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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AFRICANO / J. M. G. Lê Clézio
O AFRICANO / J. M. G. Lê Clézio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Tenho coisas a dizer deste rosto que  recebi em meu nascimento. Primeiro, foi preciso aceitá-lo. Afirmar que não me agradava seria dar-lhe uma importância que ele não tinha quando eu era criança. Eu não o odiava: ignorava-o, evitava-o. Não o olhava nos espelhos. Durante anos, creio que nunca o vi. Desviava os olhos das fotos, como se alguma outra pessoa tivesse se posto em meu lugar.
Aos oito anos de idade, mais ou menos, vivi na África ocidental, na Nigéria, numa região muito isolada onde não havia europeus, à exceção de meu pai e minha mãe, e onde a humanidade, para a criança que eu era, se constituía unicamente de iorubás e ibos. Na choupana em que nós morávamos (a palavra choupana tem algo de colonial que hoje em dia pode chocar, mas que descreve bem a residência funcional prevista pelo governo inglês para os médicos militares, uma laje de cimento por piso, quatro paredes de blocos sem emboço, um telhado de chapas onduladas recoberto de folhas, nenhuma decoração, redes penduradas nas paredes para servir de camas e, única concessão ao luxo, um chuveiro ligado por canos de ferro a uma caixa d'água no telhado, que es quentava ao sol), nessa choupana portanto não havia espelhos, nem quadros, nada que pudesse lembrar-nos do mundo em que tínhamos até então vivido. Um crucifixo que meu pai pendurara na parede, mas sem representação humana. Foi aí que eu aprendi a esquecer. Parece-me que da entrada nessa choupana, em Ogoja, é que data o apagamento de meu rosto e dos rostos daqueles, todos eles, que me rodeavam.
Desse tempo, por assim dizer consecutivamente, data o aparecimento dos corpos. Meu corpo, o corpo de minha mãe, o corpo de meu irmão, o corpo dos garotos da vizinhança com os quais eu brincava, o corpo das mulheres africanas nos caminhos, ao redor da casa, ou então no mercado, perto do rio. Sua estatura, seus seios pesados, a pele luzente de suas costas. O sexo dos garotos, sua glande rosa circuncisa. Rostos, sem dúvida, mas como máscaras de couro, endurecidos, riscados de cicatrizes, de marcas rituais. Os ventres protuberantes, o cotoco do umbigo parecendo um calhau costurado sob a pele. Também o cheiro dos corpos, o tato, a pele nada áspera, mas quente e suave, eriçada em milhares de pêlos. Tenho essa impressão da grande proximidade, do número de corpos ao meu redor, coisa que eu não havia conhecido antes, coisa nova e familiar ao mesmo tempo, que excluía o medo.

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Na África, a falta de pudor dos corpos era magnífica. Dava profundidade, dava alcance, multiplicava as sensações, estendia à minha volta uma rede humana. Harmonizava-se com a região dos ibos, com o traçado do rio Aiya, com as choupanas da aldeia, seus tetos de cor amarelada, suas paredes cor-de-terra. Tal despudor sobressaía nos nomes que entravam por mim adentro, significando muito mais do que nomes de lugares: Ogoja, Abakaliki, Enugu, Obudu, Baterik, Ogrude, Obu-bra. E impregnava a muralha da floresta pluvial que por toda parte nos continha.
Não usamos palavras (e as palavras não se gastam) quando somos crianças. Eu nasci naquele tempo distante, muito longe dos adjetivos, dos substantivos. Eu não posso dizer, nem sequer pensar: admirável, imenso, poderio. Mas sou capaz de o sentir. A que ponto as árvores de troncos retilíneos se lançam para a abóbada noturna fechada acima de mim, encerrando como num túnel a brecha sangrenta da estrada de laterita que vai de Ogoja a Obudu, a que ponto nas clareiras das aldeias sinto os corpos nus, brilhantes de suor, as silhuetas largas das mulheres, as crianças que as agarram pelos quadris, tudo isso que forma um conjunto coerente, destituído de mentira.
Da entrada em Obudu, lembro-me bem: a estrada sai da sombra da floresta e penetra diretamente na aldeia, em pleno sol. Meu pai parou seu automóvel e, com minha mãe, tem  de ir falar com os funcionários. Sozinho no meio do ajuntamento, não tenho medo. As mãos me tocam, passam pelos meus braços, por meu cabelo, em volta da beira do meu chapéu. Entre tantos que em torno de mim se espremem, há uma mulher idosa que afinal nem sei se é velha. Acho que sua idade é o que primeiro chama minha atenção, porque ela é diferente das crianças peladas e dos homens e mulheres vestidos mais ou menos à ocidental que em Ogoja eu vejo. Quando minha mãe volta (talvez um pouco inquieta com aquele amontoado de gente), mostro-lhe a tal mulher: "Que é que ela tem? Ela está doente?" Lembro-me dessa pergunta que fiz à minha mãe. O corpo nu dessa mulher, feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seus seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada e desbotada, meio cinzenta, tudo isso
me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro. Como eu teria podido imaginar que essa mulher fosse minha avó? O que eu sentia não era horror nem pena, mas sim, ao contrário, esse amor e o interesse suscitados pela visão da verdade, da realidade vivida. Lembro-me apenas da pergunta — "Ela está doente?" — que ainda hoje me abrasa estranhamente, como se o tempo não tivesse passado. E não da resposta, por certo tranquilizadora, talvez um pouco sem jeito, de minha mãe: "Não, não está doente, ela é velha, só isso". A velhice, sem dúvida mais chocante para um menino no corpo de uma mulher porque ainda, porque sempre, na França, na Europa, nos países das anáguas e cintas, das combinações e sutiãs, as mulheres normalmente estão imunes à doença da idade. O abrasamento que ainda sinto nas faces, que acompanha a pergunta ingénua e a resposta brutal de minha mãe, como uma bofetada. Isso ficou em mim sem resposta. Claro que a pergunta não era: Por que essa mulher acabou assim, gasta e deformada pela velhice?, mas: Por que mentiram para mim? Por que me esconderam essa verdade?
A África era mais o corpo que o rosto. Era a violência das sensações, a violência dos apetites, a violência das estações. A primeira lembrança que tenho desse continente é a de meu corpo coberto por uma erupção de bolhinhas causadas pelo extremo calor, uma afecção benigna de que os brancos sofrem quando ingressam na zona equatorial, com nomes cómicos como brotoeja ou borbulha. Estou na cabine do navio que avança lentamente pela costa, ao largo de Conakry, Freetown, Monróvia, nu na caminha, a escotilha aberta ao ar úmido e o corpo polvilhado de talco, com a impressão de estar num sarcófago invisível ou de ter sido apanhado como um peixe em puçá e passado na farinha antes de ir à fritura. A África, já me tirando o rosto, dava-me um corpo dolorido e febril, esse corpo que a França me ocultara na doçura ane-miante da casa de minha avó, sem instinto, sem liberdade.
O que eu recebia no barco que me arrastava para aquele outro inundo era também a memória. O presente africano apagava tudo que o tinha precedido. A guerra, o confinamento no apartamento de Nice (onde, nos dois cómodos de uma espécie de água-furtada, éramos cinco a viver, aliás seis, contando a empregada Maria, de quem minha avó resolvera não abrir mão), as rações, ou então a fuga na montanha, onde minha mãe se escondia por medo de ser levada pela Gestapo
— tudo isso se apagava, desaparecia, tornava-se irreal. Daqui em diante, para mim, só existiria antes e depois da África.
A liberdade, em Ogoja, era o reino do corpo. Ilimitado, o olhar, do alto da plataforma de cimento na qual fora construída a casa, semelhante ao habitáculo de uma barcaça sobre o mar de capim. Se faço um esforço de memória, posso reconstituir as fronteiras vagas desse domínio. Alguém que houvesse conservado a memória fotográfica
do lugar se espantaria com o que um menino de oito anos era capaz de aí ver. Um quintal, sem dúvida, não um jardim recreativo
— existiria nessa terra alguma coisa que fosse para recreação? Era mais um espaço utilitário, onde meu pai tinha plantado fruteiras, mangueiras, goiabeiras, mamoeiros, e que servia de cerca-vi vá diante da varanda, laranjeiras e limeiras cujas folhas, quase todas, as formigas uniam para fazer ninhos aéreos, repletos de uma espécie de penugem felpuda que abrigava seus ovos. Em algum canto, mais para trás da casa, no meio do matagal, um galinheiro onde coabitavam galinhas e galinhas-d'angola e cuja existência não me é assinalada senão pela vertical presença no céu de abutres nos quais meu pai, de vez em quando, atirava com a carabina. Mas digamos que fosse um jardim, já que a um dos empregados da casa cabia o título de garden boy. No outro extremo do terreno é que deviam ficar as choças dos serviçais: o boy, o small boy e sobretudo o cozinheiro, de quem minha mãe gostava e com quem preparava, em vez de pratos à francesa, a sopa de amendoim, as batatas-doces assadas ou ofufu, uma papa de inhame que era o nosso trivial. De quando em quando minha mãe se lançava a experiências com ele, fazendo compotas de goiaba, mamão cristalizado ou ainda sorvetes de frutas não cremosos que ela batia à mão. Nesse quintal, sempre havia crianças, em grande número, que chegavam pela manhã, todos os dias, para conversar e brincar, e das quais só nos separávamos ao cair da noite.
Tudo isso poderia dar a impressão de uma vida colonial muito organizada, quase citadina — ou pelo menos campestre, à moda da Inglaterra ou da Normandia de antes da era industrial. No entanto era a liberdade total do corpo e do espírito. Diante da casa, na direção oposta ao hospital onde meu pai trabalhava, começava uma extensão sem horizonte, com uma ligeira ondulação onde o olhar podia se perder. Ao sul, o declive conduzia ao vale nevoento do Aiya, um afluente do rio Cross, e às aldeias, Ogoja, Ijama, Bawop. Para o norte e o leste, eu podia ver a grande planície amarelada, pontilhada de colossais cupinzeiros, cortada por arroios e brejos, e o começo da floresta, as matinhas de gigantescos irokos e oku-més, tudo coberto por um céu imenso, uma abóbada de azul muito forte onde o sol ardia e que era invadida, todas as tardes, por nuvens que traziam tempestades.
Lembro-me da violência. Não uma violência secreta, hipócrita, ater ror izante, como a conhecida por todas as crianças que nascem no meio de uma guerra — sair às escondidas, espiar os alemães de capote cinza a roubar os pneus do De Dion-Bouton de minha avó, ouvir remoer num sonho as histórias de tráfico, espionagem, expressões dissimuladas, mensagens de meu pai vindas por intermédio do cônsul dos Estados Unidos, Mr. Ogilvy, e sobretudo a fome, a falta de tudo, o diz-que-diz sobre as primas de minha avó se alimentando de cascas. Aquela violência não era realmente física. Era velada e oculta como uma doença. Minando-me o corpo, causava-me acessos incontíveis de tosse e dores de
cabeça tão fortes que eu até me escondia, punhos enfiados nas órbitas, sob a longa toalha da mesinha de canto.
Ogoja dava-me outra violência, real, às claras, que fazia vibrar meu corpo e era visível em todos os detalhes da vida e da natureza circundante. Temporais como depois nunca vi, nem sequer em sonho, o negrume do céu zebrado pelos raios, o vento que envergava as grandes árvores ao redor do quintal,que arrancava as palmas do teto, rodopiava na sala de jantar, passando por debaixo das portas, e apagava os lampiões a querosene. Algumas noites, um vento vermelho, vindo do norte, dava brilho às paredes. Uma força elétrica que eu tinha de aceitar, de domar, e em relação à qual minha mãe inventara uma brincadeira, contar os segundos que nos separavam do impacto do trovão, ouvi-lo aproximar-se, quilómetro após quilómetro, e depois se afastar para as montanhas. Uma tarde, quando meu pai operava no hospital, um raio entrou pela porta e, sem barulho, se difundiu pelo chão, derretendo os pés metálicos da mesa de operação e queimando as solas de borracha das sandálias dele; depois o raio recompôs-se e, como um ectoplasma, fugiu por onde havia entrado para reintegrar-se ao fundo do céu. A realidade estava nas lendas.
A África era poderosa. E, para a criança que eu era, a violência era generalizada, indiscutível. Dava entusiasmo. Hoje é difícil falar dela, depois de tanto abandono, tantas catástrofes. Poucos europeus conheceram esse sentimento. O trabalho que meu pai fazia, primeiro em Camarões, depois na Nigéria, criava uma situação excepcional. A maioria dos ingleses lotados na colónia exerciam funções administrativas. Eram militares, juizes, dis-trict offlcers} (esses D.o. cujas iniciais, pronunciadas à inglesa, Di-Ou, me faziam pensar num nome religioso, como uma
i. Oficiais responsáveis pela administração civil do distrito. [N. E.]
variação do Deo gratias da missa que minha mãe celebrava na varanda nas manhãs de domingo). Meu pai era o único médico num raio de sessenta quilómetros. Mas essa dimensão que eu dou não tem sentido nenhum: a primeira cidade administrativa era Abakaliki, a quatro horas de viagem, e para ir até lá era preciso atravessar o rio Aiya de balsa e, depois, uma densa floresta. A outra residência de um D. o. ficava na fronteira com os Camarões franceses, em Obudu, no sopé de colinas onde ainda habitavam gorilas. Em Ogoja, meu pai era responsável pelo dispensário (um antigo hospital religioso abandonado pelas irmãs de caridade) e o único médico no norte da província de Cross River. Lá ele fazia de tudo, do parto a autópsia, como disse mais tarde. Nós, meu irmão e eu, éramos as únicas crianças brancas de toda aquela região. Não coohecemos nada do que foi capaz de forjar a identidade um pouco caricaturesca das crianças criadas nas "colónias". Se leio romances "coloniais" escritos por ingleses dessa época, ou da época que precedeu nossa chegada à Nigéria — Joyce Cary, por exemplo, o autor de Mister Johnson —, nada reconheço. Se
leioWilham Boyd, que também passou parte da infância no oeste africano-britânico, nada igualmente reconheço: seu pai era D.O. (parece-me que em Acra, em Gana). Nada sei do que rfc descreve, aquele torpor colonial, os ridículos da sociedade branca em seu exílio na costa, todas as mesquinharias m quais as crianças são particularmente sensíveis, o desprezo peias indígenas, dos quais eles conheciam apenas a parcela de empregados domésticos, que tinham de se curvar aos caprichos dos filhos de seus senhores, e sobretudo aquela espécie de panelinha em que as crianças de mesmo sangue são simultaneamente reunidas e divididas, onde percebem um reflexo irónico de seus defeitos e suas mascaradas, e que constitui de algum modo a escola da consciência racial que supre para elas o aprendizado da consciência humana posso dizer que, graças a Deus, tudo isso me foi de todo estranho.
Nós não íamos à escola. Não tínhamos clube, nem ativi-dades esportivas, nem regras, nem amigos, no sentido que se dá a essa palavra na Inglaterra ou na França. A lembrança que eu tenho desse tempo bem poderia ser a do passado a bordo de um navio, entre dois mundos. Quando olho hoje a única foto que conservei da casa de Ogoja (uma imagem minúscula, na cópia 6x6 comum após a guerra), custo a crer que o lugar é o mesmo: um grande quintal aberto, onde crescem em desordem palmeiras e flamboaiãs, atravessado por uma aléia retilínea onde está estacionado o monumental Ford v 8 de meu pai. Uma casa bem simples, com um telhado de chapas onduladas e, ao fundo, as primeiras grandes árvores da floresta. Há algo de frio, de quase austero, nessa foto única, que evoca o império, mistura de campo militar, gramado inglês e poderio natural que só voltei a encontrar, muito tempo mais tarde, na zona do canal do Panamá.
Foi aqui, neste cenário, que vivi os momentos de minha vida selvagem, livre, quase perigosa. Uma liberdade de movimentos, pensamentos e emoções que nunca mais conheci depois. As lembranças, por certo, enganam. Essa vida de liberdade total, eu a terei, sem dúvida, mais sonhado que vivido. Entre a tristeza do sul da França durante a guerra e a tristeza do fim de minha infância na Nice dos anos 50, rejeitado por meus colegas de classe devido à minha estranheza, atormentado pela excessiva autoridade de meu pai, exposto à enorme vulgaridade dos anos de colégio, dos anos de escotismo e, a seguir, durante a adolescência, à ameaça de ter de partir em guerra para manter os privilégios da última sociedade colonial.
Os dias de Ogoja tinham se tornado então meu tesouro, o passado luminoso que eu não podia perder. Lembrava do fulgor na terra vermelha, o sol que rachava o chão das estradas, as andanças descalças pela savana até os fortins dos cupinzeiros, a tempestade se armando à tarde, os gritos e ruídos das noites, nossa gata a fazer amor com os bichanos em cima do telhado de chapas e o torpor que vinha com a febre, de madrugada, no frio que entrava pelo cortinado do mosquiteiro. Todo aquele calor, aquela queimação, esse arrepio.
 
 
 
Cupins, formigas etc.
 
Defronte da casa de Ogoja, ultrapassado o limite do quintal (mais uma cerca de mato do que uma sebe podada em linha reta), começava a grande baixada de capim que se estendia até o rio Aiya. A memória de uma criança exagera as distâncias e alturas. Tenho a impressão de que essa baixada era tão vasta quanto um mar. Na beira da base de cimento que servia de calçada à choupana, passei horas, o olhar perdido naquela imensidão, seguindo as ondas do vento pelo capinzal, concentrando-me de vez em quando nos pequenos redemoinhos de poeira que dançavam por cima da terra seca, perscrutando as manchas de sombra ao pé dos irokos. Eu estava, de fato, no convés de uma embarcação. E a embarcação era a choupana, não apenas as paredes de blocos e o telhado de chapas, mas também tudo que trazia vestígios do império britânico — à maneira do navio George Shotton de que eu tinha ouvido falar, um vapor encouraçado e armado como canhoneira, com uma cobertura de folhas, no qual os ingleses haviam instalado os escritórios de seu consulado e que subia os rios Níger e Benoué, nos tempos de Lord Lugard.
Eu era um menino, não mais que um menino, e o poderio do império me era muito indiferente. Mas suas regras eram postas em prática por meu pai, como se lhe dessem sentido à vida. Ele acreditava na disciplina, em cada gesto diário: acordar cedo, logo arrumar a cama, lavar-se com água fria na bacia de zinco, cuja água ensaboada era preciso guardar, para aí deixar de molho as cuecas e meias. Todos os dias, pela manhã, as aulas com minha mãe, de ortografia, inglês, aritmética. Todas as noites a oração — e o toque de recolher às nove horas. Nada em comum com a educação à francesa, as brincadeiras com um lenço e o pega-pega, as alegres refeições onde todo mundo fala ao mesmo tempo e, por fim, os deliciosos contos antigos que minha avó narrava, os devaneios na cama dela, ouvindo o cata-vento ranger, e a leitura das proezas de um passarinho viajante que percorria os campos normandos pelo alto, no livro Lajoie de lire. Partindo para a África, nós mudamos de mundo. A compensação para a disciplina das manhãs e das noites era a liberdade dos dias. A baixada de capim diante de nossa casa era imensa, perigosa e atraente como o mar. Jamais eu tinha imaginado desfrutar de uma tal independência. Lá estava a baixada, bem em face dos meus olhos, pronta para me receber.
Não me lembro do dia em que nós, meu irmão e eu, nos aventuramos pela primeira vez pela savana. Talvez por instigação dos garotos da aldeia, a turma um pouco heteróclita que incluía uns bem pequenos, barrigudos e completamente pelados, e outros quase adolescentes, de doze, treze anos, que usavam calça curta caqui e camisa, como nós, e nos ensinaram a tirar os sapatos e as meias de lã para correr descalços pelo capinzal. São os que eu hoje vejo a rodear-nos em algumas fotos da época, muito negros, desengonçados, gozadores e brigões, por certo, mas que, malgrado nossas diferenças, nos aceitaram.
Provavelmente era proibido. Mas, como meu pai se ausentava o dia todo, até a noite, devíamos ter compreendido que a proibição só podia ser relativa. Minha mãe era boazinha. Sem dúvida estaria ocupada com outras coisas, lendo ou escrevendo, dentro de casa, para escapar do calor da tarde. Tendo-se feito, à sua moda, africana, imagino que ela devesse acreditar que não havia no mundo um lugar mais seguro para dois garotos de nossa idade.
Fazia realmente calor? Não, não me lembro mesmo. Lembro-me do frio do inverno, em Nice ou em Roquebillière, sinto ainda o vento gélido que soprava pelas ruelas, um frio de gelo e neve, apesar das polainas e dos coletes de pele de carneiro que usávamos. Mas não me recordo de, em Ogoja, ter sentido calor. Minha mãe, quando nos via sair, obrigava-nos a pôr nossos capacetes de Cawnpore — na realidade, chapéus de palha que ela comprara para nós, antes de nossa partida, numa loja da cidade velha de Nice. Meu pai havia instituído, entre outras regras, a das meias de lã e dos sapatos de couro engraxados. Assim que ele ia para o trabalho, ficávamos descalços para correr. Nos primeiros tempos, quando corria, eu me ralava no piso de cimento — era sempre no dedão do pé direito, não sei por quê, minha pele esfolava. Minha mãe me passava uma atadura no pé, eu escondia o curativo na meia e depois tudo recomeçava.
Foi então que um dia, sozinhos, saímos pela baixada amarelada, correndo em direção ao rio. Naquele ponto o Aiya não era muito largo, embora fosse agitado por uma correnteza violenta que arrancava das margens torrões de barro vermelho. A planície, de ambos os lados do rio, parecia ilimitada. De longe em longe, no meio da savana, erguiam-se grandes árvores de tronco muito reto, as quais serviam, como vim a saber mais tarde, para fornecer os assoalhos de mogno dos países industrializados. Havia também algodoeiros e acácias espinhentas que davam bem pouca sombra. Corríamos quase sem parar, perdendo o fôlego, pelo alto capinzal que nos fustigava os rostos na altura dos olhos, guiados pelos caules das grandes árvores. Ainda hoje, quando vejo imagens da África, dos grandes parques, como o de Serengeti ou os do Quénia, sinto-me arrebatado, pareço reconhecer a baixada por onde diariamente corríamos, no calor da tarde, sem destino, como animais selvagens.
No meio da baixada, a uma distância que não mais nos permitia avistar nossa casa, havia castelos. Por toda a extensão de uma área seca e desnuda, o vermelho-escuro de partes de paredes, enegrecidas pelo fogo no topo, como muralhas de uma antiga cidadela. De quando em quando, ao longo das paredes, erguiam-se torres cujos cimos pareciam bicados pelos pássaros, retalhados, chamuscados por raios.Tais muralhas ocupavam uma superfície tão vasta quanto uma cidade. Paredes e torres eram mais altas do que nós. Não passávamos de crianças, mas imagino, em minha lembrança, que as paredes ate fossem mais altas do que um homem adulto, enquanto algumas das torres deviam ultrapassar os dois metros.
Sabíamos que aquela era a cidade dos cupins.
Como o soubemos?Talvez por meu pai, ou então por um dos garotos da aldeia. Mas ninguém nos acompanhava. Nós mesmos aprendemos a demolir as muralhas. Devemos ter começado jogando pedras, para sondar, para escutar o baru-fco cavernoso que elas faziam ao bater nos cupinzeiros. A pauladas, atacamos depois as torres altas, para ver a terra estarinhada ruir, para expor à luz as galerias e os bichos cegos tfte viviam lá dentro. Já no dia seguinte as operárias haviam capado as brechas, tentado reconstruir as torres. Voltávamos a oolpeá-las, até sentir as mãos doendo, como se combatêssemos contra um inimigo invisível. Não falávamos; batíamos, dávamos gritos de raiva, e novas partes de paredes desabavam. Era uma brincadeira. Era uma brincadeira? Nós nos sentíamos cheios de poder. Hoje eu me lembro disso, não como de um divertimento sádico de moleque perverso — a crueldade gratuita que crianças podem gostar de exercer contra uma forma de vida sem defesa, cortando patas de do-ríforos, esmagando sapos no batente das portas — mas como de uma espécie de possessão que nos era inspirada pela extensão da savana, a proximidade da floresta, o furor do céu e das tempestades. Mas também pode ser que desse modo rejeitássemos a autoridade excessiva de nosso pai, revidando golpe com golpe através de nossas pauladas.
Os garotos da aldeia nunca estavam conosco, quando partíamos para destruir cupinzeiros. Aquela raiva demolidora, sem dúvida, os deixaria espantados, já que no mundo no qual eles viviam os cupins eram algo que se impunha, tendo um papel a representar nas lendas. No começo do mundo, o deus-cupim tinha criado os rios, e era ele o guardião das águas para os habitantes da terra. Por que então destruir sua morada? A gratuidade dessa violência, para eles, não teria feito sentido: mexer-se, fora das brincadeiras, significava ganhar dinheiro, receber uma guloseima, caçar alguma coisa vendável ou comestível. Os menores eram sempre vigiados pelos mais velhos, não ficavam nunca sozinhos, nunca entregues a si mesmos. Brincadeiras, discussões e biscates se alternavam sem emprego determinado do tempo: ou bem, em suas andanças, eles catavam lenha e placas de bosta seca para o fogo, ou bem iam buscar água, tagarelando durante horas nos poços, ou jogar gamão na terra, quando não permaneciam sentados diante da entrada da casa de meu pai, a olhar para o vazio, a esperar por nada. Se afanassem coisas, não podiam senão ser coisas úteis, um pedaço de doce, fósforos, um prato velho enferrujado. De vez em quando o garden ÍOT se aborrecia e os expulsava a pedradas, mas no instante seguinte eles já estavam de volta.
Quanto a nós, éramos selvagens como jovens colonos, certos de nossa liberdade, de nossa impunidade, sem respon-sabílidades, sem os mais velhos. Quando minha mãe ia dormir, estando meu pai ausente, escapulíamos, a baixada amarelada tragava-nos. Pés descalços, corríamos à toda, longe de casa, através do capim alto que nos tapava a visão, saltando por pedregulhos, na terra seca que o calor rachava, até a cidade dos cupins. Com o coração disparado, a violência irrompia em nosso fôlego e, apanhando paus e pedras, batíamos, batíamos, ponhamos abaixo partes daquelas catedrais, por nada, simplesmente pelo prazer de ver subir as nuvens de poeira, ouvir a derrocada das torres, o ressoar das pancadas na rigidez das paredes, para espiar, quando elas se abriam à luz, as galenas vermelhas como
veias onde uma vida nacarada e pálida fervilhava. Mas pode ser que, ao descrevê-lo, eu torne por demais literário, por demais simbólico, o furor que animava nossos braços, quando atacávamos os cupinzeiros. Éramos apenas dois meninos que tinham passado pelo confinamento de cinco anos de guerra, criados num ambiente de mulheres, num misto de temor e astúcia, onde a única explosão era a voz de minha avó maldizendo os "boches".2 As correrias desses dias pelos capinzais de Ogoja foram nossa primeira liberdade. A savana, o temporal que se armava todas as tardes, o calor do sol sobre a cabeça e aquela expressão tão forte, quase caricata, da natureza animal, era isso que estufava nossos peitos minguados e nos lançava contra as muralhas dos insetos, contra os negros castelos eriçados ao céu. Creio que nunca mais, depois desse tempo, eu senti tal impulso. Tal necessidade de medirme, de dominar. Foi um momento de nossas vidas, apenas um momento, sem nenhuma explicação, sem remorso, sem futuro, quase sem memória.
Pensei que tudo seria bem diferente se tivéssemos ficado para sempre em Ogoja, tornando-nos iguais aos africanos. Eu aprenderia a sentir, a perceber. Como os garotos da aldeia, aprenderia a falar com os seres vivos, a ver o que havia de divino nos cupins. Acho até que acabaria, ao fim de algum tempo, por esquecê-los.
Havia certa pressa, certa urgência naquilo. Viéramos do fim do mundo (pois Nice, de fato, era um outro extremo do mundo). Viéramos de um apartamento no sexto andar de um prédio burguês, cercado por um jardinzinho onde as crianças não tinham direito de brincar, para viver na África equatorial, circunscritos pela floresta, à beira de um rio lamacento. Não
2. Nome depreciativo dado aos alemães. [N.E.]
sabíamos que haveria um regresso. Talvez tenhamos pensado, como todas as crianças, que iríamos morrer ali. Além, do outro lado do mar, o mundo se enregelara em silêncio. A avó com seus contos, o avô com sua voz cantante de mauriciano, os amigos com os quais brincávamos, os colegas de escola, tudo isso ficara congelado como brinquedos que trancamos na mala, como os medos que deixamos bem no fundo do armário. Tudo isso tinha sido abolido, no sopro quente da tarde, pela baixada de capim. Pela planície que detinha o poder de fazer nossos corações bater, de fazer o furor surgir e de à noitinha nos deixar dolentes, caindo de cansaço nas redes.
As formigas eram a antiface desse furor. O contrário da baixada de capim, da violência destrutiva. Antes de Ogoja, já havia formigas? Não me lembro. A não ser, por certo, das tais "formigas-argentinas", poeira negra que invadia todas as noites a cozinha de minha avó, alcançando por caminhos minúsculos suas jardineiras de roseiras equilibradas na calha e os montes de detritos que eram queimados por ela na fornalha de seu aquecedor.
As formigas, em Ogoja, eram insetos monstruosos da variedade exectóide, que cavavam seus ninhos a dez metros de profundidade sob o gramado do quintal, onde deviam viver centenas de milhares de indivíduos. Ao contrário dos cupins, mansos, indefesos e, em sua cegueira, incapazes de fazer qualquer mal, exceto o de roer a madeira carcomida das casas e os troncos de árvores caídas, as formigas eram vermelhas, ferozes, dotadas de olhos e de mandíbulas, capazes de secretar veneno e de atacar qualquer um que se encontrasse em seu caminho. Eram as verdadeiras donas de Ogoja.
Guardo a pungente lembrança de meu primeiro encontro com as formigas, nos dias seguintes ao de minha chegada. Eis que estou no quintal, perto de casa. Não notei a cratera que assinala a entrada do formigueiro. De repente, sem que eu me tenha dado conta, sou rodeado por milhares de insetos. De onde eles vêm? Devo ter penetrado numa área desnuda que circunda o buraco das galerias. É mais do medo que eu sinto do que das próprias formigas que me lembro. Fico imóvel, incapaz de fugir, incapaz de pensar, na terra que bruscamente se mexe, transformada num tapete de patas, carapaças e antenas que gira ao redor de mim, fechando o cerco com voracidade, e vejo que as formigas já começaram a subir nos meus sapatos, que elas se enfiam por entre as malhas das famosas meias de lã impostas por meu pai. Ao mesmo tempo, nos tornozelos e ao longo das pernas, sinto a ardência das primeiras mordidas. A terrível impressão, o pavor de ser devorado vivo. Tudo dura alguns segundos, talvez minutos, um tempo tão extenso quanto o de um pesadelo. Não me lembro mais, porém devo ter gritado, berrado mesmo, porque no instante seguinte sou socorrido por minha mãe, que me leva nos braços, e à minha volta, diante da varanda da casa, olhando em silêncio, estão meu irmão e os garotos da aldeia. Ou será que eles riem? Será que dizem: Small boy him oj? Minha mãe tira minhas meias, delicadamente reviradas como se fosse levantada uma pele morta, como se eu tivesse sido lanhado por ramos cheios de espinhos, e vejo minhas pernas cobertas de pontinhos escuros onde se forma uma gota de sangue; são as cabeças das formigas agarradas na pele, depois de serem arrancados seus corpos quando minha mãe puxava as meias. Suas mandíbulas penetraram bem fundo, é preciso extraí-las, uma por uma, com uma agulha mergulhada em álcool.
Uma historieta, uma simples historieta. Por que terei conservado então suas marcas, como se as mordidas das formigas guerreiras ainda fossem sensíveis, como se tudo isso tivesse acontecido ontem? Sem dúvida, é um misto de lenda e ionho. Minha mãe conta que, antes de eu nascer, ela viajava a cavalo pelo oeste de Camarões, onde meu pai era médico itinerante. À noite eles acampavam em "choupanas de passagem", simples choças de galhos e palmas à beira do caminho, oode penduravam suas redes. Os carregadores, numa dessas ocasiões, vêm acordá-los.Trazem tochas acesas, falam em voz baixa, insistem para que meu pai e minha mãe se levantem. Quando conta isso, minha mãe diz que foi o silêncio, por toda parte ao redor, na floresta, e os sussurros dos carregadores o que a princípio a alarmou. Tão logo se põe de pé ela vê, à luz das tochas, uma coluna de formigas (aquelas mesmas for migas vermelhas arregimentadas como guerreiras) que saiu da floresta e começa a atravessar a choupana. Uma coluna, ou melhor, um rio grosso, que avança lentamente, sem
parar, sem se importar com os obstáculos, para ir sempre em frente, cada formiga soldada à outra, devorando, despedaçando tudo ao passar. Meus pais apenas têm tempo de juntar suas coisas, suas roupas, os sacos de víveres e de remédios. No instante seguinte, o rio escuro flui pela choupana.
Quantas vezes ouvi minha mãe contando essa história? Tantas, a ponto de crer que isso tinha acontecido comigo, de misturar o rio devorador ao turbilhão de formigas que me havia atacado. Como o movimento giratório dos insetos à minha volta não me dá sossego, permaneço petrificado num sonho, ouço o silêncio, um silêncio agudo, estridente, mais assustador que qualquer ruído do mundo. O silêncio das formigas.
Em Ogoja, os insetos estavam por toda parte. Insetos diurnos, insetos noturnos. Os que causam repugnância aos adultos não têm esse mesmo efeito em crianças. Não preciso fazer grandes esforços de imaginação para ver surgir novamente, a cada noite, os exércitos de baratas — as carochas, como as chamava meu avô, temas de um trava-língua: kankarla, nabit napas kilot, a carocha de casaca não achou suas calças. Elas saíam pelas gretas do piso, pelas ripas do teto, e disparavam para a cozi nhã. Meu pai detestava-as. Todas as noites ele percorria a casa, numa das mãos sua lanterna, na outra um pé de chinelo, para uma caçada infinda e infrutífera. Estava persuadido de que as Isaratas originavam muitas doenças, entre as quais o câncer. Lembro-me de ouvi-lo dizer: "Limpem bem as unhas dos pés, porque senão as carochas virão roe-las de noite!"
Para nós, crianças, eram insetos como os outros. Corríamos atrás delas e as capturávamos, decerto para soltá-las perto cio quarto de meus pais. Eram gordas, de um marrom avermelhado, muito brilhantes. E, ao voar, totalmente desajeitadas.
Tínhamos descoberto outros companheiros de brincadeira: os escorpiões. Sendo menos numerosos do que as baratas, contávamos com uma boa reserva. Meu pai, receoso <ie nossas algazarras, instalara na varanda, o mais longe possí-wei de seu quarto, dois trapézios feitos com pedaços de corda e velhos cabos de ferramentas. Utilizávamos esses trapézios para um exercício bem singular: suspensos pelas pernas, *ie cabeça para baixo, levantávamos delicadamente a esteira de palha posta por meu pai para amortecer um tombo erentual, e víamos os escorpiões se imobilizarem numa pos-twi defensiva, com as pinças erguidas e a cauda a apontar seu ferrão. Os escorpiões que viviam embaixo do tapete em ge-laí eram pretos, pequenos e provavelmente inofensivos. Mas «na seu lugar, de quando em quando, surgiam pela manhã uns «pecímes maiores, de cor branca puxando para o amarelo, e for instinto sabíamos que essa variedade podia ser venenosa.
A brincadeira consistia em azucrinar os bichinhos, de cima do trapézio, com um graveto ou uma folha de grama, para vê-los girar, como que imantados, em torno da mão que os agredia. Eles nunca mordiam no instrumento. Seus olhos endurecidos sabiam estabelecer a diferença entre o objeto e a mão que o empunhava. Para tornar a coisa mais interessante
era preciso largar de vez em quando o graveto e avançar com a mão, retirando-a depois rapidamente, quando a cauda do escorpião fustigasse.
Custa-me hoje lembrar dos sentimentos que nos animavam. Parece-me que nesse ritual do trapézio e do escorpião havia algo de respeitoso, de um respeito evidentemente inspirado pelo medo. Como as formigas, os escorpiões eram os verdadeiros habitantes do lugar, e não podíamos senão ser locatários inevitáveis e indesejáveis, enfim destinados a partir dali. Colonos, em suma.
Um dia os escorpiões estiveram no centro de uma cena dramática, cuja lembrança até hoje ainda faz meu coração bater. Meu pai (devia ser uma manhã de domingo, porque ele estava em casa) tinha achado num armário um escorpião da variedade branca. Na realidade, uma fêmea de escorpião, que carregava sua prole nas costas. Meu pai bem poderia tê-la achatado com um golpe de seu famigerado chinelo. Mas não o fez. Foi buscar no seu armário de remédios um vidro de álcool de 90°, derramou um pouco na fêmea de escorpião e riscou um fósforo. Por uma razão que ignoro, o fogo pegou primeiro em volta do animal, formando um círculo de chamas azuis, e a fêmea parou numa postura trágica, com as pinças para o alto e o corpo teso a erguer por cima dos filhotes o gancho peçonhento na extremidade de sua glândula, perfeitamente visível. Com um segundo jato de álcool ela queimou de imediato. Tudo não há de ter durado senão alguns segundos, embora eu guarde a impressão de ter ficado muito tempo a observar sua morte. A fêmea de escorpião rodopiou sobre si mesma várias vezes, agitando a cauda em espasmos. Os filhotes, já mortos e encarquilhados, tombavam de suas costas. Depois ela se imobilizou, com as pinças dobradas sobre o peito num gesto de resignação, e as chamas altas se extinguiram.
Todas as noites, numa espécie de vingança do mundo animal, nossa choupana era invadida por miríades de insetos voadores. Havia noites em que, antes da chuva, eles formavam um exército. Meu pai fechava as portas e as portinholas das janelas (nas poucas janelas, não havia vidraças) e desdobrava os mosquiteiros sobre as camas e redes. Era uma guerra de antemão perdida. Na sala de jantar, tomávamos a sopa de amendoim às pressas, para poder alcançar o abrigo dos mosquiteiros. Ouvíamos os insetos bater nas portinholas, quando, atraídas pela luz do lampião a querosene, suas nuvens chegavam. Muitos passavam pelas frestas das janelas, por debaixo das portas.
Rodopiando loucamente na sala, ao redor do lampião, iam se queimar contra o vidro. Nas paredes, lá onde a luz se refletia, as lagartixas davam seus gritinhos todas as vezes que engoliam presas. Não sei por quê, parece-me que em nenhum outro lugar jamais senti tal impressão de família, de fazer parte de uma célula. Depois dos dias escaldantes, a correr pela savana, depois dos raios e da tempestade, aquela sala abafada se tornava parecida com a cabine de um barco fechada contra a noite, enquanto o mundo dos insetos, lá fora, se
amotinava. Ali eu me sentia realmente abrigado, como no interior de uma gruta. O cheiro da sopa de amendoim, dojufu, do pão de mandioca, a voz de meu pai, com sua entonação cadenciada, contando os episódios de seu dia no hospital, e o sentimento do perigo lá fora, o exército invisível das mariposas que batiam nas janelas, as lagartixas agitadas, a noite quente, tensa, não urna noite de repouso e abandono como outrora, mas uma noite febril, extremamente fatigante. E o gosto do quinino na boca, daquela pílula extraordinariamente pequena e amarga que era preciso tomar com um copo de água morna do filtro, antes de ir deitar, para prevenir a malária. É, acho que nunca conheci outros momentos de tanta intimidade, de tal mescla de ritualístico e familiar. Tão longe da sala de jantar de minha avó, do luxo reconfortante das velhas poltronas de couro, das conversas que adormeciam e da fumegante sopeira decorada com uma guirlanda de azevim, na noite calma e remota da cidade.
 
 
 
O africano
Meu pai chegou à África em 1928, após dois anos passados na Guiana Inglesa como médico iti-nerante nos rios. Saiu de lá no começo da década de 1950, quando o exército julgou que ele havia ultrapassado a idade da aposentadoria e não podia mais servir. Mais de vinte anos, durante os quais viveu nas brenhas (palavra que então se usava, mas que hoje não se diz mais), como o único médico em territórios tão grandes como países inteiros, onde tinha a seu encargo a saúde de milhares de pessoas.
O homem que eu conheci em 1948, quando fiz oito anos, estava gasto, precocemente envelhecido pelo clima equatorial, e se tornara irritável, devido à teofilina que ele tomava para combater acessos de asma, e amargo, devido à solidão, a ter vivido todos aqueles anos de guerra separado do mundo, sem notícias de sua família, na impossibilidade de sair de seu posto para ir socorrer a mulher e os filhos, ou até mesmo de mandar-lhes dinheiro.
A maior prova de amor que ele deu aos seus foi quando, em plena guerra, atravessou o deserto até a Argélia, para tentar se juntar à mulher e aos filhos e levá-los para o refúgio na África. Foi detido antes de chegar a Argel e teve de retornar à Nigéria. Somente no fim da guerra poderia rever sua mulher e conhecer os filhos, durante uma breve visita da qual não tenho lembrança alguma. Longos anos de afastamento e silêncio, durante os quais continuou a exercer seu trabalho de médico de emergências, sem remédios, sem material, enquanto no mundo, por toda parte, as pessoas se matavam — situação que, mais que difícil, deve ter sido insuportável, desesperadora. Ele nunca falou a respeito. Nunca deu a entender que tivesse havido em sua experiência o que quer que fosse de excepcional. Tudo que pude saber desse período foi o que minha mãe me contou, ou o que às vezes, num suspiro, ela deixava escapar: "Esses anos de guerra, um longe do outro, foram duros...". Além disso, não falava de si. Queria expressar a angústia, para uma mulher sozinha e sem recursos, com duas crianças pequenas, de ter caído na armadilha da guerra. Bem imagino as dificuldades que muitas mulheres terão enfrentado na França, com um marido prisioneiro na Alemanha, ou desaparecido sem deixar vestígios. É por isso, sem dúvida, que aquela época horrível me parecia normal. Não havia homens por perto, não havia, à minha volta, senão mulheres e pessoas idosas. Só muito tempo depois, quando o egoísmo natural das crianças se aplacou, foi que compreendi: minha mãe, vivendo longe de meu pai, tinha praticado em consequência da guerra um heroísmo sem ênfase, não por inconsciência nem por resignação (ainda que a fé religiosa pudesse lhe ser de grande ajuda), mas pela força que uma tal desumanidade fazia originar-se nela.
Seria a guerra, esse silêncio interminável, que havia feito de meu pai um homem pessimista, desconfiado e autoritário, que aprendemos mais a temer do que a amar? Seria a África? Mas então que África? Não, por certo, a que hoje em dia se percebe, na literatura ou no cinema, ruidosa, desordenada, juvenil, imoderada, com suas aldeias onde imperam as comadres, os contadores de histórias, onde se exprime a cada instante a admirável vontade de sobreviver em condições que pareceriam insuperáveis aos habitantes de regiões mais favorecidas. Essa África aí já existia antes da guerra, sem duvida alguma. Imagino Douala, Port Harcourt, as ruas entulhadas de carros, os mercados por onde correm crianças luzidias de suor, os grupos de mulheres conversando à sombra das árvores. As grandes cidades, Onitsha e seu mercado áe romances populares, o barulho dos barcos empurrando toras pelo grande rio. Lagos, Ibadan, Cotonou, a mistura de géneros, de povos, de línguas, o lado engraçado, caricato, da sociedade colonial, os homens de negócios que usam terno c chapéu, guarda-chuvas pretos impecavelmente enrolados,
os salões superaquecidos onde as inglesas de vestidos decotados se abanam com leques, as varandas dos clubes onde os agentes da Lloyd's, da Glynn Mills, da Barclay's fumam seus charutos enquanto trocam palavras sobre o tempo que faz — old chap, this is a tough country— e os empregados domésticos, de roupa branca e luvas brancas, que circulam em silêncio trazendo coquetéis em bandejas de prata.
Meu pai me contou um dia como havia decidido partir para o fim do mundo, após concluir seus estudos de medicina no hospital Saint Joseph d'Elephant & Castle, em Londres. Sendo bolsista do governo, cabia-lhe realizar um trabalho para a comunidade. Foi assim designado para o departamento de doenças tropicais do hospital de Southampton. Ele então toma o trem, desembarca em Southampton, instala-se numa pensão. Como seu serviço só começaria três dias depois, passeia pela cidade, vai assistir à partida dos navios. Ao voltar à pensão, uma carta o espera, uma mensagem muito seca de seu chefe no hospital, dizendo: "Não recebi ainda, meu senhor, o seu cartão de visita". Meu pai então manda imprimir esses famosos cartões (um exemplar dos quais ainda tenho comigo), apenas com seu nome, sem endereço, sem profissão. E pede para ser transferido para o ministério das Colónias. Poucos dias depois, embarca com destino a Georgetown, na Guiana. A não ser em duas breves licenças, quando de seu casamento e, mais tarde, do nascimento de seus filhos, nunca mais ele retornaria à Europa até o fim da vida ativa.
Tentei imaginar o que poderia ter sido a vida dele (e, por conseguinte, a minha) se meu pai, em vez de fugir, tivesse se submetido à autoridade do chefe da clínica de Southampton, instalando-se como médico de interior nos arredores de Londres (como fizera meu avô nos arredores de Paris) — em Richmond, por exemplo, ou mesmo na Escócia (região de que ele sempre gostou). Não falo das mudanças que isso teria acarretado a seus filhos (pois nascer neste ou naquele lugar, no fundo, não tem muita importância). Mas sim do que mudaria, com isso, no homem que ele era e que poderia então ter levado uma vida mais normal, menos solitária. Tratando de pessoas com gripe ou com prisão de ventre, não de leprosos, de vítimas de malária ou de encefalite letárgica. Aprendendo a se relacionar, não pelo modo excepcional, por gestos, por intérprete, ou naquela língua elementar que era o pidgin Englistf (nada a ver com o crioulo refinado e espirituoso da ilha Maurício), mas na vida do dia-a-dia, com essas pessoas cheias de banalidade que nos tornam próximos, que nos integram a uma cidade, a um bairro, a uma comunidade.
Fora outra a escolha dele. Por orgulho, sem dúvida, para escapar da mediocridade da vida inglesa, e também pelo pendor à aventura. E não era gratuita aquela escolha, que
3. Formado a partir da mescla de duas línguas. Na costa oeste da África, é possível encontrar o pidgin english num cinturão que vai de Gâmbia a Camarões. Alguns exemplos: pidgin english de Gâmbia (Aku); de Serra Leoa (Krio); da Libéria; de Gana; da Nigéria; de Camarões (Kantok). [N.E.]
o mergulhava em outro mundo, que o arrastava para uma vida diferente, exilando-o durante a guerra, fazendo-o perder mulher e filhos, tornando-o, de certo modo, inevitavelmente estrangeiro.
A primeira vez que vi meu pai, em Ogoja, tive a impressão de que ele usava monóculo. De onde me veio tal ideia? Naquela época os monóculos já não eram muito comuns. Talvez em Nice alguns membros da velha-guarda tivessem conservado esses acessórios, que imagino se assentassem à perfeição em antigos oficiais russos do exército imperial, ostentando suíças e bigodes, ou então em arruinados inventores que visitavam minhas "tias". Por que meu pai? Na realidade, ele devia usar óculos à moda dos anos 30, com uma fina armação de aço e lentes redondas que refletiam a luz. Os mesmos que vejo nos retratos dos homens de sua geração, como Louis Jouvet ou James Joyce (com quem ele tinha, de resto, certa semelhança). Mas um simples par de óculos não bastava para a imagem que guardei desse primeiro encontro, a estranheza, a dureza de seu olhar, acentuada por duas rugas verticais entre as sobrancelhas. Seu lado inglês ou, melhor dizendo, britânico, a inflexibilidade de seu porte, a espécie de armadura rígida de que ele se tinha revestido de uma vez por todas.
Creio que nas primeiras horas, logo depois de minha chegada à Nigéria — a longa e precária estrada de Port Harcourt a Ogoja, sob a chuva que caía, no Ford v8 gigantesco e futurista, que não se parecia com nenhum veículo conhecido —, não foi a África que me causou um choque, mas a descoberta daquele pai desconhecido, estranho, possivelmente perigoso. Aplicando-lhe um risível monóculo, eu justificava meu sentimento. Meu pai, meu pai de verdade, seria capaz de usar monóculo?
Sua autoridade colocou de imediato um problema. Tínhamos vivido, meu irmão e eu, numa espécie de paraíso anárquico onde praticamente não havia disciplina. A pouca autoridade com a qual nos defrontávamos vinha de minha avó, uma velha senhora generosa e requintada que se opunha por princípio a qualquer forma de castigo corporal para as crianças, preferindo a isso a razão e a brandura. Meu avô materno, por sua vez, recebera princípios mais severos em sua juventude na ilha Maurício, mas sua idade avançada, o amor que tinha por minha avó e essa espécie de distanciamento entediado típico dos grandes fumantes o isolavam num reduto onde ele se fechava a chave, justamente para aí pitar seu mata-rato.
Já em minha mãe prevaleciam a fantasia e o charme. Gostávamos dela, e creio que nossas tolices a faziam rir. Não me lembro de a ter ouvido erguer a voz. Por consequência, tínhamos carta branca para fazer com que um terror infantil reinasse no pequeno apartamento. Nos anos que precederam nossa partida para a África, fizemos coisas que, com o recuo da idade, parecem-me de fato terríveis: um dia, por instigação de meu irmão, escalei com ele o parapeito da sacada (ainda o vejo, claramente mais alto do que eu) para alcançar a calha, dominando todo o quarteirão do alto dos seis andares. Acho que meus avós e minha mãe ficaram tão assustados que, quando concordamos em descer, até se esqueceram de nos punir.
Lembro-me também de ser tomado por acessos de raiva porque me negavam alguma coisa, um bombom, um brinquedo, por razões tão insignificantes, em suma, que nem sequer me
marcaram, uma raiva tão grande que eu jogava pela janela tudo que me caísse nas mãos, até móveis. Nesses momentos, nada nem ninguém conseguia me acalmar. Retorna-me ainda às vezes a sensação desses rompantes de cólera, algo que não posso comparar senão à ebriedade do eterômano (o éter que as crianças tinham de cheirar antes da extirpação de suas amígdalas). A perda de controle, a impressão de estar flutuando e, ao mesmo tempo, uma extrema lucidez. Fui igualmente suscetível, na mesma época, a violentas dores de cabeça, tão insuportáveis às vezes que eu ia me esconder embaixo dos móveis, para não mais ver a luz. De onde me vinham tais crises? Parece-me hoje que a angústia dos anos de guerra seria a única explicação para elas. Um mundo fechado, sombrio, sem esperança. A comida horrorosa — aquele pão preto, no qual diziam haver serragem misturada e que por pouco não causou minha morte aos três anos de idade. O bombardeio do porto de Nice, que tinha me jogado no chão, no banheiro de minha avó, e aquela sensação, que eu não consigo esquecer, do piso me escapando dos pés. Ou ainda a imagem de uma ferida na perna de minha avó, agravada pelas penúrias e a falta de medicamentos; vejo-me na aldeia nas montanhas onde minha mãe foi se esconder, devido à posição de meu pai no exército britânico e ao risco de deportação. Fazemos fila diante do armazém, à espera de víveres, e olho as moscas que pousam na chaga aberta na perna de minha avó.
A viagem à África pôs fim a tudo aquilo. Uma mudança radical: antes da partida, por instruções de meu pai, tive de cortar o cabelo, que antes usava tão comprido como o de um menino bretão, e em consequência disso fui exposto a extraordinárias queimaduras nas orelhas, sendo forçado, além do mais, a entrar no âmbito da normalidade masculina. Nunca mais eu sentiria aquelas dores de cabeça atrozes, nunca mais poderia dar livre curso aos acessos de raiva de minha primeira infância. A chegada à África, para mim, foi o ingresso na antecâmara do mundo adulto.
 
 
 
 
 De Georgetown a Victoria
 
 
 
Aos trinta anos, meu pai saiu deSouthampton a bordo de um cargueiro misto com destino a Georgetown, na Guiana Inglesa. As raras fotos dele nessa época mostram um homem robusto, de aparência esportiva, vestido de maneira elegante: terno e colete, camisa de colarinho duro, gravata e sapatos pretos de couro. Havia quase oito anos que ele partira da ilha Maurício, após a expulsão de sua família da casa natal, no fatídico Ano Novo de 1919. No cader-ninho em que anotou os acontecimentos marcantes dos últimos dias passados em Moka, ele escreveu: "Atualmente eu só tenho um desejo, partir para bem longe daqui e não voltar nunca mais". A Guiana, com efeito, era o outro extremo do mundo, o antípoda de Maurício.
Terá sido o drama de Moka que justificou esse afastamento? Sem dúvida, no momento de sua partida houve uma determinação que nunca o abandonou. Ele não podia ser como os outros. Não podia esquecer. Jamais falava do acontecimento que estivera na origem da dispersão de todos os membros de sua família. A não ser, de tempos em tempos, para deixar escapar uma explosão de cólera.
Durante sete anos ele estudou em Londres, primeiro numa escola de engenharia, depois na faculdade de medicina. Estando sua família arruinada, não pode contar senão com a bolsa que o governo lhe dá. Não pode se permitir fracassar. Faz uma especialização em medicina tropical. Já sabe que não terá recursos para montar um consultório particular. O episódio do cartão de visita exigido pelo médico-chefe do hospital de Southampton será apenas o pretexto para ele romper com a sociedade europeia.
A única porção de doçura em sua vida, nesse momento, são as visitas a seu tio em Paris, a paixão que ele sente por sua prima-irmã, minha mãe. Os dias de licença na França, perto desses parentes, são o retorno imaginário a um passado que não mais existe. Meu pai e seu tio nasceram na mesma casa e, aí crescendo, cada qual por sua vez, conheceram os mesmos lugares, os mesmos segredos, os mesmos esconderijos, banharam-se no mesmo riacho. Minha mãe não viveu lá (ela nasceu em Milly), mas sempre ouviu falar a respeito, por seu pai, e aquilo faz parte de seu passado, tendo para ela o sabor de um sonho contumaz e inacessível (pois Maurício era tão longe, naquele tempo, que não se podia senão sonhar com a ilha). Meu pai e ela foram unidos pelo sonho, pondo-se juntos como exilados de um país inalcançável.
Não importa. Meu pai decidiu partir e há de partir. O Colonial Office acaba de designá-lo para um posto de médico nos rios da Guiana. Tão logo chega, ele freta uma piroga dotada de uma coberta de palmas e movida por um motor Ford de eixo longo. A bordo de sua embarcação e acompanhado pela equipe, enfermeiros, piloto, guia e intérprete, ei-lo que vai subindo os rios: o Mazaruni, o Essequeibo, o Kupurung, o Demerara.
Tira fotos. Com sua Leica de fole, coleciona imagens em preto-e-branco que representam, melhor do que palavras, seu afastamento, seu entusiasmo diante da beleza desse novo
mundo. A natureza tropical, para ele, não é uma descoberta. Na ilha Maurício, nas barrancas, sob a ponte de Moka, o rio Terre-Rouge não difere do que ele encontra ao subir esses cursos d'água. A região entretanto é imensa, ainda não pertence de todo aos homens. A solidão, o abandono, a impressão de haver chegado à margem mais remota do mundo transparecem nas suas fotos. Do desembarcadouro no Berbice ele fotografa a superfície fuliginosa pela qual uma piroga desliza, tendo ao fundo uma aldeia de telhados de chapas pontilhada de árvores raquíticas. Sua casa é uma espécie de casebre de tábuas sobre estacas, abeira de uma estrada deserta, flanqueada por uma única e absurda palmeira. Além disso, também a cidade de Georgetown, silenciosa, adormecida no calor, com casas brancas de janelas fechadas contra o sol, cercadas pelas mesmas palmeiras, emblemas obsedantes dos trópicos.
As fotos que meu pai gostava de bater são as que mostram o interior do continente, a força inaudita das corredeiras, que sua piroga só transpõe sendo empurrada sobre toras roliças, ao lado de degraus de pedra onde a água se encachoeira, com as sombrias muralhas da floresta em cada margem.
As cataratas de Kaburi, no Mazaruni, o hospital de Ka-makusa, as casas de madeira ao longo do rio, as bodegas dos catadores de diamantes. Subitamente, num braço do Mazaruni, uma bonança, um espelho d'água que faísca e arrasta para o devaneio. Aparece na foto a proa da piroga descendo o rio, olho-a e sinto o vento, o cheiro da água, ouço, apesar do ronco do motor, os zumbidos incessantes dos insetos na floresta, percebo a inquietude que brota com a chegada da noite. O açúcar-demerara, na foz do rio de igual nome, é içado em roldanas para bordo dos enferrujados cargueiros. E numa praia, onde a esteira das ondas se desfaz ao bater, duas crianças indígenas olham para mim, um garotinho de mais ou menos seis anos e sua irmã pouco mais velha, ambos de barriga estufada pela parasitose, os cabelos muito negros cortados "em cuia", ao nível das sobrancelhas, como eu mesmo em sua idade. De sua estada na Guiana, meu pai não trará de volta senão a lembrança desses dois indiozinhos, de pé à beira do rio, que o observam e, devido ao sol, fazem um pouco de careta. E aquelas imagens de um mundo ainda
 
selvagem, entrevisto ao longo dos rios. Um mundo misterioso e frágil, onde reinam as doenças, o medo, a violência dos garimpeiros e dos catadores de tesouros, onde se ouve o canto de desesperança do mundo ameríndio em via de desaparecer. O que terão se tornado, esse garoto e essa menina, se ainda estiverem vivos? Devem estar bem velhos, próximos ao fim da existência.
Mais tarde, muito tempo depois, fui por minha vez ao país dos índios, pelos rios. Conheci crianças parecidas com aquelas. O mundo, sem dúvida, mudou muito, as florestas e os rios já não são tão puros quanto na época da juventude de meu pai. Pareceu-me no entanto compreender o sentimento de aventura experimentado por ele ao desembarcar no porto de Geor-getown. Por minha vez, também comprei uma piroga, viajei em pé na proa, com os dedos dos pés bem afastados para melhor me agarrar, balançando nas mãos a grande vara, olhando os cormorões a voar diante de mim, ouvindo o vento a me soprar nas orelhas e os ecos do motor de popa que afundam, lá por trás, na espessidão da floresta. Ao examinar a foto tirada por meu pai na parte dianteira da piroga, reconheci a terminação quase quadrada da proa, o rolo de corda de amarração e, posta de través no casco para servir de vez em quando de banco, a canalete, o remo curto e largo dos índios, de pá triangular. À minha frente, ao final da extensa "rua" do rio, as duas negras muralhas da floresta, que de novo se fecham.
Quando regressei das terras indígenas, meu pai já estava doente, fechado em seu obstinado silêncio. Mas me lembro de um lampejo em seus olhos quando eu lhe disse que tinha falado dele com os índios e que esses o convidavam a voltar para os rios, que lhe ofereciam, em troca de seu saber e de seus medicamentos, casa e comida pelo tempo que ele quisesse. Meu pai deu um sorriso ligeiro, e acho que disse: "Há dez anos, eu teria ido". Era tarde demais, não se recupera o tempo, nem sequer em sonhos.
Foi a Guiana que preparou meu pai para a África. Depois de toda a temporada que ele passou nos rios, não lhe era mais possível retornar para a Europa — e, menos ainda, para Maurício, um país muito pequeno onde se sentia sufocado num meio de gente vaidosa e egoísta. Na África ocidental, acabava então de ser criado um posto, na faixa de terra reconquistada da Alemanha ao fim da Primeira Guerra Mundial, a qual compreendia, como protetorado britânico, o leste da Nigéria e o oeste de Camarões. Meu pai se apresentou como voluntário. No começo de 1928, já estava a bordo de um navio que descia a costa da África com destino aVictoria, na baía de Biafra.
Foi essa mesma viagem que eu fiz, vinte anos mais tarde, com minha mãe e meu irmão, para ir ao encontro de meu pai na Nigéria, depois da guerra. Mas ele não é uma criança que se deixa levar ao sabor dos acontecimentos. Está então com trinta e dois anos, é um homem
endurecido por seus dois anos de experiência médica na América tropical, conhece a doença e a morte, que dia a dia ladeou, sem proteção, nas emergências. Seu irmão Eugène, que antes dele já fora médico na África, certamente lhe disse: a terra para a qual ele vai não é nada fácil. Ocupada pelo exército britânico, a Nigéria, sem dúvida, está "pacificada". Mas é uma região onde a guerra é permanente, a guerra dos homens entre si, a guerra da pobreza, a guerra dos maus-tratos e da corrupção herdados da colonização e, sobretudo, a guerra microbiana. No Calabar, em Camarões, os inimigos não são mais Aro Chuku e seu oráculo, nem as tropas dos fulas e suas longas carabinas vindas da Arábia. Os inimigos se chamam kwashiorkor ou desnutrição, vibrião do cólera, tênia, bilhárzia, varíola, disenteria amebiana. Em face desses inimigos, a maleta de médico, para meu pai, deve até parecer bem leve. Escalpelo, pinças hemostáticas, trépano, estetoscópio, garrotes e alguns instrumentos básicos como a seringa de latão com a qual mais tarde ele me aplicaria vacinas. Os antibióticos e a cortisona ainda não existem. As sulfas são raras, os unguentos e os pós se assemelham a poções de feiticeiro. A quantidade de vacinas é limitada demais para combater as epidemias. E o território a percorrer, para travar essa batalha contra as doenças, é imenso. Comparadas ao que espera por meu pai na África, as expedições na Guiana, rio acima, bem lhe podem ter parecido passeios. Por vinte e dois anos ele há de permanecer no oeste africano. Conhecerá tudo aí, desde a descoberta dos grandes rios, o Níger, o Bénoué, no entusiasmo inicial, até as terras altas de Camarões. Com sua esposa, a cavalo pelas trilhas nas montanhas, partilhará o amor e as aventuras. Depois virão a solidão e a angústia da guerra, até a debilidade, até a amargura dos últimos instantes, este sentimento de haver ultrapassado a dimensão de uma vida.
Não foi senão muito mais tarde, quando parti como ele para viajar num outro mundo, que compreendi tudo isso. Se o li, não foi nos raros objetos, máscaras, estatuetas, e nos poucos móveis que ele havia trazido da terra dos ibos e das Grass Fields de Camarões. Nem mesmo ao olhar as fotos que ele tirou em sua chegada à África e durante os primeiros anos. Soube-o redescobrindo, aprendendo a ler, a interpretar melhor os objetos da vida cotidiana que nunca se separaram dele, nem sequer durante a aposentadoria na França: suas xícaras e pratos de metal esmaltados de azul e branco feitos na Suécia, os talheres de alumínio que ele usou para comer durante todos aqueles anos, as marmitas de encaixar que lhe serviam em campanha, nas choupanas de passagem, E todos os outros objetos, marcados, amassados pelos solavancos, contendo sinais das chuvas diluvianas e do desbotamento peculiar ao sol do equador, de que ele não quisera se desfazer e que a seus olhos valiam mais do que qualquer bibelô ou suvenir folclórico. Seus baús de madeira com arcos de ferro, cujas dobradiças e fechaduras ele repintou várias vezes e nos quais eu ainda lia o endereço do porto de destino final: General Hospital, Victoria, Cameroons. Além dessas bagagens, dignas de um viajante dos tempos de Kipling ou de Jules Verne, havia toda uma série de latas de graxa de sapato e de barras de sabão preto, os lampiões a querosene, os fogareiros a álcool e as grandes latas de biscoitos Marie nas quais até o fim da vida ele guardava seu chá e o açúcar refinado. E também suas ferramentas, seus instrumentos cirúrgicos, que na França ele utilizava na cozinha, destrinchando o frango com o escalpelo e
servindo-o com uma pinça hemostática. Finalmente os móveis, não aqueles famosos tamboretes e tronos monóxilos da arte negra. A esses, preferia sua velha cadeira desdobrável de bambu e lona, que ele havia transportado por todos os caminhos das montanhas, de uma choupana de passagem a outra, e a mesinha de tampo de rata que servia de suporte para seu aparelho de rádio, no qual todas as noites, às sete horas, até o fim da vida ele ouvia as informações da BBC: Pom pom pom pom! British Eroadcasting Corporation, here is the news!
Era como se jamais ele houvesse deixado a África. Ao voltar para a França, mantivera os hábitos de sua profissão, levantando-se às seis horas, vestindo-se (sempre com sua calça de brim caqui), os sapatos engraxados, o chapéu na cabeça, para ir às compras no mercado — como outrora partia para a inspeção dos leitos no hospital — e retornando à casa às oito horas a fim de preparar a refeição — com as minúcias de uma intervenção cirúrgica. Tinha conservado todas as manias dos antigos militares. O homem que recebera o treinamento dos médicos em países distantes — ser ambidestro, capaz de se servir de um espelho para operar a si mesmo ou recompor sua hérnia. O homem de mãos calosas de cirurgião, que era capaz de serrar um osso ou de colocar uma tala, que sabia dar nós e unir fios de corda — esse homem já não utilizava sua energia e seu saber a não ser para aquelas pequenas e ingratas tarefas às quais a maioria das pessoas aposentadas se recusa: com a mesma aplicação, ele lavava a louça, consertava os ladrilhos quebrados de seu apartamento, lavava sua roupa, cerzia suas meias, fazia prateleiras e bancos com madeira de caixotes. As marcas que a África lhe tinha aposto confundiam-se com os vestígios deixados pela educação espartana de sua família em Maurício. Bem que o traje à ocidental que ele envergava a cada manhã para ir ao mercado lhe devia pesar. Desde que voltava para casa, enfiava-se numa larga camisa azul, à moda das túnicas dos hauçás de Camarões, na qual se mantinha até a hora de ir deitar-se. É assim que o vejo no fim da vida. Não mais o aventureiro, não mais o militar inflexível. Porém um velho expatriado, exilado de sua vida e de sua paixão, um sobrevivente.
A África começou para meu pai quando ele tocou na Costa do Ouro, em Acra. Imagem característica da colónia: viajantes europeus, vestidos de branco e com capacetes de Cawnpore na cabeça, são desembarcados num bote e transportados para terra a bordo de uma piroga tripulada por negros. Não é essa a África que mais expatria: resume-se ela à estreita faixa que acompanha o litoral, desde a ponta do Senegal até o golfo da Guiné, conhecida por todos que vêm das metrópoles para fazer negócios e enriquecer rapidamente. Uma sociedade que, em menos de meio século, se arquitetou em castas, lugares reservados, proibições, privilégios, abusos e lucros. Banqueiros, agentes comerciais, administradores civis ou militares, juizes, policiais e soldados. Em torno deles, nas grandes cidades portuárias, Lomé, Cotonou, Lagos, tal como em George-town na Guiana, criou-se uma zona própria, luxuosa, com gramados impecáveis, campos de golfe e palácios de estuque ou madeiras nobres em vastos palmeirais, à beira de um lago artificial, como a casa do diretor do serviço médico em Lagos. Um pouco mais longe, o círculo dos colonizados, com o complexo amontoamento descrito por Rudyard Kipling,
no tocante à índia, e por Rider Haggard, quanto ao leste africano. É a fímbria doméstica, a bucha elástica dos intermediários, notários, contínuos, esbirros, moços (palavras não faltam!) vestidos meio à europeia, usando sapatos e guarda-chuvas pretos. Por fim, do lado de fora, o imenso oceano dos africanos, que só conhecem dos ocidentais as ordens partidas deles e a imagem quase irreal da carroceria preta de um carro que passa a toda velocidade, numa nuvem de poeira, e atravessa buzinando suas aldeias e bairros.
Era essa imagem que meu pai detestava. Ele, que havia rompido com Maurício e seu passado colonial, que desprezava os donos de plantações e seus ares de grandeza, ele, que fugira do conformismo da sociedade inglesa, para a qual um homem só valia por seu cartão de visita, ele, que percorrera os rios selvagens da Guiana, tratando de catadores de diamantes e índios subnutridos nos quais fazia curativos e dava pontos, esse homem não podia senão pôr para fora, num vómito, o mundo colonial e sua presunçosa injustiça, seus cocktail parties e golfistas uniformizados, sua domesticidade, suas amantes de ébano prostituídas aos quinze anos, introduzidas pela porta dos fundos, e as esposas oficiais bufando de calor e projetando nos serviçais, por causa de um par de luvas, de um pouco de poeira ou de uma louça quebrada, o rancor que tinham.
E ele falava disso? De onde me vem essa repulsa instintiva que desde a infância eu senti pelo sistema colonial? Hei de ter captado, sem dúvida, alguma palavra, alguma reflexão, sobre os ridículos dos administradores, como o District Officer de Abakaliki, o qual às vezes meu pai me levava a visitar e que vivia rodeado pela matilha de seus pequineses, alimentados com filé-mignon e docinhos, que só bebiam água mineral. Ou então os relatos sobre brancos ilustres que viajavam em comboio, dando caça a leões e elefantes, armados de fuzis de mira e balas explosivas, e que, quando cruzavam com meu pai naquelas ermas paragens, o tomavam por um organizador de safáris e o interrogavam sobre a presença de animais selvagens, ao que meu pai respondia: "Há vinte anos que estou aqui e nunca vi nenhum; a menos que vocês se refiram a abutres e cobras". Ou ainda o District Officer baseado em Obudu, na fronteira com Camarões, que se divertia ao me fazer tocar nos crânios dos gorilas mortos por ele e me mostrava os morros por trás de sua casa, garantindo que dali se ouvia à noite a peidorrada dos grandes símios que batiam no peito para provocá-lo. E, sobretudo, a imagem obsedante que retive, na estrada que levava à piscina de Abakaliki, da coorte de prisioneiros negros acorrentados, marchando a passo de cadência e cercados por policiais de fuzis em punho.
Talvez fosse o olhar de minha mãe sobre esse continente a um só tempo tão novo e tão maltratado pelo mundo moderno? Não me lembro do que ela nos dizia, a meu irmão e a mim, quando nos falava do país onde tinha vivido com meu pai e onde deveríamos encontrá-lo um dia. Sei apenas que, quando minha mãe decidiu casar-se com ele e ir viver em Camarões, suas amigas parisienses lhe disseram: "O quê, entre os selvagens?" e que ela, depois de tudo que meu pai lhe contara, pôde tão-só responder: "Eles não são mais selvagens do que as pessoas em Paris".
Depois de Lagos, Owerri e Aba, já perto do rio Níger. Meu pai agora está longe da zona "civilizada". Tem diante de si as paisagens da África equatorial, tal como descritas por André Gide em seu livro Voyage au Congo* (que data mais ou menos da mesma época da chegada de meu pai à Nigéria) : a extensão do rio, vasto como um braço de mar, no qual navegam pirogas e barcos a vapor, e seus afluentes, o rio Ahoada, onde há "sampanas" com cobertas de palmas, empurradas a vara, e, mais para perto da costa, o rio Calabar e a chanfra-dura da aldeia de Obukun, aberta a golpes de facão na espes-sidão da floresta. São essas as primeiras imagens que meu pai recebe da terra onde passará a maior parte de sua vida ativa, da terra que irá tornar-se, por força e por necessidade, sua terra verdadeira.
4. Publicado em 1927. [N.E.]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Imagino sua exaltação quando da chegada aVictoria, após vinte dias de viagem. Na série de fotos tiradas por meu pai na África, há uma que me comove particularmente, porque foi a que ele escolheu para ampliar e pôr num quadro. Tal foto traduz sua impressão de então, de estar no berço, no limiar da África, num lugar quase virgem. Nela se vê a foz do rio, no ponto em que a água doce se mistura com o mar. A baía de Victoria desenha uma curva que termina numa ponta de terra onde as palmeiras se inclinam ao vento vindo do mar. O mar rebenta em pedras negras, antes de ir morrer na praia. A garoa trazida pelo vento recobre as árvores da floresta, mesclando-se ao vapor dos mangues e do rio. Malgrado a praia, malgrado as palmas, há algo aí de selvageria e mistério. Em primeiro plano, bem perto da margem, vê-se a casinha branca na qual meu pai se instalou logo ao chegar. Não é por acaso que, para designar essas casas de passagem da África, ele se vale da palavra, tão mauriciana, "acampamento". Se essa paisagem lhe diz tanto, se faz bater meu coração também, é que ela poderia estar em Maurício, na baía de Tamarin, por exemplo, ou então no cabo Malheureux, onde meu pai, em sua infância, às vezes ia em excursão.Terá ele talvez acreditado, no momento em que chegou, que ia
encontrar alguma coisa da inocência perdida, a lembrança daquela ilha arrancada de seu coração pelas circunstâncias? Como não pensaria nisso? Eram, de fato, a mesma terra vermelha, o mesmo céu, o mesmo e constante vento do mar e, por toda parte, nas estradas, nas aldeias, os mesmos rostos, os mesmos risos de crianças, a mesma despreocupação indolente. Uma terra original, de alguma forma, onde o tempo teria dado marcha a ré, desmanchando a trama de erros e de traições.
Sinto, por isso, sua impaciência, seu grande desejo de penetrar no interior do país para dar início a seu trabalho de médico. De Victoria, as trilhas o conduzem, através do monte Camarões, para as chapadas onde ele deve assumir seu posto, em Bamenda. É lá que ele vai trabalhar durante os primeiros anos, num hospital parcialmente em ruínas, um dispensário de bondosas irmãs de caridade irlandesas, com paredes de sopapo e telhado de palmas. Lá que irá passar os anos mais felizes de sua vida.
Sua casa é Forestry House, uma casa de verdade, um sobradinho de madeira coberto por um telhado de folhas que meu pai cuidará de reformar com o maior cuidado. Mais para baixo, no vale, não distante das prisões, acha-se a cidade hauçá, com suas muralhas de taipa e as altas portas, tal como era nos tempos de glória do Adamawa. Um pouco afastada, a outra cidade africana, o mercado, o palácio do rei de Bamenda e a casa de passagem do District Ojficer e dos funcionários de Sua Majestade (que só estive ram uma vez aqui, para condecorar o rei). Uma foto tirada por meu pai, um pouco satírica, sem dúvida, mostra esses cavalheiros do governo britânico, cobertos por capacetes, duros em suas calças curtas, suas camisas engomadas, as barrigas das pernas espremidas em compridas meias de lã, a contemplar o desfile dos guerreiros do rei que, de tanga e com a cabeça ornamentada por peles e penas de animais, brandem azagaias.
Foi para Bamenda que meu pai levou minha mãe, após o casamento deles, tendo sido Forestry House sua primeira residência. Lá instalam seus móveis, os únicos móveis que jamais compraram e que hão de carregar por toda parte com eles: mesas, cadeiras de braços entalhadas em troncos de iroko, ornamentadas com esculturas tradicionais das chapadas do oeste camaronês, com leopardos, macacos, antílopes. A foto que meu pai tirou da sala de Forestry House mostra uma decoração bem "colonial": acima do parapeito da lareira (faz frio em Bamenda no inverno) está pendurado um grande escudo em pele de hipopótamo, munido de duas lanças cruzadas. Ao que tudo indica, trata-se de objetos deixados por um precedente ocupante, porque não se assemelham ao que meu pai procuraria obter. Os móveis esculpidos, em contrapartida, acompanharam-no até a França. Passei grande parte de minha infância e de minha adolescência no meio desses móveis, sentado nos tamboretes para aí ler dicionários. Brinquei com as estátuas de ébano, com as campainhas de bronze, e utilizei os cauris como se fossem peças para o jogo de os-sinhos. Para mim, tais objetos, as esculturas em madeira e as máscaras penduradas nas paredes,
nada tinham de exóticos. Eram a minha parte africana, prolongavam-me a vida e, de certo modo, a explicavam. Além disso, falavam do tempo, anterior à minha vida, em que meu pai e minha mãe tinham vivido lá, naquele outro mundo no qual foram felizes. Como dizê-lo? Senti espanto e até mesmo indignação ao descobrir, bem mais tarde, que objetos dessa espécie podiam ser comprados e expostos por pessoas que nada haviam conhecido de tudo aquilo, para quem eles nada significavam e, pior ainda, para quem essas máscaras, essas estátuas e esses tronos não eram coisas vivas, mas sim a pele morta do que se chama com frequência de "arte".
Durante os primeiros anos de seu casamento, foi lá que meus pais viveram sua vida amorosa, em Forestry House e nas estradas das chapadas camaronesas, até Banso. Com eles viajavam seus empregados, Njong, o moço, Chindefondi, o intérprete, e Philippus, o chefe dos carregadores. Philippus, muito amigo de minha mãe, era um homem de baixa estatura, porém dotado de força hercúlea, capaz de arredar um tronco para desobstruir o caminho ou de carregar pesos que ninguém conseguia sequer erguer. Minha mãe contava que vá rias vezes ele a ajudou a transpor rios em cheia, mantendo-a pelos braços acima d'água.
Com eles viajavam também os companheiros inseparáveis de meu pai, que ele havia adotado desde que chegou a Ba-menda: James e Pégase, cavalos mansos e cheios de vontades, ambos com uma estrela branca na testa. E ainda o cachorro dele, chamado Polisson, um peralta desengonçado que se punha sempre à frente, nos caminhos, e que deitava a seus pés por toda parte onde meu pai parava, mesmo quando ele tinha de posar para uma foto oficial em companhia de reis.
 
 
 
Banso
 
 
 
 
 
 
 
 
A partir de março de 1932, meu pai e minha mãe deixam a residência de Forestry House em Bamenda e se instalam nas montanhas, em Banso (hoje Kumbo), onde deve ser aberto um hospital. Banso fica no fim da estrada de laterita carroçável em todas as estações. Está na entrada da região dita "selvagem", é o último posto onde se exerce a autoridade britânica. Meu pai será aí o único médico, e o único europeu, o que não chega a lhe causar desagrado.
O território a seu encargo é imenso. Vai da fronteira com o protetorado francês de Camarões, ao sudeste, até os confins do Adamawa, ao norte, e abrange a maior parte das chefias e dos pequenos reinos que escaparam à autoridade di-reta da Inglaterra após a partida dos alemães: Kantu, Abong, Nkom, Bum, Foumban, Bali. No mapa por ele mesmo traçado, meu pai anotou as distâncias, não em quilómetros, mas em horas e dias de caminhada. As precisas indicações desse mapa dão a verdadeira dimensão do território, os motivos pelos quais ele o ama: as travessias a vau, os rios fundos ou turbulentos, as encostas a subir, os caminhos ziguezagueantes, as descidas ao fundo dos vales, que a cavalo não se pode fazer, os paredões intransponíveis. Os nomes, nos mapas que ele traça, formam uma litania, falam de caminhadas ao sol, pelos capinzais das planícies, ou da laboriosa escalada de montanhas rodeadas de nuvens: Kengawmeri, Mbiami,Tanya, Ntim, Wapiri, Ntem, Wanté, Mbam, Mfo, Yang, Ngonkar, Ngom, Nbirka, Ngu, trinta e duas horas de andança, ou seja, cinco dias à razão de dez quilómetros por dia em terreno difícil. Depois, as paradas nos arraiais, os bivaques, os tratamentos a fazer, as vacinas, as discussões (as famosas lengalengas) com as autoridades locais, as queixas que se têm de escutar e o diário de bordo que é preciso manter, a fiscalização da economia, os remédios a encomendar em Lagos, as instruções a dar aos agentes de saúde e aos enfermeiros, nos dispensários. Durante mais de quinze anos, essa será a sua terra. É provável que ninguém a tenha sentido mais do que ele, que a tenha percorrido, explorado, suportado tanto assim. Conhecendo cada habitante, muitos trazendo à vida, outros acompanhando à morte. E sobretudo amando, já que, mesmo que não falasse disso, mesmo que ele nada contasse, até o fim de seus dias há de ter conservado as marcas, vestígios daqueles morros, das florestas, dos matagais e pessoas que por lá conheceu.
Na época em que percorre a província do Noroeste, os mapas são inexistentes. O único mapa impresso do qual ele dispõe é a carta geográfica do estado-maior do exército alemão, na escala 1/300.000, fixada por Moisel em 1913. Mas essa carta é imprecisa, a não ser no tocante aos principais cursos d'água, o Donga Kari, afluente do Benoué, ao norte, e o rio Cross, ao sul, e às duas antigas cidades fortificadas de Banyo e de Kentu. Abong, a aldeia
mais ao norte do território médico de meu pai, a mais de dez dias de caminhada, é mencionada na carta do exército alemão com um ponto de interrogação. Os distritos de Kaka e Mbernbé acham-se tão longe da zona costeira que é como se pertencessem a um outro país. As pessoas que aí vivem, em sua maioria, nunca viram europeus, embora os mais velhos se recordem com horror da ocupação alemã, das execuções, dos sequestros de crianças. O que é certo é que não têm a menor ideia do que representa o poderio colonial da Inglaterra ou da França e nem sequer imaginam que guerra está sendo preparada no outro extremo do mundo. Não são porém regiões isoladas nem selvagens (como meu pai, em contrapartida, poderia dizer da Nigéria e particularmente da floresta ao redor de Ogoja). Pelo contrário, é uma área próspera, onde se cultivam árvores frutíferas, inhame e milho miúdo, onde se pra-tíca a criação de gado. Os reinos situam-se no centro de uma zona de influência, sob a inspiração do islamismo que chega dos impérios do norte, de Kano, dos emirados de Bornu e de Agadez, do Adamawa, trazido pelos mascates fulas e os guerreiros hauçás. Ao leste, há Banyo e a terra bororó, ao sul, a antiga cultura dos bamuns de Foumban, que praticam o escambo, são mestres na arte da metalurgia e utilizam até mesmo uma escrita inventada em 1900 pelo rei Njoya. A colonização europeia, no fim das contas, afetou muito pouco a região. Douala, Lagos, Victoria estão a anos de lá. Os montanheses de Banso continuam a viver como o fizeram sempre, segundo um ritmo lento, em harmonia com a natureza sublime que os circunda, cultivando a terra e apascentando seus rebanhos de vacas de chifres longos.
As fotos que meu pai bate com sua Leica revelam a admiração que ele sente por toda essa região. O Nsungli, por exemplo, nas cercanias de Nkor: uma África que não tem nada em comum com a zona costeira, na qual reina uma atmosfera pesada, cuja vegetação sufoca, quase sendo uma ameaça, e onde o que pesa de modo ainda forte é a presença das tropas da ocupação francesa e britânica.
Aqui, a terra é feita de horizontes longínquos, de um céu mais vasto, de extensões que a vista não alcança. Meu pai e minha mãe nunca conheceram alhures a liberdade aí sentida por eles. Andam o dia todo, ora a pé, ora a cavalo, e à noite fazem alta para dormir à luz das estrelas, embaixo de uma árvore, ou então num acampamento sumário, como em Kwolu, na estrada para Kishong: uma simples cabana de sopapo e folhas, onde penduram suas redes. Em Ntumbo, na chapada, eles cruzam com a manada que meu pai fotografou com minha mãe em primeiro plano. De tão alto que estão, o céu brumoso parece se apoiar nos chifres em meialua das vacas, enquanto vela a cumeada das montanhas em volta. Não obstante a má qualidade das cópias, a felicidade de meus pais é perceptível. No verso de uma foto tirada em algum lugar da região das Gmss Fields, em terra mbembé, que mostra a paisagem diante da qual eles passaram a noite, meu pai escreveu com ênfase inabitual: "A imensidão que se vê ao fundo é a planície sem fim".
Posso sentir a emoção que o possui quando ele atravessa as chapadas e as planícies herbosas, quando cavalga pelas trilhas estreitas que serpenteiam por flancos de montanhas,
descobrindo a cada instante novos panoramas, as linhas azuis dos cumes que emergem como miragens das nuvens, banhadas na luz da África, ora violenta ao meio-dia, ora atenuada pelo crepúsculo, quando a terra vermelha e as plantas amareladas parecem iluminadas de dentro por um fogo secreto.
Eles passam também a conhecer a ebriedade da vida física, o cansaço que se apodera dos membros ao fim de um dia de marcha, quando é preciso apear do cavalo e conduzi-lo pela rédea para chegar ao fundo das ravinas. A quentura do sol, a sede que não se pode matar, ou o frio nos rios que se tem de atravessar em plena corrente, com a água no peito dos cavalos. Minha mãe monta à amazona, com as duas pernas para o mesmo lado, como ela aprendeu a fazer no picadeiro de Ermenonville. E essa postura tão desconfortável — vagamente ridícula, sem dú-
 
 
 
 
 
 
 
 
vida, sendo ainda de bom-tom, na França de antes da guerra, a separação dos sexos — paradoxalmente lhe dá um ar de africana. Algo de descuidado e gracioso, e ao mesmo tempo de muito antigo, que ou bem evoca os tempos bíblicos ou bem as caravanas dos tuaregues, nas quais as mulheres viajam pelo deserto penduradas em barquinhas nos flancos dos dromedários.
Assim ela acompanha meu pai em suas andanças médicas, com o séquito de carregadores e o intérprete, pelas montanhas do oeste. Vão de acampamento em acampamento para alcançar as aldeias cujos nomes meu pai anota em seu mapa: Nikom, Babungo, Nji Nikom, Luakom Ndye, Ngi, Obukun. Os acampamentos são às vezes mais do que precários: em Kwaja, em terra kaka, eles se alojam numa cabana de galhos sem janela, no meio de um bananal. A umidade é tanta que de manhã é preciso pôr os lençóis e as cobertas para secar no teto. Lá eles passam uma ou duas noites, às vezes até uma semana. A água de beber é ácida e arroxeada pelo permanga-nato, cozinha-se num fogo de gravetos à entrada da cabana, toma-se banho no riacho. Nas montanhas sob o equador, as noites são frias, ruidosas, cheias dos clamores dos gatos-do-mato e da balbúrdia dos mandris. Entretanto, não é a África de Tartarin de Tarascon, nem sequer a de John Huston. É, antes, a de Out of África,5 uma África real, de grande den-
ç. BLIXF.N, Karen. Out of África. Londres: Putnam, 1937. No Brasil: AJazenda africana. São Paulo: Cosac Naify, zoo^.Trad. Cláudio Marcondes. [N.E.]
sidade humana, dobrada pelas doenças e as guerras tribais. Mas também forte e hilariante, com suas incontáveis crianças, suas festas dançadas, com o bom humor e a veia cómica dos guardadores de gado encontrados pelos caminhos.
A época de Banso, para meu pai e minha mãe, é o tempo da juventude, das aventuras. Não é a África da colonização que eles conhecem ao longo dessas andanças. A administração inglesa, segundo um de seus princípios, deixou montada a estrutura política tradicional, com seus reis, seus chefes religiosos, seus juizes, suas castas e seus privilégios.
Quando eles chegam a uma aldeia, são recebidos pelos emissários do rei, convidados para as lengalengas e fotografados com a corte. Num desses retratos, meu pai e minha mãe posam em torno do rei Memfoi, de Banso. Segundo a tradição, o rei está nu até a cintura, sentado no trono e com seu enxota-moscas na mão. Meu pai e minha mãe, que o ladeiam, estão em pé, vestidos com as roupas batidas e empoeiradas da estrada: minha mãe de saia comprida e com os sapatos que usa para andar, meu pai com uma camisa de mangas enroladas e sua calça caqui muito larga, muito curta, presa por um cinto que mais parece um barbante. Ambos sorriem. Estão felizes, estão livres nessa aventura. Por trás do rei, percebe-se a parede do palácio, uma simples choupana de tijolos de barro seco nos quais faíscam lascas de palha.
Por vezes, através das montanhas que em seu percurso eles cruzam, as noites são violentas, cálidas, sexuadas. Minha
 
mãe fala da súbita explosão de festas nas aldeias, como em Babungo, em terra nkom, a quatro dias a pé de Banso. Na praça, prepara-se o teatro de máscaras. Embaixo de uma fi
gueira-baniana, sentam-se os tocadores de tãtã e, quando eles batem, o apelo de sua música repercute ao longe. As mulheres já começaram a dançar, estão completamente nuas, mas têm na cintura uma enfiada de pérolas. Inclinadas para a frente, avançam uma atrás da outra e vão batendo com os pés no chão, no mesmo ritmo dos tambores. Os homens ficam em pé. Uns vestem mantos de ráfia, outros usam as máscaras dos deuses. O mestre dos ju-jus dirige a cerimónia.
Tudo começa ao pôr-do-sol, lá pelas seis horas, e dura até o alvorecer do dia seguinte. Meu pai e minha mãe estão deitados no catre, sob o mosquiteiro, e ouvem os tambores batendo num ritmo contínuo que estremece apenas, como um coração que se encanta. Eles se amam. A África selvagem, e ao mesmo tempo tão humana, é sua noite de núpcias. O dia inteiro o sol queimou seus corpos, ambos se encheram de uma incomparável força elétrica. Imagino que eles façam sexo, nessa noite, ao ritmo dos tambores que vibram sob a terra, bem abraçados no escuro, a pele encharcada de suor, no interior da casinhola de taipa que não chega a ser maior do que um galinheiro. Depois, de madrugada, adormecem, enlaçados ao frio sopro da manhã que faz o cortinado do mosquiteiro ondular, sem mais ouvir a cadência fatigada dos últimos tãtãs. Ogoja com raiva
Quando tento compreender o quemudou esse homem, a ruptura ocorrida em sua vida, é na guerra que eu penso. Houve um antes e um depois. Antes, para meu pai e minha mãe, foram as chapadas do oeste ca-maronês, os morros tranquilos de Bamenda e Banso, Fores-try House, os caminhos através das Grass Fields e as montanhas do Mbam e das terras mbembé, kaka, shanti.Tudo isso, não como um paraíso — nada a ver com a doçura enlangue-cida da costa em Victoria, o luxo das residências e a ociosidade dos colonos —, mas como um tesouro de humanidade, alguma coisa forte e generosa, tal um sangue pulsando em veias jovens.
Algo que bem podia assemelhar-se à felicidade. Foi nessa época que minha mãe engravidou duas vezes. Os africanos costumam dizer que não é do dia em que saem do ventre materno que as pessoas nascem, mas sim do lugar e do instante em que elas são concebidas. Quanto ao meu nascimento, nada sei (o que aliás, suponho, ocorre com todo mundo). Se porém entro em mim mesmo, se volto os olhos para dentro, é essa força que eu percebo, essa efervescência de energia, a sopa de moléculas prestes a se unir para formar um corpo. E, antes mesmo do instante da concepção, tudo aquilo que o precedeu, que se encontra na memória da África. Não uma memória difusa, ideal: a imagem das chapadas, das aldeias, os rostos dos velhos, os olhos esbugalhados das crianças minadas pela disenteria, o contato com todos aqueles corpos, o odor da pele humana, o murmúrio dos queixumes. Apesar de tudo isso, e por causa de tudo isso, tais imagens são as da felicidade, da plenitude que me fez nascer.
Essa memória está ligada aos lugares, ao contorno das montanhas, ao céu da altitude, à leveza do ar pela manhã. Ao amor que meus pais tinham por sua casa, por aquela cabana de pau-a-pique e folhas, com um terreiro onde todos os dias as mulheres e as crianças se instalavam, sentando-se direta-mente no chão, para esperar a hora da consulta, um diagnóstico, uma vacina. Está ligada à amizade que os aproximava dos habitantes.
Lembro-me, como se o tivesse conhecido, do ajudante de meu pai em Banso, o velho Ahidjo, que se tornara seu conselheiro e amigo. Ele se encarregava de tudo, da administração, do itinerário por lugares distantes, das relações 
 
 
com os chefes, do pagamento dos carregadores, do estado das choças de passagem. No começo, ele havia acompanhado meu pai nas viagens, mas sua idade avançada e seu estado de saúde não mais lhe permitiam isso. Pelo trabalho que fazia, não era pago. Ganhava, sem dúvida, prestígio e crédito: era o homem de confiança do doutor. Foi graças a ele que meu pai pôde encontrar seus pontos de referência na terra, ser aceito por todos (inclusive os feiticeiros aos quais fazia concorrência direta) e exercer sua prática. Dos vinte anos que passou no oeste africano, meu pai, ao que parece, não conservou senão dois amigos: Ahidjo e o "doutor" Jeffries, um District Officer de Bamenda que era apaixonado por arqueologia e antropologia. Um pouco antes da partida de meu pai, Jeffries terminou realmente seu doutorado e foi contratado pela Universidade de Joanesburgo. De tempos em tempos ele mandava notícias, em forma de artigos e plaquetes consagrados às suas descobertas, e também, uma vez por ano, pelo Èoxing day,6 na época do Natal, um pacote de goiabada da África do Sul.
Já Ahidjo escreveu regularmente a meu pai na França, durante anos. Em 1960, por ocasião da independência, consultou-o sobre a questão da reunião dos reinos do oeste à
6. Ocorre no dia 26 de dezembro ou na segunda-feira seguinte ao dia caso ele caia no final de semana. Celebrado no Reino Unido e em vários outros países da Commonwealth, é marcado por trocas de presentes, confraternização e filantropia. [N.E.]
Nigéria. Meu pai lhe respondeu que lhe parecia preferível, levando-se em conta a história, eles se integrarem ao Camarões francófono, que apresentava a vantagem de ser um país pacífico. O futuro lhe deu razão.
Depois as cartas pararam de chegar e meu pai ficou sabendo, pelas bondosas irmãs de caridade de Bamenda, que seu velho amigo tinha morrido. Do mesmo modo, certa vez o pacote de goiabada da África do Sul não veio para o dia de ano-bom e soubemos que o doutor Jeffries falecera. Desfizeram-se assim os últimos vínculos conservados por meu pai com sua terra adotiva. Restava-lhe apenas a modesta pensão que o governo nigeriano se comprometera a pagar, por ocasião da independência, a seus antigos servidores. Mas até mesmo a pensão parou de vir, algum tempo depois, como se todo aquele passado tivesse desaparecido.
Foi pois a guerra que despedaçou o sonho africano de meu pai. Em 1938, minha mãe sai da Nigéria para ir dar à luz na França, junto de seus pais. A breve licença tirada por meu pai, para o nascimento de seu primeiro filho, permite-lhe reencontrar-se com minha mãe na Bretanha, onde ele fica até o fim do verão de 1939. Pouco antes de ser declarada a guerra, toma o navio de regresso à África. Em Ogoja, na província de Cross Rivcr, assume seu novo posto. Ele sabe, quando rebenta a guerra, que mais uma vez ela vai espalhar fogo e sangue pela Europa, como em 1914.Talvez espere, como tantos europeus, que o avanço do exército alemão seja contido na fronteira com a França e que a Bretanha, sendo sua parte mais ocidental, venha a ser poupada.
Quando chegam as notícias da invasão da França, em junho de 1940, já é muito tarde para agir. Na Bretanha, minha mãe vê as tropas alemãs desfilarem sob suas janelas, em Pontl'Abbé, embora o rádio anuncie que o inimigo foi contido no Marne. As ordens da Kommandantur são taxativas: todos que não têm residência permanente na Bretanha devem abandonar a região. Ainda pouco restabelecida do parto, minha mãe é forçada assim a partir, primeiro para Paris, depois para a zona livre. Nenhuma notícia nova circula. Na Nigéria, meu pai sabe apenas o que a BBC transmite. Para ele, isolado no mato, a África tornou-se uma armadilha. A milhares de quilómetros, em alguma parte das estradas entulhadas de fugitivos, minha mãe dirige o velho De Dion de minha avó, levando seus pais e seus dois filhos com ela, um com um ano de idade, o outro com três meses. É nesse momento, sem dúvida, que meu pai tenta aquela coisa maluca, atravessar o deserto para embarcar na Argélia com destino ao sul da França, a fim de salvar sua mulher e os filhos, carregando-os consigo para a África. Mas minha mãe aceitaria acompanhá-lo? Para tanto, teria de abandonar seus pais em plena tormenta, quando esses já não se achavam em condições de resistir. Teria de enfrentar pela estrada os perigos da volta, o risco de serem capturados pelos alemães, ou pelos italianos, e deportados.
Meu pai, por certo, não tinha plano nenhum. Lançou-se sem refletir à aventura. Foi para Kano, no norte da Nigéria, e lá comprou sua passagem para embarcar numa caravana de caminhões que ia atravessar o Saara. No deserto, não há guerra. Os
mercadores continuam a transportar o sal, a lã, as madeiras, as matérias-primas. As rotas marítimas tornaram-se arriscadas, e é o Saara que permite a circulação dos géneros alimentícios. Para um oficial do corpo de saúde do exército inglês que viaja sozinho, o projeto é audacioso, insensato. Meu pai sobe para o norte, acampa no Hog-gar, perto de Tamanghasset (na época, Fort-Laperrine). Não teve tempo de se preparar, de trazer remédios, provisões. Partilha do trivial dos tuaregues que seguem na caravana e, como eles, bebe a água dos oásis, uma água alcalina que tem efeito purgativo em quem não está acostumado com ela. Ao longo de todo o trajeto, tira fotos do deserto, em Zinder, em In Guezzam, nas montanhas do Hoggar. Fotografa as inscrições em tamaxeque nas pedras, os acampamentos dos nómades, moças com pintura negra nos rostos, crianças. Passa vários dias no forte de In Guezzan, na fronteira das possessões francesas no Saara. Há algumas construções em taipa, sobre as quais tremula a bandeira da França, e, no acostamento da pista, um caminhão parado, talvez aquele no qual ele viaja. Ele consegue chegar até Arak, na outra mar-
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
gem do deserto. Talvez tenha alcançado o forte Mac-Mahon, em El-Goléa. Mas todo estrangeiro, em tempo de guerra, é um espião. Finalmente ele é detido, rechaçado. Imerso na mais profunda tristeza, tem de voltar atrás, refazer todo o caminho até Kano, até Ogoja.
A partir desse fracasso, a África já não tem para ele o mesmo sabor de liberdade. Bamenda e Banso eram de um tempo de felicidade, no santuário das terras elevadas cercado de gigantes, o monte Bambouta a 2.700 m, o Kodju a 2.000 m, o Oku a 3.000 m. Ele chegara a acreditar que não partiria mais dali. Tinha sonhado com uma vida perfeita, na qual seus filhos cresceriam em plena natureza para se tornar, como ele, habitantes daquela região.
Ogoja, a que a guerra o condena, é um posto avançado da colónia inglesa, uma aldeia grande numa depressão sufocante à margem do Aiya, encerrada pela floresta, separada de Camarões por uma instransponível cadeia de montanhas. O hospital que ele tem a seu encargo existe há muito tempo, é uma construção de cimento com telhado de chapas, dispondo de sala de cirurgia, dormitórios para os pacientes e uma equipe de enfermeiros e parteiras. Se há sempre um pouco de aventura (de todo modo, o litoral está a um dia de carro), ela é planificada. O D.O. não está longe, o grande centro administrativo da província de Cross River fica em Abakaliki, acessível por uma estrada carroçável.
A residência funcional que ele ocupa é bem ao lado do hospital. Não é uma bela casa de madeira, como Forestry House em Bamenda, nem uma rústica choupana de taipa e palmas, como em Banso. E uma casa moderna, bem feiosa, feita de blocos de cimento, com um telhado de chapas onduladas que durante as tardes a transforma num forno — e que meu pai se apressa em cobrir de folhas, para a isolar do calor.
Como passa esses longos anos de guerra, sozinho nessa casa grande e vazia, sem notícias da mulher que ele ama e de seus filhos?
Seu trabalho de médico torna-se uma obsessão. A despreocupada brandura de Camarões não prevalece em Ogoja. Embora ele continue a dar consultas no mato, não vai mais a cavalo pelas trilhas sinuosas das montanhas. Usa seu automóvel (o Ford v 8 que comprou de seu antecessor, mais um caminhão do que um carro, e que me causou uma impressão tão forte quando foi apanhar-nos ao descermos do barco em Port Harcourt). Percorrendo as aldeias vizinhas ligadas por precárias estradinhas de laterita, Ijama, Nyonnya, Bawop, Amachi, Baterik, Bakalung, ele chega até Obudu, nos contrafortes da montanha cameronesa. O contato com os doentes, por demais numerosos, já não é porém o mesmo. No hospital de Ogoja, falta-lhe agora tempo para conversar, para escutar as queixas das famílias. As mulheres e crianças não têm mais seu lugar no pátio do hospital, onde é proibido acender fogo para cozinhar. Os pacientes ficam nos dormitórios, deitados em camas de metal de verdade, com lençóis muito brancos e engomados, e provavelmente sofrem tanto de angústia quanto das próprias afecções. Meu pai, quando entra nos quartos apinhados, vê que o medo se estampa nos seus olhos. O médico não é mais aquele homem que traz o benefício dos medicamentos ocidentais e que sabe partilhar seu saber com os anciãos da aldeia. E um estrangeiro, cuja reputação se espalhou por toda a região, que corta braços e pernas, quando a gangrena já começou, e cujo único remédio está contido
num instrumento ao mesmo tempo ameaçador e risível, uma seringa de latão munida de uma agulha de seis centímetros.
E é então que meu pai descobre, depois de todos aqueles anos em que se sentira tão próximo dos africanos, como um parente, um amigo deles, que o médico não passa de um agente a mais do poderio colonial, não diferindo do policial, do juiz ou do soldado. Como poderia ser de outro modo? A prática da medicina também é um poder sobre as pessoas, sendo a vigilância médica, igualmente, uma vigilância política. Bem o sabia o exército britânico, ele que, no começo do século, após anos de uma resistência encarniçada, pôde vencer pela força das armas e da técnica moderna a magia dos últimos guerreiros ibos, no santuário de Aro Chuku, a menos de um dia de marcha de Ogoja. Não é fácil mudar povos inteiros, quando a mudança é feita sob coerção. Sem dúvida, meu pai aprendeu essa lição em decorrência do isolamento e da solidão em que a guerra o mergulhou. E tal certeza há de o ter engolfado na ideia de fracasso, em seu pessimismo. Lembro-me de ele me ter dito uma vez, no fim da vida, que, se pudesse refazer sua trajetória, não seria médico, mas sim veterinário, porque os animais eram os únicos a aceitar o sofrimento.
Além do mais, há a violência. Em Banso, em Bamenda, nas montanhas de Camarões, meu pai vivera sob o encanto da brandura e do bom humor dos africanos.7 Em Ogoja, tudo é diferente. A região é conturbada pelas guerras tribais, as vinganças, os acertos de contas entre aldeias. As estradas, os caminhos não são seguros, é preciso andar armado. Os ibos
7. A reputação de brandura das pessoas da região de Banso dificilmente poderia ser generalizada para o restante do oeste de Camarões. Num estudo consagrado ao povo wiya, da província de Bamenda, o doutor Jeffries relata as atrocidades na guerra que o opõe desde sempre aos fulas de Kishong: quando esses últimos capturam um wiya, não só lhe arrancam as orelhas como cortam seus braços na altura dos cotovelos e, costurando juntas as palmas das mãos, fazem assim uma espécie de coleira que passam em volta do pescoço do infeliz, antes de mandá-lo de volta à sua aldeia. As tropas de ocupação francesa e britânica tentaram inutilmente contrapor-se a tais sevícias, que hoje ressurgem em alguns países do oeste africano, como a Libéria. [N.A.]
do Calabar são os que mais encarniçadamente resistiram à penetração dos europeus. Diz-se que são cristãos (e esse foi mesmo um dos argumentos utilizados pela França para servir de apoio à sua luta contra os vizinhos iorubás, que são muçulmanos). Mas o animismo e o fetichismo, na verdade, eram correntes na época. A feitiçaria era também praticada em Camarões, embora tivesse, para meu pai, um caráter mais aberto, mais positivo. No leste da Nigéria, a feitiçaria é secreta, exercendo-se por meio de venenos, de amuletos ocultos, de sinais destinados a causar desgraças. Da boca de residentes europeus, e propagadas pelos autóctones a seu serviço, meu pai ouve pela primeira vez histórias sobre feitiços, magia, crimes rituais. A lenda de Aro Chuku e de sua pedra para sacrifícios humanos continua a agir sobre os espíritos. As histórias narradas criam um clima
de desconfiança, de tensão. Diz-se que em tal aldeia, não muito longe de Obudu, os habitantes costumam esticar uma corda pela estrada, quando por ela se aventura, de bicicleta, um viajante solitário. Tão logo o infeliz cai no chão, matam-no a pauladas e o arrastam para trás de um muro, esquartejando-lhe o corpo para ser comido. Em tal outra, o District Offlcer, durante uma inspeção, mandou apreender no balcão do açougueiro uma carne pretensa-mente de porco, mas que os boatos apontavam como sendo humana. Em Obudu, onde os gorilas das montanhas circundantes são caçados ilegalmente, encontramse suas mãos cortadas à venda como suvenir no mercado, embora se verifique, ao que parece, quando se olha mais de perto, que ali há mãos de crianças sendo igualmente vendidas.
Meu pai nos repete esses relatos espantosos, nos quais, sem dúvida, ele só crê em parte. Nunca constatou, por si mesmo, provas de canibalismo. Mas é certo que tem de se deslocar com frequência para fazer a autópsia de vítimas de assassinato. É essa violência que se torna para ele uma fonte de obsessão. Ouvi meu pai contar que os corpos que lhe cabia examinar achavam-se às vezes em tal estado de decomposição que era preciso ele amarrar seu escalpelo na ponta de uma vara, antes de fazer incisões na pele, para se proteger da emissão de gases.
Para ele, a doença tem um caráter ofensivo, agora que o encanto da África já deixou de existir. Pouco a pouco a profissão que ele exerceu com tanto entusiasmo passa a ser opressiva no calor, na umidade da margem, na solidão desse fim de mundo. A proximidade do sofrimento o extenua: todos esses corpos que ardem de febre, os ventres dilatados dos cancerosos, aquelas pernas cheias de feridas, deformadas pela elefantíase, os rostos comidos pela lepra ou a sífilis, aquelas mulheres laceradas por partos, aquelas crianças envelhecidas por carências, com a pele cinzenta como pergaminho, com os cabelos cor-de-ferrugem, os olhos aumentados pela proximidade da morte. Muito tempo depois ele ainda me falaria dessas coisas terríveis que era preciso enfrentar no dia-a-dia, como se fosse a mesma sequência que recomeçava: uma ve lha enlouquecida pela uremia, que tinha de ser amarrada na cama, um homem do qual ele extraiu uma tênia tão comprida que foi preciso enrolá-la num pedaço de pau, a mulher ainda jovem que ele teve de amputar por causa de uma gangrena, a outra que já morria de varíola quando a levaram a ele, com o rosto inchado e coberto de chagas. A proximidade física com aquela terra, o sentimento que só é dado pelo contato com a humanidade em toda a realidade de seus sofrimentos, o odor da pele, o suor, o sangue, a dor, a esperança, a pequena réstia de luz que às vezes se acende no olhar de um doente, quando a febre se afasta, ou esse infinito segundo durante o qual o médico vê a vida extinguir-se na pupila de um agonizante — tudo isso que o havia arrebatado, eletrizado no início, quando ele navegava pelos rios da Guiana, quando andava pelas trilhas das montanhas no planalto camaronês, tudo isso é reposto em questão em Ogoja, devido à desesperadora deterioração dos dias, num pessimismo não expresso, porque ele constata a impossibilidade de chegar ao fim de sua tarefa.
Com a voz ainda velada pela emoção, ele me conta o caso do jovem ibo que lhe levaram ao hospital de Ogoja, de pés e mãos amarrados e com a boca amordaçada por uma espécie de focinheira de pau. Fora mordido por um cão, e agora a raiva se manifestou. Ele está lúcido, ele sabe que vai morrer. Por instantes, na cela onde ficou isolado, é tomado por uma crise, seu corpo se arqueia todo na cama e, apesar das correias, os membros são possuídos por tal força que o couro parece prestes a romper-se. Ao mesmo tempo, ele grunhe e berra de dor, sua boca espuma. Depois volta a cair numa espécie de letargia, derreado pela morfina. Algumas horas mais tarde, é meu pai que enfia em sua veia a agulha que lhe injeta o veneno. Antes de morrer, o rapaz olha para meu pai, perde a consciência e num último suspiro seu peito afunda. Que homem se pode ser, quando se viveu tudo isso?
 
 
 
 
 
 
 
O esquecimento
Tal era o homem que encontrei em 1948, no final de sua vida africana. Não o reconheci, nem tampouco o compreendi. Ele era muito diferente de todos que eu conhecia, um estranho, um estrangeiro e, mais até do que isso, quase um inimigo. Nada tinha em comum com os homens que eu via na França no círculo de minha avó, aqueles "tios", aqueles amigos de meu avô, senhores de uma outra época, distintos, condecorados, patriotas, revanchistas, loquazes, que traziam presentes, tinham famílias, relações, eram assinantes do Journal dês voyages e leitores de Léon Dau-det e Barres. Sempre impecavelmente vestidos em seus ternos cinza, seus coletes, usando gravatas e colarinhos duros, cobrindo-se com seus chapéus de feltro e manejando bengalas de ponteira de ferro. Depois de feita a refeição, eles se instalavam nas poltronas de couro da sala de jantar, lembranças dos tempos prósperos, e conversavam fumando, enquanto eu, com o nariz enfiado no meu prato vazio, adormecia a escutar o ronronar das vozes.
O homem que me apareceu junto do automóvel, no cais de Por t Harcourt, era de uni outro mundo: usava uma calça informe, muito larga e muito curta, camisa branca e sapatos de couro preto empoeirados pelas estradas. Era duro, taciturno. Ou bem falava em francês, mas com a cantante entonação da ilha Maurício, ou bem falava em pidgin, esse dialeto
misterioso que soava como sinetas. Sendo autoritário e inflexível, ao mesmo tempo era bom e generoso com os africanos que trabalhavam para ele no hospital e em sua casa de funcionário. Era cheio de rituais e manias que eu desconhecia, dos quais não tinha a menor ideia: as crianças nunca deviam falar à mesa sem que lhes dessem permissão, não deviam andar correndo, nem brincar ou ficar se espreguiçando na cama. Não podiam comer fora das refeições, e doces, nunca. Tinham de comer sem pôr as mãos sobre a mesa, não podiam deixar nada no prato e deviam prestar muita atenção para jamais mastigar de boca aberta. Sua obsessão com a higiene levava-o a gestos surpreendentes, como lavar as mãos com álcool e flambá-las com um fósforo. A todo instante ele verificava o carvão do filtro de água, não tomava senão chá, ou então água fervendo (que os chineses chamam de "chá branco"), e ele mesmo fazia suas velas, com cera e pavios embebidos em parafina, ele mesmo lavava a louça com extratos de saboeiro. Excetuando-se seu aparelho de rádio, ligado a uma antena suspensa de través no quintal, não tinha nenhum contato com o resto do mundo, não lia livros nem jornais. Sua única leitura era uma obra encadernada em preto, de reduzidas dimensões, que só encontrei muito mais tarde e que não sou capaz de abrir sem emoção: a Imitação de Cristo. Era um livro de militar, como suponho que os soldados de outrora pudessem ler no campo de batalha as Meditações de Marco Aurélio. Claro está que ele nunca nos falou a respeito disso.
Desde o primeiro contato, meu irmão e eu nos medimos com ele, jogando pimenta no seu bule de chá. Ele porém não achou graça, foi em volta da casa atrás de nós e nos deu urna surra e tanto. Outro homem talvez, quero dizer, um daqueles "tios" que frequentavam o apartamento de minha avó, teria se contentado em rir. Aprendemos de uma vez para sempre que um pai podia ser temível, que era capaz de punir com todo o rigor, de ir cortar varas no mato e usá-las para açoitar nossas pernas. Que era capaz de instituir uma justiça viril, a qual excluía qualquer diálogo, qualquer desculpa. Que ele baseava essa justiça no exemplo, rejeitando as tratativas, as delações, toda a farsa de promessas e lágrimas que nos havíamos acostumado a representar com minha avó. Que ele não tolerava a menor falta de respeito e não aceitaria nenhuma veleidade de um aceso de raiva: para mim tudo ficou muito claro, a casa de Ogoja se resumia ao térreo e não havia nenhum móvel para jogar por janela alguma.
Era o mesmo homem que exigia que a oração fosse feita todas as noites, à hora de deitar-se, e que se dedicasse o domingo à leitura do livro de missa. A religião que graças a ele descobríamos não permitia acomodações. Era uma regra de vida, um código de conduta. Suponho que foi chegando a Ogoja que descobrimos que Papai Noel não existia, que as cerimónias e festas religiosas estavam reduzidas às orações e que não havia necessidade alguma de dar presentes que, no contexto no qual nos encontrávamos, só poderiam ser supérfluos.
Tudo teria transcorrido de outro modo, por certo, se não tivesse havido a ruptura da guerra, se meu pai, em vez de ser posto em confronto com filhos que se tornaram para ele
uns estranhos, tivesse aprendido a viver com um bebé na mesma casa, seguindo o lento percurso que leva da primeira infância até a idade da razão. Aquela terra africana onde ele conheceu a felicidade de partilhar com uma mulher a aventura de sua vida, em Banso, em Bamenda, aquela mesma terra havia roubado sua vida de família e o amor dos seus.
Hoje posso lamentar-me de ter faltado a esse encontro. Tento imaginar o que podia ser, para um garoto de oito anos crescido no confinamento da guerra, ir ao outro extremo do mundo encontrar um desconhecido que lhe é apresentado como seu pai. E que isso acontecesse lá em Ogoja, numa natureza onde tudo é excessivo, o sol, a chuva, os temporais, a vegetação, os insetos, numa terra simultaneamente de liberdade e opressão. Onde os homens e as mulheres eram diferentes de todo, não por causa da cor de sua pele e de seus cabelos, mas por seu modo de falar, de andar, de rir, de comer. Onde a doença e a velhice eram visíveis, onde a alegria e as brincadeiras da infância evidenciavam-se ainda mais. Onde o tempo da meninice termina muito cedo, quase sem transição, onde os garotos trabalham com seus pais e as mocinhas se casam e já carregam seus filhos aos treze anos.
Teria sido preciso crescer ouvindo um pai contar sua vida, cantar canções, ir junto com os meninos para caçar calangos ou pescar caranguejos no rio Aiya, teria sido preciso dar-lhe a mão para que ele mostrasse as borboletas raras, as flores venenosas, os segredos da natureza que ele devia conhecer tão bem, ouvi-lo falar de sua infância em Maurício, andar a seu lado quando ia visitar seus amigos, seus colegas de hospital, vê-lo consertando o carro ou trocando uma portinhola de janela quebrada, ajudá-lo a plantar os arbustos e as flores de que gostava, as buganvíleas, as estrelítzias, as aves-do-paraíso, tudo que lhe devia lembrar o maravilhoso jardim de sua casa natal em Moka. Mas de que adianta sonhar? Nada disso era possível.
Em vez disso, travávamos contra meu pai uma guerra sorrateira, desgastante, inspirada pelo medo dos castigos e 
 
 
 
 
surras. O período de sua volta da África foi o mais difícil de todos. Às dificuldades de adaptação somava-se a hostilidade que ele devia sentir em seu próprio lar. Seus rompantes de cólera eram desproporcionados, excessivos, extenuantes. Às bengaladas, aos tapas, por um nada ele nos batia, por uma olhada, uma palavra imprópria,
uma vasilha quebrada. Lembro-me de ter sentido alguma coisa parecida com a raiva. Tudo que eu podia fazer era quebrar suas varas, mas ele ia cortar outras nos morros. Havia, nesse modo de agir, certo arcaísmo, algo que não se assemelhava ao que era conhecido por meus colegas. Devo porém ter ficado calejado, tal como diz o provérbio árabe: sendo fraco de início, quem apanha a seguir se torna forte.
Hoje, com o recuo do tempo, compreendo que meu pai nos transmitia a parte mais difícil da educação — a que nenhuma escola dá. A África não o havia transformado. Havia revelado nele o rigor. Mais tarde, quando meu pai, já aposentado, veio viver no sul da França, trouxe consigo essa herança africana. A autoridade e a disciplina, até os limites da brutalidade.
Mas também a exatidão e o respeito, como uma regra das sociedades antigas de Camarões e da Nigéria, onde as crianças não deviam chorar nem reclamar. O sentido de uma religião sem floreios, sem superstições, que ele havia encontrado, imagino eu, no islamismo. E assim que entendo agora o que então me parecia absurdo, sua obsessão com a higiene, aquele modo de lavar as mãos que ele tinha. A repugnância que manifestava pela carne de porco, da qual com a ponta de sua faca extraía, para nos convencer, ovos de tênia enquistados. Seu jeito de comer, sua insistência em querer o arroz cozinhado pelo método africano, com água quente acrescentada aos pouquinhos. Sua opção pelos legumes cozidos, que temperava com molho de pimenta. Sua predileção por frutas secas, por tâmaras, figos e até pelas bananas que ele mesmo punha para cozer ao sol, na beirada da janela. O cuidado com que ia, todas as manhãs, fazer suas compras no mercado bem cedo, junto com os trabalhadores do Magreb que ele encontrava igualmente no comissariado de polícia, a cada vez que pedia para renovar seu visto de permanência.
Tudo isso pode parecer anedótico. Mas com esses modos africanos que tinham se tornado sua segunda natureza vinha decerto uma lição, à qual a criança, e depois o adolescente, não podia ser insensível.
Vinte e dois anos de África haviam-lhe inspirado um profundo ódio ao colonialismo, sob todas as suas formas. Em 19^4, fizemos uma viagem de turismo ao Marrocos (onde um dos "tios" era administrador de uma propriedade agrícola). Bem mais que das imagens habituais do folclore, lembro-me de um incidente que me marcou. Pegamos um ônibus comum para ir de Casablanca a Marrakech. Em dado momento, o motorista (um francês) se enraiveceu, insultou e largou na beira da estrada um velho camponês que, por certo, não tinha corno pagar a passagem. Meu pai ficou indignado. Seu comentário se estendia a toda a ocupação francesa do país, que impedia os autóctones de exercer qualquer trabalho, mesmo que fosse o de motorista de ônibus, e maltratava os pobres. Na mesma época, ele acompanhava pelo rádio, dia após dia, os combates dos quicuios pela independência do Quénia e a luta dos zulus contra a segregação racial na África do Sul.
Não eram ideias abstraías nem escolhas políticas. Era a voz da África que falava nele, que despertava seus antigos sentimentos. Ele havia pensado no futuro, sem dúvida, quando viajava com minha mãe a cavalo pelas trilhas de Camarões. Isso ainda antes da guerra, antes da solidão e da amargura, quando o país era novo, jovem, e tudo podia vir à tona. Longe da sociedade corrompida e gananciosa da costa, ele havia sonhado com o renascimento da África, libertada de seus grilhões coloniais e da fatalidade das pandemias. Uma espécie de estado de graça, à imagem das vastidões herbosas, por onde avançam os rebanhos guiados por seus guardadores, ou das aldeias dos arredores de Banso, na perfeição imemorial de suas paredes de taipa e seus telhados de folhas.
A chegada da independência, em Camarões e na Nigéria, e a seguir, pouco a pouco, por toda a extensão do continente, há de tê-lo apaixonado. Cada insurreição, para ele, devia ser uma fonte de esperança. E a guerra que acabava de estourar na Argélia, guerra para a qual seus próprios filhos corriam o risco de ser convocados, não podia senão ser para ele o cúmulo do horror. Meu pai nunca perdoou de Gaulle por seu jogo ambíguo.
Ele morreu no ano de aparecimento da AIDS. Já havia percebido o esquecimento tático no qual as grandes potências coloniais deixavam o continente que tinham explorado. Os tiranos entronizados com a ajuda da França e da Inglaterra, Bokassa, Idi Amin Dada, aos quais os governantes ocidentais forneceram subsídios e armas durante anos, antes de renegá-los. As portas abertas à emigração, às legiões de jovens que partiam de Gana, do Benin ou da Nigéria, na década de 1960, para servir de mão-de-obra e povoar os guetos das periferias, e depois essas mesmas portas se fechando de novo, quando a crise económica tornou as nações industrializadas excessivamente prudentes e xenófobas. E sobretudo o abandono da África a seus velhos demónios, a malária, a disenteria, a fome. No momento, a nova peste da AIDS, que ameaça de morte um terço da população total da África, enquanto as nações ocidentais, que detêm os remédios, como sempre fingem nada ver, nada saber.
Camarões parecia ter escapado a essas maldições. O planalto do oeste, ao se separar da Nigéria, havia feito uma boa escolha, que o punha ao abrigo da corrupção e das guerras tribais. Mas a modernidade que chegava não trazia os benefícios com os quais se contava. O que desaparecia, aos olhos de meu pai, era o encanto das aldeias, a vida lenta, despreo cupada, no ritmo dos trabalhos agrícolas. Substituíam-na a avidez do ganho, a venalidade, uma certa violência. Meu pai, mesmo longe de Banso, não podia ignorar isso. Devia sentir a passagem do tempo como uma onda que reflui, deixando apenas, na praia nua, os destroços da lembrança.
Em 1968, enquanto meu pai e minha mãe, em Nice, vêem crescer sob suas janelas as montanhas de lixo deixadas pela greve geral, e enquanto eu, no México, ouço o zunido estrepitoso dos helicópteros do exército que carregam os corpos dos estudantes assassinados em Tlatelolco, a Nigéria entra na fase terminal de um massacre terrível, um dos grandes genocídios do século, conhecido pelo nome de guerra de Biafra. Para assumir o
controle dos poços de petróleo na foz do rio Calabar, ibos e iorubás se exterminam, sob o olhar indiferente do mundo ocidental. Pior ainda, as grandes companhias petrolíferas, principalmente a anglo-holandesa Shell-British Petroleum, são parte interessada nessa guerra e agem sobre seus governos para que os poços e oleodutos sejam protegidos. Os Estados que elas representam se enfrentam por procuração, a França ao lado dos rebeldes biafrenses, a União Soviética, a Inglaterra e os Estados Unidos ao lado do governo federal majoritariamente iorubá. A guerra civil torna-se uma questão mundial, uma guerra entre civilizações. Fala-se de cristãos contra muçulmanos, ou de nacionalistas contra capitalistas. Os países desenvolvidos encontram um inesperado escoadouro para seus produtos: vendem, nos dois campos, armas leves e pesadas, minas antipessoais, tanques, aviões e até mesmo os mercenários, alemães, franceses, cha-dianos, que compõem a quarta brigada biafrense a serviço dos rebeldes de Ojukwu. Mas, no fim do verão de 1968, cercado, dizimado pelas tropas federais sob o comando do general Benjamin Adekunle, cuja crueldade lhe valeu o apelido de "Escorpião Negro", o exército biafrense capitula. Somente continua a resistir um punhado de combatentes, a maioria dos quais ainda crianças, que brandem facões e bastões esculpidos em forma de fuzil contra os Migs e os bombardeiros soviéticos. Com a queda de Aba (não muito longe do antigo santuário dos guerreirosmágicos de Aro Chuku), Biafra entra numa longa agonia. Com a cumplicidade da Inglaterra e dos Estados Unidos, o general Adekunle fecha o bloqueio ao território biafrense, impedindo toda ajuda e o fornecimento de víveres. Diante do avanço do exército federal, tomado de uma loucura vingativa, a população civil foge para o que resta do território biafrense, invade as savanas e a floresta, tenta sobreviver nas reservas. Homens, mulheres e crianças caem numa armadilha mortal. A partir de setembro, não há mais operações militares, mas milhões de pessoas sem contato com o resto do mundo, sem víveres, sem medicamentos. As organizações internacionais, quando finalmente conseguem penetrar na zona rebelde, descobrem a extensão do horror. Ao longo das estradas, à beira dos rios, na entrada das aldeias, centenas de milhares de crianças estão morrendo de desidratação e de fome. É um cemitério tão vasto quanto um país. Por toda parte, nas baixadas de capim semelhantes àquela aonde eu ia antigamente guerrear contra os cupins, crianças órfãs erram sem destino, com seus corpos transformados em esqueletos. Muito tempo depois ainda seria obsedante para mim o poema "Mãe num campo de refugiados", de Chinua Achebe, que começa com estas palavras:
Não, não há Virgem com o Menino que se possa igualar
Ao quadro da ternura de uma mãe
Para com este filho que em breve ela terá de esquecer.
Vi essas imagens terríveis em todos os jornais e revistas. Pela primeira vez, o país onde eu havia passado a parte mais memorável de minha infância era mostrado ao resto do mundo, mas apenas por estar à morte. Como meu pai, que também viu essas imagens,
terá podido aceitá-las? Não se pode senão, aos setenta e dois anos, olhar e calar-se. Sem dúvida, vertendo lágrimas.
No mesmo ano da destruição do país em que ele viveu, meu pai teve cassada sua nacionalidade britânica, por causa da independência da ilha Maurício. É a partir desse momento que deixa de sonhar com a partida. Havia ele formulado um plano de reencontro com a África, não em Camarões, mas em Durban, na África do Sul, para estar mais perto de seus irmãos e irmãs que permaneciam em sua terra natal, a ilha Maurício. Imaginara depois instalar-se nas Bahamas, comprar em Eleuthera algum palmo de terra e lá montar uma espécie de acampamento. Tinha sonhado diante dos mapas. Procurava um outro lugar, não os que ele conhecera e onde havia sofrido, mas um mundo novo, onde pudese recomeçar, como numa ilha. Após o massacre de Biafra ele porém já não sonha. Entra num obstinado mutismo que o acompanhará até a morte. Chega até a esquecer-se de que foi médico, de que levou essa vida aventurosa, heróica. Quando, em consequência de uma gripe muito forte, ele é brevemente hospitalizado para uma transfusão de sangue, consigo com dificuldade que o resultado dos exames lhe seja transmitido. "Por que quer vê-los", a enfermeira pergunta. "O senhor é médico?" E eu digo: "Eu, não. Mas ele, sim". Ela então vai levar-lhe a papelada: "Mas por que não disse que era médico?" Meu pai responde: "Porque a senhora não me perguntou". De certo modo, era menos por resignação, parece-me, do que pelo desejo de identificar-se a todos de que havia tratado e com os quais, no fim da vida, ele tratou de se tornar parecido.
É à África que quero incessantemente voltar, à minha memória de criança. À fonte de meus sentimentos e de minhas determinações. O mundo muda, é certo, e aquele que lá está, em pé no meio do alto capinzal da planície, no sopro quente do vento que traz os cheiros da savana, o rumor penetrante da floresta, sentindo nos lábios a umidade das nuvens e do céu, aquele lá está tão longe de mim que não há história ou viagem que me permita alcançá-lo.
Às vezes, no entanto, vou andando ao acaso pelas ruas de uma cidade e, bruscamente, ao passar por uma porta, na parte baixa de um imóvel em construção, aspiro aquele cheiro frio de cimento recém-moldado e eis que estou na choupana de passagem de Abakaliki, eis que entro no cubo sombrio de meu quarto e vejo atrás da porta o grande calango azul que nossa gata estrangulou e me trouxe como um sinal de boas-vindas. Ou então, quando menos espero, sou invadido pelo perfume de terra molhada do nosso quintal em Ogoja, quando a chuva de monção rola pelo telhado da casa para ir zebrar riachinhos cor-de-sangue no solo todo fendido. Chego até a escutar, por cima da vibração dos carros engarrafados numa avenida, a música contundente e doce do rio Aiya.
Ouço as vozes das crianças que gritam, que me chamam, que estão diante da cerca-viva, na entrada do quintal, e trouxeram suas pedrinhas e suas vértebras de carneiro para brincar, para levar-me com elas à caça às cobras. Depois do almoço, finda a aula de aritmética com minha mãe, vou me instalar na varanda cimentada, diante do forno do céu branco, para fazer
deuses de barro e pô-los para secar ao sol. Lembro-me de cada um deles, de seus nomes, de seus braços erguidos, de suas máscaras. Alasi, o deus do trovão, Ngu, Eke-Ifite, a deusa-mãe, Agwu, o malicioso. Mas eles são mais numerosos ainda, todo dia eu invento um nome novo, eles são meus chis, meus espíritos que me protegem e vão interceder por mini junto a Deus.
Vou olhar a febre subindo no céu crepuscular, os relâmpagos em silenciosa corrida por entre o cinza das escamas das nuvens aureoladas de fogo. Quando a noite estiver negra, escutarei pouco a pouco os passos do trovão, a onda que faz minha rede balançar e apaga a chama do meu lampião. Escutarei a voz de minha mãe, que conta os segundos que nos separam do impacto do raio e calcula a distância à razão de trezentos e trinta e três metros por segundo. Enfim o vento da chuva, muito frio, que avança com toda a força pelo alto das árvores; ouço cada galho que geme e quebra, o ar do quarto fica cheio da poeira que a água levanta ao bater na terra.
Tudo isso tão distante, tão próximo. Uma simples divisória, fina como um espelho, separa o mundo de ontem do meu mundo de hoje. Não falo de nostalgia. Tal impressão de desamparo nunca me causou nenhum prazer. Falo de substância, de sensações, da parte mais lógica de minha vida.
Alguma coisa me foi dada, alguma coisa me foi tomada de novo. O que está definitivamente ausente de minha infância: ter tido um pai, ter crescido junto dele na doçura da intimidade familiar. Sei que isso me fez falta, sem pesar, sem ilusão extraordinária. Quando um homem, dia após dia, olha a luz modificar-se no rosto da mulher que ele ama, quando espia cada brilho furtivo no olhar de seu filho. Tudo isso que um re-trato, uma foto, sejam eles quais forem, nunca poderão captar.
Não quero falar de exotismo, esse vício ao qual as crianças são de todo alheias. Não porque vejam através dos seres e das coisas, mas justamente por verem tão-somente isso: uma árvore, um buraco na terra, uma coluna de formigas-carpinteiras, um bando de moleques levados em busca de uma brincadeira, um velhote de olhos baços que estica a mão descarnada, uma rua de uma aldeia africana, quando é dia de feira, eram todas as ruas de todas as aldeias, todos os velhos, todas as crianças, todas as árvores e todas as formigas. Esse tesouro está sempre vivo em meu íntimo, não pode ser extirpado. Muito mais que de simples lembranças, ele é feito de certezas.
Se eu não tivesse tido esse conhecimento carnal da África, se não houvesse recebido essa herança de minha vida antes de meu nascimento, em que teria me tornado?
Hoje, existo, viajo, criei por minha vez uma família, enraizei-me em outros lugares. Contudo, a cada instante, como uma substância etérea que circula entre as divisórias do real, sou traspassado pelo tempo de outrora, em Ogoja. E isso, em súbitos impulsos, me submerge e atordoa. Não somente essa memória de criança, extraordinariamente precisa
quanto a todas as sensações, os odores, os sabores, a impressão de relevo ou de vazio, o sentimento da duração.
É escrevendo que agora o compreendo. Essa memória não é somente a minha. E também a memória do tempo anterior ao meu nascimento, quando meu pai e minha mãe andavam juntos pelas estradas do planalto, nos reinos do oeste de Camarões. A memória das esperanças e angústias de meu pai, de sua solidão, seu abatimento em Ogoja. A memória dos momentos de felicidade, quando eles dois estavam unidos pelo amor que acreditavam ser eterno. Iam então pela liberdade dos caminhos, e os nomes dos lugares adentraram em mim como sobrenomes, Bali, Nkom, Bamenda, Banso, Nkong-samba, Revi, Kwaja. E os nomes das terras, Mbembé, Kaka, Nsungli, Bum, Fungom. As chapadas por onde avança lentamente o rebanho de animais com chifres de lua para enganchar nas nuvens, entre Lassim e Ngonzin.
Afinal de contas, talvez meu velho sonho não me tenha enganado. Se meu pai se tornou o Africano, por força de seu destino; quanto a mim, posso pensar em minha mãe africana, aquela que me beijou e nutriu no instante no qual fui concebido, no instante em que eu nasci.

 

 

                                                                  J. M. G. Lê Clézio

 

 

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