Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ÁLIBI
Segunda Parte
A manhã estava nevoenta e quente. Às dez horas, a igreja episcopal de são Felipe já estava lotada de gente. Os famosos e infames estavam lá, assim como os que tinham ido admirar os famosos e os infames, inclusive o venerável senador dos Estados Unidos na Carolina do Sul e uma estrela de cinema que morava em Beaufort. Alguns nunca tinham conhecido Pettijohn, mas se consideravam suficientemente importantes para comparecer ao funeral de um homem importante. Praticamente todos que estavam lá tinham depreciado o falecido quando ele era vivo. No entanto, se enfileiravam na igreja, balançando a cabeça e lamentando sua morte trágica e prematura. O altar ficou pequeno para acomodar a imensa variedade de arranjos de flores. Pontualmente às dez horas, a viúva foi escoltada ao púlpito principal. Estava de preto da cabeça aos pés, sem absolutamente nada de outra cor, a não ser o colar de pérolas que era sua marca registrada. O cabelo estava puxado para trás num rabo-de-cavalo, sem enfeite algum, sobre o qual usava um chapéu de palha de aba larga que cobria seu rosto. Durante toda a cerimónia ela não tirou os óculos escuros e opacos.
Ela permaneceu respeitosamente em silêncio todo o resto do serviço, apesar de não ter religião. Estava mais interessada nesta vida do que na outra. Queria realizar suas ambições aqui mesmo na Terra. Estrelas numa coroa celestial não eram sua imagem de realização.
Por isso ela se desligou das leituras das Escrituras e dos panegíricos e aproveitou aquela hora para meditar sobre os aspectos pertinentes ao caso, especificamente sobre como podia tirar proveito deles. Hammond tinha sido designado para cuidar do caso, mas era ela, e não ele, que tinha ligado para o procurador Mason na véspera. Tinha se desculpado por interromper o jantar dele, mas quando contou sobre a mentira de Alex Ladd em relação ao seu paradeiro sábado à noite, ele agradeceu por mantê-lo informado. Ela ficou satisfeita porque ganhou alguns pontos com aquele telefonema. Dando mais um passo, ela garantiu para o patrão deles que Hammond provavelmente daria as últimas notícias, mais tarde aquele dia... quando ele tivesse tempo... insinuando que, para Hammond, aquilo não era prioritário. Depois do que pareceu ser uma eternidade, o ministro fez sua louvação e concluiu o serviço.
Entre todas as pessoas reunidas em volta de Davee Pettijohn para dar os pêsames, ela notou Hammond. A viúva abraçou-o carinhosamente. Ele beijou o rosto dela.
Os dois continuaram observando enquanto a sra. E o sr. Preston Cross também abraçavam Davee. Steffi tinha encontrado o casal apenas uma vez num torneio de golfe. Hammond não tinha apresentado Steffi para os pais como sua namorada, e sim como colega de trabalho. Ela admirou Preston, vendo nele uma personalidade forte e imponente. Amélia Cross, mãe de Hammond, era exatamente o oposto do marido, uma dama sulista doce e miúda, que provavelmente nunca tinha expressado qualquer opinião própria em toda a sua vida. Ela provavelmente nunca tivera nenhuma opinião própria na vida.
Por causa da multidão, eles levaram alguns minutos para conseguir sair da igreja.
Smilow se instalou no banco do motorista.
Com sinceridade exagerada, Steffi disse:
Rodaram vários quarteirões antes de Smilow surpreendê-la, dizendo baixinho:
Steffi ouviu com atenção enquanto Smilow contava que tinha encontrado Hammond na suíte do hotel na noite anterior.
A expressão dela traduziu a mais completa surpresa, e a de Hammond também.
O que aconteceu foi uma loucura. Hammond, Steffi, Smilow e Frank Perkins estavam reunidos do lado de fora da sala de Smilow à espera de Alex. Steffi reclamou de ter deixado uma pasta no balcão do sargento-recepcionista. Sentindo claustrofobia, Hammond logo se ofereceu para ir lá embaixo pegar a pasta para ela. Ele saiu da Divisão de Investigação Criminal no segundo andar e caminhou até os elevadores. As portas se abriram. A única ocupante era Alex, obviamente a caminho da sala de Smilow. Ficaram olhando um para o outro, atordoados um segundo, então Hammond entrou no elevador e apertou o botão do primeiro andar. As portas se fecharam, confinando os dois naquele pequeno espaço. Ele sentiu o perfume dela. Notou tudo ao mesmo tempo, cabelo, rosto, corpo. O penteado meio desalinhado, a maquiagem suave e o corpo compacto davam um toque de feminilidade ao conjunto de mulher de negócios que ela estava usando. Uma blusa sem mangas. A pele parecia muito macia e lisa. A pele dela era macia e lisa. Os braços. Os seios. Atrás dos joelhos. Toda ela. Os olhos de Alex estavam tão ocupados quanto os dele, tocando cada detalhe do rosto, exatamente como tinham feito no posto de gasolina segundos antes de Hammond beijá-la. Fazia parte da sensualidade dela, aquela absorção aparentemente total de qualquer coisa em que punha os olhos. A intensidade com que ela olhava para ele fez Hammond sentir que seu rosto era o mais cativante do mundo.
As portas se abriram no primeiro andar. Não havia ninguém à espera do elevador. Hammond saiu, mas ficou com a mão na proteção de borracha para evitar que a porta se fechasse.
Hammond entrou no elevador e apertou o botão para subir. As portas se fecharam.
Ela pôs a mão na base do pescoço.
A raiva cintilou nos olhos dela. Seus lábios se abriram como se ela fosse refutar o que ele tinha dito. O elevador parou. As portas se abriram. Steffi Mundell estava à espera do elevador.
Alex agradeceu a informação muito séria e continuou pelo corredor até a porta dupla fechada.
A pergunta de Steffi fez Hammond cerrar os dentes, mas ele procurou não demonstrar nada.
Hammond foi até o banheiro e ficou feliz de ver que não havia ninguém lá. Na pia, ele se abaixou e jogou água fria no rosto, depois apoiou as mãos na porcelana fria e abaixou a cabeça, deixando a água pingar do rosto na pia. Respirou fundo várias vezes e soltava o ar rogando pragas baixinho. Tinha pedido alguns minutos, mas ia demorar mais que isso para se recuperar. Na verdade, ele provavelmente nunca mais se livraria do aperto da culpa no peito, que o impedia de respirar. O que ele podia fazer? Naquela hora, na semana anterior, nunca tinha ouvido falar daquela mulher. Agora, Alex Ladd era o olho de um furacão que ameaçava sugá-lo e afogá-lo. .Não via saída. Não havia cometido apenas uma concussão. Tinha tornado mais grave e continuava fazendo isso. Se tivesse falado assim que viu o desenho do rosto dela, talvez tivesse podido se redimir.
Ele poderia ter amainado a tempestade se tivesse admitido a sua culpa mais cedo. Afinal de contas, quando a levou para a sua cabana, ele não sabia que mais tarde ela estaria envolvida num crime. Tinha sido a vítima inocente de uma sedução cuidadosamente planejada. Poderiam tê-lo ridicularizado por ter levado uma completa desconhecida para a cama. Ele poderia ser censurado por ter sido indiscreto. Seu pai o teria acusado de ser simplesmente burro. Então ele não tinha lhe ensinado que não devia ter relação sexual com uma mulher que não conhecesse? Não o tinha avisado de todas as calamidades que podiam ocorrer com um homem nas mãos de uma mulher desonesta? Teria sido embaraçoso para ele, para sua família e para a procuradoria. Ele seria o assunto mais picante das fofocas e o alvo de milhares de piadas obscenas, mas teria sobrevivido. Mas isso era discutível. Não tinha revelado a identidade dela e não havia exposto Alex quando ela mentiu sobre uma viagem inexistente até Hilton Head. Tinha ficado lá parado, equilibrando o dever e o desejo, e o desejo venceu. Tinha consciente e deliberadamente omitido uma informação que podia ser o elemento-chave num caso de homicídio, assim como tinha omitido revelar para Monroe Mason seu encontro com Pettijohn sábado à tarde. De acordo com qualquer regulamento de promotor, a conduta dele nos últimos dias era imperdoável. E o que era ainda pior, dada a oportunidade de repensar essas decisões, ele temia fazer as mesmas escolhas erradas. Alex ficou desconfiada da maneira educada com que Smilow puxou uma cadeira para ela sentar. Ele quis saber se ela estava confortável, se gostaria de beber alguma coisa.
Smilow retomou sua posição da véspera, sentado no canto da mesa, um ponto vantajoso, distinto e calculado, porque obrigava Alex a olhar para cima para vê-lo. Quando ouviu a porta abrir atrás dela, ela soube que Hammond tinha chegado. A vitalidade dele movimentou o ar de uma forma especial. Ela não tinha se recuperado totalmente daquele novo encontro com ele. Aqueles momentos no elevador tinham sido curtos, mas o impacto que causaram foi muito profundo. A reação dela foi física e aparentemente visível, porque, quando encontrou Frank Perkins, ele comentou que o rosto dela estava afogueado e perguntou se estava se sentindo bem. Ela culpou o calor do lado de fora. Mas o clima não tinha deixado sua face vermelha nem provocado o formigamento nas partes erógenas do seu corpo. Aquela turbulência emocional e sexual se juntavam à sensação de culpa que alimentava por ter injustamente colocado Hammond no meio daquele dilema. Ela o comprometera deliberadamente. No início, Alex enfatizou para a sua consciência. Só no início. Então a biologia assumiu o controle. E ela sentia aquela pontada agora que ele estava na sala. Ela domou o impulso de se virar para trás e olhar para ele, com medo de Steffi Mundell detectar que alguma coisa estava acontecendo. O promotor tinha parecido avidamente inquisitivo quando ela os viu juntos no elevador. Alex tentara parecer tranquila quando desceu no andar, mas sentiu o olhar de Steffi como ferro de marcar entre suas omoplatas, quando caminhava pelo corredor. Se alguém pudesse notar os sinais que Hammond e ela tinham dado sem querer, essa pessoa seria Steffi Mundell. Não só porque tinha a fama de ser afiada como uma navalha, mas também porque, em geral, as mulheres são mais sintonizadas com as frequências românticas do que os homens. Alex voltou a prestar atenção quando Smilow ligou o gravador e disse o dia e a hora junto com os nomes de todos ali presentes. Então, ele entregou para ela um recorte de jornal.
Sabendo que o detetive estava querendo humilhá-la, ela manteve a voz neutra e sem emoção enquanto lia a história sobre a evacuação e o fechamento de Harbour Town em Hilton Head, na hora exata que ela declarara estar lá, curtindo as atrações. Quando terminou de ler, fez-se um pesado silêncio na sala. Finalmente, com a voz muito baixa, Perkins pediu para ver o recorte. Ela o entregou para ele, mas ficou encarando Smilow, sem querer se submeter ao seu olhar acusador.
Alex. Os dois olharam zangados para ela antes de Smilow continuar.
Alex estava queimando sob o olhar sarcástico de Smilow, mas manteve a pose.
Primeiro para me proteger. E depois para proteger Hammond Cross. Se eles queriam a verdade, era essa. Mas a obrigação de Hammond Cross de dizer a verdade era mais comprometedora do que a dela, e ele continuava em silêncio. Aborrecida depois do encontro que teve com Bobby na noite anterior, ela ficou acordada, pensando naquela situação desagradável. Depois de deliberações torturantes, ela concluiu que, se conseguisse manter Bobby a uma certa distância, ficaria bem. Não podiam encontrar nenhuma ligação dela com Lute Pettijohn. Desde que Hammond acreditasse na sua inocência, seu paradeiro no sábado à noite continuaria sendo um segredo deles dois, porque ele consideraria isso irrelevante. Mas se ele se convencesse de que ela era culpada, seria obrigação dele, como promotor... Ela não quis pensar nisso. Por enquanto ia continuar a cooperar com Smilow até ele desistir de achar que ela estava envolvida e redirecionar sua investigação.
Frank Perkins levantou a mão, mas Alex disse: -
Porque não tenho o hábito de ser interrogada pela polícia. Eu estava nervosa.
Sem saber ao certo se ele pretendia com isso insultá-la ou se era um cumprimento, Alex não respondeu. Ficou aflita de saber que eles tinham conversado sobre ela. Quais teriam sido os “comentários” de Hammond a seu respeito? Ela imaginou. Ela certamente lhe deu muito assunto para comentar...
Fingindo estar ofendida, ela segurou dois tufos de cabelo dele e tentou levantar sua cabeça. Mas ele não deixou.
A barba por fazer no queixo dele arranhou de leve a barriga dela. -Foi o que pensei quando a salvei dos fuzileiros navais. Uma gatinha na dela. Ela deu uma risada.
Então ele encostou a língua nela, e a pose se desfez.
Por um momento, apavorada, ela pensou que tinha gemido em voz alta, ecoando seu orgasmo. O mais terrível é que tinha se virado sem perceber e estava olhando para Hammond. Os olhos dele expressavam excitação, como se tivesse acompanhado os seus pensamentos. Uma veia saltada latejava na têmpora dele. Ela virou a cabeça rapidamente e encarou Smilow, que repetiu a pergunta:
Olhando direto para os olhos implacáveis de Rory Smilow, era difícil mentir.
“É um absurdo alguém com sua impecável reputação e posição respeitada na comunidade estar sujeita a esse interrogatório. Um cara de Macon afirma que a viu num momento em que os intestinos dele estavam prestes a explodir. Você acha sinceramente que ele é uma testemunha confiável, Smilow? Se acha, então reduziu seus padrões rígidos de investigação criminal. De qualquer maneira, você já a incomodou em tudo que tinha para incomodar.” O advogado fez um sinal para Alex se levantar.
De uma pasta de arquivo ele tirou um formulário de registro de posse de arma, que Alex reconheceu. Ela leu rapidamente e passou para Frank examinar.
“Semanas depois da troca, lembrei que o revólver tinha ficado embaixo do banco. Telefonei para a revendedora e expliquei para o gerente o que tinha acontecido. Ele se ofereceu para procurá-la. Ninguém sabia dela. Supus que alguém limpando o carro, ou até quem o comprou depois, tenha encontrado a arma, e pensado: Achei, é minha, e nunca devolveu.”
encaixar.
O detetive ficou olhando um longo tempo para ela.
Dessa vez o advogado não deixou espaço para discussão. Não que Alex estivesse disposta a discutir. Ela estava assustada, mas procurava não demonstrar o medo que sentia. Uma parte importante do seu trabalho era ler as expressões dos seus pacientes e interpretar sua linguagem corporal para poder avaliar o que eles estavam pensando, o que muitas vezes diferia do que estavam dizendo. Como ficavam em pé, ou sentados, os movimentos frequentes contradiziam suas declarações verbais. Além disso, quando falavam, as frases que usavam e a inflexão às vezes revelavam mais que as próprias palavras. Ela aplicou a sua especialidade para entender Smilow naquele momento. O rosto dele podia ter sido esculpido em mármore. Sem nenhuma concessão à diplomacia, ele olhou diretamente para ela, olhos nos olhos, e a acusou de assassinato. Só alguém com a mais absoluta confiança no que estava fazendo podia ser tão resoluto e frio. Steffi Mundell, por outro lado, parecia pronta para dar pulinhos e bater palmas de alegria. Baseada na sua experiência de analisar as pessoas, Alex podia dizer, com certeza, que os policiais achavam que a situação estava definitivamente a favor deles. Mas as reações deles não eram tão importantes para ela quanto a de Hammond Cross. Num misto de antecipação e de medo, ela virou para a porta e olhou para ele. Um ombro estava encostado na parede. Tornozelos cruzados. Braços cruzados sobre o peito. A sobrancelha mais reta estava bem baixa, numa expressão quase de zanga. Para o olho destreinado, ele podia parecer confortável, tranquilo, até despreocupado. Mas Alex percebeu na mesma hora as emoções que borbulhavam perigosamente perto da superfície. Ele não estava nem um pouco relaxado como queria parecer. As sobrancelhas baixas, o maxilar contraído, eram sinais evidentes. Os braços e os tornozelos cruzados não eram componentes de uma pose indolente. Na verdade pareciam essenciais para Hammond manter o controle. Ele era o sonho dos diretores de elenco para o papel de nerd. A começar pelo nome dele, Harvey Knuckle. [Mocotó, dobradiça.] Era um convite explícito para o ridículo. Cabeça de Knuckle. O que comeu no almoço hoje, Harvey, sanduíche de Knuckle? Colegas de turma e depois de trabalho criaram uma variedade de trocadilhos assim e nunca tiveram piedade dele. Além do nome, Harvey Knuckle tinha o physique du role. Tudo nele combinava com o estereótipo. As lentes dos óculos eram grossas. Ele era branquelo e magricelo e tinha coriza nasal crónica. Usava gravata-borboleta todos os dias. Quando o clima ficava frio em Charleston, ele usava suéteres com desenhos de losangos e gola em V por baixo dos paletós de tweed. No verão, eram substituídos por camisas de mangas curtas e paletós de algodão listrado. A única coisa que o salvava, e que ironicamente também combinava com o estereótipo, era que Harvey era um génio do computador. Exatamente as pessoas da prefeitura que mais faziam pouco dele ficavam à sua mercê quando os computadores delas “bugavam”. O refrão mais comum era “Chame o Knuckle. Traga-o aqui.” Na noite de terça-feira ele entrou no Shady Rest Lounge sacudindo seu guarda-chuva ensopado e examinando apreensivamente o lugar cheio de fumaça de cigarro, com olhar míope. Loretta Boothe, que o esperava, sentiu pena dele. Harvey era um bobão desagradável, mas era um peixe fora d’água no Shady Rest. Ele só relaxou um pouco quando a viu caminhando na sua direção.
Antes que ele pudesse escapar, o que parecia que estava prestes a fazer, Loretta segurou o braço dele e o arrastou para um cubículo.
Ainda arisco, ele pôs o guarda-chuva embaixo da mesa, ajeitou as lapelas do paletó e arrumou os óculos no nariz comprido e fino. Agora que seus olhos tinham se acostumado à escuridão, e que tinha examinado melhor os outros fregueses, ele estremeceu.
Desconcertado, ele começou a gaguejar um pedido de desculpas. Loretta deu uma risada.
Ela fez um sinal para o atendente do bar. Harvey pousou as mãos delicadamente na mesa.
Ela pediu para ele um uísque sauer e para ela uma club soda. Notou que ele ficou surpreso, e disse:
Ele gemeu.
Oficialmente ele era funcionário do município, mas o acesso no computador também permitia que ele entrasse nos registros da prefeitura e do estado. Também tinha muita informação à sua disposição, era frequentemente procurado por pessoas dispostas a pagar muito bem para saber o salário dos colegas, coisas assim. Mas Harvey se recusava a tomar parte de qualquer coisa antiética ou ilegal. Ele era irritantemente inflexível em suas recusas para qualquer um que se aproximasse querendo um favor. Por isso, a afirmação crua de Loretta foi um choque para ele. Ele piscou rapidamente por trás das lentes grossas dos óculos.
Ele fez um muxoxo.
drinque e não reclamou quando ela pediu mais uma rodada.
Quando era policial e trabalhava horas extras nos registros municipais, certa noite Loretta tinha encontrado Harvey Knuckle na sala do superior dele, examinando seus arquivos de finanças pessoais e bebericando da sua garrafa secreta de conhaque. O homenzinho ficou mortificado por ser pego em flagrante, fazendo exatamente o que jurava que nunca faria para outra pessoa. Loretta quase não conseguiu controlar o riso, e garantiu para ele que não tinha intenção nenhuma de dar com a língua nos dentes, e desejou boa sorte na sua caça ao tesouro. Quando mais tarde ela foi pedir um favor para ele, Harvey a atendeu sem hesitar. A partir daquela noite, sempre que ela precisava de uma informação, procurava Harvey. E ele sempre colaborava. Ela passou a usar esse recurso valioso desde então.
Ele ficou boquiaberto, agradeceu distraído o atendente do bar que pôs a bebida dele na mesa, e deu um gole rápido.
Ele não ficou muito desapontado. A intriga alimentava seu insaciável senso de aventura. Fazer parte de um segredo, em qualquer medida, significava participar de um círculo interno, quando ele era excluído da maioria. A consciência de Loretta ficava um pouco estremecida ao manipulá-lo daquela maneira, mas ela se dispunha a fazer praticamente qualquer coisa para agradar a Hammond e, assim, compensar seu erro do passado.
Loretta escondeu o sorriso bebendo um gole da sua club soda. Harvey estava pegando o espírito do projeto.
“De acordo com tudo que li sobre eles, eram muito respeitados e irrepreensíveis. Cynthia Ladd recebeu o prémio de Professora do Ano antes de largar a profissão. Os pacientes do dr. Ladd lamentaram muito sua morte. Ele era diácono da igreja. Ela... Ah, deixa pra lá, você já entendeu. Nenhum escândalo, nem nada parecido.”
Ele não parava de morder o lábio, mas Loretta percebeu que sentia-se atraído pelo desafio que a missão representava.
Ele fez uma careta.
-Você tem de falar mais alto – disse Stefi para ele. - Estou no meu celular.
Ele deu uma risadinha.
Hammond pensou seriamente em não atender o telefone. Mudou de ideia segundos antes de a secretária eletrônica atender. E lamentou na mesma hora.
O tom de voz do pai dele transformou a frase numa reprimenda.
Os pais dele tinham um casamento à moda antiga. Os papéis eram tradicionais, claramente definidos, e as fronteiras sempre nítidas. O pai sempre tomava as decisões mais importantes sozinho. Jamais passou pela cabeça de Amélia Cross desafiar esse esquema. Hammond não conseguia entender a devoção cega que a mãe tinha por um sistema arcaico que a privava de sua individualidade, mas ela parecia perfeitamente satisfeita com isso. Ele nunca provocaria o pai ou magoaria a mãe apontando as iniquidades do relacionamento deles. Além disso, sua opinião não tinha importância. Aquilo já funcionava para eles havia mais de quarenta anos.
O pai dele estava mais que simplesmente curioso. Ele queria saber se o filho estava sendo competente.
Sem querer parecer que estava na defensiva, Hammond contou os pontos altos do interrogatório de Alex.
Preston estava bem-informado dos detalhes. Hammond sabia que não ia violar sigilo nenhum porque já tinha sido violado. A amizade de Preston com Monroe Mason datava dos tempos da escola primária. Se tinham acertado nove buracos de golfe hoje, Mason já podia ter divulgado os detalhes, e sobraria pouca coisa para Hammond revelar.
Hammond escolheu as palavras com todo o cuidado, sem saber quando alguma coisa que dissesse poderia voltar para assombrá-lo ou comprometê-lo. Diferentemente de Alex, ele não era um bom mentiroso. Não tinha o hábito de mentir, e desprezava até a menor lorota. No entanto, já tinha cometido duas baitas mentiras por omissão. Ele descobriu que podia mentir para o pai com relativa facilidade.
Hammond reconheceu que era uma daquelas declarações que seu pai acertava rápido na cara. Servia para distrair você do direto no queixo que vinha em seguida.
Hammond cerrou os dentes para evitar dizer as três palavras que lhe vieram à cabeça.
Talvez estivesse, mas quanto mais tempo durava aquela conversa ao telefone mais ele ficava irritado. Principalmente porque não queria que seu pai o monitorasse a cada passo daquele caso. Um julgamento de assassinato daquela magnitude consumia a vida de um advogado. As horas viravam dias, os dias, semanas, às vezes, meses. Ele daria conta. Ia adorar cuidar do caso. Mas não aceitava ser criticado no fim de cada dia. Isso seria uma desmoralização e ele começaria a modificar todas as estratégias.
Hammond não tinha previsto essa. Se fosse um direto no queixo de verdade, seria um nocaute e ele estaria na lona. Cambaleou com o impacto. Cem por cento do tempo o pai parecia saber onde bater, onde ele sentiria mais.
Depois de uma breve pausa, Preston disse em voz baixa:
Os dedos de Hammond tinham ficado brancos e doíam de tanto apertar o telefone.
Ignorando a chuva, Alex resolveu sair para dar uma corrida. Sob o temporal, suas pernas corriam num ritmo constante. O respeito ao regime de exercício parecia essencial numa hora em que o resto da sua vida havia se precipitado no caos. Além disso, depois de atender pacientes com novas consultas marcadas até tarde da noite, era uma válvula de escape para a sobrecarga cerebral. Clareava sua cabeça e permitia que a sua mente vagasse livremente. Ela se preocupava com seus pacientes. Se e quando viesse a público que era suspeita num caso de assassinato, o que aconteceria com eles? O que eles pensariam dela? Mudaria a opinião que tinham? Naturalmente que sim. Não seria nada realista esperar que eles ignorassem seu envolvimento numa investigação de assassinato.
Talvez devesse começar, já no dia seguinte, a tentar distribuí-los entre os terapeutas interinos, para os tratamentos não terem de ser interrompidos se ela fosse presa. Por outro lado, podia nem ter o problema de encontrar substitutos. Quando os pacientes descobrissem que a psicóloga deles tinha sido acusada de assassinato, provavelmente abandonariam a terapia aos bandos. Ela passou por um carro estacionado a meio quarteirão da casa dela e notou que as janelas estavam embaçadas, o que indicava que havia alguém lá dentro. O motor estava ligado, mas as lanternas apagadas e os limpadores de pára-brisa desligados. Ela correu mais uns vinte metros antes de olhar para trás. Agora as luzes do carro estavam acesas. Ele estava entrando numa rua lateral.
Provavelmente não era nada, pensou ela. Estava apenas sendo paranóica. Mas a apreensão persistiu. Será que alguém a vigiava? A polícia, por exemplo. Smilow podia ter mandado vigiá-la. Não seria um procedimento padrão? Ou então Bobby poderia estar observando seus movimentos para garantir que ela não fugisse com o dinheiro “dele”. O carro que tinha visto não era o conversível dele, mas Bobby era engenhoso. Havia outra possibilidade. Algo muito mais perigoso. Uma possibilidade que ela não queria nem imaginar, mas sabia que seria tolice não levá-la em conta. Tinha descoberto que poderia ser alvo de interesse do assassino de Lute Pettijohn. Se a notícia de que ela tinha sido identificada na cena do crime se espalhasse, o matador teria medo de que ela pudesse ter testemunhado o homicídio. Aquela ideia fez Alex estremecer, e não só por temer o assassino. A vida dela no momento estava fora de controle. Era isso que ela mais temia, essa perda de controle. De certa forma, era uma morte mais real do que a própria morte. Estar viva mas não ter opções nem livrearbítrio podia ser ainda pior do que estar morta. Vinte anos atrás ela havia determinado que sua vida nunca mais seria administrada por outra pessoa. Tinha levado quase esse tempo todo para se convencer de que finalmente estava livre dos grilhões que a prendiam, que seria a única responsável pelo seu destino.
Então Bobby reapareceu e tudo mudou. Agora parecia que todos à sua volta interferiam na sua vida e que ela era impotente para resolver qualquer coisa. Depois de correr meia hora ela entrou em casa pela porta do pátio. Tirou a roupa encharcada na lavanderia e se enrolou numa toalha para andar pela casa. Tinha morado sozinha toda sua vida adulta, por isso quando estava em casa sem ninguém nunca sentia medo. A solidão era mais assustadora para ela do que a ameaça de um intruso. Não sentia necessidade de se proteger de ladrões, mas procurava se defender do vazio que sentia nos feriados, quando até a companhia de bons amigos não compensava a falta de uma família. A solidão não era aconchegante nem quando estava sentada diante da lareira numa noite fria. Quando despertava assustada no meio da noite, não era por causa de ruídos imaginários, e sim por causa do silêncio concreto demais de viver sozinha. O único medo que ela sentia por viver sozinha era de ficar sozinha pelo resto da vida. Mas aquela noite ela se sentiu meio ressabiada quando acendeu as luzes do andar térreo e começou a subir a escada. As tábuas rangiam sob seus pés. Estava acostumada com os protestos da madeira velha. Em geral era um som simpático, mas aquela noite parecia ameaçador. No segundo andar, ela parou para espiar a escada escura. O vestíbulo e as salas lá embaixo estavam vazios e silenciosos, exatamente como os tinha deixado quando saiu de casa para correr. Prosseguiu até seu quarto, culpando a chuva pelo nervosismo. Depois de dias de calor abafado, era um alívio, mas chegava a ser demais. Caía a cântaros, batia com força no vidro das janelas e martelava o telhado. Escorria pelas calhas e jorrava das biqueiras. Abriu a porta da varamda do segundo andar e saiu para arrastar um vaso de gardênias para baixo da proteção da projeção do telhado. Lá embaixo, no centro do jardim murado, a fonte de concreto estava transbordando. Pétalas de flores tinham sido arrancadas e a vegetação parecia nua e desamparada. Voltou para dentro da casa, trancou a porta e foi de janela em janela para fechar as venezianas. O temporal era suficiente para deixar qualquer um nervoso. A Battery estava deserta aquela noite. Sem os habituais corredores, ciclistas e pessoas passeando com seus cães, ela se sentira isolada e vulnerável. As enormes árvores dos jardins White Point tinham parecido sombrias e ameaçadoras, e normalmente ela considerava seus galhos baixos e grossos uma espécie de proteção. No banheiro, ela estendeu a toalha na barra de bronze e se abaixou ao lado da banheira para abrir as torneiras. A água quente levou algum tempo para percorrer os canos, por isso ela aproveitou esse tempo para escovar os dentes. Quando endireitou o corpo diante da pia, viu um reflexo no espelho do armarinho de remédios e deu meia-volta. Era seu roupão pendurado num gancho atrás da porta. Com os joelhos bambos, ela se apoiou na pia e pensou que tinha de parar com aquela bobagem. Ela não era assim, de ficar assustada com sombras. O que estava acontecendo com ela? Bobby, para citar uma coisa. Maldito. Maldito!Tolice ou não, ela se permitiu as mesmas fraquezas que teria aconselhado um paciente a permitir. Quando o mundo que construímos com tanto cuidado começa a desmoronar, temos o direito de ter algumas reações naturais, inclusive raiva e amargura, até fúria, e certamente um medo infantil. Ela lembrava de ter sentido medo quando criança. O bicho-papão não chegava aos pés de Bobby Trimble. Ele tinha a capacidade de destruir vidas. Tinha quase destruído a dela uma vez, e estava ameaçando destruí-la novamente. Era por isso que tinha medo dele, agora mais que antes. Era por isso que se assustava com roupões, era por isso que mentia, por isso que fazia coisas irresponsáveis como envolver um homem decente como Hammond Cross em algo sujo. Mas só no início, Hammond. Só no começo. Ela entrou na banheira e fechou a cortina. Ficou bastante tempo parada embaixo do chuveiro, com a cabeça abaixada, deixando a água quente tamborilar no seu crânio enquanto o vapor subia à sua volta. Uma noite de sábado em Harbour Town tinha parecido uma mentira bem segura. Era uma distância de Charleston que dava para acreditar com facilidade, num lugar apinhado de gente em que seria plausível ninguém se lembrar de tê-la visto. Que azar! O que tinha dito para eles sobre o revólver era verdade, mas havia pouca chance de acreditarem naquela história agora. Por ter sido pega em uma mentira, tudo que dissesse depois pareceria falso. Steffi Mundell queria que ela fosse culpada. A promotora odiava as outras mulheres. Alex tinha descoberto isso quando se viram pela primeira vez. Seus estudos incluíam personalidades como a de Mundell. Era ambiciosa, astuta e competitiva ao extremo. Indivíduos como Steffi raramente eram felizes porque nunca se satisfaziam com os outros, mas especialmente com eles mesmos. As expectativas nunca eram realizadas porque eles estavam sempre elevando as barreiras. A satisfação era inatingível. Steffi Mundell era megalomaníaca ao extremo e em detrimento dela mesma. Era mais difícil compreender Rory Smilow. Ele era frio, e Alex não tinha dúvida de que podia ser cruel. Mas também detectava nele um demónio particular com quem ele estava sempre lutando. O homem não conhecia um minuto de paz interior. Sua válvula de escape era atormentar os outros para sofrerem tanto quanto ele. Esse centro de descontentamento deixava Smilow vulnerável, mas ele o combatia violentamente e isso o tornava perigoso para os seus inimigos, como os suspeitos de assassinato. Entre os dois seria difícil escolher quem ela mais temia. E havia o Hammond. Os outros achavam que ela era uma assassina. A opinião que ele tinha dela devia ser bem mais baixa que isso. Mas não podia ficar pensando nele, senão acabaria paralisada pelo desalento e pelo remorso. Não tinha nem tempo nem energia de sobra para se dedicar a lamentar o que poderia ter sido se tivessem se conhecido em outro lugar, numa outra hora. Se existia um homem com chance de tocá-la... tocar sua mente e seu coração, aquele nicho do espírito onde vivia a verdadeira Alex Ladd... podia ser ele. Ele podia ser o homem que acabaria com a solidão e o isolamento que Alex impunha a ela mesma, que preencheria o vazio, povoaria o silêncio, compartilharia a vida com ela. Mas ideias românticas eram um luxo que ela não podia ter. Sua prioridade devia ser superar aquela provação com o seu trabalho, sua reputação e sua vida intactas. Ela espremeu um gel perfumado numa esponja de banho e usou a espuma por todo o corpo. Raspou as pernas. Lavou o cabelo. Ficou enxaguando o xampu um longo tempo, deixando a água quente amaciar seus músculos, mesmo sem aliviar sua angústia. Depois fechou as torneiras e passou as mãos pelo corpo para tirar o excesso de água, e abriu a cortina. Alex nunca gritava, mas então ela gritou. Bobby estava de volta no jogo. Considerava apenas um revés temporário ainda não ter recebido o dinheiro de Alex. Ela ia pagar. Tinha muito a perder. Mas nesse ínterim ele não estava desprovido de fundos. Graças às duas estudantes com quem tinha passado a noite, estava algumas centenas de dólares mais rico. Enquanto as duas jaziam roncando na cama dele, Bobby juntou suas coisas e saiu de fininho. A experiência devia servir de lição para elas. Ele se sentia quase altruísta. Encontrar novas acomodações era uma inconveniência menor comparada com a recompensa. Assim que se instalou em outro hotel do outro lado da cidade, num quarto com vista para o rio, ele pediu um enorme café da manhã com ovos, presunto, cereais e molho tasso, uma pequena pilha de panquecas e uma porção extra de bolinhos de chocolate, que não estava com muita vontade de comer mas que tinha pedido por estar muito animado. A próxima coisa na agenda dele foi sair para fazer compras. Roupas novas não eram extravagância nenhuma. Eram despesas de negócios. Se pagasse imposto de renda, poderia contar seu guarda-roupa como uma dedução. Na sua linha de trabalho, precisava estar bem-vestido. Havia passado o resto da tarde à beira da piscina do hotel, cuidando do seu bronzeado. E agora, com seu novo terno de linho cor creme e uma camisa de seda azul-rei por baixo, ele entrou num bar muito bem recomendado pelo motorista de táxi.
Lisonjeado, Bobby deu um sorriso.
No instante em que Bobby entrou no bar, ele percebeu que o motorista conhecia bem o riscado. Era um lugar para escolhas de primeira. A música era altíssima. As luzes piscavam. Os dançarinos transpiravam. As garçonetes se afobavam para atender os pedidos de bebida das pessoas numa busca desesperada de divertimento. Muitas mulheres sozinhas. Jogo limpo. Ele precisou de duas doses de bebida com água antes de avistar seu alvo. Ela estava sentada a uma mesa, sozinha. Ninguém a chamava para dançar. Ela sorria muito, para qualquer um que passasse por perto, prova de que estava insegura, sabia que estava se expondo porque precisava de alguém com quem conversar. O melhor de tudo é que tinha olhado para ele diversas vezes, enquanto ele fingia não notar. Então, ele agraciou-a caridosamente retribuindo o sorriso. Nervosa, ela desviou o olhar. Levou a mão à garganta e ficou mexendo nas contas prateadas da gola da blusa.
Ele chegou por trás dela, por isso ela não o viu até ele falar.
Ela virou a cabeça de estalo. Revelou o próprio prazer arregalando os olhos e depois tentou disfarçar, jogando charme.
Ele sorriu e sentou com ela à pequena mesa, batendo o joelho no dela, de propósito, e depois pedindo desculpas. Perguntou se podia lhe oferecer um drinque e ela disse que seria muita gentileza dele. O nome dela era Ellen Rogers. Era de Indiana, e aquela era a primeira vez que visitava o Sul Profundo. Estava adorando tudo, menos o calor, mas até o clima tinha um certo charme. A comida era divina. Ela reclamou que tinha engordado dois quilos desde que chegara em Charleston. Ela poderia muito bem perder uns oito, mas Bobby disse galantemente:
Ela deu um tapinha na mão dele e retrucou:
Ele era do Sul, ela observou corretamente. Dava para perceber pelo sotaque arrastado e pelo desenho melódico do seu jeito de falar. E os sulistas são tão simpáticos...
Sorrindo, ele inclinou o corpo para perto dela.
Ele provou isso convidando-a para dançar. Depois de rodopiar com ela algumas músicas, o DJ pôs uma música lenta. Bobby puxoua para junto dele e se desculpou por estar todo suado. Ela disse que não se importava. Suor era masculino. No fim daquela dança, a mão dele alisava a bunda dela e a srta. Ellen Rogers não tinha dúvida nenhuma de que ele estava excitado. Quando ele a soltou, Ellen tinha as maçãs do rosto esfogueadas e estava muito excitada.
Ela segurou a mão dele e levou-o de volta para a mesa. Foi ela que pediu outra rodada de drinques. Enquanto bebiam, Bobby contou sua vida para ela.
Só recentemente ele tinha começado a sair e a curtir a vida de novo, Bobby contou para ela.
Ela esticou a mão por baixo da mesa, apertou com simpatia a coxa dele e deixou a mão lá.
Cristo, eu sou bom mesmo!, pensou Bobby.
Hammond estava parado do outro lado da cortina da banheira.
Ele pegou uma toalha, enrolou-a nela, fechou-a na frente mas não a soltou.
Ele ficou olhando para uma gotinha de água que brilhava na pequena depressão na base do pescoço de Alex. Largou a toalha que a envolvia e se afastou dela, um movimento que merecia uma medalha de honra ao mérito.
Como um boneco, ele andou pelo quarto, sem ver nada, mas observando a marca de Alex em tudo. Cada item no quarto era um reflexo dela. Quando Alex saiu do banheiro, estava de roupão, do tipo antiquado e prático, cruzado na frente e com uma faixa na cintura, opaco como um avental de chumbo, mas mesmo assim muito sexy, porque ela estava nua e molhada por baixo.
Ele olhou para o corte no polegar, que não havia notado até o momento.
A última coisa que ele queria era conversar. Desejava tocar nela. Queria abrir o roupão e apertar o rosto na maciez dela, saborear sua pele, respirar seu perfume. Todo o corpo dele pulsava com desejo físico, mas ele resistiu. Não era responsável pelo sábado à noite. Mas sim por tudo que tinha acontecido depois.
Ele balançou a cabeça bem devagar, assimilando o que já sabia mas não queria aceitar.
Ela inclinou um pouco a cabeça.
notado antes. Ela escorreu por dentro da gola do roupão. A voz dela estava rouca de emoção.
Era isso que ele esperava ouvir, mas se a expressão dele mudou foi para ficar mais triste.
Ela hesitou alguns segundos, depois balançou a cabeça indicando que não.
Com uma risada sem graça, ela balançou a cabeça.
Ela virou-se e olhou para ele com incredulidade estampada no rosto.
Ela baixou os olhos.
“Mas você me procurou. Você me beijou. Depois disso... - ela ergueu os olhos para ele. - Depois daquele beijo, meus motivos iniciais para conhecê-lo perderam a importância. Naquele ponto eu só queria ficar com você. Pode acreditar ou não.
Ela se assustou com a pergunta. Piscou rápido.
Hammond avançou para cima dela e a encurralou contra a parede. Era aquilo que realmente o incomodava. Era aquilo que o tinha feito agir como se tivesse perdido o juízo, dizer loucuras, delirar e se comportar com total desprezo pela sua carreira e tudo o mais que antes achava importante. O desejo de conhecer a resposta para essa pergunta era tão imperativo que o cauteloso, cuidadoso e controlado Hammond Cross vociferava feito um lunático.
Ela balançou a cabeça.
Ele socou a parede atrás dela com os punhos e deixou-os lá. Inclinou a cabeça para a frente e encostou o rosto no dela. A respiração dele estava áspera e ruidosa, soando mais forte que a chuva que continuava a açoitar as janelas.
Ela balançou a cabeça com determinação, e ele entendeu que era inútil pressioná-la mais. Desde que o tormento pessoal dela não tivesse nada a ver com o caso Pettijohn, ele devia respeitar seu desejo de privacidade.
Ele levantou a cabeça e inclinou-se para trás para ver melhor o rosto dela.
A resposta dela foi olhar fixo para ele um longo tempo enquanto uma lágrima escorria pelo rosto. Hammond gemeu.
Um segundo depois Hammond já estava abraçando e beijando Alex. A água pingava do cabelo dela na camisa dele. Os lábios de Alex eram quentes, a língua macia, sua boca doce. Quando finalmente se separaram, disseram o nome um do outro pela primeira vez, riram deles mesmos e depois se beijaram de novo, se possível com mais paixão do que antes. Ele desamarrou a faixa na cintura dela, enfiou a mão no roupão e acariciou a pele macia do ventre, provocando gemidos suaves de Alex quando passou a ponta dos dedos no monte-de-vênus. O sangue de Hammond latejava em seus ouvidos com a força da chuva que batia no telhado. Abafou todos os outros ruídos. Os murmúrios de aviso do bom senso e da consciência não tinham a mínima chance contra aquele turbilhão. Ele a segurou no colo e levou-a para a cama. Então, num frenesi de impaciência, tirou a roupa. Quando deitou em cima dela, ele deu um suspiro que era ao mesmo tempo desejo e desespero. Alex abriu as pernas e ele logo foi envolvido pelo seu calor. Indo mais fundo, ele praguejou baixinho, com a voz entrecortada de emoção.
Com as mãos nos lados da cabeça dela, ele olhou bem para ela e começou a se mexer.
Ela arqueou as costas para acompanhar as investidas dele.
Ele afundou o rosto no pescoço dela. As sensações eram incríveis. Eram tremores que subiam pelo seu pênis, percorriam sua barriga e se espalhavam pelo peito até as extremidades, provocando um formigamento. Ele deixou que tudo o mais escapasse da consciência para poder saborear o fato de estar dentro dela. Mas o clímax estava crescendo rápido demais dentro dele, por isso parou de se mexer e sussurrou com urgência:
Ela guiou a mão dele entre seus corpos e a pôs onde se uniam. Ele moveu os dedos de leve, massageando por dentro e por fora ao mesmo tempo. Ela segurou um seio e o levantou até a boca dele. Ele lambeu o mamilo. O som que ela fez foi quase um soluço. Eles gozaram juntos. Os dois se cobriram. Alex chegou mais para perto e aninhou o traseiro no colo de Hammond. Foi então que ele se deu conta de que não tinha usado proteção nenhuma. Mas não se preocupou demais com isso. De que adiantaria? Agora não tinha mais jeito. Ele só queria abraçá-la. Sentir seu cheiro. Estar perto dela e sentir o calor do seu corpo. Contentava-se em olhar para o rosto dela sobre o seu braço. Pensou que Alex estava dormindo porque os olhos dela estavam fechados, mas notou que seus lábios formavam um sorriso. Ele beijou uma pálpebra.
Ela riu baixinho e olhou para ele. Traçou o formato dos lábios de Hammond com a unha.
Foi a vez de Alex demonstrar desânimo:
Satisfeita, ela sorriu.
Dispensando as frivolidades, ele a beijou com empenho. Quando finalmente afastou o rosto, a expressão confusa de Alex foi um susto.
O procurador Monroe Mason ofereceu uma cadeira para Steffi na sala dele.
A hesitação de Steffi era planejada e ensaiada. Como se estivesse constrangida, ela disse:
Ele olhou para o relógio em cima da mesa.
Mason recostou-se na cadeira e ficou olhando atentamente para ela com o queixo apoiado nas mãos postas.
“É por isso que estou perdida – continuou ela. - Ele parece não se importar com a solução do mistério. Passei para ele tudo que soube do Smilow. Mantive Hammond informado das pistas quentes e das que esfriaram. Ele reage a cada informação com o mesmo grau de desinteresse.” Mason coçou o rosto, pensativo.
Monroe Mason estava chegando ao seu septuagésimo aniversário. Já estava cansado daquela amolação que era ser funcionário público. Nos últimos dois anos tinha delegado grande parte da responsabilidade para os assistentes de promotores mais jovens e ávidos, dando conselhos quando era necessário, mas em geral cedendo autonomia para eles operarem como lhes aprouvesse. Estava louco para se aposentar para poder jogar golfe e pescar o quanto quisesse e não ter de lidar com os aspectos políticos do cargo. Mas não foi por acaso que servira como procurador municipal aqueles últimos vinte e quatro anos. Era um operador muito astuto quando assumiu a posição de procurador, e não tinha perdido nem um pouco dessa qualidade. Seus instintos eram tão aguçados quanto antes. Ainda podia sentir quando alguém não estava sendo totalmente sincero com ele. Steffi tinha contado com a intuição do chefe quando planejou aquela reunião.
-Tem certeza de que não sabe o que está incomodando Hammond?
Fingindo ansiedade, Steffí esticou o lábio inferior.
Ela fingiu pensar com muito cuidado antes de finalmente falar.
Mason deu uma risada.
Mason pensou no que ela estava dizendo.
Ela baixou os olhos como se estivesse aliviada de ter cumprido aquela terrível missão. Disfarçadamente, ela observou seu chefe puxar, pensativo, o lábio inferior. Alguns segundos se passaram. A teoria dela, e o jeito relutante de verbalizá-la, tinham sido perfeitos. Ela não contara para ele que Hammond tinha ido até a cena do crime na noite anterior. Mason podia considerar isso um bom sinal. Steffi não sabia bem o que achava daquela atitude. Em geral Hammond costumava deixar os detetives fazerem seu trabalho sem interferir, por isso tinha achado estranha aquela reviravolta. Devia pensar nisso, porém mais tarde. Naquele momento ela estava ansiosa para ouvir a reação de Mason ao que tinha dito para ele. Dizer qualquer outra coisa ia parecer exagero, por isso ela ficou calada e deu-lhe bastante tempo para meditar.
Ela levantou a cabeça de estalo. Estava tão segura de ter transmitido muito bem a sua ideia que a discordância dele foi totalmente inesperada.
Steffi estava com vontade de rilhar os dentes, mas em vez disso ela deu um suspiro de alívio.
Ele deixou claro que a conversa tinha acabado, levantou-se e pegou seu paletó num cabide de pé.
Steffi seguiu atrás dele até a porta da sala, e insistiu. Tinha de dizer outras coisas para ele.
Achando graça no entusiasmo dela, Mason deu uma risadinha.
Um gemido de protesto se ouviu entre os alunos de medicina que tinham lotado o auditório à capacidade de apenas lugares em pé para ouvir a aula de Alex.
“Os sintomas às vezes são tão bizarros que parecem ridículos e, em geral, são considerados imaginários. Por isso, mesmo se o paciente estiver recebendo tratamento e aprendendo táticas para enfrentar o distúrbio de ansiedade aguda, sua família também deve ser instruída para saber como lidar com esse fenómeno. “Agora eu realmente tenho de dispensar vocês, senão seus outros instrutores vão querer a minha cabeça. Obrigada pela sua atenção.” Eles a aplaudiram com entusiasmo e depois começaram a sair. Vários alunos foram falar com ela, apertar sua mão, dizer que a palestra tinha sido muito interessante e informativa. Um deles até apresentou uma cópia de um artigo que Alex havia escrito e pediu para ela autografar. O anfitrião de Alex não se adiantou até o último aluno partir. O dr. Douglas Mann lecionava na Universidade de Medicina da Carolina do Sul. Ele e Alex tinham se conhecido na faculdade e tornaram-se amigos desde então. Ele era alto e magro, careca como uma bola de bilhar e excelente jogador de basquete, solteiro convicto por motivos que não tinha revelado para Alex.
Ela riu do que considerava um cumprimento não merecido.
Alex virou e deu de cara com Bobby Trimble. O coração dela deu um pulo.
Ele segurou sua mão e apertou-a com entusiasmo.
Doug, sem perceber o mal-estar de Alex, apresentou-se e apertou a mão de Bobby.
Virando abruptamente, ela se dirigiu à saída. Doug resmungou uma despedida apressada para Bobby e correu para alcançá-la.
Mas não estava nada bem. Estava qualquer coisa, menos bem. A aparição inesperada de Bobby era seu jeito de informar que ele podia se intrometer a qualquer momento. Com facilidade. Não havia uma área da vida dela que ele não pudesse invadir se quisesse.
Doug tinha insistido em pegá-la aquela manhã e dar uma carona até o Centro Médico da UMCS porque as vagas para estacionar perto do enorme complexo eram raras. A caminho do Centro da cidade, ele agradeceu mais uma vez.
Ela procurava esconder sua aflição mantendo a conversa superficial. Trocaram fofocas sobre amigos e colegas que tinham em comum. Ela perguntou sobre a pesquisa de AIDS em que ele estava trabalhando. Ele perguntou se havia alguma coisa nova e excitante acontecendo na vida dela. Se dissesse, ele não acreditaria. Ou talvez acreditasse, ela se corrigiu quando eles entraram na rua dela.
Doug parou o carro e já ia descer quando Alex o impediu:
Ela apertou o braço dele, saiu do carro, passou pelo portão e subiu quase correndo o caminho até a casa, notando que a cena na sua porta da frente tinha atraído a atenção de vários transeuntes. Um turista tirava fotografias da casa, o que não era nada incomum. A rua era incluída em todos os passeios turísticos. Apesar de semelhantes na planta, cada casa naquele quarteirão apresentava pelo menos uma faceta distinta de significado histórico. Aquela manhã, a casa dela se destacava das outras por causa do carro da polícia estacionado em frente.
Alex olhou furiosa para Smilow por cima do ombro da mulher aflita.
Alex pôs as mãos nos ombros da mulher, fez com que ela desse meia-volta e andou com ela até o carro. Levou alguns minutos para garantir-lhe que estava tudo bem e que sua consulta seria marcada o mais cedo possível.
Só depois que o carro se afastou, Alex virou para trás. Dessa vez, enquanto seguia para a porta, não tirava os olhos de Smilow.
Ele tirou o documento do bolso no peito do paletó. Alex olhou para os três outros policiais flanando na porta da casa dela, e de novo para Smilow.
Sem dizer mais nada, ele acenou para seus homens entrarem. O que Alex achou mais ofensivo talvez tenham sido as luvas que eles calçaram antes de entrar, como se a casa e ela estivessem contaminadas e eles precisassem de proteção. Primeiro ela chorou. Despertar e se encontrar no pior pesadelo que uma mulher solteira pode imaginar – pelo menos para uma professora solteira de um subúrbio de Indianápolis. - Ellen Rogers sentou-se na cama, apertou o lençol na garganta e chorou convulsivamente. De ressaca. Nua. Violentada. Abandonada. Revivendo os acontecimentos da noite anterior, primeiro teve a impressão de que tinha mergulhado em uma das suas fantasias, em que um belo desconhecido a tinha escolhido em vez das meninas mais jovens, mais bonitas e mais magras da boate. Ele tinha tomado a iniciativa. Ele a tinha escolhido para dançar e para pagar os drinques. A atração foi instantânea e mútua, como sempre imaginou que seria quando “aquilo” finalmente acontecesse com ela. Além disso, ele não era insípido nem superficial. Tinha uma história. A história dele era de amor e perda e tinha partido o coração dela. Tinha amado demais a mulher. Quando ela adoeceu, ele se dedicou inteiramente a cuidar dela, até ela morrer. Apesar dos sacrifícios que isso representou na vida dele e nos seus negócios, ele cozinhava, limpava a casa e lavava a roupa. Cumpriu tarefas pessoais para a esposa, mesmo as mais desagradáveis. Nas raras ocasiões em que ela podia sair, era ele que fazia sua maquiagem. Tanto sacrifício! O amor era exatamente isso. Valia a pena conhecer aquele homem. Era um homem que merecia todo o amor que Ellen acumulava havia anos, e desejava desesperadamente partilhar. Ele também tinha sido um amante fantástico. Mesmo com a experiência dela limitada a um primo mais velho, que um dia a forçara a fazer sexo oral com ele, um namorado que falou de amor entre duas trepadas mal dadas no carro antes de acabar o namoro com ela, e um professor casado com quem ela teve um excitante mas não consumado flerte até ele ser transferido para outra escola, ela soube reconhecer que Eddie – esse era o nome dele – era excepcional na cama. Tinha feito coisas com ela que só tinha lido a respeito nos romances que colecionava em caixas etiquetadas no porão. Ele a exauriu com a sua paixão. Mas agora o brilho cor-de-rosa do romance era apagado pelo terror negro que acompanha esses programas de uma noite com um completo desconhecido. Gravidez. (Ei, podia acontecer com mulheres de mais de quarenta.) DST. AIDS. Qualquer consequência dessas arrasaria seu sonho de um dia se casar. Sua chance de chegar ao matrimónio ficava menor a cada ano que passava, mas a indiscrição da véspera tinha realmente tornado impossível esse sonho. Que homem ia querê-la agora? Um homem decente, não. Não agora que tinha um passado. A situação dela não podia piorar muito. Mas piorou. Ela foi roubada também. Descobriu isso quando finalmente saiu da cama para ir ao banheiro e avaliar os danos. Viu que a sua bolsa não estava na cadeira onde a tinha deixado na noite anterior. Lembrava-se muito bem. Não era algo que ia esquecer porque aquela tinha sido a primeira vez que um homem chegara por trás, apertando seu... sabe o quê... ne!a. Ele a abraçou, enfiou a mão no vestido e acariciou seus seios. Com os ossos praticamente derretendo, ela deixou a bolsa cair na cadeira. Tinha certeza disso, Mesmo assim, deu uma busca frenética no quarto, e se censurou por não ter dado ouvidos aos comerciais da televisão que avisavam para nunca sair de casa sem traveler’s checks. Pode ter sido por causa daquela auto-incriminação dolorosa, ou por lembrar da facilidade com que o falastrão do Eddie a convencera de todas aquelas mentiras, mas Ellen Rogers de repente parou sua busca inútil da bolsa e ficou perfeitamente imóvel no meio do quarto de hotel. Ainda nua, pôs as mãos nos quadris, desvencilhou-se da sua personalidade decorosa e xingou feito um marinheiro. Não sentia mais pena dela mesma. Estava furiosa. Era quase meio-dia quando Hammond chegou ao fórum. Ao passar pela mesa da recepcionista, pediu para ela levar uma xícara de café para ele. Não ficou feliz de ver Steffi à sua espera, dentro da sua sala. Para deixá-lo ainda mais aborrecido, ela olhou para ele e disse:
Hammond só tinha voltado para casa quase ao amanhecer. Quando adormeceu, dormiu profundamente algumas horas. Ao acordar, maldisse a hora que viu no relógio de cabeceira. Não precisava da acusação de Steffi de que estava iniciando o dia de trabalho com muito atraso.
Tinham sido necessários dois Band-Aids para cobrir o corte.
Ele ocultou sua reação espontânea interior, tratando calmamente dos seus afazeres – deixou a pasta na mesa, tirou e pendurou o paletó, folheou uma pilha de correspondência e recados telefónicos. Leu um, distraído, e perguntou:
Extremamente perturbada, Steffi cruzou os braços.
Ele sentou-se à mesa dele e agradeceu à recepcionista quando ela lhe deu uma xícara de café.
Isso perturbou Hammond.
Ficaram se encarando, cada um de um lado da mesa. Ele estava zangado por ser excluído do elo apertado que ela havia formado com Smilow. Estavam praticamente unidos pela cintura naquele caso. Mas por mais que detestasse admitir, os argumentos dela eram válidos. Ele estava zangado com ele mesmo e com a situação, e descontava nela.
Ela explicou que identificaram a lasquinha como cravo-da-índia e que Alex Ladd tinha laranjas com cravos num pote na entrada da casa dela.
Com um nó na garganta, Hammond perguntou:
O telefone dele tocou e a recepcionista informou que era o detetive Smilow na linha.
Ela ficou ouvindo um pouco, verificou seu relógio de pulso e depois disse alegremente:
-Acho que a dra. Ladd entendeu que está no meio da maior “você sabe o quê”. Está vindo para ser interrogada de novo.
Apesar de ter a mesa cheia de papéis intocados, minutas, memorandos e recados não respondidos, ele nem cogitou em mandar Steffi no seu lugar. Precisava estar lá para ouvir o que Alex tinha para dizer, mesmo se fosse alguma coisa que ele não quisesse ouvir. O pesadelo ao vivo continuava. O horror aumentava. Smilow era irreprimível, mas o homem não podia ser acusado de fazer o seu trabalho e fazê-lo bem. Alex... droga, ele não sabia o que pensar de Alex. Ela havia admitido tê-lo comprometido deliberadamente, indo para a cama com ele, mas se recusava a explicar por quê. Que outro motivo haveria senão algo ligado a Pettijohn e/ou ao seu assassinato? Com medo do desconhecido, Hammond se movia como se tivesse de se arrastar em areia movediça quando saíram do prédio. O sol parecia um maçarico. O ar estava pesado e parado. Nem o ar-condicionado do carro de Steffi dava conta. Ele estava transpirando quando subiram os degraus da entrada da sede da polícia. Dessa vez ele subiu no elevador com Stefí para o território de Smilow. Steffi bateu uma vez na porta da sala antes de entrar.
Smilow, que tinha começado sem eles, continuou falando ao microfone do gravador.
Alex virou-se para Hammond. Ele estava atrás de Steffi.
Quando Hammond se abaixara ao lado da cama aquela manhã para dar um beijo de despedida, Alex tinha posto a mão na nuca dele e levantado o rosto para beijá-lo demorada e profundamente. Quando o beijo finalmente terminou e ele gemeu por ter de deixá-la, ela sorriu para ele sonolenta, sensual, com olhos de sono e pálpebras pesadas. Agora Hammond lia naqueles olhos uma apreensão igual à dele.
Liquidadas as formalidades, Frank Perkins disse:
Steffi deu um sorriso afetado. Smilow não demonstrou reação alguma e fez sinal para Alex falar. A voz firme dela ocupou o silêncio da expectativa.
Por que mentiu sobre isso?
Steffi bufou incrédula, mas Smilow a inibiu com um olhar muito sério.
-Até agora.
-Asenhora costuma fazer tais sacrifícios pelos seus pacientes? Dar recados e coisas assim?
Frank Perkins franziu o cenho para a piadinha de mau gosto de Steffi.
Antes de o advogado poder chamar a atenção de Steffi de novo, Smilow continuou:
Todos na sala reagiram à pergunta inesperada, mas ninguém com mais violência que Hammond. Ele deu um pulo como se tivesse levado uma mordida da parede onde estava encostado.
Frank Perkins estava enlouquecido.
Smilow e Hammond continuaram se encarando como pit-bulls presos às coleiras. Smilow foi o primeiro a se recompor. Alisou o cabelo para trás e puxou os punhos da camisa. Voltou para a sua mesa e ligou de novo o gravador.
Hammond queria gritar Bravo, Alex! Ela tinha todo o direito de estar indignada. Smilow tinha preparado aquela pergunta para deixála abalada, desconcertada, para interromper sua concentração e poder pegá-la numa mentira. Era um velho truque usado pelos profissionais, e normalmente funcionava. Mas não dessa vez. Smilow não tinha conseguido desestruturar Alex, só a deixara furiosa.
-A senhora pode explicar como um pedaço de cravo-da-índia foi parar na manga do sr. Pettijohn? A expressão de raiva de Alex relaxou um pouco, e então ela riu.
Frank Perkins sorriu e Hammond sabia o que o advogado de defesa estava pensando. No tribunal, ele seguiria aquele mesmo raciocínio até os jurados começarem a rir da alegação da promotoria de que o cravo era o cravo da dra. Ladd.
Se Smilow ouviu o que o advogado disse, nem deu mostras. O olhar cristalino não desgrudou do rosto de Alex.
Ela ergueu uma sobrancelha como se dissesse Então que pergunta é essa?
aparentemente nem Alex. Pela primeira vez a reação dela foi bem visível e reveladora.
Observando Alex bem de perto, Smilow disse:
Smilow desligou o gravador. Perkins puxou a cadeira para ela se levantar.
Ele empurrou sua cliente de leve para a porta. Hammond tentou não olhar para ela, mas não conseguiu. Ela deve ter sentido seu olhar porque olhou para ele ao passar. E assim eles olhavam um para o outro quando Smilow perguntou:
Dessa vez a farpa acertou o alvo. Alex perdeu o controle. Não usou sua cautela habitual nem deu ouvidos aos pedidos insistentes do advogado para não dizer nada. Ela reagiu automaticamente:
Steffi, Smilow e Hammond tinham ficado na sala depois que Frank Perkins saiu furioso com sua cliente. Mas os dois não ouviam nada que Steffi estava dizendo. Estavam se encarando como gladiadores prestes a iniciar uma luta até a morte. O último a morrer é o vencedor.
Hammond desferiu o primeiro golpe:
Hammond olhou para ela soltando faíscas dos olhos, mas Smilow chamou a atenção dele.
Hammond aproximou o rosto do rosto de Steffi.
Os tendões no pescoço dele se esticaram. O rosto ficou vermelho e uma veia na testa começou a latejar. Steffi o tinha visto furioso com policiais, juizes, jurados, com ela, com ele mesmo. Mas nunca tinha visto Hammond tão furioso assim antes. Surgiram dúvidas na mente dela, perguntas que ia ruminar quando estivesse sozinha e tivesse tempo para pensar com todo o cuidado.
Hammond riu com desprezo.
Smilow parecia que ia bater em Hammond. Com esforço, ele respirou pelas narinas que estavam quase fechadas de tanta raiva. Steffi achou mais prudente entrar na conversa:
As sobrancelhas de Smilow se juntaram.
Smilow sorriu de orelha a orelha.
Smilow acenou para a porta.
Steffi estava ficando cada vez mais impaciente com a estupidez de Hammond.
O silêncio foi tão repentino e carregado de tensão que a batida na porta soou como um tiro de canhão. Monroe Mason abriu a porta e enfiou a cabeça na sala.
Todos resmungaram cumprimentos e então ninguém disse nada por uns trinta segundos.
Depois Mason dirigiu-se a Steffi:
Ela olhou para Hammond e para Smilow e virou-se de novo para Mason.
Mason olhou para Hammond:
Na minha opinião, nós não temos nada. Eles estão se contentando com isso, mas acontece que não são eles que têm de apresentar o caso para o grande júri.
Steffi percebeu que aqueles próximos minutos seriam a chave do seu futuro. Hammond era o protegido de Monroe Mason. Aquela manhã mesmo, quando externara suas preocupações com a aparente indiferença de Hammond quanto ao caso, Mason tinha pulado em defesa dele. Contradizer seu sagrado sucessor podia não ser a melhor coisa a fazer. Por outro lado, ela não podia deixar uma suspeita perfeita escapar só porque Hammond tinha ficado supersensível. Se ela jogasse direito, Mason poderia ver uma fraqueza no seu herdeiro necessário que não tinha visto antes. Podia notar um defeito de caráter que prejudicaria a eficiência de um promotor durão.
-Acho que o que temos da dra. Ladd é forte o suficiente para um mandado de prisão – declarou ela. - Não sei o que estamos esperando.
Steffi não podia acreditar que Smilow estava concordando com Hammond, e Hammond parecia tão atónito quanto ela. Mason estava interessado no que Smilow tinha a dizer.
No entanto, do ponto de vista legal, Hammond tem razão. Não temos a arma. E não temos...
“Pelo que pude perceber do caráter dela, creio que se submeteria à pena de morte para não trair a confiança de um paciente, mesmo se esse paciente for sua única defesa. Não que eu acredite naquela história de dar um recado de um paciente. Não acredito. E também não acredito naquela bobagem de ir à feira e todo o resto.
“Mas – disse ele enfaticamente – o fato é que não estabeleci um motivo para ela matar Lute Pettijohn. Nem fiz nenhuma conexão entre os dois, em suas vidas pessoais, nem nas profissionais. Se ele era paciente dela, nunca assinou um cheque para ela. Se ela investia em um dos negócios imobiliários dele, não há registro. Não posso nem sequer pôr os dois juntos num jantar.
“Tenho um cara investigando no Tennessee, que é de onde ela vem, mas até agora ele não descobriu grande coisa, só o currículo escolar dela. Se Pettijohn já esteve alguma vez no estado do Tennessee, não deixou nenhum rastro por lá.”
Smilow olhou para Hammond:
Ammond olhou bem para Smilow e depois para Steffi. Então virou-se Para Mason, que parecia ansioso para ouvir sua resposta. Finalmente ele disse:
Eu poderia trabalhar com o que temos. Mas teria de ser uma motivação danada de forte.
Hammond sorriu meio sem querer e agradeceu ao garçom o drinque que tinha pedido.
A reunião não podia ser chamada de festinha. Os salões do primeiro andar da mansão Pettijohn estavam abarrotados de amigos, conhecidos e agregados que também eram rebeldes e não davam a mínima se a viúva promovia uma festa no dia seguinte ao funeral do marido ou não. Não havia possibilidade de considerá-la uma espécie de velório. Era um bacanal fora de hora, tremendamente impróprio, mas essa era a ideia, claro.
Hammond não podia brindar a isso, e ficou constrangido com o fato de Davee poder. Concentrou sua atenção na festa. Eles estavam no balcão do segundo andar, um ponto excelente para observar os convivas.
A festa daria muito material para as fofocas. Os amplificadores da banda de rock estavam no máximo. A comida servida pelo bufê era farta. O suprimento de bebidas era ainda mais abundante. Havia drogas à vontade também. Mais cedo Hammond tinha reconhecido um traficante famoso que escapara da prisão inúmeras vezes. Ele avistou um escritor de best-sellers que recentemente tinha saído do armário. Para celebrar sua decisão libertadora, ele estava namorando descaradamente seu par daquela noite. O espetáculo público, sem pejo, dos dois talvez chamasse atenção, se não fosse uma jovem deslumbrante que exibia seus seios recentemente aumentados para um grupo de admiradores ávidos que eram convidados a tocar e experimentar.
Hammond deu uma vista de olhos nela.
Davee estendeu os braços e executou uma pirueta para exibir sua roupa. Feita de seda crua vermelha, consistia de uma calça justa no cós e um top cortado logo abaixo do busto. A calça tinha o cós perigosamente baixo. Na cintura, ela usava uma corrente de ouro bem fina. Em cada braço, pelo menos uma dúzia de pulseiras de ouro.
Ela terminou o rodopio encostando o corpo com força no dele. Hammond deu uma risada.
Ela abaixou os braços e franziu a testa.
-Vá à merda-ele riu, mas Davee só franziu mais o cenho. - Como pode dizer algo tão cruel se nem ao menos tenho um par na minha própria festa?
Como resposta à piada de mau gosto, ela disse sarcasticamente:
Davee o levou pelo corredor até o quarto dela. Com a porta fechada, obtiveram um alívio temporário, mas abençoado, da música. Ela se recostou na porta e fechou os olhos.
Ela tirou o copo molhado da mão dele e pôs ao lado do dela. O que aconteceu em seguida pegou Hammond completamente de surpresa. Ela pegou a mão dele e pôs na sua cintura nua, depois ficou na ponta dos pés e o beijou, e colou de novo o corpo no dele, sem o exagero da outra vez, mas com um movimento ainda mais sugestivo. Ele reagiu como se levasse um susto, jogando a cabeça para cima e para trás.
Ela passou os braços em volta do pescoço dele e tentou beijá-lo de novo, e quando ele não reagiu, ela abaixou os calcanhares e olhou para ele evidentemente desapontada.
-Não?
Ela deu um sorriso largo e tentou beijá-lo na boca novamente, mas ele inclinou a cabeça para trás.
O coração dele praticamente parou de bater.
Davee inclinou a cabeça, perplexa.
Admitir o caso com Steffi era menos prejudicial do que responder à pergunta dela.
Hammond deu uma risada.
Ela assumiu um ar de arrogância.
Ele não admitiu, nem negou. Exasperada, ela pôs os punhos fechados nos quadris. Eu joguei isso para você – disse ela, referindo-se ao seu belo corpo. - Ofereci sem nenhum compromisso, sucesso sem preocupação, e você me desprezou. Por isso, ou você virou bicha ou está amarrado em outra mulher, ou então perdi toda a minha atração sexual e posso muito bem me matar esta noite. Qual vai ser?
Ela não proferiu nenhuma das exclamações a que tinha direito. Nenhum “Eu sabia!”, nada de “Você não pode me enganar, Hammond Cross!”. Nada disso.
Ao contrário, ela reagiu à solenidade da resposta dele dizendo baixinho:
Hammond ficou olhando para ela um tempo, resolvendo se devia tentar mentir ou não. Antes do caso com Steffi, tinha namorado muitas mulheres, mas nunca por muito tempo. Em Charleston, ele era conhecido como um bom partido, com dinheiro de família e muito promissor. Montes de mulheres solteiras disputavam atrevidamente a companhia dele. Sogras em potencial o consideravam uma presa excelente.
Até a mãe dele estava sempre querendo apresentar filhas e sobrinhas das amigas dela.
-A família dela é da Georgia. Do ramo de madeireiras. Talvez seja de pneus. Alguma coisa assim.
Uma resposta irreverente provavelmente convenceria Davee de que o caso atual não passava disso. Mas Davee era sua amiga mais antiga, e ele estava farto de mentir e de mentiras. Abaixou-se ao lado da espreguiçadeira e juntou as mãos entre os joelhos afastados. Inclinou um pouco os ombros para a frente.
De qualquer forma, ela recuou.
Ele ergueu as sobrancelhas.
Aos poucos o sorriso de Hammond se desfez.
Ela terminou seu drinque e serviu-se de outro.
“Milagrosamente ele nem desconfiava da minha reputação. Alguns dos meus antigos parceiros acharam que seria muito engraçado contar para ele.”
Ela foi até a janela e ficou espiando através das venezianas.
“Quando ele veio confirmar comigo tudo que tinham contado para ele, fiquei arrasada por ele ter descoberto a verdade sobre o meu comportamento. Implorei para ele me perdoar. Para procurar entender. Para acreditar que eu tinha mudado quando o conheci. Mas ele nem quis ouvir – ela inclinou a cabeça para a frente e encostou a testa nas venezianas. - Naquela mesma noite, para me humilhar, ele dormiu com outra. E ela ficou grávida.”
Ela ficou tão imóvel que nem as suas pulseiras tilintavam, - Do ponto de vista moral e religioso, um aborto estava fora de cogitação. E tampouco teria passado pela cabeça dele fazer qualquer outra coisa senão a certa. Por isso ele se casou com ela. Por mais estranho que possa parecer, Hammond, foi aí que eu o amei mais. Eu queria muito ter filhos com ele.
Hammond esperou até ter certeza de que ela terminara a história, até ela se mexer de novo, e esse movimento foi para levar o copo aos lábios.
Ela deu as costas para a janela e olhou para ele.
Quando Hammond juntou todas as pistas, seu queixo caiu. Sem emitir nenhum som, os lábios dele formaram o nome.
Ela deu uma risada fria.
“A mulher com quem ele tinha se casado morrera de parto e o bebé nasceu morto também. - Ela fez uma pausa para refletir a ironia daquilo tudo. - Os pais dele também já tinham morrido, por isso a responsabilidade pela Margaret era dele. Ela mudou-se para cá com ele. Ela conseguiu um emprego de funcionária pública no tribunal. Registros municipais, de terras, coisas assim. Foi lá que ela conheceu Lute. Não ficaria admirada se soubesse que o romance começou depois de Margaret fazer algum favor para ele, como modificar o limite de alguma propriedade ou algo assim.” A mim também não surpreenderia – observou Hammond. Ouvi dizer que aquele casamento era um pesadelo.
“Por isso, depois do suicídio de Margaret, fui atrás de Lute e não parei de persegui-lo até ele se casar comigo. Rory tinha partido meu coração. Então tentei partir o dele casando com o homem que ele mais desprezava – acrescentou ela com tristeza. - A vingança sempre acaba dando um chute no traseiro de quem se vinga, não é?”
Ela foi até uma escrivaninha antiga e abriu a gaveta estreita da tampa.
A visão de Hammond ficou embaçada quando ele olhou para a anotação.
Ele olhou para ela.
Ela deu uma risada.
Ele ficou olhando fixamente para a segunda anotação no pequeno quadrado de papel.
Obviamente Lute pretendia se encontrar com mais alguém aquela tarde, depois da hora marcada com ele. Quem?, ele imaginou. Pensativo, Hammond dobrou o pequeno pedaço de papel e o guardou no bolso.
-E quando foi que me viu fazer a coisa certa? - O sorriso malicioso dela ficou tristonho. - Aprendi da forma mais difícil que é perda de tempo tentar magoar Rory. Acho que ele nunca se magoa – então o sorriso desapareceu por completo. - Mas também não me sinto obrigada a fazer nenhum favor para ele.
O atendente do bar, um jovem corpulento, de rabo-de-cavalo e uma argola prateada na sobrancelha, olhou para ela de um jeito que dizia que ela era extraordinariamente fácil de esquecer.
Uma loura pernalta de vestido preto justo sentou-se sinuosa num banco ao lado. O atendente do bar estendeu o braço pela frente de Ellen para acender o cigarro dela.
Ele apoiou os cotovelos no bar e chegou mais perto dela.
Com pouca esperança de que fosse adiantar alguma coisa, ela deu para ele um pedaço de papel.
Ela viu quando ele guardou o número do telefone no bolso, sabendo que a lavanderia provavelmente encontraria o papel lá alguns dias depois. Tinha entrado no bar com passos determinados e orgulhosos de uma guerreira em cruzada. Era uma mulher encarregada de uma missão. Aquela manhã, depois que o choque inicial diminuiu e ela teve tempo de se recompor, resolveu encontrar a pista do mentiroso filho-da-mãe e entregá-lo à polícia. Quando escureceu, ela partiu determinada a vasculhar cada boate em Charleston se fosse preciso, para denunciá-lo. Aquele tipo tinha transformado suas trapaças em uma arte. Relembrando, ela compreendeu que ele estava calmo demais para ela ter sido sua primeira vítima. E também não seria a última. Impetuoso e confiante depois do sucesso da véspera, seu sedutor sairia para caçar novamente aquela noite. Mas na saída do bar o ânimo dela já estava reduzido. Reconheceu que era estupidez ficar andando por Charleston à procura de um ladrão mentiroso que só conhecia como Eddie, que muito provavelmente era um nome falso. O sapato novo de couro que tinha comprado especialmente para aquela viagem de férias estava apertando seus dedos, transformando seus passos num cambalear. Ela estava com fome, mas toda vez que tentara comer ficava nauseada por causa do consumo de bebida da noite anterior e da auto-recriminação daquela manhã. Não que pudesse se dar ao luxo de comer em qualquer restaurante decente, lembrou ela com amargura. Tinha avisado às companhias de cartão de crédito sobre o furto, mas levariam dias para mandar os novos cartões. Por sorte, tinha lembrado que pusera algum dinheiro num bolso de um blazer. Era apenas uma fração do que Eddie havia roubado, mas se economizasse ia dar.
Então, por que simplesmente não reduzia seu prejuízo e voltava para casa? Charleston estava estragada para ela. O calor abafado que enfatizara o charme romântico da cidade agora provocava irritação e dor de cabeça. Se ficasse o tempo que tinha planejado, não poderia pagar nenhum passeio ou programa. E menos noites significariam uma conta de hotel menor. O bom senso dizia que ela devia voltar para Indianápolis no dia seguinte. A companhia aérea ia cobrar para trocar sua passagem, mas valia a pena. Segura na sua casinha, com seus dois gatos e suas coisas, ela podia se retirar para lamber as feridas até o semestre do outono começar. Com o tempo, o trabalho e a rotina iam apagar o terrível incidente da memória dela. Em todo o caso, andar mancando por Charleston à procura de Eddie era perda de tempo e desperdício de energia. Por outro lado, naquele exato momento, enquanto ela mancava com seus sapatos de couro desconfortáveis que provocavam bolhas, ele provavelmente estava seduzindo outra dama solitária que acordaria na manhã seguinte sem seu talão de cheques e sem respeito próprio. O crime não seria registrado porque a vítima teria vergonha demais de revelá-lo às autoridades. Era por isso que Eddie fazia aquilo com tal arrogância, porque saía sempre impune. Bem, dessa vez ele não sairia impune.
Hammond deslizou no banco do cubículo de frente para Loretta.
-Você não tem esse tempo todo. Eu mesmo estou sem tempo; por isso, tem alguma coisa para mim ou não?
Ele não a culpou por ficar ressentida. Ele estava agindo como um grosso. A visita a Davee o tinha deixado mais desconcertado do que antes. Quando entrou no carro e usou seu celular para verificar os recados, só ficou um pouco contente de ouvir a voz de Loretta pedindo para ir encontrá-la assim que pudesse no Shady Rest Lounge. Vê-la significava alongar um dia que ele já queria encerrar. Por outro lado, ele estava ansioso para saber o que a investigação dela tinha revelado.
Ele balançou a cabeça, suspirou profundamente e se desculpou:
Ela pediu para ele uísque com água.
Em menos de um minuto Hammond já estava com seu drinque na mão e tomava um gole.
Ela deu uma risada bebendo club soda.
Loretta tinha melhorado muito desde a noite de segunda-feira. Estava mais penteada, de roupas limpas e passadas. A maquiagem bem-feita suavizava as rugas do seu rosto. Os olhos estavam brilhantes e claros. Apesar de ter feito pouco do cumprimento dele, Hammond percebeu que se sentia lisonjeada.
abordar o motivo da reunião.
Ele largou o copo. Aquela bebida não estava combinando bem com o que tinha bebido na festa de Davee. Além disso ele teve a impressão de que o que ia ouvir seria perturbador, por isso era melhor manter a cabeça limpa.
Hammond não estava preocupado que a investigação de Harvey nos registros de Alex pudesse incriminá-lo. Acreditava em Loretta quando ela dizia que teriam de cortar sua língua antes que ela traísse a confiança dele. Mas ficou pensando se mais alguém tinha tentado apertar Knuckle com o mesmo objetivo.
Ele balançou a cabeça concordando, e apontou para o envelope embaixo da mão direita de Loretta.
Ela abriu o envelope e tirou algumas folhas de papel dobradas. Pelo que Hammond podia ver, o texto estava datilografado. Àquela altura Loretta já tinha repassado as informações tantas vezes que havia praticamente decorado tudo. Só se referia aos dados datilografados para verificar datas específicas.
Ela então contou para ele o que Harvey Knuckle tinha desenterrado dos impenetráveis registros do juizado de menores. Não era fácil ouvir aquilo. Quando Loretta terminou, meia hora tinha passado e Hammond estava desejando não ter bebido uísque aquela noite. Tinha quase certeza de que ele ia ser reciclado. Agora compreendia o que Alex tinha querido dizer na noite anterior sobre ele se decepcionar, sobre explicações dolorosas. Ela não quis contar nada, e agora ele sabia por quê.
Loretta guardou as folhas no envelope e entregou-o para ele com ar triunfante.
Ele guardou o envelope com seu conteúdo incriminador no bolso de dentro do paletó. A depressão dele não passou despercebida.
Hammond deslizou apressado no banco para sair do cubículo, mas Loretta estendeu o braço por cima da mesa e segurou a mão dele. O que há com você, Hammond? Não sei do
O Álibi_Sandra Brown_III
que você está falando. Pensei que ficaria nas nuvens.
Ele tentou sorrir, mas sabia que tinha falhado. O interior soturno do bar era sufocante para ele. A fumaça parecia mais densa. O cheiro de desespero mais forte. A cabeça dele latejava e suas entranhas se reviravam. Os olhos de Loretta eram aguçados como facas de açougueiro. Com medo de que eles vissem demais, Hammond evitava olhar diretamente para eles.
Na verdade ele não esperava nada, mas certamente menos que aquilo.
dele.
Sem ar puro, ele ia morrer. Livrou a mão da pegada úmida de Loretta, disse para ela continuar sóbria, agradeceu mais uma vez o trabalho bem-feito e deu um até logo apressado por cima do ombro. Fora do Shady Rest o ar não estava fresco nem revigorante. Estava estagnado, denso, e quando ele inspirava parecia algodão. Mesmo horas depois do pôr-do-sol, a calçada ainda emanava um calor que queimava seus pés através da sola dos sapatos. Sua pele estava pegajosa. E como quando era criança, nauseado. Depois que a febre cedia, a mãe dele trocava o pijama molhado e os lençóis da cama, garantindo que a transpiração era um bom sinal. Queria dizer que ele estava melhorando. Mas ele não se sentia melhor. Preferia a secura da febre à umidade que saturava sua pele. A calçada estava congestionada de gente que ia de porta em porta, mas sem ter para onde ir. Procuravam alguma coisa interessante para fazer, o que podia incluir, mas não se limitava a, embebedar-se em um dos bares, furtar algo de que precisavam, destruir ou vandalizar propriedades privadas só por diversão, ou derramar sangue para executar uma vingança.
Normalmente Hammond estaria atento ao potencial de perigo que aquela vizinhança representava para alguém que obviamente não pertencia ao lugar. Tanto negros quanto brancos riam e zombavam dele com um preconceito muito palpável e um ódio bem cultivado. Ele era definitivamente alguém com posses num bairro em que ninguém possuía nada, e o ressentimento imperava. Em qualquer outro momento ele ficaria olhando para trás o tempo todo enquanto voltava para o seu carro, esperando encontrá-lo depenado. Aquela noite a preocupação gerava o descaso e a indiferença em relação aos olhares hostis que davam para ele. O relatório que Loretta tinha feito sobre Alex fez Hammond mergulhar num lodaçal moral. A informação que a incriminava era arrasadora o impacto emocional que provocava era severo. Tudo era tão devastador que ele não conseguia distinguir os aspectos individuais. Quando Smilow soubesse da história dela... e era só uma questão de tempo para um dos detetives descobrir... ele teria sonhos molhados. Steffi estouraria uma garrafa de champanhe. Mas para ele e para Alex, profissional e pessoalmente, a descoberta seria desastrosa. A revelação era como um peso morto pendurado num fio que se desenrolava bem em cima da cabeça dele. Quando ia cair? Aquela noite? No dia seguinte? No outro? Quanto tempo ele ia suportar o suspense? Quanto tempo aguentaria lutar contra a própria consciência? Mesmo que a hora da morte eliminasse Alex como a verdadeira assassina, ela devia estar envolvida de alguma maneira. Esses pensamentos eram tão sombrios, tão absorventes, que eram quase paralisantes. Ele perdeu completamente a noção de onde estava. Pensava em interdição, não em desagregação. Quando chegou à ruela onde tinha deixado o carro, ele usou a tranca sem chave e abriu a porta sem nem olhar em volta para ver se era seguro. Assustado com o súbito movimento atrás dele, reagiu rápido. Deu meia-volta muito depressa, com o braço levantado, pronto para se proteger e se defender. Quase agrediu Alex antes de interromper o movimento com o braço.
Os olhos verdes olharam zangados para ele.
Ela estava lá também, fingindo se interessar pelas melancias. Finalmente concluí que eu estava sob vigilância.
-Alex...
Ela fechou os olhos e cambaleou um pouco. Mas recuperou-se rapidamente, abriu os olhos e mandou-o à merda. Ela se virou para ir embora, mas Hammond segurou-a pelo braço e puxou-a de frente para ele.
literalmente, por que você não disse nada? Por que não contou tudo para eles, inclusive quem invadiu a minha casa a noite passada e manchou meus lençóis?
Ela olhou de novo para ele.
Ela sugou o ar rapidamente e cruzou os braços como se sentisse uma súbita pontada de dor.
Mais uma vez ela deu meia-volta para ir embora. Hammond estendeu o braço. Mas dessa vez ela resistiu:
Hammond virou Alex de frente para ele e prendeu-a no vão formado pela porta aberta do carro. Para escapar, ela teria de dar a volta ou passar através dele. Tinha resolvido que ela ia ouvir o que ele queria dizer primeiro.
Ele abriu o paletó para Alex poder ver o envelope dentro do bolso de cima.
E, de repente, ela parou de lutar. Ficou olhando fixamente para o envelope um tempo, e ele viu os lábios dela torcidos numa expressão de remorso. Mas para dar-lhe crédito, quando Alex olhou bem nos olhos dele, sua expressão era de desafio e orgulho.
Ela perdeu a compostura e a altivez. Com as duas mãos, empurrou o peito dele com força.
Ela tentou desviar dele, mas Hammond bloqueou o caminho e pôs as mãos nos ombros dela.
Ela continuou obstinadamente muda.
Ele interrompeu a frase de repente. Olhou intensamente para ela e apertou seus ombros com mais força.
Os olhos de Alex se manifestaram com eloquência para ele.
Ela hesitou pelo que pareceu um tempo interminável e então meneou a cabeça lentamente.
enxergar através do tecido e ver o envelope dentro do bolso interno. Ela estava zangada. Mas também parecia profundamente triste.
Ele tentou encostar a mão nela, mas ela afastou o braço dele.
“Se você não passou fome, não sofreu humilhações, não odiou você mesmo por fazer o que faz... se não passou a acreditar que você é escória, que não ? merece o amor de ninguém, o amor de um homem...” Ela parou de falar, engoliu ar rapidamente e seu peito estremeceu. Então ela fungou e levantou a cabeça, desafiando as lágrimas que escorriam pelo rosto.
Ela o empurrou para o lado e saiu com passos largos, virou a esquina para fora da ruela. Hammond ficou olhando Alex ir embora, sabendo que nada que dissesse agora poderia penetrar na raiva que ela sentia. Ele xingou, encostou o cotovelo na capota do carro e apoiou a cabeça no braço. Mas a pausa durou apenas alguns segundos.
Um grito abafado fez com que ele levantasse e virasse a cabeça.
Alex estava correndo de volta para o beco. Um homem a perseguia.
O atacante agarrou-a pelo cabelo e a fez parar com um tranco. Ele levantou o braço e Hammond viu o brilho do aço. Sem nem pensar, ele se jogou contra o assaltante, bateu com o ombro nas costelas do homem, que perdeu o equilíbrio. Para evitar a queda, o homem soltou Alex. Ela se afastou cambaleando. Hammond mal teve tempo de registrar que ela estava momentaneamente fora de perigo, quando viu um clarão prateado chegando horizontalmente na altura da sua barriga. Num ato reflexo, ele protegeu a barriga com o braço. A lâmina produziu um corte do cotovelo até o pulso. Desarmado, numa luta de faca, ele perderia. A única defesa que conhecia tinha aprendido jogando futebol americano. Para agradar ao pai, Hammond tinha jogado com uma competitividade sedenta de sangue. Instintivamente ele recorreu a uma tática de bloqueio que era eficiente se você conseguisse se safar com ela e não provocar a bandeirada do juiz. Ele abaixou a cabeça como se fosse dar uma chifrada na garganta do atacante, mas parou logo antes de encostar nele. O bandido reagiu como ele esperava, jogando a cabeça para trás e deixando seu pomo-de-adão vulnerável ao golpe do braço de Hammond, que funcionou como um aríete. Sabia que aquilo doía demais e que o assaltante ficaria inutilizado por alguns segundos preciosos.
Hammond deu um chute na direção da virilha do homem, mas errou o alvo e acertou a coxa dele. O pontapé não causou nenhum dano concreto, mas garantiu mais meio segundo para correr de volta para o carro enquanto se esquivava dos golpes da faca. Alex tinha entrado pela porta aberta do lado do motorista e passado por cima do console. Hammond praticamente caiu no banco do motorista, inclinou o corpo para trás por cima do console e enfiou o calcanhar na barriga do camarada. O assaltante cambaleou para trás, mas ainda conseguiu dar mais um golpe com a lâmina. Hammond ouviu o tecido da sua calça rasgar.
Estendendo o braço para a maçaneta da porta, ele a fechou e trancou. O atacante, tendo recuperado rapidamente o equilíbrio, socou a janela e a porta, berrando obscenidades e ameaças de morte. A mão direita de Hammond estava escorregadia, coberta de sangue, mas ele conseguiu enfiar a chave na ignição e ligou o motor. Pôs o câmbio em drive e pisou no acelerador. Os pneus queimaram quando o carro saiu em disparada pelo beco e virou, derrapando de traseira na rua principal.
Ele desviou os olhos da rua tempo suficiente para olhar para Alex. Ela estava ajoelhada no banco, inclinada por cima do console para examinar o braço dele.
O que restava da manga direita do paletó dele estava encharcada de sangue. O sangue pingava da mão dele, deixando o volante muito escorregadio, forçando Hammond a dirigir com a mão esquerda. Mas isso não o impedia de correr demais. Ele avançou um sinal vermelho.
Hammond ficou boquiaberto olhando para ela. O carro derrapou e quase bateu num poste de telefone.
Hammond! - gritou ela. Depois que ele recuperou o controle, ela disse: - Vá direto para o pronto-socorro. Vai precisar de uns pontos aí.
Ele soltou o volante para passar a manga do braço esquerdo na testa. Estava transpirando muito. Sentia o suor no rosto, no cabelo, escorrendo pelo peito até a virilha. Agora que a descarga de adrenalina tinha cessado, ele sentia o impacto do que havia acontecido e do que podia ter acontecido. Ele e Alex tinham sorte de ainda estarem vivos. Cristo, ela podia ter morrido! Pensar em como Alex tinha chegado perto de morrer deixava Hammond muito fraco e trémulo.
No primeiro grande cruzamento ele teve de parar no sinal vermelho. Respirava fundo para tentar clarear a cabeça de um zumbido que parecia um milhão de abelhas.
-A sua perna está sangrando também, mas estou preocupada com o seu braço – disse Alex. - Acha que o corte atravessou o músculo?
Sinal verde. Hammond apertou o acelerador com força e o carro pulou para a frente como um cavalo xucro disparando. Em poucos segundos ele já ultrapassava o limite de velocidade. Dava para ver os prédios do hospital a alguns quarteirões de distância.
A voz de Alex parecia chegar de muito longe.
Ele tentou insistir que estava bem, mas não conseguia separar as palavras, e elas saíram enroladas e ininteligíveis.
Ele balançou a cabeça e resmungou:
Ela enfrentou a indecisão alguns segundos, mas aparentemente chegou à mesma conclusão. Estendeu o braço por cima do console e assumiu o controle da direção, que estava grudenta com o sangue dele.
Ela conseguiu encostar o carro no meio-fio e pôr a marcha em ponto morto. Precisou fazer um certo esforço e insistir gentilmente, mas com firmeza, para Hammond trocar de lugar com ela. Desceu do carro, deu a volta e ajudou-o a sair. Ele estava com as pernas bambas. Ela o pôs sentado no lado do carona e prendeu o cinto de segurança nele. Assim que ela se instalou na direção ele inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos.
Ela não podia deixar Hammond desmaiar.
Ele virou o queixo na direção certa. Felizmente Alex conhecia a rua. Ficava a poucos quarteirões de onde eles estavam. Ela o levaria para lá em alguns minutos.
Convencer o dr. Douglas Mann a dar uma consulta em casa era outra história.
Milagrosamente, Alex tinha decorado o número do telefone dele de casa. Ele atendeu no segundo toque.
Ela explicou a situação enquanto dirigia o carro, mas não disse que não tinha sido um ataque ao acaso.
Ainda relutante, ele pediu o endereço. Alex estava dando as coordenadas para ele enquanto estacionava o carro na rua da casa de Hammond.
O controle remoto da porta da garagem da casa de Hammond estava preso no pára-sol. Ela abriu a porta da garagem e fechou-a assim que desligou o motor do carro.
Ela desceu e deu a volta pela frente do carro até a porta do passageiro. Hammond continuava de olhos fechados. Estava pálido. Quando Alex tentou acordá-lo, ele gemeu.
Ele fez isso. Mas o movimento machucou o braço direito, e ele gritou de dor.
Era como carregar uma boneca de pano que pesava noventa quilos. Ele não tinha mais coordenação motora. Mas seguiu as instruções dela e assim ela conseguiu tirá-lo do carro e pô-lo em pé. Ela o sustentou e foram se arrastando até a porta dos fundos.
Alex entrou com ele na cozinha.
Ele apontou com a mão esquerda. O toalete ficava num corredor curto entre a cozinha e o que ela pôde ver que era a sala de estar. Alex pôs Hammond sentado na tampa da privada e acendeu a luz. Pela primeira vez ela deu uma boa olhada nos ferimentos dele.
A pele do braço estava toda aberta. Era difícil dizer a que profundidade ia o corte, porque o sangue escorria de toda a extensão do ferimento. Ela não perdeu mais tempo. Primeiro tirou o paletó, depois rasgou a manga da camisa até a costura do ombro. Arrancou as toalhas dos penduradores decorativos, enrolou-as em volta do braço dele e as apertou bem para formar compressas que esperava poderem estancar o sangramento. Ajoelhada na frente dele, Alex tentou rasgar a perna da calça, mas o tecido era resistente demais, por isso ela ficou impaciente e acabou puxando até passar do joelho. O corte na canela não era tão fundo quanto o do braço, mas também sangrava muito. A meia dele tinha absorvido muito sangue. Ela virou a lixeira vazia de cabeça para baixo e apoiou o pé dele em cima, depois enrolou toalhas na perna dele, como tinha feito com o braço.
Ela se levantou, passou a mão ensanguentada no cabelo e consultou seu relógio de pulso.
Ela controlou o nervosismo e olhou para ele.
Ele ficou um pouco mais pálido.
Ele piscou e olhou para ela sem entender.
Tocaram a campainha. Ela largou a mão dele.
Ele acordou assustado, com o nome dela nos lábios. Precisava dizer uma coisa para ela, uma coisa urgente sobre a qual tinham de conversar.
Fez um movimento para se levantar. A rigidez no braço trouxe a lembrança.
Ele abriu os olhos. Estava deitado na própria cama. O quarto estava escuro, a não ser por uma pequena luz de segurança que tinha sido trazida do corredor e ligada numa tomada na parede do quarto.
Ela se materializou ao lado da cama, inclinou-se sobre ele e pôs a mão no seu ombro. Enquanto ele dormia Alex tinha tomado uma ducha e lavado o cabelo. Não estava mais coberta de sangue e havia trocado a roupa que usava antes por uma das camisetas mais velhas e mais macias que ele tinha. Como na cabana.
Ela arrumou o lençol sobre o peito nu de Hammond, mas, quando ia se afastar, ele cobriu a mão dela com a dele e a segurou de encontro ao peito.
Aproveitando o humor dele, ela respondeu solenemente:
O braço direito de Hammond, com o curativo, estava apoiado num travesseiro.
Ele se mexeu um pouco, procurando uma posição mais confortável. Mas até esse pequeno movimento provocou-lhe uma careta de dor.
Dessa vez ele não reclamou. Estava quase dormindo de novo quando ela enfiou um comprimido na boca dele, apoiou sua cabeça no braço e o fez levantar um pouco. Ela encostou um copo com água nos lábios dele. Ele engoliu o comprimido.
Enquanto Alex abaixava a cabeça dele no travesseiro, Hammond resistiu e encostou o rosto nos seios dela. Eram fartos e convidativos por baixo da malha macia da camiseta dele. Hammond fechou os lábios sobre um mamilo.
Ele suspirou um protesto, mas fechou os olhos automaticamente. Sentiu o leve beijo que ela lhe deu na testa. E outra coisa também. Abriu os olhos de novo e viu as lágrimas. E enquanto espiava, mais uma caiu no rosto dele.
Cheio de remorso, ele disse:
Ele passou o braço esquerdo por cima do corpo e encostou a mão no rosto dela. Ela agarrou a mão dele e a apertou no peito, e beijou sem parar os nós dos dedos.
Ele lutava para ficar acordado porque aquilo era importante.
Ela soltou a mão dele como se queimasse a dela.
Ele pensou aquelas palavras, mas não sabia ao certo se as tinha pronunciado em voz alta. Ele abriu os olhos, focalizou o rosto dela e deu um sorriso triste.
Ela lambeu uma lágrima no canto da boca. Ia dizer alguma coisa mas não encontrava as palavras. Devia ser tão confuso para ela como era para ele, que a primeira vez na vida que amava alguém de verdade, a coisa toda não podia ser mais errada.
Ele deu um tapinha na cama ao seu lado.
Ela balançou a cabeça e recusou.
Ela hesitou só mais um pouco, deu a volta na cama e deitou ao lado dele. Não encostou o corpo no dele, apenas pôs a mão no peito de Hammond.
Ele queria dizer mais coisas e tinham muito que conversar, mas a droga estava fazendo efeito. Tê-la perto era um consolo. Ele queria aproveitar. Mas contra sua vontade, adormeceu. Algum tempo depois, ele acordou. Parcialmente. Não completamente. Não queria despertar completamente. Não sentia dor. Na verdade, o estado dele era sublime. Muito bons esses analgésicos. Ao lado dele, Alex se mexeu. Ele sentiu que ela se sentou.
Ele resmungou e ela provavelmente achou que era um não, porque ela deitou de novo. Mas alguns segundos depois ele murmurou alguma coisa que nem ele conseguia distinguir.
Hammond cobriu a mão dela com a dele e puxou para baixo do lençol. Então mergulhou num estado de semiconsciência que era melhor que o melhor sonho erótico. Como numa fantasia sexual, a participação dele era desnecessária. Tudo que tinha de fazer era abdicar do controle e submeter-se às sensações. Deixar acontecer. Ir com a maré. Ficar boiando à deriva nas suaves ondas da sensibilidade. O crescendo era deliciosamente lento. Não tinham horário para nada, nenhum compromisso. Não existia pressão, nem recriminação. Felizmente os sonhos não tinham consequências. Ele percebeu que ela mudou de posição, mas alguns delicados beijos preliminares não prepararam Hammond para o calor molhado que o cobriu. A massagem sensual era diferente de qualquer outra. Ele prendeu a respiração e deixou-se saturar pelas sensações. Todo o seu corpo relaxou pesadamente sobre o colchão, como se estivesse numa banheira com água quente, e se refestelou numa lassitude sexual. Instintivamente, ele mexeu a mão. Esticou o braço. Procurou. Encontrou. Maciez. Feito seda. Profundo mistério. Centro do universo. Pulsação da humanidade. Caminho para a vida. Ele precisou mover os dedos só um pouco para provocar pequenos espasmos de excitação. Seu dedo polegar estava possuído por uma antiga sabedoria. Dotado de um toque especial que se alimentava dos suaves gemidos dela. Não eram exatamente sons. Eram vibrações dentro da boca que se transmitiam de volta para ele. Esse sonho acordado, esse esquecimento, eram tão doces, que ele não o deixou, nem depois de um clímax lento e ondulante que provocou a sensação de estar se dissolvendo.
Na fronteira da consciência dele se esgueirava algo feio e ameaçador, que ele se recusava a reconhecer. Agora não. Esta noite não. Amanhã. O amanhã de Hammond começou três horas depois, com um grito explosivo:
Steffi continuou gritando enquanto subia a escada aos saltos. Chegou ao quarto de Hammond, entrou afobada e o encontrou sentado na cama, com as mãos na cabeça, parecendo prestes a sofrer uma parada cardíaca.
As cuecas dele ficavam na segunda gaveta de cima para baixo. Ela pegou uma para ele. Hammond girou as pernas para o lado da cama.
Ele inclinou o corpo para a frente, vestiu a cueca e puxou-a até a coxa. Antes de levantar-se, ele olhou sugestivamente para ela.
Ele afastou o lençol, ficou de pé e puxou a cueca, depois pegou uma garrafa de água que estava na mesa-de-cabeceira e bebeu tudo.
Ele franziu a testa, mas concordou.
Ela voltou para a cama e se sentou onde ele tinha sentado. Junto com a garrafa de água mineral vazia e um copo havia, na mesa-decabeceira, uma tipóia comum de pano e um recipiente plástico com comprimidos. Era de farmácia de manipulação. Não havia o nome do médico no rótulo. Hammond saiu do banheiro, foi mancando até ela, afastou-a da cama e puxou o edredom por cima dos lençóis.
-Você não acha que tenho o direito de ser um pouco intrometida? Hamond, a primeira coisa que vi quando entrei aqui foi um saco cheio de toalhas ensanguentadas. Pode me chamar de sentimental, mas fiquei imaginando se o meu colega, para não dizer ex-namorado, por quem ainda nutro afeto e zelo, estava nas garras do assassino do machado.
Ele levantou a sobrancelha, desconfiado.
Ela olhou para a bandagem no braço direito dele.
Parecendo muito perturbado e falando como se ela fosse retardada, ele disse:
“Seria perda de tempo contar para a polícia, porque tudo que eles poderiam fazer seria arquivar esse relatório e ponto final. Eles têm coisa melhor para fazer, e eu também – Hammond fez uma careta e segurou o braço direito com o esquerdo. - Agora você quer fazer o favor de ir embora para eu poder tomar um banho e me vestir?”
esse cara.
Hammond abriu a gaveta de camisetas. Ela costumava zombar da sua coleção de camisetas quase esfarrapadas, que ele adorava usar dentro de casa. Ele pegou a primeira camiseta da pilha. Devia ser a verdadeira preferida, ela pensou, porque ele sorriu e levantou a camiseta na frente do rosto para sentir o cheiro.
Ela não percebeu a fascinação de Hammond com a camiseta, mas ele continuava a mexer nela. Ele observou distraído:
Hammond virou para ela como um raio. Seu rosto ficou branco como giz. Steffi achou que a palidez era por causa da dor. Com a virada abrupta, ele tinha batido o cotovelo do braço ferido na quina da gaveta aberta. Ele estendeu o braço esquerdo para se equilibrar.
O nome dele é Bobby Turnbull. Não, não é isso. Alguma coisa parecida.
O que ele...
Hammond recolocou a camiseta na gaveta e a fechou com força.
Enquanto Hammond se aprontava, Steffi desceu para o primeiro andar para telefonar para Smilow e contar que ia se atrasar.
Depois de uma breve pausa, Smilow perguntou:
Ela não contou para Smilow a desculpa esfarrapada que Hammond deu para não ir para um hospital. O médico “velho amigo da faculdade” era uma mentira deslavada. Hammond nunca foi bom em contar mentiras. Ele devia ter umas aulas com Alex Ladd. Parecia admirar a queda que a mulher tinha para... A mente de Steffi pisou firme no freio. Olhando para o espaço próximo, com os olhos vidrados, a cabeça dela foi assaltada por pensamentos impensáveis que giravam pela sua consciência com a velocidade da luz. Agarrar aqueles pensamentos era como tentar capturar cometas. Hammond desceu a escada mancando. Ela o encontrou na porta da frente, mas antes pegou uma das toalhas encharcadas de sangue do saco de lixo e a enfiou na bolsa. Bobby Trimble estava apavorado. Mas preferia morrer do que deixar que percebessem o medo que sentia. Policiais filhos-da-puta! Devia sua situação atual a uma professora solteirona, malvestida e gorda. Era um insulto para o orgulho dele uma galinha morta provocar sua derrocada. Ela não era desafio nenhum. Seduzi-la tinha sido uma rotina entediante. Tinha lutado para se manter acordado enquanto a levava no bico. Tinha cabeceado o tempo todo. Quem teria imaginado que aquele canhão seria uma mulher fatal no mais puro sentido do termo? Na noite anterior ele estava quase conquistando uma viúva de Denver que tinha diamantes do tamanho de holofotes nas orelhas e em anéis nas duas mãos. Eles teriam financiado um estilo de vida nababesco por um longo tempo. A mulher tinha revelado logo no início possuir um senso de humor sexualmente explícito e espírito de aventura, por isso Bobby apelara para isso. Com a mão dentro da saia dela, ele descrevia a ereção que ela havia provocado, sem poupar nenhum detalhe anatómico, quando dois policiais o agarraram por baixo dos braços e o arrastaram para fora da boate. Lá fora eles o encostaram no capo de um carro e mandaram que afastasse as pernas e os braços, revistaram-no e algemaram-no como se fosse um criminoso comum e leram seus direitos. Com o canto do olho, ele avistou a professora pudica e antiquada de Indiana ali perto, com um par de sapatos de couro em uma das mãos.
O cara parecia vagamente familiar, mas Bobby não conseguia se lembrar de onde o conhecia. Não era alto, mas dava a impressão de ser quando entrou com passos largos na sala. Usava terno com colete, que Bobby considerou de boa qualidade. A água-de-colônia também tinha cheiro de coisa cara. Ele apertou a mão do advogado que tinham indicado para Bobby, um cara chamado “Heinz, como o ketchup”, que parecia um perdedor, e cujo conselho para Bobby até ali tinha sido para manter a boca fechada até descobrirem o que estava acontecendo. Ele então se sentou à pequena mesa e cobriu educadamente seus bocejos com a mão. Mas o homem que acabava de entrar o fez se endireitar na cadeira e adotar uma postura alerta. Ele se sentou na cadeira de frente para Bobby e se apresentou como o detetive Rory Smilow. Bobby não confiava no sorriso dele, assim como não abriria o jogo para aquele afável filho-da-mãe.
Os músculos da face de Bobby amoleceram. Em compensação, o esfíncter se contraiu.
Bobby, já recuperado do choque inicial, olhou com desprezo para o advogado.
-Não temos nada que conversar. Eu não estuprei ninguém. Tudo que nós fizemos foi de comum acordo.
Smilow abriu uma pasta e deu uma olhada rápida no relatório.
Bobby não resistiu e enfrentou o desafio do olhar do detetive.
Smilow parecia compadecido dele, deu um suspiro e coçou a sobrancelha.
Bobby cruzou os braços sobre o peito, em parte por ser uma pose despreocupada, mas principalmente porque ele estava à beira de uma crise de pânico. Quando tinha dezoito anos, tinha sido sentenciado à maldita prisão. Não gostou. Nem um pouco. Tinha jurado que nunca mais iria para lá. Com medo de que sua voz traísse o medo que sentia, ele não disse nada.
Enquanto Bobby compunha uma resposta adequada, a porta abriu e uma mulher entrou. Ela era miúda, cabelo escuro e curto, olhos pretos brilhantes. Boas pernas. Seios pequenos e pontudos. Mas a maior castradora que Bobby já tinha visto.
Smilow apresentou-a como Stefanie Mundell, do escritório do procurador público municipal. Heinz ficou meio esverdeado, e engolia em seco convulsivamente. Não era um bom sinal se o próprio advogado se engasgava diante da visão daquela vadia e desse a impressão de estar pronto para dar ao fora. Smilow ofereceu uma cadeira para ela, mas ela disse que preferia ficar de pé.
A negação sincera não afetou a srta. Mundell, que riu com desprezo e disse:
Ela deu meia-volta com seus sapatos de salto alto e saiu, batendo a porta com força.
Smilow massageava o queixo e balançava a cabeça com ar de tristeza.
Bobby fuzilou Heinz, que tinha sugerido aquilo, com os olhos.
Aparentando uma falsa tranquilidade, Bobby perguntou:
Smilow dirigiu um olhar demorado, duro e ameaçador para Bobby. Depois suspirou e fechou a pasta.
Smilow afastou sua cadeira para trás e saiu da sala sem dizer mais uma palavra, fechando firmemente a porta.
Bobby olhou para Heinz “Como o ketchup” e levantou os ombros.
Smilow e Steffi ficaram meia hora se dando tapinhas nas costas pelo excelente trabalho que tinham feito manipulando Bobby Trimble. Os profusos parabéns quase esgotaram a paciência de Hammond.
Ellen Rogers jamais alegou ter sido violentada. Pelo contrário, tinha reconhecido a própria culpa pelo furto de seus cartões de crédito e seu dinheiro. Ela só queria que capturassem Bobby Trimble para pô-lo fora de ação, poupando outras mulheres de experiência tão humilhante. Tratou de providenciar sua volta para Indianápolis imediatamente, apesar de ter deixado claro que se dispunha a testemunhar contra Trimble no tribunal se o caso fosse a julgamento. Saiu da cidade sem saber que presente tinha dado para o Departamento de Polícia de Charleston.
Ele respirou pela boca para afastar as náuseas. Era uma ameaça desde que fora informado de que o meio-irmão de Alex estava sob a custódia da polícia. Steffi e Smilow estavam muito orgulhosos com aquela gravação. Já salivavam, prevendo a reação de Hammond quando ouvisse, mas ele já conhecia o teor dela. Tinha ouvido Loretta Boothe contar a história incriminadora na noite anterior. Os simples fatos, nus e crus, pintavam uma imagem nada lisonjeira de Alex. Quando Bobby Trimble terminou de incrementar a história para atender aos próprios interesses, ela se transformou num assassinato de caráter. Como Steffi havia observado, representava o motivo que faltava ao caso. Em bandeja de prata. Hammond tinha torcido para a investigação de Smilow não ser tão completa e diligente como a de Loretta, para ele poder continuar atrasando o caso indefinidamente até determinar a natureza da conexão de Alex com Pettijohn e poder explicar para ela o encontro que ele teve com Lute. Ia sugerir que ambos jogassem limpo com Smilow. Ele devia ter contado imediatamente para o detetive seu encontro com Pettijohn. Mas era uma questão delicada e esperava poder evitar que qualquer outra pessoa ficasse sabendo. Também ia aconselhar Alex a informar Smilow do seu passado antes que ele tivesse a chance de descobrir por conta própria e tirar conclusões precipitadas sobre a relação que tinha com a investigação Pettijohn. Infelizmente tinham tirado aquela oportunidade dele. Quando Steffi invadiu a casa dele, Alex já tinha ido embora. Hammond deu graças de ela ter saído cedo, e achou que os dois tiveram muita sorte de não terem sido flagrados juntos na cama, o que teria prejudicado a credibilidade deles quando fizessem suas confissões independentes para Smilow. E agora isso. Bobby Trimble apareceu do nada, na pior hora possível. Alex não tinha ideia da armadilha que estavam armando para ela. E Hammond não tinha como avisá-la. A campainha de umpager tocou. Os três verificaram seus bipes ao mesmo tempo.
Smilow empurrou o telefone da mesa para perto de Hammond.
Hammond verificou o número no mostrador.
Ele pediu licença, saiu da sala e foi para o corredor, que oferecia alguma privacidade.
Hammond ouviu um movimento atrás dele e virou-se para ver quem era. Frank Perkins acompanhava Alex pelo corredor.
Ele desligou o celular e virou-se na hora em que Perkins e Alex chegavam à porta da sala de Smilow. Quando o advogado viu Hamond, ele arregalou os olhos.
segundo. Hammond tentou telegrafar um aviso para ela, mas o advogado empurrou-a para dentro da sala.
Perkins ofereceu a única cadeira para Alex. Os outros ficaram em pé na pequena sala. Smilow se ofereceu para pedir que trouxessem uma cadeira para Hammond, mas ele não quis. Quando Alex se sentou, ela conseguiu dar uma olhada disfarçada para ele, mas Hammond não tinha como prepará-la para o que a esperava.
Smilow resumiu a experiência de Ellen Rogers para Alex e para o advogado dela.
Hammond estava observando atentamente o rosto de Alex. Logo que Smilow começou a falar, ela percebeu o que tinha pela frente. Fechou os olhos rapidamente e respirou bem fundo para se fortalecer. Mas quando ele disse o nome de Trimble, ela não revelou reação alguma.
Antes de Perkins poder dizer mais alguma coisa, Smilow falou: - A fita se explica sozinha, Frank. Ele apertou o botão play do gravador.
A voz de Smilow identificou as pessoas presentes no interrogatório. Disse a hora, o lugar e a data, assim como as condições sob as quais Trimble estava fazendo a sua declaração. Ele havia confessado ter seduzido a srta. Ellen Rogers com o propósito de roubá-la e, apesar de não ter garantida a clemência, foi dito por Stefanie Mundell que a procuradoria pública seria favorável a qualquer um que desse voluntariamente informações pertinentes ao caso do assassinato de Lute Pettijohn. Dito isso, Smilow fez sua primeira pergunta:
-Alex é minha meia-irmã. Mesma mãe. Pais diferentes. Mas nunca conheci nenhum dos dois.
Steffi. O pedido de desculpas não pareceu sincero. Alex deve ter achado isso também. Ela olhava fixamente para o gravador com cara de nojo.
-Alex e eu nos defendíamos sozinhos havia tanto tempo que não era nada incomum vê-la levando a roupa para a lavanderia automática ou eu me oferecendo para fazer alguns bicos.
Até aquele ponto Alex não tinha se mexido. Então virou-se para Perkins:
O advogado pediu para Smilow desligar o gravador para ele poder conversar com Alex. Smilow atendeu educadamente ao pedido. Perkins sussurrou uma pergunta para ela. Ela respondeu baixinho. Ficaram falando assim por cerca de sessenta segundos.
Sinto muito qualquer constrangimento. Mas acho que a dra. Ladd gostaria de ouvir o que está sendo dito sobre ela. Ela tem a liberdade de interromper e refutar qualquer coisa que ele diz, a qualquer momento. Perkins disse para Alex:
Ela concordou com um breve movimento da cabeça.
A reclamação não afetou Smilow. Ele ligou o gravador no ponto em que repetia a pergunta de como Trimble sustentava a irmã e ele.
O tom de voz de Trimble reduziu-se a um sussurro confidencial.
Hammond apoiou o cotovelo esquerdo no pulso do braço na tipóia e cobriu a boca com a mão. Queria tapar os ouvidos. Queria jogar o gravador contra a parede. Queria estapear Steffi, que sorria presunçosa para Alex. Era impotente para fazer qualquer coisa, e só podia ouvir, já que estava sendo forçado a isso.
A diferença da dicção e da sintaxe de Trimble era notável. O fato de falar sobre seu passado tinha feito com que ele retornasse ao padrão de linguagem da sua juventude. Ele parecia mais grosseiro. Mais rude. Mais indecente.
-Alex disse: De jeito nenhum, camarada. Mas não falava a sério. Ela estava rindo, brincando com ele, vocês sabem. E acabou fazendo o que ele queria. Eu disse que em troca pela visão das tetas da minha irmãzinha
Hammond estendeu a mão e desligou o gravador.
Smilow evitou dar uma resposta direta:
Ignorando o conselho do advogado, Alex olhou direto para os olhos ansiosos de Steffi.
Se Frank Perkins não tivesse intercedido naquele momento e avisado para Alex não dizer mais nada, Hammond teria tomado a iniciativa. Ela acatou o conselho do advogado. Aparentando estar enojado com tudo aquilo, Perkins disse:
Smilow voltou a fita. Hammond mudou o pé de apoio para poupar a dor da perna esquerda. Na realidade estava se contendo para não fazer uma burrice muito grande, como segurar a mão de Alex e tirála dali. A noite anterior tinha provado que ela precisava de proteção. Queria protegê-la pessoalmente. Estava quase revelando tudo, abrindo o jogo, que se danassem os torpedos. Quase. Naquele momento o advérbio era um qualificativo monumental. O pior da história ainda estava por vir, e era essa parte que tinha uma semelhança inquietante com o presente. Segundo o relatório de Loretta, quando deixou a Flórida com uma condenação por furto e um tubarão da agiotagem no seu encalço, Bobby Trimble sumiu de vista. Ter reaparecido ali em Charleston, dias antes de um assassinato em que a meia-irmã estava envolvida, era uma coincidência terrivelmente incómoda. Era certamente mais que suficiente para aumentar as suspeitas de Steffi e de Smilow. Apesar de Hammond saber que era praticamente impossível Alex ter matado Pettijohn e chegado à feira na hora em que chegou, ainda havia inconsistências, e as perguntas sem respostas que o perseguiam. Especialmente à luz do passado problemático de Alex. Sem dúvida alguém a considerava uma ameaça que tinha de ser silenciada. Mas que ameaça ela representava? Como testemunha? Ou como uma conspiradora que resolveu mudar de ideia na última hora? Até ter certeza de que Alex era totalmente culpada – ou totalmente inocente – de qualquer malfeito, ele estava encurralado entre o promotor e o protetor.
Na fita, Smilow perguntava para Trimble sobre a trapaça que tinha criado para arrancar dinheiro dos seus amigos:
Ele não deixou de observar o sarcasmo de Stefíi Mundell.
Smilow começou a perguntar de novo:
-Atacamos outros bairros. Alexparecia tão fresca e inocente que todos os caras pensavam que eram o primeiro. Por isso eu soube que ia funcionar com homens mais velhos também.
-Alex era a isca perfeita. E ela sabia como envolvê-los também. Essa é a especialidade dela. Sabia fingir inocência e nervosismo. Em geral os homens não conseguem resistir a uma mulher coquete. Alex sabe se fazer de difícil, melhor que qualquer mulher que conheci, antes e depois disso.
Hammond passou a manga da camisa no suor que brotava da testa, depois encostou a cabeça na parede e fechou os olhos. Ouviu o clique quando apertaram o botão para parar a reprodução.
Hammond se deu conta de que a pergunta de Smilow era para ele e abriu os olhos. Todos, exceto Alex, olhavam para ele. Os olhos dela estavam baixos, focalizando as mãos postas no colo.
Alex continuou em pé, olhando para ele, e Hammond sabia que ela sabia que ele não estava nada bem. Na verdade ele nunca se sentira tão mal em toda a sua vida.
Ela se sentou novamente e ele religou o gravador. A sala ficou silenciosa, a não ser pelo ronronar suave da máquina e a voz insinuante de Bobby descrevendo de que maneira eles passaram a seduzir homens mais velhos e mais ricos que ele atraía nos saguões e bares dos hotéis. Basicamente Bobby era o cafetão de Alex. Os negócios iam bem.
Loretta tinha contado o resto da história para Hammond. Trimble foi para a prisão. Alex recebeu uma suspensão condicional da pena que incluía aconselhamento e lar de adoção obrigatórios. Ela foi para a casa dos Ladd. O casal adorou a menina. Pela primeira vez na vida Alex foi bem tratada, recebeu afeto e aprendeu com o exemplo de que maneira funcionavam os relacionamentos saudáveis. Ela floresceu sob os cuidados e a influência positiva deles. Eles acabaram adotando Alex oficialmente e ela adotou o nome deles. Não importa se o crédito pertenceu aos falecidos sr. E sra. Ladd, ou à própria Alex, o fato é que a vida dela sofreu uma reviravolta de cento e oitenta graus.
Admitido pelo próprio Bobby Trimble, ele se ressentiu com a sorte dela.
-Fui para a prisão, mas Alex saiu impunemente. Não foi justo! Não era eu que me exibia para aqueles caras.
Smilow olhou para Steffi e para Hammond, franzindo a testa. Mas nenhum dos dois opinou, e ele disse:
Hammond adotou a saída do covarde e nem olhou para Alex antes de o advogado escoltá-la para fora da sala. A expressão dele não seria condizente com a precaridade da situação dela. As fichas estavam definitivamente se empilhando contra ela. Não era bom augúrio Trimble e ela terem sido parceiros no crime, e nem tinham sido crimes tão insignificantes assim. A vítima, esfaqueada, poderia ter morrido se não fosse por um milagre da medicina.
Depois de anos de separação, Trimble e Alex se reencontravam poucas semanas antes de Lute Pettijohn ser assassinado. A jovem Alex tinha sido a isca que possibilitava a Trimble depenar suas vítimas. Alex tinha um cofre em casa cheio de dinheiro. As implicações eram brutais. O efeito do analgésico que Hammond estava tomando tinha terminado havia horas. Para manter a mente mais clara, ele evitou tomar mais. Seu desconforto devia ser óbvio, porque assim que Perkins levou Alex para fora da sala, Steffi virou-se para ele:
Mas ele não estava nada bem. Temia ouvir Smilow analisar as declarações de Bobby Trimble e o que elas representavam para o caso deles contra Alex, mas não tinha opção, a não ser dar a palavra ao detetive e ficar ouvindo enquanto ele resumia a história.
Seria possível que seu próprio pai estivesse envolvido com tais atrocidades? Preston tinha afirmado desconhecer o terrorismo de Pettijohn. Tinha dito que, quando ficou sabendo, vendeu sua parte na sociedade. Hammond esperava que isso fosse verdade mesmo.
Referindo-se novamente a Bobby Trimble, ele zombou:
Steffi consultou as anotações que havia feito:
Smilow continuou a contar a história:
como voluntária para ajudar a organizar o Worldfest, um festival de cinema que durava dez dias, que acontecia todo mês de novembro em Charleston. Um artigo aparentemente inócuo no jornal e uma foto do grupo tinha exposto Alex à sua nêmesis.
Na gravação, Trimble tinha dito: Não pude acreditar quando vi a foto de Alex no jornal. Li os nomes duas vezes antes de compreender que ela devia ter mudado o dela. Procurei o endereço na lista telefónica, fiquei vigiando a casa dela e confirmei que a dra. Ladd era mesmo a meia-irmã que eu tinha perdido havia tanto tempo.
Smilow pensou naquilo um segundo e depois balançou a cabeça.
Ele passou a mão pelo rosto e percebeu que não tinha se barbeado aquela manhã.
Smilow olhou para Hammond com os olhos semicerrados.
Hammond engoliu uma resposta obscena. Smilow o provocava de propósito, e uma reação de zanga lhe daria exatamente o que ele queria. Em vez disso, ele disse com toda a calma:
O maxilar bem barbeado de Smilow se enrijeceu de raiva.
Vários segundos se passaram até Hammond conseguir tirar os olhos de Smilow e se concentrar em Steffi:
Ele não teria uma reação tão exagerada se ela o tivesse ferido com um espeto em brasa.
Stefi pensou um pouco.
“Ela construiu um nome profissional. Estabeleceu-se como especialista em angústia profunda. É admirada e respeitada. Depois de todos os anos que levou para se livrar de Deus sabe quantos traumas da infância e reconstruir sua vida, ela faria praticamente qualquer coisa para protegê-la.”
Hammond percebeu tarde demais que tinha escolhido muito mal as palavras. Steffi tinha razão. Ele acabava de articular seu caso.
Aquele era o problema. Hammond podia bailar em volta dele o quanto quisesse, mas seus passos de dançarino sempre o levavam de volta. Se Alex era completa e totalmente inocente de qualquer crime, por que tinha ido se encontrar com Pettijohn aquela tarde?
Smilow caminhou para a porta.
A ideia de Alex passar algum tempo presa provocou náuseas em Hammond, mas ele achou melhor não mencionar mais nenhum protesto.
Graças a Deus Smilow fez isso por ele.
Smilow saiu e deixou a sala dele para os dois. Steffi olhou com simpatia para Hammond.
Aparentemente, parecia um colega preocupado oferecendo um favor a outro, mas Hammond não sabia se o gesto era totalmente desinteressado. Ela queria o caso, e provavelmente se ressentia de terem dado para ele.
Além do mais, a oferta dela também podia ser uma armadilha bem montada. Depois da indireta de que ele não conseguia tirar os olhos de Alex, ele ficou desconfiado. Se Steffi estivesse tendo até a mais vaga ideia de que ele sentia atração por Alex, ela o vigiaria como um falcão. Tudo que ele dissesse e fizesse passaria pelo filtro da suspeita dela. Se ela descobrisse que a atração que ele sentia ia muito além do que ela imaginava, seria um desastre para ele e para Alex. Ele não podia deixar transparecer que favorecia a suspeita.
Por outro lado, a oferta de Steffi podia ser completamente desinteressada, sua preocupação genuína. Tinha todo o direito de estar zangada e aborrecida com ele por causa do rompimento, mas não tinha deixado que isso comprometesse a relação profissional dos dois. Era ele que tinha seus motivos ocultos. Contrariado, ele agradeceu a oferta dela:
O advogado bufou com desprezo:
Ele deu meia-volta, segurou o braço de Alex e a levou até o elevador.
Steffi esgueirou-se para perto de Smilow e observou:
Ela olhou para o detetive, surpresa com o tom desanimado de sua voz.
Desapontada com as observações dele, Steffi ficou fazendo hora no corredor até Hammond sair do banheiro dos homens. Entraram juntos no elevador.
No andar térreo, eles viram através das portas de vidro a multidão de repórteres à espera nos degraus da entrada.
Quase não se falaram na volta para o centro jurídico, ao norte de Charleston. Assim que entraram no prédio, Hammond pediu licença e se trancou na sua sala particular. Steffi, perdida em seus pensamentos, literalmente deu um encontrão em Monroe Mason quando ele dobrava afobado a esquina de um corredor. Ele levava um smoking pendurado no braço.
Steffi se lembrou das preocupações de Smilow e respondeu:
Apesar de todo o esforço que teve de fazer com os músculos da face, Steffi sorriu.
Ele franziu a testa.
Mason tinha quase chegado ao fim do corredor quando parou e deu meia-volta.
Ela estava de costas para ele, de forma que não deu para ver o sorriso triunfante que se espalhou pelo rosto dela. Ela o desfez antes de virar-se para ele.
Steffi mordeu a bochecha por dentro.
-Nunca.
O procurador municipal seguiu pelo corredor. Ao perdê-lo de vista, Steffi entrou na sua sala praticamente aos pulos. Tinha plantado a semente no início daquela semana. Hoje a tinha regado.
O recado que ela tanto esperava não estava lá. Irritada, ela discou um número.
Ele nem se incomodou de se desculpar ou de lhe dar alguma explicação.
-Você deixou bem claro, sim. E eu também deixei bem claro que trabalho para o hospital, não para o departamento de polícia, e tampouco para o promotor público. Tenho outros trabalhos antes do seu que também são muito importantes.
incompetência combinada com arrogância injustificada.
Merda, precisava daquele exame de sangue! Ela estava tendo um palpite muito forte, e seus palpites raramente falhavam. Desde que tinha surgido aquela manhã, a ideia passou a consumir seus pensamentos e agora tinha virado obsessão. Por mais impossível que pudesse parecer, ela achava que havia um estranho sentido no fato de haver alguma coisa entre Hammond e Alex Ladd, e que essa “coisa” era sexual. Ou pelo menos romântica. Não ousava comentar suas suspeitas com Smilow. Ele provavelmente as consideraria absurdas e, nesse caso, ela faria o papel de boba na melhor das hipóteses, e de ex-amante ciumenta na pior. Ele contaria a teoria dela para sua equipe de detetives, que faria de Steffi alvo de suas piadas. O detetive Mike Collins e os outros que não eram capazes de aceitar mulheres em postos de comando nunca mais a levariam a sério. Tudo que ela dissesse ou fizesse seria minado pela zombaria deles. E isso seria intolerável. Tinha lutado muito para conquistar a reputação de promotora durona e sensata e não ia prejudicá-la com algo tão risivelmente feminino como ver romance onde não havia nada. Mas seria quase tão ruim se Smilow acreditasse no palpite dela. Ele iria adiante com a ideia. Diferentemente de Steffi, ele tinha recursos e influência para fazer uma investigação muito séria. Faria pular os babacas como Jim Anderson, e o técnico do laboratório do hospital só perguntaria até que altura. Smilow teria o resultado daquele exame de sangue na mesma hora. Se as amostras combinassem, Smilow levaria ? crédito de fazer a conexão entre Hammond e a suspeita deles. Se ela estivesse certa não queria dividir o crédito com Smilow ou com qualquer outra pessoa. Queria tudo só para ela. Se Hammond tivesse de cair em desgraça – será que ela podia torcer pela sua expulsão da Ordem dos Advogados? - por prejudicar uma investigação de assassinato, queria ser a pessoa que ia expô-lo. Sozinha. Chega de tocar o segundo violino, chega de projetos de grupo para Steffi Mundell, muito obrigada. Seria deliciosamente divertido ver Hammond despencar do seu pedestal. E seria muito gratificante derrubá-lo pessoalmente de lá. O comportamento dele aquele dia quando ouvia a gravação de Trimble tinha reforçado suas suspeitas. Ele havia reagido como um amante ciumento. Era claro que considerava Alex Ladd uma vítima da exploração do meio-irmão. Sempre que possível ele tinha se adiantado em sua defesa, descobrindo ângulos que sugeriam inocência. Não era uma boa atitude para um promotor que tentava convencer os outros da culpa da acusada. Talvez ele só sentisse pena da inocência perdida da moça. Ou então simpatia pela profissional prestes a perder toda credibilidade e respeito. Mas, de qualquer maneira, havia alguma coisa ali. Definitivamente.
Steffi era dotada de uma intuição aguçada. Sentia o cheiro de mentiras e percebia motivações que ninguém mais notava no escritório do procurador público. Essa habilidade tinha sido muito útil. Seus instintos ganhavam vida e zuniam ruidosamente toda vez que Hammond e Alex Ladd estavam próximos um do outro. Mas a certeza que tinha ia além dos seus instintos de promotora. Sua intuição feminina também alimentava essa impressão. Enquanto observava os dois se olhando, os sinais ficavam cada vez mais óbvios. Eles evitavam contato visual direto, mas sempre que efetuavam esse contato quase dava para ouvir o clique de uma ignição. Alex Ladd demonstrou ter ficado arrasada quando Trimble relatou os detalhes mais lascivos do seu passado. A maioria das suas negativas verbais tinha sido dirigida a Hammond. E ele, que tinha fama de possuir uma habilidade extraordinária de focalizar e de se concentrar no assunto em pauta, não conseguia parar quieto. Ficava se mexendo o tempo todo. As mãos não paravam. Agia como se sentisse uma coceira que não pudesse coçar. Steffi reconhecia aqueles sinais. Ele tinha se comportado daquela forma quando o caso deles começou. Ir para a cama com uma colega de trabalho deixava Hammond inquieto. Ele se preocupava com o fato de não ser apropriado. Ela o provocava, dizendo que, se não relaxasse quando estavam em público, seus tiques nervosos iam acabar denunciando os dois. Mas não sinto ciúme, pensou Steffi no presente. Não sinto ciúme dele, e certamente não a invejo. Não mesmo. Superficialmente, ela podia parecer a típica mulher desprezada. Mas não era ciúme que alimentava seu desejo de chegar ao fundo daquela questão. Era muito mais que ciúme. Muito maior. Seu futuro dependia disso. Ia continuar cavando até obter uma resposta, mesmo se o seu palpite estivesse errado. Um dia, quando a dra. Ladd estivesse curtindo a prisão, talvez contasse para Hammond essa ideia maluca que teve. E eles dariam boas risadas. Ou então podia descobrir um segredo escandaloso que arruinaria por completo a reputação de Hammond Cross e acabaria com qualquer chance de ele se tornar procurador do município. E se isso acontecesse, adivinhem quem estaria pronta e preparada para assumir o cargo? O melhor detetive de homicídio do Departamento de Polícia de Charleston estava pronto para alegar que Alex Ladd tinha matado Lute Pettijohn. A função de Hammond era argumentar e provar o caso da promotoria pública num tribunal de Justiça. Mas o caso da promotoria pública era contra uma mulher por quem ele havia se apaixonado. Além disso, ele era uma testemunha essencial nesse caso. Esses eram dois motivos muito poderosos para ele querer invalidar a alegação da promotoria. Mas havia um outro motivo ainda mais poderoso, influente e urgente. A vida de Alex corria perigo. A mídia tinha descoberto a história de terem revirado a casa dela na véspera. Ela sofrera um atentado na noite anterior. Isso não podia ser uma coincidência. O invasor provavelmente tinha sido contratado para silenciar Alex. Como tinha falhado, certamente tentaria de novo.
Smilow e seus homens tinham concentrado toda a atenção em Alex, deixando a cargo de Hammond a tarefa de encontrar outro possível suspeito, ou suspeitos. com esse objetivo, Hammond trancou-se na sua sala com o arquivo sobre o caso que Smilow tinha dado para ele. Desligou-se mentalmente do caso. Descontando seu investimento pessoal, ele se concentrou apenas nos aspectos legais e abordou o caso exclusivamente a partir desse ponto de vista. Quem queria ver Lute Pettijohn morto? Rivais nos negócios? Certamente. Mas de acordo com os arquivos de Smilow, todos os interrogados tinham álibis concretos. Até o pai dele. Hammond havia verificado pessoalmente o álibi de Preston. Davee? Mais ainda. Mas Hammond achava que, se ela tivesse matado o marido, não faria segredo nenhum disso. Seria uma produção e tanto. Era mais o estilo dela. Confiando no seu poder de concentração e capacidade de raciocínio, ele organizou e absorveu todos os dados que o arquivo do caso continha. A essa informação Hammond acrescentou os fatos que ele conhecia, e Smilow não:
Isolado, nenhum desses fatos parecia relevante. Mas, juntos, aguçavam a curiosidade de Hammond como promotor e geravam perguntas... e a procura de motivos, independentemente do fato de querer que Alex fosse inocente. Mesmo se não estivesse emocionalmente envolvido com ela, Hammond não queria de jeito nenhum condenar uma pessoa inocente. Não importava quem fosse o principal suspeito, essas perguntas exigiam novas investigações. Utilizando mentalmente esses fatos não revelados, ele repassou cada conversa que teve sobre o caso. Com Smilow, Steffi, com o pai dele, Monroe Mason, Loretta. Retirou Alex da equação e fingiu que ela não existia, que o suspeito continuava um mistério. Assim ele pôde escutar cada pergunta, cada declaração e cada observação espontânea com ouvidos novos em folha. por incrível que pareça, foi uma afirmação dele mesmo que chamou sua atenção e o arrancou daquele fluxo preguiçoso de consciência: “As balas mais comuns da pistola mais comum. Há centenas de 38 só nesta cidade. Até no seu depósito de provas, Smilow.” Subitamente Hammond sentiu uma energia nova e uma determinação muito forte para justificar o próprio comportamento irracional nos últimos dias. Tudo... sua carreira, sua vida, sua paz de espírito... dependia de exonerar Alex e de provar que ele estava certo. Hammond olhou para seu relógio de mesa. Se corresse, talvez ainda pudesse começar sua investigação aquela tarde mesmo. Recolheu apressadamente o arquivo, enfiou-o na pasta e saiu da sala. Tinha acabado de sair do prédio pela porta principal e estava sentindo o bafo do calor de fornalha quando ouviu o seu nome.
Só uma pessoa tinha aquela voz imperativa. Hammond grunhiu por dentro e deu meia-volta.
Hammond até uma sombra estreita colada à fachada do edifício.
Aquela dra. Ladd. Sempre que seu pai falava depreciativamente de alguém ele punha o pronome na frente do nome. A despersonalização era sua maneira sutil de expressar o desprezo que sentia pelo indivíduo. Procurando ganhar tempo, Hammond disse:
O rosto de Preston tinha ficado vermelho até as raízes dos cabelos brancos. Havia umas gotas de saliva no canto da boca. Ele raramente perdia a calma e considerava explosões emocionais de qualquer tipo uma fraqueza reservada para mulheres e crianças. Tirou um lenço do bolso de trás da calça e secou o suor da testa com o quadrado branco de linho irlandês bem passado. Já mais calmo, ele disse:
Hammond fixou os olhos no pai, mas continuou obstinadamente calado.
As feições de Preston Cross se enrijeceram de fúria.
O pai dele piscou bem rápido, e Hammond percebeu que o tinha atingido.
Ah, os famosos jab e gancho super-rápidos de Preston! Como sempre, Hammond não foi capaz de prever.
Hammond ficou tonto e nauseado, e não graças ao calor ou aos seus ferimentos.
Mais uma vez aquele sorriso beatífico.
Hammond não conseguia se lembrar de outro momento em sua vida que tivesse desejado tanto bater em alguém. Queria amassar os lábios do pai com o punho até eles ficarem arrebentados e sangrando, até não poderem mais formar aquele sorriso condescendente. Controlando aquele impulso, ele baixou o tom de voz e aproximou o rosto do rosto do pai.
Tendo dito isto, Hammond deu meia-volta e foi caminhando para o estacionamento.
Preston agarrou seu braço esquerdo e puxou-o com força.
Ele cutucou com força o peito de Hammond com o dedo indicador.
Preston deu uma risadinha.
Os dois homens se encararam furiosos e a animosidade entre eles borbulhava na superfície depois de cozinhar por tantos anos sob camadas espessas de ressentimentos. Hammond sabia que nada que dissesse abalaria a vontade de ferro do pai, e subitamente compreendeu que não se importava com isso. Para que se defender e a Alex de um homem que não respeitava? Ele reconheceu Preston como realmente era e não gostou. A opinião que o pai tinha dele, de qualquer coisa, não impOrtava mais, porque não havia integridade nem honra por trás. Hammond deu as costas para Preston e foi embora. Smilow teve de esperar meia hora no saguão do Charles Towne Plaza até uma das cadeiras de engraxate vagar.
O velho engraxate iniciou uma conversa sobre o fracasso atual do Braves de Atlanta.
Smilow interrompeu.
Smilow mostrou a foto de Bobby Trimble tirada na delegacia.
O detetive balançou a cabeça distraído enquanto guardava as fotos no bolso de cima do paletó.
Ele deu uma última escovada nos sapatos de Smilow. O detetive desceu da cadeira e abriu os braços para Smitty passar uma escova no seu paletó.
A mente de Smilow funcionou como uma armadilha de aço que acabava de ser destravada.
Hammond ficou esperando no corredor até ver Harvey Knuckle sair da sala dele, às cinco horas em ponto. O génio do computador trancou conscienciosamente a porta, e quando se virou Hammond já estava em cima dele.
O proeminente pomo-de-adão de Knuckle subiu e depois desceu pelo pescoço magro. Engoliu em seco ruidosamente.
Os olhos de Hammond praticamente empalaram Harvey à porta do escritório atrás dele.
Harvey relaxou, molhou os lábios com a língua grossa, mas o sorriso amarelo se desfez quando Hammond perguntou:
Hammond avançou mais um passo para cima dele e baixou o tom de voz.
Hammond continuou com ar imperturbável:
Viciada em notícias, Loretta Boothe assistia aos primeiros noticiários da noite, pulando de um canal para outro e comparando as coberturas da história de Alex Ladd. Ficou consternada de ver Hammond encarando as câmeras de televisão todo estropiado, com o braço numa tipóia. Quando é que ele tinha se machucado daquele jeito? E de que maneira? Tinham se visto na véspera. Quando terminaram os telejornais e começou a Roda da Fortuna, a filha dela, Bev, passou pela sala com seu uniforme de trabalho.
Bev hesitou quando chegou à porta.
Loretta viu a preocupação nos olhos da filha, a desconfiança. A harmonia entre as duas ainda era experimental. Ambas queriam desesperadamente que as coisas dessem certo dessa vez. Ambas temiam que não desse. Loretta tinha prometido e quebrado promessas tantas vezes que nenhuma das duas confiava nos seus juramentos mais recentes. Tudo dependia de Loretta manter-se sóbria. Ela só precisava fazer isso. Mas era muita coisa.
Depois que Bev foi embora, Loretta continuou assistindo ao Programa, mas só por falta de coisa melhor para fazer. O apartamento estava claustrofóbico aquela noite, apesar dos cómodos não estarem menores do que eram ontem ou anteontem. A inquietude não era externa, ela partia de dentro. Loretta pensou em sair, mas seria arriscado. Seus amigos eram bêbados também. Os lugares que ela conhecia eram tentadores demais para quem tentava tomar um drinque só. E mesmo um único drinque significaria o fim da sua sobriedade, e ela voltaria exatamente para o ponto em que estava antes de Hammond contratá-la para trabalhar no caso Pettijohn. Ela queria que o trabalho não tivesse terminado. Não só por causa do dinheiro. Apesar do salário de Bev ser suficiente para sustentar as duas, Loretta também queria contribuir para pagar as contas da casa. Seria bom para sua auto-estima, e precisava da independência que resultava do fato de ter renda própria. Além do mais, enquanto estava trabalhando não sentiria tanta sede. O ócio era o perigo que precisava evitar. Não ter nada de construtivo para fazer é que alimentava o desejo do que não podia ter. Com tempo sobrando, ela começava a pensar que sua vida era muito trivial, que realmente não ia fazer muita diferença se bebesse até morrer, que podia facilitar as coisas para si mesma e para todas as pessoas ligadas a ela. Uma associação de ideias muito perigosa. Pensando bem, Hammond não tinha dito especificamente que não precisava mais dos serviços dela. Depois que ela lhe deu o serviço sobre a dra. Alex Ladd, ele saíra daquele bar como se a cueca estivesse pegando fogo. Parecia um pouco abatido, mas mal podia esperar para usar a informação que ela havia conseguido, e o que ele fez deve ter dado certo, porque agora ele estava apresentando seu caso de assassinato para o grande júri. Contatar Harvey Knuckle hoje provavelmente tinha sido supérfluo. Hammond parecia afobado e nada interessado quando ela revelou seu palpite de que Harvey tinha mentido para ela aquela manhã. Mas que diabos? Não tinha custado nada fazer esse esforço adicional. Apesar dos ferimentos, qualquer que fosse a causa deles a voz de Hammond tinha soado bem forte e cheia de convicção quando se dirigiu aos repórteres nos degraus da entrada da delegacia de polícia.
Ele explicou que a aparição de Bobby Trimble tinha sido a reviravolta do caso.
Por outro lado, o advogado da dra. Ladd, que Loretta só conhecia pela reputação, tinha dito para a mídia que aquele era o erro mais gritante cometido pela polícia de Charleston e pelo assistente do promotor público, dr. Cross. Tinha certeza de que, quando todos os fatos fossem revelados, a dra. Ladd seria inocentada e as autoridades teriam de pedir perdão para ela em público. Ele já estava pensando em mover um processo de difamação. Loretta reconheceu aquele jargão típico dos advogados, apesar das afirmações de Frank Perkins terem sido particularmente veementes. Das duas, uma: ou ele era um excelente orador, ou então estava sinceramente convencido de que a sua cliente era inocente. Talvez Hammond realmente estivesse com a suspeita errada. Se fosse esse o caso, ia fazer papel de idiota no caso mais importante da sua carreira até o momento. Ele havia aludido ao álibi sem provas de Alex Ladd, mas não fora específico. Tinha a ver com... o que era mesmo?
Uma feira na periferia de Beaufort. Era isso. Ela se levantou subitamente e foi até a cozinha onde Bev empilhava os jornais antes de conscienciosamente embrulhá-los para a reciclagem. Por sorte o dia da coleta era amanhã, por isso todos os jornais da semana estavam lá. Loretta folheou a pilha até encontrar o do último sábado. Tirou o caderno de entretenimento e examinou-o rapidamente até encontrar o que estava procurando. O anúncio de um quarto de página da feira dava a hora, o lugar, orientação de como chegar lá, preço da entrada, atrações da feira e... espere aí!
Em poucos minutos Loretta estava no seu carro, saindo da cidade, indo para Beaufort. Não sabia o que ia fazer quando chegasse lá. Seguir seu faro, pensou ela. Mas se pudesse – por um golpe de sorte ou algum milagre mesmo – descobrir um buraco no álibi de Alex Ladd, Hammond seria seu eterno devedor. Ou então, se confirmasse o álibi da psicóloga, pelo menos ele poderia ser avisado com antecedência. Não teria aquela surpresa desagradável no tribunal. De qualquer maneira, Hammond ficaria devendo essa para ela. Um grande avanço na sua vida. Até ele dispensá-la oficialmente, ela continuava tecnicamente contratada. Se pudesse ajudá-lo nessa, ele ficaria eternamente grato e imaginaria como tinha sobrevivido sem ela. Podia até indicá-la para um cargo permanente na procuradoria pública. No mínimo ele teria de agradecer por Loretta ter tido a iniciativa de agir por conta própria obedecendo aos seus instintos afiadíssimos, que nem oceanos de bebida tinham anestesiado. Ele ficaria muito orgulhoso!
O policial uniformizado baixou o canto do jornal que estava lendo. Quando viu Hammond diante da sua mesa, ficou imediatamente em pé.
O depósito de provas do Departamento de Polícia de Charleston era domínio do sargento Glenn Basset. Ele era baixo, gordo e insignificante. Um bigode farto compensava a careca. Sem um pingo de agressividade, tinha sido um mau patrulheiro, mas servia perfeitamente para a função burocrática que desempenhava. Era um cara simpático, que não reclamava de nada, satisfeito com a sua patente, um companheiro afável, amigo de todos, sem inimigos. Hammond ligou antes para fazer seu pedido, que o sargento atenderia com muito prazer.
Sentindo que Hammond queria conversar com ele em particular, o policial dirigiu-se a uma funcionária que trabalhava numa mesa ali perto.
O policial corpulento apontou para uma pequena sala que era usada para descanso. Ofereceu para Hammond uma xícara do café viscoso de um bule opaco na cafeteira.
Hammond recusou, e então disse:
Ele olhou para Hammond sem entender.
Basset começou a ficar nervoso.
Basset ficou mexendo na orelha, pensativo.
Nada.
Hammond levou os registros impressos, apesar de achar que não forneceriam a pista valiosa que esperava obter. Tinha deixado Harvey Knuckle muito animado, depois de fazer o génio do computador admitir que Smilowe Steffi o forçaram adar a informação sobre Pettijohn. Mas refletindo melhor, o que isso provava? Que os dois estavam tão interessados quanto ele em saber que Lute tinha levado o castigo que merecia? Isso não era nenhuma descoberta. Nem mesmo uma surpresa. Ele queria tão desesperadamente que Alex fosse inocente que se dispunha a desconfiar de qualquer um e de todos, até de colegas que, ultimamente, faziam mais para manter a lei do que ele. Desanimado, ele entrou no seu apartamento, foi direto para a sala de estar e ligou a televisão. A âncora com lentes de contato verde-esmeralda acabava de apresentar o resumo da história. Satisfazendo uma tendência masoquista, Hammtínd ficou assistindo. A não ser pela tipóia no braço, os curativos estavam cobertos pela roupa, mas o rosto dele parecia de cera e muito abatido sob o brilho feérico das luzes sanguessugas da televisão, escurecendo ainda mais a barba por fazer. Quando perguntaram sobre seus ferimentos, ele fez pouco do ataque como se fosse algo inconsequente, e cortou o assunto. Sendo politicamente correto, ele cumprimentou a polícia de Charleston pelo excelente trabalho de investigação. Escapou de perguntas específicas sobre Alex Ladd e só disse que as declarações de Trimble tinham sido um marco na investigação, que o caso deles era sólido e que o indiciamento estava praticamente garantido. Em pé, logo atrás do seu ombro esquerdo, dando apoio, Steffi concordava, balançando a cabeça, e sorria. Era fotogênica, ele observou. As luzes brilhavam nos seus olhos escuros. A câmera capturava a vivacidade dela. Smilow também tinha sido assediado pela mídia, e recebeu o mesmo tempo nos noticiários. Mas, diferentemente de Steffi, ele estava estranhamente contido. Suas observações se diluíam com diplomacia e mais ou menos ecoavam as de Hammond. Ele se referiu à ligação de Alex com Bobby Trimble apenas em termos bem gerais, dizendo que o homem na prisão tinha sido vital para o caso contra ela. Negou-se a revelar a natureza do relacionamento dela com Lute Pettijohn. Jamais se referiu aos seus registros no juizado de menores, mas Hammond suspeitava de que essa omissão fosse calculada. Smilow não queria contaminar o grupo de jurados e dar a Frank Perkins uma base para troca de foro do julgamento ou para invalidar o julgamento, supondo que o caso chegasse a julgamento. Câmeras de vídeo capturaram um Frank Perkins com maxilar de granito saindo com Alex. Aquele foi o segmento mais difícil de assistir para Hammond, sabendo como devia ter sido humilhante para ela estar sob os holofotes como principal suspeita do caso de homicídio mais sensacionalista da história recente de Charleston. Alex foi descrita como respeitada psicóloga de trinta e cinco anos de idade, com credenciais de peso. Fora suas conquistas profissionais, ela foi elogiada por sua participação em eventos cívicos e por ser benfeitora generosa para várias organizações filantrópicas. Vizinhos e colegas procurados para comentar o caso expressaram choque, alguns pareceram escandalizados, chamaram de ridícula a ideia do envolvimento dela e de outros adjetivos sinónimos. Quando a âncora com olhos artificialmente verdes passou para outra história, Hammond desligou o aparelho, subiu a escada e preparou um banho de imersão bem quente. Entrou e deixou o braço direito pendurado para fora da banheira. O banho aliviou um pouco suas dores, mas também o deixou meio zonzo e fraco. Precisava comer, por isso desceu até a cozinha e começou a preparar uns ovos mexidos. Era muito desajeitado fazendo as coisas com a mão esquerda. E ficou ainda mais incapacitado com suas previsões lúgubres. Não queria ser lembrado na posteridade como uma piada suja. Não queria que dissessem: Ah, você se lembra de Hammond Cross? Promotor jovem e promissor. Mas sentiu o cheiro de uma xoxota e foi tudo para o inferno. E era isso que iam dizer. Talvez usando outras palavras, mas com esse sentido. Sobre as toalhas molhadas e meias suadas nos armários do vestiário, ou entre doses de uísque em algum bar da moda, colegas e conhecidos balançariam as cabeças mal disfarçando o riso, comentando a suscetibilidade de Hammond. Iam chamá-lo de idiota e Alex seria apenas o rabo que lhe havia provocado a ruína. Ele queria descontar sua raiva naquelas fofocas imaginárias por serem tão injustas. Queria punir a todos por tecerem observações maliciosas sobre ela e sobre o relacionamento dos dois. Não era o que eles pensavam. Tinha se apaixonado de verdade.
Não estava tão dopado com Darvocet na véspera para não lembrar de ter dito a ela que para ele o amor era verdadeiro, e que tinha sido desde o início. Tinha conhecido Alex havia menos de uma semana menos de uma semana -, mas nunca teve tanta certeza de alguma coisa assim na vida dele. Nunca sentiu atração física tão intensa por uma mulher. Nunca sentiu uma ligação cerebral, espiritual e emocional tão forte com ninguém. Os dois tinham conversado horas na feira, e mais tarde na cama dele, na cabana. Sobre música. Comida. Livros. Viagens e os lugares que queriam conhecer quando tivessem tempo. Filmes. Exercícios e regimes para a boa forma física. O velho Sul. O novo Sul. Os Três Patetas e por que os homens os adoravam e as mulheres detestavam. Coisas importantes. Coisas sem importância. Conversas intermináveis sobre tudo. Exceto sobre eles mesmos. Hammond não tinha dito nada de mais profundo sobre ele mesmo para Alex. E ela certamente não tinha divulgado nada sobre a vida dela, no presente ou no passado. Será que tinha sido uma prostituta? Será que ainda era? E se fosse, será que ele conseguiria deixar de amá-la com a mesma rapidez que aquele amor tinha começado? Ele temia que não. Talvez ele fosse mesmo um idiota. Mas ser um idiota não era desculpa para ser desonesto. Ele e sua consciência culpada estavam se tornando parceiros incompatíveis. Estava achando cada vez mais difícil viver com ele mesmo. Apesar de odiar ter de dar razão ao pai por qualquer coisa, Preston tinha aberto os olhos dele mais cedo, forçando-o a encarar o que ele sempre evitou reconhecer: que Hammond Cross era tão corruptível quanto qualquer um- Não era mais honesto que seu pai. Não conseguiu engolir aquela ideia, nem os ovos mexidos, por isso jogou-os na lata de lixo. Queria beber alguma coisa, mas o álcool só serviria para aumentar os resquícios do torpor na cabeça dele, fazendo com que se sentisse ainda pior. Queria que a merda do braço parasse de latejar. Queria uma solução para aquela porra de confusão que ameaçava o futuro brilhante que tinha planejado para ele mesmo. Acima de tudo, queria que Alex estivesse a salvo. A salvo. Dinheiro a salvo num cofre na casa de Alex. Um cofre vazio na suíte de Pettijohn no hotel.
Um cofre dentro do armário. O armário. O cofre. Cabides. Robe. Chinelos. Ainda embrulhados. Hammond deu um pulo como se tivesse recebido uma descarga elétrica, depois ficou completamente imóvel, procurando se acalmar, pensar, raciocinar.
Vá devagar. Não se apresse. Mas depois de alguns minutos examinando a ideia de todos os ângulos possíveis, ele não encontrou nenhuma falha. Todos os elementos se encaixavam. A conclusão não deixou Hammond feliz, mas não podia se dar ao luxo de pensar nisso agora. Precisava agir. Levantou tropeçando da cadeira e pegou o telefone sem fio mais próximo. Depois de verificar o número no serviço de auxílio à lista, ele digitou o número.
Ele interrompeu a telefonista, identificou-se e disse para ela com quem queria falar.
Loretta não levou muito tempo para concluir que ir àquela feira tinha sido uma má ideia. Quinze minutos depois de estacionar seu carro num pasto poeirento e de percorrer o resto do caminho a pé, ela estava suando como uma porca. Havia crianças por toda a parte, crianças barulhentas, briguentas e grudentas que pareciam tê-la escolhido para perturbar. Os responsáveis pelas atrações da feira estavam mal-humorados. Mas não podia culpá-los por suas atitudes ríspidas. Quem conseguia trabalhar com aquele calor todo? Ela teria vendido sua alma para estar dentro de um bom bar, escuro e fresco. O fedor da fumaça de cigarro e de cerveja seria um alívio bem-vindo para aquela mistura de algodão-doce e bosta de vaca entranhados na feira toda. A única coisa que a mantinha lá era a lembrança constante de que podia estar fazendo um favor para Hammond. Devia-lhe isso. Não só como recompensa pelo caso que ela estragou, mas por lhe dar mais uma chance quando ninguém mais se dava ao trabalho de falar com ela. Aquela fase de sobriedade podia não durar. Mas naquele momento ela estava a seco, estava trabalhando, e sua filha olhava para ela sem aquela expressão de desprezo. E Loretta tinha de agradecer a Hammond Cross por essas bênçãos. Obstinadamente, ela parava em todas as atrações.
O homem cuspiu um punhado de sumo de tabaco que quase bateu no ombro dela.
Toda vez que ela mostrava a fotografia de Alex Ladd para os exibidores, operadores de brinquedos e vendedores de comida, a resposta era uma variação do mesmo tema. Ou eram descaradamente grosseiros como esse último ou estavam cansados demais para prestar atenção. Balançar a cabeça e dizer um lacónico “sinto muito” era a resposta habitual às perguntas de Loretta. Ela percorreu a feira toda até bem depois de o sol se pôr e de os mosquitos atacarem com força total. Depois de horas, o único resultado de todo aquele esforço eram pés que a umidade tinha feito inchar até ficarem como duas almofadas. Analisando a pele esticada e inchada que escapava das tiras da sandália, ela achou que era uma pena que aquela feira não tivesse um show de aberrações.
Loretta finalmente reconheceu que aquela missão era perda de tempo, que, para começar, a dra. Ladd provavelmente tinha mentido sobre ter estado na feira, e a possibilidade de topar com alguém que tivesse estado lá naquele sábado e que também lembrasse de tê-la visto era praticamente nula. Ela deu um tapa num mosquito no braço. Ele explodiu como um balão e deixou uma mancha de sangue.
Foi então que ela resolveu reduzir as perdas e voltar para Charleston. Loretta sonhava que enfiava os pés na banheira cheia de água gelada quando passou pelo pavilhão de dança com teto cónico cheio de lâmpadas brancas de Natal. Uma banda piolhenta afinava os instrumentos. O violinista tinha uma barba toda enrolada, aliás. Dançarinos se abanavam com folhetos, rindo e conversando enquanto esperavam a banda recomeçar a tocar. Os solteiros se esgueiravam no perímetro da pista de dança, analisando suas possibilidades, avaliando a competição, procurando não parecer óbvios demais, nem desesperados demais para encontrar alguém. Loretta notou que havia muitos militares no meio da multidão. Jovens soldados, de barbas e cabelos recém-cortados, transpiravam suas águas-de-colônia, olhavam as mulheres e bebiam cerveja. Uma cerveja ia cair muito bem mesmo. Uma cerveja? Que mal poderia fazer? Não era pelo álcool. Apenas para matar a sede horrorosa que um refrigerante açucarado não afetaria. E já que estava ali podia mostrar a foto da dra. Ladd também. Talvez alguém naquele grupo lembrasse dela no fim de semana anterior. Os soldados estavam sempre à procura de mulheres bonitas. Talvez um deles tivesse se interessado por Alex Ladd. Procurando se convencer de que não estava racionalizando só para se aproximar do pessoal que bebia cerveja, e fazendo uma careta com a dor provocada pelas tiras da sandália nos pés inchados, Loretta subiu mancando os degraus do pavilhão.
Quando Frank Perkins abriu a porta da casa dele, o sorriso de boasvindas se desfez, como se o fim da piada não tivesse graça nenhuma.
Escolhendo as palavras com muito cuidado, Frank respondeu:
Hammond tirou um envelope do bolso da camisa e deu-o para o advogado. Frank pegou o envelope e espiou dentro dele. O envelope continha uma nota de um dólar.
Como Hammond esperava, aquela declaração deixou Frank Perkins sem fala. Hammond se aproveitou daquela catatonia momentânea para passar por ele.
Frank fechou a porta da sua confortável casa de subúrbio. Rapidamente se recompôs e atacou Hammond à toda:
Ele parou de falar quando o arco aberto entre as salas atrás de Frank se encheu de gente, curiosa para ver o que era aquela comoção toda. O rosto de Alex foi o único que Hammond registrou.
Frank, seguindo a direção do olhar espantado de Hammond, resmungou:
Um dos filhos gémeos de nove anos de Frank tinha uma mancha do que parecia molho de espaguete num canto da boca. Maggie era uma mulher sulista muito fina, que descendia de valentes esposas e viúvas confederadas. A situação constrangedora que se criara na entrada da casa não a perturbou:
Ele primeiro olhou para Frank, depois para Alex.
Maggie Perkins segurou os ombros dos dois meninos, deu meiavolta com eles e levou-os para o lugar de onde tinham vindo, supostamente a copa, ao lado da cozinha.
-Além do mais, é bom mesmo que esteja aqui. Você também tem de ouvir isso.
Finalmente, Frank resolveu se intrometer:
Ele fez um sinal para os dois o acompanharem até os fundos da casa, onde ficava seu escritório doméstico. As placas e citações emolduradas, arrumadas em grupos estéticos nas paredes com painéis de madeira, atestavam o homem honrado que Frank Perkins era, pessoal e profissionalmente.
Hammond e Alex recusaram a oferta de um drinque, mas Frank serviu-se de uma dose de uísque puro e sentou-se atrás de uma mesa pesada. Alex se sentou num sofá de couro e Hammond numa poltrona. O advogado olhou para os dois e acabou fixando o olhar na sua cliente:
-Até onde você ia deixar isso chegar? Ia deixar Hammond indiciála, prendê-la, sujeitá-la a um julgamento, condená-la e pô-la no corredor da morte?
Frank terminou seu drinque de um gole só. O álcool provocou lágrimas em seus olhos e o fez tossir com o punho fechado diante da boca. Depois de pigarrear, ele perguntou onde tudo aquilo tinha acontecido. Alex contou a sequência de eventos, começando com o encontro dos dois no pavilhão de dança e terminando na cabana dele.
Frank balançou a cabeça, que parecia ter ficado meio atordoada pela infusão de álcool ou pelos fatos conflitantes que achava difícil compreender.
Ele ainda achava difícil ouvir Alex admitir que foi tudo planejado, que o encontro dos dois não tinha sido obra do destino ou do acaso romântico que ele queria que fosse. Mas tinha de superar isso. As circunstâncias exigiam que ele se concentrasse em questões muito mais importantes:
Frank olhou para ele ainda completamente confuso.
Frank ficou olhando para Hammond alguns segundos antes de virar para Alex pedindo confirmação. Ela concordou balançando um pouco a cabeça. Frank levantou-se e foi pegar mais uísque. Enquanto ele se servia, Hammond aproveitou a oportunidade para olhar para Alex. Os olhos dela estavam molhados, mas ela não estava chorando. Ele queria abraçá-la. Também queria sacudi-la até toda a verdade escapar. Talvez não. Talvez não quisesse saber que tinha sido ingénuo como os meninos excitados e os velhos tarados que pagaram ao meio-irmão Bobby pelos favores dela. Se ele a amava, como dizia, teria de superar isso também. Frank voltou para a sua cadeira. Ficou girando seu copo no tampo de couro da mesa.
-Eu tinha uma hora marcada com Pettij ohn sábado à tarde – disse Hammond. - A convite dele. Eu não queria ir, mas ele insistiu nesse nosso encontro, e garantiu que seria do meu interesse.
-A procuradoria-geral tinha me indicado para investigar Pettijohn e ele ficou sabendo.
Frank não era nenhum idiota. Ele entendeu tudo.
O rosto de Alex denotava compaixão. Frank disse calmamente:
Ele sabia que a comiseração era sincera, mas fez um gesto com a mão como se aquilo não tivesse importância.
Os dois balançaram a cabeça ao mesmo tempo.
Ele parou e respirou bem fundo.
O escritório ficou tão quieto que o tique-taque do relógio na mesa de Frank parecia uma trovoada. Depois de um tempo, o advogado falou:
O que você esperava conseguir vindo até aqui e me contando isso?
Estava pesando demais na minha consciência.
Bem, eu não sou um padre – disse Frank, aborrecido.
Não, não é.
E estamos de lados opostos num julgamento de assassinato.
Sei disso também.
Davee atendeu o telefone languidamente.
Por falta de coisa melhor para fazer, ela estava deitada na espreguiçadeira no seu quarto de dormir, bebendo vodca com gelo e assistindo a um clássico em preto e branco com Joan Crawford, num canal de filmes clássicos. A urgência na voz da pessoa ao telefone fez Davee se sentar, o que provocou uma onda de tontura. Ela apertou o botão para emudecer a televisão.
Ela verificou o relógio sobre a antiga mesa de chá ao lado da espreguiçadeira.
Nos anos loucos da adolescência, uma ligação tarde da noite teria representado aventura. Ela sairia de casa escondida para encontrar um namorado ou um grupo de amigas para algum programa proibido até o amanhecer, tomar banho de mar sem roupa, beber cerveja ou fumar maconha. Essas escapadas sempre deixavam seus pais revoltados. Ser pega e desafiar o castigo faziam parte da diversão. Mesmo depois do seu casamento com Lute, não era tão incomum Davee ter uma conversa unilateral ao telefone que redundava em excursões tarde da noite. Só que essas saídas jamais perturbavam a tranquilidade doméstica. Lute reagia com indiferença às suas idas e vindas, ou então estava fora em alguma farra própria. Não eram mais tão divertidas. Aquela não prometia diversão nenhuma, mas ela estava curiosa: - O que está havendo?
Davee ficou algum tempo olhando para o telefone sem fio mudo na sua mão, então largou-o na espreguiçadeira e se levantou. Balançou-se um pouco e apoiou a mão na mesa para recuperar o equilíbrio. Foi se firmando aos poucos e seu raciocínio também despertou. Aquilo era loucura. Tinha bebido demais. Não devia dirigir. E de qualquer maneira, quem ele pensava que era para chamá-la para um McDonald’s no meio da noite? Nenhuma explicação. Nenhum por favor, nada de obrigado. Nem se preocupou se ela concordaria ou não. Por que ele não podia ir à casa dela contar o que achava tão importante? O que quer que fosse, devia ter relação com a investigação do assassinato de Lute. Já não havia deixado bem claro que não queria se envolver naquilo mais que o absolutamente necessário? Mesmo assim ela foi até o banheiro, jogou água fria no rosto e gargarejou com um anti-séptico bucal. Despiu a camisola e, sem se importar de vestir qualquer roupa de baixo, vestiu uma calça branca e uma camiseta também branca, feita de alguma microfibra sintética colante que não deixava muita coisa para a imaginação, que era bemfeito para ele. Não calçou sapato nenhum. Seu cabelo estava todo despenteado. Se alguém os visse juntos, o simples desalinho dela faria as sobrancelhas subirem. É claro que ela não dava a mínima, mas esse descuido não era característico dele. Sarah Birch assistia à televisão na sua suíte ao lado da cozinha.
A fiel governanta sempre sabia quando Davee estava mentindo, mas nunca abria o jogo. Era um dos motivos pelos quais Davee a adorava.
Sabendo que todos os seus segredos estavam seguros com Sarah, Davee foi para a garagem e entrou no seu BMW. As ruas residenciais estavam escuras e sonolentas. Havia pouco trânsito na auto-estrada e também nas avenidas comerciais. Apesar de ir contra sua inclinação natural e do carro também, ela manteve o BMW no limite de velocidade permitido. Dois processos por dirigir intoxicada tinham sido anulados por um juiz que devia um favor a Lute. Um terceiro seria forçar a sorte. O McDonald’s estava iluminado como um cassino de Las Vegas. Mesmo sendo tão tarde, havia uma dúzia de carros no estacionamento, de adolescentes amontoados nas mesas dentro do salão. Davee estacionou numa vaga pouco iluminada do outro lado do estacionamento, abaixou a janela do lado do motorista e depois desligou o motor. Na frente dela havia uma fileira de arbustos desiguais que serviam de cerca viva entre o estacionamento do McDonald’s e o de outra lanchonete que tinha falido. O prédio estava coberto com tapumes de madeira. Atrás dela havia a pista vazia do drive-through. De um lado e do outro, nada além da escuridão. Ele ainda não tinha chegado, e ela ficou irritada com isso. Reagindo à urgência dele, tinha largado tudo, inclusive um drinque novinho, e corrido para lá. Abaixou o pára-sol, puxou a tampa do espelho iluminado e espiou seu reflexo. Ele abriu a porta do lado do passageiro e entrou no carro.
Rory Smilow fechou rapidamente a porta do carro para apagar a luz interna. Estendeu o braço por cima da direção, empurrou a tampa do espelhinho e eliminou aquela luz também.
O cumprimento dele se espalhou por Davee como um gole de uma bebida quente e muito cara, só que ela procurou não demonstrar o efeito embriagante que provocava nela. Em vez disso, disse zangada:
O comentário dela era para ser uma piada, mas é claro que ele tinha levado a sério. Era decepcionante, mas ele ia direto ao assunto, assim como tinha feito na noite em que foi informar que o marido dela estava morto. Tinha se comportado exatamente como mandava o protocolo. Profissionalmente. Educadamente. Distante.
Nunca, nem em um milhão de anos, Steffi Mundell ia adivinhar que eles tinham sido amantes que um dia quebraram a porta de vidro do box da casa dele enquanto faziam amor. Que um piquenique num parque público tinha terminado com ele sentado num tronco de árvore e ela montada nele. Naquele fim de semana eles se alimentaram de manteiga de amendoim e sexo desde o fim das aulas na sexta-feira à tarde até o início das aulas na segunda-feira de manhã. O comportamento dele no dia em que Lute morreu não tinha traído nada da loucura romântica que tinham vivido. O fato de Rory conseguir manter um distanciamento tão grande enquanto ela queria engoli-lo com cada olhar partia seu coração. O controle dele era admirável. Ou digno de pena. Tão pouca paixão devia significar uma vida estéril e muito solitária. Davee procurou endurecer seu coração para ele.
Davee virou-se de frente para Smilow, pôs o pé no banco do carro, encostou o calcanhar na nádega e apoiou o queixo no joelho. Era uma pose provocante e vulgar que fez o detetive olhar para baixo e. Ficar assim alguns segundos antes de olhar de novo para o rosto dela.
Ele não respondeu, mas suas feições ficaram tensas.
cachos embaraçados.
Smilow não deixou de notar o sarcasmo de Davee. Ele virou para frente e ficou olhando pelo pára-brisa, vendo a fileira de arbustos desalinhados. Seu maxilar estava rígido de tensão. Davee não sabia se aquilo era um bom ou um mau sinal.
Ele olhou novamente para ela.
O coração dela adejou animado, mas não deixou a excitação transparecer nas feições, nem na voz.
Davee estava se divertindo.
Davee não estava mais relaxada, levantou imediatamente a guarda e ficou imaginando até onde Rory iria para vingar o tormento que ela criara para ele. Será que ia acusá-la de obstruir a justiça por omitir provas? Havia deixado a anotação escrita à mão de Lute com Hammond, com seus compromissos de sábado. A informação podia ser totalmente insignificante. Ou a chave para a solução do misterioso assassinato de Rory. Mas, de qualquer forma, aquela era a função do investigador, não da viúva, determinar que relação tinha com o caso. E mesmo que o encontro de Hammond com Lute não representasse um fator a mais para o assassinato, podia comprometê-lo como promotor do caso. O segundo compromisso nunca aconteceu, se é que aquela segunda anotação realmente indicava um encontro mais tarde. Não tinha nome e, pela hora especificada, Lute já estaria morto. Davee estava encurralada entre um ato desonesto e uma lealdade profunda a um velho amigo.
Ela deu uma risada, mas não uma risada muito convincente.
Smilow inclinou o corpo por cima do console e chegou mais perto dela do que fazia há anos.
Até aí isso era verdade. Tudo que ela fez foi dar para Hammond a anotação de Lute. Não tinha perguntado nada e ele não tinha dito se comparecera ao encontro marcado.
O quê? - exclamou ela e deu uma breve risada. - Minha nossa, Rory, a sua imaginação está realmente desgarrada esta noite. De onde tirou essa ideia?
Ele olhou muito sério para ela, e não havia como interpretar errado aquele olhar. Ele furou a minúscula e frágil bolha de felicidade gerada por vê-lo de novo.
-Ah – disse ela, e seu sorriso ficou triste. - Bem, você tem razão, é claro. Certamente não estou isenta de cometer adultério. Mas você sinceramente pensa que Hammond Cross iria para a cama com a mulher de outro homem?
Depois de um breve e tenso silêncio, ele perguntou:
O queixo dele foi para trás como se tivesse levado um soco rápido e inesperado.
Rory abaixou um pouco a cabeça. Parecia que olhava fixo para os dedos dos pés de Davee enquanto ruminava o que ela havia dito. Davee teve alguns minutos para olhar para ele disfarçadamente. A testa lisa, o cenho austero, o maxilar rígido, a boca intransigente que ela sabia que era capaz de transigir. Já sentira nos seus lábios, no seu corpo, faminta e suave.
A respiração entrecortada fez os seios de Davee tremerem sob o tecido fino que os cobria.
Como se saltasse sobre todos os anos de coração partido e desejo, ela se inclinou sobre o console do carro e o beijou. O primeiro toque dos lábios dela foi tão cataclísmico quanto um fósforo raspando uma lixa. A reação dele foi explosiva. A boca de Smilow devorou a dela num beijo duro e faminto que era quase selvagem de tão intenso. Mas terminou com a mesma rapidez. Ele ergueu os braços e arrancou as mãos dela do seu rosto, empurrando-a para longe.
Mas ele passou pelo meio da sebe de arbustos e desapareceu na escuridão. O McDonald’s tinha fechado. Todos tinham ido embora. As luzes estavam apagadas. Estava escuro, e Davee estava sozinha. Ninguém ouviu seus soluços amargos.
A declaração de Hammond deixou Alex e Frank Perkins mudos de espanto, mas essa mudez só durou alguns segundos, pois logo eles começaram a disparar mais perguntas para ele. Primeiro Frank queria saber por que Hammond estava lá no seu escritório, na casa dele, em vez de ir para a delegacia de polícia.
-Eu...
Antes de Alex dizer qualquer coisa, Frank levantou a mão.
podia para levar Hammond para a cama com você. Se você tem alguma defesa, é ter estado com Hammond aquela noite. Mas que eficiênciaterá esse testemunho à luz da sua história, de acordo com Bobby Trimble?
Ela balançou a cabeça enfaticamente.
“Bobby me explorou da forma mais abjeta. Mas levei anos até parar de me culpar pela minha participação. Eu acreditava que era intrinsecamente má. Por meio de terapia e dos meus próprios estudos, descobri que eu era um caso clássico, uma criança que sofria abusos e que achava que era responsável por esses maus-tratos.” Ela sorriu com a ironia da coisa.
“Mas a terapia não terminou. Às vezes tenho lapsos. Até hoje ainda me pergunto se não havia alguma coisa que eu poderia ter feito. Será que houve algum momento em que eu poderia ter enfrentado Bobby e resistido? Tinha muito medo de que ele me abandonasse como minha mãe tinha feito, e de ficar completamente sozinha. Ele era meu provedor. Dependia dele para tudo.”
O advogado continuava com a testa franzida de preocupação, mas ela não obedeceu ao aviso silencioso.
“Mas ele estava determinado a ir até o fim e também a obrigar-me a ajudá-lo. Ameaçou expor o meu passado se eu recusasse. Tenho vergonha de admitir, mas fiquei com medo dele. Se ele fosse o mesmo falastrão arrogante e grosso que tinha sido vinte e cinco anos atrás, eu teria rido das suas ameaças e chamado a polícia imediatamente. “Mas ele tinha adquirido alguma educação, ou pelo menos fingia ter bons modos e decoro social. Esse novo Bobby poderia se insinuar com mais facilidade na minha vida e arruiná-la por dentro. Ele de fato compareceu a uma palestra, se fazendo passar como um psicólogo de outro estado, e meu colega nunca questionou a autenticidade dele. “Mesmo assim, eu disse que ia pagar para ver, que era para ele me deixar em paz. Imagino que ele tenha ficado desesperado. De qualquer forma, ele entrou em contato com Pettijohn. O que quer que Bobby tenha dito para ele, deve ter causado alguma impressão, porque ele concordou em pagar cem mil dólares em troca do silêncio de Bobby.”
Alex se sentou na beirada do sofá e coçou a testa.
“Nada que eu disse convenceu Pettijohn de que eu não fazia parte de algum plano desonesto maior que envolvia sexo e chantagem. Ele sugeriu que eu não desperdiçasse a oportunidade. E que já que estávamos lá, e como eu tinha resolvido levá-lo para a cama... Vocês entendem onde ele queria chegar.”
Depois de um tempo, Alex continuou seu relato.
“Por isso eu fugi. No elevador comecei a tremer descontroladamente. Quando cheguei no andar térreo fui até o bar à procura de um lugar para sentar, porque meus joelhos iam ceder a qualquer momento. “Mas quando o pânico diminuiu, compreendi que a minha reação tinha sido completamente irracional. Em segundos eu havia regressado para onde eu estava quando Bobby controlava a minha vida. Lá no bar eu recuperei a sensatez. Meus delitos juvenis estavam décadas no passado. Sou um membro respeitado da minha comunidade. Sou aclamada na minha profissão. Do que é que eu tinha medo? Não tinha feito nada errado. Se pudesse convencer a pessoa certa de que mais uma vez meu meio-irmão estava tentando me explorar, possivelmente poderia livrar-me dele para sempre. E quem seria melhor para convencer a acreditar em mim do que...”
-Atacado, não. Pensei que você tinha dado um soco nele e deixado o homem inconsciente e que, se a sua reunião com ele tivesse sido um pouco parecida com a minha, ele bem que merecia. Foi por isso que segui você. Mais tarde, se Pettijohn desse queixa de Bobby e de mim, se eu ficasse implicada em algum crime, quem seria álibi melhor que o promotor público, que também tinha se desentendido com Pettijohn?
Ela olhou para Hammond, que olhou com ar de culpa para Frank, que por sua vez fazia uma careta para ele que mais parecia o porteiro do inferno.
Ela fez que sim com a cabeça.
quando Hammond contou o encontro dos dois no beco.
Ele falou sem parar mais quinze minutos. Frank demonstrou estar chocado, mas Alex não pareceu nada surpresa.
Quando ele terminou, Frank soltou o ar longamente dos pulmões.
Não – disse ela com toda a convicção.
Eu ia preferir isso sim – disse Hammond. - Mas tenho de concordar, embora com certa relutância, com a Alex. Antes de mais nada, eu a conheço suficientemente bem para saber que ela não ia querer isso e que qualquer discussão seria inútil. Em segundo lugar, guardas ou qualquer coisa fora do comum, seria como uma bandeira vermelha.
Quando terminou, dirigiu-se primeiro a Frank:
O advogado ponderou algum tempo a sua resposta.
-Além do mais, acho que não tem a mínima chance de funcionar.
Hammond ignorou o bip e perguntou se Frank queria saber mais alguma coisa.
Ele estendeu a mão para ela. Ela segurou e apertou a mão dele. Ficaram se olhando nos olhos algum tempo, até o silêncio ficar pesado e desconfortável.
Frank teve a delicadeza de pigarrear. - Alex, você fica aqui esta noite. Sem discussão.
Concordo com isso também, apesar de relutar um pouco.
Depois que ficaram sozinhos, o silêncio tornou-se mais constrangedor ainda, o tique-taque do relógio na mesa de Frank mais barulhento ainda. Havia uma tensão entre os dois, e não se devia unicamente ao que poderia acontecer no dia seguinte.
Hammond foi o primeiro a falar:
Ela nem teve de perguntar a que ele estava se referindo.
Ele estendeu-lhe os braços mas ela se esquivou, levantou-se e foi para o outro lado do escritório e parou diante de uma estante cheia de livros de direito.
Ela sorriu, mas foi uma expressão de tristeza.
Com um gesto inconsciente, ela ergueu a mão e a pôs sobre o coração.
O bip dele tocou novamente. Xingando baixinho, Hammond desligou o aparelho. A distância entre eles parecia enorme e ele sabia que não seria apropriado atravessá-la aquela noite. - Quero beijar você.
Ela fez que sim com a cabeça.
Ela fez que sim com a cabeça de novo e eles trocaram olhares longos e cheios de significados.
Ela deu um sorriso para tranquilizá-lo. Ele foi saindo do escritório de costas.
Loretta Boothe olhava furiosa para o telefone de moedas como se pudesse fazê-lo tocar. Tinha mandado duas mensagens para o bip de Hammond depois de tentar em vão ligar para seu número de casa e para o celular. O telefone continuou obstinadamente mudo. Ela verificou seu relógio. Quase duas. Onde será que ele tinha se metido? Ela esperou mais sessenta segundos, depois enfiou mais uma moeda no aparelho e discou o número da casa dele de novo.
No início ele estava animado para falar sobre o caso e sobre a notícia da prisão de Alex Ladd. Depois, quando Loretta contou que ele podia ser chamado para testemunhar, ele começou a recuar bem depressa. Disse que não queria se envolver. Queria ser um bom cidadão, mas...Loretta tinha usado horas de argumentos e todos os seus poderes de persuasão para ele se comprometer a cooperar. Mas ela não confiava no compromisso dele. A qualquer momento ele poderia mudar de ideia e fugir, ou então sofrer de um conveniente bloqueio mental e esquecer tudo que lembrava do último sábado.
Apontando o dedo médio para o telefone público, ela voltou para o carro.
Loretta procurou tranquilizá-lo de novo, sem parar de pensar Onde é que Hammond se meteu?
Steffi parou assustada quando abriu a porta da sua sala e viu Hammond com o punho levantado, pronto para bater.
Mesmo confusa, ela fez o que ele pediu. Enquanto ela se sentava, Hammond começou a andar de um lado para outro. A aparência dele não estava muito melhor que na véspera. Continuava com o braço na tipóia. Parecia que tinha secado o cabelo com um ventilador. Cortara o queixo fazendo a barba e a marca de sangue a fez lembrar do relatório do laboratório que tinha recebido poucos minutos antes.
De repente ele parou de andar de um lado para outro e encarou Stefi com a mesa dela entre os dois.
-Transcende o fato de sermos colegas. Quando estávamos juntos, confiei segredos meus para você. Essa intimidade do passado eleva o nosso relacionamento para um outro nível, não é – ele olhou bem para ela um tempo, depois xingou e tentou em vão amansar o cabelo. - Meu Deus, isso é complicado!
O nome caiu como uma pedra no peito dela. Steffi tentou disfarçar a surpresa, mas sabia que a expressão atónita devia ser um sinal bem claro. Sob o olhar penetrante de Hammond, negar seria inútil.
Ela brincou um pouco com um clipe de papel, avaliando a sensatez de revelar isso para Hammond. Finalmente, ela disse:
-Se?
-Alguma coisa não muito educada ou feminina. Recusei a oferta, mas fiquei curiosa de saber o que ele podia estar escondendo, o que ele estava tramando. Não seria uma honra para Steffi Mundell se orgulhar se ela pegasse o maior bandido do município de Charleston? Por isso fui procurar o Harvey – ela deu uma forma de S ao clipe de papel. Consegui a informação que queria e...
Ele se sentou diante dela, equilibrado na beira de uma cadeira e inclinado para a frente.
Era essa a grande declaração? Depois de toda aquela introdução grandiosa, ela estava esperando uma confissão de coração aberto sobre o caso deles, talvez implorando perdão. Em vez disso, toda aquela baboseira tinha servido para anunciar apenas mais um pedido patético pela inocência da amante secreta dele. A agressividade dela cresceu, mas Steffi se esforçou para recostarse na cadeira, fingindo uma posição relaxada.
O queixo de Steffi caiu. Dessa vez ela não acreditava mesmo que tivesse ouvido direito.
No sábado à noite, quando ela quis provocá-lo e perguntou para Smilow se ele tinha assassinado seu ex-cunhado, ela pretendia que fosse uma piada, apesar do mau gosto. Fez a pergunta só de maldade mesmo, para provocá-lo. Mas Hammond estava falando sério. Obviamente considerava Smilow um suspeito viável.
-Tudo bem – disse ela com um movimento exagerado de ombros, indicando rendição. - Pode mandar.
Ele forçava a barra para proteger sua nova amante. Era uma ofensa muito grande ele chegar a esse ponto pelo bem de Alex Ladd. Toda aquela bobagem de adolescente sobre intimidade e sobre confiar seus segredos, e de querer acertar umas coisas, e do relacionamento especial e elevado deles, tinha sido idiotice demais. Ele estava tentando usá-la para livrar a cara da namorada. Steffi queria dizer para Hammond que sabia do caso dos dois, mas essa seria uma atitude impetuosa e tola. Seria gratificante vê-lo humilhado, mas ela ia sacrificar, assim, uma vantagem a mais longo prazo. O conhecimento que tinha do caso secreto deles era um trunfo. Jogar esse trunfo cedo demais reduziria sua eficácia.
E enquanto isso, quanto mais ele falava mais munição dava para ela usar contra ele. Sem saber, ele estava dando para ela seu cargo de procuradora embrulhado para presente. Ela precisava ter muito controle para manter aquela expressão neutra.
-Ah, ele engraxa os sapatos lá! - exclamou ela, dando um tapa na beirada da mesa. - Nossa, isso é praticamente um revólver fumegante!
Aquele foi o primeiro argumento sobre o qual Steffi pensou seriamente. O sorriso provocante desapareceu lentamente. Ela se endireitou na cadeira.
Ele deu um suspiro, olhou para o chão e olhou para ela de novo.
Ou até que ponto está idiotizado com sua nova amante, pensou ela.
Mesmo sabendo do caso que ele tinha com a psicóloga, Steffi ficou desconsolada com a determinação inabalável de Hammond de proteger e defendê-la. Ficou olhando para ele algum tempo, sem nem tentar disfarçar sua frustração.
A última pessoa que Davee Pettijohn esperava receber aquela manhã era a mulher que suspeitavam que tinha feito dela uma viúva.
Sarah Birch tinha levado a dra. Alex Ladd para a sala de estar íntima onde Davee estava tomando café. Mesmo se a governanta não tivesse anunciado Alex pelo nome, Davee a teria reconhecido. A foto dela estava na primeira página do jornal matutino e Davee tinha visto o último noticiário na véspera, antes do seu encontro clandestino e perturbador com Smilow.
Enquanto esperavam Sarah Birch retornar com outra xícara e pires, as duas mulheres ficaram em silêncio, avaliando uma à outra. As câmeras de televisão e as fotos dos jornais não faziam justiça a Alex Ladd, Davee concluiu.
Alex agradeceu a governanta por servir o café, deu um gole e disse: 441
Davee deu um sorriso amargo.
Davee deu uma risada mas, observando o rosto da outra mulher, percebeu que o assunto não era nada agradável para ela.
Davee fez que sim com a cabeça.
Davee observou Alex mais algum tempo.
Alex sorriu com aquela observação, mas demonstrou uma curiosidade sincera quando perguntou:
“Mas ele gostava que as mulheres ficassem deslumbradas com ele. Que fossem submissas e burras. Que ficassem em silêncio a maior parte do tempo, exceto, talvez, na hora do orgasmo. Ele não ia se interessar porque é inteligente e segura demais.” Ela encheu sua xícara com café de uma garrafa térmica prateada, depois jogou dois cubos de açúcar, que fizeram um ruído suave ao mergulhar no café.
Alex demonstrou surpresa e disse sem pensar:
Claramente constrangida, Alex deixou o pires e a xícara na mesa de centro.
Davee fez Alex calar estendendo o braço por cima da mesa e pondo a mão no braço dela. Depois de uma pausa Alex levantou a cabeça e encarou Davee com serena dignidade. Elas se comunicaram num nível diferente. Baixaram as defesas. Duas mulheres que se reconheciam, compreendiam e aceitavam. Olhando bem nos olhos da outra mulher, Davee disse em voz baixa:
Alex abriu a boca para falar, mas Davee a impediu:
Davee não chamou a governanta e foi pessoalmente com Alex até a porta.
Alex olhou em volta rapidamente.
As duas mulheres sorriram uma para a outra. Aquilo era raro para Davee, sentir afinidade por outra mulher. Com sua sinceridade característica, ela disse:
Alex já estava na metade do caminho até a rua quando Davee a chamou. ;;r
Alex seguiu em frente e passou pelo portão. Davee fechou a porta e deu meia-volta. Sarah Birch estava logo atrás dela.
Bem cedo aquela manhã, antes de sair para o escritório e de ter uma conversa com Steffi, Hammond verificou as mensagens na secretária eletrônica. Só respondeu a um recado:
Bev Boothe ouviu a mensagem duas vezes, depois ficou olhando fixamente para o telefone, tamborilando de leve na etiqueta com o número enquanto pensava o que fazer com o recado... gravar ou apagar? O que ela gostaria de dizer para o dr. Cross fazer com a mensagem era anatomicamente impossível. Estava cansada e mal-humorada. Durante a noite alguém tinha amassado seu carro no estacionamento dos funcionários do hospital. E uma dor nas costas se instalava todas as manhãs depois do seu plantão de doze horas. Acima de tudo estava preocupada com a mãe, cujo quarto estava vazio e a cama arrumada. Onde é que tinha passado a noite, e onde estava naquele momento? Bev lembrou que quando saiu para o hospital na véspera Loretta parecia preocupada e deprimida. Aquele recado significava que estava lá fora fazendo o trabalho sujo do procurador público para ele, pelo menos uma parte da noite. O filho-da-mãe nem parecia dar muito valor ao esforço de Loretta. De raiva, Bev apertou o número três para apagar a mensagem. Cinco minutos depois, quando saía do chuveiro, ela ouviu a mãe chamá-la no quarto.
Bev pegou uma toalha e se enrolou nela. Deixou pegadas molhadas no corredor, até o quarto da mãe. Loretta estava sentada na beira da cama, descalçando as sandálias que tinham deixado marcas vermelhas nos seus pés inchados.
Bev hesitou só um segundo:
Bev voltou para seu quarto, vestiu uma camisola, ligou o alarme, reajustou o termostato para uma temperatura mais fresca e foi para a cama. Dessa vez Loretta tinha voltado sóbria para casa. Mas o que aconteceria na próxima vez? Ela estava se esforçando muito para se agarrar à sobriedade. Precisava de estímulos constantes e de ânimo. Precisava sentir-se útil e produtiva. A última coisa que Bev pensou antes de adormecer foi que, se o dr. Hammond Cross ia dispensar sua mãe do trabalho que ela desesperadamente precisava para seu bem-estar presente e futuro, então ele podia muito bem dispensá-la pessoalmente, e não pela secretária eletrônica.
Rory Smilow desviou os olhos do envelope pardo que Steffi acabava de pôr em cima da mesa coberta de papéis. Assim que Hammond saiu da sala dela, Steffi não perdeu tempo e foi até a delegacia de polícia. Encontrou o detetive na grande sala aberta de investigação criminal. Não sentia compunção nenhuma de estar informando as novidades para Smilow. Lealdade ao seu ex-amante jamais passara pela sua cabeça. E tampouco seria detida por sua promessa de guardar segredo. A partir daquele momento ela estava jogando pra valer.
Smilow ficou em pé e indicou a sala dele com um movimento de cabeça. Enquanto caminhavam pelo meio do labirinto de mesas, o detetive Mike Collins saudou Steffi cantarolando.
Ignorando as risadas e assobios, ela caminhou na frente de Smilow pelo curto corredor e entrou na sala particular dele. Depois de fechar a porta, ele perguntou o que era:
Pela primeira vez desde que se conheceram, Smilow estava completamente despreparado para a resposta que ouviu. Ele ficou sem palavras.
Atribuí suas esquisitices à noite que tinha tido e aos remédios que estava tomando.
“Mas era mais que isso. Tive a sensação de que ele estava mentindo para acobertar algum segredo vergonhoso. De qualquer forma, antes de sair, impulsivamente furtei uma toalha ensanguentada que estava no banheiro dele.”
Ele passou a mão na nuca e disse a última coisa que Steffi esperava ouvir dele:
Smilow deu um sorriso meio torto, mas Steffi não achou graça no que ele disse.
Ela franziu a testa, reprovando o fato de Smilow estar fazendo pouco de tudo aquilo.
“Ele não quis aparecer na porta da frente e tocar a campainha, por isso entrou escondido. Quando arrombou a tranca, machucou o polegar. Esse foi o sangue que manchou o lençol dela. Lembro que no dia seguinte ele estava com um curativo no dedo. “E acho que ela estava com ele na noite em que ele foi atacado também. Foi evasivo quando perguntei sobre o médico que tinha tratado dos seus ferimentos, e por que ele não tinha procurado um pronto-socorro. Ele inventou umas explicações inverossímeis.” O detetive ainda olhava para ela com ceticismo.
Hammond teve a sensação de estar sendo jogado numa cela, de cabeça.
Aquela declaração fex Hammond voltar a uma conversa recente. Ele fechou os olhos por um segundo e balançou a cabeça.
Ele sempre arrumava o baralho a seu favor. Sua filantropia na ilha Speckle tinha desarmado Hammond e praticamente garantido que ele não seria responsabilizado por qualquer coisa ilegal que tivesse acontecido na ilha. Mas caso Hammond pretendesse continuar investigando, Preston tinha aumentado a aposta, elevado os prémios e aumentado a pressão.
Loretta esfregou os pés no fundo da banheira com água fria onde os banhava havia quase meia hora. Bev andava pelo corredor, bocejando e se espreguiçando.
Loretta estava em pé, com as mãos plantadas firmemente na cintura.
Bobby Trimble não tinha contado com a prisão. A prisão fedia. A prisão era para os perdedores. A prisão era para o velho Bobby, talvez, mas não para o Bobby que ele era agora. Tinha passado a noite dividindo a cela com um bêbado que roncara e peidara com idêntica exuberância a noite inteira. Tinham prometido que ele seria libertado de manhã bem cedo, logo que pudessem registrar sua saída. Era parte do trato que tinha feito com o detetive Smilow e com a puta da procuradoria – não mais que uma noite encarcerado. Mas já era de manhã e eles não pareciam ter pressa nenhuma. Serviram o café da manhã. Com o cheiro da comida, seu companheiro de cela rolou do beliche de cima e quase não teve tempo de chegar ao vaso sanitário aberto, onde ficou vomitando uns cinco minutos. Quando finalmente esvaziou tudo, ele subiu de novo no beliche e desmaiou outra vez, só que antes deu uma trombada em Bobby e sujou a roupa dele, de modo que ele também ficou cheirando a vómito. É claro que Bobby não sofreu todos aqueles maus-tratos em silêncio. Ele articulava suas reclamações bem alto e frequentemente. Vociferava e xingava, mas em vão. Andava de um lado para outro na cela. As horas se arrastavam e ele foi mergulhando numa depressão profunda. O pessimismo se apoderou dele com toda a força. Parecia que ele não merecia uma trégua. As coisas tinham deixado de ser moleza e estavam virando merda desde que mataram Pettijohn. Aquilo não fazia parte do plano de Bobby. Ele não era nenhum santo, mas não queria nada com uma investigação de homicídio. Se pintar uma Alex culpada- e quem sabe? Talvez fosse mesmo – pudesse livrá-lo daquilo, era isso que ia fazer. Mas enquanto isso eles o manteriam com rédea curta. Até o fim do julgamento estava à disposição da prefeitura de Charleston. Nada de festas. Nada de mulheres. Nada de drogas. Nenhum divertimento. E também não estava cem mil dólares mais rico, como esperava estar. Nunca foi lá pegar o dinheiro da chantagem. E continuava sem saber se Alex tinha ou não recebido o dinheiro vivo de Pettijohn, mas essa era uma questão secundária. O dinheiro não estava com ele. Seu futuro parecia desolado e incerto, e a única certeza era que não ia para lugar nenhum enquanto continuasse preso naquele lugar.
Ele se levantou da cama e encostou na grade.
Suas perguntas eram ignoradas. Os guardas não se abalavam com os pedidos dele.
Cross era muito seguro e tranquilo. Bobby se ressentiu na mesma hora da sofisticação que era natural para ele.
Hammond fez sinal para o guarda abrir a cela de Bobby, mas foi levado para uma sala reservada para conversas de prisioneiros com advogados.
Ele estava em forma, mas não era tão corpulento, aquele Hammond Cross. Além disso, estava ferido. Arrogantemente, Bobby sacudiu os ombros.
Bobby olhou boquiaberto para ele, sem saber o que dizer.
Os lábios de Cross mal tinham se mexido e a voz dele era bem suave, mas a hostilidade por trás daquela afirmação fez os pelinhos na nuca de Bobby se arrepiarem todos. Isso e o fato de que cada músculo do corpo de Cross estava flexionado, como se a pele dele fosse arrebentar.
Ele deu um tempo para Bobby entender. Bobby fez um esforço enorme para não se encolher na cadeira.
As palmas das mãos de Bobby estavam molhadas de suor. Ele as secou nas pernas da calça.
Ele deu dois passos para a frente, Cross plantou a mão esquerda espalmada no externo dele e o empurrou de volta para a cadeira com tanta força que ele quase caiu com cadeira e tudo. Então Cross chegou tão perto que Bobby teve de inclinar a cabeça para trás até o seu pescoço ficar doendo.
Bobby ficou atónito. Mas só por alguns segundos. E então entendeu tudo – a ameaça, a insistência do promotor em afirmar a inocência de Alex. Ele começou a rir.
-Agora entendi. O seu pau está enrabichado pela minha irmãzinha! Ele cutucou o peito de Hammond de brincadeira.
A cadeira caiu e Bobby foi lançado voando para trás junto com ela. Foguetes de dor decolaram do ponto de contato no osso da face. Detonaram dentro do crânio dele. Suas costelas estalaram quando um punho com a força de um pistão se chocou com elas.
Bobby ouviu passos correndo e as vozes dos guardas. Os sons flutuavam até ele através de uma escuridão enorme e vazia.
Steffi firmou o fone do telefone da mesa dela entre a orelha e o ombro.
-Até agora não passa de boato e insinuação. Andei xeretando por aí. Os policiais relutam em falar sobre outros policiais, e ainda não conversei com Basset sobre isso.
-Tenho mais uma patada no caminho e depois vou até o Charles Towne.
Ele deslizou no banco do cubículo de frente para Davee.
Ela deu um gole no seu drinque, que Hammond adivinhou corretamente que não era o primeiro, e que também não era club soda. Tinha respondido ao recado dela no bip e ficara surpreso quando ela pediu para ir encontrá-la naquele restaurante no Centro da cidade. Ele já estava indo naquela direção de qualquer maneira, e foi esse o único motivo de ter concordado com aquele convite espontâneo, seu horário apertado.
Hammond tirou-o da mão dela e o apagou no cinzeiro.
Ele pensou em se fazer de desentendido, mas Davee, mais que ninguém, saberia desmascarar sua farsa.
Ouviu Davee contar a visita de Alex à casa dela aquela manhã.
“E qualquer pessoa que já esteve com vocês dois juntos deve ter sentido essas correntes todas. Até alguém tão pouco romântico como Rory. Foi por isso que chamei você – os olhos dela se encheram de lágrimas, e isso assustou Hammond, porque Davee não chorava nunca. - Tenho medo por você, Hammond. E por ela.
Ele ficou olhando para ela algum tempo, e depois sorriu. ,.;
Ele foi correndo do restaurante até o carro. No caminho para o hotel, ele discou o número da casa de Alex. A fechadura da porta da cozinha continuava quebrada. Era desleixo dela não ter providenciado o conserto. Ele lembrava que a cozinha era aconchegante e limpa, apesar da torneira da pia pingar um pouco. Passava ao lado do telefone quando ele tocou, e levou um susto. Ela atendeu em outro cómodo, no segundo toque. A voz dela flutuou pelo corredor e chegou até ele.
Ela estava no consultório, de costas para a porta que dava para o corredor. Ele sentiu o cheiro das laranjas com cravos-da-índia no pote sobre a mesa de canto. Ela estava sentada numa poltrona com o que parecia ser uma pilha de fichas de pacientes na mesa, ao seu lado. Tinha uma pasta aberta no colo junto com um gravador de um palmo de comprimento. A luz do sol entrava pelas janelas altas. O cabelo dela atraía os raios como um imã.
Ela encerrou a conversa e pôs o telefone sem fio na mesa. Notou um movimento com o canto do olho, e virou para ele subitamente. A pasta aberta escorregou do colo dela e caiu no chão, espalhando seu conteúdo pelo tapete oriental. O gravador caiu a seus pés com um ruído surdo. Era óbvio que ela achava que estava sozinha. Ela gaguejou, meio engasgada.
Smitty estava atendendo a um freguês quando Hammond passou por ele a caminho dos elevadores.
Normalmente gregário, Smitty não levantou os olhos e não quebrou seu ritmo com as escovas alternadas dando brilho na ponta do sapato do freguês. Hammond não prestou muita atenção. Queria chegar à suíte de cobertura no quinto andar. A fita amarela ainda formava um X na frente da porta. Com a chave que tinha conseguido com o gerente na noite anterior, ele passou por cima da fita e entrou, deixando a porta entreaberta. As cortinas estavam fechadas, por isso o quarto estava às escuras. Deu uma verificada de rotina na sala onde a mancha de sangue no tapete estava quase preta. Pelo que a equipe de camareiras tinha dito, já estava pedido um novo tapete. Em pé sobre a mancha, ele tentou captar algum sentimento de remorso pela morte de Pettijohn, mas não encontrou nada. Ele tinha sido um filho-da-mãe em vida. E mesmo na morte continuava perturbando a vida das pessoas. Hammond foi para o quarto de dormir, e direto para o armário. Olhou para o roupão lá pendurado, com o cinto amarrado na cintura. Era par do que Lute tinha usado para ir ao spa. Ele deixara suas roupas na suíte, tomara uma chuveirada no spa e depois trocara o roupão pelas roupas na volta ao quarto.
Ele se virou e deu de cara com Steffi, que pensava que Hammond não tinha percebido a sua presença. Na verdade, ele estava à sua espera.
-Ou?
Steffi tinha perdido a noção da realidade.
Os olhos dela ficaram duros como pedras.
Pettijohn apareceu e me ofereceu uma vantagem. Pela primeira vez eu estaria na dianteira. Então, quando a recompensa já estava à vista, o filho-da-puta puxou o tapete embaixo de mim. “Já tinha me decepcionado antes, mas nada tão esmagador. Toda vez que olhava para ele, lembrava que otária eu tinha sido. Uma mulher ingénua, e provavelmente era assim que ele me via. Não podia suportar ser tão suscetível assim e dominada por ele. Alguma coisa lá dentro de mim se rompeu, acho. Eu simplesmente não podia deixar Pettijohn escapar impune. “Ele deu a notícia para mim pelo telefone, mas insisti numa conversa cara a cara. Apareci alguns minutos mais cedo que a hora marcada e, quando o vi estirado no chão, a primeira coisa que pensei foi que alguém tinha me furtado aquele prazer.”
“De qualquer maneira, deixei o cara escapar da prisão. Mas não o perdi de vista. Ele estava disposto a cortar a garganta dela por meros cem dólares. Só que estragou tudo. Fugiu da cidade com os cinquenta que paguei de entrada. Ele nem se comunicou comigo aquela noite.” Ela deu um tapa na própria testa.
-Achei que era bem possível. Naquele primeiro depoimento senti que ela estava escondendo alguma coisa, temi que tivesse me reconhecido e que só estivesse esperando a melhor hora para dar o bote com aquela informação secreta. Devo admitir que fiquei chocada quando descobri que o segredo que ela guardava era você. Quando foi que a conheceu?
Ele se recusou a responder.
Ela levantou um pouco a pistola.
com o revólver ela disparou no peito dele.
Steffi virou-se para trás e atravessou correndo a saleta. Ela abriu a porta. Do outro lado estavam o detetive Mike Collins e dois policiais uniformizados apontando suas pistolas para ela.
O tom de voz dele não era de brincadeira. Um dos policiais deu um passo para a frente e tirou a arma da mão dela.
Hammond observava o rosto de Steffi quando ela virou a cabeça e ficou boquiaberta, atónita. O que tinha salvado a vida dele, mas teria de conviver com um hematoma bem dolorido junto com os outros ferimentos daquela semana.
Collins recitava os direitos dela, mas Steffi concentrava sua atenção em Hammond.
Ela estava praticamente eriçada de ódio. Hammond achou difícil acreditar que um dia tinham sido namorados. Mas foi com um certo grau de tristeza que ele disse:
Hammond apontou o queixo para Collins, que fez Steffi dar meia-volta e a levou para fora do quarto. Ela virou a cabeça e gritou para ele:
Havia uma risada suave de auto-reprovação no tom de voz de Alex.
Ele se ajoelhou para ajudar Alex a recolher os papéis espalhados, ela agradeceu e guardou o material de volta na pasta.
Ela aceitou o pedido de perdão com um breve movimento de cabeça.
quando o telefone celular dele tocou.
Ele ficou ouvindo. O rosto permaneceu inexpressivo.
Alex não tinha se dado conta de como estava angustiada, até que toda aquela tensão acumulada se esvaiu de dentro dela e ela afundou numa cadeira.
O prédio que abrigava temporariamente o fórum do município de Charleston possuía um espaço muito limitado, por isso Monroe Mason havia pedido para a coletiva de imprensa ser feita no prédio da prefeitura no Centro da cidade. O pedido dele foi gentilmente atendido. Por respeito ao homem que servira a comunidade por tanto tempo e tão bem, muita gente que costumava sair correndo às cinco horas das tardes de sexta-feira para aproveitar o fim de semana havia se reunido para ouvir o anúncio formal da sua aposentadoria. Era isso que eles esperavam ouvir. E receberam mais do que esperavam. Uma dianteira no fim de semana não parecia um sacrifício tão grande com os boatos que começavam a circular sobre o que tinha acontecido na mesma suíte de hotel onde Lute Pettijohn tinha aparecido morto havia menos de uma semana. Um membro da equipe do próprio promotor público tinha sido preso, acusado do assassinato. A sala já estava apinhada de gente quando Hammond entrou atrás de Mason e da infantaria da promotoria pública. Até Wallis, o segundo procurador, abatido e maltratado pela quimioterapia, tinha encontrado forças para comparecer. Só Stefanie Mundell estava ausente quando todos se sentaram em seus lugares sobre o tablado. A primeira fila de assentos para os espectadores estava ocupada pelos repórteres e operadores de câmera. Atrás deles, três filas reservadas para funcionários da prefeitura, do município e estaduais, clérigos convidados e dignitários diversos. O resto das cadeiras dobráveis era para convidados. Entre eles estavam os pais de Hammond. A mãe dele respondeu ao aceno de cabeça com um adeusinho alegre com a mão. Hammond também fez um gesto com a cabeça para o pai, mas as feições de Preston continuaram pétreas como as do monte Rushmore. Aquela manhã Hammond tinha telefonado para Preston com o acordo ao qual se referira para Bobby Trimble. Era o seguinte: ele recomendaria ao procurador-geral que não fizesse acusações contra seu pai se Preston testemunhasse contra Trimble. Claro que era crucial que Preston admitisse que tinha conhecimento das atividades terroristas que tinham ocorrido na ilha Speckle. Ele havia se distanciado do negócio, mas não a tempo de livrá-lo da responsabilidade.
Hammond tinha dado ao pai setenta e duas horas para pensar e discutir o assunto com o advogado dele. Apostava que o pai concordaria com seus termos, intuição que ficou mais forte ainda quando o olhar duro de Preston tremeu e desviou primeiro. Seria demais esperar que seu pai estivesse passando por uma crise de consciência? Haveria sempre os abismos que nunca poderiam transpor, mas ele esperava que conseguissem se reconciliar em algum nível. Ele queria poder chamá-lo de pai novamente. Davee também estava lá, e parecia uma estrela de cinema. Ela soprou um beijo para ele, mas quando um repórter enfiou o microfone na frente dela e pediu algum comentário, Hammond viu Davee dizer para ele se foder. Com essa palavra mesmo. Mas com um sorriso bem doce. Ele estava observando a porta dos fundos quando Smilow entrou acompanhando Alex. Os olhos dos dois se encontraram e eles ficaram se olhando, um devorando o outro. Tinham conversado através de seus telefones celulares a caminho do tribunal, mas não era tão satisfatório quanto ver com os próprios olhos que ela estava, finalmente, a salvo. Da acusação. De Steffi. De Bobby. Smilow indicou para ela uma cadeira vazia ao lado de Frank Perkins. O advogado ficou em pé e abraçou Alex carinhosamente. Smilow deixou-a com Perkins e desceu pela ala externa, a caminho do tablado. Acenou e chamou Hammond. Perplexo, Hanond pediu licença e desceu da plataforma temporária.
custado ao detetive, Hammond disse para ele:
Smilow olhou para Davee e a pegou olhando para ele. A não ser que seus olhos o estivessem enganando, Hammond achou que o detetive enrubesceu. Ele rapidamente virou de frente para Hammond de novo.
Hammond olhou para o envelope que parecia tão inofensivo e não era. Se o aceitasse, teria tanta culpa quanto Smilow no caso do Estado contra VincentAnthony Barlow. Barlow era culpado até o último fio de cabelo de ter assassinado a namorada de dezessete anos e o feto que ela carregava no ventre, mas Smilow tinha manipulado alguma prova exculpatória que Hammond foi obrigado por lei a revelar. Só depois que conseguiu a condenação é que ficou sabendo da suposta manipulação de Smilow naquele caso. Jamais poderia provar que Smilow havia deliberadamente excluído a prova mitigante assim que a descobriu, de modo que jamais fizessem uma investigação de conduta ilegal. Barlow, que agora cumpria pena perpétua, tinha apelado. E ganhou. O jovem teria um novo julgamento, ao qual tinha direito, por mais culpado que fosse. Mas Hammond nunca perdoou Smilow por ter feito dele um cúmplice involuntário daquela obstrução da justiça.
Smilow baixou mais ainda a voz.
Estavam chamando Hammond de volta ao tablado para poderem começar.
Era um argumento persuasivo. Hammond pegou o envelope.
Mason estava encerrando seu discurso. Os olhares dos repórteres já estavam começando a ficar vidrados. Alguns operadores de câmera tinham tirado as câmeras dos ombros. O relato do atentado de Steffi contra a vida de Hammond e subsequente prisão tinha deixado todo mundo hipnotizado, mas aquela parte do discurso de Mason não despertava interesse.
Isso mereceu uma ruidosa salva de palmas. Hammond olhava fixamente para o perfil de Mason enquanto o mentor elogiava seu talento, sua dedicação e integridade. O envelope com o exame de laboratório incriminador estava no colo dele. Imaginou que ele irradiava uma aura vermelha agressiva que ia contra os elogios de Mason.
Os operadores de câmera reposicionaram seus gravadores de vídeo nos ombros. Os repórteres dos jornais se empertigaram e clicaram suas canetas esferográficas quase ao mesmo tempo. Hammond pôs o envelope na bandeja inclinada do atril. Ele pigarreou. E começou a falar depois de agradecer os comentários de Mason e a confiança que depositava nele.
Loretta Boothe entrou apressada na sala. O coração de Hammond deu um pulo. A voz dele falhou e morreu. No início, apenas quem estava perto da porta notou a chegada de Loretta. Mas quando Hammond parou de falar, todas as cabeças se viraram para ver quem tinha provocado a interrupção. Sem se importar com a comoção que causava, Loretta acenava freneticamente para Hammond ir falar com ela. Com tudo acontecendo tão depressa naquele dia, Hammond não teve tempo para telefonar e dizer para ela que Alex não era mais suspeita e que, por isso, o que tinha feito sábado à noite não tinha importância. Mas Loretta estava lá, com um dos fuzileiros navais bronzeados da feira a reboque, e não havia como evitá-la.
Apesar do burburinho atónito que permeou as pessoas presentes, ele desceu do tablado e foi para o fundo da sala. Enquanto avançava, pensou em todas as pessoas que iam inevitavelmente ficar constrangidas nos próximos segundos. Monroe Mason. Smilow. Frank Perkins. Ele mesmo. Alex. Quando passou por ela, pediu perdão com os olhos pelo que estava para acontecer.
Hammond ficou esperando, aflito, imaginando como ia se explicar quando o fuzileiro olhasse para ele boquiaberto e declarasse: “É ele! Era ele que estava dançando com Alex Ladd.” Mas não foi um recruta que surgiu daquela porta. Em vez disso, muito tímido e constrangido, foi um negro bem magro, com óculos de armação metálica que entrou na sala. Hammond deu uma risada breve de puro espanto.
Hammond olhou do engraxate para Loretta.
O detetive, que tinha se aproximado de Hammond, dirigiu-se a Smitty.
Hammond pôs a mão no ombro de Smitty.
Hammond deu meia-volta. As câmeras ronronavam. Ficou quase cego com as luzes enquanto voltava para o tablado. Podia ir saltitando como uma criança. Os aros de tensão que prendiam seu peito estavam abertos. Ele respirava normalmente. Ninguém sabia do seu caso com Alex. Não haveria nenhuma testemunha surpresa que teria visto Alex e ele juntos naquele sábado. Ninguém sabia, só ela. Frank Perkins. Rory Smilow. Davee. Bem... e ele. Ele sabia. E de repente Hammond não sentia mais vontade de saltitar, Voltou ao seu lugar atrás do atril. Nessa hora Monroe Mason piscou o olho para ele e levantou os polegares. Hammond olhou para o pai. Preston estava concordando plenamente, balançando a cabeça, para variar. Ele concordaria com Smilow. Deixar pra lá. Aceitar o emprego. Fazer um bom trabalho e, assim, a omissão seria justificada. Ele era uma barbada. Ia vencer a eleição com a maior facilidade. Provavelmente nem teria um oponente. Mas aquele emprego, qualquer emprego, valia sacrificar seu respeito próprio? Será que ele não preferia dizer a verdade, mesmo que custasse a eleição, a guardar segredo? Quanto mais tempo aquele segredo durasse, mais sujo ficaria. Ele não queria que a lembrança da sua primeira noite com Alex ficasse manchada por aquele segredo. Os olhos dele encontraram os dela, e no mesmo instante ele soube, pela expressão suave dos olhos dela, que Alex sabia exatamente o que ele estava pensando. Ela era a única pessoa que sabia o que ele estava pensando. A única que compreendia por que ele pensava naquilo. Ela lhe deu um sorriso de estímulo intensamente privado e extremamente íntimo. Naquele momento Hammond a amou mais do que imaginava ser possível amar.
“Também lhe devo um pedido pessoal de desculpas. Porque... porque eu sabia desde o início que ela não tinha matado Lute Pettijohn. Ela admite ter estado com ele aquela tarde, mas bem antes da hora da morte. Certos dados indicavam que ela podia ter um motivo. Mas eu sabia, mesmo quando a sujeitavam a interrogatórios humilhantes, que não podia ter matado Lute Pettijohn. Porque a dra. Alex Ladd tinha um álibi. Ninguém sabe. Na verdade não passa de uma tecnicalidade. Porque ser um escoteiro? Você fará um bem muito maior... Ninguém dá a menor bola mesmo. Hammond parou de falar, respirou bem fundo, não angustiado, mas aliviado.
Sandra Brown
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