta”. Mas não vieram. A dor tornou-se intensa. Sentia os tornozelos e joelhos inchados, latejando de encontro aos lençóis, a pressão insuportável das correias, mas o pior de tudo eram os pés, que com a circulação paralisada, queimavam como fogo. Tentou de novo arrastar o corpo para aliviar o peso dos ossos dentro das pemas, e conseguiu apenas provocar cãibras terríveis em ambas as pemas. O jeito era esperar, rangendo os dentes. O tempo ia passando e ninguém aparecia. Começou a choramingar.

- Srta. Blau... Déborah... o que há? - partiu da cama vizinha.

- Quem está aí? - perguntou, com medo de tropeçar em mais uma decepção.

- É Sylvia. Aconteceu alguma coisa?

A curiosidade fê-la esquecer momentaneamente a dor. Virou a cabeça em direção a Sylvia. - Não imaginava que você me visse ou soubesse meu nome. Déborah, tal como os outros, sempre a considerara uma espécie de mobília inútil na ala. Sentiu-se envergonhada de tê-la julgado pelas aparências, por seu silêncio sobretudo.

- Doente, mas não morta! - protestou Sylvia - Você está bem?

Deus do Céu... como dói! Há quanto tempo estamos aqui?

Cinco horas... talvez seis. Fcomos ”encasuladas” juntas. Grite; pode ser que alguém venha.

Não posso... nunca pude - desculpou-se Déborah.

O tempo foi passando, até que a dor se tcomou tão intensa que acabou destrancando a voz de Déborah. Gritou, gritou, gritou esperando que Yr não interpretasse seu gesto como covardia e a punisse para sempre. Ninguém veio. Finalmente, vendo que era inútil, parou de chamar. Sylvia riu baixinho.

- Esqueci que o grito de um louco é um grito de louco!

- Como você consegue suportar isso?

- Provavelmente porque tenho uma circulação melhor do que a sua. Em geral, não sinto dor alguma, mas quando os pés estão atados com uma pressão uni pouquinho maior, ou quando se tem problemas com o sangue... Ah.., apagaram a luz da cozinha. Isso quer dizer que são três horas.

Déborah ficou abismada: jamais seria capaz de reconhecer as horas pela rotina do hospital, pelas mudanças de turno ou pelas idiossincrasias pessoais da equipe médica. E logo Sylvia, que sempre parecera, exceto por um breve e distante momento, muito mais próxima dos mortos do que dos vivos. - Há quanto tempo estamos aqui, então?

- Sete horas.

Por que não vinham? As lágrimas escorriam pelo seu rosto e não podia enxugá-las. Anterrabae riscou as trevas inflamadas de dor, exclamando: Decepção! Decepção! Chegou a hora!

”Venham! Venham! Venham!!...” Déborah percebeu que ao se entregar a essa esperança, expunha-se de novo às lâminas enregelantes do vento. Aguilhões impiedosos cravavam-se em ambas as pemas, arrancando-lhe gemidos. - Por Deus, esses caras bolam torturas verdadeiramente diabólicas!

- As correias? - perguntou Sylvia.

- Não. A esperança! - No mesmo instante, o espelho da decepção final, a Ansiada e Iminente Morte, acercou-se dela. - Eu a vejo, Imorth, falou Déborah em Yri e, pela primeira vez, em voz alta na presença de uma pessoa estranha.

Quando finalmente vieram soltá-la, encontraram-na quieta e imóvel.

- Agora você está bem calminha, não é? - perguntaram satisfeitos.

Déborah não conseguiu andar. Como não tinham quase o que fazer àquela hora da madrugada, permitiram que ela ficasse sentada por algum tempo, até que as articulações desinchassem, as pemas readquirissem a cor e seus pés estivessem em condições de transportá-la. Antes de deixar Sylvia entregue àquela luz inóspita e ao incômodo de ser desenrolada, decidiu retribuir o gesto de solidariedade que a arrebatara do seu habitual mutismo. Aproximou-se da cama dela reparando pelo canto dos olhos que os auxiliares acompanhavam cautelosamente os seus menores gestos, prontos para intervirem.

- Sylvia... Sylvia...

Inútil! Sylvia voltara a ser móvel, estátua, manequim, o que quer que fosse, conservando de humano apenas a forma, e de viva, apenas o latejar compassado das têmporas.

A certeza de uma destruição inevitável era bem mais fácil de suportar do que fora aquele pequeníssimo ”talvez”, aquela ínfima possibilidade de salvação. Déborah tinha esperado a decepção final por tanto tempo que, quando finalmente veio, foi quase um alívio. Pouco antes de sair para o consultório da doutôra, todas as divindades e personagens de Yr se agruparam no seu horizonte. - Dessa vez não farei concessões! - prometeu a eles. - Juro que não farei! Não serei nem corajosa nem agradecida. Acabou-se a farsa! Não pretendo mais manter a ”esportividade”. Recuso-me a participar da brincadeira, a caminhar para essa morte como se eu não soubesse o que ela é!

Quando se defrontou com o habitual sorriso de boas-vindas de Furii, um sopro de dúvida fez estremecer por um momento toda aquela determinação. Talvez ela não saiba, pensou Déborah. Mas logo rejeitou a hipótese como absurda, um sonho! Fora predito há anos atrás, que a última Mudança seria a morte ou coisa pior. Na noite passada, Déborah, pela primeira vez, pedira ajuda em inglês, e ela lhe foi dada, fácil, fácil! O que era isso senão uma prova de menosprezo que sentiam? Transpusera o abismo que a separava deles, entregando-se num gesto de confiança, e eles, ah... eles cantaram vitória! Seus calcanhares e seus pés ainda estavam doloridos da brincadeira. Contrastando com a incandescência da dor, projetara-se enfim a sombra tenebrosa da Destruição Iminente. Que outra mão poderia executá-la de uma forma tão implacável e completa, senão a desta médica, cujo toque queimava como fogo!

- Bem? Bem? bêbeíalrfião se conteve: - Escute aqui! - Sei que isso é um jogo, e que há certas regras nesse jogo que a vítima não deve transgredir. Mas acontece que eu conheço esse jogo, e mais ainda, conheço o final do jogo. Por que me fazer de boba? Já não basta me fazer de morta? Vá lá! Sou boba. A decepção ei a última mudança estão aí, portanto execute, e acabe de um

- Não estou entendendo muito bem - disse Furii, balançando levemente a cabeça, e procurando afetar a maior tranqüilidade. - Um dia você me fala sobre o soldado japonês e sobre como você foi alijada e discriminada pelas pessoas. Eu, então, me esforço por convencê-la de que ao revelar esses valiosos segredos para nós, não está colocando em risco a minha confiança em você por um momento sequer. Então você vem, no dia seguinte e transforma o nosso trabalho numa peça da grande decepção e mudança.

- Eles souberam escolher o momento propício! - exclamou Déborah - O momento em que eu iria pedir ajuda, o momento em que eu confiaria. Já estavam com a pedra na mão para despedaçar o vaso de flores!

- Parece-me que o velho hospital do passado e esse do presente fundiram-se na sua mente. Vamos, Déborah, não pretendo ganhar a sua confiança só para traí-la depois.

- Será que você não tem um pingo de misericórdia? - gritou Déborah - Todo mundo treme de medo de encontrar o chão da sala manchado de sangue. ”Não suporto ver sofrimento”, dizem, ”Vá morrer lá fora, sim!” A coisa já começou e você ainda ousa afirmar: ”confie e tudo estará bem!”

- Olhando para você agora, nesse estado tão lastimável, dificilmente eu afirmaria que tudo está bem! O que foi que aconteceu de ontem para hoje? Se você acha que começou a última mudança, então conte para mim... para nós duas, como começou.

Delicadamente, a doutôra foi recuperando a confiança dela, incentivando-a a se abrir. Pouco a pouco, Déborah foi reconstituindo os acontecimentos da noite anterior, desde o momento em que pedira para ser levada ao casulo. - Não deixa de haver nisso uma certa dose de humor - admitiu com amargura.

- Fiz exatamente o que as pessoas ”sadias” fazem quando vêem uma cascavel. Gritam por socorro, saem correndo, trancam as portas, depois que a cobra foi apanhada, desmaiam. Eu me preparei toda para aparar o ataque, mas esqueci que estava apoiada num terreno que era deles e, por isso, bastaváLhes retirá-lo de sob os meus pés. - Contou, em seguida, como tinha gritado por ajuda horas e horas a fio, a dor que sentia, as zombadas de Yr. Respondeu às perguntas de Furii com um ar orgulhoso, que beirava a alegria, como se tivesse passado por uma grande aventura.

- Você tem certeza de que foi por tanto tempo?

- Absoluta!

- E gritou mesmo por socorro. ..

- Pelo visto, você nunca esteve intemada num hospital psiquiátrico.

Ao contrário do que esperava, Furii ficou séria, seríssima.

- Não... - disse ela - e saiba que lamento muito, porque só posso supor o que seja. Mas isso não me impede de ajudála. Apenas transfere para você a responsabilidade de explicarme tudo, tintim por tintim, e de procurar ser paciente comigo se às vezes minha compreensão for um pouco lerda.

Encarou-a com aqueles seus olhos zombeteiros e prosseguiu: - Parece-me, no entanto, que está um pouco contente demais consigo mesma por causa desse incidente. Acho que você está entregando os pontos com muita facilidade; por via das dúvidas, repito que não vou traí-la. Déborah encontrou, enfim, a fagulha que precisava.

- Prove! Prove! - gritou, lembrando-se de que sempre com um sorriso nos lábios, os professores, médicos, conselheiros e familiares proporcionavam decepções e miséria ao longo dos anos.

- Seja! - concordou Furii - Uma prova dura, mas infalível: Tempo!

Sob amarras idênticas às que trouxeram a Srta. Coral, com o mesmo desapreço profano, o safari trouxe uma nova tigresa para o cativeiro. A ala, nesse momento, vibrava de expectativa. Acontecimentos desse gênero transtornavam todas as pacientes: espelhavam a angústia de uma, desencadeavam a violência de outra, sopravam uma aragem prenunciadora de mudanças, e para a maioria, qualquer mudança era um símbolo de morte. Publicamente, tornava-se muito pouco conhecimento da chegada de novos pacientes. Muitos vinham para a D, muitos partiam. Os mais belicosos, no entanto, provocavam uma reação coletiva de pânico muito característica.

Lee Miller, ostentando orgulhosamente o seu ”status” de veterana, observava com um ar tolerante e divertido o acontecimento. Num dado momento, porém, conseguiu distinguir, em meio ao atropelo de auxiliares, o rosto da tigresa que transportavam ao longo do salão. Ela ficou lívida. Deu as costas bruscamente, foi direto para o quarto e meteu-se na cama.

Mais tarde, Déborah a procurou para saber quem era (certos pacientes acabavam obtendo com antecedência, geralmente por meio de rumores, a ficha completa dos recém-chegados: Nome, Idade, Ocupação, Religião, Estado Civil, Hospitalizações prévias, Tratamentos de Choque - de que tipo e quantos -, Outros Tratamentos e Observações. Lee zangou-se: - Por que perguntar logo a mim? -- E encerrou a conversa escondendo-se debaixo do cobertor.

Déborah procurou, então, um auxiliar que a informasse.

- Trata-se de um caso de readmissão - explicou despreocupadamente. - Não temos muitos dados. Seu nome é Doris Rivera.

Déborah ficou atônita. Recuou e encostou-se na parede gaguejando, enquanto o auxiliar seguia tranqüilamente seu caminho. Medo e ódio, medo e a euforia da vingança, medo e inveja chocavam-se dentro dela. A grande Doris Rivera acabara partindo a espinha dorsal na roda do mundo. Quantas coisas isso provava! Subitamente, os sentimentos que a revolviam por dentro explodiram boca afora numa cruel e estrepitosa gargalhada.

-- Bem feito! Rivera, a Estrela do Norte! Quem ela pensava que era, afinal!

- Napoleãoü - berrou Lena. Agarrou o pesado cinzeiro que estava usando e o arremessou com toda a força, atingindo a parede, bem ao lado de Déborah.

Uma auxiliar contemporizou sem muita convicção: - O que é isso Lena, calma.

Mais tarde, Déborah escutou ela dizendo na enfermaria:

- Aquela sem-vergonha da Blau! A mamãezinha e o papaizinho gastam uma nota naquela puta que não devia nem existir!

- Alguém objetou, mas apenas para manter as aparências. Déborah se afastou cabisbaixa, e percorreu vagarosamente as portas da seção de reclusão, até chegar ao quartinho onde Doris fora enclausurada. - É aí que você está, não é sua presunçosa!

Como ousara ela tentar, desafiando-as a todas? E como ousara fracassar, permitindo que o mundo a triturasse! Nesse momento, foi invadida por uma onda de piedade e temor por si mesma. Quer dizer então que acabam retornando! São teimosos demais para aceitar que seus nganons os tornam venenosos, e chegam em frangalhos de tanto apanhar. Sim, mais cedo ou mais tarde voltam. Depois de algum tempo, erguem-se lentamente dos chãos da ala, vacilantes como pugilistas derrubados num ”round”, sacodem o torpor, recompõem as forças, e arremetem de novo contra o mundo... e de novo... e de novo, ... e sempre voltam, não sobre a padiola, mas dentro dela. Quantas investidas serão necessárias até que morram definitivamente?

E tu, Pássaro-um? - perguntou Lactamaeon com um sorriso nos lábios. Trevas, sofrimento, pavor, negligência, e ainda assim teu coração bate, teu pulso persever a em viver.

- Por quê? gritou ela em Yri.

- Porque teus guardiães são sádicos!

Naquele dia, todas as atenções convergiram para Doris. Médicos e enfermeiras rangiam as chaves de sua autoridade na fechadura de sua porta. Era um tal de casulos e sedativos, consultas, cuidados, conselhos, tudo para Doris. Enquanto isso, uma multidão de irmãzinhas consumia-se de inveja, fremia de indignação, assistindo à volta ao lar da filha pródiga que vinha lhes roubar a soberania. Mary Dowben postara-se diante do quarto de Doris, gemendo cada vez que os membros do cortejo emergiam de lá! Lee Miller, sentada a um canto do saguão, murmurava furiosa: - Que serviço mal feito, hein seu doutor! Arrume a trouxa e volte para casa... ela está perdida. O diabo é que esses médicos nunca admitem quando ”entram bem”!

Alguns dias depois, quando Doris surgiu em carne e osso, o rosto pálido e encovado, defrontou-se com uma hostilidade muda e implacável. Déborah a examinou de alto a baixo, à luz do mito que ela e Carla alimentaram durante tanto tempo. Doris era muito magra e seus cabelos começavam a ficar grisalhos. Apesar de exausta e atordoada devido aos sedativos, vibrava nela uma vontade intensa de viver. Como arcara com o mundo este tempo todo, ninguém o sabia, mas uma coisa era certa: não fora de joelhos!

Notou que Déborah a observava com a mesma hostilidade que sentia no resto da ala.

- Que olhar idiota é esse, hem? - perguntou agressivamente. - Olhe-se no espelho e verá que também não é nenhuma beldade!

- Você já esteve aqui antes - deixou escapar Déborah.

- E daí?

- E daí? Como é que você voltou?

- Isso não é da sua conta, pôrra!

- É! É sim! - gritou Déborah. Antes que pudesse continuar, as auxiliares acudiram aflitas, fecharam-se em torno de Doris e a afastaram dali. Déborah ficou com a pergunta e a raiva reboando em seus ouvidos sem resposta.

Yr começou a trovejar e o Coletor a provocá-la com zombarias. Eu também vou! declarou ela aos personagens de sua outra dimensão. Dirigiu-se à porta do quarto onde Doris estava encerrada e bateu.

- Ei! Foi muito duro? Você voltou por causa disso?

- Não! Eu é que fui dura demais! Aconteceram muitas coisas - gritou, do outro lado.

- O que por exemplo?

- Já disse que não é da sua conta, merda!

-- Más eles vivem dizendo que a gente vai ficar boa... e sair. Todo mundo nos diz isso, e...

Ao escutarem aquele diálogo, as auxiliares acorreram mais uma vez para abafá-lo, antes que degenerasse em briga. - Afaste-se dessa porta, Déborah! Você não tem nada o que fazer aí! repreenderam os vultos brancos.

- Eu só estava conversando com Doris -, insistiu. Duvidava que suas perguntas viessem a ser respondidas, mas eram vitais, tinha de fazê-las. Precisava saber urgentemente se teria que reativar o Censor, os esquemas voltados para sustentar as aparências de sanidade, e todas as farsas e horrores sem os quais jamais sobreviveria lá fora, naquele mundo sombrio e incolor.

- Sim, sim. . . mas agora vamos! - O tom de suas vozes era ameaçador: ou saía dali, ou ia direto para a reclusão, o casulo, ou ambas as coisas. .

- Ei, vocês aí. . . - chamou Doris do outro lado da porta. - Escutem... deixem essa doida ficar. Talvez eu consiga responder às perguntas dela! Só posso saber depois que ela perguntar.

- Rivera, não se meta nisso! - preveniu severamente um dos auxiliares. - Blau!

-- Está bem, está bem... - assentiu Déborah.

Naquela mesma tarde ocorreu um acidente. Mary Dowben escorregou, caiu e um de seus sapatos saltou longe. Déborah o apanhou e o jogou de volta para Mary. Umas quatro ou cinco meninas que estavam ali começaram a brincar com ele, correndo pelos corredores e dormitórios. ”O que é que a barata faz? Voa! Numa dessas, Déborah saltou para agarrar o sapato mas caiu de mau jeito e torceu o tornozelo. Na manhã seguinte, o médico da ala o examinou e suspeitou que estivesse fraturado.

- Nosso aparelho de raio-X não está funcionando - disse ele. - Teremos que levá-la para o hospital St. Agnes.

Dois estagiários uniformizados, apavorados com a possibilidade de que ela fugisse, conduziram-na num táxi ao hospital. Chegando lá, isolaram-na num quarto privativo, vigiado dentro e fora por dois grupos de enfermeiras. Déborah ora se divertia com o ridículo da cena, ora espumava de ódio. De vez em quando, enfermeiras e auxiliares vinham espreitar pela porta, cheios de curiosidade. - Esta aí é que é a doente mental? - Cochichavam do lado de fora, como se estivessem diante de uma famosa estrela de cinema ou portadora de alguma peste. O pior foi quando a levaram para a sala de raio-X. As pessoas no corredor voltavam discretamente a cabeça e os olhos para o outro lado. (Desinteresse afetado: ”Se eu olhar, será que ela olha?”). Os estagiários que escoltavam Déborah, iam de peito estufado, cheios de si. Nem bem chegaram à sala de raio-X, puseram-se a descrever orgulhosamente as agruras do trabalho na ”ala dos perturbados”.

- E eles são violentos?

Déborah não escutou a resposta. Provavelmente foi uma piscadela maliciosa de olhos. Ocorreu-lhe, de súbito, como a deviam estar vendo: suja, cabelos desgrenhados, flácida devido à inatividade, vestindo um velho roupão por sobre o pijama. (Julgando que ela talvez ficasse no St. Agnes, não se deram ao trabalho de vesti-la decentemente.) Quem sabe um olhar demente também. Não tinha a menor idéia de qual a expressão que trazia no rosto. A conclusão impôs-se fulminante: Aí estava! - Eis o que Doris Rivera enfrentara e o que Carla enfrentaria em breve: o Mundo!

Déborah desmaiou. Ao voltar a si, alguns minutos depois, a primeira coisa que viu foram os rostos ávidos debruçados sobre ela. Percebeu, naquele momento, como odiaria ter que ficar no hospital, caso o tornozelo estivesse fraturado. Ali, as circunstâncias tornavam-na muito mais ”louca” do que na ala supostamente ”violenta” do hospício.

Sentou-se com dificuldade. - Como está se sentindo? - perguntaram os seus dois enfermeiros (gozando o privilégio de serem os únicos com conhecimento suficiente para lidar ”psicologicamente” com ela). Déborah teve uma idéia: se conseguisse assustá-los bastante, certamente a levariam de volta, com ou sem fratura.

Armou uma cara bem agourenta e disse: - É um dos meus ataques que vem aí!

O médico empertigou-se sobressaltado- Bem! que... quer dizer... - gaguejou ele compungido - a moça teve um deslocamento bem feio... mas... não creio que tenha havido fratura!

Todos suspiraram aliviados. Num piscar de olhos, Déborah saía do hospital mancando, com o tornozelo enfaixado, apoiada em seus dois enfermeiros. Entrou no táxi (já estava a postos) que, rápido, rápido, desceu a avenida, tcomou a estrada e em seguida o desvio, atravessou o portão, e encostou na porta dos fundos do Prédio Sul (Alas B e D). Déborah saltou, subiu no ”vagão de carne” para a D, Uf! Lar doce lar!

À noite, na hora de se lavar para dormir, foi mancando até o banheiro grande onde havia uma chapa de aço que servia de espelho. Um mosaico de arranhões e entalhes, cunhados raivosamente sobre o aço temperado, atestavam os impulsos autodestrutivos de centenas e centenas de pacientes. Mesmo despojadas dos instrumentos necessários, não pouparam um centp metro de espelho. - E nagua - disse Déborah ao espelho, palavras que em Yri significavam: ”Eu te amo”.

- Fui despachada para um hospital. .. - contou a Furii - .. .Sempre achei bom vocês não usarem camisa-de-força aqui, mas ontem, juro que queria uma! Assim o quadro ficaria completo. Mas eu fui boba: só me ocorreu a idéia de espumar pela boca quando estávamos longe.

- Você está tentando magoar a si mesma agora. O que aconteceu?

Depois de ouvir a história toda, Furii suspirou.

- Esse preconceito custa um bocado a desaparecer - disse ela. Ainda assim, está melhorando. Antes da Segunda Guerra era muito pior, e pior ainda antes da Primeira. Procure ser paciente. Você, inclusive, reúne as melhores condições para ser compreensiva e indulgente, justamente por conhecer a doença mental muito melhor do que eles.

Déborah fez um gesto de impaciência. Lá vinha Furii com suas mensagens ardilosas, suas proposições de reformar o mundo, ajudá-lo... ”Bolas!” Estava doente. Não tinha nada a ver com o mundo.

- Não posso ajudar ninguém, meta isso na sua cabeça! Será que você não entendeu nada do que eu disse até agora? O nganon age por si mesmo, independentemente da minha vontade, compreendeu!

-- Como? Explique isso melhor para mim... talvez eu não esteja entendendo mesmo.

- Eu carrego comigo o estigma do mal. Há um ditado em Yr, com o qual o Censor vivia me atormentando. Diz mais ou menos o seguinte: ”Em silêncio e em sono, anterior ao agir e ao respirar, absoluto e imutável, nganon clama por si mesmo.” Isso significa que a substância venenosa, o ”eu” inimigo, clama, ou seja, atrai para si outras pessoas igualmente envenenadas, e que são uma minoria no mundo. Atrai sem que eu o saiba, por alguma força mágica, independentemente do que eu pense ou faça!

- bom, isso quer dizer também, que você atraiu uma, duas ou três pessoas. Fale-me delas.

Afora todo o universo mágico, as divindades e reinos de Yr, Déborah estava convencida de que existia uma outra prova de sua indignidade intrínseca. Esta prova, veio a encontrá-la justamente no mundo, em meio às atribulações cotidianas de sua juventude. Tudo levava a crer que uma força mágica a atraia para os outros. Segundo Déborah, as pessoas normalmente ou escolhiam ou eram escolhidas como companheiras tanto na colônia de férias, nos bancos de escola, quanto em qualquer outro grupo, liga ou classe. No mundo, as pessoas têm que preservar a aparência de participação -, .. .seja no que for. Pois bem, seguindo essa linha de raciocínio, Déborah descobriu que só era capaz de corresponder a essa exigência de participação e de convivência, com os corrompidos, os medíocres, os aleijados, os desfigurados, os esquisitos, os dementes.

Essas afinidades não eram intencionais ou premeditadas. Ocorriam tão naturalmente quanto a atração do imã sobre o ferro. Acontece que, na maioria das vezes, as pessoas atraídas desse modo sabiam no íntimo o porque, e por isso odiavam a si e ao companheiro.

Num dos verões que passou na colônia, Déborah conheceu uma menina inteligentíssima chamada Eugênia. Isso foi um pouco antes de se consumar a última grande mudança. Yr vinha lhe exigindo uma dedicação cada vez maior, oferecendo em troca um alívio cada vez menor. Eugênia e Déborah logo começaram a andar juntas. Sabiam, no íntimo, a razão dessa afinidade, e freqüentemente se atormentavam uma à outra por causa disso. Existia, entre elas, uma certa dose de simpatia, uma cumplicidade silenciosa, uma compreensão mútua do quanto havia de sofrimento por trás dos atos mais triviais, de como era penoso sustentar as Aparências perante o mundo. Mas o que necessitavam era, acima de tudo, a solidariedade exterior: freqüentarem juntas o refeitório, o campo de futebol, o lago, reconfortarem-se mutuamente com palavras que não soassem de todo falsas, nem consistissem num mero ritual em benefício das Aparências. Uniam, desse modo, as forças para sustentarem os muros que as separavam dos outros. Por outro lado, o convívio satisfazia à profunda carência de transpor esses muros, os espelhos das Aparências e, por um minuto que fosse, com quem quer que fosse, conversar de coração aberto, baixar as defesas e esquecer que o mundo era aquele caos traiçoeiro e decepcionante.

Depois de algum tempo, a colônia acabou aceitando-a amizade das duas e deixou de julgá-las e hostilizá-las. Débora percebia, é claro, que Eugênia tinha as suas esquisitices - era uma pessoa solitária, amarga e inquieta - mas procurou fugir à suspeita de que também fosse uma portadora do nganon venenoso. Um dia, sentindo vontade de ficar à sós, arranjou um jeito de se esgueirar para longe das pessoas. Queria tranqüilidade, queria correr pelas Planícies de ir, e talvez até voar se Yr lhe permitisse. Conhecia vários refúgios na colônia onde dispunha de uma hora ou duas de paz e solidão, antes que começassem a chamá-la e a procurá-la. Um dos melhores, era a casa de banho que geralmente permanecia deserta. Chegando lá, pressentiu que havia alguém mais. Pôs-se a cantar de modo a anunciar a sua presença. Já fora surpreendida, muitas vezes, rindo e falando Yri em voz alta, e por causa disso sofrerá punições terríveis do Censor. Ao se aproximar mais, ouviu ruídos furiosos de luta num dos boxes e, em seguida, a voz de Eugênia.

- Quem é? - gritaram de lá.

- Déborah.

- Venha cá.

Déborah foi. Deparou com Eugênia, nua em pelo, no boxe com o chuveiro fechado. Suava em bicas. Estendeu para Déborah um cinturão de couro. - Tome! - comandou ela. - Bata em mim!

- O quê?

- Ora, não se faça de desentendida. Sabe muito bem o que sou. Não preciso mentir para você. Pegue. Vamos!

- Para quê? - Sentiu que algo terrível estava por vir.

- Você está fugindo. Finge que não entende, mas sabe muito bem para quê: É para mim, e você tem. ..

- Não. .. - Déborah começou a recuar - Não... Não posso! Não quero!

O desejo e a ânsia de Eugênia saturavam o ambiente. O suor escorria de seu rosto em grossos filetes pelos ombros e braços - Não esqueça do que eu sei a seu respeito! vou obrigá-la a me bater com esse cinto, queira ou não! Você vai querer. . . porque. . . você. . . compreende.

- Não. . . - Déborah recuou mais um passo. Ocorreulhe subitamente uma suspeita terrível: talvez o seu nganon tivesse contagiado Eugênia e, ao se combinar à virulência que existia potencialmente nela, dera origem a isso. Julgara-se até a própria encarnação da Ruína - Pemai, agrilhoada e condenada à destruição - mas uma ruína que só dizia respeito a si mesma. Jamais pedira a alguém que a compartilhasse. Talvez o nganon de Eugênia fosse ainda mais virulento do que o seu. Ainda assim, testemunhar era ser conivente, e ser conivente, era ser responsável. O seu nganon despertara o de Eugênia, logo incitara, logo causara. .. Déborah avançou para ela, arrancoulhe das mãos o cinto, jogou-o no chão e saiu correndo. Jamais voltaram a se falar.

- Conseqüentemente, quando a pessoa se toma sua amiga - quer por afeição, quer por atração - acaba inevitavelmente arruinada, e tanto pode ser por contato direto como por proximidade, não é assim?

- Yr encara isso como uma pilhéria, mas você explicou bem a questão. Sim, é verdade.

- E continua sendo verdade em relação à sua mãe, seu pai e sua irmã?

- Os homens não são vulneráveis ao veneno feminino. Acho que eles se arruinam de um jeito diferente. Nunca pensei nisso antes, mas sei que também há homens intemados aqui. Existem alas cheinhas deles, exatamente como as nossas.

- Sim, existe - concordou Furii - Agora, com relação às mulheres da família, é verdade? Você ainda tem esse medo de contaminá-las?

- Há muitos anos que eu as venho contaminando lentamente!

- E quais foram os resultados?

- Tenho certeza de que minha irmã acabará louca.

- Você ainda acha isso?

- Acho!

O telefone tocou sobre a escrivaninha e a doutôra levantou-se para atendê-lo. Era um milagre quando não tocava pelo menos uma vez durante as sessões. Furii encolheu os ombros num gesto desamparado de desculpas. - Bem... - perguntou ao voltar a se sentar - onde estávamos?

- No mundo das campainhas - retrucou Déborah acidamente.

- Algumas dessas chamadas não posso deixar de atender. As interurbanas ou casos especiais de médicos que não poderiam ligar outra hora. Procuro evitar o maior número possível delas. - Encarou Déborah com um sorriso meio malicioso.

- Sei como é difícil progredir com uma ”médica famosa e importante”. Sentimos a tentação de nos desforrarmos um pouco no placar, mesmo que jogando com a nossa própria vida, para impedi-la de ter a imaginária ”folha de serviços perfeita”. Devo lhe avisar que fracassei muitas vezes, apesar de ser tão requisitada. Continuamos a trabalhar juntas?

- Falávamos sobre contaminação.

- Ah, sim. Estou curiosa. Se esse incidente dos chuveiros ocorresse hoje, você ficaria tão assustada quanto ficou naquele dia?

- Não. - Sorriu, achando agora ridículo o susto que tinha levado.

- Ora, por que não?

- Bem. . . - suas idéias como que saíram à luz do sol.

- Porque sou louca! No momento em que você admitiu que eu estava doente, ou seja, admitiu que eu estava tão doente que merecia ficar intemada num hospital, provou-me que eu era mais ”sã” do que imaginava. Sabe, mais sã quer dizer mais forte.

- Não entendi muito bem.

- Olhe, esses anos todos eu soube que estava doente, mas ninguém admitia isso.

- Exigiram de você que desconfiasse até mesmo da realidade que lhe era mais próxima, e que você discemia de uma forma claríssima. Não é para menos que o doente mental tolera tão pouco as mentiras. ..

- Você parece estar vendo isso pela primeira vez -, comentou Déborah, sentindo-se estranhamente gratificada. - Será verdade? Será que contribuí com alguma coisa de novo para você?

Furii ficou um instante em silêncio, pensativa. - Sim, num certo sentido contribuiu, pois embora eu conheça outras razões que explicam essa intolerância, nunca encarei a questão sob esse prisma.

Déborah bateu palmas, toda satisfeita e sorridente.

- O que foi? - perguntou Furii, reparando naquele sorriso que nada tinha da amargura habitual.

- Puxa!

- Está vendo? Você fica tão feliz ao dar, quanto ao receber, não é?

- Se eu posso ensinar-lhe algo, isso significa que, aqui pelo menos, valho alguma coisa.

- Eu choro - disse Furii - choro grandes lágrimas de crocodilo por esses seus deuses de Yr. - E, de brincadeira, fez uma cara de choro, a boca descaída, os olhos pesarosos: - Eles estão desperdiçando o tempo de um ser humano que, no dia em que se der conta disso, porá abaixo as suas casas e os expulsará de vez.

- Você me faz ver uma nuvem branca envolvendo o cume de uma montanha. . . - disse Déborah - mas por detrás dela acha-se a mesma Furii, com o seu toque de fogo, desferindo raios! - Tremeu só de pensar de viver sem Yr.

Nas sessões seguintes, começaram a explorar uma convicção que Déborah compartilhava em segredo com todos os doentes: a de que ela possuía um poder infinitamente maior do que o indivíduo comum e, no entanto, era ao mesmo tempo inferior a ele. A noção do nganon venenoso representara uma descoberta fundamental para Déborah, mas ao invés de encarar essa noção como uma fantasia sintomática, uma revelação meramente espiritual, procurava encontrar nela a lógica, a racionalidade de um fenômeno complexo e natural. Uma noite, enquanto aguardava no saguão a distribuição de sedativos, pôs-se a observar a Srta. Coral, refastelada como uma coruja velha na poltrona, assim como Lee e Helene que acabavam de chegar.

- Vocês conseguem ler os meus pensamentos?

- Está falando comigo? - perguntou Lee.

- com as três. Vocês conseguem ler meus pensamentos?

- Quais são as suas intenções, hein? Mandar-me para a reclusão, é?

- Vá para o diabo! - disse Helene, num tom divertido.

- Tire os olhos de cima de mim! -- esquivou-se a Srta. Coral, tomando ares de condessa elegantemente horrorizada com algum espetáculo repugnante. - Não consigo ler nem os meus, quanto mais os seus!

Déborah passeou os olhos pelos personagens que decoravam as paredes do saguão. Postados aqui e ali como estatuetas imutáveis, pareciam esperar, esperar. ..

- Minha cara, se andas à procura da realidade objetiva - murmurou para si mesma - escolheste o pior lugar para começar!

Primavera, estação das paixões e da impaciência. Como passara rápido o tempo! Suzy, a filha caçula, terminava a escola secundária. No dia da cerimônia de colação de grau, ouvindo os coros e os discursos, as orações e os juramentos, Jacob sentia um profundo vazio interior. Jurara a si mesmo dedicar este dia exclusivamente a Suzy, mas, a despeito de seus esforços, de seus desejos, do que prometera a si mesmo e a Esther, não conseguiu tirar Déborah da cabeça. Por que não estava ali com eles?

Era a segunda primavera que ela passava longe de casa. Que progressos fizera no sentido de vir a ser a menina recatada, obediente, feminina, enfim, a filha de seus sonhos? Nenhum. Absolutamente nenhum. As meninas começaram a se retirar em fila do auditório, graciosas e inocentes em seus vestidos brancos. Jacob virou-se para Esther que, em homenagem a Suzy, vestira-se em trajes de gala ou, segundo a família, seus ”trajes de coroação”.

- Será que não daria para ela vir passar um tempinho conosco? Podíamos ir aos lagos. - sussurrou ele.

- Shh! Agora não! - sibilou Esther.

- Bolas! Ela não é uma delinqüente condenada! - insistiu ele.

- Pode não ser bom para ela.

- Pode ser bom para mim, para mim, uma vez ou outra! Decidiram levar Suzy para jantar num restaurante chique.

Ela preferia ir à festa da turma, mas Jacob, deprimido e nostálgico, ansiando pela volta dos bons tempos, das horas felizes com a família reunida, implorou que ficassem juntos aquela noite. Justamente por ele querer tanto, a noite foi desde o início um fracasso. Suzy acompanhava-os contra a vontade. Esther estava deprimida porque a filha presente voltara a ser relegada a um segundo plano pela filha ausente. Jacob sabia que acabaria pondo tudo a perder se persistisse naquela ansiedade, mas não pôde se conter. A noite transcorreu num clima de desolação constrangedor.

Num dado momento, Esther comentou com naturalidade forçada: - Debby queria vir à sua colação de grau, e se ela pudesse teria mandado um presentinho.

Suzy encarou-a com um olhar tranqüilo e disse: - Ela estava aqui. Eu vi vocês dois conversando sobre ela quando recebíamos os diplomas, e ao nos prepararmos para a saída.

- Que besteira! - protestou Jacob. - Juro que não conversamos sobre ninguém.

- Não faz mal. . . sério! Mesmo que realmente não te«nham falado alto, foi a expressão, o olhar que vi em vocês. . .

- Cogitou em descrevê-lo, caso não soubessem como os seus rostos denunciavam as preocupações, mas as palavras eram tão complicadas e dolorosas que não conseguiu articulá-las.

- Bobagem, Suzy - protestou novamente Jacob, abanando a cabeça. - Expressão, olhar. . . vejam só, que besteira!

Suzy e Esther entreolharam-se rapidamente. Era claro que ele estava escondendo o jogo. ”Seja indulgente”, implorou Esther com os olhos. Suzy abaixou os seus e ficou algum tempo remexendo num botão do vestido. - Sabe aquela menina que estava na minha frente na hora de receber os diplomas? Pois é, o irmão dela é um pão. . .

No hospital, as pacientes recusavam-se a admitir que a primavera pudesse chegar passando por cima de todos os seus sofrimentos, mas ela veio, triunfal e radiante. As mulheres na Ala D estavam furiosas: o mundo que as destruíra, ao invés de sofrer pelos seus pecados, parecia mais vicejante do que nunca. E quando Doris Rivera prendeu os cabelos, vestiu uma roupa bonita e, com um sorriso tímido, partiu de volta para o mundo, sentiram-se mortalmente traídas: Doris aliara-se à primavera contra elas! A Esposa do Abdicado tinha a sua teoria:

- Ela é uma espiã! Eu a conheci há muitos anos. A oposição paga para ela semear o caos e depois a imprensa transforma a coisa num escândalo.

- Devemos ser caridosos - apregoava MaryDowben, com ares de santa. - Devemos ser caridosos, ainda que ela seja portadora de todas as moléstias sociais que se possa imaginar, para não falar das infecções nas partes pudicas, transmitidas por homens de reputação desprezível. Sem mencionar esquizofrenia da natureza mais sórdida e imunda. - À medida que ia elevando o tom de voz, transpareciam as arestas desarmônicas do pânico.

-Vocês doentes mentais são tão engraçados! - exclamou Mary Fiorentini.

Foi o bastante para desencadear a briga.

A ala toda transformou-se bruscamente num remoinho de fúria e medo, onde as brigas irrompiam com uma espontaneidade selvagem e absurda.

- Como tem paciente em reclusão hoje, hein? - comentou uma estagiária recém-chegada.

- Quando pegarem mais alguns, vão começar a enclausurar de dois em dois - retrucou Déborah.

- É.. . é. . . - assentiu a estagiária (tratamento Número Três, sorriso amarelo, saindo pela tangente). Déborah afastou-se e tentou acertar mais uma vez o sapato no relógio da parede da enfermaria.

- Daria tudo para acabar com aquele sorriso.

- A tua cara já é mais do que suficiente - disse Helene.

- Pelo menos a mim você consegue ser superior, não é? Mais uma briga.

- Há épocas assim na ala - asseguravam os auxiliares antigos aos mais novos. - Não costuma ser tão violenta. - Os mais novos, contudo, não acreditavam. As estagiárias de enfermaria recém-ingressas andavam assustadíssimas. Duas enfermeiras da turma precedente tinham ”fundido a cuca” pouco depois de receberem suas filiações psiquiátricas, e estavam agora intemadas num hospital. - Cuidado, porque as coisas que se vê aqui - comentava-se à boca pequena - acabam deixando a gente maluco.

As quatro novas estagiárias recém-chegadas, designadas para a Ala D, estavam tão apavoradas que não se desgarraram umas das outras, formando um grupinho coeso e discriminatório. Criou-se, naturalmente, um contraste entre essas jovens, belas e saudáveis portadoras da primavera, e as pacientes, sombrias portadoras dos nganons venenosos. Helene e Constantia desbastariam aos tapas e pontapés a singularidade das novas inimigas. Déborah simplesmente baniria as recém-chegadas da cabeça até que se dissolvessem na rotina anônima da ala. Só as enxergaria como vultos brancos e indistintos, e só as escutaria quando se referissem a ela ou lhe dessem ordens específicas. Estas defesas, que eram inconscientes, impediam-na de assumir a presença das estagiárias, cujas virtudes (atribuídas exclusivamente por Déborah) fariam com que ela se sentisse consciente de sua ”loucura” e, portanto, de que era diferente.

Uma tarde, Déborah estava sentada no chão perto da enfermaria, olhando fixamente o famigerado mostrador do relógio, quando surpreendeu a conversa de duas das estagiárias.

- É verdade que uma paciente da B vem para cá? Onde é que ela vai ficar?

- Não sei, mas se vem é porque deve ter ”fundido a cuca” mesmo!

- Lembra o que Márcia disse? Elas melhoram e tornam a piorar de novo. Espero que esta pelo menos saiba como usar a privada, e por onde engolir a comida! - Ambas abafaram o riso.

Na hora não ligou: sabia perfeitamente que o riso denotava apenas ansiedade. No entanto, quando trouxeram mais tarde Carla, dilacerada interiormente, com a mesma expressão terrível de derrota com que Doris Rivera chegara, Déborah ficou furiosa. Aqueles dois vultos brancos não tinham zombado de uma maluca qualquer, mas de Carla, uma pessoa boa até a medula dos ossos; boa a ponto de ter sido gentil quando Déborah a ferira na sua região dolorosa.

Ninguém diria, vendo as duas, que eram tão amigas. Seria, contudo, um gesto extremamente penoso e, acima de tudo, uma interferência - isto era incompreensível para os ”sãos” - Déborah cumprimentar Carla, sabendo que ela estava arrasada e que poderia se arrepender mais tarde caso este cumprimento suscitasse uma reação violenta ou mesmo rude. Por isso, nem sequer olhou para Carla. Limitou-se a esperar, por detrás de sua máscara de pedra, até que a companheira fizesse algum sinal discreto mostrando reconhecê-la.

Só então se aproximaram uma da outra e, ainda assim, afetando o maior desinteresse possível. Déborah sorriu acanhada, e foi aí que ocorreu um fenômeno surpreendente. Acostumara-se a ver tudo desprovido de relevo, cinzento, anuviado e apenas em duas dimensões. E eis que do borrão, surge Carla nas suas três dimensões, todas as suas cores, incrivelmente nítida e clara.

- Oi! - cumprimentou Déborah, mal erguendo a voz

- Oi!

- Você pode fumar?

- Nenhum privilégio.

- Hum.

Voltaram a se cruzar mais tarde diante do banheiro, onde Carla aguardava que uma auxiliar destrancasse a porta.

- Vamos jantar na minha cama hoje?

Carla não respondeu. Quando serviram o jantar, apareceu com a bandeja no dormitório dos fundos.

- Posso ficar?

Déborah arredou para o lado, deixando-lhe o melhor lugar, ao pé da cama (Alô, alô minha amiga multidimensional e colorida! Estou tão contente de vê-la!”). - Doris voltou e já saiu de novo, sabia?

- Contaram-me. - Carla ergueu os olhos para ela e, por um milagre, pareceu enxergar através da máscara. - Ora Déb. . . não é tão ruim assim. Tive que voltar porque comecei me esforçando demais, porque parte do que fiz foi contra meu pai... e por uma série de outras razões. Não estou entregando os pontos. Só estou cansada. - Seus olhos se encheram de lágrimas. Déborah ficou paralisada pela confusão e o terror que lhe inspirava a tristeza da amiga. Estranho mistério, este das pessoas que se afogam no oceano caótico e terrível que era o mundo, e depois, pálidas e trêmulas ainda, se arrojam de novo sobre ele.

O que os leva a pensar que podem flutuar com os outros, quando a tensão superficial de seus nganons foi rompida no primeiro afogamento? - perguntou Déborah a Lactamaeon.

Só Idat sabe - respondeu ele. - Para alguns, nada é impossível!

Déborah sentiu todos os músculos retesarem-se de medo. Achas então que o nganon dela não é intrinsicamente mau, e sim. . . e sim. .. circunstancialmente mau?

- Acho!

- Mas nós scomos amigas! Se a substância dela não é igual à minha, isto significa que vou envenená-la!

- Exatamente.

Pode uma coisa contrariar tanto as leis? Pois se as próprias Leis afirtnam: ”nganon clama por si mesmo”. Como é possível que eu tenha atraído uma essência diferente da minha?

- Talvez isto seja uma punição - ponderou Lactamaeon - Ocasionalmente, tu destróis para te punir.

Olhou para Carla e encontrou-a chorando ainda. Decepção! Acreditava conhecer o código, depois de anos e anos de sofrimento procurando uma pista para decifrá-lo e, ao chegar ao último degrau, via-o desfazer-se e ressurgir o velho caos, a anarquia, as zombarias. -

Ela era minha amiga! gritou para os deuses que partiam. Não parecia estar magoada. ...

Tu e ela não são da mesma substância; os nganos são diferentes. Serás a assassina de tua amiga!

Quando Carla parou de chorar, Déborah continuava sentada do outro lado da cama, mas estava longe... muito, muito longe.

Para grande surpresa e desagrado de Déborah, uma estagiária deu para se afeiçoar por ela. Bastava que botasse a cara nos ”locais públicos” da ala, para que a moça (ou melhor o vulto branco e a voz indistinta, destacando-se no pano de fundo cinza) se pusesse a segui-la diligentemente, com uma jovialidade gratuita e importuna.

Deves estar mais doente do que pensas, disse Déborah para si mesma em Yri. Estas pessoas escolhem, em geral, os piores para lançar a Deus. Deus é como o cachorro e Déborah como os ossos. Conseqüentemente, Osso será meu nome!

Estas palavras soara-Lhe tão engraçadas, que não se conteve e riu às gargalhadas. Em seguida, fez com as mãos o gesto simbólico em Yri e a mímica correspondente ao riso, em silêncio, como convinha a Yr.

- Quem está rindo aí? - perguntou Anterrabae num tom brincalhão.

- Sou eu, a Coisa-Osso-de-Deus!

Desataram a rir até expurgar de dentro de si o tormento da terra. Como ficará o êxtase glorioso daquela sacerdotiza quando Deus Sentir o cheiro da oferenda que lhe fizeram! - e os dois caíram na gargalhada novamente.

E a surpresa no rosto da meiga e piedosa estagiária com o furor dos Poderes Celestiais? Dessa vez as risadas terminariam em amargor, pois Déborah sabia que não teria coragem para pedir à menina que parasse de segui-la e perturbá-la com as suas intervenções solícitas.

A primavera seguiu o seu curso. No decorrer das sessões com Furii, Déborah foi descerrando um a um seus segredos, seus temores, e as senhas que davam passagem a seus mundos. Entregava-os, porém, apenas para apressar o momento em que, finalmente, ela própria capitularia à grande e última decepção, tão inevitável quanto Jaganata ou a queda perene de Anterrabae. A iminência da destruição dava-lhe calafrios. Ficava, às vezes horas, dramatizando a sua destruição, fantasiando as mais diversas mortes, todas elas sublimes.

Furii botou as mãos na cabeça: - Deus nos acuda! Adolescência também!

- E daí?

- E daí que isso não tem cura. Faça o que lhe der na veneta: fantasias, sonhos, o diabo! Agora, por favor, ajude-me a distinguir qual a doença e qual a adolescência. A primeira combateremos com todas as nossas forças. A segunda não é senão outra evidência indiscutível de que você é cem por cento uma integrante do mundo, uma verdadeira mulher em potencial. - Lançou sobre Déborah um olhar penetrante e sorriu. - O trabalho toma-se às vezes tão intenso - quando os segredos, os sintomas e os fantasmas do passado começam a aflorar - que a gente se esquece como pode parecer estéril e sem sentido esta terapia antes do mundo adquirir uma dimensão real para o paciente.

Déborah olhou para a escrivaninha da doutôra. Sempre em desordem. Freqüentemente durante as sessões, nos momentos de maior tensão, pousava ali os olhos para descansar a cabeça. Havia um peso de papéis de forma indefinida. Furii, acompanhando o seu olhar, perguntou:

- Sabe o que é aquilo?

- Ágata?

- Não, não é ágata. É um tipo raro de madeira petrificada. Quando me formei no que vocês chamam de curso secundário, meu pai me levou numa viagem a Carlsbad, onde existem os tipos mais estranhos de rochas e formações rochosas, ele comprou isso para mim como lembrança da viagem.

Era a primeira vez que Furii falava a respeito de si mesma. Lembrava-se de uma das primeiras sessões, quando fizera a primeira confidencia importante. Déborah havia empenhado todo o seu esforço de análise, forçando-se a se expor (tankutu), enquanto Furii a solicitava com perguntas. Ao terminar a sessão, a médica erguera-se, fora até o vaso e partira uma flor de um lindo ramalhete de ciclamens, e a ofereceu a Déborah ao mesmo tempo em que dizia: - Não costumo partir flores, nem costumo dar presentes, mas dessa vez você mereceu. Aceite.

Este gesto compensara as duas punições terríveis que recebeu de Yr por ter aceitado flores da terra. Ao se recuperar da segunda punição, dias depois, a flor já estava murcha e seca. Furii lhe oferecia agora ura pedacinho de si mesma. Esta delicadeza significava mais do que uma pequena pausa para descontrair, ou uma mensagem indireta a incentivando a ”tomar coragem”. Era como se dissesse: ”vou confiar a você uma das minhas recordações, assim como você me tem confiado as suas”. Adolescente ou não, Déborah se sentiu mais uma vez ”igual”.

- Você gostou da viagem? - perguntou.

- Hum... não foi emocionante ou, como se diz hoje, umâ ’curtição”, mas eu me senti tão gente-grande, tão honrada de estar com meu pai, só nós dois, no mundo dos adultos. - Em seus olhos reluzia a lembrança daqueles momentos felizes. Interrompeu as divagações com uma palmada nos joelhos. - De volta às minas de sal. Certo?

- Certo! - concordou Déborah, se preparando para voltar à ala. i

- Ah, não, espere. Há mais uma coisa. Quero preveni-la desde já para que vá se acostumando à idéia. Pretendo tirar férias mais cedo esse verão, por causa de uma conferência em Zurique. Depois vêm as minhas férias e, em seguida, vou participar de um simpósio que já foi adiado várias vezes.

- Quanto tempo, afinal?

- Estou planejando partir dia vinte e seis de junho e voltar dia dezoito de setembro. Providenciarei alguém para me substituir enquanto estiver fora.

Nas sessões seguintes, Furii falou sobre as qualificações do substituto, sobre a possibilidade dela se sentir rejeitada, e a alertou para o fato de que o novo médico não se aprofundaria na análise, apenas representaria o mundo nas batalhas de Déborah com seus censores, coletores e todas as forças de Yr. Tudo arranjadinho, portanto; não havia com o que se preocupar. Déborah contudo, tinha a sensação de fato consumado; era como se estivessem preparando a antiga roda de suplício, onde, tal como na Idade Média, iriam quebrá-la em pedaços.

- Conheço vários aqui - propôs avidamente - Craig, Adams, a médica de Sylvia; inclusive já assisti ela trabalhando e gostei muito. Conversei uma noite com Fiorentini quando estava de serviço na ala. Tem também Halle, o melhor; ele disse que recebeu meus pais quando fui intemada. Conversamos bastante e eu confio nele.

- Estão todos com as horas tomadas - disse Furii. - O Dr. Royson ficará com você. - Lubrificavam as engrenagens, aprontavam a roda. Sua aceitação seria um ato meramente formal.

- Meu terceiro trilho - disse Déborah.

- O que quer dizer isso?

- A tradução literal de uma palavra Yri. Significa: Eu consentirei!

SN HAÍM»)

Lutando contra o tempo, Déborah procurou resolver todos os problemas antes da partida de Furii. Requereu e obteve a transferência para a Ala B; comparada à loucura desvairada da D, mais parecia um túmulo: trancafiada ainda, mas não ”perturbada”. Lá poderia dispor de papel, lápis, livros e privacidade. Em compensação, suas novas companheiras morriam de medo dela por ter sido uma paciente da D, mas felizmente conhecia algumas meninas, e havia enfermeiras maravilhosas que iembravam muito McPherson.

As sessões de terapia adquiriram um clima de urgência devido à partida iminente de Furii, é, embora as incursões introspectivas não fossem nem muito esclarecedoras nem muito profundas, eram trabalhadas intensa e honestamente.

- Deixo-a em boas mãos - assegurou Furii no último dia. - Você conhece bem o administrador da Ala B, e tem o Dr. Royson para conversar. Espero que passe um ótimo e proveitoso verão.

Como as leis de Yr se entrelaçavam às do mundo, Déborah estava convencida de que Furii partia para sempre. Do mesmo modo que expurgara o amor e a memória de Carla, quando a amiga deixara pela primeira vez a Ala D, Déborah esqueceu Furii como se ela jamais tivesse existido ou viesse a existir.

Seus passos repercutiam no silêncio do corredor, produzindo um eco lúgubre e oco. Dirigia-se à primeira entrevista com Royson, seu novo médico. Encontrou-o empertigado na poltrona, num dos consultórios do andar térreo. - Entre - convidou ele - sente-se.

Déborah se sentou.

- Sua médica me falou muito a seu respeito. - Déborah revirou a cabeça em busca de alguma resposta, mas a única coisa que lhe ocorria dizer era: ”Que maneira empertigada de se sentar!”. ”Prometi a ela que seria complacente... prometi que me esforçaria o máximo possível com este...”

- É - silêncio. O homem, pelo visto, não era nada amistoso. Decidiu tomar a iniciativa. - O senhor é inglês, não?

- Sou.

- Gosto da pronúncia.

- É mesmo?

Esses maxilares, pelo visto, só mastigam monossílabosf - resmungou Anterrabae desdenhosamente.

Após um novo silêncio, ele se manifestou: - No que é que você está pensando? - O pedido soou como uma exigência.

- Em odontologia - respondeu Déborah.

- E que pensamentos lhe ocorrem a respeito de odontologia? - perguntou ele num tom inexpressivo.

- Que pode ser mais dispendiosa do que a gente pensa.. . - Conteve-se outra vez. - Estou sem Novocaína. Furii não deixou nada comigo.

- Quem? Quem levou? - Deu um pulo na poltrona, como se tivesse sido picado por cobra.

- A doutôra. .. doutôra Fried...

- Você a chamou por um outro nome... Qual foi? - O mesmo tom, contundente.

- Sei lá, um nome qualquer. ..

- Ah, a linguagem secreta. - Recostou-’se satifeito. Confortavelmente instalado, em terreno seguro, quedou-se a observá-la. Estava no livro, página 97. Esfregou as mãos de contentamento. - A Dra. Fried contou-me que você tem uma linguagem secreta.

Retirar! - exclamou Anterrabae, utilizando a forma poética em Yri que, desalentada como estava, soou-lhe de uma forma inteiramente nova: Te quaru - sê como o mar que, quando reflui, espraia sobre a areia o seu fugaz esplendor.

Mas prometi a ela, insistiu Déborah com o flamejante deus que despencava no espaço negro.

Ela está morta, cochichou Lactamaeon no seu ouvido.

- Diga uma palavra dessa linguagem secreta - insistiu a voz que vinha de fora.

- Quaru. .. - falou distraidamente.

- O que significa?

- O quê? - Trazida bruscamente à realidade, defrontouse com um rosto severo e desaprovador encarando-a fixamente. Até no modo austero de se sentar, ele parecia desaprová-la.

- Quaru. .. - repetiu aturdida com a pergunta, e com o eco de sua voz dizendo aos deuses: ’”Mas eu prometi. ”Significa.. . bem, significa o movimento das ondas, e envolve uma série de outras propriedades do mar como, por exemplo, o frescor da água ou aquele marulhar suave e açoitante. Significa agir como agem as ondas.

- Por que então você não diz logo movimento das ondas?

- Ora. . . - Déborah transpirava um suor gélido, o prelúdio da Punição. - A palavra é empregada sempre que houver uma relação com o movimento das ondas, mas ela também encerra essa conotação de mar que, às vezes, pode ser muito bonita.

- Entendo.. . - e, no entanto, ela sabia que ele não tinha entendido nada.

- Pode-se usá-la para descrever o modo como o vento sopra, ou como tremulam os vestidos longos, a ondulação dos cabelos, ou. .. ou quando alguém parte.

- Significa também partir?

- Não. .. há uma outra palavra para isso.

- Que palavra?

- Isso depende da pessoa ter ou não a intenção de voltar... - Déborah se sentiu um trapo.

- Muito interessante!

- Há inclusive um ditado (Decidira naquele instante fazer um último esforço para salvar a situação). Diz assim: com um machado não se rapa o cabelo.

- Rapa cabelo?

Tentou de novo: - Não se faz cirurgia com uma picareta.

- E o que quer dizer isso? - perguntou ele, esquecendo-se, talvez, de que se ela pudesse formular claramente as coisas diante do mundo não seria doente mental, nem estaria ali.

- O significado se atrofiou e morreu na tradução! Seguiu-se um longo silêncio entre os dois.

Déborah persistiu na sessão seguinte e na seguinte e na seguinte, mas as reações automáticas e inexpressivas do médico acabaram fazendo com que ela se fechasse num mutismo denso como a noite. Ele procurava de todos os modos convencê-la de que o Yri era uma linguagem elaborada por ela mesma, e não uma dádiva enviada pelos deuses Esmiuçou as primeiras palavras citadas por Déborah para demonstrar que se compunham lfVrfraementos de latim, francês e alemão, e que qualquer a de nove ou dez anos de idade poderia formulá-las se Crljsesse Analisou a estrutura das sentenças, procurando levá-la a admitir que, com raríssimas excessões, reproduziam a estrutura do inglês, o idioma no qual fora educada desde pequena. A tática era engenhosa, detalhada, brilhante por vezes, e Déborah teve freqüentemente que concordar com ele.

No entanto, quanto mais se aprofundava na questão, maior tornava-se o silêncio que a envolvia. Dsborah sentia ganas de dizer-lhe que todos aqueles argumentos representavam uma intrusão em sua mente, tão indesejável quanto fora a dos bisturis em seu corpo, há muitos anos atrás; e que, além do mais, este arrazoado de provas era absolutamente irrelevante. Contudo, a austeridade do homem e a frieza lógica do seu raciocínio intimidaram-na. Até que finalmente um dia, tcomou coragem, virou-se para ele e disse, em alto e bom tom: - Por favor, doutor, os meus sintomas não são a minha doença! - O seu último grito soou em vão...

Nada mais lhe restava. Furii estava morta. Tomara-se irredutível a defasagem entre o universo exterior, onde reluzia o sol quente de verão, e o seu universo interior, cujo sol era um ponto cinza equilibrando-se num imenso vazio. Déborah se fechou num mutismo impenetrável, e com o passar do tempo acabou renunciando também aos movimentos. Passava os dias prostrada e inerte sobre a cama. Acompanhava, por vezes, Anterrabae em sua queda etema, rasgando ventos ferventes, ou sobrevoava, com Lactamaeon, os Desfiladeiros do Pesar, mas essas ocasiões eram bastante raras e exigiam uma grande quantidade de tributos cerimoniais. Até Yr se tomara distante e inacessível. Apelidou o novo médico ”Dente-de-Cobra”, por causa das cascavéis-muito comuns naquela época seca e quente do ano, cujo chocalhar ameaçador não lhe saía da cabeça durante as sessões. Ficava sentada, rígida e muda diante dele; pouco a pouco, sob a máscara inexpressiva de seu rosto, começou a se formar um vulcão onde fervilhava um magma atordoante de sons e contravozes, ódios, desejos e longos calafrios de terror.

m dia, Idat, a Dissimuladora, apareceu a ela sob a forma de mulher. Sempre que assumia essa forma, Idat trazia um véu sobre o rosto. Era uma mulher belíssima, ao mesmo tempo rainha e vítima dessa beleza, e a sua presença infundia em Déborah a esperança de que pudesse algum dia vir a ser simplesmente feia. A deusa, toda de branco, ergueu ligeiramente o véu.

Sofra, Idat! Por que jlutuas de branco?

Branco de noiva e de mortalha - respondeu Idat - dois vestidos que são o mesmo vestido. Olha! A morte não é, por acaso, a consumação máxima da vida? E a vida nãoé por acaso, uma morte lenta e gradual? O que se rende não luta, e o que luta não se rende? Minha estrada contém todas as oposições ao mesmo tempo e, para fins opostos, os mesmos meios!

Conheço tuas aparências, teus véus, Idat - retrucou Déborah.

Quero te dizer que os homens respondem ao fogo com o fogo, um fogo que por si mesmo inflama enquanto debela o primeiro.

Isso se aplica também às rochas?

com a minha ajuda. . . - disse Idat.

Déborah compreendeu que a única forma de abrandar o vulcão que a queimava por dentro, e cujas aberturas estavam todas vedadas e embarricadas,’ seria lhe opor um aceiro, um fogo de encontro. Por meio desse mesmo recurso, provaria enfim, a si mesma, se era ou não de substância humana. Seus sentidos nada informavam: via unicamente manchas cinzentas e disformes, e ouvia apenas grunhidos e rosnares surdos, desprovidos, em geral, de qualquer significado; as percepções táteis não eram menos imprecisas. Estava claro o que Yr sugeria: nisso os seus sentidos não a enganavam. Havia fósforos em abundância na Ala B e, em pouco tempo, recolhera um suprimento razoável de fósforos e de guimbas.

com cinco dessas guimbas em brasa, começou a queimar meticulosamente a pele. O vulcão, porém, ardeu mais ainda sob o rosto e o corpo petrificados. Acendeu outros cigarros, e foi pressionando, um a um, vagarosa e deliberadamente, de encontro à parte mais sensível da articulação do braço e do antebraço. Sentiu uma leve tontura e um cheiro nauseante de queimado. O vulcão não cedeu. Seria preciso um incêndio para aplacá-lo?

Enquanto isso, uma enfermeira entrou no quarto e ia dizer-lhe algo quando estacou de súbito, percebendo o cheiro de carne queimada, deu meia-volta e retirou-se apressada. Nem bem ela saíra, apareceu o médico. Déborah conseguiu divisar através da máscara, com grande alívio, a fisionomia familiar do Dr. Halle. Objetos e pessoas haviam se transformado num todo indistinto e remoto. Se o dia estava lindo ou se aquela imagem que se movia pertencia realmente a um ser vivo, eram dados tão irrelevantes que não valia a pena questionar. Aceitava-os.

- O que é que você quer dizer com aceiro? - perguntava naquele instante o médico.

- Parece necessário...

- Onde?

- Na superfície. ..

- Mostre-me - falava com cuidado para não lhe parecer crítico.

A manga da blusa tinha grudado à pele queimada; Déborah a arrancou de um só puxão, antes que ele terminasse de gritar ”não!”, fazendo cara de repugnância e estendendo a mão num gesto instintivo (”parece até que a minha carne é de verdade”, pensou ela).

Depois de examinar as queimaduras, o médico virou-se para Déborah e declarou com ar penalizado: - Acho que vou ter que levar você de volta para a D.

- Seja lá para onde for.

- Não se preocupe - disse ele num tom amável - você será uma das minhas pacientes lá. Acabei de assumir a administração da ala.

Ela fez com as mãos o gesto Yri de aquiescência, inclinando-as ligeiramente para cima. Persistissem ou não as trevas, sentia-se muito mais segura com Halle, uma pessoa aberta, com quem se podia falar e que jamais recorreria a expedientes tais como o ”sorriso número três”. Ele a conduziu de volta à D, sem fazer estardalhaços ou recriminações, o que era outra de suas virtudes. Assim que transpuseram as portas duplas que davam acesso à ala, uma voz sussurou em Yr: Olha para ele. Está vendo? Sente-se mais seguro agora

- Pobre homem! - respondeu Déborah.

- Você fez uma sujeira dos diabos aqui - comentou o Dr. Halle, examinando as queimaduras. - Vamos ter que limpar e vai doer.

Um estagiário, satisfeito de voltar àquele trabalho mais ”médico”, permanecia a postos com uma bandeja cheia de instrumentos cirúrgicos. Quando o Dr. Halle começou a limpar e friccionar as queimaduras, Déborah sentiu tonteiras, mas nenhuma dor. Ficou tão comovida com a preocupação que ele demonstrava e com o tempo que estava perdendo, que decidiu lhe dar um presente. Lembrou-se de Furii e da flor que dela recebera.

Mas ela está morta, objetou Anterrabae.

Porque não ofereces uma jlor a ele, sussurrou Lactamacon.

Nada possuo de palpável.

Furii te deu uma recordação, lembra? - disse Lactamaeon.

Déborah lhe agradeceu a idéia com a saudação Yri: Que o calor e a clareza de espírito te acompanhem.

Procurou alguma verdade com que pudesse retribuir os desvelos do médico. E se falasse sobre a visão? Diria assim. mesmo quando a gente distingue cada linha, plano e cor de um objeto, se não houver algum significado, a visão se toma irrelevante; é como se fossemos cegos. Talvez até a famosa terceira dimensão seja apenas uma questão de significado, o toque de mágica que transforma um amontoado de planos numa caixa, numa madona, ou num Dr. Halle segurando um vidro de antisséptico.

- Estou procurando ser o mais delicado possível - disse ele.

Déborah sondou-o com um olhar de desconfiança enquanto pensava no íntimo: ”O que é que ele quer dizer com isso? Estaria exigindo a gratidão? Não, não.. . Curioso é que parece ser imune aos efeitos venenosos de meu nganon. . . Já sei! vou dizer a ele que pode me tocar quanto quiser que não vai morrer.”

- Não se preocupe - disse ela afável - o tempo de contato é tão curto que não há possibilidades de infecção.

- Por isso mesmo é que estou usando esse desinfetante - retrucou o médico, jogando fora o algodão e apanhando gaze para enfaixar as feridas. Déborah percebeu que ele não tinha compreendido. Decidiu, então, falar sobre o significado e a terceira dimensão. Deixou escapar um vago comentário.

- A visão não é tudo!

- Não, acho que não. - Concordou distraído, terminando o curativo. De repente ele parou e olhou para ela intrigado. - Você tem algum problema nos olhos?

- Bem. .. - Déborah não esperava por uma pergunta tão franca e incisiva. - . . .quando fico perturbada. . . geralmente não consigo ver as coisas direito.

Oh, não diga? Que interessante! - ironizou o Coletor.

- Cale a boca! Assim não consigo ouvir meus pensamentos! - gritou Déborah.

- O quê? - perguntou o Dr. Halle, voltando-se espantado. Déborah olhou para ele horrorizada. Suas palavras, dirigidas a Yr, haviam transposto as barreiras e caído nos ouvidos do mundo. As zombarias do Coletor foram-se avolumando até se transformarem numa zoeira infemal, e sua visão, habitualmente cinzenta, se tingiu de um rubro impenetrável. Sem nenhuma advertência prévia, a Punição, como a mão de um carrasco, abateu-se violentamente. As noções de luz, espaço, tempo, gravidade e o testemunho de seus cinco sentidos, embaralharam-se num grande caos. O calor congelava, os raios de luz feriam como dardos. Perdeu toda a noção de equilíbrio (não sabia se estava de cabeça para baixo ou para cima), de localização e de distância. As relações de causa e efeito se diluíram na tempestade.. .

Inteiramente à margem do tempo, suportou o castigo, até os limites da exaustão. Quando voltou a si, já era dia, estava dentro de um casulo e tinha ao seu lado um médico que não conhecia.

- Oi.

- Oi.

- Como está se sentindo?

- Não sei. Quando foi... - Lembrou-se, porém, de que ele não saberia exatamente quando eclodira a crise. - Há quanto tempo estou aqui?

- Ah, uns três ou quatro dias.

Ficou apavorada ao notar que as mãos, os braços e os ombros estavam doloridos. - Eu bati em alguém? Machuquei alguém?

- Não. .. - Sorriu complacente. - Mas que você deu umas boas cabeçadas nas portas e janelas, lá isso você deu.

Decepcionada e envergonhada consigo mesma, Déborah fez menção de virar o rosto para o outro lado, mas um súbito torcicolo e um acesso de tosse obrigaram-na a voltar-se de novo para ele. - Eu não o conheço. Como é que você está aqui?

- É que eu estou de serviço hoje. Dei uma chegadinha para ver se você estava bem.

- Chiii, meu Deus! - gemeu apavorada. - Devo ter demolido tudo. Aqui só chamam o médico quando alguém se mata.

Ele riu. - Não é por isso que eu vim. Sou novo aqui. Você já pode sair do casulo? Está se sentido em condições?

- Não sei.

- vou deixá-la então mais uma meia hora, tá? Não se preocupe com essa dor. Deve ser por causa da tensão. bom. .. até já. - Ficou algum tempo lutando com a chave na fechadura, e sua inexperiência deixou Déborah estranhamente comovida.

Quando voltou enfim ao seu velho dormitório - deramlhe uma cama que já fora sua - reinava uma atmosfera carregada de angústia. Numa das contínuas idas e vindas de pacientes, a Esposa do Abdicado fora deslocada duas camas adiante. Déborah, agora, ficava entre Mary Fiorentini e Sylvia, que, por sinal, continuava tão muda e ausente como antes. A punição deixara-a exausta. Deitou-se na cama e ficou observando as sombras do crepúsculo invadirem o quarto, se adensando pouco a pouco à medida que a noite caía.

Passado algum tempo, Mary, que estava deitada na cama vizinha, virou para Déborah e comentou num tom festivo: - Menina, nunca imaginei que você tivesse o bicho no corpo. Puxa, como você briga!

- Eu não bati em ninguém... - protestou Déborah, um pouco aborrecida com o comentário. Apesar do que dissera o ”novo” médico, tinha sérias dúvidas.

- Ah, mas que talento! Definitivamente, que talento! - Mary soltou uma gargalhada estridente. Suas gargalhadas pareciam vidro estilhaçando, e soavam extremamente falsas. - Ah, mas claro, você é louca, estava fora de si, não sabia o que fazia.

Novamente aquele tom jocoso; os gestos excessivos de uma atriz de comédia barata.

- É. . . - suspirou Déborah - O que eu não consigo entender - é como escapei. . . porque acabou a punição.. .

- Ora, francamente, casos como você deviam saber que o inferno (foi sacudida por um novo acesso de riso) - não pode durar mais do que vocês são capazes de agüentar. É como a dor física - - a gente treme, treme, e depois acaba!

- Quer dizer que há um limite para a coisa?

- Bem, minha querida, mais seria obsceno, simplesmente obsceno! - soltou uma risadinha irônica e, voltou às suas gargalhadas irritantes.

Déborah se ocupou em refletir no que ela dissera. Teria razão? Haveria pelo menos fronteiras naquele pesadelo sem leis? Os últimos vestígios do dia se extinguiram, mergulhando o dormitório na escuridão. Talvez até mesmo no Inferno houvesse misericórdia. Sua visão já era um pouco mais nítida, e os contornos amortecidos das camas, das paredes e dos corpos inertes, que respiravam ao seu redor tomaram aquela incandescência desmaiada, característica das noites de verão. Acenderam as luzes. Num estalo, Déborah compreendeu que Mary, por mais agoniada e irritante que fosse, estendera-lhe a mão num gesto dissimulado e fratemal: sim, existia de fato um limite, e como era importante saber disso!

Até mesmo as pessoas venenosas, se empenhassem toda a sua coragem e energia, eram capazes de se ajudar umas às outras. Carla, Helene, Sylvia (com o seu imobilismo mortal) deram provas disso, e agora Mary lhe oferecia um pouco de sabedoria.

Déborah riu, lembrando-se do primeiro encontro com Mary. Fora engraçadíssimo: ”Sou Déborah”, dissera, apontando em seguida para a sua cama, ”logo ali”. Mary, com um sorriso irônico e aquela jovialidade forçada, respondera: ”Eu sou o manicômio na versão de Walt Disney”.

Premida por um impulso incontrolável, Déborah saiu da cama e foi rastrear a ala em busca de combustível para mais um aceiro.

Déborah passou a depender cada vez mais dos aceiros para amainar a pressão insuportável do vulcão. Continuou a queimar os mesmos lugares, acrescentando camadas de queimaduras umas sobre as outras. Guimbas de cigarro e fósforos eram fáceis de obter, embora, a rigor, estivessem sujeitos às mais severas restrições. A intensidade de seu desejo, porém, superava todas as precauções que vigoram na D. Precisava dispor de um suprimento considerável, pois o alívio trazido pelas queimaduras não durava mais que uma hora, e logo a pressão passava a ser insuportável de novo.

Por alguns dias conseguiu manter as feridas em segredo; só mudava o local das queimaduras quando começavam a infeccionar e supurar. Divertia-se com a falta de atenção das enfermeiras e auxiliares. As feridas supuravam e fediam, mesmo assim ninguém reparava. ”É porque eles realmente não querem olhar para nós”, concluiu com seus botões.

No final da semana, o tal médico novo reapareceu na ala.

- Você está com uma cara muito melhor hoje - comentou, detendo-se junto a Déborah na sala de estar.

- Não era para menos - retrucou ela num tom meio ácido. - Tive um trabalho dos diabos para mantê-la assim!

- Bem, já que você melhorou tanto, acho que poderá voltar à Ala B muito em breve.

Ouvindo isso, lembrou que lá os regulamentos eram muito menos rígidos e havia fósforos em abundância: seria a oportunidade ideal para executar a morte que almejava. Constatou, no entanto, que estava apavorada, sem saber bem porque. Se o homem lhe oferecia de mão beijada essa oportunidade de morrer, por que estava ressentida com ele?

- Tenho mais algumas queimaduras... - declarou como quem não quer nada.

O médico olhou para ela chocado, mas logo se recompôs.

- Fico satisfeito por você me ter dito isso - disse meio sem graça.

Déborah começou a tirar o suéter, torcendo-o como se torce roupa lavada. Se quero morrer, porque é que estou me salvando? - perguntou a si mesma, furiosa ainda com aquela idéia dele permitir que se queimasse até a morte na B.

Tinha que contar a ele, não é covarde? rosnou o Coletor, recomeçando as zombadas de sempre.

- Como estão as velhas feridas? - perguntou o médico soltando as bandagens do curativo. Não se deu ao trabalho de responder pois ele viu com seus próprios olhos. As queimaduras recusavam-se teimosamente a cicatrizar. - Você andou mexendo aqui, não foi? - perguntou, um pouco acusador, contendo a agressividade.

- Não.

- Vamos tentar um curativo diferente. Deixe-me ver as novas queimaduras. - Déborah estendeu o outro braço. - Puxa! Quantas vezes você queimou isso?

- Umas oito.. .

Terminados os curativos, ele se afastou, disposto, sem dúvida, a repreender as enfermeiras pela falta de cuidado em deixar materiais inflamáveis e perigosos na ala. No entanto, o cigarro aceso que esqueceu na sala de estar bastou para mais uma série de queimaduras.

Quando os legisladores da D descobriram que seus pacientes não estavam tão a salvo como imaginavam, varreram a ala de cima a baixo com severas reformas. O garfo, que fora introduzido um ano antes, foi suprimido. A Idade do Metal cedeu lugar à Idade da Madeira. Restringiram o uso do fogo aos limites da enfermaria, que se tcomou assim uma ilha de modemidade cercada de pré-história. Tudo o mais retroscedeu ao pleistoceno: Pitecântropos Erectus vagueavam a esmo, bamboleando e resmungando sons inarticulados, comendo com os dedos e urinando no chão.

- Muito obrigada, guria! - disse Lee Miller sarcasticamente, ao cruzar com Déborah, dirigindo-se à região iluminada onde o Homem Moderno fornecia às pacientes seus símbolos de status: cigarro e fósforo.

- Vá para o inferno! - retrucou Déborah, sem muita convicção. Numa outra ocasião, a Esposa do Abdicado a acusou de ser espiã a soldo do Secretário do Interior, o qual figurava como o pior entre os seus Inimigos.

Tornou-se difícil conseguir fósforos e guimbas, mas não era impossível, e isso graças à falta de cuidado do Homem Moderno que acendia os seus curiosos cilindros, sem saber que, ao seu lado, um ser primitivo espreitava, ávido por fogo, cujo universo cinzento e difuso só admitia uma excessão: o cigarro focalizado, por alguma razão mágica, com toda nitidez, cor, cheiro e dimensões.

Contudo, por mais que Déborah opusesse o fogo ao vulcão, a superfície dele, os seus trajes graníticos, como dizia Anterrabae, continuavam inalterados. E os Deuses, o Coletor, o Censor, estavam todos à solta, punindo a torto e a direito, numa selvageria descontrolada e inexplicável. Mesmo ali a lógica das decisões em Yr parecia ter sido suprimida e as leis, inteiramente subvertidas. Déborah estava convicta de que, mais cedo ou mais tarde, o vulcão explodiria e entraria em erupção. A Grande e Última Decepção, afinal, ainda estava por vir.

A sua rotina de vida adquirira, já há algum tempo, formas terrenas que, na realidade, não passavam de minúcias gramaticais. Um dia, como tantos outros, acordou e, para a sua surpresa, descobriu que estava no casulo. Pouco depois, uma chave rangeu na porta e entrou uma enfermeira. Logo atrás dela, com um aspecto inacreditavelmente diferente, justamente por não ter mudado nada, vinha Furii.

- Muito obrigada. - A enfermeira trouxe uma cadeira para ela. Déborah sentia vontade de sumir, de escapar ao olhar dela, àquela sua expressão de desgosto. Furii passeou os olhos pelo quarto, sentou-se junto à cama e balançou a cabeça com um ar de espanto.

- Deus do Céu!

- Você voltou... - murmurou Déborah. Raiva de si mesma, medo, vergonha, piedade, orgulho, desespero, mil sensações conflitantes dilaceravam-na interiormente, mas nada disso deixou transparecer na sua fisionomia pétrea. - Divertiu-se bastante?

- Deus do Céu! - repetiu Furii baixinho. - O que aconteceu? Você estava indo tão bem quando viajei, e agora... voltou para cá... - Olhou ao redor de novo.

De todas as sensações, a que mais a assustava era a alegria de rever Furii, viva e inteira. - Não é a primeira vez que você vê.. . essas coisas horríveis. Por que está tão chocada?

- Sim, não é a primeira vez. Lamento apenas encontrá-la aqui e sofrendo tanto.

Déborah fechou os olhos. Sentiu-se profundamente envergonhada. Queria poder fugir para o Poço, fechar-se em trevas e no nada, mas Furii estava de volta e agora não havia mais esconderijos. Continuou, no entanto, a resistir: - Não sabia que ia voltar. .

- Eu disse que voltaria hoje.

- Disse foi?

- Foi, e acho que talvez tenha se deixado cair nesse estado tão lastimável, só para me dizer como está furiosa por eu ter ido embora e abandonado você.

- Isso não é verdade! - protestou Déborah. - Tentei com Royson, tentei realmente, mas você estava morta... pelo menos era o que eu pensava. . . e ele só queria provar que tinha razão e que era mais esperto do que eu. Esqueci que você voltaria...

Começou a se contorcer de angústia, embora estivesse exausta. - Estou toda bloqueada e fechada... como era antes de vir para cá... só que o vulcão queima, queima, queima lá por dentro, enquanto a superfície nem sequer sabe se ele está vivo ou morto!

A doutôra puxou a cadeira mais para perto. - Este é um dos momentos - disse suavemente - em que tudo o que você disser é da maior importância.

Déborah, exasperada, pressionou com força a cabeça de encontro à cama. - Não consigo nem arrancá-las de dentro... as palavras.

- Pois então deixe que elas saiam por si mesmas.

- Você é suficientemente forte?

- Scomos ambas suficientemente fortes!

Respirou fundo. - Sou venenosa e me odeio por causa disso. vou ser destruída, coberta de vergonha e degradação, e me odeio por causa disso. Odeio a mim e a todos os impostores. Odeio minha vida e minha morte. Em troca das minhas verdades, o mundo só me dá mentiras. com Royson, tentei uma, duas, três, inúmeras vezes, mas vi que o que ele queria era provar que estava certo. Daria no mesmo se ele dissesse- ”Vamos, juízo menina, acabe com essas besteiras!” Escutei isso durante anos e anos quando eu os decepcionava com a superfície, e mentira com o mais íntimo de mim mesma, de Yr do soldado inimigo. Maldita! Maldita que sou!

Tentou chorar e vieram baixinho uns soluços roucos uma respiração ofegante e áspera, mas os sons pareceram-lhe tão ridículos e feios que parou imediatamente.

- Quem sabe quando eu sair - disse Furii - você consiga aprender a chorar. Quero lhe dizer só uma coisa: avalie bem o ódio e a vergonha que está sentindo agora. Esta também será a medida da sua capacidade de sentir amor, alegria e compaixão. Amanhã nos veremos, está bem? - Levantou-se e saiu.

Àquela mesma noite, a Srta. Coral se acercou de Déborah com um livro na mão: - Olhe - disse ela timidamente - a minha médica deixou isso comigo. São peças de teatro. Lembrei-me de que talvez pudéssemos lê-las juntas, o que é que você acha?

Relanceou os olhos para Helene, que estava sentada de encontro à parede. Se fosse ela quem estivesse oferecendo o livro, provavelmente tê-lo-ia chutado junto com algum insulto. Haveria duas pessoas no Mundo que falassem a mesma língua?

Ao responder, Déborah notou que reproduzia, sem querer, o modo comedido e esmerado de falar, e até mesmo a timidez da velha. - Qual delas você prefere? - perguntou a Srta. Coral. Decidiram começar a ler ”A Importância de ser Prudente”; Déborah faria a maior parte dos papéis masculinos e a velha, dos femininos. Em pouco tempo Lee, Helen e Mary Fiorentini participavam também da leitura. Os atores, parodiando a si mesmos, acabaram transformando a peça numa grande balbúrdia. Mary, com suas gargalhadas estridentes, era tão ”Prudente” como uma louca de boa família, e a Srta. Coral, fazendo o papel de Sybil, exalava um cheiro insuportável de magnolias, mofo e teias de aranha. A peça, uma comédia fina e elegante de Oscar Wilde, se transformou num pesadelo digno das telas de Hieronymus Bosch. Leram-na inteirinha, e depois começaram outra, percebendo satisfeitas que os auxiliares riam com elas e não só delas. A noite foi divertidíssima, como se uma carreira mágica se tivesse aberto em meio à danação que pesava sobre todas elas.

Esther Blau, muda e atônita, encarou a Doutôra Fried. Passado o prineiro choque, ela pigarreou, incrédula ainda.

- Será que entendi bem?

- Acho que sim, mas antes. ..

- Por quê? Por quê?

- Pois é, estamos tentando justamente descobrir por queè.

- Será que vocês não podem descobrir antes dela virar.. . um. . . um pedaço de carvão!

Esther lera o relatório, redigido como sempre em termos cuidadosamente vagos, mas dessa vez alguma coisa no seu tom pusera-a de sobreaviso. Partira imediatamente para ver Déborah, cheia de maus presságios e, ao chegar, preveniram-na de que não seria aconselhável vê-la. Pedira, então, uma entrevista com o Dr. Halle e, uma vez no seu consultório, informara-se dos fatos, cuja gravidade nenhuma palavra poderia modificar ou suavizar. Saíra de lá apavorada, furiosa, desesperada e fora direto procurar a Dra. Fried.

- E o que é que vou dizer ao pai dela? Qual a mentira que devo contar dessa vez para que possa mantê-la aqui, onde só faz piorar, piorar e ficar cada vez mais violenta?

As palavras da doutôra, turvadas pelo medo que sentia, soaram longas e monótonas: - Acho que talvez estejamos todos nos deixando impressionar demais com esse negócio das queimaduras. Afinal de contas, trata-se de um sintoma da doença, que nós sabemos que existe e que continua respondendo ao tratamento.

’ - Mas isso é tão. .. tão repulsivo!

- As feridas?

- Não vi as feridas. Refiro-me à idéia, à intenção. Como pode alguém fazer isso consigo mesmo! Uma pessoa assim deveria estar num. .. - Esther tapou a boca com a mão, ofegando. As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.

- Não, não, nada disso - interveio a doutôra. - É a palavra que a assusta tanto. A velha e maldita palavra ”louca”, que sempre esteve associada à idéia de uma pessoa ”condenada para sempre”; é isso que a faz sofrer tanto.

- Nunca me permiti empregar essa palavra para Debby! ”Rompeu-se a fachada de Déborah, e o que está pór detrás dela não é tão mal”, pensou de si para si a Dra. Fried. O que podia fazer para que a mãe entendesse isso? Seria, indubitavelmente, um pequeno consolo. O telefone tocou. Foi atendê-lo e, ao voltar, encontrou Esther já recomposta.

- A senhora julga, então, que ainda há uma chance de Déborah vir a ser.., normal?

- Tenho certeza de que ela pode se tornar uma pessoa mentalmente saudável e forte. vou lhe confessar uma coisa, Sra. Blau, mas gostaria que nunca mencionasse isso para sua filha. Pedem-me, pelo menos umas quatro vezes por semana, que eu tome a meu encargo o tratamento de uma paciente. Tenho ainda que supervisionar a análise dos médicos que estão se formando pela Escola de Psiquiatria, e, a cada sessão, sou forçada a rejeitar muitos. Seria um grande desperdício dedicar meu tempo a um caso sem esperanças. Só conservo uma paciente quando tenho certeza de que posso ajudá-la. Diga isso ao pessoal em casa. A senhora não precisa inventar mentiras... a verdade é plenamente suportável.

Conduziu, em seguida, a mãe de Déborah até a porta do consultório onde se despediram. Esperava tê-la tranqüilizado um pouco. Palavras fáceis de consolo poderiam servir em outros ramos da medicina (quantas vezes os médicos não receitam uma agüinha com açúcar e pronto), mas todo peso de sua vivência e treinamento indispunha-se contra esse procedimento. Sabia, por experiência, que se dissesse qualquer coisa que soasse como apaziguadora, ao invés de tranqüilizar, deixaria Esther em pânico. O importante era que a conversa a tivesse fortalecido, pois assim a família sairia fortalecida também e permitiria que Déborah ficasse.

A Dra. Fried compreendeu que Esther conseguira superar a sujeição para com o pai. Tomara-se uma mulher forte, segura e até mesmo dominadora. A determinação que lhe permitira conquistar todos os inimigos de Déborah, prejudicando-a ao invés de ajudá-la, poderia ser a determinação salvadora agora. Enquanto estivesse convicta da importância dessa terapia para a filha, enfrentaria toda a família se preciso, para garantir o seu prosseguimento. A doença de Déborah não tinha só balançado os retratos no álbum de família. Forçara alguns a se questionarem e a crescerem um pouco, Caso isso se confirmasse, viria a ser uma fonte de esperanças raramente estudada nas publicações psiquiátricas, talvez porque estivesse além dos domínios da ”ciência” e da previsão. ”Do lado de fora das portas do estudo dissera-lhe uma vez seu pai - um anjo aguarda.”

Ao sair da casa onde estava situado o consultório da doutôra - era um dia refrescante de outono - Esther ergueu os olhos para a sacada recoberta de sólidas grades, no alto do prédio, por trás da qual se ocultava a Ala D. Como seria lá? O que se passaria nas mentes das pessoas que estavam enclausuradas ali? Baixou rapidamente os olhos, toldados de lágrimas, mal contendo o choro.

Déborah, sentada no chão, observava fazerem curativos nas queimaduras. Por causa delas, tomara-se objeto de grande interesse médico; as feridas se recusavam a cicatrizar. As estagiárias, encantadas com uma oportunidade excelente de exercerem seus conhecimentos, trabalhavam conscienciosa e diligentemente com ungüentos, poções, bandagens e esparadrapos. Quanto às fumantes, continuavam furiosas com Déborah, a responsável pelos novos regulamentos, e até mesmo Lee, que costumava tagarelar, evitava falar-lhe e lançava-lhe olhares desdenhosos. Enquanto as enfermeiras trabalhavam, pôs-se a observar os ”Ornamentos Viventes” (termo que encontrou para designar as pacientes): pareciam estátuas, distribuídas aqui e ali, umas sentadas, outras de pé, totalmente inexpressivas e imóveis, exceto pelo olhar assombrado, como se estivessem o tempo todo surpresas de que o sangue pudesse fluir de forma tão natural e o coração pulsar independente de suas vontades e emoções.

Ao terminarem o curativo das obstinadas queimaduras, as enfermeiras deixaram o saguão por um momento. Pelo canto do olho, Déborah percebeu os olhares belicosos que Helene dirigia a Sylvia, que estava ao seu lado, inerte como sempre. De repente, Helene avançou para ela e desferiu-lhe, com toda força, um murro e, logo em seguida, outro. Sylvia recebeu os golpes sem soltar um ai. Desafiada nos seus brios, Helene explodiu num acesso de fúria incontrolável. Parecia uma fera arremetendo selvagemente de encontro a uma pedra. Esmurrava, gritava, arranhava, cuspia, o rosto rubro de cólera, os cabelos desgrenhados. A única reação de Sylvia era fechar os olhos vagarosamente: suas mãos continuaram caídas e moles. Seu corpo parecia estar totalmente entregue às forças da gravidade e da inércia. Não demonstrava o menor interesse pela surra. O incidente, rápido e inesperado, terminou, como de hábito, com a intervenção dos seis auxiliares necessários para subjugar Helene e arrastá-la para o casulo.

Déborah, parada a uns dez passos de Sylvia, sentia como se as duas estivessem a sós no planeta. Lembrou-se do episódio ocorrido dois anos antes, quando Helene a atacara para destruir o rosto que havia testemunhado sua fragilidade e livrarse daquele testemunho aterrador. Tudo convergira para ela - médicos, enfermeiras, auxiliares, os lençóis úmidos, a reclusão, tudo, tudo para Helene. Deixaram-na sozinha e humilhada na sala. Sentira-se degradada demais para defender-se. Tal qual Sylvia agora, permanecera lá fincada no chão como uma estátua. Só a respiração lhe traíra: resfolegava, bufava quase. Entendia perfeitamente o drama de Sylvia, fora incapaz de se defender e precisava de cuidados tanto quanto Helene.

Sentiu que deveria aproximar-se dela, tocar-lhe no ombro e dizer qualquer coisa, mas continuou imóvel. ”Eu devia ir porque isso já aconteceu comigo e eu sei melhor do que ninguém o que a gente sente... Vamos! Mexa-se!” - pensava com os seus botões. Os pés, no entanto, não andavam, pareciam colados ao chão, e as mãos pendiam frouxas de cada lado. ”Naquela noite tenebrosa, ela quebrou o silêncio e veio em meu socorro; agora é minha vez, eu tenho que ir...” Tentou mais uma vez livrar-se de suas vestes de granito e sapatos de pedra. Olhou para Sylvia, a mais feia de todas as pacientes, viu seu rosto pálido como cera, contraído numa careta enrijecida, a baba que escorria de sua boca, e compreendeu que, se fosse solidarizar-se, Sylvia poderia destruí-la apenas com o silêncio. O medo, num instante, consumiu todo o desejo de agir. Pquco depois, os auxiliares que subjugaram Helene começaram a retomar da batalha e a oportunidade perdeu-se de vez. O medo cedeu lugar à vergonha, uma vergonha tão grande, que durante muito tempo ficou ali paralisada, cega a tudo o que se passava a seu redor, com uma vontade enorme de sumir, de morrer.

Ao chegar ao consultório, contou a Furii tudo o que vira e o que deixara de fazer.

Nunca lhe contei uma mentira! - disse Déborah. -

Nunea lhe disse que eu era humana. Agora, você pode me expulsar porque eu tenho uma culpa que não admite perdão.

- Não estou aqui para desculpá-la - retrucou Furii, erguendo os olhos para ela, e acendendo um cigarro. - Não lhe faltará desafios morais e decisões difíceis para tomar no mundo e, como eu disse antes, não será nenhum jardim de rosas. O que nos cabe fazer é louvar essa força que lhe permitiu ver isso, e trabalhar para que chegue o dia em que você seja capaz de fazer o que acha que deve fazer. No momento, devemos trabalhar duro para descobrirmos quais são as raízes das queimaduras que você faz em você mesma por uma revolta contra mim e o hospital.

Déborah discordou das razões e da seriedade que Furii atribuía às queimaduras. Enquanto concedessem a elas o sentido de uma aberração terrível, o seu gesto continuaria tão decepcionante quanto as sossegadas encostas do vulcão.

- Você acha mesmo que as queimaduras são tão sérias assim? - perguntou.

- São seríssimas! - respondeu Furii.

- Você está enganada - declarou taxativamente, torcendo para que ela se lembrasse do que afirmara freqüentemente a respeito de o paciente confiar em suas próprias convicções íntimas. Havia cerca de quarenta queimaduras, infligidas sucessivamente sobre a carne preparada e esfolada para recebê-las, mas mesmo assim não pareciam justificar o estardalhaço que se fazia em tcomo delas. - Não sei explicar por que, mas acho que você está enganada.

Passeou os olhos pelo consultório, que vivia na maior desordem. A luz do sol derramava-se das janelas, mas os seus reflexos dourados e o calor que espalhava, eram percebidos por ela a uma distância muito remota. A atmosfera que a cercava continuava fria e sombria. A verdadeira agonia não era o fogo nem as queimaduras, e sim esse eterno alheamento em relação às coisas, ao exterior.

- Vigiada ou não - murmurou - continuarei fazendo as penitências.

- Fale mais alto, por favor; não estou ouvindo.

- Desatenção seletiva! - declarou Déborah, rindo daqueles termos da psiquiatria, cuja linguagem e os jargões não tinham nem a beleza nem a poesia do Yri. Furii compreendeu e riu também.

- Algumas vezes acho que nosso vocabulário profissional vai longe demais, mas afinal de contas temos que falar uns com os outros, e não apenas a nós mesmos e a deuses cadentes. Foi com eles que acabou de falar?

- Não, com você. Decidi não ser imortal por causa do que aconteceu a Sylvia. Se não fiz o que devia ter feito depois de Helena agredi-la, pelo menos não vou implicá-la nas minhas queimaduras, já que você as considera um problema sério.

- O que é que você quer dizer com isso?

- Sylvia fuma de vez em quando, e é bastante distraída. Quando solta o cigarro em algum lugar, eu o apanho rapidamente e fujo. As duas Marys fumam como loucas, e eu faço o mesmo com seus cigarros, basta que ninguém me surpreenda. Elas estão contribuindo para a minha delinqüência, não estão?

- Creio que de certo modo estão, embora, na realidade, você é que está se aproveitando dos sintomas delas.

- Não se deve permitir que isso aconteça. . . - disse Déborah baixinho. Por que Furii deixara fósforos e cigarros na sala de espera? A enfermeira acompanhante distraía-se com a maior facilidade. Saberia Furii como foram tentadores aqueles minutos de espera?

Logo que a sessão terminou, Déborah se levantou para sair, hesitou alguns segundos e disse: - vou pôr a corda no meu próprio pescoço agora. Prometo não roubar guimbas acesas das pacientes a não ser quando estiverem no cinzeiro ou esquecidas em algum lugar. Também não vou permitir que você contribua, porque sei que não gostaria.

Dito isso, tirou de dentro da manga duas caixas de fósforo, que surrupiara na sala de espera e as jogou raivosamente entre os pés da escrivaninha.

Quando o vulcão entrou finalmente em erupção, não houve fósforos que bastassem para contê-lo. Déborah não pressentiu nada de excepcional, apenas aquele estado mental sombrio e obscuro, e os bramidos provenientes do Coletor. Um dia, de repente, começou a sentir as vergastadas familiares do medo, e a escutar as acusações ditas num tom de queixume monótono pelos personagens invisíveis e rancorosos de Yr. Estava sozinha na banheira situada nos fundos do lavatório da frente, já” que todos os quartos de reclusão se achavam ocupados. As enfermeiras, depois da limpeza da noite, costumavam destrancar a porta para ela, e deixá-la a sós ali até que alguém tivesse necessidade de usar as privadas da frente; graças a isso, dispunha sempre de uma meia hora de solidão. Já era tarde, quase hora de dormir. Decidiu que naquela noite não levaria para a cama consigo a agonia infernal, que a dilacerava por dentro, uma agonia que há dias vinha repelindo a pontapés as doses de hidrato de cloro, que se avolumavam no fundo dos copos e desciam pela garganta abaixo, como celulóide fervente.

Estirou-se no chão frio, e começou a bater a cabeça vagarosa e metodicamente contra os azulejos. O negro em seu cérebro tornou-se rubro, dilatando-se e extravasando com tamanho vigor que, antes que pudesse se dar conta, mergulhou no vértice furioso da erupção.

Quando os sentidos desanuviaram, via e ouvia, como quem ouve e vê através de um buraco de fechadura; teve uma vaga consciência de que gritava, de que os auxiliares acorriam ao banheiro e de que as paredes estavam cobertas de palavras e frases em Yri. Alinhavam-se nelas todas as efusões de ódio, ressentimento e amargura expressas numa linguagem que usava metáforas tais como ”quebrar” significando ”consentir”, ”terceiro trilho” significando ”concordar”. As palavras eram disparatadas. Uguru, cuja tradução seria ”uivos de cão”, e que significava solidão, estava escrito no superlativo e em letras garrafais: UGURUSU. As palavras foram escritas com lápis ou com sangue, e algumas delas arranhadas com um pedaço de botão.

As pessoas que a socorreram estampavam uma expressão de horror e de surpresa no rosto. Até mesmo aquelas habituadas aos trabalhos mais árduos da Ala D. Foi justamente essa expressão que levou ao extremo o incêndio dentro de Déborah. O medo e a cólera que expressavam essas criaturas do mundo eram como o sol, universal e penetrante, cotidiano e inquestionável - uma lei da natureza enfim. Seus olhos, focalizados sobre ela, emitiam raios que ateavam fogo. As palavras proferidas num murmúrio por Déborah, todas em Yri, vieram carregadas de ódio.

- Onde está o objeto que usou para arranhar, Srta. Blau?

- Recreai. .. - Recreai xangoran, íemr e xangoranan. Naza e fango xangoranan. Inai dum. Ageai dum. (Lembrai-vos de mim. Lembrai-vos de mim com ódio, temei-me com o ódio mais feroz. E com o mesmo ódio, torturai meus dentes com vosso fogo até estilhaçá-los. Refulgiu o raio de luz. .Foi dado o sinal. A Brincadeira - Ageai significava dilacerar a carne com os dentes como tortura - terminou.)

Nesse momento entrou a Sra. Forbes. Déborah gostava dela, lembrava-se pelo menos de ter gostado dela. A crise ia ganhando proporções incontroláveis, e boa parte do que falava já não podia sequer esperar pela lógica do Yri e pelo arcabouço das palavras: era um vomitar de sons inarticulados, onde uma ou outra palavra Yri lhe permitia saber o que estava dizendo. A Sra. Forbes lhe perguntou se não queria que mandasse as pessoas saírem do banheiro. Déborah, comovida com a coragem daquele gesto, estendeu as duas mãos abertas e tentou inutilmente articular algumas palavras compreensíveis.

- Esta palavra aqui, a maior delas, acho que ouvi você pronunciá-la. Tem algum significado?

Déborah ensaiou, febrilmente, gestos e sons que lhe permitissem exprimir o impacto produzido pela erupção do vulcão. A palavra a que se referia fora escrita na parede com o sangue proveniente de um corte no dedo, e significava o terceiro grau do ódio, jamais pronunciada ou escrita antes, mais violento que o ódio negro e o vermelho-branco. Déborah andava para um lado e para o outro, numa agitação extrema; estacou de súbito e jogou a cabeça para trás, escancarando a boca num grito mudo. A enfermeira olhou para ela interrogativamente.

- A palavra é medo? - perguntou. - Não. . . medo não.. . ódio. - Ergueu os olhos para ela de novo: - Um ódio que você não consegue controlar. - Pensou alguns segundos e disse: - Venha, vamos tentar a reclusão até que você consiga se segurar um pouco.

O quarto de reclusão era minúsculo. A energia que jorrava impetuosamente do Vulcão a deixava num estado de agitação frenético. Impelida de um lado para o outro do quarto, como um boneco desengonçado, Déborah batia com a cabeça, com as mãos e com o corpo de encontro às paredes e ao chão. Perdera completamente o controle de si mesma; o caos imperava e os próprios personagens de Yr pareciam ter enlouquecido.

Percebendo que era inútil deixá-la ali, agarraram-na e meteram-na a muito custo num casulo. Ela lutou como uma fera, apavorada com o que poderia fazer agora que não estava sujeita a lei alguma. Inglês, Yri e sons inarticulados entremeavamse num discurso incompreensível. Gradualmente, o ódio foi cedendo lugar ao medo, mas continuava incapaz de formular as palavras necessárias para precavê-los contra a sua própria selvageria. Enquanto prendiam as amarras, ela se contorcia, dava cabeçadas e dentadas, tentando desesperadamente morder a si mesma, os lençóis, a cama, as pessoas, tudo. Lutou até a exaustão, até cair desfalecida.

Horas depois, começou a sentir a contrição das veias nas pernas e nos pés, só que dessa vez sem a dor habitual, tal como as queimaduras que também não doíam. Como era frio o vento que soprava acima de todas as leis! Tiritava, embora estivesse envolta nos lençóis há muitas horas e, portanto, já deveriam tê-la aquecido. Aturdida com aquela subversão das leis e da lógica de Yr, ela murmurou: - Minha inimiga, meu eu venenoso e pestilento... e agora nem sequer o controlo...

- Havia uma engrenagem... - exclamou em voz alta, Yri misturado a termos estranhos e desconhecidos para ela. - Havia uma engrenagem cheia de dentes, dos quais dois pelo menos encaixados no mundo; E agora nenhum, nenhum vínculo com o mundo!

Tu não és como os outros - aparteou o Censor. A velha frase, talvez a mais velha em Yr, proferida em contextos diversos, passando do consolo e piedade, ao ódio e terror, e agora à última decepção, a jogada final que fazia parte da trama secreta armada pelo mundo para destruí-la. Entendeu que a morte tão temida não precisava ser necessariamente física. Podia ser a morte da vontade, da alma, da mente, das leis e conseqüentemente não a morte, mas um perpétuo morrer. O tumor fustigou-a por dentro, arrancando-lhe um grito de dor.

Furii, nem bem olhou para ela, perguntou surpresa: - Você está doente? - Déborah riu, um riso tão feio quanto fora o choro. - Quer dizer, você está sentindo alguma coisa, fisicamente?

- Não. - Tentou lhe explicar, mas as paredes começaram a porejar suor e sangue, e no teto desenhou-se um imenso tumor que foi inchando e ganhando volume.

- Você consegue me ouvir? - perguntou Furii.

Déborah procurou comunicar o que sentia, mas só conseguiu esboçar o gesto que em Yri simbolizava insanidade: mãos espalmadas, uma de frente para a outra, incapazes de se juntar.

- Escute. Faça um esforço para me ouvir - pediu Furii num tom grave. - Você está com medo do seu próprio poder, porque não está conseguindo controlá-lo.

Déborah, num esforço supremo, conseguiu arrancar algumas palavras: - Yri. .. no mundo. .. colisão. . .

- Tente de novo. Deixe elas saírem naturalmente.

- Engrenagens desencaixadas.. . riai naruai. . . desencaixadas!

- É por isso que a internaram num hospital. Aqui, você está protegida, não precisa temer essas forças terríveis que parecem ter sido desarrolhadas aí dentro. Escute com muita atenção agora, e procure manter-se em contato comigo. Você tem que tentar falar, contar para mim o que está acontecendo nesses mundos que colidiram. Vamos empenhar todas as nossas energias para protegê-la dos excessos dessa doença.

O medo amainou um pouquinho - Veio Yri, Inglês. . . disparates. Selvagem. . . batendo. Ódio.

- Tenho a impressão de que esse ódio explodiu por todos esses anos, um ódio que veio se acumulando, envelhecendo e apodreceu, embebido em culpa e medo, como se fossem grânulos malcheirosos dentro de você, não é assim?

- Quase...

- O sofrimento não foi por causa do ódio, foi?

Não... Yri... na terra... colisão... Censor... pena

morte... a última... - Começou a tremer de frio novamente.

- Envolva-se no cobertor.

- Frio de Yr... nacoi... cobertores da Terra...

- Veremos se o calor da terra ajuda - disse Furii. Apanhou o cobertor e a cobriu. Déborah se lembrou de que não havia em Yri uma palavra correspondente ao ”muito obrigado”. Não soube como demonstrar gratidão, o que se tcomou mais uma culpa a suportar em silêncio. E o pior é que o tremor não diminuiu para que Furii, vendo, ficasse contente.

- Diga-me uma coisa. Na emoção que você sentiu ao se ouvir bradando essas estranhas linguagens, quanto havia de ódio e quanto de medo?

- Dez - respondeu Déborah, que para avaliar a emoção permitiu que um bocadinho dela fluísse de novo. -’ Três ódio, cinco medo.

- Isso só totaliza oito.

- Eu sofro - e procurou complementar a idéia com gestos de mão em Yri. - Segundo você, sofro muito. Agora, nunca vou preenchê-los. Dois é para miscelânea.

Furii riu. - ódio, algum; medo, bastante; e o que serão essas duas pequenas miscelâneas? Alívio, quem sabe, por não ter de entregar tudo àquele muro que separa Yr e o mundo? Será que não haveria também uma intenção evidente de me lembrar que fui embora e a deixei sozinha com tudo isso?

Déborah sentiu que a última hipótese continha apenas meia-verdade, mas não achou que valesse a pena discutir. - Medo... Censor... fazendo o que é proibido... destruirme. . . e. . .

- E o quê?

- Então... não. Negação. Negação até mesmo de Yr. Sons absurdos e apenas Não! Não!

- Nem mesmo os deuses como amigos - cismou a doutôra. - Puxou sua cadeira mais para perto de Déborah que tiritava ainda sob o cobertor, cujo calor era rechaçado pelo seu clima interior. - Sabe, Déborah, você tem um potencial enorme de saúde e força aí dentro. Antes de permitir que as barreiras fossem postas abaixo, você confiava no nosso trabalho juntas e em mim. Antes de permitir que o ódio aflorasse, você se transferiu espontaneamente para a espécie de enclausuramento que havia à mão, especialmente quando estava em serviço uma enfermeira, lembre-se bem, de quem você gostava e em quem confiava. Nada mal para quem supostamente fundiu a cuca. Nada mal mesmo, esse talento para a vida.

Déborah começou a sentir as pálpebras pesadas. Estava extremamente cansada.

- Você está completamente esgotada - disse Furii - mas muito menos assustada, não é verdade?

- Não.

- O ódio pode explodir de novo. A doença que você construiu pode voltar a ameaçá-la, mas tenho certeza de que a refreará o suficiente para conseguir a ajuda e o controle necessários. Metade do medo que está sentindo é o de que não consigam detê-la; pois é justamente este medo que a impede de falar de uma forma compreensível para os outros.

Ao retomar à ala depois da sessão, Déborah soube que um novo holocausto a visitara.

- Sua amiguinha. . . - disse Lee Miller sem fôlego - .. .a doce e gentil Srta. Coral.

- O quê?

- Ela apanhou aquela cama ali e a jogou, levantou a cama e a jogou em cima da Sra. Forbes!

- E a atingiu?

- Se atingiu! A mulher foi internada num hospital, com um braço quebrado, cortes, contusões e o diabo a quatro.

Lee Miller estava furiosa porque a Sra. Forbes era uma das raras eleitas a quem os próprios pacientes, conscientemente ou não, procuravam poupar. Era uma mulher dedicada, inteligente, generosa e - coisa rara - sentia-se feliz com o seu trabalho junto às pacientes.

- Engano - retrucou Déborah, completamente atônita. - Só pode ter sido um engano! Freqüentemente aconteciam enganos: uma paciente que mirava uma pessoa e acertava outra, ou o caso da estagiária que, por uma incrível coincidência, passava sempre por onde desabavam cadeiras e punhos. Sim, só podia ser isso.

Quem sabe a coitadinha não estava temporariamente

insana! Intrometeu-se Mary Fiorentini zombeteira. - Insanidade Temporária! Taí, uma justificativa legal. Significa: antes, durante e um pouco depois; o que nunca explicam é quanto de cada lado. De uma precisão exemplar, a lei. .. uma ciência, vocês compreendem. - E saiu saltitando pelo corredor como se fosse uma menina de sete anos de idade, num de seus irritantes acessos de risadinhas.

- Será que a Sra. Forbes vai voltar? - perguntou Déborah, sentindo um profundo mal-estar. Lee só a agredia porque a velha Coral estava enclausurada e, portanto, inacessível. Jamais lhe ocorrera que fosse amiga de alguém, e por isso a atitude de Lee a deixava, de certa forma, surpresa.

Virou-se lentamente para ela, e com uma dignidade exagerada - pois dignidade ainda era uma coisa ao mesmo tempo nova, estranha e inconfortável - declarou: - Certo, Lee. Carla é... (o medo impediu-a de enunciar a palavra ”amiga”, devido à ameaça transcendente que encerrava).

Lee dirigiu-se à porta da enfermaria, bateu e pediu um cigarro. Soltou uma longa baforada, refletiu um pouco e resmungou: - Que diabo estou fazendo aqui com todos esses malucos!

Déborah foi para o dormitório e esticou-se na cama. Quanto mais pensava na questão, mais intrigada ficava: por que a velha agredira a Sra. Forbes? Por que logo um dos Bons? Depois da distribuição de sedativos àquela noite, foi discretamente se colocar na quina oposta à porta de entrada da enfermaria, e ficou absolutamente imóvel com o ouvido encostado nos canos de água que passavam por ali. O de água quente estava apoiado em material isolante; o de água fria, apesar de inconfortável para a orelha, era utilizado às vezes pelos pacientes como dispositivo de escuta. Encostando o ouvido no cano e contendo a respiração, podia-se ouvir as pessoas conversando dentro da enfermaria, mesmo com a porta fechada. Déborah concluíra que os sons eram transmitidos pelas torneiras, pois a recepção tornava-se mais clara quando as pessoas se aproximavam da pia de metal. Haviam apagado a maior parte das lâmpadas, e os auxiliares que percorriam os corredores estavam ocupados, em levar as pacientes relutantes para a cama. Dificilmente reparariam nela ali onde estava. Outros, no interior da enfermaria, redigiam os relatórios.

- Ali - dizia uma voz que parecia ser a de Cleary.

- Não, lá ao lado do bule de café.

A menção ao café deixou Déborah com água na boca. Pressionou a cabeça com mais força contra o cano para espantar o desejo. Começaram a falar sobre a distribuição dos dias de folga. O corredor já estava quase deserto. Era bom que entrassem logo no assunto, pois em breve teria que se afastar dali.

- Jesus, como estou cansado (devia ser Hanson).

- Você não é o único (Bemardi). Não sei não, mas acho que essas gurias estão ficando cada vez mais doentes.

- Quer dizer, mais piradas, não é?

- Tch, tch, tch. . . Cuidado com a língua! - Risos.

- Não, sério! Não há um dia nessa droga de ala em que não aconteça uma briga e aí, são mais duas para a reclusão, metade delas para os casulos. Agora aquela ”coroa”, Coral Allan, que todo mundo chama Srta. Coral como se fosse alguma beldade do sul, já tinha escutado muitas histórias a seu respeito, mas só essa tarde pude ver com meus próprios olhos.

- Nossa! Quem diria que uma velhinha daquelas fosse capaz de levantar uma cama, quanto mais de arremessá-la?

Déborah torcia para que falassem logo da Sra. Forbes. Finalmente tocaram no assunto, e ela sorriu aliviada para o cano.

- Você foi ver Lou Ann? (Era seu primeiro nome.)

- Hudson e Carelle foram com ela até o hospital. Sophie vai visitá-la amanhã. Se eu tirar folga, vou também.

Déborah fremia de impaciência. Preparavam-se para a última ronda da noite antes de passarem o turno. Se a evidência não surgisse agora. . .

- Ei, viram só a Blau à noite?

- Oh (risos), caramba!

Déborah não queria ouvir nada sobre Blau. Viera para descobrir alguma circunstância que pudesse mitigar a dor que lhe causava o conflito Coral versus Forbes, uma razão qualquer à qual pudesse se agarrar, para impedir que aquele incidente se transformasse em mais uma experiência de decepção.

- Deus do Céu! Gritou mil besteiras lá no banheiro, encheu as paredes de palavras louquíssimas e saiu lutando como um tigre. Enquanto a metíamos no casulo, ela vociferava naquela fala incompreensível; não dava para entender nada, mas era só olhar para a cara dela e ver o ódio, que ódio!

- Hoje ela não falou absolutamente nada.

- Bem, ponha isso no relatório.

Déborah se deixou escorregar até o chão, conservando a cabeça apoiada no cano frio. Cobriu com as mãos o rosto que ardia de vergonha. Afastou-se um pouco do cano, colocando-se assim em terreno neutro e dissociando-se da fonte de sua vergonha. Desatou a chorar, um pranto áspero e feio, soluçando e repetindo baixinho, para todos os mundos e a colisão, a velha fórmula: Tu não és como os outros. Pressentiu, de repente, que havia alguém ao seu lado: era Martenson, uma das estagiárias.

- Vamos, o que é isso Srta. Blau; venha para a cama. Déborah se levantou prontamente e sem destapar o rosto,

foi cambaleando até o dormitório, onde se atirou na cama e desatou a chorar de novo.

- Que ruídos obscenos são estes? - perguntou Mary Fiorentini. - Alguma modalidade nova de perversão hcomossexual, provavelmente... Ah, vocês loucas são tão inventivas. É porque têm tempo de sobra para ficar remoendo idéias - e continuou num murmúrio inaudível, entrecortado de risadinhas.

A Esposa do Abdicado, irritada com os risos de Mary e os sons abafados do choro de Déborah, protestou: - Mas que falta de respeito, suas putas nojentas! Eu sou a primeira Esposa secreta de Eduardo, o Abdicado Rei da Inglaterra!

- Ora, Salve Salve Columbia! - exclamou Jenny, que raramente falava, pois vivia dormindo.

- Ave Maria, cheia de graça.. . retrucou Mary Dowben que, com suas preces intermináveis, sempre arranjava um jeito de transformar tudo numa cruzada religiosa contra os hereges.

- Ai, Jesus! Foram dar corda nessa carola de novo.

O tumulto se alastrou, soando, para Déborah, como um contraponto aos sons horríveis que continuavam brotando de dentro dela. De repente, entrou o auxiliar e mandou que calassem a boca. Fez-se imediatamente um silêncio profundo, e cada espírito se enclausurou num isolamento que niaguém parecia capaz de devassar.

Déborah voltou a pensar no quebra-cabeça. Sim, elas as pacientes, eram como partículas de pó flutuando ao acaso mas mesmo assim havia certas normas que não se desrespeitava. Sabia muito bem que jamais poderia indagar à velha por que tinha jogado a cama, e por que cargas d’agua a cama fora cair justamente em cima da Sra. Forbes. Bater, roubar, blasfemar, as piores manias sexuais, nada disso constituía um pecado na Ala D. Cuspir, no chão, urinar, defecar ou masturbar-se aos olhos de todos despertava, quando muito, um desgosto passageiro, nunca uma reação de horror. No entanto, exigir satisfações, opor-se à atitude de alguém era, na melhor das hipóteses, uma grosseria imperdoável, ou pior, uma verdadeira violação, um atentado consciente contra as valiosíssimas barreiras que asseguravam a vida e a sobrevivência dos pacientes. Lee Miller a agredira por causa das queimaduras, que tinham provocado restrições extensivas à ala toda, mas nunca lhe perguntou por que fizera aquilo, nem exigiu que parasse. Permitia-se zombar e odiar; intrometer-se, nunca! Ninguém pediria satisfações ou repreenderia a Srta. Coral por sua atitude. Seus amigos, se é que se pode chamá-los assim, passariam a expurgar, delicadamente, o nome da Sra. Forbes das conversas quando estivessem na presença da agressora. Como então - meditava Déborah - obter resposta para a sua dúvida?

Matutou nisso dias e dias, conservando, porém, a fisionomia completamente inexpressiva, e quando falava, saía involuntariamente uma mistura de Inglês, Yri e sons distintos que mal bastava para responder às perguntas que lhe dirigiam, ou dar a entender alguma necessidade. A dificuldade de se expressar com clareza a surpreendia tanto quanto aos outros. Uma vez, por exemplo, um auxiliar lhe perguntou se era o seu dia de banho. Articulou mentalmente uma resposta que lhe pareceu clara e, no entanto, o que emergiu foi: ”Nunca atinge a profundidade suficiente.”

Outro caso se passou no banheiro: - Blau, você está aí? - gritaram.

- Aqui é cutucu (o que significa ”estar escondida”, em segundo grau). Nessas circunstâncias, quando se esforçava por traduzir e superar o abismo que a separava dos outros, a confusão de línguas só fazia aumentar e distanciá-la ainda mais.

Acabava ficando nervosa, dizia coisas definitivamente disparatadas e intraduzíveis, e isso, por sua vez, piorava o nervoso. Somente com Furii conseguia expressar-se com alguma clareza.

- Disseram que estamos ficando cada vez mais doentes, todas nós, inclusive eu.

- E você acha que está? - perguntou Furii, acendendo outro cigarro.

- Olha, nada de brincadeiras.

- Eu não faço brincadeiras. Quero que pense bem e responda honestamente.

- Chega de pensar! - exclamou Déborah, elevando o tom de voz, num súbito acesso de raiva. - Estou cansada, assustada e pouco me importando com o que possa acontecer. Trabalha-se no escuro, trabalha-se no frio, e para quê?

- Para tirarmos você desse maldito lugar. - Furii elevara também o tom de voz,

- Não lhe conto mais nada. Quanto mais lixo ponho para fora, mais sobra. Você pode me mandar embora e ficar com seus amiguinhos, escrever outra tese e ganhar mais um título. Eu é que não posso me mandar, por isso decidi desistir da luta, e não se preocupe... serei boazinha, dócil e não vai aparecer mais nada nas paredes.

Uma longa baforada de fumaça ocultou o rosto da doutôra.

- Está certo - disse ela, num tom quase amigável. - Você desiste, pobrezinha, e fica num hospício o resto da vida. Dia após dia, numa ala entupida de perturbados... ”Tadinha” - dirão as pessoas - ”poderia ter sido uma menina tão boa.. . com tanto talento... que desperdício” - e concluiu abanando a cabeça - tsk, tsk...

- Sim, vão me julgar mais talentosa do que realmente sou, porque aqui não me sujeitarei jamais a uma prova! - gritou Déborah. A verdade, nua e crua, soou muito bem aos seus ouvidos.

- É, droga, é! bradou Furii.

- bom, e daí!

- E daí? Alguma vez eu disse que seria fácil? Não posso, nem quero fazer você ficar boa contra a sua vontade. Agora, se estiver disposta a lutar com toda a energia e paciência, garanto que venceremos.

- E se não vencermos?

- Ora, há um monte de hospitais psiquiátricos por aí, constróem um todos os dias.

- Mas lutar para quê? Para quê?

- Por uma vitória que não é fácil nem doce, já lhe disse isso no ano passado e no ano retrasado. Para que você disponha de seus próprios desafios, de seus próprios erros e da punição que merecerem, de sua própria definição de amor e sanidade, enfim de um ”eu” bem forte com o qual possa começar a viver.

- Você não é nem um pouco dada à demagogia, hein?

- Escuta aqui, minha cara menina - disse Furii, esmagando o cigarro no cinzeiro - eu sou sua médica e tenho visto esses anos todos como você é alérgica a mentiras, por isso evito contar mentiras. - Recostòu-se na poltrona com um sorriso zombeteiro. - Além do mais, apreciei muito esta sua raiva despida de medos e culpas, num inglês tão bom e vigoroso. - Após uma pausa, continuou: - bom, agora acho que já pode responder sozinha à questão que levantou antes. Está ou não ficando mais doente? Não tenha medo; você não terá que arcar com as conseqüências dessa resposta, quaisquer que sejam elas.

Déborah sentia-se o próprio Noé, enviando um pombo para explorar uma região temível e desconhecida. Passado um tempo, o pombo voltou, arrulhando de cansaço. Nenhum galhinho verde, mas pelo menos era um retorno. - Mais doente não. Não, não mesmo...

- Mais doente não. . . - relatou a Doutôra Fried na reunião da equipe médica na Ala D. - . . .não mesmo.

As pessoas escutavam polida e atentamente, mas lhes parecia inacreditável que a torrente de sons confusos e a violência descontrolada não significassem uma grande mudança para pior. Antes do incidente, Déborah apresentava um comportamento mórbido e silencioso ou, então, mórbido e satírico; um rosto invariavelmente inexpressivo, maneiras sarcásticas e superiores. Eram sintomas inegáveis de grave doença mental. Comportava-se, atualmente, como todas as pacientes da Ala D, ou seja, estava ”maluca”, palavra que a maioria empregava e sentia, exceto na presença dos médicos ou quando temiam ser escutadas. Era justamente essa palavra, ”maluca”, que remoíam com ceticismo escutando a exposição da Dra. Fried.

- Bem... o negócio das queimaduras está diminuindo um pouco. .. - admitiu um dos auxiliares, sem muita convicção.

- Isso se deve à ”nova moralidade” de Déborah - explicou a doutôra Fried com um sorriso. - Decidiu que não envolveria as demais pacientes em sua doença, e agora tem que procurar fogo em outra parte. Decidiu impor certas restrições aos furtos.

- Elas... elas admitem considerações desse gênero? Quer dizer... considerações morais? - Era um rapaz novo no serviço que perguntava. Todos conheciam qual deveria ser a resposta formal a isso, mas pouquíssimos acreditavam nela. Somente alguns dos médicos e, mesmo assim, nem sempre.

- Claro! Trabalhando aqui, você encontrará fartas evidências disso. Posso citar inúmeros exemplos desses princípios éticos ou morais, os quais inspiram freqüentemente profunda admiração nas pessoas ditas ”sadias”: pequenas delicadezas, gestos súbitos e inesperados de generosidade que representam um grande sacrifício para a paciente, e muitas vezes nos chamam oportunamente à ordem e chutam longe a escora da nossa vaidade. Lembro-me que quando deixei o hospital onde clinicava na Alemanha, uma paciente deu-me uma faca de presente para que eu me protegesse. Esta faca, ela a fizera em segredo, afiando um pedaço de metal durante meses e meses, prevendo o dia em que sua doença se tornaria tão dolorosa que não conseguiria mais suportá-la.

- E a senhora aceitou?

- Claro, já que essa capacidade de dar representava um sintoma de saúde e força. Mas como eu vinha para esse país - concluiu ela com um sorriso amável - julguei que a faca seria mais útil a uma pessoa que tivesse de ficar por lá.

- É uma excelente oradora, não acha? - comentou o doutor Royson na saída. Viera assistir à conferência a convite do doutor Halle, mesmo porque já havia trabalhado com alguns dos pacientes da ala.

- Blau é um de seus casos - comentou o outro. - Ah, sim, esqueci, é óbvio que você sabe disso.

- Sim, eu a substituí enquanto esteve fora - disse o doutor Royson.

- E como foi?

- Difícil. De início julguei que essa dificuldade vinha do ressentimento da menina. .. sabe, o fato de ter sido abandonada pelo terapeuta. . . uma rejeição, poderíamos dizer. Estava enganado. A verdadeira razão era uma dessas verdades que não gostamos muito de encarar, por sermos médicos, e a medicina é uma ciência que não admite gostar ou desgostar: nós simplesmente não combinamos, não simpatizamos um com o outro. Talvez porque éramos muito parecidos.

- Não é de admirar então que você andasse soltando fumacinha da cabeça.

- Você acha realmente que a menina tem feito progressos? - Fez um gesto de cabeça em direção à doutôra Fried. - Ela, ao que parece, está convicta. Sei não...

- Pessoalmente acho que não, mas ela sabe o que diz.

- É uma excelente médica... Gostaria de ter a inteligência dela - disse Royson.

- É, ela é um gênio! - Halle se virou e ficou observando-a responder às perguntas no salão de conferência. - Mas depois que conhecê-la melhor, verá que, com Clarinha Fried, gênio é só o começo.

Apesar das distorções provocadas pelo ar escaldante e úmido exalado pelo vulcão, da torrente de lava cinzenta e desoladora que a enrijeciam por dentro, Déborah começou a notar que o pessoal da ala a tratava com uma certa amabilidade, uma amabilidade que, dessa vez, parecia ser bastante sincera. Um auxiliar recém-admitido, Quentin Dobshansky, pessoa franca e bondosa como McPherson, veio substituir o velho Tichert. A Sra. Forbes voltou ao trabalho, mas agora Seção Masculina dos Perturbados situada num outro prédio. O outono cedeu lugar ao inverno, que, das quatro, era a estação mais penosa. O antigo e inconstante sistema de aquecimento retinia e resfolegava, superaquecendo todo mundo e provocando assim um estado de embotamento e lassídão, quando funcionava, e quando desligava, deixava-as congelar de frio.

- Como será que eles aquecem esse lugar? - perguntou Lee, repetindo eternas perguntas sobre eternas dúvidas, apertando a xícara de café para aquecer as mãos.

- Por um sistema inventado pelo Primeiro Marido Abdicado de Lucy, o VIII - disse Helene.

- Nessa época do ano, há invariavelmente nos sonhos que contamos aos médicos um personagem que cuida do aquecimento, já repararam?

- Ainda assim eles não nos odeiam - gorjeou Mary jovialmente - pelo menos, não a mim. Desprezam-me intensamente, mas não me odeiam, porque a Bíblia proíbe.

Déborah levantou-se e saiu em busca de calor. Desde a erupção do vulcão, embora a angústia continuasse a mesma, a carência por material inflamável amainara. Pressentia a iminência de uma nova explosão de fúria e medo que a impeliria com toda a força de encontro a alguma parede, ou pelos corredores, correndo desabaladamente, até que se chocasse contra uma porta fechada ou um muro qualquer. Ia para o casulo diariamente e, uma vez atada, lutava como um tigreaté se esgotar todo o fogoque lhe ardia por dentro. E, no entanto... sim, no entanto, enfermeiras e auxiliares mostravam-se mais bondosos, brincavam e procuravam sempre reconfortá-la.

- E você não sabe por quê? - perguntou Furii.

- Não. As explosões se sucedem, e eles se dedicam a mim. Quando sinto que a coisa.. vem,peço para me levarem-ao casulo, e eles o fazem de bom grado, por mais tempo e energia que isso tome. Algumas vezes, ficam até conversando comigo.

- Ora, mas é claro - disse Furii num tom meigo. - Quando esse seu vulcão rompeu, algo mais rompeu também: aquela expressão dura que você tinha. As pessoas agora, quando olham jpara o seu rosto, vêem que você reàge e vive.

Déborah ficou gelada de medo, um medo que datava de muitos anos e do qual só a muito custo conseguira se proteger.

- Nacoi. . . nacoi. ..

- O que é Déborah? - perguntou Furii.

- Sempre foi.. . inadequado. . . o que o rosto mostrava: ”Por que você está zangada?”. . . quando eu não estava. ”Por que você está tão sarcástica?”. .. quando eu não estava. Esta foi uma das razões para a intervenção do Censor e das normas de conduta impostas por Yr.

- Sim, mas agora você está livre delas - disse Furii - Seu rosto já não provoca suspeitas. Mostra uma pessoa que reage conforme aquilo que sente. O ódio e o medo transparecem porque são coisas que você sente. Não fique assustada, Você não deve mais procurar esconder o ódio, o medo e, melhor de tudo, o prazer, a alegria, a esperança que transparecem também, pois essas expressões não são inadequadas, como você diz, são muito apropriadas, e a tendência é elas se sujeitarem cada vez mais a um desejo e a uma escolha conscientes.

Déborah, no entanto, continuava assustada. Suas expressões faciais constituíam um mistério que jamais conseguira desvendar. Muitas e muitas vezes, por alguma razão obscura, as pessoas se transformavam de repente em suas inimigas. A única explicação possível era o seu olhar - só podia ser o olhar - alguma expressão ou tom de voz involuntário que desagradava às pessoas, algo, enfim, capaz de transformar aliados em perseguidores. Agora que o vulcão dissolvera a sua fisionomia pétrea, temia que tudo recomeçasse de novo: a vida - nacoi - cujas leis insondáveis viviam armando surpresas contra as quais não sabia como se defender.

A tarde estava fria e nublada. Déborah e a auxiliar voltavam do consultório da doutôra, tiritando de frio.

Esse frio está de rachar! - comentou a auxiliar. Era bom ouvir alguém falar assim. Déborah decidiu pagar na mesma moeda, confessando outra verdade.

- Você tem sorte. Só tem um tipo de frio com que se preocupar, um frio que pode ser remediado com casacos.

A auxiliar fungou. - Não esteja tão certa disso! - Déborah se lembrou de que McPherson lhe havia dito há muito tempo atrás: ”O que a faz pensar que é dona de todo o sofrimento?” Arrependida com o seu comentário, virou-se para ela e disse: - Perdão. Não quis magoá-la.

Mas a auxiliar estava furiosa. Desatou a contar como era difícil educar os filhos e trabalhar horas e horas a fio para receber uma miséria de salário. Déborah entendia perfeitamente o que se passava com ela, como devia achar horrível limpar excrescência de corpos adultos e conviver com a barulheira infantil e patética das intemas. A mulher estava furiosa, sobretudo porque Déborah simbolizava naquele momento ”o serviço” mas o desabafo era sincero e impessoal, e por isso não a magoava.

Ao chegarem à porta da ala, cuja fechadura e chave representavam outros tantos símbolos do ”serviço”, o relacionamento se esfumou imediatamente. A auxiliar, dando por encerrada a missão, afastou-se dela com o rosto impassível, sem uma palavra.

Durante algum tempo Déborah caminhou a esmo pelas dependências da ala. Depois da troca de turnos, pediu autorização para ficar a sós no quartinho da banheira. Chegando lá, foi direto sentar-se sobre a tampa do velho aquecedor, seu cantinho predileto. Um pouco abaixo, havia uma janela que dava para um relvado existente no hospital, cheio de árvores, e rodeado por um muro recoberto de espessas sebes. Déborah chamava aquele lugar ”A Reserva”. O sol, declinando no horizonte, refulgia através dos interstícios da sebe, decorando o relvado com uma infinidade de estrelinhas frias, e a luminosidade difusa ressaltava a nudez cinzenta das árvores. Reinava uma grande quietude. Yr se acomodara, todas as vozes de todos os mundos silenciaram.

Pouco a pouco Déborah foi distinguindo as formas, e cores das coisas As árvõrês ladeavam o passeio que circundava o jardim, a sebe, e por sobre a sebe, o céu límpido de inverno. O sol se pôs, e as tonalidades de crepúsculo deram à Reserva dimensões ainda mais belas.

Lentamente, veio se achegando, ganhando vulto, até se infiltrar a certeza de que não morreria, a certeza inabalável de que iria viver.

com um misto de espanto e reverência, transbordando de alegria e de receio, Déborah indagou ao crepúsculo: - Quando começará a vida? A resposta não se fez esperar: já estava começando!

Era noite fechada quando abriu a porta do banheiro e saiu de novo para a ala. A terceira dimensão, o significado, persistiu nas superfícies nuas dás paredes, nas portas e nos relevos dos rostos e corpos das pessoas. Sentia uma curiosidade insaciável de olhar, de ouvir, de apalpar, de se regalar com a luz, os relevos e os significados novos que percebia ao seu redor. As decepções, no entanto, ensinaram-lhe a ser cautelosa. Sujeitaria essa nova descoberta às flechas do caçador de tempo de Furii.

No jantar, surpreendeu-se repugnada por ter de comer com os dedos e uma colher de pau. Saboreou a comida e o próprio ato de mastigar.

- Seja lá o que isso for. . . - murmurou. . . - quero ver agora qual a surpresa que estão me reservando. - Passou a noite escutando os auxiliares conversarem uns com os outros como sentinelas solitários em seus postos avançados numa terra estéril e hostil. Começou a ficar seriamente preocupada com aquilo. E se fosse mais um lance do Jogo, fadado a terminar, como sempre, numa gargalhada triunfal do mundo.

Quando engoliu o sedativo e- foi para a cama, falou para Yr: Sofram,

Sofra, Pássaro-um, estamos escutando. ..

Tenho uma pergunta: Dois nativos figuram numa história em quadrinhos, mas não sabem disso, e crêem estar vivos. Preparam uma fogueira na ilha onde acamparam, que na realidade é o lombo de um hipopótamo mergulhado na água. Começam a cozinhar o jantar, Quando o calor atravessa o couro do hipopótamo, o animal se ergue e se afasta, carregando consigo os nativos atônitos que olham sem entender nada. Nesse ponto, o leitor dessa história em quadrinhos ri, vira a página e encontra os nativos, a surpresa, a selva, o rio, o hipopótamo e o fogo. A pergunta é a seguinte: Qual será a próxima expressão de seus rostos? O que farão a seguir?

Seria preciso esperar para ver o que acontece - respondeu Anterabae. Quem sabe, o que aconteceu já não terá passado amanhã.

Talvez isso não te diga respeito - ajuntou Lactamaeon.

- Talvez o melhor seja esquecer tudo isso.

- Talvez seja apenas um sintoma - ponderou Déborah.

Na manhã seguinte, deixou-se ficar na cama, relutando se seria ou não uma medida sábia abrir os olhos. Escutou um grito no corredor e, em seguida, os movimentos de uma estagiária nas proximidades - o farfalhar do avental e o tom agressivo de voz - tentando acordar Mary Dowbens. As pálpebras cerradas coavam a luz matinal numa tonalidade rubra. As felizardas que dormiam junto às janelas recebiam sol a manhã toda, ao passo que o resto do dormitório, só por algumas horas. Déborah revirava a cabeça em busca do que havia mudado nela.

Alguma coisa aconteceu comigo... - sussurrou. - Alguma coisa, ontem. O que foi? O que foi?

A estagiária acercou-se dela: - Vamos, Srta. Blau, está na hora de levantar. Veja que dia glorioso.

- O que tem para o café da manhã? - perguntou, mantendo os olhos fechados para não perder de vista as perguntas que se fazia.

- Pratos regionais típicos - respondeu Mary Fiorentini asperamente. - Nunca especificam de qual região, mas eu cá comigo tenho algumas suspeitas!

- Que espécie de pratos regionais servem para pessoas que estão fora desse mundo? - perguntaram.

Déborah se lembrou subitamente do que tinha acontecido na noite passada; as cores, formas e sentidos redimensionando sua percepção das coisas, e uma sensação plena e maravilhosa de vida. Será que continuavam lá, aguardando do outro lado das pálpebras?

Escancarou bruscamente os olhos. Sim, continuavam lá. Levantou-se, envolveu-se no cobertor, e foi até a enfermaria.

- com licença, podia informar se hoje é dia de ver minha médica? - Quantas vezes não assomara àquela porta mendigando! Desta vez, parecia ser diferente, embora o comportamento das pessoas fosse o mesmo de sempre.

- Um minutinho, por favor. Sim, você tem hora hoje. Às duas horas.

- Posso ir sozinha?

A enfermeira olhou para ela desconfiada. - Terei que pedir uma autorização escrita do administrador da ala. Aviso assim que puder.

- Bem, nesse caso eu gostaria de vê-lo.

- Ele não virá hoje.

- Anote o meu nome, então, por favor.

- Está bem. - A enfermeira deu as costas e se afastou. Déborah sabia por experiência que não convinha insistir

muito, ainda que o mundo pudesse se esvair quando a permissão fosse dada.

No início da sessão, estava morrendo de medo de que, ao falar, estragasse tudo, e só depois de muitas evasivas, acabou contando a Furii como estava vendo diferente, e sobretudo como as coisas tinham readquirido uma significação e como desabrochara pouco a pouco a esperança.

- Foi uma experiência inteiramente inédita para mim - concluiu. - Fez-me pensar muito em você, pois, numa declaração simples e categórica, tive de repente certeza de que eu iria viver, iria sobreviver a tudo isso.

Furii lhe dirigiu um olhar interrogativo. - Você acha que é um prognóstico verdadeiro?

- Prefiro não responder, porque posso entrar pelo cano depois.

- Não, isso não vai acontecer. Nada mudará para nós.

- Bem, nesse caso. . . acho que. . . acho que é verdadeiro sim.

Que tal verificarmos? - propôs Furii - Vamos ao trabalho?

Durante o resto da sessão, desbravaram picadas em busca de velhos segredos, analisando-os sob novos ângulos, graças à determinação que animava Déborah.

Compreendeu, então, que assumira o papel do soldado japonês (estrangeiro, inimigo e violento) como uma resposta à hostilidade que enfrentava na colônia de férias; como uma forma de dar vazão à raiva que sentia. Seu raciocínio evoluiu, em seguida, detendo-se na questão do martírio: ser martirizada tinha algo a ver com Cristo, objeto ao mesmo tempo de orgulho e de repúdio de todo judeu.

- Raiva e martírio... - cismou. - O soldado japonês personificava justamente isso, e eu dei aos médicos o ”bom soldado” que eles queriam. Raiva e martírio... há algo mais aí... uma referência a alguém que me é familiar...

- Procure lembrar-se! - instigou Furii - Devem existir muitos suportes para que você pudesse se agüentar todos esses anos.

- Uma referência e... sim! sim, é claro! ao vovô! -exclamou Déborah excitada, ao desencavar o tirânico Latviano em quem afivelara uma máscara tão irreconhecível. O molde do soldado vestia como uma luva no avô. - O soldado que eu encarnei em segredo era um mutu, termo Yri que designa uma espécie de imagem utilizada para camuflar meu parentesco com ele.

- Descobrir isso... dói tanto assim?

- Dói um bocado... - confessou Déborah.

- Os sintomas, a doença e os segredos têm muitas razões de ser. As partes e facetas se emaranham e se sustentam umas às outras, fortalecendo-se mutuamente. Se não fosse assim, bastaria aplicar uma injeçãozinha dessa ou daquela droga, ou então uma breve hipnose, e exclamar: ”Loucura, desapareça!” e pronto, você estava curada. Esses sintomas erguem-se sobre inúmeras necessidades e servem a muitos propósitos. Por isso é que extirpá-los causa tanto sofrimento.

Agora que tenho o. .. sentido de realidade terei que abdicar de Yr. . . de tudo. . . desde já?

O importante é não fingir que abdica. Estou certa de que você abdicará dele espontaneamente, quando puder substituí-lo pelo mundo real, o que não quer dizer que deva firmar um pacto comigo nesse sentido. Jamais pedirei que desista de seus deuses pelos meus. Quando estiver pronta, aí sim, escolha.

Após uma pausa, concluiu num tom grave: - Não permita que eles a torturem cada vez que você se abre um pouco à luz saudável do mundo.

Ao retomar à ala, encontrou o ”pelotão de queimadura” esperando por ela, encabeçado, dessa vez, pelo doutor Venner. Déborah o apelidara ”Horizontes Perdidos”, pois ele vivia com o olhar perdido à distância, um olhar que trespassava as pessoas como se elas não existissem, e o apelido tinha colado. Ele estava impaciente e irritado por não tê-la encontrado, esperando documente pelos seus ungüentos, furioso com a obstinação das queimaduras que não cicatrizavam, e porque a limpeza das feridas, ao invés de provocar a dor que ela merecia, a deixava impassível. Déborah, que detestava o doutor Venner, provocava sua ira com gracejos dirigidos a Quentin Dobshansky que, segurando as bandagens, empalidecia cada vez que o médico arrancava com uma esfregadela mais brusca um pedaço de pele, expondo a carne viva.

- Segure firme esse braço! - resmungou Venner de mau humor, e esfregou o algodão com tamanha violência que o sangue recobriu a ferida. - Maldição! - murmurou.

- Calma, doutor Venner - disse ela com brandura. - Não precisa ficar danado. Eu tenho um tumor falsificado aqui dentro que compensa longe a dor que está faltando aí no braço.

Dobshansky mordeu o lábio para não rir, mas logo as mãos inábeis do médico cavoucaram fundo de novo, e ele conteve a respiração: - Uhh! Calma, Deb!

- A dor é apenas teórica, Quentin - disse ela. - O que dói é ficar levando coices de forças que para os outros são invisíveis e inofensivas, é ser louco durante anos sem poder dizer nada porque ninguém acredita no que você diz. Cada vez que eu me dobro de dor por causa de um tumor fictício, há sempre um professor à mão para sentenciar que é impossível que esteja doendo. Como cortesia, aplicam uma ou duas doses da dor em sentido contrário.

- Fique quieta! - repreendeu o Doutor Venner. - Estou concentrado nisso.

Dobshansky piscou para a enfermeira que acabara de chegar e Déborah se sentiu no íntimo lisongeada por terem consentido que ela presenciasse esse pequeno gesto.

Alguns dias depois, o médico novo veio procurá-la. - Já é tempo de darmos uma nova olhadela nas queimaduras.

- O último a dar foi Venner, e se ele não conseguiu chegar até o osso ninguém vài conseguir.

O comentário o apanhou de surpresa. - Tenho estado preocupado com essas feridas - apressou-se a dizer para encobrir o constrangimento pouco profissional, mas a emenda foi pior do que o soneto, Ficou mais constrangido ainda, lembrando-se provavelmente das recomendações de alguma página de manual: - ”Nunca Admita ao Paciente que Está Preocupado”. Procurou concertar o erro sem muito sucesso. - Bem. digamos interessado.. .tive uma idéia que talvez dê certo. - Retirou do bolso um tubinho de remédio e despachou o cortejo de enfermeiras que se apinhava à volta. Trocaram um sorriso discreto e conspirador, suspirando aliviados.

Ele examinou os braços, retirando delicadamente a gaze malcheirosa; a pele ao redor das feridas começava a tomar a mesma consistência desfeita.

- bom, vamos experimentar. - Pela cara dele, a coisa não devia estar muito boa. Ao terminar os curativos, disse: - Fui o mais cuidadoso que pude. Espero que não tenha doído muito.

- Não se preocupe - retrucou Déborah, interpondo entre ambos a imensa distância de Anterrabae cadente, pois só assim seria capaz de oferecer um sorriso. - Algum dia, quem sabe, doerá.

Dias depois, quando cortaram as ataduras, a putrefação desaparecera completamente. A enfermeira-chefe sacudiu a cabeça assombrada: - Qual foi o troço que ele usou aqui?

- Ele deixou lá no armário número 6 - informou Cleary.

Déborah olhou para ela e avisou: - vou preparar minha contribuição.

E o que vem a ser isso? - perguntou ela num tom impaciente.

Ora, um sorriso...

Já que iria viver - e vivia -, as novas cores, dimensões e percepções adquiriram um caráter de urgência incontrolável. Debora regulava-se com as formas, luzes, relevos, movimentos que ia descobrindo ao seu redor. Passou a observar atentamente as fisionomias das pessoas, a escutar embevecida suas conversas e a conversar com elas. Embora tudo aquilo fosse novo, e apesar de seu acanhamento, sentiu que a Ala D, com suas pacientes acabrunhadas e inertes, suas enfermeiras apressadas e inamistosas, tornava-se uma realidade estreita demais. Sua impaciência e avidez já não cabiam nas engrenagens pesadas do hospital. Começou a escalá-las, quase que as ouvindo gemer sob o seu peso. Pouco a pouco, foi recuperando a distância, por meio da qual os médicos avaliavam a responsabilidade do paciente: passou a ir sozinha ao consultório da sua médica (100 pés = 1 hora de sanidade); a passear sozinha nos pátios da frente (200 pés = 3 horas de sanidade); em seguida, nos de detrás também (1 milha = 5 horas de sanidade); até que, finalmente, requereu sua transferência para a Ala B, onde poderia dispor de todo um arsenal de livros, lápis e blocos de desenho. No decorrer dessa escalada, não só fortaleceu a convicção de que esTavá viva, como sentiu o amor pelo mundo que se abria diante dela.

- Se estou viva, a minha substância é igual à dos outros... a mesma substância, compreende! - exclamou para Furii excitada, num gesto que abarcava o mundo todo. A última estadia., na Ala B fora um período sombrio e silencioso, povoado apenas pelos bramidos do Coletor e a efervescência do vulcão. Seus olhos estiveram fechados a tudo e a todos. Limitara-se a ir ao banheiro, a comer e a ingerir os sedativos. Dessa vez, porém, assim que chegou, foi pessoalmente apanhar a roupa de cama perscrutando com avidez as fisionomias das enfermeiras, perguntou seus nomes, e fez questão de ficar no quarto da frente onde havia barulho e vida.

A enfermeira-chefe ergueu os olhos para ela. - Você conhece Carla Stoneham, não conhece?

- Ela voltou? Eu.. . Eu pensei que tivesse deixado o hospital.

- Sim, ela ficou como paciente externa por algum tempo disse a enfermeira, esforçando-se para conservar o tom neutro de voz. - Mas agora está de volta.

Chegando ao quarto, quando viu Carla, Déborah sentiu os olhos umedècerem.

- Bem, vocês se conhecem, não é meninas? - A enfermeira pôs o cobertor sobressalente na outra cama e saiu.

- Ôi, Déb. . . - Parecia estar arrasada e humilhada. Déborah, transbordando de afeição, fechou os olhos e, arrancando uma a uma as palavras, entregando-se toda, disse em tom de súplica: - Carla, gosto muito de você; não há porque ficar humilhada. Talvez eu esteja sendo egoísta, não importa. Estou contente de encontrá-la aqui, porque é aqui que eu estou. - Enquanto fazia a cama e arrumava suas roupas, iam levando uma conversinha miúda: falaram sobre a velha Coral, a última fundição de cuca de Mary, as enfermeiras da B (quais as que socorreram um caso de confusão, quais as que não).

Déborah comentou: - Não ouvi boatos de que você tivesse voltado. - Olhava fixamente para ela, procurando transmitir naquele olhar mil coisas que representariam uma intrusão inadmissível se fossem ditas em palavras.

- Foi uma solidão dos diabos, lá fora, nada mais - respondeu Carla, concedendo-lhe, assim, o privilégio de formular uma pergunta. Déborah procurou ser o mais concisa possível.

- Foi difícil voltar?

- Bem. . cg uma derrota, não é. . . - com um aceno de cabeça, afastou delicadamente a pergunta e saiu por uma tangente: - Me senti muito sozinha no emprego o longo percurso de manhã até o trabalho me deixava meio hipnotizada, e depois não havia ninguém com quem conversar, exceto os técnicos com os seus ”bom dia”, ”boa tarde”. À noite ia ao cinema ou ficava no quarto lendo livros técnicos para me atualizar. Logo logo as ruas começaram a me lembrar outras ruas, as ruas de St. Louis, a mesma rotina, as mesmas sensações. . . aí a cuca fundiu de novo.

Seu rosto tinha adquirido uma expressão amargurada e tristonha mas, de repente, sacudiu longe aquelas idéias e reanimou-se. - Isso não quer dizer que ninguém terá sucesso - e emendou logo - nem quer dizer que eu vou deixar de tentar novamente. O problema é que saio às vezes por pura provocação quando, na realidade, ainda estou despreparada.. . - O retinir de uma campainha interrompeu Carla. - Abriram a oficina da T. O. Venha, vamos até lá.

Ao sair para o pátio, Déborah inspirou com vontade o ar frio e constante do inverno. O dia estava muito lindo. Para além da sebe que delimitava a Reserva, subiam rolos de fumaça e de vez em quando ela aspirava o cheirinho de queimado. Sentia-se transbordar de alegria. Tinha junto de si uma amiga e, na oficina, a aguardava um bloco de desenho só para ela. Queria conter aquele transbordar de gratidão, mas seus olhos devoravam as cores e dimensões do mundo, seu cérebro apalpava as leis que regiam a raça humana e consubstanciai - movimento e gravidade, causa e efeito, amizade e a sensação de ser plenamente humano. Sua atenção foi despertada por um ruído às suas costas. Era a Srta. Coral que acenava para elas lá de cima, por detrás das grades de uma das janelas da Ala D.

Carla contou as janelas e concluiu: - É. .. enclausuraram ela de novo. - Acenaram de volta e, durante algum tempo, ficaram se comunicando por meio de sinais.

(Meti-me numa briga) disse a velha espalhando as mãos pelo vão da janela.

(Estou livre!) respondeu Déborah, rompendo correntes no ar e ensaiando uma cambalhota.

(Até onde?) perguntou a outra, fazendo um gesto de quem olha para o mar.

Déborah construiu um muro com o braço, e parou diante dele com a mão.

(A enfermeira vem aí!) exclamou a velha, pondo as mãos na cabeça para indicar as duas abas da toca branca e sacudindo, em seguida, uma chave imaginária.

(Tchau!) acenou rápido e sumiu.

Não repararam na auxiliar que tinha saído pela porta dos fundos, e que ao vê-las gesticulando no passeio, perguntou intrigada: - O que estão fazendo, meninas?

- Praticando... - respondeu Carla - só praticando. - E continuaram em direção à T. O. que ficava num dós anexos do hospital.

A oficina tinha um aspecto animado de trabalho. As pacientes costuravam, modelavam em barro, liam, faziam colagens com retalhos de pano e cola. Observando mais atentamente, porém, via-se que toda essa atividade era puro faz-de-conta, visava apenas mantê-las-ocupadas, ocupar por ocupar. Déborah não falou nada; sentia-se extremamente embaraçada. Desterradas pelas leis do mundo, aquelas párias aqueciam as mãos diante da ilusão de uma faina gratificante. Procuravam em vão extrair de pedaços de papel e traços velhos, de tocos carcomidos de madeira, a textura da realidade. Numa terra onde a ”utilidade” era enaltecida ao máximo, o ”terapêutico” faz-de-conta representava, aos olhos de Déborah, uma bofetada inconsciente no orgulho que as pacientes deveriam supostamente estar fortalecendo. Uma orientadora da Terapia Ocupacional, vestindo um uniforme listrado de azul e branco, veio recebê-las.

- ôi, como vai Carla! - saudou com uma jovialidade um tanto excessiva. Voltou-se para Déborah e perguntou: - Trouxe-nos uma visita?

- É... - disse Carla. - Queríamos apenas dar uma olhada. Esta é Déborah.

- Ora, é claro! - exclamou entusiasticamente. - Já a vi antes, se não me engano na Ala D!

No mesmo instante, todas as cabeças se despregaram das respectivas ocupações e viraram em sua direção. Déborah visualizou mentalmente: a instrutora, em trajes de caça, atirando num trigal ondulado pelo vento e, logo em seguida, a revoada súbita e alarmada de um bando de pássaros. Carla sentia-se compreendendo o que se passava, e, irritada, virou-se para a mulher e declarou em alto e bom tom: - Ela agora está na Ala B e é minha companheira de quarto.

As fisionomias se descontraíram, as mãos retomaram o trabalho. .

Ficaram ainda algum tempo por ali, e Déborah foi apresentada a alguns rapazes. Parecia-lhe inconcebível que pudesse haver homens mentalmente enfermos. Foram depois.até a Ala A, que estava aberta, e onde sempre havia um bule de café à disposição tanto dos pacientes quanto dos médicos.

- Eles têm prioridade - ia dizendo Carla. - A função desse bule é infundir esperanças na gente; se tiver sobrado café, talvez nos dêem um pouco. - Déborah preferiu não entrar. Um tiro no trigal já era suficiente para o dia.

- Carla... você que já esteve fora, realmente fora, me diga uma coisa: é assim que acontece lá, quando a gente entra numa sala?

- Para conseguir emprego, você tem que apresentar documentos e, geralmente, há uma assistente social para testar você. Pode acontecer uma situação muito, muito desagradável, mas as pessoas têm, as vezes, uma conduta melhor do que a gente espera. Várias firmas exigem que você apresente o ”atestado de sanidade”, e dão a isso uma importância muito grande. Em compensação, você encontra pessoas maravilhosas, que lhe dão uma força enorme. O pior de tudo é o que a gente sente quando todo mundo se mostra muito cortês, ”bom dia” para cá, ”boa noite” para lá, e na verdade a distância entre você e eles vai aumentando, aumentando. .. Os médicos afirmam que a culpa é dos doentes - que é minha a culpa. Dizem que se eu fosse menos ansiosa, seria mais fácil criar amizades, mas é muito fácil falar. Queria ver um desses médicos tentar ingressar num grupo novo, carregando um estigma pesadíssimo na testa, consciente de que está sendo aceito unicamente graças à piedade ou a uma fascinação mórbida das pessoas.

Déborah caiu na gargalhada: Ótima idéia! Médicos! Viagem financiada ao Exterior. Passem um ano glorioso como pacientes nós manicômios!

Carla também riu. - Ponham de lado seu prestígio, seus direitos civis, seu orgulho! Conheçam essa deslumbrante excursão e vibrem com o falso ”tubo-bem, tubo-bem”, quando estiverem no ponto de chegada!

Ficaram horas inventando charadas, desforrando-se de todos os médicos que usavam seu prestígio e a falsa noção de que eram donos da verdade ”para conservar à distância seus pacientes. Os únicos, segundo Déborah, que não precisariam dessa viagem ao exterior eram o doutor Halle, Furii e o médico novo, pois jamais haviam fechado completamente as portas aos pacientes.

Caminhavam de volta para a ala, conversando, quando Déborah disse: - Tenho uma coisa para lhe contar. É sobre Helene. Nós sempre rimos das brincadeiras dela, apesar de serem extremamente agressivas. Sabe, venho notando que, de algum tempo para cá, ela tem demonstrado uma preocupação maior pelas pessoas. Quando ia deixar a Ala D, eu a encontrei me esperando junto à porta. Logo que surgiu uma oportunidade de ficarmos a sós, ela se virou para mim e perguntou: - ”Por que você vai sair, e não eu”? Respondi então: ”Sim, por que não”? ”Quem sabe. .. quem sabe. ..” - disse ela distraidamente como se estivesse pensando naquilo pela primeira vez. Nunca vi Helene tão desarmada, mesmo nas suas ausências.

É óbvio que, quando a enfermeira viera levar Déborah para baixo, Helene se refizera imediatamente, e começara a agitar o punho e a xingá-la de ”puta”, ”idiota”, e a persegui-la com seus gritos: - Não se esqueça! - Déborah apenas sorria, sabendo que, na realidade, Helene estava xingando o ”Talvez”, o dia em que teria que descer também. Na porta que dava acesso à Ala B (esta já não tinha chaves) cruzaram com o tal médico novo. Ao ver Déborah, seu rosto iluminara-se todo: - Ei! (escancarara um vasto sorriso). Contaram-me que você vai mudar de endereço. Parabéns! - Déborah sentia que ele não zombava. Não lhe passara pela cabeça que o primeiro contato com o mundo recém-descoberto viesse a ser algum vinho inebriante para merecer recepção tão calorosa. Talvez ele não esteja em condições de julgar - sussurrara aos deuses de Yr, a título de expiação.

- Descobri uma coisa estranha, que jamais tinha me ocorrido antes - disse à Doutôra Fried. Descobri que os judeus também são intolerantes a seu modo. Nunca tive um amigo que não fosse judeu, nunca dei a menor confiança a quem não fosse judeu. O doutor Hill, o médico novo, e Carla são protestantes; Helene é católica; a Srta. Coral teve uma formação batista, aliás... daquelas bem fanáticas. ..

- E então?

- Percebi que tenho realizado inadvertidamente uma curiosa operação mental. Eu as transformo em judias, para que possam se aproximar de mim.

- Como é que você faz isso?

- Bem, o primeiro passo é esquecer que elas são gentias, POis sempre nos disseram que as gentias acabam sempre nos traindo. A etapa seguinte consiste em esquecer que não são judias. Ontem, por exemplo, Carla perguntou a minha opinião sobre uma determinada pessoa. Sabe o que eu disse? ”É daquelas que, para se destacar, procura chorar mais do que todo mundo no Purim”. Só depois que ela olhou para mim com cara de surpresa, e depois de dar muitos tratos à bola foi que me lembrei que ela não poderia entender o que era Purim, não era judia.

- Mas você é capaz de admitir que elas sejam o que são, e voèl seja o que é, e continuar a amá-las?

- Isso eu aprendi aqui no hospital - disse Déborah pensativamente. - Para um maluco, não faz a menor diferença se o outro é um maluco judeu ou um maluco cristão. . .

A doutôra se lembrou de um artigo que tinha escrito discutindo a importância de o médico alertar o paciente, na fase de recuperação, para os sintomas de loucura que terá de encontrar no próprio mundo, e prepará-lo para utilizar a sua saúde em proveito da razão e da liberdade.

- Déborah, você não imagina como estou satisfeita por ter descoberto isso! Mudando de assunto agora, tenho pensado naquela história que me contou, a tentativa de jogar a sua irmã recém-nascida pela janela; há certos detalhes que não me saem da cabeça. Acho que tem dente de coelho nessa história. Você poderia repeti-la para mim?

Déborah relatou novamente o episódio: como alcançara o berço e apanhara o nenenzinho, cuja feiúra lhe saltava aos olhos, por mais que as pessoas o achassem adorável; como estendera a criaturinha pela janela; a chegada repentina da mãe, a vergonha de ter sido apanhada em flagrante e de odiar a irmã; posteriormente, o amor culpado que a fazia estremecer ao pensar que, por pouco, não matara Suzy àquele dia. Por sobre o incidente pairava o olhar reprovador dos pais que, embora soubessem de tudo e estivessem mortalmente decepcionados e envergonhados com ela, guardavam um silêncio misericordioso.

- A janela estava aberta? - perguntou Furii.

- Estava, mas lembro-me de tê-la aberto um pouco mais.

- Você a abriu todinha?

- O suficiente para me inclinar para fora com o bebê.

Entendo. Quer dizer que você abriu a janela, experimentou se inclinar para fora e depois foi buscar sua irmã?

- Não. Primeiro eu a peguei nos braços, e só então decidi matá-la.

Entendo... - Furii reclinou-se na poltrona com um ar satisfeito. Parecia Mr. Pickwick depois de um lauto jantar. Agora vou virar detetive - declarou. - Afirmo-lhe que essa sua história fede como p diatip! Uma criança de cinco anos de idade suspende um bebê consideravelmente pesado, carrega-o até a janela, apoia-o no peitoril, escorando-o com o corpo enquanto abre a janela, experimenta inclinar-se para fora e, em seguida, suspende o bebê por sobre o parapeito e o estende para fora, com os braços esticados, pronta para soltá-lo. Nisso, a mãe entra no quarto e, num piscar de olhos, essa menina de cinco anos puxa de volta a irmãzinha para dentro, que, por sua vez, começa a chorar para que a mãe a pegue no colo...

- Não... a essa altura dos acontecimentos, ela já estava de volta no berço.

- Muito interessante! - disse Furii. - Agora, de duas uma: ou eu estou louca, ou você construiu essa historia inteirinha aos cinco anos, no dia em que entrou e viu o bebê no berço, odiando-o o suficiente para desejar matá-lo.

- Não é possível, eu me lembro. ..

- Você pode se lembrar do ódio que sentiu, mas os fatos estão todos contra você. O que foi que a sua mãe disse assim que entrou? Foi: ”Largue já esta criança!” ou ”Não machuque o bebê!”?

- Não, não foi nada disso. Lembro-me perfeitamente do que ela disse: ”O que é que você está fazendo aqui”? O bebê chorava.

- O que me surpreende mais é que eu estava tão ocupada em ouvir o conteúdo emocional da história - o ódio e a dor - que não prestei atenção aos fatos. Foi preciso que eles gritassem por mim mil vezes, para que eu me desse conta. D ódio, era verdadeiro, Déborah, e a dor também, mas você era simplesmente pequena demais para fazer qualquer uma dessas coisas que julga ter feito. A vergonha que, segundo você, seus pais Sentiram todos esses anos é uma invenção do seu sentimento de, culpa por ter desejado a morte de Suzy. Graças à falsa noção do seu poder destrutivo (noção, por sinal, que a doença a impede de superar) você traduziu esses pensamentos numa ação supostamente real.

- Pode muito bem ter sido verdade. Há anos que convivo com isso, como se fosse mesmo real.

- Sim, concordo. - Furii sorriu. - Só que de agora em diante, você não poderá mais se flagelar com esse chicote. Nossa suposta assassina não passa de uma menina ciumenta de cinco anos de idade- Era um berço - retificou Déborah.

- Daqueles com pernas? Meu Deus, nem sequer conseguiria alcançar a borda dele. Vou.devolver meu emblema de detetive amanhã mesmo!

Os pensamentos de Déborah recuaram no tempo até aquele fatídico quarto: viu-se aos cinco anos olhando, junto ao pai, a irmãzinha. Seus olhos estavam no nível dos nós dos dedos da mão dele. Por causa do cortinado do berço, precisou se erguer na ponta dos pés e espreitar pela borda. - Nem sequer toquei nela.. . - murmurou abismada. - Nem sequer toquei nela. . .

- Já que você está de volta àqueles dias, poderíamos muito bem vê-los juntas - propôs Furii.

Déborah começou a falar sobre aquele ano cheio de coisas luminosas que antecedeu o reinado da tristeza. Explorou aqueles tempos fugazes e mágicos, carregados de expectativas. Percebeu que, apesar do suposto assassinato, apesar de ter sido privada dos mimos que lhe cumulavam a família, ainda não estava acorrentada ao signo da destruição. Compreendeu que houvera uma época em sua vida, repleta de situações felizes, de esperanças, de futuro.

Quando retcomou daquela incursão, as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Furii aquiesceu num gesto complacente: - Estou de pleno acordo. . . A felicidade dos seus primeiros anos de vida constituía uma prova irrefutável de que não estava condenada geneticamente, condenada de corpo e alma. Déborah chorava copiosamente. Era ainda um choro de principiante, áspero, entrecortado, amargo. Furii deixou que ela chorasse à vontade, e quando se acalmou, perguntou-lhe numa voz meiga: - Foi gostoso?

- Que dia é hoje? - indagou Déborah.

- Quinze de dezembro. Por que pergunta?

- Estava pensando em voz alta. O tempo de Yr é intemo. Há dois calendários; no de Yr não há mês. Os dias são demarcados pelas vezes em que o Coletor se reúne para julgar.

- Sim...

- Bem, acabei de me lembrar que hoje é Quarto Englift para Annot. Isto quer dizer que estamos num calendário ascendente. - Faltava-lhe ainda coragem para confessar que, por algum milagre, ela parecia ter ascendido do Inferno ao Purgatório.

Ao deixar o consultório, foi caminhando para a ala sob uma chuvinha fina ê gelada, tiritando de frio, felicíssima porque, dessa vez, era um frio sujeito às leis e estações da terra. Observava as árvores da Reserva, com seus galhos úmidos e enegrecidos, quando avistou Idat caminhando no alto de um deles. Seus véus ondulavam docemente ao sabor de um vento intemporal.

Sofra, vítima - saudou Idat.

Oh, Idat - exclamou Déborah em Yri. - A terra tcomouse tão boa agora. Por que manter a ambos, Yr e o Outro Lugar, e caminhar para a ruína?

Não estou linda nessa árvore? - indagou a deusa. As perguntas tinham, em Yri, uma sonoridade pungente, pelo modo como eram formuladas, e porque apenas sugeriam a dúvida. As respostas de Idat, a Dissimuladora, eram sempre muito difíceis. Penso em tomar-me para sempre uma mulher - disse ela. Terás agora um modelo a seguir.

Déborah, sabia, no entanto, que jamais poderia tomar Idat como modelo. Diferiam em todos os sentidos; Idat era deusa, de uma beleza ofuscante, e nada tinha a ver com o mundo. Quando Idat chorava, suas lágrimas cristalizavam-se em diamantes.

Ficai comigo - Déborah implorou a Yr, usando d termo que significava ”para sempre”. Não houve resposta.

Durante o jantar, Carla se mostrou extremamente nervosa. Suas mãos tremiam e seu rosto estava pálido e doentio. Déborah procurou reconfortá-la com olhares afetuosos, mas em vão. Ao servirem o café, a xícara escorregou de suas mãos trêmulas e espatifou-se no chão, como se fosse a quebradiça crosta de realidade sobre a qual todas elas andavam. O ruído da louça quebrando repercutiu longamente nas pessoas sentadas à mesa, que se apressarasentia-sen a assegurar suas respectivas posições naquela crosta, e estimulou um fluxo de medo pelos sulcos traçados e retraçados dentro de cada uma.

Déborah, num ímpeto, tcomou as mãos de Carla. As mãos ficaram. Foi um gesto súbito, que antecedeu a todo cálculo: o de que quarta Englijt para Annot se constituía numa posição segura de onde podia se aventurar; o de que tinha ainda uma dívida para com Sylvia e já há muito tempo queria dar um beijo em McPherson. Olhou entemecida para Carla. Seu rosto continuava pálido e acabrunhado, mas estava melhor do que antes. As mãos relaxaram. Ninguém disse nada. A enfermeira, cuja função específica era anunciar o final da refeição, ergueu discretamente a mão branca, apenas o suficiente para ser notada, e as meninas, quase que simultaneamente, levantaram-se e debandaram. Só então Déborah compreendeu como se expusera a Carla. Ao subir as escadas, ocorreu-lhe que talvez - não, talvez era um termo forte demais - um terço de talvez, ela fosse mais do que uma simples ex-quase-assassina: a palavra a atingiu como um murro, mas estava lançada, não havia como afastá-la - talvez fosse um pouquinho boa.

O sonho se passava numa noite escura de inverno. Das trevas surgiu uniãTimènsa mãõTêcháda. Era uma mão possante de homem, cujos relevos, ossos e tendões destacavam-se nas sombras. A mão se escancarou, mostrando sobre a extensa palma três pedacinhos de carvão. Foi se fechando lentamente, contraindo-se com uma força estupenda. O punho, emitindo uma incandescência lívida, pressionava, pressionava, pressionava... Déborah tinha uma sensação violentamente opressiva de esmagamento. Parecia sentir todo o sofrimento do carvão em seu próprio corpo, como se estivesse revivenciando as dores lancinantes do nascimento. Chegou a um ponto que não suportou mais. - Pare! Não vai acabar nunca! - gritou para a mão. - Nem mesmo uma pedra pode suportar isso. . . nem uma pedra! ...

Transcorrido muito tempo, insuportável para qualquer corpo molecular, os tormentos amainaram. A mão virou-se lentamente e lentamente se abriu.

Três diamantes.

Três diamantes translúcidos e reluzentes, desferindo fagulhas luminosas, jaziam sobre a palma. Urna voz trovejou: - Déborah! - e de novo, carinhosamente - Déborah... isso será você.

No dia primeiro de janeiro, Déborah, numa grande ansiedade, o coração palpitando de medo, foi para casa passar cinco dias com a família. Sabia que estranhariam o seu olhar, suas cicatrizes, arranhões e queimaduras, estranhariam sobretudo os vestígios que trazia das privações e da solidão - mas um desejo insaciável de viver novas experiências lhe infundia a coragem necessária.

Receberam-na em casa como a uma heroína. Suzy, Jacob, os avós, e todos os velhos tios abraçaram-na” trêmulos de piedade e medo, ávidos por mostrar que o amor que tinham por ela continuava intacto. Esther preparara um verdadeira, banquete com os seus pratos prediletos. Todas as suas amigas e conhecidas vieram corroborar o fato de que ”apesar de tudo...” e ”não importa que...”

Déborah se esforçou o quanto pôde para não recusar os pratos festivos que lhe serviam e conversar com as pessoas, mas estava exausta, as pálpebras pesavam como chumbo. No hospital, os relacionamentos eram episódicos e fugazes, nunca complicados por mais de dois ou três participantes ao mesmo tempo, e as conversas terminavam, em geral, abruptamente. Não estava habituada a esses bate-papos paralelos, onde os fios de conversa iam se emaranhando como um complicado novelo de lã. Continuava imensa a distância que sentia entre ela e as ”pessoas normais”, coisa que jamais poderia confessar ali.

Jacob cumulava-a de carinhos. Não cabia em si de orgulho por ver a filha pródiga de volta ao lar, sentada de novo à sua mesa. Suas manifestações de carinho eram patéticas e vulneráveis. - Aposto que não servem uma fatia de carne como essa ”naquele lugar”.

Déborah ia responder que bastavam os talheres para a aposta, mas se conteve a tempo.

- Logo, logo você voltará para casa de vez - disse ele.

Ao ouvir aquilo, ela empalideceu tão visivelmente que Esther se apressou em desviar o rumo da conversa: - Bem, veremos, veremos... Não estão deliciosos os cogumelos. . . Está vendo, Debby, fiz os seus pratos prediletos.

- Suzy, sentada do lado oposto da mesa, observava-os em silêncio. A irmã tinha um aspecto feio e cansado. Festejavamna, cumulavam-na de lisonjas como se a sua volta ao lar fosse um verdadeiro milagre. Sabia que precisava proteger essa última Debby, tão pouco vivida, apesar de ser mais velha. Não era exatamente a irmã que desejava - uma irmã que freqüentasse todos os bailes, que tivesse mil namorados, que liderasse a torcida do time da escola, que fosse glamurosa e atraente - mas, por alguma ironia do destino, a felicidade e a paz da família repousavam nela.

- Escuta, Debby - interveio Suzy - mamãe e papai já me contaram que aquele lugar não é uma escola. Agora, se vocês todos deixassem de fazer tanto caso a respeito desse misterioso segredo, as coisas ficariam muito mais fáceis!

Sim, seriam muito mais fáceis... - pensou de si para si. Decidiu ligar do seu quarto para a amiga e comunicar que não participaria da excursão que vinham planejando há tanto tempo. Mamãe e papai precisavam dela agora, Debby também, e de um modo que chegava a ser assustador. . . Precisavam realmente. . . Seus olhos se encheram de lágrimas - queriam demais fazer essa viagem - mas não ousou enxugá-los ali onde poderiam vê-la. Levantou-se precipitadamente, inclusive porque percebia que queriam conversar sem ela. - com licença, tenho que ligar para Annette.

- Você vai com eles, não vai? - perguntou Esther, lembrando-se que, já há muito tempo, Suzy vinha fazendo planos para aquele ”fim de semana”.

- Não. .. vou da próxima vez.

- Você não vai por eu estar aqui? - perguntou Déborah.

- Não. .. não, é que eu quero mesmo ficar dessa vez. Era óbvio que mentia. Déborah, embora estivesse exausta, com a cabeça zonza, depois de um dia tão movimentado, não se deu por satisfeita. - Você combinou com eles para passarem por aqui primeiro, ou algo assim? - perguntou.

Suzy virou-se para ela e ia responder, mas mordeu o lábio, e depois de hesitar alguns segundos, disse: - Não é todos os dias que você vem. Quero ficar com você essa semana.

- Não banque a mamãezinha comigo! Responda a minha pergunta - exclamou Déborah, sentindo que começava a naufragar.

- Não! - berrou Suzy. Deu as costas e correu para o quarto.

- Ela a ama profundamente, Déborah. Acredite - disse Esther. - A família está fazendo o melhor que pode. .. procuramos aplainar todos os caminhos para você. - Déborah, no entanto, estava longe. Aquilo que para os outros não passava de uma caminhada tranqüila, para ela representava uma escalada árdua e exaustiva. Agarrava-se ofegante aos íngremes rochedos, sentindo que cada favor, cada gentileza, por mais amorosa que fosse, era uma dívida a pagar, um suplício que lhe pesava sobre os ombros como massas de chumbo. Entre iguais, a gratidão é recíproca, um intercâmbio natural. Para Déborah, no entanto, dever a esses titãs, que se autodenominavam ”pessoas normais”, incapazes de avaliar a força tremenda que possuíam, só fazia com que ela se sentisse, mais do que nunca, perdida, inepta e solitária.

Na hora de dormir, Esther e Jacob, meio desconcertados vieram trazer a dose de sedativos receitada pelo hospital. Jacob ficou olhando para longe, esperando que ela acabasse de tomar os remédios, e quando se debruçou para beijá-la, sussurrou num tom triunfal: - não é filhinha? Esse é o seu verdadeiro lugar! (O tumor começou a latejar.) Debby, você não precisa ficar naquele lugar de mulhêres histéricas.

- Que mulheres histéricas? - Perguntava-se no íntimo se ele teria escutado sequer um cochicho seu, torcendo, com todas as forças de sua alma, para que não.

- Bem, quando nós visitamos.. . ouvimos os gritos... Déborah soltou uma gargalhada para escapar à aflição de encará-lo: - Ah, já sei! Deve ter sido aquela velha idiota da Lucy Martenson. Ela se vinga de todo mundo fingindo-se de Tarzan. Trepa nas janelas da frente e fica arrepiando os cabelos das visitas.

Nunca ocorrera a Jacob que aqueles gritos aterradores pudessem pertencer a uma pessoa de carne e osso, alguém que se chamasse Lucy, e isso o tranqüilizou um pouco. Deu um abraço apertado e cúmplice na filha, disse-lhe boa noite e saiu.

Nas trevas do quarto, começaram a ser recortados os contornos luminosos dos personagens de Yr. Jamais te odiámos! friZou Lactamaeon, galopando num reluzente corcel. Fcomos para te proteger! - exclamou Anterrabae, acenando com um feixe de centelhas na mão.

Lembra-te de que viemos numa era de esterilidade e de morte de todas as esperanças! - bradou Lactameon.

Sim, e quantas oferendas trouxemos - lembrou Anterrabae Antes não rias em parte alguma. Conosco, tu rias.

Déborah sabia que diziam a verdade. Por mais deslumbrada que estivesse com o mundo - sua riqueza de cores e aromas, os movimentos, os sons, o tempo e uma infinidade de outras descobertas maravilhosas - relutava seriamente em trocá-lo pelo seu outro mundo, o de Yr. Não o Yr anárquico dos últimos tempos, cheio de prenúncios fatais e poços tenebrosos, mas o Yr dos velhos tempos, do ”era-uma-vez uma rainha que se chamava Déborah. . .”, e que belo reino era aquele: havia a gigantesca águia do rochedo, um céu que se perdia de vista, ravinas verdejantes e floridas onde pastavam cavalos selvagens, e os mergulhos com Anterrabae arrastando uma imensa cauda de luz.

tudo começou a mudar com a jurisdição do Censor, depois de um longo período de confusões causados pelas colisões dos dois mundos. No início foi até bom que ele viesse. Protegia e mantinha os mundos separados para que ela pudesse ir em segurança de um ao outro, prestando tributos verbais à Terra cinzenta e desolada, enquanto desfrutava, em segredo, de sua liberdade em Yr. Havia momentos de uma alegria extraordinária, e a felicidade que sentia era tão intensa que seus pés não se contentavam com o chão. Déborah ganhava asas e voava, vôos puros, jubilosos e perfeitos. Lamentavelmente, foram breves esses tempos. Logo o reinado do Censor transformou-se numa tirania intolerável, extensiva a ambos os mundos. Yr continuou sendo fonte de beleza e alegria, mas beleza’ e alegria sujeitas aos caprichos e inconstâncias do tirano.

Agora, era preciso escolher de novo. Só que dessa vez a escala que media as virtudes da terra contava com novos valores-sobretudo a esperança, o pequeníssimo ”Talvez”. Ainda assim, a terra era um lugar extremamente perigoso e traiçoeiro.

O sedativo começou a fazer efeito. Seus olhos foram se fechando e antes de mergulhar no sono concluiu num murmúrio; - Não... não vale a pena trocá-lo pela terra.

Suzy acabou mesmo não indo à excursão. As visitas de parentes se arrastaram pelo dia todo, cuidadosamente agrupados segundo o nível de ignorância das ”condições” de Déborah. Caíra na besteira de trazer um pacote de desenhos seus para mostrá-los a Esther (sua primeira juíza), e ela agora os exibia orgulhosamente a todas as tias e tias-avós. As velhas ficavam olhando com um ar meio estúpido, um sorriso satisfeito pendurado nos lábios, balançando tolerantemente a cabeça. Nenhum dos desenhos continha cenas do hospital, exceto um retrato de Helene de cabelos desgrenhados e olhos vazios, mirando-se num espelho que refletia a imagem da graciosa amiga de faculdade da fotografia. Havia um outro de Constantia com as duas enfermeiras que habitualmente a acompanhavam nos passeios, vistas como figuras minúsculas perdidas num jardim que se estendia até ao infinito. Invariavelmente, as velhas pediam que Déborah explicasse como fizera os desenhos e, em seguida, faziam alguns elogios extravagantes. Antes de irem embora, davam um beijo em Suzy e, com olhares cúmplices, diziam uma piadinha a respeito de suas últimas conquistas (”Não, tia Selma, isso foi há semanas atrás. Fcomos à festa juntos, nada mais”).

Durante o jantar, enquanto Esther fazia comentários lisonjeiros a respeito de seu charme e da sua postura na mesa, Déborah observava atentamente a irmã preocupada com a melancolia que vinha notando nela já há dois dias. Poderia ter ido à excursão, deixando-a entregue àqueles elogios intermináveis; no entanto, preferira ficar. Déborah temia, sobretudo, qu« estivesse transmitindo a ela a sua substância virulenta, e por mais que a consciência negasse, lá no íntimo, sob as camadas da lógica e da vontade, cochichavam: ”Eles mentem! Eles mentem! O veneno existe!”

Aquela noite, tcomou os sedativos e foi para a cama mais cedo. Estava quase dormindo, quando escutou as vozes de Suzy e Esther na sala de estar, discutindo num tom bastante angustiado. - Ai, meu Deus - murmurou Déborah aflita, apurando os ouvidos, mas o sono foi mais forte.

você não os escuta - resmungou Suzy - porque quando não se trata de Debby, você simplesmente não escuta nada. a acontece que eu sou mais do que uma tola, desmiolada e descuidada!

Você não está sendo injusta? - protestou Esther. - ela só vai ficar alguns dias, por isso é que estamos fazendo esse rebuliço todo.

Cada carta - gritou Suzy - cada visita que você faz ela você convoca toda a família. Eu desenho também. Eu danço também e eu escrevi duas músicas para as festas do acampamento de férias, ano passado. Podem não ser tão ”profundas” quanto os desenhos de Debby, mas você nunca chama a vovó, ou convida tia Natalie e tio Matt para escutar a última música que eu compus ou o comentário inteligente que eu fiz!

Será que você não compreende, menina burra! - berrou Esther perdendo as estribeiras. - Eu não preciso fazer isso! Elogiar você é fanfarronice. Elogiar Déborah é. . . justificar. ..

Jacob apareceu na porta do quarto e rugiu furioso: - Calem a boca! Assim vocês acordam até os mortos!

Os três perceberam imediatamente o deslize, o ato falho que, inconscientemente, mas de forma clara, aludia à causa drogada e adormecida de todas as suas dores de cabeça e discussões. Foram para a cama cabisbàixos, morrendo de culpa, cheios de amor e desespero.

Veio a Primavera. Déborah, que continuava deslumbrada com ás formas e cores que descobria no mundo, ia desenvolvendo seus dotes artísticos, aperfeiçoando vários estilos e técnicas novas. Os materiais disponíveis na oficina de artesanato da Terapia Ocupacional eram escassos, mas trabalhava-se com o que estivesse à mão: ”silk-screen”, carvão, aquarela, guache, o que quer que fosse. Enquanto brincava com todos os brinquedos da terra, animada por uma curiosidade insaciável, Yr e as regiões mais obscuras do mundo travavam uma batalha renhida dentro dela. Embora sentisse que jamais conseguiria se identificar com os costumes e hábitos das ”pessoas normais”, o mundo material abria-lhe belas perspectivas e valiosas recompensas. Certa vez, uma paciente recém-intemada perguntou-lhe o que era, referindo-se à religião, e para sua própria surpresa a resposta que deu foi: - Newtoniana.

Essa menina parecia-se muito com Helene. Ficava horas e horas largada num canto, inteiramente inerte e, de repente, soltava um grito lancinante como se tivesse levado um tiro. Chamava-se Carmen, e era filha de um magnata riquíssimo. Déborah sentia que, embora ela estivesse destinada a uma longa permanência na Ala D, havia nela aquela força indef inível que permite prever a cura. Os seus três primeiros meses de ”lua-de-mel”, durante os quais as pessoas se agarram aos últimos trapos de sanidade para encobrir uma horrível nudez, estavam quase se acabando. Quando passavam por Carmem, Déborah e Carla entreolhavam-se, dizendo com os olhos: ”Quando essa explodir, vai chegar até o teto”.

- Ei, Carmem, vamos até a Ala A jogar pingue-pongue?

- Não posso. Meu pai vem me visitar essa tarde.

- Você quer que a gente fique por perto ou não? - perguntou Carla, oferecendo ajuda. É bem verdade que deviam estar com um aspecto lastimável, mas se lavariam, penteariam os cabelos e vestiriam roupas mais apresentáveis antes de comparecerem à visita para ficarem de mediadoras entre o pai e a paciente mais esquisita que existia na Ala B.

- Não... - disse Carmen com voz lânguida. – Ele não compreenderia. Eu só espero que consiga fazer. . . as coisas certo.

- E o que é certo? - perguntou Déborah.

- Concordar. . . concordar. . . concordar sempre.

Era domingo. A oficina de artesanato estava fechada. Nos fins de semana, tudo adquiria uma aparência desoladora de abandono. Apesar da segurança que o hospital oferecia, os domingos eram dias terríveis. Carla contou como foram agonizantes os domingos na época que esteve fora sentia-se trabalhando. Eram traiçoeiros os domingos. Nos dias de semana, era possível baixar as Aparências como se baixa uma tela diante do corpo e da mente. Aos domingos, contudo, ironicamente denominados Dia do Descanso e da Liberdade, as pessoas ficavam desarmadas. Eram os dias de lazer, paz, santidade e amor. Reafirmava-se nelas o desejo de perfeição humana. Mas ali no hospital, as Aparências nunca chegavam a camuflar de todo, e as tardes de domingo consistiam numa luta desesperada para impedir que os outros mundos aflorassem, até que chegasse a segunda-feira, quando então as farsas eram reativadas e a superfície se tomava de novo perfeita.

Débora e Carla passeavam à toa, aspirando a neblina fria que recobre as manhãs primaverís, observando as fendas abertas pelo inverno na calçada e jogando o jogo dos sonhos que tinham inventado para passar o tempo. Consistia em decompor o mundo em inúmeros pedaços, e depois reconstruí-lo todinho, em parte como punição, em parte por uma frágil e secreta esperança.

- Na minha universidade, não permitiremos nem grupinhos fechados, nem panelinhas.

- Na minha fábrica, os patrões trabalharão nos serviços mais rotineiros para aprenderem como são duras as condições de trabalho do operário.

No entanto, eram os hospitais o que melhor conheciam. Passavam horas intermináveis construindo-os e selecionando pessoal. Equipá-los e administrá-los era a parte principal do jogo.

- Eu suprimiria todas as barras das janelas - ponderou Carla.

Déborah ficou em dúvida. - Em primeiro lugar teriam que ser fortes o bastante para resistir. Às vezes, é bom ter de lutar contra algo que não ceda e que nos dê a segurança necessária para extravasarmos toda a nossa loucura.

- Poremos os nossos médicos-em-serviço realmente em serviço.

- Todas as minhas auxiliares terão que passar uma semana como pacientes.

Iam conversando distraídas e, quando deram persi, estavam no prado, bem distante dos prédios do hospital.

- Olhe só onde estamos.

- Chiii! Não tenho permissão para vir até aqui - disse Déborah.

- Nem eu.

Irrompeu nelas uma sensação de liberdade maravilhosa. Começou a cair uma chuvinha fina. Mas nenhuma das duas dispunha-se a abdicar desse pequeno motim contra o fastio dos domingos e as restrições do mundo. Sentaram-se na relva, bobas de alegria, deliciando-se com o banho de chuva. Ao cair danoite, quando começou a ficar frio, levantaram-se, as roupas encharcadas, e caminharam cabisbaixas de volta para o hospital.

Ao se aproximarem do primeiro prédio, foram surpreendidas por Henson e Cleary que saíam naquele momento do Anexo 3 em direção ao prédio principal.

- Ei, meninas, vocês têm autorização para sair à noite?

- Não - respondeu Carla. - Íamos justamente entrar agora.

- Vamos, então. - Os dois auxiliares esperaram por elas e em seguida flanqueando-as, puseram-se a escoltá-las. Isso não era maneira de voltar. Não podiam consentir em voltar assim, não depois daquela sensação maravilhosa de liberdade, a farra, o banho gostoso de chuva. Entreolharam-se e seus olhos diziam: ”Não!”. Ao se aproximarem da porta, os auxiliares automaticamente cercaram-nas por trás. Não houve jeito: derrotadas, tiveram que entrar. Porém, ao transporem a porta, surgiu a oportunidade ideal. Carla e Déborah a previram simultaneamente e, como se tivessem sido treinadas a vida toda para aquilo, apanharam a oportunidade no momento exato. Henson e Cleary tinham inconscientemente relaxado a vigilância. Passando a entrada, havia um conjunto de portas giratórias. Carla e Déborah simplesmente continuaram dando à volta, saindo por onde tinham entrado e, diante dos auxiliares atônitos, transpuseram simplesmente de um salto, a porta de entrada e saíram correndo. Minutos depois, ouviram a sirene que anunciava a fuga de pacientes.

Correram, correram, rindo e ofegando ao mesmo tempo, pelas estradas escuras que cortavam os fundos do hospital. A chuva fustigava-lhes o rosto com força, e no céu tempestuoso, galopavam ligeiras as nuvens. Anterrabae entoava gloriosos hinos em Yr louvando os encantos do mundo, coisa que não fazia há muitos, muitos anos. As duas correram até ficarem sem fôlego, com dores nos rins, e só então diminuíram a marcha e prosseguiram andando, arquejantes, tiritando de frio, gozando uma sensação imensa de liberdade. Avistaram uma luz, à distância, se aproximando. Era um carro.

Mandaram gente para nos procurar! - exclamou Carla esbaforida. Ambas mergulharam imediatamente numa vala lateral, esperando que o carro passasse. Quando os faróis sumiram na chuva, as fugitivas saíram da vala e retomaram a caminhada, rindo de sua rapidez e agilidade. Pouco depois, divisaram outro carro.

-- Mais perseguidores?

- Pare de se bajular tanto, sua biruta. Isso ainda é uma estrada pública.

- É, mas um homem prevenido vale por dois. .. - e lá se foram as duas de novo para a vala.

Esfregando o corpo para se aquecer, Déborah se perguntou pela primeira vez o que pretendiam fazer, afinal. Não tinham roupas secas nem dinheiro. Também não tinham plano algum. Na realidade, o que pretendiam fazer era o que estavam fazendo. Procurou se lembrar do que Furii lhe ensinara a respeito de fazer o que realmente queria. Recostou-se no barranco, absorvida em seus pensamentos. Ao seu lado, Carla sacudia uma pedrinha do sapato. Logo que o carro passou, escalaram o barranco até a estrada - pareciam gêmeas de tanta lama - e voltaram a caminhar.

Teremos que voltar, mais cedo ou mais tarde - comentou Déborah em voz alta.

Claro! - respondeu Carla. - Tenho hora com minha médica amanhã. Eu queria ficar sozinha, só isso, nem escoltada nem dirigida.

Déborah sorriu na escuridão. - Perfeito! Era justamente o que eu queria.

A volta foi longa. Cantaram uma parte do caminho, rindo às vezes dos escorregões que levavam por causa dos sapatos encharcados. Só foram ”apanhadas” depois de atravessarem o portão de entrada, já dentro da portaria do prédio que abrigava as Alas B-C-D. Em represália, ao que parece, por terem fugido e voltado com tarriantra tranqüilidade e doçura, foram separadas uma da outra e escoltadas por uma numerosa guarda. As duas auxiliares que vigiaram Déborah enquanto ela tomava banho, pertenciam ao segundo turno da noite, o que significava que já passava de meia-noite.

- Não sabes o que te espera! - declarou uma delas com ares de grande santidade.

- Terei de voltar lá... para cima?

- Comporte-se! Tome seu sedativo e vá já para a cama. Você ficará essa noite. As duas, vão ficar em reclusão.

Terminado o banho, Déborah e sua guarda emparelharam com Carla e sua guarda a caminho para o final do corredor onde havia alguns quartos de reclusão. Seus olhares, livres ainda, se encontraram por sobre as cabeças das enfermeiras e trocaram uma piscadela cúmplice. Mais tarde, relembrando na cama os episódios do dia, Déborah concluiu com seus botões: ”Talvez eu venha a pagar caro por isso, mas que valeu, valeu!” E dormiu sentindo o cheirinho de chuva.

O atual administrador da Ala B era um médico novo, um tal de Dr. Ogden, que Déborah ainda não conhecia. Não via Carla desde a piscadela da noite passada. O melhor que faria era tentar lembrar-se de todas as histórias que escutara a respeito de escapadas, e pensar em alguma versão que tomasse suas razões suficientemente convincentes. Às 11 horas da manhã, foi escoltada sob guarda aos escritórios da administração. Chegando lá, a auxiliar bateu na porta do Dr. Ogden.

- Entre! - Qual não foi a sua surpresa ao encontrar, por detrás da escrivaninha, o Doutor Halle. O contentamento deve ter transparecido no seu rosto, pois ele sorriu levemente e explicou: - O Doutor Ogden está de cama, com gripe, por isso,

Estou supervisionando os trabalhos da ala B por algum tempo.

a as coisas se mantém em ordem - Recostou-se na poltrona esfregando a ponta dos dedos. - O que foi que aconteceu?

Déborah contou a história. O médico a interrompeu duas vezes para esclarecer detalhes e, quando terminou, ele perguntou: -- De quem foi a idéia, em primeiro lugar?

Déborah gaguejou, tateando em busca de uma explicação convincente. Havia um termo Yri que descrevia bem o que sentiram naquela ocasião. A palavra tornou-se uma idéia fixa, frustrando seus esforços para se concentrar numa explicação mais compreensível. Decidiu afinal traduzi-la, torcendo para que ele entendesse. Percebendo a sua hesitação, o Dr. Halle procurou tranquilizá-la: - Deixe que a coisa saia. . .

- Está bem. . . - O diabo é que tinha que parecer sã.

Bem. .. as pessoas desajeitadas e inábeis como eu veneram as que não são. De onde. .. eu. . . De onde eu vim chamava-se as pessoas assim atumai. Elas sempre encontram um jeito de escapar ao último passo em falso, quando apanham um barbante para amarrar um embrulho nunca falta um centímetro. Pegam invariavelmente o sinal verde, só caem doentes quando já estão deitados, e sempre que contam piadas, todos riem. Ontem, eu tive que ser atumai, por algumas horas que fosse. Carla também. Nós duas. A gente não decide quando vai espirrar. Espirra e pronto. Ninguém teve a idéia, ninguém liderou. Fizemos e pronto. - Reviu mentalmente a cena da fuga na porta giratória, e um sorriso pendeu um instante nos seus lábios.

- Foi divertido? - perguntou ele.

- Puxa, se foi!

- Ótimo! vou conversar agora com Carla, e quero que você espere lá fora.

Ao sair do consultório, encontrou Carla esperando sua vez, escoltada também, com uma cara assustadíssima. Em resposta ao seu olhar interrogativo, Déborah encolheu os ombros, num gesto imperceptível e experiente, que os olhos de Carla interpretaram como um sinal de desgraça. Ela entrou e, depois de uma sentida esPera interminável, enfiou a cabeça para fora e acenou para

- Venha,ele deseja falar com nós duas.

Foi a vez dos guardas se entreolharem.

Déborah entrou precavida, farejando o ar. O Doutor Halle ostentava uma expressão severíssima, mas logo pôde suspirar de alívio ao notar que ele lutava para conter o riso.

- Vocês infrigiram as normas do hospital, oito delas se não me engano, o que é uma atitude extremamente repreensível. As versões do que fizeram coincidem uma com a outra. Foi divertido, não foi? Uma diversão compartilhada pelas duas; isso é raro aqui. Estou um bocado orgulhoso de vocês. - Recompôs a fisionomia severa. - Não vejo razões para revogar os privilégios que lhes foram concedidos. É só isso - concluiu.

Quando elas saíram, girou a cadeira em direção à janela. Lá fora, os galhos nus das árvores carregados de brotos primaveris. No fundo do jardim corria a sebe verdejante. Imaginou as duas meninas caminhando, rindo e cantando debaixo de uma noite tempestuosa, e aquilo íê-lo recordar-se de uma fuga que empreendera de casa quando menino. - Ah, crianças! - exclamou numa voz onde se mesclavam impaciência, admiração e um grãozinho de inveja.

- Onde está Carmen? - perguntou Carla. - Quero avisar a ela que está tudo Terminado Ela nos viu fugir e deve estar bastante preocupada.

- Não sei, não a tenho visto. Foram perguntar à enfermeira.

- Carmen foi para casa. Levaram-na ontem à noite.

- Mas o pai não veio só para visitá-la?

- Parece que sim, mas acho que mudou de idéia. Só sei que ela saiu com o pai por volta das sete horas da noite. - Pelo tom, via-se que a enfermeira queria encerrar a conversa ali mesmo.

- O que será que aconteceu?

- Terry, você viu Carmen ontem?

- Hum-hum. .. vi.

- O que aconteceu?

- Ela discordou.

Déborah e Carla entreolharam-se, furiosas com a perversidade do mundo.

- Meus pais. .. - murmurou Déborah. - Viram muito mais ódio do que amor, e ainda assim permitiram que eu ficasse.

Permitiram que ficasse, mesmo sem haver qualquer sinal de progresso, e por muito tempo. Jamais exigiram que ela se recuperasse para restaurar o prestígio da família. Olhou para baixo e encontrou suas mãos ensaiando gestos veementes em Yri, compondo palavras mudas que só a ela falavam. Carla, encerrada em seu próprio claustro, desligada de tudo e de todos, encarregou-se de preencher o conteúdo de seus gestos.

- No final das contas, foi liberdade o que eles me deram. Os de Carmen não lhe deram sequer uma chance, ao passo que os meus. . .

Déborah compreendeu que o que devia a seus pais era, sobretudo, a oportunidade de poder travar a batalha. Podiam tê-la retirado dali ao primeiro fracasso, e não o fizeram. Conservaram a fé num futuro que talvez jamais desse os frutos pelos quais ansiavam.

- Carla... se eu não estivesse morta de medo, me sentiria tão grata!

Mortalmente pálida, as mãos geladas, metida num vestido estampado de flores lilazes que nada tinha a ver com a agilíssima tigresa que o usava, Helene veio para a Ala B. O seu sorriso ”normal” era precavido como uma armadilha prestes a disparar. Quando Déborah e Carla disseram que estavam contentes por vê-la, acusou-as de hipócritas e mentirosas e, num instante, seu verdadeiro sorriso insinuou-se por detrás do falso. Sim, era bem Helene quem estava ali, e isso’deixou-as ainda mais contentes.

Levaram-na à oficina de artesanato, logo que recebeu seus privilegios. Déborah foi também, lembrando-se do trigal e do caçador, cuja espingarda, com a fama violenta de Helene e as lendas que circulavam a seu respeito, seria um verdadeiro canhão.

Carla saiu cedo para a entrevista com sua médica, e só voltou um pouco antes do jantar. Déborah e Helene estavam sentadas no corredor, com bobs no cabelo e um bloco de desenho nos joelhos, quando avistaram Carla vindo cabisbaixa em direção a elas.

- Déb. .. é sobre Carmen. - Estendeu um recorte de jornal. Embora fosse proibido ler jornais na Ala B, havia um intenso contrabando. Déborah deu uma olhada nele e o enfiou rapidamente no bloco de desenho. A manchete anunciava: FILHA DE MAGNATA SUICIDA-SE. Suspendeu o bloco para ocultar o recorte, e leu a notícia até o fim. Terminava com minuciosas considerações a respeito da imundície que resulta quando uma pessoa dispara um tiro de revólver na têmpora.

- Vocês a conhecem? Quer dizer, conheciam? - perguntou Helene. - Quanto tempo ela ficou aqui?

- Apenas o suficiente para aprender a discordar - respondeu Carla.

- Ela poderia ter conseguido se safar. .. - disse Déborah baixinho, ao se levantar. Sentia-se arrasada.

- Oh, Deb, como é que você pode ter certeza?

- Acho que você está dramatizando a coisa só para conseguir um pouco de sofrimento gratuito! - acusou Helene no seu tom áspero de voz.

Eu não disse que ela teria conseguido, mas sim que poderia ter conseguido...

as vozes acabaram atraindo outras, e logo souberam da novidade

- Uma tensão vibrante percorria em sussurros a ala. Asenfermeiras que estavam de prontidão não sabiam se falavam se guardavam silêncio. Déborah percebeu que aquela agitação de ânimos dizia menos respeito ao suicídio de Carmen, e mais contradição entre o cinismo que existia dentro de cada uma e ânsia vacilante e cega de lutar que se traduzia em calorosas disputas verbais.

Para sua própria surpresa, Déborah se achou defendendo com ardor o pequenino ”Talvez”. Suas idéias eram claras, mas jamais conseguiria convencer aquelas mulheres mais sãs, porém muito mais vulneráveis do que as da Ala D.

Mas, Deb, foi você mesma quem disse que Carmen explodiria até o teto a qualquer minuto. - objetou Carla.

Déborah a encarou intrigada. O que pretendia? Estaria tentando impedi-la de dizer qualquer coisa que pudesse degenerar em confusão e obrigá-la a se desdizer, ou então que pudesse ameaçar as defesas que as pessoas erguiam para conter o sofrimento?

- Carmen poderia ter se salvado, só isso. Ela tinha uma enfermidade boa e saudável!

- Que absurdo! Isso é uma contradição em termos!

- Impossível!

- Não, não é impossível. - Meditou um minuto. - Ela tinha uma enfermidade muito dolorosa, mas sincera, exposta, não se mascarava com aparências, nem se entregava às farsas habituais com os médicos.

Reinou um silêncio intranqüilo e, sem saber porque, Déborah encarou provocativamente Linda, a ”autoridade psicológica” da Ala, que já havia lido tudo sobre o assunto e vivia distribuindo jargões como quem distribui moedas, afirmações de «ma leviandade temerária, em suma, fugia à dor envolvendo-a «m palavras pomposas e eruditas. Linda, apavorada com o olhar defmição da antagonista, investiu furiosamente: -Ridículo!

Você está apenas racionalizando seu próprio sistema de defesas!

Déborah procurou ser mais objetiva: - Reparem naquele monte de homens internados na Seção Masculina. São todos muito racionais, ”sadios” e espirituosos. A equipe médica gosta deles, como pessoas, mas o fato é que estão ali há anos, e nada e ninguém os ajuda. Parecem não sofrer muito e, sobretudo, não sentir muito. Vão vivendo. . . Isso é doença-doente. A velha Coral, lá na D, pode estar doente, mas em compensação ela senete, luta, vive intensamente... - Proferiu essas últimas palavras, já sem fôlego, diante das caras hostis e incrédulas. Sentiu revigorar dentro de si a força silenciosa que emanava do ”abrirse ao mundo”, tal como naquela noite milagrosa na Ala D. Só que dessa vez.de uma forma mais premente e impetuosa. - Viver é lutar! - exclamou - É a mesma coisa. Continuo achando que Carmen poderia ter vencido.

Quando a enfermeira veio dispersá-las, Déborah olhou ao seu redor e se viu cercada por fisionomias congestionadas de ódio. Atingira um nervo particularmente sensível, o nervo da Ala B, que consistia numa fuga constante, num esforço absurdo para sustentar a farsa do ”tudo bem-tudo bem”.

- Você gosta mesmo de atiçar as feras, hein! - comentou Carla mais tarde vestindo-se para dormir.

- Você está querendo saber como eu consegui sobreviver até essa idade, estourada do jeito que sou?

, - vou sentir sua falta, Déb.

À distância, em Yr, ressoou um trovão: - Porque você haveria de sentir falta de mim?

- Porque vou sair, vou tentar de novo

A resposta a apanhou desprevenida, como uma dolorosa bofetada. No entanto, aprendera bem as lições de Furii. Tremia de medo, estava abaladíssima, mas não deixou de se questionar: ”Que medo é esse? Medo por mim ou por Carla? Por mim? Porque vou perder uma amiga para o mundo? Ou será porque em breve eu terei que ir?”.

Curioso é que o medo que sentia era o mesmo que levara as pessoas a rejeitarem assustadas a sua definição de ”uma boa e saudável enfermidade”. Sorriu daquela ironia.

- Depois de tanta terapia, é impossível que eu não consiga percorrer um quilometrozinho até a cidade. vou começar a procurar trabalho onde não fique enclausurada num quartinho minúsculo. Talvez tenha sido esse o principal problema da última vez. - Falava com uma voz desanimada e assustada.

- vou sentir sua falta, vou sentir sua falta - confessou Déborah desolada.

- Daqui a pouco você vai também.

Déborah tentou formular um ”Claro!”, mas receosa de que o medo traduzisse a resposta para um Yr incompreensível, contentou-se em deitar na cama com os olhos anuviados de medo.

A nova companheira de quarto era uma menina meiga e generosa, veterana da psiquiatria mecânica e que já tinha passado por uma dúzia de hospitais. Sua memória fora devastada, mas a doença continuava intacta. Atribuía a si mesma as mais divergentes procedência familiares - ”Minha família sempre teve queda para a música. . . - diria, por exemplo, distraidamente. - ”Meu pai é o Paderewski, e minha mãe é Sophie Tucker. Por isso sou tão sensível”.

Déborah se afeiçoou a ela e, depois de algum tempo, a menina acabou deixando de lado o assunto família ou os atritos conjugais de seus pais, Greta Garbo e Will Rogers.

Déborah continuava animada de uma curiosidade insaciável pelo mundo. Costumava ficar sentada junto às enfermeiras e estagiárias escutando embevecida elas conversarem. Perguntavalhes por suas vidas, suas famílias, onde moravam e o que pretendiam fazer quando terminassem o estágio. -Freqüentemente ia até a cidade a pé e depois voltava, procurando descobrir novos caminhos, olhando, cheirando e apalpando tudo o que lhe caía às mãos.

A curiosidade a impeliu até mesmo a freqüentar a vida social da cidade, onde não era bem vista. O primeiro passo foi ingressar emdois coros de igreja. Procurou depois o pastor Metodista para conversar sobre o grupo de jovens que ele entretinha, mas logo compreendeu que participar estava fora de cogitação. A pequena e insular comunidade tinha verdadeiro pavor do hospital e de seus ocupantes. Quanto às senhoras do coro da igreja, todas com um ar muito piedoso, sempre quietas, faltava-lhes a sensibilidade para reconhecer a fome impetuosa de uma criatura recém-nascida no mundo, que clamava pelos seus direitos inatos. Por mais que ignorassem a sua presença, Deborah não desanimava. Tomaram-na invisível, e ela, persistente, comparecia.

Um dia, finalmente, receosa e excitada ao mesmo tempo, com uma determinação teimosa e inquieta, encaminhou o pedido de autorização para abandonar o hospital Rangérãm as engrenagens da burocracia, e quando veio a resposta, Déborah viu no rosto de suas companheiras a mesma expressão que Carla, e ainda antes de Carla, Doris Rivera devem ter visto: - uma mescla de estupor, medo, rancor, inveja e, acima de tudo, solidão.

- Pouco me importa que você vá - declarou a sua companheira de quarto. - Na verdade, eu não sou paciente, sabia? Estou fazendo uma pesquisa para minha tese de doutôramento. Assim que terminar, arrumo a trouxa e me mando daqui também!

Quando foi procurá-la para se despedir, a menina olhou para ela surpresa como se nunca a tivesse visto antes.

A assistente social possuía uma lista de quartos na cidade que podiam ser alugados para pacientes em regime de externato. Na sua maior parte - Déborah ouvira rumores a respeito e conhecia alguns devido às suas caminhadas - eram pobres e sombrios, como se refletissem a desgraça dos leprosos que os habitavam.

- Tem um ou dois quartos novos, onde não há pacientes morando. Só que ficam um pouco longe, lá do outro lado da cidade.

Déborah fechou os olhos e pôs o dedo ao acaso na lista.

- Não sei se você sabe, mas a lei exige que nós declaremos. ..

, - Sim, eu sei - interrompeu ela. Fulgurou-Lhe na memória o episódio do tornozelo torcido no St. Agnes (Eles são violentos?). Afastou-o com um ligeiro tremor.

- Terei que acompanhá-la - disse a assistente social - É uma exigência.. .

Chegando a um velho casarão, tocaram a campainha da porta e aguardaram. A proprietária veio abrir. Era uma senhora idosa, de modos delicados e voz suave. Quando a assistente social começou a explicar do que se tratava, Déborah a encarou firme esperando a qualquer momento por um olhar cauteloso,

Ou o franzir dos cenhos, por uma cara hostil, mas nada disso aconteceu. A velha não tinha entendido?

Quando a assistente social terminou de falar, ela se limitou a acenar de leve com a cabeça: - Sim, sim, espero que gostem do quarto.

Talvez a senhora não tenha entendido bem; é um hosPital para doentes mentais-insistiu aflita a assistente. - Ah?... bom, esse quarto tem mais luz, mas o outro

fica mais perto do banheiro, estão vendo. ..

Quando a acompanhante foi embora, a velha se contentou em dizer. - Olhe, por favor, não ponha papel na privada que ela está velha e um pouco ranzinza.

- Ne-n que minha vida dependesse disso - prometeu Déborah.

Veio a descobrir depois que a proprietária Dona King, era nova na cidade e não fora educada nas lendas fantasmagóricas que cercavam Aquele Lugar. Inúmeras histórias assustadoras, algumas verdadeiras, outras falsas, acabaram inculcando na maior parte dos habitantes da cidade um medo e uma a aversão absolutamente irracionais. Cansou de ver as mães chamarem apavoradas os seus filhos quando passava ”O Capitão”, um homem que servira na marinha e que tinha o hábito de falar sozinho. Déborah, graças à sua aparência mais ”normal”, não suscitava receio. Aliás, não suscitava nada. Por mais que freqüentasse os ensaios do coro da igreja, as aulas de costura na escola secundária e até mesmo um clube de excursões para adolescentes (”Venha Um Venham Todos”), suas relações com as pessoas não passavam de compartilhar uma máquina de costura, um livro de hinos, um mapa; ou responder ”boa tarde” ou, ”boa noite”, nada mais. Eram todos muito gentis, e ela também, mas um abismo intransponível os separavam.

- De quem é a culpa: da cidade ou do meu rosto?

- De ambos talvez. . . - respondeu Furii. - Ainda que o seu rosto me pareça ótimo. . . talvez ele demonstre uma certa ansiedade quando você está com as pessoas.

A terapia atravessava uma fase pouco inspirada, de trabalho mais cotidiano, buscando nas atuais situações de liberdade, novos aspectos a confrontar com o passado.

- Gostaria que você voltasse de novo para a sua infância e revolvesse aquela época cinzenta da qual já falamos.

Déborah mergulhou nas recordações. O reinado sombrio da destruição, que sempre lhe parecera uno e denso, tinha agora algumas fendas que deixavam passar a luz do sol, mas eram insignificantes comparadas, aos poderes esmagadores de Yr. - Sim. .. Sim. . . eu vejo! - Sorriu - Lembro-me inclusive de dias inteiros.’. . aquele ano que passamos na casa alugada, antes de nos mudarmos de volta para Chicago. . . Ah, e minha amiga. .. como pude esquecê-la!

- Você teve uma amiga?

- Sim, até eu vir para cá. E não tinha nada de arruinada, pelo menos depois que se acostumou à vida da cidade. Quando veio morar em Chicago, parecia-se com todos os que o nganon atrai - era uma pessoa solitária e tristonha. Mas logo aprendeu o novo modo de vida e ficou boa, quer dizer, que realmente não era estragada!

- Você teve notícias dela nos últimos anos?

- Sim, claro! Está cursando a faculdade agora. Como pude esquecer disso?

- Enquanto você esteve doente daquele jeito, recordar-se de uma amiga ou de um raio de sol implicaria em transformar toda uma visão do mundo, que não admite mudanças. Para que uma pessoa renuncie ao mundo, é preciso que tenha razões. Você precisava ter todas as razões para se entregar a uma renúncia tão grande. Agora que retornou ao mundo, você é capaz de se lembrar do que havia além das trevas. As trevas serviam justamente de contrapeso para as luzes que simbolizavam a vivência do amor e da verdade.

- Mas Yr também é belo e verdadeiro; lá também existe amor.

- Não me refiro à linguagem ou aos deuses propriamente - retrucou Furii - mas à força que exercem no sentido de mantê-la afastada do mundo. Isso sim é doença.

- É bom conversar com Lactamaeon, quando ele está bem-humorado. Quando volto para casa depois da aula de costura, à qual não pertenço, ou do coro na igreja, onde sou uma estranha, é bom ter com quem rir e conversar, é bom ter alguém que faça gracinhas e, de repente, fique sério e diga coisas que nos comovam, recita poesias que nos fazem chorar e nos dê vontade de contemplar as estrelas. . .

- Mas agora você sabe, não é, que o construiu à imagem e semelhança de si mesma, que o criou a partir do seu próprio humor e de sua própria beleza? -- perguntou Furii com uma voz meiga.

- Sim. . . agora eu sei. - Admiti-lo causava-lhe profunda dor.

- Quando foi que você finalmente percebeu isso?

- Plenamente?

Furii assentiu com a cabeça.

- Na realidade acho que sempre soube, sempre tive uma suspeitazinha guardada lá no fundo, em local seguro. Mas já há algum tempo que ela vem crescendo, crescendo. .. Semana passada, eu estava rindo em segredo com Idat e Anterrabae, que tinham escrito um coral baseado num poema de Horário, e quando o cantaram, comentei: Esse é um dos poucos que conheço inteirinho de cor. Anterrabae exclamou:Mas é claro! Encetamos, então, uma espécie de desafio, um desses desafios em que se brinca e se fere ao mesmo tempo. Primeiro eu pedi: ”Ênsinem-me matemática”. Eles riram sem graça e acabaram admitindo que seus conhecimentos não iam além dos meus. Depois começamos a nos insultar um ao outro, rindo mas magoando também. Num dado momento, perguntei a Anterrabae: ”Esse aí é o meu fogo que está queimando dentro de você?” Ao que ele respondeu: ”Por acaso não valeu o combustível?” - ”Serve para iluminar ou aquecer?” - perguntei, e ele respondeu: ”Serve para alimentar anos de sua vida.” Eu disse: ”Todos os anos? Para sempre?” ”Uma terra contestada, sua Terra!”

- E o Coletor estaria incumbido das críticas a você, não é assim? - perguntou Furii.

- Receio, ainda receio que eles sejam de certo modo reais. Seria maravilhoso se eu pudesse despachá-los quando quisesse.

Furii lhe lembrou as crueldades cometidas pelo Coletor, e de como os deuses, já há muito, muito tempo, tinham deixado de ser belos. Agora que ela começava a reagir, çlesrecorriam a todos os seus métodos de sedução, a espirituosidade e a sensibilidade poética porque é muito mais difícil combater um inimigo amável.

Aproveita : do que as recordações felizes continuavam vivas na memória d; Déborah, Furii perguntou: - E quanto à sua nova amiga, Carla? Você a vê freqüentemente? Déborah lhe contou uma coisa estranha que acontecera.

Não se viam muito ultimamente, mas sempre que estavam juntas, havia uma proximidade toda especial entre elas. PodeTríâm ter sido amigas em qualquer parte. Como, porém, viveram juntas as agruras da enfermidade e lutaram juntas para escapar às suas garras, num processe quase que concomitante, a camaradagem foi cimentada e tingida pela seiva de vida emergente e de luta. Carla trabalhava durante o dia como técnica de laboratório e passava as noites estudando as novas técnicas para recuperar os cinco anos que perdeu internada em três hospitais sucessivamente.

Não tinham segredos entre si: contavam suas vidas, seus temores e todas as suas tênues e frágeis esperanças. Déborah, no entanto, reparou que sempre que mencionava sua arte ou qualquer outra coisa em que estivesse trabalhando, uma mudança sutil se operava em Carla. Sua fisionomia endurecia imperceptivelmente e seus modos beiravam, a frieza. Mas naquele universo de bruscas e surpreendentes oscilações emotivas, onde coexistiam amor e ódio, e onde cada sensação e preocupação era duvidosa, a atitude de Carla e o seu ressentimento passaram desapercebidas. Mais tarde, porém, quando se desanuviou a sua relação com o mundo, Déborah começou a prestar atenção a isso. Em meio à sôfrega busca de vivências, de novas experiências que ambas empreendiam, esse estranho desinteresse destacou-se com maior nitidez ainda. Lembrou-se que Carla jamais demonstrara interesse em ver um trabalho seu. Supôs que ela devia ter achado algum rascunho, na época em que costumavam ficar catando papéis na Ala D, e provavelmente não tinham gostado mas, por ser sua amiga, não dissera nada. Déborah decidiu, então, poupá-la dos altos e baixos de sua arte. Havia tantas coisas novas para compartilharem que essa única fenda não faria muita diferença.

No sábado anterior, fora dormir pensando em falar à Carla a respeito de um novo pensionista e do genro da proprietária. Teve um sonho incrível.

O sonho se passava numa noite de inverno. No céu, de um negro denso e azulado, as estrelas congeladas luziam frouxamente. Os morros cobertos de neve, de um branco vivo e fosforescente, varridos pelo vento, projetavam longas e sinuosas sombras. Déborah caminhava sobre a neve, contemplando o luzir das estrelas, o luzir da neve e o luzir de uma lágrima gelada que escorria de seus olhos. De repente, uma voz grave e profunda a interpelou - Você sabia que as estrelas não emitem só luz, mas também sons?

Apurando os ouvidos, ela escutou uma cantiga de ninar entoada pelas estrelas, e o conjunto de vozes era tão belo e comovente que a fez chorar.

A voz interpelou de novo: - Olhe para lá.

Déborah olhou em direção ao horizonte. - Vê, é uma curva. - Após uma pausa, a voz disse: - A noite é uma curva de trevas. O espaço que fica para além é a curva da história da humanidade, onde cada vida constitui um arco ligando o nascimento à morte. O ápice de todos esses arcos individuais compõe a curva da história e, portanto, a do homem.

- Deixe eu conhecer o arco da minha vida? - suplicou Déborah. - Também vou ajudar a sustentar a curva da história?

- O seu, não posso mostrar -, retrucou a voz - mas posso mostrar o de Carla. Cave aí bem no fundo na neve. Ele está enterrado e congelado lá no fundo.

Déborah cavou com as mãos um buraco na neve. Apesar do frio cortante, trabalhou com um grande ardor, como se estivesse perseguindo a salvação. Depois de muito tempo, suas mãos esbarraram num objeto duro e ela o arrancou para fora da neve. Era um fragmento de osso, espesso, sólido, descrevendo uma curva regular, arqueada e extensa.

- É isso a vida de Carla? - perguntou estarrecida. - Sua criatividade?

- Esse osso está profundamente entranhado nela, apesar de você tê-lo encontrado aí enterrado e congelado. - A voz silenciou um momento e depois concluiu - É um belo osso. . . um belo e sólido osso!

Déborah quis ainda implorar à voz que revelasse a configuração que teria a sua vida, mas o sonho foi se desvanecendo e as vozes das estrelas sumindo até desaparecerem de todo.

Na manhã seguinte, lembrava-se nitidamente do sonho. Carla veio visitá-la e enquanto conversavam à toa, Déborah, distraída, revia as estrelas e suas mãos apalpando a curvatura suave do osso.

- Por favor não se zangue. - Pediu, e contou-lhe, então, o sonho. Carla a escutou sofregamente. Quando Déborah retirou o objeto enterrado, ela perguntou ansiosa: - O que é que você está vendo? Como é? - Reproduzia os mínimos movimentos dela, como se estivesse limpando a neve do achado. Quando lhe descreveu o osso e contou o que a voz dissera, Carla desatou a chorar.

- Você acha que é verdade. . . você acha mesmo que é verdade?

- Contei exatamente o que aconteceu.

- Jura que não inventou nada. .. você realmente sonhou isso. ..

- Sim, sonhei.

Ela enxugou os olhos. - Ah, foi só um sonho, seu sonho.. .

- É, mas mesmo assim eu acho que é verdade - afirmou Déborah.

- O único lugar para onde eu jamais poderia ir. .. - disse Carla pensativa - .. .o único desejo que jamais poderia admitir.

Quando Déborah concluiu o seu relato, Furii disse para ela: - Você sempre teve em alta conta a sua arte, não é? Lembrome que lia constantemente nos relatórios da ala como você sempre arranjava um jeito de fazer seus desenhos, apesar de toda e qualquer inconveniência ou restrição. O seu talento é tão fértil que resistiu às piores fases da doença. Agora você pode compreender a situação daqueles que não têm a sorte de possuir uma vocação criativa, a partir da qual possam crescer e se desenvolver. Lembre-se da amizade saudável que você precisou sepultar no esquecimento, e dos tempos felizes que baniu da memória. Acho que esse sonho, veio lembrá-la de uma outra alegria: a compreensão de Carla. Quantos não a invejariam, Déborah. - Sim, sim, sei que soa como aquela velha lenga-lenga de ”menina sortuda”, mas não é nada disso. Em momento algum você renegou esse seu profícuo dom que a maioria das pessoas dariam tudo para possuir. Quem sabe- se, nesse sonho, você não estava abrindo os olhos para isso, acordando para mais um apelo do mundo.

Pouco a pouco, Furii ia dissipando aquela velha certeza de que a sua vida era uma vida amaldiçoada e arruinada. Evocaram de novo o velho brado Yri - ”Imutávelmente, em sono, em silêncio, nganon clama por si mesmo”. - A senha de todos os condenados, que fazia de Déborah um instrumento e uma cúmplice de sua destruição.

Déborah levou uma vida pacata nos meses seguintes, trabalhando numa série de desenhos a bico de pena e abrindo caminho para o passado em densas sessões com a Dra. Fried. A medida que o mundo ganhava uma riqueza maior de formas, dimensões e cores, sentia cada vez mais que suas ambições e esperanças já não cabiam nos ensaios do coro e nas aulas de costura. Por mais simpática, prestativa e ”sadia” que se mostrasse, nunca deixaria de ser uma criatura invisível e inaudivel. Comparecia a todas as cerimônias metodistas e escutava os mexericos que circulavam no ”Clube do Altar das Senhoras”, mas não conseguia penetrar um milímetro sequer além daqueles sorrisos polidos e frios c daquelas delicadezas puramente formais. Aos domingos, ouvindo os sermões do pastor, Déborah passeava os olhos com curiosidade pela congregação: teriam alguma vez agradecido a Deus pela luz que iluminava suas mentes, pelos amigos, pelo frio e a dor que reagem às leis da natureza, pelas expectativas que podiam acalentar, pelos amigos, pela sucessão majestosa dos dias e das noites, pelas fagulhas que sobem das fogueiras em direção ao céu, pelos amigos. .. Teriam consciência de como eram belas e invejáveis as suas vidas?

Não, realmente não dava mais: suas atividades meros passatempos para preencher as horas vagas, já não a satisfaziam mais. Precisava ampliar o seu campo de experiências, enriquecer sua vivência.

Gostaria de trabalhar. Conhecia Latim e um pouco de Grego, mas não tinha o diploma secundário, e as velhas recordações qu’e guardava da escola, eram de quase quatro anos, recordações episódicas de uma visitante num lugar estranho. Folheando os jornais da cidade, ficou surpresa de ver como conhecia mal o mundo e todas as suas pequenas exigências rotineiras. Numa cidade tão pequena e estagnada, não havia para ela emprego algum, por mais rudimentar que fosse. Nem para garçonete ou balconista de magazine, serviços que exigiam pouca capacidade intelectual, tinha aj jpalificaçéesnecessárias.

O hospital não podia ajudá-la em nada. Os psiquiatras eram todos igualmente estranhos na cidade, e há muitos anos não lidavam com estes problemas de trabalho. A própria- doutôra Fried deixou claro que isto era um problema que ela tinha de resolver sozinha, e o administrador que cuidava das questões das pacientes em regime de extemato, depois de insinuar mais ou menos a mesma coisa, prometeu, a título pessoal, estudar o problema. Ao chamá-la duas semanas mais tarde, parecia um tanto surpreso.

- Conversei com várias pessoas - disse ele - e tudo leva crer que você terá de cursar a escola secundária para conseguir qualquer emprego. - Percebendo o olhar apavorado dela, completou: - Bem.. . pense demoradamente no assunto. . .

Déborah fora justamente naquele dia dar uma olhada na escola secundária. Era um conjunto imenso de prédios que bordejava o outro lado da cidade, montões de pedra pousados ali como uma gigantesca ave, grande demais para voar. Aperspectiva de vir a freqüentar «na daquelas salas de aula a assustava terrivelmente. Suas recordações de escola ainda estavam muito vivas na memória. A doença, é claro, viera crescendo dentro dela desde os primeiros anos, mas os terrores finais - os lapsos e ausências, os inesperados mergulhos nas trevas de Yr - aconteceram em corredores idênticos aos daquele prédio, em meio a rostos idênticos aos que encontraria ali. Recordou-se das lutas que travara no íntimo, antes de assumir a convicção de que ;ra intrinsecamente diferente dos outros. Recordou-se do misterioso soldado japonês, suportando estoicamente os ferimentos que o levaram à captura, dos esforços enlouquecedores que lhe custara manter as aparências, ocultar sua condição de cidadã e cativa de Yr, os tofmentos inflingidos por Anterrabae, o Censor, o Coletor e o Poço.

Apesar de todas as concessões que fizera aos seus captores, Déborah perdera inteiramente o ânimo para continuar sustentando aparências. Participe, se engaje, se entregue a qualquer preço, diziam eles. Mas agora sabia qual era o preço. Numa cidade tão provinciana e mesquinha, onde haveria entre ela e seus colegas de turma uma diferença de, pelo menos, três anos de idade, e uma distância incomensurável, sabia perfeitamente que, na melhor das hipóteses, o mundo se tomaria uma verdadeira terra de ninguém. Mesmo estando abalada a sua sujeição a Yr, ácabaria, inevitavelmente, se alienando do mundo, se refugiando num outro mundo, e tudo recomeçaria de novo. com ou sem Yr, era tarde demais para se juntar novamente a estudantes como esses, tarde demais para bailes de escola, panelinhas, faceirices e frivolidades de coleguinhas de turma. Fartara-se já do ”vocabulário especial” que convinha empregar nas relações de engajamento com esse tipo de mundo.

- Tenho dezenove anos. . . - declarou para os prédios da escola. - É tarde demais! - Afastou-se, tiritando de frio, debaixo da forte ventania que Yr soprava por sobre a distância, ao mesmo tempo real e irreal, que a separava de tudo aquilo.

- Não posso voltar aos-meus adoráveis dias de ginasiana - disse pafã~o administrador. - Volibol no pátio, mexericos, festinhas de escola, não dá.

- Mas sem o diploma secundário...

- Non omnia possumus omnem! - retrucou, lembrando-o de que se tratava de Virgílio. Sabia, no entanto, que ele tinha razão.

- Por que então você não prepara uma lista enumerando tudo o que é capaz de fazer? - propôs o administrador. Seria puro faz-de-conta, ”fazer coisas úteis”, nada mais do que enumerar becos sem saída. Mas, que jeito? O que ele queria, na verdade, era livrar-se do ”abacaxi”. Faria a tal lista. Quem sabe não descobriria alguma preferência, um talento, qualquer coisa que lhe pudesse ser útil. Lá estava o pequenino ”Talvez” transformando em calor e ânimo uma ínfima e vulnerável fagulha.

Voltou à pensão, foi para o quarto, sentou-se na mesinha, apanhou uma folha de papel e dividiu-a ao meio. Numa das metades anotou CONHECIMENTOS, na outra EMPREGOS POSSÍVEIS.

 

CONHECIMENTOS

1 -       andar de bicicleta.

2 -       saber Hamlet inteirinho de cor.

 

EMPREGOS POSSÍVEIS

1 -       garota de entregas.

2 -    professora particular, para meninos que estejam aprendento Hamlet na escola.

3 -       poder acordar do sono mais pesado em posse de todas as minhas faculdades.

4 - tremendo vocabulário de palavras obscenas.

5 -       algum grego.

6 -       algum latim.

7 -       frieza de cálculo e insensibilidade.

8 -       artista há dez anos.

9 -       conhece as componentes da maioria das formas de doença mental, capaz de representá-las realisticamente vendo o original.

10 -     não fuma.

3 -       guarda-noturno.

4 -       consultora lingüística.

5 -       (não é suficiente).

6 -       professora particular de latim para meninos que o estejam aprendendo na escola.

7 -       assassina profissional.

8 -       não cheg.: a ser gênio; não há viabilidade comercial.

9 -       atriz (perigoso dei íais).

10 -     degustadora de vinhos.

 

Reescreveu a lista, suprimindo os itens 4, 5, 7 e 9. Doeulhe um bocado ter que afastar o ”assassina profissional”. Lembrou-se, porém, que tinha uma péssima coordenação motora, e os assassinos profissionais precisavam ser ágeis e graciosos. Tamanha era a sua falta de atumai que, seguramente, no momento crucial suas vítimas desabariam para o lado errado. Imaginou a cena: ela, a assassina, tentando se arrastar debaixo dos cento e cinqüenta quilos de um lutador profissional. - É. . . - murmurou-item 7, causa perdida.

No dia seguinte, levou a lista para o administrador, mas não esperou que ele terminasse de ler. Até mesmo Anterrabae estava vexado com as qualificações tão medíocres de sua rainha e vítima. O Coletor, com ares de falso-santo, morria de contentamento. Déborah estava assustada com as opções que o mundo lhe oferecia. As perspectivas que tinha na sua frente eram como o corredor que percorria naquele momento: uma longa estrada, cuidadosamente pontilhada de portas, de dez em dez passos, só que todas fechadas.

- Ei, Srta. Blau - chamaram às suas costas. Era uma das assistentes sociais (”O que é agora? Já tenho um quarto, portanto não preciso de uma caçadora de quartos; a não ser que esta venha desfazer o que a outra fez”). - O doutor Oster falou-me a respeito da senhorita freqüentar a escola secundária. (”Lá vêm eles exigir novos sacrifícios. Provavelmente designaram para mim um bom lugar sob as rodas de jaganatas”). A dor provocada pelo tumor alastrou-se pelo corpo todo, e sua visão tingiu-se de rubro.

- Não sei como não pensei nisso antes - dizia a assistente social. - Há um lugar na cidade que talvez possa prepará-la.

- Preparar-me para quê? - perguntou Déborah.

- Para os exames.

- Que exames?

- Ora, os exames para conseguir o diploma de equivalência ao curso secundário. Como eu dizia, parece ser a solução ideal.. .

A mulher olhava-a de um modo esquisito. Déborah quis explicar-lhe que era difícil escutar através de um borrão vermelho, que suas notícias tinham trazido um grande alívio mas, devido à brusca mudança de pressão - bastava ver a palidez mortal do seu rosto - estava sentindo o chamado ”mal-dosmergulhadores”.

- Isso significa que não preciso freqüentar o ginásio?

- Não, como acabei de dizer, há uma escola particular na cidade.

- Posso escolher então?

- Acho melhor a senhorita se entrevistar antes com eles e estudar as possibilidades.

- Como faço para combinar essa entrevista?

- Bem, a senhorita ainda está sob os meus cuidados.. .

- Você poderia marcar uma entrevista?

- Sim, claro.

- E depois me conta o que eles disseram?

- Hum-hum.

Déborah sentou-se e ficou observando a moça se afastar. A dor estava diminuindo, mas o pânico continuava tão intenso quanto antes. Escuta teu coração - sugeriu Anterrabae, despencando ao seu lado. Batia como uma porta sem ferrolho empurrada pelo vento.

O que é que está acontecendo? O que é que está acontecendo? - perguntou assustada para Yr. Estava tudo tão real agorinha mesmo! - Enxergava tudo distorcido; suas palavras soavam de uma forma estranhíssima, como se até mesmo o Yri tivesse sido recodificado. Por quê? Por que está acontecendo isso?

A pergunta quebrou o silêncio que reinava sobre a terra. Sentiu que alguém se aproximava, talvez o doutor Ogden que’ saía do escritório. A audição estava tão distorcida quanto a visão. Esbarrou numa pessoa e imediatamente gritou: - Os sentidos não são discretos!

- Ela vai ficar violenta? (ou algo no gênero, ouviu um dos vultos perguntar num tom aborrecido) Déborah quis responder que a violência constituía para um vulcão uma lei natural, mas já não conseguia comunicar absolutamente nada. Flanqueada e sustida por um atropelo indistinto de mãos e vultos, foi conduzida ao elevador metálico dos pacientes e transportada para a Ala D. Começava tudo de novo!

Ao recuperar os sentidos, olhou bem para si mesma, de alto baixo, e soltou uma sonora gargalhada.

Agora eu sei, seus calendários descendentes e imprevistos. Agora eu sei, Lactamaeon, oh deus tristonho! Agora eu sei porque Carla e Doris ficaram arrasadas daquele jeito! - Riu às gargalhadas, um riso áspero e ferino, até ficar completamente rouca.

Mais tarde, Quentin Debshansky entrou para tomar o seu pulso. - Oi! - cumprimentou ele, sem saber se deveria mostrar-s,e alegre ou pesaroso. - O casulo está ajudando?

- bom, voltei a ver, a ouvir e á TãTar. - Ela o encarou com firmeza. Você continua sendo meu amigo?

- Ora, é claro! - exclamou desconcertado.

- Então deixe a sua cara em paz, Quentin. Seja espontâneo.

Ele relaxou a fisionomia que logo adquiriu uma expressão desapontada.-É que... bem, eu fiquei feliz de saber que você estava lá fora, tocando para a frente.

Sentiu uma pontada de angústia ao lembrar-se que dedicava afeição a uma pessoa que era, afinal, louca (ainda que os médicos lhe recomendassem chamá-las doentes mentais ).e podia tomá-la ainda mais louca se dissesse coisas indevidas. Os médicos e todos os manuais que lera aconselhavam-no a não se mostrar muito categórico, não discutir, não extemar sentimentos fortes, procurar ser jovial e prestativo. Sabia, no entanto, que estava lidando com um ser humano, um ser humano que era capaz de comover e que lhe inspirava uma profunda afeição. Estava feia neste momento, com os cabelos desgrenhados, mas quantas vezes não o ridicularizaram também por sua aparência. Além do mais, já passara por uma derrota semelhante à dela. Sofrerá, uma vez, um acidente que o deixara estirado na estrada, todo quebrado, ao lado do pai. Quando vieram socorrê-los, transportaram-no para o hospital enrolado num cobertor, exatamente como ela estava agora. Jamais esquecera aquela viagem. O pior de tudo não foram as dores, sentira-se até orgulhoso delas, mas a horrível sensação de estar sendo moído, reduzido a uma pasta, corpo e alma. O gemer das rodas girando, interrompido por bruscos sacolejões, transformaram-se num sussurro monótono e atordoante: ”embriagado e quebrado, embriagado e quebrado. . .”. A morte do pai causara-lhe uma tristeza imensa, irreparável. As costelas quebradas tomaram cada ato respiratório um verdadeiro suplício, um chute no rosto da morte. Olhou para Déborah e lembrou-se das rodas girando as suas idéias: ”embriagado e quebrado, embriagado e quebrado. . .” - era justamente o que ela devia estar sentindo.

- Quer um copo d’agua? -- Não, obrigado.

Ficaram ali olhando um para o outro constrangidos e envergonhados, ela esperando que o medo e ele que o desapontamento rompessem logo o impasse angustiante. Subitamente, Déborah se deu conta de que Querrtin Dòbshansky, além de amigo, era um homem, um homem sensual, um homem capaz de despertar nela sentimentos inteiramente novos. Foram duas descobertas simultâneas: a do seu vazio interior e a do desejo, um desejo feroz, ardente, recalcado durante anos e anos. Furii tinha razão; por mais biruta que fosse, era capaz de sentir, e como!

Ergueu os olhos para Quentin que, indeciso junto à porta, procurava alguma coisa reconfortante para dizer antes de sair. - Você tem mais uma hora, tá?

- Hum-hum. - Sabendo como devia estar feia, para não lhe ferir os olhos, virou a cabeça para o outro lado e esperou até que ele fechasse a porta.

Lactamaeon, o deus negro, com seus olhos azuis e frios, começou a escarnecer dela: O pescador venceu. Colheu na sua rede o peixe que se recusa a morrer e ficar morto. Salta, contorce-se, joga-se de encontro às amuradas do barco, procurando desesperadamente voltar ao seu elemento natural. Privado da essência que lhe garante a vida, o sofrimento é atroz. Isto aflige o pescador. Ele não quer pensar nos espasmos mortais do peixe, sua recompensa e vitória. Assim és tu para o mundo e para nós também. Re-morra, e deixa as coisas voltarem a ser o que eram.

- Será que não compreendes! - gritou Déborah. -. Eu já não sei mais como!

O cair da tarde invadia suavemente a enfermaria, Déborah reparou que uma auxiliar esquecera o cigarro aceso no cinzeiro. Mais que depressa, apanhou, e escondendo o levou para seu dormitório (dormia, agora, entre Ann e Mary Dewben). Sentou-se no chão, dissimulada pelas camas, e examinou o seu braço cheio de cicatrizes. Seria inútil queimar, o local já queimado o tecido não se ressentiria decidiuqueimar num local novo, Deslocou o cigarro em brasa ao longo do braço até encontrar uma região que ainda estava viva. Aproximou-o lentamente da pele; o calor foi aumentando, aumentando, até que, ao chamuscar os primeiros fios de cabelo, uma agulhada dolorosíssima repeliu o braço num gesto instintivo.

- Foi um reflexo! - exclamou atônita. Tentou de novo, várias vezes, mas a dor sempre prevalecia sobre a vontade, obrigando-a instintivamente a afastar o braço do cigarro, antes mesmo que ele tocasse a pele. Finalmente desistiu; proclamou alto em Yri: A todas as divindades de todos os mundos, comunico que não haverá mais queimaduras nem fogos, pois, ao que parece, já estou. .. - começou a chorar, alegre e assustada ao mesmo tempo - .. .ao que parece, estou confinada definitivamente neste mundo...

Quando chegou a hora de avistar-se com Furii, correu para o consultório, deixando amedrontada a acompanhante, e irrompeu na sala exclamando: - Ei! Sabe o que acontece quando a gente brinca com fogo? A gente se queima, é isso que acontece! Dá uma dor chamada dor de queimadura!

Furii franziu o cenho. - Você andou se queimando de novo? - perguntou.

- Tentei, mas não consegui.

- Ah, é?

- Porque doeu!

- Puxa, você não imagina como eu estou contente! - Sorriram. Furii reparou na acompanhante que se postara atrás de Déborah, e perguntou-lhe intrigada o que estava fazendo ali. Quando soube que Déborah tinha voltado para a Ala D, virou-se para ela com um olhar interrogativo.

- Antes, sempre havia algum sinal de advertência. . . - disse Déborah - ...algum prenuncio do que iria acontecer.

- Talvez ”ela” soubesse que você precisava de ajuda. A ajuda estava ao seu alcance, mas não ousou pedi-la diretamente com medo de que a recusassem.

- Masaxme íortão repentina. . . Como é que eu posso estar melhorando com crises assim tão repentinas e fortes?

- As defesas que a impedem de ficar boa e se juntar de vez ao mundo já estão nas últimas barricadas. É natural que lutem desesperadamente para salvar o que puderem da doença.

Déborah contou então a visita à escola, o medo que sentira, o desespero de ter que ficar três anos presa ao silêncio da cidade. Falou sobre a sensação que tinha de que tudo estava sendo decidido à sua revelia, os passos solenes do réu caminhando para o cadafalso. Descreveu o encontro com a assistente soxiaL£as sugestões dela, o súbito alívio, a sensação de absolvição. Vieram, então, as vertigens, o ”mal-dos-mergulhadores” e, logo sentia-sem seguida, sem nenhum aviso prévio, sobreveio a crise.

Quando começou a narrar a queda no Poço, percebeu que houvera uma mudança importante: - Engraçado. ..

- O que que é engraçado?

- É que Yr sempre foi o domínio da lógica, do compreensível, por oposição à anarquia que imperava no mundo. As minhas fugas para lá obedeciam a toda uma série de fórmulas que, com o tempo, foram se tomando cada vez mais intrincadas, mas sempre. . . predizíveis.

- Sim?

- bom, quando os meus vínculos com o mundo começaram a mudar, foi como se Yr dissesse: líAgora passaremos para o outro lado, seja lá qual for ele”. As relações se inverteram: quanto maior é a racionalidade do mundo, menos razões Yr oferece.

- disse Furii com a voz meiga que usava quando queria objetar sem parecer agressiva. - Até quando você vai ficar com uma perna lá e outra aqui?

- Ainda não estou preparada! - gritou Déborah.

- Está bem, está bem. . . - contemporizou Furii com brandura - mas você só será capaz de abarcar realmente o mundo, de gozar todas as suas vantagens, quando renunciar a esse duplo compromisso.

Déborah começou a ficar em pânico, o coração disparando. Chamou em silêncio Anterrabae, e ele veio, ligeiro e reconfortante. Sofra, vítima!

É verdade que nos últimos tempos só me trazes beleza quando te sentes ameaçado? - perguntou-lhe, esperando pela sua risada sardônica, mas, surpreendentemente, ele se pôs a tremer e a choramingar: - Tem pena de mim! Tem pena de mim!

Déborah ficou estarrecida. Estás sofrendo? - indagou-lhe.

Sim, são as queimaduras.

Queimaduras? Mas o fogo não te queima.

Enquanto foste sublime e estiveste fora do alcance do fogo dos homens, eu também estive. Agora que as chamas te queimam, queimam a mim também. - Ele soltou um longo e dolorido suspiro. As labaredas iluminaram o seu rosto, sulcado de sombras e reluzindo de suor e lágrimas. Oh! exclamouDéborah angustiada.

Vê... - lastimou-se Anterrabae - Quando eu sofro, tu sofres. Scomos uma única voz, um único olhar. Jamais conseguirás uma comunhão tão perfeita lá... - e fez com as mãos o gesto de tumulto e renúncia que significava em Yri o mundo.

- Onde você está? -- perguntava Furii. - Leve-me com você.

- Estive com Anterrabae. Ele tem razão. O mundo pode ter lógica, embora às vezes seja um bocado traiçoeiro. Oferece desafios, também, e muitas outras coisas que eu não conheço, tais como matemática, e que os deuses não me podem ensinar, entretanto, onde mais - e seus olhos encheram-se de lágrimas - onde mais encontrarei essa comunhão que há entre eu e eles?

- O que serão estas lágrimas? - indagou Furii num tom meigo. Déborah olhou para ela e, reconhecendo as palavras de abertura de fórmula, sorriu meio a contragosto.

- Das dez unidades, quatro são de autocomiseração, três dó que Yr chama ”Casca Seca”, e uma de desespero.

- Isso só perfaz oito.

- Duas de miscelâniá. - Sorriram.

- Está vendo - disse Furii - as coisas podem ser tão claras entre nós duas quanto entre você e os deuses. Nunca lhe ocultei as minhas idéias, só que você esquece por vezes que sou e sempre fui uma representante do mundo, e uma aliada sua na luta que está travando para ganhar este mundo. - Assoou ruidosamente o nariz, como se quisesse reafirmar que era mesmo uma típica representante do mundo. - O que é ”Casca Seca”?

- Bem, quando cheguei aqui no hospital, eu não era uma pessoa infeliz. Simplesmente não me interessava por nada, e esse desinteresse me trazia uma certa paz. Quando você começou a fazer com que eu me importasse pelas coisas, as punições de Yr foram terríveis. Um dia, implorei que tivesse piedade de mim, e Anterrabae disse: ”Comeste todo o fruto da esperança, só deixaste a casca.” Julguei que teria de passar a vida olhando aquela casca envelhecer, enrugar-se, endurecer e finalmente ser jogada fora. Anterrabae recorria freqüentemente a essa alusão. No entanto, quando compreendi que estava viva, realmente viva, e que a minha substância era idêntica à dos outros, me virei para ele e jurei que mastigaria aquela casca seca até extrair dela a última gota de alimento. Mas quando voltei dessa vez, e todos ficaram tão decepcionados comigo, Anterrabae zombou: Essa casca velha, pelo visto, está radiando teus dentes. . . por que não a cospes fora de uma vez?”

- E o que é que você acha disso?

- Não posso parar de mastigar agora, mesmo que aparentemente não esteja adiantando muito. Agora que recuperei os reflexos e instintos de ”pesoa normal”, acho que estou atolada no mundo. . . - sorriu timidamente. Era uma confissão séria, que algum dia ainda lhe poderia custar caro.

”Se ao menos eu pudesse explicar a ela. . .” - pensou Furii com seus botões. - ’Como explicar a uma pessoa que nasceu e cresceu no deserto que há terras ricas e férteis a tão pouca distância?” - Como vão as coisas na ala? - perguntou.

- Bem, os pacientes, é claro, estão furiosos comigo, e a equipe médica, meio desapontada. Mas hoje vou falar cona o doutor Halle.

- Não diga. Algo de especial?

- Não. para avisar aquela assistente social que eu continuo firme na idéia. Se o pessoal daquela escola que ela

me mencionou não fizer objeções, estarei pronta para começar quando quiserem.

 

REQUISIÇÃO

Ala: D

Administrador da Ala:

Halle, H. L. Hora: 8:30

Dr.

Data:  3 set.

Paciente: Blàu, Déborah

Especificações: Data: 5 set.

1 vestido apropriado para uso

na cidade.

1 par de meias.

1 par de sapatos.

27 grampos de cabelo

1          casaco,

1 tubo de batom.

Cr$ 80,00 para as passagens de ônibus suburbano (assistente social e requerente)

4 vales para ônibus urbano (assistente social e requerente) Requisitar itens especificados acima na pensão onde habita s paciente.

Assinado:

  1. L. Halle.

 

O problema do diploma secundário resolveu-se miraculosamente: bastava provar ao Conselho Universitário que a candidata conhecia as matérias do curso secundário para obter um-certificado de equivalência que a isentaria de cursar os três anos de escola. Matriculou-se na Escola Tutorial e Terapêutica, que a prepararra-paTa òTexamês e que, embora distasse duas horas do hospital, representava uma ponte bem mais rápida e segura entre o ”Nunca” e o ”Talvez”. No início, foi muito difícil; Estava desabituada ao estudo e extremamente insegura, mas logo tcomou fôlego e mergulhou com vontade nos livros. O orgulho e a obstinação deram-lhe a força necessária para enfrentar as quatro horas diárias de viagens, uma viagem perigosamente hipnótica, e as dificuldades do estudo. Em pouco tempo, os professores conseguiram abrir uma pequena fenda no muro que a enclausurava. Durante o primeiro mês, permaneceu na Ala B. Acordava antes de” clarear o dia, tomava uma xícara de café (autorizada pelos médicos) e ia para a escola. Na segunda semana, quando provou que realmente estava disposta a freqüentar as aulas, a enfermeira da noite por sua própria conta acrescentou torradas e um suco de frutas ao café da manhã. Essas e outras pequenas atitudes, que demonstravam um certo respeito por ela, revigoravam a sua força de vontade. Quando, por exemplo, chegava de manhã ao portão com seus livros escolares - símbolos de sanidade e responsabilidade - o homem da portaria cumprimentava-a gentilmente: - ”bom dia”, ou até mesmo ”bom proveito!”. Exceto em casos excepcionais, os funcionários do hospital limitavam-se a cumprir o que os regulamentos mandavam. Essas concessões eram a prova de que tinha conquistado um prestígio considerável. No mês seguínte, voltou para a pensão, e só ia ao hospital para o jantar e para as sessões côm a. doutôra Fried. Desde então, a sombra que projetava nas’ calçadas se devia a outras razões além do. pôr do sol. Começou a entender porque Doris Rivera, depois de melhorar o suficiente para trabalhar e viver com suas próprias chaves no bolso, fora tão econômica em suas explicações à audiência ávida e aterrorizada de pacientes na Ala D. Déborah também vira a sua sombra estender-se alguns fios de cabelo a mais, graças a um imenso esforço e, embora continuasse tolhida pelos altos muros do hospital, para as doentes cujas esperanças ali definhavam, o fato de ela ter saído a transformava numa figura legendária.

Um dia, voltando de uma sessão exaustiva com Furii, Déborah avistou uma multidão de pessoas no saguão. Ao se aproximar, reparou que faziam movimentos extremamente lentos como se estivessem nadando debaixo d’agua. Quando Déborah viu o objeto daquela curiosidade toda, só a muito custo conseguiu conter o riso. A Srta. Coral, arremessadora de camas, gênio na arte das alavancas, pesos e propulsão, entrara em ação de novo! Como é que tinha, conseguido escapar da Ala D, era um mistério. Rodeada pela multidão, ela enfrentava cinco vigorosos atendentes sem arredar um pé, do modo mais engenhoso possível: simplesmente fazendo com que lutassem uns contra os outros. Resmungava baixinho uns sons sibilantes, entrecortados de obscenidades; parecia um motor. Déborah prosseguiu caminho, dirigindo um ”Oi, Srta. Coral”, muito mais para os auxiliares do que para ela propriamente. A Srta. Coral, até então concentradíssima na escaramuça, voltou-se sorridente:

- Oi, Déborah. Não me diga que está de volta!

- Não, não. São as minhas sessões de terapia.

- Ouvi dizer que foi passar os feriados de Natal em casa, é verdade?

- É. . . Dessa vez foi mais fácil. . . chegou a ser quase divertido.

Os olhos penetrantes da velha estremeceram. Enquanto as duas conversavam amigavelmente, os contendores guardavam posições de combate, prontos para recomeçar a luta. O quadro era ao mesmo tempo hilariante e comovente.

- Como vai Carla? Você ainda a vê?

- Ah, sim, ela conseguiu aquele emprego que queria. . . Ei, é verdade que o Dobshansky se casou com uma enfermeira de uma das alas masculinas?

- Sim, uma estagiária. Mas o casamento é segredo, para não prejudicar o estágio dela. Ninguém sabe... - e as duas trocaram um sorriso cúmplice, pensando em todos os canos indiscretos de água fria que corriam pelo hospital.

- Como está o pessoal? - perguntou Déborah.

- Ah, mais ou menos a mesma coisa. Lee Miller vai ser transferida para outro hospital. Sylvia parece um pouco melhor, mas continua muda. Helene está conosco de novo, na D, sabia?

- Não. . ., não sabia não. Mande um ”Alô” por mim. Jogue alguma coisa na cabeça dela e seja bem rude para que ela saiba que fui eu. - Déborah a encarou firme. Era difícil cc ciliar a dor que via estampada de forma nítida no rosto de sua amável professora com a imagem de arremessadora de camas aficcionada por Catulo. - Você está bem? - perguntou, sabendo que perguntar mais seria uma intromissão.

A Srta. Coral passeou um olhar apologético ao seu redor como se fossem todos um único e grande inconveniente, com o qual nada tinha a ver.

- Estou. .. - respondeu sem muita convicção. - Altos e baixos.

- Quer que eu lhe traga algo de lá de fora?

Conheci-a o suficiente para saber que jamais pediria; quando muito, insinuaria alguma coisa em código. Tinham conseguido estabelecer entre si uma coisa que era muito rara naquela doença; uma identificação plena de idéias e de sentimentos. A velha berrando, através da espessa porta de um quarto de reclusão, poesias de Horácio que iam cair no solo inculto e tenebroso de Déborah, isso era muito mais do que uma aula de Latim.

- Não... não preciso de nada.

- Tenho que ir agora; o ônibus vai sair a qualquer momento.

- Bem, então, tchau Déborah.

- Tchau, Srta. Coral.

A velha endureceu os olhos, retesou os músculos e a luta recomeçou.

No ônibus, Déborah ia pensando nela. Quantos mortos ressuscitariam? De todas as mulheres da Ala D, quantas seriam livres algum dia? Durante seus três anos de internamento, muitas caras novas vieram e partiram, muitas ficaram. Das que partiram, bem uns três quartos tinham ido para outros hospitais. Algumas progrediram o suficiente para viver uma espécie de meia-vida em regime de externato. Quantas estavam realmente

Afora, realmente vivas e livres? Podia-se contá-las pelos dedos! Ela estremeceu. Redobraria os esforços esta noite com os livros.

com o passar dos meses, as matérias iam se acumulando em pilhas e pilhas de cadernos de anotação. Se a sanidade expressava-se em metros e horas, o aprendizado media-se nos quilos de livros que carregava diariamente para a escola. Aqueles volumosos manuais lhe davam um certo orgulho, como se algum dia viesse a pesar no mundo tanto quanto eles pesavam nos s js braços. O fato de estar freqüentando uma escola para crianças com problemas de leitura e defeitos de fala não lhe trazia problemas, exceto o de ter que se sentar em mesinhas minúsculas. Sentia-se à vontade com os professores, estudando sozinha, queimando as pestanas, sem precisar ostentar precocidade para ninguém, e sem precisar ficar preocupada com estar entravando o estudo dos outros. Os professores aplaudiam a sua tenacidade e ’ resolução, e isso a enchia de contentamento. Só quando voltava , para o seu quarto à tarde é que o mundo machucava. O ônibus ia lotado de jovens e ruidosas estudantes fazendo algazarra, meninas encantadoras, risonhas, faceiras, Déborah espreitava-as de longe: aquele era um mundo onde ela tinha fracassado, e, por mais que soubesse que aparentava ser melhor do que realmente era, seus olhos de pária observavam-no fascinados. Vestia-se igual a elas, e no entanto continuava sendo pária, uma imitação grosseira de colegial.

Não sou igual a este mundo que vês aí? - perguntou-lho Idat em Yri - Trago véus que me dissimulam e me tomam misteriosa: Gratifico; Soü bela. Se tu nos deixares, a mim, a Lactamaeon que te ama, a Anterrabae que é teu amigo, com quem rirás? Quem te deixará à vontade? Onde mais encontrarás uma luz como esta?

Aconteceu então uma coisa estranhíssima: as imagens de seus professores de escola, apareceram em Yr para falar com Idat.

Vocês vão aderir ao Coletor? Vocês também? - perguntou Déborah.

Claro que não! - respondeu o professor de inglês. Nós scomos contra essas suas criaturas!

Escute bem - disse o de matemática a Idat - essa menina está dando um duro dos diabos. Comparece às aulas com os lápis apontados, o uniforme certinho. Ela é pontual e obediente. Nunca deu provas de insanidade em sala de aula! Não é nenhum gênio em matemática, mas trabalha duro para aprender, esta é a verdade, nem mais nem menos!

Dificilmente uma chuva de estrelas - retrucou Idat friamente. - Dificilmente um corvo de prata. (Era uma metáfora Yri equivalente a adulação - por causa das imagens excessivamente reluzentes).

Inesperadamente, os personagens do Coletor começaram a aparecer, um a um, ao Mundo Intermediário. O primeiro trazia um pistão, o segundo, um violino, o terceiro, um tambor e o quarto um tamborim. Nós vamos Dançar, disseram para Déborah.

Que dança?

A Grande Dança.

E quem vai participar?

Você também. . Onde vai ser?

Nos cinco Continentes.

Esteja ou não doente, disse o professor de inglês, você é uma das dançarinas, compreende? Os professores e o Coletor puseram-se a anotar numa folha de papel, em Yri e em inglês, a fórmula da separação; copiaram uma por uma as antiquíssimas palavras: ”Tu Não Ês Como Os Outros”. Aí está, disse o professor de matemática. Tua velha realidade, inteirinha.

Em seguida, picaram a folha de papel e atiraram os pedaços ao vento.

Aquela noite, na igreja, Déborah convidou a companheira que dividia consigo o mesmo livro de hinos para tomarem uma soda juntas. A menina ficou lívida. Começou a gaguejar, com uma cara tão transtomada que Déborah teve medo de as pessoas julgarem que ela tivesse dito alguma coisa indecente à menina. Imaginou aquelas piedosas senhoras, travestidas em Defensoras de Cristo, avançando, como numa cruzada medieval, contra a herege. Retcomou à sua invisibilidade e continuou a cantar como se nada houvesse acontecido. Era um hino sobre a Compaixão.

Adolescência de novo? - perguntou Furii com um ar divertido. Isso, pelo menos, você pode superar! Não me diga que você ainda se acha venenosa?

- Não, só que é difícil livrar-se de antigas convicções assim de uma só vez. Sempre fui muito cautelosa com o meu nganon, ao mesmo tempo em que invejava a pureza das outras pessoas. É difícil pensar diferente assim de imediato.

- Mas você tem amigos... - disse Furii, perguntando mais do que afirmando.

- Na cidade? Cantamos juntos, freqüentamos as mesmas aulas à noite... e eles se recusam a olhar para mim. Duvido muito que mudem.

- Você tem certeza de que não é alguma atitude sua?

- Confie em mim.. . - pediu Déborah baixinho. - Juro que é verdade. Existem momentos felizes, mas são poucos. Excetuando-se uma ou duas amigas no hospital...

- Conte-me um desses momentos felizes.

- Bem, a proprietária da pensão ficou ontem à noite cuidando da neta, um bebê de dois meses de idade. Ela precisou sair; veio ao meu quarto e simplesmente pediu: ”Déborah, você toma conta do nenê até eu voltar?” Aí ela saiu e me deixou ali sozinha. Fiquei com aquela criança uma hora e meia, implorando aos céus para que continuasse exatamente como estava - inspirando, expirando - e não morresse nas minhas mãos.

- E por que haveria de morrer nas suas mãos?

- E se eu fosse apenas Aparências, viva só um oitavo de centímetro da superfície para dentro, só o suficiente para sentir que um cigarro queima, só até aí...

- Me diga uma coisa, você ama os seus pais? E a sua irmã, a quem você nunca assassinou?

- Amo... sempre a amei.

- E à sua amiga Carla?

- Também. - E começou a choramingar. - E eu amo você também, mas não esqueci o poder que tem, sua velha lixeira mental!

- Como você se sente agora que está livre de todo aquele lixo velho e fedorento? - indagou Furii.

Anterrabae rugiu furioso. Anterrabae, Lactamaeon, Idat e todas as outras divindades dos inúmeros reinos existentes em Yr também teriam que ir para o lixo junto com o Poço, a Puni ção, o Coletor, o Censor, enfim, junto com os flagelos do passado?

- Tem que ir tudo? Amontoa-se e joga-se tudo fora?

- Déborah, a essa altura dos acontecimentos não pode haver barganha decente... você compreende? Você tem que primeiro assumir o mundo, entregar-se completamente. .. cohfiando na minha palavra, já que não confia na de ninguém. Dependendo do que você mesma fizer deste comprometimento, aí sim, poderá decidir se é ou não uma barganha decente.

- E quanto aos meus personagens bons? Não devo mais pensar em Lactamaeon, tão negro em seu negro ginete? Nem em Anterrabae? Nem em Idat, agora que ela se tcomou uma mulher de vez e está tão linda? Devo esquecê-los? E o Yri que é capaz de expressar certas sensações, certas realidades como nenhuma outra língua. Devo esquecê-lo também.

- O mundo é vasto e tem espaço de sobra para o discemimento. Por que você nunca desenhou Anterrabae ou qualquer um dos deuses?

- Ora, eles eram secretos! Você já conhece as leis que proibem misturar os mundos.

- Sim, mas talvez tenha chegado a hora de misturar as partes boas, as partes belas e sábias de Yr, com as do mundo. Isso seria tão importante para fortalecer o compromisso!

Déborah viu Anterrabae caindo rápido, desprendendo fagulhas e, enquanto as lágrimas de Idat eram diamantes, as dele eram chispas incandescentes. Lactamaeon chorava sangue tal como Édipo. Essa última imagem trouxe-lhe à mente uma lembrança que contou distraidamente.

- Uma vez eu fui à casa de uma senhora e vi sangue escorrendo dos ladrilhos da cozinha. Eu vivia vendo coágulos de sangue nas ruas e as pessoas se transformarem numa multidão de micróbios. Isso, pelo menos, não acontece mais.

- Ai, Déborah! Déborah! Saúde não é simplesmente a ausência de doença. Não foi para você se livrar de alguns sintomas que nós demos tanto duro! - Ela sentia-secomo se estivesse diante de uma cega a quem procurava explicar a cor da luz.

- Se eu desenhasse Lactamaeon sob a forma de falcão ou de cavaleiro, você o encararia como uma manifestação de minha velha maluquice ou como uma ”contribuição”?

- Primeiro eu teria que ver o desenho.

- Está bem - disse Déborah.-Talvez eu comece mesmo a destampar Yr.

DEPARTAMENTO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

Os Exames de Equivalência para a Escola Secundária serão realizados no dia 10 de maio na sede do Tribunal do Condado. Os candidatos aos exames deverão preencher e enviar os formulários anexos, e comparecer ao referido local na terça-feira, dia 10 de maio, às 09:00 hs. Caso o candidato não cumpra esses dois requisitos, será automaticamente desqualificado.

Déborah pôs de lado o aviso, junto aos esboços para um desenho de Anterrabae. Estava surpresa de que o momento tivesse chegado tão cedo. Preencheu imediatamente os formulários anexos, tomando a precaução de verificar duas vezes se anotara o endereço corretamente, e foi. sem perda de tempo colocá-los no correio, receosa de que pudesse esquecer ou perdêlos. Quando a carta escorregou pela ranhura da caixa de correio, um primeiro calafrio de medo lhe subiu pela espinha.

Voltou para seu quarto, sentou-se diante da mesa e tentou rir daquele medo besta. Sentia uma ansiedade e uma excitação febris. A esperança acabou subjugando de vez o medo. Já era tarde demais para fugir ao compromisso que assumira com o mundo.

As duas semanas anteriores aos exames foram consumidas numa grande expectativa, entremeada de insuportáveis crises de tédio. Quando finalmente chegou o dia, Déborah armou-se de coragem e de sangue-frio e foi para o Tribunal! Era um prédio antigo. Indicaram-lhe uma sala poeirenta, com paredes revestidas de lambris, onde encontrou outros candidatos que se aventuravam também a tragar de um só gole o curso secundário; um grupo de operários de mãos calosas, suando e murmurando palavras desconexas, debruçados sobre as provas como blocos de granito. De início, ficou surpresa em encontrá-los ali, mas logo a voz sensata de McPherson cochichou-lhe no ouvido: ”Lembre-se que você não é dona de todo o sofrimento no mundo!” Reconheceu humildemente que eles, embora não fossem prisioneiros nem insanos, também tinham deixado escapar alguns compassos no ritmo da vida, e recuperavam agora o terreno perdido. Quando o tempo expirou, Déborah pôs sua prova junto com a dos outros e saiu da sala, incapaz de avaliar qual fora o seu desempenho.

Haviam combinado na escola que ela continuaria seus estudos até a divulgação dos resultados, não só para afastá-la das preocupações e do ócio, como também porque, caso fosse reprovada, tentaria o próximo exame. Foi um período maravilhoso este. Estudou com calma, despreocupada, acompanhou o desabrochar dos botões nas árvores frutíferas que havia em frente à Igreja Metodista. Ficou horas decifrando nuvens no céu. Apaixonou-se por alamos. Foi ver todos os filmes que passaram na cidade, e acabou conhecendo Tarzan no mínimo tão bem quanto Hamlet. Um mês inteirinho de sossego e preguiça. Chamou-o de sua ”infância”.

No final .do mês, recebeu finalmente uma carta do Conselho Universitário Estadual. Abriu-a excitadíssima e quase caiu para trás quando soube que tinha sido aprovada. Podia se considerar num nível educacional equivalente ao dos estudantes que haviam freqüentado a escola secundária. Suas notas tomavam-na uma candidata bastante promissora a qualquer faculdade. Telefonou para casa, estourando de orgulho, para transmitir aos pais aquela segunda boa notícia. Queria, sobretudo, comunicar-lhes que suas esperanças, por mais que tivessem perigado, apesar de proteladas por tanto tempo, ainda eram viáveis.

- Que maravilha! É maravilhoso! Oh, espere só qise eu vou chamar a família toda! Vão ficar tão orgulhosos! - Esther ficou felicíssima.

Jacob, comparado a ela, mostrou-se quase frio: - . . .Estou muito orgulhoso - disse. - Ótimo, muito bem. - Sua voz parecia que ia desfalecer.

Déborah repôs o telefone no gancho, extremamente magoada com a reação do pai. Os raios do sol continuavam aquecendo a sala, o ar continuava carregado de fragrâncias primaveris - de seiva e de flores, de arbustos florescentes, de terra quente e úmida - mas nem o sol, nem as fragrâncias eram mais as mesmas. Saiu cabisbaixa para a rua, toomou a estrada que circundava o velho cemitério católico, passou diante do estacionamento de carros-reboque, caminhando em direção à escola. Prometera a si mesma que, se fosse aprovada, iria olhar pelas janelas, de uma em uma, o movimento lá dentro. Agora já não tinha mais graça. Ia só para cumprir a velha promessa. Atravessou os pátios da escola, e começou a margear o imenso campo de futebol, onde ainda treinavam quatro meninos. Sentiu-se de repente extremamente cansada e sentou-se de encontro à tela que cercava os fundos do campo.

Porque ele reagira de uma forma deplorável? Havia empenhado naqueles exames todas as suas energias, toda a sua determinação, toda a sua força de vontade, entretanto, no final das contas, fez o que todo o mundo faz com a metade do seu esforço, e ainda estava dois anos atrasada. Tinha dezenove anos e um diploma do curso secundário, e seus pais, a essa altura, estariam alardeando a boa nova pela cidade de Chicago inteira. Mas eu quis! - sussurrou para si mesma em Yri. Encostou a cabeça na grade, sentindo um imenso desamparo.

Os meninos corriam no gramado perseguindo as sombras sinuosas projetadas pelo pôr do sol. Eram jovens, robustos e saudáveis. Fora-lhe necessário reunir todas as suas aptidões para chegar até onde eles estavam rindo e brincando, e só descobriu que o muro continuava ali e continuari-a sempre. Podia agora, quando muito, avistar o que havia de extraordinariamente belo do lado de lá do muro. Acabaria consumindo todas as suas forças apenas para manter-se viva.

Na outra extremidade do campo, envoltas numa película dourada de sol, caminhavam duas pessoas. Uma moça esbelta e graciosa, de mãos dadas com um rapaz. A jaqueta dele pendia negligentemente dos ombros magros da menina. Contornavam vagarosamente o gramado, vindo em sua direção. Paravam de vez em quando e trocavam palavras que sempre terminavam em risos ele, então, num gesto amoroso, acariciava os cabelos ou o rosto da moça Déborah falava sozinha e em voz alta, como os loucos fazem: - Nunca terei isso. De que adianta lutar, estudar, trabalhar, resistir, se jamais me farão carinhos assim, se jamais andarei de mãos dadas com alguém...

Carla já te disse isso há muito tempo - resmungou Lactamaeon empoleirado na cerca. - Estudos, emprego. . .-dá tudo no mesmo: ”bom dia” e ”boa noite” e nada mais.

Quentin há de te oferecer água. . . - zombou Anterrabae - por um tubo de alimentação. Ha, Ha, Ha! As mãos dele nunca acariciarão teu rosto. As mãos de ninguém. .. de ninguém. . .

Era quase noite. Déborah levantou-se e foi caminhando vagarosamente em direção à cidade. As caras das mulheres do coro da igreja pareciam desafiá-la do estacionamento dos reboques. ”Boa tarde! Boa noite!” - repetiam incansavelmente sem nunca pronunciar o seu nome.

Consumi todas as minhas esperanças cantando e costurando com vocês, e não são capazes sequer de lembrar meu nome. Aguardavam-na todos no cemitério: Anterrabae cintilando no escuro; Lactamaeon uivando como um cão; o Coletor provocando-a com zombarias - Dá duro, menina preguiçosa! Luta, vamos, sua desajeitada. . . nunca.. . nunca. .. nunca. . .

Pensam que foi fácil - berrou Déborah. - Não faltei uma vez, mesmo quando estava doente. Fui às aulas todos os dias, bem arrumada, pontual, não cometi um deslize. Sinto-me um pouco orgulhosa. . . - Mas as gargalhadas estrepitosas afogaram suas palavras. Déborah, suplicante, chamou Anterrabae, procurando a trajetória ígnea, mas a resposta foi também uma sonora gargalhada carregada de desprezo. Surgiu diante dela, dobrando-se de rir, e, subitamente, juntou-se a ele uma outra figura que Déborah se lembrava de já ter visto há muito, muito tempo atrás, num livro. Era um livro cheio de gravuras que havia na biblioteca do avô, e que, embora já estivesse fora de moda, era presença obrigatória em qualquer lar culto: ”Paradise Lost” de Milton. A origem de Anterrabae, o deus flamejante que caía perpetuamente era nada mais nada menos que o Satã de Milton. Folheara mil vezes aquelas gravuras, quando iam visitar o avô, sem o saber, gravara a tempestuosidade e a veemência das imagens. Enquanto o artista que havia nela estudava os anjos gravados em água-forte e as linhas bem esculpidas, as dimensões precisas, a sonhadora de reinos misteriosos surrupiava furtivamente o soberbo arcanjo para transformá-lo no primeiro habitante de seu mundo particular. Portanto, nem mesmo Anterrabae era seu!

Enquanto isso, o tumulto ia crescendo. Tu não vais criar nada. .. invectivava o Coletor - Vais te deitar em prados floridos. . . nunca! Estudar e trabalhar.. . jamais!

Perseguiram-na aos gritos pela estrada, pelas ruas sombrias e desertas da cidade. Déborah caminhava com os olhos vazios, escutando a zoeira ensurdecedora. Ao passar pela igreja, onde cantava todas as quartas-feiras e domingos, os deuses começaram a imitar as respostas de seu pai ao telefone. O Coletor zombava do sorriso de Quentin e dos meninos do campo de futebol. ”Macho e fêmea, criou-os o Senhor”. Estava quase chegando ao hospital. Divisou os dois postes de luz que ladeavam o portão de entrada. Déborah caminhava como que por instinto. Breve despencaria no Poço. Estava aterrorizada. A visão desvanecia-se. Voz... nada. ”Subir as escadas até a porta. Agora, abra-a. Alguém aí, por favor, socorro!” - Como vai, Srta. Blau? E, em seguida - Está se sentindo bem, Srta. Blau? ”A última saída: fazer algum sinal”. Alguém pôs-se a gritar em Yr mas ainda pôde ouvir o outro som - Três toques de cigarra: emergência. O Poço.

Emergiu de volta para o eterno recomeçar, refazendo-se ainda do terror. Por ainda estar viva, tolerando o insolente músculo que persistia em bombear no peito, Déborah começou a lutar e a se contorcer sob as amarras, querendo exaurir suas forças e morrer de uma vez. A exaustão veio, mas a vida continuou pulsando inflexível. Depois de algum tempo, Dobshansky entrou de novo para examiná-la. Dessa vez, trazia uma fisionomia cuidadosamente depurada de todo e qualquer sentimento que não fosse aquela amabilidade neutra de hospital. Os manuais haviam vencido...

- Está se sentindo bem agora?

- Acho que sim.

- Tive que comunicar à proprietária de seu quarto que você não ia dormir lá esta noite e que estava aqui. Ela ficou preocupada por causa da sua escola e trouxe seus livros e algumas roupas. Estava bastante aflita.

- Ela é uma excelente pessoa - confessou Déborah com sinceridade, embora, no íntimo, preferisse não ter de arcar com o peso esmagador das virtudes de tanta gente. Felicitou Quentin por seu casamento ”secreto”, divertindo-se com o esforço que ele fazia para não deixar transparecer a surpresa.

Quando ele e Cleary soltaram-na, pôs o roupão andrajoso do hospital e saiu a passos lentos para a ala. Encontrou as mesmas fisionomias inexpressivas ou hostis. Anoitecia; já estavam distribuindo as bandejas para o jantar. A crise tinha durado quase vinte e quatro horas. Mary Dowben murmurava a um canto fórmulas incompreensíveis. A Srta. Coral devia estar em reclusão de novo. Helene a irritava por amargura, inveja. . . e amizade. Déborah sentou-se e olhou para a substância morna e nauseante que havia no prato. Soltou um longo suspiro. De repente, Mary ergueu-se e atirou longe a xícara de café e o pires, que passaram de raspão pela cabeça de Déborah. Um segundo depois, ela estava sentada de novo, impassível, como se nada tivesse acontecido. O auxiliar repreendeu-as sem muita convicção. Sentia-se culpado de não ter presenciado o incidente, embora estivesse sentado junto a elas. Déborah passou a mão pelos cabelos gosmentos e lembrou-se de uma outra cena idêntica - a agressão de Helene, anos atrás.

Passeou os olhos pelos rostos que a encaravam com hostilidade, nos quais via se refletirem sentimentos contraditórios. Compreendeu, então, que se tornara uma nova Doris Rivera. Um símbolo vivo de esperança e fracasso, a imagem do terror que elas sentiam ante a possibilidade da recuperação, cambaleando como uma bêbada, levando surra atrás de surra, e ainda assim, ao retinir a sineta, de pé novamente para mais um ”round”. Compreendeu também a razão pela qual jamais poderia explicar a essas pessoas a natureza de seus fracassos e da. sua persistência, e seria tão importante que elas entendessem! Sob certos aspectos, a realidade era um domínio tão pessoal quanto Yr. Jamais chegariam a distinguir com clareza a dimensão dos significados, pois sua sobrevivência dependia justamente da supressão desses significados. O incidente da xícara, o medo e o ódio de Mary permitiram a Déborah compreender que a crise começara no momento em que pôs o telefone no gancho depois de comunicar aos pais a notícia triunfal. Yr finalmente estava forçando-a a optar. Ao consentir em se tornar um ser no mundo, dona de um presente e de um futuro viável, uma newtoniana, traçara os contornos finais da opção. Dissimulara-a na agonia e no medo, nas terríveis quedas no Poço, apenas porque faltava amadurecer sua própria capacidade de discermir a diferença entre os problemas e os sintomas; a doença, portanto, que constituía a única fonte de suas defesas e de sua força, terminaria por conduzi-la a um lugar onde podia enfrentar em segurança o momento definitivo da opção. Era chegada a hora de firmar o verdadeiro compromisso.

Quando retiraram as bandejas do jantar, Déborah pediu que trouxessem os seus livros. O auxiliar entregou-os com reverência, como se entregasse símbolos sagrados. Ela abriu o primeiro.

”UM TRIÂNGULO EQUÍLÁTERO É AQUELE CUJOS ÂNGULOS OPOSTOS, AC, AB E BC SÃO IGUAIS ENTRE SI”.

- Sua puta nojenta! Me solte! gritaram do dormitório.

- Tu não és como os outros, sussurrou Anterrabae.

- Não, eu sou como os outros. Furii afirma que será uma contribuição, mas ainda não sei como. Terei que aprender. Talvez então. . .

”UMA LINHA QUE DIVIDE EM DUAS PARTES IGUAIS UM ÂNGULO DE 80 GRAUS FORMA DOIS ÂNGULOS QUE TOTALIZAM 80 GRAUS”.

Mary: - Será que a insanidade é contagiosa? Se fosse, o hospital poderia nos vender como anticorpos.

Não nos pouparás como escudo contra a tua casca seca, Pássaro-um?

Não posso mais fazer isso. vou entregar-me ao mundo.

Mas o mundo não tem leis, é selvagem. . .

Ainda assim eu prefiro o mundo.

Lembra-te da tua própria infância. Lembra-te de Hitler e de Hiroshima.

Não importa.

Lembra-te dos rostos hostis, da dor e dos atestados de sanidade que te esperam. .. e do desejo que sentiste ao ver aquele casal de mãos dadas.

vou. vou de qualquer jeito.

Estaremos esperando até que nos chames de novo.

Não, não vou chamá-los. Meu compromisso com o mundo será definitivo.

Adeus, Pássaro-um. . .

Adeus, Anterrabae. Adeus Yr.

”OS AVANÇOS TECNOLÓGICOS AFETARAM A EXPANSÃO OCIDENTAL DE MUITAS MANEIRAS”.

Constantina: - Será que vocês não vêem que eu estou sofrendo, seus porcos malditos”

”A INVENÇÃO DA DINAMITE TOrnOU POSSÍVEL A LIGAÇÃO DE COSTA A COSTA PELAS ESTRADAS DE FERRO”.

- Eu sou a primeira esposa secreta de Eduardo VIII, Rei Abdicado da Inglaterra!

- Jenna vai ter uma crise de novo. Chamem Ellis. É melhor providenciar logo um casulo.

”E AMBOS, ESTRADA DE FERRO E TELÉGRAFO, ASSEGURARAM O CONTATO INDISPENSÁVEL À MODErnA SOCIEDADE INDUSTRIAL.”

- Agora é pra valer - murmurou Déborah.

 

                                                                                Hannah Green  

 

                      

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