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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AGENTE BRITÂNICO / Somerset Maugham
O AGENTE BRITÂNICO / Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Este não é um romance comum de espionagem, e sim o retrato intenso e real de personagens simples, às voltas com situações fora da rotina. Quase no fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Somerset Maugham recebeu a incumbência de ir a Moscou, numa missão repleta de lances perigosos. Ele deveria fazer contatos que ajudassem a impedir a Revolução Russa de 1917, prejudicial aos interesses do Ocidente no conflito. A vivência pessoal serve de base para a trama, mas o autor converte a realidade em ficção, usando o toque transformador de quem conhecia a fundo a alma humana.
Retrato intenso e fiel de personagens simples diante de situações incomuns, este livro tem como pano de fundo as manobras de bastidores do Serviço Secreto Britânico. Ashenden, um importante escritor inglês, é convidado a atuar como espião, sendo prevenido de que não poderá contar com ninguém em caso de dificuldade. Ele participa de intrigas tramadas em hotéis e restaurantes, mas a verdadeira identidade de seus interlocutores - de misteriosos oficiais militares a patéticos diplomatas - permanece oculta, debaixo das aparências de uma vida normal.
Nesta obra, lançada em 1928, o autor relata sua própria experiência como agente de informações durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Quase no fim do conflito, Somerset Maugham recebeu a incumbência de ir a Moscou, via Itália e Suíça, e fazer contatos que ajudassem a impedir a Revolução Bolchevista de 1917 - evento que tiraria a Rússia da guerra, desfalcando as forças européias. Portanto, a vivência direta do escritor serve de base para a trama. Mas Maugham, como sempre, converte a realidade em ficção, usando o toque transformador de quem conhecia a fundo a alma humana.

 

 

 


 

 

 


Este livro baseia-se em minhas experiências no Departamento do Serviço Secreto durante a guerra, mas foi modificado com o propósito de ficção. O fato em si constitui tema muito pobre como enredo. Geralmente começa por acaso, muito antes do início da história, arrasta-se inconseqüentemente e some-se, deixando traços indecisos sem nenhuma conclusão. Arma uma situação interessante e a deixa no ar para seguir uma direção diferente que nada tem a ver com a história; não se prende a nenhuma idéia de clímax, e desperdiça inconseqüentemente seus efeitos dramáticos. Existe uma escola de novelistas que considera isso como o modelo perfeito de ficção. Se a vida é arbitrária e irregular, a ficção deve sê-lo também, pois ela imita a vida. Na vida as coisas acontecem a esmo, e assim devem acontecer numa história; elas não conduzem a um climax - o que é um ultraje à probabilidade -, mas sucedem-se a esmo. Nada ofende mais a essa gente do que as armadilhas ou as situações inesperadas com que alguns autores procuram surpreender seus leitores; e quando as circunstâncias que relatam parecem levá-los a um efeito dramático, eles fazem o possível para evitá-lo. Não apresentam uma história, mas o material com que o leitor possa construir a sua, a seu modo. Muitas vezes a história consiste num incidente, suponhamos, apresentado por acaso, e o leitor está convidado a adivinhar sua significação. Outras vezes apresentam uma personagem e a deixam como tal. Dão os ingredientes de um prato e esperam que o leitor o prepare por si mesmo. Ora, isso é um processo como outro qualquer de escrever um conto ou uma história, e muito boas histórias têm sido escritas dessa forma. Tchekov usou essa técnica com mestria. Mas ela é preferível para as histórias curtas. A descrição de um estado de espírito, de uma situação ou de uma atmosfera pode prender a atenção por umas doze páginas, mas, quando chega a umas cinqüenta, a história precisa de umas estacas para não ruir.

Ora, o enredo tem certas características que não se podem desprezar. Tem um princípio, um meio e um fim; é completo em si mesmo. Começa com uma série de circunstâncias que têm conseqüências, cujas causas podem ser ignoradas; e essas conseqüências, por sua vez a causa de outras circunstâncias, prosseguem até um ponto em que o leitor se sinta satisfeito por não serem elas mais a causa de posteriores conseqüências dignas de consideração. Isso quer dizer que a história deve começar em certo ponto e terminar em certo ponto. Não pode vaguear desordenadamente, mas precisa seguir, desde a exposição até o clímax, uma curva definida e vigorosa. Se se quiser representar esse mOvimento por diagrama, ter-se-á um semicírculo. É muito bom que se tenha o elemento surpresa, esse traço de situações inesperadas e inéditas que os imitadores de Tchekov tanto desprezam, mas é condenável que não se saiba usá-lo; quando ele é parte integrante da história e sua seqüência lógica, é excelente. Não há nada de mau no clímax: trata-se de uma exigência natural do leitor; só é mau quando não é uma decorrência lógica das circunstâncias anteriores. É apenas uma afetação enganosa, porque na vida, via de regra, as coisas se sucedem diferentemente.

É absolutamente desnecessário considerar como axiomática a afirmativa de que a ficção deve imitar a vida. Isso é uma mera teoria literária como outra qualquer. Existe, de fato, uma segunda teoria, igualmente aceitável, e que consiste em afirmar que a ficção deve servir-se da vida simplesmente como matéria-prima que ela arruma de maneira engenhosa. Tem-se um exemplo análogo no caso da pintura. Os paisagistas do século XVII não se interessavam pela representação direta da natureza, a qual não era para eles mais do que oportunidade para uma decoração formal. Construíam uma cena como um arquiteto, estabelecendo, por exemplo, o equilíbrio entre o volume de uma árvore e os flocos de uma nuvem, e usavam luz e sombra para fazer um modelo definido. Sua intenção não era copiar uma paisagem mas criar uma obra de arte. Tratava-se de uma composição deliberada. No arranjo das coisas da natureza, ficavam satisfeitos se não feriam o senso de realidade do espectador. Cabia aos impressionistas pintar o que viam. Tentavam apanhar a beleza natural em seus aspectos mais sutis; contentavam-se com a representação das radiações crepusculares, com o colorido das sombras ou com a transparência do ar. Almejavam alcançar a verdade. Para eles o pintor não devia ser mais do que o olho e a mão. Desprezavam a inteligência. É estranho ver como suas pinturas parecem vazias e sem expressão agora comparadas com os magníficos quadros de Cláudio. O método de Cláudio é o método do mestre do conto: Guy de Maupassant; é ótimo, e creio eu que há de sobreviver ao outro.

Já é um pouco difícil ter interesse atualmente pelo que era a classe média na Rússia há cinqüenta anos, e a trama dos contos de Tchekov já não constitui uma regra suficientemente importante (tanto quanto a história de Paolo e Francesca ou de Macbeth) para desviar a atenção do interesse que se tem no povo. O método ao qual me refiro é aquele que escolhe da vida os aspectos curiosos, significativos e dramáticos; que não procura copiar a vida, mas que se mantém fiel a ela a ponto de não parecer incrível ao leitor; que aproveita isso e despreza aquilo; que lança mão de certos fatos para uma decoração formal conveniente e para a representação de um quadro - a finalidade do artifício -, o que, uma vez que representa o temperamento do autor, é até certo ponto o retrato de si mesmo, mas que se destina a excitar, interessar e absorver o leitor. Se isso constitui um sucesso, o autor o aceita como o método mais correto.

Escrevi tudo isso para fazer ver ao leitor que esse livro é de ficção, apesar de eu possivelmente não dizer muito mais do que vários outros livros, publicados sobre o mesmo assunto nos últimos anos e que se propõem ser memórias legítimas.

O trabalho de um agente do serviço secreto é, de modo geral, extremamente monótono. Grande parte dele é absolutamente inútil. O material que oferece para histórias é fragmentário e sem interesse agudo; o autor tem de torná-lo coerente, dramático e provável.

Em 1917 fui à Rússia, enviado para impedir a Revolução Bolchevista e manter a Rússia na guerra. O leitor verá que meus esforços não tiveram sucesso. De Vladivostok fui até Petrogrado. Um dia, em viagem pela Sibéria, o trem parou numa estação e, como é comum, os passageiros saltavam, alguns para arranjar água para o chá, outros para comprar alguma coisa ou exercitar as pernas. Um soldado cego estava sentado num banco, rodeado de alguns companheiros. Eram uns vinte ou trinta, em seus uniformes rasgados e sujos. O soldado cego era jovem e forte; uma barba espessa corria-lhe pelo rosto que nunca vira navalha. Creio que ele não tinha mais de dezoito anos. Seu rosto cheio, e as feições de traços fortes; na testa, a cicatriz que lhe causara a perda da vista. Seus olhos cerrados davam a sua fisionomia uma impressão de devaneio. Começou a cantar numa voz forte mas doce, acompanhando-se ao acordeão. A parada

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do trem foi longa e durante todo o tempo ele continuou cantando. Eu não podia entender o que dizia, mas por sua voz, selvagem e melancólica, parecia-me ouvir o grito dos oprimidos. Por ela eu sentia a solidão das estepes e das florestas intermináveis, a torrente caudalosa dos rios da Rússia, e todo o trabalho dos campos, o preparo da terra e a colheita do trigo, o zunido do vento nos galhos das árvores, nos longos meses do triste inverno; e depois as danças das mulheres nas aldeias e o banho dos moços nos ribeiros calmos nas tardes de verão. Senti o horror da guerra, as noites amargas nas trincheiras, as longas marchas pelos caminhos pantanosos, o campo de batalha com todas as suas misérias de terror, agonia e morte. Era horrível e profundamente comovedor. Os passageiros deixavam cair suas moedas no quepe aos pés do cantor. A mesma emoção os havia dominado, a mesma infinita compaixão e horror: havia alguma coisa de aterrador nessa face marcada do cego. Sentia-se que era um ser à parte, roubado às alegrias deste mundo maravilhoso. Nem parecia uma criatura humana. Os soldados mantinham-se calados e hostis. Sua atitude parecia reclamar como um direito as esmolas que o cego recebia. Havia uma cólera desdenhosa estampada em suas faces, e em nossos corações uma piedade infinita; mas nenhum vislumbre de um sentimento que havia em nosso íntimo, senão apenas o meio de compensar em sua dor aquela criatura desolada.


R


Foi somente nos primeiros dias de setembro que Ashenden, escritor inglês, surpreendido no estrangeiro pela declaração de guerra, conseguiu voltar à Inglaterra. Pouco depois de sua chegada, casualmente, numa reunião mundana, foi apresentado a um coronel de meia-idade, cujo nome não guardou. Quando se dispunha a partir, aquele oficial chegou-se a ele e disse:

- Quer dar-me o prazer de sua visita? Muito gostaria de conversar um pouco com o senhor.

- Certamente, meu coronel. Quando o senhor quiser ... - Então pode ser amanhã, às onze horas? - Perfeitamente. - Vou dar-lhe meu endereço. Tem o senhor aí um cartão?

Ashenden deu-lhe um seu, sobre o qual o coronel rabiscou a lápis o nome de uma rua e o número de uma casa. Quando Ashenden na manhã seguinte saiu em busca do endereço que tinha em seus apontamentos, achou-se numa rua de casas vulgares, de tijolo vermelho, num bairro de Londres que outrora fora elegante, mas que hoje se achava decaído de seu antigo esplendor. A casa indicada pelo coronel estava à venda, e com suas janelas fechadas, parecia

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desabitada. Ashenden tocou a campainha, e a porta foi aberta por um oficial inferior tão bruscamente que ele se sobressaltou. Sem uma palavra, introduziu-o num cômodo espaçoso, provavelmente uma antiga sala de jantar, cuja decoração pomposa não condizia com o mobiliário de escritório. O aspecto de conjunto deu a Ashenden a impressão de uma casa despojada por um adelo.

O coronel, que era conhecido no Inteligente Service, como descobriu Ashenden, apenas pela letra R., dirigiu-se a ele e apertou-lhe a mão.

Era um homem de estatura um pouco acima da mediana, magro, de rosto pálido e anguloso, cabelos grisalhos e bigodes à escovinha. O que impressionava à primeira vista em sua fisionomia eram os olhos azuis muito juntos. Mais um pouco e pareceria vesgo. Olhos duros, cruéis e cautelosos. Não obstante seus modos simples e afáveis, o coronel não inspirava simpatia.

Depois de uma série de perguntas, à queima-roupa, declarou a Ashenden que o julgava muito habilitado para entrar no serviço de contra-espionagem devido a seu conhecimento de várias línguas européias e a sua profissão de escritor, que constituía um excelente disfarce. Sob o pretexto de escrever um romance, podia, sem chamar a atenção, permanecer nos países neutros. O coronel acrescentou:

- Talvez o senhor colha, além disso, material muito interessante para seus trabalhos pessoais.

- Não desejo outra coisa. - Veja, por exemplo, aqui está uma aventura que não é muito antiga e cuja autenticidade posso garantir. Creio que se prestaria admiravelmente para uma novela. Um ministro francês, indo a Nice para convalescer de uma gripe, levava em sua maleta documentos da mais alta importância. Um ou dois dias após sua chegada, vê num dancing uma mulher de cabelos dourados, pela qual verifica sentir vivo interesse. Resumindo: leva-a a sua casa. Na

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manhã seguinte, quando acorda, nem dama nem maleta. Os dois tinham bebido vários uísques no quarto, e, sem dúvida, num momento em que ele lhe deu as costas, a mulher pusera qualquer droga em seu copo.

R. interrompeu-se e olhou Ashenden com um clarão nos olhos quase juntos.

- Dramático, não acha? - E o senhor diz que isso acaba de acontecer? - Não faz ainda quinze dias. - Inaudito! - exclamou Ashenden. - Como?! Há mais de sessenta anos que exploramos esse filão na cena e no romance! E a vida apenas agora nos alcança!

R. mostrou-se um pouco desconcertado. - Se quiser posso dar-lhe , os nome e as datas e, creia-me, o desaparecimento desses documentos tem causado sérios transtornos aos aliados.

- Com franqueza, sir - disse Ashenden -, se no serviço secreto os senhores não possuírem coisa melhor para oferecer aos literatos, não terão meios para atraí-los. Não podemos viver eternamente dentro da mesma história.

Não tardaram muito em se porem de acordo, e, quando Ashenden levantou-se, já recebera suas instruções. Deveria partir no dia seguinte para Genebra.

R. acrescentou, e essas últimas palavras foram ditas num tom desprendido, que lhes dava mais peso:

- Há sobretudo uma coisa que faço questão de lhe dizer, antes que aceite a incumbência. E não a esqueça! Se triunfar, não espere felicitações e, se lhe acontecerem coisas desagradáveis, fique certo de que ninguém irá ajudá-lo a sair dos apuros. Convém-lhe assim?

- Perfeitamente. - Então, boa sorte.

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UMA VISITA DOMICILIAR


Ashenden vogava para Genebra. A noite estava sombria e uma brisa gelada baixava das montanhas. O pequeno vapor rasgava vigorosamente as águas encapeladas do lago. Sem interrupção, uma chuva fina mesclada de névoa varria o tombadilho às rajadas. Ashenden fora à França para redigir e expedir um relatório. Na véspera, mais ou menos às cinco horas da tarde, um de seus agentes indianos viera falar-lhe. A visita o surpreendeu, porque os agentes não deviam aparecer no hotel senão em caso de extrema urgência. Esse homem viera preveni-lo de que um bengali, a serviço da Alemanha, chegara de Berlim com uma mala de vime negro, repleta de documentos referentes ao governo britânico. Nessa época os impérios centrais procuravam promover perturbações na India a fim de obrigar a Grã-Bretanha a manter lá tropas e mesmo a reforçar seus efetivos. Conseguira-se fazer prender o bengali em Berna, de modo que ficaria impossibilitado durante algum tempo de ser nocivo, mas a mala permanecia desaparecida. O agente de Ashenden, rapagão perspicaz e corajoso, não hesitava em manter relações com seus compatriotas mais hostis à causa da Inglaterra. O bengali, segundo lhe disseram, antes de chegar a Berna, teria, para maior segurança, deixado sua mala depositada

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em Zurique. Mas, na prisão, agora aguardando seu processo, não conseguira fazer chegar às mãos de seus cúmplices o recibo necessário para retirá-la. O serviço de espionagem alemão tinha o maior interesse em colocar o mais rápido possível esses documentos em lugar seguro. Porém, como seus agentes não possuíssem mais esperanças de reaver a mala pelas vias regulares, haviam decidido roubá-la, nessa mesma noite, na estação. Pelo cinismo e temeridade desse projeto, Ashenden reconheceu perfeitamente os processos audaciosos da contra-espionagem alemã, jamais tolhida por escrúpulos. O arrombamento devia realizar-se às duas horas, na madrugada seguinte; não havia um só minuto a perder. Era impossível comunicar-se por telefone ou telégrafo com o agente inglês de Berna. Quanto ao indiano, já expusera sua vida ao aproximar-se de Ashenden. Se fosse reconhecido, arriscava-se muito a flutuar, um dia, entre duas águas, no meio do lago com uma facada entre as omoplatas. Ashenden não podia contar senão consigo mesmo.

Um trem partia para Berna. Ashenden pegou a capa e o chapéu, desceu a escada de dois em dois degraus e saltou num táxi. Quatro horas depois tocava a campainha do quartel-general do serviço secreto. Somente um dos adidos conhecia seu nome. Foi por este que chamou. Um desconhecido de elevada estatura, de fisionomia desfeita pela fadiga, veio buscá-lo, e, sem dizer palavra, introduziu-o num gabinete. Ashenden disse-lhe a que viera. O adido consultou o relógio.

- É demasiado tarde para agirmos. Não chegaríamos a Zurique a tempo.

Refletiu. - Vamos colocar as autoridades suíças a par do que se passa. Elas podem telefonar, e quando os outros tentarem o golpe, encontrarão a estação bem-guardada. Nada mais lhe resta fazer a não ser voltar para Genebra.

Apertou a mão de Ashenden e acompanhou-o até a saída. Ashenden já sabia: ignoraria sempre o fim da história.

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Modesta engrenagem de uma máquina muito complicada, nunca assistia a uma ação completa. Participava ora no começo, ora no fim de um drama; por vezes via-se metido em alguma peripécia, mas geralmente não ficava sabendo do resultado de sua intervenção. Assim são certos romances modernos, compostos de episódios descosidos, os quais deixam ao leitor o trabalho de fazer a articulação.

Ashenden estava gelado até os ossos. Mas, para não chamar a atenção, resignou-se, apesar da atração do salão bem-aquecido, a ficar na escuridão do tombadilho. Nenhuma luz brilhava na direção de Genebra, e a neve que começava a cair impedia a visão dos sinais. O Leman, tão risonho sob o sol e tão espelhante como um lago de jardim francês, agitava-se agora sob a tempestade ameaçador e misterioso como o mar. Ashenden tratou de reanimar-se pensando no fogo que, dentro em pouco, arderia em seu quarto de hotel, no calor de seu banho e no belo serão que iria passar, metido no seu pijama, no canto da estufa, de cachimbo na boca e com um livro nas mãos. Dois marinheiros passaram roçando-o. Arrastavam os pés e baixavam a cabeça sob a saraiva que lhes fustigava o rosto. Um deles gritou-lhe: "Nous arrivons".

Levantaram um gradil da pavesada para permitir o desembarque. Através da bruma opaca, Ashenden distinguiu as luzes do cais. Dois ou três minutos mais tarde, entre os gemidos do vento, o barco atracava. Ashenden reuniu-se ao pequeno grupo de passageiros, embuçados até as orelhas e que esperavam para baixar à terra. Não obstante suas inúmeras travessias - ele atravessava o lago uma vez por semana para remeter seu relatório e receber instruções -, nunca desembarcava sem apreensão. Nada em seu passaporte indicava que ele tivesse estado na França. O barco em seu circuito tocava, em dois lugares, o solo francês; mas como partia da Suíça e a ela voltava, podia reconduzir um passageiro depois de um simples passeio em Vevey ou

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em Lausanne. Contudo, no dia em que a polícia secreta pusesse reparo em Ashenden e o fizesse seguir, a falta do visto o deixaria em má situação. Suas explicações não pareceriam, sem dúvida, muito plausíveis. E se por falta de provas as autoridades suíças se limitassem a tratá-lo como um turista qualquer, mesmo assim corria o risco de dois ou três dias de prisão e a humilhação de ser levado à fronteira. Os suíços não ignoravam que em seu país armavam-se mil intrigas; agentes de serviços secretos e agitadores infiltravam-se nos hotéis das principais cidades; a preocupação de manter a neutralidade impunha às autoridades federais a obrigação de uma vigilância severíssima. Era indispensável, com efeito, conservar a simpatia de todos os Estados beligerantes.

Como sempre, dois agentes fiscalizavam a saída, e Ashenden passou diante deles com seu ar mais despreocupado. Desapareceu na escuridão e apressou-se rumo ao hotel que dava para o cais. O mau tempo destruía todo o encanto do elegante passeio. As lojas estavam fechadas. Um único pedestre cruzou com Ashenden. Este ia encurvado, como se fugisse da cólera cega do desconhecido. Agora era o granizo que caía sobre as calçadas escorregadias. Ashenden não se adiantou mais senão com precaução. Vendo-o, o porteiro abriu a porta, e um turbilhão fez voarem os papéis que cobriam a mesa da portaria. A luz ofuscou Ashenden. Deteve-se para pedir sua correspondência. Não havia nenhuma. Como se aproximasse do elevador, o porteiro avisou-o de que dois senhores o esperavam em seu quarto. Ashenden não conhecia ninguém em Genebra.

- Ah! - fez ele, muito surpreendido. - Quem são? Generosas gorjetas conservavam-lhe as simpatias do pessoal. O porteiro sorriu discretamente.

- Afinal, posso dizer-lhe. Esses senhores pertencem, creio eu, à polícia.

- Que diabo querem eles comigo?

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- Não sei absolutamente nada. Perguntaram-me pelo senhor e, quando lhes respondi que o senhor estava passeando, declararam que esperariam sua volta.

- Desde quando eles estão ali? - Faz uma hora. O coração de Ashenden pulsou mais rápido, mas ele dissimulou sua apreensão.

- Está bem, vou ver.

O ascensorista recuou para deixá-lo entrar, mas Ashenden meneou a cabeça.

- Estou com frio - disse -, prefiro subir a pé. Tomava, assim, tempo para refletir; mas, subindo os três andares, sentia as pernas pesadas como chumbo. O motivo dessa visita era por demais claro. Subitamente sentiu grande lassidão. Teria bastante calma para responder a todas as perguntas? Se o prendessem por motivo de espionagem, começaria por passar a noite numa cela. Ah! Seu banho quente e sua linda ceia ao pé do fogo! Um momento pensou em dar meia-volta e abandonar tudo; tinha seu passaporte no bolso e conhecia de cor o horário dos trens para a França. Antes que as autoridades pudessem tomar providências, estaria em lugar seguro. Não obstante, continuou a subir. A idéia de abandonar seu posto ao primeiro alarme repugnava-lhe; fora mandado a Genebra para desempenhar uma missão e seu dever era ficar. Dois anos de prisão não seriam, evidentemente, um prazer, mas esse perigo representava, como os atentados para os reis, os riscos do ofício. Chegou ao patamar do terceiro andar e dirigiu-se para o quarto. Sem dúvida conservava ainda o sense of humour, porque, no momento de entrar, sua situação afigurou-se-lhe, subitamente, cômica. Tendo recuperado o desembaraço, resolveu mostrar-se audaz, e foi com o sorriso nos lábios que torceu a maçaneta da porta e afrontou seus visitantes.

- Boa noite, senhores! - disse ele.

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Todas as lâmpadas estavam acesas e um grande fogo ardia na chaminé. Uma fumaça espessa tornava a atmosfera pesada. Durante sua longa espera, os estranhos não fizeram cerimônia, fumando vários charutos ordinários. Sem as cinzas acumuladas no pequeno cinzeiro sobre a mesa, poderse-ia crer, ao vê-los sentados com as capas de borracha e os chapéus na cabeça, que acabavam de chegar. Eram dois tipos fortes, de corpo maciço e de bigodes pretos, que lembravam Fasolt e Fafner, os gigantes do Ouro do Reno. Sapatos grosseiros, um certo modo de se acomodar nas poltronas, um ar ao mesmo tempo ingênuo e inquiridor, tudo isso estava de acordo com as tradições dos agentes da Força Pública. Ashenden, num relance, percebeu que já tinham realizado uma busca. Não se comoveu com isso, porque não guardava em casa nenhum documento comprometedor. Seu código, sabia-o de cor e rasgara-o antes de deixar Londres; quanto aos comunicados que recebia da Alemanha, eram-lhe transmitidos por terceiros e enviados imediatamente a seu destino. Mas suas suspeitas confirmavam-se, tinham-no denunciado.

- Em que posso servi-los, senhores? - perguntou com solicitude. - Está quente aqui. Não querem tirar as capas... e os chapéus?

Aquelas personagens instaladas em seu quarto, de chapéu na cabeça, feriam-no.

- Não demoraremos mais do que um minuto - respondeu um deles. - Passávamos por aqui e, como o porteiro nos disse que o senhor não tardaria, resolvemos esperá-lo.

Não tirou o chapéu. Ashenden desenrolou seu cachecol

do pescoço e tirou o grosso sobretudo.

- Um, charuto? - propôs, oferecendo a caixa aos policiais.

- É coisa que não se recusa - declarou Fafner, escolhendo um.

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Por sua vez, Fasolt serviu-se, sem enunciar a menor fórmula de agradecimento.

A marca dos charutos impressionou-os, ambos tiraram o chapéu.

- Que idéia curiosa esta de passear com um tempo desses?! - começou Fafner, cortando com os dentes a ponta do charuto e cuspindo-a no fogo.

Ashenden tinha por princípio (na rotina habitual da vida, como no Inteligence Department) dizer sempre, tanto quanto possível, a verdade. Por isso, respondeu:

- Por quem me tomam os senhores? Em condição alguma me meteria numa chuva dessas por prazer. Mas, hoje, tive de ir a Vevey visitar um amigo doente. Voltei pelo barco e posso garantir-lhes que o lago estava picante.

- Somos da polícia - anunciou Fafner, em tom desprendido.

Era preciso que julgasse Ashenden um grande idiota para acreditar que ele não o tivesse adivinhado; mas não era momento para gracejos.

- Ah! Realmente? - Tem seu passaporte aí consigo? - Naturalmente. Nos tempos que correm, um estrangeiro não pode separar-se dele.

- Efetivamente.

Ashenden apresentou seu belo passaporte novo. Salvo sua partida de Londres, que datava de três meses, nenhuma de suas viagens estava registrada. Depois de um exame atento, o policial passou-o ao colega.

- Parece-me estar em ordem - disse ele. De pé, diante da chaminé, um cigarro nos lábios, Ashenden permanecia calado. Esforçava-se, enquanto observava os policiais em conservar uma expressão de indiferença cortês. Fasolt devolveu o passaporte a Fafner, que, com ar pensativo, lhe dava batidinhas com o dedo indicador.

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- Nosso chefe encarregou-nos - explicou (e Ashenden compreendeu que o momento crítico chegara) - de vir tomar algumas informações com o senhor.

Quando alguém se sente incapaz de responder convenientemente, o melhor é não dizer nada. Ademais, para quem espera uma resposta, nada desconcerta tanto como o silêncio. Por isso, Asheden deixou o policial continuar. Este não parecia estar muito à vontade.

- Faz algum tempo que aparecem queixas contra o barulho que fazem alguns notívagos, na saída do Cassino. Desejaríamos saber se o senhor tem sido incomodado com isso. Como seu apartamento dá para o lago e esses gritadores passam por debaixo de suas janelas, ninguém mais habilitado que o senhor para nos informar se verdadeiramente há escândalo.

Durante um momento, Ashenden ficou atordoado. Que bobagem era aquela? (Bum! Bum! Ele ouvia o bombo que acentuava os passos pesados do gigante no palco.) Por que esse cuidado do chefe de polícia para proteger seu sono? Claro como água que se tratava de uma armadilha. Mas, para estar assim reduzido a fazer-lhe semelhante pergunta, era preciso que o detetive não tivesse nem sombra de prova contra ele. A denúncia dada não se apoiava em nenhum dado positivo e a perquirição nada revelara. Que lamentável motivo para explicar essa visita e que pobreza de invenção! Todos os pretextos que os policiais deveriam ter alegado vinham-lhe ao espírito e ele tinha pena de não poder assoprá-los aos dois. Tanta ingenuidade ultrapassava a imaginação. Ashenden tivera sempre um fraco pelos imbecis, e, daquele momento em diante, os dois homens inspiraram-lhe uma simpatia inesperada. Respondeu, entretanto, com a maior seriedade:

- Para falar-lhes a verdade, tenho um sono de chumbo, o que se chama o sono dos justos, e nunca ouvi nada.

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Arriscou um leve sorriso, mas a fisionomia dos dois não se desanuviou. Depois desse inútil gasto de espírito, Ashenden, que, embora agente do governo britânico, não deixava de ser um humorista, abafou um suspiro. Em seguida, assumindo um ar imponente, disse em tom mais grave:

- Ademais, mesmo que tivesse sido despertado por passantes, não me lembraria de apresentar queixa. Nesses tempos de miséria e de calamidades, não me perdoaria de perturbar os bons momentos dos pobres diabos que têm a sorte de se poderem divertir.

- En effect - aprovou o dètetive -, mas não é menos verdade que certas pessoas foram importunadas e nosso chefe achou que a coisa devia ser posta em pratos limpos.

Seu colega, até então mudo como uma carpa, decidiu entrar na discussão.

- Vejo pelo seu passaporte que é um escritor, monsieur - observou.

Ainda sob a ação da emoção, Ashenden sentiu-se capaz de uma paciência infinita. Replicou com bonomia:

- Exato. Profissão dura, mas que tem seu lado agradável.

- La gloire - disse polidamente Fafner. - Oh! A notoriedade, quando muito. - E que faz o senhor em Genebra? A pergunta veio tão naturalmente que Ashenden desconfiou e pôs-se em guarda. Um policial amável é mais de temer do que um agressivo.

- Estou escrevendo uma peça - disse Ashenden. E apontou para os papéis esparsos sobre a mesa. Quatro olhos seguiram-lhe o gesto. Compreendeu num relance que os policiais também tinham examinado seu manuscrito.

- Por que a escreve aqui e não em seu país?

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O sorriso de Ashenden expandiu-se. De há muito ele esperava essa pergunta e, por isso, sua resposta estava prontinha. Que efeito iria produzir?

- Mais, monsieur, estamos em guerra! Meu país está todo transtornado. Como seria possível alinhar duas frases seguidas?

- É uma comédia ou uma tragédia? - Oh! Uma comédia, e das mais leves - replicou Ashenden. - Para escrever é preciso tranqüilidade. Do contrário, como conservar a liberdade de espírito? A Suíça tem a sorte de ser neutra. Aqui, em Genebra, encontro a calma de que preciso.

Fafner fez um sinal a Fasolt. julgaria ele a Ashenden um idiota, ou quereria aprovar esse desejo de fugir de um mundo agitado? O fato é que compreendera a inutilidade daquela conversa e suas observações tornaram-se cada vez mais incoerentes. Em seguida levantou-se para sair.

Depois de lhes ter apertado a mão, Ashenden fechou a porta atrás deles, com um suspiro de alívio. Preparou um banho bem quente e, enquanto se despia, refletiu sobre o perigo que acabara de correr.

Na véspera, um incidente tinha-o alertado. Bernard, um dos seus agentes suíços, acabara de chegar da Alemanha. Ashenden marcara-lhe um encontro num café. Como não o conhecia ainda, fizera-lhe saber por um intermediário a pergunta e a resposta que serviriam de senha. A entrevista devia realizar-se à hora do almoço. Nesse momento, o café estaria mais ou menos deserto, e seria fácil descobrir Bernard. O espião, efetivamente, estava lá. Trocaram as palavras convencionais. Ashenden sentou-se diante dele e pediu dois Dubonnet. Atarracado, de pernas curtas, olhos astutos piscando numa face pálida, Bernard não inspirava confiança. Sua roupa estava mal. Se a experiência não tivesse ensinado a Ashenden a dificuldade de encontrar

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voluntários para irem à Alemanha, ele não compreenderia a escolha do seu predecessor. O homem, um suíço-alemão, arranhava o francês, descaradamente. Começou reclamando seu ordenado, que Ashenden lhe passou num envelope. Aí então ele contou sua estada na Alemanha. Garçom de café antes da guerra, empregara-se num restaurante, perto de uma ponte no Reno. Não escasseavam ocasiões de colher informações. Seu desejo de vir passar uns dias na Suíça pareceu muito natural e, na sua volta, poderia talvez atravessar a fronteira sem ser incomodado. Ashenden manifestou-lhe sua satisfação e deu-lhe suas instruções. Como se preparasse para encerrar a palestra:

- Está tudo muito bem - disse Bernard -, mas, antes de voltar para a Alemanha, preciso de dois mil francos.

Sim?! - Sim, e, ainda mais, já! Antes de o senhor sair deste café. Devo essa quantia, e onde quer que vá buscá-la?

- Sinto muito. Nada posso fazer. O homem franziu as sobrancelhas. Sua fisionomia tomou uma expressão de baixeza repugnante.

- É o que vamos ver. - Como? Que pretende fazer? O espião inclinou-se para diante e, sem levantar a voz, murmurou com raiva:

- Pensa o senhor que vou continuar arriscando a pele por dez réis de mel coado? Ainda na semana passada, um deixou-se pegar em Mogúncia e encostaram-no à parede. Era agente seu?

- Nós não temos ninguém em Mogúncia - respondeu Ashenden, placidamente.

Afinal, bem podia ser verdade, porque, com grande surpresa, não recebia mais dessa cidade as comunicações habituais.

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- Não me venha dizer que não conhecia as condições. Nada o obrigava a aceitar. Não tenho autorização para darlhe nem um vintém a mais.

- Está vendo o que eu tenho aqui? Tirou do bolso um pequeno revólver e manejou-o significativamente.

- Que pensa fazer com ele? Vai botá-lo no prego? Com um levantar de ombros, o espião tornou a colocar o revólver no bolso.

"Ele não tem noção alguma da técnica dramática", pensou Ashenden, "do contrário saberia que se deve evitar todo gesto estéril."

- Então, recusa dar-me o dinheiro? - Certamente. O tom de Bernard, antes obsequioso, tornara-se áspero; não obstante, conservava seu sangue frio e não levantava a voz. Por mais patife que fosse, não deixava de ser, indiscutivelmente, um agente precioso, e Ashenden propôs-se sugerir a R. que lhe aumentasse o salário. Ali perto, dois honrados genebrinos, de barbas negras, jogavam dominó e, diante deles, um rapaz de óculos escrevia febrilmente uma carta interminável. Numa outra mesa, uma família suíça - o pai, a mãe e quatro filhos - repartia entre si duas minúsculas xícaras de café. Por trás do balcão, a caissière, uma morena majestosa, de seios opulentos modelados em cetim preto, lia o jornal local. Aquele ambiente burguês tornava perfeitamente grotesca a cena melodramática em que se via metido Ashenden. Seu próprio drama parecia-lhe muito mais real.

Bernard sorriu. Seu sorriso nada tinha de tranqüilizador.

- Não vê que me basta entrar no mais próximo posto policial para que o prendam? Conhece as prisões suíças?

- Não, e muitas vezes eu me tenho perguntado como serão. E você?

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- Eu as conheço. Não lhe agradariam, estou certo. Uma das coisas que mais preocupavam Ashenden era a possibilidade de ser preso antes de ter terminado seu drama. Revoltava-se com a idéia de interrompê-lo por tempo indefinido. Ignorava se seria tratado como preso político ou como criminoso comum. Tinha muita vontade de perguntar a Bernard se, neste último caso (o único que Bernard conhecia por experiência própria) , lhe concederiam material para escrever. Mas Bernard, grosseiro e ignorante, pensaria que ele estava divertindo-se a sua custa. Por felicidade, Ashenden mantinha-se sereno e pôde responder com calma.

- Evidentemente, você poderia fazer com que me prendessem por dois anos.

- Pelo menos. - Não é o máximo da pena, pelo que sei; mas é o quanto basta. Não lhe escondo que este desenlace seria muito desagradável para mim, mas não tanto quanto para você.

- Que pode o senhor contra mim? - Oh! Nós acabaríamos agarrando-o. A guerra não vai durar eternamente. Você é garçom de café, tem necessidade de liberdade de ação. Eu lhe garanto que, se você me puser em qualquer dificuldade, nunca mais botará os pés no território dos aliados até o fim dos seus dias.

Bernard não respondeu. Seu olhar incerto baixou sobre o mármore pegajoso da mesa. Ashenden pagou a despesa e levantou-se.

- Reflita, Bernard - aconselhou. - Se você quiser voltar para seu posto, já tem minhas instruções e seu salário habitual ser-lhe-á pago como de costume.

O espião deu de ombros e Ashenden, incerto sobre o resultado da conversa, esforçou-se por sair com dignidade.

E agora, provando com a ponta do pé a água quente de seu banho, cismava sobre o que teria feito Bernard.

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Pouco a pouco foi mergulhando. Em suma, seu instinto dizia-lhe que o espião não o delatara. Era preciso buscar em outra parte a origem da denúncia. Quem sabe se no hotel mesmo. Ashenden recostou-se para trás e, como seu corpo ia-se habituando à temperatura da água, soltou um grunhido de prazer.

- Verdadeiramente - pensou - há momentos na vida em que não se tem pena de ter nascido.

Sentia-se feliz por ter-se livrado de apuros por tão pouco preço. Se tivesse sido preso e condenado, R. tê-lo-ia considerado um imbecil e ter-se-ia limitado a dar-lhe um sucessor. Quando o chefe o advertira de que não contasse com ninguém em caso de dificuldades, não dissera senão a verdade. Ashenden sabia disso suficientemente para não ter dúvidas.

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MISS KING


Confortavelmente deitado em sua banheira, Ashenden sentia-se feliz ao pensar que, graças 'a sua habilidade, poderia muito provavelmente terminar a peça. Embora a polícia continuasse a vigiá-lo mais de perto, ela não arriscaria uma nova visita antes que ele tivesse, pelo menos, iniciado o terceiro ato. Certamente, era preciso conduzir-se com prudência (quinze dias antes, seu colega de Lausanne pegara três meses de cadeia) . Não havia, porém, motivo para alarme. De tanto pensar que era seguido, noite e dia, seu antecessor, que exagerava a própria importância, ficara extremamente nervoso. Foram obrigados a removê-lo. Duas vezes por semana, no mercado, uma velha saboiana, vendedora de ovos e manteiga, trazia instruções para Ashenden. Ela chegava com as outras camponesas e, para elas, a passagem da fronteira reduzia-se a uma simples formalidade. A madrugada apenas apontava, quando elas se apresentavam nos postos aduaneiros e os guardas não desejavam outra coisa senão se livrarem o mais depressa possível do inesgotável falatório das comadres, a fim de poderem voltar à estufa rubra e a seus cigarros. Na verdade, diante dessa boa velha, tão ingênua, de fisionomia aberta num sorriso amável, quem poderia adivinhar entre seus seios robustos o pedacinho

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de papel que por si só bastaria para arrastar ao banco dos réus uma digna mãe de família - graças a esses pequenos serviços, ela conservava seu filho na retaguarda - e um escritor de idade em breve respeitável? Às nove horas, depois da balbúrdia das donas-de-casa, Ashenden aproximava-se. Detinha-se diante da cesta em que se encontravam os pacotes de manteiga fresca e comprava uma meia libra. Ao dar-lhe o troco, ela metia-lhe o papel na mão e ele continuava seu caminho com ar desprendido. A volta ao hotel, com aquele documento no bolso, era o único momento crítico. Em conseqüência do último alarme, ele resolveu abreviá-lo o mais possível.

Ashenden suspirou. A temperatura do seu banho baixava. Impossível alcançar• a torneira ou manejá-la com os dedos dos pés, como se pode fazer com uma torneira que se preze. Se era preciso levantar-se para fazer a água quente correr, mais valia vestir-se. O tampão de escoamento também estava fora de seu alcance. Amolecido, entorpecido de comodidade, faltava-lhe vontade. Muitas vezes gabaram-lhe a energia. Julgamento sem dúvida precipitado. Alguém jamais o vira num banho que esfriava? Sua imaginação, contudo, corria atrás de seu trabalho e, repetindo para si mesmo gracejos e respostas, que sabia, por amarga experiência, valerem menos na cena do que no papel, procurava dirigir seus pensamentos para seu banho que esfriava, quando ouviu bater à porta.

- Que há? - perguntou, aborrecido. - Uma carta. - Espere um minuto. Já vou. Ashenden saiu da banheira, envolveu-se no seu roupão de banho e passou para o quarto. O ascensorista esperava-o com um papel na mão. Era coisa que requeria somente uma resposta verbal. Tratava-se de uma senhora hospedada no hotel que o convidava para uma partida de bridge depois do jantar e assinava, à moda do continente, baronesa de

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Higgins. Apesar do seu desejo de jantar de chinelos, com um livro apoiado na lâmpada, Ashenden achou que talvez fosse mais conveniente mostrar-se essa noite no salão de jantar.

A notícia da visita da polícia seguramente se espalhara, era melhor mostrar que carecia de importância. Quem sabe mesmo se a denúncia não provinha do hotel? O nome da petulante baronesa já lhe tinha aflorado ao espírito. E por isso mesmo, se ela o traíra, tanto mais excitante seria um bridge de parceria com ela. Mandou dizer pelo rapaz que aceitava com o máximo prazer e começou a vestir-se.

Quando se instalou em Genebra, durante o primeiro inverno da guerra, a baronesa Von Higgins, austríaca, por precaução traduzira seu "von" revelador. Falava perfeitamente inglês e francês, e seu nome pouco germânico devia-o ao avô, moço de estrebaria de Yorkshire, que fora levado para a Áustria por um certo príncipe Blankenstein, em princípios do século XIX. O esperto palafreneiro, que tinha um caráter encantador e romântico, sendo ademais um belo rapaz, soube chamar para si a atenção de uma arquiduquesa. E foi tão hábil que terminou seus velhos dias como barão e ministro plenipotenciário junto a um corte italiana. Após um casamento infeliz, cujas incompatibilidades ela confessava muito facilmente, a baronesa, única descendente dos Higgins, retomou seu nome de solteira. Recordava prazerosamente e com freqüência os sucessos diplomáticos do avô, mas não fazia alusões ao período passado nas estrebarias. Ashenden recebera esses detalhes interessantes de Viena, quando, ao entrar em relações com ela, achou conveniente tomar informações a seu respeito. Entre outras coisas, soube que suas rendas não estavam à altura da vida faustosa que levava em Genebra. Achando-se tão bem colocada para espionar, o que a impediria de fazer parte de algum serviço secreto? Esta impressão aumentava a cordialidade de suas relações com ela.

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Quando entrou, a sala de jantar já estava cheia. Sentou-se à mesa e, completamente reanimado pelo feliz desenlace de sua aventura, pediu (por conta do governo britânico) uma garrafa de champanhe. A baronesa dirigiu-lhe um radioso e amável sorriso. Apesar dos seus quarenta anos completos, era ainda uma mulher extremamente bela. Beleza vistosa e dura, com sua tez clara e o dourado artificial de seus cabelos. Não era, porém, o tipo de cabelo que Ashenden gostaria de achar em sua sopa. Entretanto admirava as feições finas de madame de Higgins, seus olhos azuis, seu nariz muito reto, embora achasse sua pele quase nada esticada sobre os ossos. Um generoso decote descobria seu colo marmóreo. Seus vestidos eram suntuosos, mas usava poucas jóias. Ashenden concluiu que, se a autoridade superior lhe tinha dado carta branca quanto aos costureiros, não julgara oportuno estender essa autorização até as pérolas e diamantes. Mesmo que não se lembrasse da história do ministro contada por R., bastava o aspecto dessa mulher, tão vistosa, apesar da ausência de jóias, para despertar-lhe suspeitas.

Enquanto esperava a sopa, examinou a assistência com um rápido olhar. Conhecia de vista a maioria dos convivas. Nessa época tramavam-se em Genebra inúmeras intrigas, cujo centro era esse hotel. Franceses, italianos, russos, turcos, romenos, gregos e egípcios ombreavam lado a lado. Alguns desertavam do próprio país, outros o representavam. Achava-se presente um búlgaro, agente de Ashenden, ao qual, por prudência, nunca dirigia a palavra, quando em Genebra. Justamente o búlgaro estava jantando com dois compatriotas, e, se dentro de um ou dois dias não se noticiasse seu assassinato, ele teria novidades para comunicar. Em outra mesa via-se uma prostituta alemã, de olhos de porcelana azul-pálido e rosto de boneca, encarregada de transportar a correspondência secreta entre Genebra e Berna e que também recolhia, aos azares de suas noites, pequenas

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informações interessantes para Berlim. De categoria muito inferior à da baronesa, dedicava-se à caça miúda, mais fácil. Ashenden, com surpresa, reconheceu o conde Von Holzminden, agente alemão de Vevey. Que poderia estar ele tramando ali? Raras vezes vinha a Genebra. Ashenden encontrara-o uma vez no velho quarteirão das casas silenciosas e ruas desertas, conversando numa esquina com um tipo que revelava o espião, a seis quilômetros de distância. Muito teria ele dado para ouvir essa conversa. Esse encontro divertiu-o. Em Londres, antes da guerra, conhecera bem Holzminden. Pertencia a uma grande família e era mesmo aparentado com os Hohenzollerns. Era louco pela Inglaterra, dançava bem, cavaleiro e atirador incomparável, passava por ser mais inglês do que os ingleses. Alto e esbelto, muito elegante, apesar de ter a cabeça raspada à prussiana, caminhava com o corpo ligeiramente curvado, com o andar peculiar aos cortesãos, sempre prontos para saudarem uma personagem real. Tinha maneiras encantadoras e interessava-se muito por belas-artes. Agora, porém, ele e Ashenden ignoravam-se. Cada um dos dois sabia com quem tratava, o que dava a Ashenden a tentação de gracejar com seu colega. Pois não era um absurdo que, depois de tantas recordações comuns, de jantares, de bridges, se mantivessem como desconhecidos um do outro? Mas abstivera-se. Seguramente o alemão vislumbraria em sua atitude uma nova prova da frivolidade com a qual os ingleses encaram as coisas da guerra. Holzminden, até então, não pusera os pés naquele hotel; sua presença nesse dia devia ter um motivo sério. Haveria qualquer relação com a presença do príncipe Ali? Durante esse periodo da guerra, os menores detalhes tornavam-se importantes. O principe Ali, parente próximo do Khediva, fugira da pátria, por ocasião da deposição do soberano. Odiava os ingleses, e seus agentes fomentavam perturbações no Egito. Na semana anterior, o Khediva muito secretamente passara três dias no hotel e

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tivera no seu apartamento inúmeras conferências com o príncipe. Este era um homem pequeno, barrigudo e com imensos bigodes. Vivia com suas duas filhas e um certo Mustatá Paxá, seu secretário e homem de negócios. Essas quatro personagens agora jantavam juntas; e a grandes tragos bebiam champanhe silenciosamente. As duas princesas, moças emancipadas, passavam as noites dançando em restaurantes com os elegantes de Genebra. Eram baixas e gordas, com belos olhos negros e feições inexpressivas; sua elegância ruidosa lembrava mais o mercado de peixe no Cairo do que a Rue de La Paix. Sua Alteza, em geral, fazia as refeições no seu quarto, mas as princesas jantavam todas as noites no salão de refeições, sob a custódia de uma velha inglesa, pequena, Miss King, sua antiga governanta. Esta, porém, jantava em mesa à parte, e as moças pouca atenção lhe davam. Uma vez Ashenden surpreendera num corredor a mais velha das princesas injuriando a governanta, em francês, com uma violência inaudita. Uivava enfurecida, e sua mão esbofeteou subitamente a pobre mulher. Ao ver Ashenden, teve para ele um olhar venenoso e voou para o quarto, batendo estrepitosamente a porta. Aquele fingiu nada ter visto.

Por ocasião de sua chegada ao hotel, Ashenden tentou travar relações com Miss King. Mas, ao lhe tirar o chapéu, não conseguiu mais do que um cumprimento seco, e no dia em que se decidiu abordá-la, ela lhe respondeu com frieza que demonstrava claramente seu desejo de mantê-lo a distância. Ashenden não desanimou. Na primeira oportunidade, tentou entabular uma conversação; ela, então, entesou-se, e engrolou num francês inglesado:

- Não desejo travar relações com estranhos. Virou-lhe as costas e desde então foi como se ele não existisse.

Era uma velhinha minguada; um feixe de ossos num saco de pele enrugada e o rosto muito fanado sob uma

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cabeleira cor de rato, evidentemente postiça e que não raro era posta de través; o rosto aparecia mal pintado, com grandes manchas escarlates nas faces e os lábios intensamente vermelhos. Seus vestidos de cores berrantes pareciam ter sido tirados, sem olhar, de uma loja de roupas velhas, e durante o dia ostentava enormes e extravagantes chapéus de mocinha. Calçava sempre sapatos pequeninos de salto muito alto. Seu aspecto grotesco provocava mais assombro do que riso. Todos se voltavam ao vê-la passar.

Ashenden sabia que Miss King não mais retornara à Inglaterra desde que entrara a serviço da mãe do príncipe e pensava com pavor no que ela deveria ter visto e ouvido nos haréns do Cairo, onde tantas vidas jovens desaparecem misteriosamente. Esta exilada sem família, sem amigos, exteriorizava sentimentos anglófobos; e se lhe respondera tão grosseiramente como o fizera, era seguramente porque tinham-na prevenido contra ele. Ela nunca falava em francês. Logo depois das refeições, retirava-se para o quarto e não mais se deixava ver. Que pensaria de suas pupilas que se vestiam tão escandalosamente e dançavam nos cafés com desconhecidos? Quando Miss King se encontrava com Ashenden, sua fisionomia fechava-se. Nessa noite seus olhares se cruzaram; julgou ver no dela uma expressão insultante. Naquele velho rosto caiado aquilo se tornava lúgubre.

Depois do jantar, a baronesa Higgins tomou seu lenço e sua bolsa, e entre as fileiras dos criados atravessou majestosamente a sala de jantar. Deteve-se na mesa de Ashenden. Estava deslumbrante.

- Sinto-me tão feliz por saber que pode jogar bridge esta noite! - disse no seu inglês impecável, apenas toldado por um quase imperceptível acento alemão. - Quer vir tomar o café nos meus aposentos, quando terminar?

- Que toalete encantadora!

- Não, é horrivel. Não tenho o que vestir. Não sei o que fazer, agora que não posso ir a Paris. Esses malditos

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prUssianos -os erres tornavam-se guturais à medida que elevava a voz. - Por que arrastaram eles meu pobre país

nesta guerra?

Suspirou, sorriu encantadoramente e afastou-se. Ashenden foi o último a sair. Sentia-se muito bem-humorado. Como passasse diante do conde Von Holzminden, arriscou uma imperceptível piscada de olhos. O alemão ficaria quebrando a cabeça para descobrir-lhe o sentido.

Subiu então ao segundo andar e bateu à porta da baronesa.

- Entrez, entrez - disse ela, abrindo largamente a porta.

Tomou cordialmente suas duas mãos e puxou-o para dentro do salão. Os outros dois parceiros já tinham chegado. Eram o príncipe Ali e seu secretário. Ashenden esteve a ponto de recuar.

- Vossa Alteza, permita-me que lhe apresente Mr. Ashenden? - perguntou a baronesa num francês digno do seu inglês.

Ashenden curvou-se e apertou a mão estendida. O príncipe olhou-o rapidamente, mas nada disse. Mme. de Higgins continuou:

- Não sei se conhece o Paxá? disse - Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Ashenden - o secretário do príncipe, apertando-lhe a mão com efusão. - Nossa bela baronesa louvou muito seu talento no bridge e Sua Alteza é devoto desse jogo. N'est-ce pas, altesse?

- Oui, oui - respondeu o príncipe. Mustafá Paxá era um colosso de 45 anos, com grandes olhos muito móveis e um imenso bigode preto. Vestia um smoking, com um enorme diamante no peito, e trazia na cabeça o tarbuche nacional. Era excessivamente loquaz e as palavras saíam-lhe da boca tumultuosamente. eMostrou-ser extremamente cortês com Ashenden. O

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observava Ashenden tranqüilamente, de sob as pesadas pálpebras.

- Nunca o vejo no clube, monsieur - disse o Paxá. - O bacará não o tenta?

- Sim, jogo, mas muito raramente. - A baronesa que já leu tudo, disse-me que o senhor é um escritor notável. Infelizmente não sei inglês.

A baronesa esmagou Ashenden sob uma saraivada de lisonjas que ele recebeu com polida deferência; depois, tendo servido o café e os licores, iniciou o jogo.

Ashenden não conseguia perceber o motivo daquele convite. Tinha poucas ilusões sobre seus méritos de jogador de bridge. Tendo enfrentado muitas vezes os maiores jogadores do mundo, conhecia sua inferioridade e classificava-se apenas como um bom jogador de segunda categoria. Nessa noite, jogavam por contrato, que ele não conhecia bastante, e a preço alto; mas evidentemente o bridge não era mais do que um pretexto, pois o verdadeiro jogo ia realizar-se nos bastidores. Talvez, sabendo-o um agente inglês, o príncipe e seu secretário se propunham estudá-lo. Desde alguns dias Ashenden sentia que havia algo no ar, e esta reunião confirmava suas suspeitas; mas o quê? Seus espiões nada lhe referiram de preciso. Já agora não tinha mais dúvidas de que a visita da polícia suíça fora obra da gentil baronesa, e que a partida de bridge podia muito bem não ter outro objetivo senão compensar o fracasso dos detetives. Enquanto jogava rubber após rubber, Ashenden divertia-se com o misterioso caso sem deixar, contudo, de observar a si mesmo, analisando também os parceiros. Falou-se da guerra entre duas dadas de cartas; a baronesa e o Paxá manifestavam grande hostilidade à Alemanha. O coração da primeira, segundo afirmava, ficara na Inglaterra junto ao berço da família (os moços de estrebaria de Yorkshire),

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enquanto o Paxá assegurava que Paris era sua segunda pátria espiritual. Ao ouvir falar em Montmartre e em sua vida noturna, o príncipe quebrou o silêncio em que se mantivera:

- C'est une bien belle ville, Paris - proclamou. - O príncipe tem lá um magnífico apartamento - disse o secretário -, com telas esplêndidas e estátuas de tamanho natural.

Ashenden confessou sua grande simpatia pelas aspirações nacionais do Egito e pelo que vira em Viena, a mais agradável capital da Europa. Foi uma competição de amabilidades recíprocas. Mas se seus parceiros esperavam tirar dele uma informação qualquer, ou ouvi-lo comentar o que diziam os jornais suíços, enganavam-se. Houve um momento em que lhe pareceu que o estavam sondando sobre a possibilidade de peitá-lo. Fizeram-no, porém, tão discretamente que não pôde ter certeza; mas flutuavam no ar insinuações de que para um hábil escritor nenhuma missão seria tão nobre como a de prestar a seu país o serviço de apaziguar o mundo revolto, trazendo-lhe a paz que todo ser humano sinceramente desejava. Isso sem esquecer os proveitos monetários que daí adviriam. Sem cometer imprudência, não podiam na primeira noite ir mais longe, mas Ashenden, mais por sua atitude amável do que por suas palavras, deixou perceber que não lhe desagradava o assunto. Enquanto conversava com Paxá e com a bela austríaca, tinha consciência de que os olhos do príncipe Ali não se despregavam dele e teve a intuição desagradável de que estavam lendo seus pensamentos. Talvez depois de sua partida avisasse os outros dois de que estavam perdendo seu tempo e que nada conseguiriam com ele.

Pouco depois da meia-noite, como terminassem um rubber, o príncipe levantou-se.

- Já é tarde - disse ele -, e Mr. Ashenden tem, com certeza, muito que fazer amanhã. Não abusemos de seu tempo.

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Ashenden retirou-se muito intrigado, deixando-os provavelmente tão perplexos quanto ele.

Quando entrou no seu quarto a fadiga abateu-o de súbito e, apenas deitado, adormeceu profundamente.

Pensava não ter dormido mais do que cinco minutos, quando uma pancada dada em sua porta acordou-o sobressaltado.

- Quem está aí? - A camareira. Abra, senhor, preciso dizer-lhe uma coisa.

Aborrecido, Ashenden apertou o interruptor, passou, num gesto habitual, os dedos pelos cabelos (porque, como Júlio César, não gostava de mostrar em público sua calvívice) e abriu a porta. Fora, no corredor, esperava-o uma criada suíça desgrenhada. Estava sem avental e parecia ter se vestido apressadamente.

- A velha lady inglesa, a governanta das princesas egípcias, está morrendo e quer vê-lo.

- A mim? - exclamou Ashenden. - Deve haver engano. Não a conheço. E, além disso, ela estava tão bem esta tarde.

Estava tão perturbado que pensava em voz alta. - Ela chama pelo senhor, asseguro-lhe. O próprio doutor pede que venha. Ela não tem vida para muito tempo.

- Deve estar enganada. Para que me quer ela? - Ela disse o seu nome e o número do seu quarto. E até mesmo disse: depressa, depressa!

Ashenden deu de ombros. Voltou ao quarto, vestiu um roupão e, após um minuto de hesitação, pôs no bolso um pequeno revólver. Em geral confiava na inspiração do momento para se desenredar das teias em que se via envolvido. Uma arma de fogo pode às vezes disparar fora de propósito e fazer barulho. Entretanto, há momentos em que é um prazer sentir sob os dedos a coronha de um revólver; e este chamado súbito era bastante misterioso. Era ridículo

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pensar numa armadilha por parte daqueles dois egípcios tão corteses, mas nas tramas em que se via metido era possível que uma tragédia sucedesse a longas horas de monótona tranqüilidade.

O quarto de Miss King achava-se dois andares acima do seu; enquanto seguia a criada pelos longos corredores e pelas escadas, procurou informar-se. Esta era, porém, atrapalhada e estúpida.

- Acho que é um ataque. O sereno acordou-me e disse-me que Monsieur Bridet dera ordens para que eu melevantasse em seguida.

Mr. Bridet era o gerente do hotel. - Que horas são? - perguntou Ashenden. - Mais ou menos três horas. Chegaram ao quarto de Miss King e a criada bateu à porta.

Mr. Bridet abriu. Evidentemente acabava de acordar; calçava chinelos sem meias, vestia calças listradas e um casaco por cima do pijama. Perfeitamente ridículo. Seus cabelos, de ordinário muito alisados, estavam agora espetados. Desfez-se em desculpas.

- Peço-lhe mil desculpas por tê-lo incomodado, Monsieur Ashenden; ela, porém, reclamava-o continuamente e o doutor insistiu para que o chamassem.

- Isso não tem importância. Ashenden entrou. Todas as lâmpadas estavam acesas, as janelas fechadas e as cortinas corridas. Abafava-se. O médico, um suíço barbudo e grisalho, estava em pé, ao lado da cama. Mr. Bridet, apesar de seu vestuário e de seu evidente cansaço, não deixou, como gerente que gosta de observar a etiqueta, de fazer as apresentações de costume.

- Monsieur Ashenden, por quem Miss King chamava. O doutor Arbos, da Faculdade de Medicina de Genebra.

Sem dizer uma palavra, o doutor apontou para o leito sobre o qual Miss King estava deitada. Ashenden estremeceu.

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Ela vestia uma camisa de dormir muito afogada, e um grande gorro de algodão amarrado sob o queixo substituía a peruca, dependurada numa ponta da mesa-de-cabeceira. Gorro e camisa lembravam as ilustrações de Cruikshank nas novelas de Charles Dickens. Seu rosto estava engordurado com um creme que ela usava para tirar a pintura, mas ainda conservava o preto das sobrancelhas e estrias vermelhas nas faces. Naquela cama, parecia muito pequenina e extremamente velha.

- Ela deve ter muito mais de oitenta anos - pensou Ashenden.

Não parecia mais um ser humano, e sim uma boneca, caricatura de uma velha, velha feiticeira, modelada pela fantasia de um fabricante de brinquedos. Seu corpo mirrado apenas avultava sob as cobertas. Sem a dentadura, suas faces cavavam-se ainda mais. Não fossem seus olhos negros, estranhamente abertos e fixos, na máscara enrugada, e pensar-se-ia estar ela morta. A expressão de sua fisionomia transformou-se ao ver Ashenden.

- Estou desolado, Miss King, de vê-la nesse estado! - disse ele com jovialidade forçada.

- Ela não pode mais falar - avisou o doutor. - Ela teve ainda um outro pequeno ataque, enquanto a criada foi chamá-lo. Acabo de fazer-lhe uma injeção. Pode ser que recupere em parte o uso da palavra, daqui há pouco. Ela tem qualquer coisa para dizer-lhe.

- Esperarei - disse Ashenden. Pareceu-lhe notar um fulgor de alívio nos olhos- sombrios. Durante alguns momentos os três homens conservaram-se perto da cama, observando a moribunda.

- Bem, se não precisam de mim aqui, vou me deitar - disse por fim Mr. Bridet.

- Allez, mon ami, não precisamos do senhor - disse o doutor.

Mr. Bridet virou-se para Ashenden:

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- Posso dizer-lhe uma palavra? - Certamente. O doutor surpreendeu uma súbita angústia nos olhos de Miss King.

- Não se assuste - disse-lhe ele com bondade. - Monsieur Ashenden vai voltar. Ele ficará aqui todo o tempo que a senhora quiser.

O gerente saiu com Ashenden e fechou a porta para poder falar sem ser ouvido.

- Posso contar com sua discrição, não é, Mr. Ashenden? É muito desagradável ter uma pessoa morta no hotel. Os hóspedes não gostam disso e nós preferimos deixá-los na ignorância. Farei transportar o corpo bem cedo e muito lhe agradecerei se guardar segredo.

- Pode contar comigo -, disse Ashenden. - Que caiporismo ter o diretor saído esta noite. Vai ficar furioso. Eu queria telefonar chamando a ambulância e metê-la no hospital, mas o doutor disse que ela podia morrer antes mesmo de chegar lá embaixo e não quis consentir. Se ela morrer no hotel, não é culpa minha.

- A morte escolhe sua hora, sem considerações de espécie alguma - murmurou Ashenden.

- Afinal de contas, esta velha já devia ter morrido há muito tempo. Por que não a mandaram para a terra dela? Esses orientais não nos dão mais do que aborrecimentos.

- Onde está o príncipe agora? - perguntou Ashenden. - Ela o serviu durante muitos anos. Não será preciso preveni-lo?

- Ele não está no hotel. Saiu com o secretário. É capaz de estar no bacará. Em todo caso, não posso correr toda Genebra para encontrá-lo.

- E as princesas? - Ainda não voltaram. Só voltam de madrugada. São loucas por um dancing. Sei lá onde podem estar, e além

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disso posso garantir-lhe que não me agradeceriam se eu fosse estragar sua noite, sob pretexto de que a velha teve um ataque. Conheço-as bem. O porteiro da noite as avisará quando chegarem e então farão o que quiserem. Miss King não precisa delas para nada. Quando vieram buscar-me e quando entrei no quarto, perguntei onde estava Sua Alteza e ela gritou: "Não, não!".

- Mas, então, ela ainda falava? - Sim, um pouco, e coisa esquisita, em inglês. Geralmente ela só queria falar em francês. Porque, o senhor sabe, ela odiava os ingleses.

- Mas, enfim, o que quer ela comigo? - Ah! Isso eu não sei. Parece que tem qualquer coisa de muito urgente para dizer-lhe. É curioso, ela sabia o número de seu quarto. No primeiro momento eu não quis mandar chamá-lo. Não gosto de importunar meus hóspedes no meio da noite porque uma louca chama por eles; se não, onde iriamos parar? Mas, quando o doutor chegou, ela insistiu, e, quando eu disse que ela bem podia esperar até amanhã de manhã, pôs-se a gritar.

Ashenden contemplou o gerente. Este parecia insensível ao patético da cena que descrevia.

- O doutor perguntou-me quem era o senhor, e, quando eu disse sua nacionalidade, ele achouque ela desejava vê-lo por ser um compatriota.

- Talvez - disse Ashenden, secamente. - Bem, vou tratar de dormir um soninho. Darei ordem para que me acordem quando tudo estiver acabado. Felizmente as noites são compridas. Se tivermos sorte, poderemos talvez escamotear o corpo antes do amanhecer.

Ashenden voltou para o quarto e em seguida os negros olhos da moribunda procuraram os seus.

Era preciso dizer qualquer coisa, mas o que se pode dizer aos moribundos, senão mentiras?

- Não se sente melhor, Miss King?

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Ao ouvir essas palavras banais, um relâmpago de cólera passou pelos olhos da velha.

- Então, o senhor fica? - perguntou o doutor. - Naturalmente. A campainha do telefone do quarto de Miss King acordara o porteiro da noite, o qual tomou o fone e não obteve resposta. Como o aparelho continuasse a tocar, ele fora bater na porta do quarto. Entrou com sua chave mestra. Miss King jazia por terra, ao lado do telefone que ela arrastara na queda. Adivinhava-se o que se passara. O porteiro correu em busca do gerente e juntos levantaram Miss King e depuseram-na sobre a cama. Depois, chamaram a camareira e fizeram vir o médico. Ashenden admirava-se de ouvir o médico dar-lhe esses detalhes na presença de Miss King. Falava como se ela não compreendesse o francês ou se já estivera morta.

- tudo o que sei - disse o doutor. - Não preciso ficar aqui. Se houver qualquer novidade, avise-me por telefone.

Ashenden, compreendendo que Miss King ficaria horas naquela situação, deu de ombros.

- Perfeitamente. O doutor deu uns tapinhas no rosto enrugado, como se Miss King fosse uma criança.

- Procure dormir. Eu voltarei amanhã. Guardou seus instrumentos na maleta, lavou as mãos e vestiu o sobretudo. Ashenden acompanhou-o até a porta e, quando se despediam, o doutor, num gesto de enfado, transmitiu-lhe seu prognóstico. Ashenden viu a camareira mal sentada numa cadeira, tensa e inquieta. Na presença da morte, ela parecia temer estar à vontade. O cansaço inchara seus traços vulgares.

- Sua presença aqui é inútil - disse-lhe Ashenden. - Por que não vai se deitar?

- Talvez monsieur não goste de ficar sozinho aqui neste quarto. preciso que alguém fique com o senhor.

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- Por quê? Você terá de fazer seu serviço amanhã. - Em todo caso, terei de estar de pé às cinco horas. - Então procure dormir um pouco agora. Passará aqui quando se levantar. Allez.

Ela levantou-se pesadamente. - Como o senhor quiser, mas eu podia ficar. Ashenden sorriu e meneou a cabeça. - Bon soir, ma pauvre demoiselle! - disse à camareira.

Saiu. Ashenden instalou-se perto da cama e outra vez seus olhos encontraram os de Miss King. Seu olhar não o deixava.

- Não se atormente, Miss King, não é mais do que um pequeno ataque. Estou certo de que dentro de um minuto a senhora falará.

Os olhos sombrios traíram então um esforço desesperado. Ele não podia enganá-la. O espírito estava tenso pelo desejo, mas o corpo paralisado não podia obedecer. Em seu desapontamento, os olhos de Miss King encheram-se de lágrimas, que correram sob as pálpebras. Ashenden enxugou-as.

- Não se desespere, Miss King. Tenha paciência, estou certo que daqui a pouco a senhora poderá dizer tudo o que deseja.

Estaria ele enganado? Parecia-lhe ler na face da agonizante a convicção pungente de que o tempo lhe faltaria. Podia ser, entretanto, que Ashenden atribuísse a Miss King suas próprias idéias. Na mesa-de-cabeceira estavam atirados, ridículos e mesquinhos, um espelho e uma escova de prata cinzelada. Num canto do quarto havia uma mala preta, com as extremidades esfoladas, e em cima do armário uma caixa de chapéus, de couro envernizado. Pobres objetos esparsos nesse quarto de hotel, de móveis elegantes, de limoeiro. A iluminação forte e violenta acentuava o contraste.

- Quer que abaixe a luz? - propôs Ashenden.

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Apagou tudo, menos a lâmpada de cabeceira; depois tornou a sentar-se. Teve vontade de fumar. Seus olhos não podiam fugir à atração daqueles outros olhos onde se refugiara toda a vida que ainda restava à pobre velhinha. Tinha certeza de que ela precisava dizer-lhe alguma coisa, urgentemente. Mas o quê? O quê? Talvez nada; talvez apenas o tivesse chamado porque, vendo a morte próxima, sentisse o desejo de morrer tendo junto de si alguém de seu próprio país, por ela tanto tempo esquecido em tantos anos de exílio. Fora este o pensamento do doutor. Mas por que aquela preferência por ele? Havia outros ingleses no hotel. Lá estavam, por exemplo, um casal, um funcionário aposentado do Serviço Civil da India e sua mulher, cuja presença até seria mais natural do que a sua. Ninguém para ela era tão estranho como Ashenden.

- Tem alguma coisa para me dizer, Miss King? Esforçou-se por ler uma resposta em seus olhos. Sempre aquela mesma fixidez, mas que queriam eles dizer?

- Não tenha receio, não sairei daqui. Ficarei enquanto a senhora quiser.

Nada, sempre nada. Aqueles olhos negros que continuavam fitando-o, com insistência, brilharam misteriosamente, iluminados por um clarão interior. Teria ela adivinhado nele um agente secreto do serviço inglês? Ou, talvez, quem sabe se o amor da pátria, meio século abafado em seu coração, despertava subitamente e, no momento supremo, impelia-a a revelações?

- Que idiotice esta minha de estar fantasiando semelhantes tolices - murmurou Ashenden em seu foro íntimo.

Em períodos como os que se estava vivendo, todo o mundo perdia um pouco a cabeça. Se em tempos de paz o patriotismo se limita a manifestações, a artigos de jornal e a discursos de políticos, nos negros dias de guerra ele se torna um gerador de emoções que galvanizam e exaltam. Por que não pedira Miss King para ver o príncipe ou suas filhas?

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Tendo-se tornado culpada por causa deles, significaria seu gesto o desejo de redimir suas faltas antes de exalar o último suspiro? Não era crível. Mas teremos o direito de rejeitar o inverossímil? No espírito de Ashenden penetrou subitamente a convicção de que a velhinha que agonizava ante ele tinha um segredo para confiar-lhe e que o espectro da morte vencera-lhe todas as hesitações. Mas seria realmente importante o que preocupava aquele cérebro em plena desorganização? Não eram poucas as vezes em que ele ouvira referir infantilidades como se fossem notícias de importância capital. Não obstante, concentrava todas as suas energias no olhar angustiado e indecifrável.

Porque, afinal, com aqueles olhos de visão aguda e aqueles ouvidos finíssimos quanta coisa poderia ela ter visto e ouvido, onde outro qualquer nada teria percebido? Não havia dúvida de que alguma coisa se tramava no hotel, e Ashenden sentia ser ele o centro para o qual convergiam as conseqüências do que se estava preparando. Qual o motivo de Holzminden ter vindo justamente naquele dia? Qual o motivo daquele bridge com o príncipe Ali e o Paxá? Por que não se estariam desenvolvendo intrigas capazes (quem sabe?) de mudar o curso dos acontecimentos e de fixar a vitória num determinado campo? Ashenden ensimesmou-se em suas reflexões.

- Trata-se de alguma coisa referente à guerra, Miss King? - perguntou ele em voz alta.

Um clarão iluminou o olhar da moribunda e uma contração retorceu o minguado e fanado rosto. Uma luta horrível despedaçava-a. Ashenden conteve a respiração. O frágil corpo de Miss King estremeceu, soerguendo-se num último e desesperado esforço. Ashenden precipitou-se para ampará-la.

- Inglaterra! - conseguiu ela murmurar com voz expirante, e desfaleceu em seus braços.

Quando Ashenden recostou-a nos travesseiros, estava morta.

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O MEXICANO CALVO


- Gosta de macarrão? - perguntou R. - O que é que • o senhorchama de macarrão? - respondeu Ashenden. - É como se o senhor me perguntasse se gosto de poesia. Gosto de Keats, de Wordsworth, de Verlaine, de Goethe. Quando o senhor fala em macarrão, quer referir-se a spaghetti, tagliatelle, rigattoni, vermicelli, fettuccine, tulali, farfalie, ou simplesmente a macarrão?

- Macarrão - repetiu R., homem de poucas palavras. - Gosto de tudo o que é simples, ovos cozidos, ostras, caviar, truite aux bleu, salmão frito, cordeiro assado (sobretudo lombo) , galinha silvestre fria, pastel com açúcar e pudim de arroz. Mas a única coisa que posso comer todos os dias, não só sem desprazer mas até com apetite que as indigestões não diminuem, é o macarrão.

- Isso me agrada, porque tenho justamente a intenção de mandá-lo para a Itália.

Ashenden viera de Genebra a Lyon para encontrar-se com R. e, enquanto o esperava, vagabundeava pelas ruas sombrias dessa prosaica e opulenta cidade. Agora estavam instalados num restaurante, cuja cozinha gozava a fama de ser a melhor da região; mas como num lugar tão freqüentado (diz-se que os lioneses gostam de bons jantares) nunca

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se sabe se algum ouvido inimigo está escutando, não trocavam senão frases insignificantes. Estavam terminando um magnífico jantar.

- Um pouco mais de brandy? - ofereceu R. - Não, obrigado - respondeu Ashenden, que estava num de seus dias de abstinência.

- Em tempo de guerra é preciso atenuar seus rigores - fez notar R., segurando a garrafa e enchendo os dois copos.

Ashenden não pôde recusar, mas não conteve uma consideração sobre o modo pelo qual seu chefe empunhava a garrafa.

- Na minha mocidade ensinaram-me sempre que se devia segurar uma mulher pela cintura e uma garrafa pelo gargalo - murmurou.

- Muito obrigado pela lição. Entretanto, continuo a segurar a garrafa pelo bojo e a mandar as mulheres para o inferno.

Ditas essas palavras e nada mais tendo a acrescentar, Ashenden contentou-se a engolir seu brandy. Esta importante personalidade, de quem dependia tanta gente e cujas opiniões eram ouvidas como oráculos pelos chefes de governo, sempre se perturbava no momento das gorjetas. Tinha medo que rissem dele, se desse muito, ou que o olhassem com desprezo, se desse pouco. Quando lhe trouxeram a conta, deu a Ashenden algumas notas de cem francos e disse-lhe:

- Tome, pague isso, sim? Eu sempre me engano com esse dinheiro francês.

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O garçom trouxe-lhes os chapéus e os sobretudos. - Vamos voltar para o hotel? - perguntou Ashenden. - É o que temos de melhor a fazer. Estava-se no começo do ano, mas a temperatura subira e, por isso, os dois caminhavam levando os sobretudos no braço. Ashenden, sabendo quanto R. fazia questão de ter um apartamento só para si, mandara reservar um só para ele.

Para lá se dirigiam. Era um hotel de velho estilo. O apartamento era espaçoso e o mobiliário de mogno maciço, forrado de veludo verde. As poltronas, colocadas com simetria, cercavam uma grande mesa. Nas paredes, forradas de papel já desbotado, pendiam gravuras representando as batalhas de Napoleão. Um enorme lustre, em outros tempos iluminado a gás e hoje adaptado à eletricidade, projetava uma forte claridade.

- Isso é magnífico - disse R., ao entrar. - Não muito confortável. - Não, massei que estou no mais belo quarto do hotel. E isso me satisfaz.

R. puxou uma poltrona, sentou-se e acendeu um charuto. Desapertou o cinturão e desabotoou o dólmã.

- Sempre pensei que um charuto valia outro, mas desde que estamos em guerra habituei-me aos havanas. Enfim, isso não vai durar toda a vida - esboçou um sorriso. - Está soprando um vento que desnorteia a todos.

Ashenden acomodou-se numa poltrona, pondo os pés em outra.

- Não é má idéia - observou R., e, tomando outra poltrona, imitou-o, dando um suspiro de satisfação. - Para onde dá esta porta? - perguntou. - Para o seu quarto.

- E a outra? - Para um salão de banquete. R. levantou-se e caminhou lentamente pela sala; ao passar diante das janelas, num gesto maquinal, em que havia curiosidade, levantou as pesadas cortinas de repes e depois voltou a seu lugar, recostando-se novamente.

- É bom tomar sempre todas as precauções. Olhou Ashenden atentamente. Um sorriso esboçou-se em seus lábios finos, mas seus olhos pálidos, muito juntos, não se adoçaram. Se Ashenden conhecesse um pouco menos seu chefe, aquele olhar tê-lo-ia constrangido. R. procurava, entretanto,

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simplesmente um meio de abordar um assunto que o preocupava. O silêncio prolongou-se por dois ou três minutos.

- Estou esperando alguém pelo trem das dez - disse, por fim, R. (olhou o relógio de pulso) . - E um tipo a quem chamam de "Mexicano Calvo".

- Por quê? - Porque é calvo e é mexicano. - A explicação é perfeitamente satisfatória. - Ele lhe contará sua vida com todos os detalhes. É um conversador de primeira. Quando o conheci, andava caindo de fome. Uma das incontáveis revoluções mexicanas deixou-o sem vintém e a única roupa que tinha estava sovada a não mais poder. Se quiser ser-lhe agradável, chame-o de general. Diz ele que foi general nas forças de Huerta. Seria mesmo Huerta? Enfim, segundo ele, se as coisas tivessem tomado bom caminho, a essas horas seria ministro da Guerra. Já me prestou bons serviços. Não é mau sujeito. A única queixa que tenho dele é que tresanda a perfume.

- E que relação tem isso comigo? - Ele vai partir para a Itália, encarregado de uma missão delicada, e peço-lhe que o acompanhe. Não tenho muita confiança nele em matéria de dinheiro. É jogador e mulherengo. Suponho que o senhor tenha vindo de Genebra com seu passaporte em nome de Ashenden?

- Sim. - Consegui outro, um passaporte diplomático, visado para a França e a Itália, em nome de Somerville. Peço-lhe viajar com o mexicano. Quando está disposto, é um companheiro muito divertido; vai ter oportunidade de conhecê-lo bem.

- Mas em que consiste essa missão? - Será muito necessário o senhor saber do que se trata? Ashenden não respondeu. Encararam-se como dois viajantes, num trem, quando tentam adivinhar reciprocamente os seus negócios.

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- Eu, se fosse o senhor, deixaria o general com a palavra. Só lhe diria o estritamente indispensável. Aliás, asseguro-lhe que não lhe fará perguntas. É, no seu gênero,

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um perfeito gentleman.

- A propósito, qual é seu verdadeiro nome? - Eu o chamo sempre de Manuel, mas não garanto que isso lhe agrade muito. Seu nome é Manuel Carmona.

- Um completo patife, segundo depreendo das suas reticências.

Os olhos pálidos de R. cintilaram. - Oh! Não devemos ir tão longe.. Ele não teve o privilégio de cursar um grande colégio. As idéias dele sobre probidade não são as suas nem as minhas. Procure não deixar nunca uma cigarreira de ouro a seu alcance, mas fique certo de que, se ele a surrupiar, não hesitará em empenhá-la para pagar uma dívida de jogo. Se pudesse, roubar-lhe-ia a mulher, mas, se o senhor for bastante hábil para impedi-lo, ele partilhará consigo seu último pedaço de pão. Quando ele ouve no gramofone a Ave-Maria de Gounod, fica com os olhos rasos de lágrimas, mas, se julgar que o senhor o ofendeu, mata-o sem dó nem piedade. No México, segundo ouvi dizer, é um insulto reparar no que um homem bebe. Contou-me que abateu a tiros um desgraçado holandês que ignorava essa tradição.

- E não se viu em dificuldades por isso? - Não. Graças a sua família, que é uma das melhores do lugar, o caso foi abafado e os jornais noticiaram que o holandês se suicidara. Afinal de contas, poderia ser verdade. Creio que o nosso mexicano não dá a menor importância à vida do próximo.

Ashenden mostrou-se interessado e perscrutou a face pálida e fanada de seu chefe. Esta última observação pareceu-lhe intencional.

- Na verdade, exagera-se um pouco o valor da vida humana; é como se se atribuísse um valor intrínseco às

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fichas com que se joga o pôquer, quando de fato elas têm apenas um valor convencional. No decorrer de uma batalha, os homens não devem ser mais do que fichas nas mãos do general, e ele ver-se-ia perdido se os quisesse considerar como seres vivos.

- O caso, porém, é que há fichas que se dão ao luxo de pensar e de sentir, e, se acham que as expuseram inutilmente, são muito capazes de se recusarem a marchar na próxima vez.

- Mas, afinal, não é disso que se trata. A coisa é que sabemos que um tal Constantino Andreadi está por chegar de Constantinopla com documentos secretos, e precisamos desses documentos. um grego, agente de Enver Paxá, homem de sua inteira confiança. Acresce que Enver serve-se dele para transmitir verbalmente mensagens que, por sua gravidade, ele não quer confiar ao papel. Andreadi chega do Pireu pelo Ítaca e desembarcará em Brindisi para seguir para Roma. Deve depositar os documentos na embaixada alemã e comunicar o resto verbalmente ao embaixador.

- Compreendo. A Itália nesse momento mantinha-se ainda neutra. As potências centrais tudo faziam para conservá-la nessa situação, enquanto os aliados se esforçavam para obter seu concurso.

- E sobretudo, nada de histórias com as autoridades italianas, porque daí poderiam resultar conseqüências fatais. Mas é preciso, a qualquer preço, impedir que Andreadi chegue a Roma.

- A qualquer preço? - perguntou Ashenden. - Com dinheiro nada se conseguirá - respondeu R., os lábios apertados num sorriso sardônico.

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- E então? - Não é preciso quebrar a cabeça. - É que eu tenho muita imaginação.

- O senhor vai partir para Nápoles com o Mexicano Calvo. O sonho dele é voltar para Cuba. Seus correligionários, ao que parece, estão lá preparando uma revolução, e ele quer estar presente para, no momento oportuno, trasladar-se ao México. Está sem um vintém. Trouxe comigo dólares americanos que vou lhe dar esta noite.

- Quantia vultosa? - Bastante, mas, para maior comodidade sua, trouxe-a em cédulas de mil dólares. O senhor as entregará ao Mexicano Calvo em troca dos documentos de Andreadi.

Uma pergunta aflorou aos lábios de Ashenden, mas a que ele formulou foi outra.

- Ele terá compreendido bem o que o senhor espera dele?

- Perfeitamente. Bateram à porta; esta se abriu e emoldurou o Mexicano Calvo.

- Cheguei. Boa noite, coronel. Encantado de vê-lo. R. levantou-se. - Fez boa viagem, Manuel? Apresento-lhe Monsieur Somerville, que vai acompanhá-lo a Nápoles, general Carmona.

- Muito prazer, monsieur. Deu um aperto de mão tão forte em Ashenden que este se retorceu.

- Que mão de ferro, general - murmurou. O Mexicano contemplou as mãos com satisfação. - Fiz as unhas esta manhã, mas não estou satisfeito com a manicura. Gosto de unhas muito mais brilhantes.

Pareciam espelhos, com seu verniz vermelho vivo. Apesar da temperatura agradável, o general vestia um sobretudo com gola de astracã, e a cada um de seus movimentos uma onda de perfume rescendia.

- Tire seu sobretudo, general, e tome um charuto - ofereceu R.

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Apesar de sua magreza, o Mexicano, por sua elevada estatura, dava a impressão de força. Vestia uma roupa elegante de sarja azul, e do bolso do casaco pendia artisticamente um lenço de seda. No pulso brilhava um relógio de ouro. Seus traços fisionômicos eram regulares, mas um pouco duros. O tom amorenado de seu rosto, liso como o de uma mulher, acentuava a languidez carinhosa de seus olhos. Uma cabeleira castanho-clara sabiamente despenteada dissimulava a nudez de seu crânio; suas faces glabras e sem rugas, seu vestuário rebuscado, tornavam-no à primeira vista um tanto repugnante. Feio e até um pouco ridículo, mesmo assim exercia uma fascinação sinistra.

Sentou-se e repuxou as calças para conservar o vinco. - Então, Manuel, quantos corações derrubamos hoje? - perguntou R., com uma curiosidade irônica.

O general voltou-se para Ashenden.

- Nosso amigo inveja meus sucessos junto ao belo sexo. Já lhe disse muitas vezes que teria tanta sorte como eu se ouvisse meus conselhos. Audácia, eis tudo o que é preciso. Só se sai mal quem tem medo.

- Que pilhéria, Manuel! Nem todos têm seu jeito. Você tem um não-sei-quê ao qual as mulheres não resistem.

O Mexicano pôs-se a rir com evidente satisfação. Falava muito bem o inglês, mas com a pronúncia espanhola e a entonação ianque.

- Já que quer saber, coronel, posso dizer-lhe que namorei uma mulherzinha que vinha para Lyon ver a sogra. Não erá muito nova, e era um tanto magrinha para o meu gosto, mas, apesar disso, bem passável, e, francamente, não nos aborrecemos.

- Bem, tratemos agora de negócios sérios - disse R. - A suas ordens, coronel.

Deu uma olhada para Ashenden. - Mr. Somerville é militar? - Não, é homem de letras.

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- Como o senhor sempre diz, coronel, é preciso um pouco de tudo para fazer um mundo. Sinto-me muito feliz por tê-lo conhecido, Mr. Somerville. Conheço uma porção de histórias que o interessarão; estou certo de que vamos nos tornar bons amigos. O senhor me é muito simpático. Para dizer-lhe todo o meu pensamento, confesso-lhe que sou um feixe de nervos e a presença de uma pessoa que me desagrada me põe fora de mim.

- Estou certo de que vamos fazer uma viagem agradável - disse Ashenden.

- Quando nosso amigo deve chegar em Brindisi? - perguntou o Mexicano, dirigindo-se a R.

- Deve embarcar no Pireu no dia quatorze, no Ítaca, uma velha carcaçá, sem dúvida. Portanto, nada de demoras.

- É justamente o que penso. R. levantou-se e, de mãos no bolso, sentou-se na beirada da mesa. Com seu uniforme não muito novo, a túnica desabotoada, tinha o aspecto desleixado, comparado com a elegância sem distinção do Mexicano.

- Mr. Somerville praticamente ignora o fim a que você se propõe, e prefiro que você nada diga a ele. Isso diz respeito só a você. Ele lhe entregará as quantias necessárias, mas você pode proceder como quiser. Naturalmente, nada impede que se aconselhe com ele.

- É muito raro eu pedir conselhos, e, em geral, quando os peço, não os sigo.

- E, sobretudo, se as coisas se turvarem não envolva nelas Mr. Somerville. Em condição alguma ele deve ser comprometido.

- Sou homem de honra, coronel - replicou o Mexicano, com dignidade -, e preferiria deixar-me cortar em pedaços a trair meus amigos.

- Foi o que disse a Mr. Somerville. Portanto, estamos completamente de acordo: se tudo marchar bem, Mr. Somerville entregar-lhe-á a importância combinada em troca dos

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papéis. Quanto ao modo de você consegui-los, nada temos a ver com isso.

- Perfeitamente. Há, no entanto, um ponto sobre o qual quero insistir: Mr. Somerville já compreendeu que não é pelo dinheiro que me encarrego dessa missão?

- Já, sim - respondeu R. com gravidade, fitando-o firmemente.

- Estou de corpo e alma com os aliados e não perdôo aos alemães terem violado a neutralidade da Bélgica; e, se aceito sua proposta, é por patriotismo. Suponho que posso ter absoluta confiança em Mr. Somerville?

R. inclinou-se. O Mexicano voltou-se para Ashenden. - Está sendo organizada uma expedição para libertar meu desgraçado país dos tiranos que o exploram e arruinam. Cada tostão que eu receber será empregado em fuzis e cartuchos. Para mim, não preciso de dinheiro, sou soldado e sei viver com um pedaço de pão e algumas azeitonas. Existem somente três ocupações dignas de um gentleman: a guerra, as cartas e as mulheres. Não custa nada pôr uma carabina no ombro e rumar para a montanha, e, de resto, a verdadeira guerra é isso, sem manobras e sem canhonaços. Quanto às mulheres, elas me querem por mim mesmo, o que não impede que eu ganhe quase sempre com as cartas.

Esse estranho fanfarrão, magnífico de empáfia, com seu lenço perfumado e sua pulseira de ouro, encantava Ashenden. Pelo menos era um tipo que se afastava da vulgaridade. Apesar de sua peruca e das bochechas caídas, tinha garbo. Era extravagante, mas ninguém ousaria dizer isso a ele.

- Onde está sua maleta, Manuel? - perguntou R. A esta pergunta inesperada, que sustava bruscamente sua tirada eloqüente, o Mexicano franziu a testa, mas não deu qualquer outro sinal de descontentamento. Ashenden teve a suspeita de que, para o Mexicano, o coronel não passava de um bárbaro, insensível às emoções delicadas.

- Deixei-a na estação.

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- Mr. Somerville tem um passaporte diplomático. Ele poderá, se você quiser, juntar sua maleta com a dele na fronteira, para poupar-lhe o incômodo da revisão aduaneira.

- Tenho muito pouca coisa nela; alguns trajes e roupa branca, mas, talvez, seja mesmo melhor que Mr. Somerville se encarregue disso. Eu me presenteei com meia dúzia de pijamas de seda, antes de sair de Paris.

- E o senhor? - perguntou R., dirigindo-se para Ashenden. - Eu tenho apenas um saco de viagem. Está no meu quarto.

- Mande levá-lo à estação, enquanto o carregador de bagagem ainda se encontra aí. O trem sai a 1h10.

- Ah! E foi assim que Ashenden ficou sabendo que deveriam partir naquela mesma noite.

- Torno a dizer-lhes: procurem chegar a Nápoles o mais depressa possível.

- Perfeitamente.

R. levantou-se. - Quanto a mim, vou deitar-me. E os senhores, o que vão fazer?

- Estou com vontade de dar um passeio pela cidade - disse o Mexicano. - Na vida tudo me interessa. uuer o senhor emprestar-me cem francos, coronel? Estou sem dinheiro.

R. puxou a carteira e deu ao general a nota que pedia. Depois, voltando-se para Ashenden.

- E o senhor, vai esperar aqui? - Não, vou para a estação e lá me distrairei lendo. - Ofereço-lhe um uísque com soda, antes da partida. Que diz, Manuel?

- Agradeço muito sua amabilidade, mas só bebo champanhe e conhaque

- Misturados? - perguntou R. secamente.

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- Nem sempre - retrucou o outro gravemente.

R. pediu conhaque e água mineral, mas o Mexicano engoliu em dois goles ruidosos três quartas partes de um copo de conhaque puro. Depois levantou-se, vestiu o sobretudo de gola de astracã, pegou seu chapéu preto de abas largas e, com o gesto de um ator de melodrama que abandona sua dama a um rival mais digno, estendeu a outra mão a R..

- Bem, coronel, desejo-lhe uma boa-noite e belos sonhos. Sabe Deus quando nos tornaremos a ver!

- Nada de imprudências, se for possível, Manuel, e, em todo caso, cuidado com a língua.

- Disseram-me que numa das grandes escolas do seu país, onde os filhos dos gentlemen se preparam para a carreira de oficial da Marinha, há uma inscrição gravada com letras douradas: A MARINHA BRITÂNICA NÃO CONHECE O IMPOSSÍVEL. Quanto a mim, ignoro o significado da palavra fracasso.

- É que ela tem numerosos sinônimos. - Encontrá-lo-ei na estação, Mr. Somerville - disse o Mexicano, e, saudando com a mão, deixou-os.

R. olhou Ashenden com um sorriso pérfido. - E então, que me diz? - Estou assombrado, coronel. Tem certeza de que não é um charlatão? Parece vaidoso como um pavão. E com aquele físico horrível terá ele, realmente, tantos sucessos como pretende? E por que é que lhe inspira confiança?

R. teve um sorriso sarcástico e esfregou as mãos com ar satisfeito.

- Eu tinha certeza de que ele o interessaria. Que tipo, não? Mas nós podemos contar com ele. - Seu olhar tornou-se subitamente duro. - Custar-lhe-ia muito caro se nos enganasse. - Interrompeu-se. - Enfim, é um risco a correr. Vou dar-lhe as passagens e o dinheiro e deixá-lo-ei em liberdade. Estou cansadíssimo e louco por me deitar.

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Dez minutos mais tarde Ashenden dirigiu-se para a estação, com seu saco de viagem no ombro de um carregador.

Como faltassem ainda duas horas, mais ou menos, para a partida do trem, instalou-se na sala de espera e começou a ler um romance.

O Rome-Express estava por chegar. Inquieto por não ver o Mexicano, Ashenden pôs-se a caminhar na plataforma. Sofria dessa estranha moléstia que chamam de febre do trem. Com uma hora de antecedência, começava a agitar-se. Os carregadores do hotel, sempre atrasados em descer as bagagens, punham-no fora de si, e não se podia conformar com a lentidão solene do ônibus do hotel. À menor dificuldade do tráfego, placidez dos carregadores o exasperavam. Todo o mundo parecia conjurado para retê-lo. Alguns o impediam de passar as barreiras, outros demoravam nas filas junto às bilheterias e nunca acabavam de verificar o troco. E o registro das bagagens! Se viajava com amigos, esses miseráveis lembravam-se, à última hora, de comprar jornais e de dar uma volta pela plataforma, arriscando-se a perder o trem; paravam para falar com qualquer um ou embarafustavam-se pela cabina do telefone. De fato, Ashenden somente respirava desafogadamente depois de instalado no seu canto, com sua maleta na rede acima da cabeça, um larga meia hora antes da partida do trem. Por vezes chegava tão cedo que lhe acontecia alcançar o trem precedente, mas isso com a mesma ansiedade como se tivesse chegado à última hora.

Foi dado o sinal da chegada do Rome-Express, e nadado Mexicano. Com grande ruído, numa nuvem de fumaça, o expresso entrou na estação. Ashenden enervava-se cada vez mais. Percorreu a plataforma a toda pressa, olhou para o interior de cada sala de espera, foi ao depósito de bagagem, e nada do homem. Não havia carros-dormitório, mas vários passageiros desceram de um vagão de primeira classe. Ele

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marcou dois lugares. Depois foi para a porta do carro, olhando alternadamente para a plataforma e para o relógio. No momento em que gritaram "en voiture", decidiu-se a descer com seu saco para a plataforma. Que cena iria fazer àquele imbecil! Ainda três minutos, agora só dois, um! Fecharam as portas. Por fim viu o Mexicano que vinha tranqüilamente, seguido de dois carregadores e acompanhado por um quidam de chapéu duro. Com a mão fez um sinal a Ashenden.

- Ah! Meu caro, finalmente o vejo. Estava sem saber o que lhe teria acontecido.

- Com mil demônios! Apresse-se ou perderemos o trem.

- Eu nunca perco o trem. Reservou bons lugares? O chefe da estação estará áusente toda a noite, mas aqui temos o subchefe.

O homem de chapéu duro cumprimentou. Ashenden inclinou-se.

- Mas isso é um carro comum! Não vou viajar nisso. Virou-se para o subchefe da estação, com um sorriso amável:

- Não tem coisa melhor para oferecer-me? - Certainement, mon général. Vou instalá-los num salon-lit, é claro.

Levou-os a um compartimento vazio, onde havia três leitos. O Mexicano contemplou-o com olhar satisfeito. Os dois carregadores depuseram as bagagens.

- Está muito bem. Fico-lhe muito grato. Estendeu a mão ao subchefe. - Não o esquecerei, meu caro, e a primeira vez que vir o ministro, dir-lhe-ei da cordialidade com que o senhor me tratou.

- É grande bondade sua, meu general. Fico-lhe muito agradecido.

A locomotiva apitou. O trem moveu-se.

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- É muito melhor do que um simples vagão de primeira classe, não acha, Mr. Somerville? Um bom viajante deve sempre saber desapertar-se.

A cólera de Ashenden, porém, não se acalmara. - Que diabos! Para que tantas dificuldades? Ficaríamos com cara de idiotas se tivéssemos perdido o trem.

- Meu caro, não havia o menor perigo disso. De chegada, fui dizendo ao chefe da estação que era o general Carmona, comandante-em-chefe do Exército mexicano e que me detivera algumas horas em Lyon para conferenciar com o marechal-de-campo britânicos Pedi-lhe que retardasse a partida do trem, no caso de demorar-me, deixando-lhe entrever que meu governo poderia, neste caso, conferir-lhe uma condecoração. Eu já conhecia Lyon e suas mulherzinhas, que não têm o chique da parisiense, mas têm um não-sei-quê de encantador, que ninguém pode negar. Quer um gole de conhaque, antes de dormir?

- Não, muito obrigado - agradeceu Ashenden asperamente.

- Eu sempre bebo um copo antes de me deitar, é ótimo para os nervos.

Abriu então sua maleta e, não sem algum trabalho, conseguiu achar uma garrafa. Levou-a à boca e bebeu lentamente, enxugando os lábios com o dorso da mão. Acendeu um cigarro. Depois tirou os sapatos e deitou-se. Ashenden diminuiu a luz.

- Ainda não sei - disse, pensativamente, o Mexicano Calvo - o que é melhor: se adormecer com os beijos de uma bela rapariga ou com um cigarro na boca. Já esteve no México? Amanhã lhe contarei coisas do México. Boanoite.

Daí a pouco, pela respiração regular do Mexicano, Ashenden percebeu que dormia, e ele mesmo não tardou muito em adormecer. Quando acordou, viu que o companheiro

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tirara o sobretudo e servia-se dele, como de um cobertor, sem contudo ter tirado a peruca. De repente, houve uma forte sacudida, os freios rangeram e o trem parou. Imediatamente, antes mesmo de Ashenden compreender o que acontecera, o Mexicano ergueu-se de revólver na mão.

- O que é que há? - exclamou.

- Creio que nada. Talvez apenas uma manobra. O Mexicano tornou a deitar-se. Ashenden acendeu a luz. - Safa! Para um dorminhoco você acorda depressa! - Dever profissional. Ashenden esteve para perguntar-lhe se por aquilo ele se referia a assassínios, conspirações ou ao comando dos exércitos, mas achou que seria indiscreto. O general abriu a mala e tirou a garrafa.

- Não aceita? - perguntou. - Não há nada melhor quando se foi acordado bruscamente.

Tendo Ashenden recusado o oferecimento, o Mexicano emborcou novamente o gargalo, depois suspirou e acendeu um cigarro. Com esta última dose ele esvaziara, mais ou menos, a garrafa de conhaque, sem contar com o que deveria ter bebido no passeio pela cidade, mas, apesar disso, conservava toda a lucidez. Um abstêmio não estaria mais lúcido.

O trem reiniciou a marcha, e daí a pouco Ashenden dormia novamente. Quando despertou, o dia já estava claro. O Mexicano também estava acordado e fumava. Pontas de cigarros pontilhavam o tapete e um cheiro acre de fumo flutuava no compartimento. O general impedira Ashenden de abrir a janela, porque temia o ar da noite.

- Não me levantei ainda para não acordá-lo - disse o Mexicano. - Quer vestir-se antes ou depois de mim?

- Oh! Não tenha pressa. - Sou um velho soldado, visto-me num momento. O senhor escova os dentes todos os dias?

- Naturalmente.

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- Também eu. É um hábito que adquiri em Nova York. Sempre achei que uma bela fileira de dentes dá a um homem maiores possibilidades.

O general foi ao lavatório, escovou rudemente os dentes, fazendo gargarejos ruidosos. A seguir, pondo água de colônia numa toalha, esfregou o rosto e as mãos. Penteou meticulosamente a cabeleira que, ou não se movera durante a noite, ou de cuja fixidez se assegurara antes de Ashenden despertar. O fato é que ela estava firme no seu lugar.

Tirou da maleta um pulverizador e, pressionando a pêra, cobriu a camisa e o casaco com uma névoa de perfume. Não esqueceu o lenço e, por fim, radiante como um homem que acabasse de cumprir todos osl seus deveres, voltou-se para Ashenden:

- Agora estou pronto para enfrentar o dia. Tudo isso está a seu dispor. Pode confiar nesta água- de-colônia. E o que há de melhor em Paris.

- Agradeço-lhe muito - disse Ashenden. - Mas basta-me um pouco de água e sabonete.

- Água? Nem brincando. Só me serve para o banho geral; não há nada pior para a pele. . Como se aproximassem da fronteira, Ashenden, recordando o gesto instintivo do general, ao acordar sobressaltado, disse-lhe:

- Acho conveniente dar-me seu revólver, porque, com meu passaporte diplomático, é pouco provável que me revistem. Ao passo que podem se desentender consigo, o que nos acarretaria uma série de complicações.

- Oh! É uma arminha insignificante, quase um brinquedo - respondeu o Mexicano puxando do bolso um revólver formidável e carregado. - Nem durante uma hora eu me separo dele; tenho a impressão de que, sem ele, não estou completamente vestido. Mas acho que o senhor tem razão, tratemos de evitar complicações. Vou dar-lhe também

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a minha faca. Prefiro usar a faca mais do que o revólver. É mais elegante.

- Simples questão de hábito. Talvez se sinta mais à vontade com uma faca.

- Não há quem não saiba apertar um gatilho, mas só um homem pode manejar uma faca.

Tirou do cinto uma faca-canivete, brilhante, e abriu-a. Tudo foi tão rápido que Ashenden só viu o final. O rosto glabro do general iluminou-se com um sorriso, quando passou a faca a Ashenden.

- É uma bela peça, não? Nunca em minha vida, Mr. Somerville, vi aço melhor; corta como uma navalha e é sólido. Pode-se com ela fazer ponta no lápis ou derrubar um carvalho. Não dá na vista e, uma vez fechada, parece canivete de um colegial.

Fechou-a com um ruído seco e Ashenden guardou-a no bolso, juntamente com o revólver.

- Não tem mais nada? - Minhas mãos - replicou o Mexicano com altivez -, mas espero que com elas os aduaneiros não impliquem.

Ashenden lembrou-se da força das mãos largas e macias, sem pêlos e de unhas pontiagudas que brilhavam sob a camada de verniz.

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A MULHER MORENA


Ashenden e o general Carmona foram submetidos separadamente às formalidades aduaneiras. Quando voltaram para os seus lugares, Ashenden restituiu ao companheiro o revólver e a faca.

O Mexicano teve um suspiro de alívio. - Ah! Agora posso respirar! E se jogássemos um pouco?

- Boa idéia - respondeu Ashenden. De um canto da maleta o general tirou um baralho gorduroso. Propôs um ecarté; como, porém, Ashenden não conhecesse esse jogo, concordaram num piquet, que era familiar a ambos. Feitas as apostas, começaram. Jogaram a partida em quatro golpes, sendo que o primeiro e o último valiam dobrado.

Ashenden tinha sempre boas cartas, mas o general tinha-as sempre melhores. Essa sorte despertou a desconfiança de Ashenden. Ele sabia que o adversário era capaz de ajudar um pouco o destino. Não obstante, não pôde pilhá-lo numa incorreção. Perdeu partida após partida e seu prejuízo atingia já mil francos, quantia respeitável para a época.

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O general fumava um cigarro atrás do outro. Enrolava-os com dedo ágil e colava-os, passando-os na língua. Enfim, repoltreou-se no assento.

- Diga-me, meu caro, o governo britânico encarrega-se das suas dívidas de jogo, quando o senhor anda em missão?

- Infelizmente, não. - Nesse caso acho que o senhor já perdeu bastante. Se isso entrasse nas despesas gerais, eu lhe proporia para continuarmos até Roma; mas o senhor me é muito simpático e, uma vez que é o seu dinheiro que está na dança, não lhe quero ganhar nem um vintém mais.

Guardou as cartas. Ashenden, despeitado, puxou várias notas e deu-as ao Mexicano. Este contou-as, dobrou-as com cuidado e meteu-as na carteira. Depois, inclinando-se para a frente e dando umas palmadas quase que afetuosas nas pernas de Ashenden:

- O senhor me agrada. O senhor não é malcriado,. nem tem a arrogância dos seus compatriotas, e tenho certeza de que compreenderá a intenção que me leva a dar-lhe este conselho: não jogue piquet com pessoas a quem não conhece.

Ashenden encabulou com a franqueza e quiçá o deixasse transparecer, porque o Mexicano tornou-lhe da mão e disse:

- Meu caro amigo, espero não tê-lo magoado, não? Não gostaria de fazer isso por nada deste mundo. Ao senhor menos do que a ninguém. Não foi o que eu quis dizer. Se devêssemos continuar juntos por muito tempo, mostrar-lhe-ia como se ganha com as cartas. Joga-se para ganhar e é uma tolice perder.

- Eu pensava que era só no amor e na guerra que tudo era permitido - disse Ashenden com um risinho.

- Ah! Está rindo! Então tudo vai bem. É assim que se deve suportar o azar. Já vejo que o senhor tem um belo caráter e não lhe falta bom senso. Irá longe na vida. Quando

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eu voltar para o México e tornar a entrar na posse das minhas fazendas, é preciso que o senhor venha passar uma temporada comigo. Tratá-lo-ei como a um rei. Montará meus melhores cavalos, iremos juntos às corridas de touros e, se houver raparigas que lhe agradem, bastará dizer uma palavra para tê-las.

Começou a falar das vastas propriedades, das haciendas e das minas de que fora despojado, e da vida principesca que levava. Pouco importava que estivesse falando a verdade ou não. O perfume capitoso do romanesco exalava-se das suas palavras sonoras. A vida faustosa que descrevia parecia pertencer a outras eras. Seus gestos eloqüentes evocavam os fulvos horizontes longínquos e as vastas plantações verdes, os grandes rebanhos, a noite enluarada, o queixume melodioso dos cantores cegos e os sons agudos das guitarras.

- Perdi tudo, tudo. Em Paris precisei ganhar o pão, dando lições de espanhol e mostrando aos americanos (refiro-me aos americanos del norte) a vida noturna da cidade. Eu, que outrora podia gastar friamente mil duros num jantar, ser obrigado a mendigar um pedaço de pão como um índio andrajoso! Eu, que gostava de enfiar uma pulseira de diamantes no pulso de uma mulher bonita, sentir-me feliz por uma velha carcaça que poderia ser minha mãe me oferecer um casaco! Paciência! O homem veio ao mundo para sofrer. como a chama para subir, mas o caiporismo não pode durar eternamente. Desta vez, o momento se aproxima. Muito breve soará o minuto do grande golpe.

Retomou as cartas gordurosas e as dispôs em pequenos montes.

- Vamos ver o que dizem as cartas. Elas nunca mentem. Se eu tivesse tido mais confiança nelas, não me teria deixado arrastar a uma loucura que quase me arrebentou. Procedi como todo homem de bem teria procedido em igual situação, mas lamento ter sido forçado à prática de um ato que até hoje me pesa sobre o coração.

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Examinou algumas cartas, refugou outras, obedecendo a uma regra que Ashenden ignorava, baralhou-as e mais uma vez distribuía-as em pequenos montes.

- As cartas tinham-me avisado, nunca o negarei. O amor e uma mulher morena, perigo, traição, morte. Isso entrava pelos olhos. Qualquer cretino teria compreendido, e eu toda a vida lidei com cartas. Quase nunca tomo uma resolução sem antes consultá-las. Não tenho desculpa. Ah! Os senhores das raças nórdicas não sabem o que é o amor; não conhecem as noites sem fim, em que a gente se vira e se revira, sem poder dormir; a fuga do apetite, que faz decair como durante uma febre; não conhecem aquele frenesi que nada acalma; aquele delírio que nos faz parecer doidos. Um homem como eu é capaz de todas as loucuras e de todos os crimes, quando o amor o invade, si senor, e também de heroísmos. É capaz de escalar picos mais altos do que o Everest e atravessar a nado mares mais vastos do que o Atlântico. É Deus e é o demônio. As mulheres foram a minha desgraça.

Outra vez o Mexicano consultou as cartas e modificou seus pequenos montes. Depois recomeçou a baralhá-las.

- Fui adorado por muitas e muitas mulheres. Não o digo por fatuidade. Não procuro também explicar o porquê. Registro os fatos. Pode ir ao México e lá perguntar o que sabem a respeito de Manuel Carmona e dos seus triunfos. Pergunte-lhes se jamais houve uma mulher que lhe resistisse.

Ashenden observava-o em silêncio. Seria possível R., aquela raposa velha de instinto tão seguro, ter-se enganado? Sentia-se perturbado. Carmona acreditaria, verdadeiramente, ser irresistível, ou não passaria de um parlapatão? No decorrer de suas manipulações, acabara refugando todas as cartas, menos quatro, enfileiradas diante dele. Tocou-as, uma após a outra, sem virá-las.

- É o destino - disse -, e nenhuma força no mundo poderá mudar isso. Hesito. Este momento enche-me de apreensões,

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e preciso lançar mão de toda a minha coragem para virar as cartas, que podem me anunciar, talvez, uma catástrofe. Sou valente, mas já algumas vezes cheguei a esse ponto e não tive a coragem de olhá-las.

Efetivamente, ele as contemplava agora com visível ansiedade.

- Que lhe estava eu dizendo? - Estava dizendo que as mulheres o achavam irresistível - respondeu Ashenden secamente.

- Um dia, contudo, achei uma que me resistiu. Via-a pela primeira vez numa dessas casas, conhece, não? Casa de mujeres, no México. Ela descia a escada, quando eu subia; não era muito bonita. Eu tive centenas muito mais lindas do que ela, mas esta possuía qualquer coisa que me atraía; pedi à china da casa que a mandasse para mim. Vai conhecê-la quando for ao México, chamam-na La Marquesa. Respondeu-me que a rapariga não era sua pensionista, que vinha apenas de tempos em tempos e que nesse dia não voltaria mais. Dei-lhe ordem para mandar chamá-la no dia seguinte e que não a deixasse sair antes de eu chegar. Mas retiveram-me e demorei-me; quando entrei, soube que La Marquesa, sob pretexto de que não estava acostumada a esperar, fora-se. Tenho bom gênio e não me formalizo nunca com os caprichos das mulheres. Isso faz parte de suas seduções; por isso aceitei o incidente sorrindo. Até mesmo lhe mandei uma moeda de cem duros, prometendo ser pontual no dia seguinte. Quando cheguei, entretanto, na hora exata, La Marquesa tinha mandado devolver-me os cem duros, alegando que eu não lhe era simpático. Tirei o diamante que trazia no dedo e dei ordem à velha que o desse para ela, para ver se não mudaria de opinião. Na manhã seguinte, La Marquesa mandou-me, em troca do anel, um cravo vermelho. Eu não sabia se havia de rir-me ou de me zangar. Não estou acostumado a ser contrariado nas minhas paixões e não tenho pena de gastar dinheiro

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(para que pode ele servir, senão para mimar as mulheres bonitas?) . Mandei dizer àquela peste que lhe oferecia mil duros para que jantasse comigo naquela noite. Pouco depois, La Marquesa fez-me avisar que viria sob a condição de poder ir-se logo depois do jantar. Dei de ombros, mas aceitei. Não levei o pacto a sério. Com certeza queria fazer-se desejada. Veio, pois, jantar comigo em minha casa. Eu disse que ela não era bonita? Era a mais linda, a mais deliciosa criatura que jamais encontrara. Fiquei intoxicado. Era uma sedução, uma inteligência. Toda a gracia das andaluzas. Numa palavra, adorável. Perguntei-lhe por que me tinha tratado tão mal, e riu-me na cara. Fiz tudo o que pude para agradar-lhe. Lancei mão de todos os meus recursos. Superei-me a mim mesmo. Mas, apenas terminado o jantar, ela levantou e deu-me boa noite. Perguntei-lhe o que era aquilo. Respondeu-me que eu prometera deixá-la partir e que confiava na minha palavra de honra. Protestei, argumentei, resmunguei, exaltei-me. Nada consegui. Tudo o que eu tive foi a promessa de que voltaria no dia seguinte para jantar comigo, sob as mesmas condições. O senhor vai acharme ridículo, mas a verdade é que eu exultava de alegria, como o mais feliz dos homens. Durante sete dias seguidos dei-lhe mil duros de prata para que jantasse em minha companhia. Todas as noites eu a esperava com o coração aos pulos, exatamente como um novillero na sua primeira corrida de touros, e todas as noites, depois de zombar de mim, de coquetear comigo, retirava-se, deixando-me frenético. Eu já estava meio louco. Nunca amei assim, nem antes, nem depois. Não pensava em outra coisa, tinha perdido as estribeiras. Amo meu país e sou patriota. Tínhamos formado um pequeno grupo e estávamos decididos a não mais tolerar a desordem na qual vivíamos. Todos os bons lugares eram dados aos outros; nós servíamos apenas para pagar impostos, como simples vendeiros e a sofrer afronta após afronta. Dinheiro e homens não nos faltavam. Nossos planos estavam definitivamente

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assentados, e nós prontos para tentarmos a aventura. Eu tinha uma infinidade de coisas para fazer, reuniões, aquisição de munições, ordens a dar, mas estava de tal forma obcecado por aquela mulher que de tudo me esquecia. O senhor pensará, talvez, que eu fiquei furioso de me ver tratado como um pateta, eu, que ignorava o que fosse não satisfazer minhas menores fantasias. Eu não imaginava que sua recusa tivesse por fim inflamar meus desejos. Eu acreditava, pura e simplesmente, no que ela dizia, isto é, que somente cederia no dia em que verificasse que me tinha amor. A mim competia merecê-la, e eu esperava com resignação, pois a considerava um anjo. Minha paixão acabaria abrasando-a como fogo que devorava uma campina. Por fim, um dia confessou que me amava! Minha emoção foi tão intensa que pensei que ia cair e morrer. Oh! Que êxtase! Que delírio! Ter-lhe-ia dado tudo o que possuía; teria arrancado as estrelas do céu para com elas adornar seus cabelos; buscava um meio extraordinário para provar-lhe a violência do meu amor; desejaria realizar o impossível, qualquer coisa de incrível, dar-me todo, minha alma, minha honra, tudo o que tinha e tudo o que era. E nessa noite, enquanto repousava em meus braços, falei-lhe da nossa conspiração e de tudo que a ela dizia respeito. Imediatamente senti que a atenção retesava seu corpo; surpreendi, sem compreender, um bater de pálpebras; a mão que acariciava meu rosto tornou-se gelada e seca; e uma suspeita repentina invadiu-me. De súbito, lembrei-me das cartas: o amor e uma mulher morena, perigo, traição, morte. Por três vezes elas afirmaram isso. E eu não lhes dera atenção. Fingi nada ter notado. Ela aninhou-se junto ao meu coração, arrulhou-me que todas essas coisas lhe davam medo e perguntou-me se fulano, beltrano e sicrano também estavam metidos. Respondi-lhe. Queria ter certeza para não me enganar. Com astúcia infernal, entre dois beijos,

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foi-me arrancando um por um todos os detalhes da conspiração. E hoje tenho tanta certeza de que era uma espiã como tenho de vê-lo aí sentado diante de mim. Ela fora mandada pelo presidente para seduzir-me com seus encantos diabólicos, e agora todos os meus segredos lhe pertenciam. A vida de todos nós estava em suas mãos, e, se ela saísse viva daquele quarto, 24 horas mais tarde seríamos todos fuzilados. E eu a amava, eu a amava! Oh! As palavras não podem traduzir a ânsia do desejo que incendiava meu coração. Quando chega a esse ponto, o amor é um sofrimento, mas um sofrimento delicioso, mais intenso do que todos os gozos. É a angústia divina de que falam os santos, quando em êxtase. Eu sabia que ela não podia sair viva das minhas mãos e temia que, se retardasse o momento, me faltaria coragem, "Sinto que vou dormir", disse-me ela. "Dorme, minha pombinha", respondi-lhe. "Alma de mi corazón", murmurou. "Alma do meu coração." Foram suas últimas palavras. Suas pesadas pálpebras azuladas como uma uva madura cerraram-se; e daí a pouco, pelo arfar tranqüilo do seu seio contra o meu, vi que dormia. O senhor compreende, eu a amava; por nada deste mundo eu poderia vê-la sofrer; era uma espiã, sim, mas minha adoração ordenava-me poupar-lhe o terror de saber o que a esperava. Coisa estranha, não lhe tinha ódio. Deveria odiá-la, mas não o conseguia; unicamente sentia minha alma envolta em trevas. Pobre, pobre criança! Por ela chorava, apiedado! Insinuei docemente meu braço esquerdo sob seu corpo, enquanto ergui o direito, que estava livre. Céus, como era bela! Tive de virar meu rosto para, com todas as minhas forças, enterrar-lhe a faca na garganta de neve. Sem acordar, ela passou do sono para a morte.

Calou-se e fixou um olhar sombrio sobre as quatro cartas que ainda não virara.

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- Estava escrito nas cartas. Por que não lhes dei crédito? Não quero mais olhá-las. Desgostam-me.

Com um gesto violento varreu-as da mesa atirando-as no chão.

- Embora seja livre pensador, mandei rezar missas pelo repouso de sua alma.

Inclinou-se para trás e enrolou um cigarro. Aspirou longamente a fumaça e deu de ombros.

- O coronel disse-me que o senhor era homem de letras. Sobre o que escreve?

- Histórias. - Contos policiais? - Não. - Por que não? São os únicos que leio. Quanto a mim, só escreveria esse gênero.

- É muito difícil; o senhor não faz idéia da imaginação que é preciso para um conto policial. Uma vez inventei qualquer coisa nesse gênero, mas meu assassínio estava tão habilmente combinado que nunca pude achar o meio de fazer prender o criminoso, e, como sabe, a tradição exige no fim que o mistério seja esclarecido e o culpado entregue à justiça. Quando se tem um assassínio bem sensacional, o único meio lógico de conseguir a prisão do responsável é fazer convergir todo o interesse na pesquisa do motivo, porque, enquanto o motivo permanece ignorado, a prova mais esmagadora não tem valor. Suponha que lhe venha à mente, numa rua deserta, numa noite sem lua, de atirar-se sobre um transeunte e apunhalá-lo. Quem poderá lembrar-se do senhor? Mas, se esse transeunte fosse o amante de sua mulher, ou seu irmão, ou ainda um seu credor, então qualquer pedacinho de papel, uma cinza de cigarro, uma palavra que lhe escape basta para mandá-lo ao cadafalso. Se a vítima lhe é completamente estranha, ninguém suspeitará do senhor um só instante. Jack, o Estripador,

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tinha por força de escapar até o momento de ser surpreendido em pleno crime.

Ashenden estava farto e desejava mudar o rumo da, conversa, por mais de uma razão. Em Roma separar-se-ia do Mexicano, e não tinham ainda estabelecido seu modo de agir. O Mexicano seguiria para Brindisi e ele para Nápoles. Pensava hospedar-se no Hotel Belfort, nas proximidades do porto, estabelecimento de segunda categoria e cuja clientela compunha-se de caixeiros-viajantes e turistas modestos. Diria o número do seu quarto ao general para que, em caso de urgência, pudesse subir diretamente, sem recorrer ao porteiro.

Na estação seguinte foi ao bufê e comprou um envelope. Pediu ao general que escrevesse ali mesmo seu endereço: Posta Restante, Brindisi. Assim, Ashenden nada mais teria que fazer do que escrever um, número sobre uma folha de papel e mandá-la.

O Mexicano deu de ombros. - A meu ver, todas essas precauções são ridículas. Os riscos são nulos. Mas, haja o que houver, pode ficar certo de que não o comprometerei.

- Esses assuntos não me são familiares. Prefiro limitar-me a seguir as instruções do coronel e ignorar o que não seja indispensável que eu saiba.

- Perfeitamente. De resto, mesmo que as circunstâncias me obrigassem a lançar mão dos grandes meios e que a coisa saia mal, serei tratado como prisioneiro político. Mais cedo ou mais tarde a Itália entrará na guerra com os aliados, e eu serei solto. Já previ tudo. Mas, por favor, nada de desatinos. Faça de conta que vai fazer um piquenique no Tâmisa.

Quando, afinal, Ashenden ficou sozinho no trem de Nápoles, deu um suspiro de alívio. Sentia-se feliz por estar livre daquela criatura palradora, horrivel e fantástica. O Mexicano pegaria Constantino Andreadi em Brindisi, e, se apenas a metade do que ele tinha contado era verdade,

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Ashenden sentia-se feliz por não estar na pele do grego. pôs-se a pensar naquele homem que, com seus papéis confidenciais e seus perigosos segredos, se aproximava, inconsciente do perigo, através das águas azuis do mar Jônico, para a ratoeira que lhe estavam armando. Afinal de contas, era a guerra, e somente os loucos continuam acreditando que ela pode ser feita com luvas de pelica.

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O GREGO


Assim que chegou a Nápoles, Ashenden escreveu o número de seu quarto numa folha de papel e para o Mexicano Calvo. Foi ao consulado britâri o dou-a para onde R. devia mandar-lhe instruções. Sua chegada já tinha sido assinalada. Depois, deixando os negócios sérios para mais tarde, decidiu aproveitar do melhor modo sua estada ali.

Sob aquele céu meridional, o sol já era quente. Ashenden conhecia bastante Nápoles. A Piazza di San Ferdinand°, muito animada, e a Piazza del Plebiscito, com sua magnífica igreja, despertaram nele doces recordações. Nunca uma multidão tão compacta fervilhou na Strada di Chiaia. Ele parava nas esquinas para contemplar as vielas úmidas e tortuosas que serpenteiam colina acima, vielas de casas tão altas que nunca a luz nelas penetra. Acima desses vales escuros, em cordas estendidas de janela a janela pendiam farrapos multicores como as bandeirolas de um dia de festa. E no esplendor de beira-mar, de onde surgia Capri, ele ia rever Posillipo, um velho palazzo em ruínas que abrigara os deliciosos amores de sua mocidade. Sentiu um aperto no coração a esta evocação do passado. Chamou um carro puxado por um sendeiro esquelético

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e fez-se conduzir à Galleria. As molas gastás do calhambeque sobre as pedras duras de lava produziam solavancos que o faziam saltar, em meio a um barulho ensurdecedor. Sentou-se em plena corrente de ar e tomou um americano. Nas meses vizinhas os bebedores se agitavam, gesticulavam, gritavam e ameaçavam-se.

Durante três dias levou a vida de preguiça que uma cidade grande, suja e alegre, favorece. Desde manhã até a noite abandonava-se ao imprevisto. Deixava aos turistas o trabalho de ver o que devia ser visto e, esquecido de sua profissão de escritor, não se cansava em procurar num belo pôr-do-sol uma frase harmoniosa ou em decifrar num rosto o indício de um caráter. Não obstante, foi ao museu admirar a estátua de Agripina, a Moça, da qual tinha razões íntimas para se lembrar, e reviu de passagem os Tiziano e os Breughel. Alguma coisa, porém, fazia-o voltar sempre à Igreja de Santa Chiara. Nessa arquitetura de inspiração religiosa, na qual se aliam a graça, a leveza irônica, a emoção sensual e a extravagância, tornava a encontrar o gênio da cidade poeirenta ou pegajosa, ensolarada ou envolvida em sombra. Ela dizia que a vida é triste e encantadora, que, se a pobreza é um sofrimento, a riqueza não dá a felicidade. E, de resto, por que se atribular, quando a vida é tão curta? Aproveitemos seus sorrisos e fechemos os olhos quando eles se desfazem. Facciamo una piccola combinazione.

Mas, na manhã do quarto dia, no momenta em que Ashenden acabava de sair do banho e procurava secar-se com uma toalha nova que não absorvia a umidade, a porta abriu-se bruscamente e um homem introduziu-se no quarto.

- O que quer? - gritou Ashenden. - Como? Não me reconhece? - Santo Deus! É o general! O que é que lhe aconteceu?

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Carmona mudara de peruca, e exibia agora cabelos pretos, cortados rentes, que lhe cobriam a cabeça como uma touca.

Estava irreconhecível, porém sempre excêntrico, e vestia um velho traje cinzento.

- Tenho apenas um minuto. Ele está fazendo a barba. Ashenden sentiu que ficava vermelho. - Então, o achou? - Não houve grande dificuldade. Era o único passageiro grego que havia no navio. Subi a bordo, sob pretexto de ver um amigo que vinha do Pireu, Monsieur Georges Diogenides. Mostrei-me surpreso ao não encontrá-lo e travei relações com Andreadi. Ele viaja com o nome de Lombardos. Pus-me a seu lado, ao desembarcar. Quer saber qual foi seu primeiro cuidado, ao descer? Entrou numa barbearia para que lhe raspassem a barba. Que me diz disso?

- Nada. Qualquer pessoa pode estar farta de sua barba.

- Não é minha opinião. Ele queria mudar de cara, é claro como água. Esses alemães (que tipos!) não deixam nada ao acaso. Seu plano está estabelecido, ponto por ponto. Vou colocá-lo a par. Numa palavra ...

- Ora essa, o senhor também mudou de cara. - É verdade. Pus uma peruca. Que diferença, não? - Está irreconhecível. - A gente deve tomar precauções. Em resumo, já somos inseparáveis. Ele não conhece uma palavra de italiano, e durante a escala em Brindisi seguiu-me como um perdigueiro. Desde então, não nos separamos. Trouxe-o para este hotel. Ele pretende seguir amanhã para Roma. Mas eu estou alerta. Imagine só ele escorrendo entre meus dedos! Tem vontade de visitar Nápoles. Ofereci-me como cicerone.

- Por que ele não segue hoje mesmo para Roma? - Aqui é que está a esperteza. Diz ele ser um homem de negócios, que enriqueceu durante a guerra. Era proprietário

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de dois navios costeiros e acaba de vendê-los. Agora, está louco para ir a Paris, onde quer viver o resto de seus dias. É muito discreto. Procurei fazê-lo falar. Apresentei-me como um espanhol, destacado em Brindisi, para concluir um negócio com a Turquia, a propósito de material de guerra. Ele bebia-me as palavras, procurando mostrar-se indiferente. Já se vê que não o apertei. Tem os papéis com ele.

- Como sabe? - Não faz caso da maleta, mas, de quando em quando, apalpa a barriga. Os papéis devem estar no cinto, ou costurados no casaco.

- Para que diabo o trouxe para o meu hotel? - Aqui ficará mais fácil. Poderemos ter de remexer nas suas bagagens.

- E o senhor? Também se hospedou aqui? - Não sou tão tolo assim. Disse-lhe que seguia para Roma pelo trem da noite, para economizar o preço do quarto. Mas preciso ir-me. Prometi encontrar-me com ele, dentro de um quarto de hora, em frente ao barbeiro.

- Está bem. - Se precisar do senhor hoje à noite, onde poderei encontrá-lo?

O olhar de Ashenden pousou um instante sobre o general; depois, com um franzir de sobrancelhas, desviou os olhos.

- Estarei toda a noite aqui no quarto. - Muito bem. Faça o favor de ver se não há ninguém no corredor.

Ashenden abriu a porta e examinou. Nessa estação, o hotel estava quase vazio. Havia poucos estrangeiros em Nápoles e os negócios estavam parados.

O Mexicano saiu confiadamente. Ashenden fechou a porta atrás dele. Barbeou-se e vestiu-se. Tão luminoso como de costume, o sol brilhava sobre a praça. Como antes, os transeuntes acotovelavam-se, corricoli e carrinhos rodavam

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com um barulho de ferragens, os cavalos trotavam à força de chicote, os cocheiros injuriavam-se. Ashenden, porém, não achava mais graça na cena. Perguntou no consulado se não havia telegrama para ele. Nada. Entrou na agência Cook e informou-se dos trens para Roma: um partia perto de meianoite, outro às cinco da manhã. Muito desejaria ele tomar o primeiro.

Que iria fazer o Mexicano? Se Cuba era realmente seu alvo, seguiria sem dúvida para a Espanha. No dia seguinte, partia um navio para Barcelona.

Ashenden estava enjoado de Nápoles. A reverberação do sol nos muros brancos cansava-lhe os olhos. A poeira asfixiava-o; o barulho ensurdecia-o. Um coquetel na Galleria não pôde reconfortá-lo, nem mais tarde o cinema conseguiu distraí-lo. Quando, finalmente, voltou para o hotel, disse na portaria que seu trem partia tão cedo na manhã seguinte que ele preferia pagar agora sua conta. Fez levar sua bagagem para a estação e não deixou no quarto senão um saco de viagem, em que guardava seu código e um ou dois livros. Depois do jantar, fechou-se no quarto para esperar o Mexicano.

Seu nervosismo já alcançara a exasperação. Quis ler, mas o livro aborreceu-o. Abriu outro. Não pôde fixar a atenção. O relógio caminhava com uma lentidão desesperadora. Resolvido a não mais consultá-lo enquanto não tivesse lido pelo menos trinta páginas, recomeçou a leitura. Por mais que seus olhos se esforçassem em seguir as linhas da página, não poderia dizer o que elas continham. Puxou outra vez o relógio. Deus de misericórdia! Eram apenas dez e meia. Que estaria fazendo o general? E se as coisas desandassem? Veio-lhe de repente a idéia de fechar as janelas e correr as cortinas. Fumou vários cigarros. Onze e quinze. Uma visão horrível atravessou-lhe o espírito e o coração pulsou-lhe desordenadamente. Contou as pulsações e achou-as normais.

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Não obstante a doçura da noite e o calor do quarto superaquecido, tinha as mãos e os pés gelados. Que endemoniada imaginação que lhe fazia ver coisas que não desejava ver! A cena do assassínio de Crime e castigo emergia do fundo de sua memória. Em vão procurou repelir aquela obsessão. O livro escorregou sobre seus joelhos e, com os olhos fixos na parede (forrada de papel pardo, enfeitado de rosas fanadas) , perguntou a si mesmo de que forma se poderia, em Nápoles, matar uma pessoa. Há, é verdade, na Villa Nazionale, à beira-mar, esse extenso jardim diante da baía, onde se esconde o Aquarium. De noite, é deserto e muito escuro; passam-se aí coisas que não suportam a luz do dia, e depois do crepúsculo as pessoas prudentes evitam suas alamedas sombrias. De trás do Posillipo, a estrada é muito solitária, e à noite, em certas sendas que sobem para a colina, nunca se encontra vivalma. Mas de que jeito arrastar para aí uma pessoa um pouco medrosa? Quanto a aproveitar um passeio na baía, é muito arriscado. O alugador das barcas veria e, além disso, acederia ele em confiar um bote a desconhecidos? Perto do porto há hotéis suspeitos, onde não se fazem perguntas indiscretas aos viajantes. Mas, aí também, os criados que levam os passageiros para os quartos têm tempo de sobra para ver seus rostos.

Mais uma vez Ashenden consultou o relógio. Não podia ficar parado. Com o cérebro vazio, não pensava mais em ler.

Enfim, a porta abriu-se tão suavemente que ele teve um arrepio. O Mexicano Calvo estava diante dele.

- Assustei-o? Preferi não bater. - Alguém o viu entrar? - Quando toquei a campainha o porteiro da noite estava dormindo. Nem sequer levantou a cabeça. Estou desolado por ter vindo tão tarde, mas tive de mudar de roupa.

Carmona retomara seu traje de viagem e sua peruca loura. Parecia maior e mais elegante. Mesmo sua fisionomia

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estava mudada. Seus olhos brilhavam. Parecia de muito bom humor.

- Como o senhor está pálido, meu caro! Espero que não se tenha atormentado muito.

- Trouxe os documentos? - Infelizmente, não. Ele não os tinha consigo. Tudo o que achei foi isto.

E depositou na mesa uma carteira recheada e um passaporte.

- Ah! Não! - exclamou Ashenden -, guarde isso. O Mexicano deu de ombros e guardou tudo no bolso. - E no cinto? O senhor disse que ele apalpava seguidamente o ventre.

- Apenas dinheiro. Quanto à carteira, continha somente cartas particulares e fotografias de mulheres. Seguramente deixou os documentos na maleta, antes de sair comigo agora de noite.

- Maldição! - disse Ashenden. - Tenho a chave do quarto dele. Vamos ver na sua bagagem.

Ashenden sentiu uma reviravolta no coração. Hesitou. O Mexicano sorriu com indulgência.

- Amigo, não há perigo - afirmou, como se estivesse reanimando um garoto -, mas, se isso o impressiona, irei só.

- Não, eu o acompanho. - Todos dormem, no hotel, e não será Monsieur Andreadi

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quem virá nos incomodar.

Ashenden não deu resposta. Suas mãos tremiam. Desatou os cadarços dos sapatos e descalçou-os. O Mexicano imitou-o.

- Passe adiante, é melhor assim - disse. - Dobre à esquerda e siga o corredor. É no número 38.

Algumas lâmpadas, de espaço em espaço, iluminavam o corredor. Ashenden saiu. Sua agitação contrastava com a calma do companheiro. Chegados à porta do quarto do grego, o Mexicano introduziu a chave, abriu-a e entrou. Apertou o interruptor. Ashenden seguiu-o. Notou que as janelas estavam fechadas.

- Agora, nada mais a temer; não nos apressemos. O Mexicano vasculhou o bolso e tirou um molho de chaves. Experimentou uma ou duas e, por fim, achou a que servia. A mala estava cheia de roupa.

- Trajes de confecção - notou, com desdém, ao tirá-los. - Só é barato o que custa caro. E, afinal, se é ou não se é um gentleman.

- É preciso falar tanto? - Um pouco de perigo não produz o mesmo efeito em todos. A mim, excita-me, mas ao senhor, amigo, parece deixá-lo de mau humor.

- É que não estou habituado - respondeu Ashenden, candidamente.

- Simples questão de nervos. Durante esse tempo apalpou as roupas com rapidez, examinando-as uma por uma. Nada lhe escapava. Nem vestígio de papéis. Então, com a faca, cortou o forro da mala. Como acontece com artigo barato, o forro estava colado ao couro. Ali nada se poderia esconder.

- Não estão aqui. Entretanto, têm que estar no quarto. - Tem certeza de que ele não os depositou em algum escritório? Num consulado, por exemplo?

- Não o perdi de vista um momento, salvo durante o tempo em que fez a barba.

O Mexicano abriu o armário e as gavetas. Não havia tapete no chão. Procurou em baixo da cama, entre os colchões. Seus olhos pretos percorriam o quarto, em busca de um esconderijo.

- E se simplesmente ele os deixou na gerência do hotel?

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- Eu saberia. Ademais, ele não teria essa idéia. Não posso compreender.

Lançou, irresoluto, um olhar pelo quarto. Onde achar a solução do mistério?

- E se nos retirássemos? - propôs Ashenden. - Espere um minuto. O Mexicano pôs-se de joelhos, dobrou as roupas com grande cuidado e arrumou a mala. Fechou-a e levantou-se. Depois, apagou a luz, abriu suavemente a porta e olhou cuidadosamente o corredor. Fez sinal ao companheiro, e com ele saiu. Tornaram a fechar a porta e voltaram para o quarto de Ashenden.

Depois de se terem cuidadosamente encerrado, Ashenden molhou a testa e enxugou as mãos.

- Graças a Deus, estamos de volta. - Não havia verdadeiramente, nem sombra de perigo. Mas, o que fazer agora? O coronel ficará furioso se não obtivermos os papéis.

- Eu vou tomar o trem das cinco horas para Roma. De lá telegrafarei ao coronel, pedindo instruções.

- Muito bem. Seguirei com o senhor. - Não acha melhor tratar de sair deste país? Há um barco amanhã para Barcelona. Por que não embarca nele? Se for necessário, poderei encontrar-me lá com o senhor.

O general sorriu. - Está com muita pressa de me ver pelas costas. Seja! Não vou contrariar um desejo desculpável, dada sua inexperiência nesses assuntos. Irei a Barcelona. Tenho um passaporte visado para a Espanha.

Ashenden consultou o relógio. Passava das duas horas. Tinha de esperar ainda quase três horas. O companheiro fez um cigarro.

- Que me diz de uma boa ceia? - perguntou. - Estou com uma fome tremenda!

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A simples idéia de comer provocou náuseas em Ashenden. Em compensação, tinha uma sede louca. Não lhe agradava muito a idéia de sair com o Mexicano, mas a solidão naquele quarto o assustava.

- Onde poderíamos ir a essas horas? - Venha comigo. Hei de achar alguma coisa. Ashenden pôs o chapéu e tomou seu casaco de viagem. Desceram. Deitado numa esteira, no hall, o porteiro dormia a sono solto. Passando diante do balcão da portaria, Ashenden viu uma carta no compartimento correspondente ao seu quarto. Era dirigida a ele. Pegou-a e saíram sem fazer ruído. Cem metros adiante, sob um bico de luz, abriu a carta. Provinha do consulado e dizia:

O telegrama incluso chegou ,esta noite, e como pode ser urgente, mando-o a seu hotel.

Com certeza trouxeram a mensagem à meia-noite, quando Ashenden esperava no quarto. Examinou o telegrama. Era cifrado.

"Está bem, verei isso mais tarde", pensou, e meteu-o no bolso.

O general orientava-se naquele labirinto de ruas desertas como se o caminho lhe fosse familiar; e Ashenden seguia apressado a seu lado. Enfim, num beco escuro, viram uma taberna. O Mexicano entrou.

- Isso não é propriamente o Ritz - disse ele -, mas, a essas horas, só mesmo num lugar como este poderemos comer qualquer coisa.

Ao fundo de uma sala comprida e sórdida um efebo anêmico batucava num piano. Apoiados nas paredes, com os cotovelos nas mesas, os bebedores apertados nos bancos faziam-no vergar. Mulheres velhas, pintadas, horríveis, entregavam-se a uma alegria ruidosa. Quando os dois entraram, todos os olhos fixaram-se neles. Ao sentar-se, Ashenden baixou

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a cabeça para não encontrar aqueles olhares equívocos que buscavam os seus. O pianista tocou uma música, e imediatamente vários pares ergueram-se. Os homens estavam em minoria. Algumas mulheres dançavam juntas. O general pediu dois pratos de espaguete e uma garrafa de Capri, do qual engoliu logo, com avidez, um grande copo. Sem perder tempo começou a namoriscar as vizinhas da sua mesa.

- Não dança? - perguntou a Ashenden. - Quanto a mim, vou convidar uma dessas beldades.

Levantou-se e aproximou-se de uma mulher que, pelo menos, tinha olhos expressivos e dentes brancos. Com indiferença, ela aceitou e ele a enlaçou. Dançava bem. A mulher parecia ouvi-lo com prazer. Ria. No fim de pouco tempo a conversa tornou-se animada. Ao acabar a dança o Mexicano voltou para junto de Ashenden e serviu-se de outro copo de vinho.

- Que diz da minha conquista? Não é má, não? Não há nada para esticar as pernas como dançar. Por que não faz o mesmo? Um bom antro, não? Tenho faro para descobrir essas coisas. É um dom.

A música recomeçou. A napolitana olhou para o general. Com o dedo ele apontou o assoalho, e ela levantou-se ligeiro, de muito boa vontade. Ele abotoou o casaco, arqueou o dorso, e de pé, junto à mesa, esperou que ela viesse. Já dono da simpatia de todos, ele falava, arreganhava os dentes, fazendo girar seu par. Num italiano fluente, com sotaque espanhol, gracejava com este e com aquele. Gargalhadas premiavam seus bons ditos. Por fim, o garçom trouxe dois enormes pratos de macarrão. Abandonando sem cerimônias o par ali mesmo, o general precipitou-se para a mesa.

- Estou morto de fome - declarou - e, olhe que jantei muito bem. E o senhor? Não vai dar uma entrada no macarrão?

- Está me parecendo que não.

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Apesar disso, acabou decidindo-se a comer e, com surpresa, verificou que não lhe faltava apetite. O Mexicano comia como um glutão. Seus olhos brilhavam e estava loquaz. A mulher, nos rápidos momentos da dança, contaralhe toda sua vida, e ele agora repetia aquelas confidências a Ashenden. Entre duas garfadas metia um pedaço de pão na boca. Pediu outra garrafa de vinho.

- O vinho - sentenciou com desprezo - não é uma bebida. Nem sequer mata a sede; viva o champanhe. E então, amigo, já se sente melhor?

- Confesso que sim. - Vai habituar-se depressa. Bateu familiarmente no ombro de Ashenden. - O que é isso? perguntou Ashenden, estremecendo. - Esta -mancha no seu casaco?

O Mexicano olhou a manga. - Não é nada, só um pouco de sangue. Tive um pequeno acidente e me cortei.

Ashenden calou-se. Seus olhos buscavam o relógio pregado na parede.

- Está com receio de perder o trem? Deixe-me dar ainda uma volta e acompanhá-lo-ei à estação.

O Mexicano levantou-se e garbosamente enlaçou pela cintura sua mais próxima vizinha e com ela afastou-se. Ashenden contemplou-o pensativamente. Era uma figura monstruosa e terrível, com aquela cabeleira loura e aquelas faces pálidas, mas, mesmo assim, movia-se com uma graça incomparável. Seus pés finos pareciam deslizar no chão, como os passos de um gato ou de um tigre; seu ritmo era encantador, todo seu corpo como que respirava música, e a hedionda criatura que tinha nos braços extasiava-se ante seus gestos. A cada movimento dos quadris as pernas respondiam, dóceis. Por mais sinistro e grotesco que fosse, havia nele agora uma elegância felina, que exercia uma secreta e perversa fascinação. Ashenden pensava, contemplando-o, naquelas esculturas

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dos pré-astecas, ao mesmo tempo graciosas e bárbaras, terríveis e cruéis, chocantes e belas.

Ashenden, de muito boa vontade, tê-lo-ia deixado acabar sozinho a noite naquele antro, mas tinham contas a ajustar. Não era sem alguma apreensão que pensava nisso. Recebera ordem de entregar a Manuel Carmona uma determinada quantia, em troca de determinados documentos. Mas os documentos não apareciam, e quanto ao resto ... quanto ao resto, nada tinha a ver com isso.

Ao passar diante dele o Mexicano agitou alegremente a mão.

- Assim que terminar a música, irei. Enquanto isso, quer pagar a conta?

Ashenden quisera poder ler seu pensamento. Não compreendia sua atitude. Enfim, enxugando a testa com o lenço perfumado, o Mexicano veio ter com ele.

- Divertiu-se, general? - Eu sempre me divirto. É uma caça reles, mas que diabo quer que eu faça? Gosto de sentir o corpo de uma mulher nos meus braços e de ver seus olhos enlanguecerem e seus lábios entreabrirem-se à medida que o desejo as faz vibrar até a medula. Reles caça, porém mulheres.

Saíram. O Mexicano propôs irem a pé; de resto, nesse quarteirão e a tal hora, não se podia pensar em encontrar um carro. As estrelas brilhavam. Parecia uma noite de verão e o ar estava calmo. O silêncio parecia segui-los como o espectro de um morto. Perto da estação os contornos das casas desenhavam-se na aurora hesitante. Era a hora em que em nós assoma a angústia, vaga lembrança dos terrores primitivos, quando o homem ainda ignorava se a luz volveria a espantar as trevas. Penetraram na estação. Alguns carregadores desocupados lembravam máquinas em repouso. Dois soldados de uniforme escuro vigiavam, imóveis. A sala de espera estava vazia.

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Ashenden e o Mexicano acomodaram-se no canto mais escuro.

- Uma hora de espera, ainda, antes da chegada do meu trem - vociferou Ashenden. - Tenho tempo bastante para decifrar o telegrama.

Tirou-o do bolso e puxou o códigò. Não era um código complicado. Compunha-se de duas partes, uma contida num livro muito fino; quanto à outra, anotada primeiro numa folha de papel, fora destruída por Ashenden, depois de decorá-la, antes de sua partida. Pôs os óculos e começou a tradução.

No outro extremo do banco o Mexicano fazia um cigarro. Ashenden decifrava as palavras do telegrama e escrevia o que ia traduzindo. Procurava sempre não se preocupar com o sentido da frase, antes de tê-la completado, porque toda conclusão prematura pode ser falsa. Quando, finalmente, terminou, leu:

Constantino Andreadi doente, retido Pireu. Viagem adiada. Volte Genebra, esperar instruções.

A princípio Ashenden não compreendeu. Releu e começou a tremer. Depois, perdendo completamente o sangue frio, proferiu com voz rouca:

- Maldito bruto, você se enganou de endereço.


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UMA EXCURSÃO A PARIS


Ashenden gabava-se de nunca se aborrecer. Segundo ele, somente se aborrecem os ociosos e os imbecis, que, não tendo recursos interiores, não podem prescindir da companhia dos demais. Não que tivesse ilusões a seu respeito; seus sucessos literários não lhe tinham feito perder a cabeça. Não confundia a glória com a notoriedade que dá um livro que alcança muitas edições ou uma peça com êxito de bilheteria, e, não fossem os proveitos decorrentes dessa situação, aquilo ser-lhe-ia indiferente. Mas não poderia desprezar as cabines de luxo que lhe ofereciam quando viajava, nem as facilidades que encontrava nas alfândegas, quando topava com um funcionário entusiasta das suas novelas. Infelizmente, porém, era-lhe preciso aturar as discussões técnicas dos jovens confrades, e só Deus sabe quanto careciam de interesse! Quanto às insossas lisonjas que tremulamente lhe segredavam suas admiradoras, faziam-no suspirar pelo silêncio dos túmulos. Mas, já o dissemos, não admitia que jamais pudesse conhecer o tédio, e suportava facilmente a palestra de medíocres, dos quais seus camaradas fugiam como se foge de um credor. Talvez nesses momentos obedecesse a seu instinto profissional, sempre alerta. As cobaias humanas interessavam-no tanto quanto os fósseis interessam aos geólogos.

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De momento, possuía tudo quanto um homem razoável pode desejar durante a guerra. Gozava do conforto de um belo apartamento num bom hotel de Genebra, uma das cidades de vida mais agradável da Europa. Fazia excursões de barco no lago, ou então, ao trote macio de um cavalo de aluguel - nesse tranqüilo e pequeno cantão é muito rara uma oportunidade para galopar -, percorria o macadame das estradas, nos arredores da cidade. Na sua vadiação despreocupada, nas velhas ruas, procurava desenterrar, em volta das casas de pedra cinzenta, dignas e adormecidas, a alma dos tempos passados. Da mesma maneira que relia com delícia as Confessions de J. J. Rousseau, recuava diante da La nouvelle Hélóise. Escrevia. Conhecia pouca gente porque suas funções obrigavam-no a viver retraído. Não obstante, no hotel, não podia deixar de dirigir umas poucas palavras a algumas pessoas. Suas ocupações eram múltiplas e enchia seus ócios com reflexões. Nessas condições, como entediar-se? E apesar de tudo, ele vivia, como um véu que sobe no horizonte, céu acima, erguer-se a bruma da lassidão. Refere-se a uma história que Luiz XIV, tendo intimado um cortesão a esperá-lo numa cerimônia oficial, já se achava pronto para ir quando apareceu o cortesão. Virou-se para ele e com fria majestade disse: "J'ai failli attendre", cuja única tradução, embora muito pobre, é a seguinte: "Tive que esperar por você". Da mesma forma Ashenden poderia ter admitido que acabava de ser incomodado.

Em que pensaria ele nos seus passeios pelas margens do lago, montado num cavalo mosqueado de ancas redondas e pescoço curto, modelo dos corcéis empinados das telas antigas? Mas seu cavalo não se empinava nunca e era mesmo necessário esporeá-lo continuamente para fazê-lo trotar. Talvez invejasse os grandes chefes dos serviços secretos que, em seus gabinetes em Londres, senhores todo-poderosos dessa vasta organização, viviam uma vida fértil em emoções. Ao sabor das imagens que se desenrolavam ém sua imaginação,

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Ashenden via-os ora deslocando suas peças no tabuleiro de xadrez, ora inclinados sobre o desenho formado pela -teia de numerosos fios emaranhados. Por vezes, imaginava-os ocupados em ajustarem um quebra-cabeça gigantesco. Mas, francamente, para a arraia-miúda como ele, a contra-espionagem carecia totalmente desse interesse que lhe atribuem os profanos. A existência oficial de Ashenden escoava-se monótona e regular, como a de um metódico funcionário da City. Encontrava-se com seus espiões em datas fixas, para dar-lhes seus ordenados, e, quando contratava um novo agente, punha-o a par do seu mister e mandava-o para a Alemanha. Apenas recebia uma informação, e retransmitia-a. Uma vez por semana atravessava a fronteira da França para conferenciar com um colega e receber instruções de Londres. Uma velha vendedora de manteiga trazia-lhe, no mercado, os recados da outra márgem. Sempre à cata das menores notícias, coligia-as em longos relatórios, convencido, no entanto, de que ninguém os lia. Mas, tendo certa vez arriscado num deles um gracejo, uma severa repreensão veio chamá-lo à ordem. Seu serviço, embora necessário, nem por isso deixava de serlhe fastidioso. Um dia, à falta de melhor, esboçou um flerte com uma certa baronesa Von Higgins. Ele sabia que ela estava a serviço da Áustria, o que dava a suas relações o sabor picante de um duelo. Os barcos e as paradas mantê-lo-iam em forma. A baronesa, por sua vez, desejava cruzar as lãminas. Quando ele lhe mandava flores, ela descobria, para agradecer-lhe, fórmulas envolventes. Passeava de barco com ele e deixava a mão deslizar à flor da água, suspirando sobre os tormentos do amor... Jantaram juntos antes de irem ver uma adaptação francesa, em prosa, de Romeu e Julieta. Ashenden estava ainda nas primeiras fases da sua corte, quando recebeu uma comunicação seca de R., perguntando-lhe que asneira era aquela: ele era visto seguidamente, informaram-no em companhia de uma pseudobaronesa de Higgins, conhecida como agente dos impérios centrais, mulher

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com a qual deveria ter-se limitado a curtas relações de cortesia. Ashenden deu de ombros. R. menosprezava sua inteligência, mas o que ficou claro nessa história é que alguém em Genebra o fiscalizava. Não queria que ele se metessenuma aventura que o distraísse de sua missão. Divertiu-se com essa desconfiança. Que tipo sabido esse R. Nada deixava ao acaso; não depositava confiança em ninguém; seus subordinados, de todas as categorias, não eram para ele senão peças do maquinismo. Ashenden procurava em vão descobrir quem o espionava. Um dos criados do hotel? Sabia que R. tinha em grande apreço os criados pela facilidade que têm de se introduzirem em toda parte. Quem sabe mesmo se R. fora informado pela própria baronesa? Não poucas dessas espiãs fazem duplo jogo, com um pé em cada campo. Mas, mesmo assim, Ashenden continuou a tratá-la cortesmente, suprimindo apenas seus assédios de galanteios. Deu volta ao cavalo e regressou, a trote curto, para Genebra. Um palafreneiro esperava-o na porta do hotel para recolher o cavalo. Ashenden entrou. O porteiro entregou-lhe um telegrama:

Tia Maggie doente hotel Lotti Paris. Obséquio ir vê-la, se possível. Raymond.

Raymond era um dos graciosos noms de guerre de R., e como Ashenden não tinha a sorte de possuir uma tia Maggie, compreendeu imediatamente que aquilo era uma ordem para ir a Paris. Sempre imaginou que seu chefe consagrava grande parte de seus lazeres em ler romances policiais e que nos seus dias de bom humor sentia prazer em se fazer de detetive. Quando R. sentia que o lançamento da rede estava prestes a dar resultados satisfatórios, sua jovialidade o anunciava, mas, apenas conseguido o sucesso, recaía num humor sombrio, do qual seus subordinados sofriam as consequências.

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Enquanto perguntava a que horas partia o expresso para Paris, Ashenden teve o cuidado de deixar distraidamente o telegrama no balcão da portaria. Consultou o relógio de parede, para ver se tinha tempo de visar o passaporte antes que o consulado fechasse. Quando subia para ir buscar o documento, o porteiro chamou-o no momento em que se cerravam as portas do elevador.

- O senhor esqueceu o telegrama. - Que cabeça esta minha! - exclamou Ashenden. Dessa forma, se a baronesa viesse a saber de sua repentina partida, ela a atribuiria à indisposição súbita de uma parenta. Nesses tempos turvos, devia-se dar a cada coisa uma explicação plausível. Ashenden era bem conhecido no consulado francês e, por isso não ficou por muito tempo.

Ao voltar para o hotel tomou um banho e mudou de roupa.

Essa viagem imprevista agradava-lhe. Uma noite num carro-dormitório não era coisa que lhe metesse medo, e se um solavanco o acordasse consolar-se-ia fumando um cigarro. O barulho das rodas nos trilhos embalava seus sonhos. Gostava de se sentir levado pela noite adentro, por esses trens que correm como bólidos através do espaço. E no fim da viagem era o desconhecido.

Quando Ashenden chegou a Paris fazia frio e caía uma chuva fina. Sentiu desejos de um banho e de mudar de roupa, mas nada nesse dia poderia turvar seu bom humor. Da estação telefonou a R. e pediu notícias da tia Maggie.

- Vejo, com prazer, que o senhor é um sobrinho carinhoso. Não perdeu um minuto - acrescentou R., com um tom de zombaria apenas perceptível. - A pobre mulher está muito acabrunhada e sua visita far-lhe-á muito bem.

É justamente esse o ponto fraco dos humoristas sem talento: quando pegam um bom dito, não o largam mais. O homem de espírito, esse não demora sobre suas frases felizes mais tempo do que a abelha sobre uma flor. Mas, contrariamente à maioria dos homens de letras, Ashenden suportava

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as facécias dos outros com indulgência. Prestou-se mesmo a secundar o jogo de R.

- Em que momento minha visita ser-lhe-á mais agradável? Peço que lhe faça sentir o quanto a quero.

Ao ouvir isso, R. deixou explodir toda sua alegria.

Ashenden resignou-se.

- Seguramente que ela vai querer enfeitar-se um pouco, antes de vê-lo. O senhor a conhece. Por nada deste mundo se deixaria ver desmantelada. Serve-lhe às dez e meia? E depois iremos almoçar juntos?

- Combinado. As dez e meia estarei no Lotti. Quando Ashenden, barbeado e reposto, apresentou-se no hotel, um ordenança que ele reconheceu recebeu-o no hall e introduziu-o no apartamento de R. De pé, diante do fogo, o grande chefe ditava.

- Sente-se - disse ele.

E continuou. No salão confortável um ramo de rosas traía a mão de uma mulher. Numa mesa havia papéis em desordem. Desde a última entrevista que tiveram, R. envelhecera. A pele apergaminhada do rosto estava cavada por fundas rugas e os cabelos embranqueceram. Sua fisionomia denotava fadiga. Efetivamente, não se poupava. De pé desde as sete horas da manhã, trabalhava até tarde da noite. Seu uniforme novo não tinha elegância. Interrompeu-se.

- Por hoje chega. Leve toda essa papelada e apresse-se com a cópia. Amanhã, antes do almoço, assinarei.

Depois, dirigindo-se ao ordenança: - Não estou em casa para ninguém. O secretário, um segundo-tenente de uns trinta anos, cujo aspecto nada marcial revelava um civil comissionado, juntou os papéis e saiu. Como o ordenança o acompanhasse, R. acrescentou:

- Você, espere em frente à porta. Se precisar, chamá-lo-ei.

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- Perfeitamente, meu coronel. Assim que ficaram a sós, R. voltou-se para Ashenden com toda a amabilidade de que era capaz.

- Boa viagem? - Sim, coronel. - Que acha disto? - perguntou R., indicando com o olhar todo o quarto.

- Nada mau, não? Não sei por que a guerra deveria nos transformar em selvagens.

Enquanto falava, R. com seus olhos pálidos, muito juntos, de expressão aguda e desiludida, examinava Ashenden com uma insistência singular. Nos seus raros momentos de expansão, R. confessava que classificava os seus semelhantes em duas categorias: os imbecis e os canalhas. Qual das duas era a pior? Não sabia ao certo. Ainda assim, preferia os canalhas. Com esses, pelo menos, a gente sabe a quantas anda, e procede-se em conseqüência. Militar de carreira, vivera nas índias e nas colônias. A guerra foi encontrá-lo na Jamaica. No Ministério da Guerra alguém se lembrara dele, fizera-o vir e colocara-o no serviço secreto. Sua pertinácia e seu espírito de organização valeram-lhe em seguida um posto importante. Tinha iniciativa, coragem, decisão. Ashenden conhecia-lhe apenas uma debilidade. Nunca, antes da guerra, R. freqüentara pessoas de certa categoria social, sobretudo mulheres da alta sociedade. As únicas mulheres com quem privara até então eram as esposas de oficiais, de funcionários e de industriais. Quando chegou a Londres, no início das hostilidades, e suas funções o puseram em relações com grandes damas, ficou deslumbrado. Elas o intimidavam, mas fascinavam-no. Tornou-se um freqüentador dos salões. Para Ashenden - e ele sabia muito mais coisas a respeito de R. do que este pensava - aquelas rosas deviam ter sua história.

Ashenden não tinha a menor dúvida de que R. não o mandara chamar para falar-lhe da chuva e do bom tempo. Que queria ele? Soube em seguida.

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- Não foi má estréia, a sua, em Genebra - disse R. - Sinto-me feliz por ser essa sua opinião, coronel. De repente, o olhar de R. tornou-se mais duro. Acabaram-se as palavras inúteis.

- Tenho trabalho para o senhor. Ashenden nada disse, mas estremeceu, interessado. - Já ouviu falar alguma vez de Chandra Lal? - Não, coronel. A testa de R. franziu-se um momento de impaciência. Acreditava sempre que seus subordinados estivessem beminformados.

- Mas onde tem vivido nesses últimos anos? - Trinta e -seis, Chesterfield Street, Meyfair. Um pálido sorriso iluminou o rosto de R. Gostou da resposta concisa e impertinente. Aproximou-se da mesa grande, abriu uma pasta, tirou dali um retrato e deu-o a Ashenden.

- Aí está! Para Ashenden, pouco habituado às fisionomias orientais, esse Chandra Lal, de feições pesadas e cor de azeitona, tanto podia ser um indiano qualquer quanto um daqueles rajás cuja visita de tempos em tempos deslumbra a Inglaterra e enriquece as revistas ilustradas. A cabeleira preta era densa e espetada, os lábios grossos, o nariz achatado. A fotografia não atenuava a expressão bovina de seus olhos vagos. Parecia pouco à vontade em suas roupas européias.

- Agora, ei-lo aqui em trajes indianos - disse R., dando outra fotografia a Ashenden.

Esta representava-o de pé, enquanto a primeira mostrava apenas o busto, e datava de muitos anos. No rosto menos cheio, unicamente o olhar sério impressionava. O fotógrafo, um indiano de Calcutá, tinha imaginado um fundo ingênuo. Chandra Lal destacava-se sobre esse fundo onde, por entre as palmas de um coqueiro, o mar aparecia. Sua mão se apoiava numa mesa rústica, na qual repousava um vaso de onde

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emergia uma seringueira minúscula. Entretanto, com seu turbante e sua comprida túnica clara, ele tinha um certo donaire.

- Que impressão lhe causa ele? - perguntou R. - Uma fisionomia interessante, parece alguém. - Aqui está seu dossiê. Leia-o. R. entregou a Ashenden duas folhas datilografadas e, tornando a pôr os óculos, entregou-se ao exame de cartas que necessitavam sua assinatura. Ashenden percorreu o relatório e logo o releu com atenção crescente. Chandra Lal era um agitador temível. Advogado, metera-se na política e pregava abertamente na Índia a insurreição contra a Inglaterra. Por mais de uma vez os motins por ele provocados fizeram correr sangue. Fora preso e condenado a dois anos de cárcere. No começo da guerra estava em liberdade, do que se aproveitou para instigar perturbações da ordem. Era a alma de todas as conspirações. Foi assim que conseguiu dificultar várias remessas de tropas para o teatro das operações. As quantias enormes que recebia dos agentes alemães facilitavam-lhe a ação perturbadora. Atribuíam-se-lhe dois atentados, e suas bombas, se não mataram mais do que alguns transeuntes inofensivos, nem por isso deixaram de causar péssimo efeito sobre o moral da população. Conseguia escapar a todas as perseguições; graças a sua prodigiosa atividade, parecia estar em toda parte ao mesmo tempo; somente se tinha notícia de sua presença numa cidade quando, realizados seus projetos, ele já se achava longe. Puseram-lhe a cabeça a prêmio. Fugiu então para a América, passando daí para a Suécia e aportando finalmente em Berlim. Aí organizou seus planos para incitar à revolta as tropas indianas já transportadas para a Europa. Tudo isso estava exposto sucintamente, sem comentários, mas adivinhavam-se o mistério e a aventura, o homem encurralado que escapa por milagre e se precipita sobre o perigo. O relatório terminava assim:

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"Ch ... tem na Índia uma esposa legítima e dois filhos. Mulheres, para ele, nada valem. Não bebe nem fuma. Diz-se que é íntegro. Grandes quantias lhe têm passado pelas mãos, sem que jamais fosse possível duvidar de sua honestidade (!). É um trabalhador obstinado, de inegável coragem. Faz questão fechada de honrar sua palavra".

Ashenden restituiu o documento a R. - E que tal? - Um fanático. Ashenden não era insensível ao feitio romântico dessa personalidade, mas tomou o máximo cuidado em não deixar transparecer sua opinião. Sabia que R. não teria gostado de tais manifestações. Acrescentou:

- Parece-me um indivíduo perigoso. - Dos mais perigosos da Índia, e mesmo de qualquer outro lugar. Ele sozinho é mais pernicioso do que todos os outros juntos. Os indianos de Berlim, como sabe, formam um verdadeiro partido; pois bem, ele é a alma do grupo. Se conseguíssemos nos livrar dele, o resto do bando não me preocuparia mais, porque só ele tem valor. Faz mais de ano que procuro alcançá-lo e já tinha perdido a esperança, mas enfim, agora, entrevejo uma oportunidade e dou-lhe minha palavra que não a deixarei escapar.

- E nesse caso, que vai fazer dele? R. teve um ríctus cruel. - Doze balas no couro sem hesitar. Ashenden ficou calado. R. caminhou nervosamente pela sala, depois encostou-se na chaminé da estufa. Seu olhar pousou em Ashenden. Um sorriso sarcástico crispava sua boca.

- Reparou que no fim do relatório se afirma que as mulheres nada valem para ele? Pois bem, isso era verdade, mas agora já não é. Esse imbecil deixou que uma lhe transtornasse a cabeça.

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R. foi até sua escrivaninha, abriu a gaveta e tirou uns papéis amarrados com uma fita azul pálida.

- Veja, aqui estão suas cartas de amor. Pode ser que elas seduzam seu coração de romancista. De resto, é preciso que as leia para ajudá-lo a compreender. Deve levá-las.

R. atirou o pequeno maço sobre a escrivaninha. - Como é que um tipo audacioso como esse pôde deixar-se prender por uma saia? Francamente, era a última coisa que eu esperava dele.

O olhar de Ashenden disfarçadamente dirigiu-se para as belas rosas, mas guardou para si suas reflexões. R., a quem nada escapava, surpreendeu aquele olhar e sua testa franziu-se. Nesse momento ele não sentia por seu subordinado nenhuma simpatia. Apesar disso, não fez consideração alguma a respeito e retomou o fio de seu discurso.

- Enfim, os fatos aí estão. Chandra está loucamente apaixonado por uma senhora Giulia Lazzari.

- Não sabe onde ele a descobriu? - Ora essa! É uma dançarina de origem italiana, mas trabalha em bailados espanhóis. No palco chama-se La Malaguena. Já imagina o que seja: castanholas, uma mantilha, um leque e um grande pente na cabeça. Tem dançado por toda a Europa nesses dois anos.

- É bonita? - Não, um horror. Durante sua excursão pela Inglaterra, quer na província, quer em Londres, seu ordenado não passava de dez libras por semana. Chandra encontrou-a num cabaré em Berlim. Creio que no continente a dança lhe serve principalmente para valorizar seus atrativos de prostituta.

- Como ela conseguiu chegar a Berlim durante a guerra?

- Era casada com um espanhol, e, aliás, creio que continua sendo, embora não vivam juntos. Seja como for, ela viaja com um passaporte espanhol.

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R. retomou a fotografia do indiano e a examinou. - Que é que se pode achar de sedutor nesse macaco oleoso? Deus! E como esses bichos engordam depressa! O fato, porém, é que a mulher está tão apaixonada quanto ele. Tenho também as cartas dela, as cópias, naturalmente, porque os originais estão com ele, seguramente atados com uma fita cor-de-rosa. Está louca por ele. Não sou um homem de letras, mas, quando uma coisa é verdadeira, não me engano. O senhor as lerá e depois me dirá o que pensa a respeito. E dizer que há pessoas que não acreditam no amor fulminante!

R. sorriu desdenhosamente; estava com certeza num dos seus dias bons.

- Como conseguiu essa correspondência? - Como a consegui? Ora essa, que está pensando? Em virtude de sua origem italiana, Giulia Lazzari acabou por ser expulsa da Alemanha e despachada para Holanda. Como tinha um contrato para a Inglaterra, obteve um visto e (R. consultou seus papéis) no dia 24 de outubro passado embarcou em Roterdã para Harwick. Depois disso dançou em Londres, em Birmingham, Portsmouth e outros lugares. Nós a prendemos há quinze dias em Hull.

- Sob que pretexto? - Espionagem. Foi transferida para Londres e eu mesmo fui vê-la em Holloway.

Ashenden e R. olharam-se por um momento sem falar. Cada um procurava ler os pensamentos do outro. Ashenden perguntava-se qual seria a verdade e R. até que ponto seu interesse permitira levar aquelas confidências.

- E como conseguiu pegá-la? - Achei estranho que os alemães, depois de a terem deixado dançar em Berlim durante semanas, sem incomodá-la, resolvessem bruscamente, sem nenhuma razão aparente, desembaraçar-se dela. Cheirou-me logo a missão especial. E uma dançarina de reputação duvidosa tem com freqüência

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oportunidade de pescar informações que Berlim paga a bom preço. Achei conveniente deixá-la vir para a Inglaterra a fim de ver o que faria. Descobrimos que duas ou três vezes por semana escrevia para a Holanda, sempre para o mesmo endereço, e que recebia as respostas regularmente. As cartas dela eram uma mistura indescritível de francês, alemão e inglês. Ela mal sabe inglês, mas fala regularmente francês. As respostas eram de ponta a ponta redigidas em inglês, e, o que é mais, em bom inglês. O estilo grandiloqüente, porém, traía o estrangeiro. Eu me perguntava quem seria o correspondente. Essas cartas de amor, de aparência banal, deviam esconder negócios importantes. Era claro como água que vinham da Alemanha e quem as escrevia não era nem inglês, nem francês, nem alemão. Por que então eram escritas em inglês? Os únicos estrangeiros que conhecem mais nossa língua do que os do continente são os orientais, com exceção dos turcos e egípcios, que falam francês. Os japoneses e os indianos é que usam o inglês. Daí concluí que o amante de Giulia devia ser membro do grupo de indianos de Berlim, que tanto trabalho nos dá. Não me passava pela cabeça que fosse Chandra Lal em pessoa, até que apanhei a fotografia.

- E como a obteve? - Giulia nunca se desprendia dela; por isso garanto-lhe que foi um trabalho bem-feito. Ela a escondia na mala, no meio de uma porção de retratos de cantores de cafésconcerto, de palhaços e acrobatas. Chandra Lal podia perfeitamente passar por um ator vestido a caráter. Aliás, quando ela foi presa e lhe perguntaram quem era o fotografado, respondeu ser um prestidigitador cujo nome ignorava. Coloquei na pista do mistério um rapaz esperto, que, de imediato, descobriu que de toda a coleção esta fotografia era a única que viera de Calcutá. Um número que havia no verso chamou-lhe a atenção; anotou-o e, é claro, tornou a botar a fotografia no lugar.

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- Dá licença? Tinha vontade de saber, por mera curiosidade, como é que seu rapaz esperto pôde encontrar a fotografia?

Os olhos de R. luziram maliciosos. - Isso não é da sua conta. Posso, entretanto, dizerlhe que é um rapaz que agrada as mulheres. Aliás, isso não tem importância. Assim que obtivemos o número da fotografia, telegrafamos a Calcutá e, pouco depois, soubemos, com satisfação, que o apaixonado de Giulia não era outro senão o austero ChanDra. A vigilância redobrou em torno dela. Parecia ter um fraco pelos oficiais de Marinha. Não serei eu a censurá-la por isso; realmente, eles têm um garbo especial. Mas as damas de meia virtude e de nacionalidade duvidosa andariam mais acertadas não os procurando em tempo de guerra. Não demorou muito para eu conseguir um feixe de provas contra ela.

- Como ela transmitia as informações? - Ela não as transmitia. Nem mesmo tentava fazê-lo. Os alemães realmente a haviam expulsado, e não era para eles que ela trabalhava. Seu trabalho era para ChanDra. Depois de sua excursão pela Inglaterra pensava reunir-se a ele na Holanda. Faltava-lhe finura e audácia, mas, como parecia que ninguém lhe dava atenção, foi-se encorajando pouco a pouco e começou a recolher toda espécie de informações, certa de que não corria perigo. Numa de suas cartas escreveu, sublinhando as palavras francesas:

Mon petit Chou, tenho uma porção de coisas para te dizer, que ficarás extremement interessé de saber.

R. interrompeu-se e esfregou as mãos. A lembrança de seu próprio ardil, sua fisionomia fanada iluminou-se com alegria diabólica.

- Era espionagem sem conseqüências. Bem compreende que não me interessava. O que me interessava era

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ele! Portanto, assim que obtive as provas, prendi a mulher. Dispunha de mais documentos do que os necessários para encarcerar um regimento de espiões.

R. meteu as mãos nos bolsos, e seus lábios descorados imitaram um sorriso.

- Holloway não é um lugar de prazeres, como o senhor sabe.

- Como se uma prisão pudesse sê-lo! - Deixei-a remoendo a própria raiva durante oito dias, antes de ir vê-la. Seus nervos ficaram em petição de miséria. A guardiã contou-me que as crises de raiva sucediam-se, ininterruptamente. Parecia um demônio.

- É mesmo bonita? - Terá ocasião de julgar por si mesmo. Não é meu tipo. Ela deve ficar mais apresentável depois de pintada e bem-arrumada. Fiz meu jogo com audácia. Falei-lhe como um pai. Ameacei-a com Deus. Assegurei-lhe que tomaria, pelo menos, dez anos de cadeia. Creio que a aterrorizei; em todo caso, fiz o possível para isso. É claro que, de começo, tudo negou. Mas as provas estavam ali; mostreilhe que estava perdida. Insisti durante três horas. Acabou vencida e confessou tudo. Prometi-lhe, então, a liberdade se conseguisse atrair Chandra à França. Recusou peremptoriamente. "Prefiro morrer", bradou. Que artista! Lamentável! Deixei-a gritar. Disse-lhe que tornaríamos a conversar dentro de um ou dois dias. De fato, deixei passar uma semana. Evidentemente, teve tempo bastante para pensar, porque, ao ver-me, perguntou logo qual era afinal a proposta exata que eu lhe fizera. Estava presa há quinze dias e com certeza já estava achando a demora exagerada. Falei-lhe claramente e ela se decidiu.

- Confesso que não compreendo - disse Ashenden. - Sim? No entanto, a coisa é clara. Se ela fizer com que Chandra passe a fronteira e entre na França, terá

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a liberdade de partir para a Espanha ou para a América do Sul, com viagem paga.

- E como julga que ela possa decidir por Chandra? - Ele está intoxicado por ela; já não pode mais; suas cartas são de um verdadeiro louco. Ela escreveu-lhe comunicando que não pôde obter o visto no passaporte para a Holanda (era ali que eles se deviam encontrar) , mas que o concederam para a Suíça. Sendo um país neutro, ele não correrá perigo. Aproveitou com sofreguidão a oportunidade. O rendez-vous está combinado para Lausanne.

- E então?

- Quando ele chegar lá, uma carta da adorada avisa-lo-á de que as autoridades francesas a proibiram de sair da França e que ela se dirige para Thonon, pedindolhe que vá encontrar-se lá com ela.

- E o senhor acredita que ele se deixe lograr? R. calou-se num momento. Considerou Ashenden com ar divertido.

- Ela que trate de fazer-se atender por ele, do contrário, terá dez anos de trabalhos forçados.

- Agora, sim, compreendo. - Ela deve chegar da Inglaterra bem-escoltada, esta tarde, e conto com o senhor para acompanhá-la a Thonon pelo trem da noite.

- Eu?! - Sim. É uma tarefa totalmente de acordo com seu feitio. O senhor é um psicólogo muito acima do mediano; ser-lhe-á uma distração passar uma ou duas semanas em Thonon. Dizem que é uma linda cidadezinha, muito elegante em tempo de paz. Poderá fazer uma cura de águas.

- E o que deverei fazer quando tiver a dama em Thonon?

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- Dou-lhe ampla liberdade de ação. Tenho aquj algumas notas que lhe podem ser úteis. Vou lê-las para o senhor.

Ashenden ouviu atentamente. O plano de R. era simples e claro. Ashenden não pôde deixar de admirar o cérebro que o concebera.

Aproximava-se a hora do almoço. R. pediu a Ashenden que lhe indicasse um restaurante elegante. Ashenden divertiu-se ao ver que R., sempre tão positivo, tão senhor de si no seu gabinete, entrava acanhado no restaurante. Falava afetadamente, em voz bem alta, para fingir que estava à vontade e mostrar-se desembaraçado. Sua atitude ressentia-se da situação modesta em que vivera até o dia em que os azares da guerra o tinham elevado àquela posição. Lisonjeado de pavonear-se num meio elegante, lado a lado com personalidades notórias, parecia um colegial ao estrear seu primeiro smoking. A majestade imponente do maltre-d'hôtel perturbava-o, mas, ao relancear os olhos pela sala, sua fisionomia de funcionário modesto irradiava uma satisfação mal dissimulada. Ashenden indicou-lhe uma mulher vestida de preto, coberta de pérolas, feia, mas de corpo elegante.

- É Mme. de Brides, a amante do grão-duque Teodoro. Uma das mulheres mais influentes da Europa, e, de qualquer modo, das mais inteligentes.

Os olhos penetrantes de R. fuzilaram. - Com mil demônios, isto sim que é viver! - suspirou.

É necessário possuir um caráter bem temperado para passar impunemente da mediocridade à grande vida. As lantejoulas desse ambiente fascinavam R., apesar de sua astúcia e de seu cinismo. Da mesma forma que a educação permite exprimir, com distinção, os lugares-comuns mais vulgares, assim também o hábito do luxo preserva o deslumbramento.

Na hora do café, R. abandonou-se beatificamente ao seu bem-estar. Ashenden achou o momento oportuno para voltarem ao assunto que o interessava.

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- Esse indiano deve ser um rapaz notável, não? - Assim creio. - Não podemos deixar de tributar uma certa consideração a um homem que tem a coragem de enfrentar o poderio britânico na Índia.

- Eu, se fosse o senhor, guardaria minha admiração para outro momento. Trata-se de um criminoso da pior espécie, e nada mais.

- Estou certo de que ele não recorreria às bombas se dispusesse de alguns canhões e meia dúzia de batalhões. Ele, naturalmente, emprega as armas de que dispõe e não posso censurá-lo por isso. Afinal de contas, não é para ele mesmo que trabalha. Está disposto a sacrificar-se pela liberdade de sua terra. Quanto a mim, não lhe nego minha estima.

R., porém, não deu sua aprovação ao que Ashenden disse.

- Isso são enternecimentos mórbidos. Não enveredemos para esse terreno. Nossa obrigação é prendê-lo e entregá-lo ao pelotão de execução.

- É claro. Declarou-nos guerra e tem de sofrer as conseqüências. Obedecerei a suas ordens, além do que estou aqui para isso. Não obstante, nada impede que ele se imponha ao respeito.

R. voltara a ser o juiz implacável. - Eu as vezes me pergunto se, para missões desse gênero, é melhor o estímulo da paixão ou o sangue frio. O ódio de alguns agentes pelos que perseguimos é incrível; acabam acreditando que satisfazem uma vingança pessoal ao mandá-los à morte. Com o senhor o caso é outro. Aqueles se encarniçam; o senhor é diferente. Apesar de suas tiradas sentimentais, o senhor considera o caso como uma

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partida de xadrez. Não compreendo bem esse estado de espírito, mas, no caso vertente, é justamente o que se precisa.

Ashenden nada disse. Pediu a conta e com R. voltou ao hotel.

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GIULIA LAZZARI


O trem partia às oito. Ashenden pôs a maleta no lugar e foi procurar Giulia Lazzari. Ela estava sentada num canto do compartimento, de costas para a luz. Ele não pôde ver-lhe o rosto. Era vigiada por dois agentes aos quais a polícia inglesa a confiara. Um deles cumprimentou Ashenden, com quem já trabalhara na margem francesa do lago Leman.

- Perguntei a ela se queria jantar no carro-restaurante, mas ela preferiu comer aqui; por isso encomendei uma bandeja. Fiz bem?

- Muito bem - disse Ashenden. - Jantaremos por turno, eu e meu companheiro, para não deixá-la só.

- Muito bem-pensado. Quando estivermos a caminho, virei conversar um momento com ela.

- Ela não parece estar muito disposta a fazer conf idências.

- Não é de admirar. Ashenden tomou um cartão para a segunda mesa e voltou para seu vagão. Giulia Lazzari estava acabando de jantar quando ele se aproximou. Pelo aspecto da bandeja ele verificou que ela não perdera o apetite. O agente que

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a acompanhava abriu a porta para Ashenden e, a um sinal deste, deixou-os sós.

Giulia Lazzari dirigiu-lhe um olhar sombrio. - Espero que não tenha tido um mau jantar - começou ele, sentando-se diante dela.

Ela inclinou-se levemente, porém não respondeu. Ele ofereceu-lhe cigarros. - Não aceita um? Ela hesitou. Depois, sem dizer nenhuma palavra, aceitou. Ashenden puxou o isqueiro e, enquanto lhe acendia o cigarro, olhou-a. Ficou surpreendido com aquela cabeça trigueira. Pensa-se sempre que os orientais são, por contraste, atraídos pelas louras. Um chapéu em forma de campânula prendia estreitamente sua cabeça. Os olhos brilhavam como brasas. Tinha cerca de quarenta anos e nenhuma pintura dissimulava sua pele amarela e fanada. Sua única beleza residia nos olhos magníficos. Tinha o ar desvairado. A alta estatura devia prejudicar sua graça de dançarina. O traje espanhol dar-lhe-ia, talvez, um brilho provocante, mas ali no trem, com aquele pobre vestido, nada justificava a paixão do indiano por ela. Olhou Ashenden com olhar perscrutador. Visivelmente esforçava-se por adivinhar com que espécie de homem estaria tratando. Soltou uma baforada de fumaça, depois sua atenção voltou-se novamente para Ashenden. Seu mau humor apenas mascarava sua inquietação. Falou em francês, com sotaque italiano.

- Quem é o senhor? - Meu nome nada significa para a senhora. Vou a Thonon. Mandei reservar um quarto em seu nome no hotel La Place, o único aberto atualmente. Acredito que o achará a seu gosto.

- Ah! O senhor é a pessoa de quem o coronel me falou; é então meu carcereiro.

- Oh! Só na aparência. Não a importunarei. - De qualquer forma, é meu carcereiro.

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- Não por muito tempo, acredito. Tem seu passaporte no bolso e todas as formalidades foram preenchidas a fim de permitir-lhe a ida para a Espanha.

Ela atirou-se para trás. Sob a luz baça seu rosto pálido, em que se destacavam os grandes olhos negros, tomou uma expressão de desespero.

- É uma infâmia! Oh! Eu daria de bom grado a minha vida para poder torcer o pescoço daquele velho coronel. Não tem coração. Sou tão desgraçada!

- Receio muito que a senhora se tenha colocado numa situação difícil. Não sabia que a espionagem é um jogo perigoso?

- Eu nunca traí nenhum segredo. Não fiz mal algum. - Seguramente porque não teve oportunidade. Segundo me consta, assinou uma confissão completa.

Ashenden falava-lhe tão amavelmente quanto podia, um pouco como se fala a uma pessoa doente, sem nenhuma aspereza na voz.

- É verdade, fiz uma grande tolice. Escrevi tudo o que o coronel quis que escrevesse. Não basta isso? O que me acontecerá se Chandra não responder? Não posso forçá-lo a vir contra sua vontade.

- Ele respondeu - disse Ashenden. - Tenho a resposta comigo,

Giulia estremeceu e soluçou. - Oh! Mostre-me a carta, suplico-lhe; deixe-me lê-la. - Não vejo nisso inconveniente, contanto que me seja devolvida.

Tirou do bolso a carta de ChanDra. Giulia arrebatoulhe os papéis das mãos; eram oito páginas. Enquanto lia, as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto. Entre dois soluços, soltava pequenas exclamações de ternura, em francês e italiano. Era a resposta à carta escrita por ordem de R. para preveni-lo de que se encontrariam na Suíça. Esta notícia deixara o amante louco de felicidade. Contava-lhe ele como

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o tempo lhe parecera longo e como definhava longe dela. Agora que sabia que a veria em breve, onde encontrar forças para suportar a espera? Giulia deixou a carta cair no chão.

- Vê quanto ele me ama? Não há possibilidade de dúvida. Posso garantir-lhe que conheço bem essas coisas.

- E a senhora o ama realmente? - Foi o único homem que foi bom para mim. Não é nada divertido andar por todos esses cabarés da Europa; nunca um dia de descanso; e os homens não valem grande coisa, os homens que freqüentam esses lugares. Nos primeiros tempos pensei que ele valesse tanto quanto os outros.

Ashenden apanhou a carta e tornou a guardá-la na carteira.

- Mandamos um telegrama em seu nome, no endereço da Holanda, dizendo que a senhora estaria no dia quatorze em Lauzanne, no hotel Bibbon.

- Quatorze é amanhã. - Efetivamente. Ela levantou a cabeça e seus olhos flamejaram. - Oh! É uma vergonha o que me obrigam a fazer! É infame!

- Mas nada a obriga a fazê-lo. - Sim, mas e se eu recusar? - Terá de sofrer as conseqüências. - Não quero ir para a prisão! - bramiu, subitamente. - Não quero! Não quero! Tenho pouco tempo de mocidade pela frente; ele falou em dez anos. É verdade que serei condenada a dez anos?

- Se foi o que o coronel lhe disse, é verdade. - Oh! Eu o conheço bem com aquela cara de algoz! Não tem piedade nenhuma. E o que serei eu daqui há dez anos? Oh! Não, não!

Nesse momento o trem parou. O agente que esperava no corredor bateu na vidraça. Ashenden abriu a porta e o

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homem entregou-lhe um cartão-postal ilustrado. Era uma pequena vista de Pontarlier, cidade fronteiriça entre a França e a Suíça: uma praça com uma estátua e algumas árvores. Ashenden deu-lhe um lápis.

- Queira escrever este cartão a ChanDra. Será posto no correio de Pontarlier. Dirija-o ao hotel de Lausanne.

Ela olhou-o. Sem dizer palavra, tomou o cartão e escreveu o que ele ditou.

- Agora escreva no outro lado: "Estou detida na fronteira, mas tudo vai bem. Espere-me em Lausanne". Pode acrescentar o que quiser, tendresses, por exemplo.

Ashenden leu o cartão e pegou o chapéu. - Bem, vou deixá-la agora. Desejo-lhe uma boa-noite. Virei buscá-la amanhã de manhã para descermos em Thonon.

O segundo agente acabara de jantar, e os dois homens entraram no compartimento. Giulia encolheu-se num canto. Ashenden entregou o cartão ao agente que devia levá-lo a Pontarlier; depois, atravessando os corredores cheios, dirigiu-se até sua cabine.

Quando, no dia seguinte, pela manhã, chegaram a seu destino, fazia um dia lindo e, não obstante o brilho do sol, estava frio. Ashenden entregou a bagagem a um carregador e veio ter com Giulia Lazzari, que esperava na plataforma ladeada pelos dois agentes. Ashenden virou-se para os dois homens:

- Bom dia, amigos. Podem retirar-se. Eles tocaram com a mão no chapéu, curvaram-se diante de Giulia e afastaram-se.

- Para onde eles vão? - Está acabado, a senhora está livre deles. - Quer dizer, então, que fico sob sua guarda? - A senhora não está sob a guarda de ninguém. Eu vou tomar a liberdade de conduzi-la a seu hotel, e depois deixá-la-ei. preciso que descanse bastante.

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O carregador tomou a maleta e o conhecimento das bagagens de Giulia. Saíram da estação. Ashenden chamou um táxi e subiram nele. O trajeto até o hotel era longo. De tempos em tempos Ashenden sentia que sua companheira o observava por entre os cílios. Continuava desconfiada. Ashenden calava-se. Desceram diante de um hotel modesto depois de dobrarem uma pequena avenida, de onde se descortinava uma belíssima vista. O proprietário mostrou o quarto reservado para Mme. Lazzari.

- Isso está magnífico. Descerei dentro de um minuto - disse Ashenden.

O proprietário saudou-os e retirou-se. - Farei todo o possível para que a senhora fique confortavelmente instalada - explicou Ashenden. - Aqui não dependerá de ninguém e pode pedir o que desejar. Para o proprietário, a senhora é uma cliente como as demais. Está absolutamente livre.

- Livre de sair? - perguntou com vivacidade. - Naturalmente. - Escoltada por agentes, não é? - De modo algum. Está livre, como se estivesse em sua própria casa; livre de sair e entrar à vontade. Prometa-me, apenas, não escrever nenhuma carta, sem antes me prevenir, e não tentar deixar Thonon.

Ela fitou Ashenden longamente. Aquele discurso a assombrou; pensava estar sonhando.

- Vejo-me obrigada a prometer tudo o que lhe aprouver exigir de mim. Dou-lhe minha palavra que não escreverei nenhuma carta e que não tentarei fugir.

- Obrigado. Agora vou deixá-la. Será para mim um prazer vir amanhã saber notícias suas.

Ashenden inclinou-se e saiu. Deteve-se por cinco minutos na delegacia de polícia para verificar se tudo estava em ordem. Depois disso, o carro levou-o a uma pequena

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casa de campo nos arredores de Thonon, onde costumava ficar durante suas estadas periódicas. Tomou um banho, fez a barba, pôs os chinelos e passou o resto da manhã lendo um romance.

Ao anoitecer - porque mesmo em Thonon era preferível chamar o menos possível a atenção sobre ele - um policial à paisana, mal-barbeado, com os olhos de fuinha, veio procurá-lo. Era um tal Félix, francesinho moreno, vestindo uma sovada roupa cinzenta, sapatos cambaios, mais parecendo um servente de escritório desempregado do que um funcionário. Ashenden ofereceu-lhe um copo de vinho e o fez sentar junto ao fogo.

- Pois, meu caro senhor, sua dama não perdeu tempo - disse o agente. - Um quarto de hora apenas depois de chegar, saiu do hotel com um embrulho de roupas e outras bugigangas e tratou de vendê-las numa loja perto do mercado. Quando o vapor da tarde atracou, foi ao cais e comprou uma passagem para Evian.

Evian é a última estação francesa. Daí o vapor atravessa o lago para a Suíça.

- É claro que sem passaporte não a deixaram embarcar.

- E como explicou não ter passaporte? - Pretextou tê-lo esquecido. Contou que tinha um encontro aprazado com uns amigos em Evian, e tentou persuadir o empregado a deixá-la passar, escorregando-lhe na mão uma nota de cem francos.

- Nunca pensei que fosse tão estúpida. Quando, porém, no dia seguinte foi vê-la de manhã, às onze horas, Ashenden não fez nenhuma referência àquela tentativa de fuga. Guilia tinha tido tempo para enfeitar-se e agora, com os cabelos recentemente ondulados, com as faces e os lábios pintados, parecia menos fanada do que da primeira vez que a vira.

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- Trago-lhe alguns livros - disse Ashenden. - Tenho receio de que o tempo lhe pareça demasiado longo.

- Que lhe importa que assim seja? - É que não quero impor-lhe aborrecimentos desnecessários. De qualquer forma, deixo-lhe estes livros; leia-os ou não, como quiser.

- Se soubesse como o detesto! - Ser-me-ia muito penoso, não tenha dúvidas. Mas, realmente, não vejo motivos para me detestar tanto. Apenas cumpro ordens.

- Que mais quer de mim? Não é com certeza pelos meus belos olhos que se dá ao incômodo de vir me ver.

Ashenden sorriu. - Quero que escreva a seu amante. Dir-lhe-á que, em virtude de uma irregularidade em seu passaporte, as autoridades suíças recusaram-se a deixá-la passar, razão pela qual veio para cá, onde está muito bem, sendo o lugar calmo, tanto que nem se fala na guerra, e por isso lhe propõe que venha reunir-se à senhora.

- Pensa que ele é idiota? Recusará, naturalmente. - Cabe-lhe convencê-lo. Ela hesitou um pouco antes de responder. Sem dúvida estaria pensando em ganhar tempo, enquanto satisfazia aquela exigência.

- Pois bem, vá ditando. - Não, prefiro que redija a seu modo. - Dê-me meia hora e terá a carta. - Está bem, esperarei aqui. - Por quê? - Porque prefiro assim. Os olhos de Giulia relampejaram de raiva, mas conseguiu dominar-se. Sentou e começou a escrever. Quando entregou a carta a Ashenden, este verificou, apesar da pintura, que ela estava pálida. Seu estilo era o de uma pessoa pouco afeita a escrever, mas nas últimas linhas a paixão explodia.

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- Agora acrescente: "Encarrego um suíço de te entregar esta carta. Pode confiar absolutamente nele. Preferi evitar a censura".

Ela hesitou por um momento; depois obedeceu. - Como se escreve "absolutamente"? - Como quiser. Agora, o endereço, e liberto-a da minha presença.

Entregou a carta a um agente que esperava para levá-la a seu destino. Ashenden transmitiu a resposta a Giulia naquela mesma noite. Ela arrancou-a de suas mãos e apertou-a contra o coração. Ao ler, deu um gritinho de alívio.

- Ele não virá! A carta, no inglês pomposo e rebuscado dos indianos, expressava uma amarga decepção. Chandra dizia da emoção febril com que esperara sua amiga e suplicava-lhe que tudo fizesse para aplainar as dificuldades que a impediam de ir ter com ele. Era-lhe impossível vir; sua cabeça tinha sido posta a prêmio e seria loucura. Ela não desejaria que seu amorzinho que tanto a queria fosse fuzilado, não é?

- Ele não virá - repetiu. - Não virá. - Deve escrever-lhe dizendo que não corre nenhum perigo, que, em caso contrário, nunca teria pensado em pedir-lhe que viesse e, que, se a ama, não deve hesitar.

- Não quero! Não quero! - Não seja tola, agora já é tarde para recuar. Desatou em pranto; de repente, atirou-se aos pés de Ashenden.

- Farei tudo o que quiser se me deixar partir. - Não vê que isso é absurdo? Quer fazer-me perder a cabeça? Vamos, vamos. Tenha juízo. Conhece a alternativa.

Ela levantou-se de um salto e, mudando bruscamente de atitude, lançou sobre ele toda a coleção de injúrias de seu repertório.

- Prefiro-a assim - disse Ashenden. - Agora está disposta, ou quer que chame a polícia?

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- Ele não virá. É inútil. - Pois então trate de decidi-lo, porque está em jogo a sua liberdade.

- Que é que quer dizer com isso? Quer dizer que, se não consigo fazê-lo vir, depois de ter tentado tudo o que estava a meu alcance, eu ... ?

Olhou Ashenden com olhar desvairado. - Sim, ele ou a senhora. Ela cambaleou e apertou o coração com a mão. Sem dizer mais nada, tomou a caneta e o papel. Mas a carta não satisfez a Ashenden, que a obrigou a escrever outra. Quando terminou, atirou-se na cama e desatou novamente num pranto convulso. Sua dor era sincera, mas um não sei o quê de teatral impedia Ashenden de se apiedar. Sentia-se diante dela um pouco como um médico na cabeceira de um doente ao qual não pode dar alívio. Agora, sim, compreendia por que R. o tinha escolhido para esta missão singular. Era porque exigia nervos a toda prova.

No dia seguinte não viu Giulia. A resposta de Chandra só veio depois do jantar. Foi Félix quem a trouxe.

- Então, o que há de novo? - Nossa amiga começa a enlouquecer - respondeu Félix, sorrindo. - Esta tarde foi à estação, na hora exata do trem para Lyon. Olhava para todos os lados, com ar hesitante. Aproximei-me, então, e perguntei-lhe se lhe podia ser útil em alguma coisa. Apresentei-me como um agente da Sureté. Se um olhar bastasse para matar, eu não estaria agora aqui.

- Sente-se, mon ami - disse Ashenden. - Merci ... Ela saiu da estação, mas há coisa melhor para contar-lhe. Ofereceu mil francos a um barqueiro do lago se ele a levasse a Lausanne.

- E o que ele disse? - Respondeu que não se animava. - Sim?

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O pequeno agente deu de ombros e sorriu. - Ela marcou um encontro com ele esta noite, às dez horas, na estrada de Evian, dando-lhe a entender que estaria também disposta a entregar-se aos seus desejos. Dei carta branca ao rapaz com a condição de ele me contar tudo.

- Tem confiança nele? - Absoluta. Ele nada sabe a não ser que ela está sob vigilância. Não tenho receio. É um bom rapaz; conheço-o; vi-o nascer.

Ashenden leu a carta de ChanDra. Era uma carta arrebatadora e cheia de paixão. Em cada palavra sentia-se a extraordinária e dolorosa saudade. Amor? Sim, se Ashenden conhecia alguma coisa sobre esse sentimento, aquele era verdadeiramente real. Ele lhe falava das intermináveis horas passadas nas margens do lago, com os olhos presos às costas da França, tão próximas e ao mesmo tempo tão desesperadoramente inatingíveis. Repetia que não podia ir e suplicava a Giulia que não o tentasse. Tudo faria por ela, mas isso verdadeiramente não ousava. .No entanto, se ela insistisse, como achar forças para resistir? Pedia-lhe que tivesse compaixão dele. Depois eram pungentes lamentos diante da idéia de não mais revê-la. Não conseguiria ela fugir? Se outra vez tivesse a felicidade de tê-la nos braços, jurava que jamais se separaria dela. Mesmo o rebuscado do estilo não conseguia enfraquecer a veemência da carta; era a carta de um louco.

- Quando vai saber do resultado do encontro com o barqueiro? - perguntou Ashenden.

- Devo encontrá-lo no cais, entre onze e meia-noite. Ashenden consultou o relógio. - Eu o acompanho. Desceram a colina. Chegados ao cais, abrigaram-se contra o vento gelado, por trás da alfândega. Finalmente, viram um homem, e Félix saiu da sombra que o dissimulava.

- Antônio?

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- Monsieur Félix? Tenho uma carta para o senhor. Prometi levá-la a Lausanne amanhã pelo primeiro vapor.

Ashenden olhou-o de relance, mas não procurou se informar do que se passara entre ele e Giulia. Pegou a carta e leu-a, à luz da lâmpada. Giulia dizia em mau alemão:

Não venha em condição alguma. Não dê crédito as minhas cartas. Perigo. Amo-te, meu doce coração. Não venha.

Meteu a carta no bolso, deu cinqüenta francos ao barqueiro e foi deitar-se. No dia seguinte, ao visitar Giulia Lazzari, Ashenden encontrou a porta fechada. Bateu várias vezes, sem obter resposta. Por fim, chamou:

- Madame Lazzari, abra, peço-lhe. Tenho necessidade de falar-lhe.

- Estou deitada. Estou doente; não posso recebê-lo. - Sinto muito, mas abra. Se estiver doente, chamarei o médico.

- Não, vá embora. Não quero ver ninguém. - Se não abrir, arrombo a porta. Houve um silêncio; por fim a chave girou na fechadura. Entrou, Giulia de bata, com os cabelos despenteados, saiu da cama.

- Estou que não posso mais; nada posso fazer. Basta olhar-me. Estive doente toda a noite.

- Não quero abusar de seu tempo. Desejaria ver um médico?

- Para quê? Ashenden entregou-lhe a carta que ela confiara ao barqueiro.

- O que significa isso? Ela estremeceu e seu rosto pálido tornou-se esverdeado. - Tinha-me dado sua palavra de que não tentaria fugir nem escreveria nada sem minha autorização.

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- E pensou que eu manteria minha palavra? - exclamou com voz vibrante de desprezo.

- Não. Para falar a verdade, não foi somente para lhe ser agradável que a hospedamos num hotel confortável, em vez de mandá-la para a prisão. Mas, quero preveni-la de que, se a deixamos ir e vir à vontade, é porque não tem mais probabilidades de fugir de Thonon do que se estivesse acorrentada num cárcere. É tolice perder seu tempo escrevendo cartas que nunca chegarão a seu destino.

- Cochon! Atirou-lhe a palavra insultante com a máxima violência. - Agora, sente-se. Vou ditar-lhe uma carta, e esta garanto-lhe que chegará às mãos do destinatário.

- Por nada deste mundo escreverei uma única palavra mais.

- A senhora sabia, ao vir laqui, que esperávamos da senhora certas coisas.

- Não obedecerei. Basta. - Aconselho-a a refletir. - Refletir? Já refleti. Faça o que quiser. Pouco se me dá.

- Muito bem. Dou-lhe cinco minutos para mudar de resolução.

Ashenden puxou o relógio e sentou-se na beira da cama desfeita.

- Oh! Como este hotel me deixa nervosa! Por que não me puseram na prisão? Por quê? Por quê? Não posso dar um passo sem sentir um espião atrás de mim. O que exige de mim é ignóbil! Ignóbil!! Que crime cometi?! Responda, que fiz eu?! Não sou uma mulher?! É uma infâmia o que me pedem! Uma infâmia!

Já não falava, gemia. Decorridos os cinco minutos, Ashenden levantou-se sem dizer uma palavra.

- Sim, saia, saia! - vociferou ela. - Voltarei - replicou Ashenden.

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Tomou a chave, saiu e fechou a porta. No térreo, rabiscou um bilhete que mandou levar ao posto policial. Depois, tornou a subir. Giulia Lazzari, atirada na cama, com o rosto voltado para a parede, soluçava convulsivamente. Nem pareceu notar sua volta. Ele se sentou diante do penteador e passeou o olhar sobre os objetos que o atravancavam. Aquilo tudo que parecia servir à elegância era simplesmente sórdido. Os lápis de ruge, os potes de creme e o rímel para os cílios misturavam-se aos grampos engordurados. O quarto estava desarrumado e a atmosfera pesada de perfumes almiscarados.

Ashenden, nas suas cismas, imaginava as centenas de quartos por ela ocupados em hotéis de terceira classe, no decorrer de sua vida errante, pelas cidades de província. Era hoje uma mulher grosseira e vulgar, mas como teria sido em sua mocidade? Tinha curiosidade de conhecer seus antecedentes. Não era o tipo adequado à profissão que exercia, pois, para tanto, faltavam-lhe atrativos indispensáveis. Assim mesmo perguntava-se se descenderia de uma dessas famílias, como há tantas pelo mundo, em que a fatalidade da herança impele seus membros ao exercício de profissões nômades, como a de dançarino, acrobata ou cômico ambulante. Ou, então, teria ela sido arrojada naquela vida, acidentalmente, em conseqüência de uma aventura amorosa passageira? E que homens deveria ter conhecido em todos os seus anos passados, companheiros de palco, agentes e empresários, que se consideravam com direito a seus favores, como um tributo outorgado às posições que ocupavam; caixeiros-viajantes, jovens peralvilhos das tantas cidades onde se exibia, atraídos um momento pela magia da dança, ou pela sensualidade escaldante da mulher. Para ela, eram apenas clientes que melhoravam seu salário de miséria e a quem recebia com indiferença; mas, para eles, quem sabe não foi ela um capítulo de romance? Nos seus braços mercenários alcançariam

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talvez visões da existência brilhante das capitais e das sonhadas e inatingíveis aventuras de uma grande vida.

De repente, bateram à porta. - Entrez - disse Ashenden, imediatamente. Giulia Lazzari ergueu-se na cama. - Quem está aí? - perguntou. Estremeceu ao reconhecer os dois policiais que a tinham trazido de Boulogne a Thonon.

- Os senhores? Que querem? - vociferou. - Allons, levez-vous - ordenou um deles num tom que não admitia réplica.

- Pesa-me dizer-lhe que é preciso levantar-se, madame Lazzari - aconselhou Ashenden -, tenho de confiá-la a estes senhores.

- Não posso levantar-me. Estou doente, asseguro-lhe. Não posso ficar de pé. Querem me matar?

- Se não quer vestir-se por si mesma, nós nos encarregaremos disso e nos veremos obrigados a declarar-lhe que como criada de quarto deixamos muito a desejar. Trate de apressar-se. Não gostamos de cenas teatrais.

- Que pretendem comigo? - Vão reconduzi-la à Inglaterra. Um dos policiais agarrou-a pelo braço. - Não me toque. Não se aproxime - gritou, debatendo-se como uma fera.

- Deixem-na - disse Ashenden. - Estou certo de que ela compreenderá a necessidade de fazer o menor barulho possível.

- Vou me vestir. Ashenden ficou a olhá-la enquanto ela tirava a bata e enfiava um vestido; depois calçou os sapatos demasiado pequenos e penteou-se. Seguidamente lançava aos policiais olhares odientos. Ashenden perguntava a si mesmo se ela teria energia suficiente para não ceder e, se assim fosse, R., com muita razão, classificá-lo-ia de imbecil. Giulia aproximou-se

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do penteador e Ashenden levantou-se para dar-lhe o lugar. Com gesto rápido, ela pôs creme no rosto, depois limpou-o com uma toalha suja, empoou-se e pintou as pálpebras. Suas mãos tremiam. Os três homens a observavam silenciosamente. Pôs o ruge nas faces e pintou os lábios. Por fim, colocou o chapéu. Ashenden fez um gesto ao primeiro policial, este tirou do bolso um par de algemas, dirigindo-se para ela.

A vista daquilo, ela recusou violentamente, com os braços abertos.

- Non, non, non! Je ne veux pas! Não, isso não! Não, não!

- Vamos, ma fille, nada de bobagens - disse com dureza o policial.

Como para implorar sua proteção, Ashenden, com grande surpresa, viu-a atirar-se para ele.

- Não os deixe me pegarem. Tenha pena de mim, não quero, não quero.

Ashenden desprendeu-se dela, não sem dificuldade. - Nada mais posso fazer pela senhora. O policial tomou-a pelo pulso e ia pôr-lhe as algemas quando, com um grito estridente, ela caiu por terra.

- Farei o que quiserem. Tudo o que quiserem. A um sinal de Ashenden, os policiais saíram. Esperou que ela recuperasse um pouco a calma. Estendida no chão, Giulia chorava desesperadamente. Ele a ajudou a levantar-se e a fez sentar.

- Que exige de mim? - suspirou. - Quero que escreva outra carta a ChanDra. - Estou com a cabeça girando, não posso escrever duas palavras. Dê-me alguns minutos de descanso.

Ashenden, porém, achou melhor não lhe dar tempo para refazer-se.

- Vou ditar. Tudo o que quero é que escreva exatamente o que eu disser.

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Ela suspirou profundamente, mas pegou a caneta e o papel e sentou-se à mesa.

- Se faço isso e . . . se der resultado, quem me garante que me deixarão em liberdade?

- O coronel prometeu e dou-lhe minha palavra de que seguirei suas instruções.

- Eu seria uma idiota se, além de trair meu amigo, tomasse ainda dez anos de cadeia.

- Vou dar-lhe a melhor garantia da nossa boa fé. Salvo o que diz respeito a Chandra, não damos nenhuma importância a sua pessoa. Assim sendo, para que impor-nos o incômodo e a despesa de sua prisão?

Ela refletiu por um momento. Voltava-lhe toda a serenidade. Já esgotara suas reservas de emoção.

- Diga-me o que devo escrever. Ashenden hesitou. Não obstante acreditar-se capaz de redigir a carta, mais ou menos como ela o faria, nem por isso podia deixar de pesar cada palavra. O estilo das frases não devia ser nem muito fluente, nem muito literário. Sabia ele que nos momentos de emoção há sempre uma tendência para o teatral e para a grandiloqüência. Num romance, porém, ou na cena, esses exageros mostravam-se falsos, e é dever do autor atenuar a ênfase e fazer com que seus personagens falem com mais simplicidade. O momento era sério, mas Ashenden discernia nele o lado cômico. Ditou:

Não sabia que amava um poltrão. Se me amasse de verdade, não teria hesitado quando te pedi que viesse... - Sublinhe "hesitado" -, asseguro-te que não havia perigo. Não me amando, tiveste toda a razão. Não venha. Volte para Berlim, onde nada tem a temer. Estou farta. Estou sozinha aqui, doente, nervosa e abalada de tanto te esperar. Todos os dias pensava: ele vem hoje. Se você me amasse, já estaria aqui. A verdade é que não me quer. Estou sem

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vintém. Este hotel é insuportável. Não sei por que hei de ficar aqui. Posso ter um contrato para Paris. Tenho lá um amigo que me fez propostas vantajosas. Perdi muito tempo com você, e sem proveito. Chega. Adeus! Nunca encontrará uma mulher que te ame tanto quanto eu te amei. Uma proposta como a do meu amigo não se recusa, por isso telegrafei a ele e, assim que receber resposta, seguirei para Paris. Não te censuro por não me amar mais, você não tem culpa disso, mas confesse que eu seria uma idiota se continuasse estragando minha vida por tua causa. A mocidade não dura para sempre. Adeus.

Giulia.

Relendo essa página, Ashenden não se sentiu completamente satisfeito, mas era o melhor que podia fazer.

Como ela sabia pouco o inglês, escrevera foneticamente, e se alguma coisa na carta despertasse a desconfiança do indiano, a grafia ali estava para tranqüilizá-lo. A ortografia era pavorosa e a caligrafia digna de uma criança. Certas palavras tinham sido riscadas e algumas escritas por cima de outras. Algumas frases em francês. Uma ou duas lágrimas sobre o papel borraram a tinta.

- Agora deixo-a - disse Ashenden. - Talvez eu possa na próxima vez que nos virmos dizer-lhe que está livre de partir para onde quiser. Para onde deseja ir?

- Para a Espanha. - Muito bem. Vou mandar preparar tudo. Ela deu de ombros e ele saiu. A Ashenden restava apenas esperar. De tarde mandou um mensageiro a Lausanne e no dia seguinte de manhã foi ao cais esperar a chegada do vapor. Colocou seus homens na sala de espera, de onde se podia observar a passagem dos viajantes. Na chegada de cada vapor verifica-se no cais o passaporte dos passageiros, antes de terem autorização para descer à terra.

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Se Chandra viesse - viajaria, com certeza, com documentos falsos, conseguidos em países neutros -, seria convidado a esperar e então Ashenden poderia identificá-lo. Nesse momento seria preso. Não foi sem emoção que Ashenden viu o barco aproximar-se e um pequeno grupo juntar-se no tombadilho. Olhou atentamente, mas não viu ninguém que se parecesse, por pouco que fosse, com um indiano. Chandra não estava ali. Ashenden não sabia o que fazer. Jogara sua última cartada e, quando os cinco ou seis viajantes se dispersaram, voltou lentamente para Thonon.

- Então, não veio? - disse a Félix, que foi quem verificou os passaportes. O pássaro desconfiou.

- Tenho uma carta para o senhor. O envelope estava endereçado a madame Lazzari. Ashenden em seguida reconheceu a má caligrafia de Chandra Lal. Nesse momento o barco de Genebra, que navegava para Lausanne e para o fim do lago, surgia no horizonte. Cruzava o outro barco e chegava a Thonon vinte minutos depois dele. Ashenden teve uma inspiração.

- Onde está o homem que trouxe isso? - No escritório de venda de bilhetes. - Entregue-lhe esta carta e diga-lhe que a devolva à pessoa que a confiou a ele. Ele que explique que a entregou à senhora, mas que esta não quis abri-la. Se lhe pedirem para se encarregar de outra mensagem, responda que não adianta porque ela está arrumando as malas para sair de Thonon.

Verificou que entregavam a carta ao portador e lhe davam as instruções que ordenara. Depois disso voltou para casa.

Chandra podia vir ainda pelo vapor das cinco. A essa hora Ashenden devia ter um encontro com um dos principais agentes de Genebra. Preveniu, pois, Félix que chegaria talvez com alguns minutos de atraso e deu ordem de prender Chandra se ele se arriscasse a vir. Não tinha muita pressa,

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visto que o trem pelo qual devia seguir para Paris não saía senão depois das oito. Tendo terminado seus afazeres, seguiu lentamente para o lago. Ainda não anoitecera e do alto da colina viu o barco que se afastava. Instintivamente apressou o passo. Súbito viu que alguém vinha em sua direção correndo e reconheceu o portador da carta.

- Depressa! Depressa! - gritou ele. - Ele está aí. O coração de Ashenden deu um pulo. - Enfim! Pôs-se a correr também e, enquanto desciam a ladeira, o homem contou-lhe, ofegante, como tinha devolvido a Chandra a carta não aberta. Este ficara assustadoramente pálido (na verdade, ele nunca acreditou que um hindu pudesse empalidecer tanto) . Chandra virou e revirou a carta entre os dedos, como se não compreendesse. Caíram-lhe lágrimas dos olhos e escorreram pelas faces (era ridículo, ele é muito gordo, sabe?) . Murmurou algumas palavras numa língua estranha, depois do que perguntou em francês a que horas partia o próximo vapor para Thonon. A bordo o mensageiro o procurou, mas não -o viu; enfim achou-o envolvido numa manta, o chapéu enterrado até os olhos, em pé, sozinho, na proa. Durante toda a travessia seus olhos permaneceram fixos em Thonon.

- Onde está ele agora? - Eu desci na frente e Mr. Félix mandou-me procurar o senhor.

Ashenden estava esbaforido ao chegar ao cais. Embarafustou-se pela "sala de espera.

Um grupo de homens gesticulava e lamentava-se em torno de um corpo estendido no chão.

- Que aconteceu? - perguntou. - Olhe! - respondeu Félix. Chandra Lal, com os olhos bem abertos e com a boca espumando, jazia ali, morto, contorcido pelo sofrimento.

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- Suicidou-se. Foi mais esperto do que nós. Mandamos chamar o médico.

Um frêmito de horror sacudiu Ashenden. Quando o indiano chegou, Félix reconheceu-o pela descrição como sendo o indivíduo que procurava. Entre quatro passageiros ele se apresentou por último. Félix fez demorar o exame dos três primeiros passaportes e, por fim, pediu o do hindu. Era um passaporte espanhol e estava perfeitamente em ordem. Félix fez as perguntas usuais e anotou-as na folha regulamentar. Depois olhou-o amavelmente e disse-lhe:

- Queira passar um momento para a sala de espera. Há uma ou duas formalidades a preencher.

- Meu passaporte não está em ordem? - Sim, completamente. Chandre hesitou, depois seguiu-o. Félix abriu a porta e deu-lhe passagem.

- Entrez! Chandra obedeceu. Os dois agentes levantaram-se. Seguramente, ele percebeu logo quais suas verdadeiras funções e compreendeu que tinha caído numa armadilha.

- Sente-se - disse Félix. - Tenho uma ou duas perguntas a fazer-lhe.

- Está quente, aqui - observou o hindu. Efetivamente, a pequena estufa estava aquecida ao rubro-branco.

- Se me permite, vou tirar o sobretudo. - À vontade - disse Félix amavelmente. Tirou o sobretudo com alguma dificuldade e voltou-se para colocá-lo sobre uma cadeira, e aí, antes que ninguém compreendesse o que acontecia, cambaleou e caiu por terra. Enquanto tirava o sobretudo, conseguira engolir o conteúdo de um frasco que ainda apertava convulsivamente na mão.

Ashenden cheirou-o. Exalava um forte cheiro de amêndoas amargas.

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Durante um momento contemplaram o cadáver. Félix desculpava-se.

- Serei censurado? - perguntou, inquieto. - Acho que não tem culpa - disse Ashenden. - Em todo caso este homem não fará mais mal. No que me diz respeito, prefiro que se tenha suicidado. A idéia de que seria executado não me era agradável.

Nisso chegou o médico e examinou o cadáver. - Ácido prússico - explicou. Ashenden assentiu. - Vou visitar madame Lazzari - disse ele. - Se ela desejar ficar um dia ou dois aqui, darei autorização para isso. Mas, bem-entendido, se ela quiser seguir hoje mesmo, poderá fazê-lo. Quer dar instruções na estação para que a deixem viajar?

- Eu mesmo estarei lá - disse Félix. Mais uma vez Ashenden subiu a colina. Caíra a noite clara e fria, com um céu sem nuvens. A vista da lua nova, foice de luz branca, incitou-o a fazer tilintar três vezes as moedas que tinha no bolso. Um odor de repolho e de carneiro cozido empestava o hotel. Nas paredes do saguão estendiam-se os reclames multicores das companhias de estradas de ferro, representando Grenoble, Carcassone e as praias da Normandia. Subiu a escada e, depois de uma batida discreta, abriu a porta de Giulia. Sentada diante do penteador, ela olhava-se no espelho, onde de repente viu Ashenden. Seu rosto contraiu-se e ela levantou-se com tanta vivacidade que derrubou a cadeira.

- Que há? Por que está tão pálido? - exclamou. Virou-se com a fisionomia desfeita pelo horror e olhou-o.

- II est pris? - murmurou. - II est mort - respondeu Ashenden. - Morto?! Tomou o veneno! Teve tempo. Pelo menos escapou-lhe.

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- Que quer dizer? Como sabia que ele tinha veneno? - Ele sempre o trazia consigo. Dizia que os ingleses jamais o teriam vivo.

Ashenden refletiu um momento. Como ela guardara o segredo! Indiscutivelmente, ele deveria ter desconfiado, mas como prever aquela cena teatral?

- Enfim, está livre. Tem o direito de ir para onde quiser e nenhum obstáculo encontrará no seu caminho. Aqui tem sua passagem, seu passaporte e o dinheiro que trazia quando foi presa. Quer ver Chandra?

Ela estremeceu. - Não! Não! - Não é obrigada. Apenas pensei que desejasse vê-lo. Ela não chorou. Ashenden julgou-a exausta pela emocão. Parecia insensibilizada.

- Será transmitido hoje um telegrama à fronteira espanhola para que as autoridades facilitem sua passagem. Se quiser aceitar um conselho, saia da França o mais depressa possível.

Ela não respondeu. Como Ashenden nada mais tinha a dizer-lhe, preparou-se para se retirar.

- Sinto muito ter sido obrigado a mostrar-me tão duro com a senhora. Estou satisfeito em pensar que agora chegou o fim de suas atribulações e espero que o tempo a console da dor que lhe deve causar a morte do seu amigo.

Saudou-a e dirigiu-se para a porta. - Um minuto - disse ela. - Há uma coisa que desejo pedir-lhe, porque suponho que o senhor tem coração.

- Farei pela senhora tudo o que estiver a meu alcance. - Que vão fazer das coisas dele? - Não sei. Por quê? - Chandra usava um relógio de pulso que eu lhe dei no Natal passado. Custou-me doze libras. Poderei reavê-lo?

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GUSTAV


Quando Ashenden foi mandado pela primeira vez à Suíça a fim de dirigir uma seção de espionagem, R., desejando explicar-lhe a espécie de serviços que esperava dele, tomou um maço de papéis escritos a máquina contendo os relatórios de um homem conhecido no serviço secreto pelo nome de Gustav.

- É o que temos de melhor - disse R. - Suas informações são sempre interessantes e minuciosas. Dê sempre a suas mensagens toda a atenção. Indiscutivelmente, Gustav é um dos nossos mais hábeis agentes, o que não impede, entretanto, que outros possam, por sua vez, prestar relevantes serviços. Uma simples questão de expor exatamente o que queremos.

Gustav, que vivia em Basiléia, era representante de uma casa de comércio suíça, que tinha sucursais em Frankfurt, Mannhein e Colônia, e, em virtude de sua profissão, tinha facilidade de entrar e sair da Alemanha sem despertar suspeitas. Em suas viagens pelo Reno tinha oportunidade de colher informações a respeito de movimentos de tropas, trabalho nas usinas de munições e, coisa que interessava principalmente a R., sobre a moral da população. Escrevia freqüentemente a sua mulher por meio de um código engenhoso,

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a qual, por sua vez, transmitia de Basiléia as informações a Ashenden, em Genebra, que, afinal, as dirigia a seus chefes, depois de resumi-las. A cada dois meses Gustav regressava ao lar e redigia um daqueles relatórios-modelo, que eram sua especialidade. Apreciado por seus chefes, pagava-lhes na mesma moeda. Seus serviços eram recompensados com bons honorários, aos quais, nas grandes ocasiões, se somavam gordas gratificações.

Isso já durava mais de um ano. Um belo dia qualquer coisa despertou as desconfianças de R. Homem de admirável sagacidade, foi, entretanto, mais pelo instinto do que pelo raciocínio que lhe veio subitamente a suspeita de estar sendo mistificado. Sem nada dizer de definitivo a Ashenden, R., que era um homem muito reservado, decidiu enviá-lo a Basiléia para falar com a mulher de Gustav, durante uma das viagens deste último à Alemanha. A Ashenden cumpria justificar o motivo da visita.

Ao descer do trem Ashenden deixou sua maleta no depósito, pois não sabia quando poderia voltar; tomou um bonde que o deixou na esquina da rua onde Gustav morava. Tendo verificado que ninguém o seguia, dirigiu-se para a casa deste. Era um edifício grande, dividido em pequenos apartamentos que davam uma impressão de pobreza decente e, segundo conjecturou, habitado por empregados e pequenos comerciantes. O saguão de entrada estava ocupado pela oficina de um remendão. Ashenden deteve-se.

- É aqui que mora Herr Grabow? - perguntou num alemão duvidoso.

- Sim, vi-o subir não faz muito. O senhor o encontrará em casa.

Ashenden ficou surpreendido, porquanto na véspera a mulher de Gustav transmitira-lhe uma carta de Mannhein, na qual o espião dava os números dos regimentos que acabavam de transpor o Reno. Conteve a pergunta que lhe assomou aos lábios, agradeceu ao remendão e subiu ao terceiro andar,

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onde morava Gustav. Tocou a campainha. Um homenzinho de óculos, de cabeça raspada e cara chupada, veio logo abrir a porta. Calçava chinelos de pano.

- Herr Grabow? - Para servi-lo - disse Gustav. - Permite-me entrar? Gustav estava de costas para a luz e, por isso, não se distinguiam suas feições. Ashenden hesitou um momento, depois deu-lhe o nome com o qual recebia suas cartas da Alemanha,

- Entre, entre, folgo muito em vê-lo. O espião fê-lo entrar num cômodo atravancado de móveis de carvalho esculpido. Numa mesa havia uma máquina de escrever. Provavelmente Gustav estaria compondo um de seus preciosos relatórios. Sentada junto a uma janela, uma mulher cerzia, mas, a uma palavra de Gustav, levantouse, juntou suas coisas e saiu. Ashenden acabava de perturbar uma cena tocante de intimidade conjugal.

- Queira sentar-se. Que sorte estar eu em Basiléia! Faz tempo que desejava conhecê-lo. Acabo de chegar agora mesmo da Alemanha. - Indicou os papéis esparsos junto à máquina de escrever. - Creio que vai gostar das notícias que lhe trago. Tenho informações de primeira ordem. - Riu com satisfação. - É sempre bem-vinda uma pequena gratificação.

Mostrava-se muito cordial, mas toda aquela amabilidade soava falso a Ashenden. Os olhos de Gustav, por trás dos óculos, observavam-no ansiosamente.

- Sim senhor! É o que se chama uma viagem-relãmpago, pois a carta que daqui recebi em Genebra, enviada por sua esposa, precedeu-o apenas de poucas horas.

- Nada mais certo. Justamente uma das coisas que tenho a dizer-lhe é que os alemães desconfiaram das informações que podem ser dadas pelas correspondências comerciais

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e, por isso, decidiram fechar a fronteira durante 48 horas.

- Sim? - disse Ashenden, amavelmente. - E é então por isso que sua carta está com data atrasada de dois dias?

- Não pode ser. Fiz isso? Que engano! Ashenden fitou Gustav sorrindo. Aquilo era claro. Um homem de negócios conhece a importância das datas: as voltas e reviravoltas por que passavam as informações vindas da Alemanha demoravam a transmissão das notícias e era essencial precisar a que dia se referiam certos acontecimentos.

- Deixe-me ver seu passaporte - pediu Ashenden, - Que quer fazer com ele? - Quero ver as datas em que entrou e saiu da Alemanha.

- Pensa então que minhas idas e vindas estão assinaladas no meu passaporte? Tenho meus métodos para cruzar a fronteira.

Ashenden estava perfeitamente a par desses assuntos, Sabia que alemães e suíços guardavam severamente a fronteira.

- Oh! Então não cruza pelas vias ordinárias? Nós o tomamos a nosso serviço porque o senhor é empregado numa firma suíça, que tem relações comerciais com a Alemanha, o que lhe permite viajar entre os dois países sem despertar suspeitas. Compreendo que o senhor possa passar pelas sentinelas alemãs, se está em convivência com elas; mas, e com as suíças?

Gustav tomou um ar de indignação. - Não o compreendo. Quer insinuar que estou a serviço da Alemanha? Dou-lhe minha palavra de honra ... Não admito que se ponha em dúvida minha honestidade.

- Não seria o primeiro a comer em dois pratos, dando a ambos os lados informações sem valor.

- Quer então dizer que minhas informações nada valem? E por que então essas gratificações que nenhum outro

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recebe iguais? Mais de uma vez o coronel tem manifestado sua grande satisfação pelos meus serviços.

Ashenden mostrou-se, então, o mais amável possível. - Vamos, vamos, meu caro, não tome esses ares de Júpiter olímpico. Não quer me mostrar seu passaporte? Não insisto. Mas não creia que nos deixamos enganar e que não verificamos os relatórios e movimentos de nossos agentes. Os melhores gracejos são os mais curtos. Minha profissão em tempo de paz é escrever histórias, e posso assegurar-lhe que conheço uma infinidade de truques.

Ashenden, que tinha boa prática do pôquer, percebeu que era o momento de arriscar um blefe. Por isso, continuou:

- Fomos informados seguramente de que não somente o senhor não foi à Alemanha desta vez como também não vai lá desde que o contratamos e que tem ficado bem quietinho em Basiléia. Todos esses belos relatórios são, pura e simplesmente, obra de sua fértil imaginação.

Gustav fitou Ashenden e em sua fisionomia nada mais viu do que indulgência e bom humor. Um sorriso apareceu em seus lábios e deu de ombros.

- O senhor não havia de querer que eu arriscasse minha vida por cinqüenta libras mensais, não é? Amo minha mulher.

Ashenden riu gostosamente. - Minhas felicitações. Não são muitos os que se podem gabar de ter ludibriado o serviço secreto durante um ano

- Era uma oportunidade excepcional de ganhar di nheiro sem dificuldade. A firma para a qual trabalho sus pendeu minhas idas à Alemanha desde o início das hostilidades, mas eu tratei de colher informações com meus colegas. Estava sempre de ouvido alerta nos restaurantes e nos hares E lia seguidamente os jornais alemães. Ah! Como me diverti com aquelas cartas e relatórios!

- Acredito - disse Ashenden. - E agora, o que é que pretende fazer?

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- Nada. Que quer que faça? Mas não terá a pretensão de continuar percebendo seus salários, não?

- Não. Realmente não pretendo isso. - A propósito, se não é indiscrição, pode me dizer se pregou a mesma peça aos alemães?

- Oh! Não - respondeu Gustav, com veemência. - Nem por brinquedo. Minhas simpatias estão todas com os aliados, estou com os senhores de todo o coração.

- Afinal, por que não? - comentou Ashenden. - Os alemães têm dinheiro a rodo e não há motivo para que o senhor não lhes desse uma dentadinha. Se quiser, podemos de vez em quando fornecer-lhe algumas novidades que o senhor lhes venderá.

Gustav tamborilava na mesa. Rasgou uma folha de seu relatório, agora já inútil.

- Os alemães são gente perigosa para se brincar com eles.

- O senhor é verdadeiramente inteligente. Bem-pensado, já que seu salário fica suspenso, bem pode fazer jus de quando em quando a uma gratificação, mandando-nos umas noticiazinhas interessantes. Mas é preciso que seja coisa de valor, porque daqui por diante só pagaremos segundo os resultados obtidos.

- Vou pensar nisso. Ashenden deixou Gustav entregue a suas reflexões durante alguns minutos. Acendeu um cigarro e entreteve-se em ver a fumaça diluir-se no ar. Ele também refletia.

- Há alguma coisa que o preocupe especialmente? - perguntou Gustav, de súbito.

Ashenden sorriu. - Tenho dois mil francos suíços para o senhor se descobrir o que é que os alemães estão tramando com um de seus espiões em Lucerna. É um inglês e chama-se Grantley Caypor.

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- Este nome não me é estranho - disse Gustav. - Demora-se aqui até quando?

- O tempo necessário. Vou reservar um quarto no hotel e mandar-lhe-ei o número. Se tiver alguma coisa para me dizer, encontrar-me-á sempre no quarto às nove da manhã e às sete da tarde.

- Não é prudente eu ir ao hotel, mas lhe escreverei. - Perfeitamente. Ashenden levantou-se e Gustav acompanhou-o até a porta.

- Sempre amigos, não? - Naturalmente. Seus relatórios serão conservados nos arquivos, como modelos.

Ashenden consagrou dois ou três dias a visitar Basiléia, coisa que não o divertiu. Passou boa parte de seu tempo na biblioteca, virando páginas de livros, cuja leitura seria interessante se a vida durasse mil anos. Viu uma vez Gustav, na rua. Na manhã do quarto dia levaram-lhe com o café uma carta. O envelope era de uma casa de comércio desconhecida para ele e continha apenas uma folha escrita a máquina. Nem direção, nem assinatura. Gustav saberia que uma máquina de escrever pode trair a identidade de um correspondente tanto quanto a página escrita a mão? Depois de ter lido e relido cuidadosamente a carta, Ashenden, como um bom detetive de romance policial, olhou-a contra a luz para ver a filigrana do papel; depois riscou um fósforo e queimou-a lentamente, reduzindo em cinzas os fragmentos carbonizados.

Tomou então seu café na cama, feito o que levantou-se, fechou a mala e pegou o primeiro trem para Berna. De lá mandou um telegrama cifrado a R. Dois dias depois recebeu, verbalmente, por um mensageiro, as instruções do chefe, em seu quarto de hotel, num momento em que os corredores estavam desertos. E 24 horas depois, por linhas transversas, chegava a Lucerna?

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O TRAIDOR


Tendo tomado um quarto no hotel que lhe indicaram, Ashenden saiu para passear. Era um belo dia de agosto e o sol brilhava num céu sem nuvens. Não voltara a Lucerna desde sua infância e lembrava-se vagamente de uma ponte coberta, de um leão esculpido em plena rocha e de um concerto de órgão numa igreja, que o fizera bocejar muito. Agora o lago resplendia de cores vistosas, exatamente como num cartão-postal colorido. Ao longo do cais umbroso Ashenden passeava sem um olhar para a bela paisagem esquecida, preferindo evocar o garoto ardente e tímido, impaciente de ser homem, que fora naqueles tempos. Revia sobretudo a reverberação do sol, a multidão de estrangeiros, o trem repleto, o hotel tomado de assalto. Era preciso insinuar-se por entre os turistas nos barcos ou nas ruas e cais. Toda aquela gente era velha e feia e tinha mau cheiro. A guerra, agora, transformara Lucerna num deserto como no tempo em que ainda não era o centro de lazer da Europa. A maioria dos hotéis estava fechada, as ruas desertas, os barcos de aluguel permaneciam amarrados em fila à beira d'água e nas avenidas que margeiam o lago caminhavam somente suíços sérios, que pareciam passear sua neutralidade presa numa corrente. Ashenden sentiu-se envolvido pela solidão

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e sentou-se num banco em frente ao lago, entregando-se deliberadamente a suas sensações. Achava o lago absurdo, com suas águas muito azuis e aquelas montanhas coroadas de neve, mais próprias para exasperá-lo do que para lhe causar prazer. Mesmo assim, ia aos poucos sentindo-se invadir pelo bem-estar, e, afinal, aquela paisagem simples acabou por enternecê-lo como o Sonho sem palavras, de Mendelssohn. Lucerna lembrava-lhe flores de cera sob uma campânula de vidro, cucos esculpidos em madeira, obras de fantasia em lã de Berlim. Enquanto durasse a boa estação, a permanência ali seria suportável. Por que não conciliar seu prazer com o serviço da pátria? Estava viajando sob um falso nome e o sentimento de sua nova personalidade alegrava-o. Além disso, descansava por não ser mais do que uma criatura de R. Sua última experiência divertira seu senso agudo do ridículo. R., é verdade, não lhe tinha apreciado devidamente o sabor. Esse velho rabugento recebia mal os gracejos que se faziam a suas custas. É necessário certo desprendimento para se saber ser ao mesmo tempo espectador e ator na comédia da vida. R. era soldado e considerava o espírito crítico como malsão, contrário ao temperamento britânico e impatriótico.

Ashenden levantou-se e voltou lentamente para o hotel. Era um pequeno hotel alemão, de segunda classe, mas de um asseio irrepreensível. De seu quarto descortinava-se uma vista admirável. Estava decorado com móveis de pinho brilhantemente envernizado e somente com a claridade podiam não parecer pobres. Apesar de tudo, o ambiente era simpático e alegre.

Ashenden sentou-se no hall e pediu uma cerveja. A dona do hotel, que se admirava de ver chegar um estrangeiro fora da estação apropriada, procurou satisfazer sua curiosidade contando-lhe que vinha a Lucerna para convalescer de uma febre tifóide. Adido ao Departamento de Censura, queria aproveitar a oportunidade para melhorar seu alemão. Perguntou-lhe

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se lhe poderia indicar um professor dessa língua. A hoteleira, loura e expansiva suíça, palradeira de natureza, não deixaria de ir repetindo o que ele lhe dissesse. Ela lhe fez inúmeras perguntas e estendeu-se em considerações a respeito da guerra, que deixava seu hotel vazio, quando, em outros tempos, nesse período vivia cheio, a ponto de ser obrigada a alugar quartos nas casas vizinhas para acomodar seus hóspedes. No momento tinha alguns pensionistas para as refeições, mas somente dois casais como hóspedes, um velho par irlandês que morava em Verey e passava os verões em Lucerna e um inglês e a mulher. Esta era alemã e, por isso, via-se obrigada a viver em país neutro. Os dois passavam a maior parte do tempo em excursões pelas montanhas. (Ashenden, que ouvia esse palavrório aparentando apenas um interesse cortês, imediatamente identificou as personagens como sendo Grantley Caypor e senhora.) Herr Caypor interessava-se por botânica, estudando a flora da região, e a senhora era uma mulher encantadora e sofria muito com a situação embaraçosa em que se achava. Ah! Mas a guerra não duraria eternamente. Com estas palavras retirou-se.

O jantar era às sete horas, e como Ashenden queria chegar à sala de refeições antes de todos, para que ninguém escapasse a seu exame, desceu ao primeiro toque da sineta. Era um salão muito simples, decorado, como o quartos, com móveis de pinho e tinha as paredes adornadas com oleografias de lagos suíços. Em cada mesa um ramo de flores. Tudo era limpo, lustroso, e fazia prever um jantar medíocre. Bastante vontade teve Ashenden de melhorá-lo com uma garrafa do melhor vinho do Reno, mas, como essa prodigalidade contrastava com a parcimônia dos pensionistas, atestada por algumas garrafas ainda pela metade que viu em duas ou três mesas, contentou-se com uma cerveja. A pequeno intervalo entraram dois homens, evidentemente suíços. Acomodaram-se em suas mesas, puseram o guardanapo que tinham

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dobrado cuidadosamente na refeição anterior e, equilibrando o jornal sobre o jarro de água, puseram-se a ler, ao mesmo tempo que sorviam ruidosamente a sopa. A seguir, entrou um velho senhor encurvado, de cabelos brancos e bigodes caídos, acompanhado de uma senhora velha e baixa. Era provavelmente o coronel irlandês e sua esposa, dos quais lhe falara a hoteleira. Sentaram-se e o coronel serviu uma pequena dose de vinho para a mulher e outra para ele. Esperavam em silêncio que a alegre e volumosa servente lhes trouxesse o jantar.

Finalmente, chegaram as pessoas esperadas por Ashenden, que fingia ler um livro alemão. Sorrateiramente atiroulhes um olhar rápido. Viu um homem corpulento e de mediana estatura, que poderia ter uns 45 anos, de cabelos pretos cortados à escovinha e grisalhos nas fontes, de rosto avermelhado e bem-barbeado. Vestia uma camisa esporte, de gola branca, aberta no peito, e roupa cinzenta. Seguia-o a mulher que deu a Ashenden a impressão de ser uma alemã insignificante. Vinha coberta de pó. Grantley Caypor sentou-se e em voz alta relatou à servente o longo passeio que deram e a subida a uma montanha, cujo nome pouco impressionou Ashenden, mas que foi recebido pela rapariga com exclamações admiradas. Sempre em alemão, mas com forte sotaque inglês, Caypor declarou que, por se acharem atrasados, não subiram ao quarto, limitando-se a lavar as mãos na torneira. Tinha uma voz forte e maneiras cordiais.

- Sirva-nos depressa, estamos mortos de fome, e traga imediatamente cerveja, três garrafas. Lieber Gott, que sede!

Sua exuberante vitalidade trazia para aquela sala de jantar tristonha um sopro de vida que a todos reanimava. Dirigia-se à mulher em inglês, sem se preocupar com que o ouvissem, quando foi por ela subitamente interrompido por uma observação feita em voz baixa. Caypor calou-se e Ashenden sentiu que estava sendo observado. Mrs. Caypor notara a presença de um estrangeiro e o assinalara ao marido.

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Ashenden virou uma página do livro, mas sentiu que Caypor continuava a observá-lo atentamente. Quando dirigiu novamente a palavra para a mulher, o fez em voz tão baixa que Ashenden nem sequer pôde perceber em que língua falara. Quando a criada trouxe a sopa, Caypor sussurrou-lhe uma pergunta. Seguramente estaria indagando quem era Ashenden. Este não ouviu a resposta, percebendo apenas a palavra Lander.

Uma ou duas pessoas tinham acabado de jantar e saíram de palito na boca. Os irlandeses levantaram-se e o velho coronel deu lugar à mulher para que passasse. Não tinham, durante o jantar, trocado uma única palavra. A velha senhora dirigiu-se para a porta, mas o coronel deteve-se para dizer alguma coisa a um suíço, provavelmente um procurador local aposentado, e quando ela, ao atingir a saída, viu que estava só, voltou-se, cumprimentou e com olhar resignado esperou pacientemente que o marido viesse ter com ela. Ashenden compreendeu que ela jamais abrira uma porta por deliberação própria. Ignorava como aquilo se fazia. Logo depois o coronel, com seu passo arrastado, aproximou-se e abriu uma das folhas da porta, pelo qual ela passou seguida por ele. Aquele pequeno incidente dava a chave daquelas duas vidas e, por meio dele, Ashenden deixou-se levar a reconstruir o passado de ambos, a história, as várias circunstâncias da existência deles, seus caracteres. Mas deteve-se, o momento não comportava o luxo de criações. Acabou de jantar.

No hall notou um bull-terrier preso ao pé de uma mesa, e maquinalmente, ao passar, afagou a cabeça do cão. A hoteleira estava junto à escada.

- Quem é o dono desse lindo animal? - perguntou Ashenden.

- É Herr Caypor. Chama-se Fritzi. Herr Caypor diz que ele tem um pedigree tão longo quanto o do rei da Inglaterra.

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Fritzi começou a roçar-se nas pernas de Ashenden e com o focinho úmido procurou-lhe a palma da mão. Ashenden subiu em busca do chapéu. Quando desceu, Caypor estava de pé na soleira da porta, conversando com a hoteleira. Pelo brusco silêncio e constrangimento de ambos, Ashenden compreendeu que Caypor estava tomando informações a seu respeito. Quando passou entre os dois para sair, viu de esguelha que Caypor olhava para ele, suspeitoso. A fisionomia jovial, franca e rubra tomara uma expressão ardilosa.

Ashenden instalou-se no terraço de um café, onde, para vingar-se da cerveja que fora obrigado a tomar, pediu um conhaque. Finalmente achara o homem de quem tanto ouvira falar e tinha esperança de em breve travar relações com ele. Não é difícil iniciar uma conversa com um homem que tem um cão. Mas, para atingir o fim que colimava, não devia precipitar as coisas.

Ashenden recapitulou os acontecimentos. Grantley Caypor era inglês e, segundo seu passaporte, nascera em Birmingham e tinha 42 anos. Sua mulher, com quem estava casado há onze anos, era alemã, com todos os parentes na Alemanha. Isso era público e notório. Um relatório dava detalhes sobre os antecedentes de Caypor. Começara a vida como amanuense de um advogado em Birmingham, e depois ingressara na imprensa, sendo correspondente de um jornal inglês na cidade do Cairo e de outro, em Xangai. Certa avidez por dinheiro levou-o a cometer alguns deslizes que lhe valeram vários meses de prisão. Depois de libertado perdeu-se ele de vista durante dois anos. De repente surge em Marselha, nos escritórios de uma companhia de navegação. Nesse meio tempo vai para Hamburgo, onde se casa, e daí para Londres, onde funda uma casa de exportação que não tarda em ir à falência. Volta para a imprensa. Por ocasião do rompimento das hostilidades ele está novamente metido em negócios marítimos, em Southampton, onde vive

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tranqüilamente com sua mulher. No começo do ano avisa seus chefes de que a nacionalidade da esposa tornava-lhe a vida impossível na Inglaterra, e como aqueles nada tinham contra ele e suas queixas eram justas, consentem em mandálo para Gênova. Fica na Itália até a entrada desta na guerra, e nesse momento, com seus papéis perfeitamente em ordem, cruza a fronteira e vem estabelecer-se na Suíça.

Os autos referentes a Caypor indicavam-no como um homem de honestidade duvidosa e de tendências aventureiras, sem fortuna, nem situação fixa. Não obstante, não se lhe deu importância até o momento em que se averiguou que desde o começo da guerra, e talvez mesmo antes, ele estava a serviço da contra-espionagem alemã. Tinha um salário de quarenta libras mensais. Mesmo assim, não o teriam incomodado se ele se contentasse em transmitir as pequenas notícias que colhia na Suíça. Em determinados momentos poder-se-ia mesmo aproveitá-lo para fazer chegar falsas informações ao inimigo. Recebia muitas cartas, que a censura examinava cuidadosamente. Poucos códigos resistem ao estudo dos criptógrafos. Ele não tinha suspeitas de que estava sendo vigiado. Por meio dele esperava-se descobrir e inutilizar a organização de espionagem, cuja rede cobria a Inglaterra. Mas teve a desgraça de atrair sobre si a atenção de R. Se ele soubesse disso, teria motivos para não se sentir à vontade, pois não era nada agradável ter-se R. pela proa. Caypor havia travado relações em Zurique com um jovem espanhol, um certo Gomez, que há pouco ingressara no serviço secreto britânico. Graças a sua nacionalidade, Caypor inspirou-lhe confiança e conseguiu descobrir a natureza de suas atividades. Provavelmente o espanhol, no desejo compreensível de se dar importância, nada mais fez do que falar-lhe misteriosamente, mas a uma denúncia de Caypor, ao entrar na Alemanha, foi vigiado, e um dia, quando punha uma carta cifrada no correio, foi preso. Julgado, foi condenado à morte e executado. Perdeu-se com isso um bom agente e tornou-se necessário

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mudar o código simples e prático que vinha sendo usado. R. não gostou nada da coisa, mas o espírito de vingança não era capaz de desviá-lo de seu objetivo. Apesar de sua cólera, R. achou que um tipo do estofo de Caypor, que por dinheiro traía seu próprio país, com maior razão por mais dinheiro trairia seus atuais chefes. O sucesso por ele obtido com a entrega aos alemães de um agente dos aliados devia ter aumentado a confiança em sua fidelidade. Ele podia tornar-se muito útil. R., porém, carecia de dados seguros sobre Caypor, cuja vida mesquinha passara-se na obscuridade. A única fotografia que se possuía dele era a que fora tirada para seu passaporte. Ashenden recebeu instruções para entabular relações com ele e sondá-lo sobre se aceitaria trabalhar honestamente para a Inglaterra. Se julgasse impossível comprá-lo, ficaria então sob vigilância. Era uma missão delicada que exigia tato e grande conhecimento dos homens. As informações fornecidas por Gustav eram vagas, mas importantes. A mais interessante delas era que a inação de Caypor estava desgostando o chefe do serviço secreto alemão em Berna. Caypor reclamara um aumento de ordenado, mas o major Von P. respondera-lhe que começasse por merecê-lo. Quem sabe se Ashenden não conseguiria forçá-lo assim a ir para a Inglaterra. Se o espião acedesse, estaria cumprida sua missão.

- E como diabos quer que o convença a ir meter-se na boca do lobo?

- Não é na boca do lobo, é no poste de execução.

- Mas é que Caypor é vivo. - Pois seja-o mais do que ele. O plano de Ashenden estava feito. E consistia em deixar que Caypor viesse a ele. Tinha certeza de que o espião aproveitaria a primeira oportunidade para entrar em contato e conversar com um inglês, adido ao Departamento de Censura. Ashenden estava pronto para fornecer-lhe informações

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que, seguramente, não beneficiariam em nada os impérios centrais. Com seu nome suposto não corria o risco de ser desmascarado.

Não teve de esperar muito. No dia seguinte, quando tomava seu café no hall e já meio amolecido depois de um substancioso Mittagessen, viu os Caypor saírem do salão de refeições. Mrs. Caypor saiu para fora e Caypor soltou o cachorro, que, apenas livre, correu alegremente para Ashenden.

- Fritzi, aqui! - gritou Caypor; e, voltando-se para Ashenden: - Queira desculpar, mas ele é manso como um cordeiro.

- Não há dúvida, não me fará mal. Caypor deteve-se. - É um bull-terrier. Não se vêem muitos iguais no continente. - Falava como que examinando Ashenden. - Um café, faça o favor, Fraulein. O senhor acaba de chegar?

- Sim, desde ontem. - Ah! Não o vi no jantar. Demora-se por aqui muito tempo?

- Não sei. Estou convalescendo e espero fortificar-me. A criada trouxe o café e, vendo Caypor conversando com Ashenden, colocou a bandeja em cima da mesa, entre os dois. Caypor sorriu, embaraçado.

- Não quisera ser indiscreto. Não sei por que essa rapariga pôs meu café em sua mesa.

- Queira sentar-se - propôs Ashenden. - É muita gentileza de sua parte. Estou há tanto tempo fora da Inglaterra que esqueço sempre que meus compatriotas detestam que um desconhecido lhes dirija a palavra. A propósito, o senhor é inglês ou americano?

- Inglês - respondeu Ashenden. Ashenden era tímido por natureza, e em vão procurava corrigir-se daquela fraqueza ridícula na sua idade. Mas, quando se apresentava a oportunidade, sabia tirar vantagens de seu defeito. Em tom hesitante repetiu suas palavras da

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véspera à hoteleira, a qual, ele tinha certeza, as havia referido a Caypor.

- Não poderia ter escolhido melhor lugar do que Lucerna. É um oásis de paz neste mundo convulsionado pela guerra. Aqui quase chegamos a esquecer aquela calamidade. É a razão pela qual estou em Lucerna. Sou jornalista.

- Eu logo vi que o senhor escrevia. O "oásis de paz neste mundo convulsionado pela guerra" não era linguagem de empregado de uma companhia de navegação.

- Além disso, sou casado com uma alemã - acrescentou gravemente Caypor.

- Ah! Sim?!

- Ninguém é mais patriota do que eu. Sou inglês até a raiz dos cabelos, e não tenho medo de afirmar que considero o império britânico o maior fator da felicidade humana. Mas, casado com uma alemã, vejo também o reverso da medalha. Reconheço que os alemães têm grandes culpas, mas não posso considerá-los como encarnações do demônio. No começo da guerra minha pobre mulher passou por amargas provações na Inglaterra, e seria perfeitamente desculpável se lhe tivesse guardado rancor. Todos a consideravam espiã, acusação que, se o senhor a conhecesse, lhe faria morrer de riso. A pobre é do tipo perfeito da Hausfrau, sempre ocupada com os arranjos domésticos, com seu marido e nosso único filhinho, Fritzi.

Caypor afagou o cão e deu uma risadinha. - Sim, Fritzi, você é nosso filho, não é? Naturalmente aquilo me deixava numa situação intolerável. Eu trabalhava em vários jornais importantes e os diretores não me tratavam lá muito bem. Resumindo, achei mais digno renunciar a minhas ocupações, vir para um país neutro e esperar o fim da tormenta. Eu e minha mulher nunca falamos da guerra, ou melhor dito, eu é que evito tocar no assunto. Ela é muito mais

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tolerante e considera as coisas sob um ponto de vista mais elevado do que o meu.

- É curioso - disse Ashenden -, porque, em geral, as mulheres são mais apaixonadas.

- Minha mulher é uma criatura excepcional. Terei muito prazer em apresentá-lo a ela. Mas, é verdade, não sei se o senhor já sabe o meu nome: Grantley Caypor.

- E eu: Somerville - respondeu Ashenden. Falou-lhe então de suas funções no Departamento de Censura e pareceu-lhe notar nos olhos de Caypor uma atenção redobrada. Depois, confessou-lhe seu desejo de tomar algumas lições de alemão. Enquanto falava, uma idéia atravessou-lhe o espírito e teve a intuição de que a mesma ocorrera a Caypor: por que não èeria Mrs. Caypor sua professora de alemão?

- Já falei à hoteleira - prosseguiu Ashenden - para ver se me podia conseguir um professor, e ela disse-me que sim. Vou tornar a falar-lhe. Não deve ser uma coisa muito difícil de achar.

- Não lhe recomendo confiar na escolha da hoteleira. Afinal, o que o senhor deseja é alguém que lhe ensine a bela pronúncia do norte, e ela é suíça. Vou perguntar a minha esposa se conhece alguém em condições. Ela tem uma educação excelente e o senhor poderá confiar numa recomendação feita por ela.

- Não sei como lhe agradecer. Ashenden observava Grantley Caypor a sua vontade. Os olhinhos móveis, de um cinzento esverdeado, que na véspera não notara, desmentiam a franqueza jovial daquele rosto sorridente. Seu olhar era vivo e variável, mas, quando uma preocupação inesperada lhe surgia no espírito, tornavase subitamente duro. Aqueles olhos não inspiravam confiança, mas Caypor seduzia por seu sorriso amável. A cordialidade iluminava seu enorme rosto e não se podia resistir à voz quente daquele homenzinho obeso. Neste momento ele se

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desfazia em amabilidades. Ashenden, conquistado, a contragosto, por tanta bonomia, lembrou-se oportunamente de que se achava na presença de um vulgar espião, que traía seu país por quarenta libras mensais. Ashenden conhecera Gomez, o jovem espanhol denunciado por Caypor. Amante de aventuras e audaz, Gomez aceitara a perigosa missão, não por dinheiro, mas por seu temperamento romântico e pelo gosto de lograr os pesados germanos. Agora ele estava apodrecendo sob dois metros de terra, no pátio de uma prisão. Caypor teria tido, acaso, algum pesar por tê-lo mandado à morte?

- Suponho que conhece um pouco de alemão? - perguntou Caypor, com interesse.

- Oh! Sim. Estive estudando na Alemanha, e nesse tempo falava correntemente; mas isso já vai longe, e esqueci muita coisa. Sou capaz ainda de ler sem dificuldade.

- É verdade, vi ontem que estava lendo um livro alemão.

Imbecil! Minutos antes, dissera que na véspera não vira Ashenden no jantar. Teria percebido seu descuido? Como é difícil não cometê-los! Quanto a Ashenden, pôs-se em guarda; entre outras coisas, temia não responder prontamente a seu novo nome, Somerville. Bem podia ser que a inadvertência de Caypor tivesse sido proposital para verificar o efeito que causaria. Caypor levantou-se.

- Aqui está minha mulher. Todas as tardes escalamos uma dessas montanhas. Eu lhe mostrarei alguns passeios encantadores. Ainda há muitas flores.

- Preciso antes recuperar um pouco minhas forças - suspirou Ashenden. Seu rosto, naturalmente pálido, disfarçava sua saúde robusta. Mrs. Caypor desceu e seu marido foi ter com ela. Afastaram-se pela estrada, Fritzi pulando em volta deles. Ashenden viu Caypor falando com volubilidade, com certeza relatando a conversa que tivera com ele. O lago rebrilhava à luz do sol; uma brisa ligeira acariciava as folhas ainda verdes das árvores; havia em tudo um convite para

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passeio; apesar disso, Ashenden retirou-se para o quarto e deitou-se.

Naquela tarde, quando foi para a mesa, os Caypor estavam acabando de jantar, porque Ashenden se retardara vagando por Lucerna, em busca de um coquetel que lhe permitisse enfrentar a infalível salada de batatas. Ao sair da sala de jantar, Caypor convidou-o para tomar café com eles. Quando foi ter com Caypor no hall, este levantou-se e apresentou-lhe a esposa. Ela apenas correspondeu ao cumprimento, e não teve o mais leve sorriso para responder à frase amável que Ashenden lhe dirigiu. Essa atitude hostil, longe de aborrecê-lo, deixou-o à vontade. Mrs. Caypor era uma mulher comum, beirando os quarenta anos, de pele grosseira e feições inexpressivas. Uma trança espessa cercavalhe a cabeça, fazendo lembrar o penteado daquela rainha da Prússia de que Napoleão falava. De compleição sólida, mais gorda do que magra, via-se que era uma mulher de vontade e energia, e Ashenden, com seu conhecimento da Alemanha, logo percebeu que, embora muito hábil no manejo das vassouras e das panelas, capaz de escalar sem desfalecimento qualquer encosta, nem por isso deixava de ser uma criatura bem instruída. Vestia uma blusa branca que deixava ver o pescoço queimado pelo sol, uma saia preta e sapatos grossos. Caypor falou-lhe em inglês para dizer-lhe, como se ela o ignorasse, tudo o que Ashenden lhe referira. Ela o ouviu com ar carrancudo.

- O senhor me disse que compreendia o alemão, não? - perguntou Caypor, com seu grande rosto vermelho aberto num sorriso polido, mas com seus olhinhos dardejantes.

- Sim, passei alguns semestres na Universidade de Heidelberg.

- Realmente? - disse Mrs. Caypor em inglês, e uma expressão fugidia de curiosidade mascarou por um momento seu mau humor. - Conheço bastante Heidelberg. Estive lá num colégio durante um ano.

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Falava inglês corretamente, mas com uma pronúncia gutural, e a ênfase com que pronunciava as palavras causava uma impressão desagradável. Ashenden expandiu-se em elogios à velha cidade universitária e à beleza de seus arredores. Ela o ouvia do alto de sua superioridade germânica com mais condescendência do que simpatia.

- Todos sabemos que o vale do Neckar é um dos mais belos do mundo - concordou.

- Ainda não te disse, minha querida, que Mr. Somerville deseja tomar lições de conversação alemã. Arrisquei-me a dizer-lhe que talvez você tivesse algum professor a sugerir-lhe.

- Não, não conheço ninguém que, em consciência, lhe pudesse recomendar - respondeu ela. - A pronúncia suíça é detestável. Acho que Mr. Somerville só poderá ser prejudicado conversando com suíços.

- Eu, em seu lugar, Mr. Somerville, trataria de convencê-la a dar-lhe ela própria algumas lições. Dificilmente encontraria uma pessoa mais culta.

- Acha?! Grantley, não tenho tempo. Tenho meus próprios afazeres.

Ashenden compreendeu que sua oportunidade chegara. A armadilha estava preparada e só lhe restava deixar-se cair nela. Com ar modesto e suplicante, dirigiu-se a Mrs. Caypor.

- Seria demasiado bom se a senhora consentisse em me dar as lições. Consideraria tal coisa como um verdadeiro privilégio. Naturalmente que não quero de modo algum perturbar sua rotina diária de trabalho. Estou aqui para me tratar e não tenho absolutamente nada a fazer, de modo que, quanto a horário, ficaria inteiramente a sua vontade.

Percebeu a satisfação de ambos e pareceu-lhe notar um clarão no olhar de Mrs. Caypor.

- Só falta, pois, estabelecer as condições - disse Caypor. - Para minha mulher será um dinheirinho para

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os alfinetes. Que acha o senhor de dez francos a hora? É muito?

- Certamente que não. Fico até muito satisfeito em ter tal professora por esse preço.

- Que diz, minha querida? É claro que pode dispor de uma hora para dar esse prazer a Mr. Somerville. Ele verá, assim, que nem todos os alemães são espantosos demônios, como se propala na Inglaterra.

Mrs. Caypor franziu a testa e Ashenden não deixou de encarar com certa apreensão a hora que deveria passar diáriamente com aquela professora. Como sustentar uma tão longa palestra com uma mulher tão pesada e sensaborona? Ela fez, contudo, um esforço para mostrar-se amável.

- Pois seja, terei muito prazer em dar essas lições a Mr. Somerville.

- Minhas felicitações, meu caro amigo - exultou Caypor. - O senhor tem sorte. Quando quer começar? Amanhã? As onze horas?

- Perfeitamente, se é essa a opinião de Mrs. Caypor. Ashenden deixou-os entregues ao gozo de seu triunfo diplomático. Mas, quando no dia seguinte, exatamente às onze horas, bateram-lhe à porta (ficara convencionado que as lições seriam dadas em seu quarto), não foi sem uma certa angústia que ele foi abrir. Era preciso agir com a máxima prudência com aquela alemã inteligente e impulsiva. A fisionomia sombria e mal-humorada de Mrs. Caypor mantinha-se indecifrável. Evidentemente, ela estava ali contra a vontade. Começou, com voz áspera, interrogando Ashenden sobre literatura alemã. Corrigia seus erros, meticulosamente, e, quando ele se embaraçava na construção das frases, dava-lhe explicações claras e precisas sobre o modo correto. Apesar de sua antipatia, ensinava conscienciosamente. Parecia ter não somente o dom de ensinar como também amor ao magistério. E, à medida que o tempo passava, falava com maior convicção. Já agora só com esforço recordaria achar-se na pre-

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sença de um inglês bruto. Ashenden sentiu-se dominado por sentimentos vários que o divertiram, e foi com sinceridade que, quando Caypor lhe perguntou como fora de lição, respondeu-lhe estar muitíssimo satisfeito.

- Eu o avisei. É a mulher mais notável que conheço. E foi esta a primeira vez que Ashenden descobriu no tom de Caypor o acento da sinceridade.

Num ou dois dias Ashenden convenceu-se de que Mrs. Caypor somente aceitara aquele papel de professora para estreitar a intimidade entre o marido e ele. Ela abordava exclusivamente temas literários e artísticos, e quando ele tentou levar a conversa para a guerra, ela cortou bruscamente o assunto.

- É um tema que é preferível evitarmos, Mr. Somerville - disse.

Continuou a dar as lições com ,a mesma escrupulosa honestidade, e evidentemente ele não perdia seu dinheiro. Mas Mrs. Caypor aparecia-lhe todos os dias com a mesma expressão sombria, e somente o interesse pedagógico fazia-a esquecer a aversão que lhe votava. Era em vão que Ashenden se multiplicava em amabilidades. Mostrava-se alternativamente gracioso, ingênuo, humilde, agradecido, lisonjeiro, simples e tímido. Ela mantinha-se friamente hostil; uma verdadeira fanática. Seu patriotismo era agressivo e, obcecada pela crença da superioridade germânica, tributava aos ingleses um ódio virulento, pois reconhecia ser aquela nação o grande obstáculo para a difusão dos interesses alemães. Seu ideal era um mundo alemão, mais extenso do que o da Roma antiga, com as demais nações submetidas e auferindo os benefícios da ciência, da arte e da cultura alemãs. A ingênua e formidável imprudência dessa concepção despertava o senso humorístico de Ashenden. Não era tola. Lera muito, em várias línguas, e comentava os livros lidos com muito acerto. Conhecia bem a pintura e a música modernas, o que impressionou Ashenden. Era um prazer ouvi-la executar trechos

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brilhantes de Debussy, que tocava com desdém, por serem franceses e frívolos, mas também com admiração despeitada, por não poder negar-lhe a beleza. Quando Ashenden a felicitou, deu de ombros.

- Música decadente de uma nação decadente - de-

clarou.

Depois, com suas mãos possantes, feriu os primeiros acordes de uma sonata de Beethoven, mas deteve-se.

- Não quero tocar agora, tenho falta de prática, e, ademais, que conhecem os senhores ingleses de música? Nunca mais produziram um compositor, desde Purcell.

- Que me diz dessa declaração? - perguntou Ashenden, sorrindo, a Caypor, que estava ali perto.

- É preciso convir que ela tem razão - respondeu Caypor. - O pouco quef sei de música devo a ela. Não imagina como toca, quando estuda. - Pousou a mão gorda, de dedos curtos e quadrados, sobre o ombro da mulher. - Ela deslumbra de tão sublime que é.

- Dummer Kerl - disse ela, com voz suave, e durante um segundo seus lábios tremeram, mas logo se refez. - Os senhores, ingleses, não são nem pintores, nem escultores, nem músicos.

- Entretanto, às vezes conseguem escrever versos deliciosos - respondeu Ashenden, de bom humor, porque não queria entabular discussão. Dois versos, porém, vieram-lhe à mente e citou-os:

"Whither, O splendid ship, thy white sails crowding, Leaning across the bosom of the urgent West".

- Sim - acedeu Mrs. Caypor, com um gesto estranho -, os senhores podem ser poetas. E não sei como.

Com grande surpresa de Ashenden, recitou com voz gutural os dois versos seguintes do poema.

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- Vamos, Grantley, o Mittagessen está na mesa. Deixaram Ashenden entregue a suas reflexões. Ashenden, que admirava a bondade, não se deixava impressionar pela maldade. Suas relações eram mais fruto da curiosidade do que da simpatia; e, mesmo nos raros amigos que prezava, ele media com eqüidade seus méritos e seus defeitos. Sem se deixar cegar pela afeição, suportava com indulgência os defeitos dos seres queridos. Por isso, raras vezes perdia um amigo e nunca tinha desilusões. Não pedia a ninguém mais do que aquilo que lhe pudesse dar. No caso aos Caypor, prosseguia seu estudo sem preconceitos nem paixão. Mrs. Caypor parecia mais fácil de interpretar do que
seumarido.marido. Detestava Ashenden. Apesar da necessidade de mostrar-se cortês, nem sempre conseguia disfarçar sua antipatia. Tê-lo-ia estrangulado sem o menor remorso. Mas, à pressão da mão gorda de Caypor sobre o ombro da companheira, ao tremor dos lábios de Mrs. Caypor, Ashenden percebeu que um amor profundo unia aquela mulher seca e aquele gorducho vulgar. Sentiu-se comovido. Certas observações que fizera nos poucos dias passados e pequenas coisas que notara, mas a que não dera importância, vieram-lhe ao espírito. De caráter mais enérgico que o marido, Mrs. Caypor devia amá-lo principalmente pela influência que exercia sobre ele e pela admiração que Grantley lhe tributava, o que a lisonjeava. Feia e desgraciosa, poucos galanteios devia ter ouvido. Os gracejos, a exuberância de Caypor, encantavamna. Ele conservara-se sempre criança, e criança permaneceria sempre. Tinha por ele um amor maternal. Ele lhe devia tudo, era seu marido e ela era sua mulher, e amava-o apesar de sua frivolidade, ach! was, como Isolda amava Tristão. Apesar de sua largueza de vistas, Ashenden não podia perdoar a um homem que traía seu próprio país. Naturalmente, Mrs. Caypor não devia ignorar a traição. Era mesmo muito provável ter sido ela quem o levara a assim proceder. Como explicar que aquela mulher de alma reta e honesta atirasse

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o marido na senda da desonra? Ashenden perdeu-se num labirinto de conjecturas para articular os elementos que armazenara no espírito.

Grantley Caypor era um outro caso. Muito pouco havia nele para ser admirado e, até aquele momento, Ashenden nada viu digno de admiração. Não obstante, não deixava de ter certa originalidade e Ashenden seguia com interesse divertido os modos melosos do espião para prendê-lo na sua teia. Dois dias depois da primeira lição, ao sair da mesa, Caypor deixou-se cair numa cadeira junto a Ashenden. O fiel Fritzi deitou o focinho preto sobre seus joelhos.

- Não é inteligente - disse Caypor -, mas tem um coração de ouro. Veja esses olhinhos róseos. Já viu coisa mais estúpida? Que encanto, porém, nessa cabeça horrível!

- Já o tem há muito tempo? - Desde 1914, exatamente antes da declaração da guerra. A propósito, que me diz das notícias de hoje? Minha mulher e eu evitamos este assunto, por isso, compreende, é um alívio para mim desabafar com um compatriota.

Puxou um charuto barato que Ashenden, fazendo um sacrifício heróico, teve a coragem de aceitar.

- O que há de certo é que os alemães não têm uma probabilidade de vitória - comentou Caypor -, nem uma única. Isso ficou claro desde o momento em que entramos na guerra.

Falava em tom convencido, sincero e um tanto confidencial. Ashenden respondeu com uma banalidade.

- O grande pesar de minha vida é não ter podido servir meu pais nesta guerra, por causa da nacionalidade de minha mulher. Tentei alistar-me desde o primeiro dia, mas não me quiseram aceitar, devido a minha idade. Uma coisa, porém, lhe garanto: se isso durar, quer queira ou não minha mulher, farei qualquer coisa. Com meu conhecimento de línguas poderei tornar-me útil na censura. Era onde o senhor estava, não?

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Era então nesse ponto que ele queria chegar! A essa pergunta direta, Ashenden deu a resposta de há muito preparada. Caypor aproximou a poltrona e falou em voz baixa.

- Embora nada tenhamos de extraordinário a nos dizer, é melhor que não nos ouçam, porque todos esses suíços são germanófilos extremados.

Em seguida, mudando de tática, atirou-se no terreno das confidências.

- Só o digo ao senhor, tenho um par de amigos bemcolocados, e eles sabem que podem confiar em mim.

Com essas garantias, Ashenden cometeu pequenas indiscrições, e separaram-se satisfeitos um com o outro. Muito provavelmente a máquina de escrever de Caypor ia ter trabalho no dia seguinte de manhã, e o enérgico major de Berna receberia, em breve, um relatório dos mais interessantes.

Uma noite, depois do jantar, ao se recolher, Ashenden passou ao lado de um banheiro cuja porta estava aberta. Entreviu os Caypor.

- Entre! - gritou-lhe Caypor com sua voz possante. - Estamos banhando nosso Fritzi.

O bull-terrier sujava-se constantemente e os Caypor tinham orgulho em mantê-lo sempre limpo. Resguardada por um avental branco, Mrs. Caypor estava numa das extremidades da banheira, enquanto Caypor, em mangas de camisa, com seus grossos braços nus, cheios de sardas, ensaboava o infeliz animal.

- Somos obrigados a fazer esse trabalho à noite - explicou -, porque a banheira está reservada aos Fitzgerald. Já pode imaginar a cara que fariam se soubessem que nela damos banho no Fritzi. Vamos, meu filho, mostra a este senhor como é bonito quando está com a cara limpa.

O pobre animal agitava lentamente a cauda. Embora achasse deplorável a operação, não guardava rancor ao dono que a executava. Sacudia-se e fazia saltar a espuma de sabão

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de que estava coberto. Sem deixar de falar, Caypor esfregava-o com suas mãos enormes.

- Como vai ficar bonito, meu cachorrinho, quando estiver branco como a neve. Seu dono vai ficar tão orgulhoso de sair a passeio com ele, e as senhoras-cadelinhas perguntarão: "Quem é esse bull-terrier tão distinto?" Vai fazer conquistas a valer. Mas, muito cuidado agora, não se mova, porque vou lavar as orelhas. Não vai querer andar na rua de orelhas sujas, não é? Noblesse oblige. Agora, nosso focinhozinho preto. Pronto! Caiu sabão nos seus olhinhos róseos, vão ficar vermelhos.

Mrs. Caypor ouvia aquela conversa fiada com um sorriso pouco sedutor no rosto.

- Agora, um bom mergulho. Um, dois. Caypor segurou o cão pelas patas dianteiras e por duas vezes mergulhou-o. O infeliz debatia-se; por fim, ele o libertou.

- Vai depressa te enxugar com a tua mamãe. Mrs. Caypor sentou-se, imobilizou o cão entre suas fortes pernas e começou a enxugá-lo. O suor banhava-lhe a fronte. Fritzi, emocionado, resfolegante, mas também contente por estar tudo acabado, com uma expressão de voluptuosa languidez nos olhos saltados, erguia para nós sua cara estúpida.

- Grande fidalgo! - gritou Caypor, exuberante. - Ele sabe o nome de, pelo menos, sessenta antepassados seus, todos de grande raça.

Ao subir a escada, Ashenden sentia-se um tanto perturbado.

Um domingo, no momento de sair com a mulher para almoçarem num chalé da montanha, Caypor propôs a Ashenden que os acompanhasse. Cada um pagaria sua despesa. Com um chapéu de feltro tirolês na cabeça, Mrs. Caypor pisava forte com suas botas de alpinista. Caypor ostentava meias de xadrez e um calção largo, da mais pura elegância

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britânica. Ashenden divertia-se com o caso e estava disposto a aproveitar bem o dia, mantendo-se, porém, sempre em guarda. Por via das dúvidas, evitaria beirar os precipícios. Não era impossível que os Caypor tivessem descoberto sua identidade, e a mulher não hesitaria em fazê-lo passar por um mau quarto de hora. Com toda sua jovialidade, nada impedia que Caypor fosse um companheiro perigoso. Entretanto, na aparência, nada toldava a Ashenden o encanto daquela manhã luminosa. Os gracejos de Caypor eram inesgotáveis, contava histórias divertidas, estava alegre e espirituoso. O suor banhava-lhe o rosto rubicundo, e ele mesmo fazia troça de sua gordura. Com grande espanto de Ashenden, ele se revelava um sábio botânico. Afastou-se do caminho para colher uma flor, que trouxe para a mulher.

- Não é um encanto? Isso faz pensar num poema de Walter Savage Landor.

- A botânica é a ciência favorita de meu marido - disse Mrs. Caypor. - As vezes zombo dele. Tem loucura por flores. Muitas vezes, quando tínhamos apenas com que pagar o açougueiro, ele gastava, o dinheiro que lhe restava comprando rosas para mim.

- Qui fleurit sa maison, fleurit son coeur - disse Grantley Caypor.

Ashenden vira-o uma ou duas vezes, de volta de um passeio, oferecer ramos de flores silvestres para Mrs. Fitzgerald, com uma gentileza de elefante, que não era destituída de certa graça. Sua paixão pelas flores era sincera, e as que oferecia para a velha dama irlandesa tinham, a seus olhos, real valor. Sua paixão pela botânica conferia àquela ciência uma vida e um interesse que, até então, Ashenden desconhecia. Caypor consagrava-lhe boa parte de seu tempo.

- Nunca escrevi um livro - disse ele -, já existem tantos! Não desejo tampouco escrever um. Contento-me com a redação de meus artigos de jornal, que têm vida efêmera, mas são remuneradores. Se me vir obrigado a ficar aqui por

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muito tempo, vou acabar escrevendo um livro sobre as flores silvestres da Suíça. Elas são maravilhosas! Que pena o senhor não ter vindo há mais tempo, porque, para descrevê-las, é preciso ser poeta, e eu sou apenas um pobre jornalista.

Era curioso observar como ele sabia misturar emoções verdadeiras com mentiras.

Ao chegarem à taberna, de onde se descortinava o soberbo panorama dasmontanhas e do lago, foi um gosto ver o prazer sensual com que ele ingeriu uma garrafa de cerveja gelada. Era impossível não sentir simpatia por um homem que tanto se deliciava com as coisas simples. A taberna estava situada num agradável recanto rústico e lembrava um daqueles chalés suíços que ilustravam os livros de viagem, no começo do século XIX. Muito serena, Mrs. Caypor sentia-se inclinada a mostrar-se gentil com os que se lhe acercavam.

Almoçaram esplendidamente - ovos estrelados e trutas das montanhas. Mrs. Caypor tratou, então, Ashenden de um modo pouco menos hostil do que habitualmente. Quando chegaram ao local, Sela tivera explosões de entusiasmo sobre a beleza do panorama, que exteriorizou em ruidosas exclamações germânicas, e agora, suavizada pelo apetite saciado e pela sede estancada, seus olhos abriam-se desmesuradamente ante a grandeza do cenário com que se defrontavam e enchiam-se de lágrimas.

- Tenho vergonha de confessá-lo, mas, apesar dessa injusta e horrível guerra, meu coração não sente neste momento senão felicidade e gratidão.

Caypor pegou-lhe a mão e apertou-a, e, coisa rara nele, falou-lhe em alemão, dizendo-lhe palavrinhas ternas. Embora absurdo, aquilo era tocante. Ashenden deixou-os entregues a suas efusões e afastou-se, indo sentar-se num banco, ali colocado para conforto dos turistas. Aquela paisagem espetacular cativava-o como um trecho de música muito batido, mas que, no entanto, no momento encantava-o. Grantley

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Caypor continuava a intrigá-lo por sua misteriosa traição. Indiscutivelmente, era um ás da originalidade. Não se lhe podiam negar certas maneiras de ser agradáveis. Sua jovialidade não era fingida e tinha realmente bom gênio. Estava sempre pronto a prestar um serviço. Ashenden, por mais de uma vez, observara-o em suas relações com o velho coronel irlandês e sua mulher, únicos hóspedes do hotel; ouvia alegremente as enfadonhas histórias da guerra do Egito e mostrava-se muito atencioso com Mrs. Fitzgerald. Depois de ter chegado a um certo grau de intimidade com ele, Ashenden considerava-o mais com curiosidade do que com repulsa. Era um indivíduo de exigências modestas, de modo que seu ordenado na companhia de navegação devia bastar, tanto mais com uma dona-de-casa como Mrs. Caypor, além do que a guerra abria toda espécie de possibilidades de negócios aos homens dispensados do serviço militar pela idade. Era incompreensível ter-se ele desviado do bom caminho, fazendo-se espião, contra seu país, unicamente por dinheiro. Seria, talvez, um desses homens que preferem os caminhos escusos às estradas retas, somente pelo prazer de enganar o próximo? Ou, quem sabe, ainda, se cegado pela vaidade, traía, não por vingar-se da pátria que o maltratara, nem mesmo pelo amor de sua mulher, mas para atrair sobre si a atenção de personagens poderosas que, até então, lhe ignoravam a existência. E por trás de tudo isso, não estaria também a ardente voluptuosidade do mal? Se era acusado apenas de duas desonestidades, poderia isso simplesmente significar que só por duas vezes fora apanhado em flagrante. Que pensaria Mrs. Caypor de tudo isso? Por que ela devia saber? Sofreria com os deslizes do marido, ou tudo aceitava como uma tara irremediável do homem a quem amava? Seria Caypor um homem bom fascinado pelo mal, ou um criminoso atraído pelo bem? Como explicar essa dupla natureza? Uma coisa era clara: Caypor não vivia atormentado por nenhuma acusação da consciência. Era um traidor que se comprazia

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em sua traição. Embora Ashenden tivesse estudado, mais ou menos conscienciosamente, durante toda a vida a natureza humana, parecia-lhe que seus conhecimentos atuais não superavam os que tinha quando criança. R., seguramente, dirlhe-ia: "Para que diabo está você perdendo seu tempo com tais baboseiras? Esse homem é simplesmente um espião perigoso e sua obrigação é levá-lo à cadeia". E teria razão.

Ademais, Ashenden estava resolvido a não tentar nenhuma conciliação. Era impossível, dada a duplicidade do indivíduo, confiar em sua palavra. A influência de sua mulher acabaria triunfando sempre. Não obstante suas afirmações repetidas, Caypor tinha certeza da vitória final dos impérios centrais e desejava ficar do lado dos vencedores. Bem, nesse caso, devia ser fuzilado sem dó nem piedade. Mas como pegá-lo? De repente, ouviu que lhe falavam.

- Afinal o encontramos. Nós o temos procurado por toda parte.

Ashenden ergueu os olhos e viu os Caypor dirigirem-se para ele, de mãos dadas.

- Ah! Agora compreendo por que estava tão quieto - disse Caypor. - Que panorama!

Mrs. Caypor juntou as mãos. - Ach Gott, wie schón! - exclamou. - Wie schón. Quando contemplo este lago azul e estas montanhas cobertas de neve, como o Fausto de Goethe, tenho vontade de gritar ao momento que passa: pare!

- Isto aqui é melhor do que a Inglaterra com os exercícios e alarmes da guerra, não? - disse Caypor.

- Muito melhor - confirmou Ashenden. - A propósito, o senhor teve dificuldade para sair de lá?

- Não, nenhuma - assegurou Ashenden. - Ouvi dizer que agora é um nunca acabar de exigências na fronteira.

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- Eu não tive a menor dificuldade. Não creio que eles percam muito tempo com os ingleses. O exame dos passaportes pareceu-me uma mera formalidade.

Caypor e a mulher trocaram um olhar furtivo. Seria possível que Caypor pensasse em ir à Inglaterra no momento mesmo em que Ashenden se esforçava em achar um meio de enviá-lo para lá? Daí a pouco Mrs. Caypor propôs empreenderem a volta. Vieram os três pelos caminhos sombreados.

Ashenden estava atento. Não fazia nada, e sua inação pesava-lhe, mas mantinha os olhos abertos para agarrar a primeira oportunidade. Dois dias depois, um incidente o pôs de sobreaviso. No decorrer de uma lição, Mrs. Caypor disse-lhe:

- Meu marido foi a Genebra. Tinha uns negócios a tratar.

- Ah! Sim? E demora-se? - Não, somente dois dias. Nem todos sabem mentir. O tom de Mrs. Caypor carecia de naturalidade. Com certeza o marido fora chamado a Berna pelo temível chefe da espionagem alemã. Ao apresentar-se uma oportunidade, Ashenden disse displicentemente à criada:

- Então, está de férias hoje, Fraulein? Segundo parece, Herr Caypor foi a Genebra.

- Sim, mas deve voltar amanhã. Aquilo não tinha grande significação, mas convinha anotar. Ashenden conhecia em Lucerna um suíço sempre pronto a aceitar qualquer incumbência. Deu-lhe uma carta para levar a Berna. Seria possível talvez fazer seguir Caypor. No dia seguinte, Caypor apareceu com a mulher no jantar, mas limitaram-se a cumprimentar Ashenden e retiraram-se logo que terminaram a refeição. Pareciam preocupados. Caypor, de ordinário tão exuberante, caminhava agora curvado, sem olhar para os lados. No dia seguinte de manhã, Ashenden recebeu a resposta a sua carta: Caypor fora ver o major Von P. O resto era fácil de adivinhar. Inteligente, grosseiro

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e sem escrúpulos, o major não media suas palavras. Não sustentaria mais esse preguiçoso Caypor no remanso de Lucerna sem fazer nada; chegara para ele o momento de ir para a Inglaterra. Simples conjectura? Talvez, mas nessa profissão as conjecturas têm real importância; um maxilar basta para reconstruir um animal. Ashenden sabia, por Gustav, da impaciência dos alemães por mandar alguém à Inglaterra. Suspirou. Se Caypor se decidisse, que trabalhão ia ter!

Quando Mrs. Caypor veio para a lição, mostrou-se taciturna e distraída. Parecia cansada e apertava obstinadamente os lábios. Provavelmente teriam passado grande parte da noite discutindo. Insistiria ela para que ele fosse, ou tentava dissuadi-lo de ir? Ashenden observou-os durante o almoço. Contrariamente a seus hábitos, falaram pouco. Depois saíram. Ashenden encontrou Caypor sozinho no hall.

- Alô! - gritou este, jovialmente, embora fosse visível o esforço que fazia. - Que é feito do senhor? Quanto a mim, estou chegando de Genebra.

- Disseram-me. - Venha tomar o café comigo. Minha pobre mulher está com uma dor de cabeça horrível. Mandei-a deitar-se. - Em seus astutos olhos verdes havia uma expressão estranha. - O fato é que ela ficou impressionada, pobrezinha, porque estou hesitando em voltar para a Inglaterra.

O coração de Ashenden deu um pulo, mas ele ficou impassível.

- Oh! Vai por muito tempo? Vamos sentir sua falta. - Vou dizer-lhe a verdade, estou aborrecido por não fazer nada. A guerra pode durar muito e não quero ficar aqui indefinidamente. Ademais, estou sem recursos, preciso ganhar a vida. E afinal, embora casado com uma alemã, eu sou inglês. E com que cara me apresentaria aos amigos, mais tarde, se ficasse até o fim confortavelmente instalado aqui, sem nada fazer pela minha terra? Minha mulher tem seu

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ponto de vista e, como o senhor deve imaginar, está furiosa. Oh! As mulheres. São todas iguais.

Ashenden agora sabia qual o motivo da expressão estranha que lera nos olhos de Caypor. Era o medo. Estava numa alternativa tremenda. Caypor não queria deixar a Suíça e ir para a Inglaterra, mas o major colocara-o num dilema: ir para a Inglaterra ou perder o salário. Com certeza Caypor esperava que sua mulher o retivesse; ela, porém, não o fizera, e agora via-se vítima de suas fanfarronadas, não tendo ânimo de confessar sua covardia.

- Vai levar sua mulher? - Não, ela ficará aqui. A coisa estava combinada. Mrs. Caypor receberia as cartas e transmitiria as informações a Berna.

- Estou há tanto tempo longe da Inglaterra que não sei em que trabalho poderei me ocupar. Em meu lugar, o que faria o senhor?

- Não sei. Que espécie de trabalho lhe convém? - O mesmo que o senhor faz. Não haverá alguém na censura para quem me pudesse dar uma carta de recomendação?

Só por milagre Ashenden conseguiu dissimular seu assombro. A luz se fez em seu espírito. Como tinha sido idiota! Mandaram-no a Lucerna com ordem de se apresentar como empregado na censura, justamente para preparar aquele desenlace. Que sorte admirável a do serviço secreto alemão - tão interessado em ter suas inteligências na censura britânica - ter Grantley Caypor, o homem precisamente habilitado para isso, encontrado em Lucerna justamente um funcionário daquele departamento! O major Von P., homem de cultura, esfregando as mãos, há de ter seguramente murmurado: "Stultum facit fortuna quem vult perdere". E, ao dizer isso, cai na armadilha desse demônio de R. Somente com sua presença Ashenden desempenhara sua missão. Estava a ponto de rir ao verificar o papel de bobo que R. lhe dera.

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- Eu estava em excelentes relações com meu chefe de seção. Não me custa nada dar-lhe uma recomendação para ele, se o senhor quiser.

- Prestar-me-á um bom serviço. - Subentende-se que serei obrigado a dizer que nos conhecemos aqui e que nossas relações datam de quinze dias.

- Naturalmente. Mas, a par disso, pode dizer-lhe algum bem de mim, não?

- Certamente. - Mas conseguirei o visto no passaporte? Diz-se, por ai, que há agora complicações sem fim para obtê-lo.

- Não vejo por quê. Que aborrecimento para mim se me recusarem o meu quando quiser voltar!

- Vou ver minha mulher - disse Caypor de repente, levantando-se. - Quando pode dar-me a carta?

- Assim que quiser. Vai já? - O mais breve possível. Caypor deixou-o. Ashenden ficou no hall uns quinze minutos para não se mostrar muito apressado; depois subiu para o quarto e escreveu várias cartas. Numa delas informava R. da partida de Caypor para a Inglaterra; noutra prevenia Berna para que não pusesse obstáculos à concessão de visto, caso o homem lá aparecesse. À hora do jantar, entregou a Caypor uma carta de recomendação bem calorosa.

No dia seguinte Caypor deixou Lucerna. Ashenden aguardava os acontecimentos. Continuava a receber pontualmente sua lição de Mrs. Caypor e, sob sua conscienciosa orientação, começava a exprimir-se num alemão correto. Falavam de Goethe e de Winckelmann, de artes, de viagens. Fritzi não saía de perto de sua dona.

- Ele sente a falta de meu marido - explicou ela, acariciando as orelhas do animal. - Ele só quer realmente a Grantley, a mim suporta-me por causa dele.

Depois das lições, Ashenden ia à casa Cook buscar sua correspondência. Era para lá que lhe dirigiam todas as comunicações.

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Não podia partir sem receber ordens, mas, seguramente, R. não o deixaria muito tempo inativo. Enquanto isso, restava-lhe ter paciência. Em breve recebeu uma carta do cônsul em Genebra comunicando-lhe que Caypor viera pedir seu visto para entrar na França. A essa notícia Ashenden foi tomado de uma súbita necessidade de movimento. Dirigiu-se para o cais. Na volta, viu Mrs. Caypor saindo da casa Cook, para onde ela também se fazia dirigir a correspondência. Encaminhou-se até ela.

- Tem recebido notícias de Herr Caypor? - Não. Não há tempo ainda. Acompanhou-a. Ela estava desapontada, mas de modo algum ansiosa. No dia seguinte, porém, deixou transparecer sua impaciência. Distribuíam a correspondência às nove horas e, às oito e cinqüenta e cinco, ela olhou o relógio. Ashenden sabia que ela não mais receberia cartas do marido, mas não teve coragem para retê-la.

- Não acha que basta, por hoje? Estou certo de que a senhora tem pressa de ir à casa Cook - disse ele.

- Obrigada. O senhor é muito amável. Alguns minutos mais tarde, quando ele lá foi, encontrou-a de pé no centro do escritório, com a fisionomia desfeita. Falou-lhe muito agitada.

- Meu marido tinha-me prometido escrever de Paris. Tenho certeza de que chegou uma carta para mim, mas esses idiotas garantem que não. Que desordem! É um escândalo.

Ashenden não sabia o que dizer. Enquanto o empregado repetia para ele a busca de cartas, ela voltou para junto do balcão.

- Quando chega o próximo correio da França? - perguntou.

- As vezes recebemos cartas às cinco horas. - Está bem, voltarei. Dirigiu-se rapidamente para fora, seguida de Fritzi, que ia com a cauda entre as pernas. Ela começava a ter medo.

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No dia seguinte seu aspecto causava lástima. Não pudera dormir. No meio da lição, estremeceu.

- Queira desculpar-me, Herr Somerville, não posso continuar; não estou me sentindo bem.

E retirou-se muito nervosa. A noite ela escreveu-lhe, prevenindo-o de que não poderia continuar as lições, e não compareceu ao jantar. A não ser para ir pela manhã e à tarde até a casa Cook, ela não saía mais do quarto. Ashenden imaginava-a sentada sozinha, com o coração palpitando de terror. Como não ter pena dela? Para ele também o tempo custava a passar; lia muito, escrevia; por vezes, alugava um barco e demorava-se em longos passeios pelo lago. Finalmente, uma manhã, o empregado de Cook entregou-lhe uma carta. Era de R. Tinha todo o aspecto de uma carta de negócios, mas ele leu nas entrelinhas:

Caro senhor - A encomenda anunciada em sua carta e despachada, pelo senhor, de Lucerna, chegou-nos bem às mãos. Agradecemos-lhe a pronta execução do nosso pedido.

E continuava nesse tom. R. exultava. Sem dúvida, Caypor fora preso e já pagara seu crime. Ashenden estremeceu. Revia uma cena passada, numa madrugada fria, cinzenta, sob um véu de chuva. O homem ali, os olhos vendados, de pé contra o muro. Um oficial muito pálido dá uma ordem seca. Um jovem soldado do pelotão de execução vira-se e, apoiado contra seu fuzil, põe-se a vomitar. O oficial empalidece ainda mais e ele, Ashenden, sente-se desmaiar. Como Caypor devia ter tido medo! É horrível quando as lágrimas correm pelas faces dos condenados. Ashenden sacudiu-se.

Obedecendo às ordens de R., foi à casa Cook comprar uma passagem para Genebra.

Enquanto esperava o troco, Mrs. Caypor chegou. Ashenden ficou impressionado ao vê-la. Estava ofegante, descabelada, com fundas olheiras, lívida. Cambaleando, acercou-

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se ao balcão e perguntou se não havia carta. O empregado sacudiu a cabeça.

- Sinto muito, minha senhora, mas ainda não veio nada.

- Mas procure, procure! Tem certeza? Peço-lhe, procure outra vez.

Sua pobre voz desfalecia. Com um movimento de ombros o empregado retomou o maço de cartas e examinou-as uma a uma.

- Não, minha senhora, não tem. Ela deu um grito rouco de desespero. A angústia decompunha-lhe o rosto.

- Oh, Deus! Oh, Deus! - gemeu. Voltou-se; seus olhos cansados encheram-se de lágrimas e durante uns momentos permaneceu ali como uma cega que anda às apalpadelas, sem saber para onde ir. Então, Fritzi, o bull-terrier, sentou-se e, erguendo o focinho, soltou um longo uivo. Mrs. Caypor contemplou-o, aterrada, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas. A dúvida, a dúvida pungente que a torturara durante aquela espera cruel, dissipouse. Agora ela sabia. Saiu correndo, tropeçando nas pedras da rua.

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ATRÁS DOS BASTIDORES


Ao ser enviado para X, Ashenden não teve ilusões sobre a delicadeza de sua missão. X, capital de um dos grandes Estados beligerantes, vivia em constante ebulição. Um grande partido era contrário à guerra e uma revolução, senão iminente, era contudo possível. Ashenden deveria estudar a situação, fazer sugestões sobre a melhor política a adotar-se e, uma vez aprovadas nas altas esferas, dirigir sua aplicação. Importantes quantias foram postas a sua disposição. Os embaixadores da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos receberam instruções para facilitar sua tarefa, mas, oficiosamente, foi advertido de que deveria agir por si mesmo, a fim de não criar embaraços aos representantes oficiais das duas potências, comunicando-lhes fatos cujo conhecimento ser-lhes-ia melhor ignorar.

Por outro lado, embora a Grã-Bretanha e os Estados Unidos mantivessem com o governo relações extremamente cordiais, poderia dar-se o caso, em determinado momento, de ser Ashenden obrigado a apoiar clandestinamente a oposição. Era, evidentemente, de seu próprio interesse permanecer na sombra. Era desejo de quem o mandara deixar os dois representantes oficiais das duas potências na ignorância de que um obscuro agente trabalhava nos bastidores.

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Mas os embaixadores, ciosos de sua autoridade, bem depressa se apercebem da menor usurpação das suas prerrogativas. Quando, ao chegar a X, Ashenden foi fazer sua visita oficial ao embaixador britânico, Sir Herbert Witherspoon, a recepção que este lhe fez não foi somente friamente polida mas também tão gelada que bastaria para fazer espirrar um urso polar. Diplomata de carreira, Sir Herbert levava ao extremo o culto das tradições. Convencido de que Ashenden se manteria impenetrável, teve o cuidado de não interrogá-lo sobre sua missão, mas nem por isso deixou de fazer com que sentisse a perfeita inutilidade de sua empresa e falou num tom de desdenhosa condescendência a respeito dos altos personagens que o enviaram. Entretanto, prometeu-lhe apoio.

- Recebi o estranho pedido, que muito me surpreendeu, de deixar transmitir seus telegramas cifrados e de entregar-lhe os que lhe fossem dirigidos nas mesmas condições. De onde concluo que lhe confiaram o código secreto.

-- Faço votos que sejam poucos, Sir - replicou Ashenden -, porque não conheço nada mais fastidioso do que decifrar ou redigir despachos dessa natureza.

Sir Herbert calou-se um momento. Não seria aquela, talvez, a resposta que esperava. Ergueu-se.

- Se quiser dar-se ao incômodo de vir comigo à chancelaria, eu o apresentarei ao conselheiro, assim como ao secretário que deverá entregar-lhe os telegramas.

Ashenden seguiu-o. Depois de confiá-lo ao conselheiro, o embaixador apertou-lhe levemente a mão.

- Espero ter o prazer de revê-lo um desses dias - disse ele, e, com essa saudação seca, afastou-se.

Ashenden não se desconcertou com essa recepção. Qualquer demonstração de simpatia da parte de um personagem oficial teria chamado a atenção sobre ele. Na tarde daquele mesmo dia, quando se apresentou na embaixada americana, compreendeu o motivo pelo qual Sir Herbert o tratara com tanta frieza. Wilbur Schafer, o embaixador dos Estados

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Unidos, viera diretamente de Kansas City. Fora nomeado para esse posto em recompensa a seus serviços políticos, num momento em que ninguém pensava em guerra. Era um colosso já maduro, bem-conservado, apesar dos seus cabelos brancos, muito robusto. Em seu rosto completamente barbeado e rubicundo, chamavam a atenção seu pequeno nariz chato e o queixo enérgico. Fisionomia extremamente móvel e com tiques estranhos, que davam a idéia de uma bolsa de água quente de borracha. Era um tipo folgazão. Recebeu Ashenden cordialmente.

- Suponho que já visitou Sir Herbert, não? Que cara ele deve ter feito! Em que estaria pensando aquela gente em Washington e em Londres para nos obrigar a transmitir seus telegramas cifrados, sem sabermos o que contêm. É uma completa infração às tradições.

- Oh! Excelência, siponho que seja unicamente para lhes poupar trabalho e não lhes fazer perder tempo.

- Afinal, em que consiste, em resumo, essa missão? Ashenden não estava preparado para esse golpe direto, mas defendeu-se dele habilmente, nada deixando transparecer e dando ao embaixador explicações que nada explicavam.

De relance julgou Mr. Schafer: dons preciosos para uma eleição presidencial, mas nenhuma finura diplomática. Via-se logo que era um bom garfo e uma criatura bem-humorada e resoluta. Numa partida de pôquer, Ashenden o consideraria um adversário temível, mas, neste caso, sentia que os ases estavam em sua mão. Depois de fazer algumas considerações vagas sobre a política, achou um meio de perguntar-lhe o que pensava da situação geral. Isso foi o mesmo que um toque de clarim para um cavalo de guerra. Durante 25 minutos Mr. Schafer esmagou seu interlocutor com um discurso sem pausas, e quando por fim calou-se, exausto, nem se apercebeu de que Ashenden, que se retirava agradecendo-lhe calorosamente a recepção, nada respondera a sua pergunta.

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Resolvido a espaçar bastante suas visitas aos embaixadores, Ashenden atirou-se ao trabalho, esboçando seu plano de campanha. No entanto, um serviço que pôde prestar a Sir Herbert Witherspoon colocou-o novamente em contato com ele. Mr. Schafer, como se disse, era mais um político do que um diplomata, e seu prestígio lhe vinha menos de seu valor pessoal do que de sua alta posição. Não poucas vezes esta lhe dava oportunidade de se entregar ao gozo das boas coisas da vida, que, dado seu entusiasmo, o levavam a excessos prejudiciais à saúde. As vezes, nas conferências dos embaixadores aliados, apresentava-se em estado de não poder articular uma só palavra. Dizia-se estar ele fascinado por uma dama sueca formosíssima, mas suspeita de espionagem. Mr. Schafer via-a diariamente e não podia fugir a sua influência. Verificaram-se, umas quantas vezes, indiscrições a respeito de segredos do serviço secreto. Durante essas entrevistas demasiado freqüentes, não teria Mr. Schafer feito confidências, logo transmitidas ao quartel-general inimigo? Ninguém duvidava de sua honestidade e de seu patriotismo, mas não se tinha tanta certeza de sua discrição. Em Washington, a inquietação aumentava dia a dia, o mesmo sucedendo em Paris e Londres, e Ashenden fora encarregado de investigar o caso. Entre seus agentes havia um polonês da Galicia, rapaz desembaraçado e resoluto, chamado Herbartus. Depois de confabularem, •a sorte favoreceu-os com um desses acasos que, por vezes, tanto ajudam a contra-espionagem: uma das criadas de quarto da sueca adoeceu e a condessa (porque de fato o era) achou logo, para substituí-la, uma polonesa de confiança. Esta fora, antes da guerra, secretária de um sábio eminente, e nem por isso menos competente para desempenhar seu novo cargo.

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Desde esse momento Ashenden recebeu, cada dois ou três dias, um relatório circunstanciado sobre os feitos e gestos da nobre dama, em sua casa. Se nada soube de positivo que lhe viesse confirmar as suspeitas, teve, no entanto, conhecimento de coisas interessantes. Em seus jantares em tête-à-tête com a condessa, o embaixador manifestava de bom grado seus agravos contra o colega britânico. Queixava-se de que entre ambos as relações fossem apenas de caráter puramente oficial e já estava farto das histórias desse inglês danado, que exigia que elas assim fossem. Que era um americano cem por cento, e fruto de seu esforço, que não era homem para embaraçar-se com protocolos ridículos e etiquetas arcaicas. Por que não se darem como dois bons companheiros? Uma noitada em mangas de camisa não adiantaria mais à causa dos aliados do que os modos rebuscados e as polainas brancas de Sir Herbert? Era claro que não reinava entre os dois embaixadores a cordialidade desejada. Ashenden achou prudente dizer duas palavras sobre o assunto a Sir Herbert.

Foi recebido na biblioteca do embaixador. - Então, Mr. Ashenden, que posso fazer pelo senhor? Espero que seus negócios marchem bem. Com o senhor, ser telegrafista não é gozar uma sinecura.

Ashenden, ao sentar-se, examinou o embaixador. Trajava elegantemente um bem-cortado fraque que modelava como uma luva seu corpo esbelto. Em sua gravata de seda preta luzia uma linda pérola; o vinco das calças cinzentas, de listras discretas, era impecável e suas botinas estreitas pareciam nunca terem sido usadas. Era impossível imaginálo abandonado, em mangas de camisa, diante de uma garrafa de uísque. Mantinha-se ereto em sua poltrona, como se estivesse em pose para um retrato oficial. Um belo homem, sem dúvida nenhuma, embora um pouco frio e emproado; seus cabelos prateados, repartidos do lado, realçavam a palidez aristocrática de seu rosto, cuidadosamente barbeado. O nariz era fino, os olhos e as sobrancelhas, cinzentos. Na mocidade sua boca talvez tivesse sido sensual e de um desenho firme; agora, um trejeito sarcástico afinava os lábios

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descorados. Era uma dessas fisionomias despidas de expressão, mas que somente séculos de boa educação podem produzir. Era impossível conceber que um riso franco e cordial pudesse jamais distender aquelas feições impassíveis. Quando muito, um sorriso de gelada ironia poderia animá-las por um momento.

Ashenden não se sentia à vontade. - É muito provável, senhor embaixador, que o senhor ache que eu quero me imiscuir em coisas que não são da minha conta.

- É o que vamos ver. Queira dizer. Ashenden fez seu relato e o embaixador ouviu-o atentamente, fitando-o de tal modo que aquele se sentiu embaraçado.

- Como pôde descobrir tudo isso? - É que às vezes me dão informações imprevistas. - Compreendo. O olhar de Sir Herbert mantinha-se fixo sobre Ashenden, mas este percebeu com surpresa os olhos de aço iluminarem-se e a fisionomia altaneira revestir-se subitamente de um encanto passageiro.

- Há uma outra pequena informação que o senhor terá talvez a amabilidade de me dar. Que deve uma pessoa fazer para se tornar um alegre companheiro?

- Temo que não se possa fazer grande coisa, excelência - respondeu gravemente Ashenden. - Creio que isso é uma dádiva do céu.

O clarão que luzia nos olhos de Sir Herbert extinguiuse, mas sua atitude não retomou a dureza primitiva. Ergueuse e estendeu a mão a Ashenden.

- Fez muito bem em me falar, Mr. Ashenden. É imperdoável de minha parte ter melindrado esse excelente homem. Mas farei todo o possível para reparar minha falta. Irei esta tarde mesmo à embaixada americana.

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- Mas não com grande aparato, Sir, se me permite uma sugestão.

Os olhos do embaixador brilharam. Ashenden começava a achá-lo quase simpático.

- Nada posso fazer sem aparato, Mr. Ashenden, é um dos feitios do meu temperamento.

E como Ashenden se dispusesse a despedir-se: - A propósito, quer vir jantar amanhã comigo? Smoking. As oito e meia.

Não esperou a resposta, que para ele não permitia dúvida. E, com uma saudação de fim de audiência, sentou-se à mesa de trabalho.

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SUA EXCELÊNCIA


Foi com algum receio que Ashenden viu aproximar-se o momento daquele jantar. O smoking denunciava uma reunião íntima; provavelmente, apenas lady Ana, a esposa do embaixador - a quem não conhecia -, e um ou dois jovens secretários. Isso não pressagiava uma reunião divertida. Seguramente haveria um bridge, depois do jantar, diversão na qual, em geral, não brilham os diplomatas profissionais; essas inteligências de escol dificilmente baixam até a frivolidade de um jogo de salão. Não obstante, tinha curiosidade de rever o embaixador num quadro menos protocolar. Sir Herbert não era, evidentemente, uma criatura vulgar. Com sua aparência e seu modo de ser, encarnava o tipo clássico do diplomata. E é sempre interessante conhecer um expoente perfeito de uma casta. Era exatamente como devia ser, sem o mais leve exagero, que o transformaria numa caricatura. Beirando com freqüência o ridículo, ao observá-lo, sentia-se o arrepio de medo que o dançarino causa ao mover-se

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sobre uma corda estendida a grande altura. Fosse como fosse, era alguém. Devia sua rápida ascensão mais a seus méritos pessoais do que às brilhantes relações adquiridas com o casamento. Era inflexível ou dúctil, conforme o exigiam as situações. Falava com facilidade meia dúzia de línguas; tinha o espírito claro

e manejava habilmente a lógica. Ao ser nomeado embaixador em X, função que o estado de guerra e as perturbações internas tornavam de desempenho particularmente difícil, tinha apenas 52 anos. Seu tato, sua discrição e, em algumas ocasiões, sua coragem valeram-lhe muito. Um dia, por ocasião de um motim, um grupo de revolucionários penetrou na embaixada britânica. Sir Herbert, do alto da escadaria e sob a ameaça dos revólveres, arengou-os, conseguindo persuadi-los a retirar-se. Era evidente que terminaria a carreira em Paris. Tratava-se de um homem de quem não se gostaria facilmente, mas que se era forçado a admirar. Era um continuador daquela escola de embaixadores de grande estilo, do tempo da rainha Victória, aos quais com a máxima confiança se poderia entregar as mais delicadas negociações. Se sua confiança em si mesmo chegava por vezes à arrogância, via-se, entretanto, sempre justificada pelo triunfo.

Ao entrar na embaixada, Ashenden foi recebido por um imponente mordomo inglês ladeado por dois lacaios. Subiu pela suntuosa escadaria, do alto da qual Sir Herbert enfrentara os turbulentos invasores, e foi introduzido num imenso salão, discretamente iluminado por lâmpadas com abajures. A princípio viu apenas a mobília de estilo severo, e acima da chaminé, na qual ardia um belo fogo, um grande retrato de George IV em trajes da coroação. Mas, ao ser anunciado, seu anfitrião ergueu-se lentamente de um divã baixo e, sempre muito elegante, dirigiu-se para ele. Vestia um dinner-jacket, o traje mais difícil de envergar-se com soberana distinção.

- Minha senhora foi a um concerto; o senhor ve-la-á mais tarde. Ela deseja muito conhecê-lo. É o único convidado; quis reservar-me o prazer de recebê-lo a sós.

Ashenden murmurou uma frase cortês, enquanto intimamente se perguntava como poderia suportar umas duas horas em companhia daquele homem, que, era forçoso confessar, o intimidava.

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A porta abriu-se; o mordomo e um criado entraram, trazendo pesadas bandejas de prata.

- Eu sempre tomo um cálice de sherry antes do jantar - disse o embaixador -, mas, se o senhor é partidário da moda bárbara do coquetel, eu lhe oferecerei o que se chama, creio eu, um martini seco.

Embora um pouco intimidado, Ashenden não estava disposto a aceitar aquela opinião, sem retrucar.

- Eu sigo o meu tempo - respondeu. - Tomar um sherry, quando posso tomar um martini, seria o mesmo que tomar uma diligência, podendo viajar no Expresso do Oriente.

Abertas largamente as portas, anunciou-se: "O jantar está servido". Os dois passaram para a sala de refeições. Era um vasto salão, que poderia conter comodamente sessenta convivas, mas, para os dois havia sido preparada uma pequena mesa redonda, na qual estivessem em maior intimidade. A baixela de ouro maciço cdbria o aparador de mogno, e à sua frente Ashenden notou uma tela de Canaletto. Acima da chaminé, um retrato três quartos da rainha Victória moça, trazendo sobre a cabeça uma pequenina coroa de ouro. Tinha-se a impressão de que o embaixador ignorava a pompa em que vivia, e o jantar parecia realizar-se num castelo da Inglaterra. Os dois convivas, dir-se-ia, cumpriam um ritual de uma cerimônia suntuosa, mas sem ostentação. Dava certo sabor à situação em que se encontrava Ashenden o pensamento de que, fora da embaixada, agitava-se uma multidão inquieta e ameaçadora, e que a menos de trezentos quilômetros havia homens que procuravam nas trincheiras um abrigo ilusório contra o frio e os bombardeios.

A conversa estava animada, mas Sir Herbert nada lhe perguntou sobre sua missão secreta. Tratava-o como se fosse um inglês, ali de passagem, que o tivesse procurado com uma carta de apresentação, e para quem desejasse mostrar-se amável. Se por vezes fazia alusão à guerra, era somente para dar a impressão de que não evitava deliberadamente

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referir-se ao assunto. Discutindo arte e literatura, revelou-se grande leitor, de apurado gosto, e, quando Ashenden lhe falava de suas relações pessoais com escritores que ele conhecia apenas através de suas obras, ele o ouvia com a amável condescendência dos grão-senhores para com os artistas. (Mas quando se metem a pintar ou a escrever um livro, toca então aos artistas o prazer do revide.) Sir Herbert citou uma das personagens de Ashenden, mas o fez uma única vez. Tal discrição encantou a este, que detestava ouvir comentar seus romances, estando ele presente. Mesmo porque, uma vez terminada a obra, desinteressava-se ela. Sir Herbert Witherspoon lisonjeava seu amor próprio de autor, mostrando que o lera, e poupava-lhe os melindres, abstendo-se de comentá-lo. Falou-lhe também dos países por onde andara, por força de sua carreira, assim como de alguns amigos comuns. Exprimia-se com finura, não sem uma certa ironia, que facilmente poderia ser classificada de humour. Um jantar nem triste nem alegre. Em sua palestra o embaixador não se afastava nunca da prudência e da ponderação. Ashenden lamentou-o. Necessitava de certo esforço para manter-se naquele diapasão. Teria preferido uma conversa mais livre e mais familiar, mas, em nenhuma condição, Sir Herbert deslizaria para esse terreno. Quanto tempo ainda teria de ficar? Marcara um encontro para as onze horas coem Herbartus, seu agente, no hotel Paris.

Trouxeram o café e licores. Em matéria de boa cozinha e de bons vinhos, Sir Herbert era autoridade; de agora em diante Ashenden poderia testemunhá-lo. Tomou um cálice de conhaque.

- Tenho um Benedittino muito velho - propôs o embaixador. - Não quer prová-lo?

- Para ser franco, confesso que o conhaque é meu licor preferido.

- Creio que, pensando bem, sou da sua opinião. Mas, neste caso, vou oferecer-lhe coisa melhor do que isto.

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Deu uma ordem e dali a pouco o mordomo trouxe uma garrafa coberta de poeira e dois enormes copos.

- Não é por me gabar - disse o embaixador, olhando fluir o líquido dourado no copo de Ashenden -, mas creio que, se é um apreciador de conhaque, vai gostar deste: tive a sorte de descobri-lo durante minha rápida permanência em Paris, como conselheiro da embaixada.

- É verdade! Tive relações freqüentes, ultimamente, com um de seus sucessores.

- Byring? - Sim. - Que me diz desse conhaque? - Maravilhoso. - E de Byring? Essa pergunta seguiu de tão perto a primeira que pareceu cômica.

- Oh! Acho que é um louco rematado. Sir Herbert recostou-se na poltrona, segurando o copo com ambas as mãos para haurir-lhe o perfume. Depois seu olhar vagueou lentamente pelo salão solene. Um ramo de rosas pendia entre os dois convivas. Ao retirarem-se, os criados levaram as bandejas e apagaram os lustres. Unicamente o fogo da lareira e os candelabros colocados em cima da mesa iluminavam o confortável salão, não obstante suas vastas proporções. Os olhos do embaixador pousaram-se sobre o retrato, tão distinto, da rainha Victória.

- Tem certeza disso? - Ele será obrigado a deixar a diplomacia. - É o que receio. Ashenden olhou-o surpreendido. Sir Herbert era o último homem, a seu ver, que podia ter simpatia por Byring.

- Sim - continuou ele -, em sua situação terá de se demitir, inevitavelmente. Isso muito me penaliza. É uma desgraça. Era um homem de futuro.

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- Sim, é o que tenho ouvido dizer. No ministério tinham-no em alto conceito.

- Ele possui a maior parte dos dons indispensáveis para essa triste carreira - continuou o embaixador, com um pálido sorriso, em seu tom frio e dogmático. - É um homem de boa presença, de excelente família, falando muito bem o francês e com um cérebro bem-equilibrado. Teria ido longe.

- Que pena perderem-se tantos trunfos! - Creio que, quando terminar a guerra, ele entrará no comércio de vinhos. Justamente, por um acaso curioso, na casa que me vendeu este conhaque.

Sir Herbert levou o copo aos lábios e olhou Ashenden. Tinha um modo despreocupado de fitar as pessoas, que deixava transparecer mais desdém do que curiosidade.

- Viu alguma vez sua mulher? - Jantei com eles no restaurante Larue. - Aí está uma coisa que me interessa. Como é ela? - Encantadora. Ashenden, ao descrevê-la, reviveu sua primeira impressão, quando, no restaurante, Byring o apresentou àquela mulher de quem tanto ele ouvira falar durante anos. Dizia chamar-se Rose Auburn, mas quase ninguém conhecia seu verdadeiro nome. Viera pela primeira vez a Paris como dançarina, e estreou no Moulin Rouge, num conjunto chamado Glad Girls. Um rico industrial francês apaixonou-se por ela. Ofereceu-lhe um palacete e cobriu-a de jóias, mas sua opulência não bastava para manter o principesco ritmo de vida de Rose, a qual não tardou em variar de amores. Em pouco tempo, tornou-se a cortesã mais célebre de Paris. Arruinava seus adoradores, um após outro, com uma despreocupação impiedosa. Os homens mais ricos recuavam ante suas fantasias extravagantes. Ashenden lembrava-se de uma ocasião em Monte Carlo, antes da guerra, em que ela perdeu numa sessão de jogo 180 mil francos, quantia considerável para a

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época. Sentada à grande mesa e cercada de curiosos, atirava sobre o pano verde as notas de mil francos, aos maços, com uma calma que seria admirável se o dinheiro fosse dela.

Quando Ashenden a conheceu, andava nessa vida louca há uns doze ou treze anos: à noite, dança e jogo; à tarde, as corridas. Não estava mais na primeira mocidade, mas apenas uma leve suspeita de ruga barrava sua linda testa e um imperceptível pé-de-galinha franzia os cantos de seus límpidos olhos. Naquele turbilhão febril ela conservava um ar virginal, que, de resto, acentuava tanto quanto podia. Seus inúmeros vestidos eram sempre de gosto sóbrio. Seus cabelos castanhos, penteados com simplicidade, seu rosto oval, seu nariz espirituoso e seus grandes olhos azuis lembravam as encantadoras heroínas de Anthony Trollope. Irradiava inocência.. Sua pele conservava uma frescura primaveril, e quando, por acaso, recorria a uma ligeira pintura, fazia-o mais por coquetismo do que por necessidade.

Ashenden, naturalmente, não ignorava seus amores com Byring. Fazia-se um tal ruído em torno daquela mulher que o mais insignificante dos seus amantes tornava-se, por esse fato, uma personalidade. Desta vez as línguas movimentavam-se mais do que nunca, porque era sabido ser pequena a fortuna de Byring e também que Rose Auburn empregava bem seus favores. Seria, pois, que o amava de verdade? Por mais incrível que isso parecesse, que outra explicação se poderia dar? De resto, o jovem Byring tinha qualidades capazes de transtornar todas as cabeças. Seus modos encantadores, sua elegância, sua alta estatura, faziam-no notar quando passava e, contrariamente a outros jovens, parecia ignorar o efeito que produzia. Quando se soube que Byring era o amant de coeur de Rose Auburn, tornou-se ele objeto de admiração para as mulheres e de inveja para os homens; mas, quando surgiu o rumor de que ia casar com ela, houve uma gargalhada geral. Seus amigos mostraram-se consternados; seu chefe perguntou-lhe o que havia de verdade naquela notícia,

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e ele não pôde senão confirmá-la. Fizeram tudo para arrancá-lo daquela senda que o levaria ao desastre. Mostraram-lhe que a mulher de um diplomata tem deveres sociais a cumprir, os quais não estariam ao alcance de Rose Auburn. Byring respondeu que estava pronto a pedir sua demissão assim que julgassem conveniente. Não houve nada, nem avisos, nem censuras. Já tomara sua resolução.

No início de suas relações Ashenden não sentia nenhuma simpatia por Byring. Achava-o afetado. Mas, com o tempo, compreendeu que seu ar altaneiro mascarava sua timidez e seu grande coração. Suas relações, não obstante, permaneciam no terreno oficial. Por isso, não foi pequena sua surpresa quando Byring, um belo dia, convidou-o para jantar, a fim de apresentá-lo a Miss Auburn. Na realidade, motivara o convite a curiosidade da dama, que achara tempo para ler (com admiração, assegurou ela) dois ou três romances de Ashenden. Não foi, porém, esta a única surpresa que ele teve. Sua vida calma e estudiosa mantinha-o afastado dos lugares de prazer e, quando muito, conhecia o nome das cortesãs mais em voga. Ora, Rose Auburn, pôde verificar, em nada diferia das mulheres da sociedade que seus sucessos literários lhe permitiam freqüentar. Talvez apenas houvesse um desejo mais vivo de agradar (o interesse que tomava pelo que lhe dizia seu interlocutor era mesmo uma de suas feições mais sedutoras) , mas não se pintava mais do que aquelas, nem mostrava menos sutileza de espírito. Somente lhe faltava, para ser completa a semelhança, aquela linguagem grosseira de que uma parte da sociedade elegante usa e abusa desde o começo da guerra. É que, possivelmente, os lábios de Rose Auburn temessem perder seu encanto, pronunciando palavras pesadas ou senão por permanecer ela um pouco provinciana. Ao primeiro golpe de vista Ashenden compreendeu a profundidade do sentimento que os unia. Quando ia despedir-se, ao curvar-se para beijar a mão de

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Rose Auburn, esta fixou nele seus olhos de um azul luminoso:

- O senhor virá visitar-nos quando estivermos instalados em Londres, sim? Já sabe que vamos nos casar?

- Queira aceitar minhas felicitações cordiais. - E ele? - perguntou sorrindo como um anjo. Aquele sorriso tinha a frescura da aurora e o brilho de uma primavera.

- Nunca se olhou num espelho? Sir Herbert Witherspoon ouviu atentamente o relato feito por Ashenden com expressão céptica, sem um clarão no olhar.

- Acredita que isso acabará bem? - perguntou. - Não creio. - Por que não? A pergunta surpreendeu Ashenden. - Um homem não se casa só com a mulher, mas também com seu meio. Já pensou nesse meio que Byring vai ser obrigado a freqüentar? Mulheres de reputação duvidosa, desclassificadas, parasitas e aventureiras? É claro que terão dinheiro, porque as pérolas de Rose Auburn valem, no mínimo, umas cem mil libras e poderão fazer figura na boêmia elegante de Londres. Conhece essa boêmia dourada que vive à margem da boa sociedade? Quando uma dessas mulheres se casa, todas as suas amigas pasmam de admiração por ter ela assim, de um só golpe, conquistado a honorabilidade; mas o homem, esse só alcança o ridículo. Todos se divertem a sua custa; é o bobo da fábula. Creia-me, para fazer frente a uma tal situação é preciso uma cabeça sólida ou uma ousadia pouco comum. Acresce que as ilusões não duram muito. Uma mulher que tanto rolou pelo mundo poderá habituar-se à vida do lar? O tédio espreita-a, e o amor tem vida efêmera. Byring terá de fazer amargas reflexões quando, farto de sua Dulcinéia, comparar o que é com o que poderia ter sido.

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Witherspoon tomou um trago de seu conhaque. Depois, fitou Ashenden com olhar estranho.

- Tem certeza de que um homem comete uma grande asneira, quando a coisa vale a pena, em obedecer ao instinto sem se preocupar com o futuro?

- Acho que é muito agradável ser embaixador - disse Ashenden.

Sir Herbert esboçou um sorriso. - Byring lembra-me um rapaz que conheci como adido das Relações Exteriores. Não lhe direi seu nome, porque hoje é muito conhecido e começa-se a falar dele. Sua carreira foi brilhante. Essas ascensões muito rápidas, creia-me, têm sempre um não sei quê de absurdo.

Ashenden, a essas palavras, ergueu levemente as sobrancelhas, mas nada disse.

Sir Herbert continuou: - Era um dos meus colegas de promoção, um tipo notável - quanto a isso era incontestável - e predizia-se-lhe um brilhante futuro. Tinha, creio poder afirmá-lo, tudo o que era necessário para triunfar. Descendia de uma família de marinheiros e soldados, sem brilho, mas muito conceituada. Sua educação preservara-o do pedantismo e da timidez. Era culto. Tinha grande queda pela pintura e, para mostrar-se vanguardeiro do movimento artístico, delirava ante as obras de Gauguin e Cézanne, na época ainda pouco conhecidos. Talvez houvesse um ligeiro esnobismo em seu entusiasmo, o desejo de escandalizar o convencionalismo, mas, realmente, no fundo, seu amor às artes era sincero. Adorava Paris e aproveitava todas as oportunidades para lá ir. Hospedava-se num hotel modesto do Quartier Latin, um hotel de pintores e de homens de letras. Seguindo seus usos, esses boêmios o tratavam com condescendência. Troçavam de suas maneiras de homem de sociedade, mas, como sempre estavam dispostos a ouvi-lo e a admirá-lo, não dispensavam sua companhia

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e, não obstante ser um filisteu, admitiam que tivesse um certo faro.

Ashenden notou o sarcasmo e sorriu ao arranhão dado aos de sua profissão. O que pretenderia o embaixador? Dava impressão de comprazer-se ao referir todos aqueles detalhes. Algum motivo, entretanto, parecia detê-lo no terreno alas confidências.

- Meu amigo, porém, era modesto. Ouvia boquiaberto aqueles jovens pintores, aqueles rabiscadores de papel, quando rasgavam sem dó nem piedade reputações estabelecidas para exaltar gênios de quem seus colegas de Downing Street mais cultos ignoravam até o nome. No fundo, ele os achava medíocres e vulgares, e voltava sem pesar ao seu trabalho em Londres, certo de ter assistido a uma comédia pouco banal. Era um ambicioso que devia ir longe. Seus amigos, sabia-o, confiavam nele, e estava decidido a não decepcioá-los. Conhecia os trunfos que tinha na mão. Queria triunfar. Por desgraça não era rico, dispondo apenas de alguns centos de libras de renda. Mas, sendo seus pais já falecidos e não tendo irmãos nem irmãs, nada o impedia de cultivar à vontade relações úteis. Desagrada-lhe o homem?

- Não - respondeu Ashenden a esta pergunta insólita. - A maioria dos moços inteligentes conhece o próprio valor e tem geralmente grandes pretensões quanto ao futuro. Mas a ambição senta bem aos moços.

- Pois bem. Durante uma dessas fugas a Paris, meu amigo travou relações com um jovem pintor irlandês, um senhor O'Malley. Hoje O'Malley pede um preço bem caro por seus retratos de lordes, chanceleres e ministros. Não se lembra do retrato de minha senhora que esteve exposto faz dois anos?

- Não, excelência, mas conheço o nome de O'Malley. - Minha senhora estava contentíssima com ele. Quanto a mim, sempre prestei homenagens a seu talento. Ele é muito hábil em expressar a distinção dos seus modelos.

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Quando retrata uma grande dama, vê-se imediatamente que é uma grande dama, e não uma marafona.

- É uma qualidade preciosa. Mas, diga-me, e quando ele pinta uma mulherzinha (compreende?) , vê-se também logo que é uma mulherzinha?

- Antigamente, sim. Mas hoje tenho minhas dúvidas de que essa espécie de modelos o tente. Na época a que me refiro ele vivia numa mansarda miserável, na Rue du Cherche Midi, com uma francesinha do gênero das que o senhor falou, e pintou, tendo-a por modelo, vários estudos.

Pareceu a Ashenden que Sir Herbert entrava em demasiados detalhes e esta história, que até agora parecia não ter propósito, não seria, na realidade, sua própria história? A curiosidade fê-lo prestar toda a atenção.

- Meu amigo era louco por O'Malley. Esse alegre companheiro, tipo do folgazão simpático, era falador como todo bom irlandês. Não cansava ouvi-lo, exaltando, doutrinar sobre assuntos de arte. Meu amigo sentia-se orgulhoso porque O'Malley sempre falava em retratá-lo, por sua distinção aristocrática. Estava ansioso, dizia, por expor finalmente o retrato de um gentleman.

- Quando se deu isso? - perguntou Ashenden. - Oh! Há uns trinta anos ... Os dois faziam projetos de futuro, e quando O'Malley declarava que aquele famoso retrato estaria muito bem na National Portrait Gallery, meu amigo protestava por formalidade. Uma tarde em que meu amigo Brown (chamemo-lo assim, se quiser) olhava o pintor aproveitar desesperadamente os últimos raios de sol para terminar antes da abertura do salon aquele retrato de sua amante que hoje figura na Tate Gallery, O'Malley convidou-o para jantar. A esse jantar deviam também comparecer Yvonne, modelo do pintor, e uma amiga sua. Era esta uma acrobata, e Yvonne afirmava possuir ela um corpo maravilhoso, o que deixava O'Malley ansioso por tê-la para modelo para um nu. Ela, que conhecia suas telas, enquanto esperava um contrato

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nas Gaités Montparnasses, não desejava outra coisa senão aproveitar seus momentos de lazer, prestando um serviço a um amigo e ganhando ao mesmo tempo algum dinheiro. Brown, que não tivera ainda relações com uma acrobata, aceitou o convite. Yvonne sugeriu que talvez ele se agradasse de sua amiga e, nesse caso, afirmava, ele não encontraria obstáculos. Com sua alta distinção e seu garbo, disse, a amiga o tomaria por um milord anglais. Brown riu-se. On ne sait jamais, gracejou ele. Yvonne olhou-o maliciosamente. Sentaram-se. Fora, o frio era picante, mas o pequeno ateliê estava bem-aquecido; era confortável e alegre, apesar da desordem e da camada de poeira que havia no rebordo da janela. Brown pensava em seu apartamento em Londres, com seus magníficos mezzotinti e seus belos vasos chineses, e assim mesmo perguntava por que seria que seu salão, de um estilo tão puro, lhe parecia aborrecido, comparado ao pobre ateliê de O'Malley. Naquele momento tocaram a campainha; Yvonne foi abrir e fez entrar a amiga. Alix, assim se chamava ela, estendeu a mão a Brown, engrolando uma frase feita, e com trejeitos de uma dama de bureau de tabac. Vestia um comprido casaco de peles falsas e trazia na cabeça um enorme chapéu vermelho. Brown achou-a de uma vulgaridade incrível, com aquele rosto chato coberto por espessa camada de pintura, a boca demasiado grande e o nariz arrebitado. Tinha cabelos abundantes, de um louro evidentemente pintado, e os olhos azul-porcelana à flor da testa.

Já agora não havia mais dúvida para Ashenden: Sir Herbert estava contando sua própria história, porque, de outro modo, já passados trinta anos, como poderia ele recordar a cor do chapéu e a capa da moça? Divertia-se com a simplicidade do embaixador, que com um subterfúgio pueril tentava mascarar a verdade. Ashenden não podia imaginar como terminaria a história e perguntava a si mesmo o que faria uma personalidade tão altiva e emproada numa aventura daquele gênero.

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- As duas mulheres começaram a conversar. A voz da recém-chegada impressionou Brown. Sem saber por quê, aquela voz profunda e áspera, de quem tem um resfriado tenaz, perturbava-o. Perguntou a O'Malley se a moça tinha sempre aquela voz, e ele lhe respondeu que nunca lhe ouvira outra. "É uma voz de borracho." O'Malley transmitiu a Alix a pergunta de Brown e ela, com um sorriso de sua boca grande, explicou que não era devido ao álcool, mas que não se pode passar impunemente tanto tempo de cabeça para baixo como era obrigada a fazer. Que isso era um dos incon venientes de sua profissão. Finalmente, os dois pares encaminharam-se para um sórdido restaurantezinho do bulevar Saint Michel, onde, por dois francos e cinqüenta cêntimos, incluindo o vinho, meu amigo teve um jantar delicioso, cuja perfeição eclipsava, a seus olhos, as mais afamadas especialidades culinárias do Savoy ou do Claridge. Muito divertido e, digamo-lo também, um tanto espantado, ele ouvia a verbosa Alix contar com sua voz roufenha os pequenos incidentes do dia. Uma enxurrada de palavras de calão, da qual não compreendia a metade, abateu-se sobre Brown. Aquelas metáforas audaciosas, aquela linguagem que nasce sobre o zinco das tavernas, nas praças onde formiga o populacho dos mais miseráveis quarteirões de Paris, divertiam-no e embriagavam-no. Sim, Alix era uma criatura nascida nas sarjetas, e nada mais. Mas sua eloqüência lançava clarões, como a chama de uma enorme fogueira. Yvonne provavelmente avisara-a de que Brown era solteiro e muito rico, porquanto ele percebeu o olhar interessado com que ela o envolveu e, fazendo-se de distraído, apanhou esta frase: "Il n'est pas mal". Sentiu-se lisonjeado. Teve a noção de que, de fato, era assim. Por vezes mesmo diziam dele coisa melhor do que isso. Depois, ela pareceu não se preocupar mais com ele; falou de pessoas e coisas que lhe eram desconhecidas, mas, de quando em quando, atirava-lhe um olhar e passava a língua pelos lábios pintados. A pobre dava pena! Sem dúvida gozava de uma saúde de

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ferro e tinha por si mocidade e bom humor, mas, excetuando sua voz roufenha, não possuía outros atrativos. Entretanto, uma aventura em Paris com uma acrobata, que linda história para contar mais tarde! Quem foi que escreveu, La Rochefoucault ou Oscar Wilde, que é preciso fazer loucuras na mocidade para se ter o que recordar com saudade na velhice? Depois do jantar, demoraram-se tomando o café e licores, e, ao saírem à rua, Yvonne propôs a Brown que levasse Alix para casa. Morava ali perto. Esta falou-lhe de seu pequeno apartamento. Passava a maior parte do tempo em excursões exigidas por sua profissão, mas gostava de ter um cantinho seu. Uma mulher que não tem um recanto seu não inspira nenhuma consideração. Meteram-se por uma rua estreita e detiveram-se diante de uma casa de aspecto lamentável. Alix tocou a campainha chamando a concierge. Alix não o convidou para entrar. Não havia necessidade. Intimidado como um colegial, não achava nada para dizer. Pesava entre ambos um silêncio absurdo. A porta abriu-se com um ruído seco. Alix olhou Brown com ar interrogador e surpreso. Por fim, decidiu-se a estender-lhe a mão, agradecendo-lhe por tê-la acompanhado e deu-lhe boa-noite. O coração do rapaz pulsava violentamente. Ao mais leve convite ele a teria seguido. Esperava em vão um gesto que o animasse. Por fim tirou o chapéu e afastou-se. Sentia-se grotesco. Passou a noite virando-se e revirando-se no leito, sem poder dormir. A lembrança do ocorrido obcecava-o. Esperava o dia com ansiedade para apagar a penosa impressão causada. No dia seguinte, às onze horas, voou à casa de Alix para convidá-la para almoçar. Tinha saído. Mandou-lhe então umas flores. Mais tarde foi 16 outra vez. Ela voltara à casa, mas saíra novamente. Na esperança de encontrá-la, foi ao ateliê de O'Malley, mas lá não a encontrou. O pintor, maliciosamente, perguntou-lhe como iam seus negócios. Para salvar as aparências Brown declarou que, afinal de contas, a rapariga não o interessava e que se despedira dela sem nada lhe pedir. O'Malley mostrou-se

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cético. Brown mandou um pneumatique (*1) a Alix, convidando-a para jantar com ele no dia seguinte. Não obteve resposta. Não compreendia aquilo; mais de doze vezes perguntou ao porteiro do hotel se não havia carta para ele e, por fim, exasperado, foi à casa dela à hora do jantar. A concierge disse-lhe que ela estava em casa. Furioso por ter sido tratado de modo tão descortês, mas preocupado em não deixar transparecer seu despeito, galgou os quatro andares de uma escada escura e bateu à porta de Alix. Um silêncio e depois um rumor de passos. Bateu outra vez. Enfim Alix abriu. Parecia desconhecer a pessoa ali presente. Foi um golpe rude para a vaidade de Brown. Não obstante, esforçou-se por sorrir. "Vim saber se aceita meu convite para jantar. Mandei-lhe um pneumatique." Só então ela pareceu reconhecê-lo. Mas ficou de pé na porta, sem convidá-lo para entrar. "Oh! Esta noite não. Estou com uma enxaqueca terrível e vou para a cama. Não pude responder-lhe porque não sabia onde tinha posto seu pneumatique e esqueci seu nome. Agradeço-lhe muito as flores, foi muito amável em mandá-las." "Quer então jantar comigo amanhã?" "Justement, tenho um compromisso amanhã de noite. Sinto muito."

- Ele não teve coragem de insistir e afastou-se cabisbaixo e humilhado. Partiu paia Londres sem revê-la. A lembrança daquela mulher obcecava-o. Sabia que não estava apaixonado por ela, mas não podia esquecê-la. A verdade, que teve de confessar a si mesmo, era que estava ferido sobretudo na sua vaidade. Durante aquele jantar no pequeno restaurante do Boul'Mich', Alix falara de um contrato que iria ter para Londres, na primavera. Numa carta que escreveu a O'Malley, Brown, como que por casualidade, pediu-lhe que, no caso de sua amiguinha ir para Londres, o avisasse, pois desejava vê-la. Tinha vontade de ouvi-la falar a respeito

(*1) Sistema de entrega rápida de correspondência por ar comprimido através de uma rede de tubulação. As cartas enviadas dessa maneira passaram a ser chamadas de "pneumatique". (N. do E.)

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do nu que ele, O'Malley, fizera dela. Quando, pouco tempo depois, o pintor avisou-o da próxima estréia de Alix no Metropolitan, em Edgware Road, Brown sentiu o sangue afluirlhe à cabeça. Foi vê-la trabalhar. Se ele não tivesse tomado a precaução de previamente passar pelo teatro para ver o cartaz, teria perdido a exibição, pois o número dela era o primeiro. Alix aparecia com dois homens, um corpulento, o outro magro, ambos com bastos bigodes. Os três vestiam malhas cor-de-rosa, malfeitas, com corpetes de cetim verde. Nos intervalos dos exercícios de trapézio dos homens, Alix atirava-lhes lenço para enxugarem as mãos. De vez em quando dava uma cambalhota. Quando o robusto levantou o delgado e o colocou nos ombros, ela escalou a pirâmide humana e, com as duas mãos, atirou beijos para o público. O trio exibia-se em bicicleta. Com freqüência os exercícios dos bons acrobatas têm certa graça e mesmo beleza, mas, diante de uma tal exibição de vulgaridades, meu amigo sentiu-se envergonhado. Sentimos um certo mal-estar ao ver criaturas humanas cobrirem-se de ridículo em público. A pobre Alix, em sua horrível malha, com seu sorriso de encomenda, estereotipado nos lábios, estava simplesmente grotesca. Como podia ele ter ficado despeitado por ela não tê-lo reconhecido? Foi, pois, com condescendência que penetrou nos bastidores e deu um xelim ao guarda para que este levasse seu cartão a Alix. No fim de alguns minutos, ela chegou. Mostrou-se encantada ao vê-lo. "Oh! Que satisfação em ver uma cara conhecida nesta maldita cidade!" exclamou. " É verdade, agora sim é o momento de me oferecer aquele famoso jantar que me propôs em Paris. Estou morta de fome. Não tive tempo de comer sequer um bocado, antes do espetáculo. Viu o lugar em que nos puseram no programa? É uma afronta. Ah! Mas isso não ficará assim. Amanhã vamos procurar o empresário. Se pensam que podem nos tratar desse modo, estão muito enganados. Ah! Não, não e não! E que público! Sem entusiasmo, sem aplausos, nada!" Meu amigo estava assombrado.

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Levaria ela mesma a sério seu papel? Era de arrebentar de riso. Mas a voz estranha de Alix recomeçava a atuar sobre seus nervos. O vestido escarlate e o chapéu vermelho (o do primeiro encontro que tiveram) formavam um conjunto tão berrante que não ousou levá-la num lugar onde ele pudesse ser reconhecido. Levou-a a Soho. Nesse tempo ainda havia cabs, e os cabs eram mais favoráveis aos namorados do que os atuais táxis. Meu amigo enlaçou Alix pela cintura e procurou seus lábios. Ela conservou-se calma e ele mesmo não sentiu o arrepio da grande voluptuosidade. Durante a ceia ele mostrou-se galante e ela aceitou suas amabilidades. No momento, porém, de partirem, como ele quisesse levá-la para seu apartamento, ela confessou-lhe que viera de Paris com um amigo e que este a esperava às onze horas. Pudera jantar com ele, Brown, porque o amigo tivera uma conferência sobre negócios. Brown conteve-se a custo; mas, vendo-a em Wardour Street (ela mpstrava vontade de conhecer o Café Monico) diante de uma vitrina de uma casa de penhores, extasiada à vista de uma pulseira de safiras e diamantes de péssimo gosto, perguntou-lhe se gostaria daquela jóia. "Mas custa quinze libras!" exclamou ela. Brown entrou e comprou a jóia. Ela estava encantada. Pediu-lhe que a deixasse um pouco antes de chegarem a Piccadily Circus. "Escuta, mon petit" disse ela, "não posso estar com você em Londres, por causa do meu amigo; ele é mais ciumento do que um tigre, e é por isso que acho mais prudente nos separarmos aqui. Mas vou representar em Boulogne na semana que vem. Quer ir até lá? Nessa ocasião, estarei só. Meu amigo vai para a Holanda, onde reside." "Muito bem, irei" afirmou Brown. Ao ir a Boulogne (obtivera dois dias de licença) levava um único pensamento: curar a ferida do seu orgulho. Era-lhe insuportável a idéia de que Alix o tomasse por um tolo, mas estava certo de que se a fizesse mudar de opinião ela deixaria imediatamente de existir para ele. Lembrava-se também de O'Malley e Yvonne. Com toda certeza ela lhes

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contara tudo. Ele os desprezava, mas, mesmo assim, a idéia de que se riam dele, sentia-se envergonhado. Por isso resolveu ir à entrevista. Acha que ele fez mal?

- Seguramente que não - respondeu Ashenden. - Todos sabemos que a vaidade é a mais devastadora, a mais universal e a mais inextirpável de todas as paixões que afligem a alma humana. E é ainda vaidade querer negar seu poder. É mais absorvente do que o amor. Com a idade podemos nos libertar das garras deste, mas os anos não têm o poder de nos arrancar a tirania da vaidade. O tempo alivia as penas do amor, mas somente a morte pode curar as feridas angustiosas da vaidade. O amor é simples e não procúra subterfúgios; a vaidade, porém, dissimula-se sob mil máscaras. E parte e parcela de, toda virtude; sem ela, não há coragem, como não há ambição. É ela que dá constância aos amantes e impassibilidade aos estóicos. É ela que entretém no artista o desejo da glória e compensa o homem honrado dos sacrifícios que a probidade lhe impõe. Mira-se até, cinicamente, na humildade dos santos. Ninguém escapa a seu domínio e, mesmo no esforço que fazemos para nos libertarmos dela, sempre acha um meio de nos atingir. Não é possível haver defesa, porque ignoramos o ponto fraco sobre o qual se vai desfechar o ataque. Nem a sinceridade protege contra os ardis da vaidade.

Ashenden interrompeu-se, não porque tivesse dito tudo o que tinha a dizer, mas porque perdera o fôlego, e mesmo também porque o embaixador, mais desejoso de falar do que de ouvir, já dera sinais de impaciência. Por isso, concluiu:

- Enfim, sem ela o homem não poderia resignar-se a sua sorte.

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Sir Herbert permaneceu calado mais alguns instantes. Olhava fixamente para a frente, como se seus pensamentos estivessem concentrados num ponto doloroso de seu passado.

- Ao voltar de Boulogne - prosseguiu -, meu amigo estava mais apaixonado do que nunca. Combinara encontrar-se com Alix dali a quinze dias em Dunquerque, onde ela iria representar. Durante os dias de espera pensou unicamente nela. A noite que precedeu a partida, passou-a em claro. Desta vez, sua licença não alcançava senão 36 horas. Tempos depois, em Paris, conseguiu dela a promessa de, entre dois contratos, vir passar uma semana em Londres com ele. Compreendeu que Alix não o amava. Para ela era apenas um homem entre outros cem, e não fazia mistério de seus vários amores. O ciúme torturava-o, mas, temendo aborrecê-la ou irritá-la, ocultava-o. Ela não lhe tinha nenhuma simpatia, quando muito sentia-se lisonjeada por sua distinção de gentleman e seus trajes impecáveis. Consentia em ser sua amante, com a condição de ele não a importunar com exigências. As posses de Brown não lhe permitiam fazer-lhe uma proposta vantajosa e, ademais, em condição alguma ela consentiria em fazer-lhe o sacrifício de sua liberdade.

- E o holandês - perguntou Ashenden. - O holandês? Pura invenção para desvencilhar-se de Brown num determinado momento. Alix era pródiga em mentiras. Não vá pensar que Brown não tivesse momentos de revolta. Ele compreendia perfeitamente que, se aquela aventura se transformasse numa ligação duradoura, seria para ele o desastre. Alix, grosseira e vulgar, não fazia o menor esforço para elevar-se a seu nível; pelo contrário, massacrava-lhe os ouvidos com as histórias de suas tricas com os colegas e de suas disputas com os empresários e hoteleiros. Tudo isso exasperava Brown, mas aquela voz roufenha acelerava-lhe as batidas do coração a ponto de quase fazê-lo estourar.

Ashenden agitava-se em sua poltrona. Era uma cadeira Sheraton, muito linda para ser olhada, mas também muito dura e incômoda. Que pena Sir Herbert não ter tido a idéia de levá-lo para outra sala onde havia um confortabilíssimo sofá. Era uma caceteação ouvir aquela confissão por demais

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transparente. Ashenden não apreciava muito que lhe fizessem confidências e, além disso, que lhe importava um Sir Herbert Witherspoon? A luz amortecida dos candelabros, notou a palidez de seu rosto e nos olhos uma perturbação desconcertante num homem tão senhor de si. Sir Herbert bebeu um copo de água; sua garganta seca mal deixava saírem as palavras. Não obstante, prosseguiu:

- Por fim, meu amigo conseguiu dominar-se. Sentiu-se enojado pela sordidez da aventura. Não havia nela beleza, mas sim ignomínia. Sua paixão era tão abjeta como a mulher que a inspirava. Alix foi contratada por seis meses para o norte da África, com seu conjunto. Durante esse tempo pelo menos não haveria possibilidade de vê-la. Era a oportunidade para a ruptura definitiva. Pensava, com amargura, que nada representava para ela. Em três semanas, tê-lo-ia esquecido. Mas havia outra coisa. Fazia já algum tempo que mantinha relações com um casal que ocupava uma alta situação social e política e cuja filha única, não sei por quê, apaixonou-se por ele. Entre ela e Alix o contraste era absoluto. Imagine uma beleza do mais puro tipo inglês, alta, loura, olhos azuis, rosto claro e rosado, formosíssima. Dir-se-ia um desenho de Maurier no Punch. Graças a sua inteligência e cultura, a seu convívio nos meios diplomáticos, nenhuma das questões em que Brown se ocupava lhe era estranha. Tudo parecia indicar que um pedido de casamento seria bem-recebido. Creio terlhe dito que ele era ambicioso. Esta aliança com uma das mais importantes famílias da Inglaterra proporcionar-lhe-ia facilidades imensas e ele seria um louco se perdesse tal oportunidade, pois não se tem duas vezes tamanha sorte. Além do que isso poria ponto final em sua estúpida aventura. Que felicidade fugir finalmente daquela atmosfera de tola frivolidade e de baixa sensualidade para consagrar-se a um ser que o amava de fato! Como se sentia lisonjeado e comovido ao ver a doce fisionomia iluminar-se, quando ele entrava! Embora não a amasse ainda, achava-a entretanto encantadora e

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desejava sinceramente esquecer Alix e aquela existência intolerável. Seu pedido foi aceito. Os pais exultaram, mas o casamento protelou-se até o outono, porque o futuro sogro, obrigado por uma missão política a ir à América do Sul, desejava levar consigo a mulher e a filha. Permaneceriam lá todo o verão. Brown, transferido para o Foreign Office, foi nomeado para Lisboa e preparou-se para seguir imediatamente. Compareceu ao embarque da noiva. Nesse meio tempo o ministro resolveu manter ainda no posto, por três meses, o colega que ele iria substituir. Essa modificação resultou, para Brown, numa licença inesperada, e justamente quando pensava no melhor modo de aproveitá-la recebeu uma carta de Alix. Dizia-lhe ela que voltava para a França e traçava o itinerário a que a obrigava seu contrato e, incidentemente, referiu-se aos bons momentos que teriam se ele fosse ter com ela, por um ou dois dias. Uma idéia louca, criminosa, atravessou-lhe o espírito. É muito possível que, se ela tivesse manifestado um desejo ardente de vê-lo, ele teria recusado formalmente, mas não resistiu àquele tom descuidado. Desde então ansiou por vê-la. Que importava que ela fosse vulgar! Tinha-a no sangue e, ademais, seria a última vez. Dentro em breve estaria casado. Seria agora ou nunca mais. Seguiu para Marselha e a encontrou no momento em que desembarcava de Tunis. Ao vê-la seu coração pulou, e compreendeu que a amava loucamente. De chegada comunicoulhe seu próximo casamento e propôs-lhe consagrar-lhe seus três últimos meses de liberdade. Ela recusou, por não querer renunciar a seus compromissos. Como podia ela deixar seus companheiros ao desamparo? Brown ofereceu indenizá-los; ela porém não quis, alegando que não podia ser substituída tão prontamente. De modo algum eles aceitariam desistir de um bom contrato que lhes poderia trazer outros para o futuro. Além disso, eram gente honesta que já havia dado sua palavra e tinha deveres para com o empresário e com o público. Brown exasperou-se à idéia de ser sacrificado por

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semelhantes motivos. "E daqui a três meses?" redargüiu Alix. "Que seria feito de mim? Oh! Você não está muito certo da cabeça!" Ele reconheceu que estava mais apaixonado do que nunca. "Mas por que não nos acompanha na excursão?" perguntou ela. "Eu ficaria muito satisfeita se viesse conosco; nos divertiríamos bastante e ao cabo dos três meses você casaria com tua herdeira." Agora, depois de tê-la visto novamente, a idéia de deixá-la tão depressa desesperava-o. Acabou aceitando. "E sobretudo, meu velho, nada de tolices" disse ela. "Preciso cuidar de minha carreira. Os empresários me mandariam passear se eu começasse com luxos. Imagina só a cara deles se eu me pusesse a bancar a virtuosa com os velhos freqüentadores do teatro! É claro que, se eu deslumbro um deles, você não virá me apoquentar. Mas isso não acontecerá muitas vezes. De resto, isso não tem importância; os negócios antes de tudo. Você será o meu amant de coeur." Brown sentia-se desfalecer. Ela o olhava com curiosidade. "Eis minhas condições" declarou ela. "É pegar ou largar." Ele aceitou.

Sir Herbert Witherspoon atirou-se para trás na poltrona, tão pálido que Ashenden receou que ele desmaiasse. A pele pálida e machucada daria ao rosto o aspecto da morte não fossem as veias da testa, salientes como cordéis. Mais uma vez Ashenden fez votos para que ele pusesse um ponto final na narrativa. Como pode alguém entregar-se desse modo? Sentia desejos de gritar-lhe: "Pare, pare! Não me diga mais nada; arrepender-se-á, mais tarde".

O homem, porém, perdera todo o pudor. - Durante três meses vagabundearam assim de cidade em cidade, compartilhando um pequeno quarto em apartamentos mobiliados de terceira categoria. Alix recusava ir para bons hotéis (não tinha vestidos apropriados e gostava de seus cômodos, dizia ela) . E, além disso, não queria parecer que estivesse abandonando os companheiros. Deixava Brown aborrecer-se horas a fio no terraço dos cafés. Os membros

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da companhia tratavam-no como um colega, chamavam-no pelo seu nome de batismo e diziam-lhe gracejos pesados, batendo-lhe familiarmente nas costas. Durante os ensaios ocupava-se de seus encargos. Lia o desprezo malicioso no olhar dos empresários e suportava as intimidades dos maquinistas da empresa. Viajavam em terceira classe e ele ajudava a carregar as bagagens. Ele, que tanto gostava de ler, não abria mais um livro. Segundo Alix, que era de uma ignorância crassa, a leitura nada mais era do que pose. Todas as noites, no circo, ele revia o lamentável número de Alix. E, depois, era preciso extasiar-se e deixar a infeliz na crença de que era uma grande artista, ficar boquiaberto e pasmo quando tudo marchava bem e consolá-la se se estatelava no chão ao virar uma cambalhota. Depois da apresentação ela mudava de roupa e ele a esperava na saída. Algumas vezes passava por ele esbaforida e dizia-lhe: "Não me espere hoje, mon chou, tenho um cliente". E era então o inferno do ciúme. Sofria, pensava ele, como jamais sofrera outro homem. Ao regressar ao hotel, às duas ou três horas da madrugada, ela ficava admirada de encontrá-lo acordado. Dormir! Como poderia ele dormir! Comprometera-se a não atrapalhá-la. Não estava cumprindo a promessa. Fazia-lhe cena após cena. Havia dias em que a esbordoava. Quando perdia a paciência, ela declarava que já estava farta e ia arrumar suas coisas e deixá-lo ali. Ele então prostrava-se a seus pés, aceitava tudo, jurando que faria tudo que ela quisesse, contanto que não o abandonasse. Era uma degradação horrível. Sentia-se infeliz. Infeliz? Nunca fora tão feliz em toda sua vida. Chafurdava com delícia naquela lama. Em comparação com a vida que levara até então, esta parecia-lhe admirável e romântica. Isso, sim, era viver. E junto dessa mulher de voz roufenha, torpe, de transbordante vitalidade, ele sentia mais o gozo de viver. Dispunha apenas de três meses. Parecia-lhe tão pouco e as semanas voavam. As vezes vinham-lhe desejos furiosos de mandar tudo ao diabo e ir viver com os acrobatas. Tinha-lhe

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tomado afeição e asseguravam que com um pouco de exercício ele logo estaria em condições de exibir-se com eles. Era, sem dúvida, uma lisonja; Brown, porém, nem por isso se sentia menos envaidecido. Mas nenhum desses sonhos devia realizar-se. De fato, nunca encarara com seriedade a possibilidade de não voltar para a rotina da vida normal, ao cabo de três meses. Seu cérebro frio e metódico mostravalhe o absurdo do sacrifício de todas as suas aspirações por uma mulher como Alix. Além de que, ambicioso como era, desejava galgar posições e, sobretudo, de modo algum podia despedaçar o coração da pobre moça que o amava confiadamente. Ela escrevia-lhe uma vez por semana. Não pensava senão na volta; os dias pareciam-lhe intermináveis, e ele desejava, bem no fundo de sua alma, que alguma coisa retardasse aquela volta. Se ao menos dispusesse de mais tempo! Talvez com seis meses se fartasse de Alix. Havia momentos em que sentia que a detestava. Chegou o último dia. Não sabiam o que dizer um ao outro. Ambos estavam tristes, mas Alix lamentava apenas o fim de um hábito agradável. Vinte e quatro horas mais tarde ela estaria rindo alegremente com seus companheiros, como se ele jamais tivesse cruzado seu caminho. Quanto a ele, estava aterrado com a idéia de ir no dia seguinte encontrar-se em Paris com a noiva e seus pais. Passou a última noite nos braços de Alix, chorando. Se ela lhe tivesse pedido que não fosse, talvez ele tivesse ficado, mas foi coisa que não lhe passou pela cabeça; aceitava aquela partida como uma coisa inevitável, e se também choramingava nos braços de Brown era porque o via infeliz. Pela manhã ela dormia tão tranqüilamente que ele não teve coragem de despertá-la. Saiu sem fazer ruído com a maleta na mão e tomou o trem para Paris.

Ashenden virou o rosto porque acabara de ver duas lágrimas luzirem nos olhos de Witherspoon e escorrerem-lhe pelas faces. Não procurou escondê-las. Ashenden acendeu um charuto.

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- Em Paris gritaram de espanto quando o viram. Brown não era mais do que a sombra de si mesmo. Alegou uma moléstia qualquer sobre a qual não falara nas cartas para não inquietar a noiva. Cercaram-no de mil cuidados. Ao cabo de um mês, casaram-se. Desde então o sucesso acompanhou-o. As oportunidades de se distinguir multiplicaram-se para ele, e soube aproveitá-las. Sua ascensão foi espetacular. Sua esposa trouxe-lhe a situação social sonhada, trampolim de onde saltou para o poder e as honras que tanto ambicionava. Foi o triunfo em toda a linha, e centenas de homens o invejaram. Mas, por trás dessa fachada brilhante, nada mais havia do que um pobre homem a quem o tédio esmagava ao lado da grande dama que o acompanhava e dos personagens solenes que o cercavam. A ela tudo devia, e era forçoso resignar-se a mover-se para todo o sempre naquele meio. Às vezes parecia intolerável trazer sempre afivelada aquela máscara. Ah! Poder arrancá-la, pisoteá-la! A lembrança de Alix obcecava-o por vezes a ponto de enlouquecê-lo, e pensava então que talvez fosse melhor matar-se do que sofrer tais angústias. Nunca mais a viu. Por intermédio de O'Malley soube que se casou e deixara a companhia. Agora é, sem dúvida, uma gorda matrona. Mas isso não vem ao caso. Entretanto, mesmo à custa de sua vida despedaçada, Brown não pôde tornár feliz a pobre criatura que nele confiara. Como esconder-lhe sempre que não sentia por ela senão piedade? Um dia, em sua angústia, falou-lhe de Alix. Desde então ela o martirizou com seu ciúme. Não devia ter-se casado. Em seis meses ela se teria consolado e um outro lhe teria dado a felicidade. Seu sacrifício fora vão. Veio-lhe a consciência terrível de que temos somente uma vida a viver e não podemos voltar ao passado. Brown nunca pôde vencer sua indizível saudade. Que ironia para ele, tão miseravelmente fraco, ouvir tantas vezes entoarem louvores à força de seu caráter! E é por isso que eu lhe digo que Byring tem razão. Embora aquilo não dure cinco anos, ainda que ele

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arruine sua carreira e seu casamento termine num desastre, terá valido a pena. Terá satisfeito seu desejo. Terá obedecido a seu instinto.

Naquele momento a porta abriu-se e uma mulher entrou. O embaixador olhou-a, e uma expressão de ódio frio passoulhe pela fisionomia, mas teve a duração de um relâmpago. Ergueu-se e seu rosto desfigurado exprimiu novamente a mais suave cortesia. Pôde mesmo esboçar um sorriso.

- Apresento-lhe minha esposa, Mr. Ashenden. - Não podia atinar onde estavam. Por que não foram para o seu gabinete? Mr. Ashenden deve ter passado uma noite bastante desagradável.

Lady Witherspoon era uma senhora alta, esbelta, de cinqüenta anos, antes gorda do que magra, mas deixando ver ainda que fora uma linda mulher. Dava a impressão de uma flor de estufa que tivesse perdido o brilho. Vestia de preto e era de uma rara distinção.

- Gostou do concerto? - perguntou-se Sir Herbert. - Não estava de todo mau. Deram-nos um concerto de Brahms, a "Música do fogo" da Walkiria e Danças húngaras de Dvorak. Mas a interpretação deixava muito a desejar. - E, dirigindo-se a Ashenden: - Espero que não se tenha aborrecido, só, com meu marido. De que falaram? De arte, de romances?

- Não, minha senhora, apenas de material para isso. E com essas palavras despediu-se.

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CARA OU COROA


Já era tarde. Pela manhã caíra neve, mas agora estava claro e Ashenden, lançando um olhar para as estrelas geladas, apressou o passo. Temia que Herbartus, cansado de esperá-lo, tivesse voltado para casa. Da entrevista com ele deveria resultar uma determinada decisão e esta idéia preocupara-o toda a noite, semelhante a um mal-estar quase doloroso. Audaz e infatigável, Herbartus estava preparando um atentado contra uma fábrica de munições austríaca. É desnecessário dar aqui os detalhes do plano, que, uma vez bem-arquitetado, havia de produzir resultados completos. Infelizmente um grande número de poloneses da Galicia, seus compatriotas e empregados nessa usina seriam mortos ou ficariam mutilados. Avisara Ashenden durante o dia de que tudo estava pronto e que se esperavam apenas as suas ordens.

- Mas peço-lhe que somente as dê no caso de ser indispensável - disse ele, no seu inglês correto e gutural. - Nesse caso, naturalmente, não hesitaremos, mas não queremos sacrificar inutilmente nossos patrícios.

- Quando quer a resposta? - Hoje à noite. Temos alguém que vai partir para Praga amanhã de manhã.

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Daí o encontro marcado para o qual tão rapidamente se dirigia Ashenden.

- Não chegue atrasado, sim? - recomendou Herbartus. - Depois da meia-noite não poderei achar um mensageiro.

Ashenden tinha escrúpulos, e, se não encontrasse Herbartus no hotel, isso lhe seria um alívio, porque teria mais tempo para refletir. Os alemães haviam explodido algumas usinas de munições nos países aliados e não havia motivos para não tratá-los da mesma maneira. Era um revide legítimo. A fabricação ficaria retardada e o moral da população abalado. Naturalmente as altas personagens não queriam ver-se envolvidas em empresas desse gênero. Embora aproveitando-se das atividades de agentes obscuros que não conheciam, fechavam os olhos quanto a esses trabalhos vis, para que suas mãos permanecessem puras e pudessem vangloriar-se de jamais terem atentado contra a honra. Até agora ria-se Ashenden ao lembrar um incidente que tivera durante seus contatos com R. Fizeram-lhe uma proposta que ele achou dever transmitir ao chefe.

- A propósito - disse ele do modo mais desprendido que pôde -, conheçd um sportman que está pronto a assassinar o rei B., por cinco mil libras.

O rei B., chefe de um Estado balcânico, empenhava-se em fazer com que seu país declarasse guerra aos aliados, e seu desaparecimento seria muito oportuno. As simpatias de seu sucessor eram indecisas. Poder-se-ia talvez convencê-lo a manter a neutralidade. Pelo olhar de R. Ashenden compreendeu que ele estava perfeitamente a par da situação, mas apenas franziu a testa.

- Bem, e então? - Eu lhe disse que lhe falaria. Julgo-o perfeitamente seguro. É um amigo dos aliados e está convencido de que seu país se encaminhará fatalmente para a ruína se se colocar ao lado da Alemanha.

- Mas, então, por que nos pede cinco mil libras?

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- É que ele arrisca a pele e acha que, se prestar tal serviço aos aliados, é muito justo que lucre alguma coisa.

R. sacudia energicamente a cabeça. - Não é coisa que façamos. Não é desse jeito que fazemos a guerra. Isso é bom para os alemães. Com mil demônios! Nós somos gentlemen!

Ashenden nada disse, mas observou R. com atenção. Nos olhos do coronel passou o clarão estranho que lhe dava por vezes uma expressão tão inquietadora. Sua tendência natural para o estrabismo acentuou-se.

- Como ousa fazer-me esta proposta? Um murro em plena cara era a resposta que merecia aquele patife.

- Não me teria sido possível tal coisa. Ele é muito mais alto do que eu e, além disso, não me passou pela cabeça. 1? Um tipo cortês e muito amável.

- Não resta dúvida de que seria um ótimo negócio para os aliados se o rei B. fosse afastado do caminho. Admito. Mas, daí a encorajar seu assassínio, vai muito. Se fosse realmente o amor da pátria que inspirasse seu homem, ele já teria dado o golpe sem se preocupar com o resto.

- Talvez ele pense em sua viúva - observou Ashenden. - De qualquer modo é um assunto que não discuto. Cada um tem seu modo de ver as coisas, e se alguém acha conveniente auxiliar os aliados, assumindo uma tal responsabilidade, que o faça por sua conta.

Ashenden pensou um segundo e encarou o chefe. Depois, sorriu levemente.

- Se conta comigo para que eu dê, do meu bolso, cinco mil libras ao rapaz, está enganado.

- Eu não conto com coisa alguma e o senhor sabe disso perfeitamente. E peço-lhe, sobretudo, o obséquio de não gastar comigo suas graças desengraçadas.

Ashenden esteve por encolher os ombros, e agora, ao lembrar o incidente, ele os encolhia sem restrições. Eram todos iguais. Todos desejavam os fins, mas hesitavam ante

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os meios; hábeis em jogar os riscos a correr sobre os subalternos, mas sempre prontos a aproveitarem-se do fato consumado.

Ashenden entrou no café do hotel de Paris e, ao ver Herbartus sentado a uma mesa em frente à porta, sentiu o arrepio do nadador surpreendido pela frialdade inesperada da água. Impossível fugir. Era preciso decidir-se. Herbartus estava tomando uma xícara de chá. A vista de Ashenden seu grosseiro rosto glabro iluminou-se, e estendeu-lhe uma forte e peluda mão. Era um colosso de tez azeitonada. Seus olhos brilhavam com um fulgor cruel. Tudo nele respirava força bruta. Nenhum escrúpulo o retinha e seu desinteresse permitia-lhe ser implacável.

- Então? Como foi de jantar? - perguntou quando Ashenden se sentou. - Falou de nosso projeto ao embaixador?

- Não. - Fez bem. É melhor não imiscuir essa gente nos negócios sérios.

Pensativo, Ashenden examinava Herbartus. Uma expressão singular crispava o rosto do polonês. Dir-se-ia um tigre prestes a saltar.

- Já leu o Père Goriot? - perguntou Ashenden, de repente.

- Sim. Há vinte anos, quando era estudante. - Lembra-se da discussão entre Rastignac e Vautrin, a propósito da questão famosa se um sinal de cabeça bastasse para causar a morte de um mandarim na China, dando-lhe com isso a posse de uma fortuna colossal, faria esse sinal? A idéia vem de Rousseau.

Um lento sorriso distendeu o vasto rosto de Herbartus. - Não percebo a relação do caso. Repugna-lhe dar uma ordem cuja execução vai causar um grande número de vítimas? No entanto, seu interesse pessoal não entra em

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jogo. Quando um general dá ordem de atacar, ele sabe que uns quantos homens vão morrer. É a guerra.

- Que guerra estúpida! - Ela libertará minha pátria. - E que fará sua pátria de sua liberdade, quando a tiver?

Herbartus nada respondeu. Fez um gesto vago. - Devo preveni-lo de que se perder esta oportunidade não se apresentará outra tão cedo. Nem todos os dias temos alguém que cruze a fronteira.

- Mas lembre-se de todos aqueles infelizes que serão despedaçados pela explosão. E não são somente os mortos; há também os mutilados.

- É certo que isso não me agrada. Já lhe disse que, devido a meus patrícios que serão sacrificados, nós só agiremos se os resultados valerem a pena. Eu não desejo, é claro, a morte deles, mas, se ela tiver que se dar, não perderei a sede nem deixarei de comer com o mesmo apetite. E o senhor?

- Também creio que não. - E então? Ashenden teve a visão repentina das estrelas de contornos precisos que ele contemplara durante sua caminhada na noite gelada. Como lhe pareciam longínquos o jantar no vasto salão da embaixada e a narração da vida triunfal e malograda de Sir Herbert Witherspoon! A suscetibilidade de Mr. Schafer e suas pequenas intrigas, os amores de Byring e de Rosa Auburn; que ninharias! O homem, cujo berço e túmulo estão separados por tão pequeno espaço de tempo, gastando-o em futilidades!

As estrelas insensíveis tremeluziam sempre no céu sem nuvens.

- Estou cansado. Sinto a cabeça oca. - Tenho que deixá-lo daqui a um minuto. - Tiremos a sorte, quer?

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- Tirar a sorte? - Sim - disse Ashenden, e puxou uma moeda do bolso. - Se for cara, diga a seu homem que marche para a frente; se for coroa, diga-lhe para não fazer nada.

- Está certo. Ashenden equilibrou a moeda no polegar e atirou-a para cima. Eles a olharam subir, e quando caiu na mesa Ashenden tapou-a com a mão. Os dois curvaram-se enquanto ele lentamente a retirava. Herbartus suspirou fundamente.

- A sorte está lançada - disse Ashenden.


UM CONHECIMENTO CASUAL


Quando Ashenden subiu ao tombadilho e viu diante de si uma costa baixa e uma cidade branca teve um agradável frêmito de excitação. Era muito cedo e o sol não despontara ainda, mas sobre o mar espelhante refletia-se o pálido azul do céu. Fazia calor e o dia anunciava-se abrasador. Vladivostok. Tinha-se realmente a sensação de estar no fim do mundo. Fora uma viagem longa a que fizera Ashenden, de Nova York a San Francisco, depois a travessia do Pacífico, num navio japonês até Yokohama e finalmente nesse pequeno navio russo. Desde Tsuruki nenhum outro passageiro inglês para atravessar o mar do Japão. De Vladivostok, a Transiberiana o levaria até Petrogrado. Era essa a mais importante missão de que havia sido incumbido até então, e sentia-se feliz pela responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Não tinha ordens a receber de ninguém, dispunha de somas inesgotáveis (carregava num cinto junto à pele ordens bancárias de quantias tão elevadas que se sentia tonto ao pensar no emprego que lhes daria) e carta branca em toda a linha. O que esperavam dele ultrapassava as possibilidades humanas, mas, como ele ainda ignorava isso, era com a máxima confiança que se ia entregar ao trabalho. Embora tivesse estima e admiração pela sensibilidade da

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raça humana, cultivava pouco respeito pela inteligência dela; há pessoas que consentiriam mais facilmente em sacrificar a vida do que meterem na cabeça as tabuadas. Ashenden não se sentia muito encantado com a perspectiva que tinha diante de si, de dez dias de estrada de ferro russa, tanto mais que em Yokohama ouvira murmúrios a respeito de uma ou duas pontes destruídas. O comboio corria o risco de ser saqueado pela soldadesca revoltada e os viajantes de serem abandonados em plena estepe. Isso não era muito animador. No entanto, os trens continuavam ainda a circular e, sempre otimista, Ashenden não hesitaria em partir. Logo que chegasse iria ao consulado britânico para saber se lhe haviam reservado passagem. Ao aproximar-se, porém, da praia, a cidade pareceu-lhe tão arruinada e tão sórdida que sentiu vacilar a fé em sua estrela. Sabia, quando muito, duas palavras de russo. A bordo somente o comissário falava inglês e, não obstante seus oferecimentos, Ashenden pouco contava com ele. Ao desembarcar, um rapaz magro e de cabelos sujos e desgrenhados, evidentemente judeu, aproximou-se dele e perguntou-lhe se se chamava Ashenden.

- Meu nome é Benedict e sou intérprete do consulado britânico. Tenho ordens para colocar-me a sua disposição. Reservei um lugar para o senhor no trem desta noite.

Tanto bastou para que Ashenden recuperasse o bom humor. O pequeno judeu encarregou-se da bagagem e do passaporte; depois, levou-o de carro ao consulado.

- Recebi ordens de proporcionar-lhe todas as facilidades - disse o cônsul. - Pode pedir o que quiser. Mandei reservar um bom lugar na Transiberiana, mas só Deus sabe se o senhor jamais chegará a Petrogrado. Ah! A propósito, tenho um companheiro de viagem para o senhor. Chama-se Harrington, é americano e viaja por conta de uma firma da Filadélfia. Segue para Petrogrado para ver se fecha um negócio com o governo provisório.

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- Que espécie de homem é? - perguntou Ashenden.

- Oh! É um bom sujeito. Pretendia convidá-los para almoçar, ele e o cônsul americano, mas os dois estão passeando pelas redondezas. O senhor deve chegar à estação com duas horas de antecedência. Há uma fila enorme para pegar lugar.

O trem saía à meia-noite. Ashenden jantou com Benedict no restaurante da estação, único lugar nessa cidade ordinária em que se podia comer razoavelmente. A sala de jantar estava cheia; o serviço era de uma lentidão exasperadora. Foram, afinal, para a plataforma, que já estava invadida pela multidão; e lá se viram metidos no meio de um rebuliço atordoador. Havia famílias inteiras esperando sentadas nos montes de bagagens; alguns viajantes gesticulavam animadamente; mulheres choravam em silêncio, outras gritavam com desespero; dois homens empenhavam-se numa disputa feroz. Sob a luz fria da estação aquelas faces cadavéricas lembravam defuntos que estivessem aguardando, esperançados uns, aterrorizados outros, o juízo final. A maioria dos vagões estava já atopetada. Quando finalmente Benedict achou o carro de Ashenden, apareceu um homem muito excitado.

- Venha depressa e sente-se - disse ele. - Tive um trabalho infernal para defender seu lugar de um homem que queria a todo custo tomar conta dele, com a mulher e os dois filhos. Meu cônsul foi justamente levá-lo ao chefe da estação.

- Mr. Harrington - apresentou Benedict. Ashenden subiu e apertou a mão do companheiro de viagem. Havia dois lugares desocupados. O carregador arrumou a bagagem.

Mr. John Quincy Harrington era uma personagem delgada, de estatura abaixo da média. Grandes olhos de cor azul-pálido iluminavam-lhe a face enrugada e angulosa, e ao tirar o chapéu duro para enxugar o rosto suado por tantas emoções descobriu a abóbada de um crânio calvo e sulcado

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de raias. Vestia um casaco e colete pretos com uma calça listrada, um colarinho branco muito alto e uma gravata de cores discretas. Ashenden não sabia precisamente que traje se devia envergar para a travessia de dez dias na Sibéria, mas o vestuário de Mr. Harrington não deixou de se lhe afigurar um tanto excêntrico. O americano falava corretamente, com uma voz de falsete e a clássica pronúncia ianque

O chefe da estação, acompanhado de um russo barbudo e de uma mulher que puxava duas crianças pela mão, não tardou muito a chegar. Com o rosto regado de lágrimas e os lábios trêmulos, o russo suplicava ao chefe da estação, e a mulher, através de seus soluços, parecia estar narrando a história de sua vida. Quando eles se aproximaram do compartimento, o tom da discussão elevou-se, e Benedict interveio nela em russo. Mr. Harrington não compreendia uma palavra do que estavam dizendo, mas, muito excitado, quis por sua vez intervir na contenda, o que fez num inglês fluente: que aqueles lugares haviam sido reservados pelos consulados da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos e que, se bem não soubesse o que faria o rei da Inglaterra, sabia, entretanto, perfeitamente, que as autoridades da Rússia não tolerariam que um cidadão americano fosse lesado num lugar no trem, que tinha pago. Queria prevenir ao senhor chefe da estação que só cederia à força e que, se lhe tocassem num cabelo que fosse, deporia uma queixa nas mãos de seu cônsul. O chefe da estação não entendia inglês, mas sua resposta acompanhada de muitos gestos, foi veemente. Diante disso, Mr. Harrington, no auge da indignação, pôs-lhe o punho cerrado junto ao nariz e vociferou pálido de raiva:

- Não entendo uma palavra de toda essa lengalenga e diga a seu russo que não faço questão de entender. Se os russos querem ser tratados como povo civilizado, por que não falam uma língua civilizada? Sou Mr. John Quincy Harrington e viajo a serviço de Misters Crew and Adams, da Filadélfia, com uma carta particular de apresentação para

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Mr. Kerenski, e, se não me deixam em paz no meu lugar, Mr. Crew agirá oficialmente em Washington.

Sua atitude era tão resoluta, sua expressão tão ameaçadora, que, desanimado, o chefe da estação abandonou a luta e retirou-se abatido, acompanhado pelo russo desgrenhado, pela mulher e pelas crianças apatetadas. Mr. Harrington voltou para seu lugar.

- Estou desolado por ter de negar o lugar a essa senhora e seus dois filhos - disse ele. - Ninguém sabe melhor do que eu o respeito que devemos tributar a uma mulher e a uma mãe, mas, se eu não seguir neste trem, perco um negócio importante, e não estou disposto a ficar dez dias de pé neste corredor nem por todas as mães da Rússia.

- Não serei eu quem o censure por isso - disse Ashenden.

- Sou casado e tenho dois filhos. Sei que viajar com a família é um assunto sério, mas por que então não ficam em casa?

Depois de dez dias de convívio permanente num vagão de estrada de ferro com um homem, conhece-se bem o companheiro de viagem. Ashenden passava as 24 horas do dia com Harrington. Havia, é verdade, a diversão do restaurante, mas eles faziam as refeições juntos; o trem parava uma hora pela manhã e uma pela tarde, o que permitia que se desentorpecesse as pernas na plataforma, mas mesmo nessas ocasiões não se separavam. Ashenden travou relações com vários passageiros. As vezes, um deles vinha sentar-se em seu compartimento, mas, se ele não falava senão o francês ou o alemão, Mr. Harrington media-o com desprezo de alto a baixo, e se o intruso falava o inglês, então não o deixava proferir uma palavra. Porque Mr. Harrington era um conversador inveterado. Falava automaticamente como se respira ou se digere, não porque tivesse alguma coisa a

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dizer, mas por incapacidade de calar. Tinha um vocabulário rico e alongava os períodos. Nunca empregava uma palavra curta de preferência a uma comprida. O fluxo de sua verborragia dava a idéia de uma torrente de lava, de curso regular, que tudo submergia a sua passagem. "Nunca", pensava Ashenden, "aprendi tanto a respeito de alguém."

E não só sobre Mr. Harrington, suas opiniões, hábitos, aventuras, mas também sobre sua mulher e os pais dela, seus filhos, os camaradas de seus filhos, seus patrões e o parentesco que através de três ou quatro gerações o ligava às melhores famílias da Filadélfia. Seus antepassados vieram do Devonshire, no começo do século XVIII. Via-se-lhes ainda o nome no cemitério de uma certa aldeia. Mr. Harrington lá estivera. Orgulhoso desuas origens inglesas e não menos de sua nacionalidade americana, ele não considerava como América verdadeira senão uma estreita faixa de terra à beira do Atlântico, e como americanos verdadeiros senão um pequeno número de privilegiados de origem inglesa ou holandesa, cujo sangue conservara-se puro de mescla estrangeira.

Um dia em que Ashenden lhe falara de um arquimilionário cuja galeria de quadros era célebre:

- Nunca o vi - declarou Mr. Harrington -, mas minha tia, Maria Penn, teve a avó dele como cozinheira. Era única para fazer panquecas.

Mrs. Harrington, esposa e mãe modelo, tinha sofrido inúmeras intervenções cirúrgicas, que ele referia prazerosamente com todos os detalhes. Ele mesmo já tinha sido submetido a duas operações, uma para extirpar as amígdalas e outra por uma apendicite. Todos os seus amigos tinham sofrido operações e seus conhecimentos de cirurgia eram enciclopédicos. Tinha dois filhos, freqüentando ambos o colégio, e ele estava seriamente pensando na conveniência de fazê-los operar. Era uma coisa curiosa, um tinha as amígdalas hiperatrofiadas,

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e quanto ao outro não estava de todo tranqüilo a respeito de seu apêndice. Eram tão unidos, como jamais vira coisa igual entre irmãos, tanto assim que um seu amigo, o melhor cirurgião da Filadélfia, propusera-lhe operar os dois ao mesmo tempo para não separá-los. Mostrou a Ashenden fotografias dos dois rebentos e da mãe deles. Aquela viagem à Rússia era a primeira separação que tivera dos seus, e todas as manhãs escrevia uma longa carta à esposa, contando-lhe tudo o que acontecia e uma boa parte do que dizia durante o dia. Ashenden via-o encher folhas e mais folhas de papel, com sua letra firme, legível e banal.

Mr. Harrington já lera todos os romances em voga, e conhecia-lhes a técnica em todos os detalhes. Tinha anotadas num caderno as anedotas que ouvia e quando devia ir a um jantar relia sempre uma meia dúzia delas, antes de ir para a mesa. Marcava com um 'C, à margem, as que julgava conveniente para serem referidas em sociedade e com urn H as que só podiam ser contadas entre homens. Não perdoava nenhuma minúcia, e Ashenden, que logo às primeiras palavras percebia o fim da história, cerrava os punhos e franzia a testa até o momento de caretear um sorriso forçado, por polidez. Se alguém entrava no compartimento em meio de suas narrativas, Mr. Harrington recebia-o alegremente.

- Venha, sente-se; eu estava justamente contando uma boa história ao meu amigo. Chega bem a propósito. É uma das coisas mais engraçadas que já ouviu.

E repetia o mesmo conto, com as mesmas palavras e as mesmas entonações, massacrando outra vez os ouvidos de Ashenden. Este teria preferido um bridge, mas Mr. Harrington não tocava uma carta, e quando, à falta de outra coisa, Ashenden se propunha fazer um jogo de paciência, ele torcia o nariz.

- Eu gostaria de saber como é que um homem inteligente e são de espírito pode perder seu tempo com cartas

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e sobretudo com essas paciências. Elas matam a conversação. O homem é um animal sociável e é palestrando que desenvolve suas mais elevadas faculdades.

- Há uma certa elegância em saber perder o tempo - replicou Ashenden. - Qualquer imbecil pode perder seu dinheiro, mas perder o tempo é perder uma coisa que não tem preço. Ademais - disse com amargura -, eu não o impeço de falar.

- Como quer que eu fale se toda sua atenção está empregada em pôr um sete de paus sobre oito de ouros? A conversação movimenta as mais altas faculdades da inteligência; se o senhor tivesse estudado o assunto, exigiria que a pessoa com quem estivesse falando lhe desse a mais completa atenção que lhe fosse possível.

Não disse isso com acrimônia, mas sim com a paciência bem-humorada de um homem que tem grande experiência. Era como se expusesse uma situação, tocando a Ashenden aceitá-la ou recusá-la. Era o desejo do artista de que suas palavras fossem levadas a sério.

Mr. Harrington era um grande ledor. Lia de lápis em punho, sublinhando certos trechos e pondo notas à margem. Isso constituía elementos para suas discussões. Quando Ashenden, por sua vez, punha-se a ler, sentia de repente os olhos de porcelana de Mr. Harrington pousarem-se nele e não ousava mais erguer a cabeça, nem mesmo virar a página, na certeza de que seu companheiro, armado de livro e lápis, buscava um pretexto para comunicar-lhe suas reflexões. Permanecia então com o olhar fixado numa palavra, como uma galinha fica hipnotizada com o bico preso numa linha riscada com carvão, e somente respirava no momento em que, desenganado, seu algoz retomava sua leitura. Harrington estava estudando uma história da Constituição americana, em dois volumes, e para descansar saboreava uma antologia de oradores ilustres. Porque Mr. Harrington era um orador

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de sobremesa e tinha lido as melhores coletâneas de discursos. Sabia dizer a seus ouvintes as palavras comoventes que enternecem o coração, bem como reacender o interesse pela inclusão de anedotas e, enfim, impor sua peroração. Gostava de ler em voz alta. Ashenden tivera várias oportunidades de observar a aflitiva propensão dos americanos para esse passatempo. No salão do hotel ele vira muitas vezes, depois do jantar, um pai de família retirar-se para um canto com a mulher, os dois filhos e a filha, para ler - eles algumas páginas. A bordo, na travessia do Atlântico, observara um magro gentleman, de aspecto autoritário, no meio de quinze ladies de idade madura, lendo em voz alta, para elas, a história da arte. Em seus passeios pelos tombadilhos notara por vezes, em c'sais r'cents, a jovem desposada ler para o jovem marido um romance da moda. Pensou consigo mesmo ser aquele um modo estranho de manifestar a ternura. Parecia-lhe que aquela mania era a única fraqueza do caráter americano. E eis que os deuses, sempre dispostos a se divertirem à custa dos pobres mortais, o entregavam de mãos e pés atados ao cutelo do grande executor. Harrington gabava-se de ser um ótimo leitor. E expôs a Ashenden a teoria e a prática da arte.

- Há duas escolas - disse ele -, a dramática e a natural. Os adeptos da primeira imitam as vozes daqueles que falam (se o senhor estiver lendo uma novela) : choram com a heroína e balbuciam se a emoção a sufoca. Na outra porém, lê-se com voz impassível, como se se estivesse lendo a lista de preços de uma casa de negócios de Chicago.

Mr. Harrington pertencia à segunda escola. Durante os dezessete anos de seu matrimônio, ele assim lera à esposa e aos filhos, logo que chegaram à idade de apreciá-las, as obras completas de Walter Scott, Jane Austen, Dickens, as irmãs Brontë, Thackeray, George Eliot, Nathaniel Hawthorne e W. D. Howells. Ashenden concluiu que ler em voz alta

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tornava-se para Harrington uma necessidade vital e que privá-lo daquela mania era impor-lhe um sacrifício tão penoso como o da privação do fumo para o fumante.

- Ouça isto, mas ouça com atenção - exclamava ele subitamente empolgado pela excelência de uma máxima ou pela elegância de uma frase. - Diga-me se não acha isso admirável. São apenas três linhas.

Mas, depois de ter lido o trecho, Mr. Harrington, sem mesmo retomar fôlego, enfiava páginas e mais páginas com sua voz aguda e sem inflexões. E continuava; e não parava; e lia mais. Ashenden remexia-se, cruzava e descruzava as pernas, fazia um cigarro, fumava, tomava uma posição, e depois outra. Mr. Harrington continuava lendo. O trem deslizava através das estepes intermináveis da Sibéria, atravessava aldeias e rios, e Mr. Harrington continuava lendo! Ao chegar ao fim de um grande discurso de Edmund Burke, descansou o livro com ar triunfante.

- Sem sombra de dúvida, para mim, é um dos mais finos oradores da língua inglesa. É indiscutivelmente uma das glórias do nosso comum patrimônio, de que nos podemos orgulhar.

- E não lhe parece um tanto ominoso que todos aqueles que ouviram Edmund Burke fazer esse discurso estejam mortos? - perguntou Ashenden, tristemente.

Mr. Harrington ia responder que aquilo nada tinha de extraordinário, uma vez que o discurso fora proferido no século XVIII, quando lhe veio ao espírito a idéia de que talvez Ashenden (que suportara maravilhosamente aquele estado de aflição como qualquer pessoa sem preconceitos não podia deixar de suportar) estivesse gracejando. Deu-lhe uma palmada no joelho e soltou uma gargalhada.

- Ah! Esta é boa. Vou anotá-la no meu caderno. Já estou imaginando como poderei aproveitá-la na primeira vez que falar no almoço de nosso clube.

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Mr. Harrington era um intelectual; mas essa denominação criada pelo vulgo como um termo depreciativo, ele a aceitava como os santos aceitaram o instrumento do martírio, a grelha de São Lourenço por exemplo, ou a roda de Santa Catarina. Vangloriava-se dele.

- Emerson era um intelectual - dizia. - Longfellow era um intelectual. Oliver Wendell Holmes era um intelectual. James Russell Lowell era um intelectual. Os estudos de Mr. Harrington da literatura americana não iam além do período em que floresceram aqueles eminentes, mas não precisamente empolgantes autores.

Que cansativo este Mr. Harrington! Ashenden já não podia mais, mas o americano punha tanta ingenuidade na sua insistência que era impossível querer-lhe mal. Apesar de tudo, Ashenden sentia-se atraído por aquele companheiro de gênio sempre amável, tão atento e cortês. Suas maneiras perfeitas, embora um pouco antiquadas (as boas maneiras recendem ainda às perucas empoadas e aos punhos de renda) , vinham do coração tanto quando da educação. Tudo o que ele queria era prestar serviços. Durante dois dias Ashenden sentiu-se indisposto e teve de ficar na cama. Mr. Harrington cuidou dele com um desvelo enternecedor. Ashenden chegou a ficar confuso e não podia deixar de rir ao ver Mr. Harrington tomar metodicamente sua temperatura e extrair do fundo de sua mala uma farmácia completa de comprimidos e de frascos. Encomendava no carro-restaurante refeições apropriadas para o doente. Não havia coisa que não fizesse por ele, exceto calar-se.

Era somente quando se despia que Mr. Harrington se calava, porque, então, em seu espírito pudico surgia um problema, qual fosse o de tirar a roupa diante de Ashenden, sem ferir a decência. Era muito asseado. Mudava de roupa todas as manhãs e fazia prodígios para não desnudar um centímetro de pele. Depois de um dia ou dois, Ashenden desistiu de lutar pelo asseio, naquele trem primitivo, onde

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não havia mais do que um lavatório para cada carro, e resolvera competir em sujeira com o resto dos passageiros; mas Mr. Harrington não cedeu àquelas dificuldades. Era em vão que os impacientes torciam a maçaneta da porta; ele fazia uma toalete meticulosa e não saía senão bem-lavado, barbeado, perfumado, tão correto em seu casaco negro, suas calças listradas e suas botinas de verniz, como se estivesse na Filadélfia, saindo de sua casa de ladrilhos vermelhos para tomar o carro que o levaria ao escritório. Um dia noticiou-se que se verificara uma tentativa de explodir uma ponte e que havia distúrbios na próxima estação sobre o rio, o que significava que os passageiros ficariam desamparados ou seriam aprisionados. No temor de ver-se privado de sua bagagem e de ter de passar um inverno na Sibéria, Ashenden achou conveniente vestir sua roupa mais quente, mas Mr. Harrington não se curvou àquelas razões e recusou tomar providências. Ashenden estava certo de que, depois de uma estada de três meses na mais suja das prisões russas, o diabo do homenzinho ainda acharia um meio de sair de lá corretamente vestido e limpo. Um destacamento de cossacos subiu no trem e, de pé nas plataformas dos vagões e de fuzil na mão, atravessou a ponte cautelosamente. Ao se aproximar da estação suspeita o maquinista forçou a marcha e passou como um relâmpago. Mr. Harrington contemplava ironicamente Ashenden, enquanto este vestia as roupas de verão.

Mr. Harrington era um homem de negócios, de primeira ordem. A casa para a qual trabalhava tinha boas razões para confiar-lhe a presente missão. Se se realizasse o negócio, seria à custa dos russos. Falava de seus patrões com dedicação respeitosa. Muito ufano deles, não tinha inveja de suas fortunas colossais. Achava seu ordenado satisfatório. Sua ambição limitava-se em assegurar a educação dos filhos e o futuro da mulher. Para que mais quereria dinheiro? Para ele a cultura intelectual tinha mais valor do que a fortuna.

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Era muito cuidadoso e não esbanjava o que possuía. Depois de cada refeição, anotava exatamente o que acabava de gastar. Entretanto, tendo descoberto que aquela pobre gente vinha à estação nos pontos de parada do trem para pedir esmola e vendo que a guerra lhes tinha realmente trazido privações, tomou o cuidado de munir-se de bastante troco miúdo antes de cada parada e, envergonhado e fazendo troça de si mesmo por poder vir a ser logrado por algum impostor, distribuía tudo que tinha no bolso.

- Eu sei que eles não merecem isso - dizia ele -, e não o faço por eles. Faço-o unicamente para descanso de minha consciência. Ficaria terrivelmente aborrecido se soubesse que um homem estava realmente com fome e eu lhe recusara o necessário para uma refeição.

Mr. Harrington era absurdo, mas louvável. Era inconcebível que alguém pudesse ser grosseiro com ele; seria o mesmo que ser violento com uma criança; e Ashenden, irritado interiormente, mas desejando ser amável, sofria brandamente e com verdadeiro espírito cristão a aflição das nobres e cruéis pessoas da sociedade.

Nessa época precisava-se de onze dias para ir-se de Vladivostock a Petrogrado. Ashenden não teria agüentado nem mais um dia. No décimo-segundo teria estrangulado Mr. Harrington.

Quando, por fim (Ashenden sujo e cansado, Mr. Harrington pimpão e disposto) , alcançaram os quarteirões superpovoados de Petrogrado, Mr. Harrington virou-se para Ashenden:

- Que me diz! Nunca pensei que esses onze dias passassem tão depressa. Tivemos um tempo magnífico. Estou encantado com sua companhia e tenho certeza de que o senhor o está com a minha..É verdade que eu tenho a pretensão de ser um bom palestrador. E, agora que chegamos, não devemos nos separar. Precisamos nos ver o mais freqüentemente possível, enquanto eu ficar em Petrogrado.

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- É que eu vou estar muito ocupado - disse Ashenden -, terei todo o tempo tomado.

- Eu sei - respondeu Mr. Harrington, cordialmente -, eu também. Mas poderemos tomar o café da manhã juntos e à noite trocaremos nossas impressões. Seria uma tristeza se nos separássemos.

- Sim, uma tristeza - suspirou Ashenden.

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AMOR E LITERATURA RUSSA


Quando Ashenden, depois de tanto tempo, se viu pela primeira vez só em seu quarto de hotel, sentou-se e olhou ao redor. Sentiu-se sem coragem para começar suas arrumações. Quantos quartos de hotel tinha ele visto desde o começo da guerra, bons e maus, em várias cidades de vários países! Até onde alcançavam suas recordações, parecia-lhe ter sempre vivido com suas bagagens. Estava cansado. Perguntava a si mesmo como iria sair-se da missão que lhe havia sido confiada. Sentia-se perdido e só nessa imensa Rússia. Protestara quando fora escolhido, mas era uma ordem, e seus protestos foram em vão. Tinha sido designado porque o achavam o mais qualificado para aquele trabalho.

Bateram a porta e Ashenden, desejoso de empregar as poucas palavras que conhecia da língua, respondeu em russo. A porta se abriu. Ashenden pôs-se de pé.

- Entrem, entrem! - exclamou. - Que prazer em vê-los!

Entraram três homens. Ele os vira a bordo, entre San Francisco e Yokohama, mas, em obediência às instruções recebidas, eles não lhe falaram. Eram checos exilados por suas atividades revolucionárias e estabelecidos há muito na América, e vinham para ajudá-lo em sua missão e para apresentá-lo

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ao professor Z., ídolo dos checos da Rússia. O mais graduado dos três era um tal Dr. Egon Orth, homem alto e magro, de cabeça pequena e grisalha. Fora pastor numa igreja de Middle West e era doutor em Teologia, mas abandonara o serviço de Deus para trabalhar pela libertação de seu país. Ashenden tinha a impressão de ser ele inteligente e não muito exigente em assuntos de consciência. Um cura iluminado tem a vantagem, sobre o comum dos mortais, de acreditar que o Onipotente aprova todos os seus atos. O Dr. Orth tinha um alegre brilho nos olhos e era de caráter seco. Em duas entrevistas secretas que tivera com Ashenden em Yokohama, confiara-lhe que o professor Z., embora convencido de que a libertação de sua pátria só seria possível com a completa derrota das potências centrais, tinha, entretanto, escrúpulos. Não queria que se fizesse nada que ofendesse sua consciência e exigia que se fizesse somente o necessário e à clara luz do dia. Em caso de necessidade, seria preciso, portanto, agir sem seu conhecimento e, já que seu prestígio não permitia que se desatendessem seus conselhos, o verdadeiro seria não recorrer a ele.

O Dr. Orth chegara a Petrogrado uma semana antes de Ashenden e pôde assim apresentar-lhe um relatório da situação. A este pareceu-lhe ela crítica e, se alguma coisa restava a tentar, devia ser feita imediatamente. O exército mostrava-se desgostoso e pronto para a revolta, e Kerenski só conservava o poder pela falta de um adversário disposto a arrebatá-lo. A fome ameaçava o país e já se encarava a possibilidade de os alemães marcharem sobre Petrogrado. Os embaixadores da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos já estavam informados da chegada de Ashenden, mas, como sua missão devia conservar-se secreta mesmo para eles, não podia contar com seu auxílio. Combinou com o Dr. Orth para se entrevistarem com o professor Z. e pôs à disposição deste os fundos necessários para comprar os promotores da paz em separado entre a Rússia e a Alemanha, paz essa que seria um desastre

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para os aliados. Era preciso, pois, estar em contato com personalidades influentes em todos os meios. Ora, como as cartas de recomendação que Mr. Harrington trazia deviam levá-lo à presença de ministros de Estado e outros membros do governo, ele iria precisar de um intérprete. O Dr. Orth falava russo como sua própria língua, sendo, assim, maravilhosamente indicado para aquele posto. Ashenden, nesse dia, iria almoçar com Mr. Harrington. Ficou combinado que o Dr. Orth abordá-lo-ia como se não o tivesse visto ainda e pediria para ser apresentado a seu amigo. Ashenden então procuraria insinuá-lo a Mr. Harrington, mostrando-lhe que era a Providência quem lhe enviava aquele intérprete.

Havia também outra pessoa, de quem Ashenden, num dado momento, viria a precisar.

- Já ouviu falar alguma vez de Anastácia Alexandrovna Leonidov? - perguntou. - É a filha de Alexandre De- nisiev.

- Este eu o conheço perfeitamente. - Creio que ela se encontra em Petrogrado. Trate de obter seu endereço.

- Perca o cuidado. O Dr. Orth dirigiu-se em checo a um dos dois companheiros. Eram rapazes vivos, um alto e louro, o outro baixo e moreno. Mais novos do que o Dr. Orth, tratavam-no com deferência. O homem inclinou-se, ergueu-se, apertou a mão de Ashenden e saiu.

- Esta tarde o senhor terá todas as informações possíveis.

- Bem. Nada mais podemos fazer, por enquanto.

Para dizer a verdade, preciso confessar que há onze dias não tomo banho, e estou muito precisado de um.

Ashenden ainda não decidira em seu espírito se para concentrar melhor o pensamento seria preferível um compartimento num vagão de estrada de ferro ou um banho. Para escrever, suas preferências inclinavam-se para um trem

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que corresse suavemente e não muito rápido. Muitas das suas melhores idéias tivera-as atravessando as planícies da França, mas, para evocar com mais intensidade uma recordação ou organizar o arcabouço de um enredo, nada era comparável a um banho quente. Agora, enquanto se revolvia voluptuosamente na água espumosa, como um búfalo num charco, recordava o caráter grotesco e temível de suas relações com Anastácia Alexandrovna Leonidov.

Nada, no decorrer da presente narrativa, deixou até agora transparecer que Ashenden fosse acessível, em qualquer momento, à paixão que ironicamente se qualificava de terna. Segundo essas encantadoras criaturas especialistas na matéria, que se orgulham em transformar em assunto sério o que deveria permanecer uma amável fantasia, os escritores, pintores, músicos e em geral todos os artistas são amantes muito pouco recomendáveis. Muita fumaça e pouco fogo, dizem elas. Deliram, suspiram, dizem belas frases ou tomam atitudes românticas, mas, no fundo, não amam senão a sua arte ou a si próprios (o que para eles é a mesma coisa) e não oferecem ao objeto de suas emoções mais do que uma sombra, quando aquele objeto, com o bom senso próprio do sexo, esperava realidades.

Não será esta a razão do ódio feroz que, sem o confessar, tantas mulheres nutrem contra as artes? Em todo caso, nos últimos vinte anos, o coração de Ashenden seguira palpitando por uma após outra encantadora criatura. Colhera uma boa soma de gozos na vida que pagara com outros tantos sofrimentos, mas, quando sofria as torturas de um amor desprezado, tinha ânimo para dizer a si mesmo, embora de rosto torcido: "Afinal de contas, são os ossos do ofício".

Anastácia Alexandrovna Leonidov era filha de um revolucionário condenado a galés perpétuas, mas que conseguira fugir da Sibéria e se estabelecera na Inglaterra. Era um homem de valor e por sua atividade incessante conquistara uma posição de destaque na literatura inglesa. Quando

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Anastácia Alexandrovna alcançou a idade de casar, contraiu núpcias com Vladimir Semenovich Leonidov, também exilado político russo. Foi alguns anos depois de seu casamento que Ashenden a conheceu. Nessa época a Europa acabava de descobrir a Rússia. Todos liam as novelas russas; os dançarinos russos cativavam o mundo civilizado e os compositores russos faziam vibrar as fibras sensíveis das pessoas que começavam a suspirar por uma mudança das músicas de Wagner. A arte russa invadia a Europa com a virulência de uma epidemia de gripe. A moda adotava frases novas, novas combinações de cores, emoções desconhecidas, e os intelectuais confessavam-se depois de uma ligeira hesitação, membros da intelligentsia. É uma palavra difícil de escrever, mas de pronúncia fácil. Ashenden seguiu a onda e mudou as almofadas de seu fumoir, pendurou um ícone na parede, leu Tchecov e freqüentou os bailados russos.

Pelas circunstâncias em que se achava, por sua origem e sua educação, Anastácia Alexandrovna estava naturalmente destinada de há muito a se tornar um membro da intelligentsia. Morava, com seu marido, perto de Regent's Park, uma pequena casa onde a nata dos homens de letras de Londres vinha admirar, com respeitosa humildade, gigantes barbudos de faces pálidas, que se colavam às paredes como cariátides. Professavam todos o mesmo ódio pelo mesmo homem e era milagre não estarem nas minas da Sibéria. Mulheres escritoras tocavam tremulamente com os lábios num copo de vodca. Com um pouco de sorte e a proteção dos donos da casa, podia-se ter a honra de apertar a mão de Diaghilev e, vez por outra, semelhante à flor do pessegueiro levada pela brisa, a própria Pavlova adejava por ali. Nessa época, os sucessos de Ashenden não eram ainda tão numerosos para fazer sombra aos intelectuais com quem privara em sua mocidade, e, embora alguns já o olhassem de esguelha, outros (criaturas otimistas que têm fé na natureza humana) acreditavam em seu talento. Anastácia Alexandrovna proclamou-o

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membro da intelligentsia. Ashenden estava pronto a crer nisso. Aliás, achava-se numa situação em que acreditaria em tudo o que quisessem. Estava exaltado e excitado. Parecia-lhe, finalmente, que ia capturar aquele ilusório ideal romântico que durante tanto tempo perseguira. Anastácia Alexandrovna tinha lindos olhos e um belo corpo que talvez hoje parecesse demasiado robusto. Sua tez mate, as maçãs do rosto salientes, o nariz achatado, traíam sua origem tártara. Sua boca grande, ao sorrir, mostrava largos dentes quadrados. Vestia-se de modo vistoso. Em seus olhos sombrios e melancólicos Ashenden via as estepes ilimitadas da Rússia, o Cremlin com seus ruidosos sinos, as cerimônias solenes da Páscoa em Santo Isaac, as florestas de faias prateadas, a Perspectiva Nevsky. Era assombroso o que lia naqueles olhos redondos e brilhantes e levemente saltados, que lembravam os de uma filha de Pequim. Ashenden falava com ela do Alyosha, dos Irmãos Karamazov, da Natacha em Guerra e Paz, de Ana Karenina e dos Pais e Filhos. Ashenden bem depressa descobriu que o marido de sua dama era indigno dela, e percebeu também que ela pensava do mesmo modo. Vladimir Semenovich era um homem de cabeça volumosa e comprida, que parecia ter sido esticada como puxa-puxa, recoberta por uma abundante e indomável cabeleira russa. Pelo seu tipo, não se podia compreender por que o governo russo se amedrontou com suas atividades revolucionárias. Ensinava o russo e colaborava em jornais de Moscou. Era amável e serviçal. Precisava dessas qualidades, porquanto Anastácia Alexandrovna era mulher de caráter: quando ela sentia uma dor de dentes, Vladimir Semenovich sofria as angústias de um condenado, e quando a lembrança da Rússia crucificada esmagava o coração da esposa, ele maldizia a hora em que nascera.

Ashenden não podia deixar de ter pena dele; diante de tanta insignificância, acabou por ter-lhe simpatia; por isso, quando declarou sua paixão a Anastácia Alexandrovna e que

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com grande alegria soube ser correspondida, sentiu-se embaraçado acerca de Vladimir Semenovich. Os dois amantes sentiram que daquele momento em diante não poderiam viver um minuto longe um do outro; Ashenden, porém, pensou que com suas idéias revolucionárias ela jamais consentiria em casar com ele, mas, com grande surpresa sua, ela aceitou a sugestão de braços abertos.

- Acredita que Vladimir Semenovich consinta em divorciar-se? - perguntou, sentado num sofá e mergulhado numa pilha de almofadas cuja cor lembrava as várias tonalidades da carne em decomposição, e segurou-lhe a mão.

- Vladimir me adora - disse ela. - Ficará com o coração partido.

- É um rapaz simpático, não gostaria de fazê-lo infeliz. Tenho esperanças de que se console.

- Ele não se consolará nunca. Eu sei que, deixando-o, ele terá a sensação de perder tudo o que dava valor a sua vida. Nunca um homem teve loucura por uma mulher como ele tem por mim. Mas, em nenhuma condição, ele oporia obstáculos à conquista de minha felicidade. Tem o coração demasiado grande. Ele compreenderá que, sendo isso a realização do meu destino, não devo hesitar. Vladimir dar-me-á a liberdade sem fazer perguntas.

Nessa época a lei do divórcio na Inglaterra era ainda mais complicada e absurda do que é hoje, e, no caso de Anastácia Alexandrovna não lhe conhecer as minúcias, Ashenden propôs-se expor-lhe as dificuldades. Ela colocou gentilmente sua mão na dele.

- Vladimir não me exporá ao escândalo vulgar do processo. Quando eu lhe disser que estou resolvida a casar-me com o senhor, ele se suicidará.

- Que horror! - disse Ashenden. Estava transtornado e intrigado. Isto era um verdadeiro romance russo e ante seus olhos surgiram as patéticas e terríveis páginas que Dostoiévskiteria escrito sobre o assunto.

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Imaginou as atribulações que as personagens sofreriam, as garrafas de champanhe despedaçadas, as visitas às pitonisas, a vodca, os desmaios, as crises nervosas e os longos discursos que cada uma das personagens faria. Tudo isso era espantoso, embriagador, imprevisto.

- Isso nos entristecerá muito - disse Anastácia Alexandrovna. - Mas que poderá ele fazer? Não posso exigir dele que viva sem mim. Ficaria como um barco sem leme ou um carro sem carburador. Conheço bem Vladimir. Ele se suicidará.

- De que modo? - perguntou Ashenden, que tinha a paixão dos realistas pelo detalhe preciso.

- Com um tiro na cabeça. Ashenden recordou Rosmerholm. Fora um ibseniano fanático. Tinha mesmo projetado aprender o norueguês para melhor compreender, lendo o mestre no original, a essência pura de seu pensamento. Vira uma vez Ibsen em carne e osso, bebendo um copo de cerveja em Munique.

- Mas teremos nós uma hora de sossego, com esta morte em nossa consciência? Tenho a impressão de que seu cadáver estará sempre entre nós.

- Eu sei que sofreremos, que sofreremos horrivelmente, mas o que fazer? É a vida. Devemos pensar em Vladimir. Bem considerado, é aquela a sua felicidade. Ele prefere suicidar-se.

Ela voltou a cabeça e Ashenden viu grossas lágrimas correrem-lhe pelas faces. Ele sentia-se triste por que possuía um coração sensível. Ultrapassava suas forças imaginar o pobre Vladimir caído com uma bala na cabeça.

Que brincadeiras têm esses russos! Mas, quando Anastácia Alexandrovna conseguiu dominar a emoção, virou-se gravemente para ele. Olhou-o com seus olhos protuberantes e úmidos.

- Antes de mais nada, devemos ter certeza de que não vamos fazer uma asneira - disse ela. - Não me perdoaria

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nunca ter deixado Vladimir suicidar-se para descobrir mais tarde que me enganei. É preciso saber se verdadeiramente fomos feitos um para o outro.

- Mas já não o sabe? - exclamou Ashenden, com voz contida e vibrante. - Eu sei.

- Vamos passar uma semana em Paris para ver se nos entendemos. Aí, então, não teremos mais dúvidas.

Ashenden era muito respeitador das convenções sociais, e aquela proposta desconcertou-o. Mas só por um momento. Que mulher prodigiosa aquela! Ela notou a hesitação que o perturbara um segundo.

- Suponho que não tem preconceitos burgueses? - disse ela.

- Ora essa! - apressou-se ele em afirmar, porque preferia mil vezes que o chamassem de velhaco do que de burguês -, acho essa idéia admirável.

- Por que deveria uma mulher arriscar toda sua vida num lance de dados? É impossível conhecer um homem sem ter vivido com ele. Portanto, é justo que ela possa mudar de opinião antes que seja tarde.

- Perfeitamente justo - concordou Ashenden. Anastácia Alexandrovna não era mulher que deixasse para amanhã o que podia fazer hoje. No sábado seguinte partiriam para Paris.

- Não direi a Vladimir que vou com você. Não quero desesperá-lo.

- Seria malfeito. - E se no fim desta semana eu achar que nos enganamos, ele não ficará sabendo de nada.

- Muito bem. Eles haviam combinado se encontrarem na estação Victória.

- Que classe comprou? - perguntou ela. - Primeira.

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- Fez bem. Papai e Vladimir viajam em terceira classe, por causa de seus princípios, mas eu sempre passo mal no trem e gosto de apoiar minha cabeça no ombro de alguém. É mais cômodo em primeira classe.

Assim que o trem partiu, Anastácia Alexandrovna declarou que estava enjoada. Tirou o chapéu e encostou a cabeça no ombro de Ashenden. Ele passou o braço pela cintura dela.

- Fique quietinho, quer? - disse ela. Apenas chegados a bordo, ela desceu para o camarote das senhoras, mas, em Calais, não deixou de fazer as honras ao almoço; entretanto, logo que subiu no trem, tirou outra vez o chapéu e encostou-se em Ashenden. Ele pegou um romance para ler.

- Você não pensa ler, não? - perguntou ela. - Preciso ser amparada e quando você vira as páginas sinto não sei quê.

Finalmente chegaram a Paris; hospedaram-se num pequeno hotel da Rive Gauche, que Anastácia Alexandrovna conhecia. Dizia ela que esse hotel tinha atmosfera. Que diferença daqueles imensos hotéis do outro lado da Mancha, desoladoramente vulgares e burgueses.

- Irei para onde você quiser - disse Ashenden -, contanto que tenha um banheiro.

Ela sorriu e beliscou-lhe o rosto. - Como você é adoravelmente inglês! Não pode passar uma semana sem o seu banheiro? Meu querido, tem muito que aprender.

Falaram até altas horas da noite em Máximo Gorki e Karl Marx, nos destinos da humanidade, no amor, na fraternidade, e beberam inúmeras taças de chá russo, tanto que, de manhã, Ashenden teria preferido desjejuar na cama e levantar-se somente para o almoço. Mas Anastácia Alexandrovna era madrugadora. Quando a vida é tão curta e tantos deveres nos reclamam, é uma vergonha tomar o café um minuto mais tarde do que oito e meia. Sentaram-se numa pequena sala de jantar modesta e sombria, cujas janelas não haviam sido abertas há mais de mês. Estava cheia de atmosfera. Ashenden perguntou a Anastácia Alexandrovna o que desejava comer.

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- Ovos estrelados. Devorou-os. Ashenden já notara seu brilhante apetite. Uma particularidade russa, com certeza. Pode alguém imaginar Ana Karenina contentando-se para sua refeição com uma xícara de café e uma torrada?

Depois do café da manhã foram ao Louvre e à tarde ao Luxembourg. Jantaram cedo para chegar à hora na Comédie Française. Depois terminaram a noite num cabaré russo, onde se dançava. Na manhã seguinte, quando às oito e meia se sentaram na sala de jantar e Ashenden perguntou a Anastácia Alexandrovna o que ela queria, respondeu:

- Ovos estrelados. - Mas, nós comemos ovos estrelados ontem! - protestou ele.

- Comamos outra vez hoje. - Pois seja. Passaram o dia do mesmo modo que o anterior, com a diferença apenas que foram ao Carnavalet, em vez do Louvre, e o Museu Guinet substituiu o Luxembourg. Mas, quando na manhã seguinte, respondendo à pergunta de Ashenden, Anastácia Alexandrovna pediu novamente ovos estrelados, seu coração sucumbiu.

- Mas nós comemos ovos estrelados ontem e anteontem - disse ele.

- Não acha que é um bom motivo para tornarmos a comer hoje?

- Quanto a isso não. - Será possível que esteja perdendo a cabeça? - perguntou ela. - Eu como ovos estrelados todos os dias. É a única coisa de que gosto.

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- Muito bem. Nesse caso comamos ovos mexidos. Mas no outro dia ele não suportou mais. - Quer ovos estrelados como sempre, não? - perguntou.

- Naturalmente - disse ela, sorrindo afetuosamente, mostrando as duas fileiras de seus dentes largos e quadrados.

- Muito bem. Vou pedir ovos estrelados para você. Para mim, pedirei fritos.

O sorriso apagou-se em seus lábios. - Oh! - pausou ela um momento. - Não acha que não tem razão? Não lhe parece injusto impor ao cozinheiro um acréscimo de trabalho? Vocês ingleses são todos iguais, consideram os criados como máquinas e não se lembram que eles também têm um coração igual ao nosso, que sentem as mesmas emoções e os mesmos sentimentos que nós. Como podem se surpreender de quer o proletariado esteja descontente se os burgueses ostentam um egoísmo tão monstruoso.

- Acredita que haverá uma revolução na Inglaterra se eu aqui em Paris comer ovos fritos em vez de estrelados?

Ela sacudiu sua cabecinha indignada. - Você não compreende. É uma questão de princípio. Você diz isso para fazer espírito e eu sei que está gracejando. Sou capaz, como qualquer outra pessoa, de apreciar um bom dito. Nosso Tchecov-era bem conhecido na Rússia como humorista, mas não vê onde isso o leva? Sua atitude é um erro. E uma falta de tato. Você não falaria assim se tivesse estado, em 1905, em São Petersburgo. Quando me lembro da multidão ajoelhada na neve diante do Palácio de Inverno, enquanto os cossacos carregavam contra as mulheres e as crianças. Não, não e não.

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As lágrimas saltavam-lhe dos olhos e a dor contraía seu rosto. Ela segurou a mão de Ashenden.

- Sei que você tem bom coração. Ainda há pouco falou sem pensar. Mas esqueçamos tudo isso. Você é bom, eu sei.

É muito sensível. Você vai pedir ovos estrelados como eu, não é?

- Naturalmente, minha querida. Desde então ele só comeu ovos estrelados pela manhã. O criado dizia: "Monsieur aime les oeufs brouillés". No fim da semana regressaram a Londres. Ele conservou Anastácia Alexandrovna nos braços, sua cabeça apoiada sobre seu ombro, de Paris a Calais e depois de Dover a Londres. Lembrava-se de que a viagem de Nova York a San Francisco dura cinco dias. Na estação Victória, enquanto esperavam um cab, ela o contemplou com seus olhos mais redondos do que nunca.

- Que semana adorável tivemos, não? - disse ela. - Adorável! - Estou completamente decidida. A experiência foi decisiva. Serei tua esposa quando quiser.

Mas Ashenden teve a visão dos ovos estrelados que iria comer durante o resto da vida. Depois de ter embarcado Anastácia Alexandrovna num cab, chamou outro para si, foi ao escritório da Cunard e comprou uma passagem no primeiro navio que partia para a América. Nenhum emigrante, ávido de independência e de aventuras, contemplou a estátua da Liberdade com maior gratidão do que Ashenden, quando por uma clara e luminosa manhã o navio entrou no porto de Nova York.

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A ROUPA BRANCA DE MR. HARRINGTON


Passaram-se alguns anos desde então sem que Ashenden revisse Anastácia Alexandrovna. Soube que ao explodir a Revolução de Março ela voltara para a Rússia com Vladimir Semenovich. Era possível que eles lhe pudessem ser úteis, porque, afinal, Vladimir Semenovich devia-lhe a vida. Assim é que resolveu escrever a Anastácia Alexandrovna.

À hora do almoço desceu, repousado. Mr. Harrington o esperava e foram para a mesa.

- Peça ao criado um pouco de pão - pediu Mr. Harrington.

- Pão? - retrucou Ashenden. - É coisa que não há. - Eu não sei comer sem pão. - Terá que aprender. Não há pão, nem manteiga, nem açúcar, nem ovos, nem batatas. Há unicamente peixe e verduras, e nada mais.

Mr. Harrington fez uma careta de desagrado. - Mas, isto sim, é a guerra - disse ele. - Pelo menos é muito parecido com ela. Mr. Harrington ficou um momento calado. Depois continuou:

- Vou tratar de liquidar meus negócios o mais depressa possível e logo que o consiga vou-me embora desta terra.

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Que diria minha mulher se soubesse! Nem açúcar, nem manteiga! E eu que tenho um estômago delicado! Meus patrões não me mandariam nunca aqui se pudessem prever semelhante coisa.

Pouco depois chegou o Dr. Egon Orth e entregou uma carta a Ashenden, remetida por Anastácia Alexandrovna. Ashenden apresentou-o a Mr. Harrington, que logo demonstrou ter simpatizado com ele, diante do que Ashenden não hesitou em sugerir-lhe que ali estava um perfeito intérprete.

- Fala russo tão bem como um russo. Mas é cidadão americano, e nele pode confiar em absoluto. Conheço-o de longa data.

Mr. Harrington gostou da notícia e, depois do almoço, Ashenden deixou-os para que combinassem seus negócios. Escreveu um bilhete a Anastácia Alexandrovna, recebendo logo depois a resposta, em que ela lhe dizia que ia a uma reunião e que às sete horas o procuraria no hotel. Não foi sem alguma apreensão que ele a esperou. Já agora sabia que não a amava, e sim a Tolstoi, Dostoievski, Rimsky-Korsakoff, Stravinsky e Bakst, através dela; mas não estava certo de que o mesmo acontecia com ela. Quando ela chegou, às oito e meia, convidou-a para jantar com ele e Mr. Harrington. A presença de um terceiro, pensou ele, tornaria a conversa menos embaraçosa; mas, cinco minutos depois de terem sentado, quando apenas lhes serviram a sopa, já não teve mais dúvidas: a indiferença de Anastácia Alexandrovna para com ele igualava a dele para com ela. Ficou bastante despeitado. Por muito pouco enfatuado que um homem seja, dificilmente se resigna a que uma mulher que o amou se desprenda dele com tanta facilidade. Não imaginava, naturalmente, que Anastácia Alexandrovna tivesse vivido cinco anos consumindo-se de paixão por ele, mas acreditara que um ligeiro rubor, um movimento de pálpebras, ou um tremor dos lábios, indicassem ao menos que ela não o esquecera de todo. Mas nada, nada! Tratava-o como a um amigo a quem estivesse contente

243 de rever, depois de uma ausência de poucos dias, mas sua atitude para com ele era a de relações puramente sociais. Ele lhe perguntou por Vladimir Semenovich.

- Ele me decepcionou - respondeu ela. - Nunca o julguei um homem perfeito, mas acreditava-o honesto. Vai ter um filho.

Mr. Harrington que ia levar uma garfada de peixe à boca, deteve-se subitamente a meio caminho e olhou Anastácia Alexandrovna com pasmo. É preciso dizer que ele nunca lera, em toda sua vida, uma novela russa. O próprio Ashenden, um pouco surpreendido, olhou-a interrogativamente.

- Não sou eu a mãe - explicou ela rindo. - Essas coisas não me interessam. A mãe é uma amiga minha, grande escritora de Economia Política. Não direi que seus pontos de vista sejam acertados, mas não nego que merecem ser tomados em consideração. É um belo espírito, sem dúvida, um belo espírito. - Virou-se para Mr. Harrington: - Interessa-se por Economia Política?

Pela primeira vez na vida Mr. Harrington emudeceu. Anastácia Alexandrovna expôs-lhe seus pontos de vista sobre o assunto e falaram da situação da Rússia. Ela parecia achar-se em boas relações com os chafes dos vários partidos políticos, e Ashenden encarou intimamente a possibilidade de ela vir a trabalhar com ele. Sua vaidade ferida não o fazia esquecer que ela era uma mulher muito inteligente. Depois do jantar, disse a Mr. Harrington que precisava falar de negócios com ela, e levou-a para um canto do hall, dizendo-lhe o que julgava necessário e deixando-a interessada e ansiosa por ajudá-lo. Sua paixão pela intriga igualava seu amor pelo poder. Quando ele lhe falou nos fundos consideráveis de que dispunha, ela viu imediatamente o partido que disso poderia tirar para conquistar influência; seu patriotismo era imenso, mas, como acontece com muitos patriotas, identificava seu êxito pessoal com os interesses do país.

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Quando se separaram, tinham convencionado o trabalho a fazer.

- Que mulher extraordinária - disse Mr. Harrington, na manhã seguinte, quando desjejuavam.

- Veja lá se vai apaixonar-se por ela - recomendou Ashenden.

Este, porém, era um ponto sobre o qual Mr. Harrington não admitia gracejos.

- Nunca olhei para outra mulher desde que me casei com Mrs. Harrington. O marido desta mulher deve ser um mau sujeito.

- Eu comeria de bom grado um prato de ovos estrelados - disse Ashenden, irreverentemente, diante de sua xícara de chá sem leite e com geléia no lugar do açúcar.

Com o auxílio de Anastácia Alexandrovna e do Dr. Orth por trás da cena, Ashenden deu início a seu trabalho. As coisas na Rússia iam de mal a pior. Kerenski, o chefe do governo provisório, cegado pela vaidade, demitia os ministros cuja capacidade projetava sombra sobre ele. Fazia discursos e mais discursos. Num dado momento, temeu-se que os alemães marchassem sobre Petrogrado. Kerenski fez um discurso. A escassez de alimentos tornou-se séria, o inverno aproximava-se e o combustível ia faltar. Kerenski fez um discurso. Os bolchevistas agitavam-se, Lenin escondia-se em Petrogrado, Kerenski sabia disso mas não se animava a prendê-lo ... Fez um discurso.

Ashenden divertia-se ao ver a indiferença de Mr. Harrington no meio dessa barafunda. Fazia-se história, e Mr. Harrington pensava em seus negócios. Era um negócio difícil. Secretários e empregados subalternos arrancavam-lhe gorjetas, fazendo luzir a seus olhos a esperança de chegar à presença dos grandes chafes. Passava horas a fio nas ante-salas para se ver, ao cabo desse tempo, despachado sem mais cerimônias, sem ter sido recebido. Quando, finalmente, viu o grande homem, não obteve mais do que belas palavras, com

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promessas de que, no fim de um ou dois dias, verificava nada valerem. Ashenden aconselhou-o a desistir do negócio e a voltar para a América, mas Mr. Harrington não quis atendê-lo, porque a empresa para a qual trabalhava, tendo-lhe confiado uma missão, ele a cumpriria, ainda que tivesse de morrer. Anastácia Alexandrovna tomou então a seu cargo os interesses dele. Uma amizade singular os ligou. Depressa chegaram à confidências. Mr. Harrington considerava-a uma mulher superior, a quem não faziam a justiça devida. Contou-lhe a história íntima de sua vida e disse-lhe suas opiniões sobre a Constituição dos Estados Unidos. Por sua vez, ela lhe falou em Vladimir Semenovich e iniciou-o em Tolstoi, Tourguenev e Dostoievski. Passavam muito tempo juntos. Tiveram conversas comovedoras. Mr. Harrington não podia habituar-se àquele nome de Anastácia Alexandrovna, demasiado longo, afirmava ele, para ser pronunciado de um fôlego.. Chamou-a então de Dalila. Com indomável energia eta o acompanhava em todas as suas tentativas de se aproximar das pessoas com quem precisava falar. Os acontecimentos, porém, precipitaram-se. As ruas tornavam-se perigosas. A Perspectiva Nevsky era percorrida por automóveis blindados cheios de reservistas;, para mostrarem seu descontentamento, faziam alvo nos transeuntes. Um dia em que Mr. Harrington e Anastácia Alexandrovna viajavam juntos num bonde, as vidraças deste voaram em estilhaços, espatifados por balas de metralhadora, e eles tiveram de atirar-se ao chão. Mr. Harrington ficou rubro de indignação.

- Uma velha gorda projetou-se sobre mim e, enquanto eu esforçava por me desembaraçar do fardo, não é que Dalila me agarra pelos cabelos, dizendo: "Fique quieto, imbecil". "Pois olhe, Dalila, não gosto desses seus modos russos." "De qualquer forma, fique quieto", disse-me rindo. "O que vocês precisariam nesse país era de um pouco menos de arte e um pouco mais de civilização." "Você é muito burguês,

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Mr. Harrington, não é digno de ser membro da intelligentsia." "É a primeira pessoa que o diz, Dalila. Se eu não sou digno, não vejo quem poderá sê-lo", retorqui, com dignidade.

Um dia Ashenden estava trabalhando em seu quarto, quando bateram a porta e Anastácia Alexandrovna apareceu suavemente agitada. Mr. Harrington seguia-a.

- Que é que há? - perguntou Ashenden. - Se este louco não voltar imediatamente para a América, o matarão. O senhor precisa falar com ele. Sem mim, nem sei o que lhe teria acontecido.

- Nada, absolutamente - retificou Mr. Harrington, com secura. - Sou perfeitamente capaz de me arranjar sozinho. Não corri nenhum perigo.

- Mas, afinal, expliquem-se - pediu Ashenden. - Eu levei Mr. Harrington à lavra de Alexandre Nevsky para mostrar-lhe o túmulo de Dostoievski e, na volta, vimos um soldado maltratando um pouco uma pobre velha.

- Um pouco! Ela ia pela calçada, com um cesto de mantimentos no braço. Dois soldados iam atrás dela; um deles tirou-lhe o cesto e afastou-se. Ela berrou desesperada. Não sei o que ela dizia, mas não é difícil adivinhar. O outro soldado então pegou no fuzil e deu-lhe uma coronhada na cabeça. Não foi assim, Dalila?

- Sim - respondeu sorrindo, apesar da emoção. - E antes que eu pudesse impedi-lo, Harrington desceu do carro, correu para o soldado do cesto, arrancou-lhe o cesto das mãos e começou a chamar os dois de gatunos. De momento a surpresa paralisou-os, mas, logo em seguida, que cena! Corri atrás de Mr. Harrington e expliquei-lhes que era um estrangeiro e estava bêbado a mais não poder.

- Bêbado? - rugiu Mr. Harrington. - Sim, bêbado. Já estava se formando uma aglomeração. A coisa não era nada bonita.

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Os grandes olhos pálidos de Mr. Harrington iluminaram-se num sorriso.

- Foi uma bela oportunidade, Dalila, para mostrar sua eloqüência. Eu pensava estar no teatro.

- Não seja estúpido, Mr. Harrington - bradou Anastácia Alexandrovna, sapateando numa explosão de fúria. - Não vê que aqueles soldados poderiam tê-lo matado, e a mim também, e nenhuma das pessoas presentes teria levantado um dedo para impedi-lo?

- A mim? Eu sou um cidadão americano, Dalila. Ninguém ousaria tocar num só cabelo de minha cabeça!

- Ia haver alguma dificuldade para achar um que fosse - retrucou Anastácia Alexandrovna, que nos seus momentos de mau humor não era avara de palavras desagradáveis. - Mas, se você pensa que os soldados russos teriam hesitado em fuzilar um cidadão americano, você se arrisca a ter uma grande surpresa um dia desses.

- E a velha? - perguntou Ashenden. - Os soldados afinal se foram, e nós fomos para perto dela.

- Sempre com o cesto? - Sim. Mr. Harrington estava agarrado nele com unhas e dentes. Ela estava prostrada no chão, com a cabeça escorrendo sangue. Nós a carregamos para dentro do carro e, logo que pode nos dar seu endereço, para lá a conduzimos. Perdia sangue que era um horror e tivemos um trabalho louco para estancar a hemorragia.

Anastácia Alexandrovna fitou Mr. Harrington de um modo estranho e Ashenden verificou que este enrubecia.

- Que há mais? - Nós não tínhamos com que vendar a ferida. O lenço de Mr. Harrington estava ensopado. Só tinha comigo uma coisa de que pudesse dispor rapidamente, e então tirei minhas...

Mr. Harrington interrompeu-a.

- Não precisa dizer a Mr. Ashenden o que foi que você tirou. Sou casado e sei que as mulheres usam... isso, mas não há necessidade de dizê-lo diante de todos.

Anastácia Alexandrovna ria-se a morrer. - Então, dê-me um beijo, Mr. Harrington, senão eu digo.

Mr. Harrington hesitou por um momento, pesando evidentemente os prós e os contra, mas vendo que ela estava decidida:

- Pois sim, pode beijar, Dalila, mas eu só queria saber que prazer acha nisso.

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Ela agarrou-o pelo pescoço e beijou-lhe as faces, e depois, sem dizer uma palavra, desatou a chorar.

- Você é um homenzinho admirável, Mr. Harrington. Absurdo, mas admirável - disse, soluçando.

Mr. Harrington mostrava-se menos surpreendido do que Ashenden esperava. Ele olhou Anastácia com um sorriso claro e zombeteiro, e deu-lhe uns tapinhas.

- Vamos, vamos, tenha calma. Que golpe, não? Ainda está tremendo. Vou acabar ficando com reumatismo no ombro se você continuar a regá-lo com suas lágrimas.

Com um nó na garganta, Ashenden ria-se dessa cena ridícula e enternecedora.

Quando Anastácia Alexandrovna se retirou, Mr. Harrington ficou pensativo.

- São uns fenômenos, esses russos. Quer saber o que Dalila fez? Levantou-se dentro do carro, em plena rua, no meio do povo, e tirou as calças. Rasgou-as, entregou-me a metade, enquanto com a outra metade vendava a ferida. Nunca me senti tão embaraçado em minha vida.

- Mas diga-me uma coisa: por que é que a chama de Dalila?

Mr. Harrington ruborizou-se um pouco. - É uma mulher fascinante, Mr. Ashenden. Foi indignamente traída pelo marido e naturalmente tenho-lhe

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grande simpatia. Esses russos são muito emotivos e não quero que ela se engane sobre a natureza dos meus sentimentos. Além do que ela sabe o quanto sou dedicado a Mrs. Harrington.

- Não está pensando que Dalida é a mulher de Putifar, não? - perguntou Ashenden.

- Não sei o que quer dizer com isso. Segundo diz Mrs. Harrington, não desagrado às mulheres. Esse nome de Dalila deixa as coisas claras.

- Decididamente, Mr. Harrington, a Rússia não é terra para o senhor. Em seu lugar, eu me iria em seguida.

- Impossível. Minhas condições foram aceitas e vamos assinar o contrato na semana que vem. Aí então, sim, arrumo as malas e me vou.

- E valerão essas assinaturas o preço do papel em que vão ser assinadas?. - perguntou Ashenden.

Seu plano de campanha estava definitivamente assentado. Precisou de 24 horas de trabalho árduo para redigir um telegrama cifrado, no qual expunha as observações que fizera com as pessoas com quem tratara em Petrogrado. Suas sugestões foram aceitas e prometeram-lhe os fundos de que necessitava. Nada, entretanto, poderia fazer se o governo provisório não permanecesse no poder pelo menos três meses; mas o inverno estava às portas e os alimentos escasseavam dia a dia. O Exército estava rebelado. O povo clamava por paz. Todas as tardes, no hotel da Europa, tomando chocolate com o professor Z., Ashenden discutia com ele sobre o melhor aproveitamento que poderiam fazer dos checos dedicados. Os conjurados reuniam-se em casa de Anastácia Alexandrovna, que morava num bairro afastado. Esboçavam-se planos. Ashenden argumentava, prometia, persuadia. Tinha de vencer a hesitação de uns, combater o fatalismo de outros. E de que modo distinguir as dedicações sinceras das fanfarronadas? Tinha de curvar sua impaciência ante a verbosidade russa. E os perigos, as traições, as suscetibilidades que precisava poupar, as ambições que devia satisfazer! O tempo voava. As atividades dos bolcheviques escaldavam os ânimos; Kerenski corria acima e abaixo, como uma galinha assustada. • Por fim, veio o desastre. Na noite de 7 de novembro de 1917, os bolcheviques sublevaram-se, prenderam os ministros de Kerenski e o populacho assaltou o Palácio de Inverno. As rédeas do governo foram tomadas por Lenin e Trotsky.

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Cedo, nessa manhã, Anastácia Alexandrovna foi ao apartamento de Ashenden no hotel. Ashenden redigia um telegrama cifrado. Tinha passado a noite em claro, primeiro no Smolny, depois no Palácio de Inverno. Estava cansadíssimo. O olhar trágico da russa, pálida e desfeita, impressionou-o.

- Já sabe? - perguntou ela. Ele curvou a cabeça. - Está tudo acabado! Kerenski fugiu. Nem sequer tentaram defender-se. - A raiva apoderou-se dela. - Que palhaços! - exclamou.

Nesse momento bateram, e ela olhou apreensiva para a porta.

- Os bolcheviques pretendem organizar uma lista inteira de suspeitos. Meu nome está lá, e talvez o seu também.

- Se são eles, não há nada mais a fazer do que abrir o trinco - disse Ashenden, esforçando-se por ocultar sua perturbação com um sorriso. - Entre!

Abriu-se a porta e Mr. Harrington entrou, mais disposto, mais elegante, mais correto do que nunca. Ao ver Anastácia Alexandrovna cumprimentou.

- Como, Dalila, está aqui? Eu ia sair e justamente tenho umas coisas a lhe dizer. E o senhor, Ashenden, pra curei-o ontem à noite, mas sem resultado. O senhor não veio jantar.

- Não, estive num meeting.

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- Felicitem-me. Tenho as assinaturas desde ontem e meu negócio está feito.

Mr. Harrington encarnava a imagem da plena satisfação e pavoneava-se como um galo de rinha vitorioso. Anastácia Alexandrovna soltou uma gargalhada histérica. Ele a olhou cheio de espanto.

- Que é isso, Dalila?! Que bobagem é essa? O riso convulso de Anastácia Alexandrovna transformou-se em soluços. As lágrimas corriam-lhe pelas faces. Ashenden explicou:

- Os bolcheviques derrubaram o governo. Todos os ministros de Kerenski estão presos. As execuções já começaram. Dalila diz que o nome dela está na lista dos proscritos. O ministro que lhe deu a assinatura já sabia que a mesma de nada valia. O contrato é nulo. Os bolcheviques vão fazer a paz com a Alemanha, assim que puderem.

Anastácia Alexandrovna acabou por dominar-se. - O senhor fará melhor deixando a Rússia o mais depressa possível, Mr. Harrington. De agora em diante, isso aqui não é mais lugar para estrangeiros, e quem sabe se dentro de alguns dias o senhor poderá ainda partir.

O olhar de Mr. Harrington ia de um a outro. - Oh! - dizia ele - Oh! ... Então aquele ministro zombou de mim?

Ashenden encolheu os ombros. - Como se pode saber? Talvez achasse ele espirituoso assinar ontem um contrato de cinqüenta milhões de dólares tendo todas as probabilidades de ser levado à parede e fuzilado hoje. Anastácia Alexandrovna tem razão, Mr. Harrington. O melhor é o senhor tomar o primeiro trem que o leve à Suécia.

- E o senhor? - Nada mais tenho a fazer aqui. Já telegrafei pedindo instruções e, assim que vier a resposta, partirei. Os bolcheviques

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tomaram a dianteira, e as pessoas com quem trabalho deixarão tudo para salvar a pele.

- Boris Petrovich foi fuzilado hoje de manhã - anunciou Anastácia Alexandrovna, sombriamente.

Os dois olharam Mr. Harrington, o qual baixou a cabeça. Sua decepção fazia-o desinflar-se, como um balão furado. Mas, ao cabo de um instante, reergueu-se. Sorriu para Anastácia Alexandrovna, e Ashenden notou o encanto e a meiguice do sorriso.

- Se os bolcheviques andam atrás de você, Dalila, por que não vem comigo? Cuidarei de você, e se quiser acompanhar-me à América, estou certo de que Mrs. Harrington fará tudo o que puder pela senhora.

- Estou vendo daqui a cara que faria Mrs. Harrington se o visse chegar na Filadélfia em companha de uma refugiada russa! - disse rindo Anastácia Alexandrovna. - Creio que seriam necessárias mais explicações do que o senhor pensa. Não, ficarei aqui.

- Mas, se corre perigo? - Sou russa. Meu lugar é aqui. Não deixo meu país no momento em que ele mais precisa de mim.

- Que pilhéria, Dalila - disse Mr. Harrington, muito calmo.

Isso bastou para fazer desaparecer num segundo a emoção de Anastácia Alexandrovna. Ela estremeceu e olhou-o ironicamente.

- É certo, Sansão. Para falar a verdade, creio que vamos entrar num periodo aterrador. Só Deus sabe o que vai acontecer, mas eu quero ver; por nada deste mundo eu desistiria disso um instante que fosse.

Mr. Harrington sacudiu a cabeça. - A curiosidade é a perdição de seu sexo, Dalila - disse ele.

- Vá arrumar suas malas, Mr. Harrington - disse Ashenden, sorrindo. - Nós o levaremos à estação.

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- Muito bem, eu partirei. E, francamente, isso me agrada. Não tive uma única refeição que prestasse desde que cheguei aqui. E fiz mesmo uma coisa que nunca pensei poder fazer: tomei meu café sem açúcar! E, se por acaso conseguia um pedaço de pão preto, não havia manteiga para pôr nele. Mrs. Harrington nunca me acreditará quando lhe contar minhas atribulações. Este país precisa é de organização.

Quando ele os deixou, Ashenden e Anastácia Alexandrovna examinaram a situação. Ashenden estava decepcionado com o desabamento dos seus planos grandiosos, mas Anastácia Alexandrovna, muito excitada, fazia mil conjecturas sobre as conseqüências dessa revolução. Pretendia considerar as coisas muito seriamente, mas no seu espírito olhava para tudo isso como uma iepresentação emocionante. De repente bateram novamente a porta e antes que Ashenden respondesse, Mr. Harrington precipitou-se no quarto.

- O serviço neste hotel está escandalosamente malfeito - disse ele. - Faz mais de quinze minutos que chamo, e ninguém me atende!

- O serviço? - exclamou Anastácia Alexandrovna. - Mas se não há mais um único criado no hotel!

- Mas, e a minha roupa? Tinham prometido trazê-la ontem à noite. . .

Ashenden interveio. - Creio, meu caro, que terá muito pouca probabilidade de vê-la outra vez.

- Não me vou sem a minha roupa. Quatro camisas, quatro cuecas, um pijama e quatro colarinhos. Os lenços e as meias lavei-os no meu quarto. Não deixo o hotel sem minha roupa.

- Não seja tolo - gritou-lhe Ashenden. - Raspe-se enquanto é tempo. Se não há criados para irem buscar sua roupa, não pense mais nela.

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- Isso nunca, sir. É mais fácil ir eu mesmo buscá-la. Não vou fazer presente a esses malditos bolcheviques de quatro camisas em perfeito estado. Não senhor, não sairei da Rússia antes de ter encontrado minha roupa.

Anastácia Alexandrovna baixou os olhos um momento, depois, com um sorriso, ergueu a cabeça. Ashenden compreendeu que havia qualquer coisa nela que correspondia à fútil obstinação de Mr. Harrington. Sua alma russa fazia-lhe compreender que Mr. Harrington não quisesse deixar Petrogrado sem sua roupa. Aquela insistência adquiria o valor de um símbolo.

- Vou descer - disse ela - e verei se encontro alguém que possa me indicar a casa da lavadeira. Você trará sua roupa, você mesmo.

Mr. Harrington acalmou-se. Respondeu com aquele seu doce e vitorioso sorriso.

- É muita bondade sua, Dalila. Não me importo se estiver lavada ou não. Ficarei com ela como a encontrar.

Anastácia Alexandrovna saiu. - E então, que me diz agora da Rússia e dos russos? - perguntou Ashenden.

- Estou mais do que farto deles. Estou enjoado de Tolstoi, enjoado de Tourguenev e de Dostoievski, e enjoado de Tchekov e da intelligentsia. Estou ansioso por ver gente equilibrada, que tenha palavra e não mude de opinião a cada cinco minutos. Estou farto de conversa fiada e de toda essa comédia.

Ashenden, ele também contagiado pelo demônio da eloqüência, quis fazer um discurso, quando um ruído o interrompeu. Dir-se-ia ervilhas atiradas sobre um tambor. Na cidade, tão estranhamente silenciosa, aquilo ressoava de modo brutal e raro.

- Que é isso? - perguntou Mr. Harrington. - Metralhadoras. Com certeza do outro lado do rio.

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Mr. Harrington teve uma expressão estranha. Riu, mas seu rosto empalideceu. Aquela surpresa não era do seu agrado e nem do de Ashenden.

- Decididamente, é tempo de ir-me. Se eu fosse só, ainda vá, mas tenho mulher e filhos. Faz tanto tempo que não tenho notícias dela que começo a me sentir inquieto. - Calou-se um momento. - Gostaria que conhecesse minha mulher - continuou -, é admirável. Não se pode desejar esposa mais perfeita. Nunca, desde o nosso casamento, nos separamos por mais de três dias, até esta desgraçada viagem.

Anastácia Alexandrovna voltou. Achara o endereço. - É a quarenta minutos daqui, a pé, e, se o senhor faz realmente questão, vamos lá em seguida.

- Estou pronto. - Tome cuidado - dis,se ela. - As ruas não estão muito seguras.

- Quero a minha roupa, Dalila. Não teria mais sossego se a deixasse ficar. E Mrs. Harrington censurar-me-ia até o fim de minha vida.

- Então, vamos. Assim que ficou só, Ashenden aplicou-se em transmitir, segundo uma cifra muito complicada, as notícias confusas que tinha de comunicar. Ao mesmo tempo, pedia instruções. Era um trabalho maquinal, mas muito absorvente porque o menor erro bastava para adulterar o sentido de uma frase inteira.

Subitamente a porta se abriu e Anastácia Alexandrovna precipitou-se no quarto. Perdera o chapéu e estava desgrenhada. Ofegava. Seus olhos pareciam querer saltar das órbitas e estava visivelmente num estado de grande excitação.

- Onde está Mr. Harrington - gritou. - Não está aqui?

- Não.

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- Não está no quarto dele? - Não sei. Que é, de que se trata? Vamos ver. Então ele não voltou com você?

Saíram e bateram à porta de Mr. Harrington. Não responderam. Tentaram entrar, a porta estava fechada.

- Não está aqui. Voltaram para o quarto de Ashenden. Anastácia Alexandrovna deixou-se cair numa cadeira.

- Dê-me água, sim? Estou sem fôlego. Tive de correr. - Bebeu. Um arrepio estremeceu seu corpo. - Tenho esperança de que não tenha acontecido nada. Nunca me perdoaria se tivesse ocorrido qualquer coisa ruim. Ele achou a roupa. Só havia lá uma mulher velha, que não queria nos deixar trazer nada, mas teimamos. Mão tinham tocado ainda na roupa. Pode imaginar o furor de Mr. Harrington. Prometeram-lhe a roupa para ontem à noite, e estava ainda no mesmo pacote que ele fizera, ele mesmo. Eu disse a ele que isso era a Rússia, e ele respondeu que nem num país de negros seria pior. Trouxe-o por algumas ruas que me pareciam menos perigosas. Numa encruzilhada vi um agrupamento. Alguém estava fazendo um discurso. Vamos ouvir, propus. "Não, Dalila, vamo-nos, não nos metamos nisso." "Pois então, volte; quanto a mim, isso me diverte", respondi. Desci a rua correndo e ele me seguiu. Duzentas ou trezentas pessoas estavam aglomeradas em torno de um estudante, que discursava. Havia alguns operários que o insultavam. Eu adoro brigas, por isso procurei me aproximar. Subitamente, ouvimos detonações e, antes que percebesse do que se tratava, dois carros blindados caíram sobre nós como um furacão.

Estavam cheios de soldados, que atiravam sem parar. Por quê? Não sei. Talvez para se divertirem, ou porque estivessem bêbados. Saímos todos correndo como coelhos. Estava em jogo nossa vida. Perdi de vista Mr. Harrington. Não sei

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como é que ele não está aqui. Acha que lhe terá acontecido alguma coisa?

Ashenden ficou calado. - Vamos ver se o encontramos - disse, por fim. - Para que diabo obstinou-se ele em ir buscar essa maldita roupa?

- Eu o compreendo! Compreendo-o perfeitamente. - É sempre um consolo - disse Ashenden, irritado. - Vamos.

Enfiou a capa, pegou o chapéu e desceram. O hotel parecia estranhamente vazio. Saíram. Não se via ninguém. Os bondes não circulavam, e o silêncio da enorme cidade tinha qualquer coisa de sobrenatural. As lojas estavam fechadas. Por vezes, um carro passava como um bólido. Os raros transeuntes pareciam enlouquecidos. Quando atravessaram uma rua transitada, onde vagava uma multidão hesitante, apressaram o passo. Reservistas, em seus velhos uniformes cinzentos, caminhavam em pequenos grupos pelas calçadas. Ninguém falava. Toda essa gente lembrava um rebanho em busca do pastor. Finalmente, Ashenden e Anastácia Alexandrovna chegaram à rua que esta percorrera correndo, mas entraram pela outra extremidade. Estava deserta. Inúmeras vidraças haviam sido espatifadas. No lugar em que atiraram sobre a multidão, objetos vários encontravam-se no chão, livros, um chapéu de homem, uma bolsa de mulher, um cesto. Anastácia Alexandrovna tocou no braço de Ashenden para chamar-lhe a atenção: sentada no chão, a cabeça inclinada sobre os joelhos, jazia morta uma mulher. Um pouco mais longe, dois homens caídos, mortos. Provavelmente, os feridos haviam-se arrastado para outro lugar ou tinham sido levados por amigos.

Por fim, encontraram Mr. Harrington. Seu chapéu coco rolara para a sarjeta. Com a face por terra, jazia num lago

de sangue. Sua cabeça calva reluzia ao sol. Seu casaco preto estava sujo de lama. Suas mãos, porém, aferravam-se no pacote que continha quatro camisas, duas cuecas, um pijama e quatro colarinhos. Mr. Harrington não abandonara sua roupa branca.

 

 

                                                                  Willian Somerset Maugham

 

 

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