Quando sir Joseph saiu do quarto, Stephen olhou ao seu redor. O quarto havia mudado um pouco, e depois de alguns momentos se deu conta de que as esculturas de bronze e os quadros eróticos haviam desaparecido e que havia jarros com flores por todos os lados. Abaixo, na rua, o vigia gritou: "Três da madrugada, faz uma noite horrível e parece que haverá tormenta!". E nesse momento, Blaine regressou.
Tomaram o café, quase uma garrafa de conhaque e falaram de Paris. Stephen transmitiu os cumprimentos de seus amigos e entregou seus presentes. Sir Joseph perguntou cortesmente pelo andamento dos assuntos legais do capitão Aubrey e se alegrou muito ao saber que sua recomendação havia servido de algo. E no momento que Stephen ia se levantar, inquiriu:
- Poderia pedir sua opinião como médico?
Stephen assentiu com a cabeça, voltou a acomodar-se na poltrona e disse que a daria com muito gosto.
- Já faz algum tempo... já faz algum tempo estou pensando em me casar - disse sir Joseph com o olhar fixo na cafeteira.
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- Matrimônio? - perguntou Stephen com indiferença, pois parecia que seu paciente não podia seguir adiante e supunha que isso era suficiente para descrever sua dolência.
- Sim, matrimônio - disse Blaine por fim. - É bom ter namoricos, e às vezes são muito prazeirosos, mas são relações, por assim dizer, estéreis. Além disso, a dama em questão é virtuosa. Mas talvez haja esperado muito tempo. Nos últimos meses hei notado com grande pena certa... Como direi...?, certa falta de vigor, certa fraqueza, e me parece que eu também deveria cantar vixi puellis nuper idoneus. A medicina pode fazer algo em um caso como este, ou é inevitável que isto ocorra na minha idade? Passei do que Horácio chama lustra decem; contudo, ouvi falar de elixires e gotas...
- Não é inevitável - respondeu Stephen. - Pense nesse homem tão velho, o velho Parr. Se casou outra vez aos cento e vinte e dois anos e sua união, conforme acredito, foi frutífera, e, se não me equivoco, inclusive foi processado por estupro posteriormente. Meu colega Beauprin, a quem tive o gosto de conhecer na França, tinha apenas oitenta anos quando voltou a casar-se, e sua mulher teve dezesseis filhos. Mas antes de falar como médico, quero preguntar como amigo se pensou detalhadamente na conveniência de reavivar esse fogo. Quando um homem olha ao seu redor, no geral encontra mais dor do que prazer. Inclusive Horácio rogava a Vênus que lhe deixasse livre... parce, precor, precor. Não é a paz o bem mais apreciado? Não é melhor a calmaria do que a tormenta? Uma vez naveguei com um jovem que sabia chinês e lembro que citou uma passagem do Analectus de Confúcio no qual o sábio se congratulava de haver chegado à idade das orelhas obedientes, à idade em que podia seguir o ditado de seu coração sem faltar à moral. E Orígenes, como o senhor recordará, cortou o membro pecador e voltou para suas meditações mais sereno, e a partir de então se manteve imperturbável.
- Entendo suas poderações, e me parece muito lógico, mas o senhor esquece que não estou falando de uma relação amorosa ocasional senão que é em matrimônio no que estou pensando. Porém, mesmo que não fosse assim, também lhe pediria ajuda. Não me considero um homem fogoso, não sou particularmente propenso a sentir apetite sexual e, para dizer a verdade, quando tiro os sapatos e as meias, as pernas que vejo não são as de um sátiro, mas quando notei essa debilidade, percebi que sempre me fixara nas mais bonitas representantes do outro sexo, havia valorizado suas qualidades e as havia olhado com uma mistura de lascívia e esperança. Mas agora que já não tenho esse olhar, parece que a fonte da vida se secou. Não sabia que isso tivesse tanta importância. O senhor além de mais jovem que eu, Maturin, e provavelmente não saiba por experiência que a ausência de tormento pode ser um tormento ainda maior. Qualquer homem poderia desejar desfazer-se de um cilício, mas provavelmente ninguém perceberia que o cilício é que mantém seu corpo quente.
"Talvez a túnica de Neso seja mais apropiada", pensou Stephen.
- Além disso - prosseguiu, - devo recordar-lhe que o ato irrefletido de Orígenes, foi condenado pelo segundo concílio de Constantinopla, junto com muitas de suas perniciosas doutrinas, e que apesar de que são Agustín rogou que lhe concedesse o presente da castidade, acrescentou: "Mas ainda não, Meu Deus!", provavelmente porque pensava que onde não há tentação não há virtude. A paz da qual o senhor me fala se parece muito com a morte. Na tumba todos somos estóicos.
- Farei o que deseja - disse Stephen. - Mas antes de que comece a consulta propriamente dita, peço que me permita dizer uma coisa: se o filósofo ao qual me referi visse que um homem que atravessou a nado o Maelstrom,{18} que conseguiu cruzar suas turbulentas águas e chegar à margem, jogue-se outra vez voluntariamente nesse turbilhão, ele se surpreenderia muito.
- Mesmo supondo que esse filósofo conhecesse o Maelstrom, o que é improvável, não podemos ser tão ingênuos como para pensar que conheceu a alguém como a senhorita Blenkinsop, pois do contrário nunca haveríamos ouvido falar tanto dessas orelhas.
Jack e Stephen não se reuniram na hora do café da manhã. A essa hora o doutor Maturin ainda não havia dado sinais de vida, e Jack, depois de assomar-se duas vezes pela porta e ouvir a cada vez a respiração cadenciada de um homem que dorme placidamente, pôs seu melhor uniforme e foi ao Almirantado para ver se era possível adiantar a hora de seu encontro. Era possível; contudo, foi um civil quem o recebeu, e como a maioria deles, tratava os oficiais navais não exatamente como a inimigos, mas sim como a pessoas que sempre pediam mais do que mereciam (mais emprego, mais ascensões, mais subsídios, mais compensações e dinheiro como recompensa pelos barcos, os canhões e os homens capturados), pessoas com as quais havia que guardar as distância. Amiúde suas petições se enviavam ao ministério da Marinha, à Junta de Transportes ou ao Comitê de ajuda aos enfermos e feridos, solicitando comentários e aclarações a respeito delas, de modo que um homem sem conexões provavelmente teria que esperar muitíssimo tempo antes de obter uma resposta satisfatória ou pelo menos uma entrevista, e isso era o que ocorria à maioria dos tenentes e capitães. Não obstante, um capitão de navio com bastante antiguidade estava acostumado a que lhe tratassem com deferência e que a expressassem com muitos sinais externos, por isso o senhor Solmes não só se pôs de pé para cumprimentar a Jack Aubrey como lhe aproximou uma cadeira.
Depois de um cortês preâmbulo, pegou uma pasta, a abriu, e disse:
- Tenho que falar-lhe de seu combate com o Waakzaamheid. Em primeiro lugar, queria saber como pode estar certo de sua identidade.
- Bem, o capitão Fielding, ao comando da Nymph, informou- me que o havia visto em frente ao cabo Branco, assim que ao encontrar-me quase imediatamente depois com um navio de linha com bandeira holandesa, dei por certo que era o mesmo.
- Porém, posto que não há prisioneiros nem documentos de nenhum tipo que o provem, não temos a absoluta certeza de que o navio em questão seja o Waakzaamheid, como o senhor o chama.
Jack começou a sentir raiva e tardou vários segundos em responder.
- O Leopard, estando sob meu comando, afundou um navio holandês de setenta e quatro canhões na latitude 42° sul - disse por fim. - As condições naquela zona, onde sopram ventos de grande intensidade e há forte marejada, são tão bem conhecidas que não é necessário explicar por que não há prisioneiros nem documentos. Virou a barlavento quando o mastro traquete caiu pela borda e imediatamente depois desapareceu, senhor. Em águas como essas não se pode ficar à capa nem se podem capturar prisioneiros nem documentos porque um barco tem que navegar rápido ou naufragar.
- Estou convencido disso, senhor - disse o senhor Solmes, para quem não havia passado desapercebido o tom amargo do capitão Aubrey nem o fato de que se havia crescido. - E o senhor compreenderá que quando tento obter mais informação sobre o assunto, atuo seguindo ordens; há que respeitar as regras do departamento. Por outro lado, este é um caso excepcional.
- Não vejo por que é uma excessão - disse Jack. - Hão sido destruídos muitos barcos inimigos de cuja presença nos mares não se tem nem uma mínima prova material. Poderia citar dúzias deles. Sempre se aceitaram o rol e os testemunhos dos oficiais. Esse é um antigo costume da Armada.
- É verdade - disse Solmes, - mas tem que me perdoar, capitão Aubrey..., neste caso o testemunho dos oficiais não é unânime e isso é o que o converte em excepcional. Recebemos um escrito de seu antigo primeiro oficial no qual, entre outras coisas, nos diz que o barco era um cargueiro, uma flûte.
- Um cargueiro? - inquiriu Jack. - Esse homem está louco. Pode ser que eu não tenha visto o nome de Waakzaamheid na popa, mas juro por Deus que vi seus canhões, e os provei também. Que um capitão de navio com uma folha de serviços como a minha e com minha antiguidade não reconheça um navio de linha! Que não reconheça um navio de setenta e quatro canhões quando combate com ele! Isso é uma monstruosidade, senhor! Esse homem está louco!
- Sem dúvida, senhor, sem dúvida. Mas até que os médicos certifiquem que perdeu a razão, as regras nos obrigam a levar em conta o que diz. Sugiro que consiga uma declaração jurada dos suboficiais e oficiais sobreviventes. Vejo que estavam com o senhor o tenente Babbington, o tenente Byron e o cirurgião Maturin... entre.
Um mensageiro entrou e disse que o almirante Dommet tinha ficado ciente de que o capitão Aubrey estava com o senhor Solmes e que desejava vê-lo quando estivesse livre.
- Aubrey, como estou contente de vê-lo! - exclamou o almirante. - Estávamos a ponto de mandar-lhe buscar quando nos informamos de que já estava aqui, precisamente aqui, em Whitehall. Isso é o que eu chamo de casualidade. Um pensa em uma pessoa e a vê um minuto depois, e isso quase o faz acreditar na mágica. Bem, o assunto é o seguinte: há que levar a cabo uma missão urgente e para fazê-lo se requer um homem equânime e com experiência. Alguém comentou que talvez o senhor não gostaria que lhe oferecessem uma corveta, mas eu disse: "Bah! Aubrey não dá muita importância para a classe, Aubrey não se acha o Grande Mogol, Aubrey aceitará inclusive um vagão-plataforma para enfrentar-se com o inimigo, contanto que tenha ao menos um canhão". Não é certo, Aubrey?
- É certo, senhor - respondeu Jack. - E agradeço que tenha tão boa opinião de mim.
Sabia muito bem que o almirante pretendia manipulá-lo, porém, dadas às circunstâncias, não se importava em absoluto.
- Posso perguntar-lhe que corveta é, senhor?
- A Ariel - disse o almirante. - Está ancorada em Nore. Pode ir até ali em uma carruagem e fazer-se ao a mar pela manhã com a mudança da maré. Queira Deus que sopre o vento do sudoeste.
- Não posso ir recolher minha bagagem e falar com minha esposa?
- Oh, não, Aubrey! - exclamou Jack. - Este é um assunto urgente, como lhe disse. Vou telegrafar para Portsmouth para que digam a sua esposa que regressará no próximo mês, depois de um pequeno sinal em seu nome. O tempo e a maré não esperam ninguém, sabe?
- Assim é, senhor - disse Jack, e para não ser menos, acrescentou: - E dizem que mais vale pássaro na mão do que dois voando.
- Sim, dizem isso. Bem, vamos, não há nem um minuto a perder. O Primeiro Lorde quer vê-lo.
Com mais seriedade e com termos muito mais precisos, o Primeiro Lorde disse ao capitão Aubrey tudo o que lhe haviam dito Stephen Maturin e o almirante Dommet; felicitou-lhe por haver escapado dos Estados Unidos, para ser testemunha da grande vitória e por ter a capacidade de deixar de lado a formalidade e seus própios interesses pelo bem da Armada. Também disse que era óbvio que dar o comando da Ariel ao capitão Aubrey não era nem muito menos o que a junta considerava que lhe correspondia pelos seus méritos e terminou acrescentando que, apesar de não poder prometer nada nesse momento, era possível que à sua volta lhe oferecessem uma das potentes fragatas novas que agora estavam preparando para ir para a base da América do Norte. Depois comentou que as ordens do capitão Aubrey seriam enviadas tão logo fossem escritas e que se quisesse poupar o dinheiro de alugar um carro, podia ir com o mensageiro do Rei, que partiria pouco depois da janta.
"Tinha que ter perguntado quando jantam os mensageiros do Rei", pensou Jack, caminhando com rapidez pela famosa rua Strand. "São desses esnobes que jantam às oito ou não?"
O que não era um esnobe, e tampouco o era seu estômago. Os longos anos passados na mar haviam habituado o seu estômago a receber a janta cedo, hora em que usualmente a serviam na Armada (um costume passado de moda) e protestava se passava a hora e não lhe haviam dado. E a hora já havia passado a algum tempo, e quando Jack entrou, gritou:
- Senhora Broad! Senhora Broad! Sirva a janta imediatamente, por favor! Estou desmaiando, caindo, senhora! Onde está o doutor?
- Está servida no refeitório privado, capitão, esperando que o doutor venha. Está lá em cima com um jovem cavalheiro estrangeiro e não para de falar em língua estrangeira.
- Um cavalheiro muito charmoso - disse Lucy, que estava atrás do balcão.
- Já o chamei uma vez... dez vezes - disse a senhora Broad. - Nenhuma perna de porco e nenhum frango resiste a um tratamento assim. Eu o chamarei outra vez.
- Deixe que eu vou, tia Broad! - disse Lucy, saindo rapidamente detrás do balcão.
Jack entrou no refeitório privado, pegou um pedaço de pão e comeu. Alguns momentos depois entrou Stephen seguido do charmoso cavalheiro, um esbelto oficial com uma jaqueta lilás com galões prateados. Tinha o cabelo dourado, grandes e brilhantes olhos azuis, muito separados entre si, e uma pele que qualquer mulher invejaria. Suas maneiras eram delicadas sem ser afeminadas. Lucy o olhava fixamente com a boca aberta, preparada para afastar sua cadeira. Então Stephen disse:
- Permita-me que lhe apresente ao monsieur Jagiello, oficial do exército sueco. O capitão Aubrey, da Armada real.
Jagiello inclinou a cabeça, ruborizou-se e disse que era uma grande honra para ele conhecê-lo, que aquele era um momento muito importante.
A janta começou. Jack indicou ao jovem que se sentasse a sua direita e lhe falou com cortesia mas de temas intrascendentes, e Jagiello lhe respondia em um inglês fluente, quase perfeito, confundindo somente, e em poucas ocasiões, a pronúncia de duas letras, algo que fazia qualquer inglês reconhecer com satisfação sua superioridade. Stephen não falou até que houve uma pausa. Agora Jagiello cortava o frango, e podia ouvir a Lucy e a Deborah discutindo sobre quem ia servir o prato seguinte. Então Jack lhe disse em voz baixa que já lhes haviam dado ordem de fazer-se ao mar.
- Já o sei - disse Stephen. - Monsieur Jagiello nos acompanhará.
- Alegro-me muito - disse Jack, que simpatizara com o jovem. - O senhor é um bom marinheiro, não é, senhor?
Antes de que Jagiello pudesse responder, entrou um mensageiro do Almirantado, guiado por Lucy e Deborah, e entregou a Jack em suas própias mãos um envelope oficial; contudo, o mensageiro teve que encontrar a saída por si mesmo, porque as duas jovens ficaram ali contemplando boquiabertas a Jagiello até que se ouviu a voz da senhora Broad pedindo-lhes que se ocupassem de seu trabalho. Apesar disso, entravam constantemente com qualquer pretexto, para trazer mais sal, mais pimenta, mais molho ou perguntar se os cavalheiros queriam mais pão, e ao final da janta encontraram uma desculpa realmente válida, pois Jack gostava de acolher os estrangeiros que visitavam seu país, e sua forma preferida de fazê-lo era dar-lhes tanto vinho do porto como pudessem beber sem embebedar-se, assim que enquanto esperavam o mensageiro do Rei, trouxeram uma a uma as inumeráveis garrafas.
Jagiello tardava em embebedar-se, mas depois de um tempo sua pele ficou mais rosada, seus olhos mais brilhantes e lhe deu vontade de cantar. Havia falado com uma admiração póxima ao entusiasmo das canções populares inglesas, e agora, depois de fazer-se de rogado, presenteou aos seus acompanhantes com The lady and Death com voz de tenor melodiosa e com perfeita entonação. Depois todos se puseram a cantar Chevy Chase e All in the Downs, e a voz grave de Jack fazia vibrar o cristal dos copos e a voz escandalosa e desagradável de Stephen fazia as duas criadas, que estavam do outro lado da porta, contorcer-se de riso.
Naquele ninho de pássaros cantores entrou um cavalheiro delgado que usava uma jaqueta de um cor apagada com botões forrados e uma camisa branca almidonada e seu gesto de repugnância, como se houvesse jantado vinagre, apagou imediatamente a alegria dos comensais, e todos o seguiram até a carruagem com uma expressão envergonhada como se houvessem sido surpreendidos cometendo um delito. Stephen voltou a entrar para buscar um lenço que havia esquecido e viu Lucy colar os lábios na borda do copo vazio do charmoso cavalheiro.
O charmoso cavalheiro perdeu sua cor rosada ao ar livre e permaneceu pálido durante algum tempo, e inclusive parecia que os solavancos e as sacudidas do carro iam acabar com ele, mas se recuperou quando passaram por Blackheath. Tinha vontade de falar, mas ao olhar ao redor não encontrou nada que o animasse a fazê-lo, já que o mensageiro do Rei estava encolhido em um canto com as costas voltada para seus companheiros e sustentava um livro de maneira que a luz desse na página que lia; o doutor Maturin estava abstraído e com o olhar fixo na ponta dos pés; e o capitão Aubrey estava dormindo e dava roncos fortes e muito graves. De vez em quando, o mensageiro fazia movimentos raros com as pernas tentando despertar o capitão de maneira que não parecesse que o havia feito de propósito, mas sem êxito. Além desses movimentos, não havia nenhum outro no carro.
A maré subia, aumentando a corrente do Thames, e a carruagem descia pelo caminho para sua desembocadura. Pool estava abarrotado de barcos, que se elevaram com a subida da maré, mas já começara a baixa-mar e os mastros começavam um movimento descendente quase imperceptível, e junto aos costados apareceu o preto lodo. Mas em Nore ainda faltava quase uma hora para que a maré baixasse e, com o pôr do sol, Jack se dirigia para a Ariel em uma lancha, fazendo um percurso em ziguezague entre os barcos de guerra. E quando estava a uma milha dela, observou que o capitão dava uma festa, pois saía muita luz pelas janelas do mirador de popa e também a música de uma banda e, além disso, se viam damas bailando no pequeno castelo de popa, um espetáculo que, indubtavelmente, atraía os olhares de todos os marinheiros, já que ninguém pediu para que a lancha se identificasse até que já estava quase junto da corveta e a cerimônia com que o receberam quando subiu pelo costado foi um desastre. Não havia ordenado que a lancha se mantivesse ao pairo para dar tempo de que se preparassem para dispensar-lhe a recepção adequada, em parte porque tinha muita pressa (perdera valiosos minutos comprando as coisas mais necessárias em Chatham), e em parte porque para alguém que tinha dor de cabeça por causa do vinho do porto do Grapes, aquele relaxamento da disciplina parecia imperdoável.
- Não o esperava até amanhã pela manhã - disse com tristeza o capitão Draper. - O almirante disse que zarparia pela manhã com a mudança da maré.
- Sinto muito, capitão Draper, mas é na próxima mudança da maré que tenho a intenção de zarpar - disse Jack. - Por favor, diga aos marinheiros que se reunam na proa.
Se ouviu o agudo e entrecortado som dos apitos do contramestre e a ordem "tirem os chapéus!". Jack se situou junto ao mastro maior e, enquanto Draper o iluminava com uma lanterna, leu com expressão grave e voz potente o seguinte:
Aos comissionados encarregados para que se cumpram as ordens do Primeiro Lorde, almirante da Grande Bretanha e da Irlanda... e sobre todas as possessões de Sua Majestade... Para John Aubrey, nomeado no presente documento capitão da Ariel, corveta de Sua Majestade. Em virtude do poder e da autoridade que nos concederam, pelo presente documento o nomeamos capitão da Ariel, corveta de Sua Majestade e requeremos que suba a bordo e assuma o comando da mesma e a governe na qualidade de capitão, como corresponde, e ordene e mande todos os oficiais e marinheiros da citada corveta a realizar corretamente, juntos ou separadamente, suas respectivas tarefas e a tratar com o devido respeito e prestar obediência ao senhor, seu capitão, e o senhor também deverá respeitar e obedecer as Instruções Gerais impressas e todas as ordens e instruções que receberá de vez em quando de nós ou de seus oficiais superiores para servir a Sua Majestade. Como anterior nem o senhor nem nenhum outro faltará, do contrário deverá ater-se às consequências. E para que assim o faça, esta será sua garantia...
Havia tomado posse da Ariel, e no momento em que havia terminado de ler, a corveta se havia convertido em um navio sob o comando do capitão John Aubrey, que tinha autoridade legal, e o desacato a essa autoridade era pago com a morte.
- Sinto muito por expulsar o senhor e seus convidados -disse ao pobre Draper, e depois, muito mais alto, ordenou: - Todos a levantar âncoras!
- Todos os homens a desatracar! - gritaram o contramestre e seus ajudantes com todas suas forças, ainda que a ordem se havia ouvido de proa a popa e inclusive no Indomitable, que se encontrava a barlavento a dois cabos de distância.
- Jack Aubrey zarpou - disse o primeiro oficial ao oficial de derrota. - Aposto contigo uma garrafa de vinho do porto que veremos fogos artificiais antes que passe o banco Mouse.
- Jack Aubrey o Afortunado... - disse o oficial de derrota. - Sempre gostou muito dos canhões.
Enquanto os marinheiros corriam para seus postos e os carpinteiros seguravam as barras do cabrestante, Jack disse para Draper:
- Por favor, apresente-me aos oficiais.
Todos estavam muito perto: Hyde, o primeiro oficial; Fenton, o segundo; Grimmond, o oficial de derrota; e os outros. Draper disse seus nomes rapidamente porque estava desejoso de tirar seus pertences de sua cabine e de levar seus silenciosos convidados. Jack disse que estava encantado de conhecer-lhes, pediu a Draper que, em seu nome, pedisse desculpas às damas, e ordenou:
- Siga senhor, senhor Hyde.
Então se colocou em seu posto, junto ao leme, e permaneceu ali muito atento, apesar da confusão que se armou quando os convidados se prepararam para descer.
Os tripulantes da Ariel notaram que ele os olhava com atenção e corriam para fazer suas tarefas como nunca haviam corrido quando estavam sob o comando do jovem senhor Draper. Estavam ciente de que viria desde que o ajudante do almirante havia levado a bordo um piloto perito na navegação pelo Báltico e novas ordens para o capitão Draper, pois a notícia, através do despenseiro do capitão, demorara menos de dois minutos para espalhar-se por toda a corveta. Ainda que entre eles havia muitos grumetes e camponeses, também havia muitos marinheiros de barcos de guerra, que podiam contar-lhes que Jack Aubrey o Afortunado tinha fama de ser um capitão combativo, e três ou quatro desses marinheiros, que haviam navegado com ele, exageravam suas ações, dizendo, por exemplo, que comia fogo no café da manhã, no almoço, no lanche e na janta, que metia os que cometiam faltas em um barril e os atirava pela borda, para o que não necessitava de permissão nem encontrava nenhum obstáculo porque havia conseguido um butim de cem mil... duzentas mil... um milhão de libras e viajava em um carro de seis cavalos. Além disso, diziam que os pobres desgraçados que ele castigava assim eram aqueles que demoravam mais de quarenta segundos em disparar um canhão ou erravam o alvo, e todos os tripulantes que temiam que pudesse fazer isso, olhavam assustados para Jack enquanto moviam as barras do cabrestante ao rítmo das agudas notas do pífano e lhes parecia que sua imóvel figura, envolta na penumbra ali junto ao nervoso senhor Hyde, era de extraordinário tamanho, era irreal, uma figura cujo gesto indicava o hábito de mandar, uma figura da qual emanava autoridade, e também uma figura mal-humorada.
A amarra da âncora entrava pelo escovém enquanto a guarda de popa, os infantes de marinha e a maioria dos gavieiros empurravam as barras do cabrestante; os outros gavieiros começaram a passar a amarra de bombordo pelo escovém; no convés, os suboficiais e os marinheiros do castelo aduchavam a amarra, que fedia a lodo do Thames; e outros marinheiros revisavam o aparelho da gata.
- Preparados acima e abaixo! - gritou o segundo oficial desde o castelo.
- Preparados para velar a âncora! - ordenou o senhor Hyde muito nervoso, e depois, olhando para Jack, gritou: - Quer dizer, preparados para recolher a âncora!
A âncora principal da Ariel apareceu na superfície e seus tripulantes engataram o aparelho da gata à argola e, com grande habilidade, a subiram até a serviola a colocaram sobre ela e a amarraram. Quase imediatamente, enquanto o cabrestante girava sem parar, a corveta virou para a âncora menor e depois se ouviu o grito: "Preparados acima e abaixo!".
Nesse momento, pela primeira vez, interveio o novo capitão, que se havia dado conta de que Draper já estava pronto e desejava que o descessem pelo costado como era devido.
- Parar! - gritou com um tom de voz que parecia calculado para um barco maior. - Parar o cabrestante! Grumetes para popa!
Draper desceu como era devido, entre os incessantes apitos, com lágrimas nos olhos, enquanto seus convidados, tristes e silenciosos, esperavam na lancha. E quando esta soltou as amarras e começou a avançar para a costa, Jack gritou:
- Subir para as vergas!
Os gavieiros subiram correndo para os amantilhos, colocaram-se nas vergas, soltaram os tomadores e permaneceram ali segurando as velas.
- Soltar! Caçar as escotas! Caçar as escotas! Colher as adriças! Puxar, puxar! Acostar!
As vergas subiram, as escotas foram retesadas e as ondulantes velas se esticaram, e imediatamente a Ariel fez um brusco movimento para frente e a âncora se desprendeu do fundo. Os marinheiros recolheram com o cabrestante o pedaço de amarra que faltava tão rapidamente como os que estavam no convés podiam aduchá-lo, e a âncora pequena foi erguida para o serviola e amarrada quando a Ariel passou roçando o costado de barlavento do Indomitable. Depois passou entre este e o navio que estava adiante e dirigiu a proa para o alto mar justo quando a maré mudava.
- Vira com facilidade - comentou o oficial de derrota do Indomitable.
- Foi uma imprudência passar perto do costado de barlavento - disse o primeiro oficial. - Poderia ter estragado a pintura se tivesse havido algum contratempo ao levar a âncora para o serviola.
Alguns minutos depois a Ariel largou as joanetes e imediatamente Jack ordenou:
- Iremos ao banco Mouse, senhor Grimmond. Sempre há um pouco de lixo ali quando a maré está baixa.
Até esse momento, Stephen, Jagiello e o mensageiro do Rei haviam ficado junto à haste da bandeira tranqüilamente, como fardos. Então Jack chamou ao primeiro oficial, apresentou os três, e disse:
- Senhor Hyde, devemos alojar estes cavalheiros assim que for possível. O doutor Maturin pode ficar em minha cabine, mas o senhor terá que encontrar lugar lá embaixo para pendurar mais duas macas.
Hyde ficou mais nervoso ainda e com um triste sorriso disse que faria tudo o que pudesse, mas que a Ariel era uma embarcação de coberta corrida.
Se Jack já não tivesse notado que a Ariel não tinha o castelo de popa e o castelo conforme mandavam os cânones (que a coberta se estendia de proa a popa sem variar de nível, pelo que, apesar de ser muito bonita, a corveta tinha pouco espaço) o teria notado imediatamente depois, ao levar seus acompanhantes abaixo. Depois de muitos anos de experiência aprendera que devia agacha-se quando estava sob coberta, e, sem pensá-lo, inclinou a cabeça ao entrar na cabine. Mas Jagiello não teve a mesma sorte e bateu a cabeça em um vau. O golpe foi tão forte que, apesar de dizer que não havia sido nada e que não sentia nada, ficou pálido como um cadáver, e por isso o sangue que escorria pelo rosto se destacava mais. Colocaram-no em cima de um escaninho, e até o mensageiro do Rei mostrou uma pitada de humanidade, e enquanto Stephen lhe secava o sangue, Jack mandou buscar grogue e disse que isso podia acontecer com qualquer um e que devia ter muito cuidado nas corvetas e nos bergantins porque tinham vaus baixos, sobretudo os franceses. Mas o capitão Aubrey não ficou com eles muito tempo, aliás regressou para coberta assim que teve a certeza de que Jagiello poderia sobreviver.
A esquadra ancorada em Nore já estava muito longe da popa e Sheerness não era mais que uma silhueta borrada. A Ariel deslizava suavemente pelas águas tranqüilas e pouco profundas a uma velocidade de cinco nós, empurrada por uma suave brisa, e deixava atrás de si uma esteira tão reta como um sulco perfeitamente traçado.
Passeou pelo pequeno castelo de popa meia dúzia de vezes, olhando alternativamente para cima e por cima da borda, para poder formar uma idéia da corveta. Era muito parecida com o que ele esperava: era bem construída, tinha uma exárcia adequada, era rápida, fácil de governar e navegava bem de bolina. A recordava bem, já que a perseguira em duas ocasiões quando ainda era uma corveta francesa, ainda que sem êxito, e a vira muitas vezes depois de ter sido capturada. Era uma das poucas corvetas francesas que o Almirantado não estragara acrescentando uma superestrutura, ainda que, como era usual, colocaram mais canhões e poseram um portaló extra em cada costado, o que provavelmente impedia que alcançasse grande velocidade e afundava um pouco a popa. Era uma embarcação pequena e muito bonita, como uma fragata em miniatura mas com um aspecto mais sóbrio; e também tinha grande potência, pois levava dezesseis caronadas de trinta e duas libras e dois canhões longos de nove libras, mas só podia usar essa potência se o alvo estivesse perto. Podia combater com qualquer embarcação de sua classe, desde que conseguisse aproximar-se suficientemente.
Desde o momento em que haviam mencionado a Ariel em Whitehall, confiava em que a corveta, se estava bem tripulada, faria qualquer coisa que fosse razoável no mar desde que lhe pedisse. O que não sabia era se os marinheiros de sua dotação eram hábeis para tripulá-la. Era óbvio que havia entre eles alguns marinheiros de primeira, porque o modo com que haviam desatracado era digno de elogio e na coberta tudo estava em ordem e arrumado ao estilo de Bristol, com excessão de um palanquim solto na proa; contudo, também era óbvio que faltavam tripulantes na Ariel, provavelmente uns vinte, para chegar aos cento doze da dotação que lhe correspondia, e havia entre eles mais grumetes do que devia. Mas a questão mais importante não era se poderiam tripular bem a corveta, mas se poderiam disparar bem os canhões. Não conhecia os jovens que estiveram ao comando dela nos dois últimos anos nem sabia a importância que davam à artilharia, e posto que no dia seguinte possivelmente teria que enfrentar barcos holandeses em frente à desembocadura do Escalda e inclusive com barcos corsários franceses e norte-americanos um pouco mais adiante e com canhoneiras dinamarquesas no Belt, queria saber o quanto podia esperar deles e, em vista disso, decidir a estratégia a seguir.
- Suba as escotas meia braça, senhor Grimmond - disse ao oficial de derrota, que estava encarregado da guarda. - Não temos que chegar ali logo. E talvez deveríamos ordenar que amarrassem esse palanquim.
Depois de passear algumas vezes mais, notou que a Ariel diminuia a velocidade, igual que uma égua quando o jóquei solta suavemente as rédeas. O banco Mouse ainda estava bastante longe.
- Diga ao condestável que venha - ordenou.
E quando o jovem condestável chegou, de olhos brilhantes e cabeça redonda, ele disse:
- Condestável qual a quantidade de provisões tem?
Ainda que a Ariel não tivesse muitas provisões, tampouco carecia delas, e Jack podia permitir-se disparar duas ou três descargas usando dois barris da pior pólvora que já estavam pelo meio. Com isso consumiria a quantidade que o Almirantado atribuía para fazer práticas em oito meses, mas quando fizesse escala em Karlscrona, onde devia reunir-se com o Chefe da frota do Báltico, encheria a santa-bárbara e os paióis com pólvora e balas, compradas com seu própio dinheiro, como a maioria dos capitães que tinham recursos suficientes para isso e que estavam convencidos de que a melhor maneira de vencer o inimigo no mar era disparar os canhões com rapidez e precisão.
- Muito bem - disse no momento em que soaram as três badaladas da guarda de segundo quartilho. - Senhor Hyde, que redobre o tambor para chamar todos a seus postos, por favor.
- Redobre de tambor! Chamar todos para seus postos! - gritou o primeiro oficial.
Mas então houve uma horrível pausa. Ninguém esperava esse tipo de coisa tão tarde; o marinheiro que tocava o tambor estava na proa com os calções baixos; o tambor não aparecia em nenhuma parte, e muito menos soava. Apesar disso, os tripulantes obedeceram a chamada do contramestre e de seus ajudantes e foram correndo para seus postos, e alguns momentos depois, Jack viu um espetáculo ridículo que lhe fez muita graça: o marinheiro, com a parte de trás da camisa pendurada para fora dos calções, tocava o tambor como um louco enquanto a tripulação permanecia imóvel.
- Pare de tocar! - gritou o senhor Hyde, agitando o punho no ar, e se voltou para Jack e, em tom sereno e respeitoso, disse: - Todos em seus postos e sóbrios, senhor.
- Obrigado, senhor Hyde - disse Jack, e avançou até a linha imaginária que separava o imaginário castelo de popa do imaginário convés.
O banco Mouse estava perto, e ainda que quase já não houvesse luz, Jack podia distinguir a lixo que flutuava na água formando uma comprida linha, que costumava acumular-se ali entre as mudanças da maré.
- Silêncio de proa a popa! - ordenou.
A ordem não era necessária, já que todos os tripulantes estavam silenciosos e só se ouvia o assobio do vento na exárcia, o rangido das polias e o rumor da água ao passar pelos costados da corveta; contudo, era interpretada como a única introdução adequada da ladainha marcial: "Destrincar os canhões! Nivelar os canhões! Sacar os tapa-bocas! Sacar as bocas das portas!".
Nenhum deles se assombrou ao ouvir isto, mas todos se surpreenderam quando o capitão interrompeu a ordem ritual dizendo:
- Nós nos aproximaremos desse barril que está a sotavento até que esteja ao alcance de um mosquete, senhor Grimmond.
E depois, em voz mais alta, ordenou:
- Carregar os canhões! O alvo é a caixa que está pela amura de estibordo! De proa a popa, disparem quando a tenham na mira!
Silêncio absoluto... O clarão do canhão de nove libras de proa iluminou o céu e quase imediatamente se ouviram os estrondosos disparos das caronadas de estibordo.
- O que eu havia dito? - perguntou o primeiro oficial do Indomitable ao oficial de derrota.
Ambos olharam para o norte, e o enorme estrondo chegou até eles. Um momento depois, o grupo de nuvens baixas que havia ao norte foram iluminadas de novo por um resplendor vermelho.
- Está virando - disse o oficial de derrota.
Voltaram a ouvir um estrondo distante e a seguir houve uma pausa, na qual o oficial de derrota passou a contar em voz alta. E quando chegou a setenta, os clarões iluminaram o céu outra vez.
- Agora disparará a quarta descarga - disse o primeiro oficial, mas desta vez se equivocou.
- Guardar os canhões! - ordenou Jack e depois disse: - Uma prática digna de elogio, senhor Hyde.
E então, já sem dor de cabeça nem mal-humor, foi para baixo sorrindo.
CAPÍTULO 7
Nenhum navio holandês havia saído da desembocadura do Escalda nem de Texel para atacar a Ariel, e tampouco a corveta se encontrara com barcos corsários, porém, posto que os dinamarqueses não tinham simpatia pela Armada real desde que havia atacado sua capital e apresara sua frota, outros perigos a espreitavam mais adiante, e todos a bordo se preparavam cada dia mais para enfrentá-los.
Para sua satisfação, Jack descobriu que herdara uma tripulação melhor do que esperava. O condestável havia servido sob as ordens de Broke e aprendera seu ofício no velho Druid, e além disso, dois de seus ajudantes haviam sido tripulantes da Surprise quando Jack estava comandando ela, e, afortunadamente, ainda que Draper, seu predecessor, não quisera ou não pudera gastar muito em pólvora e balas, pusera chaves e miras nos canhões de nove libras. Além disso, os oficiais eram jovens que conheciam bastante bem sua profissão e estavam dispostos a aceitar a opinião de seu novo capitão sobre a destreza que os tripulantes de um barco do Rei deviam ter no manejo dos canhões.
Assim, a Ariel navegava rumo norte, envolta em uma nuvem de fumaça constantemente renovada, disparando de dia e de noite em diferentes intervalos, em momentos inesperados, porque essa era a melhor forma de preparar os tripulantes para uma emergência. Ainda que Jack não podia esperar que disparassem com a rapidez com que seus tripulantes em outras missões chegaram a fazer, nem muito menos com sua precisão (entre outras razões, porque as curtas caronadas não podiam lançar uma bala com a precisão de um canhão longo), estava satisfeito com o resultado obtido até então e confiava que a Ariel se sairia bem se travasse um combate com um oponente da mesma categoria. Na verdade, ansiava que chegasse o momento de entrar em combate, não só porque gostava das ações de guerra (pela grande emoção que provocavam e pelo fato de dignificarem a vida), mas também porque a tripulação da Ariel, ainda que fosse muito boa, era composta por homens recrutados em três levas recentes e que ainda não formavam um grupo homogêneo. Durante sua carreira naval, observara que entre os companheiros de tripulação surgia a simpatia e inclusive o afeto quando lutavam juntos em uma batalha e que na relação entre os marinheiros e os oficiais se produzia uma importante mudança que afetava ambas as partes. Por exemplo, ele estava unido por laços de amizade a Raikes e Harris, os ajudantes do condestável, porque os três haviam repelido juntos o duro ataque de um barco de linha francês no oceano Índico. O protocolo naval não permitia que mantivessem conversações, mas era indubitável que entre eles havia uma relação especial, uma grande estima.
- Esta é uma vida mais apropiada para um homem - disse Jack a Stephen depois de uma das práticas que novamente encheram de ruído o golfo de Helgoland.
- Certamente, inclusive tripular um barco com tantos mastros como este, onde há que puxar de tantos cabos para ajustar as velas, não é nada comparado com as dificuldades da vida na terra - disse Stephen abotoando o pescoço.
Sempre havia notado que no mar Jack era outro homem, um homem mais maduro, capaz de enfrentar tanto as situações comuns da vida diária como as situações estranhas, e também mais feliz; contudo, raramente a mudança fora tão grande e tão clara como desta vez. Um triste chuvisco chegava das Ilhas Frísias setentrionais e a marejada fazia saltar água por cima da borda de barlavento do castelo de popa a intervalos irregulares, e o rosto de Jack, sobressaindo de seu jaquetão inadequado e comprado depressa, estava radiante, parecia o Sol nascente atrás de uma cortina de chuva.
- Talvez isso se deva - prosseguiu, - em parte, à grande simplicidade de nossa comida, uma comida que nos servem a intervalos regulares e sem que façamos nenhum esforço para consegui-la, enquanto que em terra se pensa amiúde em comer e os sucos gástricos se segregam constantemente. Porém, sem dúvida, o fator mais importante é a presença em terra de outro sexo, que desperta outro apetite, e a aparição de um conjunto de regras sociais e inclusive de valores morais diferentes.
- Bem, com relaçã a isso... - disse Jack enquanto estirava o pescoço para ver melhor a cruzeta, com o pensamento em outra parte, e depois, voltando-se para um guarda-marinha que estava no lado de sotavento, ordenou: - Senhor Rowbotham, suba na cruzeta do mastaréu de proa e transmita meus cumprimentos ao senhor Jagiello e diga-lhe que eu gostaria de falar com ele quando o considere oportuno. E escute-me bem, senhor Rowbotham, deve descer pela boca de lobo, ouviu? Não quero que faça travessuras na exárcia nem que se deslize pelas bordas.
- Não, senhor. Sim, senhor - disse Rowbotham e subiu na exárcia com a mesma rapidez, ainda que não com a mesma graça, que seu primo o lêmure de calda anelada.
- Sinto muito, Stephen, mas não posso permitir de nenhuma maneira que se passeie pela exárcia, sobretudo com a mão ferida. É um homem desafortunado e poderia matar-se.
Era certo. Jagiello já caíra no mar através de um espaço livre que temporariamente ficara no parapeito, e o pegaram com o barbante do hodômetro enquanto ele ria alegremente; caíra pela bodega na única vez que uma escotilha ficara destampada, e salvou-se porque caiu em cima de um monte de sacos vazios; estivera a ponto de ser destroçado quando Moisés o Lerdo deixara cair a cunha do mastaréu diante de seus pés de uma grande altura, e a enorme peça de ferro havia ficado cravada na coberta como uma bala de corrente; e apenas no dia anterior, quando observava como funcionava a chave do canhão de nove libras, o trinco havia deslizado, machucara seus dedos e estivera a ponto de perder um deles. Era um homem muito popular entre a tripulação. Os marinheiros lhe tinham simpatia não só porque havia pedido que não açoitassem Moisés o Lerdo, senão também porque sempre estava alegre e, aparentemente, não tinha medo; os oficiais lhe tinham simpatia porque escutava atentamente suas anedotas e apreciava seu engenho. Ainda que os oficiais mais estúpidos, como o senhor Hyde, ainda lhe falavam em voz alta, muito devagar e no tom que se fala com crianças tontas e com os estrangeiros, Graham, o cirurgião, um homem de grande agudeza quando estava sóbrio, e Fenton, o segundo oficial, diziam que era um disparate dizer: "Isto se chama cachorro morto. É purê de ervilhas, na realidade, mas o chamamos de cachorro morto. Gosta do cachorro morto?" a um homem que sabia jogar muito bem o whist e ganhava de todos no xadrez. E era indubitável que sua extraordinária beleza e suas maneiras delicadas influiam em ambas atitudes.
- Ah, senhor Jagiello! - exclamou Jack. - Obrigado por vir. Queria preguntar, em primeiro lugar, se teria a bondade de nos acompanhar na janta. Também vou a convidar o senhor Hyde. E, em segundo lugar, se conhece algum militar em Gotemburgo, porque a pólvora dos barris que estão no nível mais baixo do convés ficou úmida e eu gostaria de substitui-la por outra.
- Com muito gosto, senhor - disse Jagiello -. Muito obrigado. E com relação a Gotemburgo, conheço o comandante. Estou seguro de que ficará encantado de dar-lhe pólvora, sobretudo porque sua mãe é escocesa.
Stephen havia falado da simplicidade da refeição, e a janta foi um bom exemplo. O banquete começou com papas ao estilo marinheiro, condimentadas com xerez e engrossadas com pedaços de bolacha; seguiu com um frango raquítico com a pele enrugada e sabor de breu, que Stephen pôde dividir em quatro pedaços perfeitos, e com um pouco de purê de ervilhas do dia anterior, que haviam sido preparados fervendo-os dentro de um trapo até que se desfizeram e se converteram em uma massa homogênea; e continuou com a mesma carne de cavalo salgada e as mesmas bolachas que haviam servido de alimento dos oficiais, dos guardas-marinhas e dos marinheiros um pouco antes. É que a Ariel havia tido que zarpar tão rápido, e em um momento tão inoportuno, que os tripulantes não haviam tido tempo de levar para bordo suas própias provisões, e as poucas que lhes restavam já as haviam devorado antes que a corveta alcançasse os 54°N e agora todos tinham que contentar-se com o que o Ministério de Aprovisionamento lhes havia designado, pelo menos até que chegassem em águas suecas.
- Teria a amabilidade de cortar a carne para senhor Jagiello? -perguntou Jack ao senhor Hyde, assinalando com a cabeça a mão vendada de seu convidado.
- Claro, senhor - respondeu o oficial e começou sua laboriosa tarefa.
A carne havia feito uma viagem de ida e volta às Índias Orientais e agora se podia talhar e converter em um monte de adornos duradouros, e mesmo depois de passar várias horas no molho cozinhando nas panelas, ficava com sabor de carvalho. Stephen notou que Hyde era canhoto e que isso o fazia parecer mais desajeitado; contudo, era óbvio que tinha muita força na mão esquerda e que estava acostumado a cortar carne de cavalo salgada. E enquanto Hyde, fazendo uma grande pressão, estava partindo a carne em pedaços de tamanho razoável, murmurou:
- Espero que não esteja doendo muito, senhor Jagiello.
- O senhor é muito amável, senhor - respondeu Jagiello. - Não é nada. Mas confesso que esta manhã tive dificuldades para barbear-me, ainda que o doutor Maturin - assinalou com a cabeça para Stephen - e o doutor Graham...
Nesse momento um pedaço de carne chocou contra o peito de Jack com assombrosa força, e ainda que todos tenham rido e Jack dissesse que provavelmente o enforcariam por lançar uma arma letal em um oficial superior, tudo foi em vão, o pobre homem apenas pôde sorrir. Quando a refeição se reiniciou, Hyde passou o purê de ervilhas para Jagiello enquanto, em voz baixa e em tom melancólico, dizia:- Um pouco de cachorro torto, senhor, digo... Cachorro morto.
Essa não era a primeira vez que Stephen havia notado que Hyde tinha a costume de trocar as letras e se perguntou se isso teria algo a ver com o fato de ser canhoto, se a confusão entre a direita e a esquerda (havia visto que Hyde passava o vinho pelo lado contrário) estaria relacionada com a mudança dos sons, sobretudo num momento em que a mente estava turbada. Mas não seguiu refletindo sobre essa questão, senão que disse:
- Faz pouco estávamos falando de sexo. E agora que penso, talvez esse não seja um tema adequado para tratar na mesa de um capitão, de onde se hão excluído a política e a religião. Acaso é um tema bem acolhido na coberta e proibido debaixo dela?
- Acho que ouvi falar dele em alguma ocasião - respondeu Jack.
- A idéia da liberdade e a da simplicidade são as que me impulsionaram a fazer essa observação. Nesta arca, nesta comunidade flutuante, todos somos do mesmo sexo, porém, o que ocorreria se houvesse pessoas dos dois sexos, como em terra?
Ao dizer isto último olhara para Jagiello, que se ruborizou e respondeu que não sabia.
- Conheço pouco às mulheres, senhor - disse. - Um não pode ter amizade com elas: são como os judeus.
- Como os judeus, senhor Jagiello? - inquiriu Jack.
E depois, sorrindo, pensou: "Admira-me que alguém pudesse demostrar que é cordeiro, sabe?".
- Sim, judeus - disse Jagiello. - Um não pode ser amigo dos judeus. Foram perseguidos e maldito durante tanto tempo que são inimigos de todos, como os cativos. As mulheres foram cativas domésticas durante muito tempo. Não é possível que chegue a haver amizade entre os inimigos, nem sequer durante uma trégua, porque sempre estão vigilantes. E se um não é amigo de alguém, como vai conhecê-lo realmente?
- Alguns falam do amor... - disse Stephen.
- O amor? - inquiriu o jovem. - Mas o amor é fruto do tempo e, em troco, a amizade não. Como Shakespeare dizia...
Os marinheiros nunca se informaram do que Shakespeare dizia, pois nesse momento entrou um guarda-marinha que fora enviado pelo oficial de guarda para informar que a chuva havia cessado a sotavento e que puderam avistar vinte e oito exárcias de mercantes e, além disso, uma fragata e um bergantim que pareciam ser a Melampus e o Dryad.
- É um comboio do Báltico, sem dúvida - disse Jack. - Ninguém poderia confundir a Melampus. Não obstante, acho que seria melhor darmos uma espiada. Doutor, pode contar algo a Jagiello para entretê-lo enquanto voltamos? Tenho muita esperança de terminar a janta com algo melhor que o condenado queijo de Essex.
- Senhor Jagiello - disse Stephen quando os outros se foram, - queria que me falasse dos antigos deuses da Lituânia, que, conforme acredito, habitam ainda como fantasmas entre os camponeses, e também do culto ao carvalho, e da águia marinha, o castor e o bison europeu e dessa doença denominada documento reservado. Mas antes que esqueça, queria dar-lhe uma mensagem que me encarregaram de transmitir com muito tato, diplomaticamente, para que não pareça uma ordem, porque é impróprio dar uma ordem a um convidado, mas de maneira que tenha a mesma força e o mesmo efeito. A agilidade com que se move pela exárcia desperta admiração, estimado amigo, porém, ao mesmo tempo, grande intranqüilidade e uma preocupação proporcional à estima que lhe temos, e o capitão se alegraria muito de que não passasse das plataformas mais baixas, conhecidas tecnicamente como cestos das gáveas.
- Acha que vou cair?
- Acha que a gravidade atrai com mais força os soldados que os marinheiros e, como o senhor é um hussardo, está convencido de que cairá.
- Farei o que deseja, certamente. Mas se equivoca, sabe?, porque os heróis nunca se caem, ou, pelo, não morrem ao cair.
- Não sabia que o senhor era um herói, senhor Jagiello.
A Ariel se inclinou bruscamente para colocar-se com o vento pela alheta, desdobrou as joanetes e as alas de barlavento e avançou para a Melampus com rapidez, a dez nós, com a borda de sotavento enterrada na espuma. Jagiello se agarrou fortemente na mesa, mas aquele solavanco para barlavento o fez escorregar do assento e cair no solo, e durante alguns momentos permaneceu ali sem poder mover-se, pois suas esporas se cravaram na esteira que o cobria.
- É claro que sou um herói - disse, levantando-se e rindo alegremente. - Cada homem é o herói de seu própio conto, doutor Maturin. Sem dúvida, cada homem considera a si mesmo mais inteligente, mais astuto e mais virtuoso que os outros, portanto, como seria possível que se achasse o mau da obra ou tão sequer um personagem secundário? E o senhor deve ter notado que os heróis nunca são derrotados. Podem ser derrubados, mas sempre conseguem se levantar de novo, e se casam com a jovem virtuosa.
- De fato, notei. Há algumas excessões notáveis, naturalmente, mas concordo com o senhor que é assim na maioria dos casos. Talvez por isso o conto ou o romance de cada homem seja um pouco chato.
- Ah, doutor Maturin, se pudesse encontrar uma amazona, uma das integrantes dessa tribo de mulheres que nunca foram oprimidas, uma mulher com a qual pudesse ter amizade e tratar como um igual, quanto a amaria!
- Desgraçadamente, meu amigo, os homens mataram a última amazona faz dois mil anos. Temo que seu coração terá que ir virgem para a tumba.
- Que ruído é esse? Parece que há ursos caminhado pelo teto - disse Jagiello, interrompendo-o.
- Estão jogando um bote na água, e, a julgar pelos gritos dos marinheiros, tardaremos em comer a sobremesa. Gostaria de jogar uma partida de xadrez enquanto esperamos? Talvez não sirva para demostrar nossa inteligência, nossa astúcia e nossas virtudes, mas não me ocorre nada melhor.
- Encantado - disse Jagiello. - Mas se perco, não creia que vou mudar de opinião.
Talvez o jogo não demostrou a inteligência dos jogadores, mas pôs de manifesto que Jagiello tinha mais virtudes ou, pelo menos, mais bondade que Stephen. O doutor jogava para ganhar e havia lançado um ataque contra a rainha, mas o havia feito na jogada anterior à adequada (um peão ainda obstava a passagem de sua artilharia pesada) e Jagiello se perguntava como poderia jogar para perder, como poderia cometer um erro que não fosse tão claro que ferisse a sensibilidade de seu oponente. Jagiello jogava muito melhor que Stephen, mas ocultava seus sentimentos muito pior. Stephen observava com regozijo sua fingida expressão estúpida quando ouviu que o bote regressava. Um momento depois entrou Jack seguido de seu despenseiro, que trazia um pudim de passas do tamanho de uma roda de carro, e de dois fortes marinheiros com uma enorme cesta, da qual saiu um ruído de cristais ao ser depositada no solo. E na coberta se ouviu um ruído de cascos e um melancólico balido que revelaram a presença de pelo menos um manso cordeiro. Jagiello, com um gesto de alívio, afastou imediatamente o tabuleiro para dar espaço ao pudim, derrubando deliberadamente todas as peças para resolver seu problema.
- Sinto ter demorado tanto, mas estou certo de que pensarão que valeu a pena - disse Jack. - Na Melampus nunca se privaram de nada. É como uma mansão. Pode servir-se de mais um pedaço, senhor Jagiello. Só tem que durar até Gotemburgo.
Gotemburgo. Uma cidade melancólica, que havia sido queimada quase por completo recentemente. Seus habitantes, homens e mulheres taciturnos, vestidos com roupa de lã cinzenta, tinham tendência a embebedar-se e a suicidar-se (durante o curto tempo que a Ariel permaneceu ali passaram junto dela os cadáveres de três suicidas que o rio havia arrastado) e ainda que não fossem amáveis com eles mesmos, eram com os estrangeiros. Imediatamente o comandante forneceu a Jack a pólvora, da melhor qualidade, e, além disso, presenteou-lhe com uma caixa de língua de rena defumada e um pequeno barril de falcões apicultores salgados. O barril ele entregou a Stephen dizendo:
- Por favor, aceite este barril de falcões.
- Falcões? - inquiriu Stephen tão surpreendido como poucas vezes lhe haviam visto.
- Oh, não são falcões comuns! - exclamou o comandante. - E tampouco falcões, falcões, não tema. Todos são falcões apicultores, dou minha palavra.
- Estou certo, senhor, muito obrigado - disse Stephen e, olhando atentamente o barril, acrescentou: - O senhor se importaria de dizer como chegaram aqui?
- Os pus eu mesmo, os pus com minhas própias mãos, escolhendo um por um. Escolhi os melhores, ainda que não corresponde a mim dizê-lo.
- Os matou com uma escopeta?
- Oh, não! - exclamou o comandante muito assombrado. - Não se devem matar os falcões apicultores com escopeta; isso arruina seu sabor. Nós os estrangulamos.
- Não se incomodam com isso?
- Acho que não - respondeu o comandante. - O fazemos pela noite. Tenho uma casinha em Falsterbo, uma península com alguns bosques situada no extremo do Oresund. As aves, miríades de aves, passam por ali no outono em sua viagem migratória para o sul, e um grande número delas pernoitam nos galhos das árvores para dormir. São tantas que apenas deixam ver as árvores. Escolhemos os melhores falcões, os derrubamos e os estrangulamos. Isso se há feito sempre; todos em Falsterbo estão acostumados com isso. Os melhores falcões apicultores salgados são de Falsterbo.
- Também vão águias, senhor? - perguntou Stephen.
- Oh, sim, é claro!
- As salgam também?
- Oh, não! - respondeu o comandante. - Uma águia salgada não seria um prato saboroso. Sempre as conservamos em vinagre, sabe?, porque se não secariam muito.
Enquanto subiam a pólvora a bordo, Stephen exclamou:
- Gostaria muito de conhecer Falsterbo!
- Talvez possa - disse Jack. - O comandante me disse que os dinamarqueses têm potentes canhões na costa do Belt e o capitão da Melampus me disse o mesmo. Além disso, quero passar pelo Oresund. Falemos com o piloto.
Quando chegou o piloto experto na navegação pelo Báltico, um velho que Jack conhecia há muito tempo e que respeitava muito, disse:
- Senhor Pellworm, quero passar pelo Oresund. Sei que os dinamarqueses mudaram as balizas, porém, o senhor acha que pode fazer a corveta passar pelo estreito durante a noite, ao final da noite?
- Hei atravessado o Oresund muitas vezes desde que era menino e o conheço como a palma de minha mão, como a palma de minha mão, senhor - respondeu o senhor Pellworm. - Não necessito das velhas balizas para fazer passar uma embarcação do calado da Ariel pelo estreito durante a noite, e inclusive poderia levá-la até Falsterbo, com a ajuda dos faróis suecos.
- E, o que pensa relação ao vento, senhor Pellworm?
- Bem, senhor, nós, nesta época do ano, dizemos: "Entrar pelo Oresund e sair pelo Belt", porque o vento do oeste se mantém na parte norte do primeiro e na parte sul do último. Não tema pelo vento, senhor. Ou o vento segue sendo favorável para atravessar o Oresund durante três ou quatro dias ou deixo de me chamar como me chamo.
- Então faremos assim, senhor Pellworm. Levantaremos âncoras assim que zarpe o bote que trouxe a pólvora e atravessaremos o estreito na escuridão.
O piloto não se equivocou com relaçã à direção do vento, que também havia feito a Ariel passar pelo Kattegat a considerável velocidade, mas se equivocou com respeito a sua intensidade. Na guarda de meia Jack despertou, escutou atentamente o rumor da água ao passar pelos costados do barco, pôs um jaquetão em cima da camisa de dormir e subiu para a coberta. A luz da lua era tênue, as águas estavam negras e tranqüilas, e a Ariel avançava apenas a cinco nós de velocidade. Pela amura de bombordo viu uma luz na costa sueca e pensou que aquele não podia ser o cabo Kullen, que o cabo Kullen devia estar agora muito para trás. Aproximou-se da bitácula, pegou a tabela onde estavam apuntadas com giz a intensidade e a direção do vento, a velocidade e o rumo e rapidamente calculou a posição da corveta. O piloto se aproximou dele e tratou de desculpar-se com uma tosse forçada.
- Seria possível que o grupo de marinheiros que está abaixo subisse para desdobrar mais velas?
- Não, não vale a pena - respondeu Jack. - Esperaremos até as oito badaladas.
Estavam muito atrasados, mas não valia a pena chamar todos os marinheiros agora porque, mesmo desdobrando as sobrejoanetes, as monteirinhas e as alas de cima a baixo, teriam que atravessar o estreito de dia.
- Senhor... Senhor Jevons, né? - disse a um guarda-marinha que estava ali na escuridão abrigado com um cachecol. - Por favor, desça e traga minha capa de água. Está pendurada junto ao barômetro. Tenha cuidado de não despertar o doutor.
Envolto em sua capa, permaneceu junto ao farol de popa observando o céu e a corveta e pensando no que devia fazer. Parecia que devia seguir adiante em vez de mudar de bordo e passar pelo Belt. O risco não era muito grande, e, em troca, era muito o tempo que poderiam poupar. O que realmente lhe preocupava no fato de atravessar o estreito mais tarde era que as canhoneiras de Copenhague e Saltholm estariam esperando-lhes, já que a notícia de sua presença ali chegaria com suficiente antecedência, e, nesse caso, se o vento se acalmasse, poderiam ter dificuldades porque as canhoneiras eram muito hábeis e já haviam capturado numerosas corvetas e bergantins; contudo, pensava que devia seguir adiante. Apesar de que isto continuou dando-lhe voltas na cabeça, também pensou em alguns aspectos da vida no mar e, sobretudo, na invariável rotina que vira em todos os barcos em que navegara, uma rotina amiúde tediosa, desagradável e com exigências, mas que, pelo menos, punha ordem no caos. Era uma estrutura admitida, com preceitos que vinham de cima, preceitos às vezes arbitrários e outros arcaicos, porém, em geral, fáceis de seguir e mais tangíveis e mais fáceis de fazer cumprir que o Decálogo. Nessa estrutura surgiam uma infinidade de problemas, mas a ordem proporcionava soluções para a maioria deles, ou evitava que se formassem.
Sete badaladas. Por todo o barco se ouviu o grito: "Tudo bem!".
Oito badaladas. Chamaram todos os marinheiros para seus postos, e quando estes começaram a sair de suas macas, despenteados e com os rostos rosados e suados, o ajudante do oficial de guarda lançou a barquilha.
- Girar! - gritou o ajudante.
E, vinte e oito segundos depois, o segundo oficial disse:
- Parar!
- Quanto? - perguntou Jack.
- Quatro nós e três braças, senhor, com sua licença - respondeu o senhor Fenton.
Era o que se temia: uma sensível redução. Poderia seguir adiante e procurar estar sempre sob a proteção das baterias suecas ou mesmo entrar em Helsingborg. Quando todos os marinheiros estavam na coberta deu a ordem para desdobrar mais vela e voltou para suas reflexões.
Ao leste apareceu a luz no céu. Já estava a ponto de começar o ritual da limpeza da quase impoluta coberta; as bombas chiavam e tudo estava molhado. Jack foi abaixo para trocar de roupa e para não atrapalhar os gavieiros, que já se aproximavam da popa com baldes, areia, pedra arenito e esfregões.
Jack gostava da Ariel, ainda que fosse uma corveta muito pequena, e também de sua cabine, que, apesar de não ser grande, comunicava-se com outros dois compartimentos: a cabine de dormir e o refeitório. Havia alojado Stephen neste e havia mandado mover a mesa para pendurar sua maca; e nessa mesa esteve sentado comodamente até que os rítmicos golpes dos esfregões indicaram que os marinheiros, que limparam a coberta desnecessariamente, agora a estavam secando desnecessariamente também.
Voltou ao seu posto e permaneceu ali observando todas as ações e movimentos da ordenada vida do barco, tratando de distinguir os mudanças que o dia anunciava, olhando as nuvens para predizer como sopraria o vento e contemplando de vez em quando a costa, que se movia lentamente, muito lentamente.
Ainda estava ali quando Stephen apareceu, muito cedo em comparação com a hora em que habitualmente subia, com um telescópio emprestado.
- Bom dia, Jack - disse e imediatamente olhou ao seu redor e exclamou: - Mãe de Deus, é mais estreito do que eu imaginava!
Realmente, era muito estreito. Agora, à luz do Sol, podia ver-se os suecos caminhando pela margem de bombordo e os dinamarqueses pela de estibordo. Apenas três milhas separavam uma margem da outra, e a Ariel estava mais ou menos no meio, mais perto da Suécia, avançando para o sul muito devagar, apenas com velocidade suficiente para manobrar.
- E aí, você viu? - perguntou Stephen.
- Vi o que?
- Então, os patos de flojel, certamente. Não se recorda que Jagiello disse que poderíamos ver patos de flojel no Oresund? Pensei que era isso o que olhava com tanta atenção.
- Sim, disse, mas a verdade é que não prestei atenção. Mas posso mostrar algo que você gostará muito mais. Vê esses telhados verdes e esses terraços? Esse é Helsingór.
- Helsingór? O verdadeiro Helsingór? Obrigado, meu Deus! Que Deus o abençoe, Jack! É um castelo impressionante, é digno de admiração. Acreditava que era irreal... Silêncio! Não se mova! Aí vêm, aí vêm!
Uma revoada de patos passou voando sobre suas cabeças. Eram patos grandes e gordos que voavam como andorinhas, formando longas filas, e um pouco mais adiante mergulharam nas águas que separavam a corveta do castelo.
- São patos de flojel, não há dúvida - disse Stephen, observando-lhes com o telescópio. - Em sua maioria são filhotes, mas ali à direita há um pato adulto com toda a plumagem. Agora mergulha... Posso ver seu ventre preto... este dia será inesquecível para mim.
Nesse momento uma fonte brotou da superfície do mar. Os patos de flojel desapareceram.
- Meu Deus! - exclamou Stephen assombrado. - Que é isso?
- Dispararam em nós com seus morteiros - respondeu Jack. - Eram os morteiros o que estava buscando antes com a vista.
Uma voluta de fumaça apareceu no terraço mais próximo e meio minuto depois brotou outra fonte a duzentas jardas da Ariel.
- Godos! - gritou Stephen, olhando aborrecido para Helsingór. - Poderiam ter acertado nas aves. Estes dinamarqueses sempre foram muito ariscos. Sabe o que fizeram a Clonmacnois{19}, Jack? A queimaram, os canalhas, e sua rainha se sentou no altar mor como Deus a trouxe ao mundo, recitando oráculos em uma língua pagã. Ota era o nome dessa fulana. Todas são iguais; olhe a mãe de Hamlet... O que me estranha é que seu comportamento tenha suscitado comentários.
A bomba seguinte passou por cima da Ariel e fez brotar um penacho de água a um cabo de distância a bombordo. Jack pegou o telescópio e o dirigiu para a bateria. Cinco volutas de fumaça avançavam lentamente pelo Oresund; cinco fontes brotaram do mar, três próximas a um costado da fragata, duas próximas ao outro, e depois se ouviu um terrível estrondo.
- São muito hábeis - pensou. - Estão aumentando a carga.
O piloto foi para popa e perguntou:
- Quer que entremos em Helsingór, senhor?
- Não - respondeu Jack, olhando para o porto sueco, que estava pelo través de bombordo. - Siga avançando pelo Oresund, senhor Pellworm, e aproime-se da costa sueca tanto como queira.
Então se voltou para Stephen e disse:
- Quando se lançam bombas de duzentas libras em um objeto que se move, a esta distância, o resultado é incerto, sabe? Tanto pode acertar como errar. Não tem nem comparação com lançá-las contra uma fortificação ou uma frota fundeada. Por outro lado, se retrocedermos, as possibilidades de que nos acertarem são as mesmas que se seguirmos adiante, ou maior, porque ao avançar nos afastamos em linha direta dos morteiros. Bom dia, senhor Jagiello. Os dinamarqueses estão ocupados, como vê.
- Oxalá explodam - disse Jagiello. - Bom dia, senhor. Bom dia, doutor.
Três bombas caíram justamente diante da Ariel, provocando três colunas de água que, instantaneamente, quando as cargas explodiram sob a superfície, transformaram-se em uma confusa massa de jorros de água que saltavam em todas as direções.
- Mudar de bordo o leme! - gritou Jack.
Então a Ariel começou a fazer uma série de movimentos suaves como os da giga, dava viradas e, conforme seus tripulantes soltavam as escotas ou as puxavam para popa, sua velocidade diminuia ou aumentava, se não muito, ao menos o suficiente para que os dinamarqueses tivessem que fazer novos cálculos cada vez que disparassem uma descarga.
- Senhor Hyde, jogue uma rede pelo costado - disse ao primeiro oficial, assinalando um grupo de grandes peixes que flutuavam com o ventre sobressaindo da superfície no lugar onde haviam explodido as bombas. - Podemos tirar proveito da situação.
O mar se movia devagar, muito devagar; a costa parecia imóvel. Às vezes as maiores e as gáveas golpeavam por falta de vento, e podia ouvir-se os marinheiros do castelo assobiando para atrai-lo. Mas não tinham muito tempo para ocupar-se disso, já que, quando soassem as sete badaladas, teriam que subir as macas, e quando soassem as oito, teriam que ir desjejuar. E o agradável odor do pescado frito já se espalhava pela coberta.
- Esteve alguma vez em Helsingór, senhor Jagiello? - inquiriu Jack.
- Oh, muitas vezes, senhor! - respondeu Jagiello. - Eu o conheço bem. Acho que posso mostrar-lhe a tumba de Hamlet daqui.
- O que eu queria saber era se os morteiros do terraço superior eram de dez ou de treze polegadas - disse Jack. - Mas também gostaria de ver a tumba de Hamlet.
- São de dez e de treze, senhor. Olhe, a direita do último torreão há um grupo de árvores, e entre essas árvores está a tumba. Dá para distinguir as pedras.
- Então está enterrado aí - disse Jack, enfocando o telescópio. - Bem, bem, todos teremos que chegar a isso. A obra é estupenda, estupenda. Nunca ri tanto em minha vida.
- Em efeito, é uma obra estupenda - disse Stephen. - duvido que eu pudesse escrevê-la melhor. Mas nunca a considerei uma comédia, sabe? Você a leu recentemente?
- Nunca a li, quer dizer, não a li completa - disse Jack. - Fiz algo melhor que isso: eu a representei. Agora disparam desde o terraço superior... Era um guarda-marinha então.
- Que papel fazia?
Jack não respondeu imediatamente. Estava esperando que as bombas caíssem, contando os segundos. E quando contou vinte e oito, caíram, mas muito longe, por estibordo.
- Leme a bombordo! - gritou e depois continuou: - Era um dos ajudantes do coveiro. No total éramos dezessete e tinhamos terra de verdade para cavar, que haviamos levado da costa. A terra sujou a coberta, mas Deus sabe que valeu a pena. O carpinteiro era o coveiro e, em vez de seguir falando, dessa maneira tão chata, de quem ia ocupar a tumba, fez comentários sobre a tripulação. Também fiz o papel de Ofelia, quer dizer, de uma das Ofelias.
Outra descarga rasgou o mar. Desta vez as bombas estavam melhor dirigidas, mas não chegaram a alcançar a corveta, e quando Jack observava como caíam, viu um clarão. Essa bomba também estava bem dirigida, e Jack a viu elevar-se a grande altura até converter-se em uma pequena bola negra que se destacava no céu claro, depois a viu descer com rapidez, cada vez com mais rapidez, descrevendo uma curva, e finalmente explodir longe, pela popa.
- A julgar pela altura, devem haver chegado ao seu ponto de elevação máximo e a disparar com carga máxima - disse.
A seguinte descarga confirmou sua suposição. As últimas cem jardas percorridas lhes puseram fora do alcance da bateria, de forma que Jack disse que eles também deviam ir desjejuar e logo, aproximando-se de Stephen, em voz muito baixa, confessou:
- Não posso suportar o odor desse pescado.
Quando desjejuavam na cabine, de onde viam perfeitamente as margens do estreito e Helsingór, agora silencioso, Stephen disse:
- Então representou a Ofelia quando era jovem, capitão Aubrey.
- Uma parte de Ofelia. Porém, neste caso, a parte era a mais importante. Fizeram-me sair três vezes para cumprimentar quando acabei, enquanto que não fizeram os outros dois sairem de novo, nem sequer o que se afogou vestido com um traje verde e com um raminho na mão. Três vezes, dou minha palavra!
- Por que dividiram a pobre jovem?
- Bem, o que ocorreu foi que no navio insígnia só havia um guarda-marinha o bastante bonito para fazer o papel de uma mulher, mas estava afônico e, além disso, destoava, assim que na parte onde tinha que cantar, eu punha o vestido e cantava de costas para o público. Mas nenhum de nós dois queríamos nos afogar nem ser enterrados de verdade na terra, quer o almirante estivesse ali ou não, de modo que essa parte foi representada por um dos cadetes mais jovens, que não podia se defender. Por isso éramos três, compreende?
Jack sorriu enquanto recordava daquela representação, que havia tido lugar nas Índias Orientais, e, depois de um momento, cantou:
Fazem todos os jovens o mesmo
se surge a ocasião.
Viva Deus, que merecem censura!
Depois disse:
- Sim, lamentavelmente. E pelo que recordo, a obra teve um desenlace fatal.
- Sim, de fato - disse Stephen. - É uma lástima... voltarei a subir, se não resta mais café. Não quero perder as maravilhas do Báltico porque são, por assim dizer, uma compensação para as tristezas que sentimos em terra.
Pudera ver mais patos de flojel e, um pouco mais tarde, nas imediações da ilha Saltholm, alguns patos muito curiosos que não pôde identificar, isto é, que não havia tido tempo de identificar, já que o vento aumentou de intensidade e a Ariel navegava a uma velocidade de oito nós. Isso lhe incomodara, porém, por outro lado, se a corveta não navegasse com tanta velocidade, não haveria chegado a Falsterbo quando ainda havia luz suficiente para ver perfeitamente uma águia marinha, uma ave de enorme tamanho, com a plumagem própia das aves adultas, que pegou um peixe do mar a menos de vinte jardas da popa da Ariel. Além disso, navegar naquela velocidade tinha a vantagem de que as flotilhas de canhoneiras, perigosas mas lentas, não podiam atacar a corveta.
- Alegro-me em saber - disse quando Jack assegurou que as canhoneiras já não poderiam alcançar a corveta, que agora virava para passar entre Bornholm e o continente e que se o vento soprasse com mais força ainda, o que parecia provável, eles se reuniriam com o almirante pontualmente. - Fico alegre em saber porque, depois das emoções de hoje, gostaria de passar uma noite tranqüila e dormir muito para estar sereno amanhã. Quem sabe o que o dia de amanhã trará! Talvez cisnes cantores ou mesmo a própia fênix. Vou a deitar-me imediatamente.
Não viu cisnes de nenhum tipo e tampouco a fênix no dia seguinte. O céu estava escuro e as nuvens passavam por ele com rapidez; o mar estava agitado e cinzento; e a Ariel avançava com as gáveas com todos os rizos. O vento havia aumentado de intensidade e primeiro rolou para oeste e depois para noroeste, provocando uma forte marejada que imprimia na corveta um movimento em espiral e, ao mesmo tempo, fazia com que ela cabeceace com tanta força que a estopa das juntas das colunas do gurupés das bitas4 saíssem. O estômago de Stephen havia suportado o movimento do oceano Atlântico, do Pacífico e do Índico, mas esteve a ponto de ser vencido pelo do mar Báltico. Stephen não estava enjoado, mas tinha frio e secretava muita saliva, incomodava-se com a companhia dos outros, sobretudo se faziam piadas ou brincadeiras, e não suportava nem sequer a idéia de comida. Pensava que talvez a causa fosse o asqueroso pescado que comera no dia anterior, porque um pescado com o ventre arrebentado poderia acarretar danos de todo tipo e só um imbecil o comeria. E também pensava que só um imbecil podia fazer-se ao mar expondo seu corpo à umidade. Permaneceu na coberta a maior parte da manhã. Agora a umidade não era por causa da chuva, mas por causa da água que chegava horizontalmente, pois cada vez que a Ariel afundava a proa no mar, a água e a espuma a cobriam de proa a popa como um manto e penetravam pelas juntas de sua protetora armadura, de modo que, além de ter frio, estava empapado.
"Talvez devesse ir ver meu colega e pedir-lhe dez gotas de éter etílico ou de ácido sulfúrico diluído", pensou. "O pobre homem é um bêbado, mas pelo menos tem um estojo de remédios". E como a Ariel se movia caprichosamente, pediu a um dos mensageiros do castelo de popa, um garoto rosado que tinha um gorro com orelheiras, para que o guiasse. Enquanto desciam, ouviram gritar: "Barco à vista! Uma gata a 25° pela a amura de estibordo!", mas Stephen não parou. Haviam divisado antes outro barco, um barco dinamarquês que, conforme os oficiais, navegara com frequência pelo Báltico durante o verão, porém, lamentando muito, Jack o deixara escapar, pois sua missão era muito mais importante para ele que capturar presas, e provavelmente faria o mesmo neste caso. Além disso, Stephen não se interessava nem um pouco com as presas, o que queria era éter etílico.
Por desgraça, achou o bêbado em um estado parecido ao seu, ou mesmo pior: estava indiferente ao mundo que lhe rodeava, apenas podia falar, tinha o rosto verdoso, estava sem se barbear e cheirava mal. Contudo, mais lamentável que tudo isso era que bebera todo o éter etílico da corveta e derramara o ácido sulfúrico, que agora corroía a cobertura de sua mão. Mas ele sussurrou que não se importava e que quanto mais rápido corroesse o fundo do barco, melhor.
Stephen saiu dali indignado e, virando-se para o garoto que o guiara até a cabine do senhor Graham, disse:
- Olhe o que conseguem com esse costume pagão de assobiar. Seu própio cirurgião está enjoado. Que vergonha! Diga ao capitão que vou retirar-me para meditar e que peço que me desculpe por não jantar com ele.
Não havia tomado o café-da-manhã e não comeu nem tomou o chá com o capitão; e quando por fim a Ariel chegou às tranqüilas águas de Karlskrona e cumprimentou com canhonaços ao almirante, sentiu frio, tristeza e fraqueza. Se sentia tão mal que, quando a falua da Ariel abordou o navio insígnia, apenas começou a subir torpemente pelo costado, soltou a escada e caiu como um fardo. Mas Jack estava preparado para isso. Seu velho amigo não era um marinheiro, nunca o fora e nunca seria. Desde o começo de sua amizade, já havia caído das vergas e de botes e barcos parados, e mais de uma vez caíra no espaço que separava um bote de um barco quando ia subir a bordo deste. O capitão Aubrey ordenara que a falua engatasse o croque no navio insígnia de maneira que ficasse presa como uma lapa e que dois robustos marinheiros permanecessem ao pé da escada. E os marinheiros, que sabiam muito bem que isso era muito provável, pegaram entre seus braços o frágil corpo do doutor Maturin com a mesma facilidade com que pegavam uma maca (esta pesava um pouco mais) e o impulsionaram para cima dizendo: "segure-se com as duas mãos! Não há que dar-se por vencido! Um passo mais e chegaremos a bordo secos e salvos!".
O capitão da Frota do Báltico os recebeu, mas os recebeu com frieza. Ele disse que o almirante não podia atendê-los e que se a Ariel queria se juntar à esquadra, agradeceria ao capitão Aubrey se içasse uma flâmula da cor apropriada, já que sir James fora ascendido recentemente a vice-almirante da Divisão Vermelha, algo que qualquer um poderia saber se houvesse tido o trabalho de informar-se. A recepção foi como Jack imaginara desde que ouvira que Manby era o capitão da frota. Durante sua carreira, e especialmente durante os anos em que fora mais rebelde e indisciplinado, fizera alguns amigos para toda a vida, mas também alguns inimigos para toda a vida.
Esta desagradável impressão não durou muito. Poucos minutos mais tarde, um grupo de oficiais suecos saíram do navio e o secretário do almirante, um pastor jovem e muito sério, fez Jack e Stephen entrarem na grande cabine, um lugar elegante que, por seu aspecto atual, mais parecia tomar parte de um escritório que de um barco de guerra. Havia nela processos por toda parte e uma mesa coberta de papéis, e detrás da mesa um pálido almirante com expressão de cansaço que mais parecia um ministro que um oficial naval.
Era óbvio que estava esgotado, mas os cumprimentou cordialmente.
- Faz séculos que não nos vemos, capitão Aubrey - disse depois de felicitar-lhe por haver atravessado o estreito tão rapidamente.
- A última vez foi em Gibraltar, senhor, justo depois de sua grande vitória no golfo de Algeciras - disse Jack.
- Sim, sim - disse sir James. - Deus foi muito bondoso conosco nesse dia.
Stephen havia sido espectador daquela sangrenta batalha e lhe parecia que a morte violenta de dois mil franceses e espanhóis era uma estranha prova da bondade de Deus, mas havia conhecido outros homens de grande valor que tinham a mesma opinião da Providência que o almirante. Enquanto esperava para ser apresentado e Jack entregava seus informes, observou a sir James. Tinha feições pronunciadas, grossas pálpebras, um olhar franco e semblante grave, e não parecia muito alegre. Sabia que sir James tinha fama de puritano e que gostava cantar espaços e salmos a bordo, mas conhecia a homens devotos que demostraram que também sabiam empunhar uma espada. E quando o almirante voltou a cabeça para lhe saudar e ele viu que tinha um olhar atento, inteligente e sagaz, sentiu uma grande satisfação e pensou: "este homem não é um tonto".
- Permita-me que lhe apresente ao doutor Maturin, senhor, que também lhe traz uma carta do Almirantado - disse Jack. - Sir James Saumarez.
- Encantado de conhecer-lhe, doutor Maturin - disse o almirante. - Eu o esperava, senhor, e acho que sei qual é o conteúdo da carta. Com sua permissão, vou a lê-la imediatamente. Desejam tomar algo? Sempre bebo uma ou duas taças de vinho a esta hora e como uma bolacha. Meu irmão Richard o recomenda. Provavelmente o senhor o conheça, senhor - assinalou a Stephen com a cabeça.
Tocou a campainha e trouxeram uma garrafa em um instante, e depois de servir-lhes, sir James se foi para sua mesa com seu copo, os informes e a carta. Dick Saumarez... Sim, por suposto, Stephen o conhecia, ainda que não sabia que tivessem conexão. Era cirurgião e também um fisiólogo bastante bom, ainda que obstinado e equivocado sobre o uso da ligadura da artéria ilíaca exterior em caso de aneurisma da femoral; contudo, Stephen estava de acordo com sua recomendação. A garrafa não era de vinho senão de champanhe, um champanhe de excelente sabor que formava uma perfeita combinação com a bolacha. Notou que sua fraqueza e sua tristeza haviam desaparecido e que sua mente estava mais clara. Refletiu sobre o uso medicinal do álcool e, posto que a leitura dos informes tardava, também observou a Jack. Tinha uma expressão de respeito, e isso era natural, mas não era somente respeito a um vice-almirante, um homem de categoria muito superior à de capitão de navio, senão também respeito a sir James como homem e como oficial hábil e decidido. Aquela expressão era um pouco parecida à que punha o capitão Aubrey quando ia para a igreja, ainda que com um toque de melindre ou talvez puritanismo, era inadequada para aquele rosto corado e curtido pelos elementos que geralmente tinha uma expressão franca e sorridente. Parecia que Jack estava decidido a seguir o conselho que lhe havia dado antes de cruzar de um lado a outro do porto: "Não se embebede nem diga obscenidades nem blasfeme quando estiver a bordo do navio insígnia, Stephen, porque o almirante é muito especial e terá que pagar um guinéu cada vez que use o nome de Deus em vão". Jack, por sua parte, observava ao almirante. Parecia que ele havia envelhecido muito, mas isso não era estranho, pois se ele, quando foi o comodoro de uma pequena esquadra, ficou agoniado com a papelada, pela grande responsabilidade de decidir sobre os planos que outros deviam executar, pelo problema da cooperação com o Exército e as autoridades civis e por mil questões mais que não tinham nada que ver com governar um barco ou disparar canhões, o Chefe da Frota do Báltico devia sentir-se muito, muito pior.
- É o que supunha - disse o almirante, pondo a carta sobre os informes. - Então o senhor é o sucessor do pobre senhor Ponsich, senhor. Quanto desejo que tenha mais êxito! O capitão Aubrey sabe o propósito de sua missão?
- Sim, senhor.
- Então provavelmente quererão falar com o senhor Thornton, meu conselheiro político. Conforme entendi, a situação em Grimsholm não mudou, mas ele tem relatórios mais recentes.
Stephen conhecia bem a Thornton, um funcionário do Ministério do Interior com aptidão para ser espião e uma grande facilidade para perceber os detalhes. Cumprimentaram-se com a ambígua cortesia que correspondia ao novo caráter que ambos haviam adquirido, demostrando, apesar daquelas circunstâncias, que não havia mais que uma relação superficial entre eles.
- O doutor Maturin veio substituir ao senhor Ponsich - disse o almirante. - Eu lhe disse que, conforme a informação que tenho, a situação de Grimsholm não mudou, mas falei sem ter os dados na mão. Provavelmente o senhor poderá dar-lhe mais detalhes.
- Na ilha não tem havido nenhum mudança material - disse Thornton. - Dois informes que recebemos faz pouco dizem que estava descontente pela falta de vinho e tabaco, mas parece que o coronel d'Ullastret domina a situação. É popular entre os soldados e reforçou a sua autoridade enviando para Danzig outros três oficiais. Contudo, no continente, os franceses levaram muito a sério o caso. Sabemos de fonte fidedigna que, apesar de suas dificuldades, Oudinot pensa substituir aos catalãos por uma brigada mista de polacos, saxões e franceses e que enviará para ali o general Mercier junto com o antigo comandante, o coronel Ligier, para que se encarreguem da situação até que termine de reunir esses homens na costa. Vão fazer de d'Ullastret membro da Legião de Honra e vão lhe oferecer o comando de um batalhão na Itália. Na terça-feira chegaram a Hollenstein e dali irão até Gobau; é possível que já tenham zarpado. Além disso, suspenderam o envio de provisões para Grimsholm tanto de Pomerânia como da Dinamarca. Além desses informes, o só recebi ultimamente uma descrição detalhada da posição das tropas de d'Ullastret e a disposição de seus canhões.
Entregou para Stephen a lista de unidades, que correspondiam a unidades territoriais cujos nomes eram tão familiares para Stephen como o seu própio: Sant Feliu de Guixols, Lloret de Mar, Palafrugell, Tossa de Mar e Sant Pere Pescador da zona costeira, Empordá da planície, e Vich, Moeu, Ripoll e outras mais da montanha. Além disso, incluia os nomes dos oficiais, muitos dos quais lhe eram familiares também. Ficou pensativo um tempo, enquanto Jack e o almirante falavam com Thornton das tropas, as provisões, e as fontes de suprimento ou estudavam a carta marinha onde aparecia a ilha de Grimsholm e as águas que a rodeavam, as quais tinham a profundidade marcada conforme uma recente medição feita por um piloto dinamarquês experto na navegação por essa zona.
Depois, durante uma expectante pausa, disse:
- Acredito que esta é uma situação na qual devemos apostar tudo em uma carta, e imediatamente. Não há tempo para deliberar. Sugiro que me levem até a ilha o mais rápido possível, antes que o general Mercier chegue, se ainda não chegou. Se puder desembarcar antes que ele chegue, é bastante provável que tenha êxito. Mas não acredito que um barco de guerra seja o melhor meio de transporte, já que as tropas da ilha são integradas por um bom número de marinheiros catalãos que o reconheceriam imediatamente, fosse qual fosse a bandeira que levasse ou a forma em que tratasse de ocultá-lo; além disso, conforme entendi, a Ariel há navegado amiúde pelo Báltico, assim que provavelmente afundariam a corveta ou qualquer um de seus botes. Queria ir em uma embarcação de Danzig ou da Dinamarca que fingisse levar provisões, isto é, que realmente levasse provisões, pois com um carregamento de vinho e tabaco, que os soldados sentem falta há tanto tempo, minha missão seria muito mais fácil. Provavelmente o senhor tem alguma presa adequada para isso, senhor.
- Temo que não - disse o almirante. - São tantos os barcos estrangeiros aos quais se concede a licença para comerciar ou levar suprimentos navais para a Inglaterra que capturamos muito poucas presas, e me parece que as poucas que aprisionamos este mês já foram enviadas para nosso país. Contudo, eu me assegurarei disso.
Tocou a campainha e pediu um relatório imediato. E enquanto o informe chegava Thornton falou em voz baixa com Stephen sobre os documentos que Ponsich havia levado consigo para apoiar suas afirmações: proclamas, editos, exemplares do Moniteur, panfletos em catalão e espanhol e inclusive publicações neutras que deixavam claro que o comportamento de Bonaparte estava em total contradição com suas promessas. Na cabine havia agora uma atmosfera tensa, pois nos últimos minutos o que era só uma intenção passara a ser algo concreto e próximo, passaram do terreno da discussão e da consideração de possibilidades para o da ação imediata, e todos os presentes sabiam que quando o doutor Maturin dissera que deviam jogar "tudo em uma carta", esse "tudo" incluia sua própia vida, e o olhavam com o respeito com que se olha um cadáver ou um homem sentenciado à morte, e Jack, além disso, olhava-o com preocupação.
- Tenho outras cópias de quase todos os documentos de Ponsich - disse Stephen. - Também tenho uma cópia legitimada do decreto de excomunhão promulgado pelo Santo Padre contra Bonaparte. Três dos oficiais que se encontram em Grimsholm são cavalheiros da Ordem de Malta, e acho que este documento terá uma grande influência sobre eles.
O informe chegou: não havia possibilidade de capturar uma embarcação de Danzig nem da Dinamarca antes de uma semana.
- Eu temia que fosse assim - disse o almirante. - Prefere esperar, doutor Maturin?
- Oh, não, senhor! Nestas circunstâncias um dia equivale a um ano.
- Com sua permissão, senhor, acho que sei como saltar este obstáculo. Esta manhã avistamos duas embarcações dinamarquesas, mas não as persegui porque achava que o mais importante era chegar aqui o quanto antes. Notei que uma delas, uma gata que navegava na direção de Riga com as maiores desdobradas, nem sequer tentou escapar, e pensei que provavelmente tinha autorização sua para passar por esta zona. Pois bem, senhor, como o vento é favorável, o tempo está melhorando e a Ariel, como o senhor sabe, navega com facilidade e é muito veloz, se o senhor me permite que tome posse da gata, dá para alcançá-la. Confio em poder fazê-lo porque estava muito carregada, navegava lentamente e me pareceu que tinha poucos tripulantes.
O almirante ficou pensando um momento enquanto assobiava muito baixo.
- Essa pode ser uma solução - disse. - Não é muito ética, mas a necessidade não conhece regras. Por outro lado, há a possibilidade de que não a alcance e que, em conseqüência, percam-se dois dias. A alternativa é esperar que um dos navios sob meu comando que patrulham a zona capture um barco dinamarquês, tendo licença ou não. Isto é mais seguro, mas os navios se encontram muito separados alguns dos outros entre as ilhas Åland e a ilha Rügen e teria que mandar-lhes a ordem, assim que, com certeza, pagaríamos com tempo. O que o senhor acha, doutor Maturin?
- Estou convencido de que o capitão Aubrey é capaz de apresar qualquer coisa que flutue - disse Maturin. - E esta é uma situação na qual não há nem um minuto a perder.
Desde que se havia feito ao mar pela primeira vez, haviam lhe atormentado com a frase "Não há nem um minuto a perder", e lhe causava satisfação poder usá-la ele mesmo por fim.
- Não há nem um minuto a perder - repetiu, saboreando as palavras, e depois continuou: - quanto à moralidade dessa ação, devemos comparar o hipotético incômodo que os tripulantes da gata sofreriam com a morte certa de vários milhares de homens, pois entendi que se as tropas de Grimsholm não se renderem, a ilha terá que ser tomada por assalto.
Agora que a operação estava em marcha, agora que haviam aceso a mecha longa, sentia vontade de brincar apesar de que pensava em coisas tão sérias e teve a tentação de repetir a piada que Jack Aubrey sempre fazia com respeito a escolher entre dois gorgulhos o que pesava menos. Em outras circunstâncias o houvesse feito, mas havia algo no almirante Saumarez, algo difícil de definir, entre a insensibilidade e a indiferença, que lhe fez guardar para si sua jocosidade.
Contudo, a dignidade de sir James não o impediu que, momentos mais tarde, interrompesse a discussão que os marinheiros tinham sobre questões técnicas.
- Queria falar sobre a questão do vinho e do tabaco mais uma vez- disse, abandonando sua atitude pensativa. - Seria possível carregar a Ariel com certa quantidade de ambos para que a embarcação que usemos como mercante leve realmente mercadorias?
- Com tabaco sim - disse o almirante. - Mas o vinho é mais difícil de conseguir, ainda que provavelmente encontrassemos uma quantidade considerável nas câmaras dos oficiais dos barcos da esquadra. Também poderíamos encher garrafas com rum, se lhe parece bem.
- O rum me parece bem, ainda que o vinho seria melhor - disse Stephen. - E agora, senhor, queria assinalar algumas questões importantes. Obviamente, esta expedição só pode ser um redondo êxito ou um redondo fracasso. Não serve de muito falar sobre o fracasso, portanto, se me permite, só falarei considerando-a um êxito. Como o senhor provavelmente saberá, para encarregar-me desta missão pus como condição que os soldados catalãos de Grimsholm não fossem tratados como prisioneiros de guerra e fossem transportados para a Espanha com suas armas e sua bagagem às custas de Sua Majestade. Acredito que isso é pagar um preço muito baixo pela entrega de uma fortaleza dessas características sem derramamento de sangue. Além disso, estou convencido de que quando chegarem à Península, lutarão junto a lorde Wellington.
- Realmente, é um preço muito baixo - disse o almirante. - Afortunadamente, tenho os transportes aqui, a mão. O senhor Ponsich pôs a mesma condição.
- Muito bem, muito bem - disse Stephen. - Agora quero assinalar outra questão. Os capitães dos transportes devem compreender a necessidade de receber aos oficiais catalãos com os canhonaços de cumprimento e as bandeiras correspondentes a sua classe e os mesmos atos solenes ou mais dos que se celebram usualmente, pois se encontram em uma posição pouco comum, são muito susceptíveis e seu orgulho pode ser ferido com facilidade. Um fiasco poderia produzir um efeito desastroso. - Fez uma pausa e prosseguiu: - Mas estou me adiantando demais. Agora resumirei as linhas gerais da operação, senhor. O emissário vai até a ilha a bordo do mercante enquanto a Ariel e os transportes permanecem onde não possam ser vistos; o emissário transmite sua mensagem; depois de um determinado intervalo a Ariel se aproxima para ver o sinal deste e, por sua vez, chama os transportes, que irão com um número de artilheiros suficientes para manejar os canhões; o traslado se leva a cabo imediatamente, no momento em que os homens estão mais contentes porque só pensam em regressar ao seu país, e mais indignados por causa do comportamento dos franceses, pois acho que quanto mais rápido saiam dali, haverá menos possibilidade de que haja rivalidade ou desacordo entre eles.
- Com relação aos transportes, acho que não haverá nenhuma dificuldade, se o vento for favorável, porque, como o senhor sabe, doutor Maturin, dependemos totalmente dos ventos. Se o capitão Aubrey pode fazer sua parte e conseguir a embarcação dinamarquesa necessária, acredito que poderemos fazer a nossa com os transportes e os artilheiros e, certamente, com o vinho e o tabaco de que falou antes. E estou de acordo com o senhor da necessidade de fazer um traslado muito rápido. Acho que o Almirantado não se equivocou ao falar-me da sagacidade do doutor Maturin e aconselhar-me que confiasse nele.
- O Almirantado é muito benevolente, muito amável - disse Stephen. - Se lhe sou sincero, senhor, esta é uma situação na qual é preferível ter um pouco de sorte do que toda a sagacidade do mundo.
CAPÍTULO 8
Era meia-noite quando a Ariel desatracou e saiu do porto em meio da copiosa chuva, e essa noite foi horrível para a esquadra porque a corveta levou quase todo o vinho dos oficiais, boa parte do rum e o tabaco dos marinheiros e, além disso, vinte marinheiros de primeira escolhidos entre os numerosos holandeses, polacos, finlandeses e letões que faziam parte da tripulação. Deixou atrás de de si homens esgotados e com muito pouco para repor suas forças ou animar-se de novo. Durante seus longos anos de serviço na Armada, Stephen Maturin nunca havia visto carregar um barco tão rápido como haviam carregado a Ariel. Os botes se amontoaram ao seu redor, e deles chegaram a bordo as provisões em um fluxo contínuo e sob a supervisão direta de sir James. O almirante contribuiu para aumentar seu carregamento com cento vinte e cinco galões de um excelente clarete, dizendo que preferia beber chá verde durante o resto de sua missão que diminuir as possibilidades de êxito da Ariel; e depois disso, nenhum oficial podia fazer menos, assim que a Ariel saiu do porto mais afundada na água que quando entrara, com mais homens do que nunca, ainda com barris atados provisoriamente na coberta e o contador e o encarregado da bodega desesperados, e com mais da metade dos tripulantes com uma alegria suspeita ou completamente bêbados.
- Amanhã haverá uma longa lista de transgressores! - gritou Jack em um tom que diminuiu sensivelmente essa alegria.
Acabava de sair de uma demorada reunião com o senhor Pellworm e com o oficial de derrota, na qual cada um, independentemente, havia proposto uma rota para interceptar a embarcação dinamarquesa com a qual se encontraram não fazia muito, a gata que navegava lentamente e tinha poucos tripulantes. As três rotas coincidiam em quase tudo e estavam estabelecidas com o objetivo de encontrar-se com a gata nas primeiras horas do dia.
- Senhor Fenton, devemos pôr ao leme os melhores homens e devemos fazer rumo norte 16° leste exatamente. Wittgenstein, um suboficial do navio insígnia, pode ser um deles; naveguei com ele e sei que é um experto marinheiro. O senhor deve fazer uma medição com a barquilha a cada meia hora e manter a velocidade aproximadamente em seis nós; sobretudo, não a supere, pois não devemos alcançá-la na escuridão. Ainda que não acredito que a avistemos até o amanhecer, quero que no tope sempre haja um serviola de vista aguda e sóbrio e que seja substituído por outro a cada meia hora; o primeiro que avistar a gata receberá dez guinéus e se lhe perdoarão todas suas faltas, exceto a participação num motim, a sodomia e estragar a pintura. Deve me chamar se ocorrer algo ou se o vento mudar.
Se houvesse estado num dos barcos em que havia navegado anteriormente, haveria acrescentado que ia a jantar com o doutor um prato muito estranho, um falcão salgado que lhe havia presenteado o comandante de Gotemburgo, e talvez haveria falado durante um tempo do que iam fazer no dia seguinte, mas seu comando era temporário, apenas conhecia os oficiais e, além disso, eram tão jovens que em ocasiões lhe pareciam de outra espécie. A deferência com que o tratavam o constrangia, e teria que fazer um grande esforço, inclusive estando em uma reunião social, para saltar a distância que os separava, se é que se podia saltar. Mas aquela posição distante, própia de uma divindade, na qual o comando o colocava, parecia-lhe natural agora, e depois de pedir que Fenton repetisse suas ordens e que guardasse a cópia na gaveta da bitácula, foi para baixo.
Encontrou o falcão já partido em pedaços, ainda que não tenha sido cortado com a faca de trinchar e o garfo que o despenseiro havia trazido, como era o correto, mas com um instrumento que Stephen escondeu sob seu guardanapo quando disse:
- Desculpa-me, Jack. Na realidade, ainda não comecei, mas tinha muita vontade de ver o esterno da ave. Aprendi muitas coisas sobre o esterno em Paris.
- Alegro-me com isso - disse Jack, - e me alegro de que tenha se recuperado.
- Só foi uma indisposição passageira, talvez por ter comido muito pescado. Mas com a emoção de pôr em marcha o plano, desapareceu.
Jack pensava que também poderia ter contribuído para isso o fato da Ariel se mover mais suavemente, pois o vento havia diminuído de intensidade e agora a corveta deslizava com vento frouxo pela alheta e tinha um cabeceio e um balanço muito leves; contudo, guardou sua opinião.
- Você se importaria dar uma espiada neste esterno e nos pontos que tem? - inquiriu Stephen, sustentando no alto a quilha do falcão. - Diria que são nestes pontos onde se unem os músculos do esterno, né?
- Eu juraria, asseguro.
- Eu também teria jurado até há alguns dias. Contudo, parece que realmente são os pontos de união dos ossos que compõem o esterno da ave nas primeiras etapas de sua vida. Foi um destacado acadêmico quem me disse isto, um homem que tenho orgulho de conhecer. Acha que há que fazer uma classificação completamente nova...
Jack deixou de prestar atenção e pensou nos mastaréus de joanete da Ariel, que haviam sido colocados sobre a coberta durante a tormenta, até que Stephen, num tom enfático que não era habitual nele, disse:
-... e quem considera que as patas de uma ave são um traço genérico talvez se vejam obrigados a considerar parentes o bacurau e o quebra-ossos.
- Isso nunca será possível, estou certo - disse Jack. - Tem um sabor parecido ao porco, né?
- Sim, muito parecido ao porco. Mas não é estranho, se se pensa que o falcão apicultor se alimenta principalmente de vespas e de suas crias. Permite-me - pegou os ossos que havia no prato de Jack e os envolveu em seu lenço. - O almirante me causou muito boa impressão. É um admirável almirante, tem uma grande capacidade de decisão. Temia que vacilasse durante um período interminável e que fosse resistente ao chegar o difícil momento de assumir a responsabilidade.
- Sir James não é assim - disse Jack. - recorda-se quando estava em Gibraltar, quando se lançou ao ataque da esquadra combinada? Não houve vacilo então, eu acho. Porém, não notou o quanto envelheceu? Acho que ainda não tem sessenta anos, e, contudo, parece muito mais velho.
- A apreciação da idade é relativa. Acho que você se parece um patriarca para os jovens oficiais. Um dos guardas-marinhas me ajudou a cruzar a rua em Gotemburgo e me tratou como se eu fosse um antepassado seu.
- Acho que sim - disse Jack, rindo. - Para mim eles parecem muito jovens, exageradamente jovens. Espero que hajam tido tempo de aprender sua profissão. Já terminou, Stephen?
- Sim, e vou deitar-me imediatamente. Quero digerir o falcão em minha maca e dormir como um tronco o tempo que resta. Boa noite.
Stephen estava tranqüilo e muito mais animado que de costume. Jack não tinha dúvida de que dormiria até o dia seguinte e o invejava, pois sabia que aquela noite descansaría pouco, ainda que por força do costume, geralmente podia dormir em qualquer momento. Estava muito ansioso, em parte com razão e em parte sem ela. Pediu que lhe trouxessem café, e enquanto o bebia examinou a rota de novo. Chegou à mesma conclusão que antes; contudo, pensava que havia muitas, muitas coisas que podiam falhar, muitas variáveis.
Uma dessas variáveis não existiria se ele houvesse tido tempo de trazer seus própios oficiais, por exemplo, a Pullings, Babbington e Mowett - homens com os quais havia navegado muitos anos e aos quais conhecia perfeitamente - ou a alguns dos melhores guardas-marinhas que formara, que atualmente eram tenentes. Mas estava certo de que os jovens oficiais da Ariel, apesar de sua juventude, conheciam muito bem sua profissão, pois todos haviam estado navegando em barcos da Armada desde a infância, e na corveta tudo estava em perfeita ordem. O própio Saumarez se havia fixado nisso e comentara que raras vezes vira na Armada real uma corveta com tanta ordem. Hyde não era um homem excepcional nem um grande marinheiro, mas era apto para o cargo de primeiro oficial porque sabia manter a disciplina atuando com firmeza e sem violência; o oficial de derrota era um excelente navegador, disso não cabia nenhuma dúvida; e Fenton parecia mais amável e competente que a maioria dos tenentes, um homem que poderia destacar-se se tivesse sorte e fosse promovido. Jack eliminou essa parte de sua ansiedade por considerá-la absurda e dez minutos mais tarde subiu para a coberta para comprovar se eles sabiam o que faziam.
A chuva havia cessado e o céu estava quase limpo. Não havia lua; a noite estava escura como boca de lobo. A corveta seguia no rumo adequado, e Jack, ao olhar a tabela de navegação, comprovou que havia mantido a velocidade de seis nós. Não havia dúvida de que Fenton sabia como governá-la. Ainda que estavam a ponto de soar as três badaladas da guarda de meia e ainda que não havia que realizar nenhuma tarefa imediata, na coberta reinava uma inusual atividade. Não se viam as estranhas figuras dos marinheiros dormindo com a cabeça envolta na jaqueta em lugares abrigados da proa ou perto dos botes, aliás todos os tripulantes que não se encontravam no alto da exárcia estavam junto da borda contemplando a noite. Um deles era Wittgenstein, um marinheiro originário de Helgoland que desde muito menino acudia a Leith nos barcos carvoeiros, a quem Jack, sendo guarda-marinha, havia recrutado à força para a Armada, obrigando-lhe a sair de seu barco. Haviam navegado juntos em três ou quatro missões e simpatizaram. Na segunda delas, quando Jack ainda não sabia de náutica o quanto devia, Wittgenstein era um dos tripulantes com quem Jack devia levar uma presa - um mercante com um valioso carregamento -para Port-of-Spain, e graças a ele não só haviam sobrevivido depois de seu barco ser açoitado por duas horríveis tormentas que o desviaram muito de seu rumo, como também conseguiram recuperar seu rumo e chegar, três semanas depois do previsto, a Trindade. Wittgenstein havia ido para a popa para acender um farol e Jack disse:
- Alegro-me de vê-lo outra vez, Wittgenstein. Deve de fazer sete ou oito anos que não navegamos juntos. Como vai?
- Muito bem, senhor, graças a Deus, ainda que nenhum de nós é tão jovem como antes - respondeu, olhando-lhe fixamente sob a luz amarelada do farol. - Vejo que o senhor também está muito bem, senhor... bom... bastante bem, afinal de contas.
Jack ficou na coberta até que deram a volta duas vezes no relógio de areia; depois só subia de vez em quando para comprovar se a corveta ia bem e olhar o céu estrelado. Agora Marte se punha, juntando-se com Virgem, sobre a Lituânia, e Júpiter, glorioso, brilhava intensamente pela popa. Parecia que a noite era interminável e que continuariam deslizando através da escuridão para sempre. Contudo, estava adormecido, sentado na engenhosa cadeira de balanço que Draper havia pendurado na cabine, quando um guarda-marinha veio para dizer que avistaram um barco. A guarda havia mudado enquanto estava adormecido, e agora, ao voltar à coberta, viu as primeiras luzes da alvorada, mesmo que a luz da bitácula ainda brilhava. A princípio não pôde distinguir nada mais que a linha do horizonte.
- Justo diante dessa borda, senhor - disse o oficial de derrota, que estava encarregado da guarda da alvorada.
Então viu uma pequena mancha branca, dirigiu seu telescópio de noite para ali e ficou observando por um longo tempo. Não, não sairia bem. Essa não era a gata que perseguia. Era muito cedo para encontrá-la, e, além disso, essa embarcação que estava a sotavento navegava rumo sul. Porém, por outro lado... Uma série de possibilidades cruzaram por sua mente enquanto mecanicamente pendurava no ombro o telescópio e subia ao cesto da gávea do pau maior com uma expressão grave. Sabia pelo almirante que, com excessão do Rattler, não havia navios britânicos patrulhando aquela zona, e essa era uma embarcação de três mastros; além disso, era pouco provável que fosse um mercante britânico que navegava sozinho, pois quase todos viajavam em comboio para proteger-se dos corsários dinamarqueses. O oficial de derrota o seguiu.
A luz aumentava com rapidez. A distante embarcação (ainda que pequena) apareceu em seu telescópio de noite, era uma imagem invertida que parecia irreal.
- Não é uma gata - disse, dando o telescópio. - O que o senhor acha, senhor Grimmond?
- Estou de acordo, senhor, não é uma gata - disse Grimmond depois de uma longa pausa. - Posso ver perfeitamente suas vergas joanetes... Não me atrevo a jurar, senhor, mas me parece que é o Minnie, um barco dinamarquês procedente de Arhus. O vimos amiúde no ano passado e o perseguimos duas vezes. Navega muito rápido de bolina e chega a pôr-se quase justamente contra o vento.
- Subamos ao tope, senhor Grimmond - disse Jack e ordenou ao serviola que deslizasse pelo brandal até ali.
Na cruzeta do mastro maior de uma embarcação tão pequena como a Ariel havia lugar apenas para um capitão de navio de duzentas e vinte e cinco libras de peso e um robusto oficial de derrota, e as frágeis tábuas rangiam de tal forma que era um mau presságio. Grimmond estava tão assustado como incômodo, pois o normal era que duas pessoas nessas circunstâncias se agarrassem uma à outra, mas ele não podia tomar liberdades com o capitão Aubrey, assim que teve que segurar-se em um brandal e em uma brandal, em uma posição em que parecia estar crucificado.
Primeiro Jack tentou localizar a sua presa, a gata que se dirigia para Riga. Dessa altura podia ver uma zona de vinte e cinco milhas de diâmeto, e ali não havia nenhuma gata. Conforme seus cálculos, devia estar a sudeste, mais além do horizonte, aproximando-se do ponto em que a Ariel interceptaria sua rota no início da guarda da manhã.
- Sim, senhor - disse o oficial de derrota. - Agora estou quase certo de que é o Minnie. Tem a parte superior dos costados pintada de preto e um bote no pescante de popa.
- E que tipo de embarcação é?
- Bem, senhor, às vezes é um mercante e viaja com nossa licença ou comercia por sua conta com os franceses, mas às vezes, a maioria, é um barco corsário. E, se surge a oportunidade, é ambas as coisas. Obviamente, não tinha licença quando fugiu de nós e se refugiou em Danzig.
- E ele é rápido?
- Muito quando navega contra o vento; contudo, a Ariel é mais navegando pela quadra. Devíamos tê-lo aprisionado da segunda vez, mas se pôs sob a proteção dos canhões de Bornholm. Nós a perseguiamos a grande velocidade.
- Que tipo de canhões leva?
- Leva catorze canhões dinamarqueses de seis libras, senhor.
Jack ficou pensativo ali, entre o claro céu e a coberta. Pensava que seu armamento era de considerável potência para um mercante, mas não equiparável ao da Ariel. A gata era uma presa hipotética, provável, mas ainda hipotética, e, além disso, navegava com uma lentidão desesperadora, e se a levasse ou rebocasse pelo Báltico se demoraria muito; em troca, a Minnie não era uma hipótese pois estava ali, perfeitamente visível, navegava velozmente e na direção adequada, de modo que se o perseguia avançaria pela rota que ele devia seguir, e, além disso, estava a sotavento.
- Muito bem, senhor Grimmond, veremos se podemos aprisioná-lo desta vez - disse e se agarrou a um brandal e deslizou por ela rapidamente até a coberta.
Estava quase seguro de que o serviola do Minnie, como os da maioria dos mercantes, demoraria um tempo em avistar a Ariel, o que era uma vantagem, e também que depois passaria alguns momentos olhando-o com a mesma curiosidade e a mesma avidez de presas que um corsário, mas essas eram suas únicas vantagens, porque sabia que não haveria tempo para empregar ardis naquela perseguição. Seria uma perseguição direta na qual o fator importante seria a velocidade, e talvez também a destreza na navegação, e tinham todo o dia para realizá-la, o vento era favorável e o mar estava deserto. Lamentava ainda não ter colocado os mastaréus de joanete, que estavam sobre a coberta desde que desatara a tormenta do dia anterior; esperara para que todos os marinheiros estivessem na coberta.
Não haveria tempo de empregar ardis, mas seria um absurdo não tirar vantagem de qualquer circunstância. Agora se podia ver a parte superior do casco do barco desde a coberta, mas entre as embarcações ainda havia cinco milhas de separação, e se tardaria muito tempo em encurtar essa distância, sobretudo porque no Minnie já haviam colocado as vergas dos joanetes e a Ariel estava muito carregada. Mudou o rumo com o fim de cruzar a esteira do Minnie e avançou para ele somente com as gáveas desdobradas. Suspendeu o ritual da limpeza da coberta, disse que as macas não subiriam até novo aviso, ordenou tapar com lona alcatroada os portalós e que preparassem os mastaréus de joanete e as vergas para serem colocadas pouco depois e também as sobrejoanetes. Pediu aos oficiais que seguissem seu exemplo e trocassem suas elegantes jaquetas azuis por jaquetões. Havia embarcado com só um uniforme, seu melhor uniforme, e os oficiais da Ariel, que supunham que o usava porque queria, porque essa era sua forma habitual de vestir, tinham desde então uma aparência que haveria causado admiração em um navio insígnia. Usavam jaquetas com dragonas e brilhantes botões dourados e chapéus muito adornados que se viam a grande distância, claros sinais de que pertenciam a um barco do Rei. Depois mandou a maioria dos marinheiros abaixo, deixando na coberta somente uma dúzia mais ou menos.
O serviola do Minnie os avistou antes do que Jack esperava. Desde o cesto da gávea do pau maior, Jack viu seus tripulantes correrem de um lado para o outro. Notou que havia um grande número de tripulantes, e isso parecia uma prova quase definitiva de que o Minnie era um barco corsário, já que eram suficientes para disparar os sete canhões de cada costado ou abordar e capturar qualquer dos mercantes que costumavam navegar pelo Báltico. O barco virou para ver-lhes melhor e Jack ordenou:
- Ice a bandeira dinamarquesa, senhor Grimmond!
O Minnie parecia comprazido e imediatamente içou a mesma bandeira e se aproximou um pouco mais.
- Vire para aproximar-nos dele, senhor Grimmond! - disse Jack em meio do expectante silêncio.
Mas no momento em que falava, no Minnie perceberam que havia algo errado, e o barco virou em redondo, largou as joanetes e fugiu em direção sudeste.
Antes que a Ariel desdobrasse as suas, a presa já havia largado as sobrejoanetes, e a distância entre as duas aumentava. A demora incomodou muito a Jack, ainda que não podia culpar a ninguém senão a si mesmo por ela, e instou os marinheiros para que subissem com rapidez os mastaréus de joanete e as vergas, o que fizeram com uma expressão preocupada.
Mas em pouco tempo os mastros, as vergas e um monte de estáis, formando uma tela de arranha, estavam onde deviam; todas as velas que a corveta podia usar abertas já estavam extendidas e muito esticadas; todas as velas estavam aduchadas no convés; e a Ariel, agora com sua própia bandeira içada e com seu galhardete ondeando na proa, seguia a esteira do Minnie, navegando com o vento pela alheta de estibordo e ganhando tanta velocidade como este lhe permitia. Era muito cedo para dizer qual das duas embarcações navegava mais rápida nessas condições, mas Jack tinha razões para achar que alcançaria a presa antes do dia terminar, pois havia muito poucas corvetas mais rápidas que a Ariel na Armada e já a conhecia muito bem.
- Bem, senhor Hyde, acho que podemos tirar a lona alcatroada e limpar a coberta.
A rotina diária do barco, que havia sido interrompida, voltou a seguir seu curso. Os marinheiros esfregaram com areia e pedra arenito a madeira gastada e esbranquiçada; as macas foram subidas e guardadas; a fumaça começou a sair pela chaminé da cozinha; os marinheiros foram chamados para desjejuar, e durante todo esse tempo, os dois barcos continuaram deslizandoe com rapidez pelo mar.
Quando Stephen subiu para a coberta, desejoso de tomar café, surpreendido e um pouco incômodo por não ter cheirado ainda, um guarda-marinha o guiou até a proa, onde o capitão e o oficial de derrota estavam fazendo coincidir um ponto do sextante com a presa.
- Bom dia, doutor - disse Jack. - Espero que tenha dormido bem.
- Admiravelmente bem, obrigado. Estou tão descansado que me parece que sou um gigante. Tenho a vista e todos os outros sentidos muito agudos e um apetite voraz. Inclusive posso ver esse barco que está a grande distância... Ali... justamente diante da proa. Mas talvez você já tenha visto também.
- O senhor Grimmond teve a amabilidade de indicar-me na guarda da alvorada. Esse é o mercante que busca, Stephen, ainda que seja um pouco estranho, e me alegro de dizer que estamos nos aproximando dele por fim. No princípio fugia a grande velocidade.
- Ah, então é por isso que navegamos tão rápido e com tantas velas desdobradas!
- Bem, um remendo a tempo poupa cento - disse Jack. - Mas duvido que possamos manter as joanetes desdobradas muito mais tempo.
- A velocidade produz emoção - disse Stephen. - Não acha que a velocidade levanta o ânimo, senhor Grimmond? Olhe como sobe essa onda cinza! Agora a partimos e a branca espuma salta pelos lados! Esta corveta é magnífica! Seria capaz de cortar uma palha navegando desta forma! Ficaria aqui olhando como navega toda a vida, mas o café da manhã esfria na cabine, e sobretudo meu café, capitão Aubrey.
- Já me reunirei contigo - disse Jack.
E se reuniu com ele e comeram juntos um pouco de papa de aveia e meia dúzia de ovos fritos com uma quantidade de bacon na proporção deviada, torradas e geléia, tudo isso graças às atenções que lhes haviam dispensado em Gotemburgo e Karlskrona, mas a última xícara de café ele levou para a coberta.
Havia perseguido presas com o desejo de obter uma fortuna, mas nunca sentindo realmente a necessidade de pegá-las. Achava necessário, desde um ponto de vista pessoal, porque se comprometera a realizar uma difícil tarefa e devia levá-la a cabo, mas sobretudo porque compreendia perfeitamente a importância dessa tarefa, a extraordinária importância de Grimsholm. Nada poderia nem deveria impedir Stephen de tentar chegar até ali. Jack confiava na capacidade de Stephen para enfrentar a situação, mas correria menos perigo se chegasse à ilha antes dos oficiais franceses e talvez conseguisse inclusive mudar completamente a situação. Os franceses chegaram a Hollenstein na terça-feira, e se tivessem embarcado num barco tão veloz como o Minnie poderiam chegar muito, muito rápido a Grimsholm. Na verdade, não era impossível que se encontrassem a bordo do mercante agora mesmo, e, além disso, a rota que o mercante seguia seria muito adequada para essa viagem.
Seus oficiais, ou a maioria deles, eram competentes, mas não tinham tanta experiência como ele em governar um barco, em aproveitar ao máximo o impulso do vento. Além disso, o vento era muito variável e, a medida que avançava o dia, mudava com mais frequência de intensidade, e às vezes soprava tão forte que as joanetes perigavam e inclusive os própios mastaréus de joanete. Seu oponente, o Minnie, também era variável, pois mudava incessantemente de rumo para comprovar como a Ariel navegava com mais velocidade e, além disso, a combinação de velas abertas. Jack respondia a todas essas variações e a todas as mudanças do vento, de modo que na corveta apareciam de repente as alas, inclusive por cima e abaixo e em ambos lados se a ocasião o requeria, e também as varredoras, e às vezes eram arriadas apenas haviam sido desdobradas. Na Ariel se vivia uma mistura de emoção e tensão e os marinheiros realizavam com rapidez seu trabalho. Subiam as mangueiras até os cestos das gáveas e, deali, com jorros de água que chegavam até as vergas, molhavam as velas para que pudessem tomar mais vento; subiam uma e outra vez baldes de água até as vaus e jogavam água nas joanetes até que ficavam empapadas; e amiúde estavam preparados para puxar as escotas ou as adriças antes que lhes dessem a ordem. A distância diminuia pouco a pouco, às vezes só um cabo em uma hora, mas diminuia. Desde a metade da guarda da manhã já se via completamente o casco da presa.
Quando fizeram as medições de meio-dia no Minnie, comprovaram com satisfação que a distância se reduzia menos se este navegava com o vento em popa, de modo que o mercante continuou navegando assim, com uma enorme pirâmide de velas. Pouco depois jogaram os barris de água pela borda e depois os canhões, com catorze impactos que fizeram saltar a água e a espuma, e o peso do mercante se aliviou muitas toneladas.
- Vais comer? - inquiriu Stephen. - O despenseiro está muito preocupado e diz que o porquinho se estropeará.
- Não - respondeu Jack. - Vê o arrastraculo{20} desdobraram? O pior de se perseguir um barco do Báltico é que todos têm quase sempre melhores aparelhos, velas de tela estupenda de Riga e cabos de excelente cânhamo, assim que podem navegar a toda vela, e em troca, nós não. Tenho que vigiar esse dinamarquês. Comerei algo aqui na coberta. É um extraordinário marinheiro.
- Acha que conseguirá escapar?
- Acho e espero que não. Na velocidade que navegamos agora, se não desprender nada, provavelmente o alcançaremos pouco depois do crepúsculo. Mas o vento é variável e quanto mais diminua de intensidade, menos encurtaremos a distância. O Minnie navega sem dificuldade, e me parece que navegará melhor com vento frouxo. Não está muito afundado na água, como pode ver, e estou certo de que o revestimento de cobre é novo. Todos os oficiais concordam em afirmar que nunca o viram navegar tão velozmente. Ele será muito útil ao almirante, pois necessita avisos.
- Vejo que está seguro de que o aprisionará.
- Oh, não, nunca diria isso! Traz má sorte. Não se deve vender a pele do urso antes de o haver matado. O que queria dizer era que se a capturamos, a Armada poderia comprá-la. Há muitas probabilidades, muitíssimas probabilidades... Espero que possa alcançá-lo antes do anoitecer, já que hoje não há lua e as estrelas brilharão muito pouco.
Uma longa, longa tarde, e os barcos ainda seguiam navegando a grande velocidade. Apesar de que agora a Ariel tinha mais tripulantes, todos estavam começando a se cansar devido a terem que trocar incessantemente as velas superiores e bombear; contudo, Jack pensava que os tripulantes da presa provavelmente se sentiam igual ou pior. Mas agora os marinheiros poderiam descansar, pois Jack havia ordenado pôr o conjunto de velas mais adequado (nenhuma no pau mezena, as escotas da maior desviadas para trás, o velacho desdobrado, mas com a superfície exposta ao vento reduzida, a traquete carregada, as alas da traquete e todas as bujarronas). O que realmente temia era que o barômetro estava subindo e o vento amainando, e isto último favoreceria ao Minnie por ser menos pesado; contudo, seguia tendo a inconfessável convicção de que cedo ou tarde o alcançaria, inclusive depois que uma rajada de vento soltou a vela maior da relinga. Mas era sumamente importante que o conseguisse cedo, pensava Jack, olhando aborrecido para as velas de tela resistente do Minnie, enquanto os tripulantes subiam pela exárcia com a tela de número oito do Almirantado, exageradamente fina e passada, para substituir a vela desprendida.
O medo espantoso, o medo de um fracasso total, não o assaltou até muito mais tarde, quando o Sol poente dimuniu a força do vento e o Minnie avançou perceptivelmente. Já fazia uma hora que o mercante estava ao alcance de suas caronadas e ele ordenara preparar os canhões de proa há muito tempo, mas não queria causar danos a um barco que depois teria que usar, e, além disso, era provável que ao disparar desperdiçassem o pouco vento que ainda soprava. Mas talvez fosse a melhor solução, já que se a velocidade do Minnie seguisse aumentando nesse rítmo e o vento seguisse soprando com pouca força e na mesma direção, o mercante poderia chegar a Grimsholm antes que ele porque estava em sua rota; e a ilha já estava a pouca distância, talvez a uma noite de navegação.
Depois de dar a perigosa ordem de largar uma monterilla{21} no pau maior (perigosa porque o mastaréu do joanete da Ariel havia se rachado quando a vela se desprendeu) seguiu remoendo o assunto na cabeça. O pequeno castelo de popa estava abarrotado. Todos os oficiais e guardas-marinhas haviam permanecido ali desde o começo da perseguição, ainda que falavam muito pouco e sempre em voz baixa. Agora estavam silenciosos e olhavam atentamente para a monterilla para ver o que ocorreria quando pegassem suas escotas. Do seu posto, na zona sagrada da coberta, junto ao costado de estibordo, Jack só ouvia a conversa entre o doutor Maturin e Jagiello, que não sabiam a importância que tinha a monterilla e falavam com a liberdade que dá a absoluta ignorância.
- Diga-me, por favor, senhor Jagiello, que costa é esta que vemos? - perguntou Stephen. - É a costa de Curlândia ou de Pomerânia ou me desviei muito?
- Estou perdido, senhor - respondeu Jagiello, sorrindo. - Poderia ser qualquer uma delas. Esta parte da costa do Báltico é toda igual: plana, com dunas de areia ao longo de milhas e milhas e bancos de areia. É estéril, erma, não é boa para ninguém, e, contudo, os polacos e os suecos e os russos e os alemães se hão peleado por ela durante centenas de anos. Vejo um castelo em ruínas, mas não posso dizer-lhe qual é - disse, dando seu telescópio. - A única coisa que produz é âmbar.
- Âmbar? - inquiriu Stephen.
Ao mesmo tempo, se ouviu um suspiro coletivo no setor profissional do castelo de popa, já que a monterilla, aquele pequeno pedaço de tela (não era mais que isso) deu um pouco mais de impulso à Ariel, o suficiente para evitar que a presa se afastasse mais dela. Mas isso não resolveu o problema de Jack, que, aborrecido como poucas vezes esteve, teve desejos, muitos desejos de que cessasse a conversa sobre o âmbar, sua origem, suas propriedades elétricas, seu uso na antiguidade clássica, e o que dizia dele Tales de Mileto.
- Senhor Hyde, a água... - começou a dizer, olhando fixamente o Minnie, mas se interrompeu ao ver com assombro que o mercante virava a bombordo e se situava com o vento pela alheta, a 40 ° do través.
Imediatamente deu uma série de ordens: largar a carangueja, a sobremesana, a perico{22}, a sobreperico, a traquete e, além disso, todas as alas e as velas de estai que não se podiam utilizar com o vento em popa. E então se notou a superioridade da Ariel por ter em sua tripulação um grande número de marinheiros de barcos de guerra: a nuvem de velas apareceu com assombrosa rapidez e as escotas foram caçadas e amarradas antes de que o Minnie houvesse desdobrado a metade das velas.
Mas antes que isto terminasse, inclusive antes que Stephen e Jagiello fossem derrubados duas ou três vezes pelos apressados marinheiros, Jack mandara um guarda-marinha ao tope. A mudança de rumo do Minnie era um suicídio, não só porque o capitão já comprovara que a Ariel era mais rápida que o mercante navegando assim, de quadra (o comprovara muito antes), senão que este, nos últimos minutos, perdera um cabo da vantagem que tinha. E se seguisse esse rumo, perderia quase uma milha a cada hora, ainda que desdobrasse todas as velas, e o Sol ainda estava a um quarto do horizonte. A única explicação que achava para essa mudança era que o mercante vira um aliado na costa ou um inimigo no alto mar.
- Coberta! - gritou o guarda-marinha. - Um barco, senhor! Um barco a 25° pela amura de estibordo!
- Tem um galhardete? - perguntou Jack.
Essa era uma pergunta tonta, pois se a Minnie não houvesse visto o galhardete, o indicativo de um barco de guerra, não se haveria desviado de seu rumo, mas queria a confirmação do que lhe causava grande alegria.
- Oh, sim, senhor! E acho que sei qual é. É um bergantim-escuna e tem as velas amuradas a estibordo... Está virando... Sim, senhor, eu o reconheço.
- Qual é?
- Humbug,{23} senhor - disse o guarda-marinha em tom vacilante.
Jack não podia acreditar que tivesse ouvido bem.
- O que disse? - perguntou.
- Humbug, senhor.
Então se ouviram risos na proa; três cadetes que estavam perto do capitão começaram a contorcer-se esforçando-se para conter-se e todos os oficiais sorriram. Aquele nome gracioso era muito conhecido no Báltico, mas os recém chegados o ignoravam. Logo antes que os russos se unissem aos aliados, um capitão da Armada real muito divertido capturara um de seus barcos, um bergantim-escuna construído em Tyne que navegava muito bem de bolina, e lhe mudara o nome russo, impossível de pronunciar, por Humbug, e esse era o único farsante que havia ou era provável que houvesse na Armada.
Farsante... O garoto lhe havia dito aquela palavra diante de todos, em seu própio castelo de popa... Jack pensou que devia estar bêbado e pôs expressão de enfado, e os sorrisos pararam. Mas em pouco tempo aquela horrível expressão e sua justificada indignação desapareceram e disse:
- Muito bem, senhor Jevons. Fique aí até que lhe chame.
Olhou para o Minnie e pensou que havia caído em uma armadilha.
- Vamos arriar a monterilla, senhor Hyde - disse. - É inútil pôr o mastro em perigo.
Estava convencido de que usando as sobrejoanetes desdobradas, ou mesmo simplesmente a joanete de proa, alcançaria o Minnie dentro de uma hora. Não teria que usar os canhões de proa.
- Sim, senhor - disse o senhor Hyde. - Sim, senhor, é inútil. A propósito, senhor, o nome do bergantim-escuna é realmente Humbug. Jevons não pretendia faltar-lhe com o respeito.
- Ah, sim? Bem, bem. Então pode descer. Onde está o guarda-marinha encarregado dos sinais? Para Humbug, posto que esse é seu nome, diga-lhe: Inimigo a vista. Perseguição por este-sudeste, e dispare um canhonaço. Senhor Jagiello, sinto que o tenham derrubado. O senhor está bem, né?
- Oh, perfeitamente bem, senhor! - disse Jagiello, rindo. - Não me aconteceu nada, mas as esporas se me engancharam nos cabos. Talvez eu devesse tirá-las.
- Desculpe-me, senhor - disse o senhor Pellworm. - O mercante se dirige para o banco Forten. De fato, encontra-se no final do banco Kraken, se não me equivoco.
- Ah, sim? - inquiriu Jack.
O banco Forten, situado a poucas milhas da árida costa, era formado por uma série de bancos de areia e um sinuoso canal que era muito pouco transitado. O Minnie, que era mais leve que a Ariel, afundava dois pés menos na água, e a esperança de seu capitão, sua última esperança, era atrair a corveta até um banco sobre o qual o Minnie pudesse passar e a Ariel ficasse encalhada. Essa era uma das razões para ter virado de repente.
- Muito esperto! Coloquem a sonda. Senhor Pellworm, pode fazer a corveta cruzar pelo canal?
- Acho que sim, senhor - respondeu Pellworm, olhando para a enorme quantidade de velame desdobrado que tinham acima de suas cabeças.
- Então é sua. Diminua todo o velame que quizer.
O Sol se ocultou. As rosadas velas foram arriadas uma por uma. A Ariel alcançou a esteira do Minnie e o seguiu devagar com uma sonda colocada em cada costado. O piloto, com grande atenção e uma expressão grave, governava a Ariel, já determinando com um compasso as marcações com relaçã a uma torre da margem e uma distante bússula, observando o mercante para poder apreciar qualquer movimento do leme, por menor que fosse.
O mercante movia amiúde o leme enquanto avançava pelo sinuoso canal, que parecia conhecer muito bem, e a Ariel, deslizando na penumbra pelas águas aparentemente inofensivas, repetia cada um de seus movimentos depois de um intervalo de quinze minutos. Aquela era uma estranha procissão. Posto que já não se moviam com grande velocidade, a emoção havia desaparecido, e agora só havia tensão, mas uma tensão muito diferente. As âncoras de proa estavam preparadas, penduradas da serviola, e havia uma âncora pequena colocada no pescante de popa, e os marinheiros estavam prontos para jogá-las quando dessem a ordem. Havia silêncio de proa a popa, e só se ouviam as ordens do piloto e a ladainha do marinheiro que sondava: "Profundidade seis, profundidade seis...! Marca cinco, e cinco e meio!".
O marinheiro continuou no mesmo tom até que, de repente, em um tom mais agudo e enfático, disse:
- Três e meio, e três e meio!
Todos na Ariel franziram os lábios, pois sabiam que agora havia muito pouca água debaixo deles.
- Pôr em pairo o velacho! - gritou o piloto, pegando o leme.
- E três e meio! Marca três! Falta um quarto para cinco! Profundidade seis, e seis e meio!
Estavam de novo na parte profunda do canal. Jack expirou por fim e deu graças a Deus porque havia água sob a quilha outra vez. Mas o Minnie voltou a mudar de bordo, virou 40° para estibordo. Jack estava certo de que algo mau ia acontecer. Não queria molestar o piloto, mas desejava com todas suas forças...
- Ele se chocou! - vociferou um suboficial na proa. - O maldito estúpido encalhou, sem-vergonha... uf, uf!
O suboficial esteve a ponto de afogar-se e um guarda-marinha lhe golpeou a cabeça com uma buzina. Era certo o que havia dito. O Minnie foi perdendo velocidade pouco a pouco até que por fim parou no meio do mar e seus mastros se inclinaram um pouco para frente. Depois se inclinaram de novo, mas muito mais, quando seu capitão ordenou largar e caçar as escotas de todas as velas que estavam carregadas, em um intento de fazê-lo passar por cima do banco, mas o intento foi em vão. Tampouco o capitão pôde fazê-lo retroceder. O mercante estava encaixado na areia, completamente horizontal, e com tão pouco movimento como se estivesse amarrado pela proa e pela popa, ou inclusive menos, porque nem sequer balançava.
- Rápido com essa sonda! - gritou Jack. - Pode abordar a corveta com ele, senhor Pellworm?
- Quase, quase, senhor - respondeu o piloto, rindo.
- Marca sete! - gritou o marinheiro que sondava. - E sete e meio!
- Este é o canal Kraken - disse o senhor Pellworm. - Preparem a âncora pequena!
O Minnie estava cada vez mais perto, cada vez mais perto. Podiam ver os rostos de seus tripulantes, que pareciam manchas brancas na escuridão, e podiam ouvir seus gritos. Pela popa estavam baixando um bote, um pequeno esquife. Jack viu figuras uniformizadas na coberta, e pensou que, sem dúvida, seriam oficiais franceses.
- Assim está bom, senhor Pellworm - disse quando já estavam a um cabo de distância da imóvel presa, pois não queria que o barco o impedisse ver o bote nem por um minuto nem queria se aproximar a uma distância inapropiada para disparar. - jogar a âncora pequena! Jogar a âncora de leva4! Abater as velas!
Então pegou uma buzina e gritou:
- Minnie, suba esse bote ou o farei em pedaços!
Não houve resposta. Na presa se ouviu uma furiosa discussão e depois um disparo de pistola.
- Senhor Jagiello, por favor, chame-lhes e repita-lhes em dinamarquês o que eu disse. Senhor Hyde, ponha um cabo de tração na amarra da âncora.
Jagiello deu a mensagem com voz clara, em diferentes línguas e tão alto que pôde ser ouvido no outro lado das duzentas jardas que os separavam. O bote caiu nas tranqüilas águas e os oficiais franceses saltaram para ele, e imediatamente, como se o capitão houvesse mudado de opinião, foi arriada a bandeira do mercante. O bote desapareceu atrás do costado de estibordo.
- Para seus postos! - gritou Jack, e um momento depois todos os marinheiros estavam em seus postos. - Senhor Hyde, três quartos de giro.
A Ariel deu tracionou a âncora e ficou quase sem movimento, quase tão firme como o Minnie. O bote reapareceu pela proa do Minnie e seguiu avançando com pouca cautela em direção à costa; as balas do canhão de proa de estibordo podiam alcançá-lo. Outra volta do cabrestante e todas as caronadas de um costado ficariam de frente para ele, e a uma distância em que podiam alcançar-lhe perfeitamente. Desde uma plataforma fixa, desde um barco imóvel, inclusive uma tripulação muito menos adestrada do que a da Ariel dificilmente erraria o alvo.
- Senhor Nuttall, dispare balas sozinhas e aponte além do bote -disse ao condestável.
O condestável apontou sua caronada e disparou. A bala caiu além do bote, a cinqüenta jardas do costado, e seguiu quicando no mar descrevendo uma série de enormes curvas; o bote seguiu remando.
- Outra vez - ordenou Jack.
Desta vez a fumaça impediu ver onde havia caído a bala, mas quando se dissipou, pôde ver-se que o bote ainda seguia remando em direção à margem.
- Girar adiante, senhor Hyde - disse Jack com voz áspera.
Seria algo desagradável, mas as caronadas já não podiam disparar muito mais longe e não podia confiar na eficácia de um canhão sozinho. Tinha que terminar agora mesmo. A corveta tinha o costado de frente para o bote, os artilheiros estavam preparados junto às caronadas.
- De proa a popa, disparem no alvo! Esperem para que a fumaça se dissipe! Primeiro disparo!
A primeira bala caiu um pouco longe. A segunda fez balançar o bote, e, no meio da espiral de fumaça, Jack viu um homem ficar de pé e se perguntou: "Está agitando um lenço?". Mas na fração de segundo em que pensava isso, o terceiro canhão disparou, e a bala acertou em cheio o bote, fazendo saltar pelo ar barras de madeira e algo parecido com um braço. Por toda a coberta se ouviram estrondosos gritos de alegria e os artilheiros, com o rosto radiante, abraçavam-se uns aos outros.
- Guardar os canhões! - ordenou Jack. - descer os cúteres! Senhor Fenton vá ver se há sobreviventes. Senhor Hyde, vá tomar posse da presa e diga-lhe ao capitão que acenda os faróis imediatamente. Anderson servirá de intérprete. Senhor Grimmond, ponha um farol aceso na cesto da gávea do maior para guiar o Humbug e traga um cabo grosso de oito polegadas. Imediatamente temos que puxar a presa para desencalhá-la; não há nem um minuto a perder.
Cada minuto era realmente imprescindível, e, contudo, perdiam-se montes e inclusive centenas. O Minnie não se movia. Os canais eram tão estreitos e intrincados que um barco do calado da Ariel não podia navegar bem por eles nem podia pôr-se no lugar que lhe convinha. Com muito trabalho haviam apanhado duas âncoras, levando-as para longe com a lancha e arrastando suas pesadas correntes, mas cada vez que o cabrestante lograva esticá-las de maneira que transmitissem a máxima força ao Minnie, as âncoras se desprendiam.
A situação já era muito difícil quando Fenton voltou com o único sobrevivente, um jovem de uns dezessete anos que estava inconsciente e com feridas na cabeça e numa perna. E era ainda pior um pouco depois, quando Stephen saiu da enfermaria e subiu para a coberta: havia cabos estendidos em todas as direções, penetrando na escuridão e à luz das lanternas se viam os rostos dos homens do cabrestante, nos quais já não havia sinais de alegria senão de profundo cansaço. Apenas Jack acabara de dar aos gritos uma série de ordens a um bote distante, Stephen apareceu.
- Como ele está? - inquiriu com voz rouca.
- Acho que poderemos salvá-lo - disse Stephen. - Parece que a ligadura se mantém e o jovem tem uma grande foça. Está triste, meu amigo?
- Bastante, bastante. As bitas{24} da popa cederam e perdemos nossa âncora de leva{25} pequena: quebrou a argola. Mas poderia ser pior... Além disso, acho que o Humbug não tardará em chegar. É quando pequeno calado.
Agora parecia animado, e, de fato, a constante atividade evitava que a parte superficial de sua mente se preocupasse com o que ocorreria nas próximas horas. Contudo, a parte um pouco mais profunda prestava atenção aos nimbos que se acumulavam ao norte e também ao Humbug, que avançava devagar entre os bancos de areia e se desviara do canal e encalhara duas vezes e ainda se encontrava a umas cinco milhas de distância; e remoía a idéia de que se houvesse marejada, teria que cortar os cabos e ir embora, abandonando o Minnie, o que significaria o fracasso da missão que pouco antes prometia ser um êxito.
- Conseguiu alguma informação dele?
- Não. Está em coma. Mas seu uniforme não tem a magnificência do de um assessor e suas cartas são comuns, como as de qualquer subalterno. Além disso, um ato temerário como esse é mais própio dos jovens que dos sensatos oficiais com antiguidade.
- Não estou certo - disse Jack. - Se me houvessem posto ao comando de uma lugar como Grimsholm, acredito que teria tentado chegar. Haveria tratado de encontrar um cavalo na costa, pois não está a muitas horas de caminho. Mas tenho certeza de que me haveria afastado no bote uma ou duas milhas pelo lado que não podia ser visto. O que foi, senhor Rowbotham?
- Com sua licença, senhor, a âncora de reserva já está preparada.
- Muito bem, muito bem. Agora engate-a e jogue-a estirando a amarra até o final. Até o final, senhor Rowbotham.
- Oh, sim, senhor! Até o final.
O segundo oficial se aproximou para receber novas instruções, e enquanto Stephen ouvia falar de questões técnicas e urgentes, observava as luzes do outro lado do banco, as luzes de todos os botes da Ariel e do Minnie, que puxam os cabos que saíam radialmente deste para desencalhá-lo, quer dizer, de todos os botes exceto o esquife, no qual Pellworm se dirigia para o distante Humbug para ajudá-lo a atravessar o sinuoso canal.
Uma fina chuva começou a cair, ocultando as luzes. Fenton se foi para a popa e então Stephen disse:
- Se pudesse falar com o capitão do Minnie, talvez obteríamos toda a informação de que necessitamos. De qualquer forma, tenho que falar com ele para averiguar o que sabe sobre Grimsholm, pois acredito que o Minnie vai muito ali.
- Quando tivermos um bote livre, mandarei pegá-lo - disse Jack e depois gritou: - Senhor Hyde, diga ao capitão do Minnie que se prepare para embarcar no próximo bote que venha e que traga a documentação do barco!
- Senhor, os franceses lhe deram um tiro! - chegou a resposta de Hyde através da úmida escuridão. - Quer que mande o segundo em comando?
Duas figuras escuras vieram então para lhe dar uma informação, e de um bote que não podiam ser vistos gritaram que a espia se prendera nos restos de um barco afundado.
- Não se desanime agora, meu amigo - disse Stephen. - Neste momento não serviria de nada saber se o general Mercier está vivo ou morto, podemos esperar até amanhã.
Ouviu-se um forte rangido e um rumor de vozes na escuridão, e Jack se foi. Stephen esteve esperando-lhe, mas como a chuva aumentava, desceu e se deitou em sua maca com as mãos debaixo da cabeça e fixou a vista na chama da lanterna. Para eliminar o cansaço, relaxou todo o corpo, e sua mente se limpou por completo, como quando tomava sua bebida favorita, o láudano. Não tinha ansiedade. A tentativa podia resultar em êxito ou em fracasso, e desejava de todo coração que fosse um êxito, mas "de todo coração" não significava muito agora que uma parte essencial de seu coração parecia estar morta. Por outro lado, sentia-se mais preparado para obter o êxito, sentia-se impulsionado para isso por uma força que não provinha de sua indiferença pelo seu própio destino mas sim de algo parecido e que não podia definir, algo semelhante ao desespero, mas um desespero sentido muito tempo atrás e desprovido de horror.
O Humbug, abatendo para barlavento e trocando de bordo muitas vezes, terminou de atravessar o canal no final da guarda de meia e trouxe consigo o forte vento e a ameaça de que a noite terminaria mal.
Os homens do bergantim-escuna demoraram mais de uma hora para jogar âncoras e colocar balizas; os melhores marinheiros dos três barcos estenderam cabos de um lado a outro. Os cabos foram saindo uns atrás dos outros pelo escovém (saíram todos os que havia no convés) e gradualmente foram tomando forma todos os aparelhos pensados para levantar o Minnie de seu leito de areia ou sacá-lo dali arrastando-o.
Stephen foi despertado por uma voz familiar, tão alta que atravessava a coberta, já que agora estavam pondo a prova todo o sistema. Cegara o momento de fazer força, uma força compartilhada entre quatro âncoras e quase uma milha de amarras e cabos grossos e concentrada no cabrestante da Ariel.
- Pisar forte e adiante! - gritava Jack para os marinheiros que empurravam as varas. - Pisar forte e adiante! Girar, girar! Girar com força!
A maioria dos homens eram tripulantes do Minnie que haviam sido obrigados a fazer essa tarefa e, apesar de que não entendiam as palavras, compreendiam perfeitamente o que queriam dizer. Conseguiam apenas avançar uma polegada de cada vez e não se ouviam freqüentes estalidos, apenas um clique a cada minuto; pouco depois já não se ouviu nenhum. Agora haviam conseguido alcançar a força máxima e o cabo que unia ambos barcos não tinha nem uma minúscula ondulação quando desapareceu na luz tênue que agora começava a ficar mais intensa.
- Empurrar com força! Com muita força! Contramestre, açoite esse homem! Empurrar! Que não retroceda! Muito bem, companheiros! Empurrar com vontade!
Então se ouviu o distante grito: "Ele se move!".
As barras se moveram; os ofegantes marinheiros avançaram meio passo; o cabrestante girou, e seguiu girando cada vez mais rápido.
- Muito bem! Seguir empurrando! - gritou Jack.
O Minnie deslizou para trás, saiu do banco de areia, voltou a flutuar onde as águas eram mais profundas e começou a balançar com suavidade, e meia dúzia de marinheiros desmaiaram no cabrestante. Stephen ficou meio acordado durante um tempo, enquanto eram recolhidos e aduchados inumeráveis cabos de diferentes grossuras. E depois de ouvir o grito: "Grogue para todos!", voltou a adormecer profundamente.
Era pleno dia quando despertou. A chuva havia cessado e o Minnie estava abordado com a Ariel, e os marinheiros o estavam carregando com o vinho e o tabaco da corveta. Muito longe, pela popa, podia ver o Humbug tentando encontrar a âncora perdida. Todos pareciam muito cansados, exceto Jagiello, que estava alegre e animado como sempre, mas nenhum tão cansado como um homem de meia idade que levava um gorro de pele de cordeiro e um monte de livros sob o braço e que, conforme disseram para Stephen, era o segundo no comando do Minnie.
- Senhor Jagiello, vou fazer uma visita ao meu paciente e quando regresse, que penso que será logo, queria fazer algumas perguntas a esse homem com sua ajuda, assim que lhe rogo que tenha a amabilidade de dizer-lhe que desça para sua cabine.
A visita foi realmente breve. O paciente parecia um menino apesar de seu bigode incipiente e bem arrumado. Ainda estava em coma, mas respirava tranqüila e profundamente, e até agora parecia que a operação havia sido um êxito: a ligadura se havia mantido bem e parecia que seguiria assim. Contudo, Stephen pressentia que a morte estava perto, e houve um momento em que pareceu que já estava ali. Não podia fazer nada agora, de modo que foi aonde estavam Jagiello e o velho marinheiro.
Perguntou-lhe quem eram os oficiais franceses que estavam no bote, que sinais se usavam para se aproximar de Grimsholm, quais as formalidades deviam ser cumpridas para poder desembarcar...
Mas obteve muito poucas respostas, pois o segundo em comando do mercante se refugiou na ignorância e no esquecimento. Disse que esse era a primeira viagem que fazia no Minnie... Não sabia nada de Grimsholm... Não vira os franceses... Não sabia nada a respeito deles...
- Acho que terei que deixar este tipo esquivo sozinho durante um tempo - disse Stephen enquanto folheava o rol do Minnie. - Pode ser que fique mais dócil depois de passar alguns momentos recordando. Está mentindo, mentindo descaradamente. Conforme o rol, pertence à tripulação do mercante há um ano e quatro meses. Além disso, estou desejando tomar esse café que cheira a não muita distância, você me acompanha?
- Obrigado, mas já tomei minha poção da manhã na câmara dos oficiais.
Stephen se surpreendeu ao ver que Jack, rosado e recém barbeado, já estava sentado à mesa e comia vorazmente.
- Meu Deus! Ainda não se deitou?
- Oh, dei um cochilo na cadeira de Draper! - respondeu Jack. - Isso repõe as forças de uma maneira assombrosa. Quer um bife?
- Obrigado, Jack, mas por enquanto me bastam uma xícara de café e uma torrada. Vou a voltar para falar com o prisioneiro imediatamente; já me ocorreu um meio de desconcertar esse estúpido. Mas antes quero felicitar-lhe por ter conseguido fazer o Minnie flutuar outra vez. Acho que fez uma grande façanha, dou-lhe minha palavra.
- Foi a maré a que mudou a situação - disse Jack. - É quase impossível acreditar que algumas polegadas de água tenham esse efeito, pois no Báltico a maré não sobe mais, sabe? Elevou um pouco o mercante no momento em que necessitávamos; meia hora mais e teria tido que cortar os cabos e ir embora. Foi uma luta difícil, eu lhe asseguro. Porém, diga-me, que notícias tem dos oficiais franceses? E que notícias tem do jovem? Como está?
- Ainda está em coma profundo - disse Stephen movendo a cabeça de um lado para outro, com pesar. - Temo que ontem à noite fui muito otimista. Os processos mecânicos seguem realizando-se bastante bem e a ligadura se mantém, mas tem pouco espírito. Espero saber algo de seus companheiros imediatamente.
Voltou aonde Jagiello estava com o café na mão, e ali voltou a surpreender-se. Algo havia passado durante sua ausência. O jovem tinha uma expressão satisfeita e triunfante, parecia um Apolo que acabava de vencer a Mársias (ainda que um Apolo primitivo), enquanto que o prisioneiro estava exageradamente pálido e seus lábios estavam amarelados.
- Ele me contou muitas coisas - disse Jagiello, aproximando uma cadeira para Stephen e pondo em cima uma almofada. - Agora diz a verdade. É certo que não sabe quem eram os oficiais franceses, porque eles permaneceram na cabine todo o tempo. O barco se dirigia para Bornholm, porém, seguindo essa rota, seria fácil rumar para Grimsholm. Só o capitão do Minnie poderia ter sabido aonde se dirigiam exatamente. Viu os oficiais quando passaram para o bote na água e diz que não eram velhos; contudo, isso não prova nada, porque um coronel francês ou inclusive um general poderiam ser muito jovens. Com relação a Grimsholm, sabe que tem que fazer um sinal secreto para poder chegar e diz que da última vez que o Minnie esteve ali era colocar a bandeira de Hamburgo ao revés no traquete, mas que pode ter mudado. Somente o capitão poderia saber. Além disso, diz que não é permitido a ninguém desembarcar na ilha, que todos devem parar em uma ilhota que há perto da costa e apresentar sua documentação no cais e descarregar em botes. Só se pode falar com os franceses, que são quem examinam a documentação. A ilhota está no fundo da baía e tem um cais. É o terceiro desse conjunto de ilhas. Desenhe-as, sem-vergonha! - disse ao dinamarquês.
Stephen pegou o desenho e o examinou.
- Vamos, comprovemos sua declaração com a dos membros mais prudentes e responsáveis da tripulação do Minnie. E permita-me dizer-lhe, senhor Jagiello, que uma moeda de ouro, se for oferecida de um modo correto, permite conseguir a melhor informação, e que a possibilidade de obter mais em caso de êxito pode provocar uma avalancha de informação não contaminada de engano nem de maldade. Isto que temos aqui é muito bom, é bom em aparência, porém, creia-me, não me moverei nem uma polegada se não tiver a confirmação.
Jack ainda estava comendo, ainda que agora devagar, quando Stephen voltou para a cabine. Fora por um momento à coberta quando os homens terminaram de carregar a presa e observara que soprava o vento do oeste-noroeste. Dera ordens de que os marinheiros do Minnie, vigiados por um grupo de infantes de marinha, o tripulassem, mantendo-o a sotavento da Ariel e não muito longe de seus canhões, porque assim sua própia tripulação poderia descansar. Também havia determinado a posição da Ariel. Se os transportes fossem pontuais ao encontro, os avistariam pelo noroeste dentro de uma hora mais ou menos, e avistariam Grimsholm pelo sudeste duas horas depois.
- Comprovei estes dados - disse Stephen e os enumerou e mostrou o desenho. - Os hão corroborado o carpinteiro e o contramestre do Minnie, interrogados separadamente. Não levo em conta o que disse o terceiro em comando porque está bêbado, completamente bêbado, ainda que não se saiba por quais meios o conseguiu.
- Parece bom, mas o que me incomoda é a informação sobre o sinal secreto - disse Jack. - Faz meses que o Minnie não vai à ilha, e é muito provável que tenha mudado.
- Minha opnião é igual à sua, meu amigo - disse Stephen. - Estive pensando...Hei estado pensando em Artemisa.
- Ah, sim? - inquiriu Jack.
- Não ache que me refiro à esposa de Mausolo... - disse Stephen, levantando um dedo.
- Se se refere à fragata, está nas Índias Orientais.
-... porque estou pensando é na filha de Ligdamis, a rainha de Halicarnasso. Como recordará, acompanhou Xerxes com cinco barcos e tomou parte na batalha de Salamina. Quando se deu conta que estava perdida e viu que vários barcos atenienses a perseguiam, atacou um barco persa. Os atenienses supuseram que era uma aliada e deixaram de persegui-la, e ela conseguiu escapar. Acredito que isso tem certa analogia com este caso. Se o Minnie chegasse a Grimsholm com todas as velas desdobradas perseguido pela Ariel e açoitado por suas caronadas, não acha que seria um bom ardil? Não acha que qualquer erro ao fazer o sinal secreto seria passado relevado em um caso assim, sobretudo se a bandeira de Hamburgo era o sinal válido na última visita do Minnie?
Jack esteve pensando um momento.
- Sim, acho que sim - respondeu. - Mas o ataque terá que ser convincente. Você me disse que boa parte dos homens que estão na ilha são marinheiros, teremos que fazê-lo tão bem que possamos convencê-los. Acho que podemos conseguir. Sim, acredito que podemos conseguir. Gosto de seu plano, Stephen.
- Me alegro de que o aproves. E já que é assim, queria fazer mais algumas sugestões. Seria uma pena que os marinheiros holandeses e do Báltico que sir James amavelmente nos proporcionou, por seu comportamento correto e sua roupa impecável, fossem a causa de que se descobrisse a estratagema. São homens muito limpos, de boas maneiras, acostumados à disciplina da Armada real e a maioria estão vestidos com as calças que se costumam usar em seus barcos. Sugiro que troquem de roupa com os tripulantes do Minnie e ocupem seus postos. O que poderia ser mais lógico do que pensar que sob roupa dinamarquesa há realmente dinamarqueses? Além disso, como deve haver algumas caras conhecidas no mercante, sugiro que o cozinheiro e o carpinteiro fiquem a bordo. Os dois aceitaram um douceur em troca de informação e esperam receber uma considerável soma se tudo sair bem.
- Faremos do seu geito, Stephen - disse Jack, esvaziando a cafeteira. - Começarei imediatamente.
Subiu para a coberta, e pouco depois começaram a chegar os tripulantes do Minnie em pequenos grupos. Quando lhes disseram que tinham que tirar a roupa, puseram expressão de desconcerto e medo, e mesmo quando lhes fizeram compreender que era para fazer uma troca, mesmo quando já estavam vestidos com a roupa dos tripulantes da Ariel, mantiveram uma atitude apreensiva.
Voltou para a cabine com os livros do mercante e passou a examinar os dados sobre seus novos tripulantes, e então chegou Hyde.
- Peço que me desculpe, senhor, mas os homens dizem que os dinamarqueses estão piolhentos e suplicam que os exima de pôr sua roupa.
- E em seguida vão se queixar dos gorgulhos - disse Jack.
- Foi o que eu disse, senhor, mas Wittgenstein, que fala em nome de todos, diz que os gorgulhos são naturais, enquanto que os piolhos não, porque foram uma das pragas do Egito, portanto, irreligiosos. Têm medo de que infestem sua roupa e suas macas, mas sobretudo seu cabelo. Não querem cortar a trança por nada desse mundo, senhor, e ainda que tenham falado com respeito, acredito que falam sério.
- Chame os marinheiros para a popa, senhor Hyde - ordenou Jack.
Então Stephen disse:
- Eles não distinguem entre pediculus vestimenti, os piolhos do corpo, e pediculus capitis, os da cabeça. Seus rabichos não correrão perigo se não puserem os chapéus dos dinamarqueses.
Os marinheiros foram para popa, e os que se negavam a usar a roupa cheia de piolhos tinham uma expressão de desgosto e um olhar feroz enquanto que os outros estavam alegres e lhes olhavam zombadoramente.
- Marinheiros! Compreendo que não gostem dos piolhos, e a verdade é que eu também não gosto. Contudo, temos uma tarefa urgente que cumprir. Não há tempo de preparar as caldeiras e ferver tudo, e temos que chegar a Grimsholm com a aparência de tripulantes de um mercante, não de marinheiros de barcos de guerra. Sinto muito, mas não posso fazer nada. Isto é parte de seu dever. Mas não têm por que temer por seus cabelos se não puserem os chapéus dos dinamarqueses. Um cavalheiro muito instruído me disse que estes piolhos são inofensivos e que só infestam seu corpo, não seu cabelo. Há dois muito distintos: o pedículo vestuário e o pedículo capito, dos vestidos e da cabeça. Como hei dito, isto é parte de seu dever, mas como pode considerar-se uma tarefa exageradamente difícil, cada homem receberá uma libra e quatro peniques a mais que o pagamento do dia. Além disso, os prisioneiros hão recebido roupa nova e não se deitarão em suas macas, dormirão em colchões de palha na bodega. Não podem pedir nada melhor do que isso.
Sabia que lhes havia comprazido e que o pedículo capito havia inclinado a balança antes de que se falasse de dinheiro.
- Diga aos marinheiros que podem se retirar, senhor Hyde - ordenou. - E sigamos adiante.
Quando já estava na cabine de novo, disse:
- Hei pensado em encarregar a Wittgenstein que leve a Minnie até a ilha, junto com Klopstock e Haase como ajudantes. Não penso em enviar nenhum oficial.
- Oh, senhor! - exclamou Hyde em tom decepcionado. - Esperava que...
- Eu sei - disse Jack, que compreendia perfeitamente seus sentimentos. - Mas este é um caso especial. Os tripulantes devem parecer marinheiros comuns do Báltico, e nossos homens poderão se vestir como queiram desde que não infrinjam as regras da guerra. Se forem capturados, serão tratados como prisioneiros comuns; se capturarem um oficial disfarçado, considerarão ele um espião e o matarão.
- Sim, senhor, mas poderia ir em mangas de camisa e guardar em algum lugar a jaqueta com minha nomeação no bolso. Senhor, o senhor sabe que é muito difícil conseguir uma promoção hoje em dia: um homem tem que se meter pela boca de um canhão e sair pelo ouvido, como dizem. E ainda que o faça, nem sempre o percebem.
Jack vacilou. O que Hyde dizia era totalmente certo, e além disso, um capitão tinha a obrigação moral de dar essa oportunidade aos seus oficiais, por ordem de antiguidade. Porém, além do válido argumento do categoria, havia outro que não se atrevia mencionar. Hyde era um jovem sério e consciencioso e desempenhava bem uma parte de sua tarefa, a de manter a ordem no barco, mas não era um grande marinheiro. Tinha a idéia de que aumentar a velocidade consistia em desdobrar mais velame, mesmo se afundasse mais o barco como se não; virava com vacilação, provocando sacudidas; numa ocasião seu defeito de confundir a direita com a esquerda fez com que a Ariel perdesse os estais. Se enviasse um oficial, Jack preferiria mandar Fenton, que era um marinheiro nato, mas isso seria considerado uma ofensa. Contudo, sua indecisão não durou muito tempo. A questão estava clara: os bons sentimentos não poriam em perigo a missão e a vida de Stephen.
- Sinto muito, Hyde, mas deve considerar isto como parte de seu dever, como os piolhos - disse. - Estou certo de que muito em breve terá outra oportunidade de se distinguir.
Mas não tiha certeza e pensava que suas palavras não foram convincentes nem serviram de consolo. Então, ouviu com satisfação que avistaram quatro barcos pelo través de estibordo. Estavam tão longe que só eram vistos das gáveas, mas seguiam um rumo convergente com o da Ariel. Enquanto esperava para que pudessem identificá-los, mandou Wittgenstein e seus ajudantes descerem para a cabine, todos homens fortes e de meia idade cujos anos de serviço na Armada eram quase cem em conjunto. Explicou que deviam levar o Minnie para Grimsholm, desdobrando a maior quantidade de velame para fugir da Ariel, que iria perseguindo-o, e com a bandeira da Dinamarca e a de Hamburgo içadas. Acrescentou que tinham que fundear na ilhota do desenho que mostrava e levar o doutor Maturin até a costa. Sublinhou que o doutor Maturin seria o único que falaria, que tinham que obedecê-lo ao pé da letra e que não deveriam falar inglês onde pudessem ser ouvidos da ilha. Escutavam com atenção, e Jack estava muito satisfeito de ver que haviam entendido perfeitamente que deviam se comportar e manobrar como os marinheiros de um mercante.
Quando estava a ponto de repetir pela terceira vez todos os pontos, Wittgenstein, um pouco incômodo, disse:
- Sim, senhor, já compreendi. Não sou um marinheiro de água doce. E com sua permissão, acho que deveríamos subir todos a bordo agora, para ver como se governa.
Jack os viu se afastarem no bote junto com os tripulantes escolhidos, que usavam as jaquetas cheias de piolhos. Depois viu com que rapidez abandonavam os longos anos de disciplina, pois perambulavam pela coberta, falavam, apoiavam-se na borda, mascavam tabaco e lançavam escarros, coçavam-se, largavam a roupa em qualquer lugar... O Minnie nunca havia sido o que na Armada se consideraria um barco ordenado e agora tinha realmente um aspecto desastroso.
Já a Ariel e os quatro barcos que apareceram pelo noroeste se haviam identificado. Como Jack supunha, aqueles eram os transportes, escoltados pelo Aeolus. "Acho que posso cantar vitória antes do tempo, mas espero que isso não traga má sorte", pensou olhando para os distantes transportes e depois para o sul, onde apareceria Grimsholm mais tarde.
Fazia um tempo que haviam soado as sete badaladas da guarda da manhã, e no relógio de areia de meia hora já havia saído quase toda a areia da ampulheta. Apesar da idéia de que era iminente uma brusca mudança da situação, pois todos os marinheiros sabiam o que a Ariel ia fazer, havia animação no barco porque se aproximava o momento da refeição, ainda que o fato de saber que levavam a bordo um cadáver, algo que dava má sorte, havia diminuído a alegria que habitualmente sentiam nessa hora. O jovem francês havia morrido, e haviam chamado o veleiro para que fechasse com uma costura a maca onde estava seu cadáver com duas balas de canhão aos pés.
Os oficiais fizeram as medições de meio-dia com cuidado especial, umas medições exatas que demonstraram que Grimsholm estava um pouco mais perto do que estimavam. Viraram o relógio de areia, o sino soou, e os marinheiros foram chamados para comer a tão esperada refeição. Quando terminassem, a ilha já se desenharia sobre o céu claro, e pouco depois Stephen subiria a bordo do Minnie e a aparente perseguição começaria.
- Seria inapropiado que comêssemos agora? - inquiriu.
- Não, em absoluto - respondeu Jack. - Darei a ordem agora mesmo. - Então se inclinou sobre a clarabóia e gritou para o assombrado despenseiro: - Que a comida esteja na mesa dentro de sete minutos! Caviar, pão sueco, fritadas, bifes, presunto, as sobras do pastel de ganso, uma garrafa de champanhe e duas garrafas do borgonha de selo amarelo!
Aos sete minutos se sentaram na mesa, depois que Jack deu ordem para que o avisassem se avistassem a ilha.
- Gosto de caviar - disse Stephen, servindo-se outra vez. - De onde saiu?
- O Czar mandou para sir James e ele nos deu um barril. Uma comida diferente. E acho que o almirante estranhou.
Esse foi a única tentativa de brincar que fez em toda a refeição, e praticamente só comeu um pouco de caviar. Sentia que tinha o estômago fechado e apenas encontrava prazer em beber.
Em troca, Stephen comera fritada, uma libra de carne e terminara o pastel de ganso e cortara um pedaço de presunto que, comparado com o que costumava comer, permitiria dar um festim. Mas era um festim sem festa. A atmosfera não era a adequada. Usavam fórmulas de cortesia e seu contato era quase inexistente; parecia que Stephen já havia ido, que se encontrava em outro plano.
Somente quando estavam tomando vinho do porto e Stephen disse que gostaria muito que pudessem tocar um pouco de música (em outros viagens que haviam feito juntos haviam tocado juntos composições para violoncelo e violino inumeráveis vezes, amiúde em circunstâncias difíceis) sua antiga relação ressurgiu.
- Poderíamos tocar uma peça alegre - disse Jack com um tímido sorriso.
Nesse momento entrou um guarda-marinha e disse, da parte do oficial de derrota, que haviam avistado Grimsholm do tope.
- Há chegado o momento - disse Jack. - Devemos começar a perseguição muito antes que eles nos vejam.
Pegou a garrafa e encheu os copos.
- Pelo afeto que lhe tenho, Stephen, e... - começou a dizer, mas o copo escorregou de sua mão e quebrou, e então, em voz baixa e tom entristecido, exclamou: - Saúde!
- Não tem importância, não tem importância - disse Stephen, secando os calções. - Agora escute-me, Jack, por favor. Só há três coisas que tenho que dizer antes de subir a bordo do Minnie. Se tiver êxito, içarei uma bandeira catalã. Sabe como é a bandeira catalã, né?
- Envergonha-me dizê-lo, mas não sei.
- É amarela com quatro faixas vermelhas verticais. Se a vir, quando a vir, deve avisar aos transportes, que, naturalmente, estarão onde não possam ser vistos da ilha, e você deve ir imediatamente, com a mesma bandeira içada em um lugar de honra. Suponho que terá uma.
- Oh, o veleiro fará meia dúzia voando! Uma bandeira amarela com faixas tiradas de um galhardete de reserva.
- Exatamente. E lhe rogo, Jack, que faça tantos disparos de cumprimento como corresponda fazer ao chegar a uma fortaleza como essa, ou inclusive mais, e que receba ao oficial que ostenta o comando com a cerimônia com que se deve receber a um nobre.
- Se vier contigo, será recebido como um rei.
Stephen cruzou a faixa de água e subiu a bordo do Minnie. A Ariel fez um sinal para o distante Aeolus para que orçasse, pôs em pairo as gáveas para deixar que o Minnie tivesse duas milhas de vantagem e por fim começou a longa perseguição.
Stephen se sentou em uma velha cadeira de cozinha junto ao mastro mezena para não atrapalhar. Tinha sobre as pernas um pacote de papéis e olhava fixamente para Grimsholm, que se via cada vez maior pela amura de bombordo. Era inútil preparar cuidadosamente o que ia dizer, porque tudo dependeria dos primeiros momentos e da presença ou ausência de oficiais franceses quando fosse recebido; e desde esse momento, tudo seria uma improvisação, uma cadenza{26}. Assobiou o Salve Regina de Montserrat para acompanhar o tema.
Da proa da Ariel Jack o via com claridade para lá do mar cinza, podia distinguir sua escura figura inclusive sem telescópio. Com demasiada claridade, porque a Ariel, com o vento pela alheta, aproximara-se do Minnie com mais rapidez que a devida durante a última meia hora.
- Largar a vela e dar uma guinada! - gritou.
Os homens amarraram os punhos de uma cevadeira e a deixaram cair no mar pela alheta do costado que não podia ser vista da ilha, e a vela atuou como uma âncora de capa. A velocidade se reduziu, mas de uma forma que não se notou muito, e a corveta continuou aproximando-se do mercante, mas muito pouco. Dez minutos depois, Jack disse ao condestável:
- Bem, senhor Nuttall, acho que podemos abrir fogo. O senhor sabe o que fazer. Tenha muito cuidado, senhor Nuttall.
- Não tema, senhor - disse o condestável. - Preparei todas as cargas com a pólvora branca que comessou a se perder. Não há perigo.
Então disparou. A bala desviou cinqüenta jardas para um lado e caiu a duzentas jardas da popa da Ariel. O Minute respondeu desdobrando uma ala da joanete de proa.
- Tem que parecer de verdade - disse Jack.
- Não tema, senhor - disse o condestável outra vez. - Já verá quando o canhão esquentar.
O canhão esquentou, isto é, os canhões, porque a Ariel dava pequenas guinadas para disparar umas vezes com um canhão de proa e outras com o outro, de maneira que sua potência aumentava mas sua velocidade diminuia. As balas, lançadas cuidadosamente, caíam tão perto do Minnie que uma ou duas vezes a espuma chegou até a coberta. Era um bom exercício, mas não dava aos marinheiros mais experimentados da Ariel tanta satisfação como realizar manobras: subir ligeiramente as escotas sem parar, exercer mais pressão sobre as velas que não estavam equilibradas, fazer todos os ardis que o capitão havia aprendido navegando pelos oceanos do mundo e todas as coisas que dessem a impressão de que desejavam navegar a toda velocidade, mas sem adiantar muito realmente. E o que mais gostaram foi a ordem de largar a sobrejoanete maior, uma vela que era perigoso usar desdobrada com um vento como aquele inclusive com paus em boas condições.
- O senhor esqueceu que o mastaréu do joanete está rachado, senhor - disse o senhor Hyde.
- Estou lembrado, senhor Hyde - disse Jack. - Acima!
O mastaréu do joanete, a vela e a verga se desprenderam um minuto depois, algo impressionante visto de terra. E Grimsholm estava cada vez mais perto, e também o extenso litoral que resguardava, um litoral de águas profundas e lugares perfeitos para que um exército desembarcasse, além do porto fluvial de Schweinau. Há algum tempo já se viam as baterias superiores e as volutas de fumaça das forjas onde preparavam as balas vermelhas e, no transparente ar da tarde, quem tinha vista aguda podia distinguir as barras vermelhas da bandeira içada na haste.
E mais perto estava a indefinida linha que marcava o limite do alcance dos disparos das baterias. Evidentemente, Wittgenstein pensava que estava perto dela, porque já havia içado a bandeira de Hamburgo.
Se a estratagema havia dera resultado, se os vigias haviam acreditado no engano, o Minnie poderia passar intacto pela invisível fronteira, se não, era provável que sofresse danos e era possível que fosse afundado. Com o telescópio Jack pôde ver os artilheiros movendo-se ao redor das baterias e observou que a fumaça das forjas havia aumentado.
"Não há dúvida de que suas balas podem chegar a grande distância", pensou enquanto estava de pé no castelo com as mãos agarradas atrás das costas. "Canhões de quarenta e duas libras e situados nessa altura..".
Mais perto, cada vez mais perto. E por fim os clarões largamente esperados e as colunas de fumaça, e depois o ruído ensurdecedor, mais forte que o dos canhões de qualquer barco.
- Arriar a cevadeira! Preparem os canhões de estibordo! - gritou, e, nesse momento, as balas caíram muito próximas formando uma linha atrás da Ariel, a um cabo de distância, só a um cabo de distância. - Leme a barlavento! - gritou. - Apontem e disparem!
A Ariel virou em redondo muito rápido e a bateria disparou como se fosse uma só caronada. Dessa distância, a descarga das caronadas era inofensiva, mas uma das balas que quicou acertou o alvo, perfurando a sobremesana. Mas Jack não teve tempo de dar-se conta de isso, porque estava concentrado em pôr a corveta fora do alcance dos inumeráveis canhonaços que disparavam. Eles o haviam atraído até ali, até um lugar bastante distante do limite. Agora de cada lado da corveta surgiam jorros de água e o mar ia cobrindo-se de espuma branca. Se não houvesse sido pelo forte vento e pelos experimentados marinheiros, a corveta teria sofrido importantes danos ou teria afundado, porque disparavam toneladas de ferro em vermelho vivo com grande precisão. Apesar disso, antes que conseguisse sair de seu alcance, as velas estavam feitas farrapos, um fogo havia começado no lado de estibordo da proa, um cúter estava destroçado e o mastaréu do joanete de proa estava rachado. Quando ficou seguro de que as baterias superiores não poderiam realmente alcançar a Ariel, mandou orçar, disse a Hyde que ordenasse atar e envergar novas velas e depois correu o cesto da gávea do maior.
Dali podia ver perfeitamente bem toda a baía. Ao fundo estavam as ilhotas, um pouco mais longe, as casas dos oficiais e as barracas, e no meio, flanqueado pelas baterias, o Minnie, que se aproximava devagar do cais enquanto arriava as joanetes. Durante um longo, longo intervalo, enquanto os marinheiros trabalhavam ao redor dele, o Minnie seguiu avançando devagar. Por fim virou e jogou a âncora a certa distância da costa. Achou ver que seus homens jogavam um bote na água, mas o Sol já estava se pondo e havia pouca claridade, pelo que apenas podia distingui-lo.
- Coberta! - gritou. - Mandar um telescópio!
Hyde lhe trouxe pessoalmente.
- Posso vê-los, senhor - disse. - Justo à direita, digo, à esquerda daquela enorme casa vermelha que está na margem.
Jack não respondeu; apenas prestara atenção. Ali estava Stephen, via-se claramente na lente do telescópio. Estava pálido, mas não mais que o habitual, e se encontrava sentado na popa do bote no qual Wittgenstein o levava para um cais baixo onde havia um grupo de soldados ordenados em fila. Jack viu que os soldados rompiam a filas e isso lhe produziu uma grande preocupação, pois não sabia qual o motivo.
Stephen ia no bote sem falar. Os primeiros sinais foram favoráveis, porque não dispararam no Minnie e, além disso, quando uma voz, de uma das baterias que o flanqueavam, perguntou se havia trazido tabaco e o cozinheiro dinamarquês havia respondido, ouviram exclamações de satisfação; mas não passaram mais do que uma prova preliminar. A verdadeira prova ocorreria cem jardas mais adiante, onde todos os soldados esperavam com as armas preparadas. Havia tido a fraqueza de deixar-se influir pela infantil superstição de Jack e pela morte do jovem, e ainda que essa era, de certa forma, a mais fácil de todas as missões que havia realizado, tinha o pressentimento de que seria um desastre. Pensou então em seu amor pela vida. Havia muitas coisas bonitas nela: o odor do mar, a dourada luz do Sol ao entardecer, o voo de uma águia... Não era tão forte como supunha.
Estas contradições, este conflito entre a teoria e a prática, ainda ocupavam sua mente quando viu os soldados formados em filas dispersar-se, converter-se em um grupo comum de pessoas, e isso o fez voltar à realidade. Haviam formado assim para render honras, mas se haviam dispersado ao ver que o homem que se aproximava da margem usava uma jaqueta negra, já que sua função era omenagear os oficiais de classe superior.
Wittgenstein virou o pequeno bote até que a se popa chocou contra o cais. Stephen ficou de pé, vacilou e depois saltou para o cais, tratando de agarrar-se de um poste junto ao qual se encontrava um sargento, mas não conseguiu e caiu entre o cais e o bote. Quando voltou à superfície começou a gritar em catalão: "Tirem-me daqui, maldito seja!".
- O senhor é catalão? - perguntou surpreendido o sargento.
- Mãe de Deus! - exclamou Stephen. - Claro que sou! Tire-me daqui!
- Estou surpreso - disse o sargento, olhando-o com assombro.
Mas dois cabos que estava perto dele soltaram os mosquetes, inclinaram-se sobre o cais, pegaram Stephen pelas mãos e o puxaram.
- Obrigado amigos - disse ele, intentando que sua voz sobressaisse entre as inumeráveis vozes que perguntavam de onde vinha, que notícias tinha de Barcelona, Lleida, Palamós e Ripoll, que havia trazido o barco e se havia trazido vinho. - Digam-me, onde está o coronel d'Ullastret?
- Quer ver o coronel - disseram alguns.
- Não o viu? - perguntaram outros.
Então o grupo se dividiu e todos assinalaram para uma figura erguida e de pouca altura que lhe era familiar.
- Padrinho! - gritou.
- Esteve! - gritou seu padrinho, levantando os braços.
Aproximaram-se correndo se abraçaram ao mesmo tempo que davam palmadas nas costas, como os catalãos acostumavam se abraçar.
Jack os viu, apesar do Sol ter se ocultado atrás da Suécia e ter pouca claridade, mas não podia distinguir bem o que grupo de homens fazia. Aquilo era um cumprimento? Um prisão? Uma briga? Tampouco soube por que razão todo o grupo foi para a enorme casa pintada de vermelho, ainda que ficou olhando para ali até que a luz avermelhada desapareceu e a baía ficou coberta pela escuridão, na qual se destacavam algumas luzes e o resplendor das forjas.
A Ariel ficou em pairo por toda a noite. Jack dormiu, ou, pelo menos, deitou-se, até a guarda de meia, durante as primeiras horas da madrugada. Então subiu devagar para o cesto da gávea coberta de orvalho, sentou-se ali envolto em sua capa e olhou para as estrelas, para as luzes do Aeolus e para os transportes, que tinham ordem de que depois do pôr do Sol se mantivessem a uma distância da qual pudessem ver os sinais. Ainda estava ali quando mudou a guarda e subiu para a coberta o oficial de derrota, a quem Fenton disse:
- Fica a seu cargo. Gáveas e bujarrona, rumo noroeste quarta ao leste durante meia hora, sudoeste quarta ao oeste a seguinte meia hora. Chame o capitão se ocorrer algo, se vir luzes ou movimentos na costa. - E, em voz mais baixa, acrescentou: - Está no cesto da gávea do maior.
Ainda estava ali quando amanheceu, e quando a luz começou a ascender lentamente pelo céu, tirou o orvalho da lente do telescópio e o dirigiu primeiro para a haste de bandeira vazia e depois para fundo da baía. Já haviam descarregado toda a parte do carregamento do Minnie que estava no convés, mas isso não demonstrava nada. Depois ouviu um toque de trompete muito alto e claro, mas não sabia o que significava. A enorme casa voltou a tomar sua cor vermelho por fim e Jack viu homens se movendo ao seu redor, mas o lugar estava muito distante e escuro para distinguir o que faziam.
Duas badaladas. Os marinheiros começaram a limpar o convés debaixo de Jack e nesse momento ele dirigiu o telescópio para a haste da bandeira outra vez, pela enésima vez, e viu um grupo de homens ao redor. Depois viu uma bandeira enrolada, que parecia uma bola negra, subir por ela, chegar até o tope, vacilar e finalmente se desdobrar e começar a ondear com a ponta em voltada para o sul: era uma bandeira amarela com quatro faixas vermelhas. O coração começou a pular dentro do peito e Jack seguiu olhando a bandeira enquanto contava até dez para estar completamente seguro do que via, e enquanto a olhava, viu os homens que formavam o pequeno grupo lançar os chapéus para o alto, dar as mãos e bailar em uma roda, e lhe pareceu que chegavam gritos de alegria de terra. Então se inclinou sobre a borda do cesto da gávea e gritou:
- Senhor Grimmond, leve a corveta para a baía!
Tinha os membros tão rígidos que desceu pela boca de lobo e, rindo, pensou: "Meu Deus, como o meu traseiro chegou a pesar!".
Quando chegou ao castelo de popa, ordenou que fizessem o sinal para os transportes para que se aproximassem, que içassem as bandeiras catalãs que deviam ondear nos topes da Ariel e que trouxessem café e pão sueco para calar o ruído de seu estômago vazio.
- Senhor Hyde, gostaria que o barco tivesse hoje uma aparência extraordinariamente boa, adequada para receber um nobre.
Permaneceu de pé em um pequeno espaço da coberta que estava seco, comendo e bebendo, enquanto a Ariel voltava a cruzar o perigoso limite do alcance dos disparos da bateria, e notou que os oficiais tinham uma expressão grave e olhavam com grande atenção para as baterias.
- Diga ao condestável que venha - disse depois de um tempo. - Senhor Nuttall, cumprimente a fortaleza com vinte e um canhonaços quando lhe dê a ordem.
Esperou e esperou até que a Ariel adentrasse bastante na baía e ficasse em meio das duas mortíferas baterias e então gritou:
- Disparem as salvas!
Alto e claro, a intervalos regulares, soaram os canhonaços, e no momento em que se ouviu o canhonaço vinte e um, dos dois lados saltaram para o ar os pedaços das grandes casamatas envoltas em uma nuvem de fumaça que escureceu o céu, e se ouviu um ruído estrondoso que chegou aos confins do mundo. A nuvem aumentava cada vez mais e novos clarões apareciam repetidamente, pois explodiam um depois do outro os canhões de Grimsholm, e desde os transportes a ilha parecia um vulcão em erupção. O ruído era tão grande que o ar, o mar e a Ariel se estremeciam, e os tripulantes da corveta, ensurdecidos e assombrados, permaneceram imóveis até que os últimos ecos silenciassem e então compreenderam que essa era a resposta para as salvas, que essa era a forma de dar-lhes uma cordial boas-vindas.
CAPÍTULO 9
Haviam saído de Karlskrona numa noite horrível com uma grande angústia, deixando também uma grande angústia atrás de si, mas uma angústia que era mais difícil de suportar talvez, já que o almirante e seu conselheiro político não podiam fazer outra coisa além de esperar o resultado das importantíssimas negociações que teriam lugar na outra margem do Báltico.
Regressaram durante as primeiras horas da tarde de um bonito dia, junto com os transportes, a presa e o Humbug. Todos avançavam muito devagar pelas águas verde claro, onde apenas se viam ondas, com o quente vento do sul pela alheta, o que lhes permitia ter desdobradas todas as alas, e por isso, inclusive os estreitos e abarrotados transportes, eram dignos de se ver. A Ariel ia na frente e os outros formavam uma perfeita linha atrás dela, cada um a um cabo de distância do barco precedente, e o Minnie era o último. Encontraram um almirante diferente, de aspecto mais jovem, que já não tinha gesto grave senão muito alegre, pois a Ariel comunicara a notícia mediante as bandeiras de sinais desde que podiam ser distinguidas. No navio insígnia havia muita atividade e alegria desde então, e o própio cozinheiro do almirante e seus ajudantes haviam se encarregado da cozinha.
- Eu sabia! - disse ao senhor Thornton enquanto olhava o bote da Ariel aproximar-se. - Eu sabia! Sabia que esse homem...! Sabia o que era capaz de fazer! Um magnífico resultado! Estava certo de que seria assim!
No bote reinava o silêncio. Jack estava exausto, não só devido aos esforços que havia feito quando o Minnie estava encalhado, quando foi traspassado o carregamento e quando escreveu o relatório oficial, mas também, e sobretudo, devido à loquacidade do coronel d'Ullastret. O coronel não falava inglês, mas falava com soltura o francês, uma língua que Jack pelo menos entendia, e posto que este obedeceu a Stephen, que lhe avia advertido a tratar o convidado com suma delicadeza, escutara-o durante horas e horas, fazendo todo o possível para seguir-lhe e, nas escassas pausas, dizendo em francês algumas frases que lhe pareciam apropiadas, como por exemplo, "Meu Deus!" e "Que me diz!". Além disso, no princípio daquelas horas, Stephen lhe havia deixado para ir aos transportes para submergir em sua recém recuperada catalanidade. Mas agora o coronel estava silencioso. Não era um homem que gostava de vestir-se bem apenas em tempo de paz, senão que, como muitos militares, acreditava que havia uma direta relação entre a patente de um militar e seu uniforme, e o seu se deteriorara muito por causa da umidade do Báltico: as tiras de cor carmesim haviam tomado a cor da borra do vinho no fundo de um barril, os galões estavam manchados de alcatrão, a borla de uma de suas botas havia caído e, o que era ainda pior, sua jaqueta não tinha os galões que indicavam sua patente atual. E havia visto pelo telescópio o esplêndido conjunto de uniformes a bordo do navio insígnia: os infantes de marinha com suas jaquetas de cor escarlata e branco de Espanha, os oficiais com seus melhores chapéus de três bicos e o almirante com seu magnífico uniforme azul e dourado. Stephen se deu conta de que estava incomodado e descontente e de que nesses momentos era propenso a sentir-se ofendido, a interpretar qualquer coisa como uma afronta. Sua expressão mal-humorada se suavizou um pouco quando o navio insígnia começou a disparar a salva, que desta vez era um cumprimento estritamente pessoal, e Stephen notou que seu padrinho contava os canhonaços. Quando soou o décimo terceiro canhonaço, o coronel expressou satisfação; depois soou o décimo quarto, e finalmente, o décimo quinto, que era o que se disparava em honra de um nobre ou um almirante, e, com semblante grave, consentiu com a cabeça. Mas seu gesto revelava que ainda estava em tensão, e Stephen sabia que ele não relaxaria completamente até que fosse recebido da forma que considerava apropiada e até que não houvesse bastante comida e pelo menos uma pinta de vinho debaixo do gasto cinturão que segurava seu sabre.
- Acha que devo abraçar o almirante? - perguntou.
- Acho que não - respondeu Stephen.
- Lorde Peterbuggah abraçou o meu avô - disse o coronel com um olhar penetrante.
Houve certa hesitação no momento de subir a escada, mas por fim se encontraram no meio de uma fastuosa cerimônia naval, entre os gritos do contramestre e as fortes pisadas dos infantes de marinha. Depois ouviram o estalido das armas quando as apresentaram e imediatamente viram aproximar-se do almirante estendendo-lhe a mão o capitão Aubrey
- Eu sabia! Sabia que seria assim! Sabia que o senhor era capaz de fazer!
- O senhor é muito amável, senhor, mas eu fiz pouco mais que ir e voltar - disse Jack, e então, com um olhar perspicaz e em tom mais baixo, acrescentou: - O mérito é de. outra pessoa. Senhor, permettez-moi de... Como diria...?
- Présenter? - sugeriu o almirante.
- Obrigado, senhor... présenter dom d'Ullastret. O almirante Saumarez.
O almirante tirou o chapéu e por sua vez o coronel abriu os braços, e depois de uma minúscula pausa, e para regozijo dos oficiais, o almirante o beijou em sua faces e, com absoluta franqueza, assegurou que estava muito contente de tê-lo a bordo e o convidou para comer. Disse tudo isso em francês, falando com muito mais soltura do que Jack e, naturalmente, com melhor pronúncia que o coronel, porque nascera em Guernsey.
Ainda que dominasse a língua francesa, seu estômago tinha gosto inglês, e o coronel achou que a refeição não teria destoado em nenhuma mansão inglesa e que muitos alimentos eram estranhos e outros um papista não podia comer, posto que era sexta-feira, mas estava sentado à direita do almirante, tinha a precedência com relação a um oficial sueco de igual categoria que também fora convidado, assim que enfrentou a situação com bom humor e saiu dela passando entre a condenação e as boas maneiras: comia os tubérculos e as verduras e deixava de lado a carne, que tratava de esconder o melhor possível, e comia muito pão. Também bebia muito vinho, bebia tanto quanto o almirante apesar de que este pesava o dobro que ele.
No outro extremo da mesa, o senhor Thornton falava com Stephen da angústia que haviam sentido quando a Ariel zarpara, uma angústia que aumentou muito mais ao amanhecer, quando um cúter chegou com a notícia de que o general Mercier embarcara no Minnie.
- O senhor fala de angústia - disse Jack ao escutar a palavra durante uma pausa nas animadas conversações que se sustentavam do seu lado, - porém, que lhe pareceria ter que responder dia e noite, em qualquer época do ano, da resolução de questões delicadas e de uma propriedade do Rei que corre perigo constantemente? Isso sim provoca angústia. Nós, os oficiais navais, somos dignos de lástima.
- Tem razão, tem razão - disseram os homens que estavam sentados do seu lado.
- O senhor, jovem, fala de preocupações, porém, o que diria se tivesse uma esquadra sob seu comando? Não pode imaginar... Bem, Aubrey, esqueci que o senhor dirigiu a operação Mauricio, de modo que sabe o que é isso. Mesmo assim, não sabe a enorme preocupação que implica ter que levar para a Inglaterra um comboio do Báltico, uns quinhentos ou seiscentos mercantes, ou inclusive mil, antes de que o gelo impeça a navegação e quase sem ter barcos para escoltá-los. Está muito bom como está, sem muitas preocupações e cobrindo-se de glória e apoderando-se de muitos butins.
Todos respeitavam tanto ao almirante que, em qualquer outra ocasião, aquilo teria sido aceito, mas agora o ambiente era relaxado e festivo e haviam circulado muitas garrafas do bom vinho do almirante, assim que muitos expressaram sua divergência apaixonadamente. Disseram que no Báltico não se podiam conseguir butins e que a nova regulamentação era infame porque estabelecia uma divisão sumamente injusta, já que os capitães haviam perdido um oitavo e esse oitavo se dividia, de forma absurda, em ínfimas porções que se entregavam a homens que não tiravam proveito delas por ser tão pequenas, enquanto que os capitães eram levados à extrema pobreza.
- Não importa, cavalheiros - disse o almirante. - Ainda é possível alcançar a glória no Báltico. Aí têm senhores a Aubrey, que acaba de conseguir uma coroa de louros. E de toda forma, a quem importa o desleal lucro?
Alguns capitães fizeram um gesto que parecia indicar que lhes importava muito, e um chegou inclusive a murmurar: "Non olet", mas quando o almirante disse ao primeiro oficial que cantasse Hearl of Oak, se emocionaram ao ouvir que o jovem, com sua bonita voz de tenor, cantava: Ânimo, companheiros, vamos alcançar a glória, e o acompanharam fazendo coro:
Valentes são nossos barcos,
valentes são nossos homens.
Preparados sempre,
e firmes, companheiros, firmes...!
E cantaram com voz tão potente que o último firmes agitou o vinho nas garrafas.
- Estamos cantando à glória, senhor - disse o almirante ao coronel d'Ullastret.
- Não há melhor tema para uma canção - disse o coronel. - É muito melhor que o lamento pelo desdém de uma mulher.
Gosto muito da glória e também de cantar. Com sua licença, cantarei uma canção que fala de lorde Peterbuggah e meu avô e do dia em que tomaram Barcelona juntos, a mais gloriosa façanha realizada pelo exército britânico e catalão unidos.
A canção foi muito bem acolhida, e a tarde foi muito agradável, não só no navio insígnia mas também nos transportes, já que os catalãos bailaram em grupo a sardana no castelo ao som da música tocada por um oboé e um pequeno tambor, e durante as pausas, os tripulantes mostraram como se bailava a dança típica dos marinheiros ingleses.
- Oh, Stephen, acho que nunca tive tanto sono em minha vida! - exclamou Jack quando voltaram para a Ariel. - Vou me deitar assim que hajamos desatracarmos.
- Deus santo! Não posso acreditar que vamos zarpar sem fazer uma pausa.
- Que?
- Vamos zarpar agora mesmo? Numa sexta-feira, além disso?
- Sim, certamente. Disseste que quanto antes fossem repatriados esses homens, melhor, e o almirante e seu conselheiro político estão de acordo contigo, é o que diz aqui, nas ordens que recebi. Deveria lê-la; também se referem a você. Quanto a ser sexta-feira, já não acredito em superstições, não depois de nossa última pirueta.
- Parecemos judeus errantes - disse Stephen em tom de desgosto e então pegou as ordens e acrescentou: - Acho que é um pouco petulante insistir em quem tem o comando e a autoridade por aqui. Depois de uma tarde agradável, na que todos se tratavam como camaradas, teria esperado um "Meu estimado Aubrey" em vez deste seco e peremptório "Senhor". Além disso, veja, o tom é arrogante, sem amabilidade, pensado para provocar a indignação e a rebelião:
Senhor, pela presente lhe é requerido que suba a bordo da corveta de Sua Majestade que tem sob seu comando e se dirija sem perder um momento, junto com os barcos listados na margem, para a baía de Hanö, onde se reunirá com um comboio sob a proteção de navios de Sua Majestade...
Gostaria que o Humbug estivesse entre eles; veja o tom pomposo e intimidatório, e que forma de escrever semi-literária e tautológica!
... deixará o comboio ao chegar a Broad Fourteens e se dirigirá com celeridade para as imediações de Burdeos, onde se comunicará com a fragata Eurydice para saber qual é a situação no golfo de Vizcaya, e se não se encontrar com ela, deverá seguir até Santander ou Passagens com o mesmo fim... e em todo o referente ao desembarque das tropas espanholas, deverá seguir os conselhos do doutor Stephen Maturin, que será quem determinará... e deverá pedir sua opinião em caso de... marquês de Wellington... e submetê-lo à sua consideração...
Qualquer homem de temperamento preferiria jogar Stephen Maturin no mar antes de pedir-lhe um conselho depois disto... Tropas espanholas, sem dúvida...!
Fazia tempo que notara que Jack estava adormecido, mas seguiu divagando até que Hyde entrou e deu a notícia de que no navio insígnia já ondeavam as bandeiras de sinais que indicavam que a Ariel devia zarpar.
Durante toda a noite sopraram ventos frouxos, e a Ariel e os barcos a seu cargo iam deslocando-se para o sul enquanto o capitão dormia profundamente. Ao redor das cinco, Jack começou a roncar muito forte e cadenciadamente, e a cabine se encheu de ruído.
- Que o diabo te carregue! - gritou Stephen, empurrando sua maca em vão.
Os roncos continuaram e Stephen se introduziu um pouco mais os tampões de cera nos ouvidos, mas nenhuma abelha fabricava cera que pudesse impedir a passagem dos roncos do capitão Aubrey, assim que saiu de sua maca desesperado.
Pouco depois da mudança da guarda, o ruído cessou, e Jack, muito animado e totalmente desperto, sentou-se na maca. O que o despertara não foi o som do sino do barco, pois desde que haviam começado a atravessar a névoa, os homens haviam dado badaladas constantemente, acompanhadas com um tiro de mosquete a cada dois minutos; não foi o ruído dos esfregões e da pedra arenito, porque esse ruído era para ele como uma canção de berço; e tampouco foi a luz do dia, já que ainda era débil. Talvez tenha sido uma variação em uma espécie de máquina interior que podia detectar as trocas de intensidade e direção do vento, e agora, considerando-os junto com a variação de rumo da corveta e tendo em conta o abatimento e as correntes que se moviam pela terra, chegou à conclusão de que estavam na baía de Hanö.
Viu que a maca de Stephen estava vazia, abriu a portinhola da lanterna e olhou para a bússola, que estava sobre sua cabeça, e depois para o barômetro, que seguia descendo. Então se vestiu sem fazer ruído e saiu silenciosamente para não despertar ao coronel, que, devido à pequena corveta estar muito cheia, dormia na cabine-refeitório, pelo que era uma ameaça constante.
Ao chegar ao convés viu que a neblina não permitia ver nada além do gurupés, mas imediatamente pôde ouvir os ruídos que vinham do comboio: o som das volutas, as badaladas, os ocasionais disparos dos mosquetes. E logo ouviu ao longe o canhonaço de aviso de um dos navios que os escoltava, um sinal do capitão mais antigo para manter unido seu rebanho. Deu bom dia ao piloto e ao oficial de guarda e notou que as maiores e as gáveas penduravam flácidas das vergas, mas pensou que provavelmente as invisíveis joanetes estavam esticadas porque a corveta tinha uma velocidade superior à mínima necessária para manobrar. Depois olhou a tabela de navegação e disse:
- Senhor Pellworm, quanto tempo acha que durará?
- Bem, senhor, acho que se dissipará quando o Sol sair - respondeu o piloto. - Porém, para dizer verdade, não me gosta muito que o barômetro siga baixando e acho que dentro de pouco o vento virá do norte e depois rolará para oeste. Por outro lado, acho que o estreito de Langeland não é suficientemente largo para este comboio.
Uma rajada de vento trouxe o furioso grito de um capitão: "Se cortar meu cabo grosso, cortarei a amarra de sua âncora, maldito estúpido!", e pôde ouvir tão claramente que parecia que o capitão estava a cem jardas dali em vez de no fundo da baía. Logo depois se ouviu a voz de Stephen do alto da exárcia dizendo que, se o capitão Aubrey desejasse, podia ver algo digno de admiração, e que poderia subir sem correr perigo pelos cabos que ficavam à esquerda olhando-se para popa, quer dizer, os do lado de bombordo.
- Como demônios o deixaram subir até ali? - perguntou Jack para o senhor Fenton, franzindo o cenho. - Acho que está na cruzeta. - Então gritou: - Segure-se forte! Não se mova! Eu me reunirei contigo imediatamente!
- Sinto muito, senhor - disse Fenton. - Disseram que só iam até a cesto da gávea. O senhor Jagiello está com ele.
- Este fenômeno poderia se chamar hápax - comentou Stephen.
- Hápax - murmurou Jack enquanto subia com rapidez.
Não estavam na cruzeta mas na verga joanete, aonde haviam conseguido chegar por milagre. Estavam agarrados a diversos cabos, tinham os pés nas linhas de vida e pareciam estar muito à vontade inclinados sobre a verga. Os dois estavam muito cômodos, mas Stephen sentia um grande regozijo e, em troca, Jagiello tinha menos alegria que de costume.
- Ali! - gritou Stephen quando Jack apareceu nos frágeis amantilhos do joanete. - Não te surpreende?
Assinalou com o dedo para o sudoeste e Jack olhou para ali. Dessa altura estavam acima do manto de névoa que cobria o mar, e dali se via o céu limpo, mas não o mar e tampouco a coberta, só uma branca capa de névoa da qual estavam separados pelo límpido ar, e mais adiante, entre a proa e o través de estibordo, a superfície daquela massa branca, opaca e suave estava perfurada pela infinidade de mastros, que, desde aquela base irreal, elevavam-se para o céu, um céu sem nuvens que parecia pertencer a outro mundo.
- Não te surpreende? - repetiu.
Jack era um homem bonachão por natureza, mas ainda não havia desjejuado, e, além disso, ver que seu amigo confiava sua vida a uma adriça para fazer sinais que não estava presa era mais do que podia suportar.
- Amarrem a adriça de sinais! - vociferou. - Amarrem todos os cabos da joanete maior! - Depois disse: - Estou surpreso e também agradecido. Stephen, solte esse cabo e agarre-se à verga e trate de chegar até o centro. Eu guiarei seu pés.
- Oh, não estou nervoso! - disse Stephen, soltando-se de repente e passando os braços para frente. - Como agora não vejo a coberta, parece que a altura não existe. Não estou nervoso, lhe asseguro. Porém, diga-me, já viu isso alguma vez?
- Não mais que várias centenas de vezes - disse Jack. - O chamamos de o pisco do dia, e aparece sempre quando o vento sopra desta maneira ou se acalma. A névoa se dissipará enquanto o Sol sair. Não obstante, agradeço que me dissesse para subir até aqui antes do café da manhã para vê-lo outra vez. Ponha o pé aqui, neste cabo. Sujaram a linha da vida... Tem fio preso no sapato. Senhor Jagiello, solte essa vinhateira{27}. Stephen, dê-me a mão. Devagar, devagar.
Nesse momento, Stephen caiu da verga, mas não caiu perpendicularmente porque Jack o empurrou para o tamborete com seu forte braço; contudo, o sapato seguiu descendo até cair na coberta.
- Obrigado, Jack - disse ofegante quando seu amigo o ajudava a sentar-se na cruzeta e punha um cabo ao redor de sua cintura. - eu lhe agradeço muito. Provavelmente fiz um movimento em falso.
- Talvez - disse Jack. - Mas que diabos faz aqui em cima? Jagiello, solte essa vinhateira. Eu pedi aos dois que não passassem do cesto da gávea.
- A verdade é que o senhor Jagiello está em uma situação embaraçosa.
- Estará no reino dos céus se não soltar essa vinhateira. Senhor Jagiello, solte essa vinhateira e agarre-se nesses cabos com ambas mãos. Aproxime-se desse grande bloco de madeira que está no meio.
- Não podíamos falar na coberta porque todos nos diziam constantemente que saíssemos do caminho dos faxineiros. Aí subimos para o cesto da gávea, mas tiravam baldes de água desde ali, assim que subimos mais alto. Ele encontrou uma mulher em sua maca.
- Ah, claro, claro! - disse. - Senhor Fenton, recolha o sapato do doutor!
- Sim, senhor - disse Jagiello, que já havia descido um pouco mais e os olhava cheio de rubor. - A encontrei agora mesmo, quando cheguei à cabine.
- O que esteve fazendo a noite toda?
- Estive jogando cartas com os oficiais catalãos na câmara de oficiais.
- E me parece que não deseja que faça esta viagem com o senhor.
- Oh, não, não, senhor!
Jack pensou que aquele era um estranho lugar para falar de um tema dessa natureza, sobretudo porque ali, entre o céu e a terra, havia dois homens de terra adentro em uma postura rara e ele não podia desjejuar. Então gritou:
- Mande dois dos melhores gavieiros com um moitão e um cabo!
Enquanto esperavam, Stephen disse em voz baixa:
- Olhe! Quase se dissipou totalmente! Contudo, esta vista prosaica é também surpreendente.
A névoa se desvanecera com os primeiros raios do Sol, fazendo visíveis setecentos e oitenta e três barcos, todos barcos mercantes exceto uma fragata, a Juno, três corvetas e um cúter.
- Nunca havia podido apreciar tão claramente a enorme magnitude do comércio marítimo, da atividade mercantil, da interdependência entre as nações.
- Aí está Åhus - disse Jack, assinalando com a cabeça uma cidade situada na margem da baía, que agora se via com claridade. - A dama desjejuará em terra. Senhor Fenton, desça o esquife!
Os gavieiros subiram com rapidez, e um deles trouxe o sapato de Stephen. Jack fez um laço com o cabo e o ajustou na sua cintura, disse que se segurasse ao nó e gritou:
- Desçam-no devagar!
Então Stephen começou uma ignominiosa descida, como havia feito tantas vezes.
Seguiu-lhe Jagiello, e depois, Jack, e todos no castelo de popa os olhavam sorridentes e expectantes.
- Senhor Jagiello, deve dizer a essa dama que tem que descer pelo costado dentro de dois minutos. Não há nem um momento a perder.
- Com sua permissão, senhor, preferiria não fazê-lo - disse Jagiello, ruborizando-se. - Pareceria uma descortesia e tardaria muito tempo... Lágrimas, sensuras, o senhor já sabe... O senhor Pellworm talvez tenha a amabilidade de falar-lhe. Ele a conhece e fala sueco e, além disso, é um homem casado.
- Conhece essa dama, senhor Pellworm?
- Há tempos, senhor. Conheço essa jovem faz muito tempo. Que homem que tenha estado em Karlskrona e tenha ido ao teatro não a conhece? Hei falado com ela uma ou duas vezes, para passar o tempo, como quando subiu a bordo, mas só quando estava acompanhado de oficiais, porque todos, todos sem excessão, a conhecem como a Delícia dos cavalheiros, e acho que sei muito bem qual é minha situação. Além disso, disseram-me que agora é a rameira favorita do governador... uma rameira cantora de grande valor, como diria o poeta. Mas se o senhor quer que volte para a costa, senhor, falarei com ela agora, eu lhe falarei como se fosse seu tio.
- Sim, por favor, senhor Pellworm - disse Jack. - Um barco de guerra não é lugar para mulheres.
Pellworm consentiu com a cabeça e se foi dando fortes pisadas e tratando de pôr uma expressão austera, quase feroz.
Pode ser que a jovem fosse uma rameira cantora, mas agora, quando um grupo de marinheiros do castelo, homens de meia idade, confiáveis e de rosto imperturbável, levavam-na no bote para a costa, cantava com uma voz áspera e sem melodia.
- O que ela diz? - inquiriu Stephen.
- Ilhargas quentes como as de um macho caprino, coração frio como uma pedra - disse Pellworm. - Isso também é poesia.
- Isso não é certo - disse Jagiello do lugar onde estava oculto, perto do mastro mezena. - Ela não sabe nada de minhas ilhargas, nunca as viu. Não a convidara e lhe roguei que se fosse.
- Se todos os problemas pudessem resolver-se tão facilmente...! - murmurou Jack enquanto observava como a Delícia dos cavalheiros ia fazendo-se cada vez mais pequena. - Senhor Fenton, poderíamos aproximar-nos da Juno e recolher o esquife no caminho.
Stephen olhou para Jack e depois para Jagiello e pensou: "Covardes! Miseráveis!". Depois olhou ao seu redor e notou que, com excessão de alguns marinheiros e grumetes, que sorriam maliciosamente, a maioria dos marinheiros pareciam desgostosos e envergonhados.
- Que curioso! -disse Jack a Stephen no café da manhã. - Fiquei sabendo que Jagiello desceu a terra quando estávamos a bordo do navio insígnia e, apenas meia hora depois, que regressara, três jovens foram de bote até o navio. Duas delas eram as filhas do almirante sueco, duas jovens formosíssimas, conforme Hyde, e a outra era a Delícia, que não é menos. Mas o que não posso entender é o que vêem nele. É um tipo simpático, sem dúvida, mas é uma criança. Duvido que se barbeie mais de uma vez por semana, e,sem dúvida, mais parece uma mulher que outra coisa.
- Pelo visto, também Orfeu era assim, e isso não impediu que as mulheres lhe arrancassem os membros um a um. Sua cabeça, com seu formoso rosto sem barba, foi arrastada pelas águas do Hebrus junto com sua lira quebada, desgraçadamente.
- Oh, meu Deus, aí vem o coronel! - exclamou Jack e pegou sua xícara e uma torrada e foi correndo para o convés.
Ali passou a maior parte do dia, pois devido ao chuvisco que seguiu à névoa, o coronel permaneceu abaixo. O comboio não devia zarpar até a tarde, mas o capitão da Juno havia pedido a Jack que se colocasse na frente do grupo principal, assim que a Ariel e os transportes começaram a delocar-se, já que, devido aos ventos serem fracos e variáveis, tardariam muito tempo em passar por aquela enorme quantidade de barcos, sobre tudo porque muitos dos barcos estavam ancorados caprichosamente, sem seguir uma ordem, como se seus capitães não soubessem distinguir entre estibordo e bombordo, entre a direita e a esquerda. Mas o capitão e o coronel se encontraram na hora de jantar, já que os oficiais lhes haviam convidado para uma esplêndidas janta, e Jack teve que passar uma hora no purgatório, quer dizer, ouvindo falar em francês, principalmente, conforme pôde entender, sobre as bonitas mulheres que haviam perseguido a d'Ullastret, regimentos de mulheres, casadas e solteiras, e algumas das histórias eram patéticas.
Chegaram de Riga os últimos barcos que tinham que reunir-se com o comboio e trouxeram consigo o forte vento do noroeste. Os homens da Juno contaram rapidamente os barcos que tinham a seu cargo e, sem pausa, começaram a fazer os sinais, obtendo algumas respostas que não se entendiam e outras contraditórias. Dispararam canhonaços para reforçar os sinais e mandaram botes em todas as direções para que comunicassem de palavra os desejos de seu capitão. Mas inclusive a preparação de um comboio tão grande concluía, e o capitão da Juno finalmente deu a ordem de recolher âncoras. Milhares e milhares de velas apareceram, iluminando o ar cinzento que enchia a espaçosa baía, e os barcos zarparam em três grupos amorfos e começaram a deslizar através da noite suavemente, à velocidade do mais lento, um pingue da Cornualha mal equipado, com poucos tripulantes e muito cauteloso. Os grupos estavam dispersos ao amanhecer e, apesar do vento ser fraco, todos os barcos tinham arriadas as gáveas; contudo, o vento do noroeste lhes permitiu formar de novo um grupo mais ou menos ordenado e passar o perigoso estreito Fehrman ao anoitecer, e então rolou ao sul e os impulsionou de tal maneira que puderam passar sem dificuldade o Langeland, mais perigoso ainda. Atravessaram este último quase sem tocar num braço nem numa escota, e desde a margem pareciam uma gigantesca constelação, um enorme conjunto de estrelas errantes caídas sobre o mar. O vento obrigou às hostis canhoneiras permanecerem no porto, e o único acontecimento adverso foi que um barco dinamarquês fez o diabólico intento de introduzir-se no grupo com a esperança de pegar de surpresa algum barco atrasado e fugir com ele para Spodsbjerg navegando a toda vela. Mas foi detectado, e quando foi içado o sinal que indicava a presença de um estranho no comboio, a corveta que estava no final enfrentou-se com ele. Por fim o barco fugiu para Spodsbjerg, mas só e com as velas feitas farrapos e cinco enormes buracos entre o vento e a água, depois de ter feito pouco estrago, depois de provocar o choque de três mercantes que tiveram que ser rebocados.
Mas isto se passou à meia-noite e no final do comboio, tão longe da Ariel que na corveta apenas se informaram. Quando o cinza e úmido amanhecer começou a iluminar o cinzento mar, o grupo dianteiro do comboio entrava no Grande Belt, com Fionia a bombordo, a considerável distância, e Zelândia a estibordo, tão próxima que se avistava sua silhueta, ainda que borradamente.
- Bem, senhor Pellworm, temo que o vento do norte o tenha decepcionado - disse Jack, sacudindo as gotas de água do jaquetão e olhando para as nuvens que vinham do sul e passavam velozes pelo céu.
- Não me queixo, senhor - disse Pellworm. - O vento sopra com tanta força e atravessamos os estreitos tão rápido como se pode desejar. Esta parece a resposta à oração de uma jovem virgem, como diz o poeta. E me parece que este mesmo vento nos levará até o Kattegat, porém, recorde o que lhe digo, senhor, recorde o que lhe digo, teremos que enfrentar uma tormenta, e espero que hajamos dobrado o cabo Skagen antes de que comece. Um barco não pode zarpar numa sexta-feira, o dia treze do mês e, além disso, com uma mulher a bordo, sem ser açoitado por uma tormenta. Não sou supersticioso, nem um pouco, e, em verdade, deixo os corvos, as gralhas, as cartas e as folhas de chá para a senhora Pellworm, mas é lógico pensar que o que os marinheiros constataram que sempre ocorreu, desde tempos imemoriais, sem haver visto nunca o contrário, tem alguma justificativa. Onde há fumaça há fogo. Além disso, o barômetro segue baixando, e ainda que não fosse assim, uma sexta-feira sempre é uma sexta-feira.
- É possível, mas muitas dessas superstições são muito ruído e pouco reses.
- Não são nozes, senhor?
- Vamos, vamos, senhor Pellworm - disse Jack, gargalhando. - Quem quereria receber nozes? Que sentido teria pedir nozes? As nozes não servem para nada. Essas superstições anunciam horríveis desastres, como fizeram antes de ir para Grimsholm, e já vê o que passou, foi tudo ruído e poucas reses. Já não acredito nas superstições - afirmou enquanto agarrava uma estaca de madeira. - Mas a descida do barômetro é farinha de outro saco, é um dado científico.
- É o que o senhor diz, senhor - disse Pellworm com semblante grave, - porém, pense, capitão Aubrey, que há mais coisas entre o céu e a terra do que os filósofos acreditam.
- Filósofos, senhor Pellworm? - perguntou Jack.
- Oh, senhor, isso era poesia! Não tinha intenção de faltar-lhe ao respeito.
- Os filósofos, senhor Pellworm... - começou a dizer Jack, mas se interrompeu ao ver o oficial de derrota da Ariel, que, com uma expressão triste, com as mãos agarradas e diante do corpo, aproximava-se devagar do primeiro oficial, que estava no lado de sotavento do castelo de popa. - O foi, senhor Grimmond?
- Senhor, sinto muito ter que comunicar-lhe que o cronômetro quebrou - disse o senhor Grimmond com uma estranha voz.
Então abriu as mãos, e ali dentro de seu lenço, estavam os restos do cronômetro da Ariel. Caíra e batera numa junta com um parafuso e agora seus pedaços estavam espalhados por toda o convés.
Não serviria de muito preguntar-lhe ao oficial de derrota por que estava olhando o cronômetro a essa hora do dia, que não era a hora de lhe dar corda, nem como havia caído. E ainda que estas perguntas vieram à mente de Jack imediatamente, junto com a advertência de que um devia ter muito cuidado quando pegava algo tão delicado, limitou-se a dizer:
- Bem, bem, meu relógio é bastante exato. Mas agora que o penso, o do doutor é muito melhor. - Então se voltou para o doutor e disse: - Stephen, ocorreu algo terrível: o cronômetro se quebrou. Pode emprestar-me seu relógio?
- Sem dúvida, com muito gosto - respondeu Stephen, dando-lhe seu formoso Bréguet. - Porém, o que há aconteceu com os outros cronômetros?
- Não há mais cronômetros.
- Vamos, meu amigo, recordo haver visto vários nos barcos em que navegamos e também lemgro que mandava que os cadetes achassem a média de todos enquanto você os intimidava, olhando alternativamente para o cronômetro que tinha na mão e os astros.
- É que, desde o momento em que pude permitir-me, comprei um, e, além disso, o Almirantado dá dois para cada capitão que possua um. Ao capitão que não tenha, dão um relógio comum, e, na maioria dos casos, somente quando vai para outros países.
- Acho que se usa para determinar a latitude, não é certo?
- Para dizer verdade, Stephen, a maioria confia no sextante para determinar a latitude. O relógio é para outras coisas, para o leste e o oeste, sabe?
- O leste e oeste de que?
- Então, de Greenwich, naturalmente.
- Não sou um grande navegante... - disse Stephen.
- É muito modesto - disse Jack.
-... mas amiúde pensei como é possível que os marinheiros encontrem a rota no oceano deserto. Pelo que diz, para teus companheiros o umbigo do mundo é Greenwich, não Jerusalém. Oh, Greenwich, onde há tantas musaranhos! Ah, ah! Mas também penso em que um capitão pobre só pode determinar sua posição com relação ao norte e ao sul, acima e abaixo, enquanto que seu companheiro rico a determina também com relação à direita e à esquerda. Estou certo de que isto tem uma explicação lógica, mas não compreendo, e tampouco compreendo o uso do cronômetro, com o qual se faz um obstinado intento de medir exatamente um conceito que, afinal de contas, é discutível e que, conforme nos dizem, não é conhecido no céu. Diga-me, é certo que pode indicar a um onde se encontra ou essa é outra..., não vou chamá-la de superstição..., costume naval como o de cumprimentar a um crucifixo puramente hipotético no castelo de popa?
- Se há a bordo um cronômetro com a hora conforme Greenwich, ou se um o tem, pode determinar exatamente a longitude observando o Sol ao meio-dia, e também as ocultações e outras coisas. Tenho um par de cronômetros Arnold em casa que só se adiantam vinte segundos desde Plymouth até as Bermudas. Quanto gostaria de tê-los trazido! Nestas águas, permitiriam situar-se com relação ao leste e ao oeste com uma diferença de três milhas. Os que se regem pelas medições lunares podem dizer o que queiram, mas um cronômetro de materiais bem temperados é o melhor que há. Suponhamos que está cavalgando e leva no bolso seu cronômetro com a hora conforme Greenwich, e suponhamos que observe o Sol ao meio-dia e que cinco minutos depois das doze vê que se há deslocado para o sul, então saberá que está quase exatamente no meridiano de Winchester sem necessidade de buscar nenhum poste indicador. E o mesmo pode ser feito no mar, onde os postes indicadores são algo fora do comum.
- Meu Deus! - exclamou Stephen. - Quanta coisas você diz, Jack! E provavelmente serviria para determinar a posição entre, digamos, Dublim e Galway.
- Não me atreveria a afirmar nada com respeito à Irlanda, pois ali a gente tem uma noção do tempo muito estranha. Mas no mar, asseguro que pode ser usado com bom resultado. Por isso queria que me emprestasse seu relógio.
- Meu amigo, desgraçadamente tem a hora conforme Karlskrona e, além disso, se atrasa um minuto ao dia, e pelo que me disse, isso representaria uma diferença de umas vinte milhas. Acho que devemos imitar aos antigos e navegar sem atar-nos da costa e guiando-nos pelos promontórios.
- Duvido muito que os antigos fizessem isso. Acha que alguém que esteja em seu são julgamento se aproximaria de uma costa a sotavento? Não, não. Prefiro navegar pelas águas azuis. Além disso, os antigos encontraram a rota para ir ao Novo Mundo e para regressar somente com a latitude, uma sonda e vigias. Mas um relógio com a hora exata seria útil no caso de que houvesse mau tempo. Farei um sinal para a Juno e porei o relógio na mesma hora do seu.
Então aguçou o ouvido e ouviu ao coronel d'Ullastret cantando Bon cop de falç com uma voz escandalosa e desagradável, muito parecida com a de Stephen, enquanto se barbeava, o que era um passo prévio para sua aparição na coberta.
- Pensando bem - acrescentou, - irei até a fragata, pois Maudsley me deve umas costeletas de cordeiro.
- O coronel se decepcionará se não estiver na janta. Além disso, há muitas ondas, há mau tempo...
- Nelson disse uma vez que o amor à pátria servia de abrigo. É meu dever cruzar estas águas para saber a hora exata, seja qual seja o tempo. Apresente minhas desculpas. O coronel também é um oficial e entenderá. Além disso, pode convidar Jagiello... Com certeza Jagiello o distrairá. Fala francês tão bem como eu. Sim, isso é o melhor: deve convidar Jagiello para jantar.
Foi difícil para o capitão Aubrey chegar à Juno e foi ainda mais difícil regressar. Ainda que a estupenda janta que Maudsley lhe oferecera o permitiria flutuar, em algumas ocasiões pensou que julgara mal o tempo, o que também pensaram seu timoneiro e os tripulantes da lancha, e que a forte marejada provocada pelo vento ao rolar faria a lancha afundar. Na verdade, a lancha esteve a ponto de partir quando se abordou com a corveta, e quando Jack subiu a bordo com a capa emprestada jorrando água, notou que o senhor Pellworm tinha uma expressão triunfante.
- Bem, senhor Pellworm, aí tem sua tormenta por fim, mas espero que nos alcance depois que dobrarmos o cabo Skagen.
- Eu também, senhor - disse Pellworm, obviamente convencido de que não seria assim. - Está rolando com extraordinária rapidez e, uma vez que comece a soprar desde o norte, adeus, adieu.
"Maldito Pellworm!", pensou Jack enquanto trocava a roupa molhada pelas escassas roupas secas que tinha. "Não lhe importaria que estivéssemos uma semana indo de um lado para outro do estreito tentando sair e que tivéssemos que fundear em Kungsbacka para esperar que soprassem ventos favoráveis desde que sua profecia se cumprisse. Nos trará má sorte". Depois chamou o despenseiro.
- Mingus, leve isto para a cozinha para que seque e, se estima sua vida, cuide para que não ocorra nada aos galões. Stephen, vou dormir até que comece a guarda. Acho que nos espera uma dura noite. Onde está o coronel?
- Já foi dormir. Estava indisposto por causa do movimento do barco. Disse que lhe cumprimentasse e lhe apresentasse suas desculpas.
Foi uma noite dura, mas Stephen e Jagiello pouco perceberam, só ouviram alguns golpes, gritos roucos que ordenavam manobras, o ruído dos apitos, o som amortecido das pisadas dos marinheiros que deviam sair de suas macas para içar ou arriar velas e o constante chiado do oscilante farol que iluminava a mesa com forro verde onde jogavam cartas. Haviam abandonado tacitamente o xadrez e agora costumavam jogar a centena. Stephen sempre fora afortunado no jogo de cartas, enquanto que Jagiello sempre havia sido muito desafortunado. Quando soaram as três badaladas da guarda de meia, Jagiello perdera todo seu dinheiro, e ainda que tenham combinado utilizar apenas moedas, o jogo teve que chegar forçosamente a um fim. Olhava com tristeza toda sua fortuna apilada sobre a mesa: dezessete xelins e quatro peniques, a maioria em moedas muito pequenas. Não obstante, depois de alguns momentos recuperou sua alegria natural e disse que quando chegassem a terra, trocaria uma de suas letras e então se desforraria.
- Talvez o senhor esteja muito otimista - disse Stephen, cortando o baralho e pegando o ás de espadas e imediatamente o ás de corações. - Segundo o senhor Pellworm, um piloto perito na navegação pelo Báltico, o mais provável é que seja no ano que vem.
- Mas ouvi dizer que às vezes se atravessa o estreito em quatro dias. Passamos muito rápido quando viemos... Além disso, o vento sopra para Inglaterra. O senhor Pellworm tenta nos amedontrar; para mim ele disse o mesmo.
- Se bem que é verdade que o senhor Pellworm e muitos outros marinheiros gostam de aterrorizar os homens de terra adentro e que está soprando o vento do noroeste, mas devemos levar em conta que ainda não saímos do Kattegat, ainda não dobramos o cabo Skagen, e que o vento está rolando para o norte.
- Ah, sim? - inquiriu Jagiello atônito.
- Como o senhor é um oficial de cavalaria, talvez não tenha percebido a importância, a primordial importância do vento em todas as questões relacionadas com o mar. Eu mesmo só pecebi completamente essa importância depois de passar muitos anos navegando. Suponhamos que esta moeda de três xelins representa o cabo Skagen, esse enorme saliente da costa, inocente em aparência, mas capaz de causar a destruição dos barcos - disse enquanto colocava uma moeda na borda esquerda da mesa. - Suponhamos que esta é Gotemburgo, uma das cidades situadas na costa sueca - disse enquanto colocava outra à direita. - E aqui, com a ilha Lesso detrás, ou pela popa, como dizemos, está o comboio, representado por estas moedas de um penique e de meio penique. Como o senhor deve saber, um barco tem uma boa posição para navegar quando sua proa forma um ângulo não inferior a 67° com a direção do vento, e ainda que pareça que o barco navega quase na direção do vento, na realidade, esse não é seu rumo, porque também tem um movimento lateral, odiado pelos marinheiros, que se chama abatimento. Este movimento depende da força das ondas e de muitos outros fatores; acho que nas atuais condições, por exemplo, é de uns 25°. Portanto, agora nos movemos em uma direção que forma um ângulo reto com o vento.
- Então as coisas vão bem, porque o vento sopra do noroeste, assim que poderemos dobrar o cabo - disse Jagiello.
- Isso mesmo - respondeu Stephen. - Mas se rolar para o norte, se se deslocar os 45° que vão do noroeste até o norte, o outro lado do ângulo se moverá inevitavelmente a mesma distância para o sul, e como o senhor poderá apreciar, o lado toca o cabo ao delocar-se 15°, muitos menos que esses 45° de que falei antes. Além disso, senhor Jagiello, além disso, ainda que dobrássemos o cabo Skagen, diz o senhor Pellworm que é provável que o vento role para noroeste ou inclusive para oeste, onde poderia unir-se com o terrível vento do oeste e, como consequência disto, sua intensidade aumentaria muito; e se chegar a converter-se em um vendaval, o abatimento do qual lhe falei aumentará, e se tiver que arriar, ou aferrar, as gáveas, calculamos que esse aumento será de 45°, pelo que, quando dobrarmos o cabo Skagen teremos o golfo de Jammer a sotavento e o vento estará soprando justamente para ele. A direção em que estaremos navegando então já não formará um ângulo reto com o vento senão um ângulo próximo de 120°, e gradualmente nos desviaremos para a ameaçadora costa beirada de perigosas arrebentação. Poderemos jogar âncoras, mas um barco ancorado não está seguro no meio de um vendaval. As âncoras se soltarão e o barco derivará, e durante as horas seguintes, teremos muito tempo para lamentar-nos de nosso inevitável destino e, sem dúvida, das oportunidades de experimentar prazer, ou inclusive de mudar-nos, que perdemos. Esses, senhor Jagiello, são os perigos que um antigo companheiro meu de tripulação chamava "os impenetráveis horrores da costa a sotavento". Não é estranho que o capitão Aubrey considere a costa muito próxima quando se encontra a vinte milhas dela; não é estranho que o senhor Pellworm, que já viu numerosos comboios em pedaços e dois potentes navios de guerra nas arrebentação do golfo de Jammer, deseje mudar o rumo ou refugiar-se em Kungsbacka.
No que restava da noite, ouviu Jack descer duas vezes e mover-se silenciosamente por ali para servir-se de negus{28} da jarra ou buscar às apalpadelas um pedaço de pão sueco, mas dormiu profundamente com a alvorada e não o viu até o café da manhã.
O capitão Aubrey tinha o rosto rosado e recém barbeado, mas com sinais de haver passado uma longa noite ativo e ansioso; parecia mais magro e comia com voracidade o desjejum.
- Ah, está aí, Stephen! Bom dia. Não esperava ver-te tão cedo, e sinto dizer que comi todo o bacon. O prato ficou vazio antes que me desse conta.
- Sempre conta essa ridícula história - disse Stephen. - Espero que ao menos haja restado um pouco de café.
- Se tivesse vindo antes, teria salvado a pele - disse Jack. - Ah, ah, ah! O bacon é pele, não é? Acabou de me ocorrer.
- Não há nada como o engenho, sem dúvida - disse Stephen e, depois de uma pausa, acrescentou: - Diga-me, o que houve ontem à noite? Qual é nossa situação?
- Foi bastante má, porém, graças à perícia dos tripulantes, pudemos sair, e faz pouco, na guarda de meia, dobramos o cabo Skagen, ainda que a muito pouca distância da costa, a umas cinco milhas.
- Dobramos o cabo? - perguntou Stephen, passando a mão pela barba de três dias.
Ainda estava um pouco aturdido por ter dormido tão profundamente, e pela lembrança de um sonho erótico (era o primeiro que tinha desde que havia reiniciado sua relação com Diana) que ainda estava vivo em sua mente. Ainda não se lavara nem se arrumara e apenas podia raciocinar, enquanto que Jack já estava imerso na rotina diária.
- Sim, e navegamos com todas as velas desdobradas a uns sete nós, com vento do noroeste. Quando subir para o convés poderá ver o Holmes a seis ou sete léguas pelo través de bombordo. Mas o pobre Maudsley teve que voltar atrás devido ao abatimento dos mercantes para sotavento. O comboio foi para Kungsbacka.
- Não me diga que os transportes voltaram para trás, por Deus! Os transportes dobraram o cabo, né?
- Claro que sim. Como pode pensar isso, Stephen? Como ia deixar-lhes no Kattegat? Pode ser que sua aparência não seja muito boa, mas dobraram o cabo tão bem como a Ariel. Além disso, seus capitães são excelentes oficiais. Eu os convidarei para jantar tão logo o tempo melhore.
- Então o vento do oeste do qual Pellworm falava não apareceu.
- Ao menos até agora não.
- E eu falando a Jagiello dos perigos de uma costa a sotavento, e com tantos detalhes técnicos que você se surpreenderia! - exclamou Stephen e Jack sorriu. - A exatidão de minhas descrições lhe surpreenderia, garanto. E aposto que não encontraria nem um erro em minha descrição da lenta tortura de um barco situado nessa posição ou, melhor dizendo, pegado.
- Acredito que não - disse Jack. - Não poderia exagerar ainda que quisesse.
- Não sei por que o fiz - disse Stephen, muito mais humano agora que havia absorvido sua beberagem da manhã. - Talvez por algum estranha mudança de meus humores. Não há dúvida de que minha intenção era má: queria causar-lhe preocupação, tirar-lhe sua enorme alegria. E me parece que consegui; a verdade é que pus sinceridade e convicção em minhas palavras. Agora lamento.
- Não se preocupe. Se o assustou, o medo se foi durante a noite, porque esta manhã, antes de descer, o vi andando de um lado para outro da coberta, rindo de boa vontade.
- Que dédalo! - exclamou Stephen referindo-se ao mecanismo de sua mente e pegou uma torrada. - Ainda que eu simpatize com Jagiello e admire sua inteligência, às vezes sua juventude, sua energia, sua alegria e sua beleza provocam em mim maus sentimentos. Não há dúvida de que lhe tenho inveja, simples, desleal, rastreira inveja. Nenhuma Delícia dos cavalheiros nunca me seguiu em minha juventude... Nem em nenhuma outra época.
- É um jovem atraente, sem dúvida, mas dou minha palavra de que não sei o que as mulheres vêem nele.
- Esta é a última torrada, não?
- Temo que sim - respondeu Jack. - Acho que não teremos mais pão até chegarmos ao ancoradouro Downs.
- Quando acha que será isso?
- Se o vento se alinhar, dentro de um par de dias. Mas não me atrevo a assegurar nada sobre o vento, porque o tempo é instável, o barômetro sobe e desce a saltos, assim que ainda pode ser que desate a tormenta que o senhor Pellworm anunciou. Mesmo assim, se não chegar a rolar para o sudoeste, poderíamos chegar ao Broad Fourteens na quinta-feira e atravessar o Canal com rapidez.
O tempo era realmente instável, caótico, imprevisível, e houve muitas provas disso. O céu esteve nublado quase todo o tempo, sopram ventos do nordeste e do noroeste, algumas vezes frouxos e outras tão fortes que era necessário rizar as gáveas, amiúde acompanhados de chuva e forte agitação. Ainda que a marejada lograva ao menos que o coronel permanecesse abaixo, Jack não fez um viagem agradável. Por um lado, sentia-se frustrado porque não se havia podido cumprir seu desejo de convidar os capitães dos transportes, todos eles tenentes de meia idade que não tinham influência ou, desafortunadamente, não haviam realizado a meritória ação indispensável para obter uma ascensão, mas que eram eperimentados marinheiros e governavam seus barcos de uma forma que ele sinceramente admirava, sem fazer a Ariel se atrasar nem um pouco. Por outro lado, teve que calcular sua posição sem cronômetro e tendo em conta a curiosa corrente que se movia para terra no mar do Norte, a variação irregular da bússola e sem os dados de medições astronômicas, de maneira que o que teria sido uma viagem simples e rotineira converteu-se em longa e angustiante, na qual sua capacidade de navegar por instinto foi posta a prova constantemente, onde uma suposição errada podia custar-lhe muito caro. Mas não navegou só por instinto, pois, apesar do céu estar impenetrável e das ondas lhe indicarem muito poucas coisas, o fundo pouco profundo daquele mar era um grande mosaico e a sonda estava metida na água permanentemente (segura por marinheiros empapados que se colocavam no pescante de barlavento e cantavam a conhecida ladainha dia e noite) e o senhor Pellworm, o oficial de derrota e ele examinavam as partículas que se aderiam ao sebo da sonda: areia cinza, areia fina e amarelada com conchas, lodo, terra grossa com pequenas pedras negras, seixos... Contudo, os pedaços daquela obra entalhada tinham às vezes várias milhas de extensão, e a idéia com respeito à sua natureza variava de um homem para outro, de modo que o oficial de derrota e o piloto às vezes estavam em total desacordo. Em algumas ocasiões, Jack teve a tentação de perguntar qual era a rota adequada para os numerosos pescadores ingleses e holandeses que costumavam navegar por aqueles perigosos bancos em dogres, urcas, buzos, barcos longos e outras embarcações de pouco calado e que entorpecíam o avance da corveta porque permaneciam em sua rota até o último momento ou saíam de repente da escuridão sem usar nem um farol aceso, forçando-a a pôr-se em pairo. Como a maioria dos oficiais ingleses, Jack nunca interferia nas atividades dos pescadores, fosse qual fosse sua nacionalidade, e duas vezes foi premiado pelos holandeses, que da escuridão lhe chamaram de maldito estúpido por ter rompido suas linhas de pesca. Quanto ao relógio de Stephen, tinha um bonito aspecto e podia medir o pulso de forma admirável, mas determinara que a corveta distava dez milhas do Galloper quando todos viram aparecer ao oeste as luzes do barco que indicava onde estava o banco.
- Deus queira que não choquemos com o Goodwin! - disse Jack enquanto a corveta e os transportes orçavam e avançavam pelas águas profundas do canal.
- Oh, não, senhor! - disse Pellworm, que não esperava que aquele homem de figura imponente falasse em brincadeira. - Está muito mais ao sul.
Esquivaram-se do banco Goodwin, depois de esquivar o Haddock, o Leman, o Ower e o Outer Dowsing, e chegaram ao Downs numa luminosa manhã dessa mesma semana, o que foi uma sorte, porque o ancoradouro estava cheio de barcos, boa parte deles de grandes comboios cujo destino eram as Índias Ocidentais e Orientais, o Mediterrâneo e Guinéu, e se o tempo houvesse sido tão mau como nos últimos dias, teria sido muito difícil atravessar por entre tantos barcos. Poucos mercantes se aventuravam a navegar sozinhos, porque muitos barcos franceses patrulhavam o Canal e corria o rumor de que duas fragatas norte-americanas estavam em pairo frente a Land's End.
A Ariel ficou ali só o tempo suficiente para pedir ao bote do prático do porto que levasse o senhor Pellworm para a margem. E quando o piloto estava para descer pelo costado, disse:
- Lembre de minhas palavras, senhor, recorde minhas palavras: a tormenta virá pelo oeste, diga o que diga o senhor Grimmond. E quando vier, será ainda mais forte e durará o mesmo tempo que demorou para chegar.
Depois de baixar três degraus da escada, parou, e seus olhos ficaram justo por cima da borda e brilharam com intensidade quando recitou:
A Terra enferma estremece e ruge da costa
e a Natureza treme ao ouvir seus horríveis rugidos.
E depois desapareceu.
Os oficiais franziram o cenho. Ainda que Pellworm fosse um homem respeitado e um experto piloto, parecia que chegara muito longe, que havia tomado liberdades com o capitão.
- Desdobrem a gávea maior! - ordenou Jack com voz forte e em tom aborrecido, e depois se voltou para Stephen e, em voz baixa, disse: - Alegro-me que tenhamos nos livrado de Pellworm. É um excelente piloto, mas fala demais. Além disso, a poesia não é adequada para um barco de guerra, sobretudo se o poema tem um tema como esse, porque poderia inquietar os marinheiros.
E também poderia ser verdade. Havia alguns sinais inquietantes no diáfano céu, e ainda que o vento se havia fixado na direção noroeste, Jack estava decidido a atravessar o Canal sem perder nem um minuto e a navegar com todas as velas aplicadas até que passasse a ilha d'Ouessant. Não permaneceu ali nem sequer o tempo suficiente para poder comprar víveres dos vendedores que rodearam a corveta porque disse, em tom firme, que não estavam ali para arrebentar comendo ensopados nem para encher-se de pudim de passas, senão para levar tropas catalãs para Santander sem perder um momento e que poderiam passar com ervilhas secas até que chegassem ali. Assim, com muita pressa se dirigiram para sudoeste quando a maré estava alta e o vento soprava com força.
Era bastante raro encontrar ventos favoráveis ao longo de todo o Canal, e muitas vezes Jack havia tido que ancorar para esperar que a maré mudasse ou avançar dando bordejadas pelas águas pouco profundas, e em ocasiões, depois de conseguir percorrer algumas milhas, seu barco havia sido arrastado para trás outra vez. Às vezes demorara semanas para chegar ao Atlântico, mas agora passavam em rápida sucessão as conhecidas marcas, os cabos South Foreland, Dungeness, Fairly, Beachy, e seus faróis brilhavam atrás de uma cortina de chuva que caía desde nimbos de cor azul escuro. E pela tarde puderam ver com claridade a ilha Wight pela amura de estibordo. Jack subiu ao cesto da gávea do pau mezena com um telescópio, olhou para o oeste e, antes de que a verde luz se desvanecesse, pareceu ter visto brilhar a cúpula do observatório que tinha em Ashgrove Cottage. Ficou olhando para ali perturbado por diversos sentimentos, como se o observatório estivesse em outro mundo, muito mais longe dele do que quando se encontrava nas antípodas.
O vento aumentou de intensidade quando o Sol se pôs, e eles tiveram a certeza de que ia desatar uma tormenta, assim que tiraram os mastaréus de joanete e aferraram as gáveas, dando-lhes voltas até convertê-las em rolos com aspecto de defesas ou aparelhos, pois desde que passaram por Jutlandia tinham muito pouca lona alcatroada, e passaram em frente à ponta Start tão velozmente que parecia que pretendiam sair do Canal, sem mudar de rumo para alcançar a costa espanhola ao cabo de uma semana, coroando assim uma extraordinária operação.
Uma vez mais chegou um esplêndido dia depois de uma noite chuvosa, ainda que vinham ondas cada vez mais fortes do sudoeste, contrárias ao vento e à corrente, que faziam as águas verdes saltarem por cima das amuras da Ariel. A corveta passou a grande velocidade frente ao arrecife Eddystone, depois do qual se viam a ponta Rame e a entrada de Plymouth, e depois a frente do cabo Dodman; contudo, entre os cabos Dodman e Lizard, a sorte lhes abandonou. Sem mais variação do que três rajadas sucessivas, o vento rolou para oeste, soprando justamente contra a corveta, e trouxe uma forte chuva.
- Estávamos quase no final! - exclamou Jack. - Uma hora mais e teríamos rumado para o sul! Teria sido um viagem extraordinária! Mas lamentar-se não serve de nada, e pelo menos faltam apenas umas duzentas milhas para percorrermos.
Então se fechou a gola da capa, aconselhou a Stephen que amarrasse tudo e subiu para o empapada convés.
- Que se passa? - inquiriu Jagiello.
- Passamos por outro desses malditos cabos - disse Stephen. - Este se chama Ouessant e temos que beirá-lo, temos que doblá-lo, para sair do Canal e alcançar a outra margem do golfo de Vizcaya.
- Há muitos cabos destes no mar - disse Jagiello. - Para mim não há nada como um cavalo...
Jack já conhecia a Ariel, conhecia perfeitamente. Era uma embarcação ágil e respondia bem, o tipo de embarcação que gostava de governar porque podia mantê-la horizontal em uma forte tempestade e porque com ela aproveitava qualquer mudança do vento e da maré, por pequena que fosse, para situar-se ou mudar de bordo mais para barlavento. Por outro lado, tinha oficiais competentes, uma boa tripulação, e bons instrumentos. E se alegrava de não ter tempo de pensar em outra coisa em uma situação como aquela porque o fato de recordar sua casa lhe havia perturbado, havia trazido para sua mente a recordação de Amanda Smith e dos problemas legais, das sensuras a si mesmo, do medo de perder seu amor e sua fortuna e outros pensamentos tristes e confusos. Fazia a Ariel navegar com as gáveas aferradas, ainda que pudesse levar mais velas desdobradas, para não ultrapassar os pobres transportes, que avançavam com torpeza devido à sua construção e a levarem um horrível carregamento: várias centenas de soldados enjoados. Ainda que os negros petréis volteavam de ambos os lados da corveta, o vento ainda não tinha a força de um vendaval, e ainda que as grandes ondas se chocassem contra a amura de bombordo, parecia que a corveta havia se deslocado uns cinco graus para barlavento. O único problema era que o céu era impenetrável e não seria possível fazer medições durante o dia nem durante a noite, e provavelmente não poderiam fazer-se até dentro de algum tempo.
Antes do anoitecer se encontraram com um navio de linha e duas fragatas que navegavam por outra rota, que iam fazer o bloqueio a Brest: o Aquiles, a Euterpe e a Boadicea. Identificaram-se, fizeram o sinal secreto e por último fizeram uma salva. Jack os seguiu com o olhar, especialmente a Boadicea, que estivera sob seu comando no oceano Índico. Sentia um grande carinho por aquela fragata confortável, de convés muito largo, um pouco lenta mas confiável quando se conhecia sua forma de navegar. Estava de pé junto a uma caronada, com os braços ao redor de um estai, e a chuva e a água do mar que saltava por em cima da borda o golpeavam as costas, e dali observava como navegava a fragata, que havia largado a maior quantidade de velas que podia usar abertas para alcançar o veloz Aquiles. Mitchell era agora seu capitão e havia posto pescantes de ferro na popa e uma caronada de cada lado do castelo de popa, mas não havia mudado apenas a pintura, com quadros brancos e negros conforme o estilo de Nelson. E a corveta ainda fazia um segundo movimento, estranho, vibrante e gracioso, antes de mudar de bordo para fazer frente às ondas com o costado. "Eu não a faria navegar a tanta velocidade", pensou. "É melhor festino lento, como diria Stephen. Que Deus ajude a esquadra que está perto da costa numa noite como esta". E recordou o tempo em que havia estado frente a Black Rocks e Camaret, a férrea costa da Britânia.
Foram açoitados por outra rajada de vento, mas desta vez veio do sul, e imediatamente caiu a noite, uma noite escura cheia de chuva e gotas de água salgada desprendidas das ondas que brilhavam ao passar sobre a luz da bitácula e dos faróis de popa, as únicas luzes naquela escuridão, uma escuridão que envolvia o barco enquanto se aproximava do cabo Lizard navegando de bolina sobre umas águas que só eram visíveis quando saltavam para a proa mescladas com espuma branca.
A rotina da corveta continuou, certamente. Escuras figuras fizeram o relevo da guarda, o piloto e os vigias, caminharam agarradas à linha de vida até onde estava o sino e o fizeram soar, soltaram a barquilha e anotaram a leitura, e se encolheram junto à escada. Após uma hora, quando Jack calculou que devia de ter o cabo Lizard pela amura de estibordo, a umas cinco milhas de distância, utilizou um sinal noturno para indicar aos transportes que virassem em sucessão e virou em redondo e dirigiu a proa para onde vinha o vento. Observou como os transportes viravam ordenadamente, e quando viu que suas luzes, formando uma linha, deslocavam-se para o sul pela rota que os levaria até a ilha d'Ouessant, a qual bordejariam para entrar no golfo de Vizcaya, foi para a cabine. O jovem Fenton era o oficial de guarda, e ainda que não fosse um fênix, era um oficial em quem se podia confiar; e além disso, a situação não requeria habilidade nem esforço extraordinários, pois uma tormenta que vinha do oeste na saída do Canal não tinha nada de extraordinário, por mais chuva que trouxesse.
- Como está a noite? - inquiriu Stephen.
- Muito úmida - respondeu Jack sacodindo água em todas as direções. - Mas se esta é a tormenta de que Pellworm falava, não tem demasiada importância. Poderíamos levar as gáveas desdobradas, se quiséssemos, e a Terra não ruge de costa a costa quando se podem levar as gáveas abertas, sabe? Viramos em redondo faz pouco e agora navegamos de bolina com as velas amuradas para estibordo.
- Acha que navegando assim poderemos passar Ouessant?
- É possível, se o vento seguir soprando desde o oeste; contudo, acredito que rolará 10 ou 20°. Talvez tenhamos que desviar-nos para as ilhas Scilly para poder mudar de bordo para o oeste. Bem, nos veremos pela manhã.
Tirou algumas roupas, ficando de roupa íntima, e se sentou na cadeira de balanço.
- Se sairmos desta - disse Stephen. - Aí fora se ouve um horrível estrondo e está entrando água.
- Isso é porque os pescantes se afundam entre as ondas. Acredito que a tempestade é muito forte nos Açores, mas aqui só provoca o enjôo dos passageiros e aumenta o abatimento da corveta uns 10°.
Então bocejou, constatou que o barômetro estava subindo, repetiu que se veriam no dia seguinte e dormiu.
Pela primeira vez o capitão Aubrey havia se precipitado. Não se viram no dia seguinte, já que não havia nada para ver além de uma chuva mais forte ainda, espirro do mar, espuma, o horizonte eriçado de ondas e a borrada silhueta dos transportes que seguiam à corveta ainda formando uma perfeita linha. Não se via o Sol, não havia nem rastro do Sol, e entre os cálculos dos barcos havia uma diferença em torno de quarenta milhas.
Uma vez mais viraram em redondo e uma vez mais avançaram para o norte através de uma confusão de elementos. Esse dia e essa noite foram repetições dos anteriores. Para quem estava acostumado ao mar, aquilo não era mais que o efeito do mau tempo ao oeste do Canal; contudo, para os homens de terra adentro, era um presente interminável cheio de movimento e ruídos inexplicáveis e, para muitos, cheio de enjôos também. Ainda que lhes disseram que entre a ilha d'Ouessant e as Scilly só havia trinta e cinco léguas, parecia que haviam atravessado cada uma daquelas milhas muitas vezes com pequenos intervalos para comer escassas e espantosas refeiçãos. Mas a chateação terminava vencendo o terror em todas as ocasiões, exceto quando a corveta dava solavancos e os jogava de um lado para o outro da coberta. Inclusive Jagiello estava abatido e tinha uma espécie de torpor. Fazia tempo que haviam tapado as escotilha de proa e a maior, e ainda que entrasse muita água pelos costados da Ariel, devido às manobras que fazia, quase não entrava ar; fazia tempo que as macas foram levadas para cima e que os laboriosos marinheiros não se lavavam mais que com água de chuva (não tinham nada com que fazê-lo, salvo com as tinas que se encontravam na agora impraticável coberta, nas quais só podiam lavar as mãos e o rosto); e agora eles e seus leitos enrolados e úmidos estavam amontoados na entrecoberta, um reduzido espaço sem ventilação que cheirava a feras enjauladas, um odor muito pior que o do conjunto de marsupiais que Stephen havia trazido de Nova Holanda numa viagem anterior.
Stephen viu Jack Aubrey muito pouco, mas sempre o viu alegre e, em geral, faminto. Uma vez Jack lhe informou que o vento havia mudado e que lhes havia levado até um ponto a oeste das ilhas Scilly, e outra lhe disse que havia podido ver brevemente algumas estrelas e havia podido confirmar sua idéia de que lograriam cruzar o Canal se voltassem a tentar; contudo, a maior parte do tempo que passou abaixo esteve sumido em um profundo sono.
E uma noite que havia jantado muito tarde e frugalmente, foi despertado desse sono pelo guarda-marinha encarregado dos sinais, um jovem alto, delgado, moreno e consciencioso, que, com a voz tremendo de emoção, disse:
- O senhor Grimmond, o oficial de guarda, me ordenou dizer-lhe que avistamos dois barcos a barlavento: um é o Jason e o outro é um navio francês de duas conveses.
- Muito bem, senhor Meares. Subirei ao convés imediatamente, mas entretanto faça o sinal secreto e dê nosso nome. Por favor, antes passe-me a capa.
Na coberta todos olhavam para barlavento através de uma chuva torrencial. Jack não pôde ver nada a princípio, mas a chuva passou sobre a corveta e se afastou, e por fim, já sem aquele véu, pôde distinguir dois barcos pela alheta de bombordo, que navegavam velozmente com rumo sudeste e com o vento pelo bombordo, deixando brancos redemoinhos à sua passagem.
A situação estava clara: indubtavelmente o barco francês se dirigia para Brest e indubtavelmente o Jason o perseguia. Outra questão era se o Jason poderia alcançá-lo. Estavam aproximadamente a duas milhas de distância um do outro, muito longe para que os canhões de proa do Jason pudessem reduzir a velocidade do navio francês derrubando um de seus paus; por outra parte, o Jason navegava justamente pela esteira do navio e havia largado a maior quantidade de velas que podia usar abertas, ou talvez mais, enquanto que este ainda levava as gáveas com um rizes. A única esperança do capitão do Jason era encontrar por casualidade um cruzeiro inglês ou algum barco da esquadra que fazia o bloqueio de Brest dirigindo-se para a Inglaterra. A Ariel não estava patrulhando aquelas águas e tampouco era um cruzeiro, pois não tinha a mesma potência que os navios de linha do inimigo, mas virasse para o sudeste imediatamente e desdobrasse grande quantidade de velame, poderia interpor-se entre a presa e Brest no final da tarde, e poderia retê-la o tempo suficiente para que o Jason a alcançasse. Contudo, a presença dos transportes, suas ordens...
- O Jason está fazendo sinais, senhor - disse Meares, observando o navio com o telescópio. - Inimigo à vista. Também dá sua posição.
Jack havia visto muitos sinais absurdos em sua vida, mas nenhum tão inútil como este.
- Senhor, agora: Mudar de bordo para estibordo. E agora: Perseguição para sudeste.
- Entendido - disse Jack.
- Senhor, agora: desdobre mais velame.
Então, a cinco milhas de distância apareceram umas volutas de fumaça no costado de sotavento do Jason, pois havia reforçado sua ordem com um canhonaço. Middleton, que era quem estava ao comando do Jason agora, sempre havia sido um homem falador.
Jack voltou a sorrir. Middleton era um capitão de menos antiguidade que ele, mas não sabia que a Ariel estava ao comando de um capitão de navio e que, por isso, ele não tinha direito de dar-lhe ordens. Não obstante, esse não era momento de formalidades, era momento de decisões, de decisões imediatas. Se fosse agir, tinha que agir agora. Com essa marejada, a Ariel não podia navegar tão rápido como um navio de duas pontes, e para interceptar a rota do inimigo antes do anoitecer ou, ao menos, chegar a um ponto do qual suas caronadas pudessem alcançá-lo, teria que aproveitar até o último cabo a vantagem que tinha. Inclusive considerando sua posição com relação a esse ponto, a esse ponto que o navio francês já havia alcançado, seria difícil.
Estes pensamentos passaram por sua mente com grande rapidez quando fez mecanicamente um cálculo da velocidade e a distância dos navios que se encontravam a barlavento, a intensidade do vento do sudoeste, o efeito das condições do mar e as possibilidades de êxito de uma intervenção. Antes de que se ouvisse o distante estrondo do canhonaço do Jason, já havia tomado a decisão. Só lamentava não ter tempo de mandar Stephen e o coronel d'Ullastret para os transportes.
- Todos a mudar de bordo! - ordenou, e observou que os oficiais sorriram satisfeitos e se fizeram sinais com a cabeça.
Lograr que se cumprissem as expectativas daqueles jovens não havia entrado em seus cálculos, mas se alegrava de que estivessem satisfeitos. Mandou buscar o compasso para determinar as marcações com relação aos dois barcos e deu ordens a Meares:
- Sinalize para o Jason: Mudar de bordo ao sul vinte e sete leste. E depois soletre: Aubrey. Também ice e mantenha desdobradas as bandeiras com a mensagem: Inimigo à vista. Perseguição para o sudoeste.
Isso cortaria em seco a Middleton, porém, o que era mais importante, permitiria-lhe encurtar a distância meia milha mais ou menos. Havia muita probabilidade de que os franceses conhecessem os sinais, e, além disso, que ao ver a Ariel mudassem de bordo de repente, provavelmente o navio continuaria navegando para o sul durante um tempo. A essa distância e com essa visibilidade, apesar de que se notasse claramente que a Ariel era um barco de uma só coberta, poderia ser considerada uma fragata, inclusive uma potente fragata capaz de fazer mais estrago do que parecia; além disso, era possível que o sinal aos barcos amigos que se encontravam mais lá do navio resultasse útil, era possível que ela se aproximassem da metade dos navios que faziam o bloqueio.
- Senhor Grimmond, abordaremos o Mirza por sotavento.
- O capitão do Mirza era o oficial de mais antiguidade dos que estavam ao comando dos transportes.
- Senhor Smithson, nos encontraremos em frente a Burdeos! Se não me encontre ali, continue e apresente-se ante o oficial de mais antiguidade de Santander! Vá devagar! Proe não perder paus! Não desdobre sobrejoanetes nem monteirinhas!
- Não tema por nós, senhor! - gritou Smithson agitando no ar a mão direita, a única que podia mover. - Boa sorte!
Os tripulantes dos transportes sabiam perfeitamente o que ocorria e deram entusiastas vivas para a Ariel quando passou pelo seu lado desdobrando velas.
- Rumo sudeste quarta ao leste - disse Jack, observando o navio francês com o telescópio. - Tirar os rizos do velacho.
Através da escuridão e da água que saltava para o ar, pôde ver que a presa virava e se colocava com o vento pela amura, como esperava, quer dizer, virava para o sul para fugir do perigo, um grande perigo possivelmente, que havia no noroeste. Porém, enquanto olhava suas brancas velas rodeadas pelo céu cinzento, pensou que isso não tinha muita importância, porque navegava a nove ou dez nós, e se ele não conseguisse passar em frente à sua proa, se, pelo contrário, cruzasse sua esteira, sua intervenção, necessariamente breve, serviria de pouco. Serviria de pouco, mas seria perigosa na mesma medida.
- Senhor Meares - disse, - tenha a amabilidade de preguntar a Jason qual é sua posição e depois repita a mensagem para os transportes.
Houve uma longa pausa, em parte porque era difícil ver bandeiras de sinais a cinco milhas de distância entre a névoa e a chuva, com uma luz mortiça e cinzenta, e em parte pela vacilação dos tripulantes do Jason.
- Sem medições durante três dias - disse Meares por fim. - Estimada 49°27'N 7°10'0. Cronômetro cinco horas e vinte e oito minutos depois do meio-dia.
Quando comprovava a diferença entre o relógio de Stephen e o do Jason, uma considerável diferença, voltou a sorrir. Middleton não era uma marinheiro dado a empregar dados científicos (era dos que preferiam abordar ao inimigo entre a fumaça), mas nem ele nem seu oficial de derrota poderiam estar muito equivocados com relação à longitude, e isso significava que o navio francês não tinha possibilidade de chegar à Rochelle com esse vento. Só poderia ir a Brest ou Lorient, a menos que se aventurasse a ir a Cherburgo, passando entre as inumeráveis esquadras inglesas que havia no Canal.
Enquanto o contemplava pensou que era um barco magnífico. Navegava com a quilha formando o menor ângulo possível com a direção do vento, mas formava ondas de proa muito grandes, que chegavam até a metade do casco. A Ariel teria que aplicar mais velame para chegar até sua rota com tempo e espaço suficientes para manobrar, e uma embarcação como a Ariel necessitava de grande quantidade de ambos para poder fazer algo a um navio de setenta e quatro canhões.
- Digam ao contramestre que venha - ordenou, e depois que o contramestre se deslocou desde o castelo para a popa, aonde chegou jorrando água, disse: - Senhor Graves, amarre guindalezas{29} finas aos topes assim que possa.
- Guindalezas finas aos topes, senhor? - perguntou o contramestre assombrado.
- Sim, senhor Graves - respondeu Jack amavelmente, coberto pela água que havia saltado por cima da borda de barlavento. - Quero que estejam todas colocadas antes da guarda do segundo quartilho. Acho que hoje não passaremos em revista.
O contramestre sorriu como se o fizesse só por obrigação.
- Sim, senhor. Amarrar guindalezas finas aos topes - disse em tom pouco convencido e começou a afastar-se.
- Senhor Graves - disse Jack, situado agora a suas costas, - assegure-se de que lhes tirem a água antes de esticá-las, pois não devemos torcer os mastros.
Era um sistema que havia usado muitas vezes com êxito. A força extra das guindalezas lhe permitiria desdobrar as joanetes sem o risco de que os mastaréus de joanete rachassem ou, o que era ainda pior, desprendessem. Esse sistema não podia ser usado em uma embarcação instável, porque aumentaria o peso da exárcia, mas a Ariel não era uma embarcação instável senão muito estável. O grande impulso, o grande aumento de velocidade que proporcionava, havia lhe salvado quando fugia de um perigoso navio holandês numa zona de alta latitude sul; contudo, era óbvio que o sistema podia ser utilizado para os inimigos, e, de fato, surpreendia-se de que seu uso não houvesse se generalizado.
As guindalezas não estavam colocadas antes da guarda do segundo quartilho. As rajadas de chuva açoitavam uma e outra vez a corveta, uma chuva tão copiosa que a água saía a jorros pelos embornais e os marinheiros apenas podiam saber o que faziam; e as rajadas de vento que as acompanhavam lhe davam terríveis sacudidas (haviam detido seu avanso três vezes) e lhe impediam de manter o rumo. O navio francês e o Jason não puderam ser vistos por quase uma hora.
- Acha que me sentirei melhor se vomitar? - perguntou Jagiello.
- Duvido - respondeu Stephen. - Para o coronel não serviu de nada.
O perseguido e o perseguidor estavam ainda ali na posição esperada quando foram açoitados pela última rajada e a copiosa chuva se deslocou para o noroeste, ocultando o horizonte a sotavento, mas deixando ver com claridade o mar a estibordo. O navio francês seguia navegando para o sul, fugindo do imaginário perigo porque ainda não havia descoberto o engano, mas já havia desdobrado a estai do trinquete e nenhuma vela tinha rizes, pelo que cada vez mais se afastava do Jason. Por outro lado, sua rota e a da Ariel eram convergentes, ainda que a corveta se mantinha em uma posição na qual o vento lhe permitia alcançar uma grande velocidade. A presa estava agora meia milha mais perto e podia ser vista muito mais claramente.
- É o Méduse - disse Hyde.
- Espero que possamos dar-lhe uma surra, com a ajuda do Jason - disse Jack e começou a rir a gargalhadas.
Estava muito animado e se sentia estupendamente bem, e ainda que houvesse recordado algo do que havia deixado em terra, nada lhe pareceria importante. Mas atrás de sua exaltação, sua mente continuava ocupando-se do efeito de certos fatores, dos três vértices do triângulo e seu movimento e das variáveis que poderiam influir neles; e atrás de sua sensação de bem-estar, estava o convencimento de que sua rota atual era muito perigosa. Ainda que só pretendesse sustentar uma breve luta com o navio francês com o propósito de retê-lo, isso significava que devia aproximar muito suas curtas caronadas dele, a uma distância na qual a corveta podia ser alcançada perfeitamente por suas baterias de canhões de longo alcance, cuja descarga era de 840 libras, enquanto que a descarga das baterias da Ariel era de apenas 265 libras. Era indubitável que em tempo sereno, com todas as portas inferiores abertas, o Méduse poderia arrasar a Ariel a uma milha de distância, poderia destruí-la antes de que fosse capaz de lançar contra ele disparos certeiros; mas inclusive nestas circunstâncias, havia bastante possibilidade de que nenhum dos jovens que agora o rodeavam vivesse até o dia seguinte. Tudo dependia da velocidade.
- Guindalezas amarradas aos topes, senhor - disse o contramestre.
- Muito bem, senhor Graves - disse Jack. - Muito bom trabalho.
Fez uma rápida inspeção e regressou ao castelo de popa.
- Todos a largar velas! - ordenou. - Subir para a exárcia! Preparados nas vergas! Soltar! Adriças da joanete de proa! - disse com um vozeirão que se podia ouvir a meia milha de distância, com vento ou sem ele. - Devagar! Devagar! Uma braça! E uma braça! Acima! Puxar e acostar!
Uma atrás da outra subiram lentamente as velas com suas vergas e uma depois da outra inflaram, formando uma enorme bola em direção do sotavento que foi reduzindo-se gradualmente até converter-se em uma suave curva, e a grande pressão se repartiu uniformemente entre as fortes guindalezas. À medida que as velas se inflavam, a Ariel inclinava mais, e quando a terceira se inchou, a coberta tinha uma inclinação similar à de um telhado com uma ladeira moderadamente pronunciada e a serviola de bombordo e boa parte da borda de bombordo estavam cobertas de branca espuma.
Jack se agarrou a um brandal de barlavento e estendeu a mão para tocar a guindaleza que triplicava sua força. Estava tensa, mas não muito, não tão tensa que pudesse romper-se.
- Senhor Hyde, jogue a barquilha - disse sorridente para o primeiro oficial, que tinha uma expressão angustiada. - Provavelmente estaremos navegando a uns onze nós.
- Onze nós e duas braças, senhor - foi a resposta de um guarda-marinha com o rosto vermelho de satisfação, que, desde o costado de sotavento, começou a subir trabalhosamente a inclinada coberta.
Onze nós eram uma boa velocidade, mas o Méduse era um navio novo, com excelentes características para a navegação, como a maioria dos barcos franceses, e estava bem tripulado; e quando navegasse de bolina aumentaria ainda mais a velocidade. Navegando à velocidade atual, provavelmente a Ariel cruzaria sua rota quando o Sol se pusesse, mas ele desejava que fosse antes porque assim teria tempo para passar frente a sua proa e mudar de bordo e conseguir disparar-lhe duas descargas antes de fugir.
- Acho que podemos nos arriscar a largar a vela de estai maior - disse.
Quando os tripulantes caçaram as escotas da vela de estai (foram necessários trinta homens para retesá-la e levá-la até o lugar adequado), a Ariel inclinou mais sete graus.
- Como se inclina o solo! - exclamou Jagiello. - Quase não posso ficar sentado na cadeira. Que acha que estão fazendo?
- Não sei - respondeu Stephen. - É penoso dizer, porém, quando cai uma tempestade, os passageiros são seres inúteis, são uma pesada carga.
- O capitão não lhe pede conselho? - inquiriu Jagiello.
- Nem sempre - respondeu Stephen.
A chuva havia cessado. O capitão havia revisado as armas da corveta junto com o condestável e, quando voltou ao castelo de popa, disse:
- A chuva cessou temporariamente. Talvez o doutor goste de ver como a corveta navega. Senhor Rowbotham, por favor, desça e transmita minhas saldações ao doutor e diga-lhe que nos movemos a uma velocidade de doze nós e que se quiser ver como navega a corveta, este é o momento, pois dentro de pouco voltará a chover.
- O capitão lhe envia seus cumprimentos, senhor - disse Rowbotham, - e diz que navegamos a doze nós. A doze nós, senhor!
- Por que? - inquiriu Stephen.
- Para alcançar o Méduse, senhor - respondeu Rowbotham. - Está pelo través de estibordo. É um navio francês de setenta e quatro canhões - especificou ao notar que não compreendia. - Esperamos dar-lhe uma surra, com ajuda do Jason. O Jason o segue a duas milhas de distância e navega rápido como um raio.
- Então vai haver uma batalha? - perguntou Stephen. - Não sabia nada.
- Uma batalha? - inquiriu Jagiello, já sem torpor. - Eu também posso participar?
Depois de serem empurrados pela primeira lufada de vento, que os teria feito cair nos embornais de bombordo, ou mesmo no Atlântico, se não houvesse sido porque o suboficial que governava a corveta o havia impedido com seu forte braço, amarraram-nos a dois mordedores próximos da alheta de barlavento, onde não pudessem atrapalhar.
- Pensei que gostaria de ver qual é a situação - disse Jack, e com voz mais forte acrescentou: - e também pensei que gostaria de ver como a corveta navega quando se utilizam todos os recursos possíveis.
- Isto é velocidade! - exclamou Stephen enquanto a espuma roçava seu rosto. - Um sente a mesma emoção... - interrompeu-se porque pensava dizer "de Ícaro antes de cair", mas preferiu acrescentar: - que descer com rapidez uma montanha, que ver-se ameaçado pelo perigo... Isto é como o voo de um falcão.
- É uma extraordinária embarcação - disse Jack. - Alegro-me de que a hajas visto navegar da melhor forma que pode fazê-lo. Agora é o melhor momento, porque dentro de meia hora estaremos muito ocupados e esta noite haverá tormenta - acrescentou, assinalando com a cabeça para o oeste, para alguns negros nimbos dos quais saíam raios. - Acho que essa é a tormenta que Pellworm augurava. Astamos nos aproximando do navio, como pode ver, e temos a intenção de orçar e passar frente a sua proa disparando, mudar de bordo e passar outra vez disparando e depois fugir antes que possa reagir. A corveta é o duas vezes mais ágil que o navio e as caronadas podem disparar duas vezes mais rápido que seus canhões.
Então se foi medir os ângulos com o sextante e Jagiello disse para Stephen:
- Esse barco parece o triplo do tamanho da Ariel.
- Acho que é quatro vezes maior - disse Stephen. - Mas a desproporção não é tão grande como o senhor poderia supor. Como pode ver, a fila de canhões mais baixa está afundada na água devido a sua inclinação ou escora, enquanto que nossas caronadas estão muito para cima da superfície. Já vi o capitão Aubrey obter êxito em ataques onde tinha menos possibilidades de ganhar.
- Quando começará a batalha?
- Dentro de meia hora mais ou menos, conforme acredito.
- Irei buscar meu sabre e minhas pistolas.
Na verdade, começou muito antes. O Méduse virou de repente, pelo que parecia que seu capitão se propunha a passar na frente da popa da Ariel e destruí-la. Imediatamente Jack orçou, e ambos barcos, navegando a uma extraordinária velocidade, convergiram sob o céu cinzento. Jack ainda teria a oportunidade de passar na frente da proa do navio se seus canhonaços não causassem muito danos à corveta. Mais perto, mais perto... Cada vez a corveta se aproximava mais do Méduse pela amura de bombordo. Aproximou-se ainda mais... Quase podia alcançá-lo com suas caronadas.
- Disparem quando der a ordem! - gritou enquanto passava atrás da fila de artilheiros tensos e expectantes. - Apontem para cima, para os cestos das gáveas!
Por fim o Méduse deu uma guinada para bombordo e fez fogo com os canhões da coberta superior. As balas estavam muito juntas mas passaram muito acima da corveta, e todos ouviram o assobio que emitiam ao passar sobre suas cabeças, um assobio mais agudo que o do vento, e depois um terrível estrondo. A corveta se aproximou mais ainda.
- Fogo! - ordenou Jack.
As caronadas da Ariel, que já podiam alcançar o navio, dispararam. Uma vela de estai do navio francês se desprendeu e golpeou até romper-se em pedaços, e imediatamente os artilheiros da Ariel começaram a carregar as caronadas outra vez dando vivas. Mas as portas inferiores do Méduse se abriram e os longos canhões assomaram por elas, pois agora, devido à inclinação do navio, estavam muito acima da água. O navio se aproximava a toda velocidade da Ariel pelo través.
- Fogo! - gritou Jack de novo.
As baterias de ambos barcos dispararam ao mesmo tempo. O mastaréu de velacho da Ariel caiu pela borda e a verga do traquete se soltou dos estrobos{30}. A corveta girou bruscamente sobre a quilha e a proa ficou situada contra do vento.
- Caronadas de bombordo! - gritou Jack, sem prestar atenção à confusão de cabos, velas e paus.
Saltando sobre ela, chegou até a caronada mais próxima, e a apontou ele mesmo. Estavam junto a ele os artilheiros mais perspicazes, e entre todos, quando o Méduse terminava de passar pelo seu lado, destroçaram a verga da vela carangueja e arrancaram cinco pedaços da vela maior. Dois minutos depois, e a uma distância de quase uma milha, o navio respondeu, disparando com extrema precisão seus canhões de proa, e a água saltou por cima da coberta da Ariel e os botes ficaram destroçados. O navio já não estava ao alcance das caronadas da corveta e seguia navegando muito rápido, ainda que não tanto como antes.
Apenas tiraram uma parte dos destroços e lograram situar a corveta com o vento em popa quando o Jason alcançou a esteira do Méduse e começou a disparar-lhe com seus canhões de proa. Também içou a sinal: Necessita ajuda?
- Resposta negativa - disse Jack.
E quando o navio inglês passava junto da corveta, ouviram-se vivas em ambas embarcações.
Tiveram muito trabalho para poder situar a Ariel com a proa contra o vento outra vez e poder seguir os dois navios de linha, que podiam ver-se claramente ao sudeste, lutando sem aproximar-se muito um; do outro. A corveta tinha colocado um mastaréu de joanete maior de reserva no mastro traquete, que havia sido erguido com grande esforço e com a ajuda de Deus num mar impossível; levava a vela traquete envergada em uma verga; e tinha tantos nós na exárcia que dava pena vê-la. Sua velocidade se reduzira muito, mas ainda podia navegar com bastante rapidez, assim que seguiu os dois navios com a intenção de voltar a participar do combate depois de que ambos houvessem lutado um tempo. O Jason havia perdido a verga cevadeira, ainda que não se podia saber se derrubada por uma bala ou por desprendimento, e eles sabiam o que haviam feito ao Méduse. Agora os dois navios de linha navegavam muito mais lentamente.
- Escapamos desta - disse Jack enquanto tomava uma xícara de chá ao anoitecer, quando por fim pôde descer. - Nunca pensei que nos saíssemos tão bem. Não houve mortos nem feridos, nenhuma bala acertou o casco e somente alguns paus se romperam e os botes; e nós, em troca, demos uma surra. Pensei que nos faria saltar em pedaços em um abrir e fechar de olhos, ah, ah, ah! Se houvesse tido um momento livre, não há dúvida de que o teriam feito. Nunca me senti mais satisfeito que quando o vi chegar aonde não podia mais nos alcançar com seus canhões, levando ainda os restos da verga quebrada.
- O que pensa em fazer agora? - inquiriu Stephen.
- Bem, devemos segui-los durante a noite, e se não podemos tomar parte no combate, no qual não estou muito interessado, poderemos atrair algum barco que se encontre perto, ainda que não esteja a vista, pondo luzes azuis, lançando foguetes e disparando canhonaços. Há muitas probabilidades de que encontremos um de nossos cruzeiros ou algum barco da esquadra de Brest.
- E que pensa da tormenta que augurava Pellworm?
- Ao diabo com Pellworm e sua tormenta! Não se pode cruzar o rio até que se chegue à sua margem. Nosso dever é seguir os navios. Mas agora vou comer um pouco. Quer compartilhar uma perna de cordeiro fria?
Durante a primeira parte da noite foi bastante fácil segui-los, não só porque o Jason levava uma luz muito potente no cesto da gávea, senão porque, apesar da chuva ou das nuvens baixas passageiras os ocultassem, os clarões dos canhões indicavam onde estavam. A Ariel os seguiu envolta em um resplendor azul, disparando canhonaços com frequência e lançando foguetes cada vez que soavam as badaladas, e houve um momento em que se aproximou um pouco deles. Isso ocorreu no início da guarda de meia, quando, no sudeste, o céu não foi iluminado por clarões isolados mas pelas descargas das baterias, por seis descargas seguidas, cujo estrondo puderam ouvir apesar do rugido do vento, apenas um instante depois de ver os clarões.
Mas depois não viram nada mais, nem luzes nem clarões. Tudo ficou oculto por uma copiosa chuva, uma chuva tão forte que os marinheiros tinham que inclinar a cabeça para poder respirar e que era lançada quase que paralelamente ao convés pelo vento, um vento cujo bramido teria abafado o ruído de qualquer bateria a meia milha ao redor. No início pensaram que era apenas uma rajada, mas durou muito, durou toda a noite, e finalmente eles se convenceram de que perderam de vista o Jason e a presa.
- Não importa - disse Jack. - voltaremos a vê-los a barlavento quando amanhecer.
"Se o Méduse não tiver rumado para Cherburgo", pensou, já que conforme seus cálculos, baseando-se na posição que o Jason tinha há algumas horas, o navio havia chegado ao melhor ponto para escapar que havia no meio do Canal, onde, em uma noite como essa, não corria o risco de ser interceptado por um navio inglês.
- O senhor não deveria deitar-se, senhor? - sugeriu Hyde timidamente. - Esteve na coberta desde o princípio, e também a maior parte da noite. Não podemos fazer nada, pois o céu está escuro como a boca do lobo, e, além disso, faltam duzentas milhas para percorrer.
- Acho que me deitarei, Hyde - disse Jack. - Mantenha-a assim.
A corveta tinha desdobradas as velas de estai baixas, levava a traquete e a mezena rizadas e navegava em direção sudeste. Havia forte marejada e o vento soprava desde o oeste-sudoeste.
- Chame-me quando amanhecer, ou antes, se ocorrer algo - acrescentou.
Havia mau tempo, muito mau tempo, mas a Ariel era uma embarcação estável, navegava bem de bolina e podia suportar um tempo pior que esse apesar de levar um mastaréu de velacho provisório.
Raras vezes havia dormido tão profundamente. Apenas tirara o jaquetão antes dos olhos se fecharem. Então se deitou, ouviu a si mesmo expirar com força, ou talvez roncar, durante alguns momentos, e depois se foi dali para um sonho que parecia real, um sonho no qual um estúpido lhe sacudia e dizia ao ouvido: "Arrebentação a sotavento".
- Arrebentação a sotavento, senhor - repetiu Hyde.
- Meu Deus! - exclamou Jack ao despertar de repente e saltou da maca e correu para o convés enquanto Hyde o seguia com seu jaquetão na mão.
Na cinza penumbra daquele momento entre a noite e o dia, podia ver-se claramente pelo través de bombordo, a dois cabos de distância, uma ampla faixa de espuma e enormes ondas formando-se em um vasto conjunto de rochas aflorando da água.
Ainda a corveta navegava de bolina com as velas amuradas para estibordo e ainda que avançava a bastante velocidade, o vento, as ondas e a maré a faziam mover-se de lado para o arrecife. Não podia evitar aproximar-se com um vento como esse, nem mesmo que o mastaréu estivesse em boas condições, e não podia mudar de bordo para avante, mas ao menos podia mudar de bordo em redondo.
- Todos a mudar de bordo! - ordenou. - Leme para bombordo!
Os oficiais e os marinheiros correram para seus postos. As velas de popa desapareceram, a corveta abateu a sotavento e se aproximou com rapidez do arrecife e depois virou justo à borda deste, virou 180° e ficou situada com a proa em direção nor-noroeste e amurou as velas para bombordo.
- Orçar! - ordenou Jack ao piloto. - Façam a maior ondear!
Não queria que a corveta avançasse rápido até saber onde estava. Supunha que se encontravam em frente da ilha d'Ouessant ou frente à costa francesa (a posição que havia calculado estava cinqüenta milhas mais ao norte e muito mais ao oeste de sua posição real), mas era preciso saber onde. Olhou para sotavento e, através da chuva, apenas podia ver borradamente o escuro litoral; contudo, observou que Hyde havia feito a bordo o que se devia fazer. O carpinteiro e seus ajudantes, com as machados na mão, estavam prontos para cortar os mastros; as âncoras já estavam preparadas, pendurando das serviolas; a sonda estava na água e o sondador já não cantava a conhecida ladainha senão que dava as medidas da profundidade instantaneamente: "Seis. Cinco menos um quarto.."..
- Arrebentação a proa! - gritou o vigia do castelo.
Jack correu até a proa e observou a comprida faixa branca que se ampliava com rapidez, a marca de outro arrecife, um arrecife que cortava a rota que ia para o noroeste, sua única saída para o alto mar; e essa longa faixa parecia terminar em um distante cabo que se via borradamente por estibordo. O arrecife pôde ser visto com maior claridade, e Jack observou como a água se chocava contra as rochas e formava ondas de enormes cristas que avançavam para o alto mar uma grande distância, ondas devastadoras.
- Esticar a maior! - ordenou, - Quinze graus para estibordo!
A Ariel avançou diretamente para a faixa branca, e enquanto Jack calculava a distância que os separava e a força do vento e escutava atentamente ao sondador, os marinheiros do castelo, que confiavam plenamente em que atuaria com acerto, viraram para ele seus ansiosos rostos. A cinqüenta jardas das agitadas águas gritou:
- Leme para estibordo!
A Ariel orçou e se deteve em uma zona de quatro braças de profundidade. Então, justo no momento em que a popa começava a se mover, Jack ordenou:
- Jogar a âncora!
A âncora agarrou, e imediatamente os homens amarraram um cabo à amarra, e a corveta permaneceu entre os dois arrecifes, cabeceando fortemente por causa da maré, que quase havia alcançado seu nível máximo. Estar ali era um alívio, mas se se encontravam onde ele supunha, não poderiam ficar por muito tempo. Mandou acordar Stephen, Jagiello e o coronel; ordenou dobrar a guarda do paiol do rum, porque os marinheiros adoravam morrer bêbados; e também mandou acender os fogos da cozinha, posto que alguns tripulantes da Ariel estavam muito assustados, o que era razoável, e ver que ainda havia certa ordem e, sobretudo, ter papa de aveia quente em seus estômagos lhes reconfortaria.
O dia já se aproximava, já podia ver sua luz em terra. A chuva cessou de repente e a espessa névoa que cobria o mar se desvaneceu, e então Jack soube onde estavam. Era um lugar pior do que o que havia suposto. Estavam na baía que os membros da Armada chamavam Gripes, no fundo da baía Gripes. Durante a noite, a Ariel havia conseguido passar entre os dois arrecifes principais sem se chocar com as inumeráveis rochas que estavam espalhadas pela zona delimitada por eles. Era uma horrível baía aberta para o sudoeste, na qual nunca iam barcos da esquadra francesa. Não tinha um fundo bom para que agarrasse a âncora e estava infestada de rochas puntiagudas que podiam cortar as amarras. Além disso, tinha arrecifes por toda parte. Mas ele conhecia bem suas águas, porque quando fazia o bloqueio a Brest, ia pescar ali com um grupo em pequenas embarcações nos dias de calmaria e porque quando tinha dezessete anos e era ajudante de oficial de derrota, havia estado ao comando da lancha do Resolution quando as lanchas da esquadra haviam explodido a bateria de Camaret. Olhou acima do coroamento e viu a bateria a menos de uma milha de distância, em uma fortaleza situada num promontório próximo ao extremo norte do arrecife. Já a haviam reparado, certamente, e dentro de pouco os soldados despertariam e abririam fogo. Além de Camaret estava Brest, e, ao fundo da baía, estava a cidade de Trégonnec, com um pequeno dique em forma de meia lua que protegia o porto pesqueiro situado na desembocadura do rio e com uma fortaleza bem armada. Não era conveniente ficar ali entre dois fogos, ainda que no litoral as águas fossem tranqüilas porque este estava, por assim dizer, protegido pelos enormes arrecifes; e na praia não havia grandes ondas, apesar das ondas de grandes cristas que se formavam fora. Na parte sul da baía estava o cabo Gripes, e depois do cabo Gripes estava a salvação, a bonita e enorme baía de Douarnenez, onde uma esquadra inteira poderia fundear e, posto que ficaria protegida pelo norte e pelo oeste, poderia rir das baterias francesas, que estariam muito longe para fazer dano.
Para chegar ali teriam que dobrar o cabo. A única maneira de fazê-lo era avançar para o sul bordejando o arrecife interior até uma rocha que chamavam de Thatcher, próxima à parte sul da baía, mudar de bordo, avançar pelo arrecife exterior e dobrar o cabo, onde estariam a salvo. Teriam que ficar ali até que terminasse de passar a tormenta e a maré alta lhes permitisse fugir, mas atravessar o arrecife por uma abertura navegando de bolina não era possível, porque o vento havia se acalmado. Confiava em que, com a ajuda de Deus, poderiam mudar de bordo bastante antes de chegar à Thatcher, quando tivessem muito espaço para mudar de bordo em redondo, pois não era conveniente mudar de bordo para avante naquele lugar porque o arrecife exterior não o protegia e o mar estava muito mais agitado. Mas poderia decidir onde mudar de bordo quando estivessem muito mais perto; agora tinha que ocupar-se do problema das rochas e dos bancos de areia que encontraria no caminho.
- Algum dos senhores conhece esta baía, cavalheiros? - perguntou aos oficiais.
Os oficiais se olharam uns para outros com expressão de assombro, mas antes que pudessem responder, uma fonte de água lhes empapou. A fortaleza aberto fogo e a primeira bala havia caído a apenas seis pés do pescante do costado de estibordo.
- Cortar a amarra! - ordenou Jack. - Leme para bombordo!
Ao mesmo tempo que a popa se moveu, a corveta começou a mudar de bordo; a bujarrona e as gáveas se incharam; e depois de estar sem movimento durante uma pausa infinitesimal, moveu-se bruscamente para frente e começou a avançar com rapidez através da forte chuva que chegava do alto mar. Jack a conduziu pelo estreito canal delimitado pelo arrecife exterior e o interior e, apesar das balas caírem ao seu redor, diminuiu vela.
- Meça rápido! Rápido! - disse ao sondador.
Havia que evitar chocar contra as rochas e contra os arrecifes menores. Uma bala que quicou derrubou a haste de bandeira e atravessou a sobremesana.
- Ponham a bandeira em um aparelho nos amantilhos de bombordo, senhor Hyde! - gritou sem olhar para trás e depois murmurou: - Detesto quando disparam-me da costa.
Mas pelo menos esses disparos não eram tão precisos como outros que ele já vira as baterias francesas fazerem, e enquanto duraram, a chuva ocultava quase por completo a Ariel, e os artilheiros disparavam ao acaso.
Avançavam cautelosamente, avançavam mais e mais. Jack começava a recordar os diferentes lugares da baía. Pelo través de estibordo ficava a rocha onde costumavam pegar peixes ruivos, e pela amura ficavam as ilhotas onde pegavam lagostas na maré baixa, agora cobertas de uma massa de espuma branca. Dentro de pouco passariam pela abertura do arrecife interior que os pescadores utilizavam, por onde a água passava com força quando a maré subia na primavera.
Virou a corveta em 15° para contra-arrestar o embate do mar, e quando o sondador gritou: "Marca três, marca três!", a Ariel caiu no seio de uma onda e chocou-se contra uma rocha, e o impacto foi tão grande que se cambaleou e se estremeceu de proa a popa. Mas imediatamente seguiu navegando, e o sondador ia dizendo: "Marca cinco, marca cinco, profundidade seis, seis e meio...". Então apareceu a bombordo um pedaço da falsa quilha entre as agitadas águas e, dando voltas, passou pela abertura do arrecife e foi aproximando-se da distante costa. Grimmond desceu correndo.
- Meça rápido! Rápido! - ordenou Jack outra vez. - Jogue a sonda mais adiante!
- Sim, sim, senhor - respondeu o sondador e enrolou o pesado prumo formando um grande círculo antes de lançá-lo na água.
Já estavam fora do alcance da bateria e dentro de pouco deixariam a proteção do arrecife exterior. O extremo sul deste era o ponto que deviam alcançar para poder mudar de bordo em redondo e chegar ao seu refúgio, a protegida baía Douarnenez. Quando chegassem naquele extremo, já não teriam dificuldades, mas só poderiam alcançá-lo navegando de bolina e com as velas amuradas para bombordo. À medida que avançavam, ficava mais claro para Jack que deviam mudar de bordo muito longe, quase ao chegar na Thatcher. Se não virassem perto da Thatcher, não poderiam sair. Mas ali não teriam espaço para mudar de bordo em redondo, nem muito menos, só poderiam mudar de bordo com a ajuda da âncora, uma manobra perigosa mesmo quando o tempo era bom, assim que tinha que calcular com precisão até a última jarda necessária para fazê-la. Com esse vento e entre aquelas rochas, não se poderia corrigir nenhum erro. E a Thatcher já não estava longe...
- Abaixo tudo está bem, senhor - informou Grimmond ao regressar da bodega. - Só há dois pés de água mais ou menos na bodega de proa.
Jack assentiu com a cabeça. Em circunstâncias normais, isso distava muito de ser bom em uma embarcação estanque como aquela, mas agora não tinha importância.
- Senhor Hyde, vou mudar a corveta de bordo com a ajuda da âncora quando chegarmos naquela grande rocha negra e branca - disse. - Prepare a caridade{31} e ordene a alguns homens que peguem machados.
Depois, com um vozeirão que podia ser ouvido apesar do rugido do vento, disse:
- Tripulantes da Ariel, vamos mudar de bordo com a ajuda da âncora quando chegarmos na Thatcher. Todos devem obedecer as ordens instantaneamente, e, se Deus nos ajudar, dobraremos o cabo e nos refugiaremos na baía Douarnenez. Não façam nada até receberem as ordens, mas façam o que for ordenado com a rapidez do raio.
Os tripulantes, com uma expressão grave, assentiram com a cabeça, e Jack comprovou com satisfação que nenhum havia entrado no paiol do rum.
Agora a corveta estava no meio da zona que não estava protegida pelo arrecife exterior e o vento e o mar a empurravam com força. Nessa velocidade, e com o velame que era necessário ter aberto, em cinco ou talvez quatro minutos alcançariam a Thatcher, por cujos escarpados lados, a compridos intervalos, subia a água com grande estrépito, formando enormes penachos.
- O que significa mudar de bordo com a ajuda da âncora? - inquiriu Jagiello, que estava ao lado de Stephen agarrado à borda.
- Significa jogar a âncora, deter o barco com a proa contra o vento, cortar a amarra e mover-se na outra direção, para o alto mar, para poder dobrar o cabo.
- A rocha está muito perto.
- O sondador diz que há uma profundidade adequada. Escute-o.
- Orçar! - ordenou Jack, olhando atentamente a Thatcher e as algas marinhas arrastadas pelo mar. - Pôr as escotas da vela de estai! - E depois de cinco insuportáveis segundos, gritou: - Jogar a âncora!
Imediatamente o gurupés da corveta ficou situado contra o rugidor vento, ainda que a marejada tratava de desviar a proa para sotavento.
- Mover as amuras da maior...! Puxar! Cortar!
O brilhante machado se moveu para a amarra. Agora a corveta estava terminando de mudar de bordo, mas se movia para trás, para a Thatcher.
- Meça a profundidade da popa, longe da popa! - ordenou Jack ao sondador e se inclinou sobre a borda da alheta para calcular com precisão o momento em que o movimento do leme para estibordo, que devia fazê-la mudar de bordo, teria um maior efeito. O sondador enrolou o prumo e o lançou com todas suas forças, mas o barbante se enganchou no aparelho que sustentava a bandeira e o chumbo se deslocou para a corveta e golpeou Jack, derrubando-o sobre o convés.
Quando Jack estava de gatas, pôde ouvir entre o rugido do vento e o bramido do mar, a uma distância infinita, o grito de Hyde:
- Todos a bombordo, digo, a estibordo!
E imediatamente ouviu um ruído estrondoso, no momento em que a Ariel se chocou contra a Thatcher e seu leme se despedaçou e uma parte da popa se partiu.
Quando se levantou por fim, viu que Hyde tinha uma palidez cadavérica e uma expressão triste e que a corveta estava situada com o lado para o alto mar.
- Carregar a mezena e a maior! - gritou. - Puxar as escotas da traquete!
Roçando as rochas com um forte chiado, a Ariel pôs a proa na direção do vento, e Jack a fez passar pela parte mais estreita do arrecife interior mudando sua direção unicamente com o movimento da traquete. Ainda estava um pouco aturdido, mas a parte de sua mente que estava clara atendia aos movimentos da corveta, e depois do sétimo choque capaz de causar grandes danos, percebeu que a popa estava partida pela metade. Não obstante, como a maré quase havia alcançado seu nível máximo, a corveta não parou e seguiu avançando pelas cristas que se formavam na arrebentação e que subiam até os cestos das gáveas.
Ainda seguiu flutuando nas águas tranqüilas que estavam do outro lado do arrecife, mas não se manteria assim por muito tempo.
- Joguem as caronadas pela borda! - ordenou.
Sem aquele peso, ainda poderia flutuar o tempo suficiente para que pudesse levá-la até a margem. Alguns minutos mais tarde, quando o vento, o mar e a maré favoreciam seu movimento para a desembocadura do rio, disse aos oficiais que pegassem suas ordens e pertences e fez um sinal para Stephen para que o acompanhasse até a cabine, onde a água chegava até os joelhos.
- O coronel deveria pôr um uniforme de infante de marinha e fazer-se passar por outra pessoa - disse. - Está de acordo?
Stephen assentiu com a cabeça.
- Então darei a ordem - disse Jack.
Pegou o livro de capas de chumbo que continha o código de sinais, seus informes oficiais, seus documentos privados e seu sabre, disse ao seu despenseiro que fizesse um fardo com o que pudesse e subiu para a coberta. Jogou pela borda o código de sinais, seus informes oficiais e seu sabre, falou com o tenente de Infantaria de marinha sobre o coronel e depois seguiu conduzindo a pobre corveta maltratada para a margem.
Por alguma razão, tinha certeza de que a corveta não se romperia em pedaços e que os levaria para terra. E ela se coportou bem até o último momento. Por fim deu um puxão na escota de estibordo e a corveta se deteve frente ao dique, com a coberta ao mesmo nível do mar, e começou a girar sobre si mesma, chocando contra este, enquanto a água saía aos borbotões pelas escotilhas. Já o único que tinham que fazer era saltar por em cima da borda e passar para o dique, onde uma companhia de Infantaria e um pequeno grupo de pessoas em silêncio os esperavam.
CAPÍTULO 10
Nos vinte anos de guerra, muitos barcos da Armada real haviam naufragado nas costas de Britânia, e alguns deles foram aprisionados. As autoridades de Brest estavam acostumadas a essa situação e, sem atribuir-se imerecidamente um triunfo, instalaram os oficiais da Ariel num convento de monjas abandonado e os marinheiros num dos porões do castelo forrado de palha.
Era de esperar que aqueles homens, sempre expostos aos caprichosos elementos, se levassem as coisas com serenidade, e em ocasiões anteriores, Stephen havia visto seus companheiros de tripulação aceitar com equanimidade as piores desgraças que lhes havia deparado o destino; contudo, assombrou-se de ver o rápido que recobraram os ânimos e puseram boa cara para a adversidade desta vez, se bem que era verdade que a corveta não havia sido aprisionada e, portanto, não havia havido pilhagem e ainda conservavam o pouco que tinham, o que ajudava a suavizar o golpe, já que depois de comer as escassas rações que os franceses davam podiam rechear-se com melhores alimentos e melhor vinho dos que houvessem recebido na Ariel. Mas quando ficaram seguros de que não iam ser roubados nem iam morrer de fome, começaram a queixar-se da qualidade do chá. E na primeira visita que Jack lhes fez, também se queixaram do pão; disseram que o pão francês, por estar cheio de buracos, não podia alimentar nenhum homem, e que era lógico pensar que um homem que comesse buracos arrebentaria como uma bexiga. Acrescentaram que tampouco gostavam da aveia, que parecia feita com plantas sem amadurecer e com espigas ressecadas, e tampouco da sopa.
Os jovens que se encontravam no convento voltaram a ficar alegres quando o Sol, desde um céu limpo, iluminou Brest, vinte e quatro horas após terem chegado de sua horrível viagem desde Trégonnec; e com a alegria voltou o senso de humor característico dos marinheiros. O delegado encarregado de fazer uma correta lista oficial dos prisioneiros, que incluia, entre outras coisas, a data e o lugar de nascimento e o sobrenome de seus avós, recebeu algumas respostas raras, ditas em tom solene, umas respostas tão raras que o comandante do porto mandou buscar o capitão Aubrey.
- Nego-me a acreditar que todos seus oficiais exceto um sejam netos da rainha Ana, senhor - disse.
- Sinto dizer-lhe, senhor - disse Jack, - que a rainha Ana está morta, e portanto, o decoro me impede de fazer comentários.
- Em minha opinião, responderam com leviandade - disse o almirante. - Ter alguns pais como o imperador de Marrocos, Jenny a Tolhida, Guy de Warwick, Julho César... O senhor poderá dizer que o delegado é simplesmente um civil, o que é absolutamente certo, porém, mesmo assim, peço que o tratem com o devido respeito. É um servidor do Imperador.
Jack não pareceu se impressionar com isso, e, em verdade, o almirante havia falado com pouca convicção. Este olhou para seu prisioneiro alguns momentos e continuou:
- Agora quero falar-lhe de um assunto mais sério. Um de seus infantes de marinha, Ludwig Himmelfahrt, escapou. Encontraram sua roupa no lavabo.
- Oh, era um imbecil, senhor, um supernumerário! Nós o levávamos a bordo só para que tocasse o pífano quando os marinheiros estivessem no cabrestante. Acho que nem sequer está no rol... Não apareceria entre os tripulantes que têm alguma importância. Apesar de tudo, devo dizer que, como soldado nominal, era seu dever escapar.
- Talvez - disse o almirante, - mas espero que o senhor não o de imite, capitão Aubrey. Não me importa muito a fuga de um supernumerário tonto, sobretudo se não estava no rol, ainda que, sem dúvida, nós o encontraremos, mas a de um capitão de navio, um oficial de sua categoria, senhor, é uma questão diferente, e lhe advirto que, ao menor intento, será encarcerado em Bitche. Encarcerado em Bitche, senhor!
Jack esteve a ponto de replicar com uma das melhores frases que havia pronunciado em sua vida, mas o jogo de palavras que havia feito em inglês não podia manter-se com os vocábulos equivalentes em francês, assim que não pôde dizê-la, e o sorriso que havia esboçado ao pensar nela se desvaneceu. Então se limitou a comentar:
- Com respeito a isso, senhor, acho que serei seu convidado até o final da guerra. Espero que não dure tanto para que não se canse de mim.
- Estou certo de que não - disse o almirante. - O Imperador está arrasando no norte. Os austríacos foram derrotados.
- Ameaçaram-me com Bitche - disse Jack, ao voltar para o convento.
Todos entenderam o que isso significava, porque Verdún e Bitche haviam sido os principais temas de conversa durante os últimos cinco dias, nos quais também falaram um pouco do desenrolar da guerra, que deduziam da informação do Moniteur, e da jovem que trazia refeição para Jagiello. Verdún era a cidade onde estavam confinados os prisioneiros de guerra e Bitche era a fortaleza onde eram encarcerados os que tentavam escapar. Ambas se encontravam no noroeste de França e tinham fama de ser lugares muito desagradáveis, úmidos, frios e caros. Mas quase ninguém na Armada as conhecia pessoalmente, pois, devido a que Bonaparte se negava a trocar prisioneiros na forma tradicional e devido a que, de fato, muito poucos prisioneiros eram trocados, quase todos os que iam ali não regressavam nunca. Contudo, entre os poucos que haviam voltado estava Hyde, que, sendo guarda-marinha, escapara primeiro da uma e depois da outra junto com três companheiros e conseguira chegar até o Adriático a pé.
Todos escutavam seus relatos com grande atenção, e isso o ajudava a recuperar o amor própio, que perdera quase por completo. Em verdade, estava tão desanimado e triste que fora o único que não dera ao delegado a costumeira resposta graciosa; sua resposta havia sido uma chata série de dados corretos. Agora Jack lhe pediu para que falasse da fortaleza outra vez e que indicasse a melhor forma de escapar, e outra vez Hyde falou da montanha de arenito escarpada e de grande altura, os passadiços, os buracos a prova de bombas, o profundo fosso...
- Para escapar, o mais importante é o dinheiro, senhor, é claro, e um mapa e uma bússola - disse. - É conveniente ter carne de vaca seca e bolachas e um abrigo para pôr enquanto se esconde durante o dia e botas muito fortes, mas o dinheiro é o mais importante. Com ele se pode conseguir quase tudo, e inclusive com um guinéu se pode chegar muito longe, pois o ouro inglês é muito apreciado aqui...
Jack sorriu. Tinha uma grande quantidade de guinéus no bolso, uma quantidade assombrosa, suficiente para manter os tripulantes da Ariel em condições moderadamente boas durante sua viagem, e sabia que Stephen escondia no peito um pesado monte, o dinheiro que levara ao Báltico para uma necessidade e que estava intacto.
- Também são úteis uma boa faca e um passador ou, pelo menos, uma punção - continuou Hyde. - E um...
- Uma jovem quer ver o senhor Jagiello - disse o guarda com um sorriso brincalhão.
Jagiello se aproximou da porta e se encontrou ali com a bonita jovem, que tinha o rosto avermelhado e a cabeça baixa e sustentava uma cesta coberta com um pano. Os outros se aproximaram da janela e se puseram a conversar como se não lhes prestassem atenção, mas poucos puderam evitar olhar de soslaio para a jovem e nenhum pôde evitar ouvir o que Jagiello disse:
- Porém, minha querida, minha queridíssima mademoiselle, eu só pedi chouriços e maçãs e vejo que aqui há foie gras, lagosta gratinada, uma perdiz, três tipos de queijo, dois tipos de vinho, uma torta de morango...
- Eu mesma que a fiz - disse a jovem.
- Com certeza deve está muito boa; contudo, isto é mais do que posso permitir-me.
- Tem que conservar as forças. Pode pagar em outro momento... ou de outra maneira... da maneira que o senhor queira.
- Mas, como? - perguntou Jagiello realmente assombrado. - Quer dizer como pagarei?
- Por favor, venha ao corredor - disse a jovem, avermelhando mais ainda.
- Outra vez igual - disse Jack para Stephen quando o levou para outro quarto. - Ontem lhe trouxe uma enorme empanada com trufas e provavelmente amanhã trará de sobremesa um bolo de casamento. Não sei o que vêem nele. Por que se fixam em Jagiello e ignoram os outros? Por exemplo o Fenton, um jovem formal com umas costeletas que são o orgulho da Armada e uma barba dura como um gorgulho... Tem que barbear-se duas vezes ao dia... e, além disso, forte como um cavalo e um excelente marinheiro, e apesar disso, não lhe trazem empanadas. Mas não era isso o que queria falar. O coronel escapou.
- Eu sei - disse Stephen, que estivera no castelo com o cirurgião da Ariel.
- Pensei que talvez soubesse - disse Jack. - Não parece muito preocupado.
- Não estou - disse Stephen. - Você não o viu em plena forma. No mar está fora de seu elemento, fala muito e qualquer um pensaria que é um fanfarrão, mas lhe asseguro, meu amigo, que como guerrilheiro não tem igual. É uma autêntica raposa em terra. Pode passar por debaixo de uma cerca deslizando como uma serpente, e quando ainda o procuram laboriosamente entre os arbustos e no fosso, ele já se encontra a mais de uma milha de distância, escondido atrás de um palheiro. Uma vez conseguiu ir de Tarragona a Madri apesar de que davam uma recompensa de onze onças de ouro por sua cabeça, e quando chegou, cortou o pescoço do traidor em seu própio leito. Tem muito dinheiro e muita experiência. Terá passado pela fronteira antes de que nós cheguemos a Verdún.
- Com sua licença, senhor - disse Hyde da porta. - A comida já está na mesa.
Comiam na sala do convento, uma habitação austera que não havia mudado em nada exceto em que tinha barras mais grossas nas janelas, olhos* nas duas portas e inscrições em inglês: J. B. Ama a P. M., Bates é um tonto, Quanto gostaria que Amanda estivesse aqui!, Nenhuma é mais bonita que Laetitia, J. S., ajudante do oficial de derrota, 47 anos. Repartiram a comida. Ela foi encomendada ao melhor restaurante da cidade, recomendado pelo almirante, e, contudo, parecia muito pior que a de Jagiello, que escolhera a hospedaria mais barata, e consistia simplesmente em: um par de lubinas, quatro frangos, uma perna de cordeiro, meia dúzia de pratos para acompanhar os pratos principais e creme com merengue.
- O cordeiro estava bastante bom, ainda que lhe faltava geléia de groselha - disse Jack, mexendo o creme. - Os franceses poderão dizer que a França é uma grande nação e tudo o que queiram, mas não sabem nada de sobremesas. Isto não se parece com creme, não é mais do que espuma. Stephen levantou a vista de seu prato e viu através do olho mágico da porta que estava atrás de Jack como escurecia. Então apareceu nela um olho e permaneceu ali durante um longo tempo, olhando de um lado para outro quase sem pestanejar, sem expressar nada. Depois lhe sucedeu outro que não tinha a mesmo cor escura senão uma cor azul cinzenta. Ambos olhos seguiram observando-lhes alternativamente enquanto terminavam a refeição, enquanto tomavam o conhaque, e ainda que Stephen não se virou para comprovar se o outro olho mágico estava ocupado também, estava convencido de que sim, já que oferecia uma perspectiva diferente da sala.
Portanto, não se surpreendeu que dissessem a Jack, Jagiello e ele que fossem ao escritório do almirante, e tampouco a mudança de atitude do almirante, que até então lhes dispensara um trato amável, quase amistoso.
A certa distância da mesa do almirante estava sentado um civil de meia idade com uma jaqueta negra descolorida e uma gravata bastante clara. Tinha o cabelo grisalho e os olhos negros, e seu rosto era familiar para Stephen. Não participava da entrevista, só os olhava atentamente; mantinha uma grande distância. O almirante dissimulava seu desgosto atrás de sua formalidade e sua severidade aparentes, mas não o escondia bem. Fez uma série de perguntas a Jack com respeito à sua viagem, as quais, obviamente, estavam preparadas. Perguntou-lhe de onde vinha, aonde ia, que rota seguia, quando havia zarpado, que tipo de comboio escoltava e muitas outras coisas.
Jack se mostrou tão circunspecto como o almirante, ou inclusive mais, e, olhando-lhe com indiferença, disse:
- Senhor, eu lhe mostrei a nomeação que me foi dada por meu rei e lhe disse o número de tripulantes que a Ariel tinha. De acordo com as regras da guerra, um oficial prisioneiro não é obrigado a fazer mais que isso. Com todo meu respeito pela sua pessoa, senhor, nego-me a responder.
- Anote essa resposta - ordenou o almirante para seu secretário e, voltando-se para Stephen, perguntou: - O senhor é o cavalheiro que recentemente foi convidado para dar uma conferência no Instituto da França?
- Lamento não poder comprazer-lhe, senhor - respondeu Stephen. - Minha resposta é a mesma que a do capitão Aubrey.
Ambos passaram alguns momentos de ansiedade por causa de Jagiello; contudo, o jovem não era tonto e repetiu suas palavras com a mesma firmeza.
- Tenho que informar-lhes que suas respostas não são satisfatórias - disse o almirante. - Portanto, partirão para Paris imediatamente para ser submetidos a um novo interrogatório.
Tocou a campainha e mandou o ordenança buscar os pertences dos três.
- Imediatamente, senhor? - inquiriu Jack. - Não posso ver meus homens antes de ir? Ainda não me ocupei de seu aprovisionamento. Senhor, apelo para sua condição de oficial e marinheiro... Tenho que falar com eles, ainda que seja brevemente, e dar-lhes algo para afrontar seus gastos. Apelo por sua compreensão, senhor. Um capitão não pode largar seus homens abandonados.
- Não há tempo - disse o almirante. - A carruagem está esperando e tenho ordem de enviar-lhes para Paris no caso de não obter respostas satisfatórias.
- Ao menos, senhor - disse Jack, pondo sua bolsa sobre a mesa do almirante, - tenha a amabilidade de entregar isto ao mais responsável, um marinheiro chamado Wittgenstein, e de dizer-lhe que o reparta eqüitativamente entre todos quando empreendam a marcha.
O almirante olhou para o civil e este se encolheu de ombros.
- Assim se fará, capitão - disse o almirante. - Desejo que passem um bom dia. Monsieur Duhamel lhes acompanhará na carruagem.
Durante os dias e as noites de sua viagem, Stephen pensou muito na situação. Teve muito tempo para fazê-lo, por uma parte, porque a presença de Duhamel impedia a conversa animada e, por outra, porque o francês apenas falava, ainda que não tinha uma atitude hostil. Não era descortês nem desdenhoso nem autoritário, senão reservado, e parecia taciturno, e do canto onde estava sentado olhava os numerosos soldados a cavalo que os escoltavam ou a paisagem sem muita atenção, distante, como se vivesse em outra dimensão e os observasse com a objetividade com que um naturalista observa os micróbios no microscópio. De vez em quando, Stephen surpreendia Duhamel olhando-o, e chegou a parecer que seu olhar refletia satisfação e, às vezes, a compreensão que sente um profissional por outro que se encontra em uma difícil situação, mas o francês afastava seus negros olhos imediatamente e voltava a olhar a paisagem das diversas províncias pelas quais passavam. Duhamel parecia imune à chateação, capaz de resistir o cansaço das longas etapas da viagem e estar acima de todas as debilidades humanas exceto a de comer.
Antes de partir, ele lhes dissera que seria melhor para todos que dessem sua palavra de que não tratariam de escapar durante a viagem (uma mera formalidade, pois a carruagem era escoltada por uma companhia de cavalaria), e por isso paravam nas melhores pousadas das cidades que atravessavam para comer e jantar. Ordenava a um soldado a cavalo que se adiantasse para separar uma sala privada e encomendar determinados ensopados, que variavam de uma cidade para outra, e os vinhos mais adequados para acompanhá-los. Duhamel não comia na mesma mesa que eles nem abandonava sua impenetrável reserva, mas mandava para sua mesa suculentos pratos como entranhas de cordeiro com molho de vinho, dobradinha que qualquer homem poderia comer eternamente e pastel de calandras desossadas, assim que logo eles se guiaram unicamente por sua escolha, ainda que sua escolha abarcava um extraordinário número de refogados. Comia tudo o que havia no prato e depois, com uma expressão satisfeita, limpava-o com um pedaço de pão. Era um homem delgado, e, aparentemente, a quantidade de comida e vinho que ingeria duas vezes ao dia não lhe afetavam; não parecia ter problemas de estômago por encher-se tanto nem sintomas de nenhum transtorno do baço nem do pâncreas nem do fígado. A paisagem era magnífica e a comida também era, e depois de um desses banquetes (não podiam chamá-los de outra maneira), Jagiello, até então desanimado por causa do silêncio de seus companheiros, animou-se de novo e cantou muito baixo. Depois de outro, ficou brincando com um pequena corneta que uma dama em Lamballe lhe presenteara até que viu um raio de sol e decidiu abrir a janela para cumprimentar o céu com música.
Duhamel, ainda digerindo o peru, estava abstraído, mas quando o vidro apenas havia chegado à metade, quando na janela ainda não havia uma abertura por onde podia escapar um jovem esbelto e ágil, já tinha a pistola na mão e apontada para Jagiello. Stephen observou que a pistola estava coberta com tinta cinza fosca.
- Sente-se - ordenou Duhamel.
Jagiello se sentou de golpe.
- Só ia tocar algo como cumprimento - disse com assombro e depois, em tom grave, acrescentou: - Esquece, senhor, que lhe dei a minha palavra.
A expressão feroz de Duhamel deou passagem a outra na qual se misturavam a incredulidade e o desalento.
- Pode tocar durante as paradas, não na carruagem. Talvez estes senhores desejem refletir.
Tinham pouca coisa para fazer, além de dormir. Para Jack resultava fácil este último, pois a falta de forças e a grande quantidade de comida que ingeria, em silenciosa concorrência com o francês, contribuiam para que tivesse sono. Mas a comida também afetava seu fígado e terminou por causar-lhe trastornos digestivos. Inclusive na última parte de Britânia que atravessaram, a maioria dos molhos eram feitos com muita nata, e na Normandia seu estado piorou e tiveram que parar com mais frequência. Ainda que havia dois urinóis debaixo dos lugares, Jack, por pudor, preferia uma cerca ou, pelo menos, um arbusto com muita folhagem, e os desgostosos cocheiros tinham que afastar a carruagem de um lado do caminho cada vez que percorriam um vão de algumas milhas.
Em Alençon, Duhamel se equivocou em sua eleição. Ao entrar na cozinha da pousada, viu uma tina com caranguejos de rio, e mesmo que eles ainda não estivessem sem comer pelo tempo necessário para eliminar as imundices que haviam obtido onde haviam se criado, mandou que os fervessem imediatamente.
- Fervam-os muito pouco, porque seria um crime alterar o sabor destes caranguejos tão grandes.
As reflexões haviam deixado Stephen sem apetite, mas Jagiello, que não tinha necessidade de refletir, comeu um monte deles, e Jack, pensando que nenhum francês podia superar-lhe, comeu tanto como ele. Mas Jack já estava tão débil e em tão más condições que ficou doente imediatamente, em meio de um caminho vazio, e todos o notaram perfeitamente. Duhamel sugeriu por fim que o doutor Maturin fizesse algo por ele, que lhe prescrevesse algum medicamento ou tomasse alguma medida apropiada. Stephen esperara com ansiedade esse momento.
- Muito bem - disse, escrevendo uma receita. - Peço que tenha a amabilidade de dizer a um desses soldados que leve isto a uma farmácia. Acho que com isto poderemos viajar com mais tranqüilidade.
Duhamel observou aqueles sinais cabalísticos, ficou pensativo alguns instantes e por fim acedeu a sua petição. Um dos soldados se foi imediatamente a galope e regressou com um enema de um tamanho adequado para um cavalo e com vários frascos, alguns grandes e outros muito pequenos. A viagem continuou e não fizeram mais paradas de urgência nem se ouviu mais o grito: "Aí na frente há um arbusto!". Jack dormiu quase todo o caminho, pois estava sob os efeitos do láudano, o medicamento preferido de seu médico, um potente opiáceo do qual Stephen abusara em uma época de instabilidade emocional, chegando quase a arruinar sua carreira, um medicamento que, contudo, seguia contendo a substância mais importante da farmacopéia.
Stephen se alegrou ao ver a garrafa de láudano, pois, apesar de que já não permitia a si mesmo bebê-lo, gostava de tê-lo a mão. Mais tarde, quando já estavam perto de Verneuil, também o intestino de Jagiello e o férreo intestino de Duhamel se renderam aos caranguejos de rio, e Stephen lhes deu uma dose. Nesse momento podia ter matado Duhamel, porque havia reposto suas provisões de morte instantânea e lhe bastava um diminuto frasco para acabar com cinqüenta Duhameles, e ainda sobrava. Porém, com uma escolta como aquela, não lhe serviria de nada, e, além disso, como médico, nunca havia causado dano a nenhum homem intencionalmente, e duvidava que chegasse a fazer, mesmo que se visse em um apuros.
Quando atravessaram a Ilha de França, os três, ainda em jejum, seguiam dormindo, e Stephen voltou para suas reflexões. Tinha a grande desvantagem de que perdera o contato com a Europa já fazia algum tempo e sabia muito pouco dos mudanças ocorridas na França recentemente, sobretudo nos Serviços Secretos. Contudo, sabia que os Serviços Secretos franceses tinham maior diversidade que os ingleses e também sabia que os ciúmes, a concorrência e a luta para ter o controle dos fundos secretos eram muito mais fortes. O Exército e a Armada tinham suas própias organizações dedicadas à espionagem, e também a Junta Suprema, os ministérios de assuntos Exteriores, Interior e Justiça e a polícia, e nenhuma delas confiava plenamente nas demais. Além disso, havia outros corpos quase autônomos, heredeiros do Secret du roi, que estavam encarregados de vigiá-las a todas e de vigiar-se entre si, eram como cachorros guardiães que vigiavam outros cachorros guardiães. A metade do país parecia ser formada por informantes. Também sabia que Talleyrand, Fouché e Bertrand já não ocupavam cargos oficiais, ao menos teoricamente, mas desconhecia quanta influência ainda tinham e quantos agentes ainda trabalhavam para eles, ainda que acreditava que contavam com uma legião de colaboradores. Mas não sabia em que mãos estava o verdadeiro poder agora e tampouco de quem era prisioneiro.
Certamente, tinha a certeza de que, se estivesse nas mãos do Exército, eles o torturariam. Isso também era possível se estivesse nas mãos do sucessor de Fouché (ainda que só fosse para vingar-se dele porque desferira duros golpes ao seu ministério), mas era mais provável que o Exército o fizesse. O principal pilar de um exército era a força física e, nos Serviços Secretos de muitos países, não só nos da França, esta força implicava em empregar a tortura. Stephen a experimentara uma vez, ainda que não fora muito forte, e temia experimentá-la de novo. A havia resistido em Port Mahón, mas então era mais jovem, estava em melhores condições físicas e, além disso, tinha uma poderosa razão para suportá-la: nem mais nem menos que preservar as organizações que formavam a resistência catalã. Agora não sabia como ia a comportar-se, pois a coragem de um homem não era sempre a mesma e a agonia podia dobrar sua vontade e inclusive convertâ-lo em um simples animal que desse alaridos, disposto a fazer concessões para sentir sequer um alívio momentâneo. Tinha a esperança de poder suportá-la, e lhe parecia provável lográ-lo, sobretudo pela raiva e o desprezo que tinha acumulados em seu interior, mas estava contente de contar com uma forma segura de escapar naquele diminuto frasco verde escuro.
Agora não tinha tanto apego à vida como na época em que se encontrava em Porto Mahón, porque então, à parte de suas atividades políticas, estava loucamente apaixonado por Diana. Mesmo assim, não queria terminar seus dias em uma lúgubre câmara de tortura, entre a abjeta satisfação dos torturadores e seu enorme ódio por eles (pois os torturadores, para justificar a si mesmos, viam-se obrigados a odiar a vítima, e esta, obviamente, correspondia-lhes com ódio). Diana Villiers... Na época em que se encontrava em Porto Mahón, não tinha nenhuma relação com Diana porque ela havia fugido com Richard Canning, porém, assombrosamente, ela havia sido um grande apoio para ele, o foco que atraía sua bússula para o norte e dava sentido a seu movimento por ali, mas esse movimento perdera o sentido quando ela, de repente, deixara de reinar.
Pensou muito nela quando se aproximavam de Paris. Provavelmente estaria ali, no hotel de Mothe, não no campo. Custaria muito sacar Diana das lojas mais elegantes do mundo depois de haver-se privado delas durante tanto tempo, e ainda que estava seguro de que nunca, nunca se desprenderia de seu grande diamante, que valia uma fortuna, sabia que suas outras jóias lhe permitiriam comprar sem moderação durante um sem-fim de anos. Em Paris, acreditavam que sua relação com Diana era superficial, a de um médico com sua paciente, e, às vezes, a que existia entre dois companheiros de viagem, e mesmo que a polícia soubesse qual era realmente, o que duvidava, o fato de viver sob a proteção de Adhémar de Mothe, impediria que a molestassem com algo mais que um interrogatório formal, a cujas perguntas ela sabia como responder. Em sua opinião, a fama de eficaz que tinha a polícia francesa, salvo nos casos criminais, era exagerada, pois havia comprovado que seus agentes eram lentos, ineficientes, covardes diante dos ricos, antiquados e corruptos em sua maioria, e duros com seus rivais.
O tráfego aumentou em ambos os sentidos. Pensou então nos possíveis motivos pelos quais se encontrava na situação atual e nas possíveis formas de defender-se. Era compreensível que tivessem prendido ele, mas parecia que não tinha sentido tratar assim a Jack e a Jagiello, a menos que... Uma série de hipóteses passaram por sua mente, mas nenhuma realmente convincente.
Depois de atravessar Versalhes, onde havia mais tráfego ainda, Duhamel fechou as portas da carruagem por dentro.
- Oh, meu Deus! - disse Jack ao despertar de seu sono. - Tenho que sair.
- Eu também - disse Jagiello.
Duhamel vacilou, brincando com a chave entre os dedos e olhando para fora, pois também tinha a imperiosa necessidade de sair. Mas não era possível. O Sol do entardecer iluminava com sua dourada luz a avenida, abarrotada de carruagens e de transeuntes que caminhavam de ambos os lados, mas não se via nenhuma cerca nem nenhum arbusto. Ordenou aos cocheiros que avançassem mais rápido e à escolta que abrisse passagem.
- Não tardaremos muito - disse angustiado.
E depois de pronunciar essas palavras, as primeiras que refletiam um sentimento humano em toda a viagem, voltou a encolher-se em seu canto com a mão sobre seu revirado estômago e com seus pálidos lábios muito apertados.
Por que haviam prendido Jack? Stephen não podia entender. Recordava as vozes que se haviam alçado em todo o mundo para condenar o encarceramento e o suposto assassinato do capitão Wright em 1805. E o pobre Wright era simplesmente um capitão de corveta, enquanto que Jack era um capitão de navio de bastante antiguidade. Jack não era um grande homem, não era um almirante, mas era bastante importante para que sua posição impedisse que o tratassem mal, ao menos que tivessem algum pretexto convincente para fazê-lo. Então Stephen pensou em si mesmo, em que não era um desconhecido no mundo científico, ainda que não tinha tanta fama como Davy na Europa. Se conseguisse que seus colegas soubessem que estava ali, teria certa proteção, ainda que, em seu caso, os franceses poderiam encontrar um pretexto com mais facilidade, supondo que soubessem quem era e que era. Pensou com satisfação que não podiam acusar-lhe de haver abandonado sua atitude neutro durante sua visita a Paris, mas sua satisfação não durou muito. O importante era encontrar um pretexto, e o perjúrio e a falsificação de documentos proporcionariam isso aos franceses facilmente. Ao duque d'Enghien lhe haviam matado tomando como desculpa documentos falsos, e era um homem muito, muito mais importante que ele. Um pretexto... Por absurdo que parecesse, os ditadores eram sensíveis à opinião do povo a que ultrajavam. Tinham que ter razão sempre, tinham que ter uma moral intacável, e essa era uma das razões pelas quais raras vezes deixavam com vida os homens que eram desfigurados ou mutilados durante um interrogatório, tanto se haviam dado informação como se não. Qunato os franceses sabiam realmente? Quem eram? Pensou em todos os sinais: o desgosto do almirante, a atitude de Duhamel com eles, a imagem da guerra que dava o Moniteur, o semblante das pessoas que vira, os fragmentos de conversações que ouvira sem querer... Já fazia tempo que a carruagem havia cruzado o rio e agora Stephen seguia com a vista seu curso entre as ruas de Paris, iluminadas pelos postes de luz. A escolha da prisão lhe revelaria muitas coisas... Duhamel deu um ronco de lamúria.
Passaram a entrada da rua que os teria levado até a Faisanderie e Stephen assentiu com a cabeça, pensando que, ao menos por agora, não eram prisioneiros do general Dumesnil. Seguiram adiante e não cruzaram o rio para dirigir-se para a Conciergerie; continuaram avançando e passaram o Châtelet; e por último dobraram com rapidez à esquerda, o que provocou outra desesperada lamúria, e entraram no escuro pátio de uma fortaleza que não podia ser outra que o Temple, ainda que parecia assimétrica e deforme na escuridão. O Temple era uma prisão pouco comum, porém, ao menos, não era militar.
Entraram na velha e escura fortaleza de uma forma que Stephen nunca havia visto. Duhamel já tinha a porta aberta antes da carruagem parar e, seguido por Jack e Jagiello (que, ao descer a toda pressa, pisotearam Stephen e romperam o frasco maior), entrou correndo na imensa sala abobadada onde estavam sentados os guardas que recebiam os prisioneiros, entre andaimes e baldes. Com um irreprimível impulso, os três passaram junto ao alcaide, seu secretário e os carcereiros e, muito pálidos, seguiram correndo pelo corredor escuro; Duhamel levava bastante vantagem aos demais.
- Acho que ele tem uma urgente necessidade... - disse Stephen. - Por favor, diga-me, senhor, o que estão fazendo com o Temple?
- Por desgraça, vão demoli-lo, senhor - respondeu o alcaide e, olhando inquisitivamente para Stephen, acrescentou: - Acho que não tenho a honra de conhecer-lhe.
- Isso pode ser arrumar imediatamente - disse Stephen, fazendo uma inclinação de cabeça. - Meu nome é Maturin. Seu servidor, senhor.
- Ah, monsieur Maturin! - exclamou o alcaide, olhando sua lista. - Exatamente. Perdoe-me, eu lhe havia tomado por... Por favor, tenha a amabilidade de ir com estes senhores para cumprir com as necessárias formalidades.
Stephen estivera em várias prisões, mas todas se encontravam sob a terra, e, depois das necessárias formalidades (que incluiam uma exaustiva revista), quando conduziam a ele e a seus companheiros para cima, achou estranho estar subindo os vãos de uma escada de desgastados degraus de pedra. Subiram e subiram e logo passaram por um longo corredor que davam em três quartos, dois com colchões de palha e um com uma cama, que se viam borradas pela luz de uma lanterna. E lhes deixaram ali na escuridão.
Depois de uma noite escura e comprida mas fresca, uma noite horrível para Jack, angustiante para Stephen e tranqüila para Jagiello, que, por ser mais jovem, já havia se recuperado dos recentes trastornos digestivos, o cinzento amanhecer lhes permitiu ver pela primeira vez como era seu alojamento. Estava formado por três quartos muito sujos que se comunicavam entre si, cada um com uma janela com barras que dava para uma muralha muito alta e anegrada situada do outro lado do fosso e com uma porta com olho mágico que dava para o corredor. Pelo fato de haver tantas portas e janelas em um espaço tão pequeno e a tão grande altura, provavelmente se formavam muito diferentes correntes de ar; contudo, não eram as únicas, já que no primeiro quarto havia outra porta fechada com trinco por fora na parede da esquerda e uma espécie de cela em saliente - provavelmente uma latrina ou sanitário que datava do tempo em que residiam ali os templários - por cuja base aberta entrava o vento uivando que soprava do norte ou do leste.
Parecia que há pouco tempo as habitações estavam ocupadas por um só prisioneiro, um homem distinto. Na primeira havia uma cama bastante boa, uma bacia e uma torneira conectada a uma cisterna; a segunda a havia usado como refeitório; a terceira havia sido seu estudio ou sala de música, pois ainda em um canto havia alguns livros rotos e uma flauta desmontada, e no lugar situado junto à janela, onde, a julgar pelas manchas de gordura que ele deixara e, sem dúvida, várias gerações de prisioneiros também, passara a maior parte do tempo. Essa era a única janela pela qual se via boa parte do exterior, pois as outras eram simplesmente estreitos vãos feitos na grossa e fria parede, e se estirassem o pescoço e passassem a cabeça por entre as barras, podiam ver o fosso, a muralha que estava do outro lado dele e, na sua esquerda, uma fila de sanitários salientes, cada um com abundante vegetação debaixo, cujo crescimento havia sido favorecido por seiscentos anos de fertilização.
Isso foi o que viram na primeira manhã, e depois de haver-se assomado, Stephen disse que aquela era a torre Courcy e que, provavelmente, aquele era o lado que dava para a rua Neuf Fiancées, o lado mais afastado da grande torre.
- Diga-me, por favor, a grande torre de que? - inquiriu Jagiello.
- Então, do Temple. O Temple, o lugar onde encarceraram o Rei e a maioria de sua família - respondeu Stephen.
- O Temple, o lugar onde mataram o pobre Wright - disse Jack em tom triste.
E com uma mistura de tristeza e raiva olhou para o carcereiro quando este entrou, acompanhado do ruído metálico de suas chaves, para preguntar-lhes se queriam sua ração ou preferiam encomendar o café da manhã fora. Na revista lhes haviam tirado objetos perigosos, como as navalhas, e haviam tirado de Stephen a assombrosa quantidade de dinheiro que escondia, mas os guardas não haviam encontrado o diminuto frasco que continha seu alívio imediato, nem podiam ter encontrado salvo se houvessem buscado entre seus órgãos vitais. Contudo, eles lhes deram um recibo pelo resto do dinheiro e haviam dito que poderiam utilizar essa soma para pagar a comida e as coisas que lhes fizessem sentir mais cômodos, desde que fossem permitidas, e comunicaram que estavam proibidos o vinho e qualquer outra publicação que não fosse o Moniteur. O carcereiro, um homem de meia idade, com semblante triste e uma enorme barriga pingente, disse que poderiam comer a ração que a prisão dava ou encomendar a comida fora, e que se o preferiam assim, ele, Rousseau, estava a seu serviço por uma modesta, muito modesta gratificação, e se deu umas palmadinhas na barriga. Era um homem muito desajeitado, mas sabia exatamente quanto dinheiro haviam tirado dos prisioneiros e que poderia obter muito ganho ali, e seu comportamento era o mais cortês possível. Além disso, em seu largo rosto não havia sinais de ódio, apesar de ser óbvio que estava abatido.
- Tomarei a ração - disse Jagiello, que não tinha dinheiro.
- Bobeira! - exclamou Stephen e se voltou para Rousseau e disse: - Encomendaremos a comida fora. Mas antes disso, tenho que pedir-lhe que diga ao cirurgião que este cavalheiro necessita de atenção médica urgentemente.
Rousseau voltou lentamente a cabeça para Jack, que tinha uma palidez cadavérica, e o contemplou alguns momentos.
- Não temos cirurgião, senhor. O último se foi faz três semanas. E pensar que em outro tempo tinhamos sete e inclusive nosso própio boticário! Que lástima!
- Então apresente minhas saldações ao alcaide e diga-lhe que lhe agradeceria que me recebesse o assim que for possível.
O alcaide o recebeu mais cedo do que Stephen pensava. Rousseau regressou em poucos minutos e conduziu Stephen, custodiado por dois guardas, pelos numerosos vãos da escada. O carcereiro ainda estava abatido, mas se deteve em um canto e lhe assinalou um espaço que havia na parede, um espaço muito grande que parecia uma prateleira invertida.
- Aí era onde apoiávamos os ataúdes para fazer este difícil giro - disse. - Tenha cuidado com o degrau, senhor. E pensar que em outro tempo tinhamos um carpinteiro que fazia os ataúdes, e, pela vontade de Deus, estava sempre atarefado!
O alcaide o tratou com frieza e seriedade, mas não foi descortês nem se mostrou autoritário, e depois de um tempo, para Stephen parecia que ele tinha espírito conciliador e uma grande ansiedade, uma ansiedade que havia notado em outras pessoas na França, talvez porque, apesar de que não se davam conta disso, já não estavam seguros de encontrar-se no lado vencedor. O alcaide disse que lamentava que não tivessem um cirurgião oficial e autorizou que se chamasse algum de fora.
- Porém, posto que o senhor é médico, cavalheiro - disse, - se tem a bondade de prescrever algum medicamento, mandarei buscá-lo imediatamente.
Isso não permitiria a Stephen alcançar seu objetivo.
- O senhor é muito amável, senhor - disse, - porém, neste caso, preferiria ouvir outra opinião. Dadas as circunstâncias, não quero assumir eu sozinho a responsabilidade do que suceda. O capitão Aubrey é um homem muito influente na Inglaterra e seu pai é um membro do Parlamento inglês, por isso, não queria ser o único responsável em caso de que lhe ocorresse uma desgraça. Havia pensado em chamar o doutor Larrey...
- O cirurgião do imperador? - inquiriu o alcaide com os olhos descomedidamente abertos. - O senhor fala em sério?
- Estudamos juntos, senhor, e, além disso, esteve presente na conferência que dei no Instituto no início do ano - disse Stephen com a simplicidade de quem diz a verdade e observou que havia atingido o alvo. - Porém, como li no Moniteur que vai passar o resto da semana em Metz, pelo momento podemos solicitar os serviços de um médico local.
- No final da rua vive um tal doutor Fabre - disse o alcaide. - Mandarei chamá-lo.
O doutor Fabre era muito jovem e acabava de instalar-se. Era tímido e estava desejoso de agradar. Acudiu imediatamente, e por alguma razão, talvez por tencionar dar prestígio à prisão, o alcaide decidiu surpreender ao jovem falando-lhe das excelências de Stephen. Enquanto subiam, Fabre disse que não havia assistido à conferência do doutor Maturin no Instituto, mas que havia lido um artigo sobre ela, e confessou que estava assombrado da quantidade de distintos médicos e cientistas que haviam assistido, entre eles, seus antigos professores, os doutores Larrey, Dupuytren... E ao chegar à porta murmurou que Stephen tinha a honra de conhecer a monsieur Gay-Lussac.
Examinou ao paciente e esteve de acordo com o diagnóstico do doutor Maturin e com os remédios que havia proposto. Se foi imediatamente, preparou os remédios ele mesmo e regressou pouco depois com vários frascos, pílulas e cápsulas. Esteve falando com Stephen um tempo antes de ir embora, sobretudo dos representantes do mundo da medicina e das ciências naturais em Paris. Stephen alardeou de uma forma repugnante dos estúdos que havia publicado e nomeou os grandes homens que conhecia e, no de despedir-se, disse:
- Se ver a algum de meus amigos, querido colega, faça-me o favor de dar-lhes lembranças de minha parte.
- Se os darei, se os darei - disse o jovem. - Vejo a Dupuytren todos as terças-feiras no Hotel Dieu e, às vezes, de longe, também ao doutor Larrey.
- Por acaso o senhor conhece o doutor Baudelocque, o accoucheur?
- Sim, conheço. O irmão de minha esposa está casado com a sobrinha de sua irmã, assim que quase somos parentes.
- Ah! Da última vez que estive em Paris o consultei sobre o caso de uma paciente, uma dama norte-americana, e a deixei em suas mãos. Pode ser que a posição do feto não seja a adequada, devido a que ela fez um longa viagem pelo mar. Recordo que ele estava um pouco preocupado. Se por acaso se encontrar com ele, tenha a bondade de preguntar-lhe como está a dama. Era um caso interessante... E quando vier na sexta-feira para ver seu paciente afetado de disenteria, traga-me meia dúzia das melhores ampolas que Michel vende.
- Alegro-me de ter feito isto - disse Stephen enquanto ouvia seus passos afastandose pelo corredor. - Foi desagradável, e estranho que esse jovem honesto não tenha sentido repugnância. Porém, pelo menos, agora há muito menos probabilidade de que se desfaçam de nós silenciosamente. Não há havido nunca um grupo tão inter-relacionado, tão comunicativo, tão parecido com um clã como o que é formado pelos médicos de Paris, e quando se informarem de que estamos aqui... Agora tome esta cápsula, meu amigo, e amanhã se sentirá melhor. Acho que inclusive poderá tomar um pouco de café, do café que temos que encomendar agora.
Rousseau regressou depois de acompanhar ao doutor Fabre, e Stephen lhe disse:
- Encomendaremos a comida fora, mas onde? Este cavalheiro - assinalou para o capitão Aubrey - deve comer um ovo fresco, água de arroz recém fervida e papa recém feita. Já eu gosto de tomar o café quente.
- Não há problema - disse o carcereiro. - Há um pequeno estabelecimento a menos de cem jardas daqui onde se fazem refeiçãos todas as horas e se vendem muitos tipos de vinhos. A dona é madame veuve Lehideux.
- Então, encomendaremos o café da manhã à viúva. Para os cavalheiros, leite fresco e pão, e para mim, café e croissants. Que o café seja muito forte, por favor.
Mas Rosseau, em vez de prestar-lhe atenção, expressou a única idéia que tinha agora na cabeça.
- Alguns clientes gostam de encomendar a comida a Voisin, a Ruhl e a lugares como esses, porque alguns clientes gostam de esbanjar dinheiro. Eu não gosto de impor meu critério aos clientes; ninguém pode dizer que Rosseau impôs seu critério aos clientes. Além disso, os gostos são diferentes. O último cavalheiro que esteve aqui, e era um cavalheiro de uma posição social muito alta, também encomendava a refeição ao Ruhl, apesar do que eu disse, e o que se passou? Morreu de pneumonia nesta mesma cama - dava palmadas na colcha. - Morreu na mesma tarde que os senhores chegaram. Aposto que o senhor ainda a nota quente, senhor. E agora que me recordo, havia prometido que traria uma prancha para a latrina, e perdoem a palavra. A que havia caiu porque ele era desajeitado, e ficou pior por causa do reumatismo e no final estava quase dobrado pela metade. Que descanse em paz.
- Então encomendaremos a refeição a madame Lehideux - disse Stephen.
Rousseau continuou falando o mesmo.
- Não digo que a comida que prepara é como a do Imperador, não vou lhes enganar, cavalheiros, mas sua cozinha é a autêntica cozinha caseira. Que ensopado de coelho! - exclamou e beijou o dedo polegar. - Que excelente galinha cozida! E o melhor de tudo é que se comerão os ensopados quentes. Sempre digo: a refeição tem que ser comida quente. É um estabelecimento muito pequeno, mas está muito perto, a um passo, na rua Neuf Fiancées, assim que a comida chega aqui quente, já sabem.
- Então encomendaremos o desjejum a madame Lehideux - disse Stephen. - Leite, pão, café e croissants. E, por favor, insista em que o café esteja muito forte.
Chegou o café, e era forte, forte e aromático, e estava quente. Os croissants estavam untuosos, mas não demais. Foi um café da manhã extraordinário, e lhes pareceu ainda melhor porque o haviam tomado tarde. Em verdade, era o melhor de todos os cafés da manhã que Stephen tomara nas prisões. Agora se sentia mais forte, capaz de fazer frente a qualquer imprevisto: a delação feita por um espião capturado ou por um espião duplo, um duro interrogatório...
Estava preparado, fazia tempo que estava preparado, para muitas contingências, mas não para o abandono. Ficou assombrado, foi pego de surpresa, fez com que se sentisse como um imbecil e, ao mesmo tempo, produziu-lhe muito mais medo. Os dias passavam e não viam a ninguém mais que a Rousseau, que lhes trazia a comida ou lhes olhava fraudulentamente pelo olho mágico, e uma vez por semana ao barbeiro, um surdo-mudo. E depois de transcorrido um curto tempo, sua vida se tornou tão monótona que parecia que estava há meses ali. O único que interrompeu aquela monotonia foi a visita do doutor Fabre na sexta-feira pela manhã. Examinou ao capitão Aubrey, comprovou sua melhora e escutou atentamente tudo o referente ao efeito das poções, das pílulas e das cápsulas; contudo, estava preocupado, um pouco distraído e constrangido pela tristeza, porque havia recebido a ordem de reunir-se com o Regimento 107, um regimento fronteriço que se encontrava numa desolada estepe do norte da Europa, numa cidade cujo nome nem sequer sabia pronunciar. Disse que, se pelo menos pudesse obter a dispensa, o que era improvável, sua recém começada carreira profissional ficaria truncada, e que fora visitar todos os homens influentes que conhecia, mesmo que remotamente, com a esperança de encontrar palavras de alento. Acrescentou que havia visto o doutor Larrey e que agradecia ao doutor Maturin por poder usar seu nome como introdução de sua própia petição, e assegurou que seu nome lhe fora realmente útil ao fazer essas visitas e que todos lhe recordavam: o doutor Dupuytren, o doutor Baudelocque... Além disso, disse que todos estavam muito preocupados pelo encarceramento do doutor Maturin e convencidos de que se tratava de um erro administrativo que já seria emendado, e acrescentou que iam apresentar suas queixas ante as autoridades competentes e que se ofereceram para ajudar-lhe se tivesse dificuldades, quais quer que fossem estas. O doutor Fabre também comunicou ao doutor Maturin a informação que o doutor Baudelocque lhe deu sobre a paciente norte-americana: suas suspeitas se haviam confirmado e não estava seguro de que o feto fosse capaz de viver. Conforme o doutor Baudelocque, uma das causas podia ser um forte e prolongado enjôo, porém, à margem disto, não estava seguro de que a gravidez da dama pudesse chegar ao seu término.
- É melhor assim - disse Stephen. - Na verdade, há muitas crianças.
- Sim, claro, senhor... - disse Fabre, que já tinha cinco e ia ter outro dentro de poucas semanas.
- Sem dúvida, nenhum homem que pense dará deliberadamente vida a outro ser neste mundo superpovoado e sempre em guerra.
- Talvez nem todas as crianças sejam geradas deliberadamente, senhor - sugeriu Fabre.
- Não - disse Stephen. - E se os homens pensassem no que fazem, se olhassem ao seu redor e refletissem sobre o valor da vida em um mundo onde abundam as prisões, os bordéis, os manicômios, e os grupos de homens armados e adestrados para matar outros homens, duvido que víssemos muitas dessas larvas choronas que não são outra coisa além de vítimas e que causam amiúde a miséria de seus pais e põem em perigo o futuro de sua espécie.
Os olhos do jovem se encheram de lágrimas, mas imediatamente se serenou. Então meteu a mão no bolso e disse:
- Aqui tem as ampolas que me pediu.
- Obrigado, querido colega - disse Stephen, pegando com cuidado a caixa de madeira que continha as ampolas, que eram para seu uso particular e um meio seguro para escapar em caso de necessidade. - Muito obrigado.
- De nada - disse Fabre.
Depois se despediu e disse que duvidava que voltasse a ter a satisfação de ver o doutor Maturin e a seus companheiros.
Não voltaram a ver-lhe. As semanas passaram, e eram tão tranqüilas e monótonas que quase chegaram a parecer inúteis aquelas ampolas.
Os longos e monótonos dias eram marcados pelos gritos dos homens que trabalhavam na demolição do antigo edifício, que não podiam ser vistos dali, e o distante ruído das pedras e tijolos que caíam e as apitadas dos capatazes. Nas noites, que eram muito tranqüilas, os únicos sons que se ouviam eram o burburinho da cidade, semelhante ao do mar distante, e as badaladas da igreja de Saint-Théodule dando a hora. Não se ouviam pisadas acima de suas cabeças nem se ouvia nenhum ruído dos lados. Às vezes tinham a impressão de que estavam sozinhos na imensa torre e às vezes, por estar isolados, viver em um espaço tão reduzido e estar em estreito contato uns com os outros, parecia-lhes estar na mar. Mas a qualidade da comida não era como a da comida dos barcos, nem um pouco.
Desde a primeira xícara de café, a viúva Lehideux lhes proporcionou uma grande satisfação. Logo suas refeiçãos chegaram a formar parte da rotina diária e se converteram em sua principal diversão. Ela estava desejosa de fazer as coisas o melhor possível e mandava notas muito bem escritas, ainda que com erros de ortografia, sugerindo pratos de acordo com o que oferecia o mercado. Stephen respondia suas notas fazendo comentários sobre a última refeição e recomendações para a próxima e inclusive dando receitas.
- Esta mulher tem uma maneira especial de cozinar, ainda que não lhe confiaria a caça - disse Stephen, enquanto brincava com a musse de chocolate. - Porém, em comparação com a generalidade das cozinhas, é extraordinária. Deve de ser uma mulher sagaz e, sem dúvida, tem uma grande experiência em oferecer um serviço excelente, como o que havia antes da Revolução. Talvez fosse uma cortesã. Uma amável cortesã pode converter-se na melhor das cozinheiras.
Ainda que estivessem encarcerados e muito chateados, sua vida diária podia haver sido mais desagradável. Logo começaram a se ajustarem a uma ordem, e ainda que Jack não chegou a organizar turnos de guarda, convenceu seus companheiros de que conseguiriam que aquele lugar tivesse a característica limpeza naval tão só utilizando os meios mais simples e varrendo três vezes ao dia. Mas seus alunos eram lerdos, preguiçosos, faziam as coisas de má vontade e às vezes se enfadavam. O que mais lhes molestava era pendurar as mantas e os colchões de palha de palha na janela do quarto de Jagiello e empilhar os escassos móveis formando uma pirâmide para lavar o solo antes do desjejum; contudo, a força moral de Jack, seu convencimento de que aquela era a única forma correta de limpar, venceu-lhes, e, pelo menos, os quartos deixaram de cheirar mal.
A mudança foi tão notável que o rato doméstico do prisioneiro anterior não gostou e se ausentou por três dias. Vivia atrás da porta fechada com trinco que havia no quarto de Jack e havia saído de sua toca quando haviam tomado o primeiro café da manhã. Havia vacilado ao ver que seu amigo já não estava e que havia estranhos sentados na conhecida mesa, mas havia aceitado um pedaço de croissant e um pouco de café que lhe haviam dado com uma colher. Se sentava junto deles enquanto discutiam sobre o modo de eliminar a sujeira que havia ao redor, e tudo foi bem até que chegou a desafortunada e desenfreada limpeza do chão. Mas o rato regressou, e Stephen observou com assombro que era uma rata e que estava prenha. Então encomendou nata, porque a nata era boa para a gestação.
Não havia sido necessário que visse a rata nem que observasse seu estado para recordar-se de Diana, pois pensava nela a maior parte do tempo, mas isso trouxe à sua mente muitos pensamentos e recordou com que graça e que agilidade Diana cavalgava pela campina inglesa em outro tempo e viu claramente sua imagem na Índia, no Instituto e nas ruas de Paris. Pensou que Diana teria muita nata que comer e se perguntou se também teria um amante ou se teria vários, o que lhe parecia provável, pois, desde que a conhecia, houver muito poucos períodos nos quais não tivera nenhum; contudo, notou com estranheza que era resistente a seguir pensando nisso. Preferia vê-la como a solitária caçadora que conhecera tempos atrás.
A ordem e a limpeza eram as primeiras coisas nas quais Jack pensava em cada dia, mas não eram as únicas nas quais pensava. Quando ainda não havia chegado o desjejum nem o solo havia secado completamente, já estava buscando ao seu redor um meio de escapar, ainda que Stephen insistia em que voltasse para a cama que seus companheiros lhe haviam dado porque estava enfermo.
Não havia muitas expectativas, pois a descida até o fosso tinha que fazer-se em vertical, e a muralha que estava em frente parecia impossível de franquear e, conforme Stephen, que havia visitado o Temple em sua juventude, havia dois passadiços que interceptavam o fosso de ambos os lados da torre onde eles se encontravam. Jack descobriu que outros haviam tentado antes que ele. Uma mão paciente havia escavado a base dos barrotes da janela na habitação ocupada por Jagiello e havia feito profundos mas inúteis buracos; outra havia serrado um dos vinte e quatro barrotes de ferro e dissimulado o corte com gordura; e havia muitos outros sinais da ânsia de liberdade de seus predecessores, que qualquer pessoa que procurasse com mais interesse que os carcereiros poderia ver. Porém, em seu opinião, a maioria deles haviam tentado de um modo inapropiado. Ainda que alguém tivesse as ferramentas, não poderia cortar os barrotes sem ser descoberto, porque estes podiam ser vistos através do olho mágico e, além disso, porque ninguém podia saber quando viria uma patrulha, já que Rousseau e seus companheiros sempre tinham postas sapatilhas de riscas e não eram ouvidos até que metiam a chave na fechadura. O sanitário era mais conveniente. Seu piso, que sobressaía bastante da parede, era formado por dois blocos de pedra separados pelo espaço necessário, com os extremos apoiados em dois suportes, e se consseguissem tirá-los, o caminho ficaria livre. Ainda que, afinal de contas, era um caminho para abaixo. Por desgraça, era feito conforme a típica forma de construção medieval, com esbanjamento de meios e sem ter em conta o peso, e os blocos estavam unidos à base por uma capa de enxofre fundido; apesar disso, existia uma remota possibilidade de movê-los, e a colgadura que cobria a entrada do sanitário impediria ver quem estivesse trabalhando dentro e lhe permitiria permanecer ali todo o tempo do mundo. Apesae disso, iam ter muitas dificuldades, e, além disso, o sanitário estava asqueroso. Antes de pôr em prática esta idéia, Jack pensou na possibilidade de usar a porta que havia na parede, a porta pela qual somente a rata entrava. Uma alavanca podia fazer maravilhas em uma porta, inclusive em uma porta tão grossa e tão reforçada com braçadeiras como aquela, mas antes de fazer maravilhas, era conveniente saber onde dava. Stephen achava que dava em uma escada de caracol próxima à grossa parede, porque os templários gostavam muito das escadas de caracol. Contudo, também poderia dar para outros quartos como os suas, portanto, só lhes permitiria mudar de uma jaula para outra.
Rousseau não lhes havia dado informação sobre a porta. Somente havia dito: "Está fechada... Não está aberta... É muito velha; hoje em dia já não fazem portas assim". Talvez o havia feito por prudência, ainda que era mais provável que houvesse agido assim por falta de inteligência que por cautela ou maldade; contudo, eles não o pressionaram. Era mais comunicativo quando falava de outros temas, sobretudo da decadência do Temple. Ele lhes disse que era a melhor prisão da França, dissesse o que dissesse a Conciergerie... E que clientes havia tido...! A família real completa em uma ocasião, por não mencionar os bispos e os arcebispos e os generais e os oficiais estrangeiros... Eram clientes seletos... Nunca se queixaram, ainda que alguns tenham ficado ali durante anos... Sempre de acordo com tudo... Muitos dos apartamentos, porque não se assemelhavam a celas, tinham latrinas e água corrente... E tudo isso estava em ruínas... Agora só tinha uma vintena de clientes, por essa razão podia pôr-se a conversar com tão amáveis cavalheiros... Nos bons tempos, quando havia cinco ou seis homens num quarto, ele e seus companheiros estavam trastornados e apenas tinham tempo de dar o bom dia, ainda que então ganhavam o dobro do soldo designado graças aos encargos de refeição e agora ganhavam uma autêntica miséria... A fortaleza estava em ruínas... Tudo estava de pernas para cima... O alcaide anterior havia faltado mais de um mês e logo renunciara... O novo alcaide estava a ponto de ficar louco e era provável que fosse substituído...
O que lhes contou sobre a demolição era confuso e, obviamente, falso, e provavelmente o disse influenciado por seu desejo de que deixassem em pé uma pequena parte; contudo, parecia que iam demolir tudo exceto a grande torre e talvez um torreão. Já haviam derrubado boa parte da fortaleza.
- Como é possível que alguém creia que uma pessoa pode manter em ordem uma prisão nestas circunstâncias, com trabalhadores indo de um lado para outro e desobedecendo as regras? - inquiriu. - Isto parece um prostíbulo.
Depois de pensar detalhadamente, Jack achava que a porta era menos útil que o sanitário, onde agora se viam as andorinhas volteando.
- Quando tirarmos esses blocos de pedra, farei uma corda com os lençóis e descerei para reconhecer o fosso - disse Jack.
Portanto, dedicou todos os seus esforços para mover os blocos, mas já não podia fazer esforços tão grandes como antes. Os caranguejos de rio, isto é, os efeitos dos caranguejos de rio ainda perduravam, apesar de sua rigorosa dieta e dos remédios que Stephen lhe havia fornecido. Faltavam-lhe as forças e, às vezes, também os ânimos. Stephen insistia em que se afastasse daquela atmosfera nociva.
- Meu amigo - disse Stephen, - eu lhe asseguro que se continuar inalando as mefíticas emanações da porcaria mal decomposta acumulada ao longo de seiscentos anos, escapará em um ataúde, não com uma corda feita com lençóis amarradas. Deixe que Jagiello e eu nos revezemos contigo para escavar. Cada um trabalhará durante um determinado período de tempo por dia.
- Muito bem - disse Jack com um tímido sorriso.
Era justo deixar-lhes escavar, mas sabia como terminaria tudo. Pensava que Stephen não tinha habilidade para os trabalhos manuais e achava quase o mesmo de Jagiello. Todos os homens de terra adentro eram uns inúteis.
Além disso, Stephen era um sonhador e se saía melhor fazendo hipóteses do que destruindo o Temple, e para completar, a única lima que tinham caiu por entre os blocos e foi parar no fosso. E Jagiello, por sua falta de constância, não avançava muito. Em muitas ocasiões, depois de haver-lhe mandado tirar a porcaria ou a argamasa de uma determinada parte da pedra, descobriam no final de seu turno que havia gastado suas forças trabalhando em outras partes do sanitário, examinando novas fendas ou tirando velhas capas de excrementos de pássaros em lugares que não eram importantes, e uma vez inclusive escreveu Amor vincit omnia no teto. Passava quase todo seu turno cantando alegremente, e a possibilidade de escapar era tão remota que não lhe parecia que aquele trabalho fosse urgente. Faltava-lhe o fogo sagrado que Jack tinha em seu interior e que lhe havia permitido destruir em menos de cinco dias um dos sete longos tijolos que fixavam o extremo esquerdo do bloco interior da base, usando uma faca da pobre madame Lehideux, que se havia transformado em uma pua de aço. Quando terminava seu turno, pensando sempre que havia cumprido seu dever, voltava a sentar-se no lugar que ficava junto da janela e cantava, modulando sua doce voz de tenor, ou tocava a flauta que Jack havia ensamblado. Nunca lhe ocorreu perder horas de sono para escavar os grossos tijolos e pedras, e nem ele nem Stephen nunca ouviram Jack realizando durante a noite a tarefa que se havia imposto, nunca o viram escavando como um rato gigante que, na escuridão, com paciência e determinação, tratasse de sair de sua jaula.
Como Jack previra, seu turno era cada vez mais longo, e ainda que Stephen e Jagiello protestassem porque trabalhava muito, muito mais do que o devido, tiveram que confessar que, comparados com ele, eram ineficientes. E um dia em que lhes parecia que os trabalhadores - que eles ainda não podiam ver mas podiam ouvir claramente do outro lado da muralha que rodeava o fosso - tinham mais trabalho do que o habitual, quando Jack se encontrava no sanitário, Jagiello estava sentado na janela, de cujos barrotes penduravam as camisas recém lavadas, que ondeavam ao vento, e Stephen estava no quarto do meio, abstraído em suas meditações, a parte superior da muralha caíu com um ensurdecedor estrondo. Quando a nuvem de poeira se dissipou, puderam ver os sótãos e os tetos das casas da rua Neuf Fiancées. Todas as janelas que se viam tinham os postigos fechados, exceto uma, a mais próxima, desde a qual uma jovem olhava a comprida fileira de pedras caídas.
- Olá! - gritou Jagiello, agitando a flauta no ar e sorrindo porque ela era a primeira pessoa diferente que via em várias semanas.
Ela o olhou, sorriu, cumprimentou-lhe com a mão e se foi; contudo, puderam ver que voltou a olhar-lhe de dentro. Depois de um tempo, saiu de novo e escrutinou o céu, um céu limpo e luminoso, e botou a mão pela janela para comprovar se chovia. Jagiello também botou a mão e ela sorriu. Durante um tempo se contemplaram com satisfação e depois fizeram sinais e assinalaram a muralha derrubada e puseram a mão ao redor da orelha para indicar que havia feito muito ruído ao cair.
Stephen os olhava atentamente desde um lugar discreto, a certa distância da janela do meio.
- Fique aí! - gritou quando Jack saía de costas do sanitário. - Não se aproxime do quarto de Jagiello. Pode olhar desta janela. Olhe ali: uma figura feminina. Acho que estamos ante uma clássica história, a do preso e a donzela, um tema conhecido. Mas se aparecer, tudo se estragará.
- Que quer dizer com "tudo se estragará"?
- Meu amigo - disse Stephen, pondo a mão sobre o braço de Jack, - eu não sou um charmoso galã, e você, perdoe-me que lhe diga, também não é.
- Não, acho que não - disse Jack.
Então olhou pela janela, passando a mão pela barba de seis dias, amarela e espessa. A barba de Stephen era negra e rala. Jagiello era o único que não tinha barba; parecia que o barbeiro o havia barbeado naquela manhã. A dama voltara a aparecer e, sem dar-se conta de que a olhavam, regava as plantas dos vasos e assobiava muito baixo para uma pomba presa em uma jaula de vime.
- Que bonita criatura! - exclamou. - Meu Deus, que bonita criatura! - repetiu e, com voz forte, com o mesmo tom de voz que usava no castelo de popa, disse: - Senhor Jagiello, toque uma melodia melancólica e cante: Os muros de pedra não fazem uma prisão. O senhor me ouviu?
Jagiello ainda cantava quando chegou a refeição. A jovem estava regando as plantas outra vez.
- Ocorreu o pior! - exclamou Rousseau. - Como eu temia: começaram a derrubar a muralha. Onde estaremos dentro de um mês? A melhor prisão da França terá sido derrubada. Seguro que lhes mandarão para a Conciergerie, cavalheiros. Que pena! Ali não há água corrente; não há latrinas, e perdoem a palavra, só urinóis, que são indignos. E não sei o que ocorrerá comigo. Rousseau será afastado e seus longos anos de serviço serão esquecidos.
Pôs a cesta sobre a mesa e, olhando pela janela, acrescentou:
- É uma imoralidade; isso é o que eu chamo uma imoralidade. E é ilógico... ilógico, essa é a palavra. Mas pelo menos agora podem ver a madame Lehideux. Está aí, regando as plantas.
- Espero que sejam aquáticas ou, pelo menos, que possam viver nos pântanos - disse Stephen enquanto olhava a nota que encontrou dentro de seu guardanapo. - Nenhuma outra poderia sobreviver com essa frequência de irrigação. - Então, leu em voz alta: - "Se os cavalheiros têm que lavar, remendar ou passar alguma roupa, B. Lehideux ficaria encantada de servir-lhes".
- Nós mesmos podemos fazê-lo - disse Jagiello, - O capitão Aubrey teve a amabilidade de remendar meu colete ontem, e quase não se nota onde estava roto. Além disso, ensinou-me a pregar botões e a cerzir meias.
- Bobeiras! - exclamou Stephen. - Estes lençóis só foram lavados com água fria. Além disso, eu gosto das camisas passadas e com o odor de lavanda. E os calções de seu uniforme, os da cinta de cor cereja, são indignos de um homem como o senhor, senhor Jagiello, necessitam de ferro. Monsieur Rosseau, por favor, entregue estas camisas, estes calções e esta jaqueta para a madame Lehideux e transmita-lhe nossos cumprimentos. Diga-lhe que é um grande alívio poder desembaraçar-nos de tudo isto, sobretudo das camisas. As camisas pendurando dos barrotes e ondeando ao vento são um desagradável espetáculo, e, além disso, não quero fazer-me passar por uma costureira nem por uma lavadeira. Diga-lhe que todos, especialmente este cavalheiro, agradecemos muito sua amabilidade.
As camisas não voltaram a ser penduradas nos barrotes da janela nem a ondear ao vento. Jagiello passava todo o dia na janela, cantando ou tocando a flauta. Eles o dispensaram da obrigação de varrer, lavar o piso e limpar a mesa e as cadeiras; dispensaram-no de todas as suas obrigações; exigiram que se mostrasse amável. Jack e Stephen não se aproximavam da janela, mas, pelo que notavam, acreditavam que as coisas iam bem. Além de mandar-se cartas diariamente, cada vez mais volumosas, os jovens se comunicavam mediante um alfabeto feito com as mãos ou mediante sinais ou cantando a mesma canção. Sua conversa requeria esforço e os mantinha ocupados durante a maioria das horas diurnas, e nenhum podia entender como a pobre jovem tinha tempo para cozinhar e arrumar-lhes tão bem a roupa.
Os dias tranqüilos e ordenados seguiram passando. A rata teve uma prole de bom tamanho. Stephen leu no Moniteur um artigo que desmentia o rumor que os Aliados, considerados desesperados, haviam feito circular sobre o esfriamento das relações entre a França e a Saxônia. Dizia que, pelo contrário, a amizade entre Sua Majestade o Imperador e o rei saxão era mais estreita do que nunca e que não havia sinais de desafeição entre as corajosas tropas alemãs. Acrescentava que o Imperador, encurtando suas vias de comunicação criteriosamente, ficava cada vez mais forte. O pó dos tijolos e das rochas fluía constantemente do sanitário, e eles escondiam em seus leitos alguns pedaços de tijolo. Ao seu redor o Temple caia aos pedaços.
Rousseau estava cada vez mais triste e silencioso. Corria o rumor de que não iam deixar em pé nem sequer as torres, e numa segunda-feira viram os trabalhadores passarem para o interior da muralha e deixar montes de rochas e inclusive escadas perto da parte que estava meio derrubada, e isso lhes fez sentir-se frustrados.
- Senhor Jagiello, se o senhor não abrir mais velas, jogarão abaixo toda a fortaleza antes de que possamos escapar. Faríamos o ridículo se nos transferíssem justamente quando estou terminando de descolar os blocos de pedra. Tenho que conseguir uma talhadeira, uma alavanca e uma corda. Trabalhando com as ferramentas apropiadas durante uma hora poderia adiantar mais do que raspando durante uma semana. Tenho que conseguir as ferramentas apropiadas. E tenho que consegui-las agora.
- Farei todo o possível, ainda que não acho que este seja o momento oportuno - disse Jagiello.
- Não importam as táticas, o que importa é atacar com decisão - disse Jack. - Este caso é urgente. Não há que perder nem um momento.
- Devo jogar tudo em uma cartada?
- Sim.
- O que tenho que pedir?
- Um talhadeira e cinco braças de corda de uma polegada de grossura.
Jagiello entrou devagar em seu quarto e se sentou junto à janela. Pouco depois eles o ouviram tocar.
Então Stephen recitou:
A flauta lamurienta
revela com suas notas lânguidas
as penas dos amantes sem esperança.
- Como pode dizer uma coisa assim? - inquiriu Jack. - Isso traz má sorte. Não sei por que disse sem esperança. Se a bonita criatura permite que desapareça seu faqueiro, por que vai negar-se a dar-nos uma talhadeira ou duas e algumas braças de corda? Não queria que dissesse coisas como essa, Stephen.
- Era uma citção - disse Stephen.
Citação ou não, depois de uma hora de silêncio, Jagiello regressou com o rosto pálido e uma expressão na qual se misturavam a tristeza e o desespero. Então negou com a cabeça e eles olharam para a muralha e viram que os postigos da janela estavam fechados.
- Não importa - disse Jack quando a janta chegou, uma janta que lhes pareceu insípida e menos abundante que de costume. - Não importa. Antes de que acabe a semana, poderei tirar o bloco mais próximo. Não dê muita importância, homem. Estou certo de que fez o que pôde.
- Não é isso senhor - disse Jagiello, afastando o prato e jogando a cabeça para trás, por cima do respaldo do assento, para ocultar uma lágrima. - É que eu gosto dela. E ela disse que não votaria a me ver.
Olharam ansiosos para a janela e observaram que já não penduravam dela os vasos nem a pomba. Pela mente de Jack passaram muitos pensamentos, entre eles a idéia de que talvez não voltaria a ver uma jaqueta que mandara lavar e teria que andar em mangas de camisa. Isso o deixou muito triste, porém, ao ver Jagiello tão triste, não disse nada. Tampouco disse nada sobre a possibilidade de que tivessem que dizer adeus a tão esplêndidas refeiçãos. Stephen se perguntava o que Jagiello dissera para arruinar uma situação tão favorável, porém, pela mesma razão, foi dormir sem saber qual era a resposta à sua pergunta.
Não se via luz pelas brechas dos postigos; não se abriram os postigos ao amanhecer e tampouco quando o Sol já brilhava no alto do céu. Aquele parecia o fim, pois, como todos sabiam, aquele era seu quarto (ela não fora sempre discreta), e o fato de que se encontrar vazia indicava que se mudara, o que acabava com suas dúvidas, com suas esperanças, com tudo exceto com uma mal fingida alegria.
Contudo, assombrosamente, o café da manhã chegou, e com ele a reluzente jaqueta de Jack. A cesta continha a especialidade lituana preferida de Jagiello: enguia defumada com fatias de queijo. Dentro da jaqueta havia alinhavada uma corda de seda muito forte e em cada bolso havia uma talhadeira. Jagiello se levantou da mesa com o rosto radiante de alegria, e todos viram que a janela do sótão se abria e que apareciam a jovem, os vasos e a gaiola. Ela pôs os vasos na parte onde dava o sol e, com uma expressivo olhar e um doce sorriso, pegou a pomba da gaiola, beijou-a e a lançou no ar.
CAPÍTULO 11
Essa não era a hora que Rousseau costumava vir, mas podiam ouvir suas chaves se chocarem umas com as outras. Dois soldados com botas grossas o acompanhavam, cujas pisadas retumbavam no corredor abobadado. Stephen fez o sinal combinado para Jack e este saiu do sanitário e sacudiu a poeira dos tijolos das mãos.
- Doutor Maturin, por favor - disse Rousseau e então prestou atenção nos sons que vinham da última habitação. - Como canta bem o jovem cavalheiro! Parece um canário.
- Cuidado com o degrau, senhor - disse quando chegaram à abertura onde se apoiavam os ataúdes.
- Esperem aqui um momento - disse o secretário do alcaide no final da escada.
Enquanto Stephen esperava, custodiado por seus guardiães, ouviu vozes que discutiam no escritório do alcaide. Por desgraça, os soldados e o carcereiro começaram a falar do tempo (se era bom, se era muito bom, se era o prelúdio de uma tormenta, que certamente era o prelúdio de uma tormenta...) porém, apesar de tudo, pôde informar-se de que o alcaide estava preocupado por algumas irregularidades e que seus interlocutores, mediante a exposição de argumentos, da persuasão e da intimidação, tentavam fazer com que deixasse de opor obstáculos. Por fim chegaram a um acordo.
- Tem que regressar antes que as portas sejam fechadas e os senhores, os dois, têm que assinar para que fique registrado que o levaram - disse o alcaide com voz débil e em tom ansioso e depois gritou: - Passem!
Não havia dois homens com o alcaide, mas três, todos militares. Um era um robusto coronel com cara avermelhada e expressão mal-humorada, provavelmente um valentão; outro era um indescritível capitão; e outro era um tenente moreno e de olhar inteligente com uniforme de artilheiro. Quando Stephen entrou, cumprimentou:
- Bom dia, cavalheiros.
O alcaide e o tenente responderam, o capitão moveu os lábios e o coronel se limitou a olhá-lo.
Um funcionário trouxe alguns papéis, depois o coronel e o capitão assinaram, e depois o tenente disse para Stephen: "Por aqui, por favor" e todos se dirigiram a uma carruagem que estava no pátio.
Os trabalhadores haviam feito muitos progressos desde a última vez que Stephen vira a entrada do Temple, e agora que já não estava ao lado da muralha que a protegia, não haveria reconhecido o Temple salvo por sua localização. Os passadiços que atravessavam o fosso já não tinham teto e a guarita da entrada se convertera em um monte de pedras, que eram retiradas dali por uma longa fila de carrinhos de mão. Depois de fazer alguns comentários que pareciam referir-se ao alcaide, como "Esse cara é um canalha", "Todos os civis são iguais, o que necessitam é de um chute no traseiro, como os selvagens", "Um pouco de fumaça dos canhões a cada três meses não lhes faria mal", o coronel e o capitão falaram de seus assuntos privados e, conforme um arraigado costume militar, falaram de seus companheiros desrespeitosamente. Era evidente que os dois eram aparentados: uma tal Hortênsia era esposa do primeiro deles e irmã do segundo. Contudo, ainda que a conversa houvesse sido muito mais interessante, Stephen não teria prestado atenção, pois estava absorto em seus pensamentos e no percurso.
Cruzaram o rio pela Pont au Change, pelo que parecia que seu destino era a nefasta Conciergerie, enquanto as potentes vozes seguiam falando de Hortênsia. Pouco depois dobraram em direção a Saint-Germain des Prés. "Iremos à rua Saint-Dominique, o que é pior ainda", pensou Stephen. Na altura da abadia, o coronel deteve o carro e ordenou ao seu subalterno que recolhesse um pacote em uma das pequenas lojas que estavam detrás, e quando o homem regressava, Stephen viu Diana. Ia em uma carruagem descoberta, falando animadamente com uma dama que ele não conhecia e que levava um vestido empetecado, e se inclinava para frente daquela forma graciosa que ele teria reconhecido a qualquer distância. Agora estavam separados por uma distância de apenas seis pés, e ele cobriu seu rosto com a mão e seguiu olhando-a por entre os dedos. A expressão de Diana era grave, porém, surpreendentemente, tinha muito boa aparência e as costas retas e estava magra. Stephen não reconheceu o escudo que estava na portinhola do carro nem as chamativas librés dos criados que iam detrás. O carro pasou o dos militares, mas o cocheiro deste iniciou a marcha nesse momento, colocando-se atrás dele, e Stephen o seguiu vendo durante dez minutos. De vez em quando olhava para a acompanhante de Diana, que estava sentada de costas para os cavalos, uma mulher de meia idade vestida da última moda, com bom aspecto mas com muitos adornos, que representava o típico estilo da corte napoleônica, um estilo muito diferente ao de Diana. A carruagem dobrou um pouco antes de chegar ao hotel de Mothe e entrou em uma enorme casa recém pintada que havia pertencido à princesa de Lamballe.
Foi então que notou que sentia uma profunda emoção, que seus joelhos tremiam e que sua respiração se interrompia quase no mesmo rítmo das batidas de seu coração. Se lhe falassem nesse momento, teria sido quase impossível responder com voz normal. Imediatamente logrou dominar-se e fazer desaparecer esses sinais externos, mas ainda não dominava sua mente quando o carro entrou numa galeria flanqueada por arcadas. Não sabia muito bem por onde dobrara, mas pensava que provavelmente aquele edifício e seus pátios davam para a rua Saint-Dominique.
Felizmente, fizeram com que esperasse por duas horas em uma sala vazia (um método tradicional de aumentar a ansiedade e a aflição), e quando voltou a dominar sua mente, a emoção desapareceu. Era óbvio que aquele lugar era um recinto militar, pois, além de haver soldados movendo-se de um lado para o outro do pátio, tinha a mesma sujeira que ele vira em todos os quartéis onde estivera. Ainda que era indubitável que os recrutas haviam branqueado os arredondados pedaços de escória que beiravam as veredas e o poste de madeira que estava junto ao muro cheio de buracos, nenhuma escova e nenhum trapo haviam passado pelas asquerosas paredes interiores, que tinham uma cor parecida ao chocolate. Além disso, Stephen pensou que nenhuma armada, nem sequer a francesa, haveria tolerado que os cristais estivessem sujos e que a sala tivesse um aspecto descuidado e um odor tão desagradável. Uma vez ouviu gritos, mas não sabia se eram uma reação real ou fingida. Não era estranho que esse tipo de coisas fosse o prelúdio de um interrogatório.
Depois notou o mesmo descuido e a mesma contradição na sala aonde o levaram. Alguns oficiais tinham um aspecto magnífico, mas estavam sentados em mesas desconjuntadas e sem pintar e tinham na frente pastas sujas e com as pontas dobradas. As mesas formavam os três lados de um quadrado, e ordenaram a Stephen que se sentasse num banco que formava o quarto lado. Aquela distribuição era muito parecida à adotada quando um conselho de guerra administrava justiça, e na que teria sido o lugar do presidente do conselho, estava o coronel que gostava tanto de dar chutes na bunda dos civis, que parecia descontente e chateado. Stephen estava convencido que era uma nulidade e que o utilizavam porque tinha um alto posto e, se os chefes dos Serviços Secretos do Exército eram tão astutos como seus colegas do Governo, porque poderia incitar a qualquer homem subordinado a um interrogatório a subestimar seus inimigos e, portanto, a atraiçoar a si mesmo. O homem que realmente tinha o comando era um capitão vestido com um uniforme cotidiano, um homem que só chamava a atenção por seus olhos afundados e seu olhar inexpressivo.
- Doutor Maturin - disse o capitão, - sabemos quem o senhor é e o que é. Mas antes de que falemos de seus colegas na França, temos que fazer-lhe algumas perguntas.
- Estou preparado para responder todas as perguntas desde que estejam dentro dos limites, dos estreitos limites, das que podem ser feitas a um oficial prisioneiro de guerra - disse Stephen.
- O senhor não era um prisioneiro de guerra nem tinha o posto de oficial da última vez que veio a Paris, mas, vamos deixar isso de lado pelo momento. Agora deve nos contar todos os movimentos que fez ultimamente. Comecemos pela época em que era cirurgião da Java, que foi capturada pela fragata norte-americana Constitution.
- O senhor está equivocado, senhor. Se consultar o Boletim Oficial da Armada, verá que o cirurgião da Java era um cavalheiro chamado Fox.
- Então, como o senhor explica que a descrição do cirurgião coincida exatamente com a sua? - inquiriu o capitão, pegando um papel de sua pasta e depois leu: - Mede cinco pés e seis polegadas, tem compleição débil, cabelo preto, olhos claros, pele azeitonada e mãos um pouco torcidas e lhe faltam três unhas na mão direita; fala perfeitamente o francês, com sotaque do sul.
Stephen imediatamente se deu conta de que a descrição fora enviada por um agente francês que se encontrava no porto brasileiro aonde a Constitution os levara e que vira seus documentos em cóigo. Evidentemente, ele o havia tomado pelo cirurgião da Java, mas essa confusão era compreensível, já que ele e Fox dormiam juntos e seus baús se misturaram quando os capturaram. O importante era que o documento que o capitão tinha não procedia de Boston, onde Stephen era muito conhecido. Era possível que, apesar do tempo que havia passado, em Paris não soubessem o que havia feito nos Estados Unidos, porque entre ambos a comunicação era irregular, graças ao esforço da Armada, e porque ele mesmo havia destruído as principais fontes de informação dos franceses ao matar Dubreuil e Pontet-Canet. Se a informação de sua rede de espionagem era tão confusa e tão atrasada como essa, tinha a esperança de poder enganá-los. Com a vista fixa no piso para evitar que notassem o brilho triunfal que pudesse aparecer em seus olhos, disse que não podia ser considerado responsável pela descrição que outro homem havia feito e que se negava a fazer comentários.
Enquanto passavam a descrição de um para o outro, um subalterno trouxe um pequeno folheto forrado de papel marrom do mesmo tamanho do Boletim Oficial da Armada. O capitão, depois de consultá-lo e sem mudar de expressão, disse:
- O senhor é um poliglota, doutor Maturin. Também fala o espanhol?
- Catalão - murmurou o homem que estava sentado ao seu lado.
- Fala as línguas da Espanha? - continuou o capitão, franzindo o cenho.
- Desculpe-me, capitão, mas me parece que esta pergunta não está dentro dos limites que mencionei.
- O fato de que se negar a responder é significativo. Acho que equivale a uma negação.
- Não nego nem afirmo.
- Então acredito que podemos considerar que fala o catalão com fluência.
- Pelo mesmo pensamento, o senhor poderia concluir que domino o basco ou o sânscrito.
- Passemos ao Báltico. O que pode nos dizer sobre a morte do general Mercier em Grimsholm?
Stephen respondeu que não tinha nada para dizer sobre a morte do general Mercier em Grimsholm. Admitiu que estivera no Báltico a bordo da Ariel, porém, quando lhe perguntaram o que fizera ali, respondeu:
- Na verdade, senhor, ninguém pode esperar que um oficial descubra os movimentos que realiza em tempo de guerra a Armada à qual tem a honra de pertenecer.
- Talvez não - disse o homem que estava na esquerda, - mas esperamos que nos conte por que o senhor estava ali. Seu nome não figura no rol da Ariel, e seu cirurgião era um tal senhor Graham.
- O senhor se equivoca. Meu nome está na lista suplementária, depois dos nomes dos infantes de marinha. Ia como passageiro, com direito a comida mas não a pagamento nem a tabaco.
- Como um maldito espião - murmurou o coronel.
Quando lhe perguntaram por que escolhera fazer uma viagem para o Báltico em vez de ir a outro lugar, respondeu que escolhera porque queria conhecer as aves do norte.
- E pode dizer-nos que aves viu? - inquiriu o capitão.
- As mais importantes foram: Pernis apivorum, Haliaetus albicilla, Somateria spectabilis e Somateria mollisima, à qual devemos ser agradecidos porque nos proporciona a plumagem.
- Ninguém zomba de mim! - gritou o coronel. - Aves... plumagem...! Deus santo! Este homem necessita de uma lição de respeito. Mandem chamar o capitão chefe.
- É verdade que ali se encontram essas aves, senhor - disse um tenente ruivo. - Acho que não pretendia faltar ao respeito.
- Um chute no traseiro... - murmurou o coronel aborrecido, movendo-se no assento.
- O senhor espera que acreditemos que viajou mil milhas para ver aves? - inquiriu outro oficial.
- Acreditem no que quiserem, cavalheiros - disse Stephen. - Essa é a forma de proceder característica do homem. Eu me limito a dizer a causa de um fato. Muitos sabem que sou um naturalista.
- Exatamente - disse o capitão. - E isso nos traz a Paris. Acho que agora entramos em um terreno mais seguro e esperamos que nos dê respostas satisfatórias, porque, neste caso, não está protegido pelas regras da guerra. Recomendo que não nos obrigue a forçá-lo. Sabemos muitas coisas e não toleraremos nenhum erro.
- Estava protegido por um salvo-conduto concedido por seu governo.
- Nenhum salvo-conduto protege a espionagem nem a conivência com outros para cometer traição. No hotel Beauvillier o senhor recebeu a visita de Delarue, Fauvet e Hersant, que lhe pediram que levasse mensagens para a Inglaterra.
- Isso mesmo - disse Stephen. - E poderia nomear muitas outras pessoas que fizeram o mesmo. Mas o senhor deve saber que me neguei a aceder às suas petições e que em nenhum momento abandonei a atitude de neutro que, como naturalista, devia adotar.
- Temo que isso não é exato - disse o capitão. - Tenho testemunhas que podem contradizer-lhe, mas antes de trazer-lhes, quero saber os nomes de seus colegas aqui. Vamos, doutor Maturin, o senhor é um homem razoável e deve saber a importância que tem para o Imperador conhecer suas fontes de informação e o que passou em Grimsholm. Não nos obrigue a levar as coisas ao extremo.
- O senhor me pergunta por algo que não existe. Insisto em que durante minha permanência em Paris nunca deixei de ter uma atitude neutra, como corresponde a um naturalista.
Não era provável que uma simples afirmação tivesse um grande efeito imediato, sobretudo naquela atmosfera de receio; contudo, sua afirmação, repetida sem variação e com certeza, se não os convenceu totalmente, terminou com sua incredulidade. Alguns oficiais fizeram objeções e citaram os nomes (alguns verdadeiros e outros falsos) de quem desejava se comunicar com a Inglaterra, e em suas perguntas e nas respostas de Stephen se repetia uma e outra vez a palavra "naturalista", como se fosse o refrão de uma chata canção.
- Que vão à merda os naturalistas! - gritou o coronel por fim. - Naturalista! Vamos, anda...! Quem há visto que ofereça meia Golconda para soltar a um naturalista, que é o que ele afirma ser? Cem mil luises...! Que merda! É claro que é um espião!
Houve uma pausa muito breve mas tensa na qua o coronel retificou o que havia dito trocando os luises por napoleões. Depois o capitão dirigiu um olhar feroz para Stephen e ordenou:
- Tragam o monsieur Fauvet.
Fauvet entrou. Se notava que estava envergonhado, apesar de sua fingida expressão confiante e arrogante. Estava acompanhado de um homem gordo com um traje apertado, um homem chamado Delaris, a quem Stephen havia visto em alguma ocasião, um homem que ocupava um dos principais postos na organização de Laurie, a qual dependia do Ministério do Interior e da Conciergerie. Nunca vira o doutor Maturin e agora o olhava com uma enorme curiosidade.
- Senhor Fauvet, por favor, repita sua declaração - disse o capitão.
Fauvet a repetiu. Afirmou que, em várias ocasiões, o doutor Maturin se havia oferecido para levar mensagens para a Inglaterra e que falara do Imperador desrespeitosamente e profetizara que seria derrotado logo. Disse que lhe aconselhara e a muitos outros a fazer as pazes com o Rei o quanto antes e que lhe pedira uma grande soma de dinheiro para levar as mensagens, e acrescentou que estava disposto a jurar tudo isso. Mas falava mecanicamente e em tom vacilante, pelo que era uma péssima testemunha.
- O que o senhor tem a dizer? - inquiriu o capitão.
- Absolutamente nada salvo que nunca vi uma representação tão deplorável - respondeu Stephen. - Surpreende-me que inclusive um civil possa cair tão baixo.
Delaris sussurrou algo ao ouvido do capitão.
- Não, não, não é possível - disse o capitão. - Terá que entrar em acordo com o Temple, se puder. Agora pertence a...
Stephen não pôde ouvir o nome de seu dono, mas notou que impressionou Delaris, que deu um assobio muito baixo. Seguiram conversando durante um tempo, em voz mais baixa ainda, ainda que se podia apreciar claramente a insistência de Delaris e a enérgica oposição do capitão.
- Isto é tudo por enquanto - disse o capitão em voz alta. - Doutor Maturin, pense no que lhe hei disse. Antes lhe contradisseram em um ponto importante e, no próximo interrogatório, outras testemunhas poderão contradizer-lhe também. Não tenha falsas ilusões, pois sabemos muito mais do que imagina. Quando voltarem a trazer-lhe, venha preparado para falar com muita mais sinceridade ou deverá ater-se às consequências, que, é meu dever dizê-lo, serão terríveis para o senhor e seus companheiros.
O tenente ruivo que havia afirmado que o pato de flojel existia em realidade levou Stephen de novo à lúgubre sala onde havia esperado. Ficou ali olhando o amplo pátio através da suja janela e, passado um tempo, disse:
- Assisti sua conferência, senhor, e quero que saiba que desfrutei muito escutando-lhe naquela tarde. Quer um charuto?
- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, pegando-o e aspirando a fumaça com avidez.
- Me penaliza muito ver um homem de sua categoria numa situação como esta - disse o tenente. - Peço que, pelo seu própio bem e pelo bem de seus companheiros, não persista em sua negativa.
Um grupo de soldados entrou no pátio marchando, pararam, deram meia volta para a direita e descansaram os mosquetes em no solo produzindo um só estalido. Por outra porta foi introduzido um homem vestido com camisa e calções que estava encurvado, tinha as mãos atadas às costas e coxeava, e depois foi amarrado ao poste alvo. Tinha o rosto intumescido, e, onde não tinha manchas roxas, a tez era de cor verde amarelada. Era outro homem que Stephen conhecia e que não lhe conhecia, um espião duplo que trabalhava para Arliss; era um mercenário, mas agora olhava o pelotão de fuzilamento fixamente, com uma expressão que demonstrava sua dignidade.
Ao receber a ordem, os soldados dispararam seus mosquetes. O rosto se transformou em uma horrível massa vermelha e o corpo deu violentas sacudidas por causa do impacto e depois se afrouxou, mas seguiu atado ao poste. Um jovem soldado com o rosto pálido e expressão de horror se voltou para a janela onde estava Stephen para não ver-lhe e então deixou cair o mosquete e vomitou.
-... se persiste em sua negativa - dizia o tenente, que, sem dúvida, estava acostumado a cenários como esse - será fuzilado. Se o senhor fizer algumas concessões, será mandado para Verdún e terá como pena um confinamento bastante agradável, nada mais.
- O que diz é muito grave - disse Stephen, - e creia-me que aprecio muito que haja tido a amabilidade de advertir-me disso, mas seu argumento está baseado em uma premissa falsa. Não tenho concessões a fazer nem segredos a revelar.
Quando voltavam ao Temple, o tenente, sua única escolta agora, repetiu seu pedido de várias formas e Stephen repetiu sua resposta, porém, como sabia que aquele era um método de manipulação utilizado com frequência, dava respostas mais curtas cada vez, até que por fim, com alívio, separou-se de seu acompanhante.
- Como se foi? - inquiriu Jack ansioso.
- Não era mais que um interrogatório normal para examinar-me - respondeu Stephen, sentando e sorrindo. - Ainda não têm provas e oxalá que sigam assim por muito tempo. Amém, amém, amém.
- Amém - disse Jack, escrutinando seu rosto para ver se encontrava sinais de maus tratos, mas só notou seu desejo de não dizer nada mais.
- Guardamos sua janta e lhe deixamos todo o vinho - disse Jagiello.
- O senhor é uma jóia, Jagiello - disse Stephen. - Acho que poderia comer um boi e beber toda a água dos oceanos.
Comeu com voracidade e, antes de terminar, assinalou o sanitário com a cabeça e perguntou:
- Como vão as coisas?
- Quase não tinhamos ânimos para fazer nada enquanto estava fora - respondeu Jack. - Queria ter um forte aparelho para levantar o bloco exterior; não acho que o interno resista muito mais tempo. Como se diz cadernal em francês, Stephen? Com um par de cadernais e um apoio adequado, poderia levantar o Temple.
- Um cadernal? Só Deus sabe. Nem sequer sei o que é isso.
- Então terei que tentar desenhá-lo - disse Jack. - Sem um cadernal, esse bloco não se moverá.
- Tente, meu amigo - disse Stephen, - que eu vou dormir.
Necessitava dormir porque estava muito cansado, mas mais que sono necessitava de silêncio para que as idéias fluíssem por sua mente e formassem uma razoável seqüência. Parecia óbvio que seus adversários, ou alguém que estava atrás de seus adversários, guiavam-se pela intuição, pois a boa informação que tinham era fragmentária e não podiam conectá-la de forma coerente. Sabiam que a Ariel estivera no Báltico quando Grimsholm se rendera, que era o tipo de embarcação ideal para uma missão como essa e que Maturin estava a bordo dela, e como Maturin lhes parecia raro, pensavam que tinha que estar relacionado com o sucedido. Algum dos Serviços Secretos, provavelmente o de Delaris, tomando uma rotineira precaução, tentara comprometer-lhe durante sua visita a Paris, mas Stephen não acreditava que as palavras de Fauvet pudessem convencer a ninguém e sabia que nem Delaris nem o capitão seriam capazes de apresentar nenhuma testemunha mais convincente. Depois pensou no arrebatamento de ira do coronel. Até então as manobras dos militares foram comuns, e ainda que alguns fossem inteligentes, não pareciam terem induzido o coronel a dizer aquelas palavras. Aquelas palavras foram espontâneas, foram um grande erro, e o que implicavam lhe produzira terror. Golconda era sinônimo de grande fortuna. Quem poderia ter oferecido "meia Golconda" por sua liberação? Era possível que alguns de seus amigos, por exemplo, Larrey ou Dupuytren, ao informar-se de que ele havia sido aprisionado, houvessem intercedido ante algum ministro para que fosse liberado; contudo, Larrey era o homem mais virtuoso que conhecera e, apesar de seus longos anos de serviço e as inumeráveis oportunidades de corromper-se, era exageradamente pobre, e, por seu espírito caridoso, sempre o seria, enquanto que Dupuytren, no caso de que ter lhe ocorrido dar um passo tão atrevido como esse, não poderia dispor de cem mil luises apesar de que se estava enriquecendo. Não havia ninguém em Paris que pudesse fazer isso, ninguém salvo Arliss, seu colega dos Serviços Secretos, que controlava somas de dinheiro muito maiores; contudo, era inconcebível que Arliss fizesse algo assim, porque seria contrário às regras da espionagem e inclusive ao sentido comum, seria uma oferta perigosa pelo que a fazia e fatal para o beneficiário. Na história da espionagem, nenhum naturalista inocente fora considerado merecedor de algo mais que de um protesto, e nenhum espião, merecedor de algo mais do que de uma troca. Oferecer por ele a metade de Golconda, ou qualquer fração de Golconda, era reconhecer seu valor e sua culpa.
Ouvia Jack e Jagiello raspar as pedras com mais rapidez. Trabalhavam sem parar e com discrição, pois, apesar dos ruídos que os trabalhadores faziam, que já não estavam longe, não usavam os martelos durante o dia, e muito menos durante a noite. Viu passar duas vezes a luz da patrulhas por frente do olho mágico. Suas idéias iam e vinham como as ondas e perdiam mais claridade cada vez; Golconda e Gólgota se misturaram e se converteram em um mesmo lugar. Depois apareceram em sua mente o nome e a imagem de Diana. Apenas notou que Jagiello o cobria com outra colcha. Depois não se deu conta de nada mais até que lhe despertaram no dia seguinte.
- Vieram buscar-te outra vez - disse Jack.
- Permitam-lhe que tome uma xícara de café rapidamente - pediu Rousseau aos soldados que estavam do seu lado na porta.
Stephen bebeu o café, colocou a ampola na parte interior da bochecha, amarrou a gravata e disse que já estava pronto.
Havia adormecido vestido e tinha um aspecto descuidado. Mas não viu oficiais elegantes ao entrar no escritório do alcaide senão a uma solitária figura, Duhamel, que tinha um aspecto tão descuidado como o seu. Este lhe deu o bom dia com amabilidade e disse:
- Eu vim em parte por um assunto particular e em parte porque tenho que entregar-lhe uma mensagem.
Stephen estava assombrado de ver que seu tom refletia humanidade, mas se assombrou ainda mais quando, depois de alguns momentos de vacilação, ele falou de seu intestino. Disse que não voltara a estar como antes de passar por Alençon e que o efeito dos remédios que os médicos franceses lhe prescreveram não podia se comparar com o alívio que a poção vermelha do doutor Maturin lhe fizera sentir, pelo que lhe rogava que dissesse seu nome. Ao final de um prelúdio estritamente médico, Stephen lhe prescreveu o medicamento e Duhamel agradeceu, e imediatamente a atmosfera mudou por completo.
- Agora lhe falo em nome de meu chefe - disse Duhamel em voz baixa, aproximando Stephen do parapeito da janela; depois de uma pausa, continuou: - Como o senhor sabe, a guerra já não é uma ininterrupta série de vitórias do Imperador. Muitos homens que ocupam cargos muito importantes pensam que a paz negociada é a única maneira de evitar um inútil derramamento de sangue e querem fazer chegar suas propostas ao governo da Inglaterra e ao seu rei. Essas propostas só pode levá-las um homem que goce da confiança de quem estão no poder e que tenha acesso aos chefes dos Serviços Secretos. Para meu chefe o senhor é a pessoa ideal para desempenhar esse papel.
- É muito interessante o que diz - afirmou Stephen, escrutinando o rosto de Duhamel, - e desejo sinceramente que o projeto de seu chefe seja levado a cabo com êxito e que a França sofra o menos possível, mas sinto dizer-lhe que não sou o homem que busca. Como disse aos seus amigos da rua Saint-Dominique - então notou um brilho nos olhos de Duhamel, - sou um simples cirurgião naval e nem sequer recebi a nomeação de oficial apesar de desempenhar esse cargo. Sem dúvida, sou um naturalista de certa fama, ainda que isso não me permite o acesso aos homens importantes, e muito menos aos chefes dos Serviços Secretos, e talvez essa circunstância tenha dado lugar a um mal-entendido.
Duhamel não pôde reprimir um sorriso, mas voltou a ficar sério quando Stephen prosseguiu:
- Além disso, estimado senhor, acha que o homem que seu chefe pensa que sou seria tão estúpido como para admitir que é essa sua identidade? Indubtavelmente, seria indigno da confiança de ambas as partes se se jogasse nos braços do primeiro agente provocador que se aproximasse, se aceitasse realizar tão extraordinária tarefa sem exigir garantias igualmente extraordinárias. Isso significaria o suicídio e demonstraria que é um asno.
- Compreendo - disse Duhamel. - Não obstante, suponhamos por um momento que havemos encontrado a esse homem. Que garantias o senhor acha que ele exigiria?
- Acha que realmente vale a pena falar de uma hipótese tão remota? Se me perguntasse pelas tercianas ou pelo esqueleto do casuar, poderia dar-lhe uma resposta lógica, mas se me pergunta pelo processo mental de um ser meramente hipotético... Acho que o senhor concebeu a mesma teoria absurda dos militares, que, apesar de minha negativa, parecem convencidos de que sou, como diria?, um agente secreto.
- Sim, sim, claro - disse Duhamel, tamborilando com os dedos sobre o pacote que tinha na mão esquerda.
Ainda que era experto em ocultar seus sentimentos, agora o desalento se refletia em seu semblante. Fez uma longa pausa, durante a qual Stephen quase chegou a se convencer de sua boa fé, e por fim prosseguiu:
- Falarei com sinceridade. Minha organização está convencida de que essa é seu identidade desde que as autoridades de Brest mandaram sua descrição para Paris. Por essa razão foi alojado no Temple.
- Pode dizer de quem sou prisioneiro?
- Que importância têm os nomes? - disse Duhamel com cautela e depois, mais relaxado, acrescentou: - Nosso, pelo momento. Porém, voltando ao tema, nossa intenção era pedir ao senhor... isto é, ao homem que supúnhamos que era, pois, pelo que vejo, nossa conversa deve seguir nesse plano..., nossa intenção era pedir que ele levasse a cabo essa missão muito antes, quando houvéssemos podido dar-lhe todas as garantias possíveis. Contudo, o Imperador atrasou sua partida, e, além disso, surgiram outras dificuldades... Durante esse intervalo, madame Gros apareceu no baile do príncipe de Bénévent com um magnífico diamante, um diamante azul, e no dia seguinte, na reunião do Grande Conselho, seu esposo propôs que o senhor fosse libertado, mostrando um repentino amor pela ciência e uma grande preocupação com a opinião dos cientistas de todo o mundo.
Stephen notou que estava empalidecendo e voltou o rosto para um lado para que ele não notasse. Certamente que Golconda não era somente um termo usado com o significado de fortuna, era também o nome da mina de diamantes do Grande Mogol.
- Gros não é tonto - continuou, - mas está dominado por sua mulher. Fez um excelente discurso, no qual falou da universalidade da ciência, a imunidade de Cook e Bougainville e outras coisas, e quase chegou a convencer o conselho, mas no final foi decidido que se levaria o caso ao Imperador. As atas das reuniões do Grande Conselho, como as das reuniões do Conselho de ministros de seu país, não se mantêm em estrito segredo, e outros organismos se informaram do valor que o senhor tinha e agora competem pela posse de sua pessoa. O Exército é dos mais insistentes. Isto também será levado ao Imperador para que decida em favor de um desses organismos, e posto que os militares relacionam o senhor com Grimsholm e o Imperador está furioso pelo que ocorreu ali, é provável que eles ganhem. Já lhe mandaram uma mensagem com um de seus homens, um oficial muito influente.
- Madame Gros deu explicações sobre o diamante?
- Contou uma história medíocre com respeito a uma herança - disse Duhamel, deixando de lado o assunto. - Mas devo advertir-lhe que o senhor corre um grave perigo, entre outras razões, porque há muitos homens que pensam que nada deve sobreviver ao império e que, se este cair ou parecer próximo de cair, matarão sem vacilar e tratarão de converter tudo em um monte de ruínas. Meu chefe tem o documento no qual o Imperador ordena sua liberação...
- Como é possível? O Imperador está em Silésia.
- Vamos, vamos, doutor Maturin - disse Duhamel impaciente. - Sabe muito bem que sir Smith escapou daqui mesmo, do Temple, em 1798. Qualquer um poderia fazer uma boa falsificação de uma ordem. Como vê, temos muito pouco tempo, assim que deve decidir-se já. Peço que me diga quais são as condições que exigiria o homem que acreditamos que é.
Stephen olhou o pacote que Duhamel tinha na mão. Uma parte de sua mente prestava atenção à Naval Chronicle, cuja capa lhe era tão familiar, e ao jornal londrino The Times, enquanto a parte restante analisava a situação e a personalidade de Duhamel e valorizava o que havia dito explícita e implicitamente. Seu instinto se negava a aceitá-lo, mas seu instinto não era infalível.
- O homem em quem o senhor pensa exigiria, em primeiro lugar, uma prova de boa fé - disse devagar. - Por exemplo, pediria que lhe desse sua pistola.
- Sim - disse Duhamel e largou a pistola sobre a mesa. - Tenha cuidado porque está carregada.
Com a pistola de repetição na mão, olhando o engenhoso mecanismo, Stephen fez um parêntese e disse:
- É muito pesada para mim.
- Somente apertando o gatilho já está em posição de disparar - disse Duhamel, estendendo o parêntese. - O canhão dá voltas sozinho. Um se acostuma com o peso.
Stephen prosseguiu:
- Esse homem exigiria a liberação de seus companheiros e também que se restituissse o diamante à sua dona, que se eximisse esta de toda responsabilidade e que se lhe concedesse liberdade para viajar, se assim o desejasse.
- Esse homem pede muito - disse Duhamel.
- Também seu chefe - disse Stephen. - Pede a esse homem hipotético que ponha a cabeça na guilhotina.
- São essas as condições mínimas?
- Estou certo de que seriam - respondeu Stephen. - Mas tenha em conta que estou falando de um ser hipotético, de um ser imaterial.
- Não posso ficar mais tempo - disse Duhamel. - Tenho que falar com meu chefe. Deus queira que haja tempo... Devo ir até Valençay e regressar...
- Valençay?
- Sim - respondeu Duhamel e ambos se olharam com perspicácia.
Talleyrand vivia em Valençay a maior parte do tempo. Talvez essa calculada indiscrição era uma prova a mais de boa fé.
- Se importaria de devolver-me a pistola? - continuou. - Quando viajo sem ela parece que estou nu, e não serviria de nada para o senhor aqui nem na rua Saint-Dominique... O capitão Clapier quer ver-lhe de novo esta tarde. Não podia negar-me a permitir porque daria o que falar, mas temos os militares bastante controlados. Eles o tratarão como a um prisioneiro excepcional e estará de regresso antes do anoitecer. Dei ordens estritas de que o tragam antes do anoitecer.
Olhou fixamente a pistola e Stephen lhe entregou. Então deu para Stephen o pequeno pacote, dizendo:
- Pensei que isto lhe serviria para entreter-se em seu tempo de ócio.
- Era Duhamel, que queria um remédio - disse Stephen, respondendo à expressão ansiosa de Jack. - Teve um traço de humanidade e nos trouxe estas publicações para que nos entretivéssemos em nosso tempo de ócio.
- Nosso tempo de ócio? - inquiriu Jack mais calmo e passou a rir. - Acho que teremos muitos, porque não podemos fazer muito mais aí dentro até que tenhamos um aparelho. Possivelmente a bela poupette de Jagiello o ponha na cesta da comida.
Pegou a Naval Chronicle e pouco depois interrompeu as meditações de Stephen com um grito de alegria:
- Oh, Stephen, ele conseguiu! O Ajax combateu com o Méduse frente à Hogue e o converteu em uma múmia em trinta e cinco minutos. Seus homens mataram o capitão e a cento e quarenta e sete tripulantes. O Ardent e o Swiftsure estavam à vista, a sotavento... Por Deus que valeu a pena...! Valeu a pena encalhar a pobre Ariel!
Stephen voltou a suas meditações. Mais de nove décimos de sua mente admitiam como verdadeiras as palavras de Duhamel, e se perguntava se a dúvida da parte restante era o resultado de anos e anos de cautela e desconfiança ou se estava justificada por uma razão mais forte que a deformação profissional. À medida que o tempo passava, era mais difícil ter absoluta confiança em uma pessoa. Tinha deformação profissional, e mais grave do que supunha; por exemplo, havia se equivocado ao julgar Diana, pois nunca a considerara capaz de amar. A achava capaz de sentir estima pelos amigos, evidente, e de chegar a sentir um profundo afeto às vezes, mas não de sentir amor, e menos ainda por ele; contudo, aí estava a prova, em forma de uma ação gloriosa, carinhosa e enlouquecida. Sabia que ela dava mais valor àquela pedra que a sua salvação e também que havia posto uma corda no pescoço por ele; ao pensar nisso, sentiu uma grande emoção e uma mistura de gratidão e admiração por ela. Pouco depois, quando Jack voltou a entrar no quarto e a cruzá-lo com a Naval Chronicle aberta na mão, Stephen o olhou com uma extraordinária serenidade.
- Olhe isto - disse o capitão Aubrey com voz trêmula e muito baixa, assinalando uma página.
Stephen leu:
"Matrimônios. O capitão Ross, da Désirée e a senhorita Cockburn, de Kingston, Jamaica".
- Não, não, mais abaixo.
Stephen seguiu lendo:
"Sexta-feira, em Halifax, Nova Escócia, o capitão Lushington, da Infantaria da marinha, e a senhorita Amanda Smith, filha de J. Smith, de Knocking Hall, Rutland".
Depois disse:
- Acho que não conheço o senhor Lushington.
- É claro que sim, Stephen. É um tipo corpulento que parece um touro. Está ao comando do Thunderer, que está a apenas três semanas na base naval da América do Norte. Que Deus o ajude! Que Deus nos ajude a todos! Não lhe parece incrível isto? Acredita que tudo... que a criança não era mais que ar?
- É muito provável.
Durante alguns instantes, Jack permaneceu pensativo, movendo a cabeça de um lado para o outro.
- Meu Deus! Acho que nunca senti tanto alívio em minha vida. Agora vou seguir raspando essa lousa, agora vou trabalhar mais duro.
Então voltou a meter-se no sanitário, e o ouviram raspar com muita força até que chegou a refeição.
Revistaram a cesta quando Rousseau partiu, mas não encontraram nada. Todos disseram que não tinha importância e que o cadernal chegaria com a janta.
- Assim que esta é uma sopa inglesa - disse Jack quando chegaram à sobremesa. - Tinha curiosidade para ver uma.
- Mas não é uma sopa inglesa ortodoxa - disse Stephen. - Isto não figura na receita aceitada.
Tirou a concha e viu nela uma pequena polia de lata das que se usavam nos estendedores, e depois sacou a parelha. Jack as olhou assombrado.
- Como é possível que essa bondosa jovem haja pensado que estas polias podiam fazer a função de um cadernal? Olhai, olhai estes parafusos! Jagiello, deve dizer-lhe que o que necessitamos são duas polias colocadas dentro da mesma armadura. Não importa que não tenham a peça que duplica o giro das roldanas, mas os parafusos devem ser pelo menos cinco vezes mais grossos que estes.
- Senhor, esqueceu que eu lhe disse que ela não estaria em casa esta tarde nem amanhã - disse Jagiello.
Depois, num tom defensivo, disse que as polias pareciam similares às que o capitão Aubrey havia desenhado.
- Bem, é certo que não sou um grande desenhista, mas as desenhei em escala, sabe? - disse Jack e, voltando-se para a porta e aguçando o ouvido, perguntou: - Esse é o barbeiro? Gostaria de barbear-me, mas detesto que um surdo-mudo me barbeie. Isso não lhe incomoda?
- Não - respondeu Stephen. - E esse não é o barbeiro senão Rousseau e os soldados, que vêm me buscar. Eu os esperava. Não se preocupe - disse enquanto procurava a ampola. - A menos que ocorra algo inesperado, estarei de regresso antes do anoitecer.
- Antes do anoitecer sem falta - disse o capitão enquanto assinava para se encarregar do prisioneiro.
Esta vez o capitão e o tenente eram seus únicos acompanhantes. Quase não sucedeu nada inesperado enquanto atravessavam Paris, só que Stephen viu ao doutor Baudelocque quando passaram em frente ao hotel de Mothe; e quase não sucedeu nada inesperado quando chegaram à parte traseira do edifício da rua Saint-Dominique. Só o que mudou foi que, pouco depois de entrar na sala de espera com barrotes de onde se via o poste, a porta se abriu e alguém meteu um homem, empurrando-o com tanta força que caiu quão comprido era. Stephen o ajudou a se levantar e o homem se sentou, limpando o sangue da cara e das mãos e murmurando em catalão: "Mãe de Deus, mãe de Deus, virgem Maria, salva-me!". Conversaram, e o homem, falando em francês com dificuldade e com um forte sotaque estrangeiro, falou de forma pouco convincente da perseguição que havia sofrido por lutar para a independência catalã. Aquele tipo era uma armadilha, obviamente, mas era muito desajeitado e nem sequer havia aprendido a lição, e Stephen logo se cansou de ouvi-lo e de ver suas gotas de sangue coagulado.
O interrogatório que seguiu foi quase tão medíocre como essa representação. O capitão Clapier apresentou mais duas testemunhas, um sudoroso zoólogo e um oficial decrépito, que, em termos muito parecidos aos de Fauvet, declararam que o doutor Maturin se havia oferecido a levar mensagens, havia pedido dinheiro para isso e havia falado do Imperador desrespeitosamente. Depois entrou um empregado do hotel Beauvillier, que declarou que o doutor Maturin lhe pedira que trocasse cinqüenta guinéus por napoleões, e o capitão disse com tanta ênfase como pôde que esse era um delito muito grave, que todos haviam demostrado que o doutor Maturin era culpado e que se fosse um homem sensato compreenderia que a única maneira de escapar ao castigo era cooperar com as autoridades. Contudo, ninguém pareceu acreditar, e Stephen tinha a esperança de que o iam soltar, mas depois de um breve silêncio, um homem de olhar inteligente que estava sentado à esquerda perguntou:
- Pode explicar-nos, doutor Maturin, por que uma dama ofereceu o equivalente a um milhão de napoleões pelo menos em troca de sua liberação se nem ele nem ela são agentes secretos?
Stephen respondeu imediatamente:
- Acha o cavalheiro que pode existir um agente secreto tão ingênuo para cometer semelhante loucura, que seria fatal para ele mesmo e para seu colega?
Se olharam uns para os outros e um capitão inquiriu:
- Qual é a explicação então?
- Só um fátuo poderia responder - respondeu Stephen.
- É possível que a dama, que uma dama como essa esteja enamorada do doutor Maturin? - perguntou com assombro um oficial, a primeira pessoa que falava com sinceridade na sala.
- Admito que parece improvável - disse Stephen, - mas devem ter em conta que Europa e Parsifae amaram um touro e que a história nos dá inumeráveis exemplos de pares muito menos adequados.
Os oficiais faziam comentários sobre o assunto, e a atmosfera era agora relaxada. Depois de que alguns, com assombro e respeito por vez, olhassem de soslaio para Stephen, entrou um homem, inclinou-se sobre o ombro de Clapier e lhe murmurou algo em tom enfático. O capitão levantou os olhos e fez um gesto de assombro e saiu precipitadamente da sala. Cinco minutos depois regressou acompanhado de outro homem. Estava pálido de raiva, mas Stephen não teve muito tempo de observar seu rosto porque o homem que o acompanhava era Johnson.
- É ele! - gritou Johnson imediatamente e ambos lançaram para Stephen um feroz olhar cheio de ódio. Clapier avançou para ele e, em voz baixa, quase sem poder controlar seus sentimentos, disse:
- O senhor matou Dubreuil e Pontet-Canet!
Stephen pensou que Clapier ia pegar-lhe, mas o capitão reprimiu seu impulso e gritou:
- Levem-no para a cela! Levem-no para uma cela da colméia!
A cela da colméia tinha acumulada muita porcaria e barro e talvez devia seu nome a que em seu interior volteava um enxame de moscas e moscões; estava completamente vazia e nas paredes havia anéis de ferro.
Durante as horas que seguiram, Stephen permaneceu de pé junto de uma janela com barrotes à altura do solo do pátio interior, do pátio onde tinham lugar os fuzilamentos, enquanto as asquerosas moscas de ventres frios pousavam sobre ele.
Dali viu ocultar-se o Sol. O céu ficou da cor do nácar e os telhados das casas que estavam do outro lado do pátio se transformaram em silhuetas; a cor clara se escureceu e mudou para um excelente violeta; desapareceram as silhuetas e apareceram as luzes. Por uma janela sem cortinas viu um homem e uma mulher jantando de uma forma estranha, pois tinham as mãos dadas, e depois os viu se inclinarem sobre a mesa e se beijarem.
Também via as estrelas, pequenas e brilhantes, e um grande astro de luz intensa no alto do céu, possivelmente Vênus, que parecia ligeiramente inclinado sobre um telhado de duas águas e tinha uma parte oculta atrás da fileira de telhados. Sentia na face a pressão da ampola, a eterna causadora de pecado mortal admitida pelas regras morais, e ainda que sempre pensara que rezar em momentos de perigo era uma indignidade, começou a implorar mentalmente a proteção de seu amor seguindo a hipnótica cadência do canto gregoriano.
Por fim ouviu o ruído de botas. Depois viu luz ao redor da porta e ouviu o ruído da chave. De repente tudo se encheu de uma luz intensa, e entre as moscas que volteavam, pôde distinguir dois sargentos da guarda. Levaram-no para a sala onde havia esperado, e ali, já com os olhos acostumados com a luz, viu um general, ao seu assessor, ao alcaide do Temple e ao coronel que fizera de testa-de-ferro originalmente, que agora estava muito pálido e angustiado.
- É este seu prisioneiro? - inquiriu o general.
- Sim, senhor - respondeu o alcaide.
- Então leve-o ao Temple. Coronel, apresente-se amanhã às oito da manhã no escritório de meu secretário para relatar o assunto.
Fizeram uma viagem silenciosa. O alcaide parecia cansado, abatido, angustiado e velho; o assessor observava a empunhadura do sabre, que se enganchara na portinhola da carruagem.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack. - Finalmente você chegou! Estivemos muito...
Stephen lhe fez um sinal com a mão e ficou alguns momentos com o ouvido colado na porta.
- Diga-me, Jack, é possível acelerar as coisas? - perguntou quando se fez silêncio de novo. - Johnson está em Paris e me identificou.
- Ah, sim? - disse Jack.
Então pegou a vela e entrou no sanitário. Preparara tudo para quando chegasse o aparelho com polias mais fortes que as que haviam recebido com a comida, quer dizer, havia preparado quase tudo, porque ainda faltava romper os móveis para utilizar seus pedaços como cunhas, mas já lhes havia feito alguns cortes profundos com uma das facas de Poupette com a borda cortada como uma serra. Ainda que os pesados blocos de pedra do sanitário já não estavam unidos a sua base, seus extremos ainda estavam ocultos pelos cuidadosamente colocados, mas esses tijolos podiam ser tiradas em um momento e só era necessário aplicar uma força para levantar os blocos. Jack pensava que com as polias poderiam levantá-los com facilidade e tirá-los em silêncio, um depois do outro, e que o dintel serviria perfeitamente de apoio, e achava que a corda, apesar de ser fina, era muito forte. Inclusive com o que tinha nesse momento não era impossível conseguir seu objetivo.
- Com uma polia sobre a outra e com a corda dobrada poderíamos conseguir - disse. - Tudo depende dos parafusos.
Pegou as polias do bolso e as examinou outra vez. Os eixos sobre os quais giravam as pequenas roldanas apenas tinham um diâmeto de três dezesseis avos de polegada e eram de ferro doce, e, contudo, teriam que suportar um grande peso.
- Meu Deus, que parafusos! - continuou. - Os típicos parafusos que usam os homens de terra adentro! Porém, pelo menos, as roldanas são fortes, e, por outro lado, o suporte não é importante.
Chamou Jagiello para que sustentasse a vela, e como não havia espaço para três no pequeno sanitário, Stephen se sentou na cama e se ficou observando-os.
Jack era um homem corpulento, mas se movia com agilidade e era hábil e rápido nos trabalhos manuais. Não queria cortar a corda, não só porque não gostava de fazê-lo, mas também porque a seda era um material muito valioso para emendar, e, ao cabo de um tempo, conseguiu formar com ela uma teia de arranha, uma intrincada rede parecida às que recompunham a exárcia, cheia de engenhosos nós e com pedaços de madeira fazendo a função de vinhateiras e estopores, uma rede especialmente desenhada para que concentrasse a força de dois homens e a exercesse sobre o extremo esquerdo do bloco exterior de maneira que tivesse como resultado o levantamento deste. Ainda que não havia parado nem um momento, para qualquer observador pareceria que era muito meticuloso e que seu trabalho não ia terminar nunca, e agora, por fim, verificou todo o conjunto para ver se todos os vãos tinham a tensão adequada e se a força resultante produzia uma elevação exatamente na vertical. Depois saiu do sanitário de costas, pegou o melhor tamborete que tinham e quebrou uma de suas pernas em pequenos pedaços e dividiu cada um em dois pedaços.
- Por favor, Stephen - disse Jack, - entre no sanitário, ajoelhe-se junto ao bloco exterior e, se ele levantar, coloque isto debaixo.
Stephen passou através da rede e se colocou em seu posto. Depois ouviu que Jack dizia:
- Pegue a corda, Jagiello. Puxe comigo, ao mesmo tempo. Devagar, devagar.
Todos os vãos da corda se esticaram; o nó feito com quatro cabos desceu até ficar na frente do nariz de Stephen, e os cabos emitiram um som musical ao estender-se; as pequenas roldanas começaram a fazer um movimento giratório que se via claramente à luz da vela. A força chegou ao extremo do bloco e foi aumentando pouco a pouco; o som musical subiu de tom; a força aumentou ainda mais.
- Devagar, devagar - murmurou Jack.
O extremo do enorme bloco se elevou três polegadas com um rangido, separando-se quase por completo da base.
- Ele se elevou! - disse Stephen, e colocou madeira no espaço que ficou debaixo do bloco.
Todos os vãos de corda da rede começaram a vibrar, emitindo um estranho som que rompeu o profundo silêncio, e então o bloco voltou a cair sobre a base, esmagando a madeira.
- Algo está errado - disse Stephen.
- Segure bem! - ordenou Jack e depois entrou no sanitário e pegou a vela. - Sim. Os parafusos se soltaram.
Seus companheiros o olharam com tristeza e ele acrescentou:
- Tenho que desmontar tudo isto. Estas polias não são moitões, sabe?
Meia hora depois conseguiu soltar as pequenas polias; à meia-noite já havia sacado os parafusos quebrados e os havia substituído com pedaços de uma lima de aço.
- Não são bonitos - disse, - mas podem servir. Farei que só três cabos realizem a tração e desse modo diminuirá a força no mais fino.
Voltou a tecer uma rede, mas agora formando um desenho diferente, e antes de que o distante relógio desse a uma, disse:
- Pegue a corda.
Outra vez os vãos da intrincada rede se esticaram, tanto como as cordas de um violino, mas agora as roldanas se moviam mais lentamente e chiavam e toda a rede estremecia, pelo que não parecia muito forte. Contudo, quando a tensão aumentou até um ponto em que Stephen achou que tudo ia cair, viu o extremo do bloco se elevar. À medida que se elevava, Stephen punha pedaços de madeira no espaço que deixava.
- Este extremo se separou! - exclamou.
- Segure bem! - ordenou Jack e entrou no sanitário e olhou o bloco com satisfação. - Muito bem, muito bem. Se os parafusos resistirem, conseguiremos. Estive pensando em meu plano, que era meter os blocos aqui dentro, um a um. Isso significaria ter que mover as polias em cada vez, e ainda que os parafusos resistam, duvido que possamos tirar os dois blocos muito antes do amanhecer; em troca, se subirmos e baixarmos o extremo esquerdo enquanto você tenta separar o direito, primeiro com um talhadeira e depois com cunhas de madeira, o extremo direito poderia girar sobre si mesmo, provocando a queda do bloco. O único inconveniente seria o ruído. A queda nos pouparia horas de trabalho e diminuiria o risco dos parafusos se romperem, mas faria ruído. Qual é sua opinião?
Stephen pensou durante um momento.
- Ouvi cair muitos pedaços da torre durante o dia, com os operários trabalhando - disse. - Além disso, a fortaleza está quase vazia, e a patrulha quase não passa de noite já faz mais de uma semana. Acho que devemos correr o risco de que ouçam o ruído. Explique-me o que tenho que fazer.
Jack explicou, mudou o ângulo de elevação e voltou aonde estava Jagiello.
- Devagar, devagar - disse.
O bloco se levantou e começou a mover-se alternativamente para cima e para baixo quase no mesmo rítmo de um segundeiro. Stephen colocou algumas cunhas sob o extremo direito do bloco e disse:
- Baixem!
Então o bloco desceu e o extremo direito se moveu para os lados girando sobre si mesmo e se deslocou um pouco para frente. Stephen pôs mais cunhas no espaço livre e disse:
- Puxem!
Acima e abaixo; Acima e abaixo. E o movimento lateral continuava e Stephen punha cunhas maiores em cada vez.
- Está a ponto de... - começou a dizer, mas não teve tempo de pronunciar a palavra "cair" antes de que se fizesse o vazio no lugar para onde olhava. O bloco de pedra já não estava, e o ar da noite, iluminado pela luz da vela, era o único que havia agora sob a vibrante rede que subia e descia a pouca distância de sua cabeça. Houve um breve silêncio e depois se ouviu abaixo um terrível estrondo, um ruído estrondoso que encheu o quarto e toda a torre.
Eles se olharam e permaneceram imóveis, ainda que Jagiello, por alguma razão, apagou a vela num dado momento. O tempo passou. O relógio de Saint-Théodule marcou o quarto de hora e o repetiu. Não se ouviu nenhum outro ruído.
Muito, muito tempo depois, Jack sussurrou:
- Acendam uma vela.
Primeiro Jagiello e depois Stephen se esforçaram para consegui-lo.
- Vocês são marinheiros de água doce! - exclamou Jack, empregando pela primeira vez um tom aborrecido. - Dá-me isso.
Pegou o isqueiro, deu-lhe um forte golpe, soprou onde saltou a faísca e acendeu a vela. Então inspecionou o buraco e a rede.
- Só mais seis polegadas e um homem magro poderá passar por aqui. Mas desta vez protegerei com a camisa de Jagiello a trama da corda que rodeia o bloco para evitar que se desgaste com o roçamento.
Uma vez mais todo o sistema mudou de lugar para fazer tração sobre o bloco de pedra interior, e uma vez mais Stephen observou seus companheiros. Agora que a porta que conduzia para a liberdade estava meio aberta, já não podia controlar seus sentimentos, e enquanto eles realizavam o longo processo, sua ansiedade e sua irritação aumentaram até ficar quase intoleráveis e se sentiu frustrado. Confiava em que a muralha meio derrubada e o fosso não seriam um obstáculo e em que depois de sair do Temple poderiam passar a noite em um lugar seguro, pois conhecia meia dúzia de refúgios onde ficariam a salvo, e pensava que tinham que começar a mover-se já se queriam que isto ocorresse. De seu refúgio poderia pôr-se em contato com Adhémar de Mothe e com Valençay. Estava quase certo de que Duhamel havia sido sincero ao fazer-lhe aquela proposição, porém, apesar disso, pensava que era melhor estar fora de seu controle quando selassem os acordos definitivos. Em qualquer caso, não podia ficar nem mais uma noite no Temple com Johnson ali, pois, além da vingança de Clapier por motivos pessoais, a conexão com os Serviços Secretos norte-americanos era tão importante que o capitão sacrificaria os prisioneiros, pegando-lhes do Temple à força, se fosse necessário, e seria fácil justificar depois do fato ocorrido, fácil demais. Atuaria imediatamente, indubtavelmente, e o amanhecer era o momento que costumava escolher-se para esse tipo de ações. Porém, por outro lado, que influência a chegada de Johnson teria sobre Valençay? Era uma pergunta estúpida, pois se o plano de Valençay tivesse êxito, a conexão com os Serviços Secretos norte-americanos não teria importância, nenhuma importância, e não seria necessário fazer concessões. A situação de Diana era a que lhe causava angústia. Repetia uma e outra vez que não era possível que Diana estivesse em perigo porque tinha amigos influentes, não estava vinculada à política e se encontrava sob a proteção de Adhémar de Mothe, e, além disso, porque provavelmente Johnson acabara de chegar; contudo, respondia uma e outra vez que dizia isso para tranquilizar-se, mas que só eram conjeturas, que não tinha fundamento. Para evitar, ao menos em parte, esta contínua e intolerável discussão, arrumou os poucos pertences que os três tinham e fez um pacote envolvendo-os em um pedaço de tecido e depois deu de comer à rata, que, muito assombrada, entrara por debaixo da porta.
- Acho que funcionará - disse Jack por fim em um tom de voz normal, que havia voltado a utilizar. - Mas teremos que puxar com todas nossas forças desta vez, porque o ângulo não é tão bom e a multiplicação é menor. Espero que os parafusos aguentem a força. Jagiello, ponha um lenço ao redor das mãos. Entre, Stephen.
Agora Stephen tinha algo concreto para fazer. Agora tinha um retângulo da noite justamente debaixo dele, e, com um intenso brilho nos olhos, se agachou na borda deste, junto com a talhadeira e um monte de cunhas na mão. A grande força foi passando para o bloco enquanto Jack e Jagiello gemiam ao puxar a corda, e de repente Stephen pensou que se usasse sua própia força reduziria a pesada carga dos parafusos. Se montou sobre o bloco, meteu as mãos por debaixo das quinas e puxou ele para cima até que as bordas lhe cortaram a pele dos braços e seu coração chegou a bater com tanta força que sua vista se nublou, até que o bloco, depois de um ligeiro estremecimento, começou a elevar-se.
- Ele se elevou! - disse ofegante e foi pegar as cunhas e as colocou com rapidez mas com torpeza.
Jack o viu e sorriu. Também viu que a porta desconhecida, a porta por onde entrava o rato, abriu-se de par em par. Então apareceram quatro homens com uma lanterna.
- Boa noite, cavalheiros - disse o primeiro do grupo.
- Não se mova, Jack - gritou Stephen, porque Jack e Jagiello tinham acumulada tanta energia potencial que eram perigosos como tigres. - Boa noite, cavalheiros. Entrem, por favor.
Deu um passo para frente e se caiu e ficou pendurado da cintura para abaixo no meio da noite. Jack e Jagiello saltaram por cima do bloco e o subiram pegando-lhe cada um por uma mão e perguntaram se havia se ferido.
- Não, nenhum, obrigado - respondeu Stephen, limpando a perna na qual tinha uma dor forte mas superficial, e depois, secamente, disse: - cavalheiros, digam-nos a que hão vindo.
- Talvez não se lembre de mim, doutor Maturin - disse o primeiro do grupo, adiantando-se. - Sou D'Anglars. Tive a honra de conhecer-lhe quando fazia parte do séquito de monsieur de Talleyrand-Périgord quando era embaixador em Londres e acho que temos amigos comuns.
- Lembro perfeitamente, senhor - disse Stephen, - e, certamente, recordo com agrado de Sua Excelência. Tive o prazer de ver-lhe faz pouco. Nenhum dos dois mudaram.
Isso não era verdado no que se referia a D'Anglars, pois envelhecera, e ainda que conservasse um olhar vivo e inteligente, podia ver-se à luz da lanterna que seu rosto estava desfigurado e muito pálido. Por outro lado, Stephen sentia uma grande admiração pelo bispo de Autun, ou o príncipe de Bénévent, como o chamavam agora, que era um mestre do engano, o fênix da falsidade, mas tinha uma inteligência brilhante e era uma companhia agradável.
- O senhor é muito amável, muito amável - disse D'Anglars fazendo um gesto que fez Stephen se lembrar de Adhémar de Mothe, que era um de seus amigos comuns. - Vejo que está ocupado, mas talvez poderíamos falar um momento. Desculpem-nos - disse, fazendo uma inclinação de cabeça para o capitão Aubrey e para Jagiello.
- Não faltava mais nada! - exclamou Jack, em resposta ao seu gesto cortês.
Stephen olhou para os acompanhantes de D'Anglars e viu que entre eles estava Duhamel, com certeza, um oficial com uma capa que ocultava parcialmente seu esplêndido uniforme e um homem vestido de preto que pôde reconhecer apesar de sua viseira, um homem que pertencia ao ministério de assuntos Exteriores, um alto cargo do ministério de assuntos Exteriores.
Foram para o quarto de Jagiello com a vela, cuja chama tinha agora muito pouca intensidade, e se sentaram no lugar que ficava junto da janela.
- Duhamel nos disse quais são suas condições - disse D'Anglars. - Estamos de acordo com todas exceto com uma. O senhor exige que a pedra preciosa, o diamante azul, seja restituído à sua dona, porém, por desgraça, não podemos entregá-lo imediatamente, ainda que dou isto como garantia de que ele será restituído.
Então lhe deu um anel de bispo com uma enorme ametista. Stephen o olhou com curiosidade e, ainda que parecesse que não gostava muito, não disse nada.
- Por outro lado - prosseguiu D'Anglars, - a dona da pedra preciosa se encontra sob nossa proteção e está desejosa de viajar, como o senhor supunha, e pronta para partir.
Havia falado às vezes com bajularia e outras com vacilação, mas sempre em tom urgente; contudo, Stephen não respondeu aliás se limitou a dar voltas e voltas no anel com a ametista à luz da vela.
- E como compensação - acrescentou D'Anglars com mais segurança, - trouxe documentos de Drummond...
- Não, não - disse Stephen. - Isso complicaria o caso, e eu sempre evitei as complicações. Diga-me, que garantias me oferece?
- Nós três o acompanharemos até um dos barcos com bandeira branca que zarpam de Calais e, se o senhor desejar, iremos até a Inglaterra. Terá em suas mãos nossa vida, ou, ao menos, nossa liberdade. Poderá usar armas, se quiser.
- Muito bem - disse Stephen. - Meus companheiros virão comigo, sem dúvida.
- O capitão Aubrey e o jovem Apólo?
- Sim.
- Certamente.
- Então vamos.
Stephen voltou coxeando para o outro quarto com D'Anglars, e este assinalou o sanitário com a cabeça e disse:
- é uma pena que tenham trabalhado tão duramente, mas nada poderia ser mais conveniente para nós, mais adequado. Este é o álibe perfeito. Por esta porta, por favor.
- Capitão Aubrey, senhor Jagiello, nós iremos com estes senhores - disse Stephen.
Na porta adotaram uma atitude cortês ante a questão da precedência e ao sair a fecharam com trinco. Depois desceram pela escada de caracol, atravessaram um longo corredor, chegaram a um pátio que nunca haviam visto, avançaram até uma pequena porta em frente à qual havia duas obscuras figuras que se afastaram para deixar-lhes entrar, e por fim saíram para a rua, um ordinário espaço aberto que lhes pareceu maravilhoso. E ali havia duas carruagens e dois cavalos amarrados. O homem vestido de preto e o oficial da capa montaram nos cavalos; Jack, Duhamel e Jagiello subiram no primeiro carro; Stephen e D'Anglars subiram no segundo. Então se puseram em marcha e atravessaram trotando as ruas escuras e silenciosas em direção ao rio, rodeados pela quente noite.
- Onde vamos recolher a dama? - inquiriu Stephen.
- No hotel de Mothe - respondeu D'Anglars surpreendido.
- Fala sério? É seguro?
- Oh, sim! - respondeu D'Anglars num tom que indicava claramente que estava sorrindo.
- Não a incomodaram?
- Não. Apesar de que um cavalheiro norte-americano que acaba de chegar perguntou por uma compatriota sua com a qual tinha boas relações, ninguém a incomodou.
Quando chegaram ao Pont au Change, Stephen disse:
- Certamente, subentende-se que ela deve acreditar que nossa liberação foi possível graças à sua atuação.
- Naturalmente - disse D'Anglars. - Naturalmente. Qualquer outra coisa seria uma loucura, de nosso ponto de vista.
Na rua Grenelle já havia alguns carros com produtos para o mercado, um deles carregado de flores. Finalmente chegaram ao hotel de Mothe, e Diana lhes esperava no pátio com uma capa com capuz que a fazia parecer muito magra, um grupo de serventes estavam junto de uma carruagem cheia de baús. Stephen desceu de um salto e se aproximou dela coxeando enquanto ela corria ao seu encontro. Se beijaram e ele exclamou:
- Queridíssima Diana, estou profundamente agradecido! Custei-lhe o diamante azul!
- Como estou contente de vê-lo! - exclamou ela, pegando seu braço. - Ao diabo com o colar! Você será meu diamante! Oh, Stephen, rasgou a meia e tem a perna coberta de sangue!
- Sim, levei uma topada na canela. E você como está, minha jóia? Soube por Baudelocque que não estava bem.
- Stephen, eu não o fiz, eu juro - disse ela enquanto o olhava sob a luz de um poste de luz. - Mantive minha palavra e me cuidei muito. Estava assombrada, realmente assombrada. Mas o doutor Baudelocque disse que não se podia evitar, eu lhe asseguro.
- Era impossível evitar, eu sei muito bem - disse Stephen, assentindo com a cabeça. - Dê-me a mão, ponha o pé no degrau e iremos para longe, com a ajuda de Deus.
Afastaram-se mais e mais, enquanto no céu, à direita do caminho, a luz ficava cada vez mais intensa. Mudaram de carruagem em Beaumont le Châteaux, em uma silenciosa casa afastada da avenida beirada de tílias. Duhamel se comportou como se fosse o dono do lugar e lhes indicou onde podiam barbear-se e pôr roupas de paisano e depois os levou para desjejuar. Quando provavam as jaquetas, Stephen disse:
- Escute, Jack: deve saber que Diana deu seu grande diamante para a mulher de um ministro em troca de nossa libertação.
- Deu...? - perguntou Jack imóvel, com um braço já metido na manga. - Quanta generosidade! Que Deus me condene se isso não é generosidade! Porém, Stephen, ela estava orgulhosa do diamante e muito contente de possuí-lo. Na Torre de Londres não se pode encontrar uma jóia melhor... Vale seu peso em ouro... Como posso agradecer? Sempre foi uma mulher com brio, mas isto... Sophie lhe ficará eternamente agradecida, e eu também, asseguro, eu também.
Entrou correndo na enorme e lúgubre sala onde estava servido o café da manhã sobre uma mesa de cavalete, fazendo-a retumbar, e apertou Diana entre seus potentes braços, beijou-a com força e disse:
- Prima Diana, estou-lhe profundamente agradecido e estou orgulhoso, muito orgulhoso de que sejamos parentes, tão orgulhoso como Lúcifer, dou-lhe minha palavra. Deus te abençoe, querida prima!
Quando estavam na nova carruagem, uma carruagem puxada por oito cavalos, Jack disse que ela deveria viver em Ashgrove Cottage e que nem Sophie nem ele queriam ouvir uma resposta negativa, e enquanto atravessavam Picardia a grande velocidade, falaram muito de Stephen. Agora Stephen estava com D'Anglars e Duhamel na carruagem que lhes precedia, falando sobre os documentos que tinha que entregar e explicar em Londres. Qualquer plano para derrotar Bonaparte contava com todo seu apoio, por mais disparatado que fosse, e aquele plano distava muito de ser disparatado. Sugeriu que fizessem algumas mudanças para que ele fosse mais fácil de aceitar pelos ingleses, mas foram trocas de tom ou de matiz, não de conteúdo, pois lhe parecia que a proposta estava muito bem elaborada. Pensava que havia sido concebida por homens inteligentes, perspicazes e de mente analítica, e desejava sinceramente que tivessem êxito, que encontrem homens tão inteligentes como eles em Londres e em Hartwell.
Esses mesmos homens haviam organizado sua viagem e haviam traçado sua rota, e ainda que ele havia visto o que podia conseguir uma organização eficiente quando era urgente resolver uma questão relacionada com a espionagem, nunca havia visto obter tão bons resultados. Só uma vez houve um pequeno atraso, três milhas depois de passar Villeneuve, porque caiu a ferradura de um cavalo, mas atravessaram a Picardia e depois Artois sem fazer nenhuma pausa devido a imprevistos. Passaram por numerosas colunas do exército - muitas delas compostas só por adolescentes - que se dirigiam para o norte, seguidas de compridas filas de soldados montados a cavalo, os apetrechos para sitiar a uma praça, as munições, os víveres e as peças de artilharia, e os soldados sempre se afastavam e deixavam o caminho livre desde muito antes de que se aproximassem.
Stephen sabia muito bem que a maioria das vitórias se haviam conseguido graças ao brilhante trabalho dos chefes do Estado Maior, e era evidente que nesta conspiração participavam alguns dos mais importantes; contudo, às vezes pensava que essa perfeição não podia durar, que algum general com muita antiguidade ao comando de um importante posto poderia exigir explicações e a confirmação de Paris, ou que qualquer outro setor que valorizasse a Johnson e ao governo de seu país mandasse persegui-los ou, o que seria ainda pior, comunicasse suas ordens através dos semáforos que vira em todas as montanhas. Mas estava equivocado. Chegaram a Calais durante a maré-cheia, quando o barco inglês Oedipus, ancorado nesse porto, já estava preparado para zarpar e só esperava que a maré baixasse para fazê-lo, e, afortunadamente, soprava um moderado terral.
- Terá uma viagem agradável, ao menos - disse Stephen para D'Anglars, pois haviam concordado que este o acompanharia, ainda que só fosse para que seu primo Blacas e o rei nominal pudessem ver tudo com mais claridade. - Esse barco, isto é, esse bergantim tem excelentes características para a navegação, é estanque e navega bem de bolina, como nós dizemos. Além disso, o mar está em calmria.
- Alegro-me, porque da última vez que cruzei tive horríveis náuseas e precisei deitar-me.
Além dos barcos dos contrabandistas, no Canal não havia outros mais discretos que os que navegavam com a bandeira branca. Atracavam num lugar do porto discreto e protegido e, pertenciam à Armada real, como o Oedipus, evidente, eram comandados por capitães sumamente discretos, amiúde oficiais de bastante antiguidade com uma nomeação temporal para esse posto. Por isso Jack se assombrou ao ver pela janela da casa privada onde esperavam para embarcar e ver a William Babbington no castelo de popa, dirigindo as manobras, sem lugar para dúvidas. Babbington estivera sob o comando de Jack quando era guarda-marinha e tenente, e ainda que Jack sabia que o haviam promoviso a capitão e o haviam dado o comando da corveta capturada Sylphide (de fato, escrevera cartas de recomendação e falara com alguns amigos para que o ajudassem a consegui-lo), achavava que ele ainda era muito jovem para desempenhar um posto como esse.
Porém, jovem ou não, o capitão Babbington conhecia o significado da palavra "discrição" tão bem como qualquer outro membro da Armada, e quando os passageiros, ingleses e franceses, subiram a bordo, em seu recebimento cortês não apareceram sinais que indicassem que lhes havia reconhecido, e tampouco se observaram esses sinais no comportamento dos demais. Ordenou a um guarda-marinha que levasse o capitão Aubrey, o doutor Maturin e a dama para sua própia cabine e aos distintos cavalheiros estrangeiros para a câmara de oficiais. Depois olhou a proa e a popa e, em uma digna imitação da voz que Jack empregava no castelo de popa, gritou:
- Todos a desatracar!
O Oedipus se afastou do cais com a vela de estai de proa e a bujarrona desdobradas e as gáveas rizadas; colocaram-lhe as vergas quando chegou ao canal, e então passou junto à baliza norte e avançou lenta e discretamente por entre uma multidão de barcos pesqueiros e chegou à baía exterior em pouco mais de meia hora. Nesse momento o capitão Babbington mandou largar as maiores e criticou com dureza os guardas-marinhas que se ocupavam dos tomadores de estibordo por sua preguiça e profetizou que essa preguiça provocaria a ruína da Armada dentro de muito pouco tempo. Apenas havia acabado de fazer esta profecia, que havia ouvido pela primeira vez aos doze anos, dos lábios de Jack, quando uma grande sombra apareceu no castelo de popa, e ao voltar-se viu o mesmíssimo profeta tão nervoso, preocupado e temeroso que causava assombro a alguém que, como William Babbington, havia lutado em muitas batalhas com o capitão Aubrey.
- Quer que desçamos, senhor? - perguntou, sorrindo.
- Acho que ficarei aqui tomando ar fresco durante um tempo - disse, acercando-se do coroamento. - Abaixo faz bastante calor.
- Continue, senhor Somerville - ordenou Babbington e foi reunir-se com seu antigo capitão junto à haste da bandeira.
- Estão brigando como cachorro e gato - disse Jack em voz baixa. - Como cachorro e gato! Parece que estão casados há um ano ou mais.
- Meu Deus! - exclamou Babbington entristecido.
Os homens puxaram as braças para fazer girar as vergas e o Oedipus fez rumo a Dover. Apenas havia ondas, e o castelo de popa do bergantim estava horizontal como uma mesa, e depois que os cabos foram aduchados e guardados abaixo, só se ouvia o assobio do vento na exárcia, o rumor da água ao passar por seus costados e os distantes grasnidos das gaivotas. Os dois capitães estavam perto da clarabóia da cabine e, em meio do silêncio, ouviram claramente estas palavras: "Por Deus, Maturin, que teimoso e que selvagem és! Sempre foi!".
- Gostaria de ver o novo mascarão de proa, senhor? - inquiriu Babbington. - É novo, de estilo grego, acho.
Aquele Edipo poderia estar pintado ao estilo grego se os gregos gostassem de dar grossas camadas de tinta em suas estátuas e fazer-lhes sorrisos insípidos, olhos grandes e inexpressivos e bochechas vermelho escarlata. Ambos olharam atentamente a imagem, e depois de um tempo, Jack disse:
- Não sou um entendido em temas clássicos, porém, não lhe havia ocorrido algo estranho nos pés?
- Acho que sim, senhor, porém, desgraçadamente, neste não se vêem porque está cortado pela cintura.
- Mas, agora que o penso, acho que o estranho era seu matrimônio e não seus pés.
- Talvez ambas as coisas fossem estranhas, senhor. Poderiam ter certa relação. Acho que li algo sobre isso no Polite Education de Gregory.
O capitão Aubrey ficou pensando uns momentos com a vista fixa numa verga que estava colocada sob o gurupés e por fim gritou:
- Já sei! O senhor tem razão: seu matrimônio e seus pés eram estranhos. Recordo que o doutor me contou a história completa quando nos abordamos com a Jocasta na baía Rosia. Não pretendo ofender seu mascarão de proa, e muito menos ao seu bergantim, Babbington, mas essa família não era muito decente, sabe? Para dizer a verdade, amiúde as relações entre os homens e as mulheres são muito raras, e amiúde terminam mal. O que acha desta verga?
Na cabine, Diana disse:
- Stephen, querido, como pode esperar que uma mulher se case contigo se apresenta o matrimônio simplesmente como algo conveniente, como algo que está obrigada a aceitar?
- Somente digo que Johnson estava em Paris, que não lhe permitirão a entrada nos portos ingleses porque a consideram uma estrangeira inimiga e que não tem escolha - disse Stephen, entristecido e incômodo. - Faz mais de uma hora que estou tratando de meter isto em sua dura cabeça, Villiers.
- Outra vez! - exclamou Diana. - Deveria pensar, deveria saber que inclusive uma mulher que recebeu tantos golpes como eu gostaria de um pedido de matrimônio mais... mais, como diria?, mais romântico. Ainda que fosse para casar-me contigo, o que é inconcebível de todo ponto de vista, nunca o faria se me fizesse um pedido como este: ordinário, mundano e similar a uma transação comercial. Isto é contrário às boas maneiras, às mais elementares regras de cortesia. Realmente me surpreende, Maturin.
- A verdade é que te quero muito, Diana - disse Stephen em tom lamuriento, baixando os olhos.
-...e assim não temos que pôr um cordão - disse Babbington no castelo e depois olhou para o alto da exárcia e, voltando-se para popa, gritou: - Senhor Somerville, acho que podemos largar as sobrejoanetes!
Ouviram os apitos do contramestre e os gritos: "acima! Para os picos! Soltar, soltar!". Os tripulantes do Oedipus haviam desdobrado mais velame com tanta habilidade e rapidez que seu capitão sentiu uma grande satisfação, porque sabia que Jack os havia estado observando. Os dois capitães haviam começado a falar dos vergas outra vez quando se aproximou correndo um cadete, o filho da irmã de Babbington, e, com voz escandalosa, disse:
- Tio William, ela quer que vá à cabine!
Mas imediatamente se serenou e, ruborizando-se, tirou o chapéu e disse:
- Com sua licença, senhor, a dama que está na cabine envia suas saldações ao capitão Babbington e diz que queria falar com ele quando tenha um momento livre.
Foram correndo para a popa. O infante de marinha que estava de sentinela abriu a porta com um olhar expressivo, ainda que não souberam o que expressava, e então entraram. Babbington notou imediatamente que os passageiros haviam feito as pazes, pois, apesar de estarem sérios, tinham uma expressão satisfeita e as mãos dadas, como um casal feliz. Sentiu uma grande alegria e exclamou:
- Oh, senhora Villiers, quanto me alegro de vê-la! Bem-vindo, doutor! Que desejam tomar? Tenho uma caixa de garrafas de champanhe inteira. Tom! Tom! Suba o champanhe!
- Capitão Babbington, meu amigo, quando pensa chegar a Dover? - inquiriu Stephen.
- Dentro de duas ou três horas, não mais, se o vento a maré não mudarem. E se subisse ao cesto da gávea do maior, poderia ver dali o branco escarpado - disse, com um amplo sorriso.
- Então não há nem um momento que perder. Tenho que pedir-lhe um favor.
- Ficarei encantado de servir-lhe.
- Quero que nos case.
- Muito bem, senhor - disse Babbington. - Tom! Tom! O devocionário!
- William - disse Jack num aparte. - Sabe como celebrá-lo?
- Oh, sim, senhor! O senhor sempre nos disse que tinhamos que estar preparados para o inesperado, lembra-se? Está antes do serviço religioso. Obrigado, Tom. Agora, por favor, diga ao meu escrevente que venha. Ah, senhor Adam! Traga o rol e prepare o certificado de matrimônio regulamentar, por favor. Anote a hora e fique aí para que recite os versículos. Quem vai entregar a noiva?
Depois de um momento de vacilação, Jack, olhando nos olhos de Diana, disse:
- Eu a entregarei, porque sou seu parente mais próximo. E estou muito contente e muito orgulhoso de fazê-lo.
- Então o senhor ficará aqui, senhor - disse Babbington e se colocou atrás da mesa de mogno e comprovou se estavam sobre ela o papel, a pluma e o tinteiro. - Doutor, tem um anel?
- Sim - respondeu Stephen e lhe entregou o anel com a ametista.
Babbington colocou os noivos, abriu o livro e, com voz clara, com a típica voz dos oficiais navais, sem afetação nem leveza, leu as palavras rituais. Jack escutou emocionado aquelas palavras que lhe eram tão familiares, e seus olhos se encheram de lágrimas quando ouviu: "até que a morte os separe". E quando ouviu dizer: "Stephen, quer...?" e "Diana, quer...?", pareceu que estava em seu própio casamento e que Sophie estava do seu lado.
- Então os declaro marido e mulher - disse Babbington, fechando o devocionário, e, com a mesma gravidade, atrás da qual se observava agora uma grande alegria, acrescentou: - Senhora Maturin, querido doutor, eu lhes desejo toda a felicidade do mundo.
{1} Brummagem: Nome que vulgarmente se dava a Birmingham, onde se fabricaram moedas de quatro peniques falsas em certa ocasião.
{2} Estadio: Medida de longitude equivalente a 125 passos (201,2 metros).
{3} Bourbon: Uísque de milho e centeio que foi produzido pela primeira vez no condado de Bourbon, no estado de Kentucky.
{4} Cable: Medida de longitud equivalente a la décima parte de una milla (120 brazas o 185,19 metros).
{5} Vela quadrada que os barcos menores usam embaixo da espicha.
{6} Pompey: Nome que os marinheiros davam a Portsmouth.
{7} Navio de quarta classe: Na Armada real, os navios se dividiam em classes atendendo ao número de canhões que tinham; os de quarta classe tinham entre cinquenta e sessenta canhões.
{8} Dog's nose: Mescla de genebra e cerveja.
{9} Flip: Vinho ou licor mesclado com ovo e açúcar e servido com noz moscada polvilhada por cima.
{10} Arábia Feliz: Região da Arábia que abarcava aproximadamente o território do atual Iêmen e que erroneamente era considerada rica e fértil.
{11} Boney: Napoleão Bonaparte.
{12} Ratites: Grupo de animais que inclui aves não voadoras como a avestruz, o emu e o kiwi.
{13} Nova Holanda: Antigo nome da Austrália.
{14} Royal Society: Organização criada por Carlos II da Inglaterra em 1662 para fomentar o desenvolvimento das ciências naturais.
{15} Os marinheiros ingleses davam a muitas cidades, ilhas, marés, etc., nomes diferentes dos verdadeiros porque confundíam a maneira de pronunciá-los, porque passavam a ser de sua propiedade ou já havíam sido no passado e por outras razões. Por exemplo, a La Corana chamavam de Groyne.
{16} Bala vermelha: Bala de ferro que, feita em brasa, se metia na peça de artilharia, e era usada para incendiar.
{17} Na Inglaterra, quando um homem era detido por dívidas, em vez de ir para a cadeia podia ficar sob a custódia de um oficial de justiça em sua própria casa, e quando saldava suas dívidas, devia pagar ao oficial de justiça por sua estadia.
{18} Maelstrom: Redemoinho extraordinariamente forte e perigoso próximo à costa noroeste da Noruega.
{19} Clonmacnois: mosteiro crstão da Irlanda localizado na parte central do país, perto do rio Shannon.
{20} Arrastraculo: vela pequena que se largava debaixo da espicha.
{21} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{22} Perico: Juanete do mastro mesena que se cruza sobre o mastaréu de sobremesana.
{23} Humbug: Farsante.
{24} Bita: cada um dos postes de madeira o de ferro que, fortemente presos à coberta nas proximidades da proa, servem para dar vuelta a los cables da âncora quando se fundeia o barco.
{25} Âncora de leva: cada uma das duas que vão colocadas nas serviolas.
{26} Cadenza: é uma passagem virtuosística, frequentemente baseada em temas expressos anteriormente na obra, na qual o solista tem oportunidade de mostrar sua técnica.
{27} Vinhateira: pedaço de cabo que tem numa extremidade uma alça e na outra um nó que se engasga na mesma alça.
{28} Negus: vinho do porto ou xerez com água, açúcar e especiarias.
{29} Guindaleza: cabo de 12 a 25 cm de diâmetro, de três ou quatro cordões torcidos da direita para a esquerda e de 100 o mais braças de comprimento, que se usa a bordo e em terra.
{30} Estrobo: pedaço de cabo unido por seus chicotes, que serve para suspender coisas pesadas, prender o remo ao tolete e outros usos semelhantes.
{31} Caridade: Quinta âcora de respeito que os navios costumavam levar na bodega.
Patrick O'brian
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