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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ALTRUÍSTA / Bernard Shaw
O ALTRUÍSTA / Bernard Shaw

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na meia obscuridade duma tarde de Outubro, uma senhora, de ar inteligente, aparentando quarenta anos, surgiu no patamar do primeiro andar duma velha casa de campo inglesa. Caía-lhe uma mecha de cabelos sobre a fronte como se ela se tivesse debruçado sobre um livro ou um caderno. Deteve-se por um instante para ajeitá-la e olhar contemplativamente-mas de modo algum sentimentalmente - através da comprida e estreita janela que dava luz ao patamar.
Era a hora do pôr do sol e o seu esplendor iluminava o outro lado da casa, porque esta janela estava situada no lado nascente, onde a paisagem de tapadas e pastagens tomava um aspecto sombrio ao cair da noite.
A dama, para quem o silêncio e a tranquilidade pareciam coisas desusadas, demorou-se durante alguns instantes no patamar. Voltou-se em seguida para uma outra porta, sobre a qual se lia a inscrição a branco: 6fl classe. Surpreendida por um cochichar de vozes por cima da sua cabeça, imobilizou-se no limiar da porta e o seu olhar dirigiu-se para cima, seguindo o corrimão largo e polido que se elevava numa curva sem interrupção, de patamar em patamar, formando um plano inclinado de alto a baixo da casa.

 

 

 


 

 

 


Uma voz fresca que imitava, segundo todas as aparências, o tom de outra pessoa, veio nesse momento do andar de cima:
- Vamos agora passar aos Exercícios de Velocidade, minhas meninas.
Em seguida, uma jovem com um vestido de tecido cru Sançou-se através do espaço, a cavalo sobre o corrimão, passou como um turbilhão a curva do mesmo com um ousado movimento centrífugo do pé, e desapareceu na sombra, em baixo. Foi imediatamente seguida por outra jovem de aspecto distinto, vestida de verde, que retinha a respiração enquanto descia rapidamente; por último, veio outra rapariga, forte, vestida de preto, apertando com força o lábio
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inferior entre os dentes e cujos belos olhos castanhos brilhavam de excitação. A sua passagem provocou uma tempestade em miniatura que descompôs novamente os cabelos da senhora, imóvel no patamar, aguardando angustiada que dois ligeiros choques e um baque svlrdo anunciassem a chegada das viajantes aéreas sãs e salvas ao vestíbulo.
- Meu Deus! - exclamou a voz que já tinha falado. Está ali a Susana.
- Foi uma sorte não partirem a cabeça, - replicou uma voz de mulher toda palpitante. - Desta vez faço queixa, menina Wylie, garanto-lhe que vou participar o que fez. E a menina Carpenter que me diz a isto? Admira-me bastante tanta falta de juízo na sua idade e já tão
crescida. A senhora directora ouviu, com certeza, o barulho que fazem. Estão a estremecer a casa toda.
- Ora, não me mace! - disse a menina Wylie. - A madre abadessa tem o cuidado de procurar um lugar afastado do barulho que nós fazemos. Deixe-nos...
- Meninas - disse neste momento a senhora do patamar, chamando numa voz tranquila, mas com nitidez de mau agoiro.
Silêncio e perturbação no grupo das raparigas. E ouviu-se a voz da menina Wylie, num tom de doçura melíflua:
- Chamou-nos, querida senhora Wilson ?
- Chamei. Subam todas três.
Houve uma hesitação entre as raparigas, cada uma delas oferecendo a precedência às restantes. Por fim, subiram lentamente pela mesma ordem, mas não pela mesma forma da descida precipitada. Seguiram a senhora Wilson, que entrou na aula, e colocaram-se diante dela, em fila, iluminadas pela luz de um vermelho-alaranjado que entrava por uma das janelas voltadas ao poente.
A menina Carpenter, a mais alta das três delinquentes, estava corada e confusa; os braços caíam-lhe ao longo do corpo, enquanto os dedos torciam as pregas do vestido. A menina Gertrudes Lindsay, vestida de verde-pálido, tinha a cabeça pequena, a tez delicada e os dentes como pérolas. Conservava-se aprumada, com uma expressão de frieza indiferente às censuras, quaisquer que elas fossem. O vestido de cor crua da terceira delinquente tinha virado
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do amarelo ao branco enquanto passava da luz cinzenta crepuscular do patamar ao brilho de tom quente do sol poente do aposento. O seu rosto acusava um rico tom azeitona, parecendo que entrava na sua composição a mica de oiro; os seus cabelos e os seus olhos eram cor de avelã e os seus dentes, de que ela exibia com desenvoltura a fiada superior, assemelhavam-se à bela pedra de Portland, um pouco inclinados para a frente, de modo a prejudicar a graciosidade da boca se ela não possuísse um lábio inferior bem modelado e um mento lindamente arredondado e atrevido.
Era difícil manter a severidade diante do seu ar metade caricioso, metade trocista, e do seu sorriso sempre pronto a manifestar-se; a senhora Wilson sabia-o, porque se absteve de a fitar, mesmo quando a sua atenção foi atraída por um movimento convulsivo e um olhar furioso da menina Lindsay, que acabava de receber nas costas uma pequena pancada, dada pela menina Wylie com as pontas dos dedos.
- Sabem que infringiram os regulamentos ? - censurou a senhora Wilson com calma.
- Não era a nossa intenção, posso assegurar,- disse a , rapariga vestida de tecido cru, adoptando um tom meigo.
- Quais eram, então, as suas intenções, menina Wylie ? A menina Wylie, contra toda a espectativa, tomou esta
pregunta como um novo ponto de partida e não como uma censura. Fez ouvir um gritinho bizarro, que determinou uma cascata de riso.
- Faça favor de se calar, Ágata, - impôs a senhora Wilson com severidade.
Ágata tomou um ar contrito. A senhora Wilson voltou-se com vivacidade para a mais velha das três culpadas e continuou :
- Surpreende-me na verdade, menina Carpenter! Visto que não tem o menor desejo de me respeitar, observando o regulamento, cuja necessidade deveria compreender, por já ter idade para isso, não a incomodarei com as minhas censuras ou com os meus rogos, aos quais nem sequer responderia, estou certa disso, neste momento. (Neste ponto, a menina Carpenter, com um protesto inarticulado, desatou ?a chorar). Mas deveria ao menos pensar no perigo a que a sua infantilidade, expôs as duas companheiras mais novas. Que sentiria se Ágata partisse a cabeça?
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- Oh! - exclamou Ágata levando com presteza a mão
à nuca.
- Não supus que houvesse perigo, - respondeu a menina Carpenter a lutar com as lágrimas. - Ágata já por diversas vê... Oh I meu Deus estragaste-me o vestido!
A menina Wylie tinha dado um puxão à saia da sua companheira, o que lhe produziu um abalo violento.
- Menina Wylie, -disse a directora, corando levemente,
- peço-lhe que deixe este aposento.
- Oh, não! - protestou Ágata aflita, juntando as mãos.
- Rogo-lhe, senhora Wilson, estou desolada e peço perdão.
- Visto recusar-se a fazer o que lhe ordeno, sou eu quem sai, - rematou a senhora Wilson severamente.
- Venham comigo ao meu gabinete, - ordenou a directora, dirigindo-se às outras duas colegiais. - Se a menina tentar seguir-nos, considero essa atitude como uma intrusão.
- Mas eu saio, se assim o deseja. Não tinha a intenção de desobed...
- Vamos, meninas, já basta.
Saíram todas três e a menina Wylie, ficando só em tão desgraçada situação, fez à sua companheira, menina Lindsay, que lhe tinha lançado uma olhadela, uma das suas caretas mais significativas.
Ao ficar só, a sua vivacidade desvaneceu-se. Foi lentamente até à janela e ficou-se a ver a paisagem com ar desdenhoso. Por instantes os seus olhos brilharam e o
seu lábio móvel agitou-se ao distinguir o som de uma voz que chegava até si. Mas o silêncio seguiu-se e Ágata recaiu numa indiferença melancólica, apenas interrompida
pelo regresso das suas duas companheiras, que apareceram de rosto muito sério.
- Então ? - disse ela alegremente, - entrou a força moral em jogo ? Vão confiar-se ao Registo Angélico ?
- Cala-te, Ágata, - respondeu a menina Carpenter. Não tens vergonha?
- Não, tu é que a devias ter, minha estúpida. Deixaste-me em bons
lençóis!
- A culpa foi tua. Deste cabo do meu vestido.
- Sim, porque ias dar com a língua nos dentes naquela história do corrimão...
- Oh! - disse lentamente a menina Carpenter como se
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essa razão não se lhe tivesse ainda apresentado ao espírito,
- Então foi por isso que puxaste pela minha saia ?
- Santo Deus ! Levou tempo a compreender. Decididamente, Joana, és razoavelmente tapada... Que disse a madre abadessa ?
A menina Carpenter deixou de novo correr as lágrimas, e não respondeu.
- Está desolada com o nosso procedimento, e não admira nada, - revelou a menina Lindsay.
- Disse que tu tens a culpa de tudo isto, - soluçou a menina Carpenter.
- Deixa lá, não importa, - contestou Ágata, à guisa deconsolação. - Lança isso no Registo Angélico.
- Não escreverei uma palavra no Registo, se tu não deres o exemplo, - ripostou a menina Lindsay com decisão.
- Tu és mais culpada do que nós.
- Bem, minha querida, - replicou Ágata. - Escreverei uma página inteira, se isso te dá prazer.
- Dir-se-ia que gostas de escrever no Registo Angélico,
- acrescentou a menina rCarpenter com despeito.
- E não é mentira. É o que há por cá de mais divertido,
- Será divertido para ti, - replicou a Lindsay em tons áspero, - mas não é decente da minha parte, como a directora acaba de me dizer, obter um prémio em ciência moral e em seguida confessar que me comportei mal. Além disso não me agrada ter fama de mal educada.
Ágata desatou a rir.
- Que espertalhona, a velha Conhece os nossos fracos e põe o dedo na
ferida... Desafio-te a que a oiças dizer-me,, ou à Joana, que somos mal educadas - Não te compreendo,-replicou a Lindsay com orgulho.
- É natural, porque não és tão forte como eu em ciência moral, se bem que eu não tenha tido nenhum prémio.
- Oh! ohl - troçou a Carpenter, - tu nunca tiveste prémios em coisa nenhum...
- E espero que nunca os terei, - replicou Ágata. Dá-me mais prazer bulhar como os garotos da rua, à procura de moedas na neve, do que competir com as colegas para ver qual sabe mais. Quanto a ciência moral, o Dr. Watts chega e sobra. E vamos ao Registo Angélico.
Aproximou-se de uma estante e tomou um pesado inquarto,
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encadernado em coiro preto, onde se liam estas palavras a vermelho: As Minhas Culpas. Atirou-o irreverentemente para cima de uma carteira e voltou com vivacidade
as (olhas, até chegar a uma página apenas meio coberta por confissões manuscritas.
- Por extraordinário que pareça, eis aqui duas confissões que não são minhas. Sara Gerram... Vejamos qual foi ?a sua falta...
- Não leias, - disse com vivacidade a Lindsay. - Sabes bem que é coisa indigna ler o que as outras escrevem.
- Ora! Os nossos pecadilhos não merecem tanta cerimónia. Por mim, gosto de que leiam o que escrevo; tenho a ilusão de ser um autor. Por isso, por dever cristão
também, leio sempre o que escrevem as outras. Ora oiçam a falta da pobre Sara:
"1 de Outubro. Lamento bastante ter dado uma bofetada à menina Chambers, no lavabo,
esta manhã, e ter-lhe quebrado um dente. Foi muito mal feito da minha parte, mas o dente estava para cair por si. Ela perdoou-me, porque há-de nascer outro dente
no lugar daquele. Não é verdade que ela o tivesse engolido, estava apenas a fingir. Sara Gerram."
- Grande parva - comentou a Lindsay. - É aborrecido ter de escrever neste livro de mistura com garotas...
- Oiçam esta revelação comovente: "4 de Outubro. Helena Plantageneta sente profunda tristeza por ter de confessar que obteve injustamente, ontem, o primeiro lugar
em álgebra. Foi a menina Lindsay que fez de ponto e..."
- Oh! - exclamou a Lindsay, corando. - Assim ela me agradece o serviço que lhe
prestei, com que direito ousa ela confessar as "minhas" próprias faltas no Registo
Angélico ?
- Para a outra vez torna a soprar-lhe ao ouvido... aconselhou a Carpenter. - É um feijão de duas caras, tu já a devias conhecer...
- Asseguro-te que não foi por ela que o fiz, - disse a Lindsay. - Foi só para impedir a Jackson de ficar
N.º 1. Não gosto da Helena Plantageneta, mas ao menos é de família distinta.
- Que graça, Gertrudes - repontou Ágata, meio a sério. - Ouvindo-te falar, dir-se-ia que a tua avó era cozinheira. Não sejas tão fútil...
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- Menina Wylie, - replicou Gertrudes, fazendo-se escarlate, - a menina é muito... Ai! pára Aga... Ai I eu digo" menina Wy... Ai!
Ágata tinha-lhe aplicado um dedo de ferro entre as costelas e magoava-a sem piedade.
- Ch-ch-ch, - murmurou a Carpenter, com inquietação. - A porta está aberta.
- Então eu sou a "menina Wylie"? -preguntou Ágata, prolongando a tortura sem compaixão. - Eu sou muito... Que ias dizer? Sou muito, quê? Heim? Dize...
- Não, não, - articulou penosamente Gertrudes, deixando-se cair numa cadeira como se fosse ter uma crise de nervos. - Tu és... abominàvelmente cruel, Ágata. Magoaste-me.
- E bem o mereces. Se me fazes má cara e se me tornas, a chamar "menina Wylie", dou cabo de ti. Hei-de cocegar-te a planta dos pés com uma pena, (a Lindsay estremeceu e ocultou os pés debaixo da cadeira) até que os teus cabelos, se tornem brancos... Vamos, se estás de verdade arrependida, vem escrever a tua falta.
- Primeiro tu. A culpa foi tua.
- Mas eu sou a mais nova, - respondeu Ágata.
- Então, - disse a Lindsay, temendo apressar o caso, mas decidida a não ser a primeira, - comece a Joana Carpenter, porque é a mais velha.
- Pois é claro, - repontou a Carpenter, com ironia choramingas. - A Joana Carpenter é sempre a primeira a fazer tudo o que é desagradável. Não é justo. Julgam-ma imbecil, mas enganam-se.
- Efectivamente não és tão imbecil como pareces, disse gravemente Ágata. - Eu não me importo de escreverem primeiro lugar, se assim queres.
- Não, não hás-de ser a primeira, - exclamou a Carpenter, arrancando-lhe a caneta da mão. - Sou a mais velha e não cedo o meu lugar a ninguém.
Molhou a pena resolutamente no tinteiro e preparou-se para escrever. Fez uma pausa e reflectiu. Depois tomou uma expressão assustada. Por fim, lançou um apelo lastimoso a Ágata:
- Que devo escrever? Tu sabes como essas coisas se escrevem, mas eu não.
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- Primeiro a data, - disse Ágata.
- É verdade, - respondeu Joana, escrevendo com ligeiíeza. - Já me esquecia. E depois ?
- Agora, escreve: "Lamento profundamente que a senhora Wilson, nossa directora, me tenha visto esta tarde descer a escada a deslizar sobre o corrimão. Joana Carpenter."
- Só isso?
- Só, a não ser que queiras acrescentar mais alguma coisa de tua iniciativa.
- Julgo que estará bem, - disse Joana, fitando Ágata com suspeitas no olhar. - No fim de contas, não deve haver mal nenhum nisso, porque é a pura verdade. Em todo o caso, se é uma das tuas partidas que me estás fazendo, és um animal imundo e eu pouco me ralo. Agora, tu, Gertrudes. Lê o que eu escrevi, faze favor, e repara se não há erros de ortografia.
- Não me compete a mim ensinar-te a ortografia, - replicou a Lindsay, pegando na pena.
E enquanto a Carpenter ruminava estas palavras desairosas, a Lindsay escreveu com desembaraço: "Infringi o regulamento, deslizando ao longo do corrimão, hoje, com
as meninas Carpenter e Wylie. Foi a menina Wylie quem deu o exemplo."
- Essa é forte - exclamou Ágata, lendo por cima do ombro da companheira. -E dizer que o teu pai é almirante!
- É justo, - disse a Lindsay, um pouco menos senhora de si, mas tomando um tom de moralista. - É a expressão da verdade.
- O meu dinheiro foi ganho no comércio, mas eu teria vergonha de me desculpar de o ter adquirido lançando as culpas sobre os teus ombros aristocráticos, triste criatura! Vamos, passa para cá a caneta.
- Apago o que escrevi, se o desejas, mas julgo que...
- Não, deixa ficar, porque é um belo documento contra ti. Agora repara como eu confesso as minhas faltas.
E escreveu rapidamente numa escrita miudinha: "Esta tarde encontrei Gertrudes Lindsay e Joana Carpenter no cimo da escada e elas disseram-me que tinham vontade de descer pelo corrimão se eu fosse à frente. Aleguei que era contra o regulamento, mas elas responderam-me
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que não fazia mal. E como são mais velhas do que eu, deixei-me persuadir e vim por ali abaixo."
- Que dizem vocês a isto? -preguntou Ágata exibindo o seu escrito.
As Doutras leram e protestaram com energia.
- É a pura verdade, -respondeu Ágata com solenidade.
- É uma feia partida, - disse Joana com vigor. Acusar a Gertrudes e depois fazer duas vezes pior! Nunca na minha vida vi coisa parecida...
- É assim que começa o mal, mas o pior vem depois, como diz o Declamador Clássico, - respondeu Ágata, juntando este novo período à sua confissão:
"Mas a culpa foi inteiramente minha. Fui incorrecta para com a senhora Wilson, nossa directora, e recusei-me a sair da aula quando ela mo ordenou. Não foi voluntariamente
que procedi mal, excepto na história do corrimão. Gosto tanto de uma boa escorregadela, que não pude resistir à tentação."
- Escuta um bom conselho, Ágata, - disse Joana em tom importante. - Se escreves coisas impertinentes neste Registo serás expulsa.
- Sério ? - replicou Ágata em tom significativo. - Pois bem, espera que a directora veja o que "tu" escreveste.
- Gerírudes, - exclamou Joana, tomada de súbitas dúvidas, - ela fêz-me escrever qualquer coisa inconveniente ? Ágata, por amor de Deus, dize-me se...
Neste momento, um gongo ressoou e as três raparigas exclamaram ao mesmo tempo: "Á paparoca", enquanto deixavam precipitadamente o aposento.
II
Por uma tarde de sol, um trem corria a bom correr pela avenida de Belsize, no bairro de Saint-Johns Wood, e parou diante de uma grande casa. Uma senhora nova apeou-se,
subiu a correr os degraus da escada exterior e tocou com impaciência.
Tinha a tez azeitonada e um fino perfil, olhos negros com grandes cílios, boca delicada e lábios finos e sensuais.
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A cabeça, as mãos e os pés eram pequenos e os dedos compridos e esguios. Era uma criatura delgada e flexível, que se movia com uma graça ondulante.
O seu gosto oriental era acusado pelas cores do seu vestuário, que se compunha de uma saia justa, de tecido estampado branco, animada por grandes desenhos azues,
um chapéu de palha amarela, enfeitado com pilriteiro artificial e bagas vermelhas, e luvas de camurça, que subiam até mais acima do cotovelo, e ostentava uma profusão
de braceletes de oiro.
Como a porta não se abriu imediatamente, voltou a tocar com violência e não tardou a ser atendida por uma serviçal, que pareceu surpreendida de a ver.
Sem nada preguntar, subiu a escada com precipitação e penetrou com vivacidade numa sala onde uma senhora de idade madura, belo aspecto de traços judaicos puros,
estava sentada a ler. Junto dela via-se um rapazinho vestido de veludo preto, que exclamou;
- Olha, mamã, é a Henriqueta!
- Artur, - disse a senhora nova com agitação, - sai de aqui e não voltes sem te darem licença para isso.
A carita do pequeno tornou-se sombria e ele saiu de mau modo, mas sem dizer nada.
- Que há? - preguntou a senhora que estava lendo, ao poisar o livro com a resignação indiferente de uma pessoa experimentada, ao ver desencadear-se uma tempestade
num copo de água. - Onde está o Sidney?
- Partiu! Partiu! Abandonou-me. Eu...
A senhora nova, cuja voz se extinguiu, atirou-se para um canapé, soluçando com despeito misturado com cólera.
- Que disparate estás tu a dizer ? Julgava o Sidney mais razoável. Vejamos, Henriqueta, não sejas tonta. Zangaram-se, com certeza...
- Não! não! não! - exclamou Henriqueta, batendo com o pé no tapete. - Não trocámos uma palavra. Não me zanguei com ele uma única vez depois que nos casámos, mamã,
juro-te solenemente. Eu dou cabo de mim, não há outra solução. Há, com certeza, uma maldição
a pesar sobre os meus ombros, estou destinada a ser infeliz. Ele...
- Basta, basta. Que se passa, Henriqueta ? Há já seis semanas que casaste, e não te deves admirar se, de tempos
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a tempos, surgem pequenos amuos. Tu és irritável... Não deves esperar que o céu esteja sempre sem nuvens. Ia apostar em como a culpa do que sucede é tua, porque o Sidney é muito mais razoável do que tu. Vejamos, seca as tuas lágrimas e porta-te como uma mulher de senso. Eu irei tercom o Sidney e tudo se há-de compor...
- Ele partiu e nem mesmo sei onde está. Que vou eu fazer, santo Deus ?
- Mas que se passou?
Henriqueta torceu as mãos com impaciência. Depois, fazendo, um esforço para contar a sua história, respondeu:
- Na segunda-feira tinha ficado assente entre nós que eu iria passar dois dias com a tia Judite, em vez de ir com ele a um horrível Congresso de Comércio em Birmingham.
Separámo-nos nas melhores condições. O Sidney não podia ter sido mais afectuoso... Oh! eu mato-me... Já não gosto de nada, de ninguém... Quando regressei na quarta-feira, o Sidney tinha partido e encontrei esta car...
Desatou a chorar ainda mais amargamente, exibindo uma carta que tirou da algibeira.
- Dá cá.
Henriqueta hesitou, mas sua mãe tirou-lhe o papel da mão, sentou-se junto da janela e preparou-se para ler sem se preocupar com a aflição veemente da filha.
A carta era assim concebida:
"Segunda-feira, à noite:
"Querida: Vou-me embora saturado de caricias, viver a minha vida e entregar-me ao trabalho que me seduz. Eu teria podido preparar-te para esta decisão, usando frieza e indiferença para contigo, mas isso era-me totalmente impossível, devido ao encanto da tua pessoa. Vejo que devo fugir, se quero salvar-me.
"Temo não te poder dar razões satisfatórias e inteligíveis para explicar o meu procedimento. Tu és uma bela criatura de luxo: a vida não é, para ti, cheia e completa sem se tornar um carnaval do amor. O meu caso é justamente o contrário. Antes que três frases ternas me tenham saído dos lábios, já eu me censuro a minha patetice e falta de sinceridade.
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Antes que uma carícia tenha tido tempo de esfriar, assalta-me uma vontade violenta de me afastar.
"Sinto o desejo ardente de voltar à minha antiga vida ascética de eremita solitário, aos meus livros suculentos, à rainha tarefa de propagandista, à minha viagem
de descobertas através do deserto do pensamento.
"Casei-me num acesso de loucura, supondo que tinha uma parte da afeição natural que ajuda os outros homens a viver a sua vida dentro do matrimónio. Já me desenganei. Tu és para mira a mais deliciosa mulher que há no mundo. Pois bem, durante meia dúzia de semanas, passeei, falei e diverti-me com a mais encantadora mulher que imaginar se possa e a conclusão é que fujo dela para me recolher, até à morte, numa gruta de eremita.
"O amor não tem acção para me reter junto dela: todas as minhas forças vivas se opõem a isso e recusam aceitar essa sujeição.
"Perdoa-me escrever-te coisas insensatas, que não poderás compreender, e não me julgues com dureza. Fui para ti tão bom quanto a minha natureza egoísta permitiu.
"Não procures perturbar-me na obscuridade que eu busco e mereço. O meu notário irá ter com teu pai para pôr em ordem os nossos assuntos e tu serás tão feliz quanto a tua fortuna e liberdade consentirem que o sejas. Possivelmente nos tornaremos a ver um dia.
"Adeus, meu último amor.
Sldney Trêfusis."
- E então? - exclamou a senhora Trêfusis, notando através das suas lágrimas que a mãe tinha terminado a leitura da carta e a contemplava assustada.
- Não há dúvida que se foi - disse a senhora Jansénio, com ênfase.-Julgas que ele esteja em seu perfeito juízo, Henriqueta? Ou tê-lo-ias tu importunado com excessivas
demonstrações de ternura? Os homens não gostam de consagrar a sua existência por inteiro às suas mulheres, mesmo durante a lua de mel...
- O Sidney afirmava que não era feliz longe de mim,
- soluçou Henriqueta. - Uma coisa assim, tão cruel, nunca se viu! Muitas vezes desejei estar só para mudar, mas receava
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melindrá-lo se o fizesse. E agora é ele que se mostra sem coração. Mas é preciso que volte para mim, não é verdade, mamã?
- É o seu dever. Não creio que tenha partido com outra.
Henriqueta deu um pulo e as faces tornaram-se-lhe escarlates.
- Se eu pensasse isso, havia de o perseguir até ao fim do mundo, para o matar. Não, ele não é como muitos outros. Detesta-me. Toda a gente me detesta. Que te importa
a ti, ou ao papá, que eu tenha sido abandonada ou não?
A senhora Jansénio, sempre indiferente à agitação da filha, reflectiu por instantes e disse plàcidamente:
- Nada podes fazer enquanto o notário não chegar. Entretanto podes ficar connosco, se o desejas. Não esperava que nos procurasses tão cedo, mas o teu quarto não serviu a ninguém depois que casaste.
A senhora Tréfusis cessou de chorar, gelada por esta descoberta de que a casa de seu pai já não era o seu lar. Uma sensação mais nítida de desolação a invadiu. Sob a sua fria influência, a abandonada começou a refazer-se e a seatir o seu orgulho erguer-se como uma barreira entre ela e sua mãe.
- Não fico por cá muito tempo, - respondeu. - Se o notário não me quiser dizer onde ele pára, vou procurá-lo por toda a Inglaterra. Lamento ter-te incomodado.
- Oh ! não me incomodas mais que noutro tempo, - respondeu com calma a senhora Jansénio, a quem não tinha desagradado que a filha tivesse compreendido a alusão.
O melhor a fazer é ir lavar o rosto; podem chegar visitas e não creio que te agrade recebê-las nesse estado. Se vires o Artur lá fora, dize-lhe que pode entrar.
Henriqueta moveu os lábios num trejeito bizarro, e retirou-se. Em seguida o pequeno regressou e foi pôr-se à janela, de pé, sentido e silencioso, meditando na sua recente expulsão.
De repente, exclamou:
- Aí vem o papá. E ainda não são cinco horas. Sua mãe mandou-o embora outra vez.
O senhor Jansénio era um homem de aspecto imponente, que ainda não tinha cinquenta anos, mas não estava longe
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deles. Caminhava com dignidade, numa atitude reveladora de que o conteúdo do seu crânio maciço era, de facto, precioso.
O seu belo nariz aquilino e os seus olhos pretos e penetrantes proclamavam a sua origem judaica, de que
se envergonhava.
Os que o ignoravam supunham, naturalmente, que tinha orgulho nisso e não podiam compreender como consentia em dar aos seus
filhos educação cristã.
Muito entendido em negócios, nada sensível às emoções, excepto ao amor da família, à consideração, ao conforto e ao dinheiro, tinha conservado intacto o capital
que seu pai lhe havia legado. Tinha-o feito, da forma habitual, produzir um capital novo. Como tal, o seu objectivo era, naturalmente, interceptar e apropriar-se da economia imensa efectuada pelo sistema bancário, deixando tanto quanto possível o resto do mundo trabalhar tão penosamente como antes, da introdução deste sistema.
Mas como, nestas condições, o público não confiaria fundos a essas catedrais da finança, era preciso dar-lhe uma parte dessa economia para o encorajar. Deste modo, o público beneficiava tanto como ele. O senhor Jansénio tinha,, por conseguinte, a satisfação de ser ao mesmo tempo um cidadão opulento e um benfeitor público, rico de bem-estar e em paz com a sua consciência.
Entrou no aposento com ligeireza e sua mulher percebeu que alguma coisa o tinha aborrecido.
- Sabes o que aconteceu, Ruth? - preguntou ele.
- Sei. Está lá em cima.
O senhor Jansénio olhou-a com espanto.
- Queres dizer que ela já veio ? - preguntou ainda. com que direito vem para cá?
- E tudo quanto há de mais natural. Para onde querias, que ela fosse ?
O senhor Jansénio, que duvidava das suas próprias opiniões quando não eram partilhadas por sua mulher, replicou lentamente:
- Porque não foi para casa de sua mãe ?
A senhora Jansénio, surpreendida por sua vez, olhou-ocom frio pasmo e replicou:
- Então eu não sou a sua mãe ?
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- Não, que eu saiba. E espanta-me ouvir-te dizer semelhante coisa, Ruth... Também recebeste uma carta, não ?
- Vi a carta. Mas que queres tu insinuar quando dizes que não sou a mãe da Henriqueta?
É um gracejo?
- Henriqueta ? Então ela está cá ? Outro aborrecimento.
- É possível. E tu, de quem falavas, então ?
- De Ágata Wylie.
- Pois eu falava de Henriqueta.
- Bem, que há então a respeito da Henriqueta?
- E a respeito de Ágata Wylie ?
Neste ponto o senhor Jansénio começou a perder a paciência, e sua mulher percebeu que era preferível contar-lhe a revelação da filha. Quando ela lhe entregou a carta
de Tréfusis, o senhor Jansénio disse num tom mais calmo:
- Uma desgraça nunca vem só. Toma, lê isto. Estendeu-lhe também uma carta e ambos se puseram a
ler simultaneamente.
A senhora Jansénio leu o que segue:
"Colégio dAlton - Lyvern
"A Sr.a Wylie, Acácia Lodge, Chiswich.
"Querida senhora: É com bastante pesar que vos escrevo para vos rogar a retirada da menina Wylie do Colégio de Alton. Num estabelecimento de ensino como este, onde
os entraves à liberdade são reduzidos ao mínimo, é necessário que o pouco de subordinação, absolutamente indispensável, seja aceito por todas sem discussão e prontamente.
"A menina Wylie recusou submeter-se a esta condição. .Manifestou o desejo de se ir embora e adoptou para comigo e as outras professoras uma atitude que não podemos tolerar pelo que respeita aos nossos deveres para connosco e para com as suas companheiras de colégio.
"Se a menina Wylie tem motivos para se queixar da forma como é tratada aqui ou do procedimento que somos forçadas a adoptar para com ela, sem dúvida que vo-lo dirá.
"Muito me obsequeia comunicando isto mesmo ao seu tutor, o senhor Jansénio, com o qual desejarei chegar a um
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acordo equitativo no que respeita à pensão paga adiantadamente para o período em curso.
"Subscrevo-me, querida senhora, com toda a consideração
Maria Wilson."
- Encantadora menina, palavra de honra! - exclamou a senhora Jansénio.
- Não atinjo, - dizia o senhor Jansénio, tornando-se vermelho enquanto o sentido da carta do seu genro se lhe tornava ininteligível. - Não suporto isto. Que quere
dizer esta trapalhada, Ruth ?
- Ignoro. Julgo que o Sidney está louco e foi a lua de mel que lhe provocou a maluqueira. É preciso não lhe consentir que nos atire a Henriqueta para cima das costas.
- Doido! Julga ele, por acaso, que pode subtrair-se às responsabiiidades para com sua mulher só porque é minha filha? Ou pensará que o facto de o seu avô materno ser um baronete lhe permite desembaraçar-se da Henriqueta logo que a sua companhia se lhe torna insípida ?
- Não creio em nada disso. Nem pensou em nós.
- Mas eu o obrigarei a pensar, - replicou o senhor Jansénio, levantando a voz, numa grande exaltação. - Há-de responder pela sua conduta.
Neste momento, Henriqueta voltou e viu o pai caminhando para cá e para lá com agitação, repetindo:
- Tem que se entender comigo, isso tem...
A senhora Jansénio franziu os sobrolhos, virando-se para sua filha, para que ela se calasse, e acrescentou suavemente:
- Vejamos, João, não te exaltes.
- Mas eu quero exaltar-me. Insolente I Cretino!
- Não, - choramingou Henriqueta. -Ele não é cretino...
- Basta, Henriqueta, basta, - impôs a senhora Jansénio, em tom incisivo. - Não são precisas mais lágrimas. Poupa-nos, por favor.
Henriqueta levantou-se bruscamente, num acesso de raiva.
- Hei-de fazer e dizer o que me apetecer, - gritou ela.
- Sou uma mulher casada e não aceito ordens. Quero que o meu marido volte para mim, faça o que ele fizer para se esconder. Papá, tu vais obrigá-lo a voltar para mim, não
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vais? Eu morro, com certeza, se não prometes fazer com que ele volte.
Depois, tomada de uma crise de nervos, atirou-se para os braços do pai, soltando gritos que alarmaram a casa, e a discussão do assunto foi adiada para mais tarde.
III
Uma das professoras do Colégio dAIton era uma certa senhora Miller, mestra à moda antiga, que não tinha confiança no sistema da senhora Wilson, concretizado na expressão
"a disciplina pela força moral". Por isso, aplicava-o contra vontade.
Ainda que não fosse má, era bastante acanhada de espírito para ser até certo ponto inclinada ao desprezo e, por consequência, levada a suspeitar as outras de desdém.
Desconfiava sobretudo de Ágata e tratava-a com uma altivez desdenhosa nas relações que com ela mantinha. Mas estes contactos eram felizmente pouco frequentes.
Ágata pouco se importava com isso, porque a senhora Miller era uma pessoa pouco simpática, que, não tendo amigas entre as alunas, satisfazia a sua sede de afeição ameigando um grande gato chamado Graco, geralmente conhecido pelo nome de Braço, por uma modificação afectuosa da consoante inicial bastante áspera.
Uma tarde em que a senhora Miller estava na sala de estudo com a senhora Wilson a corrigir provas de exame, ouviu um ruído longínquo que lhe pareceu o miar aflito
de um gato. Correu para a porta e escutou. Um momento depois, um lamento prolongado se ouviu, modulado em duas oitavas, e o silêncio restabeleceu-se. Era um verdadeiro gemido agudo de felino, impossível de localizar.
O silêncio foi de novo interrompido por uma espécie de soluço, um rosry, um grunhido feroz e uma luta, que vinha, sem dúvida auma, de um aposento situado no andar inferior, no qual, a essa hora, estavam reunidas a estudar as alunas mais velhas.
- Meu pobre Graco ! - exclamou a senhora .Miller, correndo tão depressa quanto lhe era possível.
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Encontrou as pequenas numa tranquilidade desusaaaj todas mergulhadas no estudo, salvo a menina Carpenter, que, fingindo apanhar um livro caído, estava vermelha como uma papoila, à força de conter o riso e também devido à posição curvada.
- Onde está a senhora Ward ? - preguntou a senhora Miller.
- A senhora Ward foi buscar uns diagramas astronómicos de que nós precisamos, - respondeu Ágata, levantando gravemente a cabeça.
Nesse momento entrou a senhora Ward com os diagramas na, mão.
- Esse gato apareceu por aqui ? - preguntou ela, sem ver a senhora Miller, falando num tom que exprimia antipatia pelo Graco.
Ágata estremeceu e levantou os pés como se temesse ser mordida. Depois, olhando com apreensão para debaixo da carteira, replicou:
- Não está aqui nenhum gato, senhora Ward.
- Deve haver um seja onde for, porque o ouvi miar, disse a senhora Ward com indiferença, desenrolando os diagramas, que se pôs a explicar sem mais comentários.
A senhora Miiler, inquieta pelo seu favorito, apressou-se a ir procurá-lo algures. No vestíbulo, encontrou uma das criadas.
- Susana, - preguntou ela, - viu o Graco ?
- Está a dormir na carpetíe da sua antecâmara, senhora Miller.
- Mas eu ouvi-o miar com aflição para estes lados, há poucos instantes. com certeza outro gato entrou cá e vão-se engalfinhar os dois.
Susana sorriu compassivamente.
- Valha-lhe Deus, senhora Miller, era a menina Wylie. E uma espécie de farsa que ela gosta de representar. Sabe imitar na perfeição a abelha que zumbe no vidro da janela, o soldado na chaminé e o gato debaixo do trinchante.
- O soldado na chaminé? -preguntou a senhora Miller, espantada.
- Sim, senhora Miller. Como quem diz o namorado que se esconde quando sente vir a patroa.
O rosto da senhora Miller tomou um ar resoluto. Voltou
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à sala de estudo e contou o que acabava de se passar juntando alguns comentários sarcásticos sobre a eficácia da força moral na manutenção da disciplina escolar.
A senhora Wilson tomou um ar grave, reflectiu um pouco e disse por fim:
- vou pensar em tudo isto. Quere ter a bondade de me confiar este assunto até nova ordem?
A senhora Miller respondeu que pouco lhe importava em que mãos o assunto ficava desde que as suas não se emporcalhassem com o caso e retomou o seu trabalho de correcção das provas.
A senhora Wilson, desejosa de estar só, passou para uma aula vazia do outro lado do patamar. Foi buscar à estante o livro das culpas e sentou-se a folheá-lo. As confissões nele inscritas terminavam com estas palavras do punho de Ágata: "
"A senhora Wilson chamou-me impertinente e escreveu a meu tio dizendo que eu me recusei a obedecer ao regulamento. Não sou impertinente e nunca me recusei a obedecer ao regulamento. Isto pelo que respeita à força moral."
A senhora Wilson levantou-se bruscamente, exclamando:
- Eu lhe direi se...
Suspendeu a frase, lançando um olhar em redor, imaginando que Ágata tivesse penetrado furtivamente no aposento sem ser pressentida. Sossegou ao notar que estava só e interrogou a sua consciência para saber se teria errado ao chamar impertinente a Ágata e tranquilizou-se ao fazer a reflexão de que a educanda se tinha mostrado impertinente de verdade.
Contudo, recordou-se de ter recusado admitir esta desculpa numa ocasião recente, quando Joana Carpenter dela se serviu para atenuar o facto de ter qualificado de mentirosa uma das suas companheiras. Tinha a senhora Wilson sido injusta para com a menina Carpenter, ou inconsiderada a respeito de Ágata?
A sua casuística foi interrompida por alguém que assobiava um tema da
abertura de "Masaniello" que se tinha tornado popular no colégio sob a forma de arranjo para
seis pianos.
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Só uma aluna se importava pouco de não se assemelhar às outras sobre ser uma excelente cultora da música para assobiar da forma por que o fazia.
A senhora Wilson teve verg-onha de sentir que estava a enervar-se à ideia de um encontro com Ágata, que entrou no aposento assobiando melodiosamente, mas com um ar lúgubre.
Quando a educanda viu em presença de quem estava, pediu polidamente perdão e fez menção de se retirar.
Mas a senhora Wilson, apelando para o seu critério e tacto, na esperança de que estes - contrariamente ao seu costume nas circunstâncias críticas -responderiam ao
apelo feito, respondeu:
-Venha cá, Ágata, temos que conversar.
Ágata cerrou os lábios, respirou fundamente pelas narinas, avançou até pequena distância da senhora Wilson e deteve-se com as mãos entrelaçadas diante dela.
- Sente-se.
Ágata sentou-se de um só movimento, como uma boneca.
- Não compreendo, Ágata, - disse a senhora Wilsop, apontando com o dedo o escrito da educanda no Registo Angélico. - Que significa isto?
- Sou injustamente tratada, - replicou Ágata, dando sinais de enervasnento.
- De que forma ?
- De "todas" as formas. Exigem de mim que eu seja qualquer coisa mais que uma mortal. Todas as minhas colegas são encorajadas a queixar-se, a serem fracas e tolas.
Quanto a mim, é preciso que eu não sinta nada. Devo sempre ser impecável. Todas as outras podem estar melancólicas, de mau humor ou deprimidas. Eu, pelo contrário, não tenho o direito de ter nervos e devo fazer rir as colegas a toda a hora do dia. As outras podem mostrar má cara quando são censuradas e fazer com que as professoras temam ser apanhadas em falta. Eu devo suportar os insultos das professoras que se dominam menos do que eu, apesar de só ter dezassete anos. E é preciso, ainda, que eu as acarinhe e afague -para as tirar das dificuldades criadas elas próprias por,causa do seu mau carácter.
- Mas, Ágata...
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- Oh! Eu digo tolices, bem sei, senhora Wilson, mas pode a senhora esperar que eu seja sempre razoável? Que eu seja .infalível?
- Sim, Ágata, creio que não é esperar muito de si desejar que seja razoável, e...
- Então, a senhora não tem razão nem sente simpatia,
- disse Ágata.
Seguiu-se um silêncio de mau agoiro. Nenhuma das duas poderia dizer quanto tempo esse silêncio durou.
Então Ágata, sentindo que devia fazer ou dizer qualquer coisa impulsiva ou fugir de ali, fez um gesto de desespero e saiu a correr.
Foi ter com as companheiras ao grande vestíbulo da casa onde elas se reuniam depois do estudo para o recreio ruidoso que começava sempre espontaneamente logo que as professoras se retiravam.
Ágata tinha o hábito de se sentar com as duas camaradas favoritas sobre um alto parapeito junto do fogão da sala. Este lugar estava ocupado nesse momento porr uma pequenita de cabelos de tom loiro pálido, que Ágata, sem se importar com a força moral, ergueu pelos ombros e depôs no chão. Em seguida sentou-se e disse:
- Trago uma novidade.
A Carpenter abriu muito os olhos ávidos. A Lindsay simulou indiferença.
- Vai haver uma expulsão.
- Quem é?
- Não tarda que o saibas, Joana, - respondeu Ágata, tornada subitamente grave. - Trata-se de alguém que escreveu uma insolência no Registo Angélico.
O terror invadiu Joana, que se tornou lívida.
- Ágata, - disse ela, - o que eu escrevi foi ditado por ti. Sabes bem que foste tu, não o podes negar.
- Não posso negar, dizes tu ? Pois estou pronta a "jurar" que não te ditei uma palavra.
- A Gertrudes é testemunha, - exclamou a Carpenter aterrorizada e quási a romper em lágrimas.
- Bem, bem, - disse Ágata, acarinhando-a como se ela fosse um bebé. - A Joaninha
não será expulsa. Não leram o Registo ultimamente ?
- Não, desde que lá escrevemos o que sabes.
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- Olha lá, ó garota, - chamou Ágata, dirigindo-se à petiza dos cabelos loiros, - vai lá acima à aula
6, e, se a senhora Wilson não estiver lá, traze-me o Registo
Angélico.
A pequenita murmurou qualquer coisa indistinta e não se moveu.
- Ó miúda, - voltou Ágata a dizer, - tu nunca desejaste não ter nascido?
- Porque não vai em vez de mandar ? - disse a criança, de mau humor, mas evidentemente alarmada.
- Porque, estou disposta, - replicou Ágata,-a enterrar-te debaixo da laje mais negra da casa do carvão se não me trazes o Registo enquanto eu conto até dezasseis. Um... dois...
- Vai já fazer o que te mandam, petiza horrorosa! disse Gertrudes asperamente. - Tens o arrojo de te mostrares descortês ?
- ...nove... dez... onze... - continuou Ágata.
A criança empalideceu, saiu e voltou sem demora sobraçando o Registo Angélico.
- Es uma pequerrucha gentil quando as melhores das tuas qualidades são postas à prova com uma aplicação judiciosa da força moral, - disse Ágata, muito bem disposta.
Amanhã lembra-me que te guarde as passas do meu pudim. Agora, Joana, vais ler as palavras que vão determinar a expulsão da rapariga com mais coração neste colégio. São estas.
As duas raparigas leram a inscrição e ficaram cheias de terror. Joana abriu a boca e teve dificuldade em respirar. Gertrudes fez um trejeito com os lábios e tomou um ar grave.
- Tiveste o topete de deixar a senhora Wilson ver isso?
- exclamou a Carpenter.
- Ora ! Ela teria perdoado. Mas devias ter ouvido o que eu lhe disse. Três vezes a seguir ela desmaiou I
- E mentira... - disse gravemente a Lindsay.
- Peço perdão, - cortou Ágata, agarrando vivamente o joelho da Lindsay.
- Eu não disse nada,-exclamou Gertrudes, afastando-se nervosamente. - Não, Ágata, não faças isso...
- Quantas vezes a senhora Wilson desmaiou ?
- Três vezes. Eu grito, Ágata. Deixa-me, ou grito...
- Três vezes, tu o disseste. E espanta-me que uma rapariga, criada como tu tens sido pela força moral, seja capaz
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de repetir semelhante mentira... Pois tivemos uma discussão muito grande e isto é que é verdade. Ela zangou-se muito. Eu felizmente nunca me encolerizo.
- Pois bem, que me enforquem ! - explodiu a Carpenter num tom incrédulo. - Eu gosto disso.
- Para uma rapariga de família nobre, és vulgar sem desculpa, Joana. Já não sei o que disse; apenas sei que nunca a senhora Wilson me perdoará ter profanado o seu livro favorito. vou ser expulsa, tão certo como estar agora aqui sentada.
- E se te expulsam vais-te embora de verdade? - preguntou a Carpenter, inquieta, começando a bem compreender as consequências.
- vou. E pregunto a raim mesma que será de ti quando eu já cá não estiver para te tirar de dificuldades. E que será da Gertrudes sem mim para reírear o seu snobismo inveterado? Isso não posso eu prever.
- Eu não sou snob, -replicou a Lindsay, - se bem que não me agrade fazer-me amiga de qualquer uma. Quanto a ti, Ágata, nunca fiz objecções.
- Pois não, e tu que as fizesses! Então, Joana? (Esta tinha desatado a chorar) Que se passa? Espero que não irás chorar a minha sorte.
- Tens razão. Sou realmente uma tola em me apoquentar. Tu, não tens coração.
- É verdade que és uma parva, como dizes tão a propósito, - disse Ágata, passando um braço em volta da cintura de Joana, sem reparar que ela tinha feito um gesto
mal humorado para o impedir.-Se eu tivesse coração, comovia-me esta prova de ternura.
- Eu nunca disse que não tinhas coração, - protestou Joana - mas detesto ouvir-te falar como um livro.
- Detestas ouvir-me falar como um livro ? Minha pobra Joana tonta, vais sentir muito a minha falta.
- Acredito, - replicou a outra com sarcasmo lacrimoso.
- Ao menos o meu ressonar já não te acordará mais.
- Tu não ressonas, Joana. Foi uma combinação nossa fazer-te acreditar que sim. Vês como sou boa rapariga em te dizer a verdade?
Joana ficou confusa com esta revelação. Depois de uma longa pausa, disse com profunda convicção:
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- Eu sei já há muito tempo que não ressono. Grande peta vocês me
pregaram! Declaro solenemente que, a partir de hoje, já não acredito em ninguém.
- E tu, que pensas de tudo isto ? - preguntou Ágata, dirigindo-se a Gertrudes, que tinha adoptado um modo grave.
- Penso - falo muito seriamente, Ágata, - penso que não fizeste bem.
- Porquê, fazes favor de dizer? - repontou Ágata, um pouco picada.
- Deves ter errado, de contrário a senhora Wilson não se zangaria. Claro está, na tua opinião, tens sempre razão e as outras nunca; mas não deverias ter escrito isso no íivro. Falo-te como amiga.
- E que sabes tu, miserável criatura, dos meus motivos e sentimentos?
- É muito fácil compreender-te, - ripostou Gertrudes, picada. - A presunção não é coisa tão rara que seja impossível reconhecê-la. E nota bem, Ágata Wylie, - continuou
ela, como impelida por alguma recordação desagradável, se tu te vais realmente, pouco me importa que nos separemos amigas ou não. Ainda não me esqueci do dia em que me chamaste gata rancorosa...
- Arrependi-me disso, - disse Ágata, sem se comover.
- Um dia deíive-me a olhar para o Braço, que estava sentado diante do fogão da sala. com os olhos em forma de crescente, contemplava o espaço, tão pensativo e tão paciente que lhe pedi desculpa de te ter comparado a ele. Se eu lhe chamasse gato rancoroso o bicho não me acreditaria.
- Porque é realmente um gato, - disse Joana, com um risinho que, nela, nunca estava longe das lágrimas.
- Não é isso, é que ele não é rancoroso. A Gertrudes, essa, tem um Registo Angélico na sua cabecinha, tão repleto das faltas das outras, escritas em grandes letras e lidas através de um vidro de aumentar, que já não há lugar para lá registar as dela.
- És muito poética, - replicou Gertrudes, - mas eu compreendo o que queres dizer e não o esquecerei.
- Ah, grande ingrata! - exclamou Ágata, voltando-se para ela tão repentina e imperativamente que a outra recuou. - Quantas vezes, quando tentaste ser insolente e
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a meu respeito, eu expulsei o teu anjo mau... fazendo-te cócegas? Tinhas tu uma. só amiga no colégio, salvo meia dúzia de delambidas, antes de eu chegar? E agora,
porque, para teu bem, às vezes te mostro os teus defeitos, guardas-me rancor e dizes não te importares que nos separemos amigas ou não...
- Eu não disse isso.
- Oh I Gertrudes, agora mesmo o disseste !
- Vocês parecem acreditar que não tenho consciência,
- replicou a Lindsay em tom descontente.
- Quem dera que não a tivesses! Olha para mim. Eu não tenho consciência e vê como sou mais agradável do que
tu.
- Tu não te incomodas com ninguém, excepto com a tua pessoa. Não te preocupas com saber se as outras sentem também. Ninguém tem atenções para mim.
- Gosto de te ouvir falar assim, - acrescentou Joana, ironicamente. - Temos por ti mais atenções do que as que mereces. E quanto mais atenções temos mais queres...
-Como se, -declarou Ágata teatralmente, -o aumento de apetite crescesse com a sua satisfação. Shakespeare!
- Manda o Shakespeare ao diabo, - explodiu Joana impetuosamente. - É um velho imbecil que quere ser admirado por ter dito o que toda a gente sabe. Mas se tu, Gertrudes,
te queixas de que não têm atenções para contigo, o que dirias se estivesses no meu lugar, quando toda a gente me trata como uma imbecil Mas não sou tão grande
imbecil como...
- Como pareces, - interrompeu Ágata, - Já to disse dezenas de vezes, Joana, e sou feliz em verificar que adoptaste por fim a minha maneira de ver. Que preferias
tu, ser mais imbecil ainda que...
- Acaba com isso, - disse ela com impaciência. - Já mo preguntaste duas vezes esta semana.
Ficaram todas três silenciosas durante alguns segundos. Ágata meditava; Gertrudes mantinha-se carrancuda; Joana distraída e enervada. Por fim, Ágata preguntou:
- E vocês as duas sentem a inconsequência e o egoísmo do resto do mundo? Sentem ambas que são incompreendidas... quando tudo se espera de vocês e que não usam nenhuma indulgência a vosso respeito?
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- Não sei que queres dizer com esse "ambas", - respondeu Gertrudes com frieza.
- Nem eu tampouco, - exclamou Joana com cólera. E justamente assim que nos tratam. Podes rir-te, Ágata, e ela pode adoptar os seus grandes ares tanto quanto queira. Sabes bem que isto é verdade. De resto, essa da Gertrudes pretender que não têm atenções para ela é simplesmente sentimentalidade, vaidade e absurdo.
- A menina Carpenter é demasiado incorrecta, - repontou Gertrudes.
- As minhas maneiras são tão boas como as tuas, ripostou Joana. - A minha família é tão distinta como a tua,, acho eu.
- Minhas filhas, minhas filhas, - disse Ágata, em tom de reprímenda, - não esqueçam que são amigas juradas...
- Não jurámos, - emendou Joana. - Devíamos ser três amigas juradas. Eu e a Gertrudes queríamos, mas tu recusaste jurar, de modo que renunciámos à combinação..
- Perfeitamente, - respondeu Ágata. - E o resultado é que eu passo todo o meu tempo a manter a paz entre vocês as duas. Mas, voltando ao nosso assunto, posso preguntar se lhes veio alguma vez à ideia que ninguém me liga importância ?
- Vais achar ridículo o que vou dizer. Mas sabes bem fazer as coisas para que te liguem importância, - respondeu Joana, num tom sarcástico.
- Não podes dizer que eu não tenha tido atenções para ti, - disse Gertrudes, em tom de censura.
- Não quando eu te faço cócegas...
- Eu tenho atenções para contigo e não tenho cócegas....
- interpôs Joana, suavemente.
- Não ? Deixa-me experimentar,- disse Ágata, passandoum braço em torno do corpo robusto de Joana, provocando assim um misto de risos e de gritinhos.
- Ch... ch... -segredou Gertrudes. - Não vês a madre abadessa ?
A senhora Wilson acabava de entrar no aposento. Ágata, sem parecer reparar na sua presença, retirou furtivamente o braço e disse alto:
- Para que fazes tanto barulho, Joana? Vais alarmar a. casa toda.
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Joana corou de indignação mas ficou silenciosa porque os olhos da directora estavam fitos nela.
A senhora Wilson estava de chapéu e anunciou que ia a pé até Lyvern, a aldeia mais próxima. Alguma das alunas do
6.º ano desejava acompanhá-la?
Ágata saltou imediatamente do seu lugar, enquanto Joana abafava um acesso de riso.
- A senhora Wilson disse "6.º ano", menina Wylie, sentenciou a senhora Ward, que também tinha entrado. A menina não é do
6.º ano.
- Pois não, - respondeu Ágata com doçura, - mas gostava de ser, se pudesse.
A senhora Wilson voltou-se. O 6.º ano consistia em quatro raparigas estudiosas cujo objectivo na vida era, por então, um exame numa das Universidades, ou, segundo a expressão do colégio, "o Cambridge local". Nenhuma delas respondeu.
- Nesse caso, o 5.º ano, - propôs a senhora Wilson. Joana, Gertrudes e quatro outras levantaram-se e foram
colocar-se ao lado de Ágata.
- Muito bem, - concordou a senhora Wilson. - Não se demorem a vestir-se.
Deixaram sossegadamente o aposento; depois, logo que estiveram fora das vistas, precipitaram-se na escada. Ágata, ainda que desprovida de ambição para o "Cambridge local", lutava sempre com ardor pela honra de ser a primeira a chegar ao cimo da escada.
Não tardaram a voltar vestidas para o passeio e deixaram o colégio em procissão, duas a duas: Joana e Ágata à frente, Gertrudes e a senhora Wilson na cauda.
A estrada que conduzia a Lyvern atravessava vastas pastagens, outrora campos cultivados, agora abandonados aos gados - fonte de receita mais avultada para o seu dono que o braço humano por esse gado substituído. As alunas da senhora Wilson, instruídas em ciência económica, sabiam que a terra era empregada em produzir aquilo de que mais se necessitava; se todo o benefício revertia para o proprietário era isso muito natural, porque era o senhor mais importante daquelas redondezas.
Contudo esta mudança dos terrenos para pastagens tinha os seus inconvenientes, porque implicava, com efeito, a presença
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de um grande número de vacas, donde resultava que as raparigas temiam atravessar os campos; atraía um grande número de vagabundos causando-lhes medo de andar
na estrada e fazia rarear os mancebos sobre os quais pudessem exercer a arte virginal da fascinação.
O céu estava carregado de nuvens. Ágata, sem se importar de sujar de poeira as suas meias, caminhava sobre as folhas mortas com a alegria de uma criança que chapinha na água do mar; Gertrudes, pelo contrário, poisava preciosamente os seus pés e as outras caminhavam conversando em voz baixa e fazendo, de tempos a tempos, uma observação de ordem científica ou filosófica, de modo que a senhora Wilson as ouvisse e pudesse apreciar a sua cultura.
Salvo um pastor, que parecia ter assimilado qualquer coisa da natureza e da expressão do gado que apascentava, não encontraram viva alma até às proximidades da aldeia, onde, no cimo de uma elevação de terra, apareceram dois espécimes do género masculino humano nas pessoas de dois padres; um deles, alto, delgado, barbeado, com um livro debaixo do braço e o pescoço saliente na parte anterior ; o outro, de estatura média, robusto, direito, de ar agressivo e que usava pequenas suíças pretas. A sua pessoa era um protesto flagrante contra as ideias que se opõem a que um sacerdote se case, jogue o cricket, cace ou pratique os desportos dos laicos.
O que tinha a face glabra era o senhor Josephs e o seu companheiro o senhor Fairholme.
Ágata tinha pensado já na perversão bíblica destes dois nomes. E não deixou de o dizer a Joana:
- São o Faraó e o José. Este vai corar quando tu olhares para ele. O Faraó não deve corar senão quando passar ao pé da Gertrudes e já não podemos gozar a cena.
- José, dizes tu? -preguntou a Carpenter, com desdém.
- Gosta de ti, Joana. Os homens magros gostam das bonitas mulheres carnudas. O Faraó é vulgar e gosta do sangue azul em virtude do princípio da atracção dos contrários. Por isso, anda cativado pelos ares aristocráticos da Gertrudes.
- Se ele soubesse como ela o detesta!
- É muito tolo para dar por isso. De resto, a Gertrudes detesta toda a gente, até mesmo nós as duas. Ou melhor,
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não detesta ninguém em particular, é a sua própria natureza que se inclina ao desprezo, assim como a tua é de ser anafada.
- Pois bem, prefiro ser anafada a ser arrogante. Devemos saudá-los ?
- Eu cumprimento. Hei-de fazer corar o Faraó, se puder.
Os dois homens de igreja tinham simulado um interesse súbito pelo firmamento nublado como desculpa para não olharem para as raparigas antes delas se aproximarem mais.
Joana atirou uma olhadela ao José com uma perícia tal que provava a sua afirmação favorita: não era simplória como muita gente julgava. Ele corou e tirou o chapéu de feltro, mole. O Faraó saudou com um ar muito solene, porque Ágata o tinha cumprimentado com marcada gravidade.
Mas quando a sua gravidade e o seu chapéu rígido de seda atingiram o ponto mais elevado, ela lançou-lhe um sorriso trocista e ele corou também, tanto mais que estava furioso contra si próprio por ter corado.
- Já viste um par mais completo de imbecis? - murmurou Joana, rindo.
- Não têm a responsabilidade do seu sexo. Os homens dizem que as mulheres são idiotas e são-no realmente; mas, graças a Deus, não o são nunca tanto como os homens! Gostaria de voltar-me para ver passar o Faraó ao pé da Gertrudes. Mas, se ele me visse, havia de julgar que o admiro, e para vaidade já basta a que tem.
Os dois "pastores" coravam cada vez mais à medida que passavam ombro a ombro com as raparigas. A menina Lindsay não quis olhar para o lado por onde eles passavam
e a inclinação de cabeça da senhora Wilson não foi muito sincera. Nunca falava aos "pastores" e mesmo com o vigário só tinha os raros contactos que não podia evitar. Este suspeitava que ela fosse uma infiel, se bem que nenhum mortal, inclusive ele próprio, em Lyvern, tivesse alguma vez ouvido da sua boca uma palavra acerca das suas opiniões religiosas. Mas o vigário sabia que a "Ciência Moral" era ensinada secularmente no colégio e sentia que, sempre que a moral se torna uma secção da ciência, a necessidade de religião diminui proporcionalmente.
- Que vida a nossa e que buraco em que vivemos! -
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exclamou Ágata. - Encontramos duas criaturas que mais parecem dois manequins vestidos de preto que dois homens; isso constitui "um incidente sensacional" na nossa existência.
- São muito excêntricos, não há dúvida, - confirmou Joana. - Viste as grandes orelhas do José?
Chegavam nessa ocasião a um local onde a estrada atravessava uma plantação de sicomoros e castanheiros cheia de sombra. Ao penetrarem nesse espaço, um ventinho frescose ergueu, as folhas mortas agitaram-se e os ramos soltaram um suspiro lamentoso.
- Detesto este pedaço da estrada, - disse Joana apressando o passo.
- bom sítio para roubar e matar, mas já não é tão mau para abrigo se formos surpreendidas pela chuva quando voltarmos, como parece que vai acontecer, - disse Ágata, sentindo o ar soprar-lhe no rosto com indícios de que ela não se enganava. - Fico linda com o meu calçado ligeiro... Se ao menos eu tivesse trazido as minhas botas grossas, vá lá... Se chover muito, vou-me abrigar no velho chalé.
- A senhora Wilson não te consentirá que vás. É uma propriedade particular.
- Ora! Ninguém lá habita e o portão está desengonçado. Apenas pretendo abrigar-me debaixo da varanda.., não está nas minhas intenções violar a miserável habitação. Mas o proprietário conhece a senhora Wilson e não dirá nada. Olha, uma gota de chuva!
A menina Carpenter olhou para o céu e recebeu imediatamente um grosso pingo num dos olhos.
- Oh! - exclamou ela. - Vai chover a cântaros. Ficaremos encharcadas.
Ágata parou e todas se agruparam em volta dela.
- Senhora Wilson, - disse, - vai chover a bom chover.. A Joana e eu estamos mal, porque trouxemos sapatos.
A senhora Wilson deteve-se a encarar rapidamente a situação. Houve quem sugerisse que, andando depressa, podiam chegar a Lyvern antes da tempestade.
- São cerca de dois quilómetros, - disse Ágata. - Teríamos tempo de sobra para nos afogarmos.
- Então o melhor é esperar aqui debaixo das árvores.
- Os ramos estão quási nus, - disse Gertrudes com
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inquietação. - Se chover forte será pior que apanhar a chuva em cheio.
- Pior, não há dúvida, - confirmou Ágata. - Suponho que seria melhor irmos para debaixo da varanda do velho chalé. Fica a meio minuto de caminho.
- Mas não temos o direito...
Neste momento o céu enegreceu de forma tão ameaçadora que a senhora Wilson estacou para dizer:
- Suponho que continua desabitado...
- Claro que sim, - respondeu Ágata impaciente de se pôr a caminho. - Está quási em ruínas.
- Então, vamos, pelo sim pelo não, - consentiu a senhora Wilson, que não estava disposta a deixar-se prender com bagatelas com risco de apanhar uma séria constipação.
Apressaram-se e chegaram depressa a uma colina verde junto à beira da estrada. Na vertente erguia-se um chalé suíço em mísero estado, coroado por uma varanda suportada
por delgados pilares de madeira, em volta dos quais trepavam alguns pés de vinha seca. As extremidades destacadas que baloiçavam ainda depois da borrasca recente,
paravam silenciosas, como se espreitassem a chuva que se aproximava.
O acesso à estrada fazia-se por um portão gradeado de madeira grossa, que cortava uma sebe. com grande surpresa de Ágata, que, da última vez, tinha visto este portão
saído dos gonzos e apenas ligado à ombreira por uma corrente e um cadeado ferrugento, desta vez estava reparado e ostentava uma aldrava nova. Como o estado do
tempo não permitia deter-se em considerações acerca destes arranjos recentes, ela abriu a grade e subiu rapidamente a rampa, seguida pelas companheiras. A sua ascensão
terminou por uma corrida precipitada, porque a chuva caiu rapidamente em torrentes.
Quando se encontraram todas ao abrigo da varanda, deitando os bofes pela boca, rindo, falazando, ou felicitando-se por se encontrarem tão perto de um lugar para as abrigar, a senhora Wilson observou, com um certõumal estar, uma enxada tão nova como o fecho da porta, enterrada num espaço de terra que alguém tinha, evidentemente, cavado havia pouco tempo.
Ia fazer um comentário sobre este sinal de habitação do
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chalé quando a porta se abriu violentamente - o que fez a Joana soltar um gritinho - e um homem saiu precipitadamente para ir buscar a enxada. Ia metê-la dentro de casa para que não estivesse à chuva, quando notou o grupo das raparigas sob a varanda e parou, imóvel de espanto.
Era um trabalhador jovem, que tinha uma barba entr castanha e ruiva, já de uma semana. Trazia umas calças de veludo grosseiro e uma veste do mesmo tecido, com mangas de algodão. As duas peças de vestuário eram tão novas como a enxada ou a fechadura. Uma camisa azul de tecido ordinário e um lenço de pescoço de vulgar tom vermelho-laranja completavam o vestuário. Para se proteger, tinha um guarda-chuva de seda com cabo de ébano avivado a prata, de modo a fazer duvidar que tivesse obtido este último objecto por meios honestos.
A senhora Wilson sentiu-se como um garotito que é apanhado a furtar num pomar, mas ganhou ânimo e disse:
- Consente que nos abriguemos aqui até que passe a chuva ?
- Ora essa, Vossa Senhoria, - respondeu o homem, levando respeitosamente o cabo da sua enxada aos cabelos que desciam até às sobrancelhas. -Vossa Senhoria dá-me muita honra furtando-se à inclemência dos elementos debaixo do meu humilde teto de madeira.
O seu tom era bárbaro e, como um actor vulgar, parecia muito satisfeito com a sua vulgaridade. Enquanto falava, veio colocar-se no centro do grupo, para se abrigar também, e apoiou a enxada contra a parede do chalé, sacudindo a terra das suas grossas botas novas guarnecidas de grandes cardas.
- Saí, ilustre senhora, - continuou ele, muito à vontade,
- para ir buscar a minha enxada, com a qual ganho a minha vida. O que é a pena para o poeta é a enxada para o camponês.
Tirou o lenço do pescoço para enxugar a testa, como se o suor de um honesto trabalho o cobrisse, e tornou a pô-lo no seu lugar com dificuldade.
- Se permite que lho diga um homem rude, - observou ele, - Vossa Senhoria tem uma bela colecção de filhas.
- Não são minhas filhas, - respondeu a senhora Wilson, num tom indeciso.
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- Irmãs, talvez?
- Não.
- Julguei que o fossem, porque eu também tenho uma irmã. Não me atrevo a fazer comparações, mesmo para
mim, porque ela não passa de uma mulher do vulgo, como Vossa
Senhoria pode imaginar. Mas há poucas mulheres que Se elevem acima do vulgar. No último domingo, na igreja deste lugar, acolá, ouvi o padre dizer que não tinha encontrado
mais que um homem por mil, o que já não lhe aconteceu no que respeita às mulheres.
E eu pensei de mim para mim: Tens razão! Aposto que ele nunca encontrou Vossa Senhoria...
À menina Carpenter deixou escapar um frouxo de riso apenas velado por uma tossezinha.
- Aquela menina já se constipou, parece-me, - disse o homem com respeitosa solicitude.
- Julga que esta chuva dure muito tempo ? - inquiriu cortesmente Ágata.
O homem examinou durante alguns instantes o céu com o ar de quem sabe prever o tempo. Depois voltou-se para Ágata e respondeu humildemente:
- O Criador somente o pode saber. Não é um homem vulgar como eu que o pode afirmar.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual Ágata, que observava furtivamente o locatário do chalé, notou que o rosto e o pescoço do homem estavam mais limpos e menos tisnados
pelo sol que os dos trabalhadores ordinários de Lyvern. As suas mãos estavam ocultas por amplas luvas de jardinagem manchadas de pó de carvão. Os trabalhadores de
Lyvern, em geral, pouco se incomodavam com sujar as mãos e não traziam nunca luvas. Contudo, pensou ela, não há razão para que um camponês excêntrico, insuportavelmente falador e capaz de alusões à pena e ao poeta, não se permita usar luvas baratas. Mas o guarda-chuva de seda com armação de prata...
- Os olhos daquela menina, - disse ele de-repente, estendendo o guarda-chuva, -estão fixados sobre este objecto. Eu compreendo que um homem vulgar como eu não deve usar um artigo tão chique. Veio ter à minha mão por um verdadeiro acaso e seria feliz se algum cavalheiro quisesse fazer-me uma oferta razoável por ele.
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Enquanto ele falava, dois senhores, os dois padres de há pouco, muito necessitados daquele artigo, como proclamavam os paletós encharcados e colados aos seus corpos, passaram a grade a correr e dirigiram-se para o chalé. Fairholme chegou primeiro, exclamando:
- Que valente carga de ágaa!
Em seguida voltou vivamente as costas às senhoras presentes para se colocar no bordo da varanda e sacudir a água do seu chapéu. Josephs chegou depois, encolhendo-se todo para não molhar ninguém pelo contacto com o seu fato numa sopa.
Foi fazer muitas reverências diante da senhora Wilson, exprimindo a esperança de que ela tivesse escapado à tormenta.
- Até agora, sim, escapei, - respondeu ela.-Mas o que resta saber é como vamos voltar para casa.
- É apenas uma forte pancada de água, - disse Josephs enquanto levantava os olhos confiantes para a cortina de nuvens que nenhuma clareira interrompia. - Isto vai levantar, - acrescentou.
- Não fica bem a um homem vulgar opor a sua opinião à de um senhor que teia um conhecimento profissional do céu, se me permitem dizer o que penso; mas eu aposto humildemente o meu guarda-chuva contra o seu chapéu de feltro em como a chuva não pára antes das sete horas.
- Este homem mora cá, - segredou a senhora Wilson,
- e penso que deseja ver-nos pelas costas.
- Hrn...-comentou Fairholme, num grunhido.
Depois, voltando-se para o campónio, com o ar de alguém com quem não se graceja, elevou a voz e preguntou:
- Moras aqui ?
- Sim, senhor, com sua licença.
- Como te chamas ?
- Jeff Smilash, meu senhor, para o servir.
- De onde vieste ?
- De Brixtonbury, meu senhor.
- Brixtonbury? Onde fica isso ?
- Vamos, meu senhor, não sei ao certo. Se um senhor como Vossa Senhoria, que sabe "jografia" e o resto, não o poder dizer, eu ainda menos.
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- Deverias saber onde nasceste, meu rapaz. Onde está o teu bom senso?
- Onde vai um homem como eu buscar o bom senso? Aliás eu sou um enjeitado. Se calhar nunca nasci.
- Não estiveste na igreja no domingo passado?
- Não, meu senhor. Cheguei na quarta-feira.
- Está bem. Quero ver-te na igreja no próximo domingo, - terminou Fairholme num tom seco, voltando-lhe as costas.
A senhora Wilson olhou para o céu, depois para Josephs, que conversava com Joana, e finalmente para Smilash, que dava punhadas na testa sem esperar que lhe dirigissem
a palavra,.
- É capaz de arranjar um garoto para ir a Lyvern buscar um carro? Dou-lhe um xelim pelo trabalho.
- Um xelim! - replicou alegremente Smilash. - Vossa Senhoria é uma grande senhora. São precisos dois fiacres de quatro rodas. Os senhores são oito, ao todo.
- Só há um carro em Lyvern, - disse a senhora Wilson.
- Leve este cartão ao senhor Marsh, o dono dos carros de aluguer, e diga-lhe o embaraço em que estamos. Ele nos mandará quaisquer transportes.
Smilash pegou no cartão e leu-o com uma olhadela rápida. Voltou ao chalé e reapareceu sem demora vestido com uma samarra e trazendo uma capa de oleado. Desatou a correr através do campo encharcado e saltou por cima da barreira com uma elegância ridícula.
Assim que ele desapareceu tornou-se o assunto da conversa, como acontece frequentemente com os homens célebres.
- É um honrado trabalhador, - comentou Josephs. As suas maneiras são aceitáveis tendo em atenção a sua classe social.
- Não passa de um idiota, - frisou Fairholme.
- Ou de um impostor,-disse Ágata, dando mais ênfase à sua suposição com um trejeito dos olhos e dos dentes, enquanto as suas camaradas, que reprovavam as suas liberdades,
se mantinham rígidas e mudas. - Disse à senhora Wilson que tinha uma irmã e que tinha estado na igreja no domingo passado e acaba de dizer-lhe, ao senhor, que é
um enjeitado e que só chegou aqui na quarta-feira. A sua pronúncia
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é simulada e sabe ler. Não creio de modo nenhum que seja um campónio. Talvez seja um salteador vindo para roubar,as pratas do colégio.
- Ágata, - disse gravemente a senhora Wilson, - é preciso medir as palavras, sim ?
- Mas é tão evidente A sua explicação quanto ao guarda-chuva é inventada para desvanecer toda a suspeita. A forma como o maneja e se lhe apoia prova que está mais
habituado a esse objecto que àquela enxada nova com que tanto se preocupa. Além disso o seu vestuário está novo em folha.
- É facto, - observou Fairholme, - mas isso não significa grande coisa. Hoje os homens de baixa condição macaqueiam os cavalheiros em tudo. Em todo o caso vou vigiá-lo.
- Oh! muito obrigada, - disse Ágata.
Fairholme, suspeitando que ela se estava divertindo à sua custa, franziu as sobrancelhas, e a senhora Wilson olhou severamente para a trocista.
Pouco mais disseram, salvo quanto às probabilidades manifestamente exíguas - de que a chuva cessasse até ao momento em que se viram, por cima da sebe, o alto de um fiacre, o de uma carreta fúnebre desmantelada e três chapéus escorrendo água.
Smilash estava sentado na almofada da carreta fúnebre ao lado do cocheiro. Quando a carruagem parou, desceu, entrou de novo no chalé sem dizer palavra, saiu com o guarda-chuva que abriu para abrigar a senhora Wilson, e disse:
- Se Vossa Senhoria me quiser acompanhar, levo-a sem se molhar até à carruagem, e, de seguida, levarei uma a uma as suas ilustres sobrinhas.
- vou em último lugar, - respondeu a senhora Wilson, irritada de que o grupo pudesse ser tomado por membros da mesma família. - Gertrudes, acho que deve ser a primeira.
- com licença, - disse Fairholme avançando e tentando apoderar-se do guarda-chuva.
- Muito agradecida, não se incomode, - disse a rapariga em tom glacial, caminhando ligeiramente através do terreno molhado, enquanto Smilash mantinha o guarda-chuva
42 aberto sobre a cabeça da educanda com uma solicitude cheia de ostentação.
Do mesmo modo acompanhou as outras raparigas até aos veículos, nos quais elas se acomodaram com alguma dificuldade.
Ágata, que vinha em penúltimo lugar, deu-lhe três moedas de péni.
- A menina tem o coração nobre e o olhar expressivo,
- disse ele, aparentemente sensibilizado. - Que Deus a abençoe. Que Deus a abençoe...
Foi buscar Joana, que escorregou sobre a erva molhada e caiu, empregando toda a sua força para a ajudar a erguer-se.
- Espero que não se tenha encharcado muito, menina,
- disse ele. - Para a sua idade está uma esplêndida rapariga. Talvez oitenta quilos, não ?
Joana corou e apressou-se a alcançar o fiacre onde estava Ágata. Mas a carruagem estava cheia e Joana, contra vontade, não teve remédio senão encaminhar-se para
o outro veículo, reduzindo consideràvelmente o espaço reservado à senhora Wilson, que Smilash tinha ido buscar.
- Agora minha senhora, tome cuidado em não cair. Venha.
A senhora Wilson, fingindo não reparar no convite, tirou um xelim da sua bolsa.
- Não, minha senhora, - disse Smilash com ar virtuoso.
- Sou um homem honrado e nunca vi o interior de uma prisão, salvo quatro vezes, e duas delas, somente, por ter roubado. A sua filha mais nova, a que tem o olhar repreensivo, já me deu mais do que convém dar a um homem como eu.
- Eu já disse que estas meninas não são minhas filhas,
- replicou a senhora Wilson, em tom irritado. - Porque não dá atenção ao que se lhe diz?
- Não seja severa para um homem vulgar, minha senhora, - replicou Smilash, em tom submisso. - Aquela menina deu-me três meias-coroas.
- Três meias-coroas! - exclamou a senhora Wilson, pasmada de uma tal extravagância.
- Abençoada seja a sua inocência. Ela não sabe o que convém dar a um homem da minha espécie. Mas não quero
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roubar a pequena, e só fico com uma das moedas se Vossa Senhoria der licença. Os outros cinco xelins dou-os a Vossa Senhoria para os guardar para a menina. Já notou que ela, tem o olhar expressivo? ,
- É absurdo o que me pede. Você faria melhor em guardar o dinheiro na sua mão, visto que é seu.
- O quê ? Vender por cinco xelins a alta opinião que Vossa Senhoria faz de mim ? Não, ilustre senhora, nessa não caio eu. As últimas palavras que meu pai me disse, foram...
- Mas você disse há pouco que é um enjeitado, - atalhou Fairholme. - Que devemos acreditar ?
- Isso é verdade, meu senhor, mas só do lado de minha mãe. Sua Senhoria ficará com o dinheiro, se quiser, porque eu não o quero guardar. Sou da classe mais baixa, portanto não tenho palavra. Mas quando me disponho a fazer qualquer coisa agarro-me a isso como se fosse de visco.
- Fique com o dinheiro, - disse Fairholme à senhora Wilson. - Pode fazê-lo sem escrúpulo. É ridículo dar sete xelins e meio a este homem pelo que ele fez. Isso só serviria para o encaminhar para a taberna.
- O reverendo diz bem, minha senhora. Graças à moeda que eu guardo, fico à vontade, ainda que em aperto, até domingo de manhã, e não desejo mais nada.
- Basta de palavriado, meu rapaz, - disse Fairholme, tomando as duas moedas que Smilash lhe apresentava e dando-as à senhora Wilson. Esta deu a boa tarde aos dois "pastores" e encaminhou-se para a carruagem.
- Se Vossa Senhoria tiver necessidade de um homem hábil para uma ajuda lá no colégio, espero que se lembre de mim, - disse Smilash, descendo a rampa.
- Então você sabe quem eu sou ? - inquiriu secamente a senhora Wilson.
- Toda a gente nestes sítios vos conhece e vos adora. Há pouca gente tão hábil como eu em moeda falsa; se Vossa Senhoria tivesse necessidade de uma medalha de bom
comportamento ou para outro fim, creio que lhe daria toda a satisfação com o meu trabalho. £ se desejar umas rendas passadas aos direitos...
- Você faria melhor em não se meter nesses assuntos,
- disse a senhora Wilson, com severidade. - Diga ao cocheiro para se pôr a caminho.
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Os veículos partiram e Smilash tomou a liberdade deagitar o seu chapéu. Em seguida voltou ao chalé, deixou o guarda-chuva no interior, voltou a sair, fechou a porta à chave, meteu a chave na algibeira e afastou-se debaixo de chuva, descendo a colina sem se importar absolutamente nada com o pasmo dos dois "pastores".
Durante este tempo, a senhora Wilson, incapaz de conservar-se silenciosa sobre a extravagância de Ágata, falou do caso às pequenas que seguiam,com ela na mesma carruagem. Mas Joana declarou que Ágata não tinha consigo mais de três dinheiros, de maneira que lhe seria completamente impossível dar àquele homem quási trinta vezes mais.
Quando chegaram ao colégio e mandada à presença da senhora Wilson, Ágata abriu muito os olhos e exclamou a rir:
- Eu só lhe dei três dinheiros e ele manda-me um presente de quatro xelins e três dinheiros!
IV
No colégio dAlton, o sábado era nominalmente um dia de meio feriado, mas, na realidade, era um dia de feriado completo. Os cursos de ginástica, de dança, de elocução e de desenho, faziam-se de manhã. A tarde era consagrada ao ténis, para o qual eram convidadas as senhoras da vizinhança que podiam levar os seus maridos, irmãos e pais.
A senhora Wilson preocupava-se com lançar na sociedade as suas alunas libertadas daquela rigidez selvagem das colegiais não habituadas à vida mundana.
Pelos fins de Outubro, houve um sábado que nada se pareceu com um feriado para a senhora Wilson. Â uma horae meia, terminado o almoço, saiu para se dirigir a um espaço arrelvado situado entre o lado sul do colégio e uma plantação de arbustos. AH encontrou um grupo de alunas que se entretinham vendo Ágata e Joana a puxar um cilindro sobre a erva. Uma delas, ao lançar com a sua raqueta uma bola ao ar, atirou-a por acaso para os arbustos, de onde,, com grande surpresa das raparigas, emergiu Smilash um momento depois, trazendo a bola. Piscava um dos olhos-
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e declarou que, apesar de ser um homem vulgar, os seus olhos não eram nem de pau nem de pedra. Estava vestido como anteriormente, mas o seu vestuário, sujo de barro e de cal, já não tinha o aspecto de novo.
- Que vem fazer para estes lados ? - preguntou a senhora Wilson.
- Veio-me à ideia que Vossa Senhoria precisava falar-me, - respondeu ele. - O moço do padeiro disse-mo esta manhã, ao passar diante da minha humilde cabana. Julgo que não era capaz de me enganar.
- É facto que o mandei chamar. Mas porque não deu a volta para entrar pela porta de serviço?
-Andava à procura dela, minha senhora, quando esta bola me apanhou num olho. Uma pancada forte nos olhos prejudica a visão e a expressão e dá às pessoas o ar de
um salteador.
- Ágata, - disse a senhora Wilson, - venha cá.
- As minhas homenagens, menina, - disse Smilash, tocando a mecha de cabelos da testa.
- Este é o homem dos cinco xelins que disse ter recebido da sua mão. É verdade?
- Certamente que não. Só lhe dei três dinheiros.
- Mas eu mostrei o dinheiro a Vossa Senhoria, - disse Smilash, torcendo o chapéu com ar agitado. - E dei-lho. Onde é que um homem como eu iria buscar cinco xelins
senão à generosidade dos ricos e dos nobres ? Se a menina entende que eu não devia guardar a outra moeda de meia coroa, não tenho dúvida em que ela me seja descontada no meu salário se me derem trabalho aqui. Mas...
- É absurdo, - disse Ágata. - Nunca eu lhe dei três moedas de meia coroa.
- Pode ter-se enganado. As moedas de péni parecem-se um pouco com as de meia coroa e o dia estava muito escuro...
- Não é possível, - replicou Ágata. - Joana teve o meu porta-moedas consigo durante toda a primeira parte da semana e pode testemunhar que não havia lá mais que moedas de péni. A senhora directora sabe que eu recebo o dinheiro no princípio do mês. Nunca me dura mais de uma semana. Essa ideia de ter ainda três meias coroas no dia dezassete é ridícula...
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- Mas seja juiz da questão, menina, é lá coisa que se compreenda que um pobre trabalhador como eu dê dinheiro que não recebeu ? Seria duas vezes mais ridículo...
- Tudo o que eu sei dizer, - protestou ela, - é que não fui eu que lho dei. com certeza que as minhas moedas de péni se transformaram na sua algibeira em meias coroas.
- Talvez, - disse gravemente Smilash.-Tenho ouvido dizer e sei que é verdade, que o dinheiro nasce nas algibeiras dos ricos. Porque não há-de nascer nas algibeiras dos pobres ? Como é que surpreende uma coisa tão simples ?
- Você tinha dinheiro consigo, nesse momento ?
- Onde iria eu buscá-lo, o dinheiro ? Peço perdão da audácia de fazer preguntas.
- Não sei onde o íoi buscar, - replicou a senhora Wilson com nervosismo. - O que lhe pregunto é se o tinha consigo...
- Isso - não me lembra bem. Verdade que não me lembra. Não quero iludir Vossa Senhoria.
- Então enganou-se, - disse a senhora Wilson, estendendo-lhe o dinheiro na mão. - Aqui está. Se não é seu, também não é nosso. O melhor é guardá-lo.
- Guardá-lo? Oh, minha senhora, isso é o cúmulo da nobreza. Que fiz eu para merecer a sua generosidade, ilustre senhora?
- Não é generosidade nenhuma. Dou-lhe este dinheiro porque não é meu e, creio, só a si deve pertencer. Você parece ser um simplório.
- Muito obrigado a Vossa Senhoria. Acho que sou. Quanto ao trabalho, a senhora pensa dar que fazer a este pobre homem ?
- Não, obrigada. Não tenho ocasião de utilizar os seus serviços. vou dar-lhe também o xelim que lhe prometi por ter ido chamar os carros. Aqui está.
- Outro xelim I - exclamou Smilash, estupefacto.
- Sim, - disse a senhora Wilson, que começava a irritar-se. - E não se fala mais nisso. Não compreende que o ganhou ?
- Eu sou um homem vulgar e, como diz o outro, não compreendo nada, - disse ele, com respeito. - Mas se Vossa Senhoria quisesse dar-me um dia de trabalho, para me
ajudar a viver, eu poderia pôr todo este dinheiro num
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mealheiro que tenho em casa e guardá-lo para quando a doença ou a velhice me deitassem o dente, se posso dizer assim. Eu sei alisar bem esta erva... as meninas vão-se
cansar com o cilindro, que é pesado... Se se trata de ténis; sei esticar a rede, tão bem que pode apanhar pássaros do paraíso e traçar linhas a cal tão direitas que se pode marcar sobre elas um triângulo equilátero. Eu sou honesto quando me vigiam e sei servir tão bem como o criado de mesa do Lorde Mayor, de Londres.
- Não o posso empregar sem tomar informações a seu respeito, - replicou a senhora Wilson, divertida com as citações do homenzinho e preguntando a si própria onde teria ele respigado aquela sabedoria.
- Tenho a melhor reputação, minha senhora. O reverendo reitor conhece-me desde a infância.
- Falei-lhe de você, ontem, - respondeu a senhora Wilson, olhando-o fixamente,- e ele informou-me que nunca o viu nem pintado.
- Os grandes senhores são tão esquecidos! - disse tristemente Smilash. - Mas eu falava do reitor dos meus sítios, quero dizer o reitor da rainha aldeia natal, que
é Auburn. "Encantadora Auburn, a mais bela aldeia da planície", como dizia certo poeta.
- Não foi esse o nome que você deu ao senhor Fairholme. Já não me lembro bem, mas não foi Auburn. Demais, nunca ouvi falar de sítio que tenha esse nome.
- Nunca leu o que se refere à encantadora Auburn ?!
- Nem em nenhuma geografia nem em nenhum dicionário geográfico. Lembra-se de me ter dito que tinha estado na prisão?
- Ora, só foram seis vezes, - acentuou Smilash cujo rosto se contraiu convulsivamente. - Não seja muito severa para um homem grosseiro. Seis vezes, só, e sempre por beber... Mas fiz o juramento de desprezar o vinho e tenho-o cumprido há dezoito meses.
A senhora Wilson classificou logo esse homem como um destes campónios manhosos e um tanto desequilibrados, chamados desdenhosamente "originais", que se tornam involuntariamente populares lisonjeando o bom senso intelectual das pessoas cujas faculdades são mais bem adaptadas às circunstâncias.
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- Você tem fraca memória, Smilash. Nunca é capaz de contar uma coisa da mesma forma duas vezes seguidas.
- Eu tenho bem a consciência que não me exprimo com exactidão. As senhoras e os cavalheiros têm um tal domínio da palavra que podem sempre dizer o que querem, mas um homem vulgar como eu não o sabe fazer. As palavras não acodem naturalmente. Têm mais pensamentos que palavras e as palavras quando vêm não dizem com os pensamentos. Posso pegar no cilindro e tornar-me útil por alguns dinheiros ?
A senhora Wilson, que esperava mais visitas que as habituais dos sábados, considerou a proposta do homem e consentiu.
- E lembre-se, - acrescentou ela, - de que, como você é um estranho nestes sítios, a sua reputação em Lyvern dependerá da sua conduta nesta ocasião.
- Estou muito reconhecido a Vossa Senhoria. Possa a sua bondade coser o buraco da algibeira em que eu trago a minha reputação e que é a causa de eu a ter perdido
muitas vezes ! É mau sítio para trazer a reputação, mas é a moda. E eu grito: Viva o nosso glorioso século XIX!
Tirou a blusa, apoderou-se do cilindro e pôs-se a arrastá-lo com uma energia totalmente em oposição com os movimentos compassados do trabalhador profissional.
A senhora Wilson olhou-o com indecisão mas, estando com pressa, regressou ao colégio sem mais comentários. As alunas, desconfiadas com a excentricidade do homem,
mantinham se a distância.
Ágata, pelo seu lado, tomou o partido de o ver ainda uma vez de mais perto. com a raqueta na mão, atravessou lentamente a zona arrelvada e aproximou-se dele no momento em que, inconsciente da sua aproximação, ele fazia ouvir um rosnar de fadiga e se sentava para repousar.
- Já fatigado, senhor Smilash? - disse ela em tom de troça.
Ele ergueu a cabeça com lentidão, tirou uma das luvas de pel.e lavável com a qual se abanou descobrindo uma fina e branca mão, e respondeu no tom e com a pronúncia de um homem de sociedade :
- Muito fatigado.
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Ágata teve um movimento de recuo. Ele continuava a abanar-se sem o menor embaraço.
- O senhor... o senhor não é um trabalhador, - afirmou ela, por fim.
-.Claro que não.
-Era o que eu pensava.
Ele fez um sinal de assentimento.
- Suponha que eu faço essa revelação, - disse ela, tomando uma atitude mais confiada ao lembrar-se de que nãorestava só com ele.
- Se o fizer hei-de tirar-me de dificuldades como já fiz com as moedas e a senhora Wilson acabará por acreditar que a menina não está boa da cabeça.
- Então sempre é verdade que não lhe dei sete xelins e meio, - exclamou ela, aliviada.
- Nem pense nisso! - disse ele tirando da algibeira três moedas de péni e fazendo-as tilintar na mão. - Como se chama?
- Não interessa, - respondeu Ágata, com dignidade. Smilash ergueu os ombros.
- Talvez tenha razão, - concordou ele. - Eu também não lhe digo o meu se mo preguntár.
- Não tenho a menor intenção disso.
- Não ? Então Smilash basta para si, assim como Ágatabasta para mim.
- Tenha cuidado.
- com quê ?
- com o que diz... Não tem receio de ser descoberto ?
- Já o fui pela menina e não me aconteceu mal algum.
- E se a polícia dá consigo ?
- Não há perigo. Eu não me oculto da polícia. Tenho o direito de vestir de veludo ordinário desde que o prefira aos tecidos finos. Veja que vantagens isso me dá. Já me proporcionou entrar no Colégio dAlton e o prazer de a conhecer. Desculpe que continui com o meu trabalho para salvar as aparências. Posso falar enquanto trabalho...
- Sim, se gosta de solilóquios, - replicou ela voltando-se enquanto ele se levantava.
- Oiça, Ágata, não deve falar de mim às outras meninas.
- Não me chame Ágata;-censurou ela impetuosamente.
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- Então como devo chamar-lhe ?
- Não tem precisão nenhuma de se me dirigir.
- Tenho e quero. Não seja ruim.
- Mas eu não o conheço. Admiro o seu...
Hesitou sobre a palavra que tinha na boca mas, incapaz de pensar noutra melhor, serviu-se dela:
- ...o seu desplante. Smilash pôs-se a rir e Ágata seguiu-o com os olhos enquanto ele dava duas voltas com o cilindro. Num dado momento, tendo lançado um olhar para ela, surpreendeu-a
a fitá-lo e sorriu-lhe. O seu sorriso foi vulgar comparado com o que ela lhe dirigiu e que iluminou simultaneamente os seus olhos, os dentes e o grão doirado da sua pele. Parou imediatamente o rolo e descansou o mento sobre o cabo.
- Se o senhor se descuida do seu trabalho, - disse. Ágata, maliciosa, - esta petouse não estará pronta quando chegarem os convidados.
- Que convidados ?
- Muitos. Talvez gente que o conhece. Alguns vêm de Londres: o meu tutor, a minha tutora, a filha deles, minha mãe e quási uma centena de outros.
- Quatro ao todo. E para que vêm ? Para visitá-la ?
- Para me levarem, - respondeu Ágata, espiando qualquer sinal de desapontamento da parte dele.
Imediatamente esses sinais se manifestaram.
- Porque diabo querem eles levá-la ? - preguntou ?Smilash. - A sua educação já terminou ?
- Não. Comportei-me mal e vou ser expulsa. Smilash .pôs-se a-rir de novo.
- Vamos lá - disse ele, - começa a inventar à maneira smilashesca. Que fez a menina?
- Não tenho razões para lho dizer. E o senhor, que fez ?
- Eu não fiz nada de reprovável. Sou apenas um homem pouco romanesco, que se oculta para fugir a uma senhora romântica e apaixonada.
- Pobrezinha - disse Ágata sarcàsticamente. - Provavelmente ela ofereceu-lhe a sua mão e o senhor recusou...
- Pelo contrário, fui eu quem lhe ofereceu a minha mão e ela aceitou. E é por isso que me escondo.
- O senhor conta histórias de um modo encantador, -
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troçou Ágata. - Até mais ver. Aí vem a menina Carpenter para ouvir o que estamos a
dizer.
- Até mais ver. Esta história da sua expulsão... Pode um homem vulgar ter a liberdade de preguntar onde está a máquina de branquear, minha menina?
Esta pregunta era dirigida a Joana, que se tinha aproximado com outras colegas. Ágata admitia que Smilash não devia tardar a ser descoberto, tão transparente lhe
parecia agora o seu disfarce e preguntava a si própria como era possível que as outras se deixassem lograr.
O soar das duas horas lembrou-lhe a entrevista, que não devia tardar, com o seu tutor.
Um estremecimento a sacudiu, ao mesmo tempo que sentia a ardente necessidade de se refugiar em qualquer esconderijo solitário à espera de que a chamassem.
Mas era ponto de honra para ela aparentar indiferença em face do seu aborrecimento e decidiu-se a ficar com as colegas, rindo e conversando enquanto observava Smilash, que marcava cuidadosamente os traços a cal e esticava a rede.
Fez rir as outras estimulada pela sua excitação interior, que os impulsos irreprimíveis do medo aguçavam ao mesmo tempo que o romance do disfarce de Smilash lhe
dava uma sensação de sonho. A sua imaginação arquitectava já o drama de que ela seria a heroína e Smilash o herói, se bem que, com o homem real sob os olhos, ela não podia deixar-se levar a atribuir-lhe tanta grandeza sombria de carácter como a uma personagem inteiramente ideal. A intriga era simples e acarinhada havia já muito tempo. Uma das personagens, amava a outra e morria com o coração esmagado, porque a sua paixão, não era partilhada.
Ágata, pronta a ridicularizar a sentimentalidade das suas colegas e dotada de um espírito de chiste contagioso, encontrava um secreto prazer na volúpia imaginária de visões de desespero e de morte; e, muitas vezes, experimentava a mortificação do clown festejado que se julga fadado para trágico só porque o público se torce de riso. Havia uma boa parte da sua natureza própria, ela bem o sentia, que não encontrava a sua exacta expressão na cena por ela tão bem executada do soldado na chaminé.
Pelas três horas, os visitantes locais tinham chegado e os
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jogos de ténis seguiam o seu curso sobre quatro terrenos de jogo cilindrados e preparados por Smilash.
Os dois vigários lá estavam, assim como alguns cavalheiros de profissões laicas. A senhora Miller, o vigário, algumas mães e outras damas acompanhantes de meninas seguiam os jogos tomando ligeiros refrescos, trazidos em bandejas por Smilash, que tinha envergado um grande avental branco e se tornava oficiosamente útil.
As três horas e um quarto, um recado da senhora Wilson convidou a menina Wylie a ir à sala de visitas. Os visitantes não souberam explicar a súbita distracção manifestada pelas jogadoras logo a seguir à saída de Ágata. Joana quási se pôs a chorar e respondeu azedamente a Josephs quando cie lhe preguntou inocentemente o que a afligia. Ágata afastou-se sem inquietação aparente, ainda que a mão lhe tremesse ao poisar a raqueta.
Encontrou sua mãe no espaçoso salão sobre a fachada norte do colégio. Era uma senhora magra, vestida com os trajos da viuvez, de cabelos de um castanho desbotado e olhos lacrimejantes. Junto dela estavam a senhora Jansénio e sua filha. As duas senhoras mais idosas ficaram severamente silenciosas, enquanto Ágata as beijava e a senhora Wylie fungava. Henriqueta beijou Ágata com efusão.
- Onde está o tio João ? Não veio? - preguntou gata.
- Está no aposento ao lado com a senhora Wilson, respondeu friamente a senhora Jansénio.-Vão-te chamar dentro de instantes.
- Dir-se-ia que morreu alguém! - exclamou Ágata.- Estão todos com cara de enterro... Ouve, mamã, mete o teu lenço na algibeira. Se choras desse modo, direi à senhora Wilson o que penso por ela te aborrecer dessa maneira.
- Não, não, não faças tal, - pediu a senhora Wylie, alarmada. - Tem sido tão
gentil.
- Tão boazinha - ajuntou Henriqueta.
- Tem sido perfeitamente razoável e amável,- confirmou a senhora Jansénio.
- Tem sido tudo isso, - aceitou Ágata com deferência.
- E podem fazer uma ideia do que ela será com um ataque de nervos?
- Ágata, - intimou a senhora Wylie, - não sejas nem casmurra, nem absurda.
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- Oh! Ela não há-de ser nem uma nem outra coisa,, tenho a certeza, -
atalhou Henriqueta, com meiguice. Não é assim, querida Ágata ?
- Podes fazer o que te apetecer, pouco me importa, disse a senhora Jansénio. - Mas espero que terás suficiente bom senso para abandonar esse teu feitio de menina
estouvada.
- Tua tia tem toda a razão, - sentenciou a senhora Wylie. - E teu tio João está muito descontente contigo.
As armas questão com a senhora Wilson nunca mais ele te
fala.
- O tio João está descontente, - disse Henriqueta, mas deseja absolutamente que te conduzas bem.
- Ficará desapontado se persistires em proceder como uma tonta, - continuou a senhora Jansénio.
- Tudo quanto a senhora Wilson deseja é que apresentes as tuas desculpas pelos horrores que escreveste no seu livro, - informou a senhora Wylie. - Desculpas-te,
não é verdade, queridinha ?
- Está claro que sim, - insinuou Henriqueta.
- É o que de melhor tens a fazer, - aconselhou a senhora Jansénio.
- Talvez seja assim, - concordou Ágata.
- E é mesmo, queridinha, - suplicou a senhora Wylie tomando-lhe a mão.
- Mas talvez assim não seja... - emendou Ágata.
- É sim, queridinha, - insistiu a mãe, tentando atraí-la a si, apesar da resistência passiva oposta pela rapariga. Para dar prazer à tua mãe, Ágata, promete. Não me recusas, isso,, pois não ?
Ágata riu com indulgência olhando para sua mãe que, havia algum tempo, tinha adoptado aquela forma de súplica carinhosa. Depois, voltando-se para Henriqueta, disse:
- Como vai o teu caro sposo ? Não foi bonito da tua parte esqueceres-te de mim como dama de honor.-
Acentuou-se a vermelhidão da face de Henriqueta. A senhora Jansénio apressou-se a interpor uma palavra seca para lembrar a Ágata que a senhora Wilson estava à espera dela.
- Oral que espere,-replicou ela.- com certeza neste momento está pensando que estão tentando por todas as formas conduzir-me a um estado de espírito conveniente.
É o que ela combinou convosco antes de deixar esta sala.
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A mamã sabe que eu tenho um dedo que adivinha tudo. Devo no entanto dizer-lhes que, até agora, não conseguiram tornar-me melhor. Mas, como o pobre tio João deve estar atemorizado e pouco à vontade, devo pôr fim ao seu suplício. Até já.
Saiu sem se apressar. Empurrou ainda a porta para prevenir :
- Preparem-se para qualquer coisa de arrepiante. Sinto uma vontade irreprimível de dizer as coisas mais horríveis...
Desapareceu de vez e logo a seguir sentiu-se que ela batia na porta vizinha.
O senhor Jansénio esperava-a, com efeito, com apreensão. Tendo descoberto, havia muito tempo, no decurso da sua carreira, que a sua pessoa impregnada de dignidade e a sua bela voz causavam um certo temor às outras pessoas e como o apontavam para presidir às reuniões públicas, tinha-se habituado de tal modo ao respeito dos outros que tudo quanto fosse familiaridade ou desrespeito o desconcertava, excessivamente.
Ágata, pelo seu lado, tendo desde a infância visto apontar o tio João como o símbolo da sabedoria e da autoridade, dera-se a troçá-lo, desde a mais tenra idade, na sua qualidade de negociante pomposo e orgulhoso do seu dinheiro, cujo espírito sórdido era incapaz de compreender os negócios transcendentes de sua sobrinha.
Tinha adquirido o hábito de atemorizar a mãe ridicularizando o tio com o desprezo absoluto de que só são capazes a infância e a extrema ignorância.
Sentia-se humilhada pela liberalidade do tio para com ela quando lhe trazia presentes e, rebelde como era, não atendia os seus conselhos nem a sua autoridade, de onde ela tinha tirado a conclusão que sabia olhar o sol de frente. Resultou de ali que o tio tinha um pouco medo dela sem ter bem a consciência disso e que Ágata, ao contrário, não tinha medo algum, dele e tinha a consciência de que assim era.
Quando Ágata entrou com o seu mais alegre sorriso nos lábios, a senhora Wilson e o senhor Jansénio,. sentados junto da mesa, tinham um pouco a aparência de dois culpados, a cujo julgamento se vai proceder.
A senhora Wilson esperou que o senhor Jansénio falasse por respeito pela sua imponente pessoa. Mas ele
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não estava ainda pronto para falar e convidou Ágata a senr
tar-se.
- Obrigada, - disse ela, com doçura. - Tio João, já não me conheces?
- Soube com desgosto, pela senhora Wilson, que causaste aqui bastantes aborrecimentos, - começou ele, sem fazer caso da pregunta da sobrinha, embora secretamente perturbado.
- É verdade, - confessou Ágata, com ar contrito. Estou desolada por isso.
O senhor Jansénio, que esperava uma explosão de revolta, segundo o que lhe dissera a senhora Wilson, olhou para esta com surpresa.
- A menina parece acreditar, - disse a senhora Wilson, consciente e aborrecida pelo movimento do senhor Jansénio, - que pode continuamente transgredir o regulamento e em seguida fazer-se perdoar, dizendo que lamenta o que fez. (À senhora Wilson nunca falava das faltas cometidas contra a sua autoridade pessoal, mas sempre contra as que implicavam com a comunidade da escola). A menina falou num tom muito diferente por ocasião da nossa última conversa.
- Estava furiosa nessa ocasião, minha senhora. Julgava ter as minhas razões de queixa... toda a gente julga tê-las. Além disso, nós estávamos a ponto de discutir uma com a outra - pelo menos eu estava - e perco sempre a cabeça quando discuto. Estou, na verdade, desolada com o que aconteceu.
- O livro é coisa muito séria, - afirmou gravemente a senhora Wilson. - A menina parece não ter a consciência disso.
- Eu compreendo que Ágata sinta neste momento que se conduziu mal no que respeita ao livro e que ela o lamente,- disse o senhor Jansénio, inclinando-se instintivamente para o lado de Ágata como sendo o mais forte e dependendo menos dele sob o ponto de vista pecuniário.
- Viste o .livro, tio João ? - preguntou Ágata, com vivacidade.
- Não. A senhora Wilson contou-me apenas o que se passou.
- Então eu vou buscá-lo, - exclamou ela, levantando-
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-se. - O tio João vai rir a bandeiras despregadas. Posso ir, minha senhora?
- Vê ? - interpôs a directora com indignação. - E desta incorrigível irreflexão que eu me queixo. E quando não é isto, é franca insubordinação.
Jansénio também estava escandalizado. A sua bela tez avermelhou só à ideia de que ele pudesse rir a bandeiras despregadas.
- Basta, basta! - impôs o tio. - Devias ser mais séria e mais respeitosa para com a senhora Wilson. Já tens idade bastante para te comportares convenientemente, Ágata...
A alegria da rapariga sumiu-se.
- Que disse eu ? Que fiz ? - preguntou, ao mesmo tempo que nas suas faces aparecia uma fraca vermelhidão.
- Falaste com indiferença do... do volume, ao qual a senhora Wilson liga uma grande importância, e com razão.
- Se é com razão, como é que cometi uma falta?
- Vamos, vamos, - gritou o senhor Jansénio, já encolerizado como último recurso para a submeter, - não seja impertinente, menina.
Os olhos de Ágata fuzilaram, passaram-lhe nas faces e no pescoço furtivas vermelhidões e o seu tacão bateu no sobrado com violência.
- Tio João, - exclamou ela, - se ousa falar-me desse modo nunca mais olho para si, nunca mais lhe falo e nunca mais entro na sua casa. Que conhece o senhor das boas maneiras para me chamar impertinente? A sua grosseria propositada não me fará submeter. Foi assim que nos zangámos, a senhora directora e eu. Disse-me que eu era impertinente, exaltei-me e respondi-lhe que não tinha razão. Fiz mais: escrevi isso mesmo no livro das culpas. Não teve razão absolutamente nenhuma e eu já lho teria dito antes se não desejasse reconciliar-me com ela e esquecer o passado. Mas se ela quere absolutamente continuar a discussão eu não estou disposta a questionar.
- Eu já expliquei, senhor Jansénio, - disse a senhora Wilson, concentrando o seu ressentimento num esforço para o suprimir, - que a menina Wylie desdenhou todas as ocasiões que se lhe ofereceram para se reintegrar por si própria no bom caminho. A senhora Miller e eu não insistimos
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nunca sobre considerações puramente pessoais e,, quanto a mim, nunca exigi mais que um simples reconhecimento da ofensa feita ao colégio e seu regulamento.
- Importo-me tanto com isso como com a senhora Miller,
- respondeu Ágata, dando estalos com os dedos. - Quanto à senhora, não é o que eu julgava quanto a bondade. Nem metade.
- Ágata, - interveio o senhor Jansénio, - peço-te que te cales.
Ágata soltou um grande suspiro, sentou-se com ar resignado e disse:
- Pronto! Já acabei. Zanguei-me. Já todos três no zangámos. Estamos quites.
- A menina não tem o direito de se encolerizar, emendou o senhor Jansénio, julgando ter certa vantagemque era apenas imaginária.
- Sou a mais nova e a que menos censura merece, replicou ela.
- É melhor ficarmos por aqui, senhor Jansénio, - propôs a senhora Wilson, em tom decidido. - Lamento que a menina Wylie tenha querido romper connosco.
- Mas eu não rompi convosco e acho até duro ser expulsa. Ninguém aqui me provoca senão a senhora e a. senhora Miller. Esta última ficou contrariada porque, por erro seu, me tomou pelo gato, como se a culpa fosse minha. E a senhora, não vejo razão para estar tão zangada comigo. Todas as alunas vão acreditar, se eu for expulsa, que pratiquei qualquer acto infame. Eu devia ficar até ao fim do trimestre; e quanto ao Registo Angé... quanto ao livro das culpas, a senhora disse-me quando eu vim para cá que eu podia escrever nele, ou não escrever, tudo o que eu quisesse e que não impunha nunca a sua vontade nem se incomodava com as nossas confissões escritas. E, apesar disso, a primeira vez que escrevo ali uma palavra que a senhora reprova, sou expulsa. Ninguém mais acreditará que pode escrever nesse livro voluntariamente.
A consciência da senhora Wilson, já abalada pela grosseria e ausência de força moral das palavras: "Á menina, é impertinente" saídas da boca do senhor Jansénio, alarmou-se de novo.
- O livro das culpas,- disse ela,-serve para registar
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somente as censuras que cada uma faz a si própria, mas não serve de veículo às acusações que atingem as outras.
- Estou perfeitamente certa de que nem a Joana, nem a Gertrudes, nem eu, fizemos a nós próprias a menor censura por termos descido pelo corrimão e, contudo, a senhora não nos acusou por termos escrito isso no livro. Aliás, o livro representava a força moral - pelo menos a senhora sempre o disse - e quando renunciou à força moral, pensei que era preciso que isso fosse registado. Evidentemente eu estava muito encolerizada nesse momento, mas, quando serenei, entendi que tinha feito bem e ainda o entendo. No entanto, talvez valesse mais deixar isso no esquecimento.
- Porque afirma que eu renunciei à força moral ?
- Dizer às pessoas que deixem o aposento não é força moral. Chamar-lhes impertinentes também não é força moral.
- Então a menina parte do princípio que eu devo ouvir pacientemente tudo o que lhe apetece dizer-me, mesmo as inconveniências? Acha isso bem da parte de uma pessoa da sua posição, vis-à-vis de uma pessoa da minha?
- Mas eu nada disse de inconveniente, - replicou a educanda.
Depois, interrompendo-se com agitação e de novo sorridente, continuou:
- Não continuemos a discutir! Lamento infinitamente o que fiz, fui muito enfadonha, gosto de si e do colégio. E não volto no próximo trimestre se assim o deseja.
- Ágata, - disse a senhora Wilson, abalada, - essas expressões de amizade custam-lhe pouca coisa e, quando já
-fizeram o efeito procurado, são tão depressa "esquecidas" por si, que já não me satisfazem.
É contra vontade que eu insisto para que nos deixe imediatamente. Mas,
como o seu tio disse, a menina tem já idade suficiente e senso bastante para saber distinguir a ordem da desordem. Até ao dia de hoje a menina tem estado do lado da desordem, elemento que era desconhecido entre nós antes da sua chegada, como a senhora Tréfusis pode testemunhar. No entanto, se a menina promete tornar-se mais comedida para o futuro, eu passo por cima de toda a razão de queixa e no fim do trimestre decidirei se é conveniente que continui connosco. Ouvindo estas palavras, Ágata levantou-se radiante.
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- Querida senhora Wilson, como é boa I Prometo o que me pede. vou anunciar a boa nova à mamã.
Antes que eles pudessem acrescentar uma palavra, Ágata tinha-se voltado com uma pirueta e voado através da porta para se apresentar um instante depois no salão diante das três senhoras que ela considerou em silêncio com um sorriso bizarro.
- Então ? - preguntou a senhora Jansénio, em tom incisivo.
- Então, querida ? - inquiriu a senhora Tréfusis, em tom carinhoso.
Quanto à senhora Wylie, essa abafou um soluço e olhou para a filha implorativamente.
- Tive uma canseira dos demónios para os chamar à razão, - disse Ágata, depois de uma pausa irritante. - Conduziram-se como crianças e eu fui um anjo. Fico,
portanto.
- Abençoada sejas,-querida, - exclamou a senhora Wylie, com voz trémula, tentando dar-lhe um beijo, ao que Ágata se esquivou com perícia.
- Prometi ser muito ajuizada, muito estudiosa, muito sossegada e muito conveniente para o futuro. Lembras-te da minha canção com as castanholas, Hetty?
TraUalala, Ia! Ia! ta! Tra! Mala, Ia! Ia lia! Tra! lalalalalalalalalalala!
E pôs-se a dançar em volta do aposento, fazendo estalar os dedos à guisa de castanholas.
- Não sejas tão levantada de cabeça, nem tão màzinha, meu amor, - disse a senhora Wylie. - Esmagas o coração de tua mãe.
A senhora Wilson e o senhor Jansénio entraram neste mesmo instante e logo Ágata se imobilizou, pondo-se a contemplar um vaso de flores com ar abstracto. A senhora Wilson convidou as suas visitantes a irem ter com as jogadoras de ténis. O senhor Jansénio olhou com severidade e reprovação para Ágata, que erguia o sobrolho esquerdo ao mesmo tempo que baixava o direito. E, meneando a cabeça para dar a entender que não se deixava impressionar por essas habilidades faciais, por mais difíceis ou contrárias à
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natureza que pudessem ser, saiu com a senhora Wilson, seguido da senhora Jansénio e da senhora Wylie.
- Como passa o teu "mais que tudo" ? - preguntou Ágata bruscamente a Henriqueta.
Os olhos da senhora Tréfusis encheram-se tão depressa de lágrimas ,que, sem que ela as pudesse ocultar, molharam as mãos de Ágata.
- Como ela me é querida, esta velha escola!-começou ela. - Recordações da minha infância...
- Mas que há entre ti e o teu amo e senhor ? - preguntou Ágata, interrompendo-a. - Seria melhor que mo dissesses, de contrário sou eu quem lho pregunta quando o encontrar.
- Ia dizer-to, mas não me deste tempo para isso.
- Abominável mentira, mas pouco importa Continua... ? Henriqueta hesitou por um momento. A sua dignidade
de mulher casada e a realidade da sua mágoa revoltavam-se contra a subtileza da educanda. Mas Henriqueta sentia que era tão incapaz então de se furtar à dominação de Ágata como outrora na sua infância; além de que desejava conquistar a sua simpatia. Por outro lado, tinha já aprendido que mais valia contar a sua história ela própria que deixar a narração a outros cuja descrição não condizia com a verdade pura. Contou a Ágata o seu casamento, o seu amor insensato pelo marido, o amor dele por ela e a sua misteriosa desaparição sem deixar nem uma palavra nem um sinal. Não aludiu à carta.
- Mandaste-o procurar ? - preguntou Ágata reprimindo o riso.
- Onde? Se eu tivesse o menor indício havia de segui-lo a pé descalço até ao fim do mundo.
- Acho que deverias mandar sondar todas as ribeiras e aí tens como podes ir a pé descalço em busca dele. com certeza caiu num sítio qualquer...
- Não, não. Acreditas que eu estaria aqui se pensasse que a sua vida corre perigo? Tenho as minhas razões... Enfim, sei apenas que
partiu...
- Muito me contas. Levou a mala de mão com ele, não é assim ? Provavelmente foi a Paris comprar-te qualquer coisa bonita para te fazer uma surpresa agradável.
- Não foi, - disse Henriqueta, com desalento. - Ele sabia que eu não tinha precisão de coisa alguma.
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- Então penso que ele se cansou de ti e se pôs ao fresco.
A cor escarlate estendeu-se rapidamente,pelas faces de Henriqueta enquanto ela repelia o braço de Ágata, dizendo agastada:
- Como ousas tu dizer uma coisa dessas ? Tu não tens coração e ele adorava-me.
- Ora ! - fez Ágata. - As pessoas acabam sempre por se fatigar umas das outras. Eu canso-me de mim mesma quando fico só durante dez minutos e estou certa de que gosto mais de mim do que é possível gostar de outra pessoa qualquer.
- Sei-o bem, - interveio Henriqueta, com desgosto e rancor. - Sempre gostaste muito particularmente da tua pessoa.,
- É provável que o teu marido seja como eu sob este ponto de vista. Nesse caso, ele fatigar-se-á consigo próprio e voltará para arrulharem como dois pombinhos até que lhe venha a fantasia de se escapar outra vez. Deixa lá, isto ensina-te o que é o casamento. Pregunto a mim mesma como é que as pessoas praticam a tolice de se casarem em face dos exemplos colhidos nas relações de cada um, que proclamam bem alto: não façam este disparate!
- Tu não sabes o que é amar, - disse Henriqueta, era tom lamuriento e um tanto protector. - De resto, nós não somos como os outros casais.
- Também me parece. Mas pouco importa. E acredita-me: ele voltará depressa quando se cansar da sua própria companhia. Não te rales mais com isso e vem fazer uma partida de ténis.
Durante esta conversa tinham deixado o salão e feito um rodeio pelos jardins. Aproximavam-se do court por uma vereda entre duas sebes de louro através da plantação de arbustos.
Entretanto, Smilash tinha servido os convidados, de avental e luva branca. Tinha recusado energicamente tirar as luvas, pretextando que era um homem vulgar, com mãos grosseiras em demasia para que aquelas damas e aqueles cavalheiros pudessem aceitar dele alimentos e bebidas. Tinha-se conduzido de modo irrepreensível até à chegada das senhoras Wilson, Wylie, Tréfusis e senhor Jansénio, que se
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verificou justamente quando ele regressava à mesa com uma bandeja vazia. Caminhava tão depressa que pouco faltou para chocar com a senhora Jansénio.
Em vez de se desculpar, mudou de expressão e ergueu vivamente a bandeja a esconder o rosto como se fosse um escudo. Afastou-se dela aos recuos e foi chocar com a menina Lindsay, que corria para devolver uma bola. Sem se incomodar com o seu olhar fuzilante nem com a sua censura áspera, voltou-se a meio e alcançou a moita donde, instantes depois, se viu a bandeja subir ao ar, voar por cima da sebe de louro e abater-se com ruído sobre as espáduas curvas de Josephs.
A senhora Wilson, depois de ter preguntado com rudea à cozinheira porque razão tinha consentido àquele homem tomar parte no serviço, explicou aos seus convidados
que era um simplório da região. O senhor Jansénio riu-se e disse que não lhe tinha visto a cara, mas que o seu vulto lhe recordava muito certa pessoa, sem poder dizer exactamente quem fosse.
Smilash, depois de atravessar a plantação de arbustos, encontrou o fim da vereda bloqueado por Ágata e uma jovem cuja figura o alarmou ainda mais que a da senhora Jansénio. Tentou abrir caminho através da sebe, mas em vão; os louros eram impenetráveis e o ruído que ele fez atraiu a atenção das passeantes que se aproximavam.
Não fez nenhum esforço para escapar, mas deitou sobre a cabeça o avental emprestado e deixou-se ficar com as costas voltadas para a moita.
- Que faz ali aquele homem ? - preguntou Henriqueta, parando, desconfiada.
Ágata pôs-se a rir e disse muito alto de modo que ele pudesse ouvir:
- É um louco inofensivo que a senhora Wilson emprega. Gosta muito de se disfarçar mais ou menos tolamente, para nos meter medo. Não tenhas receio. Vem comigo.
Henriqueta hesitava, mas o seu braço, passado por baixo do de Ágata, forçava-a a caminhar contra-vontade.
Smilash não se mexia. Ágata avançava friamente e, no momento em que passava diante dele, segurou habilmente o avental entre o polegar e o indicador e puxou-o bruscamente, descobrindo o rosto do homem.
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Nesse mesmo instante, Henriqueta deu um grito estridente e Smilash recebeu-a nos braços.
- Depressa, - disse ele a Ágata, - ela perde os sentidos. Corra a buscar água. Depressa.
Inclinou-se sobre Henriqueta, que se agarrava desesperadamente a ele. Ágata, perturbada pelo efeito da sua gracinha, hesitou por um momento, depois correu em direcção à pelouse.
- Que há ? - preguntou Fairholme.
- Nada. Queria água, mas depressa, se faz favor. A senhora Tréfusis desmaiou ali, na mata, eis tudo.
- Deixem-se estar, peço-lhes, -intimou a senhora Wilson aos presentes com autoridade. - Vão obstruir a vereda eretardar o socorro necessário. Senhora Ward, tenha
a bondade de ir buscar água. Ágata, venha comigo para indicar onde está a senhora Tréfusis. Pode vir também, menina Carpenter, porque é muito robusta. Quanto às outras pessoas, peço-lhes que se deixem estar onde estão.
Seguida pelas duas raparigas, a senhora Wilson apressou-se a alcançar a mata onde o senhor Jansénio procurava já ansiosamente a filha. Era a única pessoa que lá
estava, porque Smilash e Henriqueta tinham-se eclipsado...
A princípio, os pesquizadores, muito intrigados, limitaram-se a interrogar Ágata com incredulidade quanto ao sitia exacto onde Henriqueta tinha caído. Mas o senhor
Jansénio fez-lhes compreender que a situação,de uma dama nas mãos de um campónio meio louco não era isenta de perigo. A sua inquietação contagiou-os e quando Ágata se esforçou por o tranquilizar, declarando que Smilash era um
cavalheiro disfarçado, a senhora Wilson, na suposição de que essa afirmação era nada menos que uma
repetição das suas loucas suposições precedentes, mandou-a calar com azedume porque não era aquele o momento próprio para dizer disparates.
A notícia espalhou-se entre todos os presentes e a inquietação tornou-se intensa. Fairholme pediu, aos gritos,
que se apresentassem voluntários para formar um corpo de pesquizadores. Todos os homens presentes responderam ao apelo e iam lançar-se em massa para a grade da
entrada do colégio quando ao espírito dos mais calmos acudiu a lembrança de que seria melhor dividirem-se em grupos, de
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modo que as pesquizas pudessem ser efectuadas em diversos lados ao mesmo tempo.
Seguiram-se dez minutos de confusão. Por diversas vezes o senhor Jansénio partiu em busca da filha, mas, logo que dava meia dúzia de passos, regressava para suplicar que não perdessem mais tempo. Josephs, homem de fé simples, retirou-se para orar e fez bem, naquela emergência, porque suprimiu uma voz ao clamor de planos, de objecções e de sugestões de cada um, porque todos se esforçavam por se fazer ouvir abafando a voz dos restantes.
Por fim, a senhora Wilson conseguiu acalmar a anarquia reinante. Os criados foram mandados para dar o alarme na vizinhança e reclamar o auxílio da polícia da aldeia.
Foram enviadas algumas brigadas em diferentes direcções sob o comando de Fairholme e outros espíritos enérgicos. As alunas formavam entre si alguns grupos que foram reforçados pelos desertores masculinos de outros grupos precedentes.
A senhora Wilson dirigiu-se ao edifício e organizou buscas no interior do colégio. Apenas duas pessoas ficaram no terreno de ténis: Ágata e a senhora Jansénio, que no meio de todo o borborinho se tinham mostrado de uma calma notável.
- Não se inquiete, - tinha-lhe dito Ágata, que se deixara estar aparte depois da sarabanda da senhora Wilson.- Estou certa de que não há perigo a temer. A sua desaparição é de facto extraordinária, mas esse Smilash é tão louco como eu e eu sei que ele é um homem de sociedade, porque mo disse.
- Esperemos que tudo se passe pelo melhor, - respondeu plàcidamente a senhora Jansénio. - vou sentar-me um pouco, porque estou bastante fatigada. Obrigada, - disse quando Ágata lhe ofereceu uma cadeira. - Que te contou esse, homem ?
Ágata referiu em que circunstâncias tinha conhecido Smilash, acrescentando, a pedido da senhora Jansénio, uma descrição pormenorizada do seu aspecto pessoal. A senhora Jansénio notou que tudo aquilo era muito singular e permitia-se esperar que Henriqueta estivesse perfeitamente a salvo. A seguir serviu-se de um copo de limonada gelada e uma sanduíche. Ágata, contente por encontrar alguém disposto
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a ouvi-la, estava surpresa, contudo, do sangue-frio de sua tia. Não pôde deixar de observar que, se Smilash não era um trabalhador, isso não provava que fosse
um homem digno. Mas a senhora Jansénio limitou-se a responder:
- Oh! ela está em segurança, completamente em segurança. Pelo menos é o que eu me permito esperar. Não tardará que nos cheguem notícias suas.
E serviu-se de uma sanduíche.
Os pesquizadores não tardaram a regressar de orelha murcha. Preguntando a uns pastores, únicas pessoas encontradas, se não tinham visto uma jovem e um trabalhador, colheram de alguns deles a informação de ter passado uma mulher nova com um cesto de roupa, se isso servia de indicação ; outros pensavam que Phil Martin, o estalajadeiro, deveria vê-la se mais ninguém a visse. Nenhum estava em circunstâncias de dar melhores informações.
Enquanto a tarde caía e os grupos de pesquizadores iam chegando sucessivamente depois de buscas infrutuosas, o abatimento sucedeu à agitação; a conversa, tornada calma, prosseguia em voz baixa e alguns dos visitantes locais retiraram silenciosamente a caminho de suas casas com a convicção crescente de que alguma coisa de desagradável tinha acontecido e que era melhor não se misturarem no caso. O senhor Jansénio, surpreendido por algumas palavras de sua mulher, estava ainda lamentavelmente inquieto e pouco à vontade, se bem que contagiado pela calma da senhora Jansénio.
Por fim a polícia chegou. A vista dos uniformes a agitação reavivou-se; teve-se a convicção geral de que qualquer coisa de efectivo ia enfim tentar-se. Mas os polícias não eram mais que simples mortais e, ao fim de alguns instantes, teve-se a impressão de que não passavam de uns imbecis. Puseram em dúvida tudo quanto lhes foi contado e exprimiram o seu desdém pelas buscas feitas por amadores, pondo-se eles próprios a rebuscar com o maior cuidado em todos os cantos, mesmo nos que menos se prestavam a esconder alguém.
Dois deles foram buscar Smilash ao chalé. Foi então que Fairholme, queimado pelo sol, a transpirar e cheio de pó, trouxe o resto da sua falange. Tinha consigo um rapazote desenxabido que olhou para os guardas de través, com
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ar desconfiado, porque imaginou, sem sombra de dúvida, que o iam prender.
Fairholme tinha estado um pouco em toda a parte, mas, não encontrando vestígios dos fugitivos, chegara à conclusão de que não estavam em parte alguma. Tinha-se dirigido a toda a gente para colher informações e deu a entender que as teria se as houvesse. Mas não havia sombra delas. O único resultado das suas canseiras foi o testemunho do rapaz, no qual ele não acreditava.
- Heim ! - disse o agente pouco satisfeito com o zelo de Fairholme e no entanto subjugado por ele. - Tu és o moço do senhor Wickens, não és ?
- Sim senhor, sou o moço do senhor Wickens, - respondeu a testemunha em tom meio feroz, meio lacrimoso,
- eu vi-o e se alguém disser que não vi, mente.
- Bem, - replicou o agente em tom severo, - não sejas insolente, dize lá o que viste ou então entendes-te comigo.
- Importa-me pouco com quem tenha de me entender,
- respondeu o rapaz defrontando o agente. - Ninguém me pode prender por o ter visto, porque não há lei nenhuma para isso. Eu estava no areal da planície junto do canal...
- Que fazias ali ? - preguntou o agente, interrompendo-o.
- Nada, tinham-me dado licença para lá estar, - disse o rapaz com insolência, mas corando.
- Quem te deu essa licença ? - preguntou o polícia, segurando-o pelo colete. - Ah!-ajuntou ele, enquanto o rapaz se punha a chorar,- eu bem té dizia que tinhas de te haver comigo. Agora acaba e lembra-te onde estás e a quem estás falando. Pode ser que não te meta ria prisão desta vez. Que viste tu quando estavas na campina à pilhagem ?
- Vi uma senhora e um homem. E vi que ela o beijava... e este senhor não quere acreditar.
- Queres dizer, com certeza, que era ele que a beijava...
- Não, senhor, não quero dizer isso. Eu sei bem o que é uma rapariga querer beijar um homem e, ele não querer. E dei um grito para lhes meter medo. Ele então chamou-me, deu-me dois dinheiros, e disse-me: "Vai para o diabo e não contes a ninguém que me viste aqui, senão
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sou capaz de te afogar e seria pena por causa dos teus pais". "É verdade que eles haviam de ter pena", disse eu. E fui-me embora porque ele conhece o senhor Wickens e eu tinha medo que ele fosse dizer coisas a meu respeito ao meu patrão.
O rapaz estava agora subjugado. De todos os lados lhe faziam preguntas. Mas a sua capacidade de observador e de descrição não iam longe. Como estava desejoso de conciliar as simpatias dos que o tinham filado, respondia, afirmativamente tantas vezes quantas podia. O senhor Jansénio preguntou-lhe se a jovem que ele tinha visto era uma senhora de qualidade e o rapaz disse que sim. O homem era um trabalhador? Sim, respondeu ele, depois de um momento de hesitação. Como estava ela vestida? Não tinha notado. Tinha flores vermelhas no chapéu? Sim. Tinha um vestido verde? Sim. As flores do chapéu eram amarelas? (uma pregunta de Ágata) Sim. O seu vestido era cor de rosa? Sim. Estava ele certo de que não era preto ? Silêncio da sua parte.
- Eu bem dizia que ele mentia! - exclamou Fairholme com desprezo.
- Contudo, eu acredito que viu qualquer coisa, disse o cabo, - mas o que foi é que eu não consigo tirar dele.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual o rapaz foi olhado de través. A sua revelação do beijo era quási um insulta para os Jansénios, se Henriqueta fosse identificada na pessoa que o rapaz tinha visto. Joana sugeriu que se sondasse o canal, mas foi instantaneamente reduzida ao silêncio por alguns "chut" indignados, acompanhados
de olhares de apreensão e simpatia pelos pais aflitos. A atenção desviou-se dela para se fixar nos dois agentes da polícia que tinham ido ao chalé.
Entre eles caminhava Smilash, aparentemente prisioneiro. De longe parecia que tinha apanhado uma terrível pancada na cabeça, mas quando chegou junto do grupo verificou-se que tinha enrolado um lenço vermelho em volta da cara como para aliviar uma dor de dentes. Tinha uma expressão particularmente patibular enquanto se conservava de pé diante do cabo da polícia, cabeça baixa e rosto que se ocultava do senhor Jansénio. Este, apesar dos seus esforços
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para distinguir os traços fisionómicos do prisioneiro, nada mais podia ver que um pedaço de lenço vermelho.
Um dos agentes da polícia contou como haviam encontrado Smilash no momento em que ele entrava na sua habitação; que ele tinha recusado dizer fosse o que fosse e
se negava a vir ao colégio, desafiando-os a trazê-lo contra-vontade; mas ao ouvir que iam mandar chamar o cabo e o senhor Jansénio, tinha-lhes chamado burros e consentido
em acompanhá-los. O agente terminou declarando que esse homem ou estava bêbedo, ou era um simulador, visto que não dizia uma palavra sensata.
- Oiça, patrão, - começou Smilash, dirigindo-se ao cabo, - sou um homem vulgar e não há outro mais vulgar que eu, como pode ver...
- É este mesmo, - gritou o moço do senhor Wickens, inchado com a sua importância como testemunha. - Foi este que a rapariga beijou e me deu os dois dinheiros e ameaçou
que me afogava.
- E, com o coração humildemente contrito, lamento não o ter feito, pedaço de tratante! - disse Smilash. - Quem te autorizou a interromper um homem que, apesar de
ser de baixa esfera, podia ser teu pai pelos anos e pela experiência ?
- Cala-te, - disse o cabo ao rapaz. - E agora, Smilash, que tens a dizer?
É bom ser prudente, porque o que vais dizer pode servir contra ti mais tarde.
- Mesmo que me levasse ao cadafalso, meu coronel, não lhe podia dizer mais que a verdade. Se alguém pode dizer que Jeff Smilash é capaz de mentir, dê um passo em
frente.
- Isso não nos serve por agora. És desconhecido nestes sítios, portanto ninguém aqui sabe nada a teu respeito, nem para mal nem para bem.
- Coronel, - disse Smilash profundamente impressionado, - o senhor tem um espírito penetrante e sabe reconhecer à primeira vista um patife. Para não o enganar, digo-lhe que me abandono à mentira, à preguiça e à intemperança em todas as coisas a ponto tal que a única desculpa que eu tenho é que isto vem da natureza, da raça, por assim dizer; porque a maior parte dos homens são exactamente
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como eu, se não piores. Não falo pessoalmente por si, patrão, nem pelos dignos senhores aqui presentes. Mas o senhor, meu coronel, é um chefe de polícia, o que eu considero mais que ser um simples mortal; e quanto aos cavalheiros aqui presentes - um cavalheiro não é um homem,, pelo menos um homem vulgar; este é o que alimenta
e veste o cavalheiro que lhe está acima...
- Bem, - cortou o polícia, incapaz de seguir estes raciocínios, - vejo que és um espertalhão, mas não me enrolas. Que dizes a respeito da senhora que foi vista pela última vez na tua companhia?
- Dizer alguma coisa sobre uma dama ? - exclamou Smilash com indignação. - Longe de mim tal ideia!
- Que destino lhe deu ? - preguntou imperiosamente Ágata. - Não finja de imbecil! .
- Não tens o dever de responder a essa pregunta, disse o polícia, aborrecido com a vantagem que tinha Ágata em vista da sua posição não oficial e irresponsável, o que lhe permitia ir direita ao fim. - Mas, se quiseres, podes responder. Se fizeste alguma coisa má, o melhor que tens a fazer é calares-te; se não fizeste, o melhor é falar.
- vou sossegar o espírito desta menina sobre a sorteda sua digna irmã, - disse Smilash. - Quando a dama em questão me olhou, achou-se indisposta. Como sou ainda muito novo e sem o hábito de tratar com senhoras, confesso que estava assustado e que o meu espírito não estava aberto a considerações sensatas. Quando ela abriu as órbitas, por assim dizer, segurou-me pelo pescoço, não me distinguindo mais que nosso pai Adão a todos e disse-me: "Traga-me água e faça de maneira que as alunas não me vejam." Como eu não tinha a inteligência a trabalhar por mim, fiz muito simplesmente o que ela me pediu. Tomei-a nos braços ela era leve e pequena de estatura - e dirigi-me para o canal tão depressa quanto pude. Chegado lá, poisei-a na margem e fui buscar água. Mas, com os diabos, por causa das fábricas, das poluições, das altas civilizações desta e daquela espécie, a água de um canal inglês não presta para espargir uma senhora e menos ainda para beber. Nesse momento, por sorte, vinha a passar um lanchão que a tomou para bordo e...
- Não é verdade, - interrompeu o moço de Wickensi
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com teimosia, ganhando coragem ao ver a desfaçatez de um homem que parecia ser da sua classe. - Eu vi os dois, de pé, um junto do outro, e ela estava a beijá-lo.
Não havia lá nenhum lanchão... ?
- É possível que o pudor original de uma dama bem nascida vá ser posto em dúvida pela palavra de um rapazola ordinário que anda neste mundo graças à tolerância dos cavalheiros proprietários do solo e dos senhores do dinheiro que ele ajuda a sustentar?-exclamou Smilash com indignação. - Oh, moço indigno, uma dama de sociedade não é feita do mesmo barro que tu! Ela não sabe o que é um beijo; e se o soubesse, era lá possível que fosse beijar-me quando um belo homem como o meu coronel aqui presente seria muito feliz em fazer-lhe a vontade ? Que ideia absurda! O lanchão era encarnado e amarelo e tinha um dragão verde à proa e um cavalo branco que o
perseguia. Se calhar tu sofres de daltonismo e não distingues o vermelho do amarelo. Pois o barqueiro comoveu-se à vista da pobre senhora, que estava mal disposta,
recebeu meia coroa e tinha a bordo a mãe que fez o que uma verdadeira mãe deve fazer. E havia no lanchão uma cabina quási tão grande como o armário onde Vossa Senhoria
guarda as suas compotas e os seus pickles. E nesse armário o barqueiro vive em família com a mulher, a mãe e os cinco filhos. Estes barcos, nos canais, são, como
diz o outro, as muralhas de madeira da Inglaterra.
- Continua a tua história, - disse o cabo de polícia. Nós sabemos, tão bem como tu, o que são lanchões.
- Gostaria que todos o soubessem, - replicou Smilash.
- talvez isso aliviasse a sua tarefa. Mas, como eu ia dizendo, seguimos pelo canal direitos a Lyvern, onde desembarcámos e a dama tomou o combóio-ómnibus e seguiu
viagem. com a nobre generosidade da sua classe deu-me seis dinheiros. Estão aqui como prova de que é verdade o que eu digo. Espero que ela chegue sã esalva a sua
casa e nem que me ponham à tortura nada mais sei dizer excepto que, quando regressei, os dois bufos aqui presentes puseram-me a mão em cima contrariamente à constituição
britânica; se Vossa Senhoria quiser ser amável em ler essa constituição, lá encontra os meus direitos e as minhas liberdades - porque me disseram que o trabalhador
tem as suas liberdades -
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e fará grande obséquio a um homem vulgar, mais que a sua educação lhe permite dizer.
- Oiça, - exclamou o senhor Jansénio, de-repente, quere levantar a cabeça e olhar-me de frente?
Smilash fez como lhe era pedido e imediatamente, com um gesto teatral de recuo, o senhor Jansénio exclamou:
- Céus! Que vejo eu ?
- Os senhores talvez não acreditem, - continuou Smilash, dirigindo-se aos restantes, - mas este cavalheiro conhece-me bem. Vejo sobre os seus lábios, patrão, que
me vai falar de minha mulher e agradeço-lhe o seu interesse e cortesia. Ela está de perfeita saúde, meu caro senhor, e a minha residência aqui foi um acordo entre
os dois. A nuvenzinha que apareceu no nosso horizonte familiar dissipou-se e, patrão - aqui a voz de Smilash tomou uma amplitude mais grave - os que intervêm agora
entre marido e mulher incorrem em grave responsabilidade. Aqui me tem tal como me vê, e aqui eu tenho a intenção de ficar. Isto se o Destino consentir. Porque o
Destino é uma coisa muito patusca, patrão. Vim para aqui pensando que este seria o último canto do mundo onde os meus olhos o tornariam a ver e, diabos me levem é justamente o senhor a primeira pessoa com quem esbarro...
- Não me agrada desempenhar um papel nesta farsa de...
- com a sua permissão de cortar a palavra que sai da sua boca, patrão, não lhe destino nenhum papel a representar. No que respeita à minha conduta passada, o senhor
pode revelá-la ou guardá-la para si. Só lhe digo que, se revela uma parte, eu revelarei o resto. Tudo ou nada. Tem a liberdade de dizer ao cabo aqui presente que
sou um inútil. O seu espirito penetrante já o descobriu. Mas se o senhor entra em pormenores e nomes, não somente vai contra os desejos de minha mulher, mas obriga-me
a contar tudo de ponta a ponta diante de toda a gente aqui reunida e em seguida eu irei para um sítio onde ninguém mais poderá encontrar-me.
- Creio que quanto menos se disser melhor, - interveio a senhora Jansénio, observando com inquietação a curiosidade e a surpresa causada por este diálogo. - Mas
compreenda bem isto, senhor...
-Smilash, querida senhora... Jeff Smilash.
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- Senhor Smilash, qualquer que seja o acordo que o senhor concluiu com sua mulher eu nada tenho que ver com isso. O senhor conduziu-se de uma maneira infame e eu
desejo, para o futuro, ter com o senhor pouquíssimas relações, o menos possível.
- E eu desejo não ter nenhumas. Nenhumas, ouviu bem?
- disse o senhor Jansénio. - Considero a sua conduta como um insulto pessoal. Pode viver da maneira que lhe agradar. Tem toda a Inglaterra à sua disposição, salvo um sítio, que é a minha casa. Vamo-nos, Ruth.
Ofereceu o braço a sua mulher. Ela tomou-o e ambos deram meia volta para se afastarem, procurando Ágata com os olhos, sem a verem, porque ela, revoltada com a curiosidade
odiosa de todos os outros, tinha-se retirado, desdenhando tomar parte como testemunha naquela conversa.
A senhora Wilson considerou primeiro Smilash - que tinha assistido à explosão de cólera do senhor Jansénio com um interesse amigável, exactamente como se não fosse
mais que um espectador curioso - depois os dois visitantes que se afastavam.
- Acham satisfatória a explicação deste homem ? - preguntou-lhes a directora. - Por mim não acho.
- Eu sou um homem tão ordinário que não sei dar explicações que possam satisfazer um espírito tão cultivado como o vosso, - disse Smilash. - Mas peço humildemente para dizer que está ali um boletineiro tentando romper caminho através da ilustre assembleia.
- Senhora Wilson! -gritou o boletineiro com voz aguda. Ela tomou o telegrama, leu e franziu as sobrancelhas.
- Tivemos muito trabalho para nada, minhas senhoras e meus senhores, - disse ela, com despeito mal contido. A senhora Tréfusis anuncia-me que regressou a Londres.
Não entendeu necessário juntar qualquer explicação.
Houve um murmúrio geral de desapontamento.
- Não fiquem desoladas, minhas senhoras, - disse Smilash. - Pode acontecer que ela se afogue ou seja assassinada no caminho. Qualquer pessoa pode enviar um telegrama com um nome falso. Pode tratar-se de uma mistificação. Esperemos, para não os desapontar, que se possa produzir um pequeno acidente... de caminho de ferro, por exemplo.
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A senhora Wilson voltou-se para Smilash, feliz por encontrar alguém sobre quem descarregar a sua justa cólera.
- O senhor fará bem em voltar à sua vida. E que eu nunca mais oiça falar em si.
- Isso é duro, - replicou Smilash, em tom de queixume.- As minhas intenções eram boas. Mas eu sei onde a porca torce o rabo. Foi por causa deste patife ter dito que aquela jovem senhora me tinha beijado.
- Senhor cabo, - disse a senhora Wilson, - quere ter a bondade de fazer com que este homem abandone o colégio o mais depressa possível?
- E onde está o meu salário? - replicou ele, em tom de censura. - Onde está o meu salário legal? Admira-me muito que uma senhora cheia de ciência moral e de economia política mande embora um pobre homem sem lhe pagar. Onde estão os seus fundos para salários ? Onde está o seu capital remuneratório ?
- Vale mais não lhe dar nada, minha senhora, - disse o polícia. - O dinheiro que ele recebeu da outra senhora já é suficiente. Agora ponha-se a andar, se não quere que o apresse a fazê-lo.
- Bem, - rosnou Smilash. - Eu tinha-me ajustado por nove dinheiros, sem contar o cilindro e as garrafas de soda que abri e estas pesadas mesas que arrastei e gastaram uma boa porção dos meus tecidos. Tudo isto monta bem a dois xelins. Mas o que eu peço é só os meus nove dinheiros e deixo a senhora guardar os outros quinze como recompensa de abstinência. E a exploração do trabalho à taxa de cento e dez por cento. Vamos, dê-me os meus nove dinheiros e vou-me embora direitinho.
- Tem aqui um xelim,- disse a senhora Wilson.- E despache-se.
- Três dinheiros de troco, - exclamou Smilash. -A honestidade foi sempre...
- Guarde-os.
- A senhora tem um coração nobre, mas não descure a lei da oferta e da procura. Se continua a pagar por essa tabela, haverá concorrência de trabalhadores no colégio e a senhora terá que baixar de um xelim para seis dinheiros, e não nove. É assim que os salários diminuem e que a mortalidade
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aumenta para desgraça de quem trabalha e tem que se vender como suínos na feira.
Ia continuar a sua arenga, quando o agente de polícia o tomou pelo braço e o fez voltar-se para a grade, indicando-lhe a saída de um modo expressivo. Smilash olhou
para ele distraidamente durante um momento. Depois, com um piscar de olhos dirigido a Fairholme, afastou-se gravemente no meio do espanto e do silêncio gerais.
O que se passou entre Smilash e Henriqueta ficou ignorado de toda a gente. Ágata tinha visto Henriqueta lançar os braços em volta do pescoço de Smilash, mas, como
não tinha ouvido o grito "Sidney, Sidney" que se seguiu, também não tinha visto que Smilash apertou a cabeça da jovem contra o peito para lhe abafar a voz, enquanto
dizia: "Queridinha, não grites, .suplico-te, ou vais alarmar toda a gente num momento. Cala-te!"
- Não me deixes mais, Sidney,- suplicou ela, apertando-o mais, enquanto o olhar perplexo do seu companheiro, que se dirigia para a entrada da moita, parecia afastar-se
dela. Um rtiído de vozes, vindo deste lado, pôs fim à sua irresolução.
- Temos que fugir, Hetty, - disse ele. - Segura-te bem ao meu pescoço e não me estrangules. Agora, toca a andar.
Ergueu-a sobre o ombro e atravessou a propriedade a correr, tão depressa quanto lhe era possível. Quando chegou a um muro quê lhe cortava o caminho, colocou-a em
cima, saitou-o e fê-la em seguida descer, tomando-a nos braços, do outro lado. Depois cortou através dos campos, cambaleando sob o peso do seu fardo e dizendo com
esforço, em resposta às censuras inarticuladas que ela lhe dirigia de tempos a tempos quando algum montículo o fazia vacilar:
- O teu peso aumenta à razão de cinco quilos por segundo, minha adorada. Se te inclinas, desengonças-me o pescoço. Meus Deus! Um
fosso!
- Poisa-me no chão, -exclamou Henriqueta, num transporte de alegria e apreensão. - Vais-te fatigar... Peço-te, põe...
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Sidney atravessava penosamente um fosso seco enquanto ela falava, e atingiu um sítio arrelvado que corria ao longo da vereda de rebocadura do canal. Aqui, Smilash
depôs o seu fardo no rebordo de uma cova onde o musgo estava seco e macio. Deitou-se de bruços diante dela, apoiando-se nos cotovelos, e disse, respirando a custo:
- Nessus levando Dejanire não teve tanta canseira! Querida, estás contente por me tornar a ver ?
- Mas...
- Não há "mas", a menos que queiras que eu desapareça de novo e para sempre. Que infeliz
sou. Desejei-te ardentemente, mais do que é possível dizer, e mais do que
uma vez depois que saí da tua companhia. Mas, natural mente,que te importava a ti?
- Que me importava ? Oh ! Sidney, porque me abandonaste ?
- Por medo de que alguma coisa pior te acontecesse. Mas não é sensato perder com explicações os poucos minutos que nos restam. Dá-me um beijo.
- Vais deixar-me outra vez? Oh! Sidney...
- Não pensemos no dia de amanhã, minha Hetty. Sê como o sol e o prado, que não se importam com o inverno que há-de vir. Para que olhar fixamente este maldito canal
que conduz cegamente a sua carga de porcarias de aqui para ali, para a lançar finalmente no mar... como uma rua populosa lança finalmente a sua "carga" humana no
cemitério ? Olha antes para mim e dá-me um beijo.
Ela deu-lhe vários em vez de um e disse em tom caricioso, ainda com o braço poisado sobre o pescoço de Sidney:
- Dizes isso somente para me meter medo, Sidney, eu sei-o bem...
- Tu és o claro sol dos meus sentidos, - replicou ele, cingindo-a nos braços. - Sinto o coração e o cérebro dissecarem sob o teu sorriso e abandono-te ambos com
alegria, como a tua presa. Sou feliz em ter uma mulher que não me despreza por isso, antes, pelo contrário, ainda me tem mais amor...
- Não sejas tolo, - disse Henriqueta, com ar distraído. Depois, picada pela meia intuição do que desejava dizer,
repeliu-o e vociferou com cólera:
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- És tu que me desprezas.
- Não mais do que me desprezo a mim próprio. Dire mesmo que não tanto; porque muitas das emoções que parecem vis, vistas pelo lado de dentro, passam a ser deliciosas
vistas pelo lado de fora.
- Projectas deixar-me outra vez. Sinto-o. Sei-o.
- Julgas que o sabes, porque o sentes. Não é má razão, na verdade.
- Então sempre é verdade que me vais deixar ?
- Não o sentes e não o sabes? Sim, querida Hetty, é certo que te vou deixar.
Henriqueta explodiu em pungentes exclamações de pesar e ele atraíu-a a si para a beijar com um movimento de ternura, ao qual ela não pôde resistir, e com uma visagem
qu a jovem não viu.
- Minha pobre Helty, tu não me compreendes.
- Compreendo somente que me detestas e que te queres ir embora.
- Seria fácil de compreender, isso. Mas o que há de estranho neste incidente é que te amo, apesar de querer afastar-me. Não será para sempre, mas apenas por uma
temporada.
- Mas eu não quero que te vás. Não te deixarei ir embora, - gritou ela, com um pouco de violência misturada
à sua súplica. - Porque me queres abandonar, se gostas de mim?
- Não sei. Não te posso dizer os "porquê ?" e os"como?",de mim próprio, da mesma forma que não posso segurar-me pela cintura para me transportar para outro lugar,
como já alguém propôs a o u trem que fizesse. Sou muito pessimista para respeitar as minhas afeições pessoais. Sabes o que é um pessimista?
- É alguém que acredita na ruindade de toda a gente, inclusive de si próprio, e que detesta os outros por causa disso.
- É isso mesmo, pouco mais ou menos. A sociedade inglesa moderna, a parte brilhante, a esfera na qual eu nasci, afigura-se-me tão corrompida como o consentem o sentimento
da sua cultura e a sua ausência de honestidade. É uma multidão de hipócritas que admira a mentira, detesta a realidade, garatuja, palreia, procura a riqueza, os
prazeres.
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a celebridade. Já perdeu o temor do inferno e não substitui este temor pelo amor da justiça. Por isso ela deseja somente a parte de leão das riquezas arrancadas,
pela ameaça da fome, das mãos das classes que as produzem. Se me interrompes por uma frase absurda, Hetty, atiro-te ao canal e morro de pena em seguida por ter perdido
a minha bem amada. Tu sabes o que eu sou, segundo a descrição convencional: um senhor que tem muito dinheiro. E conheces a origem de todo este dinheiro e do meu
nascimento ilustre ?
- Oh! Sidney, fizeste qualquer coisa condenável ?
- Não, querida, eu sou um senhor "comine il faut" e não fiz nada de mau. Não chega a ser um paradoxo que um homem possa viver assim sem morrer de fome ? Cada péni
que eu possuo não passa de dinheiro roubado, mas foi roubado legalmente e (o que é de importância prática para ti) não tenho forma de o devolver aos seus legítimos
proprietários, mesmo que tivesse esse desejo. Sabes quem era meu pai?
- Que me interessa isso agora ? Não sejas ridículo com as tuas fantasias, Sidney, meu querido. Não casei com teu pai...
- Pois não, mas casaste - acidentalmente, bem entendido - com a fortuna de meu pai. Esse colar que trazes foi comprado com o seu dinheiro. E quási imagino ver nele
manchas de sangue...
- Basta, Sidney. Não me agrada esta espécie de romantismo. Só dizes disparates. Peço-te que sejas amável para tnim...
- Em todo o caso, manchas de suor-tem com certeza.
- Malvado!
- Eu não penso em ti, minha preciosa, mas nos desgraçados que sofrem para que nós vivamos na ociosidade. vou dizer-te por que razão somos ricos. Meu pai era um homem de Manchester, espertalhão, enérgico e ambicioso, para quem uma troca qualquer era uma transacção em que um homem deve ganhar e outro perder. O seu objectivo na
vida foi fazer tantas trocas quantas lhe foi possível, mas sendo sempre ele a ganhar. Não sei exactamente o que ele
era, porque tinha vergonha dos seus antecedentes e dos seus parentes. Concluo que eram pessoas honestas e, por
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conseguinte, pessoas que não triunfaram. Além disso, meu pai adquiriu conhecimentos sobre a manufactura do algodão. Economizou dinheiro, pediu mais de empréstimo
sobre a sua reputação de homem conhecedor de negócios e estabeleceu-se por sua conta, como mais tarde ele me contou. Comprou uma fábrica de algodão bruto. Ora, é
preciso que saibas que um homem pode, manipulando algum tempo o algodão bruto, transformá-lo em algodão manufacturado próprio para o fabrico de lençóis, camisas,
etc.. O algodão manufacturado tem mais valor que o algodão bruto, porque na manufactura entra o custo da máquina, da fábrica, do terreno e do trabalho humano, isto
é, o desgaste do homem vivo que deve ser compensado pela sua alimentação, abrigo e repouso. Compreendes isto ?
- Aprendemos tudo isso no colégio. Mas não compreendo o que temos nós com isso, porque tu nada tens que ver com a fábrica.
- Sei que aprendeste o que entenderam conveniente que soubesses, mas não te ensinaram tudo, disso estou eu seguro. Quando meu pai começou a trabalhar por sua conta,
havia muitos homens em Manchester que gostariam de trabalhar como ele, mas esses homens não tinham fábricas onde trabalhar, nem máquinas, nem algodão bruto, pela
simples razão de que esta planta indispensável, como os materiais para a produzir, tinha sido açambarcada por outros homens chegados antes deles. Encontravam-se
portanto com o estômago vazio, os braços trémulos, as suas mulheres e seus filhos cheios de fome, num lugar chamado a sua terra, onde igualmente cada parcela de
terra e todas as origens possíveis de subsistência estavam em mãos de outros. Em circunstâncias tão lamentáveis, os pobres diabos dispuseram-se a mendigar o acesso
à fábrica e ao algodão bruto por um preço que lhes permitisse, pelo menos, viver. Meu pai acedeu nas seguintes condições: esses homens deviam trabalhar activamente
desde manhã cedo até entrada a noite, para criar um valor novo ao algodão que manufacturavam. com o valor assim criado por eles deviam indemnizar meu pai do que
ele lhes tinha fornecido, abrigo, gás, água, máquinas, algodão, etc., e pagar-lhe os seus serviços como director, administrador e vendedor.
"Até aqui, ele nada mais pedia que uma justa remuneração.
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Mas, depois de tudo isto pago, ficava um saldo proveniente do trabalho desses homens exclusivamente. E meu pai impôs: Vocês retiram deste saldo o suficiente
para não morrerem de fome e fazem-me presente do resto para me recompensar do mérito de que dei provas economizando dinheiro. É esta a minha proposta. Na minha opinião é justa e serve para encorajá-los a adquirir o hábito da economia. Se não concordam com o meu ponto de vista, procurem uma fábrica e algodão para vocês, que na minha fábrica e no meu algodão não põem as unhas...
"Por outras palavras, podiam ir para o diabo e morrer de fome, porque todas as putras manufacturas pertenciam a pessoas que não ofereciam melhores condições. E como os
de Manchester, tal como os homens de qualquer outra parte, não podem suportar a morte por inanição, nem a sua,, nem a de seus filhos, aceitaram as condições impostas
e entraram na fábrica. Pois bem, graças ao seu trabalho, criaram muitas riquezas e contentaram-se com pouquíssimo para viver, de modo que o excesso que davam a meu
pai, a troca de coisa nenhuma da parte dele, era enorme. com esse dinheiro, ele comprou mais algodão, mais máquinas e mais fábricas e empregou mais homens para
criar ainda maiores riquezas para si. Viu assim a sua fortuna engrossar como a bola de neve que rola. Prosperou consideràvelmente, mas os trabalhadores, coitados,
não passaram da mesma e não i ousavam revoltar-se e pedir um pouco mais do dinheiro quetinham ganho, porque havia sempre outros desgraçados que morriam de fome e
só ambicionavam tomar os seus lugares nas condições antigas.
"De tempos a tempos havia uma paragem na laboração, como, por exemplo, quando, no seu desejo de aumentar as receitas, meu pai mandava fabricar mais algodão do que era necessário ou quando não lhe era possível comprar bastante algodão, como aconteceu durante a guerra civil na América. Adaptou-se então às circunstâncias, despedindo todos os trabalhadores de que não tinha necessidade por falta de clientes ou de algodão e, naturalmente, estes trabalhadores morriam de fome ou viviam da caridade pública. Durante a guerra abriu-se uma grande subscrição em favor destes míseros e meu pai subscreveu com uma centena de libras" apesar, dizia ele, dos seus grandes prejuízos.
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"Em seguida, comprou mais máquinas e como as mulheres e as crianças podiam fazê-las trabalhar tão bem como os homens, mais barato e eram mais dóceis, despediu cerca de setenta por cento das suas "mãos" - era assim que ele chamava aos homens - e substituiu-os pelas mulheres e crianças, que ganharam dinheiro para ele mais depressa do que até então.
"Nesta época, já meu pai tinha abandonado a direcção das fábricas e pagava a homens inteligentes, mas sem um péni na algibeira, para que as dirigissem em seu lugar.
"Comprou participações noutras fábricas orientadas nos mesmos princípios e embolsou dividendos produzidos, em países que nunca visitou, por homens que nunca viu. comprou também um lugar no Parlamento, numa pobre circunscrição corrompida e ajudou a conservar as leis que o tinham feito prosperar.
"Mais tarde, quando a sua fortuna se tornou conhecida, teve menos necessidade de recorrer à corrupção, porque os homens modernos adoram os ricos como se fossem deuses e escolhem para os governar um homem só pela razão de ser milionário. Macaqueou a pequena nobreza e viveu num palácio em South Kensington. Comprou terras na Escócia
para delas fazer um parque de veados. É muito fácil fazer um parque de veados, porque não são precisas árvores. Basta dar caça aos aldeões que habitam no sítio,
destruir as suas casas e tornar aquele local num deserto. Meu pai não caçava. Geralmente alugava a floresta durante a estação venatória aos que caçavam. Também comprou uma mulher de sangue nobre; e o resultado pouco satisfatório desse casamento sou eu. Aqui tens como Josephs Tréfusis, pequeno e pobre caixeiro-viajante de Manchester, conseguiu tornar-se um plutocrata e um proprietário de terras. E aqui tens, igualmente, de que modo, eu, que nunca trabalhei, possuo uma fortuna esmagadora, ao passo que os fiíhos dos homens que criaram esta riqueza padecem como seus pais padeceram antes deles ou estoiram de fome, quer seja na oficina, na rua ou onde diabo for. E agora, que pensas tu de tudo isto, meu amor?
- De que serve estarmos a atormentar-nos, Sidney? Nada podemos fazer agora. E se teu pai economizou dinheiro e os outros foram imprevidentes, teve mérito em fazer fortuna.
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- De acordo, mas não foi ele quem fez a fortuna. Meu pai limitou-se a deitar a mão a uma riqueza que outros criaram para ele. Na Universidade de Cambridge ensinaram me que os seus lucros foram a recompensa das privações que lhe permitiram economizar fundos. Isso sossegou a minha consciência até ao dia em que comecei a preguntar a mim mesmo porque diabo um homem se faz pagar por outro para ser virtuoso. £ outra pregunta me atormentou: De que se privou meu pai? Os trabalhadores, sim, privam-se de carne, vinho, ar fresco, vestuário quente, habitação confortável, descanso, dinheiro, a companhia das suas famílias, numa palavra: de tudo o que torna a vida digna de ser vivida. E talvez por causa disso que eles morrem uns vinte anos antes das pessoas da nossa condição. E, contudo, ninguém os recompensou das suas privações, ao passo que a recompensa tocou a meu pai, que não se privou absolutamente de nada, antes dispôs de tudo à sua vontade. Além disso, se o dinheiro era a recompensa das privações, parecia lógico concluir que meu pai devia privar-se dez vezes mais quando tinha cinquenta mil libras de rendimento do que quando apenas tinha cinco mil. Era este um problema que inquietava o meu cérebro. Se procurarmos aquilo de que meu pai se privava e que os trabalhadores tinham em demasia, só encontramos uma coisa: era o trabalho penoso. Como eu nunca tinha visto um homem de bom senso pagar a outro para não fazer nada, comecei a ver que as receitas prodigiosas de meu pai eram tiradas à força. Para lhe fazer justiça, devo acrescentar que ele nunca se gabou das suas privações. Considerava-se um grande trabalhador e justificava a sua fortuna como sendo a recompensa dos seus riscos, dos seus cálculos, das suas inquietações e das viagens que tinha que fazer em todas as estações e a todas as horas.
"Isto tranquilizou-me um pouco até ao dia em que acudiu ao meu espirito esta ideia: se meu pai tivesse vivido um século antes e colocado o seu dinheiro na compra
de um cavalo e de um par de pistolas e percorresse as estradas, o seu fim, quere dizer, extorquir aos outros o fruto do seu trabalho sem lhes dar em troca o equivalente,
teria sido exactamente o mesmo e os riscos muito maiores, porque teria de defrontar-se com os poderes constituídos.
"Viajar constantemente com a polícia no seu encalço e
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arriscar-se a deitar a mão à mala de Douvres, ter-lhe-iam dado toda a actividade e os cuidados desejáveis. Numa palavra: se Josephs Tréfusis, membro do Parlamento, que morreu milionário no seu palácio de Kensington, tivesse sido um ladrão de estrada, eu não detestaria mais a ordem social que tornou a sua carreira não só possível, mas eminentemente honrosa aos olhos dos seus semelhantes. A maior parte dos homens esforça-se por imitá-lo, na esperança de se tornarem ricos e ociosos nas mesmas
condições. É por isso que eu lhes volto as costas. Não posso tomar parte nos seus festins sabendo o que estes custam de miséria humana e vendo que magra margem de
humana felicidade eles produzem. Qual é a tua opinião a este respeito, meu tesouro? Henriqueta pareceu um pouco perturbada. Sorriu vagamente e disse com voz cariciosa:
- A culpa não é tua, Sidney. Eu não te acuso...
- Deuses imortais! - exclamou ele, erguendo-se bruscamente para levantar os braços ao céu.-Aqui está uma mulher imaginando que o único aborrecimento causado por
tudo isto à minha pessoa é saber se ela tem de mim uma opinião mais ou menos
desfavorável!
- Não, não, Sidney. Não se trata só de mim. Ninguém te julga mal por causa disso...
- Perfeitamente, - replicou Tréfusis, em tom de furor um tanto abafado por uma sombra de polidez. - Ninguém encontra nada que censurar e é esse precisamente o mal.
- Demais, - acrescentou ela, - tua mãe descendia de uma das mais antigas famílias de Inglaterra.
- É claro! Pode lá um homem desejar alguma coisa mais que a riqueza e uns antepassados de sangue nobre ? Pode um homem ser mais feliz do que eu, nascido como nasci
de pessoas que monopolizaram todos os meios de produção da terra, por um lado, e da máquina, pelo outro ? O chão sobre o qual repousamos neste momento foi propriedade do pai de minha mãe. Pelo menos, a lei autorizava-o a declarar-se seu dono. Quando o meu avô era criança, vivia aqui uma raça de camponeses muito próspera. Cultivava a terra e pagava ao avô uma renda para ter o direito de a cultivar. Estes camponeses tiravam do solo o bastante para satisfazer as vastas necessidades de meu avô e as limitadas necessidades pessoais deles próprios sem morrerem
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esmagados sob o peso do trabalho. Mas o meu avô era um espertalhão. Notou que as vacas e os carneiros rendiam mais dinheiro
com a sua carne e a sua lã que o trabalhados
camponeses com as suas culturas. Então, mandou evacuar a propriedade, isto é, expulsou os camponeses do seus lares, como meu pai fez mais tarde no seu parque de
veados na Escócia. O seu epitáfio declara, no entanto, que "fomentou os recursos da região". Não sei o que foi feitodos camponeses; tampouco ele o soube e creio
até quenunca se preocupou com isso. Os velhos devem ter entradonos hospícios e os jovens foram aumentar a população das cidades e trabalhar nas fábricas para outros
homens, como meu pai. Os seus lugares, aqui, foram ocupados pelo gado. Este pagou tão bem o seu sustento, que o meu avô pôde mandar cavar este canal por trabalhadores
utilizados nas mesmas condições dos de Manchester. Meu pai ajudou-o, tomando acções da Empresa. Terminado o canal, meu avôfez pagar um direito de portagem e os
seus herdeiros ainda recebem esse imposto; os filhos dos trabalhadores que cavaram o canal e os do engenheiro que fez o traçado pagam esse imposto quando o acaso
quere que viajem por aqui ou quando compram mercadorias que são conduzidas por esta via.
"Lembro-me bem de meu avô. Era um homem de boa educação, com maneiras de perfeito fidalgo. Mas, no fim de contas, julgo-o ainda mais malfeitor que meu pai, que foi
tomado na engrenagem de um sistema vicioso e não podia mais que corromper os outros ou ser corrompido por eles. Mas o meu avô - velho patife! - não estava em semelhante
dilema. Senhor como era de uma parcela desta bela Inglaterra, nada o poderia escravizar e podia viver deixando viver os outros. Meu pai seguiu o seu exempla com
a floresta da Escócia, mas isso foi o apogeu da sua maldade, ao passo que, no caso de meu avô, foi o começo. Seja como for, quer seja meu pai ou meu avô quem empunha
a palma, são esses os tipos que toda a gente trata de igualar.
- De modo nenhum, Sidney. Nem todos; nós, por exemplo. Eu detesto os comerciantes e os morgados. Nós pertencemos às classes artísticas e cultivadas e podemos manter-nos afastados dos traficantes.
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- E viver entretanto dos nossos alugueres e dos nossos juros à razão de muitos milhares de libras por ano. Não, minha querida, isso seria assemelharmo-nos a essas
pessoas que pretendem, quando estiverem no céu, que os poupem à ideia do inferno, mas que, no fundo, se contentam com
saber que ele existe sem o conhecerem de perto. Eu respeito mais meu pai - ou melhor, desprezo-o menos - por ter praticado ele próprio o roubo e o sistema dos
salários ínfimos, que esses inúteis e cobardes de coração ambicioso que lhe emprestaram dinheiro para o ajudar a roubar e a pôr em prática os salários baixos sem lhe preguntarem nada, contanto que o seu dinheiro, lhes fosse pontualmente pago. E quanto aos teus amigos artistas, ainda são piores que os outros.
- Oh, Sidney, estás decidido a não te declarares contente com coisa nenhuma. Os artistas não têm fábricas.
- Pois não, mas a fábrica é apenas uma peça da grande máquina do sistema de extorsão. A sua base é a tirania da força cerebral que, entre as pessoas civilizadas,
está autorizada a desempenhar o mesmo papel .que a força muscular entre os rapazes de escola e os selvagens. À mentalidade do estudante é esta: eu sou mais forte
que tu, logo tens que sofrer às minhas mãos. Para o adulto, a modalidade é esta: eu sou mais hábil que tu, logo tens que sofrer para meu benefício. O estado de coisas
a que se chega, submetendo-nos a essa tirania, já de si suficientemente mau, a começo, torna-se intolerável quando os descendentes medíocres ou imbecis das pessoas
hábeis pretendem ter herdado os seus privilégios. Ora não há ninguém mais agarrada à dominação arbitrária do génio e do talento que os teus artistas. Um grande pintor,
não contente de ser procurado e admirado, porque as suas mãos sabem fazer melhor que mãos comuns, o que é verdade, quere ainda ser alimentado como se o seu estômago
tivesse necessidade de mais alimento que os estômagos vulgares, o que já não é verdade. Um dia de trabalho é um dia de trabalho, nem mais nem menos, e o homem que
o completa tem necessidade de um dia de sustento, de uma noite de repouso e de uma certa folgança, quer se trate de um pintor ou de um camponês. Mas os pintores,
os poetas, os romancistas, ou quaisquer outros por este estilo, que gozam a volúpia de trabalhar a
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seu gosto, são uns velhacos que não se contentam com as suas vantagens sobre o trabalhador na estima popular. Querem também uma vantagem de dinheiro, como se um
dia passado no estúdio ou na biblioteca contasse mais horas que um dia passado no campo, ou como se eles necessitassem de mais alimento para executar o seu trabalho
que o camponês para dar conta do seu. Falam da qualidade mais elevada do seu trabalho como se esta elevação dependesse deles; como se ela lhes desse o direito de
trabalhar menos para os seus semelhantes que estes trabalham para eles; como se o trabalhador não pudesse mais facilmente passar sem eles que eles passam sem o trabalhador;
como se a valor de um quadro célebre não fosse mais posto em dúvida que o de um rego bem feito na terra arável; como se não iôssem precisos, para exercitar a mão
ou a vista de um pedreiro ou de um ferreiro, tantos anos de aprendizagem como para exercitar os de um artista. Em resumo: como se estes homens fossem deuses, tal
como os persuadiram, de há muitos anos para cá, os adoradores hipócritas dos intelectuais. Os artistas são os grandes sacerdotes do Moloch moderno. Dez por cento
de entre eles são uns doentes, suficientemente sãos de espírito para que possam explorar as suas próprias nevroses. A única das suas qualidades que me impõe respeito
é um certo egoísmo que os obriga a morrer de fome e deixar a família morrer de inanição só para não fazerem qualquer trabalho de que não gostam...
- Asseguro-te, Sidney, que te enganas redondamente. Conheci na escola uma rapariga que ajudava a mãe e duas irmãs a viver, com o seu talento de desenhadora. De resto,
que podemos nós? As pessoas não se fizeram...
- É facto. Eu fui feito proprietário e capitalista pela loucura dos meus semelhantes. Mas essa gente pode, se quiser, desfazer o que está feito. Entretanto, não
tenho nenhum meio de escapar à minha situação a não ser passar os meus escravos a outros homens que não se servirão deles melhor do que eu e de fazer-me eu próprio
escravo, o que não acontecerá tão cedo, podes crer. Não, minha querida, é preciso que eu continui a explorar os homens, quer por ti, quer por mim. Mas tu não te
ocupas de coisas tão prosaicas. O remorso consome-me por ter-te aborrecido, minha prenda. Queres saber por que razão vivo aqui como um
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eremita, numa cabana modesta, em vez de gozar as delícias da sociedade londrina com a bela e jovem bem-amada que tenho por esposa ?
- Mas tu não vais ficar aqui, não é verdade ?
- Fico, sim, e vou dizer-te porquê. Ajudo a libertar os trabalhadores de Manchester que foram escravos de meu pai. Para triunfar, é preciso que os seus companheiros de trabalho se unam com o fim de dividir equitativamente o trabalho e repartir conscienciosamente o produto desse labor; de não ceder, caridade aparte, um péni a
qualquer adulto robusto, preguiçoso ou esquivo, e de tratar como praga da comunidade humana as pessoas que querem ter mais que a sua parte legítima de riquezas ou dar menos que a sua parte de trabalho. É uma coisa muito difícil de conseguir, porque os trabalhadores, tal como as pessoas chamadas seus superiores, não compreendem sempre os seus próprios interesses e muitas vezes ajudam os seus opressores a exterminar os que os querem salvar ao som do Rule Britannia ou qualquer outra canção
enganadora.
"É preciso educá-los e, entretanto, devemos promover com diligência a organização dos trabalhadores. Neste momento ocupo-me com a propaganda dos princípios. O Capitalismo,
sob pretexto de governar a nação, está montado para a repressão e haveria de julgar bem depressa a organização se compreendesse os nossos fins. Mas julga que estamos ocupados em complots para assassinar testas coroadas. Por consequência, enquanto a polícia perde o seu tempo à procura de provas, o nosso trabalho real continua sem ser molestado. Não posso dizer ao certo se a causa avança verdadeiramente nas minhas mãos; o que sei é que consumo montes de selos e pago as despesas de muitos conferencistas bastante medíocres. São de minha conta, também, os gastos de impressão de resmas de brochuras e de folhas volantes que saúdam o trabalhador e o lisonjeiam chamando-lhe o sal da terra. Escrevo e edito um pequeno periódico e faço, de um modo geral, tudo o que está ao meu alcance. Prefiro dispender deste modo a minha fortuna mal ganha a ter uma casa que me custa muito dinheiro e uma cabazada de criados. E prefiro os meus calções de veludo e o meu chalé de dois compartimentos à nossa linda casinha, ás tuas encantadoras fantasias e à minha curiosa
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maneira de ser negligente no trabalho que me propus executar. Talvez um dia eu me brinde com umas férias. E nessa ocasião teremos uma nova lua de mel.
Durante um momento, Henriqueta pareceu prestes a chorar. De repente, exclamou com entusiasmo:
- Quero ficar contigo, Sidney. Quero partilhar do teu trabalho, qualquer que ele seja. vou vestir-me como uma leiteira e arranjar uma bilha para levar o leite. O mundo nada significa para mim, se não estiver a teu lado e muito me agradaria viver aqui para fazer desenhos do natural.
Ele empalideceu, levantou-se a meio, incapaz de ocultar o seu temor. Ela, resolvida a não ser afastada, agarrou-se-lhe ao pescoço. Foi este movimento que provocou o riso do moço de Wickens no areal adjacente. Tréfusis gostou desta interrupção e ao dar dois dinheiros ao rapaz dizendo-lhe que se fosse embora, esperava que ele recusasse fazê-lo. Mas, a despeito da sua obstinação habitual, o rapazote mostrou-se dócil dessa vez e retirou-se para a estrada, onde fez menção de entregar uma das moedas a um jogador imaginário e pôs-se a jogar a "coroa ou cara" até ao momento em que a aparição da falange de Fairholme pôs fim ao jogo e à dupla personagem.
Durante este tempo, Henriqueta voltava com insistência à sua proposta:
" - Seríamos tão felizes! - disse ela. - Eu ocupava-me da casa e tu poderias trabalhar tanto quanto quisesses, A nossa vida seria um longo idílio.
- Meu amor, - respondeu Tréfusis meneando a cabeça, enquanto ela o fitava com súplicas no olhar, - tenho demasiado algodão de Manchester no meu temperamento para me permitir o luxo de prolongados idílios. Para dizer a verdade, a primeira condição de trabalho para mim é a tua ausência. Quando estás junto de mim, nada mais posso que fazer-te a corte. Enfeitiças-me. Quando te escapo por um momento é somente para gemer com remorsos das horas perdidas e da energia gasta com as tuas futilidades.
- Se não querias viver comigo, não deverias ter-me desposado.
- É verdade. Mas isso não é culpa tua nem minha. Descobrimos que nos amávamos muito e que a nossa intimidade incomodava a possibilidade de sermos úteis. Por
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este motivo devemos separar-nos. Mas não para sempre, querida; somente até que tenhas suficientes cuidados e ocupações para encher a tua vida e te impedir de prejudicar
a minha.
- Acredito verdadeiramente que endoideceste, - disse ela com petulância.
- Nos tempos que correm, a humanidade está louca e corre para a sua destruição tão depressa quanto a cupidez -o pode fazer. Por mim, coloco-me à margem desta carga
obstinada, porque não me seduz o seu destino. Olha, vem ?ali um lanchão cujo dono me é dedicado, porque julga que -estou organizando uma revolução para abolir a
taxa de comporta e os outros impostos. Vamos embarcar os dois até Lyvern, de onde podes regressar a Londres. Na estação onde fizeres trasbordo farás bem em telegrafar
para o colégio. Neste momento, devem andar à nossa procura por todos os cantos. Ficarás com a minha direcção e poderemos escrever-nos ou vermo-nos quando nos convier.
£ também podes pedir o divórcio contra mim por abandono do lar.
- Sinto que o desejas, - disse Henriqueta, soluçante.
- Morreria de desespero, minha querida, - disse ele, amavelmente. - Olá do barco! Não chores mais, Hetty, pelo amor de Deus. Dilaceras-me o coração.
- Ohé! oo-oo, patrão! - rugiu o marinheiro.
- bom dia, me senhor, - disse um homem, que, chicote curto na mão, caminhava ao lado do cavalo branco que arrastava o lanchão. - Toca a andar, - continuou ele, dirigindo-se
ao cavalo com malevolência.
- Preciso que me leve a bordo até Lyvern, - disse Tréfusis. - O cavalo está bem tratado.
- Melhor que eu,- disse o homem. - Não se pode obter de um cavalo a meia ração o que se obtém de um homem ou de uma mulher nas mesmas condições. Já estive em alguns
sítios de Inglaterra onde este serviço de puxar os lanchões é feito por mulheres. Fica mais barato que os cavalos, porque não custa nada arranjar outras mulheres
quando as velhas já estão gastas.
- Então porque não as emprega ? - preguntou Tréfusis, com gravidade cómica. - O princípio de comprar a força de trabalho muito barato e de vender o seu produto o
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caro possível, contribuiu bastante para fazer dos ingleses... o que eles são hoje.
As companhias de caminhos de ferro têm hospitais
para os seus semelhantes, - disse o homem, com um risinho manhoso indicando o cavalo, enquanto lhe tocava no ventre com a ponta do chicote. - Se algum dia tentar
ser um trabalhador a sério, patrão, faça-o sobre quatro patas. É mais rendoso que sobre
duas...
- Este homem é um dos meus convertidos, - disse Tréfusis em aparte a Henriqueta. - Disse-me noutro dia que, depois de eu o ter ensinado a pensar, não vê nunca um
cavalheiro sem lhe chegar a vontade de lhe atirar um tejoio à cabeça. As minhas teorias são muitas vezes mal assimiladas pelos menos inteligentes, tanto dos que
as sustentam, como. dos seus adversários que supõem ter direito a uma indulgência sem limites a tendência natural de atirar pedras às pessoas respeitáveis. E agora
vou-te levar por esta pontezinha. Se não te mexeres, alcançamos o lanchão; de contrário, vamos parar direitinhos ao fundo do canal.
Levou-a sã e salva para o outro lado da ponte e trocou umas palavras amigáveis com o patrão do barco. Em seguida levou Henriqueta para a proa e ficou-se a contemplar a água enquanto o lanchão os levava silenciosamente através de pastagens acidentadas.
- Seria uma viagem fantástica, - disse Tréfusis - se pudéssemos varrer do pensamento a mulher que está lá em baixo a preparar o jantar do marido, num buraco infecto, tão grande como pode ser o teu guarda-vestidos e...
- Oh ! não me fales mais dessas coisas, - impôs ela de mau humor. - Eu não posso remediar esses males, bem me bastam os meus. Ao menos o seu marido vive junto dela.
- Se lhe fizesses a oferta, podes crer que ela aceitaria trocar contigo de boa vontade...
Henriqueta não teve a resposta pronta. Depois de uma pausa, Sidney pôs-se a falar da paisagem de uma maneira poética e a proferir tiradas e amabilidades de amoroso. Mas Henriqueta sentia que tinha a intenção deliberada de se desfazer dela, e Sidney, pelo seu lado, compreendia que era inútil tentar ocultar-lhe o seu desígnio.
Henriqueta foi sentar-se num montão de tejolos e limitou-se a uns movimentos de cólera quando ele a forçava a
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responder-lhe. Como o fim da viagem se aproximava e os seus veementes protestos contra o abandono ficavam apenas meio expressos, - pensava ela, - Henriqueta sentiu que se tornava quási intolerável a injúria infligida à sua pessoa.
Pararam num cais e enfiaram por uma ruela onde se cavavam profundos sulcos e os levou à rua principal de Lyvern. Aqui, Sidney transformou-se novamente em Smilash, caminhando com deferência um pouco adiante de Henriqueta, como se ela o tivesse ajustado para lhe indicar o caminho. Henriqueta percebeu então que a sua última probabilidade tinha passado e a este pensamento quási desatou a chorar.
Acudiu-lhe a ideia que poderia, talvez, vergá-lo se lhe fizesse uma cena em público. Mas a rua era rumorosa e ela tinha algum receio de seu marido. Nenhuma destas considerações a teria detido se estivesse num dos seus dias de mau humor intratável, mas naquele momento sentia-se acobardada. O seu mau humor só aparecia quando se lhe tornava prejudicial. Deixou-se conduzir ao comboio tranvia, que estava a partir no momento em que chegaram à estação. Tréfusis tirou o chapéu, preguntando se não tinha mais algum recado que ele fizesse e, num terno murmúrio, desejou-lhe boa viagem, mas Henriqueta nem quis olhar para ele, Separaram-se assim e Smilash regressou só ao chalé, onde foi recebido pelos dois polícias que o levaram ao colégio,
VI
O ano corria e não tardou que as longas noites de inverno começassem.
No colégio dAlton, as raparigas estudiosas, cora os cotovelos sobre as carteiras e as mãos sobre as orelhas, estremeciam friorentas nas suas capas de pele, enquanto enchiam a memória de teorias sobre a ciência moral, ou então, como essas pessoas que nadam com a ajuda de bóias, resolviam problemas de matemática sobre postulados. De aqui, resultava, às vezes, que quanto mais uma aluna raciocinava com justeza em matemática, menos raciocinava na
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vida real, porque poucos são os postulados dignosde fé que se verificaram adaptáveis à vida.
Ágata, que não era estudiosa e estava sujeita a tremelicar de frio no inverno, dispôs-se a infringir o artigo 17 com frequência crescente. O artigo 17 proibia às
alunas que fossem à cozinha e distraíssem de qualquer modo o pessoal do cumprimento dos seus deveres. Ágata não se importava com o artigo 17, porque gostava de fazer
caramelos e de os comer, porque gostava de um bom lume e, em geral, de tudo o que era proTbido e ainda porque lhe agradava a admiração que lhe testemunhavam as criadas
pelas suas habilidades musicais e de ventriloquia.
Gertrudes acompanhava-a porque gostava também de caramelos e não lhe desagradava tomar atitudes de condescendência para com os seus inferiores. Quanto a Joana, ia
também, porque as suas duas amigas davam o exemplo. O espírito de aventura, a força do exemplo e o atractivo dos caramelos levavam muitas vezes, a estas expedições
mais voluntárias do que Ágata achava prudente capitanear.
Uma tarde, em que a senhora Wilson descia só, para ir à sua adega privativa, deteve-se perto da cozinha ao ouvir um som de cânticos e de risos. Escutou e ouviu sucessivamente
a dança das castanholas (que lhe recordou a energia com que Ágata tinha feito estalar os dedos diante da senhora Miller), o zumbir da abelha na vidraça, a canção
"Robin Adair" (bisada pelas criadas) e ainda uma imitação da sua pessoa, aconselhando com solicitude Joana Carpenter a preparar-se para o exame local de Cambridge.
Demorou-se a escutar até que o frio e o receio de ser surpreendida a espionar a forçaram a voltar a subir a escada sem ruído, com vergonha de se ter divertido com
uma brincadeira idiota e, ao mesmo tempo, de ter de fechar os olhos a uma infracção ao regulamento da escola, de preferência a enfrentar uma nova discussão com Ágata.
Havia agora um pormenor que provava que Ágata e a disciplina do colégio não estavam de acordo como outrora. Ao passo que, anteriormente, ela contribuía para encher
o livro com confissões de um número desproporcionado de destemperos, a falta que quási provocara a sua expulsão tinha sido a última ali inscrita.
Não que a sua conduta fosse melhor, pelo contrário.
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Contudo, a senhora Wilson não abordou nunca este assunto, considerando o livro das culpas sagrado demais para fazer alusão a isso. Mas descobriu que, se Ágata tinha renunciado a confessar as suas faltas pessoais, ajudava as outras a descarregar as suas consciências.
As frases espirituosas com que Joana, sempre confiante, animava as páginas do Registo Angélico, eram concludentes sob este ponto de vista.
Smilash tinha escolhido uma profissão. Aproveitando os últimos dias do outono, tinha caiado o seu chalé, pintado as portas, as janelas e a varanda, consertado o teto e o interior e, de um modo geral, melhorado a sua habitação a tal ponto que o proprietário o tinha prevenido de que o aluguer seria aumentado ao expirar o prazo convencionado de doze meses. Tinha-lhe feito notar que um locatário não pode razoavelmente desejar ter uma bonita casa de habitação onde não chove, pela mesma renda que uma ruína dificilmente habitável. Ao que Smilash respondeu prometendo reconduzir o chalé ao seu primitivo estado de desconjuntamento ao terminar o prazo do seu arrendamento. Tinha colocado na porta um cartaz imitando a letra de imprensa com esta inscrição, que mostrava às pessoas que com ele conversavam:
JEFFERSON SMILASH
Pintor, Decorador, Vidraceiro, Canalizador e Jardineiro
Encarrega-se de afinar pianos, aceita trabalhos domésíicos de toda a espécie, serve à mesa e faz outro qualquer serviço em família.
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A profissão assim anunciada, se bem que reunindo vários ofícios, não prosperava. Quando os curiosos lhe pediam atestados da sua competência e honorabilidade, ele mandava-os com desenvoltura ter com Josephs, Fairholme e, par-
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ticularmente, com a senhora Wilson que, dizia ele, o conhecia desde a sua mais tenra infância.
Fairholme, contente por poder mostrar que não era daqueles sacerdotes melífluos, declarava, quando o interrogavam : Smilash é o velhaco mais completo de toda a região. Josephs, um pouco por benevolência e um pouco por medo de que Smilash pudesse, em qualquer ocasião, persegui-lo por difamação, dizia que não tinha dúvida alguma que este homem fosse um trabalhador barato; seria um acto de caridade dar-lhe algum trabalho para o encorajar. Quanto à senhora Wilson, essa confirmava o parecer de Fairholme e o organista da igreja que, havia um quarto de século, afinava todos os pianos naquelas redondezas, acusou o recém-vindo de-ser um homem de sete ofícios que nada sabia de nenhum deles.
Em contrapartida, os radicais de Lyvern, pequeno partido de má reputação, afirmavam que este homem nada tinha de mau e que os "pastores" e em particular a senhora
Wilson, que vivia numa bela casa e só recebia como pensionistas as filhas dos figurões ricos, poderiam empregar melhor o seu tempo que em retirar o pão da boca a
um pobre trabalhador. Mas como nenhum membro deste partido tinha necessidade de um ajudante nos trabalhos domésticos, o apoio que lhe deram resultou praticamente
inútil. À única cliente foi uma governanta que abandonava o seu lugar numa casa de campo da vizinhança; desejava consertar a sua mala, cuja tampa não existia já.
Smilash pediu dois xelins e meio pelo trabalho e como ela protestasse, ele baixou logo para um xelim. A troco desta quantia pintou a mala de novo, pôs-lhe iniciais,
substituiu as dobradiças, colocou uma fechadura especial e pegas de cobre. Tudo isto custou-lhe dez xelins e muitas horas de trabalho. A governanta não gostou da
cor da pintura, mandou retirar as pegas que, dizia ela, lhe lembravam um caixão fúnebre, queixou-se de que uma fechadura, cuja chave era tão pequena, não podia fechar,
bastante solidamente, uma mala tão grande. Reconheceu, no entanto, que a culpa era sua por não se ter dirigido a um homem hábil para fazer capazmente aquele trabalho.
O caso transpirou e toda a gente dizia que ele tinha estragado a mala, o que afastou a provável clientela, e desde
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aquele dia o seu cartaz serviu apenas de galhofa aos passeantes e aos pastorinhos que gostam de atirar pedras.
Uma noite, uma violenta tempestade assolou Lyvern e as pequenas do colégio, com medo dos relâmpagos, rezaram as suas orações com mais fervor que de costume. A meia noite e meia hora,ra chuva, o vento e os trovões faziam um tal barulho que Ágata e Gertrudes, envoltas em chailes, desceram furtivamente até à janela do patamar para o qual deitava o gabinete da senhora Wilson. E ali ficaram a contemplar os relâmpagos que descobriam rápidas imagens da paisagem, discutindo em voz baixa a probabilidade do perigo que corriam junto de uma janela e se as hastes de cobre podiam atrair o raio. Ágata, tão séria e afectuosa em face de uma só companheira como maliciosa e satírica se tornava perante um auditório mais numeroso, gozava tranquilamente a cena. Os relâmpagos não a atemorizavam, porque não tinha a exacta noção do valor da vida. Imaginava, pelo contrário, provar o seu heroísmo mostrando-se indiferente. O tremor que lhe ocasionavam os relâmpagos mais fortes tornavam-na apenas consciente da sua coragem, que contrastava com a aflição de Gertrudes. Por fim, esta, não podendo mais, a tremer, e sem poder já ocultar o terror que a invadiu ao deslumbrá-la o ziguezague imenso de um temeroso relâmpago de chama azul, suplicou:
- Vamo-nos deitar, Ágata. Não estamos aqui em segurança.
- Estamos tão seguras aqui como na cama. Ao menos podemos ver qualquer coisa. Notas como a casa treme ? Creio que a chuva vai quebrar todos os vidros das janelas antes de...
- Oh... - murmurou Gertrudes, aferrando-se no braço da companheira. - Que é isto?
- Isto, o quê ?
- Estou certa de que ouvi a sineta... a sineta do portão. Peço-te, vamo-nos deitar.
- Estás a sonhar! Quem poderia andar por fora numa noite destas? Foi com certeza o vento que fez soar a sineta.
Não tardou que elas ouvissem um fraco som de sineta misturado com o ruído do vento. Depois foram toques mais violentos e apressados, que provinham, sem a menor dúvida,
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da sineta do portão do colégio. Havia a casa da porteira,, mas estava desabitada.
Quem diabo poderá ser - disse Ágata. - O idiota.
quem quer que é, não encontra a aldrava?
- Deus o não permita. Subamos depressa, peço-te,. Ágata.
- Não. Vai tu, se quiseres. Eu fico.
Mas Gertrudes tinha medo de subir sozinha.
- Suponho que faria bem em acordar a senhora Wilson, para a prevenir, - continuou Ágata. - É medonho deixar alguém lá fora com um tempo destes.
- Mas não sabemos quem é...
- E então ? Tu não tens medo, pois não ? - preguntou Ágata, sabendo bem que era o contrário.
Mas reconhecia que convinha reduzir Gertrudes ao silêncio pela vergonha. Escutaram novamente. A tempestade fazia agora um ruído ensurdecedor. Já não podiam ouvir a sineta, mas ouviram grandes pancadas dadas na porta da casa. Gertrudes soltou um grito, que foi repetido no andarde cima, por várias alunas, que também tinham ouvido as pancadas. Isso tinha-as posto num estado de espírito vizinho, do momento mais angustioso de um pesadelo. Um instante depois, a luz de uma vela vacilou na escada e a voz da senhora Wilson, tranquilizadora pela sua firmeza, fêz-se ouvir :
- Quem está aí ? - preguntou.
- Sou eu e a Gertrudes, senhora Wilson. Estávamos a ver a tempestade, quando ouvimos alguém que batia à...
Foi interrompida por pancadas furiosas dadas com a argola da porta, seguidas de um ruído que se misturava com a tormenta, como uma voz de homem que gritava.
- É melhor não abrir a porta,- disse a senhora Wilson, alarmada. - A menina é muito imprudente, Ágata, em estar aí. Vai apanhar uma doença mortal e... Meu Deus!
Que será ?
Desceu vivamente até ao vestíbulo, seguida de Ágata, Gertrudes e algumas alunas mais animosas. Ali, encontraram as criadas a tremer, com os olhos fixos na despenseira, que olhava através do buraco da fechadura da porta de entrada e preguntava medrosamente quem batia. Os de fora com certeza não a ouviam, porque recomeçaram a bater na porta enquanto ela falava, o que a fez recuar, como se tivesse-
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recebido uma pancada na boca. A senhora Wilson fez chocalhar a corrente para chamar a atenção e voltou a preguntar:
- Quem está aí ?
- Deixe-nos entrar, - foi-lhe respondido num apelo surdo, através do buraco da fechadura. - Está aqui uma mulher moribunda e três crianças. Abram a porta.
A senhora Wilson perdeu toda a presença de espírito. Para ganhar tempo, respondeu :
- Eu... não consigo ouvir o que dizem. Que há?
- Deus de misericórdia! - disse a voz, falando desta vez para alguém dos de fora. - Não conseguem ouvir-nos.
E as pancadas recomeçaram com vigor crescente. Ágata, enervada, agarrou-se ao roupão da directora e repetiu o que tinha ouvido. A senhora Wilson tinha ouvido tão
distintamente como Ágata e sentiu, sem saber porquê, que era preciso abrir, mas não podia defender-se de um vago temor pelo que iria seguir-se.
Começou a retirar as correntes e Ágata ajudou-a a correr os ferrolhos. Duas das criadas puseram-se a gritar que iam todas ser estranguladas nas suas camas e desataram
a fugir. Algumas das alunas pareciam prestes a seguir aquele exemplo. Por fim, a porta, liberta das correntes, foi brutalmente aberta por um enérgico golpe de vento,
que atirou para trás a senhora Wilson e Ágata e deixou penetrar um verdadeiro turbilhão, que invadiu o vestíbulo, agitou violentamente os roupões das mulheres e
apagou as luzes. Ao ziguezague de um relâmpago, Ágata descobriu, durante um instante, dois homens que faziam grandes esforços junto da porta, como marinheiros ao
cabrestante. Depois percebeu, pela acalmia que se seguiu, que eles tinham fechado a porta. Riscaram-se fósforos, as velas tornaram a acender-se e os recém-vindos foram vistos em plena luz.
Smilash, de cabeça descoberta, sem capote, o seu colete e o calção de veludo encharcados pela chuva; um homem de meia idade, de aspecto rude, vestido pobremente como um pastor e também encharcado, com a expressão lastimosa, paciente e desesperada das pessoas que a má sorte reduziu à última extremidade; duas criancinhas (um rapazito e uma rapariguinha), quási nus, que se encolhiam debaixo de uma velha saca, que lhes tinha servido de guarda-chuva;
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finalmente, sobre o canapé onde os dois homens tinham deposto um montão de vestuário miserável, de sacas, um colchão podre, o capote e o casaco de Smilash,
tudo isto cobria o que se verificou ser uma mulher extenuada, abrigando sobre o seu peito uma criancinha. A expressão de Smilash, olhando para ela, era feroz.
- Peço perdão por incomodá-la, minha senhora, -disse o homem, dirigindo-se à senhora Wilson, depois de ter lançado um olhar ansioso para Smilash, como se esperasse
que ele falasse em seu lugar. - O teto da minha casa e uma das empenas foram levadas pelo temporal e minha mulher acaba de ter mais um menino. Custa-me muito ter
de a incomodar, mas... mas...
- Incomodar! - exclamou Smilash. - Esta senhora tem até muita satisfação em o socorrer.
Nesta altura o pequenito, não podendo mais, desatou a chorar e a mulher soergueu-se para lhe ralhar:
- tom, não tens vergonha de chorar diante desta senhora ?
Em seguida deixou-se cair sobre o monte de trapos, fraca demais para se preocupar com o que pudesse acontecer neste mundo. Smilash olhava com impaciência para a senhora Wilson, que hesitava acabando por dizer:
- Que deseja de mim ?
- Que auxilie esta gente.
Depois, numa explosão de cólera nervosa, acrescentou:
- Faça o que o seu coração lhe ditar. Dê a sua cama e o seu vestuário a esta mulher e deixe que as suas pequenas mandem para o diabo os livros por .alguns dias, enquanto auxiliam estas pobres criaturas. Os míseros trabalham duramente para as vestir a elas também. É justo que seja a sua vez de vestir os pobres.
- Não, não, mais devagar, patrão, - disse o homem, dando uns passos em frente para acalmar a senhora Wilson e ao mesmo tempo esmagado pela atmosfera de má vontade que pressentia. - Esta senhora não tem culpa do que aconteceu. Não se importa de me dar um canto qualquer para minha mulher, até de manhã? Seja onde for tudo lhe serve, porque ela está habituada ao pior. Basta um teto por cima da cabeça até que eu arranje uma casa.
Lançou um olhar desolado ao longo da cornija que
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corria em volta do vestíbulo, como se estivesse ali a tábua de salvação sobre a qual se pudesse improvisar um lugar onde se acomodasse a parturiente.
A senhora Wilson voltou as costas a Smilash, de modo decidido e com desprezo. Tinha retomado a sua calma.
-Recolho a sua mulher aqui, - disse ela ao homem.
- Todos os cuidados lhe serão dispensados. As crianças podem ficar também.
- Um viva pela ciência moral! - exclamou Smilash, entusiasmado, recaindo na sua personagem atrevida que a cólera lhe tinha feito esquecer. - Ó vizinho, quais foram
as minhas palavras quando eu o aconselhei a trazer a sua mulher para o colégio ao que você respondeu:
"Ora! Haviam mesmo de gostar de lá nos ver!" Não lhe disse
eu que esta senhora tinha um nobre coração e que havia de dar provas disso quando acontecesse uma calamidade como esta ?
- Para que está o patrão a lembrar as minhas palavras, ditas sem pensar, quando a senhora se mostra tão boa?
- disse o homem com emoção. - Fico-lhe muito e muito reconhecido, minha senhora e a Bess também. Compreendemos bem o aborrecimento que lhe causamos...
A senhora Wilson, entretanto, tinha parlamentado com a despenseira e cortou o discurso ao homem. Ordenou-lhe que levasse sua mulher para uma cama, e ele assim fez, ajudado por Smilash radiante com o curso dos acontecimentos. Durante a sua ausência, uma das criadas, mandada levar cobertores para o quarto da pobre mulher, recusou-se a isso, dizendo que não estava disposta a servir gente daquela laia. A senhora Wilson preveniu-a, quási ferozmente, de que na manhã seguinte dispensava os seus serviços. Aparte esse incidente, nenhuma má vontade foi manifestada aos refugiados. As educandas foram em seguida mandadas para a cama.
O homem instalou sua mulher num quarto, verdadeiro quarto de palácio em comparação com aquele que a tempestade destruíra, e ele felicitou-a pela sua boa sorte e ameaçou os petizes com diversos castigos se não se conduzissem convenientemente enquanto permaneciam naquela casa. Antes de os deixar beijou sua mulher. Esta, regressada à vida, pediu-lhe que olhasse para o seu bebé. Ele assim
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fez, apostrofando pensativamente o pequenino ser de modochocante que fazia alusão ao tempo futuro em que o seu apetite não deveria já satisfazer-se com o seio materno,
mas depender do armazém de viveres. Ela riu e envergonhou-o.
Despediram-se alegremente. Quando regressou ao vestibulo com Smilash, encontraram dois copos de cerveja à sua espera. As pequenas tinham-se retirado, apenas se
vendo ali a senhora Wilson e a despenseira.
- Á vossa saúde, minha senhora, - disse o homem, antes de beber. - Possa a senhora encontrar alguém de tão bom coração se algum dia tiver necessidade disso, o qua
não lhe desejo.
- A sua casa ficou completamente destruída ? - pre guntou a senhora Wilson. - Onde vai passar a noite ?
- Não se inquiete por mim, minha senhora. Mestre Smilash, aqui presente, dá-me guarida até de manhã.
- À sua saúde! - repetiu Smilash, molhando os lábios no copo.
- O teto e a parede foram completamente arrancados,.
- continuou o homem, depois de curta pausa, que empregou em tentar adivinhar o que Smilash poderia querer dizer. Duvido de que haja pedra sobre pedra neste momento.
- Mas com certeza o John vai mandá-la reconstruir.. O senhor é um dos seus pastores, não é ?
- Sou, sim, minha senhora. Mas ele não fará isso. Até há-de gostar de que a cabana tenha caído. Sir John não gosta de que haja quem viva nas suas terras. Disse-lhe
vezes evezes sem conto que a minha cabana ameaçava ruína e respondeu-me que não pensasse em o fazer gastar dinheiro numa habitação que não lhe rendia nada. Eu não
pago renda. Aceitava um pequeno salário, e essa cabana era uma espécie de compensação pelo que recebia a menos. Eu não podia fazer a despesa do conserto, mas fiz
quanto pude para a arranjar e segurá-la de pé. E agora com certeza que sir John vai ficar zangado por eu ter deixado o vento levar a casa pelos ares. Vai-me ser preciso passar a viver na vila em metade de um compartimento e pagar dois ou três xelins por semana, sem contar que, todos os dias, tenho três milhas de caminho a pé à ida e outro tanto à volta. Um cavalheiro como sir John não sabe o que representa um péni
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para nós, trabalhadores, nem como é duro e cruel para nós o regulamento da sua propriedade e tudo o mais.
- A saúde de sir John! - gritou Smilash, molhando os lábios como anteriormente.
O homem bebeu um golo humildemente, enquanto Smilash continuou:
- E também à dos ilustres proprietários de terras da velha Inglaterra! Que Deus os abençoe...
- Mestre Smilash não faz outra coisa que não seja troçar, - disse o homem à guisa de desculpa. - É o seu modo.
- O senhor não devia constituir família, sendo tão pobre, - disse a senhora Wilson, severamente. - Não compreende que empobrecem espantosamente para não invocar razões mais elevadas ?
- Á saúde do ilustre Malthus, - prosseguiu Smilash no mesmo tom chocarreiro.
- Há quem diga que são os filhos e há quem diga que é a bebida, minha senhora, - disse o homem em tom submisso. - Mas a verdade é que, com família ou sem ela, bêbedo ou não, o pobre torna-se cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico.
- Diga lá se não causa desgosto um homem tão ignorante das condições de melhoria da sua classe! ? - disse Smilash dirigindo-se à senhora Wilson.
- Se tem a intenção de levar este homem para sua casa,
- respondeu ela, voltando-se bruscamente para ele, - faria bem em não se demorar.
- Tomo como um cumprimento da sua parte que me peça para fazer qualquer coisa, depois de ter dito ao senhor Wickens que eu era a última pessoa a quem confiaria um trabalho qualquer.
- E é verdade que disse. Não bebe a cerveja?
- Não é por desprezo pela sua cerveja, minha senhora, mas eu sou um homem grosseiro e a água vale o mesmo para mira,
- Desejo-lhe uma boa noite, minha senhora, - disse o homem, - e muito agradecido em nome da Bess e dos pequenos.
- Boa noite, - correspondeu ela, dando um passo para evitar a saudação de Smilash.
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Mas ele aproximou-se dela e, em voz baixa, com as maneiras e o tom de voz de Tréfusis, disse:
- Boa noite, senhora Wilson. Se algum dia tiver necessidade de um cão, de um homem ou de um mecânico, lembre a Bess e os pequenos a Smilash e ele a servirá a qualquer destes títulos.
Abriram a porta com precaução e notaram que o vento tinha abrandado. A chama da vela vacilou na corrente de ar, mas não se apagou dessa vez e a senhora Wilson ficou só com a despenseira. Aferrolharam a porta e fixaram as correntes enquanto ouviam enfraquecer cada vez mais o ruído dos passos dos dois homens, que se misturava com o cair regular da chuva enquanto eles se afastavam sobre o cascalho do caminho.
VII
Ágata tinha entrado nos dezassete anos. Tinha uma viva percepção das fraquezas dos outros e nenhum respeito pelos seus maiores, que ela achava aborrecidos, circunspectos e ridiculamente penetrados das suas responsabilidades em face fios factos mais banais. Mas tinha uma ilusão que prejudica a juventude, a despeito da sua superioridade sobre a velhice. Julgava-se uma excepção. Não concedia ao senhor Jansénio, e ao género humano em geral, mais que uma baixa consciência de alguns factos materiais, ao passo que, pelo contrário, constatava na sua pessoa uma extrema sensibilidade e uma compreensão que se estendia a toda a natureza, apenas partilhada pelos seus poetas favoritos, os heróis dos seus romances e os da História.
Por este motivo, como acontece frequentemente à mocidade, era melhor juiz dos assuntos dos outros que dos seus, próprios.
Ágata ria-se encapotadamente de uma camarada que, por exemplo, adorava um Henrique ou um Augusto, não com a sentimentalidade idiota que a humanidade apelida de amor, mas porque este Augusto ou este Henrique era uma fénix ao qual não se aplicam as leis que governam as relações
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entre rapazes e raparigas. Quanto mais ela verificava esta fraqueza nas suas companheiras, mais se convencia de que estando prevenida, se encontrava vacinada contra estas crises.
Era como se um médico concluísse que não pode apanhar o sarampo, porque verificou já muitos casos desses, ou como se um mestre de equipagem, sabendo que há muitos naufrágios na Mancha, se aventurasse sem piloto nesse mar, dizendo que conhecia muito bem os perigos para poder correr algum risco pessoal. Todavia, como o médico só poderia ter semelhante opinião se se julgasse constituído de modo diferente dos outros homens, ou o.mestre de equipagem se o seu navio fosse uma estrela, Ágata encontrou uma falsa segurança na diferença subjectiva que existia entre as suas camaradas vistas por fora e ela própria vista por dentro.
Por exemplo, quando se apaixonou por Jefferson Smilash (não que ela se decidisse a vencer no dia seguinte ao da tormenta), a sua imaginação emprestou a esta agradável
emoção um carácter sagrado que, para si, a colocava aparte e a diferençava dos sentimentos frívolos de que os Henriques e os Augustos eram o objecto e ela a confidente.
- Posso pensar nele friamente e sem paixão, - disse consigo. - O seu rosto tem, seguramente, uma influência estranha que pode corresponder, sinto-o, a qualquer poder
inexplicado que existe em mim, mas não é um rosto perfeito. Tenho visto muitos homens que são, rigorosamente falando, muito mais belos. Se a luz que nunca existiu na terra ou no mar cintila nos seus olhos, a verdade é que os seus olhos não são bonitos, nem metade tão brilhantes como os meus. É verdade que o seu fato grosseiro o veste com uma graça notável que denuncia a cada passo a sua verdadeira
educação, mas não é o herói avantajado e esbelto, de ar melancólico, que seria o meu
herói ideal se eu fosse uma imbecil tão grande como costumam ser as raparigas da minha idade. Se estou apaixonada, tetiho bastante bom senso para não deixar que
o meu amor entorpeça o meu raciocínio.
Não confiou a ninguém o novo interesse que a vida lhe despertava. Sendo a mais enérgica da comunidade de estudantes a que pertencia, tinha usado do seu poder com bastante bonomia para ganhar a popularidade que pertence aos
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chefes e, às vezes, com escrúpulos a menos para lhe assegurar os privilégios de um tirano. No entanto, popularidade e privilégios não a satisfaziam senão quando tinha disposição de espírito para os suportar.
As raparigas, tal como os homens adultos, têm necessidade de que as ameiguem, as consolem e as lisonjeiem, quando duvidam delas próprias ou se encontram deprimidas ou sentem um amor que não é correspondido. São serviços que os fracos não podem prestar aos fortes e que os fortes não querem prestar aos fracos, salvo quando há diferença de sexo.
Ágata sabia, por experiência, que uma mulher fraca, mesmo quando ela não compreende porque razão sua irmã, mais forte, quere apoiar-se nela, pode triunfar sem o compreender e troçar em vez de consolar.
Desejava ser compreendida e não troçada. Achando-se incapaz de satisfazer uma e outra destas condições, resolveu dispensar a simpatia dos outros e calar-se. Já antes o tinha feito muitas vezes e foi ajudada nesta ocasião pelo senso do ridículo que a sua paixão poderia suscitar aos olhos do vulgo.
O seu segredo foi guardado por si próprio, porque no colégio julgavam-na insensível às emoções suaves. O amor não produziu nela nenhuma mudança aparente. Isto fê-la
acreditar que já tinha passado a idade adolescente e que era agora uma mulher, cujo coração era dotado de uma faculdade nova que ela teria puerilmente desprezado pouco tempo antes. Envergonhava-se de se recordar da sua farsa da abelha na vidraça, se bem que esta continuasse a zumbir tão frequentemente como antes. O emprego do seu tempo, outrora um ciclo monótono de aulas, refeições, jogos e sono,
era agora irregularmente cortado de passeios diante do chalé, que lhe permitiam enxergar acidentalmente o seu habitante.
No começo de Dezembro houve fortes geadas e a navegação no canal teve de ser interrompida. O moço de Wickens foi mandado ao colégio para informar que a lagoa oferecia
resistência e que as meninas do colégio podiam ir quando quisessem.
A lagoa não tinha mais que um metro e vinte centímetros de profundidade e como a senhora Wilson dava grande importância à educação fisica das suas alunas, a licença de
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patinar foi concedida. Ágata, que era muito hábil nesse desporto, propôs imediatamente que um grupo escolhido fosse patinar logo no dia seguinte, de manhã, antes do primeiro almoço.
Certos actos que nada têm de virtuosos em si próprios tomam muitas vezes a aparência da virtude quando se praticam a determinadas horas, que obriguem a levantar
cedo da cama, e algumas candidatas ao exame do Cambridge local, que não teriam sacrificado uma tarde com divertimentos, aceitaram imediatamente a proposta. Sem elas, este projecto não teria sido posto em execução. com efeito, quando às seis horas e meia da manhã elas convidaram Ágata a abandonar a cama quentinha e afrontar a. mordedura do ar glacial, ela teria recusado sem hesitação se a vergonha não a forçasse a ceder a essas laboriosas raparigas que ali estavam, com o nariz roxo de frio, junto do seu leito, mas contentes porque iam patinar. Quando Ágata se vestiu, a tremer e tagarelando, mataram a fome todas elas com uma ligeira refeição de biscoitos, pegaram nos seus patins e saíram. Atravessaram os prados cobertos de geada, passaram diante de pacientes vacas envoltas em nuvens de vapor produzido pela sua respiração e alcançaram a lagoa de Wickens. Ali, com grande surpresa sua, deram com Smilash, que, com patins de grande luxo, se entretinha a desenhar no gelo figuras complicadas. Depressa se verificou que a sua habilidade não corria parelhas com a sua ambição, porque, depois de estar várias vezes a ponto de perder o equilíbrio, acabou por se estatelar no chão, ao comprido e de costas. Ergueu-se com dificuldade e lá conseguiu sentar-se. Só então ele reparou nas oito pequenas que seguiam os seus movimentos com atenção.
- É o que acontece quando um homem vulgar quere sair da sua posição social e se lhe mete em cabeça patinar como um cavalheiro de condição, - disse ele. - Se eu me contentasse com uma simples escorregadela, como os meus pares, não faria agora esta linda figura.
Suspirou, levantou-se, cumprimentou a senhora Ward e descalçou os patins, acrescentando:
- bom dia, minha senhora. A senhora Wilson mandou-me dizer para estar aqui às seis horas precisas para calçar os patins a estas meninas e eu tomei a liberdade de
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uma ou duas figuras no gelo para impedir que o frio me tolhesse.
- A senhora Wilson não me disse que lhe tinha pedido para vir cá ter, - replicou a senhora Ward.
- É natural nessa senhora pensar em tudo sem ter disso a aparência. É uma dama amável e muito instruída, tal qual como a senhora. Queira sentar-se nesse banco e dar-me a seu tacão, se me permite furá-lo com uma verruma.
O seu auxílio foi útil e a senhora Ward consentiu que ele lhe calçasse os patins. Era canadiana e patinava com elegância. Joana, a primeira que se lhe seguiu, estava um pouco inquieta quanto à resistência do gelo, mas, uma vez tranquilizada, patinou admiravelmente, porque era também hábil neste exercício. Tinha a satisfação de rir agora das que troçavam dela na aula; Ágata, contrariamente ao seu costume, cedeu o lugar às suas companheiras e as suas botas foram as últimas que Smilash recebeu.
- Como passa a menina Wylie ? - preguntou ele, deixando de lado as maneiras de Smilash, agora que as outras estavam longe do alcance da sua voz.
- Passo bem, - respondeu ela, intimidada e embaraçada.
Esta forma de responder pareceu nova a Smilash. Deteve-se, com um tacão na mão, olhando para ela bizarramente. A rapariga refez-se imediatamente, olhou-o por seu turno com desenvoltura e acrescentou:
- Como foi que a senhora Wilson o pôde prevenir ? Ela só teve conhecimento desta expedição às nove horas e meia de ontem à noite.
- A senhora Wilson não me preveniu de nada. .
- Mas o senhor disse que sim à senhora Ward.
- É verdade. Mas eu sinto a necessidade de dizer quási tantas mentiras, agora que sou um trabalhador, como quandoera um cavalheiro. Talvez mais, na realidade.
- Para o futuro, saberei que confiança se deve ter nas suas palavras.
- A verdade é esta: eu sou, creio bem, o pior patinador do mundo, e por isso -segundo uma lei natural -aspiroa distinguir-me mais sobre o gelo que nas coisas para
que a natureza me deu melhores dotes. Invejo a sua amiga, a gorda, creio que se chama Joana, mais do que invejo Platão. Vim,
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aqui, esta manhã, praticar em segredo, supondo que os que patinam estavam ainda na cama.
- Agrada-me tê-lo surpreendido, - disse Ágata, maliciosamente, porque ele a desapontava.
Queria-o heróico na sua conversação, mas ele teimava em não o ser.
- Creio que lhe deve ter agradado surpreender-me. O maior prazer da mulher é ferir o amor-próprio do homem, se bem que o maior prazer do homem seja o de lisonjear o amor-próprio da mulher. E agora, vá patinar. É preciso ampará-la até que esteja segura sobre os pés?
- Não, obrigada, - respondeu ela, aborrecida. - Sei patinar muito bem e não creio que o senhor me possa darqualquer ajuda útil.
£ afastou-se com prudência, sentindo que um desaire seria uma vergonha depois daquelas palavras.
Smilash ficou na margem da lagoa a contemplar a complexidade Acrescente das curvas que as raparigas desenhavam no gelo. A medida que elas "aqueciam" e se acostumavam ao exercício, riam, gracejavam, soltavam gritinhos despreocupados quando se produziam choques e deslizavam ao vento com uma velocidade perigosa a todo o comprimento da lagoa. Quanto mais elas se animavam, mais o rosto de Smilash se tornava sombrio.
- São mesmo umas cabecinhas de vento, - comentou ele. - Algumas delas têm consciência de que um homem as está vendo ainda que não seja mais que um ignóbil trabalhador. Fazem-me lembrar Henriqueta, de mil modos. Por acaso eu ria-me se o gelo se quebrasse em pedacinhos debaixo dos seus pés?
Neste momento, precisamente, o gelo estalou com ruído sinistro e as patinadoras, com excepção de Joana, fugiram em todas as direcções.
- Rebentas o gelo, Joana, - gritou-lhe Ágata de longe, onde se sentia em segurança. - Imaginas que o gelo suporta um peso como o teu?
- Suas imbecis ! - retorquiu Joana com indignação. Este ruído apenas prova a sua resistência.
O choque que o estalido produziu em Smilash foi a resposta ao seu comentário mudo.
- Toma nota de que os votos que se fazem para a dêstruíção
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da raça humana, por muito racionais e sinceros que sejam, são contrários à natureza, - disse ele para consigo, retomando o seu bom humor. - Aliás, que grande
imbecil eu seria se trabalhasse numa associação internacional de pessoas boas, apenas para serem destruídas! Minha
senhora, Uma palavra, se faz favor...
Dirigia-se à senhora Ward, que patinava perto dele.
- Como a manhã está fria e a minha circulação não é boa, não seria uma grande liberdade da minha parte fazer aqui um pouco de glissagem ou dar uma volta nos meus
patins naquele cantinho acolá, sozinho ?
- Pode ir patinar ali, se quiser, - disse ela, depois de um momento de reflexão, indicando um recanto deserto onde o gelo não permitia a patinagem, por muito desigual.
- Nobres palavras! - exclamou ele, escarnecedor. Dirigiu-se ao sítio indicado, onde era impossível patinar.
Fez uma ou duas tentativas até que o rosto se lhe tornou ardente e que sentiu formigar os dedos devido ao ar gelado. Quando a senhora Ward o chamou para lhe descalçar os patins houve um murmúrio geral de protesto e as meninas declararam que era impossível que fossem já oito e meia. Smilash ajoelhou diante do banco articulado para desenroscar e desafivelar os patins. Quando chegou a vez de Joana, o banco gemeu debaixo do seu peso. Ágata gracejou a esse respeito, mas logo se censurou a sua gracinha, porque queria dar a Smilash a impressão de que o seu carácter era profundamente sério.
- O pezinho mais pequeno que tenho visto, - disse ele como um crítico, segurando um pé de Joana entre o polegar e o indicador, como se fosse um tesouro de arte que
lhe tivessem pedido para examinar. - E que pertence à menina mais -elegantemente modelada.
Joana retirou o pé com precipitação, corou e disse:
- Sério? E que mais?
- Falta o outro, - continuou ele.
Quando este patim foi descalçado, Smilash ergueu a cabeça para olhar para ela e, enquanto ela se levantava para se afastar, lançou-lhe um olhar que provava eloquentemente (os seus pés eram, na verdade, pequenos e bonitos) que o seu cumprimento tinha sido apreciado.
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- Permita-me, menina, - disse ele a Gertrudes, que se mantinha em equilíbrio sobre uma perna, apoiada contra Ágata, descalçando ela própria os seus patins.
- Não, obrigada, -respondeu ela friamente, - não tenho precisão da sua ajuda.
- Reconheço que a oferta era ousada, - respondeu Smilash, num tom um tanto provocador. - Se todos os patins estão fora, vou, por ordem da senhora Wilson, levá-los ao colégio, juntamente com o banco.
A senhora Ward entregou-lhe os seus patins e afastou-se. Gertrudes colocou os seus sobre o banco e caminhou no encalço da mestra. As outras raparigas imitaram-na e ele ali ficou a contemplar o monte de patins e a preguntar a si próprio como os poderia levar ao colégio... Não encontrou melhor maneira que ligá-los todos uns aos outros pelas correias e suspendê-los, como uma corrente, ao ombro. Entretanto, as pequenas estavam já fora do alcance da vista e a esperança de Smilash de gozar a companhia delas no regresso ao colégio desvanecera-se. Havia muito já que elas tinham alcançado o colégio quando ele ainda estava a meio caminho.
Um tanto aborrecido com a sua patetice, dirigiu-se para a entrada de serviço e tocou a campainha. Quando a porta se abriu, Smilash enxergou a senhora Ward por detrás da criada que o mandou entrar.
- Ah! - disse ela, como se não esperasse tornar a vê-lo. - Veio trazer-nos os patins.
- Eram as ordens que me tinham dado, - afirmou ele, desconcertado pelo modo da professora.
- O senhor não recebeu nenhuma ordem. Quais eram as suas intenções encarregando-se dos nossos patins sob falsos pretextos? Já ia prevenir a polícia para lhe pedir contas. Ousou dizer-me que estava encarregado de me servir quando sabe muito bem que não é verdade.
- Que quere, a senhora? - respondeu ele, com humildade.-Eu nasci mentiroso; sempre o fui. Sei que lhe devo parecer ignóbil à senhora que nunca mentiu na sua vida e que nem mesmo sabe o que vem a ser uma mentira, porque pertence a uma classe que nunca mente. Mas as pessoas grosseiras como eu dizem mentiras por dá cá aquela palha. Peço perdão humildemente e espero que as meninas encontrem
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todos os seus patins neste monte deles. O diabo me enforque se...
- Ponha-os no chão. A senhora Wilson quere-lhe falar antes de se ir embora. Susana, leve-o.
- Espero que não tenha ido com histórias a meu respeito, não é verdade?
- A senhora directora sabe como o senhor se conduziu. Ele sorriu-lhe com benevolência e seguiu Susana. No
caminho encontraram Joana, que lhes deitou um olhar rápido e ia passar-lhes à frente, quando ele lhe disse:
- A menina não quere dizer uma palavrazinha à senhora Wilson em favor de um pobre diabo, novo e digno? Fi-la bonita por ter tido a audácia de a ajudar esta manhã!...
- É inútil dar-se ao trabalho de fingir que não sabe pronunciar bem as palavras, - respondeu Joana, num rápido murmúrio. - Nós todas sabemos que isso é fingido.
- E não adivinha a causa ? - segredou ele, olhando-a com ternura.
- Uma destas! Nunca vi coisa parecida na minha vida!
- replicou Joana, que fugiu, compreendendo claramente que ele se disfarçava para poder entrar no colégio e gozar a ventura de a ver.
- Que imbecil eu sou! - comentou ele, para si. - Não sou capaz de me portar razoavelmente durante cinco minutos seguidos.
A criada levou-o ao gabinete da senhora Wilson e anunciou :
- Está aqui o homem, senhora directora.
- Jeff Smilash, - acrescentou ele, à guisa de explicação.
- Que entre ! - disse a senhora Wilson com severidade. Smilash entrou e, encontrando o olhar irado da directora, disse cortesmente:
?- bom dia, minha senhora.
Involuntariamente, ela inclinou-se para a frente como para receber um cavalheiro. Em seguida, tomou um ar implacável.
- Tenho de me desculpar, - disse ele, - por me ter servido esta manhã do seu nome sem autorização. Disse uma mentira, em suma. Eu ia começar a patinar quando as meninas chegaram, e, como tinham precisão de uma ajuda que dificilmente aceitariam de um homem vulgar - perdoe-me
110 usar esta expressão desagradável tirada do vocabulário do nosso conhecido Smilash - eu tranquilizei-as,
dizendo-lhes que a senhora me tinha dado essa ordem. De outro modo, como a senhora me arranjou má reputação, que não é pior do que eu mereço, elas teriam provavelmente recusado servir-se de mim, ou, então, haveriam de querer dar-me dinheiro, de que eu não tenho necessidade, naturalmente. A senhora Wilson fingiu surpresa.
- Não o compreendo, - disse.
- Não tenho grande necessidade, - emendou ele, a sorrir. - A senhora compreende que eu sou o que se chama um cavalheiro.
- Não é tal. Os cavalheiros com os quais mantenho relações não se vestem como o senhor, não falam desse modo, nem se conduzem dessa maneira.
Smilash olhou para ela, viu que o rosto da senhora Wilson confirmava a hostilidade do seu tom e, instantaneamente, recaiu no tom acerado de Smilash.
- Não continuarei a pretender que sou um cavalheiro,
- disse ele. - Sou um homem grosseiro, o olhar de Vossa Senhoria reconheceu-me como tal e não se pode enganar. Mas não diga que eu não sou franco, quando me permite sê-lo. Que mal pode haver em calçar os patins às meninas e trazer o banco?
- Se o senhor é um cavalheiro, - continuou a senhora Wilson, corando, - a sua conduta, persistindo nessas hipocrisias na minha presença, é um insulto, um grande insulto.
- Minha senhora, - respondeu Smilash com calma, se deseja absolutamente que eu seja Smilash, serei Smilash. É para mim um grande prazer personificá-lo. Se prefere que eu seja Sidney, meu verdadeiro nome de baptismo, não tem mais que mandar. Tem que ser um ou outro. Se se mostrar franca comigo, fico ciente de que é a Sidney que se dirige; se se mostra severa e fria, é com Smilash que fala.
- O seu nome importa pouco, - retorquiu a senhora Wilson, muito aborrecida. - Proibo-o de vir ao colégio ou de comunicar, de qualquer modo que seja, com as meninas que me estão confiadas.
- Por quê?
- Porque é este o meu desejo.
- Essa razão tem muita força, minha senhora; mas não
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é força moral no sentido expresso nos prospectos do seu colégio, que eu li com muito interesse.
Depois da sua questão com Ágata, a senhora Wilson tinha-se tornado muito sensível a propósito da força
moral.
- Ninguém é admitido aqui, - disse ela, - sem uma apresentação ou recomendação dignas de confiança. Um disfarce não substitui nem uma nem outra de modo satisfatório.
- Geralmente é para ocultar um crime que as pessoas, se disfarçam, - disse ele em tom pretencioso.
- Justamente, - concordou ela, com ênfase.
- Por consequência, eu tenho um carácter duvidoso,, para não ir mais longe. Apesar disso, travei ligeiro conhecimento com algumas das suas alunas, o que, parece, não édo seu agrado. Mas a senhora não me deu nenhuma razão forte para que eu renuncie a esses conhecimentos, e não me pode impedir de os cultivar, excepto pela sua vontade, o que habitualmente resulta ineficaz com os caracteres duvidosos. Suponha que eu não faço caso da sua vontade, e que uma ou duas das suas alunas vêm dizer-lhe: "Senhora directora, na nossa opinião, Smilash é bom rapaz. Achamos que a sua conversação é muito proveitosa. Como a senhora tem por princípio permitir-nos exercer livremente o nosso discernimento pessoal, temos a intenção de cultivar esteconhecimento." Que faria a senhora?
- Mandava-as para casa dos pais, imediatamente.
- Bem, vejo que os seus princípios são os da igreja anglicana. A senhora admite que as alunas têm o direito de julgar por si próprias, mas sob condição de chegarem às mesmas conclusões que a senhora. Perdoe-me, se lhe digo que os princípios da igreja anglicana, por muito bons que sejam, não são os que o seu prospecto me fez esperar. O seu sistema é a coacção pura e simples.
- Não admito isso, - respondeu a senhora Wilson, pronta a discutir, mesmo com Smilash, para defender o seu sistema. - As alunas têm a liberdade de fazer o que entendem, mas eu reservo-me liberdade semelhante: a de as excluir do meu colégio se não aprovo a sua conduta.
- Perfeitamente. Na maior parte das escolas as crianças têm liberdade absoluta de aprender ou não as suas lições; mas o director reserva-se a liberdade de os chicotear se não as aprendem capazmente.
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- Eu não chicoteio as minhas alunas, - respondeu ela, com indignação. - A sua comparação é abominável.
- Mas expulsa-as e como elas lhe são dedicadas, à senhora e ao .colégio, a expulsão é um castigo temido pelas pequenas. É o velho sistema de fazer as leis e de obrigar a observá-las sob pena de castigos. A superioridade do colégio dAIton sobre os outros colégios é devida, não a uma diferença de sistema, mas ã cordura relativa das suas leis e à doçura e critério com que são aplicadas.
- O meu sistema é radicalmente diferente do antigo método. Todavia, eu não quero discutir este assunto consigo. Um espírito cheio de preconceitos do antigo despotismo coercitivo não pode ver, naturalmente, neste sistema mais que uma modificação do antigo, em lugar de ver o que ele é realmente: uma transformação completa, o abandono total do velho sistema.
Smilash meneou a cabeça tristemente e disse:
- A senhora procura impor as suas ideias aos outros ferindo com o ostracismo os que as não admitem. Creia-me, o género humano não tem feito outra coisa desde que começou a dar atenção às ideias. Tem-se dito que um despotismo benevolente é a melhor forma de governo; eu não o acredito, porque creio noutra coisa, ou seja em que o inferno está cheio de boas intenções. Muitas pessoas, para quem este provérbio é muito profundo, interpretam-no a seu modo, pretendendo que se trata de intenções não realizadas. Como se um déspota benevolente não fosse capaz, por erro de apreciação, de destruir o seu reino e depois dizer, como Romeu quando viu Julieta morta: "Julguei proceder pelo melhor". Mas desculpe as minhas divagações. Em resumo: o que eu queria dizer é que em vão a senhora é benevolente e judiciosa; no fim de contas, não passa de uma déspota.
A senhora Wilson, não sabendo que responder, lamentou não o ter despedido sumariamente antes de lhe permitir tomar ascendente sobre ela, em vez de tolerar uma discussão que não sabia como terminar dignamente. Ele tirou-a de embaraços, acrescentando de modo inesperado:
- O seu sistema foi a causa do meu absurdo casamento. Minha mulher tinha adquirido um certo grau de cultura e de razão, graças à educação que recebeu aqui. Isso a fez parecer um ente superior, comparada com as palradoras que
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constituem o tempero feminino da sociedade ordinária. Eu admirava os seus belos olhos negros e sentia-me contente com a desculpa que me fornecia a sua educação para julgar que estávamos talhados um para o outro, tanto pelo espírito como pelo corpo.
A senhora Wilson, pasmada, estava decidida a dizer-lhe friamente que o seu tempo era precioso. Mas, no momento de falar, a curiosidade foi mais forte e as palavras que lhe saíram da boca foram:
- Quem era?
- Henriqueta Jansénio, presentemente Henriqueta Tréfusis e eu Sidney Tréfusis, o que lhe digo confidencialmente. Vejo que, por fim, despertei a sua compaixão.
- Que disparate! - exclamou a senhora Wilson, com vivacidade, porque à sua surpresa misturava-se o sentimento vago de que ele era muito bom para Henriqueta.
- Fugi dela e adoptei este retiro e este disfarce para lhe escapar. Mas, como acontece habitualmente, as minhas previsões foram iludidas. Corri direitinho para os
seus braços ou, melhor, foi ela quem veio cair nos meus. A senhora lembra-se da cena e ficou com certeza, admirada.
- O senhor trata o seu casamento de uma forma muito à ligeira, senhor Tréfusis. Posso preguntar a quem cabe a culpa dessa separação? A ela, não é verdade?
- Nada tenho a censurar-lhe. Esperava que minha mulher tivesse um temperamento exaltado, mas não. A sua conduta foi irrepreensível. A minha também. A nossa felicidade era perfeita. Mas, desgraçadamente, eu não fui feito para a ventura doméstica - seja como for não a pude suportar - e então fugi. E quando ela me alcançou, não pude fornecer-lhe nenhuma desculpa sobre a minha fuga. Fiz-lhe no entanto compreender que não queria reatar as nossas relações conjugais por enquanto. Separámo-nos zangados. Eu tinha a intenção determinada de lhe escrever uma carta amável para a obrigar a perdoar-me, mesmo contra vontade, mas não sei como as semanas se passaram e fiquei-me na intenção. Henriqueta nunca me escreveu, nem eu tampouco. É um lindo resultado, não acha, minha senhora, depois de todas aã vantagens que ela colheu, graças à influência da força moral e ao movimento em favor da educação superior da mulher?
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- O senhor concorda, decerto, que o mal vem mais da sua própria educação moral que da de sua mulher.
- O mal vem das condições da nossa associação. Por que motivo estas condições me atraíram tanto a princípio e me causaram tanto horror depois é um enigma diabólico, que só terá solução quando acharmos todas as reacções insuspeitas da nossa inveterada deslealdade. Temo estar a roubar-lhe o seu tempo. Mandou vir Smilash à sua presença e eu reduzi-o literalmente a nada. Em público, entretanto, é necessário que continui a suportar as suas chocarrices. Um momento ainda: esquecia-me preguntar-lhe se quere interessar-se por aquele pastor, cuja mulher foi aqui abrigada numa noite de tempestade.
- Ele disse-me, antes de levar a sua mulher, que estava confortàvelmente instalado numa habitação em Lyvern.
- com efeito. É um buraco confortável, na verdade. Por dois xelins e meio por semana, obteve a permissão de partilhar de um espaçoso quarto, em que vivem duas outras famílias, numa casa de dez divisões, que está num estado semelhante ao do antigo casebre em ruínas, que ele abandonou. Esta habitação rende ao seu proprietário mais
de duzentas libras por ano, ou melhor, mais que o aluguer de uma moradia confortável de South Kensington. É um aluguer incómodo quanto à cobrança, mas, por outro lado não há gastos a fazer com reparações ou higiene. Essas coisas não são consideradas necessárias numa casa em que se alugam quartos. O nosso homem deve palmilhar por dia cinco quilómetros a pé, para ir ao trabalho e outro tanto para voltar a casa.
"O exercício é uma coisa salutar para um estudante ou um manga de alpaca que habita na cidade, mas para um pastor, que esteve no campo todo o dia, uma longa caminhada depois das suas horas de trabalho é um excesso formidável.
"Pediu aumento de salário, como compensação pela perda da cabana, mas sir John fez-lhe observar que, se não estava satisfeito, o seu lugar podia facilmente ser ocupado por outro pastor menos exigente. Sir John teve até a. condescendência de lhe explicar que as leis da economia política obrigavam os patrões a comprar o trabalho pela tabela mais baixa e o nosso pobre amigo, tão ignorante como sir John
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em economia política, não sabia, naturalmente, que isso era o contrário da verdade. Entretanto, como é justamente assim que o trabalho é actualmente comprado por toda a parte, salvo no que respeita aos lugares de primeiro ministro e outros postos privilegiados, eu sugeri ao nosso amigo que vá procurar um canto qualquer do mundo onde a cotação dotrabalho seja um pouco mais elevada que na velha Inglaterra. Esta ideia agrada-lhe bastante, mas não a podia pôr em prática por falta de meios. Emprestei-lhe algum dinheiro e vai agora a caminho da Austrália. Os trabalhadores sãouma espécie de patas que põem ovos de oiro, mas acontece que às vezes batem as asas. Mas estou a ouvir um gongo para me lembrar que o tempo foge e o seu tem determinado valor. Até mais ver.
A senhora Wilson teve a tentação de não o deixar partir sem fazer apelo aos seus bons sentimentos.
- Perdoe-me uma pregunta, senhor Tréfusis, - disse ela. - Não é verdade que o senhor, generoso para com osoutros, esquece o seu dever para consigo ?
- O primeiro e mais difícil de todos os deveres! exclamou ele. - Peço-lhe perdão de a interromper, mas é somente para me confessar culpado.
- Não posso admitir que seja o primeiro dever entre todos; mas é, muitas vezes, como o senhor diz, o mais difícil. Em todo o caso, o senhor poderia tratar-se com
maisjustiça, sem grande esforço. Se quere viver com humildade, nada o obriga a fazer-se passar por um homem sem educação, e a usar esse nome ridículo e provocante. Porque se crismou de Smilash?
- Confesso que esse nome não é feliz. Ao compô-lo, tive muito trabalho para o tornar agradável. Não é um nome de pura invenção, mas uma combinação das palavras "smile" (sorriso) e "eyelash" (pestana). Um sorriso sugere o bom humor, as pestanas suavizam a expressão. São os únicos elementos que não prejudicam o rosto. Portanto, Smilash é um som que deveria alegrar e apaziguar. Contudo, é exasperante, o que é curioso, a menos que seja por fazer nascer esperanças que eu sou incapaz de satisfazer.
A senhora Wilson considerou-o com indecisão. Ele manteve-se impassível. Houve uma pausa. Depois, como se ela tivesse resolvido julgar-se ofendida, disse secamente:
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- Até à vista.
- Passe muito bem, minha senhora. O filho de um milionário, como o filho de um rei, está raramente isento das doenças mentais. Por mim, sou justamente bastante
louco para me tornar charlatão. Se me pedisse que me esquecesse de mim próprio por um momento, ou de me lembrar de mim por um instante, responder-lhe-ia que sou
o filho de meu pai e que isso me é impossível. com o meu egoísmo, a minha charlatanice, a minha língua e o meu hábito de não fazer senão o que se mete na minha cabeça, não tenho nenhuma vocação a não ser a de salvar o género humano, exactamente a espécie de gente que amamos.
Depois de uma pausa solene, rodou lentamente sobre os calcanhares e deixou o gabinete.
- Pregunto a mim próprio, - disse ele, atravessando o patamar, - se perdendo habilmente o meu caminho não poderia tornar a ver aquela pequena que é como um ídolo de oiro.
No baixo da escada, no momento de sair, enxergou Ágata, que vinha na sua direcção, divertindo-se a atirar um livro ao ar para o apanhar sem o deixar cair. A sua expressão melancólica habitual, quando estava só, mostrava que, na realidade, ela não se divertia, mas que dava apenas livre curso à sua turbulência. O seu olhar, ao erguer-se para seguir o trajecto do livro, encontrou o vulto de Smilash. O livro caiu por terra. Ele apanhou-o, deu-lho e disse:
- Chego a propósito. Eis o ídolo de oiro!
- O quê ? - preguntou ela, confusa.
- Chamo-lhe o ídolo de oiro, - disse ele. - Quando estamos separados imagino sempre o seu rosto como se fosse de oiro com os olhos e dentes de cristal, de calcedónia, de ágata ou de qualquer outra pedra desconhecida, de cor apropriada.
Ágata, aturdida e confusa, baixava os olhos, indecisa.
- A menina diz para consigo, neste momento, que deveria zangar-se, mas não sabe exactamente fazer-me sentir o seu azedume. Não é assim ?
- Não. É absolutamente o contrário. Ou antes, quero dizer que está em erro. Pouco importa que aparente outra coisa, quero eu dizer.
- Ninguém pode ver-nos como os outros nos vêem. Por
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exemplo, a menina nunca pensou em si como se fosse un ídolo de oiro.
- É absurdo. Engana-se a meu respeito.
- Talvez. Eu sei, naturalmente, que o seu rosto não é de oiro e que não tem o mesmo encanto para si que para. os outros... que para mim...
- Tenho que me retirar, - disse Ágata, subitamente apressada.
- Quando nos tornaremos a ver ?
- Não sei, - disse ela, com crescente sensação de pavor. - É preciso que me retire.
- Creia-me, essa pressa é puramente imaginária. Está supondo que a sua conduta é inteiramente indigna de si e que uma rede se fecha em sua volta...
- Não, nada que se pareça...
- Então porque tem tanta pressa de se ir embora ?
- Não sei explicar, - disse Ágata, esforçando-se por serir enquanto ele olhava para ela
cepticamente com os olhos semi-cerrados. - Talvez eu sinta um pouco o que
o senhor diz, mas não tanto como julga.
- vou explicar-lhe a sua emoção, -disse ele com ardor contido, que afectou Ágata de um modo estranho. - Mas diga-me primeiro se esse sentimento é novo para si.
- Não se trata de emoção. Eu não disse que era.
- Não tenha medo. Trata-se simplesmente de estar só com um homem que a menina enfeitiçou. Seria senhora da situação se soubesse como conduzir-se com um apaixonado. É muito mais fácil que montar a cavalo ou patinar, tocar piano ou qualquer outra habilidade de que não faz caso nenhum.
Ágata corou e levantou a cabeça.
- Perdoe-me, - disse ele, interpretando este movimento. - Tenho vontade de a ofender para me impedir de me enamorar de si, mas não tenho a coragem de o fazer. Não me escute nem me acredite. Não tenho o direito de lhe dizer estas coisas. Um demónio se apodera de mim quando estou na sua presença. Digo-lhe, Ágata, que deveria trazer um véu.
Ela corou ainda mais e ficou-se toda escarlate e a tremer. A sua presença de espírito tinha-a abandonado. Só tinha uma sensação: a consolação de ouvir - porque não
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ousava erguer os olhos - os passos de Smilash que se afastaVvam. Os seus sentimentos íntimos estavam numa deliciosa desordem. Um só pensamento a dominava; é que tinha conquistado um adorador. O tom de voz de Tréfusis, ao mesmo tempo sério, sincero e grave, a sua viva compreensão das coisas e o seu conselho inquieto de não o escutar persuadiram-na de que as suas relações assim começadas estavam destinadas a influenciar toda a sua vida.
- E, contudo, -disse ela, cheia de remorsos, - não posso amá-lo como ele me ama. Sou egoísta, fria, calculista, mundana e duvidei até hoje de que o amor existisse. Se eu pudesse amá-lo tão completamente, tão loucamente como ele me ama!
Smilash também falava com os seus botões enquanto se afastava:
- Agora, tornei esta pobre criança tão feliz como um anjo. Pobre dela, que tinha medo de que eu não a tomasse por uma mulher sedutora e esplendidamente dotada, tal
como a bela rapariga que se chama Joana Carpenter. Espero que as duas não troquem confidências a meu respeito.
VIII
A senhora Tréfusis encontrou tão pouca simpatia de parte dos seus pais a propósito do seu casamento que deixou a casa paterna pouco tempo depois da sua ida a Lyvern e foi viver com uma amiga que lhe ofereceu hospitalidade.
Incapaz de guardar segredo sobre um assunto que lhe ocupava constantemente o espírito, discutiu sobre a fuga de seu marido com esta amiga, que emitiu uma opinião: a conduta de Tréfusis era indigna e escandalosa. Henriqueta, não podendo suportar semelhante critério, procurou refúgio em casa de uma parente. A mesma discussão se travou e a parente disse-lhe:
- Hetty, se queres que te fale francamente, digo-te que conheço Sidney Tréfusis há muito tempo e que é o homem com quem é mais fácil uma pessoa entender-se entre todos os que conheço. Devo dizef-te, minha querida, que és às vezes bastante impertinente.
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Então, exclamou Henriqueta, rompendo a chorar,
depois dê ser tratada de uma forma indigna, ainda devo
ouvir dizer que a culpa é minha?
Deixou a casa da parente no dia seguinte e recebeu o convite de uma senhora muito discreta, que não faria alusão alguma a este respeito. Henriqueta achou que isso era intolerável e foi para casa de seu tio Daniel jansénio, homem indulgente e alegre. Foi ele de opinião que as coisas se haveriam de arranjar quando as duas partes se tornassem mais razoáveis, e, quanto ao culpado, o seu verídictum foi que tanto fazia dar-lhe na cabeça como na cabeça lhe dar. Cada vez que ele via sua sobrinha pensativa ou lacrimosa, troçava dela e chamava-lhe uma viúva para risota. Ainda uma vez Henriqueta declarou que suportaria tudo menos isto. Afirmou que o mundo lhe era odioso e decidiu-se a alugar um chalé mobilado no bairro de St-Johns Wood, para onde se mudou em Dezembro. Mas, ali,sofrendo intensamente de solidão, não tardou a escrever a Ágata uma carta lastimosa, suplicando-lhe que viesse passar com ela as férias do Natal, que estavam próximas, prometendo-lhe todo o conforto e divertimentos
que podiam dar uma afeição ilimitada e meios também ilimitados. A resposta de Ágata não se fez esperar e trouxe-lhe novidades inesperadas:
"Colégio dAUon, Lyvern
14 de Dezembro
"Querida Hetty:
"Julgo não poder fazer exactamente o que me pedes, porque devo passar o Natal com a mamã em Chiswick, mas não é preciso que lá esteja antes da véspera e as férias começam dentro de uma semana, isto é, a 20. vou ter contigo directamente e levo-te para casa da mamã, onde passarás o dia 25 mais agradavelmente que sozinha numa casa estranha. Ainda não está definitivamente decidido que eu deixe o colégio no fim deste trimestre. Promete-me que não o dirás a ninguém, mas eu tenho aqui um namorado. A falar a verdade, eu não estou apaixonada, se bem que faça dele um alto conceito. Sabes que eu não sou uma imbecil romanesca; mas ele, pelo contrário, está louco por mim e eeu
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gostaria de poder retribuir-lhe o seu afecto como ele merece. Os franceses dizem que há sempre um que estende a face e outro que a beija. Ainda lá não chegámos
nós os dois. Depois que ele me declarou os seus sentimentos não me pôde dizer mais que palavras soltas quando passeio ou patino. Mas tem sempre para mim um olhar ou uma palavra, que dizem mais que um longo discurso.
"E agora quem pensas tu que é? Diz que te conhece. Não adivinhas? Diz que tu não ignoras os seus segredos, que conhece bem teu marido que tão mal procedeu para contigo
e que é bastante lamentável a tua situação. Adivinhas agora ? Disse que te beijou - que horror, Hetty! Ainda não adivinhaste ? Ia acrescentar mais alguma coisa quando fomos interrompidos e não voltei a vê-lo a não ser de longe. Trata-se do homem com quem partiste no dia em que nos meteste um susto a todas, o senhor Sidney. Fui a primeira a descobrir o seu disfarce e disse-lho. Ele confessou. Disse que se ocultava por causa de uma mulher que estava apaixonada por ele e não me surpreende que isto seja verdade, porque é um homem bastante original. De facto, o que me faz amá-lo é que se trata do homem mais inteligente que até hoje encontrei e, no entanto, ele não tem de si uma alta opinião. Não sei o que encontra em mim para o tornar tão amoroso, mas é evidente que está pelo beicinho, preso aos meus encantos. Espero que ele não descubra quanto eu sou tola. Baptisou-me de seu "ídolo de oiro"".
com um grito de raiva, Henriqueta rasgou a carta em -daas e piscu-a a pés. Quando o seu acesso se apaziguou, apanhou as duas metades da carta tornou a juntá-los
o melhor que lhe consentiu a tremura dos dedos e prosseguiu a leitura:
"Mas ele nem sempre é de mel e diz às vezes as coisas mais severas se pensa que as deve dizer. Envergonhei-me tanto de que me achasse ignorante que resolvi ficar mais um trimestre no colégio e trabalhar o mais que eu puder. Ainda não me dispus a isso, porque o trimestre está quásí a findar e não vale a pena. Mas, quando voltar em Janeiro, liei-de dar-me ao trabalho o mais seriamente que me for possível. Como vês, a sua influência sobre mim é das melhores.
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Hei-de contar-te imensas coisas sobre ele quando nos virmos, porque não tenho tempo agora. As minhas camaradas estão de volta de mira para que vá patinar
com elas. Ele faz-se passar por um trabalhador e afivela os nossos patins. A Joana Carpenter julga que a adora; a pequena tem bom coração, mas tem o talento de se tornar ridícula e nada há que a impeça de o fazer. O gelo está convidativo e o tempo alegre. O frio não nos apoquenta. Adeus, as minhas camaradas ameaçam-me de patinar sem mim. Adeus.
"Sempre tua, afectuosamente
Ágata."
Henriqueta procurou com os olhos um instrumento cortante. Apoderou-se avidamente de uma tesoura e fendeu o ar com ela. Depois teve consciência do seu impulso assassino e estremeceu, mas, um momento depois, todo o seu ciúme lhe voltou. Gritou como se sufocasse:
- Maldita! Gostaria de a matar!
Mas não tornou a pegar na tesoura.
Por fim puxou violentamente pelo cordão da campainha e pediu uma guia dos caminhos de ferro. Quando lhe disseram que não havia nenhuma em casa, excedeu-se de tal
modo com a criada que esta lhe respondeu com impertinência estar disposta a deixar o serviço no fim do seu mês se a patroa tornasse a falar-lhe daquele modo. Henriqueta voltou à razão. Subiu ao seu quarto e vestiu o primeiro agasalho que lhe veio à mão e que era felizmente de pele espessa. Pôs o chapéu, guardou o porta-moedas e saiu. Alugou um fiacre que passava e fêz-se conduzir à estação de São Francisco.
Quando a noite desceu sobre Lyvern, o ar cortava como navalha, tanto o frio era intenso. Ás árvores e o vento pareciam domados pela geada, assim como a água e o silêncio. A tranquilidade e a luz das estrelas dominavam a campina gelada.
No seu chalé, Smilash, indiferente ao preço do carvão, alimentava uma fornalha ruidosa, que brilhava através das janelas sem cortinados e tentava o transeunte tranzido, que não sabia, como sabiam os pastores da vizinhança, que seriam bemvindos se entrassem para se aquecer sem perigo de alguma inconveniência por parte do ocupante da casa.
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Smilash estava cheio de coragem. Tinha-se tornado um patinador emérito e o tempo frio parecia-lhe agora um luxo. Isso lhe devolveu a energia e expulsou os seus acessos de melancolia, ao mesmo tempo que as suas simpatias se mantinham despertas e a sua indignação se conservava no ponto culminante ao pensar nos sofrimentos dos pobres que, não podendo gozar as delícias de um bom lume ou de uma sessão de patinagem, se aqueciam ao calor sufocante que produz em todas as estações um amontoamento excessivo.
Smilash tinha o hábito de fazer todas as noites, às nove horas e meia, uma bebida quente de cevada e água e de se deitar às dez. Abriu a porta para deitar fora a água que tinha ficado na caçarola depois da última lavagem. Ao tocar no solo, gelou imediatamente. Contemplou a noite e sacudiu-se para expulsar a sensação esmagadora de ser apertado nas garras geladas do ar, porque o mercúrio tinha descido abaixo da região familiar do frio seco e cortante. Marcava uma temperatura tão baixa que a atmosfera, entorpecida, parecia estar a ponto de se congelar numa massa opaca. Nada mexia.
- Sapristí! - disse ele, para consigo, - aqui está uma dessas noites em que um homem rico não ousa pensar.
Fechou a porta e voltou vivamente para o seu lume, pondo-se a remexer o caldo com uma solicitude que teria divertido um cozinheiro de profissão.
Quando a sua bebida se aprontou, deitou-a numa grande tigela, onde fumegou de maneira convidativa. Encheu com ela uma colher, sobre a qual soprou para a resfriar.
Umas pancadas precipitadas se fizeram ouvir sobre a porta: tap, tap, tap.
- Bela noite para passear, -disse ele, poisando a colher. Em seguida gritou:
- Entre.
A aldrava foi levantada com hesitação e Henriqueta apareceu, com lágrimas geladas sobre as faces e uma expressão desconcertante de sofrimento e de raiva sobre o rosto. Passado o primeiro instante de estupefacção, Tréfusis deu um salto para ela e apertou-a nos braços. Henriqueta, bem contra vontade e protestando silenciosamente, consentiu no abraço.
- Estás completamente gelada, minha pobre querida, -
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exclamou ele, conduzindo-a para junto do lume. - Esta capa de pele faz o efeito de uma camada de gelo. O teu rosto também.-E beijou-a. -Que há? Porque te deslocaste
até aqui?
- Deixa-me, - arquejou ela, em voz baixa. - Detesto-te.
- Meu pobre amor, tens frio em demasia para detestar seja quem for, mesmo teu marido. É preciso que me deixes retirar-te essas feias botas à francesa. Os teus pés devem estar literalmente mortos de frio.
Pouco a pouco Henriqueta dominou a sua voz e as lágrimas degeladas ao calor do aposento e das carícias de Sidney.
- Não te deixo tirá-las, - disse ela, chorando de frio e de pena. - Deixa-me em paz, não me toques. Vou-me embora imediatamente. Não quero mais falar-te, nem tirar a capa, nem tocar em nada desta casa.
- Não, minha prenda,- disse ele, instalando-a num vastof fauteuil de madeira e desabotoando com dificuldade as suas botas. - Não farás nada do que não desejas fazer. Os teus pés estão frios como pedra. Sim, querida, eu sou um miserável que não merece viver. Sei isso muito bem.
- Deixa-me em paz, - impôs ela, com voz lamentosa. Dispenso as tuas atenções. Acabou tudo entre nós.
- Ouve, bebe um pouco desta droga nojenta. Tens necessidade de todas as tuas forças para dizer ao teu marido as duras verdades de que está cheio o teu coração. Vamos, bebe um golo.
Henriqueta voltou a cabeça sem querer dar resposta. Ele pegou noutra cadeira e sentou-se junto dela.
- Minha pobre querida abandonada e enganada!
- Sim, enganada, - soluçou Henriqueta, - não o dizes a sério, mas é a verdade.
- És a mais querida e a melhor das mulherzinhas. Se algum dia me amaste, Hetty, bebe isto antes que arrefeça para dar prazer àquele que te foi querido.
Ela fez beicinho, soluçou e cedeu a uma suave pressão como uma criança que se deixa persuadir metade pelos afagos, metade pela força, a tomar um remédio.
- Sentes-te melhor e mais à vontade agora ? - preguntou Tréfusis.
- Não! - replicou Henriqueta, descontente por sentir uma e outra coisa.
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- Então, - continuou ele, alegremente, como se Henriqueta tivesse proferido uma afirmação sincera, - vou deitar carvão na fornalha e ficaremos muito melhor os dois. Torna-me muito feliz ver-te no meu lar e saber que és a minha raulherzinha, muito minha.
- O que eu pregunto é como tens o arrojo de olhar para mim de frente e dizer essas coisas, - exclamou ela.
- E eu ficaria muito admirado se, olhando para ti, pudesse dizer outra coisa. A bebida de cevada é um reconfortante maravilhoso; toda a energia volta. Vês ? Vamos ter uma fogueira toda catita.
- Até hoje não te julguei nunca mentiroso, Sidney, quaisquer que sejam os teus outros defeitos.
- Justamente, meu amor. Compreendo os teus sentimentos. Terias podido tolerar o assassínio, o assalto, a intemperança ou os vícios secundários, mas o embuste não o
podes suportar.
- Quero ir-me embora, - disse ela, com desespero. Não sirvo para troça e para ser enganada. Vou-me embora mesmo descalça.
Levantou-se e tentou alcançar a porta, mas ele deteve-a e inquiriu:
- Meu amor, é bem verdade que te queres ir embora? Que tens ? Porque me queres mal ?
Trouxe-a novamente para o seu fanteuil. Ela pegou na carta de Ágata, que tirou da algibeira da sua capa de pele, e entregou-lha com um gesto a que quis dar um significado trágico.
- Lê isto, - disse, - e não me dirijas mais a palavra. Tudo acabou entre nós.
Tréfusis pegou na carta com curiosidade e voltou-a para ver a assinatura.
- Ah; ah - disse ele. - O meu ídolo de oiro semeou a discórdia, não é isso?
- Ora aí está! - exclamou Henriqueta, - tu confessas isso na minha cara! Reconheces a tua culpabilidade.
- Espera um momento, querida, ainda não li a carta. Sidney ergueu-se e caminhou pelo aposento de ponta a
ponta, lendo ao mesmo tempo. Furiosa, ela seguia-o com o olhar na certeza de que não tardaria a vê-lo mudar de expressão. De repente Sidney inclinou-se para a frente como se
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a sua coluna vertebral flectisse em parte, e nesta atitude desgraciosa terminou a leitura. Quando acabou, deitou a carta para cima da mesa, meteu as mãos nas algibeiras e soltou uma imensa risada, encolhendo-se todo como se pudesse dar mais energia ao seu gracejo tornando-se o mais pequeno possível. Henriqueta, muda de indignação, não podia exprimir os seus sentimentos mais que pelo olhar. Quando por fim ele se acalmou, veio sentar-se ao pé dela.
- E então, - disse Tréfusis, - ao receber esta missiva, precipitaste-te fora de casa, a despeito do frio horrível que faz, para vir ter comigo a Lyvern. Pois bem, ou me deves amar muito ou...
- Não. Detesto-te.
- Ou te amas muito a ti própria.
- Oh ! - fez ela, e desatou a chorar. - És um brutinho egoísta e não fazes senão o que te agrada, sem te preocupares com os outros. Ninguém pensa em mim. E nem te
dás ao trabalho de desmentir esta vergonhosa carta.
- Desmentir, para quê ? É verdade, mas tu não vês o lado cómico de toda esta história. Divirto-me a fazer cumprimentos amáveis a uma estudante, pela qual não tenho
mais interesse que por outra qualquer jovem agradável e bastante inteligente. Isso não impede que eu sinta às vezes remorsos quando penso que ela poderia pôr-se a amar-me seriamente, enquanto eu não faço mais que brincar com ela. Lamento o pobre coração que iludi estouvadamente. E entretanto ela lamenta-me pela mesma razão! Tem remorsos de consciência porque se deu ao luxo de se deixar amar pelo homem mais inteligente que encontrou até hoje na sua vida, mas o seu coração passa tão bem de saúde como o meu I Ah, ah! É esta a base da religião e do amor de que os poetas são os grandes sacerdotes. Um adorador sabe que o seu amor é uma paixão momentânea ou uma imitação da paixão copiada do seu poema favorito, mas crê sinceramente no amor que os outros têm por ele. Oh, oh! Não achas que o mundo é parvo, minha prenda?
- Não tinhas o direito de fazer a corte a Ágata. Não tens o direito de fazer a corte a ninguém, excepto à minha pessoa. Não, não o consentirei.
- Estás furiosa porque Ágata violou o teu monopólio. Mas, minha louquinha, supões que eu te pertença de corpo
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e alma? Que não sou susceptível de me impressionar com outra afeição além da tua e que não devo pensar senão na tua beleza?
- Podes chamar-me os nomes que quiseres, mas não tens o direito de fazer a corte a Ágata.
- Minha querida, não me lembro de te ter chamado algum nome. Mas parece-me que falaste de um brutinho egoísta.
- Não disse nada que se pareça. Tu chamaste-me louca.
- Justamente, meu amor, é o que tu és.
- E tu, também, és profundamente egoísta.
- Não digo que não. Mas voltemos ao assunto. A propósito de que assunto começámos a nossa questão?
- A propósito de Ágata Wylie.
- Perdão, Hetty, eu não comecei a questionar a propósito de Ágata. Tenho-lhe muita amizade, mais, ao que parece, que ela tem por mim... Um momento, Hetty, antes que recomeces as tuas .censuras. Porque não queres que eu diga coisas amáveis a Ágata?
Henriqueta hesitou e disse:
- Porque não tens esse direito. Isso mostra que pouco te importas comigo.
- O caso nada tem que ver contigo e mostra que me interesso por ela.
- Não fico aqui para ser insultada! - repontou Henriqueta, novamente aflita. - Volto para minha casa.
- Não esta noite. Já não há comboio.
- vou a pé.
- É muito longe.
- Não me dá cuidado. Não quero ficar aqui, mesmo que deva morrer de frio à beira da estrada.
- Minha adorada, aborreci-te justamente porque a tua cólera me indica que, não deixaste de me amar. Sou culpado como de costume. Ágata nada sabe do nosso casamento.
- Não é tanto a tua pessoa que eu censuro, - disse Henriqueta, deixando Sidney, poisar a cabeça no seu ombro
- mas nunca mais falo a Ágata. Conduziu-se de maneira indigna para comigo e hei-de-lho dizer.
- Ela será, sem dúvida, de opinião que a culpa é tua e que eu me conduzi de modo irrepreensível. Entre vós as duas ficarei ilibado. E agora, visto que faz muito frio para
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caminhar, visto que é tarde e que a estrada de aqui a Lyvern é comprida, e mais comprida ainda de aqui a Londres,, vou improvisar uma instalação para ti, não queres ?
- Mas...
- Não há mas. Ficas cá.
IX
No dia seguinte, Smilash obteve de sua mulher a promessa de que ela se conduziria para com Ágata como se a carta não a tivesse de modo algum afectado. Henriqueta.
advogou ainda uma vez da maneira mais tocante para que retomassem sem mais tardar a vida em comum, mas ele respondeu somente com ternas palavras, não prometendo mais que um afecto eterno e remeteu-a para Londres pelo comboio do meio-dia. Voltou a Lyvern, depois para o chalé, com aspecto preocupado como o de um homem perseguido pelo desgosto e pelo remorso.
Ao findar a tarde, para se refazer, pegou nos patins e dirigiu-se à lagoa de Wickens, onde encontrou as colegiais cTAlton e seus visitantes, porque era um sábado, dia de meio feriado. Fairholme, que descrevia círculos sobre o gela com o seu ar habitual de bravura concentrada, deteve-se para contemplar com indignação Smilash, que parecia dançar o tango junto dele.
- Este homem tem licença sua para estar aqui ? - preguntou ele ao rendeiro Wickens, que passeava de cá para lá, como se vigiasse uma seara.
- Está aqui porque lhe agrada estar, penso eu, - respondeu Wickens com modo seco. - É um vizinho meu e um dos meus amigos. Há algum impedimento para que eu tenha na minha lagoa um amigo quando cá estão duas ou três toneladas de amigos dos outros que nem sequer pediram licença para cá vir?
- Oh, não! - disse Fairholme um pouco atrapalhado. Se o senhor está satisfeito não vejo inconveniente algum.
- Estimo que seja assim. Pensei que pudesse haver.
- Sempre lhe direi, - replicou Fairholme picado, - que o seu patrão não gostaria nada de o ver cá. Este homem
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ajudou um dos melhores pastores de sir John a abandonar esta região depois de lhe ter enchido a cabeça com ideias acima da sua condição. Ouvi sir John falar disso no domingo passado com muita arrelia.
- É possível, senhor Fairholme. Eu tomei esta propriedade de renda e bastante pobre e pedregosa ela é, benza-a Deus! Não tenho que me preocupar com o que sir John
aprecia ou não aprecia. E sir John pode dar-se por feliz por eu a ter arrendado, porque ninguém cá na terra lhe aceitará esta quinta nem de presente no dia em que fique livre. É certo que este rapaz diz coisas patuscas a propósito dos direitos dos trabalhadores do campo e outras tolices de
mesmo quilate; pois se sir John o ouvisse sobre os foros e melhorias e a forma como nós os rendeiros somos explorados, talvez falasse com mais arrelia ainda no domingo que vem.
E Wickens, com um sorriso que exprimia toda a sua satisfação por ter vitoriosamente levado o pastor à parede, cumprimentou e rodou sobre os calcanhares.
Neste momento Ágata, que patinava com Joana Carpenter, de mãos dadas, ouviu estas palavras ao ouvido:
- Tenho uma coisa muito engraçada para lhe contar. Não se volte.
Reconheceu a voz de Smilash e obedeceu.
- Não sei se vai apreciar a minha história tanto como ela merece, - acrescentou ele.
E rolou sobre o gelo, depois de ter lançado um olhar eloquente à menina Carpenter.
Ágata desembaraçou-se da sua companheira, fez um circuito e passou perto de Smilash, preguntando:
- De que se trata ?
Smilash fugiu como uma andorinha, traçou vários círculos em volta de Fairholme, voltou a Ágata e continuou lado a lado com ela.
- Li a carta, que escreveu a Hetty, - disse ele.
O rosto de Ágata tornou-se vermelho como uma papoila. Esqueceu-se de vigiar o seu equilíbrio e pouco faltou para cair.
- Cuidado... - recomendou ele. - Então não me ama no sentido romanesco?.
Nada de resposta. Ágata ficou muda e não se atreveu a erguer as pálpebras.
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- Ainda bem, porque ;- (Boa tarde, senhora Ward, há uma hora que admiro a sua arte de patinar...) porque os homens sempre foram uns mentirosos e eu não sou uma excepção, como sabe.
Ágata murmurou qualquer coisa que se perdeu no ruído feito pelos patins.
- Julga que não ? Enfim, talvez tenha razão. Eu não lhe disse nada que não fosse verdade, pelo menos em parte. Para mim a menina sempre teve um encanto particular.
Mas não desejaria que o dissesse à Hetty. Não adivinha porquê?
Ágata abanou a cabeça.
- Porque é minha mulher.
Ágata sentiu que as suas pernas perdiam toda a elasticidade. com um esforço manteve-se de pé até alcançar Joana, à qual se agarrou, para não cair.
- Deixa-me, senão vou a terra.
- Preciso sentar-me, - disse Ágata, - estou fatigada. Deixa-me apoiar a ti até alcançarmos as cadeiras.
- Ora adeus! Eu posso patinar durante uma hora sem precisar sentar-me.
Levou Ágata até às cadeiras e deixou-a. Então Smilash, como se também desejasse repousar, foi sentàr-se não longe dela na borda da lagoa.
- E então ? - preguntou ele, sem se incomodar que a sua conversa atraísse a atenção. -Que pensa de mim agora?
- Porque não me disse isso mais cedo, senhor Tréfusis ?
- Aí está o "ciou" da farsa, - respondeu ele, poisando os calcanhares no gelo e ficando com os patins perpendiculares às pernas alongadas sobre a superfície gelada.
Contemplou cinicamente os patins e explicou:
- Julguei que a menina estivesse apaixonada por mim e que a verdade fosse um golpe muito forte para si. Ah! ah! E pela mesma razão a menina teve a generosidade de evitar dizer-me que gostava tanto de mim como de um habitante da lua. Cada um de nós representou uma comédia querendo
fazer passar por tragédia aos olhos do outro.
- Há coisas tão indignas, tão ruins e tão cruéis que eu não posso compreender como um homem as pode dizer a uma rapariga.
Peço-lhe que nunca mais me dirija a palavra.
Senhora Ward, quere chegar aqui por um momento? Eu... não me sinto bem.
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A senhora Ward acorreu. Smilash, depois de olhar para Ágata durante momentos com espanto misturado de um pouco de inquietação, afastou-se, confundindo-se com a multidão. Quando chegou à margem oposta, descalçou os patins e pediu a Joana, que propositadamente se demorava perto dele, o favor de dizer à menina Wylie que ele se tinha
ido embora e que, para o futuro, não patinava mais. Sem acrescentar uma palavra de explicação, deixou-a e retomou o caminho de casa. Chegado ao ponto da estrada
em que ela atravessava o bosquezinho perto do seu chalé, do lado do colégio, descortinou um rapazinho com a farda dos telegrafistas que fazia glissagem ao longo
da regueira gelada. Teve o pressentimento de más noticias, como se o céu se tornasse sombrio de repente. Acelerou o passo e preguntou:
- Alguma coisa para mim ?
O rapazinho, que o conhecia, remexeu na sua mala e retirou um sobrescrito de cor amarelada. Continha um telegrama que dizia assim:
"De Jansénio, Londres. H. J. Smilash, Chalé Chamounix, Lyvern - Henriqueta perigosamente doente depois da viagem quere falar-lhe. O médico recomenda que venha imediatamente."
Houve uma pausa. Em seguida, Smilash dobrou metodicamente o papel e guardou-o na algibeira como se já não tivesse precisão dele.
- E é assim, - disse ele para consigo, - que a tragédia virá depois da farsa, provavelmente.
Olhou para o rapazinho, que recuou notando a sua expressão.
- Vieste em glissagem desde Lyvern ?
- Foi para chegar mais depressa, - disse o mensageiro com hesitação. - Vim tão depressa quanto me foi possível.
- Trouxeste noticias com peso bastante para quebrar o gelo mais espesso. Tenho vontade de te atirar para cima dessa árvore em vez de te dar esta meia-coroa que aqui tenho.
- Não me faça mal, -choramingou o rapazinho recuando mais um passo.
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- Ouve: vais voltar a Lyvern tão depressa quanto possível, a correr ou em glissagem, e dize ao senhor Marsh que me apronte o seu carro e o seu melhor cavalo para me levar à estação. Aqui está a tua meia-coroa. E agora, tss... e se eu não encontro o carro pronto quando precisar dele, que Deus tenha piedade da tua alma!
O rapazinho deu um passo em frente com desconfiança para receber o dinheiro e desapareceu com quantas pernas tinha. Smilash entrou no chalé para não reaparecer mais. Em seu lugar saiu o senhor Tréfusis, um cavalheiro envergando um casacão e com uma manta de viagem no braço, quem fechou a porta à chave e se afastou na direcção de Lyvern.
Chegado lá, entrou no carro que o esperava e o levou à estação, a tempo ainda de apanhar o "rápido" de Londres.
- O jornal da tarde ? - preguntou uma voz à janela,, no momento em que ele se instalava ao canto de um compartimento de primeira classe.
- Não, obrigado.
- Aquecedor ? - preguntou outra voz, que substituiu a do vendedor de jornais.
- Isso sim, é boa ideia. Venha um aquecedor de pés. Trazido o aparelho, Tréfusis instalou-se confortàvelmente-
para a viagem, que lhe pareceu muito curta. Teve dificuldade em acreditar, quando o comboio chegou a Londres,, que tinha estado dentro dele durante três horas.
Sentia-se a aproximação do Natal, vendo os viajantes que desciam do comboio e os amigos que vinham ao seu encontro.
O moço, que apareceu à porta do vagão, lembrou a Tréfusis, pela sua voz e maneiras, que era aquela a estação do ano em que fica bem a um cavalheiro mostrar-se alegre e liberal.
- Tem bagagem ? Deseja um fiacre de duas ou de quatro rodas?
Durante um curto instante, Tréfusis teve o louco desejo de retomar a linguagem de Smilash e de mandar o moço ao furgão buscar peru assado e doçarias imaginárias. Mas reprimiu esse desejo, subiu para um fiacre e mandou seguir para casa do seu sogro, na Avenida Belsize. De caminho, pôs-se a analisar, apreensivo, a inquietação que o invadia à medida que se aproximava do seu destino.
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Quando desceu diante da habitação de Henriqueta, dois veículos estacionavam ali. Teve um arrepio à vista dos dois cocheiros com cara de caso. A porta abriu-se antes
de ele ter tocado.
- Tenha a bondade, senhor, - disse a criada em voz baixa, - de ir à biblioteca. O médico não tarda em vir também.
No primeiro patamar, dois cavalheiros falavam com o
senhor Jansénio, que deu vivamente um passo atrás para
não ser visto, mas não tão depressa que o senhor Tréfusis
não reparasse na sua face descomposta e dolorosa, que lhe
causou um estranho sentimento de remorsos, ao qual sucedeu,
de repente, a impressão de ser viúvo há vinte anos.
Sorriu com indiferença, ao seguir a criada até à biblioteca
e preguntou-lhe se passava bem de saúde. Ela murmurou
uma vaga resposta e retirou-se apressada, pensando que o
seu jovem amo não tardaria a mudar de tom.
Um cavalheiro de suíssas cinzentas apareceu sem tardar na biblioteca, vestido de modo tão escrupuloso como as suas maneiras.
Tréfusis apresentou-se e o médico encarou-o com certo interesse. E disse:
- Chegou infelizmente muito tarde, senhor Tréfusis. Tenho o desgosto de lhe anunciar que tudo acabou.
- Seria a longa viagem em caminho de ferro que ela fez com este frio a causa da sua morte ?
Algumas palavras azedas que o médico tinha surpreendido, lá em cima, fizeram-lhe compreender que se tratava de um caso delicado. Mas respondeu tranquilamente:
- Sem dúvida alguma que foi a causa imediata.
- Antes de embarcar ela teve más notícias, completamente inesperadas. O doutor pensa que isso possa relacionar-se com a sua morte?
- Pode ter produzido um efeito desagradável, - respondeu o clínico, que começava a impacientar-se. -O hábito de atribuir uma certa causa a um determinado efeito, é em geral levado muito longe.
O médico pegou nas luvas e o senhor Tréfusis replicou :
- Incontestavelmente. Faço estas preguntas curiosas porque não tenho ainda a experiência de um acontecimento deste género. Suponho que para o doutor é um caso banal.
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- Perdão. A perda de uma senhora tão jovem e numa situação tão favorecida não é, na minha opinião, um acontecimento banal, que eu saiba.
Assim dizendo, o médico levantou a cabeça em sinal de protesto contra toda a suposição de que as suas simpatias pudessem ter sido embotadas pelo exercício da sua profissão.
- A falecida sofreu ?
- Durante algumas horas. Conseguimos aliviá-la tanto quanto possível. Pobre senhora!
Quási se esqueceu da presença de Tréfusis, ao acrescentar estas últimas palavras.
- Algumas horas de sofrimento! Pode o senhor conceber que utilidade tiveram essas horas de padecimento?
O médico abanou a cabeça, deixando ficar uma dúvida sobre a sua intenção de responder negativamente ou de deplorar considerações desta natureza. Fez um movimento para se ir embora, porque esta conversa com Tréfusis o dispunha mal. Sentia que ele havia de fazer preguntas ou comentários a que dificilmente saberia responder, sem se inclinar para um lado ou outro. A sua consciência não estava completamente tranquila. Os sofrimentos de Henriqueta não tinham, pensava ele, servido de grande coisa, mas não desejava dizê-lo, com receio de parecer que era insensível ou com medo de perder aqueles clientes.
Era de opinião que o médico assistente, que o mandara chamar quando o caso se tornou sério, não tinha tratado a doente como se impunha; mas a etiqueta profissional prendia-o a tal ponto que ele teria consentido em que o colega dizimasse toda a .população de Londres, sem revelar a incapacidade desse Esculápio.
- Ainda uma palavra, - disse Tréfusis. - A falecida sentiu a morte?
- Não sentiu. Entendi que era preferível para ela ignorar a gravidade do seu estado. A sua vida extinguiu-se sem que ela tivesse a menor apreensão.
- Então podemos pensar no caso com serenidade. Ela tinha tanto medo da morte, pobre
criança! O milagre é que não tenha havido bastante insensatez nesta casa, para
prevalecer contra o bom senso.
O médico cumprimentou e despediu-se, julgando-se
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muito, feliz por escapar à censura de ter, por humanidade, deixado Henriqueta morrer sem dar por isso.
Um instante depois o médico assistente entrou. Tréfusis, que tinha acompanhado o médico consultivo até à porta, tinha surpreendido, no momento de entrar, o médico
assistente compor uma cara de circunstância. Reprimindo o vivo desejo de lançar-lhe as mãos ao pescoço, sentou-se na borda da mesa e preguntou
quáse alegremente:
- Então, doutor ? Como se portou o mundo consigo, desde o nosso último encontro?
O médico ficou admirado, mas a expressão solene da sua fisionomia não se suavizou enquanto quási salmodiava:
- Sir Francis deu-lhe a triste notícia, senhor Tréfusis ?
- Deu. É medonho, não acha? Meu Deus! Estamos hoje aqui e amanhã não somos
nada.
- É verdade, uma grande verdade.
- Sir Francis faz um óptimo conceito de si. O médico tomou um ar sofrivelmente idiota.
- Tudo o que se podia tentar, tentou-se, senhor Tréfusis, porque a senhora Jansénio se empenhava imenso em que sua filha se salvasse. Teve a bondade de me dizer que a única razão pela qual ela desejava que sir Francis fosse chamado era não lhe dar ao senhor nenhuma razão de queixa.
- Muito me conta!
- Uma excelente mãe. Este incidente foi um duro golpe para ela! Sim, meu
Deus! Um duro golpe!
- Desagradável quanto pode ser. E num dia tão frio! Deve ser muito mais agradável estar no paraíso do que aqui com um tempo destes !
- Ah ! - disse o doutor, como se isso fosse uma grande consolação. - Assim espero, assim espero e não duvido. Sir Francis não consentiu que a preveníssemos do seu estado e, naturalmente, eu anuí. Talvez fosse melhor assim.
- Nesse caso, o senhor ter-lho-ia dito se sir Francis não discordasse ?
- O senhor compreende, há considerações que não devemos desdenhar na nossa profissão. A morte é uma coisa séria. Não tenho necessidade de lho recordar, senhor Tréfusis. Temos às vezes deveres mais elevados que a indulgência para com os sentimentos naturais dos nossos doentes.
IS
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- Absolutamente certo. A possibilidade de uma felicidade eterna e a possibilidade de tormentos eternos são consolações que não devem ser recusadas ligeiramente a
uma jovem moribunda, heim ? Enfim ; o que se passou já não tem remédio. No fim de contas, tenho razões para estar reconhecido. Sou um homem, e como viúvo não faço má figura. E agora, diga-me, doutor, a minha reputação é muito má, lá em cima?
- Senhor Tréfusis i Eu não posso meter-me em assuntos de família. Compreendo os meus deveres e não os excedo nunca.
O médico, por fim escandalizado, falava com tanta altivez quanto podia.
- Então vou ver o senhor Jansénio, - disse Tréfusis, pondo-se de pé.
- Um momento, senhor! Um instante. Não acabei ainda. A senhora Jansénio pediu-me para lhe dizer... Antes de mais nada devo acrescentar que não
falo como clínico
da família mas como velho amigo... e... bem... a senhora Jansénio pediu-me para lhe dizer... para lhe rogar que desculpe o senhor Jansénio porque ele está acabrunhado
pela dor e eu posso - na qualidade de médico - assegurar-lhe que ele se encontra impossibilitado de ver seja quem for. A senhora Jansénio vos receberá logo que o
possa fazer... esta tarde ainda. Entretanto, se o senhor tem qualquer ordem a dar, porque deve estar fatigado pela viagem (e eu recomendo sempre não estar em jejum muito tempo por causa das perturbações agudas da digestão que isso ocasiona) se, portanto, o senhor deseja dar qualquer ordem, tenha a bondade, pois será executada
sem demora.
- Creio, - disse Tréfusis, depois de um momento de reflexão, - que daria a ordem de chamarem um fiacre.
- Não há nenhum sentimento de rancor, - disse o médico que, como todo o homem lento, se deixava alarmar pelas decisões rápidas, mesmo quando lhe pareciam razoáveis como esta. - Espero que não terá deduzido das minhas palavras que...
- Não, isso sim ! O senhor deu provas de um tacto irrepreensível. Mas eu creio que faria bem indo-me embora. Jansénio pode suportar com grande força de ânimo a morte e a desgraça quando estas se produzem em grande escala
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e no fundo de uma ruela sombria; mas quando se produzem na sua própria casa e atingem a sua propriedade porque a sua filha era muito recentemente ainda a sua propriedade - é homem para perder a cabeça e querer-me mal porque eu não perco a minha...
O médico não se sentiu capaz de responder a este discurso, que exprimia ideias em seu entender monstruosas. Vendo que Tréfusis ia partir, disse em voz baixa:
- Não quere subir lá acima?
- Lá acima... Porquê?
- Eu... eu pensei que poderia desejar ver...
Não terminou a frase, mas Tréfusis cedeu, porque aquele silêncio falava por si próprio.
- Ver essa qualquer coisa que foi Henriqueta e que se tornou numa coisa que devemos repelir e ocultar com um pouco de mascarada superstição para salvar as aparências... Porque me lembrou isso ? Que a família guarde os seus sentimentos para os vivos, em favor dos quais supliquei muitas vezes em vão, - exclamou Tréfusis, perdendo a paciência.
- Que vá para o diabo com os seus sentimentos!
E, voltando-se para a porta, achou-a aberta. A senhora Jansénio estava no limiar, escutando-o.
Tréfusis ficou aterrado. Adivinhava o efeito que as suas palavras deviam ter produzido e sentia que era loucura tentar desculpar-se ou explicar-se. Meteu as mãos nos bolsos, apoiou-se contra a mesa e olhou para a senhora Jansénio, preguntando-se o que ela iria dizer ou fazer.
O médico rompeu o silêncio, dizendo em voz trémula:
- Comuniquei o triste acontecimento ao senhor Tréfusis.
- Espero que lhe tenha dito, também, - respondeu ela severamente, - que por muito imperfeitos que fossem os nossos sentimentos, fizemos tudo o que estava em nosso poder pela nossa filha.
- Declaro-me completamente satisfeito, - alegou Tréfusis.
- Principalmente do resultado, - atalhou ela duramente.
- Desejaria saber se tem alguma razão de queixa.
- Nenhuma.
- Não suponha que tivesse podido acontecer alguma coisa devido a negligência.
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- De que me queixaria eu ? Tinha um quarto bem aquecido, um leito luxuoso para morrer e os melhores
conselhos médicos. Massas de pessoas morrem hoje de fome e de
frio para que nós possamos ter os meios de morrer com elegância. Preguntem-lhes se eles têm alguma razão de queixa. Pensa a senhora que eu iria questionar diante
do seu cadáver a propósito da soma dispendida durante a sua doença? Nunca lhe contei o dinheiro - como o teria eu feito se recebo, sem fazer nada, mais do que posso gastar? E a senhora mesmo, como o poderia ter feito ? Contudo, ela tinha boas razões para se queixar de mim. Concorda que é verdade ?
- A pura verdade.
- Pois bem. Quando me sentir disposto para isso, acuso-me a mim próprio e não à senhora.
Deteve-se, virou-se bruscamente para a senhora Jansénio e disse :
- Porque escolhe justamente esta ocasião entre todas para me falar com tanto azedume ?
- Nada disse que possa merecer semelhante comentário, parece-me.
Fazendo apelo ao médico, continuou:
- O senhor ouviu-me dizer alguma coisa ?
- O senhor Tréfusis não quere dar a entender isso, julgo eu. É que os sentimentos deste senhor estão um pouco... transtornados. Eis tudo.
- Os meus sentimentos! - exclamou Tréfusis com impaciência. - Julga que os meus sentimentos sejam um amontoado mentiroso de observações sociais que possam ser transtornados a pedido ou exibidos nos funerais ? Ela passou deste mundo como nós três haveremos de passar sem demorar muito. Se fôssemos imortais poderíamos lamentar os mortos com razão. Como não o somos, faríamos melhor em guardar a nossa energia para reduzir o mal que, segundo todas as probabilidades, faremos antes de a seguirmos na morte.
O doutor ficou profundamente chocado por estas palavras, porque a constatação de que um dia haveria de morrer parecia-lhe uma censura ao seu domínio profissional da morte. A senhora Jansénio alegrou-se de ver Tréfusis confirmar, pela sua conduta e linguagem em presença do medico,
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a má opinião que ela formava dele. Houve uma certa pausa e Tréfusis, sentindo-se em ambiente de pouca simpatia para trazer a conversa a um tom mais amável,
deixou a biblioteca.
Chegado ao vestíbulo, no momento de vestir o sobretudo, hesitou; depois, indeciso, tornou a pendurá-lo. De repente, pôs-se a subir a escada a correr. Ao ruído dos seus. passos, uma mulher saiu de um dos quartos e olhou-o com ar interrogador.
- Venha, senhor, - murmurou ela.
Uma dolorosa contrição lhe oprimiu o peito. Empalideceu e deteve-se com a mão no puxador da porta.
- Não tenha medo, senhor, - disse a mulher com um sorriso de encorajamento. - ela está muito bonita.
Tréfusis olhou para a mulher com estranha intenção,, como se ela tivesse articulado um gracejo lúgubre mas irresistível. Em seguida, entrou. Quando chegou perto do leito, desejou não ter entrado. Tréfusis não era desses homens, que, lendo pouca coisa no rosto dos vivos, descobrem uma falta perceptível no rosto dos mortos,
O arranjo ordenado dos cabelos negros da morta no travesseiro, os lençóis suavemente dispostos e as flores colocadas pela enfermeira para completar o efeito artístico, eram outras tantas coisas perdidas para ele.
Viu somente uma máscara sem vida, que tinha o rosto de sua mulher; à sua vista, as pernas fraquejaram-lhe eteve de se apoiar à barra dos pés do leito para não cair.
Quando ergueu de novo os olhos, o rosto parecia ter mudado. Já não era uma máscara de cera, mas a própria Henriqueta, ainda criança, repousando de modo encantador. A morte parecia ter apagado nela qualquer vestígio da mulher casada; nunca ele lhe tinha visto um aspecto tão jovem. Passou um minuto; depois caiu-lhe uma lágrima sobre o couvre-pied. Estremeceu, sacudiu uma outra lágrima caída sobre a mão, e olhou para ela com incredulidade.
- É um embuste com o qual eu nunca teria sequer sonhado. Lágrimas e ausência de pena! Aqui estou eu quási a chorar, tornado sentimental! Quando, pelo contrário,
estou contente por ela ter partido e eu ter ficado livre. Tenho o mecanismo do sofrimento em mim, algures, e põe-se a mover à vista de Henriqueta, a despeito da ausência de dor,
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tal qual como ela fazia andar o mecanismo da paixão, apesar da ausência do amor. Para ela isso não tinha importância. As rodas moviam-se, era quanto bastava. Espero que o mecanismo da dor se gastará e deixará de funcionar tão depressa como o outro. Creio que já está parado. Que ironia! Enquanto isto dura, suponho que estou verdadeiramente triste. E, contudo, se eu pudesse, tornaria a dar-lhe a vida? Talvez; portanto, agrada-me que não seja assim.
Cruzou os braços sobre a barra do leito e dirigiu-se gravemente à mulher morta, que o impressionava, ainda ao ponto de o obrigar a exercer toda a sua vontade, para olhá-la com calma :
- Se realmente me tinhas amor, é melhor que estejas morta... Grande idiota era eu, supondo que a paixão que podias inspirar, pobre criança, seria duradoira! Temos sorte, um e outro; eu salvei-me de ti, e tu salvaste-te a ti própria.
Não tardou que ele respirasse mais livremente, e passou o olhar em volta do quarto para se colocar em disposição de espírito, mais terra à terra, por um acto que o pôs mais à vontade, pelo aspecto ordinário dos móveis do quarto de dormir. Aproximou-se do travesseiro e inclinou-se para examinar a morta mais de perto.
- Pobre criança! - disse ainda ternamente.
Depois, cedendo a uma reacção súbita e apostrofando-se a si próprio:
- Pobre burro! Pobre idiota! Pobre macaco! Eis o corpo de uma mulher, que era quási tão idoso como o meu e talvez mais sabedor, e eis-me aqui a moralizar, como se
eu fosse Deus Todo Poderoso e ela um bebé! Quanto mais lembramos aos homens o que eles são mais tolos se tornam. Dentro em pouco sinto-me imortal.
Tocou na face da morta com um gesto que queria ser vagamente brusco para sentir quanto ela estava fria. Depois tocou na sua mão e comentou:
- E para isto que eu corro à velocidade de sessenta minutos por hora!
Ali ficou durante bastante tempo ainda com o olhar baixadp sobre o rosto de Henriqueta a saborear esta sombria reflexão. Quando ela perdeu intensidade, afastou-a com um esforço mental e exclamou mais alegre:
- No fim de contas ela não está morta. Todas as palavras
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por ela articuladas, as ideias por ela concebidas e expressas eram o resultado de um impulso inexgotável e indestrutível.
Calou-se, reflectiu ainda e recaiu na tristeza, acrescentando :
- Uma dúzia de outros cujos nomes aparecerão amanhã no Times com o dela? As suas palavras estão ainda no ar para aí ficarem por toda a eternidade. Hum Como o ar
deve estar saturado de asneiras I Dois sons produzem às vezes um silêncio. Talvez as ideias se neutralizem umas às outras de forma análoga. Não, minha querida, tu
estás bem morta, desaparecida, acabada de vez, e eu morrerei, desaparecerei, acabarei por minha vez, cedo de mais para ter tempo de me iludir com esperanças de imortalidade.
Pobre Hetty í Adeus, minha querida. Imaginemos por um instante que me podes ouvir, sei que isso te daria prazer.
Tudo isto foi dito num murmúrio apenas articulado. Quando se calou, ficou inclinado sobre o vulto inerte, para o contemplar atentamente. No momento de se retirar, esgotado o assunto das suas reflexões, mudou de ideia e ficou ainda um momento a olhá-la. Depois endireitou-se, aparentemente fortificado e consolado, e deixou o aposento com passo firme. A enfermeira esperava lá fora. Vendo que ele se mostrava menos esmagado que no momento de entrar, disse:
- Espero que esteja satisfeito, senhor!
- Maravilhado! Encantado! Está tudo disposto de maneira extremamente linda e cheia de gosto.
É uma grande consolação. - E deu-lhe meia libra.
- Agradeço, senhor, - disse ela, fazendo uma pequena reverência. - Pobre senhora! Desejava tanto
vê-lo! Era ouvi-la dizer que apenas o senhor lhe tinha afecto.
E irritável com sua mãe... "Digam-lhe que eu estou perigosamente doente, - reclamava ela, - e ele virá." Não sabia como era verdade o que dizia a pobre criatura,
e foi-se sem dar por nada.
- Ela lisonjeava-se e lisonjeava-me, pobre criança!
- Meu Deus, eu sei o que eram os seus sentimentos. Tenho experiência disso.
Aqui, aproximou-se confidencialmente de Tréfusis e; murmurou:
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A família estava contra o senhor e ela sabia-o. Mas
não queria ouvi-lo. Quando ainda estava em condições de pensar, apenas se preocupava com a sua chegada. E... Chut! Aí vem o pai.
Tréfusis voltou-se e viu o senhor Jansénio, cuja bela figura estava pálida e marcada pela mágoa e o descontentamento. Recuou diante da mão estendida do genro, como uma criança muito mortificada por se deixar tentar por uma carícia pouco a propósito. Tréfusis lamentou-o, a enfermeira tossiu e retirou-se.
- Falou com a senhora Jansénio ? - preguntou Tréfusis.
- Falei, - respondeu o interpelado, num tom que pre tendia ser ofensivo.
- Eu também, desgraçadamente. Apresente-lhe as minhas desculpas, peço-lhe. Fui descortês. Os acontecimentos transtornaram- me.
- O senhor não está mesmo nada transtornado, - replicou Jansénio, elevando a voz. - O senhor desdenha os acontecimentos.
Tréfusis teve um movimento de recuo.
- O senhor mandou os meus sentimentos para o diabo. O mesmo destino dou aos seus.
Involuntariamente, Tréfusis olhou para a porta por onde ele tinha acabado de passar. Depois, dominando-se, disse tranquilamente:
- Não importa, ela não nos pode ouvir.
Antes que Jansénio pudesse responder, sua mulher subiu precipitadamente, tomou-o por um braço e disse:
- Não lhe fales, João. E o senhor, - acrescentou ela para Tréfusis, -
peço-lhe que se retire.
- O quê! ? - exclamou ele, olhando-a com cinismo. Sem a minha morta ? Sem a minha propriedade ? Bem, seja assim.
- Que sabe o senhor dos sentimentos de um homem respeitável? - continuou Jansénio, a despeito do pedido de sua mulher. - Para o senhor nada é sagrado. Isso mostra o que são os socialistas.
- E o que são os pais e as mães, - retorquiu Tréfusis, deixando-se arrebatar pela cólera. - Julguei que amassem Hetty, mas vejo que não amam nada mais que os vossos sentimentos e a consideração dos outros. Que os leve o
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diabo! Ela tinha razão; o meu amor por ela, mesmo imperfeito, era maior que o vosso.
Dito isto, abandonou a casa, encolerizado. Parou um momento no meio da avenida, para se rir dele próprio e de seu sogro. Em seguida, tomou um trem e mandou seguir para o escritório do seu advogado, que ele queria consultar para regularização dos bens de sua defunta mulher.
Os restos de Henriqueta Tréfusis foram enterrados no cemitério de Highgate na véspera do Natal. Três membros da nobreza enviaram as suas equipagens aos funerais e os amigos e clientes do senhor Jansénio compareceram pessoalmente em grande número. O caixão estava coberto de uma profusão de flores de preço. O cangalheiro tinha recebido ordem de não poupar as despesas e arranjara cavalos pretos com longas caudas, cujo dorso desaparecia debaixo de compridos panos mortuários negros e cuja cabeça ostentava altos penachos pretos; os cocheiros tinham laços de crepe nos ombros, calçavam botas de joalheiras e sentavam-se sobre almofadas negras, envergando mantos e calçando luvas pretas. O organizador de pompas fúnebres tinha contratado além disso um grande número de pessoas para acompanhar o féretro; essas pessoas teriam sido instantaneamente dispensadas se testemunhassem muita emoção ou excedessem de qualquer modo a sua função, que consistia em caminhar aos lados do carro mortuário com a sua bengala de castão de cobre na mão.
Entre as pessoas sinceramente afectadas que seguiam o enterro, encontrava-se o senhor Jansénio, que rebentou a chorar no momento de ser lançada a terra sobre o esquife; seu filho Artur, que, preocupado pela novidade de ostentar uma comprida capa à frente do cortejo, sentia que não estava tão triste como devia vendo seu pai chorar; e um primo que outrora tinha pedido a Henriqueta para o aceitar por marido e que, presentemente, se entregava a dolorosas reflexões e saboreava intensamente o seu desespero.
Os outros cochichavam entre si quando podiam decentemente
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fazê-lo a propósito de um estranho lapso na composição do cortejo. O marido da morta estava ausente. Os membros da família e os amigos íntimos tinham sido
avisados por Daniel Jansénio de que o viúvo se tinha conduzido de maneira escandalosa e que pouco importava aos Jansénios que viesse ou se deixasse estar em casa.
Se não fosse pouco decente a sua ausência, rejubilariam de que ele se tivesse abstido de vir. Outros membros do cortejo, que não tinham nenhuma pretensão a ser informados
em particular souberam pelo empresário de funerais que o senhor Tréfusis não simpatizava com enterros pomposos. Quando lhe preguntaram porquê; respondeu que devia
ser por causa da despesa. Como alguém esclarecesse que o senhor Tréfusis. era muito rico, o homem acrescentou que já o tinham informado disso e que acreditava que o dinheiro não vinha da parte da senhora. Raramente, observou ele, as pessoas desejavam fazer grandes despesas com os enterros a menos que a morte traga dinheiro, além de haver pessoas que, quanto mais ricas são, mais regateiam.
Ainda o cortejo não tinha dispersado já as palavras propagadas pelo irmão do senhor Jansénio se misturavam aos comentários do cangalheiro, dando nascença a uma história estrambótica, segundo a qual Tréfusis tinha manifestado na própria casa da falecida, com terríveis pragas, a sua alegria pela morte de sua mulher enquanto ela jazia no quarto ao lado e recusado pagar as suas dívidas e as despesas do enterro.
Alguns dias mais tarde, quando todos estes enredos começavam a diluir-se, um novo escândalo veio reavivá-los. Um literato amigo do senhor Jansénio tinha-o ajudado a compor um epitáfio e juntara-lhe umas estrofes bonitas e tocantes para exaltar o carácter de Henriqueta, dizendo-a de rara doçura e virtude e que os seus familiares nunca se consolariam de a ter perdido. Um comerciante que se intitulava "empreiteiro de monumentos funerários", submeteu às apreciações do senhor Jansénio um álbum de esboços dessas construções fúnebres. O pai da morta escolheu uma tumba muito decorativa e propôs a Tréfusis o pagamento a meias. Este observou que o epitáfio não estava certo e que não via razão para que as lousas das sepulturas tivessem o privilégio de propagar falsidades. Constou então que ele continuava
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a conduzir-se tão mal como anteriormente e que tinha chamado mentiroso ao sogro. Além disso tinha encomendado uma sepultura bastante ordinária a um negociante
ambulante de East-End. Tréfusis tinha, com efeito, tratado com desprezo o comerciante fúnebre chamando-lhe "explorador" das classes trabalhadoras e encomendado a um jovem canteiro, membro em preponderância na organização profissional, que desenhasse um monumento fúnebre para satisfazer Jansénio.
O canteiro, depois de muito e penoso trabalho e muita hesitação, executou um desenho original. Tréfusis aprovou-o e decidiu mandar erigir o monumento pelo próprio desenhador. Alugou um atelier de escultor, comprou blocos de mármore das dimensões indicadas pelo canteiro e deu-lhe ordem de pôr mãos à obra.
Mas aqui Tréfusis esbarrou com uma dificuldade. Não queria pagar ao canteiro nem mais nem menos que o justo valor do seu trabalho. A única base a que se podia reportar era a cotação do mercado, mas rejeitou-a porque tinha sido fixada pela concorrência dos capitalistas. Estes últimos não podiam assegurar o seu lucro senão obtendo dos seus operários trabalho em desproporção com a paga. Não podiam, por outro lado, atrair clientes, senão .dando-lhes uma parte deste trabalho não pago, como redução do preço.
Tréfusis foi, portanto, obrigado a verificar que o sistema que consiste em apoderar-se dos materiais indispensáveis para que os trabalhadores assegurem a sua produção e existência, para que eles mantenham uma classe de pessoas ociosas aceitando eles próprios um nível de vida inferior ao dessa classe ociosa, tornava impossível a justa regulação das trocas e, por consequência, o exercício das transacções honestas.
Por fim, viu-se obrigado a preguntar ao canteiro quanto considerava ele justo receber pela execução do seu trabalho, sabendo muito bem que este homem não resolveria melhor o problema que ele. Pediria, com certeza, o que ele pensava obter, vendo a sua proposta limitada por um lado pela sua pobreza e por outro pela concorrência dos negociantes de monumentos funerários. Tréfusis cortou o nó da questão pagando o dobro do que o homem pediu. Impôs somente como condição necessária que o trabalho fosse executado por ele, canteiro, pessoalmente, e que não lhe seria consentido
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contratar outros operários ao preço corrente para realizar benefícios fazendo-se substituir.
Mas, com grande espanto do seu autor, o desenho devia ser pago separadamente, hesitando o homem durante muito tempo entre duas libras e meia e quinhentas a mil libras. Tréfusis pagou-lhe um grogue com whisky e decidiu-se pela maior daquelas importâncias que pagou imediatamente. Em seguida quis averiguar quanto lhe custaria aquele projecto se saísse das mãos de um membro da Academia Real. Recordou-se muito a propósito que conhecera outrora um académico e foi consultá-lo. Consultado, o académico respondeu que o preço provavelmente pedido por um projecto daquele género seria de quinhentas a mil libras. Ao que Tréfusis retorquiu que as exigências do seu canteiro eram muito menores, mais razoáveis. O seu amigo artista indignou-se e lembrou-lhe quantos anos são precisos a um académico para adquirir o seu talento. Tréfusis, pelo seu lado, fê-lo notar que a aprendizagem de um canteiro era tão demorada como a do artista, duas vezes mais penosa e metade menos agradável. O artista começou então a considerar como odiosas e perigosas as ideias de Tréfusis, pelas quais ele tinha sentido um começo de simpatia.
Preguntou-lhe se não era justo prestar homenagem ao génio; Tréfusis respondeu com energia que o génio não custava nada ao seu possuidor, que era a herança de uma raça inteira acidentalmente na posse de um só indivíduo e que se este indivíduo se servia do seu monopólio para sugar dinheiro aos outros merecia uma corda em volta do pescoço e nada mais.
O artista zangou-se e deu a entender a Tréfusis que, se ele não podia sentir que a prerrogativa da arte é de essência divina, talvez compreendesse que um pintor
não será tão tolo que vá desenhar um túmulo por cinco libras, quando pode executar um
retrato por. mil. Ao que Tréfusis replicou que o facto de se pagar um retrato
por mil libras só prova uma coisa: aquele que o paga não ganhou esse dinheiro e, portanto, ou é um ladrão ou um mendigo. O trabalhador que sacrifica umas moedas
do seu salário semanal para comprar à namorada uma fotografia barata ou umas estampas cromolitografadas, ou figurinhas de faiança para colocar na pedra do fogão, priva-se mais para possuir uma obra de
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arte que o grande proprietário de terras ou O financeiro que paga, sem que isso o transtorne, mil libras por um retrato. Falou no "Jack Shçpperd" de Hogarth, apenas interessante para os amadores de rostos patibulares.
Uma viva querela se seguiu, Tréfusis causticando a pátetice dos artistas que julgam pertencer a uma casta sacerdotal quando não são mais que os parasitas e os escravos favoritos das classes ricas, e o seu amigo (transitoriamente seu inimigo) troçando amargamente os igualitários, que querem abaixar o nível geral em vez de o elevar. Finalmente, fatigados de discutir e cheios de remorsos de se terem mostrado tão furibundos, foram jantar amigavelmente.
O monumento foi colocado no cemitério de Highgate por um pequeno grupo de operários sem trabalho que Tréfusis descobriu. A inscrição dizia o seguinte:
Aqui jaz HENRIQUETA JANSÉNIO
nascida em 26 de Julho de 1856, casada com Sidney Tréfusis em 23 de Agosto de 1875 e falecida em 21 de Dezembro do mesmo ano.
O senhor Jansénio considerou este epitáfio como um insulto à memória de sua filha. Além disso, o túmulo era mais pequeno que outros erigidos no mesmo cemitério por
famílias às quais os Jansénios se consideravam superiores, o que deu origem a que o senhor Jansénio classificasse Tréfusis de avarento. Por outro lado, algumas pessoas admiraram tanto o monumento que Tréfusis ficou convencido da futura prosperidade do seu desenhador. Contudo, -aconteceu justamente o contrário. Quando o canteiro quis voltar ao seu trabalho habitual, disseram-lhe que tinha infringido o costume comercial e que os seus antigos patrões o dispensavam. Dirigiu-se então ao sindicato de que era sócio, pedindo conselho e assistência. Recebeu a mesma resposta e foi ainda censurado pela sua deslealdade para com os companheiros de trabalho. Foi ter com Tréfusis, a quem contou que o trabalho do monumento o tinha arruinado. Tréfusis, furioso, escreveu ao Times uma carta cheia de argumentação, que não foi publicada, uma outra ao sindicato em tom sarcástico, que não melhorou a situação, e
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outra, feroz, aos patrões do homem, que o ameaçaram com um processo por difamação. Acabou por se resolver a dar trabalho ao canteiro, mandando-o fazer chaminés e outras decorações na propriedade que lhe tinha vindo dos Tréfusis. Ao fim de um ano ou dois, os seus generosos salários permitiram ao canteiro estabelecer-se por sua vez como patrão. Nesta qualidade não tardou a enriquecer, porque sabia por experiência a soma exacta de trabalho que os seus operários podiam fornecer e o salário mínimo que os podia obrigar a aceitar. Pouco depois de se produzir esta mudança na sua situação, tornou-se ardente defensor da economia, da temperança, do amor ao trabalho e abandonou a organização profissional de que tinha sido o maior entusiasta no tempo em que a sua manutenção dependia da sua perícia e do seu gosto pessoal.
Enquanto, estes acontecimentos se produziam, a vida escolar de Ágata tinha terminado. A sua resolução de estudar com assiduidade durante um novo trimestre no colégio, tinha-se formado não tanto para se tornar mais sábia como para se tornar mais digna de Smilash. Por isso, quando soube a verdade da boca de Smilash, a ideia de voltar ao lugar da sua humilhação tornou-se-lhe intolerável. Deixou o colégio sob a impressão de que tinha o coração esmagado, porque a sua vaidade ferida não queria render-se à evidência que era ali a sede do mal. Apresentou as suas despedidas à senhora Wilson e nunca mais se ouviu no colégio dAlton o zumbido da abelha na vidraça.
A notícia da morte de Henriqueta consternou-a tanto mais que ela não podia deixar de contentar-se com o facto de a única pessoa ao corrente do seu fraco por Smilash (com excepção dele próprio) era agora uma testemunha para sempre emudecida. Viu nisso um temível sinal da sua depravação. Sob a sua influência, tornou-se quási beata e a sua saúde começou a inquietar sua mãe, que se desconcertava perante aquela seriedade desacostumada e, principalmente, a sua vontade bem determinada de nunca mais falar da conduta de Tréfusis, tornada o assunto favorito de todas as conversas familiares.
Escutava em silêncio as linguarices e discussões sobre o abandono da mulher por parte de Tréfusis e a sua frieza indiferente perante o cadáver de Henriqueta. Censurava-se ao
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viúvo a sua parcimónia, a sua oposição malevolente aos desejos de Jansénio, a lousa sepulcral barata com o seu epitáfio insultante. Era acusado de se ligar com vulgares operários e vis demagogos, de ter relações suspeitas com uma associação secreta que tramava assassinar a família real e destruir o exército. Era recordado o desmentido que ele tinha oposto, em brochura endereçada ao clero, à declaração do arcebispo de Cantuária de que só o auxílio espiritual podia melhorar a condição dos pobres do East-End, de Londres, e a vergonha suprema do seu processo de difamação, por escrito sedicioso, pelo que foi condenado em primeira instância a seis meses de prisão, penalidade de que o salvou a habilidade do seu advogado, ao encontrar uma falha na acusação, conseguindo anular a condenação à custa de muito dinheiro que Tréfusis teve de lhe pagar.
Por fim, Ágata fartou-se de ouvir enumerar os seus malefícios. Considerava Tréfusis sem coração, egoísta e percorrendo um mau caminho, mas sabia que ele não era o falador ruidoso, vulgar, sensual e ignorante que a tagarelice de sua mãe pretendia que ele fosse. Sentia mesmo, mau grado seu, uma emoção misturada de gratidão para com as raras pessoas que se aventuravam a defendê-lo.
Os preparativos da sua primeira entrada na sociedade ajudaram a esquecer a sua triste aventura. Foi na época própria que tomou contacto com a frivolidade mundana e achou a estação bem monótona, a tal ponto que preguntou a si própria se seria alguma vez feliz. No colégio tinha havido boa camaradagem, divertimentos, regulamentos e deveres que, uma vez observados, eram uma fonte de força e, quando violados, uma fonte de deliciosa agitação. Juntava-se a isso a ausência de todo o cerimonial, o fabrico dos caramelos, as glissagens com os cabelos ao vento nos corrimãos das escadas e um público apreciador da cena do soldado na chaminé.
Em sociedade, pelo contrário, eram tolas conversas que duravam meio minuto, frias ligações nascidas nestes meios minutos, um sentimento recíproco de suspeita, salas a trasbordar de gente, ventilação insuficiente, má música e mal executada, horas tardias, alimentação malsã, licores que embriagam, uma concorrência exasperada para despesas inúteis, a caça ao marido, a intriga, a dança, os teatros e os concertos.
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Estas três últimas ocupações eram do seu agrado e ajudavam a tornar-lhe tolerável o contraste entre Londres e colégio. Mas tinham inconvenientes, porque os bons
dança- rinos eram coisa tão rara como uma boa execução das óperas e dos concertos sem carácter. Tinha horror ao flirt e despedia os rapazes logo que eles se tornavam ternos, porque, neles, não via mais que a falsidade de Smilash sem o seu espírito. As pessoas mais novas dessa roda achavam que ela era descortês. Entre eles só falavam das suas maneiras incorrectas e decidiram castigá-la, não a convidando mais para dançar. Sem saber porquê, encontrou-se assim desembaraçada das atenções que em nada a interessavam (Ágata guardava o cruel desprezo do seu tempo de educanda pelas que chamava "miúdas"). Divertiu-se então o melhor que pôde com os senhores mais idosos e mais razoáveis que as raparigas não deixavam indiferentes.
Em suma, esse ano foi o menos feliz para ela até então. Alarmava continuamente sua mãe com os seus projectos de futuro. Ora queria ser enfermeira, ora cantora de ópera ou actriz. Estes projectos conduziram-na a estudos sem continuação.
Para se preparar como enfermeira, mergulhou na leitura de um manual de fisiologia que a senhora Wylie achou tão pouco conveniente para uma rapariga, que foi, lavada em lágrimas, ter com a senhora Jansénio pedindo-lhe que sermoneasse aquela ingovernáveí filha. A senhora Jansénio, mais entendida, foi de parecer que quanto mais coisas uma mulher conhece mais probabilidades tem de se conduzir segundo a razão e que, aliás, Ágata depressa deixaria de lado a fisiologia sem que fosse necessário intervir.
Nisso tinha ela razão. Tendo, chegado ao fim do seu livro à força de saltar as páginas, Ágata prosseguiu os estudos com leituras sobre a patologia, num volume de conferências clínicas. Mas tendo-se persuadido de que as sensações que em si encontrava eram exactamente as que o livro descrevia como sintomas das doenças mais terríveis, alarmada, renunciou aos estudos clínicos e mergulhou na leitura de um romance isento do defeito que encontrava nas conferências, visto que nenhuma das emoções ali analisadas correspondia a quaisquer outras por ela alguma vez sentidas.
Depois de breve intervalo, foi consultar um professor de
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Canto em voga, para saber se a sua voz era suficientemente fórte para a carreira lírica. Este professor aconselhou-a a trabalhar com ele durante seis anos e assegurou-lhe que, ao fim deste lapso de tempo, se ela seguisse as suas instruções com rigor, seria a maior cantora do mundo. Mas a objecção concludente que se apresentou ao espírito de Ágata foi que, dentro de seis anos, seria velha. Resolveu então tentar ganhar tempo trabalhando só.
Entretanto, sem abandonar a ideia do teatro, se os seus projectos de se tornar cantora de ópera falhassem, tomou lições de dicção e ginástica. A prática de uma e outra melhoraram a tal ponto a sua saúde e o seu moral que as suas aspirações precedentes lhe pareceram muito limitadas. Tentou sucessivamente todas as artes, mas o fraco êxito dos seus primeiros ensaios desencorajou-a de continuar. Sabia que, geralmente, todos os começos são fracos e ridículos, mas nunca aplicava as generalidades ao seu caso particular. Considerava-se sempre como uma excepção como no tempo em que concebia romances de que Smiiash fosse o herói. Nela, as ilusões da adolescência reinavam como rainhas.
Durante este tempo, os seus actos e gestos engendraram aborrecimentos em que não tomava parte. Os seus acessos de entusiasmo seguidos de períodos de esgotamento diante dos seus maus êxitos repetidos e a sua impressão de inutilidade passavam, aos olhos de sua mãe, como pura extravagância e neurastenia, que deviam ser combatidos com a costura à guisa de sedativo e caldo de vaca à guisa de estimulante.
A tradição tinha ensinado à senhora Wylie que o dever de uma senhora de sociedade é ser graciosa, caritativa, amável, modesta e desinteressada, esperando passivamente a sorte que estas virtudes pudessem trazer. Mas, por outro lado, a experiência tinha-lhe ensinado que a tarefa de uma senhora de sociedade é casar-se, e que as virtudes, como as prendas de educação, são importantes apenas como iscos para os celibatários disponíveis.
Como esta verdade é um pouco melindrosa de se confessar, não é explicada claramente às raparigas no momento da sua entrada na vida de sociedade, mas deixam-lhes o cuidado de a descobrir por si próprias ,ao fim de um ano ou dois passados no convívio mundano. É essa a razão pela
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qual as jovens recusam às vezes excelentes partidos durante a sua primeira estação e são forçadas, em seguida, a oferécer-se a preços consideràvelmente reduzidos, quando os seus atractivos começam a passar. Tal era a sorte que a senhora Wylie, advertida pela senhora Jansénio, temia para Ágata, que, de tempos a tempos, quando um jovem noviço, cuja fortuna e posição não eram para desdenhar, lhe era apresentado, o despedia bruscamente e o mandava à sua vida quando ele se aventurava a declarar-lhe que a sua afeição o levava a procurar estreitar conhecimento com ela. Sua mãe, inquieta, ficou reduzida a consolar-se dizendo que sua filha tanto recusava os maus partidos como os bons e não se dedicava a ninguém fora do seu meio; que era ainda muito nova e que perderia a timidez quando tivesse mais alguns anos e ganhasse o que o senhor Jansénio chamava a razão.
Mas, como as estações passavam, começava a preguntar se Ágata devia ser mais felicitada por começar a vida ao deixar a escola, que Henriqueta por tê-la terminado.
XI
As "Faias", no vale do Tamisa, eram a casa de campo de sir Charles Brandon, sétimo baronete deste nome. Tinha perdido o pai antes de atingir a maioridade e tinha-se casado pouco tempo depois. Assim, aos vinte e cinco anos, era já pai de três crianças.
Era um homem um pouco gasto, apesar de novo, mas alto e de aspecto agradável. Tinha uma forma sedutora de consolar os aborrecimentos dos outros; sabia contar bem uma história, gostava de música, tocava piano, praticava o canto, gostava de desenhar e pintava um pouco a aguarela. Enfim, lia todos os magazines que vinham de
Londres e Paris e fazia a critica dos quadros. Tinha viajado um pouco, pescado um pouco, caçado um pouco, feito um pouco de botânica, cortejado sem repouso um certo número de mulheres e consumido a sua energia por todos os atalhos que
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a sua riqueza lhe abria e que os seus talentos lhe tornavam acessíveis.
Não tinha grandes conhecimentos sobre nenhum assunto, se bem que se tivesse ocupado de muitas matérias, justamente o bastante para substituir a falta completa de conhecimentos por uma ignorância moderada.
Não tendo nunca gozado a sensação de produzir fosse o que fosse, atormentavam-no aspirações não satisfeitas, que o tornavam melancólico e lhe davam a ilusão de ser um artista nato. Sua mulher achava-o egoista, caturra, amigo de novidades e inclinado a imaginar que era portador de graves doenças, quando apenas se engripava.
Lady Brandon imaginava que seu marido compreendia todas as coisas de que falava, porque ela própria não as compreendia. Constituía uma das decepções de seu esposo. Fisicamente não se parecia com nenhum dos tipos de beleza que os pintores da sua época se esforçavam por realizar, mas tinha encantos aos quais poucos homens ficavam insensíveis. Era alta, de formas arredondadas e carnes abundantes. Os seus braços, espáduas e ancas amplas eram bem proporcionados. com a sua pequena cabeça, pequenas orelhas, lindos lábios e olhos maliciosos, apesar de ser uma pessoa forte, oferecia uma soma de beleza meio mulher, meio criança, que fazia nascer, mesmo nos homens graves, um imenso desejo de a apertar nos braços e de a beijar logo à
primeira entrevista.
Este desejo tinha feito partida à cultura intelectual sem método de sir Charles Brandon. A sua imaginação deu-lhe um gosto pela arte que ele desejaria encontrar
em sua mulher e desposou-a desde a sua entrada na sociedade, para só mais tarde descobrir que a faculdade de amar da jovem senhora era tão fraca, tão insignificante, que tornava ridículas todas as suas tentativas de ternura e privava de todos os seus transportes antecipados as carícias que ele tão ardentemente tinha esperado.,
Intelectualmente, a esposa desiludiu mais ainda as suas esperanças. À pintura, arte favorita de sir Charles, era por ela considerada um passatempo para amador e um ramo da indústria do mobiliário para profissionais. Quando sir Charles discutia sobre arte com os seus amigos, ela emitia a sua opinião com uma presunção que era tanto mais irritante
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quanto lhe acontecia frequentemente cair em conclusões perfeitamente fundadas, enquanto ele chegava, com a sua seriedade e subtileza, a conclusões perfeitamente falsas. Em tais circunstâncias, o aborrecimento que ele patenteava não a incomodava absolutamente nada. Lady Brandon triunfava abertamente. Tinha chegado à conclusão de que o casamento é uma grande loucura e os homens ainda maiores imbecis do que tinha imaginado. Mas estas convicções aliviavam mais a sua sensibilidade que a desapontavam, e como tinha muito dinheiro, muitos criados, muitas visitas e praticava muito a equitação, pela qual tinha paixão imoderada, o seu tempo passava-o muito agradavelmente.
O conforto parecia-lhe a ordem natural da vida e os aborrecimentos apanhavam-na sempre de surpresa. Os amigos de seu marido, que desafiavam as horas futuras e tinham muito que dizer das horas passadas, não eram para ela mais que exemplos da força dos hábitos sedentários e da leitura excessiva para tornar um homem melancólico e enfadonho.
Por uma bela manhã de Maio, enquanto ela avançava a trote sobre o seu forte cavalo baio ao longo da avenida que conduzia às "Faias", a grade que existia na extremidade da avenida abriu-se para dar passagem a um homem novo montado numa bicicleta. De corpulência adelgaçada, o recém-vindo tinha belos olhos negros e um nariz muito delicado. Assim que reconheceu lady Brandon, agitou o seu boné e ao chegar próximo dela saltou da sua máquina inanimada, o que assustou o cavalo de lady Brandon.
- Quieto, estúpido animal! - impôs ela, tocando no cavalo com a extremidade do chicote, - A falar a verdade, é natural que este cavalo tenha tido medo. Como vai
Que ideia montar sobre umas rodas dessas quando o senhor é rico demais para ter um cavalo!
- É um engano, eu não sou suficientemente rico para me dar o luxo de ter um cavalo, - replicou ele, aproximando-se dela para afagar o baio depois de ter apoiado a bicicleta contra uma árvore. - Aliás, os cavalos fazem-me medo porque não estou familiarizado com eles e não sei como sustentá-los. A minha máquina não reclama alimento. Não morde, nem escoicinha. Não coxeia nunca e não está nunca doente, não morre, não tem necessidade de um tratador, nem...
- Tolices, tudo isso ! - exclamou lady Brandon, com
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impetuosidade. - Esse "animal" tropeça e dá-lhe horríveis sacudidelas e além disso manca quando os pedais se desconsertam e o resto se desconjunta. E gasta-se e
dá duas vezes mais trabalho para a ter limpa e desembaraçá-la de toda a lama que um cavalo e outras coisas ainda. Acho que o que há de mais ridículo no mundo é a
figura de um homem bifurcado numa bicicleta, que trabalha com os pés tão depressa quanto pode, imaginando que é o seu cavalo a conduzi-lo, ao passo que toda a gente
pode ver que é ele que conduz o seu cavalo. Não me vai dizer que não é mais fácil andar pela forma ordinária que arrastar consigo uma máquina inerte. Não teria senso
comum.
- Contudo, a verdade é que eu posso levá-la à distância de cem quilómetros ao fim de um dia, o que já não posso fazer sozinho. São as maravilhas da mecânica. Oh, eu sei que fazemos fraca figura ao seu lado com essa admirável montada Mas ninguém pensa em olhar para mim quando a senhora está presente para atrair mais dignamente
a atenção.
Lady Brandon lançou-lhe um olhar que lhe obscureceu a vista e fez bater mais rápido o coração. Era nela um velho hábito de que não se desfazia por puro divertimento,
não tendo nenhuma ideia do efeito que produzia sobre temperamentos mais impressionáveis que o seu. Ele continuou:
- Sir Charles está em casa ?
- Oh! Não me fale nisso! E a coisa mais absurda de que tenho ouvido falar! - exclamou ela. - Imagine que um homem que vive só naquela casa, ao pé da borda da água,
e que tem a figura de um mealheiro de barro - sabe o que eu quero dizer ? chamam-lhe a Casa de Salústio, - pretende que o povo tem direito de passagem através do nosso novo parque. Como se alguém pudesse ter quaisquer direitos depois de todo o dinheiro que gastámos com as três paliçadas, a construção do muro junto à estrada, as plantações, nivelamentos, drenagens, e Deus sabe o resto! E vem agora esse homem pretender que toda a populaça e todos os vagabundos têm o direito de atravessar o nosso parque, porque são preguiçosos demais para dar a volta pela estrada. Sir Charles foi ver esse homem a propósito desta história. Claro que recusou fazer o que eu lhe aconselhei.
- E que foi que lhe aconselhou ?
- Que escrevesse a esse homem para se ocupar com o
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que lhe diz respeito e que a primeira pessoa que tentasse espezinhar a nossa propriedade seria entregue à polícia.
Então, não encontro ninguém em casa. Peço perdão
por chamá-la deste modo, mas, para mim, a casa é o único lugar digno. .
- Sim, está mais confortável agora que mandámos construir a nova sala de bilhar e retirar aquelas medonhas tapeçarias do vestíbulo. Foi-me preciso tempo antes de conseguir fa...
Foi interrompida pela chegada de um velho jornaleiro que se aproximava deles coxeando, tão depressa quanto lho permitia o seu reumatismo, e que se pôs a falar sem mais cerimónia que desbarretar-se:
- Está o poder do mundo no novo terreno, milady! Vem um padre com eles e uma bandeira... Sir Charles não sabe o que há-de dizer... nunca vi uma coisa assim...
Lady Brandon empalideceu e puxou o cavalo como para o fazer recuar diante de um perigo. O visitante, intrigado, preguntou ao velho o que ele queria dizer.
- Vai haver um cortejo no novo terreno, - respondeu o homem, - e o patrão não poderá impedi-lo. Eles deitaram o muro abaixo no comprimento de três metros e ficou impedida a estrada. Está um padre com eles e uma bandeira. E o que mora na Casa de Salústio está lá também para os incitar a andar para a frente.
- Deitaram o muro abaixo ? - exclamou lady Brandon, escarlate de indignação e pálida de apreensões. - É vergonhoso ! Onde está a polícia ? Chester, quere vir comigo ver o que se passa ? Sir Charles não dá conta do recado. Haverá perigo?
- Há dois da polícia, - disse o velho, - e o que mora na Casa de Salústio desafiou-os a que o prendessem. Os polícias estão indecisos. Está um padre com os manifestantes. Eu vi-o deitar o muro abaixo com as suas mãos.
- vou ver que comédia é essa, - disse Chester, montando na bicicleta.
Lady Brandon hesitou. Mas a cólera e a curiosidade venceram o seu receio. Alcançou o jovem da bicicleta e passaram lado a lado a barreira que dava acesso à estrada principal, depois dirigiram-se para o local da cena cuja descrição o velho jornaleiro tinha feito a seu modo. Montes de
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tejolos e de argamassa juncavam a estrada de cada lado de uma brecha feita no muro recentemente construído, por cima do qual lady Brandon, estando a cavalo, podia ver, vindo na sua direcção através do parque, um cortejo de uma trintena de pessoas, que avançavam três a três em boa ordem e em silêncio. A expressão de todos, com excepção de alguns rostos alegres, era a de devotos cumprindo um rito.
A gravidade do cortejo era ainda mais profunda pela presença de um padre entre eles, todos homens de classe média e alguns trabalhadores, que erguiam um pendão com os seguintes dizeres: "O solo da Inglaterra pertence de direito a todo o seu povo". Seguiam quatro mulheres, que lady Brandon considerou com indignação e desprezo que não simulou. Nenhum dos homens da vizinhança tinha ousado tomar parte no cortejo; conservavam-se todos na estrada, cochichando entre si e rindo a intervalos das gracinhas de um par de vagabundos que tinham parado ali para observar e que não dependiam de sir Charles.
Este último, que estava no terreno, um pouco à parte, fazia censuras, com gestos de cólera, a um homem da sua classe, que, de costas voltadas para a brecha, com as mãos nas algibeiras do seu calção cor de tabaco, contemplava o cortejo com orgulhosa satisfação. Lady Brandon, suspeitando que era aquele o homem que ocupava a Casa de Salústio, encorajada pela lealdade da multidão que se afastava diante dela desbarretando-se, deu uma vigorosa chicotada no seu cavalo baio, que, com um patear ruidoso e espalhando torrões de terra em volta, carregou a direito sobre o inimigo cor de tabaco, que deu um salto brusco para o lado para evitar o choque. Uma risada veio dos lados da estrada, para onde se voltou vivamente o interlocutor de sir Charles. Mas, de súbito, ele teve um sorriso afável, tornou a meter as mãos nos bolsos depois de ter cumprimentado a dama e disse:
- Como está, menina Carpenter?Tomei-a por uma carga de cavalaria!
- Não sou a menina Carpenter, sou lady Brandon e entendo que devia ter vergonha, senhor Smilash, se foi o senhor que trouxe aqui esta gente ignóbil.
Respondendo-lhe, lançou-lhe um olhar eloquente de censura por não ser já a menina Carpenter.
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- Eu não sou Smilash, - disse ele. - Sou Sidney Tréfusis. Acabo de ter o prazer de travar conhecimento com sir Charles. Havemos de nos
tornar os melhores amigos do mundo quando eu conseguir convencê-lo de que não é nada justo apropriar-se de um atalho que pertence ao povo e obrigá-lo a dar uma volta de dois quilómetros e
meio para contornar a propriedade em vez de quatrocentos metros tomando o atalho.
- Eu já lhe disse, senhor, - respondeu sir Charles que tenho a intenção de abrir um atalho ainda mais curto para permitir a todos os trabalhadores que se portam
convenientemente que passem por ele duas vezes por dia. Isso favorece-os à ida e à volta do trabalho e os gastos de conservação serão de minha conta.
- Obrigado, - disse Tréfusis secamente, - mas para que vai incomodar-se quando temos um caminho que é nosso, de que podemos fazer uso cinquenta vezes por dia se nos apetecer, sem que ninguém nos detenha o passo se a nossa conduta não for a seu gosto? Além disso, quem garante que o seu próximo herdeiro não fechará o atalho logo que entre de posse da propriedade ?
- Porque se lhes oferece um caminho estão assim afrontados!-comentou lady Brandon, falando para seu marido.- Porque lhes prometeste fosse o que fosse ? Eles não achariam comprido um caminho de dois quilómetros ou mesmo trinta para ir à taberna, mas para ir para o trabalho é muito caminhar nem que seja um metro. Talvez queiram que se lhes empreste um carro...
- Não duvido de que eles aceitem, - replicou Tréfusis, olhando-a com ar radiante.
- Peço-te, Joana, deixa-me tratar eu próprio do caso. O teu lugar não é aqui. Leva Erskine para casa. Deve estar...
- Porque não os expulsa a polícia? - interrompeu ela muito excitada para dar atenção ao marido.
- Cala-te, Joana, por favor. Que podem três homens contra trinta ou quarenta?
- Um deles devia ser preso para exemplo.
- A polícia ofereceu-se generosamente para me prender se sir Charles consentisse, - disse Tréfusis.
- Ai está, - disse lady Brandon, voltando-se para seu
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marido. - Porque não o mandas prender, este ou outro, porquê ?
- Falas sem saberes o que dizes, - replicou sir Charles, vexado pela certeza de que ela o estava Cornando ridículo.
- Se não queres, serei eu a fazê-lo. Este descaramento de pôr pé no nosso terreno e de deitar abaixo o muro! Seria engraçado se se consentisse que o povoléu fizesse o que lhe apetece na propriedade de cada um. vou mandá-los
prender, a todos.
- E eu ? Também me vai mandar para uma prisão ? preguntou Tréfusis, com ar melancólico.
- Não falo do senhor em particular, - replicou ela, mais suave. - Mas vou mandar prender aquele padre, porque devia ser mais razoável.
É ele o causador deste aborrecimento.
- Ficará encantado, lady Brandon. O padre suspira pelo martírio! É certo que vai mandá-lo prender?
- E vou, sim, senhor.
Assim dizendo, fez saltar o cavalo para dar mais ênfase à sua afirmação.
- E sob que acusação ? - preguntou Tréfusis, acariciando o animal e olhando para ela.
- Pouco importa a acusação,- respondeu ela, consciente de que estava sendo admirada e nada descontente com isso. - Que o prendam é quanto basta.
Um ser humano a cavalo parece-se a tal ponto com um centauro que, quando se tomam liberdades com a montada é quási uma coisa tão pessoal como se essas liberdades fossem tomadas com o cavaleiro. Quando sir Charles viu Tréfusis acariciar o baio, sentiu-se tão ultrajado como se fosse a própria lady Brandon que recebesse a carícia. Experimentou por isso uma viva contrariedade para com ela, por permitir semelhante familiaridade. Ficou bastante aliviado com a chegada do cortejo, que parou não longe
deles enquanto os chefes avançavam para Tréfusis. Este último disse gravemente:
- Felicito-os pela firmeza com que proclamaram neste dia o direito dos habitantes destes sítios ao uso de uma das raras parcelas da nossa terra-mâe de que ainda não foram despojados.
- Meus senhores, -propôs um dos membros do cortejo,
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bastante excitado, - um triplo viva pela retomada do solo de Inglaterra, pelo povo de Inglaterra Hip, hip,
hurrá!
Os vivas foram vozeados com entusiasmo. A cada repetição, as faces de sir Charles tornavam-se mais vermelhas. Furioso, olhava para o padre visivelmente atordoado
pelos encantos de lady Brandon, cujo desprezo, ao considerar aquela multidão, se exprimia por um trejeito que ia muito bem nos seus lindos lábios.
Neste momento, um trabalhador de meia idade avançou sobre o terreno com o chapéu na mão, inclinou-se respeitosamente e disse:
- Escute, sir Charles, não faça caso destes tipos. Não há entre eles um único homem da vizinhança, nem um único que trabalhe para vós ou que viva nas suas terras. .Apresentamos os nossos respeitos a sir Charles e sua senhora. Fiamo-nos no senhor para fazer o que for justo para nós. Não queremos nada com estes intrusos que vêm de Londres para nos pôr de mal com Vossa Excelência e...
- Oh, porco sujo! - vociferou Tréfusis, com furor. - com que direito abandonas aos filhos que hão-de nascer dele a liberdade dos teus?
- Os nossos filhos já nasceram, - disse lady Brandon com indignação. - Isso mostra quanto o senhor ignora as coisas.
- E os meus também, - disse o homem encorajado pelo apoio da grande senhora. - E o senhor quem é, para me chamar porco sujo?
- Quem sou ? Sou um homem rico, um dos teus senhores que tem o privilégio de te chamar o que lhe apetecer. Tu não passas de um vil escravo, ensinado pela fome. Agora vai pedir à lei justiça contra mim. Eu posso comprar a lei e arruinar-te por menos dinheiro que me custaria ir caçar o gamo na Escócia ou a canalha aqui. Agrada-te este estado de coisas, heim?
O homem ficou confuso.
- Sir Charles me defenderá, - disse ele depois de uma pausa, mostrando confiança, mas lançando um olhar
inquieto para o baronete.
- Se ele fizer isso depois de ver a tua ingratidão parai comigo por te ter defendido, é mais tolo do que eu julgava.
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- Devagar, devagar, - interveio o padre. - Há muito que dizer para desculpar este pobre homem.
- Seja devagar, como o senhor quere, mas com um homem livre, - disse Tréfusis. - Quanto aos escravos, devem ser encaminhados, e este homem é escravo até à medula dos ossos.
- É preciso ter paciência. Ele não sabe...
- Sabe melhor que parece, - interrompeu lady Brandon.
- E quanto ao senhor, devia ter vergonha do que fez, porque tem obrigação de ser razoável. Penso que a sua educação foi feita algures. E creio que não ficará nada satisfeito quando o seu bispo souber o que se passou. Sim, sim, acrescentou ela, dirigindo-se a Tréfusis com vontade infantil de chorar, mas obrigada a rir contra-vontade, - pode rir, tanto quanto queira, não se incomode a fingir que tem tosse, mas prometo-lhe que vamos dar conhecimento ao seu bispo.
- Cala-te Joana, por amor de Deus,-interveio sir Charles, segurando a rédea do cavalo de lady Brandon e afastando-o de Tréfusis.
- Não me calarei. Se tu achas bem que esta gente se vá com pedaços do nosso muro na algibeira, eu não acho e não me vou embora. Porque não chamou a polícia?
- A polícia nada pode fazer, - disse sir Charles, humilhado além de todo o limite. - E eu nada posso fazer também enquanto não falar com o meu advogado. Para que ficas aí a altercar com esta gente? É falta de dignidade.
- Falar de dignidade com esta gente a espezinhar os nossos campos sem licença! Senhor Smilash, faça favor de lhes dizer que se vão embora e que serão processados e metidos numa prisão.
- Eles vão precisamente à encruzilhada aqui próxima para realizarem ali uma reunião pública e, naturalmente, haverá discursos. Pediram-me para dizer a lady Brandon que lamentam infinitamente que a sua demonstração a tenha pessoalmente molestado.
- Isso é o menos, -replicou ela. -Não vejo que tenham aspecto de quem está pesaroso. Começam a ter medo do que fizeram e esperam escapar às consequências da sua conduta, desculpando-se. Mas eu não sou tão tola como eles imaginam.
- Não imaginam nada que se pareça com isso. A senhora provou-lhes o contrário.
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Joana, - inquiriu sir Charles, com despeito, - conheces este senhor?
Julgo que sim, - replicou lady Brandon com energia.
Tréfusis inclinou-se como se tivesse sido formalmente apresentado ao baronete. Este devolveu-lhe a saudação de má vontade e com rigidez, não podendo na verdade deixar de reconhecer que o outro era mais decidido, mais velho e mais inteligente do que ele nas circunstâncias presentes.
- Todo este negócio é pouco simpático entre vizinhos, sir Charles, - disse Tréfusis, muito à vontade. - Mas como se trata de um caso público, não deve prejudicar as nossas relações privadas. Pelo menos, assim o espero.
Sir Charles cumprimentou de novo com mais rigidez ainda.
- Eu sou, como o senhor, proprietário e capitalista...
- Coisas que não tem o direito de ser, se é sincero, observou Chester, que tinha assistido a tudo em silêncio ao lado de sir Charles.
- Justamente coisas que, como o senhor diz, não tenho incontestavelmente o direito de ser, - replicou Tréfusis, considerando-o com interesse, - mas que não posso evitar de ser. Tenho, por acaso, o prazer de falar ao senhor Chichester Erskine, autor de uma tragédia intitulada "Os Patriotas Mártires", dedicada com emoção entusiástica ao Espírito da Liberdade, e de uma meia dúzia de brochuras apoiando este princípio e que denunciam em linguagem enérgica a tirania do defunto tzar da Rússia, do
rei Bomba das Duas Sicílias e de Napoleão III ?
- É verdade, senhor, - confirmou Erskine, corando, porque sentia que esta apreciação podia tornar as suas obras ridículas aos olhos das pessoas presentes que não
as tinham lido.
- Então, - disse Tréfusis, estendendo a mão, como para um amigável shake-hands como Erskine pensou primeiro, dê-me um xelim para os encargos da nossa expedição de
hoje, que fez valer o direito do povo de pisar o solo no qual estamos.
- O senhor não vai fazer isso, Chester! - exclamou lady Brandon, - nunca ouvi coisa parecida na minha vida! Por acaso, o senhor Smilash pensa pagar os estragos do muro e das paliçadas, causados pela sua gente? Estaria bem assim.
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- Se eu pudesse encontrar um milheiro de homens tão práticos como lady Brandon, poderia fazer uma grande revolução antes de finda a temporada de verão.
Olhou-a com ar bizarro durante um instante como se tentasse avivar uma recordação; depois acrescentou, sem lógica nenhuma:
- Como passam as suas amigas, lady Brandon? Havia uma menina... menina... receio ter esquecido todos os nomes, salvo o vosso...
- Gertrudes Lihdsay está cá de visita neste momento. Lembra-se dela, não?
- Creio... não... creio bem que não. Espere um momento. Não era uma pequena altiva?
- Justamente, - disse lady Brandon, com vivacidade, esquecendo o muro e a paliçada. - E quem julga que vem . cá na quinta-feira ? Encontrei-a, por acaso, na última vez que fui à cidade. Não mudou nada. Vejamos, com certeza que não a esqueceu... não finja que está intrigado.
- Ainda não me disse de quem se trata. E é provável que não me lembre. Não vá esperar que eu reconheça inStantâneamente toda a gente como a reconheci.
- Que blague! com a mesma rapidez reconhecerá Ágata.
- Ágata Wylie! - exclamou ele, com súbita gravidade.
- Ela mesma. Chega na quinta-feira. Está contente?
- Creio que não terei ocasião de a ver.
- Tem, com certeza, e deve vê-la. Será tão divertida encontrarmo-nos todos juntos como noutro tempo! Venha almoçar connosco na quinta-feira, quere?
- Ficaria encantado se mo permitisse verdadeiramente depois do que se passou hoje.
- Ora! Os nossos homens de leis regularão tudo. Agora que descobriu quem nós somos não continuará a destruir os nossos muros, heim ?
- Evidentemente, - respondeu Tréfusis, tirando uma agenda da algibeira para anotar o convite. - Agora é preciso que me retire para assistir à reunião da encruzilhada. Provavelmente fui eleito presidente e esperam-me para abrir a sessão. Boa tarde. A senhora tornou este sítio dos mais interessantes para mim subitamente quando já me começava a aborrecer dele.
Trocaram olhares do género dos do colégio, outrora,
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depois do que ele fez um cumprimento de cabeça a sir Charles, um gesto familiar com a mão a Erskine e partiu ao encontro do cortejo, que já estava fora do alcance da vista. Sir Charles, que tinha esperado em vão a sua vez de falar e continuamente desconcertado pelas preguntas precipitadas de sua mulher e pelas respostas precisas de Tréfusis, voltou-se com cólera para lady Brandon, para lhe preguntar:
- Que ideia foi essa de convidar este indivíduo para a minha casa?
- Tua casa, na verdade Convido quem entendo. Estásmais uma vez de mau humor, como de costume, aliás.
Sir Charles olhou em volta. Erskine tinha-se retirado discretamente e ocupava-se na estrada a apertar um parafusa da sua bicicleta. As poucas pessoas que se viam estavam fora do alcance da voz.
- Quem é e o que é ele, com seiscentos diabos? E como é que o conheces? - preguntou ele, irritado.
Sir Charles nunca praguejava diante de uma senhora, excepto sua mulher e somente quando não havia pessoas estranhas.
- É um homem irrepreensível, o que já não acontece contigo, - retorquiu ela.
E com uma chicotada, que rasou o ombro do marido, lançou o baio através da brecha.
- Venha, - disse ela a Erskine, - vamos chegar atrasados para o almoço.
- Não seria melhor esperarmos por sir Charles ? - preguntou ele, imprudentemente.
- Tanto pior para sir Charles, está de má cara, - disse ela, sem baixar a voz. - Venha.
E afastou-se a trote, seguida por Erskine, atormentado pelo receio de que a sua visita fosse desgraçadamente inoportuna.
XII
Na quinta-feira seguinte, Gertrudes, Ágata e Joana encontraram-se pela primeira vez juntas depois de terem deixado o colégio dAlton. Ágata era a mais intimidada das.
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três e exteriormente parecia a menos mudada. Tinha-se tornado, julgava ela, muito diferente da Ágata de outro tempo, mas na realidade era a opinião que tinha dela própria que tinha mudado, não a sua pessoa. Pensando encontrar uma mudança correspondente nas suas amigas, esperava que a entrevista pudesse ser agradável.
Gertrudes inquietava-a mais que a Joana. A sua breve entrevista de Londres com esta última tinha-lhe feito observar que as maneiras, as idéas e o modo de falar de lady Brandem eram os da Joana Carpenter do colégio. No entanto, Joana impunha-lhe mais respeito que outrora; a rapariga anafada, que ela era então, tinha-se transformado numa esplêndida mulher. Além disso, desde a sua primeira temporada mundana tinha feito um brilhante casamento, enquanto muitas das suas contemporâneas, que eram bonitas e inteligentes e por ela invejadas na escola, não tinham ainda casado e levavam uma existência tornada insuportável, inquietos os pais por se desembaraçarem do fardo da sua manutenção e desejosos, ainda, de gozar as vantagens materiais trazidas por um rico casamento.
Tal era o caso de Gertrudes. Como Ágata, tinha recusado todas as propostas de matrimónio. Altiva e orgulhosa da sua estirpe e de natureza exclusivista, tinha decidido não se ocupar com pessoas que não partilhassem uma ou outra destas particularidades. Começou por declinar as tentativas de aliança feitas por várias famílias muito ricas e muito mundanas, cujos antepassados eram uns desconhecidos ou de quem elas se envergonhavam. Excluindo-se do seu meio, foi apresentada na corte e desde então não se relacionou senão com os que, no seu entender, eram dignos dessa mesma distinção. Mostrava-se assim muito mais severa que o Camarista-mor que tinha, dizia
ela, traído o seu posto de confiança tornando-se de algum modo igualitário. Gertrudes era bem educada, refinada nas suas maneiras e hábitos, versada na etiqueta
a um ponto tal que a tornava irritante para os ignorantes, e dotada, enfim, de um tacto delicado, dentes como pérolas e um rosto cuja beleza seria grega se não fosse
o nariz um pouco arrebitado e o maxilar um pouco pesado e quadrado.
Seu pai era um almirante reformado, bastante influente para poder obter uma sinecura do governo conservador
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para manter o seu filho enquanto esperava que ele desposasse uma rica herdeira. Entretanto, Gertrudes não conseguia casar-se e o almirante tinha já gasto mais dinheiro do que razoavelmente devia com a sua educação e agora com o seu vestuário.
Queixava-se tão amargamente do seu insucesso em se desembaraçar dela que Gertrudes não podia já suportar viver em casa e estava prestes a desposar o primeiro fidalgo que aparecesse, por pouco apropriados que fossem a sua idade e carácter e que a libertasse da sua dependência humilhante. Estava disposta a sacrificar o seu desejo natural de juventude, de beleza e de virtude no marido procurado se não pudesse escapar de outra forma a seus pais, mas também decidida a morrer solteirona, de preferência a desposar um arrivista.
A dificuldade que ela encontrava era de ordem pecuniária.
O almirante era pobre. Tinha apenas trezentas libras de rendimento e ainda que observasse a mais severa economia para poder conservar certos hábitos dispendiosos não podia dar dote a sua filha. Ora os celibatários bem nascidos do seu meio que tinham mais sangue azul, mas menos fortuna do que desejariam ter, admiravam-na, faziam-lhe elogios, dançavam com ela, mas não tinham os meios precisos para desposá-la.
Alguns chegaram a confessá-lo e casaram depois com filhas de ricos negociantes de chá, fundidores de ferro e agentes de câmbio enriquecidos, e tentaram depois casá-la com os seus humildes cunhados.
Aconteceu, portanto, que, ao encontrar lady Brandon, alegrou-se Gertrudes de aceitar o convite de Joana para passar uma temporada nas "Faias", o que lhe evitava, durante um tempo, os sarcasmos quotidianos do almirante, quando ele percorria a lista dos casamentos do Times. Ô convite era tanto mais aceitável que sir Charles não era um destes arrivistas enobrecidos e Gertrudes lembrava-se
um
de que, nos seus tempos de pensionista no colégio dAlton, tempos que lhe apareciam agora como os mais felizes da sua vida, tinha verificado que a família e as relações de Joana eram mais aristocráticas que as de todas as outras, estudantes do colégio, exceptuando a sua pessoa.
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Ágata, cujo avô tinha amealhado uma fortuna como proprietário de fábricas de gás (novidade no seu tempo), não tinha sido brindada com a sua intimidade, mas tinha-a obtido pela força, força moral por um lado, força física por outro. Mas as fábricas de gás não foram nunca olvidadas e quando lady Brandon lhe anunciou, como uma noticia muito agradável, que tinha encontrado a antiga companheira de aula e a convidara a vir juntar-se com elas, Gertrudes não patenteou grande alegria com a perspectiva. Contudo, no momento em que se reviram, os seus olhos foram os únicos que se umedeceram, talvez por que era a menos feliz e porque o seu moral estava um pouco abatido
ainda que ela o não notasse.
Achou que Ágata tinha perdido a frescura da mocidade, mas tinha-se tornado mais segura de si, mais forte e inais instruída que outrora.
Ágata tinha, com efeito, concentrado todo o seu domínio sobre si própria para ocultar a sua timidez. Surpreendeu a emoção de Gertrudes, que acabou por não poder dissimular. Teria mesmo patenteado francamente o seu sentir, se a sua educação social lhe tivesse ensinado a exibir os seus sentimentos tão habilmente como lhe tinha ensinado a dissimulá-los.
- Lembram-se da madre abadessa? - preguntou Joana, enquanto voltavam todas três da estação, em carruagem.- E a senhora Miller e o seu gato? E recordam-se do Registo Angélico? E como eu caí um dia no canal?
Estas reminiscências duraram até que atingiram a casa e se dirigiram
todas para o quarto reservado a Ágata. Neste momento, Joana, tendo ordens a dar aos criados, deixou-as contra-vontade. O seu ciúme fazia-lhe temer que Gertrudes tomasse a dianteira para reconquistar a afeição de Ágata. Tentou mesmo levar a rival com ela, mas em vão. Gertrudes não lhe deu saída.
- Que bonita casa e que sítio adorável! - exclamou Ágata quando Joana se retirou. - E que homem agradável é sir Charles! Noutro tempo nós troçávamos de Joana,
mas agora é ela que se ri de nós, porque é a mais feliz de nós três. Eu sempre disse que ela acabaria por obter o que há de melhor. É verdade que casou logo na sua entrada na vida de sociedade?
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- É. Sir Charles é um homem muito culto. Não compreendo este casamento. A corpulência de Joana é desmedida e as suas maneiras são ordinárias.
- Hm! - disse Ágata com ar de entendida. - A Joana teve sempre atractivos para os homens.
É mais astuta do que imbecil. O que não impede que, na realidade, seja uma parvalhona de calibre.
Gertrudes tomou um ar severo, para dar a entender que não empregava, nem lhe agradava ouvir semelhante linguagem. Ágata, estimulada por aquela atitude, continuou:
- Nós, que nos consideramos duas vezes mais apresentáveis e mais sociáveis que Joana, não somos mais que duas solteironas.
Gertrudes estremeceu e Ágata apressou-se a acrescentar :
- No entanto, acho-te encantadora. Estou certa de que a Joana nos convidou unicamente para tentar casar-nos.
- Não se permitiria fazer uma coisa dessas!
- Que absurdo, minha querida Gertrudes! Joana pensou, muito belamente, que nós somos um par de tansas que não souberam abrir caminho, ao passo que ela, que soube levar a água ao seu moinho, pode arrumar-nos num abrir e fechar de olhos. Ouve, não te disse ela, antes da minha chegada que já era tempo de eu estar casada?
- Sim, é facto, mas...
- Pois disse-me a mesma coisa a teu respeito, quando me convidou.
- Se eu tivesse a certeza de que ela ousa meter-se no que só a mim diz respeito, deixava esta casa imediatamente,
- disse Gertrudes. - Que lhe importa que eu esteja ou não casada?
- De onde vens tu, cara Gertrudes, se não sabes ainda que a primeira coisa que faz uma mulher bem casada é tentar casar as amigas celibatárias? A Joana não nos quere mal; faz isso por pura bondade de alma.
- Não tenho precisão da bondade de alma da Joana
- Nem eu tampouco, mas isso não faz mal a ninguém. Dou-lhe plena liberdade de se divertir, exibindo para meu uso os seus conhecimentos masculinos. Chut! ela aí vem.
Gertrudes acalmou-se. Não podia discutir com lady Brandon sem abandonar a casa e não podia abandonar a casa
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sem voltar para os pais, o que ela não desejava por preço nenhum. Tomou, portanto, a secreta resolução de desencorajar por completo Erskine, suspeitando que em vez de estar apaixonado por ela, como ele pretendia, não fazia mais que obedecer a Joana, que desejava vê-lo desposá-la.
Chichester Erskine tinha feito noutro tempo, na Palestina, uns esbocetos com sir Charles e visitado com ele numerosas galerias de quadros da Europa. Era um jovem
de nascimento distinto, herdeiro de um pequeno rendimento vindo de sua mãe, pertencendo a maior parte da fortuna familiar a seu irmão mais velho. Não tinha profissão, gostava dos livros e dos quadros e tinha-se consagrado às beías-artes, ocupação que lhe oferecia, sem grandes despesas, uma alta ideia da beleza e da sua capacidade pessoal. Tinha publicado uma tragédia intitulada "Os Patriotas Mártires", com frontispício a água-forte, original de sir Charles. A primeira edição esgotou-se rapidamente em ofertas aos amigos do artista e do poeta, às revistas e jornais.
Sir Charles tinha pedido a um célebre trágico das suas relações para pôr a peça em cena e desempenhar ele próprio um dos mártires patriotas. Mas o trágico observou que os outros mártires tinham papéis tão importantes como o que lhe propunham. Erskine recusou com indignação fazer cortes nos papéis e deste modo o projecto abortou.
Desde então, Erskine tinha tentado escrever um outro drama, sem se inquietar com as exigências de cena, mas este drama não estava ainda começado porque a inspiração vinha-lhe em horas pouco propícias como, por exemplo, à noite, depois de ter bebido e não tinha liberdade de espírito para escrever mais que sonetos. O ar matinal e as excursões em bicicleta eram fatais à disposição na qual a sua poesia valia a pena ser escrita. No entanto, a despeito da bicicleta, o seu drama, que devia intitular-se "Hypacia", estava em via de realização depois que ele tinha conhecido Gertrudes Lindsay e se apaixonara por ela. Os seus traços quási gregos e os poucos conhecimentos adquiridos no colégio dÂlton conduziram-o à suposição de que era o modelo sonhado para a sua heroína.
Quando as raparigas desceram do seu quarto encontraram o dono da casa com Erskine na galeria dos quadros, afamada na região pela quantiosa soma que sir Charles tinha
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dispendido na sua aquisição. Havia precisamente uma nova água-forte para admirar, convite que lhes foi feito para que se deliciassem com o que ele chamava a harmonia dos seus tons, mas que, na opinião de Ágata, seria, de preferência, uma "borrada". A atenção de sir Charles desviava-se com frequência desta obra de arte. Consultou por duas vezes o relógio e finalmente disse a sua mulher:
- Eu tinha dado ordem para servirem o almoço pontualmente.
- Ah, sim, deixa lá! - respondeu lady Brandon, evasivamente, por ter ordenado que não servissem antes de chegar outro convidado.
- Mostra a Ágata o quadro do homem na...
- O senhor Tréfusis, - anunciou o criado.
O senhor Tréfusis, sempre com o seu fato cor de tabaco, entrou com o capote desabotoado, num à-vontade que exasperava pela inconsciência de toda a ideia de cerimónia.
- Até que enfim! -exclamou lady Brandon. -Conhecetoda a gente aqui presente, não é assim ?
- Como passa ? - disse sir Charles, estendendo-lhe a mão, como ordenava o rigoroso cumprimento do seu dever para com o convidado de sua mulher.
Tréfusis apertou-lha cordialmente, fez um sinal de cabeça a Erskine, olhou sem a reconhecer para Gertrudes cuja imobilidade glacial desmentia a afirmação de lady
Brandon de que, todos os presentes lhe eram familiares, e voltou-se para Ágata, a quem cumprimentou.
Esta não fez um movimento. Estava literalmente paralisada. Lady Brandon ficou furiosa enquanto sir Charles observava com secreta satisfação o acolhimento -dispensado
ao recém-vindo, mas sentiu pesar-lhe o mal-estar que incomodava toda a gente, excepto Tréfusis, cuja atitude indiferente e segura de si dava inconscientemente a
impressão de que os restantes não estavam à altura das circunstâncias, como na realidade acontecia.
- Estávamos vendo estas gravuras quando o senhor entrou,- disse sir Charles, desejoso de romper o silêncio.- Gosta deste género de trabalhos ?
Passou-lhe um exemplar. Tréfusis olhou para a gravura como se nunca tivesse visto coisa que se parecesse e não soubesse lá muito bem o que devia fazer daquele objecto.
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- Estes traços afiguram-se-me que não têm significação nenhuma, - afirmou ele, por fim, em tom de dúvida.
Sir Charles teve um sorriso desdenhoso e lançou um olhar significativo a Erskine. Este, tomado já por antipatia instintiva para com Tréfusis, disse com ênfase:
- Não há aí um único traço que não tenha significação,
- Este, por exemplo, que faz pensar numa pata de mosquito, que quere dizer?
Erskine hesitou por um instante e decidiu-se :A
- Contudo, é claro, para mim, pelo menos. Esse traço, indica uma estrada.
- Qual estrada! - replicou Tréfusis. - Nunca houve nada disto numa estrada. É, talvez, uma péssima tentativa para representar uma silva, mas as silvas não rebentam nas estradas frequentadas, como parece ser esta, a julgar por estes carreiros exagerados.
Dizendo assim, pôs de parte a água-forte, indicando que não lhe interessava prosseguir o exame do álbum, e sentenciou :
- A única arte que me interessa é a fotografia. Erskine e sir Charles trocaram de novo significativo
olhar, e o primeiro contestou:
- A fotografia não é uma arte no sentido em que eu a compreendo. É um processo.
- Mas um processo muito mais perfeito e que dá menos incómodo que isto, - disse Tréfusis, designando a gravura. - Os artistas conservam o processo antigo e
bárbaro
difícil e imperfeito de gravar e pintar retratos unicamente para manter o monopólio do talento indispensável para a sua execução. Renunciaram ao método novo, mais
complexo e mais perfeito e, contudo, mais simples e mais belo da fotografia e deixaram-na em mãos de comerciantes, desprezando-a publicamente e não a utilizando
senão às escondidas.
"O resultado é que os comerciantes tornam-se melhores artistas que eles e é natural, porque, onde o desenho não conta, como na fotografia, o pensamento e o raciocínio
contam por tudo; ao passo que nos processos da gravura e da pinturice, onde é indispensável uma grande perícia manual para produzir qualquer coisa que os olhos tolerem,
a execução conta mais que o pensamento. E se um homenzinho
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capaz apenas de transportar tejolos às costas, ou qualquer coisa deste género, tiver bastante ambição e perseverança para exercitar a mão e avançar nos segredos da arte, o senhor não consegue fazê-lo voltar à antiga profissão, porque as mãos perfeitamente exercitadas são raras. Veja-se a prova na literatura. Os nossos livros são manualmente a obra dos impressores e dos fabricantes de papel. O senhor pode cortar a mão a um escritor; nem por isso ele deixa de ser tão bom escritor como antes. Qual é o resultado ? Há mais imaginação num número qualquer de um jornal barato que em meia dúzia de telas da Academia Real de Pintura. Nenhum autor pode viver do seu trabalho se tiver a cabeça tão oca como um pintor de êxito regular. Veja ainda os nossos instrumentos de música, os nossos pianos, por exemplo. Ninguém, excepto um acrobata, passará de boa vontade anos e anos a exercitar-se num jogo de paciência mecânica difícil, como um teclado, e então devemos as nossas impressões das sonatas de Beethoven a acrobatas que rivalizam entre si de rapidez nos seus "prestos" e de resistência no pulso esquerdo.
"Homens clarividentes não passarão a sua vida na ambição de alcançar tours de force. Invente um piano que responda tão delicadamente à rotação de um pulso como aqueles que nós temos respondem aos dedos e os acrobatas voltarão aos seus tapetes e trapézios, porque a única faculdade necessária ao músico executante será a faculdade musical e nenhuma outra lhe permitirá ter um auditório.
Ficaram todos como que esmagados por este discurso inesperado. Sir Charles, sentindo que semelhantes pontos de vista lhe eram desfavoráveis e não significavam
mais que iconolatria e estreiteza de espírito, estava a ponto de responder em tom azedo quando Erskine lhe tomou o passo, preguntando a Tréfusis que ideia fazia
ele do futuro das artes. Este último respondeu prontamente:
- O aperfeiçoamento da fotografia a cores recentemente descoberta. Os quadros históricos substituídos por fotografias de "quadros vivos" executados e ordenados por
actores e artistas bons conhecedores do seu ofício e servindo, principalmente, para instrução das crianças. Nove décimos das pinturas, tais como as compreendemos
presentemente, eclipsadas pela concorrência destas fotografias e o décimo restante
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a manter-se à força de uma extraordinária concorrência.
Os nossos órgãos e pianos desafinados e incapazes de servir, substituídos por instrumentos harmoniosos tão fáceis de manejar como realejos! As obras de ficção substituídas
por reuniões e conversas de pessoas interessantes e tornadas antigas para o espírito humano, que terá excedido a fase dos encantamentos infantis por estes contos descritos
por essas grandes crianças que são os romancistas e os da
sua espécie. O fim desta louca confusão, conhecida pelo nome de Arte, tolices e imposturas das nossas horas de recreação com métodos mais elevados de ensinar aos
homens a conhecerem-se melhor a si próprios. Todo o artista
considerado como amador e o regresso lógico a esse velho
e são costume de considerar todos os homens que fazem da arte o seu meio de existência como vagabundos que não devem ser acolhidos como iguais pelos homens honestos.
- Nesse caso, os artistas morreriam de fome e não haveria mais arte!
- Senhor, - disse Tréfusis, picado por esta última frase,
- devo dizer-lhe que morrer de fome é hoje impossível, salvo onde, como em Inglaterra, se impedem pela força os homens que não têm patrão de produzir o sustento
de que têm necessidade. O senhor, na qualidade de artista, pode dizer-me que hoje os grandes artistas morrem invariavelmente de fome, salvo quando são mantidos pela caridade, ou graças à sua boa sorte pessoal ou quando se entregam a
qualquer vil trabalho que os impede de ceder à sua vocação.
- Oh! - disse Erskine, - então os homens que professam as suas ideias têm, apesar de tudo, uma simpatia pelos artistas...
- Receio, -disse Tréfusis, dominando-se para falar tranquilamente, - que quando um homem com as minhas ideias ouve dizer que ofereceram cem libras por um desenho
que Andréa dei Sarto, já se daria por feliz vendendo-o por dez dinheiros, o seu coração sofra de piedade por essa perda imaginária, tal como o coração desse capitalista
moderno.
Contudo, hoje, é o único meio de provocar a simpatia pelos
velhos mestres. Que terrível impotência que é sentir-se longe
dos mercados mais lucrativos quando se deseja vender
desenhos! Mas, - acrescentou ele, voltando-se alegremente,
173 .
- eu não vim aqui para discutir negócios de balcão. Portanto, enquanto esperamos o dilúvio, o melhor é divertirmo-nos conforme podemos.
- Oh, não! - exclamou Joana. - Continui a falar de Arte, peço-lhe. É um tal alívio ouvir alguém falar sensatamente! Detesto as gravuras a água-forte. Fazem mal à
vista - isto é, o ácido satura-nos de sir Charles - e eu sou de parecer que a diferença entre a primeira e a segunda prova é só imaginação, salvo quando a. segunda prova é pior que...
- Ah, o almoço está pronto!
Desceram à sala de jantar. Tréfusis sentou-se entre Ágata e lady Brandon, a quem dirigiu, de vez em quando, alguns comentários. Tagarelaram sem que a ocupação de almoçar os absorvesse muito, porque Joana, a despeito da sua corpulência, tinha pouco apetite e temia engordar mais, ao passo que Tréfusis era sistematicamente sóbrio. Sir Charles mostrou-se mais silencioso que de costume. Não ousava falar de Arte com receio de ser combatido por Tréfusis. Sentia já que este último, menos interessado por este assunto que êle, sabia muito mais.
Depois de ter feito a Ágata alguns comentários sobre a beleza da primavera nascente e ter-lhe preguntado se a sua viagem não a tinha fatigado muito, esgotou o que
tinha a dizer-lhe num primeiro encontro. Quanto a Ágata, observava Tréfusis com atenção. Devia ver, pensava ela, que todos os que o rodeavam lhe eram hostis com
excepção de Joana. E, contudo, escava tão seguro de si como no tempo em que troçava dela. Este pensamento pôs-lhe os nervos num feixe. Não duvidava da sua antipatia por ele, mesmo quando se surpreendia a prostestar interiormente fingindo que não estava contente por tornar a vê-lo e que não lhe dirigiria a palavra.
Entretanto, Gertrudes respondia por monossílabos a Erskine e escutava Tréfusis. Tinha deduzido, das querelas familiares dos últimos dias, que lady Brandon, contra vontade expressa do marido, convidara um demagogo conhecido, filho de um rico industrial de algodão, próspero em negócios. Tinha prometido a si própria tratar este homem com sobrançaria. Mas, reconhecendo Smilash, depois de o ter olvidado durante tanto tempo, não soube que fazer. Então, para evitar qualquer acto impróprio, manteve uma atitude
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rígida e silenciosa, sem nada fazer, segundo o costume das senhoras inglesas em casos semelhantes. Mas não tardou que ela, como os outros, sentisse o domínio inconsciente
que Tréfusis exercia, e a sua intenção de o tratar de alto desvaneceu-se como os projectos abandonados sem
exame. Só Erskine estava fora da influência exercida pelo intruso. Este teria preferido estar noutra parte qualquer, mas, com excepção de Gertrudes, a presença ou ausência de quem quer que fosse pouco o incomodava.
- Como vão os Jansénios ? - preguntou ele, de repente, virando-se para Ágata.
- Sem novidade, - respondeu ela, em tom comedido.
- Tenho visto o João Jansénio ultimamente na capital. Conhece Jansénio ? - continuou ele à guisa de parêntese, dirigindo-se a sir Charles. - Banco Cotman, - insinuou a avivar-lhe a memória; - o último dos Cotman morreu logo após ter-se retirado dos negócios, antes de virmos a este mundo. Jansénio é o presidente da Companhia dos Caminhos de Ferro Transcanadianos.
- O nome conheço, mas vou pouco à City.
- Naturalmente, - aquiesceu Tréfusis,-- porque na verdade, quem quere entristecer misturando-se a um magote de escravos como aqueles, se pode passar sem isso? Refiro-me aos escravos de Mammon, claro está. Ver os seus rostos é um suplício que chega para deprimir durante horas um homem meditativo. Pois bem, Jansénio, estando altamente colocado na corte de Mammon, anda à procura de um bom lugar para o filho, lá no Palácio. A propósito, Jansénio é o tutor da menina Wylie e o pai da minha falecida mulher.
Ágata sentiu desejos de negar estas palavras, mas, como eram a verdade, absteve-se. Resolvida a mostrar que as relações existentes entre a sua família e Tréfusis não eram das mais cordiais, preguntou com intenção:
- O senhor Jansénio falou-lhe?
Gertrudes ergueu a cabeça como se pensasse que semelhante pregunta pecava por falta de polidez.
- Sim, -respondeu Tréfusis, - somos os melhores amigos deste mundo, tão bons quanto é possível, pelo menos. Quere que eu assine uma subscrição de auxílio aos pobres de East-End para os ajudar a emigrar.
- Suponho que o senhor subscreveu liberalmente, -
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insinuou Erskine. - Era a ocasião de fazer o bem de forma
prática.
- Não fiz nada, - respondeu Tréfusis, com um sorrisosardónico perante este sarcasmo. - Essa Companhia Transcanadiana, tendo obtido, sem custo algum, muitas terras
de baldio do governo canadiano, pensou que era uma excelente ideia atrair operários ingleses para os sugar com alugueres. Uma multidão de operários ingleses, suplantados,
nos seus ofícios pelas máquinas ou pelo trabalho estrangeiro, ou pelas duas coisas simultaneamente, estava pronta para partir; mas como não podiam pagar a sua travessia até ao Canadá, a Companhia fez apelo às pessoas benévolas para que lhas pagassem por subscrição, para que a mudança em vistas melhorasse a sua condição miserável. Pessoalmente, não vi razão alguma para ajudar a fornecer rendeiros a uma companhia rica e disse-o a Jansénio. A isso respondeu ele que, pedir dinheiro e não palavras, é a forma de mostrar aos trabalhadores quais são os seus verdadeiros amigos.
- Nada sei disso, - interveio sir Charles em tom concludente, - mas não ponho nenhuma objecção a que os trabalhadores emigrem.
- A ideia da emigração é perigosa para nós. Se o trabalhador se familiariza com esta ideia, um belo dia descobre que seria coisa excelente expedir-nos a si e a mim, a toda a nobreza e toda a tríbu de proprietários inúteis que nós. somos, para Santa Helena, dando-nos a ilha de brinde a título de indemnização! Somos uma massa tão turbulenta e tão desgraçada, que não duvido de que fosse um bom negócio para nós também. Os trabalhadores nada perderiam com isso a não ser o prazer de contemplar as nossas graciosas pessoas, as nossas maneiras fidalgas e os nossos, gostos refinados. Poderiam remediar esse inconveniente apartando alguns espécimes de entre nós para guardá-los como ornamento. Não há nação alguma dotada do sentimento da beleza que quisesse exilar lacy Brandon e as meninas Lindsay e
Wylie!
- Está dizendo disparates! - comentou Joana.
- O senhor não pode imaginar as quantias que tenhodispendido para enviar operários para fora do país, em oposição ao meu ponto de vista pessoal e no interesse da
nação,
- continuou Tréfusis, dirigindo-se a Erskine. - De cada vez
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que faço uma conversão nas classes laboriosas, esse prosélito apressa-se a ir dissertar algures para apregoar as suas novas convicções. Imediatamente o seu patrão o despede, manda-o com a trouxa às costas, segundo a expressão técnica. A "trouxa" é o sabre dos capitalistas e a fome lhe dá o fio em seu lugar. O seu escudo é a lei feita com esta intenção pela sua própria classe.
"Assim equipado, o patrão não se mostra afável para com o meu convertido, que, arruinado, vem ter comigo para o socorrer. Como os meus meios não me permitem dar-lhe
um subsídio vitalício, desembaraço-me dele ajudando-o a emigrar. As vezes o homem tem sorte e reembolsa-me; outras vezes nunca mais oiço falar dele; outras vezes, ainda, volta com os seus hábitos mudados. Um destes homens, que eu enviei para a América, fez lá fortuna. Mas não era da minha massa. Era um empregado de comércio que tinha feito um alcance. Veio ter comigo pedindo-me auxílio, sob a impressão de que eu devia achar meritório que ele tivesse roubado um capitalista.
- Era um socialista prático, - chasqueou Erskine.
- Pelo contrário, era um individualista razoavelmente ávido. No entanto, habilitei-o a devolver o dinheiro desviado e a partir para Nova York, se bem que o tivesse aconselhado a não partir. Mas, mais esperto do que eu, conseguiu fazer fortuna em especulações com fundos que não existiam senão na imaginação das pessoas com quem tratava. Esse nunca me reembolsou. Talvez seja demasiadamente sagaz, na qualidade de homem de negócios, para pagar dinheiro que não lhe pode ser reclamado pela lei ou fazendo apelo ao seu crédito comercial. Senhor Erskine, faz mal em tomar o partido dos velhacos e dos especuladores do dinheiro contra a sua inclinação pessoal, a despeito do que o ataca ser um homem que prefere a fotografia à gravura.
- Mas, asseguro-lhe... O senhor está equivocado... replicou Erskine um pouco embaraçado. - Eu...
Deteve-se, olhou para sir Charles em busca de apoio e disse em tom medido:
- Não duvido de que o senhor tenha razão. Por mim, detesto os negócios e os homens de negócios. Quanto aos problemas sociais, apenas tenho uma crença: é que apenas a Arte pode melhorar a natureza humana.
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E eu penso que só a natureza humana pode afinar a
Arte. Esta eleva-se quando os homens se elevam e rasteja quando- eles o fazem também. Qual é o seu parecer ?
- Estou de acordo consigo em muitos pontos, - respondeu sir Charles com nervosismo, porque a sua falta de interesse pelos seus semelhantes e o seu excesso de interesse por ele próprio, tinha-o sempre impedido de se ocupar de questões sociais, impróprias de prender a atenção de um baronete, assim lhe parecia. Temia, portanto, diferir da opinião dos que falavam dessas coisas com segurança.
- Se o senhor se interessa pela arte, posso mostrar-lhe coisas que valem a pena de ser vistas.
- Obrigado. Em paga hei-de mostrar-lhe, um dia, uma notável colecção de fotografias que possuo, muitas delas tomadas por mim. Não hesito em crer que elas lhe ensinarão
qualquer coisa de novo.
- Não duvido, - respondeu sir Charles. - Quere voltar à galeria dos quadros ? Tenho lá alguns tesoiros que a fotografia não pode exceder, acho eu, nem de aqui a muito tempo.
- Passemos pela estufa. Gosta de flores, senhor Smil. . Não consigo recordar o seu verdadeiro nome.
- Gosto muito, - assentiu Tréfusis. Levantaram-se e passaram à estufa, que era toda em
comprimento. Neste momento lady Brandon, vendo Erskine a seu lado e sir Charles adiante com Gertrudes, procurou com a vista Tréfusis, com quem desejava fazer flirt
sob pretexto de lhe mostrar as flores. Não estava à vista, mas ouvia-se o seu passo na álea que corria ao longo do outro lado da estufa. Ágata estava invisível também.
Joana não ousou alterar o cortejo para que o seu projecto não se tornasse evidente e viu-se constrangida a continuar a andar ao lado, de Erskine.
Ágata tinha escolhido sem intenção determinada a álea oposta àquela que os outros seguiam. Quando percebeu o que tinha feito e se encontrou virtualmente só com Tréfusis, que a tinha seguido, esteve a ponto de voltar para trás quando ele lhe disse com calma:
- Deve ter sentido a morte de Henriqueta.
Durante um momento, Ágata fez um esforço sobre si própria e por fim disse com voz abafada:
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- O senhor ousa dirigir-me a palavra. - Porque não ? - respondeu ele, admirado.
- Não desejo discutir consigo. Sabe muito bem o que qu quero dizer.
- Quere dizer que a ofendi, é evidente. Mas, quando eu deixo de conviver com uma rapariga em bons termos e que, depois de um certo número de anos, durante os quais
não nos vimos nem nos correspondemos, ela me pregunta se ouso falar-lhe, é natural que eu fique admirado.
- Nós não nos despedimos em bons termos. Tréfusis ergueu os sobrolhos como para avivar a memória.
- Se assim foi, passou-me da memória, palavra de honra. Que ocorreu quando deixámos de nos ver? Não pode ter sido nada de grave, de contrário eu havia de me lembrar.
Aquela falta de memória magoou Ágata.
- Certamente que o senhor tem por hábito... Deteve-se e fez um esforço para retomar as maneiras
que tinha adoptado para com os cavalheiros.
- Lembro-me apenas vagamente do que se trata, agora que penso nisso. Uma bagatela, no fim de contas. Gosta de orquídeas ?
- Nada têm que ver com o que nos ocupa neste momento. O senhor não é sincero falando das orquídeas e quere escapar a um equívoco em vez de o esclarecer.
É politica de vista curta, isso.
Ágata começava a alarmar-se, porque sentia renascer a antiga influência que Tréfusis exercia sobre ela.
- Não quero falar a esse respeito, - intimou ela. A sua firmeza deixou-o frio.
- Eu não sei o que a menina quere dizer com "esse respeito", - disse ele, - e desejo sabê-lo, porque acredito que há um mal-entendido entre nós. É o sistema das
mulheres perpetuar os mal-entendidos e proibir que se lhes faça qualquer alusão. Talvez ao deixar precipitadamente Lyvern, me esquecesse de cumprir uma ou outra
promessa, de dizer adeus a alguém, qualquer coisa deste género? Mas sabe, porventura, com que pressa eu fui chamado? Recebi um telegrama dizendo que Henriqueta estava
moribunda e tive apenas tempo para mudar de fato - lembra-se do meu disfarce - e apanhar o comboio rápido. E, não obstante, quando cheguei, já ela nãoera deste mundo.
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- Sei tudo isso, - disse Ágata, mal à vontade. - Não falemos mais em tal, é preferível.
- Não, se isso a contrista. Deixe-me ao menos esperar que não pensou em que eu teria qualquer razão de queixa contra si pela parte que tomou neste caso ou que eu
teria falado nisso aos Jansénios. Que teriam êtes pensado de si ?
- Bem mais mal de si que de mim, por injusto que isso pareça. O senhor foi a causa imediata mas indirecta desta tragédia. Jansénio não é clarividente quando os seus sentimentos estão em jogo. Poucos homens o são.
- Não compreendo. A que tragédia se refere ?
- A morte de Henriqueta. Convencionalmente chamo a isso uma tragédia. Mas, falando sinceramente, foi um casobanal.
Ágata parou para o olhar de frente.
- Que quere dizer ? Pretende insinuar que eu fui a causa imediata da tragédia e é da... de Henriqueta que fala. Mas eu nada tive que ver com a sua doença.
Tréfusis olhou para ela como se preguntasse a si própria se deveria continuar a ocupar-se deste assunto. Depois, observando-a com a curiosidade de ,um vivissector, disse í
- Por estranho que isso pareça, Ágata, (ela recuou altivamente a esta palavra) sem si Henriqueta seria ainda verosknilmente viva no dia de hoje. Agrada-me que já o não seja; por isso, não tem necessidade de dirigir censuras a si própria no que me diz respeito. Henriqueta faleceu em seguida a uma viagem que fez a Lyvern com um frio intenso,, estando muito enervada e num estado de grande desespero. Foi a menina que originou essa viagem, escrevendo-lhe uma carta que excitou o seu ciúme ao mais alto ponto.
- É a mim que o senhor acusa de...
- Não! - exclamou ele bruscamente, exorcizado o seu espírito de vivissector pela voz comovida de Ágata. - Não a acuso de coisa alguma. Mas porque não falamos sinceramente quando está à sua vontade ? Se não confessa os seus pensamentos reais senão pela tortura, quem pode resistir à tentação de a torturar? É preciso acusá-la de homicídio para a fazer falar de outra coisa que de orquídeas ?
Mas Ágata tinha tirado novas conclusões do que se tinha passado e não queria deixar-se embaír para as repudiar.,
- Não foi minha a culpa, foi sua, inteiramente sua.
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- Inteiramente, - aquiesceu ele, aliviado de a ver indignada, de preferência a vê-la cheia de remorsos.
Mas uma aquiescência verbal não bastava para acalmá-la.
- A sua conduta foi absolutamente indigna, conforme eu lhe disse e o senhor não pôde negar. Fingiu estar-oh! sou uma imbecil em dizer estas coisas. O senhor sabe muito bem o que quero dizer...
- Perfeitamente. Tentei fazê-la acreditar que estava enamorado de si. Quem lhe diz que eu não o estava, de facto ?
Ágata desdenhou responder. Mas como Tréfusis especava tranquilamente que ela continuasse, concluiu:
- Não tinha o direito de o estar.
- Isso não prova que não estivesse. Vejamos, Ágata, a menina fingiu amar-me quando afinal tanto se importava comigo como com uma palha. Confessou-o nessa carta fatal que conservo algures em minha casa. Tem um rasgão de lado a lado e o sinal do tacão de Henriqueta. Espezinhou-a no seu acesso de cólera, pobre criança! Deste modo, posso mostrar-lhe a sua parte pessoal num embuste que me acusa, sem prova nenhuma, de ter exercido contra si.
- O senhor é hábil e tem talento para desfigurar as coisas. Que prazer sente em me tornar infeliz?
- Ah! -exclamou ele, com um brusco riso sardónico, não sei responder-lhe. A menina enfeitiça-me, quero acreditar.
Ágata não respondeu, mas continuou a caminhar com desembaraço para alcançar os outros que os esperavam à saída da estufa.
- Onde estiveram tanto tempo e que fizeram ? - preguntou Joana, no momento em que Tréfusis chegava apressado atrás de Ágata. - Não sei que nome dão a este modo de proceder; por mim, acho que é fastidioso.
Sir Charles corou pela falta de tacto de sua mulher. Tréfusis respondeu gravemente:
- Estivemos admirando as orquídeas e discutimos a sua estranha beleza. A menina Wylie gosta muito destas flores.
181
XIII
Uma manhã, Gertrudes recebeu a seguinte carta de seu
pai:
"Querida Gerty:
"Acabo de receber uma factura de cento e dez libras de toiletíes tuas, que M.me Smith me remeteu. Gostaria de saber por quanto tempo este estado de coisas continuará.
Creio não ter necessidade de te dizer que não possuo os recursos indispensáveis a tanta extravagância. Desejo, como sabes, que te mostres à altura da tua posição, mas se não encontras outra forma de te tirares de dificuldades sem me fazer pagar em cada estação centenas de libras, é preferível deixares de frequentar a sociedade e ficares em casa.
"Não tenho forma de poder pagar somas tão elevadas. E, tanto quanto verifico, de nada
serviu a tua frequência dossalões mundanos. Fui obrigado, no mês passado,
a pedir emprestadas quinhentas libras sobre a minha propriedade de Franklands e seria na verdade desastrosa a necessidade de pedir outro empréstimo para pagar os
teus vestidos. Além disso, poderias vestir de uma casa cuja dona fosse bem educada ou cujos preços fossem moderados.
"M.me Smith disse-me que não estava disposta a esperar mais tempo e verifico que se faz pagar à razão de sessenta libras por um só
vestido. Espero que compreendas
que isto tem forçosamente que ter um fim.
"Sei, por tua mãe, que o jovem Erskine está também passando uma temporada com os Brandon. Não faço dele um alto conceito. Esse rapaz não está em excelentes condições
nem tem probabilidade de estar, visto que se ocupa de poesia e outras coisas dessa natureza. Dizem-me também que um certo senhor Tréfusis visita com frequência as "Faias" nesta ocasião. Deve ser um imbecil, porque se apresentou nas últimas eleições de Birmingham e ficou em último lugar, com 32 votos, porque se intitulou social-democrata, ou qualquer imbecilidade deste teor, em lugar de confessar francamente que é um político radical. Suponho que esta palavra lhe ficou na garganta porque sua mãe era
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uma das Howard de Breconcastle, de modo que o homem tem sangue azul nas veias, se bem que o pai não fosse nada. Seria bom que fosse ele quem pagasse as tuas facturas, porque pode comprar e tornar a vender dez vezes o que eu valho apesar dos meus vinte e cinco anos de serviço.
"Como penso mandar fazer reparações na nossa casa, preferiria que não regressasses tão cedo se vires possibilidade de continuar até ao fim do mês em casa dos Brandon.
"Recomenda-me a s Charles e apresenta os meus melhores cumprimentos a sua mulher. Dar-me-ias prazer colhendo folhas de cicuta de que tenho necessidade para o meu unguento, já que a droga dos farmacêuticos não me faz nada. Tua mãe anda outra vez doente dos olhos e teu irmão Berkeley voltou a jogar e parece convencer-se de que sou eu quem deve pagar as suas dívidas. Tudo isto me aflige e espero que até estares casada serás mais razoável e não me esmagarás mais com estas eternas facturas de modista. Tu divertes-te longe de todos estes aborrecimentos, mas crê que eles pesam bastante sobre o teu pai muito amigo
C. B. Lindsay."
Uma ligeira aparição das rugas que o tempo tinha a intenção de gravar na fronte de Gertrudes ali se desenhou enquanto lia a carta de seu pai. Apressou-se a transmitir as saudações enviadas aos seus hospedeiros, em seguida ao que falaram, da forma mais tocante, da saúde de sua mãe.
Findo o almoço, dirigiu-se à biblioteca para responder à seu pai:
"Faias", terça-feira
"Querido papá:
"Tendo em atenção que a última vez que pagaste a M.me Smith foi há mais de três anos e que, nessa ocasião, a factura que compreendia o meu vestido de corte não excedia
cento e cinquenta libras, não vejo como poderia ser mais económica a não ser que me vista de farrapos. Lamento que M.me Smith te possa pedir dinheiro em ocasião tão inoportuna, mas quando te pedi para lhe dares qualquer
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coisa por conta em Março do último ano, recomendaste-me que a contentasse com uma boa encomenda. Não me surpreende que ela não seja muito educada, porque tem por clientes muitas filhas de comerciantes que lhe fazem encomendas para mais de trezentas libras por ano. Neste momento trago uma saia que já tinha há dois anos.
"Sir Charles vai à capital na quinta-feira e leva-te a cicuta. Dize à mamã que há aqui uma velhota possuidora de um segredo maravilhoso para as doenças dos olhos. Não quere dizer quais são os ingredientes que emprega, más o seu remédio cura toda a gente. Portanto, não vale a pena pagar uma libra a um oculista para lhe ouvir dizer que faz mal ler na cama, quando sabemos perfeitamente que a mamã por nada deste mundo deixará de o fazer. Se pagares as dividas do Berkeley, não te esqueças de que ele me deve três libras.
"Nesta ocasião está entre nós de visita uma outra camarada do colégio e creio que serão os seus vestidos que o senhor Tréfusis pagará um dia.
"Lady Brandon tem muita simpatia por este cavalheiro. Sir Charles, a princípio, estava furioso por ela o ter convidado e nós ficámos surpreendidas também. Tem má reputação este senhor. Foi ele quem um dia se pôs à frente de um magote de pessoas para deitar abaixo o muro do parque. Não pensávamos que tivesse a desenvoltura de se apresentar aqui,depois desse incidente, Mas o cavalheiro não se preocupa absolutamente nada com saber se nos agrada a sua companhia e vem quando lhe apetece. Como fala bem, consideramo-lo como um enviado da Providência a este lugar monótono. Isto não é verdadeiramente um paraiso, como tu pareces acreditar, mas não receies o meu regresso por tanto tempo quanto me seja possível demorar-me por cá.
"Tua filha afectuosa
Gertrudes Lindsay."
Quando Gertrudes fechou a carta e rasgou a de seu pai, não se inquietou mais, nem com uma nem com outra. Teriam podido torná-la infeliz se a tivessem encontrado satisfeita com a vida, mas como um descontentamento sem esperança era o seu estado normal e a satisfação um raro incidente, as recriminações de seu pai não faziam mais que pô-la de
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mau-humor e não a desiludiam nem a humilhavam de modo algum.
Para fazer um pouco de exercício, resolveu levar ela própria a sua carta ao correio da vila e voltar pela estrada de Riverside, não longe da qual tinha visto a cicuta.
Tomou a precaução de sair sem ser notada, com receio de que Ágata propusesse acompanhá-la ou que Joana se lembrasse de alvitrar irem todas ao correio, de tarde e de carruagem, e fizesse cara durante o resto da manhã se o passeio à vila não fosse marcado para esse momento.
Levou com ela, para a proteger contra os vagabundos, um grande cão São Bernardo que dava pelo nome de Max, Este animal, novo e cheio de ardor, tinha-lhe testemunhado grande afeição e exprimiu franca e ruidosamente os seus sentimentos.
Gertrudes, cuja afectividade não tinha encontrado alento nem em casa nem na sociedade, tinha encorajado o animal com mais doçura do que a que jamais testemunhara a qualquer ser humano.
Chegada à vila, depois de deitar a sua carta na caixa, tomou um atalho que conduzia à estrada de Riverside. Max, ignorando a razão peia qual ela escolhia o caminho rnais comprido para o regresso, protestou com vivacidade parando no meio do atalho, agitando a cauda com energia e ladrando teimosamente.
- Não te faças imbecil, sim ? - disse Gertrudes, com Impaciência. - É por aqui que eu quero ir.
Max tinha compreendido, segundo toda a aparência, e precipitou-se atrás dela, passou-lhe à frente e desapareceu numa nuvem de poeira provocada pelos seus esforços
para parar quando entendeu que tinha deixado Gertrudes muito para trás.
Quando voltou, Gertrudes beijou-lhe o focinho e correu com ele até se sentir arquejante e obrigada a parar para tomar fôlego enquanto o cão saltava a seu lado,
ladrando furiosamente. Havia já bastantes anos que Gertrudes não se tinha permitido pular deste modo, pensamento que lhe trouxe as lágrimas aos olhos.
Ordenou a Max com certa rispidez que estivesse quieto e pôs-se a caminhar lentamente, para se acalmar, abrindo a sombrinha para evitar as manchas da luz no rosto.
185
O sol estava no meridiano. Numa encosta, à direita de Gertrudes, aparecia a Casa de Salústio com muros de cor de canela e friso amarelo, que dava uma perspectiva
estrangeira à paisagem, aparte isso bastante inglesa. Passou diante da casa sem se lembrar de quem a habitava. Mais abaixo, num terreno inculto, separado da estrada por um fosso secoe um pequeno muro de terra, uma moita de cicuta com metro e meio de altura envenenava o ar com o seu cheiro enjoativo. Atravessou o fosso, tirou do seu cesto de palha trançada um par de luvas de jardineiro e pôs-se a colher as folhas mais tenras, que separou das hastes e com as quais foi enchendo o cesto. Já não dava atenção a Max. Mas um silêncio esmagador sucedeu, como se toda a vida tivesse parado na terra e fê-la voltar-se, possuída de certo receio.
Tréfusis, com a mão abandonada ao cão que se esforçava por fazer entrar a maior porção possível na goela, conservava-se a alguns passos dela e olhava-a com a maior atenção. Gertrudes empalideceu e saiu precipitadamente da moita. Nesse instante, a rapariga sentiu uma sensação estranha, como se qualquer coisa se passasse muito alto, por cima da sua cabeça. Houve um bramido ameaçador, uma exclamação imperativa e uma pausa inexplicável, expirada a qual ela se encontrou estendida sobre a erva, com a sombrinha interposta entre os olhos e o sol. O contacto súbito da língua úmida e quente de Max na sua orelha direita, fê-la subitamente reagir. Sentou-se e divisou Tréfusis de joelhos ao lado dela, segurando a sombrinha com uma expressão de indiferença, enquanto, do outro lado, Max a farejava com inquietação turbulenta.-
- Tenho de regressar a casa. Preciso voltar imediatamente.
- Não acho, - disse Tréfusis, em tom apaziguador. As suas amigas mandaram dizer que tudo ia bem e que não havia necessidade de que as acompanhasse.
- Isso é verdade ? - articulou ela, fracamente. Alongou-se de novo sobre a erva e pareceu-lhe que um
tempo interminável se passava. Lembrando-se subitamente de que Tréfusis a tinha amparado suavemente com a mão para a impedir de cair muito bruscamente, ergueu-se e pôs-se de pé com a ajuda dele.
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- É preciso absolutamente que eu regresse a casa, disse ela ainda. - É uma questão de vida ou de morte.
- Não é, - disse ele, com doçura. - Tudo vai bem. Pode contar comigo.
Gertrudes olhou-o atentamente. Tréfusis tinha-lhe tomado a mão para a segurar, porque ela vacilava um pouco.
- Tem a certeza disso ? - preguntou Gertrudes, agarrando-se ao braço de Tréfusis. - A certeza absoluta?
- Absoluta. Sabe que eu tenho sempre razão, não é assim ?
- Sim, é verdade. O senhor foi-me sempre fiel. O senhor...
Nesta altura, Gertrudes voltou verdadeiramente a si. Deixando cair a mão como se tivesse sido queimada por um ferro em brasa, preguntou bruscamente:
- De que está o senhor a falar?
- Sei lá! - respondeu ele com um risinho, voltando às suas maneiras indiferentes. - Sente-se melhor agora? Deixe-me levá-la às "Faias". A minha cocheira fica a dois passos. Dez minutos chegam para fazer atrelar o cavalo.
- Não, obrigada, - disse Gertrudes com altivez. - Não quero voltar de carruagem.
Interrompeu-se, depois acrescentou com alguma perplexidade :
- Que se passou?
- A menina desmaiou e...
- Não desmaiei, - protestou ela, com indignação. Nunca na minha vida desmaiei.
- Pelo menos uma vez.
- Peço perdão, senhor Tréfusis. Não desmaiei.
- Vai ver por si própria. Eu atravessava este campo, quando a vi ocupada a colher a cicuta. Esta planta é interessante em recordação de Sócrates e a menina era interessante como o é uma rapariga que maneja o veneno. Foi o que me fez parar para a contemplar. De repente, saiu da moita como se tivesse visto uma serpente. Em seguida caiu nos meus braços - o que me fez supor que desmaiou - e Max, julgando que tudo tinha sido obra minha, quási me saltou ao pescoço. com certeza a perturbou o cheiro da cicuta aquática, que respirou durante dez minutos ou talvez mais.
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- Não sabia que houvesse perigo, - disse Gertrudes, com abatimento. - Quando voltei a mim senti-me extremamente fatigada. Foi por isso que fiquei tanto tempo deitada por terra na segunda vez. Não pude resistir.
- Não esteve muito tempo.
- Não da primeira vez. Foram só uns segundos, sei isso bem. Mas fiquei ia pelo menos dez minutos, depois de voltar a mim.
- Não, a menina esteve com os sentidos perdidos perto de um minuto, quando caiu pela primeira vez, e quando voltou a si não repousou por mais de um segundo. Depois começou a divagar e eu inventei respostas apropriadas quando, de repente, me preguntou de que estava eu a falar, Gertrudes corou um pouco, quando lhe veio a
lembrança de ter podido divagar indiscretamente.
- Que estúpida que sou por ter desmaiado - exclamou.
- Não o pôde evitar, humana como é. vou acompanhá-la às "Faias".
- Obrigada, não quero incomodá-lo, - disse ela, com vivacidade.
Tréfusis abanou a cabeça e disse:
- Não sei quanto tempo os efeitos desta abominável planta podem durar. Não me atrevo a deixá-la ir só. Se prefere, pode ir o meu jardineiro no carro que a levar,
mas eu preferiria acompanhá-la pessoalmente.
- O senhor quere incomodar-se inutilmente. Posso andar. Estou completamente refeita e não tenho necessidade de qualquer ajuda.
Puseram-se a caminhar sem mais palavra. Gertrudes foi obrigada a concentrar toda a sua energia para ocultar ao seu companheiro que se sentia entontecida. O torpor e a lassidão invadiam-na pouco a pouco e começava a desejar que tudo aquilo não fosse mais que um sonho, quando ele a estimulou, dizendo:
- Tome o meu braço.
- Não, obrigada.
- Não seja tão absurdamente teimosa. Se recusa o meu auxílio, vai ver-se obrigada a apoiar-se ao talude para não cair. Lamento não ter insistido para levá-la no carro.
Desde a sua infância ninguém tinha falado a Gertrudes naquele tom.
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- Estou muito bem, -acrescentou ela, em tom incisivo.
- O senhor é excessivamente obsequioso.
- Não está tão bem como diz e sabe-o bem. No entanto, se fizer um grande esforço, pode provavelmente chegar a casa sem que eu a ajude e esse esforço talvez lhe faça bem.
- O senhor não é cortês, - disse ela, em tom seco.
- Bem sei, - respondeu Tréfusis, com calma. - No mundo, encontra, a menina três tipos de homens polidos para consigo: os escravos, os que se preocupam muito com as suas maneiras e pouco consigo e os seus apaixonados. Ora eu não pertenço a nenhuma destas categorias e, portanto, devolvo-lhe com juros as suas maneiras incorrectas. Porque resiste ao seu anjo bom, reprimindo esses impulsos naturais e sinceros que lhe acodem às vezes e trazem ao seu rosto um olhar que domaria um urso e que a menina se apressa a velar, como um ladrão tapa a lanterna quando ouve passos?
- Não estou habituada a ouvir sermões, senhor Tréfusis.
- É por isso mesmo que lhe estou pregando um e gostava de saber até que ponto a sua educação - de que faz grande caso, creio eu - lhe serviria em circunstâncias
inteiramente novas, por exemplo: quando um homem lhe diz oque pensa a seu respeito.
E qual foi o resultado da minha atitude ? Em lugar de me repreender com a doçura
e a dignidade que eu não podia, apesar da minha recente observação, deixar de esperar de si, recusa grosseiramente a minha oferta de ajudá-la quando tem necessidade
desse auxílio. Diz-me que eu sou pouco polido, que sou demasiado obsequioso, enfim, faz tudo o que pode para tornar a minha posição desagradável e humilhante.
Gertrudes olhou-o com altivez, mas a expressão de Tréfusis não indicava nem temor, nem o desejo de a magoar, e ele continuou sem que ela respondesse:
- Suportaria tudo isso sem protesto da parte de uma mulher de baixa condição, porque não me deveria obséquio nenhum, nem sob o ponto de vista das suas maneiras nem da minha moralidade. Mas a menina é uma rapariga de sociedade. Isso quere dizer que muita gente padeceu e morrei de fome em casebres sem higiene para que a menina tenha
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as mãos brancas e finas, belos vestidos e maneiras apuradas, para que possa ser uma fonte viva dessas influências que adoçam as nossas naturezas e as nossas vidas. Quando uma coisa tão dispendiosa como é uma menina da sociedade se quebra ao primeiro contacto de uma firme mão, sinto-me no direito de me queixar.
Gertrudes continuou a caminhar rapidamente e disse entre dentes:
- Não quero ouvir as suas opiniões absurdas, senhor Tréfusis.
Ele pôs-se a rir.
- As minhas desgraçadas opiniões! Quando faço um reparo incómodo é sempre afastado como se fosse a expressão de certas manias perigosas de que me supõem atacado. Quando faço notar a sir Charles que um dos seus artistas preferidos não observou uma coisa ou outra com suficiente atenção antes de a desenhar, ele responde-me: "O senhor sabe que as nossas opiniões diferem totalmente nesse particular, Tréfusis!" Quando disse ao tutor da menina Wylie que o seu projecto de emigração não era mais que uma vasta manigância, respondeu-me: "Desculpe-me, mas não posso fazer minhas as suas ideias originais!" Uma das minhas opiniões neste momento é que a menina Lindsay é mais amável sob o efeito da cicuta que sob o do sistema social
que a torna tão infeliz.
- É forte! - exclamou Gertrudes picada. Depois de uma pausa, disse mais:
- Supus ter aceitado a companhia de um cavalheiro. E vendo que Tréfusis não se tinha impressionado com
o remoque, inquiriu:
- Quem lhe disse que eu era infeliz ?
- Uma certa expressão da sua fisionomia, onde falta aquela beleza radiante que dá a felicidade, e uma certa imperfeição na sua voz, que não desaparecerá enquanto a menina não aprender a amar ou a condoer-se daqueles com quem fala.
- Engana-se - disse Gertrudes com desdém glacial. O senhor não compreende absolutamente nada da minha natureza. Sou particularmente afeiçoada aos meus amigos.
- Nesse caso, nunca a vi na companhia deles.
- Engana-se mais uma vez.
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- Diga-me então como pode falar como fala, proceder como procede, ter esse ar que lhe encontro.
- Que quere insinuar ? Como é que eu procedo e falo ? E que ar esquisito tenho?
- A menina assemelha-se a uma dessas pessoas que têm consciência do que valem, que temem o parecer das outras pessoas e duvidam da capacidade delas para figurarem
na mesma categoria. A menina é fria, desconfiada, cruel para com as pessoas nervosas e tacanhas e teme mais as críticas das pessoas com quem janta ou dança que
as da sua consciência. Tudo isso a impede de ter o aspecto de um anjo.
- Muito agradecida. Julga o senhor que a perfeição de maneiras de um cavalheiro de sociedade está em ser galanteador ?
- Por acaso dirigi-lhe eu muitos galanteios ? O meu último comentário não tinha nada disso. Palavra de honra que os anjos não me desapontariam se não fossem mais bonitos que a menina seria se tivesse, no seu rosto, o tom de que falei. Acho que não será desagradável ouvi-lo. Se eu fosse pessoalmente belo, gostaria que mo dissessem.
- Lamento não o poder dizer.
- Oh ! ah I ah! Que réplica, menina Lindsay I com certeza não a lamenta: pelo contrário, até gostou.
Gertrudes sabia que era verdade e não ficou contente consigo, não tanto porque a réplica fosse falsa, mas porque não a achou digna de uma senhora bem educada.
- O senhor não tem o direito de me aborrecer desta maneira - exclamou ela, sem querer.
- com efeito, - disse ele com humildade. - Se a aborreci perdoe-me antes que nos separemos. Não a acompanho mais longe. O Max dará o alarme se a menina tornar a
desmaiar na avenida, o que não creio provável porque a cicuta está já olvidada.
- Oh, que aborrecimento! - exclamou ela. - Esqueci-me do meu cesto lá em baixo.
- Não importa. Encarrego-me de o ir buscar, de o encher e de lho mandar.
- Obrigada. Estou verdadeiramente desolada por o ter incomodado.
- De modo nenhum. Acredito que não é para se desembaraçar do fardo da vida que deseja a cicuta...
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- Que disparate! É para meu pai, que se serve dela como medicamento.
- Amanhã terá a sua cicuta. é cedo demais ?
- É. Não tenho pressa. Muito agradecida, senhor Tréfusis. Até mais ver.
Estendeu-lhe a mão, sorriu ligeiramente, e em seguida afastou-se com presteza. Tréfusis ficou a contemplar-lhe o vulto enquanto ela subia a avenida à sombra das
grandes faias. Em dado momento, Gertrudes passou num raio de sol que atravessava a folhagem. A sua silhueta era tão bonita no seu vestido violeta e branco que os
olhos de Tréfusis chamejaram olhando-a. Num carnet que tirou da algibeira inscreveu o nome de Gertrudes, a data e uma breve indicação.
- Consegui quebrar o gelo, - disse com os seus botões, guardando o livrinho na algibeira. - De aqui até que corte com ela, terá aprendido uma ou duas lições que
transmitirá aos seus filhos. É uma senhora um tanto vulgar, de contrário não insistiria tanto sobre a sua boa educação. A Henriqueta trazia noutro tempo um vestido
assim. Agrada-me verificar que não há nenhum perigo em que ela se dedique a mim.
Ao virar-se para retomar o seu caminho viu uma velhota que passava, dobrada sob o peso de um molho de lenha. Olhou para ela com curiosidade. A velha deitou-lhe um
olhar atravessado e caminhou mais lesta.
- Olá! - disse ele, a chamá-la.
Ela deu ainda alguns passos, mas a coragem abandonou-a e parou.
- Você é a senhora Hickling, não é ? - Sou, Excelência.
- Foi você que levou uma velha estacada de madeira que estava nas terras de sir Charles Brandon, no inverno passado, para queimar em sua casa? Apanhou sete dias de prisão, não é verdade?
- O senhor pode mandar-me para lá outra vez se lhe dá prazer, - replicou ela com voz esganiçada, voltando-se por não poder evitá-lo. - Mas um dia virá em que Nossa Senhor me libertará de vocês todos. Malditos sejam os que oprimem os pobres e os necessitados. É um dos pecados, mortais.
- Estas ripas verdes que você leva às costas são o que-
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resta da estacada do meu jardim, - disse ele. - A primeira metade "marchou" no sábado passado. Para a outra vez que você precise de lume, venha ter comigo. Peça-me
carvão e deixe as minhas estacadas em paz. Julgo que pode ter o seu lume sem roubar o combustível. E agora pague-me a minha estacada dizendo-me uma coisa que eu
gostava de saber.
- O senhor tem bom coração. As bênçãos...
- Para que serve a cicuta ?
- A cicuta, meu bom senhor ? Para as feridas das pernas, está claro.
- Úlceras escrofulosas I - exclamou ele, recuando um passo. - O pai desta bela rapariga!
Dirigiu-se para casa, de cabeça baixa, murmurando para consigo:
- Todos podres até à medula! Oh, civilização I Civilização ! Civilização!
XIV
- Que diabo terá a Gertrudes? - preguntou Ágata a lady Brandon.
- Por quê? Notas qualquer coisa?
- Não sei bem. Não é a mesma desde o dia em que se envenenou com a cicuta. Porque seria que ela não nos disse nada? Se não o soubéssemos por Tréfusis, ainda hoje
ignoraríamos o que se passou.
- A Gertrudes sempre foi de segredos...
- Durante dois dias, depois desse incidente, esteve de mau humor e agora acho-a completamente mudada. Cai em longas meditações e não ouve uma palavra do que se diz
em volta dela. Depois, com um sobressalto, volta à terra e pede que a desculpem, com muita doçura, por não ter dado atenção ao que lhe disseram.
- Detesto-a quando ela é assim tão cortês, porque esse inao é o seu natural. Quanto aos seus alheamentos, são efeif tos da cicuta. Conhecemos um homem que deitou
uma colher de estricnina no banho e nunca mais foi o mesmo.
193
- Suponho que ela quere encorajar o Erskine, - disse Ágata. - Quando cheguei aqui, ele mal ousava falar-lhe, porque o afastava sempre. E agora, deixa-o falar, tanto
quanto ele quere. Pede-lhe que lhe faça alguns recados e permite-lhe que lhe traga coisas.
- É verdade. Nunca na minha vida vi pessoa que se assemelhe à Gertrudes. Em Londres, se os homens se mostravam amáveis, dizia que eram obsequiosos; se a deixavam em paz, ficava furiosa por não se importarem com ela. Não há dúvida de que Erskine é muito bom para ela, acho eu.
No mesmo momento, Erskine apareceu à porta e lançou um olhar circular em volta do aposento.
- Gertrudes não está aqui, - disse Joana.
- Procuro sir Charles, - disse ele, retirando-se com uma certa rigidez.
- Que blague! - disse Joana, enervada pela forma como a sua observação tinha sido recebida.-Ainda não há dez minutos que ele conversava com sir Charles na sala de bilhar.. Que idiotas pretensiosos são estes homens!
Ágata tinha-se dirigido para a janela e contemplava a paisagem com ar melancólico, como tinha feito tantas vezes na escola, quando estava só e como ainda fazia às
vezes em sociedade. A porta abriu-se de novo e foi sir Charles quem apareceu desta vez. Lançou também um olhar circular pelo aposento, mas quando os seus olhos se
detiveram em Ágata decidiu-se a entrar.
- Está ocupada nesta ocasião, menina Wylle ?
- Está, - disse Joana, com vivacidade. - Vai escrever uma carta para mim. -
- Francamente, Joana, - disse ele, - acho que já tens idade de escrever tu própria as tuas cartas, sem incomodar a menina Wylie.
- Quando eu escrevo as minhas cartas com o meu punho, tens sempre defeitos a apontar, - replicou Joana.
- Pensei que talvez tivesse tempo ,para ensaiar um duo comigo, - disse ele, voltando-se para Ágata.
- Certamente que sim, - respondeu ela, esperando aplanar dificuldades, dando-lhe prazer. - A carta pode ser escrita em qualquer ocasião até à hora do correio.
Joana corou e disse em tom seco:
- Escrevo eu a carta se não o queres fazer.
194
Desta vez, sir Charles perdeu a calma:
- com franqueza! Como podes ser assim tão grosseira? Por que não queres que eu cante uns duetos com a menina Wylie?
- Que linguagem ! - respondeu Joana. - Eu não disse que não queria duetos. Digo apenas que não tens o direito de arrastar Ágata para o piano no momento em que me vai escrever uma carta.
- Não é minha intenção forçar a menina Wylie a fazer o que não for do seu agrado. Mas parece-me que escrever cartas aos teus fornecedores não é ocupação muito agradável.
- Não se inquietem comigo, - pediu Ágata. - Não me incomoda nada o que pretendem. No colégio, era eu quem escrevia a correspondência da Joana. vou escrever a carta imediatamente e em seguida faremos um pouco de música. Quere ter a bondade de esperar uns cinco minutos ?
- Posso esperar tanto tempo quanto desejar, evidentemente. Mas sou de parecer que é abusar absurdamente da sua vontade e não posso deixar...
- A carta ,que espere ! - explodiu Joana. - Tudo isto porque pedi a Ágata que me escrevesse uma carta na ocasião em que Sua Excelência quere fazer música. Estou certa de que ela está saturada dos teus duetos.
Ágata, para fugir a esta discussão, dirigiu-se para a biblioteca, afim de escrever a carta em questão. Quando voltou ao salão não encontrou nenhum deles, mas sir Charles não tardou a voltar.
- Lamento bastante, menina Wylie, - disse ele, abrindo o piano, - que tenha de presenciar cenas como a de ha pouco, porque minha mulher pratica a tolice de ser ciumenta.
- Ciumenta?
- É verdade. Parvoíces.
- Deve estar enganado, -disse Ágata incrédula. -Como poderia ela ter ciúmes de mim ?
- Tem-nos de toda a gente, - respohdeu ele, amargamente, - e não tem afeição a ninguém ou a qualquer coisa. Nem calcula o que eu suporto às vezes.
Ágata entendeu que a forma mais discreta de proceder seria sentar-se ao piano e atacar imediatamente a melodia:
Desejaria que o meu amor...
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Enquanto tocava e cantava, voltou a pensar no que sir Charles lhe tinha dito. Sempre o julgara um companheira agradável e alegre, amigo de música e de gracejar, polido, cheio de atenções, apreciando o seu talento de cultora da música, de espírito vivo sem ser exageradamente espirituosa e, na sua qualidade de homem casado, desinteressado nas suas atenções. Mas veio-lhe à lembrança que os dois se tinham encontrado frequentes vezes juntos nos últimos tempos.
Neste momento, a sua divagação foi chamada à realidade por sir Charles, que se tinha enganado e preguntava onde iam. Sabendo por experiência de onde lhe vinha o
embaraço, deu-lhe a nota e continuaram. Não havia ainda muito tempo que cantavam quando Joana reapareceu e se sentou no canapé, exprimindo o desejo de não os incomodar.
Mas. incomodou. Ágata suspeitou de que Joana viera somente para os vigiar e que sir Charles tinha disso a exacta noção. Demais, ainda quando o seu espírito estava em repouso, lady Brandon não estava habitualmente menos agitada. Não podia falar por causa da música e, apesar de ter um livra aberto na mão, não podia ler e vigiar ao mesmo tempo. Bocejou e apoiou-se numa das extremidades do canapé, o que por pouco lhe fez perder o equilíbrio. com um saltoprodigioso, pôs-se de pé, fazendo tremer o sobrado a cada um dos seus movimentos. Por fim, não pôde calar-se por mais tempo.
- Meu Deus! - disse, bocejando sem se preocupar com isso,.- já devem ser cinco horas.
Ágata voltou-se, fazendo dar meia volta ao banco do piano. Sentia que a música e lady Brandon eram incompatíveis. Sir Charles, por atenção pela sua convidada, esforçou-se
por dominar a sua exasperação.
- O teu relógio pode dizer-te se são ou não, - comentou ele.
- Obrigada pela informação, -respondeu Joana. - Onde está a Gertrudes, Ágata?
- Como queres que a menina Wylie saiba ? Hoje estás, impossível, palavra de honra!
- Deve estar a jogar o bilhar com o senhor Erskine,
- respondeu Ágata, atalhando para evitar a réplica de Joana com o seu cortejo habitual de questiúnculas domésticas.
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- Acho esquisito que a Gertrudes passe dias inteiros com o Chester na sala de bilhar, -disse Joana descontente.
- Nada tem de inconveniente, - acrescentou sir Charles. - Se a nossa hospitalidade não coloca a menina Lindsay acima de toda a suspeita, é uma vergonha para nós. Que dirias se qualquer outra pessoa fizesse a mesma observação ?
- Não me aborreças! - replicou ela, com mau modo. Pregas sermões a toda a hora sem pés nem cabeça, a propósito de tudo e de nada. Eu não disse que era inconveniente
a parte da Gertrudes. Ela é demasiadamente amaneirada para ser divertida, na minha opinião.
Sir Charles, incapaz de se conter por mais tempo, franziu as sobrancelhas e deixou o salão acompanhado por um riso de desprezo da parte de Joana.
- Não faças a tolice de te casar, - disse ela a Ágata quando ele saiu.
Erguendo os olhos, viu com alarme Ágata inclinada sobre o piano, baloiçando as pernas no vácuo como costumava fazer noutro tempo, no colégio.
- Joana, -disse ela, olhando tranquilamente para a dona da casa, - sabes o que eu faria se estivesse no lugar de
sir Charles ?
Joana não sabia.
- Era isto apenas: pegava num bom cacete e dava-te uma sova mestra. Em seguida, fechava-te à chave, a pão e água, durante uma semana.
Joana ergueu-se a meio, vermelha e furiosa.
- Por... por quê ?
- Se eu fosse um homem não permitiria nunca a uma mulher que me tratasse como um cão só por ter o ar cavalheiresco. Tens, simplesmente, necessidade de uma sova.
- Gostaria de ver alguém sovar-me, a mim, - disse Joana, levantando-se e exibindo em toda a sua amplidão o formidável vulto que era o seu.
Logo a seguir, desatou a chorar e ajuntou:
- Não quero que me digam estas coisas na minha própria casa. com que direito me falas dessa maneira?
- Bem o mereces, porque tens ciúmes de mim. Os olhos de Joana dilataram-se de cólera.
- Eu ? Ciúmes de ti!
Procurou com o olhar um projéctil qualquer para atirar
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e, não o encontrando, tornou a sentar-se e disse com voz abafada pelas lágrimas:
- Ciu... ciumenta de ti, ora não há!
- Tens boas razões para o ser, porque ele gosta mais de mim que de ti.
Joana abriu convulsivamente a boca e os olhos, mas não fez mais que exalar um suspiro, enquanto Ágata continuava plàcidamente:
- Sou cortês para com ele, o que nunca és. Quando ele me fala deixo-o acabar a frase sem exprimir, como tu, a opinião preconcebida de que não vale a pena dar-lhe
atenção. Não bocejo nem assobio quando ele canta. Se conversa comigo de arte ou literatura, assuntos que ele conhece duas vezes melhor que eu e pelo menos dez vezes melhor que tu (aqui Joana abriu mais uma vez a boca), não dou respostas tolas nem me volto para o vizinho para fazer um reparo sobre o tempo ou sobre cavalos. Quando ele se dispõe a dar-se por satisfeito - o que acontece sempre, aliás - procuro tornar-me agradável. Aqui está porque ele gosta de mim.
- Não o julgues. Ele é assim para toda a gente.
- com excepção de sua mulher. Gosta tanto de mim que, na qualidade de idiota que és, vieste aqui para nos vigiar enquanto cantávamos, e tornaste-te tão desagradável
quanto possível, ao passo que eu fui encantadora. O pobre homem teve vergonha de ti.
- Não é verdade, - replicou Joana, soluçando. - Não fiz nada, não disse nada. Estou farta disto. vou pedir o divórcio...
- Se te resta uma pitada de bom senso, - disse Ágata sem piedade, - precisas melhorar a tua maneira de ser. Não faças tanto barulho, senão ainda por aí aparecem a
ver o que se passa e eu terei que descer do piano onde me encontro muito bem.
- Tu é que tens ciúmes.
- Eu ? Está bem. Até aqui não consenti a sir Charles que se apaixone por mim, mas é fácil. Quanto apostas em como antes de amanhã à tarde ele me dá um beijo ?
- Seria uma porcaria e uma maldade da tua parte se ele o fizesse. Julgas que eu devo ser tratada como uma garota ?
- É o que és, na verdade, uma garota crescida, - disse
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Ágata, saltando do banco do piano e preparando-se para sair. - Uma boa sova fazia-te bem, de tempos a tempos.
- Não te diz respeito que eu me entenda ou não com meu marido, - disse Joana, com fúria súbita.
- Não, se questionam em particular como fazem os casais bem educados. Mas, quando isso se passa na minha presença, incomodo-me e não quero ser molestada.
- Não estarias aqui se eu não te tivesse convidado.
- E que lúgubre seria esta casa sem mim, Joana!
- Sério ? Não era lúgubre antes da tua chegada. A Gertrudes, ao menos, sabe conduzir-se como rapariga bem educada.
- Pois lamento que o seu exemplo não te tenha aproveitado.
- Basta, estou até aos cabelos! - exclamou Joana, com um soluço e um mergulho no canapé, tão forte que fez tilintar o lustre do teto. - Nunca te teria convidado se adivinhasse que eras tão detestável. Nunca mais te convido.
- Pois bem, direi a sir Charles para se divorciar por incompatibilidade de génios e em seguida que case comigo. Depois, já tenho a casa por minha.
- Não é possível o divórcio por motivos desses. Graças a Deus, não sabes o que dizes.
Ágata pôs-se a rir.
, - Vejamos, Joana, - disse ela, de bom humor, - não te faças parva. Vai lavar a cara antes que alguém te veja nesse estado e lembra-te do que te disse a respeito de sir Charles.
- Custa muito ser classificada de parva na nossa própria casa...
- Ainda custa mais ser tratado como tal, como acontece ao teu marido, Joana. vou ter com ele à sala de bilhar.
Joana deu uma corridinha e segurou-a pela manga.
- Ágata, - suplicou ela, - promete-me que não serás má. Dize-me que não lhe vais fazer a corte.
- vou pensar nisso, - respondeu gravemente Ágata. Joana soltou um suspiro e deixou-se cair numa cadeira,
que gemeu sob o seu volume. No limiar da porta, Ágata voltou-se e vendo-a abanar a cabeça, pôr as mãos sobre os olhos e bater o pé num acesso de cólera contida, disse com vivacidade:
- Céus! Aí estão os Waltons, os Fitzgeorges e o senhor
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Tréfusis. Como está, senhora Walton? Lady Brandon ficará encantada de a ver. Boa tarde, senhor Fitzgeorge. De um salto, Joana pôs-se de pé. Limpou precipitadamente
os olhos, alisou os cabelos com as mãos e precipitou-se para um espelho. Ao fim de um instante, como nenhum visitante aparecesse, verificou que tinha sido, talvez
pela centésima vez na sua vida, vítima de uma mistificação por parte de Ágata. Esta última, contente com o êxito de retomar o seu antigo ascendente sobre Joana,
ao que se tinha aventurado com apreensão, a despeito da sua aparente confiança, desceu para a biblioteca onde encontrou sir Charles, que se esforçava melancolicamente por afogar as suas arrelias domésticas na leitura de um volume sobre crítica de arte.
- Julgava-o na sala de bilhar, - disse Ágata.
- Ainda deitei uma olhadela para lá, mas como vi que se passava qualquer coisa de singular, preferi esquivar-me, e para. aqui fiquei só.
Este "qualquer coisa de singular" que sir Charles não tinha querido perturbar, era apenas uma partida de bilhar. Era a primeira ocasião que Erskine havia aproveitado para falar à vontade a Gertrudes em particular. Contudo, nunca a conversa entre ambos tinha sido tão vulgar. Gertrudes gostava do bilhar, jogava muito bem e tagarelava indiferentemente. Ele, pelo contrário, jogava mal e, embora os procurasse, não conseguia encontrar assuntos de conversação que não fossem insignificantes. Depois de ter jogado durante hora e meia, Gertrudes tinha declarado que a partida que estavam jogando seria a última.
Erskine dizia consigo com desespero, que, se perdesse muitas jogadas, a partida depressa acabaria e não teria tão cedo, ou talvez nunca, uma semelhante ocasião. Tomou o partido de lhe declarar sem mais rodeios que a adorava, mas, quando abriu os lábios para lhe falar, tudo o que encontrou para dizer foi uma pregunta sobre a forma de jogar o bilhar na Pérsia. Gertrudes nunca tinha estado na Pérsia, mas tinha visto tacos de bilhar orientais no Museu da índia. Os hindus têm uma forma maravilhosa de trabalhar a filigrana, os tapetes e todos os objectos deste género. Não era de opinião que a irregularidade dos desenhos dos seus tapetes era um defeito? Há pessoas que os admiram, mas
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não será isso um absurdo ? O soalho moderno, encerado, com um tapete no centro, não será preferível ao antigo tapete ajustado até aos cantos do aposento? Claro que é preferível. Imensamente preferível.
- Mas, em que está a pensar, senhor Erskine? Jogou com a minha bola.
- Penso em si.
- Que diz ? - preguntou Gertrudes, que não notou o tom de seriedade que ele estava dando à conversa e se preparava para continuar a jogar. - Estou a jogar tão mal
como o senhor. Esta é a pior tacada que dei em toda a minha vida. Peço perdão, mas o senhor estava dizendo não sei o quê...
- Já me esqueceu. Nada de importância. E suspirou sobre a sua cobardia.
- Se ficássemos por aqui ? - propôs Gertrudes. - De nada serve querer acabar a partida quando nos falta a "mão". Estou fatigada.
- Acabemos, se o deseja.
- Mas, se prefere, concluirei a partida.
- De modo nenhum. Tudo que lhe agrada me agrada também.
Gertrudes fez-lhe uma ligeira saudação e empurrou as bolas com a cauda do taco. Os olhos de Erskine erraram indecisos de um lado para o outro e os seus lábios agitaram-se um pouco. Tinha decidido no seu foro íntimo que a sua declaração seria franca, de coração para coração. Tinha sonhado que tomaria delicadamente a mão de Gertrudes e lhe diria: "Amo-a Gertrudes. Posso dizer-lho outra vez ?" Mas esta decisão não se lhe afigurava fácil de pôr em prática naquele momento.
Gertrudes, inclinada sobre a mesa de bilhar, ergueu a cabeça com inquietação.
- A ocasião que se apresenta é a melhor que eu posso... que eu poderei... que eu posso...
- Que eu poderei... - emendou Gertrudes.
- Peço perdão.
- Que eu poderei... - repetiu Gertrudes. -Já alguma vez estudou a doutrina da necessidade, senhor Erskine ?
- A doutrina da necessidade ? - inquiriu ele, desnorteado.
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Gertrudes passou para o outro lado da mesa em perseguição de uma bola. Adivinhava o que estava para vir e desejava que isso viesse, não tanto porque tivesse a intenção de aceitar, mas porque, como todas as jovens com experiência destas coisas, coleccionava pedidos de casamento como o Pele-Vermelha colecciona os coiros cabeludos que escalpela.
- Passámos dias muito agradáveis aqui, - disse ele, abandonando por incompreensível o assunto da doutrina da necessidade. - Pelo menos, achei que foram agradáveis.
- E eu também, - disse Gertrudes, que tomava a mal o que ela julgava ser uma alusão ao seu secreto descontentamento.
- Sou mais feliz do que as palavras podem afirmar.
- Mas que lhe interessa isso? - preguntou ela, comprazendo-se na sua atitude contrariante, que ele tinha provocado sem querer, porque lhe parecia ver piedade na
simpatia que Erskine se esforçava por lhe testemunhar.
- Desejaria que me interessasse. A felicidade da minha visita é inteiramente à menina que a devo.
- Seriamente ? - replicou Gertrudes estremecendo, enquanto todas as coisas cruéis que Tréfusis lhe tinha dito lhe voltavam à memória em seguida à infeliz alusão de Erskine-a propósito da sua capacidade de se divertir.
- Espero que não lhe esteja a causar mágoa.
- Não compreendo o que quere dizer,- disse ela endireitando-se com súbita impaciência. - O senhor parece imaginar que é coisa fácil causar-me mágoa.
- Não, não, - replicou ele, timidamente, intrigado pelo efeito que tinha produzido. - Temo que dê outro sentido às minhas palavras. Sou muito desastrado. Creio que
faria melhor em não continuar. Voltando-se para arrumar o seu taco, Gertrudes significou-lhe que era esse um ponto que ele devia considerar a sós, não tendo, quanto a ela, nenhuma intenção de
se preocupar com isso. Quando o encarou de novo, Erskine estava imóvel, com ar abatido e expressão de pena como a de um cão que mendigou uma carícia e recebeu um
pontapé. Um sentimento de remorso e uma vaga impressão de que havia qualquer coisa de baixo na sua atitude para com ele incomodaram-na. Olhou-o durante um instante e saiu.
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Este olhar intrigou o mancebo. Não o compreendeu nem tentou compreendê-lo; mas era um olhar que ele nunca até então havia surpreendido em Gertrudes, nem noutra mulher. Sentiu como que uma revelação instantânea, que era o que tinha escrito nos "Patriotas Mártires". Era "o glorioso mistério do coração feminino".
Sentiu-se de repente incapaz de se submeter às relações mundanas ordinárias. Deixou precipitadamente a casa, desceu rapidamente a avenida até à casinha onde guardava a sua bicicleta, deixou dito que partia em excursão e não voltaria provavelmente a tempo de jantar, montou sobre a bicicleta e pedalou com indolência ao longo da estrada de Riverside.
Em menos de dois minutos passou a barreira da Casa de Salústio, onde pouco faltou para atropelar uma velhota carregada com um cesto de carvão, a qual poisou o fardo para o cobrir de insultos. Inteirado por este incidente de que a sua corrida de cabeça baixa era coisa perigosa, moderou a velocidade e divisou em breve Tréfusis estendido na relva de uma encosta à borda da água, com o rosto metido nas mãos, preparando-se para ler atentamente. Erskine, que, poucos dias antes, lhe tinha oferecido um exemplar dos seus "Patriotas Mártires e outros Poemas", esforçou-se por reparar qual o livro que absorvia Tréfusis a tal ponto. Era um volume azul com as páginas cobertas de algarismos. Aborrecido, continuou o seu caminho, evocando, para se consolar, o rosto de Gertrudes.
A estrada principal afastava-se nesse local da ribeira e elevava-se em subida rápida, em cujo cimo ele se voltou para olhar para trás. A luz do dia avermelhava e as sombras alongavam-se. Tréfusis continuava deitado de bruços no prado e a velhota estava num campo ocupada a colher cicuta.
Erskine desceu a toda a velocidade, sem mais olhar para trás. Ao cair da noite, encontrou-se nas imediações de uma cidade. Comprou cerveja e uma sanduíche que comeu sem grande apetite. Gertrudes tinha provocado nele uma perturbação tal que lhe tirara a vontade de comer. Entretanto, anoitecera. Erskine estava longe das "Faias" e não muito certo sobre o caminho a seguir. De repente, resolveu terminar nessa noite a declaração que tinha começado. Agora
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não podia rolar com bastante pressa para satisfazer a sua impaciência. Quis tomar por um atalho, perdeu-se, gastou perto de uma hora à procura da estrada principal e, por fim, chegou a uma estação de caminho de ferro, justamente a tempo de tomar o comboio que o levou a um quilómetro do seu destino.
Quando se ergueu dos assentos do seu compartimento sentiu-se razoavelmente fatigado e incapaz de tornar a montar na bicicleta. Mas a sua resolução estava tomada e mais ardente que nunca e o seu coração batia descompassadamente quando, depois de ter deixado a bicicleta na casinha do costume, tornou a subir a avenida nas trevas profundas das faias. Chegado perto de casa, as primeiras notas do Crudel, perche finara chegaram-lhe aos ouvidos e avançou sem ruido sobre a relva, com receio de que os seus passos acordassem os cães, e estes, com os seus latidos, prejudicassem a melodia. Neste momento, um sussurro fê-lo parar e escutar. Depois, a voz de Gertrudes murmurou nas trevas:
- Que queria o senhor dizer há pouco, lá em casa ? Uma sensação extraordinária invadiu Erskine. Ideias
confusas do país das fadas lhe atravessaram a imaginação, mas uma decepção amarga, como a que deixa um sonho belo quando acordamos, lhe sucedeu quando a voz de Tréfusis, finamente modulada, como ele nunca lha tinha ouvido, respondeu:
- Simplesmente que a extensão em que brilham as estrelas por cima das nossas cabeças não é mais infinita que o meu desprazer pela menina Lindsay, nem mais luminosa que a minha esperança em Gertrudes.
- Para o senhor, será sempre "menina Lindsay", não se esqueça, senhor Tréfusis.
- Nunca "menina Lindsay" para mim, mas somente para aqueles que não sabem ver a alma que nela reside e que é Gertrudes. Há milhares de "meninas Lindsay" na sociedade, cerimoniosas e falsas, mas só uma Gertrudes.
- Sou uma rapariga sem protecção, senhor Tréfusis. Pode chamar-me o que quiser.
Pareceu a Erskine que era essa a ocasião favorável para se precipitar em frente e dar a Tréfusis, de quem podia agora divisar vagamente as feições, uma lição merecida. Mas hesitou e a ocasião passou.
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- Sem protecção! - exclamou Tréfusis. - Como assim? A menina está defendida por uma barreira de convenções, de leis, de mentiras bastantes para atemorizar a verdade
e impedi-la de sair dos lábios de qualquer homem cuja fé em Gertrudes fosse menos forte que a minha. Comunique a sir Charles o que eu disse à menina Lindsay e antes de dez minutos eu terei transposto aquela grade, com o aviso de não tornar a passar por ela. Sou eu que estou nas suas mãos e se estivesse no poder unicamente da menina Lindsay, a minha confissão não seria longa. Felizmente Gertrudes, se bem que obscuramente, sente que a menina Lindsay é a sua mais cruel inimiga.
- É ridículo o que o senhor está dizendo. Eu não sou duas pessoas. Que me importa que o seu desprezo a meu respeito seja tão infinito como a imensidade sideral?
- Ah! Recorda-se das minhas palavras ? Quando se ouve um homem falar de estrelas, é corrente fazer-se o seguinte juízo: ou é astrónomo, ou doido. Mas uma bela noite estrelada e a sua presença fazem um louco de qualquer homem.
- Não o compreendo. Tento, mas não consigo. Ou, se adivinho, pregunto se o senhor é ou não sincero.
- Muito sincero. Abandone por uma vez o receio de que eu me esteja a divertir consigo, como fazem habitualmente os homens quando estão na companhia de uma linda mulher. Quero dizer literalmente e no sentido mais profundo o que digo. A menina duvida de mim. A sociedade está de tal modo que suspeitamos todos uns dos outros. Mas o que é verdade, impõe-se sempre, cedo ou tarde, aos, que têm bastante espírito para a compreender.
E agora permita-me chamar a menina Lindsay à realidade para
lhe lembrar que estamos cá fora há dez minutos e que a nossa querida lady Brandon não é mulher que passe por sobre a nossa ausência sem comentá-la.
- Voltemos para casa. Obrigada por ter-mo lembrado.
- Obrigado por tê-lo esquecido.
Erskine ouviu os passos que se afastavam e viu-os sem tardar que passavam no espaço iluminado, produzido pela porta-janela da sala de bilhar pela qual entraram.
Tréfusis, o mesmo homem que ele tinha visto naquele mesmo dia, numa paisagem magnífica, cego a tudo o que o
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rodeava, absorvido por colunas de números escritos num livro azul, era o seu feliz rival. Contudo, o próprio som da sua voz testemunhava de modo evidente que não amava, que não podia amar Gertrudes. Só um poeta podia adorá-la. Tréfusis não era poeta, era um brutamontes pouco susceptível de inspirar interesse a qualquer outro ser humano, a não ser numa reunião pública, mas não a uma mulher e menos ainda a uma mulher tão etérea como Gertrudes.
Esta era altiva e contudo tinha permitido a esse indivíduo que a insultasse e havia-lhe perdoado diante de uns cumprimentos vulgares. A cólera e o cinismo de Erskine
avolumaram a esta ideia. Em lugar de ter o coração esmagado por uma dor impregnada de grandeza, como o teria um "Patriota Mártir" em semelhante circunstância, sentia-se
insultado e ridicularizado. Estava apenas mediocremente convencido daquilo que a princípio lhe tinha parecido a própria evidência: a inferioridade de Tréfusis comparado
com ele próprio.
Ficou abrigado pelas árvores até que Tréfusis reapareceu para regressar a casa, fazendo, pensava Erskine, tanto barulho com os tacões no saibro como o teria feito
um regimento de homens delicadamente educados. O rival deteve-se um instante para dizer qualquer coisa ao porteiro, depois os seus passos afastaram-se e perderam-se
na treva.
Erskine, resfriado e entorpecido, com a sensação de ter apanhado um começo de séria gripe, entrou em casa e sentiu-se consolado por verificar que Gertrudes se tinha
retirado e que lady Brandon, se bem que persuadida de que ele tinha caído à ribeira enganado pela treva, lhe havia, no entanto, mandado guardar uma ceia quente.
XV
Erskine achou depressa muitas razões a avolumar o seu pessimismo de fresca data. As maneiras de Gertrudes a seu respeito suavizaram a tal ponto que, supondo ter
ela dado o coração ao seu rival, concluiu que o encorajava a fazer-lhe uma declaração, mas disposta a não a aceitar.
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Sir Charles, a quem ele confiara as palavras ouvidas na avenida, manifestou-lhe a sua simpatia e estimou saber que nada havia de sério nas atenções que Tréfusis dispensava a Ágata. Erskine compôs três sonetos cheios de amargura sobre a mentira da amizade e mostrou-os a sir Charles, que, não os aplicando a si próprio, louvou-os com calor e mostrou-os a Tréfusis sem pedir autorização ao autor.
Tréfusis observou que, numa sociedade corrompida, as expressões de descontentamento faziam sempre honra à sensibilidade de um escritor, mas não encontrou forma de louvar os versos.
- Por que razão se entretém ele com expressões de amargura? - preguntou Tréfusis. -Teria experimentado um desapontamento qualquer nestes últimos dias? Teria feito à menina Lindsay uma declaração que ela recusasse?
- Não, - disse sir Charles, surpreendido por esta súbita alusão a um assunto que não tinham ainda discutido juntos.
- Erskine não projecta declarar-se à menina Lindsay.
- Mas teve essa intenção, em dado momento ?
- Teve, mas abandonou essa ideia.
- Por quê ? - preguntou Tréfusis, que parecia reprovar fortemente essa nova decisão.
Sir Charles ergueu os ombros e não respondeu.
-Lamento que seja assim. O senhor deveria persuadi-lo a mudar de ideia. Erskine é um rapaz gentil, tem de que viver à vontade, sendo, apesar disso, o que se chama um homem pobre. Ela poderia, portanto, sentir-se perfeitamente desinteressada ao desposá-lo. Fazia-lhe bem um casamento que não fosse um negócio. Acho que aumentaria a sua própria estima e não lhe faltariam o pão e a manteiga. Não teria necessidade de se envergonhar da origem do marido por se ter casado somente por amor. Veja se os casa. Interesso-me muito por esta rapariga. Tem bons instintos.
De novo sir Charles suspeitou de que Tréfusis fazia verdadeiramente a corteja Ágata depois desta conversa que comunicou a Erskine. Este, aborrecido porque os seus sonetos tinham sido mostrados a um homem que lia livros azues, pensou que tudo aquilo era uma finta para ocultar os seus verdadeiros sentimentos a respeito de Gertrudes. Sir Charles repeliu esta suposição e os dois amigos discutiram vivamente em defesa das respectivas opiniões.
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Depois do jantar, sir Charles, arrependido, encorajou Erskine a falar a Gertrudes sem se preocupar com a sinceridade de Tréfusis. Mas Erskine, sabendo-se incapaz de suportar uma recusa, teve escrúpulo em se expor a isso.
- Se o meu amigo tivesse ouvido o som da sua voz quando ela lhe preguntou se ele era sincero, não falaria desse modo. Gostaria tanto que Tréfusis nunca tivesse posto aqui os pés! - Pois bem, meu caro, posso dizer-lhe, com verdade, que se ele cá está não fui eu que o chamei. Foi convidado absolutamente contra a minha vontade. E agora que ele
parece estar no seu direito perante a lei, a propósito deste campo, eu pareceria proceder por rancor se o evitasse. Na realidade, não é um homem ruim, assim ele deixasse as mulheres tranquilas.
- Se-esse cavalheiro brinca com a menina Lindsay, convido-o a atravessar a Mancha para trocar uma bala com ele,
- Duvido de que o siga, - disse sir Charles, com incerteza. - No seu lugar, tentaria a minha sorte com Gertrudes. A despeito do que o amigo ouviu, não creio que ela vá desposar um homem da origem de Tréfusis. O seu dinheiro dá-lhe uma vantagem, é facto, mas Gertrudes já mandou passear outros homens mais ricos.
- Dêmos bom jogo a esse rapaz, - disse Erskine. Evidentemente eu posso enganar-me, porque todos os homens são aptos a enganar-se quando se julgam a si próprios, mas creio que posso torná-la mais feliz que ele.
Sir Charles não estava tão seguro disso como o amigo, no entanto respondeu:
- Seguramente. Tréfusis não é o homem que convém a Gertrudes, ao passo que o amigo reúne todos os requisitos e ele sabe-o.
- Heim ! - resmungou Erskine, levantando-se com ar abatido. - Se subíssemos ?
- De facto, devemos visitar Tréfusis amanhã para ver a sua casa e a sua colecção de fotografias!
Fotografias! Ah! ah! ah!
- Que vão para o diabo ele e a casa, - vociferou Erskine. No dia seguinte, foram juntos à Casa de Salústio. Esta
habitação encontrava-se situada no centro de um meio hectare de terra inculta, salvo uma pequena horta atrás da casa.
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O cubículo do porteiro, situado à entrada, estava desabitado e a grade aberta. De cada lado, folhas mortas e lixo formavam montículos. A entrada livre tinha permitido que penetrassem na propriedade dois póneis perdidos, uma cabra e um vagabundo adormecido na erva com a mulher sentada a seu lado a vigiar-lhe o sono.
- Tenho vontade de voltar para trás, - disse sir Charles, olhando com desgosto em volta de si. - Esta habitação está escandalosamente mal tratada. Olhe aquele indivíduo
que dorme ali, em frente das janelas.
- Admiro o seu à vontade, - disse Erskine. - Lindos póneis, aqueles.
A Casa de Salústio era quadrada e pintada de cor de canela. Sob a cornija corria um friso amarelo com rodas infantis, imitadas de Donatello e muito inàbilmente executadas. Havia ainda um modesto pórtico de quatro colunas pintadas de vermelho e um frontão unido, pintado de amarelo. As cores que pretendiam conjugar-se com as da parede contrastavam desagradàvelmente com as primeiras aplicadas mais recentemente por um artista atacado de daltbnismo. A porta sob o pórtico estava aberta. Sir Charles puxou a campainha e uma mulher idosa atendeu, mas, antes que ele pudesse falar, Tréfusis apareceu vestido com um trajo de pintor, de cotim branco acetinado. Os visitantes seguiram-no, entrando na casa, que lhes pareceu um quadrado oco, no interior do qual havia um pátio com um pequeno tanque ao centro e no meio deste uma fonte. O pátio, outrora a céu aberto, estava agora coberto por um teto de vidro, poeirento; a ninfa, que noutro tempo deitava a água da fonte, estava mutilada e o tanque estava em parte recoberto de pranchas desirmanadas com a parte não coberta, suportando num dos cantos um monte de carvão; num outro, uma pilha de batatas, um barril de cerveja, restos de velhos tapetes, um pano alcatroado e uma piroga quebrada. O lajeado de mármore estendia-se até aos muros exteriores da casa e, sobre os flancos, os andares superiores saíam fora sustentados por colunas de pedra canelada, enegrecidas e mutiladas. A escada para a qual Tréfusis conduziu os visitantes, na extremidade oposta à porta, era larga e dava acesso a uma galeria em comunicação com os quartos do andar superior.
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- Esta casa foi construída em 1780 por um meu antepassado materno, - esclareceu Tréfusis. - Passava por ser um homem de gosto apurado. Desejava que esta habitação fosse conservada para sempre - expressão de que se serviu no seu testamento -como morada familiar e reuniu aqui uma bela biblioteca que me foi útil, porque encontrei todos os livros em perfeito estado. A maior parte ainda estava por abrir. Há pessoas que dão grande importância aos livros por abrir de velhas edições. Um livreiro pagou-me trezentas e cinquenta libras pelo love completo. Entrei igualmente na posse de amuletos familiares, recordações de família, como é costume chamar-lhes. Havia um sabre de que se serviu um dos meus avós em Edgehill e outras batalhas do tempo de Carlos I. Nós batíamo-nos do lado menos favorável, naturalmente, mas o sabre, vendeu-se, apesar disso, por trinta e cinco xelins. Talvez se admirem de me terem oferecido cento e cinquenta libras por uma taça de oiro que valia pouco mais ou menos vinte e cinco, simplesmente porque, a rainha Isabel bebeu por ela uma vez. Eis o meu escritório. Estava destinado a ser uma sala de banquetes.
Penetraram num aposento que ocupava todo o comprimento da casa, cortado de um lado por quatro altas janelas, entre as quais havia umas colunas quadradas que penetravam a meio na parede e ornadas de capitéis coríntios, sustentando a cornija. Colunas semelhantes se viam do lado oposto, mas entre elas, em lugar de janelas, havia nichos abobadados a abrigar estátuas de gesso, de tamanho natural, extraordinariamente mutiladas, partidas e desfiguradas. O soalho, composto de tábuas estreitas, diagonalmente encanastradas, não tinha tapetes e estava encerado. O teto, guarnecido de frescos, excitou logo o interesse de sir Charles, que notou, indignado, o facto de uma grande parte da pintura, do lado norte, ter sido destruída e substituída por uma cobertura de vidro.
Noutro local tinham sido aplicadas umas cavilhas para sustentar as cordas de um trapézio e diversos outros aparelhos de ginástica. As paredes estavam pintadas a cal e a cerca de um metro do chão aparecia uma risca sombria, produzida por notas a lápis e pequenos esboços garatujados no reboco. Uma das extremidades do aposento não estava mobilada, salvo pelos aparelhos de ginástica, uma máquina
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de fotógrafo, uma escada, num canto, e uma mesa de madeira branca, ordinária, com latas de óleo em cima e boiões de tintas. Na outra extremidade, exibia-se com sumptuosidade
relativa uma estante grande, numa combinação bem imaginada de secretária e de papeleira, um cabide do qual pendiam uma carabina, um par de floretes e um guarda-cliuva; alguns álbuns de folhas soltas sobre uma mesa, algumas poltronas e canapés confortáveis e, no chão, um espesso tapete. Ao lado e a destoar bastante, um banco de carpinteiro com as ferramentas apropriadas e uma série de pranchas de espessuras variadas.
- Isto é um género de conforto que apenas um homem rico pode oferecer-se,-disse Tréfusis, que, ao voltar-se, surpreendeu os seus visitantes trocando olhares de espanto perante tão estranho gosto por parte do locatário. - Conservo um salão onde recebo os estranhos com quem é necessário ser convencional, mas nunca lá ponho
os pés, salvo nessas ocasiões. Que pensam deste aposento como atelier?
- Palavra de honra, Tréfusis, julgo que o senhor está doido, - disse sir Charles. - Este aposento tem o aspecto de ter suportado um cerco. Como fez para quebrar essas estátuas e mutilar as paredes tão abominàvelmente ?
Tréfusis pegou num jornal que estava sobre a mesa e respondeu:
- Oiça isto: "A despeito do tempo desfavorável, a partida de caça do Imperador e seus convidados, na Estíria, teve grande êxito. Em três dias, cinquenta e dois cabritos
, monteses e setenta e nove veados e gamos caíram sob as balas de dezanove espingardas. O Imperador não autorizou que se matassem mais peças nesta ocasião." Pois bem, partilho o prazer do Imperador pelo tiro, mas não sou um magarefe e não tenho necessidade do atractivo real do sangue para que me divirta. Por outro lado, não partilho o gosto do meu antepassado pelas estátuas. Por consequência...
Aqui Tréfusis abriu uma gaveta, tirou uma pistola e fez fogo sobre a estátua de Hebe, colocada no nicho mais afastado.
- Boa pontaria! - disse Erskine com calma, quando o último fragmento da cabeça de Hebe se esmigalhou ao contacto da bala.
- Vão trabalho, - replicou Tréfusis. - Sou bom atirador,
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mas de que serve isso? De nada. Encontrei um dia um couteiro que era metodista. Era um orador dos mais eloquentes, mas mau atirador. Se ele pudesse trocar
o seu talento pelo meu, dar-lhe-ia de boa vontade dez mil libras de gratificação, se bem que ele ganhasse tanto com a troca como eu. Não tenho mais desejos de ser
um bom atirador que tenho de ser rei de Inglaterra ou proprietário do cavalotriunfador do Derby, ou qualquer coisa por igual ridícula. E, contudo, não falseei o meu objectivo na vida, graçassejam dadas ao destino cego.
- Rei de Inglaterra! - disse Erskine com um riso da mofa, para mostrar a Tréfusis que outros além dele eram também partidários da liberdade. - Não é absurdo uma nação vangloriar-se da sua liberdade e tolerar um rei?
- Vá para o diabo com o seu republicanismo, Chester í
- exclamou sir Charles, que, no fundo, tinha fraca opinião sobre o valor positivo dos "Patriotas Mártires".
- Eu não admito que me reduzam ao silêncio a este respeito. Admiro os homens que matam os reis. O senhor deve estar de acordo comigo, Tréfusis.
- De modo nenhum, - respondeu o dono da casa. Nos nossos dias, um rei não passa de um manequim que serve para desviar a nossa cólera contra os verdadeiros opressores da sociedade, e a parte do salário que ele pode gastar à sua vontade é mínima, em geral, para compensar os riscos, os aborrecimentos e a escravidão, aos quais ele está reduzido. Qual é o simples particular que se encontra mais mal servido que um rei constitucional ? Recusamos-lhe toda a intimidade, não pode casar com quem quere, nem visitar quem deseja, nem vestir-se a seu gosto, nem viver onde lhe agrada. Creio até que nem pode comer ou beber aquilo de que mais gosta. Se lhe agradasse comer tripas com cebola, certamente o Conselho Privado lhe faria os seus reparos. Ditamos-lhe tudo, salvo os seus pensamentos e os seus sonhos, e ainda estes deve guardá-los para si se não estiverem em conformidade com a situação. O trabalho que lhe é imposto tem todo o rigor de uma tarefa de empreitada. É infrutuoso, incessante,
monótono, e deve ser geralmente desempenhado de parçaria com uns maçadores intimidados. Fazemos do seu reino um moinho de disciplina onde ele tem que ir por aqui,
por ali, à nossa vontade.
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Finalmente, depois de lhe ter tirado tudo o que tem algum valor aos olhos dos homens, atacamos a sua reputação e a de todos os que, por acaso, gozam do seu favor pessoal. Impomos-lhe enormes despesas e cerceamos os seus rendimentos, depois do que ainda censuramos a sua parcimónia.
"Tratamo-lo como eu trato estas estátuas. Pômo-Io no iugar de honra para o podermos mais facilmente desfigurar -e insultar. Mandamo-lo para as cidades populosas, proclamando que é a fonte de todo o bem e de todo o mal, dentro da nação, e ele, sabendo que é uma grande mentira, porque não pode diminuir de uma só hora o dia de trabalho, nem aumentar um péni nos salários, nem anular a mais pequena sentença judiciária, por injusta que lhe pareça; sabendo que toda a gente no reino pode
fabricar dinamite e que os revólveres se vendem a poucos xelins cada; sabendo que não é invulnerável às balas e que todos os reis da Europa têm sido alvos de atentados,
é forçado a sorrir, a cumprimentar e a manter uma expressão graciosa de satisfação, enquanto o Mayor e a municipalidade lhe infligem a stopada oficial que ele já ouviu mil vezes.
"Não lhe peço que seja leal, Erskine, mas espero que, por simples humanidade, simpatize com a principal personagem da parada, que não é tão responsável pelos múltiplos
males e abominações que existem no seu reino, como o Lord-Mayor é responsável pelos roubos dos especuladores de bolsa que seguem o seu cortejo em 9 de Novembro.
Sir Charles riu da canseira que Tréfusis se dava para defender a sua tese e disse com suavidade:
- Meu caro amigo, os reis estão habituados a tudo isso ; é o que eles esperam e disso gostam.
- E não se vêem a si próprios como eu os vejo, tal como não se vêem as pessoas vulgares, - concordou Tréfusis.
- Que rosto encantador! - exclamou Erskine, descobrindo uma fotografia emoldurada em oiro e coral, colocada sobre um cavalete em miniatura, recoberto de veludo
vermelho rubi.
Tréfusis voltou-se vivamente, tão evidentemente satisfeito, que sir Charles se apressou a acrescentar:
- Encantador!
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Depois de ter observado o retrato, comentou um pouco admirado:
- É, sem dúvida, um rosto extraordinariamente atraente.
- Quando vi este rosto pela primeira vez, há anos, disse Tréfusis, - experimentei a mesma sensação que
hoje os senhores experimentaram.
Seguiu-se um silêncio, enquanto os dois visitantes consideravam o retrato e Tréfusis os observava.
- Curioso tipo de beleza, -disse enfim sir Charles, com menos certeza do que antes.
Tréfusis riu clesagradàvelmente.
- Reconheceu nela a artista, a amadora entusiástica? - preguntou ele, abrindo outra gaveta para tirar um maço de desenhos, que passou aos seus convidados para exame.
- Muito hábil. Na realidade muito hábil, - disse sir Cfctarles. - Gostaria imenso de travar conhecimento com esta senhora.
- Tive tentações muitas vezes de queimar estes desenhos, - disse, Tréfusis, - mas aí continuam e aí ficarão provavelmente. Este retrato tem sido muito admirado.
- Poderia o senhor apresentar-nos o original? - pediu Erskine.
- Não, infelizmente. Morreu. Desagradàvelmente chocados, sir Charles e Erskine
olharam por um instante para Tréfusis com aversão. Depois, Erskine, voltando com piedade e desapontamento à imagem, disse:
- Pobre rapariga! Era por acaso casada ?
- Era, comigo.
- A senhora Tréfusis! - exclamou sir Charles. - Ah, meu Deus I
Erskine não disse palavra. Tinha agora a prova de que era possível uma linda rapariga aceitar as atenções de Tréfusis.
- Conservo constantemente seu retrato diante de mim para me corrigir da minha tendência natural para amar demasiado. Apaixonei-me por ela e desposei-a imediatamente.
Uma ou duas vezes depois, voltei a apaixonar-me, mas um olhar lançado à minha pobre Hetty cura-me do menor desejo de tornar a casar.
Sir Charles não respondeu. Veio-lhe à lembrança que,
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se nada mais lhe ficasse dela, o retrato de lady Brandon lhe produziria exactamente o mesmo efeito.
- Vejamos: o senhor torna a casar certamente um destes dias, - disse Erskine, num tom de encorajamento forçado.
- É possível. Os homens devem casar-se, principalmente os homens ricos. Mas asseguro-lhe que, nesta ocasião, não tenho a menor vontade de o fazer.
Erskine corou e afastou-se para o lado da mesa onde se encontravam os álbuns.
- Eis a colecção de fotografias de que lhes falei, -disse Tréfusis, seguindo-o e abrindo um dos álbuns. -Tirei muitas eu próprio com grandes dificuldades devidas à iluminação, a única dificuldade que o dinheiro nem sempre pôde afastar. Esta é uma vista da casa de meu pai, ou antes, de uma das suas casas. Custou setenta e cinco mil libras.
- Muito bela, na verdade, - disse sif Charles, intimamente aborrecido por ser convidado a admirar uma fotografia como as que exibem os agentes de venda de propriedades, representando uma casa de campo concebida de maneira vulgar, simplesmente porque tinha custado setenta e cinco mil libras. O preço estava inscrito na imagem.
- Eis aqui o salão e aqui um dos mais belos quartos de dormir. Ao canto direito da margem podem ver uma relação do preço do mobiliário, da decoração, roupa, etc,, tudo isso da mais dispendiosa elegância.
- Muito interessante, - disse sir Charles, disfarçando mal a ironia do seu comentário.
- Isto é uma vista, a primeira que tentei fazer, pessoalmente, do quarto de um dos criados inferiores. É confortável, espaçoso e abundantemente mobilado.
- Estou vendo.
- Estas são as cavalariças. Não são bonitas?
- Um palácio! Um verdadeiro palácio, palavra de honra!
- Têm todo o luxo que um cavalo pode desejar, incluindo numerosos criados para o tratar. Reparem nos números. Estão aí escritos o custo da construção e as despesas
anuais por cavalo.
- Estou vendo.
- Esta é a vista curiosa de uma casa. Que diz ?
- E pitoresca como ruína.
- Pitoresca! Gostaria de lá viver?
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- Não, - disse Erskine. - Por mim, não vejo nela nada de pitoresco. Que razões o levaram a fotografar essa velha ruína?
- É aqui a vista da melhor dependência da casa. A fotografia reproduz fielmente o sobrado cavado e as janelas com os vidros partidos, mas falta-lhe a sujidade e o cheiro fétido deste lugar que só a imaginação pode suprir. Tem manchas causadas pelo tempo, outras que provêm do fumo e da porcaria. O proprietário actual da casa recebeu-a de um par de Inglaterra e aluga-a quarto por quarto. Três famílias ocupavam este quarto quando o fotografei. Podem ver pelos números naquele canto que este aposento rende mais ao seu proprietário que uma casa média do bairro chique de Londres. Isto é a cave alugada a uma família por um xelim e meio por semana,
o que foi considerado uma pechincha. O sol nunca lá entra, claro está.
"Fiz esta fotografia à luz artificial. Ajunte ao aluguer uma certa quantidade de má cerveja para tornar o locatário insensível à imunda porcaria deste lugar. A cerveja é o clorofórmio que permite ao trabalhador suportar a severa operação que é viver. Eis porque nós podemos assegurar uns aos outros, enquanto bebemos o nosso vinho, que a miséria da canalha é unicamente devida ao seu amor pela bebida. E censuramo-los porque, se a vida fosse suportável para eles, poderíamos economizar o dinheiro da cerveja e, portanto, dar-lhes menores salários. Em resumo, seriamos mais ricos e eles mais sóbrios. Aqui é o pátio da casa: o seu interior é indescritível. Sete
dos habitantes desta casa trabalharam na fábrica de meu pai, o que quere dizer que ganharam uma parte das grandes somas de dinheiro, sobre as quais chamei a vossa atenção, há instantes, o que me valeu da vossa parte um certo sentimento de aversão.
- Não, isso não, - protestou molemente sir Charles.
- Podem verificar quanto a sua condição contrasta com a dos cavalos de meu pai. Estes sete homens aos quais eu fiz alusão, e trezentos outros com eles, foram lançados à rua em completo estado de miséria por isto. (Aqui, Tréfusis voltou a folha do álbum e mostrou a fotografia de uma máquina ultra-moderna). Isto permitiu a meu pai
dispensar os seus serviços e substituí-los por um punhado de mulheres e crianças. Meu pai comprou a patente desta máquina, por
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cinquenta libras ao seu inventor que estava à beira da ruína por causa dos gastos a que o levara o seu espírito inventivo e que teria sacrificado não importa o
quê por algum dinheiro de contado.
"Eis um retrato de meu pai com as suas insígnias maçónicas. Imaginava ele que os franco-maçãos triunfam geralmente na vida; e, como o único fim da sua existência era triunfar, tornou-se mação e queria que eu também me alistasse. Mas repugnam-me estas pretensas sociedades secretas e as falcatruas habilidosas, e recusei. Os senhores vêem o que ele era: um comerciante corpulento, oportunista e egoísta. Notem o homem triunfador; o primeiro mercador que tinha barcos carregados de mercadorias a cruzar todos os mares; o chefe de milhares de operários; o generoso contribuinte de caridades públicas, o patrão liberal a respeito de todos os seus conhecimentos; a satisfação de si próprio em iuta com o sentimento instintivo da sua baixeza de caçador do dinheiro; o escamoteador ignorante e rapace do trabalho dos outros; o traficante da sua própria inteligência e da sua virilidade em troca do luxo e dos refinamentos que ele não sabia apreciar, por ser demasiadamente materialista, e da companhia de pessoas que lhe faziam sentir a sua inferioridade a propósito de tudo...
- E o homem a quem o senhor deve tudo o que possui,
- interveio Erskine ousadamente.
- Possuo muito pouco. Tudo o que ele me deixou, à pai te alguns quadros, gastei-o há muito tempo e, demais, esses bens foram produzidos pelos seus escravos e não por ele. A minha riqueza veio-me dia a dia, toda fresca, saída do trabalho dos miseráveis que vivem nas tocas que acabei de mostrar, ou de alguns aristocratas do trabalho que, em cada semana, estão quási à dependura por uma questão de dez xelins. No entanto, meu pai tem direito a circunstâncias atenuantes. Uma vez, numa desordem eleitoral, vi-me obrigado a bater-me em público. Eu sou um homem tranquilo, mas era-me preciso ou bater-me ou ser empurrado e esmagado, e troquei uns socos com homens que eram talvez tão pacíficos como eu.
"Meu pai, lançado numa livre competição (livre no sentido de a luta ser livre, isto é, sem lei), meu pai, dizia eu, teve que escolher entre ser escravo ele próprio ou tornar
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escravos os outros. Escolheu a segunda modalidade; e, como foi aplaudido e recebeu muitos louvores, quem ousa censurá-lo? Não eu. Demais, fez qualquer coisa para destruir a anarquia que lhe permitiu pilhar a sociedade impunemente. Forneceu-me, a mim, seu inimigo, a arma tôda-poderosa de uma grande fortuna. Eis como o nosso sistema de organização da indústria choca os ovos donde saem os seus destruidores. Lady Brandon usa muitas rendas ?
- Eu... não... isto é... Como diabo quere que eu saiba,. Tréfusis ? Que extravagante
pregunta!
- Eis a fotografia de uma escola de rendeiras. Era um aposento confrangedor, com quatro metros quadrados. Tinha um pavimento de tejolos e as crianças não estavam
autorizadas a tirar os sapatos, por medo de que sujassem as rendas com lama. No entanto, como eram vinte a trabalhar neste quarto, durante quinze horas por dia, todas estas raparigas não sofriam muito do frio. Estavam, melhor dizendo, empilhadas e ainda o estarão possivelmente. Levavam às vezes três ou quatro xelins por semana aos pais. Eram pequenas criaturas de mãos ágeis, obstinadamente dadas ao trabalho, porque a vigilante não desistia nunca de lhes bater quando levantavam o nariz ou...
- Perdão, Tréfusis, - disse sir Charles, - não simpatizo nada com cenas de horror. Não me peça para percorrer a sua colecção. E, sem dúvida, das mais interessantes, mas é superior às minhas forças. Não tem nada de agradável para me divertir ?
- Oh!, oh! O senhor é muito sensível. No entanto, como é ainda um noviço, deixemos o resto para mais tarde, quando o senhor estiver mais calejado. Estas imagens
não são todas horríveis. Cada álbum é consagrado a um pais diferente. Este, por exemplo, ilustra a civilização moderna da Alemanha, esse, a França, aquele, a índia britânica.
"Aqui, os Estados Unidos da América, país da liberdade, do sufrágio universal, país da protecção, sem rei e sem nobres, do republicanismo e do programa radical realizado, onde todos os escravos negros, bens móveis que são, foram transformados em escravos assalariados (como os brancos de meu pai) pelo preço de oitocentas mil vidas e riquezas incalculáveis. O senhor e eu somos indigentes ao lado dos grandes capitalistas desse país, onde os trabalhadores se
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batem com os chineses como os cães por um osso. Alguns desses grandes homens brindavam-me com a fotografia dos seus iates e dos seus palácios, não suspeitando do uso que eu deles faria.
"Eis outros retratos que não porão a sua sensibilidade à prova. Este é de minha mãe, senhora de boa família, distinta dos pés à cabeça. Esta é uma menina de Lancashire, filha de um vulgar mineiro. Tem exactamente as mesmas características físicas de minha mãe, bem nascida, cabeça pequenina, delicadeza de traços e tudo o mais. Poderiam ser irmãs. Este par com caras de malvados poderiam ser irmãos gémeos, se não fosse a aparência de bom-humor no da direita. E barqueiro no canal de Lyvérn. O outro é um dos nobres decanos do solo britânico. Mostram bem que a natureza, até quando corrompida por gerações de pessoas
mal alimentadas, ignora as distinções que nós
fazemos entre os homens. Este grupo de homens e mulheres, de aspecto inteligente e reflectido, é formado por chamados inimigos da sociedade - niilistas, anarquistas,
etc. Estes pobres diabos, de aspecto aborrecido, rígidos, escrupulosos, tímidos, fracos e vulgares, com uma mulher muito bonita aqui e ali, são reis, rainhas e grão-duques europeus.
"Também tenho aqui capitães de navios, criminosos, poetas, homens de ciência, pares de Inglaterra, aldeãos, economistas, políticos e possuidores de dúzias de graus universitários. O fim da minha colecção é ilustrar a desigualdade natural dos homens e a falência da nossa desigualdade artificial correspondente.
- Faz o efeito de uma espécie de colecção infernal, reunida para desorientar as ideias dos homens, - disse Erskine,
- O senhor deveria intitulá-la: "Álbum de Paradoxos".
- Numa forma de sociedade racional seriam, com efeito,, paradoxos, mas agora o tempo dá-lhe uma realidade como aos paradoxos de Hamlet. E, no entanto, uma colecção de factos e não lhe darei nenhum nome de fantasia. Aprecia os números ? Eis alguns, que submeto à sua apreciação. Isto é o balanço de uma tentativa feita por mim, há anos, para realizar a ideia de uma associação para a união e defesa de todos os trabalhadores do mundo. Vejam o resultado: despesas, quatro mil e quinhentas libras; cotas de trabalhadores, vinte e duas libras, dois xelins, dez dinheiros e meio.
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Os" trabalhadores britânicos mostraram o que pensavam dos meus esforços para os emancipar. Acusaram-me de fazer, graças a esta associação, um bom negócio pessoal e, por duas vezes, maltrataram-me e atiraram-me pedras. Actualmente não os ajudo senão quando eles mostram certas disposições para se ajudarem a si próprios. Ocupo-me, por um jado, a realizar um projecto para a reorganização da indústria e, por outro, a atacar a minha própria classe, incluindo as mulheres, como os ataco aos senhores neste momento.
- Pouco adianta em nos atacar, receio bem, - disse sir Charles.
- Pelo contrário, - respondeu Tréfusis, com segurança.
- Os senhores professam sobre a nossa gloriosa civilização uma opinião muito diferente da que tinham quando eu demoli o vosso muro e convidei os partidários da nacionalização da terra a atravessar o vosso terreno de recreio. Viram no meu álbum certas coisas que nunca tinham visto e, por consequência, os senhores não são os mesmos que eram há uma hora. As minhas imagens ficam no espírito mais tempo que as arranhaduras das vossas águas-fortes ou essas coisas de chumbo, nas quais julgam ver delicadas harmonias do cinzento. O próximo drama de Erskine será, talvez, sobre a liberdade, mas os seus patriotas mártires terão qualquer coisa de melhor a fazer que dizer disparates contra os reis-manequins que, na sua vida, nunca tramaram secretamente tantas baixezas, ambições, crueldades e tiranias como as que são votadas em Londres, em cada reunião bi-anual da praga devoradora de dividendos, para os quais os míseros escravos assalariados gemem dezasseis horas em cada vinte e quatro.
- Qual será o fim de tudo isso ? - preguntou sir Charles, um pouco entontecido.
- O socialismo ou o crack, O socialismo, se a raça souber desenvolver a sua faculdade de coordenar as funções de uma sociedade muito numerosa e muito complexa para ser governada mais tempo pelo velho sistema empírico da propriedade privada. A menos que reorganizemos a sociedade numa base socialista, humanamente falando, uma
empresa das mais árduas e das mais brilhantes, economicamente ralando, das mais simples e mais seguras, só o livre câmbio arruinará a Inglaterra e eu posso dizer de que forma.
"Quando meu pai edificou a sua fortuna, nós estávamos
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à frente de todas as nações, no ponto de vista da nossa indústria e da nossa facilidade
em obter carvão e ferro. As outras nações compravam os nossos produtos por
menos dinheiro que teriam gasto se quisessem elas próprias fabricá-los e, contudo, muito mais caros do que nos custava a nós próprios laborá-los, de modo que os
benefícios caíram em caudais sobre os nossos capitalistas como vaga da oceano. Quando os trabalhadores, pela voz das suas associações de classe, reclamaram uma parte
desta fortuna sob a forma de salários mais elevados, foi julgado mais vantajoso conceder-lhes o pouco que eles ousavam pedir que sustar a colheita de oiro para bater-se com eles e esmagá-los.
"Mas, presentemente, os nossos antigos clientes instalaram nas suas nações cópias melhoradas da nossa organização industrial e descobriram regiões onde o ferro e
o carvão estão ainda mais ao alcance da mão do que aqui, em Inglaterra. Produzem eles próprios ou compram algures o que noutro tempo nos compravam. Os nossos benefícios
esgotam-se, a nossa maquinaria torna-se ociosa, os nossos operários são despedidos. É mais rendoso hoje fechar as fábricas e combater e esmagar as associações de
classe quando os operários se põem em greve, não para aumento de salário, mas contra a sua redução. Agora, que essas organizações operárias estão quebradas, impotentes
e a caminho da ruína e a proporção de desempregados aumenta, a nossa classe afaga-os e faz grande caso deles, sinal infalível de que não fazem progressos como agentes
da nossa destruição.
"Os pequenos capitalistas são expulsos pelo reflexo; os grandes seguem a maré do outro lado do mar e edificarão ali as suas fábricas porque lá a força do vapor, a da água, a do trabalho e dos transportes são mais baratas que em Inglaterra, onde noutro tempo foram baratas.
"Os trabalhadores hão-de emigrar atrás das fábricas, mas multiplicam-se mais depressa do que imaginam e hão-de dizer-lhes que as suas exigências exorbitantes, sob
o ponto de vista dos salários, empurram o capital para o estrangeiro e assim continuará a ser enquanto houver um chinês ou um hindu sem trabalho que se ofereça por
um salário menor. A medida que as fábricas inglesas se forem fechando, serão substituídas por chalés. Os bairros industriais tornar-se-ão lugares de prazer para
os capitalistas, que viverão dos juros
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das suas disponibilidades no estrangeiro. As herdades e os montados de suínos serão transformados em florestas para veados. Todos os produtos que podem, segundo a natureza das coisas, ser fabricados noutro lugar diferente do do consumo, serão importados para pagamento do aluguer das florestas para veados por amadores de caça estrangeiros, ou os dividendos devidos aos accionistas residentes em Inglaterra, mas tendo capitais em sociedades fora do país. Estas importações não terão a contrapartida de exportações correspondentes, porque os alugueres e juros não são de modo algum pagos, facto que os livre-cambistas não viram ainda ou, em todo o caso, não mencionam, se bem que seja essa a chave de todo o mistério dos seus antagonistas.
"Há-de ser reclamado violentamente o sistema proteccionista, mas ninguém ousará lançar mão de uma medida incontestavelmente absurda que aumenta os preços antes de aumentar os salários e que, em parte alguma, deu benefícios aos trabalhadores.
"Não haverá colocação para ninguém, salvo para o que deve ser feito in-loco, como por exemplo desempacotar a repartir as importações, servir os proprietários na qualidade de criados, ou então representar comédias, pregar, pavimentar ruas, cuidar da iluminação, construir casas, etc... Mas como o capitalismo considera a ostentação como vulgar e pretende impor um nível de vida mais simples, alguns destes ofícios empregarão cada vez menos gente. Um número imenso de proletários, partido de um núcleo formado pelos que outrora se empregavam no comércio de exportação, serão, não só eles, mas a sua descendência, que se multiplica sem cessar, privados do trabalho de maneira permanente. Pedirão que lhes dêem terras e máquinas para poderem produzir o necessário para as suas necessidades. Ser-lhe-ão recusadas. Eles quebram alguns vidros e serão dispersos, atribuindo-se o seu despedimento aos seus chefes. Os perseguidos queimarão algumas casas e matarão um ou dois polícias e então faz-se uma experiência de metralhadora; resultado... emigrados e exterminados não importa como nem onde. As classes dominantes não concebem outra forma de enfrentar as reivindicações do trabalho. O senhor mesmo, que daria de boa vontade cento e cinquenta libras a Jansénio para a subscrição em favor da emigração, faria apelo à tropa
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e à lei contra os amotinados se eles se apresentassem lá nas "Faias", dizendo-lhe que se pusesse a andar e que fosse trabalhar como os outros para ganhar a sua vida.
"Pois bem, uma vez o excesso de trabalhadores destruído, ficará uma população de capitalistas a viver das importações voluntárias e servida por um séquito de descontentes.
"Um dia as importações voluntárias em consequência de acontecimentos graves no estrangeiro, tais como revoluções, repúdio de dívidas, queda da taxa de juro, aquisição das indústrias pelos governos por quantias pagas em bloco e que não podem ser empregadas ou qualquer outra coisa semelhante. Nesse momento, a nossa comunidade capitalista deverá contentar-se com os restos dos seus últimos dividendos, que ela terá devorado muito antes de poder repor em estado de funcionamento as suas máquinas de produção fora de uso para se bater a si própria. Os cavalos, os cães, os ratos, as amoras silvestres, os cogumelos e o canibalismo rico fazem mais que retardar,..
- Ah ! ah ! ah ! - explodiu sir Charles. - Palavra de honra, comecei por toma-lo a sério, Tréfusis! Vamos, meu velho, confesse que tudo isto não é mais que uma fantasia. Eu já suspeitava que o senhor fosse meio "pírulas"!
E piscou o olho a Erskine.
- O que eu descrevi é a saída inevitável da nossa política actual de livre-câmbio sem o socialismo. A teoria do livre-câmbio não é aplicável senão a sistemas de troca e nunca a sistemas de expoliação. O nosso sistema actual é de espoliação e, se não o abandonamos, devemos recair no proteccionismo ou ir direitinhos ao crack pelo caminho que acabei de traçar. Ora, de preferência a deixar os proteccionistas triunfar, o clube de Cobden meteria a choupa e demonstraria que o proteccionismo significa somente a obrigação para os proprietários de Inglaterra de empregar escravos residentes no Reino e, por consequência, presumivelmente ingleses. Isto abriria por fim os olhos da nação, fazendo-lhe ver que a Inglaterra não é propriedade sua. Façam-na compreender isto uma vez por todas e em breve ela o será. Quando a Inglaterra se tornar a propriedade colectiva dos seus habitantes, tornar-se-á socialista. A desigualdade artificial desaparecerá diante da verdadeira liberdade
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de iniciativa, e a liberdade da concorrência ou da emulação sem peias nos fará progredir sem cessar e o livre-câmbio cumprirá por fim as suas promessas.
- E os ociosos e desocupados, que se faz deles ? preguntou Erskine.
- O senhor e eu, - disse Tréfusis, - morreremos de fome, a não ser que nos decidamos a trabalhar, ou que nos. dêem um subsidiozinho, tendo em vista a nossa má educação.
- Quere o senhor dizer que nos despojarão, - interpôs. siir Charles.
- Quero dizer que os trabalhadores nos obrigarão a renunciar a despojá-los a eles próprios. Se hesitarem em nos despojar ou em cortar-nos a cabeça se lhes oferecermos
a menor resistência, hão-de mostrar por nós mais compaixão que nunca nós mostrámos por eles. Pense em tudo o que fizemos para que nos paguem os nossos alugueres
na Irlanda e na Escócia e os nossos dividendos no Egipto, se acaso já esqueceu as minhas fotografias e as lições das nossas atrocidades perpetradas a dentro das
fronteiras. Meu caro, nós assassinamos a grande massa dos trabalhadores à força de surmenage e de privações; a média da duração das suas vidas não é metade da nossa,
não obstante a natureza humana ser a mesma neles que em nós. Se lhes resistimos e conseguimos manter a ordem, como nós dizemos, punimo-nos pela sua insubordinação
como se fez em Paris em 1871" onde, seja dito de passagem, se provou que é loucura dar quartel aos seus inimigos. Se, pelo contrário, somos vencidos, estamos aviados e é bem feito. É melhor tornar-se uma pessoa honesta imediatamente para evitar efusão de sangue. Que diz, Erskine ?
Este dispôs-se a pensar na resposta que ia dar, quando Tréfusis o desconcertou, tocando uma campainha. Poucos instantes depois, uma senhora idosa apareceu, empurrando diante de si, como faria com um carrinho, uma mesa rectangular montada sobre rodízios.
- Obrigado,-disse Tréfusis, despedindo-a. - Eis bom vinho, boa água, bons frutos e bom pão. Sei que os senhores são afeiçoados ao vinho como a um bom companheiro familiar. Quanto a mim, não faço distinção entre o vinho e os outros venenos vegetais. Abstenho-me de uns e dos outros.
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A água para aplacar a sede, o vinho para excitar. Eu, que sou uma fonte a ferver de excitação, só procuro o apaziguamento. No entanto (aqui, retirou a rolha),
um generoso copinho desta bebida lhes dará a sensação de serem deuses durante pelo menos meia hora. Bebamos à vossa conversão ao socialismo, valeu ?
Sir Charles abanou a cabeça.
- Vejamos, o senhor Donovan Brown, o grande artista, é um socialista também. Por que não o será igualmente sir Charles ?
- Donovan Brown I -exclamou sir Charles, interessado.
- Será possível ? Conhece-o pessoalmente ?
- Tenho aqui algumas cartas suas. Pode lê-las. O autógrafo de um homem como ele é já de si bastante interessante.
Sir Charles pegou nas cartas e leu-as atentamente, enquanto Erskine olhava por cima do ombro.
- Estou completamente de acordo com tudo o que ele diz aqui, - afirmou sir Charles. - E absolutamente verdadeiro.
- Evidentemente, o senhor está de acordo connosco. A celebridade de Donovan Brown como artista valeu-me um prosélito e a sua, como baronete, vai-me trazer outros.
- Mas...
- Mas o quê ? - preguntou Tréfusis, abrindo a propósito um dos álbuns e exibindo a fotografia de um aposento arrepiante. - O senhor é contra isto, não é verdade ? Donovan Brown também é contra isto e eu igualmente. O senhor pode não estar de acordo connosco em tudo o mais, mas quanto a isto está do nosso lado. Não é verdade ?
- Mas o que o senhor me mostra pode ser o resultado da intemperança, da imprevidência, de...
- Os rendimentos de meu pai eram cinquenta vezes mais consideráveis que os de Donovan Brown. Julga que este artista seja cinquenta vezes mais bêbedo e mais imprevidente que meu pai ?
- Decerto que não. Não nego que haja muita verdade no que o senhor prega. Contudo, pede-me que tome uma decisão muito importante.
- De modo nenhum. Não lhe peço que subscreva seja
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o que for ou que se comprometa de qualquer modo a respeito de uma sociedade ou de uma conspiração. Desejo apenas o seu nome, para o citar em particular a certos sacripantas que acham o socialismo uma bela coisa, mas não o confessam, porque julgam que é de mau gosto fazê-lo. Mas já não terão vergonha das suas convicções quando souberem que são partilhadas por um baronete. Como vê, o socialismo oferece-lhe já alguma coisa: o bom emprego do seu título, que até ao presente de nada lhe servia.
Sir Charles corou ligeiramente, consciente de que o seu pintor favorito o tinha influenciado mais que as suas convicções pessoais ou os argumentos de Tréfusis.
- Que pensa a este respeito, Chester ? - preguntou sir Charles. - Vai ser também dos nossos ?
- Erskine já está ligado à causa da liberdade pelos escritos que publicou, - respondeu Tréfusis. - Três das brochuras, que estão naquela estante, contêm citações
dos "Patriotas Mártires".
Erskine corou, lisonjeado de ser citado, atenção que não lhe tinha ainda sido conferida, excepto uma vez -e essa por um editor que quis provar apenas isto: a gramática dos "Patriotas Mártires" estava avariada.
- Vejamos! - disse Tréfusis. - Devo escrever a Donovan Brown que as suas cartas lhe valeram a aquiescência cordial e a simpatia de sir Charles Brandon?
- Certamente, certamente. Bem entendido, no caso em que o meu titulo, tão pouco conhecido, possa ter para ele alguma utilidade.
- Belo! - sentenciou Tréfusis, enchendo o seu copo com água. - Erskine, bebamos pelo nosso irmão social-
- democrata!
Erskine riu, com um riso ruidoso, mas pouco sincero.
- Que bela figura, Brandon! - disse ele. - com vastos terrenos e sacos de oiro colocados em companhias de caminhos de ferro, intitular-se social-democrata Vai
vender tudo e tudo distribuir em atenção ao preceito: "Vende tudo o que tens e dá-o aos pobres" ?
- Nem um farthing,-acudiu prontamente Tréfusis, em seu lugar. - Não é possível ser-se um verdadeiro cristão neste país. Tentei e verifiquei que isto não é possível, nem legalmente nem de facto. Eu também sou capitalista proprietário
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de terras. Tenho acções de companhias de caminhos de ferro, mineiras, de sociedades de construção, Bancos
e fundos de toda a espécie, e tudo isso me incomoda
bastante. Mas estas acções não representam riquezas que existam na realidade; são hipotecas levantadas sobre o trabalho das gerações de trabalhadores vindouras,
que devem gemer para me manter, a mim e aos meus, no luxo e na ociosidade. Se eu as vender, a hipoteca será anulada e as gerações que estão para vir ficam livres
da sua escravatura ? Não. Apenas passariam para as mãos de outro capitalista e a classe laboriosa não ganhava nada com isso.
"Sir Charles não pode obedecer aos mandamentos de Cristo; desafio-o a que o faça. Se der as suas terras para delas se fazer um parque público, só as classes abastadas terão a satisfação de gozar dele. Se o instalar junto às portas dos pobres, para que eles, ao menos, respirem o ar desse parque, isso não fará mais que aumentar o valor das casas vizinhas e expulsa os pobres do mesmo modo. Se dotar uma escola para os pobres, como em Eton ou Christ-Hospital, os ricos apoderam-se dela para os seus próprios filhos, como fizeram nos dois casos citados.
"Sir Charles não quere socorrer a pobreza, quere aboli-la. Pouco importa quanto dará aos pobVes: tudo lhes será tomado pela força e apenas lhes deixarão um mísero
salário de subsistência. £ falar por falar, afirmar-se que se pratica o cristianismo ou a simples justiça. Como pode ser remunerado equitativamente o trabalhador, se não é possível determinar exactamente o valor do que ele faz, dado o costume corrente de o roubar? Sei-o por experiência. Quis pagar um preço equitativo pela pedra tumular de minha mulher, mas não consegui nunca determinar o seu justo valor e não o conseguirei jamais. O princípio, segundo o qual nós adjudicamos a nossa
indústria nacional a uns corsários privados que se remuneram pela chantagem, corrompe-nos e paralisa-nos, a ponto de não podermos ser honestos, ainda quando o queremos
ser. E a razão pela qual . suportamos tudo com calma é que há pouquíssimos entre nós que desejem realmente ser honestos.
- É necessário que eu estude esta questão dos valores,
- disse sir Charles em ar de dúvida, enchendo de novo o eu copo. - Indica-me algum bom livro sobre o assunto ?
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Qualquer tratado de economia política serve, - disse
Tréíusis. - Em economia todos os caminhos conduzem ao socialismo, se bem que, até aqui, em nove casos sobre dez, o economista não tem reconhecido o seu destino e atrai a maldição pronunciada por Jeremias contra os que premeiam o mal com a recompensa. vou escolher-lhe um livro ou dois. E, se visitar Donovan Brown, quando for à cidade, dar-lhe-á muita satisfação. O nosso artista encontrou muito poucas pessoas capazes de simpatizar com ele, no duplo ponto de vista social e artístico.
Sir Charles tornou-se mais alegre quando a conversa recaiu sobre Donovan Brown.
- Considero uma grande honra ser-lhe apresentado, disse sir Charles. - Não supunha que fosse seu amigo.
- Eu era um muito jovem militante do socialismo quandoo vi pela primeira vez, - disse Tréfusis. - Quando Brown era ainda um desconhecido e muito pobre, minha mãe comprou-lhe, para o ajudar, a pedido de pessoa amiga, um aos seus quadros pela quantia de trinta libras, que lhe fizeram grande arranjo. Anos mais tarde, depois da morte de minha mãe e quando Brown já era célebre, ofereceram-me oitocentas libras por esse mesmo quadro, que, na verdade, era mauzinho, na minha opinião. Portanto, depois de calcular a parte habitual de juro das trinta libras durante os doze
anos passados, a venda desse quadro ter-me-ia produzido um lucro de setecentas e cinquenta
libras, aumento injusto, aoqual eu não tinha nenhum direito. O meu advogado, queconsultei para o efeito, foi de opinião que eu podia legitimamente embolsar as setecentas
e cinquenta libras; eram a recompensa da benevolência que minha mãe tinha testemunhado comprando uma pintura sem valor a um artista obscuro. Mas não me convenceu de que devia receber o prémio das virtudes de minha mãe. Pusemo-nos de acordo, reconhecendo que nem eu nem minha mãe tínhamos beneficiado desse quadro. Não tínhamos tido, com efeito, nenhum prazer em contemplar essa obra, que o tempo danificara depois da sua aquisição. Finalmente, fui com o meu quadroao estúdio de Brown e declarei-lhe que, para mim, nãotinha valor o quadro e, por isso, lho cedia por quinze libras, metade do preço original. Brown respondeu-me imediatamente que qualquer comerciante de telas me daria por ela
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mais que ele me podia dar pessoalmente; mas acrescentou que eu não tinha o direito de lucrar com o seu trabalho e que me pagaria o preço original de trinta libras. Aceitei e remeti-lhe o pretendente que me oferecia oitocentas libras.
"Fiquei descoroçoado quando soube que Brown tinha recusado vender o seu quadro, fosse por que preço fosse, porque o considerava indigno da sua reputação. O comprador chegou a oferecer mil e quinhentas libras, mas Brown teimou em não aceitar e eu verifiquei que, no fim de contas, em vez de lhe meter setecentas e cinquenta libras na algibeira, tinha de lá tirado trinta! Ofereci restituir-lhe as trinta libras, mas Brown, considerando esta oferta uma ofensa, cortou relações comigo. Insisti então para que o caso fosse sujeito a uma arbitragem e reclamei mil e quinhentas libras como sendo o valor justo do quadro. Todos os árbitros concordaram em que a minha pretensão era monstruosa, ao que eu contestei: se me negam o meu direito ao valor de troca, devem admitir o meu direito ao valor de uso. Admitiram este ponto de vista depois de quinze dias de reflexão, de modo a poderem ler Adam Smith para descobrir que diabo seria o valor de troca e o valor de uso. Provei depois que o quadro não tinha para mim nenhum valor de uso, porque me desagradava, e, portanto, eu não tinha direito a coisa alguma. Em suma, Brown podia retomar as suas trinta libras. Os árbitros sentiram-se felizes em concordar.
"Eram todos artistas, amigos de Brown, desejosos de que ele não perdesse dinheiro neste negócio. Isso não os impedia de pensar, cada um no seu foro íntimo, que o quadro, efectivamente, nada valia. Em seguida, Brown e eu tornámo-nos os melhores amigos do mundo. Aceitou as minhas teorias, a princípio com receio de que eu apoucasse a sua obra, mas, depois, opinou pela minha maneira de ver, um pouco como os senhores estão fazendo agora.
- Tudo isso é muito interessante, -disse sir Charles.- Foi nobre da sua parte recusar mil e quinhentas libras Tanto mais que os seus meios não lhe permitiam fazê-lo.
- Fui heróico, segundo a noção do heroísmo no século XIX. Recusar voluntariamente ganhar dinheiro é o nec pias ultra do martírio. Aliás, este acto de heroísmo valeu
a Brown uma cena violenta com sua mulher.
- Uma história interessante, não há dúvida, ou que poderia
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sê-lo, - disse Erskine, - mas o senhor faz-me andar a cabeça à roda com os seus famosos valores de troca e todo esse aranzel. Consigo, tudo vai dar a uma questão
de algarismos.
- Explica-se porque não sou poeta, - replicou Tréfusis,
- Mas é necessário que nós, os socialistas, estudemos o lado romanesco do nosso movimento para que as mulheres, se interessem por ele. Quem quiser que uma causa prospere, deve meter lá dentro todas as mulheres que lhe vierem à mão. Elas são ou serão um dia esposas que servirão aos seus maridos parcelas dos nossos argumentos. Uma discussão não deixará de estalar. O filho escutará e isso o fará reflectir, se ele é capaz de reflexão. E é assim que, pouco a pouco, o espírito das pessoas trabalha. Tenho, pela minha parte, convertido um número razoável de mulheres. A maior parte delas não sabem mais de teorias económicas que sabem da Caldeia, mas aquela expressão já não lhes causa medo e já não a condenam.
"Oh! Asseguro-lhes que os homens que não temem as mulheres podem operar utilmente, se não tiverem muita pressa de fazer a colheita do que semearem.
- Tome cuidado. Um dia ou outro, um dos seus prosélitos femininos toma-lhe a dianteira. O futuro marido que será contraditado pode chamar-se Sidney Tréfusis.
Ah! ah! ah!
Sir Charles acabava de esvaziar outro cálice de vinho, o que lhe tinha feito subir o sangue ao rosto e o tornava um pouco ruidoso.
- Isso sim ! - disse Tréfusis. - Já tive o meu quinhão de amor e é pouco provável que ainda o fosse inspirar. As mulheres não gostam dos homens para quem, como disse
Erskine, tudo é uma questão de números. Outrora eu fazia flirt com as mulheres; hoje, faço-lhes sermões e odeio o homens que fazem flirt mais que as mulheres que o fazem também. Reparem, seria de mau gosto deixar perder o que resta nesta garrafa.
- Julgo que faríamos bem em retirar, Brandon, - lembrou Erskine, cuja desconfiança a respeito de Tréfusis crescia de momento a momento. - Prometemos estar de volta pelas duas horas.
- Não faltarão ao prometido, - disse Tréfusis. - Ainda não é uma hora e um quarto. A propósito, ainda não lhes.
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mostrei o instrumento favorito de , Donovan Brown para a regeneração da sociedade. Ei-lo. É uma petição monstro, pedindo que seja declarada felonia toda a retenção de uma porção qualquer do justo valor do trabalho de um proletário. Eis tudo.
Erskine tocou no cotovelo de sir Charles, que respondeu com vivacidade.
- Obrigado. Prefiro não assinar nada.
- Um baronete assinar uma petição deste género! exclamou Tréfusis. - Nem sequer pensava em lho pedir. Mostro-o somente como documento histórico interessante, contendo
autógrafos de vários artistas e poetas. Aqui está, por exemplo, o de Donovan Brown. Foi ele quem teve a ideia desta petição, que não servirá provavelmente para
nada, porque não é o meio de chegar ao que quer que seja. No entanto, prometi a Brown recolher o maior número de assinaturas possível; por consequência, Erskine, o senhor pode bem assiná-la. Não celebra em verso branco a santidade de matar um tirano, mas é um passo dado na boa via. Não se deterá com semelhante bagatela, a menos que as revistas lhe tenham feito medo. Vamos, o seu nome e endereço.
Erskine abanou a cabeça.
- Então o senhor não exibe sentimentos revolucionários senão quando vê nisso a oportunidade de ganhar celebridade como poeta?
- Não assino nada, muito simplesmente porque não quero, - respondeu Erskine com calor.
- Meu amigo, - disse Tréfusis quási afectuosamente, se o homem tem consciência não pode ter a escolha em matéria de convicção. Li algures no seu livro que o homem que não quere verter o sangue pela libertação dos seus irmãos é um poltrão e um escravo. Não quere verter uma gota de tinta (da minha tinta) pelo direito dos seus irmãos ? Eu, à primeira vista, não tinha empenho em assinar esta petição, porque mais facilmente pediria a um tigre que dividisse comigo a sua presa, que aos dirigentes para largar de mão a parte do trabalho roubado de que eles vivem. Mas Donovan Brown objectou-me:
"Não pode escolher. Ou acredita que o trabalhador deve guardar o fruto do seu trabalho ou não acredita. Se
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acredita, registe a sua convicção, ainda que o seu acto seja tão inútil como Pilatos lavando as mãos. E assinei.
- Donovan Brown tinha razão, - disse sir Charles. Eu assino também.
E fê-lo com um traço de pena.
- Brown ficará encantado, - afirmou Tréfusis. - vou escrever-lhe ainda hoje que obtive uma boa assinatura para ele.
- Duas, - emendou sir Charles. - O senhor também assina, Erskine. Vá para o diabo se recusa! É apenas contra aqueles que se esquivam a pagar os honorários dos seus empregados.
- Ou que não os pagam até ao fim, - observou Tréfusis com um sorriso intencional. - Mas não assine, se isso o coloca pouco à vontade.
- Se não assinar, não passa de um mentiroso, Chester,
- disse sir Charles.
- Não sei o que significa esta petição: não compreendo este género de assuntos.
- Significa o que lá está escrito; não é razoável dá-lo como responsável por um significado que não está lá expresso. Desconfia um pouco de mim, julgo eu, e o senhor preferiria não se misturar nas minhas petições. Mudará de opinião quando me conhecer melhor. Entretanto, não há pressa. Não assine ainda.
- Que tolice! Nunca duvidei da sua boa fé, - replicou vivamente Erskine, contrariando suspeitas que pressentia mas não podia explicar. - Eis tudo!
E assinou também.
- Óptimo, - disse Tréfusis. - Deste modo, Brown será feliz para o resto do mês.
- São horas de nos irmos chegando, - lembrou Erskine com ar carrancudo.
- Voltem a ver-me quando quiserem: serão sempre bemvindos-disse Tréfusis. - Não façam cerimónia comigo.
Separaram-se depois de sir Charles ter assegurado a Tréfusis que nunca tinha passado uma manhã tão agradável. Por três vezes lhe apertou a mão por tempo considerável.
Erskine pouco disse até ao momento em que chegaram à estrada de Riverside, e foi então que explodiu:
- Em que diabo estava o meu amigo a pensar quando
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bebeu dois cálices de uma droga tão fortej a esta hora do dia e em casa de um homem perigoso como este ? Lamento bastante ter lá estado. Tinha pressentimentos a seu respeito, e confirmaram-se plenamente.
- Como assim? - inquiriu sir Charles, um pouco intrigado.
- Intrujou-nos. Fui um imbecil chapado em assinar aquela petição e o amigo também. Foi só para isso que ele nos convidou.
- Histórias, meu velho. Essa petição não era dele, mas de Donovan Brown.
- Ouvido. Provavelmente ele persuadiu Brown a assiná-la como nos persuadiu a nós próprios. Os seus processos são tão tortuosos como as suas ideias. Notou como ele mentiu a respeito da menina Lindsay?
- Engana-se a esse respeito. Ele importa-se tanto com ela como com a primeira camisa que vestiu.
- Se o senhor está satisfeito, eu não estou. Não estaria de tão bom-humor se tivesse bebido pouco como eu.
- Ora! Não seja ridículo. O vinho era excelente. Não vai dizer que estou
embriagado.
- Não, mas não teria assinado se não tivesse bebido o segundo cálice. Se não me tivesse forçado - e como podia eu recusar se me deu o exemplo ? - eu teria mandado
o homenzinho para o diabo com a sua petição.
- Não vejo que mal nos pode causar, - repôs sir Charles, esforçando-se por ser corajoso, embora se sentisse invadido por secreta inquietação.
- Não ponho mais os pés naquela casa! - exclamou Erskine em tom aborrecido. - Éramos como duas moscas presas numa teia de aranha.
Durante este tempo, Tréfusis cumpria a promessa feita de escrever a Donovan Brown:
"Casa de Salústio
"Caro Brown:
"Passei a manhã a deitar o isco a um par de peixinhos e custou-me a segurá-los no anzol. Um deles tem brilhantes escamas - é um baronete e artista amador - salvo o vosso
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respeito. Todos os meus argumentos e o meu pequeno museu de fotografias falharam diante dele, mas quando pronunciei o seu nome e prometi apresentá-lo ao meu amigo
mordeu gulosamente o anzol. Estava meio etilizado quando assinou e eu não o teria deixado assinar se não soubesse de antemão que as suas intenções são boas e que
o meu vinho não fez mais que libertar a sua generosidade natural da sua pusilanimidade e preconceitos convencionais. É preciso publicar o seu nome em tantos jornais
quantos possível como um dos signatários da grande petição. Isso nos atrairá outros como o seu nome o atraiu a ele. O segundo noviço, Chichester Erskine, é um jovem poeta. Não nos será de grande utilidade, se bem que seja um campeão devotado da liberdade em verso branco, e que dedica as suas obras a Mazzini, etc.. Assinou contra vontade. A sua hesitação é filha da ignorância; não chegaram por eles próprios a descobrir a verdade e receiam fiar-se em mim, porque ninguém ousa ter confiança no seu próximo.
"Encontrei aqui uma linda rapariga que podia servir de modelo à sua "Hypacia". Vive afogada nos preconceitos da nobreza, mas estou procedendo à sua cura. Estou decidido a casá-la com Erskine que, julgando que lhe faço a corte por minha conta, está furiosamente ciumento. O tempo está agradável e a minha vida decorre satisfatoriamente alegre. Mas pesa-me não ter que fazer. Seu muito afeiçoado
Sidney Tréfusis,"
XVI
Por uma manhã de sol, enquanto Ágata se entretinha a ler, sentada no limiar da porta da estufa, um véu se projectou sobre a sua sombrinha; e, ao levantar os olhos para se certificar sobre a natureza do objecto que se interpunha entre ela e o sol, deu de cara com Tréfusis.
- Oh!
Não lhe deu outra palavra de boas-vindas, acomodando -se ao hábito de Tréfusis de dispensar-se tanto quanto pôs
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sível, de qualquer fórmula de saíidação ou cerimónia cortês. Como ele não parecia ter pressa de dizer qualquer coisa, Ágata começou, depois de uma pausa:
- Sir Charles...
- Foi à capital, - acrescentou Tréfusis. - Erskine saiu em bicicleta. Lady Brandon e a menina Lindsay foram à vila em charrette e a menina veio para aqui para gozar o sol e ler tolices. Como vê, conheço já todas as novidades que tinha para me dar.
- O senhor é um espertalhão e, como de costume, labora completamente em erro. Sir Charles não foi à capital, foi apenas à estação do caminho de ferro buscar jornais. Estará de volta ao almoço. Como é que o senhor está assim tão ao corrente dos nossos actos ?
- É simples. Eu estava sobre o telhado da minha casa com um binóculo. Vi-a sair e encaminhar-se para aqui. Depois saiu sir Charles, em seguida Erskine. Por fim lady Brandon, que conduzia o seu cavalo com bastante energia e fazia o contraste mais frisante com a graça desdenhosa de Gertrudes.
- Gertrudes! Gosto do seu à-vontade...
- Diga antes que não gosta da minha presunção.
- Não. Acho que à-vontade é mais expressivo que presunção e quero dizer que gosto desta palavra divertida.
- Realmente Que está a ler ?
- Idiotices, o senhor o disse há momentos. Um romance.
- Isto é, a história mentirosa de dois entes que nunca existiram e que teriam procedido de forma completamente diversa se tivessem vivido.
- Precisamente.
- Não poderia imaginar por si só qualquer coisa igualmente divertida?
- Talvez, mas com muito trabalho. Demais, cozinhar dá cabo do apetite e não me daria nenhum prazer ler uma história de minha composição.
- Em que volume está ?
- No terceiro.
- O herói e a heroína estão já a ponto de se unirem ?
- Não sei. É um desses romances complicados. Gostaria que estas personagens não falassem tanto.
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- Não importa. Há pelo menos dois que estão apaixonados, não?
- Evidentemente. Sem isso não seria um romance.
- Acredita sinceramente, Ágata, - tomo a liberdade de usar o seu nome próprio, porque desejo ser solene - acredita verdadeiramente que um ser humano tenha alguma vez sido bastante desinteressado para amar à maneira dos romances ?
- Naturalmente. Pelo menos, acredito. A falar a verdade, nunca pensei nisso a fundo.
- Eu duvido. O que acredito é que hoje nenhum homem tem confiança na sinceridade e permanência da sua afeição pela cônjuge. Contudo, ele não duvida da sinceridade das declarações da sua companheira e dissimula a falsidade das suas, em parte porque se envergonha delas, em parte por piedade por ela. E a parte contrária, pelo seu lado, representa a mesma comédia.
- Creio, com efeito, que é o que fazem os homens, mas não as mulheres.
- Sério ? Recorda-se de que um dia a menina pretendeu ,estar apaixonada por mim, quando...
Ágata corou e poisou bruscamente a mão sobre o degrau como para dar um salto. Mas dominou-se e disse:
- Basta, senhor Tréfusjs. Se começa a falar disso vou-me embora. O senhor espanta-me. Ê assim completamente destituído de tacto ?
- Não uso. E como sou eu a pessoa lesada, este... Não, não, fique: não se vá embora. Nunca mais farei alusão a
este assunto. Começo a ter medo de si. Outrora era
a menina que tinha medo de mim.
- É verdade, e sofria a sua tirania, vamos lá! O senhor tem, aliás, o hábito de tiranizar as mulheres que são bastante fracas para o temerem. O senhor é muito mais
inteligente do que eu e conhece, sem dúvida, muito mais coisas do que eu; mas já não tenho medo de si, presentemente.
- Não tem nem nunca teve razão para me temer. A Henriqueta, se vivesse, poderia testemunhar que o meu único defeito, nas minhas relações com as mulheres, é o meu excesso de amabilidade. Nada recuso a uma mulher, salvo a minha mão em casamento. Enquanto o seu sexo consentir
em abster-se disso, pode fazer de mim o que quiser.
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- É cruel o que o senhor diz! Eu cheguei a julgá-lo prestes a noivar com a Gertrudes.
- É a inevitável interpretação que se dá à amizade entre homem e mulher. Nunca em tal pensei, e estou certo de que também ela nunca pensou nisso. Não somos nem metade
tão íntimos como a menina e sir Charles.
- Ah, mas sir Charles é casado. Aconselho-o a que se case se não quere que as suas amizades criem mal-entendidos.
Tréfusis ficou como que tocado por este argumento. Em lugar de responder imediatamente, lançou-lhe um olhar surpreendido ; em seguida pôs-se a contemplar a articulação
do seu índex.
- Por misericórdia, tenha piedade do nosso pobre sexo,
- continuou Ágata com malícia. - O senhor é tão rico, tão inteligente e tão robusto, que deveria partilhar essas vantagens com alguém. A Gertrudes ficaria radiante.
Tréfusis fez uma careta, e sacudiu a cabeça lentamente, de modo significativo.
- Olha, olha, chego a preguntar se não teria alguma probabilidade, - continuou ela, pateticamente.
- Radiante ficaria eu, cabe-me agora dizer, - afirmou ele, com simulada confusão e com um relâmpago furtivo nos. olhos que teria detido Ágata,. se ela o tivesse
surpreendido.
- Case comigo, vamos, senhor Tréfusis, - insistiu elar juntando as mãos num gesto de troça. -Suplico-lhe...
- Obrigado, - disse Tréfusis em tom decidido. - Consinto.
- Aposto que não,-disse Ágata, depois de uma pausa para marcar a sua incredulidade, levantando-se e apanhando as saias, para se escapar. -O senhor não pensa que
eu era sincera.
- Isso é que penso. Eu, pelo menos, fui sincero. Ágata hesitou, não sabendo se ele gracejava como ela
tinha feito.
- Tome cuidado, - disse ela, - que eu posso mudar de ideia e ser também sincera. Que diria então, senhor Tréfusis ?
- Acho que deveria chamar-me Sidney, agora que a natureza das nossas relações mudou.
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- E eu acho que devemos acabar com este gracejo. É de mau gosto e eu não deveria ter-me-entregue a este jogo,
- Seria execrável como gracejo e, por consequência, não tenho a menor intenção de o considerar como tal. Não considero quite, Ágata, garanto-lhe. Gosta de mim?
- Nem em sonhos. com efeito, não conheço ninguém de quem goste menos ou de quem tenha a menor probabilidade de vir a gostar.
- Nesse caso, despose-me. Se me tivesse amor, eu desaparecia. A minha santa Henriqueta adorava-me e eu mostrei-me indigno da sua adoração, embora extremamente lisonjeado.
- Justamente. A maneira como tratou a sua primeira mulher, basta para pôr de pé atrás qualquer outra.
- Qualquer outra que me tivesse amor, não é verdade ? Mas a menina não me tem amor. Demais, se eu desaparecer, terá a vantagem de se desembaraçar de mim. E podemos
arranjar as coisas de modo a assegurar-lhe metade da minha fortuna, para o caso de assim acontecer.
- Esteja descansado, que não terá ocasião para fugir de novo.
- Nem o desejo. Já não sou tão difícil como antigamente. Não creio que volte a fugir.
- Nem eu.
- Então quando nós casamos ?
- Nunca, - disse Ágata, tentando escapar-se. Mas, antes de ter dado um passo, ele segurou-a.
- Deixe-me, - disse ela, arquejante. - Retire o braço. Não quero ficar aqui.
Tréfusis largou-a e fechou a porta da estufa.
- Agora, - disse ele, - se quiser fugir há-de ser pelo jardim.
- O senhor é insolente. Deixe-me partir imediatamente.
- Tem empenho em que lhe suplique que me despose, depois de mo ter oferecido voluntariamente?
- Eu estava a brincar. O senhor não me interessa, disse ela, procurando com o olhar uma saída.
- Ágata, - disse ele, com paciência feroz, - há meia hora eu não tinha mais intenção de me casar que de fazer uma viagem à lua. Mas quando mo propôs medi instantaneamente
todo o peso da oferta e agora nada me satisfará
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mais que o seu cumprimento. De todas as mulheres que conheço é a menina a única que não é uma autêntica imbecil.
- Pois seria uma imbecil ao quadrado se...
- Se casasse comigo, mas eu não sou dessa opinião. Sou o único homem do seu conhecimento que não é um perfeito idiota. Conheço o meu valor e o seu. E gosto de si
há muito tempo, desde quando não tinha esse direito.
Ágata franziu o sobrolho.
- Não, - disse ela. - É inútil tornar a falar nisso. O assunto está arrumado.
- Vamos lá: não seja vingativa. Eu era mais sincero nesse momento que a menina. Mas isso não tem nada que ver com o presente. Depois que reatámos as nossas relações, não deixou de estar na defensiva, de me repelir, de me contrariar e de me tentar. Seja generosa por uma vez e diga
"sim" de boa vontade.
- É muito forte! Eu nunca o tentei, - exclamou Ágata.
- Nunca! Não é verdade...
Ele nada respondeu, mas ofereceu-lhe a mão.
- Não; vá-se embora: não quero tornar a vê-lo.
Tréfusis insistiu e, pouco a pouco, Ágata sentiu amolecer o seu poder de resistência. Tomada de pânico, disse com vivacidade-
- De nada serve atormentar-me. Não lho direi hoje.
- Então prometa-me pela sua honra que dirá "sim" amanhã, e deixo-a em paz até então.
- Não quero.
- Que leve o diabo todas as do seu sexo, - disse ele com voz queixosa. - Sabe o que eu quero e é preciso que me disponha a desfazer-me em galanteios, porque não sabe o que quere. Se eu tivesse amor à minha tranquilidade, ficava viúvo.
- Aconselho-o a que o faça, - disse ela deslizando furtivamente para trás do lado da porta. - O senhor é um viúvo muito interessante. Uma mulher tirava-lhe todo esse interesse. Pense em todos os aborrecimentos da vida doméstica.
- Gosto dos aborrecimentos. Fortificam.
Ágata tinha conseguido pôr a mão no puxador da porta. Ele colocou a sua vivamente sobre a dela para a deter e disse:
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- Ainda não. Não pode falar francamente como uma mulher... como um homem, quero eu dizer ? Pode recusar um osso ao Max até que ele se erga nas patas traseiras a pedi-lo; mas não deve tratar-me como um cão. Diga "sim", francamente, e não me obrigue a suplicá-lo.
- Mas, enfim, por que quere o senhor casar comigo ?
- Porque fui feito para trazer um lar às costas. Quero proceder pelo melhor para comigo próprio e nunca mais se apresentará outra oportunidade como esta. Isolado, não presto para nada, não sei porquê, eis a verdade. Há-d e casar com, algum homem mais dia menos dia...
Ágata fez com a cabeça um sinal negativo.
- Há-de, sim, e por que não há-de ser comigo? Ágata mordeu o lábio inferior, olhando para o chão de
modo lamentável. Por fim, depois de uma longa pausa, respondeu contra vontade:
- Bem, escute-me. Acho que o senhor procede tolamente, e se eu o desapontar não se volte contra
inm.
- Aceito os riscos do negócio, - disse ele, largando-lhe a mão e apoiando-se contra a porta, enquanto tirava da algibeira um livro de notas. -Pelo seu lado, a Ágata
deve aceitar os riscos do seu que, assim espero, não será o pior dos dois. Estamos a 17 de Junho. Que data lhe convém entre hoje e
24 de Julho?
- Quere dizer 24 de Julho do ano próximo?
- Não, Julho deste ano. Casado ou não, parto em viagem nesta data para assistir a uma conferência em Genebra e gostaria que fosse comigo. Hei-de mostrar-lhe uma
porção de sítios e de coisas que nunca viu. Dou-lhe o direito de escolher o dia, mas a menina não tem nada de sério a preparar, e eu tenho.
- O senhor não tem a menor ideia do que eu terei ou poderei ter que preparar. Seria melhor esperar que regressasse dessa viagem.
- Do seu lado nada a preparar, a não ser o contrato de casamento e o enxoval. Este não passa de uma idiotice e quanto ao contrato de casamento, Jansénio já me conhece de longa data. Da outra vez, o meu casamento fêz-se em seis semanas.
- É verdade, - disse Ágata. - Mas eu não sou a Henriqueta.
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- Pois não, graças a Deus, - concordou Tréíusis, com calma.
Ágata sentiu remorsos.
- E abjecto o que acabo de dizer, - afirmou ela. - E o que o senhor disse, também.
- O que é verdade vem sempre a propósito, abjecto ou não. Irá a Genebra em 24?
- Mas... Eu não pensava verdadeiramente, quando... eu não tinha a intenção de dizer que...
- Eu sei. Irá, se estivermos casados ?
- Sim. Se estivermos casados.
- Estaremos. Não escreva nem a sua mãe nem a Jansénio antes de eu lho dizer.
- Não tenho a menor intenção de o fazer.
- Màzona! E nada de ciúmes, se me surpreender a fazer a corte a lady Brandon. Faço-o por hábito, ela espera que lha faça.
- Pode fazer a corte a quem quiser. Isso não me afecta.
- Eis a charretíe que volta com lady Brandon e Ger... e a menina Lindsay. Já não posso chamá-la Gertrudes, salvo quando a menina não estiver presente. Antes de nos separarmos, deixe-me lembrar-lhe os três pontos sobre os quais estamos de acordo. Amo-a; não sou amado; devemos estar casados antes de 24 do próximo mês. Agora, devo ir ajudar Sua Grandeza a descer do carro.
Dirigiu-se apressadamente para a porta da casa, diante da qual a carruagem tinha parado. Ágata ficou perturbada. Tinha vergonha de defrontar as suas amigas e, pela estufa, dirigiu-se para o seu quarto.
Tréfusis seguiu Gertrudes à biblioteca, enquanto lady Brandon se demorava no vestíbulo a descalçar as luvas e dar ordens aos criados. Quando entrou por sua vez na biblioteca, encontrou-os de pé, diante da janela. Gertrudes escutava Tréfusis com aquela tranquila atenção que lhe manifestava ultimamente quando ele falava. Tréfusis sorria, mas pareceu a Joana que não estava bem à vontade.
- Estava justamente a contar à menina Lindsay, - disse ele, - uma coisa extraordinária, que se passou durante a vossa ausência.
- Eu sei. Rebentou a caldeira da estufa...
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- É possível, - disse Tréfusis, - mas, se é verdade, não dei por isso.
- Se não rebentou, não deve tardar, - acrescentou Joana, melancolicamente.
Depois, esforçando-se por se interessar pela novidade de Tréfusis, preguntou:
- Então que se passou?
- Isto, apenas: conversava havia um momento com a menina Wylie, quando uma ideia singular nos veio ao espírito. Discutimo-la durante algum tempo, e a conclusão
é que nos vamos casar entre hoje e o fim do mês próximo.
Joana corou e olhou-o fixamente. Por seu lado, ele lançou-lhe um olhar agudo. Gertrudes, se bem que não lhe dessem atenção, não abandonou a sua expressão de tranquila felicidade, mas o seu rosto tomou subitamente uma cor lívida, que só lentamente cedeu o lugar ao seu aspecto natural.
- Quere dizer que vai desposar Ágata ? - exclamou Joana, depois de uma pausa.
- Justamente. Esta ideia estava longe de mim quando eu vi lady Brandon pela última vez, de contrário tê-la-ia posto ao corrente.
- Nunca ouvi coisa parecida na minha vida! Ficaram apaixonados, assim, ao fim de cinco minutos de conversa, não é verdade ?
- Justos céus, não I Não estamos apaixonados, nem um nem outro. Julga que me casaria por um motivo tão frívolo? Nada disso. O caso apresentou-se por si, e as vantagens de uma união entre nós ressaltaram de tal modo e com tanta evidência, que tive a fortuna de poder converter Ágata à minha convicção.
- Ah, sim I Fêz-se rogar muito, - disse Joana, lançando um olhar para Gertrudes, que sorria um pouco alheada.
- Conforme dá a entender, -disse friamente Tréfusis,- a sua repugnância era talvez fingida e suponho que estaria contente, no fundo, à ideia de ter um marido tão encantador como eu. Supondo que assim foi, Ágata simulou com perfeição.
Gertrudes tirou o chapéu e deixou a biblioteca sem dizer palavra.
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- É a minha vingança pelo seu casamento com Brandem,
- disse então Tréfusis, aproximando-se de Joana.
- É verdade, - retorquiu ela, ironicamente. - Acredito-o.
Indicou a Joana o espelho, no qual se reflectia por inteiro a imagem dela.
- Não vejo ali nada que se admire, -disse ela, mirando-se sem prazer. - Há muitas iguais, se é aquilo que o senhor admira.
- É impossível ter-se muito de uma coisa que é boa. Mas eu não devo olhar. Embora Ágata diga que não gosta de mim, não estou muito certo de que lhe agrade que eu
procure o amor junto de outra mulher.
- Ela disse que não o amava ? Não acredite: teve muito trabalho em o atrair.
-- Lisonjeia-me o que me diz. A senhora atraíu-me sem trabalho nenhum e, contudo, não me quis.
- O costume impõe que nos peçam em casamento. Acho que se portou abominàvelmente com Gertrudes. Espero que não me queira mal por lho dizer. Aliás, quem eu mais censuro é a Ágata. É uma hipócrita de má raça.
- Como assim ? - preguntou Tréfusis, surpreendido. Que tem a meninr Lindsay que ver com isto?
- O senhor sabe-o muito bem.
- Asseguro-lhe que não. Se se tratasse de si ainda poderia compreender.
- Oh ! O senhor tira-se de dificuldades com habilidade, como todos os homens. Mas não me ilude. Não devia fingir que amava a Gertrudes, se estava de acordo com Ágata. Ela, por seu lado, fingia fazer flirí com meu marido.,, como se ele pudesse pensar
nela!
Tréfusis pareceu um pouco aborrecido.
- Espero que a menina Lindsay não tenha nenhuma... mas não, é impossível.
- Julga isso ? Verá, não tarda muito, se é verdade ou não.
- Não nos compreendem, lady Brandon. A menina Lindsay sabe o que se passa. E lembre-se também de que o meu acto não foi premeditado. Esta manhã não tinha nenhum pensamento terno por quem quer que fosse, excepto por uma pessoa que eu não devo nomear aqui.
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- Tudo palavras. Já não se acredita.
- Não direi mais nada, por agora. Devo ir ao telégrafo para comunicar com o meu advogado. Se eu encontrar Erskine, anuncio-lhe a boa notícia.
- Ficará encantado. Ele pensava, como todos nós, que o senhor o tinha eclipsado junto de Gertrudes.
Tréfusis sorriu, abanou a cabeça e, com um olhar de admiração para os encantos de Joana, saiu.
Joana contemplava-se ao espelho, quando uma criada veio pedir-lhe que subisse aos aposentos dos pequenos, o menino Charlie e a menina Fanny. Subiu com pressa, e foi encontrar as duas crianças que disputavam o direito de martirizar o pequenino irmão e tinham chegado a vias de facto. Ficaram um pouco assustados, mas de modo algum alarmados com a chegada da mãe. Esta ralhou, acarinhou, ameaçou, usou de corrupção, citou o doutor Watts, pediu a opinião da criada dos meninos, insultou-a, preguntou aos. pequenos se gostavam um do outro, se gostavam da sua mãe e, por fim, se queriam um bom par de açoites.
Finalmente, exasperada pela sua impotência em restabelecer a ordem, pegou no bebé, que não tinha cessado dechorar, e disse que ele o fazia de propósito; e, para lhe dar uma razão justificativa do seu pranto, aplicou-lhe uns açoites e mandou os outros para a cama. O rapazinho, a quem a sorte do pequenino irmão enchera de medo, prometera ter juízo se a menina Wylie viesse brincar com ele. Esta proposta valeu-lhe, da parte da mãe ciumenta, uma bofetada mestra, que o atirou, a gritar de dor, para o pequeno leito que era o seu. Em seguida, Joana deixou o quarto, depois de parar no limiar para dizer que, se ouvisse o mais pequeno barulho, já sabiam o que os esperava.
Descendo ao salão, excitada e furiosa, encontrou Ágata só, a olhar pela janela, como se a paisagem fosse particularmente interessante nesse dia.
- Pequenos selvagens egoístas! -exclamou Joana, provocando, ao entrar, um turbilhão em miniatura com as saias.
- Charlie é um verdadeiro demónio. Passa o tempo a imaginar o que deverá fazer para me aborrecer. Oh!
É o pai, tal e qual!
- Obrigado, minha querida, -disse sir Charles no limiar da porta.
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Joana pôs-se a rir.
- Eu bem sabia que estavas aí. Onde está a Gertrudes ?
- Acaba de sair, - informou sir Charles.
- Que gracinha! Ainda agora entrou de um passeio feito comigo.
- Não sei o que chamas uma gracinha, - disse ele, irritado, - mas vi-a na estrada de Riverside. Eu estava no caminho que conduz à aldeia e ela não me viu. Tinha o aspecto de uma pessoa que tem pressa.
- E eu encontrei-a na escada e falei-lhe, - disse Ágata,
- mas ela, ao que parece, não me ouviu.
- Espero que não vá deitar-se a afogar, - disse Joana. Depois, voltando-se para seu marido, acrescentou:
- Já sabes a grande notícia?
- A única que eu conheço está neste jornal, - disse sir Charles, tirando da algibeira um periódico que atirou para cima da mesa. - Vem aí uma notícia a dizer que eu me associei a uma maldita liga socialista, e sou informado de que o Times publicou um artigo sobre o desenvolvimento do socialismo, no qual o meu nome é citado. Tudo isso é obra de Tréfusis, e vejo que ele me fez partida grossa. Hei-de-lho dizer, logo que o veja.
- Tem cuidado com o que dizes dele diante de Ágata,
- acautelou Joana. - Oh, não tenhas medo, Ágata, eu sei tudo! Foi o próprio Tréfusis que nos contou a novidade na biblioteca. Saímos esta manhã, a Gertrudes e eu,
e ao voltarmos encontrámos o senhor Tréfusis e Ágata em colóquio amoroso nos degraus da estufa. Tinham acabado de concertar um casamento!
- Muito me contas! - exclamou sir Charles, desconcertado e descontente, mas esforçando-se por sorrir. - Nesse caso, posso felicitá-la?
- Não vale a pena, - respondeu Ágata fazendo todo o possível para não se perturbar. - Foi um gracejo, ou antes, foi a consequência de um gracejo. Mas ele não tinha o direito de dizer que estávamos noivos.
- Não nos contes histórias, - disse Joana. - Isso não pega, Ágata. Tréfusis partiu para enviar um telegrama a seu advogado. Ele está de boa fé, ao menos. .
- Sou uma grande imbecil! - exclamou Ágata, sentando-se e torcendo as mãos com perplexidade. - Creio que
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disse qualquer coisa que não tinha intenção de dizer e ele pegou-me na palavra antes que eu pudesse, sequer, avaliar o que tinha dito. Eis-me em bons lençóis, não
há duvida!
- Estou contente por te teres deitado neles! - disse Joana com maldade. - Nunca tiveste piedade de mim quando eu não podia responder a propósito, logo de seguida.
Ágata deixou passar o sarcasmo sem resposta. O seu olhar passeava com incerteza em volta dela e fixou-se finalmente, em sir Charles numa súplica.
- Que devo fazer ? - preguntou ela.
- Mas, menina Wylie, se não tinha intenção de o desposar, não devia tê-lo prometido. Não quero ser antipático, mas sei que é muito difícil desembaraçar-se de Tréfusis quando ele está decidido a fazer qualquer coisa. No entanto...
- Não te apoquentes por isso, - interveio Joana. - Ela quere casar com ele tanto como ele quere também. Ágata ficaria muitíssimo desapontada se ele voltasse com
a palavra atrás, apesar dos seus ares desgostosos, que a tornam tão interessante...
- Asseguro-te que te enganas, - disse Ágata com sinceridade.-Por que não pedi tempo para reflectir? Suponho que já o contou a toda a gente.
- Então podemos considerar o caso como arrumado ?
- preguntou sir Charles.
- Decerto que sim, - afirmou Joana com desdém.
- Dá licença á menina Wylie para responder ela própria, Joana. Confesso francamente que não compreendo porque está ainda indecisa, se realmente se comprometeu com o senhor Tréfusis.
- Suponho que devo resignar-me, - disse Ágata. Tenho a impressão de que há qualquer coisa que se opõe a isso fatalmente, mas não sei o que será. Desejaria não o ter jamais encontrado na minha vida.
Sir Charles sentia-se confundido.
- Não compreendo decididamente o modo de ser feminino nestes assuntos. No entanto, como parece não haver dúvida de que Tréfusis e a menina estão noivos, não direi nada que possa tornar-lhe desagradáveis as suas visitas a esta casa, mas devo afirmar que ele -para não dizer mais -
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faltou à sua consideração pessoal por mim. Assinei, outro dia um papel em sua casa, ficando implicitamente entendido que era assunto estritamente privado, e agora aparece publicado por toda a parte, ao som de trombetas, com o meu nome associado não somente com o seu, mas com o de pessoas que não conheço e com as quais não desejo ter quaisquer relações sob pretexto nenhum.
- Que importa isso ? Toda a gente encolhe os ombros,
- opinou Joana.
- Importo-me eu, que não encolho os meus, - replicou ele com cólera. - Ninguém pode acusar-me de exagerar a minha importância pessoal porque sou bastante cioso da minha reputação para me recusar a que a minha aprovação seja tornada pública, em apoio de uma causa que não me inspira nenhuma simpatia.
- Talvez o senhor Tréfusis nada tenha que ver com o caso, - disse Ágata. - Os jornais publicam o que lhes convém, creio eu.
- Justamente, Ágata, - disse Joana maliciosamente, não permitas a ninguém que diga mal dele.
- Eu não digo mal dele, -acrescentou sir Charles antes que Ágata respondesse. -É um simples caso de sentimento, e não me teria referido a isto se conhecesse as novas relações existentes entre a menina Wylie e ele.
- Não fale nisso, por favor, - pediu Ágata. - Tenho tentações de me eclipsar pelo primeiro comboio.
Para mudar de conversa, sir Charles propôs um dueto.
Durante este tempo, Erskine, que voltava do seu passeio matinal em bicicleta, tinha encontrado Tréfusis ao atravessar a vila. Teria preferido seguir para a frente com um simples cumprimento de cabeça, mas Tréfusis pediu-lhe que parasse, o que ele fez de má vontade.
- Apenas uma palavra, para lhe anunciar que me vou casar, - disse Tréfusis.
- com...
Erskine não pôde pronunciar o nome de Gertrudes.
- com uma das nossas amigas das "Faias". Adivinhe quem é.
- A menina Lindsay, suponho.
- Mas quem diabo lhes meteu na cabeça, a todos, que a menina Lindsay e eu nos entendíamos sob o aspecto amoroso
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- exclamou Tréfusis. - O senhor é que convérp à menina Lindsay. Não, é com a menina Wylie que vou casar.
- Que me diz ? - exclamou Erskine com a sensação de um brusco degelo depois de um frio cortante.
- O que está ouvindo. E agora, Erskine, o senhor, que tem a vantagem de não ter fortuna, não deixe essa esplêndida rapariga fazer um casamento de interesse. Se procura outra coisa, acontece-lhe não acertar e ela também.
Logo a seguir, cumprimentou e afastou-se, enquanto o outro o olhava espantado.
- Se ele a enganou é um patife, - disse Erskine de si para si. - Lamento não lho ter dito.
Tornou a montar na máquina e afastou-se lentamente, seguindo a estrada de Riverside. Suspeitava vagamente de Tréfusis o ter mistificado, mas estava disposto a acreditar
nele e, em todo o caso, a seguir o seu conselho quanto a Gertrudes. A conversa que ele tinha surpreendido na avenida tornava-o ainda perplexo. Como conciliá-la com
o pretenso desinteresse de Tréfusis a respeito de Gertrudes ?
Sobre as rodas silenciosas de borracha, a sua bicicleta levou-o, sem ruído, até ao sítio onde crescia a cicuta. Ali, descobriu Gertrudes sentada sobre o pequeno talude de terra que separava o campo da estrada. O cesto de palha com a tesoura estava a seu lado. Os dedos entrelaçados, as mãos poisadas sobre os joelhos. Tinha expressão vaga e parecia tão pouco a que derivava de uma emoção séria, que ele pôs-se a rir ao apear-se da bicicleta junto dela.
- Está a descansar ? - preguntou Erskine.
- Não estou fatigada, - respondeu ela, de modo nenhum surpreendida, sorrindo maquinalmente, condescendência pouco habitual na sua pessoa.
- Sonha, talvez?
- Não, - disse, movendo-se um pouco de lado para esconder o cesto com o vestido.
Ele começou a alarmar-se.
- Teria a menina ousado aventurar-se outra vez entre estas plantas venenosas? - preguntou. - Está doente?
- Não estou, - respondeu ela, como que acordando um pouco. - A sua solicitude é mal empregada. Estou muito bem.
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- Peço-lhe perdão, - disse ele, sentindo-se repelido. Pensei... Não acha que é perigoso estar sentada neste muro úmido?
- Não está úmido. Até se desfaz em pó, de seco que está.
Um riso pouco natural que terminou esta frase aumentou ainda a inquietação de Erskine. Disse umas palavras, deteve-se e, para ganhar tempo e repor-se, foi poisar
a bicicleta no fosso, do outro lado da estrada. Ela notou este gesto e ficou impaciente, porque indicava a intenção do mancebo de continuar a conversa. No entanto, foi a primeira a falar e fê-lo com uma indiferença que o chocou.
- Já sabe a novidade ?
- Que novidade ?
- A propósito do senhor Tréfusis e Ágata. Estão noivos.
- Foi o que me disse o senhor Tréfusis. Encontrei-o agora na estrada. Fiquei muito contente ao ouvir a notícia.
- É natural.
- Mas eu tinha uma razão particular para me sentir feliz.
- Ah, sim ?
- Senti um medo atroz antes de saber a verdade, que ele tivesse outras vistas... que seriam fatais às minhas mais queridas ambições...
Gertrudes olhou-o franzindo o sobrolho, mas esta atitude forçou-o a defrontá-la. Perdeu todo o domínio sobre si próprio, abalado pela estranha atitude da jovem.
- A menina sabe que a amo. Não é, talvez, um perfeito amor, mas, humanamente falando, é sincero. Já quási lho confessei, no dia em que estivemos juntos na sala de bilhar e fiz, nessa tarde, uma coisa de que me envergonho. Quando a menina estava falando com Tréfusis, na avenida, eu estava perto e escutei a conversa.
- Então ouviu-o, não é verdade ? - exclamou Gertrudes com veemência. - Ouviu-o dizer que era sincero ?
- Sim, - disse Erskine a tremer, - eu julguei que ele queria dizer sincero no seu amor por si. Não me censure: eu estava também apaixonado por si e o amor é cego e ciumento. Depois disso, perdi toda a esperança, até ao momento em que ele me anunciou que estava noivo da menina
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Wylie. Posso falar-lhe agora, sabendo que estava em erro ou que a menina mudou de ideias?
- Ou que "ele" mudou de ideias, - emendou ela ironicamente.
Erskine, de novo inquieto, deteve-se. A dignidade de Gertrudes era-lhe cara. Viu que a decepção lhe tinha feito perder o sentimento dela.
- Não me diga nada neste momento, menina Lindsay, no receio de que...
- Que tenho eu? Que quere que eu diga?
- Nada, a não ser o que me diz respeito pessoalmente. Amo-a ternamente.
Ela teve um movimento de impaciência, como se se tratasse de uma coisa perfeitamente insignificante.
- Espero que me acredite, - disse ele, timidamente. Gertrudes fez um esforço para retomar a sua reserva de
bom tom habitual, mas a sua energia faltou-lhe antes ainda de poder levantar a cabeça. Recaiu na sua atitude indiferente e esboçou um vago gesto de protesto.
- Suponho que a menina não será inteiramente insensível à ideia de ser amada, - disse ele, tornando-se mais insinuante e apertando-a mais na sua rede de sedução.-
A sua existência constitui toda a minha felicidade. Ofereço-lhe a minha dedicação. Não peço recompensa...
Falava muito depressa, quási indistintamente, e continuou:
- Pode aceitar a minha devoção sem me dar troco. Não quero nem procuro uma espécie de negócio. Se tem necessidade de um amigo, serei eu esse amigo: pode contar comigo
com tanta mais confiança quanto é certo que.a amo.
- Oh! Julga amar-me... - disse Gertrudes, interrompendo-o, - mas isso passa. Eu não sou do género de mulheres que apaixonam os homens. Não tarda que o senhor mude
de ideias.
- Não é do género! Oh, como se ilude a si própria!
- disse ele, tornando-se eloquente. - Tive tempo de sobra para mudar, mas estou mais decidido do que nunca. Se duvida, espere um pouco e ponha-me à prova. Mas não seja ríspida a meu respeito. Causa-me muito desgosto quando a vejo dura ou indiferente. Falo seriamente.
- Sim, sim, isso é fácil de dizer.
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- Não para mim. Mudo de opinião sobre os outros, conforme o meu estado de espírito, mas creio firmemente na sua bondade e beleza. Para mim, a menina é um anjo. Sou tão sincero no meu amor por si como sou sincero a respeito da minha vida pessoal, que só pode tornar-me melhor graças ao seu auxílio e influência.
- Engana-se redondamente se me julga, um anjo.
- Faz mal em não ter confiança em si. É o que lhe devo e não o que espero da sua bondade e da sua beleza: para mim, é um anjo. Sei que não se considera como tal, mas é assim que a vejo.
Ela continuou obstinadamente silenciosa.
- Não a quero forçar a que me responda imediatamente. Sou feliz em que conheça o meu pensamento. Quere que voltemos juntos?
Gertrudes voltou-se lentamente e lançou um olhar para a cicuta, outro para a ribeira. Pegou em seguida no cesto, levantou-se e preparou-se para se ir embora como se cedesse à pressão do seu apaixonado.
- Quere mais cicuta ? Corto-a de boa vontade.
- Quero antes que me deixe em paz, - respondeu ela, irritada.
Depois, acrescentou, um pouco envergonhada :
- Dói-me a cabeça.
- Pesa-me, ouvi-la confessar esse incómodo, - disse ele desanimado.
- Desejo apenas que não me digam nada. Faz-me mais dor de cabeça ouvir falar.
Erskine foi buscar a bicicleta ao fosso e empurrou-a, caminhando ao lado de Gertrudes até às "Faias", sem dizer mais palavra. Entraram pela estufa, e separaram-se na sala de jantar. Antes de o deixar, Gertrudes disse, arrependida:
- Eu não quis ser descortês, senhor Erskine.
Ele corou, murmurou qualquer coisa e quis beijar-lhe a mão, mas ela retirou-se bruscamente e saiu rapidamente do aposento. Esta forma de o repelir picou-o, deixando-o mortificado a pensar no assunto, até que o distraiu a entrada de uma criada. Sabendo por ela que Sí Charles estava na sala de bilhar, foi ter com ele e preguntou-lhe com ar despreocupado se sabia a grande notícia.
- A respeito da menina Wylie ? Sim, creio saber. Suponho
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que toda a região o sabe já, se bem que não tenham passado mais de três horas desde que eles estão noivos. Viu isto?
Estendeu-lhe dois jornais por cima da mesa.
Erskine teve que fazer um esforço antes de poder ler.
- O amigo foi um imbecil em assinar esse documento. Eu tinha-o avisado.
- Contei com a discrição desse homem, -disse sir Charles, calorosamente. - Não compreendo porque me trata de imbecil. Foi ele que se conduziu como um bandido e, se não fosse esta história com a menina Wylie, havia de lhe dizer francamente a
minha maneira de pensar a seu respeito. Permita-me que lhe diga, Chester, que ele
caçoou da menina Lindsay. Houve um barulho dos diabos lá em cima, há um momento. A menina Lindsay veio dizer à Joana que volta para sua casa. E a menina Wylie declara
que não quere saber de Tréfusis, se a menina Lindsay tem direitos sobre ele. Joana está furiosa, porque ele admira outra além dela. Isto é uma lição para mim. O meu instinto tinha-me já advertido, desde o começo, que desconfiasse deste homem.
Neste momento, foi anunciado o almoço. Gertrudes não desceu do seu quarto. Ágata esteve silenciosa e tristonha. Joana tentou fazer falar Erskine acerca do seu passeio com Gertrudes, mas ele despistou a sua curiosidade, omitindo tudo na sua narrativa, salvo os lugares comuns.
- Acho que a atitude de Gertrudes é singular, - disse Joana. - Quere a todo o custo retirar pelo comboio das quatro horas. Entendo que não é cortês para comigo este procedimento. Ela, que se gaba sempre da perfeição das suas maneiras! Nunca vi uma coisa assim!
Quando se levantaram da mesa, passaram todos ao salão. Tinham acabado de lá entrar quando Tréfusis foi anunciado, aparecendo diante deles antes que tivessem tempo de dissimular a consternação que o seu nome tinha causado.
- Venho dizer-lhes adeus, -esclareceu ele. -Tenho que voltar para a capital pelo comboio das quatro horas, para tratar dos meus assuntos. Os telegramas que recebi só me fazem prever atrasos. Viram o Times?
- Vi, - respondeu sir Charles, com energia.
- O seu nome aparece noutros jornais e não fica por aqui. Dentro de uma quinzena, meia dúzia de periódicos
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vão mencionar o seu nome. Os homens que se dispuseram a defender uma opinião sempre tiveram aborrecimentos com os jornais; uns, porque não podem lá figurar, outros porque não podem manter-se afastados. Se o senhor lançasse um manifesto revolucionário esmagador, nem um só quotidiano ousaria fazer-lhe alusão; não há covardia comparável à da Fleet Street. Mas são horas de me pôr a caminho. Tenho mil coisas que fazer antes de partir e são quási três horas. Até à vista, lady Brandem, e toda a companhia.
Deu um aperto de mão a Joana, distribuiu pequenos cumprimentos, de cabeça aos outros, não fazendo distinção em favor de Ágata, e esquivou-se. Ficaram todos pasmados durante o momento que seguiu a sua partida e Erskine saiu e desceu rapidamente dois degraus de cada vez. Teve, no entanto, que correr até à avenida para alcançar o seu homem.
- Tréfusis,-disse ele, quási sem poder respirar,-seria bom que não partisse no comboio das quatro.
- Por quê?
- Porque a menina Lindsay vai nesse mesmo comboio.
- Tanto melhor, meu caro, tanto melhor. Não tem ciúmes de mim, agora, pois não?
- Oiça, Tréfusis. Não sei e não peço que me diga o que se passou entre o senhor e a menina LSndsay, mas o seu casamento lançou-a em tal perturbação, que o resultado
é que ela vai regressar a Londres. Se sabe que o senhor vai no mesmo comboio, adia a sua partida e temo que este atraso lhe seja desagradável. Espero que não lhe infligirá este desgosto suplementar...
Tréfusis, aparentemente inquieto, olhou para Erskine com ar ambíguo e reflectiu durante instantes.
- Creio que o amigo está numa falsa pista, - disse ele.
- As minhas relações com a menina Lindsay não tiveram nada de sentimental. Falou-lhe... por sua própria conta?
- Falei, por minha conta e pela dela, e soube da Sua boca que eu tinha razão.
Tréfusis soltou um pequeno assobio.
- Não é a primeira vez que as minhas impressões me dão razão, - disse Erskine, com intenção. - Reflicta nisso seriamente,
peço-lhe, Tréfosis. Perdoe-me se lhe digo francamente que apenas a sua falta completa de sentimento
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poderia desculpar a maneira como se conduziu para com a menina Lindsay. Tréfusis sorriu:
- Pelo meu lado, perdoe-me a curiosidade: que resposta deu ela ao seu pedido?
Erskine hesitou, mostrando com clareza que Tréfusis não tinha o direito de fazer aquela pregunta.
- Não disse nada, - respondeu.
- Hni... - fez Tréfusis. - Pois bem, pode contar comigo pelo que respeita ao comboio das quatro. Dê-me a sua mão.
- Obrigado, - disse Erskine, com fervor.
Apertaram as mãos e separaram-se. Tréfusis, afastando-se, fez uma careta que tudo deixava antever, excepto a sua boa fé.
XVII
Gertrudes, ignorando até que ponto já tinha deixado transparecer o seu desapontamento, entendeu que a inquietação que lhe dava a saúde de seu pai, motivo que chegou para explicar a sua partida precipitada, era uma boa desculpa, bastante plausível para ocultar aos seus amigos a repugnância invencível que sentia por falar a Ágata,
ou suportar a sua presença, ao mesmo tempo que o seu medo feroz de ter de aceitar essa espécie de piedade que se testemunha habitualmente a uma mulher que foi repelida
e, por fim, o seu medo de encontrar Tréfusis. Tinha-o considerado, havia algum tempo, como um homem franco e perfeito, que se interessava por ela. Contudo, apesar
da sua educação relativamente livre, não podia imaginar que um homem pudesse interessar-se por uma mulher, se não tinha o desejo de a desposar.
Tinha, nos seus momentos sérios, tentado torná-la consciente da baixeza que ele via na sua mundanidade, lisonjeando-a pela sua aparente convicção, que ela partilhava, aliás, de que era capaz de um género de vida mais elevado.
Quási ao mesmo tempo, a sua incorrigível tendência para
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a galanteria, à qual o seu capricho e a sua ternura para com as mulheres de quem gostava dava variedade e encanto, sucedia à sua disposição séria, com uma rapidez que o temperamento menos maleável de Gertrudes não podia seguir a par. Era o que explicava como, julgando-o ainda sincero quando ele penetrava no romanesco colorido, ela se tinha perigosamente equivocado. Tréfusis não tinha nenhum escrúpulo de consciência no seu hábito de fazer flirt, porque não se tinha habituado a considerar-se como susceptível de inspirar amor.
Quanto a Gertrudes, ignorava que a sua beleza dava a uma hora passada em particular com ela um encanto efémero, ao qual poucos homens imaginativos podiam resistir,
Ela, que tinha frequentado o mercado do casamento depois que deixara a escola, considerava o flirt como a coisa mais séria da vida. Para ele, não era mais que um
passatempo agradável, realçado por uma nota de tristeza ao pensamento de que isso significava tão pouca coisa.
De todas as cerimónias que acompanharam a sua partida, a que mais lhe custou foi o beijo que se sentiu obrigada a dar a Ágata. No colégio tinha tido ciúmes dela, se bem que se julgasse a mais bem educada das duas; mas esta opinião apenas a tinha mediocremente consolado da vivacidade de espírito superior de Ágata, da sua habilidade manual, da sua audácia, da sua aptidão inventiva, da sua capacidade em formar ou seguir associações de ideias embrulhadas e, enfim, graças a estes dons, de poder maravilhar os outros.
O seu ciúme era agora aguçado pela consciência de que estas qualidades estavam muito mais em relação com as de Tréfusis que as suas próprias. Pouco lhe importava
como êle se julgava comparativamente a Ágata. Mas o que importava é que diante do mundo inteiro (assim pensava) Tréfusis devia julgá-la tão lenta, tão rígida, tão
fria e tão estudada e que ela não tinha nenhum meio de lhe fazer compreender que não era realmente assim.
Não queria admitir a justeza das impressões produzidas pelo que não tinha a intenção de fazer, ainda que habitualmente o fizesse. Gertrudes tinha uma teoria, segundo a qual ela não era ela, mas o que teria querido ser. Quanto à única qualidade que a fazia sentir-se superior a Ágata e a que
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chamava a sua "boa educação", Tréfusis tinha de tal modo rebaixado a ideia que ela fazia de si que acabara por preguntar ao seu foro íntimo se não seria o seu principal defeito.
Não pôde articular uma só palavra, ao beijar a sua camarada do colégio; Ágata ficou tão muda como ela, mas nos sentimentos que as estrangulavam havia muita ternura e remorso. O seu silêncio teria sido incómodo, se não fosse a loquacidade de Joana, que falava por três. Sir Charles estava lá fora com a charrette para conduzir Gertrudes à estação. No momento em que esta última saía, Erskine deteve-a na escada, para lhe dizer quanto a sua partida o desolava e suplicar-lhe que se lembrasse dele, pedido que comoveu um pouco Gertrudes e fez nascer nela o reparo de que os olhos sombrios do rapaz tinham uma eloquência particular já por ela notada nos cangurus do Jardim Zoológico.
A caminho da estação, sir Charles não deixou de excitar o cavalo, o que lhe serviu de desculpa para não levar a conversa para a razão delicada da partida da sua convidada. Fez alguns reparos sobre a índole um pouco desconfiada dos póneis, em seguida sobre o tempo, e foi tudo até à chegada à estação, edifício gracioso com uma bonita vista sobre o campo.
Diante da estação, havia carruagens que estacionavam e dois carregadores, um livreiro e uma loja de bebidas dirigida por uma formosura desamparada, que se estiolava por detrás do balcão.
Sir Charles esperou diante da bilheteira para comprar o bilhete de Gertrudes, que avançou para o cais. A primeira pessoa que ela viu foi Tréfusis, muito perto de si.
- vou à capital no mesmo comboio, Gertrudes, - disse ele com desembaraço. - Deixe-me toma-la a meu cuidado. Tenho que lhe falar porque me disseram que há um mal-entendido
entre nós, e é bom que ele seja esclarecido sem demora. A menina...
Neste momento, sir Charles apareceu no cais e ficou espantado de os encontrar conversando.
- O acaso quis que eu fosse a Londres no mesmo comboio, - acentuou Tréfusis. -vou ocupar-me da menina Lindsay.
- A menina Lindsay tem a sua criada,-disse sir Charles,
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quási gaguejando e olhando para Gertrudes, cuja expressão era impenetrável.
- Podemos subir para a carruagem Pullman, - propôs Tréfusis. - Estaremos lá tão tranquilos como num canto de salão repleto de gente. Permite-me que viaje consigo, menina Lindsay ? -- preguntou ele, reparando no olhar inquieto de sir Charles, e voltando-se para Gertrudes, para obter o seu consentimento formal.
Ela sentiu que, se recusasse, perdia a sua última probabilidade de ventura. .No entanto, decidiu recusar, ainda que morresse de mágoa. Ao erguer a cabeça parado
proibir de a acompanhar, encontrou o seu olhar grave e impregnado de esperança. Nesse momento perdeu a cabeça e respondeu:
- Sim. Dar-me-á muito prazer.
- Bem, sendo assim, - disse sir Charles, no tom de quem sente a sua simpatia alienada por uma ofensa imperdoável, - nada tenho aqui que fazer. Deixo-a ao cuidado do senhor Tréfusis. Até à vista, menina Lindsay.
Gertrudes estremeceu. Era-lhe penoso ter de suportar, no momento da separação, a falta de benevolência de um homem habitualmente bom. Estendeu-lhe a mão em silêncio, enquanto Tréfusis replicava:
- Espere até que partamos. Se nos acontecesse um desastre mortal durante a viagem, o que é sempre possível em caminhos de ferro ingleses, o senhor censurar-se-ia por não ter ficado connosco até ao último momento. Eis o comboio que chega. É apenas um minuto. Diga a Erskine que me viu aqui e que não esqueço a minha promessa. Pode contar comigo. Suba por aqui, menina Lindsay.
- A minha criada... - disse Gertrudes hesitante, porque não tinha tido a intenção de viajar de maneira tão dispendiosa. - Ela...
- Vem connosco para tomar conta de mim. Tenho bilhetes para todos, - cortou Tréfusis, ajudando a criada a subir.
- Mas...
- Suba para a carruagem, faça favor, - disse o empregado.
- Também segue viagem, o senhor?
- Até à vista, sir Charles. Os meus cumprimentos a
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lady Brandon e a Ágata, aos pequenos, e obrigado infinitamente pela agradável...
Neste momento o comboio arrancou e sir Charles enterneceu-se, sorriu, e agitou o seu chapéu até que, tendo notado Tréfusis, que o olhava num relance de nítido aspecto satânico, ficou como petrificado no meio das suas gesticulações e permaneceu de braço estendido como um semáforo. No regresso a casa sossegou um pouco, mas ainda
não o tinha abandonado a surpresa quando chegou junto de Ágata, de sua mulher e de Erskine, no salão das "Faias". No momento em que entrava, disse, sem preâmbulo:
- Partiu com Tréfusis.
Erskine, que estava lendo, deu um pulo e segurou o livro como para o atirar à cabeça de alguém, exclamando:
- Ele estava no comboio ?
- Estava na gare e levou-a consigo.
- Então, - disse Erskine, atirando violentamente o livro ao chão, - é um canalha e um mentiroso.
- De que se trata ? - preguntou Ágata, levantando-se, enquanto Joana olhava para ele de boca aberta.
- .Peço-lhe perdão, menina Wylie, tinha-me esquecido da sua presença. Jurou-me sobre a sua honra que não seguia nesse comboio. vou...
Deixou bruscamente o salão. Sir Charles precipitou-se atrás dele e alcançou-o em baixo na escada.
- Onde vai ? Que vai fazer ?
- vou seguir o comboio e alcançá-lo na próxima estação. com a minha bicicleta é possível.
- É absurdo. Está louco! O comboio tem trinta e cinco minutos de avanço e faz setenta quilómetros à hora.
Erskine sentou-se nos degraus da escada e contemplou, sem a ver, a parede em frente.
- O meu amigo com certeza que o compreendeu mal,
- disse sir Charles. - Pediu-me para lhe dizer que não tinha esquecido a sua promessa e que podia contar com ele.
- Mas de que se trata ? - tornou a preguntar Ágata, descendo com lady Brandon.
- Menina Wylie, - disse Erskine, levantando-se de um salto, - Tréfusis deu-me a sua palavra de que não seguiria no mesmo comboio. Faltou ao prometido e aproveitou a ocasião
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que eu fui bastante tolo e crédulo para lhe proporcionar. Se eu estivesse no seu lugar, Brandon, tê-lo-ia estrangulado ou empurrado para debaixo das rodas do
comboio, em vez de o deixar partir. Mostrou-se nisto, como em tudo, um bandalho, um conspirador, homem de maneiras perversas, usando de estratagemas, de manhas, de sofismas hipócritas, homem de egoísmo cobarde, de cinismo cruel...
Deteve-se, para tomar fôlego, e sir Charles aproveitou a ocasião para se interpor e censurá-lo:
- Você, Chester, excita-se sem razão. Vão numa Pullman com a sua criada e muita outra gente e a menina Lindsay autorizou-o formalmente a acompanhá-lo. O pedido foi feito claramente diante de mim, e devo dizer que me pareceu estranho que o autorizasse. Em todo o caso, aceitou e eu não podia de modo algum impedir Tréfusis de ir a Londres se isso lhe agradava. Não faça cenas, meu velho. Nada podemos fazer para lhe sermos agradáveis.
- Estou desolado, - disse Erskine, com humildade. Perdoe-me.
Subiu ao seu quarto sem acrescentar mais palavra. Sir Charles seguiu-o e tentou consolá-lo, mas Erskine tomou-lhe a mão e pediu-lhe que o deixasse só. Sir Charles voltou a descer ao salão, onde sua mulher, seriamente embaraçada, desta vez, se contentou com notarque nunca tinha ouvido nada que se parecesse na sua vida.
Ágata estava silenciosa. Havia bastante tempo que tinha chegado a esta conclusão: Tréfusis e ela eram os únicos, entre os habitantes das "Faias", que tinham um pouco de bom senso, e esta convicção tornava-lhe difícil acreditar que Tréfusis pudesse estar em erro e Erskine na razão, num
mal-entendido entre eles.
Ágata tinha uma maneira que lhe era própria de tratar de "burros" todos aqueles cujas opiniões diferiam das suas. De todas as variedades de homens, o poeta de segunda
ordem realizava ao mais alto ponto a sua concepção do burro humano, e Erskine, embora fosse na realidade um rapaz muito gentil, estruturalmente bom e cavalheiresco, não era, na sua opinião, mais que um poeta de segunda ordem e, portanto, um burro. Tréfusis, pelo contrário, era o último homem em quem ela teria pensado como sendo um gentil rapaz ou um senhor virtuoso, mas não era um burro, se bem
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que ele se mostrasse muito obstinado a respeito da sua mania socialista.
Na realidade, Ágata tinha suspeitado nele um certo fraco quási "asinino" por Gertrudes, mas todos os homens eram mais ou menos burros nas suas relações com as mulheres
e como era para ela que ele tinha transferido agora o seu fraco, não tinha necessidade de justificação. Desaparecida a sua solicitude por Erskine, que ele lamentava,
começou a encarar desfavoravelmente a viagem de Tréfusis com Gertrudes e a considerá-la como um atentado contra o seu mo nopólio recentemente adquirido sobre ele. Gertrudes tinha um ar de altivez aristocrática que Ágata tinha invejado ou trora. Temia ainda que Tréfusis o tomasse por um indicia de dignidade e perfeição.
Agata não acreditava que o seu ressentimento se assemelhasse ao que se chama correntemente ciúme, porque se julgava sempre única, mas isso não lhe dava menos a sensação
de mediocridade que não conseguia melhorar o seu humor.
O jantar foi lúgubre. Lady Brandon falava baixo, como se houvesse um defunto no aposento ao lado. Erskine estava deprimido pela consciência de ter perdido a cabeça
e procedido como um tonto naquela tarde. Sir Charles não fingia ignorar a incerteza na qual todos estavam esperando notícias da viagem a Londres. Comeu e bebeu e
não disse nada. Ágata, desgostosa de si própria e de Gertrudes e incerta de o estar a respeito de Tréfusis ou de se fiar afectuosamente nele, seguiu o exemplo do
dono da casa. Depois do jantar, acompanhou sir Charles numa série de melodias de Schubert. Isto foi mais um agravamento do que um alívio da situação. Sir Charles,
que exprimia muito bem a melancolia, tinha preferência por este género de melodias; e como as suas ideias musicais, tal como as da maior parte dos ingleses, se fundavam
no que ele tinha ouvido na igreja na sua infância, o seu estilo era de uma monotonia esmagadora. Ágata aproveitou a primeira desculpa que se apresentou para deixar
o piano. Sir Charles sentiu que a sua execução tinha sido um fiasco e notou, depois de um ou dois pequenos acessos de tosse, que tinha apanhado frio ao voltar da
gare. Erskine estava sentado num canapé, de cabeça baixa, com as palmas das mãos juntas e pendentes entre os joelhos.
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Ágata estava à janela olhando os raios de sol. Joana bocejou e rompeu o silêncio.
, - Tens exactamente o mesmo ar que outrora na escola, Ágata. Quási posso imaginar que estamos de novo na 6.a ?classe.
Ágata abanou a cabeça.
- Tenho eu também o mesmo ar que nesse tempo ?
- Nunca, - replicou Ágata com convicção, voltando-se
olhando para a silhueta de que Joana Carpenter tinha sido a antecipação não ainda desenvolvida.
- Mas por que não ? - preguntou Joana lamurienta. Não vejo porquê. Não estou assim tão mudada!
- Tornaste-te uma mulher extremamente bela, Joana,
- disse gravemente Ágata.
Depois, sem saber porquê, voltou o olhar atento para sir Charles, que o sustentou pouco à vontade e deixou o aposento. Um minuto mais tarde voltou com dois sobrescritos cor de camurça na mão.
- Um telegrama para si, menina Wylie, e outro para Chester.
Erskine, deu um salto, pálido, preso de vago terror. As cores de Ágata desvaneceram-se e voltaram mais intensas, enquanto Ha:
"Cheguei bem e ridiculamente feliz. Leia mil coisas nas "ntrelinhas. Escrevo amanhã. Boa noite."
- Podes ler, - disse Ágata, passando o telegrama a Joana.
- Muito bonito, - disse esta. - Uma atenção com o valor de um xelim. Não chega a vinte palavras. Tem razão era se dizer economista...
De repente, um riso triunfante de parte de Erskine obrigou-as a voltarem-se e olharem para ele.
- Que absurdo! - disse ele, corando. - Que tipo tão excêntrico! Aliás, não ligo a menor importância a isto.
Ágata pegou num canto do telegrama e puxou-o suavemente para ela.
- Não, não, - disse ele, segurando-o solidamente. É estúpido. Não creio que deva...
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Ágata deu um puxão decisivo e leu alto a mensagem assim concebida da parte de Tréfusis:
"Perdoo-lhe os seus pensamentos depois que Brandon voltou a casa. Escreva esta noite e siga a sua carta para receber de viva voz uma resposta afirmativa. Bem lhe tinha prometido que podia contar comigo. Ela ama-o."
- Nunca ouvi coisa parecida na minha vida. Nunca, palavra de honra! - exclamou lady Brandon.
- Não há dúvida de que é um homem incompreensível,
- confirmou sir Charles.
- Pela minha parte estou contente que ele não seja tão mau como o querem fazer, - disse Ágata. - Pode acreditar o que ele diz, senhor Erskine. Proceda como ele lhe aconselha. Seguramente Tréfusis tem razão.
- Ora! - retorquiu Erskine, fechando o telegrama e guardando-o na algibeira, como se não merecesse resposta.
Mas não tardou a desaparecer e não mais foi visto durante a noite. No momento de se despedir, ao deitar, sir Charles preguntou a um criado onde estava o senhor Erskine.
- Está na biblioteca a escrever, meu senhor.
Charles trocou um olhar significativo com os outros e todos se foram deitar sem o incomodar.
XVIII
Quando Gertrudes se encontrou na Pullman ao lado de Tréfusis, preguntou a si própria como era que ia de viagem com ele, ao invés da sua resolução e até da sua vontade. Em presença de duas senhoras que a examinavam como se suspeitassem de que estava ali com propósitos pouco honestos, de um viajante que a admirava um pouco mais longe, da sua criada que lia os jornais de Tréfusis fora do alcance do ouvido, de um fidalgo campesino, indiferente, que olhava através da janela, de um camponês
preocupado com a leitura do Economista, enfim, de uma senhora cortês que se
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abstinha de a olhar de frente, mas não de a observar à sucapa, sentiu Gertrudes que não seria próprio fazer uma cena; contudo, duvidava de que Tréfusis estivesse
ali para uma conversa corrente. Sem mais preâmbulos, ele foi direito ao fim:
- Que diz do meu casamento ? Era superior às suas forças.
- Em que me pode isso interessar ? - preguntou ela, com indignação. - Nada tenho que ver com isso.
- Nada? Então, é muito fria. Julgava que a menina Lindsay fosse uma das minhas amigas mais seguras.
Ela fez um movimento como para olhar para ele, mas deteve-se, franziu os lábios e fixou o lugar vago diante dela. A censura que ele merecia excedia os seus meios
de expressão.
- Apego-me ainda a esta crença a despeito da sua indiferença a meu respeito. Mas confesso que não sei bem como levá-la a simpatizar comigo neste assunto. Em primeiro
lugar, nunca foi casada-; eu já o fui. Em seguida, é muito mais nova que eu a muitos respeitos, além da idade. É mais que provável que metade das suas ideias a este respeito derivem de romances, nos quais o resultado feliz anda ligado a condições muito mal estudadas para o produzir e que, na vida real, não o produzem quási nunca. Se a nossa amizade fosse um capítulo de romance, qual seria a conclusão? Eu casaria consigo ou a minha perfidia lhe esmagaria o coração.
Os olhos de Gertrudes procuraram em volta, como se buscassem por onde ela pudesse fugir.
- Mas as nossas relações são as da vida real e mais encantadoras até, de modo que nunca pensei em a desposar, mas em conquistar a sua amizade, que gozei sem pensar noutra coisa. Por seu lado, os seus sentimentos a meu respeito, igualmente desinteressados, não devem levá-la a esmagar o seu coração. No entanto, a menina está,
julgo eu, um pouco magoada por eu ter tomado uma resolução tão séria como a de desposar Ágata sem lhe ter confiado a minha intenção. E castiga-me dizendo que nada tem que ver com isso. Mas este projecto não foi premeditado. Eu nada tinha, portanto, que dissimular. Foi tudo concebido e executado em menos de um minuto.
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"O meu primeiro casamento foi uma tola aventura de amor e um erro. Isso não impede que eu tenha decidido que devia tornar a casar-me. Um celibatário é um homem que teme as responsabilidades e os deveres. Eu procuro-os e considero que, dada a minha superfluidade de meios materiais, é do meu dever não deixar os individualistas incluírem-me no seu número. Mas não tinha pressa. Tinha outra ocupação e gostava da minha liberdade de celibatário. Preguntava a mim próprio, às vezes, se eu tinha o direito de procriar mais ociosos para os trabalhadores os sustentarem. £ havia o problema difícil da escolha da minha companheira. Não queria uma mulher que me servisse, porque eu sei servir-me a mim próprio. Também não procurava ser amado com devoção, porque a raça ainda não produziu homem susceptível de ser amado, quando
é intimamente conhecido, porque nem sequer o amor de si próprio é profundo e constante. Queria uma companheira que simpatizasse comigo nas coisas da vida doméstica
e a Ágata apareceu-me subitamente como sendo a que mais se aproximava do que eu desejava e poderia encontrar no mercado do casamento. E, de facto, extremamente
difícil achar quem responda exactamente aos nossos desejos, e as ocasiões mais convenientes muitas vezes disputadas são apanhadas por outros e hesitamos muito tempo na esperança de encontrar melhor.
"Admiro as qualidades de coração e de espírito de Ágata, e alimento a esperança de vir a ser amado por ela. Creio que uma ligação que começa assim pode tornar-se uma união tão íntima como é higiénico e necessário que exista entre dois indivíduos diferentes. Posso enganar-me sobre o seu carácter, porque não a conheço como a conheço a si e, até agora, não tenho ainda bastante fé nela para lhe dizer o que está ouvindo. Contudo, há. em toda esta história uma feição romanesca divertida. Ágata tem encanto, não acha ?
A emoção de Gertrudes tinha-se dissipado. Respondeu com fria ironia:
- Tudo isso é, com efeito, muito romanesco. Ágata teve sorte.
Tréfusis teve um risinho, que foi um meio suspiro de alívio, ao vê-la tão senhora de si.
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- Isso parece e é na realidade o cálculo egoísta de um viúvo desiludido. A menina não ligaria importância a uma tal oferta e não invejaria a que a recebe.
- Decerto que não, - disse Gertrudes, com um desdém tranquilo.
- Contudo, atrás de todas as ofertas deste género, há sempre o cálculo. Casamo-nos para satisfazer as nossas precisões e, quanto mais essas precisões são razoáveis,
mais probabilidades temos de as poder satisfazer. Vejo que irrito os seus sentimentos; é o que eu temia. A menina é daquelas que não admitem nenhuma desculpa aos
casamentos que se fazem à margem do amor... do puro amor emotivo que fecha os olhos à razão.
- Não me ocupo de...
- Não diga isso, Gertrudes. Observo cada um dos seus actos com solicitude e não creio que seja indiferente ao mérito da minha atitude. Creia-me: o amor é uma paixão que nós exageramos, e ficaria irremediavelmente desacreditado se os jovens e os romancistas que vivem das suas loucuras não tivessem um interesse constante em reabilitá-lo. As relações mútuas conduzem a deveres partilhados e um comércio contínuo entre dois indivíduos não pode subsistir se apenas se baseia no amor. E, contudo, não deve desprezar-se o amor quando emana de uma bela natureza. Há um homem que a ama justamente como a menina entende que eu deveria amar Ágata... e como eu não a amo.
A emoção de Gertrudes voltou a manifestar-se e o seu rosto ganhou cores.
- Não tem o direito de me dizer essas coisas agora, frisou ela.
- Por que motivo não defenderia eu a causa de um outro ? Refiro-me a Erskine.
As cores de Gertrudes desapareceram, enquanto Tréfusis continuava:
- Desejo que o despose. Quando estiver casada, acabará por me compreender melhor e a nossa amizade, abalada, por agora, tornar-se-á mais profunda porque ouso afirmar-lhe
agora que não poderá mais iludir-se, que nenhuma mulher me é mais querida que a menina. Eis a inevitável razão egoísta. Erskine não tem fortuna e a sua pobreza consoladora,
se assim posso exprimir-me, evitará à menina
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a covardia de casar por dinheiro ou a situação em cujo perigo caem constantemente as mulheres da sua classe. Elas cortejam a fortuna, mas a menina devia evitá-la.
Esse homem é digno e ama-a; é jovem, saudável e um partido conveniente. Julga que o mundo tenha melhor para lhe oferecer ?
- Muito mais, assim o espero. Muito, muito mais.
- Receio não dar às coisas uns nomes suficientemente romanescos. Erskine é poeta. Poderia ser um herói, se fosse possível a um homem ser herói neste século XIX, que ficará infame na história como o século em que os maiores progressos do homem sobre a natureza não serviram para mais do que aguçar a sua rapacidade e tornar a fome o seu instrumento confessado. Erskine, pelo menos, não é nem jogador, nem pessoalmente um condutor de escravos. Se vive do trabalho roubado, não o pode evitar, assim como eu próprio não posso. Não me diga que espera muito mais, mas diga-me, se o pode fazer, que probabilidades tem de obter esse "mais". Note que não pregunto o que deseja mais. Nós todos desejamos coisas inexprimíveis. Pregunto-lhe somente o que pode obter a mais do que eu lhe descrevi.
- Não vi que o senhor Erskine fosse a personagem maravilhosa de que o senhor fala.
- É apenas um homem. Conhece algum melhor?
- Além disso, a minha familia poderia não aprovar esse casamento.
- Quanto a isso pode ficar certa de que, efectivamente, não aprovará. Se lhe importa satisfazer a sua familia, venda-se a um rico vampiro da indústria ou a um grande proprietário rural. Se, pelo contrário, se entrega a um pobre poeta que a ama, a animosidade da sua família não terá limites. Na época actual, quando uma rapariga quere fazer honra ao pai e à mãe e satisfazê-los pessoalmente, deve desonrar-se ela própria.
- Não compreendo por que razão o senhor tem tanta pressa de me casar com outro qualquer.
- Outro qualquer ? - preguntou Tréfusis, um pouco intrigado.
- Não quero dizer outro qualquer, - replicou Gertrudes com vivacidade, corando. - E para que me casarei ?
- Para que nos casamos nós todos? Por que me caso
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eu? É uma função que deve ser satisfeita. Se não se casar depressa segundo a sua escolha, será impelida a fazê-lo mais tarde pela importunação dos seus pretendentes
e da sua família e pelo aborrecimento causado pela espera de uma situação definitiva. Não se estrague e não se venda. A felicidade de Erskine está aí empenhada tanto como a sua própria, e, contudo, ele ofereceu-se sem temor. Gertrudes ergueu altivamente a cabeça.
- É verdade, - continuou Tréfusis, notando este movimento com uma certa cólera, - que ele a estimaria mais que a menina merece; ao passo que, pela sua parte, não
pensa dele o que deve. Quando o desposar terá que o salvar de um cruel desencanto, elevando-se ao nível em que ele a colocar. Isso exigirá um esforço da sua parte e esse esforço ser-lhe-á salutar, quer ele falhe, quer seja coroado de êxito. Quanto a Erskine, achará o justo nível na sua estima, se os seus pensamentos se elevam
bastante alto para atingir esse nível.
Gertrudes fez um movimento de impaciência.
- Quê? -disse ele, acalorado. - Os meus sacrifícios de grande fôlego desagradam ao deus da razão? Temo torná-los involuntariamente tais, porque tenho ciúmes desse
homem, no fim de contas. No entanto, sou pessoa séria; quero vê-la casada, o que não me impedirá de secretamente detestar o homem que vai desposá-la. Ágata suspeitará que faço uma traição se a não casar com Erskine; e a menina ficará triste, será infeliz e... não casada.
As faces de Gertrudes coloriram-se à palavra "ciúme" e ao nome de Ágata.
- E se eu o aceitar por marido, - disse ela, amargamente,- que se passará?
- Se o .aceita, o espírito de Ágata ficará tranquilo, Erskine será feliz e a menina também Sacrifica-se, mas gozará a felicidade que daí deriva quando o sacrifício
vale a pena.
- Foi o senhor quem me sacrificou, - disse ela, desprezando toda a reticência e fixando-o pela primeira vez desde o começo da conversa.
- Bem sei, - disse ele, inclinando-se para ela e quási segredando estas palavras. - Não será a renúncia o prólogo da sabedoria? Sacrifiquei-a, de preferência a profanar a
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nossa amizade, pedindo-lhe que partilhasse toda a sua vida comigo. A Gertrudes não foi feita para isso e eu comprometi-me com outra. Suplico-lhe que siga o meu exemplo, de modo a não deixar lugar à tentação mútua de cometer um acto que nos mostraria bem depressa que eu tinha razão de lhe dizer que o evitasse. Nunca a deixei penetrar nos aposentos reservados da minha consciência, mas há aí um santuário que lhe destino e conservarei sempre inviolado. A própria Ágata não tem a chave desse recinto e deverá contentar-se com os restantes aposentos; salão, sala de jantar, casa de trabalho e o resto. Estes não lhe conviriam a si; não gostaria nem do mobiliário, nem dos ocupantes
a si;
e não tardaria que se aborrecesse do próprio dono da casa. Quere contentar-se com o santuário?
Gertrudes mordeu o lábio. As lágrimas subiram-lhe aos olhos. Fitou Tréfusis implorativamente. Se estivessem sós ter-se-ia lançado nos seus braços, suplicando-lhe que desprezasse tudo, salvo a profunda ternura que os ligava um ao outro.
- E é capaz de me guardar um cantinho do seu coração?
Ela levantou lentamente os olhos e cravou nele um olhar doloroso em sinal de assentimento.
- Quere ser animosa e sacrificar-se ao pobre homem que a ama? Ele a salvará de uma solidão inútil e de um casamento mundano. Não posso suportar o pensamento de que uma ou outro possam ser o seu quinhão neste mundo.
- Não me interessa Erskine, - disse ela, mal podendo dominar a voz, - mas caso com ele, se é esse o seu desejo.
- Desejo-o sinceramente, Gertrudes.
- Então prometo-o,- disse ela com um resto de amargura.
- E não me esquecerá? Erskine terá tudo, salvo... uma terna lembrança... um nada.
- Posso eu fazer mais do que prometi ?
- Não, sem dúvida, mas sou muito egoísta para conceber qualquer coisa de mais generoso. A nossa renúncia nos ligará um ao outro como a nossa união não o poderia jamais fazer.
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Trocaram um prolongado olhar. Em seguida, ele tirou o relógio e pôs-se a falar da duração da sua viagem que tocava o fim. Quando chegaram a Londres, a primeira pessoa que viram no cais foi Jansénio.
- Vejo que recebeu o meu telegrama, - disse Tréfusis.
- Obrigado por ter vindo. Quere esperar-me um momento, até meter esta dama numa carruagem ?
Quando o veículo se aproximou e Gertrudes se instalou com a criada, Tréfusis segredou com animação:
- Apesar de tudo, tenho uma dor aqui, - disse, indicando o lugar do coração. - Foi animosa e eu fui ajuizado. Não me fale, mas lembre-se de que somos amigos, profundamente e para sempre.
Apertou-lhe a mão e voltou-se para dizer a direcção. Gertrudes encolheu-se a um canto, enquanto a carruagem arrancava. Tréfusis, então, arqueou o peito como quem acaba de ser aliviado de uma estopada aborrecida e foi ter com Jansénio.
- Eis uma autêntica mulher, - disse ele. - Persuadi-a a seguir o melhor caminho que se lhe abria diante dos passos. Comecei por fazê-la escutar a voz da razão durante meia hora e não me deu ouvidos; então lancei mão de um love de tolices romanescas da pior espécie durante cinco minutos, e deixou-se convencer com as lágrimas nos olhos. Tomamos este fiacre?
Deu o endereço: Avenida Belsize.
- Sim, -continuou Tréfusis,- às vezes é preciso falar às mulheres conforme a sua feminidade, assim como se fala a um alienado conforme a natureza da sua loucura. Já alguma vez o senhor preguntou a si próprio, Jansénio, se eu sou um homem desabitualmente honesto ou, pelo contrário, um dos piores produtos da organização social para cuja destruição eu dispendo toda a minha energia, numa palavra: um infernal canalha?
- Basta de absurdos, sim?-replicou Jansénio. -O que eu tenho preguntado aos meus botões é como pode um homem inteligente conduzir-se e falar como o senhor se conduz e faial
- Entendo que um pouco de hipocrisia, à guisa de clorofórmio, para evitar a uma mulher uma chaga na sua vaidade, é desculpável. A propósito, tenho que enviar dois
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telegramas na primeira estação por onde passarmos. Meu caro senhor, vou casar-me com Ágata. Como lhe disse por escrito, havia nas "Faias" outro celibatário e outra
virgem e também eles estão noivos. Desta forma:
João-Pateta terá a sua Joana-Tonta. E tudo, deste modo, acaba em bem.
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Apêndice
Carta do senhor Tréfusis ao autor:
"Prezado senhor:
"Verifico que os meus amigos não ficaram muito satisfeitos com o que o senhor disse deles no seu engenhoso romance intitulado An Unsocial Socialist (). Compreende bem que considero do meu dever comunicar toda a minha história sem reservas a todo aquele que deseje ser guiado ou posto de sobreaviso pela minha experiência e que estou longe de simpatizar com o estado de espírito que levou uma das damas interessadas a dizer-nos que os seus assuntos não dizem respeito nem ao senhor, nem aos seus leitores.
"Quando me pediu, há alguns anos, autorização para utilizar a minha história, disse-lhe que tinha incontestável direito a dar-lhe a maior publicidade, quer eu consentisse
ou não. A única restrição que eu fazia era que não a falsificasse com o fim de tirar dela efeitos artísticos. Agora, admitindo de boa vontade que o senhor fez todo
o possível para cumprir esta condição, não posso deixar de reconhecer que, apresentando os factos sob a forma de ficção, o senhor os patenteou, sem querer, sob uma luz desfavorável. Os factos descritos nos romances são julgados segundo um sistema moral romanesco, tão fictício como as próprias acções. Neste sistema, os papéis tradicionais, como Cervantes tentou demonstrar, são, pela maior parte, bárbaros e antiquados; as adições modernas que se lhes fizeram, são, em geral, devidas aos leitores e aos autores de romances do nosso século.
"São, pela maior parte, mulheres apenas meio educadas com alma de escravas, supersticiosas e sentimentais a um ponto revoltante, cheias de um egoísmo intenso, engendrado pela sua luta para se libertarem pessoalmente, vivendo fora da família sem outro sentimento social além do amor.
"Durante este tempo, o homem que não se bateu e não
() Título original do presente romance.
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ganhou a batalha para se libertar pessoalmente, senão para se encontrar mais escravo ainda que antes, afasta-se com rancor do seu sonho egoísta de independência para se ocupar dos interesses colectivos da sociedade, descobrindo que a sua própria felicidade está inextricàvelmente ligada à felicidade social. Mas o homem, chegado a este ponto (porque nem todos o teriam atingido l! não tem ainda o vagar de escrever ou ler romances.
"No pais do romance, é ainda a mulher que impõe o seu tipo moral. Para ela, os machos que se revoltam contra a ideia de que a embriaguez de um par de namorados é
a manifestação mais nobre do instinto social, e de que o afecto deve restringir-se ao círculo estreito dos liames de sangue e as simpatias políticas ao interior
das fronteiras, não são mais que brutinhos sem coração. Eis exactamente como eu fui considerado por certos leitores do seu romance. E é o que eu sou, com efeito,
segundo o tipo da moralidade fictícia feminina. De aí resultou que alguns críticos puderam, de modo plausível, fingir que consideravam este livro como uma sátira
social.
"Pode ser que tal tenha sido a sua intenção. Quer seja, quer não, lamento que o senhor tenha escrito um romance sobre a minha história; e lamento porque é quási como se o senhor me representasse, de ponta a ponta, sob falsas cores.
"Contudo, confesso que no conjunto o senhor relatou os factos com imparcialidade cheia de escrúpulos. Lisonjeia-me que tenha feito de mim um homem que pensa constantemente nos outros e pelos outros, enquanto estes não pensam senão em si próprios. Mas, por
outro lado, mostrou-se cheio de contradição qualificando-me de insociável, o que é, certamente, o último adjectivo que eu poderia esperar colado ao meu nome. Nego, é verdade, que o que se convencionou chamar actualmente "sociedade" seja de
verdade a sociedade real; e o melhor voto que faço é que se dissolva muito rapidamente e que os que não pertencem à sociedade facilitem a sua dissolução, reduzindo-a a mil pedaços. Mas nenhum leitor de An Unsocial Soclalist tem necessidade de que se lhe diga como, graças à prática de um certo tacto experiente (que visto de fora tem, talvez, a aparência de ser o contrário do tacto), consegui ficar em bons termos com as
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mulheres, os homens de todas as classes, inclusive aqueles cuja opinião e atitude política me pareciam das mais perigosas.
"No entanto, não tenho a intenção de discutir em pormenor a minha situação pessoal com medo de parecer enfadonho e de ser acusado (o que não seria a primeira vez)
da mania de discorrer, censura que acode muito naturalmente da parte das pessoas cujas concepções não são nunca mais vastas que as que se exprimem nos limites de
um telegrama de vinte palavras. Limito-me a corrigir alguns lapsos que surgiram, dizem-me, entre os leitores que têm este hábito inveterado de não poderem transpor
as personagens e os factos de um romance para a vida real.
"Antes de mais, desejo que se saiba que a senhora Erskine não morreu de desgosto. Erskine e eu com nossas esposas visitamo-nos com frequência e estou, portanto, bem informado para declarar que a senhora Erskine, depois de ter escapado, pelo seu casamento, da casta abjecta na qual vivia relativamente pobre, artificialmente desgraçada e melancólica, é agora, na sua qualidade de linda esposa de um crítico de arte, relativamente rica, ao mesmo tempo que agradável, activa e saudável.
"O seu principal aborrecimento, tanto quanto posso avaliar, é a impossibilidade em que se encontra de se desembaraçar dos seus parentes distintos, que deixam furtivamente o seu triste esplendor para caírem de improviso em casa dela, à hora de jantar, e gozarem um pouco de companhia agradável e sincera e isso com muito mais frequência que conviria ao pobre Erskine.
"A senhora Erskine dispôs-se a proteger afectuosamente seu pai, o almirante, que aceita a sua condescendência com gratidão à medida que a idade lhe faz sentir a futilidade da sua posição social. Tornou-se assim aquela senhora, como era natural esperar, uma fervorosa defensora das minhas ideias. Tem tanta pressa de ver um novo estado de coisas, que me considera já como um apagado discípulo, porque eu não me proponho precipitar o lento movimento de mó da evolução e efectuar a mudança por um enérgico movimento das massas.
"Quanto ao meu próprio casamento, houve graciosos que preguntaram se eu não me tinha escapado outra vez.
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Outros querem saber se sou feliz. São preguntas tolas. O meu casamento não foi outra coisa além do que eu esperei que fosse. Quanto a minha mulher, verifico que as suas ideias a este respeito variam consoante as circunstâncias, segundo as quais são expressas.
"Passemos agora à sua narrativa, a propósito da qual tenho um ou dois reparos a fazer quanto às impressões que ela sugere. Na minha opinião, o senhor não deu bastante importância ao extraordinário destino de meu pai, verdadeiro herói do século XIX. Eu, que vi a sociedade aceitar com repugnância e por nada obras de génio oferecidas porhomens estupendamente dotados e, por outro lado, ter a fraqueza de pagar milhões a meu pai e submeter-se a monstruosas hipotecas sobre a sua produção futura, em troca de alguns conselhos sobre a forma mais prática de trabalhar e vender o algodão, não posso deixar de preguntar, fazendo o cálculo dos meus lucros para o imposto de rendimento, se a sociedade não é estúpida ao proceder assim com pessoas como ele e eu. Meu pai era um homem que tinha o poder de comprar, de construir, de escolher, de dotar, de ter assento numa comissão e de julgar um projecto, de impor as suas próprias condições para colocar fosse o que fosse numa sólida base de negócios. Era detestado, invejado, desprezado, por causa da sua origem humilde. Censuravam-lhe a sua ignorância: contudo, nenhum negócio dava lucro se ele não o aprovava ou fingia aprová-lo. Olho para os nossos edifícios, estátuas, quadros, jornais, lares, livros, veículos, moral, maneiras, estatutos e religião, e por toda a parte vejo a sua mão, porque tudo foi feito ou modificado par lhe agradar. Os que lhe desagradaram faliram comercialmente; não quis comprá-los nem ampará-los; fora da sua acção como "senhor da situação industrial", nada podia ser comprado, vendido ou favorecido.
"O proprietário de terras nada podia fazer dos seus hectares, a não ser alugar-lhos; as riquezas dos capitalistas dispersavam-se até que lhe fossem entregues; o
cérebro e os músculos dos trabalhadores eram impotentes antes de lhe serem vendidos. Qual o filho de rei que não trocaria a sua sorte pela minha, sendo eu o filho
do Grande Chefe da Indústria, do Príncipe Negociante?
"Nada admira que tivessem querido enclausurar-me por
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traição quando, querendo aplicar o meu talento hereditário para os negócios, propus um plano que assegurava à sociedade todas as vantagens de meu pai por alguns
milhares de libras por ano.
"Mas, esperando a adopção do meu plano, não fale dele com desprezo como o de um vulgar comerciante. A realeza industrial, única verdadeira realeza do nosso século,
era sua pelo direito divino do seu talento para os negócios e eu, seu filho,
peço-lhe que respeite a coroa cujos rendimentos me tocaram por herança. Se recusa, meu
amigo, o seu livro não lhedará resultado.
"Vejo com alguma surpresa que a minha benevolência para com Hetty, minha primeira mulher (como se recorda) foi posta em jogo. Porquê, não o sei ao certo. Sem dúvida que não deveria tê-la desposado, mas é perder o seu tempo querer avaliar o raciocínio de um jovem amoroso. Como não aprovo a forma habitual de abandonar uma esposa e de a evitar sem cessar de guardar as aparências, não vejo como poderia proceder de outro modo senão eclipsando-me quando dei pela ilusão em que vivia. É política de vistas curtas querer melhorar uma situação que forçosamente não pode tornar-se senão cada vez mais tensa. A ideia de que fui eu o causador da sua morte é pura tolice; não tenho necessidade alguma de me justificar, mas devo declinar a honra de ter suportado a sua morte filosoficamente. Deveria tê-lo feito, mas a verdade é que o acontecimento me afligiu bastante, e a prova está em que eu e Jansénio (a única pessoa, além de mim, que sofreu com isso) nos conduzimos de modo bastante inconveniente, como fazem invariavelmente os homens quando estão verdadeiramente transtornados. Raras vezes nos conduzimos com a calma devida perante a morte. Apenas o cangalheiro o consegue, porque tem a vantagem de estar livre de toda a emoção.
"A sua história sem pés nem cabeça (desculpe a expressão), a propósito da lousa fúnebre, dá uma ideia completamente falsa da minha atitude nessa ocasião. Deixei-me ficar afastado da cerimónia fúnebre por causas que são, creio, bastante compreensíveis e naturais, mas que o senhor parece não ter apreendido, não sei porquê.
"Admitindo que o meu amor por Hetty não fosse mais que uma nuvem de ilusões, eu não podia de maneira nenhuma,
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alguns dia apenas depois de sua morte tão súbita, tomar parte, a sangue-frio, numa mascarada grotesca e pagã atrás do seu esquife. Sinto que teria estoirado
e estrangulado alguém. Mas sobre todos os outros pontos tenho, por fraqueza, sacrificado os meus sentimentos aos de Jansénio.
"Deixei que ele fizesse o funeral a seu gosto, apesar de não admitir enterros nem a prática da sepultura. Aceitei o monumento fúnebre, se bem que, na minha opinião, não haja prova mais amargamente ridícula da vaidade humana que esses blocos de mármore erectos para anunciar à posteridade que João Smith ou Joana Jackson, de tal localidade, nasceram, viveram e morreram deixando ficar dinheiro suficiente para pagar a um canteiro, afim de distinguir os seus ossos dos de milhões de seres esquecidos. Para dar prazer a Jansénio renunciei à minha oposição e não intervim senão para impedir que ele fosse esfolado e intrujado por um intermediário supérfluo de West End que teria, por fim, feito apelo ao homem a quem eu confiei o trabalho. O próprio epitáfio não dimanou de mim. Se eu tivesse podido proceder segundo o meu desejo, teria escrito: "Henriqueta Jansénio, nasceu em tal data, desposou um homem chamado Tréfusis e morreu em tal data, mas que importa tudo isto ?" £ ainda quando o senhor conta que, neste particular, saltei a pés juntos por cima de toda a gente e não consultei senão os meus próprios sentimentos, diz exactamente o contrário da verdade.
"Quanto a todas essas tolices que se passaram em casa dos Brandon e terminaram pelo casamento de Erskine e o meu com as jovens visitantes que ali se encontravam, não posso deixar de o felicitar pela resolução com que o senhor se esforçou por tirar uma história romanesca de um material tão magro. Não direi que me lembro exactamente de tudo, tal como o senhor o descreve; minha mulher declara que não há ali uma palavra verdadeira no que lhe diz respeito, ao passo que a senhora Erskine está firmemente resolvida a não ler o livro. Há um ponto sobre o qual, devo confessar, o senhor se mostrou mestre na arte da ficção. O que Hetty e eu dissemos no dia em que ela me surpreendeu na moita do colégio dÁlton, só nós dois conhecemos. Ela não o disse a ninguém e eu depressa o esqueci. Honras sejam tributadas, portanto, ao engenho com o qual o senhor completou
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essa lacuna, indicando o que se passou entre nós num longo discurso sobre a "tnaior-valia", espremido do mau relato de uma das minhas conferências públicas
e das páginas de Karl Marx. Se o senhor fosse um economista, eu condenava-o por ter confundido as considerações económicas com as morais e pela incerteza quanto
à função que meu pai desempenhou para assegurar os seus começos. Mas como o senhor é um romancista, felicito-o sinceramente pelo seu "pastiche", apressando-me a
declarar, no entanto, que, como relato do que se passou entre Hetty e mim, é o romance mais extravagante que jamais foi escrito. O moço de Wickens aproximou-se mais
da verdade.
"Em conclusão: permita-me que lamente que o senhor não possa encontrar um emprego melhor para o seu talento que escrever romances. O primeiro resultado literário do nosso sistema industrial, baseado sobre os benefícios da pirataria e do comércio de escravos, foi Shakespeare.
"Para nossa desgraça, a miséria sórdida e o horror sem esperança do seu estudo sobre o destino do homem, aplica-se ainda tão bem à sociedade de hoje que o consideramos como o representante, não de uma época, mas de todas. Contudo, a poesia do desespero não sobreviverá ao próprio desespero. Os romancistas do século XIX não chegam às abas da veste de Shakespeare. Não se pendurem nelas, por que essas cairão rapidamente no esquecimento. Creia-me, caro senhor, seu muito dedicado
Sidney Tréfasis."

 

 

                                                                  Bernard Shaw

 

 

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