João de Andrade Corvo
PERSONAGENS: JOSÉ VELHACO (30 anos) LUIZ DO CAMPANÁRIO (20 anos) ANTÔNIO PRUDENTE (50 anos) O VIGÁRIO (50 anos) JOAQUIM (40 anos) JOANINHA (18 anos) MARIA DAS DORES (60 anos)
A cena passa-se na Madeira em 185...
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ATO I Um campo de vinha. À direita uma choupana asseada e grande, cercada de hortênsias, bananeiras, e moitas de flores.
CENA I Luiz do Campanário e Antônio Prudente.
ANTÔNIO (saindo da choupana) Boas tardes Luiz. Por aqui já a esta hora, rapaz? Julgava que só à noite voltarias da cidade.
LUIZ Agora mesmo cheguei de lá. Eu, só à noite é que contava voltar; mas a pescaria depressa se vendeu. Os americanos compraram tudo para a esquadra, que ontem chegou ao Funchal. Quando era pela volta do meio-dia estávamos livres.
ANTÔNIO Abençoados americanos! Navios e esmolas, tudo nos mandam, para nos ajudar a viver. Que isto hoje nesta terra, Luiz, só se vive do que nos dão por caridade.
LUIZ Vosmecê tem razão, Sr. Antônio Prudente. Vivemos de caridade... da dos estrangeiros, que os lá de Portugal esqueceram-se de nós.
ANTÔNIO Não se esqueceram, talvez. São pobres como nós, e aí está. Eu, por mim, não quero pensar mal do que sempre me ensinaram a respeitar. Olha, o melhor é não falar em coisas dessas: tenho medo de perder o respeito ao senhor governo, o que seria contra os meus costumes antigos. Já estou velho para novidades; e como, Deus louvado, tenho para ir passando, esta casa, e esta fazenda, que eu fiz por minhas mãos, não quero entristecer-me já agora. Tristezas acabam com a gente mais cedo.
LUIZ É verdade; lá isso é, Sr. Antônio.
ANTÔNIO Tu tens coisa que te dê pena?
LUIZ Não, não tenho. Não é nada.
ANTÔNIO Tens. Disseste isso como quem sente um peso sobre o coração.
LUIZ Tenho a minha mãe velha e doente e eu pobre, e...
ANTÔNIO E o quê?
LUIZ Esta pobreza tira-me até as forças para trabalhar, queria ter mais...
ANTÔNIO Tens ambição, rapaz? ah! ah! Teu pai era bom homem! Teu pai trabalhou toda a vida ali na Lombada, como caseiro do morgado Bitencourt: não ganhou nunca senão para cada dia comer uma raiz de-inhame, ou uma espiga de milho, e eu não lhe ouvi fazer dessas queixas contra a pobreza.
LUIZ Meu pai tinha mais ânimo do que eu. E depois, a falar a verdade, tinha coisas que o consolassem: tinha em minha mãe uma santa companheira, que o ajudava no trabalho; em minha irmã uma boa filha. O morgado velho não lhe queria mal, e ajudava-o. A terra então dava vinho; não era como hoje, em que tudo parece amaldiçoado aqui na Madeira, em que até se mirraram as uvas...
ANTÔNIO La nisso tens razão. Foi praga que caiu sobre nós. Mas para tudo, há de Deus dar remédio. Tu tens meio de ganhar a vida, Luiz: não desanimes, rapaz.
LUIZ O que eu tenho é minha mãe abatida e triste, que faz chorar. E de meu, tenho a metade das benfeitorias que meu pai fez, em 20 anos de trabalho, ali na fazendinha do morgado Bitencourt; a outra metade pertence a minha irmã, que está casada, e cheia de filhos — pobre mulher! — E as tais benfeitorias são coisa tão pouca, que de nada me servem, nem acho quem m'as compre. O que me vale é ter aí lugar entre a companha de um barco de pesca, senão morríamos de fome, eu e minha mãe.
ANTÔNIO Coitado do Luiz! Tens razão, filho, tens. Eu é que, por ter esta fazenda de meu — porque esta é minha, deveras; terra e benfeitorias — por ter esta fazenda, e uma filha que é a alegria e a benção desta casa, pensei que todo o mundo era feliz. Deus me não castigue, Deus não faça cair sobre Joaninha o castigo desta minha cegueira.
LUIZ Deus a ampare, à nossa Joaninha.
ANTÔNIO Bem o merece. Boa, e bem criada. Pode ser mulher aí de qualquer morgado, a minha filha, não lhe falta nada. Sabe ler, escrever, e até bordar. Hei de casá-la com um homem que tenha de seu, para que ela não saiba nunca o que é pobreza.
LUIZ (com dor) Faz... faz bem, Sr. Antônio Prudente. Sua filha deve... ser feliz com um homem que tenha de seu, que a traga como as meninas lá da cidade... que a faça feliz. Mas... mas ainda não está escolhido noivo para Joaninha? Vosmecê ainda se não decidiu a casá-la? É cedo... Joaninha é muito moça.
ANTÔNIO Tem 17 anos feitos. Mas pensar no casamento ainda não pensei. Custa-me a separar dela. LUIZ (com alegria) Então por ora não se casará.
CENA II Os mesmos e Joaninha.
JOANINHA (correndo para Antônio) Não se casará por ora, nem casará em quanto não tiver noivo do seu gosto.
LUIZ Joaninha!
ANTÔNIO Estavas aí, filha?
JOANINHA Estive a dar de comer aos meus pombos, coitadinhos, e agora vinha para o acompanhar, pai, lá abaixo à Fajã; para o ajudar no que for necessário.
ANTÔNIO Ora aqui têm o que se chama uma boa rapariga.
JOANINHA Sou muito sua amiga, pai; e por isso me não quero casar, nem ir para longe desta freguesia, onde nasci e me criei. (Olhando para Luiz) Tenho aqui todos, e tudo de que eu gosto.
ANTÔNIO Esses amores hão de te passar. Outros os farão esquecer.
JOANINHA Não se diga que me hei de esquecer do amor que tenho a meu pai... e àqueles com quem vivi sempre. Não hei de perdoar a quem o disser. (Com tristeza) Se os outros se esquecerem, hei de lembrar-me eu.
LUIZ Ninguém tem coração para se esquecer de ti, Joaninha.
JOANINHA Assim será. Mas meu pai diz, que pelos amores novos se esquecem os Antigos.
LUIZ A mim parece-me que antes perderia a vida, antes poria a minha alma em pecado mortal, do que perder da lembrança os dias em que brincámos aí, à sombra dos castanheiros.
ANTÔNIO (com inquietação) Está bom, está bom. Lá estão vocês a dizerem-se finezas, que me parecem dois senhores da cidade.
JOANINHA Então a verdade porque se não há de dizer, pai? Ele pensa aquilo que diz, faz bem em o dizer. Fomos criados um com o outro, e a Sra. Maria das Dores, a mãe do Luiz, serviu-me de mãe a mim. É como se fossemos irmãos.
LUIZ Irmãos!... irmãos sim. (Comovido) E o que mais me custa, é separarme de ti...
JOANINHA (assustada) Que separação é essa? Vais deixar-nos?
LUIZ Talvez... Parece-me que irei aí, a bordo de um navio, fazer uma viagem... Falaram-me em ir marinheiro num navio que sai...
JOANINHA Para onde?
LUIZ Para longe. Ainda não sei.
JOANINHA Não vás.
ANTÔNIO Então porque não há de ir? É tentar fortuna. Uma viagem ao Brasil, talvez. Ir e voltar. Faz muito bem o nosso Luiz.
JOANINHA E a tia Maria das Dores, a mãe de Luiz, coitada?... E todos nós?
LUIZ Se eu me for... minha mãe fica em casa de minha irmã.
JOANINHA (com as lágrimas nos olhos) Não pode ser. Assim não vai isto bem. Tua mãe está velha... e sem ti estala de pena.
LUIZ Esta vida de barqueiro, de pescador, é vida miserável, e sem esperança. Lutar com o mar, arriscar a vida nos temporais, andando por entre essas rochas quando o tempo está de lavadia, e não passar nunca de ser um pobre, vivendo de miséria; um desgraçado a quem os ricos fazem esmola, quando lhe pagam o seu trabalho; passar a vida inteira neste penar, isso é que o coração cá dentro não me sofre.
JOANINHA E queres?
LUIZ Quero ir por esse mar fora, por esse mundo de Cristo a tentar fortuna.
JOANINHA E se morreres?...
LUIZ Sempre há de haver agua no mar para de uma vez me mergulharem; ou uma pouca de terra para me deitarem por cima.
JOANINHA Jesus! Misericórdia! Que cousas dizes! Chego a tomar-te raiva quando te ouço falar assim. (Chorando) Não vês que me fazes pena quando dizes dessas doidices?!
LUIZ Não é para te fazer pena...
ANTÔNIO É verdade. Ele faz o que deve. O homem pode morrer no mar ou em terra, e em morrendo acabou-se. Também eu hei de...
JOANINHA Se continua, pai, a falar nessas cousas, vou-me, fujo, caso-me...
LUIZ Não se torna mais a falar em tristezas. Se for, hei de voltar. Assim como aqui o Sr. Antônio fez, pelo seu trabalho, desta terra, que era um mato maninho, uma fazenda que faz gosto aos olhos verem-na, também, eu hei de da minha barca fazer um navio bonito, como o “Galgo.” Que isto da gente ter vontade, cá de dentro, de fazer uma cousa, é meio caminho andado para a conseguir. E, se não, vejam o que sucedeu ao José Velhaco. Há menos de um ano pobre como eu, e agora com grilhões de ouro, e relógio, e dinheiro, que é um pasmar. Foi a Demerara, e voltou rico. Fortunas!
ANTÔNIO O José Velhaco foi a Demerara, e voltou rico. Fortunas, dizes bem. Outros lá vão, e por lá ficam.
LUIZ Morre-se por lá como por cá. Mas aquilo é terra para fazer fortuna. Não foi só o José Velhaco que voltou rico. Aí estão na Madeira mais de meia dúzia, a quem sucedeu o mesmo.
ANTÔNIO Não te deixes enganar com as aparências. O Sr. Vigário ainda outro dia me disse, que esses que veem ricos de Demerara são isca para apanhar os pássaros.
LUIZ Talvez. O que for soará.
ANTÔNIO Toma os conselhos, que são de quem tem já cabelos brancos. Não te deixes enganar com as aparências. — Vamos, Joaninha, vamos até à Fajã, antes que se faça mais tarde. (Sai)
JOANINHA Adeus Luiz.
CENA III Luiz e Joaninha.
LUIZ (detendo-a) Uma palavra, Joaninha.
JOANINHA Que me queres?
LUIZ Tenho que te dizer.
JOANINHA Mas agora! Meu pai espera-me...
LUIZ Diz-lhe que já vais ter com ele. Eu preciso falar-te.
JOANINHA Virgem Maria! que susto me estás metendo! (Aos bastidores) aí vou já, pai, esqueceu-me uma coisa em casa: já vou lá ter, num instante.
LUIZ (de dentro) Pois eu cá vou andando.
JOANINHA (a Luiz) Diz agora o que queres de mim.
LUIZ Ouve, Joaninha. Tu lembras-te que sempre vivemos juntos; que de pequenos andámos sempre um com o outro por essas serras; que se não passou até hoje uma semana em que nos não víssemos?
JOANINHA Lembro-me.
LUIZ Não te esqueceu ainda aquela manhã, em que fomos juntos ao Paul da serra, e levados, não sei por que alegria que vinha cá de dentro, apanhando flores de urze, e brincando, chegámos até ao Rabaçal?
JOANINHA Não me esqueci dessa alegre manhã. No Rabaçal a agua saltava do alto da serra, e depois espalhava-se em gotas de chuva, que brilhavam ao sol como estrelas, e vinham cair até onde nós estávamos sentados: de baixo daquele grande til que nasce da rocha. Eu senti nesse dia o que não tinha sentido nunca: não sei se alegria se tristeza... O coração batia-me como eu nunca o senti bater.
LUIZ Tinhas então 15 anos, e eu 20. Foi há 2 anos. Desde esse dia, nunca mais andámos sós, um com o outro pela serra.
JOANINHA Mas, desde esse dia, quase que se não tem passado um só sem nos vermos.
LUIZ Joaninha, de tudo te lembras. Agora já te posso falar com menos susto.
JOANINHA Para que me lembras-te essas coisas todas? O que tem isso com a pergunta que me querias fazer?
LUIZ Olha, Joaninha, não é fácil a gente dizer tudo quanto quer; porque, enfim, o sentir não depende da vontade, e as palavras não chegam para dizer tudo.
JOANINHA Mas... o que querias dizer-me?
LUIZ Não te pões mal comigo, não é verdade?
JOANINHA Por quê?
LUIZ Talvez seja esta a última vez que te vejo. Esse tempo, em que nos podíamos ver todos os dias, passou.
JOANINHA Então partes breve?
LUIZ Hoje mesmo.
JOANINHA Deus me acuda! Hoje!
LUIZ Hoje me vou.
JOANINHA Não pode ser. Não disseste nada a meu pai.
LUIZ Nem lho digas tu. É segredo a minha partida, não quero que minha mãe saiba. A ti também não queria dizer nada, mas faltou-me o ânimo...
JOANINHA Ah! Luiz, em tu me faltando... ficam sem luz os meus olhos, e sem alegria o coração.
LUIZ Eu também me vou e bem triste, Joaninha. Mas que queres? Quem é pobre, nasceu para padecer. É preciso fazer esta viagem para depois poder... se tu me não disseres que não, Joaninha — para poder...
JOANINHA O quê?
LUIZ Pedir a teu pai, que sejas minha mulher. Se não disseres que não.
JOANINHA Não digo, não te digo que não.
LUIZ E prometes esperar que eu volte... tendo bastante de meu, para que teu pai consinta no casamento?
JOANINHA Se agora mesmo lhe pedisses, meu pai consentiria.
LUIZ Não. Teu pai criou-te para seres rica, deu-te uma criação como a das senhoras da cidade; e não quer que te cases com um pobre, como eu sou. Ainda há pouco ele me disse, aqui mesmo.
JOANINHA Só contigo, Luiz, só contigo me hei de casar.
LUIZ Já vou mais consolado: com mais ânimo para trabalhar, para me arriscar aos perigos.
JOANINHA Não te arrisques. Lembra-te de tua mãe... de mim, que morro se tu morreres.
LUIZ Não chores, minha querida Joaninha. A Senhora do Monte há de proteger-me, e eu hei de voltar.
JOANINHA Prometo uma novena à Senhora do Monte, e muitas flores no dia da sua festa, se tu voltares cedo.
LUIZ Agora... Joaninha... adeus... adeus!
JOANINHA Não te demores muito, Luiz. Volta, porque me deixas em cuidados... ralada de saudades.
LUIZ Um abraço de despedida. (Caem nos braços um do outro)
AMBOS Adeus! Adeus!
(Joaninha sai)
CENA IV
LUIZ (só) Joaninha! Não sei como tive ânimo para a deixar ir... como tenho alma para sair da minha terra, onde ela vive... onde me fica amando. — E voltarei?... tantos lá têm ficado! Se uns morrem outros voltam ricos; e eu, pobre como sou, nunca hei de casar-me com Joaninha. — As orações daquela santa rapariga há de Deus ouvi-las, e basta. — Quem se não arriscou não perdeu nem ganhou.
CENA V Luiz e José Velhaco.
JOSÉ Santa palavra, Luiz, santa palavra que nem todos intendem, e que é preciosa para os que a sabem. Eu, se não soubesse esse rifão de cor e salteado, estava a esta hora com um sacho na mão a sachar milho na fazenda de um morgado, que, no fim de contas, me ficaria com metade do produto da minha labutação. O morgado que nasceu rico — isto é um modo de dizer — que nasceu dono de terras, e nem sabe nem tem préstimo para as cultivar... Ah! ah! o morgado guardaria metade do meu milho, para dar aos cavalos... e eu, com a minha metade, nem teria para enganar a fome. Santa palavra, rapaz, santa palavra!
LUIZ Os pobres caseiros trabalham muito, e padecem muito, José Velhaco. Nisso tens tu razão.
JOSÉ Tenho, e não me hei de cansar de pregar estas verdades. Os caseiros, nós, os vilões, trabalhamos, e os morgados comem os nossos frutos e bebem o nosso vinho. Estão sempre aqui a falar em que nós, os que vamos a Demerara procurar fortuna, largamos a nossa terra para irmos ser escravos dos ingleses, para sermos escravos brancos! E aqui, nesta terra dos morgados, o que somos nós senão escravos? Ao menos, lá por essas terras dos ingleses, um homem ativo, tendo cá fogo de dentro como eu, e como tu, meu Luiz, faz fortuna, faz-se rico como um morgado... mais do que um morgado, porque não deve nada a ninguém. Ah! ah! santa palavra!
LUIZ Isso são sortes. Uns enriquecem, e outros por lá ficam, mortos ou escravos.
JOSÉ Qual história! Pois um homem vai daqui, e recebe logo trinta patacas... como tu recebeste ontem. Em! Trinta patacas é uma boa conta.
LUIZ É, é. Vinte aí ficam para minha mãe; e as outras dez gastam-se na viagem.
JOSÉ Que importa? Chegas lá, trabalhas um... um tempo para pagar a dívida, e a comida que te dão cada dia... e depois principias a ganhar por tua conta.
LUIZ Mas esse tempo quanto dura?
JOSÉ Conforme... sim, é conforme. Para uns dura mais, para outros menos. É segundo as forças de cada um. Mas tu bem vês: aqui é que se não faz nada. Trabalha-se a vida inteira, a arrancar mato da serra, e levantar muros, a plantar árvores e vinha, a formar uma fazenda, e no fim fica a gente sem ter nada; porque a terra é dos morgados, e as benfeitorias ficam agarradas à terra, donde se não podem arrancar.
LUIZ Que de coisas tu sabes agora!
JOSÉ É porque vivi lá por Demerara com muita gente de tino, e aprendi muito. Aquilo é que é terra, homem! Campos que é um gosto vê-los. Como estes aqui da Madeira, mas maiores. E na cidade? Ganha-se dinheiro que é um louvar a Deus!
LUIZ Mas as febres?
JOSÉ Quais febres! Há por lá umas doencitas, que levam a gente às vezes, mas não é coisa que se veja: nada, nem se dá por tal. E, depois, se por lá se morre de febre, por cá morre-se de miséria, que ainda é pior. Tu tens medo de morrer?
LUIZ Eu!...
JOSÉ Bem sei que não tens medo. Vais à pesca em dias de temporal, quando os outros pescadores se metem em casa. Em a gente sendo animoso nem as doenças lhe chegam. Santa palavra! Olha para mim. Tu bem sabes que eu sou animoso, valente...
LUIZ Serás; talvez o sejas. Ganhaste isso em Demerara?
JOSÉ Pois eu não sou?... Não fui sempre?...
LUIZ Um armazém de pancadas, quando eras mais novo. Todos te davam; e tu não fizeste nunca senão levar e calar.
JOSÉ Hum! Bem vês que eu era... que tinha bom coração, e não queria fazer mal ao próximo. E a prova é, que já me esqueci de tudo que os rapazes aqui da freguesia me fizeram, e que tenho mandado um par deles para Demerara... a buscar fortuna. Pagar o mal com o bem, é de um homem como se quer. Tu mesmo, Luiz, agora me lembro, tu mesmo deitaste-me um dia na Ribeira Brava, dentro d'agua; porque eu te tinha tirado um pedaço de inhame cozido... e eu tinha fome. Agora vou-te fazer rico, para teres fato fino, como este meu, relógio, cordão de ouro, e muito dinheiro... para te tinirem as algibeiras, como a mim. Hein!
LUIZ Serás, serás bom rapaz, agora, mas animoso... Deixemos isso, e vamos ao que importa. José, eu vou para Demerara; foste quem me resolveu a ir. Minha mãe, pobre velhinha, cá fica sem ter mais ninguém senão minha irmã que é pobre, e pouco lhe pode valer. Acode-lhe tu, José. Que minha mãe ao menos tenha um pedaço de pão para matar a fome.
JOSÉ Conta comigo.
LUIZ Outra coisa te queria eu pedir; mas essa...
JOSÉ Dize, que eu sou um bom amigo.
LUIZ Creio que és, sim. Mas tens sido sempre tão falador, homem...
JOSÉ Injustiça no caso. Eu guardo um segredo como ninguém.
LUIZ Vê lá o que fazes: o que vou dizer é segredo. Gosto muito de Joaninha...
JOSÉ Ah! ah! Eu já desconfiava disso. Tens bom gosto, que a pequena é bonita... e, de mais a mais, vem a ter de seu, em o pai morrendo. — Maganão!
LUIZ Pobre a queria eu, para me poder já casar com a minha Joaninha. Enfim, se a sorte me ajudar, hei de também um dia ter alguma coisa de meu, e então a pedirei ao pai.
JOSÉ Bem pensado. — Mas vamos ao caso; o que me queres tu?
LUIZ Quero que procures no correio as minhas cartas, e que as entregues a Joaninha, em muito segredo, sem que o pai o saiba.
JOSÉ Fia-te em mim. Um amigo vê-se nas ocasiões. Santa palavra!
LUIZ Obrigado, obrigado, José. Nunca te poderei pagar o muito que te devo. Agora mais um favor.
JOSÉ Venha lá mais esse...
LUIZ É o último, tem paciência. Esta noite... daqui a uma hora talvez, vou para bordo, e de lá já não volto, já não torno a falar com minha mãe. Aqui tens vinte patacas, que lhe deixo: tu mesmo lh'as entregarás em mão própria.
JOSÉ Aí vem ela. Dali, da banda da Igreja.
LUIZ (dando-lhe dinheiro) Pois vou-me, antes que ela chegue; não tenho cá dentro força, para lhe falar agora. Dize-lhe que fui no bote fazer um frete até ao Funchal. Amanhã lhe contarás a verdade. Adeus, José. Não te esqueças do prometido. (Estendendo os braços para o lado donde, vem Maria das Dores) Mãe, mãe! A tua benção, mãe; para que Nossa Senhora me não desampare! (Sai)
CENA VI José Velhaco, só.
JOSÉ Os diabos te levem, para que não voltes mais. Ah! Ah! e deixou-me vinte patacas das trinta que recebeu! És tolo, meu Luiz do Campanário. Vinte patacas que estão aqui na minha algibeira, com trinta que hei de receber amanhã do bom homem Carlos Bad, honrado negociante de carne branca, fazem cinquenta patacas — É barato. Estou roubado. Um escravo preto custa muito mais agora, depois que os ingleses se declararam protetores dos pretos; e o Luiz vale bem dois negros de Angola — Viva... Viva... — como lhe chamam eles, os ingleses? — Viva a filan... a filantropia que em vez de escravos negros, vai fazendo os brancos escravos. A cor pouco faz ao caso; mas escravos há de havê-los, em quanto houver homens com fome, em quanto houver miséria no mundo. Santa palavra! O dinheiro é que é a liberdade! Viva o dinheiro!... Viva o rei dinheiro!... Irei ficando com as vinte patacas do Luiz, em vez de as dar à velha que aí vem. Só para o enterro é que ela precisa de dinheiro, agora.
CENA VII José Velhaco e Maria das Dores.
JOSÉ Ora salve Deus a Sra. Maria das Dores.
MARIA Deus lhe dê muito boas tardes, Sr. José. Não estava agora aqui o meu Luiz? — Pareceu-me vê-lo.
JOSÉ Estava aqui, mas foi-se, Sra. Maria. O rapaz anda com a cabeça desarranjada, não lhe parece?
MARIA O rapaz anda triste, porque lhe custa a levar a miséria. Eu bem lhe tenho pregado, que é vontade de Deus que assim seja, e que ele se deve ir conformando com a vontade de quem tudo pode. Bem velha estou eu, e nunca tive na minha vida uma hora talvez, de que se possa dizer “benza-te Deus”: pois olhe, assim mesmo com paciência cá tenho ido andando. Se Deus me conservar o meu Luiz, à hora da morte hei de louvar a Deus, por me ter mandado a este vale de lágrimas.
JOSÉ Aquela falta de humildade, com que o Luiz leva a sua cruz, é pecado, diz bem Sra. Maria.
MARIA Eu não disse que o meu filho tinha pecado. Nem o disse, nem o penso. — Hoje em dia, não sei porque, todos os rapazes querem ser mais do que foram seus pais, e por isso tem ido acabando aquele respeito que em outro tempo havia aos senhores morgados. Em tudo isto anda o dedo de Deus. Ou o mundo está para acabar, ou, senão, vai levar tudo uma grande volta.
JOSÉ Está muito intendida em políticas, Sra. Maria das Dores! Também lê os periódicos?
MARIA Não leio, não me ensinaram a ler.
JOSÉ Dizem por aí que é bruxa; saberá isso por artes...
MARIA Cale-se, José. Vai, te arrenego, hoje é sábado. De quando em quando ouço contar as coisas que se passam por esse mundo ao nosso vigário, e fazem-me cismar. Acho razão ao meu Luiz quando se queixa da sorte, mas nunca lho digo. Quem trabalha deve ter, ao menos, tanto como quem não trabalha mas nasceu morgado. Em quanto não for assim não vai o mundo às direitas.
JOSÉ Pois as impaciências do nosso Luiz hão de lhe dar na cabeça. Agora, quando a viu, Sra. Maria, fugiu; e talvez um dia fuja de todo.
MARIA Jesus, Santo nome de Jesus! Se ele me deixasse morria. Olhe José, tem-me morrido todos os meus, pai, mãe, irmãos, e o meu pobre marido, e eu fui ficando — Deus sabe para que. — Mas agora, se me faltasse o meu Luiz, a isso não resistia.
JOSÉ Deve estar preparada para tudo.
MARIA Por quê?
JOSÉ Eu não sei nada... ao certo: mas o Luiz tem uma alma independente como a minha, senhora Maria — e pode ser que ele um dia faça como eu fiz, que vá por esse mundo fora em busca de fortuna. Ora como nem todos são igualmente felizes...
MARIA Talvez ele por lá fique! Nada, o meu Luiz não se vai, não me deixa.
JOSÉ O desejo de ser rico, de se ver bem tratado por esses senhores morgados, que lhe chamam agora o vilão; o desejo de deixar de ser um vilão para ser o Sr. Luiz do Campanário, estimado por ter dinheiro, cumprimentado pelos morgados por lhes poder emprestar algumas patacas; este desejo de abater os outros e de se exaltar a si pode muito. O dinheiro, Sra. Maria, levanta os humildes, faz fidalgos os vilões. Ah! ah! Santa palavra!
MARIA Isso são maus sentimentos, que o meu Luiz não tem. Se lhe custa o ser pobre é por me não poder fazer feliz a mim, e a todos os seus. O meu Luiz é bom, foi sempre bom desde criança. Esses sentimentos de que fala, José, só os pode ter um mau homem, um homem sem honra e sem vergonha.
JOSÉ É... será verdade. Um homem sem vergonha... Eu cá sim, eu nunca tive sentimentos tais... porque sou...
MARIA José, José, sempre teve — desde pequeno que o conheço — propensão para o mal. Preguiçoso, e mau, foi-o sempre. Nunca pensei que pelo trabalho honrado se fizesse rico; mas enfim assim aconteceu, e como aconteceu, Deus o sabe. Sou velha, e hei de dizer a verdade. Anda sempre desde que veio de Demerara, a meter na cabeça a todos os rapazes, e às raparigas até, que emigrem da Madeira: e quando desaparecem seis ou sete aparece o Sr. José a comprar uma casa ou uma fazenda, ou com mais um cordão de ouro ao pescoço. Murmura-se por aí de tudo isto...
JOSÉ Invejosos!
MARIA Pode ser, talvez. Mas se o meu Luiz se for, é a você que eu ponho as culpas.
JOSÉ Por quê? Pois não podem outros persuadi-lo a que emigre?
MARIA Podem. Mas eu tanto me hei de queixar, que se saberá a verdade. A voz da velha Maria das Dores há de ouvir-se por toda a Madeira, e chegar até aos ouvidos de quem governa. Mas não... o meu filho não me deixa.
JOSÉ Talvez que não. Adeus Sra. Maria das Dores, veja se descansa, fazlhe mal zangar-se. — Ah! ah! ah! Está velha para se zangar assim.
CENA VIII Maria das Dores.
MARIA O meu Luiz não me deixa, não me desampara, eu morria se me visse sem ele... Nossa Senhora me livre desta última dor; esta era a última, porque eu morria. Se tem de acontecer essa desgraça, Deus, me leve antes para si (Vai sentar-se sobre um pedaço de muro, de modo que fica quase escondida por detrás de uma moita). Ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco... (Continua a murmurar orações)
CENA IX A mesma, Antônio Prudente, o Vigário e Joaninha.
VIGÁRIO Tenho gosto em ver os bons resultados da sua labutação, Sr. Antônio. Fazendas bem amanhadas, as suas frutas excelentes; muita cana de açúcar, já para substituir o vinho que nos falta, e flores por toda a parte para alindar tudo... As flores são aqui da nossa Joaninha, que as sabe escolher bonitas como ela.
JOANINHA Ora! Sr. Vigário.
VIGÁRIO Não se envergonhe a menina Joaninha por ser bonita, e gostar de flores. Se eu tivesse uma sobrinha, com estas duas qualidades a queria. Mas aquele desmazelado de meu irmão não me quis dar senão dois sobrinhos, paciência! Eles são ambos bons rapazes; mas o segundo, o Fernando, o mais novo, é mesmo uma joia, e eu querolhe deveras.
ANTÔNIO E merece-o o menino, porque muito bom é.
VIGÁRIO Merece muito, mas, como fez o crime de vir ao mundo mais tarde do que o outro, há de ser pobre toda a vida, e o irmão morgado e rico. Esta instituição dos morgados foi feita por quem não tinha entranhas de pai, nem consciência de bom cristão; e aqui na Madeira, sobre tudo, foi estabelecida por quem não entendia nada de agricultura, e não tinha nem amor à terra que dá os frutos, nem aos homens que a cultivam. Meu irmão, o morgado Bitencourt, não quer escutar estas verdades: mas eu só lhes recomendo, a ele, e aos outros morgados, que comparem as fazendas livres com as que estão oprimidas pelos vínculos, e que digam, depois de verem nas fazendas livres tudo alegre, verde, bem cultivado; e nas vinculadas tudo miserável e coberto de colonos famintos; que digam que isto dos morgados não é um absurdo funesto, sustentado apenas por vaidades fofas e ímpios preconceitos. — Este flagelo dos vínculos há de acabar, e com ele o outro flagelo também, a emigração dos madeirenses.
ANTÔNIO E quando acabará ela Sr. Vigário!?
VIGÁRIO Quando a terra for de quem trabalha, e não de quem vive na ociosidade e na ignorância: quando uma organização iniqua da propriedade não afastar da inteira posse da terra os caseiros em nome dos vínculos, e os morgados em nome das benfeitorias; quando a justiça for a base das leis; quando nesta ilha, que a natureza fez um paraíso, acabarem esses restos de escravidão, que ainda hoje existem pesando sobre o homem do povo e unidos ao nome de vilão. Os grandes padecimentos do povo hão de acabar, quando a instrução esclarecer o espírito de todos; quando no mundo civilizado — porque o mal não existe só aqui na ilha — se não sofismar a verdade, e se não confundir a justiça com o interesse; quando a religião, a virtude, a liberdade, estiverem acima de tudo.
— Mas esse tempo, se é que tem de chegar, ainda vem longe. Fingese hoje querer acabar com a escravidão no mundo; assinam-se tratados para abolir o tráfico dos negros bárbaros; e deixa-se que a sedução e a miséria arraste os brancos a cativeiro mais cruel.
ANTÔNIO Vossa senhoria tem razão de certo no que diz. Eu não percebo talvez todo o sentido das suas palavras, Sr. Vigário, mas a consciência dizme que são verdadeiras.
VIGÁRIO O lidar com a natureza esclarece a razão; e não há nada que mais luz dê ao espírito, do que a probidade e a honradez Antônio Prudente, eu bem sei que entende o que lhe disse.
JOANINHA A verdade é para todos.
VIGÁRIO Bravo! falou bem a nossa Joaninha, a minha afilhada Joaninha. Fui eu que lhe ensinei a ler, a doutrina e tudo, e não perdi o meu tempo.
ANTÔNIO O Sr. Vigário sempre foi bom para todos, mas para a minha filha... deve-lhe tudo...
VIGÁRIO Tomara eu tempo para poder ensinar a ler todas as crianças da freguesia. Eu entendo que um dos mais santos deveres do padre é instruir e educar as crianças. Como lhe ia dizendo há pouco, Antônio, os males são muitos, e a todos é preciso dar remédio pronto. Deveras, em quanto os homens de bem cá das aldeias não ajudarem esses senhores políticos de Lisboa a fazer as leis, nunca as há de haver que prestem.
ANTÔNIO É o que eu tenho pensado muitas vezes; salvo o respeito devido a quem manda.
VIGÁRIO Sobre estas emigrações algumas medidas se têm tomado. Expedientes, meros expedientes! Proíbe-se aos pobres colonos o embarcarem sem passaporte, põe-se um navio de guerra a guardar a ilha, ameaçam-se os aliciadores, e no fim de tudo embarca quem quer sem passaporte, o navio não guarda nem pode guardar nada, e os aliciadores vivem alegres e enriquecem. Não é proibindo, é concedendo, que se há de acabar com a emigração; não é fechando o povo dentro da ilha, como num cárcere, é dando a liberdade aos homens e à terra, que se há de combater a febre que agita neste momento a ilha. Os que fazem leis só pensam em castigar e proibir. Não basta. É preciso aconselhar e ajudar os pobres a viver; é preciso que todos na ilha da Madeira saibam o que padecem os desgraçados, que a esperança arrasta a essas terras dos ingleses, em que os aguarda a escravidão, onde as febres lhes minam a saúde, e a cobiça de vis especuladores lhes arranca das mãos o pão, com que eles procuram enganar a fome.
JOANINHA (com susto) Pois tanto sofrem os que vão a Demerara?
VIGÁRIO Muito mais do que se pensa.
ANTÔNIO É preciso desenganar o povo; porque todos os dias desaparece dentre nós algum rapaz dos melhores, dos mais trabalhadores e dos mais queridos.
VIGÁRIO Ás vezes são famílias inteiras; outras, um chefe de família deixa mulher e filhos; e até há filhos que desamparam seus pais, e isto quando estão com os pés na sepultura.
ANTÔNIO Agora mesmo tenho eu medo, que um dos bons rapazes da nossa freguesia fuja para Demerara, deixando a mãe velha e pobre quase ao desamparo.
JOANINHA E quem é, pai?
ANTÔNIO O Luiz do Campanário.
JOANINHA Isso não pode ser.
MARIA (levantando-se e vindo à frente da cena) Não pode ser. O meu Luiz não me deixa aqui só: não me pode abandonar agora... quase à hora da morte.
ANTÔNIO É uma desconfiança que tenho, e nada mais. Eu não sei...
VIGÁRIO Amanhã... esta noite mesmo lhe falarei; e se ele tem ideias de emigrar, tirar-lhes-ei da cabeça.
ANTÔNIO Deus o abençoe, Sr. Vigário, pelo amor que tem aos pobres. Deus lho pagará, meu senhor Vigário.
CENA X Os mesmos e José Velhaco.
JOSÉ Senhora Maria das Dores... Ah! (Tirando o chapéu) Boas tardes, Sr. Vigário. Estou ao seu dispor.
VIGÁRIO (com mau modo) Bons tardes, Sr. José.
JOSÉ Vossa senhoria está zangado, ao que parece.
VIGÁRIO Talvez.
JOSÉ É que eu... eu trazia uma notícia aqui à tia Maria das Dores...
VIGÁRIO Pois dê-lhe a notícia.
MARIA Diga, homem.
JOSÉ Não tenha pressa de saber.
JOANINHA Fale, Sr. José.
JOSÉ O Luiz, o seu Luiz, foi-se.
AMBOS Para onde?
JOSÉ Para Demerara.
MARIA É mentira.
JOANINHA Jesus!
JOSÉ Não viram hoje um navio a bordejar ao largo? Pois para ele foi, e nele estará a esta hora o nosso Luiz.
MARIA Como soube...
JOSÉ Disseram-me agora mesmo uns barqueiros, que o viram partir para bordo.
VIGÁRIO E não se tratará de acabar por uma vez com esta emigração, que faz horror?
JOSÉ Ah! ah! O Sr. governo está dormindo há trinta anos. Quando acordar há de dar remédio a todos os males.
ATO II A casa de Antônio Prudente. Porta no fundo, outra porta à esquerda. À direita uma janela.
CENA I Antônio Prudente e José Velhaco.
JOSÉ Veja vosmecê se a resolve, Sr. Antônio. Eu tenho hoje bastantes terras, umas casas na cidade, e andam-me emprestados e a vencer bons juros uns poucos de centos de patacas. Para sua filha não me parece que eu seja um mau casamento. Ainda sou moço... e com dinheiro, é o mais que uma rapariga pode desejar.
ANTÔNIO Não sei o que a Joaninha tem contra você, José, mas é certo que ela fica mal comigo, — olhe que é verdade, — fica mal comigo em eu lhe falando neste casamento. A mim agrada-me, você é um homem que sabe fazer fortuna. Ontem por assim dizer pobre, e hoje rico.
JOSÉ Pois há um ano que ando a pretender este casamento, e ele sem se fazer. Agora é tempo de acabar com isto. Está-me parecendo que Joaninha não faz já tanta resistência. Lembre-se que é pai, Sr. Antônio, e que pode mandar em vez de pedir. É para bem da sua Joaninha. Porque eu conheço-me, e vosmecê também me conhece, hein? conheço-me e sei que poucos são capazes, como eu, de fazer feliz uma mulher. Santa palavra!
ANTÔNIO Eu não duvido dos seus bons sentimentos, de que venha a ser menos mau pai de família. É certo... é certo — deixe-me dizer o que penso — que todos na freguesia o veem com maus olhos, desde que o Luiz do Campanário foi para Demerara; e quando algum rapaz desaparece daqui, dizem uns — foi o José Velhaco quem o enganou, o José Velhaco vendeu-se aos ingleses — outros dizem — o José Velhaco é bom homem, dá dinheiro aos pobres, empresta dinheiro aos morgados, e faz muitas festas a Nossa Senhora...
JOSÉ E vosmecê o que diz?
ANTÔNIO Eu acredito nos que dizem bem; mas minha filha só dá crédito aos que dizem mal.
JOSÉ É a velha, a bruxa da Maria das Dores, quem lhe mete essas criancices na cabeça. É preciso, Sr. Antônio, pôr a excomungada da velha da sua casa para fora.
ANTÔNIO Isso não faço eu. Pôr fora da minha casa uma pobre velha, que é tão desgraçada, uma mulher que serviu de mãe à minha Joaninha! Oh! Sr. José, que eu lhe não ouça dizer outra vez coisas dessas; que, sobre tudo, o não saiba a minha filha. Estava desmanchado o casamento, se Joaninha tal soubesse!
JOSÉ Eu queria... sim, como sei que Joaninha é muito amiga da velha Maria das Dores, queria ver... experimentar se vosmecê era capaz de ir contra os desejos da sua filha. Vosmecê bem percebe? Eu não sou muito amigo da Maria das Dores; a velha anda por aí a desacreditarme; diz que fui eu que lhe seduzi o filho, que sou isto, que sou aquilo. Coisas que nem eu sei. E quando a gente está inocente, ressente-se destes falsos testemunhos.
ANTÔNIO Quando se está inocente.
JOSÉ Como eu, é verdade, ressente-se a gente. Não falemos mais nisso, que é uma coisa que me faz doer o coração. O que é preciso é que este casamento se faça; porque a Joaninha é mesmo uma mulher própria para mim: sabe ler, escrever, e é bem criada. Aqui em toda a freguesia não há uma rapariga, que se lhe possa comparar.
ANTÔNIO A Joaninha é mesmo uma flor! Ah! ah!
JOSÉ Mas, enfim, se vosmecê não tem força para governar a sua casa, para fazer com que sua filha lhe obedeça, irei a outra parte buscar mulher, com quem me case. Não faltará quem me queira. No Funchal talvez ache até algum morgado que me dê uma filha. Com dinheiro, nestes tempos, tudo se pode alcançar: e eu, em sendo comendador, posso casar com quem eu quiser, e ser até deputado, representante da Madeira. Ah! Ah! Ah!
ANTÔNIO (rindo muito) Que coisas que não há de dizer o Sr. deputado José Velhaco!
JOSÉ (em tom de discurso) É preciso acabar com este ódio à chamada escravatura branca: este ódio é uma vergonha para a Madeira, uma desonra para a Madeira, uma desonra para os portugueses. Esta escravatura não é mais do que a liberdade, que todos devem ter de ir procurar fortuna a qualquer parte do mundo. Eu mesmo fui enriquecer-me a Demerara. E quando os caluniadores me acusarem, de querer que dure a emigração, para ganhar dinheiro com ela, hei de gritar com furor. A minha vida todos a conhecem, é simples e pura. Todos sabem que ganhei honradamente o que tenho, e só almas danadas me podem levantar falsos testemunhos; porque... porque, a inocência é a inocência, e os homens políticos sabem, melhor do que ninguém, o que é ser inocente, e o que é fingir inocência; porque a moralidade dos políticos...
ANTÔNIO Viva! É eloquente, o meu genro, o Sr. deputado. E da sua inocência fala muito, e fala bem.
JOSÉ Então, decide-se o casamento?
ANTÔNIO Está decidido, e há de ser já.
JOSÉ Fale a Joaninha.
ANTÔNIO Logo, em ela voltando para casa, há de decidir-se o negócio.
JOSÉ E ela é quem o há de decidir?
ANTÔNIO Não, hei de ser eu. Está decidido, e eu logo não faço senão mandar. (Com violência)
JOSÉ Mandar, sem sofrer observações.
ANTÔNIO Como um pai a uma filha desobediente.
JOSÉ Bom, bom! Logo venho pelo resultado. (Sai)
CENA II Antônio Prudente, só.
É preciso ser severo. Acabou-se; o que custa são as primeiras palavras, depois as outras veem por si. É para bem da minha Joaninha; que há de, quando for velha, gostar de ser dona de uma boa propriedade, com terras de pão, vinha e pomar. O José Velhaco é um rapaz de cabeça, como se quer. Há de fazer-se comendador, e tudo mais que ele diz. Falam por aí mal do José; mas não têm razão: ele tem-me provado que de tudo está inocente. O padre Vigário também não é amigo dele... mas não tem razão, não tem. Querem pôr ao pobre do meu genro as culpas, do que sucede nesta terra. (Ouve-se a voz de Joaninha cantando). Aí vem ela, a minha filha. Ânimo, Antônio Prudente. Vamos; deves-te fazer respeitar e obedecer por tua filha.
CENA III O mesmo e Joaninha.
ANTÔNIO Vens muito alegre, Joaninha.
JOANINHA Eu, pai!
ANTÔNIO Vinhas a trovar, como se estivesses na festa do Monte.
JOANINHA Á Senhora do Monte vinha trovando. Mas é a tristeza e não a alegria que me faz cantar.
ANTÔNIO (perdendo um pouco a severidade) E diziam as trovas...
JOANINHA Senhora do Monte Trazei-me o meu bem, Com tristezas destas Não pode ninguém.
Senhora do Monte Trazei-me depressa, Fazei que o meu noivo De mim não se esqueça.
Sem ele, alegria E paz eu perdi, Senhora do Monte Trazei-me aqui.
ANTÔNIO Pois fez-te a vontade a Senhora do Monte. Perto tens o teu noivo.
JOANINHA (com alegria) Ele! Pois chegou?
ANTÔNIO Há muito que chegou, e há muito que te deseja para mulher.
JOANINHA Ai! pai, ainda me torna a falar nesse José, que é a praga desta freguesia?
ANTÔNIO (colérico) Torno a falar-te no José, mas é pela última vez. Quero que cases com ele; e não consinto que me digas que não. Hás de obedecer a teu pai.
JOANINHA Nisso, não.
ANTÔNIO Joana, eu não quero ouvir dizer que não, quando eu mando.
JOANINHA Esse homem anda enganando gente, para a vender aos ingleses. Assim diz o Sr. padre Vigário, e todos...
ANTÔNIO É mentira o que dizem dele. Em sendo teu marido, todos se calam logo. O meu nome, o nome de Antônio Prudente, é um nome honrado; e ninguém é capaz de pensar mal do homem, que for marido de minha filha.
JOANINHA Meu querido pai, escute-me. Nunca deixou de me fazer a vontade em tudo, e agora...
ANTÔNIO Muito mal fiz, e muito me arrependo. O mimo é que te perdeu.
JOANINHA Se eu tivesse mãe, a ela me havia de queixar...
ANTÔNIO Tua mãe, Deus a tenha em glória, nunca me desobedeceu. Sabia melhor o que uma mulher deve a seu marido, do que tu sabes o que uma filha deve a seu pai.
JOANINHA Antes morrer, antes deitar-me aí ao mar, do que eu casar-me com tal homem.
ANTÔNIO Joana, não me obrigues a tratar-te como mereces. Eu bem sei quem te anda metendo essas doidices na cabeça, é a velha Maria das Dores. É como me paga os benefícios que lhe tenho feito. Mas à velha ponho-a na rua, e a ti levo-te à igreja por força para te casares. É demais, é demais isto, Joana.
JOANINHA Pai, pelo amor de Deus não me perca.... (Cai de joelhos)
ANTÔNIO As raparigas não sabem o que querem. Eu para ti ganhei toda essa terra, que aí está ao pé da nossa casa; quero juntar-lhe tudo o que vai daqui até ao passal do Vigário. Isto só se pode conseguir casando tu com o José Velhaco. Fica, um morgado, mesmo! Quero-te rica, Joana; quando tiveres filhos hás de abençoar-me por te ter obrigado a fazer este casamento. Choras agora; depois hás de rir.
JOANINHA Pai, não me desgrace.
ANTÔNIO O casamento há de fazer-se. Já dei a minha palavra, e basta. É calar e obedecer. (Sai comovido, e escondendo as lágrimas)
CENA IV
Joaninha, depois Maria das Dores.
JOANINHA Pai!... pai!... Ele não me dá ouvidos, e eu morro aqui de pura dor... que me trespassa o coração... Santo nome de Jesus, valei-me.
MARIA (entrando) Joaninha, teu pai saiu agora mesmo daqui zangado, perdido de cabeça. Nem sequer me viu! Que tem ele? Que sucedeu, que te vejo toda chorosa?
JOANINHA Estou perdida, tia Maria das Dores... Meu pai já me não parece o mesmo. Aquele José Velhaco embruxou-o.
MARIA Tornou-te a falar no casamento?
JOANINHA Quer meu pai, que o casamento se faça já, sem mais tardar. E nem as minhas lágrimas lhe fizeram abalo. Ralhou comigo, e disse-me que ele mandava e não queria ser desobedecido.
MARIA Se não fosse com o José, dizia-te Joaninha que o remédio era calar, e obedecer. És boa filha, e o Antônio é teu pai. Mas com semelhante homem, com um homem mau, infame, não te podes casar.
JOANINHA Mas que se há de fazer?
MARIA Não sei, não sei, mas irei falar ao Sr. Vigário... Ele desconfia do José Velhaco, falará a teu pai, e talvez o convença. Só o Antônio é quem na freguesia anda iludido com tal homem: Deus lhe perdoe o mal que me tem feito, e as lágrimas que me fez chorar. Ai, o meu Luiz, o meu Luiz... se ainda será vivo?
JOANINHA E sem notícias dele!... há um ano que se foi!
MARIA Nem carta, nem notícias! Se morreria o meu querido filho? Tenho ido umas poucas de vezes ao correio do Funchal, e dizem-me sempre que não há cartas, isto quer dizer muito. Devemos estar preparadas para uma grande dor, minha Joaninha.
JOANINHA Ai, não diga tal.
MARIA Porque o não hei de dizer, se o sinto, se o coração me diz... se parece que me diz que ele morreu.
JOANINHA Se o Luiz morreu, que hei de eu fazer? Ele era o meu noivo; por ele prometi esperar. Se ele não voltar, fico toda a vida solteira.
MARIA Solteira... Não pode ser, seria dar um grande desgosto a teu pai, e condenares-te a ti a uma triste solidão. Uma mulher sem filhos anda como desamparada neste mundo, é como uma árvore sem frutos nem flores. Nós as mulheres viemos a este mundo para cuidar das criancinhas, para depois, quando somos velhas, como eu sou, sermos cuidadas e queridas pelos filhos que criámos. E eu já não tenho filho! Morreu o meu Luiz. E Deus ainda me não chamou para si!
JOANINHA Agora, que nem me atrevo já a ter esperança de o tornar a ver, sinto que mais lhe quero do que nunca. Para chorar por ele posso viver; mas para mulher de outro não.
MARIA Joaninha, escuta. Ninguém quer mais do que eu ao meu Luiz; sei que ele te amava, e que em seres sua esposa estava toda a sua esperança, mas... se morreu, de que serve desobedeceres a teu pai... Basta que eu sofra... e tu, filha. Que não seja desassossegado no fim da vida o bom Antônio Prudente, do qual não houve nunca razão de queixa.
JOANINHA Então quer que eu case com o José Velhaco!
MARIA Com esse não. Mas com outro...
JOANINHA E se Luiz não morreu?
MARIA Que esperança podemos ter? Há um ano que se foi.
JOANINHA Casar-me eu, tia Maria das Dores, e vê-lo depois desembarcar aí! Com que cara lhe havia de aparecer?... e que olhos havia de pôr em meu marido! E depois, com o José Velhaco me quer meu pai casar; e com ele só morta me levarão à igreja.
CENA V As mesmas e José Velhaco.
JOSÉ É essa a sua última resolução, menina Joaninha? (As duas mulheres dão um grito de terror) Não se assustem, não tenham medo, não sou nenhum diabo.
MARIA Bem o parece!
JOSÉ Foi vosmecê Maria das Dores, quem ensinou esta rapariga a desobedecer a seu pai? Um dia a justiça há de castigar as bruxas velhas, que andam nesta ilha a perder as raparigas honestas.
MARIA Cala-te... Deus me perdoe! Cala-te!...
JOSÉ Pelos seus pecados a castigou Deus. O filho que tinha deixou-a, e lá morreu por Demerara, sem se lembrar de sua mãe.
JOANINHA Morreu...
JOSÉ Sei que morreu; mas pouco importa. Não se perdeu coisa boa.
MARIA Dizer assim mal do meu Luiz... que ele matou! Se Deus me desse forças!...
JOSÉ Matava-me!? Ah! ah! que santa alma a desta velha! E anda semelhante mulher sempre a resmungar orações, de pela manhã até à noite! São pragas que ela nos roga, a bruxa!
JOANINHA Senhor José o que se atreve a dizer? Não sabe que a tia Maria das Dores é a minha segunda mãe?... que todos cá na freguesia a respeitam?
JOSÉ Sei que, por causa das calunias, e dos falsos testemunhos que me levantou, não me quer a menina Joaninha por marido, e paga com ingratidões o grande amor que lhe eu tenho.
JOANINHA Amor que mete medo! É homem de ruim alma Sr. José... de ruim alma, e má consciência!
JOSÉ Joaninha! (Querendo pegar-lhe na mão) Não se deixe enganar pelas mentiras que dizem por aí de mim... Sempre fui bom rapaz... todos o sabem. Se a minha riqueza mete inveja aos outros, que culpa tenho eu?
MARIA Não faz inveja, faz horror, essa riqueza ganha a vender aos ingleses os pobres da Madeira.
JOSÉ Cale-se, mulher; senão!...
MARIA Ameaças agora!
JOSÉ Joaninha, não demos ouvidos a esta doida. Falemos sério do que nos importa. Seu pai, Joaninha, quer o nosso casamento; e tem por calunias quanto por aí se diz de mim. Ele sabe que sou capaz de a fazer feliz.
JOANINHA Só atada de mãos e pés irei à igreja, mas lá hei de dizer que não... quando me deem por marido um homem que aborreço.
JOSÉ Joana, veja o que diz! Seu pai pode obrigá-la...
JOANINHA Matar-me é que ele pode.
JOSÉ Prende-a uma promessa, bem sei, Joaninha. (Brandamente) Fica-lhe bem a firmeza: comigo também a terá. Mas de que serve teimar nesse amor a um homem, que já morreu?
JOANINHA Não, não morreu. Não vê que me aflige... que trespassa aquela pobre mãe, dizendo isso?
MARIA Não acredito no que ele diz, é mau homem... mente!
JOSÉ Há de ter castigo tanto atrevimento! Insultar com injúrias, desacreditar com aleives, um cidadão honrado, que tem de seu, que vive com os morgados maiores da Madeira!
MARIA Todos te desprezam!
JOSÉ (levantando a mão com cólera) É de mais. Se te não calas...
JOANINHA Que faz José? Que se atreve a fazer?
JOSÉ Nada... por agora.
JOANINHA (pegando nas mãos de Maria das Dores) Venha, Maria das Dores, venha minha boa, minha santa mãe!... Vamo-nos desta casa, que não pode ser, que não é a nossa, em quanto semelhante homem aqui estiver.
MARIA Fizeste-me perder o meu filho; foste que me tiraste dos braços para o mandar como escravo a Demerara! O meu Luiz morreu... perdi o meu filho, e eu daqui a dias irei ter com ele. É de lá da cova, escuta bem José! é da cova, que ambos te amaldiçoamos, para que a tua alma não tenha sossego, nem o teu corpo descanso, em quanto vivo fores; para que, depois da morte, a justiça de Deus te lance nos infernos.
(Saem as duas)
CENA VI José, só.
JOSÉ Está doida, doida varrida a velha. E eu que ia perdendo a cabeça; como se um homem de juízo, e conhecedor do mundo, pudesse perder a cabeça nestas alturas! Santa palavra! Um homem sempre é um homem, e não faz caso de rabugices de bruxas tontas. O que necessito, e vou fazer, é gastar umas poucas de patacas, e metê-la no hospital por doida. Logo vi que da mão de Maria das Dores não vinha cousa boa! Tenho de gastar o dinheiro que o filho me rendeu, para agora alojar a mãe no hospital, ou na cadeia. Vamos fazer calar esta matraca, que me anda sempre a matinar os ouvidos. O que importa, em tudo isto, é que a Joaninha consinta no casamento. Gosto dela, e gosto muito, e nunca pensei que tal pudesse acontecerme! (Rindo) Ah! ah! a não ser o bom pedaço de terra, que tem o pai, não eras tu meu José Velhaco capaz de intender o desassossego, em que anda o teu coração! A ideia de tirar do correio todas as cartas, que o Luiz escreveu à mãe e à Joaninha, foi famosa! Estão crentes, que ele morreu, e a esta hora talvez não estejam enganadas! Graças a Deus morre-se depressa em Demerara, quando se trabalha no campo, ao sol, e com o estômago vazio; e o Luiz não o havia de trazer cheio. Esta minha cabeça é uma grande cabeça, e eu ainda hei de ser coisa grande no mundo! Meu pai mandou-me aprender a ler e a escrever; aproveitarei a boa lembrança de quem já lá está na terra da verdade. Joaninha há de ser minha, ou não hei de chamar-me José... Velhaco. Santa palavra!
CENA VII
José Velhaco e Joaquim.
JOAQUIM (batendo à porta) Olá, menina Joaninha!
JOSÉ Não está cá a menina, saiu.
JOAQUIM Ah! está aí vosmecê Sr. José? Eu vinha procurar a Maria das Dores. Também não está aqui?
JOSÉ Esteve, mas foi-se. E que lhe queria você à Maria das Dores?
JOAQUIM Trazia-lhe um recado de meu amo.
JOSÉ Do Sr. Vigário?
JOAQUIM Sim senhor, lá do Sr. Vigário é que o recado é: o Sr. Vigário quer falar à velha.
JOSÉ Para quê?
JOAQUIM Isso não sei eu. Para coisa grande é, porque me disse meu amo que viesse correndo.
JOSÉ (à parte) Que será? O Vigário em tudo se mete. (Alto) Então não sabe o que o nosso Vigário quer à Maria das Dores? Em! Joaquim?
JOAQUIM Olhe vosmecê; eu, verdade, verdade, não sei o que ele tem que lhe dizer; mas parece-me...
JOSÉ O quê?
JOAQUIM A velha foi outro dia falar com o Sr. Vigário, e esteve mais de uma hora só com ele.
JOSÉ O que disseram?
JOAQUIM Não sei. Pois se eles estiveram sós, como havia de saber o que disseram? Minha mulher, que é curiosa deveras, lá descobriu que ela quer entrar para o asilo dos pobres, no Funchal; e por isso meu amo lhe falou o outro dia à triste da velha, e agora lhe quer falar outra vez.
JOSÉ Há de ser, há de ser isso. (À parte) Fico mais aliviado; já não preciso gastar o dinheiro em meter a Maria das Dores no hospital, por doida. (Alto) Ora, Sr. Joaquim, já pensou naquele negócio, em que outro dia lhe falei? Está disposto a ir fazer fortuna?
JOAQUIM Estou velho para tentar fortuna, Sr. José. Tenho 40 anos feitos.
JOSÉ Parece um rapaz de 20, o nosso Joaquim! E depois tem um filho que daqui a dois dias está um homenzinho, que o pode ajudar.
JOAQUIM O rapaz não levo eu para Demerara. A mim posso-me arriscar, mas a ele...
JOSÉ Olhe Sr. Joaquim, que não há perigo. Tenho vontade de o fazer feliz... tenho confiança em você.... conheceu-me de pequeno, e tenho-lhe amizade. Não sei se é homem de segredo, Sr. Joaquim.
JOAQUIM Pode fiar-se. Segredo, que ouço, é como se caísse ao mar, ninguém o sabe. Para amigos sou um homem como se quer. Sim: lá nisso é falarem-me, e pronto; aqui está o Joaquim às ordens.
JOSÉ Se aparecesse agora um homem, que quisesse fazer-se rico em pouco tempo, sem trabalho, havia ocasião.
JOAQUIM Eu quero; oh! se quero.
JOSÉ Pois toque, Joaquim; mas jure guardar segredo sobre o que vou dizer.
JOAQUIM Está prometido.
JOSÉ O que vou dizer-lhe é de amigo. Precisa-se de um homem.... Você é de segredo? Em?
JOAQUIM Oh! homem, não me conhece ainda?
JOSÉ Veja lá. Se este segredo se souber, só você o pode ter contado; e há gente de muitas posses, que o quer bem guardado. (Com um gesto de ameaça) Sempre se pode fazer calar um homem.
JOAQUIM Bem o intendo. Pode falar Sr. José. Não é o medo que me tapa a boca.
JOSÉ (assustado) Então?...
JOAQUIM (rindo) É... é a amizade, que lhe tenho...
JOSÉ Como ia dizendo: precisa-se de uma pessoa que vá a Demerara, homem de bom nome, e de influência por estas freguesias. Você está no caso. Caseiro do Sr. Vigário, e bem quisto por ele.... é quanto basta.
JOAQUIM O meu nome, o nome do Joaquim do Vigário, é bem conhecido, ninguém tem que lhe dizer.
JOSÉ Pois aí está; é isso mesmo.
JOAQUIM Então querem que vá a Demerara?
JOSÉ Justo. Ir; estar lá um ano a comer e a beber à regalada, e voltar rico.
JOAQUIM (rindo) Ah! ah! ah! Rico! E como?
JOSÉ Comendo, já lhe disse. Comendo, dormindo e engordando.
JOAQUIM Eh! eh! eh! Não me parece feia a história! Está a mangar comigo Sr. José? Em!
JOSÉ Mangar, com o meu amigo Joaquim?! Isso é que não.
JOAQUIM Eu cá intendo que se dê de comer a um porco, para depois o matar, mas a um homem.... Em Demerara comem gente?
JOSÉ (rindo) Está doido... Sr. Joaquim. Aquilo é a melhor terra deste mundo.
JOAQUIM Que querem eles então?
JOSÉ Que volte para a Madeira, com dinheiro e saúde, e diga depois, como eu, que Demerara é um céu aberto; que lá se enriquece à grande, e que um homem vai, e volta rico sem lhe custar nada.
JOAQUIM E isso é assim para todos?
JOSÉ Não homem; para os felizes como nós. Pois este mundo fez-se para os felizes? Santa palavra!
JOAQUIM (rindo muito) Agora... agora percebo. — Ah! ah!... É boa! É como quem diz um chamariz; querem fazer de mim um chamariz?
JOSÉ Ainda bem que nos intendemos. Vai então para Demerara?
JOAQUIM Para quando a partida?
JOSÉ No primeiro navio.
JOAQUIM Pois amanhã lhe dou a resposta.
JOSÉ Mas o segredo?...
JOAQUIM Está dito.
JOSÉ Quer dormir sobre o caso para depois se decidir?
JOAQUIM É como diz. Este costume ficou-me de pequeno, dormir sobre todos os casos, e em todos os casos. Agora vou ao recado do Sr. meu amo, vou procurar a tia Maria das Dores.
JOSÉ Vá, vá. E se poder saber o que o Sr. Vigário lhe quer, venha me contar.
JOAQUIM Pois sim. Adeus, amigo José Velhaco.
JOSÉ Adeus.
(Joaquim sai)
CENA VIII José, depois Antônio Prudente.
JOSÉ Este é dos nossos. Meu de certo é; porque me há de render bom par de patacas. E digam que sou mau! Acabo de fazer a fortuna deste excelente pai de família! — Aí vem Antônio Prudente. Vamos resolvê-lo por uma vez a governar a sua casa! (A Antônio que entra) Ora já sei, Sr. Antônio, que a sua Joaninha lhe não quer obedecer.
ANTÔNIO Há de obedecer, que lhe digo eu. Por tal vergonha não há de passar Antônio Prudente.
JOSÉ Encontrei-a com a velha, aqui. Disseram-me injurias, insultaram-me. A Maria das Dores repetiu-me uma dúzia de vezes — ouvi-lhe com estes ouvidos — repetiu-me, que Joaninha não casaria comigo; que o pai de Joaninha era um tolo — perdão Sr. Antônio, eu não faço senão repetir — que era um tolo, um baboso, e que havia de fazer o que elas quisessem.
ANTÔNIO Pois a velha disse isso?... diante de minha filha? Bem razão tinha, José, em me aconselhar que a pusesse na rua, à excomungada bruxa! Onde está a Maria das Dores, onde está minha filha?
JOSÉ Saíram ambas, depois de me carregarem de injurias.
ANTÔNIO Um tolo, um baboso, eu! Ou a Joaninha deixa de ser minha filha, ou o casamento há de fazer-se já. E para a rua a velha, que nem mais uma vez me porá os pés em casa.
JOSÉ Nada de violências, Sr. Antônio. Com jeito é que as coisas se levam. Com sua filha rigor, mas violência, não. E com a velha nada de injurias... o Vigário protege-a.
ANTÔNIO E que me importa a mim o Vigário? Não preciso de ninguém.
JOSÉ Isso faz-lhe honra, Sr. Antônio, mas sempre é bom ser prudente.
ANTÔNIO Há de falar-se de mim na freguesia. Os pais hão de aprender a castigar as filhas desobedientes.
JOSÉ Aí vem elas, sua filha e a Maria das Dores. Vou-me; porque, se aqui me veem, não entram.
ANTÔNIO Deixe-as comigo.
JOSÉ Tenha moderação... paciência!
ANTÔNIO Deixe-as comigo, já lhe disse. (José sai)
CENA IX Antônio Prudente, Maria das Dores e Joaninha.
ANTÔNIO Tolo e baboso! chamaram-me assim, minha filha, e a Maria das Dores, que me deve tanto! Agora veremos se eu sou homem com quem se brinque. (Ás duas que entram) Venham ambas que temos que falar.
JOANINHA (assustada) Que quer, pai?
ANTÔNIO A ti? já o sabes. Domingo casas, sem falta.
JOANINHA Pai... antes morrer.
ANTÔNIO Ou casas, ou ponho-te fora, para nunca mais saber de ti. Disseste mal de mim, chamaste nomes injuriosos a teu pai!... És má filha, e só te perdoo se me obedeceres.
JOANINHA Eu! nunca lhe faltei ao respeito, pai!
ANTÔNIO E não chama ela faltar ao respeito desobedecer-me e chamar-me... tolo.
JOANINHA Eu... É falso, é uma falsidade infame.
ANTÔNIO Cala-te.
MARIA Não trate assim sua filha, Antônio. A pobre rapariga, se tem culpa, é de chorar.
ANTÔNIO Ainda se atreve, Maria das Dores, a entrar nesta casa, e a falar-me de Joaninha! Se ela é desobediente, e má filha, se diz mal de seu pai, quem a ensinou foi você, mulher.
MARIA Que diz, Antônio?
ANTÔNIO Foi quem ensinou Joaninha a faltar aos seus deveres; porque dantes era boa e dócil. Mas isto há de acabar, e já. Nunca mais volte a minha casa, nunca mais fale com minha filha...
MARIA Põe-me fora da sua casa? A mim, que lhe criei sua filha?...
ANTÔNIO É indigna de vir aqui. Anda perdendo as raparigas com maus conselhos.
MARIA (chorando) Perdoo-lhe essas injurias, porque sei quem lhes ensinou.
ANTÔNIO Pois julga que Antônio Prudente?...
MARIA Penso que é bom e justo, e que a perversidade de um malvado, que o enganou, o traz assim mudado.
ANTÔNIO Não quero que em minha casa se diga mal de quem há de ser meu genro. Ponha-se fora mulher. Na rua já!
MARIA Vou-me embora. Nossa Senhora guarde a pobre Joaninha, e abra os olhos a este homem.
(Maria das Dores vai para sair, quando aparece à porta de fundo o Vigário)
CENA X Os mesmos e o Vigário.
VIGÁRIO (detendo Maria das Dores)
Antônio Prudente, que palavras são essas; porque o vejo com tanta cólera? Por que põe fora de casa Maria das Dores?
ANTÔNIO Anda desinquietando minha filha.
VIGÁRIO Desinquietando sua filha!...
ANTÔNIO Foi ela que desvairou Joaninha, que de pequena foi sempre temente a Deus e obediente a seu pai, e lhe ensinou o atrevimento, e a desobediência!
VIGÁRIO Isso é engano, de certo. Anda um crime nisto. Antônio, o seu nome foi sempre respeitado; todos até hoje o têm estimado; porque é homem de bem, caridoso e justo. Mas, em se sabendo que pôs fora de casa a mulher que criou sua filha, em se sabendo que maltratou uma triste viúva, uma desgraçada, velha, doente, quebrada pela dor, e oprimida pela miséria, todos hão de pensar que era falso o conceito, que formavam a seu respeito.
ANTÔNIO Senhor Vigário, essas palavras são injurias.
VIGÁRIO Não faço injurias, digo verdades.
ANTÔNIO Mas não sabe...
VIGÁRIO Sei que Maria das Dores sempre foi verdadeira, e que tem sofrido a desgraça com a paciência de uma santa. Maria das Dores, diga-nos a verdade, em consciência fez a este homem a ofensa de que ele se queixa?
MARIA (sufocada pelas lágrimas) Não. Pela vida de meu filho, se ele vive... pela sua alma, se Deus o chamou, juro que não.
VIGÁRIO Ouviu, Antônio? Um homem, a quem os anos fizeram brancos os cabelos, a quem os trabalhos da vida enobreceram o coração, acaba de se desonrar, pisando aos pés o que há de mais sagrado no mundo: uma mãe desventurada.
ANTÔNIO Senhor eu... pensei... acreditei...
VIGÁRIO Acreditou uma calunia. Neste mundo não basta ser passivamente honrado, Antônio; a virtude era fácil assim. É preciso resistir também às seduções dos maus, ter força para fazer justiça a todos, e não obedecer às paixões, que sempre, em todas as idades, se levantam no coração, e cegam o espírito.
ANTÔNIO Mas minha filha recusa obedecer-me.
VIGÁRIO Por que ofendeste teu pai, Joaninha?
JOANINHA Eu em tudo estou pronta a obedecer a meu pai; mas...
VIGÁRIO Mas o quê?
JOANINHA Casar-me com o José Velhaco, isso não. Antes morrer.
ANTÔNIO Bem vê, Sr. Vigário...
VIGÁRIO Vejo que Joaninha é boa filha, e que quer salvar seu pai da desonra... Recusa casar-se, porque o casamento é impossível. Uma santa rapariga não pode unir-se a um homem depravado: numa família honesta, como a de Antônio Prudente, não pode entrar um miserável que todos desprezam.
ANTÔNIO O que diz?
VIGÁRIO O que o coração lhe teria dito, se o desejo louco de juntar às suas fazendas mais um pedaço de terra o não cegasse!
JOANINHA Nossa Senhora o abençoe pelas verdades que está dizendo!
ANTÔNIO (com hesitação) Prometi minha filha ao José Velhaco, e a palavra de Antônio Prudente é sagrada.
VIGÁRIO Deve ser sagrada quando a der a um homem de bem, e quando cumpri-la não for sacrificar sua filha. Antônio, escute-me. Há no Funchal um pobre pescador, com duas filhas que sustenta, e são a sua alegria, a sua força, a benção da sua casa. Esse homem saiu uma destas noites passadas, para ir pescar; e quando voltou de madrugada achou as portas abertas, e tudo deserto.
JOANINHA O que aconteceu?
VIGÁRIO Suas filhas tinham sido furtadas. Imagine, Antônio Prudente, a dor daquele pai!
ANTÔNIO (como arrastado por uma força invisível) Ai, se a mim me roubassem a minha filha!... acabava de mágoa: mas depois de matar com estas mãos quem m'a tivesse roubado.
VIGÁRIO É pai, Antônio, ainda é pai! Bem se vê.
ANTÔNIO O que fez o pescador?
VIGÁRIO Lembrou-se de que se negocia na Madeira em escravatura branca; lembrou-se, foi Deus que o inspirou! de que há na terra homens infames que enganam seus irmãos. Como o pescador sabia, que mais de uma vez os que tem ido a bordo dos navios de emigrados, despedir-se dos parentes, ficaram lá contra vontade, e foram para Demerara, ocorreu-lhe que miseráveis, que praticam horrores destes, eram também capazes de usar de violência, e de aumentarem assim o número das suas vítimas. Lembrou-se de tudo isto, e foi ter com um desses homens.
ANTÔNIO E matou-o?
VIGÁRIO Não. Disse-lhe estas palavras. “Ou minhas filhas hão de hoje mesmo voltar para casa, ou amanhã aparecerás assassinado.”
ANTÔNIO E então?
VIGÁRIO Horas depois o pobre pai apertava ao coração as duas filhas.
ANTÔNIO E quem foi que as roubou?
VIGÁRIO Dinheiro, espalhado com mãos largas pelos ricos traficantes de escravos brancos, esconde o nome desse homem, mas fala-se...
ANTÔNIO De quem?
VIGÁRIO Do José Velhaco.
ANTÔNIO Ele!
VIGÁRIO Todos falam. Já vê, Antônio Prudente, que não pode querer para marido de sua filha um homem perdido de reputação.
ANTÔNIO Não... sem ele se justificar.
VIGÁRIO Sei que é o desejo de fazer sua filha rica e feliz o que o alucina; mas, ainda assim, desconheço-o. Em outro tempo, a sua probidade não lhe consentia pensar mais um instante em tal casamento, depois de saber o que se diz por aí do José Velhaco. Escute o seu coração, e a sua consciência, Antônio, e verá, como eu vejo, que o casamento é impossível.
ANTÔNIO Senhor Vigário... talvez tenha razão: mas, com perdão de vossa senhoria sou pai, e um pai sabe melhor do que ninguém o que convém a sua filha. Não posso faltar à minha palavra, sem saber se o que se diz é mentira ou verdade.
VIGÁRIO Nem mais um conselho lhe dou, Antônio, de hoje em diante. Faça o que quiser. Sacrifique sua filha, e desonre-se. (Vai para sair)
JOANINHA Pai, escute o Sr. Vigário.
ANTÔNIO (comovido) Não me faça a ofensa, Sr. Vigário, de me tirar a sua amizade. Era um desdouro para a minha vida, uma dor d'alma, e uma desonra para estes cabelos brancos. Pelo amor de Deus, perdoe-me!
VIGÁRIO Não quero senão o seu bem; e pesa-me que me não escute.
ANTÔNIO Se permite, não me dou ainda por desligado. Vou ter com o José Velhaco, e se não se justificar, se não provar que está inocente, ficará o dito por não dito, e não torna a entrar nesta casa. Mas antes de o condenar é preciso ouvi-lo.
VIGÁRIO Mas também se devem escutar as queixas, e os prantos de uma filha, antes de a condenar por toda a vida. Enfim, Antônio, confio tudo da sua probidade, e do muito amor que tem à nossa Joaninha. (Com brandura) Bem sabe que a vi crescer, que lhe ensinei a ler e a escrever, que lhe dei uma educação como no Funchal não se dá às filhas dos morgados; custava-me vê-la casada com um homem, incapaz de a fazer feliz.
ANTÔNIO Vou já ter com ele, se o Sr. Vigário dá licença.
VIGÁRIO Vá depressa.
ANTÔNIO Vossa senhoria perdoa-me alguma má palavra?...
VIGÁRIO Não tenho que perdoar, e já esqueci tudo; exceto que Antônio Prudente é homem honrado, e há de mostrar-se bom pai.
ANTÔNIO (beijando a mão do Vigário) Agradecido, agradecido. (Sai)
CENA XI Os mesmos, menos Antônio Prudente.
VIGÁRIO Joaninha, parece-me que podes sossegar. Este casamento não se faz.
JOANINHA Não me atrevo a ter esperança. Meu pai anda enfeitiçado. E depois, nem já sei senão chorar noite e dia, chorar até morrer.
VIGÁRIO Deixa estar, Joaninha: as lágrimas dos inocentes quase sempre a mão de um amigo as enxuga. (Brincando) Eu sei, minha menina chorosa, que essa mão benéfica não há de tardar muito aqui.
JOANINHA Ninguém pode consolar-me.
VIGÁRIO Aí está Maria das Dores, que bem velha é, e que ainda assim não há de ter sempre os olhos arrasados de lágrimas, como agora.
MARIA Não, Sr. Vigário, porque debaixo do chão não se chora.
VIGÁRIO Nem também cá por cima, quando se é feliz.
MARIA Feliz, eu?! Sem o meu filho?!
VIGÁRIO Quem lhe disse isso, Maria das Dores?
MARIA Quem? José Velhaco, o próprio malvado que o matou, o meu Luiz.
VIGÁRIO Esse infame... Maria das Dores, tenha ânimo para ouvir o que vou dizer.
MARIA Tenho ânimo... Bem vê que resisti quando me disseram... que era morto o meu Luiz.
JOANINHA Ah! diga!
VIGÁRIO José Velhaco mentiu.
MARIA (desfalecendo) Nossa Senhora me leve nesta hora... para acabar na alegria!
JOANINHA (pulando) Vivo!... Vivo... o Luiz! Onde está!
VIGÁRIO Maria das Dores, o que é isso? A alegria custa menos a suportar do que a dor.
MARIA Deixe-me perceber... Estas mudanças custam... o coração luta com a dúvida. Ele não morreu?
VIGÁRIO Não.
MARIA Mas está ainda longe?
JOANINHA Em Demerara?
MARIA Teve notícia?
JOANINHA Quando chega!
MARIA Talvez a esta hora já não viva!
JOANINHA É preciso mandá-lo buscar.
VIGÁRIO (enternecido) Sosseguem. Já está em caminho.
MARIA Há quantos dias?
JOANINHA Virá daqui a três?
MARIA Amanhã?
VIGÁRIO Mais breve.
AMBAS Hoje!?
VIGÁRIO Chegou.
(As duas mulheres abraçam-se)
MARIA Que alegria, filha!
JOANINHA Jesus!
MARIA Eu... morro, porque não posso...
JOANINHA Onde está?
MARIA O meu filho?
(Luiz entra precipitadamente)
VIGÁRIO Está aqui.
AMBAS Luiz!
ATO III A casa de Antônio Prudente, como no segundo ato. É noite; um candeeiro de três bicos alumia bem a casa
CENA I José Velhaco e Joaquim.
JOSÉ É negócio concluído. (Mostrando um papel que tem na mão) Esta obrigação que você assignou... é o princípio da sua fortuna.
JOAQUIM Deus queira! Sr. José, vosmecê não sabe como lhe hei de pagar a boa vontade! Esse papel é uma obrigação que lhe faço; por ela me sujeito a servi-lo, ou a quem vosmecê mandar, aqui ou em Demerara, até pagar a dívida de quarenta patacas, que recebi...
JOSÉ A obrigação está em regra, e é justo. Trabalho em troca de dinheiro; assim se faz em toda a parte.
JOAQUIM Isso é o que vosmecê diz, Sr. José, mas quem sabe o que será? E a falar a verdade, trabalhar por trabalhar, antes na terra, que eu conheço, do que em outra que nem de portugueses é.
JOSÉ Pois eu falto ao que prometo, homem?
JOAQUIM Bem sei que vosmecê é... um amigo como se quer. (Rindo-se)
JOSÉ Ri-se, Joaquim?
JOAQUIM Estava-me lembrando do Luiz do Campanário, e dos outros que o Sr. José foi mandando para Demerara, e que ficaram por lá. Ah! ah! ah!
JOSÉ (à parte)
O maldito Luiz não ficou! (Alto) Com esses não ajustei senão, que haviam de achar trabalho em Demerara... e não lhe tem faltado. Assegurei-lhe que lá se ganha dinheiro, o que é verdade, quando se ganha.
JOAQUIM (rindo muito) Ora o Sr. José tem graça! Mas de mim, de mim é que eu não quero que ninguém se ria. Palavras leva-as o vento.
JOSÉ Então o que quer, Joaquim?
JOAQUIM O preto no branco, e nada mais. Uma obrigação, como a que lhe fiz, em que vosmecê se obrigue a dar me o ofício... o ofício de... ah! ah! ah!
JOSÉ De aliciador! Diga homem, não se engasgue com palavras, que escorregam bem.
JOAQUIM Pois como for da vontade de vosmecê A obrigação escrita pela sua mão é que eu quero; e sem ela não vou da Madeira!
JOSÉ Forte parvoíce! A minha palavra vale-lhe de mais, em Demerara, do que um papel escrito.
JOAQUIM Cá a palavra do Sr. José vale de muito; mas por isso é que eu a quero no papel... para durar mais. Sem a obrigação não embarco!
JOSÉ Isso agora não esperava eu. Então porque não me disse logo tudo? O ajuste era outro.
JOAQUIM Quero o papel porque, depois que esta manhã o larguei, peguei a cismar que a gente não deve dar papel em troca de palavras; que há viver e morrer, e que o Sr. José pode morrer...
JOSÉ Mas se eu morrer de que serve o papel?
JOAQUIM Os seus amigos não hão de deixar mal a sua palavra honrada.
JOSÉ Mas...
JOAQUIM Vosmecê quer ou não quer? O dito, dito.
JOSÉ (indo a uma mesa e escrevendo) Pois vá lá. Escrevo a obrigação.
JOAQUIM Assim é que é falar.
JOSÉ Alto! Espere! Faço-lhe isto, que não estava nos nossos ajustes, porque sei que é meu amigo, Joaquim.
JOAQUIM Pois não sou?
JOSÉ E aos amigos velhos, faz-se-lhes as vontades.
JOAQUIM E a obrigação?...
JOSÉ Já vai; mas falemos antes de outro negócio...
JOAQUIM O que é?
JOSÉ Já tenho dado provas de que me fio de vosmecê Joaquim; e quero que se capacite ainda mais. Conto com o segredo, e com a sua amizade... sim, com a nossa amizade antiga... com o desejo de sermos uteis um ao outro.
JOAQUIM Então o que quer?
JOSÉ Você sabe que eu estou para casar com a Joaninha... Boa rapariga, e que mostra por mim sua simpatia!... Mas até agora... tem estado... tem posto duvida...não deu ainda o sim... O pai deseja muito o casamento, e com brevidade...
JOAQUIM Então se o pai quer, e a rapariga tem... isso vosmecê diz... sapahia, que mais deseja o Sr. José? Case! (Com escárnio)
JOSÉ A Joaninha põe suas dúvidas. Parece que esteve namorada, em outro tempo de um rapaz, e fez-lhe promessa de fidelidade. Agora, apesar do coração a puxar para mim, não quer que lhe chamem inconstante.
JOAQUIM E que remédio posso eu dar a isso?
JOSÉ E simples... mas só de um amigo se confia. Esta noite resolvi empregar uma violência... aparente, já se vê. Antônio Prudente está por tudo. Resolvi acabar com as duvidas de Joaninha. Você, Joaquim, se me quiser fazer esse favor... pode ajudar-me... e eu ajuntarei, da minha algibeira, umas vinte patacas, para acudir à sua viagem... Se quiser, pode servir-me de muito.
JOAQUIM Mas como?
JOSÉ Vindo esta noite comigo, quando tudo dormir nesta casa, e mais dois marinheiros, gente fiel lá do navio em que há de partir para Demerara, furtar... levar daqui a Joaninha.
JOAQUIM Ora essa! Pois a gente há de tirar a filha ao Sr. Antônio Prudente?
JOSÉ Não se lhe tira a filha, apressa-se o casamento, como ele deseja.
JOAQUIM E se a pequena gritar?
JOSÉ A janela costuma ficar cerrada de noite, e a porta do quarto de Joaninha é aquela defronte. Entra-se devagarinho; tapa-se-lhe a boca, quando estiver a dormir, e depois faz-se tudo como se quer. Ela depois não tem remédio senão casar; Antônio Prudente faz o seu gosto, e eu o meu.
JOAQUIM Vosmecê lá o lê, lá o entende.
JOSÉ Então está pronto?
JOAQUIM Estou, mas venha o papel.
JOSÉ Você faz de mim quanto quer. (Dá-lhe o papel) Vá abaixo ao calhão, e espere por mim. Os dois marinheiros lá hão de estar.
JOAQUIM Lá vou. Para servir o Sr. José Velhaco está um homem sempre disposto.
JOSÉ Bom rapaz. E caluda! As vinte patacas ficam a tinir.
JOAQUIM O Sr. José sempre é uma grande cabeça. Até logo. (Sai)
CENA II
JOSÉ (só) Sou uma grande cabeça, isso sou! Tudo vai às mil maravilhas, e num pulo estou mais alto do que esses morgados rabugentos e empertigados da Madeira. Viva o Sr. José Velhaco, que há de ser ainda deputado, comendador... barão... e quem sabe o que mais? Com esta cabeça, e com este coração, hei de chegar... até onde chegam os que são do meu feitio.
CENA III José Velhaco e Antônio Prudente.
JOSÉ Então meu rico Antônio Prudente o que mais soube contra mim?
ANTÔNIO Nada. Fui a casa dos dois negociantes, que me indicou, e ambos fizeram da sua pessoa muito boas ausências. O Carlos Bad, sobretudo, que passa por homem sério, disse-me que melhor do que Sr. José Velhaco não conhecia ninguém... a não ser ele próprio. E o velho riu-se tanto com aquela cara de bom homem!...
JOSÉ (à parte) Que maroto! (Alto) Bom homem de certo, devo-lhe bastantes obrigações. Aquelas desconfianças, que lhe meteu o padre Vigário a meu respeito, já lhe vão passando, Sr. Antônio? hein?
ANTÔNIO Já. Mas o Vigário quer-lhe pouco bem, José.
JOSÉ Desgraças! Quem pode evitá-las?
ANTÔNIO Vim agora por casa dele, para lhe contar o que me disse o pai das duas crianças que tinham sido roubadas, e os elogios que fizeram de vosmecê os dois negociantes... Quero que todos o reputem, José, por homem honrado antes de lhe dar a minha filha.
JOSÉ (com admiração) Então já se não faz o casamento imediatamente? Os contos do Vigário sempre pegaram!
ANTÔNIO Eu desejo que se faça; mas é melhor que você se justifique primeiro. É fácil, e não leva muito tempo.
JOSÉ A minha melhor justificação é ser seu genro, genro do honrado Antônio Prudente.
ANTÔNIO Isso depois: por em quanto esperaremos.
JOSÉ (à parte) Eu te direi logo se espero! (Alto) O que o fez mudar, Sr. Antônio Prudente?
ANTÔNIO (com embaraço) Respeito muito a opinião do nosso Vigário; e em quanto ele não estiver convencido, como eu, da sua inocência, é melhor... demorarmos o casamento.
JOSÉ Assim se deita a perder o crédito de um homem. É até onde pode chegar!
ANTÔNIO A verdade anda sempre ao de cima d'agua, não lhe dê cuidado. Sabe que mais, José Velhaco, admirou-me a generosidade com que deu dez tostões ao pescador, a quem roubaram as filhas, e que tanto o defendeu na minha presença. O pobre homem não cabia na pele, e sempre lhe deu um abraço... cuidei que o arrebentasse!
JOSÉ Se não posso ver ninguém pobre, em o podendo remediar! Eu cá sou assim! Enterneci-me; e o ardor com que ele me defendeu... fez-me ver, que nesta gente é que ainda se encontram exemplos de virtude. Olhe Sr. Antônio Prudente, a virtude é o meu fraco! Santa palavra!
ANTÔNIO (apertando-lhe a mão) Gosto de o ouvir, José. Por que lhe terá o Vigário tão má vontade?
JOSÉ Promete não se zangar, se eu lhe disser a razão?
ANTÔNIO Não me diga...
JOSÉ Ouça, e não torve de repente. Sua filha está namorada do Luiz do Campanário...
ANTÔNIO Já sei, e não desgostei por isso que o rapaz fosse a Demerara... a ver se ela o esquecia...
JOSÉ Qual! Cada vez se lembra mais. O Vigário é quem os protege.
ANTÔNIO Faz mal!... porque eu... Mas no fim de contas o que protege o Vigário?... Um homem que morreu.
JOSÉ Engana-se redondamente, Sr. Antônio Prudente. O Luiz vive, e o Vigário sabe que ele está...
ANTÔNIO Aonde?
JOSÉ Na Madeira. Chegou ontem, e já aqui esteve com Joaninha.
ANTÔNIO Aqui?
JOSÉ Trouxe-o o Vigário. Verá que ele casa a Joaninha com o Luiz, e leva a sua por diante.
ANTÔNIO Menos isso! Antônio Prudente não se mete assim debaixo dos pés. Pois se o Luiz aqui esteve, e falou a minha filha, o remédio é casá-la já com o Sr. José.
JOSÉ Governe, Sr. Antônio, governe o que é seu, e não se arrependa. O Vigário é de família de Morgados, dos fidalgos da ilha: sabe que tenho meus vinténs, e não gosta de que eu ombreie com os seus... Dá licença que eu use de todos os meios para conseguir que sua filha case comigo?
ANTÔNIO Dou, permito! (Batendo o pé no chão) Há de fazer-se o casamento. (Depois de pensar um pouco) Mas quero levar o negócio de vagar, e com prudência. Amanhã, quando estiver mais sossegado, falaremos. Agora deixe-me com a Joaninha; quero desabafar. Depois pensarei com mais descanso.
JOSÉ Pois fique-se com Deus. — Tais coisas farei, que amanhã acabarão as suas dúvidas. Fie-se no que lhe digo. (Indo para sair) É preciso que um homem saiba governar a sua casa, porque um homem é um homem. (Sai)
CENA IV Antônio Prudente e Joaninha.
ANTÔNIO Ninguém há de governar aqui mais do que eu! (Chamando) Joaninha!
JOANINHA Meu pai!
ANTÔNIO Anda cá. Responde-me... e não mintas.
JOANINHA Eu nunca lhe menti, pai.
ANTÔNIO Mas escondes-me a verdade, que é o mesmo. Não queres casar com o José Velhaco?
JOANINHA Já lhe disse, pai, que não.
ANTÔNIO Nem com ele, nem com outro?
JOANINHA Desejo ficar na sua companhia.
ANTÔNIO (colérico) Mentes.
JOANINHA Eu? sou muito sua amiga!...
ANTÔNIO Se o fosses não me desobedecias. Sei tudo. Não te queres casar, porque te namoraste de um desgraçado sem dinheiro. — Prometeste casar com o Luiz do Campanário... e a mãe, a Maria das Dores, tem tido o cuidado de não te deixar esquecer. Invencioneira!
JOANINHA Não seja injusto! Confesso que não posso gostar senão do Luiz do Campanário. Com ele fui criada, e só com ele posso viver!...
ANTÔNIO Contra minha vontade!
JOANINHA O coração pode mais.
ANTÔNIO Criancices, filha! Isso há de passar!
JOANINHA Em eu morrendo!
ANTÔNIO É a última vez que te digo, Joana. (Severo) Hás de casar com quem eu mando! E nem lágrimas tuas, nem lamentos de Maria das Dores, nem palavras do Vigário, me torcem desta resolução!
JOANINHA (chorando e com muita dor) Eu... Não choro nem lhe desobedeço. Deixo-me morrer.
ANTÔNIO Histórias! (Olhando para a filha com muita dor) As raparigas não morrem por tão pouco... Não morrem... E tu... tu não me hás de morrer, filha... (Agarrando-a com muito amor) Minha rica filha!
JOANINHA Meu pai! (Deitando-se-lhe nos braços, e escondendo a cara) Se eu não posso viver sem ele...
ANTÔNIO Viste-o hoje? Sei que chegou.
JOANINHA Vi-o; e ouvi os seus padecimentos. Tive tanto dó dele!
ANTÔNIO Invenções... para te seduzir.
JOANINHA Não diga isso: — Esteve em Demerara quase como escravo: teve as febres, e foi levado para um hospital, onde não havia nem quem o tratasse. Pobre Luiz! Com ele fui criada, vivemos juntos... e... esta desgraça, causou-me tal dó... fez-me crescer tanto a... amizade, que já lhe tinha...
ANTÔNIO E eu a escutar-te... a chorar quase! (Limpando os olhos)
JOANINHA Não se envergonhe pai. Só os maus é que não choram.
ANTÔNIO (repelindo-a sem violência) Gosto muito de ti, filha; mas as lágrimas e as festas não me fazem mudar. É para teu bem! Essas calunias que dizem do José Velhaco... que não é capaz...
JOANINHA Ele é capaz de tudo.
ANTÔNIO Joana, que eu não torne a ouvir-te dizer mal do homem que está para ser...
JOANINHA A minha desgraça, pai se soubesse...
ANTÔNIO (com muita cólera) Joana!
JOANINHA Ouça; que é verdade. Escute!
ANTÔNIO Diz... é mais uma calunia, de que ele se defenderá.
JOANINHA Quando o Luiz foi para Demerara — enganado por ele, e levado pelo amor que me tinha — entregou ao José Velhaco vinte patacas, para Maria das Dores...
ANTÔNIO E então?
JOANINHA José Velhaco roubou o pão da miséria.
ANTÔNIO É falso!
JOANINHA O Luiz e Maria das Dores não mentem.
ANTÔNIO Se fosse assim, José Velhaco era um infame. Mas, dize me, Joaninha, se provar que tudo são mentiras prometes casar com ele!
JOANINHA (com firmeza) Prometo. Se ele provar que está inocente façam de mim o que quiserem.
ANTÔNIO Verás! Mas fica descansada. Não sou capaz de te casar com um homem desonrado.
JOANINHA (abraçando-o) Meu querido pai!
ANTÔNIO Bem! Não precisas lembrar-me de que sou teu pai! Amanhã fica tudo destinado. Agora descansar, que são horas... O dia tem sido hoje inquieto para ambos nós. (Dando-lhe um beijo) Adeus filha. Não queiras mal a teu pai. (Sai)
CENA V Joaninha, depois Luiz do Campanário.
JOANINHA Como lhe hei de querer mal, se ele me estima tanto, o meu querido pai? (Caindo de joelhos diante de uma imagem da Virgem, que está pendurada na parede) Senhora da Conceição, Protetora dos aflitos, ouvi-me. Peço descanso para a minha alma, Virgem Santíssima, peço-vos, que longe de mim vá aquele homem perverso! Socorrei-o a ele... ao meu Luiz.
(Durante esta oração Luiz entra pela janela, que estava cerrada e vem ajoelhar junto de Joaninha)
LUIZ Socorrei-o, Senhora, e à inocente que vos pede!
JOANINHA (levantando-se) Luiz!...! Aqui?
LUIZ Não me querias ver? Separados há um ano... depois de tantas saudades?
JOANINHA E saudades tais! O susto de te perder, o temor de meu pai, e o horror daquele malvado, tudo que era contra nós, quebrava-me as forças. E as lágrimas da tua triste mãe? Tudo... tudo me amofinava nesses dias amargurados. Mas agora que estás aqui, e voltaste do desterro, agora, parece que já me sinto outra.
LUIZ Mas teu pai não consente!
JOANINHA Por ora. Já sabe do roubo, das vinte patacas furtadas a tua mãe. Ficou em dúvida... e disse que me não casava sem José Velhaco mostrar a sua inocência.
LUIZ Não pode mostrar!
JOANINHA Meu pai há de deixar-se vencer das minhas lágrimas, e dos conselhos do Sr. Vigário!
LUIZ Agora mesmo o larguei, e prometeu-me, o santo homem, que hoje mesmo... havia de ficar tudo decidido. O José Velhaco perdido de todo, e nós felizes.
JOANINHA Luiz, bem sabes se eu te amo, e se há alegria e vida para mim longe de ti; mas agora, assim de noite... Não gosto de te ver... Nesta casa. Podia alguém descobrir-te quando entraste, pode meu pai estar acordado, e sentir-te...
LUIZ Tudo isso me ocorreu... mas, o desejo de te ver... foi mais forte. O Vigário mandou-me chamar há pouco, e disse-me, “Luiz, esta noite fica tudo deslindado; hoje acaba a tua desgraça... foi assim mesmo que me disse! É preciso que passes a noite nas vizinhanças da casa de Joaninha.”
JOANINHA Por quê?
LUIZ Foi o que perguntei... “Depois o saberás” me respondeu ele. Obedeci. Estando perto, escondido, vi luz, olhei pela janela, e achando-te só, e ouvindo-te rezar, não pude resistir, e entrei para pedir, contigo, a Nossa Senhora que nos socorra.
JOANINHA E que Deus nos ouça! Meu pai há de ceder por fim. Depois, que alegria! Quando formos ambos à festa do Monte, e todos disserem: aquela é a Joaninha, a filha de Antônio Prudente, que vai com seu marido.
LUIZ Que é o mais feliz da Ilha, hão de acrescentar. Mulher como a dele não há outra na Madeira! Bonita, séria, galante!...
JOANINHA Luiz.
LUIZ Joaninha!
JOANINHA E quando será?
LUIZ Cedo, bem cedo!
(Esta cena deve ser representada com muita rapidez)
CENA VI Os mesmos José, Joaquim, e dois marinheiros.
JOSÉ (aparecendo à janela, com uma pistola na mão) Veremos.
JOANINHA Ah!
LUIZ José! (Correndo alguns passos para ele) Agora pagarás tudo... malvado!...
JOSÉ (apontando a pistola para Joaninha, e em voz pouco elevada) Nem mais um passo!... Nem mais um grito. Não acordemos o Sr. Antônio Prudente.
LUIZ (detendo-se) O que fazes?
JOSÉ (entrando)
Mato-a, se te moves... se dás um grito! (Aos dois marinheiros que entram cautelosamente atrás dele seguidos de Joaquim) Rapazes, segurem-me este herói!
LUIZ Maldito!
JOSÉ Nada de resistências, e de palavradas, senão temos desgosto na festa!
JOANINHA Jesus, acudi-me!
JOSÉ (aos marinheiros) Segurem-no!... e para bordo... Que vá para Demerara, donde fugiu... o escravo!
LUIZ (resistindo apenas) Este homem saiu do inferno... Marinheiros!... Condoam-se de mim... e daquela desgraçada...
JOSÉ (aproximando-se de Joaninha) Joaninha, tudo isto faço pelo muito amor, que te tenho!
JOANINHA E consente Deus isto?
JOSÉ Vem comigo!
LUIZ Não consintas, Joaninha!
JOANINHA Antes morrer.
JOSÉ (colérico) Não morrerás, e serás minha.
JOANINHA Só tua, Luiz!
JOSÉ Ajuda-me, Joaquim!
JOANINHA (gritando) Deixe-me, deixe-me.
JOSÉ Se gritas... se dizes uma palavra. (Aponta a pistola a Luiz)
LUIZ Grita... brada... pede socorro...
JOANINHA Socorro!
JOSÉ (cego de fúria) Morre, para não gritares! (Dispara a pistola sobre Luiz, mas no momento de partir o tiro, Joaquim desvia-lhe o braço) Errei! (A Joaquim) Que fizeste?...
JOAQUIM (tirando-lhe a pistola, e segurando-o) Chegou também a tua vez, José! Pagarás tudo agora.
(Neste momento saltam pela janela, e entram arrombando a porta alguns homens do povo, guiados pelo Vigário)
CENA VII Os mesmos, o Vigário, homens do povo, logo depois Antônio.
VIGÁRIO Segura-o, Joaquim.
LUIZ (armado com a faca de um dos marinheiros) Tem firme, esse malvado: vou-lhe arrancar o coração!
VIGÁRIO (detendo-o) Luiz! Luiz... diante de mim!...
LUIZ É um perverso!
VIGÁRIO A justiça o castigará.
ANTÔNIO (entrando espavorido) Que é isto... em minha casa?
JOSÉ Querem-me assassinar. Acuda-me!
VIGÁRIO Cala-te...
JOSÉ Vi entrar pela janela, na sua casa, o Luiz do Campanário. Vinha seduzir sua filha...
ANTÔNIO Seduzir minha filha?...
JOSÉ E para salvar a honra de Joaninha, da minha noiva... entrei atrás, com risco de vida... Quando ia para o castigar...
VIGÁRIO Quando ias para roubar a donzela a seu pai, e estavas para mandar violentamente para Demerara esse homem, pela segunda vez, apareci eu, e frustrei os teus planos.
JOSÉ É falso, é falso!...
VIGÁRIO Escute, Antônio, e veja o marido, que ia dar a sua filha... Este homem não te roubou o dinheiro, que deixaste para tua mãe?
LUIZ Roubou.
VIGÁRIO Não te convidou a ti, Joaquim, para aliciador de escravos brancos?
JOAQUIM É assim Sr. Vigário, e aqui está um papel assinado por ele... (Dá-o a Antônio)
VIGÁRIO Para servir de prova.
JOSÉ A obrigação que me pediste?!... Traidor!
VIGÁRIO Não vinha ele aqui esta noite para furtar a filha do Sr. Antônio Prudente!
JOAQUIM Tal e qual; por sinal, quis que eu o acompanhasse.
VIGÁRIO (a um homem) Não foi o José Velhaco quem roubou as tuas filhas?
O HOMEM Foi, Sr. Vigário!
VIGÁRIO Não são testemunhas todos, de que tentou agora matar o Luiz do Campanário.
TODOS Somos.
JOSÉ É mentira.
VIGÁRIO Levem-no daqui. Amanhã será entregue à justiça, no Funchal.
(Alguns homens levam José, que vai gritando: É mentira! é mentira!)
ANTÔNIO Senhor Vigário salvou a minha honra... salvou... Perdoas-me filha?... salvou a minha querida Joaninha. (Abraça-a)
VIGÁRIO Pude salvá-la... Mas fazê-la feliz, não depende de mim.
ANTÔNIO O Sr. Vigário manda nesta casa.
VIGÁRIO Então mando que não haja ninguém triste.
(Pondo a mão de Joaninha na mão de Luiz)
ANTÔNIO Mas, Sr. Vigário...
VIGÁRIO O Luiz, o marido que dou a tua filha, é o feitor de meu irmão, o morgado Bitencourt.
LUIZ (com fogo) Viva o nosso Vigário!
TODOS Viva!
ANTÔNIO Deus proteja o nosso Vigário.
VIGÁRIO Deus proteja a Ilha da Madeira.
João João de Andrade Corvo
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