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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ADVOGADO DO DIABO / Gherbod Fleming
O ADVOGADO DO DIABO / Gherbod Fleming

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

  A criatura se deteve sobre a saia da colina iluminada pela lua, aferrando-se à rocha nua com as garras das mãos e os pés. O focinho lobuno se tornou para trás, revelando uns caninos muito compridos para sua forma humanoide. Havia um aroma na brisa do inverno, um novo aroma não muito longínquo. Distraída por um picor, a besta se arranhou com a garra depois da orelha e se meteu na boca o parasita que sustentava entre as garras. Voltou a farejar o ar noturno. Decididamente, tratava-se de um aroma novo. Não era uma ovelha, nem um javali, nem tampouco um camponês carregado de sangue. Se tratava de algo diferente.
  Owain surgiu desde detrás de uma rocha, e com o impulso de três poderosas pernadas cravou sua lança nas costas do Gangrel, elevando à criatura pela força do impacto. Durante uns breves instantes a besta aferrou a ponta que surgia de seu peito, mas ao final as forças lhe abandonaram. Com um rugido de dor e raiva, caiu de joelhos e se derrubou sobre um flanco.
  --Quarenta anos caçando nestas colinas e sou capaz de te rastrear durante três noites seguidas sem que note sequer meu presença -cuspiu Owain enquanto se incorporava sobra a figura empalada e convulsa-. E te considera um Gangrel! Que antigo lhe escolheu como origem? -precaveu-se do sangue que tinha salpicado sua capa escura; a mancha não seria visível, mas a levou aos lábios e lambeu a zona umedecida-. Estava seu sire embriagado com sangue corrupta, ou pode que os anos lhe tenham afetado? É agora mais um animal que um homem?
  O Gangrel tratava de falar, mas o sangue que lhe enchia a garganta apenas lhe permitia emitir um gorgoteo.
  --Onde está seu sire? -perguntou Owain inclinando-se para aproximar-se do rosto de seu inimigo-. Na cova profunda a uma légua ao oeste, perto dos abedules? -A surpresa e o medo nos olhos do Gangrel lhe disseram que não se equivocava... e que o sire de aquela criatura não era muito tolerante com os fracassos-. Sim, levou-me ali ontem à noite -disse sonriendo enquanto dava uns golpecitos a sua presa na bochecha-. O mencionarei.
  Ao final o vampiro cansado conseguiu articular umas palavras.
  --B-Bl-aidd... t-lhe... você arran-CA-cará...
  Owain se incorporou e plantou uma bota firmemente contra a cara de seu inimigo, apertando a cabeça contra o chão.
  --Blaidd. Lobo. Que pitoresco. Não tenho dúvidas de como o chamam os camponeses. Crie que me destroçará? O que me arrancará um braço detrás de outro? Possivelmente. -Tirou sua espada e decapitou com um golpe feroz ao Gangrel-. Assim começa -disse solene de noite. estive muito tempo longe do Gales pensou enquanto as nuvens ocultavam a lua e uma fina garoa começava a cair. Muito tempo.

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 Morgan ap Rhys entrou rapidamente no grande salão, normalmente deserto a aquelas horas da madrugada, para encontrar-se com o ruivo Iorwerth. Chamou-lhe, mas este logo que levantou o olhar enquanto seguia aplicando graxa a suas botas.
 --Morreu, Iorwerth! Robert do Rhuddlan morreu!
 Para ouvir isto Iorwerth se deteve imediatamente.
 --Segundo quem? -perguntou com os olhos entrecerrados.
 Morgan ignorou o cepticismo de seu irmão.
 --Cavaleiros do norte. Foi Gruffudd o que acabou com ele. Estavam atacando Degannwy e Robert tratou de deter três navios de galeses com um só homem. Gruffudd lhe cortou a cabeça!
 --Responde a minha pergunta -disse impaciente Iorwerth-. O que cavaleiros?
 Morgan se burlou dele.
 --Está morto. Asseguro-lhe isso.
 Iorwerth deixou as botas e o trapo no chão.
 --Que cavaleiros?
 Morgan encontrou o olhar do homem que seria senhor do Dinas Mynyddig, rei do Rhufoniog, quando seu pai morrera... se é que morria alguma vez. Inspirou profundamente e respondeu com mais calma.
 --Cynwrig. E outros.
 --Viram-no?
 --Ouviram-no.
 --Ouvir algo não o faz certo.
 Morgan foi às nuvens e descarregou o punho contra uma mesa.
 --Tem que ser tão condenadamente cabezota?
 Iorwerth ficou em pé, com os punhos fechados aos flancos.
 --Até que fale com alguém que estivesse ali, alguém que haja meio doido seu cadáver, não está morto.
 Aquilo era mais do que Morgan podia suportar. A casa Rhufoniog tinha apoiado ao Robert e a sua primo Hugh o Gordo, Conde do Chester, porque tinha sido um movimento prático. A Morgan nunca lhe tinha gostado. Não lhe tinha feito nenhuma graça perder as terras do norte perto do Rhos, e gostava ainda menos que sua família jurasse lealdade a um normando. Agora a situação estava trocando, mas seu irmão era muito estúpido como para vê-lo. Aferrou-lhe pelos ombros.
 --Robert está morto, e Gruffudd está em caminho! Não podem manter Degannwy, nem Rhuddlan. Os normandos retornarão a Chester.
 --Gruffudd esteve em caminho -corrigiu Rhys ap Ieuan, seu pai. O ancião tinha entrado na habitação sem ser advertido devido a os gritos.
 Morgan soltou ao Iorwerth. Os dois irmãos estavam muito perto, e a tensão entre eles era evidente. Observavam em silencio a seu pai enquanto se aproximava. Era mais velho do que nenhum homem tinha direito a ser, especialmente para um senhor galés cujos filhos esperavam suas heranças.
 Rhys colocou uma mão no ombro de cada um dos dois. Falava com um só lado da boca, uma concessão aos dentes podres que lhe produziam uma grande dor.
  --Não vos pinjente quando chegaram as notícias da fuga do Gruffudd que ele ou Robert morreriam logo? -Deu- uma palmada ao Iorwerth na bochecha-. Gruffudd ap Cynan não é um homem paciente, nem tampouco um que permita que doze anos de cativeiro fiquem sem vingança.
  Morgan sempre tinha acreditado que os dois ficavam reduzidos em presença de seu pai, igual a ele se sentia diminuído junto a seu irmão, que uma vez tinha matado com as mãos nuas a três ladrões de gado. Diminuía tanto a grandeza com cada nascimento?
  Rhys também golpeou a bochecha de seu filho menor, mas Morgan se retirou de um gesto reservado para um menino.
  --Não -seguiu Rhys-. Gruffudd não é um homem paciente, e tampouco um com o que terei que atuar à ligeira. Roubem pode estar morto -Iorwerth sorriu ante aquele apoio-, mas não há motivo, ainda não, para atuar.
  Morgan podia sentir a cor subindo a suas bochechas. Seu pai estava com o Iorwerth.
  --Mas esta é nossa oportunidade de expulsar aos normatizados, do Gales!
  Rhys grunhiu com desprezo, como se lhe desgostasse que seu filho pudesse ser tão obtuso.
  --E então o que? Lutamos contra eles, de modo que em vez de pagar um tributo razoável ao Robert, ou ao Conde do Chester, estejamos sob o jugo do Gruffudd? Pensa, meu moço.
  Morgan não tinha resposta alguma. Ao menos Gruffudd é galés, pensou, mas sabia que a seu pai não afetavam tais argumentos. Além disso, seria Iorwerth o que um dia governasse a Casa Rhufoniog. Morgan estava resignado a seu destino como guardião de um cantref ou dois no sul, protegendo o reino contra as incursões desde Powys. Teria terras, mas as verdadeiras decisões tomariam seu pai e Iorwerth.
  --Embora Robert esteja morto, acredito que os normandos não correrão ainda para o Chester -disse Rhys-. Hugh virá, ou mandará a qualquer outro. Antes que ele, Guillermo o Bastardo enviou ao Gherbod de Fleming. Sempre há alguém, e o truque está em estar preparado, não em apostá-lo tudo antes de saber para onde sopra o vento. -Golpeou o peito do Morgan com o dedo-. Não é o Rhodri Mawr ressuscitado para unir todo Gales.
  Nem você, pensou Morgan. Nem você tampouco.
  --Quando chegar o momento -disse Rhys-, atuaremos.
 Owain estava de pé na escuridão sob a chuva, perto dos movimentos de terras defensivos que se mantiveram e ampliado ao longo dos anos. Responderia o jovem nobre (jovem comparado com a verdadeira idade do Owain, ao menos) à mensagem enviado por seu ghoul Gwilym? Isso acreditava. Tinha-lhe observado durante muitas noites, tanto a ele como ao resto da Casa Rhufoniog. Podia distinguir o som de cada um de seus corações (acalmados e regulares, furiosos e explosivos, cheios pela emoção do sexo), e acreditava poder ler também seus pensamentos.
 Além disso, confiava no Gwilym. Tinha levado às mulas carregadas para a zona vazia de caça do verão, o lugar exato onde Owain o tinha ordenado. Não havia dúvida de que podia transmitir um singelo mensagem.
 Suas predições se cumpriram quando Morgan ap Rhys, envolto em peles para proteger do frio e da noite chuvosa, apareceu caminhando cuidadosamente entre as defesas enlameadas do Dinas Mynyddig. Owain não sentia frio algum.
 O vampiro se moveu lentamente, permitindo ao mortal que o visse apesar da escuridão. Morgan parecia um pouco surpreso ao encontrar a alguém onde anteriormente solo havia ar, mas enquanto se aproximava tratou de ocultar sua estranheza.
 --Seu homem disse que estaria aqui.
 --Assim é, e aqui estou -disse Owain, que mantinha impregnado seu chapéu de asa larga. Não queria revelar muito, nem muito logo, embora o mortal lhe observava com suspicacia. Tem motivos, pensou.
 --Também disse que tinha notícias sobre o Robert do Rhuddlan -acrescentou Morgan.
 --Só posso confirmar o que já ouviste -disse Owain-. Sofreu essa morte da que ninguém retorna. -Apesar da escuridão, pôde ver como os olhos do Morgan se entrecerraban enquanto sopesava o valor daquela informação, procedente de uma fonte desconhecida-. Não, não tem motivos para confiar em mim -respondeu o vampiro à pergunta sem formular-, mas ganharei sua confiança se me der a oportunidade. Trago algo para demonstrar minhas boas intenções.
 A mão do mortal voou instintivamente para o punho de a espada.
  --Sim?
  Owain sorriu ante aquele altivo intento de lhe intimidar. Já haverá tempo para isso mais tarde, moço. O vampiro, com precaução exagerada, entregou-lhe um pequeno pacote. Morgan o desembrulhou rapidamente para encontrar uma presa do tamanho do meio dedo, talher de sangue ainda sem secar.
  Enquanto o observava, a chuva começou a lavar a peça.
  --Quem é e o que é o que quer? -perguntou sombrio-. Você homem te chamou arglwydd. É um senhor? Qual é o significado de... de tudo isto? -disse assinalando a presa e o tecido que o havia envolto.
  --Tudo isto -respondeu Owain imitando o gesto-, é meu modo de demonstrar como posso ajudar aos teus, a esta terra, a ti. -A voz do Owain já não denotava humor algum-. Há uma besta vagando por suas terras. Blaidd, chamam-na os camponeses: lobo. Esta presa é de uma de suas crias, já morta, mas se não acabarem com este Blaidd haverá mais, e os teus morrerão.
  Morgan pensou um momento naquelas palavras.
  --Sempre circularam histórias sobre o lobo.
  --E você as acreditaste quando outros duvidavam. "Histórias de velhos, ou de mães para assustar a seus filhos molestos", chamava-as seu pai.
  Morgan tratou sem êxito de ocultar sua surpresa ao escutar aquelas palavras em boca de um desconhecido. Owain tinha ouvido o Morgan burlar do medo ao lobo de uma faxineira com a que se deitava. Mais tarde o vampiro também tinha ouvido como o jovem nobre havia mencionado a seu pai os temores dos camponeses, recebendo uma reprimenda. Owain se perguntou por um momento se havia dito muito, pondo ao jovem em guarda; então compreendeu que não tinha importância. Do instante em que o que Morgan se havia aventuroso na noite fria e chuvosa para reunir-se com um completo desconhecido já era dele, e agora solo subtraía começar a recolher o linha.
  --Escuta atentamente -disse-lhe com grande urgência. desvaneceu-se no ar detrás dar umas diretas instruções, deixando a um Morgan atônito que logo que alcançava a compreender o que estava acontecendo.
As nuvens deram passo às estrelas e à lua, e o amanhecer chegou frio e brilhante. Enquanto mascava uma bolacha fria e esperava a Gwilym no extremo do bosque, como lhe havia dito, Morgan não podia deixar de perguntar-se que classe de homem era aquele estranho que se desvanecia com tanta urgência na noite. Sua audácia o enfurecia, sobre tudo porque, por isso tinha podido discernir nas sombras e com aquele chapéu, tratava-se de um jovem. Entretanto, suas palavras não tinham sido as de um mozalbete: possuíam uma autoridade inerente que esperava obediência... de um modo muito similar a seu pai.
 preparou-se para esquecer aquelas frases arrogantes e ignorar as instruções do estranho, mas tinha trocado de opinião por dois motivos. Aquele misterioso visitante tinha chamado palavra por palavra a resposta que Rhys lhe tinha dado com respeito a seus medos sobre o lobo. Como era isso possível? Não parecia o tipo de homem com o que seu pai tivesse relação.
 E também estava a presa.
 --Seca-o e éxponlo à luz do sol -havia-lhe dito. Morgan o havia feito a primeira hora da manhã, e o dente se converteu em pó em sua mão. Um mero truque? Possivelmente, mas merecia a pena investigá-lo. Se conseguia liberar às terras de sua família da besta...
 Assim esperou, com uma lança e uma tocha como lhe havia instruído.
 --Teme ao fogo -havia dito o estranho-. Além disso, a besta será lenta durante o dia, inclusive em sua cova. Ataca-a ao meio dia e terá uma oportunidade. Atravessa seu coração com a lança, mas recorda que deve ser o coração; espera até que me reúna contigo ao anoitecer.
 Que classe de homem é?, perguntava-se.
 Gwilym apareceu. Era um homem baixo e impassível, provavelmente do sul do Gales, a dizer pelo acento das poucas palavras que tinha pronunciado. Dirigiu ao nobre para o este, afastando o do Dinas Mynyddig, saindo do bosque e entrando nas montanhas desumanas. Mantiveram um ritmo assassino durante várias horas sem pronunciar palavra alguma, enquanto o suor emitia um vapor claramente visível. detiveram-se justo antes do meio-dia.
 --Meu arglwydd me ordenou que não fora mais à frente -disse Gwilym. Seu fôlego eram baforadas de fumaça-. Aí está a cova -disse assinalando pela colina uma pequena abertura perto de uns abedules.
 Morgan duvidava de ter encontrado aquela entrada por seu conta. Seguiu a marcha sozinho, detendo-se antes de chegar para acender a cabeça empapada da tocha. Com o fogo iluminando seu caminho e a lança preparada, entrou no túnel.
  Era um caçador nato. Tinha cobrado todo tipo de peças e, quando tinha sido necessário também tinha caçado a seres humanos. Sem embargo, aquela vez era diferente: procurava uma besta sobre a que tinha ouvido histórias desde sua infância. Aferrou mais forte a lança enquanto a tocha arrojava todo tipo de sombras sobre as paredes da caverna. Uma vez superada a entrada e a brisa te assobiem pôde sentir que o ar era algo mais quente que no exterior. Aquele aroma úmido e murcho lhe resultava familiar, mas também havia algo mais, um eflúvio similar ao das canis do Dinas Mynyddig, embora algo mais forte, menos arejado. quanto mais entrava na cova mais penetrante se fazia aquele aroma.
  A quietude lhe envolvia por completo. O único som era o de seus passos medidos, a destilação longínqua da água e o batimento do coração de seu coração. Não era o medo o que fazia que o suor lhe caísse pelas costas, a não ser a intensa impressão de alerta que solo sentia quando a morte rondava. Pensava que devia estar perto pela intensidade do aroma, e então o ouviu, grunhindo depois de uma curva na cova. A boca ficou seca.
  Não havia modo de surpreender à besta. A tocha lhe haveria delatado, mas já não podia fazer nada a respeito. Com a lança preparada, girou o passadiço e se encontrou cara a cara com o animal: Blaidd, o lobo, o monstro de sua infância, os pesadelos dos camponeses do Rhufoniog.
  Durante um instante se valoraram. A besta tinha um claro aspecto lupino (focinho em ponta, presas nuas, as orelhas jogadas para atrás, o cortou arrepiado), mas se sustentava a duas patas contra o fundo de a cova. Seu olhar brilhante parecia sonolenta, mas não tinha em absoluto aspecto torpe.
  A criatura saltou antes de que o coração do Morgan desse um pulsado. Respondeu atacando com a tocha, obrigando ao lobo a retirar-se com um rugido iracundo.
  Atacou imediatamente, mas a besta se defendeu com uma velocidade e uma força sobre-humanas, quase lhe arrancando a arma de as mãos.
  O lobo voltou a carregar e o nobre se protegeu com a chama, embora seu posterior contra-ataque voltou a ser esquivado facilmente. Cada vez que a criatura golpeava a lança, a força do impacto lhe produzia um intensa dor no braço.
  Voltou a carregar, mas um golpe descendente da besta esteve a ponto de lhe arrancar a lança. Seu dedo mindinho se partiu com um ruído seco. Uivou de dor e se apartou a um lado enquanto as fauces do lobo fechavam-se a um mero palmo de sua cara.
 Morgan estava desequilibrado. A besta golpeou a tocha e a acertou totalmente, queimando-a mão mas fazendo que saltasse por os ares.
 O nobre correu para recuperar a lha (parecia mais potente que um escudo), mas o lobo já tinha previsto esse movimento. A garra se afundou na carne do Morgan justo debaixo o pescoço, lhe rachando o peito e o ventre.
 Agora era o turno do homem de antecipar o movimento de seu oponente, o que lhe permitiu salvar a vida.
 Enquanto a besta se lançava para diante com um rugido triunfal, Morgan cravou rapidamente a lança contra o chão de pedra e elevou a ponta para dirigi-la contra o peito do monstro, não para seu estômago. Com a terrível e demolidora força de seu assalto mortal, a besta se empalou com o haste de madeira.
 Enquanto o enorme peso morto arrancava a lança das mãos trementes do Morgan, a tocha no estou acostumado a piscou e se apagou, lhe deixando sumido nas trevas.
 Owain chegou pouco depois do anoitecer para encontrar ao Gwilym cuidando de um Morgan meio morto junto à entrada da caverna.
 --O Gangrel? -perguntou.
 --Empalado -assentiu o ghoul enquanto assinalava a cova-. Em seu guarida.
 --E o jovem Morgan?
 A expressão do Gwilym era neutra.
 --Sofreu um feio corte. Perdeu muito sangue. Se as garras houvessem talhado mais profundo não tivesse sobrevivido tanto tempo. -Owain viu que assim era, como testemunhavam os farrapos ensangüentados com os que Gwilym tinha detido grande parte da hemorragia. O ghoul elevou o olhar com uma expressão extrañamente intensa-. Foi assim comigo, arglwydd?
 Aquela era a primeira vez que Owain recordasse que Gwilym o perguntava sobre sua transformação em ghoul.
 --Acredito que o teu foi pior, temo-me. -O outro assentiu, aparentemente satisfeito.
 O vampiro se ajoelhou junto ao Morgan, obrigando-se a ignorar o aroma de tudo a aquele sangue. Tirou sua adaga e com um rápido movimento se rachou a mão direita; a vitae começou a emanar.
  --Do estigma os cansados recebem a vida eterna, né Gwilym? -Este franziu o cenho. Owain sorriu, ainda sentido saudades por que seu ghoul não tivesse sido capaz de abandonar a religiosidade que lhe havia inculcado em sua vida anterior-. Não deveria blasfemar, não? Quem sabe que torturas nos têm os reservados céus?
  Baixou a palma lhe sangrem e verteu umas gotas na boca ressecada de Morgan. O nobre inconsciente começou a lamber a ferida, fracamente ao princípio para depois fazê-lo com mais força e ânsia. Gwilym retirou as ataduras improvisadas e observou junto a seu professor como a carne destroçada do jovem se recuperava de forma milagrosa, fechando-se ao redor do osso e o músculo expostos.
  Satisfeito, Owain retirou a mão, que também se estava restaurando. Riu entre dentes.
  --Médico, te cure -disse, de novo para o desconforto do Gwilym.
  Entrou na caverna e sentiu enquanto avançava o fedor da besta. Quão longe da humanidade têm cansado alguns Cainitas, pensou. Não era momento para a compaixão. Depois de ser derrotada por um mortal, aquela besta merecia seu destino.
  Quando surgiu das profundidades da cova lhe via rosado e reforçado pelo sangue e a energia de um vampiro de uma geração anterior. Morgan estava acordado, apoiado contra a parede da cova. Owain arrojou a cabeça do Blaidd a seus pés.
  --Fez-o bem.
  O nobre piscou, atônito.
  --Deveria estar morto.
  --Recupera-te rapidamente -disse secamente o vampiro.
  Morgan não estava de humor para jogos.
  --Quem é? O que é?
  --Tudo ao seu devido tempo, querido Morgan. Tudo a seu devido tempo. -Levantou um dedo para exigir silêncio quando o jovem começou a protestar-. De momento, a noite é jovem e você é um herói. Deve retornar ao Dinas Mynyddig e lhe apresentar este troféu a seu pai. -disse assinalando a cabeça-. Está muito fraco para viajar sozinho, de modo que Gwilym te ajudará. Não me mencione, não quero glória alguma. Voltaremos a falar. -Pela segunda vez, Owain desapareceu frente ao olhar assombrado do Morgan.
O vampiro também tinha que retornar ao Dinas Mynyddig, mas não ainda. dirigiu-se para o este e atravessou a montanha e o bosque com a velocidade e a graça de um alce e a força de um urso. Ninguém reparou nele enquanto deixava atrás as léguas. Viajou até alcançar o topo de uma colina sobre a abadia do Holywell. De ali pôde ver as muralhas exteriores, o poço, a capela, e soube que ela estava ali. Não aproximou-se mais aquela noite.
 Depois de cobrir a distância desde o Holywell não lhe resultou muito difícil superar a quão mortais custodiavam a casa senhorial no Dinas Mynyddig. Para eles, Owain não era mais que uma sombra na noite. Podia ouvir a celebração no grande salão. Morgan tinha entrado em tropicões e tinha tirado de uma bolsa a cabeça da besta. Ao princípio lhe recebeu com um silêncio confundido, mas depois começaram os murmúrios de assombro, que terminaram em vítores triunfais por seu heroísmo. Aquela noite seria recordada nos anos vindouros. OH, sim, será recordada, pensou Owain.
 A festa continuou sem sinal alguma de deter-se, mas não todos beberam e cantaram até o amanhecer. Owain entrou em um dormitório em particular e esperou.
 Quando Rhys ap Ieuan retornou a seus aposentos o vampiro saltou sobre ele antes de que a porta se fechou por completo. Com uma velocidade sobrenatural e uma força prodigiosa, agarrou-lhe a mão desde atrás e lhe girou a cabeça a um lado para que seu ouvido estivesse a um palmo da boca do vampiro.
 --Recorda minha voz, Rhys? -vaiou-. Acossou-te em vocês sonhos durante estes quarenta anos, ou pudeste dormir plácidamente de noite?
 Owain pôde ver os olhos do nobre abrir-se com atônita compreensão.
 --Tem língua, ancião? -disse lhe girando a cabeça ainda mais para que o rei do Rhufoniog gritasse. Jogou-o no chão.
 Rhys, confuso e dolorido, tocou-se o pescoço com a mão e se umedeceu os lábios secos e esquartejados.
 --Owain? -disse incrédulo ante aquela aparição.
 --C-como pode estar vivo? E tão jovem?
 O vampiro riu. Levava décadas esperando aquele momento.
 --Saudações, irmão.
 Rhys tratava de falar.
 --C-como?
 Owain o levantou sujeitando o dos ombros.
 --Não se preocupe. Seu assassino não falhou. Estou morto. -A boca do rei se abriu; piscava, mas seu olhar estava vazio-. Foi Angharad, não? -Os nódulos do Owain estavam brancos pela fúria-. Casou-te com ela, mas era eu o que a amava. Era para mim a quem amava.
 --Não, não, não... -Rhys ainda não acreditava o que estava vendo.
 --Que galanas crie que me deve? Que satisfação a meu honra mereço por quarenta anos de morte eterna? Cem cabeças de gado? Quinhentas? -Owain sorriu e despiu suas presas enquanto seu irmão gemia e os olhos ficavam em branco-. Acredito que não há cabeças de gado suficientes em toda Gales, querido irmão -disse lhe sustentando a cara com sua mão fria-. viveste muitos anos, ancião. Seu corpo fede a putrefação. -O vampiro aproximou seu rosto ao do nobre-. E seu filho Morgan... converteu-se em um grande herói esta noite -sussurrou-. É meu.
 Rhys começou a emitir um gemido lastimero enquanto o pus e a baba lhe caíam pelo queixo. Owain lhe girou rapidamente a cabeça para a esquerda. Crack. O corpo caiu ao estou acostumado a desabado.
 Com os cânticos do grande salão ressonando em seus ouvidos, Owain esperou em vão a que chegasse a liberação daquele momento com o que sempre tinha sonhado.
 Morgan estava na cama com fortes enjôos quando recebeu a chamada de seu irmão. Fazia três dias havia sentido a gélida presa da morte, e enquanto esperava convexo na cova junto ao corpo empalado da besta tinha rezado a Cristo para que intercedesse em favor de sua alma.
 Era outro o que tinha respondido.
 Morgan tinha despertado para descobrir o que devia ter sido uma terrível ferida mortal sanada e recuperada. Obra do estranho, sem dúvida.
 Tinham acontecido mais costure estranhas. Igual a Gwilym o Silencioso lhe tinha ajudado a voltar para Dunas Mynyddig sem derrubar-se pela fadiga e o esforço, Morgan se tinha feito mais forte e resistente. Ao longo da festa improvisada com a que se tinha celebrado a morte da besta se havia sentido animado pelo vigor e os louvores. Até o Iorwerth lhe tinha abraçado enquanto seu pai lhe observava com admiração. Provavelmente chegasse inclusive a sentir inveja, já que o velho rei não podia presumir de nenhuma heroísmo assim.
 Não pense mal dos mortos, disse-se. À manhã seguinte um criado tinha encontrado o corpo do Rhys ap Ieuan ao fundo de uma escada, com o pescoço quebrado pela queda.
 A noite seguinte, a anterior, celebrou-se uma missa e depois um banquete em honra do defunto rei do Rhufoniog e do novo, Iorwerth ap Rhys. Entretanto, ao finalizar a missa Morgan se havia sentido mau e quase se deprimiu. Logo que começada a festa tinha tido que desculpar-se para voltar para a cama, onde passou todo o dia seguinte sofrendo enjôos e vômitos.
 Parecia que a cabeça já lhe estava esclarecendo, e com ajuda de um assistente tinha conseguido baixar até o estudo que se empregava como câmara de audiências para as ocasiões informais.
 --Tio Morgan! -gritou a filha de seis anos do Iorwerth, Branwen, enquanto lhe abraçava; seu entusiasmo foi tal que esteve a ponto de lhe derrubar.
 --Olá, Branwen. Tome cuidado, menina -disse quando a estadia começou a dar voltas em sua cabeça.
 Iorwerth estava sentado em uma poltrona acolchoada junto ao fogo, e seu cabelo tinha o aspecto de ser uma extensão das chamas. A seu lado estava a delicada Blodwen, embalando ao pequeno Yago em seus braços. Seus outros dois sobrinhos, Elen e Siaun, ruivos como seu pai, estavam sentados em uma mesa praticando as letras com uma giz e uma piçarra.
 --Morgan -saudou-lhe seu irmão.
 O jovem deixou que Branwen lhe arrastasse com sua mão diminuta para o casal real. Sei sentiu rodeado pelo calor da família, embora sabia-se claramente à parte, como se se tratasse de um estranho que contemplasse aquilo que lhe tinha negado.
 À costas do rei, a sua direita, encontrava-se Brochwel, penteulu e capitão do guarda da casa, que escutava e observava com olhos ferozes.
 --Morgan, não está bem -disse Blodwen, a nova e bela rainha de Rhufoniog. Seu olhar brilhava azul à luz do fogo; o nariz pequeno e o queixo forte emolduravam um sorriso que provocava no Morgan todo tipo de reações proibidas. Ainda radiava força e vitalidade, a pesar de ter dado a luz a quatro meninos-. Deveria descansar. Deveria sentar a cabeça, deixar as festas e encontrar uma mulher que cuide de ti.
  --Como poderei, se meu irmão já se ficou com a mulher mais encantada de todo Gales? -As palavras eram uma brincadeira aduladora, mas estavam mais perto da verdade do que ao Morgan o tivesse gostado de admitir.
  --Devo falar com o Morgan -disse Iorwerth gentil a sua mulher.
  Blodwen assentiu e ficou em pé.
  --Venham, meninos -disse enquanto abandonava a estadia. antes de sair se girou uma última vez para seu cunhado-. Vigia sua saúde, Morgan -comentou antes de fechar a porta.
  O jovem viu o modo no que os olhos do Iorwerth seguiam a seu mulher por toda a estadia. Apesar de suas diferenças, Morgan reconhecia sem problemas que Iorwerth era dez vezes o pai e o marido que seu próprio pai não tinha sido, e embora Morgan não era um homem muito sentimental aquela família tinha um lugar muito próximo em seu coração.
  --estiveste doente, irmão. -O olhar de afeto se havia voltado muito mais guardada com ele.
  --É certo, mas sobreviverei.
  --Não te reterei muito tempo -disse Iorwerth-. Como foi o desejo de nosso pai, são-lhe concedidos Penllyn e Dyffryn Clwyd. Imagino que quererá te hospedar em suas novas terras o antes possível.
  As notícias não eram nenhuma surpresa para o Morgan. Havia esperado receber um ou dois dos cantefri do sul enquanto Iorwerth conservava as terras centrais do Rhufoniog, mas o modo grosseiro com o que lhe tinha comunicado e a rapidez com a que se esperava que abandonasse Dinas Mynyddig lhe agarraram por surpresa. Escrutinou a expressão de seu irmão e depois observou o olhar mais abertamente desafiante do Brochwel, o capitão. Havia algo novo em o modo no que se dirigiam a ele. Agora que Iorwerth era rei, agora que Morgan era um herói, o vencedor da besta, já não lhe viam como a um irmão pequeno, mas sim como a um rival, a um possível pretendente ao reinado do Rhufoniog. quanto antes fora enviado a as terras isoladas ao sul da Cordilheira Hiratehog, melhor para todos.
  O sangue lhe ardeu ante a perspectiva de não ser bem recebido em as terras ancestrais nas que tinha vivido desde seu nascimento, e ante a idéia de ser exilado além das montanhas.
  --Sou-te leal, irmão -disse mais bruscamente do que houvesse querido.
 --Não o duvido.
 Os dois se olharam durante uns instantes sem apartar a vista. Morgan não viu no Iorwerth esperança alguma de reconciliação, nem possibilidade de cooperação. Seu pai os tinha dividido na morte mais ainda do que tinha feito em vida. girou-se, lutando contra o vertigem que voltava a lhe atender, e se dirigiu para a porta.
 --recebi notícias do norte -disse ao fim Iorwerth. Morgan se deteve, mas não se girou-. Robert do Rhuddlan está morto, e Gruffudd ap Cynan expulsou ao Hervé, o bispo normando do Bangor.
 --Então devemos nos unir ao Gruffudd -disse Morgan em voz baixa, ainda olhando a porta.
 --Devemos fazer o que eu dita que devemos fazer -respondeu Iorwerth.
 Morgan partiu sem mais comentários. Aí está, pensou enquanto fechava a porta a suas costas.
 Escalando pela muralha exterior e entrando por um portinha que um instante antes tinha estado fechado, Owain encontrou ao jovem doente na cama, febril e furioso.
 --Assim que lhe ordenaram que te dirija para o sul. -O mortal se surpreendeu para ouvir aquela gélida voz-. Este é o momento de seu destino, Morgan.
 O jovem se incorporou sobre os cotovelos.
 --Quem demônios é, e por que não me deixa em paz? -saltou.
 --Suas perguntas se respondem virtualmente sozinhas -disse o vampiro com um sorriso. aproximou-se da cama e olhou atentamente a seu pálido sobrinho. Embora tinha trinta anos mais que ele, parecia quase dez menor-. Mas cada costure a seu tempo. Tem pensado colocar o rabo entre as pernas e correr ao sul como um hermanito obediente?
 Morgan abriu a boca para protestar, mas o olhar do Owain o arrancou as palavras da mente.
 --E-eu sou leal a meu irmão -conseguiu dizer.
 --Igual a ele o é para ti? -perguntou Owain com uma sobrancelha arqueada-. Me diga, Morgan. Trata-te como a um irmão? Busca você assessoramento e te pergunta como faria com um conselheiro de confiança? -Sua voz se fez mais tensa-. Ou te trata mais como a um leproso, te afastando todo o possível de seu lar?
 O vampiro sustentou o olhar do mortal, que começou a piscar enquanto as lágrimas se formavam em seus olhos. Não podia apartar a vista.
 --Sou... sou leal... -repetiu fracamente.
 --Sabe por que te trata assim, Morgan? -disse Owain aproximando-se ainda mais-. Porque te teme, porque teme ao que destruiu à besta. Você nome se sussurra com fascinação em todo Rhufoniog. O povo lhe seguiria, e ele sabe. Não pretende nada bom para ti, e se sente menosprezado porque tenha abandonado a festa em sua honra. Faz desfilar ciumento a sua mulher e a seus filhos frente a ti. Tem-te medo.
 Morgan abriu a boca, mas era incapaz de falar.
 --demonstraste sua valia. Ao contrário que seu irmão, ao contrário que seu pai, é um homem que se aproxima da grandeza. -Owain se incorporou, sabendo que Morgan era incapaz de apartar os olhos dê seu olhar hipnótico, negra como a morte-. Perguntou-me quem era, Morgan. Sou Owain ap Ieuan, o irmão de seu pai.
 O nobre se derrubou sobre a cama com a respiração entrecortada. Ouvia as palavras, mas seu estado de estupor lhe roubou o profundo assombro que deveria lhes haver acompanhado.
 --Faz três noites me perguntou o que sou. Sou um maldito por Deus -disse-, mas isso não é um grande problema, pois Deus me falhou. Sou a semente do diabo. -Owain se girou e começou a percorrer metodicamente a espartana habitação-. Faz quarenta anos, meu irmão ia ser coroado subregnum, rei do Rhufoniog, por Eduardo o Confessor; mas Rhys adoeceu e me enviou em seu lugar a Westminster. Vendo-o agora, não tenho dúvida alguma de que foi uma enfermidade de conveniência, já que meu irmão tinha pago a um assassino para que acabasse comigo no Westminster. Devia parecer um roubo comum, como um Gales de visita que tinha sido surpreso na cidade.
 A raiva das décadas começou a lhe alagar. Apertou os dedos, convertidos agora em largas garras.
 --O que meu querido irmão não podia saber era que aquele assassino não era um homem. Era um vampiro de sangue real que fez algo mais que me matar: levou-me além da morte, ao reino dos Vergônteas.
 Morgan começou a mover-se enquanto a bruma se levantava em sua mente.
 --Já vê. Seu pai e eu tínhamos discutido sobre... sobre muitas coisas. Mas foi seu medo para mim, seu medo e seu ciúmes, o que me condenaram a ser o que agora sou.
 Levantou uma garra, e com um preciso movimento se cortou o antebraço. Pela primeira vez, muito tarde, Morgan observou com medo à criatura que se inclinava sobre ele. Pela segunda vez aqueles profundos olhos negros se apropriaram de sua vontade, mantendo seus músculos e sua mente imóveis enquanto se o apresentava a ferida lhe sangrem. Bebeu. Owain sorriu enquanto a sangue maldito fluía para seu sobrinho. depois de um breve instante o vampiro retirou o braço e se incorporou. Morgan, afetado por um ataque de tosse, caiu sobre seus travesseiros.
 --Sente-o? -perguntou Owain-. Sente o poder do sangue?
 O jovem tratou de recostar-se contra o cabecero e deu uma grande baforada de ar.
 --O poder do sangue ou a maldição de Deus?
 --Vão da mão.
 --Então, também eu estou maldito?
 Owain riu ante a pergunta.
 --O idealismo é o luxo dos jovens e os insensatos, Morgan. A lealdade para seu irmão, para Deus... não existe, nem neste mundo nem no seguinte. -Com duas grandes pernadas, Owain voltou para aproximar-se da cama, levantando o Morgan pelos ares do pescoço-. Lhe dei o que quer, embora não o tenha pedido. -Despiu seus presas; não tinha estômago para a autocompasión, nem para os mortais cujo sofrimento jamais poderia igualar ao dele-. Ou prefere partir em silencio ao Penllyn ou Dyffryn Clwyd? É isso o que quer? Abandonar tudo o que conheceste? Não voltar a percorrer os caminhos ou a caçar nos bosques que sempre foram teus? te inclinar ante seu irmão?
 Morgan observava aqueles profundos olhos animais.
 --Não -respondeu ao fim com voz apagada-. Não é isso o que quero.
 Owain voltou a deitar a seu novo ghoul na cama.
 --Isso pensava -disse alisando as dobras de sua capa-. Acredito que não sente um grande amor pelos normandos.
 --Não.
 --Bem. Pertenço ao clã vampírico Ventrue, mas com os conquistadores normandos chegou uma nova raça do Ventrue que deseja nos expulsar ou nos governar aos que já estamos aqui -disse lambendo uma gota de sangue que tinha ficado sob sua unha, agora retraída-. Não faz falta que diga que Londres já não é tão hospitalar como o foi no passado. retornei a casa e não desejo voltar a ver um solo normando em minha terra.
 Todas as velhas dívidas serão satisfeitas, pensou.
 Morgan, aturdido pelo que lhe estava acontecendo, sentou-se em silêncio.
 --Pela manhã -seguiu o vampiro-, sua força retornará e lhe sentirá mais capitalista que nunca. Esse é meu seguinte presente, Morgan. Não precisa te submeter aos intuitos que seu irmão tem para seu futuro. lhe desafie. lhe desafie e, depois de derrotá-lo, declara a aliança da Casa Rhufoniog ao Gruffudd ap Cynan. Você será senhor do Dinas Mynyddig. Você governará Rhufoniog. Todo Gales estará a seus pés.
 Morgan não protestou.
 Bem, pensava Owain. Fará-o. É muito fácil quando lhes dá o que querem.
 --Fica um assunto por tratar: a família de seu irmão. Deverá tomar a sua esposa e a seus filhos como próprios.
 O jovem protestou ante aquela idéia.
 --Não o farei.
 Owain podia ver o conflito interior e recordou a sensação, o tento de separar a família da política, o poder do sangue.
 --Blodwen é uma mulher atrativa -assinalou o vampiro-. Além disso, você não gostaria que o jovem Yago crescesse com amor e respeito para seu tio, em vez de com vingança em seu coração?
 Morgan recuperou parte de seu fogo.
 --Não tomarei como própria à mulher de meu irmão.
 O vampiro lançou um suspiro.
 --Assim pode matar a seu irmão mas não te deitar com seu mulher, não? Quão nobre é, Morgan -disse sonriendo, embora sem muito humor-. Muito bem, pois. Essa é uma decisão que deve tomar você. -voltou-se para a janela aberta-. tomei refúgio no reserva de caça que há nas montanhas três dias ao sul. Sabe onde digo-te? -Morgan assentiu-. Bem. Vêem mim o antes possível. Ao final não precisará te alimentar com tanta freqüência, mas de momento devemos manter suas forças.
 De repente a janela estava outra vez fechada, como se o jovem não tivesse recebido visita alguma aquela noite.
Todos os cantos e risadas cessaram quando Morgan entrou no grande salão com a espada desenvainada. A multidão se abriu a seu passo, exceto Brochwel e seu lugar-tenente, Cynwrig, que se interpuseram em seu caminho.
 --O que significa tudo isto? -perguntou o primeiro.
 Depois do penteulu se sentava Iorwerth, rei do Rhufoniog. O assento do Blodwen, a seu lado, estava vazio.
 --Sim, irmão -disse Iorwerth-. O que significa tudo isto? Traição? -Não parecia surpreso, e tampouco especialmente preocupado.
 Os laços do sangue pesavam muito sobre o Morgan; por um lado estava o inegável vínculo com seu irmão, apesar das rivalidades que se tinham produzido ao longo dos anos. Pelo outro estava a força e a ambição que, aumentadas pelo poder vampírico, percorriam suas veias. Aqueles pensamentos lhe tinham acossado durante toda a noite e todo o dia. Não tinha dormido nem comido, e quando falou entre a confusão do grande salão ouviu as palavras soar desde muito longe, como se as pronunciasse outra pessoa.
 --Desafio-te, Iorwerth. Reclamação o reinado do Rhufoniog.
 Brochwel desenvainó a espada e Cynwrig se preparou com a emano no punho. Um murmúrio preocupado percorreu toda a estadia.
 --Aguarda, Brochwel -disse Iorwerth.
 --A estes cães traidores é melhor exterminá-los -respondeu o penteulu.
 O rei ignorou a fúria de seu servente.
 --Morgan -disse acalmado-. Baixa essa espada, parte para o sul esta mesma noite e tudo isto será esquecido.
 --Teme-me, irmão?
 --Temo por ti.
 Morgan se acendeu ante a condescendência.
 --Desafio-te, Iorwerth. Reclamação o trono do Rhufoniog.
 Iorwerth lançou um profundo suspiro.
 --Muito bem. Que assim seja. -Estendeu a mão e um criado lhe trouxe seu espada. Desenvainó o aço com a graça e o poder de alguém bem versado nas artes da guerra e rodeou a mesa-. Brochwel, vá a te assegurar de que Blodwen e os meninos permanecem em seus aposentos.
 --Mas arglwydd...
 --Faz o que te ordeno -disse Iorwerth com calma-, e te encarregue de que todos saibam que Iorwerth ap Rhys aceita a provocação de seu irmão. A Casa Rhufoniog será governada por aquele que sobreviva esta noite.
 Morgan estava convencido de que Iorwerth aceitaria o desafio, embora não sabia com segurança se o fazia por arrogância ou por nobreza. Em qualquer caso, o resultado seria o mesmo. Brochwel saiu correndo do salão e Cynwrig se fez a um lado.
  Os dois irmãos giraram ao redor do outro durante uns breves momentos, mas enquanto as mesas se retiravam e as taças se punham de barriga para baixo Morgan se lançou ao asaque. Iorwerth parou e atacou a joelho de seu irmão, que esquivou com facilidade.
  Nenhum cedia terreno enquanto intercambiavam golpes. O ruído do aço entrechocando ressonava no entrevigado do salão. Não havia comentários engenhosos, solo grunhidos e exalações enquanto atacavam, paravam e esquivavam.
  Duas vezes Iorwerth deteve com sua espada e obteve com o contra-ataque morder a carne do Morgan, um no quadril e a outra em o antebraço, mas o menor dos irmãos logo que sentia arranhões. Intensificou seu ataque atacando a menor oportunidade, mas enquanto a respiração do Iorwerth se fazia trabalhosa a sua seguia acalmada. Era evidente que o rei era o melhor espadachim dos dois, mas Morgan sabia o suficiente para defender-se e seu agressividade parecia começar a sortir efeito. Ao pouco tempo era evidente que a fadiga decidiria ao vencedor.
  Enquanto o jovem aumentava sua vantagem viu, pela primeira vez desde que tinha uso de razão, medo, verdadeiro medo nos olhos de seu irmão. Está pensando em seu reino perdido?, perguntou-se. Em a mulher e nos filhos aos que não voltará a abraçar?
  Tinha chegado o momento de que sua espada provasse o sangue. Alcançou o flanco esquerdo do Iorwerth e depois sua boneca, e o bíceps... Nenhum dos golpes era potente, mas se somavam à fadiga crescente enquanto ele logo que suava.
  O rei não deixava de lutar enquanto seu espartilho se enchia sangre. Seus ataques eram cada vez menos freqüentes, e seu irmão os rechaçava com facilidade. Começou a retirar-se, mas Morgan não dava quartel. O rei pareceu surpreso quando chegou o golpe definitivo, uma estocada que se afundou profunda em seu estômago e que lhe fez cuspir sangue. Trastabilló para trás e se derrubou sobre o chão.
  Morgan, de pé enquanto o cansado exalava seu último fôlego, não sentiu a exultação que tinha esperado. Tudo o que sempre havia querido, tudo o que tinha sonhado, estava em suas mãos. Dinas Mynyddig era dela. A Casa Rhufoniog estaria ao lado do Gruffudd ap Cynan o Gales, e juntos expulsariam aos normandos de suas terras.
  O sangue começou a formar um atoleiro a seus pés.
  Ouviu sua própria voz provir desde muito longe.
 --Cynwrig, captura ao Brochwel.
 Logo que era consciente dos murmúrios a seu redor, tanto de os criados como dos poucos convidados que ainda ficavam depois da festa em honra do Rhys ap Ieuan. O vencedor, o novo rei de Rhufoniog, não podia apartar o olhar de seu irmão morto, dos olhos que alguém deveria fechar. Deveu ter estado ali um tempo, pois Cynwrig tinha retornado e lhe falava em voz baixa ao ouvido.
 --Venham comigo.
 Morgan, senhor do Dinas Mynyddig, deixou que o soldado lhe guiasse pelo grande salão e lhe afastasse do silêncio atônito para os aposentos do Iorwerth ap Rhys. Entrou do corredor e contemplou a loucura.
 Dispersos entre os discretos móveis do Blodwen estavam os corpos de todos os seres queridos do Iorwerth. Elen e Siaun no chão, com seus jovens braços entrelaçados. A pequena Branwen morta na cama. Blodwen estava sentada em uma cadeira com a cabeça inclinada para trás enquanto Yago, de apenas um ano, repousava imóvel sobre seu regaço. O vestido da mulher estava esmigalhado, e sobre seu peito esquerdo se via a marca de dois pequenos cortes.
 A seu lado estava Brochwel, com a cabeça girada em um ângulo impossível. Apesar do açougue não se via uma só gota de sangue nem no chão, nem nas roupas, nem, e disso Morgan estava seguro, em os corpos.
 Muito bem, pois. Essa é uma decisão que deve tomar você.
 Não queria isto, mas tampouco tinha sabido o que ocorreria. Tinha sido sua ambição a responsável? Tinha acreditado realmente que poderia defender ao Blodwen e a inocente Branwen da fúria desatada por sua espada nua? Quis atirar sua arma ensangüentada para escapar correndo das provas de seu crime.
 --foi sua obra? -disse Cynwrig a suas costas, horrorizado ante a idéia e ofegante por receber uma negativa.
 Morgan não se girou, nem chorou.
 --Sim -disse-. É minha obra. -Tanto como se lhes tivesse aberto pessoalmente as gargantas-. Sou o rei.
 Owain tinha estado vagamente inquieto as quatro noites posteriores à morte de seu irmão. Não se havia sentido assim desde as primeiras semanas atrás de seu Abraço. Quarenta anos ansiando a vingança, e agora a consumei toda. Mas ainda queria mais.
  Tinha tentado apagar sua raiva assassinando ao Blodwen e aos meninos. Era necessário. Morgan o compreenderá com o tempo. Envia a esses patéticos nobres uma mensagem que não esqueçam facilmente e não surgirão rivais pelo trono. Entretanto, de todas as vistas tomadas só a do Brochwel lhe tinha produzido alguma satisfação.
  Enquanto a chuva caía dos céus escuros do Gales Owain, imbuído com o sangue da família que corria por suas veias, voou sobre o campo mais rápido que uma águia e mais silenciosa que uma sombra. Procurava o último laço que ainda lhe unia com o passado.
  O calor roubado alagava seu corpo enquanto observava da colina a abadia do Holywell. deteve-se durante uns instantes, um mero batimento do coração para os humanos. A muralha exterior era baixa, já que não tinha sido pensada com propósitos defensivos. No interior o poder da fé ressonava ao redor da fonte, de modo que a esquivou dando um comprido rodeio. Não queria ter nada que ver com Deus.
  Localizou à mulher por seu aroma. Estava ajoelhada, rezando em seu cela. A pesar do silêncio com o que Owain entrou, pôde lhe ouvir. Olhou em sua direção.
  --Angharad -sussurrou o vampiro, apenas capaz de falar.
  A mulher inclinou levemente a cabeça, mostrando uma pálida sorriso.
  --Durante todos estes anos me disseram que estava morto. -Seu voz seguia sendo musical, embora era mais grave, mais rica. Igual a seu irmão, também ela tinha envelhecido. Devia ter quase sessenta anos. A pele, antigamente suave, era agora apergaminada. Os olhos brilhantes estavam obscurecidos pelas cataratas. Era cega-. Devo terminar minhas preces -disse.
  Owain esperou paciente enquanto rezava.
  Ao final a mulher ficou em pé e se sentou na cama.
  --Tem bom aspecto -disse o vampiro em voz baixa.
  --Pode parecê-lo -disse sonriéndole-, mas já não vejo muito bem. Me alegra escutar sua voz, Owain. -Não podia ver sua pele ainda tersa e seu cabelo escuro, igual ao último dia.
  Ficaram em silencio durante vários minutos. Possivelmente por primeira vez em sua vida e em sua no-vista, Owain não tinha palavras. Havia pensado em apagar aquele último rescaldo do passado, mas já não estava seguro de poder fazê-lo. Ao final conseguiu reunir forças para falar.
  --Não queria que Rhys te expulsasse.
 --Sei -disse assentindo com suavidade-. Necessitava filhos.
 De novo silencio.
 --Eu sempre... sempre me preocupei com ti, Angharad. -Owain compreendeu enquanto dizia aquelas palavras que, embora os lembranças seguiam pressentem, a paixão tinha morrido fazia muitíssimo tempo-. Mas era leal a meu irmão. Os anos me trocaram muito. -Com a lealdade morta e o amor morto, não era mais que uma casca vazia consumida por um ódio insaciável.
 --Owain?
 Durante um breve instante se enganou e tinha acreditado que a redenção poderia encontrar-se naquela mulher e em sua infinita capacidade para a ternura. Redenção, pensou enquanto observava ao Cristo crucificado na parede. Humanidade.
 Deixou-a na cama e desapareceu da escura cela, perdendo-se na noite infinita.
 Os arranha-céu se elevavam por toda parte a seu redor como as gigantescas paredes de uma cela (ou de um ataúde) do que Grimsdale poderia não sair nunca. voltou-se rapidamente por enésima vez aquela hora, olhando por cima do ombro.
 Nada.
 Mas tinham que estar perto. Podia sentir seus olhares vorazes atravessando-o como uma estaca. Não se fazia iluda. Se lhe caçavam não haveria julgamento, nem apelação ante o arcebispo.
 Aí!
 girou-se como um raio para ouvir uma tosse profunda e áspera rua abaixo. Um viandante ou um assassino? Não havia modo se soubesse. Segue te movendo, disse-se. Cruzou a rua e se meteu rapidamente em um beco lateral. Segue te movendo. Não tinha chegado até tão longe para morrer agora.
 O centro de Atlanta estava virtualmente deserto a aquela hora da noite; não havia multidões nas que ocultar-se, mas os assassinos sempre tinham muitíssimas sombras nas que desaparecer. O ouvido do Grimsdale era muito agudo, mas, bastaria-lhe para sair da cidade e chegar a Chicago? Tinha evitado Nova Iorque, Washington e Detroit, mas inclusive aqui lhe tinham encontrado. Durante quanto tempo poderia seguir lhes evitando? Quantas horas ficavam antes de que sua sorte se esgotasse?
 Faróis no meio-fio vindo para ele. ocultou-se em uma ruela até que o carro patrulha passou. Era provável que as autoridades locais estivessem sob o controle da Camarilha, mas isso também podia ser um problema. Poderiam lhe frear o suficiente como para que seus antigos camaradas lhe dessem alcance. Era tudo o que necessitavam.
 Passos! O... não, estava equivocado. Mas estava seguro de havê-los ouvido. Quase seguro.
 Grimsdale sentiu como o pânico se apropriava dele e tratou de combatê-lo. te acalme. Pensa com claridade. Segue te movendo. Tinha que perder a seus perseguidores e retornar ao aeroporto. O hangar Giovanni. Terreno neutro.
 Depois de passar um minuto totalmente quieto sem ouvir sinal alguma de perseguição, retornou à rua. Tosses ao longe. Teve que aplacar seus nervos para não sair correndo como um possesso.
 Os sabujos lutaram ao sentir o puxão nas correias. Aquilo era tudo o que Mike podia fazer para refreá-los quando captavam um aroma como aquele. Saltou sobre uma árvore cansada ao fundo de um pequeno ravina e permitiu que os cães lhe arrastassem para o outro lado. Quando saiu de novo à superfície viu o objetivo de sua busca e cobriu-se o auricular dos cascos para proteger do uivo dos cães.
 --Ardem, encontrei-o... G-7.
 O sensor de movimento estava esmagado no chão, perto de um ramo morto muito pequena para ter cansado sobre o equipe e rompê-lo. Os cães farejaram o ramo e começaram de novo a ladrar como loucos, tratando de seguir a caçada. Mike, esquadrinhando os arredores em busca de algum intruso com a luz montada em seu Ingram MAC-10 e tratando de conter aos sabujos, não ouviu a resposta recebida por rádio.
 --Repita.
 --Relatório. Mudança -disse Ardem com uma voz ligeiramente eletrônica.
 --G-7 -repetiu Mike-. Destruído. Intruso encontrado. Os cães têm o aroma. Mudança.
 --Persiga. Relatório de qualquer novidade às 02:45. Mudança.
 Mike apontou seu relógio com a lanterna. 02:40. Cinco minutos.
 --Recebido. Mudança. -Deixou que os cães escolhessem seu próprio caminho e correu atrás deles através das árvores, avançando para o perímetro da propriedade.
 Os latidos se faziam mais longínquos, mas não se perdiam. Pelo demais, a luz da lua se abria passo de forma pacífica através de os ramos nus do inverno, arrojando sombras sobre a folhagem queda. As folhas ao redor da zona com o sensor destroçado começaram a agitar-se e a voar, igual à terra baixo elas. Aos poucos segundos o terreno começou a abrir-se, enquanto uma figura surgia do revisto do que até fazia um segundo tinha formado parte.
 Nicholas se inclinou com cuidado. Os cães ainda ladravam ao longe (tinha deixado um rastro falso para mantê-los ocupados), mas estava mais preocupado pelos monitores eletrônicos. Sustentou o dispositivo esmagado na mão.
 --Hmp... -Agora que sabia o que estava procurando não teria muitos problemas para cheirá-los e evitar suas áreas de efeito.
 abriu-se caminho rapidamente através da zona boscosa até chegar ao espaço claro que rodeava a casa principal. Não havia dúvida de que os últimos dez metros estariam coalhados de sensores de detecção, provavelmente sob a grama cuidada. Podia saltar por em cima e afundar suas garras na fachada, mas, por que incomodar-se?
 Surgiu de seu esconderijo e se dirigiu para o caminho principal. Enquanto se aproximava, a porta se abriu. Um homem ruivo e bem vestido deu um passo adiante para lhe receber.
 --boa noite, senhor. O Sr. Evans lhe esteve esperando. -Tudo naquele servente parecia formal: seu modo de falar, o traje negro, a camisa branca, os sapatos brilhantes... O contrário que Nicholas, com seu jeans destroçados, a jaqueta de couro, a camisa aberta, as botas e a juba-. Por favor, me siga.
 O criado conduziu ao Nicholas pelo vestíbulo até um imaculado salão de entrada. A nogueira, a aranha de cristal que pendurava do teto, as delicadas tapeçarias de veludo e os brilhantes adornos de bronze falavam de um luxo sereno, mas inclusive entre aquela espaçosa elegância Nicholas sentia que a casa se fechava a seu redor. Aflorava os bosques próximos ou, melhor ainda, as montanhas do norte da Georgia. Preferia inclusive as planícies do Meio Oeste, qualquer lugar onde pudesse correr com a luz da lua a suas costas. Logo, pensou.
 Seguiu ao homem através de luxuosos comilões e salas de estar até chegar a uma grande porta de madeira. O criado chamou com suavidade.
 --Sim, Randal -chegou uma voz do interior.
 Este abriu a porta e indicou com deferência ao Nicholas que entrasse. Um homem muito jovem lhe observava desde detrás de um elaborado escritório. De aspecto jovem, ao menos, pensou Nicholas quando a porta se fechou a suas costas.
 --Olá, meu amigo -disse Owain Evans-. O que te traz para meu lar? Nestes dias não recebo muitas visitas... ao menos inesperadas.
 Não parecia preocupado por que a segurança de sua mansão tivesse sido rota, nem por que um intruso tivesse entrado pela porta principal em metade da noite. Parecia atento, mas depravado. Nicholas estava impressionado, mas antes de que pudesse responder Evans o deteve com um gesto.
 --OH, me desculpe um momento, por favor. -Apertou o botão de um comunicador sobre o escritório-. Randal.
 --Sim, senhor -respondeu o servente.
 --lhe diga a Ardem que nosso convidado já está aqui. Pode trazer de volta aos cães.
 --Sim, senhor.
 Evans devolveu a atenção ao Nicholas.
 --Perdoa. Estava-me dizendo...?
 Nicholas sorriu ante os jogos daqueles seres urbanos, encerrados em suas bonitas casas, isolados dos instintos que os conectavam com a noite. Levou a mão para a jaqueta e tirou um magro cilindro de marfim que situou sobre o escritório: Notou que Evans parecia interessado, mas não preocupado por que se levasse a mão ao bolso. Aí havia um homem que, por pura confiança ou por insensatez, não tinha muitos motivos para temer de um estranho. Suspeitava que se tratava do primeiro.
 Evans observou a caixa de marfim, mas não fez movimento algum por agarrá-la. Em vez disso se levantou e se aproximou de uma garrafa que tinha dentro de um cubo de prata. Encheu uma delicada taça com um líquido escuro.
 --Posso te oferecer algo de beber, meu amigo? -perguntou lhe entregando a taça-. Uma colheita excelente, diria eu. A melhor vitae da alta sociedade de Atlanta.
  --Muito obrigado, mas não. -Nicholas já tinha completo com seu obrigação ao entregar o pacote. Não tinha muitas vontades de cumprir com todas as normas apropriadas de uma suposta "alta sociedade" de vampiros urbanos.
  Evans se sentou sobre o bordo do escritório e saboreou um sorvo de sua taça.
  --É da Europa do Este... Não dos Bálcãs... do norte. -Deu outro gole, concentrado-. Minsk?
  Um sorriso cruzou o rosto do Nicholas. Tinha infravalorizado a aquele antigo.
  --Kiev.
  --Kiev -assentiu Evans-. É obvio. Os acentos são coisas traiçoeiras, e o teu é muito débil. Apostaria a que faz muito que não vê seu lar.
  Nicholas lançou um grunhido de bom humor. Quatro palavras e aquele vampiro de aspecto jovem tinha adivinhado sua cidade natal com umas só centenas de quilômetros de engano. Seus instintos depredadores estavam tão alerta como tinham estado no bosque. Não voltaria para baixar o guarda, não perto daquela ardilosa Vergôntea com suas maneiras irresistíveis e sua mente afiada. Não sabia muito do Owain Evans, salvo que era um membro importante mas discreto da comunidade vampírica de Atlanta. Parecia evidente que o dinheiro não lhe faltava, e era possível que Nicholas tivesse que lhe vigiar de perto enquanto estivesse na cidade.
  Entretanto, preferia vigiar da distância. agitou-se em seu cadeira. O ambiente da habitação era pesado, possivelmente tão espesso como o sangue na taça do Evans, e os tapetes e os grandes móveis parecia arrastar-se pouco a pouco para ele, devorando todo o espaço. Queria sair daquela casa imediatamente, mas se obrigou a emprestar atenção a seu anfitrião, à mão que elevava a taça, ao comprido cabelo escuro jogado para trás e perfeitamente arrumado, o nariz reta e forte, os inquisitivos olhos negros.
  Evans conversava educadamente sobre algo enquanto Nicholas amaldiçoava interiormente sua própria debilidade. Tinha completado seu trabalho. Durante quanto tempo teria que suportar aquelas enloquecedoras formalidades? Não acreditava seguro ofender a aquele antigo saindo à carreira de sua casa.
  --Muito bem, meu falador amigo -seguiu Evans-. Me deixe te fazer uma última pergunta.
  Última pergunta. A frase atravessou a angústia do Nicholas e capturou sua atenção.
 --Sinto curiosidade -disse Evans sentando-se de novo atrás de seu escritório e assinalando a caixa de marfim-. Não trouxeste esta mensagem desde o Berlim solo por boa vontade. O que recebeste em troca?
 Pergunta-a foi como um cubo de água fria sobre o rosto de Nicholas. Embora Evans devia saber que a mensagem chegaria, e de onde procedia, como se atrevia aquele maldito a perguntar precisamente aquilo que Nicholas não podia divulgar?
 --Um favor do amigo de um amigo -murmurou.
 Sentia aqueles olhos negros lhe perfurando e não estava seguro de poder olhá-los sem perder o controle, sem entrar em frenesi. De repente, a necessidade de destroçar aquelas caras tapeçarias, de rasgar com as garras o chão de madeira perfeitamente terminado, fez-se muito forte. A idéia daquele caótico desenfreio em uma estadia tão delicada se fez tão atrativa que não pôde evitar rir.
 Aquilo pareceu agarrar despreparado ao Evans. Pela primeira vez em a noite o Ventrue parecia perplexo, e seu evidente assombro fez que Nicholas riera ainda mais forte. A violenta natureza de seus pensamentos se fez cada vez mais intensa, o que a sua vez o parecia ainda mais hilariante. Ao final Evans se uniu à risada, quase nervoso ao princípio e um pouco forçado depois. Não compreendia o motivo mas não lhe importava. A risada, como o ódio, era contagiosa.
 --Do que te ri exatamente? -obrigou-se a perguntar entre as convulsões.
 --Estava pensando... ejem... pensava em te arrancar a garganta -explicou Nicholas rendo.
 A expressão do Evans se tornou súbitamente séria. Ao pouco, Nicholas seguiu seu exemplo e recuperou a compostura. Os dois se olharam com um certo sobressalto, já que não estavam seguros do que tinha acontecido.
 Nicholas decidiu que a prudência aconselhava abandonar a habitação, antes de que voltasse a fechar-se sobre ele.
 --Com o devido respeito, senhor Evans, devo partir.
 Owain fez que Randal acompanhasse ao visitante.
 --Pela porta principal, possivelmente -sugeriu Evans-. Não há necessidade de voltar a incomodar aos cães.
 Que estranho correio, pensou Owain enquanto se sentava com a olhar perdido e terminava a vitae de sua taça. Depositou-a sobre a mesa e desviou a sua atenção para o cilindro de marfim, a mensagem quase esquecido entre a estranheza da visita. Tomou o tubo e inspecionou o selo intacto de seu centenário oponente. Quase era uma pena abri-lo. Muito freqüentemente a antecipação era mais satisfatória que a revelação, especialmente em momentos como aquele, nos que acreditava conhecer o conteúdo da mensagem.
 dirigiu-se para o pequeno nicho do estudo no que guardava seu xadrez da Batalha do Hastings. Tinha sido lavrado por um marceneiro que tinha visto com seus próprios olhos ao Harold Godwin e a Guillermo o Bastardo no campo de batalha, aquele dia negro de 1066. Owain, como sempre, jogava com os escuros defensores anglo-saxões, de modo que pudesse reescribir a história e desculpar a sua terra natal a indignidade e o horror do domínio normando.
 E aquela vez o Bastardo estava levando-se seu castigo!
 Aquela partida em particular levava quase três séculos celebrando-se, e os movimentos se enviavam por correio cada década ou dois. A partida anterior se entupiu um pouco, já que Owain havia passado quase todo o Renascimento em letargia. Entretanto, aquela vez não aconteceria. felicitou-se enquanto observava o tabuleiro. O fim de partida estava virtualmente fechado, e suas forças escuras se dirigiam implacáveis ao ataque. O rei branco estava encerrado em uma esquina, junto a um bispo muito mal situado. Uma torre solitária, um cavalo com muito trabalho e um conjunto de peões ineficazes ocupavam o centro do tabuleiro.
 As peças do Owain estavam muito melhor situadas, até lhe faltando ambos os cavalos. Pelo resto, um bispo e uma torre eram as duas únicas baixas de importância. Sua dama percorria o tabuleiro esmagando sem piedade qualquer rastro de resistência dos malditos normandos. Possivelmente Harold devesse ter levado a sua mulher à batalha, pensou.
 Não havia dúvida de que o fim estava perto. Aquela mensagem podia conter perfeitamente uma rendição como movimento. Improvável. Sabia que seu oponente lutaria até o fim. Fútil, e não especialmente elegante. Sorriu ante a idéia de expulsar aos normandos, esmagados e ensangüentados, de volta ao Canal da Mancha.
 Seria uma verdadeira pena terminar aquela partida. Era uma das poucas diversões que para ele seguiam tendo algum interesse. Estava bastante isolado da sociedade vampírica, e seu império financeiro se dirigia virtualmente sozinho. Em ocasiões se necessitava um pequena chantagem, a espionagem corporativa ou um assassinato, mas nada essencialmente exaustivo. Pelo general, todas as noites eram iguais. Todas.
 Esse medo, a antecipação da rendição ao aborrecimento, refreava sua mão e lhe impedia de abrir o cilindro. Inclusive o mensageiro, aquele estranho Gangrel, tinha demonstrado ser entretido. Quando podia esperar outra ruptura tão intrigante da rotina? A escuridão se apropriava dele, mais negra que a noite depois da janela. Possivelmente esteja ouvindo de novo a chamada da letargia.
 Os golpes na porta interromperam seus sombrios pensamentos.
 --Sim, Randal.
 Seu ghoul de maior confiança entrou na sala.
 --Senhor, nosso... ah... convidado se partiu, e o senhor Jackson trouxe o carro.
 --O carro? Para...? -Ainda estava concentrado no tabuleiro de xadrez.
 --A exposição de arte -terminou o servente.
 --OH, sim. Isso -disse Owain ausente, examinando de novo a caixa de marfim-. É esta noite? Está seguro?
 --Sim, senhor.
 --É obvio. Sabia que era hoje. Suponho que se pode permitir a um homem uma falha de cor cada cem ou duzentos anos.
 --É obvio, senhor.
 --E nosso querido Príncipe Benison não se sentiria contente se o ignorássemos, não é assim? -Suspirou e depositou o cilindro na mesa junto ao tabuleiro. Agora que lhe requeriam em outra parte voltou a sentir uma grande curiosidade por conhecer o conteúdo-. OH, ao inferno. -Se levantou frustrado e cruzou o estudo. Necessitava outro traje, mas primeiro tinha que barbeá-la barba que lhe surgia cada noite até alcançar a longitude de dois dias.
 A metade de caminho se deteve e se girou.
 --Não seria adequado nos mostrar grosseiramente logo, não é assim? -Era estranho o dia no que a impaciência não lhe vencia. Se acomodou na cadeira frente à mesa de xadrez-. Bem, Randal, vejamos a patética defesa que meu estimado adversário preparou.
 Uma súbita garra rompeu facilmente o selo e tirou um pergaminho amarelado do tubo. como sempre, não havia preâmbulo nem saudação; as letras negras fluíam suaves, formando cinco palavras: Torre a Cavalo Cinco Rei
E depois uma sexta: Xeque
  Nem sequer um milênio de no-vista lhe tinha preparado para aquele instante, mas se recuperou rapidamente; solo por um momento a boca lhe abriu antes de assumir uma resposta mais direta.
  --Deve haver um engano. -As palavras surgiram de sua boca e de seu garganta, mas não havia engano algum.
  Owain tinha parecido ao molesto cavalo branco restante, e o mais provável era que em dois ou três movimentos tivesse chegado ao xeque mate, mas agora aquilo! Não só a torre punha a seu rei em xeque, mas sim o movimento tinha revelado um ataque descoberto do bispo branco, que também provocava um xeque.
  --Mas... como? -sussurrou fracamente. Havia um peão bloqueando essa diagonal. Um peão branco, mas não recordo havê-lo movido... Baixou o rosto até sua mão. Seu oponente não tinha movido aquele peão. A onipotente dama do Harold Godwin o tinha enviado ao inferno normando. Foi faz vários turnos. Provavelmente... 1930.
  A inquietação em seu estômago se agravou quando estudou o tabuleiro com maior atenção. Não só seu rei estava em dobro xeque, mas sim além disso estava apanhado. Podia escapar durante um turno, mas então a torre a cavalo oito rei, protegida pelo bispo... e com seus próprias peças afastadas... cheque mate.
  --Aaaaaaah! -As presas lhe surgiram das gengivas enquanto as garras tomavam forma em um gesto instintivo que denotava sua fúria.
  --Senhor? -Randal, que se tinha aproximado lentamente para olhar por cima do ombro de seu professor, deu um salto para trás, quase atirando o busto do Oliver Cromwell de seu pedestal de mármore. Enquanto lhe observava de uma distância prudencial viu a mão tremente do Owain mover a torre branca a sua nova posição com um golpe que ameaçou derrubando as demais peças. Randal, que também era um grande jogador, observou o tabuleiro durante uns instantes-. OH.
  Owain reprimiu a necessidade de agarrar cada trebejo e lhe arrancar a cabeça do corpo, convertendo-o em aparas tão pequenas que ninguém pudesse as reconhecer. Com um supremo ato de vontade, levantou-se lentamente da cadeira e abandonou a habitação.
  --Acredito que tinha que estar em algum sítio -murmurou com os dentes apertados. Randal lhe seguiu em silêncio.
 Grimsdale acreditou havê-los perdido ao girar para o este e depois descer para o sul. Tinha que chegar ao aeroporto, ao terreno neutro do hangar dos Giovanni, e voar daí a Chicago para negociar com Ballard ou com o Capone. Com aquele que oferecesse o melhor trato.
 Entretanto, cada vez parecia mais evidente que, se havia conseguido lhes perder em algum ponto, não seria por muito tempo. Agora estavam jogando com ele, como um gato com um pássaro ferido. O homem que tossia tinha aparecido muitas vezes para ser uma coincidência. Além disso, em uma ocasião em que se havia escondido nas sombras, uma espessa negrume, mais fria e densa que a noite mais fechada, apareceu reptando para ele. Não tinha sido capaz de controlar seu terror e tinha gritado, fugindo à carreira.
 Enquanto se apoiava contra a parede negra de uma sucursal bancária se alisou a camisa, mais para tratar de controla o tremor de suas mãos que para eliminar qualquer ruga. Necessitava alimentar-se, e de forma urgente. Aquela noite se estava alargando cada vez mais, como um horrível sonho surrealista que não terminava jamais e que não lhe deixava descansar.
 Já estava bastante longe do centro. Os imensos edifícios de escritórios e os arranha-céu tinham dado passo a lojas menores, restaurantes e comércios de todo tipo com cristaleiras protegidas por grades. Naquela zona havia mais gente, mas Grimsdale não era capaz de concentrar-se em caçar quando era ele o que estava sendo açoitado. Fechou os olhos por um momento e riu em silêncio, presa de o desespero. Anteriormente tinha tratado de convencer-se de que estava-o imaginando tudo, de que não havia ninguém atrás dele. Quase o tinha acreditado, até que a familiar tosse raspada rompeu em seus pedaços patética fantasia.
 Deu uma forte baforada de ar para acalmar-se, embora seu corpo já não necessitava oxigênio. Solo sangre. Darei toda a volta, decidiu. Oeste, logo norte, este e termino com uma carreira para o sul. Se for necessário encontrarei um refúgio e passarei o dia. Posso chegar amanhã de noite ao aeroporto. Não podia render-se ao pânico, não quando ainda tinha uma oportunidade. Quão único preciso é chegar a Chicago. Depois serei rico por toda a eternidade. Sorriu, a pesar do frio que sentia cada vez que necessitava sangue de forma urgente.
 Entretanto, aquela vez era algo mais.
 Tratou de abandonar seu esconderijo, mas descobriu que suas pernas não obedeciam seus desejos. Viu muito tarde a escuridão, a sombra sobrenatural que se enroscava por suas pernas e que ascendia lentamente por seu corpo. Gritou aterrorizado.
 --Não arme tanto escândalo, carinho. -Uma mulher afroamericana o sorria a menos de três metros de distância, acuclillada nas sombras.
 Grimsdale lutou frenético, mas a negrume não lhe soltava, lhe apertando os braços contra o corpo e constrangendo seu peito. De a esquina surgiu outra figura com uma volumosa gabardina e um chapéu de asa larga que lhe ocultava o rosto.
 --Os gritos não lhe valerão de nada -disse a mulher enquanto o recentemente chegado se aproximava do Grimsdale. A mente de este voava a toda pressa. Chicago. Tenho que chegar a Chicago! Isto não pode estar passando!
 Uma voz com um forte acento estrangeiro vaiou de debaixo do chapéu.
 --Não suporto gritos -disse enquanto aferrava a garganta de seu presa.
 Grimsdale não pôde fazer absolutamente nada enquanto sentia como sua laringe não era esmagada, a não ser reformada, moldada em uma massa de carne e cartilagem inútil que surgia de seu pescoço. A dor era tão intenso que nunca havia sentido nada parecido, nem antes nem depois de morrer. Ofegava, mas solo um leve assobio surgia do que ficava de sua garganta. Não haveria mais gritos.
 A mulher riu entre dentes e a segunda figura se tirou o chapéu, revelando um semblante monstruoso: pontas agudas de carne e osso exposto surgiam do centro do crânio; o queixo, comprido e afiado como uma lança, dobrava-se para a esquerda; as presas inferiores surgiam para cima, perfurando a pele.
 Apesar de ter a cabeça imobilizada pela sombra gélida, Grimsdale conseguiu fechar os olhos e desejou que todo aquele horror fora imaginário, mas nem sequer lhe concedeu aquele luxo. Sentiu a pressão sobre seus olhos e viu como as pálpebras se fundiam como a cera ante o toque do monstro.
 Seus pulmões estiveram a ponto de estalar quando tratou de gritar, mas o único que ouviu foi um doentio gorgoteo... e risadas, tanto o cruel cacarejo da mulher como o som raspado do monstro, que podia confundir-se com uma tosse.
 Grimsdale esticou ao máximo os músculos, mas era incapaz de mover-se dentro dos limites de sua prisão escura.
 Estava completamente indefeso, o que aproveitou o monstro para trabalhar em sua cara, como um oleiro demente trabalhando argila viva. Nos momentos de lucidez que a agonia lhe permitia, Grimsdale desejou que chegasse o fim. Quase se sentiu agradecido quando a mulher saltou sobre ele, lhe mordendo profundamente no pescoço. O monstro também se alimentou, afundando as presas grotescas em seu rosto e lhe arrancando partes de carne disforme.
 Havia uma nova voz, mas Grimsdale não pôde ouvi-la.
 --Deixa algo para seu amante, Dietrich. -As palavras de Francesca surgiam como música de seus lábios, e o som daquela voz bastou para distrair ao horrendo vampiro. afastou-se de sua última obra professora e apartou também a Liza. A mulher negra vaiou enquanto de sua boca caíam algumas gotas do sangue do Grimsdale, que se derrubou no chão.
 --Não acredito que vá muito longe -observou Francesca.
 Dietrich riu ante aquelas palavras, incapaz de conter-se, e começou a saltar. Liza se lambeu os lábios e se limpou com a manga, observando invejosa como Francesca levantava sua presa e esvaziava o resto do sangue. Inclusive ela tinha que admitir que aquela mulher hispana tinha um certo estilo, uma sensualidade inata. Vê-la lamber aquele corpo disforme lhe pôs a pele de galinha e lhe fez fantasiar.
 --Sua sombra lhe sujeitou bem -disse Dietrich.
 --É obvio -respondeu Francesca. O monstro se aproximou um pouco e se gargalhou de forma estúpida ante o reconhecimento de seu completo.
 Liza já tinha tido suficiente.
 --eu adoraria ficar para que todos nos beijássemos o culo, mas tenho coisas que fazer.
 Francesca assentiu.
 --Sua ajuda foi inestimável. Asseguro-te que não passará desapercebida.
 --Sim? -Liza tinha dificuldades para lhe fazer comentários sarcásticos a aquela mulher-. Vale. -Enquanto se girava para partir, viu a língua de réptil do Dietrich estender-se e enroscar-se ao redor do antebraço de Francesca. afastou-se e tratou de ignorar a risada maníaca que chegava do beco.
 A canção lhe chamava.
 Antwuan se desculpou e deixou a seus amigos; não foram partir a nenhuma parte. Ninguém ao que Antwuan conhecesse ia a nenhuma parte. Ninguém salvo ele. Seus amigos Sempre riam. Exceto o Pequeno Johnnie, ele era o único que não se colocou em confusões, que "tinha poda o nariz", como dizia sua mãe. Muito em breve teria idade suficiente para trabalhar para seu tio Maurice conduzindo o táxi. Ia a economizar um pouco de dinheiro, a comprar uma casa... Às garotas os gostava disso. Não tinha intenção de passar toda sua vida em Reynoldstown. Vi a muitos tipos morrer a tiros ou voltar-se loucos com as drogas. De todos os modos, nenhum de seus amigos acreditava que fora a sobreviver até os trinta. Nenhum exceto o Pequeno Johnnie, que tinha muito medo a morrer. Ao Antwuan gostava ficar com eles, mas não lhes necessitava a todas as horas.
 Além disso, não todas as noites lhe chamava a canção.
 A primeira vez que tinha respondido tinha sido por outros motivos. Taquanna lhe tinha sugerido que devia fazê-lo, e pensou que se jogava bem suas cartas podia chegar a deitar-se com ela. Merecia a pena. Entretanto, após não havia dúvida alguma. Se a canção lhe chamava, ele acudia.
 Para o Antwuan, a velha igreja sempre tinha formado parte do paisagem. Estava ali, mas ele não tinha nada que ver com ela. Ninguém se aproximava. Rodeava-lhe esse ar estranho que fazia que todos se mantiveram afastados. Nem sequer as bandas se reuniam ali. O que demônios, pensava, há muitíssimos outros edifícios abandonados que destroçar.
 Enquanto se dirigia para a igreja pela quarta vez em sua vida, notou que o lugar não estava tão mal conservado se se olhava com bons olhos. A pouca pintura branca que ficava estava caindo das pranchas de madeira cinza, e o campanário, em sua maioria ruído, se elevava precário sobre umas vidraças parcialmente intactas e cobertas de pó que apareciam entre os tablones que as cobriam. Podia ser pior.
 Ao aproximar-se sentiu as notas que flutuavam na noite e que o chamavam sugerentes. Nunca tinha ouvido aquela canção antes de ir pela primeira vez à igreja, mas após a escutava por toda parte, estivesse onde estivesse. O verão passado-se encontrava em um partido dos Braves, e apesar dos quilômetros, do tráfico e da multidão a tinha percebido claramente. Saltou ao Marta e retornou o mas rápido que pôde.[NOTA do T.: Metro Atlanta Rapid Transit Authority, o sistema público de ônibus e suburbano de Atlanta]
  Não viu ninguém na calçada esquartejada que rodeava o templo, mas sabia que haveria outros esperando. A canção chegava até todos aqueles capazes de ouvi-la, e eram muitos os que acudiam. Antwuan alegrou-se de viver tão perto e de poder responder quase sempre. Se aproximou da porta enquanto as notas lhe arrastavam cada vez com mais força. Aquilo era um prelúdio, como lhe dizia sua mãe quando o fazia ir a sua igreja, solo que aquela música era muito mais cativante que nada que pudesse imaginar. Além disso, o serviço não era o que alguém esperaria do Pregador Rutherford. Riu ao pensar em aquela imagem, mas entrou e guardou silêncio.
  A mulher estava na parte frontal, diante de um pulpito elevado talher de grafiti: o anjo pálido. Sua pele era branca como o marfim, o que contrastava ainda mais com o cabelo negro que rodeava seu rosto magro, elevado agora para os céus com os olhos fechados e os lábios ligeiramente separados para poder entoar o som mais cativante que um homem tivesse ouvido jamais.
  Antwuan caminhou lentamente entre os bancos quebrados, mas cada passo sobre o tapete velho e puído lhe aproximava um pouco mais ao paraíso. Já havia outros: dois homens negros majores, uma mulher coreana de média idade e uma jovem branca que vestia muito bem para viver perto. Antwuan se ajoelhou junto aos outros aos pés nus do anjo, cujo vestido branco se derramava sobre o chão.
  Aquela voz os atraía e os retinha, embora não tinham intenção alguma de partir. Antwuan fechou os olhos e deixou que a música aliviasse sua mente, afastando todos os pensamentos turbulentos: seu mãe lhe insistindo em conseguir um trabalho em vez de esperar a ter idade para trabalhar com seu tio, os dias eternos desde que abandonasse a escola, a dúvida de se os disparos na noite tinham acabado com um familiar ou com algum de seus amigos... As preocupações diárias desapareceram e deram passo à música apaziguadora, o mais próximo à verdadeira felicidade que nunca tinha experiente.
  Entretanto, sua sorte não era completa. Em seu coração persistia uma pequena dor, a semente do desejo, uma necessidade crescente. A música não era capaz de apagar esta sensação e tampouco a afastava, mas sim a acariciava e cuidava dela.
 A canção trocou, alterou-se de modo indescritível. Antwuan sabia que se abria os olhos veria outros a seu redor, dez ou quinze pessoas. Sentiu a presença familiar da Taquanna a seu lado, a meros centímetros de seu ombro. O anjo seguia cantando sobre eles; a música recordava a uma toada que sua avó lhe cantava de pequeno, mas não era capaz de recordar a melodia. Além disso, não queria distrair-se daquele prazer.
 Lentamente, a música começou a cobrar intensidade. O timbre acalmado se fez mais forte, ao tempo que se introduzia um leve tom de urgência. A dor dentro do coração do Antwuan também aumentou, e sentiu como a semente jogava raízes, crescia e florescia. O desejo aumentou com a harmonia, combinando todas as necessidades (amor, aceitação, segurança) em uma exigência irresistível que devia ser obedecida sem falta.
 Anjo misericordioso do Senhor. As lágrimas corriam por seus bochechas, um pranto feliz por uma revelação que não podia achar em nenhum outro lugar. Estava dançando. Todos dançavam, girando embriagados pela euforia, absorvendo a salvação. Companheiro com companheiro, homem, mulher, branco, negro, jovem, velho. Tocou amistoso a aqueles aos que não teria saudado na rua em sua vida normal.
 A música seguiu aumentando em força, tom e volume. A urgência lhe atravessava o peito como uma saudade a que não podia resistir. O ritmo se apropriou dele e lhe arrastou para ver seu eu mais interior, nu e vulnerável. O doce vibrato do anjo lhe pedia que fora fiel a si mesmo, a seus desejos, a suas necessidades.
 O retumbar em seus ouvidos era ensurdecedor. O coração lhe pulsava desbocado para igualar ele ritmo da canção. Sempre estava a canção, eternamente presente, chamando, golpeando, girando.
 O peito da Taquanna se esfregou contra seu ombro. A necessidade do Antwuan encontrou direção na nudez dela, em sua deliciosa pele marrom. tocaram-se, acariciaram-se, entrelaçaram as harmonias de uma canção que lhes aproximava cada vez mais.
 tombaram-se sobre a erva enquanto o aroma embriagador da moça lhe rodeava. Mãos. Amor. Necessidade. Desejo. Enterrou o rosto entre seus peitos, bebeu-a, sentiu seu corpo tenso e arqueado lhe desejando. Taquanna começou a lhe tocar por toda parte. O sol os acariciava, quase lhes queimando, mas a dor não fazia mais que acrescentar seu desejo, reforçar sua necessidade.
Sentiu-a baixou seu próprio corpo. Sobre ele. Braços e mãos surgiram da terra por toda parte para roçar, acariciar. A moça gritou... ou era ele?
A música.
Canção.
Êxtase arrebatado.
Crescendo.
Gozo devorador.
 Quente, ao bordo das lágrimas de felicidade, Antwuan saiu trastabillando da velha igreja quase ao amanhecer. As pernas apenas sustentavam-lhe enquanto se afastava pela calçada. Quando chegou a casa se derrubou sobre a cama e dormiu até muito avançado o dia.
 Liza tomou um atalho pelo parque Piedmont. adorava a liberdade de passear sozinha pela cidade de noite, algo que não podia fazer sendo mortal. Não só desfrutava de seus novos poderes, a não ser que sempre procurava a oportunidade de exibi-los, embora o fazia mais para convencer-se de que eram reais que para impressionar a ninguém. Liza não necessita a ninguém mais, dizia-se freqüentemente. Esperava que alguém lhe desse problemas, desejava que qualquer gilipollas que acreditasse-se muito duro tratasse de acossá-la, ou melhor ainda, de violá-la. O colocaria a franga na garganta.
 Seguro que o velho Dietrich a deixa enorme, como gostam a Francesco, pensou. Provavelmente a tenha cheia de pontas agudas, como a cabeça. Extrañamente, era Francesca a que de verdade lhe intrigava. O modo no que arrrrastra as errrres. Aquele mero pensamento o produziu calafrios. Pode que as duas se voltassem a encontrar, mas esta vez sem o Dietrich. O monstro. Quem sabia quando lhes voltaria para reunir outra missão do Sabbat? A equipe tinha funcionado o bastante bem: Lisa, natural de Atlanta, como guia; Dietrich ajudando a dirigir a a presa e Francesca dando as ordens e imobilizando a como-se-chamasse o final.
 Para sua decepção, a noite no parque parecia o bastante tranqüila. depois de quarenta e cinco minutos sem que ninguém o incomodasse e sem nada que levar-se a boca, dirigiu-se para o High Museum, asa exposição do Príncipe Benison.
 Os ghouls de este, Byron e Vermeil, um branco e outro negro, ambos os silenciosos como uma tumba, protegiam a porta ao final de uma larga rampa. tratava-se evidentemente de uma exposição privada à que os mortais não eram bem-vindos. A Camarilha, a seita vampírica que controlava Atlanta, reclamava a tudas as Vergônteas como membros, de modo que Liza estava automaticamente convidada embora Benison não a quisesse ali. Tecnicamente era uma anarquista, uma rebelde que não reconhecia as estruturas da Camarilha, ao menos não todas elas. Entretanto, como a seita a incluía sempre existia uma grande zona cinza em que mover-se. A Liza adorava a zona cinza. Significava liberdade. Entretanto, se Benison ou qualquer dos outros vampiros de Atlanta descobria seus contatos com o Sabbat, se terminaria a liberdade... por não dizer a vida. Seria empalada ou decapitada, ou deixada à luz do sol, ou as três coisas de uma vez.
 Passou junto aos dois ghouls, que lhe sustentavam a porta.
 --Ey, Vermeil -disse-. Você gosta de ser um menino do Benison? Trata-te bem? -Os ghouls a ignoraram, fechando a porta e seguindo com seu trabalho-. Guris, me façam saber se lhes cansam de toda esta mierda. Ensinarei-lhes o que é passar-lhe bem.
 Outra mulher, provavelmente também um ghoul, acompanhou a Liza pelo vestíbulo, um espaço aberto de incrível altura rodeado por uma rampa descendente, até o elevador. Como se não pudesse encontrá-lo sozinha.
 A cabine se deteve e as comporta se abriram para lhe mostrar a Lisa um mundo que desprezava: a corte do príncipe, cheia de pompa e cerimônia, de Vergônteas atuando de forma sofisticada, bebendo vitae em taça e tentando fazer comentários interessantes e profundos sobre arte. O único motivo para vir era recordar-se o muito que os odiava, rir deles e de sua arrogância oca.
 Em ocasiões Benison celebrava missas de meia-noite em Rhodes Hall, sua mansão no Peachtree Street. Liza as evitava como a peste. Não tinha a menor intenção de escutar a um louco Malkavian cuspindo as escrituras e pretendendo que Deus ainda se preocupava pelos Condenados. Liza a anarquista desfrutava dessa liberdade, já que podia saltar-se qualquer acontecimento que desejasse. Outros Vergônteas não podiam dizer o mesmo. Estúpidos filhos de puta. Ao Príncipe Benison não o fazia nenhuma graça que seus súditos faltassem aos acontecimentos de seu corte, outro motivo para atender a aquela exposição relativamente inofensiva: esfregar a outros pela cara que ela não tinha por que estar ali.
 Liza pôde ver que estavam todos: Eleanor, a puta esnobe casada com o príncipe, vestindo esse horrível traje tirado do que o Vento Levou-se; Benjamim e Thelonius, advogado residente e Sr. Direitos Civis, irmãos que trabalhavam no mundo dos brancos; Owain Evans, o jovem, atrativo e aburridísimo empresário; Hannah, a Tremere local, grande feiticeira, ou como fora; Marlene, aspirante a artista, mas bem reina do porno.
 Havia outros, mas Liza se distraiu ao ver o Alex Horndiller, o ghoul emano direita do Benison, conduzindo a dois jovens varões mortais para o centro da galeria. aproximou-se deles enquanto seu roupa negra ajustada atraía algumas olhares entre os trajes formais que todos levavam. Golpeou ao ghoul tão forte no ombro que quase derrubou-o.
 --Ey, minha pollita, o que é o que me reservaste? -Sem mais palavras, tomou o antebraço do primeiro homem, alto, loiro, pode que de uns veintipocos anos, e lhe afundou as presas.
 O mortal apenas resistiu, e foram outros convidados os que expressaram seu assombroso. Liza tratava de não rir (odiava que a sangue lhe saísse pelo nariz), mas era tão... tão das Vergônteas escandalizar-se como tinham feito... Os dois homens eram o aperitivo da velada, recipientes comuns, mas todos sabiam que o primeiro sorvo lhe correspondia ao príncipe.
 Liza não estava faminta, especialmente depois de beber-se a aquele vampiro junto a Francesca e ao Homem Elefante, mas aquilo era quase tão divertido como estripar ladrões no parque. Deixou ao homem e sorriu ao iracundo Horndiller, que tinha a cara avermelhada.
 --Não está mau -disse enquanto lhe piscava os olhos um olho ao recipiente e o beliscava o traseiro-. Eu gosto do toque Dixie.
 antes de que Horndiller pudesse converter sua indignação em palavras, Liza afundou as presas no segundo homem, mais fornido e de pele mais escura que o primeiro. Solo tinha bebido um pouco quando sentiu uma mão no ombro. Pollita tem mais Pelotas do que... Entretanto, antes de que pudesse terminar o pensamento alguém a girou, e para sua surpresa não era Horndiller, a não ser J. Benison Hodge, Príncipe de Atlanta.
  Deu um passo atrás surpreendida, mas a férrea presa do vampiro a reteve. Era muito mais alto que ela, e tinha sua enorme barba avermelhada a meros centímetros de sua cara. Os olhos verdes mostravam uma fúria que Liza não tinha visto jamais. Tratou de falar, mas solo conseguiu lançar um gemido lastimero pela dor no ombro.
  O príncipe falou com voz grave e lenta.
  --Ofereço-te hospitalidade e te burla dela. -As palavras foram dirigidas a Liza, mas a voz de barítono do Hodge chegava claramente a todos os convidados, dos que a Sabbat se esqueceu.
  O príncipe a soltou e preparou a mão rapidamente para lhe dar uma forte bofetada na cara... mas se deteve, com o braço tremendo pela raiva. Sua mandíbula fechada fez que a barba se estendesse para diante.
  --Não tolerarei isto.
  Liza não podia fazer nada ante aquela incrível demonstração de ferocidade logo que contida. Um golpe daquele punho enluvado bastava para lhe romper todos os ossos da cara. De repente se sentiu muito jovem, débil e pequena, enfrentada a uma força da natureza como aquele vampiro.
  Benison aspirou profundamente e exalou de forma pausada. Nem por um momento deixou de olhar com severidade a Liza.
  --Não quero voltar a verte durante um ano e uma noite, não quero nem sequer ouvir seu nome -disse enquanto um brilho demente cruzava seu olhar, como se queria destrui-la naquele mesmo momento, como se quão único desejasse fora esmagar aquela afronta a sua honra. Sem embargo, o momento de dúvida passou e o príncipe conseguiu conter sua ira, embora não aplacá-la-. Em caso contrário conhecerá a morte definitiva. Vete -disse antes de lhe dar as costas.
  Liza demorou um instante em compreender que não tinha sido golpeada, que o príncipe não lhe tinha partido o pescoço como ela esperava. Se tragou seu orgulho ferido e desapareceu.
 Era provável que Owain não tivesse estado nunca em uma função social com um humor pior. Trezentos anos de estratégia e planejamento abruptamente catapultados ao inferno, não deixava de dizer-se. Não se tratava de uma desgraça que pudesse ignorar e esquecer facilmente. Como? Como pôde acontecer? Excesso de confiança? Descuido?
  A exposição artística logo que era uma distração suficiente. Ao menos não é uma dessas condenadas missas. Graças a seus contatos com a direção do High Museum o príncipe Benison havia conseguido que a galeria mostrasse a obra de uma das Vergônteas de Atlanta, Marlene. A mulher se considerava uma escultora, e embora se tratava dê uma Toureador, Owain não acreditava que o término "arte" descrevesse adequadamente suas "façanhas". Ao parecer, a cerâmica e a argila eram materiais muito sutis; Marlene se dedicava a soldar e a pegar diversas formas de metal de desfeito, lhe pondo depois nomeie grandiosos às monstruosidades resultantes. O que sua obra carecia em visão o supria com acréscimo em magnitude. Em seu catálogo não havia nada que pudesse ficar em cima da mesa do comilão.
  Como era habitual naquelas funções, Owain tratou de apartar-se de no meio. podia-se aprender muito mais observando e escutando que tomando a iniciativa, algo que tinha aprendido ao comprido dos séculos de existência vampírica, e algo que esse lixo anarquista faria bem em aprender, pensou quando Liza apareceu pela porta. Sua pequena demonstração tinha sido entretida, tinha que admiti-lo, embora se tinha cuidado de não mostrar reação alguma ante o espetáculo. Não sobreviverá muito tempo enfrentando-se ao príncipe desse modo. Surpreendia-lhe sua temeridade desmedida, seu estupidez. Há modos mais eficazes de escavar a posição de um príncipe, muito mais sutis, mais seguros. Não podia a não ser perguntar-se se o tratamento do príncipe tivesse sido mais "permanentemente prejudicial" se a anarquista tivesse tido tempo de fazer algum comentário sobre as esculturas.
  Enquanto Liza montava sua pequena cena Owain tinha estado em um lateral de lamba-a, junto à dirigente da capela Tremere, a discreta Hannah. Estava o suficientemente perto como para que qualquer acreditasse que estavam falando e passasse de comprimento, mas não tanto como para ter que falar com ela. Suspeitava que a Hannah também lhe vinha bem aquele acerto, já que não era precisamente um dos vampiros com maior ambição social da cidade. Pelo general, quão únicos tinham algum interesse em falar de algo interessante com ela eram seus súditos Tremere. Alguns tentavam intercambiar algumas palavras mas se retiravam rapidamente, já que não recebiam mais que respostas tão educadas como frita.
  Owain se fixou em sua reação ante o enfrentamento entre o príncipe e a anarquista. Estava tão calada como ele, e uma leve inclinação do nariz era quão único indicava seu desagrado. O próprio Owain não era um fanático dos maneiras, embora ao longo de os anos tinha chegado a compreender sua capacidade estabilizadora, tanto nos assuntos mortais como nos vampíricos. Não se sentiu ofendido por aquela "confronta à honra do príncipe". O que estava era enojado com a estupidez da anarquista.
  Sacudiu a cabeça, pensando no equivocado daquela exibição. Queria lhe envergonhar para danificar sua reputação, mas Hodge conseguiu parecer mais forte que nunca e ela esta exilada durante um ano e uma noite. Riu para si mesmo. Um bonito toque: um ano e uma noite. Hodge tem sensibilidade para o dramático. A duração do castigo era um claro reflexo da duração das buscas artúricas: um ano e um dia. Owain estava especialmente apaixonado pelas lendas, já que muitas das primeiras eram de origem galés. Parecia-lhe evidente que o príncipe se via como uma espécie de cavalheiro andante, protetor da moral. Concordava perfeitamente com seus demais transtornos mentais.
  Não, Owain não estava ofendido por aquela pequena demonstração, ao contrário que muitos das Vergônteas reunidas, que se haviam submerso completamente no aura de gentileza sulina que Hodge, sua esposa Eleanor e o sire dele, Tia Bedelia, tinham criado de forma tão convincente. Para o Owain a etiqueta não era mais que um meio, não um fim em si mesmo. Em ocasiões era quão único mantinha o civismo entre dois inimigos, e o que era mais importante, era um véu depois do que obrar o engano.
  Aqueles pensamentos lhe recordaram que aquela noite tinha assuntos que resolver. Basicamente estava fazendo tempo, assegurando-se de permanecer o suficiente como para não insultar ao príncipe, mas não tanto como para que parecesse que queria congraçar-se com ele. Acreditava que virtualmente nenhum daqueles vampiros merecia o tempo de uma reunião social, e menos ainda os humanos ou os ghouls. Entretanto, se tinha que acudir, bem podia conseguir algo ao mesmo tempo. Procurou pela sala até dar com Benjamim, um camarada Ventrue, embora não precisamente um amigo. Enquanto se preparava para abandonar o refúgio seguro perto de Hannah se topou com Tia Bedelia, que percorria a galeria sentada em seu velha cadeira de rodas empurrada por seu menino, o príncipe.
  --Vá, J. Benison, alguém chocou comigo -disse com sua voz aguda-. Quem é? -Olhava com seus óculos de meia lua na direção do Owain. Estava envolta com um pesado vestido de lã.
 --Minhas desculpas, Mãe -murmurou o príncipe, amável e educado agora que o civismo tinha voltado para a reunião-. É Owain Evans.
 Este sorriu educadamente.
 --Nunca tinha ouvido falar dele.
 --claro que sim, Mãe -recordou-lhe paciente Benison-. Chegou de Europa durante a Grande Guerra. É do Gales. Há...
 --Nunca tinha ouvido falar dele -saltou Bedelia, mais molesta esta vez.
 O príncipe agachou a cabeça e sussurrou.
 --Claro que não, Mãe, tem razão. Mãe, apresento ao Owain Evans, Ventrue do King Road, Atlanta. Senhor Evans, meu sire, Tia Bedelia.
 A anciã estendeu a mão frente a ela enquanto Owain, a seu direita, viu que o príncipe lhe olhava espectador. Rodeou-a, tomou delicadamente sua mão e a beijou.
 --O prazer é totalmente meu, Tia Bedelia.
 --Encantador -sorriu a velha vampira docemente, feliz agora que a tinha mostrado o devido respeito; estava tão contente que parecia ter ficado instantaneamente dormida. Tinha os olhos fechados e começava a roncar de forma discreta.
 Benison mostrou um grande sorriso.
 --Sempre me alegra verte, Owain. Minha mãe e eu estamos contentes de que tenha podido vir esta noite. Você gosta da exposição? -antes de que Owain pudesse responder, o príncipe olhou a sua esquerda-. Não, não acredito que tenhamos que mandar a ninguém detrás dela -disse respondendo uma pergunta inexistente. Depois, sem perder um instante, voltou-se de novo para o Owain e lhe sorriu.
 O Ventrue não sabia como reagir. Aquele comportamento peculiar não era novo no Benison.
 O príncipe esperou um instante.
 --A exposição...?
 --OH, sim -respondeu Owain-. Nunca tinha visto nada parecido.
 Benison lhe deu uma palmada no ombro e riu de bom grau.
 --Bem, bem, estou seguro disso. Nossa pequena Marlene é toda uma artista.
 --Tem... algo, sim -assentiu o Ventrue. perguntou-se que relação teria Marlene com o príncipe para merecer seu mecenato. Sabia com certeza que sua mulher não era nenhum exemplo dê fidelidade. Possivelmente a indiscrição fora recíproca. Embora muito poucos vampiros conservavam algum tipo de desejo sexual, sempre havia outras... amostras de afeto que uma esposa podia conservar celosamente.
 --Bem, Mãe e eu devemos atender a outros convidados -disse Benison-. Me alegro de verte, Owain. Desfruta da exposição. -Para ouvir isto Bedelia despertou. O ronco cessou abruptamente enquanto piscava. Estava olhando ao Owain como se lhe acabasse de fazer uma pergunta e estivesse esperando resposta.
 Owain, assentindo respeitoso ao príncipe, viu que Bedelia seguia lhe observando espectador.
 --foi um prazer conhecê-la, madame -disse.
 Lhe olhava como se não tivesse ouvido seu comentário.
 --Conhecemo-nos, jovem?
 Benison a interrompeu rapidamente.
 --Olhe, Mãe, aí está sua companheira favorita de bridge, Hannah -disse enquanto empurrava a cadeira de rodas.
 --J. Benison, por que não nos apresentaste? -perguntava a anciã enquanto o príncipe avançava, saudando com grande entusiasmo enquanto parecia ignorar as queixa de seu sire.
 Owain se afastou agradecido. Sempre se tinha levado o bastante bem com o príncipe. Os dois eram guerreiros, e embora suas lutas pertenciam a épocas diferentes isso sempre criava uma certa camaradagem. A Tia Bedelia era um assunto diferente. Estava convencido de que sua "amnésia" não era mais que um truque, um jogo com o que pretendia lhe rebaixar de algum modo. Esqueceu o encontro. Que a velha bruxa pretenda que não me conhece. Prefiro seguir aconselhando ao príncipe que obter sua aprovação. Onde se há metido Benjamim? perdeu-se em alguma galeria lateral.
 Dirigiu-se ao centro da sala e saudou educadamente aos Vergônteas mais jovens, de cujas ações tratava de estar informado medíante uma rede de espiões mas aos que não se dignava a falar em acontecimentos sociais. Passou também de comprimento a principal obra da exposição, uma mole consistente em três grandes partes de metal dobrado e retorcido com numerosos adornos, menores, suspensa do cubro por grosas cadeias. Era uma obra que Marlene tinha criado fazia alguns anos e que se titulava "O Rodeio do Benison", em honra da purgação que o príncipe tinha feito na zona de Atlanta entre os anarquistas e Caitiff que não lhe mostravam o devido respeito anunciando sua presença na corte. Benison parecia estar afeiçoado com aquela obra, por isso a apresentava de forma periódica para desfrute das Vergônteas de seus domínios.
 Um Brujah vociferante havia dito que a escultura era em realidade a representação, de uma baleia cuspindo um Volkswagen, mas o príncipe tinha outra opinião a respeito. Aquele Brujah já não residia em Atlanta. Havia outras opiniões mais coloristas (e discretas) sobre o significado da obra: uma cabeça desfigurada com um chapéu com hélice, três falcões fornicando ou um bailarino de balé vomitando. O dia da apresentação oficial Owain se limitou a aplaudir de forma educada.
  que Benison não tolerasse que os visitantes se esquecessem de apresentar-se ante a corte lhe recordou ao convidado que tinha tido aquela mesma noite. Recordava vagamente que aquele Gangrel já tinha estado antes na cidade, e se era assim não havia dúvida de que conheceria as idéias do príncipe a respeito.
  Por desgraça, ao pensar no mensageiro voltou a dor do mensagem. Estendeu involuntariamente as garras e as afundou em seus Palmas. Quando terminasse com os negócios podia retornar a casa e estudar o tabuleiro com maior profundidade. Possivelmente ainda não esteja tudo perdido, disse-se, embora não acreditasse de tudo.
  A galeria estava bastante lotada, já que os convidados mais atrasados começavam a chegar. dirigiu-se a uma das galerias laterais e se encontrou com o homem com o que tinha que falar. Benjamim, um dandy de cor com um impecável traje do Brooks Brothers, cabelo muito curto e óculos de arame, era relativamente jovem como vampiro, embora seu sangue era poderoso. Além da Eleanor, a mulher do príncipe, era provavelmente o Ventrue mais influente de Atlanta. Owain tratava de manter as distâncias com a política do clã, já que a tinha padecido em numerosas ocasiões. Quantos menos problemas tivesse, melhor. Entretanto, tanto Benjamim como Eleanor suspeitavam deste afastamento e lhe olhavam com suspicacia. Se fossem conscientes do velho e poderoso que era comparado com eles, também lhe teriam bastante medo.
  --Benjamim, devemos falar -disse enquanto se aproximava. Uma jovem, cujo nome não recordava naquele momento, afastou-se de Benjamim lançando ao Owain um simples olhar, uma amostra de deferência forçada para o antigo.
  Benjamim franziu o cenho, uma expressão que fez que os óculos o caíssem pelo nariz.
  --me diga, Owain, no que posso te ajudar? -perguntou com um tom frio e formal. Aquele acento inglês, leve mas presente, sempre divertia ao galés. Sim, o jovem advogado tinha estudado vários anos em Oxford, mas depois de mais de quinze anos nos Estados Unidos um acento adquirido desaparecia totalmente. Salvo, é obvio, que se desejasse mantê-lo conscientemente como uma amostra de vaidade. Owain tinha vivido no Gales, Londres, França, Espanha e agora Atlanta, e tinha estudado todo o possível para conseguir um inglês sem acento que não despertasse a curiosidade. O modo de falar podia dizer muitíssimo sobre uma pessoa. Inclusive seu nome atual, "Owain Evans", era uma concessão à necessidade de passar desapercebido, e parecia picado e duro comparado com o verdadeiro, "Owain ap Ieuan"-. Owain? -A voz de Benjamim tirou o Ventrue de seu ensimismamiento, um mau hábito ao que sucumbia cada vez com maior freqüência-. Como posso te ajudar?
  Owain se aproximou de seu enmarada de clã e falou com um tom baixo que não pudesse ser ouvido por outros Vergônteas.
  --Necessito um favor, um pouco muito singelo. -Benjamim lhe olhou cético, mas não disse nada-. Há um caso determinado -seguiu-, que será visto esta semana pelo Chambelán de Justiça da Corte Suprema. Conhece-o?
  Benjamim se encolheu de ombros evasivo enquanto subia as óculos.
  --De passada.
  --Ah, que sorte. Olhe, este caso em particular é uma disputa urbanística. Mercator Manufacturing comprou um solar perto do centro com a intenção de construir um núcleo de distribuição nacional. Por desgraça alguns reacionários, especialmente o Sindicato Cidadão, tomou como bandeira que este projeto não é um objetivo desejável para a zona. Dá-lhes igual os postos de trabalho que possam-se criar, ou os investimentos que se atraiam para os bairros vizinhos...
  --Não importa -interrompeu-lhe Benjamim, incapaz de seguir calado-, que os empregos vão ter salários mínimos, ou que a gente vá a trabalhar para uma corporação internacional famosa por fechar quando o nível de vida aumenta o suficiente como para que os trabalhadores exijam aumentos, largando-se a centros com mão de obra estrangeira troca.
  --Apesar de tudo... -disse Owain ignorando os protestos de Benjamim-, não vim para discutir de filosofia empresarial. Quando a virtuosa Comissão do Condado Fulton aprovou o projeto de recalificación para permitir a construção ao Mercator, o Sindicato Cidadão apresentou um recurso para invalidar as mudanças. Recorda a seu conhecido, o Chambelán de Justiça? Quando esta semana se presente o caso deve passar na recalificación. Não é singelo?
 Benjamim lhe observava incrédulo.
 --Deve estar brincando -riu-. Mercator são uns esclavistas. O único que lhes preocupa desses bairros é sua margem de benefícios. -Baixou sua bebida enquanto marcava suas palavras com gestos exagerados-. O que a gente do sudoeste de Atlanta precisa é financiamento para seus próprios negócios. Necessitam propriedade, não servidão. chegamos muito longe para retornar à escravidão, econômica ou de qualquer outro tipo.
 Os dois homens se observaram em silencio durante um momento. A seu redor a concorrência começava a descender, mas ainda havia Vergônteas entrando, apresentando seus respeitos ao príncipe e tomando um gole dos dois recipientes que Alex Morndiller escoltava enquanto foram perdendo forças para caminhar por seu próprio pé.
 Owain sorriu depreciativo. Aborreciam-lhe aqueles jogos.
 --Não te estou pedindo sua opinião a respeito, Benjamim.
 O Ventrue pareceu surpreso ante aquelas palavras, entre ofendido e divertido.
 --E por que demônios ia ter que te ajudar?
 Owain se aproximou ainda mais a ele, até que virtualmente esteve lhe sussurrando ao ouvido.
 --Porque sei o que há entre você e Eleanor, e os dois sabemos como responderia o príncipe se descobrisse algo. Quer a Eleanor muito para lhe fazer danifico, mas a ti...? Não acredito que tivesse tantos reparos em te mostrar seu desagrado. -Um sorriso educado mascarava o veneno de suas palavras a qualquer que pudesse estar observando.
 Deu um passo atrás e comprovou que Benjamim não podia ocultar seu desmaio, seu assombro e seu medo. Estava totalmente tenso e os óculos haviam- lhe tornado a cair.
 --Agora que o penso -seguiu Owain-, não só será o Chambelán que aprove a recalificación, mas sim a Corte Suprema da Georgia negará-se a atender qualquer apelação -disse lhe piscando os olhos um olho a Benjamim, que estava sem fala-. Estaremos em contato.
 Girou-se e partiu rendo para seus adentros ante a expressão do jovem vampiro. Isso deveria lhe ensinar a ter mais respeito a seus maiores. Assim que entrou na galeria principal estalou uma cacofonia de sufocos, exclamações e risadas. Viu imediatamente o motivo.
 Sobre "O Rodeio do Benison" encontrava-se Albert, um esquálido e barbudo Malkavian conhecido por tudas as Vergônteas de Atlanta. Estava totalmente nu. "A por eles! Arre, cavalo!" gritava enquanto se agitava de um lado a outro, revivendo a seu modo a heróico rodeio do príncipe enquanto a imensa escultura se balançava precária.
 Marlene, autoproclamada artista, tinha sofrido um sufoco. O príncipe, junto a Tia Bedelia ao outro lado da galeria e de costas ao espetáculo, parecia ignorar o que estava acontecendo.
 Aquilo era muito para o Owain. dirigiu-se rapidamente em direção oposta ao príncipe, para os elevadores. Havia vários vampiros lhe ordenando ao Albert que baixasse, mas não estavam dispostos a arriscar-se a que a escultura se derrubasse.
 Enquanto as portas do elevador se fechavam atrás dele, Owain pôde ouvir o Malkavian cantando a todo pulmão ("Rollin', rollin', rollin', keep them dogs a-rollin'") enquanto a representação escultórica do príncipe elevava-se sob suas pernas hirsutas como um gigantesco falo de metal de desfeito.
 Então se produziu um silêncio mortal. Owain podia imaginar ao príncipe voltando-se.
 --Albert!
 Nicholas se reclinou sobre a árvore, fechando fortemente os olhos para tratar de esclarecer sua visão. Alga ia mau.
 Fazia um momento tinha perdido a noção do tempo. havia-se sentido tão aliviado por abandonar a mansão do Evans que se havia rendido a seus instintos para vagar e explorar. Atlanta era uma cidade muito verde, e apesar da concentração de gado se salvou grande parte da vegetação, e não só as pradarias obscenamente cuidadas que fediam a fertilizante. Havia numerosas zonas cheias de arbustos, moitas, sarçais e os ubicuos kudzu. Livre dos espaços fechados tinha deslocado por toda parte, absorvendo o aroma e a glória da liberdade. Ao pouco tempo tinha começado a sentir-se melhor, mais depravado, mas inclusive naquela cidade, com sua abundância de árvores, não compreendia como as Vergônteas podiam resistir, como podiam viver encerrados com os mortais, os carros, os edifícios, os aviões, o concreto, o asfalto, os cabos...
 Ao final recordou que tinha que apresentar-se ante o Benison. Não era a primeira vez que viajava a Atlanta, e sabia que o príncipe era muito ciumento de tais formalidades. Tinha ido a primeira hora da madrugada ao Rhodes Hall, sua residência principal, onde lhe disseram que devia dirigir-se ao museu.
 Ao menos aquele era um lugar aberto e espaçoso. Tinha optado por subir pela rampa para não encerrar-se no diminuto elevador, mas chegou no pior momento possível. Um Malkavian que se havia deixado a roupa e o sentido comum em alguma outra parte estava sendo tirado rastros. O Príncipe Benison não estava de muito bom humor e logo que tinha reparado no Nicholas antes de sair como um trovão, empurrando a cadeira de rodas de seu sire, que não deixava de protestar.
 Ao menos não tinha tido que ficar muito tempo. Tomou um gole, cumpriu com as formalidades adequadas e partiu. Sem embargo, justo quando tinha terminado e estava preparado para começar a explorar adequadamente, começou seu atual problema.
 Um repentino ataque de vertigem lhe tinha deixado desorientado e vagando cego pela cidade. Duas vezes tinha evitado com muita dificuldade ser enrolado pelo gado com seus automóveis, sempre com pressa para chegar a nenhuma parte.
 O atordoamento não só seguia, mas sim cada vez se fazia mais forte. Pela primeira vez em sua no-vista sentiu náuseas, embora se vomitava seria sangre o que pulverizasse pelo chão. Havia conseguido chegar até um dos parques da cidade, mas não podia seguir. A árvore contra o que estava apoiado (seus dedos o indicavam que se tratava de um carvalho vermelho, embora tivesse os olhos fechados) não lhe proporcionava muito alívio. Sentia o sangue arder em seu interior; a vitae, o único fluido que podia suar, caía por sua frente.
 O tronco da árvore desapareceu. Estava observando o céu e as estrelas através dos ramos mais altas. Não recordava ter aberto os olhos, nem ter cansado ao chão.
 Mais vertigem.
 Desorientação.
 Nicholas já não estava em seu corpo. Nem sequer era ele mesmo. Era Jebediah Roney, menino do Pierre Beauvais. Sire do Nicholas.
 As estrelas brilhavam com força, e podia ver zonas nevadas em as rochas cinzas das montanhas noturnas. encontrava-se muito por em cima das taças dos abetos.
 A desorientação foi passando e Jebediah a esqueceu virtualmente imediatamente. Tinha coisas mais importantes nas que pensar. Estava em forma lupina e tinha à vista ao leão das montanhas que havia estado rastreando. Não se tratava de uma presa normal para um lobo, mas adorava as provocações.
 Com o vento em contra, começou a avançar lenta e silenciosamente. Estava a ponto de assumir uma forma mais humana e melhor adaptada para saltar sobre sua presa (os lobos só eram eficazes como caçadores de manada), quando o leão girou a cabeça. Tinha ouvido ou cheirado algo, algo que não era Jebediah. Os leões das montanhas não se assustavam facilmente, mas este desapareceu em um instante, sorteando rochas e simas. desvaneceu-se.
 O vampiro não lhe perseguiu, já que se sentia mais intrigado por aquilo que tinha assustado ao animal. Entretanto, quando ouviu o primeiro uivo a curiosidade se congelou em seu peito.
 Lupinos.
 A seguir responderam outros uivos: quatro, cinco, pode que mais. Às vezes os cambiaformas Garou estavam mais dispostos a falar que com matar, mas não pensava jogá-la vida daquela maneira. Seguiu rapidamente a mesma rota que o leão.
 Logo compreendeu que os lupinos não estavam interessados no animal. Os uivos estavam mais perto, e agora estava seguro de que eram um mínimo de cinco. Tinha ouvido histórias sobre o Gangrel em forma de lobo que se mesclavam com os lupinos passando desapercebidos, mas não queria arriscar-se a ser descoberto. O grito de batalha dos Garou era muito insistente. Aquela não era uma caça normal.
 Já os tinha virtualmente em cima. Os grunhidos e rugidos se mesclavam com os uivos. ocultou-se em uma cova. Tivesse preferido um pouco mais pequeno, mas não tinha tempo para parar-se a escolher.
 Enquanto se fundia com a terra, convertendo-se em um com o chão da caverna, grandes forma apareceram na entrada ocultando a luz da lua. Os uivos lhe rodeavam por toda parte.
 Nicholas ardia. Não estava seguro do que lhe estava ocorrendo, mas a dor era real. Estava médio fundido com a terra com um grande carvalho sobre ele, e o sol aparecia pelo horizonte. Estava talher por um magro filme de sangue que surgia de cada um de seus poros e que se evaporava com a luz da manhã.
 afundou-se o antes possível por completo na terra, e enquanto o conforto salvador lhe rodeava imaginou uivos de raiva sobre ele.
 As tristes fumaças fabris no distrito Pankow sempre tiravam o lado metafórico da Gisela. Aquela fumaça espessa e insalubre que não deixava de surgir das chaminés, assim como a capa gordurenta de sujeira que o cobria tudo sem prejuízos em quilômetros à redonda, fizeram-lhe sorrir. Ela mesma também era uma força onipresente, um fator que afetava a todos quantos havia a seu alcance; ao menos, assim seria dentro de pouco. Isso era o que lhe havia prometido Himmler.
 A caça lhe tinha dado bem. topou-se com um homem gordo e imenso que lhe tinha sorrido ao ver seu enorme peito e seu cabelo loiro. Com um beijo brutal lhe tinha arrancado o sorriso da cara e tinha cuspido seus lábios ao chão. Seboso estúpido.
 Nem sequer depois de lhe esvaziar e de atirar seu cadáver à boca-de-lobo tinha satisfeito sua fome. Era uma garota saudável, não uma dessas delicadas flores ocidentais a que podia romper como... Estendeu a mão e partiu sem esforço a antena de um carro estacionado.
 Seu companheiro durante a última parte da velada, Franz Litzpar, não necessitava muitas motivações para unir-se a seus atos de vandalismo aparentemente aleatórios.
 --Ja! -disse enquanto começava a chutar o pára-choque com as botas. Quando ficou satisfeito começou a arrancar o capô.
 Gisela lançou um suspiro. Seu pequeno übermensch estava em boa forma, em contraste com o aspecto grotesco que tinha quando decidia não ocultá-lo. Frank se tinha encontrado com ela pouco depois de acabar com o gordo, e se tinham depravado caçando a um patético anarquista que não tinha mostrado muito entusiasmo ante os intentos do Frank por que se unisse ao Sabbat. Os dois o haviam bebido ao mesmo tempo depois lhe girar a cabeça quase 180 graus.
 Frank arrancou o terceiro capô e o empregou para destroçar o pára-brisa.
 --Tsk, tsk, tsk -estalou Gisela-. Espero que tenha pago o seguro.
 Frank se girou para o edifício mais próximo. Alguns habitantes estavam aparecidos pela janela, mas a maioria sabia que era melhor não intervir.
 --Deixa que esses filhos de puta chamem à polícia! -rugiu-. Lhes deixe que me digam que não gostam do que faço! Eu gostaria de ver um porco paquistanês enfrentar-se a um verdadeiro alemão!
 Gisela aspirou profundamente com desprezo e recebeu o aroma dos fumaças das fábricas. Que os ocidentais tratem de limpar Pankow, pensou. Demorarão gerações, e para então eu já me haverei cansado de tudo isto. Ou pode que tivesse que detê-los... Herr Himmler lhe havia dito que tinha um potencial ilimitado. Uma garota com talento podia chegar muito longe no Sabbat.
 Mas isso ficava para outro dia, embora certamente não fardo um muito longínquo. Agora havia assuntos mais importantes.
 --Frank, carinho, tem que me acompanhar a conhecer meu convidado.
 --Quem é? -perguntou Frank afastando do carro; não ficava suficiente para lhe chamar a atenção-. Não me diga que tem a outro favorito. Faz-o para me voltar louco?
 Gisela sorriu ante aquela adulação.
 --Claro que não tenho outro favorito. Além disso, se o tivesse não lhe o diria.
 Retornaram pela poluída noite berlinense até o porão da Gisela, sob um edifício de apartamentos fechado depois de um incêndio. Seu convidado se encontrava acuclillado em uma esquina, esperando nas sombras. Não havia eletricidade. Que estranho é, pensou. Certo, não podia vagar pelas ruas como Frank ou como ela se não ia disfarçado, mas não tinha abandonado aquele quarto nem uma vez desde sua chegada, fazia duas noites. Gisela tinha sido o bastante amável, para lhe trazer um menino pequeno que tinha roubado a uma mãe descuidada.
 --Como estamos esta noite, Dietrich? -perguntou enquanto prendia o abajur de azeite que havia sobre a mesa. como sempre, acender o fósforo de madeira e tocar com ela a mecha lhe produziu uma estranha sensação que lhe percorreu toda a coluna. Aquela singela manipulação do fogo, o elemento mais letal para os seus, nunca deixava de reforçar sua sensação de invulnerabilidade.
 Pergunta-a, surpreendeu ao Dietrich, que voltou de qualquer pensamento retorcido que tivesse naquele momento. Enquanto a chama do abajur cobrava vida, a vampira não pôde evitar fixar-se em as mudanças que seu convidado se provocou em sua ausência de umas poucas horas. Tinha a cabeça inclinada em um ângulo estranho e um grande osso surgia do lado direito do pescoço. Os dedos eram mais compridos, e estavam fundidos juntos. Como clã, os Tzimisce se orgulhavam de sua capacidade para manter um controle completo sobre seu entorno, sobre outros e inclusive sobre seus próprios corpos. Entretanto, a aquilo Gisela parecia simples loucura. Esmagar a aqueles que eram mais fracos que alguém era uma demonstração de controle, assim como ouvir seus Ossos partir-se e seus gritos patéticos morrer pouco a pouco. Retorcer o próprio corpo como em um conto de fadas doentia não era... nada.
 Dietrich ainda não parecia consciente de onde se encontrava, e demorou uns instantes em reparar na Gisela e Frank. Tinha os joelhos recolhidas contra o peito e se balançava lentamente para diante e para atrás.
 Gisela tratou de ignorar seu comportamento, peculiar inclusive para ele.
 --Dietrich, este é Frank. É meu amigo, nosso amigo... nosso cantarada. -Evidentemente, não traria para ninguém que não fora do Sabbat a ver o Dietrich, já que não era alguém que pudesse passar por outra coisa que o que era: um Tzimisce, e por extensão na maioria dos casos, um membro do Sabbat.
 Fora qual fosse o problema, parecia ir superando-o.
 --Gisela. Frank -assentiu, reconhecendo por fim sua presença. O movimento fez que uma gota de suor sangrento lhe caísse pela frente. Limpou-a.
 --Dietrich -pergunto Gisela-. Pode nos proporcionar um cálice?
 Não respondeu. Olhava a vampira, mas não a via nem a ouvia claramente.
 --Dietrich. -Gisela se sentia cada vez mais molesta com aquele comportamento distraído. Lutou contra o impulso de lhe golpear a cara, de lhe sacudir Violentamente pelos ombros-. Perguntei-te se pode nos proporcionar um cálice.
 Frank observava precavido toda a cena. Não sabia o que pensar da monstruosidade que tinha diante, embora a deformidade física não era-lhe nova. Menos mal, pensou Gisela, que Dietrich é alemão, e não um Tzimisce da Europa do Este. Em caso contrário, Frank e seus idéias do Reich Definitivo lhe tivessem feito ir às nuvens, e ela tivesse tido que intervir. Não podia permitir que patéticos prejuízos étnicos se interpor na unidade do Sabbat, como Herr Himmler lhe tinha famoso, embora duvidava de que este compartilhasse sangre com um judeu. Tudo formava parte dos sacrifícios que tinha que fazer por aqueles com um grande destino, como ela.
 Depois de uns momentos de incompreensão, Dietrich levantou um braço disforme e começou a fundi-la mão. Enquanto os outros dois observavam, o Tzimisce esculpiu a carne e reformou os ossos. O centro de sua palma se converteu em uma terrina, enquanto os dedos e o resto da mão se fundiam a seu redor. Praticar sua arte pareceu lhe tirar de seu inexplicável estupor. Sonriendo demente, girou as mãos completamente três vezes para formar uma espiral decorativa na boneca e o antebraço, que se converteram na base da taça. Terminou detrás acrescentar alguns pequenos detalhes estilísticos.
 Aquela demonstração não ajudou a tranqüilizar ao Frank, mas uma olhar severo da Gisela bastou para que se calasse. Enquanto colocava as mãos sobre a taça, Dietrich tremeu de prazer.
 --Desde nossos primeiros dias -entoou a mulher-, o sangue há assegurado nossa liberdade; manteve-nos fortes. Deste modo juramos nosso mútuo sangue. -Com um golpe brutal se cortou o antebraço e a vitae começou a emanar, formando uma pequena corrente que caía dentro da taça-. Pela liberdade.
 Frank, com algo menos de entusiasmo, abriu-se a mão e acrescentou seu sangue.
 --Pela lealdade.
 Dietrich elevou sua mão livre. O dedo indicador se converteu em uma larga garra com a que cortou o bordo interior do cálice, unindo seu sangre à mescla.
 --Pela morte eterna.
 Terminada a cerimônia, todos beberam e completaram o Vaulderie.
 Liza, faminta e fazendo o possível por não pensar em seu desafortunada topada com o príncipe fazia duas noites, não estava do melhor dos humores. Acabava de beber-se a um drogado depois do Majestic Diner e agora estava aturdida e, incrivelmente, faminta de novo. Devem ser as putas drogas, pensou. Provavelmente precisasse beber algo para tratar de esquecer os agentes químicos que percorriam seu corpo, mais que para saciar seu fome. Entretanto, por que não resolver os dois problemas à vez? Não lhe tinha levado muito tempo convencer a alguns de seus amigos para que se unissem à diversão. Quase tinha sido muito fácil. encontrava-se a um par de maçãs da Avenida Ponce de Leão, cercam do Clermont Lounge. Os carros conduziam lentamente: jovens que apareciam pelas janelas e gritavam, executivos de média idade que tratavam de passar desapercebidos, perdedores cansados das mesmas revistas... Não importava. Todos estavam interessados no mesmo. Aspirou profundamente e baixou ainda mais o decote de seu Top. Morreria de fome se não fora uma irmana com um bom par de tetas? Em menos de vinte minutos um Lincoln sei deteve frente a ela.
  --Ey, carinho -disse Liza-. Parece que aí dentro se está muito calentito.
  O tipo, um homem algo grosso de uns trinta e cinco, estava inclinado para olhar pelo guichê do passageiro. lambeu-se nervoso os dentes e se aparou o cabelo, penteado sobre o cocuruto para tratar de ocultar a calva.
  --Parece que você está muito quente aí fora.
  Liza sorriu zombadora. Não havia necessidade de ocultar seu desprezo para aquele tipo. Gostavam que abusassem deles.
  --Estaria mais quente contigo. Ou vão mais o meninos pequenos?
  O homem sorriu.
  --Não. Eu gosto das garotas... as mulheres.
  Liza se passou a língua sedutora pelos lábios.
  --Tenho fome de tio, pequeno -disse sem mentir. Estava esfomeada-. Me vais ter esperando toda a noite?
  O sorriso do homem desapareceu um instante no momento de tomar a decisão, mas ao final se aproximou do guidão e abriu a porta.
  --Entra.
  Liza se deslizou no assento. Além disso do suor cheirava o sangue, quase podia senti-la percorrendo todo seu corpo.
  --Olá, grandalhão -disse enquanto se inclinava e lhe agarrava a entrepierna, dando um pequeno apertão-. Parece que já está preparado.
  --Há um hotel nessa esquina -disse o homem com a boca seca. Teve que obrigar-se a tragar saliva.
  Liza tomou o queixo firmemente e lhe fez olhá-la.
  --me escute, senhor-branco-que-quer-um-culo-negro. -Não demorou mais de um segundo em aferrar sua mente mais forte ainda que a entrepierna. O tipo a olhava, mas carecia do controle suficiente como para sentir saudades ou assustar-se-. Não vamos a nenhum hotel. Vai a levar seu culo gordo uma maçã e meia por aí e vais girar quando diga-lhe isso.
  dirigiram-se para um beco, e antes de que o carro se detivera duas pessoas mais estavam no assento de atrás e havia uma quarta junto ao assento do condutor.
  --Não demoraste muito -disse Aaron desde atrás. Tinha pinta de hippie, modesto e matreiro. Liza lhe estava valorando para seu possível pertença ao Sabbat. junto a ele estava Emigesh, um vampiro de Oriente Médio que não falava muito bem o inglês e que se limitava a sorrir.
  Desde fora, Jolanda colocou a cabeça dentro do carro e examinou ao condutor o mais perto que pôde. O homem não se retirou, nem sequer piscou.
  --Sempre que quisermos a um branco feio pediremos conselho -protestou. Vestia de um modo similar a Liza, mas mostrava ainda mais pele (se isso era possível).
  Liza não estava disposta a suportar os sarcasmos. Tinham sido mais ou menos amigas desde seus dias mortais, mas havia ocasiões nas que gostava de lhe esmagar a cabeça. Jolanda nunca serviria para o Sabbat, já que a matariam assim que abrisse seu enorme bocaza. Sem mais preâmbulos, apartou a mão do homem do volante e afundou-lhe as presas na boneca.
  --Ey! -disse Aaron, que não queria perdê-la diversão. inclinou-se e mordeu o pescoço. Emigesh, ainda sonriendo, fez o mesmo pelo outro lado.
  --Vamos, bodes -disse Jolanda. Não podia fazer muito mais que tomar o outro braço, lhe arrancar a camisa e tratar de morder a artéria a través da graxa-. Joder, este tio necessita um banho...
  Bebendo de uma vez não demoraram muito em deixar totalmente seca a sua vítima. Liza foi a última em abandonar, tratando de conseguir as últimas gotas. Era a segunda vez que comia aquela noite, mas se sentia totalmente vazia.
  --Que alguém vá ao Majestic e que lhe traga uma pajita à irmã -disse Jolanda-. Ainda segue chupando.
  Liza, lambendo-os lábios para não deixar-se nada, dirigiu uma olhar assassino a sua companheira, que decidiu que era melhor estar-se calada.
  --Ainda não é tarde -disse-. Seguro que podemos encontrar outro.
  Aaron se encolheu de ombros. Sempre estava disposto e preparado. Emigesh se limitou a sorrir.
  --Temos tempo -disse Jolanda com as mãos nos quadris-, mas esta vez sou eu a que busca. Não vou comer me a nenhum branco feio e pestilento mais.
  Liza não tinha problemas a respeito, assim que a diversão continuou.
Torre a Cavalo Cinco Rei
 Owain contemplava o tabuleiro como tinha estado fazendo desde fazia uma hora, como tinha feito a noite passada sem mover-se do anoitecer até o amanhecer. Reconstruiu em sua mente os movimentos do último século, pensando em todas as estratégias que sem dúvida tivessem deixado a seu oponente vencido além de toda esperança. Entretanto, sempre terminava sendo assaltado pela implacável realidade do tabuleiro e das peças que havia frente a ele.
 Estou duplamente maldito, lamentou-se. Burlado pelas falhas do passado e pela futilidade do futuro. Não havia modo de salvar a situação, nenhum golpe dramático que lhe permitisse recuperar a vantagem. Dois movimentos eram tudo o que ficava.
Torre a Cavalo Cinco Rei
 sentou-se e deixou escapar o ar entre os dentes enquanto voltava a negrume de sua alma, o amargo vazio que lhe tinha estado devorando todos aqueles anos. Caruncho e hiél! de vez em quando seus estudos da Bíblia retornavam a ele, sempre nos momentos mais dolorosos, sempre com a voz de um arcanjo zombador, sempre como sal sobre as feridas.
 A idéia de minha aflição e meu desarraigo é caruncho e hiél! Minha alma não deixa de pensar nisso e se inclina em meu interior. As palavras pareciam ter sido escritas para ele. Sua aflição era o fator determinante de sua existência, mas a vacuidade, a ira e o ódio sempre tinham estado ali, inclusive antes de unir-se às legiões de os mortos. Respeito a seu desarraigo... Quantos lares havia abandonado por um ou outro motivo, fugindo de situações insustentáveis ou da simples destruição?
 Mas nem sequer no lamento do Jeremías achava distração, não se não conseguia esquecer-se das seguintes linhas. Mas isto lembrança, e por tanto albergo esperança: o amor do Senhor é eterno e sua misericórdia não tem fim; são novos cada manhã; grande é sua devoção.
 Owain se cravou as unhas nas Palmas até cortar-se. Como podiam as escrituras burlar-se diretamente dele? Em vida, o Senhor o tinha abandonado. E depois... depois, tinha-lhe negado a fuga de a morte, tinha permitido que lhe Abraçassem e lhe levassem a este mundo dos não-mortos, para que pudesse percorrer os séculos sem chegar nunca a saciar sua sede de sangue e vingança.
 O amor do Senhor... riu em voz alta. Possivelmente seu amor seja uma brincadeira cruel. Que ironia. Que cruel e zombadora ironia. Esperança. Misericórdia. No fundo eram palavras sem significado. Além disso, o único que lhe trazia cada manhã era a necessidade de esconder do sol.
 Esperança e misericórdia. Deu as costas ao tabuleiro de xadrez o suficiente para cuspir o mau sabor de boca. Deus não era nada para ele. Caruncho e hiél. Fogo e enxofre. Inferno e condenação.
 --Senhor?
 Não se voltou para observar ao Randal.
 --Sim?
 O servente estava muito nervoso. Podia notá-lo pelo tom de seu voz, e se devia a que o ghoul estava familiarizado com seu mau humor.
 --Senhor, a senhora Rodríguez terminou que preparar a sala para a visita dos cavalheiros. Deveriam chegar em um quarto de hora. Qual é o menu para a velada?
 Owain sorriu apesar de tudo. A profesionalidad absoluta de Randal enfrentado a um chefe temperamental que podia terminar com seu vida em um suspiro lhe divertia. Era um homem ardiloso e eficiente, embora não o amigo que tinha sido Gwilym.
 A verdade é que tinha esquecido aquela entrevista, a reunião do Clube do King Road, como se denominavam a si mesmos.
 --Prepara a sala de troféus. Acredito que nos reuniremos ali. -Randal não fez gesto algum ante a mudança de planos. Ao Owain o trazia sem cuidado a sala de troféus, mas se sentia contrariado e decidiu descarregar-se sobre o criado e a senhora Rodríguez-. Qualquer coisa que haja na cozinha bastará. Além disso...
 Owain queria que seus convidados bebessem algo, mas não era capaz de recordar o que. Maldita memória. ficou em pé e se dirigiu à estantería depois do escritório. Tomou o livro que procurava sem sequer olhar. A coberta de couro, suave e agradável ao tato, havia substituído a original, que embora tinha sido bem conservada terminou sucumbindo ao peso do tempo. Como os olhos fechados, acariciou o livro uns instantes antes de abri-lo.
 Não havia índice. Era uma coleção manuscrita de diferentes idéias, conselhos e informação variada que normalmente passava de geração em geração, como as Bíblias familiares. Havia passagens das escrituras, contratos legais, escuras profecias sem sentido (Um dragão com uma rosa vermelha de grande fama / Um bastardo será nascido do pecado da prefeitura), ditos, receitas, folhas imprensadas, qualquer coisa que pudesse ser guardada com utilidade prática, por sentimentalismo ou por outros motivos esquecidos.
 Aquele livro era às vezes seu único alívio, já que lhe tinha sido entregue por seu verdadeiro amor fazia muitas centenas de anos.
 Era difícil não perder-se nas ensoñaciones enquanto passava as páginas escritas com aquela caligrafia elegante e curva que havia contemplado durante horas intermináveis, memorizando cada golpe ascendente, cada linha tendida. Leu com mais atenção e menos nostalgia quando chegou à seção em que havia notas escritas de forma mais grosseira de seu próprio punho. Nem sequer os séculos de prática tinham reportado grandes benefícios a sua caligrafia.
 Encontrou rapidamente aquilo que tinha estado procurando: "Para um toque do mais doce entre as amarguras da vida: absenta".
 --Ah! -Aí estava a conexão. Agora tudo cobrava sentido.
 --Absenta, Randal. Temos na casa?
 O criado pensou uns instantes. Não era uma petição normal.
 --Assim acredito, senhor.
 --Bem. Isso é o que meus convidados beberão esta noite. te encarregue de tudo.
 --Certamente, senhor -disse retirando-se para cumprir suas ordens.
 Absenta. Aquilo era o que tinha estado dando voltas por seu memória. Aquele licor composto por vinho e caruncho. Owain voltou para revisar suas notas. Doce entre as amarguras. Não havia dúvida de que tinha padecido uma boa ração de amarguras. Não recordava ter escrito aquele conselho. Tinha-o feito algum tempo depois dê seu Abraço, é obvio, pois não ia dirigido ao paladar mortal, a não ser a seus gostos mais refinados.
 Enquanto sentia o couro suave em suas mãos e cheirava o pergaminho murcho e amarelado, surpreendeu-se ante a mera presença física do livro. Embora se sentia em parte aliviado pela frustração contra a partida de xadrez e contra o mundo, preocupava-lhe que aquele volume se convertesse em uma muleta emocional. Era melhor não depender de nada nem de ninguém. Aquela falta contínua de lembranças o começava a preocupar. Às vezes acontecia aos imortais: muitos dias e noites, muitos conhecidos, amigos e amantes convertidos em pó... tanta perda... Era mais fácil bloqueá-lo tudo ou deixá-lo desaparecer.
  Não estava seguro de se aquilo era o que lhe estava acontecendo, mas sim era consciente de que sua falta de paixão, a letargia espiritual que se tinha apropriado dele durante as últimas décadas, estava-lhe fazendo cometer enganos descuidados que podiam conduzir a seu destruição.
  Fazia duas noites na exposição, por exemplo, havia ameaçado abertamente a Benjamim. Nem sequer em sua juventude mais insensata tinha atuado de um modo tão torpe e descarado. A disputa pela recalificación não era tão importante para obrar de aquele modo, aumentando ainda mais a desconfiança que sentiam os dois Ventrue. Sim, Owain tinha interesses financeiros no Mercator Manufacturing, e tinha comprado mediante terceiras pessoas propriedades na zona em questão, terrenos que aumentariam espetacularmente seu valor com a construção de um centro de distribuição; mas podia ter conseguido alguma prova incriminatoria contra o Chambelán de Justiça, ou ter desacreditado ao Sindicato Cidadão, ou ter intervindo em qualquer outra fase do processo de apelação. Havia incontáveis alternativas mais sutis que ameaçar e alienar a um rival influente. É obvio, essas alternativas não tivessem sido tão satisfatórias como ver o assombro e o medo na cara de Benjamim...
  Ah, que mais dá, suspirou. Água sob o rio. Devolveu o livro a seu lugar na prateleira, passando o dedo pelo lombo do presente entregue por uma mulher morta fazia muito tempo.
  --Sou um idiota sentimental, Randal?
  O servente, que esperava na soleira, já não se surpreendia ante a incrível habilidade de seu senhor para detectar sua presença a pesar de não estar emprestando a menor atenção.
  --Seus convidados estão chegando, senhor. E há outro visitante. O senhor Giovanni.
  Owain arqueou as sobrancelhas.
  --Seriamente? Não recordo a última vez que tive tantos convidados inesperados em uma semana. Primeiro o Gangrel, e agora um Giovanni. -Randal, que se encarregava da agenda do Owain, tinha um gesto preocupado-. Não passa nada, Randal -assegurou-lhe-. Sei o motivo de seu visita. Faz passar ao senhor Giovanni e te ocupe de outros convidados enquanto falo com ele. Não me levará muito tempo.
  --Sim, senhor.
  --OH, e te assegure de que os cavalheiros tenham charutos enquanto esperam... alguns havanês.
  Owain se reclinou sobre a poltrona. Tinha esperado ao Lorenzo Giovanni fazia uma semana ou dois. Como o resto de sua família e de seu clã (para eles eram o mesmo), Lorenzo era extremamente profissional e eficaz em quase todos os aspectos. Entretanto, tinha a costume de não atenerse a agendas fechadas; isso fazia muito fácil que os assassinos, ou pior ainda, os espiões financeiros, dessem com ele. Owain supunha que o problema se agravava pelo fato de que Atlanta não era o território mais amistoso para os Giovanni. Embora o clã mantinha importantes interesses empresariais na cidade desde fazia mais de vinte anos, o Príncipe Benison não estava acostumado a permitir que os representantes diretos da família ficassem muito tempo.
  Owain ouviu o Randal levantar a mão, mas decidiu esperar a que soasse a porta. Não era necessário presumir das capacidades próprias diante de um rival, e embora Lorenzo Giovanni não era um inimigo, todos eram rivais.
  O servente lhe fez entrar no estudo. Seu rosto anguloso estava dominado por um nariz proeminente, enquanto que suas sobrancelhas povoadas e seu bigode fino, escuro e aparado nas pontas, acentuavam seus rasgos. Acompanhava-lhe seu guarda-costas, um enorme homem calvo chamado Alfonzo, também de tez escura e ascendência italiana. Os dois vestiam trajes a medida de corte imaculado.
  --Lorenzo, me alegro de verte -disse, embora não se levantou para recebê-los. Ironicamente, embora Lorenzo era a única pessoa em Atlanta da que Owain soubesse que rivalizava com ele em idade, o representante do clã Giovanni não era um vampiro. Era um ghoul, alimentado com o sangue maldito de sua família mas ainda humano... mais ou menos. Estava em uma espécie de período de provas. Se servia à família com a suficiente fidelidade, poderia ser Abraçado para obter a autêntica imortalidade. Segundo suas fontes, Lorenzo já levava uns oitocentos anos como ghoul. Uma paciência incrível, embora era possível que não tivesse voz alguma naquele assunto. Se devia converter-se em vampiro ou não o decidiriam suas majores no momento adequado.
  --Espero que todo vá bem, Owain -respondeu o italiano com um sorriso surpreendentemente cálida e sincera.
  Parte de seu trabalho, recordou-se o Ventrue. Como ghoul, Lorenzo era um perito em congraçar-se com os vampiros, tanto com seus professores como com aqueles aos que tratava em nome destes.
  --Sente-se.
  O italiano, flanqueado como sempre pelo Alfonzo, aproximou-se do escritório mas ficou de pé.
 --Temo-me que cheguei em mau momento. Vi outros carros no jardim.
 --Nada que não possa esperar -assegurou-lhe Owain.
 Lorenzo assentiu agradecido. Seu cabelo Escuro brilhou enquanto tomava assento, com o Alfonzo de piei perto dele.
 --É muito amável -sorriu como um homem que não podia ser surpreso. Exsudava uma confiança serena, uma profesionalidad da que careciam quase todos os vampiros de Atlanta.
 Owain esperava que Lorenzo soubesse dele ao menos tanto como ele sabia do italiano. A maior parte do passado do galés não era um escuro secreto, mas ficava protegido pelo próprio tempo. Sim sabia, igual a sem dúvida fazia Lorenzo, que alguém decidido e com o dinheiro suficiente podia descobrir virtualmente algo. Aquela era uma lição que provavelmente não soubesse nenhum outra Vergôntea da cidade. Eram muito jovens e inexperientes nas maquinações do verdadeiro poder, como Benjamim, ou simplesmente muito arrogantes para tomá-la moléstia, como Eleanor e Benison. Possivelmente era desta complacência nascida do excesso de confiança, pensou, da que ele era agora prisioneiro. O que ocorria aos vampiros daquela cidade sulina?
 --Owain?
 O vampiro compreendeu que Lorenzo lhe tinha feito uma pergunta, provavelmente algum comentário educado. amaldiçoou-se por haver deixado vagar sua mente em presença de um aliado potencial, um que também podia voltar-se facilmente contra ele como uma besta raivosa se denotava debilidade.
 Lorenzo lhe observava sentido saudades mas com discrição, sem querer fazer comentário algum sobre o lapsus de seu anfitrião. Owain voltou a apreciar a profesionalidad daquele homem; para ele era mais importante uma boa relação de trabalho que a exploração mesquinha de uma situação potencialmente embaraçosa. Era alguém de quem, em circunstâncias diferentes, poderia ter sido amigo... se é que fora capaz de ter amigos depois de tantos anos de emoções atrofiadas, e se Lorenzo não fora mais que um feroz servidor de seu clã oculto depois de um véu de amizade.
 Como se não tivesse havido interrupção alguma na conversação, como se não tivesse sido pego em um lapsus completo, Owain abriu uma gaveta do escritório e tirou um sobre que depositou diante do Lorenzo.
 --Podia ter enviado ao Randal...
 O ghoul abriu o sobre, mas não tirou o cheque com uma considerável soma a conta de uma grande companhia controlada por Owain.
 --Absolutamente. Minha família prefere manter relações pessoais, embora discretas, com seus amigos.
 Era uma soma considerável, mas não tinha importância alguma para o Ventrue. Não estava comprando nada em particular; o cheque era um presente, uma garantia de relações cordiais. Embora Owain era conselheiro de facto do príncipe, que logo que tolerava aos Giovanni, não doía ter um pé em cada campo. Além disso, enquanto os italianos não fizessem movimentos abertos para o Benison, Owain não se enfrentava a nenhum molesto conflito de interesses (embora o príncipe não opinasse o mesmo se descobrisse aqueles contatos). Era um risco que estava disposto a correr. Fazia séculos tinha tentado governar diretamente, mas agora preferia ocultar-se nas sombras e estar preparado para reagir a qualquer circunstância. Como dizia a máxima dos Nosferatu, o conhecimento é poder.
 --Apreciamos enormemente seu gesto de boa vontade -seguiu Lorenzo-, e eu gostaria de te estender os melhores desejos de minha família... -Com isto, o italiano deslizou lentamente o sobre para o Owain. Os dois homens se observaram durante um instante. Alfonzo tinha estado quieto como uma pedra do começo da conversação, depois de seu professor. Owain sabia o que vinha a seguir antes de ouvir as palavras-. Aceito a honra que nos confere para mim e a meu clã -disse assinalando o sobre-, mas lhe devolvo isso. -deteve-se um instante, como se queria dar o maior efeito à solenidade do momento, embora não era realmente necessário. Owain era consciente de que o clã Giovanni não acostumava a devolver oferendas monetárias-. Não há necessidade de presentes tais entre amigos.
 Amigos. Owain, reconhecendo o eufemismo pelo que era, conteve um sorriso sombrio. Quererá dizer aliados, Lorenzo. Aliados, possivelmente. Amigos, nunca.
 --É obvio -disse Owain, sem dar voz a suas conclusões e sem insultar a inteligência do Lorenzo fingindo ignorância pelo que o ghoul ia sugerir lhe. Os dois homens estavam pisando cuidadosamente, conscientes de que um aspecto inevitável da assinatura de uma aliança era a exposição gradual das vulnerabilidades. Nenhum dos dois estava disposto a mover-se muito rápido, já que a traição podia atrair a ira do príncipe sobre eles. Voltaram para olhar-se.
 Ao final, Lorenzo falou. Seu tom era casual, mas elegia as palavras cuidadosamente.
 --Não há dúvida de que está mais perto do príncipe que eu -disse-. Eleanor é oficialmente a Ventrue primogênita, mas Benison pede a miúdo seu conselho.
 Owain assentiu, deixando que Lorenzo desse uns passos pela zona escorregadia.
 Nem sequer o tom ligeiro do ghoul podia diminuir o peso de suas palavras.
 --Em ocasiões poderiam surgir, para bem ou para mau, tema sobre os Giovanni... -seguiu o italiano, deixando pendurado seu pensamento por uns instantes-... Temas que um amigo poderia mencionar a outro.
 Owain assentiu pensativo. Não havia dúvida de que Lorenzo procedia com toda a precaução adequada, sem atuar contra Benison e sem lhe pedir abertamente que espiasse ou que traísse nenhuma confiança. Meramente lhe pedia que comentasse a um amigo qualquer assunto de interesse.
 --Que amigo não faria como isso mínimo? -perguntou.
 Um novo silêncio se levantou entre o vampiro e o ghoul. Lorenzo sorriu, uma amostra reservada de alívio. Owain esperou a educada desculpa para partir que viria a seguir.
 --Bem -disse o italiano, mais depravado-. Mantive-te muito tempo afastado de seus convidados. -Rápida mas elegantemente se dirigiu para a porta, com o Alfonzo sempre a seu lado-. como sempre, Owain, foi um prazer.
 --O mesmo digo.
 O ghoul Giovanni e seu guarda-costas partiram.
 Resolvido aquele assunto no momento, o Ventrue sentiu a tentação de voltar para seu estudo e ao tabuleiro de xadrez, mas se impuseram suas responsabilidades como anfitrião. Entretanto, a mera idéia da partida bastou para acender sua ira. Aquilo era o único aqueles dias que parecia provocar nele alguma resposta emocional de qualquer tipo. Não o conseguia com a política, desde logo tampouco com as reuniões sociais, nem sequer com a caça. Todas suas fomes e desejos tinham desaparecido ao longo dos anos.
 reuniu-se com seus convidados, cinco homens de entre sessenta e setenta anos de velhas famílias ricas de Atlanta estabelecidas na cidade ao menos da Guerra Civil. Quando entrou na sala de troféus sentiu como os pensamentos se voltavam para ele. Com a menor sugestão de seus poderes mentais, trocou suas mentes o suficiente como para que não notassem que parecia com o menos quarenta anos mais jovem que eles. Levava tanto tempo associando-se com aqueles mortais que já estavam condicionados ante aquele tipo de manipulação.
 Suas facções jovens eram um dos motivos pelos que solo se relacionava com humanos em pequenos grupos. Um Brujah arengando a rebeldes guias de ruas ou um Toureador dançando com os góticos podiam permitir um aspecto juvenil, mas entre a créme da créme de Atlanta era uma desvantagem inexplicável. Owain se limitava a ajudar a seus amigos mortais a ignorar qualquer aspecto de sua aparência que pudesse lhe separar deles.
 --Aqui está, Owain. Estávamos começando a nos preocupar -disse Manny Gormann com um tom absolutamente preocupado. Como os demais, estava saboreando um charuto cubano-. Como consegue passá-los pela alfândega?
 Owain se encolheu de ombros.
 --Conhecendo às pessoas adequada.
 --E isto? -disse Price Haynes, um banqueiro investidor retirado, assinalando seu copo de absenta-. Franklin nos comentava que não é legal nos EUA
 --A mesma resposta -explicou modesto o Ventrue.
 --E por que demônios é ilegal, Franklin? -perguntou Manny.
 O aludido se aproximava dos oitenta e era o mais velho dos mortais pressente. Aspirava profundamente seu puro.
 --Não sei exatamente. Tem algo que ver com o processo de fabricação.
 --Caruncho -explicou Owain-. Dão-lhe sabor com caruncho, como o vermouth, solo que com maior intensidade. Atua como um narcótico.
 --Hmm.
 Além do Owain, Manny, Price e Franklin West, o Clube do King Road estava composto pelo Parker Goodwin e James Kirkwood. Owain, Manny e Franklin viviam no King Road, e portanto aquela reunião semi-regular tinha adotado aquele nome. O governador, um vizinho próximo, aparecia em ocasiões.
 --Quantas destas bestas matou você, Owain? -perguntou James observando os diferentes troféus nas paredes, entre outros ursos grizzly e polares, leões, rinocerontes e renas.
 --Devo confessar que vinham com a casa e que não tive tempo de redecorarla -disse levantando risadas entre todos os pressente.
  A atenção do vampiro se desviava enquanto a conversação passava da decoração da cidade e a política estatal aos dias dourados dos presidentes Eisenhower e Kennedy, todo isso titulares passados mas absolutamente historia antiga para ele. Todo aquele ritual começava a lhe aborrecer. Escutava sem interesse a conversação, concentrando-se no aroma dos charutos, um aroma que com os anos tinha chegado a associar com a alimentação. Não havia dúvida de que ali discutia-se informação financeira que podia lhe ser de utilidade, mas, quanto dinheiro necessitava ninguém? Owain nunca poderia aspirar a rivalizar com a influência econômica mundial dos Giovanni, e fazia muito que tinha amassado uma fortuna maior da que podia esperar gastar no mais desatinado suborno, simplesmente esperando e observando.
  De modo que se sentava, observava e escutava. perguntou-se por que todos aqueles homens vestiam uma passarinha em uma reunião informal. Conhecia a resposta: nenhuma reunião estava isenta de significado social. Inclusive aquela assembléia cumpria as funções dê ver e ser visto. Estando ali, esses homens se situavam por cima de outros.
  Owain já sabia todo aquilo, e também que uma vez ele havia estado escravizado pelos mesmos tristes jogos do poder. Em seu tempo tinha presumido de estar sentado na mesa adequada e tinha ansiado a posição de seu irmão. Entretanto, sabê-lo não respondia a pergunta fundamental: por que?
  Sua concentração se rompeu quando notou que James Kirkwood, o banqueiro obeso, tinha tomado uma espada da parede onde estava exposta.
  Ninguém se precaveu, mas de repente Owain apareceu junto ao James.
  --Agradeceria-te que a deixasse em seu sítio.
  --Jesus! -saltou o ancião, surpreso para ouvir chegar a voz do vampiro atrás dele. Deixou a espada cuidadosamente em seu lugar enquanto recuperava o fôlego e riu ante seu próprio desconforto-. Também a comprou com a casa?
  --Não -respondeu o vampiro sem humor-. Essa espada leva em meu família há novecentos e cinqüenta anos.
  --OH... já vejo.
  Owain não mencionou que a espada tinha sido sua desde fazia novecentos e cinqüenta anos. Não lhe assustava que alguém pudesse rompê-la (o aço era tão forte e flexível como o dia de sua forja), mas ainda hoje não podia tolerar que um convidado estivesse armado em seu casa quando ele não o estava. Muitos tios galeses tinham sido assassinados por sobrinhos sem escrúpulos. Não é que Owain tivesse algo contra a falta de escrúpulos. Ele mesmo tinha matado a muitos parentes. Tampouco temia nada do James Kirkwood. Aquele chupatintas inchado provavelmente não fora capaz de blandiría, muito menos apresentar uma ameaça real. Entretanto, os instintos de sobrevivência, inclusive os da idade escura, deviam ser obedecidos. Considerava-o um modo de evitar que sua mente se atrofiasse por completo. Muito depois do desaparecimento das emoções, os instintos ainda sobreviviam.
 Depois de agüentar tudo que pôde, Owain olhou fixamente ao Franklin.
 --Posso falar contigo um momento? -perguntou dirigindo ao ancião para o estudo e fechando a porta atrás deles-. Joga xadrez, Franklin?
 --Assim é.
 --Olhe isto -disse enquanto lhe levava para o tabuleiro-. O que diria desta partida? -Sabia que não havia escapatória, mas não podia deixar de pensar na idéia de que um mero mortal visse algo que ele passava por alto.
 Franklin estudou o tabuleiro durante um minuto.
 --O que diria? -disse observando mais atentamente-. Diria que as brancas vão vencer.
 Owain sorriu sem muitas vontades.
 --Assim é -respondeu, tratando sem êxito de apartar a partida da cabeça enquanto retirava uma cadeira para que Franklin se sentasse-. te tire a jaqueta e sente-se -disse com uma voz que nenhum mortal poderia resistir.
 O ancião obedeceu, com os olhos perdidos enquanto sua vontade e seu pensamento independente eram deslocados pela mente do vampiro.
 --te levante a manga. -Owain observou enquanto o outro obedecia. Não sentia emoção, nem fome. alimentava-se porque sabia que devia fazê-lo. perguntou-se quando tinha começado todo aquilo. Recordava seus primeiros anos como vampiro, a euforia embriagadora que acompanhava à alimentação, a época em que a idéia do sexo não tinha perdido ainda seu encanto e em que acabar com a bela filha de um nobre tinha uma enorme carrega erótica. Em algum ponto do caminho tinha perdido todo aquilo.
 Franklin estava sentado olhando fixamente com a manga levantada por cima do cotovelo. As veias se marcavam claramente em seu braço velho e esquelético. Owain se ajoelhou lentamente junto a ele e tomou a boneca com a mão. Não sentia remorso algum pelo que ia fazer. A semente do diabo. Tinha duas opiniões sobre seu alimentação, mas nenhuma lhe produzia sentimentos de culpa algum por suas necessidades. Primeiro, como Darwin houvesse dito, os vampiros tinham alcançado a cúspide da cadeia alimentícia. Os mortais, que estavam situados mais abaixo, não eram mais que ganho de que aproveitar-se. Owain tratava de aderir-se a aquela idéia racionalista, mas não acreditava completamente nela.
 Depois estava a opinião a que sei havia assinado durante quase todos os anos de sua vida: tinha herdado a maldição do Caín, e por tão também ele estava maldito. Deus havia lhe tornado as costas, de modo que se converteu em um instrumento de vingança. O que fazia ele para ser triturado daquele modo? Que mortal estava livre de pecado, de modo que não merecesse sofrer? levou-se o braço de Franklin à boca. Tinha sido irrepreensível a vida daquele homem? Não tinha transgredido alguma vez a vontade de Deus? Duvido-o, foi o veredicto.
 Um gemido de dor e êxtase escapou dos lábios do ancião quando Owain lhe cravou as presas e bebeu profundamente. Deus tinha tido seu agente na terra, de modo que Satanás não merecia menos. Era esse espírito de fúria e vingança o que satisfazia ao Owain mais que o próprio sangue, embora nunca lhe saciava por completo. Embora em realidade não sentia a necessidade de consumir vitae (já não recordava a última vez que se viu motivado por esses dores), sua vacuidade espiritual nunca tinha chegado a desaparecer de tudo.
 O sangue dos velhos estava acostumado a perder parte de sua riqueza. Owain pensava nela como um pouco aguado. Entretanto, parte da absenta já tinha penetrado na corrente sangüínea, e a mescla de doçura e amargura aumentou o sabor até fazê-lo muito agradável.
 O velho coração do Franklin ficou a pulsar desbocado, animado pela adrenalina e a necessidade de recuperar o sangue perdido. Owain pôde sentir o martilleo e se assegurou de não tomar tanta que o homem pudesse sofrer um ataque cardíaco. Nesse caso teria que encarregar-se do tratamento médico, ou possivelmente de dispor do corpo e cobrir seus rastros. Com toda probabilidade haveria mais gente que sabia onde estavam Franklin e outros aquela noite da que podia esquecê-lo de forma convincente. No-vista-a era muito mais singela antes da Camarilha, antes da Mascarada.
 Depois de terminar, e sem querer forçar muito o coração de seu recipiente, Owain lambeu a ferida no antebraço. A pele apergaminada se fechou sem deixar marca ou cicatriz alguma dos presas. ficou em pé e passou lentamente uma mão frente aos olhos vazios do homem.
 --Franklin.
 O mortal piscou durante vários segundos para logo olhar a Owain um pouco desorientado.
 --Não, estou bem... Solo me enjoei uns instantes -respondeu sem que ninguém tivesse formulado perguntado alguma.
 --me deixe te ajudar a voltar com outros -ofereceu generoso o vampiro. Enquanto retornavam à sala de troféus, o tremente ancião se apoiou no Owain. Estava em boa forma para sua idade (jogava tênis duas vezes à semana e tomava medicamentos para a tensão), mas o vampiro sabia que não viveria muito mais. Dez, pode que quinze anos, e se apagaria como o resto dos mortais. Franklin era um dos poucos de cuja companhia desfrutava, ao contrário que o aborrecido James ou o insuportável Manny. Teria que lhe substituir logo.
 De volta com outros, Owain ajudou ao velho a sentar-se em um das poltronas. Ante outros assegurou que tinha tomado muita absenta, e que possivelmente o puro não tinha ajudado muito.
 --Cavalheiros -disse o vampiro atraindo sua atenção-. Sentem-se.
 Os outros quatro homens obedeceram imediatamente com a mesmo olhar vidriosa e perdida que Franklin acabava de recuperar.
 --Randal -disse Owain. O servente entrou na habitação com um carrinho cheio de ordenados compartimentos com tubos de plástico, bolsas, agulhas e alguns contêineres refrigerados abaixo-. Estarei em o estudo. me chame quando tiver acabado.
 Armazenar o sangue era muito mais fácil que a caça freqüente. Como Owain só podia tolerar determinados tipos de vitae (a de patrícios, nobres, gentis, a élite, segundo o título que lhe desse em cada época), e como a distinção de classes estava muito esfumada em a sociedade moderna, preferia alimentar-se de um rebanho estabelecido que arriscar-se a equivocar-se e adoecer detrás provar uma vitae inadequada.
 Em menos de uma hora lhes lamberia as marcas das agulhas e os enviaria a casa cheios de lembranças de uma velada agradável e uma conversação estimulante. Enquanto isso, retornou ao tabuleiro de xadrez.
 Vive e aprende.
 Sorri e assente.
 A sire do Emigesh, María, não deixava de soltar aquele tipo de homilias. Entretanto, se era tão preparada, por que seguia vivo ele enquanto ela se cruzou com a gente equivocada e tinha visto seu último amanhecer?
 O conhecimento é a metade da batalha.
 De que batalha se tratava?, perguntava-se. Se o tivesse sabido seguiria viva.
 Emigesh acreditava que se livrou dela, mas nas últimas noites lhe tinha estado acossando desde além da Morte Definitiva. Não era que seu espírito lhe estivesse visitando, mas sim era ele que a buscava, recreando os acontecimentos da vida de seu sire e vendo através de seus olhos. Em ocasiões sentia que se havia convertido nela, experimentando uma versão retorcida de seu realidade da perspectiva da María e trazendo o arsenal completo de sabedoria para amargurá-la não-existência.
 Um grama de prevenção...
 Entretanto, aquela noite, enquanto caminhava pelas ruas junto ao Aaron, Liza e Jolanda, a sensação era diferente. María havia desaparecido, passando piedosa a seu descanso eterno. Entretanto, sua mente seguia sem lhe pertencer por completo. Agora era o sire de María, Antony, que deixava sentir sua presença; Antony o silencioso, que tinha abandonado seu estupor o suficiente para Abraçar a María e a sua companheira de quarto, Paula, rendendo-se depois, à desespero para ser saudado pelo sol.
 Emigesh percorria a cidade vendo-a como nunca antes o havia feito, através de uns olhos frios e cínicos. Em ocasiões tinha que obrigar-se a recordar que as duas mulheres que não deixavam de incomodar-se eram Liza e Jolanda, não María e Paula. Os insultos constantes faziam que a idéia do sol parecesse cada vez mais atrativa. Sentia a tentação das partir pela metade, de desfazer o engano de sua origem... mas não. Aquelas não eram suas meninas.
 À medida que a noite se alargava, Emigesh observava e escutava, sempre compreendendo mais do que outros acreditavam, sonriendo em seu benefício. debaixo de tudo estava a fome, sempre crescente.
Sempre crescente.
 Os dois valentões foram perfeitos cavalheiros. Não lhe abriram a porta do carro nem disseram "por favor", mas tampouco lhe ameaçaram, nem olharam-lhe lascivos nem lhe amaldiçoaram; para alguém como eles, isso era toda uma novidade. Francesca lhes sorriu surpreendida. Desde que aquele motorista lhe tocou o traseiro e ela o estrangulou com seus próprios intestinos, todos tinham sido perfeitos cavalheiros.
 Rico e Johnny lhe tinham recolhido no Aeroporto Internacional de Los Angeles. Não lhe falaram, mas sim se limitaram a assentir e a levaram até o carro. Ela se sentou atrás e eles diante, conduzindo em silêncio. Inclusive as vulgaridades da cadeia de rap na rádio estavam a um volume passível.
 A aquelas horas da madrugada o tráfico não era um problema, por isso o trio não demorou para chegar ao coração do Watts. Carros desmantelados e edifícios em ruínas decoravam virtualmente todas as maçãs, e inclusive sendo as quatro e meia da manhã havia numerosos jovens nas esquinas, protegendo seu território, vendendo drogas e caçoando prostitutas. Havia tanta atividade como em outras partes da cidade a meio-dia.
 detiveram-se frente a uma pequena casa estucada em cujo alpendre e jardim havia mais de dez jovens com jeans e camisetas sem mangas rasgadas, todos com lenços azuis atados nas pernas, os braços ou o pescoço. Quando Nico e Johnny saíam do carro todos começaram a gritar... até que viram quem era sua passageira. Calaram enquanto Francesca se dirigia pela calçada até a porta principal.
 Mohammed ao-Mutlim estava falando com dois lugares-tenentes humanos, mas levantou a cabeça brevemente ao vê-la entrar.
 --Estou contigo agora mesmo. -Os dois mortais se asseguraram de não olhá-la muito tempo. Depois de uns minutos, Mohammed terminou de lhes dar instruções sobre certa casa no Inglewood que necessitava "poda" e os despediu. Sei voltou para a mulher-. Bem-vinda, irmã. Algum problema?
 --Não.
 O rosto negro e largo do Mohammed era um dos mais atrativos que Francesca tinha visto nunca. Ao observá-lo de novo quis senti-lo contra ela; queria seu sangue. Além da atração natural que sentia por seu sire, tinha passado faminta as últimas noites, apesar de haver-se alimentado várias vezes. aproximou-se.
  --Estupendo -disse ele-. Me alegro de que te tenha ido bem. Meu amigo na Espanha me deve um favor. -Algum dia Mohammed governaria Os Anjos, assim que o Sabbat terminasse com seu idealista experimento vampírico conhecido como os Estados Livres Anarquistas. De momento, enquanto interpretava o papel de um poderoso senhor das bandas, Francesca era seu vínculo com o mundo exterior. Seus habilidades como assassina estavam muito bem consideradas em América do Norte e Europa, e cada encargo se traduzia em um novo favor devido ao Mohammed por membros do Sabbat que podiam ser aliados ou rivais potenciais-. Trataram-lhe bem os meninos? -disse sonriendo a Francesca, que estava esfregando sua coxa contra o dele.
  A vampira pensou no Nico e no Johnny e riu.
  --Sempre o fazem -disse inclinando-se sobre o homem, com os peitos duros apertados contra seu braço através da seda. O aroma do sangue era enloquecedor. Uma fome voraz, intensa inclusive para uma mulher com seus insaciáveis apetites, rasgava-a de dentro. Rodeou-lhe a cintura com as mãos e lhe mordeu o ombro esquerdo a través da camisa. Chupou avidamente, desejando poder beber até a última gota de sangue. Um espasmo enlevado sacudiu todo seu corpo.
  Mohammed rasgou a seda do ombro esquerdo de Francesca e os botões saltaram por todo o quarto. A mulher grunhiu ante a dor que percorreu sua coluna e chupou com mais força o sangue que surgia de seu sire.
  Quando recuperou o controle se encontrava tendida no chão, rodeada pelos restos de sua blusa. Mohammed lhe embalava a cabeça contra seu peito. Inclusive estando tombada a cabeça lhe dava voltas, como tinha acontecido depois de cada alimentação durante as últimas noites.
  --Pela liberdade -sussurrou Mohammed.
  --Pela lealdade -respondeu ela.
  Mohammed se aproximou ainda mais e o sangue de suas línguas se mesclou.
Normalmente, a finais de outono e no inverno Liza levava a menos uma camisa grosa ou uma jaqueta ligeira, de modo que não destacasse entre a multidão. Quando os dentes mortais tocavam castanholas de frio, um vampiro caminhando pela rua de noite em manga curta chamava innecesariamente a atenção. Entretanto, aquele dia se tampava por outro motivo. Cada poucos minutos notava um suor sangrento lhe surgir das costelas ou da parte baixa da costas. A camiseta negra já estava empapada, e agora era a jaqueta a que começava a impregnar-se. Liza não tinha suado da conversão em vampira, e agora levava várias noites sem deixar de fazê-lo. Estava muito zangada. Ao princípio se havia sentido sentida saudades e depois preocupada, mas tudo tinha dado passo à irritação e à fúria constantes. Não estava de humor para a companhia humana nem Cainita, o que nunca eram boas notícias para seus amigos.
 Aaron e Emigesh estavam no assento traseiro do carro sem muito que dizer. Não parecia lhes preocupar uma noite de vez em quando sem muita atividade. Jolanda, por sua parte, estava aborrecida como uma ostra. Estava sentada no assento do passageiro com a porta aberta e as pernas escancaradas, em uma postura do menos adequada para a minissaia que vestia. de vez em quando acendia o acendedor do carro e o apertava contra o salpicadero do BMW, enchendo o habitáculo de fumaça e do desagradável aroma do plástico fundido.
 O estacionamento no centro estava vazio salvo por um punhado de veículos, incluindo o BMW branco que alguém havia "deixado esquecido" na rua e do que Liza e seus amigos se apropriaram. Nenhum parecia muito motivado para fazer nada em especial, de modo que detrás dar voltas sem direção fixa por vários bairros durante um par de horas entraram no estacionamento, onde esperavam ociosos.
 Liza estava morta de fome, como lhe tinha acontecido durante toda a semana. alimentou-se por última vez de um camelo que servia-lhe freqüentemente como jantar, mas aquela vez o anseia-se tinha dado procuração dela e não tinha sido capaz de apartar-se a tempo. Em vez de lamber a ferida e reservar ao mortal para uma noite posterior, tinha bebido se desesperada até que não ficou nenhuma gota de sangue. Em sua fome insaciável e sua frustração tinha deixado o corpo atirado na rua para logo fugir à carreira. Não tinha problemas matando humanos, mas igual a tinha acontecido com a humilhação frente ao Príncipe Benison, a lembrança de perder o controle não era nada agradável. Não havia dúvida de que muitas vezes Liza se rendia a seus instintos primários, e isso tinha sido o mais satisfatório de sua entrada no Sabbat: o poder da Besta desencadeada e seu domínio sobre os meros mortais. Entretanto, desde fazia um tempo não se rendia aos instintos depredadores enquanto tratava de saciar sua fome infinita: era totalmente enrolada por eles, ficando indefesa ante sua necessidade.
 Todas aquelas idéias davam voltas ao redor de sua cabeça, em ocasiões afirmando-se e freqüentemente sublimando-se pela sede que não deixava de corroê-la. A única distração era o som do plástico ardendo enquanto Jolanda pressionava o acendedor. Odiava aquele aroma. Odiava-o com paixão, o que unido à agonia incessante de seu fome o fazia sentir nauseia, outra moléstia da vida que ultimamente lhe tinha estado acossando, especialmente depois de comer. A noite passada, depois de matar ao camelo e fugir, havia sentido um enjôo tão intenso que se derrubou sobre a calçada e tinha vomitado parte do sangue. Tudo era tão estranho, tão desagradável, tão enfurecedor...
 Jolanda, sempre afetada por sua falta de criatividade, estava desenhando um grande sorriso com as marcas no salpicadero. Pôs sem muito interesse o último círculo que fechava a boca. A fumaça e o fedor chegaram até a Liza, que estava esforçando-se por não esbofeteá-la. Em esse momento, um golpe na parte traseira do carro as distraiu à dois. Os quatro vampiros olharam por cima do ombro. No assento traseiro, Aaron deixou escapar um suspiro de resignação. Emigesh se limitou a sorrir.
 --Seu turno, Aaron -disse Liza.
 O vampiro voltou a suspirar, abriu a porta e saiu do carro. Seu acréscimo negro se movia de um lado a outro enquanto se aproximava do porta-malas e o abria, apoiando-se na fechadura destroçada. Dentro estava o guarda do estacionamento, pacote, amordaçado e aterrorizado.
 Aaron o levantou do pescoço.
 --O que? -perguntou.
 Os olhos do guarda estavam totalmente abertos. Depois de uns momentos tragou com força e tentou sem êxito falar através da mordaça. O vampiro lhe tirou o lenço com impaciência da boca.
 O homem deu rápidas baforadas frenéticas enquanto Aaron o observava espectador, esperando uma resposta. Por último, conseguiu falar.
 --N-não posso respirar aí dentro.
 --Vale -disse o anarquista-. Já respiraste. -Voltou a lhe pôr a mordaça e o jogou com força ao porta-malas, fechando apesar da ausência de fecho. inclinou-se um pouco-. E agora cala a puta boca ou não precisará respirar mais. -Entrou no carro e fechou de uma portada-. Vá gente há solta por aí.
 Aquilo parecia que ia ser toda a diversão da velada, até que Jolanda começou a acender de novo o acendedor. Apertou-o para formar o olho direito, mas sem prévio aviso Liza lhe golpeou fortemente na mão. O acendedor voou e aterrissou sobre a perna da Jolanda, que saltou gritando, apartando o de um golpe e arrojando-o pela porta aberta. Esquecendo sua falta de imaginação, soltou uma descritiva e extensa cadeia de insultos dirigidos para a Liza e para vários membros de sua família.
 Esta lhe apontou ao rosto com uma larga garra.
 --Não quero te ouvir, puta! Uma palavra mais e lhe Mato aqui mesmo!
 Aquilo pareceu bastar para aplacar as ânsias literárias de Jolanda, que refletiu sobre os perigos de passar-se da raia. Nenhuma das duas se moveu, embora suas caras estavam muito perto. Liza, que ansiava liberar suas frustrações com um pouco mais resistente que um mortal, esperava que Jolanda tivesse as guelra de dizer algo mais.
 A atenção das duas mulheres estava fixa na outra quando Emigesh saltou para diante do assento de atrás com um cacarejo demente. antes de que nenhuma pudesse reagir, aferrou a Jolanda pela cabeça e lhe deu um furioso puxão. Liza se golpeou contra o volante, mas a buzina não conseguiu afogar o forte rangido.
 Emigesh tratava de alcançar a Liza, que conseguiu ver aqueles olhos injetados em sangre contra a pele escura. O vampiro tinha os presas estendidas e seguia rendo louco, desesperado.
 Apartou-lhe esmagando-se contra a porta, mas seu joelho ficou apanhada debaixo do volante. Não era capaz de conseguir alavanca para tirar-se de cima ao Emigesh, que tratava de lhe arranhar os olhos. A risada maníaca do vampiro se converteu em um grunhido frenético. Fora o que fosse o que lhe havia poseído, pretendia lhe arrancar a garganta.
 Liza pôde por fim afundar o cotovelo no nariz do vampiro, com um rangido satisfatório e uma chuva de sangue. Enquanto seu atacante uivava, a mulher aproveitou a breve pausa para abrir a porta e sair rodando. ficou em pé e sua raiva tomou o controle. aproximou-se do carro ignorando os ataques renovados do Emigesh e o tirou lhe arrastando pelo cabelo. Este tratava de golpear com as garras, mas Liza bloqueou o ataque. Deixou livre sua fúria e atacou aos olhos, cravando um dedo em um deles. A brutalidade do impacto fez estalar o globo ocular, que saiu da concha com um som repulsivo.
  Emigesh trastabilló para trás uivando, cobrindo-a cara com as mãos e sustentando seu olho pendente.
  A anarquista se preparou para saltar e terminar o trabalho. Aaron, aturdido, estava saindo do carro por sua porta. Liza lhe observou cuidadosamente e dobrou os dedos ansiosa, com os instintos reflexos a flor de pele.
  Aquela breve distração deu ao Emigesh o tempo que necessitava, mas não tinha estômago para seguir lutando. deslizou-se para a parte dianteira do carro e correu pelo estacionamento. Liza queria ir depois dele, derrubá-lo e terminar de lhe destroçar a cara até que não ficassem mais que farrapos, mas não estava disposta a lhe voltar a costas ao outro vampiro. Onde estava?
  Enquanto os passos do Emigesh se perdiam na noite, Aaron olhava atônito a Liza levantando a mãos.
  --Não me olhe! -gritou alarmado.
  ficaram observando-se durante o que deveu ser um minuto enquanto Liza se acalmava pouco a pouco. O vampiro baixou as mãos.
  --Que coño foi isso? -perguntou.
  A mulher não respondeu. Ainda estava controlando-se para não despedaçar ao Aaron, tivesse ou não algo que ver com o ataque de Emigesh. Então, de uma vez, os dois se lembraram da Jolanda.
  Estava recostada contra a porta, com a cabeça pendurando morta fora do carro. Tinha os olhos abertos, e embora era evidente que tinha o pescoço quebrado estava consciente. Aquilo era o inferno para qualquer vampiro. Fez um espantoso som enquanto tentava tragar o sangue em sua boca; o braço esquerdo sofria espasmos.
  recuperaria-se, mas para isso necessitaria tempo e sangue. Montões de sangue. Liza observou a garagem, que depois do ruído de a briga não era o lugar mais adequado para isso. Como Sabbat desfrutava das brigas sangrentas e aos anarquistas não os importava forçar a Mascarada ao limite, mas não tinha sentido atrair muita atenção mortal; se a polícia terminava envolvendo-a coisa podia ficar feia.
  Entrou no carro. Já tinha arrancado a carcasa da coluna de direção, e só necessitava um minuto para fazer uma ponte.
  --Vem? -perguntou ao Aaron enquanto trasteaba com os cabos. O vampiro entrou como resposta.
  Durante um momento Liza deu obrigado, pois sua fome parecia haver-se aplacado. O carro arrancou, mas estava muito ocupada planejando o seguinte movimento para sentir-se aliviada.
 Levaria a Jolanda a um lugar seguro. Tinham várias casas abandonadas nas que se refugiavam de vez em quando e havia sangre no porta-malas, o guarda de segurança, que voltava a dar golpes alarmado para ouvir acender o motor.
 Enquanto se afastavam com a cabeça da Jolanda ricocheteando através da janela, a cara queimada no salpicadero lhe sorria. Liza esperava encontrar-se com o Emigesh, para o que já estava pensando todo tipo de coisas desagradáveis. Aaron se sentava detrás, perguntando-se o que estava ocorrendo e tratando de não ficar em médio.
 Nada tinha trocado.
 Não importava quantas horas, quantas noites Owain observasse o tabuleiro, nenhuma inspiração messiânica chegava para lhe iluminar. Não havia movimento espetacular algum que ressuscitasse aquela partida. Não havia esperança.
 Aquela noite tinha despertado amaldiçoando ao Harold Godwin e a sua rainha. Ao menos, pensou, depois de tantos anos havia alguém novo ao que amaldiçoar. Pensou em como seu oponente estaria desfrutando e tratou de preparar-se para render-se e não prolongar a humilhação. Podia demorar décadas em executar o seguinte movimento, é obvio, mas para que? Podia terminá-lo tudo com uma breve nota e um novo começo. Entretanto, a idéia da rendição o resultava tão atrativa como a de que lhe pegassem uma surra. Já o tinham golpeado muitas vezes ao longo dos séculos (no amor e na política), mas sempre tinha sobrevivido, algo que não podiam dizer aqueles aos que tinha derrotado. Merece a sobrevivência a derrota? Não estava seguro da resposta, considerando aquilo no que se tinha convertido sua existência noturna.
 sentia-se apanhado em seu próprio lar, mas não podia reunir a energia suficiente para deixá-la, para caçar, para planejar. De que vale uma Vergôntea incapaz de caçar ou de maquinar? Deveria ter obtido uma certa satisfação ante as notícias de que o Chambelán de Justiça tinha aprovado a recalificación sobre a que tinha falado com Benjamim, mas não sentia nada. Pensou no Ventrue derrotado e fez-se a pergunta do ponto de vista do vencedor. Merece a sobrevivência a derrota? O que teria Benjamim que dizer a isso? Como responderia ele a um insulto e uma ferida assim, à ameaça que Owain lhe tinha arrojado tão descuidadamente? guardaria-se seu ódio o jovem vampiro ou iria a por ele? Os recém-nascidos estavam acostumados a atuar de forma impulsiva; não havia mais que ver a demonstração anarquista no museu de na semana anterior. Por isso não sobrevivem até chegar a velhos, pensou. De novo, tratava-se do orgulho enfrentado à sobrevivência.
 O som de um carro entrando em seu imóvel atraiu sua atenção. Não havia necessidade de chamar o Randal, já que Ardem lhe teria alertado. Seu olhar retornou ao tabuleiro de xadrez. sentia-se doente ante aquela imagem. Não era aborrecimento; sabia que podia repetir aquele ritual uma noite atrás de outra durante os seguintes anos, mas estava embriagado por uma fascinação masoquista. Era como arranhar uma ferida aberta uma e outra vez, impedindo que se fechasse por sua conta.
 Owain se castigou até que Randal bateu na porta do estudo.
 --Senhor, o senhor Bowman quer lhe ver.
 O senhor Bowman, pensou com um suspiro. Albert Bowman, conhecido desde fazia muitos anos. Louco. Ainda se perguntava o que podia ter levado a aquele Malkavian a subir nu à escultura do príncipe, nada menos. Era como perguntar aos pássaros por que cantavam, ou aos amantes por que pensavam no outro. Sem embargo, Albert ia de uma demonstração catastrófica a seguinte. Owain notou que aquilo era uma amostra de poder e influência por direito próprio. O príncipe estava disposto a tolerar a aquele bufão.
 Randal abriu a porta e cedeu o passo ao Albert. Uma enorme quantidade de cadeias pendurava de sua jaqueta de couro entrechocando, um interessante contraste com as calças vermelhas, brancos e azuis. A barba desajeitada, o bastante larga para meter-lhe sob os calças se assim o desejava, estava enredada nas cadeias, embora não parecia lhe incomodar. Estava mais preocupado pelo pacote que sustentava debaixo do braço enquanto entrava com as pernas dobradas, observando suspicaz ao Randal até que o servente fechou a porta.
 --boa noite, Albert.
 Lenta e cuidadosamente, o Malkavian começou a percorrer a estadia, olhando detrás de cada móvel e cada tapeçaria, sempre sem soltar o pacote, do tamanho aproximado de uma luva de beisebol e envolto em uma bolsa da compra com cinta isolante ao redor. Sem uma só palavra percorreu todo o estudo procurando... o que estivesse procurando. O Ventrue esperou pacientemente até que pareceu satisfeito e se voltou para ele.
 --Owain.
 Albert era o vampiro de Atlanta ao que conhecia desde fazia mais tempo. encontraram-se pela primeira vez no século XVIII em Espanha, e após tinham acontecido algum tempo juntos. De feito, a sugestão do Owain tinham mantido em segredo a chegada do Albert aos Estados Unidos nos anos quarenta. Naquele período de uns trezentos anos o Ventrue se acostumou a seu estranho comportamento, mas ainda havia coisas (como a "rodeio" no museu e a própria sobrevivência do Malkavian) que nunca deixavam de lhe surpreender.
 Albert seguiu revisando cuidadosamente o estudo, como se esperasse descobrir algum perigo oculto que fora a saltar sobre ele à menor ocasião.
 --Que tal te encontra? -perguntou o Ventrue.
 O outro ignorou a pergunta e, girando a cabeça para olhar por todas partes, aproximou-se rapidamente ao Owain.
 --Não posso ficar muito -sussurrou com urgência.
 --Tem algum lugar seguro no que guardar... -começou, detendo-se para voltar a olhar ao redor- ...isto? -Terminou dando umas palmadas ao pacote que levava sob o braço.
 O tamanho do objeto e seu pacote apressado não davam muitas pistas sobre o que poderia ser, e Owain sabia por experiência que, com Albert, as possibilidades se estendiam muito além do provável e o racional.
 --O que é? -perguntou como um amo poderia fazê-lo com uma mascote que houvesse lhe trazido uma pequena criatura destroçada entre as fauces.
 Pergunta-a pareceu surpreender ao Malkavian.
 --É... é... secreto -respondeu, tratando de dar com a palavra adequada. Era evidente que não o podia dizer, pois de outro modo deixaria de ser secreto...
 --Ah, já vejo -disse com a mão no queixo-. É... perigoso?
 Albert voltou a ignorar a pergunta.
 --Pode guardá-lo? Pode pô-lo a salvo? -vaiou.
 Owain desejava conhecer o conteúdo do pacote, aquilo que parecia tão importante para o Albert. Provavelmente se tratasse de algo totalmente inocente, mas aquele louco tinha o costume de perpetrar todo tipo de atos que nunca afetavam a ele, mas que enredavam a todos os desgraçados que ficavam apanhados em sua esteira. Recordava uma ocasião na Espanha em que Albert se havia apaixonado por um jovem pastor, e para obter suas cuidados se havia disfarçado de...
 --Owain, guardará-o? -O Malkavian falava com tom solene, como um menino pequeno que precisasse desesperado ir ao quarto de banho.
 O Ventrue se cobriu os olhos.
 --Sim, Albert. -Não podia acreditar o que estava dizendo-. Me o ficarei.
 Só soube que Albert estava sonriendo debaixo de sua imensa barba ao notar que as profundas rugas de sua frente haviam trocado de direção. Pela primeira vez desde sua chegada, falou com um tom de voz normal.
 --Muito bem. Certamente, é um alívio me tirar este peso de em cima. -Parecia alegre e despreocupado, e piscou os olhos um olho ao Owain enquanto lhe entregava o pacote. O Ventrue o aceitou rapidamente, quase como defesa. Tinha a sensação de que devia fazer alguma pergunta, mas o Malkavian já se encaminhava para a porta e se despedia por cima do ombro-. Devo ir. Devo ir. Lugares que ver. Gente que ser. -deteve-se um instante, inclinou a cabeça e se arranhou a barba, compreendendo que algo do que acabava de dizer não terminava de quadrar, mas ao final seguiu adiante.
 Embora a estadia estava perfeitamente ordenada, Owain, sentado em seu escritório sustentando o misterioso pacote, não podia evitar a sensação de que um tornado acabasse de passar destroçando-o tudo. Observou o objeto envolto e se perguntou, não pela primeira vez, se merecia a pena manter o contato com o Albert. O Malkavian se relacionava com o menino do príncipe, Roger, e o próprio Benison parecia ter uma estranha tolerância para ele, seu companheiro de clã. Possivelmente ter a outro Malkavian ao redor, especialmente um tão evidentemente louco, desse ao príncipe um maior ar de estabilidade. Sem embargo, Owain sabia que não era mais que uma pátina. O temperamento do Benison sempre estava disposto a saltar, mas como por não falar de suas conversações com companheiros inexistentes que, sabiamente, outros Vergônteas de Atlanta não pareciam notar.
 Em qualquer caso, devido a sua proximidade com o Roger e Benison, Albert era uma boa fonte de informações que o príncipe nunca tivesse revelado, nem sequer a um conselheiro de confiança.
 Voltou a olhar o pacote. Não havia dito que não pudesse desembrulhá-lo, de modo que abri-lo não seria em modo algum uma violação de seu acordo. Solo havia dito que ficaria, com a implicação de que o protegeria. Além disso, saber do que se tratava podia lhe ajudar a mantê-lo a salvo. Que demônios, pensou. É possível que tenha que estar no refrigerador. Comprovou o peso. Não pesa muito para seu tamanho. Hmmm. Muito grande para uma cabeça humana, salvo que tenha muito amparo.
 Começou a tirar cuidadosamente a cinta adesiva e o pacote de papel marrom. Pensou por um momento em chamar o Randal para que o abrisse ele, mas não tinha sentido arriscar assim a um ghoul de confiança. Pouca costure para perder a outro.
 Quando retirou o papel se encontrou com uma segunda capa de pacote, esta consistente em partes de farrapos, farrapos de camisetas e o que pareciam com o menos três cilindros de cinta isolante. Nem Owain nem ninguém poderia tirar todo isso e devolvê-lo exatamente ao mesmo estado. Possivelmente na loucura do Albert houvesse motivações, embora o duvidava.
 Por fim, a última parte de tecido caiu e o objeto repousou sobre o escritório. O vampiro deu um passo atrás, duvidando em um primeiro momento se seus olhos lhe enganavam. Não era nada que houvesse imaginado nem remotamente. Contra seu bom julgamento, estendeu lentamente a mão e tocou o tatu de cerâmica branca. Provavelmente fora de tamanho natural, e pelo que sabia, o parecido era notável: focinho bicudo, orelhas pequenas, carapaça com cristas. Sacudiu a cabeça e o tocou. Um som oco. Agitou-o. Nada.
 Voltou a retirar-se e se esfregou a ponte do nariz.
 --Randal -chamou.
 O obediente criado apareceu em menos de um minuto.
 --Senhor?
 Owain levantou um dedo para assinalar a peça.
 --Cabe isso na caixa forte?
 Randal o observou e depois olhou a seu senhor.
 --Isso, senhor?
 --Sim, isso.
 Voltou a olhá-lo, e de novo levantou a vista para o Owain.
 --Na caixa forte?
 --Sim, na caixa forte.
 Voltou a lhe jogar um comprido olhada.
 --C-crio que sim...
  --Bem -disse o vampiro voltando para tabuleiro de xadrez-. Te encarregue disso.
  Randal ficou em pé um tempo observando o tatu, mas ao final se rendeu e obedeceu as instruções.
  --Sim, senhor. Na caixa forte. -Agarrou a escultura e a inspecionou, mantendo-a afastada do corpo. Deste modo a levou do estudo.
 --Tem que dar essas portadas? -perguntou Roger irritado. Albert nunca fechava as portas sem dar golpes, e a esse passado o Pastar não o duraria muito. Em qualquer caso, sempre podia roubar outro. Albert ainda não tinha feito nada, mas Roger não duvidava de que o faria em quanto saísse de casa do Evans. Sua mansão terrorífica. Estava praticando. Queria mostrar o grau de indignação apropriado sem demonstrar aborrecimento. Albert tinha que saber que não gostava que desse portadas com seu carro. Tinha que aprender a respeitar a propriedade de outros. Que fora um vampiro não significava que pudesse ir por aí rompendo as coisas da gente, ou fechando a golpes as portas de os carros se gostava.
 Mas estava preocupado. Quanto aborrecimento era necessário? O que ocorria se Albert também se zangava e lhe dizia que se calasse? O que ocorreria se se voltava violento e fechava a porta ainda mais forte, ou se rompia a antena e lhe dava patadas aos faróis? O que aconteceria não voltava a lhe falar? Podia ocorrer.
 Sentiu como lhe chegava outro ataque de pânico e seu coração começou a pulsar com força. supunha-se que isso não tinha que acontecer. Nunca tinha ouvido pulsar o coração de nenhum outro vampiro, mas não tinha o valor de lhe perguntar a ninguém a respeito. Assustava-lhe muito que acreditassem que não estava bem, embora possivelmente isso fora o que ocorria. Não havia médicos vampiros aos que ir para lhes perguntar por que lhe pulsava o coração. Inspirou profundamente e se concentrou para deter os batimentos do coração. Um pensamento alarmante percorreu sua mente. E se não ser realmente um vampiro? E se não ser mais que um mortal e simplesmente acredito ser um vampiro? É obvio, isso não explicava o fato de que seu coração não pulsasse a maior parte do tempo, e que durante os últimos vinte e cinco anos não tivesse ingerido mais que sangue humano.
 Despreparado, Roger saltou e chiou quando Albert abriu a porta do passageiro, esmagando o dedo entre o joelho e a coluna da direção do pequeno Pastar. Albert se derrubou tão pesadamente em o assento que todo o carro se moveu acima e abaixo. Depois tomou o guidão e fechou a porta com tal força que todas as janelas tremeram. O retrovisor dianteiro caiu sobre o salpicadero.
  O coração do Roger começou a pulsar ainda com mais força. Seu mão tremia de raiva enquanto recolhia o espelho.
  Albert o olhou.
  --Mierda. Outros sete anos atirados ao lixo.
  Roger queria gritar, queria lhe soltar tudo o que tinha estado praticando fazia uns instantes, mas não era capaz. E se lhe ofendia?
  O outro se meteu as mãos sob a barba e começou a arranhar o queixo.
  --Um menos, fica outro. lhe dê cano!
  Roger acendeu o contato e apertou os dentes para ouvir o horrível chiado do motor. Em sua agitação tinha esquecido que o carro já estava em marcha. Solo lhe impregnou uma vez enquanto se dirigiam ao exterior do imóvel.
  --Esta maldita embreagem está quebrada.
  Enquanto o carro avançava a tropicões, Albert tratava de tirar o mapa que guardava no bolso. tratava-se de uma coleção de papéis enrugados e quebrados.
  --Gira à esquerda! -gritou repentinamente quando chegaram à rua. Roger estava tão surpreso que obedeceu imediatamente, atravessando diretamente o tráfico que vinha em direção contrária. Os cláxones começaram a apitar, acompanhados por chiados de freio e maldições-. À esquerda outra vez! -voltou a gritar Albert, provocando um novo caos circulatório.
  --Para já, louco filho de puta! -respondeu Roger, tão surpreso que esteve a ponto de saltá-la mediana e provocar uma colisão frontal.
  Albert pareceu entristecer-se de repente.
  --Chamaste-me... louco.
  Roger não tinha palavras. Tinha-lhe chamado louco, e embora era certo, os Malkavian eram muito sensíveis a esse tipo de coisas.
  --Eu... eu...
  Albert afundou a cara no mapa e gemeu, uns sons agudos e espasmódicos que lhe provocaram convulsões em todo o corpo.
  Roger estava desolado. Por fim o tinha conseguido. Seu temperamento lhe tinha feito cruzar aquela magra linha e havia zangado a seu único amigo de verdade. Albert era o único distração em seu vida como menino do príncipe, mas todo isso tinha terminado. Não deixava de olhar a seu companheiro, que provavelmente sofresse desde então um profundo trauma emocional. Uma alma tão frágil sob uma barba tão espessa, pensou.
  --Albert... Albert, não sei o que dizer.
  Este, com os olhos vermelhos, levantou a cabeça do mapa enquanto um muco sangrento lhe caía do nariz.
  --Dizer? Dizer! -rugiu. Então, instantaneamente, seu expressão se fez neutra e falou com suavidade-. Dava, "Sabe que três de cada quatro dentistas entrevistados pensam que o quarto é um estúpido filho de puta?"
  Roger lhe observava confundido, mesclando fúria e culpa em uma estranha mescla emocional.
  Albert estendeu a mão e deu um forte puxão ao volante, evitando outro possível choque.
  --Está seguro de que conduziste antes um destes? -perguntou.
  Roger não sentia nada. Tinha esgotado sua capacidade de aborrecimento em a última meia hora, e não fazia mais que olhar adiante e conduzir. Naquele momento não podia seguir tratando com ele. Tinham coisas que fazer.
  --Estamos perto?
  --OH, sim -respondeu Albert, observando os restos de seu mapa destroçado. Encontrou o ponto que necessitavam-. Estamos a uns quarenta e cinco minutos.
  --O que? Quarenta e cinco minutos? -Acreditou ter ouvido mau-. Em casa do Evans estávamos a só quinze minutos. Como podem ser quarenta e cinco?
  --Atalhos -sorriu Albert-. Em quarenta e cinco minutos estaremos em Salisbury.
  --O que? -Roger lhe arrancou o mapa das mãos e tratou de encontrar algum sentido de todo aquilo sem voltar a meter-se no sulco contrário-. É um mapa da Inglaterra!
  --Ninguém mais poderia chegar ao Salisbury em quarenta e cinco minutos. Pode apostar, se quiser.
  Roger inspirou profundamente.
  --Albert?
  --Estraga?
  --Sente alguma vez que o coração te começa a pulsar?
 Albert inclinou a cabeça e lhe observou atentamente.
 --Esquece-o -disse Roger girando o carro para refazer o caminho. Se fustigou por pensar que Albert sabia onde queria chegar. Passaram a estrada que conduzia a casa do Evans e seguiram para o centro. Tratava de ignorar a seu companheiro, que jogava com a rádio trocando emissoras e tratando de unir as partes de todas as canções para formar algo coerente. Não demoraram muito em ver ante eles o horizonte de edifícios. Atlanta não era o imenso conglomerado construtivo de outras cidades, mas ao Roger parecia imensa. Quase todos os arranha-céu se construíram nos últimos dez ou quinze anos, mas enquanto não fizesse caso do Albert ainda sabia mover-se entre suas ruas.
 Não tiveram problemas para estacionar na rua do Peachtree Gardens. Quase todos os que visitavam a clínica de repouso o faziam durante o dia. voltou-se para seu companheiro.
 --Vale. me dê uma hora. -Esteve a ponto de acrescentar e não te coloque em confusões, mas não serviria de nada.
 Situou seu cartão na placa metálica e as portas frontais do edifício se abriram. Ser o menino do príncipe estava acostumado a ser uma dor de cabeça, mas também aplainava o caminho. Não se admitiam visitantes a aquelas horas da noite, mas Benison tinha influência no mundo mortal, e tinha disposto algumas comodidades para seu menino.
 Passou junto ao zelador noturno, que tinha instruções de não comentar nunca aquelas visitas. Não tinha nem idéia da explicação que lhes dava (possivelmente que se tratava de um membro do programa federal de amparo de testemunhas), mas não havia dúvida de que era falsa. Roger tratava de apartar-se da vista de outros empregados, já que não servia de nada despertar a curiosidade da gente. Chegou à habitação 256 e se deteve frente à porta. Aquela poderia ser a noite. Abriu.
 Tabatha Greene descansava plácidamente, como sempre. Todas as noites Roger a visitava, esperando que por fim recuperasse a consciencia, mas sempre a encontrava igual. A pele lhe pendurava do corpo, e o único movimento era o ritmo constante da respiração. Aproximou uma cadeira à cama e tomou a mão magra e pequena entre as suas.
 --Olá, mamãe. -Deveria haver-se acostumado a ver a daquele modo, dizia-se constantemente. depois de quase vinte e cinco anos não deveria sentir aquele nó na garganta, não deveria haver-se esforçado para dizer aquelas palavras-. Espero que te encontre bem esta noite. Eu não tenho muito que te contar. O Príncipe Benison ainda está zangado com meu amigo Albert, de modo que tratamos de não nos colocar em confusões. Bom, ao menos eu trato de não me colocar em confusões.
 ficou um tempo acariciando a mão, dizendo-se que poderia abrir os olhos em qualquer momento, que tinha ouvido cada palavra que havia-lhe dito ao longo dos anos, que estava orgulhosa dele. O último era o mais difícil de acreditar. Nunca tinha sido capaz de lhe ocultar nada a sua mãe. Tinha retornado do Vietnam como um herói, ao menos tudo o que podia sê-lo alguém que tivesse participado de aquele conflito, e tinha sido sua capacidade militar a que tinha atraído a Benison. Seu Abraço e transformação em vampiro era outro secreto que não tinha podido lhe ocultar, mas foi muito para ela. Embora sozinho tinha quarenta anos, o compreender aquilo no que se havia convertido seu filho lhe provocou um ataque. Roger estava decidido a compensá-la. A determinação que lhe tinha convertido em um herói estava agora dirigida para a recuperação de sua mãe, a que recuperasse a vida que tinha perdido por sua culpa.
 Só é questão de tempo, dizia-se, baixando a cabeça para as lençóis e tratando de conter as lágrimas de sangue.
 --Compensarei-te, mamãe. -Não podia imaginar a existência sem ela. Se recuperava a consciência... quando recuperasse a consciência, embora só fora por um segundo, tomaria o corpo frágil em seus mãos e a Abraçaria, e desse modo estariam juntos para sempre. Nada se interporia em seu plano, nem a Terceira Tradição que proibia a criação de origem sem permissão, nem o vínculo de sangue que o atava à vontade do Benison. Roger sabia que aquela era uma necessidade muito capitalista. Não havia dúvida de que precisamente ele, devido a sua relação com Tia Bedelia, compreenderia e aceitaria seu decisão. Estava disposto a assumir, o risco. Estava disposto a fazê-lo por sua mãe.
 Entretanto, de momento não estava consciente. A situação de vinte e cinco anos não tinha trocado, mas ele se asseguraria de que ao menos não trocasse para pior. Como tinha feito outras tantas noites, cravou-se o índice direito no polegar até fazer brotar a sangue. Lenta, cuidadosamente para não manchar os lençóis de escarlate, levou o dedo à boca de sua mãe. O sangue vampírica caiu entre os lábios secos e esquartejados e a mulher tragou.
 --Recompensarei-te, mamãe -sussurrou. Acariciou brandamente seu cabeça e se limpou as lágrimas vermelhas antes de reunir-se com o Albert.
  O valentão da porta saudou a Liza, que acudia com regularidade ao Nine Tails. Não tinha que mostrar seu carnê, nem pagar a entrada. O porteiro estava tão acostumado a vê-la que não notou o tom cinzento de sua pele, nem o pano ensangüentado que levava e que utilizava para limpar o suor. Entrou em tropicões, incapaz de evitar tropeçar com vários clientes e atirar suas bebidas. Gostava daquele local, com a música tecno a todo volume e o aroma do sangue no ambiente. Os mortais sadomaso eram patéticos, com suas cadeias, piercings e aspecto duro. Ao longo dos últimos anos lhe havia mostrado a muitos deles o que era o verdadeiro sadismo, e ao final nenhum tinha sido capaz de resisti-lo. Nenhum vivia para a dor como ela. Não eram mais que imitadores que tinham suplicado misericórdia... sem recebê-la.
  Também estava a gente bonita, os grunge e as meninas de papai que deviam ver a suas contrapartidas retorcidas e que, se eram realmente ousadas, pagavam cinco dólares para ser açoitadas por uma das amas do Nine Tails.
  Para a Liza não eram mais que ruído de fundo. Ruído de fundo e carne. Ia a aquele local porque era um dos principais pontos anarquistas, território dos vampiros que não aceitavam ordens de ninguém, que reconheciam a influência, mas não a autoridade da Camarilha. A Camarilha, o Príncipe Benison e toda sua índole ignoravam sua insolência porque fazia séculos se produziu uma guerra contra eles, e agora não havia outra opção: uma população de jovens rebeldes cheia de animosidade para a Camarilha era um criadero do Sabbat. Liza já tinha recrutado a um par com o passar do último ano.
  Entretanto, aquela noite tinha ido ao Nine Tails porque necessitava ajuda. Não tinha nenhum outro lugar ao que acudir. A multidão apartava-se a seu passo, pois era evidente que tinha problemas para manter-se em pé. Passou dando tombos frente à barra e entrou na pista de baile, piscando para tentar esclarecer visão. A seu ao redor dançavam os mortais bêbados. Seus corpos giravam ao ritmo da música ensurdecedora, e podia sentir o sangue percorrer seus veias vibrantes. A fome a consumia por dentro. aferrou-se a um jovem musculoso que se tirou a camisa e deixou de lutar enquanto sua cara descia para as veias do antebraço. A Besta estava despertando, a fome insuportável. Não podia fazer mais que reunir força para abrir a boca. As presas se estenderam...
 Alguém lhe separou das veias lascivas, lhe negando o alimento que necessitava desesperadamente. Não podia levantar a cabeça, não tinha a energia necessária para amaldiçoar ao responsável.
 Sentiu uma porta abrir-se e fechar-se. Ar fresco. A música soava agora mais longínqua, embora ainda podia sentir o retumbar do baixo através do muro. O muro. Estava apoiada contra ele. Se encontrava fora do local e sua visão se esclareceu um tanto, o suficiente para ver o Aaron sobre ela, lhe ajudando a incorporar-se.
 --Está bem, Liza? -O vampiro era mais baixo que ela e o observava com o largo acréscimo sobre o ombro direito-. Liza?
 Sua mente começava a limpar-se. encontravam-se no beco atrás do local. O aroma de tudo aquele sangue mortal era muito longínquo, mas não podia tirar-se o da cabeça. Concentrou seu olhar no Aaron. A vitae vampírica era mais potente, mais satisfatória que o sangue de os humanos. Seguro que podia lhe emprestar um pouco. Se soubesse o fome que tinha...
 --soubeste um pouco do Emigesh? -perguntou o vampiro, ignorante do perigo no que se encontrava-. Apareceu na quarta-feira pela noite pelo Little Five Points. Atacou a um grupo de mortais! -deteve-se para que Liza compreendesse a importância do que lhe estava dizendo, mas esta logo que escutava. Estava muito ocupada lutando contra a fome, tratando de manter à Besta a raia-. É obvio, o príncipe estava furioso -seguiu-. Chamou o Xavier Kline. Ontem à noite empalaram ao Emigesh e o deixaram à luz do sol.
 Lentamente, Liza começou a compreender. Emigesh tinha sido destruído. Não tinha energias para sentir satisfação ou fúria, ou tristeza. Nada. Tivesse-lhe matado pessoalmente de havê-lo encontrado, mas o assassino do príncipe se encarregou disso. Logo estava Jolanda. Normalmente os vampiros se recuperavam de quase todas as feridas, mas apesar de ter consumido a cinco mortais ao longo de três noites, Jolanda tinha morrido. O pescoço não se curava e gemia de forma horrível pela fome, o que fazia que Liza sentisse mais ânsia ainda, se isso era possível. Ao final os gemidos se detiveram.
 Não tinha feito nada com o corpo. Nas cinco noites e dias que tinham passado após já se teria deteriorado o suficiente para ser irreconhecível. Não estava segura. Tinha tido que partir. Sua fome se feito tão atroz que de não fazê-lo tivesse cansado sobre o sangue murcho que surgia do corpo quebrado de sua companheira. Aquele apetite era agora mais intenso e doloroso; sentia como suas vísceras ardiam por dentro.
 --Pode acreditá-lo? -perguntou Aaron-. Emigesh se acabou.
 Liza encontrou no crescente desespero e na voracidade as forças que tinha ido perdendo nas últimas semanas. Com um movimento repentino, aproximou do Aaron para ela e lhe inclinou a cabeça para um lado. O vampiro gritou pela surpresa e a dor, mas Liza já estava-lhe abrindo o pescoço exposto.
 Os músculos e os tendões se rasgaram. O sangue fluía para sua boca e chupou avidamente, cada vez mais forte. Necessitava mais. Sua ansiedade o fazia invencível, por isso Aaron não pôde soltar seus braços, sujeitos aos flancos. Pouco a pouco, o vampiro esqueceu a dor e a surpresa e se perdeu na calidez do beijo. Seus gemidos compassados tinham o ritmo dos goles de sangue.
 Liza não podia parar. Enquanto o sangue fluía e a sentia percorrendo suas veias ansiava mais. Mais. desprendeu-se do pescoço e mordeu o ombro. A vitae começou a lhe salpicar e em seu frenesi tragou partes de carne.
 Os gemidos do Aaron se detiveram. Estava afetado por espasmos musculares, mas estes também terminaram por desaparecer. O corpo pendurava inerte em braços da Liza, que era incapaz de deter-se. Mordeu outras zonas (os braços, as pernas, o peito) procurando qualquer rastro de sangue que pudesse haver-se o pasado. Le arrancó frenética las ropas, clavando los colmillos una y passado. Arrancou-lhe frenética as roupas, cravando as presas uma e outra vez.
 Não havia mais vitae, mas a voracidade não tinha diminuído. Inclinada ante o cadáver e consumida pela frustração, elevou seu rosto ao céu e gritou. A fome nunca lhe tinha afetado daquele modo. Voltou a cobrar consciencia da música machacona ao outro lado do muro. Nine Tails. Podia seguir comendo dentro. A mierda a Mascarada! A Mascarada não falava de uma dor assim.
 Entretanto, tão rápida como tinha chegado, a força do frenesi desapareceu. Estava indefesa, incapaz de ficar em pé. Frenética, mas muito fraco para evitá-lo, derrubou-se sobre o corpo destroçado do Aaron.
 Gemeu. Tratou de levar uma mão à cara. O nariz lhe sangrava, igual a seus olhos. Solo via uma escuridão avermelhada enquanto o sangue surgia por todo seu corpo. A última sensação que conheceu foi o fome.
 Eleanor sempre se sentia frustrada tratando de preparar adequadamente a partida semanal de bridge. Não tinha tempo para preparar mais geléias de sangue, pralinés de sangue e chás de sangue, mas como correspondia a uma anfitriã, fazia todo o possível. Apesar da falta de criatividade daqueles lanches; Rhodes Hall sempre estava imaculado. Não se via nenhuma telaraña nas esquinas nenhuma só bolinha de pó nas tapeçarias ou nos batentes. Nem Bedelia, nem Marlene nem Hannah se queixaram... embora tampouco se ofereciam para trazer nunca a "comida". Nenhuma sozinha vez.
 --Arrumado quatro lanças -coaxou Tia Bedelia.
 Eleanor sorriu para ocultar um suspiro. Para fazer da velada uma perda de tempo completa, tocava-lhe ser companheira da anciã. Aquela velha arpía era uma jogadora tão errática, e dormia com tanta freqüência, que muitas vezes as partidas não tinham sentido. Ao menos Hannah se sabia suas cartas, embora fora tão insociável e calada que chegasse a catatonía. Entretanto, era preferível a Marlene, a idiota, que solo sabia falar de estupidezes que ninguém entendia e que a ninguém importavam. E era melhor conversadora que jogadora de bridge.
 Apesar de tudo, Marlene e Hannah só necessitaram uns minutos para levá-la vaza. Bedelia não tinha chegado a jogar nenhuma lança. Eleanor desesperava ao ver no que se converteu a alta sociedade vampírica. Tivesse preferido acontecer a noite com o Benison falando de política; algo salvo aquilo. Mas terei que manter as aparências, e como esposa do príncipe tinha a desgraça de ser uma das encarregadas disso.
 Marlene deteve um momento seu incessante bate-papo para apostar.
 --Dois diamantes. Bedelia, carinho, está conosco? -A decrépita sire do príncipe estava roncando brandamente. Eleanor voltou a ocultar outro suspiro. Seria mal educado despertar, de modo que não ficava mais que escutar o tagarelo da Marlene-. E já vêem -seguiu-, apesar de todos os esforços do príncipe por expor meu arte no museu, há alguns que nem sequer se dignam em vir. Podem acreditá-lo?
 Eleanor quase invejou a Bedelia sua idade e sua excentricidade, que o permitiam dormir onde a agradasse e ignorar completamente à Toureador.
 --Não recordo ter visto o Xavier Kline, ou ao Owain Evans -disse Marlene molesta enquanto contava com os dedos.
  --Evans estava -disse direta Hannah.
  --Sim, é verdade -aceitou Eleanor-. Não me surpreende que Xavier não tenha tempo para apreciar... a arte. -Conseguiu sorrir docemente a Marlene ao chamar Arte a aquelas monstruosidades metálicas-. Provavelmente tenha algum menino que aterrorizar, ou gatos que esquartejar. -Era perfeitamente consciente de que Owain Evans tinha estado ali, sempre escondido ao fundo, observando-o tudo como um abutre sobre o campo de batalha. Além disso, Benjamim lhe havia contado o das ameaças. Seu rosto avermelhou com solo recordá-lo. Não havia dúvida de que Owain sabia que algo assim a enfureceria. Possivelmente esse arrivista Ventrue necessitava que alguém lhe pusesse em seu sítio, fora ou não conselheiro do Benison. Era a mulher do príncipe-. Estava ali.
  --OH. -Marlene parecia confundida, algo não muito incomum, notou Eleanor.
  --Provavelmente te distraíra a atuação do Bowman sobre você escultura -acrescentou Hannah com seu tom sério habitual.
  Ante a menção do incidente as bochechas da Toureador se sonrosaron visivelmente, a pesar da abundante maquiagem que estava acostumado a utilizar. Tratou de falar, mas estava tão envergonhada que apenas gaguejava.
  Tia Bedelia escolheu aquele momento para recuperar a lucidez e intervir.
  --Albert Bowman? O pequeno Albert com a grande barba? É um menino muito agradável, e é um bom amigo do Roger.
  Marlene não sabia o que dizer. Já se sentia molesta com que o incidente fora o tema de discussão, e agora não podia criticar ao Albert, que tinha causado tantas desgraças. Todas aquelas mulheres, as arpías da sociedade de Atlanta, sabiam que embora Bedelia era um espírito livre, por dizê-lo delicadamente, era a sire do príncipe, e a voz que atendia com maior zelo. Ninguém lhe contradizia diretamente, de modo que se ela dizia que Albert Bowman era um bom menino, em os limites daquela partida de bridge era o melhor de todos.
  Marlene se desculpou rapidamente para não chorar diante das demais. Bedelia parecia ter tornado a dormir tão rapidamente como tinha despertado. Eleanor olhava à aborrecida Hannah, a dirigente da capela Tremere, que não falava virtualmente nunca. Sem embargo, quando o fazia, suas palavras golpeavam o coração como uma adaga envenenada. Pela primeira vez naquela velada, o sorriso da Eleanor foi genuína.
 --ouvi que Xavier Kline esteve bastante ocupado estes últimos dias -comentou Hannah, extrañamente faladora. Eleanor arqueou as sobrancelhas dúbia, embora sabia exatamente do que a Tremere estava falando-. houve um notável aumento no... -Se deteve um instante como se estivesse procurando as palavras corretas, mas Eleanor estava convencida de que aquela conversação havia sido cuidadosamente preparada-... na ingobernabilidad dos Vergônteas da cidade nas últimas semanas.
 A Ventrue se encolheu de ombros e deu um sorvo de seu chá.
 --Anarquistas e recém-nascidos -disse com desprezo-. Não dão mais que problemas.
 Hannah sorriu educadamente. Parecia que aquela era a noite das surpresas.
 --chegamos inclusive a ter problemas dentro da capela -acrescentou a Tremere-. Vários recém-nascidos tiveram que ser... disciplinados. -Aquele era o turno da Eleanor para sorrir pormenorizada. Hannah parecia vacilar, molesta com aquele intercâmbio tão prolongado-. Possivelmente deva ir ver como se encontra Marlene -disse a alta e magra vampira, terminando a conversação com a escassa graça da que estava dotada.
 Eleanor, só com a Bedelia, riu para seus adentros. Tinha ouvido falar mais com a Hannah que em todo o mês precedente. O que levava a a regente a uma demonstração assim? Além disso, informar de problemas dentro da capela a um estranho... isso não era típico de nenhum Tremere, nem sequer dos mais faladores, entre os que Hannah não encontrava-se.
 Tinha havido mais que um aumento na ingobernabilidad, como havia dito Hannah, entre os Cainitas durante as últimas semanas. Vampiros enlouquecidos, mortais atacados em público, luta sem provocação prévia, todo isso rupturas da Mascarada que não haviam deixado ao Benison mais remedeio que intervir. Por isso tinha mandado ao Xavier Kline depois dos anarquistas maníacos. Os recém-nascidos haviam sido disciplinados, como havia dito Hannah. Destruídos, mas bem, acreditava ela. Era uma coincidência muito estranha... Devia haver algo que o conectasse tudo. Um plano do Sabbat? estaria-se preparando uma invasão?
 perguntou-se se todo aquilo não seria mais que uma traição Tremere. Esse seria o motivo pelo que Hannah tinha tirado o tema. Sabia que ela, e portanto Benison, suspeitaria dos Tremere, por o que tinha sugerido que eles também estavam sofrendo... o que fora que fazia que os vampiros violassem a mais sagrada das Tradições. É obvio, detrás dos comentários aparentemente estranhos da Hannah havia um motivo. depois de tudo, era uma Tremere.
 reclinou-se na cadeira e bebeu um pouco de chá. Benison tinha estado um pouco estranho do começo dos problemas. Não era próprio dele. Enquanto ouvia a Bedelia roncar a seu lado decidiu falar com seu marido o príncipe sobre o assunto.
 Owain podia ver o castelo frente a ele através dos ramos. Os muros caiados brilhavam sob a luz da lua. O príncipe estaria agradecido por ter respondido com tanta urgência a sua chamada. Tratou de recordar quando tinha sido a última vez que tinha visto o príncipe... ao Príncipe Benison.
 O vento trocou ligeiramente. Owain se deteve e olhou a seu ao redor. O que esta passando? Estava em Atlanta, no parque Grant, não nas colinas da França. A estrutura circular que tinha frente a ele era o Cyclorama, não um castelo medieval. Sacudiu a cabeça para tratar de esclarecer seus pensamentos. O que lhe estava ocorrendo? Fazia mais de setenta e cinco anos que não tinha posto o pé na Europa. Que fazia no parque?
 A chamada tinha sido real. A pomba mensageira tinha chegado a sua casa fazia apenas umas horas. Quase todo mundo as acreditava extintas, o que era certo das variedades que os mortais conheciam. Entretanto, o príncipe tinha conservado e criado as suas da Guerra Civil Americana, ou a "Guerra entre Estados", como a chamava se estava de bom humor. Entretanto, quando sua disposição não era a mais alegre se tratava da "Guerra da Agressão do Norte" ou "A Segunda Revolução Americana". Em qualquer caso, alimentava às pombas com seu vitae, criando uma raça confiável de ghouls mensageiras.
Estava acostumado a presumir de que nunca falhavam na hora de entregar seus mensagens, e ao menos aquela noite tinha sido certo. O pássaro o havia trazido a chamada do príncipe, por isso Owain tinha saído de sua apatia e tinha ido depois de uns rápidos preparativos.
  Com a cabeça esclarecida, comprovou os arredores enquanto subia pela escada da entrada. Não havia sinal de ninguém mais no parque. Foi recebido na porta pelo Vermeil, um dos ghouls do príncipe. Como Benison, Owain preferia como servidores aos ghouls, não a criação de vampiros menores. Enquanto que um menino Abraçado terminava ganhando poder e rivalizando com seu sire, um ghoul permanecia sempre dependente e servil. Procurou o Byron, o companheiro do Vermeil, mas não o viu por nenhuma parte. Vermeil sozinho era como ver o Epi sem o Blas.
  --O príncipe espera dentro -informou o guarda-costas com sua voz grave e retumbante. Owain assentiu. Ao parecer, igual a tinha obtido utilizar o High Museum, Benison também tinha um modo de acessar ao Cyclorama. Não lhe surpreendia. Sua própria rede de espiões e contatos podia ser mais sutil que a do príncipe, mas não mais extensa.
  Atravessou a galeria principal para chegar à estrutura em si. Entrou na plataforma de poltronas, que girava lentamente ao redor da câmara circular. O som tinha sido apagado, mas a iluminação cambiante da cena estava em marcha. Quadros da altura do teto apareciam junto a figuras de gesso de soldados, vagões, corpos e outros elementos. Os diversos meios se combinavam tão habilmente que em ocasiões era difícil discernir onde terminava a pintura e onde começava o diorama tridimensional. Os assentos do auditório, montados sobre uma grande plataforma hidráulica, rodavam mostrando uma seqüência de diferentes cenas que recreava a Batalha de Atlanta, a queda da cidade e o incêndio posterior de 1864.
  Sentado no centro da fileira de poltronas estava o Príncipe Benison, com os cotovelos apoiados no assento que tinha diante e com o queixo e a barba descansando sobre as mãos entrelaçadas. Não desviava a atenção da cena. Não viu sinal alguma do secretário do príncipe, Horndiller. aproximou-se com cuidado, o suficientemente lento para mostrar respeito mas fazendo um pouco de ruído para não lhe surpreender, absorto como estava no açougue que tinha frente a ele. Benison era o vampiro mais intimidatorio fisicamente da cidade, com a possível exceção do Xavier Kline. Embora Owain era mais velho e não carecia de poder, não desejava surpreender ao príncipe ou pôr a prova seus reflexos.
  aproximou-se de quatro poltronas dele e se deteve. Benison, ainda olhando para diante, falou.
  --Pensa alguma vez nas batalhas do passado longínquo, Owain? Não nas vitórias, nem na glória, a não ser nas derrotas. Pergunta-te se fez todo o possível? Pergunta-te quantos homens morreram por culpa de seus enganos?
 Owain assentiu, crédulo em que o príncipe sentiria sua resposta.
 Ao final Benison se voltou para ele. Tinha um ar estranho, um grande peso que o Ventrue não tinha visto nunca com antecedência.
 --Ouve as vozes, Owain? Choram e lhe gritam durante o sonho diurno, te acusando, te exigindo que responda por suas falhas?
 Owain voltou a assentir.
 --Às vezes. -O príncipe nunca lhe tinha permitido ver aquela faceta, a dúvida e a angústia. Owain não era tão ingênuo como para interpretá-lo como debilidade, como muitos vampiros fariam. Conhecia aquelas dúvidas, mas tinha conseguido sobreviver com elas durante centenas de anos. Possivelmente o príncipe lhe respeitasse o suficiente como para saber que não cometeria esse engano.
 --John Hood era um bom homem -disse Benison assinalando o quadro-. Para o 64 já lhe faltava um braço e uma perna, mas nunca abandonou seu dever, nem sequer enfrentado à adversidade. Não havia homem vivo, nem sequer Bobby Lê, que tivesse podido salvar a cidade, não depois de que Joe Johnston cedesse toda a linha desde Chattanooga. -Owain escutava pacientemente de pé, já que o príncipe não lhe tinha convidado a tomar assento-. Ao menos Hood sabia a o que se enfrentava.
 Nos olhos esmeralda do Benison, Owain pôde ver como a desespero desaparecia, substituída por uma enorme fúria. Aquilo era mais próprio do vampiro que o Ventrue conhecia, carregando impassível, atravessando qualquer obstáculo, esmagando o perigo baixo seus pés. Aquela vez não era tão singelo.
 --Há algo que está devorando minha cidade -disse virtualmente com um grunhido-. Ao princípio acreditei que não se tratava mais que de inquietação. tive que lutar com coisas assim cada década ou dois. As Vergônteas esquecem de que lado se lubrifica sua manteiga e é necessário lhes mostrar quem está ao mando, especialmente aos mais jovens, e entre eles a os anarquistas. Se não fora pelos Justicar e o conselho já me houvesse refugo de toda a escória. Até certo ponto tenho as mãos atadas, mas faço o que posso. -A loucura começava a aparecer em seu olhar. Owain se inclinou para trás de forma imperceptível. Já havia visto o príncipe estalar em fúrias tão mortais como imprevisíveis-. Não estou seguro de saber a que me enfrento, Owain. Estou convencido de que ouviste o que está ocorrendo.
 --Algo sei -disse. Tinha ouvido que estava havendo problemas, estalos de violência vampírica dos que os periódicos informavam como guerras de bandas ou crímenes tão selvagens como espantosos. As bandas nunca tinham sido um problema na relativamente tranqüila Atlanta, e para assustar à população era necessária uma boa bomba. Entretanto, aquele comportamento era inaceitável dentro dos princípios da Mascarada. Owain recordou os dias anteriores às Tradições, anteriores à Camarilha e ao Sabbat, quando em muitos lugares os senhores vampíricos governavam todo-poderosos terras e camponeses. Ele tinha sido um deles.
 --Ao princípio não pareciam mais que problemas com os anarquistas -seguiu Benison-, de modo que olhei para outro lado. Houve algumas brigas, mas nada fora das zonas onde as permito: o sul, Little Five Points, Reynoldstown... Então chegaram os ataques abertos contra os mortais e a violência contra Vergônteas e gado fora de os territórios anarquistas! -Sua fúria crescia rapidamente, terminando com um murro à poltrona sobre a que se reclinou. O plástico se rachou de cima abaixo.
 Owain se retirou um pouco mais.
 --Assim mandei ao Xavier a pelos responsáveis, mas não são solo anarquistas. Meus súditos mais respeitáveis também estão saltando! -Benison arrancou a poltrona do chão e começou a esmagá-la com as mãos.
 Owain se sentia cada vez mais inquieto sobre o desenlace de todo aquilo. Quando ficava nervoso, o príncipe não era conhecido por tratar os assuntos do modo... mais racional.
 --Langley, o menino do Ebenezer, matou a um oficial de polícia mortal! -dizia enquanto convertia o assento em fragmentos minúsculos. Arrojou os restos ao chão com desagrado e depois elevou as mãos exasperado-. Arrancou-lhe um braço e depois o esmagou com seu próprio carro patrulha! me diga como explico isso. Felizmente, os periódicos tomaram como um estranho atropelo com fuga no que perdeu o braço. -Destroçar a cadeira parecia ter dissipado parte da fúria do príncipe, mas Owain seguia vigilante-. Outros quatro Vergônteas apareceram destruídos, enrugados como se tivessem morrido de fome, embora seus corpos estavam cheios de sangue; ao menos tinham estado cheios de sangue, até que esta saiu por todos sítios: olhos, ouvidos, boca, nariz, ânus... Sangue por toda parte. Até meus ghouls, Horndiller e Byron, voltaram-se loucos. Byron tratou de me atacar, pelo amor de Deus!
 Owain não queria pensar no que lhe tinha acontecido ao ghoul. O príncipe não era uma pessoa cruel, mas ao defenderse haveria encarregado dele de modo... explícito. Além disso, notou, um ghoul que remói a mão que lhe alimenta deve ser destruído, como um cão que se volta contra seu amo.
 O príncipe parecia haver-se acalmado o suficiente como para que Owain se sentisse cômodo dirigindo-se a ele.
 --Eu não tinha ouvido tanto. Tem algumas suspeita?
 Benison lançou uma gargalhada.
 --Suspeitas não me faltam. O que preciso são respostas -disse enquanto se limpava os últimos restos de plástico das mãos-. O Sabbat? Algum plano diabólico?
 Owain pensou nisso durante um momento. Suas fontes não o tinham revelado nada a respeito, mas pensando-o bem não parecia plausível.
 --Sempre é uma possibilidade, mas com os problemas que segue havendo em Miami parece estranho que o Sabbat divida sua atenção.
 --É certo -concedeu sombrio o príncipe. Ao menos o Sabbat era algo contra o que podia enfrentar-se. Estava composto de vampiros a os que descobrir, combater e desmembrar pouco a pouco.
 Owain tratou de pensar em uma explicação. Como podia aquela loucura haver-se apropriado de vampiros em todas as capas da sociedade das Vergônteas?
 --Magia Tremere?
 Benison negou com a cabeça e começou a mordiscar o lábio inferior.
 --A outra noite Hannah comentou a Eleanor que também ela tinha problemas com alguns recém-nascidos. Não foi muito específica, de modo que fiz algumas averiguações. Dois membros menores da capela desapareceram. Estou convencido de que Hannah teve que sacrificá-los.
 Sacrificar. Aquela mesma palavra tinha cruzado por sua mente fazia um momento. Por algum motivo misterioso, as Vergônteas estavam enlouquecendo como cães selvagens. A Besta estava tomando o controle. No mundo da Camarilha, da Mascarada, onde os vampiros se orgulhavam de conservar parte de sua humanidade (fora certo ou não), aquele domínio dos instintos primários não era passível. Possivelmente, pensou, sim que haja algo do Sabbat em tudo isto. Aquela estranha incongruência lhe resultou chocante.
 --Como soube Eleanor?
 --Um comentário de passada da Hannah na partida de bridge, embora suspeita que havia mais intenção detrás. Acredita que queria que todos soubessem que os Tremere tinham seus próprios problemas para que não lhes culpássemos do que estava acontecendo.
 Owain assentiu aprobatorio.
 --Provavelmente seja certo.
 O príncipe, que pareceu notar que o Ventrue estava ainda de pé, assinalou uma cadeira junto a ele.
 --Sente-se, por favor.
 Owain obedeceu, mas deixando uma poltrona entre os dois. Esperava que não se desse conta.
 --Hannah não é amiga de conversações insustanciales. -Enquanto pensava nas notícias sobre a Eleanor, algo lhe preocupava sobre aquela hipótese-. Não há dúvida de que não se tratou de um comentário acidental. o da Hannah, quero dizer. Queria que soubesse que os Tremere também têm problemas. -Owain tratava de ordenar suas idéias-. Pode que não haja nada mais a respeito. Pode que tente evitar suspeitas pois, como Eleanor sugeriu, sabe que todos os vampiros suspeitam sempre dos Tremere.
 --E com bom motivo -acrescentou Benison.
 --E com bom motivo, sim. -Tinha passado muito tempo desde que Owain se tinha interessado ativamente na política local, já que seus pensamentos tinham estado ocupados com seu sentimento de perda e seu próprio aborrecimento-. Pode que não haja nada mais a respeito. -Benison desejava saber onde queria chegar-. Mas... por que não lhe o disse Hannah a ti formalmente, como regente da capela Tremere, de modo que não houvesse margem algum para o equívoco? por que arriscar-se a que Eleanor não chegasse a essa conclusão e não lhe entregasse a mensagem?
 Benison pensou nisso durante uns instantes.
 --Suspeito que não tinha dúvidas sobre a astúcia da Eleanor para notar o comentário e me informar.
 --Mas por que não lhe disse isso a ti diretamente?
 --Seria uma admissão pública de que os Tremere não têm mais idéia que o resto de nós sobre o que está acontecendo -disse o príncipe-. Tivesse sido embaraçoso.
 --Sim -admitiu Owain-, e se os Tremere soubessem o que acontece, se guardariam a informação e a empregariam contra todos outros. -O príncipe assentiu-. Oficialmente -acrescentou Owain.
 A luz da compreensão começou a chegar ao olhar de Benison.
 --Assim, publicamente, os Tremere não têm feito comentário algum sobre a crise...
 --Mas em privado apaziguaram suas suspeitas -terminou o Ventrue.
 --E o que ocorre com os recém-nascidos repreendidos?
 --Ocultos, ou destruídos -disse Owain encolhendo-se de ombros-, ou com algum castigo menor. Não acredito que importância. Provavelmente Hannah tenha sido vaga de forma intencionada para te fazer chegar à conclusão equivocada. Como Eleanor.
 Benison lhe dirigiu um olhar severo ante o comentário. Havia que tomar cuidado na hora de criticar à mulher do príncipe. Era possível que um dos motivos pelos que procurava a opinião de Owain era que, até certo ponto, tratava-se de um rival da Eleanor (embora ela, como antiga arconte, ocupasse a poltrona Ventrue na primogenitura e fora a figura principal em assuntos políticos). Ele era mais neutro, ou isso pensava sem dúvida alguma o príncipe. Em qualquer caso, Owain sabia que não devia esticar muito essa corda.
 --Assim -concluiu o Malkavian-, que o mais provável é que os Tremere se ocultem detrás de meus problemas. -A familiar luz da vingança brilhou em seus olhos.
 --É possível, mas não necessariamente provável -aconselhou Owain.
 Benison lhe olhou com curiosidade.
 --Hannah poderia não estar fazendo mais que mitigar vocês preocupações, como sugeriste -assinalou o Ventrue.
 O cenho do príncipe se enrugou e fechou os punhos. Com um rugido de fúria, arrancou outra poltrona do chão e a jogou no outro lado da câmara. Entretanto, a pesar do aborrecimento tomou cuidado de não golpear as pinturas ou as figuras, danificando o tributo aos dias que haviam definido sua existência mortal.
 --Maldição! -gritou com uma linguagem que nunca tivesse usado de haver senhoritas pressente-. Quero atuar, e não me dá mais que "possivelmente" e "possibilidades".
 Owain permaneceu em um respeitoso silêncio enquanto Benison se acalmava pouco a pouco.
 --Uma coisa é certa -seguiu ao fim-. Hannah não tivesse revelado os problemas internos de sua capela sem ter recebido instruções superiores. Seu comentário pode ser uma pista falsa para aliviar vocês suspeitas, ou uma ordem de seus superiores, possivelmente de seu senhor ou seu pontífice, para divulgar a informação.
 O príncipe, que de momento parecia controlar-se, seguia frustrado.
 --Então não temos absolutamente nada.
 --Não temos respostas, mas sim algo no que trabalhar -respondeu educadamente Owain-. Vigia de perto aos Tremere. Possivelmente deva perguntar discretamente a outros príncipes se estiverem experimentando dificuldades similares. Esta loucura parece uma arma muito imprecisa como para que atue sozinho em Atlanta.
 --Há inclusive comentários sobre os Tempos Escuros, sobre a chegada da Gehena e a maldição de todos os Cainitas -grunhiu Benison.
 --Toda época tem seus fanáticos religiosos -assegurou Owain-. Com o novo milênio e as catástrofes se fazem mais ativos, mas não por isso mais precisos.
 --E não esqueçamos à Mão Negra -recordou o Malkavian-. Acredito que chegou o momento de chamar a alguns jovens dos que hei ouvido que têm simpatias com o Sabbat para lhes interrogar... vigorosamente. -Pareceu satisfeito ante aquela perspectiva-. Isso servirá para manter a raia aos anarquistas.
 Owain esperou diferente. Embora não sabiam com o que se enfrentavam, tinham decidido a quem era necessário vigiar. O haver obtido ao menos estabelecer um vago plano de ação parecia reconfortar ao Benison.
 --Vêem -disse o príncipe levantando-se enquanto Owain lhe seguia por o auditório. Vermeil, sem o Byron a seu lado, esperava na porta-. Poda, fecha e te reúna comigo no carro -ordenou-lhe Benison.
 --Sim, senhor.
 O Rolls do Owain estava no estacionamento, junto à limusine do príncipe. Era estranho, pensou o Ventrue, que houvesse sentido aquela desorientação fazia menos de uma hora sobre o carro e o Cyclorama. Podia estar relacionado com seus outros males, com a perda de atenção e o aborrecimento que havia sentido ultimamente? Então lhe chegou outro pensamento: o pobre Byron se tornou louco. Por toda a cidade, aos vampiros ocorria o mesmo. Se tratava de uma maldição? Estava-lhe afetando a ele?
 Sacudiu a cabeça e se fustigou por pensar naquelas tolices, mas ao mesmo tempo um cansaço familiar se apoderou dele. O preocupava de verdade qual era o problema de Atlanta, o seu próprio? Seria muito mais fácil retornar a casa, a seu estudo e a seu tabuleiro de xadrez, deixando os problemas ao príncipe, a Eleanor e a Hannah. Enquanto descendia as escadas junto ao Benison, a lhe ideie soava cada vez mais atrativa.
 Seus pensamentos foram repentinamente interrompidos pelo ruído de disparos. As primeiras balas se desviaram para cima, zumbindo sobre suas cabeças. Armas automáticas de algum tipo. Owain sabia pelo som, embora nunca se preocupou por aprender muito sobre as armas modernas. Enquanto se ajoelhava para apresentar um branco menor, compreendeu que Benison estava carregando para sua esquerda, a direção da que provinham os disparos. Instintivamente, Owain olhou à direita. Duas figuras corriam para eles de ali, levantando as armas para disparar. Movendo-se mais rápido que seu próprio pensamento, tirou-se o casaco e o jogou no ar. Com um mero roce psíquico, os dois atacantes abriram fogo contra o objeto, que caiu ao chão. Naquele breve instante de contato mental soube que os atacantes eram vampiros, mas jovens e desconhecedores das artes antigas.
 Os dois, armados com metralhadoras automáticas, detiveram-se para observar o casaco inerte. Perplexos, deram-lhe uma patada. A seu costas, Owain avançava das sombras onde se ocultou com facilidade. De novo instintivamente baixou a mão ao punho da espada, a arma que fazia séculos que não levava a batalha e que se encontrava pendurada na parede de sua sala de troféus. Compreendeu imediatamente seu engano e desenvainó o estilete que ocultava no antebraço. Entretanto, o atraso lhe aconteceu fatura.
 Os dois vampiros se voltaram enquanto ele se lançava ao ataque. O primeiro trastabilló disparando ao ar, com a garganta aberta ante o ataque elétrico do Ventrue. Entretanto, o segundo disparou uma rajada que lhe alcançou no ombro esquerdo.
 Recebeu toda a força do impacto e caiu para trás rodando. A seguinte rajada mordeu o lugar no que deveria ter estado, mas já se tinha levantado e saltava sobre seu atacante. Uma punhalada que atravessou o olho e o cérebro decidiu o enfrentamento.
 Owain comprovou rapidamente à primeira vítima. O corte na garganta era o bastante grave como para que nenhum vampiro pudesse recuperar-se a tempo de ajudar a seus camaradas. Retardado pelas bale no ombro, correu para socorrer ao príncipe.
 Benison estava em meio de um açougue. Três corpos, ao parecer de vampiros, encontravam-se quebrados e sangrantes no chão. O príncipe, que perdia vitae por dezenas de feridas de bala, brigava no chão com outros dois atacantes. Havia dois mais muito perto, com as armas preparadas, esperando o momento de ter um disparo claro.
 Owain, com séculos de prática a suas costas, deixou voar o estilete e atravessou a garganta de um dos vampiros em pé, que caiu sem emitir um só som.
 O segundo se girou e abriu fogo.
 Naquele momento um cañonazo ressonou no ouvido do Ventrue, a ao menos isso pareceu a ele. Em realidade era um Magnum .45 disparado justo a suas costas por sua condutora, Kendall Jackson, O projétil acertou a seu objetivo na frente e se levou por diante a parte traseira da cabeça.
 Um forte e terrorífico estalo indicou que Benison havia terminado sua parte da briga. Arrojou os dois cadáveres mais recentes ao chão e se aproximou do Owain dando tombos. Seu traje estava ensangüentado e costurado a balaços. A uma distância tão curta deveria ter recebido incontáveis impactos, e sangrava profusamente pelas feridas no peito, os braços, o estômago e a cabeça.
 --Jackson -disse Owain secamente-. Empala a um, traz uma tocha contra incêndios de dentro e decapita ao resto.
 A mulher transmitiu as instruções ao Vermeil, que alertado por os disparos tinha saído correndo do edifício. O ghoul voltou para procurar uma tocha.
 --Um bonito espetáculo -disse o príncipe-. Não tinham cavalaria. Infantaria sem apoio. No que estavam pensando?
 Owain ignorou a anacrônica análise tática. Benison, de algum modo incompreensível, seguia funcionando. Como podia caminhar com tantas feridas? Owain sentia uma ligeira debilidade pela perda de sangue, e tinha recebido muitos menos danos que ele.
 --Jackson, deixa que Vermeil se encarregue da tocha. Ajuda ao príncipe a subir ao Rolls e lhe leve ao Rhodes Hall. -O Ventrue viu que a mulher tinha sido alcançada na perna pela última rajada de metralhadora, mas não duvidou na hora de cumprir as ordens. Surpreendentemente, o príncipe se apoiou sobre seu ombro e permitiu que lhe ajudasse.
 --Depois deles, Owain! Levaremos a guerra até eles! -Gritou Benison por cima de seu ombro. Uns momentos depois, Jackson afastava-se a toda pressa.
 Depois de ocupar do príncipe, Owain recuperou seu estilete e empalou ao vampiro ao que o tinha parecido no pescoço. Depois tomou o tocha de mãos do Vermeil, que acabava de retornar, e com golpes certeiros decapitou a outros enquanto o ghoul arrastava ao prisioneiro até o carro do príncipe.
 Não havia tempo para dispor adequadamente dos cadáveres: a polícia chegaria de um momento a outro alertada pelos disparos. Não havia dúvida de que alguém nas casas que rodeavam o parque Grant lhes teria chamado. Benison deveria confiar em seus peões na polícia e no escritório forense para proteger a Mascarada.
 Aqueles pistoleiros não eram vampiros loucos ou malditos, e tampouco eram da cidade. Pertenciam ao Sabbat, e aquilo não era nenhuma coincidência.
 Enquanto se unia ao Vermeil na limusine, o Ventrue ferido ouviu algo sob o som das sereias que se aproximavam. tratava-se de uma débil melodia que flutuava na brisa noturna, mas que de algum modo se deixava ouvir pesar do estrondo. A música capturou seu atenção e não lhe deixou escapar, nem sequer quando Vermeil urgiu a entrar no carro. O caos que lhe rodeava era imaterial. De repente a canção era o único que lhe importava, quão único era real, muito mais que o açougue sobre a erva, mais que as pontadas de dor em seu ombro.
 --Vete sem mim -disse. O ghoul não o pensou duas vezes. As rodas chiaram enquanto abandonava o estacionamento, ansioso por não ser detido com um vampiro empalado no assento de atrás.
 A canção prosseguiu. Resultava-lhe familiar, similar a uma melodia que era incapaz de situar.
 As luzes da polícia se fizeram visíveis aproximando-se de toda velocidade desde Alameda. Outro veículo chegava em direção contrária com a sereia acesa, e todos convergiam no estacionamento do Cyclorama. Os focos revisavam a zona e os oficiais, com as pistolas e as lanternas desencapadas, moviam-se entre os corpos sem vida.
 Owain tinha desaparecido fazia tempo.
O terror aferrou a Gisela pelo ombro. A morte observava a meros centímetros de sua cara sonriendo, rendo-se dela, burlando-se com sua careta esquelética. Queria destroçar aquele rosto ossudo, esmagar seu crânio infernal com os dedos. Queria lhe fazer pagar!
Mas a fome não o permitia. Mantinha seus braços ao redor de seu estômago, tratando de afastar a dor. Obrigava-lhe a dobrar-se por a agonia. Esmagaria-a de algum modo. Trituraria aqueles ossos até convertê-los em pó e cuspiria sobre os restos. Seu grito iracundo atravessou a noite. Não morreria como Dietrich, gemendo, chorando como um bebê. Um dia governaria Berlim! Herr Himmler se o tinha prometido. Não morreria como uma patética gatita, Não era possível!
 --AAAARRR!
 --Gisela? Gisela! O que te passa? Onde está Dietrich?
 A morte lhe estava falando, de modo que debaixo daqueles dentes brancos devia haver uma língua. Muito bem, então; sozinho teria que arrancar-lhe depois de lhe esmagar a dentadura de uma patada.
 --Gisela, te acalme!
 Como se atrevia a morte a consolá-la, a tratar de suavizar seu proximidade? Não sentia alívio algum. Não partiria sem luta.
 Então a máscara da morte desapareceu e ante ela viu Frank. Estavam em sua guarida no porão, o lugar que fedia a decomposição, o lugar onde Dietrich, leprous scheisskopf, havia-se consumido em sua loucura até estalar literalmente. A pele se havia quebrado e tinha alagado o lugar de sangue, como as tuberías das fábricas cuspindo sua morte química ao rio.
 O sangue. Gisela ainda podia cheirar os litros que aquele demente tinha solto enquanto assegurava estar morto de fome. Não sabia nada da fome que agora sofria ela.
 --Gisela, te acalme -disse de novo a voz da morte, mais gentil e próxima.
 Sim, te aproxime. Quem mais havia ali? Tratou de recordá-lo, mas outra quebra de onda de voracidade se apropriou dela, consumiu-a, destroçou-a. Morte. Só Morte. Lentamente ficou em pé, elevando as mãos trementes. Trementes pela raiva. Raiva e fome. Podia sentir seu rosto, sua boca, seu nariz, suas orelhas.
 --Gisela, estou aqui.
 Sim. vieste a por mim, mas não penso ir!
 --AAAARRR!
 --Não, me deixe!
 É branda, Morte. Esmagarei-te!
 --Ah! Não, Gisela!
 Mas a Morte não só era branda, mas também escorregadia, e conseguiu escapar. Gisela se perdia baixo as quebras de onda de fome. O que tinha em suas mãos? Uma... uma orelha? Mas se a cabeça da Morte é uma caveira, pensou perplexa. Então cheirou mais sangue. A sangue da Morte, que fugia aterrorizada. Gisela lambeu seu troféu. Sangue doce. O presente da Morte. Não serve para aliviar sua dor.
 A Besta se elevou em seu interior e devorou a carne cartilaginosa. Começou com a orelha, mas não encontrou alívio algum. Seguiu com um dedo, com outro. A palma. Os músculos. Tendões. Os nódulos rangeram. Arrancava sua própria carne e chorava lágrimas de sangue.
 Ao final, outra quebra de onda de fome se elevou sobre ela e a levou.
 --por que? -Roger devia saber que não tinha que ter feito essa pergunta. Como era habitual, a súplica do Albert era apaixonada, não racional.
 --Não o ouve? Escuta -Albert voltou a cara para o céu e fechou os olhos com expressão arrebatada.
 --Ouço tráfico.
 Albert franziu o cenho e lhe olhou.
 --Por isso te levo. Uma vez o ouça... -Suas palavras foram interrompidas pelo que podiam ser disparos na lonjura.
 --Não posso deixar aqui o carro -protestou Roger enquanto seu amigo o levava a rastros.
 --Ninguém vai levar se seu carro.
 Duvidava-o. Não tinha crescido no Reynoldstown, mas sim em um bairro similar. Entretanto, Albert insistia e acessou a suas demandas a a contra gosto.
 Levou-lhe pela zona residencial de classe baixa. Cada vez que viam a alguém, normalmente jovens negros, trocavam de direção para não atrair um interesse inadequado. Albert tinha pressa, e por uma vez não queria que nenhuma distração lhe detivera.
 Ao pouco tempo chegaram a uma velha igreja Baptista, abandonada fazia muito tempo às depravações da miséria urbana. A pouca pintura que ficava estava caindo dos tablones curvados. As janelas estavam rotas e o campanário parcialmente em ruínas.
 --por que me traz aqui? -sussurrou Roger, perguntando-se depois por que falava assim. Seu companheiro lhe ordenou que se calasse.
 Esperaram nas sombras enquanto um jovem negro entrava no edifício. Roger notou pela primeira vez que do interior chegava uma pálida luz lhe pisquem. Albert voltava a estar perdido em seu ensoñación, com os olhos fechados e o olhar elevado para cima, até que lhe golpeou no braço.
 --O que acontece? -perguntou.
 --Ainda não o ouve?
 O que? As vozes em sua cabeça?, quis dizer, embora sabia que isso feriria os sentimentos de seu amigo.
 --Ouvir o que? -Perguntou em voz baixa.
 Albert lançou um suspirou e elevou as mãos para o céu.
 --Muito bem. Como quer. -Tomou ao Roger da manga e o empurrou para a porta principal.
 O menino do príncipe resistiu.
 --Mas... aí dentro há alguém.
 --Exato. -O repentino sorriso do Albert lhe pôs nervoso, mas a pesar de todo lhe seguiu.
 Enquanto a porta se abria com um rangido e cruzavam a soleira, Roger ouviu por fim; sentiu-se estúpido por ter duvidado de seu amigo. Sem querer o, deteve-se e esperou na porta aberta. Até seus ouvidos chegava o som mais doce que tinha ouvido jamais. Era uma canção, uma melodia que quase podia reconhecer, e que ao lhe atravessar afastava as preocupações diárias que lhe afligiam.
 No olho de sua mente pôde ver o príncipe sonriendo orgulhoso a seu menino, sem vergonha pelo acanhamento que se deu procuração de Roger desde seu Abraço. Naquela visão era ousado. Era o herói alto e poderoso que tinha sido durante a guerra, um afroamericano lutando por um país que lhe desprezava, mas combatendo valoroso a pesar de tudo porque era o correto.
 E viu sua mãe. Tinha os olhos abertos e se estava levantando da cama em que tinha estado tombada durante tantos anos. O sorriu. Queria a seu filho. Não lhe odiava pelo que era agora. Passado os braços ao redor de seu pequeno e lhe atirou da camiseta.
 Não. Era Albert, lhe arrastando para que entrasse para a parte frontal do santuário ruído. Para a mulher pálida e magra que cantava, por volta daquela canção que Roger tinha querido ouvir durante todas as noites de sua no-vista. deixou-se levar.
 Havia alguns mortais pressente (negros, brancos, coreanos, jovens, velhos, homens, mulheres), aos que se uniu enquanto Albert ajoelhava-se. Tinha sentida fome durante toda a noite, mas em aquele momento os pensamentos sobre o sangue mortal estavam tão longe de sua mente que fechou os olhos e deixou que a canção o transportasse a outro lugar.
 Sua mãe sorriu...
 Owain evitou facilmente à polícia. Não havia humano que pudesse lhe ver se ele não o desejava. Um carro patrulha atrás de outro chegava a toda velocidade à a Cyclorama para pentear a zona, mas ele se havia escapulido para as casas que rodeavam o parque Grant. Para seus sentidos agudizados, alguns dos edifícios ainda cheiravam a pintura fresca, os frutos do aburguesamiento. Muitos dos outros haviam visto tempos melhores. As sombras surgiam de todos lados para lhe rodear, lhe ocultando de olhos indeseados enquanto seguia a música que tinha captado seu interesse de forma tão repentina como intensa.
 No fundo de sua mente ainda se sentia preocupado pelos corpos que tinham ficado atrás. Não havia dúvida de que alguns se converteriam em pó antes de que a polícia soubesse o que estava ocorrendo. Entretanto, os vampiros do Sabbat, devido a seu incrível taxa de baixas, estavam acostumados a ser relativamente jovens, de modo que muitos dos cadáveres decapitados ficariam intactos. Bom, pensou. Já não posso fazer nada a respeito. O príncipe teria que encarregar-se daquela pequena dificuldade. Sabia de que fios havia que atirar.
 Aqueles pensamentos desapareceram instantaneamente quando Owain foi cativado de novo pela melodia, que lhe chamava através da noite. Não se tratava mais que de umas notas isoladas, mas seu simplicidade e sua elegância lhe recordavam... Mas então a música voltava a trocar, turvando a associação e afastando a de seu alcance. A canção era ao mesmo tempo enloquecedoramente familiar e engañosamente vaga. O poderoso amor que induzia superava qualquer outra preocupação: seu ombro dolorido, os corpos, a saúde do príncipe...
 perguntava-se de onde provinha. Seguindo ele som viajou para o norte, cruzando a conexão interestadual do centro. As grandes casas da zona do parque Grant deram passo a edifícios menores, necessitados de uma reparação urgente. Árvores fracas talheres de kudzu compartilhavam os pátios com arbustos, moitas e carros desmantelados. As casas de tijolo eram escuras, e as portas e janelas estavam asseguradas contra a noite.
  Meros mortais vagavam aqui e lá vendendo todo tipo de artigos, desde drogas até seus próprios corpos. Não o ouvem, compreendeu. Em caso contrário, todos estariam indo em seu mesma direção. Há magia nessa canção. Em todos seus dias e noites Owain tinha experiente coisas das que os homens modernos riram-se antes que acreditar em sua existência. Inclusive alguns Cainitas, apesar da evidência de sua própria no-vista, negavam-se a acreditar em outros poderes sobrenaturais. Owain não era tão ingênuo.
  Enquanto seguia avançando não revelou sua presença a nenhum de aqueles mortais ignorantes; ignorantes da magia que se produzia entre eles, do depredador que caminhava a seu lado e que não tinha mais que desejá-lo para que suas vidas se apagassem como uma vela em uma tormenta.
  Vermeil tampouco o ouviu, recordou. Eram os ghouls incapazes de perceber a canção, como pareciam sê-lo também os mortais? Não há modo se soubesse. E o que tinha que outros vampiros? Ia a encontrar-se a tudas as Vergônteas de Atlanta convergindo na fonte daquela música misteriosa?
  A canção seguia lhe atraindo. Já tinha caminhado vários quilômetros, saltando cercas com facilidade, passando junto a cães encadeados antes sequer de que notassem seu aroma e avançando rápida e silenciosamente na noite. Apesar de tudo, a música não parecia aumentar seu volume. A melodia e o tom trocavam constantemente, frustrando seus esforços por localizar o que acreditava reconhecer, mas mantendo-se sempre a um volume constante. Não podia dizer se se estava aproximando, ou se possivelmente se afastou inadvertidamente e se dirigia na direção equivocada. As notas mantinham sua delicadeza, como se se tratassem de um tenro sussurro cantado sozinho para ele, justo a seu lado.
  Entretanto, enquanto aquele pensamento cruzava por sua mente, dobrou uma esquina e soube que tinha chegado.
  deteve-se. O lixo rodava pela rua enquanto o vento se convertia em uma forte rajada. Grandes gotas de chuva começavam a cair pesadas contra o chão, enchendo a calçada esquartejada de pontos escuros. Apesar de todo a música seguia lhe chamando, lhe convidando a entrar na velha igreja que tinha frente a ele, castigada pelo açoite do tempo e os elementos contra sua fachada deteriorada e sua coberta parcialmente ruída. Não estava seguro de como sabia que o som procedia do interior, mas não tinha a menor duvida a respeito.
  Lenta, deliberadamente, seus passos medidos lhe levaram até o centro da rua, e daí ao objetivo de sua busca. Os moradores mortais da noite tinham deslocado para ocultar-se da tormenta, mas Owain não era consciente da forte chuva e do vento frio que açoitavam seu cabelo e seu casaco.
  A igreja parecia claramente abandonada, ao menos pelos fiéis mortais do Deus que se esteve burlando com crueldade dele a o comprido dos séculos. Por muito que o tivesse tentado em várias ocasiões, nunca tinha sido capaz de alcançar o reconfortante desapego do ateísmo. Não podia aceitar que uma força impessoal ou o puro azar fossem os que tinham descarregado sobre ele tantas injustiças, desde ver seu insensato irmão subir ao trono de seu amado Rhufoniog fazia quase mil anos, até o mais recente e inexplicável colapso de sua estratégia sobre o tabuleiro de xadrez. Owain era perfeitamente consciente da existência de Deus e de seus brincadeiras e insultos.
  Por esse motivo se aproximou com sentimentos encontrados para a igreja. Foi aquele cinismo nascido dos séculos de experiência o que o permitiu ouvir a canção mais claramente. Ainda lhe chamava, mas já não se sentia apanhado por sua fascinação. Sua beleza não deixava de lhe atrair, mas agora o fazia com suavidade; era dono de sua vontade.
  A fúria despertou em seu interior ante a idéia de ter sido enfeitiçado, de ter percorrido meia cidade como um mortal em zelo babando detrás de um decote. Era fúria, embora não isenta de curiosidade. Desde seus dias entre os desventurados Templarios em França não havia sentido tão claramente um poder sobrenatural. Possivelmente houvesse em Atlanta maravilha ocultas capazes de rivalizar com as práticas místicas esquecidas dos Cavalheiros da Têmpera.
  Quebrado o feitiço da música por seu terrestre cinismo, Owain se encontrou de pé em meio da rua, com o rosto empapado e o cabelo esmagado contra o pescoço e os ombros por uma chuva que se tinha convertido rapidamente em todo um aguaceiro torrencial. A sangue que ainda surgia de suas feridas se mesclava com a água. Se aproximou da calçada e entrou nas sombras da vegetação alta que cobria o pátio.
  Fazia anos que ninguém reparava o edifício, e suspeitava que tanto as Vergônteas como o gado passariam junto a ele sem lhe emprestar maior atenção. Não acreditava ter estado nunca antes nessa rua, mas de não ser pela música era consciente de que não tivesse reparado duas vezes no edifício. Entretanto, aquela noite ele não era o único consciente da igreja. Pôde ouvir pulsados no interior; sete, pode que oito mortais. Isso significava que não faziam falta os sentidos especiais dos vampiros para ouvir a canção, mas então, por que não havia muitos mais aproximando-se do lugar? Também se perguntava por que não tinha ouvido nunca antes a música. Era aquela a primeira vez que se cantava? Tinha muitas perguntas e ainda podia ouvir a doce melodia, embora agora o fazia de forma mais objetiva, não como uma vítima enfeitiçada por sua beleza. Havia muito que descobrir, e se sentia extrañamente intrigado.
  Avançou pelos matagais enquanto convertia seus dedos em garras. Lutando contra a crescente rigidez de seu ombro, começou a escalar pela fachada do edifício. aproximou-se em silencio para o campanário parcialmente derrubado, procurando cabo com cada garra para que nenhum dos madeiros podres cedesse. A queda não feriria mais que seu orgulho, mas até conseguir algumas respostas não queria que ninguém descobrisse sua presença.
  O piso era muito mais traiçoeiro na cumbrera, mas encontrou uma abertura pela que se deslizou facilmente sem mover nenhum dos precários tablones. Não sabia como tinha sido o campanário em seus tempos de esplendor, mas agora o sino ou sinos haviam desaparecido. Frente a ele o teto se derrubou, e o pouco que ficava tinha um aspecto perigoso. Tinha tido que retorcer-se na pequena câmara sob a coberta para chegar a trampilla do chão. Com a paciência de um ourives, atirou da argola.
  A suave voz, que tinha mantido o mesmo volume desde que iniciasse a marcha no parque Grant, derramou-se a seu redor. Não era tanto que tivesse aumentado o volume, como que esse mesmo som (agora era consciente de que se tratava da voz de uma mulher) parecia adotar uma substância quase tangível. A música o envolveu, lhe acariciando e lhe chamando amavelmente para que se aproximasse. Começou a descender pela trampilla, mas recupero o controle e se deteve. Lutou contra o impulso de baixar à câmara inferior e seguir até a nave com outros, algo que parecia tão natural como razoável.
  Depois de um instante recuperando-se, Owain voltou a controlar-se. Aquele conflito momentâneo, uma luta de vontades, era algo que não experimentava desde fazia décadas. Defender sua mente dos Vergônteas de Atlanta logo que era um problema, mas quem quer que estivesse cantando aí abaixo... era algo totalmente diferente. Seus feridas faziam a luta ainda mais difícil. Não só a dor distraía seu concentração, mas sim na última hora grande parte de sua energia estava depositada no processo curativo de seu vitae vampírica.
  A sala que estava olhando era pouco mais que um armário com uma porta negra bloqueada pelos escombros, restos da escada que no passado conduzia até o campanário. Perto dele parte do estou acostumado a tinha desaparecido, o que lhe permitia ver uma esquina do santuário e uma luz trêmula procedente de uma chama que não alcançava a distinguir. O delicado vibrato da canção penetrava por aquele orifício e chegava até ele, mas não conseguiu nenhum ângulo do que poder observar aos reunidos.
  Com elegante facilidade, desprendeu-se da trampilla até a hall do campanário. Não tinha modo algum de saber se o chão lhe suportaria. ficou no bordo do buraco, acuclillado e tratando de estender seu peso o máximo possível, movendo-se para conseguir um lugar adequado. Esperava que a chuva e o vento mascarassem o ligeiros ruídos dos tablones.
  Os mortais estavam ajoelhados em um pequeno grupo perto de a parte frontal, com a cabeça inclinada como se estivessem rezando. Depois deles podia ver bancos quebrados empurrados sem ordem contra as paredes. Estirou o pescoço quanto pôde para ver um pouco mais e ficou surpreso. Ajoelhadas muito perto dos mortais havia duas figuras às que reconheceu imediatamente: Albert e Roger, o menino do príncipe. Roger encaixava bem com outros; além de duas mulheres, uma coreana e outra caucasiana, os outros cinco mortais eram afroamericanos. Albert, como sempre, destacava lá onde estivesse. Sua figura magra e sua imensa barba, até ajoelhado como estava, pareciam lhe separar de qualquer multidão em que se encontrasse.
  Assim não sou a única Vergôntea em ouvir a canção, pensou. Mas, por que esses dois e nenhum mais? Vêm outros em caminho? Supunha que estava bem escondido em caso de que chegasse alguém mais. Preferia ficar afastado e aprender mais sobre o que estava acontecendo a que soubessem que se encontrava ali.
  Desde que tinha aberto a trampilla e se havia sentido momentaneamente superado tinha estado bloqueando a música, negando-se a lhe dar cabo algum com o que lhe controlar. quanto mais mantinha-a afastada menos concentração necessitava para consegui-lo. Suspeitava que Albert era capaz de exercer o mesmo governo, mas Roger, um vampiro muito mais jovem (pode que levasse uns cinqüenta anos morto), parecia tão enfeitiçado como os mortais. Não sabia de que magia se tratava, mas era o bastante poderosa para apanhar a uma Vergôntea despreparada, por muito velho que fora. Owain não esquecia a sensação que lhe tinha levado até ali antes de recuperar a vontade.
  Ainda ficava a pergunta mais importante: quem estava cantando? Desde sua posição não podia ver a parte frontal do santuário, a direção para a que os mortais e os vampiros olhavam e pareciam mostrar reverência. Cuidadosamente, com o máximo silêncio, começou a rodear a brecha para conseguir um melhor ângulo. No exterior a tormenta aumentava sua intensidade, açoitando o velho templo com a chuva e o vento. Tratando de ver toda a nave sem cair pelo chão podre, Owain estava estirado sobre o estômago, tudo o estendido que lhe permitia o pouco espaço mas sem aproximar-se tanto que pudessem lhe ver.
  Pode que não fora mais que sua imaginação, ou possivelmente se tratasse de um truque acústico, mas à medida que se aproximava do lugar onde podia ver a figura frente ao pulpito, a canção, que já era de uma beleza incrível, fez-se ainda mais fresca, a voz mais clara e definida.
  Um calafrio lhe percorreu a coluna e lhe obrigou a cravá-las garras nas Palmas para não render-se à magia do som, para não deixar-se levar pela melodia apaziguadora que lhe chamava. Por fortuna, nem na vida nem na morte Owain se permitiu o luxo do consolo, já fora de fontes humanas ou divinas, e aquele caso não era uma exceção.
  Manteve a firmeza de sua vontade enquanto observava a figura de pálida beleza em pé frente à congregação. O rosto magro estava inclinado para cima com os olhos fechados, e os lábios apenas separados se moviam com uma elegância e uma facilidade que não pareciam corresponder-se com as conseqüências demolidoras da canção. Escutou mais atentamente para tratar de determinar onde encontrava-se o poder da música, de modo que pudesse defender-se contra ela. Compreendeu que, embora o canto não estava composto por palavras, evocava determinadas imagens. A melodia era algo vivo em si mesmo, algo que crescia e que respirava para afastar-se docemente, deixando sozinho serenidade e paz. Owain observou como o traje branco da mulher se balançava ao tocar o chão, lhe recordando a espuma salgada do frio Mar da Irlanda. Pôde ouvir as ondas contra a costa rochosa, varridas pelos ventos. Rodeado por aquele frio, o calor melodioso e confortável lhe envolvia com amor. O frio era rechaçado e o trovão se ouvia na distância. Havia navios no mar que se destroçariam contra as rochas na iminente tormenta, marinheiros que seriam arrastados ao fundo como tantos outros, mas Owain estaria a salvo e quente na costa. O fogo trêmulo lhe chamava...
  Sacudiu a cabeça, retornando à igreja. Os trovões rugiam em a distância, mas o vento soprava através dos buracos do campanário, não desde mar, e o fogo que lhe chamava não procedia das choças dos pescadores, mas sim das velas do santuário. O poder da canção era mais capitalista do que tinha suspeitado. Possivelmente fora melhor, ao menos de momento, não concentrar-se muito na própria música.
  Justo ao tempo que pensava aquilo, o tempo da canção variou sutilmente. A bela e pálida sereia ainda era uma imagem da quietude, mas sua canção cobrava intensidade pouco a pouco. Nos limites de seu conscientiza Owain pôde sentir a força que tratava de bloquear, o desejo de unir-se a outros, de fazer-se um com o grupo. Enquanto a canção se desenvolvia, uma urgência se acrescentou a aquele desejo. O Ventrue ouviu como essa urgência jogava raízes e seguia aumentando, enroscando-se ao redor de cada fio de música.
  Ele mantinha o controle, mas ao observar aos mortais, inclusive a Albert e ao Roger, viu que suas expressões tinham trocado de felicidade a desejo. Provavelmente, imaginou, a música não evocasse para eles imagens da costa galesa e do Mar da Irlanda. Em qualquer caso, o que fora que experimentassem já não lhes bastava, pois a canção se aferrava a suas necessidades e as convertia em algo mais importante que qualquer outra coisa. Igual a anos antes Owain havia visto a segurança que outros encontravam em Deus ou na família, e que a ele lhe negava, agora via onde levava a música a aquelas pessoas enquanto ele resistia a lhes acompanhar.
  Seus pensamentos começavam a divagar, mas um movimento atraiu sua atenção. A sereia e sua congregação ainda estavam em seu sítio, mas tinham chegado novos jogadores. Primeiro uma mulher, depois outra e mais tarde uma terceira entraram no lugar desde algum ponto que era incapaz de ver desde sua posição. Pareciam flutuar virtualmente sobre as notas da canção, já que seus pés apenas tocavam o tapete puído. Duas delas eram pálidas como a sereia, enquanto a terceira era de uma rica cor marrom. Todas eram belas e jovens, pois não teriam mais que uns dezessete anos. Owain não tinha reparado até agora na juventude da cantor, apanhado como tinha estado pela textura da música.
  Ao contrário que a sereia, que tinha o cabelo curto e liso, as recentemente chegadas mostravam jubas selvagens com ramitas de hera e madressilva. Dançavam ao som da música, e em seus movimentos se apreciava uma ferocidade logo que contida. Ao Owain recordaram a as ménades selvagens da mitologia grega. Enquanto a sereia cantava com uma voz que parecia surta de um poço de dor, perda e necessidade, as recém chegadas rodeavam à tremente congregação. À medida que aumentava a intensidade da música, o fazia a da dança, que cada vez expor mais claramente o desejo primitivo.
 Owain apertou os punhos para defender-se daquela magia; o poder de seu sangue, a força de sua maldição, permitiu-lhe manter o controle, observar e escutar sem ver-se apanhado como os outros.
 Lentamente, a sereia elevou as mãos por cima de sua cabeça e a música cobrou novos brios. As ménades giravam e saltavam, açuladas até o frenesi pela energia de seu desejo. Umas agitavam a cabeça de um lado a outro com os olhos fechados, apanhadas pela necessidade e o êxtase. Roger gemeu enquanto lágrimas de sangue caíam por suas bochechas. De todos os congregados, solo Albert seguia ajoelhado e escutava plácidamente.
 A dança das mulheres se fez cada vez mais furiosa e violenta. Seus vestidos brancos flutuavam ou se pegavam a seus corpos esbeltos enquanto giravam enlouquecidas. Durante um breve instante, a malha se apartou para revelar a curva do quadril, a coxa, o peito. Uma detrás de outra jogaram atrás a cabeça, açoitando com seu cabelo aos pressente como cruéis látegos. As presas brilharam à luz das velas.
 A chamada da fome era insuportável. Até o Owain podia senti-la.
 As vampiras rasgaram seus vestidos, abrindo feridas sangrantes em seus peitos firmes. Todas ao tempo uivaram selvagens para o céu enquanto caíam sobre os mortais.
 O corpo da mulher coreana tremeu ante o golpe de uma das ménades, que a mordeu como se se tratasse de uma cobra atacando a sua vítima. Alguns eram derrubados enquanto as celebrantes saltavam e bebiam breve mas profundamente. Inclusive Albert e Roger foram assaltados, embora nenhum deles despertou de seu transe. Cada ataque parecia a culminação da visão enlevada da vítima. O dor e a paixão culminada se misturavam como um sozinho.
 Owain podia sentir o poder da canção, mas não tinha modo de saber o que cada um experimentava; estava muito ocupado mantendo o controle. Em caso contrario tivesse saltado para alimentar-se.
  O climax da canção e do sangue durou menos de um minuto. Com uma abrupta mudança de cadência, a música adotou um nível mais acalmado. O esforço do desejo e a urgência que um momento antes tinha parecido toda sua existência começou a desvanecer-se. Os tons tranqüilizadores se reafirmavam.
  As mulheres reagiram como se tivessem sido golpeadas por um punho. retiraram-se a contra gosto de suas últimas vítimas, desejosas de poder seguir bebendo. Entretanto, obedeceram à canção. Seus corpos tremeram por uns instantes enquanto o frenesi se rendia a a nova música.
  Pela primeira vez a sereia falou, tecendo uma palavra na canção moribunda: "Adref".
  A boca do Owain se abriu involuntariamente, e seu coração esteve a ponto de partir-se ante aquele som.
  As ménades também responderam. retiraram-se lentamente de os corpos ajoelhados e tombados e desapareceram do campo de visão do Ventrue.
  Enquanto isso, a sereia, de beleza régia, avançava lentamente. Sua canção morria como um débil sussurro que chegava claramente a todos os rincões da igreja. aproximou-se de um jovem inconsciente, se inclinou ante ele e lambeu as feridas que lhe tinham infligido. Nem sequer com sua língua sobre o pescoço cessou a música, que parecia ter vida própria.
  Um detrás de outro, lambeu as feridas da congregação, sanando a carne e provocando sorrisos sonolentos.
  Owain se retirou do buraco e se recostou contra o muro, dominado por um profundo cansaço. A melodia mortiça ainda chegava até ele, mas era a palavra que a sereia tinha pronunciado, que ressonava em seus ouvidos.
  Adref.
  Uma palavra no galés nativo que fazia tanto que não escutava.
  Adref. Retorno a casa.
  Durante um instante acreditou poder cheirar de novo o ar do mar, e aquilo foi mais do que pôde suportar. Lutando contra a rigidez de suas feridas esquecidas, saiu pela trampilla e se dirigiu para a fachada da igreja.
  Adref. Retorno a casa.
  Abandonou o lugar, correndo na noite silencioso como uma sombra. Muito mais que o tempo e a distância lhe separava de seu verdadeiro lar, e como não havia modo de retornar a ele se escabulló para a escuridão noturna, que o aceitou em seu abraço.
 Não era freqüente que o Príncipe Benison visitasse a Hannah em seu capela. Felizmente, seus recém-nascidos sempre mantinham as instalações adequadamente, de modo que não necessitou preparativos especiais antes de lhe receber. Embora agora solo tinha dois aprendizes em vez de quatro, exigiu-lhes que se esforçassem ao máximo para que cumprissem com todas as obrigações. Ninguém havia dito que as noites de um aprendiz Tremere tivessem que ser agradáveis.
 Esperou pessoalmente ao príncipe na porta da grande mansão, em sua major parte dedicada às necessidades da capela.
 --boa noite, Hannah -disse Benison com elegância, como era habitual se não estava especialmente zangado. Parecia haver-se recuperado totalmente das feridas sofridas fazia duas noites-. Que notícias tem?
 Hannah franziu o cenho. Tinha menos que informar do que o tivesse gostado, e embora o príncipe se encontrava fisicamente bem, a tensão percorria todo seu corpo e era evidente em seu olhar. Não tinha tido tempo, apesar de ter detido seus estudos habituais... mas ao príncipe não lhe importavam as desculpas.
 --O prisioneiro que trouxeram Eleanor e Vermeil...
 --Sim? -Benison estava ansioso por receber qualquer informação.
 --Não há dúvida de que pertence ao Sabbat. Ou ao menos pertencia.
 Benison golpeou a palma com o punho.
 --Justo o que suspeitava. Y...?
 Hannah voltou a franzir o cenho. agitou-se um pouco, compreendendo que não tinha feito entrar em príncipe e que não lhe tinha devotado um assento. Não tinha cabeça para os convencionalismos sociais, e o Malkavian parecia estar preocupado por coisas mais urgentes. Aí estava o problema.
 --O acondicionamento do Sabbat é tão completo, e a natureza de sua mente tão bestial...
 --O que tem descoberto? -interrompeu-lhe.
 Hannah soltou a elaborada explicação que tinha estado preparando.
 --Só que sua manada tinha instruções de esperar no exterior do Cyclorama e atacar a qualquer que saísse dele. Não descobri a identidade do superior que tinha dado a ordem, se é que a conhecia. Minha impressão é que não sabiam que vós foram os brancos do ataque.
 Agora foi Benison o que torceu o gesto.
 --Sua impressão? -Não havia dúvida de que aquelas não eram as notícias que esperava-. Eleanor te confia este interrogatório em meu nome enquanto convalesço e isso é tudo o que me diz? -O tom severo traía a pressão a que estava submetido-. Espero poder fazê-lo melhor. traga-me isso      --Me da igual -insistió Benison-. Ya veremos si... -En aquel
 --Foi interrogado... a fundo, asseguro-lhe isso.
 --Dá-me igual -insistiu Benison-. Já veremos se... -Naquele momento compreendeu-. Interrogado "a fundo", diz? Não há sobrevivido?
 --As magias necessárias para superar o acondicionamento do Sabbat não são agradáveis -assinalou Hannah.
 Durante um instante o príncipe apertou os dentes e esticou todos os músculos de seu corpo. Depois, surpreendentemente, obteve acalmar-se, fechou os olhos e inspirou com calma.
 --Já vejo.
 ficaram um momento em pé, mas a Tremere não podia suportar o deprecio que emanava do Benison. Começou a falar de forma torpe.
 --Q-quer passar... passar e te sentar... O...?
 --Não tenho tempo para conversar -respondeu. Hannah pensou que possivelmente tinha querido assinalar que podia ter empregado o tempo de forma mais eficiente-. O que pode me dizer de... desta aflição que está destruindo minha cidade? -cuspiu tratando de medir as palavras. Sua amargura e sua frustração eram claramente evidentes.
 --Virtualmente não houve tempo, Príncipe Benison. -Podia lhe ver a ponto de estalar, assim que se apressou a seguir-. Estou realizando experimentos. determinei que está operando algum tipo de magia, embora de um tipo com o que não estou familiarizada. Hei começado a consultar com meus superiores, tanto no país como em Viena. Como sabe, esta "aflição" não é um assunto localizado. -Embora deixou fora alguns detalhes técnicos, não ocultou nada ao príncipe. Sabia que não aceitaria a menor duplicidade naquele assunto, e não estava disposta a ser branco de sua ira.
 »A aflição -explicou algo mais cômoda ao adotar um discurso profissional-, parece estar relacionada com o sangue. A magia está disparando uma transformação de algum tipo na própria vitae, mas como hei dito não estou familiarizada com as forças particulares envoltas.
 Benison tinha escutado em silêncio, sem apartar o olhar da regente até que esta terminou.
 --Uma maldição -sussurrou quase para si mesmo-. foi invocada sobre nós e agora estamos duas vezes malditos, uma vez pelos pecados do Caín e outra pelos nossos. -O príncipe parecia haver esquecido a Hannah no momento, mas recuperou sua atenção-. Tempo é o que não temos -recordou-. Sugiro-te que consiga te familiarizar com as forças que estão operando.
 Sem mais palavras, voltou-se e abandonou a capela enquanto Hannah lhe observava. Não tinha desfrutado com a recriminação evidente e o soterrado, assim decidiu que não podia fazer outra coisa que trabalhar ainda mais... se isso era possível. Tinha que consegui-lo.
 Aquilo era tudo o que Benison podia fazer para não esmagar o punho contra a janela da limusine. Queria, precisava amassar a alguém. Enquanto Vermeil conduzia pela Avenida Ponce de Leão, afastando-se da capela Tremere, enfureceu-se ante a idéia de que não houvesse nada que pudesse fazer. Tem que haver algo! Mas... o o que? Se Hannah e seus feiticeiros não podiam atuar contra a maldição, como conseguiria salvar a cidade?
 E havia mais complicações. O ataque do Sabbat podia indicar que aqueles filhos de Satanás lhe acreditavam o suficientemente fraco como para lhe passar por cima. Teria que estar atento aos sinais de um ataque. Quase esperava a oportunidade de poder liberar sua fúria na batalha.
 Entretanto, não podia permitir-se nenhuma distração: a maldição. Esse devia ser seu principal objetivo. Se os Cainitas de seu cidade e do resto do mundo tinham feito cair sobre eles a ira divina, teria que responder de algum modo.
 Sua cidade não seria destruída. Não o permitiria.
O passeio do Mohammed foi interrompido pela chamada à porta. Não queria interrupções.
  --O que? -gritou.
  --Ey, tio -disse Marvin do outro lado-. Tranqüilo vai se aproximar de a loja. Quer algo?
  Não podia acreditar o que estava ouvindo. Abriu a porta com violência.
  --Incomoda-me para ver se quiser algo da loja? -gritou.
  Marvin deu um passo atrás, mas não disse nada.
  --O que te hei dito antes?
  Marvin seguiu calado.
  --O que te hei dito? -voltou a perguntar cheio de veneno.
  Marvin se encolheu. olhava-se os sapatos e não se atrevia a levantar a vista.
  --Que não te incomodasse salvo que fora algo importante da hóstia -murmurou.
  --Ir à loja é importante da hóstia?
  --N-não acredito -disse levantando um segundo o olhar e baixando a de novo para os sapatos-. Sinto muito, tio.
  --vais sentir o de verdade se não te tirar a cabeça do culo -disse dando uma portada. Não podia acreditar que alguma vez tivesse visto algo em aquele imbecil. O líder vampírico dos Filhos da Cripta, possivelmente a banda mais capitalista da Los Angeles, voltou a percorrer a habitação. Seguia pensando no Marvin; tinha que admitir que, embora o mortal não era muito brilhante (muito brilhante? Que coño, é totalmente gilipollas), era estupendo em uma briga, e isso era importante.
  Além disso, ao contrário que seus vampiros lugares-tenentes, estava ali.
  As duas últimas semanas tinham sido um inferno. Sempre existia uma estreita linha entre a identidade pública do Mohammed na Los Angeles, barão e anarquista, e seu papel como líder do Sabbat. Controlava a dezenas de vampiros e centenas de mortais mediante a banda, e a um grupo menor de Vergônteas que às vezes se ocultava seu mediante círculo do Sabbat. Quão último esperava ou que precisava era que seus subordinados não-mortos começassem a enlouquecer e a atacar-se sem razão aparente.
  Um ou dois casos era algo estranho, mas passível. Entretanto, todos pareciam haver-se voltado loucos. Suas principais líderes vampíricos se atacavam, mas não por ciúmes, fúria ou algo que ele houvesse podido resolver. Parecia mais um problema de fome. Os tipos se voltavam tarados. Se se tivesse tratado de mortais o teria atribuído ao crack.
  Se por acaso todo isso não bastasse, depois de enlouquecer os vampiros derrubavam-se. Primeiro se voltam tarados e se dedicam a beber como loucos e depois se desabam mortos, sangrando por todas partes como se não pudessem conter seu próprio sangue.
  Apesar de todos seus esforços, a violência e o caos se haviam estendido por ambas as organizações. Os líderes dos Filhos da Cripta estavam fritos, mortos ou ocultos. Alguns dos peixes menores, principalmente mortais, tinham decidido que era o momento de ascender e tinham começado a resolver algumas disputa pessoais dentro da banda. Mohammed tinha posto fim rapidamente a aquilo, mas apesar de tudo seguia sem lugares-tenentes, desaparecidos ou diretamente fora de jogo. Não podia fazer muito mais por sua conta. Sem a guia apropriada, os Filhos da Cripta eram como um centenar de piranhas solitárias nadando em direções diferentes.
  Pior ainda era a situação em seu círculo do Sabbat. Dos dez membros, sem incluir-se ele, seis tinham sucumbido e tinham morrido, a um lhe tinham arrancado a cabeça e outros dois levavam várias noites sem aparecer. Isso solo deixava um.
  Ouviu gemidos procedentes da habitação contigüa. voltou-se para caminhar nessa direção e apareceu a cabeça para observar a Francesca.
  Tinha tido que utilizar cadeias e correias para atá-la. As duas vezes anteriores tinha conseguido soltar-se e tinha esvaziado a um total de três mortais da banda. Em ambas as ocasiões a tinha reduzido. Por algum motivo, apesar do desespero de seu frenesi ou a gravidade de seus delírios, não tinha sido capaz ou não tinha querido voltar toda a força de sua fúria contra seu sire. Parecia que as novas ataduras serviam para contê-la.
  A cama em que estava tombada estava empapada de vermelho, já que um suor sangrento cobria todo seu corpo. Mohammed havia retirado as roupas manchadas e lhe havia talher com um lençol, mas agora também esta estava saturada. aproximou-se e se inclinou junto a sua menina.
  --Tanta fome... tanta fome... -não deixava de murmurar quando conseguia articular palavras. Em ocasiões se lambia ao redor dos lábios para conseguir o sangue que lhe caía do nariz. Por muito que alimentasse-se nos últimos dias, não conseguia superá-lo. De fato, a dor e o delírio pareciam piorar depois de provar o sangue.
  Secou-lhe a frente com uma toalha ensangüentada que tinha sido branca. Ao contrário que com outros, ao ver assim a Francesca sentia algo mais que a tristeza do general privado dos serviços de um valioso guerreiro. Era muito mais que uma de seus melhores assassinas e uma diversão sedutora, pois de outro modo não se preocuparia tanto por ela; um assassino e um bom culo eram coisas fáceis de superar. Francesca tinha começado como bota de cano longo de guerra, arrebatado a Salvador diante de seus narizes, mas para o Mohammed tinha chegado a significar muito mais.
 Salvador.
 Era algo no que tinha que pensar.
 antes de que tudo saltasse pelos ares estava quase preparado para lançar-se contra a Irmandade. Agora os Filhos da Cripta estavam dizimados, e inclusive corriam rumores de que Salvador havia retornado da Centroamérica, da África ou de onde tivesse estado alimentando seu ego com revoluções entre os desfavorecidos. Se era certo, o ataque teria que esperar. É obvio, naquele momento o atraso era totalmente imprescindível.
 Francesca arqueou as costas, gemendo e retorcendo-se violentamente, com o rosto contraído pela agonia. Mohammed a observou impotente enquanto a vida lhe escapava por todos os poros de seu corpo.
 Tinha que haver alguém detrás de todo aquilo, alguém que ia a por ele. A loucura e a morte lenta e dolorosa eram muito sutis para Salvador, professor da propaganda e a granada de mão. Sem embargo, os antigos da Camarilha eram o bastante arteiros como para ter liberado aquilo, fora o que fosse. Não lhes importava quantos Cainitas caíssem sob sua maldição infernal, e com os Tremere a seu lado dispunham dos meios necessários. Se era assim, o Sabbat e os anarquistas podiam estar vendo seus últimos dias. Também era possível que um pouco tão drástico conseguisse atrair finalmente aos anarquistas às filas do Sabbat... Se não era assim, Mohammed demoraria anos em reconstruir sua equipe.
 Sim, os antigos da Camarilha eram assassinos desumanos aos que odiava com todo seu ser. É obvio, sabia que se haviam liberado uma maldição tão terrível sobre seus inimigos, ele podia fazer exatamente o mesmo...
 --"Quel fromage?" -Pierre não podia acreditar tanta estupidez-. Este é o único queijo que tenho, idiota.
 --Está bem -gaguejou Rene tratando de desculpar-se.
 --Se você não gostar de comerei isso eu tudo -ameaçou Pierre. Havia tido a precaução de levar queijo extra à patrulha, e não tinha por o que compartilhá-lo com aquele idiota.
 O ano era 1758. A patrulha tinha sido enviada como resposta ao avistamiento de iroqueses, aliados do cochon inglês. Uma granja tinha sido queimada e o granjeiro e sua família tinham sido mutilados. Pierre e outros estanham um tempo longe de Montreal, passando a noite sob a chuva e o frio, tombados no chão, em vez de estar com a cálida e suave Danielle. Tudo porque um granjeiro tinha sido o bastante imbecil para deixar-se matar.
 --Não, não -suplicou Rene-. Disse-te que estava bem.
 --Muito bem. -Pierre cortou uma parte de queijo e o entregou a seu companheiro, Rene o Estúpido.
 --Merci.
 Os dois mastigaram o queijo e o pão duro em silêncio. A fogueira de ramos e folhas produzia muita fumaça, mas logo que tinham nada para queimar. Tudo estava molhado: a madeira, o chão, as árvores, a roupa, as mantas, a pólvora...
 Provavelmente não possamos disparar os mosquetes, embora vejamos os iroqueses, pensou Pierre.
 --Como está o queijo? -perguntou com ironia.
 --Três bem.
 Boa resposta, pensou. Olhou ao Rene e lançou um bufido. E para isto deixei Paris.
 Caminhando sob a chuva chegou Francois, que tinha que relevar a Yves no guarda.
 --Iraqueses nos bosques -burlou-se Pierre-, n'est-c ps?
 --Je crois que non.
 O sombrio soldado seguiu seu caminho enquanto Pierre e Rene davam conta da comida. O primeiro estava pensando em tombar-se sobre sua manta para tratar de dormir um pouco. quanto antes me durma, pensou, antes terminará este patético dia. Aquilo lhe arrancou um breve sorriso. Ah, mas quanto antes termine este patético dia antes começará o seguinte, que será pior ainda. Não havia modo de vencer.
 Seus pensamentos foram interrompidos um momento depois por um disparo de mosquete ao longe, e um grito apavorado na mesma direção.
  Os dois ficaram em pé de um salto, igual a outros soldados nas diversas fogueiras.
  --Yves! -gritou Rene.
  Pierre agarrou seu mosquete e correu, mas teve que deter-se para esperar a que Arnaud conseguisse acender uma tocha.
  --Rápido, idiota! -gritou-. Cortarão-lhe a cabeleira por sua culpa!
  Correram a tropicões entre as árvores, e o céu encapotado não oferecia iluminação alguma. O bosque estava totalmente às escuras. Os homens gritavam por toda parte, chamando o Yves e a Fran9ois. Corriam entre os matagais, salpicando água e barro dos atoleiros por toda parte. Quando ao fim chegaram ao posto de vigia, Pierre desejou haver ficado atrás. À luz trêmula da tocha viu Yves tendido sobre o barro, com a garganta aberta. A seu lado estava Francois, e a um metro de distância grande parte de sua cara.
  De repente, algo grande caiu das árvores sobre o Arnaud, que lançou um grito. A tocha saiu voando pela força do impacto e se apagou com uma pequena fumaça.
  Mais gritos ressonaram pelo bosque. Pierre se viu apanhado na confusão e caiu ao chão, aterrissando sobre seu mosquete. Tratou desesperadamente de apartar-se dos cadáveres. Quem era aquele? Rene? Jean-Paul? Todos tinham ido para o lugar detrás ouvir os gritos.
  Ao fim conseguiu liberar-se. Rodou sobre o barro, afastando-se da luta. Não podia estar seguro na escuridão, mas correu na direção em que acreditava que estava o acampamento. reagrupariam-se ali, pois não podiam combater aos iroqueses no bosque na completa escuridão... se é que eram iroqueses.
  O barro, as trevas e o terror fizeram a marcha penosa. Tinha a terrível sensação de que o que tinha atacado ao Yves e ao Francois não era um grupo de guerra dos nativos. Ao fim chegou ao acampamento e tratou de acalmá-lo suficiente para carregar o mosquete.
  O resto voltarão em um momento e nos prepararemos para o ataque.
  Entretanto, quando terminou de carregar e esmagar a bala, notou que nenhum dos seus tinha retornado. Dos doze, ele era o único que ficava na posição. Também se precaveu de que não chegavam mais sons de luta do bosque: nem gritos, nem disparos, nem a carreira dos homens em retirada entre os matagais.
 Só silêncio.
 E então um grunhido. O... era uma risada?
 Das sombras mais profundas surgiu uma forma dourada com aspecto lupino e dentes nus. Caminhava erguida como um homem... como um homem enorme.
 Sem hesitações, Pierre levantou seu mosquete. Jogou atrás o martelo, apontou rapidamente e apertou o gatilho. O martelo descendeu... e nada. A pólvora não se acendeu. A arma não rugiu desafiante para enviar a aquela criatura de volta ao inferno.
 A besta estava sobre ele, cravando-o contra o chão. As garras destroçavam-lhe a cara enquanto as presas se aproximam cada vez mais...
  Nicholas despertou de um salto. levou-se a mão à garganta, mas nada lhe atacava. A escuridão a seu redor abria o passo às luzes que passavam ao longe. antes de que conseguisse situar os paisagens e aromas estranhos que lhe rodeavam, outro ataque de desorientação se apoderou dele. apóio-se contra a parede de metal e tentou resistir a repentina nauseia.
  Felizmente, a sensação passou. obrigou-se a tragar o sangue que lhe tinha subido pela garganta e recordou imediatamente o fome que lhe consumia, a ardente vacuidade que tinha ido crescendo desde... Quanto tempo tinha passado? Mais semanas das que podia recordar. Duas luas enche tinham chegado e desaparecido desde que tinha entrado naquela cidade maldita.
  tombou-se, rendendo-se à debilidade que lhe afetava depois de os ataques, e tratou de superar a desorientação das visões. Estava convexo nos restos de um carro queimado, debaixo de um ponte. As planícies canadenses, os disparos, os gritos... não eram reais, ao menos não naquela época e naquele lugar. Entretanto, a visão não tinha nada de casual.
  Nicholas conhecia bem a história, o modo em que Pierre Beauvais e sua unidade haviam partido de patrulha a procurar índios perto de Montreal, para ser exterminados por um só homem. Ao menos isso era o que os canadenses franceses tinham pensado, já que o corpo do Pierre nunca foi achado. Os soldados não se haviam encontrado com os iroqueses aquela noite, mas sim tinham sido assassinados por um antigo Gangrel, o Dourado. Pierre não se havia unido a seus camaradas na morte definitiva. Aquela noite, entre o barro frio e fedido, tinha sido Abraçado como Vergôntea. Cinqüenta anos mais tarde tinha sido ele o que tinha Abraçado a outro, Jebediah Romey, sire do Nicholas.
 Aquelas eram as histórias que se passavam os Gangrel de geração em geração, de camarada de clã a camarada, enquanto percorriam as planícies do mundo e se encontravam os uns aos outros. Só que agora Nicholas estava vivendo aquelas lendas através dos olhos de seus ancestros, como se estivesse ali, como se a dor e o terror fossem totalmente novos. Às vezes, quando chegavam os ataques, Nicholas se perdia nas lembranças sangrentas. Primeiro Jebediah, agora Pierre. Quando terminaria? Quando o abandonariam a fome e as visões?
 Toda a cidade parecia presa daquela loucura. Durante semanas tinha piorado, noite detrás noite: os anarquistas enlouqueciam em as ruas atacando a grupos de mortais ou a seus próprios cantaradas, Vergônteas da Camarilha aparentemente respeitáveis saltavam sobre seus sires para lhes roubar o resto da vitae que lhes tinha dado a vida... Tinha-o visto tudo de longe, já que não queria envolver-se nos estranhos assuntos da cidade. Não compreendeu até mais tarde que tudo era parte da enfermidade mortal do corpo e a alma, da maldição que tinha cansado sobre todos eles.
 O mortais também se sentiam confundidos pela repentina aparição da violência e o caos, mas eram muito míopes. Nunca viam os monstros que espreitavam nas sombras.
 Agora a cidade tinha cansado em uma quietude mortal. As Vergônteas ainda intactos se ocultavam como cachorrinhos em suas tocas. Sozinho os mais valentes ou insensatos percorriam as ruas. Tinha tentado várias vezes abandonar a cidade, escapar daquele ar poluído e do fedor crescente do gado, mas sempre ficava incapacitado pela maldição e recuperava o sentido tempo depois, sem saber o que tinha feito e onde tinha ido. Não havia dúvida de que havia violado territórios de caça, já que a fome que se apropriava dele em aquelas ocasiões era insuportável. Entretanto, ninguém lhe havia desafiado. As Vergônteas da cidade estavam mortos ou ocultos.
 Como tinha começado tudo? agarrou-se a cabeça, estendeu as garras e as cravou sob a pele. Tratou de controlar a fome que rugia em suas vísceras, o martilleo que lhe esmagava o crânio. Aquela primeira noite, pensou. A primeira noite na cidade. A fome tinha começado então. A dor. As visões. O que tinha feito aquela noite? Resultava-lhe difícil pensar por culpa da desorientação, e a nauseia piorava quando comia. Evans. A casa do Evans. O pacote. Tinha algo que ver com tudo aquilo o pacote que tinha levado da Alemanha? Era Owain Evans um feiticeiro escuro que tinha amaldiçoado a todos os que lhe rodeavam para deixar a cidade em ruínas?
arrastou-se para o carro enegrecido. Descobriria-o e terminaria com aquela terrível anseia.
 --Sai outra vez, senhor? Tão logo? Em Véspera de natal?
 Owain se deteve na porta. ficou metodicamente o casaco, ajustou o cachecol e inclusive introduziu seus novos óculos de sol no bolso do peito. Solo então se girou para responder ao comentário do Randal. Deu uns tapinhas ao ghoul na bochecha.
 --Randal, sabe por que o senhor e a senhora Rodríguez levam tanto tempo comigo?
 --por que, senhor? -O criado parecia confuso ante a pergunta.
 --Porque se metem em seus assuntos.
 Randal detectou o tom detestável na voz do Owain e, sabiamente, decidiu não responder. O vampiro fechou a porta atrás dele e entrou no Rolls que lhe esperava.
 --Cemitério do Oakland, senhorita Jackson.
 --Sim, senhor.
 Kendall Jackson tinha o comportamento ideal para um servidor ghoul: escutava com atenção, solo fazia as perguntas necessárias e cumpria as ordens de forma impecável. Freqüentemente recordava a Gwilym. Quantos anos tinham passado desde... do desafortunado assunto que lhe tinha privado dos serviços de Gwilym? Quinhentos? Seiscentos? Também tinha sido perto da Natal. Após tinha tido tantos ghouls como pares de sapatos. Alguns tinham parecido prometedores, mas nenhum havia reunido a estranha mescla de conhecimento, prudência e competência que tinha feito daquele um pouco tão valioso.
 Nenhum, exceto possivelmente a senhorita Jackson. Pensou que era possível que fora muito duro com seus serventes. O fato de que Gwilym tivesse sido seu primeiro ghoul e que lhe tivesse servido mais tempo que nenhum outro podia ter afetado a sua objetividade. Jackson era melhor condutora que Gwilym cavaleiro, e embora o pequeno galés era bom em uma briga, aquela garota era absolutamente letal, como havia tornado a demonstrar ao ajudar a salvar ao príncipe no Cyclorama fazia várias semanas.
  Aquela briga tinha sido um engano de cálculo por sua parte, e tanto ele como o príncipe tinham sorte de ter saído com vida. A senhorita Jackson tinha aparecido e se comportou de forma admirável, e com um pouco de sangue adicional sua perna ferida se recuperou de forma satisfatória. O tempo e o sangue também lhe tinham servido a ele para estancar suas feridas.
  Seus pensamentos passaram de um ghoul a outro. Randal era bastante competente com diversos trabalhos administrativos, mas conservava uma certa suficiência que, nos primeiros séculos, houvesse esmagado sem duvidá-lo um instante. Entretanto, nas últimas décadas não tinha tido nem a energia nem o interesse para fazê-lo. Possivelmente tinha chegado o momento de trocar ao pessoal se algum substituição adequada lhe chamava a atenção.
  O tempo do Owain tinha estado ocupado ultimamente com algo distinto do xadrez, embora sua nova diversão era em certo modo tão enloquecedora como a anterior. Com o xadrez podia passar-se horas olhando o tabuleiro, noite detrás noite, torturando-se para descobrir como podia ter atuado, o que podia fazer ainda para salvar uma situação claramente sem esperanças.
  Sua nova paixão era a sereia. Agora que tinha ouvido a canção compreendia que sempre a escutaria, embora se encontrasse em qualquer parte da cidade. Sua mansão estava a quase meia hora de a igreja abandonada, mas a brisa noturna não deixava de levar as doces nota até seu ouvido. Parecia acontecer cada semana ou dois, embora ainda não tinha conseguido discernir um patrão evidente. Começavam os ritos quando a sereia e as ménades tinham fome, talvez?
  Tinha estado revisando sua biblioteca em busca de referências que recordassem vagamente a vampiros estranhos com vozes capazes de voltar loucos a Vergônteas e mortais. Filhas da Cacofonia, eles chamavam alguns, embora aquela canção deliciosa era o mais afastado à cacofonia que Owain tinha ouvido jamais.
  Duas vezes mais no mês que seguiu à primeira visita se havia oculto no diminuto quarto sob o campanário para observar a cerimônia, que sempre seguia o mesmo patrão. A congregação se reunia enquanto a sereia permanecia sozinha à cabeça do santuário. Alguns dos mortais pareciam acudir sempre, enquanto que outros perdiam-se algumas reuniões. Roger sempre acudia, enquanto que Albert não tinha aparecido desde a primeira noite.
  Owain não sabia como podia o Malkavian manter-se afastado se era capaz de ouvir a música. E o que ocorria com o resto dos vampiros da cidade? Elegia de algum modo a sereia a aqueles que ouviriam sua canção? Não parecia saber que Owain a espiava durante as cerimônias.
  Por cada pergunta que o Ventrue acreditava responder surgiam cinco novas. recordava-se que esse era o motivo pelo que atravessava a cidade cada vez que a canção lhe chamava na noite. Não se tratava de uma compulsão; não ia porque, apesar de conseguir apartar-se de a experiência dos congregados, obtivesse visões de seu longínquo lar na música; não ia porque cada vez que a sereia pronunciava aquela palavra, adref, fizesse-o exclusivamente para ele.
  Nada disso.
  --Cemitério do Oakland, senhor.
  Owain olhou pela janela e comprovou que tinham chegado a seu destino. O velho cemitério, cheio de cruzes e mausoléus de pedra, estendia-se ao outro lado do muro. Fazia vários anos o Príncipe Benison tinha proclamado um decreto que proibia às Vergônteas, baixo pena de morte, entrar naquele lugar. Não ofereceu explicação alguma, e os poucos grosseiros que se atreveram a pedi-la foram severamente castigados como prova da importância daquele assunto. Owain sempre tinha assumido engraçado que o decreto o tinham ordenado as pequenas vozes com as que Benison tinha o costume de falar. Ao contrário que alguns vampiros, ele não sentia um interesse macabro nos assuntos dos mortos. Não tinha problema algum para evitar o cemitério.
  Ao outro lado da rua estava a escura Fábrica de Bolsas Fulton, o casca de ovo de tijolos de uma nave abandonada que supostamente ia ser reconvertido em luxuosos apartamentos. Owain duvidava de que o projeto chegasse nunca a completar-se. O edifício estava muito perto do cemitério que, por qualquer motivo, Benison queria proteger de qualquer moléstia. Não havia dúvida de que o príncipe moveria os fios necessários na Prefeitura para consegui-lo.
  Não tinha que lhe pedir ao Jackson que esperasse. É o que havia feito as duas últimas vezes que seu chefe tinha tido vontades de dar um repentino passeio. Se sei perguntava onde ia abandonar o carro, ou se lhe preocupava passar a Véspera de natal daquele modo, guardava-se suas opiniões para si mesmo, como era sua obrigação.
 Deixou-a no cemitério porque um Rolls Royce chamava menos a atenção perto do centro que estacionado no depauperado Reynoldstown. Enquanto se dirigia para o este, seguindo a canção da sereia que lhe chamava à igreja, compreendeu que havia outro motivo: queria a aquela moça só para ele. Riu ao encontrar-se de frente com aquela verdade. além de sua curiosidade, a cantor ultraterrena tinha conseguido despertar também seu patético ciúmes.
 Eram de verdade patéticas aquelas emoções humanas que o tinham abandonado fazia tantos anos?
 Suas reflexões foram interrompidas por um ruído a sua esquerda. Mais rapidamente do que um mortal poderia compreender, girou-se ao tempo que assumia uma postura defensiva escondida e extraía uma adaga da capa sob a calça.
 O cão que procurava entre os cubos de lixo não reparou nele, já que parecia mais preocupado em seu jantar de Véspera de natal. Natal. Owain tinha esquecido que se aproximava aquela festa até que Randal o tinha mencionado daquele modo desafortunado. Normalmente não se permitiu o luxo de esquecê-lo. O príncipe e suas malditas leituras da Bíblia se asseguravam disso. Entretanto aquele ano, com a "maldição" (como alguns a chamavam) solta pela cidade, a maioria das Vergônteas estava muito assustada como para reunir-se. Benison, frustrado, tinha deixado de insistir.
 Owain se relaxou e voltou a guardar a adaga. havia-se acostumado a levá-la depois de muitos anos, igual ao estilete no antebraço, quase por nostalgia. Outra onda no lago provocada pela sereia. O pomo e o punho estavam recubiertos de ouro, e em seu tempo tinha sido um presente que lhe tinha feito a seu sobrinho em honra a sua coroação, um governo para o que havia guiado de forma desumana ao moço.
 Acelerou o passo. A canção hipnótica parecia seguir um patrão. Primeiro se produzia um prelúdio contínuo enquanto a congregação reunia-se. podia-se descrever aquela primeira parte mais como uma introdução, ou melhor ainda, a chamada à oração. Reunido-los chegavam desesperados para ver cumpridas suas saudades interiores. De que melhor modo, pensou, podia-se definir a devoção? O que maior ironia, que maior sacrilégio terei que transformar uma casa de rezo em um templo ao cumprimento dos desejos, aquilo que sempre lhe tinha negado a ele?
 Em nenhuma das visitas anteriores se superou este ponto antes de sua chegada. Sempre acudia a tempo, ou a sereia o esperava? Tolices, pensou rechaçando aquela possibilidade.
 Depois a música sempre cobrava intensidade e a melodia serena adotava uma vida mais primária. As ménades se uniam ao ritual enquanto a canção e a dança se faziam ferozes e tribais. Depois chegava o crescendo do frenesi da alimentação, enquanto as mulheres selvagens se abandonavam a seus bestiais impulsos. Os mortais também alcançavam algum tipo de liberação física ou espiritual. Possivelmente mediante seu victimización obtivessem a plenitude; a necessidade perpetuava a necessidade e assegurava que a sereia e as suas nunca tivessem fome.
 Ao Owain tivesse gostado de revelar sua presença ao Albert, ou pode que ao Roger, para falar com eles do que experimentavam ao deixar-se arrastar naquela viagem emocional, ao permitir que se alimentassem deles. Recordariam o que tinha passado? Os mortais não pareciam ter lembranças uma vez terminada a cerimônia. Não eram ghouls que fossem a servir a seu professor, a não ser ganho que partia para o matadouro. Owain suspeitava que o que ocorresse em suas mentes, a manipulação que sofressem pela música, devia ser similar ao que acontecia no Clube do King Road, onde se alimentava de seus iguais sociais para logo enviá-los a casa com lembranças de uma velada agradável. Que memórias ficavam naqueles mortais?
 Ao chegar à igreja se ocultou nas sombras, escalando a fachada e ocupando seu posto, já familiar. Sentiu um repentino ataque de dignidade. Aí estava ele, um antigo Ventrue, ocultando-se como um voyeur envergonhado. Entretanto, recordou-se rapidamente que havia perguntas que responder. tratava-se para ele de um exercício de curiosidade intelectual, ao contrário que para outros, para os que era um assunto de debilidade emocional.
 Quase todos os ajoelhados na igreja eram rostos conhecidos: os dois jovens negros que poderiam ser casal, a sempre presente coreana com seus óculos grosas, um homem negro major, uma mulher branca de média idade e dois ou três mortais mais. Albert e Roger também estavam pressentem. E, é obvio, a sereia imóvel frente a eles, com sua beleza física oculta depois da perfeição de sua voz.
 Não pôde evitar perguntar-se se Albert ou Roger lhe haviam mencionado aquelas excursões a alguém mais. Se não era assim, eles três poderiam ser as únicas Vergônteas de Atlanta que soubessem da presença da sereia. Owain não tinha visto mais vampiros presentes em nenhum dos ritos, e não havia dúvida de que se outros tivessem ouvido a canção teriam acudido. preocupava-se, porque aquele não era o tipo de assunto que o Príncipe Benison comutasse. Duvidava de que soubesse da presença da sereia na cidade. Normalmente o príncipe convertia a atribuição de territórios de caça em um assunto formal. quanto mais público fora o anúncio entre os Vergônteas, menos probabilidades tinha que confusões ou conflitos territoriais mais adiante. A ordem era muito importante para ele, e ainda o era mais a observação dos métodos e costumes apropriados. A maldição parecia estar destruindo a ordem rapidamente, assim não toleraria o insulto de ter um intruso em seu cidade, especialmente naquele momento. portanto, não parecia provável, além do fato de que Albert se seguisse mantendo afastado do Benison e de que este logo que suportasse a presença de seu menino, que estes dois lhe tivessem contado a existência daqueles ritos.
  Enquanto a canção cobrava força, o tempo ganhou gradualmente intensidade e ênfase. Owain se recostou contra a parede. Esta vez decidiu que se dedicaria mais a escutar que a olhar. Depois dos passados rituais estava convencido de que se dominava o bastante para inundar-se mais completamente na música sem arriscar-se a unir-se de forma involuntária ao grupo, como havia passado a primeira vez. Procurou no bolso de sua jaqueta e tirou seus óculos de sol, o primeiro par que tinha tido nunca. Para quando se tinham posto de moda, Owain já levava vários séculos sem ter que preocupar do sol. Além disso, embora este fora um fator, os óculos não teriam ajudado muito. Entretanto, o bloqueio da fraca luz das velas do santuário lhe permitia concentrar-se em seus próprios pensamentos. Do primeiro momento o canto da sereia havia tirado ele lembranças enterradas além de seu alcance. tratava-se de uma sensação a que já se estava acostumado à medida que desconectava-se dos acontecimentos da vida: a de estar a ponto de recordar algo e não conseguir aferrá-lo. Sua mente lhe jogava más passadas freqüentemente, obscurecendo coisas que lhe deveriam haver resultado evidentes.
  Uma tensão particular na música, variações que a sereia repetia com o passar do ritual, chamavam especialmente sua atenção. Havia necessitado a segunda e a terceira entrevistas para poder as identificar. A força de seu sangue lhe permitia manter um maior controle mental que outros ouvintes, mas agora, enquanto tentava separar a canção para achar aquele motivo familiar, compreendeu que era esse mesmo controle o que ia ter que render, ao menos em parte, se queria indagar nas profundidades da música. Desse modo se aferrou a esse motivo, e contra o sentido comum permitiu que lhe levasse onde queria.
 A melodia era a da brisa do oceano, de novo o frio Mar de Irlanda. Olhando as águas da costa ocidental do Gales compreendeu algo sobre aquela palavra, adref: embora a sereia a pronunciava com o galés virtualmente perfeito de seus dias de juventude, a língua repartia o mais leve acento ao som, uma discreta imperfeição musical que tivesse reconhecido inclusive em vida.
 Aquele acento delator, as ondas ocultas do Mar da Irlanda... A sereia procedia, ou ao menos tinha vivido, na Ilha Esmeralda. Com este pensamento, incontáveis detalhes da canção mágica se desdobraram ante ele como uma rica tapeçaria exposta à luz. Agora via que cada ouvinte ouviria aquelas palavras, retorno a casa, em sua língua natal. Daquele modo a canção se completava com cada alma perdida a que chegava. convertia-se em realmente própria, embora sem perder a história da sereia. Com esta compreensão, as demais tramas da música foram a ele, lhe alagando com uma versão mais cálida e acalmada daquele mar picada.
 Mas Owain se manteve firme. Não rendeu a melodia que era a sereia, o ímpeto da canção que lhe tinha atraído em um princípio. Seu toada era um lamento, um derramamento de pesar por um amor perdido, por um lar que lhe tinha sido roubado. Suplicava aos deuses antigos que tinham percorrido sua terra nos primeiros dias. me levem de volta, pedia. me levem de volta ao significado e ao amor. Tomem de mim estes anos sem sentido, o peso do tempo, o peso do fracasso.
 As notas lhe golpearam brutais, e não pôde encontrar nelas o menor rastro de orgulho ou ódio. Só perda e sofrimento. Não podia imaginar tal dor sem amargura, tal tragédia sem recriminação. Era o esquivo toque da pureza o que lhe fascinava, aquilo que estava a um tempo tão perto e tão longe do que ele mesmo conhecia.
 A verdadeira emoção da canção se apoderou dele. Nunca havia sentido uma catarse como aquela, nem mediante a vingança nem mediante a vitória ou o ódio. Inclusive na perda, Owain nunca tinha encontrado mais que amargura, jamais nobreza.
 Varrido pela desoladora verdade da canção, foi incapaz de conter as demais melodias. De novo iam a ele como um corrente, como o mar que não podia ser rechaçado. Transportaram-lhe longe da costa para tentar lhe levar em direções diferentes. Cada melodia desejava lhe repartir sua visão da perda e a necessidade, do descobrimento da calidez.
  Uma trama lhe seduziu especialmente e lhe obrigou a segui-la. De algum modo, aquelas notas pareciam as mais similares à própria canção da sereia. A toada, primeiro leve e brincalhona, depois repousada e acalmada, transportou ao Owain com ela e o afastou da costa, afastou-o do pesar da cantora, sobre a Snowdonia e para os limites longínquos das montanhas. Rhufoniog, seu lar ancestral, estendia-se ante ele despojado das estradas e pontes modernas. Aquela era a terra de sua infância. Enchendo sua visão estavam as muralhas de pedra e madeira do Dinas Mynyddig, o lugar onde tinha nascido, as defesas de terra do trono do poder de sua família. Tinha conhecido aquele cenário como um moço, e mais tarde como um senhor da noite.
  A canção transportou seu consciencia para as muralhas, para uma janela aberta. Adref. Retorno a casa. Aquele era o lar para aquela parte da canção. Através da janela podia ver uma mulher grávida, balançando-se e cantando. As palavras eram débeis, mas se tratava de uma canção de ninar que acariciava ao bebê em seu útero. O rosto lhe era familiar. Freqüentemente tinha visto retratos deles, mas nunca tinha recordado o rosto em vida: sua mãe tinha morrido pouco depois de seu nascimento.
  Era mais adorável do que tinha imaginado. Queria aproximar-se e lhe tocar a bochecha, mas sua visão não tinha substância, só imagens e sons. Tudo, como a água do mar salpicando sua cara, não era mais que um truque de sua mente. Entretanto...
  Como se tratasse de reter água nas mãos, Owain não pôde manter a visão. A cena se fez imprecisa, confusa, e as notas cobraram força e se fizeram mais ricas. Uma mulher solitária se balançava e cantava na mesma janela, mas se tratava de uma pessoa diferente. Costurava e não estava grávida, uma ausência que daria forma a sua vida. A canção era a mesma, tão leve que solo a noite a escutava. Aquela era a voz pela que Owain, sendo jovem, havia suportado o frio da noite. Aquela mulher era seu amor. A esposa de seu irmão.
  --Angharad.
  Ao pronunciar o nome a visão desapareceu e uma corrente o devolveu ao mar. Soube então que aquela melodia da canção que tinha seguido era a sua. O pesar da sereia havia meio doido sua alma e tinha unido sua história à música. Solo agora era totalmente capaz de escutá-la com uma perda desprovida de amargura, com um pesar afastado da ira.
  Abriu os olhos. Os óculos de sol estavam cobertas de lágrimas de sangue.
  meu deus! Quando foi a última vez que chorei? Sossegou seus gemidos, mais por vergonha que pelo medo a ser descoberto, embora aquilo também lhe preocupava. Tinha alertado aos reunidos de sua presença? Tinha chegado a falar em alto, ou era o nome parte da canção, agora eternamente unida ao pesar da sereia?
  inclinou-se para diante para ver o santuário através do buraco. As ménades acabavam de terminar de alimentar-se e se estavam retirando dos mortais dispersos. A sereia se movia entre os corpos, lambendo gentil as feridas ensangüentadas, sanando os danos. aproximou-se do Albert, que ainda seguia ajoelhado a pesar do ataque, e ao lamber a carne rasgada do pescoço os olhos do Malkavian se abriram de par em par. Tinha um plácido sorriso na cara, o que era estranho nele; normalmente, especialmente quando sorria, um brilho demente aparecia em seus olhos. Entretanto, aquela vez era um retrato da perfeita felicidade: a cabeça inclinada para atrás nos braços da sereia, os olhos olhando preguiçosos A... a Owain.
  O Ventrue se retirou rapidamente do bordo do buraco. havia-se voltado descuidado devido ao estranho trauma das visões. O teria detectado Albert nas sombras? Não havia modo de estar seguro. Não tudas as Vergônteas tinham uma visão tão aguda como a dela, mas não podia assumir que aquele não fora o caso do Malkavian. Certamente, não iria ao príncipe. Ele e Roger estavam violando os desejos do Benison tanto como o próprio Owain. É obvio, Roger era o menino do príncipe, embora não sua pessoa favorita; Albert era um companheiro de clã, embora naquele momento não estivessem exatamente congraçados. Owain tinha descoberto uma coisa ao comprido dos anos: era impossível predizer a um Malkavian. Benison o tinha surpreso em mais de uma ocasião, e Albert não tinha deixado de fazê-lo desde que lhe conhecia.
  Havia muitas possibilidades, muitas coisas em que pensar, e se sentia confuso depois da experiência. Tratou de limpar seus óculos, mas as mãos lhe tremiam. Maldição! Colocou-as no bolso.
  As outras noites que tinha estado ali se partiu correndo antes de que os congregados despertassem dos ritos, mas aquela também ele sentia a necessidade de recuperar-se. Não confiava em que seu corpo lhe permitisse abandonar em silêncio a igreja, de modo que inspirou para acalmar-se e esperar. Havia muito em que pensar, mas de momento não queria mais que deixar a mente em branco.
 A noite em que se encontrou no carro queimado, Nicholas fazia uma visita ao imóvel do Owain Evans. Havia saltado o muro exterior, e ao saber o que tinha que procurar havia evitado ser detectado. Não tinha alertado a humanos, a cães nem a ghouls. Estava sobre os ramos de uma árvore, fora da casa, aguardando. O sol começava a aparecer no horizonte oriental mas Evans não tinha saído nem entrado, de modo que o Gangrel se afundou na terra para esperar o fim do dia.
 A noite seguinte tinha despertado disposto a exercitar a paciência nascida de gerações e gerações de caça. Não teve que esperar muito. Evans partiu com seu carro e Nicholas o seguiu.
 Perseguir um automóvel em meio da cidade não era algo no que tivesse muita prática. Mantendo-se na medida do possível fora da vista, tinha deslocado como uma Vergôntea poseído pelos demônios, ou como um que tentasse correr mais que o amanhecer. Não havia dúvida de que lhe teriam visto vários mortais surpreendidos, mas para sua visão defeituosa não teria sido mais que um borrão na noite. A maior provocação tinha chegado quando o carro do Evans havia girado para entrar em uma estrada que atravessava o coração da cidade. Uma forma parcialmente lupina correndo por uma auto-estrada estirava a Mascarada além de seu ponto de ruptura, mas a Nicholas não lhe preocupava. Tinha mantido a pista tomando outras estradas e atravessando bairros que bordeaban a auto-estrada, adiantando-se em alguns pontos e esperando para assegurar-se de não ter perdido a sua presa. Tinha saltado por árvores e telhados, trocando de forma constantemente para conseguir a máxima velocidade pela rota mais rápida.
 Felizmente, o carro tinha abandonado a estrada e se tinha detido perto de um grande cemitério. Quando Evans saiu e seguiu a pé, Nicholas se viu obrigado a combater seus instintos, que o obrigavam a saltar sobre ele. O Ventrue tinha que saber algo sobre a maldição. Apesar da febre estava convencido disso, mas havia decidido que lhe arrancar a garganta não era o modo mais produtivo de descobrir nada. Assim teve que seguir atrás de sua pista.
 Evans lhe tinha levado até uma igreja parcialmente derrubada, por cujo campanário tinha entrado. Era estranho, já que dentro havia outras pessoas. Decidiu esperar.
 Tinha sido então quando o som suave da música o fazia agudizar os ouvidos. Era uma única voz, tão clara e diáfana como a brisa da planície aberta. Nenhum pássaro tinha cantado nunca tão docemente. O mesmo som aliviou sua fome, pois depois da larga carreira voltava a sentir-se débil e dolorido.
 De repente, os edifícios a seu redor pareceram fechar-se sobre ele. por que se tinha ficado tanto tempo naquela maldita cidade? Tinha saudades as zonas amplas e abertas que a música o sugeria. Nem sequer os parques tinham espaço suficiente naquele louco e atestado hervidero humano. Ansiava ouvir o uivo do coiote, o grunhido do leão das montanhas.
 voltou-se e fugiu da cidade. Esquecendo sua fome, correu e correu até que os edifícios deram passo às colinas, e as colinas a as montanhas. Até que o sol de Natal não começou a queimar seu carne não se rendeu ao esgotamento e voltou a afundar-se sob a terra.
 Quando Roger despertou na igreja outros se haviam partido: os mortais, a bela e pálida cantora, Albert... todos. Ainda ficavam duas ou três horas de escuridão, de modo que não tinha que preocupar-se por isso. ficou lentamente em pé e seus passos ressonaram no edifício vazio.
 Não sabia como agradecer ao Albert que lhe tivesse levado ali para descobrir aquele milagre, aquele bálsamo que aliviava a miséria de seu no-vista. Cada noite que acudiam e Roger se rendia à música tinha as visões mais maravilhosas. Podia ver-se forte e galhardo. Via o príncipe lhe saudar com orgulho, em ocasiões inclinando-se ante ele. Sem embargo, o que mais lhe eletrizava era ver sua mãe levantar-se de a cama. Abraçava-lhe e lhe beijava, e ele estreitava seu pequeno corpo entre seus braços.
 Enquanto a música durava as visões eram reais. Roger não queria mais que permanecer ali com sua mãe, abraçando-a. A bela cantor pálida lhe mostrava o paraíso, a vida que chegaria quando seu mãe despertasse e a Abraçasse por toda a eternidade. Sabendo que aquilo podia acontecer, que ia acontecer, Roger cobrava forças para enfrentar-se às provocações da realidade mundana.
  aproximou-se até o carro para encontrar-lhe sobre tijolos. As rodas, a bateria, até a rádio tinha desaparecido.
  Alagou-lhe uma quebra de onda de raiva. Como podiam mostrar tão pouco respeito pela propriedade de outros? Esqueceu seu comentário naquele mesmo instante, já que uma súbita dor lhe atravessou o estômago e o obrigou a dobrar-se agônico. Voltaram os tremores, e pôde sentir o suor sangrento por todo seu corpo. Desejava retornar à igreja e escutar a música, passar mais tempo com sua mãe no mais perfeito dos mundos.
  aproximou-se dando tombos até outro carro, um Escort bastante estragado, e arrancou a porta. A pesar da dor, demorou menos de um minuto em fazer uma ponte. Era Véspera de natal. Tinha que ver seu mãe, e estava muito longe para ir andando.
  Tratou de limpar-se tudo o sangue da cara antes de entrar em Peachtree Gardens. Se o vigilante noturno notava algo estranho não o deixaria passar. Duas vezes mais antes de chegar à habitação esteve a ponto de cair de joelhos pela dor. Ardiam-lhe as vísceras. Queria alimentar-se, mas nos últimos dias isso não tinha feito mais que piorar as coisas.
  Habitação 256. Entrou e se aproximou de sua mãe.
  Tinha um aspecto mais débil e frágil do habitual. perguntou-se se deveria levar a à igreja. Era possível que a magia funcionasse com ela. Entretanto, se a movia e ocorria algo nunca poderia perdoar-lhe oír que estaba yendo a "misa"-. Voy a hacer que te pongas mejor,
  --Olá, mamãe -disse brandamente-. Acabo de voltar da igreja, aquela da que te falei e a que vamos Albert e eu. -Gostaria ouvir que estava indo a "missa"-. vou fazer que fique melhor, mamãe. Ali há uma curadora, e vamos fazer que fique melhor.
  Tabatha Greene seguia tombada, logo que respirando, enquanto Roger lhe falava da música maravilhosa (sabia que sempre lhe havia encantado a música), sobre correu ia ficar melhor, sobre tudo o que tinha visto.
  Roger descobriu que com solo falar daquela melodia sua dor e sua fome diminuíam. Podia sentir a cura da fé. A próxima vez que ouvisse a canção correria até aqui e se levaria a sua mãe a a igreja. Tinham esperado muito, tinham suportado muitas coisas. A música podia trazer o céu à terra. Roger lhe falou de seus planos.
 --Mas de momento -disse sonriendo-, vamos manter te forte. -Como fazia em todas suas visitas, perfurou-se o dedo e deixou cair cuidadosamente uma gota ou dois de vitae vampírica em sua boca. Esperou a que a tragasse como sempre fazia, mas quando demorou mais do habitual se inclinou sobre ela e a observou.
 Sua mãe lhe tossiu na cara. Roger estava o suficientemente perto para sentir o cuspe, mas quando se limpou viu sua mão manchada de vermelho. Observou à mulher, confuso.
 Tabatha voltou a tossir com mais força, de novo lhe cobrindo de sangue. Começou a sofrer convulsões e da garganta lhe surgiu um som afogado. antes de que Roger pudesse levantá-la para aliviar a respiração, o gemido e os tremores desapareceram.
 A mulher liberou uma profunda exalação, expulsando o último fôlego de seu corpo. Enquanto Roger a observava, paralisado pelo horror, o sangue começou a emanar do nariz, as orelhas e os olhos.
 Por último ficou totalmente quieta. O vampiro estava desolado. Abriu a boca, mas não alcançou a dizer nada. Todos seus sonhos, todos seus planos para o futuro, para o céu na terra...
 Afundou a cara na bata de sua mãe e chorou.
 Frank levantou uma mão para arranhá-la orelha, que ainda estava muito branda. depois de quatro semanas tinha conseguido regenerá-la, embora sofria grandes picores. À medida que crescia o cartilagem a fazia sua fome, molesta ao princípio e impossível de saciar por completo; depois se tinha feito mais forte, ferroando constantemente sua mente e seu corpo. Agora era um tortura contínuo. A noite passada se bebeu a toda uma família paquistanês, mas não lhe tinha ajudado absolutamente. De fato, ao terminar se tinha posto tão doente que tinha vomitado virtualmente tudo o sangue na boca-de-lobo. Os paquis já não valem nem para comida!, pensou aborrecido e cuspindo ao recordá-lo.
 Que tivesse abandonado a noite passada os túneis subterrâneos era estranho. Da morte da Gisela se manteve oculto, esperando e observando das bocas-de-lobo. Voltou para arranhá-la orelha.
 Sua companheira tinha tentado lhe matar, lhe arrancar a cabeça, e o tivesse conseguido de não ter escapado. Duas noites depois, quando se tinha atrevido a voltar, o porão era um atoleiro de sangue coagulada com o que ficava da Gisela no meio.
 Tinha cuspido ao cadáver. Tenta me arrancar agora a cabeça, puta.
 Entretanto, toda a cidade estava igual, já que os vampiros não deixavam de se atacar para matá-los uns aos outros. Que loucura! Uma coisa era a diablerie, e outra aquele frenesi bestial inverificado algum...
 Havia muitos outros além da Gisela que tinham cansado presa de a maldição. O Fim dos Tempos, as trevas anteriores à última noite... a Gehena. Os antediluvianos se elevariam e reclamariam a seus meninos. Mas Frank estava preparado. Ele e seus irmãos do Sabbat agüentariam o terreno... os irmãos do Sabbat que não tivessem cansado presa da maldição, claro.
 Devia ser uma mutreta da Camarilha para debilitar à seita antes da batalha final. Era tão evidente!
 Por isso Frank estava esperando ali essa noite. Tinha expresso suas suspeitas ao Herr Himmler, e o Fuehrer tinha estado impressionado.
 --Descobre o que possa -havia-lhe dito.
 Assim Frank fazia algumas pergunta e tinha deixado cair alguns comentários para ver as reações. Ellison e esses Nosferatu da Camarilha não são os únicos com contatos na cidade! Suas indagações lhe tinham reportado mais dividendos dos esperados, de modo que aguardava.
 Passos. Longínquos. Deliberados.
 apertou-se tudo o que pôde contra as sombras. Aquela reunião não estava isenta de riscos.
 O eco das pegadas se ia aproximando lenta, metodicamente, com total confiança. Não ouvia hesitação algum nelas, nem pausas. Uma figura começou a cobrar forma na escuridão.
 Frank não pôde evitar um sufoco de assombro.
 --Wilhelm.
 Era o Príncipe do Berlim o que se aproximava dele. Ao menos era o mais aceito dos dois aspirantes rivais, embora aqueles assuntos pareciam muito menos importantes ao enfrentar-se a tal grandeza.
 Os olhos azuis do Wilhelm quase brilhavam na penumbra. Seu rosto prusiano ligeiramente arredondado parecia depravado, e quando Frank saiu das sombras mostrou um sorriso cálida. O príncipe o ofereceu uma mão em sinal de amizade.
 --Frank?
 Este ficou atônito um instante antes de aceitar a saudação. O príncipe aferrou com força a mão e a sacudiu. Frank voltou a demorar em responder, e ao fazê-lo-o fez com muito vigor. Wilhelm não parecia notar sua pele grosa e azul. O Nosferatu antitribu tinham sido incapaz de manter seu aspecto... menos peculiar enquanto a fome devorava-lhe e lhe roubava as forças.
 --É Frank -esclareceu o príncipe.
 --Eu... sim, sim... -Como sair daquela absurda situação?- Claro que sou eu -disse muito abruptamente.
 O príncipe não pareceu notá-lo, já que seguia sonriendo. Seu traje a medida tivesse parecido desconjurado nas bocas-de-lobo, mas o homem se mostrava totalmente cômodo.
 Era Frank, que vivia e percorria todas aqueles noites túneis, que se sentia inquieto.
 --E-eu... esperava ao Kleist -gaguejou- ... ou a algum outro. Não... -quanto mais confundia as palavras mais nervoso ficava.
 --Não a mim? -sugeriu Wilhelm.
 --Sim. Quero dizer, não. Não a ti.
 --ouvi que tem notícias importantes -disse o príncipe, tudo encanto e elegância-, assim decidi vir em pessoa. São maus tempos, e devo às Vergônteas do Berlim fazer tudo o que esteja em minha mão por eles.
 Frank esfregou suas mãos escamosas. lhe ofereça um pouco de informação e depois averigua o que sabe, disse-se. Herr Himmler me recompensará bem por acabar com a maldição!
 O príncipe esperava paciente.
 --ouvi -disse Frank em voz baixa-, que há uma maldição sobre a cidade. -deteve-se uns instantes, esperando a que o príncipe apresentasse sua visão dos acontecimentos, embora seguia sonriendo espectador-. ouvi -seguiu-, que não é mais que a primeira das grandes infesta enviadas contra as Vergônteas antes de... -deteve-se de novo para ver se o príncipe queria contribuir, mas não havia nada que fazer- ...antes do fim dos tempos, os dias escuros nos que os antigos entre os antigos se elevarão para consumir aos jovens. -Wilhelm seguia aguardando-. antes da Gehena -terminou Frank com um significativo olhar ao redor.
  O príncipe ainda lhe observava, e começou a assentir com gravidade.
  --Eu também ouvi sobre esta maldição.
  O Nosferatu esperava algo mais como resposta, mas isso havia sido tudo. Expôs suas opiniões.
  --É por nossa própria culpa -assinalou-. Mesclar raças, permitir a quão estrangeiros percorram nossas terras... Não há dúvida de que nossos antepassados estarão revolvendo-se em suas tumbas.
  --Não há dúvida -repetiu Wilhelm enquanto observava imperceptivelmente o relógio e trocava o peso de uma perna a outra.
  Uma forte dor golpeou o estômago do Nosferatu, embora não estava seguro de se se tratava de fome ou de ansiedade.
  --A maldição... sei como começou.
  O príncipe arqueou as sobrancelhas.
  Frank se alegrou de ver aquele interesse, mas o problema era que não tinha nem idéia de como tinha começado tudo.
  --Falei com uma vampira... uma Tremere muito elevada, muito, muito elevada. Não posso dizer seu nome...
  --Compreendo-o -concedeu elegante Wilhelm.
  --Disse que um antigo Tremere tinha invocado uma maldição sobre todos nós -seguiu-. Sobre nossa cidade... para acabar contigo e obter o poder para eles.
  --Já vejo.
  --Esta mulher... meu amiga, ajudou a elaborar o ritual. -O príncipe seguia observando atento-. Eu poderia encontrar um modo de eliminar a maldição.
  Wilhelm parecia claramente impressionado.
  --Esse seria um grande serviço para tudas as Vergônteas leais. Não há dúvida de que esta mulher... seu amiga, não aceita tais traições.
  --Não, é certo. Tem toda a razão -aceitou Frank-. Por isso me o disse.
  --É obvio -assentiu o príncipe-. Há problemas também na cidade oriental?
  --OH, sim -respondeu Frank-. As Vergônteas adoecem, voltam-se loucos, atacam-se os uns aos outros -dizia enquanto se arranhava a orelha-. Alguns mortais também foram abatidos pela maldição. Terá-os que temem que possa chamar muito a atenção dos humanos, se é que chegam a ver-se afetados em grandes quantidades.
  --Já vejo. -O príncipe observou diretamente ao Frank por um instante e depois levantou o braço para poder ver o relógio sob a manga-. Temo-me que devo partir, Frank -disse estendendo de novo a mão-. foste uma grande ajuda. Se descobrir algo mais não terá problemas em contatar com o Kleist, meu homem. De novo, muito obrigado. -Com isto, voltou-se e se afastou na escuridão, deixando ao Frank sozinho, decidindo o que tinha aprendido de seu interrogatório ao príncipe.
 Idiota! Wilhelm não podia acreditar que tivesse perdido o tempo com aquele cretino. Kleist tinha tido razão. Outro beco sem saída. Outro louco com maldições e planos Tremere. crie-se esse idiota que não hei falado já com o Etrius em Viena, o mais importante de todos os Bruxos? Claro que todo mundo suspeitou que os Tremere. Por suposto, isso não significava que não fossem a causa da loucura. Por esse motivo tinha convocado ao Maxwell Ldescu, regente da capela do Berlim. Surpreendeu-lhe que chegasse acompanhado pelo Karl Schrekt, o Justicar Tremere.
 O problema, aquela maldição, não se limitava absolutamente a Berlim. Ataque similares de loucura e violência se produziram por toda a Europa, e também na América. Ldescu e Schrekt não haviam tido mais remedeio que reconhecer sua ignorância sobre aquele assunto.
 Seus subordinados Tremere por todo mundo não tinham obtido averiguar a causa do mal, ou o modo exato de contágio. Não parecia haver um patrão discernible que permitisse determinar às possíveis vítimas. Em provas com "voluntários" que eram expostos a sujeitos doentes, a gente podia resultar contagiado enquanto outro não. Era possível que os vampiros mais antigos fossem mais resistentes, mas nem sequer isso era totalmente seguro.
 Os Tremere só tinham descoberto uma coisa certa a respeito: não se tratava de um mero contágio ou da mutação vampírica de uma enfermidade mortal. Aderida a cada vítima, viva ou morta, havia um aura de magia malvada; uma vil manipulação da natureza com a que os Tremere não estavam familiarizados, uma contaminação sobrenatural do sangue que devorava a mente e o corpo. Toda a raça das Vergônteas estava maldita.
 Ldescu e Schrekt não haviam dito muito, mas Wilhelm podia ver que estavam preocupados. Não, mais que preocupados. Assustados. Por isso lhes tinha acreditado.
 O príncipe podia ver a luz da lua e cheirar o ar fresco enquanto aproximava-se da escalerilla pela que tinha baixado às bocas-de-lobo. Frank Litzpar tinha sido uma completa perda de tempo, mas não podia deixar acontecer nenhuma possibilidade, por improvável que fora, em uma crise de tais proporções.
 Quando começaram os estranhos ataques tinha suspeitado de algum truque do Gustav. O velho filho de puta não se deteria ante nada para reclamar o que erroneamente considerava "sua cidade". Os Vergônteas se apodreciam inexplicavelmente, morrendo de inanição embora seus corpos estivessem cheios de sangre fresca. Tinha informe que asseguravam que a maldição tinha golpeado mais forte ainda ao Sabbat. Não, aquilo era muito indireto para o Gustav. O muito imbecil não compreendia mais sutileza que a blitzkrieg. Muito indireto. Muito grande.
 Os vampiros de todo o mundo estavam vendo-se afetados. até agora, quase uma de cada cinco Vergônteas do Berlim estavam poluídos, e aqueles solo eram os casos dos que tinha perseverança. Por isso havia dito o idiota do Litzpar, a antiga Berlim Oriental onde Gustav ainda tinha certo poder estava igual, se não pior. Ao menos isso manteria ao velho Ventrue afastado por um tempo.
 O dia de Natal, enquanto as famílias de toda Atlanta despertavam para abrir os presentes sob as árvores, enquanto rezavam aos patrões da festa, Jesucristo e São Nicolás, enquanto tratavam de tratar-se bem os uns aos outros a pesar do resto do ano, Owain caiu esgotado em seu sonho.
 Naqueles dias de iluminação elétrica interior, agora que as habitações sem janelas já não eram um problema, muitas Vergônteas preferiam dormir em camas, igual a tinham feito em seus dias mortais. Outros se aferravam aos velhos costumes, já fora por hábito ou pela crença equivocada de que deviam fazê-lo, seguindo as lendas e os filmes.
 Owain se encontrava entre ambos extremos do espectro. Seu lugar de repouso era muito pequeno para ser confundido com uma cama. Séculos atrás tinha sido seguro utilizar um ataúde durante o dia. Eram relativamente fáceis de esconder, até certo ponto móveis se os dirigiam criados de confiança e tinham a vantagem de afastar aos mortais supersticiosos, que não queriam incomodar a um cadáver, especialmente se a morte se produziu como resultado da peste ou de alguma enfermidade contagiosa. Todos aqueles detalhes tinham sido para ele mais importantes que qualquer tradição dos não-mortos.
  Entretanto, tampouco descansava dentro de uma caixa de pinheiro. Seu "cama", a falta de uma expressão melhor, estava rodeada para proporcionar a sensação de segurança a que estava acostumado, mas tinha ao menos três vezes a largura de um ataúde luxuoso, com espaço para a cabeça e interior acetinado. Owain repousava naquela cama com a satisfação que muitos mortais reservavam para o automóvel. Sabia que tinha enganado à morte. Aquele era o outro lado da moeda da maldição vampírica do Caín. Não tinha interesse em seguir todas as tradições da Parca. Deixava isso para os filhos da cidade moderna, tão desesperadamente necessitados de fabricar tragédias que proporcionassem um indício de significado a suas patéticas vistas isoladas.
  Ele não precisava procurar a tragédia. Lhe tinha encontrado uma e outra vez ao longo dos anos.
  O descanso diurno de um vampiro não era completamente similar ao verdadeiro sonho. Em certo modo, as horas passavam em repouso. O corpo podia sanar-se fisicamente. Pelo resto, não havia exigências ou funções que empregassem o precioso sangue. Entretanto, para Owain não havia rejuvenescimento espiritual, nem sensação de renovação diária, nem restauração da energia emocional. Desde fazia séculos, aquele fluxo descompensado de vigor lhe deixava esgotado e apático. Apesar de tudo, tinha chegado a encontrar um certo consolo niilista nas horas de repouso. Se Deus queria lhe exasperar cada noite de sua existência, ao menos passaria as horas diurnas livre de ofensas, embora não fora de modo agradável.
  E às vezes tinha as visões.
  Não eram sonhos, posto que estes implicavam esperanças e medos pelo futuro. Pesadelos, possivelmente. Sonhos, nunca. Owain havia abandonado fazia muito a saudade ativa. acostumou-se à dor surda de ver que aquilo que queria lhe era arrebatado. Inclusive seu êxito, pois não havia dúvida de que tinha obtido riqueza, influência e longevidade, esta última sinônimo de poder para os vampiros, o parecia oco.
  Agora, até suas horas de doce negação eram interrompidas.
  Primeiro só viu uma bruma, uma névoa fria, estancada, quieta. Possuía uma qualidade intemporal, como podia ter tido a névoa de um nada anterior da criação, ou a que abraçava uma rocha erma muito depois de que o homem e seus professores ocultos houvessem destruído seu único mundo.
 Lentamente viu movimento, um brilho na penumbra que revelava uma colina por cima das nuvens. Na ladeira havia um cajado de madeira, alto e reto, esculpido de modo que uma mão humana pudesse aferrá-lo e apoiar-se nele. Estava rodeado por uma sensação de estabilidade, e se encontrava embebido na terra tão profundamente como sem dúvida tinha estado a espada na pedra.
 Ao redor do cajado começaram às formar redemoinhos brumas. Unindo-se à dança primitiva, o fortificação girou e se dobrou lentamente. Em sua coroação os fios de madeira se apartaram as umas das outras, estendendo-se em distintas direções. Enquanto os ramos subiam em meandros para o céu, apartando ainda mais a bruma, brotos tenros começaram a surgir por toda parte, formando pequenas folhas arredondadas.
 Seguindo a linha dos ramos a névoa não deixava de dispersar-se, até que os raios brilhantes do sol banharam à árvore sobre a colina. Enquanto as folhas diminutas se estendiam ante a luz, surgiram flores delicadas que se abriram para mostrar suas cores brancos e rosados.
 Owain o contemplava tudo como se se encontrasse sobre a colina, mas o sol não cegava seus olhos nem queimava sua pele.
 Então uma sombra caiu sobre ele. Um elevado montículo surgiu das brumas circundantes e engoliu a luz do sol. Suas saias eram verdes e formavam velhas terraços, escuras e sinistras. A sombra se fazia cada vez mais tenebrosa, até que a árvore não foi mais que um lembrança.
 Sobre o montículo se erigia uma torre de pedra, uma capela sobrevoada pelos corvos. As nuvens se congregavam espessas sobre ela, e os raios eram claramente visíveis atravessando o vapor. Os trovões faziam tremer a terra.
 Owain se encontrava dentro da torre, embora não tinha dado um só passo. A cruz de pedra sobre o altar começou a agitar-se em seu base, e do mais alto da estrutura não deixava de cair pó. Várias pombas escaparam voando.
 Outro trovão voltou a sacudir a terra, que se movia por conta própria, rugindo e tremendo. A cruz se derrubou com um grande estrépito, fazendo-se pedaços contra o chão de pedra. A rocha e o morteiro começaram a rachar-se e a cair do alto, mas Owain se ficou imóvel, incapaz de mover-se ou de escapar.
De abaixo o mundo também se fechava enquanto o chão não deixava de agitar-se e de crescer, derrubando ao vampiro. As lajes de granito se partiram ante o impulso da terra. Vamos, a torre se agitou uma última vez e se derrubou sobre si mesmo.
  Não tinha sido o Natal mais agradável que Eleanor recordasse. Não se tinha produzido absolutamente nenhuma reunião de vampiros. Tinha mencionado várias vezes ao Benison a ausência de celebrações, mas não tinha conseguido mais que fazer que se partisse resmungando. Que aqueles problemas se produziram em esta época era toda uma contrariedade.
  Eleanor já tinha superado numerosas dificuldades. antes de casar-se com o Benison, enquanto servia como arconte para o Justicar Baylor, seu sire, havia resolvido disputa entre clãs, tinha esmagado insurreições civis entre Vergônteas e gado e inclusive havia açoitado a um mago renegado e ao demônio que o havia poseído. Entretanto aquilo, a maldição, era com muito o pior que recordava.
  Tinha recebido uma mensagem do Baylor, que estava em Chicago tratando de esclarecer o labirinto político da cidade. Quando parecia que já se alcançou um delicado equilíbrio de poder entre os aspirantes a converter-se em príncipe, todas as facções se haviam visto afetadas por repentinas vacantes ao sucumbir os vampiros à maldição ou ao esconder-se dela. A estabilidade se desmoronou como um castelo de naipes. Reinava a anarquia, e os lupinos e o Sabbat não deixavam de espreitar das trevas.
  Baylor lhe tinha confirmado que os problemas não se produziam só em Atlanta, nem em Chicago. Tinha havido conflitos no nordeste do Sabbat e em Miami. As guerras de bandas estava inflamando-se em Los Anjos, já que os barões anarquistas tratavam de alcançar uma posição de poder. Inclusive na Europa, normalmente mais tranqüila, as baixas eram terríveis.
  Mas não havia motivo para cancelar as celebrações.
  Eleanor havia dito que em tempos de crise o cumprimento de os rituais e cerimônias era ainda mais importante, mas não havia conseguido convencer ao Benison.
  Seus pensamentos foram interrompidos quando o príncipe atravessou o salão, observou as magnólias e acebos sobre a toalha e esmagou-os.
  --Acredito haver dito que não quero nada disto em minha casa!
  --Nossa casa, carinho -respondeu acalmada Eleanor. Estava claro que seu querido Benison estava mortalmente preocupado. Via a cidade que tinha construído fazer-se pedaços a seu redor, e não parecia haver nada que pudesse fazer para evitá-lo. Um ataque do Sabbat ou uma revolta anarquista que esmagar, lupinos aos que combater até a morte, um usurpador de seu título ao que esquartejar pouco a pouco... Entretanto, aquela misteriosa maldição podia golpear a qualquer, podia... podia distrair ao príncipe. Entretanto, recordou-se, não era culpa dela que Benison não tivesse visto aquele acebo antes de sentar-se; não ia permitir que lhe roubassem o resto de as festas, ou o que pudesse salvar delas-. Tirarei os adornos de Natal em Ano Novo, como todos os anos, e nem um dia antes.
  O príncipe se acendeu. Levantou um dedo, mas ao final o baixou e saiu dando uma portada da habitação. Eleanor comprovou que o matrimônio não lhe tinha vindo tão mal. Nenhum móvel quebrado, nenhuma janela destroçada. Às vezes se perguntava como tinha podido dirigir aquela cidade antes de que ela chegasse.
  Da porta principal do Rhodes Hall chegou um golpe forte, e passaram uns momentos antes de que recordasse que os três criados ghouls tinham morrido de forma espantosa, por não mencionar ao pobre Alex Horndiller. Era muito difícil encontrar serviço de confiança. Não havia dúvida de que Benison não estava de humor para receber visitas aquela noite, de modo que solo ficava ela para encarregar do assunto.
  Enquanto girava o trinco a porta se abriu de repente. apartou-se agilmente de um salto, mas logo que conseguiu evitar ser alcançada. No vestíbulo apareceu Roger levando algo em seus braços... meu deus!, um corpo.
  --Eleanor, está aqui -disse o jovem com sua voz de barítono-. Bem. -Seu rosto estava marcado pelos rastros secos de umas lágrimas de sangue. Tinha um lado da cabeça também talher de sangue, mas esta era fresca. Saía-lhe da orelha? Não estava segura. Apesar de seu aspecto desarrumado, Roger falava com uma força e uma confiança que não tinha visto nunca nele-. Fecha as portas e me traga o rifle. Os yankees entraram e não demorarão para chegar aqui. -A Ventrue não teve oportunidade de lhe deter antes de que a atravessasse com o corpo morto nos braços e se dirigisse para o salão-. Este pobre moço recebeu um disparo no estômago. Traz algumas toalhas. E uísque. Igual lhe faz sentir-se melhor.
 Eleanor não tinha idéia do que Roger estava fazendo, mas o pior é que lhe tinha cheio o salão de sangue e de barro, e que tinha deixado o corpo do "pobre moço" sobre o sofá de cor nata.
 Roger se voltou e viu a Eleanor atônita na soleira.
 --Mulher! -gritou-. Está surda? me traga meu rifle, as toalhas e o uísque!
 Aquele fulgor violento em seus olhos lhe era totalmente alheio.
 --Ensinarei a esses malditos yankees a entrar em minha cidade -exclamou-. Não o tolerarei! Nem por um instante! -A falta de toalhas, começou a rasgar o estofo para lhe limpar a frente ao corpo-. De que vale uma esposa se não saber receber ordens? -perguntou em voz alta.
 Uma esposa?
 As palavras surpreenderam a Eleanor quase tanto como ver o estofo francês empregado como vendagem. Roger tinha algum problema. Não parecia delirar exatamente, mas sua atitude e seu comportamento com ela, a indignação que ardia em seus olhos... Era quase como ver...
 Nesse momento Benison apareceu como um ciclone pelas escadas, fazendo tremer o abajur do salão com suas pegadas.
 --O que é o que ocorre aqui, em nome do Mateo, do Marcos e do Lucas? O que é todo este ruído em minha casa? -A melodramática chegada do Roger não tinha feito muito por melhorar seu humor-. Roger? perdeste o juició? -O príncipe não estava acostumado a ocupar-se de seu menino nem na mais favorável das circunstâncias, e aquela desde logo não o era. Benison tinha Abraçado a um herói de guerra mortal, a um combatente temerário, e tinha conseguido um vampiro covarde e comtemplativo.
 Roger se deu a volta para voltar a gritar a Eleanor e se deteve, ligeiramente confuso, ao ver o Benison avançar como uma locomotiva.
 Eleanor tratou de conter a seu marido.
 --Benison, eu não... -O príncipe já lhe tinha afastado a um lado.
 --O que significa isto? -exigiu encarando-se com o Roger.
 O menino observou o corpo a suas costas tendida sobre o sofá; não era um "moço", a não ser uma mulher pequena de cabelo grisalho e pele negra como a sua. surpreendeu-se ainda mais, perplexo.
 Benison pareceu reparar então no caos, o barro, o sangue, e por fim na mulher. Embora o corpo estava limpo, vestia uma bata de dormir cheia de sangue seca. O fedor da morte rodeava sua forma inerte. O príncipe perdeu a pouca paciência que ficava.
 Empurrou ao Roger a um lado e se aproximou do cadáver.
 --Como te atreveste a trazer...?
 No instante em que Benison pôs a mão sobre o corpo, a raiva pura retorceu o rosto do Roger. Eleanor viu a mudança e tratou de acautelar a seu marido, mas o jovem golpeou muito rápido. Conectou um poderoso murro contra a mandíbula do príncipe, lhe fazendo cair de joelhos.
 --O que como me atrevo? -rugiu-. Como te atreve você? Invadir meu lar!
 O príncipe ficou ajoelhado um instante, mais confuso que aturdido. ficou em pé lentamente e se estirou até alcançar toda seu altura.
 --Benison -disse Eleanor com urgência-, acredita que é você.
 O príncipe pôde ou não ter ouvido sua mulher. Com um movimento veloz como o raio, deu um reverso ao Roger que o mandou voando sobre a mesa do salão. O abajur que havia sobre ela caiu ao chão enquanto o Malkavian se estrelava contra a parede, abrindo um brecha através do gesso e a rocha. Dois quadros caíram das paredes, explorando os Marcos e o cristal em centenas de fragmentos.
 Benison avançou para seu menino. Necessitava uma briga, e estava disposto a terminar aquela.
 Roger se apoiou contra o muro, aturdido e piscando. Depois de uns instantes de confusão, olhou ao redor da estadia lentamente, como se a observasse pela primeira vez.
 --Príncipe Benison? -perguntou com voz dúbia-. Sire?
 Eleanor se dirigiu para seu marido e lhe pôs uma mão no ombro.
 --Benison...
 Sua presença, seu toque, tiveram um efeito calmante. O príncipe ficou quieto, mas não abriu os punhos nem apartou a vista do Roger.
 Este, de repente, gritou e se dobrou pela dor. Caiu de joelhos para terminar derrubando-se sobre o chão, chorando agônico.
 Eleanor quis aproximar-se, mas Benison a deteve.
 --Pode ser um truque.
 A Ventrue observou enquanto seu marido se aproximava, preparado para atacar se aquilo não era mais que uma armadilha.
 --Faz que pare! Faz que pare! -gritou o menino-. Salva-a, sire! Não é muito tarde! Salva-a!
 Benison se inclinou sobre ele. Tinha visto muitas aquilo vezes nas últimas semanas como para não reconhecê-lo. A agonia podia terminar de um momento a outro, ou prolongar-se durante dias. Tratava de manter-se acalmado, um pouco muito difícil depois de um estalo de temperamento.
  --Roger. Menino. Pode me ouvir?
  --Salva-a -suplicava este. Seus olhos, fechados fazia um momento, estavam abertos e cheios de dor e urgência-. Salva-a.
  Benison olhou para trás e viu a Eleanor observando o corpo. Conhecia muito bem a morte, e essa mulher havia falecido fazia vários dias. Não havia modo de salvá-la.
  --Quem é? -perguntou, incômodo ante uma pergunta pessoal.
  --Minha mãe -murmurou Roger, apenas sem fala-. Salva-a. Leva-a a a igreja. Que escute a música.
  Durante a seguinte meia hora, Eleanor e Benison observaram como Roger, entre debilitantes quebras de onda de dor, divagava sobre seu mãe e sobre a cura da fé, sobre a jovem pálida e a velha igreja no Reynoldstown, sobre a canção mais bela que curaria todos os males.
  Eleanor se sentiu comovida por aquela demonstração emocional. Até quando abandonou todo rastro de lucidez não deixava de assegurar-se de que alguém cuidasse de sua mãe. Apesar de estar poseído pela loucura da maldição, tratava de salvá-la. Mas já era muito tarde. Tarde para ela e para o Roger. Não havia nada que fazer.
  Como tantos outros, o jovem Malkavian terminou sucumbindo. A cabeça se inclinou para trás e o sangue começou a emanar por todo seu corpo. Enquanto era tomado pela morte definitiva e seu cadáver começava a decompor-se, Eleanor viu o rosto do Benison endurecer-se e formar profundas rugas na frente. aproximou-se de seu marido e lhe pôs a mão no ombro. Ele respondeu voltando-se para olhá-la.
  --Era débil -disse com gravidade-. Era débil e seu sangue é reclamada pela terra. Deus nos libere da maldição. -ficou em pé e abandonou a estadia sem dizer nada mais.
  Mohammed estava preparado para qualquer problema. Em realidade, quase os ansiava. Fazia menos de uma hora tinha ouvido que um casal da Irmandade estava no museu, no Museu Afroamericano de Califórnia no que tanto tinha trabalhado até vê-lo em pé. Não pensava tolerá-lo. Bravo, o Filho da Cripta que tinha chamado, disse que os membros da banda rival estavam acossando às pessoas ao redor do edifício, e que tinham chegado a romper algumas costure. Não pareciam ter pressa por partir, e a polícia não se incomodou em aparecer.
  Não podia deixar de comprová-lo. Os policiais de seu baronía sabiam que certas zonas, decididas por ele, eram de alta prioridade: o museu, o Parque de Exposições em geral e o campus da USC ao outro lado da rua. ia pedir explicações e alguém ia pagar por aquilo.
  Bravo era um mortal, mas conhecia a existência das Vergônteas e estava em linha para converter-se em ghoul. Também havia dito que os dois vândalos eram vampiros, e que ficaria escondido vigiando-o tudo até que chegasse ajuda.
  E aí estava. Mohammed tinha decidido que seria bom para a moral dos Filhos da Cripta que em meio da paranóia e a histeria aparecesse em público e se encarregasse pessoalmente do problema. A Irmandade devia saber que não podia lhe dar por morto. junto com outros dois vampiros, dois ghouls e oito pandilleros mortais tinham saltado a quatro carros e conduziam pela Auto-estrada do Porto. Estacionaram em dobro fila (como se a poli fora a nos prender) e atravessaram rapidamente o parque para o museu. Não tinha a seu lado a seus melhores homens, mas o que lhe faltava em qualidade o supria com quantidade.
  Organização, pensou. Não se pode manter a ordem sem organização. Tampouco podia manter a organização com a metade de seus vampiros e seus ghouls mortos ou escondidos da chamada maldição.
  Possivelmente sim seja uma maldição.
  Ao princípio tinha suspeitado de alguma enfermidade, pelo modo de estender-se e porque muitos de seus subordinados haviam mostrado uma progressão de sintomas similar. Nos cinqüenta, quando ainda não tinha sido Abraçado, duas misteriosas pragas varreram ao Sabbat e acabaram com um terço de seus efetivos.
  As organizações do Mohammed superavam essas baixas. Entre seus seguidores clandestinos do Sabbat, as perdas rondavam o oitenta por cento, pior que em algumas manadas de guerra suicidas. Suas bandas de ghouls e vampiros rondavam sozinho o cinqüenta por cento, o que seguia sendo devastador.
 Tinha tentado tomar precauções. Tinha amigos na escola de medicina da USC, e tinha feito examinar uma das vítimas dissecadas. Uma prova atrás de outra não tinham arrojado resultado algum. Além disso, se se tratava de uma enfermidade, o doutor tinha famoso que os mortais também deveriam ver-se afetados. Seguia sem ter nem idéia do que acontecia.
 depois de que Francesca perdesse sua larga batalha contra a maldição, Mohammed tinha queimado a casa do Watts. Ninguém se sentiria saudades por um edifício incendiado mais em um bairro cheio de conflitos. Fora o que fosse essa maldição, que mora com Francesca. Ele tinha voltado para sua cripta no cemitério do parque Inglewood, o motivo do nome de sua banda, abreviado para a maioria dos mortais. Até certo ponto tinha estado ocultando-se, tentando reagrupar-se, conferenciando com seus lugares-tenentes recentemente ascendidos, como Kenny e Marquês, que estavam com ele aquela noite. Aquele era outro motivo pelo que era necessária aquela demonstração, para que todos soubessem que Mohammed ao-Muthlim era ainda o dono de seu baronía. Os dois intrusos foram desejar não haver ouvido nunca seu nome.
 Enquanto o grupo descendia a enorme plataforma afundada do Parque de Exposições, Mohammed apertou com a mão o peitilho do colete. Fazia calor mais que suficiente na Los Angeles para as mangas curtas (apesar de faltar sozinho três dias para Ano Novo), mas as camisetas não podiam ocultar as duas estacas de madeira que sentia agora contra seu peito. Aquela noite não haveria piedade. Os homens de Salvador foram conhecer o verdadeiro inferno.
 Apesar de ser meia-noite, o jardim de rosas não estava vazio. Frente a eles um grupo de executivos hispanos ria em alto, provavelmente voltando para casa depois de um partido dos Clippers. Perto, um jovem casal dava um passeio romântico, enquanto que em uma rua paralela, à direita, um grupo de estudantes com mochilas se dirigia A... a classe? Não a aquelas horas. O pêlo da nuca lhe arrepiou.
 --Ao chão! -gritou enquanto ficava corpo a terra.
 Alguns de seus homens obedeceram sem hesitações, e aqueles que não o fizeram foram destroçados pela chuva de balas que chegou desde seu flanco direito. Os "estudantes" tinham atirado as mochilas e tinham aberto fogo com armas automáticas até então ocultas.
  De momento, as roseiras proporcionavam uma certa cobertura. Sem embargo, não lhes ocultariam de quão executivos tinham frente a eles, e que naquele momento se levavam a mão à jaqueta.
  Ao menos quatro dos mortais do Mohammed haviam sucumbido ao assalto inicial. Os que ficavam estavam tratando de devolver o fogo, mas logo que podiam aparecer a cabeça.
  Mohammed, que não queria ver-se apanhado pelos hispanos, saltou à esquerda para ocupar-se da "jovem casal", que sem dúvida estaria tirando as armas para fritar aos Filhos da Cripta. A metade do salto recebeu um balaço nas costas, mas conseguiu aterrissar junto ao casal.
  Os dois, meros adolescentes, pareciam aterrorizados pelos disparos. Duvidou de que se tratasse de membros da Irmandade, mas não havia modo de estar seguro. Golpeou ao menino com um murro ascendente que lhe separou o crânio da coluna vertebral. Aterrissou entre as roseiras, a vários metros de distância.
  À garota a apanhou ao tempo que várias balas se afundavam em seu pequeno corpo. A força dos impactos lhe afastaram do Mohammed. Pode que sobrevivesse, mas de momento não causaria problemas.
  Os disparos tinham procedido dos executivos e suas pistolas semiautomáticas. Seus outros dois vampiros, Kenny e Marquês, dirigiam um ataque contra os estudantes, alguns dos quais estavam ocupados recarregando. Decidiu encarregar-se dos trajeados.
  lançou-se de novo ao ar, desafiando aos hispanos a lhe disparar. Aceitaram. Uma bala atrás de outra atravessou seu corpo, mas pior ainda foi a escopeta de canhões recortados que um deles tinha tirado de debaixo da jaqueta. A arma disparou, mas não com a habitual explosão de chumbo.
  A estaca de madeira de trinta centímetros disparada a bocajarro afundou-se em seu peito.
  O vôo do vampiro lhe fez cair sobre os quatro pistoleiros, derrubando a dois deles. Durante um segundo acreditou estar paralisado pela estaca, mas o valentão tinha falhado e não tinha atravessado o coração.
  Entretanto, quando tratou de ficar em pé lhe falhou o braço esquerdo, com algum músculo ou tendão vital destroçado. Solo conseguiu girar-se torpemente. Os dois trajeados que ainda ficavam em pé titubearam, pois não conseguiam um disparo claro. Tempo suficiente para que o vampiro lhe arrancasse a pistola a um dos atacantes derrubados e disparasse contra o outros. Os dois valentões trastabillaron e caíram de costas.
 Um dos dois cansados no ataque inicial aferrou a estaca que sobressaía-me do peito do vampiro e a moveu a um lado. Uma terrível agonia dilaceradora percorreu todo seu flanco esquerdo enquanto seus olhos se enchiam de manchas de cores.
 Perdendo uma enorme quantidade de sangue por suas numerosas feridas, disparou às cegas até esvaziar o carregador. As manchas do caleidoscopio se fizeram maiores, mais brilhantes, até que seus borde seu uniram...
 encontrava-se observando as estrelas no céu. Estrelas? Estamos na Los Angeles As únicas estrelas que se podiam ver naquela cidade eram as do Sunset Alameda. Piscou com força e as estrelas começaram a tremer e a dançar a seu redor. Demorou um momento em compreender que tinha ficado inconsciente. A emboscada...
 levou-se a mão à estaca no peito e tudo voltou para ele imediatamente, inclusive de forma muito vivida. Quanto tempo levava fora de combate? O tiroteio parecia ter terminado.
 Então ouviu um disparo isolado, não muito longe. Outro.
 Se a Irmandade tinha vencido lhe estariam procurando e dariam com ele de um momento a outro. Tratou de encontrar em silêncio alguma pistola próxima. Se tinha sorte era pasible que ainda ficassem algumas balas.
 Cada centímetro que se arrastava provocava horríveis tremores em seu flanco esquerdo. A calçada de tijolo estava coberta de sangue, dela e dos mafiosos.
 Os círculos voltaram a dançar de novo. Teve que parar-se, mas a pistola parecia tão longínqua...
 --Mohammed!
 Tinham-lhe detectado. Outro disparo próximo.
 Tentou ignorar a dor e fez um último esforço por alcançar o arma, mas se derrubou nada mais começar. Tinha perdido muita vitae. Muito fraco. Lambeu desesperado a calçada. Se pudesse conseguir suficiente sangue...
 Umas mãos lhe aferraram e lhe deram a volta.
 --Mohammed! -Marvin, agora um ghoul devido à falta de pessoal, pareceu aliviado e levantou seu domitor até pô-lo em pé-. Já está.
 Cada movimento era pura agonia, e esteve a ponto de voltar para perder o conhecimento. depois de apoiar-se revisou rapidamente a cena. Muito poucos dos seus seguiam em pé.
 --E os outros? -disse com os dentes apertados.
 --Rodney está muito mal, igual a Kenny e Marquês, embora vivem, como você. Todos outros, salvo Johnny e Tranqüilo, estão mortos. Rico há palmado. Cócegas igual. Ey, sabe por que o chamavam Cócegas? -disse rendo, embora calou imediatamente ao ver o olhar furioso do Mohammed.
 girou-se para comprovar as costas de seu chefe e deu um golpe na ponta da estaca que me sobressaía. Mohammed gemeu e amaldiçoou.
 --Marvin -sussurrou, muito fraco para enfurecer-se-, vê a estaca?
 --Sim. Quer que lhe tire isso? -disse estendendo o braço.
 --Toca-a outra vez e é homem morto.
 O ghoul deteve a mão e decidiu usá-la para arranhá-la queixo.
 Mohammed se separou daquele estúpido, um doloroso ato de vontade, e conseguiu manter-se em pé por sua conta.
 --Procura bravo -disse-lhe-. Lhe traga como é à casa no Comrie Road, no Inglewood. Sabe qual te digo? -Marvin assentiu-. Quero saber se me jogou isso ou se lhe enganaram.
 O ghoul voltou a assentir e partiu para cumprir as ordens. Mohammed se reuniu com outros. Sabia que aquelas feridas foram a demorar para curar-se. Tinha perdido muito sangue.
 Tranqüilo e Johnny estavam tentando ajudar ao Rodney, Kenny e Marquês. O estou acostumado a estava talher de corpos e casquilhos vazios. Os roseiras e arbustos apanhados na briga não tivessem estado pior depois de uma praga de lagostas. As flores e as folhas se pegavam aos cadáveres ensangüentados e em algumas parte os arbustos estavam totalmente nus, ou diretamente arrancados do chão.
 --Olhe isto, boss -disse Tranqüilo assinalando um dos corpos. Mohammed o reconheceu imediatamente. Jorge Ramírez, primo e ghoul do Jesus Ramírez, emano direita de Salvador e líder de fato da Irmandade enquanto este estava em qualquer outra parte. Justo como tinha suspeitado. Aí estava a prova que necessitava.
 Sem mais demoras, os superviventes se dirigiram para os carros. depois de um tiroteio como aquele a gente ficaria bastante tempo afastada, mas Mohammed não queria estar pela zona. Logo que eram capazes de chegar até os carros. Mohammed, com Rodney gemendo e quase inconsciente no assento de atrás, estava furioso. Tinha sido levado da mão para uma armadilha. Já houvesse sido uma traição de Bravo ou um engano, deveria havê-lo visto vir. Entretanto, o estacionamento nem sequer era território em disputa. Estava firmemente em mãos dos Filhos da Cripta, longe dos terrenos de caça da Irmandade. Que melhor lugar para tender uma emboscada? Tinham estado a ponto de ter êxito. A ponto, pensou Mohammed. E agora pagarão por isso.
 Mas como preparar um ataque tão ousado e elaborado com sozinho dez mortais e ghouls, e sem um só vampiro?
 por que? Salvo que... Estaria desesperada a Irmandade? Aquilo não foi obra de Salvador, decidiu. Nunca tivesse enviado a outros a enfrentar-se diretamente a seu rival Não é o bastante melodramático. Não, Salvador deve estar fora do país O... Ou morto! Saltou ante aquela idéia.
 Em qualquer caso, Ramírez estava desesperado. Era provável que seus homens também estivessem caindo como moscas. Mohammed não tinha tido tempo de contar os corpos. Se os polis estavam pagos (e devia tratar-se de uma soma imensa para lhes fazer superar seu medo pelo Mohammed) não queria enfrentar-se a eles gravemente ferido e sem apoio real. Entretanto, aquela noite seria considerada uma grande perda de efetivos para a Irmandade, provavelmente mais que para os Filhos da Cripta, pois a banda de Salvador era muito mais pequena.
 Fizeram uma aposta se desesperada e falharam, compreendeu Mohammed, esquecendo por um instante as dezenas de balas dentro de seu corpo. Agora devo lhes fazer pagar, por muito que aduela.
 Isto é a guerra!
 Owain abriu rapidamente a tampa de seu luxuoso ataúde a noite de Ano Novo. Às vezes ficava ali convexo durante horas, inclusive depois de despertar, carente de energia ou de ânimo para levantar-se e confrontar uma noite mais. Não aquele dia. As primeiras notas da canção da sereia lhe tinham tirado de seu descanso.
 Como é possível, perguntou-se, que inclusive em meu lugar de repouso possa ouvi-la? Como o faz? Devo averiguá-lo.
 Nem sequer seu incrível sentido do ouvido podia explicá-lo. Sem embargo, as probabilidades de que o descobrisse aquela noite não eram muitas. Suas investigações objetivas sobre a sereia haviam dado passo fazia muito à imersão total na música. Não havia dúvida de que conservava uma certa curiosidade intelectual sobre aqueles sucessos, como tinha ocorrido a primeira vez que descobriu o rito fazia um mês, mas quando a canção se apoderava dele não podia negar as emoções viscerais despertadas. Eram emoções que Owain não tinha sentido em décadas e que agora retornavam a ele. De repente Atlanta, a mesma não-morte, já não eram lugares tão horríveis.
  Não havia tempo para barbear-se. Aquela noite teria que agüentar-se com a barba. Agarrou uma camisa, um colete e uns calças do armário.
  Surpreendia-lhe a energia que sentia. Não tinha conhecido aquele vigor desde... não recordava a última vez. Os hábitos dos vampiros formavam-se ao longo de dezenas, de centenas de anos. Meia três-quartos esquerdo, sapato esquerdo. Meia três-quartos direito, sapato direito. Nem sequer as menores mudanças na rotina se produziam de um dia para outro, mas Owain se sentia diferente desde fazia umas semanas. A noite passada tinha acreditado sentir uma pontada de fome. Isso não tinha acontecido desde... Tampouco se lembrava. É obvio, sempre alimentava-se com regularidade porque sabia que o necessitava, e esse era o tipo de coisas das que se encarregava um ghoul como Randal, que atuava como uma mãe sobreprotectora. Fazia anos que Owain não se via impelido pelo apetite do sangue. A sensação da noite passada lhe tinha pego tão de improviso que inclusive havia saído a caçar, escondendo-se nas sombras no exterior de uma festa de posta de comprimento até que um lustroso aperitivo da alta sociedade sei tinha partido a sua casa.
  dirigiu-se rapidamente para a planta baixa.
  --Randal! -gritou-. Lhe diga à senhorita Jackson que traga o carro!
  --boa noite, senhor -respondeu o servente, sempre preparado quando Owain baixava. Sempre estava arrumado, com o cabelo ruivo em ordem, a camisa branca engomada e impoluta, a gravata e o vestido negros imaculados-. Notícias da Corte Suprema Estatal, senhor. rechaçaram atender a apelação do Sindicato Cidadão em relação a recalificación. -deteve-se um momento com expressão preocupada-. Esqueceu-se de barbear-se, senhor?
  --Não. Não o esqueci.
  --Mas senhor...
  --Randal, não me provoque esta noite. Nem alguma vez. Entendido?
  O servente voltou a deter-se. Sabia que devia afastar-se do Owain quando estava de mau humor, mas aquilo era diferente.
  --Sim, senhor.
 --chamaste à senhorita Jackson?
 --Perdão, senhor? -Seguia uma frase mais atrás.
 --chamaste à senhorita Jackson como te pedi?
 --Ainda não, senhor.
 --E por que não, exatamente?
 --Sim, senhor, agora mesmo. -Randal se girou sem mais comentários e abandonou a habitação.
 Decididamente, chegou o momento de trocar, decidiu. Sem dúvida.
 Havia alguns detalhes que resolver. Lorenzo Giovanni lhe havia solicitado informação sobre algumas Vergônteas dê Atlanta, e supunha que tinha que agradecer a Benjamim que se encarregou de que o Chambelán de Justiça e a Corte Suprema Estatal tivessem tomado decisões tão soube. um pouco de vinho doce para aplacar a queimadura da caruncho de Benjamim nunca estava de mais. Mas já haveria tempo para isso mais tarde. Os assuntos legais tinham o hábito de alargar-se tanto que Owain dava obrigado a que sua imortalidade o permitisse vê-los concluídos. Além disso, o Giovanni não parecia ter uma pressa excessiva.
 Voltou a captar as notas do canto da sereia. Ansiava o momento de ver aquelas terras familiares. Adref. Seus pensamentos retornaram a seu lar, mas se recordou que, ao contrário que os mortais, e possivelmente também que Albert e Roger, ele não tinha a obrigação de atender os ritos daquela igreja. Podia ignorar a canção sempre que o desejasse... mas de momento não gostava de fazê-lo.
 Necessitava uma noite tranqüila e relaxada, disse-se. Os últimos dias seu descanso se viu assaltado pelas visões da névoa, a árvore ameaçadora tomando forma do cajado e todo o resto.
 Que melhor modo de relaxar-se que satisfazer sua curiosidade intelectual?
 --Senhor -Randal apareceu no estudo com uma pequena parte de papel-. Acaba de chegar esta mensagem de parte do Príncipe Benison. Solicita sua presença em uma reunião de emergência do conselho da primogenitura esta mesma noite.
 A primeira reação do Owain foi pensar em que não lhe tinha dado ao Randal permissão para abrir a correspondência oficial. Então compreendeu o conteúdo da mensagem.
 --Esta noite -disse com desgosto. O príncipe levava várias semanas cada vez mais turbado, e embora estava escrito que se tratava de uma solicitude, em realidade era uma ordem.
 As notas da canção da sereia se fizeram mais fortes, como as primeiras gotas de uma chuva primaveril que anunciassem a magnitude da tormenta que se morava.
 Maldição! Nem sequer podia alegar que não tinha recebido o mensagem, já que as pombas mensageiras do Benison eram tão confiáveis como o amanhecer. Embora a nota a tinha recebido Randal, e não ele diretamente...
 Tinha que haver algum modo, pensou. Aquele conflito entre o desejo e a obrigação lhe tinha acossado como mortal e durante os primeiros anos atrás de seu Abraço. Entretanto, pouco depois havia decidido que seu dever era cumprir seus próprios desejos. Desde então tinha feito virtualmente o que tinha querido, embora ultimamente tinha havido poucas ocasiões nas que tivesse querido algo. Aquela era a diferença com este Ano Novo.
 Tecnicamente não pertencia à primogenitura. Eleanor representava aos Ventrue, e estaria mais que contente de não lhe ver. Ainda lhe surpreendia que aquele modelo de propriedade perdesse o tempo com Benjamim. Como conseguia excitá-la o jovem Ventrue? lhe lendo casos de seus livros de Direito?
 Aquilo decantou a balança. Devia-lhe um favor a Benjamim, assim decidiu pôr a Eleanor de melhor humor não assistindo à reunião. Pode que se inspirasse para aquilo que Owain sempre tinha acreditado que necessitava em realidade, fora vampira ou não: uma boa orgia à antigo uso.
 --Não deveria barbear-se antes de ir à reunião, senhor? -perguntou Randal.
 Owain lhe entregou o papel.
 --Não vou.
 Randal não podia acreditar o que estava ouvindo.
 --Mas senhor, o príncipe...
 Aquilo quase lhe tirou de suas casinhas.
 --Gostaria de passar em meu itinerário para esta noite, Randal? Devo lhe enviar minha agenda semanal para que você dê seu visto bom?
 O servente sabia quando se havia extralimitado.
 --Não, senhor -disse com absoluta deferência.
 --Isso acreditava -respondeu o vampiro tomando sua adaga e ocultando-a na vagem do cinturão. O estilete já estava em seu lugar-. Não me espere levantado. -O Rolls esperava fora, e uns momentos depois Owain e a senhorita Jackson partiram a toda pressa para o cemitério do Oakland.
 Benison não deixava de dar voltas pelo saguão. Onde demônios se tinha metido Evans? Toda a primogenitura estava presente e esperando na sala de conferências. Owain nem sequer forma parte daquela reunião. Não tinha privilégio de voto, mas o príncipe queria que estivesse presente enquanto ele instruía a seus seguidores sobre o modo em que ia salvar a cidade da maldição que estava a ponto de destrui-la.
 Um pensamento inquietante cruzou por sua mente. Owain podia ter cansado vítima da maldição. O que outra razão podia haver para sua ausência? Seja como for, sua paciência tinha um limite. Já averiguaria mais tarde o ocorrido.
 Enquanto se dirigia para a sala de conferências reparou no som dos operários arrumando o muro do salão. O abajur, os quadros, o tapete oriental, o estofo do sofá... Tudo tinha sido reposto. Em uma hora ou dois não ficaria sinal alguma de que Roger tinha passado por ali. Torceu o gesto ao pensar em seu único menino. Desde o começo não tinha sido mais que um grande engano. Se voltava para Abraçar algum dia esmagaria a seu menino com suas próprias mãos ao menor signo de problemas, em vez de permitir que os vexames seguissem durante anos.
 Guarda a correia e joga-o a perder, pensou. Aí havia outro caso de indulgência que contradizia a vontade divina. Não voltaria a acontecer.
 A primogenitura aguardava sentada ao redor da grande mesa de nogueira. Benison se uniu aos reunidos. Bedelia, sentada comodamente em sua cadeira de rodas, representava ao clã Malkavian (pois Benison era o príncipe). Seu fiel algema Eleanor tinha o voto de os Ventrue. Thelonious, com o que tinha tido incontáveis discussões agitadas, representava aos Brujah. Marlene e Hannah a os Toureador e os Tremere, respectivamente. Inclusive Aurelius, o diminuto Nosferatu talher de ampolas, tinha vindo arrastando-se desde sua guarida como resposta a sua chamada. Não havia nenhum Gangrel na primogenitura de Atlanta, embora sim vários membros do clã entre os anarquistas.
 Os bate-papos que estavam tendo lugar se detiveram quando Benison entrou na sala. aproximou-se com passo firme ao redor da mesa para seu assento na cabeceira, mas não se sentou. inclinou-se apoiando-se sobre os punhos e observou sério a todos os pressente.
 Começou a falar com calma e em voz baixa, sem preâmbulo algum. Todos conheciam perfeitamente a situação.
 --Nós, Vergônteas de Atlanta, sempre tratamos que permanecer fiéis a nosso Criador Todo-poderoso. Foi mediante o legado de um de nossos primeiros pecados, o primeiro assassinato, que convertemo-nos no que agora somos. Nossa obrigação, portanto, é procurar a redenção para voltar a reunimos com os desejos de nosso Pai celestial.
 Fez uma pausa, observando o rosto dos reunidos. Sabia que entre a primogenitura havia quem não compartilhava sua visão sobre o papel e as obrigações dos Cainitas no grande esquema do universo, mas estava convencido de que, embora não aceitassem a explicação, acatariam suas medidas.
 --Ao ser mais que mortais mas menos que divinos, ao poder errar, afastamo-nos que o caminho da redenção. Nosso Senhor está aborrecido e as Vergônteas de Atlanta sofrem.
 Eleanor e Marlene lhe observavam cuidadosamente. Thelonious se olhava as mãos entrelaçadas, Hannah tinha os olhos cravados na mesa e nenhum traía reação alguma ante aquelas palavras. Aquilo preocupava ao príncipe. Bedelia roncava brandamente, enquanto que a expressão do Aurelius era indecifrável devido a aqueles olhos chorosos e disformes. A primogenitura de Atlanta era estóica e reservada. Benison não se atrevia a predizer suas reações.
 --Esta maldição que nos impôs -seguiu-, é um fiel reflexo de nossas transgressões. Como os jovens da cidade ignoram voluntariamente os desejos de nosso Pai, como sentem prazer em fazer todo aquilo que lhes proíbe, sofrem o maior tortura. Não sinto pena por eles.
 produziram-se movimentos entre os reunidos. Thelonious, lido mas Brujah ao fim e ao cabo, tinha claras simpatias para as Vergônteas mais jovens. Era possível que tivesse previsto para onde foram as reflexões do Benison. Marlene, através dos "centros de recreio" que controlava (locais de strip e clubes de alterne), também guardava muita relação com aqueles Cainitas rebeldes. Tinha muito que perder de uma clientela descontente.
 Devem ver o perigo maior!, Pensou o príncipe.
 --As Vergônteas mais jovens desfrutam jogando com os limites de a Mascarada, que nos mantém a salvo do mundo dos mortais. Ignoram as fronteiras de caça e semeiam o caos por toda a cidade, pensando sozinho neles mesmos. -Enumerar as indignidades sofridas-lhe enfurecia, e se sentia mais animado à medida que a agitação aumentava. Sua voz se fez ensurdecedora-. Abusam da liberdade que os concedo magnânimo!
  Golpeou a mesa com o punho.
  --acabou-se!
  Marlene saltou de seu assento e Bedelia despertou com uma piscada, estalando sonoramente os lábios.
  --As tradições que ridicularizam -seguiu com ira crescente-, são o cimento da civilização das Vergônteas, o que nos situa por cima das bestas, o baluarte da ordem exigida por nosso Criador ao começo do tempo. Embora haja tratado de outorgar liberdade para que cada um possa seguir seu livre-arbítrio, não seguirei ficando ao margem para ver como o lar que construí, a sociedade da que somos irrevocablemente parte, é despedaçada pela diversão egoísta de uns poucos. -Voltou a golpear a mesa, acentuando sua idéia.
  Esperou um momento para acalmar-se. Nenhum se atreveu a interromper oferecendo sua opinião, por isso seguiu falando.
  --Desde hoje em adiante as Tradições serão cumpridas. Ao pé da letra. Chamado-los anarquistas poderão viver em minha cidade, mas não obterão que reine o caos. Obedecerão as Tradições e os pronunciamentos do conselho. Em caso contrário se enfrentarão ao exílio... ou à morte definitiva.
  Thelonious não podia seguir em silêncio, embora ao Benison o surpreendia que tivesse agüentado tanto tempo.
  --Mas nossa cidade floresce graças à liberdade, Príncipe Benison. As Vergônteas não se submeterão a um estado policial. Terá uma nova Revolta Anarquista em que disporão de muitos simpatizantes.
  Benison lhe lançou um olhar furioso. te afaste de mim, Satanás, quis gritar, mas refreou o impulso. Thelonious falava da convicção, não da malícia. Entretanto, ele desejava um mundo sem as lealdades duvidosas do clã Brujah.
  --O que nossa cidade floresce graças à liberdade? -perguntou zombador-. Uma Vergôntea que se alimenta sem parar mas que não sacia seu fome, por muita vitae que consuma, é florescimento? Um Vergôntea que segue o caminho do sangue através da vida de seus ancestros até que a loucura se apodera de sua mente e de seu corpo é florescimento? Uma Vergôntea atacada por seu próprio menino, louco pela fome, é florescimento?
  Thelonious apartou o olhar. Todos conheciam o destino do Roger, e nenhum queria tocar aquele tema. Os estalos de raiva do Benison eram tão legendários como mortais.
  --Eu... digo... que... não! -Os golpes dos punhos contra a mesa marcaram cada palavra-. A Tradições e as Leis serão obedecidas! -Em seus olhos dançava um fogo esmeralda que desafiava a qualquer a lhe contradizer. O silêncio caiu sobre a sala e Thelonious voltou a olhá-las mãos.
  »Este é o primeiro de três decretos -seguiu Benison-, e o mero feito de que tenha que discutir que terá que manter as Tradições -disse lançando um olhar assassino ao Brujah-, demonstra-nos o escuras que são as noites atuais. -Normalmente o príncipe esperava, e até fomentava, os debates tensos entre a primogenitura. Muitos amanheceres ele, Eleanor e Thelonious haviam tido que interromper suas disputas sobre política, finanças ou direitos civis solo pela aparição do sol. Entretanto, aquela noite o ardor messiânico tinha alcançado tinturas febris, e só ficavam justos e pecadores. O príncipe não considerava aquela reunião um foro de deliberação, a não ser um modo de expor ante os líderes da comunidade as medidas que se adotaram e que deviam fazer cumprir.
  »Meu segundo decreto -seguiu Benison-, é este: que os sem clã entre nós, os Caitiff, deverão escolher um clã de que formar parte, pois em caso contrário eu mesmo o atribuirei. A partir desse momento deverão cumprir todas as responsabilidades e deveres correspondentes. -produziu-se um murmúrio de assombro na reunião. Nem sequer Eleanor esperava aquilo. Mas havia mais.
  »Se uma Vergôntea rechaçar sua incorporação a um clã, ele ou ela será expulso da cidade, e em caso de desafiar o exílio será castigado com a morte definitiva.
  produziram-se sufocos de assombro.
  --Mas Príncipe Benison -disse Eleanor, sempre cuidadosa de dirigir-se adequadamente a seu marido em público-, os anarquistas jamais se submeterão a uma lei assim.
  --Não procuro seu consentimento -respondeu, evidentemente irritado pela fonte da pergunta-. Rechaçam nossos instrumentos de governo, e portanto não solicito seu conselho sobre as leis pelas que devemos nos reger.
  --Mas isso significará a guerra -insistiu Thelonious-. Rebelarão-se antes de submeter-se.
 --Então morrerão! -saltou o príncipe.
 O Brujah se negava a claudicar.
 --Quer que intervenham os Justicar? Pois isso é o que acontecerá se promulgar decretos arbitrários como esse. Quer que devam governar ao te considerar incapaz?
 O rosto do Benison estava avermelhando. Thelonious lhe estava empurrando ao bordo de um ataque de fúria, e todos eram conscientes disso. Tanto Marlene como Aurelius retiraram um pouco suas cadeiras da mesa. O Brujah, que viu aproximar o precipício, decidiu guardar silêncio.
 Os dedos do Benison se estavam cravando na mesa. Um tremor furioso se apropriou dele durante um instante, mas tratou de manter o controle.
 --Estes decretos são algo menos arbitrários, Thelonious -disse obrigando-se a sorrir enquanto pronunciava o nome, embora não conseguisse mais que uma careta de desprezo-. Durante semanas vi meu cuidem cair a pedaços. Vi Vergônteas enlouquecidas despedaçar a seus irmãos. Vi uma loucura que chegou ao suicídio. Vi a Mascarada dissolver-se até desaparecer. Sozinho porque tenho influência entre a polícia e só porque você, Thelonious, controla os periódicos e outros meios de comunicação, nossa sociedade vampírica não foi totalmente destruída.
 Ninguém podia negar a catástrofe que tinha cansado sobre a cidade, já que todos tinham presenciado a deterioração e a decomposição.
 --Vi -seguiu Benison-, e enquanto apertava os punhos estudava, pois esta não é a primeira ação entre as Vergônteas ou o ganho que foi predita. Embora atuemos com o livre-arbítrio com o que nosso Criador nos obsequiou, todas nossas ações, todos os desastres que acontecerão, são conhecidos.
 »"É o Fim dos Tempos" -citou-. "É a Queda do Sangue. O Dia do Julgamento".
 O silêncio voltou a cair sobre a mesa. Todos tinham ouvido o príncipe, nas antigas preces semanais, recitar ou ler fragmentos do Livro do Nod que tinha adquirido. Solo que antes sempre tinha compartilhado a Lei, as Tradições ou os fundamentos da sociedade da Camarilha, nunca as escuras profecias que assinalavam o fim das Vergônteas.
 --O Tempo do Sangue Queda está sobre nós -disse-. Aí estão as mais jovens Vergônteas, cujo sangue é muito fraco para criar origem. -Fez uma pausa antes de seguir recitando.
  »"E nos últimos dias o Professor tomará uma vez mais seus Ferramentas. O Firmamento tremerá e a Terra mesma será partida em dois. Os lugares secretos da Terra serão expostos aos céus e as criaturas das trevas uivarão à luz do dia. Pois está escrito que Abel era o guardião da ovelha e Caín o que arava a terra".
  »"O Primogênito chega furioso e saca a seus filhos de suas tumbas. Sua ira é um martelo, uma maça tosca manchada com o sangue do assassino de reis. Domina o raio a seu passo".
  Fez uma pausa. As palavras que tinha pronunciado tinham o peso das idades, e nenhum deles tomava à ligeira, nem sequer o Brujah.
  --Não só ofendemos a nosso Deus -disse o príncipe gravemente-, mas também a nosso Pai Tenebroso.
  »"Sua voz é um vento escuro que percorre a planície. Ante seu palavra, os céus se abrem e o sangue chove sobre os sulcos que há preparado. Seus filhos se elevam espectadores com o rosto para os Céus, mas são afogados pela corrente da vida. Tal é o preço da fome ".
  Nenhum dos pressente procurou o olhar do Benison. Para ouvir aquelas palavras, as declarações atribuídas ao escriba da antiga Primeira Cidade, não parecia tão desatinado que Deus ou Caín tivessem considerado adequado deixar cair sua fúria vingadora sobre as Vergônteas.
  --esquecemos os decretos imemoriais, os costumes e o ordem que definem nossa existência -insistia-. E o mesmo sangue que deveria nos dar a vida... -disse levantando uma mão até os dentes. abriu-se uma ferida na palma e apertou o punho, deixando que a sangue escorregasse por seu braço e caísse até a mesa- ...é nossa maldição.
  Podia ver que ainda havia quem se opunha, alguns que careciam de sua visão e sua coragem. Thelonious, momentaneamente intimidado mas firme em suas crenças, observava a mesa com atenção. Aurelius nunca olhava além dos deslizes do passado, a pesar das necessidades da cidade. Marlene parecia assustada ante aquela idéias apocalípticas, enquanto que as lealdades da Hannah estavam principalmente com seus professores Tremere.
  Como podem ser tão cegos?, perguntou-se. Olhou-os a todos e viu-o claramente.
 --Estamos acelerando o Fim dos Tempos! Estamos invocando a destruição sobre nossas cabeças! Estas decisões não são arbitrárias -voltou a assegurar-. Em qualquer caso, estão predestinadas. Não acredito que seja muito tarde para retornar ao caminho da justiça. Nós abriremos a marcha para tudas as Vergônteas. Esta cuidem será o farol sobre a colina que os guie durante os Tempos Escuros.
 Silêncio.
 --Os sem clã devem ser submetidos; devem integrar-se nos clãs ou enfrentar-se às conseqüências. Devemos restaurar a ordem natural ou nos enfrentar ao Fim. "Então Caín tirará o jugo a seu boi de olhos vermelhos, cujo nome é Gehena, pois nada poderá lhe contentar".
 Eleanor observava cuidadosamente a seu marido, cativada pela intensidade de suas convicções. Marlene retirou as mãos da mesa para tentar ocultar seu tremor a outros.
 Foi Thelonious o que rompeu o silêncio, com um tom tranqüilo mas desafiante.
 --Como primogenitura, devemos votar este assunto.
 Benison soltou um bufido. Cheio pelo orgulho e a indignação da justiça, torceu o gesto ante o Brujah.
 --Votaremos os decretos in toto. Esse é meu direito.
 Olhou ao redor da mesa. Compreendeu que se enganou ao esperar o apoio unânime da primogenitura. Em realidade, nem sequer tinha os quatro votos necessários assegurados para a vitória.
 Mas ainda ficava um terceiro decreto.
 --Um lugar santo de devoção foi profanado -disse, observando lentamente a todos os presentes em busca de qualquer amostra de reconhecimento. Não viu nada. Até o espantado Aurelius parecia perplexo-. Isto, é obvio, ocorreu sem meu conhecimento, mas recentemente me foi comentado. Ao este, não longe daqui, uma vampira desconhecida de uma linha de sangue pouco freqüente há tomado em segredo refugio em uma igreja abandonada. Ali, em terreno consagrado, não só se alimenta sem permissão dos mortais desta cidade, mas sim leva a cabo terríveis rituais demoníacos. Pode que inclusive tenha criado origem sem meu consentimento, nem o de nenhum antigo. -Seguia lhes observando atentamente-. Perguntarei-lhes isto uma só vez como primogenitura. Uma só vez. -Esperou um momento para que todos compreendessem a gravidade de suas palavras-. Alguém nesta sala conhecia esta violação da Tradição, da Lei, da vontade divina?
 Não era freqüente que um príncipe pudesse submeter a toda a primogenitura de sua cidade a um escrutínio assim. Entretanto, os tempos eram se desesperados e nenhum mostrou reação alguma à acusação implícita. Objetar ante aquela audácia do príncipe podia ser interpretado como culpabilidade, e em seu atual estado mental Benison não parecia disposto a perdoar ou esquecer nenhuma confissão, real ou imaginária.
 O silêncio se apropriou da mesa.
 --Muito bem -disse por fim-. Direi-lhes o que direi a tudas as Vergônteas de Atlanta amanhã de noite. Depois de ter sido concedida a oportunidade da confissão não haverá misericórdia-. O príncipe os observava atento. -Encarregarei-me desta Filha da Cacofonia. depois de esta noite, seu canto de sereia não voltará a amaldiçoar esta cidade, nem nenhuma outra.
 Roger não tinha dado toda aquela informação ao príncipe. Benison nem sequer estava seguro pelas últimas divagações de seu menino morto de que a pálida cantor fora uma vampira, mas sim o tinha dado a entender que algo estava acontecendo, e tinha outras fontes de informação.
 As aparentes conversações solitárias do Benison não eram meras excentricidades, a não ser uma poderosa arma em seu governo da cidade: por suas ruas e edifícios vagavam incontáveis espíritos. Os mortos sem repouso da escravidão, da Guerra entre os Estados, de a cruzada dos direitos civis, todos enfeitiçavam Atlanta. De seu sire Bedelia tinha aprendido a arte, ou possivelmente a maldição, de ver e conversar com aqueles espíritos.
 depois da morte do Roger, Benison tinha falado com um dos Anacreontes, a contrapartida espiritual da primogenitura de os vampiros. Era a pedido destes fantasmas que Benison havia declarado o cemitério do Oakland zona vedada às Vergônteas. O espírito tinha feito averiguações entre os seus e lhe havia informado. Entre o comentado pelo Roger e aqueles novos dados, tinha imaginado o resto. Armado com este conhecimento, estava disposto a retificar aquela situação.
 --Canto? O que tem que mau no canto? -Todos os olhos se voltaram para Tia Bedelia, que repentinamente tinha cobrado vida e olhava com olhos curiosos-. Eu gosto da música, de vez em quando. E sou uma grande bailarina... -acrescentou dando golpecitos no reposapiés de sua cadeira de rodas.
 Benison se sentiu confundido por aquela intervenção. A palavra da Bedelia era lei para ele, e inclusive aquele questionamento estranho de seu decreto afetou a sua segurança. Possivelmente a canção da Filha da Cacofonia não fora uma maldição para a cidade. Sentiu debilidade em os joelhos. Solo seu sire podia lhe haver produzido aquele efeito.
  --Possivelmente, então, devamos proceder a votar -sugeriu Thelonious, encorajado com a situação do príncipe-, enquanto todos estamos... atentos. -Olhou a Bedelia, que tinha um grande sorriso na cara.
  Benison se lambeu os lábios ressecados.
  --Muito bem -disse olhando nervoso ao redor da mesa-. Votaremos os decretos. Os três ao mesmo tempo.
  O Brujah ficou em pé.
  --Voto em contra -anunciou desafiante, embora inclinando a cabeça em sinal de respeito ao príncipe-. Embora admire os motivos do Príncipe Benison, acredito que as medidas não farão mais que piorar a situação, já difícil, com os anarquistas. Em relação à intrusa, acredito que pode ser tratada com as leis existentes sobre a violação de as Tradições. -sentou-se.
  --Eu também voto em contra -murmurou Aurelius com uma voz grave que ao Benison recordou ao grunhido de um cão selvagem. Ao contrário que Thelonious, o Nosferatu não ofereceu explicação alguma para seu decisão.
  Eleanor ficou em pé.
  --Apoio os decretos -disse com a suficiente incerteza como para deixar clara sua falta de confiança. Durante um instante pareceu que ia justificar sua ação, mas ao final não disse nada e voltou a sentar-se.
  --Eu voto pelo decretos -disse Marlene, que ainda se sujeitava as mãos e sorria fracamente ao príncipe.
  Hannah tinha a vista cravada na mesa e não olhou a ninguém. De momento guardava silêncio.
  Benison olhou a Tia Bedelia, que ainda parecia muito interessada em tudo o que acontecia a seu redor.
  --Mãe? -perguntou, espectador.
  Dedicou um amplo sorriso a seu menino.
  --O que estamos votando?
  Benison lançou um suspiro exasperado. Outros contiveram seus murmúrios de irritação. O príncipe se esfregou a cara para logo começar a arranhá-la barba.
  --Estamos votando os decretos -explicou com paciência-. Os decretos para que as Vergônteas respondam pelas violações das Tradições, para obrigar aos ladrões e selvagens Caitiff a que adotem as regras dos clãs respeitáveis e para destruir ao infecto despojo que invadiu nossa cidade para atrair sobre nós a ira de Deus.
 Bedelia assentiu com entusiasmo.
 --Sim, é verdade. Sobre o do canto. Eu gosto da música. Voto contra os decretos. -Olhou sonriendo ao Benison, orgulhosa de si mesmo.
 O príncipe se apoiou contra a mesa e tragou saliva.
 --Mas mãe, compreende...?
 --Esse é meu voto -saltou pondo fim a seu bom humor-. Já é de dia? -disse olhando por uma janela inexistente-. Estou cansada. Pode me pentear, J. Benison?
 O príncipe não ouviu seu sire. derrubou-se em sua poltrona. Como podia estar ocorrendo aquilo? Suas firmes convicções e seus ações decididas se estavam perdendo pelo deságüe. A desesperança se apoderou dele, esmagando seu coração como uma presencia física.
 --Voto pelos decretos.
 O príncipe saltou como uma mola.
 --Perdão?
 Hannah, que seguia olhando a mesa incômoda com tantos olhos sobre ela, repetiu a frase e guardou silêncio.
 --Voto pelos decretos.
 Thelonious, incrédulo, voltou-se para ela, mas não chegou a articular palavra.
 Benison sentiu como o poder da convicção retornava a seu corpo. Virtualmente saltou da cadeira.
 --claro que sim! Como eu. A primogenitura de Atlanta aprova os Três Decretos de Ano Novo para que sejam cumpridos por mim mesmo, J. Benison Hodge, Príncipe de Atlanta, em... -Tirou um relógio de ouro que assinalava doze minutos depois de meia-noite- ...no primeiro dia de janeiro do ano de nosso Senhor de mil novecentos e noventa e nove.
 Triunfante, fechou o relógio e começou a dirigir-se para a porta. Seu breve crise de confiança tinha sido totalmente exterminada.
 --Não há tempo que perder. Todos têm trabalho: informem a cada membro de seu clã, a cada anarquista, a cada Vergôntea de a cidade, que manhã de noite reuniremos às doze no armazém abandonado que há frente ao cemitério do Oakland. Sem exceções. Todos os vampiros deverão estar pressente. -deteve-se um instante na porta-. Eleanor, carinho, acompanha aos convidados a a saída. Tem coisas que fazer.
Com isto, desapareceu.
 A pequena aldeia, com seus habitantes sem dúvida dormidos sob as cobertas de telha pesada, não podia saber que o navio vikingo de Ragnar Nordstrom se aproximava da costa. Os nórdicos estavam calados como uma tumba enquanto o navio se detinha brandamente perto da borda, lançando ondas concêntricas que distorciam o reflexo da lua enche sobre as águas.
 Os guerreiros tinham suas ordens. No bote havia espaço para doze escravos que podiam ocupar-se dos remos, ao menos até que começasse a sentir fome e se os fora comendo um detrás de outro. O cálculo crucial estava em não secá-los tanto como para que se ficasse sem escravos antes de chegar a seguinte aldeia.
 Aquele lugar, A Terra de Gelo, de nome estranho devido a seus fontes de vapor e suas zonas verdes, era o ponto mais longínquo ao que Ragnar e seus homens tinham navegado nunca. As últimas noites tinham sido bastante angustiosas, já que durante muitos dias não viram terra, e os últimos escravos irlandeses se estavam acabando. A tripulação, que temia por suas próprias vidas, podia amotinar-se durante o dia, quando não podia fazer nada por detê-la. Podiam ter derrotado aos três companheiros aos que tinha convertido em ghouls para lhe proteger nas horas de sol e ter arrojado ao vampiro ao fundo do mar.
 Possivelmente poderia ter mergulhado para baixo até alcançar uma profundidade afastada da luz, aproximando-se de noite ao navio para cobrar-se vingança. Entretanto, o mais provável é que tivesse perecido no mar cruel como o pescado na panela.
 Embora a tripulação tivesse conseguido lhe destruir, não teria oportunidade alguma de retornar. afastaram-se muito de qualquer terra conhecida, e se tivessem enfrentado a aquele vasto mar com fornecimentos minguantes e sem a ajuda de um guerreiro formidável como ele para lhes ajudar na batalha se encontravam civilização.
 Seguiriam para o oeste. Havia informações sobre uma Terra Verde e sobre uma vasta região de rios e árvores mais à frente. O sangue vampírica que fluía por suas veias lhe levava sempre para diante. Inclusive as costas da Irlanda e as montanhas do Gales estavam muito povoadas para ele. O sangue te trocará, havia-lhe dito a besta que lhe atacou. Assim tinha sido. O mar era tudo o que havia conhecido, mas os limites do navio estavam afetando a seus nervos. Pode que simplesmente abandonasse a sua tripulação naquela Terra Verde, se era a metade de exuberante que esta Terra do Gelo. Se não era assim, seguiria para o oeste até que encontrasse uma região o bastante grande para ele, e depois correria e caçaria sob a lua, desfrutando da liberdade dos espaços abertos.
 Entretanto, de momento estava a aldeia.
 Parte de seus homens avançaram em silencio até o outro extremo para cortar a rota de escapamento mais provável. Todos tinham suas ordens. Doze escravos. Todo o resto era pasto do saque.
 Ragnar teve uma estranha revelação e se voltou para o Sven, o ghoul mais próximo.
 --Dois escravos mais, Sven -sussurrou. saciaria-se antes de retornar ao mar, para que os outros doze durassem o máximo possível. Sven assentiu e informou a outros.
 Tudo estava preparado. A aldeia dormia pacífica.
 Ragnar acendeu uma tocha e a levantou: o sinal. Com um rugido ensurdecedor começou o ataque.
 Os habitantes das choças mais próximas ao mar foram agarrados por surpresa, dormindo. Em uns poucos minutos, os quatorze escravos estavam atados e havia uma cabana em chamas, sinal de que já podiam fazer tudo o que quisessem. Um grito vitorioso percorreu aos nórdicos.
 O ar se encheu de fumaça e brasas enquanto os telhados de uma cabana atrás de outras eram presos. Os aldeãos que fugiam não ofereciam resistência alguma. Os vikingos estavam muito bem armados, e com a vantagem da surpresa total estavam aterrorizando e exterminando à população antes de que esta pudesse montar uma defesa. Aos homens os matavam. A algumas mulheres e meninos os detinham para violá-los, mas em ocasiões eram assassinados com a mesma brutalidade. Não havia muitas riquezas naquela aldeia, assim que as viúvas e irmãs estavam acostumadas receber as cuidados do menos um dos guerreiros antes de ser decapitadas.
 Os gritos das vítimas ressonaram nos ouvidos do Ragnar e o fizeram sorrir. Solo os fortes e desumanos sobreviviam naquele mundo, e tinha descoberto que solo uns poucos escolhidos superavam o véu da morte, reis entre os homens. Cada grito, cada vial de sangue derramado sobre o chão rochoso, era um tributo a seu domínio sobre a vida... e sobre a morte.
 Para sua surpresa, três aldeãos com espadas tinham conseguido reunir-se e se encontravam preparados em círculo, protegendo-as costas. Vários vikingos lhes rodeavam, fintando e atacando, embora ainda não tinham conseguido romper sua defesa.
 Ragnar franziu o cenho. O que esperam conseguir? Não podem salvar a suas mulheres nem suas casas, nem sequer suas vidas, mas seguem lutando em vez de escapar. Fútil. Entretanto, sabia perfeitamente que aquilo é o que tivesse feito ele ou qualquer de seus homens na mesma situação.
 Não estava disposto a perder a nenhum de seus guerreiros antes da viagem que lhe esperava por diante, assim que se aproximou da briga, fazendo um gesto a seus homens para que se retirassem.
 Dois dos aldeãos se giraram para encarar-se com ele, enquanto o outro olhava para trás, protegendo suas costas.
 --lhe digam a seu amigo que se uma a nós -disse o vampiro-. Os outros não atacarão.
 Um dos dois cuspiu em sua direção e falou com um estranho acento do que solo sabia que era desafiante. mantiveram-se em seu posto, com as espadas preparadas para defender-se de qualquer ataque.
 A seu redor, os últimos habitantes morriam.
 Ragnar depositou seu escudo no chão e deu um passo adiante. Se enfrentaria a eles sozinho com a espada. Era mais do que necessitava, mas não tinha sentido assumir riscos desnecessários.
 Fintó com sua arma, e enquanto os dois oponentes reagiam-se lançou com cegadora velocidade entre seus ombros, cravando as garras na parte traseira da cabeça do que lhes cobria as costas. Atirou dele para apartar o de seus amigos e lhe esmagou o crânio para que todos o vissem.
 Os dois olhavam atônitos como o corpo de seu companheiro se desabava sem vida. Um movimento da espada desarmou ao segundo, ao que abriu a garganta com as garras.
 O terceiro baixou a arma, seguro de que não tinha nenhuma possibilidade. Ragnar lhe recompensou com uma morte rápida.
 --Não está mau -disse uma voz a suas costas-, mas te atreve com um árvore de folha perene?
 Ragnar se voltou lentamente.
 O mundo começou a girar de forma incontrolável e teve que fazer esforços para manter-se em pé. Não estava rodeado por seus guerreiros e o lhe gratifiquem aroma das casas ardendo, mas sim pelas formas imprecisas das árvores e o som da água na montanha.
 --Qual é seu nome, destruidor de árvores? -perguntou a figura.
 O estou acostumado a seguia girando sob os pés do vikingo, embora pouco a pouco sua visão se foi esclarecendo.
 --Meu nome... meu nome é Nicholas.
 O recém-chegado era uma Vergôntea, também Gangrel, por isso podia ver em seus rasgos lobunos. Além disso, não tinha o aroma forte de os homens lobo.
 --Meu nome é Edward Plumanegra -disse o outro-. Tentará-o contra um que não está enraizado em um mesmo sítio?
 Nicholas olhou atrás dele. Duas árvores apresentavam enormes cortes, enquanto outro, um muito jovem, tinha sido completamente arrancado e estava convexo a seus pés.
 --Ou só você gosta de afundar suas garras na seiva? -perguntou Plumanegra, acuclillado sobre uma rocha.
 Nicholas sorriu e se lançou contra ele.
 O vampiro saltou sobre os ramos de uma árvore enquanto Nicholas voava a seus pés. Este aterrissou e se girou, mas não viu sinal de seu competidor... até que lhe derrubou de um flanco.
 Tratou de girar e afastar-se, mas a presa da Plumanegra era incrivelmente forte e terminou com ele debaixo, imobilizado. A aquela distância pôde ver que o corpo de seu rival estava talher de um pelagem escura. As orelhas, parcialmente ocultas pela juba negra, eram lobunas, e as presas brilhavam sob a luz da lua. Além de lhe arranhar as bonecas, Nicholas não podia fazer nada desde seu posição.
 --Rendo-me -disse.
 --Provavelmente seja uma boa idéia -disse Plumanegra lhe piscando os olhos um olho e lhe permitindo levantar-se.
 Uma vez provado sua respectiva têmpera e determinada o prestígio relativo, a reunião entre os Gangrel procedeu em términos agradáveis.
 --Pertenço à nação Cherokee -disse Plumanegra-. As Montanhas da Cordilheira Azul são minha província, desde a Georgia até Virginia. Sou amigo dos Garou -proclamou orgulhoso para logo encolher-se de ombros-, exceto quando sou inimigo dos Garou. São bastante imprevisíveis.
 --Sou um Gangrel dos grandes espaços abertos -respondeu Nicholas-. Fugi da Rússia depois da Revolução como mortal, como um Menchevique sem nome. Estas noites, tanto os bosques da Europa como as planícies americanas chamam a seu lado.
 Normalmente, entre os Gangrel as apresentações evoluíam em uma história atrás de outra, em um intento de superar as heroísmos do outro até que os relatos alcançavam proporções épicas e mitológicas. Nicholas em particular poderia ter narrado muitas das gestas de seus antepassados (muito familiares para ele), mas aquela noite tinha outras preocupações.
  --ouviste falar da maldição do sangue que abate aos Vergônteas? -perguntou Plumanegra.
  Nicholas ficou tenso.
  --ouvi. -Quis dizer A hei sentido! Uma fome eterna! Passei muitas noites sem saber se era eu mesmo, ou meu sire, ou o sire por mim sire... Entretanto, temia afastar daquele modo a única companhia que tinha encontrado em vários meses-. É dessa maldição da cidade da que fujo -disse.
  --Viu então o açougue? -Plumanegra estava intrigado e queria informação de primeira mão. Tinha ouvido histórias de várias fontes, mas evitava as cidades, onde se concentravam os vampiros e onde a maldição tinha causado a maior destruição.
  Nicholas lhe disse o que podia recordar de suas semanas de confusão em Atlanta: anarquistas e outros vampiros enlouquecidos pelo fome, Cainitas que se negavam a abandonar seus refúgios salvo para caçar... Não mencionou os delírios, as regressões ancestrais cada vez mais freqüentes. Não queria lhe recordar a batalha contra as árvores que tinha presenciado.
  Por sua parte, Plumanegra lhe disse que tinha ouvido que em uma cidade atrás de outra estavam estalando guerras entre o Cainitas, já que as estrutura de poder eram devastadas e os mais ambiciosos ou desequilibrados enchiam os vazios deixados.
  --Outro motivo para manter-se afastado das cidades, digo eu -sugeriu.
  Nicholas assentiu. dirigia-se para os espaços abertos, e só tinha ido à cidade em uma missão que, por fortuna, já estava terminada.
  Os dois Gangrel falaram até o amanhecer e se afundaram na terra para descasar o resto do dia. De noite partiriam em direções diferentes.
 Era uma noite clara e fresca, e Owain podia ver as estrelas a través dos buracos no campanário. estava-se impacientando. O prelúdio se estava fazendo aquela noite muito mais comprido do habitual. A que esperava a sereia? Já havia um bom número de mortais ajoelhados no santuário. Quantos mais necessitavam?
 Olhou abaixo através do buraco. Embora utilizava seus dons
vampíricos para ocultar sua presença, cuidava-se de não aparecer muito. Não lhe preocupavam os mortais. Tinha centenas de anos de experiência caminhando diante de seus olhos sem ser visto, mas sobre outros Cainitas... nunca se podia estar seguro do alcance de seu poder. No mundo havia supostamente vampiros tão velhos que seus poderes diminuíam aos do Owain, e às vezes isso solo se descobria quando já era muito tarde.
 A sereia, a bela criatura que havia devolvido as emoções a seu no-vista, não parecia mais que uma adolescente, mas ele mesmo não aparentava mais de vinte anos. Às vezes tinha tido a sensação de que a mulher sabia que estava escondido nas sombras, tomando parte como um olheiro do frenesi do ritual, e era possível que assim fora. Nesse caso, por que seguia cantando como se não soubesse nada? Pode que não lhe importasse, sempre que ela e as suas tivessem a sangue suficiente depois da conclusão dos ritos.
 Não havia modo de averiguá-lo, salvo enfrentar-se a ela.
 As incertezas abundavam. Estava a noite em que Albert tinha-lhe cuidadoso diretamente. havia lhe visito o Malkavian apesar de seus amparos? Podia Owain adivinhar com certeza o que cruzava pela mente daquele louco? Em caso de lhe haver detectado, provavelmente não tivesse muito que ganhar revelando o que sabia.
 Para o Owain era muito mais arriscado tratar de responder a aquelas perguntas, o que significava enfrentar-se aos envoltos, que esperar que estas não chegassem a ser relevantes. Enquanto a sereia seguisse cantando não lhe importava se sabia ou não que estava ali. Enquanto aqueles ritos não fossem de domínio público, dava igual se Albert acreditava lhe haver visto uma vez na igreja.
 Compreendeu que a incerteza era embriagadora. O perigo dava interesse a suas noites. Que emoção havia em encerrar-se em seu casa? Manipular um transação bancário para obter alguns quantos dólares mais? Comprar em segredo outra companhia?
 Enquanto não atuasse de forma muito descuidada, se recordava. Não tinha sentido atirar quase mil anos de sobrevivência por um simples viagem emocional. Apesar de tudo, valorava sua reencontro com a exaltação da vida.
 Abaixo, a porta da igreja se abriu e apareceu Albert. Aquele era o único lugar onde Owain tinha visto o Malkavian atuar de forma quase respeitosa. Era muito estranho lhe ver tratar com reverência um lugar ou a uma pessoa, mas parecia que o canto da sereia lhe tinha afetado como nada que Owain tivesse conhecido. Também notou que Roger não estava com ele. retirou-se em seu esconderijo. Se a sereia queria retirar seu convite não se podia fazer nada a respeito, e não podia estar todo o tempo vigiando ao Albert. Deixou que a música lhe alagasse sem resistência.
 A jovem cantava com tanta facilidade que parecia que não houvesse mais desejo em seu coração. Com os olhos fechados, o Ventrue podia imaginar seu rosto delicado voltado para os céus com a boca aberta, a mandíbula e a garganta relaxadas. Suas fossas nasais apenas se moviam quando inspirava o fôlego necessário para cantar. Refletindo sua própria alma, aquelas baforadas existiam unicamente para seu música.
 As notas se apoderaram do Owain, alimentando em seu interior a necessidade de calidez, de aceitação e conforto. Encontrou com facilidade a melodia que pertencia a ela e a ele, e a seguiu voluntariamente lá onde queria lhe levar.
 Antwuan correu rua abaixo. Estava no cinema com o Pequeno Johnnie quando tinha ouvido a canção do anjo. Ao menos não havia tido que sair correndo estando com uma garota. Quem necessitava uma entrevista quando ia voltar a estar com a Shaquanna na igreja? Em outras partes os dois intercambiavam olhadas e sorrisos, mas nunca mencionavam aquelas noites incríveis. Entretanto, uma vez começava a música mágica, Shaquanna era insaciável, lhe desejando uma e outra vez, até que ao final retornava a casa apenas capaz de caminhar. Já podia sentir seu corpo quente contra o seu, podia cheirar seu aroma, saborear seu pescoço, seus ombros, seus peitos. O anjo havia respondido todas suas preces.
 Quando chegou à igreja se deteve em seco, surpreso pelo homem branco e grande, de pé na calçada frente ao velho edifício. Tinha o cabelo de ponta tingido com um loiro quase fluorescente. Virtualmente brilhava na escuridão. Frente a ele Antwuan era um anão, e isso que não era precisamente pequeno. Nunca lhe tinha visto antes, mas ninguém reparava na igreja "invisível" uma vez iniciada a canção, assim começou a andar.
 aproximou-se do homem disposto a saudar com a cabeça e seguir seu caminho, mas o enorme estranho elevou uma mão para lhe deter.
 --Vai aí dentro, amigo? -perguntou com voz profunda.
 --Sim. -Estava ansioso por entrar.
 O moço ficou em marcha e o homem sorriu, agarrou-lhe por pescoço e o partiu com a mesma emoção com a que espantaria a uma mosca.
 Xavier Kline se voltou para a igreja abandonada com uma enorme tocha atada à costas e um cadáver a seus pés.
 Assim é isto, pensou. Isto é o que molesta tanto ao príncipe. Quer que me encarregue de algumas coristas. Riu em voz alta. O príncipe sempre tem o que quer.
 Fez um gesto a seus amigos Jacko e Damion, que se uniram a ele. Todos sabiam que ao príncipe não gostava de muito os Brujah, mas quando queria fazer um trabalho sujo não duvidava em pedir ajuda.
 --Estão outros preparados se por acaso faz falta ajuda? -riu ao pensar que poderiam necessitar reforços. Jacko e Damion assentiram. Se havia trazido para outros quatro Brujah, dois deles meninos deles, mas o príncipe não tinha por que inteirar-se. Kline tinha um menino mais, mas a maldição o tinha levado por diante. Solo os fortes sobrevivem.
 --Muito bem. Vamos.
 Os dois vampiros lhe flanquearam e se dirigiram para a igreja.
 Aquela noite a canção tinha tomado um giro estranho, ou pode que fora Owain o que tinha trocado, e não a música.
 deixou-se levar por sua melodia, o tema principal que se misturava com as demais nota as atando, unindo todas as linhas em uma toada celestial. Por meio dos sons podia sentir a profundidade da privação, a força com a que ainda movia à sereia aquilo que tinha perdido. lamentava-se por algo que uma vez tinha-lhe completado, algo que tinha cheio sua vida de significado, algo que lhe tinha sido arrebatado.
 Owain queria descobrir o que era aquilo que tinha perdido de forma tão cruel. O que poderia engendrar uma melancolia tão comovedora como para que persistisse ao longo dos anos? Pois era capaz de sentir a idade da canção. Podia vislumbrar os anos eternos aos que a perda tinha sobrevivido para fazer-se mais rica, mais delicada em seu pesar, mas sem perder nem um grama de sua vitalidade desde a primeira vez que tinha sido cantada.
  O próprio Owain levava séculos lamentando seu próprio passado, ao menos até que sua capacidade para lamentarse murchou, e sempre escutando as choramingações de outros que não podiam compreender o que era o verdadeiro sofrimento. Agora se comovia por aquela canção, pela profundidade de sua angústia, e desejava conhecer esse sofrimento que rivalizava com o seu. Queria conhecer a história da sereia, já que podia sentir uma unidade em seu pesar, um vínculo que, uma vez revelado em sua totalidade, nunca poderia ser quebrado.
  Enquanto as notas da canção abriam sua alma escura, viu no fundo de sua mente uma pequena aldeia situada entre as verdes colinas da Irlanda. O sol brilhava com força sobre a paisagem depois da chuva da tarde. Não muito longe se encontravam as ruínas de uma velha igreja de pedra, fazia muito tempo abandonada e com o telhado parcialmente derrubado. Ao casaco parcial daquele edifício estava a sereia, magra e pálida até então, mas cheia de vida e amor. Não estava sozinha. Tinha tomado refúgio na igreja junto ao jovem ao que amava para proteger-se da tormenta. Aquele era um pequeno inconveniente que todos os jovens apaixonados esperavam. Estavam tendidos e enredados sobre a erva que, tenaz, aberto-se passo ao longo dos anos pelo chão de pedra. Ele beijava seus jovens peitos nus enquanto lhe acariciava, incendiando ainda mais seu desejo. Seu mundo era aquele momento, a plenitude espiritual consumada com uma realização logo que apontada por seus apetites sexuais.
  Estavam tão absortos o um no outro que não notaram ao homem em pé sobre eles. Até que arrancaram a seu amante dos braços a moça não viu seu pai, não viu a raiva que ardia em seu interior. Enquanto ela cobria sua nudez o homem açoitou ao moço, que caiu ao estou acostumado a golpeando o chão de pedra com a cabeça. Ficou totalmente imóvel. A sereia chorava e gemia sobre o corpo, mas o pai a levou a rastros e a enviou longe para não voltar jamais para lhe pôr os olhos em cima.
  Embora ela não sentia mais que vergonha, Owain sentia fúria. O ódio cresceu em seu interior e desejou poder agarrar a aquele sujo granjeiro, estrangulá-lo e ver como os olhos lhe saíam das órbitas pelo que fazia. Sentia raiva, e pela primeira vez em séculos, compaixão. O amor desgraçado tinha criado uma vida de exílio e pesar.
 Era ele muito diferente? Não muito. Seu irmão Rhys havia notado seu amor pelo Angharad, tinha-o visto e lhe tinha enviado a ele longe a morrer e a ela a consumir-se e envelhecer enquanto a juventude oca do Owain perdurava por sempre jamais. Seu exílio tinha sido tão real como o da sereia. Tinha lutado durante duzentos anos, mas os Ventrue normandos que enrolavam Britania haviam conseguido lhe expulsar. E embora tinha sofrido muitos séculos, sozinho agora, mediante a moça, compreendia a absoluta tragédia de seu perda, além da fúria, além da sede de vingança.
 Entretanto, aquela catarse curativa não ia durar muito. Enquanto Owain se aferrava a seu vínculo de dor através da canção, foi transportado a um lugar muito diferente. Lutou por permanecer com a sereia, mas estava indefeso ante as diversas imagens que lhe assaltaram.
 Enquanto a música crescia em intensidade e as ménades começavam sua dança, em sua mente começaram a formar-se visões que já tinha visto antes, embora não tinham nada que ver com a sereia.
 A bruma. Frio em seu corpo. Nada. Negação. Solo frio. O calor da vida tinha desaparecido.
 As brumas começaram a girar, como sabia o que fariam. Primeiro movimento. que chegava antes que todo o resto.
 Owain em pé enquanto a colina se elevava por cima da névoa. Observou o cajado de madeira que brilhava com o batimento do coração da vida. Seu calor irradiava e se estendia por toda a terra, mantendo afastadas as brumas. Enquanto Owain contemplava o fortificação uma voz lhe falou, uma voz que lhe rodeava por toda parte mas que não estava em nenhuma, uma voz nem próxima nem longínqua, uma voz familiar e ao mesmo tempo estranha:
 Entesoura as noites que lhe foram concedidas.
 voltou-se para o cajado como se fora o que lhe tinha falado, e quando o calor da madeira chegou até ele se retirou, assustado de que a madeira viva pudesse lhe queimar.
 Madeira viva. Pois enquanto se afastava, o fortificação começou a retorcer-se e as fibras se converteram em ramos que surgiram em todas direções, para o este, o oeste, o norte, o sul, o céu, a terra. Para o Owain.
 Os ramos voavam a por ele, e fugiu.
 Correu colina abaixo para entrar nas brumas, afastando do cajado de madeira viva. A voz voltou a lhe falar, desde todas partes e nenhuma.
 Entesoura as noites que lhe foram concedidas.
 me acredite, não lhe servirão de nada.
 Fugiu às cegas entre a névoa. A suas costas os ramos tratavam de lhe aferrar, enroscando-se em sua capa e em seu cabelo, apanhando seus pés e lhe fazendo cair. Entretanto, uma e outra vez ficava em pé de novo e seguia correndo.
 A voz sussurrava em seu ouvido:
 É o Fim dos Tempos.
 Não deixava de correr diante dos ramos do cajado vivo, do árvore sempre presente, sempre ambicioso.
 Uma sombra caiu sobre ele, mas seguiu correndo. Voou para diante e logo para cima enquanto o chão se elevava sob seus pés como um amante cujo suor levasse ausente muito tempo. O terreno fez-se mais íngreme e as terraços começaram a dividir a ladeira, embora ele não deixava de escalar enquanto a árvore lhe acossava, lhe seguindo faminto.
 Correu e ascendeu até que chegou ao alto do montículo que tinha arrojado sua sombra sobre ele.
 É o Fim dos Tempos, dizia a voz.
 Sobre a colina havia uma torre de pedra, uma capela rodeada de corvos. A seu redor, as nuvens eram escuras e espessas. Os raios atravessavam o vapor chamuscado e o trovão sacudia a terra.
 Owain correu para a torre e não encontrou porta alguma que o vedasse o passo. Solo havia um altar e uma cruz, mas odiava a idéia de ter que chamar à graça de Deus.
 Os ramos da árvore reptaban enquanto subiam pela colina, estendendo-se até a soleira da torre. Entretanto, não entraram. giraram-se lentamente, aferrando a fortificação, envolvendo-a enquanto subiam para o céu tormentoso. Os ramos se aderiram à pedra e começaram a crescer. Ao pouco apareceram portas que encerraram ao Owain, portas de madeira viva, folhas e flores que se abriam e que enchiam sua tumba de uma doce fragrância.
 É o Fim dos Tempos.
 É a queda do Sangue.
 É o Dia do Julgamento.
 A sombra do Tempo não é tão alargada para cobrir-se baixo ela.
 De novo, o trovão voltou a sacudir a terra, que começou a mover-se, a tremer e a agitar-se. A cruz caiu do altar, destroçando-se...
 As portas da igreja se abriram de repente. Uma delas saltou de suas dobradiças e caiu ao chão.
 Xavier Kline entrou, flanqueado pelo Jacko e Damion.
 As ménades, as três a um tempo, voltaram-se e vaiaram como animais apanhados aos intrusos. Os mortais, assim como Albert, olharam ao redor aturdidos, inseguros de por que a música se havia detido tão de repente. Owain sacudiu a cabeça. Desorientado, tratou de recuperar o conhecimento.
 Com o rosto cheio de fúria, a sereia abriu a boca e emitiu uma única nota de ira.
 Owain foi arrojado contra o muro enquanto os mortais eram derrubados. Entretanto, nenhum deles era o objetivo daquele ataque. Kline e seus secuaces foram empurrados para trás fora do edifício, Jacko atravessando o muro que havia junto às portas.
 As vidraças que ficavam em pé estalaram com tal força que quase todos os Marcos foram arrancados das janelas e caíram ao exterior.
 Owain pôde ver que muitos dos mortais sangravam pelos ouvidos, e tocando-se comprovou que lhe ocorria o mesmo. Um intenso e aguda dor de cabeça lhe percorreu o crânio.
 Um momento depois, duas Vergônteas mais apareceram pelo oco de um ventanal em um dos laterais armados com o Uzis. Outros dois saltaram sobre os vierteaguas da fachada contrária, abrindo fogo contra a congregação.
 Mortais e ménades foram apanhados em um fogo cruzado. A força das balas lhes golpeava desde todas direções, sacudindo-os como bonecas de trapo em uma tempestade. A sereia foi alcançada por dezenas de projéteis e foi empurrada para trás.
 Owain o observava tudo de acima, enquanto recuperava o conhecimento depois das visões e da força demolidora do grito da sereia. Tinha a adaga na mão, mas se freou antes de saltar à refrega. O que podia conseguir, a não ser unir-se aos mortos? Uma adaga não poderia marcar a diferença contra tantas armas.
 Entretanto, viu sua querida sereia costurada pelas balas, seu corpo destroçado e ensangüentado, e a lógica perdeu importância. Não queria mais que salvá-la, despedaçar a aqueles que lhe haviam ameaçado e levar-lhe a um lugar seguro. Queria fazê-lo... mas não o fez.
 Queda sobre um joelho, com o sangue emanando das feridas que cobriam seu corpo, incluindo a de uma bala que lhe havia atravessado ambas as bochechas, a moça se voltou por volta dos dois Vergônteas mais próximas e voltou a emitir um gemido ensurdecedor. Não estavam muito longe, de modo que o som lhes golpeou com plena força e lhes dobrou a cabeça para trás; os membros se separaram do corpo e as balas exploraram dentro das metralhadoras, provocando mais explosões. Enquanto o muro a suas costas cedia ante a tormenta de som e fogo, as duas Vergônteas deixaram de existir.
  Todo o edifício tremeu ante aquela descarga, e um dos dois vampiros restantes caiu da janela em que se encontrava. A sereia se voltou para o lateral intacto do edifício e os atacantes que ali se encontravam.
  Enquanto abria a boca, uma tocha anti-incêndios saiu voando das portas de entrada e se cravou em sua cara e em seu pescoço, derrubando-a para trás.
  Ao ver a tocha alcançar seu objetivo, Owain cravou a adaga no chão. mordeu-se o lábio para reprimir um grito de horror. A sereia não podia terminar assim, não depois de lhe fazer recuperar a emoção da existência. Como lhe havia devolvido o favor? Observando a açougue como um cordeiro, sem levantar um dedo para ajudar.
  Abaixo, Xavier Kline, tratando de manter-se em pé, atravessou a tropicões o santuário, totalmente em silêncio salvo pelos gemidos de um mortal. aproximava-se para a sereia, que tratava fracamente de aferrar a tocha que tinha cravada na cabeça e a garganta. Obteve agarrar a manga, mas carecia da força necessária para tirá-lo.
  Ainda há tempo! Tratou de convencer-se Owain. Salva-a! Sem embargo, era incapaz de manter-se sequer em pé. Estava muito aturdido pelas descargas sonoras. Não podia imaginar como Kline conseguia seguir erguido.
  Não podia ajudar à sereia, mas tampouco podia deixar de olhar enquanto o Brujah chegava a seu lado, cambaleando-se mas com uma vantagem clara. Com um forte puxão lhe tirou a tocha da cabeça. Owain acreditou ouvir a sereia lançar um gemido de dor, mas a vampira já não era capaz de seguir cantando.
  A por ele!, disse uma voz em seu interior. Ainda há tempo!
  Os dois cúmplices do Kline se encontravam entre os restos dos mortais, terminando único que, milagrosamente, havia sobrevivido ao fogo mortal e ao ataque da sereia. Estavam distraídos.
 Mas não podia mover-se. Com o punho tremente, viu como Kline levantava a tocha, detinha-se durante o que pareceu uma horrenda eternidade e o descarregava demolidor sobre o pescoço da sereia. Não viu o segundo golpe que separou a cabeça do corpo, cortando os últimas malhas que os mantinham unidos.
 estava-se arrastando como um cachorrinho espancado, odiando-se a si mesmo, com a cabeça dolorida e confusa e desejando que o sol se elevasse nesse mesmo momento, mandando-os a todos ao inferno.
 Unindo-se a sua angústia, uma voz ressonou em sua mente:
 É o Fim dos Tempos.
  A sereia se aproximou do Owain. Ouviu seus passos delicados enquanto deslizava-se através da porta de sua habitação. Percorreu a distância que os separava e levantou brandamente a tampa de seu lugar de descanso.
  Owain a olhou enquanto se inclinava sedutora sobre ele, rodeada pela luz tênue. Seus olhos azuis como o céu e a pele de leite, o cabelo escuro, o vestido solto expondo a curva do peito e parte do mamilo. Abriu a boca para lhe tecer uma canção de amor, uma catarse melodiosa com a que os dois poderiam superar a tristeza e a perda que se obstinado a eles sobre o mar e as montanhas, a o comprido dos anos eternos.
  Mas de sua boca não surgiu som algum. Nenhuma bela canção, nenhuma música encantadora. A língua acariciava as notas, mas o som a evitava. Então girou a cabeça e Owain viu a ferida, a abertura no rosto e o pescoço. Pôde ver o osso destroçado e exposto. Tratava de tampar o oco com sua mão pequena para que ar fluíra adequadamente e pudesse voltar a cantar, mas a ferida era muito grande.
  Owain levantou a mão para lhe ajudar, já que ansiava as doces carícias de sua canção. Entretanto, quando tocou a carne o sangue começou a emanar da ferida. Suas mãos juntas não eram capazes de deter o fluxo, que começava a encher o ataúde.
  O Ventrue tentou gritar pedindo ajuda, mas não emitia som algum. levou-se a mão à cara e descobriu uma ferida aberta que chegava-lhe até o pescoço. Agora era seu sangre a que não deixava de emanar, unindo-se ao lago. A sereia seguia perdendo vitae, e quando Owain tratava de escapar não conseguia mais que escorregar e cair ao atoleiro, cada vez mais profundo.
  Do fundo de um poço tenebroso olhou à sereia, que suplicava com o mesmo silêncio de sua canção. Enquanto o sangue os cobria, a mulher fechou a tampa e se fez a escuridão.
 --O usurpador quer reunir-se comigo! Ja! -A risada do Gustav estava cheia de sarcasmo, mas não tinha humor algum. Seus olhos cinzas denotavam seu mau gênio-. Pode acreditá-lo, Edward?
 Edward Hyde se ajustou o chapéu com a cabeça de prata de seu fortificação.
 --Uma reunião soa bem -disse enquanto se acomodava no deliciosa poltrona de couro no refúgio do Gustav, no Palácio de Berlim-. Se não lhe reúnes com ele não poderá lhe saltar os dentes de uma patada. Sempre é tão condenadamente amistoso e educado... "Me alegro de verte. Espero que todo vá bem. Estou de acordo em tudo o que diz. meu deus, olhe a hora, tenho que ir...", disse ao tempo que limpava a cabeça de prata com sua capa de ópera-. Espero estar ali quando o matar, Gustav.
 Este se levantou e começou a percorrer a habitação, passando frente ao retrato do Federico o Grande e as fotografias das tropas alemãs partindo por Paris.
 --Não se preocupe. Todo Berlim... não, todo mundo, saberá quando lhe destruir -prometeu-. E Berlim será meu, solo meu de novo. -Não deixava de dar voltas uma e outra vez detrás de seu escritório-. É o cúmulo da arrogância, me pedir uma reunião.
 --Sabe o que significa? -perguntou Hyde bruscamente sem levantar a vista de sua fortificação.
 Gustav se deteve um instante.
 --Claro que sei. Significa que está desesperado.
 --Ou -assinalou Hyde-, poderia ser uma armadilha contra ti.
 --Ja! -Gustav voltou de novo para caminhar, com uma careta de desdém permanente em seu rosto quadrado-. Wilhelm? me tender uma armadilha? Ja! Mas se fugir de mim! Solo é feliz quando consegue me evitar. Agora mesmo tem amigos mais "importantes" que eu. Se não fora assim já lhe teria esmagado. Mas todo isso vai trocar, e quando a cidade seja minha, esses amigos "importantes" suplicarão piedade, e os esmagarei! -disse agitando o punho, como se já os tivesse em suas mãos-. Não tentará me tender uma armadilha. Não é tão mesquinho. É sigiloso. Do que outro modo me tivesse podido arrebatar a cidade? Mas não é mesquinho.
 Enquanto voltava a sentar-se, passou-se os dedos pelo cabelo cinzento, do tom exato de seus olhos.
 --Está desesperado porque os amigos que lhe mantêm no poder se consomem e morrem. Não é nada sem eles. Nada! Está nu como um bebê.
 --Mas seus amigos também morrem -assinalou Hyde.
 --Mas eu -disse levantando triunfal o dedo- governo graças a meu poder, não ao de meus amigos. São coisas muito diferentes -disse assinalando ao Hyde.
 --Hmff. -Edward era um homem rude e fornido, obcecado com intrincado-los gravuras da cabeça de sua fortificação. A prata brilhava igual à noite em que o tinha tirado a um moço fora do teatro da ópera-. Quer reunir-se, de modo que o fará e acabará com ele.
 Gustav rechaçou aquela idéia simplista com um olhar de desdém.
 --Não se reunirá comigo em umas condições nas que possa lhe esmagar -explicou o príncipe-. Tudo será muito formal e muito educado. Será amistoso e haverá muitas Vergônteas ao redor.
 --Pois mata-os a todos -grunhiu Hyde.
 --matá-los a todos! Ja! -Esta vez Gustav sim parecia de bom humor. Logo que podia falar entre as risadas-. Edward... diz... diz que os mate... a todos... é o mais absurdo... -Pouco a pouco, a risada começou a desaparecer. O mais absurdo, como ele mesmo o havia chamado, parecia incrivelmente atrativo-. matá-los a todos -disse pensativo.
 A luta entre o Gustav e Wilhelm já levava livrando-se mais de oitenta anos. Ao menos, desde havia um tempo tinham renunciado ao uso da violência aberta por medo a atrair a atenção do Conselho Interior da Camarilha sobre a política do Berlim. O Conselho ou seus Justicar poderiam apoiar a um deles sobre o outro se a violência e o caos se faziam muito preocupantes, ou podiam decidir administrar a cidade mediante um oficial designado, ou inclusive nomear a um novo príncipe, deserdando-os aos dois.
 Mas com o caos que tinha estalado por toda parte ao desaparecer os delicados equilíbrios de poder, Gustav compreendeu graças ao comentário do Hyde que o Conselho não teria tempo que perder em disputas políticas. Para quando pudesse iniciar uma investigação ele já teria cimentado seu poder, e a Camarilha não se arriscaria a criar mais instabilidade eliminando a um príncipe de feito.
 ficou em pé de um salto e golpeou a mesa com a palma da mão.
 --Wilhelm tem razão. Deveríamos reunimos e falar como vampiros civilizados. Esta maldição do sangue hirviente põe em perigo a toda a cidade.
 Hyde levantou o olhar do fortificação e lhe olhou sentido saudades.
 --O que há dito?
 Gustav, esfregando o queixo, ignorou ao Malkavian da primogenitura do Berlim Oriental.
 --Então deveria trocar minha idéia inicial sobre a mensageira -disse em alto para si antes de voltar-se-. Sabia, Edward, que enviou a sua própria menina, Henriette, essa flor delicada, como mensageira? É uma amostra de boa vontade.
 --Devolveu-a? -perguntou Hyde.
 --OH, não. Está abaixo, com uma estaca no coração. -Hyde assentiu-. Tinha pensado lhe enviar a cabeça de volta a seu sire, possivelmente com dois testículo de alguma Vergôntea ocidental entre os dentes, mas suponho que isso complicaria todo o assunto da reunião.
 Hyde voltou a assentir pormenorizado.
 --por que não a mantém aqui três noites, vincula-a com sangue e a envias a casa com a mensagem e a ordem de que acabe com Wilhelm?
 Gustav abriu a boca para rechaçar a idéia, mas a fechou sem dizer nada mais. Wilhelm não estava acostumado a vincular a seus seguidores nem a seus meninos, de modo que não teria nenhum acondicionamento que superar. Além disso, sempre podia negar ter tido nada que ver em o assunto se a garota falhava. Com um pouco de magia Tremere para eliminar todo rastro de seu trabalho, poderia dispor do melhor de ambos os mundos: um intento de assassinato e uma reunião diplomática.
 --É um verdadeiro gênio, Edward Hyde.
 --Não deixo de lhe recordar isso Gustav.
 --Vêem -disse o autoproclamado e futuro príncipe-. Atendamos a nossa mensageira.
  Owain ignorou os golpes na porta. Sabia que a escuridão tinha cansado fazia horas, mas não podia enfrentar-se de noite. Ontem não tinha querido mais que saudar o sol, deixar que lhe calcinasse a carne, que abrasasse sua covardia até que o alívio da morte definitiva se levasse sua alma e lhe afastasse do tortura da no-vista.
  Entretanto, sua covardia era tão completa que tinha procurado o consolo de seu refúgio antes inclusive de que os primeiros raios começassem a vislumbrar-se no horizonte para consumir sua carne fria.
  A sobrevivência não é covardia, não deixava de repetir-se, sem chegar a acreditar-lhe kilómetros hasta que le atrapaba en una torre en ruinas.
  Ao menos, a insistente chamada lhe distraía de seus sonhos. Durante todo o dia tinha sido acossado pelas visões, mas não pelas de seu lar ou inclusive as de uma árvore vingativa que lhe perseguia durante quilômetros até que lhe apanhava em uma torre em ruínas.
  Pesadelos. Sombras da infância.
  Não queria nenhum daqueles sonhos. Não queria mais visões. Queria tombar-se na escuridão e não pensar, não ser. Ao pouco tempo os golpes na porta, que agora eram constantes, começaram a lhe afetar a seus nervos já alterados.
  Era Randal, de pé frente a sua habitação. Conheci o tom particular daqueles nódulos. Depois o ghoul começou a lhe chamar, sabendo que seu domitor podia lhe ouvir. negou-se a escutar. Ouvia os sons, mas negava-se a que formassem palavras coerentes em seu cérebro. A voz do Randal era como o ruído dos nódulos. Som sem forma...
  ...como a canção muda da sereia enquanto lhe observava com seu rosto e seu pescoço destroçados. Era como se lhe tivesse aberto a cabeça com suas próprias mãos. sentou-se e o havia contemplado tudo, sem levantar um dedo para salvá-la. Sua canção o tinha posto em contato com uma humanidade desaparecida fazia muito tempo, e a tinha sacrificado simplesmente por prosseguir seu existência vazia e sem sentido.
  Mas o que há sem existência?, perguntou-se.
  --Por Deus! O que há com ela?
  O som da voz do Owain deu novos brios à chamada de Randal.
  --Senhor? Senhor? É muito importante, senhor.
  Não, decidiu, não reconhecerei o mundo. Não permitirei que me importância. Ao menos, os últimos séculos de existência não tinha padecido aquele tortura. Tinha passado muito tempo desde que Owain se tinha preocupado por algo.
 perguntou-se se a letargia não lhe estaria chamando de novo. depois de tudo, tinham passado mais de trezentos anos desde seu último descanso prolongado. Randal poderia ocupar-se dos detalhes da casa, exceto de que não haveria sangre para ele ou para outros ghouls. Sem os nutrientes periódicos de seu vitae, envelheceriam horas em meros minutos e se converteriam em pouco mais que cascas de ovo ressecados, igual a lhe tinha passado recentemente a muitas Vergônteas de Atlanta. O senhor e a senhora Rodríguez tinham duzentos anos, que recuperariam rapidamente. Randal duraria algo mais. Era provável que a senhorita Jackson sobrevivesse, igual a Ardem e seu sobrinho Mike, da equipe de segurança. Entretanto, a privação do sangue vampírica não seria agradável.
 Do corredor lhe chegou um novo som que capturou sua atenção, o de metal contra metal, as chaves entrechocando. No fundo, supunha que antes ou depois teria ocorrido.
 A chave girou na velha fechadura de bronze e o mecanismo se ativou. A porta se abriu para dentro. Por um instante só houve silêncio, mas depois Owain ouviu o Randal respirar rapidamente e cruzar a habitação para o ataúde. Podia haver-se encerrado desde dentro para deixar mais clara sua postura, mas com toda probabilidade o ghoul tivesse seguido insistindo.
 Os dedos tocaram a tampa e começaram a abri-la.
 A mão do Owain saiu disparada para cima. Os dedos se fecharam ao redor da garganta do Randal, cravando as garras na carne. A tampa golpeou a cabeça do ghoul, que tentava desculpar-se; a pressão lhe esmaguem sobre a laringe não lhe deixava falar.
 Owain arrastou a seu servente para o ataúde.
 --Nunca tiveste um desses dias, Randal, nos que simplesmente não quer ver ninguém? -disse o vampiro afrouxando seu presa para que pudesse responder.
 O ghoul emitiu um sussurro desesperado.
 --me perdoe, senhor.
 Owain afrouxou um pouco mais.
 --Não há perdão, Randal. Nem neste mundo nem no seguinte -disse rasgando a garganta, cortando a carne até chegar à artéria carótida.
 O medo e a dor nos olhos do ghoul ficaram superados ao pouco tempo pelo êxtase do beijo. Ficou inerte, e embora gemia pesaroso enquanto lhe roubavam a vida, não podia mover um sozinho músculo para resistir.
  O sangue era mais rico que a de um mero mortal, já que durante muitos anos tinha estado mesclando-se com a do Owain, embora o faltava a potência e a fragrância que tinha podido sentir nos vampiros, em seus dias de ambição nua no mundo mortal.
  Os gemidos do Randal desapareceram. Owain, bebendo mais por fúria que por fome, liberou o corpo, que se desabou sobre o chão. Como tinha suportado aquela insolência durante tanto tempo?, perguntou-se. Tinham estado cegos seus sentidos, da mesma forma que suas emoções?
  Teria que ampliar as obrigações da senhorita Jackson, ao menos até que encontrasse um reposto que se encarregasse da administração. Não era coisa singela substituir a um servente pessoal. Não havia nenhuma empresa que ofertasse ghouls bem preparados. Felizmente, acreditava que a senhorita Jackson não teria muitos problemas para substituir ao Randal. Possivelmente não fora necessário sequer modificar a palmilha.
  Voltou a pensar no atrativo da letargia e decidiu que, de tomar esse caminho, proporcionaria sangue suficiente ao Jackson para que se mantivera, abandonando a outros. É obvio, havia outros muitos detalhes que necessitariam sua atenção. Como não havia modo de medir com exatidão o tempo que duraria o sonho, tinha que conseguir um lugar de repouso mais seguro e menos evidente que seu mansão; além disso, havia muitos assuntos empresariais que proteger ou pôr a salvo.
  Sempre estava a possibilidade de que caísse em anos de inatividade sem desejá-lo realmente. Esse era o modo mais singelo, afastar-se das preocupações da no-vista noturna e ignorar qualquer preparativo; entretanto, os riscos de ser descoberto e prejudicado ou morto eram consideráveis.
  até que ponto lhe importava? Era mais forte sua necessidade de liberação que seu instinto de sobrevivência?
  Estava pensando naquele precário equilíbrio quando viu o pequena parte de papel no chão, perto do corpo do Randal. Se tratava de uma nota pessoal que, com toda segurança, tinha sido entregue fazia umas horas por uma pomba mensageira que qualquer ornitólogo mortal tivesse considerado impossível. Uma voz em sua mente disse-lhe que esquecesse a mensagem, que voltasse a tombar-se no ataúde e que fechasse a tampa, deixando fora o mundo exterior. Já se desculparia mais tarde se era necessário. Correspondências interceptadas, um servente traiçoeiro já castigado... Aquelas eram as justificações mais prováveis para sua ausência à reunião da noite passada.
 Pensou nisso, mas sua ira crescente e o novo sangue que corria por suas veias lhe tinha tirado de seu humor niilista, ao menos de momento. inclinou-se sobre o bordo do ataúde e tomou o papel. Como esperava, a mensagem estava escrita com a deliciosa caligrafia do príncipe.
  1 de janeiro
 Sr. Owain Evans:
 requer-se sua presença esta noite às doze em ponto na fabrica abandonada junto ao cemitério do Oakland.
 Esta reunião é da máxima importância para assegurar a prosperidade de tudas as Vergônteas de nossa bela cidade. Não aceitarei escusa alguma para a não assistência.
 Seu att., J. Benison Hodge
Príncipe de Atlanta
 Fez uma bola com a nota e a jogou no chão. Não cabem muitas interpretações, pensou.
 Podia ignorar a chamada de todos os modos, mas parecia que Benison não estava interessado em ouvir desculpas, válidas ou não. Além disso, o príncipe sempre lhe tinha tratado com respeito, e não tinha sentido ofender ao governante da cidade sem motivo. Também era possível que descobrisse o que tinha levado ao Xavier Kline e seus secuaces à igreja. Certamente Thelonious, o Brujah da primogenitura, não tinha ordenado o ataque. Tinha atuado Kline por sua conta?
 O mero pensamento no Brujah e no que aquele animal o fazia à sereia quase provocou um ataque de raiva. Poderia enfrentar-se a ele se ia à reunião? Podia confiar em que ele mesmo não entrasse em frenesi e atacasse ao destruidor da paz e o significado? Mas, qual era a última reunião oficial das Vergônteas a a que Kline tinha assistido? Nem sequer se lembrava. Provavelmente seja outra reunião da primogenitura e o príncipe queira conselho. Sem embargo, é estranho que as convoque duas noites seguidas.
 Owain olhou o relógio de pêndulo em uma esquina. As onze e trinta e cinco! Tinha menos de meia hora para chegar. Não posso faltar a uma reunião e chegar tarde a seguinte. Passou rapidamente sobre o corpo do Randal e se preparou para partir, de novo sem barbear. A barba nunca lhe crescia mais de dois dias. Em menos de dois minutos baixava correndo as escadas enquanto chamava vozes à senhorita Jackson.
 Benison estava sentado ao fundo do cavernoso edifício. A Fábrica de Bolsas do Fulton levava vários anos abandonada, mas se tinha programado sua renovação em apartamentos de luxo. O príncipe sabia que os Anacreontes não o tolerariam, não tão perto do cemitério que tinham exigido que permanecesse mais à frente do alcance das Vergônteas. Os líderes fantasmales já o haviam dito, mas ainda não tinha tomado ação alguma para cumprir estas últimas petições. O príncipe de Atlanta não podia receber ordens dos moradores do mundo espiritual. Tinham que saber quem estava ao mando.
 Salvo que começassem outra vez os fenômenos...
 antes de aceitar o fechamento do cemitério do Oakland, Benison tinha combatido com sua espada às sombras invisíveis no Rhodes Hall e também tinha fugido delas, encerrando-se em seu ataúde quando a sensação dos espíritos lhe acossando desde todas partes era muito forte para suportá-la. Quando acessou às demandas dos Anacreontes seus problemas terminaram.
 Agora estava decidido a demorar sua decisão o bastante como para reafirmar seu controle, mas não tanto como para que as sombras retornassem a seu lar antes de paralisar as obras, igual a Nathan Bedfor Forrest tinha paralisado o apoio ferroviário dos federais. Entretanto, todo aquilo já estava planejado desde fazia tempo. O que lhe preocupava aquela noite era a chegada tardia de muitos Vergônteas. Tinha pensado começar exatamente a meia-noite, capturando o sentido simbólico de um novo dia no que seus proclama liberariam à cidade do pânico atual, iniciando uma nova era de abundância.
 Entretanto, já eram mais das doze e meia e seus súditos ainda seguiam chegando, sobre tudo os ancillae. Toda a primogenitura estava presente, já que conhecia a importância dos decretos promulgados. Hannah tinha ido com os dois recém-nascidos de seu capela. Era notável a ausência dos dois "disciplinados". Por suposto, Eleanor estava ali, e Benjamim, e Owain, que tinha chegado uns minutos tarde. Isso contava a todos os Ventrue, embora tinha que lembrar-se de averiguar porquê Evans tinha faltado à reunião da passada noite. O pestilento Aurelius se ocultava nas sombras úmidas, igual ao jovem Nosferatu cujo nome nunca conseguia recordar. Bedelia, Thelonious, Marlene e seus seguidores também estavam ali. Quase todos os vampiros reconhecidos.
 Até o Xavier Kline, que ocupava a zona cinza entre as Vergônteas reconhecidos e os anarquistas, estava presente, embora parecia afetado pelo encontro da noite anterior. Tinha partes de algodão nos ouvidos, e no par de ocasiões nas que o incomodaram e os tirou gemia dolorido ante o menor som, tendo que ficar os de novo. Era estranha a ferida da que os vampiros não se recuperassem rapidamente. Deve ter recebido uma boa surra, pensou o príncipe. Devo lhe recompensar por seus fiéis serviços.
 Podia haver uns seis anarquistas, e ainda chegavam. Sabia que tinha que haver mais, mas, quantos teriam morrido pela maldição? Não lhe surpreendia que chegassem tarde. por que deviam mostrar mais respeito ao príncipe de que mostravam pelas Tradições?
 Lorenzo Giovanni, o ghoul, tinha chegado pontual com seu guarda-costas cinco minutos antes da meia-noite. Inclusive o convidado temporário que se encarregava dos assuntos de sua família na cidade lhe mostrava mais respeito que os anarquistas residentes.
 acabou-se, prometeu-se. Não tolerarei por mais estas tempo rabugices.
 ia começar, e que se fossem ao inferno os ausentes. De todos modos, já estavam condenados. Pior ainda. Sentiriam sua fúria.
Eleanor estava surpreendida pelos muitos vampiros que haviam acudido. Havia poucas Vergônteas na cidade aos que não conhecesse bem de vista, mas pelo que sabia, nunca antes tinha havido tantos reunidos em um mesmo lugar. Uma rápida recontagem deu mais de trinta, e isso depois de que ao menos outros tantos tivessem sucumbido à maldição. Como tinham podido permitir uma superpopulação assim? Possivelmente a peste lhes tivesse feito um favor. depois de tudo, pelo general se podia dizer que os afetados tinham sido os mais jovens, reconhecidos ou anarquistas. Possivelmente aquilo, unido ao sermão demolidor que Benison ia pronunciar, restaurasse até certo ponto a ordem na cidade.
  Olhou a Benjamim. Teria que falar com ele do conceito da maldição como um meio de controle da população. Tinha sido visitada de verdade a cidade Por Deus, como Benison sustentava? Sem embargo, não só Atlanta tinha resultado afetada. Benison estava muito preocupado por não denotar debilidade ao comunicar-se com os demais príncipes, mas Eleanor tinha recebido informe de seu sire Baylor sobre matanças por toda parte. Estava tão estendido o problema da superpopulação?
  Voltou a olhar a Benjamim. Sua mente era tão refinada, tão perfeita... Não tinha dúvidas de que ofereceria comentários valiosos ao respeito. Faziam todo o possível por não demonstrar sequer um interesse passageiro o um pelo outro em público. Não tinha traído a seu marido de forma sexual, não por completo, mas se descobrisse o vínculo emocional e intelectual que compartilhava com seu menino secreto... Esse maldito Owain Evans o tinha averiguado de algum modo. Onde estava essa doninha? Apartada, espiando a todos os que lhe rodeavam, seguro. Esse homem é mais um Nosferatu que um Ventrue, pensou convencida. Tinha que descobrir logo quanto sabia em realidade. Se não tinha feito mais que lhes ver juntos e tinha unido as peças, não saberia que além de seu amante, Benjamim era também seu menino. Em qualquer caso, tinha que encarregar-se daquilo. Não podia tolerar que manipulasse a Benjamim daquela maneira, já que não podia arriscar-se a que este odiasse mais sua relação, devido ao perigo, pelo que odiava ao Evans.
  E Deus não quisesse que Marlene, a imprensa rosa da sociedade vampírica, descobrisse algo. Não gostava que Benison permitisse a essa puta reconvertida seguir na cidade. Pode que tivesse que pressionar também nesse aspecto.
  A fábrica estava alagada com um murmúrio baixo enquanto os Vergônteas passeavam e se perguntavam o que ocorreria a seguir. Aquele som era baixo para os ouvidos agudizados dos vampiros, mas Eleanor sabia que um mortal que passasse não ouviria absolutamente nada. Só os ancillae rompiam a rir ocasionalmente, calculando seu máscara para ocultar sua inquietação. Cada vez que os jovens arrivistas esqueciam seu lugar, os antigos lhes perfuravam com a olhar.
  Entretanto, inclusive os murmúrios morreram quando o príncipe levantou-se de sua cadeira e se aproximou da concorrência. deteve-se um momento e observou a seus súditos.
 --Vergônteas de Atlanta -começou-. Muito raramente nos reunimos tantos juntos, e me entristece que a causa seja uma grande tragédia. Sem embargo, igual ao povo do Israel se fez forte em seu exílio, de os desastres nasce em ocasiões a grandeza.
 Eleanor estava orgulhosa do aura majestosa que rodeava a seu marido. Seu traje negro era a moda mais elegante de 1890, assim como seu próprio vestido vermelho. Era alto e forte, um monólito, um símbolo de força em tempos turbulentos. Havia quem não estava de acordo com ele por uma questão de princípios, como Thelonious. Outros maquinavam nas sombras, mas nenhum podia enfrentar-se a ele uma vez tomava uma decisão, e aquela noite estava totalmente convencido de seu curso de ação.
 Suas palavras lhe inspiraram.
 --Todos havemos sentido a mão da maldição de um modo ou outro. Podemos tentar ocultá-lo por medo de que outros nos acusem de debilidade por nossa perda, mas todos fomos afetados. Eu perdi a meu único menino. Encontrou a morte definitiva diante de meus olhos.
 produziu-se um grande silêncio entre todos os vampiros. Nunca havia acontecido que o príncipe discutisse uma tragédia tão pessoal em um foro público como aquele. Inclusive as leituras da Bíblia que dirigia, seus sermões e diatribes, eram basicamente filosóficas e distantes, nunca pessoais.
 --Tão doloroso para mim foi ver a comunidade a que tenho a obrigação de proteger rasgar-se por dentro, sem saber o que estava ocorrendo, e ver o medo de meus súditos a relacionar-se com alguém que poderia estar maldito ou enlouquecido pela fome. Esta noite vos revelarei como chegamos a estar malditos. -Sussurros de surpresa e incredulidade percorreram a concorrência ante a notícia-. Também vos direi como podemos nos pôr no caminho da salvação. Com ajuda de todos os reunidos, desfaremo-nos desta maldição que nos atende.
 O ruído morreu rapidamente enquanto todos ouviam atentos, alguns com assombro incrédulo, outros céticos, outros convencidos de que o Malkavian estava saindo do interior de seu príncipe, o sacerdote-rei louco.
 Benison estava percorrendo uma magra linha. Falava com a convicção de suas crenças, mas eram muitos aos que teria que convencer de que falava com autoridade, e não com a que dava o poder, a não ser o conhecimento. Do mesmo modo, não podia revelar a fonte da maior parte das informações.
 Muitos dos detalhes que estava recitando sobre o modo de atuar da maldição eram dolorosamente familiares para todos: o fome consumia aos Cainitas, convertendo sua necessidade noturna em um anseia obsessiva e incontrolável. A loucura se apoderava depois deles, criando em ocasiões maníacos violentos e em outras assassinos desumanos.
 Mas o príncipe tinha descoberto mais. Em sua discussão da noite anterior com seus aliados Anacreontes, tinha aprendido que a loucura que afetava às Vergônteas malditas não era aleatória. Os fantasmas podiam sentir a chamada da loucura que surgia das Terras das Sombras, a morada dos mortos sem repouso. Se tratava de uma força entrópica, uma energia regressiva, explicaram-lhe, cuja fonte, a origem da maldição, estava claro: o sangue.
 A vitae dos Cainitas não estava debilitada. Não tinha perdido nada de sua potência, mas bem ao contrário. Tinha aumentado seu força, tanto que se converteu literalmente na de uma geração anterior, e outra, e outra. Para alguns, a regressão havia significado converter-se em um vampiro de uma geração anterior pela que aquele sangue tinha circulado, revivendo certos acontecimentos, combatendo determinados perigos. Experimentassem ou não as malditas estas lembranças ancestrais, os sintomas físicos eram os mesmos. O corpo e a mente do Cainita não podiam ajustar-se tão rapidamente à potência aumentada do sangue. A mente se rachava. A carne se abria e a fome não terminava jamais. Nenhuma quantidade de sangue podia satisfazer as necessidades cambiantes do corpo.
 Loucura. Inanição. Morte.
 Benison tinha obtido todo aquilo de sua conversação com os Anacreontes, mas não podia informar disso aos vampiros de Atlanta. Não só os fantasmas não o queriam, mas sim sua habilidade para conhecer o que nenhum Cainita ou mortal podia ver era um importante cabo de seu poder.
 --A maldição -explicou a seus súditos-, é a chamada a nossos orígenes... a nossos sires, ao sire de nosso sire, e aos sires anteriores. De volta até o princípio. A não ser que consigamos levantar a maldição, é nossa chamada até os mais velhos entre os velhos. Até os antediluvianos. Até a Gehena.
 Eleanor se encolheu para ouvir aquela palavra enquanto todos começavam a murmurar. Oficialmente, a Camarilha rechaçava qualquer crença em que os antediluvianos, meninos dos meninos do Caín, ainda existissem e muito menos que fossem a retornar no Fim dos Tempos, a Gehena, para consumir a todos os Cainitas de gerações inferiores. Entretanto, até dentro da Camarilha havia cultos, místicos e agoureiros que diziam o contrário. Entretanto, que um príncipe fizesse um pronunciamento público como aquele normalmente atraía toda a fúria da seita sobre seu cidade, e Eleanor sabia muito bem como antiga arconte.
 Entretanto, aqueles tempos eram algo menos normais.
 O príncipe tinha alguma margem de manobra enquanto a situação no resto do mundo seguisse sendo tão caótica como parecia. Benison não tinha falado à ligeira. Tinha decidido seu curso de ação e não necessitava mais que tempo para implementá-lo.
 --"É o Fim do os Tempos" -voltou a recitar-. "É a Queda da Sangue. É o Dia do Julgamento ".
 De novo, como tinha ocorrido com a primogenitura a noite anterior, a reação dos vampiros congregados antes as passagens proféticos do Livro do Nod tinha sido de total solenidade. Aquelas palavras sacrossantas eram quase uma força tangível que dava crédito e poder às convicções inamovibles do príncipe.
 --"O Primogênito chega furioso e saca a seus filhos de suas tumbas. Sua ira é um martelo, uma maça tosca manchada com o sangue do assassino de reis. Domina o raio a seu passo".
 Apesar da segurança daquela oratória, muitos anarquistas começaram a agitar-se. Além de seu valor inicial, não emprestavam muita importância às profecias dos anciões. As jovens Vergônteas se moviam como os meninos mortais na igreja que não se atreviam a interromper a seus maiores. Thelonious era consciente da crescente inquietação.
 --Inclusive para o Cainita -seguiu Benison-, há um lugar e uma ordem. Igual ao gado domina às bestas, as Vergônteas dominam ao ganho, e com esse poder chega a responsabilidade de cuidar do bem-estar dos seres inferiores. Entre nós, nossas Tradições asseguram que somos capazes de conviver com outros, de modo que nossa sociedade funcione de forma harmoniosa. Assim poderemos guiar de forma mais eficaz aos mortais a nosso cargo.
 Enquanto Benison enumerava a importância das seis Tradições e o modo no que muitas Vergônteas se desviaram da ordem natural imposto Por Deus, consagrado pelo Pai Tenebroso Caín em bem daqueles que levavam sua mancha, uma clara divisão começou a produzir-se. Muitos dos majores, os mais doutrinados nos costumes da Camarilha, apoiavam cada vez com mais convicção as palavras do príncipe. Podiam aceitar que tinham errado, e que com solo realizar algumas pequenas mudanças poderiam cumprir as prescrições autoritárias das que Benison falava. Por outra parte, alguns dos mais jovens se mostravam cada vez mais zangados.
  --promulguei -anunciou Benison-, com a aprovação da primogenitura, os Três Decretos de Ano Novo. São medidas obrigado às quais liberaremos a nossa cidade da maldição que nosso divino Criador nos impôs justamente como castigo por nossa negativa a obedecer o caminho estabelecido. Primeiro, as Vergônteas de Atlanta cessarão desde este mesmo momento em sua lassidão na hora de observar as Seis Tradições, assim como os mandatos do príncipe e a primogenitura. As violações do espírito e a letra da Lei serão castigadas de modo tão vigoroso como justo.
  Ninguém se atreveu a protestar enquanto todos pensavam nas implicações daquele decreto. A situação na cidade se havia feito tão desesperada, e a necessidade de alguma medida drástica era tão evidente, que muitos céticos aprovaram submissos. Se produziram murmúrios entre os anarquistas, mas assumiam que uma vez terminada a reunião fariam o que quisessem com as Tradições. De momento, estando tão perto dos antigos da cidade e escutando ao príncipe, os ancilla preferiam a subversão à confrontação. Nem sequer Thelonious abriu a boca. Havia dito o que tinha que dizer na primogenitura e sabia que tinha sido derrotado. Já estava planejando o futuro.
  --Segundo -disse o príncipe-, aqueles de vós que careçam de clã deverão procurar um que lhes adote. Os que pertençam a um mas não cumpram com suas obrigações como membros, trabalharão imediatamente para atender suas responsabilidades. Em esta cidade voltará a ordem! A divisão existente entre ancilla e antigo não voltará a ser burlada!
  Este decreto sumiu aos congregados em um atônito silêncio. Todos tinham visto vir o primeiro, já fora com resignação ou irritação. Entretanto, aquilo... aquilo bordeaba a heresia segundo os preceitos aceitos da Camarilha.
  Eleanor observava cuidadosamente às Vergônteas congregadas. Seria sua responsabilidade ajudar a seu marido a manter a ordem, e embora era mais que capaz de dirigir com pura força de vontade e intimidação, seu olho estava adestrado para observar os problemas menos evidentes. por que esmagar uma revolução se suas líderes podiam ser obrigados a cooperar antes de que começasse?
 Até certo ponto, Benison praticava a intriga de forma instintiva. Durante um tempo tinha estado solicitando a ajuda de Xavier Kline, o mais hostil dos anarquistas e possivelmente o mais perigoso, em situações que permitiam a seu cérebro neolítico liberar seus tendências agressivas de um modo que beneficiasse ao príncipe. Entre os demais não via perigos importantes. A primogenitura lhe seguiria, e os demais Vergônteas reconhecidas obedeceriam. Hannah tinha votado a favor dos decretos, de modo que os Tremere seriam aliados nominais, ideal para poder lhes ter vigiados. Os anarquistas causariam problemas menores. Não havia dúvida de que Benison sei veria obrigado a fazer que Kline acabasse com um ou dois deles, mas isso serviria para amedrontar ao resto; terminariam submetendo-se ou partindo a outra cidade. Submeter aos anarquistas e controlar a população da cidade. Possivelmente a estratégia de seu marido fora mais ardilosa do que em um princípio tinha acreditado.
 Entretanto, tudo pendia de uma condição: a maldição da sangue. O que ocorreria se a maldição desaparecia de algum modo? A Camarilha voltaria seu tempo e seus recursos a responder a seus radicais decretos. De todos os modos, Benison já teria pensado em isso antes de laçar-se, pensou. É próprio dele.
 O silêncio de assombro deu aconteço rapidamente aos murmúrios e comentários. Alguns antigos não desejavam associar-se com os anarquistas. Outros, que viam que seus clãs poderiam reforçar-se com os novos membros, não tinham problema em realizar contatos sutis com os sem clã mais dispostos ao recrutamento.
 Eleanor estava impressionada com a audácia das ações de seu marido, embora não estivesse totalmente convencida de seu idoneidade. O primeiro decreto, reforçar a relevância das Tradições, não era mais que uma interpretação ultraconservadora da lei existente. Entretanto, o segundo desintegrava virtualmente aos sem clã, o grupo que mais rapidamente crescia na sociedade vampírica. Se essa prática tinha êxito e se estendia a outras cidades, podia inflamar aos Cainitas mais jovens até o ponto de provocar uma segunda Revolta Anarquista. Thelonious tinha acertado em seu hipótese, E para onde se voltariam os anarquistas? Ou ironicamente para a Camarilha, em busca de amparo, ou para os braços abertos do Sabbat.
detrás de suas ousadas ações, a mão que jogava o príncipe era muito frágil.
  O problema de atender às grandes congregações de Vergônteas, pensou Owain, era que ao menos a metade dos pressente queria esconder-se nas sombras e espreitar. É o que ocorria a ele, por isso não deixava de tropeçar-se com os dois Nosferatu, Aurelius e esse outro cujo nome sempre lhe esquecia. Estavam todos tão ocupados escondendo-se com seus poderes que não se viam os uns a os outros. até agora lhe tinham pisado e tinha recebido uma cotovelada. Ele, por sua parte, tinha-lhe metido o dedo no olho a alguém de forma involuntária. Ao menos esperava que o "olho" não fora uma das verrugas supurantes do Aurelius...
  Naquele lugar tão próximo ao sítio onde sua amada sereia havia sido assassinada, Owain via o príncipe promulgar seus decretos com partes iguais de convicção, ardor apocalíptico e melodramatismo. Isso deve ser o que me perdi ontem à noite, pensou. A primogenitura passando nos planos do Benison.
  O primeiro dos decretos não tinha nada de especial. O segundo tinha sido mais uma surpresa. Tinha observado com interesse as diferentes reaja. Surpreendeu-lhe que ao menos Thelonious não tivesse expresso alguma protesto, embora possivelmente já o tivesse feito a noite anterior.
  Entretanto, o mais interessante foi a explicação que Benison tinha dado sobre a maldição. Além de perguntar-se como havia conseguido aqueles conhecimentos, ao Owain intrigava a idéia dos lembranças ancestrais. até agora, enquanto a cidade se afundava em o caos, Owain tinha estado mais ou menos isolado da crise. Tratava diretamente com muito poucas Vergônteas, pois assim gostava de levar seus assuntos, e nenhum de seus ghouls tinha sofrido a maldição. Em realidade tinha passado mais tempo apaixonado por sua sereia e chorando a tragédia de sua morte que pensando no mal que havia exterminado na metade dos vampiros de Atlanta.
  Entretanto, ouvindo o Benison se perguntou se não haveria alguma conexão. A visão. A árvore, a torre... poderiam representar a demência da maldição? Tinha tido vagas regressões a lembranças da Idade Média, e se tinha alimentado mais vezes do que era habitual nele. Era aquilo o começo dos sintomas da maldição? Traria-lhe o sangue a liberação final se carecia do valor para provocá-la ele primeiro?
 O ruído a seu redor diminuiu quando o príncipe passou ao terceiro decreto.
 --...e não posso por menos que aceitar minha responsabilidade pelo sacrilégio que se produziu -dizia Benison-. A menos de três quilômetros daqui há uma igreja, faz muito abandonada pelos crentes mortais.
 Owain sentiu um nó no estômago.
 --Sem meu consentimento, uma Cainita de sinistros planos ocupou esse lugar de oração.
 Owain elevou o olhar, sabendo o que viria a seguir. Não queria ouvi-lo. Não queria acreditá-lo.
 --Realizou rituais, invocou demônios e rendeu tributo a deuses pagãos, e ao fazê-lo agravou a ira divina que cai sobre nós. Possivelmente fora ela a que atraíra a censura de nosso divino Criador!
 Ainda recuperando do anterior decreto, as Vergônteas de Atlanta aceitaram o terceiro sem mais comentários. Com um supremo esforço de vontade, Owain se manteve acalmado apesar de querer gritar de raiva, de lançar-se contra o príncipe.
 --O problema -disse Benison-, foi retificado.
 Retificado.
 Aquela palavra ressonou em seus ouvidos. A primeira coisa bela que tinha chegado a sua vida em centenas de anos, como um raio de luz atravessando as tormentas.
 Retificado.
 Tinha sido despedaçada!, quis gritar. Destroçada com uma tocha por um assassino sem consciência!
 Um assassino sem consciência. Ao Owain tinham chamado assim no passado. Tinha-o sido. Não tinha sido igual acaso em seus tempos? O príncipe seguia falando e teve que obrigar-se a escutar, a concentrar-se.
 --Faço-lhes uma pergunta a todos vós. Solo a farei uma vez, e em menos de um quarto de hora quero suas respostas. -girou-se para um lado-. Kline, traz-o.
 Alguém teve que lhe repetir a mensagem porque o Brujah não o havia ouvido, mas lentamente todos se apartaram para deixar passo ao gigante. Trazia para uma figura coberta com um capuz negro e as mãos atadas. Owain a reconheceu facilmente.
  Kline chegou ao centro e se retirou enquanto o príncipe se aproximava do prisioneiro.
  --Este Cainita -disse-, teve relações com os infernalistas. Há quebrado a lei das Vergônteas e a lei de Deus. Em parte, a maldição que asóla nossa cidade é responsabilidade dela. -Observou lentamente a os vampiros reunidos com seus severos olhos verdes-. Pergunta-a que faço-lhes a todos é: algum de vós participou destes ritos demoníacos? Algum de vós está poluído?
  Silêncio. O silêncio da tumba.
  --Pensem bem -disse o príncipe-, pois depois de esta noite não haverá piedade.
  Todos olharam ao chão, moveram-se em seus sítios tratando de não notar-se em outros. Owain observava à figura encapuzada.
  --Falem agora -apressou o príncipe-, e serão tratados com indulgência.
  Indulgência?, perguntou-se Owain. Uma morte rápida? Não, o príncipe não era assim. Não era intencionadamente cruel. Não faria mais que aplicar um castigo. Um castigo como o da sereia? Apertou os dentes detrás de seus lábios, fortemente fechados.
  Ainda esperando alguma resposta de seus súditos, Benison estendeu o braço e lhe tirou o capuz ao prisioneiro para que todos pudessem lhe ver. Pacote entre os vampiros estava Albert. O príncipe não olhou a seu companheiro de clã, não olhou a barba barbeada grosseiramente, a sangre seca nos ouvidos, os cortes e contusões que lhe cobriam o rosto, sem dúvida obra do Brujah. Tinha a cabeça arremesso para diante e estava virtualmente sem sentido.
  --O que ele seja uma lição para todos aqueles que pretendam mentir -disse-. Há alguém aqui que deseje indulgência? -Sua petição voltou a ser recebida com silêncio.
  Owain queria tirar o Albert dali. Desde quando conhecia Malkavian? Cem anos? Duzentos? Estava convencido de que ele não se tivesse ficado de pé enquanto um amigo era injustamente castigado. Owain podia falar em seu favor, mas fazê-lo seria inculpar-se. Como desvelaria então todos aqueles segredos?
  Maldito Benison, pensou apertando os punhos aos flancos. Maldito seja pelo Albert. Maldito seja por destruir... por destruir a beleza.
  --Muito bem -terminou o príncipe-. O tempo da misericórdia há passado.
  Estendeu uma mão e Kline voltou a aproximar-se, esta vez com uma estaca de um metro de longitude. O príncipe tomou a madeira mas não olhou ao Albert à cara, como se o condenado não fora digno disso.
  --Tem algo que dizer? -perguntou.
  Albert levantou com esforço a cabeça. Seus olhos estavam afundados e ensangüentados, e mostrava um indício de sorriso. Olhou lentamente a todos os pressente, embora muitos se negavam a encontrar seus olhos. Alguns lhe observavam acusadores. Owain voltou a ocultar-se em as sombras, mas apesar de todo os olhos do Malkavian se detiveram um segundo nos seus.
  --O que houvesse dito Angharad? -sussurrou.
  --Que Deus tenha piedade de sua alma -sentenciou Benison enquanto afundava a estaca no coração do vampiro. Owain trastabilló, quase como se houvesse sentido a força do golpe. Os joelhos lhe falharam e notou como tropeçava com alguém.
  O que houvesse dito Angharad?
  Derrubado no chão, os olhos quietos do Albert lhe observavam sem vida.
  O que houvesse dito Angharad?
  sentiu-se doente e lutou para conter a bílis e o sangue. Angharad. Como tinha podido sabê-lo? Owain tinha muitíssimas perguntas, mas não havia modo das realizar.
  Durante um instante acreditou ouvir um rastro da música do canto de a sereia. Ou era a melodia que Angharad lhe tinha cantado fazia tanto tempo? Não eram a mesma? Não. Não era mais que um truque de seu mente e a acústica da fábrica vazia.
  As Vergônteas não deixavam de agitar-se, ansiosos por partir. Aquilo não era a vitória sobre um inimigo. Não era momento de celebrações. Albert era um do seus, cansado e castigado. Ninguém queria pensar muito nisso.
  Nem sequer Benison, firme em seu dever, sentiu prazer algum. Se ficou de pé com o sangue salpicando suas mãos, sua barba, seu traje.
  --Será exposto ao sol. Que Deus o tenha em sua glória.
  As duas últimas noites tinham sido muito para o Owain. Primeiro o assassinato da sereia, e agora isto. Angharad. Necessitava afastar-se da multidão, mas se obrigou a caminhar lentamente. Por sorte, depois de algo assim ninguém ficou a conversar. Não houvesse tido estômago para isso.
  Um ódio frio ardia em seu peito. Para o Xavier Kline, o assassino, por o prazer que obtinha da destruição. Para o Benison, por não compreender, por promulgar sentenças de morte. Para o Albert, por pronunciar aquele nome, por morrer. Para tudas as Vergônteas, por viver de forma sádica e perversa. Mas sobre tudo para si mesmo, por uma lista de pecados muitíssimo mais graves que os que podiam haver cometido a sereia e Albert juntos.
 Se Kendall Jackson notou os punhos do Owain tremendo pela rabia ao entrar no carro, ignorou conscientemente o fato.
 --A casa -disse-lhe.
 Adref.
 Havia rastros e sinais da sereia em tudo o que via e ouvia. Não podia fugir dela. recostou-se contra o assento traseiro do Rolls e se cobriu os olhos. Os ouvidos começavam a lhe apitar. Não era tão grave como o do Kline, que tinha recebido um impacto direto, mas distava muito de estar bem. esfregou-se as têmporas, como se daquele modo o assobio, a dor e as lembranças fossem desaparecer.
 Pela segunda vez em tantas outras noites, ficou-se quieto e tinha contemplado como um Cainita que não o merecia-se encontrava com a Morte Definitiva. Não tinha lutado a favor da sereia, não tinha feito nada pelo Albert. Dava igual a Kline e seus valentões lhe tivessem destruído na igreja com toda segurança. Dava igual a Benison já tivesse decidido o destino do Albert, e que nem sequer Salomón o Sábio tivesse podido lhe fazer repensar. Ele seguia castigando-se com quebras de onda de culpabilidade.
 Durante tanto tempo não havia sentido... nada. Nem alegria, nem remorsos, nem piedade, nem culpa.
 Então, durante umas breves semanas, a canção da sereia havia-lhe meio doido. estendeu-se para ele e lhe tinha miserável, lhe recordando seus dias mortais, dias nos que as emoções haviam sido fortes, para bem ou para mau. A mulher tinha reconhecido seu perda e lhe tinha mostrado a sua própria. Mas Owain tinha esquecido que a felicidade é a semente da perda. Amor, perda, saudade. Humanidade. Em seu tempo a tinha procurado. A última vez que havia visto seu amor o tinha estado procurando, mas já se rendeu.
 Angharad.
 O que houvesse dito Angharad?
 Adref. Retorno a casa.
  Em umas breves semanas a sereia tinha derrubado as muralhas de sua fortaleza. Tinha-lhe arrancado de seus seguros aposentos, do dor seca de sua existência, e o tinha arrojado ao caos da vida, com o sofrimento e o pesar que esta suportava. E, de novo, a felicidade tinha-lhe sido roubada.
  Tão seguro quanto Rhys lhe tinha roubado a seu único amor, igual a uma sombra escura lhe tinha roubado a vida no Westminster, tão seguro quanto os Ventrue normandos lhe tinha roubado Gales e a Inquisição a seu único amigo Gwilym, Benison e Kline haviam conspirado para lhe roubar a felicidade que acabava de encontrar.
  Além disso, para deixar clara sua decisão tinha sacrificado ao pobre Albert, e por isso Owain era duplamente culpado: traidor a seu príncipe, traidor a seu amigo.
  Basta!
  ficou firme no assento e deu uns pequenos golpes no assento do passageiro diante dele, roçando o couro com as garras.
  Jackson olhou nervosa por cima de seu ombro, mas cravou a vista na estrada e não disse nada.
  Armou um braço para atravessar a janela... mas se deteve. A fúria tinha sido outro dos dons da sereia. Sim, tinha sentido raiva no tabuleiro de xadrez, mas durante anos não havia sentido nada mais. Além disso, sua frustração com a partida era uma vela comparada com o sol de seu ódio para o Benison e Kline.
  Não estavam longe de casa. alisou-se o cabelo.
  As emoções lhe serviriam. Proporcionariam-lhe o fio crucial, a determinação da que tinha carecido durante décadas, sempre que não subordinasse a razão aos sentimentos. A fúria podia lhe guiar, mas não devia deixar que lhe governasse.
  Compreendeu que seu engano era que se preocupou. Se não tivesse sentido interesse fazia tanto tempo, sua perda não lhe houvesse acossado daquele modo ao longo dos séculos. Se não se houvesse preocupado pela sereia não tivesse desfrutado das emoções que oferecia-lhe, como tivesse feito com uma prostituta em vida, mas a mudança a culpa por perdê-la não lhe estaria atormentando.
  Tinha-lhe miserável, tinha-lhe manipulado igual a fazia com os mortais que formavam seu rebanho, igual a tinha manipulado a Albert. Que visões arrebatadoras tinha visto o Malkavian? O que dias perdidos tinha recuperado? Tinha sido ela a que havia ao Albert levado a sua morte. Tinha sido ela a que lhe tinha obrigado a ele a trair a seu príncipe.
 Tinha sido ela a que tinha pago o preço.
 Tudo encaixava perfeitamente, mas não podia deixar de albergar um profundo ressentimento para o Benison e seu bufão Brujah. Como todos os anteriores, governariam sobre ele. Aprovariam ou condenariam cada uma de suas ações, cada pensamento. Igual a Rhys, igual aos normandos, igual à Inquisição. Também podia desfazer-se de esse jugo.
 --Senhor, há alguém na grade frontal -disse Jackson.
 Comprovou que era certo, e que esse alguém não era nenhum desconhecido.
 --Detenha seu lado. -Jackson obedeceu enquanto Owain abria a porta.
 --boa noite, irmano meu -disse o visitante [NOTA do T: as palavras em itálico estão em castelhano no original]. Era baixo, de tez escura, e vestia um traje negro, camisa vermelho escuro e gravata negra.
 --Entra -disse-lhe secamente.
 O homem obedeceu, mas assim que abriu a boca para falar Owain lhe fez um gesto molesto pedindo silêncio. O espanhol se entreteve arrumando-a gravata enquanto se aproximavam da casa em silêncio.
 depois de que Jackson fora despedida para o resto da noite, Owain levou a seu convidado à sala de troféus. Assim que fechou a porta se voltou para ele.
 --No que está pensando, aparecendo sem te anunciar e esperando na rua frente a minha casa? Tem-te feito um temerário com os anos, Miguel, ou é simplesmente idiota?
 O outro sorriu zombador. Seus dentes eram sujos e alguns estavam partidos.
 --E quem nesta bendita cidade ia reconhecer me, irmão meu?
 --Isso não importa... -começou Owain, elevando as mãos no ar. Não tinha sentido tentar lhe convencer.
 --E outra coisa, em caso de que não o tenha ouvido -disse Miguel com semblante sério-. Agora sou sacerdote, padre, mas como é amigo meu me pode chamar Frei Miguel.
 O Ventrue estava passando o dedo pelo fio da espada que pendurava da parede, e não se incomodou em voltar-se para seu convidado ao lhe responder.
 --Não te penso chamar assim. Não tem autoridade sobre mim, e além disso põe em perigo sua posição com sua mera presença.
 --Tsk, tsk, tsk. -O sorriso tinha retornado-. Tanto lhe pedimos, irmano Owain? -Sem esperar mais convite, Miguel tomou assento em uma das grandes poltronas de couro-. Não tem por costume oferecer uma bebida a seus convidados?
 --O que está fazendo aqui? Não vieste da Espanha para falar dos velhos tempos -disse afastando-se da espada e sentando-se frente a Miguel.
 Este se tomou seu tempo para observar a estadia.
 --Tem uma bonita casa. Não te foi mal na América, mas alguma vez foi pobre, não, irmão? -Contemplou o cinzeiro de estanho, passou o dedo pelo abajur de bronze e aguardou todo o tempo necessário, tratando de fazer saltar a seu anfitrião.
 Owain resistiu, reprimindo as vontades de estrangular a seu convidado.
 Ao final, vendo que não conseguiria seu propósito, Miguel respondeu.
 --O Grego quer verte.
 O Grego. Aquele era um nome que, salvo pelas referências ao pintor mortal, Owain não tinha ouvido desde fazia mais de oitenta anos.
 --Impossível. Nunca me pediria isso. É um de seus truques, Miguel?
 O espanhol riu entre dentes.
 --Disse que resistiria, que na América te tinha feito brando e preguiçoso. -Aquele comentário soava muito mais cruel vindo de Miguel que de seu professor, conhecido do Owain, embora não exatamente amigo. O convidado se levou a mão à jaqueta e tirou um sobre.
 A parte de pergaminho que continha lhe resultava familiar. Os bordos amarelados eram iguais aos da carta que tinha recebido fazia poucas semanas da mesma fonte, aquela carta que sozinho continha seis palavras mas que tinha conseguido lhe tirar temporalmente de seu aborrecimento crônico. Esta vez a mensagem voltava a ser breve, e ainda mais significativo:
   Owain, devo falar contigo.
  Vêem o Toledo o antes possível.
como sempre, a mesma caligrafia elegante. Sem assina. Não era necessária.
Leu a mensagem uma vez mais.
--Impossível. Estão passando muitas coisas aqui. Não posso ir.
 Miguel não deixava de sorrir. Desfrutava vendo o Owain revolver-se, e se permitia o luxo de apertar os parafusos pouco a pouco.
 --Irmano meu, não é uma petição.
 --Maldição! -gritou golpeando o braço da poltrona-. por que faz isto? Está tentando destruir tudo o que temos feito?
 Miguel deixou de jogar. Vaiou com ferocidade e despiu as presas ante o Owain.
 --Esquece o que é. Leva sozinho aqui muito tempo. Digo-lhe ao Grego que devemos te vigiar mais de perto. A informação que nos envias não é tão valiosa para te esquecer de seus demais responsabilidades. -Voltou a sentar-se, alisando-a gravata-. Esquece o que é, irmano meu. Uma vez do Sabbat, sempre do Sabbat.
 Owain conteve um grunhido. Fazia muitíssimos anos que se havia unido ao Grego, mas havia coisas das que não se podia escapar a pesar do tempo. Não queria tratar com tudo aquilo naquele momento. Embora sua lealdade para o Benison estivesse virtualmente morta, não estava preparado para afastar do trauma da morte da sereia, de suas lembranças do Angharad.
 Leu a carta pela terceira vez. Estavam-lhe exigindo o preço da liberdade, e não havia mais alternativa que responder.
  Os grandes espaços abertos ajudavam. Algo, ao menos.
  Plumanegra lhe havia dito que havia Vergônteas por toda parte padecendo a maldição. arrancavam-se as gargantas os uns aos outros, procurando sangue. Deliravam, acreditando que eram outras pessoas. Nicholas temia haver-se unido a eles.
  Tinha sido pior na cidade, com o gado e seus carros, os edifícios e as estradas. Lá onde fora havia algo ou alguém.
  Agora podia ver e sentir a suave curva da terra, os acres e acres de trigo invernal estendendo-se em todas direções, de horizonte a horizonte. O céu estava espaçoso e as estrelas brilhavam na escuridão, verdadeira escuridão, não o rosa pálido que pretendia ser a noite da cidade.
  E as visões.
  Tinham sido muito piores em Atlanta e se produziram uma detrás de outra, lhe deixando tão desorientado e confuso que em várias semanas logo que tinha tido tempo de recuperar-se.
 De volta na natureza ainda as padecia, mas menos a miúdo. Ali era mais capaz de resistir e recuperar-se. Várias vezes tinha conseguido inclusive rechaçar os sonhos que ameaçavam com lhe possuir. Tirava força da terra, sustento do ar claro, vitalidade do chão virgem.
 Entretanto, aquela noite não era capaz de conter as visões. Tinha lutado durante horas, mas agora se encontrava em um suave pendente, observando as estrelas e rodeado por horizontes de trigo. Estava exausto pela batalha e não podia resistir mais.
 Os sonhos chegaram.
 Escuridão. Trevas e dor. Visão se esclarece pouco a pouco. Convexo de flanco. Tratando de rodar, mas incapaz de fazê-lo. Dor. Troca de posição... não.
 Não posso me mover.
 A lança. Os olhos se ajustam por fim até ver o que já sente. Uma lança atravessada. Carvalho forte. Parte dentro, parte fora.
 Dia? Noite? Em cova. Indefeso. Dor. Fome.
 Dor.
 Fome.
 Escuridão.
 Vista outra vez. Cova. Som. Passos aproximando-se.
 Caçador do sangue olhando. Falando.
 --É um prazer me voltar para encontrar contigo ao fim, Blaidd. Os camponeses falam muito bem de ti. Bom, ao menos falam muito de ti.
 Garganta destroçada. Dor. Não posso me mover.
 Ajoelhado. Mais perto. Dentada. Beber.
 A imagem se desvaneceu nas sombras e Nicholas se encontrou de novo observando as estrelas brilhantes, não o interior de uma cova. As visões sempre eram difíceis de captar ao princípio, fugindo como a água por um deságüe. Entretanto, depois de uns minutos de concentração, algo difícil devido à fome que o atendia depois dos sonhos, retornavam.
 Blaidd. O sire do sire do sire do sire do Nicholas. Sua mente logo que era a de um animal, mas havia sentido o poder de seu sangue, contido pela lança que lhe atravessava o coração, diabolizado por um caçador do sangue... quanto mais recordava Nicholas a visão, mais claramente via o rosto do assassino. Era uma cara familiar, uma que tinha visto com seus próprios olhos.
 ficou em pé com dificuldades. A fome lhe estava destroçando por dentro. sentia-se débil, confuso... e enfurecido. Não só lhe havia seguido a maldição urbana, mas sim esta tinha começado séculos antes, quando um morador da cidade tinha assassinado a seu antepassado e lhe tinha roubado o sangue.
 Aquela noite a fome do Nicholas tomou o controle. Podia voltar a capturar a vitae de sua linhagem. Não estava muito longe. Ainda ficavam umas horas até o amanhecer, de modo que partiu imediatamente. Nem sequer a debilidade podia lhe deter enquanto se impunha um ritmo frenético de volta à civilização, de volta a Atlanta. Haveria vingança. Jurou pela lembrança de seu antepassado que o sangue se pagaria com sangue.
 Owain Evans, assassino do Gangrel, responderia por seu crime.

 

 

                                                                                                    Gherbod Fleming

 

 

 

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