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3I
— Por quê? — perguntou Cornélia. Ela levou a taça aos lábios e por cima dela seu olhar parecia ousado e fixo. Aquela criaturinha mirrada, com os olhos grandes e solenes! Esse homenzinho por quem ela se apaixonara no verão anterior! Sua humilhação lhe deu um aperto na garganta; ela deu o braço a Allan e repetiu: — Por que?
Patrick estava extremamente aflito.
— Desculpe, Cornélia. É apenas um assunto de negócio — Ele parou e olhou bem para a moça. Ela estava com as faces vermelhas; teria bebido champanhe demais? Ela nunca olhara para ele com tanta aversão. Desde o noivado dele com Laura, ela lhe demonstrara uma afeição indiferente. Ele começou a corar. Cornélia sorriu e apertou mais o braço de Allan.
— Negócios? — repetiu, a voz bastante arrastada. — O sr. Marshall ia dançar comigo e é véspera de Natal. Não é hora de negócios. — Ela virou-se para Allan. — Você dança, não é?
Allan estava observando os dois, atentamente. Agora não tinha nada a temer. Se Patrick estava constrangido, se achava que Cornélia ainda o amava, o tolo era ele. Allan pôs a mão sobre a mão em seu braço e, olhando para Patrick, respondeu à moça:
— Danço. — Depois continuou, mais pausadamente: — Danço, sim. Andei tomando aulas diárias, há mais de três semanas. Sei valsar muito bem.
...
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Cornélia jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada ruidosa. Depois, sua fisionomia mudou e ela ficou quase feia. Ergueu a taça para Patrick e disse:
— Posso dispensar o Allan por um momento. Mas, Pat, se eu fosse você, não contaria a ninguém a origem de Allan.
— Não estou entendendo — respondeu Patrick, corando.
— Ah, entende sim. Vi quando torceu o nariz ao vê-lo aqui. Papai e eu não vamos gostar nada, se você tentar menosprezar Allan.
Patrick olhou depressa para Allan, mas este não demonstrou nada senão prazer. Cornélia estava lhe afagando o braço; um pouco de champanhe tinha se derramado no vestido de veludo cinza.
— Vá, Allan, deixe que o menino lhe conte a história dele.
Ela sacudiu a cabeça e se afastou, acompanhada por muitos olhares de admiração.
Patrick ficou olhando para o chão, por um instante, e depois disse, em voz
baixa:
— Naquele canto retirado, perto da árvore de Natal. Ainda não está acesa e não há ninguém por perto.
Allan deu de ombros e os dois rapazes, pedindo licença aos convidados por quem passavam, chegaram ao local relativamente isolado, onde um pinheiro gigantesco, brilhantemente enfeitado, as velas ainda apagadas, aguardava as doze badaladas. Allan postou-se de costas para a árvore e Patrick parou diante dele.
— Então? — disse Allan. — Maquinalmente, procurou a cigarreira: depois, notando que não havia nenhum homem fumando, ocorreu-lhe que não ficava bem, diante das senhoras. Ele deixou cair a mão. Um empregado passou com outra bandeja de champanhe e Allan estendeu a mão e pegou uma taça. Levou-a aos lábios. "Insolente”, pensou Patrick. Allan estava bebendo o champanhe um pouco depressa demais, mas seus olhos estavam atentos.
Não o vejo há quase três semanas, Allan — disse Patrick. — Cheguei de Washington há dois dias.
Allan ficou calado. Esvaziou a taça e depois ficou com ela na mão, displicente. "Devo felicitá-lo?”, pensou Patrick, sofrendo.
"Devo sequer mencionar o engate automático? Ele sempre foi difícil." Nosso pessoal tem sentido falta de você, depois que você... resolveu estudar Direito com o pessoal da Interstate.
Allan pensou na última vez em que estivera nos escritórios dos
Peale. Tinha sido publicada a notícia sobre “o nosso jovem e famoso ventor, sr. Allan Marshall, que está estudando Direito com a equipe de nosso secretário de Estado auxiliar, sr. Peale, e o filho, senador Patrick Peale ". Ele tinha ido lá para pegar uns apontamentos que esquecera. Sentira um prazer irritado, cheio de repugnância, quando o pessoal o recebera com uma subserviência ansiosa e muitas perguntas respeitosas. Patrick, examinando-o agora, aflito, viu a frieza na fisionomia dele. Viu que Allan se esquecera dele e disse:
— Sinto muito. Vamos mandar-lhe o seu diploma...
— Obrigado — disse Allan.
Patrick suspirou.
— Não lhe posso dizer como fiquei surpreendido e decepcionado quando soube que você ia para a Interstate.
— É mesmo? Não posso imaginar o motivo. A equipe da Interstate é muito maior e mais... digamos... especializada do que a equipe da Peale. — Allan ergueu as sobrancelhas pretas.
— Especializada, sim — disse Patrick, refletindo. — É esse o problema. — Allan esperou, sorrindo um pouco. Patrick viu então que as sutilezas não iam forçar Allan a uma discussão. Disse: — Eu tinha a impressão de que você seria um advogado trabalhista. — A voz dele então ficou áspera. — Para ajudar as pessoas com quem tem trabalhado, e que continuam a trabalhar com seu pai. Não era esse seu plano original?
Allan, com habilidade, pegou outra taça de uma salva e deixou que Patrick esperasse até ele ter provado o champanhe com um ar de conhecedor. Depois disse:
— Não me posso dar a esse luxo. Você pode se dar ao luxo de ser um senador “trabalhista”, e talvez, daqui a alguns anos, quando eu tiver uma fortuna, também me possa dar a um luxo desses.
— Allan. — Patrick estava quase em desespero. — Eu tinha tantas esperanças depositadas em você. Acreditava em você. Nunca pensei que você traísse...
Allan, porém, não se perturbou.
— Traísse a quem? — perguntou, como que espantado.
— Aqueles que confiavam em você — disse Patrick amargura.
Allan riu-se.
— Confiavam em mim, Pat? Quem é que um dia confiou em outro? E, para dizer a verdade, quem é digno de confiança?
— Pensei que você fosse — disse Patrick.
— Pois nunca pensei que você fosse — retrucou Allan. — Sabe, eu pensava que você fosse mais inteligente do que aparenta. Ou talvez seja apenas hipócrita. Está na política, não está? — Ele encostou os nós aos dedos da mão esquerda no peito de Patrick. Direito é prostituta, mas a política é alcoviteira.
Patrick olhou depressa por cima do ombro, temendo que alguém pudesse ter ouvido, pois a voz de Allan estava não só mais grossa, como mais forte. Allan acompanhou o olhar dele. E entreviu, à distância, o rosto pálido e preocupado de Laura DeWitt, olhando para eles. 0 champanhe tinha aguçado sua vista. Ele viu claramente o brilho puro dos grandes olhos cinzentos, a brancura luminosa de sua testa, a forma dos lábios delicados, a nuvem do cabelo escuro. Ele se esqueceu de Patrick, de todos os outros da sala. “É o rosto da Virgem Maria", pensou; “o rosto de uma santa".
Ela encontrou o olhar dele e ficou ali, controlada, graciosa e calma, a despeito de sua ansiedade. Não sorriu. Através da sala grande, cheia do ruído de vozes educadas, cintilando de joias, acesa de cor e o movimento de homens e mulheres, eles se olharam. Então, muito devagar, a cabeça baixa, como que em
sofrimento, Laura se virou.
Patrick estava falando com ele, de novo. Allan ouviu a voz, mas não as palavras. Tinha visto algo de infinitamente belo, firme e misericordioso, algo de uma ternura indizível, dirigido não a ele, mas a todo mundo. Então, do vale abaixo, acima de todas aquelas vozes, acima da nova ventania rugindo pelo céu, ele ouviu, ou pensou ouvir, o som de sinos de igreja, agudos e doces, batendo em seu coração, com nostalgia e tristeza.
A voz de Cornélia ressoou na sala:
— É meia-noite! Feliz Natal! Feliz Natal! A árvore!
Os convidados se viraram para a árvore e Rufus, radioso como o sol, estava se aproximando. Allan apertou os nós dos dedos no peito de Patrick. Disse:
— Finis coronat opus. O fim coroa a obra, Pat.
Os sinos de igreja tocavam mais junto dele, insistentes, chamando. Ele sentia a vibração da igreja, as velas ardendo, as pontas en voltas na chama dourada. Um cheiro de incenso e depois alguém entoando: “Gloria in Excelsis Deo! Gloria... Gloria..." O órgão avolumando-se como o mar.
Rufus chegou ao lado deles, uma caixa de fósforos com pedrarias na mão.
— Temos de acender a árvore — disse, exuberante. — Allan,
Pat. — Ele acendeu um fósforo e os convidados, rindo, ansiosos, se agruparam em volta dele. Patrick olhou bem para Allan e disse: — Mas você não se esquecerá. Nunca se esquecerá, mesmo. Ele se afastou, ficando com os outros. O fósforo estava aceso na mão de Rufus e ele apertou os olhos, fixos sobre Allan.
— O que é que ele disse? — murmurou, baixinho. O que é que havia com o rapaz? Estaria bêbado?
Allan disse:
— Nada. Não disse nada, não.
Sophia cumprimentara Lydia com uma reserva pomposa. “É horrível que aquela mulher tenha a coragem de entrar nesta casa; é um escândalo". Sophia repetia isso às amigas, muitas vezes, se bem que soubesse, com seu espírito sagaz, que a inimizade de Jim Purcell não seria vantajosa para Rufus, muito embora este agora fosse muito mais rico do que seu antigo inimigo. No entanto, como ela dizia, a situação era quase insustentável. De um modo confuso, ela passara a identificar Laura com Lydia e havia ocasiões em que se referia a Laura como “a filha daquela mulher”. Envelhecendo, ela começou a se esquecer, cada vez mais, que Cornélia era filha de Lydia e falava com Cornélia daquela "pessoa desprezível". Cornélia, embora muito agarrada a Lydia, não obstante, tinha aprendido a aceitar os comentários de bom humor.
Sophia, que era muito observadora, a despeito da vaga confusão da velhice, sabia como ninguém, nem mesmo Cornélia, que Rufus não se esquecera da primeira mulher. Ela o olhava com pena quando ele cumprimentava Lydia com tanta magnanimidade e bondade, como mulher de um velho amigo e diretor de sua companhia. Ela via o sofrimento nos olhos dele e notava o sorriso cheio de saudades. Ela nunca comentava isso com o filho, pois seria fazer Rufus sofrer, mas por isso odiava Lydia e a desprezava ardentemente. No íntimo, chamava Lydia de “aquela adúltera”. Se bem que normalmente não se desse muito bem com Estelle, conseguia quase ter intimidade com ela quando conversavam sobre a primeira mulher de Rufus, na privacidade de seus aposentos.
Estelle parou, a caminho do "pequeno salão de baile”, para dar uma palavra a Sophia. Estava de mau humor. Não só aquela execrável Cornélia apagara sua figura, como também Lydia e Laura, com sua altura, sua pose e graça, tinham-na tornado insignificante. Sophia continuava presa ao lado da lareira, tomando conhecimento da presença dos convidados com um ar de rainha, inclinando a cabeça com dignidade. Estelle, abanando-se com vigor, murmurou:
— Mamãe DeWitt, quando é que essas pessoas horrorosas, os Purcell, vão embora? Realmente, é humilhante ter de recebê-los. Os vestidos que essas mulheres usam... tão sem classe, fora de moda.
Sophia olhou em volta. Lydia e Jim Purcell evidentemente preparavam-se para partir e Patrick Peale estava ao lado deles. Mas Laura não se encontrava por ali.
— A menina nasceu para ficar para titia — murmurou ela. — Duvido que o casamento se realize. Criaturas desgraçadas. Eles sempre se retiram depois que a árvore é acesa, Estelle. Parece que lhes resta um pouco de decência, pois nunca ficam para as festividades.
— Em Filadélfia uma coisa dessas nunca seria permitida — disse Estelle, com o mau humor aumentando. — Mas o que se pode esperar de um lugar tão provinciano como Portersville?
Aquilo aborreceu Sophia. Ela se animou e disse, com malícia:
— Os Fielding sempre foram bem recebidos em Filadélfia. Os pais delas eram da antiga alta sociedade de lá, e os avós, quando sua família estava curando couro; — Os olhos castanhos iluminaram o rosto enrugado, por um instante.
Aquilo deixou Estelle furiosa. Ela disse, a voz abalada:
— Meus antepassados preparavam os couros para os reis da Inglaterra... concessão real... autorizados...
Sophia estava muito satisfeita consigo mesma.
— Um cavalo — entoou ela — continua a ser cavalo e um couro é um couro.
Estelle, com uma exclamação, virou-se depressa e Sophia sorriu, feliz. Era tão raro ela poder “pôr Estelle em seu lugar”. Aquilo a deixava revigorada. Ela sofrerá demais com as maneiras delicadas da nora e o ar de superioridade altiva desta quanto a todos e tudo.
— Quem é que ela pensa que é? — murmurou ela, em voz alta. — O que é que ela já fez para assumir esses ares?
Ela agora estava bem satisfeita (como se tivesse tido um grande triunfo pessoal) e pôde se levantar e sair da sala para ir dormir. Ao passar pela porta do quarto dos netos, nem sequer olhou para ele Por vezes se esquecia de que eles existiam.
— Por que Laura está demorando tanto? — perguntou Patrick a Jim Purcell, nervoso. — Não suporto esta casa. O cantor que Rufus importou de Nova Iorque já está se preparando.
Purcell sorriu, azedo.
— Laura deve estar trabalhando muito para convencer tio Rufus a permitir que você seja diretor — disse ele. — Dê mais uns minutos à moça.
— Acho que teria sido melhor que o Patrick falasse com Rufus sozinho, no gabinete dele — disse Lydia, corando. — É uma privoção tão grande estar aqui,
sob qualquer pretexto.
Purcell afagou-lhe o ombro, com tolerância.
Mais uns minutos, minha velha — repetiu. — Eu também estou com pressa. Prometi a Ruth levá-la para baixo, fosse a que horas fosse, para ver a árvore. — Ele virou-se para Patrick. — Vi você saindo com aquele Marshall. Então?
— Não adiantou nada — disse Patrick. — Procurei falar com ele, nesses últimos dias, mas não consegui. Só tive uns minutos. Ele riu na minha cara quando quis lhe lembrar o dever dele.
— O dever — repetiu Purcell, pensativo. — É engraçado que muita gente que não perderia nada se cumprisse o seu “dever” esteja sempre insistindo para que seja cumprido por outros, que perderiam com isso. Vamos, Pat, não o estou criticando. Mas não posso deixar de pensar que eu teria agido exatamente como aquele rapaz, Aliás, agi sim, embora as circunstâncias não fossem exatamente iguais.
Enquanto isso, Rufus se trancara na biblioteca com Laura, a sobrinha, para não ser interrompido. Ela estava ali sentada, junto da grande escrivaninha de mogno, com as mãos no colo. E estava corando, constrangida, embora os olhos cinzentos estivessem muito sérios. Rufus sentou-se na borda da mesa e a contemplou, com um amor e prazer sinceros. Ele lhe salvara a vida, pensou, escutando sua voz suave e balbuciante. Uma mocinha tão encantadora, tão aristocrática, controlada. Os olhos dela chegavam a irradiar luz. Por algum motivo, o fato de ter ajudado a salvá-la da morte sempre o prendera fortemente a essa moça. Se não fosse ele, talvez estivesse morta, e não ali sentada, olhando-o com o olhar afetuoso e suplicante de filha, com a confiança absoluta de filha.
Ele a escutara por quinze minutos contados, sem interrompêla a não ser para lhe fazer uma pergunta carinhosa e bondosa. Ele fingira ponderar tudo o que ela dissera, com consideração e indulgência fingida. Aos poucos, de momento em momento, ele deixou que ela tivesse a impressão de que somente os pedidos dela o estavam comovendo, contra sua vontade. Ele franzia a testa, puxava o lábio vermelho, coçava o queixo, suspirava, parecia pensativo. Quase podia ouvir os pensamentos inocentes dela: acho que o estou convencendo, o querido tio Rufus!
"Ela se parece com Lydia; podia ser Lydia, na idade dela", disse Rufus consigo, e o antigo sofrimento o feriu. "Nunca pude negar nada a Lydia. Mesmo que esse caso do jovem Peale não fosse exatamente o que desejo, seria difícil recusar isso a Laura.”
— Patrick disse que ele poderia contribuir em tanta coisa — dizia Laura torcendo o lenço nas mãos. Ela sorriu para Rufus, ansiosa. — Estarei abusando, tio Rufus?
— Você nunca poderia abusar de mim, meu amor — respondeu ele.
Rufus estendeu a mão e afagou o belo cabelo escuro, que sempre parecia esvoaçar, a despeito dos grampos que o prendiam. A mão dele, com grande ternura, levantou o queixo da moça. Ele se debruçou e beijou-lhe as faces, que tinham sido tocadas com o pó mais macio e suave — o perfume de Lydia. Rufus afastou a mão e olhou para ela, dominado por um sofrimento estranho e por ciúmes. “Em todos os sentidos, ela é minha filha e me pertence."
Ele pegou as mãos dela e a puxou, delicadamente, fazendo-a levantar-se. Depois, abraçou-a.
— Pronto, pronto, meu bem — disse. — Não se preocupe. Se o seu rapaz
está mesmo falando sério e se isso a fará feliz, diga que ele vá me procurar na semana que vem, antes de eu ir para Nova Iorque. — Ele a fez afastar-se e a contemplou, com orgulho. Claro, terei de convocar uma reunião de diretoria e não se pode fazer nada de fato antes do casamento de vocês, em junho. — Ele acrescentou, novamente com ciúmes: — Você o ama muito, não é, querida?
Laura era muito sabida e sorriu para Rufus com uma ternura igual à dele.
— Mas o senhor, tio Rufus, será sempre o primeiro, para mim.
Rufus sentiu-se inchar de triunfo. Purcell não conseguira substituir o tio no coração da menina, embora ela gostasse dele. Rufus tornou a beijá-la.
— Claro — disse ele. — Você sempre será a minha garota. Agora, vá andando. Tenho de voltar aos meus convidados.
Laura voltou, alegre, para junto de Lydia, Patrick e Purcell lhes deu a notícia numa voz trêmula de prazer. Então, todos se prepararam para partir o mais discretamente possível. Só Purcell estava pensativo. Ele sabia como Rufus gostava de Laura, mas isso não seria o suficiente para interferir com os negócios do Rufe Ruivo. Havia outra coisa. Hummm, pensou Purcell, e começou a rir para si, o futuro parecia oferecer bastante distração.
Eles encontraram Estelle borbulhando com amigos, o sorriso açucarado puxado artificialmente sobre os dentinhos gananciosos. Ela se abanava e pavoneava e em cada gesto afetado revelava-se o seu imenso contentamento e sua vaidade. O sorriso congelou-se um pouco quando o grupo de Purcell se aproximou. Então, prendendo a respiração e estremecendo, ela pousou a mão no braço de Patrick.
— Querido Patrick — disse ela —, nem posso lhe dizer como aplaudi o seu discurso no Senado, há pouco! Compreendí! Concordei! Foi maravilhoso! E está fazendo tanto pelos trabalhadores.
Um empregado, ao passar, por acaso roçou-lhe no braço com uma bandeja e ela disse, com maldade:
— Que descuidado, George! Você não serviu nada bem hoje.
Tenho de falar sobre você com o sr. DeWitt.
— Desculpe, senhora — murmurou o rapaz, cujo rosto magro estava branco e exausto. Ele estava trabalhando sem parar desde as seis da manhã, preparando a festa, e tinha as mãos trêmulas. Antes que Patrick pudesse falar, e antes de poder controlar a sua indignação o suficiente para isso, Estelle recomeçava:
— Os empregados são tão impossíveis! Tão burros! E tão ingratos, não?
O rosto de Patrick ficou severo. Jim Purcell pegou-o pelo braço e o levou
dali.
— Aquela mulher! — murmurou o rapaz. — Os DeWitt...
Purcell riu.
— Ora, o velho Rufe não tem sido tão mau, nestes últimos anos. Sabe, acho que ele amadureceu. É isso que o dinheiro pode fazer com os homens: torná-los mais bondosos com seus semelhantes. Estelle, que diplomaticamente convencera a sociedade de Portersville de que ela, uma Norwich, nascida e criada em Filadélfia, sabia tudo que se podia saber sobre cultura, habilmente conduziu seus convidados para o pequeno salão de baile. Ela achara uma pena que o salão não comportasse mais do que quatro músicos.
— Dá a tal impressão de pobreza — dissera ela a Rufus, emburrada.
Os músicos estavam agrupados na extremidade do salão, perto do piano, e suas expressões demonstravam entusiasmo, por deverem não só tocar para as danças, mais tarde, como também acompanhar o famoso tenor Giovanni Monetti. Ficavam espiando o homem, esguio e pequeno, com seu traje a rigor impecável, e quase se rebaixavam diante dos olhares raivosos que ele lançava à platéia que aos poucos se reunia. Ele olhava o relógio, furioso: o peito forte, tão desproporcionado ao resto do corpo, era grotescamente saliente. Estava insultado. Quando aparecia no palco da Metropolitan Opera House recebia ovações antes de poder cantar uma nota. Os convidados, sentando-se em cadeirinhas douradas, tagarelando e rindo, mal olhavam para ele. “Matutos! Santa Maria!”
Os convidados agora estavam sentados em todas as cadeiras douradas existentes e os cavalheiros excedentes ficaram de pé, junto às paredes. Monetti olhou para a dona da casa: nenhum encanto, nem graça, nem espírito cosmopolita. Então, seu olhar vagou e parou.
Aquele rapaz ali, apoiado à parede, a cabeça meio curvada, com a moça de cabelo de fogo ao lado — rosto muito extraordinário, o daquele rapaz. Um italiano? Não, era muito frio, muito fixo. No entanto, tinha uma angústia... positivamente, uma angústia. Era o rosto de que a pessoa não se esquecia: um rosto de paixão. Monetti solveu cantar para ele, comovê-lo, derretê-lo de seu gelo, agitálo. A primeira canção mostraria se ele, Monetti, era um tolo.
0 burburinho, risos e agitação continuavam no salão. As senhoras se debruçavam sobre os cavalheiros, tagarelando. Seus perfumes e pós sufocavam o cantor. Ele tossiu, com força; saiu propositadamente de seu lugar, andando de um lado para outro mostrando sua irritação. Por fim, isso prendeu a atenção dos convidados e, diante de um gesto distinto de Estelle, eles fizeram silêncio. Monetti esperou, imponente, seu olho dominando cada olhar que captava.
Allan não conhecia grande coisa sobre música, a não ser o tipo sacro, que ouvira em sua juventude. Nem o velho padre Gallacher nem seu sucessor atual, o padre Tobin, tinham conseguido um bom órgão para a igrejinha deles. O coro sempre fora lamentável. Só uma vez fora notável e isso naquele único ano em que Tim Marshall obrigara o filho mais velho a fazer parte dele. As únicas outras canções que Allan conhecia eram velhas baladas irlandesas, aprendidas com os pais. Ele nunca tivera dinheiro para ir aos “concertos" pouco frequentes realizados em Portersville e os concertos em Filadélfia estavam fora de cogitação. No entanto, tinha um ouvido instintivo para a boa música e o tenor mal dera cinco notas, quando Allan levantou a cabeça, subitamente.
Embora Monetti fosse um cínico, como italiano cortês olhara para a data e estava agora cantando o seu próprio arranjo da Messe du Sacré Coeur, de Gounod. Ele tinha certeza de que Gounod não ficaria aborrecido, mas sim lisonjeado. (0 grande compositor não o felicitara entusiasticamente, há apenas um ano?) Enquanto cantava, olhava diretamente para os olhos de Allan e alguma coisa naqueles olhos o levaram, involuntariamente, a acrescentar algo de mais profundo à sua voz, um esplendor puro, reverente e urgente. As lágrimas umedeceram suas pálpebras: o seu próprio coração palpitava misteriosamente. Ele não se enganara: Monetti nunca se enganava.
Alguém tocou no braço de Allan e ele se afastou, com uma raiva inconsciente. Não sabia que estava tremendo: não sabia que estava fitando o cantor, cegamente. Mas de repente, e depois do que lhe pareceu um tempo imenso, ele sentiu o silêncio, seguido de palmas discretas — como o tinir de pingentes de gelo — e uma confusão de tosses, murmúrios, rangidos, farfalhar e gorjeios delicados. Ele olhou em volta, aturdido. Vários dos cavalheiros esgueiravam-se pelas paredes em direção à porta e as senhoras se levantavam para acompanhá-los. Agora, cada vez mais dos ouvintes se dirigiam para a porta e os pequenos lustres do estrado ofuscaram os olhos de Allan e ele piscou.
— Acho que estava dormindo, sr. Marshall! — exclamou uma voz rouca, ao lado dele.
Ele olhou para a cabeça chamejante que se levantava até a altura de seu ombro e depois passava dele. Cornélia estava rindo dele, zombando, mas em seu rosto havia uma expressão curiosa, meio dura, meio afetuosa. Ele de repente pensou num quadro grande, de amador, que vira em algum lugar, colorido demais, grosseiro demais, cheio demais, muito polido e lustroso demais. Não, não era um quadro. Ele um dia entrara, em Nova Iorque, num museu de cera, onde todas as figuras femininas possuíam um brilho duro e vivo sobre tons com um brilho pouco natural, e tinham roupas de um aparato teatral. Uma delas tinha cabelo assim e ele tocara nele e se arrepiara com sua aspereza elástica.
Cornélia o estava observando e alguma coisa no olhar intenso dele a deixou ofendida e inquieta. Claro, ele tinha bebido demais!
0 champanhe era rico demais para o estômago dele. Ela tornou a tocá-lo de
leve.
— Intervalo — disse.
— Intervalo — repetiu ele, maquinalmente. Era ridículo achar que dissera algo de importante. Ele a acompanhou para o tumulto da sala vizinha. Ninguém falava da voz de Monetti, mas só da generosidade de Rufus ao contratar o tenor para distrair os convidados, Algumas das senhoras escondiam os bocejos por trás dos leques. Os cavalheiros foram para a biblioteca, para fumar com o dono da casa. A árvore de Natal brilhava, abandonada num canto; o fogo crepitava animado na lareira. De repente, Allan se sentiu exausto e vazio. As vozes risonhas dos homens e mulheres lhe pareceram insuportavelmente ruidosas, o cheiro dos pós, perfume e lenha ardente se tornaram insuportáveis.
— Não podemos ir para algum lugar sossegado? — murmurou ele para Cornélia.
Ela riu para ele, inclinou a cabeça e o examinou, rindo.
— Um lugar mais fresco? — sugeriu. — 0 hall, então.
O hall estava desocupado: o fogo na lareira branca ardia baixo e a linda escadaria em curva se achava cheia de sombras. As velas se derretiam no lustre ao alto. Allan ficou ali, olhando em volta para a elegância e delicadeza da mobília e as paredes forradas de adamascado. Sua respiração ficou mais regular, mais fácil.
— Acho que você está bêbado — disse Cornélia, com uma voz natural e indulgente. Ela acrescentou, sem pensar: — Eu também acho que estou.
Intervalo, pensou Allan. Os intervalos, certo, mas o homem tinha de viver sua vida. Naquela meia-luz de velas se apagando e fogo morrendo, Cornélia tinha um aspecto menos forçado, mais suave, e ela o olhava estranhamente, suavemente, como que muito comovida e hesitantemente ansiosa. Eles ficaram ali, se olhando, e de momento em momento seus olhos assumiam maior intensidade, se interrogando. Eu a amo, pensou ele, e ela me ama. Ele via o vago brilho das joias no pescoço da jovem e elas agora pareciam estar agitadas. A imensa vitalidade de Cornélia, um tanto controlada, emanava para ele, como que para absorvê-lo dentro dela, e algo inquieto
dentro dele se dissolveu e cedeu. Ele levantou a mão e tocou na ganganta da moça, num gesto tímido. Cornélia não se afastou. Ele deixou os dedos sobre a carne macia e quente e, então, sem recuar, ela cobriu a mão dele com a sua, comprimindo-a mais em sua garganta. Seus olhos fulvos ficaram úmidos e ela começou a tremer.
— Sim, sim — disse ela e sua voz era um sussurro.
Ele enlaçou-a com o braço, baixou a cabeça e beijou-lhe os lábios. Por um instante, mantiveram-se firmes e frios, depois se suavizaram e ficaram quentes como a juventude e a vida. Ele a puxou para si, com rudeza, e os braços brancos de Cornélia rodearam-lhe o pescoço, os seios fartos esmagados contra a camisa branca.
Ela estava murmurando junto à boca dele, agarrando-se a ele, e Allan a abraçou com mais força. Uma a uma, as velas se derreteram todas e o fogo ficou mais baixo.
— Eu te amo, eu te amo — dizia Cornélia vezes e mais vezes, até que ele não se lembrava mais de quando ela começara a falar e aquele momento se uniu ao momento do verão, na luz do sol.
Quando Rufus foi procurar a filha, encontrou-a sozinha, diante do fogo. Um empregado estava acendendo outras velas e nisso o hall, em penumbra, se clareou e as paredes reluziram.
— Onde é que você andou? — perguntou Rufus. Estava de pé ao lado da filha e ela levantou os olhos do sofá de veludo dourado, onde estava sentada. Aqui, sozinha! Aquele sujeito vai cantar de novo. E onde está aquele rapaz, o Allan?
Cornélia sorriu para ele. Pegou-lhe a mão, com carinho.
— O sr. Marshall? Ah, ele saiu, há pouco. Eu dei boa-noite a ele.
Rufus franziu a testa.
Por que ele não foi falar comigo e com Estelle, antes de sair?
Cornélia olhou pensativa para um anel na mão de Rufus, o anel que o avô dera a ele, muitos anos antes.
— Ele queria sair discretamente, ou coisa assim, sem incomodar ninguém, eu acho. — De repente, ela largou a mão do pai, deu uma risada forte e se levantou. — Não sabia, papai? É ele o homem nas portières!
— Sem família, sem educação, sem ambiente! — gemeu Estelle ao marido, às três da manhã. Ela se recusara a se despir, se recusara a ir para a cama. Estava sentada à penteadeira, olhando para Rufus, que andava de um lado para outro no quarto. — Quem é ele? De onde vem? Quem o conhece?
Isso já vinha durando uma hora ou mais. Rufus parou ao lado da mulher. Estava com o rosto tenso e cinzento.
— Não suporto mais isso. Você vai ter de se calar, Estelle. Ela é minha filha, e, por Deus, minha filha pode se casar com qualquer... Quer se calar? Família? Ambiente? Educação? Vamos olhar
para isso! Eu também não tenho e você ficou bem contente de me fisgar,
não é? Uma solteirona, uma solteirona de Filadélfia. Sou brutal, é?
As feições dele ficaram grosseiras, sob uma palidez desusada.
— Não, não, você já falou bastante: agora sou eu que falo e, quando acabar, está terminado. — Estelle levantou-se, assumindo uma pose de desmaio, uma das mãos apoiando o corpo na borda da mesa. — Nada de seus trejeitos delicados comigo agora, meu bem. Não vou nem lhe buscar os seus sais aromáticos. E você não é assim tão delicada! A bisneta de um cavalariço, e com contrato de servidão, ainda por cima não tem nada que ser tão frágil.
A respiração de Rufus estava difícil e dolorosa e ele sentiu uma dor forte no peito. Estelle baixara a cabeça e ele só via o queixo, tremendo. Os cachos estavam desfeitos e pela primeira vez ele notou que a mão que sustentava todo o peso dela não era a mão de uma “dama”. A carne era a carne e sempre se revelava nos momentos de crise. Curiosamente, Rufus sentiu uma espécie de alívio e triunfo, uma espécie de conquista.
— Não vou repetir o que esse Marshall significa para mim e para meu negócio — continuou Rufus. — Ele não é o homem que eu teria escolhido para Cornélia, mas ela podia escolher pior! Por Deus, podia escolher pior, como o seu marquês afetado! E você vai se comportar, calar a boca e parar com suas mentirinhas sobre a minha filha. Há anos que as venho ouvindo e já a ouvi mentir aos outros, também. Ela é minha filha: sempre foi primeira e última. — Ele estava recobrando as cores e de repente bateu com o punho cerrado na mesa junto da mão da mulher. — Mentirinhas doces, Estelle, inventadas para me separar de minha filha. Mas nada há de conseguir isso. Nada, jamais!
32
Allan deixou a carruagem umas três ruas distantes da casa do pai e seguiu a pé o resto do caminho. Fez isso em consideração aos pais, mas, quando suas botinas engraxadas escorregaram no gelo preto sobre as tábuas da calçada, ele praguejou. O champanhe da véspera não lhe fizera bem, pensou. Era culpado pela dor fria dentro dele, a sensação de desolação. Tornava a miséria do bairro pior, mais abalada. Fez com que o fedor das casas o enjoasse. Ele se concentrou no champanhe que bebera e não permitiu outra explicação.
A lua fantasmagórica o olhava, fria: os montes de neve pelo caminho pareciam leprosos, esburacados com a fuligem negra. Um vento frio batia-lhe no rosto e ele puxou a gola de pele de seu belo sobretudo mais para junto do pescoço. De repente, ficou zangado com a família: era ridículo que um homem como ele, vestido como estava, tivesse de andar no meio daquela imundície. Mas quando chegou à casa do pai, tão arrumada, tão pequena, tão pintada, tão diferente dos barracos sórdidos em volta, sentiu orgulho. Parou para examinar a porta vermelha com certo afeto e depois bateu. A porta se abriu logo e Michael apareceu, a luz amarela do lampião atrás dele. Ele tocou no braço de Allan e murmurou, depressa:
— Acho que está tudo bem. O pai vai se controlar, pelo menos até depois do jantar. Prometeu à mãe.
Tim estava sentado diante do grande fogão preto, absorvendo seu calor. A sra. Marshall mexia nas panelas, provando com um ar crítico. No aposento limpo e pobre havia um ótimo cheiro de ganso assado e de cebolas fervendo. A sra. Marshall, rosto gasto mais enrugado do que nunca, levantou a cabeça, ansiosa, quando Allan entrou. Foi para junto dele e o beijou. Tim olhou para o filho e resmungou. Depois disse, com sarcasmo:
— Feliz Natal. — Sem querer, no entanto, olhou para os embrulhos que
Allan estava carregando, como menino. — E o que o meu cavalheiro fez ontem à noite, quando devia estar com a família? Rezando, com certeza.
— Ora, pai — disse Michael. Ele apertou o braço de Allan e este ficou calado.
Tim se virou e examinou o filho mais velho, com atenção.
— E que belas roupas está usando, com corrente de relógio de ouro e botinas brilhando que nem espelho! Ele está esquecendo de onde veio.
Allan respirou fundo e sorriu.
— Não — disse ele. — É por me lembrar de onde vim que tenho a corrente de relógio, as botinas e as roupas. É por causa de meus pais que tive a cabeça e ambição de fazer o que fiz.
— Ele andou beijando a Pedra Blarney — disse Tim.
— Ora, pai — disse a sra. Marshall, afagando o ombro de Allan. — Estamos é orgulhosos dele.
Tim ficou roxo e fez menção de se levantar da cadeira.
— Orgulhosos! — berrou. — Abandonando a gente dele, dando as costas à gente dele...!
— Deixe de ser bobo, pai — disse Allan, colocando os embrulhos num canto da mesa. Estava resolvido a controlar o seu gênio na frente daquele velho idiota. — Não vou discutir com o senhor e só vou dizer uma coisa. Posso fazer mais por aqueles que o senhor chama de “nossa gente” do lado de fora. Creio que se chama “infiltrar nas fileiras dos inimigos”.
— Você é um mentiroso — disse Tim. Suas sobrancelhas cerradas se juntaram sobre os olhos furiosos e o tom arroxeado aumentou. Allan deu de ombros.
— Pode pensar o que quiser.
Tim acalmou-se, mas Allan colocara uma dúvida em sua mente. Ele continuou a olhar para o filho, furioso, e a resmungar, enquanto Michael e a sra. Marshall se juntaram em volta dos embrulhos.
As mãos da pobre mulher tremiam e seu corpo magro estava rígido.
— Olhe, pai — disse ela, bajulando-o —, um embrulho para você, do nosso Allan. — Ela pôs o embrulho nos joelhos nodosos e inquietos de Tim e se virou.
— Não quero nada desse sujeito — disse ele. — Não ir à Missa do Galo com a família e nem hoje tampouco. Dia Santo de Guarda e tudo o mais. Ele vai pensar nisso, quando estiver no inferno.
Allan não fez caso dele.
— Abra o seu embrulho, mãe — disse. — Deixe-me ajudar, está pesado.
Ele levantou a tampa da caixa volumosa e a sra. Marshall exclamou, alegre:
— É um casaco, um lindo casaco! — exclamou. — Um casaco quentinho e lindo, com pele! Um lindo casaco preto.
— Casimira com vison — disse Allan, ajudando a mãe a vestilo. Ele ainda era jovem: sentiu o coração saltar quando a mãe se postou diante dele, tocando a fazenda com carinho, sentindo a pele, com veneração. Sobre aquele esplendor, o rosto dela ficou jovem, terno e cheio de avidez. Tim olhou para ela e começou a piscar, de modo suspeito.
— Ah, Mary — murmurou. — Ah, minha queridinha. É uma mocinha, é mesmo. E eu um fracasso, por você não ganhar isso antes.
Ela se curvou e o beijou, com timidez.
— Não é um fracasso. Temos os nossos filhos, pai.
Tim ficou logo raivoso.
— Não é de bom coração que ele nos traz isso. Está é zombando de nós.
Michael o contemplou, reprovando-o, sério.
— Está enganado, pai. Allan não é homem de perder tempo zombando de gente sem importância. Se não quisesse nos dar prazer, nos teria abandonado inteiramente e se esquecido de nós.
Como Michael, prestes a ser missionário franciscano do Sagrado Coração de Jesus, assumira para Tim uma qualidade quase sobrenatural, sendo portanto quase infalível em seus juízos, Tim se calou. Seu rosto continuava teimoso, mas os ferozes olhos azuis começaram a se suavizar. Ele remexeu em seu embrulho e Michael o ajudou, com brandura. 0 pai resmungou.
— Com certeza são calças de veludo para usar na locomotiva.
Mas o embrulhinho revelou um grande relógio de bolso de ouo, despertador, e uma corrente de ouro. Tim olhou para aquilo, apatetado. Ele afastou as mãos, depressa, não ousando tocar naquela coisa maravilhosa. A sra. Marshall exclamou, assombrada:
— É de ouro, é. Para usar aos domingos.
O relógio reluzia em seu estojo de cetim e de repente bateu docemente as seis horas. Tim prendeu a respiração. A sra. Marshal o virou, com respeito. No verso, apareceu a inscrição: “Para meu pai, Timothy Marshall, de seu filho que o ama, Aloysius”. A sra. Marshall leu aquilo em voz alta e começou a chorar.
— Aloysius — repetiu Michael, sorrindo para o pai, cujas feições tinham começado a se contorcer. — O senhor devia estar envergonhado, pai.
— Não me envergonho de nada! — gritou Tim. Mas ele pegou o relógio e o segurou, como um padre segura a hóstia. — E onde é que vou usar isso? Nas minhas viagens?
Eles não lhe deram atenção. Para Michael, Allan comprara um missal e uma Bíblia, encadernados no couro mais sedoso, com gravações a ouro e o nome gravado. Michael lançou a Allan um olhar mudo de gratidão: e ocorreu a Allan, pela primeira vez, que esse irmão mais moço, antes desprezado, adquirira estatura, dignidade e autoridade naquela casa. Tim inclinou-se na cadeira e olhou para os livros furioso.
— E o que vamos dar a ele, depois de todas essas belas coisas? — resmungou. — Acho que vai atirar tudo na sarjeta, a caminho de seu hotel elegante.
A sra. Marshall, timidamente, ofereceu os presentes da família para Allan: um cachecol preto, grosseiro, que ela mesma tricotara, um rosário de prata barata com pérolas de imitação, de Michael, uma bolsa de níqueis grossa e modesta, de Tim. Allan olhou para aquilo, calado, enquanto eles olhavam, ansiosos, e com constrangimento. Depois Allan disse, sério:
— Obrigado, vou guardar isso sempre.
Ele pôs o cachecol no pescoço, o rosário no bolso e umas pratas na bolsinha. Todos os seus gestos foram cuidadosos e sinceros. Nem mesmo Tim conseguiu achar defeito.
— E isso me faz lembrar... — disse Allan, depois de deixar passar um intervalo conveniente. Ele puxou um papel da carteira. — Um cheque de quinhentos dólares para o padre Tobin. O São José da igreja há anos vem descascando horrivelmente. É uma vergonha.
— Ele não há de querer dinheiro de você — disse Tim, mas seu tom era fraco. — E o que é que há com a estátua? É italiana. Fizemos muita oração naquele altar...
— Uma imagem nova, uma boa; só custará uns trezentos dólares. O padre Tobin poderia usar o resto para comprar uma galinha, uma vez por semana, ou umas boas costeletas de porco ou uma costela de boi — disse Allan, de bom humor. Ele empurrou o cheque mais para perto do pai. — Tenho certeza de que o padre Tobin não vai recusar isso, por virtude. O dinheiro foi ganho, não roubado.
— Não foi mesmo? — perguntou Tim com uma ironia exagerada.
Nesse momento, houve um estrondo e o barulho de vidro se estilhaçando e a sra. Marshall gritou e levou as mãos à boca. Tim levantou-se de repente. Uma rajada de vento frio entrou no aposento, acompanhado por um grito:
— Irlandeses porcos! Malditos irlandeses! Saiam de nossa terra!
Outro estrondo e vidro quebrado, e outra pedra pesada caiu no chão. A sra. Marshall gemeu, caiu numa cadeira e tapou o rosto com as mãos. Michael parou, gelado, consternado.
Tim se dirigiu para a porta, mas Allan o empurrou para o lado, com violência. Abriu a porta e correu para fora. Dois rapazes grandes, mal vestidos, estavam na calçada, às gargalhadas. Um deles tinha outra pedra na mão, pronto para atirá-la. O lampião de rua lançava uma luz fraca sobre seus rostos maltratados. Allan reconheceu-os logo.
Então, eles viram Allan na entrada. O riso sufocou em suas gargantas e seus rostos ficaram pálidos. Eles não haviam pensado na presença de Allan ali, nesse dia. O rico “cavalheiro” não deveria estar com sua família pobre.
— Ora, vejam — disse Allan, baixinho. — George Stevens, Johnnie Lind. Boa noite, rapazes. Estão se divertindo, quebrando as vidraças das pessoas decentes, não é?
Michael e Tim tinham-se juntado à porta. Por um instante Michael viu o rosto de Allan, branco e sorrindo. Era um rosto selvagem e sensual e Michael soltou um grito. Stevens e Lind ficaram paralisados, assustados. Num instante Allan avançou sobre eles, logo pedando os dois pela gola. Sacudiu-os depressa, como um gato, depois juntou as cabeças deles, aparentemente sem esforço. Um estalo forte e surdo soou na rua. As cabeças se juntaram vezes e mais vezes e os rapazes começaram a gritar e se contorcer nas mãos de Allan. Por algum tempo, que pareceu interminável a Michael, esse choque de cabeças continuou, sem que Allan pronunciasse uma palavra.
Aí Allan lançou os corpos murchos na sarjeta de água gelada. Sem remorso, chutou os dois com vontade nas costelas, as botinas reluzindo à luz do lampião. Os rapazes gemeram e ficaram ali parados, aturdidos, as bocas escorrendo sangue. Allan ficou ali sobre eles e riu alto.
— Da próxima vez — disse — eu os mato. Estão entendendo, não é? Mato
vocês, seus porcos.
Ele mal se tinha amarfanhado. Endireitou as mangas, puxou os punhos, sacudiu os ombros. Ficou no meio-fio, alisando o cabelo. Esguio, displicente, emanando poder, examinou sua obra e ficou satisfeito. Acrescentou:
— Dêem lembranças aos outros rapazes da turma. Gostaria de tornar a vê-los, assim. É sempre um prazer ter esse tipo de conversa com vocês.
Ele se espanou pela última vez, com capricho, e voltou para dentro de casa. O pai e irmão o deixaram entrar, calados. Allan foi para junto da mãe e ficou do lado dela.
— Pare de chorar, mãe — disse, com brandura. — Amanhã mandamos consertar essas janelas. Enquanto isso, se arranjarmos papelão ou tábuas, nós as tapamos.
Tim fechou a porta, muito devagar. Seu rosto enrugado estava muito sério. Ele disse, com uma voz lenta, sinistra:
— Você é que nos trouxe isso. Eles sabem que você... abandonou eles, desertou... É um castigo para todos nós.
— Diabo — disse Allan, sem raiva, mas seus olhos brilharam com amargura sobre o pai. — Então, foi por isso que quebraram nossas vidraças há dois anos, e no ano anterior, também. — Ele procurou controlar sua raiva. — Sabe por que agem assim? Antes de tudo, é porque esta casa é pintada, a mãe conserva-a asseada e o senhor é respeitável. Depois, a nossa religião e porque o senhor é imigrante, seu velho tolo. E agora ainda é mais imperdoável: estão com inveja. A inveja é sempre assim, assassina, raivosa e cheia de maldade.
Ele se lembrou dos homens na sarjeta e começou a rir.
— É inveja, é? — berrou Tim, ficando roxo outra vez, os punhos cerrados. São os pobres coitados se lembrando...
Allan soltou um palavrão, baixinho. Tim avançou para ele, mas Michael se interpôs e colocou a mão no ombro do pai. Estava com um vasto sorriso, embora os olhos permanecessem sérios.
— Allan tem razão, pai. É só a inveja. Um dos pecados mortais. Talvez o mais terrível de todos.
Tim parou, a cabeça abaixada, como um touro. Ele vacilou. O seu novo respeito por Michael o fez parar e calar.
— 0 senhor devia se orgulhar do Allan. Que lutador ele é, um lutador irlandês! E foi o senhor quem lhe ensinou, pai. Não somos uma raça de lutadores? — Michael começou a rir. — Pense só, dois contra um e ele os derrubou!
Tim virou o lábio inferior numa careta. O rosto continuava sério, mas os olhos azuis cintilavam. Ele disse:
— Belas palavras para um Irmão, é o que penso. Belas palavras cristãs.
Mas Michael ria às gargalhadas, o corpo dobrado. A sra. Marshall começou a sorrir um pouco e sua mão tocou o braço de Allan Tim fitou o filho mais moço, sem expressão, e de repente se derreteu e começou a se sacudir, com um riso profundo e retumbante.
Foi para junto de Allan e, encabulado, deu um soco no ombro dele.
— Mas não se chuta um homem caído — disse.
Allan sorriu.
— Eu não estava com fome antes, mas agora estou com um excelente apetite.
Mary Marshall se ocupou no fogão, enquanto o pai e os filhos arramjaram umas tábuas planas para pregar sobre as vidraças quebradas. Allan trabalhou numa delas e foi enquanto o fazia que notou o velho presépio de família ali perto. Uma das pedras jogadas tinha caído sobre o Menino Jesus no berço, e a cabeça estava esmada. Allan, com o martelo na mão, ficou olhando para aquilo. De 'i'fite, das profundezas de seu ser surgiu uma raiva tão intensa que iicou fraco. E ali morreu tudo o que ainda era vacilante e duvi40 nele, tudo que ainda era jovem. Ele começou a martelar e cada melada era um golpe.
33
No dia 30 de maio, Michael Marshall escreveu ao irmão. A carta começava com humor e calma, um relato de sua nova vida. Depois ele escrevera:
“As cartas que recebi do pai e da mãe são cheias de tristeza... soube que o rompimento entre vocês é total, desde que o seu futuro casamento com a srta. Cornélia DeWitt foi anunciado para o dia 5 de junho. Os nossos pais não podem esquecer o fato de que você va se casar fora da Igreja e eu soube do padre Tobin que você não foi procurá-lo. Para o pai e a mãe, terem netos que não sejam criados, na fé será um grande sofrimento e angústia.”
Pelo amor de Deus, pensou Allan, com repugnância. Ele rasgou a carta em pedacinhos e jogou fora. Medievalismo. Passou a andar de um lado para outro na sua saleta agradável, embora um tanto pesada, no Philadelphia House, enquanto bebericava um copo de uísque. Lá estava ele, a ponto de se casar com a herdeira de um grande império ferroviário e os seus pais ridículos e o irmão estavam tristes por causa da “fé”!
Allan sentou-se junto de uma janela aberta, naquela tarde de princípio de maio. O céu estava azul e quente e o ruído do tráfego embaixo muito calmo. Chefe da equipe legal de Portersville da Interstate Railroad Company — Allan Marshall. Consultado pela equipe de Filadélfia, que muito o respeitava e o adulava. Bem diferente do mês de maio passado, refletiu Allan. Mas não demais... nunca demais. Os pensamentos dele, dourados, contemplavam o futuro e ele se esqueceu do irmão, o monge, e os pais. Tornou a encher o copo, olhou para o relógio. Tinha um jantar naquela noite, na casa dos Brownell. Dali a pouco teria de começar a se vestir.
Ele pensou em Cornélia e sorriu. Lembrou-se do calor dela, da juventude viva, do espírito animado, da risada irreverente, da beleza.
— Vamos passar a lua-de-mel em Newport — ela lhe dissera. — Antes que a família vá para lá. Papai vai lhe dar um iate e isso é segredo. Vai chamá-lo de Cornélia, querido? Mas, claro. Ou Corallan, talvez. É, muito melhor. Corallan. Dê-me um beijo, amor. Sabe o quanto eu o amo? Olhe em meus olhos. Nunca amei ninguém, nem mesmo papai, tanto quanto o amo.
Ele olhara nos olhos dela, atentamente e com indulgência, vira o fogo amarelo ardendo dentro deles. E aí os braços dela o tinham envolvido, famintos, e os lábios dela estavam nos seus.
“Famintos”, pensou ele, agora. “Minha Cornélia é uma devoradora.” O copo parou em sua boca. Ele ficou olhando pelas janelas, por muito tempo. Depois
engoliu o uísque e disse, em voz alta:
— Droga! — Cornélia era apenas uma moça de vinte anos: ele estava com quase vinte e oito. Era páreo para qualquer jovem leoa e, além disso, ele a amava. Como ela o podería ameaçar, ela, que era tão cheia de humor, tolerância e alegria, que só queria ser mimada, afagada e admirada?
Nesses dias, ninguém poderia ser mais bondoso com ele do que Rufus DeWitt. Rufus tinha orgulho dele. Seu salário era enorme. Sua posição estava garantida. Ele se lembrou do baile magnífico oferecido a ele e Cornélia no mês de janeiro na mansão DeWitt em Nova Iorque. Lá ele conhecera os donos de nomes fabulosos: os Gunther, os Regan, os Vanderbilt, os Whitney. Ele se comportara com discrição e elegância e Cornélia e o pai tinham dado risadas, satisfeitos. Ele gostara do sr. Gunther, que tinha conversado sobre o engate autotomático com ele, com admiração.
Newport, por algumas semanas. Depois, de volta a Portersville, para aquela linda casa na encosta da montanha, onde, ainda um ano antes, ele fora um dos jardineiros. Depois, Nova Iorque, outra vez, depois a Riviera e Paris, Londres e Berlim. A lua-de-mel, entremeada de um trabalho árduorem casa, duraria um ano, dissera Rufus. Allan sacudiu a cabeça e por um momento ficou tonto. Depois foi dominado por uma empolgação tão imensa que não conseguia mais ficar sentado, mas recomeçou a andar de um lado para outro. Havia ocasiões em que não podia acreditar no que lhe acontecera tão depressa, tão certamente. Um homem preparado para anos infindos e duros de pobreza e dificuldades, trabalhando sozinho, só com sua fé em si para sustentá-lo. Trabalhara em silêncio, fechado em paredes frias: andara por ruas sujas, de roupas surradas. Seu estômago nunca estava inteiramente satisfeito, as mãos eram duras, calejadas, sujas. No inverno, ele tremia, sob cobertas inadequadas.
O cheiro de repolho, poeira e gás de carvão sufocava suas narinas.
Em volta dele havia vozes roucas e o pisar pesado de botinas remendadas. No meio de tudo isso, trabalhara sozinho. E então, certa manhã, tudo isso acabara e os frutos de seu trabalho, as maçãs douradas na cesta dourada, lhe eram dados num dom generoso, avassalador, não de um em um, de má vontade, mas todos.
O casamento seria realizado na Primeira Igreja Presbiteriana de Portersville, a “igreja da família”, informara Rufus a Allan, sério, sem piscar de olhos. Allan concordara, igualmente sério. Ele sabia perfeitamente, por Cornélia, que, embora a família sustentasse a igreja e lá tivesse o seu banco forrado de pelúcia, Rufus e Cornélia raramente frequentavam os serviços religiosos. Nunca falavam de religião: isso não existia, assim como a pobreza e o medo não existiam para eles. Eram tão ateus quanto belos animais selvagens numa floresta em que fossem reis. Chamá-los de hereges seria absurdo, pois para eles Deus era apenas um nome e nunca fizera parte de suas vidas, não sendo nem tema de conjeturas.
Um assunto deixara Rufus inquieto, pois a mulher o mencionara repetidamente, histérica. Assim, um dia ele disse a Allan:
— Os seus pais, meu filho. Eles... naturalmente, estarão presentes ao casamento.
Uma malícia estranha levara Allan a fingir que hesitava, sério, Depois, Allan dissera:
— Não creio, senhor. Sabe, estou me casando fora da Igreja.Rufus o fitara, sem expressão, inteiramente perplexo com essas palavras. Allan explicara. Rufus franzira as sobrancelhas e os olhos, tão parecidos com os de Cornélia, tinham-se
arregalado, num riso incrédulo. Rufus dissera:
— Ora veja. Que estranho. Muito estranho mesmo. Você quer dizer, meu filho, que há gente que chega a...
Ele sacudira a cabeça, rindo de novo, mas ficara imensamente aliviado. Seria impossível ter os pais de Allan no casamento. A tolerância ia até certo ponto, não mais.
Rufus tivera muito menos dificuldade com a mãe, quanto ao casamento. Ela, como Rufus, estava mais preocupada em perder Cornélia do que com as origens e família de Allan.
— A filha única! — lamentara Sophia, esquecendo-se inteiramente dos netos. Ela estava com pena de si e do filho, e foi só quando Estelle (protestando violentamente contra “esse casamento impróprio e escandaloso com um homem que é pouco mais que um trabalhador”) descreveu a personalidade de Allan em termos que lembravam muito Aaron DeWitt à sua viúva que Sophia se levantara, lutando furiosamente pelos jovens. E ela lutou não só com fúria, mas com prazer, pois desse modo podia frustrar a nora completamente.
Com Cornélia, Allan visitara os Purcell, em algumas ocasiões. Era difícil para o rapaz acreditar que Lydia fosse mãe de Cornélia e não podia acreditar na afeição, pois Lydia, depois de se certificar de que Cornélia o amava, aceitara a situação com graça e calma. Havia muito ela chegara à conclusão sábia de que ninguém tem o direito de interferir na vida alheia, se bem que em certas ocasiões ela dissesse ao marido:
— Cornélia sempre sairá vitoriosa, em todas as situações. Mas estou começando a me preocupar com Allan. Há nele algo de misterioso, que nunca poderá ser tocado. Ele tem a capacidade de sofrer muito.
Para sua surpresa, Jim Purcell concordara com ela. Disse:
— O camarada acha que é impiedoso. Isso é diferente de ser impiedoso.
Somente Laura pareceu ficar aflita e não quis explicar a causa. Quando Allan e Cornélia iam lá, ela em geral dava um jeito de se ausentar. Sophia sugerira um casamento duplo e Laura ficara inexplicavelmente perturbada com tal ideia.
De modo geral, Allan achava as coisas muito satisfatórias. Se ele às vezes acordava de noite com uma sensação de medo e pressentimento, explicava isso com facilidade. As coisas tinham acontecido depressa demais e em profusão. A pessoa precisava de tempo para se adaptar. Ele acendia um lampião de gás e pegava a bela miniatura de Cornélia, pintada em marfim, e olhava para os olhos sorridentes e a boca cativante e engraçada e se tranquilizava. Dizia consigo:
"Mesmo que eu não amasse essa garota, casaria com ela". Por vezes ele achava necessário beber alguma coisa, para dormir de novo.
Ele agora parou junto da miniatura, pegou-a e retribuiu o sorriso.
— Danada — disse, em voz alta. Ele largou a miniatura e acendeu um cigarro, que fumou depressa. Estava suando um pouco. Toda essa empolgação, as providências, as festas. E o ritmo de trabalho. Ele se contemplou ao espelho: o cabelo preto e anelado estava úmido na testa. Suas feições se tinham aguçado: o nariz parecia mais comprido e fino. Os olhos estavam febris. As roupas estavam largas e ele supôs, impaciente, que fosse porque nem as melhores comidas lhe interessavam mais. De repente, sentiu um frio que o fez estremecer, a despeito do calor da tarde. Era como se seus próprios ossos estivessem frios. Ele se serviu de mais um uísque. Quando alguém bateu à porta, discretamente, ele teve um sobressalto e praguejou. Um empregado do hotel, idoso, estava lá fora e lhe informou, obsequioso, que certo cavalheiro, um sr. Boyle, desejava saber se podia subir por alguns minutos.
Allan franziu a testa. Ele já quase se esquecera do velho Dan Boyle e não desejava tornar a vê-lo. Aquele velho ignorante e inculto, aquele velho ferroviário que detestava os “interesses”, embora agora fosse um deles! A entrevista seria violenta ou enervante. Allan disse:
— Faça o favor de dizer ao sr. Boyle que não estou...
Ele foi interrompido por um grito atrás do empregado e lá estava Dan Boyle, atarracado, largo como um velho tronco de árvore, feroz e de rosto vermelho, de nariz chato, olhos de um azul fogoso e com uma boca larga e esparramada que sugeria um propósito indômito. Estava com um chapéu largo e preto nas mãos, chapéu de senador, e o topo de sua cabeça redonda era coberto por uma cabeleira emaranhada de cachos brancos. Estava com a casimira preta mais rica, mas seu colete de brocado, estampado e vulgar, era de mau gosto, e da corrente do relógio, grossa como um polegar, pendiam vários escudos e outros objetos variados. O charuto em sua boca era tenso e fedorento. Ele gritou:
— Meu filho! Aloysius! Para o diabo, eu vou é entrar!
E passou pelo empregado e foi entrando. Allan rapidamente deu uma gorjeta ao empregado e o dispensou. Quando Allan se virou para o visitante nada bem-vindo, o sr. Boyle estava examinando a saleta, com olhar crítico.
— Mas você veio de longe, seu bandido! Deixe-me olhar para você. — Ele examinou Allan e os olhos azuis e irascíveis se apertaram. — Humm — murmurou.
Ele largou seu corpanzil baixo numa cadeira e manteve o olhar desconcertante sobre o rapaz. Era tão gordo que chiava constantemente. As sobrancelhas, brancas como neve, se projetavam sobre o rosto grande como um penhasco cabeludo.
— Toma alguma coisa? — perguntou Allan, meio sem jeito. 0 sr. Boyle grunhiu e Allan lhe serviu um uísque. O visitante o bebeu quase de um trago, sem nunca desviar o olhar do anfitrião.
Ele colocou o copo na mesa devagar e apertou os lábios.
— E o que é que pode haver com o meu afilhado? — perguntou. Agora a irritação estava desaparecendo dos olhos.
— O que é que há? — perguntou Allan, sentando-se diante do velho. Ele sorriu, à vontade. — Fico contente por vê-lo, Dan.
— Você é um mentiroso — disse o sr. Boyle, mas sem rancor, Estou aqui porque queria dilacerá-lo e dar-lhe uma surra dos diabos. — Ele sacudiu a cabeça. — Mas agora não, eu acho. — Ele olhou para a garrafa de uísque e tornou a sacudir a cabeça. — Estive conversando com seu pai.
Allan ficou calado, o rosto fechado.
— Você há de querer saber deles — disse o sr. Boyle, sem fazer caso da expressão de Allan. — Você é um bom ator, mas não para mim, o velho Dan.
Então vou lhe dizer agora que o seu pai é um pobre homem confuso e a sua mãe não deixa ninguém falar do filho. Não há harmonia naquela casa. Sentem falta do filho franciscano, com seus panos quentes. A mãe está com uma tosse,
desde fevereiro — continuou o velho. — Assim, vou emprestar-lhe dinheiro para uma casinha no campo. — Ele olhou bem para Allan.
— Era o que você queria, Aloysius, e o pobre pai não quis. Então você vai me fazer um cheque de dois mil dólares, hoje, para ter essa satisfação. Uma boa casa, com jardim, e um dia você vai dizer para eles que comprou com o seu dinheiro.
Allan se animou.
— Obrigado, Dan — disse.
0 sr. Boyle sorriu, melancólico.
— Espero que não tenha de esperar muito. — Ele parou um instante e a testa vermelha enrugou-se. — Está sendo chamado de hipócrita e desertor pelos trabalhadores. Dizem que você se aproveitou deles. Talvez seja verdade, você é esperto. Mas eu sei de uma coisa que eles não sabem. Eu me ofereci para mandá-lo estudar Direito, há anos, o Direito Trabalhista, para você poder ajudar os inpazes. E você recusou. Preferiu trabalhar ao seu modo, você, que vem de uma boa família do Condado de Mayo. Trabalhou até suas mãos ficarem feridas. Por quê? Hoje eu sei. Não estava em você aceitar dinheiro de um homem por uma mentira. — Ele tomou a sorrir para Allan e nesse sorriso havia certo amor e compreensão paternais.
— Você é um bom rapaz, Aloysius, e um dia não vai ter vergonha disso.
A boca de Allan apertou-se, irritadamente.
— Não vamos ser sentimentais, Dan. É verdade que não quis aceitar a sua ajuda: nunca aceitarei ajuda de homem algum. — De repente, os olhos dele ficaram ferozes. — Sempre detestei os “trabalhadores”, como você os chama... desde menino. Não são melhores do que qualquer outra categoria de homens. — Ele parou por um instante e a ferocidade se acentuou em seus olhos. Depois, contou ao sr. Boyle o episódio do Natal e a imagem esmagada no presépio. O velho escutou, sério, meneando a cabeça de vez em quando. Mas havia nele uma satisfação profunda, que Allan notou mas não pôde compreender. Depois que Allan acabou, o sr. Boyle deu uma gargalhada e bateu nos joelhos.
— Ah, essa briga eu gostaria de ter visto! Uma briga nobre.
Ele levantou os punhos e fingiu dar socos no ar, com prazer.
Allan tornou a encher o copo do sr. Boyle e o seu. Boyle calou-se, observou Allan beber e ficou sério de novo. Por fim, disse:
— Então, está bebendo. O homem só faz isso quando a alma dele está doente e ele não tem esperança. E você não é dos que bebem, Aloysius. Eu bebi muito a vida toda, mas não me fez mal porque mesmo nos piores dias, eu não estava desesperado. E, quem sabe, agora você me conta por que está desesperado.
— Você fala como se eu fosse um ébrio — disse Allan, com desdém. — Mais uma vez, deixe de ser piegas, Dan. É a pressão sobre mim. Quando passar...
— Não vai passar nunca — interrompeu o sr. Boyle. — Eu já existia quando você era garoto. Agora está pior. Por quê?
Allan girou o copo nos dedos.
— A gente cresce — murmurou.
— Às vezes a gente cresce — disse o sr. Boyle. Estava observando Allan com muito pesar. — 0 que é que não pode suportar, meu afilhado? 0 que lhe corrói a
alma?
— Veio aqui para me interrogar? — perguntou Allan, com uma irritação crescente.
— Ora, foi por isso mesmo — respondeu o sr. Boyle. — Eu estava zangado com você, mas não pelo que você pensava. — Ele aguardou, mas Allan não respondeu. — Eu prometi, no seu batizado que ia protegê-lo — continuou. — Conservá-lo forte, na fé. Será que está desesperado porque, em algum lugar por aí, você perdeu o Senhor?
Allan deu uma gargalhada. Mas o sr. Boyle ficou mais pesaroso.
— Então é isso — disse: — Perdeu o Senhor porque passou a odiar os homens. Você tem uma alma sensível e essas almas tornam os homens demônios, ou anjos. O que foi que o magoou tanto em algum ponto da sua vida, Aloysius?
Allan pegou o relógio e olhou para ele, que estava de cara fechada.
— Dan, você devia ter sido padre. E agora vai me dar licença, tenho de me
vestir.
Mas o sr. Boyle continuava sentado, olhando para ele.
— Foi uma confirmação para você, quando o Menino Jesus foi destruído. Aloysius, você não pode compreender, mas estou indo embora de coração mais leve do que quando cheguei. — Ele se levantou, foi para junto de Allan e colocou a mão no ombro do rapaz. Sentia os ossos largos e magros sob os dedos e suspirou. — Vou me lembrar de você em minhas orações. — Ele apertou o ombro, de Allan, com força.
Allan sacudiu os ombros para se livrar da mão do outro, foi para a mesa, preencheu um cheque e o entregou ao sr. Boyle. O velho guardou-o. Então Allan disse com maldade:
— Talvez, Dan, algum dia eu seja tão rico quanto você. Ouvi dizer que tem uma bela casa no Condado de Mayo, a despeito dos proprietários ingleses.
Dan lutou para não sorrir, depois confessou:
— Uma aldeia inteira, Aloysius. O maldito sassenach estava falido, apesar de explorar os pobres. E agora temos uma escola e uma capela para os pequeninos. E os telhados não têm goteiras e eles abençoam o nome de Dan Boyle. Para o que mais o homem pode viver? Ele se dirigiu para a porta, devagar, com a cabeça imensa abaixada. Depois parou, pôs a mão na maçaneta, e virou-se para Allan: — Foi no jornal que li um poemazinho. Na segunda-feira. Não me lembro de tudo, só do princípio:
“Foi Abel ou foi Caim Que sofreu a morte e a dor?
Quem deu o golpe que o outro matou?
Foi Caim? Ou seu irmão?”
34
0 início de setembro estava muito quente e abafado. As árvores pareciam maiores, mais verdes e mais cheias de luz e as flores pareciam mais abundantes e vividas. No entanto, estava tudo silencioso. Allan Marshall, nascido na cidade, sentia o silêncio, inquieto. Quando de repente os gafanhotos começaram a gritar ferozmente ele os ouviu com alívio. Tinha ido para a gruta querida de Stephen DeWitt, secreta e oculta, e estava sentado no banco de mármore Os trevos pontilhavam a grama viva e as abelhas zuniam umas para as outras na luminosidade sonolenta. Allan as observava, distraído, pensando: “Quanto tempo as mulheres levam para dar à luz? Isso já começou de madrugada... Não posso suportar mais muito tempo". Ele pensou em Sophia DeWitt, “a megera velha e cinzenta". Morrera dois meses antes, de repente. Passara a ter certo amor pela velha furiosa, que lhe demonstrara uma afeição veemente e patética, desde seu casamento com Cornélia, dois anos antes. Por fim, ele se dera conta da solidão dela e de seu sofrimento e pudera consolála. O fato de que ele passara a ter afeto por Rufus, e de algum modo revelara o seu amor crescente por Cornélia e sua dedicação ao negócio da família, desarmara a desconfiança que ela sentia com quase todo mundo. Por vezes ela se dirigia a ele como “meu filho”. E ela confiava nele, falando sobre Stephen com o tom de voz estranhamente perdido e o olhar distante.
— Ele acreditava na humanidade — dissera ela um dia, com assombro, e se virara para Allan, como se esperasse que ele explicasse essa coisa incrível. — A não ser no final. E isso matou o meu pobre Stephen. — Ela acrescentara, debilmente: — Ora, como é que eu soube disso?
Só ele e Cornélia estavam em casa quando Sophia morrera. O resto da família estava em Newport, como sempre, mas Cornélia se recusara a acompanhá-los.
— Quero que o bebê nasça aqui — dissera — onde eu nascí, e no mesmo quarto.
Allan teve o maior prazer em satisfazer-lhe a vontade. Newport o aborrecia, a não ser quando ele ficava sozinho, nos rochedos selvagens junto de Narragansett Bay, observando o mar azul e selvagem rugindo. Então, vendo as ondas arrebentando na maré cheia, alguma coisa se aliviava dentro dele. Ao pôr-do-sol, ele dava as costas a isso e, com sentimento de desolação, voltava para a casa grande, de estuque vermelho, sobre a escarpa dominando as águas.
Sophia morrera pouco depois do almoço, num dia muito quente e úmido do fim de julho. Tinha ido descansar no quarto e então sua criada descera, aos gritos, e Allan subira sozinho. Cornélia estava cochilando, conforme determinação médica. Quando Allan chegou ao quarto, Sophia já estava morta. A família logo regressara de Newport e fizeram um enterro imponente. Cornélia ficara inconsolável. Ela se agarrava ao marido, desesperadamente, e só ele podia consolá-la. Foi nesses dias que Allan adquiriu uma ternura profunda pela jovem esposa e passava horas afagando o cabelo ruivo e duro e enxugando suas lágrimas. Ficara muito comovido ao ver que Sophia dividira sua fortuna imensa entre ele e Cornélia.
Allan olhou para o relógio. Tinham-se passado apenas quinze minutos. Dentro de mais uns dez minutos a família chegaria de Newport, atendendo ao seu telegrama. Jim Purcell lhe telefonara uma hora antes, dizendo que ele, Lydia, Laura e Patrick estariam com ele e Cornélia depois do jantar. Lydia também falara com o genro, delicadamente, dizendo que tudo havia de correr bem e que ele não devia esperar que as coisas fossem depressa, no caso do primeiro filho. Deixara com Allan recados carinhosos para a filha.
Allan acendeu outro cigarro na ponta do último, fumando agitadamente. O médico tinha voltado aos seus aposentos, deixando Cornélia com as duas enfermeiras. Também ele tranquilizara Allan: a criança só nascería perto da meia-noite. Disse a Allan que Cornélia estava indo muito bem: não queria ficar na cama, a gracinha! E Cornélia, que só fazia uma careta de vez em quando, fechava a cara e soltava um palavrão algumas vezes, mandara o marido passear pelo jardim, ou
fazer alguma coisa, que diabo. Ela o beijara, os olhos brilhando, e chegara a empurrá-lo do quarto com seus braços jovens e fortes.
— Volte pouco antes do jantar, e vamos fazer um brinde juntos — dissera, a voz ressonante.
“Eles me tratam como se eu fosse um idiota”, pensou Allan. Olhou para a casa grande, acima dele: as janelas de cima pareciam um lençol de chamas, ao pôr-do-sol. Ninguém cerrara as cortinas no quarto de Cornélia. A casa e o jardim dormitavam sob o céu dourado. “Eu estava enganado”, pensou Allan, no seu cansaço, "Ela não é a cria de leão brincalhona como eu pensava. É o próprio coração em chamas da família: há nela um quê de terrível, pois é como uma força, Não tem culpa disso, assim como o sol não tem culpa de arder, ou o mar de rolar. Ela é como os elementos da natureza, cheia de poder natural.”
Ele se lembrou do seu primeiro choque e percepção quando uma noite, por acaso, sem que soubessem, ouvira Cornélia e Rufus conversando. Rufus e a filha estavam falando sobre negócios. A voz de Cornélia estava firme e dura; o marido mal a reconheceu. Allan escutara, incrédulo, as sugestões de Cornélia e o respeito que Rufus tinha por elas. Ações, títulos, investimentos, subsidiárias, normas... Cornélia falava sobre tudo. Era impossível uma moça tão nova saber tanta coisa e com tamanha segurança. Ela nunca conversara sobre esses assuntos com o marido e Allan ficara magoado com a sua infantilidade e o menosprezo implícito. Depois, ele ficara assustado. A esposa jovem e linda, tão alegre com ele, risonha, cheia de verve, implicante, ardente e terna de vez em quando, estava quase em pé de igualdade com o pai.
Depois, Cornélia falara seriamente sobre o marido e sua voz se tornara mais branda e mais pensativa.
— Ele tem essa atuação porque alguma coisa o impele. E isso é algo que não podemos entender, papai — dissera. — Se algum dia essa “coisa” o deixar, ele não será mais o homem que conhecemos. É, ele bebe um pouco demais e isso faz parte dessa coisa estranha, que nunca conheceremos.
“Nem eu”, pensara Allan, humilhado e zangado, afastando-se. Ele se sentia exposto, e o pior é que isso fora provocado por uma moça que ele amava como marido e que o considerara inferior a ela. Inteligente, sim, mas uma inteligência frágil. Desse dia em diante ele começara, com muito cuidado, experimentando, a conversar sobre assuntos legais e de negócios com a mulher. Ela escutara, a princípio, como mãe escuta, com doce tolerância, uma história que já ouviu. “Mas agora não é mais assim”, pensou Allan, enquanto jogava o cigarro na grama, com violência. Sabia que Cornélia por fim o admitira à congregação íntima da família e que ele não era mais um intelecto e uma força a serem manipulados e usados, ou um homem só a ser amado.
Resolveu que não podia mais suportar o silêncio e a paz dourada dos jardins. Voltou para casa. Os ruídos abafados dos empregados, passando pelos aposentos, o aborreceram. Havia um ligeiro barulho de talheres e louça na sala de jantar. Nessa noite ia jantar sozinho. Foi para a biblioteca, abriu um armário e pegou uma garrafa de uísque e um copo. Depois olhou para eles, sem prazer. Por fim, pegou outro copo e, com a garrafa debaixo do braço, subiu.
A porta de Cornélia estava aberta, para que o ar fresco da tarde dispersasse o calor do dia. Cornélia estava rindo e seu riso era acompanhado pelo tagarelar das enfermeiras. No andar de baixo, o telefone tocou, estridente, na quietude do entardecer. “Aqueles malditos repórteres de novo”, pensou Allan, entrando no quarto de Cornélia.
Então os sinos da igreja começaram a tocar, fracos e suaves, do vale embaixo, pois era domingo, e Allan pensou no campanile italiano cantando por sobre as águas mornas e azuis da baía de Nápoles.
Cornélia estava sentada à sua penteadeira e a empregada escovava seu cabelo comprido e fulgurante. O roupão turquesa esvoaçava, leve, de seus ombros aos pés, dobrando-se nos tons suaves do tapete Aubusson. Ela virou a cabeça e sorriu, recebendo o marido.
— Já está de volta? Só levou uma meia hora lá fora. Diga, quem é que vai ter esse bebê, você ou eu? — Ela o beijou com vontade, quando ele se debruçou sobre ela. Em seu rosto não havia qualquer palidez, nem sinal de dor, se bem que entre os olhos houvesse uma ligeira ruga, que aparecia e desaparecia, de minuto a minuto. — Resolvi uma coisa — disse ela, enquanto a empregada lhe trançava o cabelo com habilidade e as duas enfermeiras olhavam das cadeiras, — Vou ter gêmeos. Sempre disse isso.
— Onde está o dr. Schwartz? Por que não está com você? — perguntou Allan, irritado.
Cornélia deu de ombros, rindo.
— Ele está esgotado, coitado do velho. Disse que quer comer no quarto. Até parece — acrescentou ela — que estou tendo um parto real, ou coisa assim. Estou vendo que está com sua garrafa e dois copos. — O sorriso dela estava firme, vasto e bem-humorado, mas de repente ela fez uma careta e se contorceu um pouco. — Uma dose grande para mim, por favor. — Por um momento sua voz pareceu um pouco fraca.
Uma das enfermeiras, a jovem e gorda, adiantou-se, dizendo com timidez:
— A senhora acha prudente, sra. Marshall? Não acha que devíamos consultar o dr. Schwartz?
Cornélia já se refizera e agitou a mão.
— Tolice, eu é que sei o que é prudente para mim. Ande, Allan — disse ela, vendo que o marido hesitava. Ela inclinou a garrafa na mão dele, quando ele servia, e pegou o copo cheio, apesar dos protestos. Depois, virou-se para as enfermeiras e a empregada e sugeriu que a deixassem em paz, “pelo menos por uns minutos, diabo” Elas se retiraram, nada insultadas, apenas aflitas. A democracia espúria de Cornélia, tão semelhante à do pai, provocava sua adorarão irrestrita.
Ela levou o copo aos lábios e seus olhos brilharam cheios de alegria para o marido.
— Aos gêmeos — disse, entornando o uísque com suavidadade. Allan franziu a testa. Nunca conhecera uma mulher que bebesse algo mais forte do que vinho, a não ser as pobres prostitutas, viciadas no gim. Mas Cornélia bebia como um homem, com facilidade e neutralidade. Devia ser o certo... para Cornélia. Ela disse, erguendo as sobrancelhas ruivas e espessas:
— Você não está bebendo, meu anjo.
— Acho repugnante que você beba — disse ele, emburrado, mas tornou a encher-lhe o copo. Ela riu.
— Bebo com o papai desde os dezoito anos, ou até antes.
Ela largou o copo, e esticou os braços e as dobras do tecido azul e vaporoso
caíram: os braços eram grandes e tinham a perfeição de um mármore grandioso. Ela bocejou, contente.
— Você tem certeza de que está bem? — perguntou Allan, aproximando-se de novo. Ele puxou a cabeça da esposa para seu peiteo, sentindo necessidade de lhe dar ternura. Ela olhou-o com malícia.
— Maravilhosamente bem, a não ser essas pontadas. Disseram para eu contá-las. Eu o estou decepcionando, querido? Devia estar berrando e desmaiando? — Ele foi se sentar. — Se você não ficasse rondando o meu quarto, nem saberia se eu estava sequer acordada
A expressão zombeteira mudou e de repente ela tornou-se chci i de amor e os olhos borbulhantes se suavizaram e ficaram sérios
— Como você leva as coisas a ferro e fogo, Allan — disse ela
— Duvido que eu leve as coisas assim por muito tempo.
“O parto”, pensou Allan, apreensivo, “por vezes significava a morte da mãe”. No entanto, era impossível pensar que aquela moça vibrante, toda saúde, força e animação, pudesse estar correndo algum perigo. Ele viu que ela se encolhia e se dobrava, com um grunhido, e se levantou para ficar iunto dela.
— Pelo amor de Deus, Allan, sossegue — disse ela, quando recuperou o fôlego. — Criança nenhuma nasce sem um pouco de transtorno.
— Devíamos ter chamado o melhor médico de Nova Iorque — disse Allan.
Mas Cornélia sorriu, indulgente.
— Eu acho que me daria bem com uma parteira, ou até sem ninguém. — Ela olhou para o relógio de pedrarias. — Isso foi num intervalo de cinco minutos. O uísque me fez muito bem. Refazendo-se do espasmo, ela tornou a bocejar, exibindo todos os dentes brancos e reluzentes. — Diga, Allan, o que você pensa deste bebê, ou de qualquer bebê?
— Eu os quero, ou o quero, claro. Qual o homem que não deseja isso? E o seu pai passa o tempo todo quase incoerente de alegria — Allan sorriu, com ironia. — Ele se esquece sempre que tem dois filhos.
Então, surgiu no rosto de Cornélia a expressão com que ele estava se acostumando e que a princípio o assustara. Tinha algo de escárnio, dureza e uma espécie de crueldade divertida.
— Não é culpa deles, serem uns desgraçadinhos. É culpa da Estelle. E acho que o papai os considera mais filhos de Estelle do que dele. Se está se preocupando com eles, meu anjo — e a expressão passou a ser de uma troça branda —, Estelle tem muito dinheiro dela e o papai não se esquecerá deles no testamento.
Mas Allan tivera uma ideia incrível. Ele fitou a mulher.
— Você quer dizer, Cornélia, que não é certo que Jon e Norman sejam nomeados pelo seu pai, no testamento, como presidente e vice-presidente, com as ações com direito a voto...
Ela o fitou, por sua vez, sem poder acreditar. Depois deu uma gargalhada. Quando recuperou o fôlego, gritou:
— Ah, meu Deus! Você não sabia! Não sabia que é herdeiro dele, junto comigo? A companhia será nossa, quando papai morrer, com os cinquenta e um por cento das ações. — De repente, ela parou de rir e o fitou, espantada. — 0 que mais você havia de esperar, posso perguntar? Sou filha do meu pai. Tenho conversado com ele desde os quinze anos de idade, ou mesmo antes. Sei de tudo sobre o negócio. Pensei que você tivesse compreendido isso.
Mais uma vez sua expressão mudou, tornando-se carregada de poder e implacabilidade, dela emanando uma aura de uma força indomável.
Allan, fascinado, não tirava os olhos de Cornélia. Seu coração batia disparado. Ele pensara que muito em breve seria nomeado diretor do conselho. Chegara a se visualizar como presidente do conselho, com o tempo. Ele se levantou, impelido por uma onda de exultação estonteante. Presidente da Interstate Railroad Company! O prêmio estava ao alcance da mão. Ele não conseguiu esconder sua exultação de Cornélia e ela o olhou com um contentamento cínico.
— Mas no seu íntimo, querido, você não estava almejando isso? — perguntou.
“Sim”, pensou Allan, “agora vejo que sim.” Não obstante, para fugir ao sorriso nos olhos francos de Cornélia, ele foi até a janela e olhou para fora.
O céu poente tornava-se um brilhante lago verde, mudando para um vermelho forte sobre os topos dos morros. Uma geada prematura já cobria as montanhas: aqui e ali o clarão avermelhado de um bordo se destacava do fundo verde-esmeralda. Onde as colinas desciam para os vales, flutuavam diáfanas num tom nublado de heliotrópio.
O rio parecia uma veia de fogo sinuoso no meio da terra roxa estreita. Allan nunca conseguira se habituar com essa grandeza muda e severa, pois aquilo sempre despertava nele uma profunda melancolia e uma desolação que o dominavam. Ele teve um sobressalto quando Cornélia foi para junto dele, olhando também para fora. Ele viu o perfil dela e ficou espantado, pois estava séria como nunca, pensativa até. Ela se encostou no ombro dele e parte da luz esverdeada do céu banhava o nariz, as órbitas dos olhos e o queixo redondo. Ela disse, distraída:
— E como vão se chamar?
— Nunca falamos sobre isso — respondeu Allan, passando o braço em torno dela. Falou com espanto: — Por que será?
— Porque sempre só falamos de nós — respondeu ela, e estava sorrindo de novo. — Então?
Ele hesitou.
— Pensei em... Dolores, se for menina. E... Timotby, se for menino.
Ela refletiu.
— Imagino que a sua escolha deva prevalecer, se menina; e a minha, se for menino. — Ela voltou para a cadeira. — Acho que darei uma péssima mãe. Não gosto de crianças. Mas não faz mal. Se não mimar os meus filhos, eles se darão melhor. Basta olhar para os meus irmãozinhos. Espero que Estelle tenha o bom senso de não trazê-los de Newport hoje. — Ela tornou a olhar para o relógio. Estão atrasados. Antigamente, tudo cedia lugar diante do nosso vagão privativo, mas papai ultimamente tem ficado escrupuloso.
A empregada e enfermeiras voltaram com a notícia de que a família tinha chegado.
Rufus informou a Allan que todos tinham resolvido não jantar no trem, mas
fazer companhia a ele. Para aborrecimento de Allan, com ele estavam Estelle, os meninos, as amas e governantas. Nessa ocasião especial, os meninos iam jantar “com os grandes”. Allan, sentado à mesa iluminada por velas, ao lado de Estelle, foi obrigado a escutar as vozes estridentes e exigentes dos meninos. Ele se perguntou se era o único a saber que Jon e Norman se detestavam, com ciúmes, numa concorrência constante pela atenção da mãe. Norman, o mais novo, tinha o hábito detestável de pular para o colo de Estelle quando ela estava conversando com Jon. Depois se aninhava como um bebê, a cabeça no colo da mãe, escutando suas palavras de carinho, enquanto Jon observava. O irmão era pouco melhor. Na opinião de Allan, havia algo de secretamente obsceno na rivalidade dos irmãos.
Estelle, que sempre conseguia escutar, a despeito do alarido dos filhos, lançou uma frase despeitada a Rufus.
— Jon está falando com você, meu bem — disse.
Rufus, arrancado de seus pensamentos felizes sobre a filha, virou-se para o menino, irritado.
— Sim? — disse, impaciente.
Os olhos castanho-claros de Jon olharam para o pai, apertados, e ele disse, insolente:
— Quero voltar para Newport hoje à noite. Eddie Glymm vai dar uma festa de aniversário amanhã. Por que não podemos voltar? Por que viemos?
— Por que está acontecendo aqui, agora, uma coisa mais importante do que você ou o seu irmão — disse Rufus, com frieza.
Acho que vou subir para ver minha filha, se me derem licença.
Allan sorriu para si e comeu a sobremesa, sério. Estelle ficou calada. Ele sentia sobre si seus olhares de ódio.
— Você parece menos preocupado com Cornélia do que o pai dela, Allan — disse Estelle por fim, com uma voz venenosa.
Allan deu de ombros. Depois olhou para Estelle, curioso.
— Acho que essa criança significa muito para ele — respondeu. — Talvez mais do que qualquer de nós se dá conta.
Ele sabia que Estelle nunca deixara de detestá-lo e que nos últimos dois anos e três meses passara a temê-lo. Era muito raro ela permitir que seus pensamentos se revelassem, a não ser por um clarão em seus olhos castanhos e quentes ou um curvar da boca vermelha e bonita. Mas agora, perturbada e assustada com o que o marido dissera aos filhos e enraivecida com o meio-sorriso de Allan, ela o fitou com um ódio declarado. “Como podia ser mais importante do que seus filhos, seus filhos lindos e aristocráticos, aquela estouvada espalhafatosa e vulgar de cabelo vermelho, sem modos e de voz áspera?” — ela pensou. “Mais importante também, talvez, esse intruso, esse joão-ninguém, esse ‘forasteiro’, esse irlandês, e o filho dele, que provavelmente seria um monstro” — ela concluiu seu pensamento. Jon e Norman de repente voltaram a atenção para ela e o que viram os excitou, como todas as coisas selvagens se excitam diante de emoções primitivas.
— Cala a boca, cala a boca! — berrou Jon, dando um pontapé em Allan. Mas Allan agarrou a perna, com habilidade, e a virou o suficiente para fazer o garoto uivar; depois se levantou. Ele e Estelle trocaram um olhar violento e a seguir ele saiu da sala, sem se desculpar. Entrou no hall iluminado por velas no momento em que chegavam os Purcell e os Peale. Eles o acharam extremamente pálido e nervoso, o que levou Lydia a lhe sorrir com carinho. Ela lhe ofereceu a face fresca para ele beijar e seus olhos enigmáticos estavam preocupados, sob o chapéu de veludo rosa com as plumas cinzentas.
Laura Peale, a sobrinha, se parecia tanto com ela que poderia se passar por sua filha. Seu vestido de tafetá azul-escuro era tão bemfeito que mal se percebia que ela estava grávida de seis meses. Como Lydia, todos os seus gestos tinham uma perfeição inconsciente. Sua testa, sob o chapéu azul, possuía um brilho especial, próprio, como uma luz íntima de inteligência e pureza. Allan sempre ficava fascinado e respeitoso diante disso, pois, no íntimo, era um homem supersticioso.
Jim Purcell nunca mandava, a não ser para parecer ainda mais monolítico. Mas Patrick, já com quase trinta e cinco anos, estava grisalho nas têmporas e seu rosto adquirira linhas severas e rígidas. Ele detestava Allan com um ódio fanático e nunca o via sem dizer consigo: “Nunca tive vontade de matar ninguém, a não ser esse homem”.
Jim Purcell disse:
— O que é que há, Allan? As coisas vão indo bem?
Ele apertou a mão de Allan e sorriu para ele com um ar cauteloso. Tinha um respeito profundo por aquele rapaz, que não deixava que nada se interpusesse em seu caminho. Pat podia esbravejar contra a sua “falta de ética” e ficar emburrado quando se falava no nome de Allan. Mas Jim Purcell apenas achava graça, grosseiramente. Não sabia exatamente o que acontecera um ano antes entre Allan e Patrick, mas, como disse a Lydia, “aposto que foi muita coisa e algo mortífero”.
Allan se refazia. Estava aborrecido por ter deixado que uma mulher insignificante e falsa, como Estelle, o contrariasse, especialmente nesse dia. No entanto, ela talvez fosse a única pessoa no mundo que conseguia enraivecê-lo, com sua infantilidade, seus sorrisos e doçura tão pegajosos, seus “ideais” que eram mentiras gananciosas e sua efervescência artificial. Sabia que Estelle não gostava dele e que tinha ressentimento contra toda a família, com exceção de Patrick Peale, o qual, ela conseguira se convencer, afinal, possuía uma alma humanitária, cheia de altruísmo e entusiasmo pela sorte do “homen do povo”.
Allan informou aos recém-chegados que Cornélia ia passando bem, que Rufus estava com ela e que o parto não parecia iminente. Lydia subiu com Laura, nervosa, para ver a filha, e os três homens ficaram sozinhos no hall. Jim Purcell acendeu o cigarro de Allan e pôs o cachimbo na boca.
— Vamos para a biblioteca, ou algum lugar, até o chamarem. — disse ele. Segurou o braço de Allan e os dois, seguidos por Patrick, foram para a biblioteca, onde os lampiões já estavam acesos. Jim olhou para os lampiões e disse: — Estou instalando eletricidade em casa. Aquele tal de Edison vai acender o mundo inteiro, dentro de alguns anos, você vai ver. E os bondes elétricos dele são melhores para as nossas ruas do que os antigos bondes puxados a cavalo. O progresso. — Ele sentou-se e piscou para Allan. — Alguma coisa para seus convidados beberem, hem?
— Nada para mim — disse Patrick, com rispidez.
Ele se postou junto da janela e olhou para o escuro lá fora. Allan pegou uma garrafa e dois copos e os encheu até transbordar. Jim Purcell levantou o copo e disse:
— À mãe e ao bebê. E que seja homem.
Ele ficou olhando Allan beber. Allan falou arrastado, com a voz de quem já bebeu demais:
— Ela diz que vão ser gêmeos.
— Cornélia nunca se engana — disse Jim, com ênfase. — Sempre foi boa em matéria de julgar as coisas. — Ele sorriu. — Não atrasou com você? Ouvi dizer que em breve você vai levar seu ímpeto para o conselho diretor. E o Rufe Ruivo me contou que você investiu nos novos poços de petróleo perto de Titusville e nas minas de ouro de Idaho. Jogou duro, enquanto todo mundo, inclusive eu, estava fazendo papel de palhaço.
Patrick evitava falar com Allan sempre que possível, mas ele agora se virou da janela, com um gesto brusco, e seu rosto silencioso estava muito perturbado.
— Conselho diretor? — disse ele.
Allan tornou a encher o copo.
— É — disse com frieza. — Alguma objeção... de outro membro do conselho?
Patrick não respondeu. Foi para uma poltrona de couro vermelho, distante, e sentou-se. Ficou agarrando os braços da poltrona, com um brilho fanático nos olhos. Jim Purcell dissera, um dia: “Não admira que você esteja sempre tão nervoso e agitado. Não tem vícios. Um ou dois bons vícios são necessários para o homem conservar a perspectiva”.
Jim tinha uma curiosidade intensa sobre o que exatamente acontecera entre os dois rapazes um ano antes, mas ninguém, nem mesmo Allan, que confiava nele, o esclarecera, a despeito de várias insinuações. No entanto, Jim Purcell se divertia muito com a tensão selvagem entre os dois, que parecia estalar abertamente. Ele disse:
— Sabia que Pat e Laura acabaram de adquirir um belo terreno na montanha, a um quilômetro daqui, para fazer uma casa nova? Estão cansados de morar com esses velhos. — Jim falou e deu risada.
Allan sabia que Patrick e o pai, ex-secretário de Estado, estavam de mal, a despeito dos esforços patéticos do velho Peale para se reconciliar com o filho. O sr. Peale morava sozinho numa casa grande, à qual voltara depois de ter tido um derrame, em Washington. Patrick raramente o visitava e nunca levava a jovem esposa. E ele, Allan Marshall, era o responsável por isso. Por vezes ele sentia pena do velho, naquela mansão vazia na margem do rio, que não podia mais nem ir ao escritório de advocacia, nem aceitar convites para jantar. O que ele, Allan, fizera, tivera de ser feito. Se um “anarquista” como Pat Peale fazia do próprio pai uma vítima de sua virtude, isso não era culpa de Allan Marshall. Ele começou a pensar no que acontecera, um ano antes.
Depois de quatro meses de muitos debates, considerações e de pesar os prós e contras, as grandes transportadoras como a Interstate Railroad Company tinham chegado à conclusão de que uma regulamentação oficial das estradas de ferro poderia ter suas vantagens, desde que essa regulamentação não fosse além da construção, inspeção de equipamento e manutenção das ferrovias. A indústria ferroviária era uma das mais poderosas dos Estados Unidos e não funcionava mais segundo os métodos displicentes e improvisados de vinte cinco ou trinta anos antes.
À medida que as fronteiras iam recuando e as ferrovias corriam como artérias vitais pelo corpo da Nação, a indústria ia lucrando, não só em uma riqueza incalculável, como também em prestígio e importância. Em 1887, porém, ainda existiam algumas estradinhas “piratas” espalhadas pelas comunidades, com as quais as grandes transportadoras eram obrigadas a se ligar, se quisessem servir aquelas comunidades.
— Nos Estados Unidos não há mais lugar para a pequena indústria concorrer com a grande — dissera Rufus a seus funcionários. — É preciso haver a uniformidade sólida, que somente as grandes indústrias podem fornecer.
Havia individualistas convictos que insistiam em dizer que a absorção das pequenas indústrias pelas grandes era uma ameaça à liberdade. Rufus tinha sorrido educadamente, diante disso.
— Liberdade? O que tem progresso a ver com a liberdade?
Allan, que tinha o horror do celta a todo tipo de arregimentação ou controle pelo governo, discordou de Rufus. “Caso se deixe o governo entrar em alguma coisa”, pensava ele, com pessimismo “por mais aparentemente sem importância que seja, em breve ele dá um jeito de ocupar tudo.” Ele compareceu a reuniões entre os presidentes das grandes transportadoras, e, embora concordasse exteriormente, por dentro estava reprovando. Não era sentimental quanto ao homem “pequeno”. Só se preocupava com o perigoso princípio em questão. “Se o mendigo for oprimido, o homem de anéis nos dedos não escapará”, pensava.
No seu alarme profético, ele chegara a sugerir que as grandes transportadoras auxiliassem as pequenas a elevarem seus padrões. Rufus o fitara, espantado, sem poder acreditar.
— Meu caro rapaz — comentara ele, constrangido diante de seus associados
— nós queremos essas estradinhas para nós e se o governo inadvertidamente está disposto a nos ajudar nisso, por que havíamos de nos opor? — Ele acrescentara:
— Não tenho o dinheiro para atender às exigências do governo, elas vão ter de se entregar a nós. É estou vendo que essa regulamentação proposta tem vantagens imensas para nós. E para o público, que merece segurança pessoal e de seus bens, em qualquer linha.
Então, as transportadoras, investidores e manipuladores calmamente informaram a seus representantes em Washington que retiravam suas objeções à lei proposta. No entanto, ficaram muito infelizes quando alguns entusiastas independentes no Congresso, aproveitando-se da “capitulação” das grandes transportadoras, rapidamente apresentaram uma emenda à lei, regulando os preços de fretes e passagens. Mas os políticos “de peso” se aproveitaram até dessa emenda ameaçadora. Seria impossível às pequenas transportaras cobrarem esses novos preços, se fossem bastante altos. Tornaram-se bastante altos. As grandes transportadoras adquiriram as estradinhas.
Patrick Peale, o jovem idealista, tendo faltado à reunião de diretoria em que fora tomada a decisão, com sua mentalidade amena, de ideia fixa, não compreendera que a “capitulação” de parte da Interstate e de outras grandes transportadoras tinha sido voluntária, por seus motivos próprios. Ele acreditava que se tinha obtido uma "vitória” pelas “forças da democracia” no governo. Acreditava que chegara o momento de uma tremenda “revolução” a “favor do homem do povo”.
Patrick estava convencido de que numa nação ainda jovem, em expansão e individualista, era possível promulgarem-se leis em nome dos “direitos humanos”, para destruir o individualismo. Não tinha medo do governo, acreditando que, se só contivesse homens como ele (e ele acreditava isso ser possível), conseguiría um novo céu na terra. Ele nunca percebeu que todos os homens são intrinsecamente tiranos e perigosos, seja qual for sua posição no mundo. E somente Allan Marshall sabia que homens como Patrick, que acreditavam sinceramente em suas teorias transcendentais, eram a ameaça sinistra e antiga da história.
Allan conversara sobre isso com Rufus e Guy Gunther e os outros e todos tinham-no olhado com grande respeito. Concordaram que Patrick e seus amigos no Senado deveríam ser “vigiados”. Enquanto Allan queria que ele fosse vigiado por algum sintoma de uma tirania incipiente, os outros o queriam ver vigiado por algum sintoma de que ele afetaria seus bolsos.
Para Patrick, a miséria incontestável da maioria dos trabalhadores dos Estados Unidos na década de 1890, a opressão dos sindicatos trabalhistas, tudo poderia ser varrido por um decreto do governo. Ele não sabia que um progresso sólido nos assuntos humanos era questão de lento despertar da consciência pública e a aplicação dolorosa do princípio religioso de que todo homem é espiritualmente responsável pelo bem-estar de seu semelhante. Patrick, que acreditava nos direitos do homem, nutria um desprezo subconsciente pela humanidade, traço que tinha em comum com todos os reformadores e fanáticos.
Foi a capacidade de Allan de ver “bichos-papões” que o tornou o inimigo vigilante de Patrick Peale. Rufus e seus amigos que “vigiassem" Patrick e os amigos dele, para a conservação de sua fortuna e poder. Ele, Allan, o vigiaria por motivos mais terríveis. Muitos anos depois ele pensaria. “Minha metamorfose começou com minha compreensão de Patrick Peale. Eu pensava que estava sendo levado pelo interesse próprio, mas foi muito mais do que isso, mesmo sem eu saber. Creio que comecei a compreender quando vi que ele tinha todas as obras de Nietzsche e as lia constantemente. Todo fanático é discípulo desse filósofo louco, quer o saiba ou não."
Misturado a isso havia um ódio pessoal nato por Patrick Peale, coisa que ele não admitia muito frequentemente. Patrick se casaria com Laura DeWitt.
Empolgados com a ilusão de que tinham "forçado" as grandes transportadoras a capitular, Patrick e seus colegas acreditavam que chegara o momento de batalhar por concessões maiores ainda. Patrick propôs que se introduzisse outra emenda à lei regulamentando as estradas de ferro: exigia que se incluísse no decreto um item que desse ao governo meios de supervisionar as condições de trabalho nas estradas, estipulasse um salário mínimo, controlasse as horas de trabalho, obrigasse todas as transportadoras a reconhecer os novos sindicatos organizados por um órgão oficial arbitrário e a ser formado, reclamasse das transportadoras construir casas para seus trabalhadores, fornecer atendimento médico gratuito e escolas para seus filhos, e dividir os lucros com eles. As ferrovias deveríam também limitar os dividendos pagos aos acionistas, construir hospitais para todos os empregados, subsidiar os alimentos em lojas especiais, para que os trabalhadores não tivessem de comprar os gêneros caros no mercado, e “ampliar os horizontes de todos os trabalhadores e suas famílias, para que não absorvessem mais o ópio do povo — a religião".
— Se obtivermos essa vitória sobre as estradas de ferro... e será possível, se nos dedicarmos... então poderemos impor essa lei a todas as outras indústrias também — disse Patrick a seus colegas, que mostraram seu entusiasmo aos gritos.
Quando a emenda proposta chegou ao conhecimento das transportadoras,
estas acharam muita graça. O rapazinho estava louco. Ele que falasse e se “aliviasse". Ninguém o levaria a sério, nem seus amigos. Afinal, era filho de um homem rico, sendo ele próprio diretor do conselho da Interstate Railroad Company, possuindo, graças à mulher, dezesseis por cento das ações. Quando Allan horrorizado, declarou que exatamente por esses motivos é que o levariam a sério em Washington, os outros o acalmaram e tornaram a falar em bicho-papão. Somente Rufus, depois de muitas discussões com Allan, é que parou de sorrir e começou a lhe dar ouvidos.
— Aquele seu Allan está certo, em todos os sentidos — dissera Jim Purcell a Rufus. — Mas todos vocês outros são uns cabeças-duras.
— Essa emenda não deve sequer ser apresentada — dissera Allan. — Pat tem de retirá-la imediatamente e ser obrigado a nunca mais tornar a mencioná-la. Claro, ela não passaria, de qualquer forma. Mas as notícias a respeito sairiam nos jornais e a ideia venenosa se espalharia, devagar e segura, no meio do povo, até acabar destruindo a Constituição, em alguma década posterior.
Já muito alarmado, Rufus perguntara o que Allan poderia fazer. Allan dissera, com um sorriso sinistro:
— Há um segredo escabroso na vida de todos os homens, os que são como Pat Peale. Basta encontrá-lo e assustá-lo com ele. E hei de descobri-lo. Vai custar muito dinheiro.
Rufus pensara naquilo e depois dera uma gargalhada, os olhos brilhantes e redondos. Depois dissera, com severidade:
— Temos de agir depressa. Já demorou demais.
E lançara a Allan um olhar de reprovação paternal que o fizera gargalhar. Allan então fora para Nova Iorque e contratara os serviços de todo o pessoal de uma agência de investigações particular, dizendo que não poupassem despesas. Informações importantes seriam recompensadas com quantias incríveis, especialmente se fossem rápidas.
Dentro de três semanas, o chefe da agência prestara contas a Allan, o que o deixara muito satisfeito. Allan imediatamente fora procurar o senador mais antigo da Pensilvânia, bom amigo dos DeVitt, homem inteligente, capaz e conservador, que devia sua eleição à família.
Depois, Allan pedira a Patrick Peale para falar com ele em particular, e imediatamente, sobre um assunto da maior gravidade. Patrick, que estava em casa, concordara, a despeito de certa hesitação desdenhosa, e pedira a Allan para ir ao seu gabinete isolado. 0 Peale mais velho, agora secretário de Estado, estava em Washington e eles não seriam interrompidos. Patrick ficara muito aborrecido e espantado quando Allan chegara com o senador antigo, sr. Horace Thornton.
Allan foi direto ao assunto:
— 0 sr. Thornton veio comigo porque está preocupado com emenda à lei sobre as ferrovias, que você pretende apresentar na próxima sessão.
Patrick ergueu as sobrancelhas, educadamente, e fez uma mesura ao senador.
— Sinto muito — disse —, mas pretendo fazer o que a.' direito.
— Essa emenda provocará risos e será desprezada pelo Sen — disse o sr. Thornton. — Você sabe disso, Patrick.
— Talvez — retrucou o jovem, franzindo as sobrancelha1.
É muito revolucionária e, francamente, não creio que seja ainda. No entanto, o povo será bem informado pelos jornais ao i|i temos em mente, se não para já, então para o futuro. A opinião | blica, especialmente entre os trabalhadores, será despertada. E a <>| nião pública, a princípio nebulosa, mais tarde poderá tornar-sc m< força irresistível.
— E verdade — dissera Allan, olhando para Patrick com i ar feroz. — E é por isso que você não vai propor essa emenda lou.
Patrick lançou a Allan um sorriso vago e aristocrático.
— E quem vai me impedir? — perguntou.
— Você mesmo.
Os dois rapazes se entreolharam num silêncio repentino c brante. Depois, Patrick riu, de leve.
— Vai tentar me subornar, Allan?
O tom dele era descrente, contendo até um traço da piedade que os homens que se acham superiores têm pelos que julgam ser inferiores.
— Suborná-lo? — Allan mostrou todos os dentes num sorriso sincero. — Eu nem sonharia em fazer isso. Vou apenas lhe apresentar certos fatos que poderíam obrigá-lo a renunciar ao Senado e que fariam com que cada palavra que você pronunciasse fosse citada com desdém e ridículo nos jornais. É apenas uma consideração pela família e por sua mulher, que é sobrinha do sr. DeWitt, que me impede de levar todos os fatos ao conhecimento dos jornais imediatamente, sem lhe dar a oportunidade de retirar a sua emenda voluntariamente e se calar sobre isso para sempre. — Ele acrescentou: — Estou sendo generoso. Não abuse de minha generosidade Pat.
Patrick Peale ficou branco como a morte. Em seus olhos apareceu a irritação e depois a raiva. Seu primeiro impulso foi de mandar que Allan saísse do escritório. Mas uma curiosidade humana e algo como o medo o fez parar.
— Está querendo chantagear? — perguntou ele, sem poder acreditar. — Se está, com o quê? Não há nada na minha vida...
— Isso é verdade — disse Allan, com calma.
— Então, não há nada que você possa fazer — disse Patrick, com outro sorriso fraco. Ele estava recuperando a cor. Olhou para o colega mais velho, educadamente, sem fazer caso de Allan. — Sinto muito que o senhor se oponha tanto à minha emenda, mas não posso evitar.
O senador Thornton suspirou.
— Eu também sinto, Pat. E por você. Acho que você é perigoso...desculpe-me, por favor. No entanto, creio ser meu dever, pelo meu juramento de defender a Constituição, lhe avisar que, se continuar no seu rumo desastroso, vou revelar certos... assuntos. Detesto a ideia, isso me repugna. Mas por vezes o homem tem de usar uma espada suja para defender a pátria.
— Não estou entendendo. — A voz de Patrick estava sufocada. Estava ficando sem cor de novo. — Minha emenda... o que quer dizer, “avisar-me”? “espada suja”?
— Não estamos aqui para discutir a sua emenda — disse Allan. — Você não se convencería por qualquer argumento: é tolo demais. A seu modo, é um homem mau. Mas isso é sutileza demais para você. — Ele sorriu para o senador Thornton, que pareceu momentaneamente confuso. — Uma coisa intangível, senhor, e muito vital. — Ele se virou para Patrick. — É verdade, como já reconhecí, que não há nada na sua vida que possa desonrá-lo ou arruiná-lo. Mas há na vida do seu pai... o seu pai, secretário de Estado e que goza do respeito nacional. Parece que você tem grande admiração por seu pai.
Patrick ia se levantando na cadeira e seu rosto estava cheio de raiva e de repúdio irritado.
— Como ousa falar do meu pai? Você! O que meu pai tem a ver com isso?
Ele estava indignado e horrorizado e Allan compreendeu o motivo, também irritado. Esses idealistas meticulosos e de educação esmerada eram todos iguais, nutrindo em si um desprezo secreto pelo homem que se faz por si, desprezando a força vital que o lançara de sua situação primitiva humilde por saberem que não tinham o mesmo dinamismo, e, embora louvassem a “majestade do trabalho e a nobreza da labuta”, desdenhavam os homens vigorosos que tinham sido obrigados a adquirir uma posição pelo trabalho árduo e o conhecimento por simples força de vontade. Allan fora lá com o propósito de não se deixar provocar por nada, mas então disse:
— Você é um hipócrita covarde, Peale, um esnobe moral, um mentiroso que nem sabe que mente.
— Meus caros rapazes — disse o senador Thornton, em desalento, vendo a violência nos dois rostos. Ele dirigiu-se a Allan: — Está sendo injusto com Patrick.
— Não — disse Allan, continuando a fitar o homem que odiava. — É só que detesto e conheço o tipo dele. Ele chega a conclusões intelectuais, que nunca incluem os imponderáveis humanos. É arrogante e egoísta, de modo que nunca pode ser alcançado por nada, a não ser algo que o atinja por meio dessas qualidades. — Ele se inclinou para Patrick, que o fitava em silêncio, pálido. — Vim aqui para usar uma arma contra você e não estava gostando da ideia. Mas agora estou.
— Fale o que quer e saia — disse Patrick, a voz abafada.
Allan recostou-se na cadeira e levou tempo para acender um cigarro.
— Vou refrescar sua memória, há dois anos um subsecretário da embaixada francesa matou a mulher e depois se suicidou. Ela era uma mulher bonita, madame Giroud. Talvez a tenha conhecido.
— Conheci. — Patrick mudou de posição e a boca parecia talhada num ricto de desprezo, sob o nariz adunco. — Ninguém jamais soube a causa.
— Pois eu sei — disse Allan. — Creio que o assunto foi tratado, como dizem os franceses, como um crime passíonnel. E foi. Mas o outro homem do triângulo nunca foi descoberto. Até há três semanas.
Patrick riu, calado. Pegou uma caneta e começou a brincar com ela. Seus olhos castanhos pousaram sobre Allan, como poderíam pousar sobre um empregado que estivesse sendo insolente.
— E então? Isso me interessa?
— Interessa. Era o seu pai.
Patrick não disse nada. A caneta lhe caiu dos dedos, rolou um pouco e depois foi ao chão. Fez um estalido no silêncio. Toda a vida sumia do rosto de
Patrick, que aos poucos se tornava uma máscara de morte. O osso do maxilar, destacando-se sob a pele, reluzia, branco.
Allan, observando-o com um tom pensativo, disse:
— O seu pai... tem seus sessenta anos, não? E madame Giroud só tinha trinta anos, e o marido trinta e oito. Um casal muito encantador e querido. Washington ficou chocada. Paris também. Foi um escândalo e tanto, que correu o país inteiro, pois eles eram amigos do presidente, que os recebia muito. — Ele colocou um pacote grosso sobre a mesa, junto à mão de Patrick, que estava rígida. — Recortes de jornais de todo o país. Uns recentes, de uns três meses atrás, comentando sobre o “mistério”. Não é mais mistério, pelo menos para nós três nesta sala. O secretário de Estado... e os Giroud.
— Calúnia — sussurrou Patrick.
— Não é calúnia. É a verdade. — Allan colocou um pacote mais fino sobre o outro. — Mandei investigar tudo muito bem. Pode levar esses documentos a seu pai e lhe perguntar, você mesmo.
— Você está querendo destruir meu pai, que lhe deu a primeira oportunidade. — Patrick continuava sussurrando.
— Não quero prejudicar o sr. Peale e não pretendo fazê-lo. Está nas suas mãos. Só nas suas mãos. Se eu entregar o caso à imprensa, terá sido você quem me obrigou a fazê-lo.
— Mentiras — disse Patrick e, com um gesto incontrolável, jogou os pacotes no chão. — Você é um mentiroso.
Allan apertou os lábios.
— Não creio.
— Se você ousar... conheço a lei... está preso.
Patrick estava respirando com uma dificuldade evidente.
O sr. Thornton falou, com relutância.
— Então, você terá de pedir um mandado de prisão contra mim também, Pat. Se obrigar Allan a agir, terei de falar disso com os senadores. É um dever moral. Afinal, votei para confirmar a nomeação de seu pai para secretário de Estado.
“O puritano reacionário!”, pensou Allan. Mas os puritanos são orgulhosos e ciosos da honra. Se ele fosse um homem ambicioso normal, um homem realista e prático, me mandaria para o diabo e o pai que se danasse ou sofresse as consequências de seus atos. Mas a honra pessoal é outro assunto.
Allan se levantou.
— Sugiro que pegue essas informações e as mostre a seu pai. Em Washington. Eu lhe dou quatro dias. Depois disso, será tarde, seja qual for a sua decisão.
— Diabo inclemente — disse Patrick.
— Pelo contrário, sou clemente. Não dei a notícia aos jornais, Fazer isso ou não depende inteiramente de sua decisão.
O sr. Thornton se levantou, cansado, cheio de pena do jovem senador abalado.
— Pode crer, é tudo verdade, Patrick. Sinto que tenha sido obrigalo a saber. E pode lhe parecer estranho, mas Allan está agindo por princípio e não apenas por interesse pessoal, como genro de Rufus DeWitt.
— Princípio — repetiu Patrick, com ênfase e repugnância.
— É — disse Allan. — Princípio. A conservação de um sistema de governo que protege todos os americanos contra homens como você. Mas isso você nunca há de compreender. Está além de suas capacidades.
Patrick partiu para Washington naquela noite. Duas noites depois, os jornais de Portersville traziam manchetes negras e empolgadas. O secretário de Estado, Peale, tinha tido um derrame repentino, que lhe paralisara o lado direito. O filho estava com ele, por ocasião da calamidade, e, quando o sr. Peale estivesse em condições de viajar, o filho o levaria para casa. A jovem sra. Peale saíra da casa de Washington para ficar com o marido.
Allan recebeu um telegrama de Patrick. “Retirei a emenda.”
— O que é que você usou como alavanca? — perguntou Rufus ao genro, interessado. — Adoro um escândalo, para que servem os escândalos?
Mas Allan nunca contou nada a ninguém. Sabia que podia confiar no sr. Thornton. Ficara sinceramente preocupado com o sr. Peale, a quem respeitava e de quem gostava. Ele agora detestava Patrick com um ódio implacável. O maldito fariseu devia ter feito o velho sofrer muito.
À meia-noite, Cornélia, com um mínimo de dor, deu à luz um menino e uma menina, como profetizara. Eram crianças magras e bonitas, com cabelo como prata e grandes olhos azuis. Cornélia dera um grito de alegria, ao vê-los.
— Trocados! — exclamara, fingindo rejeitá-los.
— São parecidos com a minha irmã — disse Lydia. — E com a minha pequena Ruthie.
— Mas onde estão meu cabelo ruivo e os olhos de Allan? perguntara Cornélia, brincando.
Ela chegara a se sentar para olhar para os bebês, achando graça. O primeiro beijo que recebeu não foi de Allan, mas do pai, que irradiava prazer e calor, como o sol. Estava orgulhoso e encantado e não queria dar a vez nem para a mãe da filha nem para o marido.
Ele disse:
— Meu garoto. Minha garota. Amanhã vou depositar um milhão de dólares nas contas pessoais deles. Um milhão de dólares!
Estelle entrou e ouviu aquela declaração feliz. Ela dera dois filhos a Rufus, mas ele não fizera por eles nada de parecido.
— E ações no valor de um milhão de dólares para mim — disse Cornélia, complacente. — Afinal, fui eu que lhe dei esses bandidos. — Ela acrescentou: — Realmente, papai, agora as enfermeiras têm de levá-los daqui.
O dr. Schwartz foi recompensado com honorários estonteantes e muita emoção de parte do sr. DeWitt. Passaram-se duas horas até que Allan fosse lembrado pelo sogro.
Os bebês foram devidamente batizados na igreja onde os pais se casaram, pelo mesmo ministro. A menina chamou-se Dolores e o menino Rufus Anthony Marshall. Os jornais do país inteiro destacaram a chegada dos novos herdeiros da
fortuna e posição dos DeWitt.
Os pais de Allan não deram sinal de vida. Mas Michael escreveu uma carta ao irmão: “Vou citar uma carta escrita por Fra Giovanni em 1513: ‘Eu o saúdo. Sou seu amigo e meu amor por você é profundo. Não há nada que eu lhe possa dar que você não tenha, mas há muita coisa, muita, que, embora eu não lhe possa dar, você pode tomar. O céu não nos pode chegar a não ser que nossos corações encontrem um repouso no dia de hoje... Nenhuma paz reside no futuro que não esteja oculta neste instante precioso. Tome a paz!'
35
Ainda que Allan tivesse a ideia da vasta administração entrosada de uma grande companhia ferroviária, com o passar dos anos ele foi percebendo que sua concepção original fora muito restrita e estreita. Cada ferrovia era um império, completo em si. Havia o presidente, o tesoureiro e o secretário (no momento, 1895, ele mesmo).
Abaixo desses personagens havia o conselho diretor, eleito pelos acionistas em assembléias anuais. Havia, aparentemente, um número infindável de departamentos, entrosados mas independentes, cada qual sob a responsabilidade de um vice-presidente.
O departamento de operações era chefiado por um vicepresidente e um gerente geral, a quem eram confiadas a manutenção das linhas, estruturas, equipamento e operação dos pátios, trens e estações. O departamento de tráfego era dirigido por um vicepresidente e gerente de tráfego, encarregado de determinar as tarifas e solicitar o tráfego. Allan continuava como chefe do departamento legal, que aconselhava os diretores do conselho, o presidente e todos os outros funcionários de todos os outros departamentos, lidava com a autoridade dos regulamentos, instaurava todos os processos legais e tratava das reivindicações contra a companhia.
Um vice-presidente chefiava o departamento de contabilidade e finanças, auxiliado por um ou dois auditores gerais e um tesoureiro. Esse departamento tinha o pleno controle dos fundos e fazia desembolsos assinados por funcionários autorizados e aprovados pelos fiscais. Agentes de compras, encarregados de armazéns, gerentes gerais, fiscais, engenheiros-chefes, designados para a construção e formação de padrões e instruções determinando a manutenção das linhas e estruturas, faziam parte da colmeia que criava os favos dourados da companhia, sem falar nos vice-presidentes encarregados do pessoal, um executivo encarregado das relações públicas e a análise das opiniões dos políticos, sempre mudando.
Esses homens constituíam a hierarquia. Mas a Interstate Railroad Company, como as outras ferrovias, estava dividida em distritos, para fins operacionais, e cada distrito tinha suas divisões. Assim, havia superintendentes gerais e superintendentes de divisão, engenheiros de divisão, mestres mecânicos de divisão, mestres de trem, agentes de estação e mestres de pátio.
Essa imensa estrutura funcionava quase sozinha e só ocasionalmente precisava da atenção de Rufus DeWitt, pois a autoridade era delegada e designada aos homens mais competentes. No entanto, como chefe da equipe jurídica, em constante expansão, Allan, como secretário, era quem controlava o arquivo da companhia e comparecia às reuniões do conselho e às assembléias anuais. Sendo muito consciencioso na questão dos negócios, era-lhe difícil delegar resitm sabilidade, e sua desconfiánça natural quanto à inteligência e um gridade dos outros o impedia de gozar os aspectos mais leviano-, vida pessoal. Embora nunca subestimasse a perspicácia e o podei. 1 Rufus DeWitt, parecia-lhe que o sogro por vezes era muito disol cente quanto ao império que controlava e muitas vezes tinha tíii culdade em provocar-lhe alguma aflição ou alarme.
— Mas, meu filho querido — dizia Rufus, às vezes, com indulgência —, temos aqui um verdadeiro reino, dirigido por príncipes, nobres e homens de menos brilho. Não posso ficar de olho em cada mestre de pátio, advogadozinho, vice-presidente, engenheirochefe ou gerente geral. Quando meu pai começou, com cerca de duas dúzias de homens, e quando eu era menino, as coisas eram mais simples. A gente podia estar em toda a parte ao mesmo tempo. Tudo estava sob nossas vistas e nossas mãos. Hoje é diferente. — Ele olhava para Allan, com malícia. — Digamos que eu examinasse todas as faturas de apitos ou sinos. Digamos, por exemplo, que eu esmiuçasse todas as pequenas decisões de nossa imensa equipe jurídica e o consultasse sobre cada caso? Está vendo que absurdo seria isso! Temos homens importantes cuidando disso. Mas, quando se trata de questões sérias, estou ali, como presidente do conselho. Você por acaso está tentando se matar?
Em 1894, Allan teve um colapso e passou três meses doente. Foi mandado para a Europa, para um repouso prolongado e um “relaxamento total”. Ele foi... por seis semanas. Quando voltou, Rufus notou que ele parecia ter “tomado juízo”. Trabalhava muito, como sempre, mas se tornara mais indiferente aos detalhes. Essa atitude determinada era, em si, um desgaste de seu temperamento.
— Você é apenas um homem — disse Rufus, com afeição. — Há de notar que a estrada não se desintegrou na sua ausência e que se bem que alguns dos casos jurídicos mais importantes aguardessem a sua volta, o país não desmoronou.
— Um organismo sem cabeça às vezes se decompõe — respondeu Allan.
— Mas não um organismo com cabeça de hidra, cada qual completa e autossuficiente. Lembre-se de que cada funcionário nosso est. trabalhando só para sua vantagem e assim está trabalhando eficientemente para a companhia. E esta a estrutura inatacável da livre empresa e é por isso que as empresas privadas sempre serão dirigidas com eficiência e o mais economicamente possível. Cada qual trabalhando o melhor possível para si, sem querer trabalhar melhor pai > todos os outros homens. 0 interesse próprio leva ao progresso um versai. E este o argumento mais irrefutável contra os idealistas e os responsáveis que declaram que os homens deviam ser, e podem ser levados a ignorar os seus interesses imediatos a favor do que chamam de “bem de todos”. O motivo do lucro, do interesse próprio, é que nos deu a civilização que possuímos. O homem deve sempre ter inspiração para realizar alguma coisa e, se ela não tiver recompensas, não terá inspiração. E isso nos leva, como sempre, a Pat Peale. Você há de notar que, embora seja diretor do conselho, em geral não discorda de nada que pudesse modificar a sua fortuna.
— Houve um tempo — disse Allan, na dúvida — em que ele era um reformador altruísta e um lutador pelo que chama de “direitos humanos”, em oposição ao que chama de “exploração”. O que será que lhe aconteceu?
— Você — disse Rufus, sorrindo. — Você expôs a ele o seu interesse próprio fundamental, que é natural a todos os homens. E é por isso que ele o odeia.
— Fico contente por ele estar fora do Senado — disse Allan, meneando a cabeça. — Ele hoje fica meditando. Está ficando cada cez mais calado, emburrado e arbitrário. Os filhos o detestam e Laura...
— Ah, sim, Laura — disse Rufus, e o rosto corado ficou sombrio. — Eu não diria que é feliz. Perguntei a ela. Diz que Patrick mudou. Por vezes fica mal-humorado, é dogmático e inflexível, por vezes rígido com os filhos, outras vezes sentimental. — Rufus começou a rir. — Lembro-me da ocasião em que ele estava discursando sobre “o povo” e você chamou a atenção dele, dizendo que ele também faz parte do “povo”. Ele ficou ofendido e indignado e o negou. Você nunca me contou...
Allan limitou-se a sorrir.
— Por falar nisso, o senhor sabia que ele está apoiando aquele jornal radical de Nova Iorque, chamado O Proletariado? Esse será outro exemplo de suas tentativas de fugir da realidade e deixar de reconhecer que ele não é melhor do que os outros? Ou será um espírito de vingança?
— Ambas as coisas. Você há de notar que, embora ele esteja à testa de obras de caridade e trabalhe por elas, dá pouco dinheiro dele. Mas persegue outros homens ricos para contribuírem. Também notei que ele ficou mais frenético depois que retirou aquela emenda à lei que regulamenta as ferrovias. Isso já foi há muito tempo. Imagino que não vá me contar.
Allan tornou a sorrir, irônico.
— Bem — disse Rufus —, ele nunca mais foi visitar o pai. Coitado do velho. Fico contente que você seja bom para ele e o visite.
— Pat — disse Allan — tem um espírito muito vingativo. O senhor pode rir dele, mas penso nele como num vulcão. No futuro, ele poderá vir a se tornar muito perigoso.
Allan Marshall gostava dos filhos, com sabedoria, além de carinho. Se iria ter favoritos, seria a menina. Dolores. Cornélia olhava para os dois filhos e a filha com um misto de divertimento, bom humor, impaciência e uma aversão afetuosa. No seu amor egoísta pela vida, ela os achava chatos e desinteressantes.
— A conversa infantil não me fascina — dizia ela. —Já basta o que tenho de ouvir de Estelle, que está ficando mais infantil à medida que envelhece. E depois, claro, tinha os meus irmãos. Leia contos de fadas para os meninos, se quiser, Allan querido, e converse com eles, e leve-os para passear por toda a parte, droga, mas não procure inspirar em mim amor por eles. Aliás, embora Dolores só tenha sete anos, tem todos os gestinhos delicados e angulosos de uma solteirona nata. Provavelmente vamos ter de gastar uns dois milhões de dólares para casá-la. E o Tony é quase tão ruim quanto ela. Suporto DeWitt melhor do que os gêmeos.
DeWitt, com cinco anos, por vezes deixava Allan nervoso. Era pequenino, muito moreno, sossegado, penetrante e muito frio e autoritário. Havia nele certa dureza, certa aspereza que, dizia Cornélia, herdara do pai. De olhos negros, cabelo preto e liso e feições pontudas, cético, mesmo com sua tenra idade, desdenhando os irmãos mais velhos, que chamava de “molengas”, por vezes era difícil gostar dele.
Rufus Anthony, ou Tony, era brilhante e perceptivo e tinha uma sutileza precoce. Podia ser um pouco dedicado demais, um pouco dedicado demais à irmãzinha gêmea, um pouco sério demais nas suas responsabilidades para com os outros, um pouco sensível demais diante de uma palavra ou ato brutos. Mas não era efeminado, não era estudioso demais, se bem que, aos sete anos, lesse muitos livros de adultos, e era um ótimo aluno.
Tony era alto, esguio, forte e saudável, e quando desafiavam seus direitos
sabia brigar e vencer qualquer de seus companheiros de folguedos, que eram muitos, em Portersville e Newport. Os outros meninos respeitavam-no, admirando seu domínio de cavalos e barcos e sua habilidade nos esportes. Sua beleza espantosa nunca inspirava inveja, o que era uma coisa notável, pois ele tinha cabelo levemente cacheado, louro, e olhos lindos, de um azul tão claro que pareciam cristalinos ao sol.
Dolores, a irmã adorada, era tão parecida com o irmão que só se distinguia dele pelo cabelo comprido e esvoaçante, a leve covinha na face direita e seus modos femininos. Allan a pegava no colo, afagando-a quase com ferocidade, murmurando palavras incoerentes de adoração aos ouvidos dela. Se bem que amasse DeWitt (com um esforço consciente), muitas vezes se irritava com o desprezo do menino por Dolores, contra o qual ela não tinha defesa.
Como sempre, Allan, Cornélia e as crianças passavam duas ou três semanas do verão na casa de Portersville. Nesse período Allan trabalhava furiosamente, mas dedicava muitas horas às crianças, enquanto Cornélia fazia visitas, ficava sentada no jardim, planejava seu guardarroupa para a temporada em Nova Iorque e na Riviera e passeava pelos aposentos da casa com todo o carinho de sua infância.
Se por acaso encontrava os filhos, afastava-se o mais depressa possível. Ia muitas vezes aos escritórios da companhia em Portersville, assistindo às sonolentas assembléias de verão do conselho diretor e, de um modo prático, com bom senso, dava sua opinião, invariavelmente recebida com a maior atenção e respeito. Parecia a Allan que a tratavam com mais respeito ainda do que a ele, mas tinha de reconhecer que ela possuía uma astúcia por vezes superior à sua.
Cornélia ficava na sala de reuniões, sentada numa cadeira alta, um pouco afastada da mesa comprida, espetacularmente bela e elegante com seus costumes de linho branco e blusas de renda, o cabelo ruivo parcialmente coberto por largos chapéus floridos, as mãos enluvadas tensas sobre a bolsa, os olhos castanhos rápidos e penetrantes e ardendo de vida e inteligência. Não havia nada que ela não soubesse sobre a companhia. Seus comentários e sugestões eram incorporados às minutas do conselho e geralmente seguidos. Sua voz forte, quando ela falava, dominava os homens. Se, aos vinte e nove anos, suas feições se tinham tornado mais duras, e se havia uma linha marcada entre seus olhos, ela continuava impressionante e cheia de fascínio e poder.
Ela escutava Allan com atenção, pensativa, e, se discordava, era uma discordância entre iguais. Ele sabia que ela às vezes achava graça nele, em segredo, bem como o pai, se bem que ele nunca soubesse a causa. Ele também descobrira que a mulher e o sogro por vezes olhavam-no desconfiados — e também nunca soube a causa. Essas eram as únicas queixas que tinha contra a mulher.
Nas tardes de domingo, em Portersville, no verão, ele levava os filhos para passeios de carro, enquanto Cornélia cochilava em casa ou examinava papéis referentes aos negócios da companhia. Um local de visita preferido era a casa dos Purcell, onde vovó Purcell escutava os netos com interesse carinhoso e onde sempre se podia contar com o vovô Purcell para lhes contar uma anedota, dar um punhado roubado de chocolates e bolinhos, um jogo ou uma história tremenda. Para os gêmeos, Ruth Purcell, manca, delicada e linda, já com dezessete anos, era o membro mais importante da família.
Entre a moça e as crianças havia um entendimento e compreensão mudos.
Para DeWitt, pelo menos, o lugar mais interessante de se visitar era a casa
de Patrick e Laura Peale. Todas as crianças chamavam
Patrick de tio e Laura de titia. DeWitt, que sabia que Patrick e Laura o achavam incompreensível, olhando-o com certa frieza, era muito amigo dos meninos Peale — Miles, de sete anos, Fielding, de seis, e Mary, de quatro. Lá os gêmeos bonitos eram tratados com certo desdém pelos Peale mais novos; lá os comentários e opiniões de DeWitt eram ouvidos com aprovação; lá ele era o líder, embora fosse mais novo do que os dois outros meninos. Ele não se aborrecia ao ver que o “papai" não era tão bem recebido ali quanto em casa dos Purcell.
Naquele quente domingo de agosto, Allan estava sendo atormentado pelos filhos. Já eram quase duas horas da tarde. Eles não iam dar o passeio? E qual a casa que visitariam primeiro? Dolores viu que o pai estava parecendo muito cansado naquele dia e aninhou se junto dele, olhando para seu rosto, preocupada.
— Temos de ir ver a velha Ruth? — perguntou DeWitt. Gosto de vovô Purcell, mas a vovó não é tão boazinha e detesto a Ruth. Detesto gente manca. Vamos ver Miles, Fielding e Mary. Eles têm um pônei novo.
— O que interessa se Ruth é manca? — indagou Tony, censurando o outro. — Ela me disse que hoje vai ter uns livros novos.
— Droga, os livros dela — disse DeWitt. — Depois, ela não lê histórias boas. Só bobas. E a Dolores também tem cara de boba, sentada no colo de Ruth, como um bebê. Papai, vamos para a casa dos Peale. Eles não vão estar aqui na semana que vem. Vão pai a praia, disseram na outra vez. Não vão a Newport, como nós.
Allan estendeu a mão para desmanchar o cabelo do caçula, mas DeWitt se afastou. Detestava que tocassem nele sem seu consentimento. Seu rostinho moreno, tão concentrado e alerta, ficou ainda mais escuro, de ressentimento. Ele alisou o cabelo, que Allan nem tocara, e levantou a cabecinha, zangado. Todo o seu corpinho franzino se enrijeceu. Ele repetiu:
— Vamos à casa dos Peale.
— Acho — disse Allan, com um ar sentencioso — que esta semana DeWitt devia escolher.
Isso pareceu justo aos gêmeos, apesar de acharem as crianças Peale cansativas e pouco simpáticas. Assim é que Allan e as três crianças saíram numa das vitórias, aberta ao vento quente e ao sol. Tony e Dolores riam e tagarelavam com o pai. DeWitt, como sempre, ficou quase inteiramente calado, os olhos vasculhando os campos com seu olhar costumeiro, penetrante. Achava tolos e pretensiosos os comentários dos irmãos sobre a grandeza das montanhas, os vislumbres das criaturinhas selvagens na floresta e a vista da cidade abaixo deles.
DeWitt não podia imaginar ficar extasiado diante de um campo de ranúnculos ou o clarão de um raio de sol entre os galhos de uma árvore. Quando os gêmeos pediram que a carruagem parasse para que vissem a corrida silenciosa de uma corça com a cria no meio das árvores, ele fez um barulho grosseiro, baixinho. DeWitt alimentava certa animosidade contra o pai. Havia alguma coisa no papai que invariavelmente provocava o aborrecimento e impaciência no menino; e algo parecido com desprezo.
Allan, embora sorrisse para os filhos, estava distraído. Recostouse na carruagem, reconhecendo certo sofrimento e bastante cansaço. Disse:
— Eu queria que houvesse outro lugar aonde ir, um lugar interessante, onde nunca tenhamos ido.
— Aonde? — perguntou Tony, ansioso. Mas Dolores apertou o tosto contra o braço do pai, mostrando sua compreensão. Allan levantou a mão e o cocheiro fez os cavalos pararem na estrada da montanha.
— Deixe-me pensar — disse Allan, franzindo a testa. Ele olhou para o clarão radioso das árvores e depois para as montanhas ao longe. Esfregou o queixo, pensando. Começou a falar e depois parou, Não, não ficaria “bem”. Toda a ideia era sentimental e ridícula. Por que ele foi pensar nisso nesse dia, quando fazia anos que não pensava e nem se importara? Ele tinha trabalhado demais nessa semana. Aliás, os últimos dois anos, incluindo a crise de 1893, tinham sido quase demais para qualquer homem. Os seus encargos e responsabilidades tinham crescido constantemente. Sua exaustão é que lhe dera essa ideia absurda...
— Aonde? — repetiu Tony e agora até Dolores perguntou.
— Algum lugar para a gente brincar? — indagou DeWitt, interessado. — Se for novidade, não me importo.
Allan olhou para os filhos. A poeira dourada estava aos poucos se acalmando em volta da carruagem e os elegantes cavalos negros se sacudiam nela, agitando as cabeças. O silêncio quente e ventoso das alturas agitava as matas de ambos os lados da estrada e as montanhas destacavam-se num vago verde e roxo contra o céu quente e pálido. Enquanto Allan pensava, olhando para os filhos, os cavalos se moviam, impacientes, e seus arreios chocalhavam na quietude. O cocheiro estava sentado como uma estátua, de braços cruzados.
Era absurdo sequer pensar naquilo, pensou Allan. Cornélia o fitaria, os olhos arregalados, achando graça, e daria de ombros. Allan suportava com calma suas raras mas violentas cenas de birra; podia brigar com ela e até, de vez em quando, deixar que ela fizesse o que quisesse, sem perder o amor-próprio. Mas quando ela se divertia às suas custas, o que só era revelado por um brilho castanho no olhar, ele nunca deixava de se enraivecer. Ele disse em voz alta:
— É melhor não irmos, afinal. Se fôssemos, teria de ser um segredo e os segredos...
— Um segredo! — exclamaram os gêmeos, encantados.
— Um segredo — repetiu DeWitt, com um prazer lento e sinistro.
Pela primeira vez a diferença de tom entre os gêmeos e DeWitt chamou a atenção de Allan. Ele então olhou apenas para o caçula e franziu a testa.
— Os segredos nem sempre são bons — disse ele, meio pomposo. DeWitt animou-se.
— Este não seria, não é, papai? — perguntou, os olhos pretos brilhando, antecipadamente.
— Eu não disse isso, DeWitt.
Allan ficou irritado consigo e com o menino.
Dolores disse:
— Se for um bom segredo e se for divertido...
— Não existem segredos “bons” — disse o precoce DeVitt, com desdém. — Então, quem havia de querê-los, sua bobona?
— Não é um segredo — disse Alan, aborrecido. — Eu não queria dizer isso, como você entendeu, DeWitt. Você é sabido demais rapazinho.
Os olhinhos se apertaram, olhando para Allan com astúcia.
— Ah, então está bem. Vamos para a casa dos Peale. Eles ganharam um pônei. Quem é que quer segredos, em todo caso, a não ser as meninas? — A mãozinha pálida brincava, indiferente, com os botões do casaco. — Da última vez, Miles chutou Dolores e fez ela chorar e Mary pôs pimenta na limonada do Tony. Foi muito engraçado. Eu me divirto muito na casa dos Peale.
Os gêmeos ficaram deprimidos, diante dessa recordação. Dolores hesitou e depois disse:
— Papai, gostaríamos de ir ver o lugar secreto.
DeWitt riu, sossegado e desdenhoso.
— O Fielding também detesta o Tony. Põe carrapichos na cadeira dele. É muito divertido. Eles gostam de mim e eu gosto deles.
— Acho que eles são horrorosos — disse Tony. Seu rosto claro já estava corado do sol e do calor e então corou mais ainda. — Às vezes eles brincam direito, mas na maioria das vezes são malvados. Papai, vamos ao lugar secreto.
DeWitt sorriu e não disse nada. “Ora, o diabinho consegue o que quer quase sempre!”, pensou Allan, com raiva. Disse então:
— Vamos a esse lugar novo, mas não é segredo: pelo menos não de sua mamãe. Está entendido?
— Temos de contar a ela? — perguntou DeWitt, ainda sorrindo.
— Só se quiserem — respondeu Allan.
Ele se debruçou para o cocheiro e deu certas instruções. A carruagem foi levada para um local mais largo na estrada e então virada, com cuidado. Allan continuou:
— Eu mesmo ainda não estive lá, a não ser de passagem.
A carruagem rolou pela estrada abaixo, no silêncio quente e dourado. Portersville se erguia devagar ao seu encontro, o rio um clarão cintilante dividindo a cidade leste da oeste, as casas e fábricas castanhas ao sol. Então a carruagem começou a rolar por uma estrada comprida e sinuosa, saindo da cidade, e os campos verdes desciam ao vale.
— Winston Road— disse Dolores, espantada. — Não conhecemos ninguém que more em Winston Road.
Allan não deu resposta. Estava empolgado, em dúvida, inquieto.
Tudo podería vir a ser muito desagradável para todos, nas circunstâncias. DeWitt, o diabinho, é que o levara a isso. Allan olhou para o garoto e ficou irritado ao ver que o filho o contemplava com um olhar cheio de conjeturas.
Allan recostou-se na carruagem e fechou os olhos doloridos. Talvez não estivesse inteiramente refeito do “colapso” do ano anterior, talvez estivesse voltando. Com certo receio, ele se lembrou das semanas antes do esgotamento: a insônia, a sensação de sufocamento mesmo quando estava trabalhando sossegado à sua mesa, o tremor frio, a náusea, a necessidade maior de beber quando devia se reunir às pessoas com alguma compostura, os pressentimentos nebulosos mais terríveis que o acometiam sem aviso, a consciência de alguma perda imensa, sem nome, os sedativos que no final não conseguiam acalmar os temores doentios e inconscientes, a agitação que o atormentava e o fazia sentir todos os nervos do corpo e por fim a incapacidade total de pensar e de se
concentrar.
Ele então se deu conta de que estava suando, um suor frio, a despeito do calor. “Meu Deus”, pensou, “outra vez, não!” Seu medo lhe deu um nó na garganta. “Se eu ao menos soubesse”, continuou a pensar, “o que causou aquele maldito esgotamento e por que me ameaça de novo! Tenho tudo que jamais desejei: homem nenhum poderia desejar mais.” Ele sentiu um toque leve em seu braço e abriu os olhos. Dolores estava olhando para ele, preocupada.
— Não está passando bem, papai? — perguntou ela, aflita.
Ele passou o braço em volta da menina e tentou sorrir.
— Não muito — confessou. Depois, sem pensar, acrescentou: — Talvez seja por isso que pensei em ir a... esse lugar.
Suas próprias palavras o assustaram. Ele pensou nelas. “Estou perdendo o juízo”, disse consigo. “O que é que eles têm a ver com isso? Há anos que nem penso neles, a não ser, talvez, no Natal, quando lhes mando presentes. E nem teria mandado, de todo, se não fosse minha mãe.”
A carruagem estava rolando depressa pela estrada suburbana, As casas bonitas foram cedendo lugar às menos pretensiosas e por fim os espaços verdes começaram a ficar mais amplos e apareceram os milharais, bosques esparsos, campinas amarelas de trigo e aveia, casas de fazenda cinzentas, cercas e gado. Eles atravessaram rapidamente as pontes sobre os riachos murchos: as montanhas pairavam no céu como nuvens de cor lilás. Os cães corriam das veredas, latindo para a carruagem. O silêncio do domingo parecia ter absorvido todo o som da paisagem.
— Estamos chegando a Laketon — disse Tony. — Vamos a uma fazenda?
— Não — disse Allan. — Vamos só a uns três quilômetros além de Laketon. Vocês nunca estiveram lá.
A carruagem passou pela aldeiazinha e saiu numa estrada de terra sombreada por olmos antigos, entrelaçados, fresca, ao sol. As crianças estavam empertigadas, olhando tudo.
— Que casinhas pequenas — disse DeWitt, com desprezo. — Casas de gente
pobre.
— Eu acho que são bonitas — disse a irmã. Seu cabelo pálido, úmido de suor, se enroscava em volta de seu rostinho lindo, de uma perfeição tão clássica em todas as suas feições. 0 vestido branco, metros e metros de voai branco esvoaçante, com entremeios de renda verdadeira, acentuava sua delicadeza. Tinha pernas perfeitas: o sol se refletia nas formas de alabastro e nos sapatinhos de verniz. Allan às vezes achava incrível que Cornélia fosse mãe dela. Cornélia, que por vezes parecia maior do que o tamanho natural, toda colorida, toda iluminada, toda movimento. Allan olhou para o gêmeo: sua réplica, pensou, com ternura. De repente, aquelas duas crianças lhe pareceram mais queridas do que toda a vida, mais queridas do que ele e Cornélia, mais caras do que tudo o que ele tinha alcançado em toda sua vida.
— Eu nunca lhes disse — falou. — Eu também tenho pai e mãe. É para lá que estamos indo... para vê-los.
Tony e Dolores olharam-no, espantados. Ele não conseguiu enfrentar o brilho cristalino dos olhos deles. Em vez disso, procurou sorrir para DeWitt, o qual, como Allan agora sabia, com certa amargura, nunca se espantava com nada.
DeWitt estava sorrindo, com malícia. Mas Tony balbuciou, um pouco distante:
— Papai, o senhor nunca nos contou que tinha pai e... mãe.
— Você é tão bobo — Disse DeWitt, dando uma forte cutucada nas costelas do irmão, não tanto com maldade, mas com repugnância. — Por que ele não havia de ter? Todo mundo tem.
Dolores viu que o rosto magro do pai estava ficando corado e disse, depressa:
— Talvez papai tivesse um motivo.
— Ah, talvez tivesse — disse DeWitt, voltando os olhos estreitos e brilhantes para o pai, com escárnio. — Todo mundo tem seus motivos, não é, papai?
Tony olhou para o irmão, com severidade.
— Talvez as pessoas tenham, DeWitt. — Era raro o menino bonzinho chegar a censurar alguém, mas quando o fazia era respeitado, mesmo por DeWitt. — E isso não é da conta de ninguém, só do papai.
— Olhem aqui — comentou Allan, sem jeito. — Não há mistério nisso. Tive uma briga com eles, há muito tempo.
— Por que foi? — DeWitt, depois de um olhar emburrado para Tony, parecia interessado.
Allan não deu resposta. A carruagem entrou por uma estradinha curta e saiu num trecho mais largo. Ali o vento soprava, era ensolarado e os dois garotos agarraram os chapéus de palha duros e espanaram a poeira dos paletós e calças curtas de sarja. O colarinho largo e branco de Tony estava meio amassado, pois o calor o incomodava, mas o pequenino DeWitt mantinha-se todo arrumado e elegante, imperturbável. Dolores, que estava ficando empolgada, ajeitou o vestido, arrumou a faixa e sacudiu o cabelo esvoaçante para trás.
— Espero que gostem de nós — disse ela.
— Minha querida, não poderíam deixar de gostar — disse Allan, com brandura.
Tony ficou calado. O perfil dele, tão parecido com o da irmã, estava bastante severo, mas DeWitt tinha uma expressão de exultação maldosa.
Allan sabia que o sítio só tinha sete hectares, mas era o suficiente para uma vaca, um cavalo, alguns porcos e galinhas. Os campos eram ricos e verdejantes: Timothy Marshall tinha um "contratado”. Lá estava um campo de trigo brilhante e maduro, ali outro de aveia e um trecho de milho amarelo. Aqui uma boa mata virgem de madeira e um riacho, onde uma vaca muito gorda bebia, satisfeita. Ela levantou os olhos brandos, quando a carruagem passou depressa.
Tudo era silêncio luminoso, ao sol de agosto: as árvores estavam no maior sossego, coroadas de luz, sob o céu pálido e quente, A carruagem deu uma ligeira curva na estrada e então apareceu a casa da fazenda, branca, aconchegante e arrumada, com venezianas verdes e um telhado de telhas vermelhas. Em frente estendia-se um jardim cheio de flores e uma cerca aparada destacava as pedras espalhadas que levavam à porta verde, que estava aberta. Além dos prédios e dos hectares de cheiro suave, as montanhas se erguiam num roxo e verde, quente e cada vez mais profundo.
— É aqui? — perguntou Dolores, ansiosa, quando a carruagem parou diante
da entrada.
— É aqui — disse Allan e ficou ali sentado, incomodado, olhando para a porta aberta. Não viu ninguém lá dentro, se bem que o pequeno hall reluzisse de luz do sol e o piso encerado parecesse um espelho marrom. Ele agora não sabia o que fazer. Depois de uns instantes, percebeu que os filhos o estavam olhando, esperando, Tony e Dolores espantados com a demora e DeWitt com um interesse sabido. Então, quando Allan estava prestes a mandar o cocheiro dar a volta e ir embora, o pai dele apareceu à porta, sorrindo, com a mulher atrás. Por um instante, Tim parou ali, sorrindo, nada surpreendido, os cachos brancos e espessos brilhando à luz do sol, o rosto quadrado contente e feliz, os olhos azuis brilhando. Estava com um terno domingueiro preto, muito respeitável. Mary, a mulher, usava um vestido de seda preta fina, com uma cruz de ouro pendurada ao peito. Naquela luz clara, Allan a via distintamente e percebeu o leve rosado nos maxilares. Ela parecia mais jovem e ainda mais meiga, se bem que o tempo, as doenças e preocupações tivessem marcado seu rosto calmo com rugas finas.
Timothy, tão espantosamente pouco surpreendido, saiu da porta e foi correndo para a carruagem. Gritou:
— Estão atrasados! Duas horas de atraso e o chá esperando! Aloysius, meu filho, e esses os pequeninos, imagino!
Allan estava estupefato. Só conseguiu ficar ali sentado entre os filhos calados, fitando o pai.
— Estava nos esperando, pai? — perguntou, por fim, quando Tim acabou de contemplar os netos, feliz. Tim não respondeu logo. Olhava para Dolores e o azul de seus olhos estava apagado pelas lágrimas. Depois, ele pegou a mão da menina e ela se debruçou sobre o lado da carruagem e o beijou. Ele passou os braços em torno da menina e a pôs no chão. Mary agora estava ao lado dele. Ela se ajoelhou nas pedras e abraçou Dolores, murmurando dentro dos cachos prateados. Depois, Tim voltou sua atenção para Tony, que estava sorrindo, inseguro.
— Ah, um belo rapaz e é gêmeo — disse Tim. — Venha para junto do seu avô, meu filho. Ah, o rosto bom, os olhos bons, a boca boa. Verdade, ele e a irmã parecem anjos saídos das imagens sagradas. Não me beija, mas dá a mão? Não, vai ser um beijo do cavalheirozinho. E cá está a vovô, à espera.
— Estavam nos esperando? — repetiu Allan em voz débil.
Mas Tim continuava a parecer não ouvi-lo. Ficara calado, um sorriso trêmulo desaparecia das dobras duras do rosto dele. Estava olhando para DeWitt, que retribuiu o olhar dele num silêncio frio e tenebroso. As mãos calejadas de Tim de repente agarraram o lado da carruagem e o velho e o menino se examinaram. Depois Tim disse, como que para si:
— E este pequenino... é o estranho.
Ele abriu a porta da carruagem e DeWitt, controlado e meticuloso como sempre, saltou e pôs as botinas pequeninas e engraxadas no chão. Foi aí que Tim prestou atenção no filho.
Viu tudo e o que viu evidentemente o entristeceu. Sorriu de novo, um sorriso forçado.
— "Nos esperando", diz ele. Claro, e por que não? Não recebi a carta de Mike, do Dakota do Norte, no meio dos índios selvagens, ainda outro dia, dizendo que vocês todos viriam no domingo? E Mike não é santo e não sabe? — Ele estendeu a mão a Allan, e o sorriso ficou profundo, pesaroso. — E não foi Mike quem nos escreveu que você é que tinha comprado esse belo lugar para nós, Aloysius? Nunca soubemos, até então, pois nem mesmo o velho Dan Boyle nos contou, até o dia de sua morte, quando me deixou os vinte mil dólares. Mas entrem, entrem. O chá está esfriando e sua mãe fez os bolinhos maravilhosos para as crianças. Entre, meu filho.
Havia tantos anos de intervalo: coisas demais tinham acontecido para conversas e reminiscências, a não ser as mais comuns. Assim, os pais de Allan aceitaram a situação como se nunca tivessem ficado separados do filho. Em sua tranquilidade, parecia que sabiam de tudo sobre ele nesses anos e Allan começou a desconfiar de que sabiam mesmo.
Allan andou pela casa, admirando sinceramente o que o pai tinha feito para torná-la encantadora e bela. Com orgulho. Tim mostrou ao filho a bela mobília que ele mesmo fizera, as peças simples e enceradas de nogueira e bordo preto. Ele é que fizera a cozinha de tijolos, com suas fileiras de panelas de cobre reluzente penduradas das paredes. Ele acrescentara os dois quartinhos no andar de cima, com seus assoalhos claros, as camas de colunas, as paredes sólidas forradas de papel de rosas e lírios. Quase sozinho, tinha construído o estábulo vermelho e erguido as cercas necessárias.
— Acho que você deve saber que não trabalho mais de maquinista, há três longos anos — disse ele. — Perdí a vontade. Mas esses bons hectares nos alimentaram e consolaram. — Ele pôs a mão no braço de Allan por um momento. — Foi duro, mas foi bom, com a graça de Deus. E agora, olhe: somos irlandeses de cortina de renda!
As crianças os acompanharam na visita à casa. Tony e Dolores escutavam, num silêncio satisfeito e respeitoso, examinando tudo, sérios.
DeWitt, tão reservado, tão digno, não fez comentário algum e olhava para as coisas apresentadas sem interesse.
Tony disse:
— Vovô, o que é “irlandês de cortina de renda”?
Ele estava de pé ao lado de Tim, olhando para ele com um afeto encabulado. Tim passou o braço em volta do ombro do menino e piscou para Allan.
— É o que nós somos e o que o seu pai é. Irlandeses com um pouco de dinheiro.
Ele passou o outro braço em volta de Dolores, por quem parecia ter uma ternura especial, e as duas crianças olharam para ele com seus belos rostos renascentistas voltados para cima, confiantes.
DeWitt falou pela primeira vez, com uma altivez fria.
— Nós temos mais do que só um pouco de dinheiro, senhor. E não somos irlandeses... estrangeiros. Somos americanos.
— Somos todos — disse Allan, aborrecido. — A sua governanta nos diz que você é um menino muito esperto, DeWitt. Mas acho que você é um bobinho.
DeWitt não se mexeu, apenas deu a impressão de se ter retirado. Ficou ali, franzino para a idade, reservado e distante, calado. Allan logo se arrependeu. Um menino esquisito, mas seu filho. Ele estendeu a mão, mas DeWitt maquinalmente recuou para se preservar de qualquer carícia indesejável ou contato não solicitado.
DeWitt comentou, sem insolência:
— O senhor fala esquisito... vovô. Nós não falamos assim.
Tim debruçou-se, as mãos calejadas nos joelhos. Sorriu para o menino.
— Você vai aprender, menino. Há mais do que uma língua no mundo. Mas você é um bebê e suas palavras não me magoam.
Tony disse, severo:
— Modos, DeWitt.
Mas DeWitt não fez caso.
— Não é mal-educado, Tony — disse Tim. — Ele não vai nunca ser mal-educado. Um cavalheiro. Nunca vai ter mau gênio, sem um propósito. E esse propósito nunca será pequeno, mas calculado. 0 Senhor faz muitos tipos de pessoas diferentes e às vezes isso é um assombro para nós, gente simples.
Allan ficou perturbado.
— Dizem que DeWitt se parece comigo — falou.
Tim sacudiu a cabeça.
— É o colorido, mas não a alma. Mas não devíamos falar da criança, na presença dela. Se bem que eu duvido que isso lhe faça algum mal. Ele é uma lei para si. — Ele examinou DeWitt, meio triste. — Ele sabe rir?
DeWitt respondeu, com calma:
— Rio. Quando há alguma coisa engraçada. Devo rir agora, senhor?
— Está vendo? — disse Tim, ainda sorrindo para o metino, mas falando com Allan. — Sempre tem de haver um propósito para tudo. Até para o amor.
Aquilo nunca ocorrera a Allan e ele então pensou: “DeWitt não ama ninguém”. E, no entanto, seus pensamentos perturbados continuaram. “Quando Tony é severo com ele, quando Tony lhe revela alguma coisa estranha, alguma coisa, talvez, de integridade, poder íntimo e caráter, que não pode ser abalado, então ele olha para Tony com respeito e seriedade. Talvez seja a homenagem inconsciente que os indignos involuntariamente rendem aos dignos."
Os quartos estavam cheios de sol e um vento quente. Tim estava pegando uma fotografia de uma cômoda e Tony e Dolores esperavam educadamente que ele a mostrasse. DeWitt ficou de lado, os olhos fixos no chão, o pálido labiozinho inferior saliente, um cacoete quando estava tendo pensamentos secretos, que Allan duvidava fossem infantis. Allan disse, em voz baixa:
— Não fique emburrado, DeWitt.
Havia um pedido sob suas palavras.
— Mas não estou emburrado, papai — respondeu DeWitt, com uma surpresa sincera. De repente, ele sorriu e o rostinho macilento por um instante ficou quase cativante.
— E este é o seu tio Mike, Irmão Michael — dizia Tim, mostrando as fotos aos gêmeos. — Vejam, no meio das criancinhas índias, ensinando a elas, cuidando delas, nas suas terras selvagens e pagãs, onde o governo as mantém. Vejam como se juntam em volta do joelho dele, as pequeninas, escutando as histórias.
— Mas por que ele usa essas roupas? — perguntou Tony. Ele segureu a foto nas mãos e a mostrou primeiro a Dolores e depois a DeWitt, que fora para o lado dele, em silêncio. Tony nunca parecia se espantar com o fato de que DeWitt, a despeito de seu escárnio habitual e hostilidade para com o irmão, ainda conseguisse ficar junto dele, sem ser solicitado nem chamado.
Tim olhou para o filho. Só disse:
— É um santo monge, um irmão franciscano. Um homem a serviço de Deus. Vocês sabem a respeito de Deus, imagino?
— Ah, sim — respondeu Tony, intrigado, examinando a fotografia mais de perto, enquanto Dolores espiava por cima do ombro dele. — 0 nosso preceptor, meu e de Dolores, nos ensinou a Oração do Senhor e nós a rezamos todas as manhãs. E temos histórias da Bíblia e História. Mas como é que... o tio Mike... está a serviço de Deus?
— Ele dedicou a vida dele a Deus. Mas essa é uma história que o seu pai tem de lhes contar. Sabem, há homens que preferem trabalhar pelo Senhor, entre Suas pobres criaturas, a trabalhar para si. Vocês devem perguntar ao seu papai.
Tim olhou para os netos com pesar e ansiedade. Pegou a fotografia e a estendeu a Allan. Este examinou-a sem expressão. Michael irradiava paz e felicidade sobre o grupinho de índios ao seu redor: uma criancinha estava no colo dele. Ele era a terra e a santidade e todo o repouso, e a curva de seu corpo gordo encerrava a proteção e o amor. Allan então viu por que ele parecera ridículo e plebeu com roupas de homens comuns. O hábito que ele usava lhe dava estatura, era parte dele e permitira que o que havia nele surgisse com graça. Ele olhou para baixo e viu que DeWitt o observava com uma estranha mistura de divertimento e curiosidade. Ele se sentiu despido sob aquele olhar sábio e velho, no rosto de uma criancinha muito nova. Ele se virou. Estava imaginando coisas: meninos de cinco anos eram pouco mais do que bebês. Não tinham olhos satânicos. Havia algo de errado num pai que achava que tinham.
Tim os levou ao quarto dele e da mulher, mostrando com orgulho as cômodas que fizera. Sobre uma delas havia um objeto que Allan reconheceu, pois ele o dera aos pais, uns dois Natais antes. Era uma estátua de alabastro, de uns quarenta centímetros de altura, feita na Itália. A imagem estava numa gruta em arco, cujas paredes eram entalhadas com uma roseira minúscula. Era uma coisa linda e a luz se despejava através de sua luminosidade. Diante dela ardia uma vela num copo vermelho. Tony e Dolores soltaram exclamações de prazer.
— Nossa Senhora de Lourdes! — disse Tim. Mais uma vez, não olhou para Allan. — Foi seu pai quem nos deu isso. Perguntem a ele sobre ela.
Tony olhou para Allan, por cima do ombro.
— Mas quem é ela, papai? — perguntou.
Allan hesitou. Tim disse, com muita brandura:
— Ela é a Mãe de Deus. É mãe de vocês também. Ela os ama muito.
Tony não fez mais perguntas. “Eu nunca devia tê-los trazido aqui”, pensou Allan. “Fui um idiota."
Eles desceram para a cozinha de tijolos, com seu piso frio de pedra amarela, as janelas largas, a mesa rústica, o fogão preto e cadeiras de balanço. Lá fora viam-se os troncos e galhos de velhos olmos e carvalhos, manchados pelo sol, os gramados agradáveis e sombreados, os vastos campos, o céu amplo e as montanhas distantes. “Há uma diferença entre a simples ausência de som e uma paz envolvente”, pensou Allan.
A mãe estava despejando água quente de uma chaleira de cobre: parecia uma porçãozinha de sol na cozinha. Ela conservara o bule de chá que ele lhe dera quando tinha vinte anos, uma coisa marrom escura com cachinhos de flores de porcelana branca espalhadas sobre ele. Ela pusera a mesa com uma toalha branca engomada, louça grossa e despretensiosa, colheres finas e areadas, que ela trouxera da Irlanda, sanduichinhos de agrião e presunto e os bolos que a família adorava, círculos gordos e simples, com um gosto rico. Ela sorriu com timidez quando a família entrou e, com um gesto da mão, indicou os lugares à mesa.
A mãe nunca parecera corpulenta a Allan. Ele sempre pensara nela como uma sombra no fundo de sua vida, sempre delicada e afetuosa, mas reservada. Não se lembrava de tê-la ouvido algum dia dar uma opinião: pela primeira vez perguntou-se se ela sabería ler e escrever, pois não se recordava de ter visto um livro ou jornal nas mãos dela. “No entanto”, pensou Allan, “eu nunca soube disso, até hoje: ela era toda consolo e serenidade, em todos aqueles malditos anos de pobreza, fome, sofrimento e medo.”
Ele ficou contente com o fato de os filhos terem sido educados para não falar à toa. Jon e Norman, os filhos de Estelle, embora tivessem respectivamente dezessete e quinze anos, tagarelavam como criancinhas, quando estavam em casa de férias. Faziam travessuras, ficavam emburrados, faziam ceninhas, berravam, batiam os pés e corriam como potrinhos pela casa... e competiam pela mãe. Pareciam crianças gigantescas mas retardadas, quando estavam com os sobrinhos e a sobrinha, um contraste doloroso que era evidente a Rufus. No entanto, não eram rapazes burros: eram os primeiros em todas as disciplinas, em Groton.
Tony, Dolores e DeWitt estavam sentados comportadamente à mesa de cozinha. Mary Marshall sorria vagamente para eles, os olhos castanhos brilhando com suavidade. Ela não falava, apenas passava as xícaras e pratos. Não parecia notar coisa alguma. Escutou o marido falando com o filho sobre safras, sobre o velho Dan Boyle, sobre Michael. A voz dele era forte e ardente: de vez em quando passava a mão áspera pelo cabelo comprido de Dolores, com ternura, sorria para Tony e olhava para DeWitt perturbado, interrogando. Falar não era coisa urgente para Mary: ela raramente tinha necessidade de falar. Um sorriso substituía uma risada e, quando ela sorria, todo o seu rosto cansado ficava radioso e vivo.
Mary via e entendia tudo. Se havia dor em seu olhar, observando o filho brevemente, de vez em quando, ela não revelou nada. Lá estava Allan sentado com sua elegância, alto e magro, o blazer listrado branco e azul aberto no corpo esguio, ouvindo as palavras do pai com um interesse absorto. Ela tornou a encher sua xícara de chá meio vazia, sem parecer notar que ele não estava comendo nada. Mas pensou. “Ele ainda não tem quarenta anos, o meu filho, mas suas têmporas estão brancas e ele tem uma agonia nas rugas do rosto. Os ombros estão cansados e as mãos trêmulas. Está velho, de sofrimento.”
Allan interrompeu as declarações prosas e confiantes do pai sobre suas terras, nem se dando conta de que Tim estava falando.
— Que cara é essa do Mike? — perguntou. — Parece muito misterioso ele saber que nós vínhamos.
O rosto largo de Tim se iluminou.
— Ah, mas isso é porque ele é santo! Ele sabe tudo, o nosso Mike. — Ele procurou no bolso do paletó preto e puxou uma carta, com um ar de triunfo, e a entregou a Allan com um floreio. — Eu podia contar muitas coisas que ele nos escreveu: é a segunda visão... um milagre, que ele tem.
Allan reconheceu a letra redonda e caprichada do irmão no papel barato. As primeiras páginas contavam sua vida no Dakota do
Norte, entre as crianças índias a quem ele ensinava, tratava e amava. Depois, havia assuntos de família, agradecendo aos pais pelas roupas para os pais de seus alunos, a comida que lhe haviam mandado, as orações rezadas por ele, o dinheiro dado à Missão em nome dele. Ele prometia enviar-lhes um “buquê espiritual” das crianças muito em breve e rezava sempre por eles. Rezava pelo irmão, escreveu, com simplicidade, e pediu aos pais para fazerem o mesmo.
Então, as frases curtas e simples terminaram. Michael escreveu: “Fomos ensinados a amar a Deus e ao homem, pois, se amarmos a Deus e não ao homem, nossas orações lhe são inaceitáveis. Se só amarmos ao homem e não a Deus, então teremos caído no erro de simples “humanismo”. No entanto, acho infinitamente mais fácil amar a Deus do que ao homem, pois basta olhar em volta no mundo da natureza, o mundo de ocasos e auroras, o canto dos pássaros na floresta ao anoitecer, o brotar de uma flor na grama cerrada, os morros brancos no inverno sob a luz da lua, o cintilar de uma árvore ao sol do meio-dia, o perfume dos campos no meio do verão, o clarão do raio rachando um céu negro e trovejante, para ver e conhecer Deus em toda a Sua majestade, para adorá-lo com humildade, êxtase e assombro. Ele é perfeito e não tanto exige o nosso amor, mas o inspira. Por Suas obras excelentes, Ele se manifesta. E é esse o problema.
“Pois é pelas obras do homem que temos dificuldades em não detestá-lo. Ao altar, o amor de Deus me vem numa onda, sem esforço, sem luta, uma graça que me é concedida livremente e sem nenhum mérito especial de minha parte. Mas a observação do homem pode facilmente conduzir à impaciência, ao cansaço, à raiva, ao ódio e ao desespero. O Deus visível e invisível está ali para ele ver, conhecer e adorar. No entanto, ele está cego, não com uma cegueira física, mas espiritual. 0 homem, o consciente, o perceptivo, feito à semelhança de Deus, tem na alma as trevas do inferno e quase tudo o que faz é sinistro. É o inimigo implacável de seu irmão, o tirano de seu irmão, o opressor de seu irmão. É a espada eternamente erguida contra o seu semelhante. É o caçador que tem sede de sangue: é o criador da guerra, o incendiador da cidade, o esbulhador dos campos. Está sempre em conflito com o mundo e onde pisa todas as coisas fogem dele, apavoradas. Ele, pouco abaixo dos anjos, é a única coisa feia nos espaços da criação, pois molda o seu espírito com seus pensamentos e sua carne reflete a distorção.”
Allan segurou a carta na mão, pensando: “Sim, sim”. Não estava mais sentindo as folhas nos dedos e sim a redondeza de uma bola preciosa deixando-as, voando na luz do sol para as mãos de um inimigo de cara brutal, subordinado para infligir a dor. Tim o estava observando, esquecido da mulher e dos netos, pensando: “Há algo de terrível no coração de meu filho”.
Allan continuou a ler.
“São esses os pensamentos que me ocorrem, sem que eu os peça em minhas orações, nem os procure em meus estudos, ou no meu trabalho. A princípio, eu não tinha o poder de resistir a eles. Rezava febrilmente por uma ilusão, uma cegueira, para não ver o que é o homem, uma ilusão que me reconciliasse com o meu irmão. Por fim, falei com o meu superior, sem esperanças. E ele me disse que havia uma chave para a porta negra que eu havia fechado, no meu conhecimento, contra os meus irmãos. Mas tenho de encontrar essa chave por mim, com a graça de Deus. “Aquele que não sabe que o homem é mau nunca o compreenderá, nem o amará”, disse-me ele, pois ele mesmo já atravessara esse deserto de rejeição.
“Assim, passei a rezar sem descanso, sem dormir. Jejuei, prostrei-me, chorei no silêncio. Pois sabia que sem uma luz eu não poderia me livrar de minha amargura e sofrimento. Uma vez ocorreu-me confusamente que um dia eu possuira a chave e a perdera. Em tempos mais simples, quando eu fazia um trabalho mais simples e tinha menos contato com os homens, eu tivera a chave, sem saber que era mais preciosa do que tudo, para mim. Eu a ouvira mil vezes, girando em sua fechadura; eu a vira impressa nas páginas que os santos tinham escrito; eu a vira reluzindo no altar, na missa. Sem saber, eu vira sua chama viva nos olhos de irmãs cansadas, padres, homens iletrados, nos olhos de minha mãe.
“Seu nome é compaixão. Uma chave simples, dizem. Mas é o mais pesado de todos os objetos, o mais difícil de guardar, o mais doloroso de usar. Pode mover um mundo, pode fugir por entre os dedos como uma palha num momento de raiva. Tem o poder de um exército, a fragilidade de uma asa de borboleta. É o caminho para todo o saber, o caminho dos santos. E o imprimatur de Deus, posto no livro da vida. Sem ela o homem é um demônio: com ela, um anjo.
“Encontrei a chave. Mas devo rezar constantemente, nos momentos tenebrosos, para não tornar a perdê-la. Pois perdê-la é perder a fé, é ser excluído da presença de Deus, é ser um exilado sempre em guerra com todas as coisas.”
Allan pensou: “Para quem isso foi escrito? Para mim?”
A carta tinha um final breve, mas que se destacou vivamente aos olhos de
Allan.
“No domingo que vem Allan vai procurá-los, com os filhos, por volta das duas horas da tarde, eu acho. Espere por ele, pai, e seja bondoso, como se ele fosse um visitante frequente. Ele não se esqueceu do senhor, assim como o senhor nunca se esqueceu dele. Existe um rio furioso entre vocês, que começou a correr quando ele era menino. O senhor nunca compreendeu, nem ele, mas estou começando a saber.”
Muito devagar, Allan dobrou as folhas de papel e colocou-as sobre a mesa. Ficou olhando para o chão, controlando-se, pois estava de novo suando frio, tremendo dentro dos ossos, o seu corpo invadido pela sensação de fraqueza, a terrível depressão e desesperança. Teve uma vontade súbita e terrível de beber. Passou a mão úmida devagar pelo rosto. Tony e Dolores o observavam aflitos, com um pressentimento, mas DeWitt comia um bolinho. Allan estava convencido de que o seu caçula o andara observando por muito tempo e que estava escarnecendo dele.
— Uma carta muito boa — disse Allan, sem expressão. Ele tinha de beber alguma coisa, e imediatamente. Ele nunca bebia na presença dos filhos; achava que Tony e Dolores ignoravam seu vício, mas estava convencido de que, por mais cuidado que tivesse, DeWitt sabia. — Uma carta muito boa — repetiu. Ele se levantou e Tim, muito alarmado, viu o suor na testa do filho. — Posso falar com o senhor a sós, por um momento, pai? — pediu Allan e, sem esperar resposta, saiu da cozinha para uma saleta, onde o anoitecer precoce, luminoso e azul, já estava penetrando nos cantos.
Sozinho por uns momentos, ele olhou em volta, para a mesa redonda que o pai fizera, para os móveis estofados de crina encerados com um brilho suave, para a pequena lareira preparada com lenha de macieira, para as toscas gravuras sacras nas paredes com estampados de flores berrantes, para os lampiões de querosene. Através das janelas, caprichosamente cobertas com as cortinas de renda da mãe, ele via os campos amadurecidos, a primeira mancha rubra no céu sobre as montanhas mais escuras. Agora o silêncio era suavemente rompido pelos
cantos dos pássaros, o movimento de uma brisa fresca contra as venezianas, o cacarejar das galinhas, o mugido da vaca voltando para seu estábulo.
Tim entrou na sala, com uma garrafa num guardanapo e um copo. Ficou parado um instante e ele e o filho se contemplaram, sem falar. Depois, Tim colocou o copo numa mesa e abriu a garrafa. O uísque âmbar caiu no copo, com barulho, e Tim não controlou sua mão. Ainda sem falar nada, ele estendeu a bebida ao filho. Allan pegou-a, os dedos tão ávidos que quase deixou cair o copo. Levou-o aos lábios e bebeu tudo de uma vez, sem parar nem para respirar. Tim o observou, a fisionomia carregada de pesar e compreensão.
Tim levantou a garrafa, indagando, quando Allan olhou para o copo vazio.
— Mais um? — murmurou.
Allan hesitou. Um rubor forte invadiu seu rosto, fixando-se nas faces cavadas. Mas por fim ele estendeu o copo, sem dizer nada, e Tim tornou a enchê-lo. Desta vez, de pé no meio da saleta, Allan bebeu mais devagar, agradecido, o olhar desviado do pai.
— Eu sempre bebo alguma coisa nessa hora — disse Allan. — isso... me anima, quando estou cansado. — Ele parou. Tim não disse nada. — O senhor nem sabe como fico cansado — continuou Allan. — Tanta responsabilidade... — Ele olhou furtivamente para o pai. — O senhor não vai beber comigo?
— Claro que vou — disse Tim, a voz lenta e velha de dor. Ele voltou à cozinha e trouxe outro copo. — O homem não deve beber sozinho. É um sinal de desespero e o desespero é um dos pecados mortais. — Ele colocou seu corpo baixo numa cadeira dura e sua barriga se expandiu. Os olhos azuis estavam fortes e vivos, nas sombras. — Não vai se sentar comigo?
Allan sentou-se no sofazinho estofado de crina, que o espetou através da roupa. Mas o tremor parara. O espasmo passara em seu estômago e o cérebro não estava mais em fogo. A depressão começara a passar. Ele então passou a bebericar aos pouquinhos, a fim de prolongar aquela sensação; bebia como quem bebe um analgésico. Aos poucos, de um em um, seus músculos retesados se descontraíram e a dor no pescoço e ombros se suavizou, passando de todo.
Encabulado, ele disse, procurando adotar um tom displicente:
— 0 senhor nunca tinha uísque em casa, pai, a não ser no Natal. Não está dando para beber?
Tim girou o copo na mão e respondeu, em voz baixa:
— Não. Mas sabia que você viria e sabia que gostaria de beber.
Allan começou a rir um pouco. Tim não olhou para ele. O silêncio reinou de novo na sala, como uma presença observadora. Eles ouviam as crianças conversando com Mary na cozinha. Até mesmo DeWitt estava falando, perguntando alguma coisa, e a voz de Mary, tênue e delicada, respondeu. De repente, Allan parou de rir e colocou o copo na mesa.
Depois disse, muito baixinho, repetidamente:
— Ah, meu Deus! Ah, meu Deus, meu Deus, meu Deus!
As crianças falaram pouco na volta para casa, no crepúsculo roxo e vermelho. Os gêmeos pareciam desusadamente pensativos e perceptivos, em sua atitude para com o pai, enquanto a vitória rolava pela paisagem que se apagava. Dolores ficou de mãos dadas com Allan. Depois, DeWitt disse:
— Acho que não gosto daquele lugar.
Allan não o ouviu e só o olhar severo de Tony fez o menino calar-se.
Eles estavam quase chegando a Portersville quando Tony falou:
— O vovô me disse que o senhor tem uma linda voz, papai. Disse que o senhor cantava como um anjo e quando falava todos escutavam. Nunca ouvi o senhor cantar. Ele disse que o senhor conhecia velhas canções irlandesas, que contam histórias.
— Hem? — disse Allan, voltando os olhos opacos para o filho. — Ah, é. Eu cantava quando era mocinho. Quando a gente envelhece, vai tendo cada vez menos coisas que dêem vontade de cantar e depois a gente pára de tudo. Pouco antes de morrer, a gente emudece.
Já era tarde, quando chegaram em casa. Allan subiu a escada pesadamente, indo para o quarto da mulher. Cornélia estava sentada diante da penteadeira de cristal, com dourados e prateados, suavemente iluminada. Havia lâmpadas nas mesinhas francesas, iluminando o tapete dourado claro, as paredes brancas e o teto branco esculpido. A espreguiçadeira de Cornélia, com muitas almofadas de coral empilhadas, mostrava onde ela havia descansado de tarde: ao lado havia uma pilha de papéis, com sua pasta especial. As janelas estavam abertas para o caos de montanhas e rio, que escureciam. Ela virou a cabeça e sorriu para Allan, amavelmente, quando ele entrou.
— Chegou tarde não é, querido? Tomaram chá com os Peale ou os Purcell?
— Nenhum dos dois, não fomos lá. — Allan sentou-se numa das cadeiras de veludo dourado, o corpo caído. Cornélia o examinou atentamente. Ela falou depressa, pois alguma coisa a tinha sobressaltado e preocupado.
— Allan, aonde você levou as crianças?
Ele contou, falando como que para si. Ela escutou o relato breve e sem vida, sem interromper. Devagar, afinal, ela começou a sorrir, os olhos redondos, alegres, a boca abrindo-se sobre os dentes reluzentes como se o que estivesse ouvindo fosse ao mesmo tempo infantil e ridículo.
Ele levantou a cabeça ao terminar e quando ela viu-lhe o rosto ficou séria. Permaneceu sentada no seu banquinho de cetim rosa, o roupão lilás deixando descobertos o pescoço, ombros e braços perfeitos. Seu peito, meio exposto, tinha um brilho perolado à luz do lampião e o cabelo ruivo solto, que lhe caía até os quadris, lhe dava um aspecto espalhafatoso, que no entanto era impressionante e magnético.
Ela disse, a voz leve e implicante:
— Bem, foi uma mudança para as crianças, não foi?
Ele ficou meio espantado:
— Você não se importa?
— Deus do céu, Allan! Por que haveria de me importar?
A essa altura ele já conhecia muito bem a democracia espúria da mulher, de modo que ficou ainda mais espantado ao ver que ela estava sendo completamente sincera na sua exclamação.
— Serei uma esnobe igual a Pat Peale, ou uma aristocrata pálida como a minha mãe, ou igual a Laura, que leva cestas de Natal e roupas para os pobres? Ou uma idiota dura e risonha como a Estelle? — A voz dela estava realmente impaciente. — Sei de tudo sobre os meus antepassados, os DeWitt. Acho que eram uma raça mais forte do que os Fielding, da minha mãe. Viveram. Imagino que os seus pais também vivam. Já não é sem tempo que as crianças aprendam que há alguma coisa mais no mundo, além de “sangue”, como diz Estelle. Sangue!
Ele se levantou e foi para junto de Cornélia, pondo a mão no ombro da esposa; ela olhou para ele com sua expressão costumeira de zombaria e um amor profundo. Depois de um instante, ela virou a cabeça e beijou as costas da mão dele, de leve. Depois empurrou-o, de bom humor.
— Que idiota você é, meu anjo. Acho que, a seu modo, você também é esnobe, como aquele horroroso Pat. Eu, pessoalmente, não daria um centavo para caridade, nem o meu coração chora pelos benditos pobres, nem fico horrorizada com a ideia de desempregados, nem jamais visitaria um orfanato ou abrigo de pobres, ou daria um trapo para cobrir a nudez de um mendigo. Cada um por si. Essa é uma lei mais antiga do que a caridade covarde. Mas, meu Deus, o que é que há de errado se seus filhos vão visitar os avós, que sem dúvida são respeitáveis e decentes? 0 seu pai foi maquinista: poderia inspirar em Tony algum interesse pelo que um dia desses será dele.
Ele passou os braços pelos ombros grandes de Cornélia e puxou sua cabeça para o peito. Afagou o cabelo grosso e vivo.
— Você me deixa envergonhado — disse. — Acho que é uma pessoa mais digna do que eu.
Ela tornou a afastá-lo e riu na cara dele.
— Ah, não sou, não! Não sou sentimental.
0 rosto de Cornélia brilhava e reluzia, com sua troça, e ele tornou a perceber aquela cautela intrigante brilhando nos olhos da mulher, aquele lampejo de escárnio. Mas ela disse apenas:
— Estou achando que o seu pai lhe deu uma bebida. Imagino que as crianças não tenham percebido: não notariam, com o cheiro delicioso de suas pastilhas de menta. Um dia desses mude para outro sabor, meu filho.
Ele se afastou, humilhado e enjoado. Ela o espiou pelo espelho. Allan começou a andar pelo quarto, na sua vergonha muda e indefesa. Parou junto da espreguiçadeira e pegou alguns dos papéis bem arrumados. Relatórios e ações, relatórios trimestrais, relatórios de dividendos, normas... ele os deixou cair e os papéis esvoaçaram de suas mãos como folhas secas e velhas. “Secas e empoeiradas”, pensou ele, de repente. “Estou cheio de pó. Todas as gretas de minha vida peneiram um pó cinzento. Durmo com areia no meu travesseiro; o ar que respiro é cinza. Meus passos estalam na velha argamassa caída dos tijolos de minhas esperanças.” Ele disse, sem firmeza:
— Tenho vergonha, mas preciso beber alguma coisa. Não, não posso passar sem isso. Ajude-me a...
— A quê? — perguntou Cornélia, baixinho, quando ele hesitou. Ela se levantou e foi para junto dele, puxando-o para si, com força, mas os braços dele pendiam dos lados do corpo. — Allan — disse ela, insistente —, eu te amo. Você e papai são tudo o que tenho. O meu amor não basta? O seu trabalho não basta? A sua posição e tudo o que realizou e o que faz não bastam?
Allan sentiu o calor daqueles braços grandes, mas eles não o confortaram. Ele olhou nos olhos da esposa e sentiu-se aflito demais para se comover, pois estavam cheios de lágrimas.
— Sei que você me ama, minha querida — disse.
— Mas isso não basta, Allan? — Ela deixou cair os braços e contemplou-o com uma consternação profunda. — O que é que você quer?
Ele estava com uma cara de muito doente, com sombras claras sob as maçãs do rosto salientes, as pálpebras pesadas e a boca angustiada. Ele pensou na pergunta da mulher e sacudiu a cabeça, vezes e mais vezes.
— Não sei, Cornélia. Quero um sentido em minha vida, talvez. Sabe, quando entrei para a companhia do seu pai, o império já estava feito, consolidado. Só o que se pode fazer agora é uma expansão monótona, mais melhoramentos, mais dinheiro empilhado. O seu pai... ele tem uma espécie de esplendor, pois foi um entrepreneur quando era mais jovem. Construiu a ferrovia, que só posso ajudá-lo a conservar. Tem recordações cheias de emoção: batalhou em pé de igualdade com gigantes. Não sou o tipo de homem que ele é. Não tenho o amor pela vida que ele tem. Antes eu pensava que o poder bastava. Então, não sabia que nunca seria o suficiente para mim, mesmo se, e quando, eu for presidente da companhia.
Ela então ficou assustada como raramente se assustava. Repetiu, com um traço de medo na voz forte:
— O que você quer?
Ele virou-se para longe dela e sussurrou:
— Não sei. Deus me ajude, eu não sei.
Ele se deu conta de que ela estava calada, não com o seu silêncio de costume, vibrante, mas com uma espécie de quietude. O gongo do jantar tocou como uma melodia abafada pela casa e eles não se moveram. Ele foi para a janela e se encostou nela e viu o crescente branco da lua ali, como uma espada erguida na montanha negra abaixo.
— Perdão — murmurou, infeliz. Ele olhou para a mulher e viu que o colorido forte tinha desaparecido de sua face e as feições tinham um ar puxado. — Cornélia, o que é que você quer? Conte, quem sabe pode me ajudar.
— Eu quero o que tenho. — Ela parou um instante. — Acho quase todas as horas maravilhosas e estimulantes, nunca me deixo aborrecer. A vida é o suficiente para mim.
Ele escutou com assombro, como que a uma filosofia surpreendente que nunca compreendería, o que o deixou espantado. Pensou no que a mulher dissera e depois sacudiu a cabeça, pasmo.
— Estou ouvindo, mas não sinto a menor reação a isso, Cornélia. Acho que nunca apreciei a vida. Nada me empolga, nada é uma aventura. — Ele passou longos minutos sem falar e depois disse, num tom baixo: — A vida não é suficiente para mim.
Era o que eu temia — disse ela e então sua voz soou plena e dura no quarto. — Desconfiei disso, nesses últimos anos. E meu pai também. Sabe, de certo modo somos gente simples e não complexa, como você.
Cornélia agora estava rindo e o riso não era compreensivo.
— Diabos, Allan, tire esse raio de blazere vista-se para o jantar. Sabe, afinal de contas, a gente tem de comer.
PARTE TRÊS 36
Cornélia escreveu a seu filho Rufus Anthony em março de 1906: “Estamos todos bem e a Riviera tem estado desusadamente quente e agradável, o que tem feito muito bem ao seu avô. Ele já se restabeleceu quase inteiramente da pneumonia que pegou em Paris. Agradece os seus telegramas um tanto frenéticos, meu bem, mas na verdade não era preciso: ele nunca esteve em perigo grave. Claro, ele já está com setenta anos e a gente deve ter cuidado. Espera estar conosco em Groton, quando você se formar nesta primavera. Aliás, temos poucas notícias de DeWitt, mas, como ele está aí com você, imagino que esteja bem de saúde.
“Jon e Norman estão passando duas ou três semanas aqui em nosso château, ou melhor, devo dizer que estão passando um tempo com a mãe deles. Ela diz que está muito exausta com essa doença de seu avô, mas ontem à noite tivemos um sarau muito importante. Jon convidou uma porção de seus amigos esquisitos de Paris, jovens pintores americanos, todos sustentados pelos pais indulgentes dos Estados Unidos, e pintou franceses sustentados pelos jovens americanos. Os amigos dele são avant-garde, diz ele, e não sei o que isso quer dizer. Se significa fazer borrões, fazer pose, deixar o cabelo comprido e maltratado, discutir pontos de vista esquisitos em política, detestar todo mundo, especialmente os que têm dinheiro (inclusive os pais que os sustentam), e escarnecer dos grandes pintores do passado, então esses jovens cavalheiros são realmente ‘avançados’. E talvez seja ‘moderno’ da parte deles não gostar de moças, preferindo a companhia uns dos outros. Acredito que esse seja um assunto sobre o qual as pessoas bem-educadas não falam, nem escrevem: a gente simplesmente o ignora e finge que não existe. Bom.
“O Norman não fez as pazes com Jon, desde aquela briga antiga. Ele está cada vez mais o filhinho mimado da vovó Estelle. Parece mais feliz depois que Jon se dedicou à ‘arte’ e passa menos tempo com a mãe. Jon está com vinte e sete anos, tem aversão por mulheres; Norman tem vinte e cinco e sente aversão por todos menos a vovó Estelle. Está aqui de passagem um grande médico alemão, o dr. Sigmund Freud, que já escreveu vários livros de peso sobre as mentalidades estranhas. Provoquei uma briga furiosa com a vovó Estelle ao sugerir que os filhos dela o procurassem, para se tratar. Ela agora se queixa ao seu avô de que espalhei o boato de que os filhos dela são ‘loucos’. Isso não é verdade: meus pensamentos particulares são só meus. Quanto mais a gente conhece a vida, mais divertida ela se torna; por vezes, é de gargalhar.
“Sinto muito que você continue a não gostar do Miles, que está na sua turma. Afinal, ele é seu primo em segundo grau e você gosta de sua tia Laura. Miles sempre me pareceu um menino especialmente intelectual e realista e eu tinha esperanças de que ele tivesse boa influência sobre você, meu bem, pois há momentos em que você entra em devaneio, sonhos sem substância. Você não fala em Fielding, mas, claro, vocês rapazes desprezam os que estão em turmas inferiores. Fala da afeição de Mary Peale por você e parecia aborrecido na sua última carta. Bem, a menina só tem catorze anos, não é? E é muito bonitinha também. Vocês são ambos muito jovens, mas ainda espero que você e Mary cheguem a um ‘entendimento’, como dizíamos no meu tempo. Possivelmente dentro de uns três ou quatro anos.
“Fiquei bastante surpreendida ao saber por sua carta discreta que está desiludido com seu tio Pat, de quem antes gostava tanto. Francamente, não o
censurei por isso. Eu me ri. Conheço bem Patrick Peale e ele se tornou mais difícil com os anos. Mas você ainda gosta da tia Laura e fico contente com isso.
“Sentimos saber que vovô Purcell não melhorou do derrame, no último Natal. Mas, afinal, ele já está com seus setenta anos, e a gente tem de esperar essas coisas. Você sempre fica muito sentido sobre muita coisa.
“Sei que sente falta de Dolores, mas ela está indo muito bem no colégio na Suíça. Nós a vimos há uma semana, quando veio passar uns dias aqui. Naturalmente, está muito aflita por sua causa. Como ela está com dezessete anos, ando procurando seriamente um bom marido para ela, de preferência com um título de nobreza. Sei que você vai ficar zangado, mas estou cada vez mais convencida de que, devido ao jeito dela, de solteirona encabulada, ela vai nos custar muito dinheiro para se casar.
“Concordo com você que ela tem certa beleza, mas os nobres europeus querem algo mais do que isso, de preferência dólares americanos. Quando ela esteve aqui, tivemos um hóspede, lorde Gibson-Hamilton, que é parente distante do rei Eduardo. Um rapaz com cara de ave, sem queixo e um narigão, e um sotaque feminino de Oxford, mas um bom partido, com um castelo na Escócia, outro perto de Windsor, stands de tiro, um brasão imenso, antepassados ilustres, nobres e reais às toneladas, e um cargo honorário na corte. Também tem antepassados em abundância sob o piso da Abadia de Westminster. Escreve poesias, mas isso pode ser desculpado. Dolores não gosta dele e seu pai se opõe tenazmente a ele. São pequenas dificuldades a serem resolvidas e eu nunca deixei que as dificuldades me atrapalhassem.
“E isso me leva ao seu pai, por quem estou bastante aflita. Não, não está doente, nem tem sintomas de outro esgotamento, se bem que esteja bebendo tanto quanto sempre, se não mais. Ele sempre foi temperamental, você sabe; está ficando mais ainda. Dá longos passeios a pé. Quando não está caminhando, fica sentado no quarto dele, que dá para o mar, lendo sem parar. Não posso imaginar o que ele acha de tão absorvente nos livros, pois são todos de estrangeiros esquisitos com nomes como Hegel, Kautsky, Marx e Engels. Jon tem uma biblioteca semelhante, o que é compreensível, sendo ele o que é. Mas por que o seu pai há de ler sobre essas criaturas é coisa que não entendo.
“Por vezes o jantar se torna intolerável: ele e Jon muitas vezes se metem nas discussões mais obscuras, que, confesso, me irritam, Jon alega que esses escritores são ‘Messias’ e olha para o seu pai de um modo muito sinistro, como se o seu pai fosse responsável por uma coisa que Hegel e companhia parecem denunciar interminavelmente em seus livros. Um dia ele chamou o seu pai de ‘vítima de superstição, produto de séculos de opressão’. Seu pai jogou vinho nele, não na tradição cavalheiresca de um simples cálice, mas uma garrafa inteira! Eu quase morri de rir: foi mesmo muito engraçado e fiquei feliz porque o Jon, em consequência, ganhou um enorme galo vermelho na testa. Vovó Estelle ficou histérica.
“Seu pai às vezes invade o apartamento do seu avô, armado com os livros, e começa a discursar usando frequentemente a palavra ‘perigo’. Felizmente, o vovô tem senso de humor.
“Estou lhe escrevendo uma carta comprida porque detesto escrever cartas, e esta compensa as muitas semanas em que você não teve notícias minhas. E vai ter o que basta, até voltarmos para os Estados Unidos a tempo de sua formatura. Agora tenho de voltar às pilhas de papéis de negócios que acabaram de chegar.”
“O homem adota uma filosofia adequada a sua própria personalidade e
necessidades”, pensou Allan Marshall. “Ora, o que, em nome de Deus, gerou essas filosofias e essas personalidades, nos últimos cinquenta anos, aproximadamente? As bandeiras vermelhas da advertência voam de cada página desses livros, mas aqueles que deviam ficar apavorados me sorriem com uma maravilhosa complacência e bocejam. Se e quando a aurora sangrenta surgir sobre suas grandes mansões, já será tarde. Então, já poderei estar morto. Por que hei de me preocupar? Talvez porque eu seja irlandês e deteste acima de tudo a escravidão e a servidão. Rufus chama a isso de ‘abstrações’ e, quando lhe leio certas páginas nesses livros, ele me olha como se eu fosse não só divertido, mas também mais do que um pouco louco.
Ele não parece entender que uma fogueira acendida em algum lugar da Europa poderá devorar o mundo inteiro. Este não é mais um planeta insular e o contágio se espalha pelo fio, pelo movimento dos povos."
Ele sentou-se reto na cadeira e de repente lembrou-se do que Rufus DeWitt dissera ainda naquele dia, com um sorriso confortável e indulgente:
— Meu caro rapaz... e você ainda me parece apenas um rapaz... tenho certeza de que, se alguma dessas filosofias algum dia dominar o mundo, como você parece acreditar, nós, como gente muito rica e poderosa, poderiamos fazer uma composição com seus proponentes. Sempre fizemos isso, em toda a história do mundo. Lembra-se do que disse Frederico, o Grande? “Tomo o que quero. Sempre haverá muitos professores para me justificarem.” E sempre haverá muitos loucos gananciosos, em qualquer tipo de governo, que nos protejam... se lhes enchermos os bolsos o suficiente.
Allan exclamara:
— Mas e os que não são tão poderosos nem ricos? E o mundo de homens que poderiam ser governados por demônios?
Rufus não respondera logo. Limitara-se a apertar os olhos castanhos ainda vivos, contemplando o genro num silêncio muito estranho. Depois, levantara o cálice de vinho do Porto que tomava de tarde, bebericando, pensativo. Por fim dissera:
— Você mudou bastante, Allan, nesses últimos dez anos. Não me queixo do seu trabalho, nem de suas magníficas contribuições para a companhia. Lembre-se do que acaba de dizer: “E o mundo dos homens” etc. Houve um tempo em que você, pessoalmente, não teria ligado. Não explique: as explicações são aborrecidas e nunca contam a história toda, em todo caso. — Ele tornara a tomar um gole e novamente lançara um olhar curioso e prolongado a Allan. — Você não conheceu meu irmão, que morreu quando você ainda era rapazinho. Mas, de algum modo perturbador, você me faz lembrar dele. Meu irmão Steve foi um homem muito bom. — Rufus se rira com vontade. — Espero que não se torne um “bom homem", também. Receio que, na minha idade, eu achasse isso demais.
— Não seremos poupados. Nunca poderemos chegar a um acordo com esses loucos — respondera Allan, inflexível. — Pois, sabe, isso com eles é uma espécie de religião e não há nada que abale o homem em sua religião.
Rufus fechara os olhos, fingindo-se cansado.
— Admitindo algumas de suas premissas, o que esses estrangeiros têm a ver com os Estados Unidos?
Allan se levantara e dissera, lentamente:
— Muita coisa. Seu filho é discípulo deles, seu filho Jon. E há milhares de
jovens americanos, tal e qual ele, absorvendo esse veneno na Europa e levando-o para casa.
Rufus abrira os olhos e olhara para Allan, sem poder acreditar. — O senhor nunca lhe ensinou religião — continuara Allan, com amargura. — Nunca lhe ensinou a ter respeito pela pátria, mas apenas respeito pelo dinheiro, o qual, nunca tendo precisado, ele despreza. O homem precisa ter certa religião...
— E qual é a sua? — perguntara Rufus, com a voz mais suave.
Allan, porém, não dera resposta e saíra da sala. Ao fechar a porta, ouvira as risadas de Rufus.
O château dos DeWitt, no vasto passeio dominando o mar em Cannes, estava situado entre dois imensos hotéis e era rodeado de jardins exóticos, palmeiras e gramados verdejantes, os muros do jardim cheios do lilás fresco das glicínias. Quanto à arquitetura, era uma mistura feliz de espanhol e francês; as gelosias protegendo as sacadas do sol o telhado de telhas vermelhas, brilhante como uma rosa. Todos os pisos eram de azulejos coloridos: amarelo, rosa-claro, azul ou verde-claro, com desenhos complicados e cobertos, aqui e ali, por pequenos tapetes persas. Uma escadaria de pedra e mármore branco, de bem uns três metros e meio de largura, subia numa curva maciça do hall circular para os três andares superiores.
A mansão pertencera originariamente a um príncipe italiano, de modo que os móveis, escuros e pesados, brilhavam com incrustações verdes e dourado velho, em desenhos complicados, contra paredes de mármore sobre as quais estavam pendurados brasões e escudos esmaltados e belos quadros a óleo e tapeçarias.
Para Allan, o efeito geral era singularmente opressivo, a despeito dos raios de sol, finos, porém fortes, que entravam pelas janelas pontudas, de meio-dia ao crespúsculo. As propriedades não mais o impressionavam: havia dias em que a simples ideia da imensidão das mansões DeWitt lhe davam uma sensação esmagadora, com exceção da casa de Portersville. A vastidão das propriedades dos DeWitt tinha o efeito de desorientar sua mente, de modo que havia ocasiões em que seu crânio parecia vazio e a solidão lhe invadia os próprios ossos. Por vezes, num desespero grande, mas amorfo, ele dizia consigo: “Cheguei ao fim”. Ele nunca tinha muita certeza do que queria dizer com isso.
Se bem que toda a família caminhasse horas na alegre calçada diante do château, todas as tardes, ele raramente acompanhava algum dos membros. Por vezes se desculpava, dizendo que não podia suportar ver os ingleses de cara vermelha, sedentos de sol, dando suas caminhadas, de guarda-chuvas bem enrolados, como que desconfiados do sol mediterrâneo. Cornélia o acusava, rindo, de ser um irlandês provinciano e intolerante, e ele permitia que ela acreditasse nisso. Era muito menos cansativo do que tentar lhe explicar que alguma coisa estava fervilhando no mundo, algo de terrível e devastador, que ele sentia com sua incrível intuição celta.
Um dia, ao jantar na mansão, ele cometera a ofensa imperdoável de insultar um convidado, um nobre inglês pesadão, que, estalando os lábios com o porto depois do jantar, falara sobre o crescente poder industrial do “império” e parara, amavelmente, para fazer uma menção elogiosa e condescendente aos Estados Unidos. Allan bêbado, como sempre, dera um murro na mesa e gritara:
— Acorde, seu imbecil! Por que não lê, em vez de falar? Não sabe que estamos à beira de guerras que nos destruirão a todos, se não começarmos a
trabalhar já?
Sem esperar resposta, ele subira correndo e trouxera alguns de seus livros, espalhando-os na mesa diante do convidado alarmado, espalhando cálices e talheres para todo canto.
— Está tudo aqui! — exclamara. — Devastação. Ruína. Escravidão. A derrubada dos governos constitucionais por meio de guerras cuidadosamente calculadas. Raios, por que não lê?
Allan repudiava o passeio, os jardins e a companhia humana devido ao seu desespero, seu medo crescente e o sofrimento desconhecido que o atormentava constantemente. Ele pendurava o manto negro de sua depressão sobre qualquer cabide insignificante. Com Rufus, trabalhava no acúmulo diário de papéis de negócios, que chegavam por quase todas as malas de correio. Ele não conseguia se livrar de seu último esgotamento, que ocorrera oito meses antes. Vivia num mundo cheio de pesadelos. Às vezes ficava pasmo diante das aparentes modificações em sua personalidade, ocorridas com os anos, e por vezes tinha uma ideia de que nunca houvera qualquer modificação e que sua alma fora imutável e fixa desde o nascimento e que somente a juventude e ambição tinham obscurecido, temporariamente, os verdadeiros impulsos e necessidades de seu espírito. Agora a juventude se fora: a ambição fora realizada, vezes e mais vezes, enormemente, e não restava nada senão... ele mesmo... e o álcool e sedativos que brevemente obscureceriam esse ser de sua percepção agoniada.
Se havia um lugar em Cannes que lhe dava prazer, era a sacada à frente das janelas de seu apartamento. Ao pôr-do-sol, ele enrolava as gelosias e ficava sentado à sombra solitária da sacada. Ele se esquecia do passeio a sua frente: esquecia-se da alegria frenética de Cannes, Juan-les-Pins, Nice, Antibes, Mônaco. Podia até esquecer-se de Allan Marshall.
Nesse dia, depois de sua mais recente conversa com Rufus, ele foi para a sacada e sentou-se numa poltrona de vime acolchoada. A exaustão o envolveu como uma doença desesperadora e suas mãos caíram sobre os braços da poltrona, os dedos arrastando nos azulejos do chão. Ele disse em voz alta:
— Derrota. Estou derrotado.
Sinos de igreja começaram a tanger por cima da montanha e do mar, não suaves e cativantes, para ele, mas sim um dobrar.
0 braço das montanhas a sua direita, formas borradas de um azul-cinza, se estendia por sobre as águas planas, que se apagavam. O coral desbotado do pôr-do-sol se espalhava como nuvem sobre o mar, destacando a sombra mercurial de um promontório à esquerda, misturando-a com o bege dourado, o branco, o rosa e o terracota das quintas empoleiradas em suas encostas.
Tudo estava num silêncio absoluto: a voz do mar estava muda. Então, enquanto Allan olhava, o sol baixo e metálico saiu de dentro das nuvens coloridas e um desenho fragmentado de cobre passou por cima da água mais clara para um horizonte vermelho, sem limites e frio. Ele ficou ali sentado, sem se mexer, percebendo vagamente os sinos de igreja que pareciam a articulação de sua própria angústia. Devagar, o sol caiu para a beirada do mundo, o caminho acobreado e inquieto foi extinto, o mar caiu na ausência de cor e sua voz surgiu com o ruído da inquietação. Os momentos se fundiam. Agora tudo era apenas uma pintura em cinzentos-prateados difusos, o mar uma cinza líquida, as montanhas peroladas e sem substância. No horizonte, uma única centelha vermelha tremeu por um ou dois instantes: um único raio vermelho tocou na
névoa. Depois, isso também se foi.
Allan não conseguia mexer-se, nem levantar os dedos dos azulejos frios. Passaram-se alguns instantes até que ele se desse conta de que alguém estava batendo à sua porta. Foi um terrível esforço físico para ele falar, respondendo. Foi um esforço maior ainda levantar-se e ir para sua saleta imponente, que estava ficando bem escura. Ele acendeu um fósforo e desajeitadamente acendeu uma arandela dourada, quando sua porta se abriu. Ele começou a tremer e suas roupas e seu corpo estavam pegajosos da umidade da noite.
— Então! — exclamou Cornélia, à porta. — Ainda não está vestido, Allan? Que coisa cansativa. Eu o vi sentado na sua sacada há quase uma hora, do jardim. Ficou sentado ali esse tempo todo?
— Esse tempo todo? — repetiu Allan, sem expressão. — Pensei que tinham sido só alguns minutos.
Cornélia disse, impaciente, escondendo sua ansiedade.
— Foi quase uma hora. Realmente, Allan, você devia estar se vestindo para o jantar no Saint Germaine. Onde é que está o Antoine, pelo amor de Deus?
— Eu disse que ele só viesse quando eu o chamasse.
Allan, que ainda não tinha feito cinquenta anos, foi até o cordão da campainha como um homem velho e fraco, e o puxou sem ânimo. Cornélia apertou os lábios, pegou a caixa de fósforos e acendeu depressa os lampiões, que logo inundaram o quarto com uma luz suave. Ela disse:
— E sentado ali no frio da tardinha, em mangas de camisa. Quer ficar doente de novo?
Ele não respondeu. Ficou ali no tapete persa, azul e vermelho, rodeado pela pesada mobília italiana policromada e dourada, passando as mãos pelo cabelo espesso e grisalho, descabelando-se. Estava muito magro e os ombros largos caíam, num cansaço crônico. Ele deixou cair as mãos, que ficaram penduradas ao lado do corpo, trêmulas e se torcendo.
— Desculpe — murmurou.
Seu rosto macilento reluzia como um crânio à luz do lampião. Ele tentou sorrir. Toda a ferocidade dos olhos negros tinha desaparecido anos antes, substituída por cinzas. Só o nariz ossudo e aquilino, agora grande, depois que ele emagrecera, ainda se salientava arrogante das minas de seu rosto. Parecia, pensou Cornélia, um marco esguio numa sepultura, mostrando que antes ali havia um homem. Por um instante seu corpo magnífico se encolheu com uma sensação de desespero que ela jamais havia sentido. Num farfalhar de seda e uma onda de perfume, ela foi até a escrivaninha italiana de Allan e pôs a mão numa pilha de papéis bem arrumados.
— Você tem tido um fardo muito pesado ultimamente, meu querido. Mas papai já está em condições de assumir grande parte. Eu me orgulho de você. Tudo isso, hoje! E quando devia estar se divertindo.
— Eu nunca me divirto. Nunca me diverti — disse Allan.
“Ele está de novo num daqueles estados”, pensou Cornélia, alarmada. Ela se forçou a sorrir com indulgência e se aproximou dele, a cabeça inclinada. Antes que pudesse falar, o camareiro francês entrou discretamente.
— Vá embora — disse Allan. — Volte daqui a cinco minutos.
Cornélia acintosamente levantou a tampa de seu relógio incrustado de pedras, que tinha no peito.
— Está bem, Antoine. Só cinco minutos. — disse ela, suspirando.
Ela ficou esperando, mas Allan permaneceu ali de pé, calado, esquecido dela, esfregando a cabeça, distraído, olhando para o chão. Aos trinta e nove anos, à luz suave do lampião, ela parecia não ter envelhecido. Estava com um vestido macio, creme, de seda velha e uma renda amarelo-claro, bem ajustado na cintura com uma faixa bordada com dourado, brilhantes amarelo-canário e pérolas opalescentes.
O tecido esvoaçava em volta de seu corpo magnífico como as roupas de uma deusa. Em seu pescoço reluziam brilhantes amarelos e pérolas e não havia uma ruga em sua superfície lisa. O cabelo ainda ruivo e vivo estava penteado acima da testa num pompadour cintilante, reluzindo aqui e ali com travessas e grampos de brilhantes. Emanava-se dela a vitalidade indomável que nunca podería ser sufocada pelo tempo, pois surgia de seu espírito.
Cornélia tinha no pulso um grande leque de plumas amarelas de avestruz e o levantou, distraída, abanando-se um instante, enquanto examinava Allan. A luz de gás junto da qual ela estava vacilou um instante e depois avivou-se, revelando vivamente o rosto dela. O rosto estava mais apertado, mais cinzelado do que em sua juventude, mais duro e astucioso, com linhas cínicas em volta da boca, que, nesses últimos anos, dependia mais da pintura do que do sangue para seu colorido, as faces bem pintadas mas faltando a redondeza original e a graça da cor natural. No entanto, nada podia extinguir o poder, a paixão leve e indomável de seu caráter, plenamente revelada nos olhos. Nada, senão a morte, jamais os abatería ou subjugaria, ou esgotaria deles seu brilho e força berrantes. Allan disse, como que consigo:
— Por que temos de sair?
— Não vamos ser desagradáveis, meu bem — respondeu Cornélia, num tom de persuasão.
— Você fala como se eu fosse uma criança — respondeu Allan, e a voz dele subiu num tom que ela temia. Ele olhou para ela e os olhos queimados se avivaram momentaneamente. Ele estendeu as mãos, pegou as mãos enluvadas da esposa e as segurou com força. — Cornélia, o que é você? Quem é? Conte-me!
“Ah, Deus”, pensou ela, agoniada. “Estará recomeçando?” Ela se forçou a responder com meiguice:
— Ora, querido, sou Cornélia DeWitt Marshall, sua mulher. Você já me perguntou isso tantas vezes.
Ele largou as mãos dela abruptamente.
— Mas você nunca me respondeu.
Ele sentou-se num dos monstros dourados e virou a cabeça. Cornélia já se acostumara com aquele tremor repentino em seu coração, que a aborrecia. Ela se ajoelhou diante da poltrona do marido e pôs a mão cheia de joias no braço da poltrona. Ela se forçou sorrir muito, lembrando-se do relógio batendo inexoravelmente em seu peito.
— Respondí: vezes e mais vezes. Mas você nunca escutou, meu bem. E aprofundando o assunto, e sendo um pouco metafísica, coisa que detesto, como é que alguém pode responder a essas perguntas, sem saber as respostas?
Ele escutou com muita atenção e olhou-a subitamente espantado. Depois de um instante, ele estendeu a mão, timidamente, e tocou no pescoço de Cornélia, dizendo:
— Cornélia, nunca soube que você tinha essas idéias, que você...
Seu sorriso fraco era patético, os olhos ansiosos, buscando. “Diabos, será que tenho de representar mais um papel, além de todos os outros que já assumi?” pensou Cornélia, com uma tristeza divertida. “Terei de ser ansiosa, significativa, espiritual, implicando todo tipo de tolices espirituais esquisitas?”
A despeito de sua impaciência e divertimento secreto, e porque o amava com uma força surpreendente, ela se obrigou a deixar pender a cabeça. Suspirou. Mordeu o lábio, teatralmente. Obrigou os ombros largos a se encolherem. Era a imagem de uma mulher bela e invencível, desfeita por um ataque a um espírito oculto e sensível, disfarçado sob as joias, o ruge, a seda e plumas.
— Sou muito altiva, meu bem — murmurou ela. — Nunca achei justo impor o estado de espírito da gente, bem como as incertezas e temores, a outra pessoa, especialmente a uma que se ame.
Ela estava repetindo, palavra por palavra, as frases de uma peça muito emotiva e espetacular que vira em Paris, mas que, felizmente, Allan não assistira.
As mãos de Allan agora estavam sobre os ombros dela, agarrando-a desesperadamente. Ela encolheu-se. Pensou: “Tenho de parar com essa tolice imediatamente, se não vou me expor a anos intermináveis de exame de consciência e estados de alma, comunhão de almas e outras coisas ridículas. E um dia desses não vou conseguir deixar de rir na cara dele, coitado”.
— Cornélia! — exclamou Allan. — Você entende mesmo! —
Ele passou a uma incoerência rápida, as palavras borbotando. — Todo esse tempo! Sabe, no princípio havia a ilusão, ou talvez a realidade. Eu tinha uma união com o trabalho: era uma coisa que minhas mãos podiam fazer, algo em que meus pés podiam pisar! Há uma história sobre o titã que tinha de se manter em contato com a terra, do contrário perdera sua força... sua existência. Contato. Está vendo? Agora é monstruoso. — Ele parou para tomar fôlego, engasgou-se e tossiu, ainda segurando-a. Ela sentia o pulsar do sangue dele, frenético, lutando, enquanto ele procurava se exprimir. — No princípio, era uma coisa que eu podia manejar, mesmo quando comecei a trabalhar. Mas agora não. Ela absorveu minha identidade. Se todos morréssemos amanhã, continuaria, como um monstro Frankestein de pesadelo, funcionando, rodando, fumegando, sem saber que estávamos mortos. Não somos necessários, seu pai, eu, ou qualquer pessoa.
Como Cornélia era inteligente e sagaz, tinha intuição do que o marido queria dizer e ficou pensativa, olhando para o rosto dele. Mas a sensação de poder nela só se estimulou e ficou exultante com as palavras dele. E ela também tinha suas desconfianças de que aquela não era toda a história da angústia dele.
Ela não precisava fingir, pois não estava mais achando graça. Aquilo era sério. Ela estava convencida de que uma ação sutil nesse momento poderia redundar em uma nova saúde mental para o marido, um alívio do horror que o estava esmagando e que só existia na imaginação dele.
Ela pegou o rosto de Allan entre suas palmas firmes e olhou bem nos olhos
dele.
— Eu disse que você era egoísta, meu bem, e repito. Você é egoísta. A maioria de nós não consegue se exprimir. Mas, por decência e consideração,
ficamos calados e procuramos tornar a vida agradável, para que ela possa ser tolerável para todos nós.
Ele enroscou os dedos nos pulsos dela e contemplou-a com um desespero tão cru e com um ar tão perdido que ela ficou chocada. Ela desviou o olhar, quase envergonhada. Os dedos apertaram mais seus pulsos e, quando ela tornou a olhar para ele, ficou ainda mais envergonhada. 0 rosto dele mudara: estava iluminado pela ternura e compaixão e algo que parecia alegria.
— Desculpe, querida — disse ele, como que controlando algum choro íntimo. — Fui insensível. Nunca a compreendí.
Ela disse depressa:
— Você pode me ajudar, e a si, não tornando a falar sobre isso. — Ela riu um pouco. — Temos outros a considerar também.
Ele baixou a cabeça e encostou a face na dela com um gesto ávido. Cornélia se esqueceu de tudo e o abraçou com força. Não se escarnece desnecessariamente do sofrimento de uma criança, por mais que continue o tique-taque maldito do relógio e por mais que esteja próxima a hora do jantar.
Cornélia se livrou do abraço de Allan e se levantou, sacudindo a seda e as rendas. Ele ficou sentado, olhando-a com tanta ternura que, para ela, a expressão dele era quase néscia.
— Você tem razão, Cornélia — disse ele e em sua voz havia uma nova firmeza. — Fui egoísta. Nem sabia.
A leveza, nesse “entendimento”, era então um toque necessário. Mas quando ela ia sorrindo, falando, o camareiro de Allan, homenzinho ligeiro, entrou no quarto às pressas, com um envelope amarelo na mão. Ele fez uma mesura para Cornélia e disse a Allan, excitado:
— Monsieur! Um cabograma! Dos Estados Unidos!
Allan pegou-o, intrigado. Cornélia disse:
— Negócios, com certeza. Não ligue para isso agora. Já estamos muito atrasados.
Mas Allan, as mãos não mais trêmulas, os músculos do rosto não mais contraindo-se, já estava rasgando o envelope.
— Mas negócio é negócio — disse ele, chegando a rir. — Um momento, Cornélia.
Displicente, ela se encostou nele, para ler. O cabograma era de Tony, filho deles. “Favor voltarem já para casa. Médicos aconselham. DeWitt com paralisia infantil. Está em Portersville comigo. Paralisado da perna direita, Muito mal. Beijos.”
Cornélia soltou uma exclamação. Seu primeiro pensamento foi: papai. Seu segundo: não vamos estar em Paris na primavera. Só quando Allan se levantou, o rosto pálido, é que se lembrou que era o filho dele que fora abatido, seu filho especial, antipático e impossível de conhecer. E foi mais tarde ainda que ela se lembrou que ele era também filho dela, talvez morrendo em Portersville.
Os sinos das vésperas havia muito tinham desaparecido no mar preto, mas Allan tornou a ouvi-los, um clangor, uma iminência, um ronco e um martelar em seus ouvidos. Não havia mais nada em seus ouvidos senão os sinos e através deles, penetrando-os, clamava uma voz angustiada: “Senhor, tem misericórdia de
nós... Cristo, tem misericórdia de nós... Cristo, tem misericórdia de nós... Senhor, tem misericórdia de nós...”
37
Cornélia tinha adquirido uma tolerância bem-humorada e respeito pelo mongezinho gordo, irmão do marido. Surpreendida e achando graça, ela viu que chegava a lhe fazer confidências quando passeavam a pé juntos nos crepúsculos cinza-esverdeados de abril, parando de vez em quando para admirar os botões dourados dos narcisos inclinados contra o frio vento de primavera, ou as estrelas vermelhas dos bordos destacando-se contra o céu esverdeado do pôr-do-sol. O Irmão Michael era uma pessoa tão “pitoresca”, sua cabeça mal chegando ao ombro dela. Ele era bom: compreensivo, calmo e por vezes brincava e a fazia rir. Mas, acima de tudo, ele emanava uma confiança calma e serenidade e um tipo de sabedoria que Cornélia apreciava.
Estelle podia reclamar, dizendo que os amigos deles achariam muito estranha a presença constante dele, e “realmente, nós nos esforçamos tanto para não deixar que os outros descobrissem as origens de Allan: tão papista, tão vulgar, tão inaceitável”. Cornélia gostava da companhia de Michael, e Rufus o convidava frequentemente. Havia, no pai e na filha, uma qualidade simples que reagia à mesma qualidade do mongezinho. Para assombro de Allan, havia até uma espécie de harmonia entre os três. Ele não compreendia.
Ao voltar da Europa, depois de doze dias de viagens infindáveis, de trem e de navio, a família encontrou Michael ajudando as enfermeiras que cuidavam do jovem DeWitt. Tony lhes informara, com simplicidade, que pedira ao tio que fosse para lá. Na confusão da chegada, as consultas a uma batelada de médicos de Nova Iorque e Baltimore, as idas e vindas de equipes de enfermeiras, ninguém pensara em perguntar a Tony por que ele mandara vir aquele monge sorridente, moreno, e por que Michael atendera.
A todos, menos Estelle, Jon e Norman, parecia bem natural que ele estivesse presente. Afinal de contas, ele também não era uma espécie de enfermeiro? Ele ia lá todos os dias, viajando numa aranha empoeirada, e só depois de alguns dias é que alguém se lembrou de mandar buscá-lo numa das carruagens da família, com dois cavalos negros, arreios de prata e um cocheiro.
Michael tinha de voltar para Dakota dentro de dois dias, informou ele a Cornélia naquela noite. Depois, tinha esperança de ser novamente enviado para o exterior. Ele falava com tranquilidade: sua vida e seu trabalho estavam à disposição de Deus. Cornélia parou para admirar um canteiro de narcisos, debruçando-se para olhar em seus corações frágeis e dourados. Ela disse:
— A única ocasião em que acho que há uma possibilidade de existir um Deus é na primavera. — Ela tocou de leve numa tulipa vermelha e continuou. — Uma ideia incômoda. Deus consegue arruinar a vida particular da gente, se o deixarmos entrar. E estou muito satisfeita com minha vida particular.
“Sim”, pensou Michael, “está, sim.” Ele reconheceu, com uma surpresa infeliz, que há mesmo gente no mundo que nunca sentiu a necessidade de Deus, ou lamentou a ausência Dele em suas vidas, ou sequer tinha noção da Sua presença.
— Bem — disse Cornélia, examinando um grupo de pés de lilases com hastes de botões fechados — é um grande alívio para todos nós que DeWitt esteja melhorando. Não preciso lhe dizer, Michael, que a última notícia, de que ele nunca mais poderá andar, foi muito triste, especialmente para o pai dele. DeWitt é um menino muito esquisito, mas é meu favorito, se bem que eu não fique tão emotiva quanto Allan em relação à deficiência dele. DeWitt sempre encontrará um meio de dominar seu mundo, mesmo de uma cadeira de rodas. — Ela sorriu para Michael. — Você me acha uma mãe desnaturada porque não ando por aí chorando e gemendo?
— Eu nunca julgo ninguém — respondeu Michael. — Não, você não é desnaturada, Cornélia. Você é apenas você mesma. No entanto, não concordo com os médicos. DeWitt tornará a andar, ou de muletas ou de bengala. Sinto muito que ele não goste de mim, mas, quando eu lhe disse hoje que ele andaria, respondeu que estava contente ao ver que havia alguém por aí com algum juízo.
Cornélia sorriu.
— Ele sempre foi um menino de muita força de vontade. Imagino — acrescentou ela, pensativa — que há sempre um lado bom, na pior desgraça. Um aforismo tolo, é o que sempre achei. Mas Allan se refez assombrosamente de seu último esgotamento nervoso, desde que DeWitt ficou doente e nós voltamos para casa. Eu não o compreendo.
Eles continuaram a andar. Michael ficou calado por tanto tempo que Cornélia já ia falar de outra coisa. Então Michael disse, em voz baixa:
— Allan é do tipo que fica melhor quando enfrenta as crises mais desesperadoras e quando está lutando contra alguma coisa concreta.
— Os negócios tomam muito tempo dele — disse Cornélia, hesitando. — Todos esses esgotamentos, quatro em dez anos, e todos terríveis! Eu nunca compreendí. Pensei que fosse excesso de trabalho. Mas em geral ocorriam muito depois de passada alguma crise.
Michael aguardou. Olhou para ela com os olhos castanhos, calmos, tão límpidos e sem reservas. Os pássaros estavam esvoaçando pelo céu que escurecia: seus cantos suaves e gorgolejos insistentes enchiam o silêncio da montanha. Então, ergueu-se da terra um aroma quase avassalador de vida apaixonada.
— Conte-me — disse Michael, quando Cornélia, com um gesto impaciente, já ia se afastando.
— Detesto a teatralidade, o emocionalismo, despir-me aos outros e pedir que o mundo olhe para essa nudez — disse ela. — É...
é quase obsceno. Isso me deixa muito desconfortável e fico constrangida
por...
— Por Allan — disse Michael, quando ela parou.
— Eu o amo, pode crer. E, embora não concordemos, eu o compreendo muito bem. Nós sabíamos de tudo um sobre o outro. Pensei que bastasse: por que não basta, pelo amor de Deus?
— Talvez porque o que Allan conseguiu não fosse seu verdadeiro objetivo — disse Michael.
Cornélia virou-se para ele, espantada, a saia de flanela cinzenta rodopiante em volta dela, o cabelo ruivo eriçando-se em sua cabeça como uma coroa em fogo. Depois, ela exclamou, veemente, zangada e rouca:
— Então, em nome de Deus, qual é o verdadeiro objetivo dele?
— Acho que ele não sabe qual é, conscientemente. Nem eu.
Cornélia ficou ali, destacando-se contra o céu, grande e vibrante, e Michael
viu a dureza insegura em seu rosto. Ela começou a bater com o pé na grama molhada. Depois, deu uma risada e sacudiu a cabeça.
— Há nove meses, quando ele esteve muito mal, o médico o dopou muito e ele não sabia onde estava, nem quem era. Começou a falar com o médico com a voz e as palavras de um menino. Disse “Vou ser padre, papai. Soube isso hoje de manhã, depois de minha primeira comunhão”. Michael, o que é que há? Eu disse alguma coisa...?
O tom moreno do rosto de Michael tinha passado a uma palidez luminosa.
— Por favor — pediu ele, a voz abafada. Ele se afastou um pouco e ficou ali de cabeça baixa. Depois de uns instantes, Cornélia se aproximou dele e disse, aflita, mas procurando parecer natural:
— Alguma coisa o fez mudar de ideia. As crianças têm idéias estranhas, mas as deixam de lado. Não há nada de dramático, há? Parece que, ao crescer, Allan resolveu ser outra coisa.
— Estou pensando em saber o que o teria levado a mudar de ideia: estou pensando no que lhe teria acontecido — disse Michael. Ele dobrou as mãos sobre a barriga no hábito negro e os nós dos dedos estavam brancos. Cornélia o observou atentamente.
Não havia uma aproximação com aquela mulher robusta e vital, no que lhe dizia respeito. Faltava-lhe a compreensão, a compreensão no sentido verdadeiro da palavra. Além disso, havia em Allan grande agonia que estaria sempre além da capacidade dela de apreender. Assim, ele escolheu uma explicação mais superficial, que fosse aceitável para ela e que contivesse alguma verdade.
— Digamos assim, Cornélia. A maior parte dos rapazes que alcança um sucesso súbito, um sucesso extraordinário, como Allan alcançou há anos, herdou os meios ou a posição para conseguir isso. Teve um ambiente de boas escolas, belos lares, dinheiro, lazer, outras diversões, interesses e prazeres. Uma vez conseguido um grande poder e posição, eles aceitam isso com naturalidade, pois não se trata de um verdadeiro esforço ou luta.
— Mas esses entrepreneurs, como Allan, não tinham nada em suas origens senão a pobreza, uma ambição e determinação quase satânicas e a sede do poder. Nada mais tinha interesse para eles: a sociedade elegante, a recreação, a companhia de pessoas seguras, as alegrias agradáveis da descontração, das viagens, o prazer de viver... isso tudo nunca figurara em suas vidas, e, quando essas coisas apareceram, eles não estavam sintonizados para aceitá-las e apreciá-las. Para esses homens, chegavam a ser uma perda de tempo irritante.
Michael parou e suspirou profundamente. — E quando alcançavam seu objetivo, só havia duas escolhas diante deles: conquistar mais poder ainda, um mundo sem fim, ou morrer de frustração quando, consciente ou inconscientemente, se davam conta de que não era nada disso que eles queriam, que isso não lhes dava prazer e que o mundo que tinham conquistado era desprovido de tudo. Eles tinham estreitado a sua existência: como um projétil, estavam apontados para um só alvo.
Ele continuou a andar e Cornélia o seguiu, levantando as saias por causa do orvalho frio.
— Não posso dar conselho algum a não ser a paciência, Cornélia. E bondade e amor. Se não consegue compreender, pelo menos finja que compreende. — Ele pensou se deveria falar com Cornélia a respeito de Tony, mas resolveu não fazê-
Io. Aquela mulher era resoluta e inexorável e Tony só tinha dezessete anos, possuindo um senso de dever quase anormal. Mas disse: — O Tony tem sido um grande consolo para meu pai, depois que minha mãe morreu, há dois anos. Ele sempre vai visitar o pai no verão e nas férias.
— Tony é um rapaz muito sério — disse Cornélia, distraída. Ela sabia que Michael lhe dissera coisas portentosas e sentia-se grata pela bondade dele. Mas estava mais impaciente do que nunca com Allan. Alguma coisa não lhe fora transmitida por aquele monge gorducho e brando, e ela desconfiava de que fora omitida por misericórdia. Isso a deixou aborrecida e humilhada.
— Resolví que vou começar a andar. Agora — disse DeWitt à mãe, num dia em fins de novembro, depois que a família voltou de Newport.
— Bom. Já não é sem tempo — disse Cornélia, ríspida.
Ela não acreditava em mimar os doentes: nunca entrara no quarto de DeWitt pelo motivo sentimental de consolá-lo, animá-lo ou diverti-lo. Ela continuou: — Tenho vindo a este quarto na esperança de ouvi-lo dizer quando vai andar. E, por falar nisso, não vou ajudá-lo.
DeWitt não ficou magoado com essas palavras. Estava sentado na cama em seu quarto grande e claro, dando para as montanhas, apoiado em muitos travesseiros. Diante de toda aquela brancura, seu rosto moreno, como um gnomo, as feições aguçadas e os olhos negros penetrantes, o crânio delicado e as mãos morenas se destacavam fortemente. Ele sofrerá quase insuportavelmente durante várias semanas, mas somente a pele esticada no rosto pequeno, a ruga funda e curta entre os olhos revelavam a dor que ele sentira, calado e ressentido. Cornélia, examinando-o com um sorriso simpático, pensou: “Ele nunca foi menino. Mesmo quando bebê, era um velho. Aos sessenta anos, vai parecer o mesmo que é hoje, aos quinze. Não tem idade”.
Como DeWitt era incapaz de amar alguém, no pleno sentido da palavra, não amava a mãe. Achava-a espalhafatosa, grande demais, grosseira e vulgar. Não obstante, sentia nela um poder que nunca poderia ser dominado ou derrubado facilmente. Ele sabia bem que era seu filho preferido, um favoritismo misturado não com um verdadeiro amor materno, mas com uma espécie de respeito por ele, por ser o que era. Eles se entendiam perfeitamente.
— Então? — disse Cornélia, alisando as coxas, cobertas de veludo roxo, com as mãos grandes e brancas. — Quando começa?
— Já — repetiu ele, com a voz baixa e sem expressão, uma de suas características. Ele levantou as colchas de seda e fixou os olhos velhos na mãe. Ela o contemplou com uma curiosidade calma e não fez qualquer movimento. A enfermeira tinha sido dispensada do quarto, estavam sós. Cornélia disse:
— Você sabe, claro, que essa perna está mirrada, mais curta e fraca, se bem que possa movê-la um pouco. Tem de dar o desconto disso.
Ele não respondeu, mas sorriu, o seu sorrisinho sombrio e desdenhoso.
— Não comece a ter pena de mim — disse.
— Deixe de ser bobo — disse Cornélia, sem rancor.
Ele abaixou a perna esquerda para a borda da cama: a direita acompanhou a outra, com um movimento fraco e espasmódico. Ele olhou para ela com ódio. Depois ficou ali, concentrando-se sobre seu membro miserável, Cornélia observando. O rapaz não se mexeu, mas, aos poucos, sua testa macilenta ficou úmida, a boca amarelada se apertou, as narinas magras se dilataram. Cornélia estava cheia de admiração e um pouco ofegante. A vontade estava em ação, q|uase visível. Ela se debruçou, sem falar.
Num silêncio total, DeWitt escorregou para o chão, as mãozinhas tensas agarrando o lado da cama. Um raio comprido de sol de inverno entrava pela janela larga, envolvendo o rapaz, batendo rubro nas dobras do camisolão branco, na face tensa, banhando-lhe as pernas. Depois, os pezinhos morenos estavam no chão, o direito enrugado, curvo. Toda a concentração de DeWitt estava voltada para ele, toda a sua vontade ordenando-o que o sustentasse. Passaramse uns instantes. Depois, quase imperceptivelmente, o pé se endireitou, de dobra em dobra. Sua palidez de morte ficou cheia de sangue vivo. O joelho se enrijeceu, de instante em instante. O suor na testa de DeWitt começou a escorrer por seu rosto, como lágrimas, juntando-se nos cantos da boca.
DeWitt então estava se empurrando para longe da cama com as mãos, centímetro a centímetro. Depois estava de pé, sem se apoiar. Cornélia prendeu a respiração. O filho estava ali de pé, balançando, lívido, as mãos cerradas e afastadas do corpo gasto, para se equilibrar. Cornélia disse, muito baixinho:
— Bom.
Ele levantou os olhos, tão insondáveis, e no entanto tão vazios, e olhou para ela. Cornélia sorriu.
Ele continuou a oscilar e estava com uma cor horrível. A boca estava tão apertada que os lábios desapareceram, deixando apenas uma fenda larga e apertada no rosto. Ele estava dando sua ordem seguinte e a perna tentava obedecer, freneticamente. Ele deu um passo curto, cambaleando, não com a perna esquerda forte, mas com a direita. Ele cambaleou, caiu de lado e se agarrou na cama. Empurrou-se para longe da cama e deu um passo à frente com o pé esquerdo. Isso lhe deu mais equilíbrio. Depois, passo a passo, mancando, dobrado para o lado, foi para o centro do quarto. Falou pela primeira vez.
— Vou precisar de uma bengala. A perna está muito curta.
O tom de voz dele era desinteressado, como se estivesse falando de outra
pessoa, e não de si.
— Seu avô tem uma dúzia ou mais — disse Cornélia. — Tem uma com castão de ouro, larga e curvada. Foi o velho sr. Regan quem deu a ele, há anos. Devia estar num estado de espírito sentimental quando mandou inscrever em latim: “Nem mesmo o inferno pode vencer a vontade humana”.
O rapaz ficou ali no meio do quarto, cambaleando, suando, a perna mirrada reta por baixo do camisolão. Embora DeWitt fosse baixo e tivesse todas as marcas de um sofrimento prolongado, o rosto magro, amarelado e contraído, insignificante, feio até, assim mesmo havia nele uma dignidade profunda. Ele disse:
— E, gostaria dessa bengala.
Ele sorriu para a mãe e ela retribuiu com um vasto sorriso.
DeWitt virou-se devagar e voltou para a cama. Deitou-se, mas sem se permitir cair exausto nos travesseiros. Enxugou o suor, dobrou o lenço com capricho e o colocou ao lado. Puxou as colchas para cima de si, arrumando-as com o mesmo cuidado que tivera com o lenço. Dominava o ambiente, em volta dele.
Então, como se não tivesse feito uma coisa quase milagrosa, perguntou:
— Como está passando o pai?
— Está ótimo — respondeu Cornélia. Ela foi para a janela e olhou para o negrume confuso das montanhas contra o céu vermelho. — Evidentemente, não suporta o que chama de “ócio”. De certo modo, Portersville é a base de operações dele: ele acha que está realmente trabalhando, quando está aqui. Como — acrescentou, lembrando-se de sua conversa com Allan, em março — um titã, que precisa tocar na terra para ter força. Talvez — e ela se virou e olhou para DeWitt, com curiosidade — nós também tenhamos as nossas fantasias.
— Funciona bem para nós — disse DeWitt, pegando um copo d’água e tomando um gole. Cornélia notou o pronome, com prazer, e ficou satisfeita. Ele nem notou a lisonja que fizera à mãe e meneou a cabeça para ela. — Por que é que a senhora o carrega pelo mundo afora? Deixe que ele fique aqui. O vovô está decaindo muito e... — ele parou e olhou de novo para a mãe — eu só tenho quinze anos.
Cornélia deu uma de suas gargalhadas ruidosas.
— Você se esquece de Tony — disse ela, zombando.
— Tony — repetiu DeWitt. Pegou o lenço dobrado e olhou para ele. Depois o largou delicadamente. — Não sabe do Tony? Não se interessa pela estrada. Ele algum dia vai aos pátios de manobras ou aceita convites do vovô para visitar nossos escritórios aqui, em
Filadélfia ou em Nova Iorque, como eu faço? Acho que ele está interessado em outra coisa. Enquanto eu estava... — ele parou para pensar em sua doença, com aversão e nojo — incapacitado, ele tinha longas conversas, passeando a pé com o nosso tio monge. Eu os via de minha janela e os ouvia murmurando lá embaixo, muito entretidos.
— O que é que você está querendo insinuar? — perguntou Cornélia.
— Acho que ele vem influenciando Tony há muito tempo, desde que se conheceram, há dez anos. Tony “converteu-se”, como se diz. Quando estávamos em Groton juntos, ele ia todos os domingos a uma igreja católica. Um dos caras me contou.
Cornélia ficou alarmada e desalentada.
— O que é que tem isso? Claro, seria ridículo... Não costumo me meter com a religião dos outros, e se um de meus filhos quiser ser budista, maometano ou católico romano, não é da minha conta, Em todo caso, o que tem isso a ver com a estrada e o interesse ou falta de interesse de Tony?
DeWitt permitiu-se encostar nos travesseiros.
— Na minha opinião, acho que Tony quer ser padre.
Cornélia soltou uma exclamação.
— Deixe de ser idiota, DeWitt!
Ela ficou ali de pé, magnífica e com suas formas voluptuosas envoltas no veludo roxo do vestido, o cabelo ruivo captando os últimos raios de sol. É colorida demais, pensou DeWitt, que era exi gente. Parece um quadro rosado de algum amador italiano que enlouqueceu com as tintas.
— Para que atrapalhar o Tony, mãe, se for isso que ele deseja? A senhora é sempre tão tolerante, sabe. — Ele olhou para ela, apertando os olhos. — Parece que tem muita gente boa que é católica, hoje em dia. Ou — e ele parou para
examinar a mãe — a senhora terá medo de algum tipo de transtorno com meu pai?
“Ora, monstrinho!”, pensou Cornélia. “Mete as mãos de macaco bem dentro das entranhas da gente e as arranca. Ele sabe demais.”
Ela disse:
— DeWitt, você andou dando uma animação hipócrita a Tony, para atingir seus próprios objetivos?
— Eu? — indagou ele, com desdém. — Eu sempre o admirei mais do que qualquer outra pessoa no mundo, mas o elogio não é retribuído. Já vi livros católicos no quarto dele, e, quando perguntei a respeito, Tony não quis responder. Por que a senhora não pergunta a ele, quando vier aqui para o Dia de Ação de Graças?
— Certamente que vou perguntar — respondeu Cornélia. Ela examinou o rapaz doente, e seu sorriso foi feio. — Você é um maquinador e tanto, hein, anjinho?
— Obrigado — disse DeWitt, com a maior seriedade. — É de família, não é? E já que estamos falando francamente, mãe, não acha que eu daria melhor do que o Tony, em todo caso?
Ela foi para a porta com um belo ondular de saias. Parou no limiar e virou a cabeça, por sobre o ombro. DeWitt estava sorrindo. Contra sua vontade, apesar de sua aflição e temores, ela não pôde deixar de sorrir também.
— Você hoje fez uma exibição e tanto e eu a admirei.
— O senhor sabe, papai, que só pode fumar um charuto por dia — disse Cornélia ao pai, sentada com ele no quarto, antes de jantar. É, Rufus estava se acabando: perdia peso quase visivelmente. Embrulhado numa colcha macia e vestido com um roupão de seda, ainda não se tinha preparado para descer, depois da sesta. Mas encostado ali na poltrona, fumando com prazer e cuidado, sua vitalidade parecia imortal. 0 cabelo branco ainda era espesso e parecia uma coroa em sua cabeça; os olhos brilhavam com uma juventude e virilidade douradas. Quando ele sorria, o sorriso ainda era maduro e cortês e não se notavam nele nenhum dos sintomas de enfermidade lenta da velhice, nenhum cansaço ou confusão de espírito, nenhuma dificuldade de memória ou reflexão.
Ele fez um gesto para a filha, com afeto.
— Não se preocupe com o charuto, meu bem. Um non sequitur, depois do que me acabou de contar sobre DeWitt. Tem algo de nós nele, aliado a outra coisa. É frio. Quase perverso. Não tem o prazer que nós sentimos em tramar e planejar. Falta-lhe a capacidade do prazer... não a mesma que falta a Allan, que se deve ao fato de ele nunca ter tido alegrias na infância, mas uma espécie de desprezo pela leviandade e alegria. — Rufus deu uma risada. — 0 Allan, se não me engano, desejava o poder para satisfazer alguma mágoa dentro de si, alguma vingança. Mas DeWitt o quer só como uma coisa em si. E há de consegui-lo, ouça o que digo.
Rufus deu uma longa baforada.
— É, há de consegui-lo. Conforta-me saber que terei continuidade nesse rapaz. Mas ele não é o meu favorito. Não é mais. É o Tony e quero que ele fique comigo até o dia de minha morte. Um rapaz maravilhoso. Agora, quanto a esse negócio de padres... Não acredito, Cornélia.
Cornélia abriu a cigarreira de pedrarias e tirou um cigarro. Bateuo nas costas da mão e debruçou-se para o pai acendê-lo.
— Notei alguma coisa distante em Tony, desta vez, algo reservado. E ele está ficando magro e pálido. Não quer nos magoar, mas está sendo atraído para alguma coisa.
O céu sobre as montanhas estava de um roxo forte, lanhado de amarelo e rosa brilhantes. Rufus o contemplou. Uma expressão estranha e distante instalou-se no rosto dele, uma espécie de transparência. Vendo aquilo, Cornélia assustou-se. Ela pôs a mão sobre a do pai: os dedos estavam frios. Ela se levantou, serviu dois copos de conhaque e deu um ao pai.
— Os médicos que se danem. 0 conhaque sempre foi o nosso remédio.
Rufus pegou o cálice com um sorriso ausente e começou a bebericar. Cornélia ficou esperando.
— Suponhamos que aconteça o pior e que Tony vá ser padre — disse Rufus. —Já estou muito velho para me preocupar com alguma reação de parte de nossos supostos amigos. Estou muito velho para dizer a alguém que é tolice se sentir atraído por alguma religião. Só lhe posso pedir que não me aborreça, fanaticamente, com suas convicções. Um padre na família até me diverte, de certo modo, só que não quero perder a companhia de Tony, se bem que ele nunca me deixaria até que...
— Não fale assim! — disse Cornélia, com a voz tão áspera que o pai olhou para ela.
— Bom — disse ele e seu tom era comovido. — É a natureza... Não vou falar a respeito, se a incomoda. Mas, minha querida, não é tanto o Tony que a preocupa. O que é?
Cornélia levantou-se abruptamente e ficou junto do fogo.
— Allan — disse ela, quase sem se fazer ouvir.
— Ele já foi católico, filha.
— Mas não é mais. Pensa que não é mais, porém tornou-se um caos tumultuoso de emoções e isso está ficando cada vez pior. Quando soubemos do DeWitt, em Cannes... — Ela parou e respirou fundo. — Não podemos nos livrar de nossa infância. Ela chega num tumulto, com tudo o que jamais nos aconteceu, sob tensão.
Li sobre isso num livro daquele médico chamado Freud e, embora tenha dado um desconto, fiquei impressionada com certas coisas a respeito de Allan... Graças a Deus, a minha infância foi bem parecida com o que a minha vida é agora e é tudo uma coisa só. Isso não se dá com o Allan.
— Sei — disse Rufus, muito quieto. Depois, como sempre, sentiu uma pontada de ciúmes. — Você ama muito o Allan.
38
Enquanto Laura Peale esperava que o marido respondesse, ela observava, e seus pensamentos, aflitos e melancólicos, ficaram rápidos e confusos. “Ele é quatro ou cinco anos mais velho do que
Allan, mas, de certo modo, parece muito mais jovem... cinquenta e dois anos, grisalho só nas têmporas, o cabelo ainda espesso, castanho e cacheado, o rosto enrugado e marcado; sim, mas as rugas exprimem tão pouco, como que postas ali por acaso... por que nunca vi isso antes? Parece um puritano sem idade, fanático, frustrado, e mais friamente feroz devido a sua frustração. Eu não devia estar pensando essas coisas... É por ser baixo que parece tão mais jovem do que... mas não, ele parece velho... estou tão confusa. Ele é um estranho para mim; sempre fomos estranhos. Algum dia òo amei? Sim, creio que sim. Mas há muito tempo que não o amo, muito tempo; ele não tem coração, de verdade; eu nunca soube disso. ”
Estavam sentados na biblioteca de Patrick, na casa de Mountain Heights, a alguns quilômetros da casa dos DeWitt. A casa fora mobiliada por Patrick; as sugestões de Laura tinham sido desprezadas. “Eu devia ter visto então que ele não tem respeito por ninguém, a não ser por si”, pensou Laura agora. “Acha que ele é o raro ser humano incapaz de errar. Um tirano. Dogmático. Nunca devia ter entrado para o Senado. Fico contente por ele ter sido derrotado da última vez. E, no entanto, tão inatacável, tão virtuoso. A casa se parece com ele; magra, fria, austera, com janelas que parecem repelir até o mais quente sol de verão ou calor da primavera; nunca me senti confortável aqui, a despeito das caldeiras e das lareiras. Sempre detestei esta casa, os móveis escuros e finos, as tapeçarias, as cortinas apagadas, os tapetes velhos e desbotados que nunca foram brilhantes, nem mesmo quando novos, os quadros escuros. Todos os corredores são estreitos e fantasmagóricos, cheios de ecos. Uma casa de fariseu; os espelhos parecem só conter a imagem dele.”
— Não é preciso ficar emotiva, meu bem — disse Patrick. Ele vestia um casaco de veludo vermelho e os pés elegantes estavam esticados para junto do fogo, naquele dia frio de novembro. Nuvens espectrais de neve cinzenta esvoaçavam contra as vidraças; a chaminé uivava ao vento e a montanha cinzenta erguia-se a distância no ar cinzento.
— Pensei estar discutindo isso tudo muito calmamente — disse Laura.
O belo cabelo negro formava uma sombra em sua face e pescoço. Ela olhou para o marido sem expressão e seus grandes olhos cinzentos estavam muito parados, as mãos dobradas pousadas sobre os joelhos. Patrick, observando-a à procura de sinais de “fraqueza” para poder recriminá-la, se remexeu na poltrona. Ele nunca teria confessado isso a Laura, mas ficava aborrecido com o fato de que ela parecia ter muito menos do que seus quarenta anos.
Patrick achava que a esposa tinha uma capacidade mental reduzida e emoções muito superficiais, a despeito da tendência ocasional para “histeria” por causa das coisas mais insignificantes. Ele sabia que, durante mais da metade de sua vida conjugal, a presença de Laura o deixara inquieto, que o modo curioso de ela “olhar para ele com o olhar vazio” era uma fonte de aborrecimento e que os silêncios da esposa após ele ter feito um ataque aos defeitos, estupidez, maldade, tramas, falta de integridade de vizinhos, parentes, amigos ou colegas, o irritavam.
— Você não acha que essa conversa é muito prematura? — perguntou ele. — Afinal de contas, o homem só foi enterrado há uma semana.
Os olhos de Laura ficaram ainda maiores e mais escuros.
— O homem, como você o chama, Patrick, era o meu querido tio Jim. Você nunca o apreciou, não é? Pensava que eu não soubesse, mas eu sempre soube.
— Eu não gostava da falta de moral dele, nem do seu oportunismo e falta de humanidade — disse Patrick, friamente. — Como você é emotiva, Laura. Lembro-me de muita coisa sobre Jim Purcell que você ignora. Não importa. Não vou fingir afetos que não sinto.
“Pedante, pomposo”, pensou Laura, permitindo-se a primeira amargura irrestrita contra o marido. De repente, ela sorriu.
— Você tem toda razão, Patrick, você nunca sente afetos.
“É bem dessa pobre criatura só perceber uma parte do que eu digo”, comentou Patrick consigo. Ele se endireitou na poltrona, como um mestre-escola. Começou a falar, mas Laura o interrompeu, baixinho:
— Antes você era tão diferente, Patrick. Eu me lembro. Eu o adorava, em criança. E como mocinha e jovem esposa. Mas alguma coisa o modificou.
As faces dele, tão magras, enrubesceram. Ele disse, com dignidade:
— Deixe de ser tão dispersiva, Laura. Estávamos falando sobre sua ideia absurda de convidar sua tia Lydia e Ruth para virem morar conosco. Seria impossível, por muitos motivos. Primeiro, por exemplo, que ela nem pensaria nisso.
— Podemos pelo menos sugerir, Patrick. — A voz de Laura continuava calma. — Acho que tia Lydia gostaria disso.
— Nunca faço convites que não sejam sinceros, Laura.
Ela não respondeu e ficou olhando para as mãos, contemplando-as.
— Além disso — acrescentou ele, irritado —, acho a Ruth repugnante. Está com vinte e sete anos e não se casou. O fato de ser manca não teria afugentado os candidatos, pois é rica. Uma herdeira. E agora tem bastante ações da companhia... — Ele parou e os músculos de seu rosto ficaram tensos. — Tem quatro por cento.
— E eu tenho dezesseis — disse Laura. Ele virou-se para ela. "Não”, pensou, “ela não tem a inteligência de fazer um comentário sutil.”
— Eu tenho cinco por cento — disse ele e esperou, mas ela não fez mais comentário algum. — Não é que eu me oponha a Ruth.
Uma moça encantadora, apesar de seu defeito. É estranho, não, que DeWitt tenha um defeito semelhante? A suscetibilidade deve ser de família. Se Miles tivesse vinte e sete anos, em vez de dezessete, eu até pensaria...
Laura disse, muito depressa:
— Então não devo fazer a sugestão à tia Lydia?
Laura estava pálida.
Patrick, pensativo, curvou o indicador direito sobre a boca e franziu a testa.
— Ela tem uma boa casa e tem a filha. Não pensaria por um momento em vir para cá. A sua tia e eu nunca tivemos muita coisa em comum. Mas já a considerei uma mulher honrada... a despeito de muita coisa.
O rosto de Laura ficou brilhante, como se refletisse o aço.
— Você acreditou no escândalo sobre ela e o tio Jim, não é?
— Não gosto do seu tom, Laura. Está muito estranho.
Laura se levantou com uma impulsividade incomum para ela.
Patrick pensou, e não pela primeira vez, em como ela se parecia com a tia. Laura estava falando de novo, com aquela voz “estranha":
— Você quer acreditar nisso. Acreditaria mesmo com todas as provas em contrário. Por quê, Patrick? Por quê?
— Você se dispersa de modo ridículo, Laura — disse ele, insultado. — Por
que eu haveria de “querer” acreditar numa coisa tão repulsiva sobre a tia de minha mulher? Você me insulta. — Ele fez um gesto proibitivo com a mão. — Eu me recuso a falar mais sobre esse assunto. Pensei que estivéssemos falando sobre a possibilidade de sua tia e Ruth virem morar aqui conosco. Não posso fazer esse convite com sinceridade. Mas, se quiser, pode fazê-lo. Prometo que serei amável.
— Tia Lydia nunca mudou. Ela é o que sempre foi, Patrick. — Laura estava meio ofegante. — A melhor pessoa que já conheci. Tio Rufus ainda a ama; até mesmo Cornélia gosta dela. E Allan...
Ela baixou a cabeça, presa de um sofrimento tão intenso que ficou dominada e abismada. Ela agarrou o consolo da lareira e seus lábios ficaram tão brancos que mal se viam. Patrick, cheio do ódio terrível que nunca sentira por alguém que não Allan Marshall, estava preocupado em se controlar. Ele disse, a voz fraca:
— Você sabe que não mencionamos esse nome nesta casa, a não ser que seja estritamente necessário. Não temos contato com ele, a não ser em ocasiões em que toda a família se reúne, ou quando sou obrigado a falar com ele, nas reuniões de conselho.
— Eu sei! — exclamou Laura. Você sempre o detestou. Eu nunca soube a causa. Mas ele o frustrou, certa vez, não foi? Intrometeu-se em seu caminho quando você queria alguma coisa. Isso é uma coisa que você não pode perdoar. Nunca há de se satisfazer até se vingar.
Ela olhou para ele com aquele desprezo curioso, quase exaltado.
Patrick levantou-se devagar.
— Não vamos falar sobre Allan Marshall...
Mas Laura, pela primeira vez em sua vida de casada, riu na cara dele, com uma risada aguda e trêmula.
— Desta vez, vamos sim. Você e eu... nunca fomos sinceros um com o outro; fingimos desde o primeiro dia. Eu nunca devia ter-me casado com você, Patrick. Eu já me tinha desapaixonado da ilusão que pensava ser você, antes mesmo do dia de nosso casamento...
— Você está histérica, Laura — disse Patrick, asperamente. Ele se encolheu diante daquele golpe em seu ego. — Posso desculpá-la, pois você era muito agarrada a Jim Purcell e está triste desde que le morreu. E na sua idade...
Mas Laura estava rindo de novo, com lágrimas nos olhos. Ela apertou as mãos no peito, num gesto convulsivo.
— Eu nunca devia ter casado com você; nunca devia ter casado com você. Foi errado, desde o princípio. Você vê isso em nossos filhos. Eles nos desprezam, a ambos. Riem de nós; já os ouvi! E por que não? Não têm motivos?
Ele agarrou o ombro de Laura e sacudiu-a com uma fúria que tinha algo de demente.
— Pare! Essa histeria... é uma vergonha. Não tem orgulho? Mesmo que não tenha inteligência, tenha decência...
Laura ficou séria, ao sentir aquela mão raivosa em seu ombro diante da expressão terrível do marido. Ela já vira aquela expressão, mas nunca tão aterradora. Com um misto de angústia, desespero e ódio, ela sentiu isso e compreendeu, apavorada. Então, ela pensou com clareza: “Ele se odeia, mais do
que a qualquer pessoa, nunca fez nada de errado, mas assim mesmo é odioso a si mesmo”.
Ela começou a falar com calma, penalizada, enquanto ele continuava agarrando seu ombro.
— Patrick. Patrick. Devemos estar loucos. A tensão, talvez. Temos de esquecer que falamos assim. Temos de nos perdoar. Perdão, Patrick.
A mão dele caiu do ombro dela, como um chumbo. Então, a pressão frenética desapareceu de suas feições. Ele se virou, olhando em volta, como se fosse um estranho confuso numa casa que nunca vira e onde não sabia ter entrado. Depois, sem dizer nada, ele saiu da sala.
Laura tapou os olhos com as mãos e chorou baixinho.
Fielding Peale, sozinho e rindo alegremente, foi andando nas pontas dos pés pelo corredor de cima, na penumbra, como veludo, Bateu discretamente à porta da irmã, abriu-a e enfiou a cabeça do jeito que Cornélia muitas vezes chamava de boneco de caixa de surpresa. Mary estava bocejando com um livro perto de um lampião aceso, na penumbra. Ela olhou para o irmão, ansiosa; ele acenava para ela com o braço comprido, chamando-a. Ela levantou-se de um salto, com o impulso rápido de uma gatinha e acompanhou-o pelo corredor até o quarto de Miles. Ela não sabia o que o estava fazendo rir tanto, sem barulho, mas tinha certeza de que valeria a pena saber. Com um ar de conspiração, Fielding abriu a porta do quarto de Miles, a irmã logo atrás.
Miles estava fumando e lendo. Ele depressa apagou o cigarro. O pai, que detestava ver alguém fumar, tinha “explodido” quando descobrira que o filho “se entregava a esse hábito imundo”. Portanto, o gesto de Miles fora um reflexo irritado. Mas, ao ver seus visitantes, descontraiu-se na poltrona e largou o livro na pilha arrumada na mesinha a seu lado.
— Você vai ter de parar de andar por aí pulando com seus pés de gato, Field — disse, com sua voz aguda. — Nem sei como consegue isso, com suas sapatrancas. Foi esquiar de novo? Ainda vai quebrar esse pescoço de girafa. Olá, Mary. — Ele lançou à irmã o seu sorriso mais encantador.
Embora os três filhos do casal Peale tivessem muita afinidade entre si, era raro se reunirem para conversas amigáveis, a não ser quando inspirados pela maldade. Assim é que Miles assumiu um ar de expectativa. Como Fielding tinha dezesseis anos, a risada dele ainda era meio em falsete. Agora ele não conseguiu controlar suas risadas; entregou-se a elas, atirou o corpo comprido e desengonçado numa poltrona e bateu nos joelhos ossudos. Era o único membro positivamente feio da família e, a despeito de ser muito alto, não prometia ter uma grande distinção.
Cornélia descrevera-o, certa vez, como sendo “de uma cor só — castanho”. Havia muita verdade nessa descrição; sua cabeleira lisa era do castanho mais claro, os olhos pequenos do mesmo tom, a pele áspera e amarelada, os lábios angulosos sem o menor rosado de juventude. Tinha um nariz grande e torto, sobrancelhas e pestanas ralas de um castanho claro e uma testa nodosa. “Queixudo", comentara Allan um dia, também com razão, pois o queixo do rapaz era comprido, saliente sob a boca.
Fielding sentou-se e riu, como que relinchando, vestido com o que Miles considerava as roupas mais repulsivas do mundo: calça apertada enfiada em botas enormes, camisa de lã marrom e casaco de lã. Tinha “adotado” o esqui numa viagem ao Tirol no ano anterior, esporte que Miles desdenhava, como desdenhava
todos os exercícios cansativos e vigorosos. Fielding chegara até a pôr um gorro de tricô de lã com uma borla, outra monstruosidade, na opinião de Miles.
— Os velhos acabaram de ter um bate-boca danado na biblioteca — informou ele aos irmãos, com prazer. — Eu ouvi; escutei junto da porta, e depois tive de fugir para a saleta quando o velho saiu, furioso. Eu tinha acabado de chegar e ouvi tudo. Foi formidável! Não foi uma das brigas de sempre, finas e educadas. Uma braba. Quem sabe o velho deu nela, ou coisa assim? — acrescentou, saboreando a história.
— Ah, não! — exclamou Mary, batendo palmas e se balançando no assento da janela. — Não acredito! Conte mais. Por causa de quê?
Miles, que por vezes bancava o superior com o irmão, acendeu um cigarro e esperou, interessado.
— Bom — continuou Fielding, satisfeito —, não peguei a primeira parte. Era alguma coisa sobre a velha tia Purcell e aquela Ruth horrorosa virem morar conosco. Puxa, fiquei doente com essa. Mas o pai não quis. E depois, não sei como, já queria. — Fielding franziu a testa, tentando lembrar-se de tudo. — A mãe ficou meio histérica quando ele disse que ia ser “amável” e falou sobre Ruth e as ações da estrada que ela tem. Não sei por quê. — De repente, ele não se conteve e riu e riu, tornando a Bater nos joelhos. — Sabem de uma coisa? O pai disse que, se você fosse mais velho, Miles, consideraria a ideia de você se casar com a velha Ruth! Isso não seria de matar?
— Sem dúvida — disse Miles, sem se indignar. — Mas isso é bem do pai. Só nobreza e piedade... até quando se trata da estrada de ferro. O que ele não daria para pôr as mãos nela. Até uma coisa louca como eu me casar com uma mulher que tem idade para ser minha mãe.
— Nem tanto assim, só uns dez anos mais velha — disse Mary, feliz. — Mas continue, Field.
— E então começou a briga, a mãe gritando uma coisa sobre o tio Allan ter feito alguma coisa com o pai. Ela gritou, palavra. E que foi um erro casar com o pai. Mas as coisas esquentaram mesmo quando ela disse que nós, os filhos, nos ríamos deles.
— E não rimos mesmo? — exclamou Mary. — Mas como é que ela percebeu? Vai ver que ela não é tão burra quanto pensamos. — Eu nunca achei que ela fosse burra — disse Miles.
Ele sacudiu a cinza do cigarro.
— Nunca contei a vocês, garotos, mas ela sempre foi entusiasmada por aquele irlandês louco furioso, o nosso querido “tio Allan”. — Não! — exclamou Mary, fascinada.
— Bem, talvez o Miles tenha razão — disse Fielding, assombrado com a percepção do irmão. — O nome do tio Allan pareceu que fez o pai explodir. Tio Allan retribuiu o elogio?
— Claro. Você pode vê-lo em ação, se observar bem.
— Que escândalo delicioso! — disse Mary, abraçando os joelhos redondos. — Será que alguém sabe?
— Tia Cornélia sabe. É por isso que tem vontade de esganar mamãe. Mas vocês garotos não podem dar um pio sobre isso, estou avisando.
— Uma delícia! — exclamou Mary, de novo. — Mas uma gente tão velha. Deviam ter vergonha.
Miles sorriu diante daquela infantilidade. Fez um gesto para que o irmão continuasse. Mas Fielding estava olhando à toa, com prazer.
— E o pai sabe? — perguntou Mary. — Seria empolgante demais, se ele soubesse.
— Não tem cabeça para isso — respondeu Miles, com desdém. Fielding continuou:
— E falaram alguma coisa de um escândalo e a velha tia Liddie; e a mãe acusou o pai de acreditar nele e querer acreditar.
— Não me admira nada — disse Miles. —Já notei que esses “amantes da humanidade” estão sempre prontos a pensar o pior das pessoas. E a explorá-las, também, de um modo que os homens normais ainda não aprenderam a fazer. Parece que a mãe estava pisando nos calos do pai, quando o acusou. — Miles sorriu, um sorriso extremamente cativante. — Nesta casa, não se consegue conservar os empregados, se bem que o pai pague mais do que os outros, como uma espécie de suborno. Ele é exigente e autocrata demais e, enquanto nos fala da “mão-de-obra” como se fosse algo indizível, trata nossos empregados como cães. Há anos a mãe tentou me explicar isso; naquele modo dela, calmo e tolo, disse que o pai nem sempre foi assim tão ridículo. Ele antes acreditava no que dizia; costumava praticar o que pregava. Alguma coisa o modificou; alguma coisa o deixou apenas com oratória e paralisou o resto. O que eu acho — disse Miles, astucioso — é que nada “modifica” as pessoas, intrinsecamente.
O irmão e a irmã o escutaram com respeito. Ele estava sentado em sua poltrona, bem à vontade, falando com a autoridade que só se obtém por um contato constante com a realidade. Ao contrário de Fielding, desengonçado, ele era baixo, só encapando do efeminado por uma aura de masculinidade dominadora, implícita, apesar da formação delicada de seu corpo, mãos e pés. Era elegante e gracioso: requintado. Possuía o que se chama de classe e distinção.
Miles era tudo isso, e seu belo rosto tornava-o irresistível às mulheres em geral. Quando as empregadas azedas e aborrecidas se despediam da casa de Patrick, numa indignação feroz, Miles, quando presente, sempre conseguia acalmá-las e convencê-las a ficar. Elas murmuravam, na cozinha, que ele tinha o caráter e o rosto de um “querubim”. Era um rosto pequeno e etéreo, um queixo arredondado com uma covinha, um nariz perfeito e, segundo as mulheres, uma boca de “botão de rosa”. Os olhos, grandes e brilhantes, eram de um azul puro, com pestanas espantosamente escuras e compridas. A testa era larga e nobre, coroada por cabelo castanho-escuro, acobreado, que cobria toda a cabeça com cachos sedosos.
Ele usara o dinheiro da mesada para redecorar seus aposentos. Num período de cinco anos, com gosto de artista, desfizera-se de todos os móveis sombrios que o pai comprara, substituindo-os por móveis franceses originais ou cópias admiráveis. Tudo nos quartos dele era leve e claro e, no entanto, forte como ele, e perfeito, desde as cadeiras douradas com azul até as cortinas suaves nas janelas. Patrick, ofendido, declarara que os quartos eram cheios de “bugigangas”.
Miles estava resolvido a se casar com sua parenta, Dolores Marshall. Também isso era um segredo. Aos dezessete anos, não era um jovem, mas um homem. A frieza de Dolores para com ele não o desencorajava em nada, pois concebera por essa moça, desde os quinze anos, uma paixão, desejo e amor sinceros, que por vezes o deixavam espantado. Não havia como raciocinar com aquilo, nenhuma explicação. Ela era linda, mas ele já vira outras moças igualmente belas. Ela não se pavoneava, nem era coquete, fato que deixava indiferentes muitos dos amigos dele.
Na opinião de Miles, sua irmã, que o adorava, era uma devassa. Lá estava ela agora, contemplando-o com adoração, uma garota
I miúda, com um corpo deliciosamente arredondado e fazendo graça e gestos. 0 vestido de veludo rosa destacava o cabelo preto, comprido e crespo, os imensos olhos negros, tão animados e petulantes, as maçãs do rosto largas e queixo pontudo e alvo, a boca rosada e carnuda com sua expressão maliciosa. Tudo nela era picante e sugeria um traço esquecido de sangue latino. Como Miles, ela dava “graça” a tudo o que usava, tudo o que fazia.
— Voltando à velha tia Liddie — disse Miles —, é muito rica e espero que não se esqueça de nós. Mary, eu já me perguntei muitas vezes por que é que o tio Jim não deixou nada para nós, a não ser para você. Você tem idéia?
Ela sacudiu os cachos e sorriu para ele, como se estivesse guardando um segredo, se bem que, de fato, não houvesse segredo algum. Jim Purcell a achara divertida e Ruth gostava dela, por algum motivo desconhecido.
— Você deve ter bajulado o velho — disse Miles, com ar sabido, mas Mary limitou-se a tornar a sacudir a cabeça. Miles começou a pensar. — A mãe também é muito rica. Tem ações da companhia, e vai deixá-las para nós. Nosso avô foi Stephen DeWitt, e foi presidente da companhia. Por falar nisso, vocês garotos querem dar o fora? Estou estudando.
— Sempre estudando as estradas de ferro — disse Fielding, tentando demonstrar desprezo, mas olhando com admiração para o irmão. Ele se levantou, comprido e desengonçado, e bocejou. — Quer vir a ser presidente? E como vai conseguir isso, com o Tony e DeWitt, sem falar no tio Allan e tia Cornélia e tio Rufus, que ainda estão por aí?
— Falei alguma coisa de ser presidente ou coisa assim? perguntou Miles.
Fielding foi olhar a pilha de livros junto da poltrona do irmão e pegou um deles. Coçou a face amarelada e franziu a testa.
— Patentes. O tio Allan tem três aqui, só dele. Deve ter sido um rapaz esperto, quando era moço. Falei disso um dia com o pai e ele ficou uma fúria.
— O pai não gosta de plebeus, gente sem berço ou familia ou homens que conseguem o que querem pelo próprio esforço — disse Miles, com languidez. — Isso ofende o sentido do que é “bem" para ele. Um dia eu o ouvi dizer que desprezava os homens que tentam “subir além de sua posição social”. Nessa hora ele se esqueceu de seus princípios e depois tentou explicar e saiu besteira. É só mais um sintoma do “idealismo” dele. Agora, querem dar o fora?
Mary estava olhando para o vazio, como que num transe, esquecida dos irmãos. De repente falou.
— Sabem de uma coisa? Vou-me casar com o Tony.
Fielding deu uma gargalhada, mas Miles nem sequer sorriu. Ele apertou os olhos azuis, pensativo, contemplando a irmã. Disse, sério:
— Não, meu bem. Ele não vai se casar com ninguém, eu acho. E muito menos com você. Mas podia tentar o DeWitt; ele gosta de você e um dia, talvez daqui a uns cinco ou seis anos, pode dar em casamento. — Ele ficou mais sério ainda, examinando a irmã como se ela lhe aparecesse sob um aspecto novo e importante. — DeWitt. E daí, se ele vai sempre andar de muletas ou numa cadeira de rodas ou, no máximo, usar bengalas? É um DeWitt.
Mary ficou zangada e seus olhos faiscaram.
— Acho o DeWitt Marshall detestável. Ora, nós todos nos divertimos juntos quando éramos crianças, mas agora não o suporto. Quero Tony. É verdade que não é muito esperto, em muita coisa, mas olhe só para ele! Deixa-me com água na boca. As garotas lá do colégio são loucas por ele. E um dia desses há de ser dono de sua preciosa estrada de ferro, além do mais.
— Não vai, não — disse Miles, baixinho. Ele passou a mão pelos cachos sedosos. — 0 DeWitt pode vir a ser o dono. Não precisa me olhar furiosa. Sei o que estou dizendo. Vá atrás do velho DeWitt. É o que fará, se tiver juízo.
Mary, indignada, levantou-se de um salto e as saias cor-de-rosa giraram ao seu redor, no círculo perfeito de uma roupa de bailarina.
— Não me venha dizer o que devo fazer, Miles Peale! Sei que gosta daquela horrível Dolores, mas ela não liga a mínima para você. Além disso, há esse nobre inglês, ou coisa que o valha, e pode ter certeza de que a tia Cornélia está trabalhando nisso com afinco. E já ouviu dizer que a tia Cornélia não conseguisse alguma coisa que quisesse? — Mary riu de Miles, que não deu resposta, e pegou um dos livros, acintosamente.
— E já ouviu falar que Miles não consegue o que quer, também? — perguntou Fielding, indo em socorro do irmão. — E você está enganada, Mary. Quem é que havia de querer a Dolores? Parece cera, com todo aquele cabelo claro. A família tem milhões, mas mesmo os garotos com fome a deixam sobrando nas festas.
Miles nunca deixava aparecer a sua irritação. Assim, sorriu para o irmão com uma bondade superior.
— É — disse. — Quem é que havia de querer a Dolores? E, mais uma vez, será que tenho de expulsar vocês daqui?
Depois que eles o deixaram, afinal, ele fechou o livro sobre o dedo e ficou olhando para o fogo. E quem o conhecesse se espantaria com a intensidade de sua expressão e sua concentração monumental. Por fim, ele se levantou, pegou um livro de sua prateleira estreita na parede e lá de trás puxou uma carta, recebida naquela manhã. Ninguém jamais violara a sua intimidade, mas ele desconfiava de todos os seres humanos. Releu a carta, que era de Jon DeWitt. Era muito grossa e digressiva, escrita numa caligrafia apertada, e aqui e ali chegava a ser incoerente. Era cheia de dedicação lírica e frenética a esse rapaz de dezessete anos, e Miles sorriu, um sorriso feio, ao ler: “... estava horrível em Cannes, detesto aquilo... saudades de você, meu querido... É tão criança, mas é tão lindo. Mesmo quando ri de mim, eu o perdoo por causa de seu rosto e inteligência... Você não entende essas coisas... a pureza, o elevado, o clássico. Mas me deu alguma esperança... não me despreze... o sofrimento, a ânsia... Não há ninguém como você. Estou perdendo o interesse por meus amigos franceses, que fingem ter uma sutileza que não possuem... só querem o meu dinheiro. Sou dez anos mais velho do que você, mas sei que você compreendería se me permitisse explicar...”
Obscenidade revoltante, pensou Miles. Ele bateu os papéis contra os dentes. Depois, continuou a ler: “Solitário... só... só... lembrome da conversa que
tive com você no verão passado. Deixe-me conversar com você de novo, tenho tantos livros novos sobre o assunto. Quando se olha para Allan Marshall, ou até para meu avô, a gente fica cheia de ódio por eles. Opressores cruéis e gananciosos de homens melhores. Monopolizadores do pior tipo, mas sempre conseguem fugir das ações antitruste contra eles. O que sabem eles do sofrimento do povo, dos explorados? Ouvem algum dia o barulho das carretas? Mas, um dia desses, o ouvirão! Você leu os últimos panfletos traduzidos que lhe enviei, que foram escamoteados da Rússia? A hora se aproxima! Nesse sentido você é tão perspicaz, tão perceptivo. Como eu, você sabe que se acabaram os dias dos magnatas ladrões e que o dia do proletariado se aproxima, com um trovejar...”
Quem sabe, pensou Miles, sentando-se de novo junto do fogo, se há alguma verdade em minha suspeita de que gente indizível como Jon DeWitt é naturalmente e inevitavelmente atraída por idéias como o “Dia do Proletariado”? E suas perversões? Sua demência? Odeiam os homens de sucesso e procuram, desse modo, destruí-los? Será essa sua vingança?
Miles conhecera alguns dos “amigos” de Jon, de Nova Iorque. Lembrava-se do brilho fanático nos olhos deles, suas vozes estridentes, acusadoras, os punhos cerrados, os argumentos penetrantes e insistentes, maldade e ares femininos, a paixão pelas “massas oprimidas”. A degeneração... e talvez a luz de cidades ardendo, amanhã. Os espíritos frágeis mas despeitados do destino. Miles franziu o nariz, como se estivesse sentindo mau cheiro. Alguns dos “amigos” eram conhecidos pela literatura, por poemas ou romances obscuros, lindamente escritos e frágeis. Sua obra tinha em si algo de podridão, apesar de todas as frases requintadas e a excelência geral. Além do mais, escreviam quase exclusivamente sobre homens — homens másculos, dominadores, guerreiros — e escreviam com volúpia.
Miles fez um rolo apertado da carta e empurrou para dentro dos carvões do fogo. Ficou olhando enquanto aquilo ardia, com um sorriso enigmático. Jon DeWitt. Filho de Rufus DeWitt. Poderia ser útil, muito útil. Miles começou a pensar na carta que lhe escrevería. Uma carta cautelosa, inofensiva e ininteligível para os outros, significativa para Jon.
39
Sentado com a família na manhã do Dia de Ação de Graças, Tony Marshall pensou que tinha pelo menos um motivo para sentir uma humilde gratidão para com Deus: o pai estava parecendo forte de novo, a vida lhe voltara aos olhos e seu ar de força concentrada, que, com os anos, parecera ter-se deteriorado lenta mas seguramente, voltara em plena força. Ainda estava muito magro, o cabelo grisalho, mas pela primeira vez em muito tempo, dava a impressão de estar em pleno controle, pensou Tony, e a sensação de que estava “presente”.
Tony, por ser muito sensível, sabia que o aparentemente trivial tinha um lugar importante na vida dos homens. Allan, em sua juventude, podia ter sentido desprezo pelos pais. Não obstante, sua aceitação por parte do pai, nesses últimos anos, o consolara. Era necessário ao pai, aquele ancião, tão sereno, tão afetuoso e fanfarrão, bom e simples. A mulher de Tim morrera, mas ele quase não a chorou.
— Com certeza, meu filho, ele está limpando e arrumando a casa nova, à minha espera — dissera ele a Tony. — Está olhando pela janela me procurando, neste minuto. — Seus olhos velados tinham sorrido para o rapaz. — E eu nem me espantava se alguns dos anjos abençoados fossem lá tomar chá com ela e comer uma das suas tortas.
Essa visão altamente pouco ortodoxa do além não perturbara Tony. Ele
dissera, baixinho:
— E quando chegar lá, não se esqueça de me guardar um lugar.
Isso fora antes de ele partir para a índia. Como se soubesse da necessidade de Allan, ele escrevia constantemente.
Tony tinha pena de Estelle e seus dois filhos, Jon e Norman, mas a despeito do Mandamento imperioso, não conseguia amá-los, o que às vezes o deixava preocupado. Estelle, com seus sessenta anos, parecia muito mais jovem, a um olhar superficial, se bem que a pele fina de seu rosto bonito estivesse cheia de rugas. Ela nunca aparerecia, mesmo quando estava ligeiramente doente, sem o viço do ruge e do pó-de-arroz aplicados com mestria. E seus luminosos olhos castanhos continuavam arregalados, num entusiasmo sintético. Mesmo na idade dela, não precisava recorrer à tintura de cabelo, como fazia Cornélia. Os cachos macios de Estelle, embora mais ralos, ainda eram castanhos e ela os usava como uma coroa na cabeça. Conservara o corpo jovem, a vivacidade artificial da expressão e seu ar adocicado. Mas a maldade tinha apertado e cavado os cantos de sua boca, feito rugas em volta das narinas, murchado a zona em volta dos olhos.
Apesar de esforços constantes, ele também não gostava dos dois filhos que tanto se pareciam com ela. Norman era o pajem da mãe, rapaz de cabelo e olhos castanhos que dava a impressão de não ter "corpo”. Aos vinte e cinco anos, era um rapaz eterno e sempre o seria. A adolescência fazia parte de seu espírito; era sua libré. Por vezes, ele chegava a bater palmas satisfeito com alguma ninharia. No entanto, embora não se interessasse por mulher alguma, salvo a mãe, não exalava aquele certo eflúvio de doença e distorção sinistra que pairava sobre o irmão mais velho.
Mesmo quando era muito mais jovem e inocente quanto à vida, Tony reconhecera que Jon DeWitt era doente, tanto na sua personalidade quanto na alma. Aos catorze anos, Tony, que sempre chamara Jon pelo nome de batismo, fora instintivamente levado a chamá-lo de “tio Jon”. (O que ocorrera para provocar essa mudança quase se apagara de sua memória, mas ele conservava a impressão de que algo o ameaçara e ele fugira daquilo, com horror e asco.) De qualquer forma, o título firmemente enunciado transformara o antigo interesse de Jon pelo sobrinho num ódio frio e despeitado.
Havia ocasiões em que Tony, embora com apenas dezoito anos, tinha a percepção de um homem maduro; ele percebeu, em intervalos irregulares mas plenamente esclarecidos, que se houvera algum destino terrível que deformara Jon e conservara Norman na infância, esse destino fora a mãe deles.
Tony não sabia que Rufus, através dos anos, passara a reconhecer os filhos pelo que eram e agora estremecia diante de um e olhava para o outro com a aversão instintiva que a gente sente pelo desconhecido. O seu último testamento lhes deixava certa importância em dinheiro, mas nenhuma ação ou título da estrada de ferro. A mãe deles tinha aumentado o seu próprio cabedal no mercado de títulos.
Embora ultimamente Rufus tivesse emagrecido bastante, conservava o bom apetite e a jovialidade. Insistia em tomar o café da manhã com a família, pois a companhia da filha e dos netos, Tony e Dolores, se tornara uma necessidade para ele. Allan, depois de ter-se refeito, mental e fisicamente, se tornava por vezes aborrecido para o velho; queria “falar de negócios" o tempo todo, conforme Rufus se queixava para Cornélia.
— Nunca pensei em ver o dia em que não me interessasse pela companhia, acima de tudo — reconhecia ele. — Será que você poderia dizer ao Allan, de modo muito sutil, claro, “já não sou mais o que era”, ou coisa assim?
Portanto Cornélia, muito diplomaticamente, mudava de assunto, afastando-o de uma conversa de negócios, quando o pai e o marido estavam juntos.
— Pelo amor de Deus — dizia ela —, no mundo há outras coisas, além de locomotivas, ações, títulos, diretores, patentes e servidões, especialmente ao café da manhã e ao jantar.
A manhã estava dando todos os sinais perturbadores de tornar a vida difícil para os seres humanos. Tinha nevado muito, a noite toda. A neve estava acumulada nas montanhas e vales. Parecia estar resolvida a fazer muito mais ainda. A vista pelas janelas estava reduzida a cortinas de brancura, rasgadas por uma ventania tempestuosa.
— As estradas vão ficar impedidas — disse Cornélia. — Espero que a mãe e Ruth não tenham muita dificuldade em passar. Não terão, se usarem o trenó. Tenho de ligar para elas. Alguém me lembre. Infelizmente, os Peale vão poder chegar aqui. Patrick está ficando cada vez mais insuportável. Por que não é permitido, em ocasiões regulamentadas, que a mulher envenene o marido?
Rufus deu uma boa gargalhada, mas Allan, que já ia perguntar a Rufus sua opinião sobre uma chave automática inventada recentemente, nem sorriu. Fechou a cara e largou o garfo. Cornélia ficou observando-o atentamente sob as sobrancelhas ruivas e, por um instante, ficou positivamente feia. Mas continuou:
— A mãe não queria vir, levando em conta o falecimento do pobre tio Jim, tão recente. Banquei a filha magoada; ela me conhece bem, claro, e riu um pouco. Mas entendeu que realmente a queríamos aqui.
Estelle levantou os olhos.
— Queremos mesmo? — perguntou, em tom suave. — Francamente, como sabem, eu nunca apreciei muito Lydia. Ela se largou inteiramente. Parece uma velha.
— Nenhum de nós é jovem — disse Rufus, olhando para a mulher com um olhar duro.
Cornélia disse:
— Obrigada, papai. Eu me sinto decrépita mesmo. Francamente, essas grandes reuniões de família nas festas me aborrecem. Mas esta é a minha vez. Graças a Deus que voltamos para Nova Iorque na semana que vem, depois que Tony voltar para Harvard e DeWitt para Groton. — Ela se queixou: — Nunca pensei que os Peale me fariam ter vontade de sair desta casa, mas conseguem isso.
— Não há nada de ruim em Miles. Nem em Mary — disse DeWitt, com sua voz sem expressão. O rosto dele, tão marcado e moreno, corou um pouco. A mãe, ao lado dele, afagou a mãozinha na mesa e ele recuou, repelindo-a.
— Não importa; nós todos sabemos que você gosta de Mary — disse ela. — E por que não? Uma menina tão queridinha. Miles?
Um patife, é claro.
Estelle ajeitou os cachos, furtivamente.
— Positivamente, acho que a Lydia parece levar a morte de Jim com muita
calma. E eles sempre pareceram se querer tanto.
— 0 sofrimento é mais do que a emotividade — disse Cornélia, aceitando mais uma grande fatia de presunto da travessa que o mordomo lhe oferecia. — Ou será que não sabe disso, Estelle?
— Ora, vamos — murmurou Rufus, divertindo-se.
— Por mim, ficarei muito feliz em voltar para o meu apartamento em Nova Iorque — disse Jon, com sua voz efeminada, precisa e lírica. — É chato, aqui no campo. Acho que vou um pouco antes do que costumo ir. Papai, não precisa pedir o nosso vagão particular para mim.
Rufus estava com uma fatia de torrada na mão.
— Não vou pedir, mesmo — respondeu. — Por que não usar os nossos pullman? — Ele largou a torrada, como se de repente estivesse enjoado dela, e virou-se para a esquerda, onde Dolores estava sentada. Enterneceu-se imediatamente. — Por que é que você tem de voltar para aquele colégio na Suíça, meu amor?
— Não preciso, não — respondeu ela, com um sorriso terno. — Prefiro mil vezes ficar aqui com o senhor, vovô.
— Ora, não a encoraje, papai — disse Cornélia, com vigor. — O senhor sabe que ela tem de concluir os estudos. E daqui a pouco estaremos de novo na Riviera.
Rufus sorriu, mas não deu resposta. A filha fixou toda sua atenção sobre ele e seu coração, em geral tão invulnerável, se contraiu. Allan virou-se para ela, encontrou-lhe o olhar e sorriu, com afeto. Ela correspondeu, mas, sob o seu ruge forte, sua pele empalideceu.
“Que tolos complacentes, maus ou idiotas!”, pensou Jon DeWitt, com uma repugnância e ódio tão violentos que sua visão ficou distorcida por um momento e todos os objetos e pessoas em volta da mesa se juntaram em traços altos e irregulares diante dele, em branco e preto. Ele já conhecia esse fenômeno, com sua sensação mista de uma náusea extrema, dor de cabeça insuportável e palpitações.
Havia ocasiões em que as linhas finas e luminosas se juntavam numa só, reluzindo como o relâmpago, e depois desaparecendo numa escuridão total, que durava vários momentos apavorantes. Ele receava que isso tornasse a acontecer e obrigou-se a respirar devagar e regularmente, engolir metodicamente, conforme lhe haviam ensinado.
Lá estava o pai, esse opressor dos trabalhadores, esse explorador das vidas dos humildes! Sem dúvida, ele ainda se imaginava ser um Júpiter, um Júpiter benévolo, com todas as suas caridades condescendentes, suas presidências de organizações de “assistência social”. “Era tarde, era tarde!”, continuou Jon para si, com uma satisfação raivosa. “Tarde para tudo, seu mentiroso maldito, risonho e espirituoso, que fez um inferno da vida da minha mãe, desde o dia em que se casou com ela. E essa sua filha, essa puta descarada de fala forte com sua animação e gritos de riso e seu jeito com os homens! Poluição, corrupção! Allan Marshall! Ladrão, maquinador, conspirador, patife irlandês. Canalha da ralé. Pensei que você fosse morrer, da última vez que adoeceu; se eu acreditasse em algum Deus, rezaria para você morrer.”
Jon pegou o copo com dedos trêmulos e bebeu. Aquela escuridão sinistra estava tocando no canto de sua pálpebra direita. Ele se obrigou desesperadamente a olhar para a mãe, como um camponês desesperado se ajoelha diante de um santuário de beira de estrada. Aquele rosto querido, suave, brilhante. Os olhos jovens e interessados. Os cachos adoráveis, o queixo. Havia muitos anos que ele é que lhe escolhia as roupas; seu olhar pousou sobre o roupão azul, com os babados de renda branca no pescoço e saindo pelos punhos largos. Ele suspirou. Olhou para o irmão e sentiu uma pontada de ciúmes. Norman estava apoiado no braço de Estelle e sorrindo para ela como uma criança dependente. Jon sorriu para si, virtuosamente. Conhecia Norman; ele lhe ensinara. As emoções de Norman podiam ser as de um adolescente, mas havia uma inteligência por trás da tagarelice, das palmas, do riso aparentemente sem sentido. Uma mente voraz e calculista, capaz de absorver a filosofia nova e florescente do homem do povo. A família teria de se haver com ambos os filhos de Estelle.
Ele observou o resto da família. DeWitt. Frio, funcionando em seu íntimo, sem tomar conhecimento daquele defeito, como se fosse sem importância. Ouvia-se que ele estava funcionando, tabulando, somando, infindavelmente, incansavelmente. Mas a mente do homem podia derrotar a máquina, por mais complexa que fosse. Além disso, aquele monstrinho feio e moreno só tinha quinze anos.
Jon então chegou a Tony e por uns segundos ficou inteiramente cego de ódio. Ele algum dia contara a alguém, à mãe, ao pai, ao avô? Tinha de ser isso, pois do contrário ele, Jon DeWitt, não seria tão evitado e tratado com uma aversão tão declarada.
Por fim, Jon chegou a Dolores, tão parecida com o irmão. Positivamente repulsiva, pensou Jon, desprezando-a. Todo aquele cabelo claro cacheado em volta do rosto renascentista, aqueles olhos vazios, aquele corpo delicadamente cheio. De certo modo, ela lhe parecia ainda mais ameaçadora do que Tony. Ele olhou para o busto da jovem e estremeceu; para seu pescoço alvo, e estremeceu de novo. Com que vulgaridade corporal o animal podia ser seduzido! Seus lábios rosados, sorrindo para Rufus com tanta meiguice, deixavam Jon enjoado.
Rufus estava falando com aquela voz cheia:
— Acreditamos sempre que as nossas vidas e nossos pensamentos são maravilhosamente únicos, as nossas calamidades além do entendimento dos outros, as nossas esperanças mais elevadas e nobres, os nossos desesperos mais profundos, os nossos objetivos mais puros, a nossa compreensão mais requintada e que as coisas que nos acontecem, seja para o bem ou para o mal, nunca aconteceram com ninguém. Lembra-se, Allan, do que disse o fariseu: “Eu te agradeço, Senhor, não sou como os outros homens”? — Ele riu. — Nunca fiz nada que não tenha sido feito antes, há mil anos, exatamente do mesmo modo, por milhões de outros.
Estelle, que estava querendo interromper a conversa de que Jon não tomara conhecimento até aquele momento, disse, interessada:
— Ah, é, de certo modo. Nada de novo sob o sol.
Rufus meneou a cabeça para ela, com bondade.
Estelle podia ser óbvia e frívola, mas de vez em quando era preciso reconhecer-lhe a presença.
Jon disse, abruptamente:
— 0 senhor está enganado, papai. Existe alguma coisa bem diferente no mundo hoje, uma filosofia nova e crescente... além do egoísmo...
— Já sei, já sei — disse Rufus, aborrecido. — Já ouvi falar nisso, aqui e ali.
— Ele olhou para Allan, com os olhos brilhando. — Mas não é nada nova, meu filho. É velha como o pecado; foi concebida no pecado, ou ignorância, há milhares de anos, pelos homens das cavernas. Espero que o homem não volte ao barbarismo, Jon. Duvido que o faça; a era dos tiranos já passou. A nova filosofia de que você fala está fossilizada.
Os olhos negros de Allan faiscaram com uma irritação furiosa sobre o meio-irmão da mulher.
— Não ultrapassamos o egoísmo e espero que isso nunca aconteça, pois tem seus bons aspectos. Como a auto-estima, o respeito próprio, a responsabilidade, a ambição e o impulso para a melhoria pessoal. Controlados, como têm de ser, podem ser benéficos para a sociedade, bem como para o indivíduo.
Ele apontou com a faca, num gesto vulgar que por vezes não conseguia refrear.
— Você, por exemplo, Jon. Há em você uma emoção que o está levando a extremos perigosos.
— Por que é que todas as discussões de família sempre acabam em assuntos pessoais? — murmurou Estelle, em desespero,
Cornélia correu em seu auxílio, com vontade.
— Estelle tem razão. Allan, largue essa faca. Você não vai esfaquear Jon, vai? Li em algum lugar que os gestos dirigidos aos outros por vezes são subconscientemente hostis, tendo a intenção real e original por trás de si.
Allan sorriu, com ironia, e largou a faca.
— Talvez tenha razão, Cornélia. Mas por que é que o seu irmão não pode discutir ou falar sobre nada senão da obsessão infernal dele?
Jon corou muito.
— Você tem medo — disse ele e foi como se estivesse cuspindo no outro. Allan olhou para ele com desprezo.
— De quê? — perguntou. — De homens como você?
Rufus interveio, depressa.
— “Os tempos estão desordenados.” Imagino que você pense isso e acredite nisso, Jon. Mas sempre estiveram. O tempo ajeitou o longo passado atrás de nós, tornando-o quase sem feições, os vulcões arrasados, os rios transformados em sossegados riachos... E depois que nós também formos esquecidos, e também os filhos de nossos filhos, milhões de homens olharão para trás, para os nossos tempos, e, no meio de suas confusões, guerras e acontecimentos, dirão, talvez com inveja: “Como os velhos tempos eram pacatos, como eram ociosos, agradáveis e tolerantes”. E será uma mentira o que disserem, assim como é o que dizemos sobre o passado.
— Mas temos de lidar com o presente, assim mesmo, e com os idiotas que o presente gera! — exclamou Allan.
Cornélia levantou-se de repente.
— E agora que o dia começou de modo habitual para esta família, e nada de agradável foi dito para perturbar o costume, acho que vou subir com o Allan, para uma consultazinha sobre certos assuntos.
Tony, levantando-se, riu com Rufus, o pai e com Dolores, mas seus olhos estavam preocupados. Ele pegou a mão da irmã e saiu com ela da sala de jantar, sussurrando:
— Preciso conversar com você, meu bem. Quero seus conselhos.
Ela lhe lançou um olhar triste e, medroso e meneou a cabeça.
O mordomo puxou a cadeira de DeWitt e o rapaz colocou uma das mãos na bengala, outra na mesa e se empurrou para se levantar, devagar, mas com firmeza. Allan ficou esperando. Não ousava oferecer ajuda. Procurou tornar-se invisível, observando o vulto aleijado, como um gnomo, andando sobre o tapete pesado. DeWitt não tomou conhecimento dele e, novamente, ocorreu a Allan que DeWitt não se dirigira a ninguém a não ser aos empregados. O rapaz estaria se retraindo ainda mais nos seus silêncios, ou, como sempre, estaria só observando? “Se eu ao menos pudesse alcançá-lo”, pensou Allan, andando devagar atrás do filho. “Mas nunca pude.” E ninguém mais tinha conseguido, tampouco, a não ser Tony.
DeWitt foi andando, a mão branca na bengala, as feições miúdas contraídas numa determinação quase sobre-humana. Se viu o pai atrás de si, não o demonstrou. Estelle estava ali de pé, os filhos junto dela, olhando para eles numa comunhão muda e com um ar indefeso e comovente.
— Acho que hoje seria o melhor — disse Dolores ao irmão, os dois sentados na penumbra nevoenta da saleta. — Papai tem estado tão bem, ultimamente, embora não tenha deixado de beber. — Ela suspirou, com pesar. — Depois, a família vem jantar e já notei que ele não costuma beber muito antes das festas, só que não suporta o tio Patrick e por vezes fica... descuidado. Nos feriados, tendo de comparecer ao jantar, ele se controla. Não quer ficar mal diante dos filhos.
— Mas nós compreendemos — disse Tony.
— É, meu bem. No entanto, ele tem o seu orgulho e ainda acredita que esconde isso de nós. Portanto, mesmo que você o deixe perturbado, ele não... não...
Tony passou as mãos pelos olhos e o rosto, num gesto lento de aflição.
— E se o nosso pai for lançado de novo ao que já foi, por mim? Não posso ter isso na minha consciência.
Dolores sorriu com tristeza.
— Ninguém na verdade “lança os outros” de novo em nada. Você só pode precipitar o que já estava ali, esperando. E você tem de pensar em si, também, em toda a sua vida. — Ela tocou no ombro dele de novo, consolando-o. — Para o bem ou para o mal, estamos sempre influenciando alguém, cada dia de nossas vidas, e eles estão nos influenciando. Você se lembra de me contar como descobriu o que queria fazer? Você estava passeando a pé por uma estradinha em Cannes e de repente encontrou um muro branco coberto de buganvília magenta e o sol bateu nele; aí você parou e de repente soube. A luz nas flores... foi apenas um fator precipitador.
Tony levantou-se e pôs a mão com carinho na cabeça loura da irmã, e ela olhou para ele, com os olhos sérios, sorrindo. Ele meneou a cabeça e a deixou. O corredor lá fora estava cheio de luz cinzenta do céu tumultuoso. Todos iam almoçar nos quartos, para os empregados poderem preparar a mesa para o jantar de Ação de Graças. Tony não ouvia ninguém se movendo no andar de cima. Foi seguindo pelo corredor, sério, e parou diante da porta do quarto do irmão.
Hesitou e depois a abriu. DeWitt estava descansando na cama, lendo. Olhou para Tony com uma frieza tenebrosa, conservando o livro nas mãos.
— Não o ouvi bater — disse.
— Se eu tivesse batido, você não teria dito “Entre”. Teria dito “Quem é?” e, se lhe dissesse, você respondería que estava ocupado. Aí eu teria de ir embora, e não quero fazê-lo.
A careta mais parecida com um sorriso que DeWitt se permitia pairava junto de seus lábios apertados. Ele largou o livro.
— Está bem, sente-se, mas seja breve. Imagino que tenha alguma coisa a me contar.
Somente o lampião junto da cama estava aceso e lançava sombras douradas no teto branco, sombras a que se juntavam os raios vermelhos do fogo. Tony sentou-se perto da cama e olhou para o irmão, calado.
0 fogo crepitava na lareira e as janelas gemiam ao vento. Os dois rapazes se contemplaram sem falar, por algum tempo. Depois Tony disse:
— Espero que não pense que estou maluco ou coisa assim, mas vou ser
padre.
Ele esperou. A expressão de DeWitt não mudou em nada. Ele apenas colocou o livro a seu lado.
— Pensa que isso é novidade? — perguntou. —Já venho desconfiando disso há mais de um ano. Aliás, a mãe também sabe. Contei a ela.
Tony não podia acreditar e DeWitt resmungou, rindo.
— Ela não quis acreditar, riu e fez algum comentário vulgar, creio, mas não ficou preocupada. Lembrei isso a ela uma ou duas vezes, depois da primeira vez, e ela agora está começando a aceitar a coisa, ao jeito dela. Mas tenho certeza de que receie que isso perturbe o papai querido.
— Você acha que ela contou ao vovô?
Tony ainda não conseguia acreditar.
DeWitt deu de ombros.
— Ela não conta tudo a ele, sempre?
Tony estava tão admirado diante de tudo isso que disse:
— Eles sabem que agora sou católico?
DeWitt achou aquilo ingenuidade.
— Talvez. Não são idiotas, sabe. Além disso, ela acabou de descobrir que há católicos na família daquele inglês calhorda e, melhor ainda, um bispo ali perto. Um bispo rico, com título dele e tudo.
Tony disse:
— Mas claro que Dolores não vai casar com o Dicky.
DeWitt bocejou.
— Ela sabe disso? A mãe não sabe, e é tudo o que importa.
Tony se levantou, muito preocupado, esquecido de seus problemas pessoais. Atiçou o fogo, varreu umas cinzas, foi até à janela e depois voltou a
sentar-se. Repetiu:
— Dolores não vai casar com ele, eu sei. Não gosta nada dele e não é uma
fraca.
DeWitt sorriu e não deu resposta.
Tony estava pensando, aflito, puxando a orelha. O irmão ficou observando-o, os olhinhos pretos meio curiosos.
— Imagino — disse Tony — que não se interesse em saber os motivos para a minha decisão?
— Não muito.
Mas Tony, apreensivo, fitou o irmão, muito sério.
— Tenho de lhe dizer. Quero ser de alguma utilidade neste mundo. Quero servir a Deus.
— Bom — disse DeWitt, sem qualquer ironia na voz.
— Você não compreende. Tenho uma vocação. Já sei disso há anos. É preciso haver um chamado, para se servir a Ele.
DeWitt se remexeu nos travesseiros.
— Imagino que você acredite nisso. Quem sou eu para julgar?
A curiosidade se acentuou nos olhos dele, mas Tony viu que o rapaz não estava zombando dele, como temera.
— Eu queria — disse ele, muito baixinho — que essa família fosse um pouco religiosa.
— Por quê? Para que vamos nos iludir, se não quisermos?
— Iludir? DeWitt, é a única realidade.
DeWitt tornou a se mexer nos travesseiros e então todo o seu corpo miúdo exprimiu sua impaciência.
— Essa é a sua ilusão, Tony. A minha realidade é minha. Não vou falar de metafísica com você; você me entediaria. Já tenho idade suficiente para escolher quem vai me entender e, no momento, você não é minha escolha.
Tony riu, sem querer. 0 estranho laço que sempre existira entre os dois se refez e, depois de um instante, DeWitt também riu. A seguir, ficou melancólico.
— Tony, sempre achei que você era a única pessoa honesta nesta família. Você nunca foi fingido, afetado ou malicioso. Em todo caso, sempre o respeitei. Por vezes, todo mundo tem necessidade de estar com uma pessoa honesta, mesmo que seja para uma experiência singular.
Tony tornou a rir, levantou-se e despenteou o belo cabelo preto do irmão. DeWitt não recuou maquinalmente, como recuava quando outros o tocavam. Pelo contrário, ficou muito parado e só quando Tony tornou a se sentar é que arrumou o cabelo. A ruga de sofrimento entre seus olhos desapareceu e ele olhou para o fogo, pensativo.
— Você não é tão mau, nem tão sofisticado, nem tão controlado quanto pensa que é — disse Tony, com carinho.
— Eu nunca me examino — respondeu DeWitt. — Deixe de ser sentimental,
Tony.
Mas Tony disse:
— Não se esqueça de mim, garoto.
DeWitt virou a cabeça e olhou para o irmão com uma expressão esquisita.
— Eu não daria certo no negócio de estradas de ferro — continuou Tony. — Mas você dará.
— Por certo — disse DeWitt.
— Espero que os outros concordem com você.
— Você não vai ter dificuldade em convencer os outros quanto à sua decisão, a não ser o nosso querido papai — comentou DeWitt, depois de uma pausa.
Tony suspirou.
— Eu queria poder pensar que você o consolaria, DeWitt.
DeWitt olhou para ele de esguelha e pela primeira vez Tony pensou no mal, e ficou chocado. Ele se debruçou, para examinar o irmão. Seria possível que DeWitt detestasse o pai deles? Inveja, ressentimento, o desdém de uma alma autossuficiente e mesquinha por um homem que nunca podería ser autossuficiente e era um tumulto de dinamismo, tormentas emocionais e abalos? Tony disse:
— Pouca gente compreende o pai. Ele é um gigante de poder e gênio e ninguém consegue se opor a ele, quando ele se resolve a fazer alguma coisa. Homens como ele por vezes são ridicularizados por outros cujas experiências tenham sido superficiais, desinteressantes ou infelizes.
DeWitt fechou os punhos sobre o lençol. Não fez comentários, embora Tony os esperasse. Por fim, o rapaz disse:
— DeWitt, o nosso pai passou por um inferno de que ninguém sabe, para chegar aonde está.
— E agora você chegou às suas próprias conclusões, a respeito de mim e de nosso pai. Quer que eu o console. Posso prometer uma coisa: não o decepcionarei. Isso basta?
— Imagino que tenha de bastar. — Tony foi dominado por uma sensação de uma frustração triste. Ele se levantou. — 0 homem não pode prometer fazer o que não pode. Mas há outra coisa que eu queria lhe dizer. Você só tem quinze anos e falta ainda algum tempo para poder assumir o trabalho do pai. Enquanto isso, há outros...
DeWitt pareceu aborrecido.
— Quer dizer, Miles e Fielding.
Tony se espantou, o que fez DeWitt sorrir.
— É tão óbvio, Tony. Só os cegos não vêem... 0 tio Pat quer ver sangue... o sangue do pai... e sempre quis. E de que modo pode arruinar o pai e com que armas? Os filhos. São netos de Stephen DeWitt, e as histórias sobre o nosso tio-avô ainda estão circulando por aí. Ora, na cabeça do tio Pat, é tudo muito virtuoso: retribuição justa, ou coisa que o valha. Ele teve anos para pensar em tudo. Aliás, você tem medo deles, por mim?
— Ah, tenho — balbuciou Tony, corando. — Talvez seja pouco caridoso, mas é que os conheço. E sei das ações que têm. Não estou pensando só em você,
mas no pai também.
DeWitt ergueu as sobrancelhas pretas.
— Sabia que uma das jogadas era Dolores? Miles não a quer pelo que ela é, mas também porque é a futura herdeira dos Marshall.
Ele meneou a cabeça para o irmão, que estava boquiaberto.
— Não se preocupe muito com isso. A mãe não gosta dele, nem Dolores. Mas assim mesmo ele é perigoso, reconheço, e o Field também. Mas tenho um trunfo contra eles. Quando tivermos idade, vou me casar com Mary.
Tony sacudiu a cabeça, aturdido.
— Não pode — murmurou. — Estou com medo de ir embora.
DeWitt achou graça.
— E o que é que você poderia fazer? Aliás, você não ia falar com outra pessoa, hoje? Ébom se apressar; já são quatro horas e os Peale vão chegar às seis.
DeWitt sorriu para o espantado Tony e tornou a pegar o livro.
— Acho que você está começando a me entediar. Vá andando.
Tony desceu na penumbra cálida, procurando o pai. Via as nuvens se concentrando no céu; uma luz cinzenta e espectral brilhava através da neve, mas não o suficiente para mostrar que além da casa houvesse algo senão montes de neve crepusculares. As portas da sala de jantar estavam cerradas e por trás delas vinha o ruído confortável de talheres e louça sendo arrumados, um som tranquilizante num silêncio compacto, só quebrado pelo uivo do vento contra a casa e os gemidos sob os beirais. Todos os aposentos tinham as lareiras acessas e raios vermelhos caíam intermitentemente sobre os móveis mudos e os tapetes coloridos, as paredes e tetos brancos.
Tony sabia que Allan não estava no andar de cima; Cornélia estava fazendo a sesta e o pai dela também. Assim, Tony espiou na sala de visitas embaixo e até na sala do café da manhã. Vagou pelos corredores. Havia uma porta da qual ainda não se aproximara, mas sabia que estava fechada e recuava dela: a biblioteca. Vezes e mais vezes, ele disse consigo que o pai com certeza estaria trabalhando nos papéis de negócios, como fazia em geral quando estava em casa, e que não havia motivo de preocupações. No entanto, havia algo de curiosamente conhecido naquela porta fechada, alguma emanação que Tony captou. Ele bateu, de leve. A voz de Allan, sem vida e grossa, se fez ouvir:
— Quem é? O que deseja?
“Mãe do Céu, ajudai-me”, rezou Tony e respondeu, com a voz mais calma possível:
— É Tony, pai. Posso falar com o senhor um instante? É muito importante.
O vento aumentou de força, num tom uivante, e a casa grande estremeceu. Tony esperou, rezando febrilmente. Depois ouviu o afastar de uma cadeira e a voz de Allan, mais próxima.
— Vá embora, Tony. Estou ocupado.
— Eu sei — disse Tony. — Mas é muito importante, pai. Não posso falar mais tarde. Por favor, pai.
Por trás da porta ele ouviu um grunhido, depois passos lentos e arrastados e uma tranca correndo. A porta abriu-se e Allan apareceu, em mangas de camisa, a gravata desfeita, o cabelo desgrenhado. Tony viu o rosto dele, vagamente, moreno, aflito e tenso, e sentiu o cheiro de uísque. A coragem do rapaz ficou abalada; aquilo era muito mau. Havia muito tempo que não acontecia. Ele entrou na biblioteca. Só havia a luz de um fogo se apagando, e um copo e uma garrafa de uísque estavam sobre uma mesa junto da lareira.
— Por que quer me falar agora? — perguntou Allan, com a voz áspera de um homem cheio de vergonha e desespero. — É, isso aí é uísque. Dia horroroso, esse vento uivante. E pensar em Pat Peale sempre me dá vontade de beber. — Ele tentou sorrir. Tony sorriu, como se tudo fosse muito engraçado. Allan caiu de novo na poltrona, as mãos agarrando os braços enquanto procurava se controlar. — Bom, então — disse ele, com indulgência. — Quer beber comigo, para brindar o tempo e esperar que ninguém possa chegar aqui hoje?
Ele estava olhando para Tony, desconfiado, os olhos injetados. Tony disse:
— Para dizer a verdade, gostaria de beber alguma coisa. Pensei em beber com o senhor e ter uma conversa, só nós dois sozinhos, Tem conhaque aqui?
Allan tentou se levantar e depois sacudiu a cabeça, como se estivesse tonto.
— Bem aqui, na divisória do lado direito, no aparador. Tem copos também.
Tony abriu a porta de baixo e pegou o conhaque e um copo pequeno, concentrando-se em servir a bebida. A luz do fogo iluminava os livros, as paredes, as cortinas, as janelas fantasmagóricas. O rapaz sentou-se do outro lado da lareira e começou a bebericar. Seria o dia errado? Seria a ocasião adequada? Outros homens ficam amáveis e simpáticos com o álcool, mas Allan não. A irritabilidade e intolerância eram os efeitos menos graves do seu vício. Mas Tony foi impelido a falar, a despeito de seus temores e dúvidas.
— Pai, é sobre o meu futuro — disse.
— Meu Deus, é só isso? — exclamou Allan, quase enfurecido: — Pensei que fosse alguma coisa importante e imediata. O seu futuro! Não está tudo resolvido? Harvard e depois o escritório. O que mais?
Tony apertou bem o cálice nos dedos e tornou a rezar. Seu pesar pelo pai era como um vento tenebroso no meio das palhas vivas de sua oração.
— Pai — começou, tateando —, há outra coisa. Eu já devia ter-lhe falado a respeito há muito tempo, mas o senhor estava doente e eu não queria incomodá-lo.
Allan ficou sóbrio de repente, o álcool só permanecendo em seu cérebro como uma emoção tumultuosa, aguardando para explodir desastrosamente.
— Então? — disse ele, e Tony se alarmou com aquela palavra calma. Os olhos de Allan estavam fixos nesse filho mais querido, mas agora não havia neles qualquer expressão de ternura, mas apenas uma expressão de uma espera furiosa, de concentração, uma catapulta levantada.
— Não posso voltar para Harvard, pai — disse Tony, desviando o olhar daquela imagem da violência. — Não posso ir para o negócio ferroviário.
Allan não disse nada. Serviu-se de meio copo de uísque e o sorveu, sedento. Depois, largou o copo e ficou olhando para ele.
— Acho que eu já sabia — murmurou, por fim, quando o silêncio estava se tornando intolerável para o rapaz. — Estava nos meus ossos, saber isso. Certo, estava nos meus ossos, como uma dor.
O pouco que restava da coragem de Tony se dissolveu. O pai só voltava ao seu sotaque e expressões de infância quando estava sob uma tensão insuportável. Mas Tony teve de falar.
— É. — Tentou sorrir para o pai. — Nós sempre sabemos de coisas que não são faladas, nós, irlandeses, não é?
Allan levantou a cabeça, ferido de novo numa chaga que nunca sarara. Sua fisionomia sofreu uma mudança sutil. Ele tornou a observar o filho e lambeu os lábios. Tony disse, com brandura e num tom de graça, afetuosa:
— Nós irlandeses de barraco, que passamos a ser irlandeses de cortina de renda. O senhor e eu, pai.
Os lábios secos de Allan se abriram.
— Tony, você nunca se considerou irlandês, não é?
— Sim, pai, desde o dia em que nos levou para conhecer os seus pais.
Allan disse:
— Eu nunca devia ter levado vocês lá. Foi errado.
— Por quê? Aí eu nunca os teria conhecido, nem ao tio Michael.
Allan se levantou e começou a passear pelo aposento, aflito. Fez gestos a esmo: cerrou o punho e esfregou o lado do rosto magro com a ferocidade do desespero. Ficou andando à toa, enquanto Tony o observava com uma compaixão profunda e triste — e carinho.
— Aprendi tanta coisa com eles. Aprendí sobre as vítimas da intolerância, da crueldade e maldade. Eles me contaram sobre a Revolta Irlandesa; contaram da fome, dos navios que não queriam deixar entrar em nossos portos e a degradação infligida sobre os homens sem esperanças, o desprezo social e a perseguição da fé, não só nos Estados Unidos, mas também na Austrália e na Inglaterra e em muitos outros lugares. Contaram-me sobre a opressão de outros homens também...
Alguma palavra imobilizara Allan. Ficou parado onde estava e todo o seu corpo ficou duro, paralisado, apanhado no meio de um gesto, ao virar a cabeça. Ele disse, em voz rouca:
— A fé?
Tony se levantou e foi encarar o pai.
— É — disse, com muita brandura. — A fé.
— Você? — sussurrou Allan. Depois exclamou: — Não! Não! — Ele começou a praguejar, selvagemente, batendo com o punho na palma da mão esquerda. — Eu sabia que estava errado, levando você! Errado, errado! Eles o influenciaram escondido, traiçoeiramente...
— Não, pai, não. Eles me deram uma herança, raízes. Deramme algo a que me agarrar. Eu nunca tive isso. Nunca tive um ponto de referência, ou algo de que me orgulhar, com que me identificasse.
Levantando as mãos, desordenadamente, Allan se afastou do filho. Gritou:
— É sempre a mesma coisa, por toda parte! Os filhos censuram os pais, os filhos dos filhos censuram os pais deles, desde o princípio do mundo, até o fim do mundo! “Você nunca me deu... nunca fez isso por mim... perguntei e você não respondeu!” — Ele parou, de repente, as mãos no espaldar da cadeira, e olhou
para o fogo como se atingido por um pensamento fulminante.
Tony, quase chorando, disse:
— Não estou censurando, pai. Sabe, o senhor não tinha nada para dar. Perdeu-o antes de eu nascer.
— É sempre a mesma coisa — repetiu Allan, a voz fraca. Aos pouquinhos, foi dando a volta à poltrona e caiu nela. Tony foi-se postar ao lado dele. “Eu o fiz piorar; fiz alguma coisa horrível para ele”, pensou o rapaz, aflito. Depois de muito tempo, Allan levantou a cabeça e olhou para o filho. — Perdi — disse ele. — Foi há muito tempo; numa manhã de junho. Uma bola vermelha. Minha primeira comunhão. Mike. Há muito tempo.
Ele falou como se falando sozinho e era como olhar para uma nudez. Tony desviou o olhar. Ali havia algo de agonia suprema, que a mão mais branda não ousava tocar.
O fogo se desfez em brasas vermelhas e a ventania redobrou em ferocidade, enquanto a terra se apagava, do lado de fora. Então Tony, mergulhado na sua infelicidade, ouviu o pai falar, quase normalmente:
— Dê-me outro uísque, Tony. Meio copo.
O rapaz obedeceu. O pai pegou o copo da mão dele e bebeu só um pouco. A luz do fogo dançava sobre o líquido âmbar e a mão cheia de tendões que o segurava.
— Não importa — disse Allan, dominado pela fadiga. — O que você fez está feito. Não tenho nada a dizer, nem perguntar. Estou muito cansado e de repente não parece ter importância. A estrada de ferro: você não quer fazer parte dela. Não faz mal. Temos o DeWitt. Estou muito cansado. O que você quer fazer?
Tony entreabriu os olhos, mas não conseguiu falar. Sentou-se perto do pai, com muito medo. Allan começou a observá-lo, mexendo a bebida no copo. O vento berrava nas janelas, uivava na chaminé. Então tudo na sala recuou, na penumbra.
— Então? — disse Allan, impaciente, mas com carinho súbito. — Não tenha medo, Tony. Conte.
Tony ficou ali sentado, em todo o seu esplendor louro, viril, forte e jovem, mas o rosto estava angustiado.
— Pai — disse ele —, sempre fomos tão unidos. — Ele hesitou. — Pai, quero ser padre.
O copo caiu da mão de Allan e se despedaçou em cacos iluminados pela luz do fogo, na lareira de mármore. Allan agarrou os braços da poltrona e começou a se levantar. Depois, tornou a sentar-se como se tivesse levado uma pancada que o mataria. Ele disse, balbuciando, fraco:
— Veio aqui... é zombando de mim que você está. Sabe, claro, e sempre soube... me abater.
— Não sei de que está falando, pai, juro por Deus que não sei! — exclamou Tony, num pavor simples. — O que quer dizer? O que é que eu fiz?
Ele se levantou de um salto, vacilou e depois caiu de joelhos diante do pai. Pegou uma das mãos de Allan e ficou horrorizado diante da frieza e como ela estava pegajosa. Os olhos de Allan ardiam dentro dos do filho e sua respiração estava ruidosa. Mas ele continuava calado, olhando e escutando.
De repente, ficou muito parado. Seu corpo se descontraiu, como o de um
moribundo. A cabeça de Tony estava abaixada e ele então começou a soluçar, secamente. Encostou a cabeça na asa da poltrona, perto da cabeça de Allan e chorou como uma criança.
Então, sem poder acreditar, sentiu a mão de Allan em sua cabeça, uma mão consoladora, a mão de um pai. Os dedos de Allan começaram a passar pelo rosto do filho, virando-o para si, a fim de poder ver as lágrimas. Allan estava sorrindo, um sorriso exausto, mas amoroso.
— O rapagão está chorando — disse. — Chorando, o rapaz que quer ser padre! E o que fará o rapagão, quando tiver uma paróquia, ou estiver no estrangeiro, e tiver de ver todo sofrimento, e dar uma extrema-unção e consolar os aflitos? O seu coração terno vai se despedaçar, então?
Tony, sem poder acreditar, soluçava e olhava para o pai. Allan sorriu para ele, a boca trêmula. Depois, com um grito, Tony se lançou aos braços do pai e eles se abraçaram, convulsivamente.
40
“Burguês” tornara-se o epíteto mais desdenhoso de Estelle DeWitt, sob a tutela secreta do filho. Para sua mente superficial, significava não só uma classe de gente que não se convidava, claro, para jantar ou tomar um chá, mas também toda a família DeWitt. Inquieta quanto à sua própria origem, ela fortalecera a sua posição assumida de aristocrata com risadinhas e zombarias afetadas dirigidas aos que ela chamava de “trabalhadores sem alma” e “mouros grosseiros e vulgares, só absortos nos seus ofícios e negócios”. Allan, para ela, era o protótipo do patife sem família e de origem baixa, que só tinha na vida o interesse do dinheiro.
Assim foi que, depois do café da manhã do Dia de Ação de Graças, ela suspirava com uma resignação suave, dizendo:
— Agora tenho de ir falar com nossos empregados matutos... que criaturas!... para ter certeza de que tomem cuidado com a louça, contem as pratas e não assem demais o peru. Em Portersville, sinto-me como se fosse uma dona-de-casa de classe média!
Acompanhada por Norman, ela entrou na copa, com imponência. Jon subiu para seus aposentos, ainda furioso com Allan e o pai. O ódio que sentia por eles fez seus ouvidos zunirem e seus olhos se turvarem quando tentou ler, junto ao fogo. “Porcos de classe média! Quem permitira que essa classe saísse de suas sarjetas?” Antes de 1840, um aristocrata, um homem de fortuna e posição, era o único rei em seu mundo, um mundo composto de humildes lavradores e artesãos vivendo sob o domínio benigno de um patrício esclarecido. Depois, com a revoltante revolução industrial, surgiram os mercadores, os comerciantes, os lojistas — a burguesia, os empregadores do trabalho urbano. Eles tinham expandido a indústria até atingir suas dimensões atuais, nojentas, tinham arrancado o poder de seus superiores, tinham construído suas casas horrendas e empilhado uma riqueza que não mereciam.
Invadiram os “negócios”, arrancando-os de mãos alvas e cavalheirescas e transformando-as num vasto império. Os filhos batiam às portas das profissões finas. Seus gritos soavam fortes nos lugares enclausurados e seus rostos gordos riam dos deuses de mármore. Eles afastavam os antigos e destronados senhores dos homens.
Deviam ser destruídos. Só então o poder poderia reverter aos seus devidos guardiães os aristocratas por nascimento e tradição — e só então os lavradores,
artesãos, lojistas e o “homenzinho” voltariam ao seu antigo estado de felicidade inocente sob o domínio de seus líderes naturais, alegres, contentes e obedientes.
Jon e seus amigos na América e na Europa tinham o cuidado de não ser sinceros quanto aos seus verdadeiros objetivos. A maior parte não era sincera nem consigo mesma. Sua única paixão era o ódio pela classe média, os “exploradores”. Ainda que a burguesia fosse responsável pela educação compulsória das massas na Europa e na América, que essa mesma burguesia tivesse demonstrado interesse insolente na construção de hospitais, galerias de arte e orfanatos ou que considerasse os sindicatos trabalhistas com certa simpatia, chegando até a auxiliar na formação deles, isso nunca era reconhecido por Jon e seus amigos. O fato de serem os burgueses eminente e orgulhosamente patriotas, quer fossem ingleses, franceses ou alemães, era outra manifestação de sua “vulgaridade”.
Os “aristocratas” eram poucos e indefesos. O aríete de que precisavam para arrombar os portões de dobradiças de ferro da burguesia eram os “trabalhadores”. E os trabalhadores não poderíam ser transformados num único aríete se não se convencessem, nessa época de expansão tanto da classe média quanto da trabalhista, de que eram “explorados”, destituídos e escravizados. Os trabalhadores precisavam de uma voz. Tinham ouvido essa voz pela primeira vez nas obras de Voltaire e Rousseau. E essa voz era mais trovejante nas de Marx e de seus contemporâneos.
Era estranho que Jon e seus amigos não contassem, entre os burgueses, os homens que tinham feito fortunas inacreditáveis nos primeiros dias da revolução industrial e que hoje, retirados dos negócios, viviam nos châteaux na França, nas mansões da Escócia e nas grandes casas da Quinta Avenida, transformando-se, por sua vez, em aristocratas. Muitas de suas memórias se tinham tornado muito precárias. Seus vigorosos antepassados surgiam em suas mentes como formas vagas, com um colorido patrício, vultos delicados movendo-se no meio da música de cravo e um ambiente perfumado, intelectuais, patronos das artes, cavalheiros, administradores da lei, grand seigneurs.
Havia ocasiões em que a mente de Jon DeWitt era dilacerada por seu ódio a homens como Allan Marshall. Então ele tinha momentos de lucidez e via claramente. Mas isso só lhe aumentava o ódio.
Ele largou o livro que estava tentando ler e pegou um jornal de Nova Iorque para reler uma grande notícia nas colunas sociais que, naquela manhã, tinha-o enfurecido.
“O sr. e sra. Rufus DeWitt regressaram à casa da família em Portersville, Pensilvânia, para o Dia de Ação de Graças. São acompanhados pelo sr. Allan Marshall e sra. Marshall, filha do sr. DeWitt, e Rufus Anthony, Dolores e DeWitt Marshall, filhos do sr. e sra. Allan Marshall. A família pretende, como de costume, permanecer em Portersville até depois das festas de Natal, quando voltarão para Nova Iorque.”
No final da notícia havia algumas linhas insignificantes:
“O sr. Jon DeWitt e seu irmão, Norman DeWitt, filhos do sr. e sra. Rufus DeWitt estão no momento com a família em Portersville.”
Essas linhas é que tinham enraivecido Jon. Seu egoísmo, sempre sensível e delicado, se revoltava diante dessa indiferença gritante. Ele podia zombar dos “tolos que adoram ver os nomes nos jornais, para deleite do público babão e imbecil”, mas o fato era que sua insignificância aos olhos dos jornais era um rude golpe ao seu amorpróprio e à sua fé na própria importância. Ele disse consigo, vingativo, jogando o jornal no fogo: “Um dia desses hão de me notar. Um dia desses hão de me adular e escrever sobre mim, servis e apavorados.”
Quando chegou a bandeja com o almoço dele, ficou enjoado só de ver a comida e nem tocou nela. Estava tão intimamente convicto de sua própria falta de poder, tão intimamente enjoado de si, apesar de toda a sua casuística, que a visão de um sustento para seu corpo, necessário para ele continuar a existir, o revoltou. De repente, teve vontade de conversar com a mãe, docemente compreensiva,
e em cujos braços consoladores ele novamente se poderia sentir dominador — e homem. Ele esperou mais de uma hora, sentado à janela, olhando o céu crepuscular, os montes cinzentos de neve desolada, a sombra cinzenta das montanhas mortíferas. Esperando, estremeceu. Por uma ou duas vezes olhou para uma mesa onde estava uma carta aberta, que ele recebera de Miles Peale na véspera. Uma carta breve, bondosa, discreta e cheia de promessas. Ele revia as palavras, mentalmente: “Precisamos ter uma longa conversa. Tantas coisas estão por resolver, mas, afinal, tenho apenas dezessete anos e você é tão mais sábio e experiente”.
Quando Jon recebera essa carta, ficara muito excitado, o coração batendo muito apressado. Agora, olhando para a carta, só sentia repulsa. Por fim ele se levantou. Esticou-se, cansado, e foi procurar a mãe. Esperava encontrá-la descansando, depois do almoço, o roupão bonito estendido sobre a espreguiçadeira, a cabeça jovem nas almofadas de cetim. Mas ela não estava no quarto perfumado, todo de babados rosa e branco e cortinas rosa e tapete rosado, nem na saleta, toda dourada, azul e rosa forte. Alguém atiçara sua mãe, e o perfume dela estava por toda a parte. Jon vagou por ali, tocando com prazer nas sedas, damasco e babados, abrindo as portas do armário para admirar os vestidos, pegando um sapatinho de cetim e encostando-o à face, com carinho. Depois, na penumbra de fim de tarde, ele se sentou num canto e ficou aguardando.
Passou-se algum tempo até ele ouvir o riso juvenil da mãe e uma resposta do irmão Norman. Jon praguejou, zangado, e depois acalmou-se. Norman se limitaria a levar Estelle aos seus aposentos, ou ficaria alguns momentos. Jon encolheu-se mais na poltrona, quando a porta se abriu. Estelle entrou, rindo, Norman ao seu lado. Ela foi logo sentar-se à penteadeira e Norman acendeu as velas em volta. Ela o observou e depois disse:
— Que coisa ridícula! Ainda temos velas e lampiões de querosene neste lugar horroroso! Tão anacrônico. Nem mesmo o gás! Como vai ser maravilhoso voltar a Nova Iorque, onde basta a gente apertar um botão e todos os aposentos se inundam de luz elétrica! Mas imagino que tenhamos de fazer a vontade de seu pai e Cornélia, que gostam de se imaginar simples aldeões.
Norman debruçou-se sobre o ombro da mãe, admirando-a à luz das velas.
— Está tão linda, querida, nessa luz trêmula.
Ela se aprumou e lançou-lhe um olhar coquete, que Jon, na sua poltrona escondida, viu. Ele viu o olhar e de repente lhe pareceu monstruoso e não cativante, como antes. Viu os olhos da mãe se inundarem de luz, como os olhos de uma amante poderíam se encher em companhia de um amante não reconhecido.
A mãe sempre fora assim com ele; ele nunca soubera de fato que o irmão
também merecia esses brilhos, esses olhares radiosos, esses contatos brejeiros de braços, mãos e faces, essas inclinações da cabeça, o escorregar consciente ou inconsciente de um roupão num ombro. Para ele, tinham sido “lindos”, reservados só para ele, numa comunicação secreta e solitária de espíritos irmãos, não maculados pela feiúra, só acesos com uma beleza terna.
As mãos de Norman moviam-se devagar mas com firmeza sobre os ombros da mãe. Ele abaixou a cabeça e beijou-a bem nos lábios. Ela murmurou:
— Tão querido. Nem sei o que eu faria sem você, amor. É um consolo tão grande. — Ela afagou-lhe a face e seus olhos castanhos dilatados, fixaram-se no filho. — O único que me compreende, em todo o mundo.
Norman passou a mão, carinhosa, sobre os cachos no alto da cabeça de Estelle.
— É, eu sei. Todos os outros são tão grosseiros. Até mesmojon.
Jon se mexeu na poltrona. Norman estava rindo.
— Jon. Ele e aqueles amigos indizíveis em Paris. Falam da “revolução”, do “desenvolvimento do proletariado”, de sua arte moderna e do “novo mundo”. Mas na verdade não passam de conversas fiadas, todos eles. O trabalho que tiver de ser feito será feito por homens como eu e embora utilizemos os... os...
— Os o quê, meu bem? — indagou Estelle, inocente.
Norman sorriu.
— Bem... gente estranha... como Jon. Não preocupe sua cabecinha linda com isso, Esty. Temos de empregar os tipos mais estranhos e o faremos, no futuro. Todos os meios servem para um bom fim.
Estelle estava sinceramente intrigada.
— Jon não é propriamente “estranho”. Reconheço que ele é diferente, mas também é meu filho, sabe, se bem que não seja tão ligado a mim quanto você, amor.
O rosto de Estelle escureceu e as mãos sobre a mesa se crisparam.
— Ah, eu queria que as coisas andassem depressa, Norman! Homens como o seu pai e aquele horroroso Allan Marshall deviam aprender, afinal, que não são mais donos do mundo.
O sorriso de Norman foi indulgente. Ele repetiu:
— Não preocupe sua cabecinha com isso. Bom, agora imagino que eu tenha de deixá-la descansar. Essa maldita família dos infernos! Não suporto o Dia de Ação de Graças, ou qualquer outro feriado, quando o clã se junta e ficam rosnando um para o outro.
— Espero que Jon não precipite outra briga, como fez hoje de manhã — disse Estelle, zangada, — Ele só faz irritar o pai. Cada vez que isso acontece, vejo Rufus fazendo outro testamento, deixando cada vez menos para ele. Você, querido, tem mais juízo. Concorda com todos e nunca discute com ninguém. Tão discreto.
— Não se preocupe — disse Norman. — Afinal, não será Jon que estará no meio do fogo. Nós agimos discretamente, sem barulho, por trás dos bastidores. Temos um plano agora, sobre as escolas, que provavelmente só poderemos pôr em execução dentro de alguns anos. Já tive muitas conversas com educadores... Bem, estou aborrecendo-a e você tem de descansar.
Ele deu outro beijo na mãe e saiu do quarto. Sozinha, Estelle propositadamente descontraiu o rosto tenso. Ela se levantou diante do espelho, passando os dedos carinhosamente pelo tronco. Começou a fazer barulhinhos suaves e ternos para sua imagem ao espelho, os murmúrios de um amante. Jon observava, em meio a seu terrível mal-estar de corpo e alma, e sua boca, mãos e pés estavam frios e dormentes. De repente, ele não pôde mais suportar ver a mãe. Ficou dizendo a si mesmo, vezes e mais vezes: “Puta, puta, puta feia e pervertida. Puta traiçoeira, narcisista”. O corpo dele ficou frouxo, fraco e imóvel.
Ele sabia que sempre concorrera com o irmão pelo amor exclusivo da mãe. Mas ignorava esse confronto proposital de irmão contra irmão pela vaidade fútil da mulher. Pensara que era o preferido, o confidente, o protetor, o guardião. Pensara em Norman como um discípulo ávido e dócil dos ensinamentos do irmão mais velho, um seguidor, um pedinte meio infantil e impertinente dos beijos da mãe. Ele e Estelle muitas vezes já tinham rido disso, com carinho, sentados ali juntos, nesse mesmo quarto. Estelle às vezes reclamava da "imaturidade” de Norman e Jon a reconfortara comentando que o tempo curaria isso.
Ele agora estava furioso com o irmão. Via-se a si e ao irmão como vítimas da vaidade daquela mulher, da repugnante superficialidade de sua alma e de seu ressentimento contra todos os outros membros da família. Eles eram sua futura vingança contra os DeVitt e os Marshall; eram suas armas secretas, que ela afiava com mortíferas palavras de amor e de instigação, na intimidade de seu quarto.
E, afiando essas armas, ela também destruía os filhos, na sua ânsia devoradora de poder.
Estelle tocou a campainha para chamar a empregada de modo violento e foi para o banheiro. Jon, invocando o que lhe restava de vontade, esgueirou-se da poltrona, correu para a saleta e saiu para o corredor escuro. Ele queria sumir e foi para os seus aposentos e lá vestiu o sobretudo forrado de pele. Desceu a escada correndo apenas cinco minutos antes do sobrinho, Tony, e saiu para o caos tumultuoso de vento e neve. Estava escuro e ele caminhava contra a ventania e a neve empilhada no passeio, que não tinha sido limpo. Só parou quando já estava ofegante e sentindo cansaço. Ficou ao lado de um pinheiro imenso, já tão carregado do cinzento opaco que se curvava para o lado. As janelas da casa, suavemente iluminadas, erguiam-se a certa distância dele, as linhas apagadas contra o céu espectral.
0 frio rigoroso penetrava através da pele, e Jon era um tremor só. De repente, ele começou a vomitar. Agarrou um dos galhos espinhosos do pinheiro com a mão despida, para se apoiar. De sua garganta inchada só saía um ácido, que parecia despejar-se da própria alma numa torrente ardente. Ele não tentou contê-la; era como se estivesse se purgando de um veneno.
Seus ombros e sua cabeça descoberta apareciam vagamente brancos no escuro uivante. A boca estava cheia de fogo e enjoo. Ele pôs as mãos nos bolsos e ficou ali, a cabeça abaixada. Mas seu tremor passou a ser um espasmo constante, em toda a carne.
“É tarde demais para mim”, pensou. “Nunca mais posso voltar a ser um homem. Nunca um homem. Ela matou a minha virilidade; transformou-me numa... numa coisa. Talvez já estivesse latente em mim, mas sem ela poderia nunca ter subido à tona. Eu agora poderia ser um homem, com uma mulher e filhos. Poderia ser filho de um pai que me respeitasse e quisesse a minha ajuda. Poderia enfrentar Allan sem o escárnio dele. Poderia haver saúde em mim. Nunca poderia ter sido explorado pelos odiosos mexeriqueiros em Londres, Paris ou Nova Iorque, pois
teria sido um homem.”
A ventania soprava no pinheiro. Muito tarde, muito tarde! Ele escutava as palavras dolorosas e sabia que era verdade.
Morrer. Ele tornou a pegar o galho de pinheiro, que o feria, e ficou muito parado, o corpo ainda arfando. Morrer, claro. Em algum lugar, no fundo dele, estava a terrível alternativa. Ele sabia disso desde que era mocinho.
Jon puxou o relógio e procurou ver as horas no escuro que aumentava. Já eram quase cinco horas da tarde. Dentro de mais uma hora a família estaria chegando. Jon fechou os olhos convulsivamente. Chegara o momento. Ele voltou para casa, lutou contra a porta pesada e entrou no hall quente, com a sombra do fogo no teto. Fechou a porta e ficou ali, ofegante. Encolheu-se quando ouviu abrir-se a porta da biblioteca. Tony vinha pelo tapete de tons suaves, absorto em seus pensamentos. Sem querer, Jon murmurou o nome dele.
Tony, sobressaltado, parou e olhou para o tio, na penumbra. Jon viu que ele estava desusadamente sério. Quando Tony viu que era Jon, corou e já ia se virando. Mas Jon o acompanhou e pegoulhe o braço.
— Tony — murmurou. — Escute-me, só um instante. Quero pedir que você me perdoe. Perdão, perdão.
Tony enrijeceu e depois virou-se para ele. Estava com as pálpebras vermelhas, mas examinou Jon atentamente, calado. Viu a neve nos ombros de Jon; viu as mãos azuladas e a expressão estranha no rosto do outro. Disse, com muita brandura:
— Mas já o perdoei, há muito tempo. Não pense nisso, Jon. Procure esquecer.
Ele puxou o braço das mãos de Jon, meneou a cabeça, sorriu com bondade e subiu a escada. Jon ficou olhando para ele, pensando: “Se ele se virasse uma vez e me sorrisse de novo, mostrando que perdoava...” Mas Tony, preocupado com seus problemas urgentes, não olhou para trás.
Jon, subindo a escada atrás do sobrinho e movendo-se como um moribundo, fixou seus pensamentos numa coisa só. Em seus aposentos, chamou um empregado e disse que não ia descer para jantar, pois não estava se sentindo bem, e que chamaria quando quisesse uma bandeja. Mas que não dissesse nada à família até estarem todos sentados à mesa, e que a sra. DeWitt “não se incomodasse” até depois do jantar.
O sr. Jon estava com uma de suas “dores de cabeça” e mais tarde descería para se reunir à família. Jon não temia que a mãe corresse ao seu quarto, pois já mandara vários recados desses, especialmente em dias assim. Ela apresentaria gentis desculpas pelo filho. Ele a imaginava agora, coquete, a cabeça inclinada, sorrindo seu sorriso doce e ganancioso, os olhos castanhos brilhando com aquele seu ardor artificial, a sua atitude valentemente animada para encobrir o capricho inconveniente de um filho.
Ele fechou a porta depois que o empregado saiu, tendo falado com muita calma. Pendurou o sobretudo e fechou a porta do armário. Puxou umas chaves e destrancou uma gaveta da cômoda. Lá, entre os perfumes que usava para seu prazer, em seus aposentos, e outros objetos diversos, estava uma caixinha. Na tampa ele escrevera, muitos anos antes, num estado de espírito de bravata e achando graça de si: “Para referência futura”. “Que pitoresco”, pensou. “Como eu era malditamente pitoresco, levado, engraçado e sofisticado!” Sua repugnância por si deixou-o enjoado de novo. Ele olhou para o espelho sobre a cômoda e viu seu rosto, puxado, marcado por rugas de sofrimento, contorcido numa autorrepulsa.
Ele abriu a caixa e olhou para os comprimidos cinzentos e mortíferos dentro dela. Quando tinha vinte anos, tivera torção nas costas, de um modo absurdo e sentira muitas dores. “Aviso: um comprimido de oito em oito horas.” Os comprimidos tinham aliviado a dor, dando-lhe uma sonolência deliciosa e permitindo-lhe dormir. Dormir, pensou. Ele foi ao banheiro, pegou um pouco d'água e engoliu os oito comprimidos. Depois, voltou para o quarto, atiçou o fogo e sentou-se.
Quanto tempo levaria? Uma calma de morte o dominou. Ele esperava que os comprimidos não se tivessem estragado, com o tempo. Não gostaria de se enforcar, ou cortar a garganta. Melodramático, ridículo e sórdido. Ele riu baixinho, no sossego quente do quarto. A tempestade estava ficando mais forte. As cortinas se enfunavam um pouco nas janelas; o fogo crepitava, faminto. Era só esperar; ele se recostou na poltrona e fechou os olhos.
Então, inesperadamente, uma solidão terrível o dominou, uma tristeza desolada, aguda e penetrante. A porta trancada de seu quarto lhe parecia simbólica. Ele estava só. Sempre estivera só. Estaria só para sempre. Aprisionado na terra, os sóis e séculos nada significariam para ele. A terra se esfacelaria e giraria em sua órbita vazia e ele não sabería. Em breve cairia no túnel das trevas e tudo o que ele era estaria perdido, até o fim dos tempos. “Tudo o que sou. Mas não sou nada, nada. Nunca fui nada.” Pela primeira vez pensou no pai e a tristeza tornou-se mais pungente. O pai fora ludibriado — primeiro pelas mulheres e agora pelo filho. Ele disse, em voz alta:
— Mas é melhor para você. Nunca pensei em você, antes. Eu o via pelos olhos de minha mãe. Não sou sentimental e não vou dizer que você seja um homem bom. Não é melhor nem pior do que os outros. Mas é melhor do que eu. Já o vi estremecer diante de mim e tinha o direito de estremecer. Eu não poderia prejudicá-lo morrendo, mas só vivendo. Há de saber disso, pois não creio que jamais tenha mentido para si. Perdoe-me... por ter nascido.
A solidão o agarrou, antes da morte. Foi uma secura nos lábios, uma dor nos ossos. Foi um desespero no coração. Aos poucos, uma dormência começou nos pés e foi subindo, mas seus pensamentos se tornaram mais intensos. Os homens nascem sós e vivem sós. O mais terrível, porém, é que morrem sós. E morrem impotentes. A impotência é pior, nesse último momento, quando o homem se dá conta de que sua vida foi um insulto interminável à vida, à natureza e a seus semelhantes. Então, não há consolo. Só há o olhar para o abismo. Para essa solidão, não há esperança.
A dormência lhe chegara aos joelhos e ele de repente lembrouse das cartas preciosas dos amigos, que guardava em outra gaveta trancada. Lembrou-se de que a polícia iria lá, como sempre aparece quando há suspeita de que a morte foi provocada. Havia também seu diário, com nomes comprometedores, enfeitados com uma afeição como flores podres. Havia a carta de Miles Peale na sua mesa. Ele podia fazer uma coisa decente. Queimaria aquilo tudo, para não deixar marcas do que fora e para não marcar os outros permanentemente, jogando lama sobre eles. O nome da mãe estava no diário. Também isso desaparecería. Ele a perdoou, numa onda de compaixão que foi como uma convulsão dentro de si. Só ele era culpado, por mais que ela o tivesse adulado e pervertido. No final, cada homem é culpado do que é.
Ele tentou se levantar. A dormência lhe tinha invadido os joelhos. Então, arrastando-se como um animal ferido, ele se puxou até a cômoda, que parecia muito longe, léguas de distância, recuando em névoas. Seus dedos desesperados afundaram no tapete, que se tornara um piso de borracha mole. O suor da dissolução agora o invadia. Ele sentia a morte assaltando-o em asas negras, um abutre ávido de carne em decomposição. Seus olhos se turvaram; espirais de um escuro nevoento esvoaçavam diante dele, em volta e acima dele. Estavam-se enroscando em sua garganta, impedindo sua respiração. De centímetro em centímetro, torturado, ele arrastou o corpo pelo tapete. A cômoda se tornara um objeto ínfimo, infinitamente distante, dançando nas pernas. Ele sussurrou em voz alta:
— Deus, ajude-me a pegar as cartas, o diário. Não me deixe morrer até que estejam queimados.
Sua respiração estava tão reduzida que teve de parar, balançando a cabeça para a frente e para trás, para clareá-la. Deus. Mas não existia Deus. Ele e os amigos não se tinham rido e, com desprezo, concordado nesse ponto? Superstição; a balela de uma igreja que usava Deus como um açoite para dominar as massas. Deus era uma força materialista e mecânica, sem cérebro, sem vista, funcionando como uma máquina gigantesca cujo fim era inevitável, numa tempestade de poeira cósmica. Ele respirou convulsivamente e sua voz estava mais forte.
— Deus, ajude-me. Só falta um pouco. Ajude-me.
Ele recuperara um pouco a respiração. A dormência dominara suas coxas. Ele as arrastou atrás de si, pois já estavam mortas. Seus pensamentos ficaram confusos. Ele estava rastejando havia séculos; nunca fizera nada na vida senão arrastar-se, arrastar-se assim de barriga. Cavernas se abriam em seu cérebro, cavernas de vazio e barulho. Era o mar, aquilo que se aproximava? Estava martelando em seus ouvidos; estava arfando em volta dele. A mãe-mar, profundidades sem lua, turvas, sem a lua e sem fundo. Jon estendeu a mão para tocar na água e atingiu a cômoda. Seus pensamentos se clarearam outra vez. Ele lutou com a cômoda como Hércules lutou com os montes. As cartas e o diário estavam em suas mãos. Agora estava mergulhando nas ondas até o peito. “Tenho de jogá-los, antes que as águas os molhem.” Ele repetiu “Deus me ajude” e sentiu força no braço, jogando tudo no fogo. A dormência cedeu, embora o oceano estivesse encapelado ao seu redor, avolumando-se em sua garganta. A mesa estava ali perto e, agarrando-a, alcançou a carta de Miles. Então, também ela foi parar no fogo, que dançou na sua alegria festiva.
O resto de suas forças o abandonou. Ele se deitou no tapete.
As ondas rolavam por cima dele; ele ouviu seu espumar. Ele respirou fundo a sua substância, aspirando aquilo em seus pulmões. Então, elas o fizeram rolar, jogando-o para um lado e outro, com força, mas brandamente. Murmuravam e trovejavam com música, uma música louca e majestosa, e ele pensou em Deus de novo, enquanto o mar o levava, com amor. 0 céu não tinha lua, mas uma bela luz leitosa se despejou sobre ele. Fluía pelas águas em que ele se afundava. Jon pensou: “Não há horror nisso, na verdade. Mas Deus existe. Como nos dirigimos a Deus?” Palavras de sua infância, ensinadas brevemente nos anos esquecidos, lhe voltaram. Apenas algumas; ele desejou conhecê-las todas; via seus rabinhos vivos escapando como peixes nas dobras frias das vagas. Pai Nosso, Pai Nosso...
— Pai Nosso — rezou o mar, sugando-o.
Ele ficou deitado no tapete, enroscado na posição fetal, o fogo em seu rosto
esgotado e os olhos abertos. E estes estavam cheios de paz, a paz de uma criança que chegou em casa depois de uma viagem terrível no meio de monstros numa selva contorcida.
41
Cornélia olhou para o relógio, furtivamente. Eram sete e meia da noite. O terrível jantar anual estava quase no fim. Dentro de mais uma hora e meia, talvez antes, levando em conta a tempestade, a “família” iria embora. Até então, pensou, com alívio, embora houvesse as tensões costumeiras, as carrancas meio disfarçadas, as palavras ambiguamente sarcásticas, os olhares e risinhos significativos — como sempre —, não houvera nenhuma daquelas “explosões” que por vezes ocorriam durante e depois desses jantares. Claro, um dos “gatilhos” estava ausente: Jon DeWitt.
Todos pareciam meio absortos e desusadamente calados, o que era um alívio. Allan mal falou; embora ela soubesse que ele estivera bebendo, ele aparecera à mesa inteiramente sóbrio. Lydia Purcell, reta e esguia como sempre, se bem que o cabelo tivesse encanecido muito, só falou das coisas mais banais, sorrindo para todos com sua reserva fria e bondosa, não mencionou o marido falecido e murmurou a respeito da tempestade, que piorara nas últimas horas. “Ninguém jamais conheceu mamãe de verdade”, pensou Cornélia, achando que também isso era um alívio e muita consideração da parte de Lydia. Não havia gente mais aborrecida do que as que insistem em expor suas almas, de preferência em tons antagônicos ou escarninhos ou queixosos.
Laura, conforme Cornélia notou com prazer, estava menos bonita do que de costume. “Murcha”, pensou Cornélia. Como Lydia,
Laura tinha a decência de não se tornar confidencial ou “calorosa”, em hora alguma.
Cornélia não queria saber por que todos ao jantar estavam tão quietos e indiferentes. Para ela, bastava que estivessem presentes. Mas tinha sua própria curiosidade, que, no entanto, era muito ligeira e passageira. “Aquele terrível Pat Peale parece doente e abatido; ótimo.” Ruth, meia-irmã de Cornélia, estava calada, sentada ao lado de Allan, o rosto translúcido cheio de sofrimento por causa da morte do pai. “Tão bonitinha, mas tão solteirona”, pensou Cornélia, sem fazer caso. A cabeça de Ruth parecia uma seda amarelovivo à luz das velas e ela a conservou abaixada sobre a mesa.
As “crianças”, Tony e Dolores, DeWitt, Miles, Lielding e Mary não tinham nada a se dizer, embora Tony e a irmã de vez em quando trocassem olhares meigos, de algum entendimento secreto, sobre o qual Cornélia não tinha curiosidade. No entanto, ela sorriu com muita afeição para Mary Peale, quando encontrou o olhar vivo da moça. Mary tinha “bom senso” e humor forte e vivo. Seria excelente para Tony, que era tão sério.
Estelle, com um vestido de seda azul-bebê, cheia de joias e perfumada, tagarelava. Era a única que não estava absorta em seus pensamentos. Não lhe importava muito que os outros apenas murmurassem ou resmungassem diante de suas palavras tolas. Estava toda radiosa. Os rabugentos DeWitt que se afundassem em seu mau humor; só ela sabia que uma anfitriã e seus convidados deviam se mostrar “entusiasmados” com qualquer coisa e com tudo. A seu lado estava seu filhopajem, Norman, observando todos os seus sorrisos e brilhos.
Cornélia estava contente ao ver que o pai, Rufus, estava como antigamente, amável e com uma cor bem boa. Mas ele, em geral tão falante, se limitava a cuidar da família e dos convidados. Sorria muito, benévolo. Cornélia não percebeu os olhares compridos e saudosos que ele de vez em quando lançava a Lydia, sua ex-mulher.
Os copeiros traziam as tradicionais tortas de abóbora e frutas e também havia um pudim de ameixa chamejante. 0 mordomo discretamente colocava uma garrafa de vinho do Porto numa bandeja, com os cálices, à espera. Era para os “cavalheiros”, Rufus, Allan, Patrick Peale e Norman, depois que as “senhoras” se retirassem para a sala de visitas e as “crianças” tivessem subido para conversar um pouco. Lydia Purcell viu a bandeja; faltava um quinto cálice. Seus lábios cinzentos se torceram um pouco e depois sossegaram.
— A tempestade está piorando muito — disse Cornélia, com esperanças. — Espero que nenhum de vocês tenha dificuldades em chegar em casa.
Lydia sorriu para ela, com um carinho compreensivo, e disse:
— Acho que teremos de partir quase logo depois do jantar, Cornélia. Esse veludo verde é muito bonito. Não o tinha visto ainda.
O mogno reluzia, as superfícies enceradas: as pratas reluziam; a luz das velas tremia. A louça de faixa dourada sobre a toalha de renda branca brilhava e os copos de cristal faiscavam. “Como estamos todos bonitos e elegantes", pensou Cornélia, rindo sozinha, com malícia. “Um belo quadro de uma família afetuosa reunida ao jantar do Dia de Ação de Graças. Eu me pergunto se todas as reuniões de família são como esta, carregadas de ódio, ressentimento e malevolência, sofrimentos e inveja. Sem dúvida”, acrescentou. Devia haver alguma providência contra os “jantares de família”. Deviam ser abolidos, em nome da paz.
Ninguém dizia nada, já havia alguns momentos. Então, Estelle empertigou-se na cadeira, o rosto cheio de ruge bem aplicado.
— Pensei ouvir um grito, ou alguma coisa — disse, lançando um olhar aflito ao marido. — Acha que pode ser o Jon?
— Não ouvi nada — disse Rufus.
— Essas terríveis dores de cabeça — murmurou Estelle, pondo as mãos nos braços da cadeira. Devia pedir desculpas e subir para ver Jon? Não, isso seria falta de educação durante o jantar, se bem que os DeWitt nunca entendessem isso. Ela sossegou e aí percebeu que Tony a olhava atentamente.
— Parece que eu também ouvi, tia Estelle. Mas parecia vir lá de fora, ou de lugar algum. — Ele acrescentou: — Deve ser um animal qualquer, capturado por um inimigo. Não parecia... humano.
De repente, ele pensou em Jon DeWitt e estremeceu. Ia ver Joh. Havia alguma coisa muito séria com o rapaz mais velho. “Na escada senti que devia ter-me virado”, pensou.
Como Estelle sentia o maior desprezo por Tony, desprezou o que ele tinha dito e se esqueceu de sua aflição. Focalizou sua atenção sobre o corte do pudim. Por que é que os empregados no interior não sabiam fazer nada com classe? Mas, também, ninguém ali se importava.
O pudim foi comido num silêncio profundo, só rompido uma ou duas vezes, por Rufus, com comentários amáveis. Patrick limitouse a mexer com a sobremesa no prato; Allan o observava. Estava começando a ter indigestão, como sempre acontecia quando Patrick estava presente. Além disso, queria beber alguma coisa, muito urgentemente, outro sintoma de seu horror pelo outro. Porto!
Bebida de velho; só faz entorpecer.
As senhoras se retiraram, com as saias farfalhando. Rufus lançou o seu sorriso radioso sobre os homens.
— Alguém prefere conhaque?
Era uma pergunta educada e sempre respondida negativamente. Mas dessa vez Allan disse, brusco:
— Um uísque com soda para mim, por favor.
Rufus ergueu as sobrancelhas e depois pediu o uísque. Patrick teve um sorriso muito feio, para Allan ver, e bebericou o Porto. Norman sorriu o seu sorriso franco e propositadamente bobo e pegou o cálice de vinho. Como sempre, preparou-se para escutar atentamente; sua expressão era uma camuflagem infantil.
— Sei que é um dia de festa — disse Allan, na voz agressiva que ele assumia, sem querer, em presença de Patrick — e sei que não devia falar de negócios...
Rufus ergueu a mão, benévolo.
— Então, não fale, meu filho.
— Mas vamos ter uma reunião de diretoria na segunda-feira e estamos aqui e há um assunto que quero frisar. — Allan falava obstinadamente.
Patrick bebericava o vinho. Norman sorria como bobo.
— Está bem. Qual é o assunto? — perguntou Rufus. Estava com um cachecol xadrez nos ombros, por causa das correntes de ar, e o puxou mais para junto do corpo.
— É aquela maldita Companhia Pullmann outra vez — disse Allan. — Não só é fabricante de vagões-dormitórios, restaurantes, de poltronas e salão, como ainda ouvi dizer que aos poucos está adquirindo outras companhias que fabricam esses vagões. Presta o serviço a todos os seus vagões, e nos cobra um bocado. Acho que seria uma ideia excelente comprar parte das ações deles, para pelo menos reaver parte de nosso dinheiro. E se comprássemos bastante ações para ter voz ativa na administração, poderiamos obter um tratamento preferencial, no que diz respeito à nossa estrada.
Rufus pensou nisso com cuidado. Fez um gesto para o mordomo lhe dar um charuto proibido, mandou que o acendesse e fumou. Então, perdeu muito de seu aspecto idoso e sua cor antiga, corada, avivou-se e seus olhos brilharam.
— Eles são um monopólio e tanto — disse, pensativo. Depois riu-se. — Os monopólios por vezes prejudicam os outros monopólios. Bom, não me preocupo muito com esse pessoal da Pullmann. São muito ambiciosos e hoje em dia o governo olha a ambição com desconfiança. Se ficarem muito... ambiciosos... podemos pôr nossos amigos, os senadores, atrás deles. Ainda é cedo para nos mostrarmos virtuosos sobre o monopólio da Pullmann. Eu diria que, daqui a alguns anos, poderemos comprar e possuir nossos próprios vagões e prestar o serviço a eles. Allan, meu filho, tome nota disso para o futuro... o seu futuro, não o meu. Enquanto isso, claro, poderiamos comprar o mais possível das ações deles. Patrick, o que pensa disso, como um de nossos diretores?
— Vou pensar a respeito, senhor — disse Patrick, friamente. — Não estou disposto a dar meu consentimento para que a companhia as adquira. Talvez como indivíduos, indivíduos particulares...
Não posso dizer que esteja especialmente interessado e sou contra monopólios...
— Não vá comprar todas as ações existentes cedinho na segunda-feira, antes que eu tenha tempo de fazer isso — disse Allan, com desdém. — Com o dinheiro de Laura, e o seu, e sua influência sobre a Ruth...
— Ora, vamos — disse Rufus. — Alguém não disse que hoje era dia de festa, rapazes? Dia de Ação de Graças; jantar festivo; reunião num espírito de gratidão e confraternização.
Ele apreciou a violência do olhar demorado que Patrick lançou a Allan.
Allan também ficou satisfeito com esse olhar.
— Pois eu vou propor que a companhia também compre o máximo que puder. Na segunda-feira.
Patrick respirou fundo; parte do vinho se derramou em seus dedos. Ele disse, numa voz de raiva reprimida:
— Sinto-me ofendido com suas insinuações. Não tenho "influência” sobre Ruth Purcell. A mãe dela e os advogados é que administram seus bens.
— Mas ela é tão inocente — disse Allan. — É o último membro da família que acredita em você, Pat. Ouvi dizer que ela lhe deu vinte mil dólares para uma de suas obras de caridade favoritas em Filadélfia.
Patrick ficou vermelho.
— Isso não é segredo.
Allan estava quase feliz.
— É, sim. Sou o único que sabe disso. Meus parabéns. É uma obra digna. — Ele estendeu o cigarro para ser aceso e o mordomo logo se aproximou. — Coitada da Ruth — meditou Allan, com um olhar maldoso para Patrick. — Uma pena que não haja na família um homem que possa se casar com ela, como, por exemplo, um de seus filhos.
Patrick largou o cálice, com as mãos cerradas sobre a mesa, e olhou para Allan. Este imediatamente ficou alerta, sua intuição celta ativada. Não, não era possível! Esse fariseu pálido não podia estar tramando, lá na sua mente maculada e gananciosa... Seria um desastre, todo aquele poder naquelas mãos exangues, um desastre para a companhia. Todas aquelas ações, aquele dinheiro.
Rufus, observando, bateu com o charuto devagar numa bandeja de prata. Viu que Allan e Patrick olhavam-se fixamente, o ódio e a desconfiança disparando como relâmpagos entre eles, quase visíveis.
— Uma pena — repetiu Allan, baixinho. Seus olhos negros estavam saltando sob as sobrancelhas.
Patrick então virou-se para Rufus.
— 0 senhor é o anfitrião. Vai permitir que eu seja insultado desse modo?
Rufus sorriu, educadamente.
— Vocês, meninos, estão trocando pancadas, em vez de se portarem como homens de meia-idade? Devo repreender um de vocês? Allan, Pat é nosso convidado. Está ficando cansativo ter sempre que lembrar-lhe isso. Vamos mudar de assunto.
“Você matou meu pai, quando me contou a respeito dele”, pensou Patrick, lembrando-se da cena terrível entre ele e o Peale mais velho, havia muito tempo. Nunca lhe ocorrera que ele não tinha necessidade de contar ao pai que sabia; achara que tinha sido “justo” fazer isso, lançar suas acusações amargas na cara do velho, escarnecer dele, demonstrar sua raiva imensa e sua desilusão. Não sentia culpa alguma por ter abandonado o pai na velhice, nem vergonha por Allan ter sido, no final, o único consolador de um homem que fora apenas humano.
Allan, tendo outra vez golpeado Patrick vitoriosamente, abandonou-o. Transferiu toda sua atenção para Rufus. Arquivou a ideia de Ruth Purcell para referências futuras. Puxou um recorte de jornal do bolso.
— Li isso num jornal de Londres ontem e o guardei para o senhor. — Ele começou a ler: “Os Estados Unidos são como um país imensamente rico dominado por uma horda de magnatas ladrões e muito inadequadamente policiado pelo governo central. Essa situação pode tomar-se perigosa para o resto do mundo.— Ele jogou o recorte na mesa, depois pegou-o e o queimou até o fim, com uma vela. — O senhor sabe o que realmente querem dizer? Estão com medo de invadirmos o que chamam de seus “mercados tradicionais”. Nós, e especialmente a Alemanha, já o estamos fazendo.
— Sim? — disse Rufus. — E daí, se nós e a Alemanha estamos?
Allan bateu com a mão na testa.
— A Alemanha continua a ser a maior ameaça. Está trabalhando como uma abelha, por todos os mercados do mundo, vendendo artigos superiores por preços inferiores. 0 Kaiser está encorajando tudo isso e a indústria alemã recebe todos os incentivos de parte do governo alemão. Nada a restringe. Não há controle de preços, de modo cavalheiresco, como na Inglaterra. Nem pequenos acordos cômodos entre os fabricantes.
—E então? — disse Rufus.
— 0 senhor não vê? — perguntou Allan, impaciente. — Estamos numa nova era desde os meados do século passado. Antes disso, as guerras eram travadas pelos territórios ou povos, ou para resolver disputas nacionais particulares. Hoje, são travadas pelos mercados mundiais. Embora a maioria das pessoas não se dê conta disso, tudo começou realmente com a Guerra de Secessão.
— Guerra? — exclamou Rufus. — Ora, realmente, meu filho, você está dando asas à imaginação. Pensa que a Inglaterra e a Alemanha chegariam a entrar numa guerra pelos mercadçs mundiais?
— Penso. — A voz de Allan ficou exaltada. — É isso que estão tramando nesse momento.
— Tramas? — repetiu Patrick, com desdém. — Está louco?
— Nada de insultos, por favor, nem nada de pessoal. Allan, você é incorrigível. — Mas Rufus estava perturbado. — É verdade que a história do mundo é a história da fome...
— Veja a área agrícola do mundo — disse Allan, cada vez mais exaltado. — Está recuando. As cidades industriais estão se expandindo, inchando. A fortuna não se baseia mais sobre a agricultura, mas sobre as mercadorias. Mas a fome permanece e há de aumentar, enquanto a indústria se expandir incontrolavelmente. 0 homem pode passar sem a máquina, mas não pode passar sem pão. Isso é uma coisa que todos teremos de aprender; e talvez tenhamos de aprender escrito em sangue. A Inglaterra não o aprendeu, nem nós, nem qualquer outra nação. Enquanto isso, as guerras serão travadas pelos mercados, pelas mercadorias, enquanto a agricultura decai e os homens começam a passar fome. A fome acabará destruindo nossas cidades e nossa indústria urbana.
Mas Rufus voltou àquela palavra alarmante:
— Guerra? Quem disse?
— Os ingleses já estão se preparando. Tenho livros que o senhor precisa ler. E a Alemanha está começando a cheirar o que se prepara na Inglaterra, por entre todos os discursos corteses dos diplomatas e as conversas de paz em Haia. E estaremos metidos nisso também, procurando avidamente os mercados mundiais, para evitar pânicos... pânicos em nossas cidades industriais.
— Incrível — murmurou Rufus. — Tem certeza de que a sua fértil imaginação irlandesa...?
Ele pensou, não nos próprios filhos, mas no neto Tony e nos filhos de Tony. E nos filhos de Dolores e DeWitt.
Patrick sorriu com um desdém frio para Rufus, que estava de cara fechada.
— Por que o senhor acha — perguntou Allan — que o Congresso anda pensando, repetidamente e contra a vontade do povo, num imposto federal sobre a renda? Temos vivido muito bem sem isso, mas agora os políticos em Washington estão se mexendo por isso, taramelando por isso. Como um país pode conduzir uma guerra se não tiver rendas imensas? Cada vez que se sugere um imposto federal sobre a renda, o povo protesta, furioso. Mas eles se cansam de questões velhas. Minha profecia é que, dentro de alguns anos, teremos esse imposto. E depois teremos uma guerra. Pelos mercados. E para evitar crise no país e consumir os produtos de nossas máquinas.
Rufus tamborilou sobre a toalha, nervoso.
— É muito estranho — disse, pensativo —, mas há muito tempo meu irmão me disse quase a mesma coisa e eu ri...
— 0 senhor acha mesmo — disse Patrick, protestando — que a Inglaterra havia de matar a sua juventude e concordar com uma guerra, só por mercados? Se houver uma guerra entre a Inglaterra e a Alemanha... e rejeito essa ideia monstruosa... será uma guerra de princípios, pois a Inglaterra invariavelmente travou guerras pelos princípios mais nobres... Ela precisa manter a elevação da cultura anglo-saxônica... nossa própria cultura, aliás.
Allan virou-se para ele, com raiva.
— Nossa própria cultura? Já se esqueceu de que mais de vinte por cento do povo americano é de origem alemã? E que temos milhões de americanos de origem italiana e outras etnias? Dane-se a cultura anglo-saxônica!
— Você fala, claro, como irlandês — disse Patrick, com malícia quase feminina.
Rufus ergueu a mão para reprimir um gesto veemente de parte do genro e disse a Patrick, com a maior calma:
— Allan fala como um homem racional, pois fala de fatos. Sinto muito, Pat. Mas, Allan, tenho certeza de que nunca teremos um imposto federal sobre a renda.
— Teremos — disse Allan, meneando a cabeça, sério. — E verá que estaremos metidos numa guerra, pouco depois. Uma nação pacífica, senhor?
Somos uma nação industrial.
Sorrindo com desdém, Patrick examinou as mãos.
— Queria que voltássemos a uma economia agrícola?
— Queria — disse Allan. — Ou melhor, se eu tivesse o poder supremo, conservaria uma proporção equitativa entre a indústria e a agricultura e, lembrando-me das advertências de Patrick Henry, proibiría que o governo federal taxasse o povo. O governo federal, mais uma vez citando as advertências de Patrick Henry e George Washington, então nunca teria o poder de destruir a liberdade de uma nação por meio de guerras e impostos.
Norman DeWitt não falara nada, apenas sorrira. Ele agora olhou para Allan e seus olhos se apertaram, maldosamente. Allan estava de dedo em riste diante do rosto aborrecido de Patrick.
— Estou-lhe dizendo, há homens que esperam e tramam pelas guerras a fim de escravizar o mundo! A liberdade lhes é odiosa, em toda parte, pois uma nação livre frustra o seu desejo de poder pessoal.
— Realmente, isso é ridículo — disse Patrick, com aversão. — Os Estados Unidos nunca se meterão em guerras, por qualquer motivo que seja. Mas deixe que eu faça uma pergunta hipotética: e se formos atacados?
Allan virou-se devagar e fixou os olhos, sombrio, como se visse alguma coisa a grande distância.
— Sinto, sei em meus ossos, que nunca seremos atacados. Podem dizer que fomos atacados, mas será uma mentira. A não ser... a não ser... — e ele olhou para Rufus, muito sério — que convidarmos ao ataque, ou armarmos uma nação para nos atacar. Isso poderia acontecer. Já está acontecendo na Europa. Os fabricantes de armamentos da França estão armando a Alemanha, os fabricantes de armamentos da Alemanha estão armando a França, com pleno conhecimento e consentimento de seus respectivos governos.
— Isso é loucura! — disse Patrick.
Allan o fitou por um momento.
— Vou-lhe mandar uns livros que tenho lido. Entre eles há livros de Karl Marx e seus contemporâneos. Por esses livros, poderá ter uma ideia sobre o tipo de homens que estão maquinando contra toda a humanidade. As guerras são a sua oportunidade. — Ele tornou a pôr o dedo em riste diante da cara de Patrick. — A Guerra Hispano-Americana foi um campo de provas para novas armas, e não apenas uma opera bouffe escrita para Teddy Roosevelt.
“Ele sabe demais”, pensou Norman, que teve uma crise de riso, aguda, e depois tapou a boca com a mão e olhou para os três homens afrontados, como um escolar levado, os olhos brilhando, redondos. Então, Norman falou:
— Eu estava pensando no Teddy com seu chapéu de cowboy.
Tinha conseguido interromper uma conversa que considerava perigosa. Rufus estava envergonhado dele, Allan parecia estar com vontade de dar nele e Patrick olhou-o com frieza.
— Vamos nos juntar às senhoras? — perguntou Rufus, preparando-se para se levantar.
— Um momento, por favor — disse Allan. Toda a alegria desaparecera do rosto de Norman. Allan hesitou e o cigarro tremeu em seus dedos. Ele o colocou entre os lábios num gesto agitado. — Talvez eu devesse falar sobre isso quando estivéssemos sozinhos, senhor, mas estamos em família, não é? — Ele parou e deixou cair o cigarro num cinzeiro. — Tony vai ser padre. Participou-me hoje à tarde.
— Incrível — disse Patrick, irritado. — Você, naturalmente, se recusou a permitir isso.
Rufus perdeu o colorido que tinha recuperado, mas sorriu para Allan com afeição.
— Eu já estava desconfiando, meu filho. Estava com medo de me contar sozinho?
Allan ficou calado. Depois perguntou:
— Cornélia sabe?
— Ela desconfiava. — Rufus suspirou. — Você ainda não sabe, Allan, que Cornélia gosta de você e ficará bem feliz com a decisão de Tony, se você estiver feliz? — Ele esperou, mas Allan não disse nada. Rufus acrescentou: — Você está contente, não está, Allan?
Allan só olhou para Rufus.
— Estou contente — respondeu, sorrindo com gratidão. — Ainda estou aqui e temos o DeWitt.
Tony, na saleta do andar de cima, não estava feliz. Tinha medo dos jovens Peales, embora Mary lhe demonstrasse interesse e respeito. Fielding admirava a atuação de Tony nos esportes e o consultava constantemente, admirando-o pelo menos por essas habilidades. Mary era franca quanto à sua preferência e afeto por ele e conseguia fazê-lo rir mesmo quando ele era o mais sério. No entanto, nos momentos em que mais se divertia com esses jovens parentes é que seu medo aumentava.
Nesse dia Tony estava sentado ao lado da irmã e seu medo mostrava-se mais insistente do que nunca. Isso o fez estender a mão para Dolores, sem querer, e apertar a mão dela com força. A tempestade cinzenta e a noite escura comprimiam-se contra as janelas e seu ruído enchia a “saleta das crianças”, com seus chintz alegres, e aquela presença iminente parecia fazer diminuir a luz dos lampiões e ameaçar o fogo.
Miles estava falando sobre os instrutores deles em Harvard e Tony ouvia com atenção, como se o assunto fosse importante e ele fosse voltar para Harvard depois das férias de Natal. Miles era espirituoso e encantador; sabia arrasar um pobre professor com algumas palavras; com uma ou duas palavras, um gesto com as mãos eloquentes, pintava um quadro divertido e vivo de algum professor tímido e sábio. DeWitt, que raramente ria, achou graça então. Mary dava gritos de alegria. Dolores sorria, a contragosto. Tony, embora intimamente aflito, também sorria.
Mary estava sentada no tapete diante da lareira, mignon e muito interessante com seu vestido de veludo vermelho com a gola de renda, o cabelo preto caindo em ondas pelas costas. No ano seguinte, ia “prender o cabelo”, mas não estava com muita pressa de alcançar esse determinado sinal de maturidade. Sabia que os cachos escuros acentuavam sua beleza cativante e, como ela não era jovem de coração, eles lhe davam um ar de uma inocência falsa que, como ela suspeitava astutamente, desarmava os outros, para sua vantagem. Os grandes olhos negros eram cheios de luz e a boca era uma ameixa madura em seu rosto
pontudo. Quando ela olhava para Tony, sentado junto da irmã, num silêncio quase total, sua expressão se suavizava e ficava ainda mais animada.
Enquanto ela observava Tony, disfarçadamente, o irmão, Miles, observava o rosto de anjo de Dolores, encimado pelo cabelo ondulado, pálido mas reluzente. Ele pensou que nunca tinha visto uma moça tão maravilhosa, nem tão feliz e sossegada, nem tão distinta. O vestido de seda azul-marinho, de um feitio destinado a realçar a pureza de seu caráter, parecia um uniforme de postulante, com sua golinha branca. Para os superficiais, Dolores não tinha “personalidade”. Mas Miles não era superficial; seu amor e desejo por essa moça o tornavam intuitivo, quando se tratava dela.
Quando Dolores o olhava com relutância enquanto ele falava, Miles via o brilho azul cristalino dos olhos dela e, bem no meio de um comentário espirituoso, pensava que nunca haveria outra mulher no mundo para ele. Tanto quanto possível para Miles, o mundano e intelectual, ele a venerava. Os sorrisos de Dolores diante de alguns de seus ditos eram sinceros, e não forçados como os de Tony, Miles sabia disso muito bem. Ele tinha o cuidado de omitir qualquer sugestão de lubricidade de suas palavras que descreviam e ridicularizavam os professores, muito embora uma indecência alegre em geral distinguisse sua conversa com os outros.
Como ela sofria tanto a influência do irmão, Miles tinha respeito por Tony, embora em segredo o detestasse por essa influência que se interpunha em seu caminho. Ele sabia que Tony se oporia severa e urgentemente a um casamento entre Miles Peale e a irmã e que a opinião dela era importante para Rufus DeWitt e Allan Marshall.
Cornélia, que não gostava de Miles, como não gostava dos demais Peales a não ser Mary, estava resolvida a arranjar um casamento internacional para a filha. Ela tomaria o lado do pai e do marido contra ele, por seus motivos. Miles, o realista, nunca relegava os fatores contra ele, nem era especialmente otimista. O caminho até Dolores parecia quase intransponível.
DeWitt observava a todos, sentado ao lado do fogo, com a bengala ao lado, pequenino e moreno. Divertia-se friamente com toda as correntes naquela sala e antegozava as futuras frustrações de seus companheiros. Já não contava com Tony, que não era mais seu rival no seu amor, nem na ambição. Miles, casado com aquela boba da Dolores, estaria meio desarmado numa guerra. Mary podia flertar com Tony, inclinando a cabeça e olhando para ele por baixo das pestanas cerradas, que isso não daria em nada. Enquanto isso, ele, DeWitt, podia gozar a beleza da moça e pensar num futuro casamento com ela. Ele era o único realmente à vontade na sala.
Fielding aprendera a esquiar com Tony, o bonzinho, e, após Miles ter acabado de arrasar com os professores, ele começou a conversar com Tony sobre seu esporte favorito, com muito interesse. Tony se agitou um pouco, em sua apatia e medo inquietos, e sugeriu uma nova cera alpina para esqui, da qual ele soubera havia pouco. Depois, perdeu o interesse. Estava pensando de novo no tio, Jon DeWitt, e na expressão de seu rosto na penumbra, ao pé da escada.
“Eu devia ter voltado”, pensou. “Não devia ter cedido ao meu temor e meu nojo por ele. Essas não são emoções que deva ter um futuro padre; é como um padre recuando de feridas e úlceras pustulentas, ao invés de tratá-las. Alguma coisa acontecera com Jon. Talvez, se eu tivesse voltado, teria ajudado.”
Miles, que ridicularizava a preocupação ardente do irmão com os esportes, fingiu escutar atentamente a conversa de Fielding e Tony. Por dentro, estava bocejando. Falatório de criança. Para ele era incrível que Tony Marshall, que tinha melhores notas do que ele na universidade, se interessasse em tentar se arrebentar todo nos montes íngremes e nevados. Miles, sorrindo com uma polidez fixa, passou a mão pelas mechas como mogno e voltou a pensar em Dolores. Mary bocejou como uma gatinha, mostrando todos os seus dentinhos alvos. Ela se esticou, deitou-se apoiada num cotovelo, no tapete diante da lareira, e ficou escutando a voz de Tony, se não suas palavras.
Fielding, que não era bobo, viu logo que Tony perdera o interesse pelo esqui. Seu rosto comprido e macilento ficou afrontado. Ele disse:
— Que tal esquiar comigo, amanhã?
Tony vacilou.
Seria empolgante voar por uma colina branca e reluzente, o sol lançando sua sombra atrás dele e os pinheiros jorrando uma espuma de neve, quando ele passasse por eles como o vento. A solidão luminosa da montanha, o aroma da resina e a pureza selvagem do ar frio! Era melhor estar só, ao esquiar, embora fosse perigoso. Mas o perigo da solidão era o seu próprio intoxicante. Tony olhou para Fielding, que estava esperando ansioso. Era uma “criança”. Não era bom deixar que esquiasse sozinho. Tony disse:
— Está bem. Mas primeiro tenho de ver se a neve está bem firme. Ligo para você. — Depois perguntou, curioso: — Por que é que você gosta de esquiar, Field?
Fielding ergueu as sobrancelhas amarelas.
— Ora, é gostoso. Uma espécie de poder. A gente vai depressa; ninguém pode pegar a gente. E lá estão as pessoas, lá embaixo, no vale, nas estradas, nos trenós bobos, e lá está você, lá em cima, indo dez vezes mais depressa e rindo delas.
Tony não comentou nada, mas Miles virou-se depressa para o irmão, examinando-o, pensativo. Ele esfregou os nós dos dedos no queixo, refletindo. Devagar, pegou um maço de cigarros, pôs um na boca e o acendeu. “Uma espécie de poder.” E era perturbador ter de enfrentar Fielding, no futuro. Fielding com os ridículos esquis e barcos, bolas, raquetes, sacos de pancada e tacos de golfe. A gente ou reconhecia um homem como concorrente ou o fazia unir as forças com a gente. Este último recurso era mais astucioso e proveitoso.
— O que é que há, Miles? — perguntou DeWitt, sereno. Ele estava esfregando a ponta da bengala na mão e algo como um divertimento secreto brilhou em seu rosto moreno, por um instante.
— Acho que vou ver Jon — disse Tony.
Miles, sem fazer caso de DeWitt, olhou para Tony.
— Por quê? Ele em geral fica irritado quando toda a família se reúne. Afasta a atenção de cima dele e de suas idéias e ele não pode monopolizar a conversa. Está emburrado no quarto, esperando que a mamãe vá procurá-lo. — Ele ficou fumando. — Criatura odiosa... o Jon.
Ele olhou para Tony pelo rabo de olho e a luz do fogo tornou esse olhar uma faísca azul e viva.
Os jovens se levantaram, Mary num rodopio rápido de vermelho, DeWitt concentrando-se na bengala. O topo da cabeça de Miles só chegava às sobrancelhas de Dolores, mas ele não parecia baixo ao lado da moça. Tocou as costas da mão de Dolores e ela não recuou. Ele sorriu para ela.
— Eu a levo para baixo — ofereceu-se, a voz muito meiga.
— Vou esperar por Tony — disse Mary. — No hall.
As senhoras aguardavam que os cavalheiros e os moços se juntassem a elas. “Esta é a reunião de família mais triste que já tivemos até hoje”, pensou Cornélia. “Graças a Deus, pela tempestade eles vão embora daqui a pouco.” Uma copeira estava a seu lado, servindo café nas xicarazinhas douradas.
— Açúcar, mamãe? Sempre esqueço.
Tinham posto mais lenha na lareira. A sala suave e linda dançava na luz e os lampiões desafiavam os uivos primitivos nas janelas.
Lydia, toda de cinza, preto e branco, aceitou a xícara das mãos da copeira. Achava quase insuportável ter de falar qualquer coisa que fosse e procurava substituir a conversa por sorrisos. Ruth estava sentada na poltrona em que Jim costumava sentar-se, junto da lareira, pálida e abatida. “Mas ela só o conheceu durante vinte e sete anos”, pensou Lydia. “Eu o conheci a vida toda; o mundo inteiro ficou vazio para mim, e não restam vozes em lugar algum.” A neve estava cobrindo o túmulo de Jim Purcell. A ventania berrava por cima dele. “Meu querido”, pensou Lydia, “espere por mim.”
Cornélia pensou: “Mamãe está parecendo tão velha. E no entanto parece serena e enigmática como sempre. Está sorrindo para si, o primeiro sorriso de verdade desde que tio Jim morreu. Em que estará pensando? No tio Jim, claro. Deve ser horrível perder o marido”. Cornélia olhou para a porta e se perguntou, impaciente, por que os homens ainda não tinham aparecido. Serviu um café para Laura, esquecendo-se de perguntar se ela queria açúcar ou creme. Laura estava imersa em seu silêncio, mas, para aborrecimento de Cornélia, a luz do fogo dava a seu rosto um viço e luz. Também ela estava olhando para a porta e, então, o rosto de colorido duro de Cornélia ficou feio.
— Esqueceu-se de mim, Cornélia? — perguntou Estelle, toda suave.
“Maldita, você nunca deixaria que alguém se esquecesse”, disse Cornélia consigo.
— Açúcar? — perguntou, com desprezo. Estelle suspirou e sorriu.
— Oh, meu bem, você sabe que não.
Cornélia se serviu de meia xícara e a completou com conhaque. Recostou-se na poltrona e começou a tomar o café, com prazer. Mas uma de suas pernas cruzadas estava balançando. O cabelo ruivo era uma chama contra o veludo verde da poltrona. Ela abriu uma caixinha dourada na mesinha ao lado, pegou um cigarro e o acendeu.
Lydia observava Cornélia com carinho e tornou a sorrir. Mas também tinha medo. O perfil forte estava mais predador do que nunca e os lábios vermelhos estavam duros como gesso colorido. “Somos o que somos”, pensou Lydia. “Desde o momento de nossa concepção, somos o que seremos. Livre-arbítrio? Não sei. Se lutarmos, por mais vaga e fracamente, será suficiente? Será a luta, por breve que seja, a única coisa importante? Eu gostaria de acreditar que Cornélia tem essas pausas repentinas. Duvido. Ela não toma conhecimento nem do bem nem do mal.”
“Como todas são triviais ou grosseiras”, pensou Estelle, sorrindo muito para nada. Ela disse:
— Vocês têm de ver o nosso Picasso! Está pendurado no salão principal de Nova Iorque. Um colorido, um significado...
Cornélia fez um ruído obsceno. Estelle corou, escandalizada. Mas Lydia, pela primeira vez desde a morte do marido, riu um pouco. Cornélia descreveu o quadro com mais do que uma sugestão de obscenidade, enquanto Estelle escutava, horrorizada.
— Conhecemos o sujeito na França — concluiu Cornélia, com sua voz forte e dominadora. — Inteiramente impossível. Anda por lá divagando sobre o que chama de “Próxima Revolução do Povo”. Tentei fazer com que ele fosse mais preciso, mas ele apenas fez um ar de mistério.
Os olhos castanhos e grandes de Estelle estavam brilhando com astúcia e ela pensou nos filhos. Com prazer, Lydia disse:
— Concordo com Allan. Alguma coisa má está se agitando no mundo. Senti isso na Europa, no ano passado, antes... antes... — Ela parou e engoliu, sofrendo.
Ruth, calada, olhava timidamente de um rosto para outro. Sempre procurava não pensar só no pai, por causa da mãe. O cabelo dourado era uma coroa luminosa e seu rosto lindo, embora agora tão puxado, parecia a própria sombra da inocência. Ela balbuciou:
— Eu gostaria de trabalhar com os quaquers na Europa. Em Haia, pensei...
— Se você quer isso, querida, vá fazê-lo — disse Lydia. — No verão que vem? Vou com você.
Ela sorriu para a filha e depois a dor apertou sua garganta. Em seguida, deu atenção a Laura, filha de Alice. Laura ainda não dissera nada, nessa sala. Os olhos cinzentos examinavam a xícara nas palmas de suas mãos.
— Ouvi dizer que você e Patrick vão à Europa no verão que vem — disse
Lydia.
Laura teve um sobressalto e pôs a xícara numa mesa.
— Ah, não, não creio — murmurou, passando a mão de leve pela nuvem de cabelo escuro e virando o rosto. As mulheres esperaram, mas ela não disse mais nada. Os olhos de Cornélia brilharam. Ela um dia gostara da prima, mas fazia anos que a detestava. A perna comprida de Cornélia começou a balançar um pouco mais depressa.
Os homens entraram na sala, a mão de Allan sob o cotovelo de Rufus.
— Bom — disse Rufus, animado —, espero não termos demorado demais. Uma discussão tão interessante.
Cornélia olhou para eles, alerta. Allan estava num de seus estados de espírito “solitários”, observou ela, com uma impaciência aflita. Patrick estava andando um pouco afastado, um cadáver ambulante, pensou Cornélia, com nojo. Norman sorria, seu sorriso largo e sem sentido, e foi logo para junto da mãe, empoleirando-se num banquinho junto dela. Allan ajudou Rufus a se sentar numa poltrona e a copeira entrou com mais café e copos. Rufus pegou a garrafa de conhaque e a examinou, com olhar crítico.
— Que bom que deixou um pouco para nós, Cornélia — disse ele. — Hoje em dia não consigo encontrar esse Napoleão com facilidade.
Cornélia serviu o café para os homens. Allan, que estava rondando a mulher, sem jeito, esperou até que a copeira se retirasse. Depois debruçou-se sobre Cornélia e disse, em voz baixa:
— Desculpe o atraso. Tínhamos um assunto a discutir.
Ela olhou para ele e seu rosto se suavizou. Mas ele não sorriu e ela viu que ele estava muito nervoso.
— Então? — disse ela.
Rufus tinha provocado uma conversa, e marido e mulher estavam protegidos pelas vozes.
— É sobre o Tony — disse Allan.
Cornélia levou a xícara aos lábios e bebeu um pouco.
— Então? — repetiu, por fim. — O Tony andou aborrecendo você, ou preocupando-o de algum modo?
— Não. — Allan hesitou. Queria que Cornélia não o olhasse tão diretamente. — Você sabe que ele nunca nos causou um minuto de preocupação. — Ele tornou a hesitar. — Não, não me está preocupando. É uma coisa que ele quer fazer. Minha única preocupação é como você vai receber isso...
— Posso “receber” qualquer coisa — disse Cornélia. Ela levantou as mãos grandes, cheias de joias, e tocou de leve no rosto de Allan. Por que o idiota não entendia que os filhos não eram nada para ela, comparados com ele? — Se ele quisesse ser açougueiro, trapezista, engolidor de espadas ou pregador ambulante, eu não me importaria, contanto que você não se importasse.
Allan agarrou as costas da poltrona de Cornélia e disse:
— Tony quer ser padre.
Os olhos castanhos de Cornélia se moveram, os cantos endurecendo. Ela fitou Allan; viu que ele estava infeliz, quase desfeito pelo medo.
— Padre? — murmurou e tornou a fitar Allan. — É absurdo, claro. — Allan não respondeu e os lábios dela se curvaram num sorriso sardônico. — E a ferrovia?
— Ele não quer fazer parte dela. — Ele se mexeu, inquieto, ainda observando-a. — É muito difícil lhe explicar...
— Admitindo essa premissa tola, por um momento, se ele fosse ser... padre... o que você acharia disso, Allan?
Ele se encostou na poltrona, como que exausto.
— Eu... acho que gostaria, Cornélia.
Como poderia fazê-la compreender? Como poderia impedir que ela atacasse Tony com palavras furiosas e de desprezo? E Tony... Allan teve um sobressalto, pois Cornélia estava rindo, gargalhando. Ele não podia acreditar. Os olhos dela saltavam de alegria e os dentes reluziam à luz do fogo. Ela estava estendendo a mão, pegando a mão dele e apertando-a.
— Bobo, bobo querido — estava dizendo. — O que importa? Você está contente com essa ideia ridícula. Ainda não sabe que o que faz você feliz também faz a mim, por mais tolo ou incrível que seja? O que é Tony para mim, ou Dolores, DeWitt, quando se trata de você?
Rufus estava rindo com os outros de uma anedota que acabara de contar. Mas nem por um instante deixara de prestar atenção à filha e Allan, junto do fogo. Sabia qual o assunto da conversa deles e tinha propositadamente desviado a atenção dos outros. Quando viu Allan de repente se debruçar e beijar a mulher na boca, e quando ouviu o riso dela, sorriu, muito contente.
Depois, viu que Allan parecia novamente aflito. Sussurrava no ouvido de Cornélia, e ela estava com uma expressão ao mesmo tempo espantada e muito divertida.
— Você não há de entender, querida, mas, por causa do Tony, teremos de ir a um lugar escondido, com muito segredo, para nos casarmos diante de um padre.
— Não! — exclamou Cornélia, com grande prazer, rindo de novo. — Está bem; não fique tão... faço qualquer coisa por você.
Estelle perguntou:
— Onde estão os meninos? — Estava afagando o cabelo de Norman, dizendo consigo que aquele fora o feriado mais maçante de todos.
— Com certeza já vão descer — disse Laura. Ela nem olhou para o marido, sentado à parte, no seu silêncio, como se os outros nem existissem para ele. Depois, como sempre, os olhos dela foram atraídos para Allan Marshall, inevitavelmente. Ele continuava debruçado sobre a mulher e riam juntos, baixinho. Laura sentiu um aperto no coração e virou a cabeça.
Tony estava entrando na sala, sozinho. Ao ver o filho, Allan acenou para ele e Tony se aproximou. Quando chegou bem perto, os pais ficaram impressionados com sua palidez. Ele ficou ali sem poder falar. Cornélia levantou as sobrancelhas para ele e disse:
— Não fique aí com cara de morte, Tony. Seu pai me contou e está tudo bem, se você quiser fazer papel de bobo.
Mas Tony só lhe lançou um olhar agoniado, abrindo a boca, sem falar. Allan, alarmado por ele, pôs a mão no ombro do rapaz.
— 0 que é? — perguntou, a voz áspera. — O que aconteceu?
Tony sussurrou:
— Fui vê-lo... sabe, hoje à tarde ele tinha saído na tempestade... eu estava aqui embaixo... devia ter voltado para falar com ele... Podia ter impedido...
Cornélia molhou os lábios endireitando-se na poltrona. Sussurrou, tal como
Tony.
— 0 que é? Pelo amor de Deus, o que é?
Ela agarrou o braço de Allan, protegendo-o.
— E o Jon — disse Tony, os olhos cheios de lágrimas. — Está morto. Deve ter-se matado... havia uma caixa na mesa... veneno...
42
Allan Marshall um dia dissera a Cornélia, com amargura:
— Um dito espirituoso é uma resposta imperdoável para um grito de dor.
Mas há ocasiões, pensava Cornélia, em que um dito espirituoso é a única resposta para o sentimentalismo e a autopiedade. Ela estava sentada em sua saleta, que dava para a Quinta Avenida, diante da escrivaninha, com uma pena na mão. Começou a escrever ao filho Tony, que estava no seminário.
“Você é tão bobo, meu bem”, escreveu ela, na terceira página, “e parece que seu ‘superior’ também acha, levando em conta o conselho dele, se bem que não há de ser tão franco quanto eu. Por que se atormenta e fica pensando numa coisa
que não foi sua culpa e se acusa eternamente até se tornar desagradável a todos?
“Você sabe tão bem quanto eu que a autópsia mostrou claramente que os comprimidos que Jon engoliu, estupidamente, não causaram a morte dele, de todo. O remédio se tornara, depois de tantos anos, inteiramente estragado e inócuo. Ele poderia ter tomado cem comprimidos, sem um efeito nocivo. O veredicto foi ‘morte por causas naturais’. Mas você já sabe de tudo isso. Quem pode dizer o que provoca a morte, nesses casos? É verdade que não havia sinais de um defeito orgânico, mas quem pode declarar, dogmaticamente e com verdade, que é errada a teoria de que o homem pode morrer por desejar a morte? Tenho certeza de que Jon fez isso. É bem possível que a morte tenha sido uma bênção para ele e para outros. Duvido muito que, se você estivesse ‘voltado’, como já repetiu cansativamente, pudesse tê-lo ajudado de algum modo.
“Seu avô continua num estado de choque parcial, desde a morte de Jon, o que é uma grande preocupação para todos nós. Só saiu para um passeio de carro duas vezes, desde que voltamos para Nova Iorque, e agora que se dá conta que você se retirou permanentemente da família e dos negócios da família está muito deprimido. Se tem de se sentir culpado por alguma coisa, pode começar pelo seu avô. Ele hoje não pode fazer grande coisa na ferrovia, salvo quando surge alguma emergência extrema, e Allan procura poupá-lo. Isso significa mais encargos e responsabilidades para seu pai. Também ele está começando a perceber o que significa para todos nós a sua ida; há dezoito anos que ele pensa em você como seu sucessor natural. Esse é outro ponto sobre o qual você pode sentir-se culpado, se quiser.
“A sua ‘titia Estelle’ não faz nada para aliviar a melancolia terrível que paira sobre todos nós; na verdade, ela parece resolvida a não deixar que penetre um único raio de luz. Ainda há duas semanas resolveu se levantar da cama e receber os pêsames das amigas num dos salões, em vez de no quarto. Os murmúrios e soluços ao chá, dia após dia, me irritam e afligem seu avô. Fui obrigada a literalmente trancar a porta do quarto dele, porque Estelle começou a invadi-lo todas as noites, gritando com ele e recriminando-o por ter ‘tratado nosso pobre filho daquela maneira’. A casa está um caos e, grande como é, não há um canto que não ressoe os gemidos, o farfalhar de seda preta, o tilintar abafado de xícaras de chá e o consolo idiota de ‘amigas’ mórbidas.
“Em vez de se entregar à autopiedade e lamentos infelizes, você podia me ajudar com a Dolores. Pretendíamos comunicar o noivado dela com Dick nesta primavera, em Paris, mas ela agora me escreve, muito insolente, que vou ter de esquecer tudo isso, pois resolveu definitivamente que não deseja esse casamento. Ele é um dos melhores partidos da Europa, embora não tenha grande fortuna, e é um rapaz muito simpático, com um título extremamente desejável. Dolores não podia arranjar coisa melhor; aliás, não creio que ela tenha outra proposta. Por que não lhe escreve e mete um pouco de juízo naquela cabeça? Se não se fizer alguma coisa — e eu ainda não desisti —, ela vai se tornar uma dessas solteironas horrorosas que passam suas vidas áridas no que chamávamos de ‘boas obras’. Seu pai também não gosta muito do Dick, mas aos poucos está concluindo que Dolores corre um sério risco de ficar solteirona, pois não se interessa pelos rapazes, a não ser como amigos. E, em setembro, vai completar dezenove anos.
“Fico contente que você tenha ido a Groton ver DeWitt, mas tive de rir de seu espanto ao ver que ele não estava nada precisado de companhia e ia muito bem, obrigado. É bonito de sua parte rezar por ele, mas lhe garanto que seu irmão se dará muito bem sem uma única oração por ele. É desse tipo de rapaz e é a única esperança que resta a seu pai. Sente-se um pouco culpado? Bom; espero que sim.
“Pode ser que lhe interesse saber que seu pai prometeu a Miles um bom cargo na ferrovia, depois que ele se diplomar em Harvard. Eu era contra, mas agora aprovo. Miles é um rapaz muito sério e me convenceu de que será vantajoso para a companhia. É um verdadeiro ‘ferroviário’, o que me espanta muito. E, afinal, o pai é diretor e sua família possui muitas ações. Eu não gostava de Miles, pois sempre achei que era um maquinador. Ainda acho isso, mas comecei a gostar dele por qualidades muito sólidas, que não pensei que ele tivesse. Não posso olhar para meus filhos, a não ser DeWitt, com prazer; é uma ironia que eu encontre prazer em um ou dois dos Peales. Mary teve um choque e tanto quando você partiu; eu tinha esperanças de um casamento entre vocês. Mas ela está voltando seus interesses para DeWitt e foi visitá-lo há pouco. Ele me escreveu, em seu estilo reservado de sempre, que ‘gostou’ de vê-la. Espero que o ‘gosto’ se transforme em coisa mais importante, dentro de alguns anos.
“Só recebi uma carta de minha mãe. Não está nada bem, desde a gripe que pegou quando voltava para casa, depois daquele horrível jantar do Dia de Ação de Graças. Afinal, três horas numa tempestade horrível num trenó, embora cheia de mantas, é uma provação para uma mulher da idade dela. Ela e Ruth nunca falam daquelas horas que passaram perdidas nas montanhas, em que os cavalos não conseguiam atravessar os montes de neve. Eu agradecería, se você pudesse poupar alguns momentos de sua preocupação doentia com Jon, que escrevesse para mamãe regularmente. Ruth não a acompanha muito e, nas cartas, geme dizendo que quer ir para Haia, muito breve, ‘estudar’ com as missões de paz. Ela parece muito agitada com alguma coisa e suas cartas estão cheias de suspeitas tenebrosas de ‘guerras futuras’, tudo tolice, claro. Ela sugere até que está escrevendo um livro sobre o assunto e passa dias e dias em Filadélfia, largando a mãe, para consultar os quaquers.
“Como vê, nós também temos problemas e aflições. As coisas que você imagina me parecem muito triviais e irritantes. Faça o que quer que tenha de fazer no seminário com todo o seu vigor. Não o perdoarei de verdade por tudo enquanto você não for pelo menos um arcebispo, ou melhor, um cardeal.”
Droga, pensou Cornélia, jogando a pena para o lado. Ela sempre se irritava quando “a família” se impunha implacavelmente à sua atenção, obrigando-a a escrever cartas. Ela se levantou e foi para as janelas que davam para a Quinta Avenida. Estava nevando muito e a lama se juntava nas calçadas e nas ruas. As casas brancas e marrons flutuavam sem substância em violentas rajadas de uma neve branca-acinzentada. O tráfego entupia as ruas: ônibus, carroças e carruagens e alguns poucos automóveis vermelhos que fumegavam na tarde fria de inverno. Ela ouvia as buzinas, mesmo lá de cima, através das janelas cobertas de seda. Vultos negros e marrons enchiam as calçadas; os guarda-chuvas se inclinavam e voavam; os lampiões de rua já estavam sendo acesos por homenzinhos ligeiros e seu brilho amarelo quase era apagado pela tempestade.
Cornélia não sentiu a antiga empolgação que sempre tivera ao olhar para a Quinta Avenida. Ela e Allan iam a um baile dos Vanderbilts naquela noite e ela escolhera para usar um vestido de cetim turquesa com cauda e as magníficas pérolas e águas-marinhas. Como diziam os jornais, seria “um evento”. Estelle tinha feito uma cena deplorável, aos gritos: a família estava de luto; era indizível e vulgar comparecer a reuniões sociais, tão pouco tempo depois da morte de Jon — nem três meses. Cornélia, que raramente discutia com alguém (pois as discussões a aborreciam), brigara terrivelmente com a madrasta. Ela e Allan, disse, não estavam de luto por ninguém e, se seu meio-irmão tinha preferido morrer, certamente isso não era de sua conta.
“Maldita”, pensou Cornélia, deixando cair a seda dourada das cortinas, tapando a cena de inverno abaixo. “Se alguém matou Jon, foi ela. Não vai nos impedir de ir, nem que se sufoque e morra, o que seria a única coisa inteligente que conseguiria fazer. E, dessa vez, vou ser enérgica com o papai, também; já cedemos demais às raivas de Estelle, para que ele pudesse “ter paz”.
A despeito de sua animação indestrutível, Cornélia não conseguia se livrar da depressão. O relógio dourado com pedrarias na mesinha-de-cabeceira tocou as quatro e meia da tarde. Ela o comparou com o relógio de pulso. Allan já devia ter chegado de Filadélfia, a essa hora. Sem dúvida, o trem tinha sido detido pela neve. "E Allan e eu temos de ter pelo menos uma hora para nos preparar", pensou ela, irritada. “Bom, como esse baile é em nossa homenagem, terei de ir sem ele, se não chegar a tempo.” Ela tocou a campainha dos empregados e depois mandou vir o camareiro de Rufus.
O camareiro disse a Cornélia que trancaria todas as portas do patrão, vigiando-as e não deixando ninguém entrar. Cornélia sugeriu que o sedativo habitual do pai fosse dado um pouco mais cedo do que de costume. O camareiro então informou a Cornélia que a carruagem do sr. Marshall acabara de chegar. Com alívio imenso, ela desceu correndo a escadaria circular, na penumbra, para receber o marido, enquanto o camareiro depressa acendia as luzes elétricas atrás dela como um farol. Ele refletiu que, para uma senhora da “idade da sra. Marshall”, ela era singularmente ágil e ativa; notou que ela levantava as saias muito alto ao correr escada abaixo e que tinha pernas compridas e fortes, como de um rapaz, e que nem tocou no corrimão, ao passar.
O mordomo estava abrindo as portas de vidro e grades quando Cornélia chegou ao hall de mármore, com muitos tapetes persas em sua vasta área. O hall agora ostentava milhares de lâmpadas elétricas presas às paredes de damasco vermelho e nos braços e mãos alvos de belas estátuas antigas de divindades gregas erguidas nos cantos mais afastados.
A monstruosa lareira de mármore branco reluzia com imensas toras ardentes e o piso de mármore reluzente refletia lâminas e lanças de fogo rubro. No entanto, o grande hall estava frio, e quando Allan entrou, com sua pasta pesada, uma nuvem de flocos de neve entrou com ele, dançando e girando. Ela correu para ele, exuberante, gritando que estava preocupada com o trem, abraçando-o e beijando-o com amor. Ele a abraçou brevemente, avisando que estava molhado; depois afastou-a para se livrar do sobretudo, o cachecol e o chapéu-coco. Ela viu logo que ele estava tremendamente cansado e preocupado.
Allan ficou uns instantes diante da lareira do hall, esfregando as mãos frias e tentando sorrir para a mulher. Havia uma palidez tensa sob sua pele morena. “Aconteceu alguma coisa”, pensou Cornélia, preparando-se. Colocou o braço no dele e puxou para um dos enormes salões.
— Vamos já beber alguma coisa — disse ela. — Você está gelado. Não sei por que não usou o vagão particular. Esses pullmans são sempre muito frios... e com esse tempo!
Quando Allan, mocinho, tinha vagado do lado de fora daquela casa, ansiando por ela, acreditara que morar dentro daquelas formidáveis paredes de pedra e portas de vidro, grades e cobre seria o máximo da satisfação humana. Ele agora detestava a mansão, com sala de música e cadeiras douradas, órgãos de tubos e um monolítico piano de cauda; urnas chinesas e de bronze cheias de plantas exóticas; salões forrados de tapeçarias antigas e valiosas; arcos com cortinados de veludos sedosos; cadeiras Luiz XV e espanholas, forradas de brocado; tetos dourados ou pintados, cheios de ninfas e querubins; espelhos altos, entre as janelas; arcas gigantescas, de mármore ou ébano; quadros do Renascimento nas paredes cobertas de adamascado; mesas raras e abajures de cristal, mármore, pintados ou dourados; tapetes persas e murais e palmeiras em tintas chinesas; jarros cloisonné em suportes de teca; estátuas e estatuetas em todos os cantos e nichos; elevadores automáticos com assentos de veludo; e sala de jantar, com lugar para setenta e cinco pessoas, na mesa de refeitório italiana, em cadeiras italianas que pareciam tronos.
A casa tinha, refletia ele, a magnificência apinhada de um museu; milhões de dólares tinham sido gastos para construí-la e decorá-la e, no entanto, era sem gosto — embora com grandeza —, desde o reluzente salão de baile até os banheiros de mármore dignos de Nero.
Ela recuou no limiar do imenso salão principal, estremecendo. A despeito de um sistema de aquecimento muito eficiente e do fogo ardendo constantemente, a sala estava fria.
— Vamos para a biblioteca — disse ele. Cornélia concordou. A biblioteca era só ligeiramente menor, mas os milhares de livros nas paredes (volumes raros e fólios) emprestavam ao aposento uma falsa sensação de isolamento e calor. Também ali rugia um bom fogo, numa lareira de mármore negro. As cortinas de veludo azulmarinho tinham sido puxadas sobre as janelas até o teto e o tapete de veludo azul reluzia como seda torcida, à luz do fogo. Uma empregada bem-vestida de preto e branco estava acendendo as arandelas das paredes e os abajures vermelhos e azuis e fez uma reverência quando Allan e Cornélia entraram, o mordomo atrás deles. Cornélia pediu logo uísque e soda, e marido e mulher se sentaram nas poltronas de couro azul, junto ao fogo.
— Só temos meia hora — disse Cornélia, levantando bem as saias, para o calor poder chegar a suas pernas. Ela pegou um cigarro e o mordomo o acendeu e ofereceu a caixa de cristal a Allan. — Lembra-se? Os Vanderbilt, hoje à noite. E temos de nos arrumar e depois ir ver o papai, uns minutos antes de sair.
— Meu Deus, eu tinha esquecido — disse Allan, cansado.
— Somos os convidados de honra. Que dia! Vou ficar bem contente de ir para a França, na semana que vem. — Ela sorriu para ele, animando-o, e se preparou de novo. Seus olhos faiscavam e o rosto pintado estava vivo, à luz das lâmpadas. Ela ergueu o copo. — A nós, amor.
Allan bebeu avidamente e ela o observou. Ele olhou em volta da biblioteca, para a mesa de mogno comprida e as poltronas escuras, as paredes de livros e quadros. Ele disse:
— Que casa lúgubre essa, droga!
Como ele já dissera isso tantas vezes, no passado, Cornélia não fez caso do comentário. Esperou que ele continuasse. O mordomo fora dispensado e Allan levantou-se e tornou a encher o copo. Cornélia franziu as sobrancelhas e disse:
— Não beba demais, meu bem. Sei que está com frio, mas temos de sair.
Ele se sentou e bebeu outra vez, ainda sedento.
— Como estava Portersville? — perguntou Cornélia. — Droga, queria estar lá. Também detesto esta casa.
— Acabamos de homologar o testamento de Jon — disse Allan. Ele olhou para dentro do copo. Puxou para cima as pernas das calças úmidas, e os tornozelos, muito finos e arrumados nas meias de seda preta, comoveram Cornélia. — Ele deixou todo o dinheiro dele para Miles, todos os centavos. Um testamento muito curioso.
Cornélia o fitou.
— Para Miles Peale? Que coisa extraordinária! — Ela apertou os olhos e sua boca pintada se contorceu. — Por que será? — Ela deu uma risada, como um latido. — Não posso acreditar que haja alguma coisa errada com o Miles!
Allan estava de cabeça baixa; ele olhou para a mulher e abaixo das íris negras dos olhos brilhou uma mancha branca.
— Não há, não. Mas isso não foi culpa de jon. Ele bem que tentou. Em todo caso, imagino que haja cochichos e comentários picantes às escondidas e sinto pelo Miles. “Para meu querido e amado primo, Miles Peale, por este instrumento deixo...” Bem, esse negócio de primo atenua a coisa.
— Quanto é? — perguntou Cornélia.
— Um milhão e oitocentos mil dólares. Não é uma coisa imensa, mas bastante. Investido?
— A metade em Carnegie. Miles vai conservar assim. Tem boa cabeça.
— Estelle não vai gostar disso.
A preocupação continuava no semblante de Allan. Ele largou o copo.
— Eu acho — disse ele — que em breve você será diretora da ferrovia, Cornélia. Os diretores estão vencendo sua indignação original. Hoje só um deles resmungou alguma coisa sobre a “Nova Mulher”.
Cornélia deu uma gargalhada.
— Aposto o que quiser que foi Pat Peale!
— Ganharia a aposta.
Ele pegou o copo vazio, olhou para Cornélia e o largou, pesadamente. Dobrou as mãos entre os joelhos e olhou para o fogo. Cornélia abriu o relógio, bruscamente.
— Dez minutos — começou. Allan endireitou-se.
— Diabos, Cornélia! O que importa o tempo?
Sua voz era um grito de raiva e Cornélia olhou para ele, pensativa, sem responder. Allan se levantou de um salto e começou a andar de um lado para outro, nervoso, as mãos nos bolsos. Cornélia disse, consigo: “É alguma coisa e é séria. Ele receia me contar e está aflito”. Ela dobrou as mãos sobre os joelhos e ficou esperando.
Allan parou junto da cadeira e pôs a mão na cabeça da mulher, Ela enrijeceu e se obrigou a sorrir.
— Desculpe tê-lo aborrecido por causa da hora, mas somos os convidados de honra, sabe. Nem o inferno me impediría de ir.
A mão de Allan caiu da cabeça de Cornélia e ele se virou. Os dedos dela se enroscaram no colar de pérolas curto, em volta da gola dura. Ela repetiu:
— Nem o inferno.
Allan disse desesperado:
— Cornélia...
Ela levantou a mão e o interrompeu, amável:
— Hoje escrevi ao Tony. Muito cansativo. Ele continua a se preocupar com o Jon e a se culpar. Mas você leu a carta dele, de alguns dias atrás. Eu pensava que Tony tinha certa inteligência.
— Estive com meu pai hoje — disse Allan, como se não a tivesse ouvido.
Cornélia soltou a respiração, aliviada. Então, era só o pai dele.
— Está muito idoso e quis ir à estação para conversar com os “rapazes”. — A voz de Allan estava sem vida e Cornélia prendeu a respiração. Não era o pai.
— Que interessante — disse educadamente. — Afinal, ele foi maquinista e acho que um dia você disse que fazia anos que ele não ia aos pátios. Ele gostou? E, falando nisso, como estava o tempo em Portersville? Tão ruim quanto aqui?
— Só começou a nevar quando chegamos a Filadélfia. — Allan tinha se afastado na sala e fingia examinar uma paisagem na parede entre duas janelas. — Cornélia, está se armando uma crise. A gente sente.
— É o que você vem dizendo há dois meses, meu bem. — Ela se levantou, farfalhando. — Talvez esteja enganado. Acho que acabamos com as crises.
— Está se esquecendo dos Regan, do “jovem” Gunther e de todos os outros.
Cornélia deu de ombros.
— Às vezes, querido, você fala de nossos amigos como Jon falava. Afinal, são financistas, e financistas fazem o que nasceram para fazer, se a gente acredita no fatalismo, coisa para a qual eu me inclino. E agora, com licença. Tenho de me vestir e aconselho que faça o mesmo.
Ela se encaminhou para a porta, serenamente, as mãos cerradas na frente. Chegara ao limiar quando Allan gritou:
— Cornélia! Há uma coisa que tenho de lhe contar...
Tony?, pensou ela, parando no vão da porta, mas sem se virar.
DeWitt? Dolores? Não, ela teria sabido. Era alguém em Portersville; não podia ser outra pessoa. Ela disse, numa voz forte e dura, ainda sem se virar:
— Allan, vou à casa dos Vanderbilt e você também, a não ser que queira humilhar-me, deixando que eu vá sozinha.
Ele se aproximou dela depressa e a pegou pelo ombro. Cornélia olhou para ele com firmeza. Ele via-lhe o rosto e achou que estava frio como mármore pitado; e igualmente impenetrável.
— Allan, meu pai ainda está muito fraco e o que você tiver de me contar terá de esperar até amanhã, pois sei que também o afetará: e, se me contar agora, posso achar que devo ir para junto do meu pai e isso eu não farei. Hoje.
— Por causa do jantar dos Vanderbilt? — perguntou ele, com amargura.
Lentamente, ela ia ficando branca sob o ruge, mas respondeu com compostura:
Por causa do jantar dos Vanderbilt e do meu pai.
— Então, você tem uma ideia?
— Não tenho ideia nenhuma. Só estou pensando é se aquela imbecil da
empregada tirou o vestido certo. — Os olhos dela o contemplaram e pareciam pedacinhos de âmbar, tão distantes dele quanto de um estranho. — Estarei pronta dentro de uma hora.
Ela mexeu o ombro sob a mão dele e Allan recuou, soltando-a. Ela continuou e ele ficou parado no vão da porta, vendo-a subir a escadaria de mármore, levantando as saias, sem olhar para trás. “Ela sabe”, pensou. “Sempre sabe de tudo, quase imediatamente. Ela sente? Não sei. Estou casado com ela há muitos anos e nunca a conheci. Ela me mentiu na primavera passada, em Cannes. Mentiu para me ajudar ou porque eu a estava aborrecendo com minha infelicidade. Muitas vezes faço isso.”
Ele foi para a mesa da biblioteca e escreveu um telegrama:
“Ruth querida, Cornélia e eu voltamos para Portersville amanhã de tarde e ficaremos com você por algum tempo depois do enterro de sua mãe.” Ele levantou o lápis, hesitou e depois continuou: "Cornélia está arrasada e não tem condições de viajar hoje. Ainda não deu a notícia ao pai, pois ele ainda está doente. Todo o nosso amor”.
Ele encostou a cabeça na mão e pensou na moça desolada, privada de pai e mãe em apenas alguns meses. Pensou na casa silenciosa margem do rio, na moça que chorava sem fazer barulho, na voz do rio contra as janelas cobertas e na mulher deitada no caixão entre flores e velas. E disse consigo: “Há momentos em que detesto Cornélia, pois nada a detém. Eu fui detido, há muito tempo”.
0 grande relógio de ébano bateu as horas no espaço branco e escuro do hall e seus ecos reverberaram sombriamente em cada aposento. Allan teve um sobressalto. Pensou no jantar dos Vanderbilt e lembrou-se, melancolicamente, de que precisava se vestir. Tocou a campainha para chamar o camareiro. Quando o homem entrou na biblioteca, disse:
— Por favor, prepare meu banho. Não, não vai dar tempo. Prepare minha roupa; estarei no quarto dentro de alguns minutos.
Ele se levantou e olhou com uma ansiedade parada para as paredes forradas de livros, como se as notasse pela primeira vez. Depois, saiu depressa e correu escada acima. Sempre se esquecia dos elevadores da casa. A casa estava acesa de alto a baixo e cheia de silêncio. Allan parou no segundo andar; uma Afrodite muito boa, que primeiro conhecera o brilho do sol da Grécia, estava perto do patamar e em suas mãos brancas, em concha, brilhava uma lâmpada elétrica, desinibida. A luz forte iluminava seu rosto sereno e sorridente e Allan afastou os olhos, como se tivesse visto uma obscenidade. Seguiu depressa pelo corredor de mármore e bateu à porta dos aposentos de Rufus. A porta abriu-se muito cautelosamente, alguns centímetros, e depois mais, quando Allan apareceu. Ele meneou a cabeça para o empregado e passou pela saleta quente para o quarto de dormir, onde Rufus estava repousando em sua enfeitada cama francesa, antes do jantar.
— Eu estava começando a ficar preocupado com você, meu filho — disse Rufus, levantando-se de seus travesseiros de cetim cor de orquídea. — Ia mandar indagar onde você estava.
Ele estendeu a mão, agora tão magra e transparente, e sorriu para Allan com carinho.
— Primeiro tive uma conversa com Cornélia — respondeu Allan, sentando-se precariamente numa poltrona estofada em cetim roxo, junto à cama.
— Mau tempo — comentou Rufus, tornando a recostar-se nos travesseiros.
Seu sorriso tinha desaparecido; ele agora estava parecendo o que era mesmo — um velho doente, mirrado e muito cansado.
— Como o senhor está passando? — perguntou Allan. — Hoje está parecendo um pouco mais forte.
Rufus sorriu de novo e olhou para o fogo.
— Quando eu era muito pequeno, talvez com quatro anos, disse comigo que tinha sempre de dar uma resposta animada a todas as coisas. Descobrira que isso me poupava de perguntas aborrecidas tinha um bom efeito sobre as outras pessoas e me tornava querido. — O rosto dele ficou muito sério e mais cansado do que nunca. Agora, não ligo a mínima. Portanto, respondendo à sua pergunta, quer lhe aborreça ou deprima, quer não, eu vou dizer: “Estou me sentindo péssimo. Certamente vou morrer muito em breve”.
Allan não riu. Disse:
— Espero que o senhor não morra “em breve”. Lamento muito que se “sinta péssimo”. Sei que se sente mesmo. E sabe, acho que a morte é a parte menos desagradável da vida e provavelmente a mais atenuante.
Rufus virou a cabeça e examinou Allan, pensativo. Depois de alguns momentos, disse:
— É realmente incrível, mas a cada dia você me lembra mais o velho Steve. Ele foi o homem certo no lugar errado; sempre acreditei e por vezes ainda acredito, que você era o homem certo no lugar certo. E de outras vezes acho que você é o homem errado no lugar errado. Alguma coisa lhe aconteceu. Mas dou graças a Deus por você nunca ter-me contado e continue tendo a decência de não contar. — Ele dobrou as mãos sobre o estômago mirrado e tornou a examinar o genro.
— Conte de Portersville — disse. — Não, negócios não. Conte da cidade e da casa e...
— Hoje vamos ao jantar dos Vanderbilt, sr. Rufus, e Cornélia já está se vestindo. Vamos chegar atrasados, não que isso tenha muita importância. Isto é mais importante. Fui ver meu pai, hoje à tarde; está velho e se acabando e não o via desde o Natal. Ele quis ir ao pátio de manobras, conversar com “o pessoal”.
Allan parou e olhou para o chão.
Rufus disse:
— Sei, sei, eu também gosto de conversar com o meu “pessoal”. É muito natural. Conte.
0 que Rufus DeWitt, poderoso presidente da Interstate Railroad Company, podia ter em comum com um maquinista irlandês velho e cansado, que apenas amava sua máquina? Allan levantou os olhos e percebeu logo que esses velhos tinham tudo em comum.
Ele começou a falar, evitando olhar uma vez sequer para o relógio no consolo da lareira, onde havia um fogo forte. Tinha ido ao sítio do pai cedinho, naquele dia, e ficara satisfeito, como sempre, ao ver que Tim estava sendo muito bem tratado pelo casal de meia-idade que cuidava do sítio e o mimava escandalosamente.
Nesse dia, ele parecera muito frágil, pois acabara de se restabelecer de uma gripe forte. No entanto, tinha falado animadamente com Allan, como sempre, beijando-o com efusão, batendo nas costas dele com o punho, pedindo o chá aos gritos, dizendo “cuide de primeiro aquecer o bule e depois ponha no fogo" e depois ficara sentado com o filho, conversando sobre Michael e Tony. Michael, na índia, estava muito feliz com a decisão de Tony de ser padre. Escrevia regularmente a Tony; estava passando muito bem. O velho falara sem parar sobre o filho e o neto, o rosto irlandês redondo vermelho de orgulho e entusiasmo. Depois ele parara, olhando bem para Allan.
— E cá está o meu belo rapaz, com todo esse dinheiro, e todas as coisas que fez e com o cargo de presidente chegando, e é burrice minha não perguntar o que tem feito e dizer que também me orgulho dele. — Ele dissera consigo mesmo, com uma pontada de tristeza. “E está com uma cara de morte, o meu filho, e com uma agonia dentro dele que ele nem sabe.”
— Acho que vou ser presidente quando voltarmos da França — disse Allan, mas sem prazer nem satisfação.
— Sei, e isso é bom, mas é com medo que você está — disse Tim, com brandura. — Teve medo a vida toda, eu acho. Não ligue para um velho que ama os filhos e reza por eles — acrescentou depressa, esfregando a massa espessa de cachos brancos. — E quem é que não tem medo? Veja o nosso jovem padre, tão confiante, me visitando quase todo dia, chegando aos saltos que nem um colegial com a voz alegre, e sua conversa dos padres “se aproximando mais do povo e compreendendo os problemas dele”, enquanto, o tempo todo, aqueles enormes olhos azuis estão com medo. E digo a ele, eu que tenho idade para ser avô dele: “Padre, qual é o medo que tem um rapaz bom como você?” E ele diz: “Tim, não é medo que tenho, pois isso é pecado e Nosso Senhor nos amou a todos”. E eu digo a ele, me benzendo: “Pode ser e tenho certeza de que é verdade, mas estamos todos assustados, mesmo quando bebês no colo da mãe; e o medo fica mais forte a cada dia que vivemos e quando ficamos velhos, ficamos com mais medo do que nunca. E por que isso, com todo o respeito, padre, por que todos temos tanto medo? É porque não confiamos em nosso semelhante, ou talvez o conheçamos bem demais, e a nós também!” E acrescentou: “Tive tempo de ler, todos esses anos, padre, histórias sobre essas coisas. E, claro, tenho visto que os homens sempre tiveram medo e que, afinal, a vida fica cansativa por causa do medo”.
— E o que é que o padre Dugan disse então? — perguntou Allan, não com condescendência, mas muito sério.
Tim esfregou o queixo, piscou os olhos brilhantes como em sua juventude.
— Bom, é uma coisa muito curiosa. O rapaz ficou aí sentado onde você está, pensando que devia citar uma coisa que aprendeu e responder feito padre. E aí, de repente, ele é só um rapaz conversando com o avô e com lágrimas nos olhos. Diz: “Tim, o medo é a ausência de Deus, e que nossa Mãe Abençoada me perdoe e reze por mim!”
Allan pensou na antiga lenda de Sísifo, condenado a rolar eternamente uma pedra morro acima e ela rolando para baixo quando ele chegava perto do cume. Ele não se lembrava se o homem caíra, em sua exaustão, sendo esmagado pela pedra. Disse então:
— Essa conversa não está muito alegre. 0 senhor gostaria de ir dar um passeio de uma hora, mais ou menos?
Tim mostrou seu desejo de ir aos pátios.
— E talvez seja pela última vez — disse. — Estive lendo e pensando coisas muito estranhas e quero ver se o que temi é verdade.
Eles foram para os pátios, bem longe, na carruagem de Allan, sob um céu marrom-acinzentado que se comprimia sobre a terra árida e os campos cerrados e parecia tocar nos telhados castanhos das casas de fazenda solitárias. Tim sentou-se ao lado do filho, embrulhado nas mantas de pele, olhando para o silêncio imenso, e ficou calado.
Quando chegaram aos pátios e Allan já ia dizer que a carruagem fosse para a rotunda, Tim o impediu.
— Não, só quero olhar os rapazes, ou talvez falar com alguns que passem por nós. São estranhos para mim, não me conhecem, de modo que vamos ficar aqui sentados olhando para eles. Aí vou ver se é verdade o que ando temendo.
Havia anos que Tim não ia lá e ele olhou para a grande massa de prédios com assombro, mas sem admiração. Os pátios de manobras estavam cheios de locomotivas gigantescas, berrando, fumegando, apitando e martelando; compridos trens de carga saíam, os maquinistas, jovens ou de meia-idade, olhando para a frente, atentos, as mãos nos registros, os bonés listrados por cima dos rostos fortes e endurecidos. O fogo corria pelas rodas rangentes; os pistões se moviam em gigantescos gestos de força.
Centenas de homens corriam pelos pátios; havia uma constante movimentação, gritos, marcações nos livros, um vaivém constante. Os homens se consultavam brevemente, sem sorrir, sem conversar, sem parar para olhar para os monstros de que cuidavam sem orgulho ou desprezo. Não havia grupos de jovens foguistas mascando, fumando ou contando anedotas picantes, nem discutindo com veemência ou brandindo os punhos, como nos tempos de que Tim recordava. Tudo era eficiência, movimentos calculados, uma precisão fria e desinteresse. Os sinais brilhavam no cintilante emaranhado dos trilhos; a fumaça se erguia em exalações tremendas ao frio céu de inverno; as mãos se erguiam, não em cumprimentos, mas em sinais.
Cada vez se acendiam mais luzes nos prédios, não com o calor lento e maduro do óleo, mas com o clarão violento da eletricidade branca. Um cargueiro chegou, vagões ripados contendo centenas de reses que gemiam e mugiam em vozes perplexas, de medo e sofrimento, Um trem de passageiros, todo iluminado e comprido, deslizou para a estação, os pullmans reluzindo. Os condutores saltaram pelos degraus colocados nas portas pelos carregadores de cor, envergando fardas caprichadas; os empregados dos trens, de óculos e cara dura, só olhavam para seus registros e seus relógios.
O jovem maquinista bocejou em sua cabine, olhou para o relógio e não quis falar com nenhum dos homens na plataforma, o que foi recíproco. Os passageiros saltaram rapidamente, levando suas pastas e maletas, as fisionomias preocupadas. Tinham vindo de longe, em segurança, conduzidos depressa pela locomotiva na frente, e no entanto não lhe lançaram um sorriso de carinho. Nem sequer tomaram conhecimento dela.
Allan, sentado em silêncio ao lado de Tim, de repente viu a grande estação e os pátios pelos olhos do pai. Era como se lhe tivessem dado outra visão, superposta à sua.
— Não é nada como nos velhos tempos, hem, pai? — perguntou e tentou
sorrir.
— Não é mesmo — respondeu Tim. Um maquinista estava passando, encolhido em seu sobretudo grosso, carregando um maço de papéis. Tim debruçou-se da janela aberta da carruagem e falou com ele. O homem parou.
— Essa é a velha trinta e oito, entrando agora, pode me informar? — perguntou Tim.
O homem estava impaciente, mas olhou bem para a bela carruagem com seus dois cavalos pretos e o cocheiro e baixou os olhos, emburrado. Disse, brusco:
— É, sim. Vai apanhá-lo?
— Não vou, não — disse Tim.
Ele fechou a vidraça e ficou olhando para os pátios, o olhar pesado; o maquinista deu de ombros e continuou seu caminho, resmungando. Tim dobrou as mãos na manta de pele e sua cabeça descaiu. Allan disse, impaciente:
— Então, pai, o senhor queria que voltassem os velhos tempos, com sua ineficiência, maus horários, vagões chocalhando e o perigo, barulho e desconforto? E a displicência dos homens...
— Estou pensando — disse Tim — no que tudo isso está fazendo com os homens. Também estou pensando nas grandes fábricas, com homens como estes em suas máquinas, que vão martelando sem parar e os homens movendo os braços e as pernas, eles mesmos que nem máquinas. Estou pensando nas caras que vejo agora nos pátios e digo que é mau, muito mau. É pior do que eu pensava; certo, é pior.
Ele continuou, pois Allan não fez comentários:
— Estava nos jornais, outro dia. A velha sessenta e dois correu numa reta perto de Ada, Ohio, e fez cinco quilômetros em noventa e dois segundos e houve muitos vivas no jornal pelo novo recorde e muita falação sobre o futuro e as velocidades, e eu disse comigo, ao ler aquilo: “E para onde vai toda essa gente que quer ir tão depressa? Essa gente com caras sem luz e com os pés correndo e sem tempo para viver?” E pensei no belo futuro de que falam, quando todo o céu de Deus vai estar cheio de máquinas voadoras e as pessoas irão cada vez mais depressa para mais e mais lugares, sem parar para ver aonde foram, sem se importarem, só querendo ir cada vez mais depressa e ver cada vez menos. Ah, são os tempos modernos chegando, diz o jornal, e eu digo que está chegando o tempo em que os homens nem vão ter tempo de se falar e de se consolar e rezar uns com os outros. E quando chegar esse dia, eu digo comigo, esses homens vão se detestar porque detestam suas vidas. E ocorrerão guerras terríveis no desespero que vai se apoderar dos homens.
Allan continuava sem falar. Tim virou-se para ele, o sotaque mais forte.
— Certo, tivemos greves no passado terrível, e as pessoas passando fome. Mas havia uma consciência crescendo nos figurões e está crescendo o tempo todo. Em breve não vai mais haver fome nem salários miseráveis e talvez aconteça o que o sr. Ford diz nos jornais: todo homem vai ter seu automóvel e andar em estradas novas. E vai haver casas para todos e ninguém ficará sentado pensando se vai passar fome na velhice. Mas ocorrerão greves, greves que velhos como eu nunca vimos, eu acho, e o ódio vai ser pior do que foi na década de 1870. E por que haverá greves? Porque os hoiftens não terão orgulho de seu trabalho, nem de si, pois só pensarão em si como máquinas, como os patrões pensarão neles; e o coração dos homens não conseguirá suportar isso, pois os corações dos homens não são de aço, mas só de carne e sangue. E o coração humano anseia por mais do que apenas bons salários; anseia pelo orgulho em si, pelo trabalho das mãos e pelo companheirismo, e saber que se realizou alguma coisa, cada dia. Pois o homem é um espírito; é uma alma e precisa ter as satisfações do espírito, Aloysius, e não há lugar para o espírito do homem no futuro, que está surgindo
hoje.
Allan acendeu um cigarro e a chama vermelha iluminou seu rosto magro e moreno com os olhos fixos. Mas ele disse com bastante brandura:
— E o que o senhor queria fazer, pai?
Tim respondeu:
— Eu contaria aos homens, nesses dias, sobre o Deus que perderam, em algum lugar com as máquinas, os belos trens, as máquinas voadoras e os automóveis. Contaria às crianças todos os dias, em todas as escolas, sobre Deus. Mandaria os padres e ministros andarem pelas ruas, todos os dias, parando as pessoas e contando a elas; e pediria aos jornais para contarem a elas; e faria com que todas as igrejas ficassem abertas o tempo todo, noite e dia, com as velas ardendo e um padre ou ministro nelas o tempo todo; e eu acenderia as cruzes nas torres no céu da noite, tão claras quanto o sol.
Ele se virou para Allan e exclamou:
— Quando se transforma um homem em máquina, é o coração e a vida que se tira dele; e quando se conta as horas da vida de um homem como “força humana”, isso é um pecado contra o próprio Deus! E depois que se transformar todos os homens em máquinas, então surgirá um dia tão mau quanto o mundo nunca viu.
Allan disse a Rufus, que escutara sem dizer uma palavra:
— Aí mandei o pai de volta para casa na carruagem e peguei o trem de volta a Nova Iorque.
Ele se levantou e depois parou, quando Rufus ergueu a mão e disse:
— Um momento, meu filho. — Ele olhou para Allan demoradamente, sério. Depois, com a voz mais bondosa, continuou: — Allan, se bem que você pense que tem um dom para a mentira, é péssimo mentiroso. Não tem as feições amenas que tornem sua mentira convincente. Sabe, desde o minuto em que entrou aqui, eu sabia que algo fora do comum o estava aborrecendo e perturbando. Não foi esse passeio com seu pai. Conte; já tive muitas más notícias em minha vida e agora já é tarde para alguém querer me “proteger”. Não preciso disso.
Rufus continuou, mais gentil ainda:
— Sua primeira mentira realmente terrível, que me convenceu de que estava mentindo, foi quando disse, inocentemente, que mandou a carruagem levar seu pai para casa e logo tomou o trem para Nova Iorque. Devia ser o velho trinta e oito. Nesse caso, devia ter chegado aqui duas horas antes, a despeito da tempestade que começou em Filadélfia. Não sou um homem curioso — continuou Rufus, acomodando-se melhor nos travesseiros. — Se você tivesse algum... assunto... particular, isso não teria importância para mim. Mas o fato de tentar me iludir convenceu-me de que o que está escondendo, seja o que for, pode ser importante para mim, ou pode me “magoar” de algum modo. Não é negócio; é algo pessoal. O que é, Allan?
— Nada — disse Allan. — O senhor está imaginando coisas.
É verdade que há outro assunto, mas posso lhe contar amanhã. O senhor esteve doente...
Rufus sacudiu a cabeça devagar.
— Você ainda não aprendeu que a pior parte das más notícias é a gente
ficar imaginando o que será, enquanto os tolos procuram “proteger” a gente? Isso é acrescentar a tortura da apreensão ao golpe que vem. O que é, Allan? Quem morreu em Portersville, por exemplo? Agora não há mais ninguém lá cuja morte me afetasse muito a não ser... — Ele se endireitou na cama, com esforço. 0 rosto largo, no qual ultimamente os ossos grandes tinham começado a aparecer, ficou lívido. — Allan? É... Laura? Não? Lydia!
Allan estava se sentindo mal, com o alarme do sogro. Tornou a sentar-se e esfregou os olhos, sem poder falar. Rufus disse, com brandura:
— Quando? Como?
Allan ergueu as mãos.
— Procurei contar a Cornélia. Acho que ela desconfiou de alguma coisa. Mas não quis deixar que eu lhe contasse. Temos o jantar dos Vanderbilt em nossa homenagem e ela disse que as más notícias podiam esperar até amanhã. Acho que ela é muito sensível de certo modo...
— Quando? Como? — repetiu Rufus. — Fale logo, não posso esperar até amanhã.
Allan cedeu.
— Cornélia vai... Não a deixe saber que lhe contei. Mandei meu pai para casa, sim, pouco antes de partir o trinta e oito. Então na estação, telefonei para saber como estava passando a sra. Purcell Ruth não pôde atender, atendeu uma empregada. A sra. Purcell... tinha repousado depois do almoço e quando a filha foi tomar chá com ela, encontrou-a... na cama. — Ele suspirou. — Fui logo para lá e tentei fazer o que podia. Não consegui fazer nada. Ruth estava bem calma; chorava, mas sem fazer barulho, as lágrimas escorrendo pelo rosto enquanto falava comigo. Queria ficar sozinha na casa, com a mãe, até amanhã. Tive de respeitar seus desejos, se bem que a ideia fosse mórbida...
— Não. acho — disse Rufus, numa voz normal. — Acho muito natural. E assim que devia ser: no primeiro dia, a gente devia ficar a sós com os mortos.
Ele olhou para uma mesa afastada.
— Pode me dar um cálice de conhaque, por favor? E tome um também.
Allan obedeceu. A mão de Rufus não tremeu, ao pegar o cálice frágil e começar a beber. Allan bebeu o dele num gesto de desespero. Rufus disse:
— Você não aprecia o bom conhaque, Allan. Bebe isso como um anestésico. Eu nunca precisei de anestésico para nada.
Ele encostou a cabeça grisalha e forte nos travesseiros de cetim daquele tom inominável e fechou os olhos. Começou a falar, como que para si:
— Lydia não é minha mulher há quase trinta anos. Aliás, não foi minha mulher desde que Cornélia nasceu e isso já faz quase quarenta anos. Muita coisa aconteceu nesse tempo; enterramos nossos mortos, em todos os sentidos. Só que nunca enterrei Lydia. Para mim, a despeito de uma segunda esposa e... dois filhos, nunca tive outra esposa, só Lydia.
Ele tornou a bebericar o conhaque, inclinando o cálice de modo que o fogo se refletia no líquido.
— Então, a “sra. Purcell” morreu serenamente, dormindo, Mesmo que eu estivesse... bem... não iria ao enterro dela. Lydia não havia de querer isso. Ela detestava enterros. Você e Cornélia são os únicos que poderíam ir... de acordo com as conveniências. — Ele riu dessa palavra, sem fazer barulho. — Descobri que as conveniências são uma coisa muito útil. Poupa muito desgaste nas emoções, Nem sequer vou mandar uma flor a Lydia. Assim, vou ficar aqui deitado, fingindo que eu e ela somos jovens de novo e estarei nas montanhas com ela. — Ele olhou para o relógio no consolo. — Acho que você deve estar saindo dentro de uns dois minutos.
Allan foi para a porta, devagar. Quando estava quase lá, Rufus disse:
— Você acredita na vida depois da morte, Allan?
Allan não se virou, mas disse, sem expressão:
— Não, creio que não.
— Tem gente que pensa que, se a gente não tem fé, não tem consolo. Por mim, acho que isso é tolice. Quem havia de querer viver, depois de ter vivido neste mundo, por mais confortável ou bem sucedida que tenha sido sua vida? Gosto muito da ideia do nada; gosto da ideia de não existir mais. Isso me reconforta.
Então, Allan se virou, mas Rufus estava sorrindo para seu conhaque, de novo, com uma serenidade total.
— É bom você ir andando, Allan — repetiu. — E não conte a Cornélia hoje. Ela não queria saber mesmo. — E Rufus acrescentou, num tom bem forte: — Vou pensar no que seu pai lhe disse hoje. Acho que ele tem razão. Está vendo o que a velhice faz com as pessoas?!
Depois que Allan se foi, Rufus largou o cálice, com cuidado, e começou a pensar. Achava que ia pensar só em Lydia, mas agora só conseguia pensar em Cornélia, sua filha. Disse consigo: “Também eu me recusaria a ouvir más notícias quando houvesse um assunto importante em mão. Cornélia, como eu, é toda imediatista. É essa a fonte de sua força. Não permite que a vida se intrometa. Cornélia é ainda mais forte do que eu era; havia ocasiões em que eu não conseguia dormir, pensando no velho Steve. Cornélia teria feito com ele o mesmo que fiz, mas depois não teria passado nem um momento acordada. Nem a morte de Lydia, nem a minha, e provavelmente nem mesmo a de Allan, a perturbará por mais de um ou dois dias”.
Ele pensou nos primeiros tempos de seu casamento com Estelle e então começou a se lembrar de coisas que não pensava ter observado. Cornélia, rindo-se com desdém das tolices de Estelle e implicando com ela, ridicularizando-a com o pai quando estava a sós com Rufus. Sempre dava um jeito de ficar a sós com o pai, mesmo em criança. Estelle era uma boba... sim. Era uma poseuse... sim. Tinha pouca inteligência... sim, Era artificial, “radiosa” e chata... sim. Tudo isso se admitia.
“Mas Cornélia a via como uma ameaça pessoal”, pensou Rufus com assombro. “Uma ameaça para o que ela herdaria, para o poder. Ela manobrava propositadamente para colocar Estelle em situações que a fariam parecer ridícula aos meus olhos e aos dos outros. Lembro-me... Lembro-me... eu ria. Assim, toda possibilidade de que eu e Estelle nos pudéssemos tornar amigos, e de que eu pudesse desviá-la de seu jeito de boba para ser uma mulher de verdade, foi destruída por mim e pelo riso de Cornélia.
E quando os meninos nasceram... Como é que Cornélia os chamava? ‘Passarinhos depenados.’ Comecei a achar que não eram meus! Sempre que os pegava no colo, Cornélia estava ali, troçando deles. Não eram feios de verdade, eu é que os via pelos olhos de Cornélia. Usava o meu amor por ela — pois era tão parecida comigo que eu não podia deixar de amá-la mais do que a qualquer pessoa — para fazer com que seus filhos parecessem muito absurdos, burros e inexpressivos para merecerem minha consideração séria. Ela os detestava porque eles, naturalmente, também seriam meus herdeiros.
“Eu me lembro... eu me lembro. Estava sentado no jardim em Portersville e os garotinhos corriam em volta de mim, me puxavam para brincar com eles, gritando naquelas vozes excitadas. Eu sorria para eles e pensava que, talvez pela primeira vez, eram criaturinhas simpáticas. E lá veio Cornélia, já quase mocinha, tão linda, tão cheia de cor e vitalidade, com a sombrinha ao alto da cabeça, e eu me esqueci dos meninos. E ela disse a eles: ‘Vão embora, monstros, estão aborrecendo o papai. Vão brincar com sua mãe’. Ela se sentou a meu lado no balanço e me beijou, e eu me esqueci inteiramente dos meus filhos... Tantos episódios semelhantes e só uma coisa na cabeça de Cornélia, enquanto ela alisava meu cabelo e conversava comigo. Como ela era espirituosa e também de tão bom gênio e cheia de humor. Houve ocasiões até em que desejei que ela não fosse minha filha...
“E, tal como disse Cornélia, deixei que meus filhos ‘fossem brincar com a mãe deles’. Eles eram de Estelle, como Cornélia me disse mil vezes. Estelle os criou; meu único desejo foi que não me amolassem, pois me chateavam, como a mãe deles também. Mas quem me disse que eles e a mãe me chateavam? O que foi que Lydia me disse, Lydia, que era tão sábia? ‘Acho que você devia mandar Cornélia para bem longe, por uns anos, para estudar. Não é bom para ela estar tanto em casa, e não é bom para toda a família.’ Eu devia ter dado ouvidos a ela; se tivesse feito isso, meu filho Jon não estaria morto agora e Norman não seria um estranho sorridente para mim.
“Meus filhos. Estelle os tornou impotentes — e perigosos. Porque na verdade não tinham um pai que gostasse deles ou se interessasse por eles. Por estar magoada, Estelle se vingou de mim por meio de nossos filhos. Ela os adorava, mas usou-os contra mim. Tudo o que eles eram, e que Norman continua a ser, é por minha culpa.” Rufus estendeu a mão e tornou a encher seu cálice de conhaque. Seu braço e sua perna direitos estavam curiosamente dormentes e ele sentia uma dor forte no lado esquerdo da cabeça.
“É o conhaque”, disse ele consigo. “Lembro-me de quando Norman, aos quatro anos, teve escarlatina e ficou muito agitado. Estava chamando por mim e Estelle saiu correndo para o terraço, em Newport, gritando para eu ir logo. E Cornélia olhou para ela como se olha para uma aranha repelente e disse: ‘Diga à enfermeira para dar outro banho nele. Ela é tão preguiçosa, nem imagino por que você a conserva, Estelle’. Estávamos falando sobre a ferrovia, nesse momento, e fiquei impaciente com Estelle e disse: ‘É, vá dar um banho no menino. Vou vê-lo antes do jantar.’ Estelle se retirou e Cornélia a viu sair e disse: ‘Como a Estelle dramatiza tudo! Norman está sendo difícil, só isso. Veja só a Estelle! É a própria East
Lynne, esgueirando-se pelo gramado como se o senhor a tivesse espancado, ou coisa assim”. E nós nos rimos juntos. Norman nunca mais me chamou.
“E o Jon. Lembro-me agora de que ele não era ‘sorridente’, como Norman. Um menino muito sério, embora Estelle o tivesse estragado abominavelmente, pois eu não estava lá para impedi-la. Ele estava sempre lendo, se bem que fosse tão histérico e estridente e tivesse mania de correr de um lado para outro, à toa, às cegas. Ainda o vejo correndo, os olhos dilatados, como se não visse ninguém, e por fim Cornélia pegando-o, de tão bom humor, e despachando-o para que ele não me aborrecesse mais. Lembro-me de que ele começou a gritar, sem parar, enquanto Cornélia o empurrava; ele ficou gritando por muito tempo, mesmo dentro de casa. Nunca teve pai. Cornélia tratou disso.”
Anos após anos passaram nebulosamente pela cabeça de Rufus. A dor de cabeça estava mais forte, mas ele mal a sentia. “Como Cornélia foi esperta! Meus filhos aprenderam a me odiar, pois Cornélia me ensinara a troçar deles, meio carinhosamente. As idéias deles eram sempre pueris. Quem me disse isso? Cornélia. ‘Mas também é preciso lembrar que a mãe deles é tão lindamente... infantil, papai. É muito feminino ser infantil, como Estelle; não admira que o senhor se tenha apaixonado por ela. Eu não sou nada feminina, sou?’ "Mas ela era; ela é. Tem um tipo terrível de feminilidade, a própria essência. Ela me convenceu de que não tinha; queria me fazer crer que era mais viril do que meus filhos. Queria que eu pensasse que ela era, em todos os sentidos, meu ‘filho’; e o único filho meu que um dia se interessaria pela ferrovia...
“Jon. Por que você morreu? Não foi o veneno, pois não havia veneno. Morreu porque não podia suportar o que tinha feito de sua vida? Mas não foi você quem fez sua vida, não completamente. Cornélia ajudou-o, se bem que você nunca o soubesse; a sua mãe o ajudou e talvez você compreendesse. Mas uma morte nunca é simples, uma morte como a sua. Há mil agonias. O homem se mata e cem pessoas são culpadas; mas ninguém jamais as castiga, ninguém jamais exclama: ‘Caim, onde está o teu irmão, Abel?’ Descanse em paz, Jon. E, se ainda viver, me perdoe.
“Eu, praticamente, deserdei meus filhos. Por quê? Um dia Cornélia examinou as ações, os títulos e as economias de Estelle. Ficou tão alegremente surpreendida com o dinheiro que Estelle possuía. ‘Ora, os meninos podiam nos prejudicar muito, papai, se tivessem cabeça para isso! Ou pelo menos podiam me prejudicar muito.’ Como é que eu poderia deixar que alguém ‘prejudicasse’ minha filha? E, assim, não deixei quase nada para meus filhos.”
Norman. Rufus mexeu-se nos travesseiros com um espasmo de dor, mais mental do que físico. Ele se lembrou de que raramente “via” Norman, mesmo quando o rapaz estava com a família em Portersville, Newport, Nova Iorque ou na França. O que havia para “ver”? De repente, ele “viu” Norman como devia tê-lo visto centenas de vezes, não o rosto infantil e sorridente, não o perfil medíocre. Viu um Norman que nunca notara conscientemente: o embrião severo e sem feições, a testa alta e murcha, as faces nodosas e mirradas, o pescoço comprido, os ombros magros e caídos. Onde ele vira esses esboços espectrais? Era terrivelmente necessário para ele lembrar-se. Ah, sim, já sabia.
Os amigos “intelectuais” de Jon, de Nova Iorque, Londres e Paris! De frente, pareciam alertas, brilhantes até, pensativos e com discernimento. Mas, vistos por outra faceta, havia a revelação de sua pobreza emocional, sua imaturidade espiritual, sua fraca percepção da vida e do sentido da vida, sua falta de contato fetal com o mundo e seus semelhantes. Inacabados, e que nunca seriam acabados, esses pobres homens sem seiva e sinistros. Seu marxismo, seu socialismo, seu fabianismo — todos os seus pecados —, o que era tudo isso senão a expressão de sua ignorância sinistra, seu agarramento umbilical à placenta de seu não-nascimento? Norman era um deles, um dos não-nascidos, envenenando secreta e silenciosamente o corpo de seu hospedeiro.
Freneticamente, então, Rufus tentou sentar-se, chamar alguém. Mas seu lado direito estava pesado como chumbo, imóvel. “O conhaque”, pensou, confuso. “Bebi demais. Vou esperar um pouco depois vou mandar buscar o Norman. Certamente deve haver um meio de fazê-lo ter uma vida, ainda agora.
“Também tenho de falar com o Allan. Allan.” Rufus fechou os olhos; agora era esforço demais mantê-los abertos. “O que levava um homem a beber como Allan bebia? Era um homem frenético e desesperado. De que tinha medo? Das exigências feitas a ele? Quem fazia essas exigências? Cornélia? Cornélia, que desprezava o cansaço e a fraqueza, que tinha sempre de estar fazendo alguma coisa, que tinha um vigor tão incansável, que tomava sempre, sem dar nada?
“Sim, Lydia”, pensou Rufus, “agora entendo tanta coisa. É muita bondade sua vir ficar a meu lado, sorrir para mim. Sim, sei que tem de ir muito breve. É uma tolice minha, mas eu pensava lembrar-me de você de cabelo branco; um sonho. Você é tão jovem e tão sábia. Fico contente de que me perdoe por eu não ser o que você pensava que eu fosse. Ria; adoro ouvir você rir. Quer sentar-se perto de mim um pouco? Bom. Quero falar com você sobre... Não, só quero falar sobre nós, Steve, Alice, meu pai e minha mãe. Depois, descemos para ficar com eles, diante do fogo. Sua mão está tão fresca e firme em minha testa, e tirou-me a dor. A dor? Mas era tanto fora quanto dentro de mim. Sou um velho, e tive anos para me lembrar e pensar...”
Cornélia cochichou para Allan, ali junto da cama do pai:
— Ele está com uma cor ótima, não é? Quase rosado.
— Ele está vermelho. Acho que está com febre, ou alguma coisa — respondeu Allan, inquieto. — E está fazendo muito barulho ao respirar.
— Está roncando. Todos os velhos roncam — disse Cornélia. — E está muito quente aqui. — Ela levantou o leque de avestruz cor de água-marinha e uma aura de perfume forte e picante a envolveu. — Deixe-o dormir, coitadinho. Vamos sair nas pontas dos pés; ele não tem dormido bem. Venha, Allan; estamos muito atrasados.
Eles foram para a saleta além do quarto, onde o camareiro de Rufus estava entrando com uma bandeja.
— 0 sr. DeWitt está dormindo — disse Cornélia. — Não o acorde.
PARTE QUATRO
43
Desde o princípio Allan Marshall detestava Washington. Visitas posteriores, através dos anos, tinham acentuado essa opinião. Ao contrário da maioria dos celtas, Allan não tinha queda para a política e o entusiasmo do pai pelo assunto, de qualquer forma, o aborrecia. Talvez, reconhecia ele consigo, Patrick Peale o tivesse “azedado” para as atividades governamentais, ou talvez seus contatos com os políticos, através dos anos, o convenceram, como tinham convencido Thomas Jefferson, de que o governo melhor é o que dura menos.
O senador Goerge Woodland era um homem baixo, de corpo enorme e rosto grande e pálido, com uma volumosa cabeça calva, olhos frios e sagazes e boca larga. Político sabido e sutil, sabia que sua mistura astuciosa de não-conformismo e conservadorismo agradava tanto aos membros “progressistas” quando aos laissez-faire de seu eleitorado. Cada um dos grupos estava convencido de que o senador os representava plenamente e que sua palavra era lei para ele. Ambas as facções teriam ficado desconcertadas se soubessem que ele só representava o que acreditava ser o melhor para sua pátria. Ele não era um canalha nem um tolo; nem ator e nem um crente nas “causas”. Então, perguntavam seus colegas, como é que ele voltava constantemente, incontestado, ao Senado?
A resposta era a que político nenhum jamais aceitaria: o povo é mais inteligente do que seus governantes. Por vezes o povo sente que pode se dar ao luxo de mandar para Washington um ou dois homens honestos. A população da comunidade da Pensilvânia se permitira esse luxo, durante muitos anos, na pessoa do senador republicano George Woodland. Como existe na humanidade um humor orgânico, sempre presente, também se permitiu o luxo extra de enviar ao Senado um patife pitoresco, além de Woodland, pois o po vo precisa ter seus palhaços sabidos, além dos homens íntegros. “O velho George”, diziam, “ficaria vigiando aquela maldita Washington, e nada de besteira, e o velho Jim ia pintar o sete em Wall Street e fazer piruetas e nos divertir.” Mas o povo tratou de ver que — sendo tão mais sábio do que o governo — o velho Jim não “ultrapassasse os limites” e que o velho George tivesse seu apoio incondicional sempre que precisasse dele, especialmente quando discordasse do velho Jim.
— Vamos lá para fora. Está bem ameno, para janeiro — disse o senador Woodland para Allan, que ele conhecia há muitos anos e de quem gostava, embora, em geral, não confiasse em homens que achasse serem “voláteis”.
Ele morava numa casa bonita e sossegada em Massachusetts Ave nue, que adquirira anos antes. Branca e discreta, ficava recuada da rua, num gramado comprido mas estreito, e tinha um belo jardim, do qual ele mesmo cuidava durante suas estadas em Washington, e que, em sua ausência, delegava com relutância aos jardineiros. Tendo grande admiração pelas advertências de Benjamin Franklin, mantinha “altas as suas cercas”, cercas vivas de pinheiros altos encostados a muros de pedra. Lá ele se sentava, nas noites cálidas. Nenhum vizinho curioso o espiava e, melhor ainda, não podiam ir procurá-lo com convites para alguma festa aborrecida. Nessa tarde, ele abriu a porta que dava para o terraço dominando seu jardim e, pensativo, pôs o grande cachimbo na boca. Pareceu esquecer-se de Allan; seus olhos percorreram as árvores, à procura de brotos prematuros.
— Esses bordos japoneses — ruminou. — Acho que vão vingar bem, se não tivermos muito granizo.
Ele se encostou na porta da casa e ficou fumando. A fumaça azul-claro elevou-se pelo sol pálido. Um raio azul brilhante reluziu no meio dos galhos de uma árvore despida e o senador olhou para ele com a maior mostra de interesse que ele jamais demonstrava.
Allan não estava interessado em Washington, nem no tempo lá. Olhou para a luminosidade fria do céu e para os fundos das mansões próximas. Pensou nas largas avenidas da cidade, seus belos círculos, e sua antipatia indizível o encheu de novo. Chamava Washington de “poço negro dos políticos negros” e toda aquela brancura, sua extensão, seus belos parques, exprimiam para ele a própria essência da corrupção.
Allan conhecia as capitais da Europa, e Washington não parecia uma capital para ele. Era uma pequena cidade de interior, muito intumescida, secreta em seus vícios, mesquinha em suas tramas, dominada por bandidos que tinham de ser vigiados constantemente, para não lesarem o país. Os homens pequeninos iam lá a fim de executarem seus atos vis, para tramarem contra a Constituição, para conspirarem juntos e enriquecerem à custa dos Estados Unidos, para fazerem conchavos pelo lucro quando esse conchavo era mau, para escapulirem, cochicharem e piscarem nos vestiários. O que é que Wilson, severo e impecável, faria com todos eles, depois de sua posse em março?
O senador disse:
— Você votou no Wilson, não foi, Allan? Acho que ouvi dizer que fez um grande donativo para o seu partido, na última eleição. E isso me faz lembrar: qual o motivo que o levou a vir me procurar?
Allan remexeu-se, sem jeito. Disse:
— Bom, sempre fui democrata; durante todos esses anos, Jefferson tem sido um herói, para mim.
0 senador deu uma risada.
— Qualquer semelhança agora entre o atual Partido Democrata e Thomas Jefferson, e entre Lincoln e o Partido Republicano de hoje será pura coincidência. Sou republicano, bem como meu colega Jim Norcott. Dois bons republicanos juntos. Você me coloca junto com aquele palerma dançarino, “o inimigo de Wall Street”?
Ele pôs as mãos nos bolsos, mexeu os ombros largos, acomodando-se melhor contra a porta, e deixou estofar a barriga grande. O cachimbo pendia da boca e ele olhou para Allan sem curiosidade. “Parece tão doente”, pensou o senador, com uma pena sincera, mas oculta.
— Que idade você tem, Allan? — perguntou. — Não que me interesse de fato e não precisa responder, se não quiser.
— Estou com quase cinquenta e seis anos — disse Allan. — Por quê?
O senador deu de ombros.
— Pensei que fosse mais velho. Mas você tem muita responsabilidade e é do tipo que leva isso a sério. Você não veio aqui para me falar da ferrovia, não é? Tenho muitas ações e ouvi dizer que está decaindo, depois da eleição de Wilson. Mas espero que nunca chegue ao que foi, na crise de 1907. E a ferrovia?
Allan irritou-se.
— Nós conseguimos vencer a crise, embora tenha a impressão de que você
vendeu muitas de nossas ações nesse período, Woodland. Não acreditava em nós?
— Acreditava mais no velho Rufus — respondeu o senador, com franqueza. — Você se deu bem e parece-me que o felicitei. Soube, pelo meu pai, que Rufus passou por várias coisas desse tipo no turbulento passado com uma espécie de élan. Por falar nisso, Cornélia tem esse élan, não é? Ela deve tê-lo ajudado muito nos dias difíceis.
— Ajudou — disse Allan, sombrio. — Ela sempre o terá. Muito embora — acrescentou, com um ressentimento involuntário — já esteja com quase quarenta e oito anos.
— Eu nunca acreditaria, se não o soubesse, por mim. Mal parece ter quarenta anos. Joga tênis melhor do que qualquer pessoa que eu conheça, para uma mulher. Nada jamais aborrece Cornélia. Ouvi dizer que ela é uma força e tanto e um terror, no conselho; ainda há uma semana li a última reportagem sobre ela. Mas não é uma dessas feministas, é? E então? O que é que você está fazendo aqui em Washington? Especialmente já que nunca apoiou o meu partido, de modo algum, e no ano passado deu uma boa importância para a campanha de meu adversário democrata.
— Vim porque sei que você é um homem honesto e mesmo sabendo que não pode fazer nada a respeito do que aconteceu. Refirome à próxima aprovação da 16.a Emenda no dia 25 de fevereiro... o maldito imposto federal sobre a renda.
O senador tornou a dar de ombros.
— Trabalhei bastante contra isso. Mas os Estados a sancionaram. Quer me culpar por isso?
— Não seja tolo — disse Allan. — Sei como você trabalhou: E só que quero falar a respeito com você.
A sombra larga do senador ficou mais nítida na parede branca da casa.
— Pode falar — disse. Tornou a olhar para o jardim, mas uma ruga funda apareceu entre seus olhos. — Já conversou com o Jim Norcott?
— Não, aquele burro — respondeu Allan, levantando a voz. — Descobri que há um ano, enquanto ele berrava para se adotar a Emenda, pôs todo o dinheiro dele, que é bastante, no que serão títulos isentos de imposto. Quer manter isso em mente, George, quando ele se candidatar à reeleição?
0 senador grunhiu.
— Lembrar-me? Ele também é republicano; tem bom cartaz no partido. Já estou nesse jogo há tempo demais para começar a treinar tiro ao alvo num membro da minha organização, a não ser quando pode resultar em algum bem para o país em geral. Mas você é democrata; pode revelar a ficha suja de Jim, se quiser, quando a ocasião for mais propícia. — Ele acrescentou: — Então?
— Há de me achar um tolo — começou Allan, sem jeito. — Talvez não compreenda por que vim procurá-lo hoje; nem eu mesmo entendo bem, para ser sincero. Só que tenho a impressão de que você poderá ajudar, no futuro. Não é só o imposto federal sobre a renda que é inconstitucional, apesar de mil supremos tribunais poderem alegar sua constitucionahdade, sem convencer ninguém. São as implicações para o futuro que me preocupam. — Ele hesitou. — Já leu alguma coisa sobre Karl Marx e Engels, esse pessoal?
0 senador não disse nada; de repente seus olhos se fixaram sobre o muro distante do jardim e lá permaneceram.
— Bem — disse Allan, cada vez mais sem jeito —, andei lendo seus escritos sinistros durante vários anos. Uma das coisas que Marx advogava, a fim de destruir o capitalismo e provocar uma revolução comunista, era o imposto de renda gradual. Portanto, nós agora incluímos em nossa Constituição uma filosofia marxista. Ah, o imposto, como é agora, é muito insignificante; será apenas um aborrecimento... como é hoje. Não estou pensando no presente; estou pensando no futuro, quando essa medida marxista começar a vigorar mesmo. Estou pensando, com relação ao imposto federal sobre a renda, a primeira medida comunista para destruir a liberdade, em outra medida para a destruição da liberdade, conforme advogada pelos marxistas: a guerra, numa escala de âmbito mundial. Está-me seguindo, George?
Mas o senador continuava sem falar, nem mexer os olhos.
— Tenho documentos, relatórios secretos da Europa — balbuciou Allan. — É muita coisa para discutir agora, mas eu podería enviar-lhe um esboço, se quiser. A guerra está fermentando; vem fermentando desde 1908. Uma guerra pelos mercados e lucros, entre a Inglaterra e a Alemanha. Essa guerra, que surgirá a qualquer momento agora, foi cuidadosamente planejada pelos inimigos da liberdade; eles a vêm tramando há decênios, os discípulos de Marx e seus contemporâneos. Sabem que as grandes guerras vão corroer o capitalismo, a livre empresa, o governo constitucional e lhes darão o poder. E estão por toda parte, George. Você pensa que estou dizendo besteira, não é?
— Continue — disse o senador, com calma.
— Mas é a verdade mortífera — disse Allan, com voz mais forte e veemente. — E é aí que entra o nosso imposto federal sobre a renda. Uma nação não pode travar guerras sem uma renda imensa. De que modo as nações europeias conseguiram recursos para as guerras? Por meio de um imposto pessoal, um imposto desconhecido nessa terra e concebido nas mentes europeias para fins europeus. É verdade que tivemos um imposto sobre a renda durante a Guerra de Secessão, mas terminou logo ao fim do conflito. E tivemos uma breve prova disso na Guerra Hispano-Americana. Mas os nossos presidentes compreenderam que isso era uma norma europeia e não tinha o direito de existir nos Estados Unidos, a não ser numa grave emergência. Não tinha um motivo válido para existir nos Estados Unidos em tempo de paz. No entanto, agora temos essa 16.a Emenda. Para podermos nos empenhar numa guerra tramada para o mundo inteiro, a fim de destruir a ordem existente.
— Continue — disse o senador, lacônico.
Allan ergueu os braços num gesto de uma derrota desesperada.
— Acredito, e sinto que não sou só eu que acredito, que muitos dos que pleiteiam um imposto federal sobre a renda neste país fazem parte da conspiração mundial em prol do socialismo, ou comunismo, como está começando a ser chamado. A despeito de George Washington, portanto, e de sua advertência contra “alianças estrangeiras”, seremos manipulados para entrar na guerra europeia, que se está fomentando rapidamente.
O senador virou a cabeça, devagar, e examinou Allan, mas não fez comentários.
— A guerra, e as guerras que se seguirão por toda parte, não são apenas tramadas pelos inimigos da liberdade, mas também os tiranos que surgirão como resultado dessas guerras foram planejados. O povo americano, que se tem mostrado tão calmamente indiferente ao imposto federal sobre a renda, só perceberá isso quando já for tarde. Milhões acreditam que só será um imposto sobre os muito ricos. E um imposto leve, em prol do que já se chama de “assistência social”. Chegará o dia em que o povo há de compreender que a “assistência social” significa a escravidão e que o imposto federal sobre a renda está sendo usado não só para guerras tramadas propositadamente a fim de derrubar os governos existentes, mas também como instrumento pessoal dos futuros déspotas dos Estados Unidos. Como é que uma nação livre pode ser subjugada de dentro por criminosos domésticos, aliados aos conspiradores mundiais? Por meio de esmagadores impostos pessoais, pela designação propositada, pelo confisco do trabalho do povo sob a forma de impostos, por assaltos à Constituição, por meio do aviltamento da moeda e centralizandose o poder no Estado. George?
— Ainda estou escutando — disse o senador.
— Havemos de ver a burocracia europeia sendo adotada em grande escala, neste país — continuou Allan, sem esperanças. — Veremos que os temores de Thomas Jefferson... a absorção dos direitos dos Estados, um Estado esbanjador devorando o trabalho do povo e o envolvimento europeu... serão todos confirmados. A trama contra os Estados Unidos e contra os povos livres por toda parte não começou com essa 16.a Emenda. Está sendo culminada por ela.
O senador se afastou da parede, foi para a borda do terraço e esvaziou o cachimbo na grama encharcada. Depois disse, pensativo:
— Você pensava que era o único que sabia disso, Allan?
— Você sabe? — exclamou Allan.
O senador sorriu com ironia e meneou a cabeça.
— Os inimigos de todos nós, em Washington, também sabem — disse ele. — Não creia por um minuto que algum grupo determinado seja culpado pelo que aconteceu e vai acontecer. Estou vendo que não comete esse erro — acrescentou, depois de olhar de novo para o rosto de Allan.
— Meu Deus — disse Allan, a voz triste.
— Receio que já seja tarde para impedir o primeiro ato, ou talvez até o segundo, terceiro e quarto — continuou o senador. — É, estaremos envolvidos numa guerra europeia e em outras. E tudo acontecerá como receou Thomas Jefferson. No entanto, nós, os representantes eleitos pelo povo, não poderemos fazer nada até que o próprio povo entenda a trama contra ele. E então poderá surgir o dia mais sangrento que o mundo jamais conheceu, em toda sua história, talvez. — Ele fez uma careta de nojo. — Embora pessoalmente eu gostasse de ver esses futuros tiranos e suas cortes massacrados abertamente nas ruas, essa ideia é europeia demais. Eu preferia ver o povo americano erguer-se e se livrar dos monstros nas urnas. — Ele levantou a grande cabeça calva, olhou para o céu e tornou a sorrir, dessa vez triunfante. — E ele há de fazer isso! Entrementes, só podemos mantê-lo a par do que está acontecendo por repetições constantes, advertências constantes.
Pela primeira vez, ele olhou para Allan com afeição. Ergueu a mão carnuda e a pôs no ombro do outro.
— A batalha será travada pelas almas e mentes dos homens — disse. — E tenho fé, não só no povo americano, mas também no povo das outras nações. O que virá será a última posição forte dos déspotas contra seus povos. E os déspotas perderão. — Ele afagou o ombro de Allan, antes de tirar a mão. — Pode confiar;
perderão, por maior que seja sua força, por mais socialistas e comunistas que tiverem consigo, por toda parte.
— Com a graça de Deus — disse Allan.
O senador disse, meneando a cabeça:
— Com a graça de Deus.
Eles entraram na casa. A biblioteca comprida e estreita estava iluminada pela luz pálida do sol, caindo do céu de inverno, e um fogo ardia na lareira de mármore preto. Reinava ali um tipo de conforto feio, masculino, cheio de cortinas velhas, tapetes surrados e couro preto. Os dois homens se sentaram e Allan olhou para o relógio enquanto o senador servia uísque e soda. 0 sr. Woodland ficou observando Allan, enquanto este engolia a bebida; ele bebericou, apreciando. Olhou bem para o rosto enrugado de Allan, seu nariz grande e estreito, o cabelo grisalho que estava ficando branco nas têmporas.
— Diga-me — disse ele, sentando-se no braço de uma poltrona —, o que é que o modificou, Allan? Você era o tipo do entrepreneur, de grata memória, pois foram, estes que expandiram as fronteiras, abriram as minas e os poços de petróleo e encheram as fazendas de gado e as cidades de fumaça. Andei lendo suas palestras para outros ferroviários em todo o país, sobre um equilíbrio entre a indústria e a agricultura. E agora está todo empolgado com uma ameaça à liberdade americana. Alguma coisa o fez mudar.
Allan segurou o copo com as mãos em concha e apertou os lábios pálidos, a expressão sombria.
— Talvez eu nunca tenha “mudado” de verdade — disse. — Meu irmão, que é monge, uma vez me escreveu isso. Não sei.
Allan continuou:
— Mais que tudo, meu pai odiava os governos opressivos. Tinha tido experiência com eles. E, como todos os irlandeses, a liberdade lhe parecia o único clima em que a humanidade podia viver sem morrer sufocada. Eu ria dele quando era jovem. Mas não creio que alguém jamais se esqueça dos ensinamentos dos pais, a despeito de se rirem disso.
— Em outras palavras: seu pai era um homem muito inteligente — disse o senador. — Sabe, um de meus eleitores, que é um trabalhista de grande inteligência e que dedicou a vida a organizar sindicatos e a lutar por salários razoáveis para todos, há pouco me disse que receia que no futuro o trabalho se torne um “grande negócio”, e que, nesse caso, passará a ser perigoso.
— Um monopólio? — disse Allan, sem poder acreditar.
O senador meneou a cabeça.
— Já estou metido em política há muito tempo e não confio nada em meus semelhantes. Nem confio nas hordas silenciosas que ora estão se alinhando atrás de Wilson, nosso presidente de minoria. É um bom homem, um tipo austero e até nobre, mas não sabe quem está se preparando para se aproveitar dele. Receio que as coisas fiquem bem pretas no futuro. — Ele se levantou para atiçar o fogo, que se reavivou bem diante do atiçador.
— Qualquer coisa que seja “grande” demais, seja a indústria e comércio ou o trabalho, pode ser usada pelos déspotas, assumida por eles. — Ele voltou a se sentar no braço da poltrona de couro. — Vamos conversar sobre alguma coisa mais agradável e menos sinistra. Como sua família. Ouvi dizer que você já é avô.
Um neto?
A expressão de Allan ficou mais sombria.
— É, de Dolores. Deram meu nome ao menino; pelo menos um. Ele se chama Alexander Beaumont Allan Richard GibsonHamilton. O pai é Richard, lorde Gibson-Hamilton, como sabe.
Como é que Dolores chegara a se casar com o sassenach? Allan não sabia. O ano que se seguiu à morte de Rufus, 1906, fora de confusão terrível e de uma pressa desesperada e nebulosa, para Allan. Fora um ano de sofrimento e lutas. Ele não tivera tempo de se dedicar aos filhos, nem mesmo à sua queridinha, Dolores.
A crise de 1907 surgira logo depois de todos os outros acontecimentos. Agora o rosto jovem e lindo de Dolores apareceu ao pai, vagamente, sombreado por aqueles anos. Ela fora procurá-lo, uma noite, muito sossegada, no meio de seu tumulto íntimo e exterior, e lhe dissera que ia se casar com o lorde GibsonHamilton. Allan estava incrivelmente exausto e preocupado. Dissera: “Por quê?” Era uma pergunta naquela hora difícil; e ele pensara: "Vou tratar disso amanhã”.
Sem saber como, o amanhã nunca chegara. Ele se lembrou de ter protestado vagamente com Cornélia, que o beijara dizendo que estava tudo bem e que Dolores queria o casamento. Deram dois milhões de dólares ao jovem casal como presente de casamento, em forma de dinheiro e títulos, e a cerimônia fora maravilhosa, cheia de pompa e muitas reportagens líricas; depois, de repente Dolores se fora, sorrindo, branca, com um último beijo no pai e um carinho com a mão.
Quantas vezes ele tinha visto Dolores, desde fins de 1907? Não se lembrava. Quatro vezes, cinco? Não se lembrava. Ainda não vira o neto; ele e Cornélia visitariam o casal a caminho da Riviera, no mês seguinte. O que acontecera para impedir visitas mais frequentes, nos últimos seis anos?
— Tudo — disse ele, em voz alta, ao senador, num tom aflito — tem sido feito tão às pressas. Desde o início fui contra esse casamento, mas Cornélia era a favor. Mas não tenho nada contra o rapaz, pessoalmente.
— Você se esquece de que fui um dos convidados, na igreja de Portersville — disse o senador, escondendo sua pena.
— É verdade. Não sei — acrescentou Allan. — Dolores diz que está muito feliz e contente. Vou verificar. Vou tomar mais tempo para mim.
— E o Tony?
Allan começou a sorrir e parte daquela sombra aflita desapareceu do rosto
dele.
— Ah, o Tony! Ordenou-se no ano passado, sabe. E é o jovem cura do padre Dugan, na mesma igreja em que fui batizado! Engraçado. A igreja foi reconstruída e hoje é muito imponente. Acho que há dois curas. Doei muito dinheiro para a reconstrução e para o Hospital das Irmãs. Tony está muito feliz. No entanto, não ficou contente com o casamento de Dolores. Mas ele e Dolores se afastaram e não havia nada que ele pudesse dizer ou fazer.
O senador encheu o cachimbo, pensativo. Disse:
— E como vai o seu filho DeWitt, depois que se casou com aquela Peale bonitinha, no ano passado?
Allan riu-se, baixinho.
— DeWitt é um ferroviário nato. E só tem vinte e três anos! Assumiu uma porção de meus encargos ultimamente. Por falar nisso, Mary está esperando, também. Como o tempo passa. Ontem crianças, hoje homens e pais. É de confundir. Você sabe, claro, que Miles Peale se casou com Ruth Purcell, muito discretamente, fez dois anos em setembro? Foi uma surpresa para todos, a não ser para Cornélia, que passou a gostar bastante do Miles. Eu, pessoalmente, não achei o casamento apropriado. Ruth é quase dez anos mais velha que Miles, mas ele é muito maduro para vinte e cinco... vinte e seis? A idade do Tony. Miles vai indo muito bem; um de nossos melhores supervisores. Mudou-se para a casa do velho Jim Purcell, junto do rio. Contratei o irmão dele, Fielding, como seu assistente. Fielding vai se casar com a neta do velho Brownell, o banqueiro.
O rosto de Allan estava fechado, embora ele falasse com certa displicência. Patrick Peale, o fariseu, tinha vencido. Os filhos esta vam na Interstate Railroad Company. Um deles no momento tinha o controle do dinheiro da família e dos títulos de Purcell na estrada. Patrick tinha seu próprio controle e, por meio da mulher, um controle ainda mais perigoso. “Quem me dera que ele morresse”, pensou Allan. “Talvez eu consiga o que quero, ele anda com uma cara de morte.” Allan pensou em Ruth, de trinta e cinco anos, com uma pontada. Uma mulher suave e inocente, apesar da idade. Adorava o jovem marido e também aí havia um perigo.
O senador fumou, educadamente, sem olhar para Allan.
— Por falar nisso — disse —, ouvi dizer que seu cunhado, Norman DeWitt, fez um sucesso nos círculos literários com o livro dele Projeto para a nova ordem. Eu mesmo o li. Você leu?
Allan levantou-se e acendeu um cigarro.
— Li. Ele é dos inimigos. Pensei que fosse o irmão, Jon, mas foi sempre ele. Engraçado. Ele sempre me pareceu um jovem mole e amorfo sempre sorrindo, agarrado às saias da mãe, sem um pensamento na cabeça. Isso prova que a gente não pode julgar. Mora em Londres grande parte do tempo, falando do socialismo fabiano, E logo ele, com todo aquele raio de dinheiro que deve herdar quando o raio da... quero dizer, quando a velha mãe morrer. Também tem muito dinheiro próprio. Pode ter certeza de que esses socialistas são muito sovinas com seu próprio dinheiro; ele morava nas vizinhanças de Soho, numa casa velha, quase nas favelas. “A fortuna do mundo devia ser partilhada equitativamente”, dizem os imbecis como ele. Mas não se referem à sua fortuna pessoal, à qual se agarram com unhas e dentes. Referem-se à sua e à minha.
— Ele nunca se casou?
Allan disse, com raiva:
— Não. Bem, ele não podia se casar com a mãe.
Ele tornou a encher o copo maquinalmente, sem ser convidado.
— Às vezes — disse —, a vida fica demais para mim. Gostaria de me mudar para algum lugar. Não me lembro de um único dia, nesses últimos vinte anos, em que tivesse gozado de uma hora de paz ou felicidade. Um homem de minha idade merece um pouco de sossego de vez em quando, um tempo para pensar. Mas as coisas vão cada vez mais depressa... — Ele sorriu para o senador, com dificuldade. — Imagino que seja sempre assim, para homens como eu. Não sou do tipo do velho Rufus.
44
Allan, Cornélia e Estelle só chegaram na Inglaterra em fins de maio.
Allan conhecia Londres, cidade pela qual sentia uma admiração relutante, pela possante impressão de força e poder, e da qual não gostava devido ao cheiro penetrante de gás de carvão. Ele não conhecia o sul da Inglaterra, onde o genro, lorde Gibson-Hamilton, tinha sua propriedade rural. Ele e as duas mulheres partiram de Londres num dia especialmente quente e úmido, percorreram uma boa distância de trem e, depois foram recebidos por uma imensa limusine preta, com chofer e ajudante de chofer, numa estação do interior, onde tudo era vento e um céu brilhante, azul e branco.
Allan viu passarem depressa as aldeiazinhas inglesas, com suas ruas tranquilas e curvas, lojinhas apinhadas, telhados de sapé e estradas de tijolos ou pedras. A limunsine percorreu cuidadosamente estradas rurais afundadas sob os campos arrumados, com muros de terra em que crescia uma profusão de samambaias e ranúnculos.
Avistavam-se imensos rododendros e as velas rosadas dos castanheiros. Depois, o sol quente se despejou como uma onda de luz sobre os morros verdejantes de Devon, pontilhados de árvores, como um grande parque. Aqui e ali uma antiga casa de fazenda de paredes de pedra se destacava sozinha nas charnecas e o tojo dourado brotava da terra primaveril como tochas torcidas.
As charnecas, de tons verde, castanho e ferrugem, o interessaram especialmente e seus morros selvagens e isolados, em que vagavam os famosos cavalos indomados, falavam a algum instinto profundo dentro dele. O grupo passou por sobre antigas pontes de pedra, que lançavam suas sombras sobre as águas verdes e azuis. Pararam para almoçar numa hospedaria venerável, supostamente um dia frequentada por Drake. Depois a limusine seguiu pelos campos silenciosos, por alamedas escuras entre barrancos altos, passando por bosques pontilhados de sol e grupos de lilases em flor e bosquetes de plátanos. Então, de vez em quando, o mar aparecia num lampejo de espelho roxo.
— Parece mais o sul da França do que a Inglaterra — disse Allan, com prazer. Ficou assombrado ao ver eventualmente um cacto ou uma palmeira, enquanto seguiam para o sul.
— É a Inglaterra, sim — disse Cornélia, secamente. — Acontece que o dia hoje está bonito, mas de noite provavelmente vai fazer um frio mortal; e amanhã. Será que os cactos e as palmeiras crescem mesmo aqui ou são plantados em tinas?
Ela se mostrou igualmente cínica com relação a Cockington, com suas ruas sinuosas e casinhas caiadas, de telhados de sapé, e sua ferraria antiga. Mas Allan estava encantado. Enquanto Estelle ficava na limusine, ele e Cornélia foram a pé por uma alameda perfumada até à igrejinha de St. George e St. Mary, suave sob o sol. Passearam por jardins incrivelmente lindos, subindo e descendo caminhos compridos em que floresciam rododendros gigantescos em todos os tons de lilás claro e escuro, magenta e rosa; e a distância viam grandes árvores contorcidas em uma luz vaporosa e sonhadora. Allan foi ficando cada vez mais encantado com o viço suavemente sombreado e fragrante daquela terra; parou com Cornélia em The Ponds, lençóis de águas paradas em que os rododendros se refletiam em massas de cor em que boiavam patos mansos que se aproximavam para examinar os visitantes com olhos curiosos e sem medo.
As terras verdes e agradáveis da Inglaterra, pensou Allan, passando a crer nas velhas histórias de que aquela terra um dia também fora alegre, cheia de lendas e homens valentes, castelos e florestas estranhas, cheias de silêncio e de espectros, Merlin e o rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda. 0 que restava era uma recordação misteriosa, pendurada no espaço, sem som, enquanto as usinas de Lancashire rugiam sobre o horizonte de sonhos e o poderoso coração de Londres batia incessantemente a distância.
— Não obstante — disse Allan a Cornélia —, os ingleses respeitam sua terra. Nos Estados Unidos nós não a respeitamos. Nós a depredamos, como que num desdém ganancioso.
— Meu bem, não vamos falar de novo sobre a sua obsessão com a agricultura — disse Cornélia, enfiando a mão enluvada no braço dele, com carinho. — Lembre-se, nossos recursos nos Estados Unidos são praticamente inexauríveis, enquanto aqui eles têm de conservar tudo.
— Não — disse Allan, obstinado —, nossos recursos não são inexauríveis. E vamos aprender que também temos de conservar quando já for tarde demais. Pense nos madeireiros que estão destruindo nossas florestas...
— Estelle deve estar impaciente — disse Cornélia, olhando para o marido com olhos brilhantes e indulgentes.
— Não temos respeito pela terra — continuou Allan, mas Cornélia não deu resposta.
As palmeiras foram ficando mais numerosas enquanto prosseguiam, se bem que Allan tivesse de reconhecer que pareciam um pouco infelizes e pouco sadias nessa terra. O prolongado anoitecer inglês se aproximava. Estelle cochilava sob uma manta, Cornélia bocejava e também cochilava. Mas Allan olhava tudo com uma avidez que não sentia havia tempos. Uma terra linda, pensou, encantadora. Ele sorriu para os aldeões, homens, mulheres e crianças de faces rosadas, que paravam para olhá-los com espanto quando passavam pelas alamedas e ruazinhas tranquilas. Eles sorriam de volta e um velho até acenou com o cachimbo, em saudação, e uma velha fez uma reverência. O que é que modificara os ingleses?, perguntou-se Allan. Claro, dizem que precisam ter uma indústria e devem exportar, senão, passam fome.
Mas o que acontecera com seu espírito lendário, sua audácia, sua alegria enquanto bebiam vinho, seus homens destemidos? Terão todos morrido nas fábricas e usinas e nas ruas frias e tristes de suas cidades industriais? Ou estará tudo esperando ali, dormindo, aguardando algum toque de trombeta? O rei Arthur algum dia tornará a juntar seus cavaleiros, e Merlin fará encantamentos. Então, essas alamedas verdes e mudas ouvirão mais uma vez os passos dos bravos e o riso de moças bem-feitas? Algum dia haverá outra Elizabeth para inspirar os poetas e enviar grandes frotas aos mares e fazer as hospedarias ressoarem com o ruído de taças e os pátios com o alarido de cavalos?
Eles agora estavam junto ao mar, que passara a uma névoa cinzenta, sob o céu de um rosa desbotado. Os bosques estavam nevoentos e fiapos de neblina se enroscavam nos barrancos em flor ao longo dos caminhos. Os morros esvoaçavam em tons de malva e heliotrópio. A limusine seguiu por um caminho à beira-mar e o silêncio tornou-se uma coisa intensa e presente. Depois, se desviaram do oceano e passaram a entrar por altos portões de ferro, abertos para eles por dois aldeões, que tiraram os gorros num gesto servil que Allan achou irritante. Agora estavam num parque verdejante e em ladeira, cheio de monstruosos carvalhos, larícios e rododendros, a grama quase coberta por pequeninas margaridas brancas, vistas de sonho por toda parte e coloridas de flores. Pareciam estar seguindo eternamente. Allan disse:
— Tudo isso faz parte das terras de Dick?
Cornélia fez que sim.
— Você nunca viu uma verdadeira propriedade inglesa — disse ela. — Esta é apenas uma pequena parte. Ele também tem uma imensa fazenda, a certa distância daqui.
A terra estava subindo sempre e ali, num morrinho, via-se uma grande mansão de pedra cinzenta, com torreões contra o sol do crepúsculo, ameias flutuando na névoa, janelas altas e estreitas, de caixilhos de chumbo, brilhando vermelhas. Mais uma vez Allan ficou encantado, embora pensasse, com ironia, que provavelmente a Interstate Railroad Company tinha tornado o castelo habitável de novo e era responsável pelo belo estado de conservação do parque.
Mas ele estava realmente feliz ao ver que sua filha querida morava no meio de tanta beleza e em tal esplendor e sentia-se contente por ter-lhe possibilitado isso. Quando as portas de bronze da mansão se abriram e apareceram os empregados, ele procurou Dolores, ansioso, pois tinha a ideia “plebeia” de que ela estaria ali para recebê-lo logo, com o filho no colo, o cabelo louro esvoaçando pelo rosto. No entanto, não havia sinal da família quando Allan e as duas mulheres entraram no maciço hall de pedras, cujas paredes eram cheias de armaduras, flâmulas e estandartes, iluminado por velas num imenso lustre de ferro. Ele sentiu o mofo e um cheiro indefinível de antiguidade; e sentiu também um frio que o fogo ardendo com vigor numa lareira de pedra cinzenta não conseguia dissipar. Uma larga escadaria de pedra, pesada e escura, erguia-se sinuosa para a penumbra mais acentuada.
A luz das velas se refletia nas amarduras antigas e os estandartes esvoaçavam de leve na brisa que entrava pela porta aberta. A casa ressoou espectralmente quando o grupo foi conduzido para cima. De repente, Allan sentiu uma depressão terrível e temeu pela filha naquela massa de pedra e ferro, naquele silêncio dando para o mar cinzento e o parque de sonho, etéreo.
Mas a suíte de aposentos destinados a Allan e Cornélia era bem simpática, cheia de móveis grandes e antigos e paredes com reposteiros e lareiras e luz de lampião.
— Um bocado antiquado e incômodo — disse Cornélia, descobrindo cômodas e louças condizentes. — Mas é o campo. Sinta o cheiro desses lampiões! Recordações de minha infância!
Allan não disse nada, pois gostou dos quartos. Examinou a imensa cama antiga em seu quarto de dormir, com os postes pretos entalhados de desenhos complicados, e experimentou o colchão duro. Esfregou as mãos diante do fogo forte. Podia ser tranquilo, disse ele consigo, quando uma empregada bem arrumada entrou com uma jarra de cobre de água quente e mais toalhas.
“Tenho a impressão de que eles sabem viver”, pensou Allan, lavando o rosto e as mãos. Ele se animou um pouco. Era possível que Dolores gostasse de tudo isso, afinal. Por um momento ele se esqueceu de que ela escrevia muito raramente e do modo mais impessoal. Quando estava enxugando as mãos, a casa vibrou de repente ao som de um sino de bronze, o aviso de que estava na hora de se vestirem para o jantar. Seus ecos ficaram, e Allan mais uma vez sentiu-se deprimido. Enquanto um eficiente camareiro abria a mala que continha suas roupas a rigor, Allan foi até os batentes de chumbo e os abriu, a fim de olhar para o mar que escurecia, além do parque. Um farol piscava num monte de rochedos; soprou dentro do quarto uma brisa perfumada de grama e rosas e a hera farfalhou nos velhos muros. “Onde está minha filha?”, pensou Allan, a umidade perfumada em seu rosto. E ele repetiu, desanimado: “Onde está minha filha?” 0 mar distante
respondeu, tristemente, e ele tornou a sentir medo.
Foi só às três da madrugada que Allan caiu num sono agitado, a despeito de ter bebido muito antes, para tentar, sem sucesso, relaxar a terrível tensão dentro de si. Dentro de meia hora depois de cair nesse sono de pesadelo, o caleidoscópio de rostos sem corpo e imagens vagas que se havia imprimido em seus olhos fechados desapareceu e ele sonhou claramente, com nitidez. Estava de novo passando por uma ma chuvosa, as sarjetas cheias à sua direita e as paredes molhadas de prédios solitários à esquerda. Via a luz de lampiões nebulosos em cada canto da rua, brilhando vagamente nos traços de aço da chuva inclinada. Era jovem outra vez e estava assobiando Killarney. E a melodia doce e penetrante ressoava dos muros fechados por onde passava. Numa parede havia um cartaz de propaganda eleitoral rasgado. Ele o soltou, examinando-o. Mas agora não era o rosto do jovem Patrick Peale; era o rosto de um homem de sessenta anos, um homem doente e alquebrado, de cabelo branco, feições atormentadas e olhos fanáticos mas vulneráveis. “Você não devia ter feito isso”, disse o rosto do cartaz a Allan, com tristeza. E o jovem Allan, com suas roupas modestas e encharcadas, respondeu: “Há tanta coisa que cada homem não deve fazer com os outros”.
O cartaz foi arrancado de suas mãos e voou pela rua como um espectro esfarrapado. Allan gritou para ele: “O Senhor tenha piedade de nós dois”. Uma voz de homem começou a cantar no escuro: “Foi Abel ou foi Caim quem sofreu a morte, quem sofreu a dor?”
Tenho de me apressar, pensou Allan, sacudindo a cabeça, que estava doendo muito. 0 camundongo atravessou seu caminho. Ele o chutou e o bicho voou pelo ar. Ao passar, olhou para ele; tinha a cara dele, em miniatura, o rosto dele como era na sua meia-idade, e soltou um grito forte e amargo. Caiu na sarjeta atulhada e Allan ficou olhando enquanto era levado na água lamacenta. Disse de novo: “O Senhor tenha piedade de nós”. Começou a correr e as paredes se fecharam sobre ele. Viu-se numa fresta e gritou por socorro, desesperado. Mas as paredes foram-se estreitando até ele não poder mais se mover e se ergueram através do negrume para o céu. Ele estava preso e sabia que nunca mais se libertaria, até morrer.
Ele lutou contra o horror do sonho, em que a solidão parecia o maior de todos os pavores. Estava ofegante e em seguida acordado, num jato de luar espectral e numa rajada de um vento escuro do mar entrando pelos batentes. Estava sentado na cama e seu camisolão de seda achava-se encharcado de suor, o coração batia, descompassado. "Cristo, que sonho!”, disse ele consigo. Não conseguiu mais se deitar. Procurou os chinelos e o roupão e viu que estavam úmidos. Foi para a janela e inclinou-se no peitoril largo além dos batentes. O mar, quase silencioso, estava além dos jardins escuros e parecia uma prata lisa, arrebentando aqui e ali em fogo prateado. A lua pairava sobre ele, fria e calma, e o ar úmido passou sobre seu corpo trêmulo, como uma água. Fechou bem a janela, trancando-a para isolar o vento e o som fantasmagórico da hera farfalhante, e acendeu um lampião.
Havia uma caixa de couro de porco em sua cômoda e ele abriu vendo todos os seus gestos nos espelhos altos e espectrais. Pegou a garrafa dentro da caixa, levou-a aos lábios e bebeu um bom trago. Enxugou a boca com as costas da mão. O fogo já se tinha apagado. Pairava um frio úmido no quarto grande, semelhante a uma adega, e Allan puxou o ededrom de seda rosa da cama, embrulhou-se nele e sentou-se com sua garrafa de uísque. Por toda parte sua imagem era refletida à luz nevoenta do lampião; viu-se encolhido no ededrom e sentiu-se mal, sofrendo.
Via sua filha Dolores conforme a tinha visto algumas horas antes, uma filha que ele não conhecia. Lá estava ela, sentada, de cetim claro, cor de gelo, os ombros e pescoço alvos despidos, o cabelo louro claro trançado numa coroa na cabecinha alta, pérolas e brilhantes reluzindo no pescoço e caindo ao peito. Ela se sentara ao lado do pai e lhe dera vários sorrisos débeis, por vezes olhando para ele com um amor tímido. Mas, quando ele olhara dentro dos olhos dela, era como olhar para o azul por trás de um vidro, inteiramente sem expressão.
Dolores falou do filho, o pequeno Alexander, mencionou as corridas a que ia com o marido, falou dos jardins e jardineiros, que eram escoceses, e do rei e da rainha, que eram tão amáveis com ela em seus garden parties e em palácio. Falou de tudo e de nada. Não tinha cor em suas faces lisas e só o mais leve rosado nos lábios, apertados e muito parados, em repouso, como os lábios de uma estátua. O imenso lustre acima da mesa de jantar reluzia e piscava com as velas e o cristal, e a luz fugidia corria pelas linhas clássicas do seu rosto.
Allan, como sempre, bebera demais e numa pausa momentânea se inclinara para Dolores, sussurrando:
— Não se lembra de mim, querida? Sou seu pai, e te amo.
Ela se virara para ele, sorrindo vagamente, com brandura. Ele dissera então:
— Dolores, é tarde, mas por que fez isso? Não está feliz...
Só então é que ela olhara bem para ele e pela primeira vez o vidro desaparecera entre os dois. E ela olhava-o com uma expressão de espanto imenso e insondável e sua boca se abrira num som so bressaltado. E, então, uma expressão de afronta — para grande surpresa dele — passara pela fisionomia da filha e ela se virara para o homem sentado à sua esquerda, não tornando a falar com o pai, à mesa. “Perdi minha filha”, pensou Allan. “Mas onde e quando, não sei.”
Ele então bebeu mais, tragando da garrafa como uma criança mama no seio. 0 uísque percorreu seu corpo, animando seu sangue, diminuindo os arrepios. Enquanto o tempo passava, seu cérebro começou a se aquecer naquela incandescência conhecida, e suavizante e ele se lembrou de tudo. Cornélia à direita do genro, a luz de velas batendo em seu rosto, um rosto grande, grosseiramente pintado numa tela rústica, o pó-de-arroz e ruge, pés-de-galinha e cabelo tingido dando-lhe o aspecto de uma megera alegre e indomável, cheia de astúcia, força e um incrível gosto pela vida. Ela piscava e os olhos pareciam os de uma leoa apanhada numa luz do dia forte, uma leoa predadora cuja avidez pela caça e pela carne nunca se saciavam. Seu pescoço e peito meio coberto eram brancos como a neve e tão intensa era a força vital em Cornélia que seu corpo parecia palpitar. Ela estava com um vestido de sua cor favorita, uma espécie de azul elétrico e as rendas e a seda acentuavam sua cintura estreita e quadris curvilíneos de um modo magnífico. Os brilhantes no cabelo, pescoço, nos pulsos, braços e dedos cintilavam num fogo colorido, à luz vacilante. Nunca ela parecera tão temível e poderosa ao marido e ele se encolheu ao ouvir aquela voz forte e rouca ressonando na sala imensa, com sua mesa antiga e seus aparadores, armários e suas poltronas princepescas, as paredes de pedra, tapeçarias e os quadros escuros. Ela brincava e dava gargalhadas e o genro olhava-a com carinho, pois não se ofendia com sua vulgaridade, parecendo até meio fascinado com aquilo. Os convidados, uma confusão de rostos que Allan não tentou classificar nem conhecer, pareciam estar igualmente entretidos e fascinados, escutando, apreciando.
Allan deixara de antipatizar com o homenzinho rijo que era o marido da
filha. Chegava a estimá-lo, com relutância, e por vezes sentia uma pena inexplicável por ele. O perfil de passarinho, com o grande nariz de gavião, não era o perfil de uma ave de rapina, mas sim brando, magro e quase tímido, o queixo recuado na defensiva, a testa curva recuando numa cabeça pequena, que estava ficando calva. Todas suas feições, as mãos, o corpo e os olhinhos de ave, brilhantes e bondosos, tinham a luz da inteligência. Embora ele falasse aos convidados com amabilidade, os escutasse, providenciasse para que ficassem confortáveis e examinasse com cuidado os rótulos das garrafas de vinho, seu olhar invariavelmente voltava para Dolores. Ali se derretia, buscava, brilhava com ternura. Dolores, por sua vez, parecia nem notar a presença do marido.
Lorde Gibson-Hamilton era paciente e amável até com a velha Estelle DeWitt, ouvindo-a quando ninguém mais lhe dava a menor atenção. Deixava que ela falasse, curvando a cabeça para ela com um sorriso atento, cuidando de agradá-la. Ela mirrara nesses últimos anos, mas o rosto enrugado continuava a sorrir com afetação, tolamente. Ela ainda procurava “brilhar” e seu cabelo branco e ralo ainda era penteado em cachos coquetes no crânio rosado. Desde a morte de Rufus ela passara a se vestir só de preto, mas com muitas pérolas e outras joias, e as mãos mirradas estavam cheias de anéis.
Como sua mente era tão imatura e prosaica, os olhos castanhos eram os olhos cheios e dilatados de uma mocinha, e nessa noite brilhavam felizes num ambiente tão ilustre.
O que se dissera naquele jantar? Allan, cheio de álcool, não conseguiu se lembrar. Estava absorto em seus próprios pensamentos infelizes e na imagem alta e de cera da filha a seu lado. De vez em quando a voz ressoante de Cornélia o irritava e ele se admirava do riso sincero que ela provocava.
Alguém falara algo sobre cavalgar de manhã cedo e Cornélia gritara, aprovando. Por mais tarde que ela se deitasse, sempre se levantava às seis da manhã, ávida pela vida, cheia de vitalidade. Ela sugerira tênis para mais tarde e Richard Gibson-Hamilton concordara, com admiração. Allan estremecera, e Cornélia dissera, com seu jeito provocador:
— Não esperem nada do Allan. Detesta a manhã, sempre foi assim. Também detesta os esportes e se encolhe ao ver um cavalo ou uma raquete de tênis.
O vinho era excelente e Allan bebera demais. Um dos mordomos estava quase continuamente atrás da cadeira dele, servindo-o. Cornélia fechara a cara, uma vez, olhando fixamente para o marido com seus olhos castanhos, e depois dera de ombros. Esperava que ele não “fizesse papel de bobo, como sempre”, ou ficasse emburrado ou briguento. Allan, pensou ela em seu íntimo, não tinha mesmo capacidade para beber o que quer que fosse.
Mais tarde, a família viu pela primeira vez o bebê, filho e herdeiro de Richard. O homenzinho pegara o filho no colo e o abraçara muito, beijando-o com avidez e ternura. Dolores teve de lembrarlhe que talvez os pais dela quisessem pegar o menino um pouco. Ele se desculpara, olhando em volta, aflito, e depois, como que por instinto, entregara o bebê a Allan, que já estava cambaleando um pouco.
A criança era miúda, mas tinha um corpo comprido e um rosto alerta e sensível, cheio de curiosidade e simpatia. Mas os olhos castanho-claros eram sérios e ele examinou Allan atentamente, antes de sorrir. Fiapos de cabelo castanho fino se espalhavam numa auréola em volta da cabeça e ele tinha uma covinha marcada no queixo. O calor do bebê em seus braços penetrou de repente no coração exausto de Allan e ele apertou-o com um gesto tão veemente que a
ama se adiantou, alarmada. Mas o pequeno Alexander não reclamou. Deixou que o avô o abraçasse e ficou muito quieto.
— Ah, o queridinho! — dissera Allan, a voz turva e trêmula, voltando ao sotaque irlandês. — É um belo rapaz, claro, um belo garoto, e vai ser um belo homem, espero. E rezo por isso. É o rosto de minha mãe que ele tem, o rosto da santa, com a luz sagrada nos olhos.
Estelle ficou constrangida, Cornélia achou graça mas se mostrou aborrecida. Allan sempre estava “bem alto” quando voltava ao sotaque de sua infância e ela começou a pensar num meio de tirá-lo dali antes que se tornasse inconveniente e insultante. Achou Allan muito teatral, agarrando a criança daquele jeito, uma criança muito comum, a seu ver, sem nada que despertasse exclamações de encanto. Sua única qualidade era que um dia herdaria o título, as propriedades e a posição do pai na sociedade internacional. Com um sorriso bem-humorado, ela pegou o garoto dos braços de Allan, segurou-o a distância e o examinou.
— Bem — disse —, acho que é um bebê bonitinho. Pelo menos não berra nem se debate.
0 quarto do bebê, quente, nadava à luz do fogo e dos lampiões, diante dos olhos de Allan. Dolores era uma sombra alta, ali perto. Richard ficou observando o sogro e alguma coisa lhe deu um aperto no peito magro, pois Allan estava absorto no bebê e tremendo. Estelle disse, afetadamente:
— Ah, acho que o anjinho se parece com o meu Norman! É a mesma...
Allan virou-se para ela tão de repente que chegou a cambalear por um instante. Seu rosto moreno ficou pálido e ele exclamou:
— E que Deus lhe perdoe a mentira que disse, mulher! Que mentira cruel, cruel...
Cornélia praguejou violentamente, baixinho. Pegou o braço de Allan com firmeza, um braço firme e tenso sob a manga preta.
— Ora, meu bem, a Estelle só queria dizer um elogio. Você a assustou. Seu tolo — acrescentou, num cochicho.
Ela sorriu animada para o rosto liso e sem expressão da filha, para os olhos sossegados de Richard, para Estelle, que recuava com um medo afetado e complicado das proximidades de Allan. A ama estava olhando extasiada, pensando na copa dos empregados, onde ela contaria essa história incrível sobre os americanos “pagãos” e sua falta de educação. “E lhe garanto, Sally, que ouvi aquela sra. Marshall praguejar que nem um soldado e o marido... bêbado como um gambá! E a pequenina sra. DeWitt toda abafada e o lorde tão brando e amável.”
Sem saber como, Allan se encontrou em seus aposentos, o camareiro cuidando dele e Cornélia encostada à porta de mogno encerado, exprimindo-se sem reservas.
— Não sei por que você tem de virar um selvagem horroroso depois de beber demais — disse ela.
— Você nunca há de saber, Cornélia, por que eu bebo demais, como diz — respondeu Allan, a voz tão débil que mal se ouvia. Depois ele se excitou de novo: — Aquela maldita mulher... Norman... essa criança... meu neto...
— Ora, cale-se — disse Cornélia, começando a rir. —"Você é um idiota, meu querido. O que será que essa gente estará pensando de você agora? Mas quem se importa? Somos os DeWitt e Marshall monstruosamente ricos e nunca vi nem mesmo um aristocrata empalidecer de nojo diante da ideia do dinheiro. Mas espero em Deus que só pensem que você é um excêntrico. Estelle sem dúvida está dizendo a todo mundo que você é irlandês e isso há de explicar tudo para eles. Não puxe a gravata assim, vai se estrangular. Por falar nisso, sabe que eu acho que Dick se teria casado com Dolores mesmo sem dinheiro? Ele ama de fato aquela pobre coisinha fria. Engraçado, não é? Vá para a cama, enquanto eu desço e tento arrumar as coisas para você.
Ela lhe tinha soprado um beijo, alegre, e se fora. Allan deixara que o camareiro o despisse. Encontrara a caixa de sedativos e tomara três comprimidos. Depois estava na cama, a luz fraca a seu lado, sozinho. Apagara a luz e ficara deitado ali, começando a pensar.
Os pensamentos eram conhecidos e nítidos, a despeito de todo o uísque e vinho. Cornélia. Desde quando ela começara a olhar para ele com os olhos e a boca arredondados da zombaria? Por quanto tempo ela o vinha mimando, afastando-o não só de convidados e anfitriões e levando-o para casa, mas também afastando-o de reuniões de diretoria com palavras ligeiras, sorrisos e piscadelas para os diretores? Desde quando ela o vinha tratando como uma pessoa irresponsável e convidando os outros a tratarem-no assim? Fazia vários anos, pelo menos. E era por isso que seus diretores o escutavam cada vez com maior impaciência ou trocavam olhares divertidos, mais tarde consultando Cornélia, em particular? Quem estava lançando a sugestão de que ele era um tolo, um tolo mal-humorado e excitável, que por vezes dizia coisas incoerentes? Cornélia.
Mas por quê? Ele tinha o poder. Ele era presidente da Interstate Railroad Company. Por meio de um trabalho e esforço incríveis ele evitara que a estrada sofresse demais durante a crise de 1907. A companhia possuía quatro de suas patentes exclusivas, sobre as quais as autoridades tinham escrito vários livros. A fortuna da companhia dobrara desde 1900, quando ele assumira quase todas as responsabilidades de Rufus DeWitt. Ele dedicara todo seu coração, sua mente, energia e engenhosidade à companhia. Fora considerado com um respeito majestático pelos presidentes das outras ferrovias.
Até mesmo o presidente da New York Central e da Pensylvania tinham concordado que Allan era um “ferroviário” na mais alta tradição do gênio. Ele evitara greves em sua estrada quando outras estavam paralisadas por elas. As confrarias ferroviárias falavam dele com afeto, enquanto comentavam sobre outras ferrovias com uma raiva surda. Tudo isso ele fizera, a despeito da “bebida”, a despeito de seu medo nato e momentos de terror e incerteza. Então por que Cornélia o tratava como uma criança imprevisível e débil mental? E por que, nesses últimos anos, ela tentara transmitir essa opinião — que, ele acreditava, ela não tinha de verdade — a outros? Inveja.
......Mas sou marido dela, sou herdeiro do pai dela e ela me ama." “É o poder
que Cornélia deseja”, pensou Allan, no escuro. “Como mulher ela não pode ser presidente da companhia. Mas quer que os outros acreditem que ela é o verdadeiro poder por trás do poder legítimo. Como ela pode me fazer isso, ela que me ama, minha mulher?”
Ele ficou ali deitado e se sentiu inteiramente abandonado, sozinho e traído. Virou-se nos travesseiros e suspirou, gemendo. Começou a cochilar. Foi aí que teve o pesadelo que o despertou.
E agora estava sentado naquele quarto grande e úmido, bebendo desesperadamente, enquanto o mar, avivando-se, soprava com sua voz inquieta
contra as janelas e a lua recuava no céu negro. Allan murmurou, encolhido no edredom:
— O Senhor tenha piedade de nós, Cristo tenha piedade de nós...
Ele se calou, sobressaltado. Não tinha falado por sua vontade. Seus olhos começaram a arder e ele pensou no filho Tony e apoiou a testa na mão e não resistiu ao desespero terrível que o dominou. “O que andei procurando, a vida toda?”, perguntou-se... “Não sei o que é. Só sei que estou derrotado.”
O uísque não conseguiu acalmá-lo. Ele se levantou e foi para as janelas, abrindo os batentes para o ar selvagem e perfumado da manhãzinha. Olhou para leste; o mar permanecia escuro, mas acima dele havia montanhas quebradas de um fogo baço e o céu acima das montanhas-nuvens se desmoronava em um verde-escuro e roxo. Uma névoa suave se elevava dos jardins e parque abaixo, com espectros se dissojvendo em nada diante da ameaça do sol nascente.
Uma sombra etérea começou a se formar nos topos das grandes árvores, e então os pássaros romperam num canto veemente, que se avolumou na luz cinzenta como uma explosão sonora. Os pombos arrulhavam; os tordos lançavam suas vozes suaves ao céu. As cotovias gorjeavam em vozes angelicais. Mas a casa continuava envolta num silêncio encantado, só quebrado pelo farfalhar da hera.
Allan sentia os olhos ardendo e uma violenta dor de cabeça. Começou a suar, embora o ar estivesse fresco. Olhou para o chão e viu um vulto esguio lá, o rosto voltado para cima, para o dele. Teve um sobressalto e lembrou-se das histórias de fantasmas que, diziam, assombravam essas velhas mansões: seu sangue celta agitou-se e mandou um calafrio por seus nervos. Depois, ouviu uma voz baixa, experimentando:
— É o senhor?
Ele balbuciou:
— Dick? Por que está de pé tão cedo?
— Nem fui para a cama — respondeu lorde Gibson-Hamilton. — Posso subir a seus aposentos por um momento?
Allan abriu a porta, sentou-se e ficou esperando. Olhou para a garrafa de uísque, pensou em guardá-la e depois deu de ombros em sua fadiga terrível. O genro que soubesse do pior, se quisesse.
Provavelmente já sabia mesmo. Dentro de alguns minutos o rapaz entrou no quarto, pisando sem fazer barulho, e acomodou-se numa poltrona diante de Allan. A luz do lampião tornava as sombras dos cantos do quarto mais irreais, porém mais intensas. Richard olhou para a garrafa de uísque e perguntou, baixinho:
— Permite-me?
— Você não é obrigado — disse Allan, desconfiado de uma grande cortesia.
— Mas quero — disse o outro, sorrindo com tristeza. Ele pegou a garrafa e, para assombro de Allan, tomou um trago demorado, sequioso. Richard ficou com a garrafa nas mãos e disse: — Eu às vezes tenho de fazer isso. Não é muito frequente, sabe, mas às vezes, especialmente quando não consigo dormir.
Allan não respondeu. Eles se olharam como se partilhassem de um segredo mútuo terrível. Depois, o rapaz suspirou e largou a garrafa.
— Há ocasiões em que a vida parece impossível — disse. Tornou a olhar
para Allan e acrescentou muito brandamente: — O senhor sabe que amo sua filha, sempre amei?
— Eu... creio que sim — disse Allan.
O sorriso de Richard foi mais triste do que nunca.
— O senhor sabia que ela não me ama nada?
— Desconfiei disso, hoje à noite. Mas então por que ela se casou com você, Dick? Confesso que fui contra esse casamento. Não era nada a ver com você, verdade; era só que eu achava que ela não o queria. Então, de repente, ela mudou de ideia, ou alguma coisa. Naquela ocasião, tudo estava confuso para mim — continuou Allan, meio incoerente. — As coisas estavam sob pressão; o velho Rufus tinha morrido; tinha tanta coisa a fazer. Não sou o homem que ele foi: tínhamos origens diferentes. Sabe, eu às vezes entro em pânico. É uma coisa que não compreendo claramente. Então, eu estava em pânico, embora soubesse que isso aconteceria sempre. Você não iria compreender, com a sua origem. Minha família era muito pobre; saí da sarjeta por... esforço próprio... isso me arrebentou, de certo modo, imagino... — “Estou dizendo besteira”, pensou, infeliz. “Ele não pode compreender.”
Richard meneou a cabeça, sério.
— Eu sei, sim. Não lhe posso dizer como o admiro e a homens como o senhor. Não temos muita gente assim na Inglaterra. Antes já tivemos, mas agora não. — Ele suspirou. — Mas o senhor me perguntava por que Dolores de repente mudou de ideia e se casou comigo. Não sei. Fiquei tão feliz, na ocasião, pois já tinha desistido dela, que nem fiz perguntas. — O rosto dele, bondoso, de passarinho, estava banhado por uma luz tímida.
Ele colocou as mãos magras entre os joelhos estreitos e olhou para o chão.
— O senhor estava preocupado com Dolores? Não se preocupe, por favor. Ela é muito... competente, de um modo maravilhoso, e parece se divertir, muitas vezes. Gosta da Inglaterra. Mas é como se ela tivesse formado uma casca de vidro.
— Ela sempre foi uma menina tão suave — disse Allan, pegando a garrafa e bebendo mais. — Mas desde os quatorze anos começou a se afastar... Eu não a via muito. Escolas e coisas. De algum modo, estava sempre longe de mim. Mais do que as outras meninas ficam longe da casa, em geral. E quando estava em casa, em Portersville, havia festas para ela. Dolores ia embora e todos os passeios que antes davamos... não havia tempo, ou alguma coisa...
Ele parou e olhou para Richard e seu rosto moreno e pálido ficou ainda mais pálido. Ele abriu a boca. Cornélia. Era sempre Cornélia, afastando a menina de junto dele, mandando-a para se hospedar em outras casas, levando-a consigo, escondendo-a. Mas por quê? Allan se levantou, aflito, o punho cerrado. “Foi minha culpa”, pensou, em agonia. “Eu nunca procurei ter tempo, ou tive tempo, para parar e pensar em minha filha. Sempre havia alguma coisa. Se Cornélia fez o que fez, eu podia tê-la impedido. Mas por que ela fez isso?”
Richard se levantou e enfiou as mãos nos bolsos. Ainda estava com o traje a rigor que usara na véspera, que tinha um aspecto um pouco amarfanhado. Ele foi para a janela.
— Estive na biblioteca, lendo, e depois passeei pelo jardim.
Gosto de ver o amanhecer. — Ele se virou para Allan. — Mas Dolores não é o único motivo que o impediu de dormir, não é? Está preocupado com tantas
coisas. — Ele riu, como se desculpando. — Posso ajudá-lo em alguma coisa, além de lhe oferecer minha compreensão?
— Há mil coisas erradas. A maioria de meus amigos zomba de mim quando lhes falo disso. Acham que estou ficando louco ou me entregando a uma imaginação fantástica. Não querem ver; talvez eu esteja mesmo obcecado, como Cornélia diz sempre. Mas não creio. Você conhece Norman DeWitt. Ele é parte do que quero dizer. Talvez você também me ache louco.
O rapaz sentou-se na poltrona e olhou para Allan muito sério. Depois de um momento disse:
— Faço parte da Câmara dos Lordes. Não, senhor, não creio que esteja “louco”. Nos últimos anos, venho falando como o senhor fala. Ninguém me dá ouvidos. A não ser os que sabem muito bem das coisas. Já observei as caras deles. Eles também se riem de mim, mas é um riso escarninho, como que para dizer: “Não há nada que você possa fazer para nos deter”.
Allan estava abismado.
— Você sabe! — exclamou, a voz trêmula. — Quantos de... vocês... sabem?
— Muitos, senhor. Ainda há pouco estive conversando com szrEdward Grey. — Richard estendeu a mão e abaixou o lampiãozinho, o quarto se inundou de uma luz cinzenta. Depois, a chamazinha morreu e não restou mais nada. — É isso que vai acontecer com a Europa, com o mundo. Todas as luzes se apagando, não restando qualquer cor, nem homens, só sombras. — Ele olhou para o lampião apagado com um ar muito sombrio. — O problema é que a aurora só virá muitos decênios depois. Talvez séculos. 0 plano foi feito há muito tempo.
Allan estava tão excitado que foi para a beirada da poltrona e ergueu a voz:
— Eu sei! Meu Deus, é um consolo saber que outros também sabem! Gritando, nunca tendo uma resposta, a não ser risadas e escárnio, até agora. — Ele acrescentou de repente: — Acho que teremos uma guerra.
A despeito do que Richard tinha falado, Allan o observou atentamente, procurando o mais leve sorriso incrédulo. Mas Richard não sorriu. Sacudiu a cabeça várias vezes.
— Claro — disse. — Faz parte da trama. Provocar guerras para destruir um mundo capitalista. E de que modo podem provocar essas guerras? Dando aos governos rendas ilimitadas. Nossos inimigos são todos a favor dessas rendas. Não sei se o senhor sabe de que modo funciona o Parlamento. Todos os anos, os valores dos impostos, como os chamamos, são sujeitos a revogação ou prorrogação. Não temos uma coisa que vocês têm... emendas à Constituição. Eu sempre voto contra as prorrogações. Votei contra o Ato Financeiro de 1907, que é uma trama nefasta contra a Inglaterra, bem executada, bem pensada. O imposto gradativo, conforme explicado e recomendado por Karl Marx. “De cada um segundo sua capacidade...”
Ele passou as mãos esguias pelo rosto, devagar, com um gesto arrastado.
— Começou há tantos anos. Que dia amaldiçoado, em que demos asilo a Karl Marx. Mas, por vezes, sou fatalista. Quando é que, na história, o povo de alguma nação deu ouvidos quando alguns gritaram “alerta”? A classe dos trabalhadores na Inglaterra ficou muito satisfeita com o Ato Financeiro de 1907. Isso ajudaria a “pôr os graúdos em seu lugar”, disseram, pois teriam de pagar muito imposto. O que não compreenderam é que o plano universal também era dirigido contra eles. Perceberão isso quando já for tarde. — Tornou a esfregar o rosto. — Mesmo quando vierem as guerras... e não haverá só uma guerra... acho que eles não compreenderão e só vão perceber quando forem escravizados por patrões piores do que nós, patrões tão desumanos que não terão misericórdia.
Ele hesitou.
— Quando será desfechado o primeiro golpe contra a humanidade, não sei. Creio que será em breve. Há uma grande agitação em todas as capitais da Europa. Quem será o inimigo, quem disparará a primeira arma? Minha idéia é que será a Alemanha. Creio que isso ficou decidido já em 1906. Há outra coisa: quando vier a guerra, serei convocado, como o senhor sabe. Terei de me juntar a meu regimento. E temos a Dolores e nosso filho.
— Meu Deus, não! — exclamou Allan.
— Receio que sim, senhor. — Ele levantou a cabeça e seu sorriso era extremamente triste. — Escute os passarinhos. Eles “despertariam os mortos”, como diz nossa cozinheira. Mas não conseguirão “acordar os mortos” nos dias cruéis que estão quase chegando. Os milhões de mortos, por toda parte, em seus túmulos precoces. Os milhões de mortos numa prisão universal. E talvez, no futuro, não reste um único ouvido humano para ouvir ou uma única alma humana para amar os cantos dos pássaros. Não na prisão.
Allan bateu com o punho no braço da poltrona.
— O oue podemos fazer antes que seja tarde?
Richara levantou-se e sacudiu a cabeça.
— Já é tarde, sr. Marshall. Mas há uma coisa que podemos fazer: gritar, alertar, advertir. Protestar, nem que morramos por isso. Talvez alguém nos ouça, no fim. Talvez alguns. Só podemos rezar.
Os primeiros raios de um sol nebuloso de repente bateram no quarto. Richard estava ali de pé na luz, e, pequeno como era, pareceu adquirir estatura e dignidade tranquilas que nunca poderiam ser derrubadas.
— O sol sempre nascerá — disse ele. — Sempre haverá as manhãs. Quem sabe se, daqui a muitas gerações, haverá uma nova manhã para nossos netos, se não para nós? Afinal, sempre há um Deus.
Allan estava tão comovido que não conseguiu falar. Mas levantou-se e pôs as mãos nos ombros de Richard e baixou a cabeça para beijá-lo na face, como beijara o filho Tony.
45
— Que tolice do seu pai — disse Cornélia ao filho, o reverendo Rufus Anthony Marshall. — Os alemães nunca ousariam afundar navios britânicos transportando americanos e, realmente, centenas de americanos continuam a ir a Paris e à Riviera. É até emocionante saber que não muito longe há trincheiras e batalhas. Mas não, seu pai se recusou obstinadamente a sair da América por um momento sequer, desde que foi declarada a guerra, no verão passado. Não que ele esteja com medo, tampouco. Está é com raiva.
Todo mundo que tem bom senso — continuou ela, aborrecida, se abanando no calor incomum de maio — sabe que a “Nova Liberdade” de Wilson, como ele a chama, não passa de política e ninguém leva o sujeito a sério. Mas seu pai, que Deus nos ajude! Fala o dia inteiro que este é “o primeiro golpe contra a liberdade". Há anos que vem falando de “golpes” e agora acha que sua profecia está se realizando. Norman nem ousa mais nos visitar e, se bem que seja tudo culpa de seu pai e Estelle esteja histérica, acho isso uma bênção. Não suporto aquele sujeito, embora seja meu meioirmão. Por favor não se ria, Tony, mas sabe o que seu pai fez, há pouco? Vendeu os milhões de investimentos dele nos armamentos, no momento em que estão em alta! Disse que não podia ter isso na consciência, pelo amor de Deus! E daí, se estamos fornecendo à Inglaterra, à França e à Alemanha com uma bela neutralidade? Mas ele acha que é imoral, ou coisa assim. Ele agora foi para o jardim e imagino que deva ser grata por isso, pois fica insuportável quando bebe e estou cansada de vê-lo irritar os convidados. Por falar nisso, que acha do sr. Regan? Você não o via desde menino.
Tony, no hábito negro do sacerdócio, estava ali de pé, reto e alto, no fresco salão da casa de Portersville. Os convidados andavam pelas salas e saíam para os jardins com copos na mão. A casa e o terreno ressoavam com conversas e risos. Tony bebericava seu xerez e olhava em volta, aflito, procurando a irmã Dolores. Mas ela não se achava ali. Provavelmente estava em cima com o filho, pensou ele. Será possível que esteja preocupada com o marido, o coronel, que estava com o regimento dele, “em algum lugar da França"?
— Tony, você não está escutando — disse Cornélia, mais aborrecida do que nunca. O vestido de linho branco moldava seu lindo corpo e tinha uma fenda quase até o joelho. O cabelo ruivo estava penteado na última moda, arrumado espesso em volta da cabeça e por cima das orelhas. Uma renda branca delicada caía em cascata pelo busto, salpicada com brilhantes.
— Desculpe, mamãe — disse Tony. — Mas eu estava escutando, sim. O sr. Regan? Filho do homem de que o vovô costumava falar? Parece um monstro escondido, enganadoramente simpático. Não é um dos que estão ajudando a financiar os armamentistas?
— Como você é pouco realista! — disse Cornélia, impaciente.
— Tal e qual seu pai. Por falar nisso, nossos convidados daqui a pouco vão embora. Quer me fazer o favor de ir procurá-lo? Não consigo vê-lo dos terraços e não me admiraria se ele estivesse escondido naquela gruta, com sua garrafa. Aliás, quando é que você vai ser um monsenhor, um bispo ou coisa assim?
Tony teve um sorriso triste.
— Não quero ser mais do que um padre de paróquia e, agora que o padre Dugan morreu e assumi o lugar dele, estou bem contente com a Igreja da Sagrada Família e espero que me permitam ficar lá. Sim, vou procurar meu pai.
Ele olhou para a mãe, sério. Amava-a e estava ciente de não saber nada sobre ela. “Ela parece uma conflagração”, pensou ele, "fortalecendo-se à medida que devora as coisas.” Havia nos olhos dela uma fome insaciável e seu rosto grosseiro apresentava, aqui e ali, em volta dos lábios pintados e das pálpebras lilases, as rugas fundas da ganância. “Como ela é dura e segura”, pensou Tony, com pesar.
— Foi uma boa festa, não foi? — disse ela, quando o filho ia se afastando.
— Mas meu pai não circulou muito — respondeu ele, mais aflito.
Cornélia deu uma risada barulhenta.
— Por isso é que foi uma festa boa! — exclamou. Ela abanou o leque diante do rosto e ele então viu que os olhos da mãe estavam cheios de uma malícia desdenhosa. — Ah, amo seu pai, mas há muitas ocasiões, e elas se estão tornando mais frequentes, em que não o suporto e fico contente quando ele desaparece de minhas vistas.
Ela o dispensou com um gesto e voltou para seus convidados e para tornar a encher o copo.
Tony, sorrindo, inseguro e vago ao encontrar os olhares curiosos dos convidados, dirigiu-se para as altas portas envidraçadas que davam para o jardim. Já as estava quase alcançando quando ouviu a voz suave da tia, Ruth Peale, chamando-o. Ela estava com o marido, Miles, e foi mancando em direção a Tony, ansiosa, o rosto delicado corado do calor, a cabeça dourada parecendo um raio de sol na sala sombria. Aos trinta e sete anos, parecia muito mais jovem, pois havia uma grande expressão de inocência em seu rosto acanhado, uma ternura imaculada. Ela deu a mão a Tony e sorriu para ele.
— Não tive oportunidade de lhe falar antes, meu bem — disse ela. Suspirou e a seda azul fina que cobria seu peito magro farfalhou, com sua respiração constrangida. — Como vai passando, Tony? Faz muito tempo que não o vejo.
— Ninguém vê o Tony muito; somos hereges ou coisa assim
— disse Miles. Seu cabelo cor de mogno só chegava até as sobrancelhas da mulher, mas, a despeito de seu tamanho, havia em Miles aquilo que Tony tinha visto na mãe: uma força indomável, segurança e comando. No entanto, nele não havia qualquer vulgaridade, mas sim elegância e pose. Ele lançou a Tony um olhar inteiramente azul. — Como vai o negócio de padres no momento?
— Ora — disse Ruth, aflita e corando —, tenho certeza de que o Tony não acha que sejamos pagãos e hereges, não é, Tony?
— Tenho certeza de que você é um dos anjos de Deus, tia Ruth
— disse Tony, com carinho.
Ruth estava mexendo nas pérolas no pescoço alvo e magro. Ela balbuciou:
— Eu... fui à sua igreja... no domingo passado, meu bem. Missa solene. Foi muito lindo. Não compreendi... mas tão santo... tão cheio de grandeza. E que sermão maravilhoso! Todos os ministros atualmente falam da guerra na Europa, ou a “situação social” nos
Estados Unidos. Mas você falou de Deus e da misericórdia e do amor divinos. Foi um grande consolo para mim.
“Será que você precisa de misericórdia e consolo”, pensou Tony, com compaixão. “Mas também quem é que não precisa?” Ele esperava que Ruth fosse feliz. Achava que sim e ficou aliviado quando a viu olhar para o marido, com timidez, mas com um grande brilho nos olhos bonitos. Miles não retribuiu o olhar. Examinava Tony e seu rosto brilhou mais, pois ele estava achando graça. Alguém se aproximou deles displicente, o seu irmão Fielding, alto e “castanho”, seu assistente.
— Olá, Tony — disse Fielding, com pouco caso, o cabelo castanho-claro caindo numa mecha lisa sobre a testa macilenta. — Continua padreco, estou vendo. Ainda não cansou disso, é?
— Fielding! — protestou Ruth, tocando no baço do marido, como que pedindo que recriminasse o irmão, que sorria para Tony de um modo muito desagradável.
Tony procurou controlar-se e disse, com frieza:
— Como posso me cansar disso? Estou fazendo o trabalho que Deus me criou para fazer.
Fielding meneou os ombros largos e ossudos. Ergueu a taça e olhou para o champanhe âmbar.
— E eu também — disse, passando a rir para Miles. — Estamos todos. É a predestinação, não é? Já ouvi falar disso na aula de catecismo. O pai está sempre falando disso. Predestinação. Não importa o que você faz... é Deus quem faz você fazê-lo. Não há escolha.
Tony sentiu o escárnio do outro. Sabia que devia pedir licença e se retirar, mas ainda era jovem e estava ficando com raiva.
— Você nunca ouviu falar do livre-arbítrio, não é, Fielding?
— Ora, vocês, padrecos — disse Fielding. — Não entendo de seus dogmas. Só ajudo a dirigir a ferrovia... que também lhe dá um bom dinheirinho.
Faltando à caridade ou não, Tony concluiu que detestava aquela cara comprida, com queixo em forma de pá e cor ocre, com os maldosos olhos castanho-claros. Miles agora olhava para o irmão com uma cara severa e Fielding, sob aquele olhar, deu de ombros novamente e disse:
— Diabo, eu não queria ofendê-lo, Tony. Com licença, alguém está me chamando. Minha mulher, claro.
Ele se afastou desajeitadamente em direção a Cynthia Brownell, em solteira, neta do banqueiro, mocinha pálida com uma cara petulante. Tony o viu afastar-se e aí teve uma sensação curiosa. Perigo. Havia perigo naquela casa, perigo em Miles e Fielding. Miles o estava observando, com um meio-sorriso.
— O que é que há, Tony? — perguntou. — Não ligue para Field. Está sempre brincando. Aonde vai?
— Vou para casa — disse Tony.
De repente, lembrou-se de que não se despedira do irmão, DeWitt. Fazia muito tempo que não via DeWitt, antes desse dia. Encontrou o rapaz numa poltrona perto das portas envidraçadas, com a bengala ao lado, o crânio preto bem-feito destacando-se no cetim vermelho, o rostinho moreno com o mesmo sorriso enigmático. Mary estava ao lado dele, de linho rosa, parecendo uma gatinha graciosa, sem idade definida, como os gatos. 0 cabelo escuro estava encrespado e ela ficava balançando-o, fazendo-o dançar em volta das faces e da testa. Os olhos pretos reluziram e faiscaram, quando ela avistou Tony se aproximando. Foi um rosto felino e pontudo que ela voltou para ele, com uma boca maliciosa. Ela já estava quase refeita da decepção de ter tido uma filha, menos de dois anos antes, pois já havia otitro bebê encomendado, fazia três meses. Estava comendo um sanduíche, com seus dentinhos bonitos.
— Então, Tony, já vai? — perguntou ela e em sua voz risonha havia ironia.
DeWitt, porém, virou-se para o irmão, interessado.
— Nunca temos tempo de conversar — disse ele. Tony pôs a mão com carinho naquele ombro estreito e torcido e DeWitt ficou muito parado.
— É verdade, mas sempre rezo por você, garoto — disse ele, apertando-lhe o ombro. — Eu queria lhe agradecer pessoalmente, e não por escrito, aquele vitral em rosácea francês.
— Veio da França — disse DeWitt, superfluamente. — Uma igreja velha que estavam demolindo. Pensei que você gostaria de têlo, em sua igreja.
Tony riu.
— A igreja fica num dos bairros “piores” de Portersville, mas é um dos pontos de interesse da cidade. Graças a... todos. Por que não vai lá, um dia, para ver o vitral no lugar?
— Como é que você sabe — disse DeWitt, com sua voz sem expressão — que eu não vou lá?
Tony, espantado, olhou para aqueles olhos rasgados.
— Você vai? — perguntou, admirado.
Mary deu uma risada.
— Não muitas vezes — disse ela. — Ele quis ver aquele altar italiano que o papai Marshall lhe deu, há um ano. Tinha medo de que ficasse imponente demais em sua igreja. E ficou mesmo.
— Eu não acho — disse Tony, com rispidez. — E as irmãs fizeram uma linda toalha de renda para ele. Têm muito orgulho daquele altar. E a imagem de mármore de Nossa Senhora é uma das mais belas que já vi em qualquer lugar do mundo. Alguns conhecedores acham que é um Miguel Ângelo autêntico:
— Bom, custou quase cinquenta mil dólares — disse Mary zombando. — Deve ser alguma coisa.
— Cale a boca — disse o marido, sem levantar a voz. Mas Mary continuou:
— Em todo caso, é bonita demais para uma igreja de favela. DeWitt me contou que a gente escuta os trens o tempo todo trovejando nos fundos. Quase abafa os sinos que Dolores lhe mandou da Espanha.
DeWitt não se mexeu. Parecia temer que Tony tirasse a mão de seu ombro.
— Você não devia ter entrado para o clero — disse ele. — Precisamos de você... no negócio.
DeWitt estava olhando para a bengala e havia uma ruga entre seus olhos. Ele disse:
— O pai virou ébrio. Imagino que saiba disso. — Ele acrescentou: — Ah, ele mantém as aparências no escritório. Mas bebe até cair quando não está lá. Isso tem de afetá-lo, um dia desses, e eu ainda não tenho vinte e cinco anos. Imagino que digam que sou muito moço para ser presidente.
O coração de Tony ficou apertado.
— Estou procurando por ele agora, pois tenho de ir embora. Daqui a pouco é hora da bênção.
Onde estava Dolores? Não havia sinal da irmã no meio dos convidados. Ele teria de ir embora sem vê-la. Ele sorriu para DeWitt e cruzou as portas para o jardim. Um trio de músicos tocava em algum lugar e a dissonância da música de ragtime ofendeu os ouvidos de Tony. Mas pior do que tudo era seu medo impreciso. O que DeWitt queria dizer? Falara do pai num tom preocupado. Havia outra coisa em sua voz, embora sem expressão. Tony estava afastado dos negócios da família havia tantos anos que deixara de pensar neles, a sério. Agora ficou ali, inseguro, sob um grande carvalho, a testa franzida, concentrado. Miles e Fielding. O poder de Miles crescera na ferrovia e ele ajudara o irmão a adquirir mais poder também. Miles era casado com a filha de Jim Purcell; ela devia possuir muitas ações e tinha pelo marido uma dedicação de escrava. Fielding se casara com a única neta do banqueiro Brownell, um dos diretores da estrada. Patrick Peale, pai de Miles e Fielding, também era diretor. Laura Peale, mãe dos dois rapazes, possuía muitas ações — Tony não sabia ao certo quantas. Por outro lado, DeWitt não apenas era vicepresidente executivo, agora, mas também casado com Mary Peale, que herdara títulos e ações de Jim Purcell. Cerca de cinquenta por cento e um dos títulos eram de propriedade dos pais dele, Tony. Ele imaginava vagamente que a vantagem estava com sua própria família — os Marshall.
Tony foi seguindo devagar pelos terraços verdes. Maio chegara numa onda de flores, um mar de verde em explosão, despejando o excesso de rosa, amarelo, branco e azul pelas pedras dos muros, terraços e jardins de pedra. O sol lançava sombras azuladas das árvores agrupadas, espalhando-as na grama nova. Era como se a terra estivesse transportando de alegria e colorido, dançando numa exuberância de louvores e inocência. Nos fundos erguiam-se as montanhas verdes, quase faiscando à luz do sol. Mas e os campos dilacerados e os muros arruinados da Bélgica e da França? E os cereais novos pisoteados, os vinhedos arrasados e as igrejas em ruínas? Agora haveria alguma alegria na Europa, alguma florescência para alegrar a vista?
Tony suspirou. Não acreditava que a Europa estivesse empenhada numa “luta pela liberdade”, como era proclamada na imprensa britânica, francesa, austríaca, belga, alemã e russa. O pai dele repetira desesperadamente que um mal antigo estava mais uma vez irrompendo na Europa, no meio de um silencioso congresso de homens, e com ele explodira uma guerra pelos mercados mundiais. Sim, pensou Tony, continuando a descer os terraços para os jardins inferiores, tudo isso é verdade, mas também há outra coisa. O velho instinto assassino do homem, atávico, enterrado nele como uma semente rubra que não morria, estava brotando de novo num ressurgimento de morte ilimitada. Os maquinadores perversos não poderíam florescer, não haveria guerras pelos mercados mundiais sem esse instinto no homem que o levava a odiar seu irmão e desejar sua aniquilação.
— Senhor, tende piedade de nós. Cristo, tende piedade de nós — murmurou Tony, pensando nos rapazes nas trincheiras da Europa, pensando nos milhares de túmulos, pensando nas mulheres e crianças chorando e o som das armas de Caim nas campinas e florestas. — Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte — rezou. “Pecadores”, disse ele consigo. “Somos todos responsáveis pelos assassinatos na Europa, que nunca terão fim, nunca.”
Ele estremeceu, como se tivesse ouvido um sussurro tremendo, de advertência. “Mas o que posso fazer?”, perguntou-se. Já havia gente bradando na imprensa americana, dizendo que a “religião fracassara com o mundo”. Não. O homem é que fracassara com a religião; fracassara com Deus. Tony lembrou-se da grandeza das igrejas e catedrais da Europa e da América. Como ficavam vazias, durante os santos ofícios! E como eram poucos os que se ajoelhavam ao altar ou enchiam os bancos! Os padres e ministros estavam sempre ali, esperando ansiosamente os milhões que nunca apareciam. Esperavam para falar de Deus com misericórdia, amor e justiça... mas os milhões nunca apareciam.
Mas e se as igrejas de repente se manifestassem, com um grito unido e sonoro: “Não matarás!” E se os homens de Deus se postassem nas trincheiras, comandando que todos os homens depusessem as armas? E se todos os padres e ministros comparecessem a Haia, incorporados, chamando os estadistas e generais do que de fato eram: assassinos? “Não poderíam nos matar a todos”, pensou Tony, com um sorriso triste. “As mulheres se poriam ao nosso lado, e talvez o mundo sequioso, levantando suas armas manchadas de sangue, fosse obrigado a ouvir e se envergonhasse e os instintos primitivos desaparecessem.”
Tony viu que estava ao lado do choupo reluzente que plantara quando menino. Olhou para o alto, para os galhos em que os passarinhos faziam seus ninhos. A árvore pontuda parecia girar sobre seu tronco com uma gigantesca vela verde ao vento suave e sob o sol. Quantos milhões de europeus — jovens como ele — tinham plantado árvores em tocos enegrecidos e os pássaros tinham desaparecido. Para quê? Para quê? “Defesa da pátria?” “Liberdade?” Mentiras, mentiras. Só havia Caim, no princípio e no fim.
A gruta, de muros verdes, estava diante do jovem padre e ele empurrou as ramagens espessas para o lado e entrou. Lá, como ele receara, estava o pai sentado num velho banco de mármore, bebendo. A seu lado estava uma garrafa e ele tinha um copo na mão. A cabeça encanecida estava abaixada e ele encolhido no banco, como uma imagem imóvel e abatida do desespero. Não levantou os olhos quando Tony se aproximou dele; as pálpebras manchadas estavam fechadas sobre os olhos cavados; a boca estava frouxa, numa agonia. Tony sentou-se ao lado do pai e disse, muito baixinho:
— Conte tudo, pai.
Allan se mexeu. Devagar, levantou a cabeça e olhou para o filho, e Tony percebeu que ele não o estava vendo. Estava afastado, em algum sonho terrível, mal percebendo que havia alguém com ele, escutando. Ele disse, a voz arrastada:
— Foi naquele Natal... quebraram as vidraças. — Ele levantou a mão, cerrou-a e bateu com ela no joelho, com pancadas pesadas e medidas, como as batidas de um coração. — A pedra caiu no presépio. O Menino Jesus foi quebrado em Seu berço. — Ele olhou para Tony, procurando vê-lo. — Eu sempre soube que os homens são assim, desde que era menino. Mas, claro, a pedra me fez ver bem. Tapei a vidraça com um martelo e estava batendo nos canalhas... — Ele passou as mãos pelo rosto abatido e olhou para longe, os olhos injetados. — E passei a vida toda batendo neles, é o que acho, e odiando-os...
Tony disse, com muita brandura, amor e compaixão:
— Não, o senhor odiou o mal dentro deles, mas não os homens em si. Não
sabia?
Allan estava sacudindo a cabeça. Era evidente que algumas das palavras do filho tinham penetrado no tumulto negro de sua mente entorpecida.
— O mal é o homem e o homem é o mal. O pecado é o homem e o homem é o pecado. Se houvesse um Deus, o homem nunca teria sido criado.
Seu rosto lívido estava coberto de umidade. Tony pegou o lenço e o enxugou. O que poderia aliviar aquela angústia e dor? Tony pôs a mão sobre aquela cabeça abaixada e rezou. Mais uma vez ele enxugou o suor do pai, que parecia jorrar de sua alma, como sangue. Tony pensou na mãe e pensou com amargura. Ela agora só tinha um desprezo displicente pelo marido; os olhos dela olhando para ele eram calculistas e pensativos. E ela poderia fazer tanta coisa por ele!, pensou Tony, com pesar. Poderia consolá-lo. Ainda amaria o marido? Então, pela primeira vez, Tony começou a ter dúvidas. Um dia, talvez, ela o amara. O vício dele a revoltara? Não, era outra coisa. Cornélia queria alguma coisa.
“Estou imaginando coisas”, pensou Tony. Uma tal crueldade não é possível. Mas ele sabia que era possível para Cornélia. Ele se lembrou de uma carta que ela lhe escrevera antes do Natal, uma carta impiedosa e escarninha: “Seu pai está cada dia mais violento e incompetente. Não sei o que vai ser de nós. Ele é um tolo completo, como você sabe, meu bem”.
Ela acrescentara, com brutalidade: “Muitas vezes já ouvi dizer que os irlandeses são um povo alegre e animado. Não acredito nisso. São truculentos e sombrios... Eu os vi, da última vez que estivemos na Irlanda, bebendo seu grogue nos pubs, passando muito tempo sem falar e depois começando a gritar e às vezes a brigar, violentamente. A política — as ‘injustiças’ — os proprietários — qualquer coisa, contanto que pudessem extravasar seu espírito casmurro. E seu pai é tal e qual eles”.
O que tinha a ver Cornélia, realista e animada, com os celtas sepulcrais, que tinham um pé na terra, precariamente, e outro na profundeza do misticismo? Para ela, eram ridículos. Aquele com quem ela era casada era o mais ridículo de todos. Cada vez menos ela fingia se preocupar com ele.
“Se eu ao menos pudesse levá-lo daqui”, pensou Tony. “Seele pudesse ir para um retiro em algum lugar, onde se pudesse curar. Mas não havia retiro para um homem que perdera a fé”.
— A fazenda — disse Tony a Allan, com urgência. — Pai, está me ouvindo? A fazenda.
Mas o pai estava murmurando, a voz arrastada.
— Dolores, minha filhinha, meu amor, minha queridinha. Ela vai deixar o bebê conosco. Mas tem de voltar para a Inglaterra. O dever, diz ela. Responsabilidades. O marido foi embora... bom rapaz, o Dick. Espero que não morra. Mas vai morrer! Minha alma me diz. Foi ontem à noite que ouvi os espíritos, mas Cornélia riu e disse que eram as corujas. Por que a minha queridinha me deixou?
Tony virou-se para o pai. Tinha acreditado no que a mãe lhe dissera, que o pai desejava esse casamento, e insistira com a filha para se casar. Mentiras! Mentiras! A mãe tinha sempre de conseguir o que queria; nada podia desviá-la disso. A respiração de Tony tornou-se ofegante. Dolores fora enganada; ela desejara agradar o pai, fazer o que ele queria. Mas ele nunca o desejara. Não era de admirar que agora Dolores se mostrasse tão fria e retraída e não quisesse falar com o pai nem com o irmão.
— Dolores ama o senhor — disse Tony, cheio de uma compaixão desesperada. — Ela há de voltar. Confia no senhor. Está deixando o pequenino Alex com o senhor. O senhor tem de levá-lo para a fazenda.
Allan exclamou:
— Deus, Deus, Deus! — Alguém o estava sacudindo, mas ele estava de novo nas trevas. Alguém o chamava e ele lutou para responder. Estava clareando; o sol estava por toda parte e o som do vento da primavera nas árvores era o som do mar. Ele voltou a si com uma sobriedade de relâmpago, o coração abalado e um longo arrepio percorreu sua carne. O filho Tony estava ao lado dele, o rosto aflito virado para ele, as mãos nos ombros do pai.
— O que é, pai? — perguntou ele. — Por que gritou? Está me ouvindo?
— Estou, estou ouvindo — disse Allan, debilmente. O rosto dele estava pingando. Tony o enxugou com carinho.
— O senhor deve ter adormecido por um instante, pai — disse ele.
O pai invocara Deus num tom da maior extremidade, em seu pesadelo. Tony passou o braço pelos ombros do pai e pensou: “Ele chegou quase ao fim”.
— Eu estava falando de Dolores — disse. — Ela vai deixar o pequenino Alex
com o senhor.
Allan empurrou o braço do filho, com violência, e fez menção de se levantar.
— Não! — exclamou. — Ela não pode voltar! Todo o maldito mar está infestado de submarinos! A embaixada alemã já escreveu advertindo os americanos idiotas para não tomarem os navios britânicos, mas eles continuam, achando que é muito divertido e empolgante. Tony! Dolores tem de ficar conosco.
Tony franziu a testa, aflito.
— Mas, pai, ela veio no Lusitania e volta nele amanhã. Vai ser comboiado, como todos os outros navios britânicos. É bem seguro. Ora, dezenas de americanos viajam nele... os alemães não ousariam...
— Os alemães! — exclamou Allan, mais excitado a cada momento e já quase violento em sua paixão de medo. — Quem é que falou nos alemães? Precisamos de um “incidente”. Você não compreende? O povo americano não quer a guerra, mas é preciso se fazer alguma coisa para que ele a deseje. Estou lhe dizendo, tive um sonho! — Ele se levantou e cambaleou. Tony também se levantou, pegando-lhe o braço. —O Lusitania não será comboiado, desta vez! Desta vez, não!
Tony disse, implorando:
— Pai, pai, escute. Pensa que os alemães afundariam o Lusitania... Deus nos livre disso!... Só para nos fazer entrar numa guerra contra eles? Não faz sentido. Pense um pouco. Teriam mais motivos para não afundá-lo.
Allan estava torcendo as mãos e respirando como quem acaba de ser salvo da morte. Olhou para o filho com os olhos alucinados.
— Já tentei lhe explicar, mas não adianta. Você só escuta com os ouvidos, Tony. Se um navio grande como o Lusitania for afundado, com muitos americanos, sim, será um torpedo alemão. Mas quem dará a ordem para lançar esse torpedo? O governo alemão, sozinho? Não, estou dizendo! Serão muitos outros, aqui nos Estados Unidos, na Inglaterra... homens que você não pode ver, nunca verá, homens que estão a salvo e tramando tudo isso há muitos anos, homens fanáticos... — Ele deixou cair os braços e sacudiu a cabeça, várias vezes. — Não adianta. Você nunca vai compreender, a despeito de tudo que lhe disse, todos esses anos.
— Acredito no que o senhor me disse; o senhor tinha a prova — replicou Tony, assustado pelo pai. — O que vamos fazer? Pedir a Dolores para não ir? Mamãe me disse que Dolores tem de voltar para a Inglaterra. Só podemos rezar.
Allan olhou em volta, devagar, para a terra e depois para o céu. Depois disse, numa voz estranha da maior amargura:
— Para quem? Para o quê?
Tony ficou calado e Allan examinou-o com os olhos apertados.
— Não, eu não devia ter-lhe perguntado, filho. Você tem as respostas-padrão, não é? Ou pensa que eu lhe daria as costas? Tony, não posso falar com Dolores. Você tem de falar; ela é sua gêmea. Diga que ela não pode ir, em nome de Deus.
Tony encontrou a irmã Dolores na saleta, com o filho de três anos no colo. Uma ama estava ali perto, enquanto Dolores ninava e falava baixinho com o menino, beijando-o e pedindo que fosse muito bonzinho “enquanto mamãe vai embora por um instante”. O menino escutou, obediente, os olhos castanho-claros tão sérios e brilhantes fixados na mãe. Ninguém reparou em Tony, por alguns minutos. Ele pensou que nunca tinha visto um quadro tão bonito, sob aquele princípio de crepúsculo. Dolores, num roupão comprido e amplo, azul, tinha soltado o cabelo claro, amarrando-o para trás com uma fita azul. Para Tony, ela parecia a personificação da Madona, toda juventude, graça e encanto, debruçada sobre o filho, com ternura, a boca suave mas severa com ansiedade por ele, os olhos cheios de amor.
— Você vai ficar tão feliz com a vovó e o vovô — dizia ela. — E Alex tem de ficar longe dos horríveis zepelins e depois vai voltar para casa, para a mamãe e o papai. — A voz dela já tinha adquirido uma entonação inglesa e Tony refletiu que a irmã se afastara dele. Para todos, menos o filho, era fria, distante e indiferente, como se nada lhe interessasse no mundo.
Ele então falou:
— Um menino muito bonzinho, Dolores. Só o vi uma ou duas vezes.
Dolores levantou os olhos e ele viu a doçura nos olhos dela se endurecer. Tony agachou-se e estendeu os braços para Alexander.
— Não quer vir comigo?
O menino vacilou, fitando o rapaz estranho com seu hábito negro. Espiou a mãe. Ela não se mexeu, embora afrouxasse os braços. Nem o empurrou, nem o prendeu, e o rosto dela estava fixo e inexpressivo.
Venha, meu bem — disse Tony, com urgência.
O menino tornou a hesitar e depois sorriu repentinamente e o rostinho esguio ficou radiante. Ele saltou do colo da mãe e correu para Tony. Com timidez, passou os braços pelo pescoço do tio. Tony se levantou com ele, abraçando-o muito, e olhou para Dolores, por cima da cabeça do menino. Estava muito comovido para falar. Mas Dolores disse à ama:
— Pode levar Alexander daqui a alguns minutos.
Sua voz estava fria como os olhos. Ela dobrou as mãos nos joelhos e olhou para as janelas, que ficavam com tom profundo de turquesa.
Tony afagou o sobrinho e beijou-o. Mexeu no cabelo fino e castanho na cabeça do garoto.
— Que menino tão bonitinho — disse, sem saber o que fazer. — Alex. Virei vê-lo muitas vezes.
Alexander aninhou-se junto dele e depois mexeu-se, numa inquietação infantil, querendo voltar para a mãe. Tony o deixou no chão, com relutância, e o menino correu para Dolores, que o entregou à ama. Ela esperou até que os dois saíssem da sala e depois disse, ainda olhando para as janelas:
— Imagino que tenha vindo se despedir, Tony.
Seu perfil era sem vida e impenetrável como o mármore, à luz da tardinha.
Ele sentou-se ao lado dela e procurou o cachimbo. Levou bastante tempo para enchê-lo e acendê-lo. Depois, fumou uns instantes e então disse:
— Não. Vim pedir-lhe que não volte para a Inglaterra, até acabar a guerra.
Ela virou-se para ele devagar e sorriu, de leve.
— Isso está fora de cogitação. Dick só tem um tio senil e um primo distante.
Nenhum deles podería tomar conta dos negócios na Inglaterra. Sou necessária lá. Não posso fugir como uma covarde. Há o pessoal, nossos colonos, nossos dependentes. É impossível abandoná-los. Dick confia em mim. — Ela alisou uma dobra do roupão com os dedos alvos. — Embarco amanhã, como você sabe, no Lusitania. — Seu sorriso tornou-se meio zombeteiro, então. — Por que algum de vocês há de ter medo? O Lusitania foi comboiado por destróieres britânicos na viagem de vinda; será comboiado na volta.
Tony disse, em seu desespero:
— O pai me disse hoje que acha que desta vez não será comboiado.
Dolores riu-se, com dureza.
— Que ridículo! Como ele pode saber? Eu soube que vai haver muitos americanos a bordo. Quem ousaria matá-los? A Alemanha? Tony, isso parece uma grande tolice.
Tony ergueu as mãos e as deixou cair nos joelhos.
— Tive muitas conversas com o pai e ele está convencido de que há alguma coisa se tramando no mundo, alguma coisa mortífera. E que para consegui-la, eles não vão parar diante de nada.
— Quem são “eles”? — perguntou Dolores, com um ligeiro tom de escárnio. — O pai mudou para pior nos últimos anos. E perseguido por temores irreais. Talvez devido à bebida constante; deve estar tendo alucinações. Se você tratasse de seus deveres, Tony, ajudaria o pai a vencer o alcoolismo e suas ilusões pouco saudáveis. — Ela afastou de leve a dobra do roupão. — Estou muito preocupada mesmo; o pai chegou a convencer Dick de suas fantasias.
— Seu marido provavelmente tinha seus próprios motivos para suspeitar de alguma coisa — disse Tony, alertado. — Afinal, é membro da Câmara dos Lordes.
Mas Dolores voltara à sua indiferença fria.
— Na verdade, não sei. Não me preocupo com essas coisas.
Tony disse com uma paixão involuntária:
— Dolores, você se interessa por alguma coisa? — Ele se levantou e se aproximou dela. — O que é que há com você? Por que se distanciou assim? Está vivendo uma espécie de vida de morte...
Ela se sentiu insultada. Puxou mais o roupão, rejeitando-o.
— Deixe de ser teatral, Tony. Parece que fui muito dócil e boazinha para todos. 0 que mais vocês querem?
Ele estava tão aflito que, a despeito de sua atitude, pôs a mão de leve no ombro da irmã.
— Dolores, você vai negar tudo de que eu possa acusá-la. Portanto, só vou lhe fazer uma pergunta: você ama seu marido?
Ela não se mexeu, sob a mão dele, mas toda sua carne o repudiou. Ela olhou-o e Tony pensou que nem um rosto de morto podia estar tão distante quanto aquele.
— Claro que não — disse ela. — Nunca o amei. Gosto muito dele, mas não o amo. No entanto, isso interessa a alguém? Acho que sua pergunta foi insolente.
Mas alguma coisa se agitava nos olhos dela e Tony viu que era um
sofrimento sem fim.
— Você algum dia amou outra pessoa, Dolores?
Ela respondeu, num tom muito natural:
— Amei, sim, Miles Peale.
Ele afastou a mão do ombro dela, com rapidez.
— Miles Peale! Miles Peale! — Ele sacudiu a cabeça, aturdido. — Não posso acreditar. Pensei que você o detestasse. — Ele se sentiu fraco e enjoado.
Dolores sorriu, com amargura.
— Eu também pensava. Mas o tempo todo eu o amava. Planejei me casar com ele. Aí o vovô morreu. Papai estava numa confusão e ninguém podia conversar com ele, disse a mamãe. Ele já tinha problemas demais. Ela disse que, se eu contasse a papai sobre o Miles e eu, seria a última coisa que ele poderia suportar. Ela me convenceu de que o pai queria que eu me casasse com Dick. Não foi preciso muita coisa para me convencer, pois algumas semanas depois que o vovô morreu, o pai reclamou dizendo ser evidente que eu ficaria solteirona. Confesso que ele parecia confuso. Eu — ela parou um instante e Tony a viu engolindo com dificuldade — amava muito o pai. Não podia aumentar os problemas dele. Casei-me com Dick para poder me afastar do Miles, de quem o pai não gostava: ele nunca daria seu consentimento. E ele queria mesmo que eu me casasse com Dick. Uma noite, quando ele tinha andado bebendo, fui procurálo na biblioteca, para ajudá-lo, e ele me gritou que eu poderia me casar com Dick, se quisesse, e que me danasse. Foi isso que ele disse, Tony.
Tony sentou-se outra vez, pois estava com os joelhos tremendo. Olhou para a irmã, que iria embora no dia seguinte. Não pôde se controlar e disse:
— Dolores, você não pode partir acreditando numa mentira, mas a verdade pode ser terrível demais para você. Será que devo contar?
A curiosidade modificou-lhe os traços.
Ele rezou para estar fazendo o que era direito.
— Você não pode partir acreditando em coisas cruéis sobre nosso pai. Dolores, o pai nunca desejou que você se casasse com Dick. Lembre-se dos meses depois da morte do vovô. O pai estava quase fora de si, de tantas preocupações. Sabe, ele nunca teve muita confiança no próprio poder; sempre teve medo, a vida toda. Mal sabia o que se passava na casa dele. — Ele parou, inteiramente abalado. — Acho que nossa mãe usou esses meses para seu proveito. Dolores, o que é que ela lhe contou sobre Miles Peale?
Dolores estava muito branca.
— Eu disse à mamãe que o amava e queria me casar com ele. E ela disse: “Bem, se isso lhe dá prazer, saiba que seu pai vai cair morto se você um dia mencionar a ele o nome desse rapaz. Ele o detesta tanto quanto detesta o pai dele”.
Tony se levantou e começou a passear pela sala.
— É verdade que o pai não gostava do Miles. Mas não o odiava. Isso ficou provado quando lhe deu um cargo na ferrovia e as responsabilidades que lhe delegou. O pai ama você, Dolores. Se você quisesse se casar com um selvagem ele daria seu consentimento, se o convencesse de que isso a faria feliz. Como você pôde duvidar dele, conhecendo-o como conhece e sabendo que era a filha
preferida?
Dolores só pôde sussurrar, olhando para o irmão muito aflita:
— Pensei que ele quisesse que eu me casasse com Dick. Pelo que a mamãe disse, pensei que isso o deixaria feliz, quando ele estava tão triste e desesperado com tudo. Fiz isso pelo pai.
De repente, ela pôs a mão na boca e deu um soluço seco.
— Agora sei o que ele queria dizer, há dois anos, quando me perguntou por que fiz isso! Eu não compreendi. Fiquei ofendida. — As lágrimas encheram seus olhos, ela se levantou e pegou o braço do irmão. — Tenho de ir já ter com ele e contar sobre a mamãe e tudo.
— Não — disse Tony, inflexível. — Agora isso é uma coisa que você não pode ousar fazer. Por causa dele. Acho sinceramente que isso o mataria. Você não pode nem falar isso com a mamãe. Deve guardar para si e talvez isso lhe ajude a suportar sua infelicidade.
Mas Dolores estava chorando incontrolavelmente, torcendo as mãos.
— É, não posso contar a ele, você tem razão. Não fiquei na festa hoje... não suportaria ver o Miles. Nós nos amamos. Não sei o que fazer!
— Você pode ir procurar o pai hoje e dizer a ele que o ama e pode ficar aqui até acabar a guerra.
Ela começou a andar de um lado para outro na sala, como fizera o irmão, sacudindo a cabeça até que o cabelo lhe caísse pelo rosto, numa cascata de agonia e desespero. Tony ficou olhando-a ate não suportar mais ver aquilo. Foi para junto da irmã. Abraçou-a e puxou a cabeça de Dolores para seu ombro.
— Dolores, Dolores — murmurou. — Irmã querida, menina querida.
Ela agarrou-se a ele, chorando com tristeza, o cabelo esvoaçando emaranhado.
— Ah, Deus! — balbuciou. — O que posso fazer, o que posso fazer?
— Você me disse ainda agora que gosta do coitado do Dick. É um bom sujeito, Dolores, e o melhor dos maridos e pai. Pode se lembrar disso. Você pode cumprir seu dever. Eu sei, sinto que você teria sido infeliz, com Miles, no final. Talvez você tenha recebido uma grande graça.
Mas ela rolou a cabeça no ombro dele.
— Não. Nós teríamos sido felizes. E eu poderia ter impedido... alguma coisa que ele tem em mente.
Tony ergueu o rosto dela.
— O que quer dizer?
As faces da irmã estavam cheias de lágrimas.
— Você não sabe, Tony? Não é uma coisa que eu possa provar, mas o Miles... quer o que o DeWitt tem. O pai e a ferrovia estão em perigo. Sei disso, com todo o meu coração.
Perigo. Tony largou a irmã e lhe deu as costas. “Mas não há nada que possamos fazer”, pensou. “Mas”, pensou depois, “sempre há a minha mãe, DeWitt e os cinquenta e um por cento de ações nas mãos da família.” Ele voltou-se para Dolores e tentou consolála com esses fatos. No entanto, ela sacudiu a cabeça,
calada.
— Quando alguém deseja alguma coisa como o Miles deseja, sempre o consegue, Tony — disse ela, depois de uns instantes.
Ela afastou o cabelo do rosto, resolvida.
— Vou seguir o seu conselho, claro, e dizer ao pai que sempre o amei. Mas, Tony, tenho de voltar para a Inglaterra. Nada pode me convencer do contrário. Cuide do Alex. Você pode fazer tanto por ele e ele precisa de você... nesta família. Não se pode permitir que a mamãe o... corrompa.
No dia 7 de março de 1915 o Lusitania, desta vez misteriosamente sem comboio, foi atingido por um torpedo alemão ao largo do litoral verdejante e risonho da Irlanda, com a perda de mais de mil vidas, inclusive cento e vinte e quatro cidadãos americanos.
Entre os mortos estava lady Dolores Gibson-Hamilton. Uma carta do Ministério da Guerra britânico a aguardava em casa, informando-lhe, com pesar, que o marido Richard Gibson-Hamilton, morrera de ferimentos “em algum lugar na França” vários dias antes. Ela afundou nas águas só se lembrando de ter-se reconciliado com o pai e pensando no filho.
46
Patrick Peale voltou do John Hopkins Hospital num dia muito quente de junho. Contara à mulher uma das poucas mentiras que jamais contara, não para lhe poupar aflição, mas porque não queria revelar a ninguém os temores que tinha por si. Ele voltou a Portersville abatido e mirrado e, embora o dia estivesse muito quente, teve vários tremores, em que apertava os braços contra o corpo, convulsivamente.
Ele estava com apenas sessenta e um anos, mas se tornara um velho nos últimos dois meses. Laura o notara e insistira para que fizesse exames médicos, o que ele recusara, com irritação e com o desprezo costumeiro que agora sempre exprimia por ela. Mas oito meses antes ele sentira medo. Tivera um forte resfriado em fins de outubro, de que não conseguira se livrar; ficou com uma forte tosse, de que não se livrou nem mesmo quando veio o calor. Quando, num dia em fins de março, ele tossiu e cuspiu sangue, foi acometido de um pavor terrível. Tuberculose? Receava consultar os médicos. Depois, ficou obcecado com seu medo particular. Até então, sua única obsessão inclemente fora Allan Marshall. Ele acrescentou a nova à original e, com seu raciocínio mesquinho e confuso, característico, culpou Allan pelo invasor misterioso de sua vida.
Ele andara lendo muito sobre uma nova ciência: a medicina psicossomática. Sempre cuidando muito da saúde, com a absorção concentrada de quem se ama e acredita ter importância e o maior valor, ele acompanhara todos os progressos médicos apresentados ao público. Estava convencido de que todo o ressentimento desesperado e a raiva crônica em que vivia — tudo provocado por Allan Marshall — provocaram “psicossomaticamente” a doença sem nome que o afligia. Mas, ainda em março, temeu submeter-se a um exame. Comprou volumes sobre o tema da tísica. Procurou o escarro, os suores noturnos, a perda de peso, a febre à tardinha. Tomava sua temperatura. Ficou aliviado ao ver que, embora estivesse emagrecendo, não portava nenhum dos outros sintomas. Só uma tosse, disse ele consigo, dando graças. As tosses muitas vezes custavam a passar, especialmente num homem da idade dele. O peito lhe doía muito. Neurite, provavelmente.
Não cuspiu mais sangue até fins de maio, quando então cuspiu muito. Ficou muito assustado. Aguardou mais uns dias e a tosse foi ficando alarmantemente
mais áspera e seca. Foi aí que ligou para o John Hopkins, disse à mulher, taciturno, que tinha negócios em Nova Iorque e foi para Baltimore.
0 veredicto foi rápido e seguro: câncer dos pulmões, um câncer muito extenso, para o qual não havia nada a fazer. Os médicos lhe deram uma caixa de pílulas cinzentas, olhando para ele com pena. Também lhe deram uma receita ilimitada para morfina e lhe informaram que não hesitasse em usá-la. Patrick, aturdido, a princípio não quis acreditar. Era impossível. Ele não bebia nem fumava; sempre levara uma vida impecável. Tinha desistido do cachimbo muitos anos antes.
— É impossível — disse aos médicos, olhando para eles apavorado. — Sempre fui um homem bom, segundo os meus critérios.
Eles o acharam digno de pena, mas um pouco burro. Um deles disse:
— Se as doenças só atacassem os iníquos, teríamos um tal renascimento religioso que as igrejas não bastariam para acomodar o povo.
Mas Patrick só pensava em Allan Marshall. Disse aos médicos:
— Fui morto, assassinado, tão certamente quanto se me tivessem atirado uma bala.
Ele chegou em casa com muitas dores e fraco e foi logo para a cama. Mandou chamar Laura, que atendeu imediatamente. Lá estava ele deitado nos travesseiros, mirrado e parado, os grandes olhos castanhos, tão sérios em sua juventude, arregalados com a agonia e o medo dos que estão mortalmente abatidos. Quando Laura entrou no quarto, ele olhou-a com uma acusação misturada ao ódio, à raiva e ao medo. Foi dizendo, antes que ela pudesse falar na sua aflição por ele:
— Vou morrer. Com sorte, terei dois meses de vida.
A acusação ardia nos olhos dele enquanto ela caía numa poltrona próxima. Ela não conseguiu falar, pois estava com a garganta apertada e tremendo violenta e incontrolavelmente.
— Allan Marshall me matou — acrescentou e fechou os olhos para não vê-la.
A casa alta e fina estava muito fria, pois nem o sol de junho conseguia penetrar por aquelas paredes lúgubres ou invadir esse quarto estreito com os móveis escuros. Patrick foi acometido de um espasmo de tosse. Então, o sangue lhe aflorou aos lábios, mas ele estava por demais desesperado e aturdido para enxugá-lo. Sabia que estava ali; tinha certa satisfação, algum contentamento maldoso, por saber que Laura testemunhava os sinais de sua breve decomposição.
Laura soltou uma exclamação e ele percebeu que ela sentia. Notou que ela estava de pé junto a ele e passando um lenço por sua boca. Virou a cabeça para o lado e gemeu:
— Deixe-me em paz.
Sentiu uma dor aguda no peito, onde pôs a mão mirrada.
— Patrick, Patrick! — ela estava chorando. — O que é que há? O que quer dizer? Ah, Deus, por que está sangrando? Tenho de chamar o médico...
Dela emanava um perfume de lilás. Ele ficou enjoado com o aroma e contraiu as narinas.
— Eu disse — repetiu ele, fraco — que Allan Marshall afinal conseguiu me
matar.
“Está doente e louco”, pensou Laura, aflita.
— Tenho de chamar o médico — repetiu ela, mas o marido levantou a mão.
— É tarde — replicou. — Tarde para qualquer coisa. Estou com câncer nos pulmões. Eles me disseram ontem, no John Hopkins. Fui para lá e não para Nova Iorque como lhe disse. — Ele apontou para a mesinha ao seu lado. — Morfina, para minhas dores.
Não havia qualquer dignidade nele, nem compaixão pela mulher, nem desejo de poupar alguém. Só havia o pavor, a indignação, o ódio, por aquilo ter-lhe acontecido. O fariseu — enfrentando a realidade, destituído das teorias precisas e os dogmas e o orgulho, cara a cara com a morte majestosa, que não se aplacava com exclamações virtuosas e a importância espúria de homens como Patrick Peale — só conseguia gemer sozinho e ansiar pela vingança.
Laura, desfeita pela compaixão, sofrendo o seu próprio pavor, atirou-se na poltrona.
— Ah, Patrick — murmurou, frenética —, sei que não tem estado bem, há tempos. Queria que você fosse se consultar. Ah, Patrick, ah, meu bem. Eles... têm
certeza?
Como se estivesse resoluta e propositadamente atirando pedras nela, ele lhe deu os fatos. Estava com a voz mais forte. Observou o rosto chocado e os olhos cheios de lágrimas, satisfeito. Ela que sofresse, também. Laura tornara sua vida bastante infeliz. Uma mulher tola, débil mental, inexpressiva, histérica e sem cabeça! Quantas vezes ela se opusera a ele no passado; quantas vezes, havia muito tempo, ela lhe implorava para não “envenenar” o espírito dos filhos contra aquele desgraçado imundo. Marshall. Como implorara a ele para convencer Miles a não se casar com Ruth Purcell e Mary a não se casar com DeWitt Marshall. Ela se intrometera em seu caminho, onde quer que ele fosse. Ela se recusara a receber Norman DeWitt e quando ele insistira, tratara o convidado friamente e com um desagrado evidente. Ele, Patrick, agora não se lembrava de nada acerca da mulher que não fosse insolência e tolice feminina. Durante anos ela se recusara a lhe entregar os seus dezesseis por cento das ações da Interstate.
— Eles têm toda a certeza — disse ele, então. — Não há nada a fazer, a não ser aliviar a dor. Acho que disseram que eu podia viver uns dois meses.
Laura tapou o rosto com as mãos e chorou alto. Patrick, pobre Patrick; Patrick tão frio, calado, odiando, sombrio. Seus soluços foram profundos, entrecortados. Patrick remexeu-se, inquieto.
— Ora, Laura — disse, no seu tom antigo, de desdém e repúdio —, não vamos ficar histéricos, como sempre. As pessoas histéricas nunca sentem de fato. Pelo menos poupe-me superficialmente.
Ela deixou as mãos caírem do rosto molhado e olhou-o, sem poder falar. A compaixão parecia um fogo em seu íntimo. Não podia se aproximar dele para consolá-lo; não ousava tomá-lo nos braços. Os olhos dele, amargos, zombavam de Laura, gostando do seu sofrimento, encontrando satisfação na dor que ela sentia. Laura fechou os olhos, pois não podia suportar aquela luz no olhar de Patrick.
— Meus filhos hão de se lembrar — dizia ele. — Meus filhos hão de me
vingar.
“Ele está louco; é incrivelmente vingativo”, pensou ela, a despeito de sua compaixão. Mas não podia deixar que ele morresse com aquela obsessão má em sua alma. Não podia deixar que usasse os filhos, conforme planejara havia muito, para atingir Allan Marshall. Allan no sanatório, para onde fora mandado depois do colapso que tivera ao saber da morte da filha.
— Tenha pena — balbuciou ela, implorando. — Tenha pena de si mesmo, Patrick. Allan pode tê-lo prejudicado um dia, todos nós nos prejudicamos. Alguns por crueldade, outros por necessidade, outros por ganância ou oportunismo. Pense em Allan agora. Receiam que ele esteja morrendo; está fora de si, de sofrimento. Dolores, a pobre Dolores. O menino... sem pais. Patrick, você não pode... não pode... continuar a odiar assim, levando isso consigo... Não pode fazer isso a si mesmo, não pode continuar a se detestar assim.
Ele olhou para ela com uma indignação e repugnância sombrias.
— Você está louca? — perguntou. — Mas também nunca foi inteligente. Eu me “detestar”! Isso é porque você tem uma compreensão muito limitada, uma existência abrigada e uma herança má. Disseram-me que sua mãe era uma tola. Foi bom ela não viver e ter outros filhos, para povoar o mundo com mais debilidade.
Os olhos cinzentos de Laura ficaram enormes, olhando para ele, e seu corpo esguio enrijeceu. Por um momento ela se esqueceu de ter pena dele e sentiu em si o ardor do nojo. Como ele podia, mesmo nessa situação, ser tão cruel, tão desprezível e se achar tão virtuoso? Dizia-se que os mortos ganham certa compreensão, certa misericórdia pelos outros, certa ternura e sabedoria. Mas lá estava o marido — e estava como sempre fora — e todo o seu egotismo contorcido ardia mais vivido do que nunca.
“Mas também”, pensou Laura, sua compaixão voltando, “ele tem tanto medo. Sempre fala em Deus; frequenta a igreja com uma regularidade fanática. Mas nunca acreditou em Deus, nenhuma vez na vida. É ateu completo.”
Ele a estava dispensando com um gesto.
— Chame o Miles e o Fielding — disse, num tom de quem fala com desprezo para o mais humilde dos empregados. — Eme deixe sozinho um pouco. Acho que quero dormir.
Mas ele não dormiu. Quando ficou só, enquanto Laura telefonava para os filhos e chamava discretamente o médico da família, que prometeu providenciar enfermeiras e ir ver Patrick no dia seguinte, o moribundo de repente encostou os nós dos dedos contra os dentes e de sua garganta começou a brotar um gemido doentio. Ele o abafou; o gemido surgiu, de novo, e de novo. 0 camisolão ficou úmido e pegajoso em sua carne trêmula. As cortinas estavam bem abertas nas janelas estreitas e ele via o crepúsculo vermelho iluminando as montanhas escuras. Começou a olhar fixamente para aquilo e pensou: “Estou só. Sempre estive só. Ninguém jamais gostou de mim, em qualquer época de minha vida”. Ele murmurou orações como um sortilégio, uma súplica não pela misericórdia, mas por uma explicação. Por que esse terror havia de acontecer com ele e não com seus inimigos? Ele se contemplou nos travesseiros, um homem bom e virtuoso, inteiramente abandonado ao silêncio, à morte e à falta de amor, e foi levado a uma autocomiseração extremada.
Os filhos entraram na casa e Laura os recebeu, examinando as fisionomias para ver se encontrava algum sinal da dor real que, ela esperava, eles sentissem pelo pai. Mas viu logo que Fielding, excessivamente solene, estava intimamente excitado. Laura olhou para Fielding e sentiu um calafrio, fechou os olhos e depois olhou para Miles, que a olhava com solicitude e isso a espantou e agradou; não sabia que essa solicitude era por ela mesma, nem sabia que, de todos os seus filhos, só Miles não a considerava uma boba ou insignificante. Miles, o displicente, o elegante, estava pensando: “É duro para você, minha velha, mas melhor para você, no final das contas. Não vai perder nada”. Como Fielding, beijou o rosto da mãe, mas seu beijo era sincero. Ele disse:
— Então, é verdade?
Ela meneou a cabeça e sentou-se, fraca, no estreito banco forrado de vermelho diante da pequena lareira do hall. Depois olhou para os filhos com uma expressão séria e suplicante.
— Sejam bons com ele — sussurrou. Sejam misericordiosos. — Consolem-no.
— E horrível, horrível — disse Fielding, encostado na parede, o corpo comprido e desengonçado. Puxou o nariz amarelado e olhou de esguelha para o irmão. — No máximo dois meses, não foi o que a senhora disse, mãe?
— Às vezes, mesmo os melhores médicos erram — declarou Miles, pondo a mão no ombro da mãe e olhando para o irmão de cara fechada. Seus olhos eram uma faísca azul e fna na penumbra do hall. — Vamos fazer o que pudermos. Sempre procuramos agradar a ele, a senhora sabe.
— Ele nunca soube que o achávamos um... — começou Fielding e depois parou, diante de outro olhar de Miles.
Laura torcia as mãos, com força.
— Eu queria que vocês tivessem conhecido seu pai como eu conheci, quando era mocinha. Tão sério, tão amável, tão idealista. E tão, tão correto. Acho que foi a correção dele que na verdade... na verdade lhe trouxe problemas, mais tarde, e distorceu seu caráter original. Ele não sabia fazer conchavos; nunca pôde aceitar as pessoas como elas são.
Ela engoliu e parou.
— Se alguém se opusesse a ele, considerava essa pessoa um inimigo pessoal, que deveria ser destruído. O inimigo se tornava não só inimigo do pai, mas inimigo de Deus e dos anjos — disse Miles. Ele pôs a mão sobre os dedos agitados da mãe e os apertou. — A doença comum e perigosa dos idealistas. A história está cheia das cidades que eles incendiaram, das pessoas que enforcaram, das crianças que deixaram órfãs, dos campos que arrasaram. — A voz de Miles era pensativa, mas dura. — Tio Allan se opôs a ele, imagino. Portanto, tio Allan tem de ser destruído, como inimigo do povo. Eu sei. Tenho certeza de que é sobre isso que ele quer nos falar... o tio Allan, pobre-diabo.
Laura olhou para o filho mais velho com grande assombro.
— Ah, Miles eu não sabia que você...!
Ela parou e chorou, copiosamente. Fielding estava aborrecido e impaciente, bocejando. Mas Miles observou a mãe com mais solicitude. Sabia o que desejava; estava resolvido a consegui-lo, a qualquer custo.
Não obstante, tinha pena de Allan Marshall, que estava sofrendo, que afinal achara o mundo feroz demais para ele. “Nunca será demais para mim”, pensou Miles, “pois nunca me permitirei ser apanhado em suas emoções. Eu amava Dolores; imagino que tio Allan, Tony e eu fomos os únicos que realmente
choramos por ela. Mas tenho de viver a minha vida. Não tenho tempo a perder.”
A mãe dele, a despeito de tudo, amava os filhos, por isso ele sentia pena. Talvez, se ela não tivesse tido filhos, tivesse abandonado o marido intolerante e preconceituoso tempos atrás, poderia ter encontrado alguma felicidade. Ele disse:
— E Mary? Já sabe?
— Não, tivemos de pensar no bebê — respondeu Laura. — Mais tarde, conto a ela que o pai está passando muito mal e talvez eu o convença a mantê-la na ignorância.
Miles comentou para si que duvidava de que Mary sentisse algum choque ou pesar. Laura estava afastando o cabelo escuro e seu rosto reluzia nas sombras, puramente cinzelado e branco. Ela tocou na manga de Miles, com timidez:
— Acho que, de certo modo, estou começando a compreendêlo, meu bem.
Mas ela não olhou para o filho mais moço, entediado e de olhos apertados. Fielding pensou: “O Miles pode ‘representar’, é o diplomata perfeito; mas para que desperdiçar isso com uma mulher inteiramente alvoroçada e insignificante?” Fielding tornou a puxar o nariz e disse:
— Bom, vamos acabar com isso? Tenho um jantar com Cynthia.
Laura, como se tivesse cometido alguma ofensa, levantou-se imediatamente. De repente, de pé ali, alta, esguia e estranhamente jovem e calada, surgiu nela uma leve semelhança com Dolores e Miles sentiu uma pontada violenta. “Vamos, controle-se”, pensou, com uma raiva fria de sua loucura. Mas subiu com o irmão, o passo firme. “Só um tolo briga com os seus acordos”.
Miles jogou fora o cigarro antes de entrar no quarto do pai com o irmão. Um sedativo por fim acalmara Patrick; o medo estava muito menos dominante; ele conseguia usar a cabeça e sabia que tinha de usá-la agora. Viu os filhos entrarem e seus olhos ficaram atentos, no rosto desesperado. A despeito do que Laura lhe dissera loucamente, anos antes, ele acreditava firmemente que os filhos o amavam, respeitavam e acatavam sua palavra, em todos os momentos. Ele não fora um pai justo e dedicado? Os filhos algum dia tinham discutido com ele, ou ficado contra ele? Não, em todas as ocasiões eles tinham concordado com as opiniões dele, sérios. “Belos rapazes, meus filhos”, pensou Patrick Peale, “homens de princípios, seriedade e ideais.” Ele estendeu a mão primeiro para Miles, que a apertou brevemente, e depois para Fielding, que, com um gesto fingindo emoção e falta de jeito juvenis, de repente se abaixou e beijoulhe a testa.
— Sua mãe já contou a vocês? — perguntou Patrick, a voz fraca.
Miles disse:
— Contou. E não há nada que eu possa dizer, a não ser que sinto terrivelmente.
Fielding falou, em voz alta:
— Talvez não seja verdade! Temos de acreditar que não é.
Miles apertou os lábios outra vez e sentou-se, enquanto Patrick olhava para o filho caçula com um carinho triste.
— Parece que é verdade — disse. — Mas não os chamei para falar de mim... Queria conversar com vocês. Tenho tão pouco tempo.
Ele colocou as mãos sobre o peito e então seus olhos ficaram ainda mais atentos sobre os filhos.
— É difícil para eu falar. Vou tentar ser breve. Vocês conhecem a história das famílias DeWitt e Peale. Sabem que seu avô, Stephen DeWitt, foi roubado de sua posição, sua casa e seu dinheiro pelo irmão, Rufus. A lei pode não concordar, a lei do homem, com o fato de que os netos de Stephen DeWitt foram roubados de sua herança natural. Mas existe uma lei moral, que, no final, se aplica inexoravelmente.
Miles e Fielding ouviram com a atenção devida e solene, contudo Miles estava aborrecido com o fraseado pomposo e antiquado do pai. Por que é que o pobre-diabo não dizia logo: “Quero que vocês tomem todas as posses daqueles que eu detesto. E não me importa como consigam, desde que eu tenha a minha vingança.” Mas isso seria honesto demais para Patrick Peale.
Patrick levantou as mãos e começou a enumerar:
— Tenho dezesseis por cento das ações da Interstate, que adquiri por intermédio de sua mãe. Você, Miles, por meio de sua mulher, tem controle de quatro por cento. Tenho mais cinco por cento, além dos dezesseis por cento originais. Isso perfaz vinte e cinco por cento em nossas mãos. Diante... dos... cinquenta e um por cento deles. — Ele parou. — DeWitt será presidente um dia desses, talvez breve, com esses cinquenta e um por cento. Claro, ele é casado com minha filha Mary.
Miles disse:
— Naturalmente, não podemos contar com Mary. Afinal de contas, ela apoiaria o marido e os outros Marshall.
Patrick fez uma careta. Teria preferido que o filho não fosse tão franco. Respondeu:
— É verdade. Receio que Mary se tenha tornado muito egoísta e oportunista; isso vem pelo contato com aquela gente. Só podemos esperar uma oposição de parte de Mary, portanto não falaremos dela. — Ele hesitou e depois tossiu. — Então, são vinte e cinco por cento nas mãos dessa família. Também temos muito dinheiro. Sua mãe herdou muito dinheiro e investimentos da tia dela, Lydia Purcell, e também do tio, Rufus DeWitt, que aparentemente, e atrasado, procurou reparar as coisas. Os meus bens pessoais não são desprezíveis e tenho o controle dos de sua mãe. Sua mãe, como vocês sabem, não entende de finanças e entregou tudo a mim.
“Devido a suas insistências, depois de suas infindáveis impertinências, recriminações e acusações, e porque ela queria paz para a família, por causa dos filhos”, pensou Miles. “E você a fez se sentir culpada.”
Patrick agora estava falando com a voz mais forte e rápida:
— A Interstate na verdade nos pertence! E meus filhos devem possuí-la! Os detalhes deixo com vocês. Quem pode se opor a vocês? Um coitado aleijado, DeWitt Marshall, que também é muito jovem. Um homem inconsciente e alcoólotra, muito doente, Allan Marshall, que provavelmente nunca mais será muito poderoso nos negócios da companhia. Dinheiro é poder! Vocês o possuirão. Miles, você também tem o dinheiro que Jon DeWitt lhe deixou. E o aplicou bem, seguindo os conselhos do sr. Regan. Você agora é supervisor geral da Interstate Railroad Company e Fielding é seu assistente. Ora, estão no campo do inimigo e podem fazer o que quiserem!
Miles, sempre tão discreto, não pôde deixar de dizer:
— Mas quem me deu essa oportunidade para estar lá? Allan Marshall, claro.
Ele podería ter-nos deixado de fora. Se estamos no “campo do inimigo”, é que fomos convidados a entrar.
O pai se levantou na cama diante dessa burrice enorme e olhou para o filho, furioso.
— Por quê? Por quê? Primeiro, precisava de sua capacidade. Segundo, foi um suborno para você não perseguir mais a filha dele. Ele o ameaçou com seu cargo na companhia: se você tentasse se casar com a filha dele, ele o poria na rua! Sei como funciona a cabeça dele. Ele a obrigou a se casar com aquele inglês para afastá-la de você. E como é que um Deus justo o castigou? — Os olhos de Patrick estavam triunfantes. — Com a morte de Dolores no Lusitania.
— Claro, claro — murmurou Fielding, num tom sepulcral.
Miles cruzou as pernas, devagar e com cuidado. “Mentiroso metido a virtuoso”, pensou. “Não há misericórdia nem honra em você.” Ele cruzou os braços sobre o peito o olhou para o pai, com expressão enigmática. Patrick tinha começado a bater num travesseiro com o punho cerrado.
— No fim, temos sempre a justiça divina. E o dia da justiça para meus filhos está quase aqui. E vocês têtn um amigo no próprio campo do inimigo: Norman DeWitt. Da última vez que vi Norman, em Nova Iorque, ele me contou que é tão mal-recebido na família que raramente vê a coitada da velha mãe, que está prematuramente senil de sofrimento...
— Ela tem seus setenta e cinco anos, mais ou menos — disse Miles. — E nunca foi uma mulher muito esperta, se me lembro bem.
Ele parou e achou graça, diante desse impulso de integridade quase único.
— Fielding virou os olhos castanhos para o irmão, perplexo. Miles, o diplomático e cuidadoso! Mas lá estava ele, sentado, olhando para o pai com aqueles olhos tão azuis, aquela expressão reservada que indicava repugnância oculta. Até mesmo Patrick percebeu a expressão do filho e calou-se momentaneamente, diante das palavras dele. Depois recostou-se nos travesseiros e começou a puxar o lençol mecanicamente.
— Pensei que você se desse bem com Norman — disse ele. — Afinal, fazia parte do Clube Socialista de Harvard, do Norman... um dos sócios fundadores se não me engano.
— Ele participava de uma associação de estudantes lá, entre muitas outras em várias universidades — disse Miles, friamente.
Eu tinha só dezoito anos, quando entrei para lá.
“Ora, que diabo está havendo com Miles?”, pensou Fielding. Ele via a pele delicada da testa do irmão corando. “Estará querendo implicar com o velho, agora que tudo depende de ele calar o bico?”
Patrick ficou excitado.
— Miles! Mas você acreditava no que Norman e seus amigos lhe ensinaram. Acredita nas teorias...
— Como o controle da produção pelo governo? — perguntou Miles, com displicência. — Sob um sistema desses, o que aconteceria, por exemplo, com a Interstate Railroad Company? A nossa companhia, como o senhor acabou de dizer.
Patrick o fitou calado. Começou a esfregar o indicador direito sob os lábios.
Piscou. Depois disse pensativo:
— Você sabe o que Norman lhe contou. Os amigos do governo não terão suas propriedades socializadas. Quando você e Fielding tiverem o controle da Interstate, tudo estará bem com vocês. Mas se não tiverem, então com o tempo, e esse dia não está distante, a companhia será açambarcada pelo governo em benefício de todo o povo, inclusive os trabalhadores explorados.
“Por que será impossível para ele pensar sem confusão?", perguntou-se Miles. “Por que insiste em se iludir? Há tantos idiotas ricos como ele nesta terra. Se algum dia acontecer o que ele profetiza, gritarão protestando: ‘É culpa de meu irmão!’.” Miles refletiu que quase valeria a pena estar presente numa ocasião dessas, ficaria contente como um campeão olímpico.
Mas os homens como Norman DeWitt não se deixam iludir e nem se confundem. Sabem o que querem. E usam homens como Patrick Peale para ajudá-los. No entanto, aquela não era a ocasião para esclarecer a mente de Patrick, de modo que Miles disse, acalmando-o:
— Claro, o senhor tem razão.
Fielding descontraiu-se e esticou as pernas compridas.
A voz de Miles então ficou áspera e dura.
— E sei que Norman vai nos ajudar. O senhor resumiu toda a situação muito claramente, pai. Tenho algo a acrescentar. DeWitt é presidente executivo da companhia: um dia desses, será presidente. Mas não é capaz de conservar esse cargo, se bem que eu não subestime sua inteligência ou capacidade. Ele não é o homem que o pai dele foi, nem o avô. Quer o poder, não como eles queriam o poder, pelo poder em si, mas para seu próprio engrandecimento. Ele sempre foi o “pequenino”, mesmo antes de ficar aleijado. A invalidez só acentuou sua mesquinhez nata. Ele é impiedoso, egoísta e de espírito mesquinho e astucioso.
Patrick meneou a cabeça avidamente.
— Continue, Miles.
Fielding sentou-se empertigado.
Miles pensou e olhou em volta do quarto na penumbra. Os últimos raios do pôr-do-sol vermelho pairavam sobre as montanhas negras. Miles levantou-se e acendeu alguns lampiões. Examinou o último, como se contivesse todos os seus pensamentos. Recomeçou a falar, pensando.
— Hoje os tempos são outros. Alguns culpam o Wilson. Mas ninguém é culpado. Acabou-se a era do magnata industrial absoluto, autocrático. É um fenômeno natural e os teóricos, com seus gritos de fraternidade dos homens e seus ataques ao sistema de lucro e de livre empresa, não têm nada a ver com isso. A fonte de uma sociedade industrial mais equitativa e decente era a classe média. À medida que essa classe invadiu a indústria e o comércio, descentralizou o poder dos grandes magnatas. Todas as leis antitruste e outras contra os monopólios teriam permanecido impotentes para sempre se os homens de negócios da classe média e os industriais menores não tivessem assolado as estreitas fortalezas dos Rockefeller, dos Belmont, dos Vanderbilt, dos Gunther, para só citar alguns.
— Bom... e então? — perguntou Patrick, impaciente. Não tinha acompanhado completamente o raciocínio do filho. — Aonde quer chegar?
Miles ergueu as sobrancelhas brevemente, mas não se virou para o pai.
— Cada vez mais os cérebros pensantes na indústria estão começando a perceber que o sucesso em qualquer negócio depende das pessoas. E do público bem servido. O poder pessoal não é mais realizável entre os homens inteligentes e não é mais muito desejável. Os magnatas vão lutar ainda um pouco contra isso, mas depois vão aprender. Alguns já aprenderam; criaram fundações beneficentes em prol de todo o povo dos Estados Unidos. Distribuíram milhões de seus lucros.
— Sim, sim — murmurou Patrick, agitado.
Miles olhou para Fielding e sorriu discretamente. Continuou:
— DeWitt Marshall é um anacronismo. Considera-se um dos magnatas, um dos manda-chuvas. Com essa atitude, vai arruinar a companhia. E é por isso que ele tem de ser tirado de lá, de algum modo.
Patrick exclamou, ainda sem entender nada:
— É isso mesmo que quero dizer! Exatamente!
Miles foi para a cabeceira do pai e olhou para ele, com ironia. Que tolo ele era. Ele disse:
— Mas há no mundo um mal grande e oculto. Creio que sei qual é. Homens como DeWitt sustentam sem saber esse mal. Temos de nos livrar dele, se essa terra for continuar livre. E temos de nos livrar desse mal também; é antigo e nasceu na Europa, há séculos. Não podemos trabalhar depressa demais.
Fielding enrugou a testa macilenta e Patrick assumiu uma expressão solene. Miles achou muita graça. Tinha uma satisfação sardônica nesses monólogos na presença daqueles que não podiam compreender e que achavam que compreendiam.
— Existe uma curatela no serviço público — disse Miles. Ele procurou um cigarro no bolso, depois puxou a mão vazia. Disse: — Acho que pode confiar em nós, pai. Vamos conseguir o que deseja para nós. — Ele se virou para o irmão. — Aprendemos muita coisa nesses últimos anos, não é, Field?
— Se aprendemos — respondeu Fielding. Ele estava intrigado. Olhou para aquele seu irmão requintado, para o rosto vazio e quase lindo do irmão mais velho; sentiu o poder de Miles, indomável e calado, sua segurança, sua virilidade possante. Fielding não era bobo; sabia que possuía muito pouco da inteligência do irmão, mas houvera uma época em que Miles conversara com ele, alegre e levemente e informando-o. Agora ele se limitava a dar-lhe ordens, sem se dar ao trabalho de explicá-las ou falar sobre elas. Fielding sentiu uma onda de inveja e ressentimento, mas admirava tanto o irmão, o respeitava de modo tão abjeto, que essa onda foi repelida quase imediatamente. Não adiantava nada tentar acompanhar Miles o tempo todo, pensou. Era melhor apenas obedecer.
Patrick ficou deitado inerte na cama.
— Agora posso morrer em paz — murmurou. Depois, enrijeceu-se e tornou a sentar-se apavorado. — Nós nos esquecemos de uma coisa: Cornélia DeWitt Marshall! Ela não só é diretora da companhia, mas é mãe de DeWitt! Como vão eliminá-la?
Miles afagou o ombro do pai.
— Quando chegar o momento, nós eliminamos tia Cornélia. Ela é mais terrível do que DeWitt... mas a eliminaremos. Já se esqueceu? Desde que o senhor se retirou do conselho, eu também sou diretor.
Naquela noite, Miles foi sozinho aos pátios de manobras. Ia lá muitas vezes, pelo menos duas vezes por semana e em geral de noite, dirigindo seu grande automóvel preto para seu ponto reservado. Os homens estavam acostumados a ver aquela estatueta de Desdren andando pelos trilhos, olhando em volta, pensativo, fumando seus cigarros especiais, um atrás do outro, entrando e saindo das rotundas, falando pouco, vendo tudo. Por vezes ele ficava ali parado muito tempo, exposto à intempérie, olhando para os trilhos reluzentes ao luar, examinando os guarda-chaves, degelando as ferramentas numa temperatura de zero grau, aparentemente fascinado pelas locomotivas sem carga rugindo no meio das trevas nas várias linhas, despejando uma esteira de fogo e centelhas. O estrondo das locomotivas se engatando automaticamente com os vagões de carga e de passageiros por vezes davam a seu rosto uma expressão aguçada, como se ele tivesse ouvido um som que o despertasse de um passado não lembrado. Muitas vezes ficava ao lado dos homens que impacientemente cuidavam de um mancai superaquecido. Ficava junto de outros homens agitando lanternas em cruzamentos imensos e esparramados; quando os trens monstruosos entravam rugindo e martelando na grande estação — onde às vezes os vagões de carga e de passageiros eram passados a outras locomotivas, para outros destinos —, ele ficava ali olhando como algum caipira que tivesse ido à estação para ver o trem local diário.
Frio, reservado, nada comunicativo, ele estava em toda parte, pisando como um gato por cima dos trilhos elevados, aparecendo de repente, do nada, fumando sem parar, o chapéu para trás, sobre o cabelo de mogno, as mãos enluvadas segurando sua bengala de almofadinha. O hosana metálico dos sinos, o tremor dos trilhos, o silvo penetrante do vapor, as luzes contra o céu noturno, o trovejar de trens chegando e partindo, a confusão dos homens com seus gritos e pragas, o reluzir das lanternas, longe nos trilhos, as locomotivas nos desvios — tudo isso parecia interessar-lhe.
— Vem espionar a gente, o sujeitinho dançarino. — Era isso que um grupo de três maquinistas, dois condutores e alguns guardachaves e outros trabalhadores numa das rotundas naquela noite murmuravam entre si. A noite de junho estava muito quente; ultimamente havia muito tráfego e uma prosperidade inexplicável e os homens estavam satisfeitos. Mas, ao jeito eterno dos ferroviários, estavam reclamando. — Vem para ver se a gente tá trabalhando direito, com todo esse trabalho, e não tá matando o serviço.
— Você não tá certo — disse um velho muito idoso, varredor da estação. Tinha os olhos turvos; parecia um pássaro antigo, apoiado na vassoura. Sacudiu a cabeça, mas ninguém lhe deu ouvidos. O velho Billie estava caduco; todo mundo sabia disso e em geral os homens eram bondosos com ele. Fora ferroviário desde rapazinho e estava sempre misturando o “Sr. Aaron, sr. Rufus e sr. Stephen” com os homens poderosos que agora eram donos da Interstate Railroad Company.
— Ele é só o supervisorgeral; parece até que é dono do raio da estrada — disse um maquinista, com raiva, cuspindo no fogão preto e frio na sala.
— Claro que vai ser dono — disse o velho Billie, acenando com tanta força que chegou a cambalear. — Por que não? Ele era o dono no princípio, não era? Posso contar o que ele fez lá em...
Um dos maquinistas, homem mais velho, prestou atenção a ele por um momento, com bondade.
— Que idade você tem, vovô? Deve ter nascido na ferrovia!
— Foi quase — disse o velho Billie, com uma risada, satisfeito com aquela
migalha de atenção e bicando-a avidamente. — Vocês, rapazes, nem sabem o que é o negócio de estrada de ferro. Às vezes a gente saía com um trem no inverno com a neve alta que nem montanha. E a gente nem sabia se chegava a Filadélfia ou a algum lugar. Mas a gente cantava como o diabo nas cabines e mandava os foguistas pôr mais carvão. E lá se ia botando os bofe pra fora pelo morro acima, com todos os sino gritando e os passageiro morto de medo e gelado, mas rindo também, • que a gente não sabia se ia passar a noite nos morro fazendo café com os carvão da máquina, bem do lado da estrada e fazendo fogueira, e o pessoal saindo dos vagão pra se esquentar e os maquinista, foguista e condutor se misturando com eles e todo mundo rindo e passando as garrafa, sem falar nos micróbio e dividindo os sanduíche, e uma lua branca e grandona subindo pelas montanha branca, e a gente esperando a neve derreter ou os arado chegar, berrando com os sino como os anjo gritando...
Ele sacudiu a cabeça, com pesar.
— Vocês nunca soube o que era o ferroviário, naqueles tempo. Empolgante. Todo mundo conhecia os outro na estrada, trabalhava junto e se orgulhava da estrada... O velho Aaron era um filho da puta, mas era um ferroviário. Muitas vezes andava na cabine com a gente; nada de carro particular fantasiado; e levava uma garrafa de uísque e soltava cada palavrão pior do que qualquer maquinista que já conheci. Arrancava o último tostão da gente e da estrada, mas era um ferroviário. O que é que a gente vê agora? Os homens no escritório grande em Filadélfia, ou Nova Iorque, que nunca vêm aqui, só ficam sentado com os livro e falando com os grande financista em Wall Street e saindo nos iate e viajando pra Europa e pintando o diabo com as prostituta, que ouvi dezer... sem saber de nada da estrada, só seus carro particular e as ação e título. — O velho suspirou. Tem o sr. Marshall. Detestava a estrada. Pra ele era só o dinheiro. E é só dinheiro pra DeWitt e a dona Cornélia e o resto. — Os olhos do velho começaram a brilhar enquanto fitava os homens que lhe sorriam com indulgência. — Mas não é só dinheiro pro sr. Aaron! Não, senhor! E quando eu vejo ele ali, pisando nos trilho com cuidado, como antes, e fumando e olhando tudo... vou te contar, parece que é os velho tempo e eu sou foguista de novo. Aí vou falar com ele, tocando na testa, e digo “sr. Aaron, que bom que o senhor voltou, é bom ver o senhor” e ele diz “Obrigado, Billie, também estou contente por estar de volta.”
— Você tá maluco; o velho Aaron DeWitt já morreu há mil anos — disse um dos maquinistas, de bom humor. — Aquele é o sr. Miles Peale, supervisor geral, que tá aqui hoje, verificando tudo e vendo se não se perde um pedaço de carvão. Não é o sr. Aaron.
Um dos homens se benzeu, furtivamente, e depois ficou encabulado. Os homens foram para a janela. Lá estava Miles, andando, muito sério, examinando um comprido cargueiro que acabara de chegar, por vezes batendo com a bengala nos lados altos e secretos.
— Prá que ele tá fazendo isso? — perguntou um condutor e depois deu uma risada. — Procurando ouro, ou coisa assim? E só um cargueiro comum.
— Não é não — disse outro, com interesse. — É especial; tá sendo passado para Nova Iorque. Dúzias desses cargueiro especial entrando agora quase todo dia. Já notou os guardas neles? Não são a nossa gente.
Mas os homens não estavam interessados. Olharam para os relógios, pegaram as marmitas e foram trabalhar, emburrados. Os salários eram altos, nesses tempos; os líderes sindicais falavam de salários mais altos ainda e “benefícios”. Mas os homens estavam emburrados. Era só um trabalho.
O velho Billie ficou olhando para o “sr. Aaron”, com pesar, através da janela enfumaçada. Depois, de repente, largou a vassoura e saiu, as pernas rangendo. Acompanhou Miles ao longo dos trilhos e por fim o alcançou, meio ofegante.
— Sr. Aaron! — gritou, no meio do barulho.
Miles virou-se logo, viu o homem e sorriu.
— Boa noite, Billie — disse.
O velho suspirou, feliz. Era uma maravilha o sr. Aaron estar tão jovem de novo, o cabelo como sempre tinha sido, a bengala na mão, como sempre, e o andar... passinhos firmes.
— Cargueiro grandão, hein, sr. Aaron? — perguntou. — Três, quatro, cinco vezes o que era antigamente. A gente ainda chama ele de quarenta e dois, mas não é o mesmo trem. O que o senhor acha que tá lá dentro e o que esses caras tão fazendo com arma na plataforma, olhando como se o senhor não fosse dono de tudo isso?
Miles colocou as mãos enluvadas sobre a bengala. Esse gesto empolgou o velho Billie, que lembrou do passado. Miles olhou para o cargueiro.
— Bem — disse Miles —, são munições, Billie. — Ele levantou a bengala e apontou para o nome de um grande fabricante de armamentos no lado do vagão. — Para a guerra. Explosivos, armas, bombas e tudo o mais. Vai para a Inglaterra, França, Alemanha, com uma indiferença maravilhosa e imparcial. É o que se chama de neutralidade, Billie. É conhecido como “ser justo”. Claro, os lucros extraordinários nada têm a ver com isso. Somos muito virtuosos nesta terra, sabe; todos nós, por toda parte, somos muito virtuosos. Seria muito mau alguém insistir em dizer que falamos assim: “Não nos importa quem morre, ou o que virá depois, ou quais os governos que são destruídos. Há um lucro nisso. Mais tarde lidaremos com os tiranos; se necessário, nós os compraremos”. — Miles tornou a se apoiar na bengala. — Talvez dessa vez não possamos comprá-los, Billie. Talvez queiram mais do que o dinheiro. Talvez queiram todo o maldito mundo.
0 velho estava escutando fascinado. Decênios antes; escutara os monólogos do sr. Aaron. Nunca entendera, mas sempre ficara feliz ao ouvir aquela voz seca e vigorosa e as estranhas insinuações nela. Pronto, lá estava o sr. Aaron dando de ombros; sempre bem vestido e arrumado, o sr. Aaron. Podia dar de ombros, que nunca desarrumava a gravata ou a roupa.
— Sabe, Billie — disse Miles —, eu não “amo” tanto a humanidade a ponto de achar que sei o que é “melhor” para ela e, portanto, tente impor a minha vontade sobre ela. E não a detesto o bastante para querer subjugá-la e governá-la de modo absoluto. Não creio que haja uma grande diferença, afinal, entre o “amor” dos socialistas idealistas e o ódio dos assassinos. Creio que se há honestidade em todo esse negócio é de parte dos assassinos; o aço nu e o açoite são declarados e imediatos e a gente pode ver as caras por trás deles e saber o que são. Os “amantes da humanidade” é que fazem seu trabalho por trás de uma névoa de palavras nobres e belas e mantêm o aço e o açoite escondidos até ousarem se mostrar com eles.
— O senhor tem toda razão, sr. Aaron — disse o velho com ênfase. Ele olhou vagamente para os carros monstruosos, que agora rolavam suavemente pelos trilhos. — Que guerra, senhor? — Estava perplexo.
— É sempre a mesma guerra — disse Miles, com bondade. — O nome não importa.
As luzes vermelhas mudaram para verde, ao longe, nos trilhos; o cargueiro se movia cada vez mais depressa. “Mais depressa, mais depressa”, pensou Miles. “Mas talvez no final restem alguns de nós para descarrilá-lo para sempre. Nós os mataremos porque são lobos, ursos e monstros alucinados saídos de uma selva primitiva, pesadelos ainda vagando à luz do dia.”
Ele se virou para o velho, ali tão dedicado a seu lado. Viu os olhos piscando, ignorantes e curiosamente inocentes. Sorriu para o velho.
— Sabe, Billie, homens como eu terão de lutar por homens como você. Alguns de nós não gostarão de lutar; dá muito trabalho. Mas lutaremos; você verá. Será um caso de sobrevivência, para todos nós.
— Claro, sr. Aaron, o senhor sempre foi um lutador — disse o velho Billie, com orgulho. Começou a andar para a estação com Miles, devagar.
— Eu me pergunto — disse Miles, pensativo, balançando a bengala nos pequenos círculos de que o velho Billie se lembrava tão bem — que homens pervertidos estão amadurecendo por trás das armas, cidades arrasadas e trincheiras da Europa? Como se chamam? É certo que estão lá, aguardando, como sempre aguardaram. Nomes ingleses, franceses, alemães, russos? E quem são os americanos que os estão observando e aguardando também, até que os pesadelos europeus surjam da fumaça e das ruínas e se mostrem? Sim, teremos de lutar contra eles, só para viver, nós, milionários e bombeiros, nós médicos e pedreiros, nós ferroviários e industriais, comerciantes, operários de fábricas e fazendeiros.
Ele tocou no velho Billie, trôpego a seu lado, com a ponta de ouro de sua bengala.
— Tenho a impressão, Billie, de que será a sua classe, no final, que vai matar os tiranos. Porque, sabe, vocês não vão poder chegar a um acordo. Não têm o dinheiro para isso.
— 0 senhor sempre pode contar comigo, sr. Aaron — disse o velho Billie, com um vigor apaixonado.
Miles sorriu um pouco.
— É. Acho que podemos. Não é coisa de que se orgulhar, talvez... mas creio que podemos.
Ele deu dez dólares ao homem. Billie protestou um pouco e Miles disse:
— Você hoje me deu muita coisa, meu velho.
Billie o viu afastar-se, cheio de alegria, vendo as costas pequenas e retas do “sr. Aaron”. Ele passara muito tempo afastado, o sr. Aaron. Mas agora vinha ali de novo e a estrada estava salva. Havia quem dissesse que ele era um homem duro. Os rapazes jovens não sabiam o que era um lutador.
Quando Miles chegou em casa, sua mulher Ruth, em prantos, informou-lhe que o pai morrera uma hora antes, muito de repente.
47
O arcebispo Rufus Anthony Marshall, de St. Louis, saltou de sua comprida limusine prata na névoa dourada de uma tarde de princípios de novembro. Havia mais de quatro anos que não visitava a Pensilvânia; disse consigo que quase se esquecera de como os campos eram lindos, como as montanhas eram vermelhas no outono, cobalto os céus de outono, bronze os campos ceifados, turquesa o rio refletindo todas essas cores puras em lâminas e lanças, como o ar era doce e fresco e em que silêncio grandioso a terra repousava. A brisa mais suave fazia as folhas cor de ferrugem voarem pela estrada vazia, correndo desordenadamente como camundongos. A casa de fazenda branca ficava num ninho de bordos vermelhos; o sol sem nuvens jorrava sobre os celeiros vermelhos e os telhados vermelhos dos silos. Como é que ele se esquecera? Ele sorriu para o chofer, ali de pé a seu lado, em atitude respeitosa.
— Acho melhor você voltar para Portersville e vir me apanhar por volta das sete — disse ele.
0 homem tocou no boné, entrou no carro e foi embora, numa espuma de poeira amarela. 0 arcebispo, alto e imponente com suas vestes pretas, ficou olhando enquanto ele se afastava. Tocou de leve a cruz no peito e desejou, por um momento de nostalgia, ter continuado a ser padre de paróquia. Mas Deus escolhera por ele.
Ficou ali uns momentos no caminho de cascalho que levava à comprida casa branca. Aos quarenta e dois anos, não tinha perdido sua expressão juvenil de uma inocência sábia e séria, se bem que a pele clara estivesse enrugada e o rosto tivesse assumido o aspecto ossudo, austero e minguado do homem dedicado. Os olhos azuis-claros continuavam cristalinos, mas muito cansados, e havia um pouco de grisalho no cabelo muito louro. Ele deixou que a paz profunda dos campos o inundasse como água refrescante. Viu o gado no pasto distante e ouviu um cavalo relinchar. Ao longe, no abismo do profundo céu azul, viu os últimos pássaros migratórios voando para o sul; lançavam uma sombra quebrada sobre a terra, como a sombra de folhas. O caminho de cascalho era bordejado de cravos-de-defunto e zínias, num último clarão de flores. Dois coelhos saltaram perto dele tímidos, na relva ainda verde e espessa. Um gaio azul gritou, faiscando como um pedaço do próprio céu nos bordos chamejantes.
Não havia ninguém por ali. Tony foi para a casa de fazenda, devagar. Então, naquele ar parado e perfumado, ele ouviu, sem acreditar, o canto de fada de uma harpa. Ele parou, perplexo. A música, encantada, selvagem e insuportavelmente comovente, parecia fazer parte da própria terra.
Onde é que ele já ouvira aquela melodia? E quem a estaria tocando? Recordações vagas lhe voltaram. Ele começou a cantarolar, ainda sem acreditar: "Junto aos lagos e quedas de Killarney.Uma voz se juntou ao som da harpa, forte e segura como o instrumento era suave, um barítono animado. “Meu pai”, pensou Tony e não se envergonhou das lágrimas nos olhos. “Meu pai, cantando de novo, como cantava para nós quando éramos crianças”.
A harpa e o canto do homem morreram no ar dourado. Tony foi depressa para a casa. Parou na sombra azulada da varanda profunda e espiou pela porta de tela. Era menino de novo, vindo visitar os avós, mortos havia tantos anos. Via o hall comprido e a porta de tela no fim, dando para os jardins. Via a penumbra suave dos quartos de ambos os lados. Ouviu o pai falando:
— Ainda hei de fazer de você um irlandês, Alex. Agora, se entrar na cozinha, vai encontrar cerveja gelada na geladeira; pegue enquanto a Bessie não está olhando; ela acha que não devo beber, a batista!
Um rapaz de seus dezessete anos surgiu na sala, rindo. Um rapaz alto, de pele clara, esguio, movendo-se com a graça da juventude, a cabeça castanha e lisa pousada delicadamente num pescoço magro, os olhos castanhos sorridentes. Tony puxou a campainha e o rapaz parou, sobressaltado, e olhou para a porta. O arcebispo via o rosto estreito e as feições elegantes.
— Alex? — disse Tony, através da tela. — Alex!
Ele não via o sobrinho, Alexander, lorde Gibson-Hamilton, havia mais de doze anos. Sua voz estava insegura e ansiosa. Seria possível que esse rapaz, com sua roupa de tweed inglês, fosse mesmo a criança de quem ele se lembrava? Alex, sorrindo educadamente, foi até a porta, procurando enxergar contra a luz mais forte em que estava Tony.
— Sim? — murmurou. Depois viu Tony claramente com a cruz brilhante no peito. — Tio Tony? — exclamou. — Tio Tony! — Ele ficou ali do outro lado da porta de tela e seu rosto estava cheio de assombro e prazer.
— Ora, com quem está falando? — perguntou Allan, entrando no hall. Então ficou ali, petrificado. Allan estava magro, moreno, com cabelo grosso e branco, com um cigarro nos dedos magros. De repente, gritou, incoerente, correu para a porta, empurrou o neto para o lado, com os gestos fortes de um jovem, abriu a porta e abraçou o filho. — Tony! — exclamou, a voz entrecortada. — Tony meu querido, seu patife! Certo, você caiu do céu... Tony!
O sotaque irlandês estava forte, mas Tony não percebeu qualquer cheiro de uísque. Rindo, abraçou o pai com força.
— Bom, não vai me convidar para entrar? Vim de St. Louis, a caminho de Nova Iorque e Roma. — Ele estendeu a mão ao sobrinho, que a apertou com força. Allan, o braço ainda por cima dos ombros do filho, disse, com severidade:
— Onde está a sua educação, garoto? Tem de beijar o anel do arcebispo. Dobrar o joelho. Não lhe ensinam isso na Inglaterra? É assim que se faz.
Ele soltou Tony, hesitou e depois ajoelhou-se e ele mesmo beijou o anel. Todos os seus movimentos eram rápidos e flexíveis, foi o que Tony notou.
— Nunca pensei — disse Allan, resmungando — que havia de beijar a mão ou o anel de meu próprio filho. — Mas estava todo orgulhoso. — Entre, entre.
Ele pegou o braço de Tony e puxou-o para a sombra fresca da sala, onde tudo estava como Tony se lembrava, desde as flores de cera sob um sino de vidro, na velha mesa de mármore diante da lareira, às cortinas bem engomadas nas janelas largas, do velho tapete vermelho no chão aos móveis de crina que tinham espetado suas pernas nuas, em criança. Um pequeno fogo vermelho ardia na lareira de tijolos e dele emanava um cheiro de lenha de macieira. As paredes e teto de madeira reluziam com a luz refletida de fora.
— Então, é arcebispo agora — disse Allan, depois que os três se sentaram nos móveis duros. — Eu... não pude comparecer à sua posse, Tony. — Ele abaixou a cabeça, um instante.
— Eu sei — disse Tony.
0 pai passara muito mal de novo, na ocasião. Tinham-lhe dito que Allan passara seis meses sem reconhecer qualquer membro da família. Era difícil acreditar que esse homem, tão bronzeado, tão moço, tão forte e alerta, era o homem doente e alquebrado de que ele se lembrava. Tony suspirou, contente. Tivera medo, ao receber a notícia do mais recente, e quase fatal, colapso, um ano antes. Desde a morte de Dolores, em 1915, o pai vivera num pesadelo de agonia e fora da realidade. Houvera um boato vago de que tentara se suicidar em fins de 1916 e novamente em 1917, quando os Estados Unidos entraram na guerra da Europa. “E em todas essas vezes, eu nunca pude ir ter com ele”, pensou Tony. “Nunca poderia deixar que ele soubesse; tive de ficar afastado, por ele mesmo.” Os jornais tinham sido simpáticos. Os jornalistas em geral são muito discretos
quando se trata de homens ricos e poderosos.
A cerveja estava tão fria que os copos grandes estavam suados. Uma mulher de meia-idade, com ar reprovador, tinha trazido uma bandeja de queijos finos e velhos. Ela olhara para Tony com ressentimento e se retirara, meio impaciente.
— Bessie é boa pessoa — disse Allan, sorrindo, Os olhos pretos piscando para o filho. — E o marido é meu braço direito na fazenda. Temos duas famílias que moram em suas casas, aqui. Precisamos de toda a mão-de-obra que conseguimos arranjar. Passamos dificuldades, por certo tempo, com os ordenados altos das cidades. Mas nesse último ano tem sido mais fácil encontrar ajudantes; e agora que o mercado de ações caiu, imagino que se torne ainda mais fácil. — Ele falava como se a crise desastrosa de algumas semanas atrás tivesse ocorrido na Lua, afetando-o em nada.
— São quatro anos desde que o vi, Tony — disse Allan. — Quantas vezes nos vimos nesses últimos doze anos? Podia contar nos dedos. Primeiro você foi para Filadélfia, depois para Chicago, depois para Seattle, depois para San Francisco... — ele sacudiu a cabeça.
Tony disse:
— Eu sei. Andei por todo o país.
Parecia que o pai se esquecera de suas visitas. Só houvera uma realidade na vida dele, a morte trágica da filha e seu ódio imenso. Depois da guerra, Tony passara muito tempo em Roma; também fora à Riviera em 1926, descobrindo que a família partira para os Estados Unidos às pressas, devido a outra crise do pai. Fora uma vez a Newport; Allan estava de novo internado num sanatório. Tony o visitara lá, conversara e rezara por ele, ajoelhado ao lado da cama. Allan não se lembrava.
No entanto, lá estava ele agora, bronzeado e numa vitalidade agitada, como em sua juventude, vendo tudo, sabendo de tudo.
— O senhor parece tão bem, pai — disse Tony.
Allan riu e acendeu um cigarro para o filho e depois outro para si.
— E por que não, Tony? Era aquela droga de estrada de ferro... minha aposentadoria, há quatro meses, foi a melhor coisa que já fiz por mim. E não faço falta. Sua mãe e DeWitt me mandam relatórios de vez em quando, ou papéis para eu assinar. E é o máximo que quero ter com aquilo. Voltei para a terra e é aqui que pretendo viver e morrer. — Ele olhou em volta, para a sala feia e agradável e se instalou melhor na cadeira de balanço. — É, vão largar as cidades, espero, e as fábricas, pela terra. Talvez a crise seja salutar para a nação inteira.
Tony não tinha certeza. Virou o resto da cerveja no copo.
— Tinha de acontecer — disse Allan. — Vendi meus valores mobiliários, grande parte deles, em agosto. Riram de mim, em Nova Iorque. Mas todos os sintomas estavam presentes. O país estava louco; burro e fútil, excitável e ganancioso. Conversei com Regan e os outros e os avisei. Eles se entreolharam e vi que estavam me julgando um completo maluco. — Allan deu uma risada sonora. — Agora resolvem me escrever, e me perguntam “como é que eu sabia”.
Tony, porém, estava muito sério.
— O que o senhor diz a respeito do povo americano, de ter sido burro e fútil, excitável e ganancioso depois da guerra é muito verdade, pai. Isso nos tem dado muita preocupação. Há a desculpa de que queriam se “esquecer” da guerra.
Isso é tolice. Não sofremos quase nada, em comparação com outras nações. No entanto, ousamos falar de nós mesmos como estando “desiludidos”! Com a exceção de nossos rapazes que morreram nos inúteis campos de batalha, e de seus parentes, a nação inteira na verdade gostou da guerra, teve prazer com ela. A atuação de nossos figurões, nossos políticos, e a nação em geral, acompanhando-os, demonstrou isso. Uma puerilidade criminosa. Uma nova moda em roupas de mulher, a visita de um potentado estrangeiro, a excursão de uma rainha obscura, de uma nação obscura, uma nova marca de automóvel, e outras trivialidades têm sido o suficiente para lançar toda a nação em convulsões de êxtase, empolgação e delírio. Porque receio que tenhamos nos tornado um povo de ouropel, inteiramente desmoralizado com o nosso ouropel.
Allan olhou para a harpa dourada de Alex junto da janela e sorriu.
— Tudo isso não me diz mais respeito — comentou Allan, com convicção.
Ele acreditava nisso, pensou Tony, achando graça mas com desânimo.
— Estive várias vezes na Europa, desde 1919 — disse o arcebispo. — E no Oriente Próximo também. O Santo Padre está muito preocupado hoje em dia; e alarmado. — Ele parou. — Mas antes de lhe falar sobre isso, quero lhe dizer que a Europa não está alegre, idiotamente excitada e no estado de euforia em que se encontram os Estados Unidos. Está desiludida terrivelmente. Lembro-me do que o senhor me disse um dia: “Quem são os homens que estão esperando por trás da fumaça das armas e das cidades arrasadas, para que chegue sua vez?" Bem, pai, agora temos os nomes deles. Mussolini, Stalin. É por isso que o Santo Padre está tão alarmado hoje. Pois sabemos de outra coisa; sabemos que esses nomes são apenas sintomas.
Allan sorriu, seu velho sorriso tenebroso e cínico.
— Mussolini não é o rapaz que está fazendo os trens andarem no horário e que gosta da alegria italiana, da civilização e da maturidade? Não é Stalin a expressão das emoções medievais do povo russo? O que é que eles têm a ver com os Estados Unidos? — Ele se levantou e começou a andar pela sala, inquieto, sacudindo a cabeça. —Já lhe disse, não me importo mais. Que o mundo inteiro vá para o diabo, contanto que eu fique seguro aqui no campo.
Ele afastou uma cortina de renda e olhou, feroz, para os gramados e a sombra fresca de novembro.
— Mas o senhor não está seguro. Nenhum de nós está seguro, em lugar algum — disse Tony. Ele se virou a fim de olhar para o sobrinho. O jovem Alex não falara nada; ficou ali sentado na poltrona velha, perto do tio. Havia nele um ar de silêncio que lembrou a Tony sua irmã Dolores. Alex sorriu, encabulado, e de repente era o sorriso de Dolores, doce e compreensivo. A mãe vive nele, pensou o arcebispo com gratidão, sentindo uma velha pontada de pesar.
Allan virou-se da janela, franzindo a testa.
— Vocês padres! Estão sempre vendo a “abominação da desolação” por toda parte. Para o diabo com a Europa. Não queremos nada com a Liga das Nações. Por que nos havemos de meter com antigas disputas da Europa, em todo caso?
Tony suspirou e levou a mão à sua cruz grande.
— Pai, eu não estaria falando assim com o senhor agora, tendo em vista o seu passado e os temores reais que o perturbaram durante anos, e o deixaram doente, se não achasse que tem a fibra e a coragem de saber e de agir. Olhe para nós, uma nação prostituída, que até algumas semanas atrás vivia num delírio de dinheiro fácil, imoralidade e emoções tolas, salva provisoriamente da crise monstruosa de um período de pós-guerra pelos esforços corajosos de alguns homens em Washington. Eles não podem mais nos salvar dessa depressão. Já começou e vai piorar imensamente. E isso dará às hordas de homens espectrais a oportunidade que vêm esperando, há mais de duzentos anos.
— Vá nos buscar uma cerveja, Alex — disse Allan ao neto. Ele sentou-se e ficou olhando o neto que saía da sala. Tinha posto as mãos bronzeadas nos joelhos e estava rígido, olhando para o chão. Sacudiu a cabeça. — Hei de ter paz, nem que seja a última coisa que um dia terei. — Ele levantou a cabeça e olhou para Tony, de repente, e então seus olhos pretos se apertaram e aguçaram. — Que “homens espectrais”?
— Há mais de duzentos anos — disse Tony, com alívio — organizou-se na Alemanha e na França, e também na Inglaterra e na Rússia, uma sociedade denominada Os Mestres Silenciosos. Não eram muitos, talvez alguns milhares. Mas eles viram que a liberdade para todos os homens era um conceito que crescia no mundo e ficaram indignados. Assim, conceberam o plano de um dia se apossarem do mundo, como a elite, para subjugar novamente a humanidade à escravidão, destruir a dignidade do homem, tornar a humanidade subserviente a senhores inclementes, para maior poder desses mestres. Contentaram-se em esperar, esses homens, pois o ódio não tem nascimento nem morte.
Mais uma vez Tony tocou em sua cruz.
— A era com que sonharam já chegou. E nasceram milhões de homens como eles; hoje há tantos deles, esperando para servir, para assassinar, para instigar guerras que suprimirão a liberdade e criarão depressões, que hão de erradicar os governos democratas. Guerras, impostos extorsivos, depressões: são essas as três mortes que eliminarão a civilização judaico-cristã e entregarão o mundo inteiro aos novos Mestres Silenciosos, bem doutrinados. Não, por favor, deixe que eu termine — disse Tony, levantando a mão. Seu rosto claro estava escurecido, cheio de profecias severas. — Esse movimento seereto, por toda parte, cobre-se sob os nomes de fascismo, socialismo, comunismo. Eles não “criaram” Mussolini e Stalin. Essas criaturas são apenas suas armas, assim como suas filosofias são apenas suas armas. Os Mestres Silenciosos se conhecem muito bem; eles se reconhecem. E também os temos aqui nos Estados Unidos, em pelotões de ódio e traição tão bem organizados que chega a ser incrível. Já se esqueceu tão depressa do meu tio, Norman DeWitt? Já se esqueceu dos clubes socialistas, organizados já em 1905 ou mais cedo até? Já se esqueceu de que Norman possui quatro jornais, cinco revistas e uma organização que está constantemente enchendo o país de propaganda malévola?
Alex voltou com mais cerveja e sanduíches, que pôs diante do tio, numa mesinha. Ele se movia com ar sonhador, mas os olhos grandes e inteligentes se fixaram com uma seriedade intensa sobre o arcebispo.
— Eu sei — disse ele, com sua voz inglesa, suave. — Sei de tudo sobre isso. A gente ouve falar disso o tempo todo em Oxford, entre os rapazes.
Mas Allan cerrou os punhos nos joelhos.
— Norman DeWitt — disse. — Tentei tirar da cabeça toda essa família. Já quase me tinha esquecido dele.
Ele olhou para Tony e ficou sério.
— Foi por isso que veio me ver hoje?
Tony hesitou.
— Vim vê-lo porque o senhor é meu pai, a quem amo, e estava aflito pelo senhor. Ninguém me dava notícias que valessem a pena, a não ser a Ruth e tia Laura. Nem mesmo DeWitt me contou grande coisa. — Ele olhou bem de frente para o pai. — É, vim procurá-lo hoje porque não há tempo a perder. O senhor é um homem tremendamente rico. Sabia, há muito tempo, que o que está acontecendo agora era inevitável. O mundo de homens livres precisa de homens poderosos e ricos como o senhor, pois, sabe, os perversos têm todo o dinheiro que precisam na Europa. E nos Estados
Unidos. Mesmo nesses anos prósperos, os homens perversos têm trabalhado, intitulando-se comunistas e socialistas, em comunicação secreta e constante com seus correspondentes europeus.
A testa morena de Allan estava brilhando de suor. Ele ficara cinzento, sob o bronzeado.
— Mas que diabo posso fazer? — gritou. Alex olhou para ele, apreensivo. — O que posso fazer? Quem vai me ouvir?
— O senhor também pode comprar alguns jornais — disse Tony. — Pode empregar homens neles que tenham tanto medo quanto o senhor tinha antes. Por meio desses jornais, poderá contar a verdade ao povo americano. Poderá gritar “alerta” sem parar. Os seus redatores poderão denunciar a guerra, os impostos destrutivos, o ódio, o comunismo, socialismo, fascismo. Os seus jornais podem apoiar os políticos e estadistas de inteligência e integridade, que já desconfiam do plano antigo. Poderá, com seu dinheiro, organizar uma fundação ou coisa assim, para manter o povo informado por meio de folhetos, publicações e livros. Pode usar os mesmos meios de comunicação pública que o inimigo já está utilizando. É tarde, muito tarde. Talvez já seja tarde demais — disse Tony. — Mas talvez, com a graça de Deus, ainda possamos vencer, nós, os homens livres do mundo inteiro, nós, os homens que amamos a liberdade, a dignidade e Deus mais do que amamos nossas próprias vidas.
— Se os povos do mundo sucumbirem a essas coisas terríveis, será por culpa deles mesmos — disse Allan.
— Eles sucumbirão, se o fizerem por ignorância — disse Tony. — É seu dever acabar com essa ignorância. O senhor poderia falar com seus amigos em todas as indústrias. Se forem ignorantes, informe-os. Se não forem ignorantes, mas fizerem parte da trama, eles mesmos, o senhor logo os pilhará. E poderá denunciá-los.
Allan disse, numa voz abafada:
— Já estou com setenta e um anos, quase setenta e dois.
Tony estendeu a mão e a colocou sobre o ombro do sobrinho.
— E Alex só tem dezessete.
De repente, fez-se um silêncio desesperado na sala.
Allan disse, sem expressão:
— Ele devia estar de volta à Inglaterra, em Oxford. Mas quis ficar comigo, este ano. Sou um dos tutores dele e tive de brigar com os ingleses... — Ele olhou para o rapaz e franziu as sobrancelhas grisalhas. — Você quer dizer que eu devia usar esses meus últimos anos de vida para lutar de novo, por Alex?
— Sim — disse Tony. — E por todos os infindáveis milhões de Alex em todo o mundo, os rapazes nos colégios, dezenas de milhares deles já sendo envenenados pelos inimigos... todos os Alexes que morrerão nas guerras tramadas no futuro, que serão escravizados se não trabalharmos depressa e com segurança, pelos homens que os detestam.
Ele pôs a mão no joelho do pai.
— Pai. O senhor está muito cansado. Ficou doente porque o que tinha não era o que queria. Ficou doente porque desconfiou da verdade e sabia que a primeira batalha contra o homem começava com a guerra. Não sabia por onde começar a luta; suas energias estavam sendo esgotadas por canais que não lhe interessavam mais. Agora sabe por onde começar a luta para a qual nasceu de verdade.
Mais uma vez Allan olhou em volta da sala que os pais tinham mobiliado e amado.
— Será demais pedir que um homem da minha idade tenha um pouco de
paz?
— Mas uma paz assim não é de sua natureza — disse Tony, sorrindo. Seus olhos azuis agora estavam muito cansados, mas também brilhavam. — Por quanto tempo ainda o senhor ia aguentar essa retirada da vida? Ah, pode falar até cansar de sua paixão pelas safras, sua absorção na terra, e eu saberia que o senhor está mentindo para si. Não nasceu para a terra. É um lutador.
Allan olhou para ele, furioso, e depois começou a sorrir, devagar. Esfregou a face bronzeada.
— Bem, acho que devo reconhecer que estava começando a me aborrecer um pouco... A gente não pode ler o tempo todo. Tenho bons empregados nesta fazenda. É sempre um refúgio, esperando por mim. Sempre posso plantar alimentos...— Ele olhou para Tony e exclamou: — Muito bem, então, seu demônio em roupas de santo! — Ele se levantou e apoiou os braços no ombro de Tony. — Você ainda vai me matar, sabe. Vai dizer uma missa por mim, um dia desses e a culpa estará em sua alma.
Tony virou a cabeça imponente e, com a simplicidade de uma criança, beijou as costas da mão do pai.
— 0 senhor veio de longe, pai — disse, sorrindo para o rosto de Allan. — De longe, desde o dia em que resolveu que queria ser padre.
Não, disse Tony, não podia ficar para jantar. Cornélia ia dar um jantar para ele. Não, ainda não estivera com ela; tinha telefonado e prometido ir.
Allan disse:
— Sua mãe é indestrutível. Aos sessenta e quatro anos, continua com o seu gosto de viver, a fibra e a força. Quando DeWitt passou a presidente, depois de eu me aposentar, lá estava ela, bem atrás dele, como uma mocinha ansiosa, ardendo de ambição. Ela o manipula, como queria me manipular. E provavelmente o fez, mesmo várias vezes, sem que eu o percebesse, especialmente quando eu estava... doente. Ela não gostou que Miles Peale fosse vice-presidente executivo, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. Afinal, Miles é casado com a meia-irmã de Cornélia. E todas aquelas ações nas mãos de Miles. Talvez haja certa verdade na ideia dela, de que Miles quer ser presidente; não sei. Mas como a família tem seus cinquenta e um por cento das ações, imagino que estejamos seguros, mesmo de uma pessoa como o Miles... de quem não desgosto, aliás.
Tony ficou alarmado.
— Acho que nunca apreciei Miles. Não confio nele. E temos o Fielding, que agora é supervisor geral.
Allan riu-se.
— Eu pensava que você não se interessasse por coisas mundanas. Coma um pouco desse bom Camembert.
Tony recusou o prato oferecido.
— Como o senhor pode ser tão desinteressado, pai?
Allan, que parecia ter adquirido vida nova, disse:
— Por que eu havia de me interessar, especialmente? Não estava falando à toa quando disse que não queria mais saber da estrada. E DeWitt nem parece que é meu filho. Não temos nada a nos dizer. Mas você se esquece de sua mãe. Está sempre por lá.
O crepúsculo estava descendo em sombras azuis e roxas sobre as montanhas e o vale.
— É — disse Allan, pensativo — sua mãe está sempre por lá. Ela me escreve. Nós nos vemos muito raramente, talvez não mais de duas ou três vezes por ano. É melhor assim. Ela me despreza e não gosto de ser desprezado francamente, pois tenho uma dose normal de vaidade. Não sou mais o homem com quem ela se casou. Aliás, acho que nunca fui. Servi a seus propósitos; não sou mais útil a ela. Um dia nós nos amamos; isso não foi ilusão. Mas por fim eu a aborrecia e Cornélia pode suportar tudo, menos o tédio. Ela nunca sentiu intensamente por nada, a não ser a ferrovia.
Eles conversaram sobre muitas coisas, enquanto a noite caía. Allan não mostrou interesse pelo neto, filho de DeWitt, o jovem Rufus DeWitt Marshall.
— Está com catorze anos e tem os olhos, cabelo e aspecto geral do velho Rufus — disse Allan. — O estranho é que Cornélia tem por ele a maior antipatia. — Allan não se interessava pela neta, Shelley, filha de DeWitt. — Boa menina, quase com dezesseis anos — disse. — Mas um pouco inexpressiva. Cornélia gosta dela. Da última vez que Cornélia veio aqui, com um monte de papéis para eu assinar, renunciando às minhas últimas pretensões à estrada, ela disse que seria “bom" se Alex se casasse com a Shelley, mais tarde.
Ele sorriu para o filho.
— Minhas visitas principais são a coitada da Ruth, que vem para se consolar, pois é esposa de Miles e ele é muito mulherengo, e Laura. Você vai ficar escandalizado, Tony? Afinal, estou na casa dos setenta e Laura já tem sessenta e três anos. Nós nos consolamos. Cornélia acha que é “engraçado”.
Alex disse:
— Gosto da vovó, se bem que por vezes ela seja um pouco... dominadora. Eu não devia dizer isso, pois é muito boa comigo e acho que tem certo afeto por mim. Muitas vezes vou jantar na casa dela. O vovô aqui faz de conta que é indiferente ao que acontece na casa da montanha, mas se não faço um relato completo fica aborrecido.
— Um dia eu amei aquela casa — disse Allan, depois que o filho parou de rir. — Nunca apreciei os outros malditos mausoléus na França, Inglaterra, Newport e Nova Iorque. Mas ela agora está cheia de estranhos. Cheia de gente que eu não conheci e que nunca me conheceu: meu filho DeWitt, minha mulher, meu cunhado Normam (que hoje em dia vai sempre lá) e Mary, minha nora e os filhos dela. Mary! Era o nome de minha mãe e é o nome mais querido do mundo, eu acho, para uma mulher. Mas a mulher de meu filho não é nenhuma Mary, apesar de ter esse nome.
Conversaram sobre os tempos em que o governo assumira o funcionamento das ferrovias.
— Sua mãe — disse Allan — quase ficou louca de raiva. Mas mesmo então eu já estava me tornando indiferente.
— Isso foi uma indicação do futuro — disse Tony, sombrio.
Mas Allan não quis mais saber de conversas sérias. Estava começando a denotar a idade; os lampiões que tinham sido acesos — velhos lampiões de querosene — mostravam as rugas em volta da boca e dos olhos, o cansaço como uma sombra em todo o rosto. Ele começou a falar da filha, Dolores, e era como se estivesse pensando alto. O sofrimento subiu como água a seus olhos. Foi aí que o jovem Alex saiu da sala e voltou com um vidro de remédio e uma colher. Allan o tomou com uma docilidade espantosa. Olhou para Alex e disse:
— Aqui está tudo que me resta: meu neto e meu filho. — Ele parou e acrescentou, baixinho: — E Laura. Ficamos sentados na varanda, dois velhos, e falamos de nada e de tudo, tendo Alex como acompanhante, por aí.
Allan e Tony foram, no crepúsculo, para a estrada onde a limusine estava esperando. Pararam e se olharam, sérios.
— Muitas vezes me lembro do que Woodrow Wilson disse, em 1912 — disse Tony. — A história da liberdade é uma história das limitações do poder governamental e não seu aumento. Quando resistimos à concentração do poder, estamos resistindo aos poderes da morte, porque a concentração do poder é o que sempre precede a destruição das liberdades humanas.
— Vou usar isso como cabeçalho de meus jornais, que ainda não possuo, e mandar que meus redatores o frisem, redatores que ainda não contratei — respondeu Allan. Ele parou. — Tony, meu queridinho, quer me dar a sua bênção?
Ele ficou olhando enquanto a limusine desaparecia ao longe, em direção à cidade. Um pôr-de-sol reluzente e cor de laranja brilhava por entre os altos pinheiros negros. Allan contemplou aquilo por muito tempo e depois voltou para a casa. Alex estava à sua espera e disse, com um sorriso acanhado:
— Vovô, o senhor parece outra vez um homem decidido e não um homem em paz.
Mas Allan sentou-se numa poltrona, encostou a cabeça e fechou os olhos. Disse baixinho:
— Sei, nos meus ossos, que nunca mais verei o meu Tony. Mas desta vez eu é que estarei partindo. Depois de minha última batalha.
Cornélia disse a Tony:
— Pode escolher o que quiser para beber, meu bem. Mas, claro, já que temos essa terrível Lei Seca, e você sendo do clero, não vai beber coisa alguma. — Ela sorriu para ele, com malícia, e tocou em sua manga preta. — Você não devia ser cardeal, ou coisa assim? Aliás, está muito bonito e majestoso e coisa e tal. Como estava o seu pai?
— Muito bem e fico contente em dizer isso — respondeu Tony.
— Também convidei o Alex para vir jantar hoje — disse Cornélia. — Mas é sempre “o vovô precisa de mim”. Há alguma coisa maternal naquele rapaz. Ele me faz lembrar o coitado do Dick. Sempre sério, querendo ajudar. Pessoas cansativas. Nunca conseguem ser alegres, ligeiras ou divertidas. O seu pai também é assim. Tolerei isso durante anos, mas depois ficou demais. Detesto gente taciturna, não que Alex seja assim.
— Nunca pensei no pai como sendo “maternal” — disse Tony, sorrindo.
— Não, nem especialmente prestativo, eu acho. Mas foi um homem e tanto, quando jovem.
— Ainda é um homem e tanto — disse Tony, num tom frio.
Era evidente que Cornélia continuava a amar aquela casa na montanha. A mobília antiga era sempre cuidadosamente conservada. A casa estava quase como era quando Aaron a comprara do artista. Mas a eletricidade substituira os lampiões de querosene e o grande lustre no hall tinha sido habilmente adaptado para velas elétricas. O efeito não era tão suave e não havia sombras vagas nos cantos do hall, como Tony se lembrava que houvera.
— Convidei todas as pessoas de importância em Portersville para vê-lo, hoje — disse Cornélia. — E algumas de Nova Iorque. Sabe, eu me orgulho muito de você.
Aos sessenta e quatro anos, ela ainda possuía uma postura reta e conservara o corpo magnífico, embora nessa noite estivesse vestida deploravelmente com um vestido reto e justo de lantejoulas, muito curto, de modo que parecia uma estátua alta vestida de relâmpago azul. Nos quadris, tinha um cinto de brilhantes; o cabelo ruivo, curto estava agarrado à cabeça grande. Cuidados especializados tinham impedido que seu rosto envelhecesse, mas o ruge, pó-de-arroz e batom berrante lhe davam um aspecto avermelhado e vulgar, grosseiro, embora vibrante. As mãos grandes revelavam a idade: eram escuras, com veias salientes, manchadas e reluzindo de joias. Pulseiras de brilhantes, em quantidades aflitivas, estavam espalhadas pelos braços, do pescoço enrugado pendia um colar comprido de pérolas e brilhantes misturados. Ela se movia como uma mulher jovem e forte, com rapidez e segurança, e sua risada era estrondosa como na juventude. Os olhos pareciam pedaços de âmbar polido e brilhavam com uma luz maldosa. Tony teve de se lembrar de que amava a mãe e a beijou de novo. Ela estava com um perfume francês caro e cheirando ao melhor uísque. Tony disse:
— 0 pai me disse que só bebe cerveja.
— Bem — disse Cornélia, dando de ombros — isso é uma coisa animadora, afinal. Ele nunca soube beber direito. 0 álcool tinha um efeito terrível sobre ele. — Ela deu uma risada alta. — Ele lhe contou que a velha Laura o visita? Acho isso ridículo. Eles sempre tiveram uma coisa um pelo outro. Há anos que sei disso. Há dois anos, ofereci-lhe o divórcio, para ele poder se casar com ela, se quisesse. Ele ficou muito escandalizado, uma tolice. Mas venha para a sala. Estão todos lá.
“Houve um tempo em que ela amava o meu pai mais do que tudo no mundo, provavelmente mais ainda do que a estrada”, pensou Tony. “Mas ele voltou ao que era de verdade, deste modo não sendo mais o homem com quem ela se casara.”
Cornélia deu o braço ao filho e o levou para a sala, já repleta de pessoas da
família e uma porção de estranhos.
— Meu filho, o arcebispo, que em breve será cardeal — foi como Cornélia o apresentou. — Ora, Tony, pare de protestar. Para que é que vai a Roma, então? — Ela se virou para um homem moreno, baixo e meio gordo, com olhos pretos e brilhantes. — Tony, este é George Richberg, de Nova Iorque, dono de todos aqueles jornais. Nós o chamamos de Izzy. Não fique furioso, Izzy. Seu nome era esse, antes de você trocá-lo para George, não era? George escreve todos esses editoriais sobre “o inimigo que surge nos Estados Unidos”; você deve ter lido alguns deles. Ele acha que há comunistas e coisa e tal bem neste país, tramando na clandestinidade e especialmente em Washington. Claro, isso é só coisa de jornal; é bom para a circulação.
Tony, sobressaltado, apertou a mão gorda e forte do homenzinho e olhou bem para os olhos vivos e inteligentes. O sr. Richberg disse:
— Não é só coisa de jornal. É a verdade. Será que... o senhor... sabe de alguma coisa a respeito?
Tony meneou a cabeça. Estava cheio de entusiasmo.
— Parece que dirigir jornais é um negócio extenuante — sugeriu, experimentando.
O sr. Richberg deu de ombros, com eloquência.
— É terrível. Já estou com quase sessenta anos e tive um ataque cardíaco, há seis meses. Gostaria de vender alguns dos meus jornais a um homem mais jovem, que compreendesse a nossa política.
— Conheço um “homem mais jovem” — disse Tony, enquanto os convidados se movimentavam em volta deles. — Meu pai. Deixe que lhe dê o endereço dele. Ele quer comprar um jornal ou dois, talvez mais.
— Eu devia voltar hoje para Nova Iorque — disse o sr. Richberg, guardando com cuidado o cartão de Tony, onde ele escrevera o endereço de Allan. Os olhos dele brilharam. — Seu pai? Allan Marshall? Ele se aposentou, não foi? Quer comprar uns jornais? Que tal umas revistas, também? Vou-lhe dizer... o senhor...
Mas Cornélia voltara de um giro entre os convidados e tornou a pegar o braço de Tony. O sr. Richberg levantou a mão.
— Vou ficar. Vou ver o seu pai amanhã.
Aturdido, Tony deixou que ela o apresentasse a outros estranhos curiosos. Ele agora ia lá tão raramente que queria se imbuir do ambiente da velha casa em que a mãe e ele tinham nascido. Queria passear pelos terraços e cheirar a fumaça da lenha. Queria ver os belos quartos lustrosos, sozinho. Queria ver a altura que tinha o choupo que ele plantara. E, como sempre, sentia falta da irmã. Tinha de se controlar para não procurá-la em algum canto remoto, linda como uma estátua clássica, sorrindo de leve, distante.
Por fim encontrou DeWitt sentado numa poltrona, com a bengala ao lado. DeWitt, que estava com quase quarenta anos e era “o mais jovem presidente de estradas de ferro nos Estados Unidos”. DeWitt agora parecia um gnomo calado, a pele macilenta, sem mostrar a idade, observador, os lábios murchos fixos num sorriso cínico. Quando Tony apareceu na frente dele, ele não disse nada, mas estendeu a mão.
— Olá — disse Tony, com brandura, apertando aquela mão indiferente. Allan achava o filho caçula anacrônico, e Tony, a contragosto, teve de reconhecer que havia certa verdade nisso. DeWitt, embora ainda não tendo quarenta anos, parecia velho, estático e estranhamente antiquado, preciso demais, cuidadoso demais, fixo demais. Os olhos não paravam nunca, mas eram frios.
— Quando foi a última vez que o vi? — perguntou ele a Tom
— Não faz mal, não diga. Você não se interessa mais pela família.
— Então, seus olhos mudaram e tornaram-se acusadores e estranhos.
— Eu pensei que você nunca fosse me esquecer, mas esqueceu.
— Não — começou Tony, debruçando-se sobre ele. Mas Mary Marshall, a cunhada, tinha aparecido, chique, cintilante e perfumada o rosto pontudo travesso como sempre.
— Ora Tony! — exclamou, a voz estridente e desdenhosa. Você progrediu muito, hem? Não feche a cara; os clérigos não devem fechar a cara. Já viu Rufus e Shelley, nossos filhos? Eles sempre tentam escapulir de nós, gente velha, para poderem ir a algum cabaré clandestino onde possam dançar e beber algo contrabandeado. Dizem que Rufus é a cara do velho Rufus DeWitt, que morreu há tanto tempo; lembro-me dele. Mas ele positivamente não tem a personalidade do velho Rufus.
Ela afagou o ombro de DeWitt, displicente, e se afastou, com um copo na mão. DeWitt a viu ir embora e não disse nada. Seu rosto pequeno estava insondável.
Ela disse, numa voz muito baixa:
— Acho que detesto quase tudo. Mas talvez sempre fosse assim, hem,
Tony?
— É, creio que sim — disse Tony, com pesar.
DeWitt ergueu os olhos para o rosto do irmão e eram os olhos de um basilisco.
— A não ser você — disse. — E isso é uma coisa que não entendo. Você foi sempre tão puritano. — Ele levantou a bengala e tocou no hábito preto de Tony. — 0 Miles está aqui. E Field. Chamamos Miles de “dançarino”. Não sei por que; ele nunca dança. Estou vigiando-o. — Ele viu Cornélia se aproximando com um punhado de novos convidados. — Lá vem a velha de novo. Sabe de uma coisa? Acho que ela sempre procurou nos afastar, quando éramos pequenos. Por que será?
“Mas ela sempre procurou afastar todos”, pensou Tony. “Nunca confiou em ninguém.” Ele se encontrou na mesa comprida e reluzente na sala de jantar. Olhou em volta, com satisfação. Nada tinha mudado, ali. Era a mesma prataria pesada, as mesmas cadeiras, e agora de novo a luz das velas. Um fogo ardia na velha lareira e as cortinas azul-marinho e dourado tinham sido puxadas, por causa do frio do outono. Diante de Tony estava Norman DeWitt, estranhamente juvenil e sorrindo de modo cativante como um garoto, em bora já tivesse seus cinquenta anos. Não havia nem traços de grisalho no belo cabelo castanho, nem rugas em volta dos grandes olhos castanhos. Ninguém poderia parecer mais inocente, mais branco, mais interessado do que esse homem estranho, que era tão perigoso.
As senhoras ao lado dele escutavam sua voz suave, interessadas. Ele lhes falava de modo tão cativante sobre banalidades. Mas quando olhava para Tony, os cantos dos olhos se apertavam e as pupilas ficavam paradas e sem vida, como pedras. Por enquanto, ainda não se tinham falado, esse tio e sobrinho. Tony sentia
que entre os dois havia uma geleira traiçoeira, como um campo de batalha.
Tony escutava as conversas frívolas a seu redor. Recordou que, quando era menino, tinha ouvido discussões sérias nos jantares naquela mesma sala. Conversas boas, inteligentes e maduras. Mas agora toda a conversa girava em torno das últimas entregas clandestinas de uísque, o gangster mais recente e espalhafatoso (que as senhoras, moças e velhas, diziam “adorar”), o último escândalo nacional ou internacional, elogios apaixonados ao príncipe de Gales, o assassinato mais recente e notório, golfe e outros esportes, a última tentativa de algum homem ou mulher de atravessar a nado o Canal da Mancha e outras trivialidades semelhantes.
Houve poucas menções, ou nenhuma, mesmo de parte dos homens, sobre a queda da Bolsa e a onda crescente de crise e os boatos sinistros de uma grande depressão nos Estados Unidos. Os homens tinham as fortunas seguras; não haviam sofrido nada de mais grave, embora aqui e ali houvesse um gemido exagerado e divertido sobre os “lucros de papel”.
“Eles não sabem”, pensou Tony, “que este país está às portas do abismo. Se alguns sabem, não se importam. Têm fortunas guardadas em locais inexpugnáveis; os negócios deles não vão sofrer.”
Mas e os milhões de tolos que investiram seus ganhos como funcionários e mecânicos, contadores e caixas, na bolha monstruosa do mercado de ações? Era de dar pena, mesmo que se censurasse essas pobres criaturas, que não tinham tido a inteligência de saber que Papai Noel não existe. E as fábricas, se fechando aos poucos, o cheiro de desastre no ar, a aurora da idade dos homens perversos? Quem sabia, ou, sabendo, se importava?
Tony notou que, como sempre, o incrível magnetismo da mãe atraía olhares involuntários, mesmo no meio das conversas febris na mesa. O jeito dela fazia as outras mulheres parecerem sem colorido. A voz dela atraía o ouvido, fascinado, apesar de sua vulgaridade rouca. Vulgar como era e gritando com frivolidade, ainda assim havia em seus comentários um significado pungente que não existia na conversa das outras mulheres. Por vezes ela pilhava Tony olhando-a e piscava para ele, achando graça. “Então, é possível desprezar as pessoas e assim mesmo inspirar a dedicação delas”, pensou Tony. Depois, refletiu sobre Mussolini e Stalin. Também eles tinham esse dom diabólico. Quem, nos Estados Unidos, num futuro próximo, aparecería com o mesmo dom?
De repente, Cornélia gritou para o filho, do outro lado da mesa:
— Tony! — Pensei que os arcebispos viajassem com um séquito. Onde está
o seu?
Ele respondeu, incomodado:
— Monsenhor Burke e meus dois secretários estão à minha espera no Philadelphia House, mãe. Ele acrescentou: — Partimos para Nova Iorque à meia-noite.
Cornélia piscou para os convidados.
— Isso quer dizer que ele está se aborrecendo — disse ela.
Todos olharam para ele com seus rostos vazios ou curiosos. “Eu não devia ter vindo”, pensou Tony. “Mas minha mãe me convidou — e eu a amo, apesar de tudo.” Ele começou a corar. Viu Miles sorrindo para ele, enigmaticamente, como que simpatizando com ele, e de repente perdeu a aversão pelo parente. Conhecia todas as histórias sobre Miles, sobre sua infidelidade ousada e tranquila, a traição à mulher de cinquenta e um anos, Ruth, sentada tão calada bem longe, à mesa, o cabelo dourado muito grisalho, a cabeça abaixada, timidamente, as feições aguçadas pelos anos de sofrimento. Ele sabia com toda a certeza que Miles nunca sossegaria até conseguir o que quisesse e, de repente, Tony viu que ele o conseguiria. Havia em Miles o ar da juventude forte e viril, uma implacabilidade tão pousada, um tal sossego e inteligência.
Tony viu DeWitt observando Miles com ódio parado e tenebroso. “DeWitt vai perder, é inevitável”, pensou Tony, e teve pena do irmão. Olhou para Fielding Peale, tão desengonçado, tão macilento, tão feio. Fielding estava apreciando o jantar e não fazia caso de ninguém. No entanto, dele emanava uma força primitiva.
Norman DeWitt falou com o sobrinho, pela primeira vez:
— Tony, ouvi dizer que a influência da religião está desaparecendo marcadamente nesses tempos felizes e prósperos. Será que só consegue florescer na desgraça?
Os olhos dele eram brilhantes e interessados como os de um jovem, e sua expressão simpática. Tony o olhou sem responder, por um instante, e todos os traços ascéticos de seu rosto se destacaram.
Ele se lembrou do que lhe dissera um dia um velho padre: “Somente um santo inspirado pode discutir proveitosamente com um homem mau. Esses homens argumentam com premissas materialistas, que todos conhecem e que parecem válidas. Mas você teria de argumentar com premissas espirituais, que são estranhas à maioria dos homens, falsas para muitos outros e ridículas para os ditos intelectuais.”
Tony disse:
— Norman, em primeiro lugar, discuto suas premissas. Esses tempos não são felizes nem prósperos. Nunca foram, a não ser para alguns. Se a religião não está “florescendo”, como diz você, é porque os homens ignoraram ou rejeitaram a lei moral de Deus. Essas ocasiões, ou crises, ocorrem através da História e os homens pagam por elas com o sangue e desespero.
— Que profecia mais lúgubre! — exclamou Cornélia. Ela levantou o cálice de vinho e deu uma gargalhada. — Ao dia do Juízo Final! — gritou.
— Ao dia do Juízo! — responderam os outros, levantando os cálices, rindo com uma cortesia escarninha. Mas Tony e Norman se olharam por cima da mesa e nenhum dos dois riu ou bebeu.
— A lei moral de Deus — repetiu Norman, baixinho, e sorriu. — O que é?
Tony disse, acobertado pelas risadas dos outros, que nada ouviam:
— Você sabe, não sabe? E a lei sempre há de prevalecer; sempre prevaleceu. Lembre-se disso.
Norman não respondeu. Seu sorriso ficou fixo, pensativo e secreto. Ele mexeu um pouco no cálice, para diante e para trás. Então, de repente, tornou a olhar para Tony e este viu todo o ódio e desprezo do tio por ele como padre, como antagonista, como inimigo. Quase chegou a sussurrar: “Não. Desta vez, você não prevalecerá”.
Norman então ergueu o cálice, baixou a cabeça polidamente para o sobrinho e disse:
— Ao dia do Juízo Final.
Somente Tony o ouviu.
Depois do jantar, Tony foi sozinho para a biblioteca e fechou a porta. Ficou ali de pé, os olhos fechados, lembrando-se. Ali, nos dias quentes de verão, o pai trabalhava com seus papéis, quando a família passava uma breve temporada em Portersville. Tony sentia o cheiro do calor e o cheiro eterno do lacre, a grama cortada lá fora, a fragrância do vento soprando dos jardins. Foi para a escrivaninha que o pai usara um dia e abriu-a. Ainda estava lá uma caixa de lacre vermelho, bem usado, e o carimbo de Allan. Tony acendeu o lacre e sua juventude lhe voltou.
Ele não ouviu a porta se abrir e fechar e teve um sobressalto quando uma voz de homem disse:
— Senhor... bem, não sei como devo me dirigir ao senhor, mas acho que estou tendo uma ideia.
Tony virou-se e viu o vulto gorducho de George Richberg perto de si. 0 magnata do jornalismo estava sorrindo, com um ar sutil. Estendeu a mão e Tony a apertou.
— Creio — disse o sr. Richberg — que sei de tudo. Aquele seu tio, Norman DeWitt. E seu pai querer comprar alguns jornais e outras publicações. Vamos ter uma luta tremenda... senhor. Mas sabe disso. O que posso dizer? Boa sorte, boa sorte.
— Havemos de vencer, sr. Richberg — disse Tony. — Sabe, sempre temos vencido.
48
— Já examinamos e reexaminamos isso até dar vontade de vomitar — disse Miles Peale com grosseria para o presidente DeWiti Marshall e para os diretores do conselho. — Não vou pedir desculpas pelo termo, tia Cornélia. Estou vendo que não é preciso — acrescentou.
— É um dos meus favoritos — disse Cornélia. — Mas não concordo com tudo o que você diz, Miles, e nem o DeWitt. Quanto aos outros cavalheiros presentes, não tenho certeza se concordam, tampouco.
Os membros do conselho diretor olharam para os papéis sobre a mesa comprida e nada disseram. Cornélia, em geral tão observadora, não viu que eles trocavam olhares. Mas Miles viu. As rugas fundas junto de seus lábios se descontraíram um pouco. Ele passou a mão delicada pelo cabelo cor de mogno, já meio grisalho. Tornou a examinar os papéis à sua frente. Depois, olhou para DeWitt. “Meu Deus”, pensou, “ele só tem quarenta e quatro anos, é dois anos mais moço do que eu, e está tão obsoleto quanto uma vitória.” DeWitt acabara de dizer, com sua voz precisa e chata:
— Pode ser o ano de 1934, mas acredito que é sempre possível curvar os homens e os fatos à nossa vontade. — E acrescentara um non sequitur: — Tenho a promessa da Standard Oil de nos emprestar dezenas de milhões, se necessário, para a expansão do negócio de cargas.
Miles disse:
— Não creio que emprestem dinheiro algum à Interstate Railroad Company. Estão mais interessados na New York Central, na Pennsylvania e na Union Pacific.
DeWitt sorriu, de modo frio e superior, e não disse nada.
“Devia estar usando uma gravata de seda preta, larga, um alfinete de pérola, um casaco Príncipe Alberto e calças listradas”, pensou Miles. “Ainda pensa na indústria ferroviária como os antigos reis pensavam em seus reinos, em que reinavam com absolutismo e exploravam inteiramente, para lucro da família real. E não havia limite para as possibilidades de exploração.”
— Não devemos nada ao público — disse DeWitt.
— Essa atitude, hoje em dia, em geral termina fazendo o público dizer que também não nos deve nada e levando sua freguesia para outra parte — disse Miles. Ele olhou de esguelha para os diretores e todos, menos Cornélia, menearam a cabeça, quase imperceptivelmente.
DeWitt deu de ombros. Estava brincando com a ponta da bengala.
— Estamos indo muito bem com o negócio de cargas — disse — a despeito de... tudo. Modernizamos tudo, até o máximo; temos dez reboques de primeira linha operando eletricamente, além disso, mais do que qualquer outra estrada de ferro. 0 nosso equipamento é perfeito.
Ele olhou para Miles com um ódio gélido.
— Quanto ao serviço de passageiros, permita lembrar-lhe que instalamos ar-condicionado em alguns de nossos trens.
Miles disse:
— Isso não altera o fato de que nosso serviço de passageiros, como acontece com as outras estradas, é horroroso. Pullmans velhos, obsoletos, chocalhando como vagões de carga. Ah, alguns não são tão ruins, mas são a minoria. Em geral, os passageiros ainda estão sujeitos à fumaça e às cinzas, nos pullmans. Quanto aos vagões comuns, pertencem à década de 90, ou mesmo 80. Velocidade? Ah, sim, fizemos maravilhas em matéria de velocidade. Você sempre me lembra isso. Uns dez por cento de nossos trens de passageiros fazem uma média de mais de cento e dez quilômetros por hora; e nisso balançam as pessoas como o diabo. Velocidade, diz você. Não ouviu falar? As linhas aéreas, já estão começando a profetizar grandes novidades, num futuro muito próximo; velocidade sem sujeira; economia; carga aérea também.
— Você acha mesmo que as linhas aéreas algum dia serão um concorrente sério? — perguntou DeWitt, dando sua risadinha de desdém. — Em matéria de passageiros ou de carga?
— Os caminhões já constituem uma grave ameaça para nós — disse Miles. — Isso quanto ao negócio de cargas. Quantas vezes tenho de falar isso com você? Devemos nos concentrar no serviço de passageiros, se quisermos sobreviver. Temos de usar vagões de alumínio ou aço inoxidável, leves, velozes, assim que pudermos, para competir com as linhas aéreas. As outras estradas de ferro sabem disso; só nós é que não sabemos.
DeWitt olhou para a mãe, que sorria com ironia. Ele disse:
— Miles, onde é que vamos arranjar o dinheiro? Vamos examinar essas cifras de novo? Antes da queda da Bolsa, em 1929, nossas ações eram vendidas por cento e dez dólares e agora estão por vinte e oito e meio? Que dividendos?
— Olhe — replicou Miles, secamente — eu também tenho ações desta companhia. Sei tudo sobre os dividendos. Mas nós temos as nossas fortunas pessoais, separadas da companhia. Devíamos usar grande parte delas para
modernizar o serviço de passageiros.
— Que ótimo — disse Cornélia. — Quanto a mim, não poria um centavo de meu dinheiro nessa coisa. Pode me chamar de pouco progressista, se quiser, Miles, mas é isso que penso. DeWitt?
— Isso nem se fala — respondeu o filho.
Os diretores não disseram nada. Miles suspirou.
— Vou-lhes dizer, dentro de muito poucos anos as linhas aéreas serão sérias concorrentes nossas pelo serviço de passageiros. As nossas cargas vão indo bem agora, a despeito da crise; mas a indústria de caminhões está minando isso constantemente e as linhas aéreas também vão tirar o seu quinhão. Nós não só precisamos começar a modernizar o nosso serviço de passageiros; devíamos começar logo a lançar um vasto programa de educação pública sobre as vantagens de se viajar de trem. — Como ninguém comentasse nada, ele continuou: — Os tempos dos autocratas já se foram e com isso teremos um progresso de verdade. Não se pode mais tratar o público apenas como uma fonte de renda imediata. Temos de considerar o programa a longo prazo. O povo está lendo mais; compreende mais coisas. Exige um bom serviço e tem direito a ele. E só conseguiremos sobreviver se considerarmos esse direito.
— Você fala como um dos conselheiros de Roosevelt — disse Cornélia, com uma gargalhada que, curiosamente, só foi repetida por DeWitt. Ela pôs um cigarro na boca e seu vizinho o acendeu para ela. Ela jogou uma baforada em cima de Miles. — Será que virou adepto do New Deal, menino?
Miles se controlou.
— Não — disse, com calma. — Mas o que sei é que se continuarmos como estamos indo, vamos dar com os burros n’água. Não devido ao pessoal do New Deal; só por nossa culpa. Ou nos modernizamos, preparamos-nos para enfrentar a ameaça das linhas aéreas, ou estamos liquidados, com cargas ou sem cargas. — Ele apontou para DeWitt. — A despeito da carga, estamos em sérias dificuldades, você sabe disso. Pensa que alguém, inclusive a Standard Oil, nos emprestará dinheiro por um equipamento que está ficando cada dia mais obsoleto? Pensa que alguém está interessado em apenas aumentar nossas fortunas pessoais, de modo que no final estaremos cheios de dinheiro e a estrada um monte de ferro velho? As organizações que emprestam dinheiro olham para o futuro, não para o passado.
Ele colocou as mãos quase femininas na mesa; e eram mãos de poder; a maior parte dos diretores olhou para elas, fascinados.
— Temos de fazer o que outras estradas de ferro já estão fazendo: planejar, pelo menos. E executar esses planos. Depois que tivermos um programa, poderemos pedir emprestado, mesmo que não usemos o nosso dinheiro. É isso. Ou vamos em frente, ou voltamos para trás.
— Você continua a falar como o pessoal do New Deal — disse Cornélia. — Quando derrubarmos o Roosevelt, em 1936, os negócios vão continuar como sempre.
— Nunca continuaram — disse Miles.
DeWitt levantou-se.
— Eu me oponho a tudo isso, e a minha mãe também. Cavalheiros, queiram nos dar licença.
Cornélia levantou-se, maravilhosa com seu costume de seda branca e chapéu estilo Eugénie, com plumas. Ela dirigiu toda a força de seu magnetismo para os diretores calados, sem fazer caso de Miles.
— Acho que ainda temos bastante bom senso por aqui. Estou confiando em vocês, rapazes.
Eles se apinharam em volta dela, admirando-a: só Miles notou a fixidez dos olhos deles, a despeito da admiração. Ela saiu com DeWitt, dominando o filho como um colosso feminino. Ao sair, bateu a porta.
Os diretores, com exceção do velho sr. Hill, que estava quase com oitenta anos, eram todos homens vigorosos, com seus cinquenta a sessenta e poucos anos. O sr. Hill ficou ali sentado, piscando os olhos remelentos, e disse:
— Cornélia é uma ferroviária. Sempre foi. Era o braço direito do pai; jamais cometeu um erro. Acho que estou me convencendo do que ela diz; sinto muito, Miles.
— Está bem — disse Miles, educadamente. — Eu não discutiría com o senhor por nada no mundo, sr. Hill.
O velho piscou para ele, com carinho.
— Você ainda é um rapazinho, Miles, só tem quarenta e seis ou quarenta e sete anos. Acho que terá de continuar a aprender conosco, que somos veteranos, por mais um pouco. Linhas aéreas? Fantástico. Mas hoje existe no ar uma tal inquietação; não há estabilidade, nem raciocínio, nem planejamento, nem uma cautela sólida.
— Muito bem, sr. Hill — repetiu Miles. Ele acendeu um cigarro e por trás da fumaça seus olhos muito azuis brilharam. O sr. Hill tossiu, olhou em volta e se levantou.
— Tenho de voltar para casa. O meu trem parte em menos de quarenta e cinco minutos. — Ele concluiu, com a voz rouca e afetuosa: — O meu bom trem, como todos aqueles ótimos pullmans “obsoletos”. Progredimos muito.
Depois que ele se retirou, houve uma agitação entre os outros diretores. Fielding Peale disse:
— Bem, Miles. E agora?
Miles respondeu:
— Muito simples. DeWitt deve sair. E quanto antes melhor. Estou estudando os últimos detalhes agora.
Os diretores deram um suspiro de alívio.
— A velha Cornélia talvez já tenha tido idéias excelentes; pelo menos, é essa a história da companhia. Mas agora só pensa no dinheiro dela; isso tornou-se um fetiche para ela. Isso e o ódio que tem por Roosevelt... a despeito de seu irmão Norman. Há pouco ela disse, num jantar, que o Departamento de Estado e o Ministério de Comércio sabem “manipular” Roosevelt direitinho. Tenho a impressão de que isso é verdade, para azar de Roosevelt, e nosso, a não ser que o povo desperte a tempo. — O diretor acrescentou: — Uma pena. Ela sempre foi um símbolo para nós, da estrada. Mas DeWitt devia sair da empresa com seus antepassados.
— Dêem-me um pouco mais de tempo — disse Miles. Ele olhou para cada um, devagar e com cuidado. — Com a ajuda de vocês, o extermínio poderá
prosseguir.
Cornélia e DeWitt estavam indo de Filadélfia a Portersville. Cornélia disse:
— Acho que atrapalhamos o jogo de Miles, por um pouco. Permanentemente, eu diria. Na hora de um voto sério, venceremos.
— Claro — disse DeWitt. Ele acreditava nisso firmemente. — Mas eu daria vários anos de vida para tirá-lo de lá.
— Não podemos — disse a mãe. — Portanto, não adianta sonhar. Mas podemos torná-lo impotente. Impotente. Uma boa palavra antiquada. — Ela deu uma risada espalhafatosa. — Em mais de um sentido, DeWitt. Embora Ruth já fosse de meia-idade quando eles se casaram, ela poderia ter dado a ele um ou dois filhos.
DeWitt disse, com indiferença:
— Parece que duas outras mulheres deram. Uma em Nova Iorque e outra em Paris.
A mãe não podia acreditar. DeWitt continuou:
— Podíamos usar isso contra ele, se for necessário.
Cornélia tornou a rir.
— DeWitt, você é precioso! Parece um melodrama antigo. Você pensa mesmo que a revelação da “inconstância” de Miles, segundo a velha palavra, seria perigosa para ele? Pensa que os nossos diretores se importariam com isso? DeWitt, não está falando sério!
O calor do dia de verão não era tão forte em Portersville. Um vento fresco soprava das montanhas e do rio. Outro carro foi ao encontro da limusine preta em que Cornélia e DeWitt tinham viajado.
— Tem certeza de que quer ir ver o velho? — perguntou DeWitt, enquanto o chofer o ajudava a passar para o outro carro. — E para quê?
— Umas ninharias — disse Cornélia, vagamente. — Vá indo para casa; volto para o jantar. Lembre-se, vamos para Newport amanhã. — Ela acrescentou, debruçando-se da janela do carro: — Diga ao Rufus para não sair hoje à noite, quero falar com ele. Já está com quase vinte anos e é bom começar a pensar na ferrovia.
Ela foi levada depressa pelos campos. Estava fumando e cantarolando, mas havia uma ruga na pele áspera entre seus olhos. Progresso, dissera o idiota do Miles. Quem é que sabia mais sobre o progresso do que ela? “Cornélia está sempre no dia depois de amanhã”, dizia o pai dela, com carinho. Ela então pensou no jovem Rufus, seu neto, que se parecia tanto com o bisavô. Podia ser um bandido emburrado, mas não tinha nada de bobo. Podia não ter o encanto e o poder do bisavô, mas era pertinaz e inteligente. Um dia seria presidente da Interstate Railroad Company. Em breve se diplomaria por Harvard. Depois entraria para a companhia e todo o ciclo agradável recomeçaria. Ela, Cornélia, estava apenas com sessenta e oito anos. Ela se empertigou no carro, não dura, mas com facilidade e vivacidade de uma mulher muito jovem. Seu caminho ainda era longo.
Allan ficou surpreendido ao ver o carro dela parar diante da casa da fazenda. Não via a mulher fazia quase dois anos, pois ele viajava muito e tinham perdido o pouco contato que ainda restara entre os dois. Ele foi até a porta e depois seguiu pelo caminho para recebê-la. Cornélia tinha sessenta e oito anos, com a cara de uma megera animada, pintada, mal-educada e cheia de uma força indomável. Suas plumas brancas esvoaçavam na brisa; seu andar não era o andar de uma velha: era gracioso e vigoroso. Andando ali para junto de Allan, levantando a mão enluvada, num cumprimento, o sol quente bateu em seus olhos e eles pareciam os olhos perversos e famintos de uma jovem leoa.
Ela estendeu a mão para Allan, sorriu para ele e disse:
— Espantado? Só vou ficar uns minutinhos. Mas como você está bem! E está com setenta e seis anos. Podia passar por sessenta no máximo, Allan. O seu trabalho deve lhe fazer bem. — Ela inclinou a cabeça e apertou os olhos, troçando. — Lochinvar. Quem diria, em outros tempos?
Ela deu o braço a ele, como fizera tantas décadas antes, e entraram juntos na casa antiga.
— Está fresco aqui dentro, graças a Deus — disse Cornélia. — Em Filadélfia estava um forno. O quê? Ah, tivemos uma daquelas maçantes reuniões de diretoria. Nada de importante. Não que você ainda se interesse. Malditas cadeiras de crina! Desfiei a meia.
Os tornozelos dela ainda eram muito bem-feitos. Ela cruzou as pernas, descontraída, e pareciam as pernas de alguma atriz glamourosa. Pegou uma cigarreira de ouro da bolsa branca e antes que Allan pudesse se mexer, acendeu o cigarro com um isqueiro de ouro.
— Não sei como é que você consegue viver numa ruína velha como esta — disse ela. — Você que gostava da nossa casa quase mais do que de tudo. Lembra-se do dia em que nos conhecemos? Conversamos; não me lembro do assunto. Mas de repente você olhou para a casa, no alto, e havia alguma coisa em seus olhos e eu sabia que você sentia o mesmo que eu quanto a ela. E foi então que me apaixonei por você. Ah, Deus — disse ela, sorrindo para ele. — Você agora nem pensa mais na casa, não é?
— Não — disse Allan. — Acho que nunca vivi lá.
— Pelo amor de Deus, não vamos ser enigmáticos — disse Cornélia, agitando o cigarro e franzindo a testa. — Sempre detestei as sutilezas. Tem alguma coisa que se beba nesse buraco que chama de cozinha?
Allan lhe levou um uísque com soda, que ela contemplou satisfeita. Ele pegou para si uma garrafa de cerveja. Cornélia bebericou
— Um bom uísque — comentou e olhou em volta. — Como é que você aguenta esse lugar monstruoso, só com uma empregada?
— Não passo muito tempo aqui, Cornélia. — A voz dele era vibrante como a de sua juventude. — Vou a toda parte, sempre apressado. Mas em agosto devo tirar umas férias. Vou visitar o Alex na Inglaterra e conhecer a moça simpática com quem vai se casar. Lady Elizabeth Scott-Hardley.
— Eu sei — disse Cornélia. — Conhecemos a família dela na primavera do ano passado. “Moça simpática” é o termo. Uma desmazelada. Como a maior parte das inglesas. Mas a família católica tem dinheiro, o que é uma raridade na Inglaterra, depois da guerra. Ora, nem venha me dizer que Alex não se casa com ela pelo dinheiro; é um rapaz sensato, portanto claro que é por isso. 0 pai se casou com Dolores pelo dinheiro dela, não foi?
Allan não respondeu. Bebeu a cerveja, devagar. Estava em mangas de camisa e com os dedos manchados de tinta. O cabelo espesso e branco reluzia na
penumbra fresca da sala. Ele especulava por que Cornélia teria ido visitá-lo. Ela nunca fazia nada sem pensar muito. Ela estava sorrindo para ele de novo.
— Como vai a Laura? — perguntou.
— Não a vi, desta vez — respondeu ele, sem sorrir.
Cornélia bebeu um bom gole.
— Sabe — disse ela, depois de uns instantes — você nunca teria se casado com Laura. Na verdade, você não a amava. Para você, ela foi apenas “o mármore frio e inatingível”. Você gostava de tê-la como um ponto de referência nessa sua pobre cabeça quente, uma coisa sagrada, como uma santa. Um santuariozinho onde pudesse se recolher, quando eu às vezes ficava demais para você. Não é isso?
Cornélia meneou a cabeça.
— Mas Laura o amou de verdade, a pobre coitada. Ela deve ter dado uns maus momentos ao Pat. Ouvi dizer que ela se parecia muito com o pai, o meu tio Steve. Lembro-me um pouco dele. Gostava dele, se bem que a gente não conseguisse se lembrar bem de como ele era, nem dez minutos depois de vê-lo. Não tinha personalidade. Laura é igualzinha a ele. E ela o amou de verdade. É por isso que você hoje a considera um consolo. Sem dúvida, ela pensa que você nunca me amou. Mas você me amou, sim.
Allan estava mudo de choque. De repente, ele se deu conta de que Cornélia dissera a verdade. Laura era agora o seu “consolo”, o seu “santuário”. Mas Cornélia fora o seu amor, a despeito de tudo o que ela sempre fora.
— Como os homens são românticos, por mais velhos que sejam! — disse Cornélia. — Sinto muito se acabei de derrubar mais uma de suas ilusões, meu bem. Você parece muito abalado.
— Deixe-me servir outro drinque — disse Allan.
Cornélia ficou olhando enquanto ele saía da sala, rindo sozinha, e acendeu outro cigarro. Quando Allan voltou, viu que ele colocara gravata e paletó. “Agora, vamos ser cerimoniosos”, pensou, achando graça. Por que seria que quando os homens queriam se afastar de assuntos pessoais sempre vestiam paletó e punham gravata? Isso os fazia se sentirem menos vulneráveis? DeWitt era vulnerável. Nunca ninguém o vira sem que ele estivesse vestido de modo impecável e formal. Um dia Cornélia lhe perguntara, ao jantar, se, como os maometanos aristocratas, ele ia para a cama com a mulher todo vestido e de luvas.
Cornélia deu notícias da família e Allan escutou, educadamenre. Só tinha adquirido um dos gestos dos velhos: mexia com os dedos contra os polegares, como se estivesse rolando comprimidos.
— Mas naturalmente você não se interessa muito pelos seus netos, a não ser o Alex — disse Cornélia. — E isso me deixa intrigada. Você não gostava nada do Dick, nunca pôde suportá-lo.
— Está enganada — retrucou Allan. Ele pensou naquele dia, tanto tempo atrás, em que ele e Richard, lorde Gibson-Hamilton, tinham conversado, num amanhecer inglês. Ele agora se lembrava muitas vezes do jovem inglês; lembrava-se da luz da manhã sobre seu rosto bondoso e acanhado e a firmeza ressonante em sua voz no final, quando ele reafirmara sua fé em Deus e nos homens. — Você está enganada — repetiu enquanto Cornélia o fitava, espantada. — Eu gostava dele; ainda gosto.
Uma expressão estranha passou pelo rosto de Cornélia, quase como um
alívio.
Um bom rapaz — comentou ela, com displicência, olhando para o cigarro. Por alguns momentos ficaram ali calados, pensando em Dolores e no marido.
— Eu queria — disse Allan, quase sem se fazer ouvir — que meu irmão Mike pudesse tê-lo conhecido. Eles teriam muita coisa em comum.
— Ah, sim, o seu irmão — disse Cornélia, sorrindo quase com brandura. — Ele me contou tanta coisa de você, quando DeWitt esteve doente. Uma pena que ele não passasse de monge. Morreu há alguns anos, na índia, não foi? O que é que leva os homens a serem missionários, afinal? Um psiquiatra me disse que fazem isso para compensar alguma culpa em sua juventude, ou outra coisa igualmente ruim.
Uma onda de raiva começou a dominar Allan. Ele se lembrou a tempo, que seu amigo George Richberg lhe avisara para economizar suas raivas para as ocasiões necessárias. Também se lembrou do que o médico lhe dissera, ainda um mês antes. Portanto, engoliu a raiva e respondeu, com calma:
— Isso é tolice. Não posso me lembrar de nenhum vício em Mike. Mas, você não poderia compreender. Há homens que preferem, acima de tudo, servir a Deus. O amor deles por Deus é tão tremendo que é a única coisa em suas vidas.
Cornélia riu-se.
— Sabe, eu nunca me acostumo com o jeito de você falar de Deus com tanta facilidade e naturalidade. Você certamente está muito mudado... Deus? Que Deus? Um resquício de superstição primitiva.
Allan não respondeu. Cornélia o estava provocando, como sempre o provocara. Ele se distanciou dela. Mas ele a amara. Ainda a amava? Ele examinou-a seriamente, o rosto envelhecido mas fascinante, a fibra, o magnetismo, o encanto. “Imagino que ainda ame Cornélia”, pensou. De repente, ele teve pena daquela mulher robusta, animada e vulgar, que nunca tivera compaixão por ninguém na vida — “a não ser talvez por mim.” Ele lhe seria eternamente grato por aquela ternura, que agora a abandonara para sempre. Ele teria sempre pena de Cornélia, pois uma parte dela fora truncada, ou não fora incluída na sua personalidade.
— Vi o Tony três vezes, neste último ano — disse Cornélia. Ela estava ficando agitada e olhou para o relógio de brilhantes no pulso. — Ele se queixa de que jamais consegue se encontrar com você; quando ele está em Roma, pensando em encontrá-lo, você está em Londres. Quando ele está em Nova Iorque, você está em Los Angeles. E assim por diante.
— Ele me telefona pelo menos duas vezes por semana — disse Allan. — E escrevo sempre para ele.
Mas o espírito inquieto de Cornélia já se desviara.
— Não posso me conformar com seu aspecto tão jovem — disse ela, pensativa. — Por falar nisso, me disseram que o Miles agora gosta de você e às vezes o visita aqui.
— É verdade — disse Allan, fechando a cara.
Cornélia bebericou seu drinque e seus olhos castanhos se arregalaram, olhando fixamente por sobre a borda do copo.
— Estamos tendo uns probleminhas com o Miles. Ele hoje tem as idéias mais extravagantes. Assume autoridade demais, embora seja apenas o vice-presidente executivo. Mas eu... DeWitt é bem capaz de controlá-lo.
— Você está tentando descobrir sobre o que eu e Miles conversamos? — perguntou Allan, sorrindo meio pesaroso. — Você não é nada sutil, Cornélia. Mas não pretendo lhe dizer. Sabe, a ferrovia não me interessa mais. Só a mencionamos brevemente. Falamos de outras coisas.
— Foi o que pensei — disse Cornélia, largando o copo. Agora a expressão dela estava muito desagradável. — E isso me leva ao motivo de minha visita. Vou me divorciar de você, Allan, por abandono, crueldade mental e todas as outras coisas que os meus advogados puderem inventar. Aliás, parto para Reno muito breve.
— Divorciar-se de mim? — perguntou Allan, sem acreditar.
— Você ficou maluca, Cornélia? Você já está chegando aos setenta e eu estou no fim dos setenta. Para que um divórcio? — Ele a fitou.
— Você não está pensando em se casar de novo, com a sua idade, está?
— Bem, isso é um elogio, mesmo. Os meus médicos me dizem que minha idade biológica é de uns quarenta anos. Posso viver quase para sempre e pretendo fazê-lo. Não, vou me divorciar de você por um motivo bem diferente. Você hoje é um fator de constrangimento para mim. Sua ligação com aquele jornalista judeu de Nova Iorque, Izzy Richberg... você com os seus jornais e ele com os dele gritando “alerta” o tempo todo! Você escrevendo um editorial semanal para as folhas berrantes dele. Realmente, “com a sua idade”, citando as suas palavras, é ridículo. Um cruzado. Eu nunca apreciei o Izzy; francamente, acho que é um sensacionalista e é perigoso ser sensacionalista contra o atual governo, hoje em dia.
Allan estava muito corado.
— Muito interessante — disse, controlando a voz. — Então parece que, pela primeira vez na história deste país, é “perigoso” discordar do partido no poder. Não acredito. Não creio que Roosevelt seja esse tipo de homem. Não concordo com muitas das idéias dele... mas, afinal, ele respeita a Constituição.
— É perigoso discordar, sim — disse Cornélia. — Uma pessoa sensata reconhece os fatos. Roosevelt? Quem liga para ele? Há gente poderosa por trás dele que o manipula.
— Sobre isso eu sei mais do que você — disse Allan. — Sei de tudo sobre essa gente. 0 sr. Roosevelt não sabe. Se algum dia souber... isso poderá matá-lo. E nosso dever informá-lo. Para alertar o país. Não posso falar sobre isso com você, Cornélia, pois ou vai zombar de mim, sem acreditar, ou vai saber exatamente o que quero dizer, e assim mesmo vai zombar para procurar me desviar.
— Ele parou e olhou para ela, sério. — 0 seu irmão, Norman. Assistente do ministro do Comércio, Departamento Europeu. E encarregado, como você sabe, de designar os adidos comerciais para as embaixadas europeias.
“Foi nomeado para esse cargo na suposição de ser um ‘liberal'. Mas você e eu sabemos perfeitamente o que ele é. Agora há centenas do tipo dele em cargos do governo em Washington. Como chegaram lá? Como conseguiram se infiltrar em todas as posições importantes, que terão uma influência tremenda na nossa política interna e internacional? Quem são os vilões que os procuraram, os nomearam? Quem são os muitos homens invisíveis que odeiam os Estados Unidos
de tal modo que querem destruí-los? Pretendemos denunciá-los, todos eles.
Os olhos de Cornélia se apertaram, olhando para ele, até se tornarem fendas amarelas e brilhantes. Ela ficou sentada, calada e pensativa, uns instantes. Depois disse:
— Você não sabe o que está fazendo, ou talvez saiba. Tudo o que você diz em seus jornais, e tudo o que diz o Izzy, é motivo de troça de parte do povo americano. Mas os homens que você ataca não estão rindo; estão querendo pegá-lo. Têm meios de destruu homens como você e o Izzy e estão preparados para usá-los.
— Foi Norman quem lhe disse isso?
Cornélia apenas sorriu. Deu de ombros e bebeu.
— Não me venha falar de “liberdade de pensamento e de imprensa” — disse ela. — Um dos jornais mais poderosos de Nova
Iorque tem ódio de você e do Izzy; é raro sair um exemplar sem um ataque a vocês e suas idéias. Ataques inspirados, é como você os chamaria. Eu sou realista. Não quero participar na sua ruína. Não quero ser ligada a você, nem mesmo pelo nosso casamento. A ferrovia corre perigo, pelo simples fato de você ser meu marido, embora se tenha aposentado. Lembra-se do jornal de domingo passado? Trouxe um violento artigo de Gregory Sanders, sobre você. “Malfeitor de grande fortuna, que se opõe a todas as reformas progressistas e liberais... Reacionário milionário.” E coisa e tal. Isso é perigoso para a ferrovia. Sim, Norman já me avisou. Repito, sou realista. Os realistas não mudam a História, mas aceitam-na.
Allan virou-se para a mulher.
— Norman? Ele lhe avisou, é? E o que Norman lhe promete quanto à ferrovia? Pois lhe prometeu alguma coisa.
Cornélia ficou virando e revirando o cigarro nos dedos.
— Vou ser bem clara com você, Allan. Não gosto dessa situação, como você não gosta. Imagino que o que me contou seja verdade. Mas, novamente, sou realista e a ferrovia significa mais para mim do que qualquer outra coisa no mundo, como sempre foi. Se eu me divorciar de você... e reconheço que não me importo nem um pouco com essa ideia... a estrada não tornará a ser mencionada com relação a suas atividades. Norman me prometeu isso. Como o detesto! Como sempre detestei!
Por um instante, a fisionomia de Cornélia ficou violenta e Allan se chegou para junto dela, quase sem querer, com a mão estendida. Mas ela não a pegou; sacudiu a cabeça, rejeitando.
— Desculpe se fiquei emotiva por uns minutos. Temos de aceitar o fato de que no momento há centenas de Norman no poder em Washington. Não ousamos irritá-los, quer sejamos magnatas de estradas de ferro ou lojistas. Eles estão resolvidos a silenciar todos seus inimigos. Não quero ser marcada como um deles, sendo casada com você.
— E isso são os Estados Unidos — disse Allan, baixinho.
— É um novo país — disse Cornélia. — É a nação que você profetizou que surgiría, há séculos, parece. Você tinha razão. Estou sendo realista, quero me adaptar a ela. Se eu me adaptar, e outros como eu, seremos poupados na “nova ordem futura”, como Norman a chama.
Allan sentou-se, olhou para ela e de novo sentiu compaixão.
— Então, os Estados Unidos não significam nada para você?
— Não especialmente, meu bem. Mas o meu dinheiro, sim.
Allan suspirou.
— Não vou me opor ao divórcio, Cornélia.
— Que bom. Eu sabia que não se oporia. Não poderia, mesmo. Você me abandonou. Mas achei que lhe devia isso, contar-lhe prineiro, levando em conta os maravilhosos anos de juventude que tivemos juntos.
Então, o rosto de Cornélia se abrandou. Ela estendeu a mão e a pôs no joelho dele.
— Meu bem, meu bem — disse e ficou calada um pouco. — Allan, não é tarde para parar o seu trabalho. Você tem a sua Fundação para a Preservação Constitucional. Despeja dezenas de milhares de dólares nela, regularmente, e tem uma porção de homens poderosos como você para contribuírem. Você cobre o país com folhetos e livros “indeterministas”. Publica folhetos e até um jornal em nome dela. Norman detesta essa fundação mais do que tudo o que você faz.
— Que bom — disse Allan, levantando a cabeça, em triunfo.
Você não poderia me dar uma notícia melhor. Um dia desses o
Norman vai enfrentar o Senado e seus acusadores dele estarão lá; e com ele estarão centenas de homens iguais. Um dia desses o povo saberá de tudo sobre ele e sua laia... por meio do trabalho de homens como eu e George Richberg; pelo trabalho de nossa fundação. Pelas dezenas de bons oradores que espalhamos por todo o país. Os Norman não conseguirão nos calar. E um dia desses vão comparecer diante da nação que traíram e responder pelos seus atos.
Ele sorriu para Cornélia.
De certo modo, fico contente que você peça o divórcio. Aí, não terei de lhe deixar coisa alguma. Já fiz um testamento, deixando a maior parte de meus bens para a fundação, bem como meus jornais. A família está em boa situação e tem suas fortunas próprias.
— E pretendemos conservá-las. — O fio vermelho escuro que eram os lábios de Cornélia se torceu. — Com o auxílio clandestino de Norman.
Ela se levantou e Allan também. Ela o contemplou, com calma, e seus olhos castanhos estavam muito parados. Depois, ela passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou nos lábios, com muita simplicidade. Ele a abraçou. Não tinha certeza, mas pareceulhe sentir certa umidade na face.
— Adeus, meu bem — disse Cornélia. — Adeus... Allan.
Allan trabalhou até tarde da noite num folheto que estava escrevendo, num editorial que preparava para um dos jornais mais influentes de George Richberg e num editorial que terminava para um de seus próprios jornais. Os lampiões de querosene amarelos faiscavam; a Lua branca e redonda espiou pelas janelas; grandes mariposas amarelas e milhares de outros insetos rastejavam ou esvoaçavam contra as telas.
Os pássaros noturnos piavam aos céus; as árvores murmuravam sem parar, numa linguagem antiga. Allan continuava a escrever. De vez em quando pegava, distraído, um vidro de comprimidos e tomava um, especialmente quando a conhecida dor e dormência no peito aumentava, com o seu cansaço. Por uma ou
duas vezes ele pensou: “Esse meu maldito corpo velho! Sou um homem jovem de espírito e podia trabalhar para sempre. Mas essa carne murcha me atrapalha.”
Às dez horas da noite George Richberg lhe telefonou de Nova Iorque. Allan gostou de ouvir aquela voz cheia e resoluta, que tinha em si tanta resistência, tanta coragem.
— Quando é que vamos ter esse editorial? — perguntou ele, com seu jeito ditatorial e carinhoso. — Bom, não foi para isso que telefonei. Só estava aflito por você. Por que não vem passar umas férias curtas na minha casa no Maine? Não tem tempo? Que bobagem! Eu estou aqui, com um coração podre, e trabalho que nem um burro, mas às vezes tiro férias. E sou mais moço do que você. — Havia um tom de ansiedade na voz dele. — Olhe, não podemos deixar que você nos morra aí, ou coisa que valha, Allan. Prometí ao Tony...
Allan franziu a testa.
— Prometeu ao Tony? Ele parece uma velha. Estou me sentindo muito bem de saúde, George. — Ele contou ao amigo toda a conversa com Cornélia naquele dia. George escutou sem interromper. Depois disse:
— Coitada. E pense também nos pobres coitados como ela, na mesma situação. Não sabem que são os primeiros nas listas de liquidação... se esses demônios realmente controlarem o país. Espero que você não esteja muito preocupado com o divórcio. Leve as coisas com calma, sim?
Quando desligou, Allan tinha uma sensação gratificante. Sua solidão desaparecera. A noite estava cheia da presença de seus amigos, por toda parte, homens que estavam trabalhando como ele trabalhava. Coragem, coragem, disse-lhes ele. Não desesperem. O inferno nunca prevalece. Mas não podemos esmorecer, nem por um momento. O inimigo não esmorece; a cabeça dele está sempre fresca e clara e focalizada sobre os planos mortíferos que tem para o mundo. Ele não bebe, pois quer estar consciente, em todos os momentos, de tudo o que se diz a respeito dele e quer ver tudo o que há para ver. Se precisarem beber por prazer ou por um dever social, certifiquem-se de sua companhia, pois o inimigo tem mil ouvidos e mil olhos; tem o dom da ubiquidade. É uma personalidade distinta, severa, rígida, cruel e friamente intelectual e odienta; nasceu como é; nunca poderá se modificar. É velho como a morte, velho como o mundo, mas cada geração o vê renascer. Fiquem à espreita por ele, mas tenham coragem. Vocês são mais fortes do que ele, pois Deus está com vocês.
Allan tornou a pegar a caneta e recomeçou a escrever depressa. No seu editorial para o maior dos jornais de George Richberg ele escreveu: “Votei em Franklin Delano Roosevelt porque ele declarou que todo poder político que se entrincheira por tempo demais se torna um perigo para as instituições livres. Concordo com ele. Devia haver uma lei proibindo qualquer homem de ser eleito para presidente mais de duas vezes. Não é provável que a tradição estabelecida por George Washington algum dia seja violada, mas receio que se tente isso. Um terceiro mandato é inimaginável para o povo americano, neste momento; ele pode não achá-lo inimaginável no futuro. Aí está o perigo. Um presidente, nessas condições, não é mais o líder de seu partido: é seu escravo. Também se apresenta a oportunidade, a certos elementos de seu partido, de promoverem seus desígnios mais sinistros — e existem desígnios sinistros entre os homens sinistros de qualquer partido político. Um poder prolongado os ajuda a levarem esses desígnios à sua conclusão final...”
O iuar inundava a sala, mas em algum lugar ao longe havia o som do trovão, como se mão gigantesca estivesse virando sobre a terra.
Allan pegou o folhetinho escrito por Norman DeWitt seis meses antes, em que ele exprimia a sua fria aversão pelo presidente. “Embora não seja civilizado escarnecer de um homem por um defeito físico, é opinião de muitos que Franklin Delano Roosevelt é um símbolo, na sua pessoa, da deformação distorcida e insalubre do capitalismo.”
No entanto, pensou Allan, lá está ele, num cargo alto e poderoso do governo. Quem é tão forte nesse governo para mantê-lo onde está? Ele pensou nos homens maléficos trabalhando sem cessar por trás da fachada do governo constitucional, homens cujos nomes ainda não eram conhecidos, salvo para alguns como ele. Pensou nos seus seguidores, que já estavam ensinando a corrupção nos colégios seculares em cada canto da nação, que já estavam assumindo o controle dos meios de comunicação públicos através do rádio, livros, colunas de jornal e fitas de cinema, que se metiam silenciosamente nas escolas públicas dos Estados Unidos, armados com sua filosofia monstruosa de ódio, inveja e assassinato.
Suas criaturas tinham escrito sobre o primeiro ministério de Roosevelt: “O novo ministério de Wall Street, da fome e da guerra... Sim, o New Deal pode-se revelar um fascismo. O liberal sorridente e borrachoso da Casa Branca está destinado a destruir todos os outros liberais americanos”.
Mas agora estava-se efetuando uma mudança na propaganda, sutilmente. Começara com o reconhecimento da Rússia pelos Estados Unidos; tomara força com o aparecimento de Hitler. Os homens perversos e ocultos — tão risonha e desastrosamente menosprezados pelo presidente, com toda a sinceridade dele — estavam-se preparando para utilizá-lo e ao seu partido para atingir os seus próprios objetivos terríveis. “Por que ele não vê isso?”, pensou Allan, em desespero. “Como pode acreditar que sejam um grupo tão pequeno, tão impotente? Contam-se aos milhares. Não há lugar no mundo que não mostre as lesões de sua moléstia.”
De repente, surgiu um clarão vermelho nas janelas e um rugido do céu. As árvores, que estavam sussurrando juntas, agora se debatiam selvagemente, como um mar atingido por um ciclone, e da terra alarmada surgiu um bafo forte e pungente, como uma emanação de medo. Allan foi às janelas; as montanhas pareciam assaltá-lo num novo relâmpago e depois desapareceram num trovão. A chuva, misturada com o granizo, voou sobre a terra e Allan ouviu o gemido profundo das árvores.
0 telefone tocou. Ele ouviu outra voz, a do jovem dinâmico Milton Richberg, um dos três sobrinhos de George Richberg, que trabalhava com ele nos jornais.
— Eu sabia que você ainda estava de pé — disse Milton, acusando-o. Depois ele riu, afetuosamente. — Estava tentando lhe falar desde as seis da tarde, mas todos os circuitos estavam ocupados.
— Como vão as coisas em Washington? — perguntou Allan.
— Aqui temos uma tempestade.
— Ah, então você não devia estar falando no telefone. Mas queria lhe contar uma coisa. Hoje falei com Martin Dies. — Ele parou.
— Acho que a coisa é pior do que pensamos. É apavorante. A cada dia estão invadindo mais: ninguém os interpela. Estão assumindo o controle. Foi isso o que o Martin me disse. Tem um lápis? Vou citar alguns dos nomes.
Allan os escreveu, sem poder acreditar, um por um, olhando fixamente para eles. Impossível.
— Ele... o presidente... não... tem a menor ideia?
— Martin não é propriamente um homem calado, sr. Marshall.
Silêncio. Depois Milton continuou:
— Por falar nisso, o presidente está muito doente. Pessoalmente, tenho a impressão de que, quando ele souber de tudo, isso vai derrubá-lo como se tivesse levado um tiro. Enquanto isso... eles terão invadido totalmente. Será tarde demais.
— Não — disse Allan, engolindo um mal-estar súbito e ardente dentro de si. — A história está cheia de epidemias que mataram a metade ou duas terças partes de todo um continente. Mas o homem sobreviveu e por fim as epidemias foram dominadas. Isso é uma doença da mente...
— E milhões podem morrer por causa dela — disse o rapaz, com calma.
— Sem dúvida. Mas a culpa será deles, porque não tomaram a tempo as medidas contra a infecção.
Milton suspirou.
— Martin está sofrendo por ser prematuro. O povo americano ainda não está preparado para acreditar no que a comissão dele está tentando contar. Afinal, seus inimigos falam com tanta nobreza de “direitos humanos” e “justiça social”. Não são espertos? Usam a terminologia da virtude para destruir a virtude.
— Sempre foi assim, desde a primeira página da história escrita. O que faço
com esses nomes?
— São só para sua informação. Temos agora três escritores que estão escrevendo livros sobre eles. Só Deus sabe se algum editor vai publicar, se não publicarem agora, então talvez mais tarde. — Ele suspirou de novo. — Martin vai ser queimado. Mas no futuro surgirá outra pessoa, em Washington. Tem de surgir; e não vai ser queimado, pois o povo estará preparado para a verdade.
— Depois de Armagedom — disse Allan.
— Depois de Armagedom — repetiu Milton Richberg e acrescentou: — A única coisa que me preocupa é que, quando o povo chegar a saber, e for atrás dos assassinos, milhares de pessoas inocentes também vão sofrer. As pessoas nunca fazem as coisas pela metade, ou com alguma moderação, depois de enraivecidas.
Allan ficou só de novo. Agora a tempestade o envolvia de todos os lados, num tumulto de fogo e barulho. Pareceu-lhe simbólico. A sala estava abafada, embora as janelas permanecessem abertas. Allan tinha dificuldade em respirar. De repente, sentiu uma profunda fadiga e inércia física. Recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Começou involuntariamente a pensar na mulher, Cornélia.
Ele amara Cornélia. Não havia motivo para isso, pois ele sabia o que ela era. Estranhos pensamentos lhe ocorreram. Talvez, se não fosse Cornélia, sua filha Dolores estivesse viva. De algum modo, o casamento se realizara; ele não tivera nada a ver com aquilo. Se não fosse Cornélia... Sua mente começou a divagar, mas ele não dormiu. Sentia uma dor em algum lugar, uma dor arrasadora, como a gente sente sob uma anestesia parcial. “Meus comprimidos”, pensou. A tempestade se retirara e ele não a ouvia mais. Uma luz puxava seus olhos, e ele teve de fazer toda força para poder abri-los. A tempestade assaltou-o de novo; a luz do lampião feriu-lhe os olhos. Ele tentou pegar os comprimidos, mas não tinha força no braço. Devagar, muito devagar, conseguiu puxar o telefone para junto de si. Ligou para o filho Tony, em St. Louis, e depois ficou ali debruçado na mesa, dominado pela agonia.
Enquanto esperava, ouviu um som áspero, mas não percebeu que era a sua própria respiração. Escutou aquilo com uma vaga curiosidade. Depois ouviu a voz de Tony, aguda e perturbada, e sorriu. Não podia alarmar o filho. Juntou as poucas forças que lhe restavam e procurou falar com uma voz animada e firme.
— Tony? Sei que é uma hora imprópria para ligar, mas queria ouvir sua voz. Não, nada em especial, Tony.
— Sim, pai?
A voz no fone estava urgente e cheia de medo.
— Nada, Tony. Só queria ouvir sua voz.
— Estou ouvindo sua respiração. Pai, está passando mal?
Allan ficou calado. De repente, a dor sumiu e ele sentiu uma leveza, quase uma alegria.
— Não, não! Não tenho nada, Tony, só queria lhe falar um momento. É bom saber que você está aí. Esse barulho? É uma tempestade, mas já está passando. Tony, seu bandido, meu filho, Tony!
Tony controlou-se e falou com muita calma.
— A velha Betsy está aí, não está? Chame-a, pai. Tome o seu remédio. Vá para a cama. Não fique sozinho. Prometa.
Allan olhou em volta da sala e de repente ela estava cheia de alegria e consolo.
— Não estou só — disse ele. — Há alguma coisa, alguém... não posso explicar. Boa noite, Tony. Deus o abençoe, meu filho.
Ele desligou, muito delicadamente. A sensação de leveza e alegria o enchia tão completamente que ele quase chorou de tanto prazer. Ele se recostou na poltrona e adormeceu. Mas o arcebispo Rufus Anthony Marshall não dormiu. Estava fazendo um interurbano.
— Ligue-me com o reverendo Joseph Hogan, da Igreja da Sagrada Família em Portersville, Pensilvânia. Imediatamente, já; é uma emergência.
Enquanto esperava, o acebispo não parecia mais um homem ascético e tranquilo. As lágrimas começaram a rolar por suas faces. Seus lábios se moviam; estava rezando. Mesmo depois de ter completado sua ligação e tirado o secretário da cama para prepará-lo para uma viagem, ele não pensou na mãe. O secretário estava ao telefone, fazendo reserva para o próximo trem.
Allan sonhou. Era rapaz de novo, tinha uma enxada na mão e a seu lado estava uma moça com olhos dourados e ferozes e cabelos como o fogo. Estavam olhando para uma casa bem ao alto, nos terraços. Em volta deles havia muitas flores. A moça disse: “Moro ali.” Ela se virou para ele, sorriu e era um sorriso triste. “Você pensa em morar lá, mas nunca irá. Nunca.”
“Não”, disse Allan, pensativo. “Nunca irei morar lá. Um dia eu achava que era o que eu queria; tudo o que jamais podia querer. Mas hoje sei que não era nada disso que eu queria.” Ele moveu a enxada pelos canteiros de flores. Eram tão grandes e perfumadas.
“Levei muito tempo para vê-las”, disse ele. “Levei quase uma vida inteira.” Ele se virou para a moça, mas ela desaparecera. Ele ficou triste com isso e sacudiu a cabeça.
A encosta do morro escureceu e de repente a casa no alto rompeu em chamas. O céu enegreceu atrás dela. O mundo inteiro estava cheio de trovão e relâmpagos vermelhos. Perto dele alguém gemia, mas Allan não o via. “É uma tempestade”, disse Allan em seu sonho. “Uma tempestade horrível. Milhões morrerão nela. Fiz tudo o que pude. Talvez não tenha sido suficiente. Mas foi tudo o que pude fazer.” — Ele procurou ver o escuro com luzes vermelhas no caos total. Depois estava gritando; “Não desistam! Lutem, lutem! Venceremos. Sempre venceremos!”
Allan abriu os olhos. O som da tempestade ainda estava em seus ouvidos, mas não na terra viva. Ele ouvia as árvores pingando; os relâmpagos claros de vez em quando iluminavam as janelas que estavam ficando cinzentas com a aurora. A sala era varrida por ventos frescos. Os pássaros piavam e as folhas farfalhavam. Allan sacudiu a cabeça, aturdido. Agora podia pegar os comprimidos, mas era muito difícil engolir. Uma coisa como um colarinho de ferro lhe comprimia a garganta. Ele se pôs de pé e isso exigiu muita força. “Trabalhei e dormi a noite toda”, pensou. Não se lembrava de ter ligado para o filho. “Estou ficando velho”, pensou zangado. “O homem alcança a sabedoria quando já é tarde para transmiti-la aos outros.” Ele sentiu um ímpeto repentino de ir ao jardim, naquela luz e suavidade da aurora. Mas viu que tinha de se apoiar nos móveis para sair da sala e passar ao hall escuro.
— Tenho de sair — disse em voz alta. Então, sentiu alguma força lhe voltar; sentia o coração batendo, fraco mas firme. Empurrou a porta dos fundos e passou com cuidado pelo limiar; não se lembrava que fosse tão alto. Parecia que estava pulando um muro. Depois, estava no jardim.
Olhou para leste. Escuras nuvens de tempestade estavam voando para oeste, tintas de roxo. Fervilharam acima dele como fumaça de caldeirões gigantescos. Abaixo delas corria um rio de ouro, vermelho-arroxeado, cheio e vivo, e abaixo desse rio havia uma poça dourada, parecendo palpitar no topo de uma montanha. A cada momento ficava mais radiosa. As montanhas se aproximaram, negras e mudas, porém mais destacadas. Todas as árvores em volta de Allan se encrespavam com uma umidade fragrante, como fontes. Os chorões balançavam suas madeixas verdes e compridas ao vento da manhã; os pássaros corriam pela grama, assobiavam nos galhos marrons. Mas todas as flores ainda eram brancas, suas cores ainda não restauradas. Uma sombra azul comprida esvoaçou por sobre a terra, fundindo-se numa névoa de heliotrópio sob as árvores.
— A manhã — disse Allan — é sempre nova. É o primeiro dia da criação da
Terra.
Ele foi andando com um cuidado infinito pelos canteiros de flores. Chegou à roseira, de onde emanava uma nuvem de perfume; aqui e ali uma rosa estava ficando amarela ou cor-de-rosa. Ternamente, ele tocou em alguns botões. Os passarinhos saltitavam junto dele, observando-o. “É tão raro os homens verem a manhã”, pensou. O ar tinia como um cristal suave; a relva exalava seu incenso. Um coelho correu por um caminho de cascalho e parou para torcer o nariz e olhar para o velho. Allan virou a cabeça a fim de sorrir para ele e parou. Não estava só.
Dois homens e duas mulheres estavam ali, a certa distância dele, e ele se esforçou por vê-los, pois a névoa subia em volta deles em nuvens mais vivas. Ele
não se admirou; a alegria que sentira antes lhe voltou. Eram o pai dele, a mãe, seu irmão Michael e Dolores. A aurora se concentrara neles.
— Mas claro, vocês não morreram — disse Allan. — Nenhum de vocês morreu, meus queridos. Foi só um sonho terrível.
— Só um sonho terrível — disse Michael, sorrindo. Agora estavam todos sorrindo. Allan foi para junto deles. — Espere — disse o irmão. — Alguém vem vindo pelo caminho.
O peso do barro estava no corpo de Allan, mas ele se virou, obediente. Um velho padre se apressava em direção a ele e Allan viu como ele estava vestido e o que tinha na mão, com veneração. Com um esforço incrível, começou a andar em direção ao padre, mas sua força lhe falhou. Ele caiu de joelhos e ergueu as mãos.
— Abençoe-me, padre — sussurrou. O velho padre se ajoelhou ao lado dele, ali no caminho de cascalho.
Tony viu que a mãe, a despeito de sua animação, estava pálida e abatida. A voz podia estar prática e forte, mas ela às vezes parava a fim de olhar para longe, os olhos vazios.
— Nós não deixamos os jornais saberem que ele morreu bem aqui num canto do jardim, como um vagabundo — disse ela. — O velho padre que apareceu misteriosamente e a velha empregada, Betsy, não tiveram força para carregá-lo para dentro de casa, depois que ele morreu. Assim, tiveram de esperar socorro. Imagine, Allan Marshall, ex-magnata das ferrovias, morrer assim!
— Tem importância o lugar onde um homem morre? — perguntou Tony, distraído. A mãe olhou para ele com rara solicitude.
— Bem, afinal, ele já esteva velho — disse ela. — Imagino que já fosse de se esperar. Mas eu tinha acabado de vê-lo; parecia estar muito bem de saúde.
Ela desviou o olhar e o filho notou que os olhos da mãe estavam furtivos. No entanto, não estava interessado naquela última conversa dos pais. Seu sofrimento era grande demais.
— Não fique com essa cara de que chegou o fim do mundo — disse Cornélia. — É estranho, de certo modo. Você oficiou... é esse o termo?... no enterro dele e todo mundo compareceu. Você esteve magnífico e o coro parecia uma hoste de anjos. Comovedor... confortador...
Tony deu toda atenção à mãe.
— Sim, querida — disse, com brandura. — Todos os ofícios da Igreja são assim. Rezei para que a senhora chegasse à conclusão...
Cornélia deu uma gargalhada que parecia um eco do seu normal.
— Tony! Você me conhece bem. Não seja ridículo. Nunca acreditei em nada sem ser em mim, na vida, se bem que um dia tenha acreditado em seu pai. Isso foi quando ele era moço. Ele tinha poder, força. — Ela respirou fundo e depois sorriu para o filho. — Eu me orgulhei de você. Por que ainda não é cardeal?
Tony disse:
— Alex me pediu para ir à Inglaterra em agosto, para fazer o casamento dele. Espero poder fazer isso. — Ele acrescentou: — O pai não deixou nada escrito, nada?
— Não. Só umas cartas para aquele Izzy Richberg; editoriais, ou coisa assim. Nós as pusemos no correio e depois a escrivaninha e a casa dele foram arrumadas, antes de você chegar. Já viu coisa mais escandalosa, o testamento, deixando quase todo o dinheiro dele para os jornais e a fundação e quase nada para mim e os filhos? Se... se eu não tivesse ainda alguma consideração pelo seu pai, acho que ia impugnar esse testamento!
49
Mas Tony sabia que ela não tinha tido essa intenção. Os olhos de Cornélia estavam com uma névoa e sua conversa era disparatada. Seria possível que ela ainda amasse Allan?
— Você viu a velha Laura? — perguntou ela e então sua fisionomia se endureceu, com maldade.
— Mãe — disse Tony, sério — a senhora sempre detestou tia Laura. Nunca teve motivo para detestá-la. Nunca houve... nada... do que a senhora podia suspeitar, entre eles.
— Ah, eu sei que seu pai nunca realmente gostou dela — disse Cornélia, dando o cigarro para o filho acender. Estavam sentados na saleta da casa em Portersville. — Mas ela achava que sim. Lançavalhe olhares derretidos; fez o coitado do Pat infeliz. Bem, como está ela? Achei que ela estava muito complacente na igreja, como se tivesse ganho alguma coisa.
— Ela ganhou a paz, há muito tempo — disse Tony. — Não se sente só, embora não veja muito os filhos ou netos. Há pessoas que nunca conhecem a paz entre outras pessoas. Tia Laura é dessas. Ela me mostrou seu jardim, no dia depois do enterro, e falou um pouco sobre o pai e disse que ele obtivera uma grande vitória.
Cornélia então deu um riso francamente estridente.
— Que vitória? Ele desistiu de tudo. Se não tivesse trabalhado tanto na sua maldita fundação e jornais poderia ainda estar vivo. — De repente, ela fitou o filho. — Como é que você soube que ele estava morrendo? Chegou ontem, tarde da noite. Estive pensando.
— Ele me ligou, por volta das três da madrugada. Eu sabia que havia alguma coisa, se bem que ele parecesse animado. Foi como se ele tivesse telefonado para se despedir. Parecia saber.
Cornélia o examinou atentamente.
— Sei. E foi assim que o velho padre chegou lá. Você deve ter pedido para ele ir. Um velho tão caduco. Você acha mesmo que era tão importante seu pai ver um padre antes de morrer? Não tome esse ar tão severo. Imagino que tenha sido um consolo para ele. Meu Deus, como detesto enterros.
E depois ela estava chorando, tapando o rosto com as mãos manchadas e cheias de anéis.
— Não consigo me lembrar dele deitado ali no caixão na igreja. Não consigo me lembrar dele como era nesses últimos quarenta anos. — Ela estava balbuciando, dava pena. — Ele era um estranho para mim. Só consigo me lembrar dele como o conheci antes de nos casarmos e alguns anos depois. Era um homem e tanto! Meu pai o adorava. E então, aconteceu-lhe alguma coisa; ele começou a beber e a ficar taciturno e tornou nossas vidas infelizes. Às vezes penso que aconteceu alguma coisa com a mente dele. Já conversei com psiquiatras. Eles concordam comigo. A infância dele, talvez.
— É — disse Tony. — A infância dele.
Ele foi procurar o irmão, DeWitt, que estava sentado sozinho num dos terraços superiores. DeWitt o viu chegar, calado, os olhos negros parecendo pedacinhos de azeviche. Tony sentou-se perto dele. Depois DeWitt disse:
— Bem que podíamos usar o dinheiro que ele gastou naquelas porcarias dele. Não posso perdoá-lo.
Tony disse:
— Você nunca o perdoou, desde que era menininho, DeWitt. Nunca o perdoou porque nunca podería ser igual a ele.
DeWitt deu de ombros.
— É verdade, se bem que eu nunca reconhecesse isso a outra pessoa. Eu era um verdadeiro “ferroviário”, ele me disse um dia. Isso era mentira. Nunca fui, no sentido dele, no sentido antigo. A estrada é uma coisa a ser administrada para dar lucro. Não importa; você é padre e não havia de entender. Não deve saber nem a cotação de nossas ações na Bolsa.
— Quantos milhões você tem, DeWitt? — perguntou Tony, com calma. — Uns vinte? Isso não basta?
DeWitt estava fumando nervosamente.
— Para mim, não. Já tive mais de quarenta. Mirrou.
— Com certeza você agora se considera um homem muito pobre. — Tony não pôde deixar de sorrir um pouco. — Mas tem o dinheiro da mãe, que irá para você.
— Ela não vai viver para sempre — disse DeWitt, com pesar. — Mas vai deixar parte para você e Alex. Não me importo que deixe para você, mas me importo por ele. 0 pai dele recebeu bastante da família.
— A mãe dele era nossa irmã — lembrou-lhe Tony.
Mas DeWitt apenas tornou a dar de ombros.
— Eu lhe deixei uma quarta parte do meu dinheiro — disse ele, a contragosto. — Imagino que vá construir igrejas ou escolas ou hospitais com isso, ou outra coisa igualmente sem valor. — Ele olhou para o irmão, e seu rosto mirrado mudou e os olhos negros ficaram frios e violentos. — Por que é que você teve de entrar para esse negócio? Não sabe que sou sozinho, que não tenho ninguém? Nunca tive ninguém, só você. Olhando para o passado, acho que nunca me liguei a ninguém a não ser você, a despeito de seu puritanismo e toda essa religião. Sou sozinho, estou-lhe dizendo! Não há nada...
— Rezo constantemente por você — disse Tony, preparandose para ser ridicularizado ou desprezado. Mas DeWitt o estava fitando de um modo estranho.
— É mesmo? — perguntou, sem expressão. — Sabe que preciso disso? Ora, diabos. Rezar a quem? Em todo caso, é um consolo saber que você não se esqueceu de mim.
Ele torceu as mãos morenas, como se as espremesse.
— Por que você teve de ir embora? Eu não queria que você entrasse para a ferrovia; esperava que você nunca fosse para lá. Mas pelo menos sabia que você... que você...
— O quê? — perguntou Tony, pegando as mãos agitadas e acalmando-as.
DeWitt olhou para os dedos brancos e fortes sobre os seus.
— Que alguém se interessava um pouco por mim. Francamente, nem sei por que você se interessava. Não faz mal; vai ficar sentimental e falar do amor fraterno. Eu era um garoto insuportável. Imagino que seja um homem insuportável. Mas quando você está aqui, parece uma paz para mim. E isso é muito esquisito, pois você não era, nem é, um sujeito pacato. Sabia que o Miles está querendo tomar a ferrovia? Ele não vai conseguir, claro, pois temos os nossos cinquenta e um por cento. Mas me sinto exposto. Acho que sempre me senti assim. Você sabia que ele ia muitas vezes visitar o velho? Nunca descobrimos o que conversavam. Miles virou “moderno”. Quer levar a ferrovia à falência. A mãe ri, mas tenho a impressão de que todos os diretores estão com ele, a não ser ela. Eu também tenho as minhas intuições. O que é que ele pode fazer? Nada. Você o viu depois do enterro? Maldito hipócrita. Olhou para o velho, como se fosse o pai dele. Todos nós sabemos o que os Peale pensavam de nós. Você acha que o velho deu indicações a ele sobre o que fazer para nos arruinar?
— Não — disse Tony. Os dedos sob sua mão estavam tensos. — Acho que era outra coisa. Podia ser a respeito da Fundação do pai e dos jornais. Alguns dos editoriais tinham certo tom que não era nada do estilo do pai. Moderados. Razoáveis. O dever dos altos negócios para com o público. O dever dos altos negócios de combater o socialismo nos Estados Unidos a fim de conservar não só os altos negócios como a concorrência entre os altos negócios e a liberdade de todo o povo. Já ouvi Miles falar muitas vezes sobre esses assuntos. Tenho certeza de que ele escreve esses editoriais.
— Não sei o que ele está querendo, se é que escreve essas coisas — disse DeWitt. — Washington gostaria de ver a Fundação arrasada, bem como aqueles jornais e revistas. Hoje em dia não podemos nos dar ao luxo de estar mal com Washington.
— Não se podem dar ao luxo de não estar mal com eles — disse Tony. Ele se levantou. DeWitt, como criança, agarrou-lhe o braço.
— Já vai? — de repente sua voz fina estava desolada. — Meu Deus, meu Deus, não posso suportar essa solidão, estou-lhe dizendo! Não faz mal. Se tem de ir, é que tem de ir.
Ele ficou olhando o irmão subir a escada de pedra para a casa e seu rosto se contorceu sofrendo.
50
“É hoje o dia,” pensou Miles Peale, de pé junto da janela, olhando para o rio negro com as margens cheias de neve. O céu estava parado e calmo; a voz do rio enchia o quarto, lutando com as massas de gelo sobre ele. Em breve a primavera estaria ali. Embora fosse ainda o mês de fevereiro, havia no ar uma sensação de ímpeto e agitação. A casa velha, envolvendo Miles, rangia um pouco em todas as suas madeiras e paredes. Ele gostava da casa de Jim Purcell, a despeito dos corredores ventosos e as salas grandes e escuras. Alguns de sua família brincavam com ele, por isso; ele era tão “moderno” e no entanto não se importava de morar numa casa “construída na Idade Média”. Ele não se dava ao trabalho de lhes explicar que não havia uma separação real entre passado e presente.
Miles vivia com austeridade. Não tinha um só empregado só para si. Mas o seu quarto grande e velho era confortável e ele era muito arrumado e caprichoso. Os três empregados de casa bastavam. Ele ouviu um movimento farfalhante no corredor: era uma das enfermeiras da mulher, tratando de seus afazeres. Ele franziu a testa. Gostava da velha Ruth, pois ela nunca lhe dava trabalho e ele achava a adoração dela agradável. Gostaria que ela morresse; havia anos que estava presa na cama, com artrose, e ele sabia que ela sofria, a despeito de seus sorrisos constantes e a ausência de queixas.
Alguma coisa doía nele ao vê-la nos travesseiros, tão gasta, o cabelo, antes dourado, hoje ralo e branco, as rugas fundas do sofrimento no rosto suave. Talvez o novo remédio que anunciavam para o futuro a ajudasse. Se não, séria melhor para ela morrer. Ela estava muito cansada. Miles ajeitou a gravata, com cuidado, imaginava que ele também lhe tivesse causado sofrimento. Todos a achavam desprovida de inteligência, uma sombra frágil que não podia sentir emoções de verdade e que nunca desconfiava de nada. Estavam enganados. Pensando nela agora, ele concluiu que não só ele gostava de Ruth, como ainda tinha bastante carinho por ela. Ela o amava; ele não acreditava que qualquer outra pessoa o tivesse amado, nem mesmo a mãe, que morrera três meses antes.
Elavia uma fotografia da mãe em sua cômoda e ele olhou bem para ela, o rosto sereno e tranquilo, a nuvem de cabelo branco, os olhos profundos e pensativos. Coitada, pensou. Que vida levara. Ela escapara do mundo viva como uma sombra e agora ninguém se lembrava dela, só ele. Não tinha uma foto nem retrato do pai, Patrick. Nunca quisera ter. Ele sorriu para a imagem da mãe e disse, em voz alta:
— Não era isso que havia de querer, não é? Mas, sabe, de certo modo, é a justiça.
Ele foi ver Ruth. O quarto estava rosado de luz do fogo e ela se apoiava nos travesseiros. Um jornal estava sobre seus joelhos contorcidos e as mãos deformadas pousadas sobre os lençóis. Ela sempre tentara ler livros e revistas para interessar o marido e conversar com ele de modo inteligente. Agora, quando ele entrou, o rosto de Ruth ficou radioso, se bem que ele adivinhasse que ela passara uma noite insone, em agonias. Quando ela sorria, como agora, parecia ter menos do que seus cinquenta e sete anos, a despeito da doença. Parecia quase o rosto de uma mocinha, encabulada, adorando-o. Miles abaixou-se e beijou a testa da mulher. As mãos doentes se ergueram penosamente para tocar nele.
— Como vai passando, meu bem? — indagou ele.
— Bastante bem. Quase não estou com dor agora, Miles. — Ela sorriu para a enfermeira. — Dormi bastante, não foi, Sally?
— É o que diz a ficha — respondeu a enfermeira, animada, lançando, um olhar significativo a Miles. Ele era um homem tão bonito, o sr. Peale, com aquele cabelo castanho grisalho e os olhos muito azuis e os modos educados. Movia-se com firmeza e juventude, se bem que a enfermeira imaginasse que ele devesse ter quase quarenta e oito anos. Não tinha barriga, como os outros homens da mesma idade; o corpo dele parecia o de um homem de seus trinta anos e as roupas eram divinas. Também quase não tinha rugas e seu sorriso era cativante. Uma pena, pensou a enfermeira, que ele seja tão baixo.
Miles pousou a mão sobre o brocado azul da cabeceira da cama.
— Pode ser que eu volte tarde, Ruth — disse. — Vou a Filadélfia hoje de manhã. Negócios do conselho, sabe.
— Sempre os negócios — ela replicou. Tinha tanto orgulho dele! O que importava se ele tivesse tido suas mulheres no passado e ainda agora? Isso não era nada para ela. Era o seu marido e o amava. Humilde, ela pensou em todas aquelas mulheres sem rosto, em todas aquelas camas estranhas. Que importância tinha? Ela ainda agradecia a Deus por Miles ter-se casado com ela; se tivera de pagar um preço, não era mais que justo. Um dia ela sentira angústia, mas quando se certificara de que ele nunca a deixaria por nenhuma das outras, tinha voltado a se contentar, de certo modo. Para ela, ainda era um milagre ser a esposa de Miles.
— Andei lendo tantas coisas sérias — disse ela, sentindo a agitação dele e querendo prendê-lo por mais uns minutos. — Este é um dos jornais do coitado do Allan. Assuntos tão sinistros. Hitler... e uma coisa que chamam de expurgo porque alguém tentou matálo no ano passado, 1934. Esse editorial diz que Hitler vai declarar guerra ao mundo inteiro, dentro de alguns anos. Mas em outra parte do jornal, o sr. Roosevelt acha graça. Diz que Hitler não ousaria.
— Não se preocupe — disse Miles. — Os Estados Unidos já sobreviveram aos seus inimigos, nacionais e internacionais. Talvez Roosevelt esteja apenas querendo tranquilizar o povo americano. Os presidentes fazem isso, sabe.
— Não deviam — disse Ruth, com uma veemência branda. — Não somos crianças. Devíamos saber da verdade, em todas as ocasiões. — Ela tornou a tocar no papel. — Os jornais de Allan sempre dizem a verdade, se bem que alguns políticos os chamem de sensacionalistas.
— Foi como chamaram Jeremias também — disse Miles, sorrindo. — E me parece que disseram qualquer coisa assim sobre Cristo.
Ela tornou a tocar na manga dele, com amor, melancólica, e ele a beijou com a antiga gratidão por seu afeto.
— Ruth, meu bem — disse ele — talvez você ouça, ou leia, alguma coisa sobre mim, breve, e isso poderá deixá-la aflita. Mas tem de confiar em mim.
Então, os olhos azuis e suaves se arregalaram e ficaram estranhamente sábios.
— Sempre confiei em você, Miles — disse ela, tranquila, e sorriu. — Mesmo quando não havia motivos para confiar.
"É, ela não é nada boba ", pensou ele. Acenou para ela da porta, com galanteria, e desceu para pegar o carro, que sempre dirigia ele mesmo. Foi para a casa de Fielding, que antes pertencera ao avô de Cynthia, o velho Brownell. Uma bela casa em estilo georgiano, que Miles admirava. Fielding estava esperando à porta e entrou no carro do irmão dobrando as pernas, com perícia. Soltou a respiração, com gosto.
— Bom — disse — hoje é o nosso dia, não é? Acha que vamos conseguir?
— Sem dúvida — disse Miles.
Fielding olhou bem para ele, com seus olhos amarelados, e começou a cantarolar.
— Por falar nisso — disse Fielding, dando uma de suas risadas fortes —, acabei de ouvir uma história sobre você. Parece que havia um velho que trabalhou na estrada durante séculos e morreu há muito tempo. O velho Billie, era como o chamavam. O pessoal diz que o velho Billie insistia em dizer que você era o “sr. Aaron”, o nosso bisavô, em pessoa. Dizem que o chamava assim. Então fui procurar naquele livro Histórias da ferrovias americanas, escrita sobre nós por John Butzer.
— Uma droga, tola e lírica — disse Miles, com uma irritação rara. — Representa a nossa estrada como benfeitora da humanidade, ou coisa assim. Ou a grande indústria é um benfeitor sábio e nobre, funcionando em prol da humanidade e sem considerar os lucros honestos, ou então é um “devorador do trabalho de homens honestos e explorador do público”. Nenhuma dessas versões me agrada. Por que será justo o trabalhador ganhar o máximo de dinheiro que puder e errado para uma grande organização industrial fazer o mesmo? Sócrates falou uma coisa parecida. Tornou-se perigoso o homem deixar que saibam que ele é rico. As pessoas não mudam. Alguns podem achar isso um consolo; eu acho bem horrível. Já está mais que na hora de largarmos as cavernas, em nosso modo de pensar.
As mãos dele, pequenas e competentes, guiaram o carro pelas ruas geladas. Outros carros podiam derrapar e ferver, mas não o de Miles. Fielding estudou-lhe o perfil, que parecia porcelana, com o misto costumeiro de inveja e admiração.
— Bom, em todo caso, fiquei olhando muito tempo para a foto do nosso bisavô, e, macacos me mordam, você parece mesmo com ele, a despeito da barbicha que ele tinha? A mesma testa, o mesmo cabelo, nariz e aspecto geral. Você pode chamar aquele livro de “droga”, mas sabia que o velho Aaron teve problemas com organizações muito parecidas com as socialistas de hoje? Isso foi logo depois que milhares de alemães vieram para cá para fugir do socialismo de Bismarck, entre eles espiões, que traziam a ideia. Mas foi só uma revoada; os alemães livres cuidaram da coisa eles mesmos, com uns cacetes e coisas.
— Sempre acaba assim — disse Miles. — No final, sempre volta ao povo; os governos que não agradam ao povo, por mais fortemente entrincheirados que sejam, em geral são derrubados.
0 vagão pullman que tomaram para Filadélfia era, como sempre, barulhento, obsoleto, cheio de cinzas e frio. Miles rondou pelo vagão, os funcionários observando-o apreensivos. “Malditas arcas velhas”, pensou Miles. Conversou com alguns dos companheiros de viagem, que lhe eram estranhos, viajantes que tinham feito baldeação para aquele trem, de outros lugares.
— 0 que acha desses vagões barulhentos? — perguntava ele.
Eles respondiam avidamente. Falaram dos poucos trens de alumínio ou de aço inoxidável em que já tinham viajado, de outras linhas. Quentes, com janelas grandes, modernos, confortáveis. Miles meneava a cabeça.
— Mas esta linha só pensa em dinheiro — resmungou um dos homens. — Eu não viajaria nela, se houvesse outro jeito. Um dia desses as linhas aéreas terão o que queremos.
Miles não confiava em ninguém, com exceção da mulher, talvez, a quem ele não contava nada de importante. Não confiava nem em Fielding; a ganância tornava os homens pouco confiáveis, mesmo quando eram aliados, e especialmente quando eram irmãos. Fielding tinha o dinheiro dos Brownell e estava disposto a jogar o seu peso considerável do lado de Miles, como nesse dia. Não obstante, ninguém jamais perdeu por se calar. “Não deixe nem que o seu coração saiba o que seu cérebro está fazendo”, pensou Miles, sentado ali ao lado do irmão. Ele começou a sorrir. Fielding viu o sorriso e notou que Miles estava “tramando alguma”. Por vezes ele ficava irritado porque Miles nunca lhe contava “tudo”, mas admirava-o demais para se aborrecer muito. Que cabeça ele tinha! E o que andara fazendo em Washington, uma semana antes? Só Fielding sabia dessa viagem.
Miles estava pensando nela. Pensava nos seus longos anos de fingimento com o perigoso Norman DeWitt, Norman o erudito, de olhos brilhantes, louco, de nervos de aço e inclemente. O homem que odiava e fazia mesuras e não falava de nada em sociedade, mas que tinha seus lugares secretos e seus camaradas nos lugares ocultos de Washington. “Jon teria sido mais fácil de manobrar, se tivesse vivido”, pensou Miles, “pois Jon não era louco, na verdade. Mas também é possível manobrar os loucos, se se está disposto a aprender. E trabalhoso, às vezes maçante e muitas vezes repugnante; em muitas ocasiões tive vontade de dar um murro na cara dele, mas estava disposto a ser paciente, a mentir, a concordar, a sorrir significativamente. Por uma coisa muito importante; por uma parte do mundo, talvez. Francamente, se uma nação deseja a escravidão, imagino que seja da conta dela. Mas eu não quero ser escravizado com ela, no seu êxtase idiota de prostração diante dos assassinos. Portanto, afinal, eu tenho de lutar pelos Estados Unidos, nos próximos anos.”
Miles cruzou as pernas elegantes e concentrou-se na sua última visita a Norman DeWitt, que tinha um cargo tão poderoso no Ministério do Comércio. Norman gostava dele; não havia nada de doentio nesse afeto, como houvera no caso do irmão Jon. Miles era “progressista”, moderado, sério, intelectual; era encantador e discutia, em vez de brigar. Também exprimira um desdém divertido por Allan Marshall, permitindo-se até ficar meio esquentado sobre o assunto, para prazer de Norman.
“Um egoísta”, pensou Miles, “tem sempre a impressão de que é muito mais esperto do que os outros. 0 meio de se manipular um egoísta é deixá-lo crer nisso.” Ele se lembrou que, quando ainda era rapazinho, sentira a corrente do mal começando a fluir na sua terra. Ele se dispusera a descobrir aqueles que tinham desferrado as velas sobre ela. Uma intuição imensa nele, mesmo naqueles tempos, lhe informara que um dia seria muito valioso saber a respeito desses homens. Ele não se enganara.
Não fora muito difícil conquistar a confiança de Norman. A princípio, bastara fingir uma admiração franca e escutá-lo seriamente. Mais tarde, viera a pretensa convicção relutante de Miles, de que Norman tinha razão. Ele procurara os conselhos de Norman; quando tudo não dava em nada, como Miles pretendia, Miles se mostrava zangado e era Norman quem o consolava com promessas misteriosas para o futuro. Foi Norman quem falou com os homens poderosos e secretos sobre ele, convencendo-os das verdadeiras convicções de Miles.
— É meu aluno aplicado há muitos anos — dissera Norman. — Homens como ele nunca são demais, nos altos negócios... quando chegar o momento.
Eles estavam satisfeitos por terem tantos aliados nas grandes indústrias, especialmente mulheres que tinham herdado a posição e as fortunas de seus maridos mais inteligentes, mulheres ociosas que estavam sempre querendo mais publicidade nos jornais, por sua fortuna.
Uma semana antes, Miles fora ao apartamento muito modesto de Norman, em Washington. Norman podia ser um multimilionário, com um ativo fantástico, mas vivia modestamente. Era assim com esse pessoal, era o que Miles pensava sempre. Até poderem dar o golpe, vivem de modo espartano. Faz parte da encenação. Norman não tinha nem empregado; comia em restaurantes obscuros com homens obscuros, que só vinte anos depois seriam desmascarados. Os móveis eram velhos, gastos e antiquados. Miles disse a ele, como sempre dizia quando entrava naquele apartamento numa rua escondida:
— Se outras coisas não me convencessem de sua integridade e sinceridade absoluta, eu me convencería ao ver esse maldito buraco.
Norman tinha uísque em quantidade para aqueles cujas línguas ele quisesse soltar. Contudo Miles, em todos esses anos, tivera o cuidado de nunca beber uísque em companhia de Norman. Fingia gostar de um “xerez leve”, o que Norman aprovava, ou um martíni com gosto de avelã, que Norman aprovava mais ainda. Nada disso, tomado com moderação, deixava Miles confuso, em absoluto.
Nessa noite, Norman deu xerez a Miles. Era um xerez barato, claro, mas Miles o bebericou com um ar de connoisseur. Norman, que não entendia nada de bons vinhos, ficou satisfeito. Serviu um cálice para si. Com os anos, tinha ficado mais magro, mais esguio, porém mais atento, mais consciente, mais focalizado. Aos cinquenta e cinco anos, parecia da idade de Miles, seu primo, pois o belo cabelo castanho não estava grisalho, embora estivesse meio calvo, no alto da cabeça estreita. Os grandes olhos castanhos brilhavam, com uma vida e animação calmas; o sorriso era quase tão encantador quanto o do rapaz mais jovem. Tinha um jeito gracioso, confiante e brando, calculado para desarmar as pessoas.
— Bom, o que é que está procurando, rapaz? — perguntou ele a Miles. — Você parecia ter urgência, no telefone.
Miles ficou muito sério. Torceu o cálice barato nos dedos. Fingiu hesitar e olhou para Norman, como que se desculpando.
— Eu às vezes me pergunto se faço bem em lhe contar tanta coisa, Norman, sobre a estrada. Ah, sei que você deve saber, claro. Mas às vezes tenho remorsos...
O rosto de Norman ficou severo e seus olhos brilharam com fanatismo.
— Miles, acho que já falamos tanto disso no passado. Se você tiver “remorsos”, deveríam ser em favor do proletariado e não por uma cambada de plutocratas burros e malditos em Portersville, Filadélfia e Nova Iorque.
Miles o contemplou, sombrio. Pensou: “Seu cachorro, cachorro que acredita nas próprias mentiras. Plutocrata! E quem é que tem mais dinheiro do que você, seu porco? Mas não é só o dinheiro que você quer. Quer o poder superior de julgar quem vai viver e quem vai morrer; quem vai morrer de fome nos campos de concentração e quem vai rastejar em volta de seus joelhos. Você, seu Torquemada, quer o que todos vocês sempre quiseram, desde que Caim ergueu a clava contra o irmão.”
Norman abrandou-se diante da expressão de Miles.
— Está bem, rapaz. Não vou repetir isso. Você veio me dizer que está prestes a agir contra aquela velha megera da Cornélia e aquela lesma do DeWitt. Bom. Chegou o momento. Agora, de que modo posso ajudá-lo?
Para mostrar que se arrependia de sua acusação, ele tornou a encher o cálice de Miles. Sentou-se de novo na poltrona gasta e enfeitada, que estava na moda vinte anos antes.
Miles começou a falar e assumiu um tom de súplica, como se quisesse convencer Norman DeWitt:
— Já falei sobre isso antes. Eu sei — ele vacilou — que você detesta o Roosevelt...
Norman confirmou; seus olhos endureceram.
— Claro; nós todos. Mas sabemos que podemos usá-lo, e o elemento do norte do partido dele. Também sabemos ser oportunistas, sabe.
Ele sorriu com desdém.
— Bom — disse Miles, respondendo ao sorriso — o presidente está ansioso para criar e aumentar a prosperidade. Você e eu sabemos que a Lei de
Recuperação da Indústria Nacional será declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal, muito em breve, à despeito do presidente. Você me contou isso, da última vez. Uma pena. Mas é só um atraso temporário, afinal. 0 país há de se recuperar, a despeito do que o Supremo possa fazer.
Norman tornou a menear a cabeça e um sorriso estranhamente misterioso pairou em sua boca.
— Sim, quando tivermos uma guerra. É minha opinião, claro, mas pode ser antes do que pensamos. Talvez dentro de uns quatro ou cinco anos. O público tem de ser educado para isso. Mas continue.
— Enquanto isso — disse Miles — o povo que trabalha vai sofrer. Como sabe, tenho um plano para modernizar toda a nossa estrada, na qual você tem um bom bloco de ações, adquiridas por você durante a crise. Se eu conseguir realizar isso, as nossas oficinas de consertos, que estão fechadas, serão reabertas; poderemos fazer grandes encomendas aos construtores de vagões, desse modo estimulando o emprego e prosperidade por toda parte. O nosso exemplo poderá animar as outras estradas a fazerem o mesmo. — Ele parou e mordeu a língua. Quase usara aquela palavra maldita: “concorrência”. — Mas não podemos nos mexer, nem realizar nada, até que sua meiairmã Cornélia e seu sobrinho DeWitt sejam reduzidos à impotência... e eu for presidente da ferrovia. Você sabe como são danados de conservadores, acumulando suas fortunas pessoais e se recusando a desembolsar qualquer parte delas em benefício da estrada e dos trabalhadores.
— Já concordei com você de que DeWitt terá de sair — disse Norman, reprovando-o. — Imagino que Cornélia tenha de continuar como diretora. O que podemos fazer sobre DeWitt?
Miles riu.
— Podemos “promovê-lo” ao cargo seguro e sem poder de presidente do conselho.
Norman se mexeu na poltrona e também riu.
— Está bem, Miles, o que quer que eu faça?
O jogo era perigoso, mas a vantagem estava com Miles. Ele contou a Norman o que queria que ele fizesse.
— Estamos chegando à estação — disse Fielding ao irmão pensativo. — Com o que estava sonhando, nesses últimos quinze minutos?
— Eu — disse Miles, com indiferença — estava pensando num assassino.
Quando eles chegaram aos escritórios da Interstate Railroad Company em Filadélfia, encontraram o conselho diretor já à sua espera. Fielding ficou surpreso ao ver que os diretores, tão mais velhos do que Miles, se levantaram quando ele entrou, com expressões de respeito. Mas Miles aceitou aquilo como sendo perfeitamente normal. Ele ocupou seu lugar perto da ponta da mesa comprida e olhou para as cadeiras vazias, em geral ocupadas por DeWitt e Cornélia. Disse:
— Tia Cornélia disse que “compreendia” e que não contaria a DeWitt o nosso convite a ela hoje, até terminada esta sessão. No entanto, em consideração a DeWitt, que não tem passado muito bem, pedi que só contasse a ele depois de amanhã, devido ao jantar que vamos dar amanhã aqui em Filadélfia em homenagem a ela e ao centésimo aniversário da ferrovia. Ela é uma mulher sabida; não precisa de maços de papel para entender as coisas. Pesca tudo logo. — Miles
olhou em volta da mesa. — Vamos ter dificuldades com ela. Pode ser velha, mas a cabeça não está nada confusa.
O clarão branco da neve lá fora brilhava bem no rosto dele e seus olhos eram de um azul brilhante. Os diretores menearam as cabeças, sérios; como sempre, estavam fascinados pela aura de poder total e autoridade compacta desse homenzinho. Ele lhes comunicava uma confiança absoluta.
— Mas tia Cornélia não pesará em nada se vocês estiverem comigo — continuou Miles. — Há alguns dias fui a Washington e conversei com Norman DeWitt.
Os rostos atentos ao redor da mesa escureceram e se contraíram. Miles
sorriu.
— Os criminosos sempre acreditam, e os fanáticos também, que são tão mais inteligentes do que os outros. Nunca devemos nos esquecer de que somos tão inteligentes quanto eles, ou mais. É a única arma que temos contra eles. Mas nunca devemos deixar que saibam que conhecemos a verdade.
— Norman está disposto a interceder a favor de nossa estrada junto à Comissão de Comércio Interestadual, senhores, se eu for eleito presidente da companhia. Essa intercessão assumirá a forma de ajustes de tarifas e outros privilégios, como o financiamento de novas emissões para a modernização do setor de passageiros da estrada. Então, senhores?
O único outro diretor que não estava presente era o velho sr. Hill. Um dos outros disse:
— Hill, Miles? Você sabe como ele é dedicado a Cornélia.
— Trataremos de Hill em breve. Afinal, ele pode ser velho e muito rico, mas quer ainda mais dinheiro. Ele tem o que se chama de “complexo de dinastia” e tem dezenas de netos. Quando se tratar claramente de dólares e cents, o velho Hill vai chorar com Cornélia e votar conosco.
— Vamos fazer hoje a votação preliminar — disse o outro diretor. — Na presença de Cornélia. Ela é uma mulher muito sabida e mais tarde vai começar a pensar em quanto dinheiro também vai ganhar, quando modernizarmos a estrada.
— Bom — disse Miles. Abriu sua cigarreira de ouro e um diretor, pelo menos quinze anos mais velho do que ele, levantou-se logo para acender o cigarro. Fielding sorriu. Que sujeito era esse Miles! Miles estava meneando a cabeça, agradecendo a cortesia. Depois examinou os papéis na mesa, sorriu e se recostou na cadeira. Começou a falar sobre assuntos banais e pessoais e a indagar pelas famílias dos diretores. Era uma regra dele que, quando um assunto era resolvido precariamente, só seria prejudicial ficar discutindo as coisas. Ele deu a ideia aos diretores de que eles não tinham outra alternativa senão fazer o que ele desejava e o que ele desejava era vantajoso para todos. Fez isso sem palavras, mas apenas pelo tom forte da voz, seu interesse pelas vidas pessoais dos outros, o tempo e os planos de todos para o verão.
Cornélia chegou depois de uns quinze minutos, embrulhada nas mais finas zibelinas russas, perfumada, ligeira e sorridente em sua pose. O chapeuzinho azul estava colado ao cabelo tinto de ruivo e o véu era pontilhado de brilhantes. Os homens se levantaram, num movimento único; ela os cumprimentou alegre, sentou-se na sua cadeira e tirou as luvas. Enquanto fazia isso, seus olhos alertas examinaram cada fisionomia. Continuou a sorrir, mas alguns de seus músculos se contraíram.
— Bem, cá estou, rapazes, e estou muito intrigada com todo esse mistério. Já lhes contei que adoro mistérios? Miles sabe ser misterioso de um modo tão calmo e me sinto tão empolgada. Alguém indagou sobre DeWitt? Bem, o resfriado está melhorando, mas ele está melancólico. Não sei por quê. Não pode ser a estrada, eu acho. Espero que ele não saia igual ao pai. — Por um instante, o sorriso dela desapareceu e depois voltou, mais forte do que nunca, os belos dentes alvos cintilando entre os lábios pintados. Ela suspirou e riu.
— Vocês todos parecem agentes funerários, meus queridos. A não ser o Miles. — Ela examinou Miles. — 0 carrasco, eu acho, nunca pareceria um agente funerário. Ele em geral aprecia seu trabalho.
Miles pousou as mãos na mesa.
— Tia Cornélia — disse — não sou nenhum carrasco. — Estava aliviado ao ver que Cornélia tinha percebido algo sobre o que se tratava naquela reunião. — Talvez me possa chamar de cirurgião.
— Estranho que o cirurgião esteja presente, mas não a... digamos... vítima?
— Ela respirou fundo e olhou para Miles com todo o seu poder tremendo. — Você é um cachorro e tanto. Miles, meu pequenino. Mas eu nunca o subestimei. No entanto, quero lhe avisar desde já que vai encontrar em mim uma antagonista muito boa.
— Ela continuou a olhar para ele. — O pequenino Miles, o pequenino sr. Aaron. Sim, já ouvi contar esse antigo sentimentalismo. Mas vou-lhe dar o crédito, Miles: você não é sentimental. Duvido que se considere um sucessor digno de meu avô, o seu bisavô.
Os diretores estavam ficando inquietos; brincavam com seus papéis, fingindo estudá-los. Miles sorriu de leve.
— Não, não sou sentimental, tia Cornélia. Sou um homem de negócios e controlo vinte e nove por cento das ações da estrada. Naturalmente, estou interessado em seu bem e seu sucesso continuado. E — acrescentou, mais devagar
— também estou interessado em eliminar aqueles que se apõem no caminho de nossa propriedade comum.
Cornélia soltou uma gargalhada sincera.
— Miles, estou quase começando a acreditar na história do “pequenino sr. Aaron”! Você se parece com ele, sim, se for verdade o que ouvi de meu pai e outras pessoas. “Eliminar”. Sabe, prefiro essa palavra à que usa Hitler: “exterminar”. Mas dá no mesmo, não é?
Um dos diretores murmurou:
— Cornélia, isso...
Mas ela sacudiu a cabeça para ele, com malícia, e seus olhos castanhos brilharam através do azul do véu.
— Ora, que diabo, Bertie, não vamos entrar em semântica. Desde o momento em que Miles me telefonou na outra noite eu sabia que vocês estavam tramando alguma coisa. Para que o segredo? Também sei que ele se tem encontrado com vocês todos muitas vezes, bem aqui. Mas aqui estou, Cornélia DeWitt Marshall, e estou sentada escutando. O que desejam?
Miles ficou esperando, mas os diretores, envergonhados, se calaram. Miles não perdeu tempo tentando obrigá-los a olhar para seus olhos desdenhosos. Dirigiu-se a Cornélia, suavemente:
— A senhora é uma das diretoras da estrada, tia Cornélia, e pretendemos deixar que continue a ser. O que mais podemos fazer? Mas, depois de inúmeras sessões, chegamos à conclusão de que DeWitt não pode permanecer como presidente. Por motivos que já discutimos com a senhora. Agora é uma questão de vida ou morte para a estrada. DeWitt representa sua morte. Nós representamos a vida e imagino que a senhora também, com o tempo. Os diretores concordam que devo ser o presidente; DeWitt será presidente do conselho. — Ele levantou as mãos, sorriu para Cornélia e deixou-as cair. — É só isso.
— Tão simples — disse Cornélia. Ela abriu a cigarreira e pegou um cigarro. Miles o acendeu em pessoa e ela inclinou a cabeça, em agradecimento. — Obrigada, meu bem. Você sempre foi um menino tão educado e ligeiro. Ainda é. É, tão simples. Por que os outros rapazes estão tão calados, Miles? Estarão se lembrando que controlamos cinquenta e um por cento das ações?
— Estão se lembrando — disse Miles — que têm o poder de votar em mim para presidente, com o seu consentimento.
Cornélia deixou que seus olhos vagassem atentamente de um rosto para outro. Os homens levantaram os olhos, sorrindo, infelizes, ou encabulados ou sérios, segundo suas emoções do momento. Mas Cornélia tinha sua resposta. As sobrancelhas ruivas se juntaram, pensativas; ela deixou cair a cinza do cigarro e tornou a pô-lo na boca. Os olhos dela se apertaram, virando fendas, e passaram para uma janela. Depois ela disse, distraída:
— E é isso que pretendem fazer. Estou pensando no querido sr. Hill. Mas você dá um jeito nele. Miles, você nunca faz nada até ter certeza, não é? Não é preciso responder. Não me teria chamado hoje se não tivesse certeza.
De repente, os diretores começaram a falar ao mesmo tempo, numa balbúrdia de vozes. Cornélia ficou escutando, educadamente. Eles sentiam imensamente, não fariam isso por nada se houvesse outro jeito — a estrada — eram necessárias concessões do governo, que não daria as concessões se prevalecessem as idéias de DeWitt — a estrada — modernizar — certamente ela via isso — lucros futuros, expansão ilimitada — ela sabia como todos eram dedicados a ela, como admiravam sua sabedoria e compreensão e respeitavam suas opiniões — a estrada — era tudo pelo melhor — ela ainda era diretora — DeWitt seria presidente do conselho — a estrada...
Cornélia sacudiu a cabeça, séria, enquanto os homens se ajuntavam em volta dela, gesticulando, pedindo, argumentando. Mas seus olhos estavam começando a dançar. Por fim ela disse:
— Está bem, rapazes, podem sentar-se. Já resolveram tudo. Nada de cara de enterro. Mas não são um pouco covardes, deixando que eu conte ao DeWitt?
Miles disse:
— Acho que a idéa foi covarde... sim. Sinto muito. Vamos ter uma sessão na próxima segunda-feira e nós mesmos diremos a ele. Nem devíamos ter pensado em deixar isso a seu cargo, tia Cornélia. Mas, de certo modo, foi um elogio.
Ela o contemplou, séria.
— Como você não é sentimental, não vou lembrar-lhe que você é marido de minha irmã, e que sua irmã é casada com o meu filho.
Miles disse, igualmente sério:
— Não é preciso me lembrar. Tenho pensado nisso muitas vezes. Mas nada é tão importante quanto a estrada. Para todos nós.
Fielding interrompeu:
— É, tia Cornélia, a estrada.
Mas ela não deu atenção a ele.
— Miles, você tem Norman do seu lado? Norman, meu irmão?
Miles respondeu, sem hesitar:
— Tenho, sim. Norman e eu somos muito amigos.
Cornélia deu uma tal gargalhada que os diretores se assustaram. Ela riu até as lágrimas correrem pelas faces enrugadas.
— Era o que pensava; eu sabia! Deus, mas isso é uma maravilha! Você e Norman! Tão “grandes amigos”! E como ele me detesta. Miles, você é um gênio! — Ela parou para enxugar os olhos úmidos e sacudiu a cabeça vezes e mais vezes, achando graça sinceramente. — Vou viver até os cem anos ou mais! Não poderia perder o último episódio entre você e Norman, aquele porco. Pois haverá esse episódio final: Não adianta nada eu contar a ele sobre você, meu filho. Ele não me daria ouvidos; não passo da velha plutocrata sentada em cima de seus sacos de ouro. Miles, repito, você é um gênio. — Ela tocou de leve no casaco dele com as unhas pintadas. — 0 futuro vai ser tão interessante que mal posso esperar.
— Muito interessante e muito lucrativo para todos nós — disse Miles.
Mas Cornélia estava rindo de novo naquela sala silenciosa; sem histerismo, mas com uma espécie de êxtase homérico. Os homens ficaram escutando, e, para eles, Cornélia nunca parecera tão galante, tão poderosa quanto agora, na sua capitulação. Eles sorriram uns para os outros, e em seus sorrisos havia certa tristeza. O riso dela estava morrendo, forte e divertido. Ela estava olhando para Miles outra vez.
— É, querido, não tenho dúvidas de que com você como presidente, a estrada há de prosperar. Não tenho dúvidas de que ficarei muito mais rica. Mas, sabe, eu o detesto mortalmente.
Ela se virou e ficou muito parada.
— Há um velho ditado: “o homem nunca é vitorioso, nunca derrotado”. DeWitt tem um filho. Estou me lembrando de tantas coisas. O seu avô foi derrotado pelo meu pai; e o filho do seu avô, por sua vez, derrotou o filho do meu pai. E, DeWitt tem um filho.
Ela então olhou para Miles e parecia de novo jovem e cheia de vida, cintilando de propósito e exultação.
— Você é um ferroviário, Miles — disse ela e sua voz áspera vibrava. — Agora estou vendo tudo. Você sabe tudo sobre as complexidades da estrada, tudo sobre sua administração. Foi a uma boa escola, a Interstate. Para você, como sempre foi para mim, a estrada é a primeira coisa na sua vida, a dominante. Você é mais do que esperto; é sábio, sutil e sagaz. Conseguiu a promessa da atual administração para dar a aprovação aos seus planos... se DeWitt foi removido. Se por algum truque eu conseguisse que a administração retirasse a aprovação que lhe deu, eu não o faria. E, Miles, não o faria, pois, se o fizesse, a ferrovia ia sofrer. Haveria as pressões e obstáculos mais mesquinhos, pois nada pode ser mais maldoso do que um burocrata. Nem mesmo DeWitt e todo o dinheiro dele, e o
dinheiro de Mary e o meu, poderiam impedir a perseguição vingativa. A estrada soçobraria.
Ela levantou a mão quando Miles tentou falar.
— Espere, homenzinho. Ainda não acabei. Rufus, filho de DeWitt, é meu neto. No ano passado ele começou a demonstrar um interesse autêntico pela estrada. Eu o estive observando. Vou ensinar a ele e contar tudo o que sei. Você não tem filhos. Mas no futuro, haverá Rufus.
Fielding apertou os olhos claros e olhou para ela.
— Tia Cornélia, a senhora se esquece de que eu também tenho dois filhos, mais jovens do que o Rufus, claro, mas são meus filhos.
Pela primeira vez ela deu atenção a ele.
— Seus filhos, Fielding? — perguntou ela, num espanto desdenhoso. — Já vi os garotinhos. Não, Fielding, os seus filhos não.
Ela sacudiu a cabeça, com ênfase.
— Se Rufus algum dia se revelar o melhor, então não me agarro à presidência — disse Miles e estava muito sério. — Se ele algum dia se revelar o melhor, daqui a vinte anos, terei prazer em me retirar. Aliás, vou até ajudá-lo. Como a senhora mesma disse, a estrada vem em primeiro lugar para mim. Quando Rufus estiver preparado para ingressar na companhia, no ano que vem, eu também lhe ensinarei. Como se fosse meu filho.
Ela olhou para ele fixamente. Era como se ela nunca o tivesse visto e estivesse pasma. Os diretores, por sua vez, viraram-se em peso para encarar Miles, com um respeito profundo. Ele estava ali de pé junto de Cornélia, baixo, vigoroso, mas muito tranquilo e sincero, e não via ninguém, só ela. Fielding piscou e passou a mão comprida pelos lábios. Pela primeira vez na vida detestou o irmão. “Mas esperem”, disse ele consigo. “Vocês todos se esqueceram de mim, mas estou aqui. E não sou o palhaço que imaginam.”
— Miles — disse Cornélia, pondo outro cigarro na boca. Miles acendeu-o para ela. — Bom, Miles — murmurou ela. — Macacos me mordam, se não acredito em você.
Ela se levantou depressa e pareceu dominá-los a todos. Pôs a mão no ombro de Miles e o sacudiu com indulgência.
— Vai precisar de mim, Miles. Sou diretora. Ninguém sabe mais sobre a ferrovia do que eu. Eu o detesto, mas o ajudarei. — Ela riu para ele e tornou a sacudir-lhe o ombro. Depois virou-se e estendeu a mão grande e forte a cada um dos diretores, por sua vez. Tinha a exuberância e a flexibilidade da juventude, todo o seu magnetismo e fogo animal. Os homens apertaram sua mão com um sentimento profundo e sincero. “Uma crente”, disse um deles, consigo. Não há ninguém como a velha Cornélia. Mas quando Fielding apertou-lhe a mão, ela sentiu a maldade dele. Parou, olhou-o bem e disse a Miles: — O seu irmão, meu bem, acho que ele não está gostando de nenhum de nós, hoje.
Fielding sorriu, à vontade.
— A senhora nunca se enganou tanto, tia Cornélia.
Mas Miles olhou para o irmão, contemplando-o, e em sua testa apareceram leves rugas.
— No entanto — disse Cornélia — acho que vamos dar um jeito. — Ela
examinou Fielding devagar, minuciosamente. — Temos aqui dois verdadeiros ferroviários, Fielding, mas você não é um deles. — Ela dispensou-o e voltou a dar atenção a Miles. — Sabe, com você e eu vai ser quase como nos velhos tempos, quando o Allan era jovem.
Miles a acompanhou até o carro e ajudou-a a entrar. Ficou ali na calçada fria e gelada em silêncio. Mas ela soprou um beijo para ele, riu e foi levada dali. Suas últimas palavras foram:
— De certo modo, vou me divertir na festa amanhã. E no dia seguinte vou contar a DeWitt.
Quando Miles voltou para a sala de reuniões, um dos diretores disse:
— Eu sabia que podíamos confiar na velha Cornélia, numa emergência. Nunca a vi tão eficiente e jovem. Parece que ganhou nova vida.
— É — disse Miles. — Durante alguns anos, ela se esqueceu do que é ser um verdadeiro ferroviário. Agora lembrou-se.
51
O arcebispo Rufus Anthony Marshall estava apoiando o irmão, DeWitt, em alguns dos suaves caminhos abaixo da casa de Portersville. O pleno verão ardia nos cravos-de-defunto, zínias, lírios e salvas. Mas as árvores não estavam tão verdes e viçosas quanto estiveram em julho; a grama tinha um cheiro de poeira. A água dos chafarizes saltava e reluzia ao ar quente e perto deles havia um cheiro de pedras. Aqui e ali, nos espaços abertos, os gramados estavam queimados. A luz do sol chamejava nas janelas da velha mansão ao alto e seu telhado vermelho cintilava como se estivesse em fogo. Ao longe, no vale, a cidade ardia numa névoa cinzenta de calor e fumaça e o rio entre as montanhas estava minguado.
— O outono vai chegar cedo — disse Tony, ajudando delicadamente o irmão a se sentar num banco de mármore sob uma árvore. Ele sorriu para o choupo que plantara. Já estava tão grande, tão pontudo, como uma torre, cada folha se virando à brisa suave e cintilando. Mas DeWitt não via nada; não ouvia o canto das cigarras nem o tilintar dos chafarizes. Estava sentado encolhido no banco, as mãos caídas entre os joelhos magros, a cabeça caída sobre o peito. O rosto estava lívido e murcho como uma folha velha e os olhos baços como pedras enlameadas.
— Então, DeWitt disse:
— Detesto esta casa. Sempre a detestei. Assim que terminar minha casa nova, em novembro, vou embora daqui com Mary, Shelley e Rufus. Vamos deixá-la para... ela.
A voz dele estava muito tranquila, mas carregada de raiva e ódio doentios. Tony sentou-se ao lado dele e o sol bateu na grande cruz que tinha no peito. O irmão estava se restabelecendo de uma doença contraída em março, mas os médicos diziam que ele estava indo muito bem. “Mas a alma dele não está indo muito bem”, pensou Tony, com um pontada momentânea de desespero, pela qual logo rezou pedindo perdão. Ele já estava com o irmão havia três dias; nem todo o seu consolo, sua compreensão, seu amor tinham modificado a pesada pedra de ódio e raiva no rapaz mais moço. 0 rosto pálido e ascético de Tony parecia o de uma estátua, sob a luz do céu quente.
— Acho que será melhor para você ter sua própria casa — disse ele. Depois hesitou. — Mas não deve ir embora sem se reconciliar pelo menos um pouco com a mãe.
DeWitt riu, uma risada fina e acre.
— Não falo com ela desde o dia em que ela me informou que ia votar com os diretores contra mim e colocar... ele no meu lugar.
Tony suspirou.
— Era um negócio oportuno, para ela. Já ouvi todos os argumentos. Imagino que tivessem de fazer isso, levando tudo em conta. Mas, DeWitt, você é um homem tão rico. Vai ficar ainda mais rico. O que mais pode querer?
As mãozinhas escuras de DeWitt se cerraram. Ele levantou a cabeça e ficou olhando para a frente com o olhar perdido.
— Você não havia de entender. Era o poder, não o dinheiro. E agora, essa degradação, essa humilhação pública...
— Ninguém — disse Tony, com certa amargura e ironia — considera uma degradação ser um multimilionário.
Mas DeWitt estava falando como se Tony não tivesse dito nada.
— O homem deseja o poder porque despreza os outros homens. Quer obrigá-los a admirarem-no e a se humilharem diante dele. O dinheiro por si só não consegue isso. O poder, sim. — Ele lançou um sorriso doentio, mas quase de ódio para Tony. — Com certeza você entende isso. As pessoas se ajoelham diante de você e beijam o seu anel, não é?
Tony disse:
— Não sou eu o venerado; é Deus.
DeWitt meneou a cabeça e arremedou:
— Não era eu o venerado; era o meu poder.
— DeWitt, você está doente, mais do que a doença do seu corpo. Há outras coisas no mundo, além do poder.
— Já sei; você as enumerou. De que me adianta falar com você? Nem sequer usamos as mesmas conotações. 0 que é desejável para você é incompreensível para mim e o que é desejável para mim é incompreensível para você. Nunca podemos nos encontrar no mesmo terreno semântico. Você está perdendo seu tempo, Tony. Basta estar aqui comigo. Não quero seus argumentos.
— Mas terá as minhas orações.
— Bom — disse DeWitt e tornou a sorrir, como quem sorri para um imbecil querido. — Deus será muito bondoso e me devolverá a presidência da companhia? É só isso que quero. Uma coisinha de nada.
— Talvez Deus tenha um motivo misericordioso ao permitir que isso lhe aconteça.
DeWitt deu uma risada feia e ácida.
— Acho que a “misericórida divina” é um pouco mais do que posso suportar agora. Você poderia pedir a Ele que a retire, por mim? — Ele bateu com a bengala na perna e, embora esse gesto fosse ligeiro, exprimia uma violência íntima. — Você disse, Tony, que Deus permite que aconteçam coisas dolorosas com os homens para que se aproximem mais Dele. Acho que prefiro não me aproximar mais Dele. O preço é alto demais.
Ele tornou a rir.
— Que tolices estamos falando! E eu só consigo perturbá-lo. Fique quieto e me deixe apenas sentir que você está aqui.
Alguém estava vindo pelo caminho. Era um rapaz alto, ruivo, muito corado, de olhos castanhos e uma expressão emburrada. Viu DeWitt e Tony e parou. A expressão emburrada desapareceu e foi substituída por raiva e resolução.
— Rufus — chamou Tony, e o rapaz parou e se aproximou, de má vontade. DeWitt olhou para o filho com indiferença e desviou o olhar. Fechou os olhos, como se só de ver esse rapaz grandão o cansasse, como todas as outras coisas no momento, a não ser o irmão. Rufus ficou calado ali diante do pai e do tio. Tony tentou se lembrar se DeWitt amava aquele belo rapaz ou se orgulhava dele. Não se lembrava se DeWitt falava dele nas cartas, ou se algum dia falara nele a não ser com o leve descaso com que falava de todos. Para DeWitt, Rufus era apenas o filho que poderia ter controlado a Interstate Railroad Company.
— Sente-se, Rufus — disse Tony, com sua voz séria e calma. Rufus se sentou na grama. Tony se lembrava de ter tido muito poucas conversas com o sobrinho; achava que aborrecia o rapaz, só pelo fato de existir. Mas agora, quando Rufus se sentou ali na grama, pareceu a Tony que sua visão se aguçava. Ele viu que Rufus, tão parecido com o avô e o bisavô em todo o seu colorido, estatura e esplendor primitivo, não era nada parecido com eles em questões mais imponderáveis. O que Tony tomara por mau humor era uma concentração sombria; o que tomara por grosseria era uma sinceridade dura e jovem, o que tomara por egoísmo insistente era um desejo desesperado, embora mudo, por ternura e atenção, coisas que lhe tinham sido grandemente negadas.
Tony continuou o seu estudo absorto, como que com uma visão sobrenatural. Aquele não era um rapaz emburrado, preocupado com coisas fúteis. Era inteligente, resoluto e um pouco fechado, cheio de grandes reservas e força. Tony viu que Rufus tinha-se esquecido da presença dele; estava olhando para o pai e em seu olhar havia uma estranha intensidade.
Então Tony viu que o rapaz amava o pai pequenino, moreno e aleijado, que quase sempre o ignorava.
Diante dessa revelação ofuscante, esse milagre que lhe fora revelado, Tony fechou os olhos e sentiu uma umidade por trás das pálpebras. Quem poderia explicar a maravilha do amor dado a alguém que nem o desejava nem podia retribuí-lo? “Mas também”, pensou Tony, “Deus dá o Seu amor à humanidade, sem que peçam e sem que ela o saiba. Está ali, como o próprio sol. O que Rufus sente pelo pai é um pequeno reflexo do que Deus sente pelo homem e isso em si é um milagre.”
— Rufus — disse Tony, muito baixinho. Rufus teve um sobressalto, franziu a testa e depois virou-se bruscamente para o tio, esperando. O sol mudou seus olhos para um tom de ouro duro. — O seu pai esteve muito mal — continuou Tony, prendendo a atenção do rapaz com sua força de vontade.
— Meu Deus, ele sabe disso — disse DeWitt, com uma voz gasta. — Não o chamaram da universidade?
Mas Rufus estava olhando para o tio, fixamente. Tony repetiu:
— Seu pai esteve muito doente.
Rufus meneou a cabeça, de leve. Procurou um cigarro e o acendeu e suas mãos grandes, tão parecidas com as de Cornélia, tremeram um pouco. Tony rezou por auxílio, intimamente, e depois começou a falar, devagar.
— Lembro-me do que Santo Agostinho escreveu em suas Confissões.
DeWitt remexeu-se, impaciente, mas quando olhou para os olhos do irmão, viu neles uma luz estranha e radiosa que teve o efeito de penetrá-lo.
— Mas eu, sendo infeliz, procurei coisas que me entristecessem e que me fizessem verter lágrimas. Mas isso não era nenhuma maravilha, pois eu estava me desviando do Teu rebanho e portanto infectado com a triste doença de minha alma. No cansaço de meu coração, fiquei inflamado com a minha tristeza, o que aumentou o meu sofrimento original. Minha vida, sendo assim, era vida, ó meu Deus?
A voz dele pareceu dominar o silêncio quente dos jardins, ressoar entre os grupos de árvores, muros de pedra, encostas, o próprio céu. O homenzinho aleijado no banco de mármore não podia mover o corpo, mas sua cabeça afundou no peito e o rosto ficou escondido. 0 cigarro ardia, esquecido, na mão de Rufus, e seus olhos se pregaram no pai.
Então DeWitt disse, num escárnio amargo:
— ‘Minha vida sendo assim, era vida, ó meu Deus?”
Tony pôs a mão no ombro do irmão e replicou, como uma ordem:
— Levante os olhos. Mas não olhe para mim. Olhe para o seu filho, pela primeira vez na vida.
DeWitt obedeceu. Levantou a cabeça devagar e olhou para Rufus. Através do pequeno espaço de relva queimada, pai e filho se olharam. Rufus não se mexeu; ficou olhando para o pai e todo o seu amor — agora declarado, oferecendo-se, sem pudor — estava naquele rosto jovem e largo, simples, não suplicando, não exigindo, mas estendido como uma dádiva. E DeWitt olhou para a dádiva, sem acreditar, meio rejeitando. Ele levantou a mão e tocou na face do filho, a boca, os lábios, como um homem num sonho.
— Sim — disse Tony, a voz falseando. — 0 seu filho o ama. Mas você nunca tinha olhado para ele e nunca soube do amor dele, pois em seu coração, sempre achou que não merecia o amor.
Rufus levantou-se e foi para junto do pai, pegando uma das mãos pequeninas nas suas. Não disse nada.
— Mas somos todos dignos de amor, pois do contrário Deus não nos amaria — disse Tony. — Por que você se agarrou a mim, todos esses anos? Porque sabia, no fundo de sua alma, que eu o amava. E agora, somos dois que o amamos, embora você pensasse que eu era o único.
DeWitt disse, com uma voz áspera como de um grilo:
— E agora também sei que não tenho nada para dar ao meu filho, a não ser dinheiro. 0 que eu tinha me foi tirado.
Então Rufus falou, depressa, a voz firme e forte:
— 0 senhor nunca o teve, pai. Nunca teve o poder que pensava ter. Era da avó, sempre. Não quero um poder como o que senhor pensava querer para si e para mim. Se eu obtiver, em todo caso, por meus próprios esforços, tudo bem. Se eu não tiver capacidade para isso, não me importo muito. — Ele hesitou. — Imagino que seja porque nunca detestei alguém de fato.
0 rosto de DeWitt se contorceu, mas Tony viu que os dedinhos estavam agarrados à mão do filho.
— Escute, pai — pediu Rufus. — Ninguém jamais se deu ao trabalho de lhe contar a verdade. Quando o senhor teve o seu colapso nervoso, depois de terem votado contra a sua presidência, o senhor passou quatro semanas na cama. Sabia que se não tivesse sido obrigado a ficar naquela cama, por acaso, não estaria vivo agora?
DeWitt olhou para ele num espanto, sem acreditar. Rufus meneou a cabeça para ele e sorriu. Ele se ajoelhou perto do pai e seu rosto ficou no mesmo nível que o de DeWitt.
— Sabe, parece que o senhor sofre do coração há anos, provavelmente desde a infância, e as coisas estavam piorando há muito tempo até chegar ao que provavelmente seria um ataque fatal. O repouso forçado lhe salvou a vida. — O rapaz virou a cabeça. — Pense no que teria sido para mim se o senhor tivesse morrido. Eu... bom, não sou do tipo religioso, mas quando os médicos me disseram, fui a uma igreja e agradecí...
DeWitt tinha ficado muito pálido. Olhou para o filho por muito tempo. Depois, com um movimento quase imperceptível, levantou a mão e a colocou na cabeça ruiva de Rufus, que estava ali, ajoelhado, muito parado, e para Tony parecia que uma coisa poderosa e insuportavelmente comovedora fluía entre os dois.
— Rufus — disse Tony. — Nem eu sabia disso. Diga, qual é o estado de seu pai agora?
Rufus olhou para o tio e os olhos dourados estavam úmidos.
— Imagino que a avó nunca tenha achado necessário dizer ao pai, pois a demissão da presidência já fora proposta por ele. Mas se ele tivesse continuado a comparecer às reuniões de conselho e a desempenhar as funções de presidente, teria morrido. Agora pode viver, talvez uma vida inteira, se levar uma vida tranquila.
“Então, a mãe tem alguma compaixão dentro de si”, pensou Tony. “Mas ela estava errada; devia ter dito a ele que ele não poderia continuar como presidente em hipótese alguma. O que é que ela sabe da verdadeira amargura e sofrimento? Será possível que, não sentindo isso ela mesma, não acredita que os outros sintam?” Então o coração de Tony, sem querer, se endureceu contra Cornélia. Ela ainda era uma diretora poderosa; comparecia a todas as reuniões de diretoria. A voz dela ainda era forte e segura, ainda ouvida com respeito. “Enquanto DeWitt”, pensou Tony, “anda na solidão nesta casa e não encontra consolo na mãe, nem ternura na mulher, cujo único desejo é o prazer e passear pelo mundo afora e ter as festas bem noticiadas nos jornais e tentar um casamento proveitoso para a filha.”
— Mas o que vou fazer da minha vida? — perguntou DeWitt, com a voz fraca. — Com todos os anos que posso viver?
— O senhor ainda é presidente do conselho e pode ir a uma reunião, de vez em quando — disse Rufus, sorrindo para o pai.
E o senhor e eu podemos estar juntos. Só me falta mais um ano em Harvard. E depois estarei em casa e o senhor pode me ensinar sobre a estrada e podemos viajar em conforto, descobrindo tudo um sobre o outro.
— E pode ler e aprender e pensar um pouco em Deus — disse Tony. — Só um pouco, todos os dias. Tem de me prometer isso.
DeWitt começou a rir, a princípio um pouco e depois com um som mais
forte.
— Vocês dois! — exclamou. — O que vou fazer para me distrair quando estiverem os dois ausentes — Ele passou o olhar do filho para o irmão. Seus olhos pareciam fragmentos de azeviche brilhante, faiscando com uma energia nova. — Vocês ainda me matam!
— Não — disse Tony — nós lhe damos vida.
Ele ajudou o irmão a se levantar e Rufus pegou o braço do pai. Lado a lado, DeWitt no meio, os três homens — o padre, o jovem gigante ruivo e o graveto seco que era DeWitt — foram seguindo juntos pêlo longo caminho do jardim. Ninguém falava; DeWitt parecia absorto em pensamentos sem fundo. De repente, ele parou e se virou a fim de olhar para os jardins, os muros, as árvores e o céu. Seu rosto pareceu acender-se, estranhamente; o peito magro arfava depressa.
— É muito esquisito — disse ele — mas nem notei que o verão tinha chegado. Aliás, acho que nunca notei que chegasse. Até hoje.
Tony o observava e era como se um galhozinho mirrado numa árvore de repente se abrisse em botões, como se o galho se abrisse em flor, não depressa, não num dia só, mas durante semanas frescas e tranquilas, através de geadas e noites.
DeWitt deu o braço ao filho e apertou os dedos na carne jovem. Mas olhou para Tony.
— Talvez haja alguma coisa que eu possa fazer quanto às suas obras de caridade. Ponha-me num conselho, ou coisa assim. — Ele olhou em volta de novo e parecia estar perplexo. Depois começou a rir, sem barulho. Eles o observaram, muito comovidos. Ele fez um sinal de cabeça para Tony. — Tem aquela infernal fundação do pai. Enquanto estive aí parado, desde março, andei lendo um pouco dessa literatura e os jornais. Também tenho umas idéias.
Ele apontou para o grande choupo se agitando no sol.
— Você pensava que eu não soubesse, mas eu sabia que foi você quem plantou aquilo. Já quiseram derrubá-lo; dava sombra nas flores, ou algo de semelhante. Mas eu não deixei. Agora tenho uma ideia do que realmente significa.
Ele olhou para o filho.
— Rufe, temos um longo caminho a percorrer, nós dois. Acho que vamos começar amanhã. Você e eu.
Tony ficou um pouco para trás, olhando o rapaz imenso e o pai subirem juntos o caminho, devagar. “Se o homem nunca é vitorioso, também nunca é vencido”, pensou Tony.
De repente, o sol brilhou sobre a cruz no peito dele.
Taylor Caldwell
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